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O LUGAR DA ARQUITETURA
DEPOIS DOS MODERNOS
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SUMÁRIO
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
PARTEI
Arquitetura Simulada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Margens da Arquitetura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
PARTE II
A Ideologia do "Lugar Público" na Arquitetura Contemporânea
(Um Roteiro) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Os Dois Lados da ArqÚitetura Francesa Pós-Beaubourg. ............... 157
APÊNDICES
Paris Pós-P.O.S. 89, ou as Novas Fachadas Crbanas 217
Os :'.\ovos Museus ................................................................................... 231
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INTRODUÇAO
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Raras vezes a reflexão sobre a arte e a cultura ocupou um lugar
de tamanho relevo na cena contemporânea. Uma reviravolta que aca-
bou trazendo a arquitetura para o primeiro plano. Hoje ela escapa do
magro domínio dos especialistas, oferecendo um ponto de vista indis-
pensável na apreciação do mundo atual. Não surpreende então que
integre o conjunto das questões mais polêmicas do debate contem-
porâneo, inclusive filosófico. Quanto a este último, é preciso reconhe-
cer que bem ou mal alargou o elenco tradicional dos seus temas, che-
gando mesmo a incorporar alguns aspectos da cultura viva do tempo.
Não deve ser por acaso que num momento de mudança geral de pa-
radigmas se volte justamente para a arquitetura.
É verdade que o traço mais saliente da nova era cultural é a pre-
sença avassaladora dos mídia, mas é justamente daí que decorre a po-
sição central da arquitetura - ao mesmo tempo protagonista e sinto-
ma do processo. Por certo numa medida bem mais modesta, se com-
parada à espetacularidade do assim chamado "efeito televisão" da mídia
,: : mada$ no seu conjunto, mas possivelmente mais profunda e por isso
esmo despercebida, quando entrevista do ângulo da constituição de
2.se do cenário metropolitano - lugar por excelência da atenção flu-
nrante, como a do telespectador. É na metrópole que se forma a disci-
Introdução
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Finalmente , uma questão da maior relevância em todo esse deba- 13
te, mas onde o problema assume conotações especiais: "Os Novos Mu-
seus" - ou seja, a criação de lugares públicos que não passam de
cenários para uma sociabilidade fictícia e, por isso mesmo, expressão
eloqüente do atual processo de estetização do social, complem entar à de-
sestetização da arte rebaixada à cultura de massa. T rata-se de uma
comunicação apresentada no curso "Memória e Identidade - Museus
Contemporâneos, Espaços Culturais e Política Cultural", por ocasião
da mostra sobre "Novas Construções de Museus na República Federal
da Alemanha" - organizado pelo Institu to Goethe e MAC-USP em ju-
nho de 1991 - e publicada em Novos Estudos, n. 31 (pp. 161 a 169).
Salvo engano, os textos reunidos neste volume formam um con-
junto com unidade própria. E não se trata apenas de uma fisionomia
familiar onde se reconhece a persistência de um ponto de vista. Creio
que oferecem um quadro suficientemente abrangente do que vem
ocorrendo nos dias de hoje com a arquitetura, portanto, ao mesmo
tempo um resumo da atualidade mais próxima e uma reconstituição
de sua linha evolutiva. Urna evolução problemática, aliás, da qual é
reflexo o difícil ajustamento do referido ponto de vista qo autor, pois
não é raro, o mundo do capital sendo aquilo que se sabe, uma tendên-
cia crítica transformar-se no seu contrário no momento de cumprir o
prometido. Assim, a conclusão do primeiro estudo acompanha uma
alegação de época de fato promissora, a saber, que uma "arquitetura
do lugar" como o contextualismo crítico (ou regionalismo crítico, co-
mo quer Kenneth Frampton e discuto mais à distância no trabalho se-
guinte) deveria ser encarada como uma forma de resistência ao for-
malismo extremado da arquitetura pós-moderna em todas as suas va-
riantes - revivalismos, hígh tech, "frívola" , new modem etc. Nas análises
subseqüentes procuro ressaltar o enfraquecimento progressivo desse
programa de resistência. Na medida mesma em que se realiza vai ce-
dendo terreno aos imperativos sistêmicos, fenômeno particularmente
visível numa certa estetização da diversidade enquanto tal, graças à
qual uma espécie de "aura" de segunda mão parece forçar o seu re-
torno. Não se pode contudo dizer que o ideário do "lugar" tenha sido
?:Jra e simplesmente desfigurado ao ser encampado pela arquitetura
: =.: ial, que por sua vez, e seguindo sua própria lógica interna, tenni-
::: :r por assumir um caráter ostensivamente midiá tíco. A.o contrário,
: -:.::i .:: se passa como se o projeto oficial de restaura; ã àcs espaços de
· .-:da pública tenha se encarregado de apressar o er:ve:::ecimento pre-
lr.trodução
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14 coce daquele pensamento arquitetônico de oposição. O mesmo des-
mentido na hora de sua confirmação também se verifica quando opa-
trocínio passa do Estado para o Capital em pessoa, que se arvora em
produtor direto dos espaços urbanos, em promotor da utopia da Forest
of software. Em nenhum lugar essa reversão é tão enfática como na ar-
quitetura francesa contemporânea, à qual, por isso mesmo, dediquei
mais de uma análise.
Estabelecido esse quadro unitário, imagino que não faltarão ele-
mentos que permitam compreender o papel central que a arquitetura
desempenha atualmente no campo de forças mais amplo da luta social
e seu comentário cultural. Desse panorama destaca-se enfim, encer-
rando o argumento, o fenômeno, ainda pouco estudado, da substi-
tuição da política em refluxo pela cultura administrada: ora, o fato
novo é particularmente visível na inclusão da arquitetura urbana (pa-
trimônio, grandes equipamentos públicos, casas de cultura, novos mu-
seus) no repertório estratégico das políticas culturais.
São basicamente trabalhos de crítica da ideologia arquitetônica,
onde são estudadas conjuntamente obras, tendências e teorias que
reagem às conseqüências desta grande reversão do Projeto Moderno,
concebida como uma "dialética da razão arquitetônica", procurando
ver nelas o ponto problemático do encontro entre dimensão estética e
impasse social. Penso que são trabalhos de crítica da arquitetura que
procuram evitar os equívocos simétricos do formalismo estetizante e
do juízo simplesmente técnico. Dito isso, estou ciente de ter armado
apenas um dos lad os, o inter nacional, da equação : o problema só es-
tará completo quando abordar o envelhecimento (e seus corolários)
do Movimento Moderno na periferia, de cuja modernização inter-
rompida foi o comentário cultural mais acabado.
PARTE 1
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ARQUITETURA SIMULADA
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Arquitetl,ra Simulada
20 chamada realidade evaporou a golpes de estilização hiper-realista,
que numa sociedade do espetáculo (embora nela nada se represente) a
cópia é superior ao original, que tal eclipse se deve a uma avalanche
de imagens sem referência, que não há portanto informação propria-
mente dita, sendo a comunicação mera simulação etc. Não direi que
não, sobretudo quanto aos efeitos de desaparecimento do mundo que
uma tal saturação acarreta.. Lembraria apenas - e a ressalva não é so-
mente de ordem terminológica, como a seu tempo se verá - que essa
tão celebrada (para bem e para mal) onipresença do simulacro
também pode ser uma miragem que, ao consagrar o triunfo da pura
visibilidade, na verdade arremata uma escravização do olhar à hiper-
realidade imagética de caráter eminentemente tátil. E mais, diria que
reside precisamente nesta dominância do tátil, na esfera mesma do
ótico, a marca registrada da cultura de massa. Logo adiante esclareço
a origem e o contexto dessa conceituação que, entre outras coisas,
permite reconhecer na arquitetura o arquétipo da arte de massa.
Ora, o conjunto de obras e tendências projetuais de que pretendo
falar, não por acaso, é responsável pela credibilidade daqueles convi-
tes recorrentes à viagem pela hiper-realidade cotidiana, de uma ma-
neira possivelmente menos avassaladora do que a televisão, o cinema
e demais artes do vídeo, porém igualmente enfática. Duplamente res-
ponsável, aliás, pois afinal o palco dessa irrealidade experimentada
pelos contemporâneos é a própria cidade. É na metrópole moderna
que se dá essa disciplina tátil do olhar, é na arquitetura da cidade que
se encontra a matriz dessa civilização do simulacro. Não falarei pois
de uma arte qualquer, mas de um campo de forças técnicas e artísticas
de tal modo dispostas que nele germina o embrião daquele mundo de
faz-de-conta no qual se exprime, segundo Jameson, a lógica cultural
do capitalismo avançado.
Arquitetura Simulada
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Aldo Rossi
Pórtico de entrada à J Bienal
de Arquitetura, Veneza, 1980.
À direita:
Desenho com farol e Teatro do Mundo.
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Arquitetu ra Simulada
28 das-quais dependia o futw:o-4.a-.arte--às-:relft§-ões--sociais de !*" º
organi-zadas._.pel.o -SmQ. - então já --ml:ldava-de pe-l@, deixando
-aminho..as-p.romessas de seus -t-e-mpos--he:r-éiees. Todavia, a inde-
finição da hora, a incerteza quanto à direção em que se resolveriam
as tensões daquele campo de forças, ainda autorizava o livre curso
das extrapolações do período anterior (das primeiras vanguardas
históricas).
É justamente o triunfo dessa dominância tátil na cultura da socie-
dade de consumo atual, uma cultura saturada de imagens e dígitos,
que pretendo analisar através da evolução de conjunto da arquitetura
mais recente. E se principiei recorrendo às sugestões de Benjamin,
também foi para melhor marcar o rumo divergente de tal evolução e
o moment o em que me afasto dele na avaliação dos resultados da ge-
neralização do modelo que acabamos de reconstituir. Não é por acaso
que a arquitetura ocupa o primeiro plano nas discussões sobre a pós-
modernidade. E também me parece estratégico começar pelo
acontecimento público em que, expostas com espalhafato, essas novas
tend ências projetuais abalaram a indiferença com qu e habitualmente
a arquitetura é acolhida. Refiro-me à dos críticos, pois o grande públi-
co parece ter se divertido bastante - o que normalment e ocorre em
mostras similares -, como se estivesse num parque de diversões. É
possível, porém, que tenha se divertido num sentido bem diferente do
imaginado por Benjamin, mais próximo, quem sabe, do espírito de-
nunciado por Adorno em carta a este último acerca da "teoria da dis-
tração", lembrando, como um mau presságio, que o riso dos freqüen-
tadores de cinema é tudo menos bom e revolucionário .
Uma Rua-Manifesto
A. rquitetura Simulada,
Grinberg, fachada na S.N.
Abaixo:
Ch. Moore, Piazza d'ltalia
Nova Orleans, 1979.
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Bofill, Teatro d 'Ab raxas' Mame-la-Vai!e'e, 1982
Arquitetur a Simulada
42 sica quanto uma lembrança local (segundo ele mesmo assinala, um re-
curso muito usado por Sullivan em alguns de seus prédios da região
bancária de Chicago), vê-se reduzido ali à sua função simbólica, ape-
nas desenhado sobre o quadrado que marca a entrada, onde nova-
mente um deslocamento se processa, com vistas a desmentir a harmo-
nia clássica, com a porta colocada à direita e um tanto recuada em
relação à fachada, que vai assim se transformando num "signo neutro
e liberado" Gustifica-se o arquiteto). Se as janelas obedecem eín ge-
ral à variedade dos espaços internos, as da fachada principal, entre- tanto,
estão subordinadas antes de tudo a um equilíbrio peculiar, pois não é
resolvido pela simetria convencional, mas por um balanceamen- to entre
a longa janela horizontal da direita e o peso da janela maior à
esquerda, tanto quanto pela equivalência numérica: cinco quadra- dos
iguais de cada lado, porém distribuídos de forma desigual. As outras
fachadas são mais livres - "complexas e contraditórias" - al- ternando as
diagonais dos telhados, as horizontais dos balcões ou de- senhadas nas
paredes, os arcos (ora apenas formas, ora janelas), pla- nos e volumes
variados, trompe-l'oeil em profusão, paredes que se prolongam para
além do corpo da casa, e assim por diante. O mes- mo se dá
internamente, onde linhas, planos e espaços se contrariam e
equilibram, multiplicando a diversidade, pelos efeitos de luz e som- bra.
Colada às sugestões de Las Vegas, a arquitetura "inclusiva" da
década seguinte abandonará em larga medida essa lição de sobriedade
inventiva. Há quem diga em sua defesa que o ecumenismo desse gesto
abrangente não é puro reviva[, é antes urna releitura por assim dizer ao
quadrado do passado - não da sua versão erudita original, mas da
tradução kitsch (veja-se o Hotel de Venturi para Atlanta) que a socie-
dade de consumo (mais uma vez) foi sobrepondo àquela camada pri-
mitiva. Seja como for, não há arquitetura mais up-to-date do que essa
outra de Ventur i, embora pague por isso o preço elevado de toda in-
tegração: o desinteresse crescente.
Se o primeiro Ventur i ainda faz pensar, os desmandos do último
(ou do segundo - talvez ele já esteja numa outra fase, quem sabe, de
síntese) pedem um contraponto que apenas posso evocar na forma de
algumas idéias programáticas muito genéricas, concretizadas num úl-
timo exemplo, colhido na mesma mostra polêmica, cujo percurso en-
cerro aqui, embora não tenhamos nos detido diante de todas as facha-
das. T rata-se de uma arquitetura onde a significação não foi abando-
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Arquitetura Obscena
Arquitetura Simulada
48 um projétil pilotado por um demiurgo embriagado por velocidade,
propriedade e poder, tem-se uma cápsula sobre rodas dirigida por um
computador, enquanto a paisagem à volta vai se sucedendo como as
imagens no vídeo de uma televisão. Voltando à metáfora teatral, Bau-
drillard anuncia o fim da idade do espetáculo: este não subsiste sem a
separação entre o segredo da intimidade doméstica e o espaço público
do consumo significativo; ou melhor, enquanto sobrevive tal distância,
que é a da alienação, há o espetáculo - alguma ação em cena. Não é
mais o caso, como o demonstra o universo devassado pelo "efeito tele-
visão". À luz inexorável, irradiante da pequena tela - que passa por
informação - nada de obscuro ou reprimido permanece sobre a vasta
cena doméstica do mundo, que por seu turno desaparece por excesso
de iluminação. Não há mais espetáculo, não mais cena - e, portanto,
promessa de significação -, quando tudo se torna absolutamente pró-
ximo, como no close glacial de um filme pornô. Essa tal promiscuidade
com as coisas não é nem mais do domínio do olhar. Voltando a 'Walter
Benjamin, seria o caso de acrescentar que a chave da promiscuidade
assim entendida é tátil. Vemos agora no que se converteu, para pior, a
confiança depositada por ele na predominância do tátil na cultura
moderna. A "tatilidade" beira aqui a cegueira: incapacidade total para
qualquer forma de distanciamento, completa imersão no objeto e anu-
lação de qualquer diferença do sujeito. No limite, diz Baudrillard, é
aquilo que não pode ser visto, porque "está votado nu, sem segredo, à
devoração imediata". Hipervisão de uma hiper-realidade. Nisto con-
sistiria o obsceno - obliteração da cena. Daí o trocadilho que me inte-
ressava: uma paisagem (antes de tudo metropolitana) obscena (ob-ce-
na). Portanto, uma obscenidade que não tem mais nada a ver com o
jogo de esconde-esconde da libido e do recalque, mas que exprime
justamente o contrário: a extroversão do consumo explícito, da expo-
sição plena, que cega, ao invés de seduzir. A obscenidade é o reino
chapado da superficie.
