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Literatura Brasileira III


Ana Cláudia Félix Gualberto
Tânia Regina Oliveira Ramos
Gizelle Kaminski Corso
Período

Florianópolis - 2013
Governo Federal
Presidência da República
Ministério de Educação
Secretaria de Ensino a Distância
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Universidade Federal de Santa Catarina


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Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância


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Ficha Catalográfica

G899l Gualberto, Ana Cláudia Félix


Literatura brasileira III : 7º período / Ana Cláudia Félix Gualberto,
Tânia Regina Oliveira Ramos, Gizelle Kaminski Corso. – Florianópolis:
LLV/CCE/UFSC, 2013.
186p. : il. , grafs., tabs.

Inclui bibliografia
UFSC. Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a
Distância

1. Literatura brasileira – História e critica. 2. Literatura brasileira


moderna. I. Ramos, Tânia Regina Oliveira. II. Corso, Gizelle Kaminski.
III. Título.
CDU: 869.0(81).09

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina
Sumário
Unidade A............................................................................................. 9

Introdução..........................................................................................11
1  As três famigeradas noites.........................................................................13
2  Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos...33
2.1 Mário de Andrade..............................................................................................33
2.2 Oswald de Andrade .........................................................................................37
2.3 Carlos Drummond de Andrade ...................................................................41

Unidade B............................................................................................49

Introdução..........................................................................................51
3  Guimarães Rosa: o primeiro João ...........................................................53
4  Cabral de Melo Neto: o segundo João..................................................59

Unidade C............................................................................................67

Introdução..........................................................................................69
5  Clarice Lispector............................................................................................71
6  Lygia Fagundes Telles .................................................................................81
7  Nélida Piñon....................................................................................................91
8  Lya Luft........................................................................................................... 101

Unidade D........................................................................................ 107

Introdução....................................................................................... 109
9  Concretismo................................................................................................. 111
9.1. Haroldo de Campos.......................................................................................114
9.2. Augusto de Campos......................................................................................117
9.3. Décio Pignatari................................................................................................117

10  Anos 70 e 80............................................................................................. 119


10.1 Tropicalismo....................................................................................................119
10.2. Poesia marginal.............................................................................................122
10.3. Anos 80: poetas, compositores e cancioneiros..................................126

Unidade E......................................................................................... 131

Introdução....................................................................................... 133
11  Rubem Fonseca........................................................................................ 135
12  Hilda Hilst.................................................................................................. 141
13  Caio Fernando Abreu............................................................................. 149

Unidade F......................................................................................... 155


14  Breves Histórias para leituras rápidas............................................... 157
14.2 Contemporaníssima? Literatura no superlativo..................................162
14.3 Comparações, semelhanças e diferenças.....................................................165
14.4 Alegorias da Tradição...................................................................................167
14.5 Literatura e Filiação.......................................................................................169
14. 6 Encontramos a chave? ...............................................................................171

Prezados alunos............................................................................. 175

Referências....................................................................................... 177
Apresentação
Car@s estudantes, boas-vindas a tod@s vocês!

A
disciplina Literatura Brasileira III foi dividida em seis Unidades,
para que você possa assimilar da melhor maneira possível as dis-
cussões aqui sugeridas. Aspectos relevantes da contemporaneida-
de e importantes conceitos analíticos, teóricos e críticos foram distribuídos,
ressaltando-se aspectos como contextualização histórica, principais produções
literárias, autores representativos de maneiras do fazer literário, fragmentos de
suas principais obras, alguns comentários críticos e, principalmente, possíveis
leituras destes textos.

Na primeira Unidade, faremos algumas incursões pelo Modernismo Brasilei-


ro, que tem, como marco histórico, a Semana de Arte Moderna. Como desta-
ques deste mo(vi)mento, escolhemos três autores com o mesmo sobrenome:
Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.

Na segunda Unidade, cujos marcos históricos podem ser resumidos pelo Brasil
dos anos 50, pós-segunda guerra mundial, pós-governo Getúlio Vargas, você
conhecerá dois importantes escritores, um poeta e um prosador, João Cabral
de Melo Neto e João Guimarães Rosa.

Na terceira Unidade entraremos em questões mais temáticas e o destaque


será direcionado à literatura de autoria feminina produzida a partir de
uma escritora que pode ser considerada um marco na Literatura Brasileira.
Você já deve ter ouvido falar em Clarice Lispector. Nesse tópico, leremos
algumas narrativas de Clarice e estabeleceremos um diálogo com outras
produções literárias de autoria feminina, entre elas: Lygia Fagundes Telles,
Nélida Piñon e Lya Luft. O objetivo principal dessa Unidade é você perce-
ber como a subjetividade impregnou a escrita destas mulheres ao aborda-
rem temas do cotidiano como a família, as relações afetivas, o urbano, as
angústias da vida moderna.
Na quarta Unidade, diante do contexto histórico influenciado pela política de-
senvolvimentista do governo JK, você conhecerá as experiências da poesia con-
creta, da tropicália, da poesia marginal da década de 70 e do rock dos anos 80-90.
É um tópico que vai requerer de sua parte muita leitura, sua atenção nas palavras,
nas construções e desconstruções poéticas, influenciadas por outras mídias.

Na quinta Unidade, estabeleceremos interfaces da literatura com duas temáti-


cas bastante representativas da produção contemporânea: a violência e a sexu-
alidade. Aqui você irá trabalhar com alguns textos literários que abordam estes
temas, igualmente explorados pela linguagem televisiva e cinematográfica.

Na última Unidade, faremos um mergulho naqueles que denominanos con-


temporaníssimos, melhor dizendo, em autores e obras ultra contemporâneos,
cujas produções beiram este século – a partir da década de 90 para o século
XXI. Fizemos uma seleção, não apenas no que se refere a este capítulo, mas no
livro como um todo, daqueles [autores] que nos pareceram mais importantes e
significativos, de autores que, acreditamos, compõem um “cânone-contempo-
râneo”, e que já possuem marca própria no âmbito literário nacional.

É interessante ressaltar que, sempre que possível, será feita uma relação entre
a leitura e a prática docente, para que você possa (re)pensar sua experiência
em sala de aula. Esperamos que você aproveite estas semanas para pesquisar,
ler e compartilhar suas experiências.

Boa leitura e uma boa disciplina!!!

Ana Cláudia, Tânia e Gizelle


Unidade A
Modernismo brasileiro
Introdução
Nesta primeira unidade faremos uma incursão pelo Modernismo
brasileiro. Para tanto, iniciaremos essa trajetória pela Semana de Arte
Moderna, e, em seguida, nos deteremos em três autores importantes
desse mo(vi)mento (não apenas) literário: Mário de Andrade, Oswald
de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.

11
As três famigeradas noites Capítulo 01
01 As três famigeradas noites Como afirma Alfredo
Bosi, sobre Lima Bar-
A modinha é a mais genuína forma de expressão da poesia reto, “O ressentimento
do mulato enfermiço
nacional e o violão é o instrumento que ela pede e o suburbanismo não
(Lima Barreto, 1983, p. 20) o impediram, porém,
de ver e de configurar
[…] o violão é um belo instrumento e tem grandes dificuldades. com bastante clareza
Por exemplo... o ridículo e o patético
do nacionalismo to-
– Qual! Interrompeu Quaresma abruptamente. Há outros mais difíceis. mado como bandeira
– O piano? Perguntou Ricardo. isolada e fanatizante:
no Major Policarpo
– Que piano! O maracá, a inúbia. Quaresma afloram
(Lima Barreto, 1983, p. 37) tanto as revoltas do
brasileiro marginaliza-
do em uma sociedade
onde o capital já não
Vamos começar a pensar com um emblemático personagem da Li- tem pátria, quanto a
teratura Brasileira. Quem é ele? própria consciência do
romancista de que o
caminho meufanista é
Policarpo Quaresma pode ser considerado o personagem mais na- veleitário e impoten-
te”(2006, p. 318).
cionalista da literatura brasileira. Criado por Lima Barreto, conhecido
por suas ideias extremamente ufanistas que iam desde a valorização de
produtos e artigos nacionais até o desejo da implantação do tupi como
língua nacional, o Major Quaresma também era um apreciador da boa
música brasileira, considerando a modinha como a forma mais genuína
da expressão nacional. Embora visse o violão como um instrumento
que expressasse nacionalidade, era capaz de considerá-lo mais fácil de
aprender se comparado ao maracá (chocalho indígena utilizado em fes-
tas, cerimônias religiosas e guerreiras) e a inúbia (trombeta guerreira
dos índios tupis-guaranis, também conhecida por membitarará).
O Major quaresma de cocar
Para Mário de Andrade, a música brasileira provinha de diversas defendendo a adoção da Língua Tupi
pelo Estado
fontes estranhas: a ameríndia (em pequena porcentagem), a africana
(em porcentagem bem maior), a portuguesa (em vasta porcentagem),
além de influências hispano-americanas, e das atuais, provindas do jazz
e do tango argentino.

13
Literatura Brasileira III

Mário de Andrade tem extrema importância no que se refere à elabo-


ração de um “Projeto Musical Modernista”, ao lado de Renato Almeida,
Oswald de Andrade, Luciano Gallet, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fer-
nandez, cujo compromisso era não apenas valorizar o popular, mas
também passar a incorporá-lo, e afirma: “O período atual do Brasil,
especialmente nas artes, é o de nacionalização. Estamos procurando
conformar a produção humana do país com a realidade nacional. E
é nessa ordem de idéias que justifica-se o conceito de Primitivismo
aplicado às orientações de agora”. (ANDRADE, 1972, p. 4)

Como documentação ou como inspiração, o compositor brasileiro


deveria se basear no folclore. E, embora Mário criticasse Villa-Lobos
ao dizer que sua música indígena era falsa, o compositor carioca uti-
lizava uma variedade de informações musicais, provenientes das mais
diferentes tradições – europeia, indígena e africana, e conseguiu, assim,
atravessar as fronteiras invisíveis da sonoridade.

Ao lado de Lima Bar- Nesse sentido, não apenas Mário de Andrade estava preocupa-
reto podemos inserir
Euclides da Cunha, do com a questão da brasilidade, mas praticamente grande parte da
ambos exploraram prole modernista. Tal qual Policarpo Quaresma, é possível afirmar
criticamente o veio do
nacionalismo no co- que, de uma forma ou de outra, os intelectuais e os músicos esta-
meço do século XX, via vam preocupados com a questão da identidade nacional. O desejo
contrastes litoral/sertão,
cidade/campo, branco/ de se instituir uma identidade nacional, representada em ficção por
mestiço, por exemplo. Lima Barreto, e que já se aflorava desde os românticos brasileiros,
Estudados na disci- retorna com mais força entre os modernistas brasileiros nas pri-
plina de Literatura meiras décadas do século XX. Houve uma reutilização dos propó-
Brasileira I.
sitos do romantismo europeu no quadro da cultura nacional. Nesse
sentido, o modernismo constitui-se em um momento de retomada
e adiantamento de um caminho já aberto pela intelectualidade bra-
sileira do século XIX.

O Modernismo brasileiro representou um momento de ruptura,


de abertura para novos caminhos na cultura brasileira. Aliás, é dessa
forma, como bem assinala Silviano Santiago (1989), que somos acos-

14
As três famigeradas noites Capítulo 01
tumados a encará-lo: tradição da ruptura – expressão de Octavio Paz
– de rompimento com os valores do passado, com os valores prece-
dentes. Por conta disso, argumenta o crítico literário brasileiro, “um
dos discursos mais privilegiados do modernismo, sobretudo nos úl- Minha terra tem palma-
timos vinte anos, tem sido o da paródia” (SANTIAGO, 1989, p. 94). res… (Poema: “Canto de re-
gresso à pátria”).
E dentre o rol dos modernistas, Oswald de Andrade é o que [mais]
tem angariado essa estética.

Para Wilson Martins, o Modernismo “foi […] tôda uma época da


vida brasileira, inscrito num largo processo social e histórico, fonte
e resultado de transformações que extravasam largamente dos seus
limites estéticos” (1967, p. 12-13). Em páginas adiante acrescenta,
dizendo ter sido “o reflexo de uma inquietação e de uma insatisfação.
A vanguarda da inteligência brasileira estava evidentemente insatis-
feita, em 1916, com a assustadora anemia literária que resultara do
esgotamento visível do Parnasianismo e do Simbolismo” (p. 21).

Segundo esse pesquisador, o Modernismo brasileiro dividiu-se


em três períodos: primeiro período (de 10 anos – a partir da década
de 20) foi um movimento poético (grandes nomes, grandes livros,
nomes de poetas); segundo período de dez anos também, a partir da
década de 30, em que houve esgotamento da poesia “modernista”. “O
Modernismo poético estava morto naquilo que antes de mais nada
o tinha distinguido nos primeiros anos, isto é, o espírito crítico, o
poema-piada, os funambulismos gratuitos, a intenção de escandali-
zar.” (MARTINS, 1967, p. 17). Fase marcada pelo aparecimento do
romance que a caracterizaria de forma inegável nos anos 30/40 –
anos dos romances sociais e “nordestinos”. A terceira década perten-
ceria à crítica, tendo nos anos 40 presença marcante de nomes como
Antônio Candido e Álvaro Lins.

Foi nas duas primeiras décadas do século XX que se formou


uma geração preocupada em encontrar as raízes históricas da so-
ciedade brasileira. No modernismo também se exaltou o progresso,
a máquina, a velocidade, paralelamente a uma valorização seletiva
do passado. E isso se transpareceu em algumas produções poéticas,

15
Literatura Brasileira III

como exemplificamos com o poema “Velocidade” (1924), de Gui-


lherme de Almeida, que você pode ler a seguir:

Velocidade

Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?


Lá vai ele: vai varando, no seu vôo de asas cegas,
as distâncias...
E dispara,
nunca pára,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...

Vai como um pária...

E vai levando um novelo embaraçado de fitas:


fitas
azuis,
brancas,
verdes,
amarelas...
imprevistas...

Vai varando o vento: — e o vento, ventando cada vez mais,


desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar
o feixe fino de riscas,
tiras,
fitas,
faixas,
listas...
E estira-as,
puxa-as,
estica-as,
espicha-as bem para trás:

16
As três famigeradas noites Capítulo 01
E as cores retesas dançam, sobem, descem de-va-gar
paralelamente,
paralelamente
horizontais,
sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...

Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/gu2.html. Acesso em: 22 jul. 2012.

Como ressalta o crítico Wilson Martins, antes do uso do avião em


nosso país, eram os automóveis que forneciam aos modernistas sensa-
ções de simultaneidade, de velocidade, de movimento. O modernismo
tinha como elementos importantes a oposição ao passadismo e a absor-
ção das conquistas das vanguardas pelos acervos artísticos dos novos
que surgiam. Esses acervos artísticos, a arte, a literatura e a música, fo-
ram vistos como lugares de expressão e de sistematização da criativida-
de, em que se encontrariam as marcas da brasilidade, da expressão ge-
nuína do Brasil. Além disso, o que importava, segundo Eduardo Jardim
de Moraes (1978, p. 55), “era o fato da obra ser moderna ou assim se
apresentar dentro do nosso ambiente cultural.”

Os dois postulados essenciais da configuração do modernismo es- Batizado de Macunaíma, por


Tarsila do Amaral.
tavam contidos no Nacionalismo e no Regionalismo. Wilson Martins
(1967), compreende que a partir de 1916 é para o Nacionalismo que o
modernismo se envereda, despertando uma consciência nacionalista.
Afirma, também, que o editorial de lançamento da “Revista do Brasil”
“E do que restou da
pode ser compreendido como o primeiro manifesto nacionalista do convenção acadêmica
Modernismo. Os ataques modernistas contra a gramática portuguesa faz-se paródia: o gran-
de exemplo é, sempre,
e a tirania dos donos da língua não eram gratuitos. As inovações atin- a “Carta pras Icamia-
giram a pontuação, o traçado gráfico do texto, e as estruturas fônicas, bas” de Macunaíma”
(BOSI, 1988, p. 118).
léxicas e sintáticas do discurso. E a partir de 1925, o Nacionalismo e No tópico a seguir tra-
o Regionalismo confundir-se-iam no Modernismo, tendo-se a confir- taremos do autor e do
romance em questão.
mação disso em uma das obras do período, Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter de Mário de Andrade.

Eduardo Jardim de Moraes (1978), no entanto, reconhece que


é por volta de 1924-25 que emerge a compreensão do nacionalis-

17
Literatura Brasileira III

mo modernista, sobretudo nos movimentos orientados pela obra de


Oswald de Andrade e o verde-amarelismo. Ao contrário do que pen-
sam muitos críticos, comentadores e protagonistas do movimento
modernista, a problemática do nacionalismo artístico não acompa-
nha a Semana de 1922. No ano crucial de 1924 é que se inicia a ques-
tão da elaboração de uma cultura nacional, que prossegue até o ano
de 1929. Ademais, compreende que o primeiro passo no sentido de
introduzir a problemática nacionalista na literatura modernista é o
“Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, publicado em 18 de
março de 1924 no Correio da Manhã.

“a Pau-Brasil contrapõe-se uma corrente de nacionalismo não me-


nos mítico, cheio de apelos à Terra, à Raça, ao Sangue, o Verde-ama-
relismo (1926), de Cassiano, Menotti del Picchia, Cândido Motta Fi-
lho e Plínio Salgado” (BOSI, 2006, p. 342-343). Tem por característica
o apreço por textos patrióticos, ufanistas e idealizadores. Esse mo-
vimento recusa qualquer forma de contágio com ideias europeias,
reagindo às intenções do “Pau-Brasil”. O grupo ficou conhecido por
“Grupo Anta” ou “Escola da Anta” por ter sido este animal escolhido
como símbolo de suas ideias. Além disso, a “anta”, na cultura Tupi,
tinha uma importante função mítica, exemplificada no “Manifesto
Nhegaçu Verde Amarelo da Escola da Anta”, que justifica: “Seu to-
tem não é carnívoro: Anta. É este um animal que abre caminhos, e
aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.”. Você pode
ler esse Manifesto, na íntegra, no seguinte link: http://www.pco.org.
br/conoticias/ler_materia.php?mat=8291. Acesso em: 13 ago. 2012.

Manifesto pau-brasil

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da


Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

18
As três famigeradas noites Capítulo 01
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étni-
ca rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor,


o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma
cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes
e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.

O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando


politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de
ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós malicio-


sos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam


tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas


de casa tratando de cozinha.

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a


luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra
de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido


da invenção. Ágil a poesia.

A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.

Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides


partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O me-
nor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

19
Literatura Brasileira III

Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de


jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribui-


ção milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.

Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas


e os outros.

Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação.


E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sá-


bias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros
que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário
oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio
a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a
máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da
caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.

Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas


as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de
patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.

A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.

Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta


parnasiano.

Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as


elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através
do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e
Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no
templo, os materiais, a inocência construtiva.

O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira constru-


ção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.

20
As três famigeradas noites Capítulo 01
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento di-
nâmico dos fatores destrutivos.

A síntese

O equilíbrio

O acabamento de carrosserie

A invenção

A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala.

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil

O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez


romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; con-
tra a cópia, pela invenção e pela surpresa.

Uma nova perspectiva.

A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilu-


são ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência.
Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a
perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem:
sentimental, intelectual, irônica, ingênua.

Uma nova escala:

A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos li-


vros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres.
E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros

21
Literatura Brasileira III

Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e ful-


gurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O corres-
pondente da surpresa física em arte.

A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese


era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro
histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.

Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.

Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.

A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos


cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo
uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o
presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver


com olhos livres.

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e


dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da mamadeira
e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem
pegá” e de equações.

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas;
nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Mu-
seu Nacional. Pau-Brasil.

Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar.


A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco
sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
Pau-Brasil.

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império


da literatura nacional.

22
As três famigeradas noites Capítulo 01
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em
sua época.

O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser


uma atitude do espírito.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.

A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa


tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.

Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecâ-


nica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural.
Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem com-
parações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.

Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A


floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A
vegetação. Pau-Brasil.

Disponível em: http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/mani-


fpaubr.html. Acesso em: 22 jul. 2012.

Esse manifesto constituiu-se em um marco cujos ideais nacionalis-


tas defendidos por seu autor eram aceitos pelo grupo modernista. Seria
como se pau-brasil significasse a precisão da nacionalidade. O docu-
mento marca os primeiros anos em que se discutia a questão da bra-
silidade, apesar das discordâncias de Mário de Andrade que, segundo
Moraes (1978, p. 93), “exigia construção e disciplina, estudo e pesqui-
A boba, por Anita Malfati
sa para se chegar à definição da brasilidade”, ou seja, Mário propunha
um nacionalismo culto e estudioso. Oswald, além de ser criticado por
aquele, também o foi por Alceu Amoroso Lima o qual, segundo Moraes
(1978), compreendia que o manifesto era de uma originalidade que pro-
vinha de fontes europeias, como o dadaísmo francês e o expressionismo
alemão. Moraes (1978, p. 101), ainda assevera que

23
Literatura Brasileira III

Segundo Bosi (2006, O objetivo do texto é claro – denunciar o engodo, uma farsa. Aquilo
p. 331), “Graça Aranha, que Oswald nos propõe como libertação dos cânones europeus e afir-
empenhado até o fim
da vida na teorização mação de uma literatura nacional não passa de contrafação. A poesia
de uma estética mais de exportação, o “pau-brasil”, continua a ser material importado, como
aderente à vida mo-
derna, foi o único inte- a poesia das gerações anteriores. Com uma diferença: importa-se ago-
lectual da velha guar- ra uma outra mercadoria e rotula-se: “feita no Brasil”.
da que, a rigor, pôde
passar de uma vaga
esfera pré-modernista Apesar de o Manifesto ser de 1924, uma proposta que ainda
ao Modernismo”.
continua a ser material importado, segundo Eduardo Jardim de
Moraes (1978), não há como situar o projeto de elaboração de uma
cultura nacional no modernismo sem levar em conta o seu contato
com o pensamento de Graça Aranha, especialmente o expresso em
A estética da vida.
De acordo com Wilson
Martins, a ideia original “A emoção estética na arte moderna”, conferência inaugural da Semana
de Semana de Arte Mo-
derna parece pertencer de Arte Moderna de 1922, não é mais que a súmula das concepções
a Di Cavalcanti, confor- filosóficas de Graça Aranha a respeito da arte presentes em A estética
me reivindicado por ele,
em suas memórias: “Eu da vida. (MORAES, 1978, p. 30).
sugeri a Paulo Prado
a nossa semana, que
seria uma semana de Embora a Semana de Arte Moderna não acompanhe de per-
escândalos literários e to essa problemática do nacionalismo que mais tarde se instaurou
artísticos, de meter os
estribos na barriga da entre os poetas modernistas e seja o marco oficial do movimento
burguesiazinha paulis- modernista brasileiro, os anos de 1915 e 1917 podem ser vistos
tana” (apud MARTINS,
1967, p. 65). como prenúncios reveladores de novas tentativas: 1915 por ser o
ano do concerto realizado por Villa-Lobos com obras originais de
sua autoria; 1917, por ter acontecido a exposição de Anita Malfatti,
criticada por Monteiro Lobato no artigo, publicado no jornal O Es-
“Urupês”, de 1915, poderia tado de S. Paulo, em 20 de dezembro de 1917, intitulado: “Paranóia
ter sido o primeiro mani- ou mistificação?”. Isso nos leva a pensar que, anos antes da Sema-
festo modernista. Figura
do Jeca tatu. Herói literário na, Villa-Lobos e Anita Malfatti já faziam tentativas de impor seus
contraposto a Peri. Segun- estilos artísticos à sociedade da época. Uma fase de atualização, ou
do Wilson Martins, uma das
correntes subterrâneas mais seja, modernização em que se sentia a absorção das conquistas das
importantes do Movimento vanguardas europeias do momento.
já se encontrava no artigo
de Lobato.
A Semana de Arte Moderna foi a substituição de ideias estéticas
do passado pelas novas teorias europeias, (futurismo, expressionismo,

24
As três famigeradas noites Capítulo 01
cubismo, dadaísmo, espiritonovismo), mencionadas neste livro pela
“voz”, via citações densas, de Gilberto Mendonça Teles, para que você
conheça também este importante crítico literário, livre-docente da
PUC Rio, que se destacou no âmbito acadêmico por seus estudos so-
bre o modernismo e a vanguarda na poesia.
Vide Vanguarda
europeia e modernis-
“O ideal de uma Arte “construtiva”, preocupada com as tradições ro- mo brasileiro (Vozes,
2002).
mânicas da cultura francesa, tem as suas origens em torno do par-
nasianismo, embora se tenha formulado pela primeira vez como re-
ação contra o simbolismo, quando Jean Moréas, insatisfeito com os
rumos que ia tomando o simbolismo, começa a falar numa “escola
romana”, num certo romanismo destinado a proteger as tradições
culturais greco-latinas.” (TELES, 2002, p. 152).

A Semana surgiu em uma São Paulo dominada pela monocultura


cafeeira, que se abria, aos poucos, para uma industrialização princi-
piante, comandada politicamente pelas oligarquias rurais. Segundo
Bosi (1988, p. 115), “A Semana pretendeu ser a abolição da República
Velha das Letras”. Ela participou do espírito da destruição do passado,
comum ao vanguardismo.

Com uma programação para três noites, foram apresentadas di-


versas conferências e palestras ilustradas com poesias e trechos de
prosa e inúmeras apresentações musicais. A conferência que inaugu-
rou a Semana no Teatro Municipal de São Paulo, na noite do dia 13
de fevereiro, foi, como já mencionado, de responsabilidade de Graça
Aranha, “A emoção estética na arte moderna”, antecipando ao público
o que encontrariam nas três noites artísticas:

Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta


coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante,
mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pe-
las forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.
(ARANHA, 1997, p. 280).

25
Literatura Brasileira III

As forças do Passado, que Graça Aranha menciona no primeiro


parágrafo de sua conferência, fazem referência ao Parnasianismo e
ao Simbolismo. A poesia, adjetivada de “liberta”, encontrar-se-ia nos
versos de Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Plínio Salgado, Manuel Bandeira, en-
tre outros. A música “extravagante” especialmente nas composições
de Heitor Villa-Lobos. Nesta oportunidade, trazemos o poema “Os
Sapos”, de Manuel Bandeira, que foi declamado por Ronald de Car-
valho numa das noites da Semana. Primeiramente, faça uma leitura
silenciosa e, em seguida, em voz alta:

Os Sapos – Manuel Bandeira

Enfunando os papos, Em comer os hiatos!


Saem da penumbra, Que arte! E nunca rimo
Aos pulos, os sapos. Os termos cognatos.
A luz os deslumbra.
O meu verso é bom
Em ronco que aterra, Frumento sem joio.
Berra o sapo-boi: Faço rimas com
- “Meu pai foi à guerra!” Consoantes de apoio.
- “Não foi!” - “Foi!” - “Não foi!”.
Vai por cinqüenta anos
O sapo-tanoeiro, Que lhes dei a norma:
Parnasiano aguado, Reduzi sem danos
Diz: - “Meu cancioneiro A fôrmas a forma.
É bem martelado.

