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Estudos Teológicos, v. 45, n. 2, p.

90-106, 2005

Invenções religiosas no cotidiano


e teologia narrativa
Antonio Carlos de Melo Magalhães *

Resumo: Este artigo se ocupa do desafio que o tema do sincretismo, aqui chamado
preferencialmente de invenções religiosas no cotidiano, numa referência ao tra-
balho de Michel de Certeau, tem para a teologia narrativa e os postulados desta
para tratar de temas e experiências ainda marginais no pensamento teológico
latino-americano. O autor restringiu-se a apresentar os pressupostos desta rela-
ção e refletir sobre suas chances para o desenvolvimento do trabalho teológico
em nosso contexto.

Resumen: Este artículo se ocupa del desafío que el tema del sincretismo, aquí llama-
do preferencialmente de invenciones religiosas en el cotidiano en una referencia
al trabajo de Michael de Certeau, tiene para la teología narrativa y los postula-
dos de esta para tratar temas y experiencias que todavía son marginales en el
pensamiento teológico latinoamericano. El autor se restringió a presentar los
presupuestos de esta relación y reflexionar sobre las oportunidades para el
desenvolvimiento del trabajo teológico en nuestro contexto.

Abstract: This article concerns itself with syncretism – herein preferentially referred
to as religious inventions in everyday life, as in the work of Michel de Certeau –
and with the challenge it poses on narrative theology and the postulates of the
latter in dealing with topics and experiences still very much on the fringes of
Latin american theological thought. The author presents the presuppositions of
this relation and reflects on the chances for the development of theological work
within this context.

* Doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha); Coordenador da Pós-Gradua-


ção em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, SP.

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Invenções religiosas no cotidiano e teologia narrativa

Introdução
O tema do cotidiano pode nos ajudar a desenvolver uma reflexão
teológica sobre temas ainda marginais na reflexão teológica latino-america-
na, tais como o sincretismo, denominado de invenções religiosas no cotidia-
no, numa referência a algumas das teses centrais de Michel de Certeau.
Esta marginalidade é semelhante à de outros temas, considerados mais re-
levantes para outras ciências, especialmente a sociologia e antropologia, do
que para a teologia, preocupada em atualizar o já dito e destinada a fomen-
tar as práticas consideradas autorizadas e modelares. Daí a marginalidade
também significativa do pentecostalismo na reflexão teológica latino-ameri-
cana. Não se discute aqui a existência ou legitimidade das fontes teológicas,
já apresentadas em muitos dos tratados de teologia em nosso contexto, mas
na forma como a teologia dialoga com a realidade das pessoas concretas,
com as invenções religiosas no cotidiano, com temas como o sincretismo.
Não questionamos, portanto, as fontes, mas o que temos feito com elas
diante da criatividade cultural e religiosa das pessoas. Dificilmente a refle-
xão teológica terá aproximações criativas ao tema, se não repensar seus
mecanismos de produção do conhecimento, se ela não estiver disposta a
recorrer às fontes, não como um termo, mas como um novo início1. É preci-
so, portanto, desenvolver uma teologia disposta a construir conhecimento
em profundo diálogo com as diferentes formas de fazer no cotidiano, sendo
que uma das principais características no fazer cotidiano é o sincretismo
nas ações e nas narrativas religiosas, sincretismo entendido não como dilui-
ção de identidades, mas como forma própria do sujeito conjugar contextos,
simbologias e teologias normativas distintas em sua experiência concreta e
de modelação da realidade. Ao falar das invenções religiosas no cotidiano,
não há aqui a polaridade basismo versus academicismo ou dogmatismo.
Não estou substituindo a dogmática ou a reflexão acadêmica pela experiên-
cia, o que seria algo simplório no universo da reflexão teológica. “É engano-
so o aforismo basista de que só o que nasce da experiência é válido. Muita
gente está tão absorvida nesse positivismo banal do senso comum, ou no
positivismo semi-elaborado do cientificismo experimentalista, que nem se-
quer entende o que se pretende dizer com a tese epistemológica básica de
que todo conhecimento resulta de uma modelização do real.”2 Parto, por-
tanto, do princípio que as invenções religiosas no cotidiano significam uma
forma de criação religiosa característica de nosso contexto e transforman-

1 RAHNER, K. Escritos de Teologia. Madrid: Salamanca, 1961. v. 1, p. 169.


2 ASSMANN, H. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos? In: ANJOS, M. F. dos
(Org.). Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Soter/Loyola, 1997. p. 44.

