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FICHA TÉCNICA

Trabalho de Conclusão de Curso


em Comunicação Social
habilitação em Jornalismo
Departamento de Jornalismo e Editoração
Escola de Comunicações e Artes
Universidade de São Paulo

Junho 2008

Sue Angélica Serra Iamamoto


No. USP 3687200
sueiamamoto@yahoo.com

Sobre a publicação

Projeto Visual: Comuna Gráfica


Fotos: Sue Iamamoto
Formato: 23 cm x 15 cm
Mancha: 11,5 cm x 13 cm
Tipologia: Goudy Old Style 9/Estrangelo Edessa 10/12 Terra e território
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Agradecimentos

Aos meus pais, por todo o seu apoio.


À professora Alice Mitika Koshiyama, pela orientação nesta viagem.
A Alcimar e Nelson, da Comuna Gráfica, que, além de serem responsáveis por esta belíssima edição,
também deram um empurrão final para que o trabalho saísse.
A Rodrigo, pela amizade, carinho e incentivo constante.
A Igor, Margot e Christophe, Thais e Anselmo, que me acolheram e foram como uma família em
momentos especiais.
A Delphine e Julie, companheiras cochabambinas.
Às pessoas queridas que deixei no Brasil e às que conheci ao cruzar a fronteira.
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RESUMO/ABSTRACT

Este livro investiga os movimentos camponeses e indígenas na Bolívia. Concentra-se em três movimentos
distintos, que ocupam também regiões geográficas bastante diferentes: o movimento sem-terra boliviano
do departamento ocidental de Santa Cruz de la Sierra; o movimento cocaleiro da região tropical do
departamento de Cochabamba; e o movimento aimará do departamento de La Paz, província Omasuyus.
O trabalho foi feito a partir do acompanhamento do cotidiano de comunidades rurais e de uma intensa
pesquisa bibliográfica, o que traz um panorama mais amplo sobre as disputas pela terra e pelo território
na Bolívia.

This book investigates the peasant and indigenous movements in Bolivia. It focuses in three different
movements, which are also set in very different geographical regions: the landless movement at the
west-side department of Santa Cruz de la Sierra; the coca growers’ movement at the tropical region on
Cochabamba department; and the aymara movement at La Paz department, Omasuyus province. The
work was based on the rural communities’ daily life investigation and on a deep bibliographical research,
which brings a wider view on the Bolivian land and territory disputes.

Palavras-chave:

Bolívia, movimento camponês, movimento indígena, sem-terra, cocaleiros, aimarás, descolonização,


governo Evo Morales.

Bolivia, peasant movement, indigenous movement, landless movement, coca growers, aymaras,
decolonization, Evo Morales period.
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9 ÍNDICE

Prólogo 13

1 - Ser índio e camponês na Bolívia 19


As duas repúblicas 23
Das comunidades às fazendas criollas 24
A Revolução Nacional e a criação do campesinato 25
Pacto Militar Camponês 27
O katarismo e a CSUTCB 28
Os cocaleiros 29
Crise de mediação e Lei de Participação Popular 29
Indígenas do oriente – a outra etnicidade 32
Das primeiras revoltas do milênio à “revolução democrática cultural” 33

2 – O oriente boliviano e a luta pela terra 37


Parte 1 – MST – Comunidade Agroecológica de Pueblos Unidos 39
O assentamento em Yuquises 41
Impactos políticos da ocupação em Los Yuquises 46
Parte 2 – Políticas Agrárias na Bolívia 48
A intervenção do Estado e a Lei Inra 49
A Lei de Recondução Comunitária 53
Limitação da propriedade individual de terras 54
Regularização das terras em tempos de Evo 56
A revolução agrária e o “salto qualitativo” 57
Parte 3 - Desafios para Pueblos Unidos 60
“Nós sabemos produzir” 60
Reunião comunal 64
O que fazer com o dinheiro comum? 65
“Vem, mulher. Vem ver seu chaco!” 66
Chaqueos, desmatamento e impactos ambientais 67
Terra e território Parte 4 – Tierra Prometida, uma outra experiência sem-terra 69
“Tem que continuar caminhando, nem que seja em cima de quatro patas” 72 10
Parte 5 – A batalha de Santa Cruz 74
Bloqueio em San Julián 74
Elite crucenha, racismo e polarização 76
A aparente regionalização da política 81
Estatuto Autonômico e interesses agrários 86

3 - Movimento cocaleiro e a luta pela soberania nacional 89


Parte 1 - Chapare 91
Finados em Santa Helena 91
A região 94
O auge da coca: lógica inversa do camponês 95
Parte 2 - O Estado contra a coca 97
Negociando com o inimigo 97
Lei 1008 100
Erradicação voluntária 102
Desenvolvimento alternativo 103
Parte 3 – A resistência cocaleira 107
Opção Zero 108
Cocaleiras e a opinião pública 109
Coca Zero e erradicação forçosa 110
Guerra pela Coca 111
Parte 4 - O inimigo mora ao norte 113
Viva a coca! Morte aos yankis! 113
Nos EUA: “war on drugs!” 114
Estratégia de domínio 116
Parte 5 – Um cocaleiro no Palácio Quemado 120
Economia da coca 120
“Un catito, no más!” 121
Dona Isabela 123
Parte 6 - Movimento social e político no Chapare 127
Mulheres cocaleiras 129 Terra e território
11 A voz soberana do cocaleiro 131
Visita à Federação do Trópico 134
De movimento social a movimento político 135
Mineiros e cocaleiros 139
Institucionalidade: tática ou estratégia? 140

4 – O movimento indígena aimará de Omasuyus 143


Parte 1 - Rebeliões aimarás 145
A promessa de Katari 145
A convulsão de movimentos de 2000 146
O surgimento do Quartel de Q’alachaka 148
Assassinos em nossa terra 151
A mobilização aimará de 2001 151
A Guerra do Gás e a derrocada de Goni em 2003 152
Parte 2 – O aimará político 158
Luta pela reivindicação ou reivindicação pela luta? 158
A República de Qullasuyu 159
Dialética e dualismo aimará 162
O que é aimará? 164
Parte 3 - Três histórias aimarás 166
Antecedentes de 2000, a história do Mallku 166
Vivendo como os aimarás 171
A Escola Ayllu de Warisata 173

Perguntas, certezas e esperanças 181

Livros e artigos de referência 185


Jornais consultados 187

Legenda de fotos 188


Siglas 191
Terra e território Glossário 193
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Dedico este trabalho ao povo boliviano, que não se rendeu à barbárie e ainda acredita na humanidade.

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PRÓLOGO

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“É incrível. As pessoas na França estudam anos, têm acesso a jornais, revistas, noticiários, etc., e mesmo assim, elegem
um fascista para presidente. Em compensação, aqui na Bolívia, as pessoas muitas vezes nem certidão de nascimento
têm, mas têm um entendimento das coisas impressionante”.

Vários motivos me levaram à Bolívia. Mas a frase desta amiga francesa, que quando cheguei, já
morava há sete anos no país, resume o principal deles. O “entendimento das coisas” boliviano pode ser
chamado de diversas formas: de consciência de classe, de autodeterminação dos povos, de excesso de
politização, até de ignorância.
De qualquer forma, a conversa embalou e logo me lembrei da minha adolescência vivida em Ribeirão
Preto, no interior de São Paulo. Contei para minha amiga que, no Brasil, adolescentes de classe média como
eu só discutiam temas sociais nas aulas de redação preparatórias para os concorridos vestibulares paulistas.
Nestas aulas, éramos estimulados a apresentar soluções para os problemas da sociedade, geralmente nos
dois últimos parágrafos dos textos. A grande maioria das soluções apresentadas – festejadíssimas pelos
nossos mestres – passava pela melhoria do sistema educacional no país. Aquecimento global, violência
urbana, tráfico de drogas, desemprego: tudo se resolveria se o povo fosse mais educado.
Márcio Pochmann, economista da Universidade Estadual de Campinas, há pouco tempo escreveu
sobre a nossa incrível crença na educação para resolver o problema específico do desemprego. Compa-
rando dados do final da década de 1980 e do final da década de 1990 no Brasil, percebeu que o número
de jovens empregados era de cerca de 16 milhões em ambos períodos. Em contrapartida, o número de
jovens desempregados foi de 1 milhão a 3,3 milhões. Sendo que, segundo números do Ministério da
Educação, houve um aumento de 43% nas matrículas no ensino superior, somente no período de 1995 a
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2000. A questão central é, segundo Pochmann, que o desemprego no país é estrutural, não é uma questão
de falta de ajuste entre a demanda do mercado e a formação do trabalhador1. Contudo, se a educação 16
não garante a inclusão, a falta dela sim garante a exclusão, criando um critério bastante perverso a partir
1.Entrevista com Marcio
deste recorte. Pochmann no site: http://
Mas estas estatísticas pouco importam para o imaginário da classe média brasileira. Exemplos da vida www.educacional.com.br/
real recheiam os nossos meios de comunicação, as nossas conversas cotidianas. Famílias desequilibradas entrevistas/entrevista0027.asp
investem em bens quando têm dinheiro, famílias bem estruturadas investem na educação de seus filhos.
Programas assistenciais em favelas tiram crianças do crime e as ensinam a fazer todo tipo de atividade.
Quantos jovens brasileiros não sonham em ultrapassar a barreira da pobreza ao serem esforçados, ao estu-
darem bastante? Nada disso é mentira, mas transpor este tipo de resolução de problemas individuais para
uma resolução sistêmica é de uma superficialidade tão grande que chega a ser criminosa.
O entendimento das coisas boliviano, aquele muitas vezes do analfabeto sem cidadania, obviamente
não é o que o senso comum brasileiro entende por educação. Ele é o oposto dela. Não se trata de uma luta 2.Criollo é o termo que de-
para galgar degraus da sociedade, fugindo da miséria, mas sim de uma luta por libertação. Ele não tem signa o descendente de espa-
suas causas simples de localizar, mas foi forjado durante estes quinhentos anos de presença espanhola. nhóis nascido na América La-
tina. Uma explicação bastante
Parte dele, obviamente, vem do movimento operário, mineiro, fortíssimo durante quase todo o século completa sobre as diversas
passado no país. Mas a organização em sindicatos de todos os tipos, juntas de vizinhos, federações, formas de utilizar o termo nos
coordenadorias, etc., não se deve somente a esta contribuição. Ela parte também de um passado indígena diferentes países da América
Latina pode ser encontrada
muito relembrado, de organização comunitária forte, de uma relação de respeito com a terra e com os
em: http://es.wikipedia.org/
recursos naturais, de uma revolta histórica frente à presença espanhola e ao Estado criollo2 que foi imposto wiki/Criollo
a partir da independência da nação.
Na Bolívia hoje, as memórias se cruzam em uma coexistência de tempos históricos diferentes,
como foi formulado pelo sociólogo boliviano Zavaleta Mercado3. Trata-se de combater ao mesmo tempo 3.ZAVALETA Mercado, René
apud URQUIDI, Vivian. Mo-
os colonizadores europeus; o capitalismo que se expande por todos os lados e impõe um modelo de vimento Cocaleiro na Bolívia.
mercado de terras e de trabalho assalariado; as políticas neoliberais que vendem os recursos naturais para Editora Hucitec. São Paulo,
estrangeiros; o imperialismo do governo estadunidense, que interveio militarmente inúmeras vezes na 2007.
dizimação dos plantadores de coca; a elite criolla e racista que nunca aceitou a presença indígena fora da
sua situação histórica de servidão.
As lutas bolivianas - sejam elas pré, anti ou de superação do capitalismo - são um fenômeno estranho
ao Brasil, apesar de acontecerem justo cruzando a fronteira oeste. São lutas de uma população que
teve massacrados seus valores, cultura e formas de organização social. Mas ela só se organiza porque
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17 permanece, quinhentos anos depois, explorada. O mundo continua miserável, com escravos, fome,
corrupção, violência e pobreza. As respostas que encontra neste resgate ao passado e nesta luta contra o
presente mesquinho trazem um conhecimento novo, distinto do conhecimento formal ao qual estamos
acostumados. Ele é o inverso de submissão e colonização.
Este livro tem como finalidade cruzar esta fronteira, ver as causas do turbilhão que vive o nosso país
vizinho, mas de forma aprofundada e contextualizada. Talvez as pessoas queiram saber mais do que o
efeito para o consumidor brasileiro das políticas de nacionalização do gás de Evo Morales. Talvez ainda
haja um sentido de solidariedade entre povos que acenda um interesse dos brasileiros para saber como
vivem e o que pensam os bolivianos.
Escolhi o movimento camponês e indígena como tema geral porque ele foi o grande protagonista dos
processos políticos e sociais destes últimos anos na Bolívia. O termo “terra” é ligado ao trabalho agrícola,
à reprodução biológica, faz parte do repertório camponês. O termo “território” é ligado à gestão política
do espaço ocupado, à reprodução social e cultural, faz parte do repertório indígena. Juntos formam a
palavra de ordem deste intenso movimento que nas próximas páginas será apresentado.

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MAPA DA BOLÍVIA 18

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1 - SER ÍNDIO E CAMPONÊS NA BOLÍVIA

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Passei o meu último aniversário em Cochabamba. Estava na casa de amigos e era uma sexta-
feira. No meio do jantar, meu anfitrião saiu e começou a montar uma churrasqueira improvisada,
tentando deixar os carvões em brasa. Quando eles já estavam quentes, ele colocou em cima um papel de
seda grande, em cujo centro havia uma série de ervas, torrões de açúcar em forma de amuletos e mais
um ou outro objeto. Tratava-se do q’owa, uma oferenda à Pachamama, a mãe-terra, e que em Cochabamba
se repetia toda primeira sexta-feira do mês. O que é queimado é chamado de mesa e nela podem ser
acrescentados objetos diversos, comidas e folhas de coca. É um dia festivo, os homens vão às chicherias
(botecos onde se bebe chicha, um fermentado de milho típico da região dos vales bolivianos) e a cidade
toda ganha um cheiro de incenso graças à queima das mesas.
Uma das características mais marcantes da Bolívia para o visitante estrangeiro é a fortíssima
presença indígena na vida cotidiana da população. Não é necessário passar muitos dias no país para
perceber isso, é visível em praticamente todo o território boliviano - com mais intensidade no campo, mas
também nas cidades. Por todo lado vemos mulheres vestidas como cholitas: uma camisa justa de botões
na frente e de mangas curtas ligeiramente bufantes; uma saia pregueada chamada pollera, que vai até o
joelho ou, se forem de La Paz, até o tornozelo; e duas tranças compridas, que levam nas extremidades
penduricalhos de fios trançados. Trata-se de uma roupa que as mulheres indígenas aprenderam a
vestir nos tempos de colônia e mantêm esta tradição até hoje. Nos centros urbanos, as cholitas estão
sempre presentes nos negócios informais de rua, nas pequenas vendas de frutas, pães, refrescos, doces e
quinquilharias chinesas.
Segundo dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), a população
indígena boliviana é de 66%, de um total de pouco mais de oito milhões de habitantes. Na área rural, esta
porcentagem aumenta muito mais, chega a 79%. Deste total de povos indígenas, 40% se identifica como
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aimará, grupo étnico tem a sua origem anterior à chegada dos incas e que se concentra principalmente 22
nos departamentos de La Paz e Oruro. Outros 50% se identifica como quíchua, grupo étnico que fala a
antiga língua dos incas e que se tornou uma espécie de idioma geral dos indígenas na colônia1. 1.CEPAL / NAÇÕES UNI-
DAS. Los pueblos indígenas
de Bolivia: diagnóstico socio-
demográfico a partir del cen-
so del 2001, p. 42-46. Santiago
do Chile, 2005. Disponível
em: http://www.cepal.org.ar/
publicaciones/xml/3/23263/
bolivia.pdf

Quanto mais tempo se passa na Bolívia, mais perceptível e entendível se torna este elemento
indígena. No início, é somente algo exótico, objeto de pensamentos generalizantes. Aos poucos, ele
invade os sentidos. Não resta outra opção que não vivê-lo, mesmo sabendo que não fazemos parte dele.
Trata-se de uma identidade em constante mutação, em relação dialética com o presente vivido e o passado
reconstituído. Ele é como as cholitas que têm como principal característica uma roupa imposta pela colônia
ou o quíchua, código geral das populações indígenas andinas, que serviu ele mesmo para dizimar algumas
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23 línguas regionais, mas que hoje é um símbolo forte da cultura pré-colonial, resistente a muitos anos de
presença massiva da língua espanhola.
Com dois terços da população nacional indígena, é possível dizer que na Bolívia qualquer
mobilização popular tem em suas fileiras uma quantidade gigantesca de índios. No caso do movimento
camponês, ele se confunde profundamente com o movimento indígena. É extremamente difícil tratar os
dois enquanto movimentos isolados, as suas histórias e lutas se cruzam desde o tempo da chegada dos
espanhóis. Portanto, determinar o quanto de tal organização é indígena ou é camponesa é, no geral, uma
tarefa que depende mais das movimentações políticas da época, de quais são as pautas e as bandeiras que
levantam a população, do que necessariamente de uma caracterização racial em si.

As duas repúblicas
Os camponeses, na época da colônia, não existiam enquanto tal. Eram brancos ou índios,
tratava-se de uma demarcação étnica por parte dos espanhóis necessária para o estabelecimento da colônia.
Pablo Regalsky, pesquisador do Centro de Comunicação e Desenvolvimento Andino (Cenda), caracteriza
essa etnicidade da seguinte forma: “Está claro que o próprio colonialismo promoveu a diferença cultural
como forma de dominação. A etnicidade é um subproduto do colonialismo. Contudo, a etnicidade tem
2.REGALSKY, Pablo. Etni-
cidad y clase: El Estado boli- um duplo caráter e pode se transformar em uma ferramenta política de resistência. Nisto consiste a sua
viano y las estrategias andinas fluidez, o seu duplo caráter contraditório de instrumento classificatório de dominação e de resistência”2. A
de manejo de su espacio, p. história deste movimento ora indígena, ora camponês, ora ambos reflete esta dinâmica entre identidades
38. CEIDIS / CESU-UMSS
/ CENDA e Plural. La Paz,
impostas ou autodefinidas, entre opressão e resistência.
2003. Tradução da autora. Durante a colônia, como coloca Regalsky, era necessário estabelecer esta diferença para
justificar a invasão de território, o uso de mão-de-obra gratuita, a catequização dos índios, etc. Nesta
época, para facilitar a exploração da força de trabalho indígena nas recém descobertas minas de prata,
a Coroa Espanhola estabeleceu com as elites indígenas locais um acordo baseado no antigo sistema de
tributos inca, a mita. Ela consistia em um fornecimento anual de força de trabalho servil, recrutada nas
comunidades. Os incas utilizavam esta mão de obra para atividades militares, construção de obras públicas,
rituais, etc. Em troca da mita, neste momento utilizada para o trabalho nas minas, a Coroa dava aos
indígenas liberdade de organização em suas comunidades tradicionais, os ayllus, sob obediência aos seus
respectivos caciques ou kurakas (autoridades locais). As leis e as autoridades tradicionais indígenas eram,
portanto, mantidas. Este sistema predominava nas regiões altiplânicas da Bolívia, sendo a colonização das
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terras baixas, do oriente boliviano, um processo diferente e muito mais recente. 24
Isso resultou, nesta parte ocidental boliviana, no que foi chamado de sistema de “duas
repúblicas”, a república dos espanhóis e a república dos índios. Ambas deviam obediência à Coroa
espanhola, mas cada uma possuía sistemas legislativos e administrativos diferentes. O poder acumulado
pela elite indígena, que controlava a mão-de-obra disponível, começou a incomodar a elite criolla. No final
do século XVIII e princípios do século XIX, há uma demanda maior por mão-de-obra livre para trabalhar
nas fazendas e nos centros urbanos, além de haver um movimento do sistema capitalista como um todo
para acabar no campo com mão-de-obra servil, escrava ou de pequenos produtores de subsistência e
transformá-la em assalariada.
Regalsky caracteriza o processo da seguinte forma: “quando a burguesia [boliviana] começa a
se desenvolver mais, no fim do século XVIII, começa a querer se livrar desta elite e exercer o controle
diretamente através do mercado, tanto de terras quanto de força de trabalho”. A elite indígena era
indesejada porque trazia um empecilho para o assalariamento da mão-de-obra, já que a controlava segundo
os seus costumes e normas jurídicas, e também porque administrava parte considerável do território
boliviano através das comunidades indígenas.

Das comunidades às fazendas criollas


Ironicamente, foi exatamente a independência da Bolívia e a sua transformação em Estado
nacional que criou condições para esta burguesia criolla esfacelar os territórios controlados pelos indígenas
e incorporá-los enquanto mão-de-obra às suas próprias aspirações produtivas, como a mineração e as
fazendas. O golpe ideológico do nacionalismo era caracterizar as comunidades autônomas indígenas
como um resquício do colonialismo e do passado atrasado, tentando borrar as diferenciações culturais
estabelecidas pelos espanhóis na colônia e estabelecer uma identidade comum de cidadão. Obviamente,
o modelo de Estado respeitava um padrão europeu liberal e impunha mais uma vez uma forma de
dominação aos indígenas. Esta imposição ideológica se manteve, como veremos, na Revolução Nacional
de 1952 e só começou a ser questionada de forma mais profunda pelo movimento katarista de meados de
1970.
Mas, voltando a nossa cronologia, o fim do século XIX marca uma importante ação contra as
comunidades indígenas feita pela burguesia criolla. Em 1874, foi publicada a famosa Lei de Ex-vinculação,
que acabava com os territórios comunais de origem na tentativa de transformá-los em propriedades
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25 agrícolas individuais e extinguia as autoridades tradicionais.
Como conseqüência desta política, as fazendas criollas se multiplicaram e passaram a agregar
parte dos indígenas enquanto colonos, que igualmente tinham que pagar um tributo ao seu patrão na
forma de dias por semana trabalhados nas terras ou na casa do fazendeiro. Em troca, eles podiam cultivar
as suas próprias terras. Os índios passaram então a tentar reconstruir a figura da comunidade dentro das
fazendas. Esta estrutura agrária se manteve até a Revolução Nacional de 1952 e a sua respectiva Reforma
Agrária de 1953. O período de servidão marca profundamente o repertório histórico do indígena
boliviano, em especial a população aimará da província de Omasuyus, movimento que será apresentado
melhor no quarto capítulo.

A Revolução Nacional e a criação do campesinato


O processo revolucionário da década de 1950 na Bolívia foi marcado por um nacionalismo
arraigado e bastante massivo, forjado pelas penúrias vividas na Guerra do Chaco e também acompanhando
as tendências políticas da Argentina de Perón e do Brasil de Getúlio Vargas. O Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR), partido que levou a cabo a revolução, foi criado transitando entre o fascismo e o
populismo da época. Entre os seus mentores intelectuais tinha figuras da elite criolla urbana insatisfeita
com a conjuntura política. Era então o período de domínio da chamada Rosca, pequena elite de donos
3.Este período é retratado por de minas de estanho que estava ligada aos interesses do imperialismo norte-americano3.
Dunkerley. DUNKERLEY, A princípio, os camponeses indígenas não estavam envolvidos no processo revolucionário que
James. Rebelión en las venas, se deu nas cidades e nas minas em abril de 1952. Mas se lembravam vivamente de um decreto anterior
la lucha política en Bolivia
1952-1982. Editora Plural. La
do governo de Villarroel que acabava com o sistema de pongueaje (trabalho gratuito) nas fazendas. Devido
Paz, 2003. às suas políticas populares, este governo terminou precocemente em 1946, quando houve um golpe de
estado e Villarroel foi assassinado. O fim do trabalho gratuito foi, portanto, a primeira reivindicação
camponesa na revolução e, para concretizá-la, uma intensa ebulição no campo se iniciou. A reforma
agrária foi anunciada um ano depois, em 1953, e tratava-se mais de uma medida para acalmar e controlar
as rebeliões camponesas que já aconteciam em todo o país do que uma convicção política do MNR. Aos
poucos, antigas fazendas são tomadas pelos seus colonos e transformadas em pequenas comunidades. Foi
um processo que durou muitos anos, pois dependia muito do nível de mobilização dos próprios colonos.
Havia regiões que possuíam um movimento camponês mais adiantado, como os vales de Cochabamba,
e regiões que demoraram mais para se organizar e reivindicar os seus territórios. É importante lembrar
Terra e território
também que este processo de Reforma Agrária se deu principalmente nas regiões altiplânicas e nos vales 26
cochabambinos, já que no oriente – região que ocupa grande parte do território boliviano – um outro
processo de desenvolvimento agrário foi adotado, o das empresas agrícolas e latifúndios. No próximo
capítulo este processo agrário da região oriental boliviana será mais aprofundado, pois se trata de uma
luta pela reforma agrária que se estende até hoje.
A forma escolhida para a organização destas novas comunidades criadas pela reforma agrária
era o sindicato agrário, que repetia estrutura formal do sindicato operário, com secretário geral, secretário
de atas, tesoureiro, etc. Contudo, se o contato muito próximo com o movimento operário, vanguarda da
Revolução de 1952, determinou a forma, a função de fato que estes sindicatos cumpriam – e cumprem
até hoje – remetia a uma organização territorial que tem muito mais a ver com as antigas comunidades
indígenas. Paulatinamente, os dirigentes assumiam a figura do antigo cacique na liderança comunitária,
e as assembléias de base eram as que se responsabilizam pela jurisdição interna.
Nesta época, a denominação “índio” era carregada de exacerbado racismo e preconceito. As
movimentações indígenas anteriores à revolução foram em sua maioria caracterizadas como mobilizações
incivilizadas de uma população inferior. James Dunkerley relata a posição do embaixador britânico em
1914 sobre as rebeliões indígenas no campo “‘atualmente (...) toda tentativa de sublevação está condenada
ao fracasso, e o sonho dos índios de reconstruir a dinastia inca, se na verdade ela existiu alguma vez em
seu cérebro torpe e cheio de álcool, desaparecerá frente a uma saraivada de balas mauser’”4. 4.Idem, p. 49. Tradução da
autora.
Frente a tal racismo, extremamente arraigado na população branca e nas elites urbanas que
também participaram da revolução de 52, os índios habitantes da área rural somente puderam se
encaixar no processo assumindo a sua identidade de camponeses. A ideologia nacionalista não permitia
a reafirmação da identidade étnica. Houve um processo extremamente contraditório em curso: ao
mesmo tempo em que os camponeses indígenas eram estimulados a criar seus sindicatos e estruturar um
movimento corporativista com forte ligação com o Estado do MNR e com a sua casta burocrática em
reformulação, haviam resgatado o domínio territorial que lhes foi paulatinamente retirado no período
republicano anterior. Tinham, portanto, todas as condições materiais para reconstruir suas comunidades
indígenas.
Deborah Yasher coloca isso da seguinte maneira: “como parte deste projeto corporativista, os
estados da América Latina incorporam aos índios (...) através de associações camponesas (organizando-as,
desta forma, em linhas corporativistas) (...) O corporativismo, por fim, criou um dualismo dinâmico, com
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27 identidades que mudavam de acordo com o cenário: para o estado os índios assumiram a identidade de
camponeses, no interior da comunidade, os camponeses assumiram sua identidade como índios”5.
Ao revisarmos os acontecimentos futuros no cenário rural boliviano, podemos perceber que,
5.YASHER, Deborah apud
REGALSKY, Pablo, op. cit.,
de forma também bastante contraditória, estas duas tendências se desenvolveram e dão dinâmica ao
p. 94-95. Tradução da autora. movimento camponês indígena até hoje.

Pacto Militar Camponês


Com a promoção da Reforma Agrária, o governo ganhou o respaldo do campesinato, situação
diferente do que ocorria com os operários, que se mantinham mais autônomos ao governo no desenrolar
das suas políticas entre 1952 até o golpe militar de 1964. Contudo, as brigas internas pelo controle do
aparato do governo e do partido se transmitiam aos dirigentes camponeses, ligados a diferentes lideranças
políticas do MNR. As brigas no campo se estenderam até chegar a uma situação bastante sangrenta, com
assassinatos de figuras políticas locais e enfrentamento de diferentes milícias camponesas. Até certo ponto,
o governo do MNR se utilizou desta instabilidade interna, que apontava para a falta de independência do
movimento camponês. Foram milícias camponesas, por exemplo, as que combateram diversas rebeliões
mineiras, como a greve feita em São José em 1959.
A violência e a instabilidade no campo chegaram, porém, a uma situação insustentável,
com os vales cochabambinos nesta época sendo considerados zona militar. Os camponeses passaram,
paulatinamente, a depender cada vez mais do recém recriado aparato militar para “apaziguar” os conflitos
e assim, o general das Forças Aéreas René Barrientos Ortuño começou a ganhar muita popularidade entre
o campesinato. A relação era tão próxima que nas eleições presidenciais de 1964 que antecederam o golpe
militar, a Federação de Camponesa de Cochabamba o nomeou como seu candidato oficial.
Após o golpe organizado pelo mesmo Barrientos neste ano, não foi difícil delinear um pacto
entre o governo militar e os camponeses, no qual o governo garantiria a continuidade da reforma agrária
e os camponeses, a sua fidelidade ao regime. O pacto durou até os anos 1970, quando veio a crise do
petróleo. A partir de então, a Bolívia, seguindo recomendações internacionais, implementou uma política
econômica ortodoxa, de aumento de preços de produtos industrializados e congelamento de salários e de
preços de produtos agrícolas simples.
É importante lembrar que o Pacto Militar Camponês não atingiu homogeneamente os
camponeses bolivianos. De fato, ele conseguiu incorporar o setor mais organizado deles, os sindicatos
Terra e território
agrários dos vales de Cochabamba, os mesmos que participaram de forma mais ativa na Revolução de 28
1952. Contudo, ainda era uma relação baseada na cooptação de dirigentes sindicais e não necessariamente
enraizada nas suas bases.

