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Recebido: 29.11.2014
Aprovado: 10.02.2015
Resumo: O presente artigo se propõe a discutir a relação entre a teoria sociológica desen-
volvida por Émile Durkheim e as ideias conservadoras clássicas. Por um lado, visa-se com-
preender em que medida o sociólogo francês absorveu elementos conservadores em sua so-
ciologia e, por outro, se esta suposta influência bastaria para atribuir à obra durkheimiana
uma rubrica conservadora. Com isso, pretende-se evitar possíveis rótulos ou tipificações,
quase sempre reducionistas e incapazes de dar conta de toda a complexidade que envolve
uma produção teórica de grande fôlego, como a de Durkheim. A análise empregada é emi-
nentemente bibliográfica e revisionista, assentando-se tanto em fontes primárias quanto em
fontes secundárias. Palavras-chave: conservadorismo, liberalismo, sociologia, moral e me-
todologia.
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co sob o qual nos debruçaremos no presen- não menos ingênua destes, o conservado-
te artigo. rismo não é apenas uma doutrina política,
Para tanto, achamos por bem di- mas a essência da própria vida. Ora, con-
vidi-lo em quatro partes. Na primeira de- quanto imbuídos de um discurso pretensa-
las, visamos definir as linhas gerais do que mente científico, esses autores pouco ou
se denomina “conservadorismo clássico ou nada contribuem para elucidar a origem do
moderno”. Trata-se, pois, de percorrer, pensamento conservador, visto adotarem
historicamente, o desenvolvimento dessa uma perspectiva intemporal e a-histórica,
corrente – sobremaneira na Grã-Bretanha, na qual o homem é concebido como um ser
França e Alemanha –, buscando, assim, estruturalmente dado e o modo de ser con-
compreender sua origem, sua estrutura, servador como uma “disposição” intrínseca
bem como seus principais pressupostos. Na à sua natureza.
segunda parte, atentos ao contexto sócio- Contudo, conforme salienta An-
político em que suas ideias se desenvolve- drew Vicente (1995), para além do uso
ram, abordaremos as principais influências “costumeiro” que se faz do termo “conser-
teóricas de Durkheim com vistas a com- vadorismo”, há outro de caráter mais “téc-
preender as bases fundacionais de sua so- nico”, dotado de uma perspectiva bem
ciologia. Na terceira parte, percorreremos mais histórica. Isto porque, no que se re-
as principais críticas dirigidas a Durkheim, fere a seu uso político, a maior parte dos
em especial àquelas que, no decorrer da estudiosos admite que sua origem data do
tradição sociológica, atribuíram a sua so- início do século XIX, após o desfecho da
ciologia uma conotação eminentemente Revolução Francesa.1 Ainda assim, alerta o
conservadora. Já na quarta e última parte, estudioso gaulês, essa segunda maneira de
objetivamos identificar possíveis intersec- encarar o fenômeno em questão não está,
ções entre a sociologia durkheimiana e o absolutamente, imune a polêmicas, pois é
pensamento conservador, focando alguns possível avistar pelo menos cinco inter-
dos temas privilegiados pelo autor em seu pretações a respeito do caráter do conser-
programa de pesquisa, para, enfim, posi- vadorismo: a aristocrática, a pragmática, a
cionarmo-nos em relação à questão que situacional, a que assenta na força do há-
alimenta nossa empresa. bito e, por fim, a ideológica.
Na primeira delas, o conservado-
1. As faces do conservadorismo
rismo é entendido como uma doutrina de
Segundo Leila Escorsim Netto cunho reativo, expressa por uma aristocra-
(2011), duas dificuldades preliminares se cia agrária, semifeudal e inconformada
apresentam àqueles que desejam compre- com as transformações desencadeadas pela
ender mais profundamente o pensamento Revolução Francesa.
conservador: respectivamente, o estabele- Em relação à segunda, o conserva-
cimento exato de sua gênese histórico- dorismo é visto, primordialmente, como
temporal e a determinação de seus traços
constitutivos.
1
Em relação à primeira delas – a sua Para a maior parte dos estudiosos, o termo “con-
origem – é preciso cercar-se de alguns cui- servadorismo” aparece pela primeira vez nos Esta-
dos Unidos, no início da década de 1800, a partir de
dados, visto que alguns conservadores, a alguns membros do Partido Nacional Republicano
despeito de qualquer referência histórica Americano que autoproclamavam “conservadores”.
concreta, tendem com frequência a tomar a Na França, o termo é inicialmente empregado no
expressão “conservar”, em seu sentido jornal de François-René Chateaubriand, Le Conser-
mais lato – ou seja, no sentido de preservar vateur, na década de 1820, representando um dis-
curso politicamente restauracionista e clerical. Já na
coisas ou ideias que valorizamos e que Grã-Bretanha, desponta no jornal Quarterly Revi-
acreditamos –, como um traço distintivo da ew, em 1830. De modo geral, o termo propaga-se
“natureza humana”. Na visão abrangente e pela Europa a partir da década de 1840, especial-
mente após as sublevações de 1829-30 e 1848.