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do-se, por isto, em objeto de nossa reflexão teológica. Neste período de


transição paradigmática, vale considerar trabalhos que no passado aponta-
vam para um método cumulativo, respeitoso da sabedoria advinda da longa
tradição reflexiva que criamos e desenvolvemos e, ao mesmo tempo, des-
cortinador de novas exigências que o contexto nos apresenta. Não confun-
damos, portanto, invenções religiosas no cotidiano com basismo no sentido
programático-ideológico ou subjetivista-intimista. O cotidiano é mais silenci-
oso, dele não nos apercebemos muitas vezes, pois nele simplesmente vive-
mos. Quando percebemos algo de anormal, é porque houve o processo len-
to que desembocou num evento marcante.
Detenhamo-nos, com efeito, nesta simples constatação: se o quotidiano é o
que se passa quando nada se passa – na vida que escorre, em efervescência
invisível –, é porque “o que se passa” tem um significado ambíguo próprio
do que subitamente se instala na vida, do que nela irrompe como novidade (“o
que se passou?”), mas também do que nela flui ou desliza (o que se passa...)
numa transitoriedade que não deixa grandes marcas de visibilidade.3
Neste cotidiano muitas coisas “imperceptíveis” passam, acontecem.
Os sujeitos fabricam-nas cuidadosa e lentamente. Quando vemos seus re-
sultados, elas já passaram. Isto funciona nos diferentes âmbitos da vida,
também na vida da igreja. Particularmente considero sempre ilustrativo quan-
do alguma igreja mais tradicional resolve fazer um congresso ou um semi-
nário para discutir sobre o processo de mudança dentro das comunidades.
Quando isto acontece é porque, normalmente, as mudanças já ocorreram, já
passaram.
O presente artigo propõe, portanto, pressupostos da reflexão teológi-
ca sobre as invenções religiosas do cotidiano e faz isto a partir da teologia
narrativa com o intuito de participar do debate sobre a hermenêutica teoló-
gica atual. Esta proposta de contribuição é fruto de alguns pressupostos: 1)
as primeiras teologias são frutos de memórias biográficas, não deveríamos
nunca nos esquecer disto e não há biografias sem trivialidades, constitui-
ções, resistências e especificações de um cotidiano dado. Religião é inven-
ção permanente, é mundo de experiências e reconstituições de dados, é
criatividade dos sujeitos em confronto com os dilemas da vida. A fé não é,
portanto, somente assentimento de uma verdade, mas é a construção de
uma relação com o mundo e com Deus. Em outras palavras, o tema das
invenções religiosas no cotidiano é fundamental para dialogar com o aspec-
to narrativo-vital das primeiras teologias e refletir sobre a fé em sua dinâmi-

3 PAIS, J. M. Vida Cotidiana. Enigmas e Revelações. São Paulo: Editora Cortez, 2003. p. 28.

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ca atual; 2) colocar o tema do cotidiano pressupõe também uma suspeita de


que a forma tradicional de se fazer teologia, partindo dos dados passados
para o contexto, não dá conta de acompanhar a dinâmica do campo religio-
so brasileiro; 3) a teologia que assume o cotidiano e suas invenções religio-
sas como tarefa e tema preserva o mundo de referências herdado, coloca-
o, porém, diante da necessidade de construir um “discurso crível sustentado
na própria fé que o alimenta” (Vítor Westhelle). A fé que alimenta o discur-
so não é somente herança, norma e passado, mas é vivência, novidade, o
inesperado, o inaudito, o sincrético. Teologia tem tarefa, portanto, não so-
mente de voltar a um núcleo de mensagens, mas também de assumir o
perigo de se incorporar à situação real das comunidades e das experiências.

A invenção do e no cotidiano. Diálogo com as teses


de Michel de Certeau
O título do artigo é fruto de diálogo com algumas das teses de Michel
de Certeau, a quem interessaram as táticas dos sujeitos na invenção do
cotidiano. Na introdução geral de sua obra4, Certeau apresenta as bases de
seu enfoque e os objetivos de sua pesquisa: fazer uma análise dos “modos
de operação ou esquemas de ação” na construção do cotidiano, cuja carac-
terística central é a da lógica operatória da camuflagem e do disfarce em
relação à racionalidade dominante. A preocupação se volta, portanto, não
para os sujeitos no sentido atribuído à modernidade, em relação ao objeto-
mundo, partindo de um nível de consciência planejadora do ambiente ao
redor, mas das operações e táticas desses sujeitos. Para este autor, é mais
importante entender a subjetividade em suas dimensões relacionais e dinâ-
micas do que a partir de concepções lineares.
Neste sentido, a preocupação de Michel de Certeau não é o resgate
dos sujeitos no sentido dado pela filosofia moderna, mas estes modos de
operação construídos nas relações sociais. Isto porque “o cotidiano se in-
venta com mil maneiras”5.
Inicialmente, Certeau abre mão de análise de um grupo cultural espe-
cífico e investiga a produção-consumo, intrinsecamente relacionada de for-
ma crítica à produção racionalizada e expansionista da sociedade moderna.
Produção e consumo não devem ser vistos em relações de mera imposição
por uma parte e recepção de outra, mas esta relação produção-consumo se

4 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. v. 1.


5 CERTEAU, 1994, p. 38.

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dá na vivência pelas dinâmicas em suas diferentes formas de articulação.


