CONTOS DE BATMAN
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Volume 1
Digitalização e revisão:
ÐØØM™ SCANS
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CONTOS DE BATMAN
VOLUME 1
ISBN 85-7305-079-9
Abril Jovem
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Sumário
A GAROTA DO PAPAI
WILLIAM F. NOLAN
PÁGINA 05
SOLO NEUTRO
MIKE RESNICK
PÁGINA 33
JACK DO METRÔ
JOE R. LANSDALE
PÁGINA 41
ÍDOLO
ED GORMAN
PÁGINA 101
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A Garota do Papai
WILLIAM F. NOLAN
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quarteirão.”
Sempre que Batman fala essas coisas, eu
me lembro do Sherlock Holmes. Só que o ve-
lho Sherlock nunca teve um bat-computador
para trabalhar. O nosso processou a leitura de
uma área de um quarteirão, mansão por man-
são, de modo que só tivemos de fazer uma to-
caia naquela área e esperar o Gato chegar.
“É você quem vai ter que pegar esse gato
pelo rabo”, disse Batman.
“Não se preocupe, vou fazer ele miar”, pro-
meti.
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transitava acima de Gotham City, pintando
manchas bruxuleantes nos tetos e nas calça-
das. Uma noite perfeita para caçar.
Eu me sentia contente por estar em ação
sob aquele céu e não em Washington com
Batman. A despeito de todos esses anos pren-
dendo bandidos, a emoção da caçada não ha-
via diminuído. Em noites como essa, meu san-
gue coloca todo meu corpo em estado de aler-
ta — deixando cada músculo tenso, pronto
para o combate. O que poderia dar mais senti-
do à vida de um verdadeiro combatente do cri-
me?
Foi aí que eu o vi o Gato escalando uma
trepadeira para chegar ao teto de uma man-
são vitoriana bastante recuada, quase enterra-
da nas árvores.
“Peguei!”, disse para mim mesmo e parti
para a cerca de ferro da mansão. Sob o brilho
da lua, a casa se erguia diante de mim como
um iceberg. Atravessei o gramado, rápido e si-
lencioso como uma sombra, ele não sabia que
eu o estava seguindo.
Alcancei o teto e cheguei a tempo de avis-
tar o sr. Gato agachado junto a uma claraboia,
tentando abrir a fechadura com um pé-de-
cabra. Era um cara alto e esguio, todo de pre-
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to, de cartola e luvas de couro negras — e ti-
nha um perfil bicudo que lembrava o Pinguim.
Aparentemente, ele sabia que não havia nin-
guém em casa, uma vez que claramente não
estava tentando ser nada sutil na maneira de
entrar.
Esgueirei-me pelo telhado, certo da caça.
Ia ser fácil apanhar esse felino.
Eu estava enganado. Quando cheguei a
apenas sessenta centímetros de distância, ele
ergueu a cabeça, silvou como um felino e me
atacou com o pé-de-cabra — o que não teria
sido nenhum problema se meu pé direito não
tivesse tropeçado numa telha solta, me tirando
o equilíbrio.
O pé-de-cabra me atingiu no peito e caí de
cabeça para baixo, através da claraboia. Me
senti caindo no espaço. Então, grande choque
e escuridão.
Escuridão total.
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“Olá”, disse ela numa voz tão suave quanto
seus olhos. “A carne do seu corpo está doen-
do?”
Pergunta estranha. “...a carne do meu cor-
po?” Ao meu redor, as coisas começavam a
entrar em foco. Eu estava num grande apo-
sento, provavelmente o quarto dela, pois era
rosa e cheio de babados. A jovem também es-
tava de rosa, usando o tipo de vestido vitoria-
no largo e cheio de laços que se veste numa
festa a fantasia.
Tentei sentar. “Ai!”, exclamei, tocando mi-
nhas costelas. “Está doendo.”
Foi quando percebi que estava usando um
pijama de seda branco. Minha capa e minha
máscara haviam desaparecido! Isso era sério,
uma vez que ninguém em Gotham City pode-
ria jamais ver Robin sem máscara. Batman ia
ficar muito chateado comigo por isso!
“Quem é você?”, perguntei à garota.
“Sue-Hellen”, respondeu suavemente.
“Sue-Hellen de quê?”
Ela corou. “Não tenho sobrenome. Às ve-
zes, nem me sinto como se fosse uma pessoa
real. Quero dizer, pessoas reais têm sobreno-
mes — e o Papai nunca me contou o meu.”
“Teria de ser o sobrenome dele”, comentei.
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“Mas eu não sei o dele também. Eu sim-
plesmente o chamo de Papai.”
Ela piscou para mim. “Qual é o seu nome?”
“Eu... não estou autorizado a revelar minha
verdadeira identidade.”
Os olhos dela se arregalaram. “Você traba-
lha para o FBI?”
“Não. Mas eu luto contra o crime.”
“É por isso que estava usando uma másca-
ra?” Seus cabelos longos e loiros emolduravam
o oval de seu rosto, a luz do luar atravessando
a janela fazia com que brilhassem como um
halo.
Arrumei o travesseiro e me sentei ereto.
“Você nunca viu meu retrato nos jornais?”
“Eu nunca leio jornais, nem revistas. O Pa-
pai nunca deixa essas coisas entrarem em
casa.”
Ela tinha me pega do todo uniformizado —
e Robin havia aparecido na TV inúmeras ve-
zes. “Você nunca me viu na televisão?”
“Nós não temos televisão aqui”, respondeu.
Depois sorriu pela primeira vez e parecia radi-
ante. Fiquei estonteado com sua beleza pálida.
Mas aquela conversa surrealista não estava
levando a parte alguma. “Preciso ir embora”,
falei. “Quanto tempo estive aqui?”
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“Umas dez horas. Mas você não pode ir
embora. Ninguém sai desta casa, só o Papai. E
ele está longe agora. Muito, muito longe.”
“Não, realmente”, falei. “Preciso ir. Só me
dê as roupas que eu tinha quando me encon-
trou.”
Ela balançou a cabeça. “Quero que fique
aqui comigo. Você é a primeira pessoa de car-
ne que eu conheço, além do Papai.”
“Escute, Sue-Hellen”, retruquei, jogando as
pernas para fora da cama. “Eu realmente
agradeço o que fez por mim, curou minha cos-
tela e tudo o mais, mas preciso sair imediata-
mente.” Fiquei de pé. “Mesmo que tenha de
sair daqui usando este pijama de seda bran-
co.”
“Gork não vai deixar”, declarou ela. “Eu dis-
se a ele que você tem que ficar.” Ela estalou os
dedos.
Um gigante de mais de dois metros surgiu
na porta do quarto. Tinha um rosto chato e
cinzento, os olhos não tinham pupilas e usava
um uniforme cinza sem costura. Parecia ser
forte — mas eu tinha certeza de que podia
com ele.
“Vou ter que bater no seu amigão se ele fi-
car no caminho”, disse à garota. “Diga a ele
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para se afastar da porta.”
“Gork é meu amigo. Ele faz o que eu peço
e não vai deixar você sair.”
Eu não estava disposto a discutir o assunto.
Simplesmente abaixei a cabeça e ataquei. Foi
como se tivesse me chocado contra uma pare-
de de tijolos. E tentar golpeá-lo era inútil.
Meus socos não faziam nenhum efeito.
Então Gork pôs suas mãos em mim. Eram
como dois ganchos de aço.
“Não o machuque, Gork”, disse Sue-Hellen.
“Apenas coloque-o de volta na cama.”
O grandalhão fez isso. E me carregou como
se eu tivesse três anos de idade. Tudo isso
sem alterar sua expressão.
“Pode ir agora”, disse a garota.
Ele cambaleou para fora do quarto.
“Ele não é humano, é?”
“Claro que não”, ela respondeu. “Ninguém
é humano nesta casa, a não ser eu. E o Papai
— quando está em casa.”
“O que é o Gork?”
“Ele é feito basicamente de metal. Quando
eu era muito jovem, o Papai se interessou pela
ciência da robótica. Ele é brilhante e tem mui-
tos interesses. Começou a fazer experiências
com pessoas de metal. Robôs. E o Gork é isso
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— igual a dezenas de outros que o Papai cons-
truiu pra tomar conta de mim. Mas Gork é o
único que eu realmente gosto.” Ela chegou
bem perto, inclinando-se sobre a cama. “Posso
tocar no seu rosto?”
“Hã... claro, acho que sim.”
Ela estendeu seus dedos hesitantes e co-
meçou a explorar os planos do meu rosto.
“É quente — como o meu. Os robôs têm
rostos frios, como peixes.” Ela deu um de seus
radiantes sorrisos. “Eu também sou uma pes-
soa de carne. Como você.”
A situação era bastante bizarra. Eu não
conseguia entender. “Preciso falar com um
amigo”, observei. “Posso usar seu telefone?”
“Não temos telefone aqui. O Papai diz que
isso só iria me distrair — que eu ficaria ligando
para outras pessoas de carne.” Ela deu um risi-
nho. “Mas isso é bobagem, porque não conhe-
ço ninguém além de você e você está aqui.”
Olhei para ela intensamente. “É verdade...
que sou... o primeiro rapaz que conhece?”
“Eu já disse isso e nunca minto.”
“Onde você estudou?”
“Aqui. Nesta casa. Os robôs me ensinaram.”
“Quer dizer... que nunca esteve numa esco-
la fora daqui?”
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“Eu nunca estive em lugar nenhum a não
ser aqui”, declarou ela. “Só estive aqui, na
casa do Papai. Toda minha vida.”
Eu estava chocado. “Está dizendo que seu
pai mantém você prisioneira?”
“Prisioneira?”, ela estranhou a palavra.
“Não... eu não sou prisioneira... sou a garota
do Papai. É aqui que ele quer que eu fique —
onde me trouxe quando eu era bebê, depois
que Mamãe e Papai desistiram de morar jun-
tos.”
“O que aconteceu com a sua mãe?”
“Não sei. Nunca mais a vi. De qualquer for-
ma, depois que ela foi embora o Papai me dis-
se que eu era preciosa demais para que o
mundo me poluísse. Disse que me manteria
aqui para sempre, a salvo da aspereza do
mundo, porque não queria me ver maculada.
O Papai usa palavras assim o tempo todo. Ele
é muito mais sabido que eu.”
“Você nunca brincou com outras crianças?”
“Oh, não — nunca. O Papai tinha crianças
robôs feitas para brincar comigo. Nunca vi cri-
anças de verdade, eu cresci aqui — com os ro-
bôs.” Seu rosto se iluminou, “Até aprendi a fa-
zer robôs. E sou muito boa nisso, também.”
“Quem é o seu pai?” Eu estava furioso com
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o que aquele homem tinha feito com a filha.
“Diga quem é esse homem.”
“Eu já disse que não sei o nome dele. Ele é
apenas... Papai.”
Fui até o armário dela. “Mas você deve ter
um retrato... uma foto. Quero ver o rosto
dele.”
“Ele não gosta de retratos. Não há ne-
nhum.”
“O que ele faz pra viver? Como ganha di-
nheiro para tudo isso?”
“Ele trabalha num circo. Como palhaço.
Acho que sempre trabalhou. É onde está no
momento, num circo, lá longe, em Washing-
ton. Você sabe, a capital.”
“Sei, é lá que meu amigo está agora — o
que eu queria entrar em contato.”
Ela anuiu. “Então talvez o Papai encontre o
seu amigo por lá.”
Havia algo estranho no ar. Senti um arrepio
me percorrendo, uma espécie de cócegas me
dizendo que aquele pai maluco dela era uma
ameaça para Batman. Eu não tinha provas,
apenas um palpite visceral. Mas era forte.
Eu tinha de saber o que estava acontecen-
do em Washington.
“Quando você me encontrou”, comecei a
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dizer com urgência para Sue-Hellen, “quando
caí pela claraboia... eu estava usando um cro-
nômetro de pulso.”
Ela pareceu confusa.
“Como um relógio”, falei. “Onde está?”
“Os robôs levaram junto com suas roupas.”
“Eu preciso dele, Sue-Hellen! Muito.”
“Tudo bem, vou pedir para o Gork pegar.”
E ela pediu. O grande robô cinzento me en-
tregou o aparelho, depois cambaleou para fora
do quarto outra vez.
O bat-cron era um equipamento de comu-
nicação, com uma mini-TV. Digitei as coorde-
nadas e o rosto de um apresentador preocu-
pado surgiu na telinha. Estava falando com
gravidade: “... e o chocante atentado contra a
vida do presidente foi evitado pelo Cruzado
Encapuzado de Gotham City, numa ousada
ação em que Batman surgiu de repente no cir-
co, atirando-se diretamente no caminho do pa-
lhaço assassino, conseguindo arrancar sua
mortal arma de dardos. Se um daqueles dar-
dos recobertos de veneno houvesse atingido o
presidente, ele teria morrido instantaneamen-
te. Na confusão subsequente, o assassino es-
capou do circo, mas Batman não estava feri-
do...”
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Desliguei. Eu e Sue-Hellen estávamos nos
encarando. “Aquele palhaço... no noticiário”,
disse ela, “eles só mostraram de costas — mas
tenho certeza que é o Papai.”
“Então o seu pai tentou assassinar o presi-
dente dos Estados Unidos.”
“Sinto muito”, murmurou Sue-Hellen suave-
mente, com a cabeça baixa. “Isso é muito er-
rado, não é?”
“Muito”, respondi.
“Por que ele faria uma coisa dessas?”, disse
a garota. “Bem... na verdade ele não é um ho-
mem muito bom. Eu tenho tentado amá-lo,
mas simplesmente não consigo. Gork é muito
mais delicado comigo do que o Papai.”
Eu estava começando a suspeitar de uma
terrível verdade a respeito do pai de Sue-Hel-
len. Mas precisava que ela verificasse isso.
“Descreva seu pai pra mim”, pedi. “Como é
ele?”
“Se você se refere às feições, não sei bem.
Quero dizer, não muito. Ele está sempre com a
maquiagem de palhaço. Nunca o vi sem ela.”
“E o cabelo dele? Que cor é?” Meu tom de
voz era urgente.
“É verde”, ela respondeu. “Uma cor verde
feia... e ele sempre pinta os lábios de verme-
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lho.”
Eu estava certo. O pai de Sue-Hellen era
nosso velho inimigo, o próprio Príncipe Palhaço
do Crime...
“Surpresa!” Uma voz oleosa vinda da porta.
Ergui os olhos — e ele estava lá, com seu
sorriso demoníaco distorcendo aquele rosto
pálido como a morte, totalmente maligno.
“Coringa!” Olhei para ele. Sue-Hellen re-
cuou, como que na presença de uma serpen-
te. Ele a ignorou, seus olhos queimando nos
meus.
“Ah... é Dick Grayson”, falou lentamente.
“Um conhecido amigo de Batman e Robin.”
“E com muito orgulho”, retruquei.
“Bem, parece que seu amigo me frustrou
outra vez”, disse o Coringa. “Mas vou fazer
com que pague pelo que fez comigo em
Washington!”
Estávamos frente a frente na cama. Seu
hálito era horrível, como carne podre. “Você é
bom em ameaças vazias, Coringa”, falei. “Mas
quando as fichas estão na mesa você sempre
perde. Batman e Robin venceram você muitas
vezes — e um dia desses vão acabar definiti-
vamente com a sua carreira.”
“Nunca! Minha inteligência é bem maior do
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que a dos homens normais.”
“Pelo menos nisso nós concordamos”, disse
a ele. “Você não é nada normal.”
Durante todo esse intercâmbio, desde o
momento em que seu pai havia entrado no
quarto, Sue-Hellen ficara em silêncio, atenta
ao jogo de palavras entre nós. Agora ela falou
com firmeza, o pequeno queixo erguido de
maneira desafiante.
“Papai, o senhor está sendo muito indelica-
do. Esse é o meu primeiro amigo de carne e
não gosto da forma como está falando com
ele. Acho que devia pedir desculpas.”
“Desculpas!” A risada do Coringa era amar-
ga. “Eu não peço desculpas a nenhum amigo
do Batman. Aquele idiota de orelhas de mor-
cego tem sido uma praga em minha vida —
sempre contrariando meus planos.”
“Se seus atos passados foram tão maldosos
quanto o de hoje em Washington”, declarou a
garota, “então seus planos tinham que ser
contrariados.”
O palhaço olhou para ela, “O que você sabe
sobre bem e mal... sobre lucros e ganhos...
sobre vencer as autoridades... sobre o poder e
a alegria de ser um mestre do crime?”
“Sei que não é razão para se orgulhar dis-
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so”, retrucou ela. “Pelo que aprendi hoje, diria
que devia estar na cadeia.”
“Se Batman estivesse aqui você ia ver
como ele lida com o seu pai”, disse a Sue-Hel-
len. “Ele o poria fora de ação rapidamente!”
“Ah, mas ele estará aqui”, sorriu o Coringa.
“Vamos providenciar isso! Vou atraí-lo exata-
mente para esta casa... e haverá um presente
para ele... um presente do Coringa para o Bat-
man.”
“Como assim?”, perguntei.
“Não sei que estranho golpe do destino
trouxe você até esta casa”, começou ele, “mas
vou fazer um bom uso disso. Quando Batman
chegar — e vou convocá-lo pessoalmente —
encontrará Dick Grayson, seu amigo da socie-
dade, esperando por ele...”, deu uma garga-
lhada maligna, “...com a garganta cortada!”
E ele empunhou uma faca. Sua longa lâmi-
na brilhava com a luz. “E você, querida filha”,
continuou, virando-se para Sue-Hellen, “vai
cortar a garganta dele de orelha a orelha e va-
mos deixá-lo para seu bat-amigo encontrar.”
Seus olhos tinham um brilho quente. “Será
simplesmente delicioso observar o choque do
Batman quando encontrar o cadáver de Gray-
son!”
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“Isso é horrível, exclamou Sue-Hellen.
“Você é um monstro! Nunca vai me obrigar a
fazer tal...”
A voz dela falhou. O Coringa estava em pé
na sua frente, olhando em seus olhos. O tom
de sua voz era suave, hipnótico: “Você vai
obedecer ao seu pai em todas as coisas... Vai
fazer exatamente como eu ordenar... Você é a
garota do Papai... a garota do Papai... a garo-
ta do Papai...” E seus olhos queimavam como
carvões incandescentes na palidez mortal de
seu rosto.
“Eu... sou... a garota... do Papai...”, mur-
murou Sue-Hellen numa voz drogada. Suas
mãos caíram para os lados. Ela tinha os olhos
parados e embaçados, uma vítima de poderes
sombrios.
Foi então que eu saltei nele, colocando
meu punho direto naquele rosto branco e sor-
ridente — mas antes de conseguir desferir
meu segundo golpe, fui atirado violentamente
para trás. Dois robôs caseiros de pele cinzenta
seguravam meus braços num aperto de aço.
Eu estava indefeso.
“Não tente lutar contra eles”, disse o palha-
ço. “Eles são muito mais poderosos do que
qualquer ser humano.” Depois, enfiou a mão
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no casaco listrado e retirou uma pequena cáp-
sula gelatinosa. “Quando ela usar a faca”, fa-
lou, “você não vai sentir nada”. E partiu a cáp-
sula em duas debaixo do meu nariz. Uma onda
de gás anestésico me jogou na escuridão.
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dindo a estrada e eu guinei abruptamente à
esquerda para evitar a fumegante cratera.
(Mais trabalho para o Departamento de
Obras.)
Foi uma caçada curta. O Coringa desceu
seu aparelho no teto de uma velha mansão vi-
toriana na Forest Avenue e eu o segui por uma
claraboia aberta.
A casa estava escura e silenciosa. O Prínci-
pe Palhaço do Crime estava escondido em al-
gum lugar dentro da construção e eu estava
determinado a encontrá-lo. O silêncio parecia
se aprofundar enquanto eu me movia na escu-
ridão, procurando de quarto em quarto, fla-
nando escada abaixo.
Corri silenciosamente por um corredor mal
iluminado e passei por uma porta aberta logo
à frente. Era o salão principal, imenso e orna-
mentado, o luar manchando o assoalho de
carvalho encerado.
Então tomei um susto. Havia alguém esten-
dido numa mesa, no meio da câmera caverno-
sa. Eu me aproximei.
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bin! Sem máscara e com um pijama de seda
branco — manchado de sangue! A cabeça dele
estava torcida num ângulo agudo — e sua gar-
ganta estava cortada de orelha a orelha!
Um cegante cone de luz disparou subita-
mente no teto e uma risada diabólica e ampli-
ficada inundou a sala. A risada do Coringa!
Tantalizadora, demoníaca, triunfante...
“Ele está morto, Batman. Dick Grayson, seu
amiguinho intrometido, não existe mais.”
“Maldito seja, Coringa, vou fazer você em
pedaços por isso!” Com uma fúria cega, pu-
nhos cerrados, eu me esgueirei, tentando
avistá-lo na escuridão. Meus dedos estavam
ansiosos para se fechar em sua traqueia, eu
queria sufocar a vida daquele corpo nojento,
ver seus olhos arregalados, sua língua saindo
de lábios inchados...
“Não adianta me procurar, Batman. Estou
no estúdio do segundo andar, apreciando esse
esplêndido espetáculo na tela do meu moni-
tor.”
Olhei para cima. Uma câmera protegida gi-
rava com meus movimentos, fornecendo ao
Coringa a imagem da minha agonia. Então, a
porta da entrada do salão fechou como um ca-
nhão que explodisse.
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“Você não tem saída”, informou o Coringa.
“A porta é forrada de aço e as paredes são de
pedra maciça.”
“Qual é o seu jogo, Coringa?”
“Simples. Pretendo deixar você e seu amigo
morto. Sem comida. Sem água. Só você e um
cadáver em decomposição lenta. Eu vou facili-
tar sua morte, Batman. Realmente vou.”
E, novamente, a gargalhada demoníaca no
alto-falante da parede.
Corri para a porta, atirando todo meu peso
contra ela, mas nada aconteceu. O Coringa es-
tava certo, eu estava preso, como mosca
numa teia de aranha.
Arremeti contra a porta, o total horror da
morte de Robin me assolando. Lágrimas corri-
am pelo meu rosto debaixo do bat-capuz e eu
esmurrava a parede com dor e frustração. Re-
almente, parecia que o Coringa ia assistir a um
bom espetáculo.
Então, logo além do ângulo de visão da câ-
mera giratória, no canto mais escuro, vi uma
pequena mão branca acenando para mim.
Eu não queria alertar o Coringa, por isso
agi como ele estava esperando: gemi, girei em
círculos desesperados, depois cambaleei para
o canto e bati com os dois punhos na parede.
25
Uma jovem de olhos assustados estava
agachada ali. Olhando para mim, suas pala-
vras jorraram num sussurro desesperado.
“Seu amigo está vivo”, disse. “A figura na
mesa é um robô — para enganar o Papai. Ele
pensou que eu estava hipnotizada, mas eu só
estava fingindo. Gork me ajudou. Ele também
é um robô. Fizemos a máquina baseados em
Dick Grayson. Fui eu que fiz o rosto!”
O alívio de saber que Robin estava vivo me
confortou. Me aproximei da garota. “Quem é
você?”
“Sue-Hellen, a filha da pessoa que vocês
chamam de Coringa. Ele tentou me forçar a
matar seu amigo, mas eu nunca poderia fazer
isso. Eu o amo!”
“Onde você o escondeu?”
“Lá embaixo... no porão. Ele ainda está in-
consciente com o gás hipnótico do Papai. Mas
vocês dois podem fugir por uma passagem se-
creta que vai até a rua.”
“Mas como vou sair desta sala?”
“Atrás de você... tem um alçapão no chão.
Estava trancado por baixo, mas eu o abri.”
“Onde está você, Batman?” A tantalizante
voz do Coringa rugia nos alto-falantes. “Venha,
venha, isso não vai funcionar.” O tom ficou
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mais agudo. “Volte para a luz ou serei obriga-
do a mandar alguns dos meus amigos metáli-
cos para arrancar você desse canto. E eles não
vão fazer isso com delicadeza. Agora, trate de
me obedecer!”
Sue-Hellen estava gesticulando para mim.
A voz dela era urgente: “Depressa! Se não
sairmos logo daqui, ele vai mandar os robôs.”
E ela abriu o alçapão, revelando um qua-
drado de luz pálida e amarelada vinda do po-
rão abaixo de nós.
“Por aqui”, sussurrou a garota. “Siga-me.”
Passei pelo alçapão, fechando-o atrás de
mim e a segui rapidamente escada abaixo.
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tes. “Estou aqui.” Ela estava sorrindo, meu
anjo da guarda pessoal.
“Não entendo. Pensei que o Coringa ti-
nha...”
“Não importa o que pensou”, disse Batman.
“Agora o Coringa sabe que sua filha o enga-
nou. E vai mandar seus robôs assassinos.” Ele
estendeu uma mão enluvada. “De pé. Precisa-
mos sair daqui.”
