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A MORTE DE UM APICULTOR

LARS GUSTAFSSON

ASA
Digitalização e Arranjo: Agostinho Costa
TÍTULO ORIGINAL: EN BIODLARES DÔD
TRADUZIDO DO SUECO POR: ANA DINIZ
PREFÁCIO DE:
CARL-GUSTAV BJUSTRÕM
ASA— LITERATURA
- 1978, Lars Gustafsson
1ª edição: Agosto de 1992
2ª edição: Fevereiro de 2001
Reservados todos os direitos
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A obra-prima de um dos maiores escritores suecos contemporâneos.
"Foi professor na escola oficial de Vãster Vala: chama-se Lars Lennart Westin. D eram-
lhe a reforma antecipada quando fecharam a escola primária de Ennora, na margem
norte do lago. S ustenta-se fazendo de tudo um pouco, mas principalmente vendendo o
mel das suas colmeias, que esporadicamente dão uma produção abundante. D esde que
se divorciou vive numa quintarola em Vãset, que fica a par das aldeias de Vretarna e
Bodarna, mas na margem oriental do lago, claro. Tem uma hortazinha, um terreno com
batata e um cão. Às vezes recebe a visita de familiares. Tem telefone, televisão e uma
assinatura do jornal de Vãstmanland. D epois do divórcio não teve contatos femininos
dignos desse nome (...)
O que vamos ler são apontamentos dele. A pontamentos deixados por ele, pois nesta
Primavera de 1975, precisamente por alturas do degelo, ele descobre que antes do
Outono terá desaparecido."
PREFÁCIO

A quilo a que, com aquela mistura de encantamento e ironia que caracteriza o nosso
autor, poderíamos chamar "a surpreendente carreira literária do S enhor Gustafsson",
começou em 1957, quando ele tinha 21 anos, com a banal publicação de um romance.
D ois anos depois— o que num jovem autor é um prazo perfeitamente normal— surge
um segundo romance, O s últimos dias e a morte do poeta Brumberg, e a partir daí as
obras sucedem-se a ritmo acelerado, à razão de dois ou mesmo três volumes por ano.
Romances, ensaios, livros de poesia, descrições de viagens e, além disso, uma atividade
de crítica literária no diário Expressen e na revista Bonniers Li erara Magasin (BLM). A
partir de 1962, passa a ser um dos dois co redactores desta revista e, de 1966 a 1972, o seu
redactor principal. D irigindo uma das mais importantes revistas literárias suecas, e
participando ativamente em todas as discussões filosóficas, estéticas, literárias e sociais,
ocupa uma posição central na vida intelectual sueca e isto— podemos dizê-lo— desde os
seus vinte e cinco anos.
Este jovem escritor é possuidor de uma cultura vastíssima, verdadeiramente ecléctica,
que vai da filosofia de Wi genstein à ciência aerostática, da mecânica à semântica, da
música à astronomia. Leu tudo, os filósofos mais herméticos e as memórias de
Richthofen, o ás da aviação alemã de 1914-1918, N oam Chomsky e J úlio Verne, Platão e
Galbraight, para já não falar de Ka a, Marguerite Yourcenar, Gombrowicz, Claude
S imon, D ante, Roger Caillois e outros confrades da literatura. N o entanto, e acima de
tudo, o que ele mais quer é ser filósofo, mas as suas múltiplas atividades atrasaram, até
1978, a sua tese de doutoramento— Linguagem e mentira. Ensaio sobre as teorias
extremas na filosofia da linguagem no século xix. É desde há muito membro da
Akademie der Kúnste de Berlim. Foi professor em universidades americanas e alemãs.
O jovem Gustafsson faz de certo modo figura de romântico, se bem que se distancie,
com humor, ao fazer um "pastiche" do Bindulgsroman alemão; imita-lhe o estilo de
escrita, os títulos dos capítulos circunstanciados e brinca com a intriga picaresca. D ele
retira o tema do duplo, o de Fausto e o de Mefistófeles. Mas não é menos atraído pelas
miragens de um pensamento "idealista", ao pressentir que existe algures uma "vida
autêntica", que parece estar à mão de semear, como o curso de água subterrâneo, cujo
fluir é pressentido pelos exploradores de Viagem ao centro da Terra, de J úlio Verne, e
que os acompanha do outro lado da parede rochosa sem que eles jamais o consigam
descobrir, como nos recorda Gustafsson no seu romance A verdadeira história do S enhor
A renander, de 1966, sem dúvida o seu melhor romance neste primeiro estilo— um estilo
límpido, por vezes irisado como uma bola de sabão, onde ele joga com os "pastiches" e as
sábias explicações, com as questões falsamente ingênuas e os problemas metafísicos;
nostálgico, ele acarinha os belos instrumentos utilizados por uma técnica ultrapassada, a
do século XI X, com os seus cobres e o seu acaju; passa de digressões aparentemente
absurdas para pequenas histórias burlescas, traça uma série de círculos egocêntricos,
destinados a mascarar e a revelar simultaneamente que o centro é vazio e desespero.
O ar é o seu elemento. O s seus livros de poesia têm títulos como O s viajantes em
balão (1962) ou O s irmãos Wright rendem-se a Ki yHawk (1968), reúne textos em prosa
sob o título A arte de lançar papagaios (1969) e, nos seus poemas, nos seus romances, o
vento está sempre presente.
A nostalgia é também o seu elemento. Raramente um escritor tão jovem terá exaltado
com tanta convicção a infância, ou terá referido com tanto carinho as sucessivas etapas da
sua evolução, o idílio de antigamente, os entusiasmos passados. Um dos seus primeiros
livros de poesia intitula-se muito simplesmente Uma manhã na S uécia (1963). N ão
consegue desviar os olhos do século passado, em que tudo era certeza, ciência exata,
preparação garantida de um futuro melhor, progresso ou revolução sincera— e possível.
Mas Gustafsson não é ingênuo, conhece bem os problemas que existem por detrás da
transparência, sabe que a ciência, o engenho, as maravilhosas invenções e a generosidade
desembocam na morte. A "natureza tangível" dos irmãos Wright, "o leme e a hélice" do
seu poema levam a Dresden e Hanói.
A estes dois nomes de cidades destruídas pelas bombas, vêm juntar-se, entre aspas
talvez irônicas, "as trevas gnósticas"— será que o autor se recusa a entregar-se?
N a sua obra há incessantemente bruscas aberturas. S erá para nos envolver, ou não
será mais que um "trompe Poeil"?
Este "trompe l'oeil", o documento falso, o invento técnico aberrante, a data
demasiadamente precisa para que não possa ser inventada, o fantástico, o seu mal-estar e
as suas ameaças, tudo isso faz também parte do arsenal de Lars Gustafsson, como
podemos confirmar ao ler a maravilhosa recolha de contos Preparativos de fuga, de 1967.
Título perfeitamente eloquente, pois não são o ar, o passado, o fantástico, a diversão, a
historieta, esperanças de evasão? Gustafsson adora contar histórias e não se importa
nada de nos recordar, de vez em quando, a sua erudição, a sua mestria em manejar um
raciocínio lógico ou a sua familiaridade com os grandes pensadores e os grandes sábios
do nosso tempo. Também não se inibe de nos meter um pouco de medo, ou de nos dar,
sob a forma de apólogos, por vezes burlescos, algumas lições de moral, e até de
sabedoria.
D epois dos jogos com o saber, surge o problema do fazer. Q ue regras aplicar? "Mas
que pensamento mais absurdo, diz o senhor A renander, dizer-se que no homem existe
uma moral." Evidentemente, pois não é verdade que o centro do homem é o vazio?
A contece então que uma moral ou um envolvimento são trazidos do exterior. Talvez
seja o que se passa com Lars Gustafsson na altura da guerra do Vietname e dos protestos
cada vez mais acesos que ela provocava, do Maio de 68 e do "esquerdismo" que
bruscamente desabaram na S uécia e que terão levado a revista BLM para muito longe das
tranquilas águas da literatura pura.
S eria uma crise de consciência, o ressurgimento da moral em vez da sabedoria que
cada vez se afastava mais, desejo sincero de "ser do seu tempo", esse tempo que
incessantemente o persegue? D e qualquer modo, deu-se uma viragem e Lars Gustafsson,
fiel a si próprio, inicia-a por meio de um auto retrato romanceado, O S enhor Gustafsson
em pessoa (1971).
S eria, como se disse, um modo de apresentar e de afinar um instrumento que lhe
servirá para enfrentar a realidade? A s relações que Gustafsson mantém consigo próprio
— e que nos convida a manter com ele— não são fáceis, se bem que na aparência sejam
agradáveis e sorridentes. I ronia, falsa candura e verdadeira sinceridade, profundidade e
complacência, angústia e humor misturam-se interminavelmente. Gosta de se retratar
sob a forma de um gnomo ou de se imaginar sob a forma de um homúnculo, mas não
renega nem o seu saber nem as suas capacidades intelectuais, e pode acontecer tomar
ares de ingênuo, mas nunca de ignorante. Q uer seja coragem quer "coque erie", este
modo de se expor, acompanhado de uma crescente politização dos seus propósitos, não
foram bem acolhidos no início dos anos 1970. Reticências, mau humor, críticas, troças: o
menino-prodígio tornou-se o filho pródigo, e não se mostrava muito interessado em
voltar ao redil.
E de novo descemos, já não ao centro da Terra, mas aos I nfernos. O S enhor
Gustafsson em pessoa é o primeiro de um ciclo, ou melhor, como diz o próprio autor, de
um sistema que inclui cinco romances e que se intitula "A s fendas na parede"— pois
também aqui está a parede que nos separa da "verdadeira vida", mas desta vez a parede
está rachada e pelas fissuras entrevê-se uma outra existência, ali, a pedir que a libertem.
S ubsiste uma esperança e uma resolução. A o longo destes cinco romances, retine como
um encantamento: "N ão nos rendemos. Recomeçamos", o que não deixa de soar como a
palavra de ordem de Maio de 68: "Continuemos o combate", e é verdade que Lars
Gustafsson volta com satisfação a este momento de esperança e abertura, que logo se
fechou.
N este primeiro romance, Virgílio aparece sob a forma de uma mulher madura,
professora de filosofia, ruiva, maternal e marxista. Poderia um novo A dão, à procura de
um Paraíso filosófico, encontrar uma Eva mais sedutora? I sto não quer dizer que Lars
Gustafsson passará, a partir daí, a defender uma ideologia marxista. A Utopia marxista,
tal como o Paraíso filosófico, não é deste mundo. É necessário ir mais além, e não nos
esqueçamos que Virgílio soube desvendar a D ante os sofrimentos do I nferno, mas não o
conduziu ao Paraíso.
Entretanto, em A lã (1973), encontramo-nos no Purgatório, o Purgatório das cóleras
vãs, dos protestos ineficazes, onde reina, espesso e úmido, o odor da lã molhada. N este
romance, mais "realista" do que qualquer dos anteriores, Lars Gustafsson dedica a sua
atenção àquilo a que se poderia chamar "o ventre mole" do sistema social sueco: a escola
e as suas arbitrariedades, o abandono dos campos e a poluição, as devastações
autorizadas, encorajadas até por uma sociedade predadora, se bem que oficialmente se
considere socialista.
Em Festa de família (1975), ataca o núcleo "duro" desta sociedade: a burocracia, o
Poder, os centros de decisão em que se aliam a brutalidade e a hipocrisia. E nesta
excelente sátira à sociedade sueca, construída pela social-democracia e que social-
democrata se mantém mesmo quando o partido não está oficialmente no Poder,
Gustafsson identifica-se facilmente com o desmancha-prazeres, funcionário sem dúvida
preocupado com a sua carreira mas apanhado numa rede mafiosa que, para se manter no
Poder, não hesita em o sacrificar. E pergunta a si próprio se o elevado posto que lhe foi
confiado não seria, desde o início, um isco que permitiria depois fazerem dele o bode
expiatório.
Em S egismundo (1976) o panorama alarga-se, torna-se mundial e complica-se
sobremaneira, sobretudo porque o autor abandona o estilo realista dos dois romances
precedentes para se lançar com todo o entusiasmo numa abundante intriga picaresca que
faz lembrar alguns romances alemães contemporâneos. S erá um romance filosófico que
trata de diversos problemas escatológicos, da teoria do conhecimento e da comunicação,
como alguns pretendem, ou será, mais modestamente, uma confissão na qual o autor
afirma "que não esteve presente na vida que viveu", como defendem outros? Este
romance de aparência confusa, caprichoso, brilhante e desigual, cheio de bizarrias e
clarões, de graves sentenças e historietas burlescas, talvez um dia venha a ser decifrado
na sua perturbadora complexidade.
Este "sistema" de romances independentes que se esclarecem sem se encadearem,
termina na calma angustiada, no crescente silêncio— na simplicidade—, de A morte de
um apicultor (1978), um título que curiosamente recorda o do seu segundo romance, O s
últimos dias e a morte do poeta Brumberg, escrito vinte anos antes.
N este romance Lars Gustafsson utiliza um processo muito simples e muitas vezes
explorado, que consiste em aproveitar apontamentos particulares encontrados depois da
morte do personagem e publicados por ordem aproximada. É uma ficção que permite ao
autor lançar desordenadamente reflexões a que não é obrigado a dar seguimento,
disparar verdades sem ter de as provar, propor imagens cheias de sub entendidos,
demorar-se em descrições, digressões, histórias— ou seja, aquilo que Lars Gustafsson
adora fazer. Mas depressa nos apercebemos de que este livro, aparentemente disperso,
obedece a uma vontade coerente, mais grave e também mais modesta, que contrasta
vivamente com a complacência de uma introdução "autobiográfica" de que encontramos
equivalente em vários outros romances de Lars Gustafsson; será um distanciamento? um
simulacro? uma provocação?
S egundo o que nos disse o próprio Lars Gustafsson, este romance foi composto de
certo modo como a S infonia do A deus, de Haydn, em que os vários instrumentos vão
abandonando a orquestra, um a um, até não ficar ninguém. D e facto, o seu "herói", o
professor Lars Lennart Westin (como todos os heróis dos romances do "sistema", tem o
nome do seu criador) vê quebrarem-se sucessivamente todos os laços que o ligam à vida:
uma reforma antecipada leva-o a abandonar não só uma profissão à qual ele não teria
dado grande importância, mas também o contacto com a sociedade, com os outros; o
divórcio levou-o naturalmente à separação da sua mulher e, voltando atrás, vê desfiarem-
se as suas recordações de infância. Um câncer o vai destruindo, mas na sua solidão tenta
viver uma vida "normal", retirando alguma consolação da visita de dois rapazes, para
quem tenta escrever um romance de ficção científica como os de que eles gostavam. S e
eles não apreciam o romance tanto como ele esperava, é talvez porque, sob uma forma
metafórica e convencional, ele tentava descrever algo que lhes não dizia ainda respeito,
ou seja, uma possível vitória sobre o sofrimento; porque as dores que atormentavam Lars
Westin são cada vez mais fortes. É no decurso de um breve momento de trégua que ele
descobre o Paraíso. Mas, o que é o Paraíso? É o fim do sofrimento. I sso quer dizer que,
quando não sofremos, estamos no Paraíso, mas não sabemos! Mas será que estamos no
Paraíso? Por momentos poderíamos julgar que sim, ao ler as maravilhosas descrições das
paisagens do centro da S uécia que surgem aqui com a mesma emoção, delicadeza e
precisão que nos outros romances de Lars Gustafsson, especialmente em A
verdadeira história do S enhorA renander. S eria bom viver ali, dizemos para nós próprios,
envolvidos por uma atmosfera nostálgica, inseparável das montanhas que tornam o
horizonte azul. S erá o Paraíso? Mas não estará ele logo a seguir às montanhas? S erá o
Paraíso ausência de sofrimento ou simplesmente ausência? O mesmo se passará com
D eus, que temos o dever de negar se existe? I gualmente este eu que nunca
conseguiremos distinguir no vazio dos nossos olhos onde reinam trevas "idênticas às
trevas que há entre as galáxias", este eu, diz o alterego de Lars Gustafsson, no entanto
apaixonado por esta palavra que é "a palavra mais absurda da linguagem. O ponto vazio
da linguagem. (Como qualquer centro, só pode ser vazio)".
E, novamente confrontado com este vazio, Lars Gustafsson volta a martelar o seu
"absurdo" credo: "Não nos rendemos. Recomeçamos".

CARL-GUSTAV BJURSTRÔM
"Biltres! Carrascos!
Mestres torturadores a soldo de príncipes!
Não compreendeis
Ao aquecerdes as vossas tenazes sobre as brasas?
Eu sou um asno!
Com o coração e o grito de um asno!
Nunca me renderei!"

(Quartos quentes e frios, 1972)

PRELÚDIO

UMA MANHÃ, NA MONTANHA DE CHISO, O NARRADOR DESPEDE-SE.


O sol ainda não atingira o fundo da ravina. Uma carriça acordou-me com a sua voz
clara e penetrante. O frio cortava. Esgueirei-me para fora do saco-cama, procurei os
sapatos no escuro e desembaracei-me do mosquiteiro.
N o momento em que eu saía, os primeiros finos raios de sol espreitaram sobre os
picos, a nascente. Piscando os olhos, contemplei lá em cima a silhueta imponente e
pesada da Casa Grande.
A imensa luz que agora surgia por sobre os cumes dava à gigantesca muralha de
rocha o aspecto de um castelo sombrio, de dimensões maiores que as dos que os homens
constroem, uma fortaleza para anjos ou demônios, abandonada já pelas tropas
defensoras.
Q uando a luz, agora um pouco mais alta, já brincava livremente com a outra muralha
no lado ocidental do planalto, as colunas, aquelas colunas que se erguiam, isoladas, nas
formações de grés, transformaram-se na fachada de um órgão barroco, um órgão de luz.
E tudo vibrava nos tons vermelhos da rocha.
À vozinha clara da carriça juntou-se então, vindo dos enormes cactos à beira do
caminho, um coro de vozes de pássaros: a do picancilho, a da pomba inça e o pio
sardônico do corvo. S ilenciosamente, porém, pairavam sobre a ravina dois enormes
abutres— imóveis na brisa matinal, duzentos metros acima de nós.
J ohn Weinstock, professor de islandês arcaico na Universidade de Austin e
apaixonado maratonista, estava já sentado diante do fogareiro a álcool, vestindo uns
calções muito rotos e uma camisola de malha.
Estendeu-me um púcaro com café forte, amargo. A manhã propriamente dita já
terminara. D entro de apenas algumas horas a temperatura na ravina atingiria os 30 ou 35
graus. O planalto mexicano começava a emergir lentamente da névoa solar através da
única abertura entre os picos da serra que nos permitia vê-lo: a "Janela".
Lá em baixo, no lado mexicano, já devia estar muito calor. A planície estendia-se uns
milhares de metros abaixo. Era uma manhã de O utubro de 1974. Bebi o café amargo e
escaldante. Como um fio de prata, o Rio Grande corria lá em baixo, o seu brilho
esbranquiçado visível através da bruma do calor.
Pensei:
É curioso. J á quase não tenho a sensação de ter uma alma. S into-me perfeitamente
límpido, tranquilo e vazio por dentro. Há as vozes dos pássaros, e há a luz vermelha
sobre aquele órgão de rocha, e há o sabor amargo, forte e puro do café sem açúcar. Mas
não há amarguras, nem recordações, nem angústia. Estou suspenso num giroscópio.
Vazio, puro e límpido.
Talvez tenha, finalmente, conseguido. Talvez me tenha libertado, contando.
— Would you like some more coffee?
O tempo amainou. A tempestade passou. Já não sopra o vento.
O u talvez eu tenha aprendido a deslocar-me à velocidade do vento e por isso já não o
sinta.
Gentis leitores, fantásticos leitores: recomeçamos. N unca nos rendemos. I niciamos a
quinta e última das cinco narrações. Como os velhos cães de caça em Vástmanland,
perseguindo um alce— aliás a época da caça ao alce em Vástmanland é em O utubro —
retomamos o trilho e o seguimos até à presa ensanguentada.
Recomeçamos. Estamos no princípio da Primavera de 1975— a narração começa
precisamente com o degelo. A acção desenrola-se no Norte de Vástmanland.
Foi professor na escola oficial de Vàster Vala: chama-se Lars Lennart Westin. D eram-
lhe a reforma antecipada quando fecharam a escola primária de Ennora, na margem
norte do lago. S ustenta-se fazendo de tudo um pouco, mas principalmente vendendo o
mel das suas colmeias, que esporadicamente dão uma produção abundante. D esde que
se divorciou vive numa quintarola em N àset, que fica a par das aldeias de Vretarna e
Bodarna, mas na margem oriental do lago, claro. Tem uma hortazinha, um terreno com
batata e um cão. Às vezes recebe a visita de familiares. Tem telefone, televisão e uma
assinatura do J ornal de Vástmanland. D epois do divórcio não teve contatos femininos
dignos desse nome.
Westin não é muito velho. N asceu no dia 17 de Maio de 1936. Mas parece ter muito
mais de quarenta anos: está magro, estragado, com o cabelo ralo. Usa óculos, daqueles de
aros finos, de metal, que acentuam a impressão de magreza. Vive em condições
econômicas extremamente modestas, mas isso não o preocupa.
O que vamos ler são apontamentos dele. Apontamentos
deixados por ele, pois nesta Primavera de 1975, precisamente por alturas do degelo,
ele descobre que antes do O utono terá desaparecido. Tem um câncer mortal que,
finalmente, mas tarde de mais, é localizado no baço, com fortes metástases nos tecidos
circundantes.
A voz que vão ouvir a partir de agora é a dele, não a minha, e por isso me despeço
aqui.
UMA LISTA DAS FONTES

1. O caderno amarelo

Encontrado na prateleira por cima do lava-loiças. Papel liso, formato 16x6 cm, 80
folhas, das quais 76 totalmente preenchidas. Capa amarela, com a inscrição: UNIÃO
NACIONAL DOS APICULTORES SUECOS.
Contém as notas mais pessoais e as menos pessoais. Nestas últimas incluem-se várias
relações de despesas domésticas, por mês, notas de memória e de diversas medidas a
tomar relacionadas com as colmeias. De tudo isto, naturalmente, apenas alguns
exemplos ilustrativos foram incluídos na narração.
Iniciado em Fevereiro de 1970.

2. O caderno azul

Encontrado na prateleira superior da estante. Formato A4, papel de linhas, capa dura,
azul, com a inscrição Livraria Sjõberg, Vãsterãs. Tem 112 folhas, das quais 97
totalmente preenchidas, dos dois lados. Tem vários recortes de jornais colados,
excertos de leituras feitas por Westin e escritos seus.
Iniciado não antes do Verão de 1964.