Neste sentido, a própria produção se dá, portanto, também pelo uso, pelo
consumo e pelas formas de operação, e o consumo, por sua vez, se dá
dentro de táticas próprias dos sujeitos. Para ilustrar o sentido de produção-
consumo, Michel de Certeau lança mão de um exemplo da colonização na
América Latina:
Há bastante tempo que se tem estudado que equívoco rachava, por dentro,
o “sucesso” dos colonizadores espanhóis entre as etnias indígenas: subme-
tidos e mesmo consentindo na dominação, muitas vezes esses indígenas
faziam das ações rituais, representações ou leis que lhes eram impostas
outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por elas. Os
indígenas as subvertiam, não as rejeitando diretamente ou as modificando,
mas pela sua maneira de usá-las para fins e em função de referências estra-
nhas ao sistema do qual não podiam fugir.6
Partindo desta comparação entre a produção e seu uso, é possível
estabelecer as diferenças e as semelhanças, sincronias e diacronias entre
as diferentes instâncias e modos de operação. Quer dizer, a relação produ-
ção-consumo é tudo menos linear e marcada por automatismos e atos me-
cânicos de recepção, antes tem lógica própria, caracterizada por camufla-
gens e resistências.
Outro exemplo que Certeau usa para comparar estes modos de ope-
ração é a associação ao ato de falar:
[...] este opera no campo de um sistema lingüístico: coloca em jogo uma
apropriação, ou uma reapropriação, da língua por locutores; instaura um
presente relativo a um momento e a um lugar; e estabelece um contrato com
o outro (o interlocutor) numa rede de lugares e de relações.7
No ato de falar está, portanto, uma forma de lidar com a língua que
vai para além de recepções mecânicas da estrutura da língua normativa.
Como diria Haroldo de Campos, o povo é “inventa-línguas na barriga da
miséria”. Essa “invenção” é ainda mais visível no ato de falar.
Dizendo de outra forma, as “maneiras de fazer” constituem as diver-
sas práticas pelas quais os consumidores/produtores re(inventam) o seu
espaço organizado pelos instrumentos da produção sócio-cultural. Sendo
prática aqui entendida não somente como a ação de sujeitos voltada para a
transformação ideológica de uma realidade, mas, muitas vezes, como “pe-
quenos” atos de articulação da vida e de suas resistências às normas esta-

6 CERTEAU, 1994, p. 39.


7 CERTEAU, 1994, p. 40.

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belecidas. Isto não significa uma recusa do poder transformador da realida-


de, só constatamos que este poder de transformação se dá em espaços
silenciosos do cotidiano e não nas práticas orientadas por ideologias rígidas
e programas políticos inflexíveis.
Seria um grande equívoco pensar nessas maneiras como meros im-
pulsos de um inconsciente indecifrável, algo que residiria em atitudes pré-
lógicas. Essas maneiras de fazer conhecem uma racionalidade própria e
seguem regras que podem ser observadas. Trabalhos na área de sócio-
lingüística, antropologia, semiótica e filosofia analítica apontam para os dife-
rentes enfoques que nos ajudam a entender estas regras. Elas se constitu-
em como verdadeiras táticas pessoais e grupais em meio às grandes estra-
tégias institucionais e estruturais.
Naturalmente as maneiras de fazer ou os modos de operação estão
intimamente ligados aos lugares que os sujeitos ocupam nas instâncias de
produção e consumo. Os sujeitos reais, dependendo do lugar que ocupam,
tendem a usar mais as táticas para a sobrevivência. O importante é consta-
tar que não há supersujeitos que consigam abrir mão deste processo de
recepção e re-significação das verdades e dos princípios estabelecidos pe-
las estratégias dominantes.
Neste ponto, é importante ver a relação entre táticas e estratégias.
Essas táticas manifestam igualmente a que ponto a inteligência é indissociável
dos combates e dos prazeres cotidianos que articula, ao passo que as estra-
tégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os
sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição.8
Em outras palavras, aqui está, para Michel de Certeau, um ponto
nevrálgico: as estratégias institucionais e de poder não dão conta de todos
os meandros e matizes da vida, pois elas contam com um jogo de “cálculos
objetivos” que abrem mão de interlocução detalhada e permanente com os
sujeitos. Daí a reação por meio daquilo que este autor chamou de “táticas”,
que são exatamente estas atitudes/resistências/re-significação em relação
ao que foi imposto e determinado.
Para entender melhor essa relação, é preciso lançar mão de mais
uma abordagem que Michel de Certeau faz, que é sobre o homem ordinário,
o “murmúrio da sociedade”, o “herói comum”, o alguém e o ninguém simul-
taneamente. Mesmo o intelectual, o perito, o pesquisador é um homem co-
mum, possuidor de verdades banais, de interesses mesquinhos, de impulsos

8 CERTEAU, 1994, p. 47.

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vitais, dos sinais patológicos da sociedade, dos momentos risíveis simples,


