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LARS GUSTAFSSON
ASA
Digitalização e Arranjo: Agostinho Costa
TÍTULO ORIGINAL: EN BIODLARES DÔD
TRADUZIDO DO SUECO POR: ANA DINIZ
PREFÁCIO DE:
CARL-GUSTAV BJUSTRÕM
ASA— LITERATURA
- 1978, Lars Gustafsson
1ª edição: Agosto de 1992
2ª edição: Fevereiro de 2001
Reservados todos os direitos
ASA Editores S.A.
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A obra-prima de um dos maiores escritores suecos contemporâneos.
"Foi professor na escola oficial de Vãster Vala: chama-se Lars Lennart Westin. D eram-
lhe a reforma antecipada quando fecharam a escola primária de Ennora, na margem
norte do lago. S ustenta-se fazendo de tudo um pouco, mas principalmente vendendo o
mel das suas colmeias, que esporadicamente dão uma produção abundante. D esde que
se divorciou vive numa quintarola em Vãset, que fica a par das aldeias de Vretarna e
Bodarna, mas na margem oriental do lago, claro. Tem uma hortazinha, um terreno com
batata e um cão. Às vezes recebe a visita de familiares. Tem telefone, televisão e uma
assinatura do jornal de Vãstmanland. D epois do divórcio não teve contatos femininos
dignos desse nome (...)
O que vamos ler são apontamentos dele. A pontamentos deixados por ele, pois nesta
Primavera de 1975, precisamente por alturas do degelo, ele descobre que antes do
Outono terá desaparecido."
PREFÁCIO
A quilo a que, com aquela mistura de encantamento e ironia que caracteriza o nosso
autor, poderíamos chamar "a surpreendente carreira literária do S enhor Gustafsson",
começou em 1957, quando ele tinha 21 anos, com a banal publicação de um romance.
D ois anos depois— o que num jovem autor é um prazo perfeitamente normal— surge
um segundo romance, O s últimos dias e a morte do poeta Brumberg, e a partir daí as
obras sucedem-se a ritmo acelerado, à razão de dois ou mesmo três volumes por ano.
Romances, ensaios, livros de poesia, descrições de viagens e, além disso, uma atividade
de crítica literária no diário Expressen e na revista Bonniers Li erara Magasin (BLM). A
partir de 1962, passa a ser um dos dois co redactores desta revista e, de 1966 a 1972, o seu
redactor principal. D irigindo uma das mais importantes revistas literárias suecas, e
participando ativamente em todas as discussões filosóficas, estéticas, literárias e sociais,
ocupa uma posição central na vida intelectual sueca e isto— podemos dizê-lo— desde os
seus vinte e cinco anos.
Este jovem escritor é possuidor de uma cultura vastíssima, verdadeiramente ecléctica,
que vai da filosofia de Wi genstein à ciência aerostática, da mecânica à semântica, da
música à astronomia. Leu tudo, os filósofos mais herméticos e as memórias de
Richthofen, o ás da aviação alemã de 1914-1918, N oam Chomsky e J úlio Verne, Platão e
Galbraight, para já não falar de Ka a, Marguerite Yourcenar, Gombrowicz, Claude
S imon, D ante, Roger Caillois e outros confrades da literatura. N o entanto, e acima de
tudo, o que ele mais quer é ser filósofo, mas as suas múltiplas atividades atrasaram, até
1978, a sua tese de doutoramento— Linguagem e mentira. Ensaio sobre as teorias
extremas na filosofia da linguagem no século xix. É desde há muito membro da
Akademie der Kúnste de Berlim. Foi professor em universidades americanas e alemãs.
O jovem Gustafsson faz de certo modo figura de romântico, se bem que se distancie,
com humor, ao fazer um "pastiche" do Bindulgsroman alemão; imita-lhe o estilo de
escrita, os títulos dos capítulos circunstanciados e brinca com a intriga picaresca. D ele
retira o tema do duplo, o de Fausto e o de Mefistófeles. Mas não é menos atraído pelas
miragens de um pensamento "idealista", ao pressentir que existe algures uma "vida
autêntica", que parece estar à mão de semear, como o curso de água subterrâneo, cujo
fluir é pressentido pelos exploradores de Viagem ao centro da Terra, de J úlio Verne, e
que os acompanha do outro lado da parede rochosa sem que eles jamais o consigam
descobrir, como nos recorda Gustafsson no seu romance A verdadeira história do S enhor
A renander, de 1966, sem dúvida o seu melhor romance neste primeiro estilo— um estilo
límpido, por vezes irisado como uma bola de sabão, onde ele joga com os "pastiches" e as
sábias explicações, com as questões falsamente ingênuas e os problemas metafísicos;
nostálgico, ele acarinha os belos instrumentos utilizados por uma técnica ultrapassada, a
do século XI X, com os seus cobres e o seu acaju; passa de digressões aparentemente
absurdas para pequenas histórias burlescas, traça uma série de círculos egocêntricos,
destinados a mascarar e a revelar simultaneamente que o centro é vazio e desespero.
O ar é o seu elemento. O s seus livros de poesia têm títulos como O s viajantes em
balão (1962) ou O s irmãos Wright rendem-se a Ki yHawk (1968), reúne textos em prosa
sob o título A arte de lançar papagaios (1969) e, nos seus poemas, nos seus romances, o
vento está sempre presente.
A nostalgia é também o seu elemento. Raramente um escritor tão jovem terá exaltado
com tanta convicção a infância, ou terá referido com tanto carinho as sucessivas etapas da
sua evolução, o idílio de antigamente, os entusiasmos passados. Um dos seus primeiros
livros de poesia intitula-se muito simplesmente Uma manhã na S uécia (1963). N ão
consegue desviar os olhos do século passado, em que tudo era certeza, ciência exata,
preparação garantida de um futuro melhor, progresso ou revolução sincera— e possível.
Mas Gustafsson não é ingênuo, conhece bem os problemas que existem por detrás da
transparência, sabe que a ciência, o engenho, as maravilhosas invenções e a generosidade
desembocam na morte. A "natureza tangível" dos irmãos Wright, "o leme e a hélice" do
seu poema levam a Dresden e Hanói.
A estes dois nomes de cidades destruídas pelas bombas, vêm juntar-se, entre aspas
talvez irônicas, "as trevas gnósticas"— será que o autor se recusa a entregar-se?
N a sua obra há incessantemente bruscas aberturas. S erá para nos envolver, ou não
será mais que um "trompe Poeil"?
Este "trompe l'oeil", o documento falso, o invento técnico aberrante, a data
demasiadamente precisa para que não possa ser inventada, o fantástico, o seu mal-estar e
as suas ameaças, tudo isso faz também parte do arsenal de Lars Gustafsson, como
podemos confirmar ao ler a maravilhosa recolha de contos Preparativos de fuga, de 1967.
Título perfeitamente eloquente, pois não são o ar, o passado, o fantástico, a diversão, a
historieta, esperanças de evasão? Gustafsson adora contar histórias e não se importa
nada de nos recordar, de vez em quando, a sua erudição, a sua mestria em manejar um
raciocínio lógico ou a sua familiaridade com os grandes pensadores e os grandes sábios
do nosso tempo. Também não se inibe de nos meter um pouco de medo, ou de nos dar,
sob a forma de apólogos, por vezes burlescos, algumas lições de moral, e até de
sabedoria.
D epois dos jogos com o saber, surge o problema do fazer. Q ue regras aplicar? "Mas
que pensamento mais absurdo, diz o senhor A renander, dizer-se que no homem existe
uma moral." Evidentemente, pois não é verdade que o centro do homem é o vazio?
A contece então que uma moral ou um envolvimento são trazidos do exterior. Talvez
seja o que se passa com Lars Gustafsson na altura da guerra do Vietname e dos protestos
cada vez mais acesos que ela provocava, do Maio de 68 e do "esquerdismo" que
bruscamente desabaram na S uécia e que terão levado a revista BLM para muito longe das
tranquilas águas da literatura pura.
S eria uma crise de consciência, o ressurgimento da moral em vez da sabedoria que
cada vez se afastava mais, desejo sincero de "ser do seu tempo", esse tempo que
incessantemente o persegue? D e qualquer modo, deu-se uma viragem e Lars Gustafsson,
fiel a si próprio, inicia-a por meio de um auto retrato romanceado, O S enhor Gustafsson
em pessoa (1971).
S eria, como se disse, um modo de apresentar e de afinar um instrumento que lhe
servirá para enfrentar a realidade? A s relações que Gustafsson mantém consigo próprio
— e que nos convida a manter com ele— não são fáceis, se bem que na aparência sejam
agradáveis e sorridentes. I ronia, falsa candura e verdadeira sinceridade, profundidade e
complacência, angústia e humor misturam-se interminavelmente. Gosta de se retratar
sob a forma de um gnomo ou de se imaginar sob a forma de um homúnculo, mas não
renega nem o seu saber nem as suas capacidades intelectuais, e pode acontecer tomar
ares de ingênuo, mas nunca de ignorante. Q uer seja coragem quer "coque erie", este
modo de se expor, acompanhado de uma crescente politização dos seus propósitos, não
foram bem acolhidos no início dos anos 1970. Reticências, mau humor, críticas, troças: o
menino-prodígio tornou-se o filho pródigo, e não se mostrava muito interessado em
voltar ao redil.
E de novo descemos, já não ao centro da Terra, mas aos I nfernos. O S enhor
Gustafsson em pessoa é o primeiro de um ciclo, ou melhor, como diz o próprio autor, de
um sistema que inclui cinco romances e que se intitula "A s fendas na parede"— pois
também aqui está a parede que nos separa da "verdadeira vida", mas desta vez a parede
está rachada e pelas fissuras entrevê-se uma outra existência, ali, a pedir que a libertem.
S ubsiste uma esperança e uma resolução. A o longo destes cinco romances, retine como
um encantamento: "N ão nos rendemos. Recomeçamos", o que não deixa de soar como a
palavra de ordem de Maio de 68: "Continuemos o combate", e é verdade que Lars
Gustafsson volta com satisfação a este momento de esperança e abertura, que logo se
fechou.
N este primeiro romance, Virgílio aparece sob a forma de uma mulher madura,
professora de filosofia, ruiva, maternal e marxista. Poderia um novo A dão, à procura de
um Paraíso filosófico, encontrar uma Eva mais sedutora? I sto não quer dizer que Lars
Gustafsson passará, a partir daí, a defender uma ideologia marxista. A Utopia marxista,
tal como o Paraíso filosófico, não é deste mundo. É necessário ir mais além, e não nos
esqueçamos que Virgílio soube desvendar a D ante os sofrimentos do I nferno, mas não o
conduziu ao Paraíso.
Entretanto, em A lã (1973), encontramo-nos no Purgatório, o Purgatório das cóleras
vãs, dos protestos ineficazes, onde reina, espesso e úmido, o odor da lã molhada. N este
romance, mais "realista" do que qualquer dos anteriores, Lars Gustafsson dedica a sua
atenção àquilo a que se poderia chamar "o ventre mole" do sistema social sueco: a escola
e as suas arbitrariedades, o abandono dos campos e a poluição, as devastações
autorizadas, encorajadas até por uma sociedade predadora, se bem que oficialmente se
considere socialista.
Em Festa de família (1975), ataca o núcleo "duro" desta sociedade: a burocracia, o
Poder, os centros de decisão em que se aliam a brutalidade e a hipocrisia. E nesta
excelente sátira à sociedade sueca, construída pela social-democracia e que social-
democrata se mantém mesmo quando o partido não está oficialmente no Poder,
Gustafsson identifica-se facilmente com o desmancha-prazeres, funcionário sem dúvida
preocupado com a sua carreira mas apanhado numa rede mafiosa que, para se manter no
Poder, não hesita em o sacrificar. E pergunta a si próprio se o elevado posto que lhe foi
confiado não seria, desde o início, um isco que permitiria depois fazerem dele o bode
expiatório.
Em S egismundo (1976) o panorama alarga-se, torna-se mundial e complica-se
sobremaneira, sobretudo porque o autor abandona o estilo realista dos dois romances
precedentes para se lançar com todo o entusiasmo numa abundante intriga picaresca que
faz lembrar alguns romances alemães contemporâneos. S erá um romance filosófico que
trata de diversos problemas escatológicos, da teoria do conhecimento e da comunicação,
como alguns pretendem, ou será, mais modestamente, uma confissão na qual o autor
afirma "que não esteve presente na vida que viveu", como defendem outros? Este
romance de aparência confusa, caprichoso, brilhante e desigual, cheio de bizarrias e
clarões, de graves sentenças e historietas burlescas, talvez um dia venha a ser decifrado
na sua perturbadora complexidade.
Este "sistema" de romances independentes que se esclarecem sem se encadearem,
termina na calma angustiada, no crescente silêncio— na simplicidade—, de A morte de
um apicultor (1978), um título que curiosamente recorda o do seu segundo romance, O s
últimos dias e a morte do poeta Brumberg, escrito vinte anos antes.
N este romance Lars Gustafsson utiliza um processo muito simples e muitas vezes
explorado, que consiste em aproveitar apontamentos particulares encontrados depois da
morte do personagem e publicados por ordem aproximada. É uma ficção que permite ao
autor lançar desordenadamente reflexões a que não é obrigado a dar seguimento,
disparar verdades sem ter de as provar, propor imagens cheias de sub entendidos,
demorar-se em descrições, digressões, histórias— ou seja, aquilo que Lars Gustafsson
adora fazer. Mas depressa nos apercebemos de que este livro, aparentemente disperso,
obedece a uma vontade coerente, mais grave e também mais modesta, que contrasta
vivamente com a complacência de uma introdução "autobiográfica" de que encontramos
equivalente em vários outros romances de Lars Gustafsson; será um distanciamento? um
simulacro? uma provocação?
S egundo o que nos disse o próprio Lars Gustafsson, este romance foi composto de
certo modo como a S infonia do A deus, de Haydn, em que os vários instrumentos vão
abandonando a orquestra, um a um, até não ficar ninguém. D e facto, o seu "herói", o
professor Lars Lennart Westin (como todos os heróis dos romances do "sistema", tem o
nome do seu criador) vê quebrarem-se sucessivamente todos os laços que o ligam à vida:
uma reforma antecipada leva-o a abandonar não só uma profissão à qual ele não teria
dado grande importância, mas também o contacto com a sociedade, com os outros; o
divórcio levou-o naturalmente à separação da sua mulher e, voltando atrás, vê desfiarem-
se as suas recordações de infância. Um câncer o vai destruindo, mas na sua solidão tenta
viver uma vida "normal", retirando alguma consolação da visita de dois rapazes, para
quem tenta escrever um romance de ficção científica como os de que eles gostavam. S e
eles não apreciam o romance tanto como ele esperava, é talvez porque, sob uma forma
metafórica e convencional, ele tentava descrever algo que lhes não dizia ainda respeito,
ou seja, uma possível vitória sobre o sofrimento; porque as dores que atormentavam Lars
Westin são cada vez mais fortes. É no decurso de um breve momento de trégua que ele
descobre o Paraíso. Mas, o que é o Paraíso? É o fim do sofrimento. I sso quer dizer que,
quando não sofremos, estamos no Paraíso, mas não sabemos! Mas será que estamos no
Paraíso? Por momentos poderíamos julgar que sim, ao ler as maravilhosas descrições das
paisagens do centro da S uécia que surgem aqui com a mesma emoção, delicadeza e
precisão que nos outros romances de Lars Gustafsson, especialmente em A
verdadeira história do S enhorA renander. S eria bom viver ali, dizemos para nós próprios,
envolvidos por uma atmosfera nostálgica, inseparável das montanhas que tornam o
horizonte azul. S erá o Paraíso? Mas não estará ele logo a seguir às montanhas? S erá o
Paraíso ausência de sofrimento ou simplesmente ausência? O mesmo se passará com
D eus, que temos o dever de negar se existe? I gualmente este eu que nunca
conseguiremos distinguir no vazio dos nossos olhos onde reinam trevas "idênticas às
trevas que há entre as galáxias", este eu, diz o alterego de Lars Gustafsson, no entanto
apaixonado por esta palavra que é "a palavra mais absurda da linguagem. O ponto vazio
da linguagem. (Como qualquer centro, só pode ser vazio)".