3. O caderno rasgado

Um bloco de notas. A parte inferior da capa rasgada. Inscrição:

QUEM... (TELEFONOU?). Encontrado ao lado do telefone, na cozinha, na mesinha


de aba em frente do lava-loiças.
Contém números de telefone locais, uns quantos números noutros sítios e uma ou
outra nota relacionada com a evolução da doença.
Iniciado não antes de 1970.
1. A CARTA
... levantou-se vento, um vento bastante quente. Foi em finais de A gosto do ano
passado. O cão tinha fugido— foi nessa altura que ele começou a fugir— e, eram onze
horas da noite, andava eu lá fora à procura dele. O céu estava coberto de nuvens e a
escuridão era tanta, que não se viam as copas das árvores, embora se ouvisse o ruído
incessante do vento nos seus ramos. O mesmo vento regular, forte, estranhamente
quente. Tenho a vaga recordação de ter vivido uma situação semelhante, mas não consigo
lembrar-me exatamente quando.
Q uando cheguei ao caminho que acompanha o lago e vai dar à casa dos S undblad, e
senti o odor da água e ouvi o bater das ondas, embora sem as ver, por causa da escuridão,
apercebi-me de uma pequena rã que saltou por cima de um dos meus sapatos.
Fiz então uma coisa que não fazia desde os anos cinquenta. Baixei-me rapidamente e,
juntando as mãos, passei-as sobre a erva molhada, um pouco adiante do sítio onde ela
devia estar.
Este velho truque resulta sempre. Ela saltou para o côncavo das minhas mãos. Era tão
pequena, que pude aprisioná-la na mão direita, formando como que uma gaiola.
Ficou um momento paralisada, e eu ampliei o espaço juntando a outra mão.
E assim estive, a escutar o vento, com uma rã encerrada nas minhas mãos— aquele
vento persistente, morno e obstinado, por entre as árvores. E um cheiro ácido vindo dos
pauis, nos bosques que circundam o lago. Sentia-a nitidamente, a tremer na sua gaiola.
E, de repente, urinou na minha mão.
Penso que esta é uma experiência que poucas pessoas tiveram.
A urina de rã é muito fria. Fiquei tão surpreendido, que abri a mão e deixei-a fugir.
A li fiquei, emocionado com o vento penetrando as copas das árvores, por cima de mim, e
a mão fria da urina de uma rã.
Recomeçamos. Não nos rendemos.

(Caderno amarelo I: 1)

Encontrei o cão em casa dos S undblad. Tinha lá estado toda a tarde, e deram-lhe
panquecas e água. O que mais me embaraçou foi que, quando quis levá-lo, ele recusou-se.
Resistia e fincava as quatro patas no tapete da cozinha.
Q ue vergonha. Eles devem ter pensado que eu trato tão mal o cão, que ele tinha medo
de voltar para casa comigo. Mas não é verdade.
É qualquer outra coisa, e eu não entendo o que possa ser. D á a impressão que o
animal, por qualquer estranha razão, ganhou medo, e é a terceira vez que isto acontece
em duas semanas. Eu trato-o exatamente da mesma forma como sempre o tratei nestes
onze anos. Pode acontecer que eu lhe fale com uma certa firmeza, às vezes, mas
assustador não sou, de maneira nenhuma. O cão conhece-me por dentro e por fora,
conheceu-me quando era cachorrinho.
S ó há uma explicação plausível, que é ele estar a ficar tão velho, que ocorreram
quaisquer subtis modificações na sua memória olfactiva, e ele simplesmente não me
reconhece.
Por um lado, acho que vê incrivelmente mal, mas por outro lado, a visão não é
particularmente importante para ele.
Uma vez, num I nverno do princípio dos anos sessenta, fui esquiar para uma pista nas
montanhas em Mãrrsjõn. A inda era professor na velha escola de Ennora— foi antes de a
terem transferido para Fagersta— e nessa altura só podia fazer esqui aos sábados e
domingos. A quele era um bonito domingo de Fevereiro, havia muita gente na pista, e
quando cheguei ao cimo de uma encosta, vi um tipo com um anoraque azul, uns trinta
metros mais adiante.
O cão tinha vindo sempre a correr, uns dois metros à minha frente, e é óbvio que
sabia que o homem estava ali.
Ele estava registado, já há vários quilômetros, como um perfil de odores, como um
cheiro, no cérebro olfactivo do cão.
O ra o homem, que era um pouco mais velho do que eu, desviou-se um pouco para o
lado, para arranjar qualquer coisa, ou apenas para se desviar de mim, uma vez que eu
estava muito perto dele.
E não é que o diabo do cão corre direito a ele, e quase o derruba no meio da pista!
Para o cão não havia um homem de azul, havia um cheiro interessante, que ele seguia
e que se ia tornando cada vez mais forte, e a tal ponto o animal confia no faro, que nem
sequer levanta a cabeça quando está a ponto de atirar o homem ao chão.
I sto deve ter a ver com o próprio sentido do olfacto. N ão há nada a fazer. S empre
gostei muito deste cão e espero que ele viva ainda muito tempo.
N ão compreendo o que lhe deu. Parece mesmo que o cão já não me conhece. O u
melhor: só me reconhece se eu estiver muito perto e ele puder ver-me e ouvir-me, sem ter
de se guiar pelo olfacto.
Há, evidentemente, uma outra explicação possível, mas é tão absurda, que não posso
aceitá-la.
É que eu tenha, de repente, começado a ter outro cheiro, uma modificação tão
bizarramente subtil, que só o cão dá por ela.

(Caderno amarelo I: 2)

Há uma data de coisas que deviam ter sido feitas nas colmeias neste O utono:
substituir a tampa de madeira e algumas das entradas, reparar quadros, material
isolante. Mas, por qualquer razão incompreensível, nunca me meti a tratar disso. N ão
percebo bem porquê. Por qualquer razão obscura, devo ter estado imensamente apático e
passivo. Graças a D eus estamos no fim de J aneiro e parece que este I nverno vai ser
excepcionalmente quente. Chove dias seguidos, e eu deixo-me ficar na cama mais tempo
do que é costume, na escuridão do I nverno, só pelo prazer de ouvir a chuva a bater no
telhado.
Mas suponhamos que o frio chega de repente em Fevereiro? Q ue é que eu faço? A
madeira das colmeias ensopada, o linóleo do tecto rasgado em vários sítios... O gelo vai
destruir as colmeias, pura e simplesmente. O castigo da minha indolência no O utono é
que vou perder uns três ou quatro enxames.
D o ponto de vista econômico, não terá importância, porque finalmente aumentaram-
me o subsídio de habitação, mas são seres vivos que morrem, e isso custa-me, de certa
maneira.
Uma coisa muito curiosa, que surgiu numa conversa telefônica com o I sacsson, de
Ramnàs, há umas semanas:
Q uando um enxame morre, parece que é como se morresse um animal. É uma
personalidade de que sentimos a falta, quase como um cão, ou pelo menos um gato.
Mas ficamos totalmente indiferentes perante uma abelha morta— deitamo-la para o
lixo.
O que é estranho é que as abelhas têm precisamente a mesma atitude. Um tão grande
desinteresse pela morte dos outros elementos não se encontra em muitas espécies
animais.
S e esmago uma ou duas abelhas ao instalar um caixilho com menos cuidado, as
outras retiram-nas quase como se fossem máquinas avariadas. Mas primeiro verificam
sempre se há mel.
E se elas próprias tivessem a mesma sensação que eu: de que é no enxame que reside
a individualidade, a inteligência?
Há enxames com uma personalidade fabulosamente definida. Há enxames
preguiçosos e ativos, agressivos e calmos. Até há os que são levianos e boêmios, e sabe-se
lá se não os haverá também com sentido de humor e sem ele?
Por exemplo, a febre do cortiço! É precisamente como uma pessoa nervosa, instável,
impaciente. Um mau amante— sem paciência.
E a abelha individual, tão impessoal como uma porca ou um parafuso num
mecanismo de relógio.

(Caderno amarelo I: 3)

Em A gosto, quando os rapazes estiveram cá, queriam ir jogar badmington. Para filhos
de pais divorciados, acho que tiveram pelo menos uns verões invulgarmente agradáveis.
Vieram cá por diversas vezes. Em Junho e em Agosto.
D e qualquer modo, quando estávamos a jogar badmington, senti exatamente a
mesma coisa. Mas nessa altura estava tão convencido de que era lumbago, que não
pensei mais nisso. Pensei que tinha uma distensão num músculo dorsal, provavelmente.
Tive de parar de jogar imediatamente.
Mas haverá crises de lumbago que dêem dores tão horríveis, que se fica com um sabor
a sangue na boca?
(Caderno amarelo I: 4)

S erá o povo sueco mais paciente que os outros povos? N ão sei grande coisa a este
respeito. N unca viajei muito na minha vida. D uas viagens de bicicleta pela D inamarca no
início dos anos 50, um torneio de tênis de mesa em Kiel, na A lemanha O cidental, e uma
série de passeios à N oruega atravessando a fronteira em Femundsànden, por O rsa e I dra,
não são muito informativos. Tenho uma certa tendência para ver o mundo exterior à
S uécia como qualquer coisa de literário, qualquer coisa que aparece nos livros e nos
jornais.
A s distâncias muito grandes assustam-me. Paris é uma coisa que existe no D iário dos
irmãos Goncourt, a Londres mais moderna, para mim, é a dos primeiros romances de
Aldous Huxley.
S e um dia me encontrasse nesses sítios, provavelmente não reconheceria nada. D ar-
me-iam a impressão de serem totalmente estranhos. Li agora mesmo no jornal que há
arranha-céus em Paris.
N o meu sistema, cada sítio pertence a uma época diferente. Em Paris, por exemplo, a
poeira da Comuna ainda mal teve tempo de assentar. E aqui, que época se vive? O
presente.
S e o povo sueco será mais paciente que os outros povos, dizia eu. A sala de espera de
Radiologia no Hospital Regional de Vàsterás, anteontem. Um cheiro fortíssimo a lã, lã
molhada.
Pessoas sentadas em cadeiras, em bancos corridos, por todo o lado. Um rapaz com o
lado direito da cara todo negro. Tinha caído da motorizada na noite anterior e estava com
dores. Um velhote de Kolbâck que tinha vindo na camioneta da manhã. Estava cheio de
esperança de ainda poder regressar na camioneta da noite. "I sto aqui é muito lento." J á lá
tinha ido uma vez na mesma semana.
A cada um a sua senha com um número. O s mistérios da ordem de chegada. Às vezes
a enfermeira manda entrar dois ou três pacientes ao mesmo tempo, outras vezes só um.
N outras alturas o movimento cessa por completo durante uma hora. E depois, toda a
gente ergue o olhar cada vez que a enfermeira aparece!
Como um daqueles relógios de carrilhão em que as figuras se movem de hora a hora
— abre-se uma porta, alguém sai, alguém entra. Um tipo colossalmente feio, com uma
quantidade de pensos na testa, por baixo dos olhos e no queixo, é trazido por dois
polícias. É passado à frente.
D as sessenta ou setenta pessoas na sala, a maior parte deve ter dores mais ou menos
fortes. Em alguns nota-se, pela maneira de se sentarem, pela forma como se levantam e
andam para trás e para diante na sala.
Mas é raro alguém falar nisso, nem sequer mencionam o facto de terem dores (e este
"ter dores" pode significar tudo, numa escala que vai do ligeiro incômodo à dor
lancinante). Falam antes das más ligações entre as carreiras de autocarros e nas
interurbanas, das suas repetidas visitas ao hospital. A lguns parecem viver só para ir ao
hospital. N ão se sentem nada mal ali. A s suas doenças dão-lhes uma identidade. I sto é
ainda mais verdadeiro para alguns dos mais velhos e mais humildes.
A doença dá origem a um interesse pelas suas pessoas que nunca lhes fora
dispensado quando tinham saúde.
Há qualquer coisa na paciência deles que me irrita imensamente, que me torna
agressivo. N ão deviam resignar-se... A quê? A terem de esperar tanto tempo para serem
radiografados, àquele tratamento estranhamente impessoal, quase industrial, sem que
alguém se preocupe por eles passarem ali um dia inteiro à espera, depois de já terem
esperado, de madrugada, em paragens de autocarro, ao frio e ao vento, e sem comerem,
com receio de perderem o lugar!
E contudo há sempre uma espécie de coesão cúmplice, há sempre quem prometa dar
um berro se a enfermeira chamar o nome daquele que, nesse preciso momento, foi à casa
de banho fumar um cigarro. O u quererei eu dizer, no fundo, que é contra a própria dor
que eles deviam protestar, é a ela que não deviam resignar-se?
Proletários da dor, uni-vos!

(Caderno amarelo I: 5)

A Q UI LO Q UE N ÃO ME D ES TRÓI TO RN A -ME MA I S FO RTE. (Friedrich N ie


filósofo alemão, 1844— 1900)

(Caderno amarelo I: 6)

Fevereiro de 1975

Loja: -375:40
Açúcar— -42:90
Tabaco: -32:50
Pregos e acessórios: -16:00
Consulta médica: -7:00
Óleo e gasolina: -75:00 (aprox.)

Total das despesas: -548:80

Associação Nacional dos Apicultores (bônus): +16:00


Loja, venda do mel: +225:00
Previdência: +304:00
Conserto do motor do Sundblad: 50:00
Rendimento bruto em Fevereiro: +625:00
Em caixa: +76:00
(Caderno amarelo I: 7)

Q uando chegou finalmente a carta do Hospital de Vàsterâs, não tive vontade de a


abrir e a pus de lado. Passei os olhos pelos jornais e revistas, examinei umas contas,
constatando que só terei dinheiro para as pagar no mês que vem, e finalmente agarrei em
mim e no cão e fomos dar um longo passeio.
Estava um bonito dia cinzento de Fevereiro, um pouco frio, de modo que o ar não
estava muito úmido e a paisagem parecia toda desenhada a lápis. N ão sei, realmente, por
que gosto tanto desta paisagem, que é bastante árida, mas o certo é que nunca me canso
de viver nela. E passei aqui um bom bocado da minha vida.
Q uando era casado vivia em Trummelsberg e ia de carro para as diferentes escolas,
que iam mudando com o passar dos anos. Como tinha o curso de professor primário e o
de professor de trabalhos manuais, consegui ter bastante liberdade de opção nos últimos
anos, quando as escolas começaram a ser fechadas, uma após outra. E fui ficando cada
vez mais como professor de trabalhos manuais. A s turmas iam sendo concentradas, o
que proporcionava melhores horários.
D epois, quando me divorciei, mudei-me para aqui, mais para o interior da paisagem,
poderia dizer-se, e ao mesmo tempo abandonei a ocupação de professor. A liás, pouco me
sobrava do ordenado depois de pagar as pensões de alimentos, de maneira que deixei
simplesmente de exercer uma profissão e optei por comprar trinta colmeias.
Para surpresa minha, as coisas têm corrido muito bem. A s únicas crises que surgem
são quando tenho de ir a algum sítio mais longe, como agora, ao hospital.
Q uando a carta do Hospital de Vàsterâs finalmente chegou, pus simplesmente de
lado e fui dar um passeio.
S entia-me perfeitamente tranquilo e ia observando atentamente as árvores agora
despidas de folhas ao longo do caminho. A doro contemplar estes ramos nus contra o céu
cor de chumbo. Parecem letras de uma língua estranha, tentando dizer qualquer coisa.
Toda esta zona, com as suas casas de Verão fechadas, os jardins cobertos de neve, os
barcos presos à margem, é na verdade muitíssimo mais bonita agora do que no Verão.
A lgumas das pessoas, tenho vindo a conhecê-las ao longo dos anos, e às vezes até me
convidam para ir jogar às cartas, ou beber um copo à varanda, o que é agradável. N ão sou
um solitário. Mas isto, agora, é que é a verdadeira vida. Boa ou má, isolada ou agradável,
é esta a minha verdadeira vida. E agora uma coisa que é mais forte do que eu, mais forte
que tribunais, governos ou autoridades, quer tirar-me. Não é justo.
Q uando quase tinha dado a volta completa à península, espantando, aliás, uma
família inteira de alces que pastava por trás do celeiro do Brusling, ocorreu-me este
raciocínio.
O u aquela carta diz que eu não tenho nada de grave, ou diz que tenho um câncer e
vou morrer. O mais provável, evidentemente, é que diga precisamente isto.
O melhor que posso fazer é não a abrir, porque assim fica-me sempre uma espécie de
esperança.
E essa esperança vai dar-me margem de manobra. Escassa, é certo, porque não
deixarei de ter dores por isso, mas será uma dor indiscriminada, que não associarei a
nada de específico, poderei integrá-la na minha vida— por que não? Consegui adaptar-
me a tantas outras coisas!
Q uando a carta finalmente chegou, dei um passeio com o cão em volta da península e
quando regressei tinha tomado uma decisão: não a abriria.
Estava em cima da mesa da cozinha, sobre a toalha às flores, ao lado das coisas para o
almoço, e os pássaros debicavam na sua manjedourazinha lá fora, como é habitual, e a
neve tinha derretido ainda mais, pingando do algeroz.
Um sobrescrito castanho, de janela, dizendo, no canto superior esquerdo: Hospital
Regional de Vásterâs, Laboratório Central. Eu já conhecia. Lá dentro tinha só um papel
aparentemente bastante pequeno, dobrado ao meio. Levantei o sobrescrito, observei-o
contra a luz da janela. Não se via nada à transparência.
S e o abrir, pensei eu, que efeito terá em mim? S e estiver lá escrito que só me restam
alguns meses de vida, ficarei paralisado? Tolhido? S erei obrigado a internar-me num
hospital? S im, previsivelmente— e passar os meus últimos meses numa cama, com dores
cada vez mais fortes, cada vez mais magro e debilitado, sem controlo sobre a minha
própria situação.
Mas supondo que abro a carta e ela me diz que o teste laboratorial revelou que os
tecidos analisados são provenientes de tumores benignos? Que é uma úlcera, que é pedra
na vesícula, que deve ser tratada com cirurgia e dieta adequada, e que é extremamente
perigoso deixar-se andar com uma pedra na vesícula sem tratamento médico?
E se, afinal, eu ficar pior por não abrir a carta? N ão tenho telefone, eles não vão
conseguir contactar-me se eu não reagir e talvez acabem por mandar outra carta, mas
nessa altura provavelmente já será demasiado tarde.
Quando a carta chegou não a abri, fui antes dar um longo passeio com o cão.
Q uando voltei para casa, tinha começado a brincar com a ideia de pura e
simplesmente não a abrir.
D e alguma maneira, brinquei com a ideia tempo de mais, apenas um momento de
mais, mas foi o suficiente.
Se esta carta contém a minha morte, recuso-a.
N ão devemos querer nada com a morte. Tive a sorte de aprender isto muito cedo, e é
um truque que me tem sido útil toda a vida.
S egundo Wilhelm Wundt, que no seu tempo tinha grande fama como psicólogo, e se
bem entendo o que vem no Livro da Família, existem três tipos de sensação de dor. Há
dores surdas, dores agudas e dores ardentes.
A o contrário do que aconteceu na percepção das cores, a linguagem não criou
palavras especiais para distinguir essas diferentes sensações. Não têm nomes próprios.
Talvez seja porque duas pessoas podem ver a mesma cor, mas é impossível duas
pessoas sentirem a mesma dor.
A minha é surda. N ão é só surda. Há dias em que é também ardente, mas a maior
parte das vezes é surda.
A cho que começou de facto naquela noite em que o cão fugiu porque, do fundo do
sono, senti pela primeira vez aquela estranha tensão surda na zona dos rins, mais ou
menos como se alguém tivesse lá metido uma bola de futebol e estivesse a enchê-la—
uma dor pulsante, lenta, indiferente a qualquer movimento que eu faça.
D e qualquer modo, foi na noite a seguir ao cão ter fugido que eu a senti pela primeira
vez.
Geralmente surge durante a noite, começo por sonhá-la muito antes de ela me
acordar, está no sonho, como uma ameaça a que eu tento virar as costas, que tento não
ver, e no sonho viro a cara para o outro lado, literalmente, mas ela aproxima-se cada vez
mais, obriga-me a vê-la e acorda-me.
Até ao N atal, os comprimidos aliviavam-na bastante— os que me deram em Fagersta,
quando pensavam que era pedra no rim. (A liás o que eu pensei primeiro é que era
lumbago, e depois a próstata, mas vim a perceber que não fazia a mínima ideia do sítio
onde me deveria doer se tivesse uma inflamação na próstata.)
A gora, depois do N atal, os tais comprimidos para as dores da pedra no rim, que são
bastante fortes— e graças a D eus eles vão-nos aviando com a mesma receita— já não
conseguem aliviá-la. N ão é a dor que se tornou mais forte, são os comprimidos, ou antes,
é o meu sistema nervoso que perdeu reação, digamos assim.
A dor dá-me novamente um corpo. D esde a puberdade que não tinha uma sensação
tão forte de ter corpo, estou intensamente presente nele.
Só que este corpo tem alguma coisa de errado. É um corpo que arde a fogo lento.
E depois há a esperança. N a semana passada houve dois ou três dias em que eu tinha
a certeza de que ela estava a desaparecer, que tudo voltara ao normal— já quase me tinha
esquecido de como o meu corpo era normal antes de ter começado aquela dor lá atrás,
nas costas. Não ousava ter esperança, naturalmente, mas tinha-a.
N os meus pequenos passeios reparava que toda a paisagem nos últimos meses tinha
adquirido como que uma tonalidade estranha por causa daquela dor. A qui ou ali havia
uma árvore onde a dor tinha sido mais intensa, aqui ou ali uma vedação onde tinha
batido com a mão, ao caminhar. Q uando passava novamente nesses sítios, nos dias em
que não tinha dores, a dor parecia lá continuar, na vedação.
A dor é uma paisagem.
E depois voltou, claro, no domingo à noite, não de repente, mas devagar, aos poucos,
talvez como um cão que fareja uma pista.
Foram precisas muitas consultas médicas antes de eles começarem a encarar a
possibilidade de ser um câncer. E depois nova série de consultas, muitos dias passados
em salas de espera, com aquele proletariado da dor, antes de chegarem à conclusão de
que queriam fazer uma data de biópsias e análises ao sangue e TA Cs com contraste. E
depois muito tempo até os exames estarem feitos. Passou Novembro, passou Dezembro.
Depois nunca mais disseram nada, até ontem, último dia de Fevereiro.
Q uando a carta chegou finalmente, não a abri logo. Preferi dar um longo passeio com
o cão e refletir. A paisagem estava igual a si própria, muito cinzenta, árvores despidas,
com uns patéticos ramos cor de chumbo. Uma espessa camada de gelo, com neve úmida
sobre o lago— finalmente, em Fevereiro.
Fiquei muito tempo sentado a olhar para a carta, apalpei-a, tomando-lhe a medida e o
peso, até que começou a fazer muito frio na cozinha, com a salamandra quase apagada,
por falta de lenha. Q uando por fim olhei em volta, já estava a escurecer. A tarde já ia
muito adiantada, uma daquelas tardes típicas de Fevereiro, em que às quatro horas já
escureceu.
Por fim lá saí para ir buscar lenha e pus a salamandra a funcionar.
Usei a carta para acender o lume.

