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A DOBRA DE DELEUZE ACONTECE EM ALEIJADINHO?

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CURVATURAS E AS INFLEXÕES

NHEDO, MARCELA (1)

1 - Unicamp. Instituto de Artes


arteviva@hotmail.com

RESUMO

A observação do adro do Santuário mineiro do Bom Jesus de Matosinhos em que estão


inseridas as esculturas dos 12 profetas do artista Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho
revela uma assimetria das formas e obras singulares que podem suscitar-nos alguns
questionamentos em relação à ideia de desdobramento e repetição de determinados traços.
Em que medida o conceito Deleuziano de dobra barroca pode ou não ser aplicado às obras de
Aleijadinho? As características mais representativas da estética do Barroco, a partir da dobra
ou dos traços do barroco, são exploradas em outros períodos da narrativa de Aleijadinho; nas
diferenciações são aludidas as desdobras, as curvaturas, as inflexões, as rotações, translações
e operações estéticas versáteis do artista que posicionou a arte sacra barroca brasileira no
dossel das maravilhas da humanidade.

Palavras-chave: Aleijadinho; dobra barroca; curvaturas; inflexões.


A escolha do conceito de dobra para analisar algumas obras de
Aleijadinho

Para relacionar os princípios da tessitura do Barroco com a da obra de Antônio


Francisco Lisboa, o Aleijadinho, propõe-se a adoção do conceito de dobra empregado
pelo filósofo francês Gilles Delleuze. O autor que se debruçou sobre algumas obras do
filósofo Leibniz desenvolveu um método de análise da estética do Barroco a partir de
seis aplicações primárias: a dobra (curvaturas e inflexões), o interior e o exterior
(articulação de espaços), o alto e o baixo (tensão entre os planos de sinestesia), a
desdobra (dissipação da dobra ou respiro sinestésico), as texturas (resistência dos
materiais) e o paradigma (modelo da dobra).

Na perspectiva Deleuziana a dobra existe como condição intrínseca ao Barroco, quase


como um preceito divino ao qual o artista apreendia ou se submetia como substância
fundamental para a execução concreta de seus objetos. A dobra é por vezes
concebida como um traço bem específico por ser o da continuidade da linha que se
curva e se recurva infinitas vezes produzindo pontos matemáticos de inflexão que
estariam no início das linhas com as curvas, ou no ponto de tensionamento do
côncavo e do convexo. Ora, o que se dobra ou o que se multiplica tem a qualidade
plástica da repetição e o que está no ponto de inflexão contém o limiar, o que pode ser
diferente ou singular. Deste modo, a inflexão consiste na mudança vetorial da linha no
sentido da curvatura, ou seja, o puro Acontecimento da linha ou do ponto, o Virtual, a
idealidade por excelência (Deleuze, 1991, p. 33).

A idealidade de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho faz parte da historiografia do


barroco brasileiro com textos que exploram a biografia, a perplexidade sobre a
qualidade das obras que conferem substancialidade ao estilo e a certeza do
reconhecimento do autor. As bibliotecas do IPHAN (2014) somam no acervo 172 livros
publicados sobre o artista, existem os relatos quase inaugurais de Rodrigo José Bretas
(1858), livros outros com narrativas extensas a partir de abordagens históricas e ainda
os que enfatizam as relações do drama artístico reforçado desde o proposto olhar
romântico de Alfred de Musset, onde todo verdadeiro olhar é um desejo; uma ideia de
que a matéria também possui impulsos a partir dos quais seu conjunto de elementos
construtivos tenciona uma força plástica imanente. Para revisitarmos essas estruturas
e sobre a noção de vontade anímica na obra de Aleijadinho, propõe-se uma análise
das dobras sob um ângulo alternativo, talvez de viés, pois a série infinita das

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curvaturas ou inflexões é o mundo, e o mundo inteiro está incluído na alma sob um
ponto de vista (Deleuze, 1991, p. 48).

Não se trata de analisar a obra de Deleuze, mas de utilizar a sua metodologia para
delinear um estudo sobre Aleijadinho e sobre o Barroco Brasileiro.