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elencadas possua um viés mais didático do delas, porém filho ao fim. O que ambas
que real, à medida que, entre elas, há uma a revoluções atacaram, foi defendido por
contínua sobreposição, a utilização usual homens como Burke, Bonald, Haller e
da noção de conservadorismo identifica-se Coleridge, e o que ambas engendraram –
mais especificamente com sua dimensão na forma de democracia popular, tecno-
lógica, secularismo etc. – é o que o con-
ideológica. Visto que a maior parte das servadorismo atacou (NISBET, 2003, p.
críticas endereçadas à Durkheim também 25) [minha tradução].
se refere ao caráter ideológico de sua so-
ciologia, enfatizaremos a origem e o de- Este excerto é bastante esclarece-
senvolvimento desta interpretação particu- dor, pois nos possibilita enfrentar a se-
lar. gunda dificuldade anteriormente anunci-
ada, atinente às características do conser-
1.1. A gênese da ideologia conservadora vadorismo. Conforme deixa entrever, a
Para a maior parte dos especialistas, ideologia conservadora – diferentemente
enquanto ideologia o conservadorismo das ideologias “ideacionais” e “ativas” –
seria uma resposta tanto ao protagonismo tem como traço basilar o fato de ser “rea-
assumido pelo iluminismo no plano filosó- tiva” e “posicional” (HUNTIGTON,
fico quanto às conturbações desencadeadas 1957). Reativa, pois diz respeito a uma
pela Revolução Francesa no plano sócio- “reação” contra qualquer tipo de ameaça
político. Como é sabido, o ideário ilumi- de caráter radical que ponha em risco os
nista não só foi responsável pela erosão do fundamentos institucionais da sociedade –
sistema nobiliárquico, rompendo com a como no caso da Revolução Francesa – e
estabilidade secular da monarquia, mas posicional, visto tratar-se de uma “tomada
também abriu precedentes para a consoli- de posição” frente a uma necessidade his-
dação de uma nova ordem social. Nesse tórica específica, tais como as ideologias
sentido, o pensamento conservador cons- que defendem soluções utópicas, apontan-
titui uma expressão cultural particular de do para um passado glorioso ou para um
um espaço sócio-histórico preciso, a saber, futuro incerto.
o da configuração da sociedade urbano- Disso depreende-se uma distinção
industrial moderna. Face ao esfacelamento fundamental: aquela entre o “reaciona-
das instituições e dos valores tradicionais, rismo”, o “utopismo” e o “conservado-
seus representantes se insurgem contra o rismo”. Na leitura do cientista político por-
racionalismo, a emancipação individual, a tuguês João Pereira Coutinho (2014), essas
dessacralização do mundo, a urbanização, ideologias são muito diferentes, pois en-
o desenvolvimento científico, os valores quanto as duas primeiras rompem com o
democráticos, a constituição do espaço presente, seja apontando para uma época
público, enfim, contra a própria moderni- de ouro ida seja apontando para um futuro
dade. hipoteticamente superior, esta última man-
Como sublinha o sociólogo ameri- tém-se firmada em instituições e valores
cano Robert Nisbet (2003), profundo co- supostamente testados do tempo – entenda-
nhecedor da história da teoria sociológica, se testadas pela própria história. Em outras
enquanto ideologia o conservadorismo palavras, o conservadorismo se configura
desponta, inicialmente, como uma “rea- como uma ideologia politicamente “pru-
ção” antiiluminista e anti-revolucionária. A dente” quando comparada às ideologias
esse respeito, afirma o autor: concorrentes (Kirk, 2013).
Não por acaso, para a maior parte
O conservadorismo moderno é, em sua
forma filosófica ao menos, filho da Re- dos especialistas, o político e pensador
volução Industrial e da Revolução Fran- anglo-irlandês Edmund Burke (1729-1797)
cesa; filho imprevisto, não desejado e desponta como o principal representante da
odiado pelos protagonistas de cada uma ideologia conservadora moderna. Afinal,
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ele não só testemunhou todo o alvoroço paz social, tornando mais amarga a desi-
provocado pela Revolução Francesa, como gualdade real estabelecida pela ordem ci-
também deu a sua visão dos fatos. Suas vil, que não pode ser definitivamente eli-
Reflexões sobre a Revolução na França minada. Aliás, na ótica de Burke, este foi o
(obra originalmente publicada em 1790) grande equívoco dos revolucionários fran-
tornaram-se referência para o pensamento ceses: apostar que a igualdade constitui um
conservador moderno e contemporâneo.2 direito universal.
Decerto, a noção de natureza hu-
1.1.1. Burke e as bases do conservado-
mana, sob a qual se assenta todo o edifício
rismo liberal inglês
argumentativo do autor, carece de clareza.
Embora falte às formulações de Dela fazem parte tanto considerações teo-
Burke uma maior sistematização – sua lógicas – por exemplo, a dependência hu-
obra consiste em uma série de cartas, dis- mana em relação à incompreensível Provi-
cursos parlamentares e panfletos circuns- dência Divina – quanto referências empíri-
tanciais – é possível extrair as linhas-mes- cas – o conhecimento que os homens têm
tras de seu pensamento político quando se da natureza em função da experiência. Isto,
considera o conteúdo exposto em suas Re- entretanto, não fragiliza o fulcro de sua
flexões. Como primeiro grande crítico da argumentação: a existência de uma reali-
Revolução Francesa, Burke adota um tom dade que não depende dos indivíduos e que
severo em relação aos princípios abstratos só pode ser apreendida com referência à
que a nortearam. O autor não aceita as po- tradição lentamente forjada por nossos
sições sustentadas pelos revolucionários ancestrais. Em oposição ao jusnaturalismo
franceses, consideradas demasiadamente rousseaísta, Burke defendia que o contrato
genéricas e abstratas – noções como a de sobre o qual se funda uma organização
liberdade, igualdade e fraternidade soam, social sólida e equilibrada instaurou-se
para ele, como utópicas. progressivamente, no curso do qual se re-
Ainda assim, suas críticas às ideias velaram os benefícios do bom senso, da
revolucionárias, bem como as posições virtude e da liberdade, e não através da
fundamentais que defendia, não deixam de deliberação arbitrária de um indivíduo.