(Caderno amarelo I: 8)
2. UM CASAMENTO

... a este respeito, aliás, posso contar uma história bastante bizarra sobre um
encontro. Vive aqui na região uma mulher nova, uma rapariga, bastante bonita e com
uma figura atraente. Eu nunca a tinha visto a menos de 50 metros de distância e sempre a
tinha achado muito bonita. Tinha uma tez muito fresca, olhos grandes, muito escuros, e
pescoço comprido e muito branco.
S empre alimentara a terna e sedutora ideia de me apaixonar por ela. Mas nunca a via
senão quando havia algum concerto de órgão na igreja de Vàster Vala— pouco convivi,
naqueles anos a seguir ao divórcio, fora do trabalho.
Por fim tive vontade de saber se seria verdade o que eu tinha imaginado acerca dela e
encontrei uma boa oportunidade. N uma pausa de um concerto do Q uarteto de Kóping,
fui ter com ela ao pórtico e cumprimentei-a.
N ão tinha nenhum plano, nem outra ideia que não fosse ver o que ela diria. Bem, falei
um bocadinho com ela, de uma forma neutra e delicada, mas justamente quando ia abrir
a boca para me apresentar e olhei para ela, apeteceu-me ficar calado.
Vi que ela tinha no rosto uma espécie de furunculozinhos, ou borbulhinhas, como se
tivesse alguma doença de pele esquisita, e isso fez-me imediatamente mudar de ideias.
D e qualquer modo falei-lhe, e ela respondeu e conversou comigo delicadamente, de uma
maneira bastante agradável. E, falando francamente, não é impossível que eu me tenha
apresentado justamente num daqueles irritantes e inconvenientes dias em que o sexo
está proibido. A verdade é que ela é considerada aqui na terra como muito bonita.
N o entanto senti uma espécie de alívio depois daquele encontro. Ele libertou-me
daquilo que parecia ser o início não muito agradável de um desassossego, e eu tenho o
mau hábito de me prender a todo e qualquer objecto que me desperte essa atenção
inquieta.
Mas a grande pergunta a fazer é, evidentemente:
Q uando amamos alguém, ou melhor, nos apaixonamos por alguém, por que é que nos
apaixonamos verdadeiramente?
É uma ideia da pessoa amada, ou é a pessoa propriamente?
Talvez só sejamos capazes de viver com as nossas ideias. Talvez sejam sempre as
nossas ideias que amamos.
O amor e a distância geográfica. Q uando uma pessoa que amamos parte num
comboio, por vezes sentimos claramente um certo alívio. N ão precisamos de conviver
com a realidade, podemos tranquilamente voltar a viver com a nossa ideia.
Q ual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa? Uma rapariga por quem
estive muito apaixonado no meu tempo de estudante e que se chamava Mónica foi para a
Califórnia. Correspondemo-nos durante muitos anos, mas depois a coisa morreu,
naturalmente.
Ela existiu (para mim) durante aquele período? O u era apenas, já há muito tempo,
uma ideia com a qual eu vivia?
Q ual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa? 150 quilômetros? 5
quilômetros? Um dos meus velhos sonhos é ter uma amante em S kultuna. É uma
distância tão perfeita, faz-se de carro em precisamente meia hora. Talvez um pouco
menos de Verão e um pouco mais quando há gelo na estrada.
Qual é a distância máxima a que podemos amar uma pessoa?
Resposta: menos de um milímetro. E sem nome.
Q uando finalmente o divórcio foi decidido e Margareth começou a pensar em arranjar
um apartamento em Vásterâs, aconteceu uma coisa curiosa. D emos uma volta à casa,
vendo tudo, mexendo nas coisas, os livros que eram dela, os que eram meus, onde tinha
ela comprado aquele, se havia ou não de levar o armário velho com portas de ripinhas.
Estávamos os dois de excelente humor, quase alegres. Brincamos e conversamos como
já não fazíamos há mais de dois anos, sentíamos os dois um certo alívio e estávamos
surpreendidos por cada um de nós se ter tornado tão real para o outro.
Já não precisávamos de nos relacionar como ideias.

(Caderno azul I: 1)

.. Fevereiro de 1968 ou 1969. Tinha sido eleito, nunca percebi bem porquê, membro
suplente da direção da A ssociação S ueca de Biologia. A assembleia geral realizava-se na
Casa do Cidadão, no S õder, em Estocolmo, e quando saí de lá, num fim de tarde de
Fevereiro, deviam ser umas seis horas, já era noite. Eu ficava no Hotel Malmen, do outro
lado da rua, mas como não me ocorria nada para fazer, decidi dar um passeio, embora
estivessem menos de dez graus negativos.
D esci a Folkungagatan e quase não havia ninguém na rua, apesar de ser domingo. Era
lua nova e o chão estava coberto de uma camada fina de neve que chegava mesmo à faixa
de rodagem.
Fui andando, primeiro até ao porto, depois comecei a subir a S tigbergsgatan em
direção a S ista S tyfverns Trappa— bairros quase esquecidos, que se mantêm exatamente
iguais desde o tempo de August S trindberg, uma cidade estranha e fria nos confins da
Escandinávia, com pequenas casas vermelhas de madeira à beira da falésia, com degraus
de madeira, casas a cheirar a alcatrão, nomes que fazem lembrar o Mar Báltico, estônios,
finlandeses, uma cidade dentro da cidade que é tal e qual o meu campo, tão abandonada
como ele, uma cidade onde tudo vinha de cima, decretos, impostos, recrutamento para
exércitos que morreriam de frio nos pântanos eslavos— até a revolução burguesa veio de
cima.
Estava cansado, depois de passar um dia inteiro fechado numa sala cheia de fumo da
Casa do Cidadão, em complicadas discussões do orçamento dos biólogos, e além disso
tinha estado todo aquele tempo a remoer noutra coisa de que não vou falar aqui.
Q uando saí não tinha uma única ideia na cabeça, só sabia que queria descer a
Folkungagatan. Caminhava mecanicamente, com o gorro de pele puxado abaixo das
orelhas. Quarteirão após quarteirão, sem realmente pensar em coisa alguma.
Q uando cheguei a S tadsgàrden, apercebi-me de repente de que na verdade tinha
estado a pensar numa coisa: a minha infância em Estocolmo.
É I nverno, na década de 1880, ou cerca disso, muito frio, muita neve. N ós moramos
numas casas baixas de madeira junto ao canal de Karlberg, que está gelado, e todas as
tardes, depois da escola, as crianças vão para lá andar de patins, com aqueles patins
antigos de ponta revirada, como as tenazes do carvão. Vejo tudo isto muito nitidamente.
A minha irmã mais nova não consegue que os patins se segurem nos botins grossos, e eu
ajudo-a a atar as correias. A ndamos para cá e para lá na luz baixa e oblíqua do fim do dia.
Presas no gelo estão umas barcaças exalando um cheiro a alcatrão, e nós subimos às
cobertas, apesar de ser proibido. Vemos umas garrafas de cerveja que os carregadores
devem ter deixado esquecidas, daquelas garrafas antigas, de um verde característico e
gargalo comprido.
Uma tarde, entre os arbustos da margem do canal, eu encontro o cadáver gelado de
uma mulher, só com um braço de fora. É uma rapariga que se afogou no canal no O utono
passado, e o corpo ficou preso no gelo. N ão é nada assustador, é quase perfeitamente
natural haver uma mulher jovem morta e presa no gelo, é simplesmente muito triste, e
eu tenho muita pena dela. Mas quando chego a casa e conto o que vi, grande rebuliço, as
pessoas saem a correr, vêm homens da cidade, com as serras compridas para serrar o
gelo, e as crianças não podem ir assistir...
Chegado a este ponto, levanto a cabeça e apercebo-me de repente: ES TA A GO RA , EU
NÃO PASSEI A MINHA INFÂNCIA EM ESTOCOLMO. E muito menos em 1880!
Uma pessoa sugestionável começaria já a falar de metempsicose e da memória de
existências anteriores. Mas é claro que não são necessárias explicações tão bizarras.
Q uando o subconsciente é abandonado a si próprio por um momento, ele começa,
muito simplesmente, a tecer uma trama. Cria uma identidade para si próprio, adapta-se
ao meio e produz diligentemente novas formas de preencher o súbito vácuo que se cria
quando esquecemos a realidade imediata.
Parece não haver nada de que o subconsciente tenha tanto medo como a sensação de
não ser ninguém.
E, servidor prestável, começou a fabricar-me uma biografia!

(Caderno azul II: 4)

A s pessoas que virão a significar alguma coisa para nós, encontramo-las não uma vez,
mas pelo menos vinte vezes, antes de levarmos a sério o aviso.
Pelo menos comigo foi sempre assim.
E vamo-nos desviando enquanto podemos.
Margareth, devo tê-la visto pela primeira vez na escola secundária, ainda antes da
reforma do ensino, em Vásterâs. Eu andava no curso de cinco anos e ela no de quatro
anos. N o curso de quatro anos a maior parte dos alunos vinha do campo. Era tão duro
para eles e tão complicado andar para trás e para diante de camioneta durante o ano
lectivo, que os pais tentavam, naturalmente, encurtar-lhes o período escolar tanto
quanto possível.
Todos aqueles que vinham de S urahammar, Hallstahammar, Kolbàck, Ry erne e
S trõmsholm para a escola secundária de Vásterâs tornavam-se talvez mais precoces, mais
independentes, do que os outros que já viviam na cidade e formavam muitas vezes um
grupo à parte.
Lembro-me dela naquele tempo como uma rapariguinha magra, loira e bastante
calada, que devia ter sempre muito frio porque usava todo o I nverno um gorro de lã de
um modelo bastante ridículo que lhe cobria as orelhas. S ó era possível ver-lhe a cor do
cabelo quando a Primavera já ia adiantada. Parecia ser bastante tímida.
N aquela altura eu estava interessado numa outra rapariga da turma dela, uma que
jogava tênis e tinha cabelos escuros, compridos, olhos muito grandes, seios já bastante
desenvolvidos e maçãs do rosto salientes, como têm, curiosamente, muitas raparigas de
Vàstmanland. D o nome dela é que não consigo recordar-me por mais que faça. Ela e
Margareth eram amigas, ou pelo menos andavam muitas vezes juntas, formando um
daqueles pares desirmanados que vemos tantas vezes entre as raparigas, em que uma é
muito interessante e a outra não.
Creio que ela tentou meter conversa comigo algumas vezes, pelo menos foi o que me
contou durante aqueles dez anos em que fui casado com ela, mas disse-me que eu a
tratava como se ela não existisse.
Q uando penso nisso, tenho a horrível sensação de que sentia uma vaga aversão por
ela. Era qualquer coisa de desagradável que se desprendia dela, o que eu sentia quando a
via.
Essa impressão desagradável seria, no fundo, a atração? Terá sido um pressentimento
de que ela viria a ser extraordinariamente mais importante para mim no futuro do que
era naquela altura?
A única coisa que recordo perfeitamente daquele tempo é que sentia um ódio
selvagem, mas totalmente recalcado, contra quase todo o mundo exterior: os professores,
a escola e até mesmo os colegas, todo o mundo exterior, pois ele parecia perfeitamente
determinado a tratar-me da forma mais hostil possível, a rebaixar-me, sempre a pôr-me
no meu lugar, e sempre em nome da lei do mais forte.
E aquela rapariguinha loira, com um ar vagamente desamparado, parecia tão
humilhada como eu e possivelmente tão amarga como eu. Felizmente que eu não a
achava particularmente interessante! O que eu precisava era de pessoas descontraídas.
Q uando fui para Uppsala e me matriculei na escola do Magistério, a maior parte dos
meus amigos já estava lá há algum tempo. Eu tinha passado bastante tempo na tropa, no
curso de sargentos da Marinha, e enquanto eu estava na escola do Magistério, todos
aqueles que eu conhecia de Vásteras estavam na Universidade.
Margareth entrou para a escola do Magistério no ano seguinte.
Foi num baile que eu voltei a encontrá-la. Creio que não tinha intenção de a convidar
para dançar, mas por qualquer razão acabei por fazê-lo.
Foi nessa altura que descobri a extraordinária sensualidade que ela irradiava. D ancei
muito apertado com ela.
Mas apenas uma vez.
D epois fui para casa de outra rapariga, de quem guardo apenas a lembrança de que
era muito mais alta do que eu, e acho que até dormi com ela.
Ir para a cama com Margareth teria sido, de alguma maneira, banal.
D urante aquele tempo em Uppsala não tive uma vida muito regrada. O curso era fácil
e a única coisa em que eu tinha realmente dificuldade era aprender a tocar órgão: os
malditos pedais nunca queriam obedecer. Q uando, uns dez anos mais tarde, aprendi a
conduzir, o instrutor queixava-se de que eu tratava os pedais do carro como se fossem
pedais de órgão. Mas esquecendo os pedais, o curso do Magistério em Uppsala era uma
autêntica brincadeira, uma brincadeira de crianças, ou lá como se diz, e eu passava a
maior parte do tempo a correr atrás das raparigas.
N ão sei porquê, seria talvez uma ansiedade minha, mas aquilo que me interessava era
a sedução.
A palavra é um pouco solene, eu sei...mas o que estava em causa era justamente a
sedução.
Eu queria demonstrar que era real. E isso só se pode demonstrar de uma maneira:
exercendo um efeito sobre outra pessoa.
Quanto mais forte é esse efeito, mais sentimos a nossa realidade demonstrada.
Eu tinha uma necessidade extraordinária de ser visto, naquele tempo. S e conseguimos
seduzir alguém, então também conseguimos ser vistos.
N aquela época havia em Uppsala uns bailes formidáveis nas casas de estudantes,
principalmente os das quartas-feiras na de Vàstmanland-D alarna. S alão incrivelmente
apinhado, cheiro a perfume barato, raparigas de um lado, rapazes do outro. Um calor tal,
que só por milagre não se derretia o verniz dos retratos de velhos intendentes cobertos
de condecorações.
Era só servirmo-nos. De uma forma estranha, impessoal.
Mas a mim, interessavam-me principalmente as raparigas um pouco tímidas, um
pouco reservadas. Aquelas que de alguma maneira podiam ser mudadas.
A quelas que tremiam ligeiramente quando dançávamos com elas. A s que tinham o
corpo um pouco tenso.
Creio que via tudo aquilo de uma forma muito mecânica: ou seja, eu desencadeava
uma espécie de processo cuja missão era demonstrar alguma coisa sobre mim próprio.
("Mim próprio"— "eu próprio": atualmente esta expressão parece-me de certo modo
absurda. Não tem, simplesmente, qualquer conteúdo.
Mas não consigo explicar exatamente o que quero dizer.)
N aquela altura eu tinha uma terrível falta de dinheiro. A moeda valia mais, é certo,
mas as bolsas de estudo que recebíamos tinham que durar muito mais tempo, e se não
avançávamos no curso ficávamos em muito má situação.
N o início éramos três, o Bertil, o Lennart e eu. Tínhamos alugado dois quartos
grandes em S vartbàcken. Mas assim que passou o primeiro período, o Bertil e o Lennart
começaram a afastar-se.
Estavam na Universidade e foram arranjando outros amigos. Mas a razão não foi
certamente só essa. Trabalhadores como eram os dois, o Bertil morreu alguns anos
depois, mas isso é uma outra história— trabalhadores e ambiciosos como eram, tinham a
sensação de que eu os arrastava para os copos demasiadas vezes, e na verdade nenhum
de nós tinha dinheiro para isso.
Lembro-me de que já para o fim de N ovembro íamos ao restaurante sem sobretudo,
para pouparmos as coroas do bengaleiro.
A s pessoas que me encontravam uns quinze anos depois, diziam sempre que eu tinha
mudado muito, que me tinha acalmado extraordinariamente.
N unca percebi exatamente o que eles queriam dizer. N unca tive a sensação de ter
mudado.
Mas aparentemente eu era considerado bastante desregrado, um pouco libertino,
naquela altura. Creio até que muitas pessoas inventavam histórias curiosas à minha
conta.
A minha recordação mais clara é o dinheiro e o eterno problema que ele levantava, a
tremenda agonia dos empréstimos, os empréstimos que era preciso pagar e os
empréstimos em que talvez pudesse marimbar-me, aquela desagradável necessidade de
evitar as pessoas quando já lhes tinha pedido dinheiro emprestado várias vezes sem
pagar.
O último ano foi um horror. Foi um ano agitado.
A inda hoje não compreendo como consegui passar no exame final com tão bons
resultados.
Por essa altura andava há algum tempo com uma rapariga chamada Kerstin. D eve ter
sido na Primavera de 1958.
A inda hoje penso que ela gostava realmente muito de mim, que quase me amava, que
pelo menos havia em mim alguma coisa que a deve ter fascinado. Mas ao mesmo tempo
acho que nunca conheci nenhuma pessoa que tão claramente tivesse medo de mim.
Medo de quê? Sabe Deus!
Pensei muito no assunto, depois imaginei as mais subtis explicações, reli as cartas
dela, com aquelas refinadas análises ingênuas da minha psicologia (egoísta, egocêntrico,
incapaz de um contacto profundo com outro ser humano, etc.), mas acabei por chegar a
conclusões completamente diferentes: as razões deviam ser sociais.
Ela pertencia a uma família de médicos de Lidingõ, uma família bastante boa, não
especialmente próspera, mas de qualquer modo uma família "bem". Ela estava a fazer
uma licenciatura em História da Literatura e em Línguas Nórdicas.
Era perfeitamente óbvio que eu não constituía um grande futuro para ela.
Achava-me interessante, mas socialmente eu era uma figura bastante duvidosa.
Penso que os outros deviam ter uma noção mais clara do meu desajustamento do que
eu próprio.
Um domingo de manhã, em casa dela, começamos a discutir por qualquer coisa, já
não me lembro o quê. Era uma dessas manhãs de domingo verdadeiramente radiosas.
O apartamento situava-se na O stra Ágatan, em frente do castelo, que ficava sempre
extraordinariamente bonito sob a luz matinal. Fui à porta buscar o D agens N yheter, que
naquele tempo era metido pela abertura do correio aos domingos de manhã— e aliás
estávamos justamente naquela época, na Primavera, em que os jornais começam a trazer
anúncios de fatos de banho. Lembro-me de ver os anúncios enquanto voltava para junto
dela, e depois continuamos a discutir e ela disse alguma coisa que não consigo recordar
de modo nenhum, mas que me levou a deixá-la.
Foi uma história terrível. Creio que uma parte da minha vida termina aí.
(A parte restante está a acabar este Inverno.)
Fiquei muito desesperado.
Três semanas depois, uns dias antes do fim de A bril, encontrei Margareth. Há muito
tempo que não a via...

(Caderno amarelo II: 1)

D e repente, começa o degelo. Um longo passeio com o cão, nos últimos dias, dores
mais ou menos sob controle, quase sempre pelas quatro, cinco horas da manhã, mas não
tão más que não possa voltar a adormecer.
D evo ter andado um pouco ausente durante uns dias, porque entretanto toda a
paisagem mudou. Há um nevoeiro úmido, um odor forte a terra e a ramos de bétula
apodrecendo ao longo do caminho. Um bando de gralhas, gralhas muito grandes, que
costumam estar junto ao viaduto do caminho de ferro, na estrada secundária 251,
subiram agora até aqui à orla do bosque.
Estão poisadas nas árvores, junto à vedação e ouço-lhes as vozes ásperas durante toda
a manhã. O dia também já começou a nascer mais cedo. Q ue Verão iremos ter este ano?
Úmido e frio como o do ano passado, ou um daqueles verões bem quentes?
Pergunto-me muitas vezes se ainda viverei. D e qualquer forma, é preciso calafetar o
barco. N o O utono, metia água pela ré como um passador. Ficou muito tempo mal
amarrado, a bater no desembarcadouro, até chegarem os temporais. N essa altura ainda
me sentia bastante bem, mas pelos vistos estive muito preguiçoso no Outono passado.
... Voltei a pensar na Margareth. Com este nevoeiro— esta bruma primaveril, poderia
dizer-se— voltei a sentir a falta dela. O s seus passos silenciosos sobre o tapete, logo de
manhã— ela levantava-se sempre primeiro para fazer o café— o seu hábito de arrumar o
jornal muito direitinho na pilha de jornais, no armário por baixo do lava-loiças, antes de
eu ter oportunidade de o ler, a insuportável mania de se pôr a trabalhar às dez ou às dez
e meia da noite. São estas coisas que uma pessoa recorda.
E agora, principalmente quando as dores me atacam, sinto muito a falta dela.
A o mesmo tempo, é perfeitamente evidente que aquilo era uma coisa impossível. É
um autêntico milagre que tenha durado tanto como durou.
Tudo, toda a nossa vida a dois se baseava num único princípio muito simples, num
acordo:
Era proibido vermo-nos um ao outro. Quero eu dizer, vermo-nos verdadeiramente.
É um jogo muito complicado cumprir um acordo destes durante doze ou treze anos,
nunca largar a máscara, nem sequer quando nos zangamos ou quando nos sentimos
muito infelizes. É como estar fechado muito tempo num quarto muito pequeno com
outra pessoa, com a condição de termos de estar sempre com as costas viradas um para o
outro.
E é claro, uma pessoa interroga-se sobre o que está por trás de um acordo como este.
A cho que é a dor. A lguma forma de sofrimento original que transportamos em nós
desde a infância e que temos de impedir a todo o custo que seja visto. Muito mais
importante que a existência da dor é mantê-la oculta.
Mas por que é que é tão importante escondê-la? Umas vezes trabalhávamos na mesma
escola, outras vezes em escolas diferentes. Q uando nos víamos durante todo o dia era
melhor. S e um de nós tinha estado afastado o dia inteiro e depois voltávamos a
encontrar-nos à noite, havia sempre uma espécie de momento crítico. A seguir ao jantar
havia sempre algum momento, terminada a narrativa dos acontecimentos do dia, depois
do café e antes do noticiário na televisão, em que ocorria uma espécie de maré baixa, a
água recuava e as rochas ficavam visíveis.

(Caderno azul II: 2)

Era franzina, movia-se sempre com leveza, quase como se dançasse, e falava numa voz
baixa, agradável. S entia uma curiosidade delicada e muito estimulante pelas pessoas e
pelo mundo, lia muitos livros e era divertido conversar com ela. I nteressava-se com
seriedade por quase tudo o que lhe surgia no caminho, excepto, talvez, por mim.
A quela última Primavera em Uppsala era já princípio de Verão. N a cidade restava
agora pouca gente, e eu só tinha ficado porque arranjara um lugar de professor de sueco
para estudantes estrangeiros e tinha-me mudado para o centro da cidade,
temporariamente, para um quarto em Báverns Grànd, de um colega meu que tinha ido de
férias.
Ela apareceu com uma amiga e sentou-se na esplanada daquele cafezinho mesmo
junto à Catedral— como era o nome? D omtrappkàllaren, se não me engano. A inda me
lembro dos títulos dos jornais na tabacaria em frente: falavam de uma nova e complicada
fase no conflito das pensões de reforma, que na altura, o fim dos anos cinquenta, atingira
a sua máxima virulência. S e me recordo tão bem desses títulos é porque estive sempre a
olhar para eles enquanto conversávamos.
A amiga dela era uma rapariga magrinha, angulosa, de rosto muito estreito e óculos.
Uma cópia de Margareth, quase se podia dizer. Falava pouco, mas lembro-me que
estive sempre a compará-las interiormente, digamos, como se essa comparação fosse, por
qualquer razão, importante, sem saber bem onde queria chegar com ela.
Tudo pareceu previamente decidido, como se estivesse combinado há anos. A li
estivemos sentados, a conversar— precisamente sobre este sítio, aliás — e nos íamos
reconhecendo um ao outro.
N ão havia um lugar, um lago, uma cabana em ruínas, uma velha linha férrea
abandonada nesta região, que ela não conhecesse. Passava as férias de Verão em N orra
Vàstmanland desde garota.
Sentado à luz de um fim de dia de Verão, reconheci a paisagem através dela.
Creio que foi assim que tudo começou.
Ela foi sempre aquilo a que se chamava uma rapariga muito gira. N ão havia nada a
apontar à aparência dela. (E os olhos, com o correr dos anos, iam-se tornando cada vez
mais interessantes.)
Por isso nunca consegui entender por que me sentia sempre um tanto embaraçado e
inseguro quando ia com ela na rua e encontrava alguma pessoa conhecida. S eria a
revelação do facto de andarmos juntos que me embaraçava?

