Você está na página 1de 107

Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 01 - lado A

Origens
• Nasceu na Estônia, na cidade de Reval
• Família tinha grandes possessões em áreas próximas ao Mar do Norte e mar Báltico
• Um, de seus ancestrais, Egobertos Tiesenhausen, em 1210 participou do movimento de cruzadas.
• Seu ancestral era cunhado do arcebispo de Riga, cuja cidade fundara em 1200. É fundador da
ordem dos Espartários.
• Descendente de uma família de nobres.
• A Ordem dos Espartários teve grande importância na conquista de novas terras, pertencentes à
povos pagãos e do Reino da Dinamarca.
• EM 1410 a Ordem dos Espartários fora destruída, e se uniu a ordem Teutônica.
• Sua família possui o título de Freiherr, que significa senhor livre.
• Com a Reforma Luterana, e o desenvolvimento da Ordem dos Espartários, países como Suécia e
Rússia Almejavam conquistar essa área devido ao seu ponto estratégico.
• Suécia conseguiu conquistar essas terras;
• OI rei da Suécia, Gustavo Adolfo, Quando conquistou a Estônia, entrou em contato com os nobres
locais, dentre esses, os Tiesenhausen, que possuíam 15 grandes propriedades;
• Com A Reforma, sua família se converteu ao protestantismo;
• O Rei manteve os privilégios dos Tiesenhausen;
• Família de origem germânica;
• Pedro “O Grande” conquistou os países bálticos para o Império Russo’;
• Pedro “O Grande”, manteve os privilégios da nobreza local;

Família

• Seu pai tinha alta patente militar do Tsar;


• Era comandante do Regimento dos Cossacos, na Sibéria;
• Seu pai casou-se três vezes;
• Um de seus irmãos naturalizou-se americano;
• A educação recebida era muito severa, patriarcal e religiosa;
• A nobreza, em geral, não possuía contato com o povo.
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 01 - lado B

Família

• Pai muito severo e mãe muito religiosa ;luterana;


• Nasceu em 1903;
• Família falava alemão e russo;
• tinha grande gosto pôr música;

Revolução Russa

• Quando tinha 15 anos, veio a Revolução de 1917;


• Metade da família foi morta com a Revolução e um outra parte conseguiu fugir para
outros países;
• Com a revolução, a família passou por grandes dificuldades financeiras;
• Passou a trabalhar como rachador de lenha;
• Devido à posição de sua família, estudava de graça no seu colégio, mas com a Revolução,
esse privilégio foi abolido;
• Conseguiu ser professor particular dos outros alunos;
• Seu pai manteve-se apático durante o golpe, morrendo no decorrer deste;
• Foi para o campo trabalhar na construção de uma usina de celulose;
• Tinha planos de estudar Direito em Berlim, mas não conseguiu devido ao grande Debate
de 1920;
• Devido a sua origem aristocrática, tinha dificuldade de conseguir emprego;

Vinda para o Brasil

• Pôr intermédio de sua tia, conheceu um compatriota que vinha para o Brasil, iludido com
as promessas de enriquecimento rápido;
• O barão deixou a mãe e veio para o Brasil;
• Veio de navio e desembarcou em Santos;
• Estranhou o país pela sua grande quantidade de negros;
• Veio para Ouro Fino, no sul de Minas Gerais;
• Trabalhava para pagar a passagem de navio da Rússia até o Brasil.
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 02 - lado A

Vida no Brasil

• Foi para a Colônia José Bento;


• Construiu o seu próprio rancho;
• Viu que não havia expectativas de melhorias, e veio para Belo Horizonte em 1925, dois
anos após chegar ao Brasil;
• Teve boa impressão da cidade;
• Foi morar em um república estudantil;
• Com intermédio do diretor da Serviço de Colonização, foi trabalhar na Casa Artur Hass,
como lavador de carros;
• Saía com os estudantes da república;
• Foi para o Rio de Janeiro, e lá estranhou o ambiente, pela falta de receptividade do povo
carioca;
• Queria progredir na vida e enxergou no Rio de Janeiro essa solução;
• Respondeu a um anúncio de emprego de jornal e se apresentou sem ter a qualificação
necessária;
• Ao falar o seu nome foi reconhecido pelo diretor da empresa, que era alemão, e este o
ajudou dando-lhe emprego;
• Ia para a Biblioteca Nacional e pedia ao porteiro jornais emprestados, para praticar o seu
português;
• Entrou para a Associação Cristã de Moços e aprendeu português;
• Nas horas de almoço ia para a Praça da Bandeira aprender piano;
• Teve ascensão no emprego, chegando a ser gerente;
• Foi enviado à Belo Horizonte em 1932 para a filial da Casa Lutz Ferrando.
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 02 - lado B

Vida em Belo Horizonte

• Lembrança da chegada ao Brasil;


• Mudança de comportamento, de nobre a desconhecido;
• Na volta a Belo Horizonte em 1932, começou a freqüentar bailes e a participar da vida da
cidade;
• Começou a freqüentar a casa do prof. Arduíno Bolivar;
• Freqüentou a casa do juiz Henrique Lessa, sendo amigo de sus filhos;
• Foi morar em uma pensão, novamente com João Dornas Filho;
• Foi amigo do desembargador Mário Matos, que era amigo de Benedito Valadares;
• Frequantava bailes do Jockey Clube e do Automóvel Clube, onde conheceu a sua esposa
Eunice;
• Em 1936 foi transferido para São Paulo;
• Cantava no coro do Teatro Municipal de Belo Horizonte em 1932;
• O coro se reunia nas dependências do Colégio Isabela Hendrix,
• Em São Paulo foi sub-gerente da filial, ficando pôr lá 4 anos, quando retornou a Belo
Horizonte ;
• Devido ao movimento nazista na Alemanha, começava a ser olhado com desconfiança
pelo fato do dono da loja ser judeu;
• Abriu a Casa da Lente, e com o fechamento da Lutz Ferrando em Belo Horizonte , ficou
como representante desta na capital;
• Comprou o Parque Royal;
• Não gosta de três paixões brasileiras: Política, carnaval e futebol.
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 03 - lado A

Namoro com Eunice

• Começo do namoro foi marcado pôr uma certa desconfiança dos familiares de sua
namorada;
• O namoro começou, e então o entrevistado foi para São Paulo e voltava de vez em quando
para visitá-la.
• Eunice viveu uma temporada no Rio de Janeiro;
• Quando retornou a Belo Horizonte casaram-se.

Visão da II Guerra

• Via com expectativa a invasão de Hitler à Polônia;


• Durante a cerimônia de seu casamento, ecoou as sirenes avisando do início da II Guerra;
• Casou-se na Igreja do Sagrado Coração de Jesus;
• Devido ao fato dos nazistas terem atacado um navio brasileiro, isso repercutiu na cidade,
sendo que o povo passou a atacar as propriedades dos alemães na cidade;
• Teve a casa invadida por policiais, e foi procurar o chefe de polícia da capital quando
soube eu havia uma denúncia de que possuía um aparelho de escuta no qual se comunicava
com os alemães, o que na verdade eram dois microscópios que possuía.

Vida na capital

• Vendia muito para o Estado;


• Notou uma evolução da cidade durante as três vezes que aqui esteve;
• em 1970 teve um infarto agudo do miocárdio.

Sociedade Coral de Belo Horizonte

• Em 1950, foi chamado pôr Peri Rocha França para fundar uma sociedade de cantores que
se transformou na Sociedade Coral de Belo Horizonte;
• Fizeram apresentações de 50 à 75 no Teatro Francisco Nunes;
• Em 1971 inaugurou o grande Teatro do Palácio das Artes;
• Fez o possível para evitar que essa Sociedade acabasse.

OBS. O LADO B NÃO FOI GRAVADO


Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 04 - lado A

Lembranças

• No início evitava se corresponder com parentes na Rússia, devido a vida difícil que tinha
no Brasil;
• Correspondeu-se até 1936, quando sua mãe falecera.
• Lembranças da chegada ao Brasil;;
• Brasil melhor que a Rússia, visto que aqui existiam alimentos disponíveis;
• Sentia grande solidão no início;
• Muitos estonianos foram iludidos com a promessa de rápido enriquecimento no Brasil:
• No princípio desesperou-se com sua situação, mas com o passar do tempo foi se adaptando
aos costumes do país;
• A lei do inquilinato de Getúlio Vargas prejudicou os negócios do Barão;
• Pôr intermédio do Padre Orlando e após ao casamento, o entrevistado começou a
freqüentar a Igreja Católica;
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 04 - lado B

Vida profissional

• Lembranças do casamento;
• Mandava um fotógrafo para os campos de futebol para tirar fotos dos jogadores de futebol;
• Mandava fotógrafo para festas sociais;
• Possui um grande acervo de fotos da capital;
• Muitos fregueses não pagavam, inclusive o próprio Estado;
• É convicto que as pessoas humildes honram melhor os seus compromissos.

Vida

• Possui sete filhos;


• Morou pôr dez anos em uma casa alugada na Avenida do Contorno, onde guarda boas
lembranças;
• Se filiou à União dos Varejistas e da Associação Comercial de Belo Horizonte;
• Vendeu a Casa da Lente, e se dedica a atividade de professor de línguas;
• Sabe falar 5 idiomas, mas se identifica com o alemão, a sua língua materna.
Entrevista realizada com Barão Hermann Von Tiesenhausen

Sumário

Fita 05 - lado A

Vida

• Viu pessoalmente dois presidentes da república: Washington Luís e Getúlio Vargas;


• Conheceu Benedito Valadares, Antônio Carlos e Juscelino Kubitschek , no qual foi
convidado junto com o coral para cantar na missa de inauguração de Brasília em 1956;
• Ficou impressionado com a cidade de Brasília;
• Iam ao Minas Tênis Clube, viajavam para Guarapari, onde tinham um terreno e o irmão de
sua esposa tinha uma casa;
• Iam freqüentemente para Brumadinho;

Considerações Finais

• Revolução comunista foi um desastre;


• Está convicto que o Brasil foi uma boa escolha, e se sente muito feliz aqui;
• Acha que podia ter feito muito mais coisas na vida.

OBS. O LADO B NÃO FOI GRAVADO


1A –BT-1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CENTRO DE ESTUDOS MINEIROS
GRUPO DE HISTÓRIA ORAL
PROJETO INTEGRADO: “MINAS GERAIS: POLÍTICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DA
HISTÓRIA ORAL”

ENTREVISTADORA: PROFª. JÚNIA FERREIRA FURTADO


ENTREVISTADO: BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
LOCAL: BELO HORIZONTE
DATA: 18/07/92

Entrevista - fita 1 - lado A

JF: Então, hoje é dia 18 de julho de 1992, entrevista com Barão Hermann Von
Tiesenhausen. Barão, eu queria que o senhor começasse para a gente com o seu nome,
o local, data de nascimento, sua família, ocupação dos seus pais, dos irmãos.

BT: Perfeitamente. Eu nasci na Estônia. A Estônia é um pequeno país que fica juntamente
com a Letônia e Lituânia, às margens do Mar Báltico, no norte da Europa. A Estônia
ocupa um lugar mais ao norte desses três países, que fica do outro lado do golfo da
Finlândia, em frente ao país que chama Finlândia.

A minha origem é..., é no mar do Norte, é no..., é perto da cidade de Bremen, que
era uma das três cidades asiáticas na Idade Média. A minha família, Tiesenhausen, é...,
tinha grandes possessões lá, no Mar do Norte, e também no Mar Báltico.

Em 1210, o..., o nosso ancestral, Engobertos Tiesenhausen, Tiesenhusen, naquele


tempo chamava assim, ele foi tomado de fervor religioso, como era muito comum
naquela época da Idade Média, que era o tempo do Sacro Império Romano, de
nacionalidade germânica. Era..., era na Idade Média.

Desde os..., 1210, ele começou a dispor das suas propriedades e, depois de ter feito
várias peregrinações, inclusive à Terra Santa, ele vestiu o manto sagrado dos cruzados
e incorporou-se à Ordem dos Espatários, cujo fundador foi o bispo de [Holstein],
1A –BT-2

posteriormente arcebispo de Riga, que ele..., que este fundou em 1200. Este bispo era
cunhado do meu ancestral. Meu ancestral era casado com a irmã desse bispo. Fundou a
cidade de Riga, que é a capital da Letônia. E fundou a Ordem dos Espatários.

A..., ele incorporou-se à ordem, muniu-se de toda a indumentária dos cruzados, as


armaduras..., armaduras..., elmo, a espada, lança e escudo, e mandou-se para os países
bálticos, que naquele tempo eram muito distantes, porque não havia os meios de
comunicação de hoje.

Juntamente com os seus companheiros da alta aristocracia germânica, da [Ur-atler],


a minha família, Tiesenhausen, pertence ao [Ur-atler]. [Ur-atler] quer dizer nobreza
mais antiga, arquinobreza, poderia se traduzir em português, porque a palavra [ur-
atler], em alemão, não tem tradução exata.

Lá, eles conquistaram a ordem que foi instituída pelo papa. Quer dizer, fundada
pelo..., pelo ancestral, pelo cunhado do meu ancestral, mas foi autorizada pelo papa.
Eles conquistaram o país. Em que sentido? Os países, esses três países eram habitados
por pagãos, por tribos, por nações pagãs. Eram os estônios, os letões, os semi-gauleses,
os..., e os curros, e outros..., outras várias tribos e nações.

Isso levou mais ou menos um século. A Estônia foi uma..., foi, no fim, foi também
conquistada, depois que o rei Waldemar IV, da Dinamarca, cedeu à Ordem a parte da
Estônia que pertencia à Dinamarca.

A cidade natal onde eu nasci, chamava-se Reval. Ela já existia desde tempos
remotos, muito antes da fundação de Riga. Era uma fortaleza dinamarquesa que,
depois, tornou-se [o burgo] da Ordem dos Espatários. Espatários eram os Cavalheiros
da... Irmãos da Espada, chamava assim. Cavalheiros... Cavalheiros Irmãos da Espada.

A conquista demorou muito porque as tribos e os povos que habitavam aquelas


terras defendiam com muito rigor, com muita bravura as suas terras, as suas terras, a
sua religião, a sua independência.

Em 1410, a Ordem dos Espatários caiu numa emboscada e foi praticamente


destruída. Foi aí que a Ordem dos Espatários uniu-se à Ordem Teutônica, que veio da
Terra Santa. A Ordem Teutônica, entretanto, os..., os territórios que estavam sujeitos
1A –BT-3

ao governo dessas ordens, entretanto, estavam..., estavam perfeitamente divisionados.


A Ordem dos Espatários tinha os países bálticos e a Ordem Teutônica, principalmente
tinha a Prússia Oriental.

Naquele tempo, a gente conquistava, como hoje, como de muitos séculos depois,
quando os portugueses vieram aqui para o Brasil, o Brasil também foi conquistado a
ferro e fogo, os índios foram dizimados e os..., e os portugueses, devido à sua melhor
é..., melhor... organização militar eram mais fortes, da mesma maneira como a ordem
que eram..., eram as pessoas..., guerreiros muito animados pelo fervor religioso. Eles
conseguiram vencer os..., as tribos nativas que, naturalmente, se defendiam apenas
com arco e flecha.

Então não havia como resistir a esta compacta massa de guerreiros com armadura e
com lança, e elmos, etc. e tal, que, afinal de contas, conquistaram o país. Mas levou
muito tempo e nós tivemos que enfrentar, os meus ancestrais tiveram que enfrentar
uma grande resistência.

Esses países todos tornaram-se, portanto, cristãos. Ficaram sob o domínio da Ordem
dos Espatários, durante 400 anos mais ou menos, quando, em 1561, sobreveio a
reforma de Martinho Lutero. A Ordem se dissolveu, mas os barões, como eram
chamados, porque o meu título é um título dos mais antigos da história da Alemanha,
que, por sua vez, já é muita antiga, vem do tempo de Carlos Magno. Quer dizer, é uma
coisa..., uma história muito antiga.

O título de barão, eu tenho aqui, no Brasil, porque o verdadeiro título da minha


família é Freiherr [soletra]. Freiherr quer dizer senhor livre. Diferente dos condes, os
condes eram, em geral eram pessoas que estavam ligados por laços de obediência aos
reis imperadores. Os Freiherr eram absolutamente livres. Mas como não existe uma
tradução em português, ou em qualquer língua latina, da palavra Freiherr, em geral
trata-se de barão. Todo mundo..., todo mundo que é barão é também Freiherr. Quer
dizer, todo mundo que é Freiherr também é barão, mas nem todo mundo que é barão é
Freiherr. É uma das mais antigas famílias germânicas.
1A –BT-4

Bom, vamos adiante. Aí, com a reforma de Lutero, a Ordem se dissolveu e os


vizinhos poderosos, que naquele tempo, os mais fortes eram a Suécia e a Rússia,
ficaram de olho em cima desses países, que eram praticamente a entrada da Ásia para o
Atlântico. O Mar Báltico, a passagem pela..., pelos [Skagerrak] da Dinamarca e lá
parou o Mar Báltico e Mar do Norte. E depois para o Atlântico, não é?

É difícil de dizer quanto tempo demorou a Suécia para conquistar todos os países.
Era uma guerra de conquista. A Suécia teve que enfrentar, do outro lado, a Polônia,
que, por sua vez, estava ligada à Lituânia.

Naquele tempo, as guerras eram diferentes. Todo mundo ia para o campo da


batalha, não é como agora, que é com os canhões e os..., as..., aviões destroem as
cidades e os campos de concentração, é, num instante. Naquele tempo, os campos
eram homem contra homem.

Os meus ancestrais, todos, eram muito aguerridos. E os reis..., o rei da Suécia,


Gustavo Adolfo, ele, para poder conquistar o país, os países inteiramente, ele fez...,
entrou em..., entrou naturalmente em contato com a alta nobreza, que estava sentada
nos seus burgos. Os Tiesenhausen tinham mais ou menos quinze grandes propriedades.

JF: Eles continuaram católicos?

BT: Até o advento da..., do..., do Martinho Lutero.

JF: Aí houve a conversão.

BT: Aí, como o rei da Suécia era protestante, luterano, todo o país, a Estônia
principalmente, a parte da Litônia, ficaram luteranos. A outra parte da Letônia e a
Lituânia continuaram católicos. De modo que a minha família tem luteranos, católicos
e ortodoxos.

Então, ficamos debaixo da..., do [cetro] do rei da Suécia com todos eles... nos cedeu
todos os privilégios, quer dizer, guardou todos os privilégios que os Tiesenhausen
tinham desde o tempo da Ordem, isto é, as propriedades, pois a..., a ordem social, que
nós éramos apenas 8% de toda a população. A população da Estônia são estonianos. É
um povo inteiramente diferente. O povo que pertence ao grupo ugro-fino, isto é, os
finlandeses e os magyars, que são os húngaros.
1A –BT-5

JF: Magi...?

BT: M-a-g-y-a-r-s [soletra]. Húngaros. São húngaros. Húngaros. Magyars são os húngaros.

Então, a língua é inteiramente diferente. Não tem nada a ver nem com eslavo, nem
com germânico, nem com o latim. É outra língua.

Bem, nós ficamos... então, com esses privilégios. E a..., e a conservação do uso da
língua alemã, que nós tínhamos desde o tempo de quando nós..., a nossa sede
ancestral, perto de Bremem, nós éramos alemães, naquele tempo chamava-se
germânicos.

Aí se explica como é uma..., uma pequena fração de uma população pôde conservar
o uso da língua ancestral durante 800 anos. Porque, senão, como que era possível, não
é? Aqui no Brasil, por exemplo, japonês que nasce aqui, ele sabe falar japonês, talvez,
até o seu filho, mas depois acabou.

JF: Acabou.

BT: Ele fala português. Nós falamos na mesma língua..., a minha língua materna ancestral
é alemão. Depois... o Pedro “O Grande”, czar da Rússia, da dinastia dos romanos,
ele..., é..., venceu a Suécia e conquistou os países bálticos para o império russo. Que
para o império russo era importante a saída ao Mar Báltico para..., para expandir a
força do império russo. Ele construiu a cidade de São Petersburgo, que foi chamada
assim devido ao fato de ser o burgo, o burgo, que é castelo, que é fortaleza. Burgo
chama assim castelo. De Pedro, “O Grande”.

Hoje, a Rússia, com a nova transformação que houve, perdeu outra vez esses três
países, que tornaram-se independentes. Mas ele conquistou esses países todos e todos,
todos tornaram-se, então, súditos do imperador da Rússia, do tsar da Rússia. Tsar. Não
é Czar. Czar está errado. Tsar [soletra} da Rússia.

Então, daí você vê, a história é um pouco longa, mas é também..., abrange oito
séculos, então tinha que ser longa, não é? Muito bem.

Aí, dessa situação, os mesmos privilégios que nós tínhamos herdado da Ordem..., da
Ordem dos Espatários para a Suécia passaram também para a Rússia. Pedro, o Grande,
reconheceu outra vez a mesma ordem social da nobreza, da alta aristocracia germânica.
1A –BT-6

Assim, nesta situação, nós alcançamos a revolução comunista de 1917, que destruiu
completamente tudo quanto existiu.

JF: Antes do senhor falar da revolução, fala um pouquinho, então, do seu pai, da sua
infância.

BT: Bom, minha família tinha várias... propriedades. Meus tios, minhas tias etc. e tal. Onde
nós.../

ET: Mas fala do seu pai,(...) fala do seu pai.

BT: Tá. Meu pai era alta patente militar do Tsar. Ele era comandante do regimento dos
Cossacos, da Sibéria, estacionado em Irkutsk, que era naquele tempo, era capital da
Sibéria. Irkutsk [início soletrado - I-r-k..] fica mais para a fronteira da China, quer
dizer, fica no centro da Ásia. Ele era alta patente militar do império e estava muito bem
situado, porque o sogro dele era muito elevado. E nós..., a minha infância percorreu
num clima de alta tranqüilidade e muito... e bem estar, vamos dizer assim, não é?

Além de mais, a minha família possuía bastante. Meu pai casou três vezes. A
primeira senhora dele, que eu..., naturalmente não conheci, ela morreu de tifo, em São
Petersburgo, numa epidemia de tifo. A segunda mulher dele descende..., teve dois
irmãos..., dois filhos. Um morreu num desastre marítimo e o outro..., e a outra
desapareceu com a família dela toda, na revolução comunista.

Da segunda mulher, ele teve também dois filhos. Uma era..., morava na Finlândia.
Todo mundo está morto, não é? Morava na Finlândia e era uma grande pianista.
Compositora etc. E o irmão, que foi para os Estados Unidos.

Da terceira mulher, sou eu e minha irmã. Minha irmã também já faleceu. E eu sou o
único sobrevivente.

ET: Seu irmão que era da..., lá nos Estados Unidos, o que ele era?

BT: Era..., simplesmente ele era..., não sei..., não sei qual era o grau de militar dele, não
sei.

ET: Eu sei. Mas ele era militar?

BT: Militar. Tanto era militar, tanto na Marinha como no Exército.


1A –BT-7

ET: Ele não era da Marinha?

BT: Marinha e Exército.

ET: Naturalizou americano.

BT: É. Naturalizou-se norte-americano.

Bom, então, eu..., a minha infância, eu passei nas propriedades do meu tio, da minha
tia etc. e tal. Eram grandes propriedades agrícolas, muito bem administradas etc.

Bom, me lembro muito bem que eu gostava muito de percorrer as florestas da minha
terra, colher morangos silvestres e frutos de todo jeito, e cogumelos, e cantava. Eu
gostava muito de andar, passear muito, sozinho, e sempre fui um pouquinho assim. A
própria educação em casa era uma educação muito severa, muito patriarcal, religiosa,
muito severa.

Então, eu, antes de chegar aqui ao Brasil, era um homem altamente reservado.
Modificou um pouquinho meu sistema, minha vida, o meu modo de ser, a minha
mulher, que é brasileira, muito inteligente, muito viva e muito dada, sabe? E ela
modificou um pouquinho, estou mais..., hoje mais... Uma entrevista dessas que eu
estou dando, hoje, seria muito difícil uns 40 ou 50 anos atrás. Que eu não falava nada
de mim. Era..., era...

Não era propriamente dito a reserva natural de um homem que nasceu num meio
muito excepcional, muito..., vamos dizer, reservado, diferente. Nós não tínhamos
nenhuma ligação com..., com o povo. Não é que nós não..., por causa de orgulho. Não.
É porque o sistema era aquele. A gente não se misturava com os camponeses, como
aqui, por exemplo. Aqui existe isso.

Você bota nos Estados Unidos um senador ao lado do seu jardineiro, você vai ver,
era a mesma coisa. Ou então, na Inglaterra, um lorde inglês juntamente com seu
camareiro. Não tem ligação. A mesma coisa é lá. Mas isso era há 50 anos atrás, ou 100
anos atrás.

