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90-106, 2005
Resumo: Este artigo se ocupa do desafio que o tema do sincretismo, aqui chamado
preferencialmente de invenções religiosas no cotidiano, numa referência ao tra-
balho de Michel de Certeau, tem para a teologia narrativa e os postulados desta
para tratar de temas e experiências ainda marginais no pensamento teológico
latino-americano. O autor restringiu-se a apresentar os pressupostos desta rela-
ção e refletir sobre suas chances para o desenvolvimento do trabalho teológico
em nosso contexto.
Resumen: Este artículo se ocupa del desafío que el tema del sincretismo, aquí llama-
do preferencialmente de invenciones religiosas en el cotidiano en una referencia
al trabajo de Michael de Certeau, tiene para la teología narrativa y los postula-
dos de esta para tratar temas y experiencias que todavía son marginales en el
pensamiento teológico latinoamericano. El autor se restringió a presentar los
presupuestos de esta relación y reflexionar sobre las oportunidades para el
desenvolvimiento del trabajo teológico en nuestro contexto.
Abstract: This article concerns itself with syncretism – herein preferentially referred
to as religious inventions in everyday life, as in the work of Michel de Certeau –
and with the challenge it poses on narrative theology and the postulates of the
latter in dealing with topics and experiences still very much on the fringes of
Latin american theological thought. The author presents the presuppositions of
this relation and reflects on the chances for the development of theological work
within this context.
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Invenções religiosas no cotidiano e teologia narrativa
Introdução
O tema do cotidiano pode nos ajudar a desenvolver uma reflexão
teológica sobre temas ainda marginais na reflexão teológica latino-america-
na, tais como o sincretismo, denominado de invenções religiosas no cotidia-
no, numa referência a algumas das teses centrais de Michel de Certeau.
Esta marginalidade é semelhante à de outros temas, considerados mais re-
levantes para outras ciências, especialmente a sociologia e antropologia, do
que para a teologia, preocupada em atualizar o já dito e destinada a fomen-
tar as práticas consideradas autorizadas e modelares. Daí a marginalidade
também significativa do pentecostalismo na reflexão teológica latino-ameri-
cana. Não se discute aqui a existência ou legitimidade das fontes teológicas,
já apresentadas em muitos dos tratados de teologia em nosso contexto, mas
na forma como a teologia dialoga com a realidade das pessoas concretas,
com as invenções religiosas no cotidiano, com temas como o sincretismo.
Não questionamos, portanto, as fontes, mas o que temos feito com elas
diante da criatividade cultural e religiosa das pessoas. Dificilmente a refle-
xão teológica terá aproximações criativas ao tema, se não repensar seus
mecanismos de produção do conhecimento, se ela não estiver disposta a
recorrer às fontes, não como um termo, mas como um novo início1. É preci-
so, portanto, desenvolver uma teologia disposta a construir conhecimento
em profundo diálogo com as diferentes formas de fazer no cotidiano, sendo
que uma das principais características no fazer cotidiano é o sincretismo
nas ações e nas narrativas religiosas, sincretismo entendido não como dilui-
ção de identidades, mas como forma própria do sujeito conjugar contextos,
simbologias e teologias normativas distintas em sua experiência concreta e
de modelação da realidade. Ao falar das invenções religiosas no cotidiano,
não há aqui a polaridade basismo versus academicismo ou dogmatismo.
Não estou substituindo a dogmática ou a reflexão acadêmica pela experiên-
cia, o que seria algo simplório no universo da reflexão teológica. “É engano-
so o aforismo basista de que só o que nasce da experiência é válido. Muita
gente está tão absorvida nesse positivismo banal do senso comum, ou no
positivismo semi-elaborado do cientificismo experimentalista, que nem se-
quer entende o que se pretende dizer com a tese epistemológica básica de
que todo conhecimento resulta de uma modelização do real.”2 Parto, por-
tanto, do princípio que as invenções religiosas no cotidiano significam uma
forma de criação religiosa característica de nosso contexto e transforman-
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3 PAIS, J. M. Vida Cotidiana. Enigmas e Revelações. São Paulo: Editora Cortez, 2003. p. 28.
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para uma das formas mais usuais de escrita de uma historiografia que re-
produz pensamentos hegemônicos.
Um exemplo desta forma de contar a história da cultura popular é a
de como alguns enfoques sociológicos se referem aos movimentos religio-
sos pentecostais, da mesma forma como alguns enfoques teológicos se re-
portam a algumas práticas das religiões afro-brasileiras. Normalmente o
que é destacado é justamente o aspecto da chamada alienação, da violência
e de gestos que consideramos inadequados ao jogo social. Esquecemo-nos,
muitas vezes, que justamente nestas culturas e práticas religiosas temos
elementos fundamentais daquilo que pertence à nossa identidade cultural e
à sobrevivência cultural. Em vez de olharmos para tais práticas como táti-
cas e articulações, como formas concretas de jogar o jogo da vida e do
cotidiano, acusamo-las de desrespeito às regras aprendidas. Julgamos uma
língua falada a partir da gramática normativa estabelecida por nós mesmos
e nossas instituições.