E, novamente confrontado com este vazio, Lars Gustafsson volta a martelar o seu
"absurdo" credo: "Não nos rendemos. Recomeçamos".
CARL-GUSTAV BJURSTRÔM
"Biltres! Carrascos!
Mestres torturadores a soldo de príncipes!
Não compreendeis
Ao aquecerdes as vossas tenazes sobre as brasas?
Eu sou um asno!
Com o coração e o grito de um asno!
Nunca me renderei!"
PRELÚDIO
1. O caderno amarelo
Encontrado na prateleira por cima do lava-loiças. Papel liso, formato 16x6 cm, 80
folhas, das quais 76 totalmente preenchidas. Capa amarela, com a inscrição: UNIÃO
NACIONAL DOS APICULTORES SUECOS.
Contém as notas mais pessoais e as menos pessoais. Nestas últimas incluem-se várias
relações de despesas domésticas, por mês, notas de memória e de diversas medidas a
tomar relacionadas com as colmeias. De tudo isto, naturalmente, apenas alguns
exemplos ilustrativos foram incluídos na narração.
Iniciado em Fevereiro de 1970.
2. O caderno azul
Encontrado na prateleira superior da estante. Formato A4, papel de linhas, capa dura,
azul, com a inscrição Livraria Sjõberg, Vãsterãs. Tem 112 folhas, das quais 97
totalmente preenchidas, dos dois lados. Tem vários recortes de jornais colados,
excertos de leituras feitas por Westin e escritos seus.
Iniciado não antes do Verão de 1964.
3. O caderno rasgado
(Caderno amarelo I: 1)
Encontrei o cão em casa dos S undblad. Tinha lá estado toda a tarde, e deram-lhe
panquecas e água. O que mais me embaraçou foi que, quando quis levá-lo, ele recusou-se.
Resistia e fincava as quatro patas no tapete da cozinha.
Q ue vergonha. Eles devem ter pensado que eu trato tão mal o cão, que ele tinha medo
de voltar para casa comigo. Mas não é verdade.
É qualquer outra coisa, e eu não entendo o que possa ser. D á a impressão que o
animal, por qualquer estranha razão, ganhou medo, e é a terceira vez que isto acontece
em duas semanas. Eu trato-o exatamente da mesma forma como sempre o tratei nestes
onze anos. Pode acontecer que eu lhe fale com uma certa firmeza, às vezes, mas
assustador não sou, de maneira nenhuma. O cão conhece-me por dentro e por fora,
conheceu-me quando era cachorrinho.
S ó há uma explicação plausível, que é ele estar a ficar tão velho, que ocorreram
quaisquer subtis modificações na sua memória olfactiva, e ele simplesmente não me
reconhece.
Por um lado, acho que vê incrivelmente mal, mas por outro lado, a visão não é
particularmente importante para ele.
Uma vez, num I nverno do princípio dos anos sessenta, fui esquiar para uma pista nas
montanhas em Mãrrsjõn. A inda era professor na velha escola de Ennora— foi antes de a
terem transferido para Fagersta— e nessa altura só podia fazer esqui aos sábados e
domingos. A quele era um bonito domingo de Fevereiro, havia muita gente na pista, e
quando cheguei ao cimo de uma encosta, vi um tipo com um anoraque azul, uns trinta
metros mais adiante.
O cão tinha vindo sempre a correr, uns dois metros à minha frente, e é óbvio que
sabia que o homem estava ali.
Ele estava registado, já há vários quilômetros, como um perfil de odores, como um
cheiro, no cérebro olfactivo do cão.
O ra o homem, que era um pouco mais velho do que eu, desviou-se um pouco para o
lado, para arranjar qualquer coisa, ou apenas para se desviar de mim, uma vez que eu
estava muito perto dele.
E não é que o diabo do cão corre direito a ele, e quase o derruba no meio da pista!
Para o cão não havia um homem de azul, havia um cheiro interessante, que ele seguia
e que se ia tornando cada vez mais forte, e a tal ponto o animal confia no faro, que nem
sequer levanta a cabeça quando está a ponto de atirar o homem ao chão.
I sto deve ter a ver com o próprio sentido do olfacto. N ão há nada a fazer. S empre
gostei muito deste cão e espero que ele viva ainda muito tempo.
N ão compreendo o que lhe deu. Parece mesmo que o cão já não me conhece. O u
melhor: só me reconhece se eu estiver muito perto e ele puder ver-me e ouvir-me, sem ter
de se guiar pelo olfacto.
Há, evidentemente, uma outra explicação possível, mas é tão absurda, que não posso
aceitá-la.
É que eu tenha, de repente, começado a ter outro cheiro, uma modificação tão
bizarramente subtil, que só o cão dá por ela.
(Caderno amarelo I: 2)
Há uma data de coisas que deviam ter sido feitas nas colmeias neste O utono:
substituir a tampa de madeira e algumas das entradas, reparar quadros, material
isolante. Mas, por qualquer razão incompreensível, nunca me meti a tratar disso. N ão
percebo bem porquê. Por qualquer razão obscura, devo ter estado imensamente apático e
passivo. Graças a D eus estamos no fim de J aneiro e parece que este I nverno vai ser
excepcionalmente quente. Chove dias seguidos, e eu deixo-me ficar na cama mais tempo
do que é costume, na escuridão do I nverno, só pelo prazer de ouvir a chuva a bater no
telhado.
Mas suponhamos que o frio chega de repente em Fevereiro? Q ue é que eu faço? A
madeira das colmeias ensopada, o linóleo do tecto rasgado em vários sítios... O gelo vai
destruir as colmeias, pura e simplesmente. O castigo da minha indolência no O utono é
que vou perder uns três ou quatro enxames.
D o ponto de vista econômico, não terá importância, porque finalmente aumentaram-
me o subsídio de habitação, mas são seres vivos que morrem, e isso custa-me, de certa
maneira.
Uma coisa muito curiosa, que surgiu numa conversa telefônica com o I sacsson, de
Ramnàs, há umas semanas:
Q uando um enxame morre, parece que é como se morresse um animal. É uma
personalidade de que sentimos a falta, quase como um cão, ou pelo menos um gato.
Mas ficamos totalmente indiferentes perante uma abelha morta— deitamo-la para o
lixo.
O que é estranho é que as abelhas têm precisamente a mesma atitude. Um tão grande
desinteresse pela morte dos outros elementos não se encontra em muitas espécies
animais.
S e esmago uma ou duas abelhas ao instalar um caixilho com menos cuidado, as
outras retiram-nas quase como se fossem máquinas avariadas. Mas primeiro verificam
sempre se há mel.
E se elas próprias tivessem a mesma sensação que eu: de que é no enxame que reside
a individualidade, a inteligência?
Há enxames com uma personalidade fabulosamente definida. Há enxames
preguiçosos e ativos, agressivos e calmos. Até há os que são levianos e boêmios, e sabe-se
lá se não os haverá também com sentido de humor e sem ele?
Por exemplo, a febre do cortiço! É precisamente como uma pessoa nervosa, instável,
impaciente. Um mau amante— sem paciência.
E a abelha individual, tão impessoal como uma porca ou um parafuso num
mecanismo de relógio.
(Caderno amarelo I: 3)
Em A gosto, quando os rapazes estiveram cá, queriam ir jogar badmington. Para filhos
de pais divorciados, acho que tiveram pelo menos uns verões invulgarmente agradáveis.
Vieram cá por diversas vezes. Em Junho e em Agosto.
D e qualquer modo, quando estávamos a jogar badmington, senti exatamente a
mesma coisa. Mas nessa altura estava tão convencido de que era lumbago, que não
pensei mais nisso. Pensei que tinha uma distensão num músculo dorsal, provavelmente.
Tive de parar de jogar imediatamente.
Mas haverá crises de lumbago que dêem dores tão horríveis, que se fica com um sabor
a sangue na boca?
(Caderno amarelo I: 4)
S erá o povo sueco mais paciente que os outros povos? N ão sei grande coisa a este
respeito. N unca viajei muito na minha vida. D uas viagens de bicicleta pela D inamarca no
início dos anos 50, um torneio de tênis de mesa em Kiel, na A lemanha O cidental, e uma
série de passeios à N oruega atravessando a fronteira em Femundsànden, por O rsa e I dra,
não são muito informativos. Tenho uma certa tendência para ver o mundo exterior à
S uécia como qualquer coisa de literário, qualquer coisa que aparece nos livros e nos
jornais.
A s distâncias muito grandes assustam-me. Paris é uma coisa que existe no D iário dos
irmãos Goncourt, a Londres mais moderna, para mim, é a dos primeiros romances de
Aldous Huxley.
S e um dia me encontrasse nesses sítios, provavelmente não reconheceria nada. D ar-
me-iam a impressão de serem totalmente estranhos. Li agora mesmo no jornal que há
arranha-céus em Paris.
N o meu sistema, cada sítio pertence a uma época diferente. Em Paris, por exemplo, a
poeira da Comuna ainda mal teve tempo de assentar. E aqui, que época se vive? O
presente.
S e o povo sueco será mais paciente que os outros povos, dizia eu. A sala de espera de
Radiologia no Hospital Regional de Vàsterás, anteontem. Um cheiro fortíssimo a lã, lã
molhada.
Pessoas sentadas em cadeiras, em bancos corridos, por todo o lado. Um rapaz com o
lado direito da cara todo negro. Tinha caído da motorizada na noite anterior e estava com
dores. Um velhote de Kolbâck que tinha vindo na camioneta da manhã. Estava cheio de
esperança de ainda poder regressar na camioneta da noite. "I sto aqui é muito lento." J á lá
tinha ido uma vez na mesma semana.
A cada um a sua senha com um número. O s mistérios da ordem de chegada. Às vezes
a enfermeira manda entrar dois ou três pacientes ao mesmo tempo, outras vezes só um.
N outras alturas o movimento cessa por completo durante uma hora. E depois, toda a
gente ergue o olhar cada vez que a enfermeira aparece!
Como um daqueles relógios de carrilhão em que as figuras se movem de hora a hora
— abre-se uma porta, alguém sai, alguém entra. Um tipo colossalmente feio, com uma
quantidade de pensos na testa, por baixo dos olhos e no queixo, é trazido por dois
polícias. É passado à frente.
D as sessenta ou setenta pessoas na sala, a maior parte deve ter dores mais ou menos
fortes. Em alguns nota-se, pela maneira de se sentarem, pela forma como se levantam e
andam para trás e para diante na sala.
Mas é raro alguém falar nisso, nem sequer mencionam o facto de terem dores (e este
"ter dores" pode significar tudo, numa escala que vai do ligeiro incômodo à dor
lancinante). Falam antes das más ligações entre as carreiras de autocarros e nas
interurbanas, das suas repetidas visitas ao hospital. A lguns parecem viver só para ir ao
hospital. N ão se sentem nada mal ali. A s suas doenças dão-lhes uma identidade. I sto é
ainda mais verdadeiro para alguns dos mais velhos e mais humildes.
A doença dá origem a um interesse pelas suas pessoas que nunca lhes fora
dispensado quando tinham saúde.
Há qualquer coisa na paciência deles que me irrita imensamente, que me torna
agressivo. N ão deviam resignar-se... A quê? A terem de esperar tanto tempo para serem
radiografados, àquele tratamento estranhamente impessoal, quase industrial, sem que
alguém se preocupe por eles passarem ali um dia inteiro à espera, depois de já terem
esperado, de madrugada, em paragens de autocarro, ao frio e ao vento, e sem comerem,
com receio de perderem o lugar!
E contudo há sempre uma espécie de coesão cúmplice, há sempre quem prometa dar
um berro se a enfermeira chamar o nome daquele que, nesse preciso momento, foi à casa
de banho fumar um cigarro. O u quererei eu dizer, no fundo, que é contra a própria dor
que eles deviam protestar, é a ela que não deviam resignar-se?
Proletários da dor, uni-vos!
(Caderno amarelo I: 5)
(Caderno amarelo I: 6)
Fevereiro de 1975
Loja: -375:40
Açúcar— -42:90
Tabaco: -32:50
Pregos e acessórios: -16:00
Consulta médica: -7:00
Óleo e gasolina: -75:00 (aprox.)
(Caderno amarelo I: 8)
2. UM CASAMENTO
... a este respeito, aliás, posso contar uma história bastante bizarra sobre um
encontro. Vive aqui na região uma mulher nova, uma rapariga, bastante bonita e com
uma figura atraente. Eu nunca a tinha visto a menos de 50 metros de distância e sempre a
tinha achado muito bonita. Tinha uma tez muito fresca, olhos grandes, muito escuros, e
pescoço comprido e muito branco.
S empre alimentara a terna e sedutora ideia de me apaixonar por ela. Mas nunca a via
senão quando havia algum concerto de órgão na igreja de Vàster Vala— pouco convivi,
naqueles anos a seguir ao divórcio, fora do trabalho.
Por fim tive vontade de saber se seria verdade o que eu tinha imaginado acerca dela e
encontrei uma boa oportunidade. N uma pausa de um concerto do Q uarteto de Kóping,
fui ter com ela ao pórtico e cumprimentei-a.
N ão tinha nenhum plano, nem outra ideia que não fosse ver o que ela diria. Bem, falei
um bocadinho com ela, de uma forma neutra e delicada, mas justamente quando ia abrir
a boca para me apresentar e olhei para ela, apeteceu-me ficar calado.
Vi que ela tinha no rosto uma espécie de furunculozinhos, ou borbulhinhas, como se
tivesse alguma doença de pele esquisita, e isso fez-me imediatamente mudar de ideias.
D e qualquer modo falei-lhe, e ela respondeu e conversou comigo delicadamente, de uma
maneira bastante agradável. E, falando francamente, não é impossível que eu me tenha
apresentado justamente num daqueles irritantes e inconvenientes dias em que o sexo
está proibido. A verdade é que ela é considerada aqui na terra como muito bonita.
N o entanto senti uma espécie de alívio depois daquele encontro. Ele libertou-me
daquilo que parecia ser o início não muito agradável de um desassossego, e eu tenho o
mau hábito de me prender a todo e qualquer objecto que me desperte essa atenção
inquieta.
Mas a grande pergunta a fazer é, evidentemente:
Q uando amamos alguém, ou melhor, nos apaixonamos por alguém, por que é que nos
apaixonamos verdadeiramente?
É uma ideia da pessoa amada, ou é a pessoa propriamente?
Talvez só sejamos capazes de viver com as nossas ideias. Talvez sejam sempre as
nossas ideias que amamos.
O amor e a distância geográfica. Q uando uma pessoa que amamos parte num
comboio, por vezes sentimos claramente um certo alívio. N ão precisamos de conviver
com a realidade, podemos tranquilamente voltar a viver com a nossa ideia.
Q ual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa? Uma rapariga por quem
estive muito apaixonado no meu tempo de estudante e que se chamava Mónica foi para a
Califórnia. Correspondemo-nos durante muitos anos, mas depois a coisa morreu,
naturalmente.
Ela existiu (para mim) durante aquele período? O u era apenas, já há muito tempo,
uma ideia com a qual eu vivia?
Q ual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa? 150 quilômetros? 5
quilômetros? Um dos meus velhos sonhos é ter uma amante em S kultuna. É uma
distância tão perfeita, faz-se de carro em precisamente meia hora. Talvez um pouco
menos de Verão e um pouco mais quando há gelo na estrada.
Qual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa?
Resposta: menos de um milímetro. E sem nome.