(Caderno amarelo II: 2)

Foi uma vida bastante tranquila. S im, tranquila— idílica, nem mais nem menos, anos
a fio. Mudamo-nos várias vezes, sempre na província de Vástmanland, trabalhamos como
professores em diversas escolas, redecoramos vários apartamentos de serviço, que
ficaram bastante agradáveis, com os tapetes feitos por ela e os armários e outras coisas
que eu próprio fabricava nas salas de Trabalhos Manuais.
Talvez tenhamos mudado de casa muitas vezes. E sempre preferimos o campo— era
uma espécie de estilo de vida. Vivíamos os dois numa certa forma de protesto (bastante
vago) contra a sociedade. O protesto da hortazinha, por assim dizer. Protesto contra a
sociedade industrial, contra...
J á não me lembro muito bem. É estranho, mas atualmente, cada dia que passa
aumenta a distância daquele tempo: as coisas que ocupam o primeiro plano são outras,
completamente diferentes. O canto de um melro junto à minha janela quando acordo,
um pouco mais além as gralhas pousadas nas árvores, uma gota de água num ramo, a
meio do dia, quando começa o degelo. Tudo isto surge agora sob uma luz diferente e
tudo o que está para trás parece insignificante.
Ela estava sempre a fazer tapetes. Q uando mudávamos de casa, o tear era sempre o
mais difícil de desmontar e de montar novamente. N o último apartamento que tivemos,
ficava tão perto do tecto que praticamente lhe tocava. Era ela que tingia as fibras,
fabricando os corantes com plantas, como antigamente.
Em Uppsala eu tinha tido uma vida bastante agitada, de raparigas, copos e dívidas.
Este estilo de vida neo orgânico no campo era uma forma de romper com isso.
É certo que também tinha o seu quê de romântico, talvez até anarquista. N em eu nem
ela gostávamos das autoridades, do centralismo, da transferência massiva das pessoas do
seu meio natural para os subúrbios impessoais e arregimentados das grandes cidades.
A bominávamos as autoridades escolares, que nem sequer investiam o dinheiro de
que dispunham em tornar os pátios das escolas mais agradáveis e alegres e preferiam
gastá-lo em esculturas pretensiosas. Passamos muitos pequenos almoços a censurar a
fusão de municípios, o encerramento de escolas de província e o abate de árvores, que
demonstravam muito claramente que toda aquela região era tratada como um
reservatório de matérias-primas, uma espécie de despensa onde era só ir buscar as coisas
e mais nada.
Q uero dizer: tudo isto eram realidades, eram coisas que tinham verdadeiramente
significado para nós, num plano muito prático e palpável. Talvez houvesse também uma
réstia de snobismo, um certo sentimento de superioridade, de entender melhor do que
os outros o que tudo aquilo na realidade significava.
Mas era também outra coisa: era como que a nossa coesão interna. S aber mais do que
os outros é um bom elo de ligação.
E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, de uma forma não muito sensual,
mas agradável e adequada. S entíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado,
que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários,
porque se tinham um ao outro.
Mantermo-nos juntos era uma maneira de dizer:
Recomeçamos. Não nos rendemos.
Ela era a filha mais nova de uma família de Falun em que o pai, médico, chefe de
serviço, era incrivelmente tirânico. O s irmãos eram todos oficiais do exército, campeões
nacionais do pentatlo militar, advogados comerciais e sei lá mais o quê. Eu via-os poucas
vezes, mas tenho a impressão de que eles me desprezavam abertamente. Um deles
chegou mesmo a perguntar-me se eu conseguia sustentar-me como professor oficial—
naquela altura era assim que se dizia. Eles tinham tanta dificuldade em entender-me
como eu em entendê-los a eles.
O pai— penso, aliás, que ainda é vivo— era uma autêntica besta, temido pela família,
pelas enfermeiras, pelos médicos internos e pelos auxiliares, conhecido em todo o país
pelas suas afirmações sentenciosas sobre questões médicas, quase sempre no estilo: as
raparigas devem usar meias de lã no I nverno; os abortos prejudicam a capacidade
ofensiva do Reino; o país está a afundar-se em doenças venéreas e alcoolismo juvenil.
A filha mais nova tinha como que passado despercebida, no meio daquilo tudo.
Tenho a sensação de que ela deve ter passado quase toda a infância a ajudar na cozinha.
Com um pavor de morte do pai, reduzida ao silêncio pelos irmãos, pálida, franzina e
coberta de sardas, lá encontrou o caminho para os livros, para um mundo fora daquela
casa de doze assoalhadas nos arredores de Falun.
Penso que esse caminho passou pela poesia moderna, que ela começou a ler por
curiosidade, porque fora ridicularizada certo dia à mesa do jantar, e precisamente na
citação de Ekelõf e Lindegren, os alvos de troça, ela descobriu que havia ali qualquer
coisa que de algum modo lhe dizia respeito: "Procuro um ouro que torne todo o ouro sem
valor". Creio que se tornou mulher muito tarde. Q uando se preparavam para a meter
num curso qualquer de economia doméstica, ela enfureceu-se verdadeiramente pela
primeira vez na vida, disse tudo o que pensava, arranjou um quarto em Uppsala e
matriculou-se na Universidade.
Era uma família burguesa indescritivelmente sueca. A o fim de dez anos ainda lhe
detectava vestígios disso na maneira de falar.
A quela tremenda aversão, aquele desprezo, por tudo o que possa constituir um
trabalho intelectual individual, aquele horror à filosofia.
A "cultura" consistia, para eles, em saber pronunciar corretamente algumas palavras
francesas. O interesse por Marx, ou Kirkegaard ou Freud, pelo contrário, era "cabotino", e
"ao estilo de professor oficial".
N ela, isto subsistia sob a forma de uma cautelosa desconfiança em relação a tudo o
que revelasse o mais leve indício de especulação.
Recordo que uma vez fiquei muito zangado com ela, a ponto de não me apetecer falar-
lhe durante vários dias. Foi durante uma viagem de comboio a Copenhaga. (Fazíamos
muitas vezes viagens destas nas férias escolares.)
Começou quando eu lancei uma ideia que me ocorreu a propósito de qualquer coisa
que estava a ler.
— E se acontecer— disse eu— que a palavra "eu" seja uma palavra sem qualquer
sentido? "Eu" utiliza-se na linguagem do dia a dia exatamente da mesma maneira que se
utiliza "aqui" ou "agora". Todas as pessoas têm o direito de chamar-se "eu", e ao mesmo
tempo apenas uma pessoa de cada vez tem esse direito: a pessoa que está a falar.
N inguém imagina que "aqui" ou "ali" significa alguma coisa em especial, que existe
alguma coisa por trás dessa palavra.
Então por que havemos de imaginar que temos um eu?
Ele pensa em nós. S ente. Fala. Mais nada. O u: ele pensa aqui, disse eu, pousando o
dedo na testa.
— Se continuas com essas especulações ainda dás em doido— disse ela.

(Caderno amarelo II: 8)

Q ue manhã lindíssima! Por acaso, quando estava a dormir profundamente, sonhei


que um elefante benévolo, mas em princípio perigosíssimo, me perseguia num campo
sem fim— mas não tive dores esta noite. A inda a dormir profundamente, senti que tinha
chegado o azul das altas pressões. Pairava como uma enorme bolha sobre a paisagem
quando me levantei, às sete horas, e nem agora, já da parte da tarde, se vê uma única
nuvem.
Uma coisa destas é muito rara em Março.
Consegui tratar das colmeias todas de manhã e deitar mais solução de açúcar, e só um
dos enxames morreu, com o frio. Mas foi um que não se portava lá muito bem, posso
dizer. N unca cheguei a perceber o que é que elas faziam. S ó enchiam mais ou menos
metade dos favos, a fazerem-se caras, como se quisessem dizer-me que sabiam muito
bem o que valiam aqueles favos de cera artificial, mas é claro que sempre enchiam uma
parte, só para mostrarem que tinham a geometria na cabeça.
Estúpidas prima-donas! A inda bem que morreram. N o Verão com certeza seriam
atacadas pela febre do cortiço e matavam-se todas, de qualquer maneira.
A ideia da revolução permanente, por assim dizer.
Marengo, Austerli , Leipzig... Conheço poucas coisas que convidem tanto ao
cesarismo como ter abelhas. Todos podemos experimentar a sensação de sermos
N apoleões sem precisarmos de tratar os cavalos com crueldade e sem vermos morrer
uma única pessoa.
Em vez disso vemos morrer muitas abelhas.
A s coisas podiam ter continuado indefinidamente: era bom, havia harmonia— que
tinha o seu preço, é certo, mas era uma harmonia. Sim, podia ter continuado.
S e no final dos anos 60 não tivessem começado a acontecer outras coisas. Foi tão
inesperado, que foram precisos vários anos para eu me aperceber do que tinha
acontecido. A conteceu, simplesmente, que eu tive uma experiência totalmente nova,
totalmente inesperada: o amor.
Foi, evidentemente, catastrófico, e eu soube desde o princípio que ia ser assim. Mas
não havia catástrofe que me assustasse. Q uando penso na maneira como agi, parece de
facto que estive sempre a desejar uma catástrofe. É a única maneira de interpretar tudo
aquilo.
É uma história incrivelmente ridícula, pelas inúmeras circunstâncias bizarras e
improváveis que contém.
Havia aqueles encontros nacionais de biólogos em Estocolmo, e como eu fui membro
suplente da direção durante uns anos, pagavam-me a viagem. Ficava no Hotel Malmen e
à noite costumava ir a um concerto ou à ópera. Era um pequeno prazer secreto que eu
tinha, nada de especial.
Mas uma vez, em O utubro de 69, depois de um desses encontros, decidi não passar a
noite em Estocolmo e vir-me embora no último comboio. N ão consigo, absolutamente,
lembrar-me do que me levou a decidir isto.
Tinha deixado a pasta no bengaleiro, na ópera, saí no último intervalo e cheguei à
Estação Central precisamente a tempo de apanhar o comboio das 22 e 40 para O slo, que
passa em Hallsberg e Vàsterás. É um comboio que costuma ir cheio de turistas
americanos a caminho da N oruega e de gente mais ou menos etilizada que sai em
Enkõping e Vàsterás. A partir daí funciona como comboio noturno.
Entrei num compartimento quase cheio e sentei-me. À minha esquerda estava um
homem tresandando a álcool, a dormir, com um daqueles casacões de pelo de camelo,
muito feios, por cima da cabeça. N a minha frente iam duas rapariguitas magras, talvez
estudantes, e à minha direita, junto à janela, uma senhora bastante alta, loira, de meia
idade, que seria feia se não tivesse uma cabeça tão magnífica.
O que é curioso é que comecei a falar com ela assim que entrei, embora sem levantar
os olhos do livro que tinha tirado da pasta. Falei do desconforto das carruagens naquele
comboio, do horário, das carruagens cama para O slo, e sabe D eus de que mais— e, o que
é mais extraordinário, sem levantar os olhos uma única vez. Falava animadamente e
continuava a ler o meu livro.
S ó quando paramos em Kungsàngen e eu quis sair para o corredor, para ver onde
estávamos, é que a vi bem.
Ela... Como direi... irradiava qualquer coisa de maternal. Exteriormente não tinha
nada de notável, era até um pouco gorda, mas foi quando descobri os olhos dela que deve
ter... acontecido alguma coisa de especial. A queles olhos queriam qualquer coisa de mim,
tornavam-me mais real, havia qualquer coisa que tinha a ver com... (duas linhas tapadas
com tinta da China).
E depois em Enkõping, quando percebi que àquela hora já não havia correspondência
para Tillbergen, antes de aceitar a rápida e simpática oferta dela de me levar de carro,
apesar de ser tão tarde— ela era médica no hospital de Enkõping e estava habituada aos
horários mais estranhos— e depois a decisão, quase tão rápida, de não sair de Enkõping,
os beijos e as carícias (uma história banal, não, nada banal), a sensação de ser totalmente
envolvido por uma coisa desconhecida, de estar, na realidade, a mudar, e aquela sensação
estranha de uma súbita tranquilidade absoluta.
Como chegar a casa.
A creditem ou não, passou a Primavera sem que eu voltasse a vê-la, embora
vivêssemos apenas a sessenta ou setenta quilômetros um do outro.
Havia nisto uma espécie de dissipação, a consciência de uma riqueza que podíamos
esbanjar.
Tínhamos o hábito de nos telefonarmos, já de noite, contando um ao outro o que
tinha acontecido durante o dia, e escrevíamo-nos, pequenas cartas factuais, às vezes com
uma história engraçada.
Em breve sabia os nomes de todos os médicos e enfermeiras e até dos pacientes mais
interessantes do serviço dela no Hospital de Enkõping, e ela sabia praticamente tudo o
que se passava na minha casa. E na minha casa não se passava grande coisa.
Estar tão perto de uma vida diferente, desenrolando-se noutro lugar, num ambiente
totalmente diferente, proporcionava-me como que uma vida dupla— e era talvez dessa
vida dupla que eu sempre precisara, sem o saber.
(S empre suspeitei que todas as soluções se encontravam algures entre a minha vida e
uma outra.)
A s coisas talvez pudessem ter adormecido e ficado por ali. Tínhamos dormido juntos
uma vez e ainda bem. Essas coisas acontecem, em certas vidas muitas vezes, noutras
menos.
Tínhamos dormido juntos uma vez, e isso era muito bom, tranquilizava-me— e eu
não excluo a possibilidade de ela o ter feito com o objectivo, pelo menos inicial, de me
tranquilizar. Podia ter ficado por ali.
Mas aqueles olhos faziam-me lembrar alguma coisa. D espertavam para a vida alguma
coisa em mim.
Provocavam-me o sentimento de que havia alguma coisa de extraordinariamente
importante que eu sempre tinha descurado.
(Uma história banal, não, nada banal.) D escobri alguma coisa em mim cuja existência
eu ignorava. Isto deu-me a consciência de um novo sentido, de um recomeço.
O erro verdadeiramente interessante que cometi foi, claro, ter contado esta história a
Margareth.
(É claro que se pode dizer que acabaria por se tornar necessário, porque não havia
nenhuma forma razoável de explicar por que é que eu passava uma hora e meia ao
telefone, noite sim, noite não, a falar baixinho e longamente, entre grandes pausas, com
alguém que não podia pertencer ao círculo das nossas relações.)
Eu esperava todas as reações menos que ela ficasse contente. E ficou. A liviada e
contente, como se finalmente tivesse sido libertada de uma responsabilidade demasiado
grande.
— Convida-a para vir cá a casa— disse ela, falando da A nn.— Ela devia gostar de
conhecer este sítio. Pode vir até cá no Verão. Ela tem carro?
Isto era, evidentemente, o princípio do fim, embora eu não o tivesse compreendido na
altura.
Convidei a Ann a visitar-nos num domingo de Junho. Fui buscá-la à estação.
— O lago é muito bonito— disse ela.— Não fazia ideia que fosse tão grande.
— Estou muito contente por te ver— disse-lhe eu.
— Não sei. Não me sinto muito à vontade.
— Por que é que as pessoas hão de ter de se comportar sempre como nos romances?
— disse eu.
— Sim, eu sinto que tu tens razão— respondeu-me.
Era um espetáculo muito singular, ver aquelas duas mulheres juntas, Margareth,
pequena e magra, fresca, e A nn, maternal, séria, preocupada, como se tivesse vindo ver
um paciente. N ão sabiam nada uma da outra, e a única coisa que tinham em comum era
eu.
N os primeiros minutos pareciam levemente embaraçadas. I sto não vai resultar,
pensei eu. Vai ser uma tarde horrível. S ó espero que passe depressa. Meti-me numa coisa
que é uma loucura.
Como disse, era uma radiosa manhã de domingo, em J unho de 1970. À nossa volta
estendia-se a Vàstmanland. D e algum incêndio florestal numa das cristas azuladas a
norte, cobertas de bosques, chegava um odor suave e muito aromático do fogo. (O s
incêndios florestais têm a característica de emitirem um cheiro que é acre e desagradável
a pouca distância, e aromático e agradável a vários quilômetros.)
O grande lago de Ámànningen era picado por um ventinho ligeiro que fazia ondular a
superfície da água. Para noroeste, enferrujavam as gruas das minas abandonadas, cuja
exploração deixara de ser rentável com a descida dos fretes do minério africano. A norte,
elevava-se uma nuvem de fumo vermelho de uma das saídas da siderurgia de
Trummelsberg. D o canal e de todo o conjunto de lagos a sul chegava o som dos barcos a
motor que percorriam para trás e para diante a longa cadeia de lagos. Era aquela época
do ano em que toda esta região se anima subitamente e fica povoada.
Q uem a conheceu na tranquilidade do I nverno não consegue acreditar que é o mesmo
sítio. O vizinho mais próximo era então uma luzinha a tremer ao longe, numa janela a
seis quilômetros, no outro lado do lago.
A sul, a cintura de florestas cada vez mais húmidas, cada vez mais pantanosas, que
nos separa dos pântanos do Malar; a igreja de Ramnàs, com a sua estranha cúpula em
forma de cebola— Ramnàs, onde o meu pobre tio Knu e, embriagado, ia sempre parar
quando tentava atravessar o bosque de bicicleta, debaixo de chuva, para ir à Loja
Autorizada, das bebidas alcoólicas, em Vàsterás; a planície que se abre, finalmente, para
S órstafors e Kolbàck, junto ao seu rio negro e aprazível, as terras por onde errou a minha
infeliz e romântica tia Clara, durante um memorável O utono no fim da S egunda Guerra
Mundial, com um velho vagabundo cego e barbudo por quem ela, perdidamente, se
apaixonara. Morreu pouco tempo depois de pneumonia, pobrezinha. S omos uma família
estranha. Fazemos coisas estranhas.
E agora ali estava eu, a apresentar à minha mulher uma senhora que era claramente o
grande amor da minha vida.
D elicadamente, foram as duas dar uma volta ao jardim, observando todos os tufos de
flores. (Esta casa era então, em 1970, uma casa de Verão.)
— Tenham cuidado com as abelhas— disse eu.— A ndam muito excitadas. Estão
agressivas.
Elas riram.
O jardim é pequeno. N ão é preciso muito tempo para lhe dar uma volta. Mas elas
demoraram-se.
Voltaram muito risonhas, quase eufóricas. Tinham-se descoberto uma à outra.
A s abelhas e zangões zumbiam, os sinos da igreja de Vãster Vala repicavam— como
disse, era um lindíssimo dia de Verão.— Uma utopia— pensei eu.— Uma utopia
realizada. S empre pressenti isto. N ão há nada que nos impeça de viver fora das normas
habituais. E pensar que eu nunca tinha percebido isto!
O tempo que se seguiu foi muito especial. Foi um período que nos modificou muito, a
mim, à Ann, mas acima de tudo à Margareth.
Eu nunca tinha percebido que era de uma mãe que ela precisava.

(Caderno amarelo II: 10)

Todas as pessoas devem ter experimentado a sensação desagradável que se tem nas
estações de caminho de ferro. Vamos despedir-nos de alguém. A pessoa já entrou no
comboio, mas ele demora a partir. A li ficam as duas pessoas, uma na plataforma e a
outra à janela, esforçando-se por conversar, mas de repente não têm nada para dizer.
I sto, evidentemente, resulta de não podermos sentir o que queremos. A situação
impõe-nos um determinado sentimento. E quem não experimentou aquele tremendo
alívio quando o comboio finalmente parte?
O u nos funerais. Q uando alguém morre ou adoece, quando surgem as desilusões,
espera-se sempre que sintamos determinadas coisas.
Em todas as situações, excepto as mais quotidianas, as mais neutras, há uma pressão
que se exerce sobre nós, que nos dita a forma como devemos conduzir-nos, aquilo que
devemos sentir. E se examinarmos bem o fenômeno, verificamos, não raras vezes, que
esses papéis nos são atribuídos por romances, filmes ou peças de teatro que vimos há
muito tempo.
Q uando somos realmente confrontados com situações invulgares (por exemplo,
rivalidades que prevíamos e não se verificam, e em vez disso se transformam num amor
que nos deixa sós), a primeira coisa a que nos agarramos são esses padrões sentimentais
livrescos.
N ão nos ajudam muito. D eixam-nos mais sós do que antes— e caímos,
desamparados, na realidade.

(Caderno azul II: 5)

Levei muito tempo, naquele estranho Verão de 1970, a compreender como a A nn me


foi tirada.
(E o que elas me tiraram foi a minha última oportunidade, creio, de alcançar essa
autonomia, esse olhar lúcido sobre mim próprio e a minha dimensão, que me estiveram
destinados toda a minha vida e para os quais tudo apontava.
O que elas conseguiram impedir foi o irromper da realidade, da personalidade).
Vejo a questão assim:
O facto de eu ser casado desencadeou uma vaga de sentimentos de culpa na A nn.
Esses sentimentos de culpa eram inconciliáveis com o facto de ela me amar tanto como
eu a ela. A o mesmo tempo, toda a educação dela, todos os seus ideais, diziam-lhe que os
sentimentos de culpa são nocivos e devem ser afastados.
Ela transformou-os em "simpatia" pela Margareth. Margareth, por sua vez, viu
imediatamente a sua oportunidade, e as duas juntas fizeram de mim qualquer coisa de
irresponsável, uma criança com quem não se pode contar.
Enganaram-me perfeitamente, porque esta tríade de relações maternais e fraternais
criou um calor, uma paz, de uma natureza que eu desconhecia até então e que não voltei
a conhecer.
Como o calor de um ninho.