Vede como primo

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...”

26
As três famigeradas noites Capítulo 01
Urra o sapo-boi:
- “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
- “Não foi!” - “Foi!” - “Não foi!”.

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,

Canta no martelo”.

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),

Falam pelas tripas,


- “Sei!” - “Não sabe!” - “Sabe!”.

Longe dessa grita,


Lá onde mais densa

A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,


Sem glória, sem fé,
No perau profundo

E solitário, é

Que soluças tu,


Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...

27
Literatura Brasileira III

Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/sapos.htm.


Acesso em 22 jul. 2012.

Assim, nessa tentativa de destituir a compreensão da arte


como “Belo”, na literatura, os escritores opuseram-se ao Parnaso e
à Academia, modernizando a linguagem, desmanchando o verso,
desarticulando a sintaxe, e alterando o vocabulário, ou seja, dando
as costas para o estilo que até então persistia. Com relação à arte,
os processos pictóricos que surgiram causaram estranheza, surpre-
enderam, constituíram novidade e choque para o meio. Na música,
embora já houvesse estranhamento por parte do público, não se
registra uma composição especial para a Semana de Arte Moderna,
mas são utilizadas novas combinações musicais, a ouvidos acostu-
mados a Carlos Gomes.

Que nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não
seja realizada segundo as fórmulas consagradas? O que nos interessa
é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá
a arte do músico divino. (ARANHA, 1997, p. 281).

Graça Aranha aproveita a oportunidade para, em sua Conferência


A música que anuncia
o programa de rádio “A de Abertura, alfinetar o compositor Carlos Gomes, ao criticar as fór-
voz do Brasil”. mulas consagradas. O conferencista critica o pai da ópera O Guarani, e
acaba sendo o responsável pela querela jornalística entre o defensor da
arte nova de Villa-Lobos – Menotti del Picchia, e o defensor da tradição
e das fórmulas consagradas – Oscar Guanabarino [de Sousa Silva], crí-
Oscar Guanabarino era tico de arte, músico e dramaturgo brasileiro, que se tornou célebre em
filho de Joaquim Nor- suas críticas jornalísticas por impingir comentários pouco louváveis à
berto de Sousa Silva
(1820-1891), um dos música de Villa-Lobos.
primeiros historiado-
res de nossa literatura;
um dos intelectuais Assim, a Semana de Arte Moderna, instaurando-se como choque,
da primeira geração confronto, polêmica, afirmação de tendências, também desencadeou
romântica e, pela
influência do pai, teve em torno de si um clima de tensão polêmica entre esses coros con-
visibilidade em sua trários. Nessa atmosfera, foram publicados vários artigos em Jornais
carreira jornalística.
cariocas e paulistas em acusação e defesa do movimento. Em relação à
música, retomando o que afirmamos acima, a querela foi ocupada, de

28
As três famigeradas noites Capítulo 01
um lado, por Carlos Gomes, o qual tinha por defensor crítico Oscar
“a idéia de nossa Semana de
Guanabarino, Chopin no episódio da “Marcha Fúnebre”, e de outro, Arte Moderna foi simples-
por Heitor Villa-Lobos, Satie, Stravinsky, por exemplo. mente copiada da idéia de
um “Congrès de l’Esprit Mo-
derne”, programado um ano
antes para março de 1922,
por André Breton, e que foi
Com o intuito de explicar e justificar suas obras, os modernistas fun- a causa da briga de Breton
com Tzara e o conseqüente
daram revistas e escreveram manifestos. Como expressão imediata
desaparecimento do dada-
da Semana, em maio de 22, apareceu a Revista Klaxon, durando ísmo.” (TELES, 2002, p. 134).
apenas nove números, dedicados a Graça Aranha. Segundo Bosi,
essa revista “foi o primeiro esforço concreto do grupo para sistema-
tizar os novos ideais estéticos ainda confusamente misturados nas
noites bulhentas do Teatro Municipal” (2006, p. 340). A Klaxon foi
seguida pelas revistas Estética, Terra roxa e Outras Terras.

Carlos Gomes é criticado na Semana de Arte Moderna (e após ela


também) por ser vinculado ao gênero operístico, especialmente o deri- Morro da Favela, por Tarsila do
Amaral.
vado do legado romântico, excessivo na forma e extremamente senti-
mentalista; uma figura que se contrapõe à inovadora de Villa-Lobos. O
compositor, que orientou o gosto no Rio e em São Paulo nas décadas de
10 e 20, é apresentado como representante emblemático do padrão clás-
sico-romântico adotado pelas elites culturais européias entre o XIX e a
I Guerra Mundial. Embora altamente criticado por Oscar Guanabarino,
um eterno defensor de Carlos Gomes e da tradição, Heitor Villa-Lobos
era fortemente elogiado por Oswald de Andrade, João F. de Almeida
Prado, Ronald de Carvalho. Horta (1987, p. 38) assevera que

Villa é o músico da Semana: foi o único músico brasileiro a figurar nos


programas. Mas não compôs nada de especial para a ocasião. E nem a
Semana teve, para ele, a importância simbólica que teve para a repúbli-
ca das letras: é inevitável a impressão de que Villa passa “por dentro” da
Semana. Ele já vinha “pronto”; e, de maneira característica, sequer esco-
lheu para amostra suas obras mais significativas.

29
Literatura Brasileira III

No período em questão, o gosto musical que prevalecia eram as


árias de ópera e a música de salão. O piano era destinado às mazurcas de
Liszt e às valsas de Chopin. Em um momento em que se cultivava a sub-
missão aos valores culturais importados, a repercussão da Semana na
música foi inferior e com menos evidência que na literatura e na pintu-
ra. Segundo Carlos Kater (2001), a Semana foi considerada para muitos
espectadores e alguns artistas apenas como uma maneira de comemorar
os festejos oficiais do “Centenário da Independência do Brasil”. Além
disso, foram os modernistas que fizeram a Semana de Arte Moderna e
não a Semana de Arte Moderna que gerou o Modernismo. A Semana é
tida como um marco, apesar de ser considerada um “evento panorâmi-
co”, como o define Kater.

A Semana foi assim um evento panorâmico por excelência, que agre-


gou diversos fazeres artísticos, em prática co-habitando o mesmo tem-
po, inclusive a modernidade. Não chegou a ser verdadeiramente um
autêntico e revolucionário manifesto modernista como alguns artistas
participantes haviam originalmente idealizado. (KATER, 2001, p. 21)

Abapuru, por Tarsila do Amaral


Nesse momento, vale dizer, o modernismo brasileiro ainda não era
de fato uma frente coerente, pois, o país ainda estava muito impregnado
do desejo europeu e a população pouco se preocupava com o fato de en-
contrar a “verdadeira” identidade de expressão para a nação colonizada.

As provocações, as rupturas paulistas de 22 não foram mero acaso,


mas vieram em virtude de um processo de diferenciação, somando-se
ousadia, pensamento contrastante, desafio ao público. Oswald, Mário,
Alcântara Machado, paulistas por excelência do movimento,

enxergavam o Brasil como um mito enorme, protético, de que seriam


símbolos seminais os totens amazônicos. As fortes e belas imagens an-
tropofágicas de Tarsila, os manifestos de Oswald e a rapsódia de Má-
rio de Andrade não poderiam ter nascido senão da cabeça de artistas
que imaginavam lúdica e surrealmente o Brasil, aquela vaga e estranha
e múltipla realidade pré-industrial que não era a cidade de São Paulo.
(BOSI, 1988, p. 119).

30
As três famigeradas noites Capítulo 01
Agora que você já leu um pouco sobre a Semana de Arte Moderna,
vai conhecer mais sobre três autores que se destacaram no Modernismo
Fazemos uso desse
brasileiro. Nossa escolha não foi fácil, admitimos, mas bastante cuida- advérbio proposita-
dosa. Pelo título do tópico, você os vai reconhecer, pois tratará de três damente, como forma
de instigar você a ler
“Andrades”, ou melhor, de três autores brasileiros com sobrenome “An- mais sobre a Semana,
drade”. Vamos, então, à leitura? sobre o Modernismo.
Há muita produção
sobre essas questões.

31
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
02 Onde quer que Andrades,
encontras três: Mário, Oswald
e Carlos

2.1 Mário de Andrade


Este romance narra a
história de uma jovem
Você certamente já deve ter ouvido falar desse autor paulista, nas- alemã que é convida-
da, por uma família
cido em 1893, e falecido em 1945, mais conhecido pela publicação dos burguesa, para dar
romances Macunaíma, publicado em 1928, dedicado a Paulo Prado, e iniciação sexual ao
primogênito.
Amar, Verbo Intransitivo, publicado em 1927. Ensaísta e ficcionista, crí-
tico de literatura e de música, tratadista e pesquisador de folclore, poe-
ta, romancista, e teórico de arte, Mário Raul de Morais Andrade é um
escritor “fragmentado”. Wilson Martins o descreve de forma bastante
peculiar, cujas palavras transcrevemos a seguir: Neste livro-texto, tratare-
mos Macunaíma como um
romance, mas consideramos
É que Mário de Andrade foi, também, mais do que qualquer outro es-
importante trazer à tona
critor brasileiro, em qualquer tempo, uma presença. Uma presença de duas “classificações” sobre
o livro: Alfredo Bosi (2006,
homem, marcada pela sua afetividade, pelo seu riso bom, por aquela
p. 346) o apresenta como
espécie de inocência angélica que nele observaram um dia. Uma pre- “rapsódia”, e Wilson Martins
(1967, p. 185), “um conto
sença que, sem o mais longínquo cálculo de “política” literária, sacrificava
(um conto de trezentas pá-
um tempo enorme das suas tarefas pessoais chamado por uma sensi- ginas!)”. Em linhas adiante,
reconhece no texto de An-
bilidade que o levava a escrever cartas enormes aos mais obscuros e
drade dizendo, “será, talvez,
desconhecidos dos principiantes; ou a discutir, em cartas não menores, uma epopéia em prosa” (p.
186). E salienta: epopeia em
com os seus companheiros de aventuras literárias, os problemas cruciais
prosa no modo irônico.
em que se debatia. (MARTINS, 1967, p. 236).

No entanto, a fama deste Andrade (não podemos nos esquecer de


que, neste capítulo, falaremos de três!) dá-se, principalmente em virtude
do regozijo da história de Macunaíma, por meio da qual vislumbra um
“herói sem nenhum caráter”; o “herói de nossa gente”.

O “preto retinto e filho do medo da noite” (cf. ANDRADE, 1991)


– Macunaíma – é um índio revestido de negro (ou um negro reves-

33
Literatura Brasileira

tido de índio?), que procura incorporar uma soma de brasilidade(s),


trazendo em si mesmo estampadas representatividades do “jeito de ser
brasileiro”; porque seu autor estava em busca do caráter nacional con-
traditoriamente apresentando um herói “sem caráter” – num paradoxo
bem modernista, diria Wilson Martins. Em Macunaíma, segundo Bosi
(2006, p. 352) existe “mediação entre o material folclórico e tratamen-
to literário moderno”, e seu protagonista homônimo é uma espécie de
“barro vital, ainda amorfo, a que o prazer e o medo vão mostrando os
caminhos a seguir, desde o nascimento em plena selva amazônica e as
primeiras diabruras glutonas e sensuais, até a chegada a São Paulo mo-
derna […]”. E Macunaíma faz o seu percurso, a sua odisseia, na metró-
pole nova com um propósito bem definido: vai em busca do talismã que
o gigante Venceslau Pietro Pietra havia furtado. A viagem, o tempo, o
espaço, são vigas-mestras desse livro.

Macunaíma, “criança feia”, o índio às avessas, procurou ser


retrato do Brasil, manifestando-se por intermédio de costumes, ações, vi-
Impossível não re- cissitudes da língua, tradições folclóricas, trejeitos. Ronald de Carvalho
metermos ao ensaio (apud MARTINS, 1967, p. 187), em crítica, admitiu: “Mário de Andra-
homônimo de Paulo
Prado, publicado em de projetou o Brasil nessa figura. [...] [o herói] não poderia ter caráter,
1928, uma tentativa, pois, sendo ilimitado, não está sujeito às contingências.”. Melhor dizendo,
também, de resposta
à problemática do Macunaíma é um pouco metonímico, mas metáfora de um Brasil. Sendo
“caráter nacional”. Em ilimitado, conforme afirmou Carvalho, como ter caráter? Representativi-
Nota do autor à 4ª
edição, Paulo Prado dade brasileira, um entre muitos, como caracterizar-se um só? Entre tan-
afirma: “Este pequeno tas multifaces, rebento de índio, filho da noite, imigrante, é possível que
livro teve um ines-
perado acolhimento. alguém se reconheça “brasileiro” em Macuaíma frente à multiplicidade
Escrito para estudio- “simbólica” que supostamente re(a)presenta? Segundo Martins (1967, p.
sos de nossa histó-
ria, e pretendendo 188), Mário de Andrade “quis criar um ser indefinido, feito de contradi-
apenas esboçar uma ções e incoerências, o contrário de um caráter, de um tipo, ou alcançando
vista panorâmica do
povoamento e evolu- a tipicidade justamente por ser compósito.” É de contradições, de “multi-
ção da terra brasileira, faces”, que o caráter de Macunaíma é constituído.
algumas páginas,
como que alheias ao
assunto, deram vida e Segundo Martins (1967), a verdadeira grandeza de Macunaíma
agitação a um ensaio
puramente filosófico”. está mais “na audácia da concepção e na coragem da realização do que
(PRADO, 1997, p. 49). nos resultados obtidos […].” (p. 186).

34
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
Nesse romance, Mário de Andrade mescla três estilos de narrar (cf.
BOSI, 2006): um estilo de lenda, épico-lírico, solene:

Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos


pescando, o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diaria-
mente, se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho
uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o
passarinho uirapuru pousou no joelho dele. (ANDRADE, 1991, p. 27).

um estilo de crônica, cômico, despachado, solto:

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se es-


quecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço,
o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então
adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava
patadas no ar. (ANDRADE, 1991, p. 9).

um estilo de paródia aos parnasianos (carta que o protagonista es-


creve às Icamiabas):

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta


missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade e muito
amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São
Paulo – a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes – não
sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de
Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da
Hélade Clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator
vosso, tais dislates da erudição porém heis de convir conosco que, assim,
ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa platina respeitável
da tradição e da pureza antiga. (ANDRADE, 1991, p. 56).

Depois de ter conhecido um pouco sobre o modernista Mário de


Andrade e sua principal obra, Macunaíma, vamos mergulhar na histó-
ria de outro “Andrade”, a de Oswald de Andrade, de quem falaremos no

35
Literatura Brasileira

tópico a seguir, sem, ainda, nos despedirmos da verve modernista. Mas,


antes de finalizarmos este tópico, apresentamos um poema provocativo,
pelo qual Mário de Andrade é também bastante conhecido, para que
você o leia, neste livro-texto, como poeta que foi:

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel


o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!


Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
“— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!”

36
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!


Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/and.html#ode. Acesso


em 7 ago. 2012.

2.2 Oswald de Andrade

Sua marca no Modernismo brasileiro é evidente. José Oswald


de Sousa Andrade (1890-1954) configurou-se como um literato
cosmopolita, “daquele homo ludens que se diverte com a íntima
contradição ética alienado-revoltado diante de uma sociedade em
mudança” (BOSI, 2006, p. 257). Escreveu poesia futurista-cubis-
ta, depois, teatro e romance social, ou seja, sua obra é um variado
leque de anseios e promessas. O jornalista paulista partiu muito
jovem para a Europa (em 1912), onde mergulhou na boêmia es-
tudantil de Paris e conheceu uma das vanguardas – o futurismo
ítalo-francês. Ao retornar de lá, aproximou-se de Mário de An-

37
Literatura Brasileira

drade, Di Cavalcanti, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida,


E sugerimos a sua lei- Brecheret e passou a ser, como afirma Bosi (p. 355), “o grande
tura na íntegra, dispo-
nível no seguinte link:
animador do grupo modernista”, articulando com os demais a Se-
http://antropofagia. mana. Seu destaque é prioritariamente alimentado pela divulga-
uol.com.br/manifestos/
antropofagico/. Acesso
ção de programas estéticos nos Manifestos Pau-Brasil, de 1924, e
em 07 ago. 2012. Antropófago, de 1928.

Se, para Wilson Martins (1967), como apresentamos em tópico an-


terior, Mário de Andrade distinguia-se pela fragmentação, Oswald de
Andrade, em contrapartida, seria o literato da dispersão, vivendo o es-
cândalo pelo prazer de escandalizar.
Em linhas adiante,
Martins (1967, p. 242), O verso livre proporcionou-lhe a superação, o enfrentamento
admitiu que esses dois
escritores “encarnam, da dificuldade de metrificar, conforme revela em suas memórias
sòzinhos, as duas faces (apud MARTINS, 1967). Em seu Primeiro caderno do aluno de poe-
do Modernismo […].”.
sia Oswald de Andrade (1927), esse Andrade praticaria uma natureza
de poema que viria a se tornar modelo de uma primeira fase moder-
nista. Escolhemos, para ilustrar essa afirmação, o poema “As quatro
gares”, que você pode ler a seguir:

Poema As quatro gares, de Oswald de Andrade.

38
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
As quatro gares, título que relembra as quatro estações, e que
pressupõe ritual de passagem (não podemos desconsiderar o sig-
nificado da palavra “gare” [do francês, gare = estação, ancoradou-
ro], “embarcadouro ou desembarcadouro das estações de estrada de
ferro”), sinaliza, em poucos versos – eis, então, uma possibilidade Uma remissão que
de “simultaneidade” – as quatro fases da vida, podendo estendê-las poderia ser feita ao
poema de Mário
para uma análise do percurso pessoal do poeta: “infância”, o poeta Quintana, “Poeminho
sob as ordens da ‘mãe’ – parnasianismo; uma ideia de passado, de do Contra” (In: Prosa e
verso, 1978).
passagem, passarinho. Ainda, o jarro poderia, possivelmente, ilus-
trar a “boemia”, e o oceano, a liberdade, o desprendimento, a ida à
Europa. A “adolescência”, o sentimento vanguardista. A “maturida-
de”, o instinto revolucionário instaurado pelo “feliz nascimento” da
filha (o avesso do costume – “a Gilberta” – pelo prazer de assombrar,
escandalizar), afiliação, “posse”, o “seu” que é “nosso”. E a “velhice”,
simbolizada na experiência dos óculos dispensados pelo netinho (o
porvir), o qual se recusa aos anos vistos, vividos, experimentados
por aqueles que o precederam. A utopia do futuro que se vê melhor
rejeitando um presente-passado.

Do mesmo livro, trazemos mais um poema de Oswald de Andrade


para que você faça a sua leitura:

Brasil

O Zé Pereira chegou de caravela


E preguntou pro guarani da mata virgem
– Sois cristão?
– Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Tererê Tetê Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
– Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval

39
Literatura Brasileira

Pelos bons lampejos que ousadamente lançava, arriscava, empu-


nhava, este Andrade escreveu também para o teatro, dentre as quais ci-
tamos duas produções: O rei da vela (1937) e, na parceria de Guilherme
de Almeida, Théâtre Brésilien — Mon coeur balance e Leur Âme (1916).

Oswald de Andrade foi, também, romancista, literatura esta que,


segundo Martins (1967), pode ser considerada, em sua plenitude, auto-
biográfica. Citamos a trilogia do exílio que é constituída pelos roman-
ces: Os condenados, A estrela de absinto, A escada vermelha (1922-1934),
e Memórias sentimentais de João Miramar (1924), Serafim Ponte Grande
(1933), Memórias: Um homem sem profissão (1954), entre outros.

Sobre sua obra narrativa, Bosi, diferentemente de Martins, afir-


ma-a como “espantosamente desigual [e] já se carreava o melhor e
o pior do Modernismo” e acrescenta dizendo que seus melhores
críticos, distinguiram três níveis de expressão e de valor. Então, no
“Ambas as obras correm
paralelas às poéticas do limite inferior de sua produção, a trilogia do exílio (mencionada
“Pau-Brasil” e da “An- acima), por se ressentir de uma atitude antiquada por meio de no-
tropofagia” no sentido
de satirizar o Brasil da velas mundanas, meio psicológicas, em que há sempre um artista
“aristocracria” cafeeira atribulado pelas exigências da sua personalidade libidinosa e ge-
aburguesada nas gran-
des capitais […]”. (BOSI, nial. Seu ponto alto estaria na experiência do romance informal das
2006, p. 358). Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande.
Em um possível terceiro nível de expressão estaria a abertura para
a arte social e o romance mural, como Marco Zero (cf. BOSI, 2006).

Disperso, conforme Martins, contraditório, segundo Bosi (2006,


p. 360), um homem de “fragmentos de atitudes datadas e muito mais
dependentes de certos padrões irracionalistas do que a sua aparência
faria pensar”. Como você deve ter percebido, há muito para se ler sobre
Oswald de Andrade, esperamos que este tópico tenha servido como um
guia, um Virgílio, para outras descobertas. Como diz o próprio poeta,
pela “descoberta das coisas que nunca vi[mos]” (cf. ANDRADE).

Após ter conhecido um pouco mais sobre este Andrade, no pró-


ximo tópico você entrará em contato com o terceiro Andrade, pri-
mordialmente conhecido pelo epíteto-sobrenome de “Drummond”.
Vamos, então, à Carlos Drummond de Andrade.
40
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
2.3 Carlos Drummond de Andrade

Mineiro de Itabira, nascido em 1902, carioca por opção, Car-


los Drummond de Andrade não foi apenas o poeta da pedra no ca-
minho, do anjo torto, das sete faces, de Teodora, das coisas findas,
muito mais que lindas, foi, também, estudante de Farmácia e pro-
fessor de Geografia. Entre as tantas linhas divisórias cartográficas
do Brasil, escolheu o Rio, em 1934, para ser sua última morada,
ocupando, até 1945, a chefia do gabinete de Gustavo Capanema
junto ao Ministério da Educação e Saúde, aventurando-se no jor-
nalismo na condição de colaborador no Correio da Manhã. Em 17
de agosto de 1987, despediu-se o poeta do mundo, vasto mundo,
deixando uma vasta obra, que inclui poesia e prosa – destacando-
-se, efetivamente, na primeira.

Por que o incluímos neste tópico, tendo em vista sua veemen-


te contemporaneidade? Porque Drummond foi o “primeiro grande Influenciou o Modernismo
poeta que se firmou depois das estréias modernistas […]” (BOSI, no seu Estado ao fundar,
com Emílio Moura, João Al-
2006, p. 440). Além disso, nasceu para a literatura longe das eufo- phonsus e outros escritores
rias “encandalizantes” de 22, mas, em 1925, “era o poeta modernista mineiros, A Revista, em 1925,
embora de curta duração.
da “Revista”, de Belo Horizonte” (MARTINS, 1967, p. 270). Com a
publicação de Alguma poesia, em 1930, inauguraria uma possível se-
gunda fase da poesia modernista.

Drummond é um pouco poema de si mesmo, poeta de sete faces,


por lançar mão de perspectivas distintas; a cada obra, uma fase que se
encerra, e outra que se abre. Publicou mais de 30 livros, desconsideran-
do-se antologias, edições de poesias reunidas, coleções especiais, come-
morativas, livros infantis. Neste mesmo Andrade, lirismo, sentimento
de mundo, desprezo, aridez, acídia, tédio, existência, política convivem.

Transformou-se no “poeta público” (cf. BOSI) com a publicação


de A Rosa do Povo, em 1945, fase intensa, reflexo eufórico da resis-
tência mundial frente ao nazi-fascismo; horrores da Segunda Guerra
Mundial. Nesse livro em questão, que encerra(ria) o percurso/carrei-
ra modernista do poeta, há uma literatura comprometida política e

41
Literatura Brasileira

socialmente, que você poderá verificar ao ler dois poemas de A Rosa


do Povo, que escolhemos, “Procura da poesia” e “Morte do leiteiro”:

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças versos com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro


são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isto ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à
linha de espuma.

O canto não é a natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,


não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

42
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

43
Literatura Brasileira

Disponível em:< http://drummond.memoriaviva.com.br/alguma-poe-


sia/procura-da-poesia/>. Acesso em 7 ago. 2012. Neste link, também,
você pode ouvir Drummond declamando este e/ou outros poemas.
Drummond por ele mesmo.

E a “Morte do leiteiro”:

Morte do leiteiro
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca


não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso

44
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos


também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil


de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico


(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,

45
Literatura Brasileira

não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono


de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Disponível em:http://drummond.memoriaviva.com.br/alguma-poesia/
Falaremos no último morte-do-leiteiro/. Acesso em: 7 ago. 2012.
tópico sobre a litera-
tura brasileira contem-
porânea, contempora- Drummond comporia até o final da vida, vindo a se destacar, prin-
neidade.
cipalmente, como um poeta contemporâneo. Nossa incursão breve em

46
Onde quer que Andrades, encontras três: Mário, Oswald e Carlos Capítulo 02
Drummond, o último dos três Andrades, termina neste momento, mas
não se encerra completamente. Não falaremos de Drummond como poe-
ta moderno que foi, e de tantos outros aspectos concernentes à sua produ-
ção mais recente, porque consideramos imprescindível que você percorra,
antes, outros autores e obras da literatura brasileira. Por isso, no nosso
próximo capítulo, continuaremos nossa trajetória pela marca da autoria.
E, se neste capítulo você pôde conhecer três Andrades – Mário de Andra-
de, Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade –, no capítulo
a seguir você conhecerá a marca da “repetição” por dois “Joões” da nossa
literatura: João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa. Se neste ca-
pítulo a diferença se instaurou pelos nomes próprios, no capítulo a seguir
será o contrário: a diferença é demarcada pelos sobrenomes. Em comum,
além dos nomes e dos sobrenomes, uma das mais produções mais impor-
tantes da literatura brasileira tanto na poesia quanto na ficção.

Na Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP, realizada em julho


de 2012, Drummond foi o escritor homenageado. Vamos ler o tex-
to-justificativa para homenagem do itabirano, na página da FLIP, de
Miguel Conde, intitulado, “Moderno e Eterno”?

Moderno e eterno

Miguel Conde

O escritor homenageado da décima Flip, Carlos Drummond de An-


drade, começa um de seus poemas de um jeito que pode parecer
pretensioso: “E como ficou chato ser moderno. / Agora serei eterno”.
Os versos, que de início soam como uma bravata, assumem outro
sentido quando pensamos no contexto em que Drummond desen-
volveu sua obra literária. Embora hoje seja considerado um clássico,
por muito tempo Drummond recebeu críticas duras de pessoas para
as quais o que ele escrevia não merecia nem mesmo ser chamado
de poesia. “Ser moderno”, na época, significava explorar novas for-
mas de criação artística, que para esses críticos seriam esquecidas
com o tempo, pois não tinham o valor das obras antigas.