O katarismo e a CSUTCB
Paralelamente ao declínio do Pacto Militar Camponês, um outro setor do campesinato boliviano
começou a se reorganizar com base em elementos étnicos. O movimento katarista surgiu na província de
Omasuyus, norte da cidade de La Paz e ao leste do lago Titicaca, e resgatou com muita força uma memória
de lutas indígenas de libertação contra o jugo europeu e criollo, tendo enquanto referência mais forte a
figura de Tupac Katari. Aimará, Katari coordenou uma rebelião em conjunto com Bartolina Sisa e cercou
a cidade de La Paz em 1781, chefiando 40 mil indígenas. A rebelião aconteceu paralelamente a muitas
outras, como a de Tupac Amaru no Peru e de Tomás Katari em Potosi. Eram lutas para a reconstituição
do território originário, profundamente radicalizadas e questionadoras da presença espanhola.
Já na década de 1970, o katarismo denunciava o nacionalismo enquanto forma de dominação
européia. No modelo universalista e liberal de Estado-nação, a etnicidade era mais uma vez utilizada como 6. REGALSKY, Pablo, op. cit.,
p. 43. Tradução da autora.
“ferramenta de resistência da comunidade andina”6.
O movimento se espalhou pelas regiões aimarás, criando laços também dentro de setores urba-
nos. O principal feito do katarismo, contudo, foi a criação da Confederação Sindical Única dos Traba-
lhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) em 1979, que substituiu a antiga Confederação Nacional de
Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CNTCB), entidade marcada pelo clientelismo do Pacto Militar
Camponês. O katarismo foi, portanto, o movimento que dirigiu a reorganização do campesinato enquan-
to setor independente e autônomo. A CSUTCB representou um grande avanço nas futuras lutas sociais
no país, pela primeira vez na história uma só entidade tinha a capacidade de mobilizar todos os setores
camponeses indígenas do país, incluindo os do ocidente.
Ao filiar-se à COB (Central Operária Boliviana), a CSUTCB resgatou a luta conjunta entre
camponeses e trabalhadores urbanos, e isso marcou diversas mobilizações do final dos anos 1970 até
meados dos 1980. Contudo, em 1985, o operariado boliviano sofreu um grande golpe na sua principal
força motriz, os mineiros. Foi aprovado o decreto 21060, que promovia o enxugamento do aparato estatal
e reformas econômicas de “estabilização”. A conseqüência direta foi a demissão de cerca de vinte mil
trabalhadores mineiros estatais e, a partir deste momento, a dianteira das mobilizações e lutas populares
Terra e território
29 na Bolívia passou ao movimento camponês indígena.

Os cocaleiros
Durante os anos de 1980, foi se formando um outro importante ator nas lutas sociais na
Bolívia: o movimento cocaleiro. Junto com as políticas de ajuste estrutural, iniciou-se uma intervenção
norte-americana muito mais forte no controle do narcotráfico e de tudo que se ligava a este na Bolívia.
O estopim deste processo foi a aprovação da Lei 1008, em 1988, que militarizava a região tropical do
departamento de Cochabamba. Ali, segundo cálculos unilaterais do governo, havia produção de folha de
coca “excedentária” e que deveria ser controlada e erradicada.
O pesquisador Eduardo Córdova, da Universidade Mayor de San Simon, de Cochabamba,
pontua que o efeito prático da lei era de criminalizar os movimentos camponeses da região do Chapare:
“Trata-se de uma lei inconstitucional. Segundo ela, uma pessoa é culpada e depois tem que demonstrar a sua
inocência. Ela inverte os princípios jurídicos. A partir dela, a repressão contra os camponeses no Trópico
de Cochabamba foi muito grande”. Isso trouxe como conseqüência uma organização dos camponeses
cocaleiros muito maior, que passaram cada vez mais a adotar uma postura autônoma e enquanto setor
diferenciado dos demais setores de produtores rurais, buscando um discurso antiimperialista em
resposta à presença americana e resgatando a folha de coca enquanto um símbolo da cultura indígena e
de resistência. No terceiro capítulo uma descrição muito mais ampla será feita dos efeitos das políticas
antidrogas na região do Chapare.

Crise de mediação e Lei de Participação Popular


A década de 1980 foi terrível para o movimento popular boliviano. Se por um lado a COB
levou um golpe duríssimo em 1985 com a demissão dos mineiros, o movimento camponês e indígena
ainda não estava completamente estruturado dos resquícios do Pacto Militar Camponês e também sofria
muito com as políticas imperialistas e neoliberais, como é o caso dos cocaleiros. Córdova atribui este
enfraquecimento por dois motivos. O primeiro era o desgaste intenso dos movimentos populares, em
especial da COB, fruto das mobilizações para a conquista da democracia no início da década. O segundo
motivo foi que as políticas neoliberais não eram neste período antipopulares, pois, apesar dos impactos
na organização dos trabalhadores, estabilizavam a economia do país abalada pela imensa inflação.
A democracia deste período foi chamada de democracia pactuada, pois como nenhum dos
Terra e território
partidos que concorriam às eleições conseguia ganhar com maioria absoluta dos votos, era construído 30
um acordo parlamentar na indicação presidencial. Com os movimentos populares se reorganizando, sem
forças para grandes mobilizações e intervenções nacionais, “os políticos se responsabilizaram pela política”,
como define Córdova este período, sem laços entre os governos e os movimentos sociais. O máximo que
estes últimos conseguiam fazer eram algumas ações isoladas de resistência às políticas neoliberais, mas 7.ZAVALETA Mercado, René
apud URQUIDI, Vivian, op.
nunca como protagonistas do processo e sempre enquanto atores reativos. cit.
Na realidade, os governos também se viam débeis, uma característica geral do Estado boliviano.
Zavaleta Mercado caracterizava este estado como um “Estado Aparente”, incapaz de atuar na totalidade
do território nacional, pois a sua fundação foi artificial, externa à grande maioria da sociedade boliviana7. 8.Um exemplo disso é a re-
A concretização disso é seqüência de golpes de Estado que há na história do país e a ingerência estrangei- forma no sistema boliviano
de pensões e aposentadorias
ra na determinação das políticas nacionais, que muitas vezes foram feitas sem levar em conta nenhuma feita em 1996. O novo sistema
especificidade local8. Contudo quando havia setores sociais envolvidos que lhes davam respaldo, o Estado passou a estabelecer como ida-
se fortalecia. O apoio dos mineiros e da COB, por exemplo, foi essencial para a Revolução de 1952 e o de de aposentadoria 65 anos,
quando a expectativa média
governo do MNR que a seguiu; assim como as milícias camponesas foram fundamentais para proteger o de vida dos bolivianos na épo-
regime militar das insurreições populares mais autônomas. ca não passava de 62.
No início dos anos 1990, já não havia tanta certeza na população de que a estabilidade da
economia e as políticas de privatização de fato faziam com que as riquezas fossem divididas e a vida da
9.Gonzalo Sánchez de Lozada
população melhorasse. Os movimentos sociais começam a se rearticular com mais força e a resistência ao foi presidente de 1993 a 1996
neoliberalismo crescia e já apontava para um contra-ataque. e de janeiro a outubro de
Até que em 1994, o Estado propôs uma reconciliação com o movimento camponês através 2003. A sua primeira gestão
da promulgação da Lei de Participação Popular (LPP). Era época do governo de Gonzalo Sánchez de foi marcada pela privatização
de estatais e por reformas que
Lozada9, que tinha enquanto seu vice-presidente um indígena aimará katarista, Victor Hugo Cárdenas. incluiam setores indígenas
A LPP incluía no sistema eleitoral municipal os territórios rurais, pois antes dela o território municipal e camponeses no aparato es-
era somente urbano e a população rural só votava nas eleições nacionais. Esta lei mudou intensamente a tatal. A sua segunda gestão,
iniciada em um momento
perspectiva política institucional das populações rurais. Os sindicatos rurais poderiam ter seus próprios de efervescência popular, foi
candidatos e os camponeses poderiam ser eleitos e participar no interior do Estado. marcada por grande endureci-
A interpretação desta lei varia conforme a orientação teórica. Contudo, caracterizações negati- mento militar contra os movi-
vas e positivas da lei têm conclusões parecidas: houve aumento de presença camponesa nos municípios e mentos sociais que levou à sua
queda em outubro de 2003.
a organização política institucional deste setor aumentou. A lei também é identificada como um elemento
importantíssimo para a criação e expansão do maior fenômeno eleitoral boliviano dos últimos tempos, o
Terra e território
31 Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP), partido do atual
presidente Evo Morales.
A princípio e antes do seu funcionamento, a maior parte dos movimentos sociais era contrá-
ria à lei, em especial a CSUTCB. Uma das principais críticas era a de que a lei não havia sido feita em
conjunto com estes movimentos, que era uma política imposta de cima para baixo. Tratava-se de uma
política geral de “eliminação de atores estratégicos”, como denomina Eduardo Córdova, pois enfraquecia
a organização nacional dos movimentos, na medida em que focava o centro das disputas políticas no
espaço regional municipal. “Estes movimentos diziam ‘agora nós vamos brigar pelo dinheiro da parti-
cipação popular, não pelo que faz o governo em nível nacional’”, lembra ele. Mas ele crê que, ao final,
a lei foi positiva para os movimentos sociais, pois os re-inseriram nos panoramas das disputas políticas
institucionais. Dentro desta perspectiva teria surgido o MAS, pois se tratava de um instrumento político
que deixava claro a escolha pela institucionalidade em oposição à luta armada. “Os camponeses vão tentar
entrar na institucionalidade e desde aí vão tentar fazer mudanças, mas respeitando a Constituição e as
leis”, enfatiza Córdova.
Pablo Regalsky tem uma análise negativa da lei quase pelo mesmo motivo. Segundo ele, a LPP
surge para criar “uma capa intermediária entre o campesinato indígena e o Estado”, transformando o ins-
trumento político camponês (MAS), que antes era um instrumento para criar soberania e cuja proposta
inicial era a defesa da terra e do território, em um partido que se propõe a “resolver a crise do Estado-
nação”. A prática política deste partido no poder municipal acabou por significar não a independência
10.DO ALTO, Hervé. “El
do campesinato, a sua autonomia, mas sim a sua dependência com relação ao Estado e a criar “faccio-
MAS-IPSP boliviano, entre la nalismos dentro desta mesma organização para ver quem repartia o dinheiro que as municipalidades
protesta callejera y la política administravam”.
institucional”. In: MONAS-
Fato é que, a partir da criação e da legalização do MAS-IPSP, a presença política deste partido
TERIOS, Karin; STEFANO-
NI, Pablo; DO ALTO, Hervé nas eleições municipais e nacionais foi exponencial. Em 1999, na primeira eleição municipal que enfren-
(editores). Reinventando la taram, elegeram nove prefeitos. Em 2002, primeira eleição nacional com a sigla, Evo Morales alcança o
nación en Bolivia. Movimien- segundo lugar. Em 2005, em meio à crise que derrubou dois presidentes, Evo Morales ganha as eleições
tos sociales, Estado y poscolo-
nialidad. Clacso / Plural. La
presidenciais com 53,7%. Pela primeira vez na história da democracia boliviana um candidato ganha com
Paz, 2007. maioria absoluta10.

Terra e território
Indígenas do oriente – a outra etnicidade 32
Paralelo a esta história de êxito, um outro movimento começava a aparecer no cenário nacional.
Em agosto de 1990 uma marcha de indígenas saiu de Trinidad, departamento de Beni, em direção a La
Paz. 800 indígenas chegaram à sede do governo e pela primeira vez fizeram com que o país percebesse 11.LEHM Arcaya, Z. apud
GARCIA Linera, Álvaro (co-
a sua existência. Esquecidos e alvos fáceis do abuso dos madeireiros e fazendeiros das regiões baixas ord.); CHÁVEZ Leon, Marxa;
bolivianas, eles pediam o reconhecimento da sua cultura e dos seus territórios. COSTAS Monje, Patricia.
Eram indígenas provindos dos departamentos de Beni, Santa Cruz, Tarija, Chuquisaca, de Los movimientos sociales en
Bolivia, p. 219. Editora Plu-
diversas etnias, como chimanes, yuracarés, movimas, sirionós, guaranis, matacos, tacanas, etc11. A marcha ral. La Paz, 2008.
teve tanto impacto na opinião pública que o governo emitiu imediatamente oito decretos, reconhecendo
quatro territórios indígenas e se comprometendo a formar uma comissão de regularização dos direitos
indígenas nas terras baixas (Amazônia e leste boliviano)12. 12.GARCIA Linera, Álvaro
(coord.) et al., idem, p. 217.
A história do oriente boliviano, por mais que tenha relação profunda com a do ocidente, traçou
caminhos diversos. A expansão das fazendas criollas se deu em menor grau neste território pela grande
extensão de terras e dificuldades no seu domínio devido ao clima e à vegetação tropical. A colonização 13.Ainda hoje, esta região
de fato ficou muito mais nas mãos dos padres jesuítas, que estabeleceram nesta região missões nos moldes possui mais de 30 povos in-
dígenas, grande maioria dos
das que foram feitas no Brasil e no Paraguai. Ao contrário do oriente, que sempre contou com indígenas 36 reconhecidos pela nova
aimarás ou quíchuas, as terras baixas bolivianas concentravam dezenas de povos indígenas13. Constituição Política do Es-
A Reforma Agrária de 1953 praticamente se limitou nesta área a eliminar legalmente o tado, ainda em processo de
trabalho servil, sendo que até hoje em algumas regiões14 o trabalho escravo e servil permanece, apesar das aprovação.
denúncias das mais diversas organizações. Não houve divisão de terras nessa área, pois era um território
reservado para a criação de empresas agrícolas segundo as políticas públicas pensadas pelo nacionalismo 14.Chaco de Tarija e áreas de
coleta de castanhas na Amazô-
desenvolvimentista. O decreto 3464, que estabeleceu a reforma agrária em 2 de agosto de 1953, dava nia boliviana.
proteção a propriedades pequenas e médias e a empresas agrícolas, concentradas em sua maioria na região
de Santa Cruz15. 15.DUNKERLEY, James, op.
Neste panorama, os povos indígenas desta região pouco ou nada participaram do processo. Os cit., p.105.
que estavam incorporados nas fazendas enquanto peões e trabalhadores servis saíram às cidades. Porém,
muitos estavam ainda isolados em seus territórios, lutando contra os avanços das forças que concentram
poderes políticos e econômicos nestes locais, como madeireiros, agroindustriais e petroleiras, mas sem
estarem minimamente incorporados aos debates nacionais. Até hoje, uma das maiores lutas políticas de
muitos destes povos é conseguir documentos pessoais que possam garantir-lhes um mínimo de seguridade
Terra e território


33 pública e status de cidadania.
16.Albó aponta que o pri- A década de noventa inicia apontando perspectivas para estas populações. As organizações
meiro despertar étnico na
América Latina foi com os
indígenas já haviam passado por um período de estruturação interna, embalados pela criação da
povos shuar nos anos 1960 na Confederação Indígena do Oriente Boliviano (Cidob) em 1982 e por iniciativas de outras populações
Amazônia equatoriana. Isso indígenas amazônicas em outras partes da América Latina16. A marcha de 1990 é resultado, portanto,
depois desembocou na criação desta organização crescente17. Além disso, a memória dos 500 anos de presença espanhola aproxima uma
da Confederação de Naciona-
lidades Indígenas da Amazô- série de ONGs de defesa dos direitos indígenas destas organizações, e a sua luta por reconhecimento
nia Equatoriana (Confeniae), ganha um destaque internacional. Trata-se de mais um resgate da etnicidade, que desta vez não tem
que forma, em conjunto com relação com a cultura andina e altiplânica, mas que têm um inimigo comum a esta, a ocupação dos seus
a Associação Interétnica de
Desenvolvimento da Selva Pe-
territórios e a tentativa de eliminação gradual da sua cultura e modo de vida.
ruana (Aidesp) e com a Cidob, “Terra e território” é o grande mote das mobilizações dos anos 1990 e unia estes movimentos
a Coordenadora Indígena da étnicos a todos aqueles que se organizam no campo de forma mais sindical. É com este princípio somado
Bacia Amazônica (Coica), em ao de autodeterminação que será pensado pela primeira vez o Instrumento Político Pela Soberania dos
1984. Esta organização ajudou
muito na estruturação dos tra- Povos (IPSP), que depois irá adotar a sigla de MAS. Impulsionado pelo setor cocaleiro, ele é aprovado
balhos da Cidob na Bolívia. em 1995 em um congresso conjunto da CSUTCB, da Confederação Sindical de Colonos da Bolívia
In: ALBÓ, Xavier. Pueblos in- (CSCB)18, da Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia – Bartolina Sisa (FNMCB-BS), e a
dios en la política, p. 184-205.
Plural / Cipca. La Paz, 2002.
Cidob (que neste momento já se chamava Confederação de Povos Indígenas da Bolívia).

17.GARCIA Linera, Álvaro Das primeiras revoltas do milênio à “revolução democrática cultural”
(coord.) et al., op. cit., p. 218. No início dos anos 2000, as lutas e mobilizações começaram a entrar no terreno urbano. Já
havia uma avaliação consensuada dos setores urbanos de que os ajustes econômicos aplicados durante os
18.O termo colono neste con-
texto remete ao camponês que anos 1990 não distribuíram riquezas, mas sim contribuíram para tornar a Bolívia um país mais pobre e
foi levado pelo Estado a zonas dependente.
de colônias, onde obtiveram O estopim se dá em 2000 na cidade de Cochabamba, com a privatização da água. A tentativa
dotação de parcelas de terras.
Estes colonos se organizam na
malfadada do governo Banzer de privatizar os serviços de água causou uma grande mobilização que uni-
CSCB e são diferentes, por- ficou ambientalistas, camponeses, moradores de bairros e trabalhadores urbanos. Parte destes serviços
tanto, dos colonos em estado não era controlada pelo Estado, mas sim por juntas comunitárias e, na prática, seria expropriada pelo
de servidão nas fazendas antes governo para ser cedida a uma empresa privada. Esta frente social travou uma batalha intensa na cidade,
da reforma agrária.
articulou-se com ativistas de San Francisco nos Estados Unidos (EUA) para pressionar a empresa ameri-
cana Bechtel que estava negociando com o governo, e por fim, conseguiu barrar a privatização da água.
Terra e território
A Guerra da Água foi chamada de primeira revolta do milênio e foi também a primeira conquista efetiva 34
dos movimentos sociais bolivianos contra o neoliberalismo que avassalava o país.
A largada havia sido dada. Para movimentos sociais bolivianos estava clara a possibilidade não
somente de barrar as políticas do governo quanto também de avançar nas suas próprias pautas. A Guerra
do Gás, melhor explicada no capítulo quarto, lançou nacionalmente a agenda de outubro, com a propos-
ta de nacionalização e industrialização do gás natural. Marchas nacionais de camponeses neste período
pediam a modificação da Lei Inra (Instituto Nacional de Reforma Agrária), uma nova Reforma Agrária, e
a refundação das bases do país através de uma Assembléia Constituinte, propagando os ideários descolo-
nizadores de plurinacionalidade e reconhecimento das diversas etnicidades e das autonomias indígenas.
Em 2002, cocaleiros também tinham a sua própria Guerra pela Coca, na qual denunciavam o fechamento
de seus mercados e a violência que viviam devido à militarização da região.
Foi em meio a tantas revoltas populares, que vinham avançando nas suas reivindicações, que
dois presidentes da Bolívia caíram (Sánchez de Lozada em 2003 e Carlos Mesa em 2005). Em 2005,
novas eleições foram chamadas e Evo Morales, eleito presidente, inicia a chamada “revolução democrática
cultural”. Ele era o único candidato com a capacidade de fazer a Bolívia “governável”, ou seja, de parar as
revoltas populares crescentes. Isso se deve em parte porque seu governo podia responder às reivindicações
populares e em parte também porque possuía uma imensa legitimidade enquanto liderança social.

***
Escrevo este texto enquanto este governo está em vigência e seus rumos estão ainda abertos, mas
já se pode notar muitos dos seus efeitos na sua principal base de sustentação, o movimento camponês e
indígena.
Contudo, a pretensão aqui não é estabelecer uma análise do que é o governo de Evo Morales.
Claro que em muitos momentos as interpretações – que são muitas – vão aparecer. A questão central é
demonstrar a linha histórica que levou a estes indígenas coloniais, depois camponeses e depois indígenas
novamente, a lutarem tão ferozmente pela sua soberania. Trata-se de uma luta tão forte que derrubou
presidentes, recuou o imperialismo norte-americano, e tem força suficiente para refundar o país e começar
a história de novo.
Para entender as forças motrizes deste movimento político e social, acompanhei entre setembro
de 2007 e junho de 2008 três movimentos com culturas camponesas distintas.
Terra e território
35 Relato as experiências por certa ordem cronológica e espacial, pois escolhi o percurso tendo
em vista a perspectiva de uma brasileira. Cruzei a fronteira sul mato-grossense com o departamento
boliviano de Santa Cruz, região oriental do país. Lá, encontrei uma estrutura agrária bastante parecida
com a do Brasil: grandes latifúndios; monocultura de soja e de cana; trabalho assalariado miserável;
movimentos indígenas enfraquecidos na sua imensa diversidade e por anos e anos de missões religiosas;
milícias armadas de latifundiários, trabalho escravo e servil, crimes gritantes contra os direitos humanos
que são geralmente omitidos pela grande imprensa local; e, por fim, um recente movimento sem-terra,
inspirado pelo brasileiro, que simboliza boa parte dos desafios e contradições que vivem os camponeses
desta região.
Em seguida, fui ao Chapare, região militarizada graças à política norte americana de Guerra
contra as Drogas, causando a morte de dezenas de camponeses plantadores de coca entre os anos de
1980 e 1990. Trata-se de uma zona tropical que reúne camponeses migrantes do altiplano, mas que
conformaram uma identidade cocaleira e se transformaram, pela fortíssima repressão sofrida, em um dos
atores mais fortes do movimento camponês boliviano. Não é gratuito que dali surgiu o impulso central
para a criação do MAS-IPSP e dali provém o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales.
Por fim, num caminho que vai das terras baixas bolivianas ao altiplano andino, de leste à oeste,
conheci o movimento aimará da província de Omasuyus, no departamento de La Paz. Ali os camponeses
não são migrantes, sempre ocuparam o território onde estão. Sua luta pode se focar no resgate aos recursos
naturais, mas acima de tudo lutam pela sua reconstituição enquanto povo, em contraposição ao Estado
colonial. Resgatam com força os seus símbolos culturais aimarás e heróis da luta pela sua libertação, como
Tupac Katari e seu cerco à cidade de La Paz em 1781. Eles foram atores políticos essenciais do período
de 2000 a 2005, e suas mobilizações, chamadas de rebeliões indígenas aimarás, interpelaram com muita
radicalidade a estrutura do Estado boliviano.

Terra e território
36
MAPA DE SANTA CRUZ

Detalhe

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37

2 - O ORIENTE BOLIVIANO E A LUTA PELA TERRA

Terra e território
38

Terra e território
39

COMUNIDADE AGROECOLÓGICA DE PUEBLOS UNIDOS

Ao encontrar uma pessoa pela primeira vez, Luiz Guerra raramente esboça reação. Quando
muito, vira seu rosto para o lado oposto, com vergonha ou desdém. Luiz tampouco fala muitas palavras,
mas “mama”, “papa” e “casa” estão no seu vocabulário de grunhidos típicos de crianças de dois anos de
idade. É filho único, sem muitos amigos. Costuma brincar com o loro bravo de estimação ou - quando
chove - com garrafas de plástico vazias em poças d’água.
Luiz mora com seus pais em Pueblos Unidos, uma comunidade formada por famílias do Mo-
1.O MST-B não é de uma afi- vimento Sem Terra – Bolívia (MST-B)1 que fica na província de Guarayos, norte do departamento de
liação ou de um braço inter-
nacional do Movimento dos
Santa Cruz. As famílias reivindicam 16 mil hectares nesta área, que serão terras coletivizadas, propriedade
Trabalhadores Rurais Sem da pessoa jurídica “Comunidade Agroecológica de Pueblos Unidos”. A posse das terras ainda não está
Terra (MST) brasileiro, apesar finalizada, mas a comunidade já conta com uma resolução de assentamento no local, o que os permite
de muitas referências políticas
produzir e viver nas terras legalmente.
e organizativas no movimento
sem-terra brasileiro. Há muitas crianças como Luiz na comunidade, entre um e oito anos. Quando as crianças
atingem uma idade maior, a ida das famílias para povoados maiores é quase inevitável. Com quase dois
de fundação, Pueblos Unidos ainda não conta com uma escola própria. É por questões como educação e
saúde – há um posto de saúde, mas falta médico e medicamentos – que muitas das 350 famílias que estão
legalmente morando na comunidade não passam a maioria do tempo nela. Boa parte dos moradores,
contudo, está esperançosa com a melhoria de infra-estrutura da comunidade e estão aguardando ajudas
governamentais. Com isso, poderão se estabelecer de forma mais constante em Pueblos Unidos.
A área de urbanização fica perto da entrada da comunidade e é nela que se concentram as
habitações das famílias, uma grande construção retangular que serve de sede das atividades comunais
(assembléias, reuniões, aulas etc.), três vendas, o posto de saúde e um poço – que fica no meio de um
terreno aberto, ao redor do qual se dispõem os principais prédios. Todas as construções são cabanas,
Terra e território
com tetos de folhas de motacu, uma palmeira abundante nesta região, e paredes de madeira ou chuchiu, 40
uma espécie de bambu. Os carros não entram na área de urbanização, pois ela é separada da estrada que
leva a Pueblos Unidos pelo Rio Grande. O acesso à comunidade é, portanto, sempre feito de barco ou
canoa. O que parece encantador aos olhos dos visitantes, um símbolo de reclusão ou mesmo rebeldia
da comunidade é, na verdade, um grande problema. Toda a produção de Pueblos Unidos tem que ser
transportada em barcos precários, o que dificulta o cotidiano e a auto-suficiência dos moradores.
As crianças que ficam na comunidade inventam o que fazer. As maiores ajudam seus pais nas
plantações. As outras gostam de imitar as atividades dos adultos, brincam de canoa, acompanham as
assembléias do lado de fora da sede. Têm muita vontade de ir à escola e, quando se identificam, dizem
seus nomes, sua idade, e a classe equivalente que estariam se estivessem na escola. Quando as famílias
chegaram a essas terras, em setembro de 2006, foi contratado um professor para alfabetizar as crianças.
Mas por problemas econômicos, o professor teve que ser dispensado.
Neste momento, a comunidade conta somente com a ajuda voluntária da professora Fabiola
Rojas, que visita a comunidade todos os finais de semana para alfabetizar os adultos da comunidade. São
ao todo 90 alunos, que acompanham duas turmas, uma que vai da primeira a terceira série e outra que
vai da quarta a sexta série. A professora ensina castelhano e matemática e tem como suporte de ensino
as cartilhas Yo sí puedo2, que fazem parte de um programa recém criado pelo governo Evo Morales de 2.Em tradução literal “Eu pos-
so sim”.
erradicação do analfabetismo, inspirado por um programa equivalente de Hugo Chávez na Venezuela.
Não há apoio para os outros materiais escolares, como cadernos, canetas, giz de lousa, etc. As aulas, apesar
de serem voltadas para os adultos, contam com extensa participação das crianças. Algumas arrumam
cadernos e lápis e passam a fazer seus próprios rabiscos, outras simplesmente correm de um lado para o
outro, como numa festividade.
Luiz, chamado por Caluchito pelas outras crianças de Pueblos Unidos em referência a seu pai, é
muito novo e ainda não se encanta muito pelas atividades na sede. Passa a maior parte do tempo do lado
oposto da urbanização, na venda de seus pais. Trata-se da maior venda da comunidade, a única que conta
com um gerador de eletricidade e, portanto, com um refrigerador que pode oferecer bebidas geladas nos
dias quentes que predominam nesta região. Quem cuida da venda é a sua mãe, Benita, que mantém as
contas em um caderno pequeno. Seu pai não sabe ler muito bem e se volta mais para o trabalho no cam-
po, onde têm pequenas plantações de arroz, batata, tomate e verduras.
Juan Carlos Guerra, o Calucho, tem 29 anos e faz parte do movimento sem-terra desde 2001,
Terra e território
41 um ano após a criação do movimento na Bolívia. Lembra com orgulho o passado de lutas que levou a
conquista das terras de Pueblos Unidos. Entre 2001 e 2006, estas famílias tiveram que ocupar e desocupar
3.Trata-se de uma parceria mais de quatro localidades, muitas vezes enfrentando conflitos violentos com os latifundiários da região
que o movimento sem-terra norte do departamento de Santa Cruz. “Entramos em La Luna, de La Luna nos tiraram; depois de San
tem com o Centro de Estudos Caetano nos tiraram; de Guadalupe nos tiraram, e paramos em Yuquises, onde ficamos por um ano”,
Jurídicos e Investigação Social,
organização sediada em Santa
conta Calucho. E Yuquises traz aos sem-terra de Pueblos Unidos muitas lembranças amargas.
Cruz de la Sierra, especializa-
da em questões agrárias. O assentamento em Yuquises
Segundo Javier Aramayo, o assessor jurídico dos sem-terra e que acompanha todas as batalhas
4.Terras fiscais são terras de
legais empreendidas pelo movimento3, a descoberta na fazenda Los Yuquises se deu sem querer. Na época,
propriedade do Estado boli- o movimento havia feito uma brigada para localizar terras fiscais4 que poderiam ser revertidas para a
viano que ainda não tiveram reforma agrária. No dia 8 de agosto de 2004, quando esta brigada cruzava Los Yuquises, propriedade do
nenhuma destinação. fazendeiro Rafael Paz, encontrou homens que carregavam armamento moderno. Os sem-terra estavam em
maior número e os detiveram. Logo descobriu na fazenda todo tipo de armamento, metralhadoras, fuzis,
5.Região que fica no departa- granadas tipo limão, aparatos de radiocomunicação. “Era obviamente um arsenal que havia entrado na
mento de Tarija. Bolívia via contrabando, pela fronteira com o Paraguai”, diz o assessor.
Aramayo tem a convicção de que este material era utilizado para fomentar os “comitês de
6.O massacre de Pananti ocor- autodefesa da terra”, que seriam um braço armado dos latifundiários da região. Ele explica que houve
reu em novembro de 2001 uma organização das famílias detentoras de terras para evitar o avanço dos assentamentos sem-terra e
no departamento de Tarija, dos questionamentos às suas propriedades. “O movimento sem-terra se inicia com força na região do
quando um grupo de para-
militares armados atacou um
Grande Chaco5, onde passa a ter um caráter mais orgânico no final dos anos 1990. Logo em 2000 começa
acampamento do movimento, a tomar mais corpo e a se relacionar com outras organizações sociais, e neste ano há uma proliferação
ferindo e matando campone- impressionante de assentamentos. Foram afetadas as propriedades de muitos deputados, senadores,
ses sem-terra. autoridades, militares, etc. E em 2001, ocorre o massacre de Pananti6, e ele foi uma espécie de contestação
violenta dos grupos de poder para a eliminação seletiva dos lideres do MST. E o efeito disso foi que, em
vez do movimento ser extinto no Grande Chaco, ele começa em Santa Cruz a partir de 2002. E neste
7.Do departamento de Santa momento são afetadas grandes famílias do norte crucenho7, que é uma espécie de pólo de desenvolvimento
Cruz.
agrícola e industrial, onde o Estado concentrou grandes capitais entre os anos 1960 e 1970”. Portanto, a
partir da experiência na região do Grande Chaco, as famílias detentoras de terras passaram a se preparar
para o conflito com os camponeses sem-terra.
Terra e território
Aramayo ainda explica uma particularidade da expansão do movimento no norte crucenho. Por 42
ser uma região que concentrou muitos investimentos estatais para a produção agrícola, houve também
nela um estímulo à migração de famílias do oriente ao ocidente, para se tornarem mão-de-obra destas
fazendas. “Estas famílias vão vivendo ao redor destas fazendas. Então quem compõe majoritariamente o
movimento sem-terra na região? São os filhos da antiga fracassada reforma agrária. São os jovens nascidos
e criados em Santa Cruz, filhos daqueles que haviam sido trazidos como força de trabalho para fortalecer
as antigas fazendas tradicionais da região, para sustentar esta burguesia agrícola”.
A descoberta de armas em Yuquises faz parte deste contexto. Logo após a descoberta, foram
feitas denúncias ao Ministério Público e a imprensa foi chamada. O movimento decidiu que permaneceria
assentado na fazenda até que o processo terminasse e tudo fosse investigado. Além da denúncia do
armamento ilegal, era denunciada a falta de atividade produtiva do local, motivo suficiente para a reversão
da propriedade da terra.
“Nós dizíamos que o movimento havia se tornado um defensor da democracia”, diz Aramayo.
Mas isso, obviamente, não foi reconhecido na opinião pública. A imprensa, conta ele, deturpou tudo:
“diziam que havia um campo de treinamento guerrilheiro, com mais de 60 trabalhadores e que estavam
atrapalhando a atividade produtiva de Santa Cruz e que este campo estava sendo assessorado por
colombianos, guatemalenses, peruanos, e que tinham campos de tiros e torres de comunicação à satélite.
Fizeram uma montagem para desprestigiar o movimento”.
Após terem encontrado as armas, o clima era muito tenso. Aramayo conta uma situação que
ilustra isso. A região era isolada, e para que as autoridades a alcançassem eram necessárias várias horas
de viagem. Durante a noite, chegaram representantes de vários ministérios, de organizações de direitos
humanos, da defensoria pública, e eles se prepararam para iniciar uma reunião. Estavam todos com
medo, pois era uma situação delicada e passível de um conflito armado a qualquer momento. O que eles
não sabiam era que havia sido organizado um sistema de sentinelas, no qual cada guarda comunicava a
sua posição através de foguetes. Quando soou a troca de estalidos, as autoridades se desesperaram e se
jogaram ao chão, com todos os seus guarda-costas por cima, para divertimento geral dos que ali estavam.
A investigação nos órgãos de governo correu e inclusive o serviço de inteligência do exército
boliviano chegou a confirmar, através do Ministro de Governo da época, Saul Lara, uma corrida a
armamento na região de Santa Cruz. Mas, ao final, todo processo foi arquivado, absolutamente ninguém
foi indiciado pela existência daquele armamento.
Terra e território
43 E aí, os papéis se inverteram. Os militantes do movimento passaram a ser acusados de terroristas
e a pressão dos latifundiários crescia a cada dia para que eles fossem despejados da fazenda. “O governo
8.Los Tiempos, 13/05/2005. é cúmplice e inimigo dos produtores e da institucionalidade crucenha, por isso põe todo o poder do
Agropecuarios acusan al gobi-
erno. Disponível em: http:// Estado para mostrar os do bando sem-terra como vítimas e não como o que realmente são: delinqüentes
www.lostiempos.com/noti- organizados para a subversão”, disse na ocasião José Céspedes, presidente da CAO (Câmara Agroindustrial
cias/13-05-05/13_05_05_ do Oriente)8. No dia 15 de setembro de 2004, a CAO publicou uma carta aberta no jornal La Razón, que
nac4.php. Tradução da autora.
ameaçava textualmente que, se o governo não tomasse iniciativas para impedir as ocupações de terras, os
agroempresários iriam “defender seus direitos com seus próprios meios”9. Ou seja, não somente foram
identificadas e denunciadas iniciativas paramilitares, mas também os promotores desta iniciativa, via
9.QUIROGA, Omar; NÚÑEZ, CAO, explicitaram que elas poderiam acontecer.
Eulogio. Estudio de impacto
en políticas de tierra y terri-
No dia 8 de maio de 2008, a ameaça de “justiça com seus próprios meios” dos latifundiários se
torio: estudio de caso de “Los concretizou. Rafael Paz, dono de Yuquises, contratou para esta ocasião mais de uma centena de homens
Yuquises”, p. 16. CIPCA Re- para despejar à força os camponeses do MST que estavam em sua propriedade. Calucho descreve a ação
gional Santa Cruz. Santa Cruz dos paramilitares assim: “Primeiro queimaram nosso arroz e quando os companheiros foram tentar salvar
de la Sierra, 2005. Tradução
da autora. seus produtos, prenderam nove deles. Eles foram torturados, amarrados, vendaram seus olhos. Era uma
gente drogada, que tiraram da prisão e contrataram para brigar com a gente”. Segundo ele, os militantes
do MST seqüestrados foram resgatados pelos sem-terra do próprio assentamento, que se organizaram para
enfrentar os contratados.
10.Bolpress.com, 21/06/2005. Contudo, grande parte destes contratados foi convocada para trabalhar como peões nos cam-
Enviados a los Yuquises con pos de cultivo, não para formarem uma guarda paramilitar de Rafael Paz e despejar os sem-terra. José Luis
engaños para enfrentar a
Alvarada contou à imprensa que eles foram contratados por Vicente Socompi, funcionário de Rafael Paz,
los Sin Tierra advierten con
tomar la casa de Rafael Paz. que lhes disse que iam “roçar e fazer a colheita de arroz, e ficou de nos pagar 50 pesos bolivianos por
Disponível em: http://www. dia. Roçamos só um dia e Socompi não nos avisou nada, não nos disse que havia gente ali, ele nos levou
bolpress.com/art.php?Cod=2 direto ao matadouro. Inclusive quando houve enfrentamento com os sem-terra, Socompi não estava com
005001365&PHPSESSID=2a
320f85dc64affeaa85342b265e
a gente, ficou no acampamento mais atrás”10.
420d. Tradução da autora. De qualquer forma, 67 destes homens contratados por Paz ficaram sob a guarda do MST de-
pois do enfrentamento, para serem entregues mais uma vez às autoridades, pois se esperava que alguma
iniciativa fosse tomada. Este fato, ao invés de evidenciar a iniciativa aberta paramilitar, levou a imprensa
a acusar os sem-terra de seqüestradores. As pessoas que foram mantidas por somente alguns dias pelos
do movimento sem-terra eram sempre identificadas como “reféns”, sem levar em conta que o que pedia
Terra e território
44