se assentar em fundamentos metafísicos, Defensor da ordem, da hierarquia, dos di-
uma vez que o autor admite a existência de reitos herdados e da continuidade histórica,
uma realidade superior subjacente ao fluxo mas também da economia de mercado, da
dos fatos. O papel proeminente da religião tolerância religiosa e dos princípios liberais
em seu esquema explicativo faz com que que caracterizavam a Constituição Inglesa,
Burke considere Estado e sociedade como o Whig Burke, que provavelmente nunca se
partes da ordem natural do universo. Se- considerou um conservador em matéria de
gundo o autor, tanto o homem quanto a política, passou à história não só como o
sociedade são criações divinas e, desta maior crítico da Revolução Francesa –
feita, ambos estariam submetidos a leis acontecimento que, segundo ele, diferia
eternas, responsáveis por regular não só a das demais revoluções por seu caráter uni-
dominação do homem pelo homem, mas, versalista –, mas, também, como a princi-
igualmente, os direitos e obrigações de pal fonte de inspiração para aqueles que,
governantes e governados. Destarte, a no- durante o terço de século que se seguiu à
ção de igualdade não passa de uma “mons- sua morte, assumiram-se como conserva-
truosa ficção” que só serve para subverter a dores. Por tudo isto, Burke pode ser visto
como um “conservador liberal”.
2
Em relação à influência de Burke sobre as corren-
tes conservadoras modernas e contemporâneas,
consultar os trabalhos de Robert Nisbet (1986) e
João Pereira Coutinho (2014). Vide referências
bibliográficas.
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1.1.3. Möser, Müller, Hegel e o conserva- tou grandes contribuições tanto ao pensa-
dorismo tradicionalista alemão mento conservador quanto ao pensamento
radical. 4
Na Alemanha, os impactos da Re-
Todos eles, sem exceção, contribuí-
volução Francesa também se fizeram sen-
ram no sentido de estabelecer as bases do
tir, e, em virtude disso, se verifica a pre-
conservadorismo alemão, exercendo deci-
sença de um discurso conservador bem
siva influência sobre as gerações seguintes,
delineado. Justus Möser (1720-1794), que
como no caso dos historicistas conservado-
antecedeu a Burke, lança mão de vários
res alemães, ainda nas primeiras décadas
princípios inerentes ao modo de pensar
do século XIX.5
conservador. Em seus Discursos Patrióti-
cos (1774-1786), coleção de ensaios publi- 1.1.4. Os traços fundamentais do pensa-
cados em vários volumes no decorrer da mento conservador
segunda metade do século XVIII, encon- Isto posto, temos condições de tra-
tram-se os princípios básicos do pensa- çar as linhas gerais da mentalidade conser-
mento conservador que, mais tarde, ressoa- vadora. De modo geral, pode-se afirmar
rão na obra de Burke. Nota-se, por um
que, em termos sociais, morais e políticos,
lado, uma crítica contundente ao raciona- os conservadores não aceitam transforma-
lismo e ao individualismo, além de uma ções abruptas ou repentinas. Qualquer tipo
oposição ferrenha à fé no direito racional- de ação que atente contra o establishment
prescritivo e, por outro, uma defesa não ou gere instabilidade é imediatamente
menos enérgica das tradições. Sobre os combatida. Arraigados às tradições (consi-
costumes e as instituições de um povo, deradas pedagógicas e formativas), seus
aliás, o autor é bastante enfático: estas re- representantes entendem que as mudanças
sultam de uma evolução histórica, de tal devem ser tuteladas pelo passado e, por
modo que nenhum legislador, solitária e isso, são poucos afeitos aos riscos inerentes
arbitrariamente, pode apreender e conver- tanto às soluções utópicas quanto às rea-
ter em leis as necessidades coletivamente cionárias. 6 Ainda que admitam mudanças,
engendradas ao longo do tempo.
Adam Müller (1779-1829) conhe- 4
Karl Marx, indubitavelmente, exemplifica bem de
cia a obra de Burke muito bem, nutrindo que modo o pensamento hegeliano serviu de base
grande admiração pelos princípios funda- para o materialismo dialético. A este respeito ver
mentais de sua filosofia. Nesse sentido, sua Anthony Giddens (2001 e 2005).
5
concepção de Estado, bem como sua visão Michael Löwy (2006) argumenta que a corrente
acerca da economia, ambas contidas na historicista alemã flertou, em sua origem, com o
conservadorismo, exaltando as instituições e valo-
obra Elementos do Estadismo (1810), é res tradicionais diante das transformações políticas
similar a do autor irlandês. conduzidas por Otto Von Bismark a partir de 1870.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel Mas, apesar do caráter conservador, a corrente
(1770-1831) é, de longe, a força mais in- historicista, segundo o autor, teve um papel funda-
fluente do conservadorismo alemão. Du- mental para tanto para a historiografia quanto para
as ciências sociais, pois, em um segundo momento,
rante a juventude, sua inclinação liberal- mais precisamente no último decênio do século
radical, justifica seu entusiasmo pela Re- XIX, temas como o da objetividade científica e da
volução Francesa. No decorrer de sua tra- verdade universal são colocados em xeque, dando
jetória, entretanto, aderiu fortemente ao forma ao que o denomina de “historicismo relativis-
tradicionalismo. Seus Princípios da Filo- ta”, da qual o historiador alemão Gustav Droysen e
o sociólogo Wilhelm Dilthey foram os principais
sofia do Direito (1820), publicado quando representantes.
ainda era professor da Universidade de 6
Isto explica porque para autores como Lilian Es-
Berlim, mantém grande parte da visão que corsim Netto (2011) e José Paulo Netto (2011) há
Burke ou Bonald mantinham em relação à uma forte identificação entre a ideologia conserva-
sociedade. Paradoxalmente, sua filosofia – dora e a perspectiva evolucionista de sociedade. Em
geral, a ideia segundo a qual as mudanças só podem
em especial o seu método dialético – pres- ocorrer em termos graduais, sem rupturas radicais,
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lia.7 Ao ingressar na École Normale Supé- trial, urbana e científica. Um e outro ado-
rieure, Durkheim não imaginava que es- tam um escopo francamente evolucionário
tava para se tornar um ícone, talvez o mai- segundo o qual a sociedade é uma comuni-
or, da sociologia francesa. A estimulante dade de valores que passou de um estado
atmosfera intelectual que o cercava foi pré-industrial para um estado industrial.