das fusões inesperadas, da criação de proximidades inauditas.
Em virtude disso, até mesmo o papel do perito deve ser entendido
dentro dessa trama de relação com o poder, pois muitas vezes o discurso
não passa de “linguagem ordinária dos jogos táticos entre poderes econômi-
cos e autoridades simbólicas”9.
Outro aspecto a ser considerado sobre esta dimensão ordinária da
vida e do cotidiano é a questão da linguagem, pois ela nos supera e envolve,
de tal forma que nenhum discurso pode “sair dela e colocar-se à distância
para observá-la e dizer o seu sentido”10. O recurso a Wittgenstein neste
tópico é decisivo. “Estamos submetidos, embora não identificados, à lingua-
gem ordinária.”11 Em outras palavras, a linguagem ordinária, simples, co-
mum do cotidiano, é a nossa primeira casa e nisto reside muito de reinven-
ção e trampolins da vida.
Uma forma muito própria de reinvenção e dos modos de operação é
o da narrativa dos milagres no nordeste brasileiro. Mais que uma mera re-
produção da opressão, as narrativas apontam para certa reorganização do
mundo, interpretação do fático com forte elemento utópico.
Os “crentes” rurais desfazem assim a fatalidade da ordem estabelecida. E o
fazem, utilizando um quadro de referência que, também ele, vem de um poder
externo (a religião imposta pelos missionários). Reempregam um sistema
que, muito longe de lhes ser próprio, foi construído e propagado por outros,
e marcam esse reemprego por “super-ações”, excrescências do miraculoso
que as autoridades civis e religiosas sempre olharam com suspeita, e com
razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber a sua “razão”. Um uso
(“popular”) da religião modifica-lhe o funcionamento. Uma maneira de falar
essa linguagem recebida a transforma em um canto de resistência, sem que
essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a qual pode ser
acreditada, nem a lucidez com a qual, aliás, se vêem as lutas e as desigualda-
des que se ocultam sob a ordem estabelecida.12
Nisso reside uma trampolinagem, mistura de trampolim com trapa-
ça, com malandragem. De um lado, a relação, o vínculo com as narrativas
do poder, com o instituído e o normativo, mas, ao mesmo tempo, os disfar-
ces, as re-significações, as reinvenções.
Os dados, os princípios, as leis, as normas, a transparência e a rotini-

9 CERTEAU, 1994, p. 67.


10 CERTEAU, 1994, p. 69.
11 CERTEAU, 1994, p. 70.
12 CERTEAU, 1994, p. 78-79.

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zação tecnocrática devem ser entendidos a partir desta capacidade perma-


nente do “ser humano comum” usar, instrumentalizar, re-enquadrar, associ-
ar. Mesmo os elementos antigos de uma cultura, como é o caso dos provér-
bios, são objetos de uso.
Como os utensílios, os provérbios ou outros discursos são marcados por
usos; apresentam à análise as marcas de atos ou processos de enunciação;
significam as operações de que foram objeto, operações relativas a situa-
ções e encaráveis como modalizações conjunturais do enunciado ou da
prática; de modo mais lato, indicam, portanto, uma historicidade social na
qual os sistemas de representações ou os procedimentos de fabricação não
aparecem mais só como quadros normativos mas como instrumentos mani-
puláveis por usuários.13
Um exemplo deve ajudar o leitor e a leitora a compreenderem melhor
a linha de reflexão neste ensaio: o jogo. Nele encontramos as regras que
funcionam e ajudam, mas nele encontramos a criatividade, o passe, o drible,
o lance inovador, a astúcia, a sobrevivência. As regras não conseguem dar
conta disso, pois isto tem a ver com o jogador e com seus múltiplos aprendi-
zados.

Cotidiano e cultura popular


Pressupondo o que foi dito, entendemos, dentro deste quadro teórico,
o sentido atribuído à cultura popular. Certeau desenvolve seu conceito de
alteridade justamente em torno da cultura popular, isto porque ela elabora
uma “outra racionalidade produtiva, propriedade epistêmica e poder políti-
co”14, tendo, por conseguinte, um papel fundamental na elaboração das tá-
ticas, mesmo que se considere seu lugar subalterno no domínio do poder.
Em termos históricos, no contexto europeu, Certeau reconhece em
textos de teoria política a relação entre o conceito de popular e movimentos
e grupos revolucionários ou violentos. Em muitos textos políticos, o termo
popular passa a ser associado à violência das classes subalternas, o que é
criticado por Certeau como uma forma de encobrimento do papel da cultura
popular dentro da identidade nacional e da comunidade geográfica coesiva.
Em torno do debate sobre a cultura popular, Certeau identifica uma
das formas de operação historiográfica de algumas correntes e seus lugares
hermenêuticos. A relação indicada entre cultura popular e violência aponta

