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Rússia - 1ªª parte

Origem e formação de um império

Hugo Hortêncio de Aguiar

Sumário
1. Introdução. 2. Cenário. 3. Resumo histó-
rico. 4. Os personagens. 5. Comentários con-
clusivos sobre os períodos.

1. Introdução
Em sentido mais abrangente, queremos
considerar, com o título acima, o verdadeiro
continente Eurasiano (parte na Europa e
parte na Ásia), que constituiu o antigo Im-
pério Russo e depois a União Soviética, atra-
vessando no momento um período de de-
mocratização1, ainda com certas indefini-
ções, naturais de uma grande mudança po-
lítica. Também estamos incluindo nas con-
siderações as Repúblicas que se tornaram
independentes com a dissolução da União
Soviética e passaram a constituir a CEI (Co-
munidade dos Estados Independentes), com
exceção, naturalmente, dos Países Bálticos
(Lituânia, Letônia e Estônia).
Os povos que habitam esse imenso terri-
tório constituem mais de 170 subgrupos ét-
nicos (dos quais conseguimos localizar mais
de uma centena) e têm vivido uma odisséia
de migrações, invasões, massacres, servi-
dão, conquistas, sofrimentos, revoluções e
guerras. Embora Tolstoi tenha expressado
em Guerra e paz2 que “descrever exatamente
a vida, não somente da humanidade, mas
Hugo Hortêncio de Aguiar é militar refor- de um simples povo, parece impossível”,
mado e professor de línguas e culturas do Orien- vamos tentar dar uma impressão geral des-
te Médio e das ex-Repúblicas Soviéticas. se colosso territorial e dos povos que mais
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diretamente participaram e continuam a tamos seguindo o conceito expresso na In-
participar do drama medonho e apaixona- trodução. Em qualquer das alternativas, a
do que tem sido a história da Rússia. Rússia é o país mais extenso do globo. Com-
Por ser a matéria vasta, não podendo ser preende 11 fusos horários, desde o Estreito
contida num só artigo, dividimos o tema em de Bering, a Leste, até o limite com a Estô-
três partes, sendo este artigo a primeira, com nia, a Oeste, isto é, quase metade dos 24 fu-
as indicações humanas, geográficas e his- sos horários do globo terrestre.
tóricas respectivamente necessárias para a Quanto à latitude, estende-se desde o pa-
identificação dos atores, cenários e fatos ralelo 45° Norte até o Oceano Glacial Árti-
compatíveis com esse drama. co, o que vai trazer muitas implicações cli-
Como os leitores já perceberam pelo arti- máticas. Só estamos apresentando dados
go anterior, ”Israel – Estado e religião”(RIL que se traduzam em conseqüências práti-
n. 153), procuramos sempre evitar disserta- cas significativas.
ções monótonas, facilmente encontradas em Assim, já podemos focalizar um quadro
publicações sobre o assunto. Tentamos fo- curioso: se embarcarmos num avião de gran-
calizar aspectos especiais e, mesmo, curio- de porte, em Petropavlovsk (um grande ae-
sos, que somente o domínio do idioma e o roporto na Península Kamtchaka, no Mar
conhecimento pessoal da área podem cap- de Bering), às 7 horas da manhã e viajarmos
tar. Também procuramos, sempre que há para Moscou, diretamente ou com uma es-
espaço, fazer uma correlação entre os pode- cala no máximo, chegaremos à Capital mais
res formadores da estrutura de uma nação ou menos às 6 horas da manhã, quer dizer,
estudada, evitando, como norma, avaliações uma hora antes da partida, depois de uma via-
pessoais, projetando somente os enfoques his- gem de oito horas de duração e de mais de
tóricos tradicionalmente aceitos como com- 6.000 Km de distância. Vamos tomar café de
provados. novo em Moscou, mas só o cafezinho, pois já
Assim, no final desta primeira parte, fa- nos serviram o desjejum e o almoço a bordo
zemos um superficial comentário sobre a le- do avião. Entre as duas cidades, há uma
gislação na Rússia tsarista, mas com exem- diferença de nove fusos horários ou nove
plos curiosos sobre a aplicação e a obser- horas. Sobre enormes distâncias e áreas não
vância dessa legislação. Na segunda parte, falaremos mais no momento. Com a idéia
“A Revolução Comunista e os seus Líderes”, de dar uma certa ordenação no trabalho e,
os próprios leitores tirarão as conclusões principalmente, para não esquecermos por-
quanto à incoerência na aplicação das leis e menores imprescindíveis na apreciação do
à falta de tradição de um órgão legislativo. cenário, vamos seguir a ordem tradicional
Na terceira parte, “Estrutura Político-Admi- no estudo dos fatores fisiográficos, mas com
nistrativa-Conclusão”, então será apresen- o cuidado de abordar só os pontos interes-
tado o quadro geral do Sistema de Governo santes.
da Ex-URSS, a correlação de poderes e as di- Em face de sua imensa área, que chegou
ficuldades imensas que a democratização da a ser aproximadamente três vezes a do Bra-
Rússia vai enfrentar por muitos anos ainda. sil, quando União Soviética, a Rússia é um
país de altitudes modestas. As montanhas
2. Cenário estão situadas ao Sul, a maioria nos territó-
rios das Repúblicas da Ásia Central e nos
Nas considerações seguintes, estamos le- Montes Altai, onde as altitudes chegam a
vando em conta os territórios acrescidos com ultrapassar 4.000 m. Fora isso, somente al-
a formação da Ex-URSS (União das Repú- guns picos no Cáucasso, nos Cárpatos e na
blicas Socialistas Soviéticas) ou desmembra- Sibéria Oriental atingem altitudes médias.
dos com a sua dissolução em 1991, pois es- Em contrapartida, o restante do território é