47
Literatura Brasileira

Nos versos acima, publicados quando ele já se tornara um autor con-


sagrado (para muitos, o maior poeta brasileiro de todos os tempos),
Drummond faz uma referência bem-humorada a essas discussões,
que marcaram o rumo da literatura brasileira no século XX.

Se hoje tendemos a pensar em Drummond como um artista “eter-


no”, ou pelo menos como um escritor que merece continuar sendo
lido e relido, isso significa que de alguma forma ele se tornou menos
“moderno”? As experiências que pareciam tão novas décadas atrás
(e até escandalosas para os críticos mais conservadores) perderam
sua capacidade de nos surpreender? Um dos traços marcantes da
obra de Drummond é que ela desde cedo soube combinar as in-
venções modernistas com um grande domínio da forma poética e
uma visão aguda dos dilemas humanos. Ou seja, desde seu primeiro
livro, Alguma poesia, Drummond demonstrou que a escolha entre
ser moderno e ser eterno era um falso dilema. E hoje, quando o cha-
mamos de “clássico”, isso não quer dizer que ele tenha deixado de
ser um autor desafiador. Muitos dos poemas de Drummond botam
em questão as características que ainda hoje diversas pessoas con-
sideram definidoras do que é uma boa poesia.

Disponível em: http://www.flip.org.br/homenagem2012.php. Aces-


so em 7 ago. 2012.

Leia mais!
ÁVILA, Affonso (org.). O Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.

BOAVENTURA, Maria Eugênia (org.). 22 por 22 – A Semana de Arte


Moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: EDUSP, 2000.

BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro. 6.ed.. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

48
Unidade B
Dois Joões: um prosador e um poeta
Introdução
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
Caetano Veloso, A terceira margem do rio

Nesta segunda Unidade, iremos nos deter em dois escritores em-


blemáticos da Literatura Brasileira, João Guimarães Rosa e João Cabral
de Melo Neto. Os dois Joões, de acordo com a historiografia literária,
estão inseridos na contemporaneidade. Você poderá perguntar: quais
foram os critérios utilizados para esta classificação? A resposta para este
questionamento está centrada no processo de canonização, pois estes
autores já fazem parte do cânone literário brasileiro.

A fim de buscar uma possível resposta para o questionamento inicial


– O que levou a crítica literária a classificar esses autores como contem-
porâneos? – observaremos de que modo a linguagem é utilizada em seus
textos e quais são as temáticas, geralmente, abordadas por esses autores.

O nosso percurso analítico terá início com a obra de João Guima-


rães Rosa. Aproveite, agora, para mergulhar no universo sertanejo e nas
grandes veredas dos textos deste autor.

51
Guimarãoes Rosa: o primeiro João Capítulo 03
03 Guimarães Rosa: o primeiro
João

A apresentação do escritor João Guimarães Rosa, nesta Disciplina,


será realizada por ele mesmo, a partir do que ele falou em uma entrevis-
ta concedida a Günter Lorenz em 1965. Nessa ocasião, o autor se auto-
caracterizou da seguinte maneira: Entrevista citada por
Beth Brait em: BRAIT,
Beth. Guimarães
Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir Rosa: seleção de
mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biogra- textos, notas, estudos
biográfico, histórico e
fia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não crítico e exercícios. São
têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aven- Paulo: Abril Educação,
1982. p. 03 (Literatura
turas; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro Comentada).
sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento
não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez.
Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães
Rosa. Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas
vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria
de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem
ao mundo como um ‘magister’ da metafísica, pois para ele cada
rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter
cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os
grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na
superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tran-
qüilos e escuros como o sofrimento dos homens. Amo ainda uma
coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma pala-
vra mágica para conjugar eternidade. A estas alturas, você já deve
Capa da primeira edição, 1946
estar me considerando um louco ou um charlatão.

Depois de ter conhecido um pouco mais de Guimarães por ele mes-


mo, vamos, agora, passear pelas veredas de sua extensa e fascinante obra
literária em prosa. A obra de estréia deste autor foi Sagarana , um livro de
contos, publicado em 1946. Além de Sagarana, ele escreveu outros livros
de contos, que foram: Primeiras Estórias, de 1962; Tutaméia (Terceiras Es-
tórias), de 1967; Estas Estórias, de 1969. É interessante ressaltar que o con-

53
Literatura Brasileira III

to foi o tipo de narrativa mais utilizada por Guimarães Rosa. Entretanto,


seu único romance, Grande sertão: veredas (publicado em 1956), é uma
das obras mais importantes das literaturas em Língua Portuguesa.

Agora iremos verificar a proeza deste autor em trabalhar, dominar,


expandir e reinventar a nossa Língua Portuguesa. Iniciaremos com a
leitura do prefácio de Tutaméia, que se encontra no livro Terceiras Estó-
rias, intitulado Nós, os temulentos.

Agora é o momento de ler Nós, os temulentos. Prefácio de Tutaméia!

Após ter lido, o que você achou do texto? Sentiu dificuldades em relação
à sintaxe e ao vocabulário? Como você interpretaria este trecho do prefácio?
ROSA, João Guimarães.
Tutaméia. In: Terceiras E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir
Estórias. Rio de Janei-
ro: José Olympio, 1976. pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste. Pediu-lhe: —
p. 103. Pode largar meu braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho... Com susto,
recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e ibibidem.
Foi às lágrimas: — Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!

Veja o que diz o colunista Daniel Piza do jornal Estado de São Paulo:

PIZA, Daniel. Rosa


Viva. In: Estado de Quem abandona sua leitura pela falta de hábito com seu vocabulário e sua
São Paulo, São Paulo, sintaxe falha em perceber como é direto e sincero o universo de Rosa, por
16 set. 2008, Seção
Livros. Disponível baixo de todas as suas sofisticações. O que faz que Rosa viva, que sua obra
em: < http://tinyurl. não pare de rodar na nossa sensibilidade, é exatamente esse poder que tem
com/9vk3qza> Acesso
em: 17 set. 2008. de nos deixar mais próximos das coisas, dos animais e das pessoas.

Releia o texto Nós, os temulentos, e assinale algumas palavras que você


não conseguiu compreender e que não havia no dicionário. Essas palavras
são denominadas neologismos, que, de acordo com o Dicionário Houaiss,
HOUAISS, Antônio.
Dicionário eletrônico podem ter duas acepções: “1. o emprego de palavras novas, derivadas ou
Houaiss da língua formadas de outras já existentes, na mesma língua ou não; 2. atribuição de
portuguesa. versão
1.0. Rio de Janeiro: novos sentidos a palavras já existentes na língua”. Guimarães Rosa, devido
Objetiva, 2001. ao seu vasto conhecimento lingüístico, tanto recriou palavras, a partir da

54
Guimarãoes Rosa: o primeiro João Capítulo 03
derivação ou formação, com base no português arcaico ou popular, quanto
adicionou um novo sentido a palavras já existentes. Veja alguns exemplos
da criatividade desse autor:

Taurophtongo.
Neologismo dos mais eruditos concebidos por Guimarães
Rosa. Quer dizer mugido, voz de touro. O escritor recorreu aos
termos gregos “táuros” (touro) e “phtoggos” (som da fala).

Enxadachim.
Rosa empregou o termo para designar um trabalhador do campo,
que luta para sobreviver. A palavra é formada por enxada e espada-
chim.

Mimbauamanhanaçara.
Esse é dos mais complexos. Quer dizer vaqueiro ou “o que vigia o
gado”. Para criar a palavra, o autor fundiu os termos tupi “mimbaua”
(criação, animal doméstico) e “manhana” (vigia) e adicionou o sufixo
“çara” (que faz).

Imitaricar.
Significa arremedar, fazer trejeitos imitativos. Pro-
vém da junção do verbo imitar com o sufixo diminuti-
vo “icar”, que indica a repetição de pequenos atos.

Ensimesmudo.
Trata-se de um amálgama entre as palavras ensimesmado e mudo. Gui-
marães Rosa utilizou-o para designar um sujeito fechado e taciturno.

Embriagatinhar.
Neologismo de conotação humorística. Serve para indicar qualquer
um que esteja engatinhando de tão bêbado. Origina-se da fusão de
embriagado e gatinhar.

55
Literatura Brasileira III

Fluifim.
Significa pequenino, gracioso, e se compõe da junção de fluir e fino.
O termo é exemplo da preocupação do escritor em fazer a sonorida-
de acompanhar o significado da palavra.

Velvo.
Uma das várias palavras que Rosa criou com base em outros idiomas.
É uma adaptação do inglês velvet, que quer dizer veludo. No contexto
empregado pelo autor, corresponde a “planta de folhas aveludadas”.

MARTINS, Nilce
Sant’Anna. O léxico de Esta lista de neologismos faz parte de uma pesquisa desenvolvida pela
Guimarães Rosa. São professora de estilística da USP, Nilce Sant’Anna Martins, durante um perí-
Paulo: Edusp, 2008.
odo de mais de dez anos, que resultou no livro O léxico de Guimarães Rosa.
Você pode verificar como ocorreu o processo de reinvenção da língua por-
tuguesa por este autor. Ele não só usa o nosso idioma, como também faz um
empréstimo de vocábulos de outras línguas, como pode ser observado no
neologismo velvo.

Mas qual foi o percurso trilhado por Guimarães Rosa para inventar
uma língua própria? A este respeito o crítico Flávio Moura afirma que:
MOURA, Flávio. Nonada
e outras invenções: Para criar sua própria língua, o autor recorreu a vários métodos. Foi, por
um dicionário mostra
como Guimarães Rosa exemplo, um pesquisador incansável dos hábitos e da fala dos sertane-
criava as palavras que jos de Minas Gerais, assim como do português antigo e de várias outras
compõem seu universo.
In: Veja on-line, 06 jun. línguas. Segundo o crítico alemão Günter Lorenz, Rosa era capaz de ler
2001. Disponível em: em vinte idiomas. Nas diversas incursões que fez pelo sertão mineiro, ele
<http://veja.abril.com.
br/060601/p_162.html>. anotou de tudo em suas cadernetas: de expressões utilizadas pelos jagun-
Acesso em: 17 set. 2008. ços a frases de pára-choque de caminhão. Não deixava escapar nenhum
detalhe. Grande parte dos termos que causam estranhamento em seus
livros, assim, não foi tirada do vácuo. Palavras como “alimpar” ou “percurar”,
por exemplo, são utilizadas pela população das regiões pesquisadas pelo
autor. Do mesmo modo, “convinhável” e “humildoso” são na realidade ar-
caísmos que constam de dicionários e da obra de autores mais antigos e
pouco lidos, entre eles Alexandre Herculano e Fernão Lopes.

56
Guimarãoes Rosa: o primeiro João Capítulo 03
Depois de desfrutarmos da criatividade, demonstrada através da lin-
guagem, e de mergulharmos no envolvente universo sertanejo da obra de
Guimarães Rosa, chegou o momento de transitarmos na aridez da poesia
de João Cabral de Melo Neto, sem nos despedirmos da temática do sertão.

57
Cabral de Melo Neto: o segundo João Capítulo 04
04 Cabral de Melo Neto: o
segundo João
Agora, deixemos de lado, por algum tempo, a prosa e vamos co-
nhecer a poesia desta época, conduzidos pelos versos de João Cabral
de Melo Neto, o poeta pernambucano. Mas, quem foi este poeta?

Alfredo Bosi, em História concisa da Literatura Brasileira, apre-


senta João Cabral como “o poeta recifense que estreou com a preo- BOSI, Alfredo. História
cupação de desbastar suas imagens de toda gama de resíduos senti- concisa da Literatura
Brasileira. São Paulo:
mentais ou pitorescos, ficando-lhe nas mãos apenas a intuição das Cultrix, 1994. p. 469.
formas e a sensação aguda dos objetos que delimitam o espaço do
homem moderno”.

Diante da vasta obra poética João Cabral, escolhemos Morte e


vida severina (1954-55) para ingressar no universo da sua poesia. Este
poema foi denominado pelo autor como “um auto de Natal pernam-
bucano”, é um poema sócio-dramático, considerado um dos textos
mais populares de sua obra.

Morte e vida severina foi censurado durante o período da di-


tadura militar, depois foi liberado para publicação. Ele também foi GOLDSTEIN, Norma.
musicado por Chico Buarque, dramatizado e televisionado em uma Versos, sons e rit-
mos. São Paulo: Ática,
minissérie. Um clássico da obra de João Cabral, este poema possui 1991. p. 270.
características da literatura popular, por ser escrito em versos de sete
sílabas denominados heptassílabos ou redondilhas maiores, consi-
derados os mais simples, do ponto de vista da métrica, e os mais
utilizados em quadrinhas e canções populares e folclóricas, além de
ser dividido em episódios - que recordam os folhetos ou a literatu-
ra de cordel - correspondentes a estágios da viagem trilhada pelo
eu poético, Severino, que vai contando e (en)cantando sua dor, seu
medo, sua desilusão, sua (des)esperança, através de uma linguagem
simples, às vezes coloquial, e melódica.

59
Literatura Brasileira

A literatura de cordel é uma das principais formas de expressão


da cultura popular do Nordeste. Conforme Manuel Diegues, “as
DIEGUES, Manuel. condições sociais de formação do Nordeste como que predispu-
Ciclos temáticos da seram para que pudesse surgir, desenvolver-se e tomar próprias
Literatura de Cordel. In:
Literatura popular em este tipo de manifestação cultural [...] A organização da socie-
versos. Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa/ dade patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o
MEC, 1973, p. 14, apud aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas
MEYER, Marlyse. Au-
tores de cordel. São periódicas provocando desequilíbrio econômico e social, as lu-
Paulo: Abril Educação, tas de família [...] deram oportunidade para que se verificasse o
1980. p. 07.
surgimento de grupos cantadores como instrumentos do pensa-
mento coletivo, das manifestações da memória popular.”

Severino de Maria sai do agreste de Pernambuco em direção à capi-


tal Recife, atravessando desde a caatinga, passando pela zona da mata, até
chegar ao litoral, a fim de fugir de uma vida e de uma morte severina. Este
No que tange à vida poema, embora narre a história de Severino, trata do homem do sertão nor-
severina é “(aquela destino, o subalterno que sobrevive da agricultura de subsistência, como
vida que é menos/
vivida que defendida,/ pode ser visto neste trecho:
e é ainda mais seve-
rina/ para o homem
que retira)”; enquanto Somos muitos Severinos
a morte severina “é a iguais em tudo na vida:
morte de que se mor-
re/ de velhice antes na mesma cabeça grande
dos trinta,/ de embos- que a custo é que se equilibra,
cada antes dos vinte/
de fome um pouco por no mesmo ventre crescido
dia/ (de fraqueza e de sobre as mesmas pernas finas
doença/ é que a morte
severina/ ataca em e iguais também porque o sangue,
qualquer idade,/ e até que usamos tem pouca tinta [...]
gente não nascida).”
Cf. MELO NETO, João
Cabral de. Morte e vida MELO NETO, ibidem, p. 46
severida, apud MEYER,
Marlyse. Autores de
cordel. São Paulo: Abril Na primeira parte do poema, “o retirante explica ao leitor quem é e
Educação, 1980. p. 53 e
46, respectivamente. a que vai”, ou seja, de que está fugindo, ou de quem, e o que busca nesta
viagem para a cidade grande.

60
Cabral de Melo Neto: o segundo João Capítulo 04
Depois que Severino se apresenta ao(à) leitor(a), convidando-o(a)
a escutar a sua história, depara-se pela primeira vez com a morte – sua
fiel companheira durante esta viagem – a qual pode ser considerada,
neste caso, como os nãos impostos pela vida à sua condição de margem,
de oprimido pelo sistema. O encontro primeiro é com o sepultamento “– Dize que levas
de um lavrador da região da caatinga, Severino Lavrador – proprietário somente/ coisas de
não:/ fome, sede,
de um pequeno roçado – que foi assassinado numa emboscada. Interes- privação./ [...] – Dize
sado em saber os detalhes deste homicídio o Severino de Maria começa que coisas de não,/
ocas, leves:/ como
a perguntar sobre o acontecido aos irmãos das almas que conduziam o o caixão, que ainda
defunto: deves.” (Ibidem, p. 52).
A condição de misé-
ria vivida por estes
– E quem foi que o emboscou, – Tinha somente dez quadras Severinos, habitantes
da região da caatinga
irmãos das almas, irmão das almas, do Nordeste, remete a
que contra ele soltou todas nos ombros da serra, uma vida de negação,
a qual é perceptível,
essa ave-bala? nenhuma várzea. inclusive, na forma de
– Ali é difícil dizer, – Mas então por que o mataram, falar em algumas des-
sas regiões, em que
irmão das almas, irmãos das almas, a partícula negativa
sempre há uma bala voando mas então por que o mataram é empregada nume-
rosas vezes numa mes-
desocupada. com espingarda? ma sentença, a fim de
– E o que havia ele feito – Queria mais espalhar-se, concretizar a idéia de
negação. Ex.: Não, eu
irmãos das almas, irmão das almas, não quero não.
e o que havia ele feito queria voar mais livre
contra a tal pássara? essa ave-bala.
– Ter um hectare de terra, – E agora o que passará,
irmão das almas, irmãos das almas,
de pedra e areia lavada o que é que acontecerá
que cultivava. contra a espingarda?
[...] – Mais campo tem para soltar,
– E era grande sua lavoura, irmão das almas,
irmãos das almas, tem mais onde fazer voar
lavoura de muitas covas, as filhas-bala
tão cobiçada?

Ibidem, p. 48-49

61
Literatura Brasileira

Nesta passagem, desnuda-se uma das características marcantes na luta


pela terra, o crime encomendado que silencia quem costuma atrapalhar as leis
do latifundiário, do coronel, os quais desejam, cada vez mais, avançar os limites
de suas glebas. Em oposição ao pequeno agricultor que tenta permanecer cul-
tivando a própria roça para a subsistência familiar, lutando contra a aridez do
solo e a falta de incentivo do Governo, além da exploração por parte dos gran-
des fazendeiros, como pode ser percebido nesta passagem do poema:
(Ibidem, p. 46)
[...]
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

Ao sair da região castigada pela seca, Severino de Maria chega à


zona da mata e logo percebe a fartura de água daquelas terras:
(Ibidem, p. 58)
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.

Admira-se ao observar a imensa plantação de cana-de-açúcar


apontando para o surgimento dos latifundiários, que substituem os
pequenos engenhos por grandes usinas, alimentando um sistema de
acumulação de riquezas através da concentração de terras, provocando,
(Ibidem, p. 58-59)
assim, o desemprego e a desigualdade social:

[...]
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distânci
aquele bueiro de usina;

62
Cabral de Melo Neto: o segundo João Capítulo 04
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?

No entanto, depara-se mais uma vez com a morte, e ao escutar a la-


dainha entoada pelos companheiros do defunto conclui que ali também há
miséria, desta vez não é a natureza uma das causas, mas a centralização de
poder, proveniente da posse da terra. No trecho a seguir fica evidente um
dos principais problemas que, ainda, impedem o andamento da reforma (Ibidem, p. 59-60). Este
agrária no Brasil: é um dos trechos do
poema que foi mu-
sicado, intitulado O
– Essa cova em que estás, funeral de um lavrador,
esta canção foi inter-
com palmos medida, pretada por Chico
é a cota menor Buarque de Holanda,
em 1965, para a peça
que tiraste em vida. Morte e vida Severina.
– É de bom tamanho, A música encontra-se
disponível no seguin-
nem largo nem fundo, te endereço eletrô-
é a parte que te cabe nico: http://www.
chicobuarque.com.
neste latifúndio. br/construcao/index.
– Não é cova grande, html. Acesso em: 22
set 2008.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
– É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
– É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
– É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

63
Literatura Brasileira

As mortes que permeiam as trilhas de Severino remetem aos inú-


meros homicídios ocorridos no meio rural na luta pela terra. Esta te-
mática abordada por João Cabral é, atualmente, muito estudada por
profissionais da área das Ciências Humanas, antropólogos, sociólo-
gos, historiadores, cientistas políticos etc., que buscam compreender
os Movimentos Sociais em luta pela terra, como no caso do MST.

Depois desta leitura do poema Morte e vida severina, seguem tre-


chos de mais dois textos deste autor, Tecendo a Manhã e Catar feijão, a
MELO NETO, João
partir dos quais você poderá observar outras particularidades da poesia
Cabral de. A educação de João Cabral.
pela pedra (1962-
1965). In:_____. Obra
completa. Rio de Tecendo a Manhã
Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1999.
1
(Ibidem, p. 345) e
Um galo sozinho não tece uma manhã:
(Ibidem, p. 346)
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre outros,
se erguendo tenda, onde entrem outros,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Observe que o poeta usa praticamente as mesmas palavras para


compor seus versos; há, aqui, uma economia lingüística, o poema é la-

64
Cabral de Melo Neto: o segundo João Capítulo 04
pidado, a ponto de se “despir de traços supérfluos e cadências sentimen-
tais”, como afirma Bosi. (BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura
Brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 471.)

Catar feijão evidencia uma temática muito explorada na poesia


deste autor: a metalinguagem. Aqui ele compara o ato de escrever po-
esia com a atividade de catar o feijão e depois colocá-lo para cozinhar.
Aproveite para explorar a forma e o conteúdo deste poema, exercite a
sua leitura de poesia brincando com as imagens que vão surgindo a cada
verso.

Catar feijão

1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

Finalizamos esta Unidade com estes instigantes poemas de João


Cabral. Agora chegou o momento de você exercitar o que foi lido e dis-
cutido durante este momento do Curso.

65
Literatura Brasileira

Leia mais!
Caso você esteja esquecido(a) do conceito cânone para a Literatura, o qual
já foi evidenciado na disciplina Teoria da Literatura I, releia alguns textos
que abordam esta temática. Sugiro:

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, J. Luís (Org.). Palavras da crítica:


tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago,
1992.

FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São


Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

66
Unidade C
Literatura de autoria feminina
Introdução

É o único poder que tenho, eu não tenho poder político,


não tenho poder econômico. Meu único poder é o da palavra.
Lygia Fagundes Telles

Nesta Unidade você entrará em contato com a produção literária


de autoria feminina produzida a partir da segunda metade do século
XX através da escrita de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida
Piñon e Lya Luft.

69
Clarice Lispector Capítulo 05
05 Clarice Lispector
Iniciaremos este percurso lançando um olhar mais atento à tra-
jetória literária de Clarice Lispector, que é constituída por uma pro-
dução complexa, rica e densa, tornando-se, assim, fonte inesgotável
de leituras críticas. A escritora, embora tenha falecido no auge de sua
criatividade, deixou uma vasta produção literária: Perto do coração sel-
vagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); Alguns Contos
(1952); Laços de Família (1960); A Maçã no Escuro (1961); A Legião
Estrangeira (1964); A Paixão Segundo G. H. (1964); Uma Aprendiza-
gem ou O Livro dos Prazeres (1969); Felicidade Clandestina (1971); A
Imitação da Rosa (1973); Água Viva (1973); Onde Estiveste de Noite?
(1974); A Hora da Estrela (1977); Para Não Esquecer (1978); Um Sopro MORICONI, Ítalo. A
Hora da Estrela ou
de Vida (1978); e A Bela e a Fera (1979). A Hora do Lixo de
Clarice Lispector. In:
ROCHA, João Cezar de
Clarice Lispector é apontada por muitos críticos, entre eles os pró- Castro (Org.). Nenhum
prios Antonio Candido e Alfredo Bosi, como dona de uma escrita real- Brasil existe: peque-
na enciclopédia. Rio
mente nova, surpreendente. Ela surge na cena literária brasileira com o de Janeiro: Opbook ;
livro Perto do coração selvagem¸ escrito aos dezessete anos. Ítalo Moriconi UERJ, 2003. p. 720.

tece os seguintes comentários sobre esta narrativa:

Clarice Lispector apareceu no cenário em 1944 com uma ficção subje-


tivista e uma retórica não mimética, cheia de metaforizações insólitas,
violentos desvios metonímicos, estranhamentos produzidos por um
narrar que se deixava conduzir por um descrever alusivo, fundado em
intensa atenção ao sensível e ao detalhe.
FISCHER, Luis Augus-
Ainda sobre a estréia triunfal desta jovem escritora no universo li- to. Revista Bravo!, vol.
116, abr. 2007.
terário brasileiro, Luís Augusto Fischer afirma que:

os melhores críticos perceberam que ali estava uma novidade relevante:


mais do que a vida psicológica, colocada na berlinda com certa volúpia,
ali se via uma tentativa de fazer a linguagem ser ela mesma um elemen-
to de interesse para o leitor, que era convocado a aderir à ficção num
patamar inédito no Brasil.

71
Literatura Brasileira III

Você pode observar que a escrita de Clarice surpreendeu os leito-


res, por demonstrar um processo de desconstrução da narrativa tradi-
Você pode acessar o cional. De acordo com Bella Jozef, além desta desconstrução, Clarice
E-Dicionário de Ter- redimensionou o espaço da ficção, através de textos que dinamizaram o
mos Literários e ler o
verbete ‘desconstrução’ seu universo interior, explorando suas obsessões numa linguagem bela
disponível em: <http:// e persuasiva, rica em imagens, visionária, com um imenso potencial
www2.fcsh.unl.pt/edtl/
verbetes/D/descons- simbólico. Esse potencial simbólico é construído em torno de situações
trucao.htm>. Acesso extraídas do cotidiano, como você poderá perceber a partir da leitura da
em 6 nov. 2008.
crônica Medo da eternidade:

Medo da Eternidade
JOZEF, Bella. Clarice Lis-
pector e o ato de narrar. In:
RAMALHO, Cristina (Org.).
Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Literatura e feminismo:
propostas teóricas e refle-
xões críticas. Rio de Janeiro:
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mes-
Editora Elo, 1999. p. 173-182.
mo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie
de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não
dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas
LISPECTOR, Clarice. Medo da
eternidade. In: A descober- balas.
ta do mundo. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, 1984. p.
446-448. Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para
a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de his-


tórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que
representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acre-
ditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca
uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E
eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornan-
do possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

72
Clarice Lispector Capítulo 05
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que
certamente deveria haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois


que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A
menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E,
ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve


tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha
gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na ver-
dade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna
me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de
eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me


dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um


jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza.


- Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gen-
te às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para
não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um
dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

73
Literatura Brasileira III

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonha-


da da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

Perceba que no simples fato de mascar chicles pela primeira vez, a


protagonista evidencia uma questão metafísica: o medo da eternidade.
É assim que vai se moldando a escrita de Clarice, uma escrita metafóri-
ca, introspectiva e reveladora de uma complexa subjetividade. A refle-
xão sobre o processo desta escrita avassaladora foi um tema presente
na obra da autora. O ato de narrar é abordado em três de seus textos
ficcionais: Água Viva, A hora da estrela e Um sopro de vida.