Levantei-me. Um pouco abalado, mas fora
isso, tudo bem.
Nisso: “BLAM!” — a porta do porão se abriu
com estrondo.
Sue-Hellen gritou: “Eles estão aqui!”
Meia dúzia de robôs gigantes, de caras cin-
zentas, vinham pela porta em nossa direção.
“Talvez isto os atrase”, gritou Batman, ati-
rando um bat-projétil nos homens de lata que
avançavam. Eles recuaram quando o projétil
explodiu com labaredas amarelas.
“Por aqui!”, gritou Sue-Hellen, encami-
nhando-se para uma estreita passagem com
paredes de pedra. Era úmida, cheia de teias
de aranha e cheirava a ratos mortos.
O túnel era negro como a alma do Coringa
— mas continuamos correndo atrás da garota.
Depois avistamos um brilho pálido no fim do
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túnel.
“Aquela é a luz da esquina da Forest com a
Troost”, informou Sue-Hellen. “Vocês estão
quase fora.”
Porém “quase” não era o suficiente, os ro-
bôs estavam ganhando terreno rapidamente.
Em mais alguns segundos eles certamente nos
alcançariam.
“Faça alguma coisa, Batman!”, pedi. “Ou
estamos mortos!”
O Cruzado Encapuzado girou e atirou um
outro frasco do cinto: “BUM!” — o teto todo
atrás de nós desabou, aprisionando os robôs
em rocha e lama.
Pouco depois estávamos na saída do túnel.
Sue-Hellen parou. “Vão rápido”, disse.
Eu hesitei. “Mas você vai com a gente.”
“Ah, não vai não!”, disse uma voz oleosa —
e o Coringa saltou em nossa direção com uma
Magnum .357, brilhando em sua mão enluva-
da.
Batman não disse uma palavra. Era hora de
agir, não de falar. Mergulhou sob a arma do
Coringa e desferiu um potente golpe no queixo
pontudo do palhaço.
O Coringa caiu, soltando a Magnum. Logo
depois, pressionou um botão do casaco — e o
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palhaço-cóptero, hélices girando, desceu como
um gato entre nós. Instantaneamente, o Co-
ringa pulou para os controles, subiu com o
aparelho verticalmente e desapareceu por
cima das árvores.
Minha voz soou intensa: “Será que pode-
mos pegá-lo com o bat-cóptero?”
“Temo que não”, suspirou Batman. “Eu o
deixei no telhado. Sem dúvida nosso amigo de
cabelos verdes o sabotou. Ele não se arriscaria
a uma perseguição.”
Voltamo-nos para a garota. Ela estava aga-
chada dentro do túnel, olhando para nós da
escuridão.
“Vamos, Sue-Hellen”, falei. “É hora de ir
embora.”
Ela balançou a cabeça. “Não posso.”
Aproximei-me dela rapidamente. “Mas por-
que não? Você... você disse que me ama.”
“Eu amo... amo mesmo”, declarou. “Mas...”
Interrompi suas palavras com meus lábios.
“Um beijo!” Ela suspirou de prazer. “Nunca
tinha sido beijada antes.”
“Sue-Hellen, quero que fique comigo”, falei.
“Para partilhar da minha vida. Nunca conheci
uma garota como você. Quero me casar com
você.”
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Lágrimas rolavam dos olhos dela. “Oh, isso
soa... tão maravilhoso. Mas não pode aconte-
cer. Porque...”
“Por que?”
Ela deu um passo adiante em direção à luz
do poste da rua. “Porque estou morrendo.”
Sue-Hellen estava pálida, suas mãos tremi-
am. Um fio de sangue carmesim corria no can-
to de sua boca.
“O Papai garantiu-se de que eu jamais po-
deria sair para o mundo”, contou ela. “Ele me
deu... injeções. Enquanto ficasse dentro de
casa, eu estaria bem. Mas... as injeções muda-
ram a química do meu corpo. Eu não posso
sobreviver... no lado de fora. Minha saída...
provocou uma espécie de... reação em cadeia
dentro do meu corpo... e nada pode me salvar
agora. Nem mesmo o seu amor.”
“Mas deve haver um antídoto”, falei.
“Não... tarde demais...” Ela estava murmu-
rando as palavras. “O Papai foi brilhante. Ele
quis ter certeza de que eu sempre seria... a
garota dele.”
Ela estendeu o braço lentamente para pe-
gar minha mão. Seus dedos já estavam fican-
do frios. “Adeus, Dick Grayson”, sussurrou.
“Adeus, meu amor!”
31
E morreu.
Desci seu corpo até o chão.
Batman segurou meu ombro. “Dick... sinto
muito.”
Eu tinha perdido a garota mais doce que
conhecera.
Eu a amava. Muito.
E sempre amarei.
32
Solo Neutro
MIKE RESNICK
m
33
gante limusine estacionou em frente à loja de
Kittlemeier e um homem alto e bem-vestido
emergiu do banco traseiro. Leve como um leo-
pardo selvagem — seu terno sob medida mal
ocultando um corpo bastante musculoso — ele
andou os cinco passos até a porta de Kittle-
meier, parou por apenas um momento e en-
trou na loja.
Uma campainha tocou levemente e o velho
Kittlemeier, fita métrica jogada no ombro, um
lápis espetado atrás da orelha, passou pela
cortina e cumprimentou seu cliente.
“Está atrasado”, disse.
O homem alto deu de ombros. “Foi inevitá-
vel”, falou e Kittlemeier notou que as juntas
dos dedos de sua mão direita estavam bastan-
te inchadas.
“Temos que ser rápidos”, disse Kittlemeier.
“Tenho outro compromisso em quinze minu-
tos.”
O homem alto ficou interessado, mas evi-
tou fazer perguntas. Essa era a regra de Kittle-
meier e ele a respeitava.
Kittlemeier abaixou-se e retirou um cinto
amarelo com bolsas exteriores debaixo do bal-
cão.
“Como pode ver”, comentou, mostrando o
34
cinto para o homem alto, “tive que eliminar a
bolsa dos explosivos para arrumar lugar para a
nova máscara de gás que vai usar. Tem certe-
za quanto às dimensões?”
O homem alto anuiu.
“Tomei a liberdade de fazer outra pequena
mudança”, continuou Kittlemeier, mostrando
uma seção diferente do cinto. “A roldana mini-
aturizada da sua corda de seda estava desgas-
tando o couro aqui, por isso inverti o ângulo
de encaixe.”
“Concordo”, disse o homem alto.
“Uma corda de tungstênio seria igualmente
forte e ocuparia menos espaço”, sugeriu Kittle-
meier.
O homem alto discordou com a cabeça.
“Prefiro seda. Machuca menos as mãos.”
Kittlemeier deu de ombros. “Talvez queira
pensar sobre isso no futuro. Você poderia
acrescentar vinte metros no comprimento e eu
posso reforçar suas luvas.”
“Talvez no futuro, quando surgir a necessi-
dade de uma corda mais longa”, disse o ho-
mem alto. “Tem mais alguma coisa para
mim?”
O velho Kittlemeier concorda e procurou
embaixo do balcão outra vez, retirando, agora,
35
um longo par de luvas azul-escuro.
“Onde é a fonte de força?”, perguntou o
homem alto.
“Uma bateria de lítio, presa nas costuras.”
“E essas luvas vão me isolar de uma tem-
peratura de cem graus abaixo de zero Fahre-
nheit?”
“Pelo menos”, respondeu Kittlemeier.
“Ótimo. Vou precisar disso para...”
“Não quero saber”, interrompeu Kittlemeier,
erguendo a mão. “O que você faz quando sai
do meu estabelecimento não é da minha con-
ta.”
O homem alto concordou e por um mo-
mento percebeu o tique-taque de um relógio
batendo no silêncio empoeirado da loja.
“Eu vou levar”, disse afinal, apontando as
luvas.
“Pensou a respeito das botas?”
“Sim. Gostei muito da sua sugestão.”
“Ótimo”, disse Kittlemeier. “Claro que vou
precisar de moldes dos seus pés para poder
equipá-las com molas para saltar a distância
desejada. Vamos marcar para, digamos, duas
horas na quinta?”
“Por que não agora?”, perguntou o homem
alto.
36
Kittlemeier balançou a cabeça. “Tenho ou-
tro compromisso. Você deve sair antes do meu
próximo cliente chegar. Você conhece as re-
gras.”
“Como quiser”, disse o homem alto, indife-
rente.
Kittlemeier começou a embrulhar o cinto e
as luvas, depois colocou-os numa sacola não-
identificável e entregou ao homem alto do ou-
tro lado do balcão.
“Isso vai ficar em...” Ele pensou por um
momento, depois enunciou uma quantia que
não lhe parecia exorbitante demais. “Em di-
nheiro, como sempre.”
O homem alto soltou um grunhido, tirou a
carteira, extraiu dela algumas notas grandes e
colocou-as no balcão.
“Até quinta, então”, disse Kittlemeier.
“Até quinta”, respondeu o homem alto.
Apanhou a sacola, andou até a porta e entrou
no banco traseiro da limusine, que partiu ime-
diatamente e logo se perdeu de vista no tráfe-
go da hora do rush.
Kittlemeier colocou o dinheiro na caixa re-
gistradora, depois consultou seu relógio. Ele
estava louco por um cigarro, mas seu próximo
cliente nunca se atrasava e por isso permane-
37
ceu atrás do balcão.
Precisamente às 5h 15 da tarde, um ho-
mem esguio com escassos cabelos loiros en-
trou na loja investigando furtivamente a escu-
ridão, antes de se aproximar do balcão.
“E então?”, exigiu. “Estão prontos?”
“Quatro estão”, respondeu Kittlemeier.
“Dois realmente não podem ser consertados.
Vou ter que fazer outros.”
“Então faça. E da última vez você fez só oi-
tenta pontos de interrogação. Desta vez quero
pelo menos cem e saiba que vou contar um
por um.”
Kittlemeier puxou um bloco de notas e co-
meçou a rabiscar numa caligrafia quase ininte-
ligível. “Cem pontos de interrogação”, murmu-
rou enquanto escrevia.
“E o tecido tem que ser resistente e a cor, à
prova de água.”
“Tintura à prova de água”, disse Kittlemeier,
rabiscando furiosamente.
“Tudo bem?”
“Claro”, respondeu Kittlemeier.
“Preciso deles até a próxima segunda, por-
que na terça...” Ele jogou a cabeça para trás e
gargalhou histericamente.
“Segunda”, concordou Kittlemeier. “Às dez
38
horas da manhã?”
“Dez horas”, disse o homem.
Kittlemeier colocou quatro trajes verdes
cuidadosamente dobrados numa sacola de pa-
pel pardo do mercado local. Depois pegou
uma folha de papel em branco e rabiscou um
número.
“Isso é mais do que combinamos.”
“Meu preço original era para o conserto de
seis trajes. Não pensei que iria ter de fazer
dois a partir do modelo.”
“Você manteve os antigos dispositivos nos
novos trajes?”, perguntou o homem. “Eu fica-
ria muito infeliz se descobrisse que estou pa-
gando por novas armas, quando as antigas
ainda estavam funcionando perfeitamente.”
“Eu guardei todos”, disse Kittlemeier. “Pode
verificar quando voltar na próxima segunda.”
O homem olhou para ele com desconfiança
por um longo tempo, depois tirou um bolo de
notas do bolso e colocou no balcão.
Kittlemeier contou as notas cuidadosamen-
te, depois ergueu os olhos. “Por favor, traga
mais seiscentos dólares na segunda e assim
sua conta estará em dia.”
O homem anuiu quase imperceptivelmente,
depois apanhou sua sacola, virou-se e saiu.
39
Tinha sido um longo dia e o velho Kittle-
meier estava ficando com fome. Deu um sus-
piro, era gratificante ser reconhecido como o
melhor do ramo, mas raramente havia tempo
disponível para assuntos pessoais.
Ele consultou o relógio outra vez e resolveu
que tinha tempo para sair e comer um sanduí-
che antes que Selina chegasse para buscar
seus equipamentos.
40
Jack do Metrô
UMA AVENTURA DE BATMAN
JOE R. LANSDALE
m
A lua...
O cemitério era no topo da colina e o túmu-
lo ficava bem no centro dela. Era marcado por
uma cruz de pedra coberta de bolor e envolta
em trepadeiras retorcidas. Havia outros túmu-
los, é claro, e todos igualmente desleixados,
mas era este que Jack Barrett queria.
Ele subiu ao topo da colina, inclinou-se so-
bre sua pá com uma mão e segurou a lanterna
com a outra. O facho de luz passeou por sobre
a cruz de pedra mas não revelou nada. O tem-
po, o bolor e as trepadeiras haviam se encar-
regado de desaparecer com a escrita. Apesar
disso, Jack pesquisara o suficiente para saber
que este era o lugar.
Ele apagou a lanterna, colocou-a no bolso
do casaco e olhou ao redor. A colina onde es-
tava o túmulo era alta o suficiente para ficar
41
acima dos muros de pedra do cemitério e per-
mitia uma vista da cidade, a cidade que cres-
cera em tomo dele com os anos e agora pisca-
va seus olhos de neon para este monte de su-
jeira, pedras e ossos.
Jack podia ouvir o barulho dos carros ron-
cando pelas ruas da cidade e achou que con-
seguia discernir o som do metrô próximo dali.
À esquerda da colina havia um grande carva-
lho com aparência frágil e ele olhou por entre
os galhos para observar a lua passando pelo
céu atrás de um véu de nuvens. Um vento
fresco soprava no cemitério, balançando as ár-
vores, despenteando os cabelos de Jack e car-
regando as folhas.
Jack respirou fundo, enfiou a pá na terra e
começou a cavar. Os sons do vento, dos carros
e do metrô desapareceram e tudo o que ele
ouvia era o raspar da ferramenta entrando na
terra úmida.
Ele cavou até chegar a uma laje de pedra
ao redor da qual estavam enroladas umas cor-
rentes enferrujadas presas firmemente por um
cadeado carcomido. Bateu com a pá nas cor-
rentes e elas se partiram com se fossem trepa-
deiras. Depois, enfiou a ponta da pá em uma
rachadura na laje e levantou grandes pedaços
42
dela até que surgisse uma pequena passagem
com degraus escuros e estreitos.
Jack colocou a ferramenta de lado, pegou
sua lanterna e desceu os degraus escorregadi-
os para dentro da tumba úmida. Apontou a
lanterna para uma elevação de pedra empoei-
rada com um crânio caído em uma ponta e
uma pequena caixa de metal retangular na ou-
tra. Havia uns fragmentos que poderiam ser
ossos espalhados por sobre a plataforma.
Ele se aproximou e pegou a caixa. Apesar
da ferrugem que a cobria, parecia firme e pe-
sada. Segurou-a gentilmente, sentiu e ouviu
algo se mover lá dentro, colocou a caixa no
grande bolso de seu casaco e saiu de dentro
da tumba.
Jack guardou a lanterna no outro bolso do
casaco e, apoiando-se no muro do cemitério,
pulou para o outro lado. Andou apressada-
mente pela estreita trilha de cascalho que pas-
sava por entre os arbustos e as árvores, voltou
para a calçada. Depois, caminhou até que os
sons da cidade enchessem seus ouvidos e as
luzes inundassem seus olhos.
Ele caminhava depressa, a mão no bolso do
casaco, acariciando a caixa docemente, como
se fosse a coxa de uma mulher.
43
JAMES W. GORDON, Comissário de Polícia
(meio de outubro)
44
cou de baixo dos cobertores e me fez ir até a
cozinha atender na extensão de lá. Um policial
da ronda noturna chamado LoBrutto falou: “O
detetive Mertz me pediu para ligar. Disse que o
senhor queria saber quando houvesse um ou-
tro caso, para ver as coisas em primeira mão.”
“Mande um carro”, falei.
Tomei um café instantâneo, a viatura che-
gou e me levou até lá. A entrada do metrô es-
tava isolada e algumas pessoas tentavam ver
o que estava acontecendo, enquanto um mon-
te de uniformes tentava impedir. Dois bons de-
tetives, Mertz e Crider, esperavam à minha
frente.
Mertz me pegou pelo cotovelo, descemos a
escada do metrô e andamos pelos corredores.
Eu sentia o habitual cheiro de vômito mistura-
do com urina e um outro cheiro também.
Sangue.
Quando chegamos, o corpo estava encosta-
do na parede, coberto por um plástico amare-
lo.
“Nós temos fotos e tudo mais”, disse Mertz.
“Você não vai estragar nada se quiser dar uma
olhada. Já tenho tudo o que preciso.”
Fui até lá, levantei o plástico e prendi a res-
piração. É muito ruim ver essas coisas em fo-
45
tos, ou no necrotério, mas olhar para aquilo no
concreto frio, o sangue ainda secando, o fedor
da morte no ar, bem, incomoda, e não importa
se você já viu a morte mais de mil vezes. Se
você for normal, incomoda.
Por outro lado, eu nunca tinha visto um ca-
dáver daquele jeito, nunca tinha visto esse
tipo de violência contra um ser humano. Tal-
vez alguém que tivesse passado por dentro de
uma máquina pudesse ficar daquele jeito,
mas... bem, acho que dá para imaginar.
“Todos os cavalos do rei e todos os homens
do rei...’’, disse Crider. Ele estava de costas,
sem olhar o corpo. Mertz fumava um cigarro
ao lado de uma coluna de concreto, olhando
para os trilhos do metrô.
O café me embrulhou o estômago e amea-
çou voltar, mas segurei. Eu já tinha alguma ex-
periência. Me apoiei num dos joelhos do lado
da poça de sangue seco e examinei o corpo,
tentando ser o mais frio e objetivo possível.
Quando acabei, olhei para cima e li o que es-
tava escrito com sangue na parede do metrô:
COM OS CUMPRIMENTOS DE JACK DO ME-
TRÔ, NÚMERO TRÊS.
Crider olhou para mim por cima do ombro e
disse: “Pena que ele não escreveu o endereço
46
também, não é?”
Cobri o corpo novamente, peguei um cha-
ruto no bolso do paletó e quando acendi o is-
queiro percebi que minhas mãos tremiam. As-
pirei bastante fumaça para diluir o cheiro de
sangue e andei até onde pudesse ver os tri-
lhos, junto a Mertz. Crider juntou-se a nós, pe-
gou seu cachimbo e acendeu. Ficamos ali fu-
mando por uns momentos e eu perguntei:
“Suponho que ninguém viu quando aconte-
ceu?”
“Exatamente como os outros”, respondeu
Crider. “Não havia muita gente para ver qual-
quer coisa, mas tinha algumas pessoas. Pare-
ce que, pelo menos, ouviram um grito. Não dá
pra fazer o que esse cara fez, sem levar um
certo tempo. É de se imaginar que aparecesse
alguém.”
“Talvez tenha sido melhor assim”, falei.
“Sim, mas é de se imaginar”, insistiu Crider.
“O lugar nem é tão escuro. Quer dizer, ele não
estava tão escondido assim. O cara deve ser
rápido como um foguete e desaparece feito
fumaça.”
“Alguém sabe quem é a vítima?”, perguntei.
“Provavelmente uma mendiga”, respondeu
Mertz. “Mas não dá pra saber ao certo. Um ca-
47
tador encontrou o corpo. Nós já prendemos
ele umas duas vezes por vagabundagem e pe-
quenos furtos. O nome é Bud Vincent. Diz que
estava andando e achou um carrinho cheio de
coisas e admite que ia roubar, mas não tinha
andado muito quando viu o corpo. Foi então
que ligou para nós e acho que o fato de um
cara desses ligar para nós mostra como o ne-
gócio é feio. Esse tipo de gente normalmente
não quer ter nada a ver conosco, de jeito ne-
nhum. Para eles, nós é que somos os bandi-
dos.”
“Até esse sujeito aparecer”, resmungou Cri-
der. “Ele meio que deu um outro sentido à
maldade.”
“Vocês acreditam nesse Bud Vincent?”, per-
guntei.
“Sim, nós acreditamos nele,” respondeu
Mertz.
Eu não fui para casa. Um carro da polícia
me levou até o escritório. Entrei e sentei atrás
da minha mesa, no escuro, e olhei para o tele-
fone vermelho do lado esquerdo da mesa. Fi-
quei um bom tempo olhando para o aparelho.
A pasta de arquivos do caso do estripador
estava trancada na minha mesa, peguei as
chaves, abri a gaveta e peguei os papéis. Es-
48
palhei os arquivos na minha frente e acendi o
abajur. O que eu tinha ali eram informações
sobre as duas primeiras vítimas, é claro, mas
supunha que, quando os dados a respeito da
terceira vítima fossem reunidos, diriam a mes-
ma coisa. Que a vítima era mulher, que mora-
va na rua, que havia sido cortada em pedaços
por um instrumento cortante e que o assassi-
no era muito forte. Por último, as pistas quan-
to à identidade do assassino seriam mínimas,
ou inexistentes. Até o momento, só tínhamos
um pouco de barro que achamos no local do
primeiro assassinato, talvez dos sapatos do as-
sassino, talvez não. Poderia ser de algum tran-
seunte e em todo caso não seria muito útil.
Era um tipo de barro muito comum.
Fechei a pasta, apaguei a luz e fiquei
olhando para o telefone vermelho, pensando
que essa história do “Jack do Metrô” era mais
estranha do que o habitual. Eu o sentia em
meus ossos, como se fosse um tipo de câncer,
e ao entrar no território das coisas estranhas,
a gente entra no território do Batman.
Acho que não fiz a ligação por uma questão
de orgulho. Já havia acontecido assassinatos
em série em Gotham antes e certamente
aconteceriam de novo. O departamento resol-
49
vera a maioria deles e algumas vezes os cri-
mes tinham simplesmente parado. Talvez o as-
sassino tivesse ido para outro lugar, talvez ele
ou ela tivesse morrido. Mas as mulheres conti-
nuavam morrendo e isso tinha de acabar, e se
alguém podia parar com isso, esse alguém era
Batman. Tudo o que eu tinha a fazer era esti-
car o braço, pegar o aparelho e o telefone to-
caria, e ele viria, sem se incomodar em aten-
der.
A bala.
Avançando.
Brilhava na luz da rua como um foguete
prateado fora de controle.
A bala. A primeira de duas.
Bruce tentou imobilizá-la com sua mente e
conseguiu. Imobilizou-a em pleno ar. Mas não
conseguia segurá-la. Fez um esforço de vonta-
de mas, desta vez, não importava o quanto ele
tentasse fazer com que recuasse, a bala conti-
nuava avançando.
Ia acontecer novamente.
Ele era apenas um garoto e até momentos
atrás era feliz, mas agora a bala ia acabar com
50
tudo. Meu Deus, ia acontecer de novo!
Ele e seus pais haviam saído de um cinema
onde tinham visto A Marca do Zorro e, virando
a esquina do cinema, um ladrão estava espe-
rando com um revólver e sem nenhuma pa-
ciência. Ele interrompeu a conversa e o riso e
tirou o Zorro da cabeça deles pedindo dinhei-
ro.
Mas antes que seus pais pudessem fazer o
que ele pedia, o ladrão ficou nervoso e puxou
o gatilho e a bala saltou para fora.
A bala.
Ela tropeçou.
Bruce estava surpreso de conseguir ver a
bala. Estava muito nítido, em câmera lenta.
Ele também estava surpreso por conseguir
pará-la desta vez, mas sua vontade não era
forte o suficiente para manter a situação. A
bala começou a se mover de novo. Lentamen-
te se moveu para frente e não importava o
quanto ele tentasse fazê-la parar, ela conti-
nuou inexorável em direção à sua mãe.
Seu pai se jogou na frente dela, levou o
tiro, caiu e não se mexeu mais. E então sua
mãe gritou e o ladrão atirou mais uma vez. A
bala partiu seu colar, e as pérolas voaram em
todas as direções e sua mãe caiu sobre seu
51
pai.
Bruce olhou para cima e descobriu que es-
tava sentado em uma sacada, como aquela do
cinema onde tinham assistido a Marca do Zor-
ro. Ele estava assistindo ao assassinato de
seus pais na rua lá em baixo. Ele podia vê-los
mortos e via a si mesmo de pé ali, perplexo. O
ladrão entrou em pânico, virou e fugiu rua
abaixo e foi engolido pela escuridão como um
peixe escorregando para dentro da garganta
de uma baleia.
Bruce percebeu que havia alguém na saca-
da com ele. Alguém com a respiração quente
em seu pescoço, inclinando-se para a frente
para colocar um braço pesado em seus om-
bros. Uma voz que parecia vir de muito longe
através de um cano disse: “Você é meu, e
você irá se tornar eu... eu sou o seu verdadei-
ro pai... e você é meu filho.”
Com as faces molhadas de lágrimas, Bruce
viu que quem falava tinha orelhas pontiagudas
e um rosto cheio de dentes longos e afiados.