Era assim. Não era orgulho de uma pessoa que se julgava superior a outra, não. Nós
tínhamos o absoluto e perfeito sentido da humanidade em comum. Mas a própria
educação fez com que isso se desse.
1A –BT-8

Por aí você pode imaginar como também foi difícil eu, no princípio, me aclimatar
aqui. Bom, isso vai mais adiante.

JF: É. E a sua casa, sua mãe.

BT: É. Minha mãe?

JF: Você morava com os irmãos?

BT: Eu morava com os meus pais.

JF: Pois é. E os seus irmãos do casamento anterior //moravam com o senhor também?//

BT: //Meus irmãos// estavam todos fora. Todos fora.

ET: Tem aquela casa. Quando você nasceu, ela tinha acabado com a Suécia, não era? Era
só você e a Vera, não é?

BT: A Vera, é. Nós éramos, realmente, as duas..., os dois filhos da minha mãe. Porque os
de outras, das outras esposas estavam longe. O irmão estava nos Estados Unidos, um
tinha morrido, a..., a minha irmã morava em São Petersburgo. E, assim, todo mundo
estava longe, não é? Estava fora.

JF: E o senhor morava, então, com os seus pais. Como que era a sua casa, o seu cotidiano,
a escola. Como que o senhor..., quando o senhor...

BT: Eu dividia o meu tempo, entre a escola e, nas férias, que lá na minha terra são muito
prolongadas, porque no inverno, a começar do mês de outubro, começa a escurecer
mais cedo. Em dezembro, em janeiro escurece às três horas da tarde. E somente às
nove horas começa a vir..., a vir a luz. Quer dizer, são..., de 24 horas, somente seis
horas tem de sol, de luz. O frio é intenso no inverno. A temperatura cai até 26 graus
abaixo de zero.

ET: Fala com ela que você tinha muita ligação com sua mãe.

BT: Como?

ET: Você tinha mais ligação com sua mãe do que com seu pai.

BT: É. Meu pai... É. Meu pai... ô, mas isso não interessa para...

JF: Interessa.
1A –BT-9

BT: Você acha que interessa isso?

JF: Interessa. [risos]. Interessa.

BT: Meu pai era um homem altamente..., é..., era reservado mesmo. Não somente como
titular de uma das mais antigas famílias do Báltico, da alta aristocracia báltica,
germânica, como também como militar. Ele era muito severo. E crianças, nós não
tínhamos muito contato com o pai. Agora, com a mãe, não. A mãe era muito fervorosa,
luterana. E nós fomos educados na religião luterana.

Bom, o que mais?

JF: E aí o senhor estava falando da escola.

BT: Bom, eu freqüentava a escola, não é? E nas férias, nós íamos para a fazenda, ou do
meu tio ou da minha tia. Minha tia tinha uma fazenda muito bonita, um palácio
imenso, é..., muito bonito. As paredes todas revestidos de mármore multicolor com
vasos chineses, grandes lustres e salões, etc. e tal.

ET: Colégio.

BT: Hein?

ET: Colégio. O que você estudava lá.

JF: Onde que era o colégio? Era interno?

BT: Não, não, não. O colégio é...

JF: Morava em casa e de dia ia para a escola.

BT: Eu ia para o colégio, é, é.

JF: E quem eram os colegas, eram outros descendentes de famílias nobres?

BT: Alguns, no princípio, sim. Depois mudou. Na medida que o tempo passava, porque eu
nasci em 1903, não é? Estou hoje com quase 89 anos. É..., meus colegas eram também,
colegas de lá eram..., uns eram filhos de nobres, outros não eram, não é?/

FIM DO LADO A DA FITA 1


1B –BT-10

Entrevista - fita 1 - lado B

BT: ... era um mês no verão etc. E na escola..., ia na escola, não é? E freqüentava. Os cursos,
na..., na Europa, e naquele tempo, era império russo. Nós pertencíamos, fazíamos parte
do império russo. E, embora a minha língua materna fosse alemão, meu pai exigia que
nós falássemos perfeito, corretamente o russo, na qualidade de alta patente militar, que
ele era russo. Falávamos em casa alemão e russo. Mais alemão do que russo. Mas
falávamos também russo. Estoniano, nós falávamos com os empregados, com os
camponeses, com o pessoal, com o povo, vamos dizer, estoniano. Embora eu, hoje, não
me lembro muito bem da língua estoniana. Porque passei 60 anos aqui no Brasil sem
falar estoniano. Então você já vê que isso é..., a gente tem razão de esquecer, não é?

Mas continuo..., falava-se, cultivava-se [........] francês. Falava francês, o currículo nas
escolas era obrigatório de cinco idiomas. Alemão, inglês, russo, francês e estoniano.
Todas as matérias de História, Geografia, História Universal, História da Rússia,
Geografia Universal, Geografia da Rússia, Astronomia, é..., e..., Sociologia, Religião era
um currículo separado. Tínhamos que estudar tudo de religião, a história do papado, a
história da igreja católica, tudo.

JF: E literatura?

BT: E literatura. Tudo.

ET: Ih, literatura, ele tem aí muitos livros.

BT: É. Bom, aí, então, eu...

ET: Fala da literatura.

BT: Fala. Sobre o quê?

ET: Da literatura, os livros que vocês liam lá.

BT: Ah, sim. Nós estudávamos, naturalmente, como era russiano, nós estudávamos
principalmente os grandes poetas russos - Tolstói, Dostoyewsky e Gogol, e Pushkin, os
grandes..., grandes poetas, não é? Não é? Líamos muito, estudávamos muito. E o
currículo era muito severo.

ET: Os alemães também. Você tinha uma coleção...


1B –BT-11

BT: Os alemães. Goethe, Filler... E principalmente, eu gostava muito de música. Sempre


gostei muito de música. Eu me lembro, na..., no grande salão dourado da minha tia, no
palácio dela, minha irmã era exímia pianista, como eu já falei. Ela..., quando tocava no
grande piano de cauda lá, do salão, eu ficava encolhido na minha cadeirinha... [riso], na
minha cadeira lá, de..., de veludo, encolhido, ouvindo com entusiasmo, com êxtase,
praticamente, os grandes acordes de Beethoven, que eu sempre gosto muito de
Beethoven. Os acordes suaves de Chopin, de..., de todos os grandes... Bach, Beethoven,
e..., e outros, não é?

JF: E com esse gosto pela música, o senhor aprendeu algum instrumento?

BT: Eu não pude. Quando eu quis começar, sobreveio a revolução. Quando veio..., quando eu
tinha 14 anos, 15 anos sobreveio a revolução.

ET: //Alguém tocava balalaica.//

BT: //Eu nasci em 1903.//

ET: Seu pai tocava balalaica.

BT: Ah, meu pai... Meu pai tinha uma voz de barítono bonita. Eu me lembro quando ele
cantava as canções russas, não é? Ele tocava da balalaica. Balalaica é um instrumento
tipicamente russo, que é como um bandolim, que é assim, oval. A balalaica é triangular.
Mas é o mesmo instrumento.

Mas a minha irmã tocava piano maravilhosamente. Ela era... era também compositora.

Bom, história é... Eu me lembro da minha infância muito bem, porque eu tenho uma
memória, Deus me deu uma memória razoável, de modo que eu tenho..., eu me lembro
muito bem de todas as coisas da minha infância. Gostava muito de andar, de passear
pelos campos, deitar embaixo das grandes árvores. Porque as florestas lá são diferentes
daqui. Aqui é mato, não é? Impenetrável. Lá, não. As florestas são cuidadosamente
tratadas. Tem o guarda florestal. Tem gente..., quando eu via aquele bichinho, como é
que chama?

JF: Esquilo?

BT: Esquilo. Esquilo vinha aqui, da árvore, e eu deitava embaixo de uma árvore, ele vinha
aqui... De longe eu ouvia "uh-uh, uh-uh", é um passarinho que é muito comum nas
florestas da..., do norte da minha terra, que são florestas de grandes, imensas matas de
1B –BT-12

pinheiros. Pinheiros. Não é pinheiro nosso, o nosso pinheiro de Paraná é diferente. Lá


chama-se, há pinheiros, são..., o nosso aqui, chamamos isso de árvore de Natal.

JF: E a casa do senhor era no campo?

BT: Não, minha casa..., nossa casa estava na cidade.

JF: E era um palácio?

ET: //[.........]//

BT: Não, não era um palácio. Era uma casa comum.

JF: Uma casa comum.

BT: É. Meu pai, quando veio da Sibéria, voltou, ele não tinha tomado parte da herdade do
meu avô, que distribui..., que tinha..., quando ele estava na Sibéria, ele distribuiu entre os
filhos que estavam na terra.

JF: E aí sobreveio, então, a revolução, quando o senhor tinha 14...

BT: É. Eu tinha 15 anos, não é?

JF: 15 anos.

BT: É. Em 1917, não é? Aí veio a..., a verdadeira catástrofe, uma coisa que, para nós aqui do
Brasil, é uma coisa completamente é..., é incrível, nós não podemos imaginar o que é. De
um momento para outro, é..., no decorrer de semanas, de meses, nós ficamos na absoluta
miséria. Por quê? Retiraram os soldos, retiraram..., requisitaram as fazendas, mataram a
metade da minha família, fuzilaram, massacraram, exilaram etc. Parte da família, uma
parte conseguiu..., conseguiu sair de lá, não é? Da minha terra natal. Foi para os quatro
cantos do mundo. Para Alemanha, para França, para Inglaterra, para Canadá,
principalmente, e para Austrália. E para o Sul da África. Quer dizer, eu tenho, hoje,
parentes em todas as partes do mundo. Inclusive da Ásia.

O que mais?

JF: E aí o que aconteceu com o senhor?

BT: Eu, então, de um momento a outro, nós ficamos como se chama, como se diz en français,
vis à vis de rian, quer dizer, em frente de nada. Falta de tudo. Não havia o que comer.
Meu pai já era um homem idoso, minha mãe sofria de coração, também já estava idosa.
Eu, porque meu pai casou muito tarde, pela terceira vez, você pode imaginar isso, não é?
Eu sou tão forte assim, porque a minha raça é uma raça forte. Mas eu sobrevivi graças à
1B –BT-13

bondade de..., de Deus e graças a uma resistência física que vem de longa data, de
tempos ancestrais, da minha família. É uma raça muito forte.

Mas o que eu passei, sabe?, posso lhe dizer, é..., é difícil de narrar, porque passar
fome... é muito duro. Mas passar miséria, no sentido de fome que a gente tem, dor de...
Eu tinha dor de fome nas entranhas, que não..., que gritava de dor, de dor de fome. E não
tinha o que comer.

Eu ia..., levantava às quatro horas da madrugada, numa temperatura de 20 graus


abaixo de zero, levantava para ir para a padaria, para comprar um pedaço, um pedacinho
de pão. Fila imensa. Quando chegava lá, tinha acabado. E voltar no dia seguinte, outra
vez.

A minha roupa começava a entrar em frangalhos. Não tinha dinheiro para comprar
nada, porque não tinha dinheiro. Não havia dinheiro. A revolução comunista era no
sentido de acabar com..., com a..., com a alta esfera, não é? E, principalmente,
naturalmente, nós fomos particularmente visados. Não...

JF: E aí o senhor teve que começar a trabalhar?

BT: Aí eu..., eu comecei a trabalhar como rachador de lenha. Escutem, eu não sei se isso
interessa, porque, afinal de contas, eu estou querendo falar sobre Belo Horizonte, mas
estou me alongando muito sobre isso.

JF: Não, mas eu quero... Não, não tem importância, não. Vamos continuar.

BT: É? Bom, então eu ia para os porões medievais da..., das casas da minha..., da capital, da
minha terra natal, em Reval, não é?, onde eu rachava a lenha. Não tinha luz elétrica, é...,
em cima de toco de árvore, não é? Toco de madeira. Rachava a lenha e serrava a lenha.
Numa ocasião, quase decepei o meu dedo, não é? Porque, com um frio de 20 graus, as
mãos tornam-se duras, duras, sabe? Para pegar..., escapou, o serrote enfiou-se no meu
dedo.

Conto a história Eunice, conto a história do anjo...

ET: As pessoas moíam... //casca de cevada para comer.//

JF: Conta, conta sim.

BT: Hein?

ET: Vocês moíam casca de cevada, de centeio para comer.


1B –BT-14

BT: É. Conta a história do anjo?

JF: Conta.

BT: Hein, Eunice? Conta a história do anjo?

ET: Do quê?

BT: Do anjo.

ET: Conta, conta tudo.

BT: É. Bom, então eu, numa... Eu estava já exausto...

ET: Você botava os pés dentro da água para poder dormir. Você contou que você botava os
pés dentro da bacia d'água para não dormir...

BT: Para não o quê?

JF: Dormir.

BT: É. Não, não. Eu estou falando o episódio que me aconteceu quando decepou, o serrote
escapou e quase decepou meu dedo, o sangue jorrou etc. e tal. Então, eu fui tomado de
um grande desespero, não é? E..., e me ajoelhei e implorei a Deus que me tirasse
daquele..., daquele abismo, daquela situação incrível em que eu não via nenhuma
possibilidade de sobreviver a não ser desse jeito, trabalhando. E o sangue jorrava e eu...,
eu não parava, eu estava coberto de suor. Muito cansado, exausto. Caí de joelhos.

E então, não sei se foi uma questão de..., de êxtase, mas eu senti como se tivesse
mandado Deus um anjo, senti o abanar de uma asa e, de repente, começou a... o sangue
começou a parar de jorrar. O suor secou. E eu me senti forte. Levantei-me e fui levar...,
terminei o meu serviço de rachar lenha, fui levar lá para cima, para o segundo andar da...,
da minha patroa. E..., é..., levei a comida para casa, que eu ganhava um pequeno prato de
comida, por causa disso.

Então, minha mãe disse: “ô filho, você trouxe hoje muita comida, você não comeu,
não?” Eu digo: “é, mãe, eu comi, eu já comi”. Quer dizer, eu me referi à outra comida,
mas não expliquei a ela nada. Porque não entrava..., não entrava em detalhes.

Bom, agora, eu, então, continuava rachando lenha etc. e tal, até que...

JF: E estudar? O senhor parou os estudos ou continuou?

BT: Ah, isso, não, não. Eu continuava estudando. Ia a pé até a escola, continuava a estudar.
1B –BT-15

Mas eu, como trabalhava de dia, subnutrido, em tremendas condições físicas, muito
cansado, exausto até dizer chega, exausto estava até não poder mais, até cair morto, eu
consegui resistir. E para poder..., quando um dia meu diretor me chamou e disse: “olha
aqui, eu não posso mais dar a você o seu estipêndio, porque eu conheci seu pai, mas os
tempos são outros. Eu não posso mais. A não ser que você tenha muito boas notas. Se
você tiver boas notas, eu posso recomendar você como professor particular”.

Então, eu...

JF: O que vinha a ser o estipêndio, que o senhor falou?

BT: É, ele me dava..., eu estudava de graça no colégio. Devido ao nome da minha família,
não é? Mas não dava mais. Não dava mais. Porque, naturalmente, o governo..., o governo
socialista, comunista da Estônia interveio, não é? Deve ter sido isso, não é?

Eu então digo, agora: e agora? Então, eu comecei a botar..., comecei a estudar, me


preparava com muito afinco, com muita energia, para melhorar as minhas notas de
colégio, que eram ruins, devido ao meu cansaço, não é? Eu botava meus pés em água
com gelo para não dormir de noite. Consegui melhorar e fui o melhor aluno do colégio.
Aí o diretor cumpriu a promessa dele, me dava um..., uma..., me recomendava para os
outros alunos, para eu..., dar aula de Geografia, de História, de Línguas etc. e tal.

Então, eu ganhava, para você ver uma diferença. Quando eu era rachador de lenha, eu
ganhava 15 marcos estonianos por semana. E quando eu era professor, ganhava 45
marcos por aula. É uma diferença muito grande.

Aí, ... para começar as férias, ficava outra vez sem trabalho. Então, eu...

ET: Você falou que seu pai ficou apático, sentado numa cadeira na revolução comunista.

BT: Hein?

JF: Seu pai. Como que seu pai reagiu à revolução?

BT: Ah, meu pai morreu..., morreu... //Eu não... É muito difícil para mim, para me lembrar
disso, mas ele morreu...//

ET: //Ele falava que esse nós não vamos// matar para você cuidar dele. Você lembra que você
comentou que eles falaram assim: esse, nós não vamos matar para você cuidar dele. Seu
pai, que ficou apático numa cadeira.

BT: É. Meu pai ficou apático. Completamente. Ele não resistiu ao..., ao...
1B –BT-16

JF: Ao golpe.

BT: Ao golpe do comunismo, não é? Do Tsar. Ele era monarquista, naturalmente, como
militar, não é? É... É. Ele morreu..., morreu praticamente esgotado. Totalmente esgotado.
Apático. Completamente. Um dia, ele estava morto.

JF: E isso o senhor ainda estava lá.

BT: Eu..., eu estava..., eu cuidava dele. Eu era, apesar de subnutrido etc., era um rapazinho
forte. Era baixinho..., baixinho. Minha família toda é muito alta, mas eu era baixinho.
Naquele retrato que você conhece, onde está a turma da minha..., da formatura, você vê
que eu sou baixinho, não é? Cresci depois. Bom...

JF: Aí ficou o senhor e sua mãe.

BT: É. Minha irmã também morava lá, mas depois ela foi para uma instituição que a minha
família Tiesenhausen tinha... é..., tinha fundado para todos os Tiesenhausen que
precisassem de ajuda. E ela morava lá.

ET: Do sexo feminino.

BT: Só do sexo feminino. É. Eu tinha... Eu... Nós alimentávamos apenas de farinha de


centeio.

JF: E aí como apareceu...

BT: Batata podre, casca, casca de batata, não tinha sal, não tinha açúcar, não tinha manteiga,
não tinha ovos. Ovos, nós nos lembrávamos do tempo do..., antes da guerra, antes da
revolução. Nada. Não havia nada, o que nós aqui... Quando Eunice bota o feijão e o arroz
na mesa, e a batata, e eu como a comida que ela dá, que é muito saudável, eu dou graças
a Deus que eu tenho o que comer, porque naturalmente, naquele tempo, eu não tinha o
que comer. Eu, às vezes, pegava um pedaço de madeira para ver que ainda tinha dente.

JF: E aí, então, dando as aulas, o senhor melhorou um pouco o nível...

BT: Aí melhorei, mas as aulas eram poucas e eram somente no tempo das aulas.

JF: //Das aulas.//

BT: Então, eu fui..., fui para o campo. E lá, eu trabalhava com a picareta na terra, no fundo da
terra, para uma construção de uma usina de celulose, ganhava lá..., ganhava em duas
turmas seguidas, cada uma de oito horas, dezesseis horas por dia, ganha..., trabalhava na
picareta. Dormia em cima de prancha de madeira, compreende? Sem colchão, sem nada.
1B –BT-17

JF: E como que veio a oportunidade de vir para o Brasil?

ET: //Cheio de percevejo, cheio de bicho.//

BT: Ah, cheio de bicho etc. gente, ladrões e no meio de todo esse povo. Mas eu tinha que
ganhar dinheiro. Porque a minha grande..., meu grande ideal era eu..., eu ganhar o
suficientemente o dinheiro, poupar o dinheiro de todo jeito. Tirava da minha boca para
não comer, para ganhar o dinheiro para poupar, para eu poder ir estudar jurisprudência,
que é advocacia, na cidade de Berlim [Scherlockbuck], na Alemanha. Mas sobreveio a
grande..., o grande debate, em 1920, na Alemanha. Sabe?

E não consegui. O dinheiro que eu tinha ganho foi embora com uma operação que
minha irmã teve que fazer no peito. E foi embora de todo jeito. Compreende? O que eu
ganhava com tanto esforço, com tanta coisa, não é? Depois, um dia, um dia, eu estava
trabalhando lá no campo, no campo, lá, e me encostei um pouquinho na..., assim, porque
estava cansado, não é? Aí veio o feitor comunista e disse: “como que é? Vamos ou não
vamos?” Olhou para mim, a cara de... “ah, você, agora você está vendo como é bom, não
é? Como é bom a gente trabalhar desse jeito, não é? Tá. Vamos, trabalhe” Então..., é o
comunismo. Era o feitor comunista.

Nisso, o chefe daquela..., daquela construção era um engenheiro do tempo antigo. Ele,
na lista de empregados, ele viu o meu nome. Chamou-me imediatamente e disse... Não,
não é isso. Ele veio pessoalmente, ele veio para mim, me viu lá e disse: “mas o senhor
está aqui? O que o senhor está fazendo aqui?” Eu não respondi nada. Olhei para a cara
dele e disse: “o senhor pode imaginar o que estou fazendo aqui”. Ele disse: “não, não
tem disso, não. Apresente-se amanhã no meu escritório”. Ele me levou lá para cima e me
empregou lá, como empregado do escritório. Que ele viu meu nome, Tiesenhausen.
Tiesenhausen é como, vamos dizer aqui, em pequena comparação, com os Andradas de
Barbacena. Compreende? É um nome singular. Bonifácio Andrada, por exemplo.

JF: E aí o senhor ficou...

BT: Aí fiquei lá trabalhando até. Mas eu disse: essa construção vai acabar. E um dia, eu vou
ter outra vez que procurar. Porque ninguém queria dar emprego a um filho de um barão.
Então, como é que ia ficar mais tarde? Então, a minha tia, a irmã da minha mãe, ela tinha
um conhecido que vinha para aqui, para o Brasil. Este..., é um compatriota meu. Também
da nobreza. E ele tinha salvo algum dinheiro na Finlândia. Ele quis vir para o Brasil
1B –BT-18

colocar... Que falaram com ele: o Brasil é o país do futuro. Aí pode-se viver debaixo do
guarda-chuva. Alimentar-se de banana. E num instante a gente fica rico.

Eu fui nesta onda, fui, me apresentei a ele e ele me aceitou, porque ele não tinha filho.
E nós viemos juntos para cá. Ele pagou a minha travessia. E aí..., porque era uma
oportunidade para mim, para sair. Porque eu não via nenhuma possibilidade, nenhuma
esperança para o futuro. Realmente, com o tempo, as coisas estavam saindo cada vez
pior, porque depois veio o tempo de Stalin, que foi pior ainda. Foi a história mais..., o
maior bandido de todos os tempos, o Stalin. Vinte milhões de encarcerados a trabalhos
forçados, nos campos da Sibéria.

Você leu alguma coisa sobre...

JF: //Sim, sim.//

BT: Sobre.., como é chama? Sobre [Chirnitzen]?

JF: Muitas coisas. Eu dou muita aula sobre essa questão do Leste Europeu e da revolução
russa.

BT: Ah, é?

JF: [riso]. É uma das minhas especialidades. Mas eu queria perguntar para o senhor duas
coisas, sobre essa saída. Primeiro, o senhor deixou a sua mãe, então.

BT: Ah, deixei. Fiz muito mal. Eu sofro até hoje, porque minha mãe morreu também em
circunstâncias trágicas. Morreu, morreu, morreu. Inanição. Como meu pai. Morreu de
inanição. O meu pai morreu sentado, fumando aquele cachimbo dele. Um dia morreu,
estava morto.

JF: E a segunda coisa...

BT: Fome, fome, frio, desespero. Seu nome é Júnia, não é? Júnia, é difícil de eu explicar isso,
é muito difícil, porque isso é uma..., foi uma tragédia que não alcançou apenas a mim. Eu
sou um dos poucos. Foi uma tragédia imensa que abateu-se sobre as famílias da..., da...,
do antigo comando.

JF: E a outra coisa que eu queria perguntar para o senhor, então não havia dificuldade em
sair.

BT: Não, não.

JF: Tendo dinheiro para comprar a passagem, podia sair.


1B –BT-19

BT: É, é, é. Meu..., meu chefe pagou a passagem e por causa disso, eu trabalhei dois anos na
enxada, para ele. No fim..., no Sul de Minas.

JF: E com que foi..., vamos então agora. Como que foi a viagem? O senhor entrou no navio e
veio direto? Como que era?

BT: É. Passei pela Alemanha, pela Holanda, pela..., pelo Belgique, Bélgica e Espanha,
Portugal, até Santos. Quando desembarquei em Santos, eu me tinha..., eu tinha a
impressão que tinha caído num..., num outro planeta no mundo.

JF: Por quê? Conta para a gente.

BT: [risos]

JF: [riso] Por que aqui parecia um outro planeta?

BT: Porque eu vi... Eu nunca tinha visto preto na minha vida. Preto. Gente preta, negra, não
é? Mas planeta mesmo, diferente, eu vi quando fui no Sul de Minas. Lá é aquela mata
tremenda, cheia de cascavéis, de bichos de toda sorte, lagartixas enormes, esses..., esses...
como chama esse bicho que fica no ar? Aranhas pretas etc. Enfim... Bom.

JF: Aí o senhor desembarcou em Santos.

BT: Aí, e depois de lá, nós viemos para Ouro Fino, no Sul de Minas, porque o governo do
Brasil, de Minas, dava terras, dava terrenos a imigrantes.