Terra e território
45 o MST era que estas pessoas fossem julgadas pela justiça e não eram utilizadas como moeda de troca para
nenhuma negociação.
11.Los Tiempos, 13/05/2005, O setor agroindustrial obviamente bradava contra os “delitos flagrantes contra a vida e a
op. cit. Tradução da autora. liberdade”11 destes “reféns”, omitindo o fato de que eles foram levados à área para despejarem os sem
terra e nem sequer sobre esta condição foram avisados pelos seus contratantes. Ironicamente, os “seqües-
12.Bolpress.com, 21/06/2005, trados” pelo MST quando chegaram a Santa Cruz após a sua tão reivindicada libertação foram aos meios
op. cit. de comunicação não para reclamar dos abusos sofridos nas mãos dos sem-terra, mas sim para pedir o
pagamento dos seus serviços prestados12. “Com uma mentira muito grande nos levaram e graças à gente
eles já são donos destas terras”, comentaram eles para a Bolpress, uma publicação on-line alternativa, e
13.Bolpress.com, 21/06/2005, concluíram “eles nos fizeram brigar entre pobres”13.
idem. Tradução da autora.
No dia seguinte ao enfrentamento dos sem-terra com os contratados de Paz, uma conferência de
imprensa foi organizada pelo MST na praça central de Santa Cruz de la Sierra. A intenção era denunciar os
ataques aos direitos humanos promovidos pelos latifundiários, que estavam ameaçando um assentamento
feito na defesa dos interesses públicos. No final da atividade, o dirigente do MST que estava organizando
14.Expressão utilizada para a conferência, Silvestre Saisari, foi atacado até ficar inconsciente pela Unión Juvenil Cruceñista (UJC). Na
identificar os indígenas prove- ocasião, ele disse a uma publicação local: “Arrastaram-me até me levarem outra vez à praça, em frente à
nientes do ocidente altiplâni- sala de imprensa, onde tiraram meus documentos, meu celular. Começaram a mexer nas minhas coisas e
co boliviano.
gritavam ‘vamos te matar, colla14 de merda. Agora sim você vai ver o que é sofrer’ (...) Não entendia porque
estavam gritando, porque estavam me batendo. Pedi-lhes para parar, mas continuaram me batendo na
boca, no nariz, no rosto e começaram a me chutar (...). Sentia-me muito mal, e perdi a consciência quando
15.Entrevista dada para a pu- me bateram atrás da orelha”15.
blicação El Nuevo Dia. Cit. in: E no dia 25 de maio, cerca de nove meses depois da descoberta das armas e da presença do
QUIROGA, Omar et al., p. movimento em Yuquises - e depois de muita pressão dos latifundiários - o despejo finalmente foi efetiva-
18. Tradução da autora.
do. Na época, o movimento já tinha nestas terras cerca de 3,5 mil hectares cultivados, em sua maioria de
arroz. Aramayo lembra que chegou em Yuquises cerca de 24 horas antes do despejo. Documentaram a
produção que era equivalente a 400 mil dólares, e de tudo isso nada foi recuperado. “Tocaram fogo, de
propósito. Houve companheiros detidos, perseguidos, ilegalmente. Consideraram proprietários de toda
esta produção os fazendeiros, nada deveria ser assim”, lembra ele.
Não houve maior resistência ao despejo, pois o MST contava com a promessa do governo de
dotação imediata de terras fiscais, assim que saíssem da fazenda Los Yuquises. O movimento deu um
Terra e território
prazo de cinco dias para que as terras fossem dotadas, mas, no dia 30 de maio, o governo voltou atrás no 46
que haviam combinado. “O Ministro de Desenvolvimento Sustentável, Erwin Aguilera, afirmou que o
Estado não negociará com o MST nenhuma dotação de terras em Santa Cruz. Contudo, esclareceu que
estudam a entrega de terras florestais aos camponeses que não participam em invasões”16. A partir desta 16.El Deber. Cit. in: QUIRO-
demonstração do governo, as famílias do MST que estavam em Yuquises começaram novamente as suas GA, Omar et al., p. 22.
Tradução da autora.
ações de pressão, indicando constantemente uma volta à fazenda improdutiva. Ao final, somente com a
entrada do governo Evo Morales a tão esperada dotação de terras foi feita. A propriedade de Rafael Paz
continuou intacta, mas os sem terra conseguiram a dotação de terras fiscais em uma área vizinha.
Calucho recorda bem de um diálogo que teve com algumas autoridades no momento do
despejo. “Eu falei pro capitão ‘eu não vou me render nunca, porque sou homem e preciso de terra para
trabalhar’, ‘Mas vocês são uns invasores! Por que fazem tanta desordem?’, me disse ele e eu respondi
‘Porque eu estou com a razão. Sou boliviano e tenho o direito de ter um pedaço de terra para trabalhar. E
é por isso que vou lutando. E vou entrar de novo aí. Vocês estão me tirando daí, mas vou entrar de novo”.
E por ironia do destino, foi este mesmo exército que acompanhou Calucho, sua família e mais centenas
de outras na chegada a Pueblos Unidos em 5 de setembro de 2006, quando finalmente foram legalizadas
terras para a conformação da sua tão esperada comunidade.

Impactos políticos da ocupação em Los Yuquises


O caso da fazenda Los Yuquises teve um grande impacto durante o governo de Carlos Mesa
(outubro de 2003 a junho de 2005) e nos debates acerca da propriedade da terra na região do oriente
boliviano. No período que durou o assentamento, de 8 de agosto de 2004 a 25 de maio de 2005, dois
governadores do departamento de Santa renunciaram graças às pressões do setor latifundiário.
A ocupação precisa ser vista sob o prisma da gestão de Carlos Mesa, que substituiu o governo
de Gonzalo Sánchez de Lozada derrocado pelas mobilizações sociais de outubro de 2003. A promessa de
Mesa na época era garantir um maior diálogo com os movimentos sociais, também porque sabia que se
seu governo mantivesse a mesma agressividade de Sánchez de Lozada, não duraria nem um mês. Portanto,
a sua postura inicial ao lidar com o assentamento dos sem-terra era negociar, posição considerada ina-
ceitável para o setor agroempresário da região, que começou a atacar o governo com todas as armas que
detinham: forte poder econômico e controle dos principais meios de comunicação do país e da região,
em especial os televisivos.
Terra e território
47 Mesa sabia o risco que correria se enfrentasse militarmente os assentados, pois isso poderia
resultar um efeito multiplicador da mobilização parecido com o que houve em outubro de 2003. Ao final,
acabou cedendo à pressão dos latifundiários e enviou o exército à região, endurecendo o discurso contra
os movimentos sociais. É possível que esta tenha sido uma tendência geral do governo nesta época, o que
acelerou a sua queda em junho de 2005, promovida pelos movimentos sociais.
Por outro lado, o movimento sem-terra viu na descoberta das armas a possibilidade de de-
nunciar a ação paramilitar dos latifundiários na opinião pública, de expor a improdutividade destes
fazendeiros e a necessidade de redistribuição das terras. Talvez a idéia fosse reverter a imagem do mo-
vimento sem-terra na Bolívia como um movimento de invasores ilegais, para um movimento de defesa
dos interesses públicos e que sofre com os mais diversos ataques aos seus direitos humanos. Contudo,
no geral, a grande imprensa foi bastante eficaz na inversão de papéis, e o movimento sem terra mais uma
vez foi tomado como ilegal, violento e que atacava os direitos de propriedade, que, como vimos, são os
únicos que existem para o setor latifundiário de Santa Cruz. A conquista efetiva da sua luta foi fazer a sua
demanda conhecida em território nacional. No interior dos movimentos sociais, a história das famílias
de Yuquises se somou às tantas sagas do seu repertório histórico. Isso lhes garantiu, por exemplo, que a
dotação de terras para o assentamento de Pueblos Unidos, feito já no primeiro ano do governo de Evo
Morales, tenha sido uma prioridade, com grande conteúdo simbólico na região.
Uma outra implicação que teve este conflito de Yuquises foi o questionamento que o setor
agroindustrial fez à figura do governador. Neste último período do governo Mesa, se tornou fortíssima a
reivindicação regional de que este cargo fosse eleito diretamente pela população crucenha, pois a Bolívia
é um estado centralizado e não federativo, e o cargo de governador era, até o momento, indicado pelo
governo central. Provavelmente, os setores de poder econômico da região identificaram a tendência de
mudanças radicais no governo central, que a partir de 2005 é conquistado por um partido de origem
popular, contrário, portanto, aos interesses destes setores. Estabelecer em Santa Cruz um feudo político
que blindasse a agroindústria boliviana dos reveses da política nacional foi a saída mais viável encontrada.
Mais à frente, veremos como esta aparente luta entre governo central e governo departamental vai se
desenvolver na reivindicação dos Estatutos Autonômicos.

Terra e território
48

POLÍTICAS AGRÁRIAS NA BOLÍVIA

Pueblos Unidos tem este nome porque reúne famílias que vieram de diversas localidades do
departamento de Santa Cruz e, principalmente, dos departamentos que ficam no altiplano boliviano –
Chuquisaca, La Paz, Oruro e Cochabamba. A maioria dos seus moradores fala pelo menos dois idiomas,
no geral quíchua e castelhano. Como “filhos da fracassada reforma agrária”, os trabalhadores sem-terra
espelham uma das histórias mais duras do campo boliviano. Seus pais vieram do altiplano porque as
políticas agrárias na região não evitaram a criação de minifúndios incapazes muitas vezes de garantir a
soberania alimentar das famílias que neles viviam. Estes camponeses não tiveram escolha para além de
se tornarem empregados em terras alheias e esperavam contar com a sorte para talvez, algum dia, ter a
sua própria terra que trabalhar. Para conseguir isso, contudo, tiveram e têm até hoje que enfrentar uma
luta arraigada com as poderosas famílias que controlam as terras do oriente do país, como demonstrou a
experiência de Yuquises.
Seus inimigos conquistaram suas terras nos governos nacionalistas, muitas vezes de forma ile-
gal, por relações pessoais com os políticos no poder, geralmente sem nenhum amparo em uma política
de interesse público. Apesar da Reforma Agrária de 1953 proibir o latifúndio, ela permitia extensões de
terra de até 50 mil hectares, sendo que há comprovadamente dotações de terra maiores que esta área. A
dinâmica da distribuição de terras entre os anos 1950 até os 1990 funcionou muitas vezes conforme os 17.ROMERO, Carlos. “La vio-
lencia como componente del
interesses políticos de cada governo. Se no altiplano era interessante manter o ritmo da distribuição de proceso agrario boliviano”.
terras para garantir a imensa quantidade de milícias camponesas favoráveis ao regime, o que se reproduziu 19/08/2005. Artigo disponí-
também no Pacto Militar Camponês, o ocidente era utilizado como espaço de barganhas políticas com vel em: www.cejis.org
apadrinhados17. Ali se acomodou a elite com grandes extensões de terras, latifúndios escondidos sob a
denominação empresas agrícolas. O movimento sem-terra boliviano tem, portanto, enquanto ação pri-
mordial a “reivindicação de uma verdadeira reforma agrária no oriente boliviano”, como caracteriza o seu
Terra e território
49 dirigente Silvestre Saisari.
As características da malfadada reforma agrária no oriente boliviano poderiam ser ligadas a
várias situações. Uma delas seria a de que as relações entre os fazendeiros e os colonos nesta região
possuíam na década de 1950 um grau de exploração diferente do que no altiplano e nos vales, o que
não teria acarretado no oriente a explosão de tomadas de terras tal como houve no ocidente depois da
revolução nacional. Talvez por este mesmo motivo não havia organizações sindicais camponesas fortes
18.CEJIS / FSUTC-AT-SC. na região que pudessem liderar o processo. Além disso, por a região ter uma grande quantidade de
Situación y desafíos del movi- terras baldias, não havia uma necessidade direta de desapropriação das fazendas que já existiam. Por fim,
miento campesino cruceño, p.
157. Santa Cruz, 2006.
quando se viram ameaçados, os latifundiários rapidamente denominaram as suas propriedades enquanto
empresas agrícolas, protegidas pela lei, ou dividiam as suas terras entre parentes18.
O resultado da reforma agrária em Santa Cruz pode ser resumido em números bastante simples.
De 1953 a 1992, período em que o decreto de reforma agrária de 1953 esteve vigente, foram dotados cerca
de 23 milhões de hectares a aproximadamente 13 mil proprietários. Metade destes proprietários eram
19.Dados do arquivo do Ins-
tituto Nacional de Reforma grandes, com propriedades acima de 500 hectares – sendo quatro delas maior do que 50 mil hectares.
Agrária (INRA) boliviano. In: A outra metade eram pequenos ou médios, com propriedades entre um a 500 hectares. Os primeiros
CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. detiveram 97% das terras, os segundos, somente 3%19.
cit., p. 159.
Aramayo apresenta dados de ilegalidades: “Neste período se pode considerar de que de cada 10
processos agrários que se tramitaram, sete estão com vícios irregulares de nulidade absoluta ou relativa
(...). Além disso, a antiga reforma agrária distribuía a terra com a condição de que quem a recebia teria que
apresentar um plano de investimentos, no qual se comprometia a fazer atividades produtivas e se reportar
ao Estado. Não faziam nada, ninguém revisava o plano de investimentos”.
20.CEJIS / FSUTC-AT-SC, No início da década de noventa, a corrupção nos órgãos de reforma e gestão agrária chegou
op. cit., p. 162. a um nível insustentável. Na época, estourou o caso Bolibras, no qual o Ministro da Educação Hedim
Céspedes, do governo Paz Zamora, tramitou a seu favor uma dotação de 100 mil hectares de terras20. Estes
e outros casos obrigaram o governo a intervir nos órgãos responsáveis – na época o Conselho Nacional de
Reforma Agrária e o Instituto Nacional de Colonização – e a propor uma série de ações para reestruturar
as políticas agrárias no país.

A intervenção do Estado e a Lei Inra


O período de revisão das políticas agrárias durou de 1992 a 1996, quando foi decretada a
Terra e território
Lei do Serviço Nacional de Reforma Agrária (SNRA), Lei de No. 1715, também conhecida como Lei 50
Inra. Este período tinha como função estudar o ordenamento territorial do uso do solo boliviano,
localizando geograficamente as superfícies que já haviam sido dotadas e aquelas que estavam vazias e eram
propriedades do Estado; identificar as sobreposições de titulações de terras e as irregularidades cometidas
no passado acerca dos assuntos agrários; estabelecer estatísticas sobre o assunto; e por fim elaborar as leis 21.Idem, p. 162.
correspondentes às conclusões deste processo21.
Logo, todas estas políticas culminaram na elaboração da Lei Inra, que continuou o processo de
revisão e regulamentação das terras, processo chamado de saneamento agrário. Os debates neste período
ficaram polarizados por camponeses, indígenas e colonos, através das suas entidades representativas, de
um lado e de outro lado o Poder Executivo e o setor empresarial agrícola. De forma geral, a disputa se
dava acerca das diversas concepções do que deveriam ser as políticas agrárias no futuro. O governo, junto
com o empresariado, defendia que “a regulação da posse das terras e o seu aproveitamento eficiente 22.Ibidem, p. 165. Tradução
da autora.
fossem determinados pelo mercado de compra e venda destas”22. As organizações camponesas indígenas
defendiam uma revisão completa das irregularidades nos processos de dotação de terras anteriores,
verificação de cumprimento de função econômica e social das propriedades para eventual reversão dos
títulos para o Estado. Além disso, defendiam a política de distribuição de terras fiscais para camponeses,
indígenas e colonos e não para grandes proprietários.
Ao final, a Lei Inra acabou sendo aprovada em agosto de 1996 sem estabelecer consensos com
o setor camponês indígena, que logo iniciou uma série de protestos. A lei, de fato, continha algumas
disposições que favoreciam os trabalhadores rurais e que estes mais tarde vão aproveitar. A principal delas
era reafirmar a distribuição gratuita de terras a comunidades, além de determinar critérios de equidade
de gênero para a distribuição e posse de terras.
O principal ponto negativo era relativo ao cumprimento da função social das propriedades, já
que o simples pagamento de imposto era considerado símbolo de não abandono e, portanto, dificultava
muito a reversão das terras ao Estado, mesmo que estas estivessem comprovadamente improdutivas.
Uma outra característica negativa era que a expropriação de terras improdutivas, segundo esta lei, não
poderia “ser vinculada à solicitação da parte interessada”, o que dificultava ainda mais a identificação 23.Ibidem, p. 168 e p. 173-4.
de terras sem função social, pois excluía as iniciativas de controle social dos movimentos indígenas e
camponeses, possibilidade existente na vigência da antiga Lei de Reforma Agrária23. Uma demanda do
setor camponês que também foi completamente ignorada foi o estabelecimento de limites mais rigorosos
Terra e território
51 para a propriedade agrária, mantendo o limite estabelecido anteriormente de 50 mil hectares.
No geral, a lei reproduzia o espírito das políticas neoliberais propostas na época. Sua
característica mais marcante era garantir o direito proprietário das empresas agrícolas, dificultando todas
as formas de fazer cumprir a disposição constitucional que obrigava estas propriedades a terem função
social. As negociações do conteúdo da lei que vieram na segunda metade dos anos 1990 foram para
24.Ibidem, p. 177. favorecer ainda mais o setor empresarial, sendo que as demandas do movimento camponês indígena eram
constantemente ignoradas24.
Sua principal medida prática era estabelecer um prazo de 10 anos, até 2006, para terminar a
regularização das terras na Bolívia. Neste período, teria que ser feita uma análise integral do território
boliviano, titulando as propriedades legais, revertendo ao Estado as que não possuíam função social -
política, como vimos, que já estava comprometida devido às próprias disposições da lei - e identificando as
terras fiscais para a continuidade da reforma agrária e conseqüente distribuição de terras a comunidades
indígenas e camponesas.
No decorrer destes anos, muitas dificuldades foram encontradas. A principal delas era o fato
da regularização das pequenas propriedades camponesas ou comunitárias serem realizadas de forma lenta
ou inexistente por falta de verbas. Segundo a lei, estas propriedades teriam que ser tituladas de forma
gratuita, com os custos garantidos pelo Estado. Mas, na realidade, as poucas propriedades camponesas
tituladas tiveram os seus trâmites pagos pelos próprios sindicatos agrários ou conseguiram assistência de
25.Cit. in: CEJIS / FSUTC-AT- alguma organização não governamental. Paralelo a isso, os latifundiários, por terem verbas para custearem
SC, op. cit., p. 212. Tradução os processos de regularização, avançaram muito mais na titulação das suas terras. Ou, como disse um
da autora.
dirigente colono em 2003, “trabalharam muito para legalizar o ilegal”25.
Obviamente, o setor camponês se mobilizou para agilizar a regularização das suas terras. Diego
Marquina, secretário executivo da Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses Apiaguaiqui
Tumba de Santa Cruz (FSUTC-AT-SC) em 2003, cita duas mobilizações com marchas de diversos setores
26.Cit. in: CEJIS / FSUTC-AT- camponeses, uma em 2000 e outra em 2001, que resultaram em acordos para acelerar o processo de
SC, op. cit., p. 204.
regularização das terras e que mais tarde foram ignorados26.
Além disso, houve diversas denúncias de corrupção no interior do Inra, órgão governamental
responsável por efetivar a regularização do território boliviano. O Inra departamental de Santa Cruz, por
exemplo, tinha boa parte dos seus membros ligados à CAO e, segundo um informe da Equipe de Análise
de Conflitos do departamento de Santa Cruz, de fato o órgão público tramitava mais rapidamente
Terra e território
as demandas dos setores detentores de poder27. Casos como estes levaram o governo a terceirizar esta 52
responsabilidade a empresas privadas, quase eliminando o controle público que se poderia ter do processo.
27.CEJIS / FSUTC-AT-SC, op.
De fato, tal medida não agilizou o processo e nem o tornou mais transparente. cit., p. 211.
“O Inra, mais que trazer soluções, trouxe problemas aos pequenos produtores e não foram
identificadas terras fiscais, não foi revertido nem um metro quadrado de terras, por isso o problema está
nos maus funcionários do Inra porque não estão cumprindo a lei”, reclamava um dirigente colono em
28.Cit. in: CEJIS / FSUTC-
dezembro de 200328. AT-SC, op. cit., p. 211. Tradu-
A declaração demonstra a impaciência dos pequenos trabalhadores rurais com a ineficiência ção da autora.
e a desigualdade do processo depois de sete anos de aprovação da lei e faltando três anos para que o
prazo final da regularização das terras terminasse. Tratava-se de um setor absolutamente descontente com
as políticas do governo e descrente das supostas iniciativas de reforma agrária, de localização de terras
fiscais e reversão de terras improdutivas, que poderiam assegurar uma divisão mais justa do território
boliviano.
Na realidade após anos da antiga reforma agrária e de mais de uma década da Lei Inra, a
realidade do campo boliviano continua sendo bastante desigual e demonstrando um potencial imenso
para a distribuição entre comunidades camponesas. Aramayo resume a situação nos seguintes dados:
29.Aproximadamente 16 mi-
“Dos 109 milhões de hectares que tem o país, são considerados de vocação agrícola cerca de 15%29. lhões de hectares.
Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, até 2006, somente 2,3 milhões de hectares de
vocação agrícola estavam funcionando. Uma hipótese que se tira disso é que há terra para produzir. E,
contudo, não há. Somente os dados de referência oficiais estão indicando que há uma grande possessão
de terra improdutiva e ociosa”.
E disso sabem os camponeses do país. Não somente pelos dados, mas por viverem nas fronteiras
com estas propriedades gigantes e improdutivas. Além disso, a manutenção destas “terras de engorde”
é um negócio cada vez mais rentável, graças à explosão mundial de agrocombustíveis que causou um
aumento generalizado nos preços das terras.
No final da década de noventa, ao perceber a morosidade do processo de redistribuição agrária
da Lei Inra – se é que se pode dizer que havia algum – os camponeses sem-terra intensificaram as tomadas
de terra. Carlos Eologio Cortez, dirigente da regional do MST de Santa Cruz, identifica neste momento o
surgimento do movimento sem-terra: “O MST começou nos anos 2000, porque em 96 se criou a Lei Inra
para regularizar as terras, com este objetivo. Mas até o ano 2000, não havia nada. E é por isso que surgi-
Terra e território
53 mos, para pressionar que estas terras [que no processo de regularização do governo fossem identificadas
como fiscais ou fossem revertidas de latifúndios improdutivos] fossem dotadas às famílias sem-terra”.
Portanto, além de todas as marchas que proliferavam no país denunciando as políticas agrárias,
o início dos anos 2000 é um período muito intenso de ocupações de terras e de conflitos rurais. Em
teoria, a Bolívia sempre teve um arcabouço legal que proibia o latifúndio e as propriedades agrárias
improdutivas. Contudo, a falta de interesse das classes políticas e da burocracia que operava os órgãos de
governo, somada às brechas da legislação aproveitadas pelo setor latifundiário, impedia a efetiva aplicação
da lei.

A Lei de Recondução Comunitária


Com a chegada de Evo Morales ao Palácio Quemado, as expectativas camponesas cresceram
muito. A principal reivindicação era a revisão da Lei Inra para que as reversões das terras improdutivas –
que todos sabiam que existiam - fossem feitas e mais terras estivessem à disposição da reforma agrária. Logo
no início do governo, foi anunciada a segunda revolução agrária da Bolívia, nome com o qual o governo
tem tratado a sua política agrária até o presente momento. Nos seus primeiros decretos, o governo voltou
a centralizar o Inra, descentralizado na gestão anterior de Carlos Mesa. Tratava-se de uma reivindicação
dos movimentos sociais, pois ficando o poder político do órgão da reforma agrária mais ligado à gestão
departamental, as chances dos interesses das elites locais prevalecerem aos do campesinato aumentavam.
Logo, começou a se articular um dispositivo de revisão da Lei Inra, que foi chamada de Lei de
Recondução Comunitária da Reforma Agrária. Foram necessários onze meses de governo para que a lei
fosse aprovada, tornando-se a Lei de No. 3545. Durante estes meses uma intensa negociação foi tentada
com os setores empresariais agrícolas, representados principalmente pela CAO e pela Confederação Agro-
pecuária Nacional (Confeagro), mas ao final do processo claramente os interesses eram irreconciliáveis. A
oposição ao governo começou a boicotar a aprovação da lei no congresso, e ela só foi finalmente aprovada
quando uma intensa mobilização camponesa indígena chegava a La Paz em forma de marcha.
A Lei de Recondução Comunitária trouxe na prática uma melhor caracterização do que consis-
te e do que não consiste função econômica social, facilitando a reversão de terras improdutivas em terras
fiscais. Também reforça a disposição que já havia na Lei Inra de que a distribuição de terras fiscais para a
reforma agrária seria feita para comunidades (indígenas ou não) e não para propriedades individuais de
qualquer tipo. Ela começou a ser aplicada a partir da aprovação do seu regulamento, somente em junho
Terra e território
de 2007, processo este que também causou batalhas midiáticas entre governo e setor agrário empresarial. 54
Isaac Ávalos, secretário executivo da CSUTCB, é muito confiante no processo de reversões agrárias que
inaugura a lei. “Tenho certeza que em alguns anos teremos pelo menos 10 milhões de hectares para distri-
buir a nossos irmãos em todo o país. Esta é a política que o presidente lançou com esta nova lei, e que foi
também conseguida pelos movimentos através da marcha no ano passado [novembro de 2006]”.
Elva Terceros, investigadora de temas agrários na Bolívia, percebe na lei um grande avanço no
que diz respeito ao controle social dos movimentos sociais rurais no processo de saneamento e titulação
de terras. Antes, segundo ela, o processo era feito quase às escondidas, por empresas terceirizadas, muitas
vezes somente com o conhecimento do proprietário das terras a serem saneadas. Nunca se sabia ao certo
o que passava entre eles, pois a presença do Estado quase não existia. Com a lei, o Estado voltou a ser
protagonista do processo de saneamento, acabando com as terceirizações e aumentando a participação
de setores sociais no processo. Além disso, antes da lei o controle social estava exclusivamente restringido
às comissões agrárias, onde estão as expressões coorporativas e de poder econômico deste setor, aponta
Carlos Romero, membro do MAS e também especialista em temas agrários. “Agora, este controle social
foi passado a qualquer cidadão. Qualquer cidadão pode ser denunciante de terras que não são trabalha-
das”, comenta ele.