O braço ao redor de seus ombros afastou-se e
estava grudado a uma asa escura e dentada.
Os dedos da coisa tinham grandes garras nas
pontas.
Era um enorme homem-morcego.
52
Ele bateu as asas e alçou vôo da sacada
em direção às trevas quando Bruce sentou-se
na cama e gritou. As sombras na sacada de-
ram lugar às silhuetas mais leves de seu quar-
to e essas partiram-se por um feixe de luz
dourado, dividido por uma sombra alta e ma-
gra que disse: “O senhor está bem?”
“Alfred?”
“O sonho, senhor?”
“O mesmo. Só que desta vez eu consegui
ver as balas saindo do revólver e parecia que
eu ia conseguir congelá-las, impedi-las de ma-
tar meus pais. Mas ainda assim aconteceu.
Nem no sonho eu consegui que as coisas
acontecessem do jeito que eu queria.”
“O homem-morcego novamente, senhor?”
“Em uma sacada desta vez, olhando para a
rua.”
“Sinto muito, senhor.”
“Estou aprendendo a conviver com isso.
Pelo menos os sonhos variam um pouco.”
“Não apenas os sonhos, senhor. Eu estava
vindo acordá-lo quando gritou.”
“O telefone vermelho?”
“Sim, senhor.”
“Bom.”
53
SÉRIE DE QUADRINHOS, RICOS EM SOM-
BRA E MOVIMENTO
54
os lados da máquina para mostrar que ele re-
almente está em movimento.
55
jornal voou através da rua e prendeu no farol
esquerdo. Visível na parte iluminada, um pe-
daço da manchete: “Jack do Metrô”.
JAMES W. GORDON
56
pudesse enxergar direito. “Existem outras in-
formações aí se você quiser”, recostei na ca-
deira, peguei um charuto e acendi.
Ele estendeu a mão enluvada e pegou a
pasta, abriu e sem olhar para cima disse:
“Hábito nojento.”
“É esse negócio do “Jack do Metrô”, falei.
“Está me fazendo fumar cachimbo mais do
que de costume, além desses charutos. Estou
nervoso como um gato de rabo comprido
numa sala cheia de cadeiras de balanço. Eu
vou acabar bebendo também. Eu vi um núme-
ro três esta noite, pode acreditar, se você ti-
vesse visto o que eu vi, também começaria a
ter maus hábitos. Essas fotos não mostram
todo o horror da coisa.”
“Mesmo assim, Jim, eu preferia não respi-
rar sua fumaça.”
“Você provavelmente ingere a quantia exa-
ta de cereais e ameixas também, não é?”
“É, a quantia exata.”
Eu apaguei o charuto.
Quando ele acabou de ler, eu disse: “E o
número quatro não será muito diferente tam-
bém.”
“Sempre o metrô”, falou. “Sempre mendi-
gas.”
57
“Um psiquiatra poderia dar uma pista sobre
isso. Não temos uma avaliação psiquiátrica
dele ainda. Pode ser que o metrô seja perto e
as mendigas sejam vítimas fáceis... Mas vou te
dizer uma coisa, tem alguma coisa de diferen-
te nesse caso. Algo estranho. Eu sinto nos
meus ossos.”
“Pode ser reumatismo, Jim.”
“Estranho.” Ele empurrou o abajur de volta
para o lugar, apagou a luz e ficou em pé. Pe-
gou umas cópias extras dos arquivos e guar-
dou em algum lugar da capa. “Nós o pegare-
mos.”
“É”, eu disse, mas tinha minhas dúvidas.
Eles nunca pegaram Jack, o Estripador. Ainda
não pegaram o assassino de Green River. Exis-
tem dúvidas se o homem que eles prenderam
era mesmo o Estrangulador de Boston.
As vezes eles escapam.
“Eles têm uma amostra do barro para você
lá em baixo na expedição. Se você quiser eles
têm ordem de entregar.”
“Obrigado, Jim.” Ele saiu. Senti um forte
impulso de dizer a ele para tomar cuidado. Le-
vantei, fui até a porta, abri e olhei para os dois
lados do corredor.
Ele tinha ido embora.
58
Ele sempre se movia como um fantasma.
59
OR NO FUNDO DOS CORREDORES DE LIVROS
(3) BIBLIOTECA
60
existia.”
(4) BIBLIOTECA
61
Uau, descobri uma coisa que fará o velho
professor Hamrick desmaiar. Essa será uma
tese de pesquisa para acabar com todas as te-
ses de pesquisa. Ela tem crime real, ela tem
aquele ar místico, ela tem uma lenda estranha
que se pode associar com todos os tipos de
mitologia e assassinatos famosos. Em última
análise, estamos falando de uma nota muito
alta em pesquisa para este que vos fala.
Me parece uma boa ideia fazer aqui uma si-
nopse do que eu lembro, de modo que eu pos-
sa ter as minhas primeiras impressões, assim,
mais tarde, quando estiver escrevendo a tese
eu possa pegar essas anotações e transcrevê-
las para a tese. E, além disso, alguma vez eu
deixei de escrever nesse diário as coisas que
mais me excitavam? A resposta é não, senhor.
Eu achei este livro chamado “Seguidores da
Lâmina”, escrito ao redor de 1900 por esse
cara chamado David Webb que havia pesqui-
sado o assunto a vida inteira. Ele era um ho-
mem à frente de seu tempo com interesse
nesse tipo de coisa, mas suas conclusões são
um pouco loucas — para dizer o mínimo. Ape-
sar disso a leitura é fascinante e ele se apoia
em uma bibliografia interessante de livros, ar-
62
tigos e entrevistas. Eu procurei algumas des-
sas referências na biblioteca desde que achei o
livro de Webb e o mais interessante se chama-
va “O Livro dos Doches”, escrito em 1600, mas
que não podia ser retirado da biblioteca. Eu o
peguei emprestado, levando para casa escon-
dido no casaco. Quando acabar de escrever a
minha tese, eu devolvo.
A teoria de Webb é que o mundo que co-
nhecemos cruza ocasionalmente com outros
mundos ou dimensões e é desse cruzamento
que tiramos algumas das ideias que temos a
respeito de deuses e monstros e explica al-
guns desaparecimentos. Parece que essa di-
mensão a que ele se refere e habitada por
todo o tipo de pessoas e animais horríveis. É
assim que explica o desaparecimento da tripu-
lação do Maria Celeste, sugere que os assassi-
natos atribuídos a Lizzy Borden foram cometi-
dos por alguém ou alguma coisa, dessa outra
dimensão, que a possuiu e a usou. Ele diz o
mesmo sobre Jack, o Estripador.
Mais tarde eu vou voltar a esse assunto.
Deixe-me anotar mais uma de suas ideias inte-
ressantes, a ligação entre feitiçaria e a mate-
mática, a geometria e ao movimento dos pla-
netas e da lua.
63
Ele fala a respeito desse personagem que
foi chamado através dos séculos de “Deus das
Espadas”, “Deus das Facas” e, quando ele es-
tava escrevendo, de “Deus da Lâmina”. Ele diz
que essa coisa não é realmente um deus, mas
uma criatura poderosa dessa outra dimensão
e, por alguma razão, quando certos símbolos
matemáticos são desenhados, pode abrir os
portões do mundo dele e escapar para possuir
alguém e fazê-lo executar sua vontade.
Existe um desenho grosseiro desse perso-
nagem no livro de Webb e eu vou te contar, eu
não gostaria de encontrá-lo em um beco escu-
ro, ou em um beco claro. Mas a descrição
dada por Webb me dá mais medo ainda. Ele
diz que essa criatura variou um pouco através
dos séculos, mas é mais ou menos assim: O
“Deus da Lâmina” é muito alto e muito grande
e usa um tipo de cartola (um capacete, de
acordo com algumas descrições) com uma tira
de metal e seus dentes são agulhas ou pu-
nhais, usa pele e crânios humanos, como sa-
patos, possui pequenos cascos que cabem di-
reitinho dentro de bocas.
Em todo caso, esses símbolos matemáticos
podem chamá-lo se houver sangue. Ele tam-
bém diz que existe uma faca dessa outra di-
64
mensão que pode abrir o portão. Diz que an-
tes era uma espada, mas que quebrou e foi
transformada em dois punhais e mais tarde
um dos punhais apareceu transformado em
uma navalha de barbeiro e o cabo de marfim
da espada tinha servido para fazer o cabo da
navalha. Nesse cabo estão inscritos esses sím-
bolos matemáticos e que se a lâmina provar
sangue e não matar a pessoa que ela cortou,
aí essa pessoa é possuída pelo “Deus da Lâmi-
na” e se toma seu instrumento de destruição.
Ela suga sangue e transforma qualquer pessoa
possuída em um lunático. (Ele liga isso aos
Vikings e a sua loucura nas batalhas).
Deixe-me ver o que mais. Ah, Webb diz que
a Excalibur, a espada do Rei Artur, era original-
mente da mesma dimensão do “Deus da Lâmi-
na” e que ela pertencia a ele. Ele diz que foi
essa a espada que se partiu e foi transformada
em uma navalha. (Eu me pergunto o que
aconteceu com o resto da lâmina). Ele fala
que eventualmente essa navalha caiu nas
mãos desse barbeiro em Londres e que ele
acidentalmente se cortou com ela. O deus o
teria possuído e obrigado a cometer os assas-
sinatos em Whitechapel.
Webb sugere que esse homem possuído
65
pode ter na verdade morrido ou cometido sui-
cídio, mas antes que a lâmina de alguma for-
ma passasse para outras mãos. Ele apresenta
provas de assassinatos semelhantes através
dos Estados Unidos logo após os de Londres e
os últimos assassinatos que ele registra em
seu livro terminam bem aqui em Gotham City,
em 1904.
E veja isto. Sua verificação final é de que
ele viu o “Deus da Lâmina” com seus próprios
olhos e que ele e um colega policial consegui-
ram dar cabo do sujeito, o que naturalmente
libertou o possuído, mas também o levou à
morte. Ele conta que eles foram capazes de
derrotar o deus quando o luar estava obstruí-
do por nuvens, uma das poucas coisas que di-
minuem a força do monstro. Suponho que eu
deva acrescentar a isso que ele menciona que
não conseguiu matar o deus, apenas o man-
dou de volta à sua própria dimensão.
A última parte do material é que o assassi-
no, que Webb disse estar possuído pelo “Deus
da Lâmina”, está enterrado bem aqui, no Velho
Cemitério de Gotham. De acordo com Webb, a
navalha foi posta em uma caixa de metal e en-
terrada com esse sujeito de modo que fique
para sempre longe do alcance das mãos do
66
homem.
Se o Webb pensou nas coisas direito, se ele
realmente acreditava que essa lâmina tivesse
poder, ele não teria mencionado isso em seu
livro. Porque eventualmente alguém com cer-
teza, tentaria descobrir se existe na realidade,
uma navalha naquele túmulo. Alguém como
eu. Mas talvez como escritor ele não tenha
conseguido resistir e contar tudo o que sabia.
Pode ser que a navalha já tenha sido rou-
bada do túmulo. Ou talvez o livro tenha sido
considerado de ficção ou as palavras de um
louco como todo autor gótico.
Mas se existe uma navalha, imagine a apre-
sentação que eu poderia fazer. Minha tese so-
bre o “Deus da Lâmina” e um show para
acompanhar.
67
mulo. Eu fiquei um pouco preocupado em an-
dar com uma pá sem ser notado, já que eu
imagino que violação de túmulos não é muito
bem-vista. Aí, percebi que nessa cidade um
homem com uma pá pode ser incomum, mas
nada comparado com o tipo de coisa que se
vê todos os dias. Além disso, se a polícia per-
guntar, eu posso dizer que estou levando para
pôr no prego ou alguma coisa assim. Não é a
melhor desculpa do mundo, mas quem é que
vai provar o contrário?
68
Estou tentando descobrir uma maneira de
contornar esse problema de violação de túmu-
lo. Se usar isso para um show, não posso ad-
mitir que fui lá e escavei um túmulo para en-
contrá-la.
Rapaz, essa navalha é afiada e brilhante.
Ninguém imaginaria isso depois de tanto tem-
po. Eu imaginei que estaria enferrujada. Acho
que não a segurei direito, porque quando a
abri ela mexeu na minha mão e eu corri um
dedo pela lâmina e me cortei. Nada grave, mal
a toquei. Mas como arde.
69
valha, melhor.
70
gestivo. Meu dedo cortado dói tanto que mal
consigo escrever, lateja como uma bolha e de
vez em quando abre e sangra.
Preciso dormir. Por enquanto é só.
71
“Com licença, senhor, trouxe a sua bande-
ja.”
Bruce Wayne levantou os olhos da tela do
computador. “Obrigado, Alfred, mas não estou
com fome.”
“O senhor pediu para preparar o jantar e
trazer para o senhor.”
“Eu disse?”
“Sim senhor. Disse que queria comer aqui
embaixo, que tinha de trabalhar. Agora por fa-
vor coma a sopa de ostras antes que eu que-
bre o prato em sua cabeça, senhor Bruce.”
“Deixe aí que eu como.”
“Sim, ponha aí. Assim você pode agradar o
velho Alfred, mas vai deixar aí e vai esfriar e,
afinal, você não vai comer. Não importa que
eu tenha escalavrado meus dedos até os os-
sos...”
“Você apenas abriu uma lata.”
“Bem, é verdade, senhor, mas eu machu-
quei meu dedo no abridor. Fazendo progres-
sos, senhor Wayne?”
“Talvez. Esse barro que eles acharam. Tes-
tei no meu laboratório, analisei e agora estou
checando, Jim tinha razão.”
“Comum como barro.”
72
“Uma piadinha, Alfred?”
“É, uma piadinha, senhor.”
“Mas o importante é que, por comum que
seja, não existem muitos lugares na cidade de
onde poderia ter vindo. Eu vou analisar a in-
formação via computador, achar todos os luga-
res próximos da cidade de onde o barro pode-
ria ser e tentar pesquisar a partir daí. Afinal,
foi deixado pelos sapatos do assassino.”
“Obrigado, senhor, achei que talvez ele pu-
desse ter trazido num pacote.”
“Não era a minha intenção humilhá-lo, Al-
fred.”
“Claro que não, senhor.”
“É que para pesquisar, para usar o método
de Sherlock Holmes, é preciso determinar de
onde o barro poderia ter vindo e...”
“Este último assassinato, senhor... todos os
assassinatos. Eles ocorreram na Estação Cen-
tral, não foi?”
“Sim, mas estou preocupado com o barro.
É isso que...”
“O local dos assassinatos não é muito longe
do velho Cemitério de Gotham, senhor. É bas-
tante provável que o assassino tenha pisado
no barro lá. Parece uma possibilidade lógica
para mim. Ou será que estou sendo muito pre-
73
sunçoso na minha falta de experiência para
sugerir essa possibilidade? O que ele estaria
fazendo lá, não tenho a menor ideia. Um pi-
quenique, talvez... Você está fazendo uma
cara horrível, senhor Wayne.”
“Por enquanto é só, Alfred.”
“Sim, senhor. Tome a sua sopa de ostras.
Eu venho buscar a bandeja mais tarde. O se-
nhor quer o chá no seu estúdio mais tarde?”
“Acho que não.”
“Muito bem, senhor.” Alfred foi para o ele-
vador que levava para a mansão Wayne.
Bruce falou pelas costas do velho mordo-
mo: “Você é um velho metido a espertinho, Al-
fred, mas eu não conseguiria viver sem você.”
Alfred entrou no elevador e juntou as mãos
a sua frente e um pouquinho antes que a por-
ta do elevador fechasse, disse: “Claro que não,
senhor.”
74
porque o portão estava trancado com corrente
e cadeado. Não quis abri-lo, pois parecia muito
velho e tive medo que quebrasse. Jim recla-
mou quando o empurrei por cima do muro.
Disse que empurrei seu rosto contra o muro
para amassar seu charuto. Expliquei que tinha
sido sem querer. Falei que ele deveria olhar fo-
tos tiradas na autópsia de pulmões de pessoas
fumantes. Disse que a nicotina estava man-
chando seu bigode. Ele mandou ir para o in-
ferno.
Nós procuramos e achamos uma pá e um
túmulo aberto. Eu não pude ler o que estava
escrito no túmulo, mas o barro era do mesmo
tipo encontrado no local dos crimes, verifiquei
no laboratório quando voltei. Aposto que a su-
posição de Alfred está correta, que o barro
veio do cemitério. A proximidade à área dos
assassinatos era muita coincidência. Acres-
cente-se a isso o túmulo aberto e acho que
podemos fazer umas conexões interessantes.
Eu limpei a cruz com um ácido fraco do
meu cinto de utilidades, enquanto Jim segura-
va a lanterna e resmungava. A paciência não é
uma das suas virtudes. Eu esfreguei a cruz até
conseguir ler um nome: Rufus Jefferson.
Jim prometeu verificar nos computadores
75
da polícia e eu vim para cá fazer o mesmo. O
que nós dois descobrimos é que Rufus Jeffer-
son morreu em 1904, nas mãos de um policial
de Gotham City, após cometer o quarto de
uma série de assassinatos, todos muito seme-
lhantes aos cometidos agora pelo “Jack do Me-
trô”.
Jim disse que depois de verificar no compu-
tador, ele desceu e foi verificar nos velhos ar-
quivos que não foram colocados no computa-
dor. Ele descobriu que Jefferson foi pego por
um sargento Griffith e por um escritor chama-
do David Webb, que mais tarde escreveu um
livro narrando sua experiência. O nome do li-
vro era “Seguidores da Lâmina”.
Eu verifiquei na biblioteca pública, bem
como em outras bibliotecas menores na cida-
de. A biblioteca de Gotham City disse que ti-
nha um exemplar registrado nos arquivos, na
seção reservada, mas que havia desaparecido,
roubado, talvez.
Cada vez mais estranho.
Voltei ao computador e entrei em contato
com bibliotecas no país inteiro e descobri que
na biblioteca da Universidade Stephen F. Aus-
tin, em Nacogdoches, Texas, eles tinham um
exemplar na seção de livros raros. Eu consegui
76
que Jim providenciasse o envio para nós pelo
correio da noite.
Talvez haja alguma coisa no livro que possa
nos ajudar, algo que explique a conexão do
nosso assassino com aquele velho túmulo e
Rufus Jefferson.
77
sado. Seu professor de criminologia me disse,
confidencialmente, que ele estava agindo de
modo estranho e tinha começado a faltar às
aulas subitamente. Ele achaque talvez sejam
problemas em casa ou uma garota...
...a universidade me forneceu o endereço
de Jack Barrett e eu vou entrar em contato
com Jim para verificarmos...
78
mendigas.
Essa parte é interessante, é claro. Mas al-
guma coisa nesse rapaz dá a impressão de
que não quer estar ali, que é contra a vontade
dele. Barrett anda como se fosse uma mario-
nete e alguém estivesse puxando os barbantes
e até o momento que chega na porta do me-
trô parece não estar prestando atenção em
nada.
Aí presta muita atenção nas mendigas. Ele
tem essa coisa com a lua. Está sempre escuro
quando ele volta para casa, e às vezes ele
para e olha para a lua. Ou o que dá para ver
dela. Tem estado nublado ultimamente e as
nuvens a cobrem na maior parte do tempo.
Ela parece um risco de tão fina, mas ele olha
como se a odiasse. Ele está sempre com uma
mão no bolso.
Batman acha que Barrett espera uma noite
clara. A ideia de uma lua clara tem uma rela-
ção com o que Webb escreveu no “Seguidores
da Lâmina”. De acordo com Batman a previsão
é de tempo um pouco melhor amanhã, especi-
almente de madrugada, alguns momentos de
céu claro com uma pequena ameaça de chu-
va. Ele acha que as coisas podem acontecer
amanhã.
79
Eu não entendo esse negócio da lua, mas
tenho um pressentimento de que Batman está
certo. Se Barrett fizer alguma coisa amanhã se
ele for mesmo o “Jack do Metrô”, espero que
estejamos preparados.
80
molhar. Vai acabar pegando um resfriado.”
“Estou duro”, disse Barrett, e andou mais
depressa.
O táxi continuou acompanhando e o moto-
rista falou: “Deixa pra lá. Não gosto de ver um
cara a pé numa noite assim e eu não estou ar-
rumando passageiro mesmo. Essa corrida é
por minha conta se você quiser. Eu sou um
trouxa mesmo.”
Barrett parou e o táxi parou também. Bar-
rett olhou para a lua. Ela estava clara e ele
sentiu aquela vontade ficando forte dentro
dele. Seria melhor ir de táxi do que pegar o
metrô na Rua Maynard e ir até a Central. E a
Maynard ainda estava longe. Ele olhou para o
motorista e disse:
“Tudo bem.” Entrou no banco de trás do
carro e deu uma olhada lateral para o motoris-
ta. Era um velho grande com os cabelos bran-
cos, uma boca que parecia de borracha e ru-
gas tão fundas que pareciam sulcos. “Se não
fosse problema, eu gostaria de ir para a Esta-
ção Central.”
“Fui eu que convidei”, disse o motorista, e
saiu com o carro. Ele olhou pelo espelho e dis-
se: “Você não parece bem. Você está doente?”
“Estou doente sim”, respondeu Barrett.
81
“Você não ia acreditar se eu dissesse como es-
tou doente.”
“Mais um motivo para não andar a pé. Noi-
tes assim são um horror.”
“Fale-me a respeito”, disse Barrett enquan-
to se recostava no banco e fechava os olhos
febris.
“Se você está com problemas, pode procu-
rar alguém. E se não for problema físico, exis-
te gente que cuida disso.”
Barrett não estava ouvindo. Ele estava pen-
sando nas coisas ruins que tinha de fazer e so-
bre a escuridão total do outro lado, uma escu-
ridão rasgada pelo brilho de uma navalha.
82
Ele queria tirar a navalha do bolso e jogar
fora. Queria pegar a navalha e cortar alguém,
talvez o motorista. Ele queria fazer essas coi-
sas todas e ao mesmo tempo não queria fazer
nenhuma.
Ele disse: “Obrigado”, e saiu do táxi. Des-
ceu os degraus da estação do metrô e sumiu
de vista.
O motorista de táxi virou a esquina, achou
um lugar cheio de sombras e estacionou. Ar-
rancou seu rosto pegando pelo cabelo e pu-
xando. A máscara saiu com um som de sucção
igual a alguém desentupindo uma pia. Ele pas-
sou a mão pelos cabelos escuros e pelo rosto
bem-feito, a máscara tinha machucado um
pouco seu rosto. Tirou a jaqueta, as calças e
chutou os sapatos. Pôs o capuz sobre a cabe-
ça. Recostou-se no assento, abriu o porta-
luvas, pegou o walkie-talkie, apertou um botão
e disse: “Ele está aqui, Jim. E parece mal. Eu
tentei fazê-lo falar. Achei que ele podia contar
tudo e eu podia convencê-lo a desistir. Nem
pensar. Quase dá para sentir o calor vindo do
cara e eu estou achando que vai ser hoje a
noite. Se for ele, e eu acho que é, e se for fa-
zer a barbaridade, eu acabei de jogá-lo em
suas mãos.”
83
“Estamos esperando”, respondeu Gordon.
Batman prendeu o walkie-talkie no cinto,
saiu do táxi e encostou na carroceria. Ele que-
ria ir atrás de Barrett, mas tinha prometido a
Gordon que tentaria ficar de fora. Se desse,
era uma promessa que ele queria cumprir.
JAMES W. GORDON
84
para ele não se envolver, só para o departa-
mento ter o mérito de resolver o caso. De vez
em quando, vinha pressão lá de cima dizendo
que agente se apoiava demais no Batman.
Pode ser.
Em todo caso, eu tinha acabado de acender
o charuto quando vi o Barrett descendo as es-
cadas. Ele estava fraco e cansado, parecia do-
ente. O suor na testa dele parecia uma tiara
de pérolas. Ele cambaleava um pouco e olhava
pra o chão praticamente o tempo todo.
Eu encostei na parede e fiz cara de bêbado.
Ele passou por mim sem olhar. Eu o deixei se
afastar um pouco antes de espiar e vê-lo an-
dando na beira da plataforma. Eu achei que
ele acabaria caindo nos trilhos.
Tinha alguma coisa nele, uma coisa estra-
nha no ar que me fez pôr a mão no bolso e
sentir meu .38 só para dar sorte. Eu sussurrei
no walkie-talkie avisando meu pessoal lá na
frente e comecei a segui-lo a distância, andan-
do o mais macio e silenciosamente possível.
Finalmente vi a mendiga empurrando o car-
rinho, chegando perto de Barrett, cantando
baixinho. Mertz estava bem no disfarce, talvez
com os ombros largos demais para uma men-
diga. Ele estava de cabeça baixa e a peruca
85
cinza cobria seu rosto.
Fiquei atrás de uma coluna de concreto,
encostei nela, cuspi meu charuto e pisei nele.
