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Cultura e natureza nas representações africanas de escravidão

e o comércio de escravos. Caso das sociedades linhageiras1


In: Desatino, escravidão e direito. Os fundamentos ideológicos e jurídicos do
tráfico de escravos e da escravidão. Coleção Memória dos povos. A rota da
escravidão.

Harris Memel-Fotê – Antropólogo nascido em 1930 em Mopoyem, no sul da


Costa do Marfim. Faleceu em 11 de maio de 2008. Tese sobre escravidão nas
sociedades de linhagem da floresta da Costa do Marfim, séc. XVII – XX.
Foi titular da Cátedra Internacional na College de France.

Ensaio sobre representações de escravidão em sociedades linhageiras –


todas relações têm como base o parentesco patrilinear ou matrilinear - na África
Ocidental. Analisa sociedades presentes na floresta da Costa do Marfim entre
os séculos XVIII e XIX, a leste e a oeste do rio Bandama.

As representações ocorrem: cultura e natureza – as duas dimensões da


realidade humana, e do ponto de vista teórico ambas pertencem à ordem da
ideologia: ambíguos e polissêmicos (muitos significados).

Três movimentos de representações:


1. Representações da era escravista:
a. Representações do tráfico de escravos e da escravidão como
desqualificação/decadência.
b. Representações da escravidão como enfermidade absoluta.
c. Representações dos escravos como perigosos.
2. Segundo movimento de representação aborda as teorias metafísicas e
naturalistas que melhor explicam e justificam essas representações
3. Representações da era pós-escravista: a história da democratização
interpretada como uma história regressiva, uma história que é vista por alguns
estudiosos, devido à mestiçagem dos escravos e seus descendentes com
descendentes de homens livres, como uma história da degradação das
sociedades e de sua cultura, uma história estigmatizada com o termo
bastardia/ilegitimidade.

1
MEMEL-FOTÊ, Harris. Culture et nature dans les représentations africaines de l´esclavage et de la traite
négrière. Cas des sociétés lignagéres. In HENRIQUES, Isabel de Castro; SALA-MOLINS, Louis (Orgs.).
Déraison, esclavage et droite. Les fondaments idéologiques e juridiques de la traite négreère et de l
ésclavage. Col. Mémoire des peuples. La route de l´esclavage. Éditions UNESCO, 2002. P. 195-203 [PDF:
190-197]

1
Primeiro Movimento de Representações
Representações da Era Escravista

1.A - Representações do tráfico de escravos e da escravidão como


desqualificações.
Escravidão como confisco/decadência de uma dada plenitude social.
Perda de status social. Homem caído e envergonhado, ele, sua descendência e
sua linhagem. Maior vergonha da condição humana.

Há 4 níveis de desqualificação/decadência:
1.A.1 - duas formas:
a. interna à sociedade (a excomunhão social). A linhagem excluí um de
seus membros que a desonra por delitos ou crimes ou esgota seus
recursos pelas pesadas penas ocasionadas por estes delitos e crimes.
Os excluídos perdem o benefício da solidariedade econômica, política e
religiosa. Se torna um banido/pária (não pertence a nenhuma casta,
excluído do convívio social, à margem)
b. forma externa (o cativeiro militar); derrotado de guerra, cativo na terra
estrangeira, não tem direitos políticos, religioso ou fundiário.
1.A.2 -Tráfico
o Seres humanos são vendidos e comprados.
o O cativo se permanece perto de sua linhagem ou etnia, é reconhecido e
possui alguma consideração.
o Objetificação – transmutados em objetos de propriedade, que distancia do
parentesco e da etnia. Se tornam propriedades bem como seus
descendentes, entram na herança, fazem parte do sistema patrimonial
das sociedades linhageiras que os adquiriu.
o Passíveis de exploração.
1.A.3 - Como órgãos reprodutivos, os cativos podem ser excluídos dos
sistemas de reprodução e até esterilizados.
o Servem, no melhor dos casos, a formas de miscigenação ou ao
alargamento e à perpetuação de linhagens nobres.
o Permitem o enriquecimento de linhagens, por meio da fabricação e
comercialização de bens como sal, cola ou ouro.
o Cativos de guerra reforçam o status de homens e mulheres poderosos:
como bens acumulados ou como presentes ofertados entre amigos.
1.A.4 - Privação social e cultural após a morte: Status de excrementos sociais
- enterrados em locais distantes, em ilhas fluviais, abandonados pura e
simplesmente na natureza, enterrados em covas rasas.

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1.B - Representações da escravidão como enfermidade absoluta.
 Escravo visto como portador de uma enfermidade congênita.
 Na representação do escravo como enfermo absoluto, ele não possui funções
essenciais: ancestralidade, nome e palavra. Sem ancestralidade, ele é
excluído da relação de pertencimento recíproco que caracteriza a origem.
 Sem ancestrais, o escravo não possuía direito à propriedade nem de
sucessão fundiária. Em contrapartida, ele era posse e herança. ► Sem
ancestrais = Sem memória, sem nome genealógico próprio, carrega a sombra
do nome do seu senhor.
 Sem nome, não pode reivindicar poder político, instrumento e lugar de
controle da propriedade e da memória coletiva.
 Por falta de antepassados, propriedade e nome o escravo não tem fala, voz
deliberativa, que o integre a memória coletiva. Desprovidos da verdadeira fala,
a dos adultos livres, o escravo apenas pronuncia palavras domésticas,
semelhante à das crianças e das mulheres, deslegitimado para fala em
tribunais e era-lhe vedada a autoridade paterna.