Q uando finalmente o divórcio foi decidido e Margareth começou a pensar em arranjar
um apartamento em Vásterâs, aconteceu uma coisa curiosa. D emos uma volta à casa,
vendo tudo, mexendo nas coisas, os livros que eram dela, os que eram meus, onde tinha
ela comprado aquele, se havia ou não de levar o armário velho com portas de ripinhas.
Estávamos os dois de excelente humor, quase alegres. Brincamos e conversamos como
já não fazíamos há mais de dois anos, sentíamos os dois um certo alívio e estávamos
surpreendidos por cada um de nós se ter tornado tão real para o outro.
Já não precisávamos de nos relacionar como ideias.
(Caderno azul I: 1)
.. Fevereiro de 1968 ou 1969. Tinha sido eleito, nunca percebi bem porquê, membro
suplente da direção da A ssociação S ueca de Biologia. A assembleia geral realizava-se na
Casa do Cidadão, no S õder, em Estocolmo, e quando saí de lá, num fim de tarde de
Fevereiro, deviam ser umas seis horas, já era noite. Eu ficava no Hotel Malmen, do outro
lado da rua, mas como não me ocorria nada para fazer, decidi dar um passeio, embora
estivessem menos de dez graus negativos.
D esci a Folkungagatan e quase não havia ninguém na rua, apesar de ser domingo. Era
lua nova e o chão estava coberto de uma camada fina de neve que chegava mesmo à faixa
de rodagem.
Fui andando, primeiro até ao porto, depois comecei a subir a S tigbergsgatan em
direção a S ista S tyfverns Trappa— bairros quase esquecidos, que se mantêm exatamente
iguais desde o tempo de August S trindberg, uma cidade estranha e fria nos confins da
Escandinávia, com pequenas casas vermelhas de madeira à beira da falésia, com degraus
de madeira, casas a cheirar a alcatrão, nomes que fazem lembrar o Mar Báltico, estônios,
finlandeses, uma cidade dentro da cidade que é tal e qual o meu campo, tão abandonada
como ele, uma cidade onde tudo vinha de cima, decretos, impostos, recrutamento para
exércitos que morreriam de frio nos pântanos eslavos— até a revolução burguesa veio de
cima.
Estava cansado, depois de passar um dia inteiro fechado numa sala cheia de fumo da
Casa do Cidadão, em complicadas discussões do orçamento dos biólogos, e além disso
tinha estado todo aquele tempo a remoer noutra coisa de que não vou falar aqui.
Q uando saí não tinha uma única ideia na cabeça, só sabia que queria descer a
Folkungagatan. Caminhava mecanicamente, com o gorro de pele puxado abaixo das
orelhas. Quarteirão após quarteirão, sem realmente pensar em coisa alguma.
Q uando cheguei a S tadsgàrden, apercebi-me de repente de que na verdade tinha
estado a pensar numa coisa: a minha infância em Estocolmo.
É I nverno, na década de 1880, ou cerca disso, muito frio, muita neve. N ós moramos
numas casas baixas de madeira junto ao canal de Karlberg, que está gelado, e todas as
tardes, depois da escola, as crianças vão para lá andar de patins, com aqueles patins
antigos de ponta revirada, como as tenazes do carvão. Vejo tudo isto muito nitidamente.
A minha irmã mais nova não consegue que os patins se segurem nos botins grossos, e eu
ajudo-a a atar as correias. A ndamos para cá e para lá na luz baixa e oblíqua do fim do dia.
Presas no gelo estão umas barcaças exalando um cheiro a alcatrão, e nós subimos às
cobertas, apesar de ser proibido. Vemos umas garrafas de cerveja que os carregadores
devem ter deixado esquecidas, daquelas garrafas antigas, de um verde característico e
gargalo comprido.
Uma tarde, entre os arbustos da margem do canal, eu encontro o cadáver gelado de
uma mulher, só com um braço de fora. É uma rapariga que se afogou no canal no O utono
passado, e o corpo ficou preso no gelo. N ão é nada assustador, é quase perfeitamente
natural haver uma mulher jovem morta e presa no gelo, é simplesmente muito triste, e
eu tenho muita pena dela. Mas quando chego a casa e conto o que vi, grande rebuliço, as
pessoas saem a correr, vêm homens da cidade, com as serras compridas para serrar o
gelo, e as crianças não podem ir assistir...
Chegado a este ponto, levanto a cabeça e apercebo-me de repente: ES TA A GO RA , EU
NÃO PASSEI A MINHA INFÂNCIA EM ESTOCOLMO. E muito menos em 1880!
Uma pessoa sugestionável começaria já a falar de metempsicose e da memória de
existências anteriores. Mas é claro que não são necessárias explicações tão bizarras.
Q uando o subconsciente é abandonado a si próprio por um momento, ele começa,
muito simplesmente, a tecer uma trama. Cria uma identidade para si próprio, adapta-se
ao meio e produz diligentemente novas formas de preencher o súbito vácuo que se cria
quando esquecemos a realidade imediata.
Parece não haver nada de que o subconsciente tenha tanto medo como a sensação de
não ser ninguém.
E, servidor prestável, começou a fabricar-me uma biografia!
A s pessoas que virão a significar alguma coisa para nós, encontramo-las não uma vez,
mas pelo menos vinte vezes, antes de levarmos a sério o aviso.
Pelo menos comigo foi sempre assim.
E vamo-nos desviando enquanto podemos.
Margareth, devo tê-la visto pela primeira vez na escola secundária, ainda antes da
reforma do ensino, em Vásterâs. Eu andava no curso de cinco anos e ela no de quatro
anos. N o curso de quatro anos a maior parte dos alunos vinha do campo. Era tão duro
para eles e tão complicado andar para trás e para diante de camioneta durante o ano
lectivo, que os pais tentavam, naturalmente, encurtar-lhes o período escolar tanto
quanto possível.
Todos aqueles que vinham de S urahammar, Hallstahammar, Kolbàck, Ry erne e
S trõmsholm para a escola secundária de Vásterâs tornavam-se talvez mais precoces, mais
independentes, do que os outros que já viviam na cidade e formavam muitas vezes um
grupo à parte.
Lembro-me dela naquele tempo como uma rapariguinha magra, loira e bastante
calada, que devia ter sempre muito frio porque usava todo o I nverno um gorro de lã de
um modelo bastante ridículo que lhe cobria as orelhas. S ó era possível ver-lhe a cor do
cabelo quando a Primavera já ia adiantada. Parecia ser bastante tímida.
N aquela altura eu estava interessado numa outra rapariga da turma dela, uma que
jogava tênis e tinha cabelos escuros, compridos, olhos muito grandes, seios já bastante
desenvolvidos e maçãs do rosto salientes, como têm, curiosamente, muitas raparigas de
Vàstmanland. D o nome dela é que não consigo recordar-me por mais que faça. Ela e
Margareth eram amigas, ou pelo menos andavam muitas vezes juntas, formando um
daqueles pares desirmanados que vemos tantas vezes entre as raparigas, em que uma é
muito interessante e a outra não.
Creio que ela tentou meter conversa comigo algumas vezes, pelo menos foi o que me
contou durante aqueles dez anos em que fui casado com ela, mas disse-me que eu a
tratava como se ela não existisse.
Q uando penso nisso, tenho a horrível sensação de que sentia uma vaga aversão por
ela. Era qualquer coisa de desagradável que se desprendia dela, o que eu sentia quando a
via.
Essa impressão desagradável seria, no fundo, a atração? Terá sido um pressentimento
de que ela viria a ser extraordinariamente mais importante para mim no futuro do que
era naquela altura?
A única coisa que recordo perfeitamente daquele tempo é que sentia um ódio
selvagem, mas totalmente recalcado, contra quase todo o mundo exterior: os professores,
a escola e até mesmo os colegas, todo o mundo exterior, pois ele parecia perfeitamente
determinado a tratar-me da forma mais hostil possível, a rebaixar-me, sempre a pôr-me
no meu lugar, e sempre em nome da lei do mais forte.
E aquela rapariguinha loira, com um ar vagamente desamparado, parecia tão
humilhada como eu e possivelmente tão amarga como eu. Felizmente que eu não a
achava particularmente interessante! O que eu precisava era de pessoas descontraídas.
Q uando fui para Uppsala e me matriculei na escola do Magistério, a maior parte dos
meus amigos já estava lá há algum tempo. Eu tinha passado bastante tempo na tropa, no
curso de sargentos da Marinha, e enquanto eu estava na escola do Magistério, todos
aqueles que eu conhecia de Vásteras estavam na Universidade.
Margareth entrou para a escola do Magistério no ano seguinte.
Foi num baile que eu voltei a encontrá-la. Creio que não tinha intenção de a convidar
para dançar, mas por qualquer razão acabei por fazê-lo.
Foi nessa altura que descobri a extraordinária sensualidade que ela irradiava. D ancei
muito apertado com ela.
Mas apenas uma vez.
D epois fui para casa de outra rapariga, de quem guardo apenas a lembrança de que
era muito mais alta do que eu, e acho que até dormi com ela.
Ir para a cama com Margareth teria sido, de alguma maneira, banal.
D urante aquele tempo em Uppsala não tive uma vida muito regrada. O curso era fácil
e a única coisa em que eu tinha realmente dificuldade era aprender a tocar órgão: os
malditos pedais nunca queriam obedecer. Q uando, uns dez anos mais tarde, aprendi a
conduzir, o instrutor queixava-se de que eu tratava os pedais do carro como se fossem
pedais de órgão. Mas esquecendo os pedais, o curso do Magistério em Uppsala era uma
autêntica brincadeira, uma brincadeira de crianças, ou lá como se diz, e eu passava a
maior parte do tempo a correr atrás das raparigas.
N ão sei porquê, seria talvez uma ansiedade minha, mas aquilo que me interessava era
a sedução.
A palavra é um pouco solene, eu sei...mas o que estava em causa era justamente a
sedução.
Eu queria demonstrar que era real. E isso só se pode demonstrar de uma maneira:
exercendo um efeito sobre outra pessoa.
Quanto mais forte é esse efeito, mais sentimos a nossa realidade demonstrada.
Eu tinha uma necessidade extraordinária de ser visto, naquele tempo. S e conseguimos
seduzir alguém, então também conseguimos ser vistos.
N aquela época havia em Uppsala uns bailes formidáveis nas casas de estudantes,
principalmente os das quartas-feiras na de Vàstmanland-D alarna. S alão incrivelmente
apinhado, cheiro a perfume barato, raparigas de um lado, rapazes do outro. Um calor tal,
que só por milagre não se derretia o verniz dos retratos de velhos intendentes cobertos
de condecorações.
Era só servirmo-nos. De uma forma estranha, impessoal.
Mas a mim, interessavam-me principalmente as raparigas um pouco tímidas, um
pouco reservadas. Aquelas que de alguma maneira podiam ser mudadas.
A quelas que tremiam ligeiramente quando dançávamos com elas. A s que tinham o
corpo um pouco tenso.
Creio que via tudo aquilo de uma forma muito mecânica: ou seja, eu desencadeava
uma espécie de processo cuja missão era demonstrar alguma coisa sobre mim próprio.
("Mim próprio"— "eu próprio": atualmente esta expressão parece-me de certo modo
absurda. Não tem, simplesmente, qualquer conteúdo.
Mas não consigo explicar exatamente o que quero dizer.)
N aquela altura eu tinha uma terrível falta de dinheiro. A moeda valia mais, é certo,
mas as bolsas de estudo que recebíamos tinham que durar muito mais tempo, e se não
avançávamos no curso ficávamos em muito má situação.
N o início éramos três, o Bertil, o Lennart e eu. Tínhamos alugado dois quartos
grandes em S vartbàcken. Mas assim que passou o primeiro período, o Bertil e o Lennart
começaram a afastar-se.
Estavam na Universidade e foram arranjando outros amigos. Mas a razão não foi
certamente só essa. Trabalhadores como eram os dois, o Bertil morreu alguns anos
depois, mas isso é uma outra história— trabalhadores e ambiciosos como eram, tinham a
sensação de que eu os arrastava para os copos demasiadas vezes, e na verdade nenhum
de nós tinha dinheiro para isso.
Lembro-me de que já para o fim de N ovembro íamos ao restaurante sem sobretudo,
para pouparmos as coroas do bengaleiro.
A s pessoas que me encontravam uns quinze anos depois, diziam sempre que eu tinha
mudado muito, que me tinha acalmado extraordinariamente.
N unca percebi exatamente o que eles queriam dizer. N unca tive a sensação de ter
mudado.
Mas aparentemente eu era considerado bastante desregrado, um pouco libertino,
naquela altura. Creio até que muitas pessoas inventavam histórias curiosas à minha
conta.
A minha recordação mais clara é o dinheiro e o eterno problema que ele levantava, a
tremenda agonia dos empréstimos, os empréstimos que era preciso pagar e os
empréstimos em que talvez pudesse marimbar-me, aquela desagradável necessidade de
evitar as pessoas quando já lhes tinha pedido dinheiro emprestado várias vezes sem
pagar.
O último ano foi um horror. Foi um ano agitado.
A inda hoje não compreendo como consegui passar no exame final com tão bons
resultados.
Por essa altura andava há algum tempo com uma rapariga chamada Kerstin. D eve ter
sido na Primavera de 1958.
A inda hoje penso que ela gostava realmente muito de mim, que quase me amava, que
pelo menos havia em mim alguma coisa que a deve ter fascinado. Mas ao mesmo tempo
acho que nunca conheci nenhuma pessoa que tão claramente tivesse medo de mim.
Medo de quê? Sabe Deus!
Pensei muito no assunto, depois imaginei as mais subtis explicações, reli as cartas
dela, com aquelas refinadas análises ingênuas da minha psicologia (egoísta, egocêntrico,
incapaz de um contacto profundo com outro ser humano, etc.), mas acabei por chegar a
conclusões completamente diferentes: as razões deviam ser sociais.
Ela pertencia a uma família de médicos de Lidingõ, uma família bastante boa, não
especialmente próspera, mas de qualquer modo uma família "bem". Ela estava a fazer
uma licenciatura em História da Literatura e em Línguas Nórdicas.
Era perfeitamente óbvio que eu não constituía um grande futuro para ela.
Achava-me interessante, mas socialmente eu era uma figura bastante duvidosa.
Penso que os outros deviam ter uma noção mais clara do meu desajustamento do que
eu próprio.
Um domingo de manhã, em casa dela, começamos a discutir por qualquer coisa, já
não me lembro o quê. Era uma dessas manhãs de domingo verdadeiramente radiosas.
O apartamento situava-se na O stra Ágatan, em frente do castelo, que ficava sempre
extraordinariamente bonito sob a luz matinal. Fui à porta buscar o D agens N yheter, que
naquele tempo era metido pela abertura do correio aos domingos de manhã— e aliás
estávamos justamente naquela época, na Primavera, em que os jornais começam a trazer
anúncios de fatos de banho. Lembro-me de ver os anúncios enquanto voltava para junto
dela, e depois continuamos a discutir e ela disse alguma coisa que não consigo recordar
de modo nenhum, mas que me levou a deixá-la.
Foi uma história terrível. Creio que uma parte da minha vida termina aí.
(A parte restante está a acabar este Inverno.)
Fiquei muito desesperado.
Três semanas depois, uns dias antes do fim de A bril, encontrei Margareth. Há muito
tempo que não a via...
D e repente, começa o degelo. Um longo passeio com o cão, nos últimos dias, dores
mais ou menos sob controle, quase sempre pelas quatro, cinco horas da manhã, mas não
tão más que não possa voltar a adormecer.
D evo ter andado um pouco ausente durante uns dias, porque entretanto toda a
paisagem mudou. Há um nevoeiro úmido, um odor forte a terra e a ramos de bétula
apodrecendo ao longo do caminho. Um bando de gralhas, gralhas muito grandes, que
costumam estar junto ao viaduto do caminho de ferro, na estrada secundária 251,
subiram agora até aqui à orla do bosque.