JF: E aí esse senhor //que estava com...

BT: //Comprou um...//, naturalmente comprou, ou lhe foi dado, isso agora não me lembro. É,
terra, não é? E nós trabalhamos lá no campo. Ele ficou na cidade de Ouro Fino e eu..., e
eu fui para o mato.

JF: E o senhor trabalhava, então, para ele.

BT: Para ele.

JF: Para poder pagar a passagem.

BT: É. Para pagar a travessia.

JF: A sua tia veio com o senhor?

BT: Ela veio comigo. É. Ela veio... Não, ela veio com a família dela, não é. Mas eu vim com
ele.

JF: E ela, então, não ficou com o senhor.


1B –BT-20

BT: Não, não, não. Ela ficou separado.

JF: E havia... O senhor disse que tinha um nome a fazenda, não tinha?.../

FIM DO LADO B DA FITA 1


1B –BT-21

F P
Freiherr, 3 Pedro “O Grande”, 5

I R
imigrantes., 20 revolução, 6, 7, 12, 13, 14, 16, 17, 19
império russo, 5, 11 revolução comunista, 6, 7, 14, 16
Rússia, 4, 5, 6, 11
L
S
Lutero, 3, 4
Stalin, 19
M
T
Magyars, 5
Martinho Lutero, 3, 4 Terra Santa, 2, 3
Tiesenhausen, 1, 2, 4, 5, 17, 18
Tsar, 6, 17
O
Ordem dos Espatários, 2, 3, 6
2A –BT -1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CENTRO DE ESTUDOS MINEIROS
GRUPO DE HISTÓRIA ORAL
PROJETO INTEGRADO: “MINAS GERAIS: POLÍTICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DA
HISTÓRIA ORAL”

ENTREVISTADORES: PROFª JÚNIA FERREIRA FURTADO


CARLOS AUGUSTO MITRAUD
ENTREVISTADO: BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
LOCAL: BELO HORIZONTE
DATA: 18/07/92

Entrevista - fita 2- lado A

JF: Então, o senhor foi para a colônia José Bento, não é?

BT: Padre José Bento.

JF: Padre José Bento. E aí o senhor ficou dois anos lá.

BT: Lá.

JF: Conta para a gente, um pouquinho, como é que foi?

BT: Eu levantava muito cedo, de manhã, não é?, e trabalhava o dia inteiro na enxada.
Plantava, semeava, plantava milho, feijão, arroz... Arroz, não. Milho, feijão e mandioca,
e batata etc. e tal. E depois construí o meu próprio rancho.

JF: E aí, no rancho, o senhor morava sozinho.

BT: É.

JF: E trabalhava na enxada. O que o senhor plantava lá? O que que se plantava lá?

BT: Feijão e arroz. Feijão e milho. Milho, milho, milho. Principalmente milho. Milho. Eu, até
hoje, não posso nem ver milho, de tanto que comia milho. Só milho. Não gosto de milho.

JF: Aí o senhor ficou dois anos lá. E aí o senhor chegou à conclusão...

BT: Aí, depois, eu queria sair. Eu via que para mim não tinha futuro no campo, não é? Ficava
lá, fazer o quê? Carroceiro, não é? Bom...
2A –BT -2

JF: O que o senhor recebia, o senhor pagava tudo para poder pagar a passagem? Ficava tudo
com..., com o senhor?

BT: Não. Não. Eu recebia..., eu recebia 50 mil réis por mês para... para consertar os meus
sapatos etc. e tal. Porque no tempo da revolução comunista, eu fiquei quase nu, porque a
roupa ficou desgastada totalmente, não é? E eu andava com tamancos, com sola de
madeira, em cima de neve. Você sabe o que que é isso, não? Não pode imaginar, não é?
Minha roupa ficou em frangalhos, não é? Eu carregava jornais para ajudar, para ganhar
mais dinheiro, carregava jornais da estação ferroviária para o correio, nas costas. Jornais.
Eu... fui..., fiz toda a sorte de trabalho pesado.

Então, quando eu vi que aqui não tinha jeito, não..., não ia para a frente lá no mato, eu
vim aqui para Belo Horizonte. Aqui, eu não podia..., não arranjava emprego, porque eu
não sabia falar português.

JF: A viagem era feita como? Era trem?

BT: Ah, eu vim de trem.

JF: Veio de trem.

BT: De Sul de Minas.

JF: E aí, ainda, o senhor não falava português ainda não.

BT: Não, porque eu não tinha aprendido no mato. Caboclo não falava bem português, não é?
Eu não entendia, não é? Eu sabia..., quando cheguei aqui no Brasil, sabia três palavras:
banana, quanto custa e..., e sim. Só. Só.

JF: Aí o senhor chega em Belo Horizonte, então, pela primeira vez.

BT: É. Cheguei. Aí cheguei, a primeira vez foi em 1925.

JF: Em 1925. Qual foi //a primeira impressão...//

BT: //Eu cheguei no Brasil// em 1923.

JF: 23. Não é? Chegou no Brasil em 23, ficou dois anos no Sul. Qual foi a primeira impressão
da cidade?

BT: É uma cidade..., era uma cidade agradável, pacata, povo muito..., muito dado, muito
simpático, muito humano. Eu fui da estação, eu me lembro que eu, da estação, fui para o
Hotel Avenida, naquele tempo. Chamava-se Hotel Avenida. Mas lá, conseguiram um
2A –BT -3

quarto lá no fundo. Mas era muito caro. Então, eu procurei uma pensão. Então, eu fui a
pé até à rua Aimorés, achei lá uma pensão. E, quando entrei lá na pensão... [riso]

ET: Na rua Aimorés ou rua Pernambuco?

BT: Rua Aimorés. Rua Aimorés. Esta casa não existe mais, ela foi demolida. Sabe? Hoje tem
um prédio lá.

JF: Aí o senhor entrou...

BT: Entrou. Aí era uma república de estudantes. E tinha lá..., quando o..., um dos estudantes
lá..., estudantes..., ele me viu lá. E eu cumprimentei todo mundo da maneira como eu
pude cumprimentar. E ele me viu, disse: ôôôhhh. Aí levantou o braço, disse: gente, nós
estamos aqui salvos! [risos] Eu digo..., todo mundo perguntou, mas salvo por quê?
Acaba-se o perigo de pernilongo. Por que nós temos no nosso meio um legítimo
representante de sangue azul e os pernilongos adoram o sangue azul. [risos] Era o João
Dornas Filho, o grande poeta João Dornas Filho, que depois me uniu uma grande
amizade a esse homem. Homem era cachaceiro, era um homem tremendo esse Dornas.
Mas é uma jóia de ser humano.

JF: E aí, como o senhor fez para sobreviver em Belo Horizonte.

BT: Aí eu fui apresentado ao doutor Ernesto Von Sperling, que era, naquele tempo, diretor
da..., de Agricultura, de Agricultura do Estado de Minas Gerais. A minha avó, na
Alemanha, a madrasta da minha mãe, ela era muito amiga da irmã do..., naquele tempo,
presidente da Alemanha, o marechal Hindemburg. E ela soube que eu estava no Brasil.
Mas como eu não mandava notícias, porque eu tinha vergonha de mandar notícias para
minha terra, que depois de dois anos, eu não tinha progredido nenhum passo para a
frente, estava na mesma, na mesma condição de..., de..., de capinador, eu não mandava
notícia. Então, eles ficaram preocupados e procuraram saber se as onças me tinham
comido. Que ninguém tem idéia lá o que é isso, não é? [risos].

Então, ele..., eu me apresentei ao doutor Ernesto Von Sperling, este me deu uma
recomendação.

ET: Ele era do serviço de colonização.

BT: Serviço de colonização, é. Então, mas acontece que como eu não sabia falar português,
eu não podia ocupar um lugar de vendedor. Então, eu fui lavador de carro na Casa Arthur
Haas. Sabe Casa Arthur Haas? Hoje é uma casa importante. Naquele tempo era um
2A –BT -4

aglomerado de balcões..., de galpões, coberto de folha de zinco. Naquele tempo. O velho


Arthur Haas era cônsul da Holanda. E ele me empregou e me entregou ao filho dele. São
judeus. E..., o que eu vou fazer? Falou o Luís Haas. O que eu vou fazer com este gringo?
Ele não sabe falar português? Então, eles me puseram..., eu lavava carro e..., e..., era
faxineiro. Faxineiro. Não tem outro termo. Faxineiro, não é?

Aqui morava numa pensão que nós intitulávamos Paraíso dos Simpáticos. [risos] E a
dona da pensão...

ET: Morava Mário Matos...

BT: Não, não, isso é muito mais tarde. Isso, Mário Matos, já foi muito mais tarde. Mário
Matos foi quando eu vim pela segunda vez para o Brasil..., para Belo Horizonte. Porque
eu ficava lá, fiquei, parece que oito meses, ou dez meses, fiquei empregado da Casa
Arthur Haas. Naquele tempo não existia ainda..., é..., Ministério do Trabalho, não existia
carteira, não existia nada. Eu não tenho nenhuma lembrança, a não ser alguns catálogos
da Ford. Porque a Casa Arthur Haas era representante da Ford, não é? Aprendi as..., o
carro, como que era etc. e tal.

JF: Mas a dona da pensão, o senhor estava dizendo...

BT: A dona da pensão era mulher da açogueiro Pedro, não é? Que tinha um açougue. E tudo
quanto era [risos] carne de pior espécie foi lá para essa pensão. Eu quebrei os meus
dentes todos lá, por causa da..., da..., o bife era sola de sapato. Nossa mãe! Que coisa
horrorosa! Mas eu..., mas a gente comia. Não comia bife, porque não..., custava a
mastigar. Mas comia o feijão, arroz, a batata, não é? E tinha alguma coisa para comer.
Era diferente do tempo quando eu não tinha o que comer. Quando a fome roncava no...
no meu estômago.

ET: Você não falou nada da fazenda Padre José Bento, que você fez o seu rancho. Você não
contou nada.

JF: Ele contou.

ET: Contou?

JF: Contou. Mas aí, deixa eu perguntar ao senhor.

BT: O que que a senhora quer saber mais?

JF: Eu quero saber: aí, então, o senhor fez amizade com os estudantes, que moravam na casa.
2A –BT -5

BT: É. Hum.

JF: E o senhor lembra em especial de alguém?

BT: Ah. Do Dornas, me lembro do..., dos Carvalho, dos irmãos Carvalho, que eram filhos de
fazendeiros. Tinha um estudante lá, eu me esqueci o nome dele, que até para a privada
ele ia de colarinho. Era filho de fazendeiro de São Paulo. Me lembro muito bem.

JF: E aí o senhor começou a aprender o português?

BT: Não, não, não. Não tinha. Eu conversava, sabe? Mas não aprendi português. Não aprendi
o português. Falava mais ou menos, não é?

ET: Foi esse Dornas que mandou você roubar as mangas?

BT: Ah. [risos]. O Dornas me botou para roubar mangas. O Dornas. [risos.

JF: Aonde?

BT: Ah, lá é muito longe, não é? Eu tenho...

ET: Na vizinha tinha mangueira lá.

JF: Agora, por que o senhor veio para Belo Horizonte?

BT: Para onde eu ia.

JF: É. Por que Belo Horizonte?

BT: Para onde eu ia? O que que você acha? Sendo que eu tinha...

JF: O senhor ouviu lá no Sul sobre a cidade?

BT: Sobre a cidade. Sabia que era capital de Minas Gerais e estava aqui..., estava o Sperling,
doutor Ernesto Von Sperling.

JF: Ah, então o senhor já sabia que ele estaria aqui.

BT: É, ele estava aqui, sim, eu sabia.

ET: Que ele era diretor de //colonização//, serviço de colonização.

JF: //Ah, por causa do... Hum-hum.// E aí, então, o senhor ficou aqui, enquanto o senhor ficou
aqui, o senhor trabalhou na Casa Arthur Haas.

BT: É, é.

JF: E o senhor estabeleceu contato, por exemplo, com outros imigrantes?


2A –BT -6

BT: Não, não. Não. Não conhecia ninguém, não conhecia nada. Então, um belo dia, eu resolvi
de..., eu sempre fui muito atirado, muito para a frente, queria progredir de toda maneira,
de qualquer maneira. Então, um belo dia, resolvi vir para o Rio de Janeiro.

JF: Mas antes do senhor ir para o Rio de Janeiro. E o que o senhor fazia sem ser o trabalho?
O senhor tinha algum divertimento?

BT: [risos]. Divertimento, nenhum. //Não tinha divertimento.//

JF: //O que o senhor fazia nos// fins de semana? Saía, por exemplo, com os estudantes?

BT: Hein? Não, não. Eu estava com os estudantes, com Dornas etc. e tal. Estava lá... Eles me
levaram, uma vez, lá para a zona [riso], eu nunca tinha visto isso, não é?, na minha vida,
um regime muito patriarcal, não é? Nós estávamos completa... O sistema aqui é de..., a
educação sexual aqui é totalmente diferente da de lá, não é? Então eu estive... [riso] lá,
passei apertado lá. [risos].

JF: Fala, conta. E aí o senhor saía com eles, assim?

BT: É, saía. Eles pagaram a cerveja etc. e tal.

JF: Cinema, nada.

BT: Não, quê isso. Não tinha dinheiro para nada. Não tinha dinheiro para nada, para cinema,
não. Isso foi a primeira vez que eu estive em Belo Horizonte. 1925. Depois fui para o...

JF: Aí o senhor foi para o Rio.

BT: Fui para o Rio. Lá eu passei mal. Viu Júnia? Passei mal, porque não encontrei aquele
calor humano, que é aqui em Minas, que existia aqui em Minas. Naquele tempo. Em
1925.

JF: Então, apesar do senhor ter feito poucos relacionamentos aqui na cidade, o senhor achou
que a cidade era mais receptiva.

BT: Ah, muito. Muito. Ah, eu me lembro muito bem, é..., a gente sentia-se muito bem aqui,
não é? Eu me lembro... Isso foi... Não, isso já foi na segunda vez, quando eu vim para cá.
Mas, na primeira vez, é muito distante, em 25, fazem..., fazem 60 anos, não é? Não é? É
muito tempo para a gente se lembrar de todos os detalhes. Mas eu me lembro que eu
estava sempre com ele. Estava com eles em casa, ficava em casa, na pensão. Você
pergunta o que que eu fazia, para onde eu ia. Parte nenhuma, ficava em casa.

ET: Andaram mesmo, os quatro não iam para lugar nenhum?


2A –BT -7

JF: Não iam para o parque, passeios pela cidade, na praça?

BT: Isso foi já na segunda...

JF: Já na segunda vez.

BT: Na segunda vez, quando vim para cá.

JF: Então, antes da gente chegar lá, vamos falar do Rio. Aí o senhor, então...

BT: Ah, no Rio, eu passei muito mal, porque lá eu consegui morar na..., no corredor de um...
Um alemão me... me cedeu o..., uma cama no corredor da casa onde ele morava, não é?
Morava lá. Mas eu..., comer que era difícil.

JF: Mas por que o senhor decidiu ir para o Rio?

BT: Porque não havia jeito de continuar sempre como trabalhador... trabalhador de... na...
lavador de carro.

JF: Mas o que que o Rio oferecia? Acho que o senhor não me contou //da possibilidade de
aprender a língua.//

BT: //Não, eu pensei//, a minha idéia sempre foi essa, que eu queria progredir. Fiz tudo da
minha vida para progredir mais. Para ir para a frente. Era um homem muito decidido, era,
naquele tempo, muito jovem, muito decidido, muito para a frente, porque eu tinha
sobrevivido à época mais difícil da minha vida, que foi a época na minha terra natal,
quando eu tive que sobreviver à custa de um sacrifício físico, mental e psíquico fora de
comum.

JF: Mas aí o senhor me falou que lá no Rio, o senhor se matriculou para aprender o
português.

BT: Bom, aí..., aí já foi muito mais tarde.

JF: Ah, já foi muito mais tarde.

BT: Aí, então, eu comecei desesperadamente... pedir a jornaleiro para me emprestar o jornal,
para eu poder ler os anúncios, para procurar um emprego. Afinal de contas, eu consegui.
Mas eu estou..., sabe?, Júnia, eu estou andando muito devagar, não é?

JF: Não, mas eu quero devagar. //[risos]. Fala devagar.//


2A –BT -8

BT: //[risos] Então eu fui lá.// Então, eu fui lá e um belo dia, eu achei um anúncio lá:
“procura-se um rapaz jovem, talentoso e... e jeitoso que saiba falar bem o inglês e
conheça profundamente fotografia.”

JF: Fotografia?

BT: Fotografia, é. Digo, meu Deus, eu não conheço nada disto, mas eu vou lá. Fui lá me
apresentar [risos]. Sentei lá. Quando...

JF: E era onde? Era na casa...

BT: Na Casa Lutz Ferrando. Muito... Para você deve ser muito chato de eu ir...

ET: Não, não está chato, não.

JF: Para quem? Para mim ou para a senhora?

ET: É para mim, que ele fala que eu já ouvi isso muitas vezes.

JF: [risos]. Aí o senhor foi lá na Casa Lutz Ferrando, atrás do anúncio que o senhor viu no
jornal.

BT: É. Fui lá, vi, quando ia, o grande edifício lá, casa enorme, o coração me caiu nas calças.
Eu digo, gente, isso aqui é uma... [risos], precisa ter muita..., ser muito cara dura //para
vir aqui.//

JF: //De pau.//

BT: Eu estava com meu terno, estava nas últimas, com sapato de sola torta, magro, faminto,
que eu comia..., eu comia uma vez por semana um prato quente. ... O que eu vou me
lembrar disso agora?

ET: Você vai dizer quando o senhor chegou lá.

JF: Aí, o senhor chegou, entrou, se ofereceu...

BT: Me apresentei lá ao senhor secretário do gerente. Meu...

JF: Só uma pergunta, como o senhor fazia para se comunicar?

BT: Falei com ele com o português que eu sabia falar. Mal, mas...

JF: Saía alguma coisa.

BT: É, saía alguma coisa. Então, ele me disse..., me disse: o que que você quer? Eu digo, eu
vi aqui esse anúncio. Ele disse: quê? Mas..., mas..., você quer falar com o diretor? Digo:
2A –BT -9

é, eu queria falar com o diretor. [risos]. Fiquei um pouco desanimado com o jeito brusco.
Eu já vi, Júnia, eu já vi gente de todo jeito. Gente de cabeça e nariz em cima, me olhando
de cima para baixo... Ele disse, bom. Diz ele: bom, eu vou ver se ele quer receber você.
Digo: o senhor me faz favor, vê se posso falar com ele.

Cheguei..., aí, estava lá sentado um alemão, um alemão gordo estava sentado em cima
de uma cadeira. Nem levantou a cabeça. E eu. O que você quer? Digo: eu vi esse jornal,
esse anúncio no jornal, queria pedir para o senhor um lugar para eu poder trabalhar. Eu
preciso de trabalhar. Preciso, eu preciso de trabalhar. Aí, ele levantou a cabeça, me viu aí,
e disse: está bem, do you speak english? Ah, veio logo com o inglês. E eu tinha
esquecido o inglês, ou, pelo menos, em grande parte. Porque a vida que eu tinha levado
era vida de sobrevivência, não é? Ele olhou para mim e disse: bem, inglês, você pode ser
que fala um pouco, mas muito mal. Você conhece fotografia? Eu digo: alguma coisa.
Digo, bom. Ele olhou para mim com muita piedade e disse: bom, uma coisa é certa, uma
coisa é certa, você é um homem de coragem, para vir aqui, para se apresentar aqui e tal.
Qual é mesmo o seu nome? Mas, em todo caso, eu vou ver o que que posso fazer por
você? Ficou..., simpatizou comigo, não é?

Aí, ele me disse, qual era mesmo o seu nome? Eu disse: “Tiesenhausen”. Aí, ele levou
um susto. Pulou na cadeira e disse: o quê? “Tiesenhausen? Não é possível! Você não é
da família Tiesenhausen, das mais antigas famílias?” Digo: “sou, sim senhor. Mas como
você chegou a esse ponto?” Aí, ele passou de você para senhor. “Como é que o senhor
chegou a esse ponto?” Eu digo: “senhor gerente, o senhor não sabe...” Aí já passei para
alemão. O senhor nunca ouviu falar da revolução comunista, pois eu sou uma das
pessoas sobreviventes daquela catástrofe”. Aí, ele disse: “ bom, você vai fazer o
seguinte, o senhor vai fazer..., eu vou..., vou colocar você como vendedor. Aí, você
aprende, aprende etc. e tal.”

Mas, tirou dinheiro do bolso, me deu 10 mil réis. Eu olhei para a cara dele e para os 10
mil réis. Não aceitei. Ele disse: “ué, por que você não aceita? Você toma um, vai
almoçar, vai comer alguma coisa, que você está com cara de quem você não comeu.”
Digo: “ realmente, há uma semana que eu não estou comendo nada, só um pedaço de
pão. “Mas então aceita”. Eu diss: “não, muito obrigado. Eu não posso aceitar, porque o
senhor não me conhece.” Sempre falando em alemão, não é? Que o senhor não me
conhece. E eu digo que me chamo Tiesenhausen. Mas qual é a prova que o senhor tem?
2A –BT -10

Não aceito agora. Se o senhor me empregar amanhã, posso começar a trabalhar amanhã,
dentro de 15 dias eu terei feito jus a um vale. Aí, eu aceito, aí posso aceitar.

Ele olhou para minha cara: isso é muito estranho. Olhou para mim e disse: é, é orgulho
da raça, não é? Eu digo: não sei. O fato é que não acho correto de aceitar um dinheiro seu
sem o senhor me conhecer. Fui embora. No dia seguinte estava empregado. Quando
entrei lá dentro, a macacada lá começou a rir. [risos] E me chamaram logo aqui cadáver
ambulante.

JF: De tão magro que o senhor estava.

BT: Magro e esgotado.

JF: E ainda morando na casa desse alemão.

BT: É. Aí, o alemão me botou para fora. Me botou para fora. Me botou para fora, não, disse:
já fiz muito para você, agora você arranja outro lugar. Então, eu achei uma..., fui para
uma pensão de um padre bavaro, sujeito..., ele era padre, não é?, mas era de uma..., de
uma estupidez, uma coisa louca, sabe? Então, eu lá..., eu fiquei lá um tempo. Parece que
foi aí que eu conheci o [Schilosky].

JF: Quem era?

BT: O Pedro.

ET: Pedro [Schilosky], são uns russos.

BT: Bom, mas aí, então, eu, depois..., eu me arrumei, comecei a... Quando eu tinha um
emprego fixo, a primeira coisa que eu fiz foi deixar dinheiro para a Biblioteca Nacional,
onde eu ia, enquanto eu não tinha emprego no Rio, eu ia todo dia à noite..., tinha lá um
pretão, que era... era porteiro, não é? E pedia a ele para me dar um jornal para ler, para...
para praticar, para ver como que eram as palavras em português, não é? E ele me dava.
Ele disse: “ó, lá vem o gringo outra vez.” Porque aqui não era nada, eu era aqui um
número, um ilustre desconhecido, não é?

ET: Você entra para a Associação de Moços Cristãos.

BT: Daí, então, eu me inscrevo, quando tinha um emprego fixo, me inscrevi na Associação
Cristã de Moços. Lá na..., tinha um prédio lá na Esplanada do Castelo. Lá tinha um
professor de português, uma dama. Me ensinou português perfeito. Eu estou falando,
hoje, um português muito bom, porque aprendi lá.
2A –BT -11

JF: O senhor lembra o nome dele?

BT: //Não, não me lembro.//

JF: //Não tem importância.//

BT: Não me lembro mais. Ainda há muitos anos atrás, eu o vi aqui..., o vi aqui em Belo
Horizonte. Mas me esqueci o nome dele.

JF: E eram à noite as aulas?

BT: É, eu trabalhava..., naquele tempo não havia lei trabalhista, não é? A gente chegava às 7
horas da manhã e saía às 7 horas da noite, não é? Duas horas de almoço que eu tinha, eu
ia para a praça da Bandeira, para estudar piano. Era um doido.

JF: Aí o senhor começou, então, a estudar piano. Com esse emprego, então, o senhor
começou a ter uma vida mais digna, não é?

BT: Não, uma vida mais normal.

ET: //A dona dava aula de graça para ele.//

BT: Hein?

ET: Ela dava aula de graça //para você.//

JF: //Te dava aula de graça.//

BT: Sim. [risos]

JF: Quem era?

BT: Eu não lembro do nome.

JF: Mas era brasileira?

BT: É, brasileira. Então, eu ia a pé. Sabe..., conhece Rio de Janeiro, não? Sabe onde fica a
praça da Bandeira? Longe. Ia pela [risos] avenida, como chama? Gomes Freire.

JF: A loja ficava em Copacabana?

BT: Não.

JF: Ficava no centro.