1.C - Representações dos escravos como perigosos.


Tipos de perigos:
 Estética: preservar os bens do contato dos escravos pois podem roubá-los,
danificá-los ou “sujá-los” pelo toque.
 Alimentar: Escravos eram vistos como transmissores de doenças. Assim eram
isolados, e homens livres evitavam o contato, comiam e bebiam em pratos e
copos separados
 Biológica: Sociedades salvaguardam a pureza de seu sangue ou grupo étnico
recusam a união sexual com escravos. Grupos que esterilizam os escravos
homens com este fim. Outras sociedades patrilineares impediam a união entre
escravos e livres para se protegerem contra malformações congênitas. Contra
a fecundidade invasiva dos escravos que podiam eliminar linhagens nobres.
 Ética: Detentores de maldade essencial, ódio, inveja, propensão à feitiçaria.
Dano causado aos instrumentos de trabalho, os roubos, as tentativas de
assassinato, as afrontas feitas ao senhor, os suicídios, manifestavam as
formas de “maldade” e de oposição ao sistema escravista.
 Meio ambiente: a forma que são jogados em ilhas, abandonados na natureza
ou enterrados em covas rasas depois de mortos, possui a intencionalidade de
preservar a terra do contato estrangeiro para assegurar à população a
fecundidade e crescimento natural.

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Segundo Movimento de Representações
Teorias que explicam e justificam estas representações
2.A - Teoria metafísica de predestinação divina
Três mitos fornecem argumentos para justificar a
desqualificação/degradação e a enfermidade dos escravos:
a. Mito Abê: predestinação. De essência platônica, distinguia duas vidas e
duas ordens: uma vida anterior de ordem invisível e causal na qual o
destino dos indivíduos e grupos era predeterminado. Sendo assim, a
escravidão segue aquele que foi predestinado e o acompanha para terra
dos mortos. A riqueza do escravo, não se baseava em um direito à
riqueza, e era apenas um instrumento e signo do senhor
b. Mito Odjukru: Confirma o argumento da vida dupla e acrescenta o da
desigualdade irredutível, inclusive na morte.
c. Ratifica o argumento da vida dupla, assimila, por um lado, a
desqualificação, e, de outro lado, a morte do imolado a uma morte
expiatória.

2.B - Teoria naturalista da substância determinante:


 Sujeira corporal, o sangue e a semente do mal, a alma negra e a impureza.
 Porque a maioria dos escravos vem do Sahel ou da savana, regiões mais ou
menos áridas onde a água é escassa, fazem longas viagens a pé antes de
chegarem ao destino final – culpa da sujeira permanente.
 Escravos doentes são representados como contagiosos independente da
doença que os afeta, porque seu sangue é considerado maléfico.
 Neste sangue, dois tipos de semente hostis à pureza e à identidade dos
homens livres. A primeira determina as malformações e até monstruosidades
da reprodução. A outra, circularia principalmente entre as mulheres, e visava
garantir uma fecundidade limpa e resguardar a população de homens livres
de malformações. Evitava-se assim, o contato entre senhores e escravos.
 Escravos também constituíam perigos espirituais no sentido sociobiológico.
 Por conta da língua diversa da de seus senhores, eram insondáveis, sua alma,
cujo suporte material se confunde com o ventre, coração e fígado seriam
negros e abrigavam o mal em todas as suas formas. Alma e órgãos negros
indissociáveis.
 Por fim, o escravo morto carregava em seu corpo e espírito uma impureza
essencial, prejudicial para a terra estrangeira que o acolheu. O que justifica a
forma que eram tratados os cadáveres: abandonados na natureza ou em ilhas
fluviais, sepultados em covas rasas.

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Terceiro Movimento de Representações
A história do pós-escravidão como uma história regressiva das
sociedades e das culturas
 Do ponto de vista da mentalidade escravista, o pós-abolição, que abriu ao
mesmo tempo a era da democracia moderna, a época da mistura biológica,
sociológica e moral, é um tempo de degradação das sociedades e das culturas.
Este tempo bastado viola a identidade do mundo, a unidade do homem, a
hierarquia tradicional das classes sociais.
 O poeta guru Goré Bi Nangoné descreve as principais características dessa
sociedade
o Os descendentes de escravos são marcados por uma hereditariedade
psicológica e moral de conflitos/belicosa, de mentirosos e covardes.
o Na nova sociedade, eles ocupam a classe dominante tendo adquirido
conhecimento, riqueza e poder casar com as filhas dos senhores.
Finalmente, a nova sociedade aparece como uma sociedade patogênica,
todas as doenças são atribuídas a uma patologia indeterminada: doenças
culturais relacionadas à transgressão das proibições da religião africana,
doenças sociais derivadas da miscigenação, doenças da civilização
industrial, nascidas das novas relações de produção, dos novos modos
de vida e dos novos costumes.
 Representações da escravidão e do tráfico de escravos são dados da
ideologia que os atores sociais em competição com os descendentes de
escravos usam como armas simbólicas – desacreditar e desestabilizar seus
rivais.
 Sociedades africanas de tipo de linhagem, ao descrever a escravidão e o
tráfico como degradação, em representar a degradação como doença dos
escravos, como perigos de muitas maneiras, conferiram conteúdo
psicossociológico à história: mas explicando e justificando estes fatos de
representação por uma construção não científica.
 Nesta ideologia, os descendentes de homens livres encontram, erroneamente,
um recurso político no combate a democracia.

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