De minha parte, estou procurando mostrar em que sentido a ar-
quitetura é igualmente protagonista e sintoma desse processo, e não
só nos termos em que o analisa um dos seus teóricos mais em vista.
Como já disse, numa medida bem mais modesta, quando comparada à
"espetacularidade" do "efeito televisão" da mídia, mas possivelmente
mais profunda, e por isso mesmo despercebida, quando entrevista do
ângulo da constituição de base do cenário metropolitano - lugar por
excelência da atenção flutuante, como a do telespectador, diante de
Arquitetura Simulada
52 com o passado e principia a mera atualização. Para bem ou para mal,
a arquitetura obscena se encontra como um peixe dentro d'água em pleno
centro nevrálgico do atual estado de coisas. Mas, se ela evolui aí com
tanta desenvoltura, isto não significa que não tenha antepassados.
Não há como negar um certo formalismo, exasperado mesmo em
alguns casos, das novas tendências arquitetônicas. De fato, o caráter
fragmentário, aleatório e seguidamente passadista delas, embora ex-
tremado, é uma conseqüência natural do esvaziamento progressivo do
Estilo Internacional, que ia perdendo qualquer sentido à medida que
passava da prancheta para o campo de forças de uma sociedade super-
lativamente enquadrada pelo capitalismo, desfazendo assim antigas
ambições de ordenação abstrata da cidade. Por outro lado, também é
fato que a tentação formalista sempre acompanhou o Movimento Mo-
derno. Os historiadores ou os próprios pioneiros tentam desculpá-la,
ora alegando um equívoco - a Arquitetura Moderna não é um estilo a
mais -, ora a necessidade de o projeto comentar-se a si mesmo para
efeito de demonstração didática etc. Não é bem assim. Confiemos na
clarividência de um Mies van der Rohe, sem acompanhá-lo na capitu-
lação. A certa altura de seu estudo sobre as relações entre .Arte de
Vanguarda e Tecnologia, G. Pasqualotto, referindo-se à arquitetura
de vidro de _Mies, afirma que a opção deste pelo silêncio representa a
aceitação da integração como destino. O que é verdade, mas não toda.
Ao abandonar de vez a crença em qualquer possibilidade objetiva de
intervenção, Mies van der Rohe simplesmente tira uma conclusão
própria do desfecho de um processo que teimava em não cumprir
suas promessas - algo como uma dialética da racionalidade arquitetônica.
Em poucas palavras: os planos de redenção social através da orde-
nação do espaço habitado (casa/cidade), que desde sua origem a Arqui-
tetura Moderna acalentava como a antevisão de uma nova era, resu l-
tariam finalmente no seu exato contrário e, mais par ticula r mente, no
formalismo integral das soluções padroniiadas pela produção indus-
trial. O formalismo não é portanto uma aberração passageira ou
mesmo um desvio constitutivo (porém um desvio), pois nele aflora
uma marca de nascença, um vício de origem, que alcançou a maturi-
dade (por isso discordo dos que tentam salvar o discurso original con-
tra a história subseqüente, em nome de um "projeto inconcluso" da
Modernidade).
Não seria, portanto, a arquitetura dita pós-moderna, em seu
formalismo extremado, o prolongamento natural daquele desdobra-
Refarma e Utopia
Arquitetura Simulada
54 trc-guerras vinha multiplicando. Uma alternativa, portanto, à revo-
1ução e não à sociedade convulsionada que emergira de uma guerra
imperialista. Por essa via, contudo, reformulava-se a sociedade muito
mais num plano formal do que intrínseco. Assim, aderindo ao plano
Dowes de reconstrução da Alemanha e produzindo para as grandes
empresas do país, chegando mesmo a transferir-se para Dessau devido
à proximidade de um importante complexo industrial, a Bauhaus
também corria pelo mesmo trilho. Inútil lembrar que não se apoiava
em qualquer forma de poder constituído e a qualquer preço - não por
acaso os nazistas fecharam a Bauhaus. É bem verdade que na Itália
muitos arquitetos modernos se deixaram cooptar (não se há de esque-
cer que o país se modernizava, só que pela via conservadora), chegan-
do a propor um programa de arquitetura moderna para o Estado fas-
cista (sem muito êxito, aliás, visto que os grandes arquitetos oficiais
eram antimodernistas). Numa palavra, os arquitetos modernos, como
uma grande parte da inteligência de esquerda, apostavam na evolução
positiva do capitalismo europeu, num momento em que a catástrofe
estava batendo à porta. Assim nasceu a Carta de Atenas, o mais famoso
manifesto do Movimento Moderno. No mesmo ano em que os nazistas
tomavam o poder na Alemanha, arquitetos do mundo inteiro se reu-
niam num cruzeiro no Mediterrâneo para estabelecer em linhas ge-
rais os princípios que deveriam nortear uma cidade moderna. Redigi-
da por Le Corbusier, a carta, publicada somente dez anos depois, em
plena guerra, registrava um desencontro patético: o fim de linha da
barbárie nazista começava afinal a r evelar a verd ad eira face da ordem
capitalista, enquanto isso, a arquitetura pretendia reconduzir o capita-
lismo para o bom caminho, através de urna reordenação que o traçado
regulador da cidade deveria tornar visível. A abstração de tal progra-
ma era, entre outras coisas, indício do alheamento (considerando que
a maior parte dos arquitetos modernos era, sem dúvida, bem inten-
cionada) de in telectuais confin ados. De outro lado, esse irrealismo traz
à tona a outra dimensão da nova arquitetura: um certo radicalismo
que, se não contra ria inteiramente suas intenções reformistas, empres-
ta-lhes uma maior abrangência. É que o Movim en to Moderno
também é filho da Utopia - se bem que de uma utopia da civilização
maquinista, atrelada a todas as aporias do progresso técnico.
É preciso lembrar que essa radicalidade era a de todas as van-
guardas históricas. Como estas, a arquitetura acreditava pressagiar
dias melhores para a humanidade, e isso com tanto mais razão quanto
Arquitetura Simulada
56 Torno a repetir que uma condenação global da modernidade ar-
quitetônica não faz sentido, como também não, buscar ingenuamente
circunstâncias atenuantes (ideais traídos, degradação ideológica, recu-
peração pelo "sistema", erro categorial quanto à idéia de "função"
etc.). Ao contrário, o que importa é discernir, na evolução de conjunto
da arquitetura moderna, os elementos de um processo que acabou por
ultrapassá-lo - de um sistema de ilusões e compromissos, que são a
marca de nascença da ideologia. Alinhei brevemente alguns deles.
Lembro que os teóricos da Escola de Veneza (1fanfredo Tafuri, Fran-
cesco dal Co, Massimo Cacciari) vêm analisando exaustivamente o co-
lapso da ideologia arquitetônica do plano, da qual o fovimento Moderno
é a expressão triunfal - crise patente desde o último pós-guerra.
Quando observam que a arquitetura-plano tornou-se programação e
reorganização da produção edilícia da cidade como organismo produ-
tivo integrado, tomam o cuidado de acrescentar que a Arquitetura
Moderna já surgira com tais características. "A arquitetura, ligada lite-
ralmente à realidade produtiva", conclui Tafuri, "não só é a primeira
a aceitar com rigorosa lucidez as conseqüências de sua já realizada
mercantilização: partindo dos seus próprios problemas específicos, a
arquitetura moderna em seu conjunto está em condições de elaborar,
já antes que os mecanismos e as teorias da economia política facilite m
os instrumentos de atuação, um clima ideológico que integra eficaz-
mente o design a todos os níveis de intervenção, em um projeto objeti-
vamente destinado a reorganizar a produção, a distribuição e o con-
sumo do capital, na cidade do capital."
Arquitetura Simulada
58 Era tão aguçada a consciencia que tinha Benjamin do que nos
reservava o empobrecimento moderno da experiência, que a certa
altura chega a antecipar a indiferença sem perspectiva da cultura
do simulacro (da arquitetura do vidro aos filmes de Mickey Mouse):
"uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio [...1,
na qual um automóvel não pesa mais do que um chapéu de palha, e
uma fruta de árvore se arredonda como a gôndola de um balão".
Mas não era para lamentar o impulso dado pela nova arquitetura
àquele encurtamento da experiência: uma arquitetura sem "aura",
do vidro e do aço, anulando os espaços interiores e arrastando o
indivíduo para a extroversão e massificação, cumpria o programa bre-
chtiano de "apagar os rastros". Conseqüentemente, ele esperava
que os habitantes dessa cidade de aço e vidro, em que não há mais di-
ferença entre interior e exterior, desejosos de subtrair-se a toda ex-
periência, viessem "a ostentar tão claramente sua pobreza externa e
interna, que algo de decente pode resultar disso". Nesse contexto
adverso, contudo, ele não pode deixar de ressaltar a outra face da
extinção da "aura": o choque, ao impedir o olho de se fixar numa
imagem (como nas seqüências cinematográficas), como que consagra
uma espécie de campo visual coercitivo de predominância absoluta
do tátil. Essa é a pista por onde correrá a imagem arquitetônica à
medida que a diversidade e a agitação da metrópole - como numa li-
nha de montagem - for cedendo o passo ao elementarismo e à ordem
do plano.
Se de um lado as formas simples ou as formas-tipo permitem, pe-
la sua reprodutibilidade técnica, a recepção distraída que depara-
mos na origem do fato arquitetônico, de outro, como mostra Pas-
qualotto, alcançamos um tal ponto de inflexão que tais formas ele-
mentares, graças ao tipo de reprodução que consentem, tornaram-se
objeto de consumo massificado. É esta lógica que governa o ele-
mentarismo programático das formas simples, do produto em série,
estandardizado, das fachadas homogêneas, das aberturas padroni-
zadas, dos módulos, da moradia mínima, dos modelos, tipos e in-
var iantes , que se harmonizam no novo panorama urbano. Obedecen-
do aos princípios de montagem, estas células que se ordenam num
todo urbano vão se ajustando segundo leis e ritmos da lógica do
consumo de massa. Não surpreende então que, ao término desse pro-
cesso, as imagens arqu itetônicas funcionem como imagens publici-
tárias.
Arquitetura Simulada
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Ron Herron (Arch igram ), projeto para uma Walking Círy, 1964.
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Arquitetura Simulada
62 virtual, nesse mundo do qual a dimensão significante da alteridade foi
banida; numa palavra, não está escrito que estamos fatalmente conde-
nados a este único lado do espelho. Voltarei ao assunto.
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64 de aniquilar de saída o ritual que ei:n princípio estaria sendo celebra-
do no interior - o Beaubourg-carcaça proclama o que o Beaubourg-
museu quer esconder, entre outras coisas, que a cultura contemporâ-
nea é também da ordem do cracking. De outro lado, a falência provo-
cada por uma tal discrepância tornaria sem sentido qualquer proposta
de um novo conteúdo. Não há nada a colocar no interior do Beau-
bourg (nem mesmo o vazio sobrecarregado de sentido da anticultura),
ou então, num esforço de harmonizar interior e exterior, algo como
um labirinto, uma biblioteca borgeana, um laboratório de ficção prá-
tica etc., numa consagração de toda parafernália cultural pós-moder-
na. Afastemo-nos um pouco da direção que vai assumindo o efeito
Beaubourg, que, apesar das intenções do autor, não consegue esconder,
no terrorismo alardeado, suas raízes: o antigo pathos da provocação de
vanguarda. Esse Centro inventado por Pompidou estaria aí, segundo
Baudrillard, a convidar as massas não para celebrar mas para enterrar
de vez uma cultura que sempre detestaram, e, em sua fragilidade, o
Beaubourg representaria um apelo à autodestruição pelo peso em ex-
cesso dos freqüentadores que acorreriam em massa, sendo implodido
(FAITES PLIER BEAUBOURG!). Preferimos mantê-lo em pé com todas
as suas contradições - justamente o que o torna paradigmático.
O extraordinário suc sso de público do Beaubourg - arquitetura
e centro cultural - deveria mesmo dar o que pensar. Ainda mais
quando estudado do ângulo dos esquemas mobilizados até aqui para
entender o destino da arquitetura moderna no mundo de hoje. Não
há dúvida de que boa parte dessa acolhida se deve à fisionomia parti-
cularmente convidativa do objeto arquitetônico que se plantou no co-
ração do Marais e hoje se incorporou à imagem da cidade com os
mesmos direitos de uma Torre Eiffel. Isca "obscena"? Vamos por par-
tes. Evidentemente não seria preciso esperar tanto tempo para pôr à
prova a teoria de '\\!alter Benjamin de que nos servimos para enten-
. der o molde arquitetônico da arte antiaurática; de qualquer modo,
nas tubulações simuladas do Beaubourg, a predominância do tátil so-
bre o ótico também parece não ter cumprido o que prometia - o pri-
mado da recepção coletiva. O rush que ali se verifica diariamente pou-
co tem a ver com o que anunciava Benjamin, apesar do aspecto ani-
mador de pequenas multidões de usuários que se divertem com uma
desenvoltura própria de espíritos despertos. Não esqueçamos que a
confiança de Benjamin na reprodução técnica dependia da força so-
cial inerente à generalização do comportamento "esclarecido". Ora,
Arquitetura Frívola
Arquitetura Simulada
Ei, enman , esquemas de "decomposição" da Casa kf .
•••
••
••
••• Eíscnm a n, Casa Ili .
Abai.xo: esquema de
··decomposição" para a Casa Ili.
68 to, ao qualificar assim a arquitetura - mas nessa acepção precisa e
enobrecedora, em que o "fútil" (ainda Derrida) assume proporções
metafisicas - o faz na exata medida em que ela não pretende repre-
sentar nada, comentar coisa alguma além de funcionar (por assim di-
zer) como signo de si própria. Pode-se pois tomá-la como um caso de
arquitetura "dissuasiva", embora com resultados bem diversos; ou
ainda, dentro da mesma rede terminológica, "operacional", embora
não computadorizável, pois agora o caráter aleatório da operação é
absoluto. As formas se compõem e recompõem através de seus múlti-
plos desenhos, que não são propriamente projetos, nem visam obriga-
toriamente qualquer construção - as configurações que vão se reali-
zando têm neste jogo combinatório infinito sua única finalidade. Tra-
ta-se de uma arquitetura derramada no poço sem fundo da autonomia
formal, como disse Tafuri. Uma negação sem transgressão, simples-
mente a frivolidade assumida de quem deu as costas para a cinzenta
positividade do mundo. Eisenman chega a afirmar - citando Baudril-
lard - que, assim como a simulação tornou-se tão onipotente que a
realidade a segue, sua arquitetura igualmente se limita a <li-simular,
sem fazer ou propor coisa alguma de real.
