Ruptura e Permanéncia: a Cristianizagao dos Povos
Barbaros
RESUMO
Este artigo procura estudar a
questao da persisténcia do Pagunismo e
‘ sew confronto com o Cristianismo no
contexto da conversdo dos Germanos.
Partindo do exame dus vdrias inter-
pretacdes dadas aos vestigios pagaos, de
meados do século XVI até os dias atuais,
busca entender a singularidade deste
processo, os limites impostos pela
cristianizagda dos barbaros 0 real sig-
nificado das permanéncias pagds na
cultura folclérica medieval.
Carlos Roberto F. Nogueira*
ABSTRACT
This article intends to study the
question of Pagan persistence and his
struggle against Christianism in the con-
text of the conversion of Germans. Begin-
ning with the analysis of several interpre-
tations given to the pagan remains, from
the middle of the XVIIP* century until the
present time, the article attempts to un-
derstand the singularity of this process,
the limits imposed by the christianization
of barbarians and the real meaning of the
pagans permanences in the medieval fol-
Kloric culture,
“Qs idolos deverao ser destruidos, mas ndo os ‘fana’, os
lugares sagrados onde aqueles so venerados. Estes, pelo
contrdrio, deverao ser purificados com dgua bendita, de-
pois do que se erijam altares e se instalem reliquias. O culto
cristo celebrado nos antigos lugares sagrados, imediata-
mente familiarizaré aos neéfitos com a nova fé. Inclusive as
(festas tradicionais deverdo ser mantidas, por exemplo, trans-
Formando o sacrificio de animais em um banquete que se
celebrard no dia dedicado ao martir ao qual se encomenda
anova igreja.” (Carta de Greg6rio Magno in: BEDA, Historia
gentis anglorum, 1, 30.)'
A relagdo entre cristianismo ¢ os povos barbaros, em especial os
germanos, é uma relagao bastante tipica: a nova fé reveste, sempre que
possfvel, as antigas tradigdes. Dentro deste contexto € que pode ser enten-
dido 0 aspecto “espetacular” desta conversao, tanto por sua extensao, quanto
*Professor da Universidade de Sao Paulo,
Rev. Bras. de Hist S. Paulo
15, n° 29
pp. 47-56 1995
47pela relativa rapidez com que se processa.
Ou de outro modo, uma conversao que nao enfrenta, que ndo se
antepGe, mas que coopta tradicGes e representagGes preexistentes, inserin-
do-as no espago sagrado da histéria crista.
Este processo entretanto, ndo aboliu as crengas anteriores, que,
miscigenadas ou nao a um imaginério cristo, irrompem aqui e ali, e que
permanecem em um fundo folclérico camponés, ao menos até o final do
século XIX. E neste fundo que folcloristas ¢ historiadores, a0 compasso
do Romantismo, passam a buscar as rafzes medievais das nacionalidades,
terminando alguns por colocarem uma questo que pontua até hoje entre
os historiadores da Cultura: a questao daefetiva cristianizagao da Europa
medieval e a conseqiiente sobrevivéncia do Paganismo.
Em 1749, Girolamo Tartarotti-Serbati, em scu Congresso Notturno
delle Lamie, afirmava a sobrevivéncia de cultos e costumes pagiios que
poderiam explicar a crenga na Bruxaria. No século seguinte manifesta-se
a vertente hist6rico-folclérica alema: em 1828, Karl Ernst Jarcke, profes-
sor de direito criminal na Universidade de Berlim, editou os registros de
um processo de bruxas na Alemanha do século XVII. com alguns comenté-
rios. Argumentava que a bruxaria era acima de tudo uma religido natural e
que havia sido a religitio dos germanos pagiios. Com 0 estabelecimento do
cristianismo, esta religido tinha sobrevivido, com suas ceriménias tradi-
cionais e sacramentos, entre 0 povo comum, mas tomou um novo significa-
do. A Igreja condenou a tradigdo como um culto ao Diabo este ponto de
vista foi adotado mesmo por aqueles que, em segredo, ainda praticavam os
antigos rituais. O centro desta antiga religiao pag eram as artes secretas
de influenciar o curso da natureza, artes que, da perspectiva do clero cri
to ¢ dos adeptos da antiga fé, dependiam do Diabo para obter eficacia.
Quando a religido cristd tornou-se a religiio dos camponeses, a pratica
destas artes passou a ser considerada e praticada como um servico cons-
ciente € voluntério ao principio do mal; ser iniciado naquelas significava
escolher 0 Diabo?
Jacob Grimm, em 1835, argumenta em favor da sobrevivéncia de
antigos cultos teut6nicos em sua Deutsche Mythologie, enquanto W. G.
Soldan, em Geschichte des Hexenprozesse, afirmava a preponderancia
das tradigdes greco-romanas, que permaneceram de um modo subterraneo
dentro da Europa Crista. Idéias que se tornaram populares nos meios aca-
démicos, levando a uma busca de crengas pré-crists ou mesmo de tradi-
ges secretas dos povos germAnicos, materializadas em dangas, festas no-
turnas e no “bando selvagem” de Wotan.
48A idéia de um Paganismo resistente a cristianizagao, vai ganhar um
novo e€ mais erudito tratamento em terras francesas. O anticlericalismo
resultante da Monarquia de Julho, trouxe a luz a obra de Alfred Maury
“La magie et l’Astrologie”,* onde este autor elabora um minucioso inven-
trio da persisténcia de ritos e crengas pagis sob o Cristianismo.
“Os templos abatidos, os idolos destruidos, a filosofia
helénica proscrita, o politetsmo oficial estava destruido, mas
a fé nos deuses, reduzidos agora a condi
em virtude dos ritos que tinham outrora constituido seu cul-
to, ndo estava na realidade extirpada”.5
Para Maury, as procissdes e as preces que faziam outrora os sacer-
dotes e os dugures, para beneficiar as plantagGes, para a satide da comuni-
dade, foram convertidas nas rogagdes, em uma substituicdo dos ritos pa-
aos pelas praticas crists, toda vez que esses eram de natureza a serem
santificados.
E para demonstrar esta tese, inicia extenso inventario, mostrando
como 0 deus Helios foi venerado como So Elio, Hipélito, filho de Teseu
como Sao Hipélito, Baco, como So Baccolo de Sorrento e até a Felici-
dade Piblica romana, uma deusa fundamentalmente abstrata, é
cristianizada como Santa Felicia.‘
Abandonando a Europa mediterranea, Maury percorre as tradigdes
€ 0 folclore da Gélia, da Germania e da Gra-Bretanha, regides “onde o
Evangelho nao foi pregado senio tardiamente e onde as crengas pags se
mostravam mais vivas e mais rebeldes”,” motivando uma batalha constan-
te da Igreja para impedir uma volta muito pronunciada a essas supersti-
des perigosas.
nestas regides de ocupagao germanica que Maury aponta para o
desenvolvimento de uma dialética cristi em presenga das crengas tradi-
cionais: ao mesmo tempo que as acolhia sob a cobertura de um santo,
também as controlava, tentando evitar que 0 culto degenerasse em cerim6-
nias licenciosas ou pouco ortodoxas.
Controle das crengas, controle do grupo, mas a intuigdo do autor
aponta uma realidade mais profunda: tudo 0 que se passava nos templos e
nos ritos podia, gragas ao controle da Igreja, estar sujeito a uma certa
disciplina, mas na vida privada, as velhas superstigdes se enraizavam cada
vez mais, perpetuando-se com toda a liberdade.
Esta situagao leva o pesquisador a uma conclusao esgrimida de um
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