Você já leu alguma destas narrativas? Este é um bom momento para


conhecer estas obras, ou saber mais sobre elas. Pesquise! Consulte a
biblioteca de sua cidade e desfrute da agradável leitura destes textos!

A hora da estrela foi a última obra que a autora publicou, ela o fez
poucos meses antes de morrer. O narrador do romance é Rodrigo S.
LISPECTOR, Clarice. A M., um escritor que ironiza, através de contínuas intrusões no texto,
hora da estrela. Rio
de Janeiro: Ed. José o estilo da narrativa que ele próprio utiliza. Escrever é para Rodrigo o
Olympio, 1977. significado da própria existência, ele adverte deste o início da narrativa:
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a es-
crever”. Ele ocupa, pela freqüência com que dialoga com o leitor sobre
a construção da narrativa, o lugar de uma das personagens centrais do
romance. A partir desta linguagem dialógica, Rodrigo compartilha com
o leitor a desestruturação do romance tradicional diante do absurdo e
da angústia existencial.

A personagem-protagonista desta narrativa é Macabea, uma imi-


grante nordestina, semi-analfabeta, que sai de Alagoas para ir morar no
Rio de Janeiro. Chegando ao Rio, vai viver em uma pensão miserável e
trabalhar como datilógrafa em uma pequena firma. Ela acumula em seu
Marcélia Cartaxo como corpo franzino, “herança do sertão”, todas as formas de repressão cultu-
Macabea no Filme A hora da estrela,
de Suzana Amaral, 1985. ral, o que a deixa alheada de si e da sociedade. Dessa maneira, conforme

74
Clarice Lispector Capítulo 05
o narrador, Macabea nunca se deu conta de que vivia em uma sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável.
CAMPEDELLI, Sa-
mira; ABDALA JR.;
Benjamim. Clarice
Estes breves comentários sobre A hora da estrela devem servir para que Lispector: seleção de
textos, notas, estudos
você busque ler e conhecer mais a respeito desta obra. Você sabia que biográfico, histórico e
há um filme baseado neste romance de Clarice? Então, não deixe de ver crítico. São Paulo: Abril
Educação, 1981.
A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral. Aproveite para observar dife-
renças e semelhanças presentes entre as duas obras: o filme e a novela.

Agora você irá desfrutar da leitura de outra narrativa de Clarice, o


miniconto Felicidade clandestina.
LISPECTOR, Clarice. In:
FELICIDADE CLANDESTINA Felicidade Clandes-
tina. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,
meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda
éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blu-
sa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de


pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-
-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo,
onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia
com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chu-
pando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos li-
vres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: con-
tinuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

75
Literatura Brasileira III

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma
tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reina-
ções de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus,
era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.
E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse
pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria:


eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e
me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não mora-
va num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar.
Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro
a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquia-
berta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda
e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho
de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa
do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha
vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas
como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono


da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta
de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta
calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do
“dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo in-
definido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivi-
nho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

76
Clarice Lispector Capítulo 05
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.
Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você
só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu,
que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus
olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando
a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu ex-
plicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de
palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o
fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-
-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca
saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. De-
via ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em
silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a me-
nina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então
que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai
emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por
quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo
tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena,
pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o


livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí
pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o
livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto
tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito
estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para de-
pois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilho-
sas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer
pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,

77
Literatura Brasileira III

abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela
coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandesti-
na para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...
Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no


colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.

Esta narrativa nos remete à ‘leitura’. Sabemos que o Curso de Letras tem,
a princípio, a finalidade de lecionar Língua ou Literatura. Assim, como
você poderia usar esta narrativa em sala de aula para motivar a leitura?
Os textos de Clarice são considerados herméticos pela maioria dos alu-
nos que freqüentam o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. O que
CASTANHEIRA, Cláu-
dia. Literatura, mu- fazer para mudar este conceito?
lher e subjetividade:
Clarice Lispector. In:
RAMALHO, Cristina
(Org.). Literatura e
feminismo: propostas Mais uma vez Clarice se apropria de uma situação aparentemente
teóricas e reflexões simples para expor uma questão mais complexa. No caso de Felicida-
críticas. Rio de Janeiro:
Editora Elo, 1999. p. de clandestina, a autora evidencia a perversidade, a crueldade humana
183-194. presente, inclusive, na infância. Cláudia Castanheira faz um apanhado
sobre a importância desta produção literária intimista, introspectiva, de
Clarice para a Literatura Brasileira e para a autoria feminina:

Com base no pensamento de Antonio Candido, Cristina Ferreira Pinto


reconhece em Clarice Lispector “o elemento que faltava”, para que a pro-
sa brasileira conseguisse alcançar níveis mais completos de excelência
e profundidade, num período em que a prosa regionalista já começava
a ceder espaço para a literatura intimista e introspectiva, da qual, se Cla-
rice não foi exatamente a precursora, inegavelmente foi a responsável
pela sua dinamização. Comprovam-no suas arrojadas técnicas de com-
posição textual e a as indagações de cunho metafísico, elevadas a pata-
mares singularíssimos. [...] Para Alfredo Bosi, a “exacerbação do momen-

78
Clarice Lispector Capítulo 05
to interior” e a “subjetivação em crise” são duas fortes marcas de Clarice,
cuja entrada no cenário das letras nacionais deu-se como um marco,
um divisor de águas, um evento; enfim, qualquer coisa que instalou dois
tempos na história da literatura brasileira, especialmente na produção
literária de autoria feminina, para qual a obra de Clarice Lispector fun-
dou uma linha de tradição. É imperioso registrar que, para além de um
julgamento urdido sob uma reduzida perspectiva nacionalista, a obra
da escritora foi colocada por alguns críticos – inicialmente por Álvaro
Lins – em contato com a de Virgínia Woolf e a de James Joyce, nomes
aos quais Alfredo Bosi acrescenta o de Faulkner, Cristina Ferreira Pinto
o de Mallarmé, e Lúcia Castello Branco o de Proust e o de Guimarães
Rosa, de modo que a narrativa clariceana surge compreendida sob uma
merecida universalidade.

Até aqui você pôde perceber o quanto a produção literária de Clari-


ce Lispector foi importante para uma reestruturação do romance tradi-
cional, além de apontar novas perspectivas para o texto de autoria femi-
nina. Agora iremos nos deter em outras três autoras significativas para a
produção literária brasileira.

Aproveite para ler outros contos e crônicas de Clarice Lispector:


O búfalo; Os obedientes; Amor; Ruídos de passos; Feliz Aniversário; O
ovo e a galinha; Conversa descontraída; Quase; O manifesto da cidade;
Mensagem de amor não é lugar-comum; Quanto duram as coisas?; O mi-
neirinho; e a novela A hora da Estrela.

79
Lygia Fagundes Telles Capítulo 06
6 Lygia Fagundes Telles
Lygia de Azevedo Fagundes Telles nasceu em São Paulo a 19 de
abril de 1923. Em 1938, ela publicou o seu primeiro livro de contos,
Porão e sobrado, numa edição financiada por seu pai e assinando Lygia
Fagundes. A escritora nunca mais autorizaria a republicação deste livro.
Ela começou a participar ativamente nos debates literários durante o
período em que cursou Direito. Neste momento, conheceu Mário de
Andrade e Oswald de Andrade, Paulo Emílio Salles Gomes, entre outros
nomes da cena literária brasileira. Foi também nesta época que conhe-
ceu a poetisa que veio a ser a sua melhor amiga: Hilda Hilst.

Lygia escreveu o seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, em 1952.


Esta narrativa foi mais tarde transformada em uma telenovela (reedita-
da pela Globo em 2008). Publicada pelas Edições O Cruzeiro, Ciranda
de pedra seria o marco de sua maturidade intelectual na opinião do crí-
tico Antonio Candido.

Inspirada pelo contexto político brasileiro do final da década de


sessenta e início dos anos setenta, escreveu As Meninas. Em parceria
com Paulo Emílio, fez uma adaptação para o cinema do romance de
Machado de Assis, Dom Casmurro, para o cineasta Paulo César Sarrace-
ni - adaptação que adotaria a alcunha da personagem principal: “Capi-
tu”. Em 1970 recebeu o Grande Prêmio Internacional Feminino para Es-
trangeiros, na França, pelo seu livro de contos Antes do baile. Em 1973,
o seu romance As Meninas arrebatou os principais prêmios literários
brasileiros: o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, o
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e o prêmio de “Ficção” da
Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1977, foi galardoada pelo
Pen Club do Brasil na categoria de contos, pela sua coletânea Seminário
dos Ratos. Lygia faz parte da Academia Brasileira de Letras desde 1987.

Depois de conhecer um pouco da biografia desta autora, verifique,


agora, a existência de duas escritoras Lygia Fagundes Telles: a do enga-
jamento no real (como em As Meninas) e a que mergulha no mistério,
no fantástico, no sobrenatural. Seria o caso de se perguntar qual a me-

81
Literatura Brasileira III

lhor? Haveria uma progressão ou a escritora pagaria o preço ao zeitgeist,


Termo cunhado pelos ao espírito da época? Parece-nos defensável a última idéia. As Meninas
intelectuais alemães (1973), é fruto dos anos 60 – política, sexo, droga, liberdade, discussão
do século XVIII, Johann
Gottfried Herder e Ge- sobre engajamento e alienação. E os contos de Mistérios e de outros li-
org Wilhelm Friedrich vros da autora entrariam mais nos desejos de fins dos anos 70, 80 – dese-
Hegel, e que significa-
ria o clima intelectual e jo de uma literatura não comprometida, cujo único compromisso seria
cultural de uma época. com o prazer, com a fruição.

Lygia Fagundes Telles demonstra em Mistérios plena segurança do


fazer literário, livre de quaisquer cânones. Aderindo ao espírito do tempo
faz uma literatura de prazer que, ao mesmo tempo, filia-se às vertentes
psicanalíticas da literatura do século XX e mostra raízes longínquas na
chamada literatura de terror. Só que este fazer é altamente depurado.

Todos os contos de Mistérios, escritos em épocas diversas, oferecem


um clima de mistério, apreensão, uma tensão que justifica plenamente o
título e o fato de estarem agrupados em uma coletânea. Todos os contos
participam desse universo feito de ambigüidade e meias-tintas. De to-
nalidade intimista, introspectiva, estas narrativas podem ser classifica-
das como contos de atmosfera – lugar de reflexão para o leitor.

Em geral os textos de Mistérios propõem um enigma que poderá


ou não ser decifrado. Contos como Seminário dos ratos, cuja metá-
fora principal é facilmente decodificável, apresenta um enigma que
é o da alegoria política.

Temos apenas três contos inéditos no livro Mistérios: Emanuel,


Negra jogada amarela e O muro. Os demais já tinham sido publica-
dos em outras coletâneas, tais como Histórias do desencontro (1958),
Seminário dos ratos (1977), Histórias escolhidas (1961), O jardim sel-
vagem (1965) e Seleta (1971).

A escolha de tais contos para integrarem uma nova coletânea re-


vela-se muito feliz visto que temos uma verdadeira antologia da ficção
de Lygia. Mistérios só apresenta contos bem acabados, verdadeiras jóias
da contística brasileira, agrupados segundo a temática do fantástico. A

82
Lygia Fagundes Telles Capítulo 06
idéia foi de dois professores e pesquisadores, Maria Luiz e Alfred Opitz,
residentes na França, que reuniram estes textos com o título de Contos
Fantásticos, para publicação na Alemanha. Em entrevista ao jornal Mu-
lher – o qual, hoje, não existe mais, sendo, em 1983, suplemento domi-
nical do jornal Folha de São Paulo - Lygia diz o seguinte:

Eu sou uma pessoa ansiosa, aflita, inquieta com os demônios todos que
me assaltam às vezes e me arrastam pelos cabelos. Os temas de horror
me são muito caros: tenho paixão por Lovecraft, Poe, Stevenson. Toda
essa literatura do imaginário, do fantástico e que parte para o realismo
mágico, para essa fantasia desbragada. Ah, vou correndo, monto nesses
cavalos todos e saio galopando... Acho que isso é viver: – é você ter sua
imaginação solta, livre, sem rédeas. É você se entregar ao imaginário, ao
sonho. Prefiro escrever fazendo com que o leitor seja meu cúmplice, co-
nivente com o que escrevo. Eu chamo o leitor para que ele resolva cer-
tas situações ele se sente poderoso nisso. Detesto envelopes fechados:
abro todos. É uma forma de sugerir, de deixar as coisas não definidas.
Meu tema, meu conto não tem fim.

Lygia é uma grande contista, diríamos que é melhor contista do


que romancista. A arte do conto é uma arte mais difícil, mais delicada
em suas meias-tintas do que o romance, e na narrativa curta, Lygia
Fagundes Telles é mestra. Eis a lista de sua produção literária: Ro-
mances: Ciranda de Pedra, 1954; Verão no Aquário, 1964; As Meninas,
1973 (Prêmio Jabuti); As Horas Nuas, 1989. Contos: Porão e sobrado,
1938; Praia viva, 1944; O cacto vermelho, 1949; Histórias do desencon-
tro, 1958; Histórias escolhidas, 1964; O Jardim Selvagem, 1965; Antes
do Baile Verde, 1970; Seminário dos Ratos, 1977; Filhos pródigos, 1978
(reeditado como A Estrutura da Bolha de Sabão, 1991); A Disciplina
do Amor, 1980; Mistérios, 1981; Venha ver o pôr-do-sol e outros contos,
1991; A noite escura e mais eu, 1995; Venha Ver o Pôr-do-Sol; Oito con-
tos de amor; Invenção e Memória, 2000 (Prêmio Jabuti); Durante aquele
estranho chá: perdidos e achados, 2002.

Depois de ter conhecido uma parte da biografia e as duas possíveis


escritoras Lygia, a engajada e a dedicada ao mistério, você irá ler um

83
Literatura Brasileira III

conto dela intitulado Natal na Barca, buscando verificar a presença das


TELLES, Lygia F. Natal características que marcam a escrita desta autora:
na barca. In: _____;
MACHADO, Assis;
LISPECTOR, Clarice; Natal na barca
ANTONIO, João; ASSIS,
Machado de et al. Para
gostar de ler. 4 ed. v. Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela bar-
9. São Paulo: Editora ca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem
Ática, 1984.
naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro
passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um ve-
lho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, di-


rigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher
estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em
panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe
cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar


quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe
qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despo-
jada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o
melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco
negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali


estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de
mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio.


Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto,
inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

84
Lygia Fagundes Telles Capítulo 06
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com
um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos
claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres
roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma
peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez
que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma
outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não espe-
rava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o


peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando
movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas
sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que


eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas
piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar
tinha a expressão doce.

85
Literatura Brasileira III

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, es-


tava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-
-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito...
Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio


rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a
esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que
estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para


o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com
mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última
mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem


piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me en-
volver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha for-
ças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primei-
ra pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos
vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele
encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma
brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei fi-
cando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se le-

86
Lygia Fagundes Telles Capítulo 06
vantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o
menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu es-
tava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela
de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto
de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava
com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta.
Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha
escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. In-


crível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num
tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se
não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, per-
dera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho
que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apa-
tia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aque-
las mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa,


sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo
daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o


esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão de-
sesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e cho-
rando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde

87
Literatura Brasileira III

toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força,
que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me apare-
cer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao
menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encos-
tei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho
Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com
sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no
jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo
ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que
acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas


para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da
criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino
estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacu-
diu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o
peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se


estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher
se agitou atrás de mim.

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir an-
tes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo
a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro
apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

— Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, es-


tendendo a mão.

88
Lygia Fagundes Telles Capítulo 06
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento
como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a
sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou
o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma


febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cer-


rados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face
corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar
até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu


afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas
vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de
manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Agora você irá conhecer um pouco mais da vida e obra de outra


escritora que pertence à Academia Brasileira de Letras: Nélida Piñon.

89
Nélida Piñon Capítulo 07
7 Nélida Piñon
O livro é o lar, é a cama, é o amor, é o espírito. O livro é a vida.
Nélida Piñon

Nélida Piñon, ao ser questionada sobre a verdadeira função do es-


critor, afirma o seguinte: Entrevista concedida a
José Roberto Mendes
em: MENDES, José
Eu acho que o escritor deve devotar-se com paixão à literatura, Roberto. A população
quase de uma forma soberba, e devotar-se também ao saber, ao brasileira está con-
denada ao silêncio
conhecimento, para que a obra dele não deixe aflorar apenas um da própria alma. In:
saber limitado, ou um texto sem grande arrebatamento estético. Ele Webjornal, jul./ago.
2006. Disponível em:
é alguém que julgo indispensável à sociedade e deve ser altamente <http://www.nelida-
ambicioso, no sentido de fazer uma grande obra literária, mesmo pinon.com.br/pano-
rama/inte/pan_en-
que fracasse. O fracasso, às vezes, é a sua coroa. De espinhos, mas trevistas_sobrelivro.
uma coroa. Mais vale fracassar do que não ter se empenhado em php>. Acesso em: 21
set. 2008.
fazer uma obra significativa para o seu país e para si mesmo, para
suas ambições pessoais. Ele é um ser que fixa os valores, a elastici-
dade e a plasticidade da língua, que cada qual vai inventando na
rua, nos bordéis. A língua tem uma origem espúria. Cada palavra
que se adiciona à nossa língua, ela tremula: é uma palavra talvez
suja no sentido imediato, mas depois ganha uma eloqüência, uma
grandeza, que o uso popular consagra. É por isso que nós temos
uma língua portuguesa tão suntuosa, opulenta, poderosa. Ela se
presta a qualquer serviço lingüístico. Qualquer coisa que um es-
critor não conseguir dizer, a falha não é da língua; a falha é dele.
Então, eu acho que esse conjunto de desafios extraordinários dá
guarida ao escritor. Faz com que ele se prepare para ser quem ele
quer ser, ou como ele vai registrar a aventura humana ao longo de
toda uma vida, quando jovem, maduro, na sua alta maturidade e
até quando a vida o leve. Mas ele deixa atrás de si um patrimônio,
que é a sua obra romanesca ou poética, ou o que seja, mesmo por-
que os grandes romances têm traçados nítidos de poesia.

91
Literatura Brasileira III

Jornalista, romancista, contista, professora, Nélida nasceu no dia


3 de maio de 1937 na Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ. Eleita em 27 de
julho de 1989 para a Cadeira nº 30, na sucessão de Aurélio Buarque de
Holanda, foi recebida em 3 de maio de 1990 pelo acadêmico Lêdo Ivo.

Foi a primeira mulher, nos mais de 100 anos de existência da ABL,


a integrar a Diretoria e ocupar a presidência da Casa de Machado de
Assis, no ano do seu 1º Centenário.

Sua produção literária está traduzida em países como Alemanha,


Itália, Espanha, União Soviética, Estados Unidos, Cuba e Nicarágua.
Contos seus encontram-se publicados em centenas de revistas e fazem
parte de antologias brasileiras e estrangeiras.

A escritora foi agraciada com vários prêmios, dentre eles o Prê-


mio Príncipe de Astúrias das Letras de 2005, concedido pela fun-
dação de mesmo nome, da Espanha. A sua produção literária é vas-
ta, sendo composta por romances e coletâneas de contos: Guia-mapa
de Gabriel Arcanjo, romance (1961); Madeira feita de cruz, romance
(1963); Tempo das frutas, contos (1966); Fundador, romance (1969); A
casa da paixão, romance (1977); Sala de armas, contos (1973); Tebas
do meu coração, romance (1974); A força do destino, romance (1977);
O calor das coisas, contos (1980); A república dos sonhos, romance
CASTELLO, José. A (1984); A doce canção de Caetana, romance (1987); O pão de cada dia:
força do arcaico. In:
Revista Continental fragmentos, contos (1994); A roda do vento, romance infanto-juvenil
Multicultural, nº 58, (1996); Até amanhã, outra vez, romance (1999); Cortejo do Divino e
out. 2005. Disponível
em: <http://www. outros contos escolhidos, contos (2001); O presumível coração da Amé-
nelidapinon.com. rica, discursos (2002); Vozes do deserto, romance (2004); O ritual da
br/panorama/inte/
pan_art_forca_arcaico. arte, ensaio sobre a criação literária (inédito).
php>. Acesso em: 23
set. 2008.
José Castello em um artigo sobre a obra Vozes do deserto, roman-
ce mais recente publicado por Nélida Piñon, aponta que a escrita desta
autora é um exemplo de permanência – por explorar temas arcaicos em
sua produção literária – e de resistência – por ter se mostrado contra a
repressão no período da ditadura militar:

92
Nélida Piñon Capítulo 07
Uma das vozes que se levantou com mais vigor contra a opressão
política durante o regime militar, Nélida Piñon é uma especialista
no tema da resistência. “Vozes do deserto” é, de certo modo, uma
recriação livre das “Mil e uma noites”, a longa história de Schere-
zade e as intermináveis histórias que ela desfia para acalmar seu
Califa, na esperança de conter, ou pelo menos adiar, uma condena-
ção à morte. A narração contra a opressão: é uma luta velha, que
nunca se esgota. E são os temas arcaicos, as fixações mais antigas,
que interessam a Nélida.

José Castello afirma, ainda, que, além de Vozes do deserto, toda


a literatura de Nélida conserva esse caráter de permanência e de re-
sistência. Resistência da força da língua e de sua potência expressiva,
em um mundo cada vez mais apressado, mais seduzido pela lingua-
gem sintética e pelos clichês. Luta em defesa de uma literatura densa
e culta – para escrever seu último romance, a autora pesquisou por
cinco anos a cultura e a literatura árabes – em um universo no qual
predominam as narrativas de desafogo, as confissões egocêntricas e
as aventuras de fôlego curto.

Se você ainda não leu Vozes do deserto, aproveite para lê-lo, é um


romance envolvente e o leitor, juntamente com o Califa, espera an-
siosamente cada noite para poder desfrutar das magníficas histórias
narradas por Scherezade. PIÑON, Nélida. I love
my husband. In: O ca-
lor das coisas. Rio de
Agora leia um dos contos mais significativos da produção literária Janeiro: Nova Frontei-
ra, 1980. p. 57-67.
de Nélida Piñon, I love my husband.

I love my husband

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café.


Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-
-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com
raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com
um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana,
especialmente no sábado.

93
Literatura Brasileira III

Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe uni-


camente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo,
capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um
pão sempre quentinho e farto.

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo com-
pras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo
com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao
chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro,
todas sólidas e visíveis.

A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com


casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é
por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Dei-
xo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com
esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluo-
rescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que
não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no
verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra
antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe
estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura
definitiva do nosso apartamento.

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão
de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém
tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem
habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no
convívio comum.

Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passa-


do, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem
que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no
forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau
de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não
podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia per-
tencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir

94
Nélida Piñon Capítulo 07
quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas
paredes com inscrições e datas.

Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do
mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo
dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo
para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na
fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem,
além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para
viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar mi-
nhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele,
pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles
igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda
da língua podia lamber-se o seu sal?

Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo.


Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à
verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher uni-
camente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpe-
to do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem
adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto
surpreende-se com uma face que lhe é estranha, que ele cobriu de mis-
tério para não me ter inteira?

De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o


homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te
amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e
eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar
a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de
amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em
que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um
trabalho de escravo.

Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode
estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a
poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencio-
nasse o futuro como se fosse uma sobremesa?

95
Literatura Brasileira III

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra


futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma
aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um
cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava
meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atra-
ído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos
o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em
busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como
despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os
meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquan-
to o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito.
Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e
eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente co-
mido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me
assaltara as forças, evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando
liberdade, a mais antiga e miríade das heranças.

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no


chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, se-
gurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha
você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos
pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto
que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe per-
mite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mu-
lher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me
outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda
há tempo de salvar-te?

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça


do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria
homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias.
Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a
superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei
meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recupe-
rar-se para a jornada seguinte.

96
Nélida Piñon Capítulo 07
Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de choco-
late. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais.
Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar
dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio
em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos
faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria
sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de
sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal
direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar.

Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sen-
timentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer
significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvo-
re no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe
os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.

Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um to-


que matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se
esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me
foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tra-
tar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra
de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição
feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelheci-
mento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.

Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que nin-
guém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos
paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra enve-
lhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da
mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegu-
rada em troca a juventude.

Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque


viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que
serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me
envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe

97
Literatura Brasileira III

a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes,


por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia conver-
ter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela
expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o
glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.

Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito,


ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso
sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e
escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poe-
sia, suas imagens sempre frescas e quentes.

Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo


que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no coti-
diano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últi-
mos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos
tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a
transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família.

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma se-
mana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele
sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em
erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar
a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar
ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível
com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.

Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da


minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu
encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de
naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para
que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-
-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar?
Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme
algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos
brilhantes, e sorriremos juntos.

98
Nélida Piñon Capítulo 07
Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um
rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho
pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu
esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que
sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os
que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde.
Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas
familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os
seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.

Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu
marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe es-
quivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude
minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada
ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-
-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais
impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos
que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que
eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato.

Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não


suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tar-
des penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio di-
nheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo
que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e
com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para
sempre mergulhada.

Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espe-


lho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em
verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também
ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Ja-
mais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de
contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que
no fim do dia já não sei quantos anos tenho.

99
Literatura Brasileira III

E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não
visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário,
para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele
abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando
a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no
mundo só nós existimos.

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-


-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estra-
nho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca
mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que
confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará ama-
nhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem recla-
mar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que
nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.

O que você achou desta personagem feminina que tem sua vida redu-
zida às funções de um objeto a mais na engrenagem de uma realidade
que só diz respeito ao marido?

100
Lya Luft Capítulo 08
08 Lya Luft
Não existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com
fragilidade. Puta que pariu, não é assim. Isso não existe.
Lya Luft

Na década de 60, Lya Luft iniciou sua carreira literária como tradu-
tora de literaturas em alemão. Por ter nascido em uma cidade de coloni-
zação germânica, Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, dominava o
idioma alemão, e, assim, traduziu mais de cem livros para o português.
Apesar de ter escrito vários romances, costuma dizer que traduzir é sua
verdadeira profissão. Estas são as suas narrativas mais significativas:
Canções de Limiar, 1964; Flauta Doce, 1972; Matéria do Cotidiano, 1978;
As Parceiras, 1980; A Asa Esquerda do Anjo, 1981; Reunião de Família,
1982; O Quarto Fechado, 1984; Mulher no Palco, 1984; Exílio, 1987; O
Lado Fatal, 1989; O Rio do Meio, 1996; Secreta Mirada, 1997; O Ponto
Cego, 1999; Histórias do Tempo, 2000; Mar de dentro, 2000.