BT: A loja ficava na rua do Ouvidor. Mas, então, eu entrei na Associação Cristã de Moços, lá
me formei, eu tenho atestado da Associação Cristã de Moços.

ET: Vamos tomar um lanche.


2A –BT -12

JF: Vamos só acabar essa parte aqui, aí a gente interrompe.

BT: Estou falando muito, não é?

JF: Não. Está falando ótimo, tá?

BT: [risos]. Pois é.

JF: //Podia interromper//, então. O senhor que...

BT: //O quê?// / Então, lá, estudei bem, aprendi muito bem falar português, me..., sempre
procurei me aperfeiçoar cada vez mais. Quando havia alguém literato, um poeta etc. e tal,
fazia uma conferência, eu ia lá para aprender mais português, não é?

JF: E no emprego, também, o senhor começou a subir aos poucos.

BT: Perfeitamente, é. Aí, no emprego, eu comecei como... como..., limpava prateleira lá etc. e
tal. Depois passei para vendedor. Depois passei..., de vendedor passei para chefe de
seção. Depois passei para chefe de loja. E depois passei para..., para gerente.

JF: Quanto tempo?

BT: A segunda vez que fui mandado aqui para Belo Horizonte, foi 1932.

JF: Então, nesse intervalo, o senhor foi subindo na loja.

BT: Fui subindo lá na..., na Lutz Ferrando, não é? Aí já era gerente. Quando cheguei a
segunda vez, aqui em Belo Horizonte, aí a minha situação era completamente diferente.
//Eu era...//

JF: //Mas antes...//

BT: Eu era funcionário, alto funcionário de uma grande casa comercial, falava bem português
e fiz relações com a melhor sociedade de Belo Horizonte.

JF: Aí, o senhor, antes ainda do senhor vir a Belo Horizonte, o senhor falou de uma família
russa que o senhor travou contato, não é?

BT: Não, família russa, não. É imigrante... Eram também imigrantes. [Schilosky]. Era Pedro.
Pedro [Schilosky].

JF: Imigrantes russos.

BT: É. Mas aí não fiz, não. Ele morava na mesma pensão que eu.

ET: É. Depois ficaram amigos. Ele foi até padrinho do seu filho.
2A –BT -13

BT: É.

JF: E enquanto o senhor ficou no Rio, então, primeiro o senhor morou naquela casa do
alemão, depois o senhor falou que foi morar..., é..., numa pensão de //um padre.//

BT: //De um padre.// É.

JF: E aí o senhor ficou o tempo inteiro nessa pensão?

BT: Não, depois eu mudei constantemente de residência.

JF: Sempre pensões.

BT: Sempre pensões, é.

JF: Aí, então...

BT: Morei em todas as partes de... Em..., no Rio de Janeiro, morei em Santa Teresa. Sabe
Santa Teresa, tem um bairro aí, não é? Em Copacabana. Morei em Ipanema. Morei em
Leblon, morei no Centro. Eu me lembro quando eu morava no Centro, lá, na rua
Aimorés..., na rua..., como é que chama aquela rua lá? ... General Câmara. Nossa mãe! O
calor que fazia lá. Quarenta e dois graus. E eu não conseguia levantar da cadeira, suando.
[risos].

ET: Você não falou por que você subiu, que você ia de seção em seção para aprender o
trabalho.

BT: Ah, eu aprendi o trabalho..., o trabalho, aprendendo, pedindo a todo mundo para me
ensinar como que era fotografia, como que era isso, como era aquilo.

JF: E como apareceu a oportunidade de vir para Belo Horizonte? Foi uma...

FIM DO LADO A DA FITA 2


2B –BT -14

Entrevista - fita 2- lado B

JF: Hoje é 25 de julho de 1992. É a segunda sessão, Barão Hermaann von Tisenhausen.

Então, barão, na semana passada, a gente tinha parado, então, com o senhor..., tinha
conseguido emprego na casa...

BT: Lutz Ferrando.

JF: //Lutz Ferrando.//

BT: //Lutz Ferrando.

JF: É. E o senhor foi designado para Belo Horizonte.

BT: Sim. Eu comecei na casa Lutz Ferrando, no Rio de Janeiro, como ajudante de
vendedor. Porque não falava um português muito bom, não é?, e não podia ser
vendedor. Então, como eu tinha muita necessidade de me... empregar, porque eu estava
passando fome, eu aceitei esse emprego e resolvi, então, me agarrar a esse emprego
para subir, como numa escada, na vida. Comecei a trabalhar mais do que era exigido
de mim. E, aos poucos, comecei a angariar a simpatia dos... dos chefes, dos meus
chefes. E a amizade dos meus colegas.

Eu estava tão faminto, tão ruim de vida, é..., que eu..., carioca, com sua..., com sua
ironia, me apelidava de cadáver ambulante. [tosse].

Então, aos poucos, eu comecei a... Quando, então, eu consegui o emprego, eu


comecei..., imediatamente, me..., me..., é..., entrei lá na Associação Cristã de Moços
para aprender direito, a falar direito o português. Lá, eu tive a sorte e a mão de Deus,
que me deu um professor extraordinariamente humano. E aí aprendi um português
muito bom, datilografia, escrituração mercantil e fui subindo na..., na casa Lutz
Ferrando, aos poucos, devido ao meu trabalho, à minha dedicação, à seriedade com
que eu assumia uma responsabilidade. Fui subindo aos poucos, de posto em posto.
2B –BT -15

Primeiro, como vendedor, depois como chefe de seção, depois, chefe de loja. E, no
fim, fui designado, depois de seis ou sete anos, para o cargo de gerente na filial que a
Casa Lutz Ferrando tinha aqui, em Belo Horizonte.

JF: Foi coincidência o senhor ter vindo para Belo Horizonte ou foi...

BT: Não, eu fui designado para cá.

JF: Pois é, mas não foi um pedido seu.

BT: Não, senhora. Eu não tinha nada...

JF: Porque o senhor tinha falado que tinha gostado muito da cidade.

BT: Não, não. Da cidade, eu gostei... É a tal coisa, não é? Sabe, Júnia, não era questão de
gostar ou não gostar. Eu não tinha nada como... Você perguntou por que eu vim para o
Brasil. Eu vim para o Brasil porque não tinha, porque era uma oportunidade que se
oferecia. Eu nem tinha falado..., eu tinha vagamente ouvido falar no Brasil, mas não
sabia o que que..., que terra era essa, não é? A gente falava, na Europa, em geral na
Argentina. Mas não falava no Brasil. De Belo Horizonte, nunca ouvi falar. Só falava
no Rio de Janeiro. E às vezes São Paulo. Naquele tempo São Paulo ainda não era o que
é hoje.

Então, aí, eu aprendi a falar o português etc. e tive condições de vir para cá. Fui
designado como gerente da filial. Não é porque eu pedi. É porque o meu chefe achou
que eu tinha condições de... dirigir uma filial. Que o material era material de alta
especialização. Era fotográfico..., material de fotografia, material de ótica. E, depois,
cirurgia e..., material cirúrgico e material de..., de produtos químicos, vidraria,
engenharia e assim por diante.

Então, aí, quando cheguei em Belo Horizonte, aí a minha situação era totalmente
diferente. Porque se eu, sete, seis ou sete anos atrás, em 1926 até 32, quando eu
cheguei..., fui me empregar na Casa Lutz Ferrando em 25, 26, não me lembro, não, eu
era um homem, uma pessoa que estava necessitando do pão de cada dia. Eu não sabia
me expressar direito em português, porque no mato onde eu trabalhava, durante dois
anos, com a enxada, eu, com os caboclos, eu não aprendi nada.
2B –BT -16

Em primeiro lugar, eu não tinha contato quase com..., humano nenhum.


Principalmente estava no meio de bichos, cobras cascavéis e lagartixas enormes. E
jaguatiricas e de..., de bicho de toda sorte. Papagaios e bicho..., pássaro preto e
acabavam com a roça, quando eu plantava o milho. Depois eles tiravam o milho,
quando começava a brotar, tirava o milho.

Enfim, a luta foi muito grande. Dois anos na enxada. Depois, aqui, seis ou oito
meses, oito ou dez meses aqui, na Casa Arthur Haas, como lavador de carro, como
faxineiro etc. e tal. A luta foi muito grande.

E no Rio de Janeiro, como eu disse também, já estava muito difícil, porque aqui,
mesmo com apenas oito meses, aqui em Belo Horizonte, no primeiro tempo, eu
encontrei uma turma alegre, como eu falei, como inclusive o chefe era o João Dornas
Filho, um grande escritor. Naquele tempo, ele ainda não era tão conhecido. Mas depois
tornou-se um grande poeta. Ele..., ele... fiz grande amizade com ele etc. Mas era uma
turma de estudantes. Não tinha acesso a parte nenhuma, nem da parte política, nem a
parte social, nem a parte nenhuma. Porque também, eu não tinha condições de me
apresentar em parte nenhuma. Não tinha roupa para vestir. A minha roupa estava toda
ruim já, já estava perdida.

Vocês aqui, que têm família, que têm pai, mãe, ou têm uma base de família, vocês
não podem imaginar o que é..., o que que isso é. Eu também tive isso. Eu também,
quando nasci, nasci num meio muito bom, de alta esfera. Nunca tinha pensado, jamais
na minha vida, quando, vamos dizer, que eu tinha 10 ou 12 anos, que um dia eu teria
que não ter roupa para vestir.

Mas a pior época não foi aqui no Brasil. Que aqui no Brasil, cheguei aqui..., aqui eu
era um homem, um ilustre desconhecido. Ninguém ligava a minha pessoa. Lá, eu era
filho de uma pessoa muito importante, barão, título nobiliárquico, monarquista
convicto, alta patente militar. Quer dizer, não tinha jeito de eu ter uma vida lá.

JF: Aí o senhor //veio para Belo Horizonte em 32.//

BT: //Então eu cheguei...// Então cheguei aqui, em 32, não é? Então, aí..., aí sim, aí, em
pouco tempo, eu... Eu era um..., naquele tempo era um rapaz assim...
2B –BT -17

JF: Bem apessoado. [riso]

BT: ... apresentável, não é? Muito cabelo, de bigodinho e... [risos] andava de polaina e de
bengala etc. e tal. Era muito elegante, não é? Naquele tempo. Era alto, esguio, não é? E
então, eu começava a freqüentar os bailes etc. e tal. Em pouco tempo [risos], eu fiquei
muito conhecido, nã é?

JF: A Casa Lutz Ferrando //era na rua da Bahia?//

BT: //É.// Na rua da Bahia, esquina com Goitacazes, num prédio que hoje não existe mais,
onde hoje tem um prédio alto da..., um arranha-céu. Esquina Goitacazes com Bahia.

JF: Inclusive...

BT: Então lá... Como?

JF: Pode falar.

BT: Então, lá, eu me... dirigia essas... a Casa Lutz Ferrando e...

JF: Tinha muitos empregados, como que era?

BT: É, naquele tempo...

JF: Só a parte de venda.

BT: É, de vendas. Parte de vendas. Era parte de vendas. Eram 15 empregados mais ou
menos. Quinze. Quinze empregados, mais ou menos, que tinha lá.

JF: E era a única loja do ramo aqui na cidade, na época?

BT: Não, tinha outras lojas. Mas eu fiquei logo muito conhecido, não é? E expandi os
negócios.

Agora, aí entrei na sociedade. A primeira porta que se abriu para mim, para um
estrangeiro desconhecido, que eu ainda era, foi a casa do professor Arduíno Bolivar.
Um grande latinista, homem de uma..., um sentido humano fora do comum. Tinha uma
família grande, não é?, com muitas moças, não é? E naquele tempo, parece que alguém
pensava, não é?, podia casar com uma das moças, o que não aconteceu, não é? São
coisas da vida, não é? Eu não me interessei, elas também não se interessaram por mim
etc. e tal. Ou seja, não deu certo.
2B –BT -18

Depois, outra família que..., que me recebeu muito bem, foi a do juiz federal,
Henrique, doutor Henrique Lessa. Também tinha uma grande família. E com cujos
dois filhos, Davidof Lessa e Nazareno Lessa, eu fiz uma grande amizade. E essa
amizade durou anos afora.

ET: Davi...

JF: Dof.

BT: Davidof. David, quer dizer, filho de David. Davidof Lessa. Ele chamava-se Roxinaldo,
mas não gostava do nome de Roxinaldo, então... Era... Era Roxinaldo Davidof Lessa.

JF: E onde o senhor foi morar?

BT: Então, eu morava... Então, morei, por um acaso, numa pensão onde estava outra vez o
João Dornas Filho. Aí me encontrei com ele novamente e a nossa amizade ficou mais
firme.

JF: Essa pensão era aonde?

BT: Era na rua Pernambuco.

JF: Agora, ele não era mais estudante.

BT: Ele... parece que não era estudante. Parece que ele era jornalista, não é?, naquele
tempo. Os outros eram estudantes.

Então, lá também, mais tarde, eu fiz amizade com o posterior desembargador Mário
Matos, Mário Matos, doutor Mário Matos, que era amigo particular do posterior
governador Benedito Valadares.

JF: E como que era o seu dia-a-dia? O senhor acordava, ia para a loja...

BT: Ah, ia para a loja, ficava o dia inteiro lá. O dia lá, não é?, e..., e de noite...

JF: Almoçava no centro?

BT: É. Eu acho que eu almoçava no centro. É. Me lembro, no centro, naquele tempo, no


Grande Hotel. No Grande Hotel. Sabe? Sabe onde ficava o Grande Hotel?

JF: Hum-hum. Ficava na rua da Bahia também.

BT: É. Hoje chama-se edifício Arcângelo Maleta, ou Maleta, não sei. É. Lá, eu almoçava.
2B –BT -19

JF: E aí, o senhor voltava à noite para //casa.//

BT: //Para casa//, não é? A minha vida, estava eu..., me dedicava plenamente à minha
função de gerente, não é?, da sociedade, que gerente era pessoa graduada mas era
empregado, não é? Empregado. Aí que começou também a lei de Getúlio Vargas,
negócio de lei trabalhista etc. e tal. Não é? Tanto que minha carteira começa de mil
novecentos e..., acho que vinte e seis. Carteira de trabalho.

Agora, depois, eu fiquei lá, fiz muita..., muito racionamento. Belo Horizonte já era
uma cidade mais..., mais, muito mais ativa, muito mais..., é..., cheia de vida, não é? A
cidade pacata que eu conheci em 26, não era mais esta, não é?, pessoas, mas eram
sempre pessoas muito bem educadas. Sempre, na rua, que eu me lembro, quando eu
encontrava o..., um político, ou qualquer uma pessoa, cumprimentava. Era..., era
outro... outro meio.

Hoje, o meio aqui é horrível, porque o povo não tem educação na rua, todo mundo
corre, todo mundo empurra, não é? Mas é a própria vida. É o desenvolvimento da
nossa civilização, a tal civilização nossa, ocidental.

JF: E roupas, assim, o senhor comprava aqui em Belo Horizonte? Passou a comprar? O
senhor tinha carro nessa época?

BT: Ah, eu tinha carro. Tinha... [risos] Tinha minha furreca, minha..., meu Ford. Depois
passei para Chevrolet. Depois tive um Chevrolet. É.

JF: O senhor falou que o senhor era um homem elegante. Aí, o senhor se vestia,
//comprava aqui?//

BT: //Bom, é, isso// disseram os outros, não é?

JF: [risos]. Essas roupas, comprava aqui em Belo Horizonte ou o senhor costumava
comprar no Rio?

BT: É. Não, não. Eu ia ao Rio somente a chamado, não é?, dos meus chefes.

JF: Comprava as roupas aqui.

BT: É.

JF: O senhor lembra lojas, assim?


2B –BT -20

BT: Lá no Rio, não.

JF: Não, aqui em Belo Horizonte.

BT: Aqui. Aqui, é. Eu comprava muito na Nacional, que fica na esquina da..., da rua Rio de
Janeiro com Tupinambás. Depois comprava na..., na... Não, essa chamava-se Nacional,
não. Nacional era na avenida..., não me recordo, não.

ET: Nacional, é São Paulo com Afonso Pena.

BT: São Paulo com Curitiba, é. Lá é Nacional. A outra chama... Como é que chama essa
loja que fica na rua Rio de Janeiro com..., com...

ET: Rola?

BT: Não. Rola, não.

JF: E aí, então, o senhor falou que começou a freqüentar esse meio social //mais alto.//

BT: //Ah, muito.// Dançava muito e...

JF: Eram festas, geralmente em casas de família?

BT: Não, eram bailes, bailes do Jockey Clube, do Automóvel Clube. A minha mulher, eu
conheci no Automóvel Clube.

JF: E o senhor logo começou a namorar, como é que foi?

BT: Não, não. Foi..., demorou um pouco, não é?

JF: Mas namorou outras antes da dona Eunice, ou a dona Eunice foi a primeira? [risos] Ou
o senhor foi namorador.

BT: [risos]. Aí..., mais ou menos, não é? É, é.

JF: //E outras atividades, o senhor costumava ir no cinema.../

BT: //Eu, eu era assim, muito,// porque, era, assim, uma pessoa diferente, não é? É
estrangeiro, não é? Russo, estoniano, alemão, ninguém sabia o que que eu era. Era
praticamente... Barão etc. e tal. De modo que foi..., todo mundo se interessou, todas as
famílias mais ou menos se interessavam por mim, não é?
2B –BT -21

Agora, eu tive sempre muito bom relacionamento, muito..., muito bom


relacionamento. E lá em casa, na pensão onde eu morava, na rua Pernambuco, não é?,
eu também me dava muito bem com os companheiros.

Belo Horizonte deixou, naquela época, me deixou uma excelente impressão. Mas,
depois, eu fui transferido de Belo Horizonte para São Paulo.

JF: Em que ano foi isso, o senhor lembra?

BT: 1935, 36, uma coisa assim.

JF: A casa tinha uma filial em São Paulo também.

BT: Ah, tinha, tinha.

JF: Mas antes disso, eu queria perguntar para o senhor: e outras..., outras formas de
divertimento na cidade. O senhor ia ao cinema...

BT: Cinema, é. Ia ao cinema. Eu..., eu ia muito ao cinema. Ia ao cinema. E..., teatro,


naquele tempo era..., quase não havia, não é? Era somente o Teatro Municipal.

JF: É, nós fizemos uma entrevista que a pessoa falou muito que tinha operetas no Teatro
Municipal. O senhor freqüentava?

BT: Óperas ?

JF: Óperas.

BT: Não é opereta. Opereta é outra coisa. Opereta são as operetas vienenses, não é?
Vienenses. De Frantz Lehar e de outros, não é?

JF: E a atividade do senhor, musical, não começou ainda nessa época?

BT: Não.

JF: Foi mais tarde.

BT: Naquele tempo, eu, a primeira vez que eu cantei, sim, foi sim, foi em 32, 1932.

JF: Aí o senhor..., conta para a gente isso. Como que foi? O senhor cantou...

BT: Ah, eu fazia parte do coro. Ah, é. Eu fazia parte do coro.

JF: Aqui em Belo Horizonte?


2B –BT -22

BT: Aqui em Belo Horizonte. Foi parte, em 1932. Foi no Teatro, naquele tempo, Teatro
Municipal, que depois passou para ser..., é..., como é que chama, chamava? ... Depois
do Teatro Municipal, o que que foi?

JF: Depois, lá, foi o Cinema Metrópole.

BT: Cinema Metrópole. Depois passou para o Bradesco, não é?

JF: E o coro era do Teatro?

BT: Era, não. O coro era do maestro Asdrúbal Lima. Maestro Asdrúbal Lima.

JF: E funcionava aonde? Os ensaios.

BT: O ensaio, nós fazíamos no Colégio Izabela Hendrix, que naquele tempo estava na rua
Rio de Janeiro, ou, onde depois, cujo prédio foi derrubado, e hoje se ergue o Banco
Nacional de Minas Gerais.

JF: Aí, então, o senhor começou a cantar no coro.

BT: É.

JF: Não era solista ainda não.

BT: Não, não.

JF: Não fazia solos também.

BT: Muito depois, muito depois.

JF: Muito depois. E aí o senhor cantou, então, enquanto o senhor esteve em Belo
Horizonte, o senhor cantou.

BT: É.

JF: Fez algumas apresentações...

BT: Com o coro. Dentro do coro.

JF: Dentro do coro. Sempre nesse coro.

BT: Sempre como corista, é. Era um corista, não é? Não sou [..........] também juntamente
com English Club, quer dizer, um clube inglês, falava inglês com os outros, não é?
Com as moças do Isabela Hendrix, que o Isabela era um colégio americano, não é?
2B –BT -23

JF: E onde funcionava? Conta um pouquinho.

BT: Colégio Isabela Hendrix funcionava naquele prédio //que acabei de falar.//

JF: //Não, mas o clube que o senhor// falou, funcionava dentro do colégio?

BT: Não é clube, não, era... É. Nos reuníamos lá.

JF: Dentro do colégio.

BT: Dentro do colégio. E lá eram os ensaios do Asdrúbal Lima, não é? Depois íamos para
fora. Porque sempre foi..., não foi fácil. É que música, em matéria de música, sempre
foi muito difícil aqui em Belo Horizonte. Muito. Não é?

JF: Aí o senhor, então, foi para São Paulo.

BT: É, aí me transferiram para São Paulo. Aí encontrei outro ambiente completamente


diferente. Paulista é completamente diferente do mineiro.

JF: O senhor foi também como gerente de filial.

BT: Eu fui como subgerente da filial, porque lá, a filial é muito grande. Então, lá tinha um
gerente, fui como subgerente. E fiquei lá quatro anos. Quando, então... o meu chefe me
convidou para voltar para Belo Horizonte para juntar-se ao cunhado dele, que tinha
ficado no meu lugar, em Belo Horizonte. Porque ele não..., ele era um homem doente e
precisava de que alguém lhe... estar mais com ele, não é?

Então, o meu chefe era israelita, e no princípio foi muito difícil para eu me fixar
em..., no Rio de Janeiro. Porque eu era visto com desconfiança, não é? Era o tempo
quando começava o movimento nazista, não é? Então, Tiesenhausen, nome alemão,
barão etc. e tal, me olhavam com desconfiança, porque eu, conforme eu contei a você,
não é?, eu tinha sido aceito pelo gerente, que era alemão. Lembra?

JF: Lembro.

BT: Aquela história? Então...

JF: O dono da loja era judeu.

BT: O gerente.

JF: O gerente era alemão, mas o...


2B –BT -24

BT: O gerente era alemão e um dos donos era...

JF: Era judeu.

BT: Era, era israelita. O homem que me olhava..., mas depois, aos poucos, eu consegui
ganhar a confiança dele, não é?, com muita..., muito jeito, obediência, não é? E ele se
tomou de simpatia por mim. E me ajudou para eu vir para cá, para Belo Horizonte,
para montar a minha própria casa, que eu intitulei Casa da Lente.

JF: Mas o senhor voltou já para abrir essa loja //É.// ou o senhor voltou ainda para trabalhar
na Lutz Ferrando, não é ?

BT: Não, não, não. Eu vim para cá para abrir a minha própria loja, juntamente com o
cunhado do meu chefe.

JF: E a Lutz Ferrando então fechou?

BT: Não, Lutz Ferrando aqui fechou, aqui fechou.

JF: Aqui fechou.

BT: É.

JF: E aí, então, o senhor ficou como um representante.

BT: É. Como representante de Lutz Ferrando também.

JF: Através da Casa da Lente.

BT: É.

JF: A Casa da Lente também era na rua da Bahia.

BT: Na rua da Bahia. Logo depois, quando..., um, dois ou três anos depois, quando eu
comecei, em 39... Não, quatro anos depois, em 1945, a..., os donos do prédio onde
funcionava a casa, aquele prédio antigo, resolveram demoli-la e construíram um outro
prédio. Então, eu fiquei na rua. Então, foi aí que eu recebi oferta de compra do Parque
Royal. Aí eu comprei o Parque Royal com coragem que Deus me deu.

JF: E aí, a Casa da Lente, então, o senhor tinha sociedade?

BT: É. Mas depois o meu sócio cada vez ficou mais doente, ele se retirou e eu fiquei
sozinho.
2B –BT -25

JF: E o senhor ficou sozinho, então. E a casa, então, no início, era em que ponto da rua da
Bahia, antes do senhor passar para o Parque Royal?

BT: Pois é. Lá mesmo naquela..., acabei de falar com você, naquela esquina, rua
Goitacazes com...

JF: Ah, no mesmo lugar onde era a Casa Lutz Ferrando.

BT: Da Casa Lutz Ferrando. Continuei lá.

JF: Continuou lá. Só que com o nome de Casa da Lente.

BT: É.

JF: Até então ser demolida. Aí, então, o senhor adquiriu o Parque Royal e mudou a loja
para...

BT: Para lá.

JF: ... para a parte térrea, não é?

BT: Para a parte térrea, é.

JF: E o resto do prédio, o senhor alugou?

