O Procipialismo Bioético

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PRINCIPIALISMO BIOETICO. APOSICAO DE R. DWORKIN SOBRE ABORTO E EUTANASIA JOSE N. HECK (UCG-UFGI/CNP4) RESUMO: A doutrina biostica de origem estadunidense ¢ iluminista e, como tal, hostil doutrina da lei natural, ‘Na América Latina, o principialismo dos nérdicos ¢ reduzido ao contexto de surgimento no coragio do Império, avaliado como faldcia genética e substituide por uma coneepsdo biodtiea de intervenga, O artigo presta contas & recepedo critica do principialismo bioético & luz da secular tradigdo latino- americana do direito natural, honrado por ordens religiosas que & época zelavam no ultramar meridional pela ortodoxia da contra-reforma, e desenvolve o prineipio da reveréncia & vida, de acepgdo dworkiniana, como estratégia adequada para a pacificagdo doutrinéria de questdes que afetam a vida ou a morte PALAVRAS-CHAVE: biostica, principialismo, autonomia, Dworkin, aborto, eutandsia ABSTRAC’ The bioethical doctrine, of North-American and illuminist origin, is, as such, hostile to the doctrine of natural law. In Latin America, the Nordies prineipalism is reduced to the context of its appearance in the heart of the Empire, evaluated as a genetic fallacy and substituted by a bioethical conception of intervention. This article pays its dues tothe critical reception of biocthical principalism in lieu ofthe secular Latin-American tradition of natural right, honored by religious orders that atthe time were zealous in the meridional overseas forthe orthodoxy of the Counter-reform, and develops the principle of the reverence of life, of Dworkian sense, as an adequate strategy for the doctrinaire pacification of the matters that affect life or death. KEY-WORDS: Bioethics, principalism, autonomy, Dworkin, abortion, euthanasia, Introdugio Abiostica desponta no cenario cientifico norte-americano como Atenas irrompe da cabega de Zeus, “O sibito surgimento da bioética é um enigma”, escreve o filésofo e médico texano, Hugo Tristram Jr. Engelhardt (1941-), e conclui: “ela veio aparentemente do nada”.’ O impacto da nova doutrina reverte, de noite para o dia, 0 quadro depreciativo apresentado pelo pé modernismo em relago & modernidade. Como carro-chefe pés-moderno, a critica 4 razdo unidimensional do iluminismo torna-se, num abrir e fechar de olhos, uma aliada do receitudtio ético tradicional e do posicionamento diferenciado das religides frente ao compacto doutrinario da bioética, a comegar pelo transplante de érgdos, passando pela reprodugdo assistida até chegar a0 uso das fases iniciais da vida humana, e assim por diante, O que nasce centrado por uma convicgao universalista converte-se, de noite para o dia, num colossal pomo de discérdia ético pés-moderno, 218, HECK, J. N. Principialismo Bioético O surgimento da bioética coneretiza a aspiragdo secular de estabelecer uma ética global para as cigncias biomédicas e promover uma racionalidade abrangente para a consciéneia ambiental, Desde sua origem, constitui objetivo da bioética estadunidense deixar para tris as disputas de cunho religioso € favorecer a lingua franca do ethos secular. “Mas”, observa Engelhardt, “as reflexes morais religiosas sobre a medicina no desapareceram; elas continuam a existir legitimamente como uma espécie de contrabioética’; o confronto entre posigdes de imanéncia e transcendéncia persiste, gera controvérsias, divergéncias e disputas substantivas “sobre a propriedade moral da clonagem, a criagdo de eélulas- tronco a partir de embrides humanos, a interrupgdo do desenvolvimento do feto por meio do aborto, 0 eventual emprego do suicidio assistido pelo médico e da eutandsia ativa voluntéria [..]”? questoes ndo-negociveis por principio pelo valor ético e tampouco no ambito das tradigdes religiosas. De acordo com Engelhardt, ainda que tenha tido sucesso em Paris, Kénigsberg e na Gra- Bretanha, o iluminismo tem na bioética de origem estadunidense uma de suas expresses mais contundentes. “Nascida de condigdes peculiares nos Estados Unidos”, conclui o autor, “ela tomou forma impelida pela inspiracao iluminista de estabelecer uma visio moral secular que libertasse os individuos das restrigdes das tradigdes e da supersticaio”? A bioética transveste o pés-modemismo em antimodemnismo. O principialismo bioético faz frente a duas posigées antitéticas de natureza. A primeira vé no ser humano um espécime fora dos eixos, um estranho no ninho, um ser sem eira nem beira ambiental ou, como W. Kersting (1946-) escreve, “um sem-teto do ponto de vista ecolégico”. De acordo com essa vis do, somos seres extempordneos, nossa