Agora iremos conhecer um pouco da escrita desta escritora gaúcha a


partir de uma leitura da loucura no romance As parceiras. É interessante
que você já tenha lido este texto para poder continuar.

Em As Parceiras, uma das personagens de maior destaque é Catari-


na – a avó materna de Anelise, que é a narradora do romance. Catarina LUFT, Lya. As Parcei-
von Sassem é descendente de alemão, sua mãe chega ao Brasil a fim de ras. São Paulo: Sicilia-
no, 1999. p. 14.
visitar parentes e acaba se casando. Ela tem apenas uma filha, Catari-
na; depois de algum tempo enviúva e acaba criando sozinha essa única
filha. Pensando em encaminhar o destino de Catarina, ela arranja um
genro que se dispõe a ensinar tudo para a jovem de aparência frágil.

Assim, Catarina mal começara a menstruar e é arrancada do seu


mundo infantil – um quarto com cama de solteira, onde habitavam
três bonecas de porcelana – para ser desvelada pelos mistérios as-
sustadores das obrigações matrimoniais. O marido a perseguia pelos
cantos da casa, com o intuito de ensinar-lhe a arte dos bordéis. Ele

101
Literatura Brasileira III

ameaçava arrombar banheiros e quartos, como violentava, dia e noi-


te, o corpo imaturo de Catarina.

Diante desta tenebrosa experiência sexual, Catarina sucumbiu a


um profundo terror ao sexo e à vida. Decide, então, se refugiar em um
mundo nostálgico branco e limpo, quando manda mobilhar o sótão de
sua casa imitando um quarto de menina, em busca de uma inocência
perdida, roubada. Ela agora tinha um lugar seguro, que fora esquecido
quando sua mãe a entregou ao seu marido. Ela passaria, então, a viver
no quarto/sótão. Este enclausuramento iria conduzi-la à loucura. Ob-
serve na passagem abaixo a forma como a narradora Anelise descreve a
(Ibidem, p. 15)
loucura da sua avó Catarina:

A criança loura era agora uma adulta precoce, cheia de manias. Uma
delas era o sótão. Ali ela construiu uma dimensão em que só cabiam os
GARCIA, Carla Cristina. seus interlocutores invisíveis.
Ovelhas na névoa.
Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1995. De acordo com Carla Cristina Garcia, a louca que, no início do
século XIX, era confinada no sótão, transforma-se na criança do sótão,
muito mais impotente e desprotegida no início de 1900.

O marido de Catarina, cansado de suas investidas sexuais sem su-


cesso, muda-se para uma de suas fazendas. Mesmo morando em casas
separadas, e se encontrando devido a algumas visitas espaçadas, ele não
deixava de procurá-la sexualmente, e mesmo entre gritos e escândalos
emprenhava-a a cada ano.

Dentre os vários abortos cometidos – todos fetos femininos –


Catarina teve três filhas: Dora, que sublima a dor na pintura; Beata,
que utiliza a religião como válvula de escape, uma vez que perdera
o marido após quinze dias de casada; Norma, mãe da protagonista,
ausente aos afazeres domésticos, limitada ao mundo de “um piano e
de um marido-médico-pai”.

Vinte anos depois Catarina tem Sibila, a última filha, do sexo re-
jeitado, que, por coincidência nasce deficiente, simbolizando a repulsa

102
Lya Luft Capítulo 08
aos abusos sexuais do esposo. Sibila fora concebida e parida no sótão.
(LUFT, op. cit., p. 18)
Anelise descreve sua família da seguinte forma:

Éramos uma família de mulheres doidas, segundo tia Dora. Pelo menos,
uma família de mulheres, na qual os poucos homens entraram pelo ca-
samento. E meu primo Otávio pela adoção.

A última filha, Sibila – cujo significado, entre os antigos, é profetisa


– vem anunciar o desequilíbrio latente na família von Sassem, ou seja,
ela é a própria materialização dos conflitos entre o patriarca e a “meni-
na” Catarina que não se enquadra no seu papel social de esposa e sofre
com a violência doméstica. Isto tudo acaba gerando o distúrbio mental
(GARCIA, op. cit., p. 37)
em Catarina. Segundo Carla Cristina Garcia, a loucura é, também, “um
rótulo imposto pela sociedade à mulher que se atreve a desviar ou a ten-
tar escapar dos padrões estabelecidos, rótulo que aprisiona e oprime e é
particularmente punitivo para quem tentou libertar-se da normalidade”.

Em As Parceiras, Catarina opta pelo recolhimento no sótão, pelo


mergulho no mundo fantástico da criança, a fim de escapar dos padrões
estabelecidos pelo matrimônio. O aprisionamento/loucura de Catarina
é, portanto, uma fuga das violências sexuais cometidas pelo seu marido.

A louca presa no sótão, conforme Carla Cristina Garcia, descreve o (Ibidem, p. 45)
momento imediatamente anterior ao tratamento de controle moral da psi-
quiatria, quando era comum às mulheres insanas ficarem presas em casa e
serem tratadas como bestas selvagens. No caso da personagem de Lya Luft,
é uma escolha da própria Catarina, é uma forma de fugir de sua realidade.
Em seguida, a família contribui para o confinamento da louca no sótão, a
fim de esconder esta realidade fantasmagórica que amedrontava a família:
“o medo de enlouquecer”. Este é um questionamento constante da narra-
(LUFT, op. cit., p. 47)
dora Anelise, e está presente em todos os capítulos do romance:

E comecei a ter esse medo: estaria ficando doida? Loucura podia ser
herdada? Uma avó louca, uma tia anã. Andava nas lajes do pátio e dizia
a mim mesma que talvez já tivesse enlouquecido, e não soubesse disso;
os doidos não sabem que são doidos.

103
Literatura Brasileira III

De certo modo, não era só a loucura que incomodava a família,


mas a representação dela de uma forma mais concreta através do nasci-
mento de Sibila. A presença de Sibila indicava que a matriarca havia
sido silenciada, tornara-se uma criança devido à violência imposta pelo
patriarcado. Era isto que tanto incomodava Anelise? Anelise busca um
acerto de contas consigo mesma. Conseqüência de que? Dos monstros e
fantasmas paridos na socialização primária: a avó abusada e louca, a
mãe ausente, o pai que a via muito mais “com carinho de médico do que
com amor paterno...” Assim, Anelise, sem ter um “casulo protetor”, adul-
tos que cuidassem dela, vive em meio ao dilaceramento, à angústia e ao
medo. O que a leva à ruína, prova disso é a mulher de branco, ser a
quem a protagonista faz referências a todo instante na trama, como se
fosse um refúgio, uma proteção imaginária, ser que ela só reconhece ao
(LUFT, op. cit., p. 126-127)
final da narrativa, depois de constatar: “família de perdedoras”: “[...] De
repente sei quem é. Não entendo como não a reconheci antes. Então era
por mim que ela estava esperando todo esse tempo. Esse longo tempo.
Descemos de mãos dadas”.

Como você pôde perceber estas são as questões que permeiam As par-
ceiras de Lya Luft, a loucura e o medo de enlouquecer. Aproveite para
conhecer e ler outros títulos de Lya Luft, A asa esquerda de um anjo, A
Sentinela, Exílio e O rio do meio, e discutir com seus colegas.

Chegamos ao fim desta Unidade. Após ter conhecido um pouco mais


da produção literária de autoria feminina, como está o seu desejo por
ler outros textos destas autoras e saber mais sobre a trajetória literária
que elas continuam trilhando?

104
Lya Luft Capítulo 08
Leia mais!
BRANDÃO, Izabel; MUZART, Zahidé L. Refazendo nós: ensaios sobre
mulher e literatura. Florianópolis: Editora Mulheres, 2003.

CUNHA, Helena P. (Org.): Desafiando o cânone: aspectos da literatura


de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80). Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999.

QUEIROZ, Vera. Pactos do viver e do escrever: o feminino na Literatu-


ra Brasileira. Fortaleza: Sete Sóis Editora, 2004.

RAMALHO, Cristina (Org.). Literatura e feminismo: propostas teóri-


cas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999.

SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Orgs.). Vozes


femininas: gêneros, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2003.

105
Unidade D
Algumas décadas de poesia
Introdução

Na segunda Unidade deste livro, você conheceu um pouco da


poesia de João Cabral de Melo Neto. Foi demonstrado, naquela oca-
sião, o quanto seu texto poético era polido, a fim de atingir uma
forma concisa e cortante, como a lâmina de uma faca ou a secura do
sertão, evitando, deste modo, os exageros e supérfluos lingüísticos.
Mas por que retomar João Cabral aqui? Porque ele é um dos precur-
sores da poesia concreta no Brasil.

109
Concretismo Capítulo 09
9 Concretismo Para saber mais sobre
a Revolução Industrial,
A poesia concreta, criada por Décio Pignatari (1927), Haroldo indicamos mate-
rial disponível em:
de Campos (1929) e Augusto de Campos (1931), surge como um ata- <http://www.histo-
que à produção poética da época, representada pela geração de 1945, riadomundo.com.br/
idade-moderna/re-
a quem os jovens paulistas acusavam de verbalismo, subjetivismo, volucao-industrial/>.
falta de apuro e incapacidade de expressar a nova realidade gerada Acesso em: 7 nov.
2008.
pela revolução industrial.

Deste modo, na poesia concreta há o desaparecimento do eu “su-


jeito lírico”, em benefício da superfície gráfica e visual. A forma concreta
da poesia opera uma atualização dos recursos poéticos (métrica, rima,
versos, ou seja, a própria estrutura do poema até então compreendi-
do como tal). Como diria um dos poetas concretistas, Décio Pignatari:
“Antes da poesia concreta: versos são versos. Com a poesia concreta:
versos não são mais versos”.

Os poetas concretos estabeleceram, desde o início, ligações entre os


seus versos, a música contemporânea, as artes visuais e o design de linha-
gem construtivista. Utilizaram elementos dessas artes em seus poemas e Cf. disponível em:
<http://www.poesia-
mantiveram extensa colaboração com artistas e designers, compositores e concreta.com/poetas.
intérpretes, seja na esfera da música erudita, seja na da música popular, php>. Acesso em: 28
ago. 2008.
sem falar de outros poetas e críticos, tanto do Brasil quanto do exterior.

Este movimento de invenção e construção poética pensava, acima


de tudo, na comunicação eficiente da poesia – tal como pensava João
Cabral de Melo Neto – e no ato da leitura, incorporando a sensibili-
dade do leitor moderno ao trabalho da criação, utilizando modernos
recursos e técnicas visuais. Poemas-cartazes, coloridos, em tiras, po-
emas-cartões, eram formas de veiculação da linguagem poética. Veja
alguns exemplos deste tipo de poesia:

111
Literatura Brasileira III

Décio Pignatari (1957)

Neste poema, Décio usa recursos modernos do anúncio para fazer


uma crítica ao produto e à forma persuasiva da propaganda que o divulga.

Décio Pignatari (1956)

De acordo com os críticos e pesquisadores Iumma Maria Simon e


Vinicius Dantas, este é um dos exemplos mais representantes do que é a
“fisiognomia” na fase orgânica, isto é, o poema é uma descrição cinética

112
Concretismo Capítulo 09
(Cinética é o ramo da física que trata da ação das forças nas mudanças de
movimento dos corpos) de seu próprio conteúdo. Veja que a letra m en-
contra-se montada sobre um eixo vertical fixo e alguns dispersos e casuais
rebatimentos (como pode ser verificado no eco: mira – ira). Há, portanto,
um processo mental de vivificação do movimento, a partir da própria pa-
lavra (movimento: momento/vivo).

Veja, agora, mais dois exemplos, os poemas tensão e psiu de Augus-


to de Campos.

Tensão, Augusto de Campos. 1956.

PSIU, Augusto de Campos. 1965

113
Literatura Brasileira III

Como você pôde observar através destes exemplos, o poema deixa


de expressar e representar um universo de sentimentos e emoções, para
presentificar uma realidade viva “verbi-voco-visual” (palavra-som-vi-
são) – a realidade em si mesma do poema. Assim, incorporando técni-
cas e recursos dos meios de comunicação (jornal, propaganda, cinema,
cartaz), o poema é concebido como objeto de consumo. Aqui, você tem
que entender objetos-bens-de-consumo, no âmbito do pensamento e da
sensibilidade. O poema torna-se mercadoria. Mas sem valor de troca,
para poder resgatar o poético e a poesia numa sociedade em que tudo
está à venda. A poesia concreta não reprime sua criatividade com regras
e dogmas, cada poema cria sua própria teoria e não o contrário.

Os principais poetas deste período foram os irmãos Haroldo e Au-


gusto de Campos, e Décio Pignatari. Veja, em seguida, alguns dados
importantes sobre vida e obra deste poetas.

9.1. Haroldo de Campos

O poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos (1929-2003) foi


um dos responsáveis pelo lançamento do movimento de poesia concre-
ta em 1956. Ele se formou em Direito pela Universidade de São Paulo
em 1952, mesmo ano em que fundava, com Augusto de Campos e Décio
Pignatari, o Grupo Noigandres, de poesia concretista. Desde 1950, pu-
blicou mais de 30 livros, como A máquina do mundo repensada (2000).
Em 1992, ganhou o Prêmio Jabuti de personalidade literária do ano. Em
1999, o Prêmio Jabuti de poesia foi conferido para seu livro Crisantem-
po: no espaço curvo nasce um (1998).

114
Concretismo Capítulo 09
Haroldo de Campos foi considerado o “mais barroco” dos concretistas
e teve sua obra poética intimamente ligada ao movimento. A crença em uma
“crise no verso” o levou ao experimentalismo, à busca de novas formas de
estruturação e sintaxe, em curtos poemas-objeto ou longos poemas em prosa,
como por exemplo o poema Circum-lóquio, publicado originalmente no jor- CORDEIRO, Hélio D. Um
nal Folha de São Paulo. Leia agora um trecho desse texto: tributo a Haroldo de
Campos. In: Revista Ju-
daica, nº 68, dez. 2003.
Circum-lóquio Disponível em: <http://
www.judaica.com.br/
(pur troppo non allegro) materias/068_08e09.
sobre o neoliberalismo htm>. Acesso em: 21
nov. 2008.
terceiro-mundista
laisser faire laisser passer

1.
o neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

2.
o neoliberal
neolibera
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?

115
Literatura Brasileira III

a ex-comunhão dos ex-clusos?


o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

3.
no céu néon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:

enquanto o não
- neoliberado
come pão
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-mansão em miami.

116
Concretismo Capítulo 09
9.2. Augusto de Campos

Augusto de Campos, irmão de Haroldo de Campos, nasceu em


São Paulo em 1931. Além de ser poeta, é tradutor, ensaísta, crítico
de literatura e de música. Em 1951, publicou o seu primeiro livro de
poemas, O rei menos o reino. Em seguida publicou, através do segun-
do número da Revista Noigandres (revista lançada por ele, Haroldo,
e Décio), uma série de poemas em cores, considerados os primeiros
exemplos consistentes de poesia concreta no Brasil. Nesses poemas,
o verso e a sintaxe convencional eram abandonados e as palavras re-
arranjadas em estruturas gráfico-espaciais, algumas vezes impressas
em até seis cores diferentes.

9.3. Décio Pignatari

O paulista Décio Pignatari estreou na cena literária com o livro O


carrossel, em 1950. Na orelha do volume há uma espécie de profecia que
comparece não-assinada:
PIGNATARI, Décio. O
Não sendo propriamente um nome inédito - pois é conhecido colabo- carrossel. São Paulo:
Cadernos do Clube da
rador da Rev. Brasileira de Poesia e dos suplementos literários paulista- Poesia, 1950.
nos, o Sr. Décio Pignatari é todavia um dos nossos poetas mais moços e
um dos que se apresentam com melhores credenciais para um destino
Cf. KHOURI, Omar.
de realizações imprevisíveis. Décio Pignatari: poeta,
pois é, poeta. In: Revis-
ta Idiossincrasia. 20
Dentro de um contexto de vanguarda, que surgiu na década de ago. 2008. Disponível
50, através do advento do movimento concretista, Pignatari teve em: <http://portallite-
ral.terra.com.br/Literal/
um papel fundamental como teórico, crítico, tradutor e poeta. É calandra.nsf/0/68DF3B
interessante observar que os mais significativos representantes da 0D21D9ADDB0325733
D00702594?OpenDoc
Poesia Concreta no Brasil ocuparam a função de tradutores. Você ument&pub=T&proj=
imagina o porquê? A poesia concreta era considerada uma poesia Literal&sec=Ponto+de
+vista>. Acesso em: 26
de inventores e por este motivo empenhou-se em rastrear o pas- set. 2008.
sado, encontrar e separar o que este possuía de melhor, de mais
importante, e veio a fazer, através da tradução e da crítica, todo
um trabalho de resgate, com o objetivo de organizar um Paideuma,

117
Literatura Brasileira III

como o entendeu Ezra Pound: um conjunto mínimo de poemas,


com o máximo de informação estética, de modo a facilitar o traba-
lho dos iniciantes no universo da Poesia.

Aproveite agora para conhecer um pouco mais da poesia concreta!

118
Anos 70 e 80 Capítulo 10
10 Anos 70 e 80

10.1 Tropicalismo

Ganharam evidência, a partir dos anos setenta, as manifestações pa-


raliterárias, como as letras de músicas, redimensionadas em sua repre-
sentatividade cultural, desde o Tropicalismo e sua imediata aproximação
com o grande público. Você sabe o que foi o Movimento Tropicalista?

Afonso Romano de Sant’Anna, em seu livro Música popular e


moderna poesia brasileira, cita uma das propostas que nortearam o
movimento Tropicalista:
SANT’ANNA, Affonso
Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode nos dar, Romano de. Música
popular e moderna
sem preconceito de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau poesia brasileira. Pe-
gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ele encer- trópolis: Vozes, 1980.
p. 80.
ra, ainda desconhecido.

As características estéticas do Tropicalismo eram o humor, a paró-


dia, a carnavalização da arte, a incorporação do kitsch (crítica ao mau
gosto), difusão da arte através de meios de comunicação de massa, em Consulte o E-Dicioná-
resumo, este movimento representava uma crítica aos valores éticos- rio de Termos Literários
para entender melhor
-morais-estéticos da cultura tropical brasileira. esse termo, disponível
em: <http://www2.
fcsh.unl.pt/edtl/
A música de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Capinam, Soy loco por verbetes/K/kitsch.
ti América, mostra, por exemplo, uma mistura estética no emprego do htm>. Acesso em: 10
out. 2008.
português e do espanhol no correr da canção, há uma incorporação, por
exemplo, do ritmo da rumba. O que você acha do ritmo cubano e das
palavras espanholas na voz de um cantor e na letra de um compositor
baiano? Seria interessante que você pudesse ouvir a música e, assim,
mergulhar no espírito da Tropicália.

Mas é a música-manifesto Tropicália, de 1967, de Caetano Veloso,


que permite um melhor entendimento deste Movimento. Leia a letra
e escute a música:

119
Literatura Brasileira III

Tropicália

Caetano Veloso
Composição: Caetano Veloso

Sobre a cabeça os aviões


Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país...

Viva a bossa
Sa, sa
Viva a palhoça
Ca, ça, ça, ça...(2x)

O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão...

Viva a mata
Ta, ta
Viva a mulata
Ta, ta, ta, ta...(2x)

120
Anos 70 e 80 Capítulo 10
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa
E fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira
Entre os girassóis...

Viva Maria
Ia, ia
Viva a Bahia
Ia, ia, ia, ia...(2x)

No pulso esquerdo o bang-bang


Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes
Sobre mim...

Viva Iracema
Ma, ma
Viva Ipanema
Ma, ma, ma, ma...(2x)

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém!

121
Literatura Brasileira III

O monumento é bem moderno


Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!...

Viva a banda
Da, da
Carmem Miranda
SANT’ANNA, Affonso Da, da, da, da...(3x)
Romano de. Música
popular e moderna
poesia brasileira. Pe- Agora observe os aspectos ressaltados pelo crítico Afonso Ro-
trópolis: Vozes, 1977.
mano de Sant’Anna ao analisar esta música. Ele aponta para o cosmo-
politismo estilístico na estruturação formal do texto. Além disso, o
crítico ressalta o emprego do ritmo africano, por este motivo é im-
portante que você escute a música. Ao dizer que tem sobre sua cabeça
os aviões, o eu lírico tenta reunir o civilizado e o interiorano, “viva a
bossa, ssa, ssa/ viva a palhoça, ça, ça, ça, ça”. O texto tem também uma
acumulação de imagens que é característica da poesia moderna e pode
ser chamada de enumeração caótica. Neste caso, é visível a influência
do Modernismo de Oswald de Andrade que você já viu em disciplinas
anteriores de Literatura Brasileira.

10.2. Poesia marginal

No início da década de 70, John Lennon, um dos membros da ban-


da de rock inglesa The Beatles declara “que o sonho acabou”, com isso ele
queria dizer que a euforia revolucionária dos anos sessenta, no campo
sócio-político-cultural, deu lugar ao desencanto e à perplexidade, houve
a desilusão do movimento hippie, com suas bandeiras de paz e amor, e
o fim dos projetos da revolução social que haviam marcado a atuação
política das esquerdas.

122
Anos 70 e 80 Capítulo 10
No Brasil, a partir de 1974, após dez anos de governos militares,
houve uma série de redefinições na vida política e cultural. Começa um
processo de abertura e um financiamento estatal para manifestações
culturais, como aos filmes Dona Flor e seus dois maridos (1976), Xica da
Silva (1976) e A dama do Lotação (1978). Você já viu alguns desses fil-
mes? Paralelamente a essas intervenções estatais de cultura, a indústria
cultural se fortalece, a televisão passa a fazer parte dos espaços domés-
ticos. O mercado do disco se fortalece com vendagens significativas de
discos de Roberto Carlos, Chico Buarque e Maria Bethania.

Nesse panorama, a produção jovem alternativa divulga o que


escreve de forma artesanal. Poemas manuscritos ou datilografados e
reproduzidos através de mimeógrafos a tinta e a álcool eram comer-
cializados em ambientes como bares, cinemas, feiras e universidades.
Além disso, os poetas faziam intervenções políticas, como passeatas
poéticas, colagens de poemas, saraus poéticos a fim de lutar contra Cf. HOLLANDA, Heloísa
B. de; PEREIRA, Carlos
a repressão imposta pela ditadura militar. Era uma forma de partici-
A. M. Poesia jovem
parem da abertura cultural e política através de textos engajados, um (anos 70). São Paulo:
Abril Educação, 1982.
destes exemplos é o poema abaixo:

Receita
Nicolas Behr

Ingredientes

2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos

2 canções dos Beatles

Modo de preparar

dissolva os sonhos eróticos


nos dois litros de sangue fervido

123
Literatura Brasileira III

e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo


adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças
perdidas

corte tudo em pedacinhos


e repita com as canções dos
Beatles o mesmo processo usado
com os sonhos eróticos mas desta
vez deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver

parte do sangue pode ser


substituído por suco de
groselha mas os resultados
não serão os mesmos

sirva o poema simples


ou com ilusões

Nicolas Behr, poeta brasiliense, conhecido por Nich, é um dos


maiores agitadores da nova poesia, destaca-se por ter fabricado de
forma artesanal um grande número de poemas mimeografados. Di-
vulgou seus poemas, vendendo sua obra completa nas diversas via-
gens que fez pelo Brasil.

Neste caso, a receita de uma poesia, conforme o eu lírico, deve con-


ter como ingredientes “2 conflitos de gerações/4 esperanças perdidas/ 3
litros de sangue fervido/ 5 sonhos eróticos/ 2 canções dos Beatles”, isto
foi alvo de críticas severas no que se refere à respeitabilidade em relação
à literatura e à poesia. Embora tenha sido objeto de críticas, principal-
mente quanto ao seu “estatuto literário”, a poesia marginal invadiu o
cenário literário com um número significativo de poetas, poemas e lei-
tores. Veja outros exemplos desta produção literária:

124
Anos 70 e 80 Capítulo 10
Sobre o momento atual e a tática proletária

Maira (RJ)

....................................................................................
....................................................................................
....................................................................................
Panfleteamos a noite toda
– o nome mais belo do medo –
e alguma coisa nos fazia
lembrar uma música

somos ainda jovens


e o suco de laranja estava

ótimo

abaixo a carestia PEGA LADRÃO!


chega de comer angu Alguém tirou
stia & solidão um pedaço
do meu
Marcelo Dolabella (MG)
Kátia Bento (RJ)

O que você pode verificar nesses textos é a poesia na contramão, Cf. HOLLANDA, He-
ainda que de conjunto bastante desigual, oscilando entre um resul- loísa B. de; PEREIRA,
Carlos A. M. Poesia
tado de valor propriamente literário e aquele cujo interesse se limita jovem (anos 70). São
a sua qualidade de sintoma de um fenômeno de peso sociológico, Paulo: Abril Educação,
1982. p. 77.
constitui-se como um “acontecimento” insofismável do interior da
produção cultural jovem pós-AI-5.
Ato Institucional nº 5,
Depois de passar pelas três décadas de poesia (50, 60 e 70), no pró- que entrou em vigor
em 13/12/68 e reforçou
ximo item nos deteremos na produção em versos dos anos 80. poderes discricionários
do regime militar.

125
Literatura Brasileira III

10.3. Anos 80: poetas, compositores e

cancioneiros.

Nos anos 80 as mudanças ocorrem em ritmo alucinado, reflexo de


uma sociedade cada vez mais urbana. No Brasil, há uma abertura po-
lítica, cujo ápice foi o retorno das eleições diretas para a Presidência
da República. Isto garante a liberdade de expressão, tão almejada pelos
artistas e intelectuais “silenciados” durante décadas. Este período é mar-
cado também por uma instabilidade econômica, gerando altos índices
de inflação, gerando a intervenção do governo através de medidas ou
planos que pudessem salvar a economia brasileira. Diante de tantas mu-
danças, a vida das pessoas torna-se cada vez mais solitária, reflexo de
um ritmo de vida encontrado nas megalópoles que crescem a cada dia.

No que diz respeito à literatura, nos anos 80 surge um texto mais


meditativo, que irá substituir a poesia marginal dos anos 70. Neste mo-
mento, cria-se um mercado editorial que investe na profissionalização
de muitos poetas marginais. Cria-se também um espaço na mídia, prin-
cipalmente na televisão e em letras de rock.