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planície ou “plateau”, recebendo sem ne- vilhas do mundo. Até o Mar Cáspio, por
nhum anteparo a influência de todos os fa- suas características, é considerado o lago
tores que favorecem o frio, provenientes do de maior superfície do globo.
Glacial Ártico e, mesmo, do Pólo Norte, tais Com relação a oceanos e mares, a ima-
como ventos, reflexos das correntes maríti- gem é outra. As considerações que vamos
mas, pressões atmosféricas, etc. As únicas fazer seriam mais apreciadas no período da
elevações que poderiam barrar esses fatores “guerra fria”, não temos dúvida. Porém,
seriam os Montes Urais, pela sua forma de como a cultura não tem idade nem oportu-
cadeia de montanhas. Eles dividem geogra- nidade, é sempre bom sabermos as razões
ficamente a Rússia Européia da Sibéria, mas que motivaram atitudes passadas na histó-
não são muito altos e, principalmente, estão ria das nações. Além disso, este estudo fa-
dispostos no sentido Sul-Norte, perpendi- vorece a memorização porque está motivado
cularmente à direção predominante dos ven- e, o que é melhor, traz mais uma dose de “know
tos do Norte. how” na análise de outros cenários estratégi-
Desse modo, podemos dizer que a Rús- cos, alertando para que nem todos os elemen-
sia é uma imensa planície fria, e agora já tos da política internacional são publicados
compreendemos por que lugares em latitu- na imprensa comum e que o julgamento de
des não muito polares são muito frios. A lati- uma situação aparente pode ser errôneo.
tude é o fator mais importante na avaliação Realmente, os “mares quentes”3 que a
da temperatura do ar, mas não é o único. Rússia possui são todos “confinados”, com
Uma área tão vasta teria de ser cortada exceção do Mar de Okhotsk, entre a Ilha de
por caudalosos rios e apresentar uma den- Sacalina e a Península de Kamtchaka. Mes-
sa rede fluvial. E isso é verdade: aproxima- mo assim, a saída é pelas Ilhas Kurilas, ou-
damente 400.000 Km. Os rios possuem uma trora pertencentes ao Japão e quase todas ocu-
apreciável capacidade de geração de ener- padas pela União Soviética após a 2a Guerra
gia hidrelétrica. Apresentam, contudo, duas Mundial. Quanto aos outros mares, vejamos:
deficiências sensíveis: a primeira é gelarem A Esquadra Russa em Vladivostok, gran-
durante três ou quatro meses no inverno; a de base naval no Oriente, não poderia sair
segunda é a poluição. Com exceção do Vol- pelo Sul e pelo Nordeste, porque teria que
ga, que desemboca no Mar Cáspio, os ou- atravessar o estreito da Coréia, entre a Co-
tros três maiores rios, o Obi, o Ienissei e o réia do Sul e o Japão, e os estreitos de Tsuga-
Lena, na parte asiática, cujas águas desá- ru e de la Perouse, controlados pelo Japão.
guam no Glacial Ártico, freqüentemente O único caminho marítimo para os “mares
apresentam em seus estuários níveis de po- quentes” do Oceano Pacífico é pelo Mar do
luição elevadíssimos, e o que é pior, sem re- Japão, o estreito dos Tártaros (entre a ilha
versibilidade em curto prazo. Quando isso Sacalina e o continente asiático), o Mar de
acontece, tudo fica parado, e os efeitos ne- Okhotsk e as passagens das Ilhas Kurilas.
gativos são severos no clima e na vegetação. Essa volta enorme para o Pacífico resulta
Essa navegabilidade restrita a certos perío- num acréscimo de mais de 2.000 Km, e daí a
dos do ano e a disposição transversal dos importância das Ilhas Kurilas para a Rús-
grandes cursos d’água não favoreceram a sia. Há outras razões para a disputa, mas a
conquista da Sibéria. A construção da ferro- principal é a apontada acima.
via Transiberiana, assimilando a região de A Esquadra do Mar Negro também esta-
Vladivostok, foi uma necessidade para so- ria confinada pelos estreitos de Bósforo e
lução de vários fatores. Quanto a lagos, a Dardanelos, controlados pela Turquia, que
Rússia é privilegiada. Possui muitos como está numa posição geográfica privilegiada,
o Ládoga, o Ônega, o Balcash e o Baical, sen- de alto valor estratégico, entre os Balcãs, a
do este último considerado uma das mara- Rússia e o Oriente Médio, explicando isso