As consequências da dobra barroca

Distinguir as flutuações da obra de Aleijadinho pelas variações contidas nas próprias


obras e não a partir do ponto de vista único do espectador, eis o que a dobra faz no
pensamento que ora se debruça sobre o artista. Verificar de fato o quanto a dobra
barroca de Aleijadinho se apresentaria como uma necessidade de transgressão
inerente à alma humana que, aflorando de tempos em tempos, determinaria situações
inusitadas, inesperadas, fantásticas a exemplo adro do Santuário mineiro do Bom
Jesus de Matosinhos (Congonhas do Campo) que reforça e confere um diferencial na
caracterização do barroco brasileiro no uso do espaço da cidade em prol da
contrarreforma católica como reforço da revitalização da Igreja. Uma obra que não se
limita ao espaço interno com as 66 esculturas de Aleijadinho feitas para os outeiros
dos Passos com Sete Estações e que se completa no exterior, para além da fachada
da igreja, no adro e nas escadarias dispostos em um conjunto que tem a qualidade
plástica da repetição pela temática dos 12 profetas e pela dissolução dessa repetição
nas particularidades de cada escultura (Baeta, 2012, p. 56).

A ocupação do espaço do Santuário de Congonhas do Campo foi comparada por


Germain Bazin, em1963, com o Santuário do Senhor Bom Jesus do Monte que se
localiza na cidade portuguesa de Braga e cujos esboços iniciais datam de 1722 e a
empreita principal da estrutura atual ocorreu de 1784 a 1811, com as escadarias
adaptadas ao terreno acidentado, o adro com estátuas e a capela dos Passos.
Fazendo referência à fatura de Aleijadinho em Congonhas do Campo, Benedito Lima
de Toledo rememora a citação de Bazin e reforça as comparações com Congonhas à
semelhança de Braga, o projeto inicial, datado de 1794, previa uma segunda série de
Passos, os Passos da Ressurreição, a serem erigidos na parte posterior do templo, o
que não se realizou. Para tão grandiosa empreita, Antônio Francisco contou com
concurso de oficiais e auxiliares. (...) Assim entre 1800 e 1805, Antônio Francisco e
seus costumados oficiais realizaram os profetas do adro (Toledo, 2012, p. 249).

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A multiplicidade da dobra barroca portuguesa empreendida em Congonhas do Campo
pelo empreiteiro português Feliciano Mendes se perpetuou no projeto arquitetônico
como conjunto. Entretanto, Antônio Francisco e seus auxiliares, que não foram,
tiveram contato direto com o projeto lusitano, produziram obras que se distanciam
muito de Braga em uma inflexão que pode ser observada nas imagens em
comparação com a disposição dos adros e das esculturas (figuras 1 e 2).

Figura 1. Santuário do Bom Jesus do Monte, Braga, Portugal.

No adro de Braga as esculturas são enfileiradas de modo linear e na verticalidade para


quem as observa ao pé das escadarias, ocorrendo um aniquilamento do plano de
observação individual pelo excesso onde até mesmo os pináculos tem peso visual no
conjunto intencionalmente simétrico, as dobras do planejamento escultórico aparecem
como pedestal barroco e sustentam esculturas com resoluções mais identificáveis com
o equilíbrio escultórico renascentista.

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Figura 2. Santuário Bom Jesus dos Matosinhos, Congonhas do Campo, Minas Gerais.

As esculturas de Aleijadinho no adro do Santuário de Congonhas do Campo são


dispostas com projeção simétrica para os lados: esquerdo e direito, sem a linearidade
do enfileiramento frontal como em Braga. O mestre de Sabará executou um conjunto
cujo apelo não se encontra na suntuosidade e sim nas particularidades e gestos dos
12 profetas com posições de corpo distintas umas das outras e pedestais simples,
com forma quadrada de modo a haver maior concentração na forma plástica de cada
obra, uma proposta mais intimista e uma característica da inflexão que produtora de
singularidades. As dobras barrocas por traços de curvatura e repetição estariam
também presentes pela influência das esculturas de Braga nos detalhes dos turbantes,
cabelos e barbas e pode-se assim dizer que os profetas brasileiros apresentam uma
dependência ainda maior destes trajes das estátuas portuguesas de 1766, originárias
de pinturas flamengas dos quatrocentos, do que das gravuras florentinas de profetas
de cerca de 1470 (Smith, 1973, p. 26).