BT: Aluguei. Mas eu não tive sorte, porque naquela época Getúlio Vargas decretou a lei do
inquilinato, não é? E eu não consegui..., porque o prédio, eu pude pagar somente uma
parte, não é? A outra parte, eu tive que pagar com o aluguel do outro andar, de cima,
os outros dois andares de cima, e mais, com o resultado das vendas de...

JF: Da loja.

BT: Da loja. Mas veio a lei do inquilinato, eu ganha..., recebia muito pouco aluguel. Eu
fazia negócios... é... pouco vantajosos, porque eu vendia ao Estado, o Estado não
pagava. Quer dizer, tinha que pagar a mercadoria que comprava e não recebia o
dinheiro. Então, essa tensão tremenda de nervos me fez ter, em 1970, um enfarte agudo
do miocárdio, que quase me levou para as portas do São Pedro. Mas ele mandou
voltar, disse: volta! Tua missão não está terminada. [risos]

JF: E nessa volta a Belo Horizonte, o senhor foi morar aonde? Nessa terceira vez?

BT: Na terceira vez? É. ... Ah, na terceira vez, eu logo me casei com Eunice.
2B –BT -26

JF: Ah, então aí o senhor vai ter que voltar um pouco para trás, então, e contar como que o
senhor conheceu a Eunice. Foi na segunda vez, aqui em Belo Horizonte, então.

BT: Foi na segunda vez.

JF: Quando o senhor foi para São Paulo, então, o senhor já estava namorando.

BT: Já, já estava, já conhecia. Estava um namoro meio frio, mas tinha um namoro, não é?
É. Eu fiquei sempre muito impressionado com Eunice, que ela é uma criatura muito
inteligente, muito viva e muito humana. Então isso, a mim, que tinha grandes chagas,
de grandes ferimentos do meu passado, não é?, me impressionava muito.

JF: E o senhor conheceu dona Eunice numa festa.

BT: Numa festa, é.

JF: No Automóvel Clube?

BT: É, foi no Automóvel Clube.

JF: E o senhor lembra, era festa de carnaval? O senhor freqüentava as festas de carnaval,
como que era?

BT: É. [risos] Essa de carnaval, eu nunca gostei de carnaval, e ela gostava muito, não é?
Então, ela me puxava para o cordão, eu em pouco tempo era cuspido para fora. [risos]
Eu não sabia..., não sabia... Quer dizer, eu gostava muito de dançar, mas danças como
valsa, tango, não é? Danças, danças bonitas. Até dançava samba, compreende? Mas
esse negócio de pulação de carnaval, eu não gostava.

Eu, nesse ponto, eu sou cidadão honorário de Belo Horizonte e de Minas Gerais.
Quer dizer, sou muito mineiro. Mas, nesse ponto, não sou brasileiro, porque não gosto
das três..., das três paixões de brasileiro: política, carnaval e futebol. Não gosto.
Nenhum dos três.

Mas política, eu sempre acompanho, não é? Eu acompanho com muito interesse a


política brasileira, porque eu acho uma coisa extraordinária como é que o povo deixa-
se levar cada vez..., ou a..., uma persuasão de políticos, compreende?, que nunca
melhorou nada. Porque enquanto eles estão aqui embaixo, prometem tudo, chegam lá
em cima, é um problema, não é? Você não acha, não?
2B –BT -27

JF: Acho.

BT: Você que... É o quê?

JF: Pode falar.

BT: Então, eu acho que..., eu sempre me interessei muito. Mas futebol, enquanto meus
filhos todos são grandes futebolistas, são muito apaixonados pelo futebol e gostam de
carnaval. Pelo menos uma parte gosta de carnaval, outra não. Aí. Mas política, eu
sempre faço parte, tomo parte. /

FIM DO LADO B DA FITA 2


2B –BT -28

A L
Associação Cristã de Moços, 11, 12, 14 Lutz Ferrando, 8, 12, 14, 15, 17, 24, 25

B M
barão, 14, 16, 23 maestro Asdrúbal Lima, 22
Belo Horizonte, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 11, 12, 13, 14, 15, 16, Mário Matos, 4, 18
17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27 movimento nazista, 23
Brasil, 2, 3, 4, 15, 16
P
C
professor Arduíno Bolivar, 17
Casa Arthur Haas, 4, 5, 16
Casa da Lente, 24, 25
colônia José Bento, 1
R
revolução comunista, 2, 9
E
Ernesto Von Sperling, 3, 5
S
serviço de colonização, 3, 5
G
Getúlio Vargas, 19, 25
T
Teatro Municipal, 21, 22
J Tiesenhausen, 1, 9, 10, 23

João Dornas Filho, 3, 16, 18


3A –BT -1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CENTRO DE ESTUDOS MINEIROS
GRUPO DE HISTÓRIA ORAL
PROJETO INTEGRADO: “MINAS GERAIS: POLÍTICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DA
HISTÓRIA ORAL”

ENTREVISTADORES: PROFª JÚNIA FERREIRA FURTADO


CARLOS AUGUSTO MITRAUD
ENTREVISTADO: BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
LOCAL: BELO HORIZONTE
DATA: 25/07/92

Entrevista - fita 3 - lado A

JF: Aí, me conta do namoro da dona Eunice. Como que era namorar nessa época? E como
que a família dela te recebeu, assim?

BT: Com muita desconfiança. Não é? Com muita desconfiança. Mas depois tudo se ajeitou,
não é? Depende do jeito, não é?

JF: E o namoro, como que era? O senhor ia na casa dela...

BT: É.

JF: Tinha sempre alguém tomando conta?

BT: É, tem. Tinha sempre alguém vigiando [riso].

JF: [riso] E para passear, como que era?

BT: Passeamos. Passeamos muito em Lagoa Santa, que ela..., a família dela tinha
propriedades lá em Lagoa Santa, então ela ia lá. Ela era uma exímia nadadora, não é?
Então, ela nadava muito na lagoa. Na lagoa, não é?

JF: E passear na praça da Liberdade? O senhor ia muito no centro?

BT: Ah, muito. Praça da Liberdade, nós passeávamos.

JF: Que tinha o footing, não é?, na praça.


3A –BT -2

BT: Footing. Do lado de lá era gente simples. Do lado de cá era gente da sociedade. //Muita
roseira...//

JF: //E aí, quanto tempo durou o namoro?//

BT: Era muito bonito, bonito mesmo. Era diferente.

JF: E quanto tempo durou o namoro, então? Aí o senhor foi para São Paulo...

BT: São Paulo. Demorou..., demorou muito porque eu fui para São Paulo e fiquei três anos.

JF: E o senhor voltava aqui para vê-la? Como que era?

BT: De vez em quando. É. E ela, depois, mudou para o Rio de Janeiro. Eu de São Paulo ia
para o Rio de Janeiro vê-la. O irmão dela era, naquele tempo estava no auge da política
dele, o irmão dela era o senador Atílio Vivacqua. Aquiles era uma pessoa de grande porte
político. Senador pelo Espírito Santo.

JF: E aí, então, ela foi para o Rio...

BT: Fomos morar logo, para morar lá.

JF: Que era a capital da República, não é?

BT: É.

JF: //E quando o senhor voltou...//

BT: //Não era porque// era capital da República. Porque família, parte da família morava. O
irmão dele, doutor Atílio Vivacqua morava lá.

JF: E aí, quando o senhor veio para Belo Horizonte, ela veio também? Ou ela veio só quando
o senhor casou?

BT: Depois ela veio para cá, não é? Aí nós casamos, não é?, aqui, e fomos morar numa casa
lá..., me lembro, a primeira casa onde morávamos era na rua..., rua Monte Alegre, na
Serra, lá em cima. Uma casa simples, pequena, que era do Romeu di Pauli. Romeu di
Pauli, que era o engenheiro, engenheiro Romeu di Pauli. Muito boa pessoa. Morávamos
lá. Depois nos mudamos várias vezes, para vários lugares.

JF: E nessa época, entre a primeira vez que o senhor veio para Belo Horizonte, depois a sua
ida para São Paulo, depois a volta, foi a época da guerra, não é? Na Segunda Guerra
Mundial.
3A –BT -3

BT: É. 1939. Eu fundei a Casa da Lente em 1º de setembro de mil novecentos... Não, em


agosto de 1939. Em 1º de setembro, estourou a grande guerra mundial, a Segunda Guerra
Mundial, não é? E nós estávamos justamente no cartório civil, casando com Eunice,
quando..., quando estouraram todas... todas as sirenes anunciando o início da Segunda
Guerra Mundial, com invasão de Hitler à Polônia.

JF: E como que o senhor, não é?, que era um europeu, que tinha..., sabia o que estava
acontecendo na Rússia, como que o senhor viu a guerra? O senhor achou que era uma
possibilidade de libertação da Rússia das mãos dos bolcheviques ou o senhor achou que
isso já estava muito distante?

BT: Isso era muito distante. Nós, que éramos do outro lado do comunismo, naturalmente não
podia deixar de ser, não é? Se você, por exemplo, pertence a uma família cujos parentes
eram..., foram trucidados pelos índios, você não pode morrer de amores pelos índios, é
claro. Assim aconteceu comigo, com os comunistas. Eu não...

Eram russos, patrícios, quer dizer, pessoas da mesma terra onde eu nasci. Porque,
embora a minha ascendência é germânica, a minha língua materna é alemão, e eu tenho
toda a educação germânica e alemã, não tenho dúvida nenhuma que parte da minha...,
parte da minha pessoa é russa, porque meu pai era oficial do... do Tsar. E, no tanto,
éramos russos. Pela ordem das coisas, eu era, no tempo do império, era súdito de sua
majestade, o imperador da Rússia. Mas, de naturalmente, de nacionalidade germânica.
No meu atestado de nascimento está escrito: registrado na chancelaria da nobreza
germânica..., da nobreza báltica. Compreende?

Então, eu..., para responder a sua pergunta, eu via com expectativa a invasão de Hitler.
Naquele tempo, Hitler ainda não tinha o..., esta tremenda repercussão negativa de
perseguição aos judeus, não tinha. Naquele tempo, ele ainda era o salvador da pátria,
salvador da Alemanha, que estava realmente em situação muito difícil quando Hitler
tomou o poder.

Mas depois as coisas se precipitaram. E, como diz o outro, o poder tem duas coisas
que sobem na cabeça de uma pessoa: o poder e o dinheiro. Uma pessoa que tem muito
dinheiro pensa que é dona do mundo, não é? A mesma coisa acontece com o poder.
Quando a pessoa pega o poder, pode..., pensa que pode abusar.
3A –BT -4

JF: E quando a guerra explodiu, o senhor estava casando. Conta para a gente. O senhor casou
na igreja, como é que foi? Porque o senhor era protestante, não é? Sua família, o senhor
me falou que tinha convertido ao protestantismo na reforma, não é?

BT: Na reforma de Lutero, é.

JF: O senhor quer que pare? /

Interrupção

BT: ... foi no religioso. Mas para religioso, eu tive que ter uma licença pessoal, porque eu era
luterano e a minha mulher era católica. E é católica fervorosa, praticante, até hoje. Mas a
questão é que eu tive que, também, assinar um..., um documento de que os meus filhos
seriam educados na igreja..., seriam educados na religião católica.

JF: E foi em qual igreja que o senhor casou?

BT: Na..., foi nessa igreja, nessa igrejinha na rua Carandaí.

JF: Ahn, eu sei. Ali na... Sagrado Coração, não é?

BT: Sagrado Coração.

JF: Na frente do Instituto de Educação.

BT: É isso. Perto do Instituto de Educação. É.

JF: O casamento foi durante o dia?

BT: Foi. Foi... Não sei. Foi durante o dia. À tarde. Foi à tarde.

JF: E aí o senhor casou no...

BT: No civil também. E no religioso.

JF: O civil foi no cartório ou foi na igreja?

BT: No cartório, no cartório.

JF: E teve uma festa depois? Como é que foi? Teve recepção?

BT: [risos]. É. Teve, sim. Teve. Teve uma recepção e... É. É.

JF: E a guerra? Como que ela repercutiu na vida da cidade e principalmente no seu negócio?
O senhor sentiu alguma diferença por causa da guerra? As coisas ficaram mais difíceis?
3A –BT -5

BT: Mais difíceis. E numa ocasião, ah, isso eu vou contar sim. Eu me lembro bem, numa
ocasião, houve essa..., quando o Hitler.../

[- Oi, tudo bem...]/

BT: Numa ocasião, naquele tempo, era..., era 1942, quando os... os nazistas afundaram aí um
navio brasileiro. Me parece que foi naquela ocasião. Então o povo saiu às ruas e começou
a atacar as casas de proprietários de origem alemã e germânica..., e italiana. Não é? Foi
uma..., uma tremenda é..., um tremendo avanço na propriedade deles.

Então, eles estavam, naquele tempo ainda estava na esquina da rua Goitacazes, chegou
a turma lá. E meu sócio, naquele tempo, estava lá, disse: fecha a porta, fecha a porta etc.
e tal. E digo: não, eu não, não vou fechar porta nenhuma, eu não sou alemão, eu sou
russo, porque era russo mesmo, não é? E não tenho nada que... Quando eu fiquei na
frente aqui, de peito aberto, chega a turma lá e diz: entra aí! Ataca! Aí chegou um negrão
enorme lá, um pretão, levantou o braço assim e digo: aí, não, este não. Este é meu amigo.
A turma parou. Eu olhei para ele, fiquei muito admirado, porque realmente a turma
estava disposta, entrava e destruía tudo. Destruía. Mandava pedra e etc.

Aí, a turma então foi descendo a rua da Bahia, não é? E o preto chegou perto de mim e
disse: pronto, chefe. Tá pago, a minha dívida está paga.

JF: E da onde o senhor conhecia?

BT: Eu olhei para ele e fiquei admirado. E disse: você, escute uma coisa, você me conhece de
onde? Por que que você fez isso? Ele olhou para mim e disse: é porque o senhor não se
lembra de mim. O senhor não se lembra de um rapazinho que chegou perto do senhor e
pediu uma fotografia de Pelé?

JF: [risos].

BT: Eu, tal, depois me lembrava que tinha chegado, esse rapaz chegou perto de mim e pediu
uma fotografia, mas disse que não tinha dinheiro para pagar. Eu dei a ele de presente.

JF: O senhor vê que às vezes, [coisas] que a gente nem...

BT: É. E uma outra coisa também foi igual. Depois, mais tarde, eles..., eu... é, chegou a..., o...,
um pessoal da polícia, eu morava lá... Eu morava na..., lá em cima, na rua Monte Alegre.
Chegou lá em cima para revisar a casa. E minha mulher, que não sabia nada disso, que
não conhecia essas coisas, que está muito nova, porque minha mulher é muito mais nova
do que eu, ela tem 15 anos menos, 12 anos menos do que eu, não é? Então, ela ficou
3A –BT -6

muito assustada. Disse: não, mas não tem nada, não, queremos ver, porque veio, o seu
marido trouxe um aparelho de escuta. Ela disse: quê isso, não trouxe nada disso. Então
revisaram tudo.

Quando, à noite, cheguei em casa, ela me falou. Ah, eu peguei, não tive dúvida. Fui
diretamente ao chefe da polícia, que foi, naquele tempo, o major Ernesto Dorneles. Esse
major Ernesto Dorneles é uma pessoa muito fina, muito educada. Fui lá. Quando cheguei
aqui na polícia, aqui nesse edifício do Interior...

JF: Da Praça da Liberdade.

BT: Da Liberdade. Ele..., o chefe de gabinete me recebeu, olhou para meu cartão e ficou
sentado. Disse: “eu não sei se o chefe vai...” Ele chamava ele só de chefe. “O chefe vai
recebê-lo”. “Por que não?” Diz: “é porque ele não recebe qualquer pessoa”. Eu digo:
“meu caro, eu não sou qualquer pessoa, eu sou amigo dele. Você vai fazer o favor de
dizer a ele.” Fiquei sentado.

Quinze minutos depois, ele estava, continuava sentado lá. Digo: você falou com ele?
Não, não falei, não, porque ele não vai recebê-lo. Aí, eu perdi um pouquinho a minha
estribeira, disse: “olha aqui, meu caro, eu pedi, com toda a delicadeza, com toda a
educação, para você me anunciar ao seu chefe. Agora, se você não me anunciar, você
vai arcar com as conseqüências da sua atitude.” Quando ele viu meu tom enérgico, que
naquele tempo eu era um rapaz forte, muito diferente. Hoje eu sou mais... dá dó, não é?

JF: [risos]

BT: Mas naquele tempo, eu era um homem de fala enérgica, tinha dois olhos muito fortes,
que encaravam a pessoa com energia. E era, assim, bem apessoado, não é? Ele, meio
impressionado, foi lá dentro. Não demorou dois minutos, saiu de lá correndo uma outra
pessoa e disse: seu barão, um momentinho, faz favor, o chefe vai recebê-lo agora mesmo.
Ele está no telefone. Digo: perfeitamente. Olhei para o outro, assim, [riso] de lado, e: está
vendo?

Então, eu fui lá dentro. Quando eu entrei lá no gabinete do chefe de polícia, ele estava
sentado lá na mesa, lá atrás, levantou, me veio de encontro: “quê que isso, seu barão? O
que que o senhor veio fazer aqui? Muito prazer em recebê-lo etc.” e tal. Eu digo: “olha,
eu vim aqui para falar..., o senhor, eu queria que o senhor deixasse de lado o nosso
conhecimento, o senhor, como chefe de polícia, o senhor possa verificar o que que há
3A –BT -7

contra mim, se tem alguma denúncia contra a minha pessoa.” Disse: “não, como é que
pode, não pode” Eu digo: “eu peço o senhor novamente o senhor fazer isso”.

Ele foi, chamou lá, disse, “veio [..........], é, realmente aqui tem uma denúncia que o
senhor trouxe um aparelho lá para a sua residência.” Digo: “que aparelho?” “É um
aparelho.” Eu digo: “aí eu..., eu disse, sim, realmente eu levei dois microscópios -
microscópios, sabe o que é? -, dois microscópios para casa para mostrar a um cliente.”
E o chofer, naquele tempo, meu carro não funcionava, só tinha táxi, não é, então ele viu,
disse: esse alemão aí levou o aparelho de escuta para os alemães.

Eu digo: não, mas não tem nada. Eu digo: olha aqui, agora, como eles foram lá para a
minha casa, eu vou pedir uma coisa, seu major, o senhor me manda um guarda lá para
minha loja. E realmente ele mandou. Foi assim.

JF: Então foi um tempo difícil para o senhor também, não é? Nesse momento.

BT: Sim, sim.

JF: Só pela nacionalidade, porque na verdade o senhor não era alemão, não é?

BT: É.

JF: Era uma família alemã, não é? Mas mesmo assim... E..., é..., até de forma irônica, o seu
sócio era judeu, não é?

BT: É, é. Não, eu estimava ele muito.

JF: Pois é.

BT: Muito mesmo. Que ele era uma pessoa extraordinariamente correta, honesta, muito boa
pessoa. Gostava muito dele. Eu não tenho nada..., eu tenho, muito pelo contrário, eu
tenho grande admiração por muitos judeus. Eu tenho muitos amigos judeus.

JF: Exatamente isso que eu estou falando, quer dizer, a..., //no plano pessoal, o senhor não
estava passando por nada daquilo que a Alemanha estava passando naquele momento.//

BT: //É, é, é, é.// Depois que..., começou a [tosse] perseguição de judeus etc. e tal. Bom.

JF: Agora, me conta uma coisa: o senhor disse que o senhor vendia muito para o governo,
não é?, para o Estado.

BT: Demais, é. E o governo não..., pagava com um ano de atraso.

JF: Era o seu maior cliente? //Era o [.....]?//


3A –BT -8

BT: //É, maior cliente.// Maior cliente, porque naquele tempo uma casa grande aqui não se
podia sustentar bem, em Belo Horizonte, porque não tinha..., o poder aquisitivo do povo,
o meu material era principalmente de governo e de..., de colégios, de estudantes etc. e tal.
Ninguém tinha dinheiro.

Me lembro muito bem uma ocasião... Eu ajudei a muitos, a muitos estudantes. Porque
eu me lembrava que eu..., que eu estava numa situação financeira boa, não é? Então, eu
me lembrava muito bem que eu, para poder estudar, para poder terminar o meu curso de
segundo... é..., como que chama, segundo turno?

JF: Grau.

BT: Segundo grau, não é? Que esse curso de segundo grau era tão importante que dava direito
a entrar em qualquer universidade do mundo sem vestibular. Porque eu tentei também,
vou te contar depois, que eu também tentei aqui em Belo Horizonte, mas sobreveio a...,
vieram outros fatores.

Mas, então, eu..., é...

JF: O senhor estava me contando que o senhor ajudou estudantes.

BT: Isso. Então ajudei muitos estudantes para formar, porque eu me lembro muito bem, eu
botava os meus pés em água com gelo para não cair da cadeira de esgotamento físico.
Que eu rachava lenha, eu trabalhava braçalmente, não conseguia me levar nem ao
escritório, então, eu... Ao mesmo tempo... Contei a você, não contei? É.

Bom, o que mais?

JF: E quais..., o que o senhor vendia, principalmente, na loja? Quais eram os artigos?

BT: Não, era uma..., eu tinha laboratórios fotográficos, fotografia, ótica, óculos, óculos, tinha
sessão de óticos, sessão de fotografia, tinha material cirúrgico, para hospitais, hospitais.
Tinha produtos químicos para os laboratórios. Vendi muito. Muito. Era um movimento
muito grande. Tornou-se, aos poucos, a maior casa de... deste ramo de Belo Horizonte.
Aos poucos, não é?

JF: E o senhor teve oportunidade de vir em Belo Horizonte em três momentos um pouco
diferentes.

BT: É, é.

JF: Como que o senhor via essa mudança na cidade?


3A –BT -9

BT: Uma evolução. Evolução natural de uma cidade, porque as cidades aqui são muito novas,
em comparação às nossas cidades lá. Minha cidade foi fundada em 1210. A minha cidade
natal, Reval, foi fundada no décimo primeiro século. Quer dizer, cidades que
permanecem, não é?, com suas enormes muralhas e torres, e igrejas, e castelos e burgos.

JF: E como que foi, então, //ver uma cidade// tão nova?

BT: //E aqui...//

JF: Uma cidade que estava começando. O senhor achou bonito ou o senhor...

BT: Achei, achei muito bonito. Muito. O parque era muito bonito, o Parque Municipal era
muito maior.

JF: As ruas, na maioria, eram calçadas, eram de terra?

BT: Eram calçadas de terra. Era. Era muita..., muita. Lá, pelo lado de fora do centro, tudo era
mato. Mato. Ruas de terra e..., e principalmente muito mato.

JF: O bairro da..., o senhor falou que o senhor foi morar no início da Serra, não é?

BT: É.

JF: Tinha muita vizinhança, a rua, vocês logo estabeleceram contato com os vizinhos? Como
que foi isso?

BT: É, não, os vizinhos, nós não tínhamos contato, não.

JF: Não?

BT: Não.

JF: E o que que o senhor fazia?

BT: Primeiro, quando nasceu a minha primeira filhinha, a Vera Elizabeth, não é?, [riso], nós
estávamos morando lá em cima, na rua Monte Alegre. Era um biscuit, uma menina
bonita, a minha primeira filha, Vera Elizabeth.

JF: Nasceu um ano depois, mais ou menos, que você estava lá?

BT: É. É.

JF: E o que o senhor fazia de distração nessa época?

BT: Dois anos depois, dois anos depois.

JF: Dois anos depois?


3A –BT -10

BT: É.

JF: Os passeios, o senhor vinha na praça, no parque?

BT: Ah, é, na praça. Nós íamos muito para lugar..., para... para Lagoa Santa. Depois para...
//Caeté.//

JF: //Na casa de quem que ficava lá?// Ah, na casa..., o senhor falou que dona Eunice tinha
parentes.

BT: Tinha lá uma irmã, tinha lá, o marido da irmã tinha uma grande chácara lá. Lagoa Santa.
Depois fomos para... Ah, e depois nós fomos... Eu tinha comprado um terreno lá em...
Como que chama esse lugar lá?... lá em Espírito Santo... Guarapari. Depois vendi outra
vez. Lá na praia. É.

JF: E como que era, então, nessa época, a sensação de uma pessoa que tinha passado, uma
pessoa que contou aí para trás, uma vida tão difícil. O senhor achou que o senhor tinha
conseguido vencer? Que o Brasil tinha lhe dado a oportunidade?

BT: Naquele tempo, naquele tempo, eu tinha a impressão que eu tinha vencido, não é? Mas
depois sobreveio, em 1970, o enfarte agudo de miocárdio, não é?, aí eu perdi muita coisa
que eu tinha conquistado. Aí eu perdi..., aí abaixou o termômetro. Aí abaixou o
termômetro.

JF: E essa casa na rua Monte Alegre, o senhor falou, era alugada.

BT: É.