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muitas guerras passadas e o “peso” de seus ra atinge níveis mais baixos que no Pólo
representantes na mesa de negociação in- Norte. No inverno, o termômetro chega a
ternacional. marcar 70° abaixo de zero. O ar da respira-
No Mar Báltico, a Esquadra Russa de São ção humana, quando expelido, transforma-
Petersburgo (na época da hipótese: Lenin- se imediatamente em vapor de gelo. Por ou-
grado) também não poderia sair, pois teria tro lado, na Turcomênia, agora uma repú-
que enfrentar os estreitos de Kattegat, entre blica independente, no deserto de Karakum6,
a Dinamarca e a Suécia, e o estreito de Sca- já foi registrada a temperatura de 51° à som-
gerrak, entre a Dinamarca e a Noruega. bra, porque ao sol os termômetros não fun-
Então, só restaria o Oceano Glacial Árti- cionam normalmente, tal o calor.
co, com sua saída pelo Mar de Barents, com Todavia, de um modo geral, a Rússia é
o porto de Murmansk aberto à navegação o muito fria e o efeito é grande sobre as vesti-
ano inteiro. Essa condição de degelo é devi- mentas. Na parte asiática, na Sibéria, no in-
da à corrente do Golfo do México, que, so- verno, não adianta querermos enfrentar a
mada às correntes quentes do Atlântico natureza com casacos de lã “adquiridos em
Norte, mantém o Mar de Barents quase sem- Foz do Iguaçu”. Eles têm que ser de peles de
pre em condições de navegabilidade4. animais. A argumentação é simples: se não
Isso joga com o conhecimento já existen- usarmos, morreremos de frio. Os ambienta-
te sobre um corredor submarino por aque- listas, porém, podem ficar descansados. O
les mares, não sendo o acidente noticiado problema sempre foi tratado, na Rússia, em
com o submarino nuclear russo o único ocor- qualquer sistema de governo, com muita se-
rido. Há um outro caminho para os “mares riedade.
quentes”. É percorrido abaixo da superfície Com relação à exploração da vegetação
do Oceano Glacial Ártico, cruzando o Pólo do território, e diferentemente das estepes
Norte até atingir o estreito de Bering, pas- do Oeste, extremamente férteis e viáveis eco-
sando ao Pacífico. Esse percurso correspon- nomicamente, há, no lado asiático, duas di-
de a mais ou menos 9.000 Km se utilizada a ficuldades importantes a considerar. Primei-
rota marítima já balizada. Com tempo bom, ro, a dificuldade de recuperação das árvo-
uma Força-Tarefa naval5 levaria no mínimo res adultas, na floresta Norte-Siberiana, co-
uma semana para atingir aquele Oceano, nhecida como “Taigá”, por causa do frio e
partindo das proximidades de Murmansk. das condições poluentes. Certas espécies,
Para a navegação de cabotagem, de peque- quando cortadas próximas ao solo, levam
nos barcos, margeando o litoral, o percurso um século para a recuperação do porte an-
é de mais de 30.000 Km, tal o número de terior. Segundo, um monitoramento da ri-
baías e enseadas. Por conseguinte, a traves- queza da fauna, na região mais para o Sul e
sia do Glacial Ártico sempre foi um proble- o Leste, esta de vegetação menos densa, per-
ma e, com relação a “mares quentes”, a meável, tendendo para a savana e a estepe,
situação da Rússia não é nada invejável. onde proliferam animais como o tigre de
O clima sempre foi o maior inimigo dos Amur – o maior felino da terra, maior do
exércitos que invadiram a Rússia. Napoleão que o leão – e o urso pardo. Maior riqueza
e Hitler que o digam. Quando abordamos a ainda vê-se nas margens do lago Baical,
orografia, ressaltamos as causas de tão bai- onde a vegetação ciliar abriga martas zibe-
xas temperaturas, particularmente na Sibé- linas, lontras, raposas azuis, todos esses
ria. Porém há regiões do país onde o clima é animais de pele raríssima. Todas essas es-
subtropical e há, mesmo, áreas de clima tór- pécies são criadas em cativeiro para repro-
rido. Tomemos um exemplo para cada ex- dução e comércio, e a sua caça é controla-
tremo: Na Sibéria, há uma república autô- díssima. Não há espécies em extinção, a não
noma chamada de Iakútia, cuja temperatu- ser o tigre por motivo de desmatamento7.

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Embora a floresta do Norte da Rússia, do Bizantino pelos Cruzados (1204 AD); 2 – sur-
Mar Báltico até o estreito de Bering, seja a gimento de uma nova rota comercial por
maior do globo, não é tão densa e rica de Veneza; 3 – invasão tártara lá pelos 1218-
oxigênio como a Amazônia ou a Mata Atlân- 1219 AD, decisiva para a decadência da
tica brasileiras, e o crescimento anual de Rússia Kieviana.
madeira na Sibéria é muito mais lento que Os Russos do subgrupo mais de Leste,
nos países tropicais. A vegetação, na Sibé- que depois se deram o título de “grandes
ria, não somente a floresta mas também a Russos”, fugiram dos mongóis para as ca-
tundra, que é rasteira, é muito vulnerável. beceiras do Volga, terras férteis, onde foi fun-
dada a cidade de Moscou ainda no século
3. Resumo histórico XII, centro da Rússia Moscovita ou Moscó-
via Russi, a princípio entidade étnica, anos
Os primeiros habitantes da Rússia não depois também política. Sob o poder de Ivan
são muito antigos. Não estamos nos referin- IV, o Terrível, iniciador do tsarismo em 1547,
do ao hipotético tronco comum Indo-Euro- a Rússia passou, como Estado, a se comuni-
peu, desdobrado em dois ramos étnicos: o car com a Europa. Esse monarca, conhecido
do Leste, o Indo-Ariano, e outro do Oeste, por sua crueldade, foi favorecido pela di-
que abrigava o nosso conhecido grupo Lati- nastia dos Príncipes com o nome de Ivan I,
no. Falamos dos Eslavos, ponta dos Aria- II, III, que preparou caminho para o absolu-
nos, que já habitavam há vários séculos as tismo, repeliu os tártaros e, ao mesmo tem-
regiões próximas do Mar Negro e só mais po, diminuiu o poder da Igreja (Igreja Orto-
tarde se dispersaram pelos Cárpatos; para doxa Russa) e foi minando a influência dos
Oeste, formando, no futuro, as nações Tche- nobres. Foi por essa época que se iniciou a
co-Eslováquia e Polônia; para o Sul, deram expansão pela Sibéria. Depois de Ivan IV, o
origem a Sérvios, Croatas, Macedônios, Terrível, a dinastia ainda continuou, até que
Montenegrinos e Búlgaros. Entretanto, para o país passou por um fase de decadência,
Leste, a fixação dos russos só se realizou lá ocasião em que atingiu a plenitude o abso-
pelos 400-500 AD, pelas margens do Dnie- lutismo do então Tsar9, que impunha uma
per e foram grupados em três blocos distin- escravidão selvagem.
tos: “Ucranianos”, “Belorrussos” e “Rus- O domínio mongol já havia terminado
sos” propriamente ditos. então, mas alguns traços culturais desse
A área invadida teve como centro uma povo ficaram como modelo, enquanto a Eu-
cidade que tomou o nome de Kiev, e o terri- ropa já se preparava para os primeiros ar-
tório ao redor foi chamado Rus, origem de um rancos do liberalismo.
Estado a que se chamou Rússia Kieviana. A Rússia prolongava a Idade Média além
A situação geográfica do território, entre de seu período cronológico e esse estado de
o Ocidente, o Oriente e o Império Bizantino coisas só mudou um pouco com a ascensão
ao Sul, como entreposto comercial entre um ao poder de Pedro, o Grande, que foi um
e outro lado do mundo, favoreceu o cresci- monarca excepcional para o tempo em que
mento de Kiev com tal intensidade que pres- viveu e reinou. Ele foi um reformador, con-
sionou a expansão de contingentes huma- tudo inspirado pelo lado prussiano do im-
nos para o Noroeste e o Norte, com centros perialismo europeu. Dominado pela idéia
populacionais surgindo para a formação de ocidentalização, transferiu a capital de
das futuras Ucrânia e Bielo-Rússia8, esta Moscou para São Petersburgo (Cidade de
última mais próxima do Mar Báltico, migra- São Pedro) em 1721 AD. O que tornou Pe-
ção essa acelerada com a invasão mongol. dro, o Grande, um exemplo para os gover-
O esplendor Kieviano desmoronou-se nantes russos – dizem que até para Stalin –,
por várias razões: 1 – destruição do Império foi a organização do Exército Imperial, em