certamente decisiva para o direcionamento Ambos os sistemas sociológicos atribuem
de seus interesses acadêmicos. Professores um papel integrador aos sentimentos mo-
renomados como os filósofos Émile Bou- rais, inclusive no que se refere às socieda-
troux, Charles Renouvier e o historiador des complexas, caracterizadas por uma
Fustel de Coulanges muito contribuíram acentuada divisão do trabalho. Ademais, na
para isto. Os dois primeiros ajudaram Dur- esteira do que propugnava Saint-Simon,
kheim a formar suas convicções políticas, Durkheim concebe a sociedade como uma
levando-o a abraçar a causa republicana. Já realidade sui generis, moralmente superior
com este último, aprendeu a dirigir seu quando comparada ao indivíduo isolado.
olhar para os fenômenos culturais, adotan- No que se refere a Comte, indubi-
do, a exemplo do mestre, uma perspectiva tavelmente no início de sua trajetória inte-
histórica em suas análises. Essas influên- lectual Durkheim sentiu-se atraído por seu
cias iniciais foram, nesse sentido, decisivas “positivismo” entendido num duplo sen-
para o seu projeto acerca da criação de tido: (a) como o estudo dos fenômenos
uma ciência dedicada aos fenômenos soci- sociais pelo mesmo método utilizado pelas
ais. A tentativa em si não era nova. Tanto ciências naturais; (b) como oposição ao
Saint-Simon quanto Comte havia proposto “negativismo” dos iluministas e seus her-
algo muito parecido. Porém, diferentemen- deiros, cujos interesses resumiam-se à dis-
te destes, Durkheim dedicou a sua vida à solução das instituições. Basta lembrar que
institucionalização da nova ciência, com- a primeira versão de sua tese doutoral, Da
prando brigas e procurando impor sua vi- Divisão do Trabalho Social, continha uma
são sobre as visões concorrentes. Mas em especial deferência à tentativa do filósofo
que medida esses precursores teriam influ- de Montpellier fixar as bases de uma “fí-
enciado Durkheim? sica social”. 8 Durkheim aproveitou larga-
Para Irvin Zeitlin (1973), existem mente as ideias gerais de Comte sobre a
mais similaridades entre Saint-Simon e importância da indução na investigação
Durkheim do que entre este e Comte. Isto científica e sobre o papel auxiliar das hi-
não só pelo fato das ideias comtianas se- póteses, além de certas noções bem defini-
rem, sumariamente, o desenvolvimento das de sua investigação sociológica, em
lógico das contribuições de Saint-Simon, a particular, a de que a sociologia pode pra-
quem Comte secretariou por alguns anos, ticar em seu terreno de pesquisa a “expe-
mas porque o próprio Durkheim, num es- rimentação indireta” e a “observação pu-
tudo inconcluso sobre o fenômeno do soci- ra”. Ademais, também atribuiu funda-
alismo, admite a influência decisiva deste mental relevância ao método comparativo
filósofo social para a formulação de sua e à análise causal, tanto em seu espírito
sociologia. Decerto, a importância de Sa- quanto em seus fundamentos. Como Com-
int-Simon é significativa. Não é demais te, Durkheim auferia à sociologia um cará-
destacar o otimismo que os dois pensado- ter reformista, um instrumento de in-
res nutrem em relação à sociedade indus- tervenção e transformação da realidade,
7 8
Émile Durkheim era oriundo de uma família judia, Aliás, este foi um ponto problemático durante a
há décadas radicada em terras francesas. Seu pai, defesa pública de seu doutorado, já que a banca
Moisés Durkheim, dando continuidade a uma longa examinadora, formada essencialmente por professo-
tradição familiar, era o líder rabínico de sua comu- res identificados ao espiritualismo francês, exigiu a
nidade, legado este que, como primogênito, David exclusão desta deferência para a aprovação da tese
Émile Durkheim estava destinado a preservar. (LUKES, 1986).
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além de sustentar que os fenômenos sociais “os velhos deuses estão mortos” e não há
podiam ser analisados em termos objeti- como exumá-los. Por sua complexidade, as
vos, desde que o sociólogo mantivesse sociedades altamente diferenciadas neces-
certo distanciamento – uma postura impar- sitam de uma nova forma de vida moral.
cial – frente a seu objeto. Em um artigo escrito por ocasião do Caso
Mas, não obstante as aproximações Dreyfus, intitulado O individualismo e os
entre Durkheim, Saint-Simon e Comte, as Intelectuais, Durkheim esclarece a qual
diferenças entre eles são igualmente claras. tipo de moralidade está se referindo: o “in-
Durkheim, por exemplo, jamais dividualismo moral” ou “culto ao indiví-
partilhou da posição de Saint-Simon a res- duo”. Trata-se, pois, de um conjunto de
peito das formas de autoridade adequadas valores cujo fulcro é o próprio indivíduo.
ao Estado industrial moderno. Ainda que Porém, a centralidade do indivíduo, aqui,
admita que a ordem social emergente fun- nada tem a ver com aquela requerida pelos
da-se na complexa divisão funcional im- representantes do utilitarismo ou do pen-
posta pelo avanço da indústria, não a enca- samento econômico clássico. Como se
rava em termos eminentemente eco- apressa em explicar, o individualismo mo-
nômicos. Para ele, a autoridade atinente ao ral é resultado de um longo processo histó-
Estado não podia ser confinada a uma sim- rico e social. Por isso, a base deste tipo de
ples “administração de coisas”, restrin- moralidade não é o homem isolado, mas o
gindo-se à regulação da produção. Como homem em abstrato – preconizado pela
deixa claro em sua tese doutoral, “nem Declaração dos Direitos do Homem e do
tudo é contratual no contrato”. Em outras Cidadão.