Estão poisadas nas árvores, junto à vedação e ouço-lhes as vozes ásperas durante toda
a manhã. O dia também já começou a nascer mais cedo. Q ue Verão iremos ter este ano?
Úmido e frio como o do ano passado, ou um daqueles verões bem quentes?
Pergunto-me muitas vezes se ainda viverei. D e qualquer forma, é preciso calafetar o
barco. N o O utono, metia água pela ré como um passador. Ficou muito tempo mal
amarrado, a bater no desembarcadouro, até chegarem os temporais. N essa altura ainda
me sentia bastante bem, mas pelos vistos estive muito preguiçoso no Outono passado.
... Voltei a pensar na Margareth. Com este nevoeiro— esta bruma primaveril, poderia
dizer-se— voltei a sentir a falta dela. O s seus passos silenciosos sobre o tapete, logo de
manhã— ela levantava-se sempre primeiro para fazer o café— o seu hábito de arrumar o
jornal muito direitinho na pilha de jornais, no armário por baixo do lava-loiças, antes de
eu ter oportunidade de o ler, a insuportável mania de se pôr a trabalhar às dez ou às dez
e meia da noite. São estas coisas que uma pessoa recorda.
E agora, principalmente quando as dores me atacam, sinto muito a falta dela.
A o mesmo tempo, é perfeitamente evidente que aquilo era uma coisa impossível. É
um autêntico milagre que tenha durado tanto como durou.
Tudo, toda a nossa vida a dois se baseava num único princípio muito simples, num
acordo:
Era proibido vermo-nos um ao outro. Quero eu dizer, vermo-nos verdadeiramente.
É um jogo muito complicado cumprir um acordo destes durante doze ou treze anos,
nunca largar a máscara, nem sequer quando nos zangamos ou quando nos sentimos
muito infelizes. É como estar fechado muito tempo num quarto muito pequeno com
outra pessoa, com a condição de termos de estar sempre com as costas viradas um para o
outro.
E é claro, uma pessoa interroga-se sobre o que está por trás de um acordo como este.
A cho que é a dor. A lguma forma de sofrimento original que transportamos em nós
desde a infância e que temos de impedir a todo o custo que seja visto. Muito mais
importante que a existência da dor é mantê-la oculta.
Mas por que é que é tão importante escondê-la? Umas vezes trabalhávamos na mesma
escola, outras vezes em escolas diferentes. Q uando nos víamos durante todo o dia era
melhor. S e um de nós tinha estado afastado o dia inteiro e depois voltávamos a
encontrar-nos à noite, havia sempre uma espécie de momento crítico. A seguir ao jantar
havia sempre algum momento, terminada a narrativa dos acontecimentos do dia, depois
do café e antes do noticiário na televisão, em que ocorria uma espécie de maré baixa, a
água recuava e as rochas ficavam visíveis.
Era franzina, movia-se sempre com leveza, quase como se dançasse, e falava numa voz
baixa, agradável. S entia uma curiosidade delicada e muito estimulante pelas pessoas e
pelo mundo, lia muitos livros e era divertido conversar com ela. I nteressava-se com
seriedade por quase tudo o que lhe surgia no caminho, excepto, talvez, por mim.
A quela última Primavera em Uppsala era já princípio de Verão. N a cidade restava
agora pouca gente, e eu só tinha ficado porque arranjara um lugar de professor de sueco
para estudantes estrangeiros e tinha-me mudado para o centro da cidade,
temporariamente, para um quarto em Báverns Grànd, de um colega meu que tinha ido de
férias.
Ela apareceu com uma amiga e sentou-se na esplanada daquele cafezinho mesmo
junto à Catedral— como era o nome? D omtrappkàllaren, se não me engano. A inda me
lembro dos títulos dos jornais na tabacaria em frente: falavam de uma nova e complicada
fase no conflito das pensões de reforma, que na altura, o fim dos anos cinquenta, atingira
a sua máxima virulência. S e me recordo tão bem desses títulos é porque estive sempre a
olhar para eles enquanto conversávamos.
A amiga dela era uma rapariga magrinha, angulosa, de rosto muito estreito e óculos.
Uma cópia de Margareth, quase se podia dizer. Falava pouco, mas lembro-me que
estive sempre a compará-las interiormente, digamos, como se essa comparação fosse, por
qualquer razão, importante, sem saber bem onde queria chegar com ela.
Tudo pareceu previamente decidido, como se estivesse combinado há anos. A li
estivemos sentados, a conversar— precisamente sobre este sítio, aliás — e nos íamos
reconhecendo um ao outro.
N ão havia um lugar, um lago, uma cabana em ruínas, uma velha linha férrea
abandonada nesta região, que ela não conhecesse. Passava as férias de Verão em N orra
Vàstmanland desde garota.
Sentado à luz de um fim de dia de Verão, reconheci a paisagem através dela.
Creio que foi assim que tudo começou.
Ela foi sempre aquilo a que se chamava uma rapariga muito gira. N ão havia nada a
apontar à aparência dela. (E os olhos, com o correr dos anos, iam-se tornando cada vez
mais interessantes.)
Por isso nunca consegui entender por que me sentia sempre um tanto embaraçado e
inseguro quando ia com ela na rua e encontrava alguma pessoa conhecida. S eria a
revelação do facto de andarmos juntos que me embaraçava?
Foi uma vida bastante tranquila. S im, tranquila— idílica, nem mais nem menos, anos
a fio. Mudamo-nos várias vezes, sempre na província de Vástmanland, trabalhamos como
professores em diversas escolas, redecoramos vários apartamentos de serviço, que
ficaram bastante agradáveis, com os tapetes feitos por ela e os armários e outras coisas
que eu próprio fabricava nas salas de Trabalhos Manuais.
Talvez tenhamos mudado de casa muitas vezes. E sempre preferimos o campo— era
uma espécie de estilo de vida. Vivíamos os dois numa certa forma de protesto (bastante
vago) contra a sociedade. O protesto da hortazinha, por assim dizer. Protesto contra a
sociedade industrial, contra...
J á não me lembro muito bem. É estranho, mas atualmente, cada dia que passa
aumenta a distância daquele tempo: as coisas que ocupam o primeiro plano são outras,
completamente diferentes. O canto de um melro junto à minha janela quando acordo,
um pouco mais além as gralhas pousadas nas árvores, uma gota de água num ramo, a
meio do dia, quando começa o degelo. Tudo isto surge agora sob uma luz diferente e
tudo o que está para trás parece insignificante.
Ela estava sempre a fazer tapetes. Q uando mudávamos de casa, o tear era sempre o
mais difícil de desmontar e de montar novamente. N o último apartamento que tivemos,
ficava tão perto do tecto que praticamente lhe tocava. Era ela que tingia as fibras,
fabricando os corantes com plantas, como antigamente.
Em Uppsala eu tinha tido uma vida bastante agitada, de raparigas, copos e dívidas.
Este estilo de vida neo orgânico no campo era uma forma de romper com isso.
É certo que também tinha o seu quê de romântico, talvez até anarquista. N em eu nem
ela gostávamos das autoridades, do centralismo, da transferência massiva das pessoas do
seu meio natural para os subúrbios impessoais e arregimentados das grandes cidades.
A bominávamos as autoridades escolares, que nem sequer investiam o dinheiro de
que dispunham em tornar os pátios das escolas mais agradáveis e alegres e preferiam
gastá-lo em esculturas pretensiosas. Passamos muitos pequenos almoços a censurar a
fusão de municípios, o encerramento de escolas de província e o abate de árvores, que
demonstravam muito claramente que toda aquela região era tratada como um
reservatório de matérias-primas, uma espécie de despensa onde era só ir buscar as coisas
e mais nada.
Q uero dizer: tudo isto eram realidades, eram coisas que tinham verdadeiramente
significado para nós, num plano muito prático e palpável. Talvez houvesse também uma
réstia de snobismo, um certo sentimento de superioridade, de entender melhor do que
os outros o que tudo aquilo na realidade significava.
Mas era também outra coisa: era como que a nossa coesão interna. S aber mais do que
os outros é um bom elo de ligação.
E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, de uma forma não muito sensual,
mas agradável e adequada. S entíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado,
que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários,
porque se tinham um ao outro.
Mantermo-nos juntos era uma maneira de dizer:
Recomeçamos. Não nos rendemos.
Ela era a filha mais nova de uma família de Falun em que o pai, médico, chefe de
serviço, era incrivelmente tirânico. O s irmãos eram todos oficiais do exército, campeões
nacionais do pentatlo militar, advogados comerciais e sei lá mais o quê. Eu via-os poucas
vezes, mas tenho a impressão de que eles me desprezavam abertamente. Um deles
chegou mesmo a perguntar-me se eu conseguia sustentar-me como professor oficial—
naquela altura era assim que se dizia. Eles tinham tanta dificuldade em entender-me
como eu em entendê-los a eles.
O pai— penso, aliás, que ainda é vivo— era uma autêntica besta, temido pela família,
pelas enfermeiras, pelos médicos internos e pelos auxiliares, conhecido em todo o país
pelas suas afirmações sentenciosas sobre questões médicas, quase sempre no estilo: as
raparigas devem usar meias de lã no I nverno; os abortos prejudicam a capacidade
ofensiva do Reino; o país está a afundar-se em doenças venéreas e alcoolismo juvenil.
A filha mais nova tinha como que passado despercebida, no meio daquilo tudo.
Tenho a sensação de que ela deve ter passado quase toda a infância a ajudar na cozinha.
Com um pavor de morte do pai, reduzida ao silêncio pelos irmãos, pálida, franzina e
coberta de sardas, lá encontrou o caminho para os livros, para um mundo fora daquela
casa de doze assoalhadas nos arredores de Falun.
Penso que esse caminho passou pela poesia moderna, que ela começou a ler por
curiosidade, porque fora ridicularizada certo dia à mesa do jantar, e precisamente na
citação de Ekelõf e Lindegren, os alvos de troça, ela descobriu que havia ali qualquer
coisa que de algum modo lhe dizia respeito: "Procuro um ouro que torne todo o ouro sem
valor". Creio que se tornou mulher muito tarde. Q uando se preparavam para a meter
num curso qualquer de economia doméstica, ela enfureceu-se verdadeiramente pela
primeira vez na vida, disse tudo o que pensava, arranjou um quarto em Uppsala e
matriculou-se na Universidade.
Era uma família burguesa indescritivelmente sueca. A o fim de dez anos ainda lhe
detectava vestígios disso na maneira de falar.
A quela tremenda aversão, aquele desprezo, por tudo o que possa constituir um
trabalho intelectual individual, aquele horror à filosofia.
A "cultura" consistia, para eles, em saber pronunciar corretamente algumas palavras
francesas. O interesse por Marx, ou Kirkegaard ou Freud, pelo contrário, era "cabotino", e
"ao estilo de professor oficial".
N ela, isto subsistia sob a forma de uma cautelosa desconfiança em relação a tudo o
que revelasse o mais leve indício de especulação.
Recordo que uma vez fiquei muito zangado com ela, a ponto de não me apetecer falar-
lhe durante vários dias. Foi durante uma viagem de comboio a Copenhaga. (Fazíamos
muitas vezes viagens destas nas férias escolares.)
Começou quando eu lancei uma ideia que me ocorreu a propósito de qualquer coisa
que estava a ler.
— E se acontecer— disse eu— que a palavra "eu" seja uma palavra sem qualquer
sentido? "Eu" utiliza-se na linguagem do dia a dia exatamente da mesma maneira que se
utiliza "aqui" ou "agora". Todas as pessoas têm o direito de chamar-se "eu", e ao mesmo
tempo apenas uma pessoa de cada vez tem esse direito: a pessoa que está a falar.
N inguém imagina que "aqui" ou "ali" significa alguma coisa em especial, que existe
alguma coisa por trás dessa palavra.
Então por que havemos de imaginar que temos um eu?
Ele pensa em nós. S ente. Fala. Mais nada. O u: ele pensa aqui, disse eu, pousando o
dedo na testa.
— Se continuas com essas especulações ainda dás em doido— disse ela.
Todas as pessoas devem ter experimentado a sensação desagradável que se tem nas
estações de caminho de ferro. Vamos despedir-nos de alguém. A pessoa já entrou no
comboio, mas ele demora a partir. A li ficam as duas pessoas, uma na plataforma e a
outra à janela, esforçando-se por conversar, mas de repente não têm nada para dizer.
I sto, evidentemente, resulta de não podermos sentir o que queremos. A situação
impõe-nos um determinado sentimento. E quem não experimentou aquele tremendo
alívio quando o comboio finalmente parte?
O u nos funerais. Q uando alguém morre ou adoece, quando surgem as desilusões,
espera-se sempre que sintamos determinadas coisas.
Em todas as situações, excepto as mais quotidianas, as mais neutras, há uma pressão
que se exerce sobre nós, que nos dita a forma como devemos conduzir-nos, aquilo que
devemos sentir. E se examinarmos bem o fenômeno, verificamos, não raras vezes, que
esses papéis nos são atribuídos por romances, filmes ou peças de teatro que vimos há
muito tempo.
Q uando somos realmente confrontados com situações invulgares (por exemplo,
rivalidades que prevíamos e não se verificam, e em vez disso se transformam num amor
que nos deixa sós), a primeira coisa a que nos agarramos são esses padrões sentimentais
livrescos.
N ão nos ajudam muito. D eixam-nos mais sós do que antes— e caímos,
desamparados, na realidade.
Desde que comecei a ter dores a sério, acontece uma coisa muito curiosa:
S ão outras idades, outras recordações, que começam a tornar-se importantes para
mim.
Casamento, profissão, meu D eus! Tudo isso desaparece como se fosse uma bagatela,
um breve episódio— todas essas coisas que ainda há pouco tempo enchiam o meu
mundo e às vezes me mantinham acordado noites inteiras, entregue a especulações.
Tudo isso é agora um episódio trivial numa narrativa bem mais importante, em que a
infância é, por enquanto, o único capítulo verdadeiramente forte.
N ão compreendo bem a razão disto. A infância é um tempo solitário, concentrado em
si mesmo. Talvez a dor me torne novamente solitário, concentrado em mim mesmo,
como na infância.
Esta atenção obsessiva dispensada a um segredo vago e perigoso no próprio corpo,
aquela sensação de estar a dar-se uma modificação dramática sem poder definir em que
consiste, tudo isto me faz lembrar, de uma forma perversa, a pré-puberdade. Até um
vago sentimento de vergonha está novamente presente.
Ao queimar aquela maldita carta, de certo modo assumi sozinho toda a situação. Terei
de lutar sozinho, terei uma morte minha.
E contudo não acredito nela. É muito possível que em A bril as circunstâncias se
tenham alterado. S e é pedra no rim, mais cedo ou mais tarde acaba por sair. S e é uma
inflamação, pode muito bem debelar-se quando o tempo melhorar e aquecer um pouco.
S into simplesmente demasiada vitalidade para estar moribundo. Estar a morrer é
uma coisa que eu imagino como muito mais turva e mais debilitada.
Um homem moribundo não dá longos passeios com o cão entre as crises.
Ou talvez eu esteja a inventar uma nova maneira de morrer.
Para cúmulo da desgraça, o mundo exterior começou a dar sinais de vida, pela
primeira vez há vários meses.
O presidente da Comissão das Finanças, o carpinteiro S õderkvist, telefonou-me, aliás
num tom muito simpático e atencioso, para me recordar que posso ser multado se não
apresentar a declaração. O s meus primos Manngárdh querem passar cá na Páscoa, a
caminho de Sàlen, ficar uma noite e, como se costuma dizer, "saber de mim".
Pode ser complicado.
A o S õderkvist, disse que não me tenho sentido muito bem. Ele prometeu vir ajudar-
me a preencher a declaração uma noite destas.
Como ele disse ao telefone, não é muito difícil. D evemos fazer isso em menos de uma
hora.