Em 1977, Geraldo Dutra de Moraes descreve o estilo do Aleijadinho pelas


composições e ornamentos irregulares que se dispõem segundo o princípio
dissimétrico ao mesmo tempo em que traça uma narrativa das semelhanças ou
curvaturas na imaginária, as encantadoras estátuas (...) são facilmente identificáveis

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devido ao maneirismo peculiar do genial escultor: cabeça do tipo morfológico hebreu;
cabelos cacheados; rosto magro; região malar saliente; nariz aquilino, contudo, de
modo antagônico, o autor adverte que tais características não são infalíveis. Às vezes,
coincidem nas obras de discípulos seus e demais escultores do barroco mineiro. Ainda
há que se fazer alusão à inflexão do identitário das obras, à plástica mais contundente
para a singularização das esculturas como as mãos e pés disformes, anatomicamente
imperfeitos, máxime os defeitos estéticos na feitura dos polegares, mais pronunciados
nos metacarpos, resultantes de projeção morfopsicológica (Moraes, 1977, p. 19-20).

Todas as particularidades ou singularidades da efervescência da escola mineira para


fins artísticos e arquitetônicos vêm sendo documentadas pelo IPHAN, desde 1986,
através de análise material direta de esculturas e objetos que fazem parte da
imaginária sacra de Minas Gerais, sobretudo, dos séculos XVIII e XIX. Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira reafirma o reconhecimento do mestre Aleijadinho, mas
descreve um núcleo menos conhecido de escultores, pintores e douradores
produzindo em concomitância e posteriores ao mestre Aleijadinho. O interessante é
que ficaram também mais evidentes as distinções entre o trabalho pessoal do
Aleijadinho e as obras realizadas no âmbito de sua oficina e seguidores, ou seja, a
talha de Aleijadinho tem inflexões que podem ser reconhecidas e atendem às
particularidades de seu identitário barroco uma vez que os objetos produzidos por ele
trazem características únicas que Deleuze caracterizaria como dobras da alma na
alusão de que o que é animado aparece no inanimado e se projeta a partir do ponto de
vista de quem fez e pode ser ou não entendido por quem observa (Oliveira, 2005,
p.24).

As dobras dos espaços internos e as redobras dos espaços externos de


Aleijadinho. Tensão de alto a baixo

Deleuze analisa a arquitetura barroca em consonância com Wölfflin e Jean Rousset


pela coexistência de dois vetores, o dos espaços internos rebuscados e exagerados
em suas dobras e o dos espaços externos e fachadas com tendência a redobra
(intensificada na matéria) mais espontânea e mais calma, concentrada e pontuada; é a
cisão entre a fachada e o dentro, entre o interior e o exterior, a autonomia do interior e
a independência do exterior em tais condições que cada um dos dois termos relança o
outro (Deleuze, 1991, p. 56).

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O conjunto de Congonhas do Campo é o exemplo mais encarnado dos sentidos de
forças vetoriais entre espaços internos e externos na obra de Antônio Francisco Lisboa
e os conflitos de alto a baixo, entre as condições de submissão da matéria ao trabalho
artístico. Sobretudo, porque foi realizado em um período de maturidade artística com o
domínio das técnicas de talha e do apogeu na elaboração visual da arte sacra,
tensionado pelo avanço da doença que tanta dor e deformidade impôs ao artista,
conferindo-lhe o apelido de Aleijadinho.

Observando o adro do Bom Jesus dos Matosinhos e suas 12 esculturas realizadas em


pedra sabão, pode haver o questionamento do porquê da escolha do material.
Certamente que Aleijadinho levou em consideração a fragilidade do estealito mas
mesmo assim, resolveu se valer dele talvez pela abundância da pedra em Minas
Gerais ou pelo fato dela ser mais dócil à talha em condições de força limitada pela
doença, ou seja, um desvio ao desafio da talha em granito ou em mármore, pela
condição de uma desdobra, ou uma manifestação de mudança usual de uma prática
comum, pois que o artista fez a sua escolha determinando uma outra textura ao
Barroco Brasileiro, pelo uso irrestrito de uma pedra mais aplicada aos instrumentos
utilitários do dia a dia; um desvio influenciado pelo local, contudo, pautado na
percepção e capacidade de adaptação de Aleijadinho.