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moldes inéditos até então. Os critérios ado- guense passou a assimilar a cultura ociden-
tados foram: 1 – obrigatoriedade do serviço tal européia, como as intrigas palacianas,
militar para todas as classes; 2 – disciplina os acordos militares e suas conseqüências
adequadamente conduzida; 3 – o civismo e bélicas10 e, ainda, desajustes com os círcu-
o patriotismo como motivações principais; los religiosos11; 2 – O tsarismo mais se dis-
4 – promoções justas e sem privilégio de tanciou do camponês, que foi o eterno pro-
nascimento; 5 – Escolas de Formação de blema dos absolutistas. Mesmo com a aboli-
Quadros (oficiais e sargentos) bastante evo- ção do trabalho servil em 1861, foi instala-
luídas nos métodos de ensino; e 6 – Curso do o regime de “mir”12, que nada mais era
de estado Maior de fazer inveja a muitos si- do que o embrião do trabalho agrário comu-
milares de países europeus. nitário, muito depois aproveitado por Israel
Com a fundação de São Petersburgo no com sucesso.
início do século XVIII e sua transformação Foi pior a “emenda do que o soneto”. O
em capital em 1721, caracterizou-se a fase camponês, antes miserável e inculto, pas-
da Rússia Petersburguense, até a Revolução sou a ser ainda mais explorado pelos repre-
de outubro de 1917. sentantes do poder, que, fraudulentamente,
Esse período foi marcado pela “ociden- dirigiam as cooperativas. Passou, ele, agora
talização” da Rússia de Pedro, o Grande, “corporativizado” e descontente, a clamar
uma verdadeira obsessão para aquele tsar. pelos movimentos grevistas, mais de qui-
Com a transferência de Moscou para São nhentos depois da abolição, tornando-se
Petersburgo, parecia que as coisas iriam to- presa fácil dos revolucionários, algumas
mar um rumo certo ou organizado. Com a décadas depois.
morte de Pedro, o Grande, porém, e a ascen- Assim, o século XX vai encontrar a Rús-
são ao poder de Paulo I, dos Alexandres I, II sia numa situação caótica, com o exército
e III, e dos Nicolaus I e II (a sucessão é nou- desintegrado, a população descontente e
tra ordem), toda a organização anterior de- miserável.
sabou. Houve certos episódios que poderiam Quanto à organização político-admi-
dar valor bem positivo ao período, quais nistrativa, podemos dizer que, apesar das
sejam: 1 – a abolição da servidão com Ale- idéias liberalizantes já em curso no Oeste
xandre II; 2 – a retirada de Napoleão Bona- europeu, a Rússia já apresentava “profor-
parte, em conseqüência do aliado climático, ma” a tradicional contextura dos Poderes e
mas também auxiliado, em não menor esca- instituições tradicionais, mas para uso ex-
la, pelo patriotismo do soldado russo; 3 – a terno, quase que um modelo melhorado do
afirmação da Rússia como “potência” eu- período moscovita. Resumindo, essa apa-
ropéia, conceito que foi desfeito pouco tem- rente estruturação de tipo liberal não podia
po depois, verificada a fragilidade dessa ter muita consistência política e logo em bre-
nação como um todo. ve a nação apresentaria a sua fragilidade
Mesmo com algumas realizações práti- como um todo. A quantidade e a diversifi-
cas, nada evitou a decadência no século XIX. cação de órgãos dos Poderes não têm valia,
Poderíamos citar, como exceção, a Ferrovia se em detrimento da independência e a qua-
Transiberiana, uma obra de fôlego, realiza- lidade de seus representantes.
da com as facilidades de material de cons- Por exemplo, a DUMA13 já havia existi-
trução e mão-de-obra barata, porém inicia- do desde o tempo dos “boiardos”14, mas o
da “sob inspiração” do governo alemão. processo de escolha dos seus representan-
Quanto às inúmeras desvantagens da tes era autocrático, e as leis dela decorrentes
transferência da capital para o litoral, va- eram destinadas ao benefício dos proprie-
mos citar as principais: 1 – Tendo adotado tários de terra. A DUMA de Kerenski, a quar-
a “filiação” européia, a Rússia Petersbur- ta instituída por Nicolau II, e que abrigava