Ele define o seu fazer como um processo contínuo de descons-
trução ou de decomposição. Como, apesar de tudo, se trata ainda de ar-
quitetura, são idéias no mínimo curiosas. Diante delas, até mesmo
Derrida se vê obrigado a observar que a arquitetura aparentemente é
"a arte que mais resiste ao que se chamaria desestabilização ou des-
construção, porque dentre todas as artes é a mais solidamente funda-
da nos valores da presença, da origem, da teleologia, da finalização
etc.". Quando se fala em desconstrução, recorda, já não mais se trata
de arquitetura. Ou então, a desconstrução visada é um tanto sui gene-
ris, pois não pode nunca ser inteiramente negativa, "mas produtiva se
alguma coisa que concerne a formas, escalas, itinerários, traçados". Ao
se fazer arquitetura inevitavelmente tem-se que passar - diz Derrida,
num surpreendente acesso de realismo - do nível do discurso sem
amarras, para a dura realidade da pedra, da economia, da política, da
cultura. Eisenman sabe evidentemente do que se trata, pois afinal
também constrói, e o que ele constrói também pode ser utilizado, ha-
bitado etc. Mas, quando fala, dá a impressão que gostaria mesmo de
ficar deste lado do espelho, aquém do fato bruto, "trazer a arquitetura
ao seu grau zero".
Em 1970 publicou "Notas sobre uma Arquitetura Conceituai" que
correspondiam a pontos numerados e distribuídos ao acaso numa fo-
Arquitetura Simulada
70 espaço (de tal forma enfatizada que parece ideada expressamente para
contrariar os movimentos naturais do indivíduo e a "racionalidade"
de seus deslocamentos), graças ao inevitável dépaysement que provoca
(como reparou Tafur i), não deixa de exercer uma pedagogia perversa
para uso de alguns poucos eleitos, obrigando-os a rever seus parâme-
tros e mudar sua percepção espacial, tanto quanto seus hábitos. Mas
tal adaptação é na verdade uma elevação consagradora - Eisenman é
o primeiro a reconhecer o elitismo de suas pro postas, ao avaliar a
distância delas do entorno habitual. Daí a ressalva de Tafuri, nem
sempre afinado com o "elegante purismo" de Eisenman: as estruturas
herméticas dele tenderiam para uma compre ensão alternativa. Na
aristocrática reserva dessas estrutura s, se espelharia, na verdade, me-
nos a comunicação interrompida do que uma guerra intransigente à
banalização da linguagem arquitetôn ica. Eisenman pro testou contr a
tal interpretação ideológica generosa: não quer, diz ele, transformar o
mundo, acha que o arquiteto enquanto tal não deve ter programa
político, nem que se mudem os rumos da cultura por meios dessa or-
dem, mas concede entretanto que pequenas modificações individuais
de percepção, como as que suas casas podem provocar, acabam levan-
do a uma compreensão diferente do ambiente de tal sorte que podem
vir a ter efeitos coletivos.
Pelo menos duas dúvidas. A primeira, na direção em que a revis-
ta AMC o interpelou, perguntando se a anulação do sentido em pro-
veito de estruturas puramente formais no processo d o design não esta-
ria alinhada com alguns dos princípios imperativos da ideologia do-
minant e. Eisenman respond eu irritado que sua atividade projetual
consistia justamente em arrancar os objetos arquitet ô nicos de tal con-
texto - rodando em torno do mesmo círculo: o cont eúd o ideológic o
do esforço de desideologização do objeto arqu itetônico ... Segundo re-
paro: o elitismo confesso de uma arqu itetura confinada a uma es-
treitíssima faixa de co nsu mo, dificilmente terá efeitos coletivos ou
provocará a generalização de novos hábitos perceptivos, pois justa-
ment e o que essa classe de consumidor, predisposta a acatar e reforçar
tais excentricidades, procura é sublinhar de maneira eloqüente o qu e
a distingue, barrando qualquer veleidade de comportamento genera-
lizável que porventura o arquiteto alimentasse. Como se vê, não
abandonamos o enorme girar em falso do formalismo integral em qu e
foi se convertendo o discurso arquitetônico modern o à medida que
seu sentido se volatilizava.
Arquitetura Simulada
72 dos processos sociais que dão substância ao seu projeto, ficam eviden-
temente para uma outra ocasião. A presença um tanto destoante de
Aldo Rossi na Bienal de Veneza serviu-me de contraponto necessário.
Como se há de recordar, anunciava então uma estratégia alternativa,
nada fatal, de um "contextualismo crítico".
O que estou chamando de contextualismo (deixo de lado as ori-
gens do termo, variantes e atribuições) designa certamente uma gama
muito variada de arquitetos e obras. Trata-se, não obstante, de uma
reinvenção que deve muito à experimentação dos italianos, especial-
mente dos que formaram o grupo Tendenza, no final dos anos 60.
Não faz muito a revista Casabella dedicou um número à "Architettura
come modificazione", mas que, à diferença de urna arquitetura como
decomposição, proposta por Eisenman (a bem dizer no vazio), pres-
supõe uma appartenenza - já mencionada de passagem. Quando o lugar
é o fundamento do projeto, a arquitetura torna-se transformação do
que está dado. Só assim, afirma Gregotti, enquanto modificação silen-
ciosa de um presente específico, a arquitetura poderá ultrap assá-lo,
reatando enfim com sua tarefa de representar o que de alguma ma-
neira não se encontra no presente - "somente da experiência do lugar
podem nascer as exceções que dão forma à arquitetura". Salvo enga-
no, um pont o final no capítulo conclusivo do for malismo moderno,
mesmo qu ando se apr esen ta simuland o o contr ário.
EISENMAN
Construções Imateriais
Afargens da Arquitetura
76 mundos de vida descentrados etc.). Enfim, relembrando mais u ma vez
a exaustão das certezas que balizaram a modernidade, consolidava m -
se em contrapartida alguns lugares-comuns opostos: tr iun fo da mídia,
das interações múltiplas, polissemías, redução dos objetos a micro ele-
mentos, simples energia, mais o cortejo de imagens, traços ou rastr os
(como se diz na língua da "teoria" francesa) e as corr espo nd entes si-
mulações. O Inventário-catálogo informava ao público que a existên-
cia da matéria definitivamente não se pode mais provar, uma vez que
"o objeto só se torna acessível se se possui uma mensagem a seur es-
peito", que a notícia do fato se confunde com o próprio fato. !materia-
lização e eclipse do referente, portanto - como se sabe, outro te orema
básico do atual estado de coisas. Em conseqüência, procurava-se indu-
zir uma desnorteante sensação de irrealidade, sentim en to de in qu ie -
tante estranheza (alimentado pela abolição do Outro), que no voca-
bulário dos novos tempos se costuma chamar de esquizofrenia, mas
agora experimentada como intensificação e não como alien ação.
"Mensagens reenviando sem fim a mensagens. Simulacr os, jamais a
própria coisa." Outro modo de enunciar mais uma convicção de épo-
ca: não há nada fora do Texto.
Ora, justamente a esta altura da mostra, demarcada por esses
axiomas da nova sensibilidade, mais exatamente na zona 21 , ao lad o
de "Visitas Simuladas" (a maquete de um ônibus cujas janelas são
monitores de vídeo) e "Profundidade Simulada" (três holografias), o
visitante deparava com um certo número de obras de Peter Eisenman
- desenhos, maquetes, axonometrias das Casas II, X e l la (El Even
Odd) - devidamente acompanhadas de textos-manifestos (à falta ainda de
melhor designação) do próprio arquiteto, onde se podia ler, em perfeita
sintonia com a ambiência de renversement gen e rali zad o, decla- rações
como a de que a sua arquitetura não pretendia ser nada alé m de
"signo de si própria e de sua aparição": "... assim que r etor no à
confecção de maquetes e de desenhos, tornados como objetos neles
mesmos, ou considero o edifício real como maquete e portanto como
uma simples extensão e não como um resultado, efetuo uma tentativa de
inversão do papel tradicional da arquitetura em relação ao seu próprio
processo"1 •
Analogias Lingüísticas
Margens da Arquitetur a
78 transformacionais de Chomsky tenham falado à imaginação do cria-
dor do livre jogo seriado das Casas. Mas logo os esquemas formais em
transformação propostos por Eisenman se encarregarão de eliminar
da "criatividade" chomskyana qualquer intenção expressiva ou con-
textual, enfim, qualquer vestígio de uma matriz subjetiva do sentido,
aliás ausente. Ao abordar aquela série ficaria claro que a linguagem
da nova arquitetura obedecia a uma outra gramática, que expressa-
mente não articulava nada que pudesse ser comunicado.
Afinado com o anti-humanismo em alta, Eisenman vai, pouco a
pouco, aderindo à "teoria" francesa (pós-estruturalista), que já estava
abandonando a fase cientificista anterior em nome de uma crítica ra-
dical a todo racionalismo moderno. A linguagem cede lugar ao texto,
ou melhor, ao textual, à escrita, onde os próprios signos perdem a iden-
tidade num emaranhado potencialmente infinito de diferenças - ape-
nas traços (rastros, fragmentos, vestígios de outros signos) de uma sig-
nificação oscilante. Recuperando esses conceitos para a arquitetura
(como veremos mais adiante), Eisenman foi também atualizando o de-
bate arquitetônico, trazendo para dentro dele os termos em que em
geral é posta a questão da cultura e da arte atual, e que ficou entrava-
da na arquitetura pela redução, feita por Jencks, da Pós-modernidade
ao historicismo3 •
Arquitetura Conceitua!
Voltando ao período inicial: se observarmos a obra de Eisenman
na virada dos 60 para os 70, não sera difícil reconhecer nela um pouco
da fisionomia das neovanguardas daquele momento. Penso, por
exemplo, na radicalidade com que se bania então as marcas de qual-
quer objetualidade, como era o caso da "arte conceituai'' e da minimal,
e sobretudo ao papel que nelas se conferia ao meramente virtual. Fei-
3. Há cinco anos atrás, em uma entrevista telefônica com o arquiteto inglês que o questionava sobre a previsão
que fizera a respeito do esgotamento da Pós-modernidade, Eís.enman confirmou que. para ele, o ecletismo
ou o neoclassicismo de fa..to acabara, mas que não era mais desse Pós-modernismo que se tratava e sim de ou-
tro, do qual a sua arquitetura estaria mais próxima do que aquela que Jencks considerara como p6s-moder-
na. Este entretanto, para preservar as diferenças, preferiu manter a denominação: "arquitetura desconstru-
cionista", comparando-a ao "Pós-modernismo ha.ssaniano" (no final dos anos 60, lhab Hassan introduzira o
dcsconsrrucionismo na crítica literária americana, para c.aracterizar uma literatura pós-moderna, segundo
ele, pautada pelo princípio da "indetermanência" - indeterminação + imanência). Mais recentemente, Jen-
cks passou a adotar o termo "new moàem aesthelic". (Cf. AD, Spring 1988. Rep. em Deconstructwn - omnibus
vol., Londres, Academy Editions, 1989, pp. 141-149.)
Margens da Arquitetura
80 com os Immatériaux, e ali, numa seção justamente denominada "Re-
ferência Invertida", demonstrasse (mais ou menos à maneira de Fou-
cault glosando Magritte) que "o edifício representa a representação
sobre a folha de papel".
Como resultado - se é que se pode falar assim-, ao contrário de
volumes fechados, uma arquitetura em abismo, labiríntica (na mesma
época a nova crítica literária francesa reinventava Borges), espaços in-
conclusos, formas sem função, quando muito destinadas a provocar no
observador um sentimento de estranheza.
4. Cf. "Lar ap prcscnuzi oní dei d ubbío: nel , cgno dei segno",RG.5Stpia n. 9, março de 1982, pp. 69-74.
Comunicação Interrompida
5. O tt:xto de Shapiro é uma clara referl:ncia à Mcrlcau-Pontr, "A Dúvida de Cézanne", onde a eoquizoidi.i do
pintor aparece de forma explícita, embora talvez intt:rprctada ,iuma chave lyotardiana. O tt:6rico da Con--
dição P6s-mo<kma advcrtt: para os limite-s de uma intt:rpretação como a de Merleau-Ponty que, permanecen-
do tributária de uma filosofia da representação, procurava através da desordem cezann:iana encontrar uma
ordem verdadeira do sensível, deixando na sombra o princípio subtt:rri nco da desordem. Cf. "La rappre-
sentazioni dei dubbio: nel scgno dei segno"', cit., p. 74.
Margens da Arquitetura
84 Ora, é bom lembrar que a matriz dessa sorte de intransitividade
estética radical - a crença de que, liberada da obrigação de configurar
a complexidade da experiência, a arte cuidaria afinal exclusivam ente
de si - ainda é a nova teoria francesa, do Manet de Bataill e ao Mal-
larmé de Foucault, ou ao Prazer do Texto, de Barthes. A ser assim, Ei-
senman estaria remando a favor da corrente ao obrigar a arquitetura
a mergulhar no poço sem fundo da autonomia formal, como diria Ta-
furi. Necessariamente frívola, como a batizou certa vez o próprio Ar-
quiteto, pensando na frivolidade reabilitada por Der rida, a saber o
domínio do significante (sem significado) vide, vacant, friable, que cir-
cula justamente pour ne rien dire. Caberia no entanto perguntar se essa
confluência na crítica da ilusão referencial não é conseqüência da ten-
tação formalista que acompanhou a Arquitetura Nova desde o seu
nascedouro: afinal, para se impor, era preciso que um projeto moder-
no também por assim dizer comentasse a si mesmo (não por acaso Ei-
senman adota como modelo o didatismo da Maison Dom-ino d e Corbu-
sier), sem falar na identificação congênita dessa arquitetura com a abs-
tração capitalista, de modo que, uma vez exaurida a sua energia utó-
pica, acabou sobrevivendo apenas como forma à sua função extin ta. Se
isso é verdade, a arquitetura intransitiva de Eisenman é o melhor co-
mentário desse desfecho, o prolongamento natural - e programático -
daquele desdobramento antitético, tornando ainda mais explícita a
ausência de sentido que aos poucos foi tomando conta da modernida-
de arquitetônica.
Desconstrução ao Vivo
6. Em "Architecture: récits, figures, fictions", Cahi.m du CCI n. 1, Paris, Centre G<oorge Pomp i do u , 1 9 86 ,
pp. 52-55.
7. Cf. "The futility of objects - Decompositi on and processes of differen tiati on", cm Lolus, n. 42, Milão, feve, ci ro,
1984, pp. 63-75; p . 66.