Nesta época, o espírito defendido pelos movimentos de vanguar-


da, que marcaram as décadas anteriores, é descartado. Não há mais
uma pressão vanguardista em busca de novos caminhos. Nesta litera-
CAMPOS, Augusto de.
Poemas. Disponível
tura da década de 80, não há mais choque teórico, polêmica e baru-
em: <http://www2. lho em torno de sua criação. Os poetas utilizam o pluralismo poético
uol.com.br/augusto-
decampos/poemas.
e dialogam com inúmeras fontes teóricas. Não há mais rupturas, as
htm.> Acesso em: 02 mudanças já foram vividas, como bem ilustra o poema de Augusto de
dez. 2008.
Campos, pós-tudo (1984).

pós-tudo

QUIS
MUDAR TUDO
MUDEI TUDO
AGORAPÓSTUDO
EXTUDO

126 MUDO
Anos 70 e 80 Capítulo 10
O poeta, após tanta mudança, parece “mudo”, sem palavras ou ainda
usufruindo as mudanças anteriores que ele mesmo provocou. Diante des-
ta “calmaria”, surgem os jovens roqueiros dos anos oitenta. Eles aparecem
nos palcos dos festivais, dos shows de rock, são os poetas compositores.

O início dos anos oitenta não foi muito propício para o rock. A
MPB estava em evidência e, apesar da relativa abertura política, a som-
bra da repressão e a censura desanimavam os que buscavam a ousadia.
O “som jovem” ouvido nas rádios era o pop-rock na voz de Guilherme
Arantes, Marina, Ney Matogrosso, 14 Bis, Eduardo Dusek, Baby Con-
suelo, Pepeu Gomes, A Cor do Som e Rádio Táxi.

Um dos responsáveis pela disseminação do rock nacional é Lo-


bão, um artista marcado pelo inconformismo, que abandona o pro-
jeto da banda Blitz para lançar seu primeiro disco solo, Cena de Ci-
nema, é neste momento que ele inicia uma das mais importantes
carreiras do rock brasileiro.

Ainda nos primeiros anos da década de oitenta, apareceram outros


artistas de relevância do Rock Brasil, como Eduardo Dusek e Léo Jaime.
Nesta mesma época, surgiram grandes bandas que sacudiram a história
da música, um destes grupos foi Titãs, um octeto que misturava new-

127
Literatura Brasileira III

-wave e tropicalismo com rock, tornando-se, assim, cada vez mais po-
pular. Outros grupos importantes foram Barão Vermelho, que ficou bem
conhecido ao gravar o tema do filme Bete Balanço, e Legião Urbana, que
tinha como fundador Renato Russo.

Pare um pouco a leitura para ouvir algumas das composições des-


sas bandas e, assim, mergulhar no espírito dos anos oitenta.

Dessas três bandas emergiram representativos compositores-poe-


tas: Arnaldo Antunes, Cazuza e Renato Russo. Os dois últimos foram
silenciados pela AIDS, enquanto Arnaldo Antunes continuou desenvol-
vendo um trabalho de poesia. Ele deixou a banda Titãs, em 1992, para
iniciar um trabalho solo, decidiu enveredar pela literatura, produzindo
uma poesia visual com tons concretistas. Deste modo, deu continuidade
às propostas estéticas do concretismo através de caligrafias que assimi-
lam a adesão a uma poética que explora a visualidade e a dimensão físi-
ca da palavra. Você pode verificar isto através de alguns de seus poemas:
Cf. ANTUNES, Arnaldo.
Nome. Rio de Janeiro:
BMG, 1993; e ANTU-
NES, Arnaldo. 2 ou +
corpos no mesmo
espaço. São Paulo:
Perspectiva, 1997.

Dentro Pouco

128
Anos 70 e 80 Capítulo 10

Agouro

Nome

Leia mais!
Para saber mais sobre a poesia concreta, seus poetas mais significativos,
além de vários poemas que se movem e se trans-formam a cada movimen-
to do mouse, visite os seguintes sites e deixe a criatividade fluir:

<http://www.poesiaconcreta.com/>

<http://arvoredospoemas.blogspot.com/2007/09/poesia-concreta.
html>

<http://www.tanto.com.br/haroldodecampos-circunloquio.htm>

Acessos realizados em: 24 set. 2008.

129
Unidade E
A prosa do final do século XX:
violência e sexualidade
Introdução
Na Unidade deste livro, iremos abordar dois temas que atravessa-
ram a produção literária brasileira dos anos setenta até os dias atuais:
violência e sexualidade.

133
Rubem Fonseca Capítulo 11
11 Rubem Fonseca

Desta vez nos deteremos na prosa, pois, mesmo a censura política


exercendo a sua função, os anos setenta ficam na historiografia. Agora,
você irá conhecer um pouco mais de um dos importantes escritores des-
te período, Rubem Fonseca.

Rubem Fonseca começa a escrever nos anos sessenta. Surge como


renovador da narrativa urbana, ao trazer para a ficção o universo da
criminalidade e as vidas traumatizadas nas grandes cidades. Seus contos
são muito bem construídos, tanto ao reproduzir a gíria marginal quan-
to ao criar um narrador em terceira pessoa com domínio da narrativa.
Estas são as narrativas que compõem a vasta produção literária deste
autor: Os prisioneiros (contos, 1963); A coleira do cão (contos, 1965);
Lúcia McCartney (contos, 1967); O caso Morel (romance, 1973); Feliz
Ano Novo (contos, 1975); O homem de fevereiro ou março (antologia,
1973); O cobrador (contos, 1979); A grande arte (romance, 1983); Bufo
& Spallanzani (romance, 1986); Vastas emoções e pensamentos imperfei-
tos (romance, 1988); Agosto (romance, 1990); Romance negro e outras
histórias (contos, 1992); O selvagem da ópera (romance, 1994); Contos
reunidos (contos, 1994); O Buraco na parede (contos, 1995); Histórias de
Amor (contos, 1997); Do meio do mundo prostituto só amores guardei
ao meu charuto (novela, 1997); Confraria dos Espadas (contos, 1998);
O doente Molière (novela, 2000); Secreções, excreções e desatinos (con-
tos, 2001); Pequenas criaturas (contos, 2002); Diário de um Fescenino
(contos, 2003); 64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004); Ela e outras
mulheres (contos, 2006); O romance morreu (crônicas, 2007).

Em sua obra Rubem aponta o contraste social através de personagens


ricos e pobres, que são igualmente repulsivos. Neste sentido, o criminoso
pode ser um assassino profissional que se transforma em o “Cobrador” das
COSTA PINTO, Manuel
dívidas da sociedade, ou pode ser um industrial neurótico que, em “Pas- da. Literatura brasi-
seio Noturno”, atropela vários pedestres aleatoriamente. De acordo com leira hoje. São Paulo:
Publifolha, 2004. p. 91.
Manuel da Costa Pinto, “os contos de Fonseca não são habitados apenas
por meliantes: há desvalidos, mendicantes, pobres-diabos de toda sorte,

135
Literatura Brasileira III

as ‘pequenas criaturas’ que dão nome a um de seus livros mais recentes e


aos quais ele retribui, dando voz aos deserdados da sarjeta brasileira.” De
um certo modo, os contos deste autor expõem uma angústia em se viver
num mundo contaminado de neuroses e conflitos contemporâneos. Um
exemplo significativo disto é o conto O outro, que você pode ler agora:
FONSECA, Rubem.
O outro. In: Contos O outro
Reunidos. São Paulo:
Companhia das Letras,
1994. Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. O car-
ro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e
entrava.

Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas, lendo


memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com
problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado dura-
mente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil.

Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes
das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava
mais de cinqüenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha se-
cretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia,
eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ser feito.
Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu
me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente traba-
lho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava
tanto.

Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao
chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um su-
jeito que me acompanhou até a porta dizendo “doutor, doutor, será que
o senhor podia me ajudar?”. Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco depois,
quando estava falando ao telefone para São Paulo, o meu coração disparou.
Durante alguns minutos ele bateu num ritmo fortíssimo, me deixando ex-
tenuado. Tive que deitar no sofá, até passar. Eu estava tonto, suava muito,
quase desmaiei.

136
Rubem Fonseca Capítulo 11
Nessa mesma tarde fui ao cardiologista. Ele me fez um exame minucioso, in-
clusive um eletrocardiograma de esforço, e, no final, disse que eu precisava
diminuir de peso e mudar de vida. Achei graça. Então, ele recomendou que
eu parasse de trabalhar por algum tempo, mas eu disse que isso, também,
era impossível. Afinal, me prescreveu um regime alimentar e mandou que
eu caminhasse pelo menos duas vezes por dia.

No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a caminhada receitada


pelo médico, o mesmo sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro.
Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos. Dei a ele
algum dinheiro e prossegui.

O médico havia dito, com franqueza, que se eu não tomasse cuidado pode-
ria a qualquer momento ter um enfarte. Tomei dois tranqüilizantes, naquele
dia, mas isso não foi suficiente para me deixar totalmente livre da tensão.
À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler
um livro, mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a
televisão mas não consegui agüentar mais de dez minutos. Voltei da minha
caminhada, depois do jantar, e fiquei impaciente sentado numa poltrona,
lendo os jornais, irritado.

Na hora do almoço o mesmo sujeito emparelhou comigo, pedindo dinhei-


ro. “Mas todo dia?”, perguntei. “Doutor”, ele respondeu, “minha mãe está
morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo,
só o senhor.” Dei a ele cem cruzeiros.

Durante alguns dias o sujeito sumiu. Um dia, na hora do almoço, eu estava


caminhando quando ele apareceu subitamente ao meu lado. “Doutor, mi-
nha mãe morreu”. Sem parar, e apressando o passo, respondi, “sinto muito”.
Ele alargou as suas passadas, mantendo-se ao meu lado, e disse “morreu”.
Tentei me desvencilhar dele e comecei a andar rapidamente, quase cor-
rendo. Mas ele correu atrás de mim, dizendo “morreu, morreu, morreu”, es-
tendendo os dois braços contraídos numa expectativa de esforço, como
se fossem colocar o caixão da mãe sobre as palmas de suas mãos. Afinal,
parei ofegante e perguntei, “quanto é?”. Por cinco mil cruzeiros ele enterrava
a mãe. Não sei por que, tirei um talão de cheques do bolso e fiz ali, em pé

137
Literatura Brasileira III

na rua, um cheque naquela quantia. Minhas mãos tremiam. “Agora chega!”,


eu disse.

No dia seguinte eu não saí para dar a minha volta. Almocei no escritório. Foi
um dia terrível, em que tudo dava errado: papéis não foram encontrados
nos arquivos, uma importante concorrência foi perdida por diferença míni-
ma; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cál-
culos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À
noite, mesmo com os tranqüilizantes, mal consegui dormir.

De manhã fui para o escritório e, de certa forma, as coisas melhoraram um


pouco. Ao meio-dia saí para dar a minha volta.

Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na


esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em
sentido contrário. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos baten-
do na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o
passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo per-
seguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o qual tentei
lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, “doutor, doutor”.
Sem parar, eu perguntei, “agora o quê?”. Mantendo-se ao meu lado, ele dis-
se, “doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo”.
Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, “arranje um em-
prego”. Ele disse, “eu não sei fazer nada, o senhor tem que me ajudar”. Cor-
ríamos pela rua. Eu tinha a impressão de que as pessoas nos observavam
com estranheza. “Não tenho que ajudá-lo coisa alguma”, respondi. “Tem sim,
senão o senhor não sabe o que pode acontecer”, e ele me segurou pelo
braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico
e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e cansaço. “É a última vez”, eu
disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.

Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentina¬mente, súplice
e ameaçador, caminhando ao meu lado, arruinando a minha saúde, dizen-
do é a última vez doutor, mas nunca era. Minha pressão subiu ainda mais,
meu coração explodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele
sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?

138
Rubem Fonseca Capítulo 11
Resolvi parar de trabalhar uns tempos. Falei com os meus colegas de direto-
ria, que concordaram com a minha ausência por dois meses.

A primeira semana foi difícil. Não é simples parar de repente de trabalhar.


Eu me senti perdido, sem saber o que fazer. Mas aos poucos fui me acostu-
mando. Meu apetite aumentou. Passei a dormir melhor e a fumar menos.
Via televisão, lia, dormia depois do almoço e andava o dobro do que andava
antes, sentindo-me ótimo. Eu estava me tornando um homem tranqüilo e
pensando seriamente em mudar de vida, parar de trabalhar tanto.

Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu ines-
peradamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? “Dou-
tor, não me abandone!” Sua voz era de mágoa e ressentimento. “Só tenho
o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de
um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!” — e ele encostou o seu corpo
bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito
azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador.

Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado


para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chega-
mos na minha casa. Eu disse, “espere aqui”.

Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse
“não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo”. Não acabou de falar
ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi
que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão
grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia
esconder.

Ainda não chegou o momento de nos despedirmos do tema violência.


Passaremos a abordar esta temática a partir da prosa ficcional de Hilda Hilst.

139
Hilda Hilst Capítulo 12
12 Hilda Hilst
Hilda Hilst nasceu em Jaú, São Paulo, em 1930, e morreu em
2004. Escritora versátil, cuja obra perpassou a poesia, a prosa, o teatro
e a crônica, Hilda realizou uma verdadeira renovação no repertório
da ficção brasileira, sua prosa mescla os diferentes gêneros literários
produzindo um texto holístico.

Diante das dificuldades enfrentadas para tornar-se uma escri- Cf. ROSENFELD, Ana-
tora reconhecida no âmbito da literatura brasileira, Hilda desafiou o tol. Hilda Hilst: poeta,
narradora, dramatur-
cânone sob o olhar de um dos críticos mais respeitados, Anatol Ro- ga. In: HILST, Hilda.
senfeld, o responsável pelo prefácio de seu primeiro livro de ficção Fluxo-Floema. São
Paulo: Perspectiva,
Fluxo-Floema. Nesse texto, Rosenfeld situa o leitor quanto à traje- 1970. p. 14.
tória literária da escritora, informando que ela passou inicialmente
pela poesia, com o livro Presságio, e em seguida (1967/1969) expe-
COELHO, Nelly Novaes. A
rimentou outro gênero literário, o dramático, a fim de atingir um poesia obscura/luminosa
público maior, já que seu intuito era abranger um número mais sig- de Hilda Hilst; A meta-
morfose de nossa época;
nificativo de leitores, fato que não lhe foi possível através da poesia, Fluxo-Floema e Qadós:
de acordo com a palavra do crítico: “[...] a obra poética não ‘batia a busca e a espera. In:
_____ (Org.). A literatura
no outro’. [...] Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo feminina no Brasil con-
tempo, a vontade de se ‘despejar’ nele, de nele encontrar algo de si temporâneo. São Paulo:
Siciliano, 1993. p. 80.
mesma, já que sem esta identidade ‘nuclear’ não existiria o diálogo
na sua acepção verdadeira.”
RIBEIRO, Leo Gilson. Da
ficção. In: Cadernos de
Outros dois críticos literários, dos poucos que se debruçaram, literatura brasileira.
Hilda Hilst. São Paulo:
de fato, sobre a obra hilstiana, compartilham da mesma opinião de Instituto Moreira Salles,
Anatol Rosenfeld, Nelly Novaes Coelho e Léo Gilson Ribeiro. Sem nº 8, out/1999. p. 82.

economizar predicados, a ensaísta enfatiza o caráter versátil da escri-


tora no seguinte comentário:

Poeta, dramaturga e ficcionista, tríplice (e rara) conjugação de for-


ças criadoras, a paulista Hilda Hilst tem se revelado nestes 40 anos
de produção (de mais de uma dezena de títulos) como uma das
personalidades literárias mais completas e instigantes do Brasil
contemporâneo .

141
Literatura Brasileira III

Em um valioso ensaio sobre a ficção de Hilda, Leo Gilson Ribeiro


afirma que a escritora parece ser a mais profunda estilista da literatura
brasileira. Colocando-a entre os imortais da língua portuguesa, como
Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, destacando a força e a beleza da
linguagem empregada por ela. Segundo considera o crítico,

ambos [Rosa e Pessoa] responsáveis pela propagação desse nosso


idioma, que tem um registro de tons semelhante ao de um órgão
barroco de coloridas vozes, essa língua inculta e abandonada à igno-
rância de seus tesouros, brilha como um esplendor singular quando
se torna o instrumento sensível e matizado da nossa maior Literatu-
ra, brandido por Hilda Hilst.

Um outro olhar que capta a escrita hilstiana é o de Vera Queiroz


– que desenvolve uma pesquisa sobre a inclusão/exclusão de algu-
QUEIROZ, Vera. Hilda
Hilst: três leituras. Flo-
mas escritoras brasileiras do século XX no cânone. Sob uma pers-
rianópolis: Mulheres, pectiva feminista de gênero, a pesquisadora, ao estudar a produção
2000. p. 60-61.
literária de Hilst, questiona a falta de uma real inserção de sua obra
no cânone literário brasileiro, já que se trata da produção de uma das
mais vigorosas e ousadas escritoras da literatura brasileira:

Se a literatura de Hilda Hilst constitui um caso, no sentido de ser nos-


sa mais forte representante da linhagem dos malditos, dos místicos,
resta-nos ainda compreender: por que sua singularidade ainda não
pôde ser com mais vigor incorporada ao cânone?

Apesar de enaltecida por alguns críticos brasileiros, conforme


demonstrado acima, por ser uma das maiores revelações literárias
do Brasil, depois dos canônicos Guimarães Rosa e Clarice Lispec-
tor, comparações realizadas por Léo Gilson Ribeiro e Vera Queiroz,
respectivamente – a obra hilstiana encontrou-se, durante muitos
anos, à margem do cânone.

Muitas são as justificativas para esta exclusão, a maioria centra-se


na ausência de leitores preparados para mergulhar e entender os temas
abissais, míticos, herméticos que colorem as páginas destes escritos,

142
Hilda Hilst Capítulo 12
projetando no leitor um estado de sítio constante, em função das ex-
cruciantes demandas pelo inominável – o sentido da vida, o sentido
da morte, as formas do amor, a fatalidade do tempo. Esta temática (QUEIROZ, op. cit., p. 20) .
existencial também foi uma das marcas presentes na fala da escrito-
ra, pois, nas várias oportunidades que a imprensa lhe concedeu, Hil-
da demonstrou uma preocupação com o leitor, que, ao ler sua obra,
geralmente, não a entende por considerá-la hermética. Cortando-se
facilmente com as palavras-navalhas que permeiam suas páginas, de-
monstrando não estar apto/a para adentrar no mundo complexo e
avassalador que a escrita da autora traz à tona. Na passagem a seguir,
Hilst procura justificar suas escolhas: HILST, Hilda. Um diálo-
go com Hilda Hilst. In:
COELHO, Nelly Novaes
Considero a prosa muito difícil, porque não acho que a história seja et al. Feminino singu-
importante na literatura atual. Acho que hoje é importante a emoção, lar: a participação da
mulher na literatura
todo o traçado de emoção que você pode passar para o outro. A mi- brasileira contempo-
nha vontade sempre é de fazer uma radiografia da emoção, porque rânea. São Paulo: GRD;
Rio Claro, SP: Arquivo
acho que histórias, você lê nos jornais todos os dias. Há mil histórias Municipal, 1989. p.
fantásticas. Então acho que o importante é você descrever todas as 149.

suas máscaras, todo o percurso de uma máscara em pouquíssimo


tempo, como ela pode se modificar. É isso o que eu quero passar, an-
tes de tudo. É esse caminho da emoção mais profunda do homem,
todo esse desacerto consigo mesmo, através do amor, da fantasia, da
razão, em todos os níveis, a pura emoção, é isso que eu quero.

Nelly Novaes Coelho, ao fazer um apanhado cronológico sobre


a poesia hilstiana, observa que durante sete anos, de 1967 a 1974,
houve um silêncio da escritora; surgia, assim, o teatro e a ficção.
A produção poética de Hilda é dividida entre títulos originais e
seleções, organizadas de acordo com o tema: Presságio (1950); Ba-
lada de Alzira (1951); Balada do festival (1955); Roteiro do silêncio
(1959); Trovas de muito amor para um amado senhor (1961); Ode
fragmentária (1961); Sete cantos do poeta para o anjo (1962); Poesia
(1959/1967) (1967); Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974);
Poesia (1959/1979) (1980); Da morte. Odes mínimas (1980); Canta-
res de perda e predileção (1983); Poemas malditos, gozosos e devotos
(1984); Sobre a tua grande face (1986); Amavisse (1989); Alcoóli-

143
Literatura Brasileira III

cas (1990); Bufólicas (1992); Cantares do sem nome e de partidas


(1995); Do desejo (1992); Do amor (1999).

A produção teatral de Hilda Hilst, escrita entre os anos de 1967


e 1969, é composta por oito peças: A possesssa, inicialmente chamada
A empresa (1967); O rato no muro (1967); O visitante (1968); Auto da
barca de Camiri, também chamada Estória, muito notória, de uma ação
declaratória (1968); As aves da noite (1968); O novo sistema (1968); O
verdugo (1969); A morte do patriarca (1969).

A peça O verdugo conquistou o Prêmio Anchieta no ano de 1969,


no entanto não foi com a dramaturgia que Hilda conseguiu atingir o
público leitor. Seus dramas permaneceram inéditos até o ano 2000,
quando a editora Nankin decidiu publicá-los em dois volumes.

No que tange à prosa ficcional, Hilda possui um vasto número


de narrativas, são elas: Fluxo-Floema (1970); Qadós (1973); Ficções
(1977); Tu não te moves de ti (1980); A obscena senhora D (1982);
Com os meus olhos de cão e outras novelas (1986); O caderno rosa de
Lori Lamby (1990); Cartas de um sedutor (1991); Contos d’escárnio/
Textos grotescos (1992); Rútilo nada. A obscena senhora D. Qadós
(1993); Estar sendo. Ter sido (1997).

É entrando em contato com a emoção, este desacerto consigo mes-


mo, através do amor, da desrazão, da morte, do desamparo, da paixão,
presentes na prosa de Hilda Hilst, que será realizada uma breve leitura
do texto Rútilo NADA – produção ficcional datada de 1993.
HILST, Hilda. Rútilos.
São Paulo: Globo,
2003. p. 91. Rútilo NADA inicia, abruptamente, com a afirmativa “Os sentimen-
tos vastos não têm nome”. As personagens do conto são: Lucius Kod,
jornalista de 35 anos; Lucas, estudante de História e poeta de 20 anos; o
pai de Lucius, banqueiro; e a filha de Lucius. Lucius conhece Lucas atra-
vés de sua filha, que o apresenta como seu namorado e que escreve poe-
sias sobre muros, além de ser estudante de História. Lucius apaixona-se
perdidamente por Lucas, sem se preocupar com os sentimentos da filha,
porém Lucas chama-lhe a atenção para as possíveis dores que este rela-
cionamento poderá causar:
144
Hilda Hilst Capítulo 12
tua filha vai sofrer, Lucius
alguém vai sofrer?
e não é ético.
ético? que criterioso e maduro para os teus 20 anos, ético é descobrise
inteiro livre como me sinto agora, minha filha, se pudesse compreen-
der, compreenderia
nunca vai compreender. Me ama.

Como de fato acontece, ao leitor não fica evidente qual a situação da


filha de Lucius, não se sabe nem mesmo qual é o seu nome. Esta perso-
nagem cumpre seu papel ao apresentar o namorado ao pai, depois desse Proferida na Abra-
episódio sua participação na trama é desnecessária, ela, assim, é retirada lic (2005), em Porto
Alegre.
de cena. Isto nos remete à fala de Mary Louise Pratt que ao analisar a pro-
dução contemporânea de autoria masculina, na América Latina, percebe
que as mulheres ou ocupavam papéis secundários, ou eram totalmente
excluídas destas narrativas. Estes ambientes tornam-se, por sua vez, mo-
nossexuais, não necessariamente homossexuais, havendo, portanto, uma
remasculinização literária, cultivando, assim, uma certa misoginia.

Em Rútilo NADA, a única personagem feminina é excluída,


criando, desta forma, um espaço monossexual e, neste caso, homos-
sexual. Quanto à misoginia, esta pode ser percebida em algumas pas-
sagens do texto: quando o narrador vai construindo metáforas liga-
das a imagens femininas, com um certo tom pejorativo, ao descrever
(Ibidem, p. 86).
sua dor pela morte do companheiro: “Gritos finos de marfim de uma
cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. De
uma cadela sim. Porque as fêmeas conhecem tudo da dor, fendem-
-se ou são desventradas para dar à luz e eu Lucius Kod neste agora
(Ibidem, p. 90).
me sei mais uma esquálida cadela.”; ou quando descreve a morte:
“Hoje à noite não serás mais meu mas dessa fina e fecunda, Essa ma-
drasta que engole tudo, Essa que toma e transmuta, Essa que escura
e finíssima senhora, umidade, frescor, o grande ventre sem decoro
recebendo o mundo, migalhas, excremento tripas teu adorado corpo
luzente”; ou mesmo quando Lucius explicita sua ojeriza às mulheres
ao comentar com Lucas suas relações passadas em comparação com
(Ibidem, p. 91-92).
esta vivenciada por eles:

145
Literatura Brasileira III

[...] carne de Lucius antes era mansa e tépida, brioso corpo de antes
tão educado respondendo rápido a qualquer afago, de mulheres na-
turalmente, ah sim, naturalmente, mulheres com discursos de várias
qualidades, umas de língua altiva rinchando política e sabedoria (os
BUTLER, Judith. Cor- antagônicos tentando semelhança), espigadas leves, as blusas soltas
pos que pesam: sobre
os limites discursivos traduzindo plena liberdade, idéias, corpos elásticos, ágeis, e quantas
do ‘sexo’. In: LOURO, vezes na cama despencando, gemendo, dóceis como pequenos ani-
Guacira Lopes (Org.). O
corpo educado: peda- mais doentes, trêmulas, encharcadas se abrindo famintas de sua dura
gogia da sexualidade. vara, cadê o discurso, o critério, a bacia de idéias, cadê pombinha, cadê?
Trad. Tomaz Tadeu da
Silva. Belo Horizonte: às vezes você fala como se tivesse raiva das mulheres é mesmo, Lucas?
Autêntica, 1999. p. não tinha percebido...
151-172, apud LOURO,
Guacira Lopes. Um
corpo estranho: en- É interessante observar que esta parece ser a primeira experi-
saios sobre sexualida-
de e teoria queer. Belo ência homossexual de Lucius, embora não fique claro. Até então,
Horizonte: Autêntica, conforme o trecho acima citado, suas relações eram heterossexuais.
2004. p. 44.
Judith Butler ao discutir o conceito de performance, afirma que a lin-
guagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma consta-
tação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da no-
meação, constrói, faz aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os
sujeitos. Lucius, ao rememorar seu primeiro encontro com Lucas – de-
pois de ser acusado por seu pai “de se fazer de mulherzinha com o moço
machão” – refere-se a uma transformação que sofreu ao se deparar com a
beleza de seu genro: “Farpas pontudas emergindo do corpo dos con-
HILST, Rútilos..., p. ceitos. Antes o conceito redondo. Liso. [...] Posso deduzir que escapei
87-88. da casca consistente, que eu estava encerrado ali, não que o meu corpo
era o fruto da paineira, todo fechado, e num instante abriu-se. Abriu-
-se por quê? Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante
de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se
um tigre me lanhasse o peito.” Ao usar a metáfora do abrir a casca ao
se permitir vivenciar a sexualidade de uma outra maneira, Lucius nos
remete a uma outra imagem usualmente utilizada quando se alude a
experiências homossexuais, ou seja, quando se instaura o dilema entre
assumir-se ou permanecer enrustido, neste caso, sair ou não de den-
tro do armário. No caso do protagonista de Rútilo NADA, ele “sai do
(Ibidem, p. 88). armário” e lança-se nesta paixão desenfreada por Lucas: “Vejo-o de
costas agora, é sólido, crível, nada de angélico ou inefável, e um novo

146
Hilda Hilst Capítulo 12
ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e con-
traditórios, aguçados e leves, violentos e sórdidos.”