Limitação da propriedade individual de terras


A aplicação destas políticas ocorreu paralelamente ao processo de Assembléia Constituinte, que
iniciou em 2006 e terminou no dia 9 de dezembro de 2007, quando foi aprovado o texto constitucional
em detalhe. Foi principalmente neste processo que centraram forças os movimentos camponeses e ali
conseguiram aprovar a sua principal reivindicação referente às políticas agrárias: uma limitação para
a propriedade agrária. Saíram da carta final duas propostas de limitação, 5 ou 10 mil hectares, que
ainda precisam passar por um processo de referendo que deve acontecer em 2008. Junto com este
referendo, também passará por uma consulta pública a nova Constituição, que, se aprovada, concretizará
politicamente as medidas do governo Evo Morales.
Isaac Ávalos defende a proposta de limitação de 5 mil. “Porque um empresário tem meio mi-
lhão de hectares e um camponês tem dois hectares. O que estamos reivindicando agora é que ele fique
com 5 mil hectares e o resto que vá para o Estado (...) O povo dirá: voto pelo latifúndio ou voto pelo 5 mil
(...) [Assim] vai sobrar muita terra para os que não têm em nosso país”.
Terra e território
55 Já Carlos Romero, que também foi deputado e presidente da Comissão Terra e Território na
Assembléia Constituinte, aponta que a proposta de 10 mil hectares seria mais viável. “Se a população se
inclinasse pelos 5 mil hectares, creio que seria muito difícil de administrar o tema pelos operadores da po-
lítica agropecuária, portanto creio que neste tema ainda tem que procurar consensos. Ou, pelo contrário,
fazer uma campanha pelos 10 mil hectares, que sim seriam mais administráveis”. Mas de qualquer forma
ele aponta que no processo constituinte, o acúmulo da comissão que ele presidiu não apontava para
nenhuma limitação, pois “entendíamos que isso deveria obedecer a estudos multidisciplinares e a muitas
considerações técnicas”. Eles propunham que o poder executivo posteriormente apresentasse uma lei
que contivesse estes aspectos. Mas, segundo Romero, a limitação na nova Constituição foi “uma medida
política antes que técnica e deveria ser essencialmente técnica”.
Para os setores empresariais e para alguns intelectuais a proposta de limitação de terras é tida
como descabida. José Blanes, pesquisador do Centro Boliviano de Estudos Multidisciplinares (Cebem),
diz que a proposta é feita com base na realidade altiplânica sem levar em conta realidades culturais e
econômicas da região oriental do país. “Tecnicamente, é impossível pensar uma agricultura que tenha
limites de 5 mil hectares. Minifúndio em terras altiplânicas é de um hectare, mas o minifúndio em ter-
ras tropicais é de 20 hectares (...). A grande extensão de produção de soja, algodão, cana, não se pode
submeter a este tipo de limitação. Por questões de rendimento de escala, você não pode dizer até 10 ou
5 mil (...). Porque isso é uma visão de terra do ocidente que não corresponde com a visão de terra que
tem o oriente”. Ele chama a proposta como fundamentalmente política e sem base em nenhum aspecto
técnico. Crê que ela servirá mais como uma bandeira que como uma política efetiva, pois não vê força
política do governo para efetivar a medida. “Isso será papel molhado. Seria generalizar um enfrentamento
com o oriente e se uniriam contra o governo madeireiros, boiadeiros, fazendeiros, agricultores, e povos
originários”, prevê ele.
É exatamente esta certeza de Blanes que preocupa Patrícia Molina, coordenadora geral do Fó-
rum Boliviano de Defesa do Meio Ambiente (Fobomade). Ela considera que se realmente é possível limi-
tar a propriedade de terras, seria um grande avanço, mas o problema é ter uma efetiva regulamentação da
limitação. “Eu creio que esta medida assim como está, sem ter uma série de outras regulamentações, pode
significar quase nada. Eu posso dividir a minha possessão com minha família e igualmente mantenho
tudo o que tenho. Então, é muito importante como se regulamenta isso, para que realmente seja efetivo
e não seja somente um discurso”.
Terra e território
Além disso, Molina questiona a própria forma adotada no oriente de monocultivo, latifúndio e 56
tipo de produção agropecuária voltada somente para a exportação, fatores não questionados por Blanes.
Não se trata, portanto, de culturas de entendimento do território diferentes, mas sim de interesses econô-
micos que predominam na região e que não tem eco em interesses gerais da população. Ela aponta que os
monocultivos de cana-de-açúcar ou de soja, além de trazerem diversos impactos ambientais como o esgo-
tamento do solo e o desmatamento, foram mantidos através de créditos nunca pagos ao Estado e “agora,
as elites estão preocupadas porque não têm esta fonte de subsídio eterno”. “O que complica a vida”, diz
ela, “o que cria problemas ambientais e sociais, é a exportação. A soja é subsidiada, porque se subsidia
o diesel. Se isso é cortado, a soja não existe. Então se está mantendo algo que teoricamente não deveria
existir, porque não é competitivo. Deveríamos procurar outra coisa que sirva para as demandas locais”.
Neste sentido, o que está em jogo na questão agrária boliviana são modelos de desenvolvi-
mento. Molina defende um modelo voltado principalmente para os interesses internos do país: “Nossas
necessidades se resolvem facilmente. Propomos pensar o nosso desenvolvimento a partir do nosso estado
atual (...). O desenvolvimento tem que ser pensado desde dentro e para resolver as nossas necessidades.
Basta de pensar o que temos para ver o que exportamos”.

Regularização das terras em tempos de Evo


Com relação à política agrária, o governo de Evo Morales teve que enfrentar outro problema.
Ele iniciou quando faltava menos de um ano para terminar o prazo da Lei Inra de regularização e
consolidação da propriedade agrária na Bolívia, estabelecido para outubro de 2006. Nesta data, haviam
sido completamente regularizados somente 11% do território nacional, sendo que 31% estavam em
30.FUNDACIÓN TIERRA.
processo e mais da metade, 58%, nem haviam começado30. Houve consenso entre oposição e governo Con los pies en la tierra – Ob-
para prorrogar o prazo por mais sete anos. Contudo, no início do mandato, o governo Evo Morales já servatorio de la Revolución
havia declarado que este saneamento agrário na Bolívia estava em estado de emergência e abriu concursos Agraria en Bolivia, No. 1, p.
41. La Paz, junho de 2007.
para a contratação de mais funcionários para o Inra. Ao mesmo tempo, começou a intensificar as parcerias
com a cooperação internacional para o financiamento do processo em vários departamentos, em especial
os do oriente do país, foco dos maiores conflitos agrários.
Este aceleramento do processo, apesar de não ser em um ritmo desejado pelos camponeses do
país, que ainda cobravam resultados mais efetivos, conseguiu ao menos render frutos no que diz respeito
à cessão de alguns territórios fiscais aos indígenas e aos sem-terra. O primeiro exemplo foi a própria
Terra e território
57 comunidade do MST Pueblos Unidos, que foi dotada já em agosto de 2006 de um território de 16 mil
hectares para a produção agrícola, manejo florestal e outros usos produtivos. O segundo exemplo, mais
recente, de junho de 2007, foi a da Terra Comunitária de Origem (TCO) Monteverde, territórios que fo-
ram tituladas em favor dos indígenas. Estas duas dotações são tidas pelos movimentos enquanto exemplos
concretos da revolução agrária que estaria acontecendo no país. Contudo, nenhuma delas foi resultado de
expropriações de terras improdutivas, mas sim de dotações de terras que já pertenciam ao Estado antes,
mas que não estavam sendo muito bem fiscalizadas e que muitas vezes eram alvo de ocupações indevidas
de fazendeiros.
Carlos Romero aponta um grande avanço na consolidação de territórios comunitários neste
processo de saneamento. “As TCOs [Terras Comunitários de Origem], que em muitos casos estavam
praticamente paralisadas na sua tramitação como a TCO Monte Verde, puderam obter seus títulos execu-
toriais. Eu diria que no governo de Evo Morales, fazendo um cálculo grosso modo, estamos em cerca de
26 milhões de hectares titulados como TCO, quando antes somente havíamos chegado a algo em torno
de 2 milhões. Então, há avanços substanciais e especificamente para os povos indígenas”.

A revolução agrária e o “salto qualitativo”


Estes exemplos fazem com que os dirigentes do MST falem da revolução agrária aplicada pelo
governo com muitas esperanças, mesmo sem que a principal política dela – a efetiva limitação da extensão
de terras para evitar o latifúndio - tenha sido aplicada ainda. “Na antiga reforma agrária havia comunidades
inteiras que possuíam somente 20 hectares. No período de 96 a 2006, havia comunidades de três mil
hectares, dotadas com terras fiscais. E neste processo do movimento sem-terra, estamos falando de quase
20 mil hectares. Isso faz deste processo - por suas características em extensão de superfície, quantidade
populacional, localização estratégica da área - um fato único em toda a história da vida republicana.
Estamos falando que em mais de 180 anos, não se havia distribuído a uma comunidade terras com estas
características”, comenta Aramayo sobre Pueblos Unidos.
Saisari localiza neste processo a importância da recuperação dos valores comunitários.
“Percebemos que, durante a vida republicana que teve o nosso país, a visão coletiva dos nossos ancestrais
foi desaparecendo. Agora estamos novamente recuperando isso, apesar de sabermos que este não é um
processo simples, pois muitos companheiros têm uma visão bastante individual”. A experiência de Pueblos
Unidos tem sido, portanto, uma prova de aplicabilidade desta visão comunitária, já que “o coletivo é
Terra e território
a alternativa que reivindicamos como organização para o futuro, sobretudo, no desenvolvimento das 58
comunidades e das famílias”, pontua o dirigente.
A estratégia, segundo o Saisari, sempre foi convencer os outros movimentos camponeses e
indígenas que se deveria dar prioridade ao modelo de comunidades coletivizadas, sem propriedade
individual. Ele comemora o fato de que isso hoje já é um consenso entre eles, e que somente assim esta
prioridade pôde ser reforçada na Lei de Recondução Comunitária e na nova Constituição.
A posse e a gestão comunitária de terras se devem mais a esta referência ao passado indígena
que Saisari pontua do que a uma concepção socialista de combate à propriedade privada, acumulada
na vida sindical boliviana. De fato, esta perspectiva só é tão forte porque muitas comunidades, como já
afirmamos anteriormente, mantiveram as suas gestões comunitárias sob o nome de sindicato agrário.
Contudo, de alguma forma as duas perspectivas convergem na luta contra a visão de que a terra
é uma mercadoria como qualquer outra. Igualmente, elas se misturam quando Saisari explica o que seria
o projeto de reforma agrária que o movimento defende: “Para a gente uma reforma agrária é quando há
uma participação completa do Estado, das famílias, dos recursos, do território. Enfim, de todos os meios
que se utilizam para conformar uma nova comunidade (...). Para a gente, reforma agrária não é a simples
entrega da terra, em que somente alguns tantos são os beneficiários. Ela é a construção de uma nova so-
ciedade, sobre uma base ideológica, coletiva, que busca um equilíbrio entre homem e natureza”.
Segundo Aramayo, o acesso às terras não é uma finalidade do movimento, mas sim um meio.
Pois a partir da consolidação de um assentamento e da “luta pela efetivação dos direitos econômicos, so-
ciais e culturais” das famílias desta comunidade - que seriam a garantia de soberania alimentária, de poder
ter acesso às terras, poder reproduzir e manter a sua cultura e seus costumes – é iniciado um processo
de empoderamento da comunidade. Ela passa a adquirir capacidade de governança, não somente para
administrar as questões relativas à terra, mas também a gerar um modelo de relações econômicas, sociais
e políticas distinto, que permitiria dar um outro salto qualitativo. O erro da primeira reforma agrária, diz
ele, foi ter se fechado em imediatismos, abandonando as perspectivas de transformação da sociedade. “O
que agora está acontecendo com Pueblos Unidos é um processo que estabelece uma perspectiva para os
próximos 50 anos”, conclui.
O desafio, como sempre foi, é convencer não somente os outros movimentos, como também o
resto da sociedade deste projeto. Saisari é otimista, apesar de reconhecer que os latifundiários do oriente
do país não aceitarão a proposta com muita facilidade, pois “eles estão convencidos que o capitalismo é a
Terra e território
59 única solução para o mundo sair da pobreza. Nós entendemos o contrário, que ele é o meio para continu-
ar aumentando a pobreza. Nosso país demonstrou isso, mas eles não entendem assim. Bom, haverá uma
luta constante”. Aponta a necessidade de que os movimentos sociais tenham meios de comunicação para
fazer este embate ideológico e demonstrar que a sua proposta é possível. Para isso, mais do que simples
propaganda, os dirigentes do MST têm a convicção de que é necessário demonstrar na prática a viabili-
dade da sua proposta, e disso depende o sucesso de Pueblos Unidos e das demais comunidades que estão
sendo formadas de forma comunitária.

Terra e território
60

DESAFIOS PARA PUEBLOS UNIDOS

“Nós sabemos produzir”


Cerca de 300 km ao norte de Santa Cruz, com dificuldades de acompanhar as notícias acerca
do governo de Evo Morales, em Pueblos Unidos o desafio se expressa numa percepção generalizada de
que se a comunidade der certo, mais famílias vão ter acesso a terras para trabalhar. Nas assembléias, a
idéia fixa, reproduzida nas palavras de vários companheiros, é provar que a comunidade sabe produzir.
A presença de 350 famílias no território de 16 mil hectares foi estabelecida através de um cálcu-
lo de aproximadamente 50 hectares por família. Destes, até cinco podem ser trabalhados individualmen-
te, para subsistência ou para venda externa. Nestes pequenos terrenos, são plantados arroz, milho, batata,
verduras e legumes variados, frutas, etc. Os outros 45 hectares são destinados aos interesses comunais e
podem servir para diversas atividades produtivas. Muitas famílias, portanto, não se importam muito com
os rumos que são dados aos territórios coletivos, desde que os seus plantios individuais sejam suficientes
para a sua subsistência e para garantir algum dinheiro para cobrir uma ou outra necessidade. Assim, pou-
co se interessam pelas assembléias e reuniões da comunidade. Outras, contudo, viveram cada momento
da luta para conseguir esta dotação de terras e valorizam muito os espaços conjuntos de discussão.
A produção nas terras coletivas ocupa cerca de mil hectares hoje, com plantação de soja (450
hectares), milho (200 hectares) e arroz (200 hectares). Esta produção é toda mecanizada, organizada e
mantida por uma equipe de onze membros da comunidade. Para impulsionar a produção foi contratada
uma empresa, cujos técnicos e engenheiros ensinam o núcleo de produção a trabalhar com tratores a
manejar os fungicidas, herbicidas, etc. Boa parte dos recursos para os investimentos iniciais de Pueblos
Unidos veio do TCP-Alba (Tratado de Comércio dos Povos - Alternativa Bolivariana para as Américas),
que financia combustíveis, insumos e sementes. Além disso, a comunidade recebeu do governo uma parte
do maquinário utilizado na área de cultivo comunal.
Terra e território
61 Carlos Vedia, um migrante de Potosi, chefia a equipe de produção. Ele esteve no movimento
sem-terra alguns anos antes da chegada a Pueblos Unidos, participando inclusive do conflito em Yuqui-
ses. Fala quíchua melhor que castelhano, mas sabe escrever bem e antes de se juntar ao movimento sem
terra já havia trabalhado como administrador de propriedades. Sente-se feliz por agora ser seu próprio pa-
trão e explica com entusiasmo todos os planos produtivos que a comunidade tem. Depois de consolidar a
produção agrária mecanizada, querem instalar uma empresa madeireira para aplicar um manejo florestal
ecológico na comunidade. Além disso, os rios e as lagoas que há no território os fazem pensar também
em criação de peixes e ecoturismo, pois também têm grandes extensões ecológicas que não poderiam ser
economicamente exploradas de outra forma. Com estas propostas, já seriam quatro unidades produtivas.
Vedia comenta sobre mais uma que ficaria responsável pelo transporte dos habitantes da comunidade,
e para isso teriam ainda que comprar meios de transporte. Ele enfatiza, contudo, de que tudo isso será
decidido e gerido pela comunidade nas assembléias comunais, instância máxima de decisão.
Os planos produtivos citados por Vedia já demonstram o desafio que enfrenta a comunidade.
Para além da vontade da comunidade de provar que um território comunal pode ser produtivo em larga
escala, com produção mecanizada e presença de seus produtos de forma competitiva no mercado, há
todos os aspectos ligados à responsabilidade política da comunidade. O primeiro deles seria o compromis-
so histórico com a manutenção ecológica do território que ocupa, bandeira importante do movimento
sem-terra também na Bolívia. O segundo seria o compromisso com uma cultura democrática de decisões
através de assembléias comunais, o cumprimento estrito dos mandatos políticos que são dados, sem abuso
dos dirigentes. Trata-se da difícil - mas também recompensadora - tarefa de criar autogoverno. O terceiro
aspecto seria a responsabilidade desta comunidade, por ser vanguarda de todo um processo, de apoiar as
comunidades que se estão formando.
Mas houve muitas dificuldades no primeiro ano. Uma parte considerável da plantação se
perdeu por causa das inundações no início de 2006. Como não há caminhos que ligam a comunidade
à estrada de terra, a produção teve que ser escoada de barco. A empresa que lhes dava assessoramento
técnico lhes obrigou a vender sua produção de soja muito cedo, e acabaram vendendo tudo abaixo do
preço de mercado. Os latifundiários vizinhos, dentre eles a família Paz que detinha a propriedade de
Yuquises e que têm uma relação de ódio com o movimento, os boicotaram continuamente, fechando
estradas e impedindo que levassem seus produtos aos mercados. A produção é suficiente para alimentar
as famílias, mas muitas estão sem reservas em dinheiro para arcar com gastos que podem vir para além da
Terra e território
alimentação – médicos, transporte, educação, bens de consumo variados. 62
Por estes e outros motivos, a preocupação da comunidade tem se focado na produção, sem
encarar muito os outros aspectos do desafio. A empresa que lhes dá assessoria técnica foi escolhida por
um simples critério técnico e a utilização de agrotóxicos e de mecanização generalizada é feita sem levar
muito em conta seus impactos ambientais. As contradições que existem em utilizar mecanismos de pro-
dução agrícolas presentes nas grandes fazendas latifundiárias no seio de um movimento que surge como
contestação deles ainda não são tão evidentes para a comunidade como um todo.
Roberto Aparício, dos Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras (AVSF), pensa que este
problema é reflexo de não haver uma preocupação de construir modelos de produção familiar também no
oriente boliviano. “Para muitos dos camponeses sem-terra, o modelo não é a agricultura familiar, porque
nunca viram um modelo de agricultura familiar ali [no oriente] que funcionasse e que permitisse viver
dignamente”, diz ele. “O modelo que os camponeses têm no oriente é o modelo do fazendeiro. Este é o
modelo exitoso e todos querem ser fazendeiros (...). E este sistema, claro, funciona muito bem para elites,
para uma maioria não pode funcionar”.
Ele conta que a sua instituição, por questões de justiça social e ocupação de território, defende
o modelo de agricultura familiar. Aponta, além disso, que é dela que provém a maior parte dos alimentos
consumidos na Bolívia e não da agricultura em grande escala e de monocultivo do oriente. Neste sentido,
a garantia da soberania alimentar na Bolívia, tão ameaçada mundialmente com a inflação de alimentos,
depende necessariamente da promoção da pequena agricultura familiar.
Ele acredita que um assentamento como o de Pueblos Unidos sim traz muitos avanços, mas
o modelo de produção adotado ainda é um aspecto central. “Para mim parece mais justo socialmente e
mais interessante para os bolivianos que uma propriedade que tem mil hectares de quinua e que é de uma
pessoa sozinha, fosse de mil camponeses. Já seria melhor. Mas se é o mesmo modelo de produção baseado
em esgotar o solo, em ter uma lógica de exportação, de oferecer o que pede o mercado do norte, isso não
soluciona o problema (...). Parece-me que está muito bem exportar, um intercâmbio de produtos a nível
mundial, por que não? Mas desde uma perspectiva de primeiro garantir a sua comida e a sua produção”.
Patrícia Molina aponta também que os camponeses do oriente dependem das cadeias de
produção agroindustriais, que lhes impõe a sua forma de cultivo com muita utilização de agrotóxicos e
fertilizantes. “O grande produtor é dono de outras partes da cadeia, ou seja, é a própria indústria que tem
terras. O pequeno produtor tem que vender seu produto, porque não tem a possibilidade de transformá-
Terra e território
63

Terra e território
los. Então, estes produtores estão à mercê destas empresas, que lhes provêm sementes, fertilizantes e 64
pesticidas”, explica ela.
Vedia, contudo, reconhece que há muito que desenvolver na comunidade e confia que com
o tempo e com a consolidação financeira, poderão ter verbas para estruturaram melhor os seus projetos
ecológicos. “O manejo ecológico não pode existir se não há uma pesquisa, uma unidade que classifique
as espécies, as suas potencialidades, os riscos que se pode cometer. E por isso mesmo, planejamos ter um
fundo comum para contratar técnicos e pesquisadores. Assim, sozinhos, não podemos dar conta disso”.
Ele comenta que a intenção final é que Pueblos Unidos seja um centro de propagação de inovação
tecnológica, que ajude outras comunidades no manejo ecológico, na produção de sementes, no controle
de pragas etc. “Muitas vezes, sabemos que estamos gerando o mesmo problema, com as pragas, com o
desmonte talvez não ordenado. Mas agora é muito difícil pensar que vamos fazer um manejo sustentável
desde o princípio, pois neste momento brigamos com a fome que temos”.

Reunião comunal
Às sete horas da manhã, os sem-terra se reúnem na sede. É dia 8 de outubro de 2007, segunda
feira, e a reunião precisa acontecer cedo, antes que o trabalho no chaco comece. Chove, a sede está cercada
de poças d’água, que são evitadas pelos adultos e comemoradas pelas crianças. Garrafas de plástico viram
barcos de navegação.
Estão presentes cerca de setenta membros da comunidade, dentre eles menos de dez mulheres e
nenhuma pede a palavra. Elas se limitam a tirar as suas dúvidas com os companheiros ao lado e a vigiar as
crianças que brincam ao redor da sede. Chama a atenção também o fato de haver muitos homens jovens,
solteiros e sem família ainda. É o caso de Davi Moreno, 24 anos, secretário geral da comunidade. Ele faz a
chamada das diversas comunidades que vivem em Pueblos Unidos e coordena o restante da reunião.
Eles estão discutindo o contrato da venda de mil toneladas de soja, fruto da produção deste
final de ano, proposto pela empresa Fênix, a mesma que oferece assistência técnica à comunidade. O
contrato é lido em voz alta. Muitos pontos são destacados, todos estão desconfiados. Não concordam
com a proposta de que a colheita seja feita pela empresa, ou que esta estabeleça uma data para retirar a
sua produção. Além disso, exigem que haja fiscais da comunidade no momento do exame da qualidade
e de pesagem dos grãos. No ano anterior, procedimentos parecidos os prejudicaram na venda da sua
produção. Agora querem pesquisar bastante antes de assinar qualquer contrato, querem se informar
Terra e território
65 mais acerca do mercado de soja e acerca dos procedimentos jurídicos deste tipo de negociação. Segundo
a sua experiência de lutas, a letra escrita pomposamente, com linguagem técnica jurídica, sempre foi um
símbolo de injustiça.
Finalmente encarregam Nazário Quispe, membro do diretório executivo da comunidade,
responsável pelos contratos e de levar o documento a Santa Cruz para que seja revisto por um advogado e
ser renegociado com a empresa Fênix. Este processo é demorado, mas é a única forma de tentar garantir
que não haja atropelos e que todas as famílias fiquem informadas e possam opinar acerca dos rumos da
sua propriedade. Nazário também leva muita responsabilidade, pois sabe que um erro seu acarretará em
muito prejuízo à comunidade inteira, além de muitas críticas públicas de seus companheiros.

O que fazer com o dinheiro comum?


A venda da produção comunal obviamente dará ganhos para a comunidade em cifras muito
superiores a qualquer pretensão isolada de um pequeno camponês. A decisão do que fazer com este
dinheiro é complicada, mas a comunidade já discutiu alguns parâmetros de utilização dos recursos.
Primeiro os recursos serão utilizados para pagar as dívidas feitas para impulsionar os primeiros
cultivos, explica Vedia. A prioridade é que ele seja utilizado para sustentar a produção comunal, que sirva
para fazer reinvestimentos na produção da comunidade. Com ele, a comunidade pretende ser autônoma
da ajuda do Estado e de ONGs. Desta forma, poderá desenvolver outras unidades produtivas (como o
manejo florestal, a piscicultura e o ecoturismo), assim como investir em tecnologia agrícola própria, que
siga as orientações políticas do movimento. Além disso, estes recursos também deverão ser utilizados para
a construção de infraestrutura para a comunidade, caminhos, contratação de professores e compra de
medicamentos.
Vedia esclarece que os recursos também serão utilizados para oferecer créditos aos camponeses
da comunidade. Funcionaria como uma reserva comunal, da qual eles poderiam retirar verbas para as suas
próprias produções, mas na condição de empréstimos. “Nada será presenteado. Assim como queremos
ser autônomos com relação ao Estado, os camponeses daqui têm que aprender a ser responsáveis”. A
principal preocupação é evitar que os recursos sejam apropriados de forma individual.
Com o tempo, quando já tiverem um maior excedente, será possível dividir entre os habitantes
de Pueblos Unidos o dinheiro de cada colheita. A idéia é que a comunidade em si não acumule
capitais, somente coordene os custos operativos e necessários para os seus investimentos de produção e
Terra e território
desenvolvimento. “Não vamos acumular capitais, pois para isso teríamos que ter ações. Isso permitiria 66
que alguém que tenha dinheiro acabe por se intrometer na comunidade, podendo até comprá-la. Não
há espaço para isso, nos nossos regulamentos e estatutos está bastante claro”, pontua o administrador da
produção da comunidade.

“Vem, mulher. Vem ver seu chaco!”


Enquanto estamos nos preparando para visitar o pequeno lote de Calucho, este reclama que a
sua mulher nunca foi visitar as suas parcelas de terra. Não que Benita faça pouca coisa, pelo contrário. Ela
cuida do filho e da venda, prepara a alimentação da família e também vende aos visitantes da comunidade
refeições durante o dia inteiro. Aceitando a provocação do marido, amarra Caluchito nas costas e nos
31.Chaco é uma parcela de
acompanha na visita ao chaco31 recém preparado. terra.
Para chegar ao chaco de Calucho, atravessamos algumas centenas de metros da plantação coleti-
va de soja. Logo chegamos a uma área desolada, com troncos espalhados pelo chão, a terra toda manchada
de negro pela queimada. Como a grande maioria dos camponeses bolivianos, Calucho preparou as suas
terras com um procedimento chamado chaqueo. Trata-se de uma forma antiga de lidar com a terra e que
consiste em limpar um terreno novo e depois queimar o mato cortado. As cinzas penetram no solo com
as primeiras chuvas de outubro e novembro, fertilizando a terra. Ali, logo depois que começam as chuvas,
se costuma plantar arroz. Depois, pode-se plantar milho ou mandioca. Os cultivos seguem por alguns
anos até que finalmente é estabelecido um período de descanso para estas terras. A terra descansa, o mato
cresce, e depois, quando este período termina, se faz um novo chaqueio nos meses de agosto e setembro,
antes da chegada das novas chuvas.
Calucho acabou de chaquear cerca de cinco hectares. A primeira chuva da primavera aconte-
ceu na madrugada anterior, e ainda nesta semana ele vai começar a plantar arroz. Logo, as terras negras
estarão cobertas de pequenos pontinhos verdes. Ele está empolgado, é a primeira plantação que faz com
a segurança de que vai poder fazer a colheita e vender o seu produto. Com a resolução de assentamento
emitida pelo Inra, agora ninguém os poderá tirar destas terras. A memória de toneladas e toneladas de
arroz sendo perdidas em Yuquises ainda é muito viva em todos eles.
A empolgação com a sua plantação compensa o desinteresse que Calucho sente pelos assuntos
políticos hoje. Ex-dirigente, ele separa com saudosismo os velhos e os novos militantes do movimento sem-
terra. Acredita que os tempos mudaram, no momento de paz e com as terras praticamente regularizadas,
Terra e território
67 sente que o espírito não é mais tão coletivo quanto era há alguns anos. Antes, segundo ele, se alguém
tinha algum problema, todos ajudavam. Se havia um doente, a comunidade inteira se sensibilizava e dava
um jeito de tratá-lo. As direções políticas do movimento agora não têm nem idéia do que foi o passado de
luta. Hoje ele se identifica como um militante de base, não quer mais ser dirigente.