13 CERTEAU, 1994, p. 82.


14 AHEARNE, J. Michel de Certeau: Interpretation and its Other. Cambridge: Polity Press.
1995. p. 132.

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para uma das formas mais usuais de escrita de uma historiografia que re-
produz pensamentos hegemônicos.
Um exemplo desta forma de contar a história da cultura popular é a
de como alguns enfoques sociológicos se referem aos movimentos religio-
sos pentecostais, da mesma forma como alguns enfoques teológicos se re-
portam a algumas práticas das religiões afro-brasileiras. Normalmente o
que é destacado é justamente o aspecto da chamada alienação, da violência
e de gestos que consideramos inadequados ao jogo social. Esquecemo-nos,
muitas vezes, que justamente nestas culturas e práticas religiosas temos
elementos fundamentais daquilo que pertence à nossa identidade cultural e
à sobrevivência cultural. Em vez de olharmos para tais práticas como táti-
cas e articulações, como formas concretas de jogar o jogo da vida e do
cotidiano, acusamo-las de desrespeito às regras aprendidas. Julgamos uma
língua falada a partir da gramática normativa estabelecida por nós mesmos
e nossas instituições.
Ainda sobre a cultura popular, é importante considerar outro aspecto
que também é problemático, mesmo que fruto de interpretações ditas mais
progressistas e libertadoras: é a idéia de que a cultura popular, essa alterida-
de no cotidiano, é marcada e carimbada pela tentativa de identificação e
interpretação da “origem perdida”, algo típico em reflexões teológicas que
partem de passados ideais enquanto identidade presente, sem levar em con-
ta a complexidade do processo de desenvolvimento de uma cultura. É inte-
ressante notar que a busca por essa origem perdida obstaculiza uma inter-
pretação de elementos que são vitais na cultura popular, isto porque tais
elementos já não estão em sintonia com tal “origem perdida”. Em virtude
disso, interpretar a cultura popular de forma mais criativa é, para Michel de
Certeau, não ter a idéia de origem como ponto de partida, mas antes a
realidade e os textos atuais. O passado é, nesse caso, referência e interlo-
cução. O popular deve ser definido pelas posturas, imagens, narrativas mais
recorrentes dos grupos e não através de uma idéia de algo “autenticamente
popular”, quando isto é entendido em termos de passado congelado pelos
idealismos atuais de uma esquerda intelectual.
Essa forma de pensar a cultura popular é aparentemente idealizado-
ra, mas, na verdade, se encontra dentro das estratégias de domínios de
alguns setores. Em outras palavras, para esta forma de pensar é bom que
índios, negros sejam vistos a partir de um passado “autêntico”, mas, ao
mesmo tempo, um passado irrecuperável, portanto, inexistente enquanto
experiência real. Coloca-se, assim, o impasse intransponível na interpreta-
ção e no jogo do poder: eles devem lutar para recuperar o que eles eram

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autenticamente, mas o que eles eram autenticamente é irrecuperável, mas


também não é permitido a eles serem diferentes, visto que isto significaria
uma traição da origem perdida. Um impasse traiçoeiro no jogo do poder da
interpretação. Resumindo, podemos dizer que nem a interpretação que julga
as práticas a partir de regras oficiais nem a idealizadora de um passado dão
conta de compreender os sujeitos e seu cotidiano. Aí a teologia se transfor-
ma ou em interpretação das regras ou em interpretação das origens ideais
congeladas. Onde fica a teologia da e na vida? Onde fica a teologia que tem
que lidar com a relação entre cultura negra e pentecostalismo nos grandes
centros urbanos, quando ainda pensamos na religião afro-brasileira, es-
pecialmente o Candomblé, como a religião da cultura negra? Onde fica a
teologia disposta a refletir sobre as invenções religiosas indígenas nos cen-
tros urbanos dos países andinos? Onde está a teologia pronta para assumir
reflexivamente as diferentes invenções religiosas pentecostais e carismáti-
cas nos grandes centros urbanos do contexto brasileiro e latino-americano?
Falta-nos, ainda, uma teologia amorosa não somente com os pobres, en-
quanto categoria voltada para mudanças sociais, mas também com a reli-
gião construída dia-a-dia pelo povo inventa-línguas.
Certeau percebe uma ardilosa estratégia de se jogar, por um lado,
com a opacidade da história dos subalternos e, por outro, com a visibilidade
da cultura dita hegemônica. A opacidade é resolvida a partir de uma visão
ideal de um passado, um passado irrecuperável, mas colocado em termos
de alteridade em relação à cultura hegemônica. Nessa performance da
política da linguagem é conquistada parte do domínio das estratégias insti-
tucionais.
A folclorização das diferenças, a visibilidade de uma alteridade remo-
ta colocada como padrão, a escrita tanto da direita quanto da esquerda
caminhando com postulados semelhantes, uma humilhando o passado como
modelo cultural, outra exaltando o ideal perdido, tudo se encontra nas estra-
tégias que servem para mascarar e enfraquecer as táticas concretas da
cultura popular em seu enfrentamento, absorção e reinterpretação das es-
tratégias dominantes usadas.
Essa política da linguagem é uma forma de sedimentar e representar
a sociedade disciplinadora, visto que a ordem social é vista a partir de uma
organização interpretativa em que todos têm não somente culturas, mas,
especialmente papéis. A “alteridade” idealizada tem seu papel a desempe-
nhar a partir desta opacidade do seu presente e visibilidade do seu passado.
Justamente aí Certeau coloca a questão das táticas, visto que os su-
jeitos não reagem somente a partir deste plano de análise, interpretação e

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ação. Eles não têm, portanto, somente papéis a desempenhar, mas culturas
a construir e fabricar. Se tivessem somente papéis, estariam destinados ou a
recuperar passados ideais ou a cumprir as regras prescritas, mas, pelo fato
de terem cultura, fomentam os processos e reinventam os códigos.
As interpretações que trabalham com esta tensão opacidade/visibili-
dade tendem a selecionar de forma rígida demais as imagens que melhor se
adaptam ao universo conceitual. A cultura popular e suas táticas usam, po-
rém, muitas outras imagens no seu sistema de referência, até mesmo ima-
gens que cruzam as linhas demarcatórias da opacidade/visibilidade dos mui-
tos “outros” existentes na sociedade. Em outras palavras, enquanto os gru-
pos que trabalham com as categorias que expressam uma sociedade disci-
plinadora, seja direcionando as pessoas para as normas frias ou para os
passados ideais congelados, lançam mão de imagens e narrativas que, em
sua opinião, melhor se adaptam a este modelo de comportamento e de pen-
samento, a cultura popular estabelece em seus caminhos as fusões de ima-
gens e narrativas, transformando inimigos em amigos e parceiros em opo-
nentes. O uso que a cultura popular faz das imagens no seu cotidiano não é
de cunho linear/instrumental, mas é antes de cunho associativo/desregula-
mentador. Daí que as invenções religiosas no cotidiano se apresentem aos
olhos de muitas teologias panópticas como confusão, alienação, desagrega-
ção, decadência.
O cotidiano é, portanto, algo a ser decifrado e lido constantemente:
“Quanto ao nosso mundo cotidiano, parece estar escrito mais num mosaico
de línguas, como uma parede coberta de grafites, cheia de rabiscos sobre-
postos, como um palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito várias
vezes.”15

