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2007;29(3):331-338
Artigo / Article
Berenice A. Kikuchi A doença falciforme é uma das enfermidades mais antigas da humanidade, decorrente
de uma mutação genética ocorrida, majoritariamente, no continente africano. A imi-
gração forçada dos africanos em decorrência do escravismo trouxe o gene a todo
território brasileiro. Desse modo, percebe-se que a doença é hereditária, incurável e de
alta morbidade e mortalidade, sendo seu tratamento tradicionalmente compreendido,
como de competência dos centros hematológicos. Na década de 1990, graças aos
movimentos sociais formados por amigos, familiares e pessoas com a doença, o pro-
cesso de organização social e de reivindicação por políticas públicas foi iniciado. Em
2001, o exame que detecta anemia falciforme foi incluído no Programa Nacional de
Triagem Neonatal de 12 estados da Federação. Em 2005, a Portaria ministerial nº1.391
incluiu a atenção aos doentes falciformes no Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso,
surgem novos desafios no campo de enfermagem: a atenção qualificada aos doentes
falciformes na atenção básica. Deste modo, neste artigo procurou-se enfocar a enfer-
midade em seus aspectos, culturais, sociais e da atenção à saúde. Espera-se, dessa
forma, poder contribuir para a atenção qualificada dessas pessoas na atenção básica
e estimular a produção de conhecimentos. Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):
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Mestre em Educação, enfermeira de saúde pública, especialista em doença falciforme, presidente fundadora da Associação de Anemia Falciforme
do Estado de São Paulo (Aafesp) e diretora técnica do Ambulatório de Enfermagem da Aafesp.
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Falciforme, como um problema de saúde pública, nos dife- africano.7 Com o desenraizamento dos povos africanos em
rentes setores da sociedade. Assim, desencadeou-se nos decorrência do escravismo e dos processos recentes de emi-
estados e municípios um contínuo de pressão social que gração, este gene conhecido como HbS pode ser encontrado
resultou em legislações específicas e algumas iniciativas den- em todos os continentes. Em decorrência desse histórico, a
tro do serviço público de atenção ao doente falciforme, so- doença ficou conhecida como "doença de negros"; entre-
bretudo na região Sudeste.3,4 tanto, em razão da intensa miscigenação ocorrida entre ne-
A partir de 2001, a anemia falciforme começa a ganhar gros, brancos e indígenas no processo histórico de forma-
respaldo político no Ministério da Saúde que, por meio da ção dos diferentes grupos humanos no Brasil, o gene pode
Secretaria de Atenção à Saúde, começa a desenhar uma polí- ser encontrado em todo o território nacional, independente
tica para atenção aos doentes falciformes no Sistema Único da cor de pele ou etnia.8
de Saúde (SUS).
Inicialmente foi estabelecida a Portaria Ministerial GM Genes que causam anemia hereditária –
nº 822/01, que inclui o exame que detecta anemia falciforme e doença falciforme
outras hemoglobinopatias no Programa de Triagem Neonatal
em 12 estados da Federação.5 No ano de 2004, foi instituída a No Brasil, em razão da miscigenação, é comum encon-
Coordenação da Política Nacional do Sangue e Hemo- trarmos na população geral outros genes que podem causar
derivados, setor encarregado de desenhar a política de Aten- anemia hereditária com a destruição precoce do glóbulo ver-
ção à Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias no SUS, melho e outras complicações clínicas.9
conforme preconiza a Portaria GM 1.391/05.6 Talassemia (Th) – É uma doença genética, hereditária,
clinicamente grave e de alta morbidade e mortalidade, cuja
Enfermagem e educação em saúde nas característica principal é a diminuição da concentração de
doenças falciformes hemoglobina no glóbulo vermelho. É mais freqüente nos
povos do Mediterrâneo, por isso também recebe o nome de
A doença falciforme e suas complicações clínicas têm anemia do Mediterrâneo.