JF: Aí me conta, o senhor começou a me contar a história da universidade. Que o senhor


//tentou freqüentar a universidade...//

BT: //Ah, sim.// Eu tentei, era reitor da universidade do doutor Rodolfo Jacob. Um jurista, um
grande jurista. E ele me disse: “você pode conseguir entrar aqui na sociedade..., na
universidade, se você obtiver o atestado da..., do consulado da Estônia de que lá
brasileiro conseguirá a mesma coisa que aqui.” E aí foi que no meio tempo...,
sobrevieram vários acontecimentos, não deu certo. Não deu certo. Consulado da Estônia
acabou. Isso não me lembro muito bem.

JF: E aí não deu certo. //E o coral?//

BT: //Não.// Mas eu quis... Então, em 1950, aí o doutor Peri Rocha França me chamou, me
veio para mim e disse: vamos fundar a sociedade..., vamos fundar uma sociedade de
3A –BT -11

cantores. E você vai fazer parte da nossa fundação. Digo: eu não, eu não tenho condições
de fazer isso porque eu mexo numa casa comercial muito grande, não tenho tempo. Ah,
deixa de ser covarde. Quando me chamou de covarde, eu fiquei tomado de..., de raiva,
falei, [riso] resolvi entrar também. Então, aí que eu sou um dos fundadores da Sociedade
Coral de Belo Horizonte.

JF: E nesse meio tempo, o senhor continuou cantando?

BT: Não, no tempo, quando estava em São Paulo, não. Depois eu larguei, somente retomei,
muito mais tarde, foi em 1950.

JF: Já para assinar //a sociedade.//

BT: //Já.// Aí, eu entrei no corinho, no coro, que era regido pelo maestro Sérgio Magnani
[soletra], um grande...

JF: E a Sociedade de Coral funcionava aonde?

BT: Funcionava na [risos], funcionava no ar, não tinha..., não tinha sede.

JF: Não tinha sede. Mas onde que [riso] os senhores costumavam ensaiar?

BT: [Riso]. É, nós ensaiávamos, deixa eu ver onde é que nós estávamos ensaiando? ... Ah, no
Teatro Francisco Nunes. É. Lá nós fizemos grandes temporadas líricas. De 1950 a 1960,
até..., é, até 60, até é..., 70. Eu fazia parte do coro, depois comecei a desempenhar papéis
de prol, não é?, papéis de solista, de ópera, não é? Mas foi em 1970, depois que eu tive o
enfarte, não é?, que eu fui eleito presidente da Sociedade Coral de Belo Horizonte, que
estou até hoje.

JF: E o senhor tinha uma preocupação, o senhor me falou, de divulgar a música, não é?, em
Belo Horizonte.

BT: Ah, sim, pois é, mas através da Sociedade Coral, não é? Muito, eu divulguei muito. Hoje
eu sou uma pessoa..., todo mundo me conhece, porque eu sou conhecido como homem da
ópera. [riso]

JF: Conta isso um pouco para a gente. Quais eram as atividades do coral? Eram basicamente
essas apresentações?

BT: Apresentações. É. Grande parte, apresentações. De 1950 até mil novecentos e... e...

JF: 70.

BT: 75. Até 1970, nós dávamos no... no...


3A –BT -12

JF: Francisco Nunes.

BT: Francisco Nunes. Depois passamos para..., quando foi construído... Foi eu que inaugurei,
com a Sociedade Coral, em 1971, com a ópera "La Traviata", de Verdi, eu..., eu
inaugurei o grande teatro do Palácio das Artes. Foi a única vez, que eu me lembro, que
foi exigido o..., o uniforme..., o traje de gala. Homens de smoking ou de summer,
smoking, não é?, e mulheres de longo. Foi uma festa espetacular. De 1971.

JF: Depois, posteriormente, o Coral passou a ter uma sede?

BT: Depois..., depois disto..., porque naquele tempo nós tínhamos conseguido, através do
presidente Peri Rocha França, que naquele tempo era, depois do presidente, que era
doutor Murilo Badaró. Ouviu falar nele? Senador, que depois ficou senador.
Conseguimos..., tínhamos uma verba, não é? Essa verba esgotou-se, nunca mais teve.

Quando eu vi, em 1972, 1, não tinha mais verba, eu digo: vai acabar a Sociedade.
Digo, não vai acabar, não. Então eu consegui, através dos meus conhecimentos, do meu
relacionamento, não é?, que eu tinha grande, no comércio, não é?, consegui uma equipe,
que eu chamava de sócios contribuintes, que pagam, cada um paga..., naquele tempo
pagavam determinada importância. Depois eu liberei, resolvi liberar e cada um paga o
que pode pagar. Um paga dois mil cruzeiros, outro paga três, outro paga cinco, outro
paga dez. Cada um de acordo com a sua vontade.

JF: E isso funciona até hoje?

BT: Ah, funciona até hoje. Deste jeito.

JF: E a principal fonte de recursos do Coral?

BT: É a única.

JF: É a única.

BT: Porque nós, de vez em quando, recebemos uma pequena compensação por nossas
apresentações. Que a Sociedade Coral tem por fim a... a divulgação da música coral, no
meio do povo. Então no ano passado, por exemplo, nós demos 23 apresentações. Em
Belo Horizonte. Grande parte delas nos..., nos subúrbios de Belo Horizonte. Quer dizer,
nas paróquias, distantes muitas vezes. Onde nós..., eu levo o meu coro, não é?, e...
apresento lá para uma população na igreja, que veio, cheio, a igreja fica cheia, não é? E
para um povo que não está..., não está acostumado de ouvir nada, porque não tem
3A –BT -13

recursos para freqüentar os teatros aqui. Então, eu levo meu coro para lá para..., uma
questão de ordem social. É o... é o movimento social que eu encabeço.

E a Sociedade Coral é a mais antiga e a mais atuante de todas as sociedade que


surgiram depois, feito cogumelo aqui. Hoje tem muitas, muitos coros por aí. Todos eles
muito bons etc. e tal, mas ninguém, nenhuma delas, isso eu posso dizer sem medo de
faltar à verdade, que nenhum deles tem a atividade que a Sociedade Coral tem.

Eu tenho uma equipe muito boa, não é?, que me ajuda, porque eu, pessoalmente,
também, estou muito atarefado. Nós todos estamos muito atarefados, todo mundo tem...
Porque hoje, a luta pela vida é muito grande, é muito dura, muito difícil. Eu estou dando
aula o dia inteiro. Dou uma média de oito a dez aulas por dia. Sabe o que que é isso?

JF: Eu sei.

BT: É cansativo.

JF: E é uma loucura. Eu sei e sei que é uma loucura.

BT: É. Alemão, inglês e... e russo. Então, eu não tenho tempo, tanto tempo para me dedicar,
mas eu tenho uma equipe muito boa. Agora estou conclamando o conselho... Eu devo ter,
você me lembra antes de sair, para lhe dar o resumo da Sociedade Coral, para você ter
uma idéia do que é a Sociedade Coral. O que nós fizemos durante esse tempo todo. Em 5
de outubro nós vamos ter a nossa grande apresentação no Palácio das Artes. 42 anos de
existência.

Isso são poucos os coros que têm. A grande maioria dos coros simplesmente não
aguenta, não resiste, não continua a viver. Acaba. Acabam-se. Porque os poderes
públicos, a quem está afeto a educação e a cultura, falham. Eu não entro em detalhes
sobre esse ponto, porque não é da minha conta. Mas eu estou somente contando um fato
existente. Eu tenho a maior dificuldade para manter viva essa Sociedade. E uma das
poucas qualidades que eu tenho é esta, de ter evitado que a Sociedade Coral morresse.
Doutor Flávio Levis, que era o grande..., um literato, uma pessoa muito culta, ele disse: a
Sociedade Coral existe porque o Barão proibiu ela de morrer. [risos] Naturalmente era
um pouquinho de exagero, mas é mais ou menos aí. Depois [........ ................]/

FIM DO LADO A DA FITA 3


OBSERVAÇÃO: SEM GRAVAÇÃO NO LADO B.
3A –BT -14

A H
Atílio Vivacqua, 2 Hitler, 3, 5

B N
Belo Horizonte, 1, 2, 8, 11, 12 nazistas, 5

C P
comunistas, 3 Peri Rocha França, 10, 12

F S
footing, 1 Segunda Guerra Mundial, 2, 3
Sociedade Coral de Belo Horizonte, 11
Tsar, 3
4A-BT -1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CENTRO DE ESTUDOS MINEIROS
GRUPO DE HISTÓRIA ORAL
PROJETO INTEGRADO: “MINAS GERAIS: POLÍTICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DA
HISTÓRIA ORAL”

ENTREVISTADORES: PROFª JÚNIA FERREIRA FURTADO


CARLOS AUGUSTO MITRAUD
ENTREVISTADO: BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
LOCAL: BELO HORIZONTE
DATA: 01/08/92

Entrevista - fita 4 - lado A

JF: Barão Hermann Von Tiesenhausen, 3ª seção, 1º de agosto de 1992.

Ahn, barão, o senhor disse que nos primeiros tempos que passou no Brasil, o senhor
evitava se corresponder com a sua família na Rússia devido às dificuldades que o
senhor enfrentou aqui. Além disso, seria possível de se corresponder com a sua família
normalmente, devido à situação que a União Soviética estava atravessando? E com que
o senhor fez, depois, para entrar em contato com a sua família?

BT: Bom, da minha família, a minha família era somente minha mãe e minha irmã. O que
sobrou da minha família foi isso. Meu pai tinha falecido, já tinha falecido, em 1921,
quer dizer, dois anos antes de eu vir aqui para o Brasil. Em circunstâncias..., em
condições muito trágicas.

Bom, isso foi..., quer dizer, quem sobrou, a minha família, depois que sobreveio a
revolução comunista, foi..., vamos dizer..., foi..., foi praticamente o... o status, quer
dizer, a situação privilegiada em que se ach..., em que se encontrava a minha família
foi completamente..., desapareceu completamente. Nós não..., nós caímos de uma
situação privilegiada para um abismo.
4A-BT -2

Então, naquele tempo, não é?, não havia mais com quem corresponder. Quando eu
falo que não correspondi com minha família, quer dizer, não correspondia com minha
mãe. Pouco. Porque ela era a única que tinha ficado lá em Reval, hoje chama-se
Talliin, a capital da Estônia.

JF: Quando o senhor voltou aqui, começou a corresponder com ela, foi então através de
carta. Não havia uma dificuldade em a correspondência chegar?

BT: Não, não me lembro, não, mas eu acho que não havia, não. Não havia, não. As cartas
chegavam regularmente, é. Isso foi em mil novecentos e..., até 1936, quando minha
mãe morreu. Aí acabou. Aí acabou completamente o contato com minha terra.

JF: Outra coisa que a gente gostaria de saber: como foi que o senhor, que tinha sido criado
numa sociedade que ainda se assentava sob os valores nobiliárquicos, como que foi
sua impressão do Brasil, uma terra onde não havia uma tradição nobiliárquica, não
havia essa..., essa hierarquia social dessa forma. O senhor achou muito diferente da...,
da Rússia? Como que foi?

BT: É. Eliane, não é?

JF: Júnia.

BT: Júnia. Júnia, ora veja, quando eu cheguei aqui, eu cheguei aqui como imigrante. Quer
dizer, despido de todas as..., as prerrogativas de privilégios. Cheguei aqui como pessoa
agregada a um senhor que me trouxe para cá, que me trouxe, que pagou a minha
travessia, porque a minha família..., eu não tinha nada, a minha economia é...,
desapareceu em adquirir roupa para poder viajar.

Então, quando eu vim para cá, eu vim completamente sem nada. Sem nenhuma
pretensão de ser alguma coisa. Eu era um imigrante. Compreende? Um ilustre
desconhecido que ninguém sabia quem era. Ainda mais porque eu dependia do senhor
que me trouxe e que me pagou a travessia para eu poder trabalhar com ele no mato, no
campo. No mato, não, no campo, não é?

Então, quando eu desembarquei em Santos, fiquei deslumbrado com..., porque era


um mundo novo, um outro lado do planeta, não é? Era..., estranhava o..., muito, e
sentia muito, nos olhos, o sol muito brilhante, muito forte que existe no verão aqui, em
4A-BT -3

agosto, no verão, aqui no Brasil. Fiquei deslumbrado com a variedade de raças. Como
eu disse, eu nunca tinha visto gente de cor negra, nunca tinha visto.

Então, a variedade de raças, de povos, de gente diferente, falando uma língua que eu
não entendia, as..., a natureza exuberante de palmeiras reais, de bananeiras, de plantas
tropicais, de casas muito..., com paredes muito brancas, que refletiam o sol forte do
trópico, não é?, tudo isso me..., eu estranhei. O calor sufocante que fazia naquele dia,
parece que foi 38 ou 40 graus. Eu não me lembro [riso], evidentemente não posso me
lembrar o que foi há tanto tempo atrás. Mas eu sei que eu senti um calor tremendo
quando desembarquei em Santos.

De Santos, nós fomos diretamente para..., via São Paulo, fomos para o Sul de
Minas, para uma cidade que chama Ouro Preto, oh, Ouro Fino. Ouro Fino. Viu? Que
fica no Sul de Minas. Lá, nós ficamos um mês ou dois, até que foi... é..., foi marcada a
nossa ida para a colônia, colônia Inconfidentes, //que fica...//

ET: //Não é Padre José Bento, não?//

BT: Inconfidentes, que fica perto de Ouro Fino. Lá, nós não conseguimos pé. Então fomos
a pé, 30 quilômetros, mais para lá, para uma cidade que chamava Borda da Mata. Perto
dessa cidade, Borda da Mata, tinha uma colônia de..., colônia de estrangeiros, que
chamava Colônia Padre José Bento. Lá, o meu... chefe, vamos dizer assim, meu patrão,
ele adquiriu uma..., uma parcela, ou como chama?, um lote, chamava-se, lote do
Estado. Eu não sei quanto é que ele pagou, se ele pagou e quanto é que ele pagou, não
sei. Porque não era da minha conta. A minha conta..., a minha situação era de
trabalhar.

Então, eu vim no mesmo navio com minha tia Elizabeth, que era irmã do..., de outro
casamento do meu avô. Irmã da minha mãe, mas de um outro casamento do meu avô.
Meu avô também foi casado três vezes, como o meu pai. Três vezes, não é por causa
de divórcio, nem nada. É porque as mulheres morriam. A primeira mulher do meu avô
morreu, a segunda mulher morreu. E eu era filho do primeiro casamento do meu avô.
Então era mais..., mais...

Bom. Então, de lá, chegando na colônia Padre José Bento, nós..., o senhor que me
trouxe, senhor Von [........], Arnaldo, vamos dizer mais fácil, Arnaldo, ele ficou em
4A-BT -4

Ouro Fino. E eu fui para o interior..., fui para a colônia, construí lá o meu barraco, o
meu rancho. E construía-se rancho de bambu e de...

JF: Adobe.

BT: Adobe. Não é? Nós, com ajuda de caboclos, nós fizemos a..., a coberta de sapé, sapé.
Sapé é uma... Sabe o que que é?

JF: Hum-hum.

BT: É uma erva, não é?

JF: Uma erva.

BT: E..., e o chão era de terra...

JF: Chão batido.

BT: É. De terra batida. É. E lá eu passei os... os primeiros tempos da nossa estadia. Quando
o que..., lá..., aqui é tudo diferente, não é? Em qualquer parte do mundo, em primeiro
lugar, você..., se divide a terra, depois se constrói uma casa, e depois os homens vão lá
morar. Aqui era diferente. Aqui, primeiro, primeiro se dividia o lote, muito depois se
construiu a casa. De modo que eu não tinha casa quando eu fui para lá. Eu fui lá para
um rancho que eu construí, como disse, com as minhas próprias mãos e com...

ET: Casa de caboclo no rancho. Casa de caboclo não era diferente, não.

BT: Como assim? Eu não ouvi. Não ouvi.

JF: Falou que a casa de caboclo é assim.

ET: //Não era tudo assim?//

BT: //Pois é..., por causa que ela...//

ET: //[.........]//

BT: Aquela de construir, não é?

ET: Todos os trabalhadores moravam não era assim? Ainda moram?

BT: É, é.

ET: Então.
4A-BT -5

BT: É. Mas foi construída uma casa de tijolo e de pedra, de pedra e tijolo.

JF: Mais tarde.

BT: Mais tarde.

JF: Agora, eu queria perguntar para o senhor o seguinte, porque o senhor me disse que
ouviu falar do Brasil como um lugar onde as pessoas se enriqueciam depressa, não é?

BT: É. Isso foi a história que foi contada, quando eu ainda estava na Estônia, não é?, a
minha tia, quer dizer, irmã da minha mãe de outro casamento, ela conhecia esse seu
Arnaldo, sabia que ele não tinha filhos e que ele me convidou para ir com ele para lá,
como filho dele.

JF: Pois é. Agora, o que eu queria perguntar para o senhor é o seguinte: hoje, olhando de...,
de frente para trás, o senhor acha que o Brasil correspondeu a essa imagem que o
senhor veio com ela, apesar dos tempos difíceis do começo, ou não?

BT: Não. Não. Eu vou dizer, como você perguntou, não é?, eu vou dizer com toda a
franqueza. Eu, quando me vi sozinho lá, no mato, sozinho, completamente
abandonado, no meio de bicho..., lá tinha uma cobra muito perigosa, que era a cobra...,
chama-se cascavel. E outros, outros bichos de toda sorte, essas..., essas espinho...
essas...

JF: Aranhas.

BT: Aranhas pretas. E outros bichos lá. Era uma..., uma coisa tremenda, uma dificuldade.
Mosquitos e..., como que chama esse bicho?

JF: Lagarta ?

BT: Borborochudo.

JF: Borrachudo.

BT: Borrachudo. É. Que minhas pernas ficaram desse tamanho, inchadas, de modo que eu
não podia nem calçar nem meia. E andava envolto em trapos. Quando eu trabalhava no
campo. Porque enchia, não é? Eu..., alimentação era totalmente diferente. Deve ter
sido a..., também a... mudança de sangue, não é? Completamente, tudo diferente. Só
sei que passei muita fome lá, no fim da...
4A-BT -6

ET: As pernas todas marcadas de erisipela.

BT: Até hoje.

ET: Porque era angú, muita gordura, não é?, não estava acostumado.

JF: Alimentação completamente diferente, não é?

BT: É, é. Então. Mas eu comia, pelo menos tinha o que comer, o que não acontecia na
minha terra, quando eu trabalhava como trabalhador braçal, não é?, em circunstâncias
sub-humanas. Pelo menos tinha o que comer.

Mas, quando eu me vi, depois do primeiro impacto de um..., quando cheguei lá na


colônia Padre José Bento, tinha impressão que tinha caído num outro planeta. Eu
achava..., eu fiquei tomado de um tremendo desespero, de homem achar: o que que
você foi fazer? O que que você veio fazer aqui? Era preferível você ficar lá, onde se
fala a sua língua, onde tinha ainda parentes..., parentes, não, mas tinha sua mãe, onde
tinha gente, onde tinha as muralhas que você conhecia, a cidade onde..., que você
conhecia desde criança. O que que você veio fazer aqui neste inferno?

Porque, além de mais, para vocês, isso não é estranho. Mas para mim era. O calor.
Porque eu vim de um país que fica em frente à Finlândia, onde a temperatura
realmente é muito mais baixa do que aqui.

Mas o principal era a solidão que eu sentia. Completamente sozinho lá. Porque a
minha tia, que tinha vindo comigo, com..., comigo não, ela veio no mesmo navio, com
a família dela, não é? E ela ficava num outro lote, muito distante. Não havia contato.
Então, eu me sentia muito isolado. Crescido sempre num ambiente, embora muito
hostil, mas sempre num ambiente de, vamos dizer, da pátria.

Eu vinha aqui..., lá, quando nós saímos de lá etc., para o Brasil: Brasil, o país do
futuro. No Brasil tudo se pode fazer. Só precisa trabalhar e a gente enriquece num
instante. Porque o país é tão maravilhoso que a gente..., isso eu..., estou dizendo isso
porque eu ouvia falar. É um país onde se vive embaixo do guarda-chuva e se alimenta
de [banana].
4A-BT -7

Então, muita gente veio aqui por isso. Depois de um, dois anos, três anos, muitos
estonianos que vieram também das mesmas condições, como imigrantes, depois de três
anos foram embora, porque não era aquilo que eles esperavam, não é?

E eu, depois de dois anos de trabalhar na enxada, de sol a sol, estava mais longe do
que quando cheguei. Que quando cheguei ainda tinha esperança, tinha..., cheio de
vontade de vencer. Quando depois de dois anos, eu vi que não tinha condições de
continuar no mato, que eu ficaria lá toda a vida, num meio completamente é..., rural,
vamos dizer assim.

É isso. Por isso mesmo que eu saí de lá, depois de ter trabalhado dois anos. Eu fui...,
o diretor da fazenda, da colônia me chamou para trabalhar com ele. Eu trabalhei como
funcionário público, trabalhei mais ou menos uns seis meses, mais ou menos.

Depois, eu fui e me mandei aqui para Belo Horizonte, porque em Belo Horizonte,
eu tinha a..., a esperança de conseguir um lugar, mesmo que seja como faxineiro, não
é? Que eu não tinha grandes esperanças de ser outra coisa, porque não sabia falar
português. O português que eu falo hoje, fluentemente, eu devo ao meu estudo de
português em..., no Rio de Janeiro, quando tinha, depois de Belo Horizonte e ido para
o Rio de Janeiro. Lá, realmente, eu me sentei e noite adentro, eu estudava português.
Hoje eu estou falando um português bastante bom. Um português correto, não é?
Como qualquer brasileiro, não é? Embora muita gente diz que eu tenho sotaque, mas
não sei. Tenho sotaque ou não?

JF: Pouquíssimo. Quase nenhum.

ET: Ele não tinha nenhum, mas com o tempo e a idade, esse sotaque está voltando.

BT: Não, depois tem o seguinte, sabe Juliana, //Júnia.//

ET: //Estudou alemão...//

BT: É que eu estou dando aula de língua estrangeira.

JF: E fica // o dia inteiro //

BT: E fica, fica o russo, alemão e inglês. Inglês, por exemplo, tem uma influência muito
grande sobre o português.
4A-BT -8

ET: Não, o que ela perguntou, você não respondeu. Depois de tudo isso, a impressão que
você tem do Brasil. Não foi isso que você perguntou?

JF: É. Depois de tudo isso.

ET: //Hoje.//

JF: //Nesse primeiro momento,// o senhor achou que o Brasil não era aquilo que //se
falava.//

BT: //Absolutamente não era nada.// Fiquei desesperado. Queria pegar o primeiro, primeiro
vapor para voltar.

JF: Mas hoje, //depois que o senhor...//

BT: // Eu digo // ou daquele. Mas era tarde. Não tinha volta. O destino estava lançado. Eu
tinha que ficar aqui.

Aí, aos poucos, vendo essa situação, eu me acostumei de ter que ficar aqui. Aí, aos
poucos, eu fiz, assim, me acostumei à vida etc. e tal.

Agora, realmente, eu consegui tomar um novo alento depois que eu fui, que eu
consegui um emprego fixo no Rio de Janeiro, onde eu vi que eu podia me agarrar com
as duas mãos a esse emprego para subir, como realmente subi.

Aí tomei, tomei um novo... Porque a energia de sobrevivência nunca me faltou.


Através de toda a minha vida, desde o..., desde a revolução comunista, passa um fio
dourado através de toda minha vida, chama-se a luta pela sobrevivência.

JF: O senhor me falou que a primeira..., a primeira vez que o senhor morou em Belo
Horizonte, e depois também a segunda, até o casamento com a dona Eunice, o senhor
morou sempre em pensões, não é? Isso era comum?

BT: É.

JF: Havia muitos rapazes solteiros...

BT: Moravam em pensões.

JF: Em pensões. Fazia-se muita amizade...

BT: Chamava-se aquilo...


4A-BT -9

ET: Hoje até achei // lá //

BT: Em geral, chamava-se isso de república. Chamavam de repúblicas.

JF: E faziam-se muitas amizades? Em geral, quem morava nessas repúblicas?

BT: É, em geral eram estudantes. Estudantes ou então empregados no comércio. Eu era um


pouco fechado. Eu já disse a você que eu fiquei mais aberto, mais..., mais, vamos
dizer, mais... compreensivo, mais ligado a outras pessoas, depois que casei com
Eunice.

ET: Não, mas antes de casar comigo, vai falar, não, que você tinha grandes amizades.

BT: [risos].

ET: Você já tinha os Lessa, tinha os Bolivar. Não, é sim. Que te ajudaram demais, antes de
eu te conhecer. O João Dornas, aquela turma toda, você já tinha um grande círculo de
amizade antes de você casar comigo.

BT: É, é. É possível.

ET: Você já freqüentava..., ele freqüentava essas casas todas onde foi me conhecer.