Teologia narrativa e invenções religiosas no cotidiano


A proposta de uma teologia narrativa é a forma como vejo o diálogo
teológico, reflexivo, crítico-amoroso, com as invenções religiosas no cotidi-
ano, daí que o tema da narrativa não pode estar dissociado de uma discus-
são sobre o tema da revelação, algo que marca profundamente a identidade
teológica cristã. A ela queremos reservar algumas linhas de nossa reflexão.
Tradicionalmente, a revelação foi vista como um ato dos céus para a terra,
sendo assim, ela foi entendida como um ato puro de Deus. Dessa forma, a

15 CALVINO, Í. A palavra escrita e não escrita. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 145.

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Invenções religiosas no cotidiano e teologia narrativa

teologia protestante, em especial, teve grande dificuldade para estabelecer


diálogo com a cultura e a sociedade. Partia-se do esquema teológico protes-
tante pouco dialógico com uma aparente salutar vontade de proteger trans-
cendentalidade e alteridade divinas, que o que está nas Escrituras era algo
praticamente dissociado de história, estória, testemunho, experiência, vivên-
cia, ambigüidade, enfim, de narrativa e de invenção religiosa própria no co-
tidiano do povo de Deus. Como conseqüência disso, desenvolvemos uma
compreensão de texto bíblico que leva em conta quase que tão-somente a
ação de Deus e passamos a olhar os personagens humanos como objetos,
receptáculos de algo definido e dito de forma eterna. A discussão em torno
da relação entre narrativa e revelação pode nos ajudar a ter uma visão
sistematicamente diferenciada e pastoralmente mais plausível para o nosso
contexto, nossas práticas e as invenções religiosas no cotidiano. Para olhar-
mos estes dois conceitos moventes da história da teologia, é preciso olhar
para o consenso cognitivo que reina hoje, no nosso contexto de produção
teológica sobre eles. “Hoje temos consciência mais viva de que a Palavra
de Deus não se identifica nem com a letra da Escritura, nem com a letra dos
enunciados dogmáticos.”16 É preciso, portanto, colocar uma interpretação
de revelação que leve em conta a própria natureza dinâmica do processo
revelatório, sendo que dentro desta dinâmica a narrativa assume um papel
decisivo.
A revelação não é a comunicação, a partir do alto, de um saber fixado vez por
todas. Ela designa, ao mesmo tempo, a ação de Deus na história e a experiên-
cia de fé do Povo de Deus, que se traduz em expressão interpretativa dessa
ação. Em outras palavras, o que chamamos de Escritura já é interpretação. E
a resposta da fé pertence ao próprio conteúdo da revelação.17
Chegamos à conclusão que o processo revelatório inclui a narrativa
como elemento constitutivo. Não existe, portanto, uma fé em reação à reve-
lação, mas um processo revelatório do qual a narrativa da fé é parte consti-
tuinte. Isto porque o processo revelatório se dá sempre numa história con-
creta (mundo, sociedade) do povo de Deus (realidade eclesial, comunitária
e cristã no sentido amplo e não restrito confessional) específico, a partir de
categorias conceituais de um período (academia, reflexão, cultura-interpre-
tação).
A revelação atinge sua plenitude, seu sentido e sua atualidade somente na fé

16 GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: Hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas,
1989. p. 18.
17 GEFFRÉ, 1989, p. 18.