(Caderno azul II: 6)


3. UMA INFÂNCIA

Desde que comecei a ter dores a sério, acontece uma coisa muito curiosa:
S ão outras idades, outras recordações, que começam a tornar-se importantes para
mim.
Casamento, profissão, meu D eus! Tudo isso desaparece como se fosse uma bagatela,
um breve episódio— todas essas coisas que ainda há pouco tempo enchiam o meu
mundo e às vezes me mantinham acordado noites inteiras, entregue a especulações.
Tudo isso é agora um episódio trivial numa narrativa bem mais importante, em que a
infância é, por enquanto, o único capítulo verdadeiramente forte.
N ão compreendo bem a razão disto. A infância é um tempo solitário, concentrado em
si mesmo. Talvez a dor me torne novamente solitário, concentrado em mim mesmo,
como na infância.
Esta atenção obsessiva dispensada a um segredo vago e perigoso no próprio corpo,
aquela sensação de estar a dar-se uma modificação dramática sem poder definir em que
consiste, tudo isto me faz lembrar, de uma forma perversa, a pré-puberdade. Até um
vago sentimento de vergonha está novamente presente.
Ao queimar aquela maldita carta, de certo modo assumi sozinho toda a situação. Terei
de lutar sozinho, terei uma morte minha.
E contudo não acredito nela. É muito possível que em A bril as circunstâncias se
tenham alterado. S e é pedra no rim, mais cedo ou mais tarde acaba por sair. S e é uma
inflamação, pode muito bem debelar-se quando o tempo melhorar e aquecer um pouco.
S into simplesmente demasiada vitalidade para estar moribundo. Estar a morrer é
uma coisa que eu imagino como muito mais turva e mais debilitada.
Um homem moribundo não dá longos passeios com o cão entre as crises.
Ou talvez eu esteja a inventar uma nova maneira de morrer.
Para cúmulo da desgraça, o mundo exterior começou a dar sinais de vida, pela
primeira vez há vários meses.
O presidente da Comissão das Finanças, o carpinteiro S õderkvist, telefonou-me, aliás
num tom muito simpático e atencioso, para me recordar que posso ser multado se não
apresentar a declaração. O s meus primos Manngárdh querem passar cá na Páscoa, a
caminho de Sàlen, ficar uma noite e, como se costuma dizer, "saber de mim".
Pode ser complicado.
A o S õderkvist, disse que não me tenho sentido muito bem. Ele prometeu vir ajudar-
me a preencher a declaração uma noite destas.
Como ele disse ao telefone, não é muito difícil. D evemos fazer isso em menos de uma
hora.
"Para cúmulo da desgraça"— são expressões destas que imediatamente me fazem
voltar à minha infância, onde elas abundavam.
"Para cúmulo da desgraça" significa, evidentemente, que uma nova contrariedade foi
acrescentada à desgraça. A desgraça já é tanta, que corre o risco de transbordar.
PA RA CÚMULO D A D ES GRA ÇA — é daquelas coisas que a minha mãe esta
sempre a dizer.
A minha tia S vea diria de uma maneira completamente diferente. D iria: É D E FA ZER
CHORAR AS PEDRAS.
SÓ FALTAVA MAIS ESTA— o meu pai.
RAIOS PARTAM ISTO— o tio Stig.
DIABOS LEVEM ESTA TRAMPA TODA
MALDITA A HORA
SÓ FALTA BATER NA AVÓ
Vejo-os no Verão, no campo, à mesa do pequeno-almoço, possivelmente com parentes
Q UE CHEGA RA M E A BA N CA RA M. O tio Knu e, ligeiramente calvo, com as bochec
um pouco flácidas e caídas, sempre transpirado ao pequeno-almoço, como se lhe fosse
insuportável, sempre calado, à parte. O tio S tig, barba curta e quadrada, óculos de aros
dourados, só fala de ligas metálicas e dos êxitos da tecnologia russa na Guerra da Coreia.
Tanques que resistem aos morteiros americanos, apesar da pouca espessura da chapa. A
possibilidade de utilizar o calor que existe no interior da Terra quando as fontes de
energia fósseis começarem a escassear. A tia S vea, grande, rosetas vermelhas nas faces,
mãos ásperas como lixa quando nos faz festas na cara, histórias fantásticas da cozinha do
restaurante no tempo da crise, corpos magros e azulados de raposas, com as patas
cortadas, discretamente entregues na cozinha às sete horas da manhã, a fritura de carne
que entrava e saía da sala enquanto se ia cristalizando na sua superfície uma espessa
camada de gordura acinzentada, e o vendedor de lenha perdido de bêbado que deixou
cair um dos suspensórios dentro da retrete e que depois o colocou, muito direitinho, por
cima da elegante camisa de nylon comprada no mercado negro sem se aperceber dos
factos, e que teve de ser discretamente mandado para casa de táxi.
A tia Clara— não, essa já tinha desaparecido.
A avó Emma nunca lá estava, não pertence àquele retrato. N em sequer era avó, era só
uma avó adotiva que morreu quando eu tinha três anos. S ó a conheço de ouvir contar.
(Como é que eu me fui lembrar dela, D eus do céu! Estão a acontecer coisas na minha
memória, coisas estranhíssimas, que julgava impossíveis— começo a ver coisas que
nunca pensei que lá estivessem. Há uns dias que sou perseguido por uma recordação que
deve ser anterior ao meu terceiro aniversário: estou a passear com a avó Emma, de mão
dada, no D jàkneberget, o parque municipal de Vásterás, sob árvores verdes e altíssimas,
as sombras da folhagem brincam no chão fazendo remoinhos— exatamente, fazendo
remoinhos. E sei que a recordação deve ser muito antiga, porque os bancos do jardim são
incrivelmente altos.)
— Uma pessoa que eu cá sei sempre teve de se desenrascar sozinha— diz o tio
Knu e, e o resto é submergido no barulho feito por alguém a tentar partir um ovo cozido
particularmente duro contra o bordo da mesa.
UMA PESSOA QUE EU CÁ SEI
Uma das formas mais singulares e bizarras de dizer "eu". Muito banal, claro, mas bem
mais interessante que essa banalidade é o lado filosófico. UMA PES S O A Q UE EU CÁ S
é como um esgrimista que no último momento salta para o lado, levando a que o florete
do adversário perfure o ar onde ainda há pouco estava alguém.
N ão consigo imaginar uma língua mais insólita, mais fantasmagórica, do que aquela
que permite falar de si próprio como de uma outra pessoa.
UMA PESSOA QUE EU CÁ SEI TEVE SEMPRE DE SE DESENRASCAR SOZINHA.
S ignifica: vocês não fizeram muito para me ajudar, na verdade até têm uma parte de
responsabilidade nos meus problemas, nada prova que eles existiriam se não fossem
vocês. Por isso, também têm uma séria DÍVIDA DE GRATIDÃO para comigo.
— UM HO MEM TEM D E S A BER GO VERN A R-S E (troveja o tio S tig do outro lad
mesa).
Significa: se alguém tem culpa de seres alcoólico és tu.
PARA CÚMULO DA DESGRAÇA
É curioso, por mais que eu dê volta às recordações de todas as conversas que ouvi na
minha infância, não me lembro de uma única em que os participantes não estivessem a
jogar com os sentimentos de culpa uns dos outros. Esses sentimentos de culpa eram, no
seu convívio, mais ou menos o mesmo que a bola no jogo de tênis.
S em eles ficariam imóveis em relação uns aos outros, rígidos como estátuas. N ão
haveria motor, não haveria motivação.
O sentimento de culpa era a mola tensa, a réplica, o pequeno toque que a soltava.
Esses sentimentos de culpa moviam-se num registo impressionante, como o de um
órgão de igreja, desde
D Á-ME O S A L, S E FA ZES FAVO R, o registo mais elevado, passando por S ER
MUITO AMÁVEL DA TUA PARTE SE DEIXASSES ALGUM AÇÚCAR,
algures entre o salicional e a flauta dupla, até às profundezas do basal de trinta e dois
pés, como
E EU QUE SACRIFIQUEI TUDO POR TI
ou
S E N ÃO FO S S E TU TERES N A S CI D O , TERÍA MO S N O S S EPA RA D O A O
UM ANO.
Estas últimas e profundíssimas vozes, claro, destinavam-se apenas a obter efeitos
muito especiais. Música de igreja para ocasiões solenes, poderia dizer-se.
Q ue estranhas fugas, tocatas, riccercare, passacaglias, se tocavam naquele órgão de
culpa, que abismos de angústia medíocre, que infame lavar de roupa suja.
Bastava-lhes percorrerem uma vez o teclado, e no final havia sempre alguém a
estrebuchar na teia.
FUI SEMPRE O FILHO PREFERIDO DO PAI.
A MÃE TEVE S EMPRE UM FRA Q UI N HO PELO S TI G, ERA UM RA PA ZI N
DIREITAS, DIZIA ELA.
N ão tinham atrás de si uma vida fácil, mas também não particularmente dramática.
N ão havia ali destinos trágicos (embora estivéssemos nos anos quarenta, em que
aconteceram bastantes tragédias reais no mundo - há que ter o sentido das proporções).
Mas diabos me levem se havia alguma coisa que lhes acontecesse de que eles não
atribuíssem as culpas uns aos outros. E isso dava-lhes uma magnífica oportunidade de se
picarem entre si e de se manipularem.
A baixa classe média na S uécia vive do sentimento de culpa e do desprezo por si
própria. Possui uma única forma de retórica, que é a lamentação.
LIBERTA, SENHOR, A HUMANIDADE SOFREDORA
MAS LIBERTA-ME PRIMEIRO A MIM, QUE SOU QUEM MAIS SOFRE.
Basta andar alguns quilômetros na automotora para descobrir isso. S e não puderem
queixar-se de mais nada, queixam-se das suas estúpidas doenças, das dores nos joelhos,
das pedras na vesícula, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das
diarreias e das caganitas empedernidas que até fazem barulho ao bater no fundo do
penico e imaginam, enquanto falam de tudo isto, que alguém lhes dá importância só por
se queixarem.
IDIOTAS DE MERDA.
Neste momento, por exemplo, sinto uma dor latejante que daqui a alguns minutos me
impedirá de continuar a escrever. Começa na coxa direita, bastante em baixo. Parece que
um metal líquido se infiltrou na musculatura, um fio de ouro, talvez. D epois sobe para a
virilha direita, e envia um feixe de fios de ouro, de uma incandescência branca, em
direção ao umbigo, à anca, à parte de trás da perna, um leque de ecos surdos desse ouro
brilhante sobe até ao diafragma. S e me deito, a dor duplica. S e continuo sentado,
espalha-se pelas costas. N ão tem sempre o mesmo tom, as frequências e amplitudes
desse ouro de brilho branco mudam constantemente, formam acordes muito bonitos,
até, e por fim desafinam e tornam-se cortantes.
eu não culpo ninguém disto, caramba! Ninguém!
Muito melhor de há três dias para cá. Um pouco dorido, mais nada.
É engraçado, ontem arranjei dois amigos. Há muito tempo que não me acontecia.
Um chama-se Uffe e o outro J onny. O Uffe tem doze anos e o J onny está quase a fazê-
los.
O Uffe veio de S kinnska eberg e o J onny é de Borga, na Finlândia. Q uando eu ia a
sair para ver se havia correio, eles estavam à minha porta, quase iguais os dois, com
anoraques azuis, sardentos e de cabelos compridos, como dois cavalinhos das Ardenas.
Creio que vivem naquelas casas para trabalhadores florestais em S õrby: as famílias
mudaram-se para lá no O utono. Frequentam a escola da zona de Trummelsberg, mas
claro que não fazem ideia de que eu fui professor lá.
Partiram em busca de aventura— no fim das aulas, espero eu, mas também não é
impossível que tenham simplesmente feito gazeta um dia, aproveitando o bom tempo, e
que depois tenham tido sede e tenham vindo pedir água.
Mas acredito que foi apenas a curiosidade que os levou a baterem à porta. Q ueriam
saber quem seria o castiço que morava naquela casa rodeada de arbustos e com longas
filas de colmeias verdes.
— Entrem— disse eu.
Estavam um bocado tímidos. Falei-lhes das abelhas, mas não pareceram
particularmente interessados.
D epois falamos sobre os pais deles: parece que os dois pais tinham arranjado
emprego numas serrações grandes que vão entrar em funcionamento.
S obre a escola tinham pouco para contar, só que o refeitório era melhor do que nas
escolas anteriores, porque os tabuleiros não eram metálicos e não havia aquele constante
barulho infernal.
Um deles queria aprender a jogar hóquei e o outro interessava-se por basketball.
Foram degelando pouco a pouco, ao calor do meu irradiador eléctrico, e começaram a
brincar cautelosamente com o cão. A s peúgas do J onny estavam encharcadas, devia ter
buracos numa das botas (eu não percebo é como ele pode andar de galochas nesta altura
do ano), e eu ofereci-me para lhe emprestar umas meias de lã velhas. A ceitou, um pouco
hesitante, e abriu a mala da escola para guardar as peúgas dele (eu tinha-as embrulhado
numa folha de jornal).
Foi desta forma que descobri que ele trazia uma quantidade enorme de revistas de
quadradinhos, já bastante gastas. Pedi para as ver. Era uma pilha surpreendentemente
grande para uma mala tão pequena, todas elas do tipo mais grosseiro das histórias de
terror: O HO MEM D O TÚMULO , KUN G FU, A RREPI O S D E GELO , O S Q U
FANTÁSTICOS e por aí fora.
Folheamos juntos. Foi muito interessante.— Por que é que vocês leem estas coisas?
Não souberam explicar.
Eu penso que talvez saiba. É o medo vago e insistente da pré-puberdade que precisa
de se fixar em qualquer coisa. Procura núcleos de cristalização. A idade do medo,
poderíamos chamar-lhe. E, assim, ali estivemos sentados, acompanhados pelo tiquetaque
do relógio, falando de fantasmas, dos cadáveres conservados nos pântanos da D inamarca
e da possibilidade de existência de horrendos monstros noutros planetas, até que o cão
começou a uivar e eu apercebi-me de que me tinha esquecido de jantar.
Eles estavam muito contentes, acho eu. D isseram que haviam de voltar em breve.
Prometi-lhes que até lá escreveria uma história de terror muito melhor do que as de
qualquer dessas revistas ordinárias.
Aqueles garotos animaram-me, não sei porquê. Fizeram-me lembrar eu próprio. Além
disso comecei a pensar se não teria sido precipitado ao despedir-me do ensino. Mas em
primeiro lugar, não era especialmente agradável levantar-me de madrugada e tentar pôr
o carro a trabalhar às seis da manhã todos os dias, e em segundo lugar, agora é um
bocadinho tarde para pensar nisso.

(Caderno amarelo III: 1— 4)

O GRANDE ÓRGÃO DA ILHA DE OG

Resumo: N o continente, nas proximidades de Tinth, a I rmandade enviou D ick Roger


num barco, às I lhas Brumosas, há vários anos ocupadas pelo maléfico imperador
feiticeiro Ming, que todos julgavam ter desaparecido em chamas e fumo quando a sua
torre negra caíra num buraco que ele próprio fizera no universo, no final da narrativa
anterior.
A gora têm desaparecido navios no estreito de Tinth, uma bruma negra, até aqui
desconhecida, envolve as ilhas e a I rmandade receia que a sobrinha do Grão-Mestre, a
bela D iana D in, recentemente raptada por um grupo de temíveis homens de negro,
usando máscaras de couro, esteja aprisionada na ilha.
N uma das ilhas mais distantes, D ick Roger encontra dois marinheiros finlandeses
apavorados, cujos navios, em plena calmaria, tinham sido arrebatados por um estranho
ciclone. D ick dá-lhes comida e meias secas. O s dois marinheiros têm terríveis coisas para
contar. Ming ocupou todas as ilhas, com o auxílio dos seus aliados, seres não-humanos.
Todos os fugitivos contam que eles são invencíveis e têm poderes sobre-humanos—
serão possivelmente alguma espécie de demônios. E as próprias ilhas estão envoltas
numa bruma mágica.
É provável que D iana D in esteja prisioneira nas salas subterrâneas onde Ming
trabalha na sua última e terrível descoberta: um órgão gigantesco que produz uns
estranhos sons de alta frequência capazes de influenciar as pessoas psiquicamente e
acima de tudo de provocar dores de alta frequência, mesmo a enormes distâncias.
N uma cabana de uma ilhota perto da costa, D ick Roger e os seus companheiros
encontram um estranho velho de barbas brancas, S igismund, que diz possuir um
remédio absoluto para os terríveis efeitos do grande órgão.
O remédio está relacionado com uma serpente mágica, que o velho teima em
transportar sempre consigo, dentro de uma bilha.
Após uma violenta tempestade, os viajantes alcançam as praias enevoadas de OG.
Embora a manhã devesse ir avançada, a escuridão era quase total. Por entre as
cortinas de nevoeiro que se deslocavam incessantemente de um lado para o outro,
inquietas, como seres vivos, eles avistaram as altas falésias negras. S obre elas desfilava
um cortejo ininterrupto de nuvens negras, baixas e rápidas— como uma legião, pensou
Dick, como uma legião de almas penadas.
A ressaca diminuía. A violenta tempestade que desabara durante a noite,
transformava-se lentamente em marulho.
O lhou para trás. O s marinheiros, que o tinham acompanhado, com os seus casacos de
couro curtido rasgados e esburacados, estavam a pôr a salvo os últimos víveres e as velas
do navio, as quais pareciam não poder resistir muito mais tempo.
O único que dava uma impressão de perfeita serenidade era S igismund, que se
sentara, com a bilha e o tapete, sobre um pedaço de areia seca junto à muralha negra e
escarpada da praia. N ão parecia mais perturbado pelo lugar, o momento e a situação do
que se estivesse a dar um belo passeio de domingo.
Nesse instante estava ele a tirar uma bela flauta de prata de uma das pregas interiores
da sua veste rasgada, semelhante a um casacão. Zelosamente, esfregou a flauta com a
manga da veste até fazê-la brilhar, mesmo naquele estranho crepúsculo de N ovembro,
com um brilho surpreendente.
D evia ter tirado a tampa da bilha, que, miraculosamente, não se tinha partido durante
a violenta acostagem. Levou a flauta aos lábios. Por entre o sopro do vento, fez-se ouvir
uma melodia insólita, como um lamento.
— Está a tocar para a serpente— pensou Dick.
O s dois marinheiros finlandeses— sim, pouco antes da esforçada atracagem, eles
tinham contado que eram marinheiros finlandeses deixados nestas paragens por um
naufrágio, há vários anos— estavam a apanhar paus espalhados na areia para fazerem
uma fogueira.
— N ão sei se será prudente— disse D ick, apontando para a lenha. A fogueira pode
ser vista através do nevoeiro.
O s marinheiros finlandeses abanaram a cabeça, pensativos. A cabeça da serpente
despontava sobre o bordo da bilha, meneando de um lado para o outro.
— Está a dançar— disse D ick, mais para si próprio do que para os outros.— Esta
agora, está mesmo a dançar!
N esse momento sentiu uma dor aguçada, cortante. Partia de um ponto próximo da
virilha direita. O lhou em volta rapidamente. À sua direita e à sua esquerda, os outros
contorciam-se com dores. Um dos marinheiros finlandeses, estendido no chão, era
agitado por uma espécie de espasmos. O único ser que parecia perfeitamente impassível
era a serpente na bilha.
As dores eram piores do que ele jamais imaginara.
— S ó há uma hipótese— disse D ick, mobilizando todas as suas forças para conseguir
falar.— O terrível órgão ficou pronto pelo menos duas semanas antes do que
esperávamos.
Temos de descobrir o sítio de onde vêm as vibrações!

(Caderno azul III: 1)

"O s tumores malignos desenvolvem-se quando uma célula, um grupo de células ou


um tecido, por qualquer razão, se separam do conjunto e se organizam num indivíduo
independente que parasita o resto do organismo. Morfologicamente, esses tumores
mostram uma estrutura irregular e anárquica, comparável ao tecido embrionário, e as
suas células uma construção que se desvia do normal, com um aspecto desordenado e
muito heterogêneo. Um tumor maligno cresce rapidamente e independentemente do
resto do organismo. Com o desenvolvimento do tumor, os tecidos normais próximos são
destruídos, em parte devido à pressão causada pelo aumento de volume, mas
principalmente por ação directa. O tumor penetra no sistema lacunar circundante e nos
vasos linfáticos e sanguíneos por meio de excrescências microscópicas e depositando nos
vasos linfáticos e sanguíneos células isoladas ou partículas que vão fixar-se noutros
órgãos mais afastados e organizar-se aí como novos tumores individuais com as mesmas
características destrutivas que o tumor primitivo."

(Caderno azul: transcrição de excerto de livro não identificado III: 16)

D epois do que aconteceu ontem compreendo que até agora não levei as dores a sério.
Limitei-me a brincar com elas. Q uase se poderia dizer que as deixei darem um novo
conteúdo à minha vida— a alternância entre os dias em que não tinha dores e os dias em
que tinha criava uma espécie de dramatismo.
Tinha sempre alguma coisa em que ter esperança de manhã quando acordava, e
quando ia deitar-me era emocionante pensar se passaria a noite sem dores. Às vezes
havia períodos inteiros, dois, três, até quatro dias seguidos em que eu não sentia
absolutamente nada naquele sítio estranho junto à virilha direita.
A dor dramatizava o facto de eu ter um corpo, não, de eu ser um corpo, e a este facto
de eu ser um corpo podia ir buscar uma espécie de consolação, quase de segurança, como
uma pessoa muito solitária vai buscar segurança à presença de um animal doméstico.
Este animal doméstico era muito problemático e principalmente pela madrugada,
mais parecia um animal selvagem, mas de algum modo era meu, tal como a dor era
minha e não de outra pessoa.
Mas agora pergunto às vezes a mim próprio em que é que me meti, por exemplo,
quando queimei aquela carta do laboratório do hospital sem a abrir.
A quilo que eu senti no fim da noite e nas primeiras horas da manhã, nunca pensei,
pura e simplesmente, que existisse. É uma coisa absolutamente desconhecida, como que
de uma incandescência branca, absolutamente esmagadora. Procuro respirar muito
lentamente, mas enquanto ela dura, até mesmo a respiração, que devia ajudar-me, pelo
menos de uma forma muito abstrata, a distinguir entre a dor como sensação e o pânico,
constitui um esforço quase insuperável.
J á não tem nada de animal doméstico. Uma força tremenda, inaudita, de uma
incandescência branca, impessoal, instala-se no meu sistema nervoso, ocupa-o até à
última molécula numa nuvem de gases incandescentes, como na... na coroa solar (toda a
noite pensei nas protuberâncias solares, na sua pulsação, na sua erupção, em cascata,
sobre a superfície do Sol).
Compreendo agora que brinquei com tudo isto. Levei-o tão pouco a sério como tudo o
resto na minha vida.
Mas isto vem do exterior! Meu D eus, de onde é que isto vem? E que inauditas e
misteriosas forças pode um pobre sistema nervoso atormentado produzir. Forças
exclusivamente viradas contra mim. Justamente contra mim!
A gora estou um pouco melhor. D esde há duas horas sinto-me de facto melhor. Mas
continuo coberto de suores frios e a caneta treme-me na mão enquanto escrevo.
Tenho esperança, não, tenho a certeza de que isto não se repetirá. D eve ter sido
alguma coisa que quebrou, que se destruiu tão definitivamente que não voltará a causar-
me dores.
O u então talvez volte daqui a algumas horas... O que eu experimento agora é um
estado de pura dissolução, de puro caos.
N unca tinha compreendido que a possibilidade de nos concebermos a nós próprios
como uma coisa una e ordenada, como um eu humano, depende da existência de uma
probabilidade de futuro. O próprio sentido do eu assenta no facto de ele poder existir no
dia seguinte também.
A quela dor de incandescência branca, evidentemente, no fundo não é mais do que a
exata medida das forças que mantêm este corpo inteiro. É a exata medida da força que
permitiu a minha existência. A morte e a vida são na verdade coisas INAUDITAS.
(Caderno amarelo III: 23)

"A sta Bolin não presumia ter a resposta à questão de saber se o sofrimento tem algum
sentido— era esse, simplesmente, o título da sua conferência.
Contudo ela tinha muitas boas palavras a oferecer, palavras de conforto, palavras de
bom senso.
Contou que uma vez, quando um amigo dela, sofrendo uma perda terrível, sentia o
total absurdo de tudo, ela, no seu ansioso desejo de o ajudar, disse-lhe algumas palavras
que acabaram por ser verdadeiramente úteis. E essas palavras foram: Todas as coisas
acabam por ter o sentido que nós lhes damos.'
A sta Bolin não pretendia que essas palavras contivessem uma qualquer espécie de
verdade, filosófica ou outra, mas achava que apesar de tudo elas exprimiam alguma coisa
que é essencial: que podemos ser ativos na nossa dor, podemos tentar trabalhá-la."