Chaqueos, desmatamento e impactos ambientais


Antes das primeiras chuvas de outubro e novembro, o departamento de Santa Cruz sempre
está em estado de alerta. As queimadas realizadas na área rural deixam toda a atmosfera da região cheia
de fumaça, os problemas respiratórios das crianças triplicam, o calor fica insuportável. O fenômeno se
estende para áreas de reservas ecológicas, ameaçando gravemente a fauna e a flora da região.
32.La Opinión. Disponível “A queima de terras florestais é uma prática antiga, conhecida como ‘chaqueos’, realizada pelos
em:http://www.opinion.com.
indígenas e camponeses nesta época do ano para ter mais áreas de cultivo e evitar gastos em outros tipos
bo/Portal.html?CodNot=56
06&CodSec=3. Tradução da de programas adequados para transformar a sua agricultura”, explicava o jornal La Opinión sobre a
autora. destruição de mais de dois milhões de hectares com queimadas32. Além disso, informava que dos 17 mil
focos de incêndio, 70% deles estavam em Santa Cruz.
Esquecia esta matéria da real composição rural do oriente boliviano, majoritariamente ocupa-
do por grandes propriedades agrárias, sendo que as pequenas propriedades camponesas ocupavam uma
extensão ínfima de terras. Como sozinhas poderiam elas causar tanto dano ambiental?
Patrícia Molina, do Fobomade, é muito contundente com relação a isso: “Houve diferentes
processos neste país de incentivar a colonização, o transporte de grupos humanos do ocidente ao oriente
que gerou processos de desmatamento, mas nunca são comparados ao que gera os grandes latifundiários
(...). O latifundiário, quando vê um negócio, consegue créditos, e desmata enormes quantidades de terras
(...). E estes chaqueios dos grandes são destinados à pecuária. E a pecuária às vezes não tem muito sentido,
porque sai mais barato comprar carne do Brasil pelas dificuldades de transporte. Então isso está vinculado
com a consolidação da terra. O mato é tombado para pôr vacas e desta maneira conseguir que se verifique
que se está fazendo algo nas terras e que lhes dêem o título”.
Javier Aramayo, que também faz parte do Fobomade, cita outros dados. “De acordo com dados
da Superintendência Florestal em 2007, o desmatamento avança incessantemente 300 mil hectares ao
ano. É justamente a grande expansão agrícola a responsável por isso, com o cultivo intensivo de soja, mas
também com a conversão de terras para a pecuária (...). A ação de camponeses e indígenas na derrubada
Terra e território
e queima dos bosques não é feita em grande escala e foi realizada durante centenas de anos e nunca 68
provocou este tipo de impacto ambiental”. Molina aponta, além disso, que há estudos que comprovam
que o chaqueio feito pelo camponês, controlado e em pequena escala, é até positivo em alguns setores
tropicais para promover a re-vegetação.
Para Aramayo, o problema do desmatamento via chaqueio é no fundo um problema causado
pela escolha de um modelo de produção que não tem compatibilidade com a manutenção do meio am-
biente, que prioriza o monocultivo em grande escala do que a “diversificação produtiva e agroecológica
orientada para a soberania alimentar”.

Terra e território
69

TIERRA PROMETIDA, UMA OUTRA EXPERIÊNCIA SEM-TERRA

A oeste de Pueblos Unidos, na província de Ichilo, também no norte de Santa Cruz, se encontra
a Comunidade Agroecológica Tierra Prometida, uma outra comunidade do MST. Ali estão assentadas
cerca de cem famílias, com um movimento que iniciou nestas mesmas terras desde 1999. Diferente de
Pueblos Unidos, estas famílias ainda não contam com nenhuma resolução de assentamento. A ocupação
do assentamento é, portanto, débil, pois as famílias que lá estão não sabem se vão poder ficar nesta área
por muito tempo.
Este assentamento surgiu antes mesmo da existência organizada do movimento sem-terra.
Um grupo de camponeses da região se organizou para ocupar algumas terras da reserva Choré, onde
havia muitas madeireiras. Nesta época, eram assessorados pelos sindicatos locais. Encontraram terras
desocupadas que poderiam se assentar e logo foram formadas cinco comunidades. Com o tempo, estas
comunidades se consolidaram enquanto comunidades do MST boliviano, participando das suas lutas
nacionais.
A demora na dotação de títulos e nos trâmites do processo de legalização do assentamento
causou muitas fissuras nas comunidades. Algumas começaram a ter discordância com o projeto de dotação
coletiva e logo passaram a se denominar sindicatos. Das cinco comunidades que havia, somente duas se
mantiveram enquanto movimento sem-terra. As outras logo passaram a se chamar sindicatos agrários.
33.Camba é o termo para “Não sei porque se separaram. Talvez porque pensavam que como sindicatos iam conseguir
denominar a população das os títulos mais rápido. Mas é ao contrário. Nós temos um processo de trâmite bem avançado. Eles
terras baixas. tem um memorial pequeno, nós temos uma pasta grossa assim. Só falta para a gente conseguir a nossa
personalidade jurídica, o que a prefeitura nos está negando”, explica Celestino Pacheco. Ele é um dos
que iniciaram o processo de ocupação destas terras, há quase dez anos. Chegou em Santa Cruz quando
tinha vinte e poucos anos, e nestas terras se casou e teve quatro filhos, que são collas-camba33, segundo as
Terra e território
70

Terra e território
71 suas palavras. Migrante de Oruro, não queria seguir o destino dos mineiros da região, que morrem aos
40 anos devido aos rigores da profissão, ao exemplo de seu pai. “Santa Cruz é um paraíso”, diz ele, “aqui
faz calor, não falta comida”.
Como todos os integrantes da comunidade, Pacheco lamenta as suas divisões. No fundo,
acredita que estes sindicatos só se formaram pela ganância dos seus camponeses. “Isso de sindicato,
eu já conheço e não gosto. Porque tem companheiro que pega a sua terra para fazer negócio e eu não
quero terra para negócio, quero terra para trabalhar”. Na realidade, se trata de uma disputa entre ter a
propriedade coletiva ou ter a propriedade individual.
O trâmite da titulação é um problema que depois estas cinco comunidades (duas do MST e
três sindicais) vão ter que resolver. Ele foi iniciado antes da sua divisão, e apresentava as terras enquanto
um território único, de 12 mil hectares, para simplificar os caminhos burocráticos. Além disso, segundo
a legislação nacional, a prioridade de dotações de terra é dada a comunidades, não a indivíduos, nem
que sejam pequenos proprietários. Provavelmente, se saírem os papéis de titulação, estes serão coletivos,
em nome de uma organização que representa as cinco comunidades, queiram os camponeses habitantes
da área ou não.
Sebastiana Ortiz, que também está no assentamento desde a sua fundação, diz que a principal
vantagem do movimento sem terra em relação aos sindicatos é que em comunidade é possível ter mais
apoio para o desenvolvimento produtivo: “Os companheiros nos disseram que em comunidade pode vir
muita ajuda. Se vem, seria bom. Porque não há nada ainda. Porque às vezes queremos plantar madeirá-
veis, organizar pesca e não tem ajuda, não tem financiamento. Sozinhos, sempre falta dinheiro”.
Os assentados em Tierra Prometida também são unânimes em afirmar que o movimento sem-
terra tem mais preocupação com o meio ambiente que os sindicatos. “Nós temos uma outra idéia de
trabalhar a terra, de fazer um trabalho conjunto. Não queremos matar muita floresta, queremos reflorestar
com árvores frutíferas, madeiráveis. Porque se a gente derruba as árvores, logo o vento passa e espalha o
fogo para todos os lados. E depois, a terra perde umidade, fica seca e não dá mais para plantar nada. (...)
Quando eu cheguei aqui, tudo era floresta. Plantava cebola, pimentão, tomate, cenoura, era uma beleza.
Agora, a terra está seca, é mais difícil”, diz Celestino.
Carlitos Vedia, que também faz parte do movimento sem-terra da região, classifica os sindicatos
como mais tranqüilos, não querem saber de nada. Em comparação, o MST participa de vários movimentos,
congressos e marchas. Ele mesmo foi nas duas últimas marchas nacionais convocadas e aprecia estar
Terra e território
sempre participando de tudo. 72
A grande maioria das famílias, a exemplo da de Pacheco e Sebastiana, não mora em Tierra
Prometida. Vivem nos povoados que ficam por perto, como Enconada. Os motivos são variados. O
primeiro deles é que em Tierra Prometida não tem um poço d’água profundo, falta estrutura para tudo.
Como não têm titulação das terras, não há quase nenhuma infraestrutura para viver. Além disso, eles não
têm muita segurança em produzir na comunidade e a parte comunitária das terras não é cultivada. Sabem
que, apesar dos anos que estão lá, sempre correm o risco de despejo.
As divisões causaram muita mágoa nos camponeses, que também relembram os áureos tempos
de unidade. “Agora somos só dois grupinhos, Tesouro e XV de Agosto. Antes não, antes era bonito, todos
juntos, as cinco comunidades”, diz Carlitos.

“Tem que continuar caminhando, nem que seja em cima de quatro patas”
Com esta frase Crescencio Torres concluiu a nossa conversa. A inspiração dela veio quando
falava de seu pai, um bravo lutador de Potosi, que nunca desistia. Crescencio é também um militante
antigo, esteve na organização dos que foram pela primeira vez ocupar as terras que hoje chamam de Tierra
Prometida. No momento, está muito desanimado. A titulação não chega, todos se dividiram e ele, além
de tudo isso, não pode trabalhar. Tem uma ferida na perna que não se cura e, portanto, não lhe permite
andar com firmeza. Não tem esposa nem filhos, vive em uma pequena cabana em Enconada, contando
sempre com a ajuda da sua irmã para se alimentar.
Ele foi vítima de um atropelamento durante a marcha de novembro de 2006 que pedia
a aprovação da Lei 1715, de Recondução da Reforma Agrária. De Tierra Prometida, participaram 60
pessoas na marcha, sendo que dez alcançaram a cidade de La Paz, completando quase trinta dias de
caminhada. A participação de Crescencio foi interrompida perto de Cochabamba, quando pela manhã
estavam levantando acampamento para continuar a marcha. Neste momento, um motorista atingiu
desgovernadamente várias pessoas participantes da marcha, matando duas e ferindo mais nove, dentre
elas Crescencio.
De lá, ele foi levado ao Hospital Viedma, em Cochabamba. Por causa da demora na liberação
de verbas do seguro de acidentes do motorista, uma semana se passou até que a necessária operação na sua
perna fosse feita. Depois, Crescencio foi transferido para a Clínica de Acidentados nesta mesma cidade,
onde iniciou a sua demorada recuperação. A perna continuava infeccionada, a ferida não cicatrizava,
Terra e território
73 as dores se mantinham. Segundo o Dr. Andrade, médico desta clínica, a operação feita após o acidente
foi inadequada, com pinos mal postos e placas impróprias para curar seus ossos. Em junho de 2007,
34.A Bolívia não conta com
um sistema de saúde público uma das placas teve que ser retirada e, desde então, a ferida se cicatrizou, mas a fratura na perna não se
que garanta atendimento gra- restabeleceu. Para se recuperar, Crescencio terá que passar por outra cirurgia, mas agora já não possui
tuito à população, como o Sis- cobertura do seguro do motorista. A cirurgia custa 1500 dólares e ele ainda não tem idéia de como vai
tema Único de Saúde (SUS)
brasileiro.
arrecadar este dinheiro, já que nem o dinheiro das passagens até Cochabamba para fazer as consultas ele
tem34. Ironicamente, o motorista irresponsável, que até agora não respondeu juridicamente pelo caso, é
um médico e possui uma clínica privada em Monteiro35.
Crescencio foi acompanhado desde o princípio por Thomas Siron, um estudante francês que
35.Estas informações foram fazia o seu doutorado sobre o Movimento Sem Terra boliviano. “Foi um dos poucos que me ajudaram.
retiradas da carta de Thomas
Siron, que ajudou Crescencio Ele me acompanhava sempre no hospital, foi um filho de Deus”, diz Crescencio. Contudo, em setembro
no seu primeiro ano de conva- de 2007, Thomas teve que voltar para França para entregar a sua tese.
lescença. Crescencio não vê resultados no processo que está sendo levado contra o motorista, está
descrente de tudo. Não pode trabalhar, mal consegue andar. A cabana em que vive o deixa sujeito a
goteiras, mosquitos e furtos. Sua alimentação irregular, sem muito cálcio, também atrapalha bastante na
sua recuperação.
Quando recebe visitas, fala do seu acidente com desânimo, voz baixa. Mostra as radiografias,
identifica os pinos mal postos. Por último, prefere mostrar a carta escrita por Thomas, que exprime
em palavras claras os motivos para a sua revolta angustiada. Após fazer um extenso relato acerca do seu
tratamento médico, a carta termina assim:
“A causa de Crescencio, sua recuperação física e moral (já que o abandono não ajuda a recupe-
rar suas forças) não é somente uma causa monetária, mas também uma causa de justiça social. Como os
feridos de outubro negro em El Alto, ainda que não com balas, Crescencio foi vitimado enquanto lutava
por seu povo, por sua classe e pela sua pátria e para conseguir dias melhores para todos, em uma sociedade
sem mais dominação, onde todos e todas tenham sua terra e o seu direito a se reproduzir”.

Terra e território
74

A BATALHA DE SANTA CRUZ

Bloqueio em San Julián


São oito horas da noite, estamos reunidos no grande galpão da Federação de Colonos de San
Julián. San Julián fica na estrada que corre pelo norte de Santa Cruz, em direção a Trinidad, capital do
departamento de Beni. Converso com um grupo de jovens que fazem parte da juventude do município,
é composta por estudantes, trabalhadores e camponeses.
Mario Cruz, de 23 anos, nasceu em San Julián, mas estuda na Universidad Autónoma René
Gabriel Moreno (UAGRM), em Santa Cruz de la Sierra. Ele sempre volta em fins de semana para sua
cidade natal, onde participa com mais intensidade das movimentações sociais. Conta que há muitas difi-
culdades no movimento estudantil da UAGRM, pois os grupos conservadores são apoiados pelo reitor e
financiados pelo Comitê Cívico, além de sempre fraudarem as eleições. Seus pais são migrantes, mas ele
se considera crucenho.
A maioria dos jovens que está ali reunida é assim, filha de migrantes, camba-colla. Eles são res-
ponsáveis pelo segundo bloqueio que será instalado em alguns minutos, mas não estão ansiosos. A cidade
de San Julián é famosa pela sua localização estratégica e, ao bloquear a estrada, isola Santa Cruz do norte
do país. Jovens como Mario participam de bloqueios desde muito pequenos, sabem exatamente onde são
os pontos estratégicos, como funciona o sistema de turno e o que fazer em caso de conflito.
O motivo do bloqueio esta noite é o referendo sobre o Estatuto Autonômico de Santa Cruz,
que vai acontecer no dia seguinte, 4 de maio de 2008. A ação serve para impedir que as urnas do refe-
rendo cheguem a San Julián e também demonstra o repúdio dos habitantes locais ao processo. A cidade,
habitada principalmente por colonos migrantes do altiplano, é conhecida por ser o bastião do MAS-IPSP
no departamento de Santa Cruz e se opõe veementemente ao Estatuto Autonômico, considerado por
eles um documento separatista, orquestrado pelas elites empresariais locais para impedir os avanços do
Terra e território
75 governo Evo Morales.
Edgar Renjifo, dirigente da juventude, explica que o maior problema do referendo de aprova-
ção do estatuto está na sua legalidade. “Não é um mecanismo presente na Constituição e as autoridades
departamentais não tem o poder de convocar este referendo. Ele tem que ser convocado pelas autoridades
nacionais”. Por este motivo, a Corte Nacional Eleitoral (CNE) considerou ilegal o referendo crucenho, no
dia 7 de março de 2008. Além disso, nenhuma organização internacional reconheceu o processo.
Portanto, a tática dos opositores ao estatuto é não participar da consulta, demonstrando a sua
falta de legalidade. De fato, San Julián adotou uma tática mais ousada. Em uma assembléia convocada
para o dia 3 de maio, eles decidiram que nenhuma urna seria aberta no município, além de convocar o
bloqueio de 24 horas, começando naquela mesma noite.
A juventude de San Julián vai em uma caminhonete até o seu ponto de bloqueio correspon-
dente, que fica na entrada da cidade. Junto deles estão muitos jornalistas, com suas câmeras de vídeo e
máquinas fotográficas. Querem registrar o início do bloqueio e todos os conflitos com os automóveis que
querem passar e não podem. Ainda enquanto montam a barricada, passa um caminhão de frigorífico.
Os jovens gritam, “não deixem passar, vamos fazer um churrasco!”, e as risadas são gerais. O caminhão é
o último liberado para passar. Logo, pneus são espalhados pela estrada e incendiados. As pessoas tentam
escolher uma posição na qual a fumaça passe menos, mas é inevitável que depois de alguns minutos a
sensação de sufoco seja geral.
Há ameaças de que virá para acabar com o bloqueio a Unión Juvenil Cruceñista (UJC), a mesma
organização que havia surrado o dirigente do MST Silvestre Saisari na praça principal de Santa Cruz.
Eles atuam como espécie de braço armado do Comitê Cívico de Santa Cruz, e possuem nas suas costas
diversas acusações de agressões aos direitos humanos. Há uma certa apreensão dos colonos com relação a
isso, pois não sabem exatamente se virá e por onde virá a UJC.
Cerca de uma hora depois que o bloqueio foi instalado, alguns carros chegam da parte sul da
estrada. Deles saem jovens muito fortes, com roupas esportivas e camisetas azuis justas. Atrás delas está
escrito Juventude Che Guevara. Eles foram convidados pelos colonos de San Julián para garantir a segu-
rança do bloqueio. São jovens de bairros da periferia de Santa Cruz, que se organizaram depois do apa-
recimento da UJC para demonstrar que têm um posicionamento político diferente. Um amigo jornalista
me esclarece que eles se constituíram no interior das academias de musculação e que apóiam o governo
de Evo, mas falta um pouco de formação política.
Terra e território
Na manhã seguinte volto às barricadas. Felizmente, a UJC não havia aparecido na noite ante- 76
rior, deixando San Julian em paz com o seu bloqueio. Edgar ainda está acordado, com olhos vermelhos
e o rosto um pouco sujo pela fumaça. Explica-me que houve uma tentativa de abertura de urna em uma
das comunidades que fazem parte de San Julián e que eles estão indo para lá.
No caminho, vem a notícia de que houve um ferido no conflito entre os inspetores de urna e os
moradores de San Julián. Um menino, da parte dos colonos, tentava fugir dos que defendiam a manuten-
ção do referendo, caiu da van que o levava e teve as suas pernas atropeladas. Ao saber disso, a população
que estava espalhada pelos demais bloqueios começa ir em direção a Los Angeles, ponto do conflito.
Acompanho parte desta população, num caminhão em direção a Los Angeles. Os caminhões
param algumas centenas de metros da escola onde as urnas foram abertas. Uma cholita vai recolhendo
pedras na estrada, alguns jovens pegam galhos de árvores ao lado do acostamento. Armas improvisadas.
A tensão é grande, e todos sentem muito ódio. Haviam visto passar há pouco o jovem que tinha sido
atropelado. Um dos seus.
Chegando lá, os ânimos já estavam mais calmos. Os promotores do referendo haviam fugido.
“Depois que o menino caiu, todo machucado, eles ainda ficaram chutando e batendo nele”, contava um
camponês que estava presente no conflito antes. “Falavam ‘ganha a autonomia e vão embora os collas de
Santa Cruz’”, dizia outro.
Depois de se interarem melhor dos acontecimentos, a maioria dos camponeses começa a vol-
tar aos seus respectivos bloqueios. Alguns ficam, os insultos racistas da briga anterior ainda ecoando
fortemente na memória. Converso com dois camponeses de Brecha Casarabi, uma comunidade de San
Julián, ambos migrantes de Potosi. “Eles dizem que a gente é de fora, que não é de Santa Cruz. Mas se são
justamente eles que são descendentes de espanhóis, croatas, americanos. E a gente está aqui há milhares
de anos”, lamenta um deles.
Ao final do dia, os colonos de San Julián conseguiram fazer com que ninguém votasse no refe-
rendo na cidade. Fizeram um ato de encerramento do bloqueio, queimando bonecos de Rubén Costas,
governador de Santa Cruz, Branco Marinkovic, presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e de Marta
Cardoso, notária local que tentou promover a abertura das urnas.

Elite crucenha, racismo e polarização


Eu voltei para Santa Cruz um dia depois do referendo autonômico. Já na entrada da cidade
Terra e território
77 podia ver pichado nos muros “passaporte para os collas”. No dia anterior, houve fortes conflitos, princi-
palmente no bairro popular Plan 3000. Os moradores deste bairro, na sua maioria também migrantes,
se posicionaram contrários ao referendo. Ali, contudo, houve um enfrentamento mais violento do que
o de San Julián, entre os moradores e os jovens da UJC, que foram convocados pelo governador para
guardar as urnas. Para parar o tumulto entre os dois bandos, a polícia interveio com gás lacrimogêneo e
um senhor morreu de ataque cardíaco.
É normal que um estrangeiro seja muito bem recebido em Santa Cruz. Os crucenhos se orgu-
lham da sua hospitalidade e simpatia com visitantes, sempre se opondo aos compatriotas do altiplano,
conhecidos por serem mais fechados. Contudo, poucos turistas percebem a moeda oposta desta simpatia,
o intenso racismo das demarcações sociais em Santa Cruz.
O motor disso é um regionalismo muito arraigado, que vê no resto do país o seu opositor e a
causa de todos os problemas que enfrentam a população crucenha. O ataque é feito sob uma perspectiva
geral de que o governo boliviano é centrado somente no altiplano e que, Santa Cruz, motor produtivo
agrário do país, sempre foi colocada em um segundo patamar. Os migrantes do altiplano são, portanto,
inimigos a serem combatidos dentro do território crucenho. Só são aceitos se se submetem ao discurso
regionalista hegemônico da região, coisa que, pela cultura de organização e resistência do ocidente boli-
viano, dificilmente acontece.
Segundo a socióloga Ximena Soruco, o discurso do conflito das regiões acima de qualquer
36.Brasil de Fato, entrevis- outro conflito social e econômico é resultado de um populismo de direita. “O discurso regional, oriente
ta feita por Igor Ojeda, contra ocidente, cambas contra collas, encobre a luta pelo excedente, pelas riquezas naturais, e quem se
24/04/2008. Disponível em:
http://www.brasildefato.com.
apropria desses recursos (...). É um populismo de direita (...). Constroem um povo a partir de um inimigo
br/v01/agencia/entrevistas/a- comum. Essa é a experiência fascista. O fascismo constrói o judeu como o culpado de tudo, onde os seto-
heranca-racista-e-oligarca-da- res pobres, toda a insatisfação política, econômica, social e cultural da população se choca com o inimigo,
elite-de-santa-cruz/ sem questionar a estrutura interna desse país ou região”36.
Esta construção de um povo que cita Ximena se refere à construção da identidade camba, de-
signação que no passado era equivalente a um peão, colono servo das fazendas, e que servia para borrar
as várias identidades indígenas da região. Pedro Nuni, atual vice-presidente da Cidob, explica que não há
uma cultura camba, “o termo camba é depreciativo, que os patrões utilizavam para os indígenas, para o
os camponeses. Era o pior, era como dizer ‘vocês são um lixo’. Mas agora mesmo eles utilizam isso. É um
engano. Apegam-se e tomam o termo camba para poder ter créditos com uma grande massa da região, que
Terra e território
somos nós, os indígenas e camponeses. E eles dizem que somos queridos, que querem que estejamos com 78
eles, e ‘eu também sou igual a você’”. Esta criação étnica por parte das elites crucenhas é materializada na
37.SORUCO, Ximena (co-
Nación Camba, principal organização de viés separatista em Santa Cruz.
ord.); PLATA, Wilfredo;
Wilfredo Plata, também sociólogo, expõe que por detrás deste discurso integrador do índio das MEDEIROS, Gustavo. Los
terras baixas, se esconde um histórico de ocupação violenta de terras e extermínio étnico, fato bastante barones del Oriente. El poder
evitado pelos exaltadores da identidade camba37. José Luís Roca, um dos intelectuais entusiastas da cultura en Santa Cruz ayer y hoy, p.
101-166. Fundación Tierra.
camba, pontua: “Os crucenhos necessitaram três séculos para completar a ocupação do oriente. Come- Santa Cruz, 2008.
çaram por Chiquitos, chegaram a Moxos, e, em busca da borracha, alcançaram o Rio Madeira (...) até as
primeiras décadas do século vinte quando se apropriaram definitivamente das planícies chaqueñas, esta
gente errante e audaz configurou um espaço onde prevalece uma cultura mestiça sui generis, com fortes 38.ROCA, José Luis apud SO-
RUCO, Ximena (coord.) et
resquícios hispânicos: a cultura camba”38. Trata-se de uma descrição heróica do passado colonizador, do al., op. cit., p. 107. Tradução
sangue espanhol, mas que se permite uma mescla difusa com a cultura indígena local, cuja diversidade de da autora.
povos indígenas não são passíveis de identificação precisa39.
Apesar de ter um longo histórico e do seu grande apelo popular, o discurso regionalista é
claramente impulsionado por uma minoria que detém o poder econômico em Santa Cruz. O porta-voz 39.A proposta de Estatuto
deste discurso é o Comitê Cívico de Santa Cruz, organização formada na década de 1950 com influência Autonômico crucenho reco-
nhece somente cinco povos
da Falange Socialista Boliviana, maior expoente do fascismo boliviano. O comitê se tornou o grande indígenas, sendo que o oriente
defensor dos interesses da elite crucenha, que, como aponta Soruco, não passou por um processo de boliviano contém mais de 30
modernização a exemplo de outras elites bolivianas, como a do estanho. Enquanto a elite mineradora foi populações étnicas diferentes.
derrotada pela Revolução de 1952, a elite crucenha se manteve com a mesma lógica da sua formação, na
época do auge da borracha.
“No oriente não há uma renovação de elites, não há movimentos sociais, operários, indígenas,
camponeses, populares, que as tenham questionado. Enquanto no ocidente, houve a Revolução de 1952.
O retorno à democracia e o período 2000-2005 também questionam e derrotam essas elites. As elites que
surgiram tiveram que incorporar as demandas dos movimentos sociais. (...) Enquanto no ocidente há
uma acumulação histórica de movimentos sociais, no oriente há uma acumulação histórica de elites, que
40.Brasil de Fato, op. cit.
transformam seu discurso de acordo com o contexto (...). Não é um problema de família. Há famílias que
entram e que saem, as que empobrecem e as que enriquecem. Há, claro, sobrenomes que continuam, mas
o que conta é a lógica. Seu modelo econômico é o extrativo do século 19. E o racismo contra a população
indígena é da mesma época. Pois, se não for para exterminá-la, deve-se assimilá-la como mão-de-obra”40,
Terra e território
79