8. Diferença ativa, desvio - inclui em si a noção de diferir, ""pacial (espaçar) e temporal. Em porruguês não
temos correspondência, o termo tem sido traduzido de diversas maneins: diferê ncia, diferância, diferança.
Cf. Derrida "La différance", conferência pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em 1968: "A dife-
rartfa é o que faz com que o movimento da ,ignifi.cação náo seja possívd a não ser que cada demento dito
pusen.tt, que aparece sobre a cen4' da presença. se relacione com outra coisa que não el mesmo, guardando
em ,i • marca do d emen to passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futu-
ro, relacionando-seo rastro (trna) menos com aquilo a que se chama pr.,,.ente do que àquilo a que se chama
p.sssado, e constitu ind o aquilo a que chamamos presente por meio dessa relação mesma com o que não é ele
próprio : absol utament e não ele própr io, ou seja, nem mesmo um passado o u um futuro como presentes
modificados. É necessário que um i nterval o o separe do que não é ele para que ele seja ele mesmo, mas esse
intervalo que o constitui cm presente deve, n o mesrno lanc e, dividir o presente em si mesmo 1
cindindo as-
sim, como o presente, tudo o que a partir dde se pode pensar, ou seja, todo o ente, na nossa. lín gu a metafísi-
Afa.rgeris da Arquitetura.
86 Seria o caso de acrescentar que a desconstrução arquitetônica se
compõe de um conjunto de estratagemas tão astuciosos quanto os do
seu correspondente filosófico, obrigado a desmascarar discursivamente
a violência concentrada no discurso hierarquizado da metafísica oci-
dental: o que o autorizaria a falar se não há mais nada a ser dito? Por is-
so a arquitetura desconstrucionista é, como essa filosofia, "frívola".
Esse livre trânsito entre o negativo e o positivo que caracteriza a
"decomposição" eisenmaniana exige portanto a quebra dos pares
hierárquicos e antitéticos - modelo/obra, forma/função, horizon-
tal/vertical, interior/exterior, figura/fundo etc. A desconstrução arqui-
tetônica há de ser assim uma estratégia (fingimos estar fazendo a arqui-
tetura que de fato estamos fazendo) que permita circular entre essas ca-
tegorias: griddings, scalings, tracings, foldings etc. são palavras de ordem
destinadas justamente a abrir essa região intermediária (edge, blue line),
a margem mesma da arquitetura . Uma arquitetura atópica9, na exata
contramão da atual ideologia arquitetônica do "lugar", o domínio
mesmo da "presença", contra a qual Eisenman mobiliza ent ão o re-
pertório desconstrucionista da différance. Graft, trace, internal motivation
etc. assinalam uma arquitetura liberada de qualquer determinação ex-
terna, porém internamente consistente, e por isso mesmo imunizada
contra o reino dos fins (causa final, progresso...) e dos fundamentos
(origem, causa eficiente, necessidade...). Mas concebida como um "sis-
tema de difcr (a)nças" (como o discurso deconstrutor de Derrida), a
arquitetura deixa de ser imagem para ingressar na esfera dos traces
que definem a écriture, figura ção do seu próprio processo interno. Por
isso escrever sobre a desconstr ução ao vivo em que se converteu a ar-
quitetura adquire uma carga poética de revelação desconh ecida pelo
comentário tradicional.
Arquiteto e E scritor
ca, particula rmente a substância e o sujeito. Esse int ervalo corutituindo-sc, di,·idindo-se dinamicamente, é
aquilo a que podemos chamar tspaça1Mnl0, devir-espaço do tempo, ou devir -tempo do espaço ( mpcmzação).
E é esta a constituição do presente, como sínt ese ongmária e i rrcd uti velme nte não-simples, e poru nto, slric-
to-sm su, não-o rigin ária, de marcas, de rastros, de retenções, de pretensões ..." (.Margens da Filosofia, tr ad. de
J oaquim Torr es Costa e Antônio M. Magalhães, Camp ina s, Papiru,s 1991, p. 45.)
9. Cf. "Blue Line Tcxt'', rep. cm Deconslruction, cit., pp. 150-151.
Simulações
10. Cf. -En Terror Fri ma: ln Trails ofGrotexto", id<m, pp. 152-153.
11. Cf. depoimento cm ,frch cture: réci/.s, figure, cit., a propósito de :,cus textos sobre Corbll5icr e o usoq ue fza
do ap.u2to conceituai de Derrida: "'cu e,crevo ficçáo e não filosofia, e minha arquitetura é ficção e não fil-o
sofia, e a ficção é muito mais entusiasmante do que a filosofia", p. 54.
},fargens da Arquitetura
88 transformacionais chomskyanos porém desprovidos de qualquer refe-
rencial), o viés auto-reflexivo se impõe, a arquitetura por ele engen-
drada, sem nenhum vínculo objetivo, torna-se o seu próprio simulacro
- a gigantesca e exata cópia conforme de um original inexistente. Não
irreal, mas hiper-real (para continuar falando como Baudrillard), algo
que não está no lugar do real mas que por assim dizer substitui-se a si
mesmo, formando um circuito ininterrupto e que jamais se completa.
Veja-se a propósito a analogia sugerida por Eisenman com a geome-
tria dos fractais. Seria o caso talvez de aproximar a sua arquitetura dos
simulacros produzidos pela mídia eletrônica - os simulados de Bau-
drillard -, segundo o modelo cibernético: não são mais um mero trom-
pe-l'oeil, sujeitos à ordem produtiva/projetiva, mas a uma flutuação in-
determinada. Urna indeterminação - entendamos: nem possível nem
impossível, nem real, nem irreal, sem espelho, nem projeção, nem en-
fim utopia em que se possam refletir. Baudrillard costuma comparar
tal simulação ao código genético, o que igualmente parece oferecer
uma outra chave para alguns procedimentos projetuais de Eisenman,
quando, por exemplo, recorre ao modelo de seqüência de nucleotí-
deos do DNA na produção da proteína (pelo menos no projeto para o
Biocentro de Frankfurt). Cientificismo reabilitado? Essa em parte a
interpretação de K. Fram pton num balanço dos "dilemas" eisenma-
nianos; neste caso, segun do ele, mesmo escapando na obra particular
aos padrões da r epresentação, nem por isso estaria deixando de "re-
presentar o triunfo faustiano da ciência, sua habilid ade alarmante pa-
ra inventar a vida em pe rp et uidade" 12• Embora Eisenman não preten-
da simplesmente figurar a cadeia nucléica, a biologia surgindo aí, co-
mo no recurso aos fractais, na forma de uma "linguagem segund a"
em relação à arquitetura, linguagem deslocada por tanto13 •
Voltando à simulação, como a define Baudrillard: "intransponí-
vel, mate, sem exter ior idade" • 14 Ora, a acepção em que Eisenman ado-
ta o termo em "T he end of the classical", restrito à ficção que se ign o-
ra como tal, segura ment e não estenderia à sua arquitetura, pois esta
sim é assumida como simples FICÇAO. Por isso mesmo o quadro teóri-
co que acabamos de evocar não poderia mais se ajustar ao seu pathos
desconstrucionista. Conviria então retificar a primeira proposição des-
12. Cf. "Eisen man rcvisited: Runninglnterfcrcnce", emA + U n. 8, Tóquio, agosto de 1988, pp. 57-69; p. 69.
13. & exprcssõeo oão do pr6 pri o Eiscnman cm "Architccture as 5e<:ond Language: The texts of Bctwecn", cm
Thmhold,Journal of 1heSchool of Architccturc, Illinois University, Chicago, pp. 71-75.
14. Cf. sobre todos esses conceitos Jean Baudrillard, Simul.acrts tt Simulatio-,n.s Paris, c:d. Galilée, 1 981.
A Dobra
Ainda a arquitetura como sistema de dif er(a)n ças . Mais recen te-
mente, para dar conta desses processos de deslocam e nt o em que os desvios
se dão a partir de uma realidade que é negada e retida, isto é, diferida sem
ser totalmente anulada, Eisenman lança mão do conceito deleuziano de
dobra (ou dobradura) - um espaço desdobr ado co nstr ói uma nova relação
entre os pares de opostos clássicos (horizon tal/verti- cal, figura/fundo,
interior/exterior) em que o enquadrament o e a pro- jeção planimétrica
cedem lugar à modulação temporal e à curvatura variável. Assim o espaço
tradicional da visão viria modificado. Passar- se-ia do espaço da presença,
o espaço efetivo, para o espaço afe tivo, sem que, pretende Eisenman,
tenha sido substituído por uma ex- pressão subjetiva, mas por algo que
estaria para além da r acion alid a d e clássica, o não-visto. Um
deslocamento em relação à escala do a mbien - te tridimensional de modo
a produzir um "olhar outro" gaze ("a pos- sibilidade de ver aquilo que
Blanchot chama a luz escondida na obs- curidade"15). Mas enquanto
Deleuze se refere ao espaço barroco16, E i - senman está antes de tudo
interessado em tematizar a ruptura com o espaço da representação que não
havia sido consu mada pela Arquite- tura Moderna, segundo ele, ainda
presa à perspect iva r enascenti sta tanto quanto aos valores do
humanismo clássico que a fun dament am.
15. Cf. de Eisenman, 'The vision' unfolding: architecture in the age of eletronic media", em.Domus, ja n ei ro de
I99:2, pp. 18-24; p. 24.
16. Veja,-se Pli - úibniz et k barroque, Paris, ed. Minuit, 1988. (Publicado em português pela Papiru, , 1991,
trad. de Luiz B. J. Orlandi.)
l\fargens da Arquitetura
90 Choral
17. Cf. "Why Peter Eisenman writ"S Such Good Boob", em A+U, cit., pp. 113-124; p. 120.
• -
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\ J
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.....,
...,__ -
Oslo.
de [\)as crn
Ci,.rz;arnen\o
No intuito de devolver a cidade moderna à coletividade expro-
priada ao longo do processo de constituição das grandes aglomerações
urbanas contemporâneas, arquitetos e urbanistas entregaram-se, par-
ticularmente a partir de meados dos anos 60, a uma verdadeira ob-
sessão pelo lugar público, em princípio o antídoto mais indicado para a
patologia da cidade funcional. Esse clima de opinião remonta na ver-
dade às primeiras secessões do Movimento Moderno no pós-guerra,
mas só nas duas últimas décadas tomou uma feição de lugar comum
ideológico, ponto de encontro - bem peneirado - entre velhos argu-
mentos conservadores e outros tantos colhidos na voga neo-iluminista
mais recente, ela mesma menos uma resposta do que uma caixa de
ressonância das sucessivas metamorfoses da esfera pública no capita-
lismo avançado. O terreno não poderia ser mais escorregadio. Sirvam
de amostra duas referências, às quais voltarei mais adiante.
A primeira delas vem de um teórico da Escola de Veneza que,
como se sabe, desde pelo menos o fim dos anos 60 está empenhada
numa das revisões mais abrangentes e nuançadas da utopia moderna
do Plano. Nessa direção, depois de passar em revista as principais im-
plicações da sociologia alemã da cidade desde os tempos de Tõnnies e
Simmel, fassimo Cacciari chama a atenção para um desdobramento
l. Cacciari, "Dialética de lo negativo cn la época de la Mctr ópo li", cm Tafuri, Cacciari, Dai Co, De la vanguar-
dia a la metr6poli, Barcelon a , Gustavo Gili, 1972 (pp. 79-151); cf. p. 95.
A ''Agorafobia" Moderna
8. Cf. De Wittc, "L'éloge de la place", em UI.vilk inquutt, Paru, Gallimud, 1987 (pp. 151-177); especialmente
p. 155.
9. Embora um h istoriador conh ecido como Schorokc, cm seu livro Vima-fm-M -si.'cu - seguindo a tradição crí-
tica - cnf.atizc antes de tudo o lado passadi sta da ição deCamillo Sittc, é obrigado a reconhecer que se
tratava de uma proposta de cidade na medida do homem, e que su as reivindicações psicológicas e sociais
eram comuns a muitos contempori neos.
10. Sobre Fórum Romano, conferir especialmente "Intr odução".
a {laboratório de qulmica);
b (Igreja Votiva);
e (praça para um grande monumento);
d (univenidade);
• {prefeitura);
l (Burgthaater);
g {projeto do !IOVO edillcio llqado a.o teatro);
la (Templo de Tooeu);
1 (praça pua a ..utua de Goethe);
J: (nova oonatruç&o úidefinida);
1 (Palácio da Jmtiça.);
m (novo Palácio Hofburg);
li (arco triunfal projetado).
/
\
para a Ringstrasse com que conclui seu livro, sempre leva em conta os 107
novos usos da cidade, porém não consegue imaginar um espaço urba-
no que abdique da dimensão artística e suas características diferencia-
das, pelo menos em condições de contrari ar a tend ência da cidade
moderna à monotonia13•
Uma das muitas observações de Camillo Sitte acerca dos sintomas
da agorafobia concerne ao novo cenário íntimo da vida burguesa oito-
centista. Com o esvaziamento do espaço público, os elementos arqui-
tetônicos que ornavam as cidades antigas, escalinatas, halls etc. , são
transpostos para o interior das casas. Sem dúvida outra manifestação
típica da agorafobia. Mais ou menos quarenta anos depois, Walter
Benjamin voltaria a focalizar, em suas notas sobre Paris do século XIX,
este mesmo fenômeno de refluxo da vida ur ban a14, tirando con-
seqüências que interessam na periodização e conceituação do pensa-
mento arquitetônico contemporâ neo às voltas com os paradoxos da
modernização. O que procura um burguês à cata de um refúgio
doméstico? Obviamente compensar a impessoalidade da grande cida-
de; por isso multiplica com calculada redundância os traç os da vida
privada entr e quatro paredes do seu asilo. Transformará em con-
seqüência a casa num estojo de objetos, de preferência os que preser-
vam a marca pessoal inclusive no seu sentido literal, daí a inclinação
pelos veludos e pelúcias, que guardam emblematic amente as marcas
de qualqúer contato fisico. Esses os acessórios do cenário teatral em
que o burguês oitocentista transforma seus salões e alcovas - objetos
também de um novo tipo de colecionador, de uma nova relação com a
forma-mercadoria. O mais importante todavia, do ângulo deste rotei-
ro, é notar que essa caixa fantasmagórica ia definindo uma nova con-
cepção de moradia, decorrência da mencionada agorafobia. Habitar (e
por conseguinte construir) passa a significar doravante deixar im-
pressões (como o ladrão deixa impressões digitais), "rastros" de uma
vida imediata que se sente ameaçada pela rua, vida imediata em que
uma singularidade se exprime por oposição ao mundo exterior como
algo interior, anímico, espiritual.
Onde, afinal, a alien ação? Na praça esvaziada porém repleta por
uma multidão solitária, ou no mito habilidosamente construído da in-
13. A solução proposta inspira-oc em grande parte nao praças barroca, dada a pr6pria configu r ação ur ban a e
arquitetônic2 tradicional vienen .