Vale salientar que em Rútilo NADA, o amor entre Lucius e Lucas


irá despertar um sentimento de traição não em sua filha adolescente
e namorada de Lucas, mas, sim, no pai de Lucius, que ao descobrir
o envolvimento amoroso que há entre seu filho e o namorado de sua
neta, decide enviar dois capangas para darem uma lição em Lucas,
(Ibidem, p. 87).
que neste episódio é violentado de todas as maneiras possíveis, e não
tolerando a dor provocada por tamanha agressão, comete suicídio:

então anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro,


com que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos,
ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida li-
gação, e esse moleque bonito era o namoradinho da minha neta, en-
tão vocês combinaram seus crápulas, aquele crapulazinha namorou
minha neta para poder ficar perto de você. gosta de cu seu canalha?
gosta de merda? fez-se também de mulherzinha com o moço ma-
chão? ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se
dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate-se.

Se por um lado, esta narrativa estende-se sobre o amor entre Lucius


e Lucas, por outro lado, não há qualquer momento do texto em que seja
mencionado o termo homossexual ou heterossexual, sugerindo, assim,
uma certa ruptura desta oposição binária, o que nos remete à teoria (LOURO, op. cit., p.
07-08).
queer, que, de acordo com Guacira Lopes Louro, significa:

[...] estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexua-


lidade desviante – homossexuais, bissexuais, transsexuais, travestis,
drags. É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos
‘tolerado’. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o
centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que
desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o descon-
forto da ambigüidade, do ‘entre lugares’, do indecidível. Queer é um
corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina.

147
Literatura Brasileira III

Conforme Jonathan Culler, “a explosão da recente teorização so-


CULLER, Jonathan. Te- bre raça, gênero e sexualidade no campo dos estudos literários deve
oria literária: uma in- muito ao fato de que a literatura fornece materiais ricos para compli-
trodução. Trad. e notas
de Sandra G. Vascon- car as explicações políticas e sociológicas acerca do papel que esses
celos. São Paulo: Beca fatores desempenham na construção da identidade.”
Produções Culturais,
1999. p. 109.
É desta forma que a escrita de Hilda Hilst se apresenta, em
auto-relevo, preenchendo e deixando-se preencher. Aderindo-se ao
leitor e impregnando-o de sensações. Embora esta narrativa hils-
tiana seja uma fronteira entre binarismos, geralmente, antagônicos
– vida/morte; amor/ódio; masculino/feminino, heterossexualida-
de/homossexualidade – ela não consegue se desvincular das amar-
ras do pensamento patriarcal.

Neste sentido, Lucius Kod e Lucas representam as dificuldades,


ainda hoje, enfrentadas pelos sujeitos que tentam romper com as
normas instauradas pelo sistema hegemônico. Este rútilo amor é li-
teralmente ofuscado pela figura do patriarca, que por não conseguir
sair do armário manda matar o desejo do outro, que é também o seu,
HILST, Rútilos..., p. 103.
com um ato de pura covardia: “Até um dia. Na noite ou na luz. Não
devo sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele
outro: tudo o que é humano me foi estranho. Lucas”.

O tema até então abordado através do conto hilstiano nos conduz a


outro importante escritor do final do século XX: Caio Fernando Abreu.

148
Caio Fernando Abreu Capítulo 13
13 Caio Fernando Abreu
Vamos agora conhecer um pouco da trajetória literária de Caio
Fernando Abreu, através de fragmentos das inúmeras correspondências
que ele trocou com amigos e familiares. Depois, entraremos em contato
com a sua prosa ficcional. Segundo José Castello um dos críticos jorna-
listas que acompanharam a escrita deste gaúcho, CASTELLO, José. Caio
Fernando Abreu: o po-
eta negro. In: Inventá-
Caio Fernando Abreu passou boa parte de seus quarenta e sete anos rio das sombras. Rio
enamorado da morte. Preferiu sempre as atmosferas sombrias e se dei- de Janeiro: Record,
1999. p. 59.
xou guiar por uma estética dark que começava nas roupas negras, nas
olheiras emprestadas de El Greco, no porte arqueado, e se ampliava em
suas idéias depressivas a respeito do mundo ao seu redor.

Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago, em 1948, no interior do


Rio Grande do Sul. Mudou-se para a capital rio-grandense em 1965 para
cursar o colegial como aluno interno do Instituto de Porto Alegre. No final
da década de 1960, foi morar em São Paulo, na situação de funcionário da
Editora Abril, compondo a equipe de jornalistas da recém-criada revista
Veja. Naquele momento, devido ao fracasso da revista semanal, muitos
empregados da Editora Abril foram demitidos, dentre os quais Caio, que
diante desta nova situação decide voltar para Porto Alegre.

No dia 13 de março de 1969, escreveu para seus pais comunicando-lhes


a demissão e o possível retorno ao Rio Grande do Sul, expôs o panorama de
sua produção literária e os prováveis meios de publicação, demonstrando,
assim, os vários contatos que havia articulado durante o tempo que passara
em São Paulo. Caio conheceu Hilda Hilst nesta época e, antes de retornar
para o Rio Grande do Sul, conviveu alguns dias na casa de praia com a es-
critora paulista, a Casa da Lua, e depois em sua residência em Campinas, na
Casa do Sol, antes de retornar para o Rio Grande do Sul. É, portanto, duran-
te este período conturbado, devido à ditadura militar, que Caio e Hilda se
correspondem, traçando um dos percursos da produção literária brasileira,
inclusive a deles, diante de todas as adversidades.

149
Literatura Brasileira III

A publicação do primeiro conto de Caio, O príncipe sapo, dá-se na


revista Cláudia, por intermédio de Carmem da Silva, jornalista e es-
critora, responsável por uma coluna deste periódico, intitulada A arte
de ser mulher. Carmem da Silva torna-se uma divulgadora da obra do
escritor gaúcho, mostrando seus contos para os amigos, sempre com
MORICONI, Ítalo muito entusiasmo, além de tentar, obstinadamente, publicar seus tra-
(Org.). Caio Fernando balhos: “Recebi uma carta de Carmem da Silva, diz ela que gostou dos
Abreu: cartas. Rio de
Janeiro: Aeroplano, meus livros que levou (o romance, a novela e os contos), e deu-os à Edi-
2002. p. 372-373. tora Expressão e Cultura. [...] Achei muito bom isso duma pessoa com
certa influência, como Carmem, se interessar por mim e ficar visitando
editores com calhamaços na mão.”

Mas não foi somente Carmem quem auxiliou Caio nesta incansável
busca pelo reconhecimento e pela publicação de sua obra literária. Há ou-
tros nomes importantes compondo a lista de amigos preocupados em di-
vulgar os textos deste jovem escritor, tais como: Nélida Piñon, Lygia Fagun-
des Telles, Léo Gilson Ribeiro, Maria Helena Cardoso, dentre outros. Tudo
isto facilitou o ingresso de Caio no cânone da literatura brasileira; primeiro
ele saiu do Rio Grande do Sul para morar em São Paulo, ou seja, o centro
cultural do país, lugar onde conheceu outros escritores e críticos literários,
e, assim, foi construindo sua teia de relações e conquistando espaço no meio
intelectual de maior efervescência do Brasil. Ele transitava nos diversos es-
paços artísticos (literatura, cinema, teatro, música, pintura) demonstrando
uma insaciável sede de conhecimento, somada à eterna busca pessoal.

Devido à dificuldade para publicar o que escrevia, Caio submeteu


seus contos a alguns editais, ainda em 1969. Nesta ocasião, ganhou o
Prêmio Fernando Chinaglia, e recebeu da União Brasileira de Escrito-
res a seguinte justificativa para ter conseguido o primeiro lugar: “força,
violência e atualidade dos seus contos”. Com a narrativa O ovo, ele con-
seguiu, nesta mesma época, uma premiação no concurso Henry Miller,
da Editora Record. Além disso, Caio também aguardou a publicação
de outro conto na antologia Roda de fogo, organizada por Carlos Jorge
Appel, publicada pela Editora Movimento, de Porto Alegre. Foi por esta
mesma editora que saiu a primeira edição do livro inaugural de Caio
Fernando Abreu, Inventário do irremediável, em 1970.

150
Caio Fernando Abreu Capítulo 13
Caio, então, sofreu na própria pele o dissabor da censura quando
um dos seus contos, A visita, sofreu algumas alterações ao ser publi-
cado no jornal Estado. Mais tarde, já no ano de 1972, inscreveu esse
mesmo conto em um concurso e ganhou o primeiro prêmio do Insti-
tuto Estadual do Livro.

Alguns anos mais tarde, em 1973, Caio foi convidado pelo Suple-
mento Literário de Minas Gerais - composto por Murilo Rubião, Carlos
Roberto Pellegrino, Humberto Verneck e Luiz Gonzaga Vieira - para
participar de uma antologia de contos, composta pelos trinta e dois mais
importantes contistas nacionais, dentre os quais Lygia Fagundes Telles,
Nélida Pinõn, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Ruben Fonseca e Mo-
acyr Scliar. Ele enviou o que considerava sua melhor narrativa, Ascen-
(Ibidem, p. 432)
são e queda de Robhéa, manequim e robô, “a piradíssima estória de uma
epidemia tecnológica, em que as pessoas se transformam em robôs, com
toda uma crítica ao consumo e ao poder”.

Vale a pena salientar que a aproximação com Hilda Hilst e o acesso


à sua criação literária inspirou muito a escrita de Caio Fernando Abreu.
(Ibidem, p. 367)
Em alguns trechos de suas cartas, ele comenta o processo de mudança
que a sua ficção sofreu devido a este contato:

De tudo o que escrevi, só reconheço como uma tentativa de libertação


O ovo, que tem muita coisa em comum com o Osmo. Talvez A sereia,
mas acho que este ficou apenas no cômico, ao passo que O ovo trans-
cende essas fronteiras e vai até o absurdo. As tuas novelas me causaram
pruridos. Não tenho medo de derrubar tudo o que fiz e partir para algo
na mesma linha tua, penso no teu exemplo, começando a fazer coisas
completamente opostas à tua poesia, que era tão ou mais digna que
a minha prosa. Detesto coisas dignas, impecáveis, engomadas, lavadas
com anil: aceito nos outros, levando em conta, inclusive, o tempo em
que foram feitas. Mas não é mais tempo de solidez: a literatura tem que
ser de transição, como o tempo que nos cerca.

Caio encerra as mal traçadas linhas de uma vida que começou a fa-
zer sentido no início do fim, em 1996, quando se depara com o diagnós-

151
Literatura Brasileira III

tico positivo da doença: era portador do vírus HIV. Nos últimos anos,
dizia-se mais sereno, republicou alguns livros e tentou amenizar, sempre
que possível, o tom lamuriento e ácido de sua escrita, neste momento, o
escritor underground deu lugar ao regador de flores.

Após este contato com a obra de Rubem Fonseca, Hilda Hilst e


Caio Fernando Abreu, guiados pelos temas violência e sexualidade, ire-
mos apresentar alguns escritores que se ingressaram no panorama da
literatura brasileira a partir da década de 90.

Quando nos deparamos com toda esta sorte de textos, datados na


última década do século XX, que se ocupam, em sua maioria, em re-
presentar uma série de vivências afetivas, ou ainda quando nos torna-
mos leitores de dramas, romances, contos, novelas deste período, não
há como não nos espantarmos com a incidência de casos semelhantes
com as questões relativas à subjetividade, ao corpo, às perdas materiais
Escritor João Gilberto Noll,
nascido em Porto Alegre em 1946 e sentimentais. Não só a solidão, a esquizofrenia, a perda de identidade,
as mutilações, a libido dissociada do afeto; como, por exemplo, nas nar-
rativas paradigmáticas de João Gilberto Noll.

Como não vamos poder nos deter em todas as narrativas deste pe-
ríodo, é importante registrar que foi possível constatar uma significa-
tiva presença da sexualidade como tema central de contos, romances,
dramaturgia. Os personagens se emancipam humanamente através do
sexo e quando nada mais parece fazer sentido é o sexo que parece tudo
resolver. Há ainda a falta de um lastro amoroso nas relações pessoais e
os protagonistas das narrativas são remetidos à sua própria solidão e à
sua incapacidade de comunicação. Essas parecem ser as matrizes redun-
dantes e trágicas de muitas das narrativas da primeira metade dos anos
90. A partir da segunda metade dos anos 90 vemos voltar narrativas que
tematizam a cidade, mostrando um quadro de referências imagéticas,
sonoras e comportamentais.

Mas é pelo corpo que estabelecemos uma relação entre a história


social e cultural dos anos 80-90 e dos anos 2000. A ênfase que a litera-
tura atual confere ao corpo, seja ele visto como evasão ou mesmo forma

152
Caio Fernando Abreu Capítulo 13
de encontro, é um recorte na realidade que deixa à mostra outras re-
alidades, também permeadas pelo mesmo estado de espírito perplexo EAGLETON, Terry.
que condiciona hoje as relações pessoais, mas também consegue escre- Depois da teoria: um
olhar sobre os Estudos
ver uma crônica de costumes contemporâneos. Nesse sentido o próprio Culturais e o pós-
sexo, mais que um episódico tema da ficção atual, pode se constituir -modernismo. Trad.
Maria L. Oliveira. Rio
como a metáfora da condição contemporânea. de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. p.
14-15.
A este respeito, Terry Eagleton, em seu livro Depois da teoria, faz
uma análise sobre esta busca incessante pelo prazer, pelo erótico, no
mundo contemporâneo:

Estruturalismo, marxismo, pós-estruturalismo e similares já não são mais


os assuntos sexy de antes. Em vez disso, o que é sexy é o sexo. Nas bases
mais entusiasmadas da academia, um interesse pela filosofia francesa
deu lugar a uma fascinação pelo french kiss. Em alguns círculos culturais,
a política da masturbação exerce fascínio muito maior do que a política
do Oriente Médio. O socialismo perdeu lugar para o sadomasoquismo.
Entre estudantes da cultura, o corpo é um tópico imensamente chique,
na moda, mas é, em geral, o corpo erótico, não o esfomeado. Há um
profundo interesse por corpos acasalados, mas não pelos corpos
trabalhadores. [...] Questões intelectuais já não são mais um assunto
tratado em torres de marfim, mas fazem parte do mundo da mídia e
dos shopping centers, dos quartos de dormir e dos motéis. Como tal,
elas retornam ao domínio da vida cotidiana – mas só sob a condição
de correrem o risco de perder a habilidade de criticar essa mesma vida.

Leia mais!
CASTELLO, José. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e


crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

153
Unidade F
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
14 Breves Histórias para leituras
rápidas
Nosso livro está centrado em muitos nomes próprios e suas prin-
cipais obras. Procuramos traçar um painel da Literatura Brasileira do
século XX para que nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andra-
de, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade se integrassem
a João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector,
Lygia Fagundes Telles, Nelida Piñon, Lya Luft, aos poetas Haroldo de
Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, permitissem diálogos
com o Tropicalismo e a Poesia Marginal e que se somassem a Rubem
Fonseca, Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu, entre tantos outros. Mais
ainda: desejamos os apresentar para que todos eles fizessem parte do re-
pertório de leituras presentes e futuras para cada um e cada uma de nós.

Mas queremos mais, desejamos mais. Vamos adiante.

A premissa de nossa leitura é a seguinte: não há porque tentar mostrar


para nós, alunos e professores de Letras, uma representação pacificada da
literatura brasileira do século XX e XXI, mais especificamente dos últimos
cinquenta anos. Uma boa biblioteca pública, uma boa biblioteca particular Rubem Fonseca e
Caio Fernando Abreu
de um bom leitor nestes últimos anos não se furtará de ter livros de escri- foram estudados na
tores, como: Rubem Fonseca, de Chico Buarque, de Caio Fernando Abreu, Unidade E.

além dos citados acima, e dos poetas e romancistas brasileiros já lidos e es-
tudados, entre tantos outros, assim como a eles se misturarão livros teóricos
de teoria literária, de estudos culturais, livros sobre a indústria cultural e a
globalização econômica que passaram a moldar gradualmente a literatura, a
arte, o cinema e o teatro produzidos no Brasil a partir do Modernismo.

O eixo das preocupações da ficção brasileira a partir dos anos 90 do sé-


culo XX parece se deslocar cada vez mais da discussão sobre a identidade na-
cional (ou local) para o questionamento da identidade dos indivíduos, em sua
maioria brancos, classe média (exceção feita para textos testemunhais), seres
fragmentados, que ocupam não mais as ruas da cidade, mas diversificados
espaços urbanos: um escritor importante deste período foi João Gilberto Noll.

157
Literatura Brasileira III

Gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1946, João


Gilberto Noll vem se destacando na Literatura
Brasileira Contemporânea. Recebeu o prêmio Ja-
buti em cinco ocasiões, com destaque para as
obras: O cego e a dançarina (1980), Harmada
(1993), A céu aberto (1996), Mínimos múltiplos
comuns (1996) e Lorde (2004). Sua produção,
atualmente, tem se estendido para o público infantojuvenil, da qual
podemos destacar: O nervo da noite (2009) e Sou eu! (2009). Suas
produções mais recentes para o público adulto são Acenos e afagos
(2008) e Anjo das Ondas (2010). Mais informações você encontra
no site do autor: http://www.joaogilbertonoll.com.br/. Acesso em
07 ago. 2012.

Em um ensaio encaminhado a uma publicação da Universi-


dade Federal da Paraíba, para a publicação de um livro organi-
zado por uma das autoras desse nosso livro, Ana Cláudia Félix
Ira, por José Roberto Torero,
da coleção Plenos Pecados, Editora Gualberto, destacamos as “coleções” – ou obras – com sofisti-
Objetiva
cados projetos gráficos, como a coleção Plenos Pecados, da Edi-
tora Objetiva (Rio de Janeiro), composta pelos seguintes livros
que, embora conhecidos, aqui vão ser relembrados em bloco,
Roberto Feith é o e na sequência dos lançamentos, para visualizarmos a seleção
proprietário da Objeti- de escritores, escalada pela idealizadora e coordenadora da sé-
va e é visível o caráter
empresarial e comercial rie Isa Pessoa, e aprovada pelo proprietário da editora na época
que tem dado à sua Roberto Feith e equipe: Mal Secreto de Zuenir Ventura, sobre a in-
Editora.
veja; Xadrez, Truco e outras guerras de José Roberto Torero, sobre a
ira; Clube dos Anjos de Luiz Fernando Veríssimo, sobre a gula (os
Como você deve ter perce- três lançados em 1998); A Casa dos Budas Ditosos de João Ubaldo
bido, cada livro da coleção
Ribeiro, sobre a luxúria; Canoas e Marolas de João Gilberto Noll
integra/re(a)presenta cada
um dos sete pecados capi- sobre a preguiça; Terapia de Ariel Dorfman, sobre a avareza (os três
tais. Os dois últimos circu-
de 1999); e o O Vôo da Rainha de Tomas Eloy Martinez (2002) sobre
lam em tradução no Brasil.
a soberba. Já lançado e premiado na Espanha é incluído na coleção
como o pecado que faltava.

158
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
Mencionamos também todos os livros de uma coleção Literatura e Morte da
Editora Companhia das Letras (São Paulo): O Doente Molière de Rubem Fon-
seca e A Morte de Rimbaud de Leandro Konder (ambos lançados em abril de
Os romances men-
2000); Medo de Sade de Bernardo Carvalho (maio de 2000); Os Leopardos de cionados de Alberto
Kafka de Moacyr Scliar Stevenson sob as palmeiras de Alberto Manguel (junho Manguel e Leonardo
Pandura também cir-
de 2000); Bilac vê estrelas de Ruy Castro e Borges e os orangotangos eternos de culam em tradução no
Luiz Fernando Veríssimo (dezembro de 2000) e Adeus, Hemingway de Leo- Brasil.
nardo Padura (abril de 2001). Oito livros lançados em um ano. Uma série de
narrativas que entrecruzam literatura e história e que buscam acima de tudo
hospedar na narrativa mais contemporânea, pela paródia, pastiche, citação, A Morte
vida e obra de escritores e narrativas canônicas: Moliére, Rimbaud, Sade, de Rimbaud, por
Leandro Konder
Kafka, Stevenson, Hemingway, Borges e o brasileiro Olavo Bilac.

Jean-Baptiste Poquelin, conhecido como Jean


Molière (1622-1673), foi um dramaturgo
francês, ator e encenador, considerado um dos
mestres cda comédia sa.


Jean-Nicolas Arthur (1854-1891) foi um poeta fran-
cês. Illuminations, livro concluído em 1873, é com-
preendido como um livro síntese de toda a sua obra.

Robert Louis Balfour Stevenson (1850- 1894) foi um


novelista, poeta e escritor de escocês. Suas produ-
ções transformaram-se em clássicos universais, das
quais podemos destacar A Ilha do Tesouro
(1882/1883) e O Médico e o Monstro (1886).

Os Leopardos de Kafka, de
Moacyr Scliar

159
Literatura Brasileira III

Ernest Miller Hemingway (1899-1961) foi um escri-


tor norte-americano, autor de O velho e o mar
(1952).

Nenhum destes três autores O ideal seria que pudéssemos dissertar sobre cada uma destas
mora na América do Sul. Al- quinze narrativas, onze delas escritas por escritores brasileiros (hou-
berto Manguel mora no Ca-
nadá e Tomás Eloy Martinez ve uma espécie de Mercosul literário com a inclusão, nos projetos, dos
e Ariel Dorfman nos Estados argentinos Alberto Manguel e Tomás Eloy Martinez, do chileno Ariel
Unidos.
Dorfman; somando ainda a presença do cubano Leonardo Padura).

É possível, ao se retomar essas leituras, no exercício da memória


do tempo presente, pensá-las como livros em que os nomes dos autores
e dos autores destacados nos títulos, todos clássicos da literatura uni-
versal, tinham um apelo comercial. E de como eles, os autores, foram
capazes, à revelia desse propósito comercial – literatura para livrarias
mais comerciais, incluindo aí as livrarias de aeroporto, ir contra o pre-
domínio do discurso fácil e consumível, que tende a anestesiar a vida e
traduzir o mundo para a tranquilidade do já conhecido, do prosaico, e
conseguir uma unidade, um padrão narrativo próprio calcado em boas
tendências da literatura brasileira.

Estes escritores-leitores tanto podem nos remeter à História, à


introspecção de Raul Pompeia, à construção narrativa de Machado
de Assis, ao estranhamento de Clarice Lispector, à incomunicabi-
lidade anunciada por Lima Barreto, à violência literária de Rubem
Fonseca e a pornografia corajosa de Hilda Hilst. Se quisermos esta-
belecer uma relação com a nossa tradição literária. Os textos destas
coleções, praticamente todos escritos por encomenda, podem ser
mesmo um interessante tópico para pesquisa da história literária
brasileira no século XX.

160
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
Sob esta ótica, dá para concluir por antecipação que nesta ficção Porque o perfil de mui-
brasileira, que se pode chamar literatura do/para leitores do século tos dos leitores deste
século XXI inclui leituras
XXI, houve, sim, uma procura estética de uma expressão adequada diárias de posts de 140
ao momento histórico e cultural: a narrativa curta, a breve história caracteres (Twitter),
“curtição” de imagens,
para leituras rápidas. Fora destes projetos de coleção para estabelecer comentários, memes
uma possível relação com uma tradição literária, especialmente a das a todo o momento
(Facebook) e conversas
décadas compreendidas pós anos 60, selecionamos como sugestões rápidas, sem saudações
de leitura alguns livros publicados no início do século XXI: A Mãe e despedidas, objetivas,
cartesianas: nos chats
da Mãe da sua Mãe e suas filhas de Maria José Silveira, da Editora integrados aos leitores
Globo; As pessoas dos livros de Fernanda Young e Divã de Martha de e-mail, como é o caso
do Google Talk, Yahoo
Medeiros, ambos da Editora Objetiva; Vésperas de Adriana Lunardi, Messenger, entre outros.
Hoje acordei gorda e Por que os homens não cortam as unhas dos pés?
de Stella Florence, da Editora Rocco; Trouxa frouxa de Vilma Arêas
e Talk Show de Arnaldo Bloch, da Editora Companhia das Letras; A De Maria José Silveira,
Matemática da formiga de Daniela Beccacia Versiani e Sexo de André fomos posteriormente mo-
tivadas pelo livro anterior,
Sant’Anna da Editora 7 Letras; A Maldição do Macho de Nelson de lemos a bonita biografia,
Oliveira da Editora Record; O herói devolvido de Marcelo Mirisola Eleanor, Filha de Marx. SP:
Francis, 2003.
da Editora 34 e O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende
da Editora Objetiva. Todos respaldados por reconhecidas editoras Divã, foi um livro lido no
calor da hora do seu lança-
brasileiras foram bem recebidos na época em que surgiram e podem mento, sem estar apoiado
ser lidos como representativos de uma época. Poderíamos citar ago- no sucesso do filme de José
Alvarenga Junior em 2009.
ra os romances do premiado escritor Cristovão Tezza especialmente
seu livro O Filho Eterno.

Nossas leituras passaram também pelos livros: XAVIER Valêncio. O


mez da gripe e outros livros. SP: Companhia das Letras, 1998; RO-
DRIGUES, Sérgio. O homem que matou o escritor. RJ: Objetiva,
2000; TAVARES Zulmira Ribeiro. Cortejo em abril. Ficções. SP: Com-
panhia das Letras, 1998; MEDEIROS Martha. Porto Alegre: L&PM,
Capa do livro ‘O Filho
1997; AQUINO, Marçal. O Amor e outros objetos pontiagudos. SP: Eterno’, de Cristovão Tezza,
pela editora Record.
Geração, 1999 e BRACHER Beatriz. Azul e Dura. RJ: 7 Letras, 2002

161
Literatura Brasileira III

Essa seleção que optamos em aqui colocar como opção de pesqui-


sa e leituras futuras foram motivadas por algumas opções de gosto ou
por memórias de leituras.