Terra e território
diz Soruco. 80
Esta elite aposta então no discurso da autonomia regional, na construção do inimigo comum
altiplânico, aproveitando-se da dispersão dos movimentos sociais da região. “No passado, o discurso au-
tonomista recorria ao argumento do isolamento geográfico e da marginalização das decisões políticas es-
tatais, ou seja, à falta do Estado em um vasto território. Na etapa contemporânea, o argumento é inverso.
Ou seja, a invasão por parte dos migrantes collas promovida pelo Estado centralizador – ou seja, muito 41.SORUCO, Ximena (co-
ord.) et al., op. cit., p. 162.
Estado – e a apropriação dos indígenas das terras altas dos recursos naturais, considerados exclusivos dos Tradução da autora.
crucenhos”, diz Plata41.
Um dos exemplos que Plata utiliza para demonstrar este autonomismo moderno é uma citação
de Sérgio Antelo, membro da Nación Camba: “Sob o argumento de que ‘todos somos bolivianos’ e temos
direito a tudo que supostamente contém o país, foram socializadas ‘as terras sem dono’ que se encontram
no ‘Oriente selvagem’, (...) o que deu origem a invasões étnicas sobre territórios que não lhes correspon-
42.ANTELO, Sergio (negrito
dem (...) nem por história, nem por falsos direitos constitucionais”42. Antelo aparentemente se esquece de no original) apud SORUCO,
que os territórios que hoje correspondem ao departamento de Santa Cruz um dia também foram por sua Ximena (coord.) et al., op. cit.,
vez invadidos - não somente “etnicamente”, mas também culturalmente, militarmente e economicamente p. 143. Tradução da autora.
- pelos seus tão enaltecidos antepassados hispânicos.
Contudo, a maior contradição que há no discurso desta elite é que ela foi justamente o único
setor da sociedade crucenha beneficiado pelo Estado “andino-cêntrico”. Após o auge da borracha no
século XIX, esta elite entrou em decadência e só conseguiu se reestruturar a partir da Revolução Nacional
de 1952, quando a política agrária do MNR promovia a agroindústria no oriente boliviano. Desta forma,
houve inúmeros créditos e ajudas estatais, como o deslocamento de mão-de-obra do ocidente, para con-
formar uma nova burguesia agrária baseada nas recém criadas empresas agrícolas. De fato, foi a ditadura
de Banzer, que durou de 1971 a 1978, que deu extensões imensas de terras a esta elite, consolidando o
modelo do latifúndio desta região. Os cultivos cíclicos desta região, como a cana e a soja, foram os únicos
de fato a obter subsídio do Estado boliviano.
Contudo, se muito do apoio material vinha de dentro do território nacional, esta elite sempre 43.Brasil de Fato, op. cit.
teve as suas perspectivas voltadas para fora. A começar pelo modelo de produção da região, exportador
desde a época da borracha. “Essa burguesia nacional, que foi criada pelo Estado nacional, tem uma visão
local, regional. Está olhando o exterior, mas localmente. Não olha para o ocidente. É uma visão anti-
nacional”, diz Plata43. Por isso, não está minimamente preocupada com soberania alimentar da população
Terra e território
81 boliviana e em criar políticas agrárias que respondam às demandas internas do país.
Mas além das perspectivas econômicas estarem voltadas para fora e para a exportação, as pers-
pectivas culturais desta elite também se voltam para fora. È um regionalismo que resgata o passado his-
pânico e aponta para referentes culturais dominantes norte-americanos para se definir. Ignora completa-
mente a existência de uma cultura boliviana geral.
Há poucos anos, tornou-se um escândalo nacional a declaração de uma Miss Bolívia: “Infeliz-
mente as pessoas que não conhecem muito sobre a Bolívia e pensam que somos todos índios. É o lado
oeste do país, La Paz, a imagem que reflete isso, estas pessoas de baixa estatura e índias. Eu sou do outro
lado do país, do lado leste, que não é frio, é quente. Nós somos altos, somos pessoas brancas e sabemos
inglês. Este conceito errôneo de que a Bolívia é somente um país andino está equivocado. A Bolívia tem
muito a oferecer e este é o meu trabalho como embaixadora do meu país, fazer com que as pessoas saibam
44.Citação retirada do filme
boliviano Quien mató la lla- sobre a diversidade que temos”44. Yayita Toledo, que representava a Bolívia no concurso de Miss Universo
mita blanca?. Tradução da em 2004, falava sobre os preconceitos que os estrangeiros têm sobre o seu país.
autora.
A aparente regionalização da política
Contudo, no panorama político atual boliviano, as elites crucenhas ganham um papel de desta-
que nacional. A oposição mais forte ao governo de Evo Morales não é encabeçada por partidos tradicio-
nais, mas sim pelo Comitê Cívico de Santa Cruz. Diversos intelectuais apontam como causa deste proces-
so a grande crise do sistema político boliviano, que estourou no início deste século com as mobilizações de
2000 e ainda persiste. Reflexo desta crise é a baixíssima votação que os partidos tradicionais tiveram na úl-
tima eleição nacional frente à esmagadora vitória do MAS-IPSP, de 53,7%. Em 2005, o MNR, partido do
anterior governo, obteve somente 6,5% dos votos; a UN (Unidade Nacional), liderada pelo ex-empresário
Samuel Doria Medina, que pertenceu ao MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) anteriormente,
obteve 7,8%; e o Podemos (Poder Democrático Social), agrupação liderada por Jorge Quiroga, ex-ADN
(Ação Democrática Nacionalista, partido de Hugo Banzer) obteve 28,6%.
José Blanes aponta como uma das causas deste processo a Lei de Participação Popular. A lei
regionaliza a política, incluindo no processo institucional as lideranças locais, que antes somente estavam
envolvidas com as organizações sociais. “Então, uma estrutura de participação na gestão do Estado é
aberta, e ela absorve uma quantidade muito grande das lideranças que antes eram somente lideranças
sociais, e agora são polivalentes. Ao mesmo tempo em que é um líder social, pode ser um líder estatal.
Terra e território
Os partidos começam a se regionalizar”. Mas os partidos tradicionais já não conseguem lidar com esta 82
nova situação política e são amplamente rechaçados nas eleições a partir de 2000 como símbolos da velha
política. Blanes conclui que o resultado deste processo é uma mistura explosiva de Estado com sociedade
civil “Eu diria que por um lado a sociedade perde identidade como sociedade civil, mas ganha com muita
força em sua relação com o Estado. Há mais mobilização que nunca, há mais representação que nunca,
mas ao mesmo tempo há mais clientelismo que nunca”.
Na crise deste Estado-nação, que foi amplamente questionado pela esquerda e pela direita, o
conflito entre estes dois pólos, de classe, aparece como um conflito de regiões. Intelectuais como Eduardo
Paz, professor de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés, não descartam a possibilidade de estar
em marcha uma tentativa de “balcanização” da Bolívia. “Por isso é que a experiência iugoslava tem que ser
45.O atual embaixador norte-
tomada em conta. No coração da Europa havia uma nação muito forte desde a Segunda Guerra Mundial, americano da Bolívia, Philip
e que em uma guerra nos anos 1990 se converteu em diversas nações. E este perigo existe na Bolívia. E Goldberg, foi assessor político
pode ser anedótico, mas nos perguntamos: por que o embaixador dos EUA na Bolívia45 é o mesmo que na Bósnia e acompanhou de
foi o representante dos EUA na época do fracionamento da Iugoslávia?”. Tal fragmentação só pode ser perto o processo da guerra ci-
vil iugoslava e o posterior jul-
pensada no contexto do governo de Evo Morales, com a possibilidade de que políticas radicalizadas sejam gamento do presidente sérvio
implementadas com um apoio majoritário da população, fechando os limites da democracia representati- Slobodan Milosevic.
va para os setores de poder econômico boliviano.
Uma outra possibilidade, de caráter não-fragmentador do território nacional, seria um golpe
de Estado. De fato, Manfred Reyes Villa, governador de Cochabamba, ex-militar e aluno da Escola das
Américas no Panamá, chegou a pedir às forças armadas que interviessem no governo para garantir um
processo mais democrático de Assembléia Constituinte em novembro de 2007. “Eu creio que tentaram
golpes e vão continuar tentando. Nunca deixaram de procurar militares que estivessem dispostos a isso”,
diz Paz. Mas, até o momento, todas as declarações das Forças Armadas Bolivianas deram pleno respaldo
ao governo de Evo e à integração nacional.
De fato, o desgaste da direita tradicional transforma as organizações sociais regionais, como os
comitês cívicos, em seus melhores representantes. O Comitê Cívico de Santa Cruz, por exemplo, possui
atores no seu interior que não são exclusivamente da região, como a CAO e a Câmara de Hidrocarbo-
netos de Bolívia. Pablo Regalsky vê uma imensa influência brasileira na presença destes atores: “A CAO
tem enquanto núcleo fundamental os sojeiros brasileiros, colombianos e peruanos, que controlam as
melhores terras produtivas do oriente e a Câmara de Hidrocarbonetos é controlada pela Petrobrás. Toda
Terra e território
83 esta ofensiva política da direita, que as pessoas dizem ‘são os crucenhos, são os cambas’, na verdade está
plenamente respaldada pelo projeto expansionista, imperial brasileiro”.
Sobre o arco de alianças que a direita articula no país, Paz identifica cinco principais instrumen-
tos, incluindo também as empresas petroleiras: “Quais são os atributos da oposição? Tem cinco instru-
mentos. Por ter maioria no senado, podem dali boicotar qualquer impulso parlamentar para mudança.
Segundo, os meios de comunicação, que são convertidos em um grande instrumento articulador de toda
a oposição a Evo Morales, com todos os canais de televisão e os jornais (...). Terceiro, o Poder Judiciário,
que era uma herança dos governos anteriores (...). Quarto, as empresas petroleiras, que se converteram
nos tesoureiros dos comitês cívicos, para fomentar mobilizações populares e grandes campanhas publicitá-
rias contra o governo. E quinto, a Embaixada dos EUA, que de maneira muito sutil e hábil foi articulando
aonde tinha influência todas estas forças para debilitar o governo”.
Houve também erros do governo Evo que permitiram este grande fortalecimento das regiões
“opositoras”. Como vimos no caso de Yuquises, no início de 2005 o conflito agrário no norte de
Santa Cruz era fortíssimo. Neste embate entre camponeses e latifundiários, estes últimos começaram a
questionar fortemente a figura do governador, indicado pelo governo central, que era considerado pouco
agressivo por eles. Ou seja, o governo Mesa hesitou para adotar uma postura violenta contra os sem-terra.
Neste momento, a reivindicação de que os governadores fossem eleitos aumentou muito e junto com as
eleições presidenciais chamadas em 2005 (dois anos antes do previsto), foram chamadas também eleições
diretas para os governadores.
46.A atual Constituição Polí-
tica do Estado boliviana prevê
Estas eleições não eram previstas constitucionalmente46 na Bolívia e, para que estes governadores
que os governadores sejam pudessem ocupar seus cargos, um acordo foi feito com o recém eleito presidente Evo Morales, que os
nomeados pelo Presidente da nomeia. “Eu creio que neste momento deveria estar claro de que eram empregados do Poder Executivo,
República e dependem admi- que não tinham poder autônomo próprio. O problema é que estando Evo Morales respaldado pela lei, lhes
nistrativamente do Ministério
da Presidência. deram muitas possibilidades de ter poder desde de janeiro de 2006, através de uma administração cada
vez mais independente, de se converterem em administradores de recursos importantes... E o governo, ao
invés de controlar esta administração, acabou permitindo que ela se ampliasse”, diz Paz.
A conformação dos governos departamentais opositores se deu logo em 2006, no primeiro ano
do governo de Evo. Sob a mesma pressão que levou às eleições diretas para governadores, foi convocado
um referendo para determinar se a Bolívia seria um país centralizado ou com autonomias departamentais.
Nacionalmente, a autonomia departamental perdeu. Mas em quatro departamentos, Pando, Beni, Santa
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84

Terra e território
85
Cruz e Tarija, os que conformam as terras baixas bolivianas ao leste e ao norte do altiplano, o “sim”
ganhou. Desde então, suas autoridades locais se prenderam a esta demanda comprovada por autonomia
departamental, e a partir desta demanda passaram a fazer oposição ao governo. Estes quatro departamentos
são chamados de “meia-lua”.
O maior problema da autonomia departamental que é aplicada hoje, não é a autonomia em si,
mas o fato dela não ser regulamentada. Por ser uma medida inexistente no arcabouço legal boliviano, não
há nada que regule a gestão dos governos departamentais e que os ligue à gestão nacional. Portanto, estes
departamentos concretizam ações que podem ser consideradas desobediências civis, como no recente
caso dos Estatutos Autonômicos. É uma verdadeira guerra de versões na disputa de quem tem mais
legitimidade para efetivar políticas estatais, o governo central ou os departamentos, que se apresentam
factualmente como estados separados.
Paz ainda cita um outro fator que fortaleceu estes governos departamentais opositores: o au-
mento da arrecadação graças à política de nacionalização dos hidrocarbonetos, pois os governos depar-
tamentais ganham uma porcentagem do Imposto Direto dos Hidrocarbonetos (IDH). “Veio a naciona-
lização dos hidrocarbonetos e grande parte da renda petroleira é destinada a estes governos. Então, não
somente eles ganham autonomia de ação, mas ganham recursos econômicos. E o que fazem os prefeitos?
Deixam de prestar contas ao Estado, adquirem cada vez mais independência e usam estes recursos para se
fortalecer contra o governo central”, explica ele. Estas verbas são utilizadas para organizar manifestações
sociais pró-autonomia ou para fomentar campanhas publicitárias contrárias ao governo.
O ano de 2007 foi inteiramente marcado pelas disputas acerca da Assembléia Constituinte.
Propagada como um espaço de consenso nacional tanto pelo governo quanto pela oposição, a Consti-
tuinte não se concretiza como tal, pelas profundas divergências entre os dois grupos. Ao perceber que o
consenso não seria viável e que o MAS era a força majoritária do processo, a oposição se retira e se nega a
estar presente nas sessões que determinam o texto final. A partir deste momento, a sua tática passa a ser
deslegitimar a Constituinte e incentivar a criação dos estatutos autonômicos dos departamentos da meia-
lua, apresentados como continuação da vontade popular expressada em 2006. Esta situação culmina no
dia 15 de dezembro de 2007, quando, ao mesmo tempo em que Evo Morales apresentava à nação o texto
final da nova Constituição Política do Estado (CPE) no Palácio Quemado em La Paz, se apresentava em
Santa Cruz o texto final do Estatuto Autonômico da região, redigido por ilustres locais que nem sequer
Terra e território foram eleitos para tal atividade.
O ano de 2008 começa então com duas agendas. A agenda do governo central, que tem que fa- 86
zer passar por referendo a sua CPE, acompanhada do referendo de limitação da extensão da propriedade
agrária; e a agenda da meia-lua, que quer aprovar os seus Estatutos Autonômicos. O departamento de San-
ta Cruz, que possui a maior população dos quatro, foi vanguarda de todo este processo e anunciou o seu
referendo autonômico para o dia 4 de maio, apesar da Corte Nacional Eleitoral ter declarado o processo
nulo. Enquanto isso, o governo central ainda enfrenta problemas para aprovar a data dos seus referendos,
já que importantes núcleos de poder como o senado são hegemonizados pela oposição.

Estatuto Autonômico e interesses agrários


Para finalizar a história desta suposta briga entre regiões, é necessário fazer uma análise do Es-
tatuto Autonômico de Santa Cruz. Ele serviu de forte referência para a formulação dos demais estatutos 47.Pando e Beni fizeram as
que estão neste momento em processo de aprovação em Tarija, Beni e Pando47. Esta análise é extremamen- suas consultas no último dia
te importante porque, mais além de todas as disputas sobre autonomia ou não, está nas entrelinhas deste 1o. de junho. Tarija fará a sua
consulta no dia 22 de junho.
processo uma briga profunda sobre a terra e a garantia de continuidade da estrutura agrária da região,
ameaçada pelas medidas anunciadas pelo governo.
O Estatuto Autonômico estabelece taxativamente que toda a administração agrária será com-
petência departamental. “O direito proprietário sobre a terra, a regularização dos direitos, a distribuição,
redistribuição e administração das terras no departamento de Santa Cruz é responsabilidade do Executivo
Departamental e estará regulado através de uma lei departamental aprovada pela Assembléia Legislativa
Departamental” (Artigo 102).
Para concretizar este poder absoluto sobre o território crucenho, o estatuto determina a criação
do Conselho Agrário Departamental (Artigo 106) e do Instituto Departamental de Terras (Artigo 107),
ambos sem nenhuma conexão com as entidades afins já existentes em nível nacional, como o Inra. Ou
seja, seu funcionamento é completamente independente das disposições nacionais agrárias, o que impe-
diria, por exemplo, que uma possível limitação de terras tenha efeito na região ou mesmo que o trabalho
cotidiano do Inra na verificação do cumprimento de função econômica e social seja feito nas proprieda-
des agrárias crucenhas.
Mas é o Artigo 109 que escancara a vontade das elites crucenhas de administrar as terras da
região sem o mínimo de controle social. Este artigo estabelece um poder imenso do governador, que
“assinará todos os títulos agrários que creditem a propriedade sobre a terra e se encontrem dentro da ju-
Terra e território
87 risdição do Departamento Autônomo de Santa Cruz, os quais, de acordo com princípios constitucionais,
(...) não são revisáveis, salvo pela autoridade judicial competente, permitindo a sua inscrição no Registro
de Direitos Reais”.
Carlos Romero comenta inclusive que a ânsia destes proprietários de terras em Santa Cruz fez
com que o estatuto tivesse algumas aberrações do ponto de vista da gestão pública. “O estatuto não prevê
nenhum mecanismo efetivo de redistribuição de terras, mas bem elimina os mecanismos que já estão
previstos na legislação agrária vigente. Não menciona a reversão, nem sequer a expropriação, que é uma
medida que existe em qualquer país do mundo para realizar obras públicas”. A própria onipotência do
governador relativa à titulação de terras é considerada por Romero uma irracionalidade. Estes elementos,
segundo ele, demonstram o verdadeiro caráter do estatuto, que é “proteger as terras” do setor latifundi-
ário.
Mas a população urbana de Santa Cruz aparentemente não acredita que estas questões são tão
relevantes. Conta mais neste processo o sentimento de pertencimento local, sentimento incorporado
inclusive por alguns migrantes. Sabino Aguilar é cochabambino e tem um pequeno negócio na periferia
de Santa Cruz. Ele reconhece muitos dos problemas do Estatuto Autonômico: “Há artigos que não estão
bem. Por exemplo, coisas a favor do trabalhadorr nem sequer estão escritas. Então, isso é o que nos dá
desconfiança (...). Eu li uns folhetos também que diziam que a terra vai continuar como antes, os estatutos
não vão mudar nada. A política do governo [central] reparte as terras fiscais aos que não têm, e no estatu-
to não há isso. Isso afeta também o camponês”. Mas, faltando dois dias para consulta e mesmo sabendo
de todos estes problemas, afirma que vai votar favorável ao estatuto. Por quê? “Por Santa Cruz, eu me sinto
crucenho, trabalhei aqui 14 anos. Aqui está a minha família, tenho netos crucenhos, filhos das minhas
filhas. Tomara que seja para bem”.
Os resultados finais do referendo mostraram um grande apoio popular ao estatuto. Segundo
dados da Corte Departamental Eleitoral, 86% dos votos válidos foram favoráveis ao estatuto e 14% con-
trários. Contudo, 40% dos votantes habilitados não compareceram às urnas, mais do dobro do padrão de
abstenção da região, o que também demonstra que a campanha pelo não-comparecimento teve resultados
significantes.

Terra e território
MAPA DE COCHABAMBA 88

Detalhe

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89

3 - MOVIMENTO COCALEIRO E A LUTA PELA SOBERANIA NACIONAL

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90

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91

CHAPARE

Finados em Santa Helena


No Chapare, o último dia de finados caiu em uma sexta-feira chuvosa. Na tradição boliviana,
era o dia de Todos os Santos, quando os mortos, em especial aqueles que morreram recentemente, são
recordados com prantos e festas.
Quando cheguei no sindicato agrário Santa Helena, por volta das 9h da manhã, todos já estavam
de pé há muito tempo. A mesa, em tributo aos mortos, estava pronta, e a cada momento vinham crianças
prestar as suas homenagens. Ela geralmente é composta por comidas, flores, coca, coisas que os mortos
apreciavam. Mais tarde, ela seria levada ao cemitério, carregada pelos membros da comunidade. Todos se
concentravam em uma das casas que fica mais perto da estrada secundária que passa pelo sindicato. As
mulheres serviam pães assados e chicha, os homens bebiam, conversavam e jogavam com moedas.
Seu Julián e Seu Andrés estavam me esperando. Seu Julián é secretário geral do sindicato,
função que na Bolívia é uma mescla entre dirigente político e comunitário, pois o sindicato é o órgão de
gestão territorial das comunidades camponesas. Seu amigo, Seu Andrés, ia me mostrar esta manhã o seu
chaco, sua pequena plantação de coca e as demais coisas que são colocadas lá dentro para o sustento da
família.
O sindicato Santa Helena fica na beira de um ramal norte, que leva até a cidade de Eterazama,
da estrada principal que liga Cochabamba a Santa Cruz. Os lotes dos membros desta comunidade se
encontram saindo deste ramal para dentro, atrás das casas da comunidade, muitas vezes já alcançando
um terreno mais acidentado. Entramos os três em direção ao chaco. Atravessamos um pequeno córrego,
subimos alguns barrancos, tudo envolto a uma densa vegetação. Corta para a direita, depois para a
esquerda, andamos mais um pouco. Até que chegamos à plantação de coca de Don Andrés, um terreno
pequeno, um cato de coca – quarenta por quarenta metros, que dão ao final 1,6 mil m2, plantação
Terra e território
permitida atualmente. 92
Por mais que as políticas governamentais acerca da produção de coca tenham mudado
nos últimos anos, estes pés de coca foram plantados seguindo uma geografia diferente. Quanto mais
escondidos na mata eram, melhor. Assim poderiam se salvar da erradicação forçosa promovida pelos
governos anteriores.
Mostraram-me como se colhe a coca, tirando as folhas ao puxar a mão fechada pelo tronco, da
base até a extremidade. Não se pode fazer com muita força ou violência, se não as folhas se rompem e
ficam imprestáveis para vender depois. Até o método da colheita é apropriado para o clima clandestino
das plantações. Se comparado com a colheita feita nos Yungas de La Paz - onde as plantações de coca eram
1.Do Chapare.
permitidas por serem “tradicionais” – na qual cada folha é retirada com cuidado, o método chaparenho1
é muito mais rápido. No período auge do preço da folha de coca, anos 1970 até meados de 1980, quando
a repressão não era forte, a colheita rápida servia para maximizar os ganhos. Nos períodos de repressão
intensa, do final dos anos 1980 até meados dos anos 2000, servia para não chamar tanto a atenção dos
militares.
Seu Andrés Yucra, com seu lote de 9 hectares, é um dos maiores camponeses do sindicato.
Na época anterior, lembra, todos ocupavam boa parte dos seus lotes com hectares de coca. Para fazer a
colheita, contratavam peões. Hoje, com somente um cato legalizado, dão conta do serviço com ayni, uma
espécie de troca de diárias de serviços entre as famílias. Como a coca se colhe a cada três ou quatro meses,
nos dias da colheita o proprietário reúne à base do ayni a mão-de-obra para fazer o serviço com a rapidez
necessária. Assim, ele e sua família têm os próximos meses para “devolver” o trabalho feito.
Como um cato é equivalente aproximadamente à sexta parte de um hectare, sobra bastante
terreno para Don Andrés produzir outras coisas. Enquanto caminhamos pelo seu chaco, ele vai me
mostrando outros cultivos. Aqui e ali tem árvores madeiráveis - cerebo, palo román, tijiaque, armendrillo - que
a seu tempo poderão render muito dinheiro. Depois, algumas árvores de cítricos. Arroz e mandioca, mas 2.Na verdade se diz mascar,
somente para consumo familiar. Finalmente, ocupando 3,5 hectares, estão nove cabeças de gado, maior mas a prática do acullico ou
unidade produtiva do chaco. pijcheo não consiste em tritu-
rar as folhas, mas sim pressio-
Voltamos para a comunidade. A preparação para a ida ao cemitério continuava. Os homens aos ná-las com os dentes para aos
poucos iam ficando mais alegres com a chicha. Muitos mascam a sua coca, trazendo um grande bolo de pouco ir tirando a sua seiva.
folhas em uma das bochechas2. As mulheres se concentram mais na cozinha, ainda preparando comidas
para servir. A manhã seguia, com chuva, mortos e coca. Cheia de símbolos do Chapare.
Terra e território
93

Terra e território
A região 94
O lugar denominado Chapare ou Trópico de Cochabamba na verdade é composto por três 3.KOMADINA, Jorge (co-
províncias do departamento de Cochabamba: Chapare, Tiraque e Carrasco. É uma região onde predomina ord.); GEFFROY, Celine. El
um clima tropical, muito úmido, com extensões de terra planas, mas que vão se acidentando a oeste, na poder del movimiento políti-
província de Chapare, à medida que se aproximam da província mais altiplânica de Ayopaya. co. Estrategia, tramas organi-
zativas e identidad del MAS
Ali, vivem atualmente no mínimo 40 mil famílias de pequenos produtores agrícolas3, que se en Cochabamba (1999-2005),
organizam em sindicatos agrários, como o de Santa Helena. Há hoje 1087 sindicatos na região, agrupados p. 82. CESU, DICYT-UMSS,
em 109 centrais sindicais4. Por fim, estas se organizam dentro de seis federações camponesas: Federação Fundación PIEB. La Paz,
2007.
do Especial do Trópico de Cochabamba, Federação Mamoré Bulo Bulo, Federação Carrasco Tropical,
Federação Centrais Unidas, Federação Especial Yungas do Chapare e Federação Chimoré. Estas federações
se agrupam em uma Coordenadora, que é quem responde unificadamente ao movimento cocaleiro do 4.DIRECO (Dirección Na-
Chapare. cional de Reconversión Agrí-
cola). Coca en cifras – datos a
A formação destas organizações sociais está ligada ao histórico de colonização desta área. nivel nacional, p. 43-45. 2005.
Durante a colônia, esta era uma área muito pouco habitada, com presença considerável dos índios
yuracarés. Segundo o pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da
Universidad Mayor de San Simón, já no fim do século XVII houve uma guerra entre os yuracarés e os 5.Segundo entrevista feita
espanhóis pelo controle da produção da folha de coca. A coca era um mercado importante nesta época, com Fernando Salazar.
pois era muito consumida nas minas de Potosi, no norte argentino e chileno. Em termos gerais, a coca
ocupava o quarto ou quinto lugar nas exportações bolivianas5. Um estudo do final do século XVIII indica 6.SPEDDING, Alison. Kaw-
que a coca representava cerca de 30% do valor total dos produtos nacionais comercializados no mercado sashun coca. Economía cam-
de Potosi6. pesina cocalera en los Yungas
y el Chapare, p. 56. PIEB. La
Ainda no final do século XVII, apareceram na região missões franciscanas. Elas fundaram Paz, 2005.
povoados que existem até hoje, como San Antonio que depois foi rebatizado de Villa Tunari na década de
19407. Mas a colonização veio de forma mais contínua a partir do século XX, quando muitos camponeses 7.GARCIA Linera, Álvaro (co-
e fazendeiros começam a colonizar espontaneamente a região. ord.) et al., op. cit., p. 383.

Muitos pesquisadores8 apontam como marco o final da Guerra do Chaco, quando prisioneiros 8.SPEDDING, Alison, op.
paraguaios foram utilizados para construir uma via que ligava Villa Tunari a Cochabamba, fato que cit., p. 91. GARCIA Linera,
impulsionou a abertura da região. Fernando Salazar aponta uma outra conseqüência desta guerra para a Álvaro (coord.) et al., op. cit.,
p. 384.
região: muitos dos soldados convocados eram colonos em trabalho servil nas fazendas criollas bolivianas.
Ao voltarem da guerra, estes soldados não queriam mais trabalhar nestas fazendas e começam a procurar
Terra e território
95 terras próprias no trópico cochabambino.
9.Colonos neste caso nova- A partir da Reforma Agrária de 1953, os governos começaram atuar de forma mais ativa na
mente não é o colono servil colonização da região como parte da sua política de modernização agrária. Em algumas regiões, como
das fazendas, mas sim o cam- em Chimoré em 1958, foram estabelecidas colônias dirigidas, prometendo aos colonos9 infraestrutura
ponês deslocado pelo Estado
para habitar e produzir em
produtiva, o que no final acabou se resumindo em mosquiteiros e algumas sementes. Muitas das colônias
uma área. que existem hoje, contudo, se formaram espontaneamente, com os camponeses se juntando e distribuindo
lotes entre si10. Em algumas regiões, como a de Ivirgarzama, os lotes variam entre 10 a 20 hectares. Nas
regiões mais perto de Villa Tunari, como o sindicato Santa Helena, os lotes raramente passam de 10
10.SPEDDING, Alison, op.
hectares.
cit., p. 92.
Com a pouca ajuda do governo para fomentar outros cultivos economicamente rentáveis, os
camponeses aos poucos se voltaram para o cultivo de coca, aproveitando que já havia um mercado deste
11.Idem, p. 92. produto tradicional em Villa Tunari11.

O auge da coca: lógica inversa do camponês


Entre 1970 a 1986, a região viveu o auge do preço da coca, que coincide com a presença forte
da indústria da cocaína. “Alguns já não cultivavam banana nem cítricos, em seu chaco já não tinha espaço
para nada. Estavam desde a rua até a ponta com coca, já não tinham espaço nem para um pátio decente
para secar a coca, o faziam na rua. Vinha um carro e este tinha que parar. Tiravam o toldo, passava o carro,
e voltavam a secar a coca. A este extremo chegou”, descreve Carlos Meneces, que foi secretário geral da
Federação do Trópico no início da década de 1980.
Segundo Alison Spedding, que coordenou um extenso estudo sobre a economia camponesa
cocaleira na Bolívia, aparentemente no início dos anos 1970 a produção de coca no Chapare ainda era
12.Ibidem, p. 93.
voltada para os mercados tradicionais como os centros mineiros. Mas no final desta década a demanda
da indústria da cocaína se torna mais marcante, levando à modificação das formas de produção agrícola
destes camponeses12.
Spedding, ao analisar a história da economia da folha da coca, identifica esta época como a que
mais apresenta características da economia agrária capitalista. A utilização de praticamente todas as terras
disponíveis para o plantio de coca, a eliminação da rotatividade de cultivos e a diminuição dos plantios
de subsistência (como mandioca, arroz, cítricos, etc.) em detrimento da coca foram práticas que contraria-
vam em muito a lógica de produção camponesa.
Terra e território
O espanto de Carlos com relação à forma como seus companheiros plantavam coca na época 96
se justifica especialmente se tomarmos em conta esta lógica de produção, forjada nas dificuldades da
agricultura andina. Com cultivos em diferentes pisos ecológicos, os camponeses dos Andes asseguram um 13.GOLTE apud SPEDDING,
trabalho que ocupa toda a mão-de-obra familiar e uma produção certa, por mais que seja pequena, frente Alison, op. cit., p. 19.
aos desastres naturais e às mudanças climáticas13. A diversidade da produção com rotatividade de cultivos
garante a alimentação da família, mesmo que os recursos econômicos provindos da venda destes produtos
sejam muitos baixos. A racionalidade camponesa, portanto, prioriza questões como garantir um mínimo
14.SPEDDING, Alison, op.
de produção de subsistência ou a ocupação plena da família em detrimento da busca por máximos rendi- cit., p. 20.
mentos por força de trabalho ou produtos “investidos” – como seria lógica capitalista14.
A coca se ajusta perfeitamente a esta lógica, pois pode ser cultivada em pequenas extensões,
inserida nos ciclos de rotatividade de cultivos, gera atividades para toda a unidade familiar e recursos
econômicos mínimos. Nas palavras de José Encinas, dirigente do Sindicato Recta Ivirgarzama: “o agricultor
planta coca, faz a colheita e disso come, se veste, faz estudar os seus filhos. Então, ela é praticamente tudo
para o cocaleiro que não tem apoio”.
Segundo Spedding, ainda que este período de auge da coca tenha representado uma exceção,
não se encontra referências de produtores que tenham adotado “relações de produção estritamente
capitalistas” nesta época. Isso porque o cultivo de coca necessita de muita mão-de-obra e há certas
15.Idem, p. 7.
etapas que são impossíveis de serem mecanizadas, em especial a colheita. É por isso que as fazendas
cocaleiras pararam de produzir coca a partir da Reforma Agrária e 1952, por não terem mais mão-de-obra
gratuita15. 16.Partidários são camponeses
Contudo, os altos preços da coca atraíram como nunca migrantes de todo o país, que vinham a que cultivam terras de uma
terceira pessoa e dividem seus
para trabalhar como peões ou partidários16 nas plantações de coca. Aos poucos, muitos juntaram dinheiro ganhos com ela.
para comprar lotes próprios e cultivar a sua própria coca.
Neste sentido, uma outra conseqüência do aumento de preço da coca foi a criação de um
mercado de terras. Antes, segundo Spedding17, este era quase inexistente na região, pois os camponeses 17.SPEDDING, Alison, op.
cit., p. 94.
tinham acesso às terras com a simples afiliação a um sindicato, que significava a mesma coisa que
incorporação a uma comunidade já criada ou ainda por ser estabelecida.