14. C[ W. Benjamin, "Par is, Capital do Século XIX" (vário• eds.), cm 1/uminacwoo 11, Madr id, Taur us, 19 72
(p p . 171-J9 0j , p. 183 .
A Experiência da Metrópole
15. "Experiência e Pobreza" , ero Ql,,-as Escolhidas I, São Paul o, Brasiliense, 1985 (pp. 114-119).
16. Simmcl, "'AMetrópole e a Vida Mental", cm O. G. Velho (org.), O &n6mmo Urbarw. Rio de Janeiro, Zahar,
1973 (pp. 10-25); pp. 19-20.
..
O Mito da Polis Moderna
25. Cf. "A Mor te do Espaço Público", em Scnnet, ap. cit. N2 tr:oduçáo francesa', La Tyrarm d, l'inlimitl , Paris,
Seuil, 1979; pp. 22-23-
26. Cf_ ffannah Arendt,À Condição Humana, Forcnoc Universitária, Salamandra, Edusp, 1981.
-z; Cf..-! _'>fuda.1!f1Z Estnaural da Esfera Pública, Rio de Janeiro , Tempo Brasileiro, 1984.
28. Cf. Otifu B. F.Arantell e Paulo E. Arantes, UmPtmkl C;go ,wProjeroModerna tkjürgmHab;rma.s,São P
a ulo,
Ed. Bnrilicn.se, 1992.
29. Cf. Arquit.:tura Modcr= e P&-Modcma", publia.da em a ndice nolivro citado acima.
\.
continuidade com os que formulara Jane Jacobs, no conhecido livro 119
The Death and Life of the Great Anwrican Cities, ao resumir a experiência
americana dos anos 50; embora Sennet não se reconheça numa po-
sição que considera ainda nostálgica, alimentada pela idéia de re-
lações íntimas entre vizinhos. De fato a vida urbana que Jacobs procu-
ra generalizar é a do bairro de Greenwich Village - o que seguramen-
te não corresponde às novas exigências das grandes metróp oles31 -;
enquanto Sennet pretende estar propondo uma estratégia urbana à
altura de uma "era opulenta e tecnológica". Podemos contudo nos
perguntar até onde uma tal posição não acaba por neutralizar os con-
flitos numa consagração estética das diferenças, conduzindo facilmen-
te a uma apologia do caos (como, por exemplo, em Shinohara), onde
em geral a mais perversa especulação imobiliária acaba sendo inter-
pretada como uma espontânea e saudável criatividade.
Habermas, pelo contrário, que neste tópico_particular não confia
mais nem mesmo no Movimento Moderno, do qual é um dos últimos
ideólogos, se pergunta se o próprio conceito de cidade já não estaria
ultra passado35• Sem pretender resolver a alternativa, voltemos ao per-
curso cumprido pelo renascimento da idéia de lugar público no pen-
samento urbanístico-arquitetônico.
3-4. Cf. rshall Berman, TWUJ que i S6lido se Dwnan.cha 1W Ar, São Paulo, Cia. das Letras, 1986; pp. 3Uí -3 0 8,
50bre Jane Jacobs e as ambigüidades de uma posição como essa que "se move numa região crepuscular on- de
a linha que divide o mais rico e complexo modernismo da mais modernista e consumada má-fé anti-
modernista é muito tfnue e esquiva, se f. que de fito existe". Cf. Umbém "O Caminho do Subúrbio: l:rba-
ni5tas e Bl,;l.i", em Rus.sel Jacoby, Os [lúimos Inü lecluais, S.fo Paulo, Trajetória Cultural e Edusp, 1990
(pp. 66-83\.
35. Cf.".vq:iiterura fodcrna e Pós-Moderna", cit.
36. Tafuri, "Por una çrítlca de la ideologia arquitcct6nica", <>P· cil. (pp. 13-78), cf. p. 28.
37. Giedion,Architecrurt tt vú wi.uctivt, Paris, DenoléVGonthier (coll. Médiations), 1980; pp. 41-71.
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Fine tli, proJelo de " sis te m atiza ç ão" da Praça Cavour em Milão, 1942.
122 glês MARS apresenta como tema para o Congresso a re-centralização
da cidade dispersa pelo zoneamento funcional moderno, através de
um espaço fisico - "o coração da cidade'' - "em que se possa man ifes-
tar o sentido da comunidade". Como o nome indica, neste espaço residi-
ria o centro vital da cidade 38• Ainda urna intervenção drástica ? Rog er s
fala em mudar, restabelecer, vivificar ou inventar um tal centro. To-
dos concordam com a sua necessidade, mas nem todos o concebem da
mesma maneira.
Os mestres Gropius e Corbusier estavam presentes neste congres-
so. Quando intervêm mostram-se preocupados com a escala h umana
desse centro, mas suas propostas vão em sentido oposto. Para Le Cor-
busier, deveria ser um espaço em que as pessoas p udessem ver e ser
vistas. Neste ponto, todos evocam o ágora grego, onde os cidadãos
eram ao mesmo tempo atores e espectadores - um centro por tanto de
visibilidade máxima como queria Hannah Arendt. Mas " como cons-
truir um core na ausência de toda estrutura social claram ent e d efini-
da?" pergunta-se Giedion, embora defenda a tese. Nada mais distante,
ou melhor diametralmente oposto do que o modelo imaginado por Le
Corbusier: o vale cívico de Chandighar, cuja artificialidad e é bem co-
nhecida, sem falar no seu espaço superdimensionado, mais um motivo
para que permaneça deserto; além disso trata-se de um centro admi-
nistrativo, de sede do poder, sem dúvida um elemento de identifi-
cação no plano da representação da cidade, porém de modo algum
presente na sua "vivência", de que cogitavam os que queriam uma re-
visão radical da urbanística dos modernos (para grande parte dos que
estavam reunidos naquele congresso o "coração da cidade " , para ser
um centro vivo, deveria ser plurifuncional). No outro extremo, Gro-
pius citava como modelo para meditação as praças italian as, lastiman-
do, como contava, não ter conseguido converter seus alun os america-
nos para este tipo de espaço urbano - seguramente uma sugestão tão
deslocada quanto o vale cívico de Chandighar.
Diante das dificuldades para encontrar ou criar tais espaços que
viessem a reanimar as cidades, Sert chega a sugerir a multiplicação
desses corações urbanos, fugindo pelo menos da concepção totalizado-
ra e hierárquica predominante na maioria das teses sobr e o core - no
entanto continuava insistindo na necessidade de uma refe rência bá si-
ca, embora atenuada por reflexos locais, obrigatoriamente de carát e r
38. Sobre o 8 Congresso do C!AM cf. Roger s, Sert, Tyrwitt. II cuore de/la ci.ltti., Milão, 1954.
As Teorias do Lugar
Num livro que fez época há mais de vinte anos atrás -A Arquite-
tura da Cidade - , Aldo Rossi pôs em circulação um termo que a litera-
tura especia lizada acabara esquecendo: o lugar, resu ltante, segundo
ele, de "uma relação singular e sem embargo universal entre certa si-
tuação local e as constr uções aí sediadas" 40• Para melhor destacar a
39. Cf. sobre a históri, dos C!AM e do Tcam X, Frampton, Historia criúca d, la a.rqv. ,ctura 111()/Úma, Gustavo Gi -
li , 1983; pp. 273-283.
40. l.& ,;rq-....:,:u;.ra d, la 6udad, Gustavo Gili, 1983; pp. 273-283.
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134 não é uma questão social de moradia mas uma falha de enraizamento.
Pois logo adiante Gregotti repõe a arquitetura na sua real base terres-
tre, voltando à "especificidade da matéria arquitetônica", onde aflo-
ram o fator estrutural, o uso e a dimensão histórica. E no impasse,
procurando conciliar história e estrutura, acaba recorrendo a uma
concepção teleológica do projeto, à maneira sartreana reinterpretada
por Argan em Projeto e Destino, onde o projeto é pensado como algo da
ordem da decisão existencial: "O projetar apresenta-se portanto como
uma resposta significativa, ou seja, poética, do habitar enquanto orga-
nização do ambiente interno, mas seu modo concreto de ser é o seu
realizar-se na situação histórica de seus materiais" 49•
No que diz respeito à segunda relação, já se observou que Hei-
degger inverteu os termos da questão50• De Tõnnies a Spengler, o
pensamento conservador e antimetrópole alemão, ao concentrar-se no
tema do vínculo orgânico da Casa com a Comunidade, sempre conce-
beu a moradia como um prolongamento harmonioso do lugar signifi-
cativo prévio no qual ela sabiamente se implantou (a paisagem, a ter-
ra, uma natureza pré-histórica enfim) - em suma, a casa que enraíza é
aquela que exprime um lugar que a precede. Heidegger reapresentou
este mesmo ponto de honra ideológico na ordem inversa: é a habi-
tação-construção que instaura o lugar. Assim, o espaço não encontra o
seu fundamento em si mesmo, sua origem é o lugar - antes de setor-
nar uma abstração geométrica, ele resultou de uma operação tangível
de delimitação: ele foi arrumado, disposto, arranjado, circunscrito por
limites, e só estes lhe dão forma. Numa palavra, o lugar aberto e fun-
dado pelo habitar-construir como a unidade da seguinte quadratura:
estar sobre a terra, sob o céu, diante das divindades e ao lado dos mor-
tais.
Neste jogo mitológico, o que foi feito de uma prática tão histori-
camente material e desencantada como a arquitetura dos tempos mo-
dernos? Por mais que Gregotti se deixe impregnar pela mitologia
heideggeriana, não chega jamais a abandonar a perspectiva básica da
atividade projetual, sobretudo se voltada para a instituição de um "lu-
gar simbólico" como uma atividade racional prosaicamente socializa-
da. Já nas concepções de seu ex-colaborador Purini, a ascendência
heideggeriana parece ter pesado mais: o lugar não só vem referido a
\
uma espécie de natureza infinita, mas deve ser circunscrito de modo 135
tal que desperte sentimentos ambivalentes de temor e atração, por isso
deve ser sublime como urna aparição inalcançável que não se deixa
decifrar inteiramente, dotado inclusive de uma temporalidade cíclica
como a dos mitos, e assim por dian te51• Em contrapartida, Gregotti
está inteiramente voltado para a tecnologia moderna e a realidade
urbana, assinalando claramente em suas intervenções a distinção en-
tre arquitetura e natureza (ou paisagem) - vejam-se os projetos resi-
denciais em zonas periféricas, ou ainda a Universidade de Palermo
(construída aliás com a colaboração de Purini), onde, se é verdade que
a forma de ponte em meio às montanhas pode parecer reminiscência
heideggeriana, a alta tecnologia empregada e os contrastes habilmen-
te trabalhados desmentem qualquer identificação imediata com o en-
torno geográfico, aliás são duas estradas o que reúne a universidade-
ponte... Por sua vez Purini acredita que as emoções ligadas à arquite-
tura como lugar se devem a uma certa indistinção entre esta e·a natu-
reza. Em conseqüência, definirá o lugar do seguinte modo: "quase
uma redução da infinita história da natureza à relativa finitude da ar-
quitetura". Por isso caberá à arquitetura gerar experiências implica-
das por uma temporalidade mítica e as correspondentes formas ar-
quetípicas - não podemos esquecer da influência do americano Louis
Kahn sobre este arquiteto italiano.
Se uma teoria como a de Purini confere ao lugar uma grande au-
tonomia em relação às exigências mutáveis da comunidade que o
ocupa,_ reportando-as a uma outra realidade, a do monumen to52, as
concepções de Rossi e Gregotti, muito mais preocupados com a di-
mensão antropológica e coletiva, darão outra importância ao que Pu-
rini deslocara para um plano diverso do lugar/natureza. Rossi, por
exemplo, chega a atribuir um papel preponderante aos lugares mo-
numentais na ordenação da cidade, chamando-os de fatos urbanos
primários - núcleos mais sólidos na malha urbana, nós estruturais de
significação, e isto não apenas do ponto de vista da percepção gestálti-
ca da cidade, como pretendia Lynch, mas como focos irradiadores de
uma operação racional. Esses núcleos funcionariam como motivos
construtivos, desempenhando um papel decisivo na formação das ci-
:::ades - podem ser templos, fortalezas, praças ou um conjunto de pré-
53. Cf. "Prefácio" da 2" ed. italiana da Arquitetura da Cúhik; na trad. cit., p. 43.
54. Idem, p. 101.
55. Cf.Rossi, "What is to bedone with Old Cities?", em Architeclural Design n. 55 , L o ndres, 1985, pp. 19-23.
56. Fr:ompton, "Avant Garde and Continu ity'", emArchiucluml Design n . 7-8, 1982, pp. 20-27.
57. Catálogo daXVIJT™nal-I.a cíuá1mmaginalt, Milão, 1987; pp.18-26 (Purini) e pp. 40-41 (Eisenman).
58. Ciudo por Rickwert, "Le ri tud de l' h Y3térie", em L'ldit IÚ la. Vilk. Champ Y, llon , Se ys.sel, 1981 (pp. 46-
55); pp. 464 7.
59. Idem, p. 47.
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- --- --
.
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-
pretar o fato, quando constata que a perda ou substituição de um dos 141
dois termos - uso ou significado - na arquitetura não faz com que ela
deixe de ser o que é: "ou seja, é óbvia a existência de ar quitet ur as uti-
lizáveis sem ser significantes, como também é óbvia a possibilidade de
que um determinado monumento mantenha sua própria capacidade
de ser significativo (ser, precisamente, monumento de uma época),
ainda que tenha perdido a possibilidade de seu uso prático ou que es-
te se mantenha desconhecido para nós, e isso sem perder a capacidade
de emitir mensagens acerca de sua própria estrutura. Mais ainda, tal-
vez tal incerteza de destinação aumente o fascínio do mon ument o e o
mergulhe numa ambigüidade densa de estratificações significantes,
enquanto referidas, com uma margem de arbitrariedade, a· nosso ho-
rizonte de cultura e provenientes de um horizonte diverso". Pode-se
tratar, continua, tanto da atribuição de novos significado s pelo grupo,
quanto da ambigüidade ou polivalência inerente a toda obra de arte,
permitindo diferentes interpre tações60.