"Para cúmulo da desgraça"— são expressões destas que imediatamente me fazem
voltar à minha infância, onde elas abundavam.
"Para cúmulo da desgraça" significa, evidentemente, que uma nova contrariedade foi
acrescentada à desgraça. A desgraça já é tanta, que corre o risco de transbordar.
PA RA CÚMULO D A D ES GRA ÇA — é daquelas coisas que a minha mãe esta
sempre a dizer.
A minha tia S vea diria de uma maneira completamente diferente. D iria: É D E FA ZER
CHORAR AS PEDRAS.
SÓ FALTAVA MAIS ESTA— o meu pai.
RAIOS PARTAM ISTO— o tio Stig.
DIABOS LEVEM ESTA TRAMPA TODA
MALDITA A HORA
SÓ FALTA BATER NA AVÓ
Vejo-os no Verão, no campo, à mesa do pequeno-almoço, possivelmente com parentes
Q UE CHEGA RA M E A BA N CA RA M. O tio Knu e, ligeiramente calvo, com as bochec
um pouco flácidas e caídas, sempre transpirado ao pequeno-almoço, como se lhe fosse
insuportável, sempre calado, à parte. O tio S tig, barba curta e quadrada, óculos de aros
dourados, só fala de ligas metálicas e dos êxitos da tecnologia russa na Guerra da Coreia.
Tanques que resistem aos morteiros americanos, apesar da pouca espessura da chapa. A
possibilidade de utilizar o calor que existe no interior da Terra quando as fontes de
energia fósseis começarem a escassear. A tia S vea, grande, rosetas vermelhas nas faces,
mãos ásperas como lixa quando nos faz festas na cara, histórias fantásticas da cozinha do
restaurante no tempo da crise, corpos magros e azulados de raposas, com as patas
cortadas, discretamente entregues na cozinha às sete horas da manhã, a fritura de carne
que entrava e saía da sala enquanto se ia cristalizando na sua superfície uma espessa
camada de gordura acinzentada, e o vendedor de lenha perdido de bêbado que deixou
cair um dos suspensórios dentro da retrete e que depois o colocou, muito direitinho, por
cima da elegante camisa de nylon comprada no mercado negro sem se aperceber dos
factos, e que teve de ser discretamente mandado para casa de táxi.
A tia Clara— não, essa já tinha desaparecido.
A avó Emma nunca lá estava, não pertence àquele retrato. N em sequer era avó, era só
uma avó adotiva que morreu quando eu tinha três anos. S ó a conheço de ouvir contar.
(Como é que eu me fui lembrar dela, D eus do céu! Estão a acontecer coisas na minha
memória, coisas estranhíssimas, que julgava impossíveis— começo a ver coisas que
nunca pensei que lá estivessem. Há uns dias que sou perseguido por uma recordação que
deve ser anterior ao meu terceiro aniversário: estou a passear com a avó Emma, de mão
dada, no D jàkneberget, o parque municipal de Vásterás, sob árvores verdes e altíssimas,
as sombras da folhagem brincam no chão fazendo remoinhos— exatamente, fazendo
remoinhos. E sei que a recordação deve ser muito antiga, porque os bancos do jardim são
incrivelmente altos.)
— Uma pessoa que eu cá sei sempre teve de se desenrascar sozinha— diz o tio
Knu e, e o resto é submergido no barulho feito por alguém a tentar partir um ovo cozido
particularmente duro contra o bordo da mesa.
UMA PESSOA QUE EU CÁ SEI
Uma das formas mais singulares e bizarras de dizer "eu". Muito banal, claro, mas bem
mais interessante que essa banalidade é o lado filosófico. UMA PES S O A Q UE EU CÁ S
é como um esgrimista que no último momento salta para o lado, levando a que o florete
do adversário perfure o ar onde ainda há pouco estava alguém.
N ão consigo imaginar uma língua mais insólita, mais fantasmagórica, do que aquela
que permite falar de si próprio como de uma outra pessoa.
UMA PESSOA QUE EU CÁ SEI TEVE SEMPRE DE SE DESENRASCAR SOZINHA.
S ignifica: vocês não fizeram muito para me ajudar, na verdade até têm uma parte de
responsabilidade nos meus problemas, nada prova que eles existiriam se não fossem
vocês. Por isso, também têm uma séria DÍVIDA DE GRATIDÃO para comigo.
— UM HO MEM TEM D E S A BER GO VERN A R-S E (troveja o tio S tig do outro lad
mesa).
Significa: se alguém tem culpa de seres alcoólico és tu.
PARA CÚMULO DA DESGRAÇA
É curioso, por mais que eu dê volta às recordações de todas as conversas que ouvi na
minha infância, não me lembro de uma única em que os participantes não estivessem a
jogar com os sentimentos de culpa uns dos outros. Esses sentimentos de culpa eram, no
seu convívio, mais ou menos o mesmo que a bola no jogo de tênis.
S em eles ficariam imóveis em relação uns aos outros, rígidos como estátuas. N ão
haveria motor, não haveria motivação.
O sentimento de culpa era a mola tensa, a réplica, o pequeno toque que a soltava.
Esses sentimentos de culpa moviam-se num registo impressionante, como o de um
órgão de igreja, desde
D Á-ME O S A L, S E FA ZES FAVO R, o registo mais elevado, passando por S ER
MUITO AMÁVEL DA TUA PARTE SE DEIXASSES ALGUM AÇÚCAR,
algures entre o salicional e a flauta dupla, até às profundezas do basal de trinta e dois
pés, como
E EU QUE SACRIFIQUEI TUDO POR TI
ou
S E N ÃO FO S S E TU TERES N A S CI D O , TERÍA MO S N O S S EPA RA D O A O
UM ANO.
Estas últimas e profundíssimas vozes, claro, destinavam-se apenas a obter efeitos
muito especiais. Música de igreja para ocasiões solenes, poderia dizer-se.
Q ue estranhas fugas, tocatas, riccercare, passacaglias, se tocavam naquele órgão de
culpa, que abismos de angústia medíocre, que infame lavar de roupa suja.
Bastava-lhes percorrerem uma vez o teclado, e no final havia sempre alguém a
estrebuchar na teia.
FUI SEMPRE O FILHO PREFERIDO DO PAI.
A MÃE TEVE S EMPRE UM FRA Q UI N HO PELO S TI G, ERA UM RA PA ZI N
DIREITAS, DIZIA ELA.
N ão tinham atrás de si uma vida fácil, mas também não particularmente dramática.
N ão havia ali destinos trágicos (embora estivéssemos nos anos quarenta, em que
aconteceram bastantes tragédias reais no mundo - há que ter o sentido das proporções).
Mas diabos me levem se havia alguma coisa que lhes acontecesse de que eles não
atribuíssem as culpas uns aos outros. E isso dava-lhes uma magnífica oportunidade de se
picarem entre si e de se manipularem.
A baixa classe média na S uécia vive do sentimento de culpa e do desprezo por si
própria. Possui uma única forma de retórica, que é a lamentação.
LIBERTA, SENHOR, A HUMANIDADE SOFREDORA
MAS LIBERTA-ME PRIMEIRO A MIM, QUE SOU QUEM MAIS SOFRE.
Basta andar alguns quilômetros na automotora para descobrir isso. S e não puderem
queixar-se de mais nada, queixam-se das suas estúpidas doenças, das dores nos joelhos,
das pedras na vesícula, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das
diarreias e das caganitas empedernidas que até fazem barulho ao bater no fundo do
penico e imaginam, enquanto falam de tudo isto, que alguém lhes dá importância só por
se queixarem.
IDIOTAS DE MERDA.
Neste momento, por exemplo, sinto uma dor latejante que daqui a alguns minutos me
impedirá de continuar a escrever. Começa na coxa direita, bastante em baixo. Parece que
um metal líquido se infiltrou na musculatura, um fio de ouro, talvez. D epois sobe para a
virilha direita, e envia um feixe de fios de ouro, de uma incandescência branca, em
direção ao umbigo, à anca, à parte de trás da perna, um leque de ecos surdos desse ouro
brilhante sobe até ao diafragma. S e me deito, a dor duplica. S e continuo sentado,
espalha-se pelas costas. N ão tem sempre o mesmo tom, as frequências e amplitudes
desse ouro de brilho branco mudam constantemente, formam acordes muito bonitos,
até, e por fim desafinam e tornam-se cortantes.
eu não culpo ninguém disto, caramba! Ninguém!
Muito melhor de há três dias para cá. Um pouco dorido, mais nada.
É engraçado, ontem arranjei dois amigos. Há muito tempo que não me acontecia.
Um chama-se Uffe e o outro J onny. O Uffe tem doze anos e o J onny está quase a fazê-
los.
O Uffe veio de S kinnska eberg e o J onny é de Borga, na Finlândia. Q uando eu ia a
sair para ver se havia correio, eles estavam à minha porta, quase iguais os dois, com
anoraques azuis, sardentos e de cabelos compridos, como dois cavalinhos das Ardenas.
Creio que vivem naquelas casas para trabalhadores florestais em S õrby: as famílias
mudaram-se para lá no O utono. Frequentam a escola da zona de Trummelsberg, mas
claro que não fazem ideia de que eu fui professor lá.
Partiram em busca de aventura— no fim das aulas, espero eu, mas também não é
impossível que tenham simplesmente feito gazeta um dia, aproveitando o bom tempo, e
que depois tenham tido sede e tenham vindo pedir água.
Mas acredito que foi apenas a curiosidade que os levou a baterem à porta. Q ueriam
saber quem seria o castiço que morava naquela casa rodeada de arbustos e com longas
filas de colmeias verdes.
— Entrem— disse eu.
Estavam um bocado tímidos. Falei-lhes das abelhas, mas não pareceram
particularmente interessados.
D epois falamos sobre os pais deles: parece que os dois pais tinham arranjado
emprego numas serrações grandes que vão entrar em funcionamento.
S obre a escola tinham pouco para contar, só que o refeitório era melhor do que nas
escolas anteriores, porque os tabuleiros não eram metálicos e não havia aquele constante
barulho infernal.
Um deles queria aprender a jogar hóquei e o outro interessava-se por basketball.
Foram degelando pouco a pouco, ao calor do meu irradiador eléctrico, e começaram a
brincar cautelosamente com o cão. A s peúgas do J onny estavam encharcadas, devia ter
buracos numa das botas (eu não percebo é como ele pode andar de galochas nesta altura
do ano), e eu ofereci-me para lhe emprestar umas meias de lã velhas. A ceitou, um pouco
hesitante, e abriu a mala da escola para guardar as peúgas dele (eu tinha-as embrulhado
numa folha de jornal).
Foi desta forma que descobri que ele trazia uma quantidade enorme de revistas de
quadradinhos, já bastante gastas. Pedi para as ver. Era uma pilha surpreendentemente
grande para uma mala tão pequena, todas elas do tipo mais grosseiro das histórias de
terror: O HO MEM D O TÚMULO , KUN G FU, A RREPI O S D E GELO , O S Q U
FANTÁSTICOS e por aí fora.
Folheamos juntos. Foi muito interessante.— Por que é que vocês leem estas coisas?
Não souberam explicar.
Eu penso que talvez saiba. É o medo vago e insistente da pré-puberdade que precisa
de se fixar em qualquer coisa. Procura núcleos de cristalização. A idade do medo,
poderíamos chamar-lhe. E, assim, ali estivemos sentados, acompanhados pelo tiquetaque
do relógio, falando de fantasmas, dos cadáveres conservados nos pântanos da D inamarca
e da possibilidade de existência de horrendos monstros noutros planetas, até que o cão
começou a uivar e eu apercebi-me de que me tinha esquecido de jantar.
Eles estavam muito contentes, acho eu. D isseram que haviam de voltar em breve.
Prometi-lhes que até lá escreveria uma história de terror muito melhor do que as de
qualquer dessas revistas ordinárias.
Aqueles garotos animaram-me, não sei porquê. Fizeram-me lembrar eu próprio. Além
disso comecei a pensar se não teria sido precipitado ao despedir-me do ensino. Mas em
primeiro lugar, não era especialmente agradável levantar-me de madrugada e tentar pôr
o carro a trabalhar às seis da manhã todos os dias, e em segundo lugar, agora é um
bocadinho tarde para pensar nisso.
D epois do que aconteceu ontem compreendo que até agora não levei as dores a sério.
Limitei-me a brincar com elas. Q uase se poderia dizer que as deixei darem um novo
conteúdo à minha vida— a alternância entre os dias em que não tinha dores e os dias em
que tinha criava uma espécie de dramatismo.
Tinha sempre alguma coisa em que ter esperança de manhã quando acordava, e
quando ia deitar-me era emocionante pensar se passaria a noite sem dores. Às vezes
havia períodos inteiros, dois, três, até quatro dias seguidos em que eu não sentia
absolutamente nada naquele sítio estranho junto à virilha direita.
A dor dramatizava o facto de eu ter um corpo, não, de eu ser um corpo, e a este facto
de eu ser um corpo podia ir buscar uma espécie de consolação, quase de segurança, como
uma pessoa muito solitária vai buscar segurança à presença de um animal doméstico.
Este animal doméstico era muito problemático e principalmente pela madrugada,
mais parecia um animal selvagem, mas de algum modo era meu, tal como a dor era
minha e não de outra pessoa.
Mas agora pergunto às vezes a mim próprio em que é que me meti, por exemplo,
quando queimei aquela carta do laboratório do hospital sem a abrir.
A quilo que eu senti no fim da noite e nas primeiras horas da manhã, nunca pensei,
pura e simplesmente, que existisse. É uma coisa absolutamente desconhecida, como que
de uma incandescência branca, absolutamente esmagadora. Procuro respirar muito
lentamente, mas enquanto ela dura, até mesmo a respiração, que devia ajudar-me, pelo
menos de uma forma muito abstrata, a distinguir entre a dor como sensação e o pânico,
constitui um esforço quase insuperável.
J á não tem nada de animal doméstico. Uma força tremenda, inaudita, de uma
incandescência branca, impessoal, instala-se no meu sistema nervoso, ocupa-o até à
última molécula numa nuvem de gases incandescentes, como na... na coroa solar (toda a
noite pensei nas protuberâncias solares, na sua pulsação, na sua erupção, em cascata,
sobre a superfície do Sol).
Compreendo agora que brinquei com tudo isto. Levei-o tão pouco a sério como tudo o
resto na minha vida.
Mas isto vem do exterior! Meu D eus, de onde é que isto vem? E que inauditas e
misteriosas forças pode um pobre sistema nervoso atormentado produzir. Forças
exclusivamente viradas contra mim. Justamente contra mim!
A gora estou um pouco melhor. D esde há duas horas sinto-me de facto melhor. Mas
continuo coberto de suores frios e a caneta treme-me na mão enquanto escrevo.
Tenho esperança, não, tenho a certeza de que isto não se repetirá. D eve ter sido
alguma coisa que quebrou, que se destruiu tão definitivamente que não voltará a causar-
me dores.
O u então talvez volte daqui a algumas horas... O que eu experimento agora é um
estado de pura dissolução, de puro caos.
N unca tinha compreendido que a possibilidade de nos concebermos a nós próprios
como uma coisa una e ordenada, como um eu humano, depende da existência de uma
probabilidade de futuro. O próprio sentido do eu assenta no facto de ele poder existir no
dia seguinte também.
A quela dor de incandescência branca, evidentemente, no fundo não é mais do que a
exata medida das forças que mantêm este corpo inteiro. É a exata medida da força que
permitiu a minha existência. A morte e a vida são na verdade coisas INAUDITAS.
(Caderno amarelo III: 23)
"A sta Bolin não presumia ter a resposta à questão de saber se o sofrimento tem algum
sentido— era esse, simplesmente, o título da sua conferência.
Contudo ela tinha muitas boas palavras a oferecer, palavras de conforto, palavras de
bom senso.