palavras, por si mesmas as transformações Já em relação a Comte, é inegável
econômicas mostram-se incapazes de solu- que este bebeu das fontes dos apologistas
cionar a crise moderna, entendida pelo católicos conservadores, influência mani-
autor como uma crise de ordem moral. As festa em seu Sistema de Política Positiva.
relações econômicas só são possíveis me- Entretanto, como observa Giddens (2001),
diante certas condições de sociabilidade foi sua obra Filosofia Positiva, e não aque-
previamente admitidas, isto é, um sistema la, que exerceu influência decisiva sobre
social regido por normas e valores que Durkheim. Assim, ao elaborar suas ideias
comporte modelos de ações diferenciadas. substantivas acerca do desenvolvimento da
Contrariamente ao que propunha Saint- sociedade moderna, Durkheim se debruçou
Simon, Durkheim não via uma desconti- com maior afinco sobre a versão hierocrá-
nuidade absoluta entre as sociedades tradi- tica emergente proposta por Saint-Simon
cionais e as sociedades urbano-industriais, do que a formulada por Comte em sua Fi-
já que estas estão desprovidas de valores e losofia Positiva. Além do mais, se ambos
normas. Considerando que para o mestre encaravam a sociedade como resultado de
francês os desejos individuais são insaciá- um longo processo evolutivo, Durkheim
veis, o egoísmo radical é um risco emi- jamais adotou uma visão teleológica da
nente. Por isso qualquer limitação moral e história, dando, nesse sentido, maior aten-
jurídica à busca desenfreada dos indivíduos ção ao imponderável. Em outras palavras,
pela realização de seus interesses, deve ser ele rejeita a Filosofia da História comtiana
tutelada pelo Estado, pois, do contrário, os segundo a qual a realização máxima da
interesses coletivos ficarão à mercê dos verdade dar-se-ia por meio de etapas pro-
apetites individuais. Disto não decorre que gressivas, considerando-a um punhado de
a moralidade inerente às sociedades homo- princípios metafísicos a priori. Quanto ao
gêneas, cuja principal característica é a otimismo que nutriam em relação à mo-
forte presença de uma “consciência cole- dernidade, a análise durkheimiana não se
tiva”, seja adequada às sociedades hetero- apresentava em termos valorativos, isto é,
gêneas. Como ressaltou em certa ocasião, não opunha o modelo social moderno –
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interesse econômico havia, também, aba- cognitivo, não o são em relação à experi-
lado a confiança na estabilidade do mundo, ência em geral, visto constituírem-se no
a proposta kantiana não podia ser mais interior dela. Noções como as de tempo e
adequada. Afinal, o filósofo de Königsberg espaço – para mencionarmos as mais em-
opunha-se ao individualismo e ao relati- blemáticas – são construções coletivas e
vismo sem adotar um tom reacionário, isto não individuais. Deste modo, Durkheim
é, sem apelar às instituições do passado ou lança as bases de uma sociologia do co-
às explicações metafísicas tradicionais, nhecimento, que, intersectada por seus
proporcionando um enquadramento ideal estudos sobre religião, abre espaço para
em relação aos dilemas de cunho episte- uma abordagem sociológica dos fenôme-
mológico e moral. nos morais consoante com os ideais repu-
O modo como Durkheim retraduz blicanos com os quais comungava. Na lei-
as ideias kantianas, portanto, merece nossa tura do sociólogo a fonte transcendental da
atenção. Isto porque o mestre francês pro- qual deriva a ação moral é a sociedade,
cura adaptá-las ao método sociológico, o cuja existência é anterior e posterior à de
que, segundo a maioria dos estudiosos, seus membros.
configurou uma espécie de “sociologização Há, todavia, um segundo ponto de
do kantismo”. Sabe-se que entre os méritos aproximação entre os dois pensadores: o
de Kant está o de ter superado a velha que- que se refere aos atributos da regra moral.
rela entre empirismo e racionalismo, atra- Kant afirmara que toda regra moral é ine-
vés de um racionalismo crítico. Durkheim vitável para o indivíduo, à medida que se
conhecia razoavelmente bem as propostas lhe impõe. Durkheim abraça a posição kan-
kantianas, tão marteladas durante sua for- tiana acerca do “dever”, porém, incrementa
mação básica e universitária. A tese kan- outro atributo, a saber, a “desejabilidade”.
tista de que todo o conhecimento resulta de Segundo o sociólogo francês, as regras
uma síntese a priori congrega dois princí- morais são, a um só tempo, obrigatórias e
pios fundamentais, a saber: (a) o entendi- desejáveis, o que faz do fenômeno moral
mento possui uma base empírica, limi- uma especificidade em relação a outras
tando-se à experiência fenomênica, uma regras de conduta. Com isso, Durkheim
vez que não pode atingir as coisas em si suaviza o caráter coercitivo da moralidade,
mesmas, suas essências; (b) a relação de bem como abre espaço para se pensar a
conhecimento se caracteriza pela subordi- adesão à moral como uma possibilidade
nação do objeto ao sujeito cognoscente, para o indivíduo transcender os limites de
que ordena, dentro de certas noções a pri- sua animalidade, alcançando uma segunda
ori (categorias e formas), os dados da ex- natureza, a social.