Embora no livro citado anteriormente, como também em sua Au-
tobiografia Cíentifu:a, Rossi atribua uma importância muito grande aos
monumentos, chama a atenção para a oposição entre os elementos ur-
banos "vitais" e os que se poderia considerar "patológicos" - o exem-
plo dado é o das conservações ambientais que estariam em relação
com os valores da cidade no tempo como se fossem "corpos embalsa-
mados"61. Para ele, como para seu colega Gregotti, a cidade é "depo-
sitária de história": "a forma da cidade é sempre a forma de um tem-
po da cidade; e há muitos tempos na forma da cidade. É o que a faz ir
mudando de rosto, ainda que certos elementos primários perdurem e
sejam decisivos na sua formação e evolução" 62 • E isto não só do ponto
de vista físico mas principalmente quanto à idéia que temos dela com o
síntese de uma série de valores63•
É entretanto esse imaginário coletivo que parece ter se esgotado
faz tempo, de tal modo que, sob uma memória soterrada, não parecem
subsistir mais do que fragmentos de uma história desconexa,r eca pitu-
lada à força pela retórica dos poderes constituídos, no intuito de fazer
acreditar na existência de uma identidade há muito perdida. ::-.Jesse
contexto, o preservacionismo, em geral oficial, está cada vez menos li-
64. A terminologia é de Riegl, Scrutisuüa tme/a e iL wtauro, Palermo, Renzo Manzzone ed., 1982.
65. Expressáo utilizada na acepção consagrada por Walter Benjamin.
L
juntos têm a capacidade de transcender em muito a mera aparência 151
da técnica, no mesmo sentido em que a forma-lugar tem o potencial
de fazer frente ao massacre incessante da modernização global" 81 •
Fica claro que não se trata de uma arquitetura figurativa, traba-
lhando com signos de decodificação imediata - como para o Venturi
de Aprendendo com Las Vegas - , mas de uma expressividade da forma
mesma enquanto forma-lugar. É também o oposto do ecletismo histo-
ricista que, segundo Frampton, patrocinaria uma iconografia consu-
mista disfarçada de cultura 82• Não é uma política da construção stricto
sensu que está sendo visada, mas uma poética que resista à empreitada
internacional da técnica. Ora, apesar das conseqüências políticas re-
clamadas por uma tal estratégia poética, a ausência de referências
históricas mais precisas pode desembocar numa arquitetura de evo-
cação sentimental, numa arquitetura que reforça mais o imaginário
mítico do que a resistência ativa e prospectiva. É ao que uma leitura
de Heidegger ao pé da letra sem dúvida conduziria, mas não é esta
entretanto a intenção de Frampton. Tanto parece ser assim que de-
nuncia reiteradamente o atual retorno, aliás tardio, ao pathos ideológi-
co da cultura dita popular. - É o que transparece, por exemplo, numa
das tantas vezes em que tenta precisar o que seja um tal programa ar-
quitetônico: "O termo Regionalismo Crítico não pretende designar o
vernáculo tal como se produziu espontaneamente pela interação de
clima, cultura, mito e artesanato, mas identificar aquelas escolas regio-
nais r ecentes cujo propósito foi representar e servir com um sentido
crítico as áreas limitadas em que estão assentadas. Tal regionalismo
depende, por definição, da conexão entre a consciência política de
uma sociedade e a profissão". Mas no entanto reconhece: "Tal con-
junção entre o político e o cultural é difícil alcançar na sociedade doca-
pitalismo tardio". Ou seja, "onde faltam as condições de uma política e
um a,cultura consistentes, é difkil formular uma estratégia criativa" 1111•
Frampton assim mesmo acredita que o regionalismo ainda pode
florescer dentro de "descontinuidades culturais que se articulam de
forma inesperada nos continentes da Europa e América" - manifes-
ta ções fronteiriças que se podem caracterizar, segundo Moles como
"interstícios de liberdade". Nesse mesmo artigo enumera uma série de
expre iências que lograram êxito, ao encontrar soluções arquitetônicas
-
154 contemporâneas que ao mesmo tempo foram capazes de preservar as
referências locais, e uma das mais significativas teria sido a do regio-
nalismo catalão, em especial do grupo encabeçado por Bohigas - "um
exemplo da natureza essencialmente híbrida de uma cultura moderna
autêntica" - e anunciada no livro deste, de 1951, Posibilidades de una
arquitectura barcelonesa. De um lado estavam obrigados a restabelecer
os valores e procedimentos racionalistas e antifascistas da ala espanho-
la de pré-guerra dos CIAM, de outro, tinham a responsabilidade polí-
tica de evocar um regionalismo realista que fosse acessível ao povo; já
as últimas obras do grupo (MBM) parecem ter menos consistência, os-
cilando entre um preciosismo um tanto inconseqüente e uma cons-
trução retraída - "sente-se com pesar que se aproxima o fim de uma
época heróica"84• Na recapitulação feita por Frampton, são também
incluídos os realistas italianos, de Gardella a Gregotti; Alvaro Siza, em
Portugal; Barragán, no México; até Reidy e o primeiro Niemeyer (dos
anos 40) comparecem nesta listagem que inclui muitos outros arquite-
tos, detendo-se nos representantes mais recentes do regionalismo crí-
tico, como Maria Botta, na Suíça, ou Tadao Ando, no Japão. Este úl-
timo, sempre segundo Frampton, dentre os japoneses é um dos arqui-
tetos que mais consciência têm da tensão entre a modernização uni-
versal e a idiossincrasia de uma cultura enraizada, corno a do Japão.
Veja-se, por exemplo, o que ele mesmo diz em A Moderna Arquitetura
Aut6ctone em Direção à Universalidade: "Creio que posso dizer que o mé-
todo que escolhi consiste em aplicar o vocabulário e as técnicas desen-
volvidas pelo Movimento Moder n o, aberto e universalista, a uma esfe-
ra fechada, com modos de vida individuais e diferenças regionais".
Botta, por seu lado, combina as lições dos diversos métodos racionalis-
tas extraídos do exterior com uma misteriosa capacidade (resultante
de seu aprendizado com Scarpa) para o "enriquecim en to a r tesa nal da
forma e do espaço"; de outro lado, tem a convi cção de que a perda da
cidade histórica só pode ser comp ensada building the site - cria n do rei-
nos microurbanos, ilustrados exemplarmente no colégio de Morbio
Inferiore - "compensação cultural pela perda urbanística em Chiasso,
a cidade mais próxima". Uma mesma preocupação em instaurar um
contexto próprio semi-urbano como forma de revitalização dos pa-
drões citadinos atuais, Frampton vai reencontrar (de acordo com mo-
84. Kcnnet Frampton, Martorell, Bohigas, Maclcay, 30 anos de arquítectura 19 54-198 4, Xarait Edicioncs, 1985,
p. 25.
!: :=:..:·.;"':: ' r: - B:dd mgs and Proejcts, 1979-1989 , London, Academy Editions, e Ncw Yor k, St. Martin's
.::- . =
- =·
éô. .-'-.. c l.:=: := = ?: =: pto n na História Crllica...; p . 300.
Desde a construção e o sur pre ende nte êxito de público e de crí ti-
ca do Bea ubour g, a França vem se empenhan do em reassumir o lugar
de Capital Internacional da Cultura. Em todo o século, os investi men-
tos na área nunca foram tão vultosos. Simples ampliação - apenas
mais aparatosa do que de hábito - do setro de serviços numa socieda-
de eficiente? De qualquer modo não é usual esta substituição de prio-
ridades num Estado capitalista, sobretudo num momento de crise ge-
neralizada. Trata-se, seguramente, de urna organ ização do capitalismo
em outras bases, sobre as quais ainda pouco se sabe, e de cuja estrat é-
gia talvez faça parte uma tal reconversão.
Não é de hoje que o Centro Pompidou subiu à cabeça dos dir i-
gen tes fr an ceses, mas se deve sobretudo à administração socialista , que
chegou ao poder em 1981, a clara intenção de levar às últim as cem-
seqüências as implicações daquele achado. Mal empossado, >fi ttcr-
rand anunciou um pacote de grandes obras orçado em três bilhões de
dólares (cifra hoje inteir amente ultra passada), mais outro tanto para a
l. Este estudo foi redigido em 198S. Foram mantidas as r eferências e avali, çocs de fpo<a.
3. Definição de porta-voz oficial, Jacqucs Rcnard, op.cit., lastimando que a França seja um dos países industria-
liz.ados em que os invc:stimcntos publicitários o"" mais baix05 (0,75% do PNB e 32!:' cm plano mundial);
pp. 53-54.
-t ameia Jacques Renard quem associa, passando da justificativa budgctária para o plano das ambiçóes cultu-
:-2:5. 1- ::-..t.• p. 88.
=:.,,S:,içio d.ada. de socialismo por Mitt.errand, em sua primeira entrevisu à televisáo na qualid.adc de Prcsi-
.::c,:::.,e d.a República - segundo depoimento de François Chaslin em Le Paris d; François Miuerrand, Paris, Gal-
:::!2: :-d., : 65 i) ;i·w adu.tl), p. 21.
- Lo
d'írm om
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<..a.ruMt:ris:t.iquct-
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Cahriqui- <luru. un four u t-um plion noLJwU•·· itl!twUr <luns ru llw
me du (..roupe, u baím (.ohilin d1.uis l'Aiiónr
Lct p Tarnide <lu Lom-rt· <"SI rnmµo,,t·l' <l1· 67:i IOSiJ.n t 1·1 1h
118 tduu lt' t"n Hrr fcu llt•tr 1lin1-(,{)l.1.n11 dr 21,.):l mm
•' .!oi.l e-1 -
llliltlt't'S mCClliUque:s..Air1:,1 un "em-('Xlra-UL.mc .a <"lt" pt,1..tk ml·n1 <f('p,:UH!ieur.
I.
- Cf. Félix Torres, Dijà vu - Post el nlo-modmiisml!: k relOur du p/JS$é, Paris, Ra=y, 1986 (Reboun), cspecia.l-
::,:ente cap. I, tanto :iobre o .!à.to de a arquitcrura estar n.a moda, quanto sobre .is qucstócs ligada., ao estilo
neoparuicnse e à preservação urbana que nos ocuparão longamente a - C[ Michel Crépu, Denis Lan-
gl..n eAgncs Vince, editorial da revista EspriJ, "Révcil de l'Architecturc", dez. de 1985, pp. 1-5.
8. Co mo o caracteriza Pascal Ory, cm L'enlre-dw :t-Mai, Histoireculture/k de la France, Mai 1968 - Mai 1981, Pa-
ds, Seuil, 1983, p. 76.
rP. ,. '
j-}!'tr
qf f
l ,.
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! ',·
Port za mpa rc, , dificio residencial, Paris 14i:me. (ZAC Vercínge toríx}, 1984-1988.
que nos dias de hoje "Paris se contenta com pequenos gestos e peque- 167
nos ganhos"9• A primeira vista não poderia ser maior o disparate.
Estão aí os Grandes Projetos que, entre outras coisas, cuidam de ele-
var Paris à condição de centro mundial da arquitetura de alta tecno-
logia. Assim, muito pelo contrário, a capital parece viver de grandes
gestos de altíssimos custos (apesar da sempre alegada rentabilidade de
tais investimentos). É que o assunto de Mathews é justamente a outra
face dessa novíssima arquitetura francesa: o da renovação urbana e
edilícia de Paris. De fato, há mais de uma década a antiga capital do
século XIX é um imenso canteiro de obras, mas nem todas são do
mesmo porte e natureza. Há cem anos Paris também mudava, porém
mais depressa que o coração de um mortal (como no famoso verso de
Baudelaire), e quem lhe percorresse as ruas tinha encontro marcado
com o spleen. Pelo contrário - e quem diz é um dos mais importantes
arquitetos franceses do momento, Christian de Portzamparc -, passear
atualmente por Paris tornou-se uma "lição de relativismo e mo-
déstia"1º. O que é fato, e um problema a mais a resolver, pois a fa-
la oficial, referida há pouco, e os gestos administrativos que a acom-
panham também alegam estar cuidando de promover "um reencontro
no coração da cidade" (é o chefe de gabinete quem o diz e não Gie-
dion) entre a paisagem em transformação e as aspirações do citadino.
Podemos datar à vontade - são meras indicações - , pois em últi-
ma análise se trata, evidentemente, da lenta formação entrecruzada
de uma nova sensibilidade não só projetual, mas também estética,
política etc. Seja como for, costuma-se associar tal mudança, por
exemplo, às limitações impostas pelo POS (Plan d'Occupation des Sols),
de 1977, sancionando de vez o repúdio geral do calamitoso divórcio
com a cidade, encarnado pelo modernismo à francesa do antigo Plano
Diretor (PUD), de 1961. Malgyado a força da opinião em contrário,
não são poucos os que vêem nisso uma seqüela da herança conserva-
dora dos anos Giscard, que de fato envolvia uma política contextualis-
ta e de preservação. Aliás vai um pouco nessa direção o artigo citado
de fathews, cujo raciocínio continha, com efeito, uma restrição: por
enquanto Paris se atém aos pequenos gestos, enquanto faltar fôlego,
::ragem ou talento para arca r com o peso de uma nova visão - até lá
:::::enterno-nos com pouco. Mas o intuito de voltar a multiplicar por
--
primeira vista nada têm em comum, ou ainda pela própria maneira 169
de os Grandes Projetos arrastarem consigo o entorno, mesmo que por
deslocamentos mínimos e transformações discretas. Para não falarmos
ainda, completando o arco, na por vezes desconcertante convergência
ideológica de grandes gestos arquitetônicos e contexto reabilitado.
12. Depoiment o a Chanta l Béret, em Art Prns n. 97, novembro de 85, p. 26.
13. O programa original, proposto pelo governo Mitkrrand para o arco de La Dcféns,,, que j:á pa=a ante-
riormente por várias &ses - programas e projetos - implicava a trarufcrfucia da UNESCO pa= U:; poste-
riormente, dados os projetos deste organi..mo, pensou= numa Ca:,a da Comunicação, logo substituída pe-
lo ri o de Urbanillmo , Habita ção e Meio Ambiente. Hoje, trarufonn ada cm prédio de escritórios, de-
vcr:á abrigar no alto um Centro Internacional da Comunicação.
Sobre "," -ici5situdc, dote arco, bem como sobre as h istórias de bastidores de todos os Grandes Projetos, ve-
j..-sc Ch...slin, op.cil.
14. Examinando a e,<t.raté gia de "redinamização" da arquitetura francesa e de " rentabili zação" da cu ltur a,
atr avés de tais iniciativas, C ec ília Rodrigu"" dos Santos e Margareth da Silva Pereira, em ..Paris Está em
Obras", Projeta n. 82, de n ovembro de 85, procura m evitar o term o " monument o" para os Grandes P roje- tos
(també m pouc o usado no discurso oficial), isto, devido à complexidade do conceito, e por não estarem po
ssivelmente, os prédios cm questão , invc:,tidos d o, v a lores ia.i, qu e dão fundamen to à "m on umen tali- dade"
do monumento. Ora, r ec o nhe ço o inter esse da di, tinção, m a5 tomo aqui o termo K"fil fa.zer ainda a separaçâo
entre as intenções de realizar obras de cont eúd o social for te e a existen cia, de fato, de tais con- teú dos · é
óbvio que se trata, an tes de tudo, de uma uu/-nca monumtnlal.
"
. :'lo,.;
l
• · .:...:.•:.: =e :;;'-"-; '.:-.""mó Sfmoola IÚ Podtr, edição a cargo de Xavier Swt, Barcelona, T usque ts editor, 1983 (Cua-
c.--.:: :-; : ':-4:, cf. Prólogo", pp. 7.11.