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diversas tendências, também não tinha qua- próximas do Mar Báltico, onde fundaram
lidade, pois não sabia o que queria, e tam- muitos centros populacionais e sempre es-
bém foi dissolvida, dessa vez pelos revolu- tiveram em contato com os poloneses e os
cionários de 1917. bálticos. Ao contrário dos ucranianos, sem-
pre foram também tradicionalmente ligados
4. Os personagens a Moscou. Sua posição geográfica forçou a
participação da futura Bielo-Rússia nos in-
Estamos considerando como “persona- teresses moscovitas, o que os fez sofrer dire-
gens” os inúmeros subgrupos étnicos que tamente os efeitos das invasões recíprocas
habitavam e ainda habitam o imenso palco entre Leste e Oeste.
multinacional formado pelo Império Russo Os Russos de Moscou ou “grandes rus-
e Soviético, mas ressaltaremos apenas os sos” formaram a atual Rússia e falar deles é
participantes mais diretos dos principais imprescindível porque foram os persona-
episódios. Seria impossível fazer referência gens presentes em todos os episódios, des-
a tantas nacionalidades, mesmo porque, na de a sua instalação em Kiev, passando por
maioria, são povos de línguas difíceis, com Moscou, São Petersburgo e, novamente,
nomes consonantais complicados para lei- Moscou. Até agora, em todos os períodos da
tores de línguas latinas, e até povos cuja história, o povo russo foi vítima da opres-
transliteração mais aproximada tem quatro são. Seu sofrimento já é uma tradição histó-
consoantes e apenas uma vogal, como o rica. Na Rússia Kieviana, sofreu, desde o
subgrupo Nivkh. início da instalação, que coincidiu com o
início da Idade Média, uma opressão dos
Os russos principados do Rus, com centro em Kiev,
Assim sendo, vamos começar natural- num regime de servidão mais atrasado que
mente pelos russos, cujo subgrupo se divi- o da Europa feudal. Essa situação foi um
diu em “ucranianos”, ou “pequenos russos”, pouco arrefecida com a chegada dos primei-
os “Belorrussos” ou “russos brancos” e os ros missionários cristãos da Igreja Ortodo-
“Russos de Moscou”, ou “grandes russos”15. xa, lá pelos anos 800 AD.
Os Ucranianos habitam a Ucrânia, o país Com os russos já em expansão, a inva-
mais populoso depois da Federação Russa, são tártara em princípios do século XIII
e seu traço cultural predominante é o nacio- apressou a fuga para as cabeceiras do Vol-
nalismo, que tem acarretado ao país muitos ga, terras férteis, mais distantes do Leste e
aborrecimentos para com essa Federação. A que ofereciam condições mais adequadas
língua falada, o ucraniano, do ramo eslavô- para uma futura defesa mais efetiva no caso
nico, teve o seu alfabeto, cirílico tal qual o de aprofundamento da invasão tártara.
russo, modificado do russo padrão desde De fato, a previsão fora realizada. Na ba-
1200 AD. Essa língua possui uma literatura talha de Kulíkovo, ao Sul de Moscou, o Grão
muito lendária e pontilhada de heróis. A Príncipe de Moscou, Dmitri Donskói, derro-
Ucrânia suportou o maior impacto da do- tou os tártaros e conseguiu uma vitória tão
minação mongólica, entretanto Kiev, sua ca- retumbante que definiu o início da resistên-
pital, permanece até hoje como um grande cia russa à pretensão dos invasores de in-
centro cultural e industrial. vestir para o Norte.
Os Russos brancos ou Belorrussos não Todavia, por outro lado, o regime feudal
tiveram um papel destacado na formação continuou em toda a sua plenitude, só per-
do Estado russo, mas, tratando-se de um dendo sua prepotência para o absolutismo
subgrupo, é interessante sabermos que di- monárquico.
reção tomaram. Na fuga ao domínio mongol, O Russo de Moscou, ou “grande” russo,
preferiram a direção Noroeste e as regiões nessa época, já podia ser caracterizado por

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um perfil psicossocial assim definido: 1 – sub- quanto dos russos escravagistas. Sua inclu-
misso, mecanicamente disciplinado por um são como povo-personagem ativo deve-se
poder central cada vez mais absolutista; simplesmente ao fato de o pai de Lenin, Iliá,
2 – místico, em função das enormes áreas, da dele descender – a mãe, Maria Blank, tinha
natureza pujante com todos os seus aspec- dupla ascendência européia, alemã e sue-
tos fisiográficos, tais como neve, rios, mon- ca. Por serem as famílias russas estrutural-
tanhas, lagos, florestas, climas extremados, mente patriarcais, Lenin levava o patroní-
proporcionando ambiente favorável para a mico – o sobrenome – e o nome de família do
criação de fantasias, lendas 16, entidades pai. Isso lhe trouxe certos constrangimen-
sobrenaturais, isso tudo atuando fortemen- tos futuros, cujos pormenores comentare-
te sobre os traços culturais. Outro fator in- mos no segundo artigo “A Revolução Co-
fluente foi a herança mística dos antepassa- munista e os Seus Líderes”.
dos, tendo como elo a chancela religiosa de
Igreja Ortodoxa Russa; 3 – sentimental, devi- Os tártaros
do, talvez, ao sofrimento interminável expe- Outro subgrupo de atuação relevante é o
rimentado. Esse sentimentalismo, observa- “tártaro”, também chamado “tátaro”. É um
do em toda a cultura eslava, é facilmente povo originário de tribos semibárbaras da
detectável na composição de músicas po- província de Tian-Shan, do Noroeste da
pulares, algumas tornadas mundialmente China, do Turquestão, e mesmo de algumas
semiclássicos como “Olhos Negros”, “Duas regiões da Ásia Central e do Kazaquistão.
Guitarras”, “Noites de Moscou”, editadas Essas tribos eram chefiadas por um Khan
muito mais tarde de sua concepção, e mui- (chefe guerreiro), quase todos semi-analfa-
tas outras similares, todas em tonalidades betos. Viviam da caça e das pilhagens. Dos
menores, o que é um indicativo de melanco- povos não eslavos, é o segundo mais nume-
lia, dolência e sentimentalismo. roso do ramo lingüístico Altaico, falando
Queremos encerrar dizendo que os rus- uma linguagem túrquica, isto é, tendo o idio-
sos, como gênio militar (líderes como Napo- ma turco como base, mas com diferenças
leão, Montgomery, etc.), têm uma história regionais sensíveis. Seminômades, estavam
muito modesta, tendo em seu acervo ape- permanentemente em guerra. Cavaleiros ex-
nas vitórias isoladas. Em compensação, as celentes e arqueiros habilidosos, praticavam
heróicas resistências de Leningrado, Stalin- invasões de terra (sem uma liderança organi-
grado, para a defesa do solo pátrio, caracte- zada, razão por que, quando irrompiam em
rizam o máximo de resistência ao sofrimen- alguma localidade, com matanças, pilhagens
to, o espírito de sacrifício e o patriotismo. e saques desordenados, infundiam o terror).
Os “tártaros” dispersaram-se por gran-
Os chuvash de parte da Sibéria e parte da Rússia Euro-
Esse povo constitui um subgrupo étnico péia, a princípio por nomadismo, porém,
muito pouco numeroso, e os autores russos depois do século XX, porque foram força-
em geral não lhe dão muita projeção. Falam dos a isso. Não eram, no século XX, bem
uma língua ligada ao grupo Fino-Úgrico, vistos por Stalin, que deportou alguns deles
que muitos estudiosos querem relacionar com da Criméia17 para o Oriente. Outra parte fi-
o grande tronco Altaico, via grupo Urálico. cou “confinada” na República Autônoma
Realmente, numa pesquisa mais apro- da Tatária. Com a morte de Stalin, foram ino-
fundada, vamos encontrar pontos de conta- centados do pretenso crime de terem coope-
to com o Altaico. Seu perfil racial, sem dúvi- rado com os nazistas.
da alguma, é mongólico. Não sabemos mui- Há uma certa confusão na interpretação
to de suas origens, e seu papel na odisséia dos termos “tártaros” e “mongóis”. Os dois
russa foi mais de vítima, tanto dos tártaros pertencem ao grande grupo étnico-lingüís-