JF: Pois é. Era exatamente isso que eu queria perguntar, que o senhor falasse um pouco
mais. Porque aí, quando o senhor volta, como gerente da Lutz Ferrando, //aí o senhor
me disse que...//

BT: //É, aí sim.//

JF: ... o senhor começou a freqüentar a sociedade.

BT: Muito. Aí, sim. Aí data daquela época, data, porque, na primeira vinda para Belo
Horizonte somente conheci a turma do João Dornas, que era um jornalista, um
intelectual de primeira grandeza, muito..., fiz uma grande amizade com ele. Um
homem extraordinário. Muito inteligente, jornalista e... É.

ET: Morava também aquele que foi... do tribunal. Morava lá. Como que ele chama? Que
subiu na vida até não poder mais.

BT: Ah, sim. Mas isso foi já da segunda vez que eu estive em Belo Horizonte.

ET: Pois é, mas em pensão também. Como ele chamava?


4A-BT -10

BT: É. Esqueci.

JF: Acho que o senhor falou dele.

ET: Ministro do Tribunal.

JF: Acho que o senhor falou dele na vez passada, não falou?

BT: Ministro, ele foi ministro da...

CM : Desembargador Mário Matos, Henrique Lessa...

BT: Não.

ET: Desembargador Mário Matos.

BT: Não, desembargador Mário Matos, não. Espera aí. Espera aí, eu me esqueci.

ET: Ele foi ministro do Supremo Tribunal Federal.

BT: É. Eu me esqueci o nome dele.

ET: Tinha um retrato dele...

JF: Depois a gente lembra. Mas eu queria que o senhor falasse...

ET: Ah, tem aquela irmã do Alberto Fonseca, trabalhava lá, nesse tribunal.

JF: Mas eu queria que o senhor falasse um pouco como que o senhor sentiu essa alta
sociedade de Belo Horizonte. Porque...

BT: Muito, eu senti, eu fiquei altamente impressionado com a receptividade do doutor


Arduíno Bolivar, que era uma pessoa de mais alto nível intelectual. Me recebeu de
braços abertos na casa dele. Ele era latinista. Me sentia muito bem lá. Depois, a casa
do juiz federal, Henrique Lessa. Henrique Lessa, com a família dele, fiz grandes
amizades que perduraram tempos afora.

ET: Até que ele é que levava elas para a festa, porque o Davidof gostava, depois, de ficar
mais tempo, não sei o quê, fora, então a gente falava: você..., era..., como chama?,
[......], você que vai levar para a festa e trazer. Até [.............] estava com raiva, porque
estava na hora dele ir embora e ele tinha que levá-las de volta para a casa delas. [risos]
4A-BT -11

JF: [risos]. Outra coisa que o senhor falou várias vezes na entrevista foi sobre algumas
reformas que foram introduzidas no Brasil com Getúlio Vargas. O senhor falou das
leis trabalhistas e o senhor falou da lei... do inquilinato. Não é?

BT: É. A lei do inquilinato me..., me dificultou enormemente a aquisição daquele prédio.


Porque eu..., esse prédio, eu tinha pago uma parte e a outra metade, eu tinha que pagar
em prestações para pagar a..., para pagar as tais das prestações eu contava com o
resultado das vendas da minha casa comercial e com o aluguel do resto das duas..., dos
dois andares. Mas acontece que... acontece que...

ET: Oliveira Costa ficou lá dez anos pagando um aluguel...

BT: Pagando aluguel miserável, não é? E isso me dificultou enormemente, porque eu não
conseguia. Então, o resultado foi que eu comecei a fazer operações financeiras
desvantajosas e tive muita dificuldade para sair delas.

JF: Pois é. Mas aí, a lei do inquilinato atrapalhava por quê? Ela dificultava, por exemplo, o
senhor despejar quem estivesse lá?

BT: Não, dificultava para eu aumentar o aluguel de acordo com a ...

JF: Com a inflação.

ET: Também não podia despejar, não.

JF: E também não podia despejar.

BT: Não, também não podia.

JF: E aí, então, os aluguéis foram ficando defasados.

BT: É, é. Eu recebia, por exemplo, vamos dizer, naquele tempo usava-se dois contos de
réis, não é? Eu recebia, em vez de dois contos de réis, recebia cem mil réis, quer dizer,
vinte vezes menos.

JF: Hum-hum. Mas e..., em geral, como que o..., o governo do Getúlio Vargas foi um
governo muito marcante. Não é? Ele ficou muito tempo no governo e, em geral, é um
ponto de referência histórico muito importante. Apesar dessas questões, como que o
senhor viu o governo do Getúlio, o assassinato, o suicídio do Getúlio depois. Isso foi
uma comoção muito grande no país. Como que o senhor assistiu isso?
4A-BT -12

BT: Eu assisti isso como..., como naquele tempo eu já me sentia muito é..., muito
brasileiro, vamos dizer assim. Sentia-me muito à vontade aqui, sabe? Naquele tempo,
eu já tinha..., tinha amizades e me sentia familiarizado, não é? É. Quer dizer,
participava de tudo. E participava de tudo.

JF: O senhor me disse também que a sua carteira de trabalho era de 26.

BT: É.

JF: Como que era esse documento? Era parecido com a carteira de trabalho atual?

BT: Eu acho que é.

ET: É sim. Eu tenho ela aí, eu posso te mostrar.

JF: É parecida, então. Praticamente a mesma coisa.

BT: É. Você quer ver?

JF: Depois, eu quero. Outra coisa que eu queria perguntar para o senhor, que o senhor
também mencionou da sua família ser luterana. E no momento do casamento com a
dona Eunice, o senhor pediu uma licença, não é?, para poder casar com ela. O senhor
permaneceu luterano até hoje?

BT: É.

JF: O senhor permanece luterano.

BT: Mas eu acompanho a Eunice. Por exemplo, ela vai, às vezes ela vai numa missa, eu, às
vezes, acompanho ela.

ET: No tempo do padre Orlando, vivo, Orlando Machado, você já ouviu falar nele?

BT: O padre Orlando Machado.

ET: Ele era muito nosso amigo. Então, os 80 anos, ele celebrou missa aqui, deu comunhão
para ele, pelo comunismo. A gente ia à missa das onze lá na igreja, todo domingo, do
Santo Antônio. Nós fizemos parte do movimento de casais cristão da igreja católica.
Quer dizer, ele tem uma vivência maior na igreja católica, no catolicismo, do que na
igreja luterana.

JF: Certo.
4A-BT -13

ET: //Vai esporadicamente.//

JF: //Isso que eu ia perguntar.// Na igreja luterana, então, o senhor vai esporadicamente?

BT: É.

ET: Então, depois que padre Orlando morreu, a gente deixou de ir a essas missas, [..........]
depois ele voltava, vinha almoçar aqui, descia a pé, foi capelão no Sion com as
meninas. E era um padre fantástico, um orador fantástico. //[............],//

BT: //Era um ser humano fora do comum.//

ET: Padre [.......] na igreja de Santo Antônio. Não é? Nós moramos lá dez anos, a gente
fazia parte de todos os movimentos. Tanto é que a gente está na história da igreja lá,
porque quando saía procissão de Nossa Senhora de Fátima grande, saía pequetitinha, a
nossa, os meninos vestidinhos, sabe? Então, agora que fez 50 anos, eles pediram as
fotos para fazer parte do histórico da igreja.

JF: Bom, aí, sobre aquele episódio do quebra-quebra. O senhor disse para mim que o moço
que o defendeu, uma pessoa de cor, disse que estava pagando um favor ao senhor.

ET: É. Ele não pediu licença à igreja dele, não. Você não contou isso direito, não. Você
não contou isso.

BT: Como que foi?

ET: Nós íamos casar na Boa Viagem, que era a nossa paróquia. Conta você. Esqueceu?
Depois, existia um padre muito drástico naquela ocasião...

BT: Padre Negromonte.

ET: Hein?

BT: Não era Negromonte? Não. Era Santos..., era... Eu não me lembro mais qual era o
nome dele.

ET: Então..., ele falou que eu não podia casar no altar mor porque ele era protestante. Eu
tinha que casar no altar lateral.../

[FIM DO LADO A DA FITA 4]


4B-BT -14

Entrevista - fita 4 - lado B

ET: Então, você continua.

JF: Então, continua. Aí o padre falou que o senhor tinha que casar no altar lateral.

BT: É.

JF: O que provocou uma comoção //[.........]//

ET: //[...........] batizado na igreja católica.//

BT: Eu tinha estado..., quando..., numa das minhas estadias no Rio de Janeiro, quando
visitava a Eunice, que morava no Rio, na casa do irmão dela, o senador Atílio
Vivacqua, eu fui num padre que era de Espírito Santo, padre...

ET: Padre Guilherme Porter.

BT: Porter.

ET: [Academia de comércio do verbo ]divino, que meus irmãos mais velhos, depois, lá,
não tinha escola, não é?, então vieram estudar aqui em Juiz de Fora. Nós somos
quinze, não é? Então tinha um padre conselheiro, não é?, que quando meu pai era
imigrante, que chegava na fazenda, ele ficava lá. Depois ele...

BT: É. Este, eu fui visitar o padre...

ET: Aí, então, mamãe ficou, não é?, porque católica, apostólica, romana. Comunhão diária.
Morreu com o hábito da Sacramentina. Então mandou procurar o padre Guilherme.

BT: Eu fui procurar padre Guilherme. Tive uma conversa com ele durante duas horas. No
fim, ele disse: há uma coisa que eu lamento, que o senhor não é católico, porque o
senhor é uma pessoa muito humana, muito boa e o senhor... não permitir que o senhor
se casasse com uma católica, não tem condições.

ET: Então mandou uma carta para mamãe, não é?

BT: É.

ET: Aí, então, nós viemos. Depois..., morava ali na igrejinha, padre Jorge.
4B-BT -15

BT: Jorge Elian. Era um sírio. Padre sírio.

ET: [............] naquela igreja Coração de Jesus.

JF: É, isso ele contou, que foi naquela igreja Coração de Jesus.

ET: Então, ele falou assim: não, a igreja é de vocês, casa no altar, faz o que vocês
quiserem. Então nós casamos lá.

BT: Então, nós casamos lá. Em vez de casar na igreja Boa Viagem, nós casamos na igreja
Sagrado Coração de Jesus.

JF: Mas, então, apesar do senhor ter mantido a sua religião, o senhor acabou tendo uma
convivência muito maior na igreja católica, acompanhando dona Eunice.

BT: É. Exato.

JF: Então, //vamos voltar...//

ET: //Padre Orlando falava mesmo:// ecumenismo, hoje, na Europa, eles celebram culto
religioso, depois vem o culto protestante, sabe? Numa época dessa, não existe mais
isso, não é?

JF: Hum-hum. Bom, daí o senhor tinha me falado que no dia do quebra-quebra, o moço
que...

BT: [risos] Voltou ao quebra-quebra.

JF: É, voltamos ao quebra-quebra. Ele disse que estava pagando um favor, que era a
fotografia que o senhor tinha dado a ele de um jogador de futebol, não é?

BT: Sim. De um jogador. Eu não me lembro qual era o jogador. Parece que era um time,
que era o time predileto desse rapaz. Esse rapaz, na hora, quando ele chegou lá na loja,
ele não tinha o dinheiro para pagar. Ele viu e gostou muito. Eu digo: você gosta dessa
fotografia? Ele disse: eu gosto muito. Eu digo... Mas eu não tenho dinheiro para
comprar. Eu digo: não tem importância, é sua.

JF: Mas aí, eu quero que o senhor me conte, então, ahn, porque aí eu te perguntei isso antes
da gente ligar o gravador, a dona Eunice começou a contar que essa era uma
sistemática da loja, vocês tiravam... //Conta um pouco isso.//
4B-BT -16

BT: //É. Não, eu,// como chefe de cá, eu era proprietário da casa, não é? Eu mandava o
meu..., eu mandava o meu fotógrafo todo domingo tirar as..., os jogos de futebol...

ET: Olha aqui, vê se você lembra, oh? Tonho, Lazaroti, Jorge, Didi, Humaitá, Lusitano,
Nandinho...

JF: Mas aí o senhor mandava o seu fotógrafo...

BT: Eu mandava o fotógrafo para o campo de futebol. Ele tirava as fotografias sábado e
domingo e vinha, de manhã, segunda-feira, de manhã cedo, ele vinha, então, para
revelar os filmes, copiar, tirar e botava eu num..., num tablado...

ET: Tablóide.

BT: Tablóide, não é? E pendurava em frente à casa comercial. Então juntava gente assim
para ver as fotografias.

ET: Ó, naquele tempo era Bengala, Canário...

JF: Isso é uma coisa interessante. O senhor acabou, então, fazendo um acervo muito grande
de fotografias de futebol.

BT: É. Futebol.

ET: [.......], está aqui, ó.

BT: Então. Este, este acervo de fotografia, eu vendi a um rapaz do "Estado de Minas" que
chamava Plínio Barreto.

JF: E ele acabou publicando, então, um livro.

BT: É, não é?

JF: Com essas fotos.

BT: É.

JF: Que outras fotos o senhor vendia lá? Havia sistemática de fazer esse tipo de coisa com
outro acontecimento, sem ser só com o futebol?

BT: É. Toda..., constantemente eu mandava fotógrafo para...

ET: Político... //Muito era social.//


4B-BT -17

BT: //... políticos, para festas sociais.// Principalmente para políticos, essas marchas, como
é que chama? Em dia //de independência.//

ET: //Secretário de Agricultura, Armando Sales...//

BT: É. Chegada de Armando Sales etc. e tal.

ET: Benedito Valadares.

BT: Juscelino. Então. Isso tem um acervo muito grande disso aqui também.

ET: Mais de duas mil fotos.

BT: E também da própria..., da própria cidade de Belo Horizonte, que eu acompanhava a


evolução de Belo Horizonte.

JF: E essas fotos o senhor ainda tem aqui?

BT: Tenho.

ET: Agora, o museu Abílio Barreto vai comprar esse acervo. E a gente sempre está
cedendo fotos para todos livros. Carlos Drummond de Andrade, para aquele livro que
ele publicou, nós já cedemos fotos. A cidade revelava também. Agora foi para Poços
de Caldas, com Humberto, pediu as fotos da rua da Bahia.

BT: Porque a Casa da Lente, que era o nome que eu tinha dado a essa casa, que foi idéia do
Davidof Lessa, não é?, que ele..., essa Casa da Lente tornou-se, aos poucos, cada vez
mais conhecida, até ser um dos primeiros estabelecimentos comerciais de Belo
Horizonte. Porque tinha muitos departamentos. Tinha os mesmos departamentos que
eu estava habituado, quando era empregado da Casa Lutz Ferrando. Isto é, fotografia,
ótica..., cirurgia, ... produtos químicos..., laboratório e assim por diante. Era uma casa
de muito movimento. Muito grande.

Mas ela desenvolveu de tal maneira, que a bola de neve, que ficava cada vez maior,
no fim me esbarrou, porque eu, com minha mentalidade de..., de europeu, não é?, eu...,
para mim era completamente incompreensível como é que uma pessoa pode comprar
uma coisa e depois não pagar.

ET: Essa aqui uma pequena amostra.


4B-BT -18

JF: Então, o senhor acabava tendo muitos fregueses que não honravam os compromissos.

BT: O Estado, principalmente.

JF: O Estado, principalmente.

BT: Porque o pobre, o pobre nunca me enganou. Eu me lembro muito bem uma vez, eu fui
de carro, para com..., com... no meu carrinho, fui para..., acho que fui para
Brumadinho. Porque a Eunice estava lá com, não sei com quem mais. E dentro do meu
carro estavam as minhas duas garotinhas.

ET: Não foi para Brumadinho, não, Hermaann.

BT: Foi para onde?

ET: Porque a minha..., como é que chama? Margarida é que era de lá. Família do marido
dela. Não era Brumadinho, não, era?

BT: Hein?

ET: Não foi para Brumadinho, não.

BT: Brumadinho não era aquela fazenda daquela senhora que estava perto de Brumadinho.
Tinha uma fazenda lá, onde tinha mangas, que a gente comia até dizer chega.

ET: Ah, aquela que recebia os meninos nas férias?

BT: É.

ET: Ah, então é isso, eu não lembro.

BT: É. Pois é. Foi Brumadinho. Foi perto de Brumadinho. Então, num..., eu estava com as
duas meninas que tinham, sei lá, seis, sete anos, cinco, seis anos, não é?, então eu
estava lá com as duas meninas lá dentro. De repente, eu vi que do radiador do carro,
que naquele tempo os carros eram diferentes, estava saindo muita fumaça. Digo: falta
água, e agora? O que que eu ia fazer? Quando eu não podia sair, porque não tinha
onde..., apanhar água aonde? Não podia deixar, procurar água, porque deixar o carro lá
no meio da estrada com as duas crianças sozinhas, não dava. Então, eu fiquei lá
esperando até que aparecesse alguém lá para... ajudar.
4B-BT -19

Aí passou, quando passou um caboclo, caboclo passou com a enxada nos ombros,
ele passou, quando ele me viu, ele parou. Parou e perguntou: o senhor precisa de
alguma coisa? Digo: sim, senhor. Eu preciso de água. Porque não tem água. Ele disse:
ó, isso é uma coisa que eu posso fazer. O senhor espera um pouquinho, eu volto logo.
E sumiu. Lá atrás do morro. Digo: esse homem não vem mais.

Passaram-se vinte minutos ou meia hora, ele apareceu com um balde com água.
Encheu o canisto, encheu lá o tanque do carro e..., eu fiquei muito satisfeito, agradeci
muito a ele e disse: quanto é que eu lhe devo? Ele disse: não, o senhor não me deve
nada. Eu digo: mas não é, o senhor perdeu sua..., o seu tempo, o senhor foi procurar
água, teve um gesto muito bonito, eu lhe agradeço muito, mas não pode ficar assim.
Não, não, eu não posso..., não posso cobrar nada do senhor. Digo: mas por quê?
Porque o senhor não se lembra de mim. O senhor não se lembra que na sua casa foi
uma vez um homem que tinha..., que estava com hérnia e precisava um cinto para
hérnia? E..., mas eu não tinha dinheiro para pagar e o senhor me deu a cinta, não me
cobrou nada. Isso eu não esqueci nunca. O senhor não se lembra disso? Eu digo: não
senhor, não me lembro. Realmente, não me lembrava disso.

Assim, eu devo ter dado muitas coisas, porque eu mesmo que passei uma vida com
grandes dificuldades para sobreviver num meio muito hostil, eu sempre tive muita
compreensão para os..., as dificuldades dos outros, não é? Então, eu dei a ele dez mil
réis, naquele tempo era bastante dinheiro, dei a ele dez mil réis, ele ficou muito
agradecido, quase que me beijou a mão, e foi embora.

Uma outra ocasião, eu, quando já estava vendendo a casa, quando já estava
apertando, o cinto estava apertando, eu que precisava sair para vender nos hospitais, eu
fui num..., num hospital lá. Quando entrei no quarto dos médicos, um desses médicos
me viu, me cumprimentou. Mas eu não me lembrava dele. Então, ele me disse: amigos,
falou com os colegas, este homem, a este homem, eu devo muito. E podia beijar os pés
dele. Eu fiquei tão assustado, digo: esse homem está louco, não é? [risos] O que que é
isso?

Então, ele disse: vou explicar. O senhor não se lembra de uma pessoa, de um
estudante que chegou perto na sua casa e queria comprar um consultório? Eu..., e o
4B-BT -20

senhor me disse: quanto que custa o consultório? Eu disse: tanto. Ah, mas eu não
tenho, disse. Eu não tenho dinheiro para pagar isso. Digo, disse o senhor, isso não tem
importância, a gente faz isso em prestações. Eu não lhe vou cobrar mais por causa
disso. O senhor paga isso em três prestações. O senhor paga a primeira prestação,
depois mais duas, trinta, sessenta dias.

Ele fez o cálculo, digo, não dá, não posso, não. Digo: escute uma coisa, então como
é que o senhor pode. Ele diz: não sei, eu não tenho dinheiro. Digo, bom, aí, então, a
coisa é diferente. Então, você faz o seguinte: você leva o consultório, trabalha com ele,
o primeiro dinheiro que o senhor ganhar, o senhor começa a pagar. Ele nunca se
esqueceu disto.

Mas era..., eu não me lembro o número de pessoas que eu tenho ajudado nisso.
Nem..., nem é do meu feitio de me vangloriar disso. Eu que passei muita dificuldade
para me formar, eu tinha sempre muita compreensão e muito entusiasmo por pessoas
que se esforçam para ser alguma coisa na vida.

ET: ó, os pequenos que compravam óculos, essas coisas de Herman, tudo à prestação,
funcionário público, operário, o que for, pagavam em dia. Os grandes iam lá,
escolhiam dez, os óculos, as filhas escolhiam, conta para ela, não sei quantos modelos
de cor, era uma dificuldade para pagar.

BT: É. Isso é verdade.

ET: Não recebia, não. Só recebia você indo.

BT: Isso é verdade.

ET: O empregado ia cinco, seis vezes, não atendia, pronto.

BT: Bom, é isso.

JF: Eu estou achando tão interessante. Conta mais, o funcionamento da casa.

BT: A casa funcionava muito bem. Eu tinha..., eu tinha sempre muita confiança.
Infelizmente nem todos os empregados meus eram honestos, não é?, de modo que eu
fui muito prejudicado pela falta de..., de honradez, de honestidade de alguns deles.
4B-BT -21

Perdi muito dinheiro. Mas, mesmo assim, a casa crescia, crescia, crescia cada vez
mais. //Eu não soube...//

ET: //Lá em cima//, você alugou para consultório, não era? Lá em cima tiveram consultório
médico lá, no Park Royal, era quem que tinha lá?

BT: Ah, bom, bom, isso era antes de eu ter comprado o prédio. O Juscelino Kubitscheck
que tinha consultório lá em cima. O doutor Santa Cecília, que era grande oculista.
Doutor..., é... Eu não me lembro de nome de todos.

ET: Argeu Murta.

BT: Argeu Murta, não.

ET: Oromar Moreira?

BT: Não, não. Esse, eu conheci. Esse conheci, tornaram-se muito amigos.

ET: E aqueles dos óculos, que levava comissão, como que ele chamava? Nós não vamos
falar nome...

BT: Doutor...

ET: Quase todos os médicos mandavam. Falei, doutor Hilton Rocha nunca levou comissão,
não é?

BT: Doutor Hilton Rocha //sempre foi um homem muito sério.//

ET: //[..........]//, mas tinham muitos que...

BT: Bom, então, o que você quer saber? [riso] Isso, aí..., se eu começar a entrar em
detalhes, sabe Júnia?, vai longe. Eu tenho tanta coisa..., uma variedade tão grande na
minha vida, que é muito difícil de quase..., de deixar passar isso, devia ser dias que eu
poderia contar.

JF: Bom, aí, então, vamos um pouco falar agora das casas que o senhor morou. O senhor
falou que, primeiro, o senhor foi morar na Serra, não é?

BT: É.

JF: E era uma casa alugada.

BT: Ah, eu aluguei, sempre..., sempre... Eu sempre morei em casa alugada.


4B-BT -22

JF: Sempre morou em casa alugada.

BT: É. A primeira casa que eu morei que era minha era na rua Aimorés, mas isso é muito
mais tarde. Eu morei na rua..., na //rua Monte...//

ET: //A primeira, quando nós casamos, foi na Fernandes Tourinho.//

BT: //Monte Alegre//. Não. É, Fernandes Tourinho, foi Fernandes Tourinho. Depois foi
para Monte Alegre.

ET: Lá no alto da Serra.

BT: Depois... Fernandes Tourinho foi aqui no Santo Antônio. Depois foi lá para cima, para
rua Monte Alegre, lá em cima da Serra. Depois, nós descemos para a..., foi...

ET: Rua Pernambuco.

BT: Para a rua Rio Grande do Norte. Depois foi para a rua Pernambuco. Depois foi para
avenida..., avenida do Contorno...

ET: //Nós moramos dez anos.//

BT: //...onde nós moramos dez anos.//

ET: É até a gente acabar de pagar o prédio, não é?, não podia comprar nada.

BT: É.

JF: Então, enquanto o senhor pagou o prédio, o senhor morou em casa alugada.

BT: Alugada, é.

JF: Enquanto isso, a família ia crescendo.

BT: Família crescendo cada vez mais. [risos] Sete filhos.

ET: Cada um nasceu num lugar. Eu tenho as casas todas que cada um nasceu.

JF: Cada um nasceu numa casa.

BT: É.

JF: E nessa..., por exemplo, na avenida do Contorno que o //senhor morou 10 anos...//

ET: //Nasceram mais. Nasceram os gêmeos, nasceram o Carlos Eduardo, não é?//
4B-BT -23

BT: É.

JF: Estabeleceu muito contato com a vizinhança? Como é que era a vida...

BT: //Ah, muito. É.//

ET: //Ih, uma grande família, na avenida do Contorno. Se pudesse eu morava naquele
quarteirão.