•
180 cipalmente na sua representação mais trivial de superdimensiona-
mento. Não obstante, a que aspirava tal Movimento senão transfor-
mar-se no grande símbolo do progresso e da modernidade, justamen-
te com as promessas de emancipação que um e outro carregavam? A
própria cidade moderna enquanto tal foi pensada como um grande mo-
numento. Basta lembrar os planos urbanísticos de Le Corbusier, ou
mesmo suas críticas às cidades americanas, como Manhattan, por
exemplo, onde esteve em 1936 e ficou escandalizado por encontrar
prédios demasiadamente pequenos, chegando a propor a substituição
deles por torres e grandes unidades de habitação. A megalópole é o
maior monumento-símbolo da modernidade e, se não foi inventada
pelos arquitetos modernos, foi ao menos celebrada por uma parte de-
les, que por certo queriam-na organizada, pôr nos trilhos o caos de
seu crescimento espontâneo, como uma grande obra arquitetônica a
traduzir os altos feitos da ciência e da técnica. Na visão urbana de
Corbusier, um eixo monumental era imprescindível. Von Moos re-
corda que suas propostas urbanísticas sempre estiveram carregadas de
simbolismo moral, estético e funcional, retomando o urbanismo clássi-
co (à maneira de Haussmann), combinado às exigências de velocidade
- da cidade para três milhões de habitantes, de 1922, a Chan digahr ,
trinta anos mais tar de16• Grandes prédios associados a grandes espaços
- as praças francesas ampliadas. Em Chandigahr, Corbusier criou um
desses grandes espaços no "coração da cidade" - "funcionalmente inu-
tilizável, dramaticamente desmesurado (540 m de largura)", como ob-
servou Moos. Um espaço imaginado, numa visão característica do
pensamento utópico de Corbusier, corno um lugar de encontro na
medida das massas! Isso não é tudo. Corbusier também construiu e
sonhou com grandes edifícios monumentais - por exemplo, o da Liga
das Nações, em Genebra (ele acabou não ganhando o concurso). Não
se tratava apenas, no caso - ressalva :\foos - de derrotar a arquitetura
acadêmica, mas de construir o primeiro parlamento mundial. "O
Palácio dos Sovietes (1931) teria sido, em muitos aspectos, para a
União Soviética, o que o Capitólio de Chandigahr é para a Índia: um
símbolo grandiloqüente da consolidação de uma nova ordem política,
orientada para a tecnologia. Eis a raiz dessa grandiosa seqüência de
palácios para o Estado, nunca realizados, como há de julgar-se o Ca-
16. Cf. Von Moss, "La Política de la Mano Abiert.a. Notas sobre Lc Corbusicr y Nchru cn Chandi gahr", em
Sust, op. cit., pp. 115-170.
•
presentante máximo (por sinal um francês, embora de origem suíça). 183
Pode-se portanto dizer igualmente da pirâmide translúcida de Mitter-
rand: a pureza formal dos símbolos distribuídos por Paris mal encobre
a impureza política que em princípio deveriam transfigurar. Aliás,
basta investigar um pouco os bastidores dos Grandes Projetos (as in-
formações encontram-se à disposição de qualquer um). Veja-se o caso
do IMA.. - Instituto do Mundo Árabe. Depois de muitas idas e vindas,
desde o tempo de Giscard, e com muita oposição de boa parte da po-
pulação, seja alegando a impropriedade dos locais (em geral conside-
rados nobres), seja os altos custos do edifício, Mitterrand assumiu a
responsabilidade de pôr fim à celeuma, convocar um concurso e cons-
truir um centro que abrigasse a cultura árabe - o que, deve-se reco-
nhecer, redundou na mais bem-sucedida obra realizada em Paris nos
últimos tempos (voltarei ao caso). A França se redimia junto às Nações
Unidas com um prédio que reúne requintes de alta tecnologia france-
sa a objetos de arte e artesanato árabes. Tudo aí parece conviver na
mais perfeita harmonia, simbolizando a amizade com os povos dessas
antigas colônias, de cujos governos saiu uma boa parte dos recursos
para a construção do prédio.
Retomando: aqui como lá, um universo de formas puras para
melhor refletir em suas superfícies polidas a nenhuma transpar ên cia
das relações sociais vigentes na futura Capital Mun dial da Cultura.
Mas da cultura, dessa vez, ao alcance de todos: esse o engodo de massa
que brilha na bela transparência criada pela arquitetura de ponta dos
Grandes Projetos. À primeira vista, tal tra nsparên cia seria apenas uma
especificação técnica significativamente presente em todos os gran des
centros culturais - outra invenção relativamente recente - que vêm
sendo construídos em Paris, a começar pelo grande achado do Beau -
bourg, estendendo-se depois ao Museu do Parqu e de La Villette, ao
IMA, até a parede externa da Ópera da Bastille , pa rcialm ente de vi-
dro.
Voltando ao quadro político d e que partimos - sempre na in -
tenção de identificar os mecanismos que permitiram à arquitetura
atual chegar onde chegou, ao ponto nevrálgi co da cultura admin is-
: rada. É cer to que os Gran des Projetos foram anun ciados em ple na
c::aré alta da vitória socialista e numa conjuntura econômica aind a fa-
· .-: :-sd el, mas que a partir de 1983 começa a ruir. O pla n o in clinad o do
::ie s e :r. p re g o, da in flação, do atraso tecnológico etc. coloca em pane o
prcg:-a a q ue até então incorr era no erro estratégico da fuga pra a a
19. Cf. Serg e July, Les Années Mitterrand, Paris, Grasset, 1986; e Michel Crozier, État moàeste, État molieTnt, Paris,
Fayard, l 987.
Cf ?.i.s=: On, op. cit.; e Olivicr Dufour, "Bcaubourg: histoirc d'unc ambition", Esprit, fc v. d e 1 9 87 ,
F?· .-.=
Os Dois Lados da Arquitetura. Francesa. Pós-Beaubourg
B. Tshmni , Fo!tr no l'arqu,· ck la Vi1I.-11e. Ao f,111do : Zr, lit h, dos ar quitetos Cha i L ,. Mord .
.... .
•-
.-\-.\.-,-· "
-
:, .
·
Portzam par c , Cidade da Música (ma quete ).
tos etc. tornaram-se uma habilidade profissional, sancionada por certi- 187
ficados e diplom as2 . Coube à grande política cultural dos anos Mitter-
rand operar a fusão entre publicidade e "animação" - este ramo mais
soft da indústria cultural - ampliando o arquipélago Beaubourg e pla-
nejando a cultura como uma entreprise, como se viu no início deste es-
turlo. O retorno se daria de várias maneiras, entre elas, na prolife-
ração das iniciativas. Não há grande alteração de registro, apesar dos
choques e desencontros, entre a atual apologia do direito à diferença e
as iniciativas oficiais destinadas a "animar" o corpo social, cuja finali-
dade é provocar num público polimorfo fluidez, comunicação, mobi-
lidade, souplesse (quem o diz é o ideólogo do Ministério da Cultura,
Jacques Renard, mas poderia bem ser algum teórico da sociedade
agonística...).
Foi para essa sociedade culturalmente "animada" pelo Estado
que a arquitetura francesa em grande parte despertou, depois de um
longo torpor de mediocridade na trilha do International Style. Se a ar-
quitetura parecia ter perdido para os mídias, em sua capacidade de
significar, ajudada pelo baixo teor iconográfico das formas abstratas
modernas, na França tudo indica que uma reviravolta se processou.
Acabamos de ver que as formas disseminadas por Paris pelos Grandes
Projetos e fortemente investidas de simbolismo político por uma ad-
ministração competente dos fundos públicos da cultura erudita acu-
mulada no país, mudaram o problema de lugar. E a tal ponto que se
poderia incluir a nova figura do arquiteto entre os principais prota-
gonistas da "animação cultural". Já vimos também de onde procede
sua força simbolizadora renovada. Há vinte anos, em plena era (mo-
derna) da laideur, a quem ocorreria associar uma imagem do homem
público aos lastimáveis criadores de pombais de concreto? - pergun-
tam-se Michel Crépu e Denis Langlar t22• A situação hoje se inverteu e
os arquitetos voltaram a interessar o poder - não que estes estejam
menos atentos à sua autopromoção (modernizados e reformados, os
Estados capitalistas não mudaram substancialmente), mas é que sim-
plesmente a arquitetura, cumprindo seu destino de parceira da mo-
dernização técnica, tomou finalmente a forma da imagem publicitária.
outro lugar, procurei reconstituir a lógica desse processo ao longo do
qual a linguagem arquitetônica moderna se condensa numa única
0
• :: h.sc"'1 On·, op.cit,pp.77-78.
.. ,
.-. ":: . R::';::.:::,:,ac do architcctcs",E>prit, dezembro de 85, pp. 72-76.
23. "Aprendre auxArchitectes b. modestie"' - "'Entretien avec B. Huet", emEsprít, cit., pp. 14·22; p. 22.
De Volta à Cidade
24. Arch ctum mFranu, Modtmiti Post-Moikmiti, Paris, CCI, Cen tre G. Pompidou, 1981, pp. 148-153.
5 'Pro Pos. deux propositions"'. cm L'A.rchiuclure d"Aujourd'hu.i. n. 253, outubro de 87, pp. 9-11.
26 . "' :J u de<sin au chantie r : le printemps des doctrincs", em Arch:úctuu, ro Fra,u,, .\ íoderr.ú/ Posl-Mo<km iU ,
cit., pp. 56-51; p. 59.
?.:.: ..
196 abaixo os primeiros blocos residenciais - os sinistros HLM, construídos
a partir dos 50, verdadeiras "máquinas de morar", na acepção mais ra-
sa da fórmula famosa, distantes do centro e totalmente desprovidos de
transportes e equipamentos públicos satisfatórios.
No início da década de 70, as coisas começaram a mudar, como
lembra o sarcasmo de Bernard Huet: descobriu-se que as últimas ví-
timas das virtudes cívicas da Carta de Atenas e da pré-fabricação pesada
moravam pessimamente e continuavam sonhando com pavillons de ban-
lieu27. Os grandes aglomerados a que se resumiam as Villes nouvelles,
com seus ZUP e ZAC, insistiam entretanto nos mesmos impasses: proje-
tadas, via de regra, na forma de megaestruturas (como Evry, por
exemplo), em sintonia com experiências internacionais contemporâ-
neas (Habitat e Exposição de Montreal), representava, na verdade,
uma derradeira incartada modernista, uma simples extensão do tema
monumental à escala urbana, como resumiu J.-L. Cohen. Não obstan-
te, o fosso entre o Estado Social e sua clientela aumentava, juntamente
com a pressão dos movimentos sociais, a convicção generalizada de
que os grands ensembles, tours e barres etc. eram sinônimos de ansiedade,
tédio, miséria estética, delinqüência e assim por diante, como registra
a maior parte da literatura crítica especializada. Em suma, o gigantis-
mo moderno tornava-se anátema. Finalmente a Administração esbar-
rava em algumas obviedades sociológicas: que o urbanismo tecnocráti-
co, contrariando a demanda social, subvertendo hábitos e tradições,
simplesmente agravava os desequilíbrios sociais. A nova palavra de
ordem passa então a ser: melhorar a "qualidade de vida". Os relató-
rios oficiais recomendam a reciclagem dos prédios antigos, não apenas
para atender ao gosto dominante, mas como resposta à crise econômi-
ca e à questão da densidade máxima urbana tolerável. Seja por clari-
vidência "sistêmica", seja por pressão social, o fato é que o novo ciclo
legislativo, inaugurado na segunda metade dos anos 70, desobstruiu
um bom pedaço de caminho para a nova arquitetura francesa que, pe-
lo menos desde a grande subversão de maio de 1968, vinha pedindo
passagem.
Um dos primeiros a romper com a triste herança estética e social
da Era da Feiúra foijustamente Bernard Huet, promotor e teórico de
uma das mais fecundas reformas do ensino da arquitetura, que re-
dundou na criação das UP (Unités Pédagogiques d'Architecture), em subs-
: 3 E:J-r:t, "'Conxn·ation autour de rArchitccturc u.-bainc", depoimento :a. Chantal Béret, em i.rchilectu r s em
t . pp . 48 - 55 .
.-=-c -.c;e .• c:
29. Cf. J.-L. Cohen, "Le détour par l'Italic". em Esprit, cit., pp. 23 -34; p. 26.
30 . "Un avenir pour notre passé?", emAnachronipu s d'Archiúcturt, pp. 148-159.
, -·
tos pela ótica tradicionalista da antiga lei Malraux, mas se estende ao 199
tecido urbano no seu conjunto; além do mais, não se deve assim ilar
inteiramente o imperativo da reabilitação à atual voga preservacio nis-
ta, mas derivá-lo igualmente pelo menos da vontade - encar na da p e-
las municipalidades sintonizadas com os movimentos urba nos d er e-
sistência, corno foi o caso exemplar de Bolonha - de conferir aos imó-
veis restaurados função de memória coletiva, inclusive da luta social
que se espelha nas relações cuidadosamente cultivadas, em ter mos ar-
quitetônicos, entre os monumentos prestigiosos que comemora m a an-
tiga dominação e as "tipologias modestas" do entorno popular. As-
sim concebida, a valorização do patrimônio é incompatível com a es-
tetizaçáo do passado, a rigor incontornável quando passamos para o
outro lado da arquitetura francesa pós-Beaubourg. Neste, o passado
cultural é oferecido em espetáculo, o vínculo com o presente é da or-
dem do gadget (veja-se o próprio Beaubourg, na avaliação de Huet),
um tal passado rigorosamente não tem futuro. Voltando para o lado da
arquitetura urbana, veremos que, pelo menos em prin cípio, a conti-
nuidade cultural por reanimar é apreendida rente ao "contexto",
a produção tipológica está calcada num reconhecimento de modelos
culturais em ato. Em suma, ao patrimônio redimensionado pelo design
contrapõe-se o patrimônio enquanto forma de vida em luta contra o
deserto urbanizado por grandes ou pequenos projetos - tant o faz -,
concebidos para comemorar a perícia de seus autores, ou a glória de
seus promotores.
Neste caso, o que está em jogo não são as proporções do projeto,
mas o stàr system mencionado há pouco - a rigor, um fenômeno pós-
utópico, pois enquanto se pretendeu remodelar a sociedade através da
planificação global, uma tal megalomania simultan eamente inibia o
desenvolvimento da ideologia de artista. O estrelato cresce na razão
direta do declínio de tais ilusões. Vão nesta direção as observações de
François Chaslin a propósito da ronda internacional das vcdetes -
Venturi, em Londres, Bofill em Pequim, Gregotti em Berlim etc. É
que, depois da utopia, a arquitetura basculou no terreno movediço da
pura aparência. (Remeto novamente o leitor à "Arquitetura Simula-
da", onde procurei mostrar a continuidade real por detrás desta ma-
nifesta quebra de estilo e das intenções, declaradas linhas acima.) Des-
considerando a parte do resultado histórico neste desfecho, Chaslin se
atém apenas à inexplicável aderência da arquitetura pós-utópica ao
"mundo da superficialidade, o qual nenhuma palavra qualifica m e-
31. "Sr.ar 5'"5te rn, l quoi sen-ent lcs étoilcs", editorial de L'.A.rchiUclUre d'.A.uj ourd' Jmi, cit., p. 13.