periência sensível. Em suma, conhecer é Por último, é ainda possível avistar
produzir juízos, relacionando dados, no- a influência de Kant em relação à tentativa
ções, coisas e ideias por meio de sínteses. durkheimiana de fundar uma ciência mo-
Pois bem: Durkheim recusa este último ral. Não porque o filósofo alemão tenha
ponto. Conquanto admita que o conheci- preconizado qualquer empreendimento
mento se dê em termos de relação entre desta natureza, mas pelo fato de atribuir
sujeito e objeto, não endossa o postulado um sentido prático à ação moral. Não é
segundo o qual as diversas categorias do demais recordar que Kant, em consonância
entendimento são inatas, naturalmente an- com o asceticismo protestante, aborda em
teriores à experiência. Afinal, isto corres- sua filosofia temas como a “autonomia da
ponderia a aceitar a precedência lógica do vontade”, o “imperativo categórico” e o
indivíduo sobre a sociedade, impedindo, primado do “dever”, conciliando motiva-
não obstante, o estabelecimento da socio- ção individual e orientação coletiva, ele-
logia. Para ele, embora os aparatos catego- mentos fundamentais para a formulação de
riais e formais sejam anteriores a cada ato uma moralidade laica. Essa relação entre
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ciência e moral, e mais genericamente en- da filosofia. Isto porque, para ele, a socie-
tre conhecimento e valores, é retomada por dade não se reduz a soma de suas partes,
Durkheim, que aproxima os juízos de fato constituindo uma realidade sui generis,
e os juízos de valor, deduzindo as duas detentora de uma consciência indepen-
razões kantianas, a especulativa e a prática, dente. Como afirmou em certa ocasião, “o
de uma única fonte – a sociedade – à me- conjunto de crenças e dos sentimentos co-
dida que ambos supõem ideais (valores e muns à média dos membros de uma mesma
conceitos). Este tour de force possibilitou sociedade forma um sistema determinado,
ao sociológico francês não só superar a que tem vida própria; podemos chamá-lo
aparente antinomia entre ciência e moral, de consciência coletiva” (Durkheim, 2008,
mas também reivindicar para a sociologia p.50) [grifos do autor].
o estatuto de instrumento explicativo e Disso decorre a superioridade da
transformador da ética, colocando-a no esfera social sobre a esfera individual. A
centro da reconstrução social e moral da sociedade, “produto de uma imensa coope-
sociedade francesa. ração que se estende não apenas no espaço,
mas no tempo”, apresenta-se como um ser
3. Sob o fogo cruzado: as críticas à so-
psíquico distinto, cuja força se faz sentir
ciologia durkheimiana
sobre as consciências particulares. Trata-
Grosso modo, os críticos que ins- se, pois, do “mais poderoso feixe de forças
crevem Durkheim no interior da tradição físicas e morais”, do qual se depreende
conservadora, apontam algumas caracte- uma vida mais elevada que reage sobre a
rísticas – tais como a percepção evolucio- “multidão de espíritos diversos” dos quais
nária da história, o naturalismo metodoló- resulta, tornando-se, por isso, “uma inte-
gico, o cientificismo, o organicismo e seus lectualidade mais rica e mais complexa que
efeitos – que supostamente definem a sua a do indivíduo” (DURKHEIM, 1989,
sociologia. Nessa seção, objetiva-se con- p.45).
templar as críticas mais contundentes ao Com efeito, devido à dinâmica de
pensamento durkheimiano. Para fins didá- suas diversas instituições, a sociedade se
ticos, e com vistas a detectar o cerne destas autonomiza em relação as suas unidades
interpretações, decidimos separá-las. Tam- componenciais, investindo-se, assim, de
bém optamos por não nos posicionarmos, uma autoridade moral que se afigura aos
pelo menos agora, em relação ao conteúdo homens e da qual estes não podem se sepa-
de cada uma delas, mas tão somente apre- rar sob o risco de perder a melhor parte de
sentá-las. si mesmos: a sua condição humana (Cf.
3.1. Uma sociologia sem sujeito: o antiin- DURKHEIM, 1978, p.45).
dividualismo durkheimiano Assim sendo, na ótica de seus críti-
cos, Durkheim seria responsável por de-
Muitos dos críticos de Durkheim senvolver uma espécie de “transcendenta-
salientam o caráter antiindividualista de lismo” social. Georges Gurvitch (1986,
sua sociologia. Alegam que ela constitui p.11), por exemplo, fala em uma identifi-
uma “artilharia pesada” contra a consciên- cação da “consciência coletiva” com o
cia individual, por um lado, contrapondo- “imperativo, a razão a priori, o Bem Su-
se aos filósofos iluministas (NISBET, premo e, finalmente, a Divindade”, en-
2003), por outro, dando forma a um tipo de quanto Theodoro Adorno (2008, p. 118)
sociologia “sem sujeito” (DUBET, 1996). culpa o sociólogo francês por hipostasiar a
A maioria dessas críticas dirige-se a sociedade, tornando-a uma “realidade de
seus primeiros trabalhos – em especial Da segundo grau”. Deste ponto de vista, o
Divisão do Trabalho Social, As Regras do indivíduo não passaria de um mero suporte
Método Sociológico e O Suicídio – onde o das influências coletivas, ou seja, um ser
sociólogo se opõe, veementemente, tanto
ao sujeito da psicologia quanto ao sujeito
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passivo e impotente frente às forças exer- afinados com os ideais da III República
cidas pela realidade social. Francesa?