Contou que uma vez, quando um amigo dela, sofrendo uma perda terrível, sentia o
total absurdo de tudo, ela, no seu ansioso desejo de o ajudar, disse-lhe algumas palavras
que acabaram por ser verdadeiramente úteis. E essas palavras foram: Todas as coisas
acabam por ter o sentido que nós lhes damos.'
A sta Bolin não pretendia que essas palavras contivessem uma qualquer espécie de
verdade, filosófica ou outra, mas achava que apesar de tudo elas exprimiam alguma coisa
que é essencial: que podemos ser ativos na nossa dor, podemos tentar trabalhá-la."
Três dias totalmente indolores. O Uffe e o J onny apareceram outra vez. Li-lhes a
minha história de terror. N ão ficaram tão impressionados como eu imaginara. A charam
que o começo era bom, mas que precisava de ter muito mais acção. D iscutimos várias
evoluções possíveis. O s heróis conseguirão chegar à tal torre e destruir o órgão cujo som
produz dores, ou terá de haver alguma forma de ajuda exterior?
D everão tentar cercar a torre? D everá um dos homens sacrificar-se para desviar as
atenções? É possível evitar aqueles sons que provocam dor metendo cera nos ouvidos?
O Uffe trazia a testa coberta por um enorme penso. Tinha levado com um stick de
hóquei num sobrolho.
Traziam uma lupa e estiveram muito tempo sentados nos degraus a tentar pegar fogo
a uns atacadores. Mas este sol de Primavera ainda é muito fraco.
Divertem-me e distraem-me imenso, aqueles dois. São por assim dizer, evidentes.
Está a acontecer uma coisa de que mal ouso falar, com medo de que deixe de ser
verdadeira.
Há doze dias que as dores desapareceram. S into-me muitas vezes cansado, um pouco
tonto, mas pode perfeitamente ser o vulgar cansaço primaveril. Fui às compras quatro
vezes, de carro.
Talvez não fosse nada de muito grave, afinal. Pedra no rim? Pequenos cálculos que
saíram? O facto é que os sintomas assemelhavam-se bastante às dores da pedra no rim.
A liás diz-se que são das dores mais fortes que existem. Mais fortes que as dores de
parto, li eu num número antigo do Scientific American.
Decidi esperar mais uma semana antes de começar a ter esperança.
Q uando eu era garoto, ou quando tinha aquela idade: o típico cheiro a suor do
ginásio, cheiro a fechado acumulando-se junto ao tecto, os espaldares, a sensação de
querer fazer coisas e as forças não chegarem, de ser homem e rapaz ao mesmo tempo. E
aquele semi torpor vegetativo durante as aulas, na pré-puberdade, sentado a brincar com
os dedos, a tentar entrançá-los uns nos outros de maneiras diferentes, como se fosse no
próprio cérebro que tentava fazer tranças: tentava entender os seus labirintos.
J ulguei durante muito tempo que aquele curioso estado semi adormecido tinha
relação com o carácter enfadonho da escola, mas não.
Começo a sentir isso novamente: uma espécie de vitalidade contida, que se prepara
para uma grande modificação.
No meu caso é o ter atrás de mim a crise de uma doença.
A estranha, a tranquila melancolia do rapazinho.
Terei, pois, de voltar a ser garoto.
8 de A bril. Todo o dia se ouviu uivar um cão que deve ser novo na área. O som vem do
sul, incrivelmente lamentoso e monótono. Estará preso?
O meu problema é que apesar de já não ter dores sou atormentado por outra coisa:
começo a ter esperança, e ao mesmo tempo não me atrevo a ter esperança, com medo de
que as dores voltem a qualquer momento.
Tenho andado a pensar nisto: o Hospital de Vàsterás não voltou a dar sinal de vida
depois daquela carta que eu queimei. S e fosse realmente câncer, é provável que eles me
tivessem contactado ao verem que eu não aparecia. É evidente que eles se preocupam
com os doentes. Portanto era uma coisa sem gravidade, alguma inflamação. Peritonite?
A não ser que não se tenham ralado mais comigo.
Comecei a evitar ir à caixa do correio.
9 de A bril. Ter esperança é quase tão difícil como o resto. Mas estamos mais
habituados a ter esperança e a ter medo do que a estar no meio daquilo que esperamos
ou tememos.
Aprendi: que não há nenhuma verdadeira saída para a vida.
Podemos quando muito adiar a decisão, com habilidade e astúcia. Mas não há saída. É
um sistema totalmente fechado, e no fim existe só a morte. E a morte, claro, não é uma
saída.
S ou um corpo. A penas um corpo. Tudo o que tem de ser feito, que pode ser feito, tem
de ser feito dentro deste corpo.
Estive a pensar no paraíso, imagine-se. Meti-me também a lixar a porta da rua, que
tem de ser pintada. A tinta estalou durante o I nverno e está toda a pelar. Fui dar com três
latas de tinta num armário da cozinha— devem lá estar desde sessenta e tal, desde que
casei.
O paraíso oferece problemas interessantes. O que é um estado de felicidade que se
prolonga indefinidamente?
Pensa-se logo no orgasmo, claro. Um imenso orgasmo de felicidade que nos
surpreende não terminando. Prolonga-se minuto após minuto, hora após hora. É tão
intenso, tão incandescente, que não se consegue pensar, mas sente-se que alguma coisa
de fantástico está a acontecer. Começa-se a desejar um breve momento para respirar,
nem que fosse um décimo de segundo para poder refletir, mas aquele prazer extremo
continua sempre, não se deixa convencer, persiste hora após hora...
O paraíso? Tudo isto eu acabei de experimentar.
O paraíso deve ser quando uma dor termina. Mas isso quer dizer que sempre que não
temos dores vivemos no paraíso! E não sabemos!
Os felizes e os infelizes vivem no mesmo mundo e não o veem!
Tenho a sensação de neste último mês ter feito a volta da minha vida por um labirinto
misterioso, fantástico, e ter regressado precisamente ao ponto de partida. S implesmente,
como estive fora das dimensões habituais, a direita e a esquerda inverteram-se. A minha
mão direita agora é uma mão esquerda e a minha mão esquerda uma mão direita.
De volta ao mesmo mundo, e encontro-o feliz.
As escamas de tinta na porta fazem parte de uma misteriosa obra de arte.
D evia ter utilizado o tempo melhor do que desperdiçando-o como professor primário
em Vàster Vala e depois como apicultor reformado antecipadamente, aqui.
Lista das formas de arte segundo o seu grau de dificuldade:
1. Erotismo
2. Música
3. Poesia
4. Drama
5. Pirotecnia
6. Filosofia
7. Surfing
8. Romance
9. Vitral
10. Tênis
11 Pintura a aquarela
12. Pintura a óleo
13. Retórica
14. Culinária
15. Arquitetura
16. Squash
17. Halterofilismo
18. Política
19. Trapézio
20. Paraquedismo
21. Alpinismo
22. Escultura
23. Bicicleta Artística
24. Malabarismo
25. Arte do Aforismo
26. Construção de fontes
27. Esgrima
28. Artilharia
Há uma que não consigo colocar na ordem: a arte de suportar a dor. I sso deve-se a que
ninguém até agora conseguiu transformar isso numa arte. D eve-se também a que é a
única forma de arte em que o grau de dificuldade é tão elevado, que não existe nenhum
praticante.
Correu tudo bem. O s meus primos chegaram na terça-feira. Traziam ainda mais
crianças do que eu receava e cobriram o chão da casa de sacos camas, cobertores e outros
recursos provisórios.
A charam-me um pouco pálido e as mulheres disseram que a casa não estava muito
limpa, que havia muitas chávenas de café com aquele sarro que já não desaparece. Mas
correu bem.
Ninguém suspeitou que houvesse alguma coisa de especial.
Ficaram menos um dia do que eu temera. S ofri talvez com o medo infantil de começar
a ter clores só porque eles estavam aqui.
A única coisa que aconteceu foi que fiquei um bocado cansado.
Reparo que já não gosto que perturbem os meus hábitos. Por exemplo, os dois garotos
passaram aqui na quarta-feira e espreitaram cá para dentro, mas assustaram-se com o
rebuliço. Vi-os já ao pé da vedação, quando se iam embora.
E eu que não tive tempo de escrever um novo capítulo da história de terror.
A ideia era que o tal órgão horrível que produzia dores através de ultra sons seria
destruído no próximo capítulo. Verificar-se-ia que a flauta tinha poderes muito especiais.
A sua música seria capaz de resolver o problema.
A gora vai passar algum tempo, mas espero que eles voltem. S ão, por assim dizer, o
meu público literário. O único.
S enti, durante todo o tempo, uma certa curiosidade pelas reações do Manngárdh, mas
não me atrevi a fazer tantas perguntas como queria.
Consideram-me um familiar perfeitamente normal, em casa de quem se pode ficar
uma noite, evitando gastar uma quantidade de dinheiro num hotel, a caminho de S ãlen,
ou acham que têm a obrigação de vir saber de mim?
A percebi-me de repente de que há muito tempo que não me preocupo com a forma
como o mundo me vê.
A única característica verdadeiramente associal que vejo em mim é ter-me colocado,
digamos, fora dos níveis de exigência habituais. Vivo sem rendimentos, o que é muito
fácil, uma vez que também não tenho despesas.
Eu e o J an estivemos a falar de velhos conhecidos. A conversa foi parar ao Troàng. Ele
conheceu-o porque tinha a seu cargo problemas semelhantes na A dministração D istrital
em Vàsterâs. O escândalo dos casos de leucemia em N orra Vármland, no O utono de
1973, e a Comissão para os Problemas Especiais do Ambiente.
N em eu nem o Manngárdh fazemos ideia do que será feito dele. A qui há um ano
correu o boato de que ele teria entrado para a Confraria da Cruz Vermelha em Barkarõ,
mas é claro que esse é o tipo de boato que se pode esperar em situações como a dele.
Tenho certa dificuldade em imaginá-lo rigorosamente ascético, integrado numa
confraria. A o contrário de mim, que sempre fui uma natureza ascética, ele tinha uma
grande inclinação para a sensualidade.
D urante os anos da escola isso notava-se, por exemplo, na sua relação com as
raparigas.
Mas o que eu e o Manngárdh discutimos era na realidade muito mais interessante.
D izíamos nós que este tipo de burocratas— os que são suficientemente sensíveis, claro—
mais cedo ou mais tarde acabam por estoirar, pela simples razão de absorverem
demasiadamente, de sugarem as contradições internas da sociedade.
N em sempre isto assume uma expressão tão drástica como no caso do Troàng que,
quando aquela história acabou, vomitou literalmente todo o conflito numa entrevista no
programa Aktuellintervju, com ele e o primeiro-ministro.
Às vezes transparece no olhar deles— uma espécie de inquietação. Torna-se
vagamente perceptível, como uma úlcera, um cansaço súbito, um divórcio. Não é possível
viver com conflitos interiores demasiado profundos, e eles sugam todo o conflito da
sociedade ao tentarem viver simultaneamente em ambos os planos de linguagem.
D epois de eles se irem embora ocorreu-me que era interessante ter sido justamente o
Manngârdh a falar no assunto. Ele está na Direção do Mercado de Trabalho.
Espero que tenham tido uma boa estadia em Sàlen.
O Troàng: a mim nunca poderia acontecer uma coisa semelhante, porque em toda a
minha vida de adulto tive a sensação nítida de estar de fora, de ser no fundo associal,
embora pagasse impostos. D esde o conflito dos fundos de reforma nunca mais votei em
eleições gerais.
Até a minha maneira de reagir à doença, evidentemente, é associal.
A M. tinha uma faceta curiosa: mentia em pequenas coisas. N unca eram grandes
intrujices. Eu teria podido enganá-la anos a fio em aspectos vitais, se tivesse querido. Ela
só mentia nas coisas sem importância.
D izia, por exemplo, que tinha ido a uma loja em Gamleby quando tinha ido a uma loja
em Fagersta. O u, se tivesse ficado sozinha uma noite, dizia que tinha passado o serão no
tear, quando se via perfeitamente que tinha estado a limpar os morangueiros. Ruminei
muito nisto antes de encontrar a explicação que, na verdade, era muito simples:
Com essas pequenas mentiras ela criava uma margem de liberdade.
Embora não tivesse nenhum significado prático, é evidente que me causava certa
insegurança não saber a que loja ela tinha ido. D ava-lhe uma espécie de vago controlo
sobre mim. Criava uma área em que ela podia decidir arbitrariamente.
I sto mostra, não que ela fosse mal formada, mas sim que eu, sem o saber, devo tê-la
mantido a uma terrível distância.
Por que será que eu não quero envolver-me com as pessoas? Q ue não quero que elas
tenham qualquer espécie de controlo sobre mim? Mas elas têm-no, de qualquer forma!
A s Finanças, o recenseamento, isso é óbvio— mas, mais ainda que isso, o sofrimento
encerrado no meu corpo, porque os outros começam aí.
Por exemplo, a inquietação sexual (que começa a regressar, agora que as dores no
ventre acalmaram). Esta fome surda, obscura, esta sensação de me faltar qualquer coisa,
que me persegue, no sono, na vigília, em cada momento da minha vida. Q ue é isto? A
possibilidade do amor no nosso corpo. A presença, a presença possível de uma outra
pessoa.
A perpétua recordação humilhante de que a solidão é uma impossibilidade, de que
um ser solitário é coisa que não existe.
De que a palavra "eu" é a mais vazia de todas. É o ponto oco da língua.
(Tal como um ponto central é necessariamente oco.)
D ecidi não telefonar à M. Levei, portanto, dois meses a tomar esta decisão! Estou
realmente a ficar um bocadinho lento.
Ultimamente tenho tido muitas vezes um estranho sonho. Uma colmeia. Levanto a
tampa e começo a limpar os quadros para retirar o mel. Q uando vou a sacudir uma
abelha do quadro, reparo que ela tem um aspecto estranho, com uns reflexos azulados.
Primeiro fico sem perceber o que se passa, depois olho melhor e descubro que não há
uma única abelha que seja uma abelha.
Trata-se de uma espécie totalmente diferente, uns seres muito inteligentes,
incrivelmente avançados do ponto de vista técnico, vindos do espaço, de uma galáxia
muito distante. O cuparam a colmeia, muito simplesmente, e vá-se lá saber o que
aconteceu às verdadeiras abelhas. Mas estes seres também parecem estar habituados a
viver em células de cera.
Falam comigo com a maior das facilidades, embora eu não perceba bem como.
Pertencem a uma civilização de insetos inteligentes.
O seu planeta foi totalmente destruído pela explosão de uma supernova. N ão têm
naves espaciais— voam com o seu próprio corpo, à velocidade da luz, quando querem.
Mas não podem fazê-lo na atmosfera terrestre, porque isso provocaria um aquecimento
excessivo.
As suas couraças reluzentes brilham como armaduras de cavaleiros.
Que dizem eles?
RECOMEÇAMOS. NÃO NOS RENDEMOS.
D a mesma forma que uma aranha pode dormir num canto da teia que construiu,
assim Deus dormiu durante vinte milhões de anos num canto do universo.
Era uma área quase sem galáxias. N ada a perturbava. Ela flutuava como uma medusa
gigantesca, de trinta parsecs de diâmetro, uma visão maravilhosa, tons de rosa, verde e
azul alternando continuamente sob a superfície transparente da cúpula.
Emprestava uma espécie de frescura ao espaço sem fim em seu redor, anos-luz em
todas as direções. Mesmo sem quaisquer indícios concretos, um viajante sentiria a
presença dela, talvez da mesma forma que sentimos estarmos a aproximar-nos da costa
quando vimos do interior um belo dia de sol, ou como quando caminhamos
despreocupadamente sob uma refrescante chuva primaveril, deixando que a água nos
lave o rosto. Ela dava ao espaço vazio uma estranha frescura de jovens folhas verdes e,
sim, de amor.
Mas durante estes vinte milhões de anos não passou nenhum viajante por essas
longínquas paragens, que ficam bem para lá, não só do horizonte óptico, como do
horizonte rádio.