Dei uma olhada detrás da coluna e pus a mão
no bolso para sentir o .38. Esperei.
Barrett passou direto pelo Mertz.
Bem, nós tínhamos outra mendiga mais
adiante e Crider tinha o extremo da platafor-
ma coberto com três policiais à paisana para o
caso das coisas ficarem desagradáveis. Tenho
de admitir que fiquei desapontado. Eu não fa-
zia muito trabalho de rua atualmente e, quan-
do fazia, queria ver as coisas acontecendo. Co-
mecei a achar que aquilo que eu tinha sentido
no ar era velhice.
Eu ia sair detrás da coluna para ir na dire-
ção de Mertz, quando Barrett se virou de re-
pente e começou a voltar.
Mertz fingiu não perceber, mas eu sabia
que tinha notado porque ele parou o carrinho
e enfiou a cara lá dentro. Achei que tinha pego
o revólver.
Eu ia me esconder de novo atrás da coluna
quando vi uma coisa que me impediu, alguma
coisa que me deixou gelado olhando para Bar-
rett e sua sombra.
Sua sombra se projetou longa e espessa
86
para a sua direita e de repente Barrett caiu
para a esquerda, como um saco vazio. A som-
bra ficou ereta e tomou seu lugar, só que não
era mais uma sombra. Era uma figura enorme,
com uma cartola e o rosto escuro como piche,
olhos que brilhavam como faíscas e a boca
cheia de dentes afiados como agulhas.
Seu casaco e calças pareciam frouxos e
eram cor de camurça clara. Seus sapatos eram
crânios e seus calcanhares eram finos como
pés de bode e entravam nas bocas quando ele
andava. O som dos passos era como frutas
maduras caindo no chão. À sua esquerda, dei-
tada no cimento, estava uma sombra pálida
parecida com Jack Barrett que se mexia num
arremedo dos movimentos do homem escuro.
Seu braço levantou e eu vi um brilho de
metal vindo de seu punho. O braço desceu na
mesma hora em que Mertz tirava o revólver do
carrinho, virava e atirava.
O homem escuro absorveu a bala e conti-
nuou vindo. A navalha brilhou e eu vi a mão
de Mertz voar em direção aos trilhos. Ela se
mexeu por alguns momentos como uma ara-
nha tentando rastejar.
Nesse momento o mundo ficou quente e
parecendo um caleidoscópio. Parecia que a re-
87
alidade estava implodindo, parecia que um
universo maligno estava entrando no nosso,
como uma enguia oleosa num túnel apertado.
O sangue jorrou do pulso de Mertz, descre-
veu um arco, se contorceu no ar como um
tubo de neon vermelho. As sombras se mexi-
am e a luz oscilou como mel fervendo. Os tri-
lhos do metrô tremiam, a coluna onde eu me
apoiava ficou esponjosa. Eu sentia um fogo na
cabeça e comecei a derreter. O ar rangia.
De repente tudo acabou e o mundo ficou
sólido novamente. Os trilhos pararam de se
mexer. As sombras deixaram de tremer. A luz
ficou forte e clara. O sangue de Mertz caiu no
cimento e se espalhou em poças cor-de-rosa.
A navalha dançou no ar como a batuta de
um maestro. Mertz, sem tempo nem para ge-
mer, caiu no chão aos pedaços.
O homem escuro veio em minha direção.
Eu saquei o revólver e dei seis tiros. Ele não se
incomodou. Recarreguei e dei mais seis.
Eu atirei na cara dele, todos os seis, um
atrás do outro. Conseguia ver o lugar que as
balas atingiam, nas bochechas, no queixo e
abaixo do nariz, mas os buracos fechavam ra-
pidamente, como se a carne fosse feita de
areia movediça e minhas balas fossem apenas
88
pobres vítimas que tivessem pisado ali por en-
gano.
Ele estava tão perto que eu podia sentir
seu cheiro. Um cheiro de escapamento, de
chaminé de fábrica, de esgoto a céu aberto.
A navalha subiu e brilhou novamente. Eu
me abaixei e pulei, caindo na beira da plata-
forma e depois batendo com minhas costas no
trilho. O impacto me deu um choque na espi-
nha e fiquei paralisado por um instante. Achei
que ia olhar para cima e ver aquele rosto me
olhando e mostrando a navalha.
Não foi isso que aconteceu. Eu senti uma
vibração nos trilhos que me avisou da proximi-
dade de um trem. Eu consegui levantar e me
arrastar para o outro lado, onde me abriguei
numa reentrância com minhas costas contra o
muro.
Ainda tinha meu .38, mas estava sem ba-
las, e além do mais, que diferença fazia? Por
força de hábito botei o revólver de volta no
coldre.
Crider e os três à paisana tinham ouvido os
tiros e vinham correndo. Eles estavam quase
em cima do assassino. Atiravam com a mesma
ausência de resultados que eu.
Eu gritei: “Fujam!”, mas eles não me ouvi-
89
ram por causa dos tiros e do trem que se
aproximava. No momento em que o homem
agarrava Crider pela garganta e o levantava
acima da cabeça e esfaqueava um dos caras à
paisana, o trem entrou na estação. A única
coisa que eu via era sua lateral de metal cheia
de janelas acesas e um barulho rápido tac-tac-
tac de vidro e metal.
Apertei-me o mais que pude contra a pare-
de e senti o vento do trem e o barulho de me-
tal contra metal, tentando imaginar os horro-
res que estavam acontecendo do outro lado.
Pareceu um século, mas o trem finalmente
foi embora e eu vi que o homem tinha deixado
a estação. Crider e os policiais à paisana esta-
vam espalhados por toda a plataforma. Parecia
o chão de um matadouro. Na parede, aparecia
escrito em letras enormes e sangrentas: CUM-
PRIMENTOS DE JACK DO METRÔ MAIS 5 E
AGORA SÃO 8 EU NÃO PEGO APENAS MULHE-
RES. Mais longe um pouco, subindo as esca-
das eu vi Barrett. Ele estava tropeçando. A na-
valha balançava em sua mão como se fosse
um longo dedo prateado.
Eu peguei o walkie-talkie e tentei falar com
uma voz firme.
“Batman. Ele está subindo. Ele é Barrett
90
agora. É como está no livro. E verdade. Ele se
transforma.”
“Eu o peguei, Jim.”
Na maior parte das vezes eu teria acredita-
do. Eu já vi o Batman pegar uns tipos estra-
nhos. Mas desta vez... talvez nem o Batman
conseguisse.
Eu levantei, atravessei os trilhos, subi na
plataforma e fui em direção à escada atrás de
Barrett.
91
esbugalhados, olhando para cima tentando ver
a lua.
Instintivamente, Batman vira o pescoço e
vê que a lua está atrás daquelas nuvens de
chuva anunciadas na previsão do tempo. Ele
olha de novo para Barrett que está atravessan-
do a rua correndo, daquele jeito trôpego que o
faz parecer uma marionete sendo manipulada
por alguém.
Não existe trânsito a esta hora da manhã.
Batman atravessa a rua facilmente e começa a
alcançar Barrett. Nesse momento tudo fica
mais claro, com um toque prateado e Batman
sabe que a lua sai detrás das nuvens. Quando
Barrett avança o pé direito, não está calçado
com um sapato, mas com uma cabeça, e
quando põe o pé esquerdo à frente é a mesma
coisa. O homem que está correndo à frente de
Batman, cada vez mais rápido, não é Barrett,
mas a criatura dimensional que Webb chamou
de “Deus da Lâmina”.
O “Deus da Lâmina” salta mais do que cor-
re. Batman se esforça e acelera, perguntando-
se, lá no fundo, o que vai fazer com essa coisa
se conseguir pegá-la.
E lá vão eles, o “Deus da Lâmina” condu-
zindo Batman através de caminhos estreitos e
92
sinuosos de arbustos e árvores. Batman sabe
que eles estão se aproximando muito rápido
do topo da colina, onde estão os muros do ve-
lho Cemitério de Gotham.
O deus está realmente indo depressa.
Quando chega ao muro, pula por cima dele
com uma flexão de suas pernas finas, como se
fosse um canguru e a pobre e fraca sombra de
Barrett escorrega como um lençol molhado.
Batman alcança o muro, agarra as bordas e
salta sobre ele. E as nuvens se movem nova-
mente. De pé ao lado da cruz de pedra, que
marca o túmulo de Rufus Jefferson, a negra
tumba aberta à sua direita, está Barrett, a ca-
beça baixa, a navalha segura sem muita força
encostada na sua perna.
“Não sou eu”, diz Barrett, sua voz fraca
como um sinal vindo do espaço. “Eu não tenho
controle. Nada impede o poder da lua, a não
ser as nuvens. Somente as nuvens. Enquanto
ele tiver a lua e a necessidade, ele tem o con-
trole. Você precisa saber que não sou eu. É
ele.”
Barrett balança a navalha na direção da
sombra do deus que está fraca e aguada, incli-
nada, e parcialmente invisível dentro do túmu-
lo aberto.
93
“Eu sei, meu filho”, diz Batman, e se move
rapidamente em direção a Barrett. “Dê-me a
navalha e você ficará livre.”
“Não é assim”, responde Barrett. “Não pos-
so dar. Não do jeito que você quer. Nem como
eu quero. Só do jeito que ele quer. Eu...”
As nuvens saem de frente da lua.
JAMES W. GORDON
94
Quando o espeto parou de se mexer dentro
de mim, fiquei de pé e me arrastei por cima do
muro.
Quando eu caí do outro lado, não era mais
o Barrett que estava de pé na colina, era o
monstro de cartola. A pálida sombra de Barrett
estava ficando mais fininha, como leite magro.
Acho que o “Deus da Lâmina” estava se to-
mando cada vez mais forte e Barrett, mais fra-
co a cada transformação.
Batman atacava colina acima com a cabeça
abaixada, como uma locomotiva. Sua capa es-
tava aberta e alta atrás dele como um leque
japonês. Ele se abaixou e eu consegui ver a
cara do monstro e o brilho da navalha, quando
cortou um pedaço da capa. Batman deu um
pulo alto e o cara se abaixou e puxou seus
pés. Quando Batman caiu, ele bateu com os
dois punhos atrás da cabeça do sujeito.
Não pareceu fazer muito efeito. Talvez o te-
nha deixado nervoso. O monstro esticou o cor-
po e sua cartola nem balançou. Ele levantou o
braço acima da cabeça e desceu a mão com a
navalha como se fosse um martelo. Batman
lançou a mão à frente e pegou no enorme pul-
so impedindo o golpe. O sujeito usou sua ou-
tra mão para pegar Batman pela garganta e...
95
QUADRINHO SPLASH
96
da boca, por causa da pressão da sua perna
arqueada para a frente. A sombra patética de
Barrett, quase sem cor, flutua solta e distorci-
da para dentro da escuridão do túmulo.
Atrás, vemos um grande carvalho. Através
de seus galhos, podemos ver a curva prateada
da lua e a direita dela, uma nuvem escura.
Uma tira amarela embaixo do quadrinho
nos avisa o que Batman está vendo, enquanto
sua cabeça é lentamente puxada para trás:
NO QUE PARECIAM SER OS SEUS MOMEN-
TOS FINAIS, BATMAN VIU UMA NUVEM ESCU-
RA DE CHUVA ESCORRER PARA A FRENTE DO
PEDAÇO DE LUA COMO UMA MÁSCARA DE LÃ.
JAMES W. GORDON
97
Um momento antes de desaparecer na es-
curidão, eu vi que era Barrett caindo, a som-
bra do enorme sujeito atrás como uma seda
deslizando sobre um osso.
De dentro do túmulo veio um som de algu-
ma coisa se partindo, Batman girou e, agacha-
do, pegou uma pequena lanterna do cinto de
utilidades. Ele apontou para dentro do túmulo.
Eu subi, fiquei atrás dele e olhei para o círculo
de luz. E fiquei olhando, enquanto Batman ilu-
minava o corpo de Barrett de alto abaixo.
Barrett estava com o rosto para cima, com
as costas nos degraus. Sua cabeça apontava
para dentro e suas pernas tinham girado tan-
to, que a bunda estava para cima. Não era
preciso ser um médico para saber que sua es-
pinha tinha quebrado.
Sua mão direita estava aberta e esticada.
Com o cabo da navalha na palma da mão, a
lâmina brilhava contra um degrau de pedra co-
berto de mofo.
Começou a chover.
98
Barrett foi posto em um caixão e enviado
para seus pais. Eu não sei o que Jim disse
para eles, algum tipo de acidente, acho. Seja o
que for que disse, não é o suficiente. Ninguém
poderia dizer o suficiente, mas pelo menos
Barrett não será acusado por seus crimes. Não
vai ficar bem na ficha de Jim, que o “Jack do
Metrô” escapou. Vai estar escrito CASO ABER-
TO, mas isso é razoável para Barrett. Os as-
sassinatos pararam e o Barrett não era o cul-
pado, de qualquer forma. Foi o “Deus da Lâmi-
na”, que voltou para sua dimensão, para espe-
rar que um outro tolo o liberte.
Não será tão fácil na próxima vez.
Jim e eu guardamos a navalha, cuidadosa-
mente, em uma caixa de metal e escondemos.
Depois que Barrett e o que sobrou dos polici-
ais de Jim foram levados embora, nós pega-
mos a caixa, colocamos em um tambor e o en-
chemos de concreto. Esperamos que ele se-
casse e endurecesse. Na noite seguinte, nos
encontramos no cais, seguimos numa lancha
da polícia até o meio da Baía de Gotham e jo-
gamos o tambor na água.
Está lá no fundo. Me agrada pensar que é o
fim das coisas ruins que a navalha pode
99
aprontar. Isso não vai trazer os policiais, aque-
las pedintes nem Jack Barrett de volta, mas,
pelo menos, está fora da vista e do alcance
dos outros.
Quando nós terminamos, ficamos sentados
no barco e olhamos para a água, vendo as go-
tas de chuva que caíam na baía. Eu pensei em
meus pais e em como a morte deles havia me
levado a me tomar o Batman. Pensei em meus
casos mais estranhos. Pensei a respeito do
“Deus da Lâmina” lá embaixo, seguro e feliz
em sua dimensão enlouquecida. Pensei a res-
peito de um monte de coisas.
Um pouco antes de amanhecer, a chuva
fina parou e eu olhei para a água onde havía-
mos jogado o tambor e ali na superfície da
água trêmula, eu vi o reflexo...
...da...
...lua.
100
Ídolo
ED GORMAN
m
Toc.
“Oi, querido. Só queria dizer que...”
Sua mãe espia pela moldura da porta do
quarto dele e diz: “Puxa, querido! Você já pas-
sou da idade pra isso, não?”
Sua voz e seus olhos dizem que ela gosta-
ria de não ter visto seu filho de dezessete
anos fazendo o que está fazendo.
Pausa, depois: “Você está bem, querido?”
“Por que não estaria?”
“Bem...”
“Tá tudo bem. Agora se manda daqui.”
“Querido, eu já pedi pra não falar assim co-
migo. Sou sua mãe e...”
“Você me ouviu.”
Ela conhece esse tom. Sente medo dele.
Sente medo desde que ele tinha sete ou oito
anos de idade.
Ele não é como os outros garotos. Nunca
foi.
“Sim, querido”, ela diz, já começando a
chorar lágrimas inúteis. “Sim, querido.”
101
eles não conhecem minha solidão, eles
veem apenas minha força, eles não conhecem
minha solidão.
1986
102
ma, não sou eu a causa das dores de cabeça,
é ele. o impostor.
o impostor.
1987
103
“Sabe o que as provoca?”
“Não.”
“Pense a respeito um minuto. Por favor.”
Suspiro. “Ele.”
“Ele?”
“O impostor.”
“Ah.”
“Sempre que o vejo na TV ou no jornal, co-
meçam minhas dores de cabeça.”
Escreve rapidamente no bloco de anota-
ções. “O que você sente quando o vê?”
“Nada.”
“Nada?”
“Literalmente, nada. As pessoas pensam
que ele sou eu. É como se eu não existisse.”
Ele pensa: o quanto se pode levar a sério
um analista que tem três grandes verrugas no
rosto e que usa meias caídas com chinelos en-
feitados?
De qualquer forma, ele está começando a
desconfiar que o analista pode muito bem ser
amigo do impostor.
Sim. É claro.
Meu Deus, por que não pensou nisso an-
tes?
Ele se levanta.
“São apenas duas e quinze. São apenas...”
104
Mas ele já está saindo pela porta. “Até
logo, doutor.”
1988
1989
105
“querido”. Sem recuos. Quase zangada.
“Tá bom.”
“Lá em cima.”
“Por quê?”
“No seu quarto, vamos.”
O que está acontecendo? Ela parece qua-
se... enlouquecida.
Então vamos subir.
Então vamos passar pelo lugar onde a gati-
nha branca com o nariz preto e úmido e língua
rosa e rápida está deitada ao sol.
Até o quarto dele.
Abrindo a porta.
Apontando.
Voz semi-histérica.
“Você me disse que ia se livrar desse negó-
cio.”
Sentindo-se corar. “Isso não é da sua con-
ta. Você não tem o direito de...”
“Tenho todo o direito. Estou aguentando
isso desde que você tinha oito anos e não
aguento mais. Agora você é um homem, ou
deveria ser. Livre-se dessa porcaria agora mes-
mo!”
Em vez de ficar zangado, ele fica parado,
permitindo-se compreender a verdade desse
momento. A verdadeira verdade.
106
Então o impostor chegou até ela, também.
Sua própria mãe.
Sentindo essa mudança nele, ela parece
menos segura de si. Sai de perto do armário.
“Qual é o seu problema?”, pergunta.
“Deixou ele tocar em você?”
“Quem? Do que você está falando?”
“Você sabe, mãe. Sabe muito bem do que
estou falando.” Pausa. Olha para ela. É bastan-
te atraente para uma mulher de quarenta e
dois anos. Todas aquelas aeróbicas mostradas
durante o dia na TV. Todas aquelas refeições
de frutas e carnes magras e quase nenhum
pão. Certamente sem sobremesas. “Você dei-
xou que ele a tocasse, não é?”
“Meu Deus, você está...”
Mas então ela se detém, obviamente perce-
bendo que seria a coisa errada a dizer. A coisa
mais errada a dizer. (Você... está... louco?)
Então ele a agarra.
Pela garganta.
Estrangulando-a antes que tenha tempo de
gritar e alertar os vizinhos.
É tão fácil!
Seus dedos pressionam sua traqueia.
Os olhos dela reviram.
Saliva prateada corre inutilmente pelos la-
107
dos de sua boca, enquanto ela tenta formar
palavras inúteis.
Ele observa a forma como seus seios se
movem graciosamente dentro do vestido de
algodão caseiro.
Mais forte, mais forte.
“Por favor”, ela consegue dizer.
Depois cai no chão.
Ele não tem dúvida de que está morta.
108
ele começa a se divertir.
Ele nunca tinha percebido a carga que ela
era, a sua mãe.
Ele pensa nela em seu quarto, amontoada
e morta num canto. Imagina quantos dias se
passarão até ela ser encontrada. Será que ela
estará preta? Será que terá vermes sobre seu
corpo inteiro? Ele espera que sim. Isso vai en-
sinar o impostor a se meter com ele.
Ele passa o resto do vôo observando uma
aeromoça morena abrir uma boca vermelha e
excitante ao sorrir para vários passageiros.
Muito vermelha.
Muito excitante.
109
lindo plano. Um plano maravilhoso.
Amanhã o impostor vai receber um prêmio
do prefeito.
Tão fácil de...
Tão fácil.
110
...com o uniforme completo...
...entrando pela porta como...
...os disparos começam...
Dois estampidos secos no suave ar parado.
Dois estampidos secos.
(seu canalha — meu pai — já enganou
muita gente por tempo demais, agora eu exis-
to e você não)
estampido de pistola...
(e você não...)
111
tira, do tipo sensível, balança a cabeça.
Que desperdício.
Ele vê a porta do armário parcialmente
aberta e, sendo um policial, curioso e tudo o
mais, abre-a com um lápis (é preciso ter muito
cuidado numa cena de crime, é tão fácil des-
truir provas).
Ele olha dentro.
“Que diabo”, diz.
Seu parceiro, que esteve orientando o ho-
mem do laboratório, o legista e os auxiliares
da ambulância, chega perto dele. “O quê?”
“Olhe aí dentro.”
Então o segundo tira olha lá dentro. E asso-
bia. “Todos esses trajes. São exatamente
iguais aos...”
“Exatamente iguais aos do cara que ele
tentou matar.”
“Mas com todos esse trajes você imaginaria
que ele respeitasse o não que quisesse matá-
lo.”
O primeiro tira balança a cabeça. “É um
mundo estranho. Um mundo muito estranho.”
112
“O quê?”
“Uma espécie de diário.”
“Vamos ver.”
Eles folheiam as páginas. Abrem numa de-
las e leem.
“não é mais tolerável, o impostor deve ser
morto porque não podem existir dois de nós.
um é real, outro é falso. e depois de hoje, o
real vai assumir o trono do poder.”
“Afinal o que ele queria dizer com isso?”
O segundo tira dá de ombros. “Agora você
me pegou, parceiro. Me pegou mesmo.”
113
A Morte do Mestre do Sonho
ROBERT SHECKLEY
m
114
tava acordada para apreciá-la. Misericordiosa-
mente, a criança não respondeu.
“Ora, ela não está colaborando comigo”,
disse. “Acho que vou acabar logo com isso e
cuidar de você, Batman.”
O Coringa carregou a criança até o centro
da grande sala de teto alto. O local era domi-
nado por duas enormes mós de pedra, presas
em eixos que ladeavam um cadafalso aberto.
As grandes rodas giravam lentamente, movi-
das pelas grandes pás exteriores do moinho e
estavam manchadas de sangue. Sangue das
vítimas que haviam sido transformadas numa
pasta de carne e ossos e que agora estava en-
tranhado no granito poroso.
“Vamos começar pondo um dedo de cada
vez”, disse o Coringa. “Talvez ela acorde a
tempo de dizer adeus.”
Batman vinha puxando a braçadeira que
prendia seu braço direito na porta, que cedera
um pouco. Não muito, mas talvez o suficiente.
Suficiente para lhe dar uma chance, ainda que
tênue.
Em anos passados, Batman aprendera a
controlar músculos e nervos com precisão em
seus estudos avançados no Tibete. Agora se
lembrava desses estudos e apelava para seu
115
poder de concentração, ignorando o insuportá-
vel cheiro de sangue e as cenas de horror ao
seu redor. Toda sua energia tinha de ir para
aquele braço, para aquele pulso, no exato
ponto de contato que prendia a braçadeira. Ele
dirigia sua força para fora de uma forna rítmi-
ca, sincronizando-a com sua pulsação e, quan-
do viu o Coringa, com a criança inconsciente
nos braços, subindo os três degraus até a pla-
taforma onde as grandes mós encostavam
suas ásperas superfícies, Batman puxou a bra-
çadeira com cada reserva de energia física e
mental disponível.
Por um momento, nada aconteceu. Em se-
guida, a braçadeira soltou-se da porta com um
estalido alto e o pino que a segurava voou
através do quarto como se tivesse sido dispa-
rado de uma atiradeira.
O Coringa, que estava descendo a garota
inconsciente em direção às mós, foi atingido
na nuca. Embora o golpe não o tenha ferido,
ele se assustou violentamente, mais com o
choque do que com a dor e a menina caiu de
seus braços. Desequilibrado, ele cambaleou,
tentando manter-se em pé.
Uma de suas mãos, gesticulando selvage-
mente com a luva branca ensanguentada, en-
116
costou no ponto de contato entre as duas
mós. A mão foi puxada instantaneamente. O
Coringa uivou e tentou se libertar. As mós gira-
vam inexoravelmente. O criminoso louco grita-
va e puxava o braço com movimentos tão vio-
lentos que davam a impressão que o membro
poderia ser arrancado do ombro. Mas ele não
teve esta sorte. As mós continuaram a devorá-
lo e, à medida que seu antebraço desaparecia
entre as pedras e puxava o resto do corpo, o
Coringa, enlouquecido de dor, começou a rir,
dando gargalhadas inumanas de absoluta in-
sanidade e continuou a fazê-lo enquanto seu
corpo era puxado entre as mós de pedra, pa-
rando apenas quando sua cabeça se partiu
como uma melancia numa prensa hidráulica.
E assim, o Coringa estava morto.
Mas será que estava mesmo?
Se estava, quem era aquela criatura excên-
trica e medonha que Bruce continuava vislum-
brando na periferia de sua visão?
Quem Bruce Wayne estava vendo agora,
enquanto andava pelo centro de Gotham City,
para fazer uma visita a seu velho amigo dr.
Edwin Walthan?
Bruce Wayne estremeceu levemente e re-
sistiu à tentação de olhar para trás. A figura
117
nunca estava lá quando se virava.