210 Revista de Informação Legislativa


tico Altaico, que compreende os subgrupos as pilhagens para suprimento futuro de sua
Mongol, Mandchu-Tungu e Túrquico. São tropa, reunia os anciãos da cidade, entrega-
da raça mongolóide, cuja característica so- va-lhes a administração, contanto que pa-
mática mais notória é uma prega ou dobra gassem os tributos e o apoiassem nas futu-
na pele, sobre os olhos, fazendo-os aparen- ras passagens pelo lugar. Conseguia, desse
tar obliqüidade. Ambos têm relativamente o modo, o apoio e a simpatia dos nativos e, o
mesmo grau de cultura prática. São bons que é de muita importância, não desfalcava
cavaleiros e arqueiros e grandes guerreiros. as fileiras combatentes, desviando guerrei-
As diferenças são as seguintes: 1– os dois ros para funções administrativas.
subgrupos falam idiomas distintos; os mon- Finalmente, queremos ressaltar o perso-
góis falam, naturalmente, o mongol18, e os nagem mais curioso: os cossacos.
tártaros falam uma linguagem túrquica; 2 –
os mongóis são provenientes da Mongólia, Os cossacos
enquanto os tártaros têm origem em várias Eles não eram propriamente um subgru-
regiões asiáticas; 3 – os mongóis tinham uma po étnico. De origem eslavônica, constituíam-
liderança expressiva e organizada, o que se um ajuntamento sócio-econômico de pe-
deu à nação mongólica personalidade polí- quenos camponeses, estabelecidos particu-
tica em suas lutas, inclusive contra grandes larmente nas estepes ucranianas e tornados
dinastias como as da China, além de ter pro- combatentes por necessidade. Modestos pro-
jetado ao mundo Genghis-Khan (Chefe Uni- prietários de terra, organizaram-se em co-
versal), que uniu todas as tribos da Mongó- munidades para a defesa comum e chega-
lia e organizou um verdadeiro e invencível ram a formar um exército particular, mais
Exército. tarde profissionalizado e que prestou servi-
Genghis-Khan, ou Temuchin de nasci- ços ao tsarismo na conquista da Sibéria e
mento, reuniu sob a bandeira dos mongóis contra os bolcheviques19.
todas as tribos tártaras da Sibéria, do Kaza- Excelentes cavaleiros, eram conhecidos
quistão ao Mar Negro, e se aventurou até o pela independência, refutando qualquer
Leste europeu, fundando o Império Mongol, autoridade central. Havia uma hierarquia
se não o mais extenso em área, o de maior própria, com ótimo relacionamento entre os
comprimento, pois ia de Pequim até Buda- líderes e a tropa.
peste, na Hungria, atingindo cerca de 10.000 Apesar de apresentarem certa similari-
Km. Atualmente, a opinião geral é de que dade com os beduínos, os nômades do de-
ele não era somente um grande guerreiro, serto, viviam, porém, em um ambiente natu-
mas um extraordinário chefe político e ad- ral muito mais aprazível, eram proprietários,
ministrador. embora pequenos, e tinham uma verdadei-
Vamos citar dois exemplos: como guer- ra paixão pela terra natal, enquanto aque-
reiro, utilizou, com sucesso, a comunicação les praticavam o nomadisno por necessida-
por mensageiros montados que, a toda ve- de, em função da pobreza e aridez do solo.
locidade do cavalo, se revezavam nos pos- Poderíamos dizer, sem grande erro, que o cos-
tos de muda, antes balizados. Os próprios saco era o beduíno abastado das estepes.
mensageiros já puxavam cavalos de muda, O cinema e a literatura o têm caracteri-
para qualquer imprevisto. Assim, quando zado como um tipo aventureiro, romântico,
outros grupos armados levavam até um mês apreciador da vodca e de guitarras. É possí-
para transmitir uma mensagem, o chefe vel que em certas ocasiões assim o fosse, para
mongol levava uma semana. contrabalançar a vida ativa levada na lida
Como político e administrador, Genghis- braçal com a terra, o que lhe dava um tem-
Khan agia da seguinte maneira: após o mas- peramento rude, irreverente e sem refina-
sacre inicial, marca da época, organizava mento cultural. Mas eram valentes e leais.