Para este ser maravilhoso e único, mais velho que o universo e, na verdade, alheio ao
espaço e ao tempo, logo, simultaneamente mais velho e mais novo que toda a criação,
maior que o espaço na sua totalidade e mais pequeno que a mais ínfima partícula
elementar, um sono de vinte milhões de anos mal chegou a ser um sono. Foi um instante
de ausência, como quando o condutor de um automóvel tira por um momento os olhos
da estrada para pensar em qualquer coisa dentro de si.
Q uando o ser supremo novamente virou a sua atenção para o mundo, todas as
sensações eram iguais a si próprias. A pulsação abafada de algumas fontes de radiação
na galáxia mais próxima constituía o pano de fundo para uma imensidade de sensações
mais sutis.
A s ligeiras alterações de energia nos sóis iam e vinham, como o vento passando entre
as folhas dos álamos, como o bater surdo das ondas na noite, num cais. Em direcções
distantes ouviam-se os colapsos gravitacionais do nascimento de supernovas.
E na frequência mais alta, como milhares de grilos e gafanhotos num prado, os
pensamentos de todos os mundos habitados.
Entre todos esses sons havia uma nota, muito longínqua, muito fraca, que ela ao
princípio não distinguia. Mas apesar de fraca e ténue, esta nota era tão penetrante, que
quando finalmente se apercebeu dela, logo lhe prendeu a atenção. Um momento antes a
nota não se ouvia. Era tão lamentosa, que um arrepio daquilo que se poderia descrever,
em termos humanos, como inquietação maternal, atravessou o imenso corpo agora
acordado.
Deus tinha reparado nas preces humanas.
Só três dias depois a humanidade se apercebeu do acontecimento.
A primeira pessoa a constatar a mudança foi um guerrilheiro de quinze anos numa
savana ao sul da Tanzânia. Ele e o restante grupo de homens escanzelados, sedentos,
com longas crostas de pus seco nas pernas, acabavam de ser localizados por um
helicóptero quando tentavam esconder-se na sombra de um pequeno grupo de árvores
no meio de uma pradaria implacavelmente iluminada pela luz do meio-dia.
O rapaz deixou-se cair, a tremer, junto de uma caixa de munições, vendo o helicóptero
aproximar-se. A s chamas das metralhadoras já eram visíveis. D entro de poucos
momentos ele morreria. Tinha sido educado numa missão cristã. A o ver o helicóptero e
ouvir aquele metralhar, o crepitar estridente das armas automáticas abafando já o som da
hélice, deixou escapar um pensamento:
Meu Deus, destrói-os!
O clarão branco que transformou o helicóptero e a sua tripulação numa amálgama de
partículas fortemente ionizadas que o vento dispersou foi visível até à linha do horizonte.
O helicóptero número dois, que já estava no ar, despenhou-se com estrondo alguns
quilômetros mais adiante. A tripulação, coberta de contusões e encandeada pelo
tremendo clarão, cambaleava tacteando à sua volta.
Meu D eus, faz com que isto acabe — pediu um doente canceroso num hospital. O
efeito da morfina começava a passar, e a dor latejante, de uma incandescência branca,
que partia do fundo do ventre, do lado direito, logo acima da virilha, reaparecia um
pouco mais forte a cada pulsação.
N este momento a dor cessou e foi substituída por qualquer coisa como um silêncio
ensurdecedor. N o ventre tinha apenas uma leve sensação de estar dorido, talvez como se
tivesse sido pisado. J á podia respirar normalmente. Cinco minutos depois, com infinita
precaução, experimentou levantar uma perna.
O utros cinco minutos depois tocou freneticamente a campainha. Q uando a
enfermeira da noite, passado um bom bocado, apareceu à porta, ele estava de pé no meio
do quarto com um sorriso tímido nos lábios.
D á-nos, S enhor, uma paz duradoura— disse o arcebispo de A bo a concluir a sua
oração matinal na rádio. Disse-o com profunda sinceridade e convicção.
S e tivesse pronunciado a sua prece dez segundos antes, nunca teria passado de um
vulgar bispo, ainda que arcebispo.
O ra ao pronunciá-la no preciso momento em que o fez, passou a ser uma figura da
história mundial, aliás, a maior figura da história mundial.
Três décimos de segundo depois de o arcebispo de A bo ter pronunciado a sílaba final
da expressão "paz duradoura", o pessoal do controlo de um dos imensos bunkers
subterrâneos formando uma longa cadeia na Mongólia Exterior reparou que os
engenhosos instrumentos que efetuam a verificação constante de um míssil de ogivas
múltiplas capaz de colocar simultaneamente seis bombas de hidrogênio sobre seis
cidades diferentes indicavam todos eles zero. I sto desencadeou desespero, alarme,
medidas de emergência. A pós seis horas de trabalho intensivo, um grupo de
especialistas concluiu sem margem para dúvida que não havia nada a fazer. N o silo
subterrâneo, o míssil de oitenta metros de altura era agora, de uma ponta à outra, ouro:
ouro de 24 quilates, tremendamente pesado, maravilhosamente reluzente. O uro flexível,
maleável, ouro maciço.
Foram precisas mais vinte e quatro horas para que o mundo descobrisse que o mesmo
acontecera com todo o material de fissão existente— e não só com o material de fissão.
Todas as armas, todos os projéteis, até as espadas da idade do ferro nos museus se
tinham, no mesmo preciso momento, transformado em ouro.
Às 18 horas do dia seguinte, três membros do Conselho N acional de S egurança dos
EUA foram transportados, sob o efeito de poderosos sedativos, para uma clínica
psiquiátrica privada. O s membros restantes observaram a sua partida de uma janela num
dos andares mais altos do Pentágono. Tinham o olhar vazio das pessoas que não querem
ver nem ouvir mais.
A penas dez horas depois as Bolsas de todo o mundo foram abaladas pela primeira de
uma série de crises de dimensões inéditas que conduziriam, nas quarenta e oito horas
seguintes, primeiro à supressão de todo o sistema monetário e depois à supressão de
todas as relações econômicas, de todos os compromissos econômicos.
Para começar, o preço do ouro sofreu uma queda extraordinária. A o meio-dia tinha
descido ao nível do preço do carvão em 1934.
À uma hora da tarde, a corrida ao dólar americano que se desencadeara
simultaneamente tinha feito disparar o seu preço para 12.340 onças de ouro. N a meia
hora seguinte, um movimento de pânico resultante de um qualquer boato não
confirmado gerou uma procura da coroa norueguesa que multiplicou por dez mil a sua
cotação do dia anterior.
Às duas horas o diretor do banco nacional norueguês anunciou ao país, em palavras
sombrias, a bancarrota do Estado.
Pouquíssimas pessoas assistiram a esta emissão de televisão: os cidadãos
noruegueses estavam nesse momento totalmente absorvidos por descobertas do foro
privado e de uma ordem de grandeza que tornava desdenhável qualquer bancarrota
nacional.
Havia milhares de anos que as preces de uns eram muito exatas, muito precisas, e as
de outros muito vagas, tão obscuras que quase só se formulavam nos seus sonhos.
N o N orte de Vàstmanland, entre Àngelsberg e O mbenning, um velho reformado de
uma oficina encontrava-se em sua casa, sentado, a folhear distraidamente o exemplar do
dia anterior do J ornal de Vàstmanland. Estava prestes a cair no sono. O s olhos já lhe
piscavam enquanto as moscas zumbiam à sua volta.
Um discreto bater na porta sobressaltou-o.
Q uando abriu os olhos e proferiu um pouco entusiástico "Entre!", para logo ver surgir
seis criados imaculadamente fardados que transportavam enormes cestos contendo
aquilo que era, sem qualquer dúvida, fresquíssimos camarões cozidos com ervas
aromáticas, queijos com cominhos do tamanho de rodas de trator e sucessivas caixas de
aguardente gelada, reagiu com grande serenidade, concluindo que tinha de facto
adormecido.
O primeiro toque do címbalo e o som da pequena flauta provocaram-lhe novo
sobressalto. Os criados tinham desaparecido.
Trajando umas vestes azuis brilhantes e transparentes, a primeira das cinco bailarinas
deu início à dança. O umbigo, encantadoramente ágil, ondulava sob uma pesada jóia
pendendo entre os seios pequenos e firmes, e o sorriso dela era infinitamente
convidativo.
Em passos decididos, o operário reformado da oficina de serração dirigiu-se à porta e
fechou-a à chave. A o regressar à sua cadeira, verificou que o reumático do joelho
esquerdo desaparecera por completo.
Por esta altura, milhares de milhões de pessoas em todo o mundo fizeram a mesma
descoberta. O deus que tão surpreendentemente começara a escutar as suas preces
parecia não albergar qualquer restrição de ordem moral, qualquer vestígio de decência. O
poder que era capaz de transformar instantaneamente as enormes armas nucleares em
torres de ouro maciço em breve se revelou também perfeitamente disposto a transformar
a enrugada esposa de um tenente-coronel idoso num belo jovem louro, ou a submergir
numa avalanche de valsas de S trauss e rolhas de champanhe o asilo estatal de
Apelbergsgatan em Estocolmo.
O mundo fervilhava com uma hoste aparentemente infindável de servidores que se
materializavam subitamente, prontos a oferecer a cada pessoa o que ela desejava no seu
íntimo. O tumulto, a dança, a fornicação generalizada nas ruas da Europa foram, durante
este segundo dia, indescritíveis. A s vagas e esporádicas notícias dos continentes
próximos, recebidas pela rádio, faziam saber que a situação era semelhante.
Coisa fascinante de observar foi o colapso da I greja— ou melhor, das I grejas. A meio
do terceiro dia, mais ou menos ao mesmo tempo que S ua Majestade o Rei comunicava
que todos os partidos políticos se tinham declarado indisponíveis para assumir a
governação; que Moscovo e Washington informavam que toda a atividade pública tinha
sido suspensa por tempo indeterminado; e que o Partido Comunista da China anunciava
o início da fase utópica, de acordo com os planos, chegou a carta pastoral da assembleia
episcopal, aguardada havia vários dias.
Era uma obra-prima da arte da formulação cautelosa. Começava por constatar que os
caminhos de D eus e os abismos da N atureza são insondáveis e que ninguém pode
indicar ao Todo Poderoso os meios de que ele deve servir-se.
Em seguida sugeria que no mundo há também um poder demoníaco e que, para o
verdadeiro cristão, decidir quais as preces que estão em harmonia com a vontade de
Deus deve ser sempre uma questão entre ele e a sua consciência.
A o mesmo tempo que a nova era histórica agora iniciada fornecia provas
esmagadoras da bondade e do supremo poder divinos, seria negligência da parte da
assembleia episcopal não apontar as novas tentações que necessariamente implicaria
para todo o fiel cristão o novo estado de coisas, o qual decerto não duraria eternamente.
A assembleia episcopal via-se, pois, na necessidade de exortar os crentes, neste tempo
de grandes convulsões, a manterem a maior reserva nas suas preces.
Estas palavras caíram em saco roto.
A humanidade, pela primeira vez na sua história, conhecia uma generosidade de uma
espécie inteiramente nova— a benevolência sem limites, o amor absolutamente
indolente, niilista mesmo, por toda a Criação que só o ser que a criou pode albergar.
Poderemos dizer isto de outra maneira:
A humanidade, que ao longo de milhares de anos foi atormentada pela ideia falsa,
bizarra e infeliz de que era dominada por uma figura paternal severa e quase cheia de
ódio, no espaço de alguns dias descobriu o seu erro.
Em vez dele, havia uma mãe.
Enquanto a existência a cada momento se afastava, a uma velocidade crescente, do
estado descritível para entrar num reino para o qual já não existiam palavras, A LÍN GUA
COMEÇOU A MORRER.
Um dos últimos fragmentos de linguagem dizia:
SE DEUS EXISTE, TUDO É PERMITIDO.
(Caderno azul V: 1)
6. RECORDAÇÕES DO PARAÍSO
Bosque de bétulas. Pântanos. O s primeiros sinais de que as folhas vão romper. Passou
tão incrivelmente depressa, o I nverno! N ão sei bem se quero já a Primavera. A inda não
estou preparado para ela. A solidão cresce em mim como adubo. A s plantas mais
estranhas conseguem vingar. Dúvidas.
E todas as manhãs tenho este medo de que as dores voltem. S ofri todo este I nverno
com dores. A gora sofro o mesmo com o medo das dores. O bservo-me com atenção: estou
mais fraco, faço mais esforço para andar, cansa-me mais ir às compras do que antes?
Evito levar o carro, não tanto para poupar gasolina, mas para me pôr à prova. I sto implica
perder a manhã inteira, mas não sei bem de que outra maneira poderia gastar esse
tempo.
O ser humano, esse estranho animal, balançando entre animal e esperança.
N a realidade não sei mais sobre o sentido do universo, sobre o objectivo das
moléculas, das cadeias de moléculas, da consciência, dos sonetos e das sextilhas, dos
mísseis nucleares subterrâneos, dos frescos de Miguel Ângelo, do teorema binominal e
dos madrigais de Monteverdi, sobre o fim para que tudo isto se dirige, do que sabe uma
das velhas pedras cobertas de musgo ali atrás das colmeias, no meu quintal. D o que sabe
uma formiga. Do que sabe uma amiba num charco de água.
Não é tarde na história da humanidade. Na verdade é até muito cedo.
O medo de enlouquecer é no fim de contas o medo de nos transformarmos noutra
pessoa: mas isso é o que está constantemente a acontecer-nos.
"Was mich nicht umbringt, macht mich stàrker." (Nietzsche)
Pântanos. Bétulas. Tussilago em flor nas bermas das fossas. A s colmeias já
começaram quase todas a trabalhar. O meu amigo Nicke, por exemplo, que foi atropelado
por um camião quando ia para casa almoçar, num dia de S etembro de 1952. Penso muitas
vezes nele quando vejo alguma coisa invulgar, uma coisa que me desperta muito
interesse. Pergunto-me sempre o que diria o N icke se visse aquilo. "Estou a ver isto por ti,
N icke." É uma experiência incrivelmente intensa. N ós somos de certo modo idênticos às
pessoas que conhecemos.
A nos cinquenta. Q ue recordação tenho? Estocolmo era atravessado por pequenos
carros eléctricos azuis. Herbert Tingsten falava na televisão. O referendo sobre as
pensões de reforma, um problema que nunca aprofundei muito bem. O referendo sobre
a circulação à direita ou à esquerda, que revelou que a maior parte das pessoas preferia
conservar a circulação pela esquerda.
Como se vestiam as raparigas nos anos cinquenta? N ão usavam uns vestidos de
algodão muito compridos, com cintos largos?
Não falavam de outra maneira? Não me lembro muito bem.
Q uando éramos garotos, e mesmo quando já andávamos no liceu, costumávamos ir
pescar para a represa de Fàrmansbo, no Verão. A s águas vagarosas, indolentes, não,
indolentes não, melancólicas, do rio Kolbãck fazem aí uma cachoeira, e no mesmo sítio
existe uma ilhota onde, nas ruínas de uma velha fundição, crescia naquele tempo uma
enorme quantidade de cogumelos. N o extremo sul da ilha fica a represa de Fàrmansbo,
onde se chega por um carreiro ladeado por árvores tão altas, que o transformam num
túnel verde. Junto ao paredão do canal agitam-se antiquíssimas algas verdes.
J á na represa, a água cai a pique, negra, e quando enche forma uma espécie de
remoinhos negros que muito nos fascinavam quando éramos garotos.
Em Maio já passávamos lá tardes inteiras. N essa altura a solha era o peixe em maior
atividade. N aquele grupo, alguns estavam nas casas de Verão que os pais tinham para
aqueles lados, outros eram filhos de gente da terra.