Quanto ao paradigma, como um modelo estético da dobra, pode-se deduzir que


muitos foram os paradigmas do barroco mineiro e que muitos deles se formaram a
partir das talhas de Aleijadinho. A dobra primeira é certamente do artista que buscou
nos modelos lusitanos as suas inspirações criadoras para depois fazer um
entrelaçamento de seu ideário, como a inclusão de elementos escultóricos típicos de
sua criação. Portanto, se pretendemos manter a identidade operatória do Barroco e da
dobra, é preciso mostrar que a dobra permanece limitada nos outros casos e que, no
Barroco, ela conhece uma liberação sem limites, cujas condições são determináveis e
no, caso presente, determináveis pela conjuntura de um artista talentoso em plena
efervescência da dobra barroca (Deleuze, 1991, p. 65).

Como máxima do reconhecimento do legado barroco brasileiro para a humanidade


Germain Bazin descreve que Aleijadinho com seus Profetas de Congonhas do Campo
insuflou no barroco, que por essa época entrava em declínio, uma força primitiva digna
da Idade Média. A observação foi posta para explicar a condecoração que lhe conferia
o autor como o artista que levou refinamento ao estilo original português, um
refinamento conquistado na clareza das formas de imponência simples e ao mesmo
tempo arcaizantes das esculturas dos profetas (Bazin, 1993, p. 239).

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As temáticas emblemáticas dos profetas de Congonhas comungam das leis proféticas
do Antigo Testamento Bíblico com trechos inscritos sob uma cartela portada em cada
uma das figuras; de Isaías a Habacuc pode-se prever tempos dramáticos em que
apenas alguns homens e algumas terras seriam os escolhidos e outros padeceriam
com o mesmo destino das moléstias e dos gafanhotos, em geral, códigos de acesso
para a salvação da alma. John Bury, por exemplo, acreditava que a escolha dos
profetas no lugar usual reservado para a representação dos apóstolos e, quais
profetas Aleijadinho representaria, fora uma questão de afinidade.

As referências aos trabalhos externos de Aleijadinho têm ênfase na inflexão da dobra


barroca pela diferença vetorial da linha no sentido da curvatura barroca, esta última
entendida como as dobras estereotipadas do estilo Barroco. Desde há muito, há
lugares nos quais o que se tem para ver encontra-se dentro: cela, sacristia, cripta,
igreja, teatro, sala de leitura ou de estampas. É por tais lugares que o Barroco se
interessa, para deles extrair a potência e a glória. Pode-se concluir portanto, que as
dobras barrocas mais comentadas e perpetuadas na obra do artista fazem referência
ao refinamento e pormenores das talhas da primeira fase de sua produção; na
sequência, algumas delas serão citadas e comentadas (Deleuze, 1991, p. 54).

Sobre as obras realizadas de, 1770 a 1794, no perímetro das igrejas de Ouro Preto,
São João del Rei e Sabará a abrangência é infinita, pois que as referências históricas
aumentam no sentido da pesquisa, reclassificação de obras sacras do período e
confirmação de novas obras de Aleijadinho, descritas por Myriam Ribeiro de Oliveira e
Adalgisa Campos, em 2010. Apesar da efervescência de seus trabalhos nos anos
indicados, data de 1756, a sua primeira colaboração, em talha, realizada com o grande
escultor português, oriundo de Braga, Francisco de Lima Cerqueira. Aleijadinho foi seu
auxiliar em parte das obras da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no exuberante
frontispício, no coro e no lavabo da sacristia (de 1776). Anterior a este interior imenso
foi o auxílio prestado ao tio Antônio Francisco Pombal na execução da decoração e da
carpintaria da Igreja Matriz Nossa Senhora del Pilar que hoje abriga a imagem de
Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, de autoria de Aleijadinho; há muito
desaparecida, reinserida na Igreja e protegida dentro do Museu del Pilar que fica no
subsolo da igreja.