Ainda sobre a cultura popular, é importante considerar outro aspecto
que também é problemático, mesmo que fruto de interpretações ditas mais
progressistas e libertadoras: é a idéia de que a cultura popular, essa alterida-
de no cotidiano, é marcada e carimbada pela tentativa de identificação e
interpretação da “origem perdida”, algo típico em reflexões teológicas que
partem de passados ideais enquanto identidade presente, sem levar em con-
ta a complexidade do processo de desenvolvimento de uma cultura. É inte-
ressante notar que a busca por essa origem perdida obstaculiza uma inter-
pretação de elementos que são vitais na cultura popular, isto porque tais
elementos já não estão em sintonia com tal “origem perdida”. Em virtude
disso, interpretar a cultura popular de forma mais criativa é, para Michel de
Certeau, não ter a idéia de origem como ponto de partida, mas antes a
realidade e os textos atuais. O passado é, nesse caso, referência e interlo-
cução. O popular deve ser definido pelas posturas, imagens, narrativas mais
recorrentes dos grupos e não através de uma idéia de algo “autenticamente
popular”, quando isto é entendido em termos de passado congelado pelos
idealismos atuais de uma esquerda intelectual.
Essa forma de pensar a cultura popular é aparentemente idealizado-
ra, mas, na verdade, se encontra dentro das estratégias de domínios de
alguns setores. Em outras palavras, para esta forma de pensar é bom que
índios, negros sejam vistos a partir de um passado “autêntico”, mas, ao
mesmo tempo, um passado irrecuperável, portanto, inexistente enquanto
experiência real. Coloca-se, assim, o impasse intransponível na interpreta-
ção e no jogo do poder: eles devem lutar para recuperar o que eles eram
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ação. Eles não têm, portanto, somente papéis a desempenhar, mas culturas
a construir e fabricar. Se tivessem somente papéis, estariam destinados ou a
recuperar passados ideais ou a cumprir as regras prescritas, mas, pelo fato
de terem cultura, fomentam os processos e reinventam os códigos.
As interpretações que trabalham com esta tensão opacidade/visibili-
dade tendem a selecionar de forma rígida demais as imagens que melhor se
adaptam ao universo conceitual. A cultura popular e suas táticas usam, po-
rém, muitas outras imagens no seu sistema de referência, até mesmo ima-
gens que cruzam as linhas demarcatórias da opacidade/visibilidade dos mui-
tos “outros” existentes na sociedade. Em outras palavras, enquanto os gru-
pos que trabalham com as categorias que expressam uma sociedade disci-
plinadora, seja direcionando as pessoas para as normas frias ou para os
passados ideais congelados, lançam mão de imagens e narrativas que, em
sua opinião, melhor se adaptam a este modelo de comportamento e de pen-
samento, a cultura popular estabelece em seus caminhos as fusões de ima-
gens e narrativas, transformando inimigos em amigos e parceiros em opo-
nentes. O uso que a cultura popular faz das imagens no seu cotidiano não é
de cunho linear/instrumental, mas é antes de cunho associativo/desregula-
mentador. Daí que as invenções religiosas no cotidiano se apresentem aos
olhos de muitas teologias panópticas como confusão, alienação, desagrega-
ção, decadência.
O cotidiano é, portanto, algo a ser decifrado e lido constantemente:
“Quanto ao nosso mundo cotidiano, parece estar escrito mais num mosaico
de línguas, como uma parede coberta de grafites, cheia de rabiscos sobre-
postos, como um palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito várias
vezes.”15
15 CALVINO, Í. A palavra escrita e não escrita. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 145.
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16 GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: Hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas,
1989. p. 18.
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que a acolhe. Por isso a revelação, enquanto Palavra de Deus numa palavra
humana ou vestígio de Deus na história, não se sujeita a método científico,
histórico-crítico. A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre conhecimento
interpretativo marcado pelas condições históricas de uma época. E a teolo-
gia, enquanto discurso interpretativo, não é somente a expressão diferente
de um conteúdo de fé sempre idêntico, que escaparia à historicidade. Ela é
também a interpretação atualizante do próprio conteúdo da fé.18
Não podemos, portanto, dissociar ação de Deus de sua própria reve-
lação, assim como não podemos separar esta de sua acolhida por parte do
povo de Deus, feita, por sua vez, por meio de uma Escritura, dentro de um
processo de transmissão desta experiência, que inclui um passado polissê-
mico e um presente plural. Escritura e transmissão da experiência são, fun-
damentalmente, narrativas da fé, e estas são elementos constitutivos do
processo revelatório da vida divina, que, segundo as narrativas bíblicas, op-
tou pela narrativa como forma de seu povo transmitir saber e sabores de
sua fé.
Outro aspecto muito importante desta relação é preservar uma tradi-
ção fundamental do Antigo Testamento em torno do símbolo e da presença
de Yahweh, que não é nem uma mera representação, nem um simples nome
de uma divindade, antes uma nomeação daquilo que está para além de qual-
quer nome particular. É a alteridade divina mesclada à presença poderosa
do sagrado19. Um importante aspecto em torno desta relação tensa entre a
alteridade divina e a presença poderosa do sagrado é que só foi possível a
sua manutenção através da narrativa da fé, cujo exemplo maior é o discurso
profético em recontar a história do povo na sua relação direta com Deus. A
saída para a crise religiosa e política era vista, antes de tudo, pelas histórias
que eram descortinadas na presente história do povo. Além disso, é inegável
constatar que para os profetas Yahweh tinha uma história com o seu povo,
sempre descrita nas muitas histórias/estórias. Isto porque o tempo da alteri-
dade divina e da presença poderosa do sagrado só se torna humano quando
é articulado em modo narrativo e a ação narrativa chega à sua plenitude
quando se torna uma condição da existência humana20. Com isso, teologia
narrativa tem o seu aspecto “arqueológico” na permanente tentativa de bus-
car o passado, as diferentes formas de histórias em torno da alteridade
divina e da poderosa presença do sagrado, mas só é, de fato, teologia narra-
tiva, porque “escatológica”, ao contar as histórias presentes no intuito de
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