Se o autor escapara aos atentados aparentemente mortais dos teóri-


cos Roland Barthes e de Michel Foucault, para quem, com consistência
BARTHES, Roland.“A Morte
teórica, nos convencem de que o autor ou não existe ou é uma figura-
do Autor”In Rumor da Lín- -função, quase tão ficcional como um personagem, para os leitores este
gua. SP: Brasilense, 1988.
nome na capa, mais uma vez, é fundamental. A leitura destes autores
era um gesto inaugural, a descoberta, mas permite que se estabeleçam
FOUCAULT, Michel. O que é
um autor? Lisboa: Veja, sd
conexões de suas narrativas com uma tradição literária já estabelecida
para se registrar vozes destoantes ou afinadas com tantas leituras que
fizemos ou podemos ainda fazer.

Sem aprofundar as narrativas em si, registramos que nelas foi pos-


sível constatar uma significativa presença da sexualidade como tema
narrativo. Os personagens sempre se emancipam humanamente através
Se você fizer uma pesquisa
na Internet, encontrará inú- do sexo e quando nada mais parece fazer sentido é o sexo que parece
meros poemas desses es- tudo resolver. Há nelas também a falta de um lastro amoroso de relações
critores disponíveis na rede.
Que tal começar essa busca duradouras, relações que se reduzem a si mesmas e remetem seus pro-
por: www.releituras.com.br? tagonistas à sua própria solidão e incapacidade de comunicação. Essas
teriam sido também algumas matrizes redundantes e trágicas de muitas
das narrativas da primeira metade dos anos 90. Poderíamos também
nos remeter à poesia de Carlito Azevedo, Geraldo Carneiro, Roberto
Piva, Ana Cristina Cesar, Cláudia Roquete Pinto, entre tantos outros.

14.2 Contemporaníssima? Literatura no


superlativo

Assim, nesse final da nossa disciplina Literatura Brasileira III, esta-


mos aptos a pensar uma história da literatura contemporânea no super-
A vertigem das listas lativo – contemporaníssima, pelo caminho vertiginoso das listas tão bem
(Record, 2010).
ilustradas por Umberto Eco (2010) em seu livro. Todos os anos proliferam
listas dos melhores livros do ano. E a soma de listas é de deixar qualquer
um com vertigens, basta percorrermos alguns concursos e lá estarão: Prê-

162
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
mio Machado de Assis, Prêmio Jabuti, Prêmio União Latina de Tradução
Especializada, Prêmio ABEC, Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana,
Prêmio Juca Pato, Prêmio Ribeirão das Letras de Literatura, Prêmio Nes-
tlé de Literatura, Prêmio Açorianos de Literatura, Prêmio Literário Li-
vraria Asabeça, e outros não mencionados. É quase impossível darmos
conta de ler mais de cinco desses títulos escolhidos por uma comissão de
professores e críticos. Mas a literatura sempre nos pede leituras futuras.

No ensaio “O que é o contemporâneo?”, o filó-


sofo italiano Giorgio Agamben discute diferen-
tes tessituras para o entendimento do termo
partindo do poema “O século”, do poeta russo
Osip Mandel’štam. O contemporâneo, segundo
Agamben, tem sempre a forma de um limiar
inapreensível entre um “ainda não” e um “não
mais”, e “não é apenas aquele que, percebendo
o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele
que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e
de colocá-lo em relação com outros tempos, de nele ler de modo inédito
a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de ma-
neira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não
pode responder (2009, p. 72). É pela impossibilidade de responder a um
tempo, de precisá-lo, de apreendê-lo, de fixá-lo cronologicamente, que
Agamben compara tal termo [contemporâneo], ou a especial experiên-
cia desse tempo que chamamos contemporaneidade, com a moda. Diz
o filósofo italiano, “o ‘agora’ da moda, o instante em que esta vem a ser,
não é identificável através de nenhum cronômetro. Esse ‘agora’ é talvez o
momento em que o estilista concebe o traço, a nuance que definirá a
nova maneira da veste? Ou aquele em que a confia ao desenhista e em
seguida à alfaiataria que confecciona o protótipo? Ou, ainda, o momento
do desfile, em que a veste é usada pelas únicas pessoas que estão sem-
pre e apenas na moda, as mannequins, que, no entanto, exatamente
por isso, nela jamais estão verdadeiramente?” (p. 66-67).

163
Literatura Brasileira III

Autoficção Vamos então pensar a história literária do que nós chamamos


“A autoficção é a ficção que de contemporaníssimos, pelo caminho do que se pode entender por
eu, como escritor, decidi
tradição. Nessa nominata de autores, nomes próprios, queremos su-
apresentar de mim mesmo
e por mim mesmo, incor- gerir a leitura de algumas narrativas que tematizam famílias: Leite
porando, no sentido estrito Derramado de Chico Buarque (2009), Heranças, de Silviano Santiago
do termo, a experiência (2008), Arroz de Palma, de Francisco Azevedo (2009), Todos os no-
de análise, não somente mes de Maria Ester Maciel (2008), Antônio de Beatriz Bracher (2007)
no tema, mas também na
e a autoficção que pode servir de metatexto sobre os desvios da tra-
produção do texto.” Serge
Doubrovsky In: KLINGER, dição: A Chave de Casa de Tatiana Salem-Levy (2010), livros que por
Diana. Escritas de si, escri- si teorizam cartografias da ancestralidade.
tas do outro: o retorno do
autor e a virada etnográfica. Daremos destaque também neste corpus à produção literária feminina
p.52. Disponível em Google
contemporânea inserida – ou não – em uma tradição, que parece hoje desejar
Books.
ser desconstruída paradoxalmente pelo machadiano, instigante e masculino
romance Heranças, de Silviano Santiago. Ao tematizar a questão da heredita-
riedade, o protagonista desse romance que é ao mesmo tempo o narrador, o
autor estabelece uma posição clara a respeito do único representante homem
da família: ele tem que deixar um legado. Walter não deixará herdeiros, para
tanto substitui imagens como de flor e semente por poda. Podar o legado da
tradição quer ser a força da narrativa produzida no século XXI.

Nossa leitura quer assim entender por estas imagens o que se


consolida como filiação e porque a presença constante nos textos te-
óricos e críticos sobre a tradição literária de expressões como marcas
paternas, herança literária, tradição literária, ao mesmo tempo em que
esse discurso ficcional contemporâneo deseja apagar o pai, borrar a
imagem do pai, confundir as genealogias e os paradeiros, inquietar e
assombrar a tradição, como autoficcionaliza Tatiana Salem-Levy no
início de seu romance A Chave de Casa:

Escrevo com as mãos atadas [...] Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo
de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa
parecer, a verdade é que nasci com o pé na cova. Não falo de aparência
física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endu-
rece os ombros e me torce o pescoço […]. Um peso que não é de todo
meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo “eu” estivesse

164
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
dizendo “nós”. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse so-
pro que me segue desde o primeiro dia. Um sopro que me paralisa. Uma
espécie de fardo. Mais do que isso: bruto, acimentado, capaz de me tirar
todas as possibilidades de movimento, amarrando as articulações uma à
outra, colando todos os espaços vazios do meu corpo […]. (2010, p. 9).

Fica assim mais fácil entender porque Tatiana Salem-Levy e ou-


tras escritoras contemporâneas foram (e são) leitoras de uma tradi-
ção eminentemente masculina que o discurso crítico faz questão de
ratificar a partir de quase uma norma: não há um livro órfão, um
livro sem memória mesmo que seja para retomar o elo com Portugal
nosso avozinho (BANDEIRA, 2008).

14.3 Comparações, semelhanças e diferenças

As narrativas escritas por mulheres são livros que recebem bênçãos


maternas? Por que os discursos críticos contemporâneos ainda se fixam
nestas imagens da tradição familiar para explicar a literatura? Por que
mulheres que escrevem costumam dizer: a gestação de meu livro, escre- O escritor Manoel de Barros

ver foi um parto, esse romance foi tirado a fórceps de dentro de mim? Será
essa a benção materna? Pode haver criação literária sem filiação? Pode
haver filiação fora da tradição literária?

Lançamos, assim, intencionalmente, um olhar para fora do eixo


de onde hoje falamos. O poeta Manoel de Barros, diz a crítica, se filia
aos clássicos e recebe influências dos “faróis” da literatura mundial,
como Homero, Valéry e Baudelaire (BOSCO; DIEGUES, [s.d.]). Cora A escritora Cora Coralina

Coralina, por sua vez, remonta à filiação do Modernismo. Para conec-


tar a poetisa com uma tradição poética, sua poesia é comparada pelos
historiadores e pela crítica com a do poeta goiano Bernardo Elis. Ao
evidenciar as confluências, se não de uma paternidade, mas de uma
fraternidade, a ideia corrente da crítica é mostrar como Cora Corali-
na não escreve isolada de uma tradição, e leva adiante linhas de for-
ça desenvolvidas por esses poetas, da rima livre e do aproveitamento Pintura aquarelada do poeta
Bernardo Elis feita por Amaury Mene-
da matéria telúrica regional. Manoel de Barros se filia. Cora Corali- zes O escritor Manoel de Barros

165
Literatura Brasileira III

na remonta à filiação... E assim se escreve mais que uma história da


literatura, mas uma história das hereditariedades.

Outras abordagens críticas poderiam ser trazidas aqui para falar


deste discurso da hereditariedade. Do ponto de vista da produção
feminina, as abordagens defendem a perspectiva horizontal da
intertextualidade como forma de escapar da tradição paterna a
partir do argumento de que as mulheres estão criando uma literatura
outra. Ao transcender o sistema dicotômico-binário de gênero, que
produziu relações seculares e históricas de poder, a escritura feminina
reconstrói, diz a crítica feminista, o conceito de diferença e de sujeito,
muito mais do que de semelhança, já que o discurso crítico a quer
sempre mostrar como ruptura do discurso hegemônico masculino.

Observa-se que o objetivo maior dessas reescrituras, de um


ponto de vista, não é só demolir uma tradição que perpetuou mitos
e ideais patriarcais, mas evidenciar seus limites, suas lacunas e seus
desvios, a fim de permitir que a tradição se renove, satisfazendo
assim a dupla exigência de revisão e de continuidade em relação
ao passado, pelos amplos caminhos da intertextualidade. Com a
intertextualidade ouso dizer que desaparece sim o pai no discurso
crítico, mas aparecem muitos irmãos, muitos primos, famílias
expandidas... Comparações, semelhanças: lembra x, remete a y,
aproxima-se de z.

Ao pensar a história da literatura pelo caminho da heredita-


riedade incorporamos os proverbiais: Tal pai tal filho, / filho de
peixe peixinho é, / a fruta não cai longe do pé,/ filhos das minhas
filhas meus netos são, filhos dos meus filhos serão ou não, / é a
cara do pai, / cara de um focinho do outro,/ quem puxa aos seus
não degenera... A tradição fala por si. Ela determina biológica e
socialmente critérios de semelhança.

166
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
14.4 Alegorias da Tradição

Vamos nos valendo para entender as alegorias da tradição nas nar-


rativas que fazem parte do corpus da pesquisa. O conto Mãe, o Cacete,
de Ivana Arruda Leite derruba o mito do amor filial e ilustra a invenção Este conto está dispo-
da inimiga no conflito mãe e filha, ou melhor, filha e mãe. Esse conto nível integralmente
no Blog da autora,
termina com uma pergunta fulcral “O que é um pai para você?” (LEITE, disponível em: http://
2004, p. 203). Como ler na tradição literária essa filiação: pela língua doidivana.wordpress.
com/2009/09/22/mae-
materna ou pela tradição literária hegemônica e masculina? -o-cacete/. Acesso em
7 ago. 2012.
A história paterna deseja ser objeto ausente, esvaziamento da ori-
gem - tal como é mostrada na (im)possível visita à casa do avô mesmo
trazendo a chave para um país de muitas portas no romance A Chave de
Casa do qual fazemos aqui o referencial desta literatura no superlativo.
O legado patriarcal pode mais do que ausência ser desobediência, recu-
sa. O início do romance A Chave de Casa é um manifesto das conquistas
pelo esquecimento voluntário da tradição.

Não se trata de ser ou não ser feliz, mas de uma herança que trago co-
migo e da qual quero me livrar. Nem que para isso tenha que correr
riscos sem medida, nem que para isso tenha de me desfazer de tudo [...].
(SALEM-LEVY, 2010, p. 10).

Herança da tradição literária e historiografia literária estabelecem


novas relações de parentesco e evidenciam a recusa do legado cultural
da semelhança entre tal pai, tal filha,/ filha de peixe peixinha é? A pro-
fessora e pesquisadora Flora Sussekind, em um estudo clássico nos anos
70 - 80, usa o proverbial e masculino tal qual para explicar o romance Maria Flora Sussekind,
naturalista brasileiro: professora da UFRJ e pesquisadora da
Casa Rui Barbosa

É a semelhança que se aplaude ao dizer: Tal pai, tal filho. Filiação e


paternidade definem-se em meio a um jogo familiar de semelhanças,
onde do filho se exige que seja uma atualização do semblante e das
atitudes paternas. Filiação e paternidade definem-se numa atitude
especular. Ao filho não cabe ser outro e sim a imagem refletida do
pai. O que importa é a garantia do reconhecimento de um no outro.

167
Literatura Brasileira III

Quando são demasiadas as diferenças, quebra-se a possibilidade de


reconhecimento mútuo, fratura-se o círculo familiar numa inquietante
estranheza (1984, p. 21).

Fratura e inquietante estranheza. O filósofo Jean Starobinski


em Ação e Reação, Vida e Aventuras de um Casal inicia seu estudo
com o tópico “Quando uma criança não se assemelha a seu pai”
(2002, p. 23). Um dos seus principais argumentos parte de Aristó-
Jean Starobinski é linguista,
filósofo, crítico literário e de artes plás- teles. Em Da geração dos animais, Aristóteles expõe as razões pelas
ticas. As palavras sob as palavras e A
invenção da liberdade são dois de seus quais as crianças às vezes não se assemelham a seus pais. A expli-
livros lançados no Brasil.
cação é absolutamente androcêntrica e biológica: tudo é efeito do
relaxamento dos movimentos do esperma; este dotado de calor e
de potência formadora age ativamente sobre a matéria materna,
mais fria que, ao mesmo tempo em que recebe a forma, lhe opõe
resistência, às vezes com sucesso. Como se a biologia dissesse: o
movimento do esperma é mais enérgico. A semelhança será maior
com o pai, o olhar se fixa nos traços do pai. As semelhanças mais
distantes serão com a mãe ou com avós e a formação de uma me-
nina ou a formação de monstros são os efeitos de uma resistência
amplificada do substrato feminino (2002, p. 17).

Assim, nos valendo dessas informações ancestrais e essencia-


listas, calcadas na filosofia, teologia e na biologia, convivemos, a
cada escritora e a cada escritor que surge ou aparece nos catálogos
e nas listas de prêmios literários, com a proliferação de autopro-
moções nas redes sociais, com a força da imagem do pai, com a pa-
ternidade e a filiação, com as monstruosidades, dentro do discurso
A escritora Ceclília
Meireles crítico e da historiografia literária. “Escreve como Machado de As-
sis”, “Aproxima-se de Guimarães Rosa”, “Lembra Clarice Lispector”,
espécies de benção paterna.

A orfandade não tem espaço. Cecília Meireles, diz a crítica tra-


dicional, não pode ter saído do nada. Então, a historiografia literária
nos apresenta a poetisa e sua inserção literária filiada à poesia e à
O autor Antero
prosa metafísica de Antero de Quental, embora seja obrigada a ad-
de Quental. mitir fulcrais diferenças: em Antero a forma dramática e a fórmula

168
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
romântica em busca de ideais; em Cecília a amarga aceitação da vida
pelo viés simbolista (GOUVEIA, [s.d.]). A fruta quis cair sim longe
do pé. Não é em vão que em seu poema Memória, Cecília Meirelles
desconstrói as relações de parentesco:

Minha família anda longe/


com trajos de circunstância/
uns converteram-se em flores/
outros em pedra/ água. Líquen;/
alguns de tanta distância/
nem tem vestígios que indiquem uma certa orientação ([s.d.]).

Buscamos, assim, entender, no recorte que damos nesta verti-


ginosa lista de questões, de escritoras e escritores brasileiros, espe-
cialmente ficcionistas, a possibilidade de os sistematizar pela própria
heterogeneidade, exatamente por ficcionalizarem em suas obras,
através de estilos e técnicas diversos, alguns diálogos que estão des-
construindo essa tradição forte – e canônica – da literatura brasileira.
Capa da edição
de A Chave de Casa, de
Tatiana Salem Levy, pela
A imagem que melhor nos representa nessa leitura é, mais uma vez, editora Record.
a narradora de A Chave de Casa. Ela procura uma porta. Não domina a
língua materna da pátria do avô, apenas a do pai exilado, expatriado. A
história ficcionaliza a origem fixa e o desterritorializado como espólios:
A certa altura da narrativa ela diz: “Estou num ponto em que preciso
mudar a direção do barco ou então serei capturada pelo olhar da Medu-
sa e me tornarei pedra lançada no mar “(2010, p. 10).

14.5 Literatura e Filiação A medusa. Caravaggio,


1600

Depois de nossas reflexões anteriores podemos agora per-


guntar: a “filiação” existe para dar continuidade a uma tradição
ou existe para dela afastar-se? Seriam, por exemplo, as obras de
Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Marilene Felinto, Lya Luft,
Hilda Hilst, como das mais fecundas e importantes linhas de for-
ça da produção literária feminina, brasileira e contemporânea (no

169
Literatura Brasileira III

sentido, aqui, de escrita por mulheres)? Querem as escritoras mais


contemporâneas ser a cara dessas mães (literárias) ou não ter nem
mesmo trejeitos dos pais (literários)?

A professora e pesquisadora Vera Queiroz em um importante en-


saio sobre a tradição literária, centrada na produção de mulheres escri-
toras, assim se posiciona:

Discutir o modo particular de sua inserção no cânone implica situar ou-


tros problemas de mesma ordem, a saber: a quem seus estilos prestam
homenagem? De quem são debitárias? A quem rejeitam e, por isso, dei-
xam entrever um antecessor por contrafação? De quem se afastam para
criar a forma nova? Que força de escritura as torna originais e funda-
doras com relação a seus antecessores? Quais dessas obras, e por que,
seriam marcos de uma outra e nova tradição? (2003, p. 483).

Vejam como ela lança uma sucessão de perguntas em busca da respos-


ta de que se deve dar à genealogia dos estilos na escrita brasileira contempo-
rânea. Será que ainda se quer escrever uma história da literatura subordina-
da às imagens da filiação, da paternidade, da figura do pai, da semelhança?
A árvore da vida. Gustav Klimt

Pensemos, no caso da escritora contemporânea Conceição Eva-


risto, como uma forma de ler a tradição para além da semelhança. A
crítica nos apresenta, autora e personagem, como herdeira da memória
familiar: Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo, também
esta herdeira de uma forte linhagem memorialística existente na literatu-
ra afro-brasileira. Os críticos nos dizem que Conceição Evaristo escreve
como outras duas escritoras negras: Maria Firmina dos Reis e Carolina
Maria de Jesus (PORTAL SÃO FRANCISCO, [s./d.]). Família, simila-
ridade como herança, linhagem. Relações de parentesco e, muito mais,
afinidade na cor da pele, como se nesse caso, a fruta deterministicamen-
te não pudesse cair longe do pé. Conceição Evaristo é uma escritora ne-
gra e deve escrever como outras escritoras negras. Podemos concordar
com uma perspectiva tão determinista como essa?

170
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
14. 6 Encontramos a chave?

Vamos pensar nessas expressões: Paternidade literária. Filiação Lite- Os monemas


Segundo Roland Barthes
rária. Família literária. Herança literária. Um universo semântico da histo-
(1988), os monemas da
riografia, da teoria e da crítica retomados a todo instante. Laços de família língua seriam as lembran-
sobre as quais se costura os monemas da história da literatura são a grande ças esparsas de nomes de
questão na forma de ler e sistematizar uma produção literária mais recente. autores, escolas, movimen-
tos, gêneros e séculos.

Para entendermos ainda mais essa questão da inserção (ou não)


da literatura brasileira do século XXI numa determinada tradição
por suas semelhanças, vamos pensar no ensaio do pesquisador e pro-
fessor Roberto Schwarz. Em 1978 em seu livro O Pai de Família e
outros estudos nos apresenta o conto, ensaio, fábula A preocupação do
pai de família, de Franz Kafka ([s.d.]). Nele há uma criatura andró-
gina, que deambula pelos corredores da residência do pater familias.
O dono da casa, o pai de família, que é o narrador dos cinco parágra-
fos, tenta ter controle sobre o caráter esquivo da criatura que agora
mora na sua casa. O narrador tenta elucidar o seu nome, Odradek.
Ele quer decifrar o seu aspecto e localizar a sua origem. O mais inte-
ressante é que Odradek se recusa a dar qualquer resposta a quem lhe
interroga. Não há como entender Odradek.

Queremos mostrar como a história da literatura está refém de uma


lista de misteriosos odradeks. A narradora de A Chave de Casa, autofic-
ção que embasa as nossas ideias, recebe a chave de uma casa que precisa
ser encontrada. Essa casa, a origem da tradição, é como uma odradek,
não se deixa capturar. A narradora caminha em direção ao passado da
tradição paterna e só encontra dessemelhanças, desmemórias, esque-
cimentos. Essa passagem do livro ilustra a interpretação que queremos
dar para entender como essa passagem pode ser uma metáfora da rela-
ção da tradição com a história da literatura mais recente no Brasil.

Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela,


em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que
ganhei de meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei
Olhei-o com expressão de desentendimento [...]. E o que vou fazer com

171
Literatura Brasileira III

ela? Você é que sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver
com isso. [...]. E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave,
se não quiser passá-la adiante (2010, p. 13).

Ao professor, ao pesquisador, ao historiador caberá ponderar se a


herança da tradição literária que prende um autor a outro deve ser lida
como um fardo que deve ser suportado ou ainda há possibilidade de se
configurar as influências e semelhanças como uma dádiva. O conto de
Kafka e as inserções que fizemos, nos permitem pensar hoje numa his-
tória da literatura contemporânea no superlativo, não só pelo caminho
vertiginoso das listas de nomes premiados e publicados, mas pelo que
eles dizem e como dizem. No meio destes muitos nomes próprios, títu-
los e editoras, temos monemas como nos propôs Roland Barthes, partí-
culas mínimas da história da literatura, as ficções nos oferecem suporte
para revermos imagens mais fluidas da paternidade e da ancestralidade.

São essas imagens que dramatizam e perturbam as certezas da tra-


dição seja dentro do espaço narrativo seja no espaço histórico literário.
A encenação, que o conto de Kafka faz do impacto causado pela estra-
nheza de Odradek sobre o pai da família, para nós, prefigura as tenta-
tivas, em vão, de dar pela semelhança uma filiação, uma origem, um
lugar. Há nos textos, e nelas, as autoras e neles, os autores, um caráter
evasivo, uma fuga à autoridade, um desejo de dessemelhança e uma ca-
pacidade de resistência. A tradição desvia quando a madura fruta, por
força de circunstâncias, ou de uma energia cósmica, corpórea, física,
metafísica, parece querer cada vez mais cair longe do pé.

Terminamos nosso livro de Literatura Brasileira III com mais uma


passagem do romance, que consideramos ser uma bonita imagem da an-
cestralidade. Podemos ser diferentes, mas não precisamos perder de vista
que fazemos parte de uma história da literatura, sobre a qual já lemos tan-
tos textos. Basta lembrar o que vimos e lemos em Literatura Brasileira I e
Literatura Brasileira II. A narradora, e nós, selamos, sem romper, o pacto
com nossos ancestrais e construímos essa nova forma de entendermos a
história da literatura brasileira, seus autores, suas autoras e seus textos.

172
Por uma percepção do novo da
literatura brasileira Capítulo 14
Pego a chave, assopro a poeira em que está mergulhada e, esticando o
braço, alcanço a mão do meu avô, seguro-a com força, e permanece-
mos com as mãos coladas, a chave entre nosso suor, selando e separan-
do as nossas histórias (SALEM-LEVY, 2010, p. 206).

173
Prezad@s alun@s!
Chegamos ao final da Disciplina. Durante este tempo, você teve a
oportunidade de conhecer um pouco mais da produção literária reali-
zada a partir da segunda década do século XX.

Inicialmente, você teve contato com a Semana de Arte Moderna e


com três autores modernistas: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e
Carlos Drummond de Andrade para, em seguida, adentrar a metade do
século XX pela prosa ficcional de um dos mais significativos prosadores
da Literatura Brasileira, João Guimarães Rosa. Nesta ocasião, aprovei-
tamos para analisar alguns dos seus contos, observando a linguagem
metafórica peculiar deste autor. Ainda nesta Unidade, você pôde conhe-
cer alguns poemas de João Cabral de Melo Neto, em especial “o auto de
Natal pernambucano” Morte e vida Severina.

Após experimentar os cheiros, cores e sabores sertanejos a partir dos


textos dos dois Joões, na terceira Unidade, você entrou em contato com a
subjetividade explorada pela escrita de Clarice Lispector. Neste momento
da disciplina, foi oportuno realizar uma comparação entre esta autora e
outras escritoras canônicas da nossa literatura, são elas: Lygia Fagundes
Telles, Nélida Piñon, Lya Luft. A leitura dos textos de autoria feminina foi
realizada conforme a temática, o que propiciou uma discussão de gênero.

Verificar a importância das manifestações literárias das décadas de


50, 60, 70 e 80 foi o objetivo da quarta Unidade desta disciplina. Você
pôde conhecer um pouco mais do movimento concretista e a forma en-
gajada com que os seus principais representantes, Haroldo de Campos,
Augusto de Campos e Décio Pignatari, exploraram o fazer poesia. Além
do concretismo, observamos o quanto o tropicalismo foi outra impor-
tante manifestação literária deste período. Você encarou, também, as
redefinições políticas no contexto brasileiro da década de 70 a partir da
poesia marginal. Na conclusão desta Unidade, entrou em cena a produ-
ção literária da década de 80, desta vez quem rouba a cena é um grupo
de compositores, cancioneiros e poetas.
Na quinta Unidade, foi destacada a produção literária a partir da dé-
cada de 90, centrando-me nos temas abordados nos textos deste período:
sexualidade e violência. Esses temas foram trabalhados a partir das narra-
tivas de Rubem Fonseca, Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu. Encerramos,
portanto, a disciplina, sugerindo alguns textos e autores da década de 90.

Na última Unidade, com o objetivo de aguçar e de despertar o seu


interesse pela literatura brasileira ultra contemporânea, trouxemos à
tona publicações de diferentes autores.

Vale a pena destacar a necessidade de estabelecer uma relação en-


tre o conteúdo trabalhado durante estes meses e a forma como você
poderá desenvolvê-lo em sala de aula.

Ana Cláudia, Tânia e Gizelle


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