Talvez por isso, a educação moral A resposta às questões acima le-
seja um dos temas mais recorrentes de sua vantadas recai sobre o tipo de formação
sociologia, pois, em último caso, só é pos- ofertada. Disto decorre a importância atri-
sível explicar o indivíduo a partir dos valo- buída ao Estado – espécie de cérebro social
res sociais, políticos, econômicos e cultu- – na organização do sistema de ensino. Na
rais aos quais está submetido – que depen- medida em que a educação é um “fato so-
dem da ação educativa para ser internali- cial”, que cumpre uma dupla função (dife-
zados. renciadora e homogeneizadora), então, não
pode ficar à mercê dos interesses de grupos
3.2. Socialização, moralização e controle
particulares, devendo, por isso, ser geren-
social
ciada por um órgão acima de quaisquer
Em seu itinerário intelectual, Dur- rivalidades, e de acordo com os ideais e os
kheim dedicou grande parte de suas pes- valores reclamados pela sociedade em seu
quisas a temas como socialização e mora- conjunto.
lidade. Estes, aliás, podem ser facilmente Na visão dos críticos, porém, o pro-
avistados em seus escritos sobre educação. cesso pelo qual as gerações mais jovens
Não é preciso ir muito longe. Em seu tra- são submetidas aos padrões sociais e cultu-
balho Educação e Sociologia, por exem- rais estabelecidos, oculta um tipo de vio-
plo, o autor analisa o modo como indiví- lência simbólica, sutil e eficaz. Trata-se da
duos, espacial e temporalmente situados, inculcação de valores e normas sociais
são socializados e passam a ocupar uma através, sobretudo, do sistema escolar. A-
função social consoante a seu grupo origi- pesar das posições objetivistas assumidas
nário. Mesmo consentindo que este pro- em seus primeiros trabalhos, ao encarar a
cesso possa variar, visto que os valores questão social como uma questão eminen-
diferem de uma sociedade para outra, sali- temente moral, Durkheim desloca a discus-
enta a imprescindibilidade da educação são da esfera macroscópica, fonte autêntica
para a aculturação das novas gerações. da produção dos valores, para a esfera da
O sistema de ensino, que se tornou microscópica, implicando na deseconomi-
alvo de disputa na França 13, desponta no zação e desistoricização das relações soci-
horizonte durkheimiano como o único ca- ais. Os efeitos deste deslocamento reverbe-
paz de formar o cidadão republicano den- ram na atribuição de uma dimensão psí-
tro de um escopo racional e laico. Afinal, quica aos fatos sociais – evidenciada na
como a maior parte daqueles que passaram distinção entre consciência coletiva e cons-
pela École Normale Supérieure, Durkheim ciência individual –, situando na esfera
nutria grande entusiasmo em relação ao moral qualquer tentativa de especificação
republicanismo. Como transmitir os valo- do ser social.
res republicanos? Como forjar indivíduos A psicologização do social, assim
como em Comte, não desemboca na indi-
13
vidualização, mas na evidência societária
Na França, até o último quartel do século XVIII,
das suas refrações mais fundamentais para
o sistema de ensino esteve sob os auspícios da Igre-
ja Católica. No decorrer do século XIX, entretanto, o conservantismo: o problema da ordem. 14
os republicanos liberais passam a reivindicar o seu Em outras palavras, embora adote um viés
domínio e a defender a sua laicização, o que desen- bem menos especulativo do que o de seu
cadeou um longo e feroz embate entre os dois gru-
pos. Com o advento da III República Francesa, em
14
1870, o projeto de educação republicano se efetiva, Essa crítica, aliás, é recorrente não só entre os
a partir dos esforços de nomes como León Gambet- marxistas, mas, também, entre autores funcionalis-
ta e Jules Ferry, ambos signatários do republica- tas como Talcott Parsons (2010) e até mesmo entre
nismo liberal (Cf. FERNANDES, 1994; BOR- os representantes do pensamento conservador con-
RELL, 2000). temporâneo, a exemplo de Robert Nisbet (2003).
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conservador. Isso reforça a posição assu- sas ocasiões, toda e qualquer mudança no
mida por Peter Burke a respeito dos mo- interior de um sistema social integrado
delos explicativos utilizados na análise dos configura um processo gradual e coletiva-
processos sociais. Definidos como uma mente construído. De tal modo que só uma
“construção intelectual que simplifica a ação coletiva tem força suficiente para
realidade com o objetivo de entendê-la”, modificar uma convenção, já que o indiví-
estes modelos constituem uma espécie de duo isolado pouco ou nada pode contra
mapa, cuja “utilidade depende da completa uma norma ou tradição instituída. Sua teo-
omissão de alguns elementos dessa mesma ria, portanto, está longe de ser homeostá-
realidade” (Burke, 2002, p. 45). Ora, um tica como comumente se afirma.
olhar mais atento sobre os grandes siste- Quinto ponto: o lugar central ocu-
mas sociológicos que marcaram a passa- pado pelo indivíduo na moralidade atinente
gem do século XIX para o século XX é o às sociedades funcionalmente complexas
suficiente para verificar que não há, entre sinaliza que, apesar das críticas empreen-
os grandes sociólogos deste período, uma didas ao utilitarismo, Durkheim reconhece
única figura significativa cujas ideias não a individualidade como um valor necessá-
envolvam algum tipo de síntese das diver- rio ao mundo moderno. Isto, sem dúvida,
sas correntes ideológicas – conservado- reforça a observação anterior de que a sua
rismo, liberalismo, solidarismo e socia- sociologia configura um desejo de sinteti-
lismo. Durkheim, certamente, não é uma zar conservadorismo e liberalismo, sem
exceção. recorrer às soluções radicais incutidas no
Segundo ponto: a influência da fi- socialismo.