32... L'cnfcr du déc:or", op. cit., pp.54-55.
33. Ikpoimento reproduzido por Hervé Martin, em Guuk l'Archiúcture Modeme à Paris. ed. Alternativcs,
198 6, p. 238.
34. Conferencia inédita na École Normale, cit. por Félix Torr .op. cit., p. 64.
36. Cf. depoimentor epr oduzido por Hervé Martin. t>p. c,il. p. 118; e "La .fin des conventions et des eodes'", em
Techniques & ArchiíecJu rt n. 366, j unh oa ulh o 86, pp. 80-81.
-- \
Po rtzampa rc, co njunto residencial
Les Ha utes Formes, Paris ! 3i,me., 1975-! 980.
A. b aixo : C o ns rv3tório e Residência
de Velhos, Paris 7 mc., 1981-1984 .
206 os projetos eram pequenos ou grandes. Acreditando que o seu métier é
uma "arte pública" a serviço da criação de novos espaços, pretende es-
tar reinventando, a cada projeto, um Genius Loci 37 - noção presente
em toda a tratadística clássica, reposta em circulação a partir dos anos
60 pelos italianos, visto que os ingleses e americanos descuidavam do
que mais importa aqui, o caráter simbólico do lugar: "fato singular,
determinado pelo espaço e pelo tempo, por sua dimensão topográfica
e por sua forma, por ser sede de vicissitudes antigas e modernas, por
sua memória" 38 • Mas estes já são problemas de natureza coletiva, obri-
gando a colocar a questão da dimensão social da arquitetura, só que
agora, à diferença do funcionalismo moderno, a tarefa do arquiteto
ou do designer urbano seria ressemantizar a cidade, levando em conta
uma geometria espacial, para além do programa e do terreno, a esti-
mular as práticas sociais localizadas. Esta a questão maior em que es-
barra o contextualismo, em parte reproduzindo, em escala menor, e
em outra chave, as ilusões modernistas, fazendo coro, por outro lado,
com a fala oficial sobre o lugar público, como veremos.
Modéstia à Parte
37. Idem, p. 81, e "Le symboliqu e et l' utili u ir e", em Archllát um m Franu... cit., pp. 15,4 158.
38. Definição de Aldo Rossi em L'Architectura della ciitá (vários ed,), cap. 3.1.
39. Este depoimento, como todos os que 5e seguem sobre o L\{A., estão no número especial de L'Ar chitecture
d'AujQurd'hui n. 255, fevereiro de 88.
4•). Cf. depoimentos de J ean Nouvcl em L'Ar chiu cture d'.fojourd'hui n . 231, fevereiro de 198 4 (de dicad a à o bra
de J. '.'\ouve!); Ttchn,qu,s et Archllecture, cit., pp . 72-73; e no catálogo Jean ?>.·ouu /, or gAni zado por Pa trice Gou
le t. Par is, Elecu on i te ur, 1 987 .
Aura Bastarda
Paris Pós-P.O.S. 89
220 ços para escritórios, reduzindo as limitações de gabaritos e alinhamen-
tos, deixou para trás a era preservacionista e, em nome de uma "mo-
dernização do parque imobiliário", criou de fato condições mais fa-
voráveis para os investimentos privados. Não há dúvida de que a subs-
tituição do POS, tentada desde 1985, foi uma vitória das grandes fir-
mas de construção e da Société d'économie mixte d'aménagem,ent de Paris
(SEMAPA). É o modelo La Défense ou Front de Seine (a oeste) que re-
torna após um curto período de maldição? Talvez a lição dos últimos
anos e um certo controle que a população e o Conselho de Paris têm
sobre os ZACs (Zones d'Aménagement Concerte1 impeça que o desastre se
repita. De qualquer modo, não é por acaso que venha associado ao
novo POS uma grande operação de modernização do leste, buscada desde
1983, com o lançamento do Plan-Programme de l'Est de Paris pela
municipalidade, no intuito de reequilibrar a cidade, mas que se tor-
nou mais efetiva com a Opération d'Aménagement Seine Rive-Gauche, de
junho de 1990.
Comesse projeto, pretende-se criar um pólo de desenvolvimento
no leste - de Tolbiac (Gare d'Austerlitz, Jardin des Plantes, Salpetrie-
re, até Ivry) ao conglomerado de Bercy (Gare de Lyon, Ministério das
Finanças, Omnisports, Parque de Bercy etc.) -, transferindo para aí
várias empresas, especialmente do setor terciário, concentradas a oes-
te. As propostas dos arquitetos consultados pela Prefeitura de Paris, e
que devem servir de base para o plano final de urbanização e defi-
nição de massas e gabaritos, tomam em geral como referências mor-
fológicas e tipológicas Bercy, em face, lvry, mais a leste, e Tol-
biac/Masséna, ao sul, com seus edificios altos e isolados - justam ente os
enclaves da "era da feiúra", como a chamou Françoise Chouay. Port-
zamp arc , por exemplo, embora seja um dos arquitetos mais atentos
aos espaços criados pelos prédios residenciais, chegou a propor, ao la-
do de uma "extrapolação do método e da escala do pequeno quartier
Hautes Formes"1, torres isoladas e diferenciadas para as empresas -
"cada uma, um acontecimento arquitetural livre e autônomo, graças
aos quais uma sociedade ou um grupo marca sua imagem na cidade".
Ora, mais da metade da área será ocupada por escritórios, o restante
será destinado a equipamentos culturais e sociais, residências e
comércio. Há quem pressinta com horror o ressurgim ento do estilo
Dallas.
Pans Pós-P.O.S. 89
" '.- 1{f, J <; -.-1
- -
:- <
t . '!>
: l_,j. -!
' - - 4i . ;
Os Novos Museus
234 inviável. Situação tão adversa quanto triunfante, excelente ocasião para
rever mais uma vez nossa relação com a obra de arte, há quase dois sé-
culos filtrada pelo museu. Não pretendo ir tão longe nem sobrevoar o
problema no seu todo. Valho-me de um contraponto imediato: a expe-
riência contraditória do museu moderno, que hoje vai declinando e se
tornando coisa remota de um passado não tão longínquo assim.
:-.,,_
.' '
-:·
sen -e para chegar onde queria, são posições antagônicas que se corri- 235
gem e refletem a tensão latente na coisa mesma e assim sendo, não faz
sentido ser contra ou a favor do museu. Nem tudo nos museus é pre-
judicial e nem só os museus prejudicam as obras. No limite, a balança
adorniana acaba pendendo ligeiramente para o lado dos museus: "as
obras de arte não são plenamente promessa de felicidade se n ã o forem
arr ancadas de sua terra natal no caminho do seu próprio declíni o"; e
mais: " no fundo esses gabinetes de história natural do espírito trans-
for maram as obras numa escrita hieroglífica da história e lhes deram
um novo conteúdo substancial à medida em que redu zia o anti go" . O
que sobra ? Uma declaração ambígua como a seguinte: na atualidade
ameaçada, a única relação possível com a obra, para o freqüentador
do museu (que de qualquer modo congelou a ar te transformando-a
em infor mação), consiste em escolher dois ou três quadros e deter-se
diante deles com a gravidade e concentração de quem se encontra
diante de "ídolos verdad eiros". Como contraveneno, uma espécie de
fetichismo esclarecido.
Repito que os dilemas de Adorno giram em torno da idéia mo-
derna de museu: cenário absolutamente neutro , quase um não-lu gar
(para usar a expressão de J ean-Marie Poinsot), concebido para favore-
cer a contemplação da obra enquanto experi ência individual. Molde
religioso? De qualquer modo desment ido pelo conteúdo que par ece
r ealça r com ênfase excessiva: ao contrár io de uma relação de culto, es-
sa concentração espe ciali zada do esteta antes for taleceria do que dis-
solveria o Eu. Nestas condições é preciso que o Museu Mode r no, co-
mo quer Willia m Rubin (lastimando que as obras apareçam nele sepa-
radas da trama da vida), esconda o seu lado de edifício público, crian -
do pequenos espaços diferenciados corno numa casa, facilitando a re-
lação íntima com a obra , reproduzindo de certa maneira o ambiente
doméstico da experiên cia privada do colecionador . Mas aqui o diretor
do·MO?vL'\. se afasta de Adorno, para o qual a experi ência solitá ria da
obra encerra um imp ulso emancipat ór io de evidente conseqüê n cia so-
cial. Essa é a chave do recolhimento adorn iano.
Os .\'01.•os .\1use11s
236 min, a consciência recolhida de outrora definha ao privar a coletivi-
dade das forças que antes mobilizara a pretexto da relação pessoal
com o Absoluto. Hoje em dia (pouco antes da Segunda Guerra, em
pleno nazismo), o tipo de recolhimento a que convida um quadro fau-
ve, ou um poema de Rilke (nos exemplos do próprio Benjamin),
transformou-se numa escola de comportamento anti-social, enquanto
na desenvoltura de um público (desatento) porém controlando coleti-
vamente suas reações, delineia-se um comportamento à altura da era
de reconstrução histórica que estava sendo encarecida e que se acredi-
tava despontar no horizonte. Não é dificil reconhecer a lição de Bre-
cht nesse raciocínio que, invertendo o negativo em positivo, transfor-
ma a "distração" em ponto de vista interessado, e vice-versa, a atenção
suprema da consciência estética, em entorpecimento, como o transe
do wagneriano hipnotizado. Para Adorno, a teoria benjaminiana da
distração "esclarecida" pecava por espontaneísmo: transformar as
massas populares em sujeito coletivo do cinema, por exemplo, é es-
quecer perigosamente o quanto elas são portadoras de todos os traços
da mutilação da personalidade característica do progresso capitalista.
Certamente Benjamin sabia muito bem que o riso dos freqüentadores
de cinema poderia não ser cordial e muito menos revolucionário, mas
acreditava que a recepção coletiva reproduzida pelo aparato técnico
emergente poderia liberar o potencial cognitivo até então aprisionado
nos domínios confinados da cultura afirmativa. Em resumo: que a dis-
tração estética do especialista amador, a um tempo atenção flutuante e
conhecimento rotinizado, configurava o embrião materialista de um
novo iluminismo que finalmente desaguaria na conformação de uma
ordem social superior. Benjamin está pensando numa arte de massa,
produzida para ser reproduzida, e não, evidentemente, nas obras re-
colhidas num museu. A descompartimentação antiaurática da arte, a
subversão da distância estética era devida a uma conjunção histórica
fulminante entre procedimentos técnicos e presença política das mas-
sas. Fica portanto no ar uma certa sensação de contra-senso nesse re-
curso à teoria da relação distraída com a obra de arte para pensarmos
a experiência instaurada pelo museu. Como associar sem disparate
histórico a recepção coletiva imaginada por Benjamin e Brecht em
função da arte dessublirnada pela reprodução técnica, uma arte intei-
ramente nova, ao seu exato contrário , a arte dos museus, espécie de
gênero terminal a que nada escapa graças à força restauradora da
forma-museu - o lugar por excelência da institucionalização da arte
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Os Novos Museus
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Como se vê, muita coisa mudou entre o ]eu de Paume de que fala
Adorno, à procura de "ídolos verdadeiros" - "onde a Gare St. Lazare,
o Elstir de Proust e o Degas de Valéry coabitam numa pacífica proxi-
midade e estão entretanto discretamente distanciados" - e esses novos
museus; um Orsay, por exemplo. Nele a modernidade dos impressio-
nistas é imediatamente anulada. Ou, melhor, cancelada por um hábil
sistema de mediações. Em primeiro lugar, lá se encontram baralhadas
às várias tendências do século XIX, mesmo as esteticamente mais du-
vidosas, expostas com igual ou maior destaque em função das conve-
niências ditadas pela composição e pelo gosto pompier da arte oficial
do século passado, que o esnobismo historicista de hoje afeta apreciar
com a ênfase de praxe. Sem contar que chegamos sem fôlego às telas
impressionistas, após uma longa e exaustiva promenade entre formas
monumentais, esculturas na escala de espaços públicos, a maquete do
Os Novos Museus
246 quartier da Ópera vista do alto, escadas rolantes e miradouros a ofere-
cer uma visão teatral do próprio interior do museu e do show a que se
resumem as intervenções arquitetônicas efetuadas na antiga estação
de trem. Finalmente exaustos - como Valéry em outros tempos per-
correndo as galerias do Louvre - entre uma mostra de cadeiras Tho-
net e a lanchonete, encarada como um oásis pelo peregrino do século
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XIX, alcançamos as salas dos Impressionistas. Recolhimento final?
Ainda não: eles precisam agora rivalizar , sem sucesso, com uma vista
deslumbrante sobre o Sena e as Tulherias, disponível no terraço ao
lado. Não se pode negar o êxito de conjunto, da concepção do detalhe
ao acabamento final da mise-en-scene. Trata-se sem dúvida da mais ex-
traordinária expressão do gênero pós-moderno.
Concluo entretanto com uma outra observação de Adorno: "O
combate aos museus tem algo de quixotesco, não só porque o protesto
da cultura contra a barbárie permanece sem eco (o protesto sem espe-
rança é necessário)"; mas porque é ingênuo atribuir aos museus ares-
ponsabilidade (e agora sou eu quem o diz) de algo do qual eles não
são senão um dos sintomas, embora um dos mais eloqüentes, e que
por isso mesmo, constituem um dos temas candentes a serem debati-
dos no sentido de elucidar o real significado do momento histórico
que estamos vivendo, desta cultura que muitos já batizaram de cultura
dos museus.
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Formato 16 x 23 cm
Srímero de Páginas 248
ProjetoGráfico Marina Mayumi \Vatanabe
Capa Antonio L izárrnga
Marina Mayumi Watanabe
Ilustrações Arquivo particular da autora
(fontes diversas)
Assistente de Produção Afonso Nunes Lopes
Editora de Texto Alice Kyoko Miyash.iro
Revisãode Texto Geraldo Gerson de Souza
Composição Sidney Itto
Maudcio Sique ira Silva
Rel'isão de Pro\'Qs Geraldo Gerson de Souza
Aurea-Maria Corsi
Paulo Nascimento Verano
Arte-fiual Julia Yagi
Adriana Ap. Garcia
Marcos Keith Takahash.i
Secretaria Editorial Rose Pires
Sueli Monteiro Garcia
Divulgação Mine Akiyoshi
Roselaine Fa bretti
Otávio Orlando Assad
Elizabete Reis de Jesus
Man cha 29 x 46 paicas
Tipologia Baskerville l l/13,5
Fotolito Quadri-Color
Impressão I1nesp
Papel Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Off-
set linha d'água 90 g/m2 (miolo)
Tiragem 1 500
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