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Para ilustrar melhor a imagem, nada ro e das profundezas, bobo de nosso Deus,
mais oportuno que um fato, pois contra fa- ... (impublicável) de égua, cachorro vira-lata,
tos não há argumentos. É um episódio curio- besta pagã, que o Diabo te carregue! Assim
síssimo relatado a nós por um ucraniano os cossacos cuspindo te respondem, rene-
autêntico, de quem recebemos uma cópia do gado da mãe dos verdadeiros cristãos! Não
manuscrito em língua ucraniana. Fizemos sabemos de data, pois não temos calendário,
a tradução conjuntamente para o português. o mês (a Lua) está no céu e o ano no Livro! E o
Temos a impressão de que esse episódio, dia é o mesmo para nós e para vós. Beije ...
com alto grau de probabilidade de ser real, (impublicável), que nós temos.” Chefe Ivan,
pode ter sido alterado em algum pormenor líder de todos os chefes “zaparójisquie”.
no seu relato, pois data de muito tempo atrás,
todavia define bem o espírito cossaco: 5. Comentários conclusivos sobre
Em 1680, O Império Otomano Turco es- os períodos
tava em decadência e vivia em constante luta
contra a Rússia, sendo um dos pontos de Feito esse resumo de uma área continen-
atrito a região fronteiriça da Podólia. Havia tal tão vasta e de uma paisagem humana
contenda por uma certa elevação da Região. tão marcante, podemos imaginar que tipo
Os cossacos eram liderados por um guerrei- de estrutura político-administrativa pode-
ro chamado Ivan. ria atender tanta imensidão geográfica e tan-
Os turcos enviaram aos cossacos a se- tas nacionalidades diversas. Melhor dizen-
guinte mensagem (em ucraniano). “Eu, Sul- do, talvez concluiríamos que nenhuma or-
tão Turco, filho de Maomé, irmão do Sol e ganização estatal suportaria um encargo de
da Lua, neto e descendente de Deus, Senhor tais dimensões. Não nos esqueçamos que fo-
dos Reinos da Babilônia, de Jerusalém20, do ram ressaltadas apenas algumas nacionali-
Grande e do Pequeno Egito, Rei dos Reis, dades de mais de uma centena que existem.
Senhor dos Senhores, cavaleiro excepcional
que ninguém venceu, guarda perpétuo do O período kieviano
caixão de Jesus Cristo, curador do próprio No período da Rússia Kieviana, que cor-
Deus, esperança e consolação dos muçul- respondeu ao da Idade Média, o modelo ad-
manos, assistente e grande defensor dos cris- ministrativo era mais atrasado que o nas-
tãos, ordeno-vos, Cossacos Zaparójisquie21, cente feudalismo a se instalar na Europa
que vos rendais a mim voluntariamente e Ocidental e vinha mesclado com ingredien-
sem qualquer resistência, e não me façais tes ainda mais odiosos: a herança dos siste-
perder a calma com vossos ataques.” Sul- mas despóticos orientais trazidos pelos es-
tão Turco Mohamed IV. lavos e o fatalismo religioso a que não es-
Resposta dos Cossacos. “Tu, Diabo Tur- caparam os missionários cristãos da Igreja
co, do demônio maldito irmão e camarada, Ortodoxa Russa, já nos anos 800-900 AD, em
e secretário do próprio Lúcifer. Quem és tu, que a salvaguarda da vida futura justificava
guerreiro do Cão? O Diabo vai expulsar e qualquer sofrimento terreno. Contudo, é justo
queimar a tua tropa. Não terás condições reconhecermos a influência da Igreja Russa
de dominar os filhos cristãos. Tua tropa não na moderação da consuetudinária legislação
tememos. Combateremos contra ti na terra e do trabalho, de caráter puramente utilitário,
na água. És cozinheiro da Babilônia, esfola- comercial e do tipo contrato-pessoal.
dor de cabras de Alexandria, pastor de por- Em que pesem os aspectos nefastos, a si-
cos do Grande e do Pequeno Egito, suíno da tuação de Kiev era privilegiada, constituin-
Armênia, cartucheira tártara, carrasco de do-se em uma região progressista até a in-
pedra, filho de ladrão da Podólia, neto da vasão mongol22 dos princípios do século XIII.
própria serpente, palhaço do mundo intei- Essa invasão impôs traços culturais negati-