Mas ele continuava a vê-la.
Desta vez, porém, foi diferente.
Ele estava na esquina da Quinta com a
Concord, no coração de Gotham City. Do outro
lado da rua, erguia-se a imensa torre com a
famosa fachada policromática do Hotel Nova
Era, o mais novo e suntuoso hotel da cidade,
construído, dizia-se, por um consórcio de in-
vestidores estrangeiros. Era um lugar onde os
ricos do mundo todo vinham para ver e ser
vistos, as mulheres desfilando suas peles e se-
das, os homens fumando seus excelentes cha-
rutos Havana.
De pé em frente ao hotel, esperando o si-
nal abrir, ele viu claramente a figura que havia
avistado pouco antes. O homem era alto e
magro, usava um fraque verde-garrafa e cal-
ças que lembravam um dândi do século passa-
do. Mas não foi isso que chamou a atenção de
Wayne. Foi o cabelo do homem, verde-musgo,
em cima de um rosto fino, de nariz comprido e
queixo longo. O rosto olhou para Wayne por
uma fração de segundo, a boca vermelha, ras-
gada e de lábios finos, se abriu num esgar.
Não poderia haver dúvidas: era o Coringa.
Mas isso era impossível. O Coringa estava
118
morto. O próprio Bruce o havia visto morrer, ti-
vera inclusive uma participação em sua morte.
O Coringa, ou seu sósia, virou-se abrupta-
mente, atravessou com rapidez a rua e entrou
no Hotel Nova Era.
Bruce Wayne chegou logo a uma decisão e
atravessou rapidamente a rua. Carros breca-
ram, desviaram-se de seu caminho. Cruzando
a ampla avenida como um velocista, Wayne
chegou até a calçada, abriu caminho brusca-
mente no meio de um grupo de mulheres de
sociedade que tagarelava perto da porta e en-
trou no saguão do hotel.
Era como entrar em um outro mundo. Fora,
existia o trânsito sujo de Gotham City. Dentro,
seus pés afundaram num espesso tapete ori-
ental feito especialmente para o Nova Era. Aci-
ma, o domo central do teto era bem alto. Can-
delabros, suspensos em fios de aço inoxidável,
vidros lapidados e explodiam em luz. As altas
janelas do saguão eram feitas de vidro colori-
do, dando ao lugar aparência de uma igreja
para a adoração do sucesso.
Examinando acena, Bruce avistou muitos
homens usando turbantes e trajes árabes lon-
gos esvoaçantes. Algumas mulheres usavam
pesados véus, denotando alguma forma de
119
atitude religiosa. Espalhados aqui e ali havia
mensageiros, em vistosos e elegantes unifor-
mes.
Mas em parte alguma havia alguém que se
parecesse minimamente com a figura sorriden-
te que Bruce avistara poucos segundos atrás.
Ele hesitou por um momento, depois cami-
nhou até a recepção. O gerente, um homem
grande e de aparência digna, vestido em traje
de noite, de suíças, com a cabeça calva e relu-
zente, perguntou em que poderia ser útil.
Bruce descreveu o homem que procurava.
O gerente apertou os lábios como se esti-
vesse pensando.
“Ninguém correspondendo a essa descrição
entrou aqui, senhor. Nem agora, nem nunca.”
“Ele pode ter entrado sem ser notado”, su-
geriu Bruce.
“Oh, creio que não, senhor”, respondeu o
gerente, que sorriu de forma jocosa. “Uma
pessoa como a que descreveu dificilmente
passaria despercebida num lugar como o Nova
Era. Cabelos verdes e fraque verde-garrafa, o
senhor disse? Não, senhor, não no Nova Era.”
Bruce sentiu-se um idiota. O homem
olhava-o como se achasse que estava bêbado
ou louco. Bruce sabia muito bem que não es-
120
tava bêbado. Quanto a louco... Bem, isso era
uma das coisas que ele ia perguntar ao dr.
Walthan.
121
Em seu papel de Batman, era necessário estar
na mais absoluta forma física. Ele tinha seus
programas de exercícios e passava várias ho-
ras por semana aperfeiçoando suas habilida-
des em artes marciais. Embora se mantivesse
nas mais perfeitas condições, sabia que sem-
pre poderia haver surpresas. Por isso esse
exame anual com um velho amigo da família,
Edwin Walthan, um dos melhores médicos de
Gotham City. Walthan era um homem rico e
independente, que mantinha seu consultório e
apartamento em Starcross Boulevard, um dos
melhores bairros da cidade. Era pequeno e
corpulento, de cabelos cinzentos e encaracola-
dos, com um rosto que refletia sua boa vida e
pequenos olhos alertas que, atrás dos óculos
redondos, brilhavam de inteligência. Mas ape-
sar de sua esperteza, nunca lhe havia ocorrido
que seu velho amigo Batman e Bruce Wayne,
o amigo de seu pai, eram a mesma pessoa.
“Você está em grande forma, Batman,
como sempre”, disse Walthan ao concluir seu
exame e enquanto Batman ajustava a capa.
“Seu coração parece uma locomotiva a vapor.
E tem de ser assim mesmo, considerando-se
as coisas que faz.”
Batman anuiu, com a expressão levemente
122
carregada. Walthan, que fora o médico de
seus pais, era como a maioria das pessoas de
Gotham City e o conhecia apenas como Bat-
man, o terror de criminosos e malfeitores da
cidade. O médico estava sempre querendo ou-
vir sobre seus casos e não havia nenhum mal
nisso, mas também não havia necessidade.
Bruce Wayne lidava com a porção Batman de
sua vida como um estado secreto.
Como ele esperava, o médico perguntou:
“Está trabalhando em algum caso agora, Bat-
man?”
“Não, ainda estou tranquilo.”
“Não tenho visto você com Vera ultima-
mente.” Ele estava se referindo a Vera St. Clair,
uma linda mulher da sociedade com quem
Batman havia sido visto algumas vezes.
“Ela está no Rio. Para o carnaval.”
“Sorte dela! Você também deveria ter ido.”
“Eu considerei a ideia.” Batman não sabia
como dizer a Walthan, mas seus sentidos havi-
am sido invadidos por uma espécie de letargia
nos últimos meses. Tudo tinha começado na
época em que começara a ter alucinações.
Ele não queria falar sobre isso, mas este
era um dos motivos pelos quais viera ao médi-
co.
123
Percebendo sua hesitação, Walthan per-
guntou: “Qual é o problema, Batman?”
Batman resolveu aproveitara deixa. “Dou-
tor, estou começando a ver coisas.”
O médico manteve sua postura profissional,
mas uma sombra de preocupação passou pe-
los seus olhos. “Fale-me a respeito.”
O homem alto e mascarado descreveu suas
recentes alucinações. Haviam se repetido três
vezes em três meses. Geralmente surgiam
como lampejos, nada mais do que rápidas vi-
sões de algum velho inimigo do passado, ago-
ra já vencido e enterrado.
Mais recentemente havia sido o Coringa.
Morto, porém Bruce o vira entrando no saguão
do Hotel Nova Era.
Dr. Walthan ouviu suas palavras com aten-
ção. “Batman, eu fiz um exame completo e
não há nenhum problema físico em você.”
“Mas, e mentalmente?”
“Eu poderia quase apostar minha vida que
você é o homem mais são que conheço.”
“Quase?”
“É só uma maneira de falar. Tem tido algu-
mas preocupações inusitadas ultimamente?”
Batman balançou a cabeça. Ele não podia
contar a Walthan que estava pensando bas-
124
tante sobre o passado, recentemente. Sobre
amigos que conhecera, agora mortos. Robin,
Batwoman, Batgirl... E inimigos mortos, tam-
bém: o Coringa, Charada, Pinguim. Todos eles,
amigos e inimigos, eram sua família, os que
partilharam seus feitos quando o mundo era
mais jovem.
Agora ele estava mais velho. Ainda perfei-
tamente em forma, um espécime raro. Porém
mais velho.
“Não, nenhuma preocupação específica.”
Walthan tirou os óculos e limpou-os cuida-
dosamente. Antes de colocá-los de volta, fitou
Batman com seus olhos suaves, míopes e
azuis. “Fale sobre a mais recente.”
“Quando estava vindo para cá, pensei ter
visto o Coringa”
“Talvez alguém na multidão, uma seme-
lhança superficial...”
“Não, era ele. Eu o segui até o Hotel Nova
Era. Mas ele não estava lá. O gerente disse
que ninguém correspondendo à sua descrição
havia entrado.”
“Não deveria se preocupar com algumas
alucinações”, disse o dr. Walthan. “Afinal você
passou por algumas das mais difíceis e terrí-
veis experiências que um homem pode experi-
125
mentar. Essas pequenas consequências psico-
motoras não deveriam surpreender. Mas
diga... existe alguma possibilidade do Coringa
estar vivo?”
“Absolutamente nenhuma.”
“Não conheço os detalhes de seu faleci-
mento, mas gostaria de lembrá-lo que o Corin-
ga escapou de várias situações em que a mor-
te parecia inevitável. Por que não desta vez?”
“Tenho certeza de que ele está morto”, res-
pondeu Batman.
“Bem, então não sei o que dizer”, comen-
tou o médico. “O melhor a fazer seria ir ao Rio
encontrar-se com Vera. Você precisa se afas-
tar, esquecer essas preocupações.”
“Obrigado pelo conselho”, disse Batman.
“Vou pensar a respeito.”
126
para Gotham City, era decorada com antigui-
dades caríssimas.
“Deseja mais alguma coisa antes que eu
me retire, senhor?”, perguntou Alfred.
“Na verdade, sim”, respondeu Bruce. Ele
havia refletido a noite toda sobre os aconteci-
mentos do dia e sobre sua visita ao dr. Wal-
than. Agora tinha resolvido fazer alguma coisa.
“Quero que me prepare uma mala imediata-
mente.”
“Certamente, senhor”, disse Alfred. Sua ex-
pressão severa se iluminou. “Vou preparar
suas bermudas, senhor, e novos ternos le-
ves. Talvez a máscara e o snorkel? Dizem que
há bons lugares para mergulho por lá.”
“Perdão, Alfred?”
“No Rio de Janeiro, senhor. Suponho que
seja sua destinação. Para se encontrar com a
senhorita Vera no carnaval. E, se me permite,
é exatamente o que precisa, senhor. Uma mu-
dança e um pouco de diversão em sua vida.
Tem estado muito soturno ultimamente, se-
nhor, se me permite a observação.”
Bruce sorriu. “Sinto-me comovido com sua
preocupação, Alfred, mas creio que está enga-
nado em sua conclusão. Não vou precisar de
fantasias de carnaval no lugar para onde vou.”
127
“Peço desculpas por minha suposição incor-
reta, senhor. Posso perguntar para onde está
indo?”
“Para o Hotel Nova Era, aqui em Gotham
City.”
“Realmente, senhor?” A postura de Alfred
era imperturbável. Bruce poderia ter dito que
ia para o Polo
Norte e o fiel serviçal teria meramente per-
guntado se deveria colocar patins de gelo na
bagagem.
“Vou precisar de uns seis trajes de noite,
algumas roupas simples para usar durante o
dia e as camisas e meias habituais.”
“Um guarda-roupa como o descrito já está
emalado e pronto para partir, patrão Bruce. Já
preparei as roupas de Charlie Morrison para o
senhor.”
“Alfred, você é bom em previsões.”
“Sim senhor. Mas uma coisa eu não sei, se-
nhor. Vai querer o traje de Batman?”
Bruce ergueu os olhos rapidamente. Por al-
guma razão, ele não havia considerado levar o
traje de Batman. Não chegara nem a pensar
que havia, pelo menos, duas interpretações
para suas alucinações. Uma, a de que estava
ficando louco. Outra, a de que alguém estava
128
planejando algum crime e que estava tentando
assustá-lo.
“Sim, prepare o traje de Batman”, respon-
deu. “E acrescente a bolsa de couro marcada
como OPS 12. E um cinto de utilidades pa-
drão.”
“Imediatamente, senhor”, disse Alfred. Ele
não quis mencionar que já se havia antecipado
e preparado todas aquelas coisas. Não se per-
manece sendo o valete de Batman por muito
tempo sem se antecipar em suas necessida-
des.
129
Por isso, adotara várias outras personas,
para serem usadas quando a ocasião exigisse.
A mais recente, que ele chamava de Charlie
Morrison, havia sido muito útil quando Bruce
fora à Europa, para detectar e desmantelar
uma rede de falsificadores que agia em várias
cidades ao norte do continente. Ele lembrava-
se de como o próprio Comissário Gordon o
cumprimentara no final do episódio, ao se en-
contrarem no gabinete do prefeito em Ham-
burgo. Gordon pode ter suspeitado que Charlie
Morrison era o Batman, mas até aí tudo bem.
Era bom que pensasse assim.
Ajudava a afastar as suspeitas de Bruce
Wayne, o progenitor de ambas as personas.
Trabalhando com Lafayette Boyent, um
mestre do teatro clássico, Bruce dominara a
técnica de maquiagem, voz e postura. Suas in-
terpretações poderiam ter lhe garantido uma
carreira nos palcos, se a direção de sua vida
não houvesse sido decidida muito tempo
atrás.
Quando Charlie Morrison se registrou no
Hotel Nova Era, o gerente o recebeu sem as-
sociá-lo absolutamente à recente visita de Bru-
ce Wayne, naquele mesmo dia.
O gerente foi delicado e atencioso. Afinal,
130
Charlie Morrison era um homem que dispunha
de cartões especiais do American Express ca-
pazes de garantir luxos desconhecidos para
qualquer cidadão comum. Mesmo entre multi-
dões de sheiks do petróleo e diretores de
grandes parques industriais, ele era um hóspe-
de bem-vindo: alto, boa aparência, bem-edu-
cado e conhecido por suas generosas gorjetas.
O gerente cofiou suas suíças esbranquiça-
das, um gesto habitual, pegou de uma bande-
ja um plástico brilhante um pouco maior que
um cartão de crédito e entregou-o a Bruce.
“Sua suíte é na cobertura A2 sr. Morrison. É
um de nossos melhores aposentos e tenho
certeza que vai achar totalmente satisfatório.
Este cartão lhe facultará a entrada em todas
as dependências do Nova Era: o ginásio, os
bares e restaurantes, o solário e tudo o mais.
Há uma lista completa de nossos serviços em
sua suíte. Meu nome é Blithely e servi-lo bem
é a minha ambição. Qualquer queixa, por fa-
vor, não hesite em me chamar, dia ou noite.”
Bruce agradeceu a Blithely, pegou sua cha-
ve e foi para os elevadores. Havia um elevador
especial para as coberturas e sua bagagem já
havia subido. Ele apertou o botão e entrou as-
sim que a pesada porta, decorada em bronze,
131
se abriu. A porta já estava para se fechar
quando uma mulher esgueirou-se junto com
ele.
Ela era alta, esbelta, atraente e usava um
vestido cuja simplicidade acentuava ainda
mais o preço da etiqueta. Seus cabelos escu-
ros estavam presos atrás por uma fita simples
e ela levava uma pequena bolsa com ricos
brocados que deveria ter custado bem caro,
mesmo em Hincheng, na China, o lugar de
que Bruce se lembrava como sendo a origem
daqueles objetos.
“Sim, é de Hincheng”, ela disse, seguindo
seu olhar. “Gosta?”
Bruce deu de ombros. “É muito bonita.”
Ela o olhou com ousadia. Ele não gostou da
intensidade daquela inspeção. Mesmo assim,
havia algo de excitante naquela mulher, algo
proeminente e, no entanto, sutil e desavergo-
nhadamente feminino.
“Também está numa das coberturas?”, ela
perguntou.
“Estou. E você?”
“Claro. Eu sempre fico aqui quando estou
em Gotham City.” Ele detectou um leve sota-
que estrangeiro. Mas de onde? Não da Alema-
nha. Algum lugar mais ao leste... Romênia,
132
talvez. “Minha querida cobertura A1 tornou-se
uma espécie de lar para mim. Você fica sem-
pre aqui?”
“Esta é a primeira vez”, respondeu Bruce.
“Vai gostar muito”, comentou, quando o
elevador parou e a porta se abriu.
Os dois andaram juntos pelo corredor. As
coberturas A1 e A2 eram uma em frente a ou-
tra, os únicos apartamentos do andar. Ambos
abriram as portas com seus cartões.
“A propósito”, disse Bruce, “meu nome é
Charlie Morrison.”
“Talvez nos encontremos de novo”, ela res-
pondeu. “Eu sou Illona”, e fechou suavemente
sua porta.
As roupas de Bruce já haviam sido guarda-
das pelos empregados do hotel, todas menos
as da grande maleta de couro, para a qual ele
tinha a única chave. Era o equipamento de
Batman, que logo poderia precisar, caso seus
instintos se provassem corretos.
A suíte era realmente bonita, com terraço e
uma linda vista de Gotham. A cidade parecia
magnífica àquela hora, um gigante adormeci-
do composto pelos corpos e mentes de seus
milhões de habitantes.
Será que um desses habitantes era o Corin-
133
ga? Impossível. Mesmo assim, havia uma dúvi-
da.
Ou não havia?
Bruce suspirou e saiu do terraço. A sala da
suíte era mobiliada com antiguidades da Euro-
pa Oriental e do Oriente Médio. Havia um mo-
saico turco pendurado numa parede, um Pi-
casso na outra. Um rápido exame revelou a
Bruce que o Picasso era original, talvez avalia-
do em vários milhões de dólares. A televisão
era tecnologia de ponta. O aparelho de video-
cassete era equipado com uma videoteca com-
pleta, além de um catálogo de outros itens
que poderiam ser requisitados. O sistema de
som era igualmente impressionante.
Todas essas coisas eram pouco importantes
para Bruce. Era o tipo de equipamento que
havia em sua casa. E ele sabia, por experiên-
cia própria, da dificuldade de conseguir com-
prar alguma coisa realmente especial quando
se é muito rico.
Sentou-se numa cadeira Ames e folheou
uma revista. Sentia-se preocupado, moroso.
Afinal, o que estava fazendo ali? O que pode-
ria acontecer num lugar como esse? O Nova
Era era um dos grandes bastiões de luxo com
segurança. Era uma perda de tempo.
134
Ligou para o refeitório e pediu um jantar
leve: ovos fritos em manteiga da Normandia,
torradas, uma fatia de presunto parisiense, co-
quetel de frutas e demitasse. Tomou banho,
fez a barba e vestiu um terno leve. Tinha aca-
bado de pentear o cabelo, quando ouviu uma
discreta batida na porta indicando que a refei-
ção havia chegado.
O garçom empurrou o carrinho, com sua
bandeja de prata coberta, até a pequena mesa
perto da sacada. Bruce sentou-se e abriu o
jornal trazido pelo empregado. O garçom dis-
pôs habilmente os talheres de prata, retirou a
cobertura da bandeja e colocou o prato em
frente a Bruce. Inclinou-se e falou: “Se desejar
alguma coisa, me chame, senhor”, e andou em
direção à porta.
Bruce dobrou o jornal e olhou para a mesa.
Sua expressão imobilizou-se. Ali, sobre o deli-
cado prato de porcelana, havia uma massa de
serpentes vivas, algumas verdes e outras ver-
melhas. Havia também inúmeros sapinhos, e
todos olhavam para ele com seus malignos
olhos saltados.
“Garçom”, chamou Bruce quando o empre-
gado estava saindo.
“Senhor?”
135
“O que significa isto?”
“Como assim, senhor?”
“Venha cá e me dê uma explicação para
isto.”
O homem voltou. Bruce percebeu agora
que o garçom era quase calvo e havia marcas
de tatuagem em seu crânio reluzente.
“Qual seria o problema, senhor?”
“Olhe isto aqui e me explique”, falou Bruce,
apontando o prato.
“Sim, senhor. Estou olhando, mas não vejo
nada demais.”
Bruce olhou para o prato. As serpentes e os
sapos não estavam mais lá. O que havia agora
era o que ele pedira: ovos com presunto, só
que com outro nome.
“As torradas”, disse Bruce, recuperando-se
rapidamente. “Estão engorduradas.”
“Não me parecem, sr. Morrison”, disse o
garçom, inclinando-se para ver os pedaços de
pão dourados.
“Pode-se ver a gordura brilhando. E os ovos
estão praticamente cozidos, não fritos.”
Bruce fitou o garçom, desafiando-o a retru-
car, mas o serviçal não estava lá para isso.
“Sim, senhor. É claro, senhor”, falou, seu
tom de voz indicando estar considerando a ati-
136
tude de Bruce um tanto peculiar, mas, ao mes-
mo tempo, se mostrando preparado para isso.
“Vou mandar fazer outro prato imediatamen-
te.”
Empurrou o carro para fora, fechando silen-
ciosamente a porta atrás de si.
Não demorou muito para substituírem o
jantar e desta vez não houve problemas. Bru-
ce comeu rapidamente e deixou o carrinho no
corredor. Quando ia voltando para o quarto,
viu uma figura desaparecer num canto, no fim
do longo corredor. Uma figura conhecida. Alta,
esquálida, com cabelos verdes e um sorriso de
louco...
Bruce Wayne partiu em direção à figura de
seu velho inimigo, que parecia estranhamente
saudável para quem estava bem morto.
137
corredor se abriu. Retirando seu cartão, Bruce
entrou correndo, ouvindo ao longe o som de
passos à sua frente. Vinte metros adiante o
caminho se bifurcou. Uma tênue nuvem de
poeira à esquerda indicou-lhe qual a direção a
seguir e ele começou a descer. O corredor era
a princípio iluminado por painéis de luz fluo-
rescente instalados no teto. À medida que
prosseguia, tornava- se mais sombrio. Alguns
dos painéis não estavam funcionando e a es-
curidão era tanta, que era difícil prosseguir
sem perder o equilíbrio. Ele encontrou uma ja-
nela fechada à sua frente, quase imperceptível
na falta de luz. Era uma questão de atravessar
a janela ou voltar. Bruce ganhou velocidade e
arremeteu com o ombro, atravessando-a e
chegando a um salão iluminado.
O ambiente era revestido de azulejos bran-
cos, iluminado por luzes fluorescentes no teto.
Era também quente e vaporoso. Quando con-
seguiu se erguer, Bruce percebeu muitos ho-
mens no local, alguns usando calções, outros
toalhas e uns poucos sem nada no corpo. Ha-
via máquinas espalhadas pelo local e Bruce as
conhecia. Eram máquinas de exercícios iguais
às que tinha em seu ginásio.
Ele estava na sauna do hotel.
138
Se ainda houvesse alguma dúvida, tudo te-
ria sido esclarecido assim que um homem bai-
xo e musculoso, usando calça de abrigo e uma
camiseta branco onde se lia HOTEL NOVA ERA
- INSTRUTOR, andou até ele e falou: “Escuta
aqui cara, qual é a sua de entrar aqui pelo sis-
tema de ventilação?” Logo depois, percebeu o
cartão na mão de Bruce. “Oh, desculpe, se-
nhor, não sabia que era hóspede. Nossos clien-
tes geralmente entram pela porta.”
O instrutor esboçou um sorriso. Bruce aper-
tou seu bíceps com a mão. Parecia um gesto
amigável, um aperto suave. Mas o instrutor
empalideceu, tentou se desvencilhar, percebeu
que era inútil e virou-se com uma expressão
assustada para Bruce.
“Você viu alguém entrar aqui agora há pou-
co?”, perguntou Bruce. “Um homem alto, mui-
to magro, de cabelos verdes?”
“Cabelos verdes?!”, disse o instrutor, que
parecia prestes a rir. Um leve aumento na
pressão no seu braço convenceu-o que não, o
assunto não era nada engraçado.
“Não, senhor. Realmente. Eu diria se tives-
se visto.” Bruce soltou o homem. Uma rápida
olhada ao redor revelou que ninguém com a
descrição do Coringa poderia ter entrado ali.
139
“Por favor, me arrume uma toalha”, pediu
Bruce. “Acho que vou dar um mergulho antes
de voltar para o quarto.”
“Sim, senhor”, respondeu o instrutor. “E por
onde vai sair, senhor? Pela ventilação outra
vez?”
“Não”, replicou Bruce, “a ventilação é mais
fácil só para entrar.”
140
sons de risadas e tinir de copos. Parecia que
alguém estava se divertindo.
Bruce começava a desconfiar que havia
algo errado no Hotel Nova Era. Até aqui, pare-
cia algo preparado especialmente para ele.
Era bem tarde da noite quando foi desper-
tado por um ruído. Sentou-se com rapidez,
passando instantaneamente do sono profundo
ao estado de alerta. O que era aquilo? Um
som abafado vindo da suíte ao lado. Talvez
algo atirado contra a parede, mas com força
suficiente para que o som penetrasse no isola-
mento acústico. Bruce vestiu-se rapidamente,
no escuro. Estava totalmente em silêncio, es-
cutando, seus sentidos em alerta total. Logo
depois, ouviu um grito. Vinha da suíte A1.