níveis hierarquizados de complexidade, num contínuo entre No Brasil é mais comum ser encontrada em descenden-
períodos de bem-estar ao de urgência e emergência. Histori- tes de italianos. A pessoa com talassêmia herda dois genes,
camente, a percepção do tratamento da doença falciforme é um vindo da mãe e outro do pai. Quando herda apenas um
percebida como de competência dos centros hematológicos. gene, que é chamado de traço talassêmico, é sem manifesta-
Os níveis intermediários da atenção à saúde desconhecem ção clínica; no entanto, a cada gravidez existem 50% de pos-
ou mesmo ignoram a enfermidade dentro da linha de cuida- sibilidades do feto herdar esse gene.
dos. Hemoglobina C – A hemoglobina C é mais freqüente
Quando esses pacientes ou familiares recorrem aos em pessoas de ascendência africana. Quando herda apenas
serviços de atenção básica, urgência ou necessitam de aten- um gene, não apresenta manifestações clínicas, mas, seus
ção em unidade de internação, observa-se a quebra da assis- descendentes podem herdar este gene em 50% de chances a
tência: profissionais inseguros, inadequadamente prepara- cada gravidez. A pessoa que herda dois genes pode apresen-
dos para prestarem atenção qualificada à pessoa com a do- tar anemia crônica moderada, aumento do baço e alguns sin-
ença e seus familiares. tomas clínicos.
Por isso a importância desse momento histórico da do- Doença falciforme – O nome doença falciforme repre-
ença falciforme no Brasil, que é a implantação da política de senta um conjunto de combinações de hemoglobinas modifi-
atenção às pessoas com a enfermidade em todos os níveis cadas que causam anemia hereditária, sendo, pelo menos,
do Sistema Único de Saúde. uma do tipo HbS. Geralmente, as manifestações clínicas são
Os profissionais da enfermagem como agentes políti- tão acentuadas quanto as da anemia falciforme. Em estudo
cos de transformação social exercem papel relevante na realizado pelo Ministério da Saúde, em 2004, baseado em
longevidade e qualidade de vida das pessoas com doença pacientes em tratamento na hemorrede nacional com doença
falciforme. Assim, a importância da absorção de novos falciforme foram encontrados: HbSS (72,42%); HbSC
aprendizados, fazendo interface entre o biológico, social, (21,08%); HbSth (6,32%); HbSD (0,9%) e HbSG (0,9%).10
educacional e as práticas cidadãs, visando prestar atenção Assim, as doenças falciformes, no que refere às com-
de enfermagem qualificada aos familiares e pessoas com plicações clínicas, podem apresentar similaridades em decor-
doença falciforme. rência da porção HbS; entretanto, essas três modalidades
majoritárias de doenças falciformes comportam-se de forma
Origem das doenças falciformes diferenciada quanto à gravidade clínica, sendo a anemia
falciforme (HbSS) a que apresenta maiores índices de
O gene que determina as doenças falciformes tem ori- morbidade e mortalidade. Esse conjunto de enfermidades é
gem há milhares de anos, predominantemente, no continente também chamado de hemoglobinopatia.
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nhar do recém-nascido, por esta razão, ficou conhecido como Anemia crônica
"teste do pezinho".
O programa de triagem neonatal está dividido em três As pessoas com doenças falciformes têm anemia crô-
fases, conforme os exames incluídos: nica por causa da destruição precoce dos glóbulos verme-
Fase I – realiza fenilcetonúria e hipotiroidismo; lhos – anemia hemolítica. A simples suplementação com ferro
Fase II – realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo e doença não corrige a anemia dos doentes falciformes, sendo, a prin-
falciforme; cípio contra-indicada, a não ser que apresentem associado
Fase III – realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo, doença anemia ferropriva. Não existe também alimentação milagrosa
falciforme e fibrose cística. e, sim, alimentação equilibrada, e isto deve ser reforçado com
Os estados da federação que estão na fase II são: Rio a família, já que o nome anemia banaliza a gravidade da enfer-
Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, midade. Assim, a família deve estar ciente que anemia é ape-
Espírito Santo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Maranhão. nas um dos sinais da doença.