(Caderno amarelo: recorte do Jornal de Vãstmanland, de 10 de Março, III: 26)

Terras baixas. Pântanos. Águas lentas, preguiçosas, que se espraiam numa


imensidade de pequenos canais. Aves que se elevam bruscamente no ar, como uma
nuvem, quando nos aproximamos. Ventos suaves que agitam uma água profunda,
castanha. Nuvens.
Uma boa parte dos verões da minha juventude foram passados a sul da floresta, junto
à Fundição de Ramnàs.
É estranho, mas sempre que preciso de ir buscar conforto, não o conforto transitório e
superficial, mas aquele conforto profundo que nos diz que nada vai melhorar, mas que
temos de nos sentir reconfortados mesmo assim— nessas alturas penso naquela terra.
Uma terra onde tudo é o som da água a correr, desde os turbilhões negros da represa
de Fàrmansbo até aos nostálgicos pântanos povoados de pássaros de Sõdra Nadden.
Cardumes de peixes perfeitamente imóveis nas águas verdes, que desaparecem
instantaneamente quando uma sombra se projeta sobre eles.
Lá em cima no rio Kolbàck, algures entre os lagos, eu e o meu pai estivemos quase a
morrer afogados, um dia no fim de N ovembro de 1943, em que quisemos atravessar para
a outra margem, numa barca, para comprar manteiga a um lavrador. Era uma daquelas
velhas barcas castanhas usadas pela gente do campo— para sul de Ámànningen, porque
para cima são mais bicudas— em que o fundo escorrega como gelo por causa das algas
que lá crescem— e nestas barcas é fácil cair e partir a espinha, se não se tem cuidado— e
além disso metem água que é uma coisa por demais.
A barca que tínhamos pedido emprestada metia água numa quantidade colossal,
muito mais do que tínhamos pensado.
Fomo-nos revezando a despejá-la, como loucos, os braços doridos, até encalharmos,
no último segundo, num banco de lodo já do outro lado. A água estava gelada e as
minhas mãos roxas.
Embora fosse ainda muito pequeno, creio que aquele vazar de água ininterrupto se
me apresentou como uma imagem de vida.
O mercado negro desempenhava um papel crucial na nossa existência quando eu era
garoto. Tenho a sensação de que andávamos em constantes expedições nocturnas para
comprar manteiga sem senhas de racionamento, para deitar mão a algum pedaço de
carne de alce.
Há três dias que a dor corre menos forte. É como se tivesse passado uma terrível
cascata e estivéssemos agora de novo na contracorrente, nos lentos turbilhões negros,
novamente no lado de lá. O ntem saí para dar um pequeno passeio. N ão me atrevi a
conduzir, porque me sinto um pouco abatido, mas como o S undblad está cá, nas férias de
Fevereiro, e sabe que eu não ando bem, tem-me feito compras todos os dias. Às vezes
penso como vai ser isto quando eles se forem embora. Provavelmente, já estarei a pé. N o
meu íntimo, sinto que acabo de passar uma crise: na verdade, agora só me sinto dorido.
I magino, com razão ou sem ela, que foi qualquer coisa como um abcesso que tinha de
rebentar e rebentou, e que agora começo automaticamente a melhorar. Espero que seja
verdade.
S eja como for, aquilo que me aconteceu na semana passada deve ter-me debilitado—
fosse lá o que fosse.
Tenho passado toda a manhã a pensar se não deveria pegar no escadote e ir ao sótão
buscar uns quadros das colmeias que deviam ser lixados e repintados. S eria uma
ocupação útil. Escrever deixa-me ainda mais deprimido. Mas depois de passar metade da
manhã a pensar, cheguei à conclusão de que simplesmente não tenho forças. Talvez
amanhã.
Havia sempre nuvens baixas naqueles pântanos, que se refletiam na água dos canais.
Às vezes, no Verão— principalmente nos verões dos anos quarenta— tinha a
sensação de andar por baixo de um tecto. Como se tivesse caído numa armadilha
complicada.
N essa altura, nos anos quarenta, ainda havia aquelas cozinhas do campo com
enormes chaminés caiadas de branco. N as quadras festivas eram sempre caiadas de
novo, e as sucessivas camadas de cal deviam aumentar-lhes as dimensões.
D eve ter sido à beira de uma dessas grandes chaminés aquecidas e caiadas que
terminou a nossa aventura, naquela vez. A inda me lembro do ligeiro sabor a queimado
do café fraco que bebíamos naquele tempo.
O meu tio S une tinha uma venda, uma daquelas lojas rurais, no cimo de uma encosta
no lado ocidental de Âmãnningen, onde passava então a velha estrada de cascalho que
ligava Fagersta a Virsbo.
Era uma casa verde com uma bomba de gasolina à frente, uma grande bomba
vermelha, daquele modelo verdadeiramente fascinante que tinha uma cúpula de vidro
em cima, deixando ver a gasolina amarela a fazer rodar uma espécie de parafuso. N a
década de quarenta, claro, não havia gasolina na bomba, mas ela não deixava de ser
elegante. O meu tio morava no andar de cima com a sua esposa Ruth, incrivelmente
gorda, que ninguém via sair. A cho que ela tinha até dificuldade em descer a escada para
a loja, onde habitualmente imperava, com um imenso avental branco ligeiramente
manchado de sangue a cobrir-lhe o ventre redondo.
A loja era castanha por dentro: paredes castanhas, balcão castanho, de onde saía uma
guita castanha, por um buraco que alguém devia ter feito com uma tesoura. Faltava
muito para o tempo dos sacos de plástico. Uma montra de charcutaria em vidro, onde
algumas fatias de fígado, verdes, nadavam num caldo orgânico não especificado. N as
traseiras havia uma salinha onde o tio Sune contava senhas de racionamento até às tantas
da noite, com os óculos de aros de aço presos na testa. N o jardim, um casinhoto onde se
guardava petróleo, artefatos de metal, um ou outro pneu de bicicleta (severamente
racionados) e outros objetos.
Ele estava sempre a fumar umas cigarrilhas castanhas e como tinha um bigode mais
ou menos do mesmo modelo do de N ie sche e de Estaline, as pessoas receavam sempre
que o bigode pegasse fogo quando a beata, como se fosse uma mecha, recuava
lentamente na sua direção.
Talvez ele tivesse algumas semelhanças com N ie sche. Era individualista. N ão se
deixava impressionar. N as conversas sobre a guerra em curso, que decorriam em frente
ao seu balcão enquanto ele corria de um lado para o outro, beata pendurada na boca, um
lápis atrás de cada orelha e uma tesoura para cortar as senhas de racionamento
pendurada por um cordel à cintura, sempre à pressa, tirava a beata da boca por um breve
momento e disparava:
— É tudo a mesma merda!
É tudo a mesma merda era quase um lema para ele, uma réplica que ele retomava em
todas as situações mais dramáticas.
O tio S une tinha um camião Volvo com um gasogênio acoplado, guardado numa
barraca no pátio da sua casa no alto da encosta. Às vezes andava, outras vezes não.
Levava-se horas a serrar lenha para o gasogênio: pequenos pedaços de madeira que eram
cortados de achas e talhados com a serra. Era um tormento para se conseguir acender o
fogo na caldeira, uma lição de paciência até que o gás começasse a penetrar nos tubos e
nos nichos daquela extraordinária marmita colocada atrás da cabina do condutor. Às
vezes começava a arder a sério e então, era chegar rapidamente ao lago mais próximo—
felizmente havia muitos— e baldear água para cima do aparelho. N os cilindros do motor
ficava um alcatrão escuro e peganhento.
Mas ele precisava do veículo para transportar a farinha, o açúcar, as bilhas do leite e
coisas misteriosas trazidas de noite, no maior segredo, de Vãsteràs e Kolbàck.
Metia-se em tudo o que era negócio, o tio S une. A liás continuou a fazê-lo até quase ao
fim dos anos sessenta, embora nessa altura já tivesse mudado há muito tempo para o
ramo da construção, e estivesse ocupado a obter empréstimos estatais para fazer prédios
de apartamentos construídos às três pancadas sobre os imensos campos de
Hallstahammar e Virsbo e depois arrendados, a preços exorbitantes, a operários
finlandeses. Cresceram como cogumelos por aquelas bandas, na terra barrenta e ácida de
Vástmanland. Mas isso também é outra história. N essa altura já ele se tinha mudado
para uma vivenda de dezoito assoalhadas com piscina e telhado de cobre em Vãsteràs e
intitulava-se construtor.
Mas agora estávamos nos anos 40.
N o Verão de 1940, S une arranjou três barris de gasolina. Vieram da N oruega,
imagine-se!, e nem sei bem como ele os conseguiu, mas possivelmente trocou-os por
outra coisa qualquer.
O camião tinha o motor já demasiado destruído para valer a pena readaptá-lo à
gasolina, mas ele tinha o seu velho Plymouth de antes da guerra que estava há dois anos
parado, na garagem de uma quinta ali perto.
Trouxe-o para casa, puxado por dois cavalos, e gastou um sábado e um domingo a pô-
lo em condições. O motor ronronava como um gato com a preciosa gasolina alemã que de
alguma forma misteriosa atravessara a fronteira com a N oruega, coisa que nem os
refugiados conseguiam fazer naquele tempo.
O ra ele não podia andar com um carro a gasolina, assim sem mais nem menos. N ão
tardaria a ir parar à prisão. Mesmo sem isso, os vizinhos já eram suficientemente
invejosos e maus.
I sto apesar de comprarem fiado meses seguidos, quase todos eles. Para não falar nas
aldrabices com as preciosas senhas de racionamento, a que ele fazia vista grossa. Uns
estafermos ingratos, que estavam sempre a caluniá-lo. Tudo a mesma merda!
D escobriu uma oficina para os lados de S õrstafors que tinha um gasogênio para
automóvel ligeiro, daqueles que iam ligados ao carro como um pequeno atrelado, por
meio de um complicado sistema de tubos, fios, cabos e esferas.
O aparelho estava todo roído pela ferrugem e parcialmente queimado, mas restava-
lhe uma característica importante: ainda rolava.
O tio S une comprou-o por cinco coroas, como sucata, e passou um sábado e um
domingo a pintar de prateado aquele prodígio. D esde que não se raspasse a tinta, estava
perfeito.
O automóvel andava primorosamente, a gasolina, e o gasogênio seguia-o como podia.
É claro que reduzia um pouco a velocidade do carro, mas à parte isso era exactamente o
mesmo que conduzir um carro de antes da guerra.
O tio S une passeou-se por toda a Vástmanland, gozando a sua nova liberdade de
movimentos, levava a sua rotunda esposa ao cinema a Vàsterás e achava que a vida, de
um modo geral, começava a compor-se. A liás, aquela foi uma época excelente para os
negócios.
A estrada velha entre Virsbo e Fagersta não era grande coisa. Atualmente passa uma
auto estrada mesmo pelo pátio do tio S une, da loja verde não resta nada e a única
recordação do que ali havia é um velho freixo muito bonito que, milagrosamente,
escapou a tratores e explosões e se debruça agora sobre a faixa direita da via.
S empre que ali passo, penso naquele tempo. O freixo continua a cobrir-se de folhas na
Primavera.
São árvores fortes, os freixos.
A estrada antiga ficava cheia de buracos a seguir ao I nverno, por causa do transporte
de árvores. Às vezes, no princípio da Primavera, havia grandes pedaços na berma, do
lado esquerdo (estou a ver a área de norte para sul, mas estou mais habituado a vir do
outro lado) que ruíam e iam parar ao lago, e os elegantes postos de sinalização vermelhos
da A dministração Viária aconselhavam prudência naquele troço. A s encostas eram uma
coisa incrível. A mais comprida tinha seguramente mais de cinco quilômetros, e era o
sonho de qualquer ciclista que viesse do Norte e um pesadelo para quem viesse do Sul.
A nova estrada é praticamente plana.
Atravessando aquelas imensas encostas que são os contrafortes de Landsberget,
avança por entre as escarpas imponentes rasgadas a dinamite, e os velhos pântanos
lamacentos da S õdra N adden, com os seus canais ondeados pelo vento, os patos
selvagens e os insondáveis labirintos de lentas águas negras foram parcialmente
aterrados com milhares de carregamentos do entulho produzido pelas dinamites, trazido
em caminhões. Uma reviravolta no ordenamento.
Talvez esta paisagem tenha perdido a sua alma. O u talvez ela esteja apenas
escondida. Eu acredito que voltará um dia.
S eja como for: a estrada estava miserável naquela Primavera de 1942 ou 43, e após
uma correspondência escrita que durou seis meses, os dois municípios, Virsbo e
Vãstanfors, conseguiram que a A dministração D istrital em Vàsterás se dispusesse a
fazer-lhe uma vistoria.
O s senhores da A dministração D istrital partiram de manhãzinha, em dois carros
cheios— certamente com gasogênios. N o cruzamento que havia um pouco ao norte de
Virsbo, a delegação da A dministração D istrital encontrou-se com os representantes da
Câmara de Virsbo (estou a citar o Jornal de Vástmanland), que seguia num terceiro carro.
A ssim, quando o primeiro carro, transportando o D irector das Estradas e o S ecretário
Regional (que era igualmente membro superior da Comissão do Racionamento), partiu o
eixo de trás, três quilômetros a sul da encosta do tio S une, foi talvez a manifestação de
um acaso extraordinário.
E foi deste modo que, acompanhados por dois outros funcionários, os dois
cavalheiros tiveram de trepar estrada acima, chapinhando na neve da Primavera, até que
chegaram à casa do tio S une. Q uis o azar que eles fossem no último carro da fila quando
se deu o acidente, e os ocupantes dos outros dois veículos aparentemente não deram por
nada.
Patinhando na neve meio derretida, discutiam, pois, animadamente se deviam
continuar em direção a Fagersta ou voltar para Virsbo, quando o S ecretário Regional
avistou a bomba de gasolina vermelha do tio Sune no cimo da encosta.
N esta altura já o suor lhe escorria pelo rosto afogueado enquanto ele avançava
arrastando atrás de si o cachecol, com a outra ponta enfiada no bolso. A pasta,
felizmente, um dos funcionários tinha-se encarregado dela.
O tio S une reconheceu o D iretor das Estradas e o S ecretário Regional por causa das
fotografias publicadas no J ornal de Vàstmanland, e empalideceu por um momento. Teria
algum dos seus mais recentes negócios sido excessivamente arrojado?
Q uando viu o estado em que eles se encontravam, recuperou rapidamente a calma e
ostentou o seu sorriso mais insinuante por baixo do bigode à Estaline.
Pouco depois, os cavalheiros, em ceroulas, sentavam-se à volta da mesa posta para o
café no andar de cima, enquanto a tia Ruth, na cozinha, lhes passava as calças com um
ferro bem quente. Conversa sobre o terrível estado da estrada, dia sim, dia não, alguém
partia o eixo de trás, os problemas que tinha um pobre comerciante nos dias que corriam
por causa das senhas de racionamento, e era claríssimo que os cavalheiros
compreendiam, mas também não era fácil estar na Comissão do Racionamento, aqui
entre nós, senhor Jansson, e se não fosse muita maçada, mais uma gotinha de conhaque?
Tudo muito agradável, podia ter continuado pela noite fora e o D iretor das Estradas
estava absolutamente persuadido de que a estrada tinha de ser asfaltada sem demora,
pelo menos até esta lojinha tão simpática, e tudo no melhor dos mundos até que um dos
cavalheiros olhou para o relógio.
Pânico! Vestiram-se as calças num instante, muito e muito obrigado e a questão agora
é se o senhor J ansson faria o especialíssimo favor de nos levar, ou a Virsbo ou a
Vàstanfors— o que é que fica mais perto?
A h, Vàstanfors? E o senhor J ansson, que foi tããão amável, poderia por acaso levar-nos
lá abaixo a Vàstanfors, não, aliás, lá acima a Vàstanfors? O senhor J ansson tinha
justamente posto em funcionamento o seu novo gasogênio, não foi o que disse?
O tio Sune esgueirou-se até ao casinhoto do combustível e atestou o Plymouth.
A viagem de automóvel foi tão agradável como toda a tarde. O tio S une estava de
excelente humor, a cigarrilha agitava-se alegremente no bigode à N ie sche, e mais ou
menos quando passaram junto ao asilo para alcoólicos de S undby, já ele tinha
praticamente obtido a garantia de uma atribuição especialmente volumosa de fazenda
para a sua loja por parte da Comissão do Racionamento. Triunfalmente, o carro parou
diante do velho edifício da Câmara Municipal em Fagersta, onde um taciturno comité de
recepção se animou ligeiramente ao avistar os representantes oficiais no banco de trás.
Eram aguardados por vereadores de três Câmaras, uns senhores do Conselho Regional e
da Administração Viária e o chefe da polícia de Vãstanfors.
O s cavalheiros saíram e agradeceram a boleia. Foi então que alguém reparou que
faltava o gasogênio. N ão estava lá, pura e simplesmente! O u o tio S une, com a pressa, se
tinha esquecido de o acoplar, ou, o que é talvez mais provável, o estupor da maquineta
tinha-se desligado no caminho.
Ele estava tão sinceramente surpreendido como os outros.
— Esta agora— exclamou.— O nde para o meu gasogênio? O automóvel ronronava
alegremente em ponto morto, mas
ninguém— graças a Deus— estava com presença de espírito para reparar.
— Devemos ter perdido aquela traquitana— disse o tio Sune.
— Mas então como é que chegamos aqui, com os diabos?— disse o D iretor das
Estradas.
— N ão tem mistério nenhum— disse o S ecretário Regional com toda a sua autoridade
e superior competência de alto funcionário.— É uma encosta muito comprida.
— Mas nós viemos a subir a encosta— alegou o D iretor das Estradas
consternadamente.— Foi o caminho todo a subir.
— Pois é... É tudo a mesma merda— disse o tio S une, não sem uma ponta de
apreensão.

(Caderno amarelo III: 30)


Tudo a mesma merda. A o longo da escola primária, da escola secundária, do
Magistério, ganha-se acesso, passando por sucessivas comportas, a uma linguagem mais
refinada. E mais abstrata. N a escola secundária via-se a diferença entre as crianças
oriundas dos estratos mais populares e as da classe média. O s filhos das famílias mais
pobres falavam uma língua mais áspera, sem ilusões. Passei por essa experiência
quando era professor.
Uma perspectiva rasteira, em que as motivações de todos os atos eram duras,
egoístas, cínicas.
Linguagem da classe média: a mais indefinida de todas. Baseia-se no facto de que
para atingir um ponto mais alto na hierarquia social, é preciso comportarmo-nos como se
já lá estivéssemos. I sto cria uma curiosa incerteza em todo o sistema. S abe-se o que as
palavras querem dizer, mas ao mesmo tempo não se sabe.
Por exemplo, de há uns meses para cá ando "cheio de cagaço". N outra linguagem,
diria que sinto a angústia da morte. A angústia da morte dá às coisas uma dimensão
totalmente diferente, como se houvesse um entendimento mais profundo ao dizer-se
"angústia da morte" do que ao dizer-se "cagaço". N ão vejo que esta dimensão mais
elevada exista. N unca como nos últimos meses tinha sido tão claro para mim que a
sociedade tem um subconsciente. Talvez seja porque o medo me liberta de todas as
linguagens que um dia me foram ensinadas para me defender dele. Começo a ver com a
terrível nitidez, a apavorada nitidez de um rapazinho.
O subconsciente da sociedade. A s cobaias lentamente torturadas até à morte nos
laboratórios, com tubos ligados às veias e estômagos, células cancerosas implantadas em
fígados de cães por meio de longas agulhas. O s corredores dos hospitais psiquiátricos, os
alcoólicos magros e trémulos de Storbron, em Vàsterâs.
Um preço horrível, ininterruptamente a ser pago. Mas a quem? E porquê? O que foi
que a minha existência pagou até agora?
J á derreteu tanta neve que as pedras molhadas e as folhas em putrefacção do ano
passado começam a ver-se por toda a parte.
Sempre imaginei o paraíso seco e quente, principalmente sem humidade.
No paraíso não há mentiras.

(Caderno azul III: 5)

Três dias totalmente indolores. O Uffe e o J onny apareceram outra vez. Li-lhes a
minha história de terror. N ão ficaram tão impressionados como eu imaginara. A charam
que o começo era bom, mas que precisava de ter muito mais acção. D iscutimos várias
evoluções possíveis. O s heróis conseguirão chegar à tal torre e destruir o órgão cujo som
produz dores, ou terá de haver alguma forma de ajuda exterior?
D everão tentar cercar a torre? D everá um dos homens sacrificar-se para desviar as
atenções? É possível evitar aqueles sons que provocam dor metendo cera nos ouvidos?
O Uffe trazia a testa coberta por um enorme penso. Tinha levado com um stick de
hóquei num sobrolho.
Traziam uma lupa e estiveram muito tempo sentados nos degraus a tentar pegar fogo
a uns atacadores. Mas este sol de Primavera ainda é muito fraco.
Divertem-me e distraem-me imenso, aqueles dois. São por assim dizer, evidentes.

(Caderno amarelo III: 31)

Está a acontecer uma coisa de que mal ouso falar, com medo de que deixe de ser
verdadeira.
Há doze dias que as dores desapareceram. S into-me muitas vezes cansado, um pouco
tonto, mas pode perfeitamente ser o vulgar cansaço primaveril. Fui às compras quatro
vezes, de carro.
Talvez não fosse nada de muito grave, afinal. Pedra no rim? Pequenos cálculos que
saíram? O facto é que os sintomas assemelhavam-se bastante às dores da pedra no rim.
A liás diz-se que são das dores mais fortes que existem. Mais fortes que as dores de
parto, li eu num número antigo do Scientific American.
Decidi esperar mais uma semana antes de começar a ter esperança.

(Caderno amarelo III: 32)

Q uando eu era garoto, ou quando tinha aquela idade: o típico cheiro a suor do
ginásio, cheiro a fechado acumulando-se junto ao tecto, os espaldares, a sensação de
querer fazer coisas e as forças não chegarem, de ser homem e rapaz ao mesmo tempo. E
aquele semi torpor vegetativo durante as aulas, na pré-puberdade, sentado a brincar com
os dedos, a tentar entrançá-los uns nos outros de maneiras diferentes, como se fosse no
próprio cérebro que tentava fazer tranças: tentava entender os seus labirintos.
J ulguei durante muito tempo que aquele curioso estado semi adormecido tinha
relação com o carácter enfadonho da escola, mas não.
Começo a sentir isso novamente: uma espécie de vitalidade contida, que se prepara
para uma grande modificação.
No meu caso é o ter atrás de mim a crise de uma doença.
A estranha, a tranquila melancolia do rapazinho.
Terei, pois, de voltar a ser garoto.

(Caderno amarelo III: 33)


4. ENTREATO

(N ão há quaisquer notas durante trinta e três dias) 6 de A bril. A s dores diminuem.


Apenas um vazio.

(Caderno rasgado IX)

8 de A bril. Todo o dia se ouviu uivar um cão que deve ser novo na área. O som vem do
sul, incrivelmente lamentoso e monótono. Estará preso?
O meu problema é que apesar de já não ter dores sou atormentado por outra coisa:
começo a ter esperança, e ao mesmo tempo não me atrevo a ter esperança, com medo de
que as dores voltem a qualquer momento.
Tenho andado a pensar nisto: o Hospital de Vàsterás não voltou a dar sinal de vida
depois daquela carta que eu queimei. S e fosse realmente câncer, é provável que eles me
tivessem contactado ao verem que eu não aparecia. É evidente que eles se preocupam
com os doentes. Portanto era uma coisa sem gravidade, alguma inflamação. Peritonite?
A não ser que não se tenham ralado mais comigo.
Comecei a evitar ir à caixa do correio.

(Caderno amarelo IV: 1)

9 de A bril. Ter esperança é quase tão difícil como o resto. Mas estamos mais
habituados a ter esperança e a ter medo do que a estar no meio daquilo que esperamos
ou tememos.
Aprendi: que não há nenhuma verdadeira saída para a vida.
Podemos quando muito adiar a decisão, com habilidade e astúcia. Mas não há saída. É
um sistema totalmente fechado, e no fim existe só a morte. E a morte, claro, não é uma
saída.
S ou um corpo. A penas um corpo. Tudo o que tem de ser feito, que pode ser feito, tem
de ser feito dentro deste corpo.

(Caderno amarelo IV: 2)

Estive a pensar no paraíso, imagine-se. Meti-me também a lixar a porta da rua, que
tem de ser pintada. A tinta estalou durante o I nverno e está toda a pelar. Fui dar com três
latas de tinta num armário da cozinha— devem lá estar desde sessenta e tal, desde que
casei.
O paraíso oferece problemas interessantes. O que é um estado de felicidade que se
prolonga indefinidamente?
Pensa-se logo no orgasmo, claro. Um imenso orgasmo de felicidade que nos
surpreende não terminando. Prolonga-se minuto após minuto, hora após hora. É tão
intenso, tão incandescente, que não se consegue pensar, mas sente-se que alguma coisa
de fantástico está a acontecer. Começa-se a desejar um breve momento para respirar,
nem que fosse um décimo de segundo para poder refletir, mas aquele prazer extremo
continua sempre, não se deixa convencer, persiste hora após hora...
O paraíso? Tudo isto eu acabei de experimentar.
O paraíso deve ser quando uma dor termina. Mas isso quer dizer que sempre que não
temos dores vivemos no paraíso! E não sabemos!
Os felizes e os infelizes vivem no mesmo mundo e não o veem!
Tenho a sensação de neste último mês ter feito a volta da minha vida por um labirinto
misterioso, fantástico, e ter regressado precisamente ao ponto de partida. S implesmente,
como estive fora das dimensões habituais, a direita e a esquerda inverteram-se. A minha
mão direita agora é uma mão esquerda e a minha mão esquerda uma mão direita.
De volta ao mesmo mundo, e encontro-o feliz.
As escamas de tinta na porta fazem parte de uma misteriosa obra de arte.