complei¢do natural deixa a desejar; abandonados, nao teriamos sobrevivido mais que algumas horas; nao houvesse a alternativa, nao tivesse alguém assumido a outra posigdo, sido otimista em relagdo a nés a ponto de nos acolher e cuidar de nossa fragilidade, nenhum de nés continuaria vivo, e a espécie humanas teria desaparecido faz tempo no breu da noite imemorial. (0 fato de que continuamos de bragos coma vida justifica o otimismo em relagao a humanidade. Por mais desprivilegiados que possamos ser em forga, instinto e aptiddes naturais, ostentamos caracteristicas como entendimento, raza fantasia, curiosidade, tino para aprender e faro para fazer descobertas; em suma, temos a capacidade de compensar nossas caréncias naturais, zerar os déficits cde nossa estrutura fisica e dara volta por cima do nosso desamparo inicial. Nao ha poucos, porém, que desde o Renascimento deseréem da liberdade e voltam sempre de novo aacreditar que a civilizagdo téenico-ciemtifica esta sem rumo, prestes a entrar em colapso ¢ com a catastrofe derradeira ante portas. Abandeira da Autonomina ( cavalo-de-tréia principialista que se insinua sorratciramente nos institutos prescritivos da HECK, J. N, Principialismo Bioético. 219 tradigdo € 0 conceito bioético da autonomia,’ Formulado de maneira explicita nos “Principles” de 1979, a denominagao respeito pela autonomid é desenvolvida ao longo de mais de 50 paginas no livro-texto do prineipialismo, Avessa 4 nogdo kantiana de autonomia, a autonomia principialista corteja descaradamente o livre-arbitrio como expressdo da capacidade humana adquirida para deliberar e exercer escolha de agdes, bem como separar subrepticiamente a congruéncia estabelecida por Kant entre moralidade e autonomia,’ De acordo com a visdo biostica, uma conduta merece ser vista como aut6noma, quando passa pelo crivo do consentimento livre, ou seja, autonomia consiste em discemir acerca de seu proprio bem e tomar decisdes isentas de patenalismo, amparadas por um consentimento informado, Enquanto permanece focada na relagao médico-paciente, a versdo bioética de autonomia inverte a constelagao terapéutica naquilo que essa tem de vertical, autoritéria ou paternalistae recompoe a. influéncia unilateral dos profissionais em saiide pela eliminagdo da coergo, persuasdo e manipulagao por parte dos mesmos. A autonomia principialista limita-se a incorporar na bioética 0 direito moral do paciente de tomar decisdes proprias, mesmo que com isto o indi iduo esteja neutralizando orientagoes, benéfieas prescritas pelo médico. ‘Na medida em que 0 conceito bioético de autonomia rompe as relagdes tipicas da esfera saiide/doenga e passa a abarcar a ampla gama de contatos cotidiano do cidadao com seus pares no dia-a-dia, adquire centralidade programatica a capacidade do sujeito de fazer escolhas auténomas com base um consentimento livre e informado, reciprocamente partilhado com os semelhantes, Aqui, igual a0 que vale na situago terapéutica, ndo apenas o principio da beneficéncia profissional cede lugar 4 autonomia,* mas também as relagdes interpessoais paritérias de agentes declinam seguir toda e qualquer referéncia normativa que reivindique um suposto status de naturalidade, conivente com o que chamamos de natureza, De acordo com Beauchamp & Childress, o principio da autonomia est vinculado 4 cultura moderna, remonta a liberdade de pensamento ¢ expressdo, prescreve a contestagiio de dogmas e, sobretudo, bate de frente com 0 paternalismo,’ cuja anélise conceitual critica é, segundo os dois autores, no minimo tao velha quanto o texto kantiano de 1784 acerca do iluminismo."° Como coluna vertebral da bioética, a autonomia nao altera apenas a maneira de entender o mundo, mas promove também a pretensio de dominé-lo ¢ de colocé-lo & disposigo dos humanos, a servigo de suas necessidades, seus objetivos e propésitos. 0s co-autores do principialismo biostico partitham da posigdo de que inexiste uma teoria ética geral e que hi mais do que uma teoria acerca da tinica e universal moralidade comum."! Segundo Beauchamp e Childress, as miltiplas teorias da moralidade comum “nao fazem apelo a razo pura, racionalidade, lei natural, a um senso moral especial oua algo parecido”."” principialismo nao apenas ¢ avesso & nogdo ciceroniana de reta razdo “como a verdadeira lei em congruéneia com a natureza universal, imutivel, eterna [..]”, de cuja observancia “nenhuma resolugdo do Senado e nenhum eserutinio popular podem desobrigar [..J, pois ¢ a mesma em Roma e Atenas”," mas também nao vé razGes para o rompimento definitivo entre Erasmus de Rotterdam

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