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Figura 3. Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia. Aleijadinho, primeira fase. Exposta na Matriz Nossa Senhora
del Pilar, Ouro Preto.

No período primário do chamado Barroco Joanino, entre 1725 e 1745, o escultor de


maior destaque foi o lisboeta Francisco Xavier de Brito que executou a maioria dos
retábulos das Igrejas de Ouro Preto, projetadas pelo pai de Aleijadinho, Manuel
Francisco Lisboa, a exemplo da Capela do Padre Faria, da Igreja de Santa Efigênia e
da Matriz de Nossa Senhora del Pilar. As características do joanino-luso-brasileiro são
repetições executadas ostensivamente em dobras barrocas com curvaturas simétricas
para a ocupação total das igrejas em suas capelas-mor e secundárias, forros,
pilastras, coros, dosséis no coroamento e uma incrível quantidade de anjinhos nas
mais variadas posições (Oliveira, 2010, p.33).

Aleijadinho teve sua infância condecorada pelas edificações realizadas por seu pai e
por uma arte sacra de altíssima qualidade escultórica, podendo ser lembradas além
das realizações de Francisco Xavier de Brito, as de José Coelho de Noronha, Felipe
Vieira, Jerônimo Félix e Francisco de Lima Cerqueira.

Certamente, que o convívio direto ou indireto com tantos mestres, enfatizou as


habilidades da profissão e a identificação de Aleijadinho foi de tal forma completa que
ele esboçou uma interiorização perceptível na imagem de Nossa Senhora das Mercês
e Misericórdia, pois nota-se a habilidade para as dobras e o talento nas curvaturas
executadas de forma quase simétrica, entretanto, parece que Aleijadinho resolveu
coroá-la com uma aura de maior espontaneidade e imprimiu inflexões sutis tais como
braços abertos, um ligeiramente mais baixo que o outro, os cabelos que ao invés de

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dobrarem, ou se transporem em curvas simétricas, da esquerda para a direita, se
repetem sem realizar a esperada rotação e sim uma translação. Uma desdobra fica
clara pela ausência de uma dobra literal no planejamento das vestes da virgem e
finalmente, as dobras das nuvens que rodeiam as cabeças de três anjos fazem o
movimento contrário ao dos cabelos, o de rotação. Pontos de vistas diferentes são o
que o artista apreendeu e exprime em sua talha, a matéria orgânica já esboça uma
interiorização, mas relativa, sempre em curso e não acabada. Desse modo, uma dobra
passa pelo vivente, mas para repartir a interioridade absoluta da mônada, como
princípio metafísico de vida, e a exterioridade infinita da matéria, como lei física de
fenômeno. Em uma única imagem pode-se notar as variações das curvaturas na obra
de Aleijadinho, tendência que foi uma constante no barroco brasileiro, pelo uso de
assimetrias ou desdobras de 1750 a 1760 (Deleuze, 1991, p. 55).

Um conjunto artístico e arquitetônico de Aleijadinho considerado dos mais primorosos


e singulares é o da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, realizado entre
1770 e 1790. A influência, entretanto, tem origem no Barroco Alemão com o uso de
elementos pictóricos mesclados aos escultóricos, onde se destacam a projeção da
fachada externa e todo o espaço interno, a partir da entrada na nave principal, o olhar
é orientado diretamente para a capela-mor por um sutil jogo de perspectivas
horizontais, enfatizado pela ondulação das sanefas dos retábulos laterais e pela
disposição oblíqua das paredes e pilastra do arco cruzeiro. A narrativa se completa
justamente no intermédio com a região dos púlpitos que preparam a transição para a
entrada na capela-mor, um dos ambientes mais requintados da arte colonial brasileira
(Oliveira, 2010, p.75-6).

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Figura 4. Interior da Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto.

Os púlpitos de São Francisco de Assis são tão vicejantes que fazem parte do
planejamento descritivo de diversas narrativas que contemplam o arco que se
aproxima de robustos pedestais ornamentados com iguais listéis, formando quadrados
de ângulos mistos. A mistura de cada púlpito, de três faces, começa abaixo por uma
voluta conchoide, em cujas bordas flexuosas se embutiam rosáceas abertas
(PEDROSA, 1940, p. 30).