Terra e território
97

O ESTADO CONTRA A COCA

Ainda em 1961, o governo nacionalista de Víctor Paz Estenssoro se comprometeu na Conven-


ção de Viena a erradicar a coca em 25 anos e acabar com a prática do acullico, o mascar de coca. A ativi-
dade era entendida como arcaica, símbolo de um passado indígena a ser superado pela fase nacionalista.
Contudo, para os governos que seguiram, em especial os do período militar, a ideologia nacionalista
ficava em segundo plano frente à crescente ligação destes com o narcotráfico que se estabelecia na região.
Portanto, a produção de coca e de cocaína na Bolívia aumentou exponencialmente até meados da década
de 1980.
O período entre 1975 a 1982 é caracterizado por Fernando Salazar como a época em que o nar-
cotráfico governava o país. Durante ditadura de Banzer, que ocupou quase toda a década de 1970, foram
18.DUNKERLEY, James, op. descobertos vários escândalos ligando parentes do presidente e autoridades do governo com o tráfico de
cit., p. 383-392. cocaína. Mas foi na curta e violenta ditadura de Luis García Meza de 1980 a 1981, que as ligações entre o
narcotráfico e o Estado boliviano ficaram mais explícitas. Especula-se que os clãs da cocaína financiaram
o seu golpe com cerca de um milhão de dólares18. Sua ditadura marca a “época dourada” da vinculação da
economia boliviana à cocaína, que então representava 50% do PIB boliviano19. Obviamente, os EUA não
19.DO ALTO, Hervé, op. cit., apoiavam esta relação direta com o narcotráfico e este fator, somado à extrema violência de seu governo
p. 73. contra os movimentos sociais, derrubou Meza do poder em menos de dois anos de governo.
A partir de então, os governos bolivianos passaram a colaborar irrestritamente com a política
norte-americana de combate às drogas. Contudo, a intervenção antidrogas no país, instalada a partir de
1982, quando reiniciaram os governos democráticos, não possuía o narcotráfico como seu maior foco.
A política se voltava principalmente contra a base da cadeia de produção, os camponeses cocaleiros,
provavelmente tidos como alvos mais fáceis que os poderosos clãs da cocaína, que além de tudo sempre
Terra e território
estiveram ligados aos grupos de poder no país.
Negociando com o inimigo 98
Seu Carlos Meneces não é daqueles que idolatra a folha de coca. “Se é sagrada, que a coloquem
em um altar! Não masquem, nem pisem, nem cuspam!”. No cultivo da coca, somente via a oportunidade
de atrair algum desenvolvimento para a região.
Nascido na periferia de Cochabamba, chegou a se inscrever em direito na Universidad Mayor
de San Simón. Contudo, as repressões e o controle militar da época o desanimaram e ele preferiu tentar a
sorte no campo. Ainda jovem, se tornou dirigente sindical da Federação Chimoré. Mas a ditadura militar
colocou na ilegalidade todas as federações, com exceção da Federação do Trópico, que era controlada
politicamente pelo regime através da cooptação dos seus dirigentes. Eram resquícios do Pacto Militar
Camponês.
Em 1982, um pouco antes da queda do regime militar, foi organizada a eleição da diretoria
da Federação do Trópico. As eleições tinham que ser democráticas, pois o governo norte-americano
necessitava de um interlocutor legítimo na região para começar a aplicar os seus planos de erradicação
da coca.
Seu Carlos queria participar das eleições, contrariando os seus ex-companheiros da então
extinta Federação Chimoré, que pensavam que isso seria pactuar com as políticas do governo. Montou a
sua chapa sem dinheiro para fazer campanha, visitando somente um terço da região. Enquanto a outra
chapa, a financiada pelos militares, tinha carro, motorista, gasolina, distribuía presentes. A inesperada
vitória de Seu Carlos indicava um pressentimento dos cocaleiros de que os tempos haviam mudado.
O governo quis anular a eleição, mas as autoridades americanas presentes o impediram,
“queriam ver no que ia dar”. Dois dias depois que tomaram posse, receberam um comunicado de que
teriam uma reunião com uma autoridade americana de alto escalão. A política que os EUA propunham
na época era a erradicação de qualquer maneira, feita geralmente com a pulverização de químicos por via
aérea, acabando com a folha de coca e com quaisquer outros cultivos existentes, tendo como conseqüência
enormes danos sociais, econômicos e ambientais.
Tratava-se de uma das primeiras negociações com camponeses acerca da política americana de
erradicação da folha de coca. Seu Carlos, que foi nomeado junto com outros dois companheiros pela
Federação para participar do encontro, se lembra da conversa com detalhes.
A reunião foi à noite, em Villa Tunari. A todo tempo, a autoridade americana tentava arrancar
pedidos dos dirigentes, “Os EUA sempre consideram que os países de terceiro mundo têm que ficar
Terra e território
99 pedindo coisas, como mendigos”.
Então, quando o gerador do povoado falhou, o americano emendou: “Olha, que contratempo.
Vocês necessitam ter eletricidade. Falta desenvolvimento para vocês”. Recebeu como resposta comentários
acerca da beleza da natureza e da lua. Como era bom, quando jovem, caminhar com a namorada em
noites de luar, não?
A estratégia dos dirigentes cocaleiros era fazer com que o representante americano entendesse
que o problema com as drogas não era dos bolivianos, mas sim dos americanos. Portanto, quem tinha
que pedir alguma coisa eram eles. “Diziam que havia sete milhões de jovens que entravam a cada ano nas
drogas. E a gente era seis milhões nesta época e não tinha problema com isso. A pobreza é um problema,
mas a droga é pior. Eles sim tinham um problema grave. De que lhes serve ganhar o mundo e perder a
sua alma? Não serve de nada. Estavam pior que a gente”, conclui Seu Carlos.
Mas a conversa estava emperrada, não havia como começar a negociação. Por fim, o americano
perguntou:
- Vocês para produzir cem laranjas, como fazem?
- Colocamos ao ombro cem laranjas, andamos...
- E quanto lhes pagam?
- Nos pagam tanto.
- E é suficiente para viver?
- Não.
- Ah... Então necessitam ganhos.
- Claro, para isso temos a coca. Tiramos o equivalente a cem laranjas e ganhamos duzentas vezes
mais.
- Mas isso está mal, não há lei em Bolívia que proíba isso?
- Não, não há nenhum problema. A gente masca a coca.
- Mas vocês não sabem, há milhões de jovens em nosso país ficam doentes!
- Ahh! O problema é de vocês, não da gente!
A partir daí, a conversa fluiu até as duas horas da madrugada. Seu Carlos crê que foi muito positiva.
Graças a ela, diz ele, se conseguiu negociar uma política para a coca com desenvolvimento alternativo e
evitar a pulverização de químicos pelo ar. “Eu creio que a partir disso, as políticas de coca na Bolívia foram
mais brandas que na Colômbia e no Peru”.
Terra e território
100
Lei 1008
Contudo, nada impediu que o governo boliviano, sustentado pelo americano, começasse a
aplicar políticas duras durante os anos 1980 a respeito dos produtores de coca. Em 1986 o preço da
coca despencou e este fato coincidiu com o Plano Trienal, primeiro de uma série de planos que têm
enquanto política comum a erradicação das plantações de coca, o combate ao narcotráfico (sendo estes
dois últimos garantidos por uma forte militarização da região) e a aplicação de cultivos de substituição da
coca, chamada de desenvolvimento alternativo.
Dois anos depois, o governo promulga a Lei 1008, a Lei do Regime da Coca e Substâncias controladas.
A lei poderia ser considerada um avanço se consideradas as tentativas americanas de eliminação completa
da coca, pois identifica o consumo tradicional boliviano da coca, que pode, portanto, ser mantido por
um número limitado de cultivos.
Esta lei teria sido baseada em estudos de produtividade dos cocais bolivianos e do consumo
tradicional – através do acullico, mates e usos rituais – da folha de coca. Assim, se estabeleceu uma
quantidade de hectares de serviriam a esta demanda e a quantidade que estariam “excedentes” e que,
portanto, serviriam ao narcotráfico.
Contudo, muitos problemas aparecem na aplicação desta lei. O primeiro deles eram os dados
utilizados para calcular a produtividade dos cocais. Spedding aponta que, além serem coletadas ou
apresentadas sem o mínimo de rigor acadêmico, as cifras de produtividade tendiam a aumentar (ou
seja, significavam menos territórios permitidos para os cocais) na medida em que o debate acerca da
erradicação da folha de coca se tornava mais conflitivo20.
Além disso, a lei não adotou critérios universais para estabelecer os cultivos “excedentes”, mas
sim critérios culturais e geográficos. Ela estabeleceu a divisão do país em três territórios. O primeiro 20.SPEDDING, Alison, op.
era uma área de cultivo “tradicional” da coca, que teria a produção da folha autorizada e se consistia cit., p. 72.
na região dos Yungas do departamento de La Paz na região dos Yungas de Vandiola no departamento
de Cochabamba. O segundo território era onde havia cultivo “excedentário” da folha de coca e que
se consistia principalmente no trópico cochabambino, apesar de também incluir algumas regiões no
departamento de La Paz. O terceiro território é todo o restante do país, no qual o cultivo de coca estaria
terminantemente proibido.
Sempre foram, portanto, imensos os questionamentos sobre os critérios escolhidos para estabelecer
Terra e território
101 as áreas de cultivo “tradicional” e “excedentário”, determinando, portanto, quais camponeses teriam a
sua atividade considerada legal e quais, ilegal. A explicação dada é a de que as áreas de cultivo antigo,
como os Yungas, eram áreas que serviam para o consumo tradicional de coca, e as áreas de colonização
recente, como o Chapare, eram áreas que haviam se estabelecido principalmente graças ao mercado de
cocaína. Contudo, não se considerava que já antes deste mercado, cuja explosão se dá no final dos anos
197021, o Chapare se constituía em uma importante região produtora de coca para os usos tradicionais. O
21.Spedding sugere o ano de estabelecimento destas duas zonas parece ter como principal orientação a divisão dos produtores de coca,
1978 como uma data “que a impedindo a organização de lutas conjuntas.
demanda ilícita chegou a ser Contudo, o maior problema desta lei era o clima de terror que impunha nas áreas excedentárias.
um fator determinante para
a plantação de novos cocais”.
Havia uma grave inconstitucionalidade na lei, que permitia prisões e ações militares contra pessoas ou
In: SPEDDING, Alison, op. comunidades antes que a culpa destes fosse comprovada. Combinado com a militarização da região,
cit., p. 73. muitos foram presos, torturados e mortos sem nenhum processo jurídico que permitisse estas ações. Se-
gundo esta lei, diz Eduardo Córdova “uma pessoa não é inocente, é culpada e tem que demonstrar a sua
inocência”, portanto, há uma inversão dos princípios jurídicos.
A partir destas políticas do final dos anos 1980, em especial a militarização e o total descumprimento
dos direitos humanos, o conflito na região do Chapare se tornou intenso. “O pretexto era a luta contra o
narcotráfico e contra o terrorismo, mas queriam na verdade nos evacuar do Chapare, tirar nossas terras.
Graças à nossa luta ficamos. Militarizaram e resistimos à militarização. Isto uniu o setor camponês, e por
causa desta luta e deste confrontamento, também nos ensinou a falar de política”, diz Feliciano Mamani,
prefeito de Villa Tunari e ex-dirigente cocaleiro. A cada plano que o governo soltava, o movimento
cocaleiro traçava novas formas de luta, tanto no plano local, em defesa das suas plantações de coca,
quanto no nacional, na denúncia de violações de direitos humanos.
Antes de relatarmos algumas histórias das lutas destes camponeses, é importante dar um panorama
completo sobre as políticas de luta contra as drogas do Estado boliviano. Como dissemos anteriormente,
além da militarização das regiões “excedentárias”, as políticas incluíam a erradicação dos cocais e o
desenvolvimento de cultivos alternativos.

Erradicação voluntária
Como estratégia para a eliminação da coca e a aplicação de outros cultivos, o Plano Trienal e a Lei
1008 estabeleciam uma política de erradicação compensada, na qual o produtor de coca oferecia uma
Terra e território
certa quantidade de plantação de coca a ser eliminada em troca de dinheiro e insumos para iniciar outros 102
cultivos.
O sucesso desta política nos primeiros anos se deu principalmente porque muitos dos cocais já
estavam sendo abandonados. A enorme queda nos preços da coca de 1986 fez com que muitos camponeses,
em especial aqueles que não tinham terras e trabalhavam como partidários ou peões, voltassem para as
suas regiões de origem. Assim, com o passar dos anos, os proprietários tendiam a reduzir os seus cocais
com o que conseguiam cultivar somente com a mão-de-obra da sua própria família. Desta forma, a política
de erradicação compensada se encaixou perfeitamente para estes anos de baixa nos preços da coca, nos
quais os proprietários erradicavam os cocais que já não tinham mais condições de cultivar22.
Este abandono dos cocais não se deu imediatamente, sendo necessário alguns anos para que os 22.SPEDDING, Alison, op.
camponeses se convencessem que a queda no preço da coca não era um fenômeno temporário. Os dados cit., p. 95.
oficiais mostram que a erradicação compensada alcançou seu auge somente em 1990, época em que este
processo de abandono dos cocais culminava. Já quatro anos depois, em 1994, a erradicação compensada
chega a um mínimo, marcando o fim deste processo, pois os cocais não erradicados até este momento
eram o que uma família poderia cultivar23.
Até meados dos anos 1990, o preço do hectare erradicado chegou a um máximo de 2,5 mil dólares.
Alguns aproveitavam este alto valor para erradicar seus cocais e com o dinheiro investir na plantação de
23.Idem, p. 95
novos cocais, que novamente seriam erradicados. Muitos se dedicavam de fato aos cultivos alternativos,
mas as diversas dificuldades de mercado e de investimentos que estes representavam, os faziam voltar
ao cultivo de coca, que representava um ganho econômico mais estável. Os cocaleiros que tinham
muitos hectares de coca para oferecer à erradicação compensada juntaram uma pequena fortuna, mas
este dinheiro pouco foi aproveitado para o desenvolvimento da região. Alguns conseguiram estabelecer
pequenos negócios ou comprar carros para terem outras fontes de recursos. Contudo, a grande maioria,
segundo os próprios chaparenhos, desperdiçou seu dinheiro em bebedeiras ou com gastos excessivos e
desnecessários24.
Mas, é a história da Finsa a mais lembrada quando se pensa em todo o dinheiro que passou pela
região e não ficou. Trata-se de uma empresa financeira que apareceu no Chapare prometendo pagar
juros altíssimos às aplicações feitas na empresa. “O chaparenho fazia uma colheita e tudo o que ganhava 24.Ibidem, p. 324.
levavam a Finsa”, lembra Carlos Meneces. No final, a empresa faliu e com isso devorou centenas de
milhões de pesos bolivianos, recursos retirados da economia dos camponeses do trópico.
Terra e território
103 Os anos de erradicação compensada terminaram no segundo governo de Hugo Banzer Suárez, com a
25.Spedding aponta que, se- aplicação do seu Plano Dignidade em 1998. Segundo este plano, a erradicação voluntária teria que acabar
gundo este plano, durante o até o início do ano de 200225. Quem não erradicasse neste período toda a extensão de seus cocais, os teria
ano de 1998 a compensação erradicados forçosamente depois. Após esta medida, muitos dos enfrentamentos na região se acirraram,
voluntária iria diminuir gra-
dualmente de 2,5 mil dólares,
pois a presença militar era mais forte e agressiva na tarefa de identificar e erradicar cocais.
com valores que primeiro
eram de 1,5 mil dólares, de- Desenvolvimento alternativo
pois de 800 dólares e por fim
Paralelo à erradicação, o governo e os organismos internacionais propunham o desenvolvimento
chegariam a zero a partir de
outubro deste ano. Depois, alternativo de outros cultivos, numa política de substituição da folha da coca. Dos anos 1960 até meados
seria aplicada uma compensa- dos anos 1980, houve um incentivo vago à produção de cítricos26 e com o Plano Trienal (1986) e a Lei
ção comunitária, que também 1008 (1988) estas políticas ganharam mais corpo.
tinha compensação por hec-
tare erradicado, e o seu valor
A princípio elas eram combinadas à erradicação, com a distribuição de mudas e ferramentas para
começava com 800 dólares, novos cultivos como forma de pagamento aos cocais erradicados. Os principais produtos promovidos pelo
subia a 2 mil dólares no ano desenvolvimento alternativo eram então: palmito, banana e abacaxi. Aos poucos, diversas dificuldades,
de 1999 e baixava durante os
que não foram pensadas seriamente pelas instituições que promoveram estes cultivos, apareceram.
anos de 2000 e 2001 até 500
dólares. A partir de janeiro de José Encinas, de Ivirgarzama, está atualmente em uma comissão produtiva da Central Carrasco na
2002, não haveria mais com- qual coordena os produtores de palmito. Conta que começou a plantar palmito em 1994, com a ajuda das
pensação alguma e todos os co- políticas de desenvolvimento alternativo que lhe proveram de mudas e de formação técnica para o cultivo.
cais que ainda existissem iriam
ser erradicados. SPEDDING,
No início, cada unidade (interior do tronco da palmeira) era comprada pelos órgãos de desenvolvimento
Alison, op. cit., p. 47. alternativo por 1,50 peso boliviano. Depois, os preços foram baixando como conseqüência da política
de retirada paulatina de subvenções até chegaram ao valor de 0,30 peso boliviano no final da década de
1990. Com este valor, já não compensavam os altos custos da produção e grande parte dos produtores
26.Grupo de Trabajo “En de- desistiram do palmito.
fensa de la hoja de coca” apud
GARCIA Linera, Álvaro (co- A falta de mercados consumidores era o principal problema apresentando por estas políticas. Além
ord.) et al., op. cit., p. 387. do palmito, também o cultivo de abacaxi passou por esta situação. A produção repentina e massiva
desta fruta no Chapare logo fez o mercado saturar e seu preço caiu absurdamente, mais uma vez fazendo
com que os produtores voltassem a plantar coca. Um outro problema é que tanto o abacaxi quanto o
palmito não são produtos que possuem um grande mercado consumidor interno, sendo a sua produção
geralmente voltada para a exportação. Mas os mercados no exterior só são abertos quando uma série de
normas de cultivo, como certificações de utilização de agrotóxicos, de acondicionamento e de transporte
Terra e território
104

Terra e território
105 são cumpridas, imposições com custos muitas vezes inviáveis para o pequeno produtor.
A frustração com relação à falta de mercados sempre foi muito grande. Em 2002, por exemplo,
centenas de produtores “alternativos” de abacaxi, leite e palmito do Chapare foram até a cidade de
Cochabamba para deixar seus produtos na porta da agência estatal responsável pelo desenvolvimento
alternativo na região, em protesto pela falta de mercados prometidos pelo governo27.
Um outro problema é que a maioria destes cultivos, em especial a banana, requer uma quantidade de
terras bastante extensa para ser rentável. Ou seja, os camponeses mais pobres da região que possuíam lotes
27.SPEDDING, Alison, op. de cinco ou menos hectares já não tinham também a possibilidade de cultivar estes produtos.
cit., p. 41.
Além disso, todos estes cultivos requerem muito mais investimentos que a coca. José Encinas conta
que, para plantar um hectare de palmito se necessita ao redor de 1,5 mil dólares e poucos agricultores
têm condições começarem esta produção sozinhos, sem ajuda dos organismos de financiamento.
Normalmente, estes cultivos necessitam de mão-de-obra especializada, ou seja, já não se pode contar com
28.O Counter Narcotics Con- os membros da família.
solidation of Alternative De- Todas estas dificuldades fizeram com que os produtos alternativos tivessem poucos êxitos nestes anos
velopment Efforts (Concade)
de sua aplicação. Fernando Salazar aponta que, citando dados Concade28, somente 6,2% das famílias
foi um projeto elaborado pela
cooperação norte-americana camponesas que moram no Chapare hoje são exitosas com cultivos alternativos. Além disso, há cerca
através da AID-Usaid. Ele du- de 46,8% das famílias da região que desenvolvem produtos alternativos, mas o fazem paralelamente aos
rou de 1998 até 2005. cultivos da folha de coca e não são consideradas “exitosas”. Isso é explicado pelo simples fato de que é a
coca a que garante o sustento da família enquanto o cultivo alternativo ainda não é rentável ou em anos
de quedas bruscas de preços. “Foi a coca que gerou o desenvolvimento alternativo definitivo”, aponta
29.Os números apresentados
estão em: SALAZAR, Fernan- Salazar. O restante das famílias, 47%, vive com os recursos obtidos com os cultivos de coca e, além deles,
do. De la coca al poder. Políti- possuem cultivos tradicionais para consumo próprio. No geral estes são os camponeses mais pobres, com
cas públicas de sustitución de pequenos lotes e sem condições de fazer quaisquer investimentos para cultivar outras coisas29.
la economía de la coca y po-
breza en Bolivia, 1975-2004,
José Encinas crê, contudo, que se há empenho do Estado e dos organismos internacionais, é possível
p. 215. Consejo Latinoame- desenvolver seriamente outros cultivos no Chapare, pois há vontade política dos produtores de coca em
ricano de Ciencias Sociales. diminuir e racionalizar a sua produção. O principal problema que aponta é que nunca houve apoio real
Cochabamba, 2007. Trabalho
para isso. Do dinheiro que veio para apoiar o desenvolvimento alternativo durante os anos 1980 e 1990,
feito através do Programa
Clacso-Crop. a grande maioria ficou em salários de técnicos e obras super faturadas30: “Era um negócio dos anteriores
governos neoliberais feito em nome da gente. Mas o dinheiro era gasto por eles, farreavam. De todo o
dinheiro somente 10% ou 20% chegava ao agricultor”.
Terra e território
106
O desenvolvimento alternativo aplicado durante estes quase vinte anos de política de “Guerra con-
tra as drogas” é visto pelos camponeses locais como uma falácia. O dinheiro, que veio fácil através das
compensações paternalistas, foi gasto sem estimular o desenvolvimento local. Os produtos de substituição
30.Feliciano Mamani citou
eram cultivados somente se o camponês tivesse um lote grande suficiente e dinheiro para investir, além caso escolas que foram feitas
de serem voltados para o mercado externo, cheio de dificuldades para a inserção do pequeno produtor. pela Usaid a 120 mil dólares,
As obras criadas eram elefantes brancos, por onde escorria todo o dinheiro que teria que desenvolver a e que, ao serem copiadas pelas
prefeituras locais, foram feitas
região. Não houve tentativa real de desenvolvimento integral camponês, com preocupação com o seu a um terço do preço.
bem-estar e sustento da sua família.
No geral, o balanço é de que estas políticas foram e ainda são implementadas sem tomar em conta
a realidade do produtor camponês, as suas práticas cotidianas, a forma como organiza seu trabalho e a
sua vida, impondo um modelo de desenvolvimento não aplicável a grande maioria destes trabalhadores.
Fernando Salazar resume o desenvolvimento alternativo proposto durante este tempo em “compensações
e muita propaganda”.

Terra e território
107

A RESISTÊNCIA COCALEIRA

“Nos anos 80 começou. Aí começaram a militarizar a zona. E quando um exército entra em um


lugar, não entra, pois, com flores, né? Entra matando, disparando, chutando, batendo, assassinando”.
Com a voz se exaltando a cada verbo enumerado, José Encinas se lembra como foram estas quase duas
décadas seguidas de repressão. Como muitos cocaleiros, não pode citar com exatidão as datas, os episódios
e as reivindicações específicas. Lembra dos abusos cometidos sem trégua, da truculência com a qual eram
tratados, e de uma noite de tortura da qual obviamente não gosta de falar. Mas sabe que tudo começou a
partir da criminalização do produtor cocaleiro do Chapare.
Pouco depois da aprovação do Plano Trienal – e recém presença das forças armadas na região
– houve uma série de mobilizações pedindo participação na formulação das políticas públicas acerca
da coca, pois já estava sendo formulada a Lei 1008. Com esta reivindicação, em maio de 1987, os
cocaleiros fecharam a estrada que liga Santa Cruz a Cochabamba, e que passa pelo meio do Trópico. O
desbaratamento desta mobilização pela polícia e pelos militares foi feito a custa de 8 mortos e mais de 500
presos. Este foi o estopim para outras mobilizações, que protestavam contra as mortes.
Estas mobilizações, no geral, eram rechaçadas pelo governo com a desculpa de que se tratava
de uma “contra-ofensiva do narcotráfico”, o que nos próximos anos se tornaria um padrão de respostas
oficiais acerca das reivindicações chaparenhas.
Em junho de 1987, os camponeses começaram a fazer novas mobilizações, reclamando da
utilização de herbicidas por parte das forças de erradicação na região, política anunciada pelo governo
americano dias antes, mas negada pelo boliviano. Em Villa Tunari, numa tentativa de negociar com as
autoridades um esclarecimento sobre se havia ou não uso de herbicidas para erradicar cocais, os militares
atiraram contra a uma multidão de manifestantes, matando uma pessoa a princípio. Depois, quando
Terra e território
a população indignada ocupou o acampamento militar, novamente os militares voltaram a atirar na
multidão, causando a morte de mais duas pessoas. 108
Quando a manifestação já estava desbaratada, as tropas continuaram com o clima de terror na
cidade, espalhando gases pelo mercado, vizinhanças, perseguindo dirigentes. Isso se alastrou nos seguintes
dias para as outras cidades do trópico, onde as tropas atuavam sempre que havia concentrações de pessoas
para debater ou protestar contra a repressão, dispersando os manifestantes com balas, gases e golpes. Nas
operações, efetivadas pela Umopar (Unidade Móvel para Patrulha Rural) - criada com a militarização
31.Todo este processo de luta
da região a partir de 1986 - eram vistos soldados norte-americanos participando e orientando as ações é bastante detalhado em GAR-
militares. Na conta deles foi colocado o saldo final de 16 mortos destes conflitos31. CIA Linera, Álvaro (coord.),
et al., op. cit., p. 395-399.
Opção Zero
Em 1993, faz uma visita à Bolívia, o diretor da ONCDP (Office of National Drug Control
Policy, uma repartição de políticas de controle de drogas dos EUA), também chamado de czar antidrogas,
Lee Brown. Durante seu encontro com o então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, Lee Brown
pressionou o presidente boliviano por uma aplicação de uma política de tolerância zero com a coca
“excedentária”, chamada Opção Zero. Na época, sua declaração de que a guerra deveria se voltar “contra
as colméias e não contra as abelhas”, deixava explícito aos produtores de coca o recado de que o foco
continuaria sendo eles e não os grandes e poderosos narcotraficantes.
A política Opção Zero foi prontamente implementada pelo então primeiro governo de Sánchez
de Lozada e, como sua conseqüência, mais massacres e ataques aos direitos humanos apareceram no
Chapare. As tentativas de negociação dos produtores de coca foram em vão, apesar das diversas marchas
e manifestações ocorridas no período. 32.PINTO Ocampo, Maria
Em 1994, os cocaleiros organizaram uma grande marcha “Pela vida, pela coca e por soberania Teresa. “Entre la represión y
nacional”, que pedia a retirada de efetivos do DEA (Drug Enforcement Agency) americano e de forças la concertación: los cocaleros
en el Chapare y en el Putu-
militares e policiais do Chapare, além do cumprimento de convênios anteriores ignorados pelo governo. mayo”, p. 12-13. Informe final
Em diversos momentos, o governo tentou desbaratar a marcha, prendendo os seus manifestantes, del concurso: Movimientos
acusando-os de narcotraficantes. Contudo, a marcha chegou a La Paz em setembro deste mesmo ano com sociales y nuevos conflictos en
América Latina y el Caribe.
cerca de 1500 manifestantes. Conseguiram firmar um acordo com o governo, que incluía, dentre muitos Programa Regional de Becas
outros itens, a modificação da Lei 1008 e uma campanha internacional pela despenalização da folha de CLACSO. 2004.
coca32.
Terra e território
109 Cocaleiras e a opinião pública
Mas foi em 1995, com a marcha das mulheres cocaleiras “Pela vida e soberania nacional”, que
33.AGREDA R., Evelin;
RODRÍGUEZ O., Norma;
o movimento cocaleiro conseguiu tocar o país. A reivindicação era principalmente a defesa dos direitos
CONTRERAS B., Alex. Mu- humanos, tanto com relação à atuação da Umopar na erradicação de cocais, quanto à repressão feita às
jeres cocaleras. Marchando lideranças, em especial depois da marcha de 1994, e violações de direitos humanos de forma geral. As
por una vida sin violencia, p. mulheres relatavam casos de abusos sexuais e violência contra crianças e adolescentes, saqueio de casas e
149. Comité Coordinador de
las Cinco Federaciones Del presos políticos33.
Trópico de Cochabamba. Co- “Quem são estes Umopares que não têm controle? Eles entram em nossas casas quando querem.
chabamba, 1996. Entram em nossos cocais e à força os erradicam. Eles tiram o nosso dinheiro. Quem vai devolver? Parecem
padrastos, porque batem em nossos filhos, amarram as nossas mãos, põem panos em nossas bocas para
34.Idem, p. 149. Tradução da que não se escute o abuso”, relatava a marchista Apolônia Aduviri34.
autora. A marcha, pacífica e formada por cerca de 150 mulheres, acompanhadas de seus filhos e
alguns homens, saiu de Cochabamba no dia 19 de dezembro de 1995 e logo no seu segundo dia sofreu
uma tentativa de dispersão da polícia. Com violência, conseguiram arrastar a maioria das marchistas
para dentro de um ônibus que as levou de volta ao Chapare. Lá, ainda presas no quartel da Umopar
em Chimoré, foram obrigadas a assinar documentos se comprometendo a não participar de nenhum
movimento, inclusive da marcha. Contudo, ao serem liberadas, as mulheres novamente começaram a
pensar em estratégias para voltar a se reunir com as suas companheiras que conseguiram fugir da polícia
35.Ibidem, p. 63-66.
e davam continuidade à marcha35.
O Ministro de Governo de então, Carlos Sanchez Berzain, explicou a ação dizendo que as
marchantes foram “convidadas” a entrar nos ônibus e voltar para o trópico. Contudo, a truculência da ação
logo se explicitou: “Estas senhoras não têm o direito de atentar contra a segurança e a saúde das crianças
que estavam carregando, e tampouco têm o direito de fazer apologia de defesa a um material como a folha
de coca excedentária, matéria prima do narcotráfico. Por isso a marcha foi suspensa”, justificou ele na
época. Logo, centenas de instituições sociais e autoridades passaram a declarar publicamente que quem
“não tinha direito” era o governo de suspender a marcha e reprimir a manifestação pública, democrática
36.Ibidem, p. 64. e pacífica das cocaleiras36.
A repressão do governo continuou, sempre com a desculpa de era uma atividade ligada ao
narcotráfico. Contudo, à medida que a marcha de aproximava de La Paz, por caminhos escondidos para
fugir da polícia, as cocaleiras ganhavam a simpatia da opinião pública e dos camponeses das regiões pelas
Terra e território
quais passavam. A perseguição da polícia, o grande esforço para superar o desgaste físico, o pedido por 110
defesa de direitos humanos básicos, foram todos elementos que ajudaram as cocaleiras nesta batalha
ideológica.
A marcha chegou em La Paz no dia 17 de janeiro de 1996, com cerca de quinhentas mulheres.
Somaram-se durante o caminho, várias mulheres cocaleiras dos Yungas de La Paz, representantes de outras
entidades solidárias e reforços do próprio Chapare. Em La Paz, fizeram uma reunião com as esposas do
presidente e do vice-presidente, explicitando todos os abusos que sofriam e a sua pauta de reivindicação.
As reuniões não foram muito frutíferas, mas após uma greve de fome ainda sustentada pelas marchistas,
conseguiram um acordo com o governo.
O acordo, que garantia a não aplicação futura da erradicação forçosa e cumprimento dos
direitos humanos37, foi absolutamente desrespeitado nos meses e anos seguintes. Contudo, a marcha 37.Ibidem, p. 189.
conseguiu um grande avanço para o movimento cocaleiro: publicizar os abusos sofridos e convencer a
opinião pública de que os camponeses do Chapare não eram narcotraficantes, versão sempre sustentada
pelo governo boliviano.
Silvia Lazarte, hoje importante figura política do MAS-IPSP pois foi presidente da Assembléia
Constituinte, era na época dirigente das mulheres cocaleiras. “Diziam ‘narco-cocaleiras’ e tratavam o
companheiro Evo, quando era dirigente, de ‘narco-dirigente’, de tudo nos tratavam. E chegamos com os
nossos pés em La Paz, e lhes dissemos ‘Agora aqui chegamos. Se nos tratam de narcotraficantes, agora nos
leve todos à prisão. Se somos de fato isso, devem levar a gente’. Mas somente maltratavam e perseguiam
a gente. Já não tínhamos liberdade de viver. Por isso, mais que tudo, as mulheres se levantaram. Fizemos
isso com clareza”, lembra ela.