D e vez em quando, claro, apanhávamos algum peixe, e havia episódios dramáticos
com solhas gigantescas que abocanhavam o anzol dourado e reluzente e desapareciam
levando tudo, ou com grandes solhas que, já sobre a erva, continuavam a ondular como
serpentes, ou quando algum de nós escorregava numa pedra molhada e ia parar à água
escura e sempre muito fria.
Mas não creio que fosse a pesca o mais importante para nós na represa.
A quela água negra que corria era da mesma espécie que o negro das nossas próprias
pupilas.
Sentávamo-nos a contemplá-la, conversando sobre temas estranhos.
A s bicicletas ficavam amontoadas numa moita qualquer. Era sempre uma operação
complicada passar pela casa do guarda da represa, que era um homem já de idade e não
via com muito bons olhos que um bando de miúdos fosse brincar para aquele sítio. Tinha
medo de que eles se pusessem a mexer nas comportas e alterassem o nível da água, o que
não era muito agradável para ele, porque se abrissem uma comporta que devia estar
fechada, isso custar-lhe-ia uma caminhada de quinhentos metros.
(A liás, naquele tempo, as bicicletas tinham um papel importantíssimo na nossa vida
— eram como animais domésticos.)
O N icke era um tipo incrivelmente divertido. Tinha qualquer coisa de esquilo. Uma
incansável vivacidade. Eu tinha a impressão de que ele simplesmente via mais do que os
outros, ouvia mais do que os outros. Foi ele que descobriu que se ouviam as lontras à
beira da água, ao pôr do sol. Um som fraquíssimo mas constante, de que nenhum de nós
até aí se apercebera.
Um rapazinho magro, tisnado pelo sol, espantosamente ágil, que trepava aos
pinheiros mais altos apertando apenas os joelhos contra o tronco e içando-se. Creio que
ele ignorava o significado da palavra vertigem. Um dia engoliu um peixinho vivo só para
provar que era possível fazê-lo.
Estava extremamente empenhado em demonstrar que se podia fazer coisas
consideradas impossíveis. S e tivesse vivido no século xv e não tivesse sido atropelado por
um camião, teria acabado por descobrir algum novo continente.
Era daquelas pessoas que pressentem a tempestade. S abia que ela ia chegar horas
antes de se ver sequer uma nuvem no céu. Mas não ficava enervado ou sonolento, como
acontece com outras pessoas. Parece-me até que as tempestades o espertavam, quase o
lançavam em êxtase.
Quando o granizo fustigava a bacia da represa a ponto de os remoinhos de água negra
desaparecerem sob a espuma, e as nossas canas de pesca e as latas de minhocas jaziam
abandonadas enquanto nós nos comprimíamos, quase sem respirar, numa velha forja,
entre ferro-velho, víboras e urtigas, ele dançava e pulava sob a chuva como um pequeno
dervixe— semi nu, porque a mãe batia-lhe se ele chegasse a casa com a roupa molhada.
A inda o vejo— basta-me fechar os olhos— um dervixe selvagem executando uma dança
extática sob chuva diluviana, nas grandes pedras talhadas do século XVI I I , polidas pela
água, junto à represa de Fàrmansbo.
Como se o temporal fosse pai dele.
Um pequeno ser humano encerrado no seu próprio enigma. Muitas vezes especulo
sobre o que teria sido o futuro do N icke. O perário de serração, como o pai? Explorador
nas Ilhas Mornington? Mas que resta para explorar?
Ele deixava sempre a impressão de estar destinado a alguma coisa de especial.
Todos nós estávamos destinados a outra coisa. S e pensar em todas as pessoas que
encontrei na minha vida— professores, amigos, raparigas, relações ocasionais, velhos e
fiéis companheiros, familiares— apercebo-me subitamente de que não houve uma única,
nem uma única, que eu tivesse conhecido verdadeiramente.
Encontramos uma pessoa que achamos interessante. Tentamos, como se costuma
dizer, "situá-la". (Tenho o hábito de fazer isso até com os senhores e as senhoras que
lêem as notícias na televisão.)
N as nossas recordações, procuramos rostos parecidos com o que temos agora diante
de nós. O movimento lento das pálpebras faz lembrar um orador na A ssociação de
Biologia, as comissuras dos lábios são iguais às de um docente de Q uímica em Uppsala
nos anos cinquenta. Em suma, uma entoação que conhecemos ali, uma expressão do
rosto que recordamos de outro lado, e imaginamos que ficamos a compreender.
Reconstituímos o desconhecido com o auxílio do que conhecemos. O psicanalista no
seu consultório (nem sei se é assim que se diz, nunca fui a nenhum) faz, em princípio, o
mesmo: associa experiências, recordações, para encontrar as chaves do novo, do
desconhecido, com que se confronta.
Mas as peças que vamos buscar, os factos a que recorremos, esse molho de chaves que
são os rostos antes encontrados e que fazemos tilintar na nossa mão, é, também ele, o
desconhecido. Explicamos um enigma com outro enigma.
É a mesma coisa que comprar um novo exemplar do mesmo jornal para confirmar
uma notícia em que não acreditamos.
N o fundo de cada pessoa há um enigma impenetrável. O negro da pupila não é mais
do que essa noite sem estrelas— o negro no fundo dos olhos não é mais do que as trevas
do próprio universo.
S ó como enigma o ser humano assume toda a sua grandeza e transparência. S ó uma
antropologia mística lhe pode fazer justiça.
Como seria de esperar, o N icke nadava e mergulhava como um peixe. Mergulhava até
ao fundo da bacia da represa para apanhar anzóis presos a restos de ferro-velho com
trezentos anos de idade. A garrava-se a velhos cabos e raízes de árvores, o cabelo
ondulando-lhe em volta da cabeça como algas, o corpo magro na horizontal, com a
corrente, e parecia voar a uma velocidade— inaudita, como um anjo que só pode visitar a
realidade comum voando parado.
A superfície da água, acima dele, era um tecto distante e reluzente. O som fraco dos
estalidos que a imensa massa de água provoca nas traves de carvalho alcatroadas das
comportas chegava-lhe como o tiquetaque de um gigantesco relógio muito distante. A s
vozes dos companheiros tinham-se apagado. Ele não tinha o mínimo receio. A s longas
algas lá em baixo, onde as lajes do paredão começavam a formar o fundo da bacia,
moviam-se como cabelos de mulher.
Os rostos dos companheiros, pequenas formas ovais religiosamente debruçadas sobre
a água, eram para ele invisíveis. D esconhecia em que tempo se encontrava. Q uando
voltasse à superfície, talvez eles tivessem desaparecido, talvez já fosse uma outra era.
Flutuava. D eslocava-se muito rapidamente. Pensou: tenho de agarrar-me.
Cautelosamente afrouxou uma das mãos para ver se o outro braço tinha força suficiente
para o segurar, mas sentiu que a corrente era forte de mais, que o arrastava na direção da
comporta, a qual aparecia como uma abertura quadrada, com um brilho prateado, ao
fundo daquele espaço verde escuro onde ele se encontrava.
N esse momento viu o anzol que queria apanhar. O u melhor, alguma coisa que podia
ser o anzol.
Brilhava como ouro no meio da lama do fundo, a cerca de um metro dele.
Por um instante, pensou que as longas algas que via ondular eram os cabelos das
filhas do Kolbáck que guardavam aquele tesouro.
Compreendeu que a única maneira de apanhar o anzol sem ser arrastado pela
corrente até à comporta (que era perigosa, não porque se pudesse passar através dela,
mas porque havia o risco de ficar lá preso e asfixiar) era esticar a perna direita, com muito
cuidado, e tentar agarrar aquela coisa que brilhava lá no fundo com os dedos do pé.
A ssim que se virou, a corrente começou a puxá-lo. Cada vez que, tacteando com o pé,
tentava tocar naquela forma dourada que parecia ser o anzol, os dedos levantavam uma
nuvem de lodo que a ocultava. O s pulmões pareciam querer estoirar por falta de
oxigênio.
Recomeçamos. Não nos rendemos, pensou ele.
A cima dele tudo era Verão. Um ventinho brando passava entre as árvores. Um
estorninho debruçava-se sobre a água, no outro lado da ilha, no troço livre do rio. A o
longe ouvia-se o ruído de um daqueles tratores baratos feitos a partir de uma cabine de
camião que os agricultores usavam naquele tempo, durante a guerra, quando não era
possível arranjar tratores verdadeiros.
Bandos de gaivotas seguiam o trator.
Era a nossa paisagem, e contudo não era nossa. Eram as nossas vidas no seu começo,
e contudo não eram nossas.
N unca tive tanta sabedoria como naquele tempo. S abia que era um estranho, mas
também sabia que os outros eram tão estranhos como eu. N inguém está em sua casa no
universo.
Q uando o N icke apareceu à superfície, estava roxo. Mal conseguiu chegar à borda e
quando o puxamos para cima do paredão, durante cinco minutos não conseguiu falar.
A rquejava, deitado, como um pequeno peixe coberto de lodo. Emanava dele um cheiro a
lodo, a pedras seculares, a algas secas e a lama apodrecida.
Por fim compreendemos por que tinha nadado tão desajeitadamente e não conseguia
içar-se sozinho para a borda da represa. Mantinha a mão direita convulsivamente
fechada.
Pensamos que ele ia morrer. Naquele dia quente de Junho, ele tremia de frio.
— Que aconteceu?— perguntamos-lhe.
A princípio só conseguia bater os dentes. Finalmente tentou falar e passado um
momento conseguiu dizer claramente o que queria.
— Não era um anzol— disse ele.— Não apanhei o anzol.
— Então que é que tens na mão?
O lhou para a mão fechada como se tivesse esquecido completamente que estava
fechada.
— Q ue é que tens aí? Q ue é que tens aí? D ançávamos em volta dele, em grande
excitação. Q ue não era um anzol sabíamos nós muito bem, porque se fosse os arpões já
estariam cravados na mão dele.
A briu-a lentamente, como se tivesse estado fechada tempo de mais. Parecia tão
curioso como nós em saber o que lá estava.
Ficamos em silêncio absoluto, com a respiração suspensa.
D o fundo da represa de Fàrmansbo, o N icke tinha trazido uma moeda de ouro, um
ducado do tempo de Carl Johan XIV, o único jamais lá encontrado.
A expressão dos olhos da avó Tekla, o olhar ancestral. O mesmo negro do universo no
espaço entre as galáxias.
N asceu na paróquia de Berg em 1870 e viveu até ao ano passado. Uma velhota
reboluda no lar da terceira idade em Hallstahammar, totalmente desperta quando a
visitávamos, uma bonita taça de vidro cheia de rebuçados sobre a cómoda de nogueira,
um perfeito à vontade no mundo.
D urante o século que viveu, creio que nunca encontrou razão para se perguntar por
que existia. Sim, é certo que tinha a sua religião, a qual, evidentemente, explicava tudo.
Comecei a perscrutar o olhar das pessoas (até na loja, quando vou às compras), como
se ele tivesse alguma coisa de especial a transmitir— quero dizer, como se se pudesse ler
nele alguma resposta.
Isto parte da ideia bizarra de que os outros seriam capazes de ver alguma coisa que eu
não vejo.
Ontem apareceu uma lagartixa no terraço das traseiras, a aquecer-se ao sol de Abril.
Estava absolutamente imóvel. Talvez fosse impressão minha, mas pareceu-me que a
cor dela ia mudando de acordo com os diferentes tons de cinzento das pranchas do
soalho.
D eitei-me no chão para a observar melhor, e foi então que descobri aquele olho
muito, muito pequeno.
Era de um negro diferente, o negro esperto e enxuto dos répteis.
Comparado com o olho de um réptil, o de um mamífero parece viscoso, meio
embriagado pelas forças quentes da vida.
O réptil olha a direito para o escuro, com um olhar seco.
Sabe Deus o que ele vê. Algo— diferente?
... desde as três da manhã, com intensidade crescente, partindo do mesmo ponto que
antes e ramificando-se para a coxa e o diafragma, primeiro o grau de intensidade normal,
depois aumentando para a incandescência branca.
Eu sabia que era só uma trégua.
Curiosamente, tenho a sensação de que a utilizei bem.
Ambulância 90000.
Hospital Central 137100 (PBX).
Vomito tudo, numa espécie de insistência obstinada. Até a água com mel. Mas em
golinhos muito pequenos, lá vai. Febre. Passeio à caixa do correio— como uma expedição
polar.
Good night, ladies. Ausentes três dias, mas voltam, e cada vez mais frequentes.
A embaraçosa semelhança entre a dor e o desejo. A mbos monopolizam toda a
atenção, nada mais existe. A dor é como uma mulher amada. N oticiários, o tempo, as
mudanças na N atureza, até a angústia— ela tem o poder de apagar tudo. É um reino
onde impera a verdade definitiva.
A s pessoas começaram a vir cá com mais frequência e dizem-me francamente que eu
devia ir para o hospital. S ão gente prática, as pessoas daqui. Em N orra Vãstmanland não
se diz "ele morreu". Diz-se "chegou ao fim". E receiam que eu "chegue ao fim".
J á não consigo ler o jornal. Leio, ou seja, movo o olhar de palavra em palavra, mas
cada palavra contém apenas dor. Pior do que isso é o sentimento de que nada daquilo me
diz respeito. N os últimos dias começaram a falar numa coisa a que chamam "Gabinete de
Informações".
O s problemas deles já não são os meus. Q ue será esse tal "Gabinete de I nformações"?
Imagino um gabinete capaz de dar resposta a todas as perguntas:
Porquê justamente eu?
Porquê justamente eu mortal?
Porquê justamente eu esta dor?
Porquê justamente eu idêntico a esta dor?
Porquê justamente eu idêntico a alguém que sente esta dor?
Porquê...
Vomitei toda a noite. 30 de A bril. Manchas na pele, nos braços. Grandes manchas
castanhas.
Apercebi-me hoje, subitamente, de como é ridícula a ideia do suicídio.
N ão há saídas. Estamos inteiramente submersos na realidade, na história, na nossa
biologia. A possibilidade de pensar a própria morte baseia-se num mal-entendido
linguístico. Mais ou menos como a possibilidade de nos tratarmos a nós próprios por tu.
Como a possibilidade de nos chamarmos a nós próprios pelo nome.
O negro da pupila é idêntico ao negro entre as galáxias.
Primaveras, o vento tépido, o perfume dos lilases. O bater das ondas breves e
inquietas contra a margem, os cardumes de mugens. O s pedaços de caniços partidos,
secos e amarelos.
Um cardume de mugens perfeitamente imóvel, como se fosse um corpo só. Como é
que cada um dos peixes sabe que os outros estão igualmente imóveis?
Uma sombra cai sobre eles, a sombra de alguém que se debruça sobre a água, e o
cardume dispersa-se instantaneamente numa explosão de reflexos em todas as direções,
tão rápidos como os reflexos da luz na água por cima deles.
Já nada revela que estiveram ali.
Depois de desaparecerem, ninguém adivinhará que momentos antes estiveram ali.
(Caderno rasgado V: 1)
O que está a acontecer-me é repugnante, abominável e aviltante, e ninguém me
convence a aceitar isto ou a persuadir-me de que é bom para mim.
É abominável ser abandonado a uma dor cega e idiota, vômitos, misteriosas
decomposições internas, igualmente idiotas e insolentes seja qual for a sua explicação.
A heresia habitual consiste em negar que existe um deus que nos criou. Uma heresia
muito mais interessante é aceitar a possibilidade de que um deus nos tenha criado e
depois dizer que não há qualquer razão para ficarmos impressionados com isso. E ainda
menos gratos.
Se existe um deus, compete-nos dizer não.
Se existe um deus, compete ao ser humano ser a sua negação.
Recomeçamos. Não nos rendemos.
A minha tarefa nos dias, semanas ou, na pior das hipóteses, meses, que podem restar-
me é ser um grande e claro NÃO.
Eu, eu, eu, eu... ao fim de apenas quatro repetições, uma palavra sem sentido.
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