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vos e positivos que impregnaram a mente Falando francamente, a Rússia levou
dos governantes russos. Lembremo-nos para o litoral, com a sua nova capital, todos
que, a essa altura dos fatos, os russos não os defeitos já adquiridos no “Período Mos-
tinham adquirido ainda nem identidade na- covita”, quando realmente se concretizara
cional23 quanto mais personalidade política. a sua identidade étnica e nacional, e onde
Sendo assim, aquela invasão, responsável se tornara entidade política.
pela fuga definitiva para as cabeceiras do A despeito da aproximação da Corte à
Volga, foi a mola mestra da formação do futu- velha Europa, de onde se extraíram alguns
ro Império Russo (esse, um dado positivo). sucessos na área da tecnologia industrial,
prevaleceram os erros importados dos siste-
O período moscovita (século XIII ao XVIII) mas de governo anteriores, agora em luta mais
Com a expansão para as cabeceiras do direta com as idéias liberalizantes. Desses
Volga, a fundação de Moscou e após algu- embates, aproveitaram-se posteriormente os
mas vitórias locais como as do Rio Nevá e a líderes revolucionários do século XX.
do Lago Peipus24, projetaram-se os primei- De modo que, qualquer que fosse o perfil
ros heróis russos, assim como ficou bem ideológico de uma revolução alteradora do
definida a entidade étnica dos “grandes rus- quadro social, ela teria enorme possibilida-
sos” ou dos “Russos de Moscovia”, apesar de de êxito, mais pela fraqueza do poder
da mesclagem com elementos finlandeses, constituído do que pelos méritos dos revo-
o que deu mais “arianismo” ao tom da pele. lucionários.
A entidade política engatinhou com Ivan III, É o que vamos observar na segunda par-
que preparou o caminho para a assunção te parte do nosso artigo: “A Revolução Co-
de Ivan IV, o Terrível, este, de fato, o primei- munista e Seus Líderes”, em breve edição
ro tsar russo. da Revista de Informação Legislativa.
Ivan, o Terrível, acabou com o poder dos
nobres, “boiardos”, prosseguiu a expansão
pela Sibéria e estabeleceu o centralismo do
poder. Notas
Depois desse período, a Rússia passou por
1
uma fase de desagregação, com Ivan V, até a Entendido, no presente trabalho, esse termo
conforme a visão ocidental.
ascensão de Pedro, o Grande, em 1696. Com 2
The concord desk encyclopedia. v. 3. p. 1225.
Pedro, o Grande, vieram as reformas, a políti- 3
Águas que permitem operações em condições
ca exterior, o estabelecimento de uma legisla- normais ou movimentos comerciais marítimos re-
ção rigorosa, o aprimoramento das Forças gulares.
4
Armadas e muitas medidas administrativas Quando estávamos realizando uma pesquisa
sobre o naufrágio do Titanic, achamos muito inte-
necessárias para a consolidação do poder. ressante uma reportagem da revista Veja, de 1986,
O absolutismo cresceu, agora inspirado página 74, que chamava a atenção para o apoio
por uma ocidentalização obssessiva, que decisivo que a Marinha dos EE UU tinha dado ao
levou o Tsar a transferir a Capital para São mergulhador e cientista Robert Ballard na busca
Petersburgo. Por outro lado, o regime de es- daquele grande navio afundado. Segundo a repor-
tagem, alguns cientistas americanos sugeriram que
cravidão dos contingentes agrários perma- o objetivo da Marinha americana não seria apenas
necia no mesmo nível. realizar testes de equipamento de mergulho, mas
também de resistência de material do navio a gran-
O período petersburguense des profundidades, e apresentar os dados para fins
Com a transferência para São Petersbur- militares.
5
Força-Tarefa naval é um grupo de navios de
go, teve início a Rússia Petersburguense, o guerra, devidamente organizado para cumprir uma
período mais curto da formação do Império missão específica.
Russo. 6
Em língua turca: “areia negra”.

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7 13
A área de vegetação preferível para o tigre é a DUMA, em russo, quer dizer “inteligência”,
savana, por ser rala e transitável. Todavia esse ani- “pensamento”, “idéia”. Um esboço de Parlamen-
mal também é muito encontrado em florestas coní- to, monitorado pelos proprietários de terra.
14
feras. Para cada um deles, é necessária uma área “Boiardos” parece ter origem na palavra ho-
equivalente a uma “Asa do Plano Piloto”, em Bra- landesa “Böers”, que os russos traduzem por “Boi-
sília. are”. Significa “fazendeiros”. Os “Boiardos” repre-
8
“Belo-Rússia”, diga-se “Bielo-Rússia”, signi- sentavam a nobreza de então, constituída pelos
fica “Rússia Branca” e Ucrânia vem da combina- senhores das terras, dos feudos.
15
ção “U Kraiá”, que significa junto à fronteira. A Essa palavra em língua russa pronuncia-se
Ucrânia também foi chamada, durante muito tem- “velíki” e significa “grandioso”, não propriamente
po, “Malorróssia” (Pequena Rússia), indicando um “grande”.
16
certo ressentimento tradicional entre os ultra-nacio- Em todos os países onde a natureza é exube-
nalistas ucranianos e os russos atuais. rante acontecem esses fenômenos. No Lago Baical,
9
“tsar” é mais correto do que “czar” ou “csar”. próximo à cidade de Irkutsk, na Sibéria, um verda-
A letra inicial é “ts” em russo. Porém as duas for- deiro mar de água doce, o número de lendas é sig-
mas são aceitas. A palavra “czar” ou “csar” tem nificativo, à semelhança das lendas amazônicas em
origem na tradução eslavônica “késsar”, da pala- nosso país.
17
vra “tsézar”, como eram chamados os imperado- Região Sul da Rússia que limita com o Mar
res romanos, “Cézar” em grande parte da Europa. Negro e a Bulgária.
18
Como estamos falando de Rússia, vamos dizer Não confundir com o idioma chinês, que é
“tsar”, embora esse título só tenha sido empregado ideogramático, do grupo lingüístico sino-tibetano.
19
pelos russos quase 2.000 anos depois da fundação Bolcheviques: membros do Partido bolche-
de Roma. vista. Sobre eles falaremos na segunda parte deste
10
Pedro, o Grande, já naquela época, guerreou trabalho.
20
com a Turquia pelo acesso ao Mar Mediterrâneo e Jerusalém já esteve sob o domínio do Império
com a Suécia pelo domínio do Mar Báltico. As bus- Otomano.
21
cas por “mares quentes” são bem antigas. “zaparójisquie” é um adjetivo plural em rus-
11
Talvez a única coisa que não copiou à Europa so que significa “além das cachoeiras”. Eram os
foram as manifestações públicas do absolutismo cossacos que moravam nas margens do Rio Dnie-
real, que os tsares tinham de sobra. Se Luís XIV, rei per, do Rio Don, etc., mas abaixo das quedas d’água,
da França, precisava dizer “L’Ètat c’est moi” (Eu ou seja, mais ao Sul.
22
sou o Estado), os tsares não necessitavam dessa Depois da explicação dada anteriormente,
propaganda. Todo mundo já sabia disso. estamos utilizando os termos “mongol” e “tárta-
12
“Mir” tem dois significados em língua russa. ro” indiscriminadamente.
23
O primeiro é “paz”; o segundo é “mundo”, “uni- Não havia ainda a divisão “grandes russos”
verso”, “conjunto”, “comunidade”. É no segundo ou “pequenos russos”.
24
sentido que deve ser entendido aqui. Principalmente, aqui, a batalha de Kulíkovo.

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