Ele correu até o terraço. Era um salto de
mais ou menos uns cinco metros até a suíte
ao lado. Em condições ideais, Bruce consegui-
ria saltar bem mais do que isso. Porém, nesse
caso teria de se agachar na beirada da sacada
e pular sem a ajuda dos braços. E tinha de to-
mar cuidado para que seus pés não escorre-
gassem na superfície.
Bruce saltou, seus dedos se fecharam no
corrimão da cobertura ao lado e ele usou o im-
pulso do salto para alcançara sacada.
141
As portas do terraço estavam abertas, po-
rém suas cortinas obscureciam a visão do inte-
rior. Ele entrou no aposento às escuras, mas
sentiu uma coisa macia sob seus pés e recuou
rapidamente. Depois, encontrou o interruptor
e acendeu as luzes.
Ela fora bonita em vida, mas a morte havia
mudado as coisas. Tinha um braço jogado
para cima, o outro sob o corpo. Seus olhos es-
tavam abertos e pareciam sorrir. E isso era
surpreendente, uma vez que sua garganta ha-
via sido cortada de orelha a orelha.
142
gerente. Será que o sr. Morrison poderia vir
até o seu escritório?
Bruce já estava vestido e desceu para o sa-
guão. Embora fosse madrugada, ainda havia
muita gente por lá. As diversões iam até tarde
em Gotham City.
Blithely cumprimentou-o tão delicadamente
quanto antes, mas seu rosto rosado tinha uma
expressão curiosa quando olhou para Bruce.
Poderia ser piedade?
O comissário de polícia James Gordon esta-
va também no escritório, o tira durão que já
havia cooperado secretamente com Batman
em mais de uma ocasião. Apesar do ceticismo
de Gordon, os dois frequentemente se aliavam
na luta contra o crime.
“Olá, Morrison”, disse James Gordon. “Faz
um bom tempo.”
“Hamburgo, mais ou menos três anos
atrás”, respondeu Bruce.
“Diga-me o que viu esta noite, Charlie”, pe-
diu Gordon.
“Mas agora você mesmo já viu.’’
“Não tem importância. Descreva para mim,
por favor.” Bruce descreveu a cena da suíte.
“OK”, disse Gordon. “Vamos dar uma olha-
da.”
143
Bruce, Gordon e Blithely subiram até o últi-
mo andar. Lá estava o mesmo corredor, com a
suíte de Bruce de um lado, e a outra, da mu-
lher que subira no elevador com ele.
“Esse é o local?”, perguntou Gordon, indi-
cando a porta pela qual a mulher havia entra-
do.
“Claro que é”, respondeu Bruce. “Qual o
problema?”
Blithely abriu a porta com seu cartão mes-
tre, entrou e acendeu a luz. A primeira coisa
que Bruce notou ao entrar foi o cheiro de tinta
fresca. Sob a forte luz do teto, ele pode ver
que toda a suíte fora recentemente pintada.
Antes de ser pintada, toda a mobília havia sido
removida. Havia uma pilha de trapos empilha-
da num canto. Fora isso, o aposento estava
vazio.
Gordon e Blithely esperaram enquanto Bru-
ce inspecionava o apartamento, verificando to-
dos os quartos. Em nenhum deles havia qual-
quer sinal de ocupação recente e muito menos
evidência de um assassinato brutal cometido
há menos de uma hora.
Os dois homens esperaram até que Bruce
se aproximasse.
“Senhores, me desculpem”, disse. “Parece
144
que cometi um engano.”
Gordon lançou-lhe um olhar curioso e su-
gou um cachimbo apagado. Com seu temo de
gabardine marrom e capa bege, parecia mais
um detetive particular dos velhos tempos, do
que o comissário de polícia de Gotham City.
O gerente perguntou: “Está se sentindo
bem, senhor? O incidente que descreveu foi
muito assustador. Não quero ser indiscreto,
mas será que está sob a influência de álcool
ou de alguma droga ilegal?”
“Claro que não”, replicou Bruce, com a voz
cortante.
“Quer prestar queixa contra mim, sr. Bli-
thely?”
“Pelo amor de Deus, não!”, respondeu. “Es-
tou pensando apenas na reputação do hotel.
Quando um hóspede começa a descrever ce-
nas de um crime que não ocorreu... Bem, faz
com que se tenha um pouco de medo pela se-
gurança dos outros hóspedes. Isso, juntamen-
te com o outro incidente...”
“Que incidente?”, perguntou Gordon, inter-
rompendo-o abruptamente.
Blithely descreveu então a desconcertante
entrada de Bruce na sauna.
Gordon anuiu quando Blithely terminou. Ti-
145
rou seus pesados óculos de aros de chifre e
limpou-os com um lenço amassado. Colocou
os óculos novamente, depois abriu um sorriso.
“Bem, Charlie”, falou, “você ganhou a apos-
ta.” E tirou uma nota de dez dólares do bolso e
entregou-a a Bruce.
“Obrigado”, respondeu Bruce, seguindo a
dica de Gordon e embolsando o dinheiro.
“Não compreendo”, disse Blithely.
“Eu costumo dizer ao sr. Morrison que ele é
muito formal, tenso demais. Disse que era
muito educado para provocar qualquer como-
ção. Charlie apostou dez dólares comigo, que
poderia fazer o melhor gerente de hotel da ci-
dade me chamar para se queixar de sua loucu-
ra. Nunca pensei que conseguisse, Charlie.”
“Bem, você me desafiou”, disse Bruce.
“Então, foi tudo uma piada?”, perguntou
Blithely.
“Claro que foi”, respondeu Gordon. “Ou
será que o sr. Morrison lhe parece louco?”
“Absolutamente”, respondeu Blithely. Mas
ainda havia uma sombra de dúvida em sua
voz.
“Obrigado por aceitar tudo de maneira tão
elegante”, observou Bruce. “Haverá uma bela
gratificação para o senhor na sua conta, pes-
146
soalmente, por aceitar isso com tanto bom hu-
mor.”
“Ora, sr. Morrison, não há necessidade...”
Bruce dispensou-o com um gesto nobre.
Quando saiu, até Blithely estava rindo da pia-
da.
Quando ficaram sozinhos, Bruce foi até o
bar, despejou uma dose de bourbon para Gor-
don, acompanhada de um copo de água e ser-
viu-se de água mineral. Os dois sentaram-se
em um dos sofás e Gordon bebericou seu
bourbon.
“Belo bourbon, Charlie”, falou.
“Aqui eles só têm do melhor”, disse Bruce.
“Estou vendo. Charlie, afinal o que aconte-
ceu aqui?”
“Aparentemente, nada.”, respondeu Bruce.
“Você devia ter me prendido. Eu estou obvia-
mente pirado.”
Gordon só respondeu depois de acender o
cachimbo. Quando a fumaça invadiu o ambi-
ente, falou:
“Mesmo que estivesse louco, eu jamais ad-
mitiria isso para um cara como aquele.”
Bruce concordou. “Blithely não é um tipo
muito simpático.” Gordon balançou a cabeça.
“Eu daria um jeito de prender você sozinho,
147
se fosse necessário. Charlie, você está louco?”
“Não adianta me perguntar”, respondeu
Bruce. “Como eu saberia?”
“Acabei conhecendo você bem ao longo dos
anos”, disse Gordon. “Estivemos envolvidos
num dos casos mais difíceis deste século.
Charlie, já perdi a crença em religiões organi-
zadas há muito tempo e acho que já perdi a fé
na justiça também. Mas uma coisa em que
ainda acredito é no Batman.”
Gordon ergueu os olhos de sua bebida, e
viu que “Charlie Morrison” estava sorrindo.
“Qual é a graça?”
“Você. É o comissário de polícia de Gotham
City e não sabe reconhecer um lunático quan-
do vê um. Mas sabe de uma coisa, Jim? Eu es-
tou igual. Não acredito que estou louco e esta
noite me provou isso.”
“Como assim, Charlie?”
“Vi o Coringa diversas vezes nos últimos
meses. Apenas rápidos vislumbres, depois ele
desaparece. Isso me preocupou. Eu o segui
até este hotel, ou, pelo menos, assim pensei,
e achei que valia a pena me hospedar aqui e
ver o que estava acontecendo. Todos esses in-
cidentes, numa noite só, me convenceram que
alguém está tentando armar alguma coisa
148
para mim. Não sei como, nem porque... ainda
não... mas vou descobrir.”
“Sinceramente, fico contente por estar fa-
zendo isso”, disse Gordon. “Temos ouvido mui-
tos boatos ultimamente, nada definido, porém
muito insistentes. Sobre alguma coisa crimino-
sa com consequências políticas. Algo envol-
vendo pessoas importantes. Algo envolvendo o
Hotel Nova Era.”
“Interessante”, observou Bruce. “Mais algu-
ma coisa?”
“Nada específico, apenas boatos. A gente
sempre ouve essas histórias loucas sobre no-
vos criminosos vindos de outros países. Desta
vez pode haver alguma verdade.”
“Vou ver o que acontece”, disse Bruce.
“Fico contente. Do meu ponto de vista,
apenas uma coisa me preocupa.”
“E o que é?”
“Sei que você não é louco e você sabe que
não é louco. Mas e se nós dois estivermos en-
ganados?”
Passaram-se dois dias sem nenhum inci-
dente. Charlie Morrison fez todas as coisas que
um solteirão faria num hotel como o Nova Era.
Frequentou todos os bares, assistiu aos espe-
táculos, viu peças humorísticas e riu das pia-
149
das como qualquer um. Experimentou especia-
lidades gastronômicas em vários restaurantes
exóticos. Bebeu moderadamente e recusou
ofertas de drogas e mulheres por parte dos
empregados.
Na tarde do terceiro dia ele a viu novamen-
te, saindo do alão de beleza do Nova Era. Era
ela, sem dúvida. Illona, a mulher com quem
havia subido no elevador e depois vira assassi-
nada em sua suíte.
Usava um vestido de seda preto e tinha um
lenço turquesa amarrado displicentemente no
pescoço.
“Com licença, Illona”, disse Bruce. Mas ela
o ignorou e correu para o saguão, entrando
por uma porta com uma placa onde estava es-
crito PARTICULAR. Bruce a seguiu, entrando
num corredor que parecia levar à cozinha. A
iluminação era fraca e a poeira no chão, es-
pessa: a aparência suntuosa do Nova Era não
se estendia às suas áreas ocultas. Bruce deci-
diu que não comeria mais no restaurante do
hotel. Quando virou a esquina, viu Illona.
“Pare de me seguir!”, disse ela.
“Só algumas perguntas”, falou Bruce.
“Bem, se é só isso...”, ela sorriu, depois
abriu a bolsa e pegou um cigarro e um peque-
150
no isqueiro dourado.
Acionou-o uma vez e uma nuvem de gás
amarelo se espalhou pelo rosto de Bruce. De-
pois, largou o isqueiro e fugiu assim que Bruce
caiu no chão.
Pode-se enganar todos os super-heróis por
algum tempo, mas não se pode enganar ne-
nhum deles o tempo todo. Principalmente Bat-
man. Sem a invulnerabilidade do Super-
Homem, Batman tinha de confiar em sua perí-
cia e capacidade de dedução. Por isso, perce-
bera instantaneamente que o objeto retirado
da bolsa de Illona não era um isqueiro co-
mum. Até mesmo sua atitude, aparentemente
despreocupada, a havia denunciado. Ele ima-
ginou o que poderia ser e não deixou transpa-
recer, mas prendeu a respiração quando foi
atingido pelo gás. E, ao cair no chão, ficou
contente por ouvir o ruído do pequeno cilindro
de gás ao seu lado.
Quando se levantou, pegou o pequeno
frasco de metal. Era esmeradamente confecci-
onado, ostentando a precisão de um joalheiro.
As curvas de sua superfície mostravam-se pro-
fundas e complexas. No todo, era uma das
mais sofisticadas máquinas que já vira. E ele
conhecia o assunto: Bruce Wayne, o Batman,
151
tinha uma oficina muito bem equipada. E sabia
reconhecer um bom trabalho.
Bom trabalho, sim. Mas de quem?
Ele não sabia. Mas achava que sabia onde
descobrir.
Antes, porém, uma mudança de roupa.
152
e iria embora, mais triste, porém mais sábio.
Se tentasse fazer algo a respeito, poderia ter
uma surpresa mais desagradável, como acor-
dar com sapatos de chumbo afundando nas
águas poluídas do rio Limehouse, em compa-
nhia de enguias e caranguejos.
Limehouse era uma velha favela industrial,
um lugar sombrio perigoso. Os habitantes
mais honestos vinham há muito tentando re-
cuperar a iluminação nas ruas, mas sem su-
cesso, porque a corrupta administração da ci-
dade entregara a manutenção a uma empresa
mexicana.
A escuridão acalentava o crime nas vísceras
da cidade.
A escuridão acalentava todas as criaturas
da noite.
Principalmente os morcegos.
Era quase meia-noite e Limehouse estava
chegando ao seu auge. Os bêbados e os ban-
dos de marinheiros que desfilavam nas ruas
não perceberam quando uma sombra passou
rapidamente na frente de uma enorme lua
cheia, antes de aterrissar num beco escuro e
estreito.
Batman, de máscara e uniforme completo,
dobrou sua pequena asa delta e guardou-a
153
numa sacola compacta. Com uma minúscula
porém potente lanterna, consultou um mapa
feito por ele mesmo. Era um tablete do tama-
nho de uma folha de papel, com pouco mais
de um centímetro de espessura que, iluminado
por baixo, podia ser desdobrado e revelar ma-
pas altamente detalhados de qualquer região
de Gotham City.
Batman verificou suas coordenadas nova-
mente. Sim, ele estava no lugar certo. Fazia
quase dois anos que estivera nesse endereço
pela última vez, mas esperava que Tony Mar-
rotti continuasse no negócio.
Movendo-se como uma sombra, Batman
aproximou-se silenciosamente da porta trasei-
ra de uma decadente casa térrea.
A lua cheia destacava o brilho branco de
seus olhos atrás da máscara negra, a única
coisa visível quando abriu a fechadura e desli-
zou para dentro.
A casa era dividida em vários aposentos,
exatamente como se lembrava. Ele estava na
parte de trás, na despensa. Ali, cuidadosa-
mente acondicionada em prateleiras recober-
tas com papel impermeável, havia uma grande
variedade de tubos de metal, engrenagens, la-
tas cheias de porcas e parafusos, rolos de fios
154
elétricos, vários tipos de mostradores e outras
coisas do gênero. A porta que levava aos ou-
tros cômodos estava fechada, mas do outro
lado brilhava uma luz amarelada. Batman en-
costou o rosto na porta e ouviu um rádio to-
cando jazz, bem como o ruído de pés se arras-
tando pela sala.
Depois de alguns minutos, estava convenci-
do de que havia apenas um homem lá dentro.
Abriu a porta e entrou no aposento.
O homem estava trabalhando num peque-
no torno mecânico. Ele ergueu os olhos abrup-
tamente, a mão mergulhando no bolso trasei-
ro. Mas antes que conseguisse sacar a arma,
Batman havia atravessado a sala e tirado a
arma de sua mão.
“Vamos com calma, Marrotti”, falou. “Você
não quer apagar seu velho amigo Batman,
quer?”
“Desculpe, Batman”, disse Marrotti. “Não
sabia que era você. Reagi antes de saber
quem era.”
“Costuma sempre atirar antes de saber
quem é?”
“Quando alguém chega por trás, depois da
meia-noite, sim. Mas seja bem-vindo, Batman.
Quer tomar alguma coisa?”
155
“Não quando estou trabalhando”, respon-
deu.
“Mas isso é especial. Meu tio Lou, você se
lembra dele, me mandou essa garrafa do ve-
lho mundo. Tome um trago comigo pelos ve-
lhos tempos.”
“Só um golinho”, concordou Batman.
Marrotti atravessou a sala, abriu o armário
e pegou uma garrafa de gargalo longo com
um rótulo italiano florido.
Era um homem baixo, com tórax largo e
pescoço grosso.
Tinha uma cabeça redonda, coberta de ca-
belos ondulados e quebradiços. A boca era lar-
ga e generosa e seus olhos eram espertos e
agitados. Marrotti mancava de uma perna,
lembrança de alguns anos atrás, quando Bat-
man conseguira salvá-lo de uma gangue que o
acertara no joelho.
“É bom ver você, Batman”, disse. “O que
tem feito? Faz tempo que não leio nada sobre
você nos jornais.”
Batman ignorou a observação. “Como tem
passado, Marrotti?”
“Tudo bem, tudo bem.”
“O crime ainda compensa?”
“Ora, vamos. Você sabe que não faço mais
156
isso.”
“Sei que não é verdade”, replicou Batman.
“Mas não estou aqui por causa disso. Você é
peixe pequeno demais para me preocupar.
Sem querer ofendê-lo, preciso reservar meu
tempo para peixes maiores.”
“Eu sei”, disse Marrotti, “e respeito isso.”
“Preciso de uma informação.”
“Claro”, respondeu. “Pode falar.”
Batman retirou de seu cinto de utilidades o
pequeno cilindro com o qual Illona havia ten-
tado usar o gás e entregou-o ao dono da casa.
Marrotti examinou o objeto e parecia pres-
tes a fazer uma pergunta. Depois mudou de
ideia, retirou um par de óculos de leitura do
bolso do colete e inspecionou o cilindro aten-
tamente.
“Onde arranjou isso?”, perguntou.
“Não importa. Diga-me quem construiu e
para quem. Achei que poderia ser trabalho
seu.”
Marrotti balançou a cabeça. “É um aparelho
de última geração, eu nem tenho equipamento
pra isso. Está vendo este filete? É preciso bro-
cas e prensas especiais para fazer isso. Eu não
teria condições para produzir um equipamento
como esse.”
157
“Pode identificá-lo para mim?”, perguntou
Batman.
“Talvez. Posso abrir?”
“Vá em frente.”
Marrotti atravessou a sala mancando e
ajustou as luzes de forma a poder enxergar
melhor o que estava fazendo. Colocou o invó-
lucro numa morsa, depois cortou-o com uma
serra de diamante. Examinou o interior dos
dois hemisférios e inspecionou-os novamente
com uma lupa. Após estudar os dois cuidado-
samente, descartou um deles e voltou sua
atenção para o outro. Soltou um grunhido
quando encontrou o que procurava.
“Olhe aqui, Batman. Está vendo este sím-
bolo?”
Batman olhou pela lupa e viu um minúsculo
V cortado por uma linha horizontal gravado no
metal.
“É a marca de fabricação”, observou Mar-
rotti.
“Você sabe de quem?”
“Já vi isso em algum lugar, não lembro
onde.”
Ele caminhou até uma prateleira e puxou
um grosso volume. “Símbolos de fabricantes”,
explicou, folheando o livro rapidamente, seus
158
dedos rápidos procurando a página certa.
“Achei. É um dos símbolos registrados da
ARDC, Armadillo Rex Development Corporati-
on. Aqui diz que a matriz é em Ogdensville,
Texas. O diretor e maior acionista é Rufus
“Red” Murphy.”
“Sabe alguma coisa a respeito dessa
gente?”, perguntou Batman.
“A ARDC projeta e vende armas especiais.
São experts em coisas exóticas e às vezes en-
tram no mercado. Constroem desde equipa-
mentos miniaturizados para espionagem até
sistemas de lançamento de mísseis.”
Marrotti tirou os óculos e guardou-os num
velho estojo. Depois voltou-se para Batman e
perguntou:
“O que havia neste cilindro? Algum tipo de
gás lacrimejante?”
Batman balançou a cabeça. “Claramente
um gás para fazer um homem dormir. Ou tal-
vez matar. Não inalei para descobrir.”
“Fez muito bem.”
“Sabe algo a respeito disso?”
Marrotti andou até onde estava seu paletó,
pendurado num cabide de madeira, e pegou
um cigarro. Acendeu-o e disse: “Tenho ouvido
rumores sobre novos desenvolvimentos em
159
gases de ação individual. Alguns componentes
podem fazer um homem dormir vinte e quatro
horas sem consequências. Mude um pouco a
fórmula e o homem morre. Tudo isso sem ne-
nhum odor detectável. Em outras fórmulas,
extratos de LSD são usados para fazer um gás
alucinógeno e desorientar o inimigo.”
“Interessante”, observou Batman. “Isso é
de interesse elementos criminosos?”
“Claro que sim. Pode imaginar uma melhor
forma de planejar um roubo de banco? Ponha
todo mundo viajando e tendo visões horroro-
sas e enquanto isso você foge com o roubo.
Mas ninguém ainda conseguiu essa substân-
cia. Se não já teríamos ouvido a respeito.”
Batman sabia que, pelo menos, uma pes-
soa dispunha de um pouco desse gás. Mas
não havia necessidade de contar isso a Mar-
rotti.
160
escala em Atlanta.
Suas duas malas de equipamentos eram
excessivamente pesadas, mas conseguiu co-
locá-las no mesmo vôo. Não havia inspeção al-
fandegária em vôos domésticos mas mesmo
que um fiscal examinasse sua bagagem, veria
apenas amostras industriais. Só quando fos-
sem montadas, as peças formariam o equipa-
mento essencial utilizado por Batman em mui-
tos de seus casos.
Atlanta estava quente e luminosa. Bruce
teve tempo para um café e uma olhada no jor-
nal no saguão da primeira classe. Depois teve
de embarcar novamente. Milagrosamente o
vôo partiu quase no horário.
A viagem não teve contratempos e no meio
da tarde o grande Boeing 747 aterrissou no
Aeroporto de Staked Plains, que servia Og-
densville e Amarillo. Um fax enviado previa-
mente havia alertado Finley Lopez, um consul-
tor de investimentos em assuntos de defesa e
energia com escritório em Houston. Era um
dos mais destacados consultores do sudoeste
e Bruce trabalhara muito com ele na persona
de Morrison. Lopez havia embarcado num vôo
local para Ogdensville e estava esperando no
aeroporto.
161
“Prazer em vê-lo, sr. Morrison!”, Finley Lo-
pez era um homem grande, suave e delicado,
com a pele de uma tonalidade verde-oliva. Ti-
nha um bigode escuro fino e olhos castanhos
claros com olheiras. Uma pequena cicatriz aci-
ma de seu olho esquerdo era a última lem-
brança de uma infância difícil nos bairros de
Brownsville.
“Você parece muito bem, Finley. Não está
deixando as senõritas tomarem todo o seu
tempo, está?”
Lopez sorriu. Sua reputação de conquista-
dor era conhecida desde Bayou City, Louisiana,
até o oeste de Albuquerque.
“Não. sr. Morrison. Primeiro os negócios.
Mas poderia levá-lo a lugares incríveis, se qui-
sesse.”
“Uma proposta tentadora”, disse Bruce,
“mas infelizmente estou aqui a trabalho desta
vez.”
“Então vamos trabalhar, depois vamos co-
nhecer a cidade. Ou talvez prefira um autênti-
co churrasco texano no meu rancho. Esmeral-
da, minha esposa, faz um bife muito especial.”
“Lembro de Esmeralda como uma ótima co-
zinheira”, disse Bruce. “Por favor, mande lem-
branças, mas vou ficar aqui só hoje. Volto para
162
Gotham City à noite.”
“Ora, que pena!”, disse Lopez, jocosamente
aborrecido. “Não consigo fazer com que se di-
virta. Em que posso ajudá-lo, sr. Morrison?”
“Estou interessado na companhia ARDC.”
Lopez anuiu. “Altíssimo faturamento, com
uma reputação de primeira classe. Red Murphy
é presidente da empresa, sr. Morrison. Ia gos-
tar dele. Meio parecido com Spencer Tracy, só
que não tão bonito.”
“Gostaria de conhecê-lo. Hoje.”
“Vamos procurar um telefone”, replicou Lo-
pez.
Lopez encontrou um telefone no aeroporto
e fez uma ligação, mas saiu da cabina balan-
çando a cabeça.
“Não sei o que está acontecendo com
Murphy”, falou. “Deve estar ficando velho.”
“Qual é o problema?”, perguntou Bruce.
“Falei com sua secretária e ela disse que
Murphy não está recebendo ninguém no mo-
mento.”
“Por quanto tempo?”
“Ela não soube dizer. Só falou que estava
muito ocupado com assuntos importantes.” Lo-
pez coçou o queixo, pensativo. “Vou fazer ou-
tra ligação.”
163
Dez minutos depois, ele tinha outras notí-
cias.
“Telefonei para Ben Braxton. Acho que não
o conhece, sr. Morrison, mas é o editor-chefe
do Ogdensville Bugle, o principal jornal daqui.
Ele me deve alguns favores e falou sobre
Murphy. Agora é tudo de conhecimento públi-
co, mas evita que tenhamos de pesquisar os
arquivos do jornal. Parece que Murphy tem
agido de forma estranha nas últimas semanas.