(Caderno amarelo IV: 3)

D evia ter utilizado o tempo melhor do que desperdiçando-o como professor primário
em Vàster Vala e depois como apicultor reformado antecipadamente, aqui.
Lista das formas de arte segundo o seu grau de dificuldade:
1. Erotismo
2. Música
3. Poesia
4. Drama
5. Pirotecnia
6. Filosofia
7. Surfing
8. Romance
9. Vitral
10. Tênis
11 Pintura a aquarela
12. Pintura a óleo
13. Retórica
14. Culinária
15. Arquitetura
16. Squash
17. Halterofilismo
18. Política
19. Trapézio
20. Paraquedismo
21. Alpinismo
22. Escultura
23. Bicicleta Artística
24. Malabarismo
25. Arte do Aforismo
26. Construção de fontes
27. Esgrima
28. Artilharia

Há uma que não consigo colocar na ordem: a arte de suportar a dor. I sso deve-se a que
ninguém até agora conseguiu transformar isso numa arte. D eve-se também a que é a
única forma de arte em que o grau de dificuldade é tão elevado, que não existe nenhum
praticante.

(Caderno azul IV: 1)

Um mundo onde reina a verdade


N o planeta número 3 do S istema 13, em A ldebaran, existe uma civilização que se
relaciona diretamente com a realidade, sem símbolos intermediários.
A ideia de que, por exemplo, uma figura desenhada num papel representa alguma
coisa mais do que ela própria é totalmente alheia aos miriápodes possuidores de uma
força extraordinária que constituem o estádio civilizacional mais elevado do planeta.
A sua força invulgar pouco lhes adianta. Uma vez que o único símbolo de uma coisa
que eles conhecem é a própria coisa, têm de transportar constantemente uma enorme
quantidade de objetos. N este planeta a expressão "uma retórica vigorosa" tem um
significado real.
Por exemplo, quando se quer dizer "uma pedra aquecida pelo sol", só há uma maneira.
É pôr uma pedra aquecida ao sol na mão, ou melhor, na pata daquele com quem se está a
falar.
S e se quiser dizer "uma pedra gigantesca no alto de uma montanha", só há uma
maneira de proferir essa frase. É carregar com uma pedra gigantesca para o cimo de uma
montanha.
Produzir um poema, nestas circunstâncias, é uma prova de força que permanece, em
toda a sua heroica evidência, por várias gerações.
A maior parte dos sonetos que esta civilização produziu parecem-se de certo modo
com S tonehenge: formidáveis grupos de pedras alinhadas por heroicos antepassados,
arquejando e gemendo, com as veias salientes, segundo um esquema ancestral.
N esta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. S e se quer
dizer "amo-te" a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. S e se quer dizer "não te amo",
também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. S e se for capaz. N um mundo
em que o símbolo é sempre coincidente com a própria coisa e esta não pode ser
substituída por pequenos sons ridículos ou por fieiras de sinaizinhos bizarros
desenhados num papel, sinais esses que nada têm a ver seja com o que for para além de
uma frágil e transitória convenção, é claro que a verdade e o sentido, a mentira e o
absurdo, serão coincidentes. O único substituto da mentira que existe num mundo como
este é, evidentemente, falar de forma tão incompreensível, tão absurda, que ninguém
entenda.
A conversação normal, a conversa trivial, neste planeta, consiste em os seus
habitantes tirarem de umas bolsas de couro que costumam trazer consigo uma
quantidade de objetos muito pequenos, contas de vidro, pedrinhas de diversas cores,
pauzinhos muito bem polidos— e trocarem-nos animadamente entre si.
O preço da verdade é elevado.
D e todas as civilizações superiores da região dos velhos sóis, no centro da Via Láctea,
não há nenhuma que viva tão isolada como esta.
A astronomia, naturalmente, é impossível. N ão podemos falar de galáxias se for
necessário transportá-las de um lado para o outro para nos referirmos a elas. A liás, o
próprio conceito de "planeta" é impensável.
Estes seres vivem numa planície avermelhada, delimitada por altas montanhas.
E nem para essa planície que, teoricamente, é o mesmo que "o mundo", eles têm um
conceito.
Q uando as dores desapareceram, há duas semanas, reconstituiu-se para mim uma
espécie de paraíso original. Mas a sua condição era a dor. Ela era uma forma de verdade.
Portanto, o oposto do "tudo a mesma merda" do tio Sune.
Agora poder-se-ia construir de novo uma espécie de escala de valores.

(Caderno azul IV: 8)

(Caderno azul IV: 4)

Correu tudo bem. O s meus primos chegaram na terça-feira. Traziam ainda mais
crianças do que eu receava e cobriram o chão da casa de sacos camas, cobertores e outros
recursos provisórios.
A charam-me um pouco pálido e as mulheres disseram que a casa não estava muito
limpa, que havia muitas chávenas de café com aquele sarro que já não desaparece. Mas
correu bem.
Ninguém suspeitou que houvesse alguma coisa de especial.
Ficaram menos um dia do que eu temera. S ofri talvez com o medo infantil de começar
a ter clores só porque eles estavam aqui.
A única coisa que aconteceu foi que fiquei um bocado cansado.
Reparo que já não gosto que perturbem os meus hábitos. Por exemplo, os dois garotos
passaram aqui na quarta-feira e espreitaram cá para dentro, mas assustaram-se com o
rebuliço. Vi-os já ao pé da vedação, quando se iam embora.
E eu que não tive tempo de escrever um novo capítulo da história de terror.
A ideia era que o tal órgão horrível que produzia dores através de ultra sons seria
destruído no próximo capítulo. Verificar-se-ia que a flauta tinha poderes muito especiais.
A sua música seria capaz de resolver o problema.
A gora vai passar algum tempo, mas espero que eles voltem. S ão, por assim dizer, o
meu público literário. O único.
S enti, durante todo o tempo, uma certa curiosidade pelas reações do Manngárdh, mas
não me atrevi a fazer tantas perguntas como queria.
Consideram-me um familiar perfeitamente normal, em casa de quem se pode ficar
uma noite, evitando gastar uma quantidade de dinheiro num hotel, a caminho de S ãlen,
ou acham que têm a obrigação de vir saber de mim?
A percebi-me de repente de que há muito tempo que não me preocupo com a forma
como o mundo me vê.
A única característica verdadeiramente associal que vejo em mim é ter-me colocado,
digamos, fora dos níveis de exigência habituais. Vivo sem rendimentos, o que é muito
fácil, uma vez que também não tenho despesas.
Eu e o J an estivemos a falar de velhos conhecidos. A conversa foi parar ao Troàng. Ele
conheceu-o porque tinha a seu cargo problemas semelhantes na A dministração D istrital
em Vàsterâs. O escândalo dos casos de leucemia em N orra Vármland, no O utono de
1973, e a Comissão para os Problemas Especiais do Ambiente.
N em eu nem o Manngárdh fazemos ideia do que será feito dele. A qui há um ano
correu o boato de que ele teria entrado para a Confraria da Cruz Vermelha em Barkarõ,
mas é claro que esse é o tipo de boato que se pode esperar em situações como a dele.
Tenho certa dificuldade em imaginá-lo rigorosamente ascético, integrado numa
confraria. A o contrário de mim, que sempre fui uma natureza ascética, ele tinha uma
grande inclinação para a sensualidade.
D urante os anos da escola isso notava-se, por exemplo, na sua relação com as
raparigas.
Mas o que eu e o Manngárdh discutimos era na realidade muito mais interessante.
D izíamos nós que este tipo de burocratas— os que são suficientemente sensíveis, claro—
mais cedo ou mais tarde acabam por estoirar, pela simples razão de absorverem
demasiadamente, de sugarem as contradições internas da sociedade.
N em sempre isto assume uma expressão tão drástica como no caso do Troàng que,
quando aquela história acabou, vomitou literalmente todo o conflito numa entrevista no
programa Aktuellintervju, com ele e o primeiro-ministro.
Às vezes transparece no olhar deles— uma espécie de inquietação. Torna-se
vagamente perceptível, como uma úlcera, um cansaço súbito, um divórcio. Não é possível
viver com conflitos interiores demasiado profundos, e eles sugam todo o conflito da
sociedade ao tentarem viver simultaneamente em ambos os planos de linguagem.
D epois de eles se irem embora ocorreu-me que era interessante ter sido justamente o
Manngârdh a falar no assunto. Ele está na Direção do Mercado de Trabalho.
Espero que tenham tido uma boa estadia em Sàlen.
O Troàng: a mim nunca poderia acontecer uma coisa semelhante, porque em toda a
minha vida de adulto tive a sensação nítida de estar de fora, de ser no fundo associal,
embora pagasse impostos. D esde o conflito dos fundos de reforma nunca mais votei em
eleições gerais.
Até a minha maneira de reagir à doença, evidentemente, é associal.

(Caderno amarelo IV: 12)

A M. tinha uma faceta curiosa: mentia em pequenas coisas. N unca eram grandes
intrujices. Eu teria podido enganá-la anos a fio em aspectos vitais, se tivesse querido. Ela
só mentia nas coisas sem importância.
D izia, por exemplo, que tinha ido a uma loja em Gamleby quando tinha ido a uma loja
em Fagersta. O u, se tivesse ficado sozinha uma noite, dizia que tinha passado o serão no
tear, quando se via perfeitamente que tinha estado a limpar os morangueiros. Ruminei
muito nisto antes de encontrar a explicação que, na verdade, era muito simples:
Com essas pequenas mentiras ela criava uma margem de liberdade.
Embora não tivesse nenhum significado prático, é evidente que me causava certa
insegurança não saber a que loja ela tinha ido. D ava-lhe uma espécie de vago controlo
sobre mim. Criava uma área em que ela podia decidir arbitrariamente.
I sto mostra, não que ela fosse mal formada, mas sim que eu, sem o saber, devo tê-la
mantido a uma terrível distância.
Por que será que eu não quero envolver-me com as pessoas? Q ue não quero que elas
tenham qualquer espécie de controlo sobre mim? Mas elas têm-no, de qualquer forma!
A s Finanças, o recenseamento, isso é óbvio— mas, mais ainda que isso, o sofrimento
encerrado no meu corpo, porque os outros começam aí.
Por exemplo, a inquietação sexual (que começa a regressar, agora que as dores no
ventre acalmaram). Esta fome surda, obscura, esta sensação de me faltar qualquer coisa,
que me persegue, no sono, na vigília, em cada momento da minha vida. Q ue é isto? A
possibilidade do amor no nosso corpo. A presença, a presença possível de uma outra
pessoa.
A perpétua recordação humilhante de que a solidão é uma impossibilidade, de que
um ser solitário é coisa que não existe.
De que a palavra "eu" é a mais vazia de todas. É o ponto oco da língua.
(Tal como um ponto central é necessariamente oco.)

(Caderno amarelo IV: 14)

D ecidi não telefonar à M. Levei, portanto, dois meses a tomar esta decisão! Estou
realmente a ficar um bocadinho lento.

(Caderno amarelo IV: 21)


Considero que a alma tem forma esférica (se é que ter alguma forma). Uma esfera em
que uma luz fraca penetra ligeiramente — mas só ligeiramente— sob a superfície
matizada, onde sensações e atos de consciência, como bolas de sabão, rodopiam
mudando constantemente de cor.
Mais abaixo há apenas um leve vestígio de luz, como no fundo do mar, e depois a
escuridão. Escuridão, escuridão.
Mas não é uma escuridão ameaçadora. É uma escuridão maternal.

(Caderno azul IV: 9)

Ultimamente tenho tido muitas vezes um estranho sonho. Uma colmeia. Levanto a
tampa e começo a limpar os quadros para retirar o mel. Q uando vou a sacudir uma
abelha do quadro, reparo que ela tem um aspecto estranho, com uns reflexos azulados.
Primeiro fico sem perceber o que se passa, depois olho melhor e descubro que não há
uma única abelha que seja uma abelha.
Trata-se de uma espécie totalmente diferente, uns seres muito inteligentes,
incrivelmente avançados do ponto de vista técnico, vindos do espaço, de uma galáxia
muito distante. O cuparam a colmeia, muito simplesmente, e vá-se lá saber o que
aconteceu às verdadeiras abelhas. Mas estes seres também parecem estar habituados a
viver em células de cera.
Falam comigo com a maior das facilidades, embora eu não perceba bem como.
Pertencem a uma civilização de insetos inteligentes.
O seu planeta foi totalmente destruído pela explosão de uma supernova. N ão têm
naves espaciais— voam com o seu próprio corpo, à velocidade da luz, quando querem.
Mas não podem fazê-lo na atmosfera terrestre, porque isso provocaria um aquecimento
excessivo.
As suas couraças reluzentes brilham como armaduras de cavaleiros.
Que dizem eles?
RECOMEÇAMOS. NÃO NOS RENDEMOS.

(Caderno azul IV: 10)


5. QUANDO DEUS ACORDOU

D a mesma forma que uma aranha pode dormir num canto da teia que construiu,
assim Deus dormiu durante vinte milhões de anos num canto do universo.
Era uma área quase sem galáxias. N ada a perturbava. Ela flutuava como uma medusa
gigantesca, de trinta parsecs de diâmetro, uma visão maravilhosa, tons de rosa, verde e
azul alternando continuamente sob a superfície transparente da cúpula.
Emprestava uma espécie de frescura ao espaço sem fim em seu redor, anos-luz em
todas as direções. Mesmo sem quaisquer indícios concretos, um viajante sentiria a
presença dela, talvez da mesma forma que sentimos estarmos a aproximar-nos da costa
quando vimos do interior um belo dia de sol, ou como quando caminhamos
despreocupadamente sob uma refrescante chuva primaveril, deixando que a água nos
lave o rosto. Ela dava ao espaço vazio uma estranha frescura de jovens folhas verdes e,
sim, de amor.
Mas durante estes vinte milhões de anos não passou nenhum viajante por essas
longínquas paragens, que ficam bem para lá, não só do horizonte óptico, como do
horizonte rádio.
Para este ser maravilhoso e único, mais velho que o universo e, na verdade, alheio ao
espaço e ao tempo, logo, simultaneamente mais velho e mais novo que toda a criação,
maior que o espaço na sua totalidade e mais pequeno que a mais ínfima partícula
elementar, um sono de vinte milhões de anos mal chegou a ser um sono. Foi um instante
de ausência, como quando o condutor de um automóvel tira por um momento os olhos
da estrada para pensar em qualquer coisa dentro de si.
Q uando o ser supremo novamente virou a sua atenção para o mundo, todas as
sensações eram iguais a si próprias. A pulsação abafada de algumas fontes de radiação
na galáxia mais próxima constituía o pano de fundo para uma imensidade de sensações
mais sutis.
A s ligeiras alterações de energia nos sóis iam e vinham, como o vento passando entre
as folhas dos álamos, como o bater surdo das ondas na noite, num cais. Em direcções
distantes ouviam-se os colapsos gravitacionais do nascimento de supernovas.
E na frequência mais alta, como milhares de grilos e gafanhotos num prado, os
pensamentos de todos os mundos habitados.
Entre todos esses sons havia uma nota, muito longínqua, muito fraca, que ela ao
princípio não distinguia. Mas apesar de fraca e ténue, esta nota era tão penetrante, que
quando finalmente se apercebeu dela, logo lhe prendeu a atenção. Um momento antes a
nota não se ouvia. Era tão lamentosa, que um arrepio daquilo que se poderia descrever,
em termos humanos, como inquietação maternal, atravessou o imenso corpo agora
acordado.
Deus tinha reparado nas preces humanas.
Só três dias depois a humanidade se apercebeu do acontecimento.
A primeira pessoa a constatar a mudança foi um guerrilheiro de quinze anos numa
savana ao sul da Tanzânia. Ele e o restante grupo de homens escanzelados, sedentos,
com longas crostas de pus seco nas pernas, acabavam de ser localizados por um
helicóptero quando tentavam esconder-se na sombra de um pequeno grupo de árvores
no meio de uma pradaria implacavelmente iluminada pela luz do meio-dia.
O rapaz deixou-se cair, a tremer, junto de uma caixa de munições, vendo o helicóptero
aproximar-se. A s chamas das metralhadoras já eram visíveis. D entro de poucos
momentos ele morreria. Tinha sido educado numa missão cristã. A o ver o helicóptero e
ouvir aquele metralhar, o crepitar estridente das armas automáticas abafando já o som da
hélice, deixou escapar um pensamento:
Meu Deus, destrói-os!
O clarão branco que transformou o helicóptero e a sua tripulação numa amálgama de
partículas fortemente ionizadas que o vento dispersou foi visível até à linha do horizonte.
O helicóptero número dois, que já estava no ar, despenhou-se com estrondo alguns
quilômetros mais adiante. A tripulação, coberta de contusões e encandeada pelo
tremendo clarão, cambaleava tacteando à sua volta.
Meu D eus, faz com que isto acabe — pediu um doente canceroso num hospital. O
efeito da morfina começava a passar, e a dor latejante, de uma incandescência branca,
que partia do fundo do ventre, do lado direito, logo acima da virilha, reaparecia um
pouco mais forte a cada pulsação.
N este momento a dor cessou e foi substituída por qualquer coisa como um silêncio
ensurdecedor. N o ventre tinha apenas uma leve sensação de estar dorido, talvez como se
tivesse sido pisado. J á podia respirar normalmente. Cinco minutos depois, com infinita
precaução, experimentou levantar uma perna.
O utros cinco minutos depois tocou freneticamente a campainha. Q uando a
enfermeira da noite, passado um bom bocado, apareceu à porta, ele estava de pé no meio
do quarto com um sorriso tímido nos lábios.
D á-nos, S enhor, uma paz duradoura— disse o arcebispo de A bo a concluir a sua
oração matinal na rádio. Disse-o com profunda sinceridade e convicção.
S e tivesse pronunciado a sua prece dez segundos antes, nunca teria passado de um
vulgar bispo, ainda que arcebispo.
O ra ao pronunciá-la no preciso momento em que o fez, passou a ser uma figura da
história mundial, aliás, a maior figura da história mundial.
Três décimos de segundo depois de o arcebispo de A bo ter pronunciado a sílaba final
da expressão "paz duradoura", o pessoal do controlo de um dos imensos bunkers
subterrâneos formando uma longa cadeia na Mongólia Exterior reparou que os
engenhosos instrumentos que efetuam a verificação constante de um míssil de ogivas
múltiplas capaz de colocar simultaneamente seis bombas de hidrogênio sobre seis
cidades diferentes indicavam todos eles zero. I sto desencadeou desespero, alarme,
medidas de emergência. A pós seis horas de trabalho intensivo, um grupo de
especialistas concluiu sem margem para dúvida que não havia nada a fazer. N o silo
subterrâneo, o míssil de oitenta metros de altura era agora, de uma ponta à outra, ouro:
ouro de 24 quilates, tremendamente pesado, maravilhosamente reluzente. O uro flexível,
maleável, ouro maciço.
Foram precisas mais vinte e quatro horas para que o mundo descobrisse que o mesmo
acontecera com todo o material de fissão existente— e não só com o material de fissão.
Todas as armas, todos os projéteis, até as espadas da idade do ferro nos museus se
tinham, no mesmo preciso momento, transformado em ouro.
Às 18 horas do dia seguinte, três membros do Conselho N acional de S egurança dos
EUA foram transportados, sob o efeito de poderosos sedativos, para uma clínica
psiquiátrica privada. O s membros restantes observaram a sua partida de uma janela num
dos andares mais altos do Pentágono. Tinham o olhar vazio das pessoas que não querem
ver nem ouvir mais.
A penas dez horas depois as Bolsas de todo o mundo foram abaladas pela primeira de
uma série de crises de dimensões inéditas que conduziriam, nas quarenta e oito horas
seguintes, primeiro à supressão de todo o sistema monetário e depois à supressão de
todas as relações econômicas, de todos os compromissos econômicos.
Para começar, o preço do ouro sofreu uma queda extraordinária. A o meio-dia tinha
descido ao nível do preço do carvão em 1934.
À uma hora da tarde, a corrida ao dólar americano que se desencadeara
simultaneamente tinha feito disparar o seu preço para 12.340 onças de ouro. N a meia
hora seguinte, um movimento de pânico resultante de um qualquer boato não
confirmado gerou uma procura da coroa norueguesa que multiplicou por dez mil a sua
cotação do dia anterior.
Às duas horas o diretor do banco nacional norueguês anunciou ao país, em palavras
sombrias, a bancarrota do Estado.
Pouquíssimas pessoas assistiram a esta emissão de televisão: os cidadãos
noruegueses estavam nesse momento totalmente absorvidos por descobertas do foro
privado e de uma ordem de grandeza que tornava desdenhável qualquer bancarrota
nacional.
Havia milhares de anos que as preces de uns eram muito exatas, muito precisas, e as
de outros muito vagas, tão obscuras que quase só se formulavam nos seus sonhos.
N o N orte de Vàstmanland, entre Àngelsberg e O mbenning, um velho reformado de
uma oficina encontrava-se em sua casa, sentado, a folhear distraidamente o exemplar do
dia anterior do J ornal de Vàstmanland. Estava prestes a cair no sono. O s olhos já lhe
piscavam enquanto as moscas zumbiam à sua volta.
Um discreto bater na porta sobressaltou-o.
Q uando abriu os olhos e proferiu um pouco entusiástico "Entre!", para logo ver surgir
seis criados imaculadamente fardados que transportavam enormes cestos contendo
aquilo que era, sem qualquer dúvida, fresquíssimos camarões cozidos com ervas
aromáticas, queijos com cominhos do tamanho de rodas de trator e sucessivas caixas de
aguardente gelada, reagiu com grande serenidade, concluindo que tinha de facto
adormecido.
O primeiro toque do címbalo e o som da pequena flauta provocaram-lhe novo
sobressalto. Os criados tinham desaparecido.
Trajando umas vestes azuis brilhantes e transparentes, a primeira das cinco bailarinas
deu início à dança. O umbigo, encantadoramente ágil, ondulava sob uma pesada jóia
pendendo entre os seios pequenos e firmes, e o sorriso dela era infinitamente
convidativo.
Em passos decididos, o operário reformado da oficina de serração dirigiu-se à porta e
fechou-a à chave. A o regressar à sua cadeira, verificou que o reumático do joelho
esquerdo desaparecera por completo.
Por esta altura, milhares de milhões de pessoas em todo o mundo fizeram a mesma
descoberta. O deus que tão surpreendentemente começara a escutar as suas preces
parecia não albergar qualquer restrição de ordem moral, qualquer vestígio de decência. O
poder que era capaz de transformar instantaneamente as enormes armas nucleares em
torres de ouro maciço em breve se revelou também perfeitamente disposto a transformar
a enrugada esposa de um tenente-coronel idoso num belo jovem louro, ou a submergir
numa avalanche de valsas de S trauss e rolhas de champanhe o asilo estatal de
Apelbergsgatan em Estocolmo.
O mundo fervilhava com uma hoste aparentemente infindável de servidores que se
materializavam subitamente, prontos a oferecer a cada pessoa o que ela desejava no seu
íntimo. O tumulto, a dança, a fornicação generalizada nas ruas da Europa foram, durante
este segundo dia, indescritíveis. A s vagas e esporádicas notícias dos continentes
próximos, recebidas pela rádio, faziam saber que a situação era semelhante.
Coisa fascinante de observar foi o colapso da I greja— ou melhor, das I grejas. A meio
do terceiro dia, mais ou menos ao mesmo tempo que S ua Majestade o Rei comunicava
que todos os partidos políticos se tinham declarado indisponíveis para assumir a
governação; que Moscovo e Washington informavam que toda a atividade pública tinha
sido suspensa por tempo indeterminado; e que o Partido Comunista da China anunciava
o início da fase utópica, de acordo com os planos, chegou a carta pastoral da assembleia
episcopal, aguardada havia vários dias.
Era uma obra-prima da arte da formulação cautelosa. Começava por constatar que os
caminhos de D eus e os abismos da N atureza são insondáveis e que ninguém pode
indicar ao Todo Poderoso os meios de que ele deve servir-se.
Em seguida sugeria que no mundo há também um poder demoníaco e que, para o
verdadeiro cristão, decidir quais as preces que estão em harmonia com a vontade de
Deus deve ser sempre uma questão entre ele e a sua consciência.
A o mesmo tempo que a nova era histórica agora iniciada fornecia provas
esmagadoras da bondade e do supremo poder divinos, seria negligência da parte da
assembleia episcopal não apontar as novas tentações que necessariamente implicaria
para todo o fiel cristão o novo estado de coisas, o qual decerto não duraria eternamente.
A assembleia episcopal via-se, pois, na necessidade de exortar os crentes, neste tempo
de grandes convulsões, a manterem a maior reserva nas suas preces.
Estas palavras caíram em saco roto.
A humanidade, pela primeira vez na sua história, conhecia uma generosidade de uma
espécie inteiramente nova— a benevolência sem limites, o amor absolutamente
indolente, niilista mesmo, por toda a Criação que só o ser que a criou pode albergar.
Poderemos dizer isto de outra maneira:
A humanidade, que ao longo de milhares de anos foi atormentada pela ideia falsa,
bizarra e infeliz de que era dominada por uma figura paternal severa e quase cheia de
ódio, no espaço de alguns dias descobriu o seu erro.
Em vez dele, havia uma mãe.
Enquanto a existência a cada momento se afastava, a uma velocidade crescente, do
estado descritível para entrar num reino para o qual já não existiam palavras, A LÍN GUA
COMEÇOU A MORRER.
Um dos últimos fragmentos de linguagem dizia:
SE DEUS EXISTE, TUDO É PERMITIDO.