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que a acolhe. Por isso a revelação, enquanto Palavra de Deus numa palavra
humana ou vestígio de Deus na história, não se sujeita a método científico,
histórico-crítico. A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre conhecimento
interpretativo marcado pelas condições históricas de uma época. E a teolo-
gia, enquanto discurso interpretativo, não é somente a expressão diferente
de um conteúdo de fé sempre idêntico, que escaparia à historicidade. Ela é
também a interpretação atualizante do próprio conteúdo da fé.18
Não podemos, portanto, dissociar ação de Deus de sua própria reve-
lação, assim como não podemos separar esta de sua acolhida por parte do
povo de Deus, feita, por sua vez, por meio de uma Escritura, dentro de um
processo de transmissão desta experiência, que inclui um passado polissê-
mico e um presente plural. Escritura e transmissão da experiência são, fun-
damentalmente, narrativas da fé, e estas são elementos constitutivos do
processo revelatório da vida divina, que, segundo as narrativas bíblicas, op-
tou pela narrativa como forma de seu povo transmitir saber e sabores de
sua fé.
Outro aspecto muito importante desta relação é preservar uma tradi-
ção fundamental do Antigo Testamento em torno do símbolo e da presença
de Yahweh, que não é nem uma mera representação, nem um simples nome
de uma divindade, antes uma nomeação daquilo que está para além de qual-
quer nome particular. É a alteridade divina mesclada à presença poderosa
do sagrado19. Um importante aspecto em torno desta relação tensa entre a
alteridade divina e a presença poderosa do sagrado é que só foi possível a
sua manutenção através da narrativa da fé, cujo exemplo maior é o discurso
profético em recontar a história do povo na sua relação direta com Deus. A
saída para a crise religiosa e política era vista, antes de tudo, pelas histórias
que eram descortinadas na presente história do povo. Além disso, é inegável
constatar que para os profetas Yahweh tinha uma história com o seu povo,
sempre descrita nas muitas histórias/estórias. Isto porque o tempo da alteri-
dade divina e da presença poderosa do sagrado só se torna humano quando
é articulado em modo narrativo e a ação narrativa chega à sua plenitude
quando se torna uma condição da existência humana20. Com isso, teologia
narrativa tem o seu aspecto “arqueológico” na permanente tentativa de bus-
car o passado, as diferentes formas de histórias em torno da alteridade
divina e da poderosa presença do sagrado, mas só é, de fato, teologia narra-
tiva, porque “escatológica”, ao contar as histórias presentes no intuito de

18 GEFFRÉ, 1989, p. 18.


19 BALY, D. God and History in the Old Testament. New York: Harper & Row, 1976. p. 11.
20 RICOEUR, P. Time and Narrative. Chicago: University of Chicago Press, 1984. v. 1, p. 6.

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Invenções religiosas no cotidiano e teologia narrativa

poder contemplar plenitude dos tempos, amanhãs melhores, horizontes no-


vos, que se descortinam em meio à mesmice, mas para realizar isto de
forma dialógica e amorosa com a vida das pessoas, ela é encarnada, cresce
das invenções religiosas no cotidiano de hoje, não se assusta com os gritos
pentecostais nem com as fusões do sincretismo.
Temos heranças para a construção do saber teológico e de seus mé-
todos. Critico duas que são norteadoras de nossa formação: 1) a primeira,
de cunho mais europeu, tem uma certa “mania” de trabalhar conceitos para
a vida. É como se chegássemos à verdade das coisas, simplesmente fazen-
do um estudo sobre os diferentes sentidos atribuídos ao conceito com o qual
trabalhamos, desde que, naturalmente, uma linearidade nestes sentidos seja
constatada e preservada. A teologia, segundo este modelo, teria o trabalho
de escolher os conceitos, mostrar a linearidade nos sentidos a eles atribuí-
dos, para, em seguida, falar ao ser humano moderno de suas aplicações e
contextualizações. De tanto buscar a verdade do passado, chegamos can-
sados ao presente. 2) A segunda herança é de cunho mais norte-americano,
é aquela que trabalha com modelos de práticas para novas práticas na co-
munidade. É a teologia do receituário eclesiástico. Algumas práticas bem
sucedidas em determinados contextos eclesiais são rapidamente universali-
zadas. Em geral, essas práticas exemplares expressam um mundo de uma
classe média estabelecida. Nenhuma delas dá conta das invenções religio-
sas no cotidiano ou reflete amorosa e criticamente sobre nossa especifici-
dade cristã em nosso continente.
Creio que estes dois modelos têm limites sérios para lidar com o coti-
diano. O primeiro porque está enclausurado num universo conceitual linear-
dogmático, o segundo porque está encapsulado em receituários de igrejas
grandes de classe média que pouco falam a uma parcela significativa de
nossa realidade eclesiástica e religiosa brasileira e latino-americana, além
de, em termos mais epistemológicos, confundir práxis com pragmatismo de
sucesso.
Há caminhos para a teologia em sua inserção no cotidiano? Com
certeza e muitos até. Recuperar aspectos fundamentais da teologia narrati-
va, desenterrar memórias sufocadas e colocá-las na interlocução dos gru-
pos atuais e das memórias auto-biográficas dos sujeitos, reler as teologias
auto-biográficas21, vibrar novamente com as belas imagens que temos em
nossas muitas histórias e narrativas, olhar mais amorosa e reflexivamente
para as diferentes invenções religiosas em nosso cotidiano.

21 Um exemplo ainda bastante oportuno é o livro Confissões de Santo Agostinho.

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Como ilustração desta possibilidade, tomo aqui o exemplo do Reino


