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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - RÁDIO E TV


HELEN MARIA

ANÁLISE DO FILME
“VÊNUS NEGRA" (2010)

São Luís/MA
20019
Vênus Negra (2010), do diretor tunisiano radicado na França Abdellatif Kechiche,
conta uma história real de uma sul-africana explorada como atração de circo, chamada
Saartjie Baartman. O filme trata sobre diversas temáticas, dentre eles podemos destacar o
colonialismo, o racismo e o machismo. Ambientada na Europa do século XIX, Saartjie,
“pequena Sara”, como era conhecida, foi adotada com 10 anos por uma família de
agricultores. Pertencente ao povo Hotentote, povo cuja características físicas era de um
corpo acentuado, tornou-se objeto de exibição em circos, feiras, teatros ou onde
houvesse um bando de curiosos ávidos por conhecer uma “selvagem”, que havia sido
“capturada” na cidade de cabo.
A Vênus Hotentote, como passou à ser conhecida posteriormente, era exibida em
uma jaula, acorrentada como um animal, tinha lábios vaginais “anormalmente”
desenvolvidos, além de grandes nádegas, características bastante exploradas nas
apresentações. E como selvagem a ser exibida na Europa cosmopolita da época, tudo
tinha de parecer “exótico”, “diferente”, “exacerbado”. Além de não falar o idioma local,
a “selvagem”, era obrigada se comportar como tal, tendo atitudes violentas, se jogando
em cima do público, encenando ataca-los, era por vezes cutucada com uma vara. Até
porque a ideia do africano selvagem era usada para justificar o avanço colonial europeu
sobre o continente africano no século XIX.
Saartjie fora vendida a outro dono, dessa vez um domador de animais francês, que,
de modo mais agressivo, a tratava como escrava, e via nela a oportunidade de
enriquecimento fácil e a submetia não só aos espetáculos circenses e grotescos que fazia
como também organizava os “shows” fechados para alta sociedade em Paris, onde os
convidados não só a tocavam, como a exploravam quase que sexualmente.
O francês levou Saartjie a Paris para exibi-la como selvagem na corte francesa,
mas, como ela passou a não mais aceitar isso e não fazer o que se esperava que ela
fizesse nas apresentações, ele a abandonou na rua e ela, sem ter para onde ir, resolveu
prostituir-se para sobreviver.
O texto “Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não
civilizados”, destrincha mais profundamente o caso de Baartman, trazendo a luz algumas
questões sociais. Colocando em evidência os seguintes pontos: Saartjie mulher e negra,
representa um caso extremo de constituição de identidade a partir do olhar do outro.
Privada de sua própria voz e da perspectiva cultural de seu povo, sua identidade pessoal
foi inteiramente subsumida à sua identidade social, fazendo dela uma espécie de
significante vazio que reflete os valores dos grupos que a constituem como um tipo
específico de sujeito. Por fim, ao ser submetida a três tipos de olhares distintos - a
selvagem perigosa e amoral; o negro como raça biologicamente distinta e a heroína dos
modernos movimentos sociais - a circulação de seu corpo, desde o século XIX, tem
garantido a manutenção da lógica civilizatória europeia.
A cena inicial do filme já revela o racismo mascarado sob a forma de ciência. É
uma cena perturbadora em uma aula de anatomia que acontece em Paris do começo do
século XIX. Na ocasião, são comparados atributos físicos de uma mulher negra com as
de macacos. O médico que conduz a aula enfatiza: "Eu nunca vi a cabeça de um ser
humano tão parecida com a de um macaco". Estudiosos acreditavam que o povo
hotentote estavam muito próximos da raiz da espécie humanas, sendo os decrescentes
mais diretos dos macacos. Mais uma vez essa fala evidência o discurso colonial, já que o
objetivo dele é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com
base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de
administração e instrução. Brancos superiores, instruindo e dominando negros
selvagens.
Como afirma Gerard Badou, "[sua] sensualidade monstruosa tinha qualquer coisa
de obscena, mas também de sagrada, que aprisionava o espectador nas profundezas de
sua individualidade. Este, atormentado por pulsões contraditórias, escapava por meio do
riso e da piada. O riso e o escárnio de que Baartman foi alvo indicam a construção de um
objeto que, ao encarnar tudo o que se considera negativo, monstruoso, aberrante,
assegura a positividade, a normalidade de seu oposto. Mais do que isso, assegura a
própria humanidade dos europeus, que passam a se constituir como o Homem universal.
A trajetória de Saartjie evidencia a articulação complexa que se tece entre as
perspectivas de gênero e de raça na constituição de uma dupla alteridade. O que
determinou o percurso de sofrimento de Saartjie começa com a sua cor de pele, que a
reduzia à condição de escrava, mas não se limitou ao paradigma racial. Houve um
sistema machista que sustentou a exploração e a sexualização de seu corpo, diferente do
que ocorria aos homens negros ou às mulheres brancas.
Segundo hooks (1995), o sistema colonial desumaniza o corpo da mulher negra
para garantir que ele reproduza, pelas gestações sucessivas, o próprio sistema de
exploração escravagista. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das
negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de
corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a
perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado (hooks, 1995, p. 469). As
mulheres negras tornaram-se corpos destituídos de mentes e, se são "símbolos sexuais",
isto se deve a uma reificação da mulher como objeto para fins específicos.
Hiperssexual, masculina, promíscua, dominadora e forte: a mulher negra foi
construída ao longo de séculos de opressão racista e machista, potencializando o que
havia de pior nas configurações estigmatizadas dos negros e das mulheres.
Mas é sob a pressão política dos movimentos sociais contemporâneos, numa
espécie de retorno da mirada do monstro, que o discurso civilizador da ciência revela
toda a ambiguidade que o fundamenta. Por um lado, a humanidade de Baartman é
conferida quando, deixando de ser considerada mera espécie natural, passa a fazer parte
do mundo da cultura por meio de sua cremação segundo os rituais de seu povo; por
outro, é esse mesmo discurso que possibilita a proteção do patrimônio dos museus da
Europa. E, assim, a circulação de outros corpos continua garantindo que tudo
permaneça em seu devido lugar.
Saartje é objeto de uma curiosidade que desconsidera seus pudores e sua vontade.
Os cientistas veem nela não mais do que um animal exótico, uma situação que persistirá
mesmo após a sua morte, em 1815. Seu esqueleto e alguns de seus órgãos ficaram em
exibição no Museu do Homem, em Paris, até 2002, quando o presidente sul-africano
Nelson Mandela requereu formalmente que seus restos fossem enviados ao seu país
natal para o sepultamento. Fixando sua câmera em torno de sua formidável protagonista,
o diretor Kechiche estende as sequências, inclusive as da insuportável exposição de
Saartje. Nesse tempo alongado, procura, de algum modo, que o espectador compartilhe
o calvário da personagem e tente entender o mistério de seu silêncio. E a história fica na
carne e na memória de quem vê.
REFERÊNCIAS

FERREIRA, J.; HAMLIN, C. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre


corpos não civilizados. Estudos Feministas, v. 18, n. 3, 2010.

FRAUSINO, SABRINA. Saartjie Baartman entre a hiperssexualização e as


teoriassocias: a criação de uma vênus negra no século XIX, 2017.

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