BT: É a melhor moradia que eu tive, porque o contato que nós tivemos naqueles dez anos
perduram até hoje. As amizades.

CM: Que ponto da avenida do Contorno?

BT: É quase em frente //à igreja...//

ET: Sabe aquela casa Brinque? Aquela casa de brinquedos.

JF: Sei.

ET: É ali.

JF: Ali na curva.

ET: Nós moramos ali dez anos.

BT: //Naquela casa.//

JF: //Naquela casa// onde que era a Brinque.

ET: Os meninos cresceram e ficaram adolescentes. A rapaziada ficava brincando lá na


frente, vivia no botequim. E a gente ia dar café, levava para casa. As mesmas
amizades, continua a mesma coisa.

JF: Foram sete filhos, então, que tiveram?

ET: É.

JF: E as meninas estudavam aonde? Era escola pública, escola particular?

BT: No Sion.

ET: As duas mais velhas, primeiro, elas estudaram no Sion. Logo que abriu, [...........], tinha
o pré. Depois elas foram para o Colégio Aplicação, que queria fazer curso, não é?
4B-BT -24

JF: Normal?

ET: Não, curso superior. Uma fez Letras, a outra..., depois a outra foi para a Europa. Os
meninos estudaram no..., no Silviano Brandão. Depois estudaram no grupo, nós
morávamos no Santo Antônio. Como que chama o grupo? Dona Iracema, que era uma
professora tão boa.

BT: [..............] Dona Iracema, me lembro...

ET: Depois da //[Carangola]//

BT: //É muita coisa, sabe?// É uma vida muito agitada.

JF: E depois, então, da avenida do Contorno, já foi uma casa própria, pela primeira vez?

ET: Foi.

JF: Onde que era?

ET: Aqui na Aimorés, entre João Pinheiro e Sergipe. Era a casa dos Mascarenhas.

JF: E como que foi nesse momento, então, por exemplo, deixar essa vizinhança, que os
meninos tinham crescido ali, tinha sido estabelecidas tantas amizades...

BT: É porque a casa não era nossa, não é? A casa..., o proprietário pediu a casa, não é?

JF: Foi porque o proprietário pediu. Bom, uma outra coisa que eu queria perguntar para o
senhor: o senhor atuou no comércio durante tanto tempo.

BT: É, de mil novecentos... Eu fui empregado da..., fui empregado do comércio de 1925, de
26, de 26 até 39. Quer dizer, treze anos fui empregado de comércio. Subi de ajudante
de vendedor, de faxineiro, subi até o gerente procurador, nesses treze anos. Depois, eu
montei a minha casa, Casa da Lente, com a ajuda do meu chefe...

ET: É.

BT: Senhor [Félix Rasson], que isso eu já contei, [Félix Rasson], que eu tenho na melhor
boa memória. Um israelita muito difícil, mas eu consegui captar a amizade dele, a
simpatia. Ele teve uma grande simpatia por mim.
4B-BT -25

JF: E aí, como que foi, por exemplo, o senhor..., é..., teve alguma atuação em termos de
contato com outros comerciantes, através, por exemplo, de instituições, //como
Associação do Comércio?//

BT: //Tive.// Na Associação... Associação Comercial. Associação Comercial e União dos


Varejistas. Me lembro até hoje. União dos Varejistas.

JF: E como que o senhor participou nessas instituições?

BT: É.

ET: Tem até medalha do Comércio.

JF: Pois é, qual era a grande..., ahn, por que o senhor procurava, ou por que o senhor
procurou essas instituições? Elas davam apoio?

BT: Não. É porque fazia parte, era sócio. Era sócio da União dos Varejistas e da
Associação Comercial.

ET: Agora, ele acompanhou, sim, a parte cultural e artística, não é? Ele freqüentava lá o
Isabela Hendrix, não é?, um centro que tinha lá.

BT: Ah, sim. É mesmo, não é?

ET: Antes de eu conhecer, não é? Tinha um centro cultural lá no Isabela Hendrix.

JF: Aquele centro cultural que o senhor falou, do Isabela Hendrix, era ligado então à...

BT: Não. O centro cultural de Isabela Hendrix..., Isabela Hendrix é um colégio metodista,
não é?, protestante, não é? E tinha..., era o prédio próprio que a Isabela Hendrix tinha,
na rua Espírito Santo, que foi depois derrubado e construído o Banco Nacional. Aquele
prédio alto do Banco Nacional. Sabe? Ao lado do edifício Acaiaca.

JF: Sei.

BT: Sabe? Quase esquina com Afonso Pena.

ET: Lá era a nata da sociedade, eram as filhas da Berenice Prates, não é? //Com Prates...//

BT: //É.// Nós formamos lá um clube que chamava English Club, quer dizer, um clube
inglês. E lá nós praticávamos [risos] o inglês.

ET: //Dança...//
4B-BT -26

BT: //E também...,// lá veio hora de música. Então, apareceu do Rio de Janeiro o maestro
Asdrúbal Lima. Esse foi o princípio dessa..., da sociedade que hoje chama, que chama
Sociedade Coral de Belo Horizonte. Asdrúbal Lima, eu entrei lá como corista.

ET: Foi o primeiro coro em Belo Horizonte.

BT: Cantei o primeiro coro. Daí, em 1932, quer dizer, foi da primeira vez..., foi da segunda
vez que eu estive em Belo Horizonte, não é? Antes de ir para São Paulo. Porque eu fui
depois, da segunda vez, foi para São Paulo, não é?

ET: Tem foto aí. Era Lia Salgado, era..., era Murilo Badaró, era Bresser.

BT: Não, Murilo Badaró e Bresser não faziam parte. Murilo Badaró e Bresser faziam parte
somente depois da Sociedade Coral. No Coral Asdrúbal Lima fazia parte... Não,
Bresser fazia.

ET: Fazia.

BT: Bresser fazia parte do coro Asdrúbal Lima. Então, nós cantamos, 1932, foi a primeira
vez que nós cantamos no antigo Teatro Municipal. Antes de ser Metrópole, antes de
ser derrubado. Naquele tempo era Teatro Municipal. Quando Juscelino vendeu é que...,
ou trocou, não sei, fez um negócio lá com o teatro e foi construído então a..., o
edifício.., o hotel Metrópole..., o cine Metrópole. É. Então, aí..., nós cantávamos lá a
ópera, é, ["Cavalarios de Cama"]. [risos] Em 1932.

Depois, eu fui para São Paulo, em 35, 36, fui para São Paulo. E larguei o canto.
Quando voltei, eu já contei a você, não é?, quando doutor [ Pedro de Rocha França]
França me chamou para fundarmos a Sociedade Coral de Belo Horizonte. Bom.

JF: Bom, e o senhor falou que..., o senhor disse que acabou depois vendendo a Casa da
Lente, não é? E, atualmente, o senhor se dedica à atividade de professor de línguas,
não é?

BT: É. É porque eu..., quando eu tive o enfarte agudo do miocárdio, em 1970, o médico
achou que eu não devia também continuar com o comércio, porque o comércio exige
uma grande tensão nervosa, principalmente aqui, onde eu..., muito porque..., muita
gente: por que você vendia ao Estado? É porque o meio era pequeno.
4B-BT -27

Em vez de fazer..., eu fiz, naturalmente, hoje eu sei. Porque a gente fica sabendo que
fez errado depois, não é? Em geral, não é? Então, o que eu fiz de errado é de não ter
sabido, em tempo, parar. Parar. Por exemplo, parar com algumas seções, começar...,
ficar somente com duas ou três seções, departamentos. Não é? Em vez de ter quatro ou
cinco. Então, isso exigia um capital de giro muito grande, não é? Então, em vez de
comprar todo esse material de cirurgia e de química, eu devia ter deixado isso.

Mas não o fiz. E fiz errado. Continuei vendendo ao Estado, quando eu via, o Estado
não pagava. O Estado, numa época de inflação, pagava muitas vezes com um ano de
atraso. Quando recebia o dinheiro, esse não dava nem para pagar mais o..., o...trânsito.

JF: O transporte.

BT: O transporte. Compreende? Então, aí eu levei na cabeça, tive..., tive um enfarte no


miocárdio, quando depois de cinco meses, naquele tempo não sei se havia ou não
havia sanfona... Hoje chama...

JF: Safena.

BT: Safena. [risos]. Safena. Desculpe, viu? Então, não..., eu fiquei cinco meses em casa,
não é? Quem me ajudou muito foi minha filha, Vera Elizabeth, naquele tempo. E,
naturalmente, a minha mulher.

ET: Tomou a frente das coisas e liquidou a casa.

JF: E..., e como que é, agora, o senhor se dedicar a essa atividade? O senhor tem muitos
alunos?

BT: //É, eu tenho.//

JF: //Quantos idiomas o senhor fala?// O senhor já me contou isso, mas não com o
gravador ligado. Conta agora, com o gravador ligado. [risos]

BT: Bom, eu falo correntemente, correntemente, como falo português, falo cinco idiomas.
O espanhol, eu também falo bastante bem, mas não falo como falo, por exemplo,
português, como falo inglês, como falo alemão, como falo russo. Não falo.

JF: E francês, não é?

BT: E francês, e francês, é. É. Agora, eu tenho muitos alunos...


4B-BT -28

ET: Os alunos dele são um show. Cada menina, cada qual mais bonita, cada executiva aí,
de modo que é uma diversão. Mas não cansa mesmo, não. Todas assim, muito
inteligentes, não é?

BT: Eu tenho mais ou menos..., mais ou menos quinze. Conforme a época, 15 a 18 alunos.

ET: Uai, então como é que você dá nove horas por dia?

JF: Porque tem mais de uma aula por semana, uai.

ET: É. [risos]

BT: Não é, Eunice? Muitas vezes, eu tenho duas a três aulas por semana. Tem uns que eu
dou duas ou três. Porque alemão, por exemplo, é uma língua difícil, que fazendo
somente duas vezes por semana não vai para frente. Tem que ser três, não é?

JF: E quais os idiomas que o senhor mais dá aula? Mais procurado?

BT: Inglês.

JF: Inglês. Bom, eu já te perguntei isso também, informalmente. Em qual língua o senhor
mais se idenfifica.

BT: Alemão.

JF: Que é a língua que o senhor foi criado.

BT: É.

ET: A língua materna.

BT: A minha língua materna.

ET: O pai era [........]

JF: Outra coisa que eu queria perguntar, o senhor então foi um espectador privilegiado do
crescimento da cidade, principalmente tendo esse acervo fotográfico, não é?/

FINAL DO LADO B DA FITA 4


4B-BT -29

Isabela Hendrix, 25, 26


A
J
Associação Comercial, 25
Juscelino Kubitscheck, 21
B
M
Belo Horizonte, 1, 7, 8, 9, 10, 17, 26, 27
Brasil, 1, 2, 3, 5, 6, 8, 11 Maestro Asdrúbal Lima, 26
museu Abílio Barreto, 17
C
P
Casa da Lente, 17, 25, 27
Casa Lutz Ferrando, 18 padre Orlando Machado, 12
Colônia Padre José Bento, 3
R
D
revolução comunista, 1, 8
doutor Arduíno Bolivar, 10
S
G
Sion, 13, 24
Getúlio Vargas, 11, 12 Sociedade Coral de Belo Horizonte, 26, 27

I U
imigrante, 2, 7, 14 União dos Varejistas, 25
5A –BT-1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CENTRO DE ESTUDOS MINEIROS
GRUPO DE HISTÓRIA ORAL
PROJETO INTEGRADO: “MINAS GERAIS: POLÍTICA E SOCIEDADE ATRAVÉS DA
HISTÓRIA ORAL”

ENTREVISTADORES: PROFª JÚNIA FERREIRA FURTADO


CARLOS AUGUSTO MITRAUD
ENTREVISTADO: BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
LOCAL: BELO HORIZONTE
DATA: 01/08/92

Entrevista - fita 5 - lado A

JF: ...Só essa história para mim.

BT: Qual é?

JF: Do senhor ter visto os dois presidentes. O Getúlio Vargas e o Arthur Bernardes, que você
falou?

BT: Não, Washington Luís.

JF: O Washington Luís.

BT: Washington Luís Pereira de Souza.

JF: Então me conta.

BT: [risos] Eu era empregado na Casa Lutz Ferrando, no Rio de Janeiro, quando meu chefe
me mandou para o Palácio do Catete, para levar um aparelho de cinema, de projeção, não
é? Então, eu cheguei lá..., o aparelho, não é?, e, quando entrei lá, ... é..., um..., um rapaz
lá perguntou: o que que você quer? Eu digo: quero falar com... a excelentíssima. A
excelentíssima era a senhora do presidente da República. Digo... Então, espera um
pouquinho. Esperei. Aí me levou lá para um salão.

Quando estava lá no salão, não é?, esperando por ela, não é?, aí veio..., veio..., abriu-se
a porta e apareceu o... [risos], a..., a fisionomia do doutor Washington Luís, não é? Olhou
para mim e disse: uai, o que que você está fazendo aqui, homem? Homem. Eu disse:
5A –BT-2

senhor presidente, estou aqui esperando a excelentíssima. Ele disse: ah, você me
conhece? Eu digo: senhor presidente, quem é que não conhece o senhor? Ele diz: você é
estrangeiro? Eu digo: sou, sim senhor. Naquele tempo, eu ainda não falava muito bem,
não é?, porque ele naturalmente percebeu que tinha um sotaque muito grande.

Então, depois... Foi aí que eu o encontrei. Está muito bem, muito bem, espera um
pouquinho, a minha senhora vem agora mesmo. Aí, depois, ela veio. Uma senhora muito
viva, pequeníssima, pequeníssima. Muito baixinha, não é? Era a mulher do... do
presidente da República, não é? Fiz..., fiz uma exibição do aparelho etc. e tal. Fui
embora.

Agora, Getúlio Vargas. Eu estava trabalhando em São Paulo. Então, naquele tempo já
era sub-gerente lá em São Paulo, não é? Então, eu estava lá, quando... estava lá atrás do
balcão, quando de repente eu vi, lá na frente, na entrada, de repente começou..., parou lá.
Eu vi. Fez-se um silêncio, não sei como. Chamou minha atenção, eu fui lá ver. Entrou
pela porta a dentro um senhor gordinho, baixinho, sorridente, com charuto na boca. Era
Getúlio Vargas.

Entrou lá dentro e dirigiu-se diretamente a mim. Digo. “Você conserta pince nez.”
Digo: “conserto, sim senhor. Sim senhor, senhor presidente”. “Ah, você me conhece?”
Digo: “perfeitamente, senhor presidente, quem é que não conhece o senhor?” Então,
consertei o pince nez dele. Ele me perguntou, conversou etc. e tal, depois foi embora.

Assim eu conheci os dois.

JF: E aqui em Belo Horizonte? O senhor conheceu algum governador?

BT: Ah, conheci, o governador Benedito Valadares. Conheci o presidente Andrada, Carlos...,
como que ele chamava? Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Conheci... é..., Benedito
Valadares. Ah, conheci o doutor... me escapou o nome dele. Um..., o mais elevado, o
mais..., mais correto governador que nós tivemos. Como é que chamava? [silêncio]
Esqueci o nome.

JF: Depois o senhor lembra. E o Juscelino? O senhor //já conhecia o Juscelino, não é?//

BT: //Ah, o Juscelino.// Conheci. Juscelino, conheci.

JF: O senhor conheceu ele enquanto médico ainda?

BT: Não, não.


5A –BT-3

JF: Não?

BT: Sim. Não. Eu conheci ele quando ele era já..., era, era prefeito.

JF: Ah, já foi conhecer quando ele era prefeito.

BT: Prefeito. E depois, a Sociedade Coral foi chamada para... ia ter..., a Sociedade Coral já
tinha sido inaugurada, em 1957, em 1950, não é? 56 foi fundada Brasília, não é? Nós
fomos convidados pelo presidente da República - naquele tempo era presidente da
República já - fomos convidados para participar do coral. E ir, com o seu coro, para
cantar a primeira missa campal em Brasília.

Júnia, eu fiquei impressionado, que... //Brasília era um vasto campo...//

ET: //Olha, o acervo, a gente colabora// em todos os pedidos assim, para a cultura. Este livro
agora para //Poços de Caldas...//

JF: O senhor ficou impressionado com Brasília.

BT: Com Brasília. Era uma vastíssima planície, onde não tinha nada. Parecia o primeiro dia
da criação do mundo. Um silêncio total. Não tinha... nem mosquito não voava.

ET: Para este... Essas aí são inéditas, porque Nossa Senhora de Fátima chegou, [.....], falaram:
quem fizer o álbum mais bonito da peregrina para ganhar um prêmio. Ficaram em cima
do pai dela, então ele mandou acompanhar, desde o princípio até o fim. Você vê
Juscelino aí carregando andor?

JF: Ham-ham. E ela ganhou o prêmio com o álbum?

ET: Ganhou, uai. Uai, mas com tanta fotografia...

BT: Mas então, continua?

JF: Continua.

BT: É. Então, o que que você quer saber mais?

JF: Não, acho que a gente pode terminar por hoje, tá? Vou desligar aqui. /

BT: Nós fomos convidados pelo presidente da República, doutor Juscelino Kubitscheck de
Oliveira, para cantar a primeira missa campal de Brasília. Ele colocou o ônibus..., ele
colocou o avião à nossa disposição. E nós ficamos hospedados lá, e no..., no próprio
avião, não é?, à noite. E comemos lá no restaurante. Eu me lembro até hoje que o bife era
tão duro que não havia jeito de mastigar o bife. [riso]
5A –BT-4

Depois fomos convidados pela segunda vez, na..., na inauguração de Brasília. E pela
terceira vez, na..., no primeiro aniversário. Todas as três vezes, Juscelino Kubitscheck
colocou o avião dele..., o avião do..., do Estado à nossa disposição. Nós fomos de avião
para lá. Foi a Sociedade Coral que inaugurou, com seu coro, Brasília.

JF: Ah, eu lembrei uma coisa que eu queria perguntar. Até foi uma coisa que a gente
conversou da última vez. Que o senhor me disse, depois que a gente desligou o gravador,
que..., que os senhores costumavam nadar lá na represa do Acaba Mundo, não é?

BT: Não. Não eu não me lembro de represa nenhuma. Nós fomos lá para o clube. O clube
chamava-se Acaba Mundo. E era de propriedade da família Guimarães.

JF: Ah, e não era represa, não? Era piscina construída?

BT: Não. Não vi... Ah, havia uma piscina, sim. Mas eu..., eu nunca nadei lá.

JF: Mas não foi lá que o senhor me falou que tem retrato da dona Eunice numa pedra?

BT: Ah, sim. Pois é. É. Ela foi numa... [riso], numa pedra, eu tirei um retrato dela na pedra,
no penhasco, numa pedra, é.

JF: Ah, mas, é porque na hora que o senhor me contou, eu entendi que dessa pedra se pularia
na represa. Não, então, não.

BT: O quê?

JF: Na hora que o senhor me contou, eu entendi, eu imaginei, na minha cabeça, que era uma
pedra de onde se... pulava numa represa.

BT: Não, não, não. Era uma..., era uma pedra. Uma pedra. Que ela foi lá para cima e eu tirei o
retrato de baixo, por cima. Ela estava lá.

JF: E o que que geralmente vocês faziam nos fins de semana? Quais que eram os programas?
Ir lá nesse clube...

BT: Pois é. Passear nesse clube, fomos no Minas Tênis Clube. Minas Tênis Clube fomos
muitas vezes. Fomos no... Eu tinha comprado um lote lá em Guarapari, no Espírito Santo,
não é?, que depois eu vendi, tive que vender, estava apertado, tive que vender o lote, não
é? Fomos..., passamos acho que duas ou três, duas ou três vezes que eu passei lá. Porque
a família de Eunice é toda do Espírito Santo. E perto de Guarapari tinha um..., um dos
irmãos dela tinha uma propriedade em Castelo, um lugar que chamava Castelo, não é?
5A –BT-5

Então, nós fomos lá. Depois fomos lá, aonde mais? Estivemos em Brumadinho,
estivemos numa fazenda lá que tinha manga! Um colosso de manga. Muita. Manga
gostosa, principalmente a manga ubá, que eu gostava muito. Depois nós fomos... Onde
que nós fomos mais? [silêncio]. É isso que eu me lembro.

JF: Tá. Eu, então, queria te perguntar uma última coisa. Bom, depois disso tudo, o senhor
achou que valeu a pena a sua vida no Brasil? Quer dizer, o senhor achou que tudo que
aconteceu aqui, apesar de toda essa dificuldade inicial, que conseguiu... dar para o senhor
uma alegria? Apesar do senhor ter perdido toda aquela vida que o senhor tinha na Rússia,
antes da revolução?

BT: Júnia, isso é uma resposta que eu lhe vou ficar devendo. É muito difícil responder isso.
Eu acho..., eu lamento sempre o que me aconteceu, de ter com a revolução comunista
descarrilhado a minha locomotiva. Hoje, com, com o relacionamento da minha família e
com a capacidade que eu demonstrei ter na vida, de lutar contra todos os dissabores, com
todas as dificuldades e vencer, eu teria..., hoje seria pessoa de grande porte no antigo
império.

Então, a revolução comunista, para mim, foi um desastre. Eu não posso..., eu, hoje,
que estou há mais de 60 anos aqui no Brasil, eu gosto do país, gosto do povo e não me
acostumaria de viver em outra parte. Eu gosto daqui, porque é um povo bom, que eu
procuro sempre ver o lado positivo do povo brasileiro e não o lado negativo. Isso é
errado, está errado. Porque todos nós temos lados negativos e todos nós temos lados
positivos.

Eu tenho a impressão que apesar de todas as coisas, levando em..., levando em


consideração como eu cheguei aqui, com uma mão na frente e outra atrás, com a camisa
do corpo, sem nada, eu..., bem ou mal construí uma vida, não é? Meus filhos estão todos
bem encaminhados, com exceção de um, que no momento está desempregado. Mas o
resto está tudo muito bem, não é? Eu não sei se eu fiz feliz minha mulher ou não fiz. Eu
não sei. Ela é uma pessoa extraordinária, de uma cultura..., de uma cultura fora de
comum, muito humana e uma pessoa de grande coração.

De modo que eu acho que, sinceramente falando, quando eu enfrentar o trono do juiz
supremo, quando chegar a minha hora, e ele me perguntar: que fizeste dos bens que eu
coloquei no seu berço?, eu terei que responder: Senhor, muito pouco, fiz pouco, devia ter
5A –BT-6

feito muito mais. Eu peço ao Senhor, me dê mais alguns anos de vida para melhorar, para
ser melhor, para fazer mais.

Isso eu digo com toda humildade. Porque eu acho..., apesar de dizerem que eu tenho
não sei quantas condecorações disso, daquilo, eu acho que... eu... devia, podia ter feito,
ou devia - podia, não -, devia ter feito mais ainda. Porque a gente nunca, nunca faz o
suficiente para..., para agradar..., agradar ao juiz supremo. Sempre a gente tem..., poderia
fazer mais alguma coisa. E eu acho que sou assim. Com toda a humildade, eu digo isso.
Apesar de eu ser considerado aqui uma pessoa que fiz muito pela cultura, que fiz isso, fiz
aquilo etc. e tal, eu, humildemente, eu acho que devo fazer mais e melhor.

Viu, Júnia? Este deve ser o ponto de vista. Porque a pessoa que acha que é o tal, não é
a pessoa que é, que pode agradar aos olhos do... de Deus.

JF: Eu queria, barão, te agradecer muito essa oportunidade. Não só do senhor ter contado...
tudo que o senhor nos contou, mas também a oportunidade de eu ter lhe conhecido.

BT: Obrigado. Muito obrigado.

JF: Eu admirei muito conhecer a sua vida, conhecer a sua luta. E foi uma experiência muito
boa. Não só para o acervo que a gente está constituindo, mas também uma experiência,
para a minha vida, muito bonita, conhecer a sua luta.

BT: Bonito, não é, Júnia?, o que você falou. Muito obrigado, viu? Isso, para mim, é muito
valioso. Eu sinto-me muito bem quando ouço essas coisas, embora essas coisas não são
suficientes para achar que eu sou..., que eu..., que eu fiz muito. Porque eu acho que ainda
fiz muito pouco. Devia ter feito mais. Sabe? Não é?

JF: Está jóia.

FIM DO LADO A DA FITA 5


FIM DA ENTREVISTA COM BARÃO HERMANN VON TIESENHAUSEN
OBSERVAÇÃO: SÓ FORAM REGISTRADOS CERCA DE 15 MINUTOS DO LADO A E O LADO B
NÃO FOI GRAVADO.
5A –BT-7

C R
Casa Lutz Ferrando, 1 revolução comunista, 5

G S
governador Benedito Valadares, 2 Sociedade Coral, 3, 4

I V
inauguração de Brasília, 4 vida no Brasil, 5

J W
Juscelino, 2, 3, 4 Washington Luís, 1

P
Palácio do Catete, 1

Você também pode gostar