(Caderno azul V: 1)
6. RECORDAÇÕES DO PARAÍSO

Bosque de bétulas. Pântanos. O s primeiros sinais de que as folhas vão romper. Passou
tão incrivelmente depressa, o I nverno! N ão sei bem se quero já a Primavera. A inda não
estou preparado para ela. A solidão cresce em mim como adubo. A s plantas mais
estranhas conseguem vingar. Dúvidas.
E todas as manhãs tenho este medo de que as dores voltem. S ofri todo este I nverno
com dores. A gora sofro o mesmo com o medo das dores. O bservo-me com atenção: estou
mais fraco, faço mais esforço para andar, cansa-me mais ir às compras do que antes?
Evito levar o carro, não tanto para poupar gasolina, mas para me pôr à prova. I sto implica
perder a manhã inteira, mas não sei bem de que outra maneira poderia gastar esse
tempo.
O ser humano, esse estranho animal, balançando entre animal e esperança.
N a realidade não sei mais sobre o sentido do universo, sobre o objectivo das
moléculas, das cadeias de moléculas, da consciência, dos sonetos e das sextilhas, dos
mísseis nucleares subterrâneos, dos frescos de Miguel Ângelo, do teorema binominal e
dos madrigais de Monteverdi, sobre o fim para que tudo isto se dirige, do que sabe uma
das velhas pedras cobertas de musgo ali atrás das colmeias, no meu quintal. D o que sabe
uma formiga. Do que sabe uma amiba num charco de água.
Não é tarde na história da humanidade. Na verdade é até muito cedo.
O medo de enlouquecer é no fim de contas o medo de nos transformarmos noutra
pessoa: mas isso é o que está constantemente a acontecer-nos.
"Was mich nicht umbringt, macht mich stàrker." (Nietzsche)
Pântanos. Bétulas. Tussilago em flor nas bermas das fossas. A s colmeias já
começaram quase todas a trabalhar. O meu amigo Nicke, por exemplo, que foi atropelado
por um camião quando ia para casa almoçar, num dia de S etembro de 1952. Penso muitas
vezes nele quando vejo alguma coisa invulgar, uma coisa que me desperta muito
interesse. Pergunto-me sempre o que diria o N icke se visse aquilo. "Estou a ver isto por ti,
N icke." É uma experiência incrivelmente intensa. N ós somos de certo modo idênticos às
pessoas que conhecemos.
A nos cinquenta. Q ue recordação tenho? Estocolmo era atravessado por pequenos
carros eléctricos azuis. Herbert Tingsten falava na televisão. O referendo sobre as
pensões de reforma, um problema que nunca aprofundei muito bem. O referendo sobre
a circulação à direita ou à esquerda, que revelou que a maior parte das pessoas preferia
conservar a circulação pela esquerda.
Como se vestiam as raparigas nos anos cinquenta? N ão usavam uns vestidos de
algodão muito compridos, com cintos largos?
Não falavam de outra maneira? Não me lembro muito bem.
Q uando éramos garotos, e mesmo quando já andávamos no liceu, costumávamos ir
pescar para a represa de Fàrmansbo, no Verão. A s águas vagarosas, indolentes, não,
indolentes não, melancólicas, do rio Kolbãck fazem aí uma cachoeira, e no mesmo sítio
existe uma ilhota onde, nas ruínas de uma velha fundição, crescia naquele tempo uma
enorme quantidade de cogumelos. N o extremo sul da ilha fica a represa de Fàrmansbo,
onde se chega por um carreiro ladeado por árvores tão altas, que o transformam num
túnel verde. Junto ao paredão do canal agitam-se antiquíssimas algas verdes.
J á na represa, a água cai a pique, negra, e quando enche forma uma espécie de
remoinhos negros que muito nos fascinavam quando éramos garotos.
Em Maio já passávamos lá tardes inteiras. N essa altura a solha era o peixe em maior
atividade. N aquele grupo, alguns estavam nas casas de Verão que os pais tinham para
aqueles lados, outros eram filhos de gente da terra.
D e vez em quando, claro, apanhávamos algum peixe, e havia episódios dramáticos
com solhas gigantescas que abocanhavam o anzol dourado e reluzente e desapareciam
levando tudo, ou com grandes solhas que, já sobre a erva, continuavam a ondular como
serpentes, ou quando algum de nós escorregava numa pedra molhada e ia parar à água
escura e sempre muito fria.
Mas não creio que fosse a pesca o mais importante para nós na represa.
A quela água negra que corria era da mesma espécie que o negro das nossas próprias
pupilas.
Sentávamo-nos a contemplá-la, conversando sobre temas estranhos.
A s bicicletas ficavam amontoadas numa moita qualquer. Era sempre uma operação
complicada passar pela casa do guarda da represa, que era um homem já de idade e não
via com muito bons olhos que um bando de miúdos fosse brincar para aquele sítio. Tinha
medo de que eles se pusessem a mexer nas comportas e alterassem o nível da água, o que
não era muito agradável para ele, porque se abrissem uma comporta que devia estar
fechada, isso custar-lhe-ia uma caminhada de quinhentos metros.
(A liás, naquele tempo, as bicicletas tinham um papel importantíssimo na nossa vida
— eram como animais domésticos.)
O N icke era um tipo incrivelmente divertido. Tinha qualquer coisa de esquilo. Uma
incansável vivacidade. Eu tinha a impressão de que ele simplesmente via mais do que os
outros, ouvia mais do que os outros. Foi ele que descobriu que se ouviam as lontras à
beira da água, ao pôr do sol. Um som fraquíssimo mas constante, de que nenhum de nós
até aí se apercebera.
Um rapazinho magro, tisnado pelo sol, espantosamente ágil, que trepava aos
pinheiros mais altos apertando apenas os joelhos contra o tronco e içando-se. Creio que
ele ignorava o significado da palavra vertigem. Um dia engoliu um peixinho vivo só para
provar que era possível fazê-lo.
Estava extremamente empenhado em demonstrar que se podia fazer coisas
consideradas impossíveis. S e tivesse vivido no século xv e não tivesse sido atropelado por
um camião, teria acabado por descobrir algum novo continente.
Era daquelas pessoas que pressentem a tempestade. S abia que ela ia chegar horas
antes de se ver sequer uma nuvem no céu. Mas não ficava enervado ou sonolento, como
acontece com outras pessoas. Parece-me até que as tempestades o espertavam, quase o
lançavam em êxtase.
Quando o granizo fustigava a bacia da represa a ponto de os remoinhos de água negra
desaparecerem sob a espuma, e as nossas canas de pesca e as latas de minhocas jaziam
abandonadas enquanto nós nos comprimíamos, quase sem respirar, numa velha forja,
entre ferro-velho, víboras e urtigas, ele dançava e pulava sob a chuva como um pequeno
dervixe— semi nu, porque a mãe batia-lhe se ele chegasse a casa com a roupa molhada.
A inda o vejo— basta-me fechar os olhos— um dervixe selvagem executando uma dança
extática sob chuva diluviana, nas grandes pedras talhadas do século XVI I I , polidas pela
água, junto à represa de Fàrmansbo.
Como se o temporal fosse pai dele.
Um pequeno ser humano encerrado no seu próprio enigma. Muitas vezes especulo
sobre o que teria sido o futuro do N icke. O perário de serração, como o pai? Explorador
nas Ilhas Mornington? Mas que resta para explorar?
Ele deixava sempre a impressão de estar destinado a alguma coisa de especial.
Todos nós estávamos destinados a outra coisa. S e pensar em todas as pessoas que
encontrei na minha vida— professores, amigos, raparigas, relações ocasionais, velhos e
fiéis companheiros, familiares— apercebo-me subitamente de que não houve uma única,
nem uma única, que eu tivesse conhecido verdadeiramente.
Encontramos uma pessoa que achamos interessante. Tentamos, como se costuma
dizer, "situá-la". (Tenho o hábito de fazer isso até com os senhores e as senhoras que
lêem as notícias na televisão.)
N as nossas recordações, procuramos rostos parecidos com o que temos agora diante
de nós. O movimento lento das pálpebras faz lembrar um orador na A ssociação de
Biologia, as comissuras dos lábios são iguais às de um docente de Q uímica em Uppsala
nos anos cinquenta. Em suma, uma entoação que conhecemos ali, uma expressão do
rosto que recordamos de outro lado, e imaginamos que ficamos a compreender.
Reconstituímos o desconhecido com o auxílio do que conhecemos. O psicanalista no
seu consultório (nem sei se é assim que se diz, nunca fui a nenhum) faz, em princípio, o
mesmo: associa experiências, recordações, para encontrar as chaves do novo, do
desconhecido, com que se confronta.
Mas as peças que vamos buscar, os factos a que recorremos, esse molho de chaves que
são os rostos antes encontrados e que fazemos tilintar na nossa mão, é, também ele, o
desconhecido. Explicamos um enigma com outro enigma.
É a mesma coisa que comprar um novo exemplar do mesmo jornal para confirmar
uma notícia em que não acreditamos.
N o fundo de cada pessoa há um enigma impenetrável. O negro da pupila não é mais
do que essa noite sem estrelas— o negro no fundo dos olhos não é mais do que as trevas
do próprio universo.
S ó como enigma o ser humano assume toda a sua grandeza e transparência. S ó uma
antropologia mística lhe pode fazer justiça.
Como seria de esperar, o N icke nadava e mergulhava como um peixe. Mergulhava até
ao fundo da bacia da represa para apanhar anzóis presos a restos de ferro-velho com
trezentos anos de idade. A garrava-se a velhos cabos e raízes de árvores, o cabelo
ondulando-lhe em volta da cabeça como algas, o corpo magro na horizontal, com a
corrente, e parecia voar a uma velocidade— inaudita, como um anjo que só pode visitar a
realidade comum voando parado.
A superfície da água, acima dele, era um tecto distante e reluzente. O som fraco dos
estalidos que a imensa massa de água provoca nas traves de carvalho alcatroadas das
comportas chegava-lhe como o tiquetaque de um gigantesco relógio muito distante. A s
vozes dos companheiros tinham-se apagado. Ele não tinha o mínimo receio. A s longas
algas lá em baixo, onde as lajes do paredão começavam a formar o fundo da bacia,
moviam-se como cabelos de mulher.
Os rostos dos companheiros, pequenas formas ovais religiosamente debruçadas sobre
a água, eram para ele invisíveis. D esconhecia em que tempo se encontrava. Q uando
voltasse à superfície, talvez eles tivessem desaparecido, talvez já fosse uma outra era.
Flutuava. D eslocava-se muito rapidamente. Pensou: tenho de agarrar-me.
Cautelosamente afrouxou uma das mãos para ver se o outro braço tinha força suficiente
para o segurar, mas sentiu que a corrente era forte de mais, que o arrastava na direção da
comporta, a qual aparecia como uma abertura quadrada, com um brilho prateado, ao
fundo daquele espaço verde escuro onde ele se encontrava.
N esse momento viu o anzol que queria apanhar. O u melhor, alguma coisa que podia
ser o anzol.
Brilhava como ouro no meio da lama do fundo, a cerca de um metro dele.
Por um instante, pensou que as longas algas que via ondular eram os cabelos das
filhas do Kolbáck que guardavam aquele tesouro.
Compreendeu que a única maneira de apanhar o anzol sem ser arrastado pela
corrente até à comporta (que era perigosa, não porque se pudesse passar através dela,
mas porque havia o risco de ficar lá preso e asfixiar) era esticar a perna direita, com muito
cuidado, e tentar agarrar aquela coisa que brilhava lá no fundo com os dedos do pé.
A ssim que se virou, a corrente começou a puxá-lo. Cada vez que, tacteando com o pé,
tentava tocar naquela forma dourada que parecia ser o anzol, os dedos levantavam uma
nuvem de lodo que a ocultava. O s pulmões pareciam querer estoirar por falta de
oxigênio.
Recomeçamos. Não nos rendemos, pensou ele.
A cima dele tudo era Verão. Um ventinho brando passava entre as árvores. Um
estorninho debruçava-se sobre a água, no outro lado da ilha, no troço livre do rio. A o
longe ouvia-se o ruído de um daqueles tratores baratos feitos a partir de uma cabine de
camião que os agricultores usavam naquele tempo, durante a guerra, quando não era
possível arranjar tratores verdadeiros.
Bandos de gaivotas seguiam o trator.
Era a nossa paisagem, e contudo não era nossa. Eram as nossas vidas no seu começo,
e contudo não eram nossas.
N unca tive tanta sabedoria como naquele tempo. S abia que era um estranho, mas
também sabia que os outros eram tão estranhos como eu. N inguém está em sua casa no
universo.
Q uando o N icke apareceu à superfície, estava roxo. Mal conseguiu chegar à borda e
quando o puxamos para cima do paredão, durante cinco minutos não conseguiu falar.
A rquejava, deitado, como um pequeno peixe coberto de lodo. Emanava dele um cheiro a
lodo, a pedras seculares, a algas secas e a lama apodrecida.
Por fim compreendemos por que tinha nadado tão desajeitadamente e não conseguia
içar-se sozinho para a borda da represa. Mantinha a mão direita convulsivamente
fechada.
Pensamos que ele ia morrer. Naquele dia quente de Junho, ele tremia de frio.
— Que aconteceu?— perguntamos-lhe.
A princípio só conseguia bater os dentes. Finalmente tentou falar e passado um
momento conseguiu dizer claramente o que queria.
— Não era um anzol— disse ele.— Não apanhei o anzol.
— Então que é que tens na mão?
O lhou para a mão fechada como se tivesse esquecido completamente que estava
fechada.
— Q ue é que tens aí? Q ue é que tens aí? D ançávamos em volta dele, em grande
excitação. Q ue não era um anzol sabíamos nós muito bem, porque se fosse os arpões já
estariam cravados na mão dele.
A briu-a lentamente, como se tivesse estado fechada tempo de mais. Parecia tão
curioso como nós em saber o que lá estava.
Ficamos em silêncio absoluto, com a respiração suspensa.
D o fundo da represa de Fàrmansbo, o N icke tinha trazido uma moeda de ouro, um
ducado do tempo de Carl Johan XIV, o único jamais lá encontrado.

(Caderno azul VI: 1)


7. O CADERNO RASGADO

A expressão dos olhos da avó Tekla, o olhar ancestral. O mesmo negro do universo no
espaço entre as galáxias.
N asceu na paróquia de Berg em 1870 e viveu até ao ano passado. Uma velhota
reboluda no lar da terceira idade em Hallstahammar, totalmente desperta quando a
visitávamos, uma bonita taça de vidro cheia de rebuçados sobre a cómoda de nogueira,
um perfeito à vontade no mundo.
D urante o século que viveu, creio que nunca encontrou razão para se perguntar por
que existia. Sim, é certo que tinha a sua religião, a qual, evidentemente, explicava tudo.
Comecei a perscrutar o olhar das pessoas (até na loja, quando vou às compras), como
se ele tivesse alguma coisa de especial a transmitir— quero dizer, como se se pudesse ler
nele alguma resposta.
Isto parte da ideia bizarra de que os outros seriam capazes de ver alguma coisa que eu
não vejo.
Ontem apareceu uma lagartixa no terraço das traseiras, a aquecer-se ao sol de Abril.
Estava absolutamente imóvel. Talvez fosse impressão minha, mas pareceu-me que a
cor dela ia mudando de acordo com os diferentes tons de cinzento das pranchas do
soalho.
D eitei-me no chão para a observar melhor, e foi então que descobri aquele olho
muito, muito pequeno.
Era de um negro diferente, o negro esperto e enxuto dos répteis.
Comparado com o olho de um réptil, o de um mamífero parece viscoso, meio
embriagado pelas forças quentes da vida.
O réptil olha a direito para o escuro, com um olhar seco.
Sabe Deus o que ele vê. Algo— diferente?

(Caderno azul VII: 12— [última entrada])

... desde as três da manhã, com intensidade crescente, partindo do mesmo ponto que
antes e ramificando-se para a coxa e o diafragma, primeiro o grau de intensidade normal,
depois aumentando para a incandescência branca.
Eu sabia que era só uma trégua.
Curiosamente, tenho a sensação de que a utilizei bem.

(Caderno rasgado II: 1)

Ambulância 90000.
Hospital Central 137100 (PBX).

(Caderno rasgado II: 2)

Vomito tudo, numa espécie de insistência obstinada. Até a água com mel. Mas em
golinhos muito pequenos, lá vai. Febre. Passeio à caixa do correio— como uma expedição
polar.

(Caderno rasgado II: 3)

Fui entregar o cão ao O lsson, em S krivargárden. D espedida curta e um pouco


estranha. D ei-lhe metade de um queijo como presente. Pareceu distraído e
desinteressado. Arrastou-o de uma ponta à outra da sala. Inquieto. Ganiu. Fica bem.

(Caderno rasgado II: 4)

Good night, ladies. Ausentes três dias, mas voltam, e cada vez mais frequentes.
A embaraçosa semelhança entre a dor e o desejo. A mbos monopolizam toda a
atenção, nada mais existe. A dor é como uma mulher amada. N oticiários, o tempo, as
mudanças na N atureza, até a angústia— ela tem o poder de apagar tudo. É um reino
onde impera a verdade definitiva.
A s pessoas começaram a vir cá com mais frequência e dizem-me francamente que eu
devia ir para o hospital. S ão gente prática, as pessoas daqui. Em N orra Vãstmanland não
se diz "ele morreu". Diz-se "chegou ao fim". E receiam que eu "chegue ao fim".
J á não consigo ler o jornal. Leio, ou seja, movo o olhar de palavra em palavra, mas
cada palavra contém apenas dor. Pior do que isso é o sentimento de que nada daquilo me
diz respeito. N os últimos dias começaram a falar numa coisa a que chamam "Gabinete de
Informações".
O s problemas deles já não são os meus. Q ue será esse tal "Gabinete de I nformações"?
Imagino um gabinete capaz de dar resposta a todas as perguntas:
Porquê justamente eu?
Porquê justamente eu mortal?
Porquê justamente eu esta dor?
Porquê justamente eu idêntico a esta dor?
Porquê justamente eu idêntico a alguém que sente esta dor?
Porquê...

(Caderno rasgado II: 5)


O problema daquelas mulheres é que elas sentiam que eu queria muito pouco. A s
mulheres são capazes de tudo se sentirem que nós queremos tudo.
Eu quis demasiado pouco. Toda a minha vida. A s pessoas nunca sentiram que eu
tivesse alguma coisa a dizer-lhes. Os últimos três meses tornaram-me real. É horrível.

(Caderno rasgado III: 1)

Vomitei toda a noite. 30 de A bril. Manchas na pele, nos braços. Grandes manchas
castanhas.
Apercebi-me hoje, subitamente, de como é ridícula a ideia do suicídio.
N ão há saídas. Estamos inteiramente submersos na realidade, na história, na nossa
biologia. A possibilidade de pensar a própria morte baseia-se num mal-entendido
linguístico. Mais ou menos como a possibilidade de nos tratarmos a nós próprios por tu.
Como a possibilidade de nos chamarmos a nós próprios pelo nome.
O negro da pupila é idêntico ao negro entre as galáxias.

(Caderno rasgado III: 2)

1— 8 Limpas, em bom estado


9— 11 Morreram de frio, não limpas
12— 14 estado razoável, as rainhas talvez velhas, quadros a reparar, novas placas.
16 vazias desde o Outono de 1971. Nada a fazer.

(Caderno rasgado IV: 1)

Primaveras, o vento tépido, o perfume dos lilases. O bater das ondas breves e
inquietas contra a margem, os cardumes de mugens. O s pedaços de caniços partidos,
secos e amarelos.
Um cardume de mugens perfeitamente imóvel, como se fosse um corpo só. Como é
que cada um dos peixes sabe que os outros estão igualmente imóveis?
Uma sombra cai sobre eles, a sombra de alguém que se debruça sobre a água, e o
cardume dispersa-se instantaneamente numa explosão de reflexos em todas as direções,
tão rápidos como os reflexos da luz na água por cima deles.
Já nada revela que estiveram ali.
Depois de desaparecerem, ninguém adivinhará que momentos antes estiveram ali.

(Caderno rasgado V: 1)
O que está a acontecer-me é repugnante, abominável e aviltante, e ninguém me
convence a aceitar isto ou a persuadir-me de que é bom para mim.
É abominável ser abandonado a uma dor cega e idiota, vômitos, misteriosas
decomposições internas, igualmente idiotas e insolentes seja qual for a sua explicação.
A heresia habitual consiste em negar que existe um deus que nos criou. Uma heresia
muito mais interessante é aceitar a possibilidade de que um deus nos tenha criado e
depois dizer que não há qualquer razão para ficarmos impressionados com isso. E ainda
menos gratos.
Se existe um deus, compete-nos dizer não.
Se existe um deus, compete ao ser humano ser a sua negação.
Recomeçamos. Não nos rendemos.
A minha tarefa nos dias, semanas ou, na pior das hipóteses, meses, que podem restar-
me é ser um grande e claro NÃO.

(Caderno rasgado VI: 1-3)

Eu, eu, eu, eu... ao fim de apenas quatro repetições, uma palavra sem sentido.

(Caderno rasgado VI: 4)

Embora estejamos já na segunda semana de Maio, hoje neva em toda a Vástmanland.


A ambulância vem buscar-me às quatro horas. Espero que não haja muito gelo na
estrada.
Podemos esperar que não haja nenhum acidente. Podemos sempre esperar.

(Caderno rasgado VII: 0)

Vãster Vala, 1975


SOBRE O AUTOR

N ascido em 1936, Lars Gustafsson é um dos grandes nomes da literatura sueca


contemporânea. estando traduzido em numerosos países (nomeadamente nos Estados
Unidos, na A lemanha e em França). A Morte de um A picultor— o seu quinto romance,
que muitos críticos consideram a sua obra-prima— foi publicado originalmente em 1978.
A presente tradução portuguesa, realizada diretamente do original sueco, é enriquecida
com um esclarecedor prefácio de Carl-Gustav Bjurstróm, um dos tradutores de Lars
Gustafsson para a língua francesa.

Data da Digitalização

Amadora, Setembro de 2003

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