de Deus22. A teologia voltada para as invenções religiosas no cotidiano tem
aí um bom exemplo. Esta mensagem central de Jesus Cristo é fascinante
para a teologia, porque ele a retira do meio da cultura e a coloca na sua
pregação. Isto foi um risco, um alto risco, visto que a este termo, Reino de
Deus, muitas associações eram feitas e engana-se quem pensa que o termo
tem um sentido somente político. É um termo ao mesmo tempo central, visto
que está no meio da cultura religiosa, e difuso, porque a ele são associados
muitas imagens e muitos desejos. Tomo como exemplo para ilustrar esta
difícil e empolgante tarefa da teologia voltada para as invenções religiosas
no cotidiano: de lidar com palavras moventes da própria vida, que sejam
centrais, mas ao mesmo tempo difusas, que sejam fortemente catalisadoras,
mas ao mesmo tempo sedutoras de imagens e associações. Não uso este
exemplo para dogmatizá-lo e dizer que ele deve ser o centro da teologia.
Isto seria um contra-senso à proposta deste artigo. O poeta afirmou que
“cada palavra é metade de quem escreve, metade de quem a lê”. A mensa-
gem do Reino de Deus tinha muitas outras “metades” nos ouvintes de Jesus
de Nazaré. Nem por isso ele deixou de pregá-la, pelo contrário. Também
por este motivo, creio eu, Paulo deixou de falar do Reino de Deus, visto que
já não havia mais “metades” de compreensão em seus ouvintes para este
conceito.
A teologia cristã voltada para o cotidiano pode aprender desta traje-
tória cristológico-paulina: usar palavras e interpretações moventes da cultu-
ra e das pessoas, mas também deixar de usá-las, ou usá-las perifericamen-
te, quando percebermos que já são outras as palavras que constituem a
situação vital dos grupos e das comunidades. Daí que as invenções religio-
sas no cotidiano podem se tornar tema desafiador para a teologia, não como
ato segundo, mas como reflexão amoroso-crítica da fé concreta das comu-
nidades cristãs e religiosas de nosso contexto. Tema assim não é fácil, pois
aprendemos outra forma de estabelecer os parâmetros da reflexão teológi-
ca, mas uma reflexão teológica sobre as invenções religiosas no cotidiano
pode nos tirar de um certo marasmo teológico, marcado ainda ou por análi-
ses de conjuntura sem sujeitos concretos ou por dogmatismos retóricos e
monótonos. O tema das invenções religiosas, do sincretismo, pode significar
uma nova aprendizagem para a teologia.
Este não significou nem significa hoje uma deturpação do cristianismo au-

22 SEGUNDO, J. L. A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré: Dos sinóticos a


Paulo. São Paulo: Paulus, 1997. NOLAN, A. Jesus antes do Cristianismo. São Paulo:
Paulinas, 1988.

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Invenções religiosas no cotidiano e teologia narrativa

têntico, mas antes um freio à hegemônica ideológica católica de então. Esta,


incrustada em binarismos ocidentais (Westhelle) ausentes da cosmovisão
africana, mostrava-se, quase sempre, desumanizadora e antievangélica, num
vistoso desprezo ao corpo e à dimensão terrena. Portanto, convém dar novo
enfoque à reflexão e à prática pastoral, tendo em vista a viabilidade teológi-
co-doutrinária do sincretismo.23
Esta necessidade no âmbito católico é a mesma no âmbito protestan-
te. Nos aproximamos da realidade cultural e religiosa de nossos povos por
meio da teologia da inculturação e da contextualização. Um passo a mais
precisa, porém, ser dado, o da reflexão teológica que inclua as invenções
religiosas no cotidiano, o sincretismo, como forma própria de estabelecer a
relação entre evangelho e cultura, de reconhecer a nossa autenticidade na
construção de um cristianismo próprio, não somente como extensão de cris-
tianismos de outros contextos. Se evangelização é o anúncio da mensagem
em torno dos símbolos cristãos a cada época e cultura, inculturação, no
âmbito católico, contextualização no âmbito protestante, é o processo de
transmissão da mensagem, sincretismo é o produto das invenções religiosas
do cotidiano das pessoas concretas24, um resultado silencioso no cotidiano.
A teologia refletiu sobre a evangelização e sobre o processo de transmissão
da mensagem a partir do modelo teológico da encarnação, é preciso, porém,
refletir sobre o que as pessoas fazem deste anúncio e deste processo pen-
sado nos limites eclesiásticos. Uma teologia narrativa, amoroso-crítica, pode
ser uma resposta criativa aos sujeitos concretos na fabricação de seu coti-
diano e da religião no cotidiano.

Referências
AHEARNE, J. Michel de Certeau: Interpretation and its Other. Cambridge: Polity
Press. 1995.
ASSMANN, H. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos? In: ANJOS,
M. F. dos (Org.). Teologia aberta ao futuro. São Paulo: Soter/Loyola, 1997.
BALY, D. God and History in the Old Testament. New York: Harper & Row, 1976.
CALVINO, Í. A palavra escrita e não escrita. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J.
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes. 1994. v. 1.

23 SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação. Pressupostos para uma teologia do sincretismo


religioso no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 23.
24 MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. Estudos de
Religião, São Bernardo do Campo, v. 14, p. 49-70, 1998.

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Estudos Teológicos, v. 45, n. 2, p. 90-106, 2005

GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: Hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas,
1989.
MAGALHÃES, A. C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica.
Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 14, p. 49-70, 1998.
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PAIS, J. M. Vida Cotidiana. Enigmas e Revelações. São Paulo: Editora Cortez, 2003.
RAHNER, K. Escritos de Teologia. Madrid: Salamanca, 1961. v. 1, p. 169.
RICOEUR, P. Time and Narrative. Chicago: University of Chicago Press, 1984. v. 1,
p. 6.
SEGUNDO, J. L. A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré: Dos sinóticos
a Paulo. São Paulo: Paulus, 1997.
SOARES, A. M. L. Interfaces da Revelação. Pressupostos para uma teologia do
sincretismo religioso no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2003.

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