Na fase III, Paraná, Santa Catarina. Estados que não entraram
na fase II: Acre, Rondônia, Mato Grosso, Pará, Amapá(*), Cuidados de Enfermagem
Roraima(*), Piauí(*), Tocantins, Ceará, Rio Grande do Norte, • Orientar a família que, em razão de mecanismos com-
Paraíba, Alagoas, Amazonas, Sergipe e Distrito Federal. pensatórios internos, as pessoas com doença falciforme de-
vem ser adaptadas a conviver com níveis mais baixos de
Doença falciforme e principais eventos clínicos hemoglobina, variando entre 6,5 a 9g/dl; conforme o tipo de
conforme faixa etária doença falciforme, geralmente, o basal das pessoas com ane-
mia falciforme é de 6,5 a 7g/dl;
De zero a 5 anos: • No geral, o metabolismo dos doentes falciformes
• Anemia crônica; consome muita energia, necessitando de dieta hiperprotéica
• crises dolorosas; e hipercalórica;
• infecções (atenção para síndrome torácica); • Elaborar com a mãe uma alimentação equilibrada e
• dactilite; coerente com o nível social familiar;
• crise de seqüestro esplênico; • Os alimentos que contêm ferro devem fazer parte
• icterícia; da alimentação cotidiana, não havendo necessidade de su-
• acidente vascular cerebral. primir nem reforçar a ingestão.
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bilirrubina resultante dessa destruição rápida, esta ficará acu- • Manchas sangüinolentas na esclera podem ser si-
mulada no sangue circulante. Se a concentração aumentar nal de hemorragia retiniana;
muito no sangue, a pele e, sobretudo, a esclera ficam com cor • Encaminhar para exame oftalmológico, anualmen-
amarelada ou verde-amarelada. te, para avaliação da função interna dos olhos.
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contribute to the qualified basic healthcare of these patients. Rev. 7. Serjeant GR. Sickle Cell Disease. 2nd. Oxford: Oxford Medical
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Key words: Sickle cell disease; nursery care; basic health care 1987.
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11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.
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1996. Institui grupo de trabalho com a finalidade de elaborar o
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o programa de prevenção e assistência às pessoas portadoras do
traço falciforme ou anemia falciforme no Município de São Paulo 13. Zago MA. Anemia falciforme e doenças falciformes. In: Brasil.
e dá outras providências. Diário Oficial da Cidade de São Paulo, Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Manual de
São Paulo, SP, 14 jun. 1997. Folha 1. doenças mais importantes, por razões étnicas, na população
brasileira afro-descendente. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
4. São Paulo (Estado). Lei nº 10357, de 27 de agosto de 1999. Dispõe
p.13-29.
sobre a obrigatoriedade da realização de exames preventivos de
hemoglobinopatias, nas maternidades e estabelecimentos hospita-
lares da rede pública, nos recém-nascidos, dando, ainda, outras
providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo,
SP, v.109, n.164, 28 ago. 1999.
5. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 822, de 6 de junho O tema apresentado e o convite ao autor constam da pauta
de 2001. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Progra- elaborada pelo co-editor, prof. Rodolfo Delfini Cançado.
ma Nacional de Triagem Neonatal/PNTN. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, p.33, col. 2, 7 jun. 2001. Avaliação: Co-editor e um revisor externo.
6. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1391, de 16 de Publicado após revisão e concordância do editor.
agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as Conflito de interesse: não declarado.
diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas
com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Diário Ofi- Recebido: 11/04/2007
cial da União, Brasília, DF, p.40, col. 2, 18 ago. 2005. Aceito: 15/05/2007
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