Ele tem uma suíte na fábrica, sabe, e recente-
mente se mudou para lá com a esposa. O
nome dela é Lavínia e é uma mulher muito de-
cente, sr. Morrison.”
“Então os dois estão morando na fábrica da
ARDC?”
“Exatamente. E não estão saindo de lá. Fa-
lam com a família por telefone de vez em
quando, mas não têm sido vistos em lugar ne-
nhum. Nem mesmo Dennis, o filho deles, que
passou por aqui recentemente a caminho da
América do Sul. Ele é um especialista em ar-
mas de fogo e passa a maior parte do tempo
viajando. Mas Murphy também não o recebeu,
o que é muito estranho.”
“Estranho mesmo”, concordou Bruce. “Bem,
Finley, vamos almoçar, pois logo depois tenho
164
que pegar o vôo da tarde para Gotham City.”
“Vai voltar assim, de repente? Vamos, sr.
Morrison, porque não me diz o que está acon-
tecendo?”
“Não está acontecendo nada”, respondeu
Bruce. “Tive informações sobre a ARDC e esta-
va pensando em investir pesado na empresa.
Achei melhor falar com Murphy, conhecê-lo
bem antes de investir capital. Mas se não pode
ser desta vez, vou esperar. Conhece algum lu-
gar onde comer por aqui?”
“Claro que conheço!”, respondeu Lopez.
“Espero que goste de churrasco, sr. Morrison,
porque um dos melhores restaurantes do Esta-
do fica a alguns quilômetros da cidade.”
O restaurante Las Angelitas de Tejas, era
uma linda construção restaurada em estilo co-
lonial. Os dois comeram num amplo terraço,
com visão para um jardim cuja manutenção
custava bem caro para o restaurante. Bruce
comeu o suficiente para satisfazer seu anfitri-
ão, pois preferia uma dieta de fibras e grãos,
acompanhados de saladas e legumes. Mas não
queria insultar a cozinha nativa.
Lopez levou-o até o aeroporto e acompa-
nhou-o até o vôo das quatro da tarde para Go-
tham City, com escala em Kansas City.
165
Quando o avião chegou a Kansas City, Bru-
ce desembarcou e fretou um avião particular
para levá-lo de volta a Ogdensville, onde che-
gou logo depois do crepúsculo. Sua bagagem
ainda estava lá, no compartimento onde a ha-
via deixado.
166
torná-los à prova de Batman.
A ARDC não seria fácil, mas estava longe
do impossível.
Sua primeira tentativa deveria ser no lado
norte do complexo, onde vários dos holofotes
estavam apagados: um sinal de negligência
que por si só significava alguma coisa. Carre-
gando uma pesada sacola de equipamentos,
Batman observou a rotina dos guardas por al-
gum tempo. Mesclando-se perfeitamente com
a noite e com o dom da imobilidade total, Bat-
man examinou a situação durante quase duas
horas.
Afinal, concluiu que seria difícil passar pela
cerca sem ser notado. As rondas dos guardas
eram bem sincronizadas e não lhe dariam os
dez minutos ou mais necessários para neutrali-
zar a corrente elétrica e entrar.
Assim, voltou sua atenção para as funda-
ções. Retirando um pequeno mas poderoso
detector de massa de sua sacola, registrou o
perfil subterrâneo das cercanias até uma pro-
fundidade de trinta metros.
Como havia previsto, o pessoal da seguran-
ça da ARDC investira num sistema de alarme
capaz de detectar movimentos no solo a uma
profundidade de até dezessete metros. Não
167
seria possível passar sob a cerca, a não ser
que dispusesse de equipamentos que o levas-
sem abaixo do nível dos detectores.
Batman concluiu que sua invasão não seria
tão fácil quanto imaginara.
Parou na escuridão e pensou por um mo-
mento, uma figura alta e assustadora, vestida
de negro dos pés à cabeça. Até mesmo as
orelhas pontudas de seu traje pareciam estar
atentas e concentradas.
Finalmente tomou uma decisão. Era arris-
cada, mas ele já havia passado por situações
piores.
168
ruído suave do vento do deserto, o eventual
uivo de um coiote e nada mais. Nunca.
Exceto esta noite.
Esta noite foi diferente. Começou com um
chiado alto que parecia vir do deserto.
“Já tinha ouvido algo assim?”, perguntou
Billy-Joe.
“Pode ser um urso ferido”, respondeu Ste-
ve.
“Duvido. Não tão ao sul.”
Os dois ficaram atentos. O som aumentou
de intensidade. Em seguida, uma luz brilhou
no céu à frente deles. Pulsou num violeta
elétrico e brilhante, algo que nenhum dos dois
jamais havia visto antes.
“Sabe de uma coisa?”, disse Billy-Joe. “Não
estou gostando nada disso.”
“O que tá acontecendo?” Perguntou Steve.
A luz violeta tinha começado a se mover,
fazendo circunvoluções no céu, aproximando-
se cada vez mais do perímetro da cerca.
“Acha que devemos atirar?”, perguntou Ste-
ve, empunhando sua arma.
“Não fique nervoso”, respondeu Billy-Joe.
“Nem há nada em que atirar. Vamos esperar
que chegue mais perto.”
Eles ficaram observando a brilhante luz vio-
169
leta se aproximar. Billy-Joe engatilhou sua sub-
metralhadora.
Pouco depois, a luz espoucou como o brilho
simultâneo de um milhão de flashes, ao mes-
mo tempo em que produziu um ruído ensurde-
cedor, como um obus explodindo a um metro
de distância.
Os dois homens caíram, cegos e estontea-
dos. Levantaram-se rapidamente, esfregando
os olhos e tentando recuperar a visão.
Um intercomunicador estava tocando, era o
do posto do quadrante sul, a vários quilôme-
tros de distância, do outro lado da cerca. Os
guardas haviam percebido o brilho e o ruído e
queriam saber o que estava acontecendo.
Billy-Joe aprumou-se o suficiente para res-
ponder.
“Cal”, transmitiu para o posto do quadrante
sul, “detesto admitir isso, porque vai me cha-
mar de mentiroso, mas acho que acabo de ver
um OVNI passar.”
“Minha tia May viu uma dessas coisas no
ano passado”, respondeu Cal. “São umas coi-
sas estranhas, não?”
“Cal, eu estou falando, foi isso que vimos.”
“Ah, acredito”, respondeu Cal. “Mas acho
melhor entrarmos em alerta total no caso de
170
vocês terem tomado umas e outras, ou terem
mascado erva do diabo.”
Quatro jipes carregados de homens arma-
dos saíram da garagem e percorreram o perí-
metro com faróis acesos, mas não encontra-
ram nada.
Quer dizer, nada que pudessem localizar.
Escuridão e silêncio outra vez. Nenhum
som, exceto o gemido do vento do deserto e o
ocasional uivo de um coiote.
Nenhum movimento no terreno cercado do
perímetro interno, a não ser o vento roçando a
grama que a ARDC mantinha a altos custos.
O vento roçando a grama na escuridão.
Alguma coisa planando através da grama
escura.
Algo grande, sem forma, movendo-se em
zigue-zague, aproximando-se do edifício prin-
cipal.
Na alta torre de vigia, Steve observava a
grama. Havia algo estranho com ela hoje. Mas
era o vento, indo e voltando em lufadas súbi-
tas, dando a impressão de que havia algo se
movendo lá embaixo.
Mas isso era loucura.
Nada poderia passar pela cerca.
“O que está olhando?” perguntou Billy-Joe,
171
ao seu lado.
“Estou só olhando a grama”, respondeu
Steve.
“Companheiro”, retrucou Billy-Joe, “nós so-
mos pagos para olhar para fora do perímetro,
não dentro. Já sabemos que não há nada aqui
dentro.”
“Nada a não ser nós”, observou Steve, sor-
rindo. “Nós... E um grande morcego.”
172
Eu realmente não sei o que foi, senhor.”
“A cerca do perímetro mostra algum sinal
de ruptura?”
Connell balançou a cabeça. “Absolutamente
intacta.”
“Acho melhor não se preocupar muito com
isso”, falou Murphy. “Boa noite, Blaise.”
Quando o capitão de sua guarda saiu, Red
Murphy foi até o bar e serviu-se de uma bebi-
da. Ele andava procurando a garrafa um tanto
demais ultimamente, e sabia disso, mas estava
sob grande tensão. E o pior era ter de guardar
tudo para si mesmo.
Assim, pelo menos podia partilhar com a
garrafa, mesmo que isso não fosse uma gran-
de ideia.
O apartamento era todo decorado com te-
mas do Velho Oeste, com peles de bois cobrin-
do as cadeiras. Os sofás e as mesas eram sim-
ples, porém bem-feitos. Havia duas pinturas
originais de Remington na parede, o único to-
que de ostentação no local. Fora isso, tudo o
mais era simples e funcional, embora a suíte
fosse maior do que o normal. Red Murphy era
um homem que não gostava de se sentir cer-
cado. Por isso, os quadros de Remington, com
suas paisagens amplas e temas do Oeste, o
173
ajudavam a esquecer o concreto reforçado por
todos os lados.
Segurou o copo contra a luz e examinou-o.
Red tinha um rosto quadrado e duro, bronzea-
do da cor de couro de sela e marcado por
muitas horas sob sol e ventos ferozes. Murphy
era baixo e tinha os ombros e tórax tão largos
que parecia quase deformado. Já havia traba-
lhado em tudo que fosse relacionado com
campos de petróleo: pesquisa, prospecção, es-
cavação, limpeza de válvulas. Durante anos,
seu passatempo era andar pelos campos ári-
dos de Ogdensville em seu velho jipe. As pes-
soas achavam que ele era um pouco louco por
passar todo aquele tempo dirigindo sem desti-
no, numa terra tão desolada. E acharam que
era realmente louco quando investiu tudo o
que tinha num contrato de prospecção no ve-
lho campo Duplo “O”, que havia secado dez
anos atrás.
Red Murphy arranjou dinheiro para alugar
uma perfuratriz e surpreendeu a todos ao co-
meçar derrubando a cabana e os currais que
haviam marcado o início da construção da Em-
preendimentos Duplo “O”. Em seguida, enter-
rou sua broca num ponto a não mais de três
metros de onde era a sala de estar.
174
O jorro resultante foi uma beleza.
Ele tinha encontrado uma bacia. Exatamen-
te como seus estudos do terreno, conduzidos
durante suas viagens de jipe, haviam previsto.
O petróleo estava lá, em quantidade suficiente
para começar a construir uma fortuna que
logo seria lendária, mesmo nessa terra de
grandes homens e imensas contas bancárias.
Quando os negócios de petróleo no Texas
começaram a se reduzir, Murphy já havia se
retirado há quase seis meses. Pegou todo o di-
nheiro que tinha e comprou a cambaleante
corporação ARDC.
A empresa tinha uma lista de dívidas tão
longa quanto um arranha-céu, como se dizia
em Ogdensville. Sua maquinaria estava ultra-
passada e quase toda caindo aos pedaços e
seus principais empregados haviam há muito
desistido da companhia, mantendo seus em-
pregos apenas para receberem o pagamento,
sempre procurando ao redor por alguma coisa
mais interessante.
Contra todas essas probabilidades a empre-
sa tinha apenas dois bens: um conjunto de
contratos de defesa potencialmente lucrativos
e os melhores especialistas em sistemas béli-
cos do país. Murphy achou que podia transfor-
175
mar aquilo em algo interessante. Reconstruiu
a fábrica, substituiu a maquinaria usada, demi-
tiu os funcionários negligentes e aumentou os
salários e benefícios dos que ficaram. E quan-
do contratava novos empregados, eram sem-
pre os melhores.
Logo, a ARDC, sob sua nova e dinâmica di-
reção, estava fabricando alguns dos melhores
sistemas de armas do serviço secreto britânico
e francês. O Departamento de Defesa também
estava muito interessado. Assim como as dele-
gacias de polícia da América, que viam na
ARDC uma esperança na guerra contra o cri-
me.
Red Murphy era aceito e respeitado por ho-
mens de negócio de todo o país e sempre bem
recebido nos altos círculos de Washington, que
visitava frequentemente.
Nos últimos meses, porém, não vinha mais
sendo visto em suas habituais viagens, prefe-
rindo permanecer em sua suíte na fábrica, fa-
lando com associados comerciais, amigos e
parentes apenas por telefone. Somente Blaise
Connell, o chefe da segurança, encontrava-se
com ele. As pessoas se espantavam, mas a ex-
centricidade faz parte da tradição do Texas.
Desde que não machuque ninguém e não
176
ande nu, um homem pode agir tão estranha-
mente quanto desejar. Ninguém vai prestar
atenção.
Praticamente ninguém.
Murphy terminou sua bebida e rapidamente
serviu-se de outra. Ergueu o copo e observou
o aposento através de sua transparência cor
de âmbar. A sala parecia distorcida. Murphy riu
e engoliu metade da dose.
Em seguida ouviu um som atrás dele e se
enrijeceu.
Não havia nada ali além de seu grande ar-
mário, sua coleção de chapéus e seus tacos de
golfe.
“Tem alguém aí?”
Não houve resposta.
Murphy descansou o copo, levou a mão às
costas e sacou uma automática Magnum .44
cromada, com cabo de roseira. Engatilhou-a e
se aproximou do armário.
“Saia daí”, falou. “É a última vez que eu
aviso.”
Sem resposta.
Ele ergueu a arma e puxou o gatilho. As
balas racharam a madeira fina da porta do ar-
mário.
Uma pilha de chapéus caiu para fora, al-
177
guns rasgados por terem sido atingidos.
Murphy praguejou em voz baixa quando viu
o que tinha feito.
E ficou ainda mais zangado quando perce-
beu que acertara uma bala em sua coleção de
estátuas de madeira.
“Maldição!”, falou.
“Não se preocupe”, disse uma voz atrás
dele. “Foram só alguns furos.”
Os poucos cabelos da grande cabeça de
Murphy se arrepiaram ao ou vir uma voz vinda
de um lugar onde nenhum homem poderia es-
tar. Foi acometido por um tremor convulsivo,
fez um esforço para se virar, mas não chegou
a se surpreender quando a automática foi ar-
rancada de sua mão.
Seu segundo choque aconteceu quando en-
carou o dono da voz. Era um homem alto e
vestido de negro e cinza.
Uma ampla capa, com muitas pontas, caía
de seus ombros largos. O homem usava um
capuz e meia máscara. Em cima do capuz,
duas pequenas orelhas pontudas.
“Batman!”, gritou Murphy, levando a mão
ao peito. A dor o havia atingido, a dor quase
esquecida no peito e no pescoço que costuma-
va ter antes da cirurgia no coração, o ataque
178
súbito provocado pelo choque de ver ali aque-
la figura lendária, no meio de suas fortifica-
ções, a dor provocada por um longo período
de ansiedade e consciência culpada.
Murphy desmaiou repentinamente, sem
perceber que duas mãos enluvadas o segura-
ram antes que chegasse ao chão.
179
“Atua nas paredes dos vasos sanguíneos,
eliminando os espasmos que precedem a mor-
te.”
“Meu médico nunca me falou sobre isso.”
“Ele vai falar. Vai chegar ao mercado no ou-
tono.”
Murphy sentou-se com cuidado. “Acho que
não preciso perguntar quem é. Ouço falar de
você há anos, mas nunca pensei que o encon-
traria. Uma vez conheci o Super-Homem,
numa campanha para arrecadar fundos para
crianças paralíticas em Washington. Pareceu-
me um cara legal.”
“O Super-Homem é legal”, disse Batman.
“Mas não vim aqui discutir super-heróis com
você.”
“Penso que não. Acha que posso andar
sem problema? Não, não me ajude. Se não
conseguir chegar até o bar, estou definitiva-
mente acabado.”
Ele caminhou de uma forma levemente
cambaleante até o bar e serviu-se de uma
dose dupla de bourbon. Foi tão relaxante, que
imediatamente serviu outra dose.
“Está bebendo um pouco demais, não?”,
observou Batman.
“E você é agente dos AA ou coisa pareci-
180
da?”
“Apenas alguém preocupado”, respondeu.
“Preciso de algumas explicações suas, sr.
Murphy.”
“Sobre o quê?”
“Sobre isto” e Batman mostrou as duas me-
tades do pequeno hemisfério como qual Illona
tentara desacordá-lo.
Murphy o examinou. “Sim, tem a nossa
marca. Onde arranjou isto?”
“Alguém tentou usar contra mim.”
“E daí? Será que a Colt é responsável por
todos os revólveres usados contra alguém?”
“Isso não vem ao caso”, retrucou Batman.
“Sei que sabe alguma coisa sobre isso, porque
outras armas semelhantes têm surgido por aí.
E todas vêm da sua fábrica.”
“Você não pode provar nada”, respondeu
Murphy.
“Talvez não”, concordou. “Ainda não, mas
vou conseguir.”
“Então vá em frente”, disse Murphy, e en-
goliu metade da dose de bourbon, assus-
tando-se quando Batman tirou com um tapa o
copo da sua mão.
“Qual é a sua?”
“Controle-se, Murphy”, recomendou Bat-
181
man. “Você tem uma bela reputação neste
país. As pessoas o consideram um executivo
brilhante e honesto. Sempre teve fama de ser
sincero e acessível. Agora, de repente, está se
escondendo dentro da fábrica, um lugar vigia-
do como se fosse o esconderijo de Hitler e
anda bebendo muito. Você está com proble-
mas, Murphy, alguma coisa mudou sua vida e
quero que me fale a respeito.”
“E por que eu deveria?”
“Porque precisa contar a alguém se não
quiser explodir. E por que não a mim? Se não
puder contar seus problemas para um super-
herói, a quem vai contar?”
Murphy olhou para ele, a boca aberta.
“E de qualquer maneira, Red”, disse Bat-
man, “talvez eu possa ajudar. Gostaria de ten-
tar.”
Murphy continuou a olhar para ele. De re-
pente havia lágrimas em seus olhos.
“Quando era garoto” começou a falar, “eu
adorava super-heróis, queria ser igual a eles.
Tarzan foi o primeiro, depois vieram muitos
outros. Você sempre foi especial para mim,
Batman. Gostava de você porque era mais hu-
mano do que os outros. Durante um tempo eu
tentei ser como você... E engraçado, não?
182
Deve achar isso muito engraçado.”
“Eu não estou rindo”, retrucou Batman. “E
não me sinto superior a você. Fale comigo,
Red. Diga o que está acontecendo.” Murphy
parecia inseguro. “Eu posso ser morto por fa-
lar com você.”
“Você já está se matando sem falar comi-
go.”
“Acho que tem razão”, disse Murphy. “Sim,
estou encrencado, Batman. Tudo começou um
ano atrás...”
Murphy contou como, há um ano, quando a
ARDC abriu o capital pela primeira vez, a Teu-
fel Corporation, uma grande empresa com
base na Suíça, comprou ações através de vá-
rias pessoas em todo o mundo e acabou con-
seguindo o controle acionário da companhia. E
como detinha o controle da empresa, poderia
destituir Murphy, se assim desejasse. Ele de-
morou muito tempo para perceber o que havia
acontecido e tudo aconteceu tão rapidamente
que deixou-o chocado e apático num momen-
to em que precisaria estar totalmente alerta.
Os novos proprietários nunca se revelaram.
Operando por trás de uma cortina de advoga-
dos, os novos proprietários disseram que per-
mitiriam que Murphy continuasse dirigindo a
183
ARDC.
Chegaram inclusive a dizer que poderia
comprar de volta a maioria das ações da em-
presa e recuperar seu controle acionário. Po-
rém, durante algum tempo, teria que fazer as
coisas do jeito deles.
“Muitos de meus funcionários me alertaram
sobre esse esquema”, continuou Murphy. “Eu
devia ter atendido. Especialmente quando eles
começaram a torpedear as divisões de pesqui-
sa e produção. Mas achei que se fizesse o jogo
deles recuperaria o controle mais depressa.
Achei que não sobreviveriam com seus méto-
dos morosos e inadequados de controle de
qualidade. Na época, eu não sabia o que eles
queriam.”
Murphy procurou a garrafa de bourbon.
Batman empurrou-a delicadamente para além
do seu alcance.
“Seria melhor parar agora, Red. Você não
pode ficar aqui bebendo e se escondendo para
sempre. Não vai achar oportunidade melhor
do que esta.”
Murphy olhou para Batman e soube que o
mascarado dizia a verdade, não é todo dia que
um super-herói lhe diz que deve parar de be-
ber. Pegou a garrafa e atirou-a contra a pare-
184
de, com toda força, e gostou muito do som
que fez ao quebrar.
Logo a seguir seu telefone tocou. Murphy
atendeu. “Blaise? Sim, tudo bem. Sim, fui eu
que disparei a pistola. E agora quebrei uma
garrafa. Eu estava comemorando. Sim, claro,
sozinho. Eu e meus morcegos. Não, é maneira
de dizer. Claro, tudo bem, vejo você de ma-
nhã.”
Desligou e olhou para Batman. “Acho que
vou fazer um café para nós. Temos muito que
conversar e pouco tempo para isso.”
“Como assim?”, perguntou Batman.
“O Estado-Maior está para assinar um con-
trato com a ARDC para um novo sistema de
armas computadorizado.”
“E qual é o problema?”, perguntou Batman.
“Vamos tomar aquele café e eu digo tudo a
respeito.”
185
na traseira da picape e quando os portões se
abriram, saiu acenando para os guardas.
Trinta quilômetros à frente havia um aglo-
merado de árvores, usado pela escola local em
churrascos e festas religiosas, mas que agora
estava deserto. Murphy subiu a ladeira de ter-
ra e estacionou fora da estrada. Saiu, foi até a
traseira da picape e abriu o estojo.
Batman, que estava escondido no estojo, já
havia saído e lia um plano de ação com uma
pequena lanterna.
“Espero que não tenha sido muito descon-
fortável”, disse Murphy.
“Já estive em situações piores”, comentou
Batman, “Foi mais fácil do que ter de sair se-
cretamente da sua fábrica.”
“O que quer que eu faça agora?”
“Gostaria que ficasse aqui por enquanto”,
respondeu Batman. “Vou sozinho com sua pi-
cape até o aeroporto, e arranjo alguém para
trazê-la de volta a você.”
“Por mim, tudo bem”, concordou Murphy.
“Ainda bem que eu trouxe um jornal. Mas por-
que não posso levar você até o aeroporto?”
“Porque quando chegar ao aeroporto”, dis-
se Batman, “já terei trocado de roupa e serei
outra pessoa.”
186
“E não quer que eu saiba quem é essa ou-
tra pessoa?”
“Exatamente. Por favor, entenda, não é que
eu não confie em você. Simplesmente não faz
sentido ser uma pessoa anônima se todo mun-
do souber quem você é na vida real.”
“Faz sentido”, concordou Murphy.
“Às vezes”, observou Batman “é mais difícil
trocar o uniforme do que resolver o caso.”
“Posso imaginar”, disse Murphy. “Aqui está,
Batman” e entregou as chaves do carro. “Pos-
so fazer algo mais por você?”
“Só uma. Você disse que o Estado-Maior
está para assinar o contrato com a ARDC?”
“Isso me foi confirmado ontem. O contrato
deve ser assinado hoje à noite.”
Batman anuiu. “Acho que ainda dá tempo
para fazer algo. Ainda bem que me deu a có-
pia dos planos para a produção dos seus mo-
delos. Vou poder estudá-los no avião para
Washington.”
“Meus concorrentes pagariam muito para
pôr as mãos nessas cópias.”
“Não se preocupe, eu vou destruir tudo.
Agora, sobre essas pessoas que se apossaram
da sua empresa. Você realmente não tem ideia
de quem está no comando?”
187
“Absolutamente. Mas sejam quem forem,
devem ter amigos em altos postos. Nunca vi
um contrato sair tão rapidamente.”
“Mais uma pergunta. Algum de seus siste-
mas de armamentos faz uso de alucinógenos?”
Murphy pareceu surpreso. “Como soube?
Esse é o maior segredo do século.”
“Um homem de cabelos verdes me contou”,
disse Batman.
“Como?”
“Esqueça o que eu disse. Adeus, Murphy.”
“Boa sorte, Batman.”
“Obrigado. Acho que vou precisar.”
188
movida com água e sabão, mas, sem dúvida,
ele descobriria isso sozinho.
Batman encostou a picape no acostamento
e rapidamente se transformou no sóbrio e
bem-vestido Charlie Morrison. Depois, guardou
seu equipamento numa valise e partiu para o
aeroporto.
Bruce resolveu não embarcar num vôo co-
mercial, uma vez que nenhum deles partia
num horário adequado e preferiu fretar um
avião para Washington. Embora fosse um pilo-
to experiente, contratou alguém para conduzir
o avião. Era mais fácil assim.