As explanações acima confirmam que o Barroco em termos arquitetônicos se estrutura


em parâmetros de conveniência ou adequação à função da edificação com as
temáticas religiosas adaptadas e harmonizadas em infinitas dobras interiores que se
desdobram de modo sucinto, mas eloquente na fachada externa. Noções
arquitetônicas herdadas desde as preceptivas de Vitrúvio, com simplificações e
adaptações consumadas pelo Barroco Europeu e, não obstante, pelo Barroco
Brasileiro. Antônio Francisco Lisboa foi o responsável pela aplicação destas
preceptivas tão ilustres e caras à humanidade e, por este motivo, tem as dobras de
sua criação expostas em carne viva, pois que a dobra já não é a da matéria através da
qual se vê, mas é a da alma na qual se le, dobras amarelas do pensamento, o Livro ou
a mônada de múltiplas folhas. Eis que ele contém todas as dobras, pois a
combinatória de suas folhas é infinita, mas ele as inclui em sua clausura e todas as
suas ações são internas. E a dobra, que é por vezes a da alma, pode ser vista como a
dos objetos inanimados, todavia não são dois mundos (...). De um lado, há todas

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essas dobras de matéria de acordo com os quais os viventes são vistos ao
microscópio. (Deleuze, 1991, p. 59-60).

A frente de busca por uma identidade brasileira, digna de contos fantásticos, foi
reaberta pelo modernismo brasileiro que não vacilou em vasculhar a obra de Antônio
Francisco Lisboa e de lhe conclamar uma herança barroca como marco fundamental
de renovação e redescoberta do Brasil para os modernistas paulistas. As curvaturas e
algumas tessituras da dobra barroca foram adotadas, portanto, como bandeira
paradigmática da febre modernista (KHOURI, 2005, p. 250).

Aleijadinho por ter sido um vivente de extraordinária sensibilidade artística e por ter
descoberto que o Barroco poderia se dobrar a pormenores quase microscópicos,
compôs o drama do espírito barroco nas artes sacras brasileiras do século XVIII de
maneira generosa e multiplicadora, pois suas dobras têm sido imitadas, colecionadas,
desejadas, reproduzidas, “redescobertas” pelos modernistas, catalogadas e estudadas
há 200 anos.

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Referências

Livros
BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: EDUFBA, 2012.
BAZIN, Germain. Barroco e Rococó. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, 1991.
COELHO, Beatriz (org.); OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Devoção e arte: imaginária
religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2005.
DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.

MORAES, Geraldo Dutra de. O Aleijadinho de Vila Rica. São Paulo: CRF-8, 1977.

MUSSET, Alfred. Poésies posthumes. Paris: Charpentier - L. Hebert, 1888.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Barroco e Rococó nas
igrejas de Ouro Preto e Mariana. Brasília: IPHAN, 2010.

PASSOS, Zoroastro Vianna. Aleijadinho, pintor? Belo Horizonte: Gráfica Queiroz Breyner,
1941.

PEDROSA, Heitor. O Aleijadinho. A vida intensa e a desventura. São Paulo: Editora São
Paulo, 1940.

SMITH, Robert. Congonhas do Campo. Rio de Janeiro: Agir, 1973.

TIRAPELI, Percival (org.); KHOURI, Omar. Arte sacra: barroco memória viva. São Paulo:
UNESP, 2005.

TOLEDO, Benedito Lima de. Esplendor Barroco Luso-Brasileiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2012.

Internet

Santuário do Bom Jesus do Monte, Braga, Portugal. Disponível em:


<http://www.skyscrapercity.com>Acesso em: 10 Out. 2014.

Santuário do Bom Jesus dos Matosinhos. <http://www.revistasagarana.com.br/?p=600> Acesso


em: 07 Out. 2014.

Imagem de Nossa Senhora das Mercês. <http://cscjemouropreto.blogspot.com.br/> Acesso em:


10 Out. 2014.

Capela-mor da Igreja de São Francisco de


Assis.<http://programadeviagem.com.br/imagens_cidades/dicas-ouro-preto.html> Acesso em:
12 Out. 2014.

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