losofia moral kantiana é tão ou mais signi- Sexto e último ponto: não é o pro-
ficativa do que a presença do positivismo blema da ordem, no sentido hobbesiano –
comteano. Se os primeiros trabalhos de conforme assinala Parsons – e sim o tipo
Durkheim encarnam o cientificismo típico de moralidade mais adequada às socieda-
da filosofia positivista, os trabalhos ulterio- des industriais modernas o ponto de partida
res estão muito mais sintonizados com os das inflexões durkheimianas. Longe de
problemas kantianos, o que, inclusive, con- querer elaborar novas formas de controle
tribuiu para o direcionamento de seus estu- social, as preocupações de Durkheim or-
dos, que passaram a se preocupar com te- bitam em torno da necessidade de um con-
mas como o sagrado e a religiosidade. junto de valores que dê conta de atender às
Terceiro ponto: a maior parte da- demandas de uma sociedade cada vez mais
queles que apontam o caráter conservador centrada na expansão das liberdades indi-
da sociologia durkheimiana, ignora a sua viduais.
dimensão histórica, ou seja, desconsidera a Com efeito, a alcunha “conserva-
passagem da solidariedade mecânica para a dor” tende a minimizar toda a complexi-
solidariedade orgânica – apresentada em dade que encerra a sociologia durkheimi-
sua tese doutoral – como a base funda- ana. Como outros grandes pensadores so-
mental de sua análise sociológica. O re- ciais daquela época, Durkheim procurou
sultado disso é que há uma tendência em articular as diversas tendências de pensa-
tomar os elementos morais e funcionais mento circulantes na Europa. Tomá-lo co-
típicos da ordem social tradicional como mo um conservador, no sentido mais estri-
sendo os elementos definidores da ordem to no termo, significa desconsiderar a mul-
social moderna. tiplicidade de influências que contribuiu
Quarto ponto: do fato de não cre- para a edificação de sua teoria sociológica.
ditar às revoluções (rupturas descontínuas) Destarte, não obstante o reconhecimento
um papel histórico crucial não decorre que da influência parcial exercida pela filosofia
Durkheim ignore as transformações, muito conservadora, sua sociologia tem um débi-
pelo contrário. Conforme expôs em diver- to, senão maior, pelo menos igual, com
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outras correntes, o que nos impede – por fantil: um estudo sobre a educação moral
uma questão de cautela – de designarmos o em Émile Durkheim. São Paulo: E-
conjunto de seus trabalhos como sendo dusp/Esculta, 1994.
exclusivamente conservador. No máximo, DUBET, François. Sociologia da Experi-
talvez possamos auferir-lhe o rótulo de ência. Lisboa: Portugal: Instituto Piaget,
liberal em termos políticos, me- 1996.
todologicamente socializante e conserva-
dor, com a ressalva, porém, de que se trata DURKHEIM, Émile. “O individualismo e
de um recorte arbitrário, com finalidades os intelectuais”. In: A Ciência Social e a
puramente didáticas, pois, para além de Ação. Traduzido por Inês Duarte Ferreira.
quaisquer rubricas, uma obra tão vasta e São Paulo: Difel, 1975. p. 235-250.
complexa como a de Durkheim, similar- DURKHEIM, Émile. As Formas Elemen-
mente às obras não menos abrangentes de tares da Vida Religiosa. Traduzido por
Marx e Weber, não pode ser reduzida a Joaquim Pereira Neto. 2. ed. São Paulo:
uma única vertente de pensamento sem Paulus. 1989.
gerar as distorções analíticas e interpretati-
DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia.
vas usuais.
Traduzido por Mônica Stahel. São Paulo:
Referências Martins Fontes, 2002.
ADORNO, Theodoro. Introdução à So- DURKHEIM, Émile. Ética e sociologia
ciologia. Traduzido por Wolfgang Leo moral. Traduzido por Paulo Castanheira.
Maar. São Paulo: Unesp, 2008. São Paulo: Landy, 2003.
AUGUSTO, Maria Helena Oliva. “Indiví- DURKHEIM, Émile.As Regras do Método
duo e moral em Durkheim”. In: Durkheim: Sociológico. 3. ed. Traduzido por Paulo
150 anos. Belo Horizonte: Argvmentvm, Neves. São Paulo: Martin Fontes, 2007.
2009. p. 209 - 230. DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Tra-
BORRELL, Joan. Ferry, Durkheim, Idên- balho Social. 3. ed. Traduzido por Eduardo
tica lucha. Nacimiento de dos Hermanos Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Gemelos: el sociólogo y el maestro de es- GIDDENS, Anthony. “Durkheim e a ques-
cuela. In: DURKHEIM, Émile. Educación tão do individualismo” In: GIDDENS,
y Sociologia. 2.ed. Barcelona: Espanha: Anthony. Política, sociologia e teoria so-
Península, 2000. p. 137- 188. cial: encontros com o pensamento social
BURKE, Peter. História e Teoria Social. clássico e contemporâneo. Traduzido por
Traduzido por Klauss Brandini Gerhardt e Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Unesp,
Roneide Venâncio Majer. São Paulo: U- 1998. p.147-168.
nesp, 2002. GIDDENS, Anthony. Em defesa da socio-
COUTINHO, João Pereira. As ideias con- logia: ensaios, interpretações e tréplicas.
servadoras: explicadas a revolucionários e Traduzido por Roneide Venâncio Majer e
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DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das GIDDENS, Anthony. Capitalismo e Mo-
ciências humanas. São Paulo: Loyola, derna Teoria Social. 6. ed. Traduzido por
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toma social dominante e moralização in- Barcelona: Anthropos, 2005.
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Abstract: The present article propose a discussion between a developed theory of Émile Durk-
heim and the classic conservative ideas. By one point of the view, they intend understanding how
the French sociologist assimilated conservative components on the other hand, if that influence
would be enough to attributing to Durkheim job a conservator rubric. Because of that It has in-
tended avoiding possible qualifications, most of the time they reduced and unable to take over all
complexities that involves a theoretician production like Durkheim. The utilized analysis is emi-
nently bibliographic and revisionist, staying in primary wellspring as secondary ones. Keywords:
conservatism, liberalism, sociology, moral and methodology.
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