O equipamento de Batman, mais as duas
valises com equipamentos especiais e o cinto
de utilidades, couberam bem no jatinho aluga-
do.
Bruce teve tempo para um rápido desje-
jum, enquanto o piloto abastecia e traçava o
plano de vôo. Comeu uma salada e tomou um
café e quando pagou a conta lembrou que ti-
nha de dar um telefonema. Ligou para o co-
missário James Gordon, em Gotham City, e
disse para onde estava indo. Isso era necessá-
rio, caso algo acontecesse com ele. Se Robin
podia ser morto, Batman podia ser morto tam-
bém. Mas o combate ao crime tinha que conti-
189
nuar.
Depois, foi até um guichê de serviços tu-
rísticos e arranjou um motorista para levar a
picape de Red Murphy até o local onde estava
esperando, lendo o jornal. Logo depois, entrou
no avião.
190
à churrascaria Old Edward's, na Quinta com
Ohio. Era um restaurante popular em
Washington e ficava em frente ao Edifício Gau-
di, onde, nos escritórios da Procuradoria-Geral
do quadragésimo andar, os contratos da ARDC
iriam ser assinados.
191
pamentos necessários, para escalar torres de
vidro com rapidez e segurança. Agora, diante
desta nova versão de uma arquitetura fora de
moda, percebeu que teria de improvisar.
A superfície de granito poroso não se mos-
trava confiável para as ventosas de sucção que
usava normalmente.
O cortador laser de vidro que costumava
usar para entrar não seria útil em janelas pro-
tegidas por barras de ferro.
Batman suspirou. Já era bastante difícil se
manter atualizado com as novas tecnologias
de construção, mas ter que reinventar novos
métodos para escalar edifícios antigos...
Ele poderia tentar a entrada por uma das
portas, é claro. A ideia era atraente, porém
impraticável, pois nesta noite era grande o
movimento em tomo do prédio e as ruas esta-
vam coalhadas de equipes da SWAT. Havia
também inúmeros homens vestidos à paisana,
mas com volumes aparecendo por baixo das
roupas. Esses, Batman sabia por experiências
anteriores, eram homens do Serviço Secreto.
Será que Murphy o havia denunciado?
Ele achava que não. Mas o pessoal da se-
gurança poderia ter desconfiado das atitudes
da noite anterior, dos disparos da Magnum, do
192
passeio com a picape na manhã seguinte. Era
preciso ser muito desatento para não notar es-
sas discrepâncias, mas será que tiveram tem-
po para fazer algo a respeito? Só o tempo di-
ria.
Batman tivera oportunidade de estudar os
planos da ARDC no vôo até Washington, es-
condendo-os atrás do jornal para que o piloto,
um tipo simpático do Tennessee chamado Co-
hen, não ficasse curioso.
Bruce Wayne tinha uma boa formação téc-
nica e aumentara em muito seus conhecimen-
tos com estudos avançados de ciência e mate-
mática. E tivera a oportunidade de comple-
mentar suas conclusões em um computador
laptop, construído de acordo com suas especi-
ficações por um preço alto, mas com a capaci-
dade de um equipamento de última geração.
E o que havia concluído a partir das cópias
era surpreendente, para dizer o mínimo.
Se aquele contrato fosse assinado...
Ele examinou o edifício outra vez. Entrar lá
seria muito difícil.
Terminou sua refeição, pagou a conta, foi
até ao toalete e saiu pelos fundos.
Era um beco ruidoso, com gatos passeando
por latas de lixo transbordantes. A combinação
193
de luzes fortes e sombras impenetráveis fazi-
am o ambiente perfeito para um homem em
fuga ou para o vôo de um morcego.
Dentro do Edifício Gaudi, no quadragésimo
andar, num anfiteatro iluminado com luz indi-
reta, o Estado-Maior estava reunido para exa-
minar o contrato da ARDC. O almirante William
Fenton presidia a sessão desta noite. Era um
velho lobo-do-mar, de rosto quadrado e cabe-
los cinzentos. O general Phil “Voador”
Kowalski, comandante da Força Aérea, estava
ao seu lado direito. Kowalski era alto e magro,
e seu rosto infantil, de cabelos loiros e riso
fácil, não parecia pertencer ao ás da aviação
que abatera quatro jatos de Trinidade, num re-
cente incidente no Caribe, antes de descobrir
que os Estados Unidos não estavam em guerra
com aquele país. Ao seu lado estava o general
Chuck Rohort, do exército, com seu corpo pe-
queno e pesado demonstrando toda a atenção
e concentração necessárias para um bom co-
mandante de tanques.
“Bem”, disse o almirante, “podemos come-
çar a reunião. Proponho que dispensemos a
leitura das minutas da última reunião, pois as
decisões a serem tomadas hoje são muito im-
portantes para serem atrasadas por discursos
194
antigos. Alguma objeção? Ótimo, vamos conti-
nuar. Creio que o general Kowalski tem uma
requisição pouco comum a fazer.”
Phil Voador levantou-se, sorrindo prazeiro-
samente, manuseando seu quepe numa atitu-
de muito bem ensaiada.
“No meu entendimento, esta reunião vai
decidir a questão do contrato com a ARDC, re-
gistrado com o número 123341-A-2.”
“Exatamente”, observou o almirante Fen-
ton. “E você saberia disso se tivesse compare-
cido à reunião de ontem, onde os presentes
pesaram os prós e contras do novo sistema da
ARDC. Uma vez que forneceremos essas ar-
mas tanto para nossas tropas como para os
nossos aliados, não preciso ressaltar a impor-
tância deste contrato.”
“Sei que as armas são boas”, disse o gene-
ral Rohort, colocando seu corpo pesado em
posição de alerta. “Mas será que a ARDC po-
derá cumprir o combinado?”
“Acho que não precisamos ter dúvidas a
esse respeito”, observou Fenton. “Mas como
testemunha final, tomei a liberdade de convo-
car James Nelson, diretor da CIA.”
Fenton fez um gesto e um soldado abriu a
porta do anfiteatro. Um homem alto, vestido
195
em tons bronzeados, entrou. Até suas unhas
eram bronzeadas, muito levemente, porém
bronzeadas.
Apenas seus dentes eram brancos, os den-
tes e o branco dos olhos.
“Boa noite, senhores”, disse Nelson. “Des-
culpem meu bronzeado. Acabei de voltar da
Flórida, onde estive supervisionando nosso
programa de contraespionagem, para enqua-
drar os traficantes colombianos na nossa poli-
tica atual relativa aos preços de drogas clan-
destinas.”
“Eles estão sabotando o programa de supri-
mento de drogas de novo?”, perguntou o ge-
neral Rohort, com uma expressão preocupada.
“Na verdade, estão”, respondeu Nelson. “A
perda na receita nos diversos serviços clandes-
tinos do governo tem sido alta. Sem falar da
perda de qualidade por parte dos usuários.”
“Esse produto estrangeiro não se encaixa
nas especificações do PDA”, rugiu o almirante
Fenton. “Deveria haver uma lei contra isso.”
“O presidente acredita no livre comércio”,
disse Nelson. “Dentro dos limites, é claro.” Ele
ignorou o sinal de Proibido Fumar e acendeu
um cigarro.
“Bem, não tem importância”, disse
196
Kowalski. “Não é da nossa conta o que as pes-
soas fazem com as drogas. Estamos aqui para
resolver este contrato. E devo dizer, Nelson,
que tenho dúvidas quanto a alguns detalhes.”
“Fique tranquilo”, respondeu Nelson. “Este
é um dos melhores contratos feitos entre o go-
verno dos Estados Unidos e uma empresa pri-
vada. E o melhor de tudo é que diversos alia-
dos nossos também se beneficiarão do acordo,
o que resultará numa boa publicidade.”
Uma cópia do contrato foi passada por to-
dos. Os militares a examinaram.
“Bem”, disse Kowalski, “eu ainda tenho
dúvidas.”
“Vou tranquilizá-lo”, replicou Nelson. “O
próprio presidente quer este contrato assina-
do.”
“Então por que ele não diz isso para nós?”,
perguntou Kowalski.
“Senhores, é isso que ele vai fazer. O presi-
dente está vindo para presenciar suas assina-
turas e congratulá-los por cumprir seu dever
patriótico.”
“O presidente? Aqui?”, perguntou Chuck
Rohort.
“Isso mesmo, Chuck”, respondeu Fenton.
“Então não vamos perder tempo”, disse
197
Nelson. “Senhores, o presidente!”
Ele gesticulou para o ordenança, que engo-
liu em seco e abriu a porta, por onde entrou
Marshall Seldon, o homem alto, curvado e de
cabelos cinzentos conhecido por todos como o
presidente dos Estados Unidos.
Os membros do Estado-Maior se levanta-
ram para cercar o presidente. Nelson fez com
que recuassem.
O presidente ergueu amão. Em seguida, to-
dos ouviram sua conhecida voz de tenor.
“Senhores, tenho muitos assuntos impor-
tantes para cuidar. Por favor, assinem o contra-
to, e vamos tratar desse negócio de confundir
nossos inimigos e confortar nossos amigos.”
Os membros do Estado-Maior se agrupa-
ram, cada um deles querendo ser o primeiro.
Mas foram interrompidos por uma voz grave
entrando pela porta, desta vez sem a ajuda do
ordenança.
“Senhores, antes de assinarem esse pedaço
de papel, gostaria de fazer uma observação.”
Todos ficaram em silêncio. Até mesmo ho-
mens importantes como generais e almirantes
não podiam deixar de dar a Batman uma opor-
tunidade de falar.
Nelson era uma exceção a esta regra, por
198
conta de sua posição específica. Era seu dever
não ser seduzido por discursos alheios e sabia
que Batman não fazia parte daquilo. Assim,
fingiu escutar, mas o tempo todo sua mão di-
reita esgueirou-se em direção ao cinto, onde
escondia uma pistola Derringer de dois tiros.
A princípio, as dificuldades encontradas por
Batman para escalar o Edifício Gaudi não fo-
ram insuperáveis. Ele não pôde usar os recur-
sos que o levaram para dentro da ARDC. Na-
quela ocasião, usara um dispositivo simples,
projetado para produzir brilhos de luz e estra-
nhos ruídos e continuar fazendo isso tempo
suficiente para permitirem ataque pelo outro
lado. O atacante tinha sido o próprio Batman,
escalando a cerca protegido da corrente elétri-
ca por luvas e botas isolantes. Por um breve
momento, enquanto saltava acerca, havia en-
coberto a luz das estrelas. Porém, durante
esse tempo, Billy-Joe e Steve estavam distraí-
dos pela luz e os sons do aparelho, o que deu
a Batman o tempo necessário para pousar se-
creta e seguramente no outro lado da cerca.
Desta vez, não foi possível usar esse tipo
de distração nos longos minutos necessários
para escalar o Gaudi e nada na sacola de tru-
ques do Batman poderia levá-lo até o quadra-
199
gésimo andar.
Por sorte, era uma noite de lua cheia cuja
luminosidade banhava um dos lados do edifí-
cio com uma luz branca e brilhante, porém
deixava as outras partes na escuridão. Usando
grampos de alpinista adequados para granito,
o Homem-Morcego escalou o lado do edifício.
Quando chegou ao quinto andar, onde havia
uma fileira de gárgulas, surgiu um atalho. O
próximo nível de gárgulas era no décimo andar
e continuava a cada cinco andares, o que via-
bilizava ouso do bat-rangue atado a uma corda
leve. Batman era perito em lançar o estranho
objeto, semelhante a um bumerangue, porém
infinitamente mais útil em termos de ângulos
de onde poderia ser projetado.
Escalar quarenta andares por uma corda é
um feito espetacular e felizmente Batman ha-
via trazido uma roldana para ajudar sua subi-
da. O dispositivo, alimentado por um pequeno
motor atômico, era capaz de erguer o peso de
um homem a seis quilômetros por hora.
Quando chegou ao quadragésimo andar,
usou uma gazua para abrir as fechaduras da
janela e entrar. E ainda teve o cuidado de fe-
chá-las por dentro. Depois disso, foi fácil en-
contrar a sala de conferências onde o Estado-
200
Maior estava reunido.
“O que é isso?”, perguntou o almirante Fen-
ton. “Já ouvi falar de você, Batman. Dizem
que defende boas causas. Mas se acha que
sua reputação vai me intimidar, está engana-
do.”
“Não é esta a minha intenção”, respondeu
Batman. “Só gostaria de apresentar alguns fa-
tos a respeito do sistema das armas da ARDC
com que está querendo equipar nossas for-
ças.”
“Como se atreve a interferir na nossa espe-
cialidade?”, disse Fenton. “Nós verificamos es-
sas armas minuciosamente e são as melhores
que se pode obter.”
“Talvez”, retrucou Batman. “Mas será que
verificaram também seus sistemas computado-
rizados de apoio?”
“É um sistema novo”, observou o general
Rohort. “E o melhor que a mente humana po-
deria criar.”
“Sugiro que o examinem novamente”, disse
Batman. “Tenho documentos que poderão in-
teressá-los.”
“Aonde está querendo chegar, Batman?”,
perguntou Fenton. “Não está querendo nos
deter, está?”
201
O mascarado não respondeu.
“Este lugar está cheio de agentes”, conti-
nuou Fenton. “Você não pode nos impedir de
assinar. Isso sem falar na presença do presi-
dente.”
O presidente Marshall Seldon permanecera
no canto mais distante da sala todo esse tem-
po. Agora, sorrindo levemente, disse: “Vamos
deixá-lo mostrar os documentos. Vai ser diver-
tido.”
Batman puxou sua capa e tirou de um bol-
so escondido uma listagem de computador
mostrando um circuito complexo coalhado de
pequenos números e letras gregas.
“Senhores”, disse Batman, “por favor exa-
minem isto.”
Kowalski foi o primeiro a pegar o papel.
“O que é isto?”
“Os mapas do computador principal das ar-
mas da ARDC.”
Kowalski examinou os papéis, seus cabelos
loiros e encaracolados caindo sobre a testa.
“Sim... sim, tudo bem por enquanto... Sim, é
um circuito padrão Sliger... Mas o que é isso?
Está ligado a um circuito de ressonância espe-
lhado... Ei, agora entendi!”
“O quê?”, perguntaram os outros militares,
202
menos familiarizados com computadores do
que o jovem oficial da Força Aérea.
Kowalski ergueu os olhos com uma expres-
são preocupada.
“Diga a eles, Batman.”
“Imagino que todos aqui já ouviram falar
de vírus de computador”, disse.
“Claro”, respondeu Fenton. “São programas
elaborados por malucos ou descontentes para
tomar os computadores inoperantes, às vezes
por longos períodos de tempo, até que outro
programa possa ser elaborado para livrá-los do
vírus. Mas ninguém vai introduzir nenhum ví-
rus nesses programas, Batman. São progra-
mas de última geração, resistentes a vírus.”
“É verdade”, concordou Batman. “Mas você
ainda não entendeu.”
“O quê?”
“Os programas da ARDC foram projetados
para criar seu próprio vírus, que primeiro vai
alterar o funcionamento dos computadores e
em seguida destruí-los.”
“Criar seus próprios vírus?”, perguntou o
general Rohort. “Como girinos se reproduzindo
num pântano?”
Kowalski concordou, pesaroso. “Está nas
especificações, general. Nós é que não perce-
203
bemos.”
Rohort dirigiu-se a Kowalski. “Você entende
dessas coisas, Voador, mas eu mal posso acre-
ditar. Será que o mascarado está dizendo a
verdade?”
“É verdade, sim”, respondeu Kowalski. “É
exatamente isso.”
“Senhores!” Era a voz do presidente Seldon
e chamou a atenção de todos na sala.
“Sim, sr. presidente?”, perguntou o almiran-
te Fenton. “Em primeiro lugar, quero agrade-
cer ao Batman”, disse. “por ter trazido esta
matéria à nossa atenção. Na verdade, nós já
corrigimos o defeito do projeto e agora nada
pode impedir o Estado-Maior de assinar o con-
trato.”
“Esse documento não deve ser assinado”,
falou Batman. “E esses homens não devem
mais receber ordens suas.”
“Por que diz isso?”, perguntou o presidente.
“Pare com isso, Batman, e acho que posso ar-
ranjar uma medalha para você. Gostaria de ter
uma posição oficial em meu gabinete? Asses-
sor presidencial para assuntos de super-
heróis? Que tal?”
“Seria ótimo, sr. presidente”, falou Batman.
“Mas existe um problema.” De repente, ele
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deu um passo à frente, andando diretamente
em direção ao presidente. Até mesmo Nelson,
da CIA, foi pego de surpresa por um momen-
to. Logo depois, sacou sua arma rapidamente,
não o Derringer, mas uma pesada automática
Browning reservada para emergências. Mas a
essa altura Batman já tinha chegado até o
presidente... e passado através dele.
E o presidente continuava sorrindo.
Os membros do Estado-Maior olharam para
Batman, perplexos. Nelson manteve a arma na
mão, temporariamente imóvel.
“O problema”, começou Batman, “é que
não vejo como pode fazer qualquer coisa, sr.
presidente. Porque você não é o presidente.”
“Em nome de Deus, o que é isso?”, pergun-
tou Fenton. “Um fantasma?”
“Não é bem isso”, respondeu Batman. “É
um holograma.” Fenton estava tentando en-
tender. “Como você sabia?”
“Porque a pessoa que fez isso”, disse,
apontando um dedo enluvado em direção ao
ainda sorridente holograma do presidente Sel-
don, “tem usado hologramas com outras pes-
soas.”
“E quem são essas pessoas?”, perguntou
Kowalski.
205
“Acho que o diretor James Nelson tem a
resposta para isso”, respondeu Batman.
Nelson olhou-o com ódio profundo.
James Nelson havia alcançado certa proe-
minência seis meses atrás, quando James Tol-
liver, respeitado diretor da CIA, adoecera devi-
do a um vírus ainda não identificado e que
nem mesmo os melhores especialistas foram
capazes de curar. Acamado e privado de toda
sua força e vitalidade, Tolliver, mantido vivo
por aparelhos, fora forçado a passar suas tare-
fas cotidianas para Nelson, seu assistente.
Nelson era conhecido como um homem ex-
tremamente capaz, porém dotado de uma per-
sonalidade grandiosa, de uma autoconfiança
quase paranoica. Era conhecido como alguém
capaz de fazer justiça com as próprias mãos
se considerasse seu julgamento melhor do que
o de seus superiores. E isto Tolliver não podia
tolerar.
Correram boatos de que Tolliver demitiria
Nelson ou forçá-lo a se aposentar. Mas agora
Tolliver só podia ficar deitado numa tenda de
oxigênio lutando para sobreviver.
Nos círculos de Washington, algumas pes-
soas consideravam Nelson mais ou menos pe-
rigoso e mais ou menos louco.
206
A exemplo de muitos outros homens loucos
e perigosos, havia reunido um pequeno círculo
de agentes da CIA ao seu redor. Todos eram
fanáticos em sua devoção e seguiriam qual-
quer ordem sua.
Eram estes os homens que agora entravam
na sala de reunião, movendo-se lentamente,
as mãos próximas de suas armas ocultas.
“Esse contrato vai ser assinado”, disse Nel-
son.
“Você deve estar louco”, disse o almirante
Fenton. “Não pode querer que assinemos
isso.”
“Posso e vocês vão assinar. Mas não preci-
sam fazer isso pessoalmente, pois tenho peri-
tos que podem assinar seus nomes melhor do
que vocês.”
“E o que vai fazer conosco?”, perguntou
Rohort.
“Vocês serão enterrados como heróis”, res-
pondeu Nelson. “Sabemos que Batman tem
sofrido alucinações. Suas desventuras com Il-
lona e outras pessoas no Hotel Nova Era foram
filmadas. O público vai acreditar quando dis-
sermos que ele massacrou todos vocês antes
que o matássemos.”
“E quanto a mim?”, perguntou Batman.
207
Nelson riu com amargura. “Tentei deixar
você fora disso, Batman, mas resolvi investigá-
lo. Com a ajuda de minha organização, desco-
bri sua verdadeira identidade. Você é Charlie
Morrison!”
A alta e encapuzada figura moveu-se leve-
mente e um sorriso surgiu em seus lábios.
“Foi por isso que mostrou aqueles hologra-
mas a Charlie Morrison no Hotel Nova Era”,
concluiu Batman.
“Eu estava tentando convencê-lo a ficar
fora disso.”
“Sua noção de psicologia é tão furada
quanto seu sentido de estratégia”, observou
Batman. “Como eu poderia resistir a um desa-
fio como este? Você preparou sua própria der-
rota, Nelson.”
“Mas, Nelson, por que está fazendo isso?”,
perguntou o general Kowalski. “Por que quer
que assinemos esse contrato? Os armamentos
da ARDC estão obviamente defeituosos e vul-
neráveis à infiltração pelos computadores ini-
migos. Assim que souberem disso, nossos ini-
migos podem atacar nossos sistemas bélicos
com facilidade. E quando tentarmos reagir,
nossas próprias armas estarão programadas
para atuar contra nós.”
208
“Foi o que Tolliver disse quando mostrei a
ele meus planos”, respondeu Nelson. “Ele não
conseguiu ver que esta fraqueza era apenas a
camada externa de um esquema mais amplo.
Sim, nossos inimigos certamente descobrirão
nossas deficiências e tentarão tirar vantagem
delas. Mas temos também outro programa,
este sim realmente secreto, que coloca a apa-
rente vantagem de nosso inimigo a nosso fa-
vor. E um programa matador de computado-
res, que será iniciado assim que tentarem que-
brar nossos códigos. Quando nossos inimigos
tentarem nos esfaquear pelas costas, repro-
gramando nossos sistemas bélicos, descobri-
rão que introduzimos as sementes da destrui-
ção em seus próprios sistemas.”
“Interessante”, disse Batman. “E Illona era
uma isca, não?”
“Claro”, disse Nelson. “Nós encenamos a
morte dela.”
Os membros do Estado-Maior se entreolha-
ram, atônitos. Finamente, Fenton falou: “Nel-
son, tudo isso é loucura! Seu plano é maluco!
E se nossos inimigos descobrirem seu esque-
ma?”
“Nós temos outros segredos!”, bradou Nel-
son. Seus olhos estavam enlouquecidos. “Vo-
209
cês não sabem quantos segredos nós temos!
Apenas eu e meus comandados estamos cien-
tes do poder que podemos exercer sobre os
acontecimentos!”
“O que eu sei é que você e sua turma que-
rem ganhar um bocado de dinheiro com esse
contrato”, disse Batman. “Você é o acionista
secreto atrás do grupo que comprou as ações
da ARDC, não é?”
Nelson deu de ombros. “Não importa que
você saiba disso agora, Não há nada que pos-
sa fazer a respeito. Este contrato vai ser efeti-
vado.”
“Ah, acho que não”, disse Batman.
James Nelson olhou para a figura mascara-
da e riu. “Vai nos impedir? De acordo com seu
material biográfico, você é vulnerável a armas
humanas ao contrário do Super-Homem, seu
amigo à prova de balas.”
“Posso ser perfurado como qualquer outro
homem”, disse Batman. “Mas primeiro vai ter
que me acertar.”
Nelson ergueu a arma. Batman abriu a mão
e um enxame de partículas foi lançado da pon-
ta de seu dedo mínimo. As partículas voaram
em direção às fontes de luz, que piscaram, di-
minuíram e se apagaram.
210
“Aspiradores de luz chineses!”, exclamou
Nelson. “Você é esperto, Batman, mas não vai
adiantar. Atirem, homens!” Os homens da CIA
entraram em ação. Tiros foram disparados, ri-
cocheteando em fichários de aço, rachando
paredes de plástico como um enxame de abe-
lhas selvagens. Porém Batman já estava em
movimento, uma sombra apagada na sala es-
cura. Os militares também já haviam mergu-
lhado para baixo das mesas e respondiam ao
fogo da CIA com suas armas portáteis.
O resultado do confronto já estava decidi-
do, mas foi muito bom ver James Gordon, co-
mandando um pelotão de elite da polícia de
Gotham, entrar na sala naquele momento,
pois os habilidosos rapazes de uniformes azuis
venceram rapidamente os inexperientes agen-
tes do governo.
“Gordon!”, exclamou Batman. “O que está
fazendo aqui?”
“Depois que me telefonou, achei que pode-
ria precisar de alguma ajuda”, respondeu. “Por
isso trouxe um pelotão de meus rapazes de
Gotham City para uma viagem a Washington.”
“Não matem Nelson!”, bradou Batman.
“Esse rato merece”, disse Gordon, mas não
atirou.
211
“Eu sei que merece”, concordou Batman.
“Mas ele precisa nos levar ao local onde es-
condeu o presidente.”
213
“Criminosos são uma espécie supersticiosa
e covarde. Então, devo usar um disfarce que
leve o terror ao fundo de seus corações! Preci-
so ser uma criatura da noite, como um… um…
morcego!”
— Bruce Wayne.
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