Coca Zero e erradicação forçosa


Em 1997 assumiu a presidência o ex-ditador Hugo Banzer Suárez. Apesar do seu governo nos
anos 1970 ter tido diversos laços com o narcotráfico, ele agora era encarado como um grande aliado pelo
governo americano. Logo no início do seu mandato anuncia um plano de erradicação completa da coca
38.GARCIA Linera, Álvaro
excedentária, o Plano Dignidade, cuja meta era atingir de “coca zero” no Chapare. A política consistia em (coord.) et al., op. cit., p. 402.
acabar paulatinamente com a erradicação compensada e substituí-la pela erradicação forçosa, política que
pela primeira vez era assumida abertamente pelo governo.
Para sustentar a erradicação forçosa, principal pilar da política “coca zero”, o governo instituiu
Terra e território
111 uma nova força repressora, a Força Tarefa Conjunta (FTC), que juntava efetivos militares com policiais. A
FTC cumpria o mesmo papel que a Umopar, porém com ainda mais violência e abusos38.
Contra a ofensiva do governo, os produtores de coca resgataram os comitês de autodefesa, que
haviam sido utilizados no início dos anos 1990. Estes comitês, formados pelos próprios camponeses,
tinham como função vigiar e esconder os caminhos que levavam aos cocais, impedindo a entrada da FTC
nestes. Obviamente, estes comitês muitas vezes se enfrentavam com as forças de erradicação, causando
mais feridos e presos, mas de fato conseguiram retardar ou mesmo impedir a erradicação em muitas
zonas39.
39.Idem, p. 399-400.
No final de 2000, o presidente Banzer se reuniu com autoridades americanas em um evento
público no quartel de Chimoré para apresentar os resultados exitosos de seu governo, 43 mil hectares
de coca erradicados. José Encinas lembra que na ocasião houve um ato no qual os cocaleiros espalharam
folhas de coca na estrada em frente ao quartel, mostrando aos americanos que a coca não estava e nem
40.Hugo Banzer Suárez se iria estar erradicada.
afastou por problemas de saú- No final dos anos 1990 e início dos 2000, foram intensas as marchas e os bloqueios para pro-
de em agosto de 2001, entran-
do em seu lugar o então vice- testar contra a situação no Chapare e tentar alguma negociação com o governo. Mesmo coordenadas com
presidente Jorge Quiroga. as demais mobilizações que sacudiam o país neste período – Guerra da Água, Guerra do Gás, etc. – o
governo não cedia na política de erradicação forçada.
Pelo contrário, em novembro de 2001, poucos meses após ter assumido a presidência40, Jorge
Quiroga publicou o decreto 26415, que proíbia a secagem, transporte e comercialização da folha de coca
do Chapare. Este decreto foi efetivado em 2002, com o fechamento de vários mercados de coca, como o
41.GARCIA Linera, Álvaro de Sacaba, principal centro de comercialização da coca chaparenha41.
(coord.) et al., op. cit., p. 410.
Guerra pela Coca
A resposta que os camponeses deram a este decreto ficou conhecida como Guerra pela Coca. As
mobilizações incluíram a ocupação da sede local da Digeco (Direção Geral da Coca), marchas, bloqueios
42.GARCIA Linera, Álvaro e protestos tanto na região do Chapare quanto na cidade de Cochabamba, reunindo também estudantes
(coord.) et al., op. cit., p. 410- e outros setores populares42.
411.
Um mês após o início das manifestações e depois de mais de dez mortos em conflitos, os coca-
leiros conseguiram finalmente um acordo com o governo. O acordo anulava o decreto 26415, pelo menos
por um período de três meses, garantia indenizações por feridos e mortos e colocava em liberdade todos
Terra e território
os detidos. 112
Era o início do recuo governamental nas políticas acerca da coca, demonstrando a fragilidade
e a crise pela qual passava o Estado boliviano nestes primeiros anos de 2000. O recuo não era somente
com relação aos cocaleiros, mas também na aplicação das políticas de privatização de recursos naturais,
como a água e o gás, e acontecia graças a um fenômeno de intensa organização popular em diversas
regiões do país. Já não era mais sustentável o cumprimento das recomendações econômicas e políticas
norte-americanas.

Terra e território
113

O INIMIGO MORA AO NORTE

Viva a coca! Morte aos yankis!


A palavra de ordem acima, em quíchua “Kawsachun coca! Wañuchun yankis!”, é um resumo
das muitas lutas e mobilizações dos cocaleiros desde o final dos anos 1980. Identificam nela o seu
principal elemento de união e sobrevivência, a coca, e também o seu principal inimigo, o governo norte-
americano.
Desde os primeiros enfrentamentos com a força militar que foi imposta a partir do Plano Trie-
nal de 1986, o inimigo era identificado como aplicador e propositor das políticas antidrogas no Chapare.
As evidências eram muitas: agentes do DEA nas operações militares, intenso investimento americano nas
forças de repressão bolivianas e incontáveis declarações públicas de autoridades americanas que claramen-
te excediam as funções diplomáticas.
Nas eleições presidenciais de 2002, o então embaixador americano Manuel Rocha ameaçou o
43.Los Tiempos, 27/06/2002. eleitorado boliviano de sanções do governo estadunidense caso elegesse Evo Morales: “uma Bolívia dirigi-
Tradução da autora. da por gente que se beneficiou do narcotráfico não pode esperar que os mercados dos Estados Unidos se
mantenham abertos para as exportações tradicionais como os têxteis e o gás natural”43.
Além disso, as constantes alusões de políticos e autoridades norte-americanas à erradicação da
coca na Bolívia através de ataques militares e fumigações, sem a mínima demonstração de preocupação
com os camponeses bolivianos, colaboraram em muito para o fortalecimento da reivindicação de sobera-
44.AGREDA R., Evelin et nia nacional. Evelin Agreda, Norma Rodriguez e Alex Contreras relatam em seu livro sobre a marcha das
al., op. cit., p. 8. Tradução da mulheres cocaleiras em 1995, algumas destas declarações. Uma delas, feita em março de 1995 pelo parla-
autora.
mentar norte-americano Dan Burton, é notável tanto pela sua agressividade quanto pela sua ignorância:
“Se deve invadir a Bolívia desde as suas costas até o altiplano para bombardear os seus cocais”44.
Mesmo quando já havia, após as intensas manifestações cocaleiras, um relativo consenso da
Terra e território
opinião pública boliviana de que a folha de coca deve ser tratada de forma diferente que a cocaína, as 114
autoridades americanas seguiam afirmando o contrário, contribuindo grandemente para a sua perda de
respeitabilidade. Da mesma maneira, as autoridades do governo, em especial as ligadas ao exército e à de-
fesa nacional, repetiam incansavelmente o discurso de que os cocaleiros defendiam o narcotráfico sempre
que havia agressões aos seus direitos humanos.
O aberto sentimento antiamericano é um fenômeno comum na América Latina. Contudo,
nos países que viveram a política de Guerra contra as Drogas, a relação com os EUA é um tanto mais
amarga. Esta política, implementada nas últimas décadas do século XX, teve como foco preferencial a
região andina. Ali, os tradicionais produtores da folha de coca, camponeses indígenas do altiplano, logo
se incorporaram durante a década de 1970 na base da crescente cadeia de produção da cocaína.
A inserção neste mercado, segundo Fernando Salazar, se dá pela existência de dois fatores, de-
terminantes para qualquer potencial país produtor de matérias-primas para drogas: abundância de terras
e pobreza. Além disso, pelo fato da folha de coca ser um produto natural há anos cultivado e consumido
pelos povos andinos, não há nenhuma restrição moral por parte dos camponeses à sua produção, ao con-
trário do que acontece com as plantas de maconha, por exemplo. Nestas regiões, coca não é sinônimo de
cocaína e nem de vício, como acontece no resto do mundo.
O desinteresse dos seguidos governos estadunidenses em entender a realidade destes povos
andinos, a sua cultura, as suas necessidades materiais negadas por uma estrutura econômica global, nos 45.Estas informações foram
retiradas do documento “The
faz duvidar que a Guerra contra as Drogas tenha uma intenção genuína de resolução do problema da de- Drug War in the Andes”, um
pendência destas substâncias. Diversos estudos, como veremos a seguir, demonstram que outras políticas programa de um curso para
que não a interferência direta nos países produtores da folha de coca, da maconha ou da papoula, são ser ministrado nas escolas ame-
muito mais eficazes. ricanas esclarecendo os efeitos
da Guerra contra as Drogas na
região andina. FARTHING,
Nos EUA: “war on drugs!” Linda. “The Drug War in
As políticas antidrogas iniciaram com mais força nos EUA a partir da década de 1970, com o the Andes”. Disponível em:
http://ain-bolivia.org/drug-
crescente do consumo de drogas entre jovens. A Guerra contra as Drogas, anunciada pelo presidente Ni-
warCompleteLF.doc
xon, a princípio teve como enfoque inicial o tratamento da dependência em substâncias como cocaína ou
heroína45. Aos poucos, coincidindo com o fim da Guerra Fria, a batalha contra as drogas passou a ser uma
política internacional, com um alto grau de interferência nos países considerados fontes de droga, além
de ter um grande enfoque na criminalização e penalização de usuários e comerciantes destas substâncias.
Terra e território
115 Coincidentemente, à medida em que os anos avançavam, a dependência de drogas se concentrava cada
vez mais nas camadas mais pobres da população.
O principal efeito da política de reforço penal em território americano foi um aumento subs-
46.FARTHING, Linda, op. tancial de presidiários, levando o país a ter uma das taxas de encarceramento mais altas do mundo. Entre
cit. 1973 a 2004, a população carcerária do estado de Nova Iorque cresceu mais de seis vezes, sendo que este
aumento se deve majoritariamente a prisões relativas às leis antidrogas. Além disso, cerca de 70% dos
presos são viciados em substâncias ilícitas ou álcool46. Obviamente, o enfoque do problema das drogas
47.Dados do ONDCP (Office nos EUA como um problema de segurança pública levou a intensa penalização das camadas mais pobres
of National Drug Control Pol- da população. Estas sofrem duplamente: por serem as mais alheias às políticas públicas de prevenção e
icy). In: FARTHING, Linda,
tratamento de drogas e, portanto, as mais suscetíveis à dependência destas substâncias; e por também
op. cit.
serem criminalizadas pelas conseqüências deste problema.
Segundo dados oficiais do governo americano de 2003, somente 36% do orçamento para con-
trole de drogas é utilizado em tratamento e prevenção, cerca de 9% é utilizado para pesquisas e 55%,
48.Para chegar a tal conclu-
maior parte dos recursos, é utilizado para o aumento de repressão interna, interdição das rotas de comér-
são, foi feito um estudo de
quanto investimento a mais cio internacionais e erradicação de matérias primas em países-fonte, nesta ordem de importância47. Estes
seria necessário para diminuir números indicam que a questão das drogas é entendida prioritariamente como uma atividade criminosa,
o consumo de cocaína em e não como uma dependência química e um problema de saúde. Esta mentalidade é reforçada pelo lugar
1% no decorrer de um ano.
Chegaram aos seguintes nú- comum de que o tratamento a dependentes não é efetivo, pois, após um alto investimento do Estado na
meros: 34 milhões de dólares recuperação destes, a grande maioria voltaria ao final a consumir drogas.
em tratamento, 250 milhões Há estudos, contudo, que apontam que o tratamento é a política mais efetiva na diminuição
de dólares em reforço penal
real do consumo de drogas, em comparação com as políticas de controle de oferta. Um estudo do RAND,
(domestic law enforcement),
780 milhões de dólares na atu- renomado instituto de pesquisa norte-americano, sobre efetividade de políticas públicas de combate ao
ação em países fonte de ma- consumo de cocaína aponta números contundentes. Segundo ele, o tratamento é sete vezes mais efetivo
téria prima para drogas. Um do que o aumento do controle penal (domestic enforcement), 11 vezes mais efetivo que a interdição da
resumo deste estudo pode ser
encontrado em: http://rand. entrada das drogas nas fronteiras e 23 vezes mais efetivo que a ajuda a outros governos a erradicarem a
org/publications/randreview/ produção local de substâncias ilícitas48.
issues/RRR.spring95.crime/ De forma muito simples, os autores do estudo apontam que as políticas mais eficientes para
treatment.html
lidar com o consumo de drogas e os seus efeitos negativos é o controle da demanda e não da oferta. O
controle da oferta causa aumento de preços, o que eventualmente diminui o consumo, mas logo que o
mercado mundial se restabelece, os preços se normalizam e o consumo idem. Já as políticas de tratamen-
Terra e território
to, mesmo que não sejam efetivas individualmente (no sentido de que o usuário nunca mais irá consumir 116
drogas), têm um impacto considerável no consumo geral. Esta pesquisa foi feita no início da década de
1990, há quase vinte anos. Mesmo assim, desta época até hoje, foram gastos pelo governo americano mais 49.FARTHING, Linda, op.
de US$ 25 bilhões em políticas de interdição e erradicação de drogas em países produtores49. cit.

Estratégia de domínio
A Guerra contra as Drogas, portanto, possui comprovada ineficácia no que diz respeito à sua
meta final, que é diminuir o consumo de drogas, além de aglutinar intensos sentimentos antiamericanos.
Estes fatos fazem muito palpável a tese de renomados intelectuais, como Noam Chomsky, que vêem nesta
política estadunidense uma estratégia de dominação política e econômica da região andina. Com ela,
vieram conjugados os ajustes estruturais da década de 1980, que implementaram o modelo neoliberal em
quase todo o mundo em desenvolvimento, as propostas de tratados de livre-comércio, as privatizações de
empresas nacionais, etc. Como um ciclo, tais políticas causaram mais pobreza no campo, mais dependên-
cia dos camponeses dos produtos ligados ao narcotráfico, mais intervenção militar, e mais atrelamento
destes governos ao governo norte-americano. 50.SPENCER, Bill; AMA-
Uma das políticas de controle econômico que era utilizada em nome das lutas antidrogas era TANGELO, Gina. “Drug
Certification”. In: Foreign
o certificado de drogas (drug certification) emitido pelo governo dos EUA. Através dele, o governo esta-
Policy In Focus, Vol. 6, No.
dunidense estabelecia unilateralmente metas para que os países produtores de drogas cumprissem anu- 5, março de 2001. Disponível
almente no combate ao narcotráfico. Caso não cumprissem, eram previstas muitas sanções econômicas em: http://www.foreignpolicy-
americanas, como corte de ajuda financeira ou voto negativo no Fundo Monetário Internacional (FMI) infocus.org/
ou Banco Mundial (BM) para eventuais empréstimos pedidos por estes países. Tais “sanções” não pos-
suíam nenhuma relação com o combate às drogas e tinham como única função punir países que even-
tualmente não estariam colaborando com o problema americano. Esta política foi fortemente criticada
51.POTTER, George Ann;
inclusive por especialistas americanos em políticas internacionais, pois contrariava a lógica de cooperação FARTHING, Linda. “Bolivia:
internacional requerida para enfrentar um problema como o narcotráfico, substituindo-a por uma lógica Eradication and Backlash”.
de chantagem unilateral50. O certificado de drogas ocorreu até 2002, quando as pressões dos países afeta- Junho, 2001. Disponível
dos tiveram efeito e o governo americano optou por políticas mais sutis de controle. em:  http://www.fpif.org/
briefs/vol5/v5n38bolivia_
Linda Farthing e George Ann Potter apontam um outro problema das políticas americanas: body.html
o total descumprimento da Leahy Law, que obriga o governo norte-americano a retirar qualquer apoio
a forças armadas que desrespeitem os direitos humanos51. Os constantes abusos da FTC boliviana, do
Terra e território
117

Terra e território
exército colombiano, da ação militar dos EUA na ocupação do Iraque - e mais um sem número de 118
exemplos - nos indicam que provavelmente esta foi uma das leis mais ignoradas da história americana,
52.Entrevista dada a Week On-
pois apresenta franca oposição às políticas internacionais do país. Noam Chomsky, em uma entrevista line, em 08/02/2002, disponí-
a Week Online em 2002, identifica um ponto central com relação a isso: “Já faz um bom tempo se vel em: http://www.chomsky.
estabeleceu uma relação de muita proximidade entre violações de direitos humanos e ajuda e treinamento info/interviews/20020208.
htm. Tradução da autora.
militar dos EUA. Não é que os EUA gostem de torturar pessoas, é que simplesmente não se importam.
Para o governo estadunidense, violações de direitos humanos são uma conseqüência secundária”52. 53.No caso da Colômbia, o
Não se pode deixar de mencionar a conjugação da Guerra contra as Drogas com as políticas de tema do TLC tem invadido
ajustes estruturais, pelas quais passaram todo mundo em desenvolvimento a partir dos anos 1980. Estas as campanhas eleitorais nos
políticas de aplicação de pacotes econômicos ortodoxos e diminuição da função do Estado no que diz EUA. Os pré-candidatos de-
mocratas, Hillary Clinton e
respeito à garantia dos direitos sociais interromperam importantes processos de democratização pós-dita- Barack Obama, já se manifes-
duras militares, como no caso da Bolívia e do Equador. A agenda neoliberal se mantém até hoje, com a taram contrários à aprovação
recente aplicação dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) – quase consolidados no Peru e na Colômbia53 do TLC por denúncias de
violações dos direitos huma-
-, promovendo muitos conflitos na região andina, em especial com o campesinato. nos por parte do governo co-
No Equador, por exemplo, precedeu a chegada de Rafael Correa no poder uma série de lombiano.
mobilizações indígenas intensas, que pediam um referendo para a aprovação do TLC e a caducidade do
contrato com a petroleira Oxy. O TLC afetava substancialmente os produtores camponeses, ameaçados 54.Sobre as lutas contra o
TLC no Equador consultei:
com os diversos produtos agroindustriais subvencionados pelo governo norte-americano. A petroleira MOREANO, Alejandro,
Oxy possuía um contrato de exploração do petróleo que garantia meros 15% dos lucros aos cofres “Ecuador en la Encrucijada”,
equatorianos. Apareciam então como principais reivindicações da região temas antineoliberais, de e MALDONADO, Ana Maria
L. “Movimiento indígena, lu-
proteção dos usos, costumes e sobrevivência dos povos indígenas, andinos e camponeses, e também de cha contra el TLC y racismo
recuperação dos recursos naturais54. em Ecuador”. In: Revista del
No Peru, igualmente, várias manifestações foram feitas em rechaço ao TLC com os EUA, em Observatorio Social de Amé-
especial dos movimentos camponeses. Assim como no Equador, eram eles os mais afetados pelas políticas rica Latina. Ano VII No19
enero-abril 2006.
de abertura econômica. Contudo, a mobilização não ganhou a amplitude que ganhou no país vizinho e
tampouco se refletiu no panorama eleitoral. Em 2006, ano das mobilizações, foi eleito o candidato de 55.TLC dos EUA com o Peru
centro Alan Garcia, que não apresentava nenhuma resistência à aprovação do tratado55. já foi aprovado e assinado, mas
Como já vimos, estes temas de alguma forma já haviam aparecido na Bolívia, com a Guerra da ainda está em fase de imple-
mentação.
Água e a Guerra do Gás. Contudo, neste país se somou a estas mobilizações o movimento cocaleiro, que
atacava a outra política conjugada dos EUA na região andina: a Guerra contra as Drogas. A mistura ex-
Terra e território
119 plosiva destes temas levou Evo Morales ao governo e plantou uma arraigada certeza na população de que
os EUA são um inimigo, tanto por sua política econômica, quanto por sua política “social” de controle
das drogas.
A Colômbia, como sabemos, é um dos países onde esta política antidrogas se tornou mais
notória. Não quero aqui me estender sobre as conseqüências específicas do Plano Colômbia e da atuação
dos EUA no país. Para ter dimensão do seu fracasso, basta somente citar as acusações que pairam sobre
o presidente Álvaro Uribe, grande aliado dos EUA, de envolvimento com grupos paramilitares; a recente
invasão do território equatoriano pelo exército colombiano causando um imenso problema diplomático
na região; e a não diminuição dos plantios de coca, apesar do intenso investimento americano em fumi-
gações aéreas.
O fato da política antidrogas dos EUA não cumprir o fim a que se propõe e de desempenhar
uma de política externa de intervenção na América Latina tem consequências desastrosas do ponto de
vista social. São atacadas as partes mais empobrecidas envolvidas no ciclo de produção e consumo de
substâncias ilícitas, criminalizadas fortemente dentro e especialmente fora dos EUA. Não é de se espantar
que um dos repertórios mais fortes dos crescentes governos de esquerda e movimentos sociais andinos é
o pedido de soberania nacional frente às imposições norte-americanas.

Terra e território
120

UM COCALEIRO NO PALÁCIO QUEMADO

56.DIRECO, op. cit.

Economia da coca 57.É possível apontar tam-


US$ 290 milhões: é o valor bruto da produção de coca em 2004 segundo dados oficiais56. É com bém como diferença entre
esta agroindústria e o cultivo
esta quantidade de dinheiro que a folha coca contribui anualmente para a economia do país. Equivalente de coca questões ambientais.
a isso, aponta Fernando Salazar, somente alcançaria a agroindústria de Santa Cruz, tão festejada pela Enquanto a coca requer pou-
sua importante contribuição ao desenvolvimento do país. A diferença, pontua Salazar, é que os seus cos nutrientes, é cultivada em
rendimentos são divididos por algumas famílias, enquanto os rendimentos da coca são divididos por policulturas, em sistemas de
rotação, etc., a agroindústria
milhares de famílias cocaleiras57. Só no Chapare, responsável por cerca da metade da produção nacional58, é baseada na monocultura da
são no mínimo 40 mil famílias. Este dinheiro, livre de taxações, rapidamente se espalha do pequeno soja, do açúcar ou na pecuária
produtor cocaleiro para todo território nacional, sendo um importante motor da economia boliviana. extensiva, que acarretam inú-
meros danos ambientais com
A erradicação da folha de coca excedentária promovida pelos governos bolivianos a partir dos agrotóxicos e esgotamento do
anos 1980 significava pelo menos o corte de metade desta produção, causando imensos danos a estas fa- solo.
mílias e à economia do país. É por isso que Salazar caracteriza a atuação destes governos como hipócrita:
“Diziam ‘acabamos com a coca e salvamos o mundo’, mas o mundo não nos salva! Brasil não nos salva 58.Segundo a Direco, o Cha-
com o tema energético, por exemplo”. Ele afirma que sem uma iniciativa global séria de controle de dro- pare é responsável por quase
28 mil toneladas métricas de
gas, a erradicação da coca na Bolívia seria presentear a outros países estes ingressos de milhões de dólares, um total de 59 mil de produ-
pois se trata de uma questão de mercado internacional. Sobre os países receptores de drogas, como o Bra- ção nacional. DIRECO, op.
sil, afirma: “Enquanto uma parte dos políticos ou de sua polícia esteja vinculada ao narcotráfico, esqueça. cit., p.3.
Não há luta que vai solucionar. Se não entra por Bolívia, vai entrar por outros lados”.
A chegada de um ex-cocaleiro ao Palácio Quemado mudou em muito as políticas governamen- 59.1600 m2, cerca de um sexto
tais acerca da produção da folha de coca. Com as convulsões sociais que precederam a caída de Carlos de hectare, que possui 10.000
m2.
Mesa, os cocaleiros conseguiram fazer um acordo que permitia a produção de um cato59 de coca por fa-
mília que não possuía cultivos de desenvolvimento alternativo, o que totalizava cerca de 3,5 mil hectares.
Terra e território
121 Mas foi o governo de Evo Morales que de fato “pacificou” a região, sendo quase inexistentes os conflitos
dos cocaleiros com os militares nestes seus dois primeiros anos de gestão.
A tática do governo é focar esforços militares na interdição e destruição de focos de produção de
cocaína. Com relação aos produtores da folha de coca, ficou permitido um cato de coca por família, o que
equivale a cerca de 7 mil hectares de coca legais no Chapare. A estratégia geral é a de promover cultivos
alternativos em paralelo ao cultivo de coca racionalizado.
60.Tradução livre: “Um cati-
to, nada mais”. Catito é dimi- “Un catito, no más!”60
nutivo de cato. Para ter êxito na sua proposta, o governo aposta suas fichas no controle social feito pelos pró-
prios sindicatos desta limitação da produção da folha de coca. Contudo, alguns camponeses, e inclusive
Fernando Salazar, indicam que a partir do cato de coca, muitos cocaleiros passaram a produzir para além
do permitido. Afiliar outros membros da família enquanto unidades familiares diferentes no sindicato
passou a ser uma burla comum para possuir mais de um cato.
Mas todos concordam que é necessário racionalizar. “Os companheiros cocaleiros, ao racio-
nalizar um cato de coca, ao diminuir a sua plantação de coca, estão fazendo um sacrifício. Isso para que
o nosso governo, representante dos cocaleiros, não seja estigmatizado pelo narcotráfico. (...) Estamos
colaborando, somos conscientes”, diz José Encinas. O problema é justamente este, o cato de coca hoje sig-
nifica uma renda miserável para as famílias cocaleiras. Portanto, se não há um incentivo para a produção
rentável de outros cultivos, os cocaleiros terão que exceder o limite das suas plantações.
“A coca é sempre mais rentável”, aponta Encinas. Mesmo que haja um esforço dos próprios
camponeses para a produção de outros cultivos, se não houver uma política de desenvolvimento integral
na região, eles vão continuar dependentes da economia da folha da coca. “O agricultor cocaleiro, ao ver
que a sua coca foi reduzida, não tem recursos econômicos para se dedicar à produção em grande quanti-
dade destes produtos. (...) Ao não ter estes recursos, não lhe sobra mais nada do que novamente se dedicar
a plantar coca”.
Mas a própria coca pode ser este respaldo necessário para o agricultor, pelo menos é o que
pontua David Llanos, professor de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés. “Então, depois da
erradicação forçosa, quando Evo Morales chegou à presidência, eu vi esta mentalidade de diversificar
sua produção ao redor do plano cato de coca. ‘Tenho meu cato de coca, com que tenho certeza que terei
algum recurso. Posso produzir palmito, vou me arriscar com este respaldo, e posso produzir um pouco de
Terra e território
abacaxi, outros produtos alternativos’”. 122
José Meneces, irmão de Carlos Meneces, é secretário executivo da Central Ivirgarzama, está
bastante preocupado com estas questões. Como o irmão, é da cidade de Cochabamba, não fala bem
quíchua e teve que se acostumar a mascar coca em reuniões, “além do quíchua, é a coca que nos permite
comunicar” diz ele. Conta que seguiu um árduo caminho para que seus companheiros aceitassem as suas
idéias. Mas, em outubro do ano passado (2007), a Central Ivirgarzama conseguiu consolidar um conselho
de desenvolvimento produtivo, uma espécie de braço econômico que tem responsáveis por cada tipo de
cultivo existente na central: coca, abacaxi, palmito, madeiráveis, pimenta, etc.
A partir daí, diz José Meneces, vão sendo aplicadas propostas de desenvolvimento produtivo
para cada cultivo. Um dos exemplos é a própria coca, que pode ser explorada de maneira mais rentável.
“Queremos trabalhar os catos de coca em áreas comunais, que a maioria dos sindicatos possui (...). Depois,
queremos fazer este cultivo de coca de maneira orgânica, com certificações (...). Por fim, pretendemos
transformar a nossa produção mates de coca ou energizantes. Então, isso é o que estamos propondo
concretamente pela Central, fazer uma indústria com a nossa coca orgânica”. Além dos maiores
rendimentos que se poderia obter da coca desta forma, o dirigente aponta que assim seria possível mostrar
à comunidade internacional que a coca boliviana vai para um mercado legal.
Ele conta que o elemento principal da proposta da sua central é a industrialização dos produtos
da região, sempre tomando em conta os mercados consumidores. Para isso seriam necessárias duas coisas:
intenso investimento internacional, a central calcula a necessidade de US$ 100 milhões anuais em um
plano qüinqüenal para desenvolver a região industrialmente; e disciplina e vontade dos agricultores
chaparenhos para de fato se incorporarem em um mercado internacional.
Mas David Llanos, apesar de reconhecer que estes planos poderiam funcionar, tem dúvidas
acerca da industrialização da coca. Segundo ele, um dos maiores problemas dos produtos alternativos
como o palmito é que a maior parte do dinheiro fica nas indústrias processadoras, o produtor camponês
controlava somente a parte do cultivo. “Enquanto que com a coca, eles mais ou menos controlam desde a
sua plantação, até o processamento e a venda. Está nas mãos do camponês, todo este processo”. O grande
perigo, aponta ele, é que em um processo de industrialização da coca, a mesma situação que há com o
palmito se repita: “será mais uma planta de processo de alimentos. Subirá em centavos a sua renda, não
mais. A empresa também terá que ganhar, a cooperativa também terá que ganhar”.
Com relação à coca, ele acredita que seria mais interessante a proposta de melhorar a qualidade
Terra e território
123 da folha para o consumo tradicional, como a produção de folhas orgânicas. É um problema comum, diz
ele, a falta de mercado de forma geral, ou a dependência somente do mercado externo. “Por que o que
acontece com o palmito? O problema dele é que a nível interno não se consome muito este produto, não
está na dieta boliviana. Eu considero que qualquer produto para que tenha um arranque como produto,
como empresa, é necessário que tenha minimamente um mercado interno e depois pensar em exporta-
ção. Porque a exportação sempre tem coisas ligadas a questões políticas, de relações internacionais (...).
Sempre está ligada com isso. Se não tem um mercado interno, é um pouco difícil que se sustente”. Em
contrapartida, pontua ele, “a coca sempre teve desde séculos um mercado tradicional mais ou menos
estável. (...) E, o consumo de coca continua sendo necessário. A coca tem o seu mercado estabelecido
em populações rurais e centros mineiros. E hoje, há um crescimento nos centros urbanos, intelectuais,
comerciantes”.
Ficam alguns questionamentos, contudo. Quais seriam as garantias que estas tentativas de
desenvolvimento de cultivos alternativo da era Evo Morales não vão repetir os mesmos erros dos projetos
anteriores? Ou seja, que não tenham uma lógica de produção externa à lógica camponesa? Sobre isso,
David Llanos explica que o agricultor chaparenho não tem a mesma lógica do agricultor boliviano
tradicional, apesar de sim centrar a sua economia na mão-de-obra familiar: “o camponês chaparenho
vive de ganhos monetários, não é o camponês típico do Vale Alto [cochabambino], que pode diversificar
a sua produção e pode assim ter uma boa parte da sua dieta diária [garantida com isso]. Enquanto no
Chapare eles vivem mais do mercado, então necessitam destes recursos”. Isso explica a possibilidade de
aplicação de cultivos voltados para o mercado, desde que sejam aplicáveis às suas condições materiais, ou
seja, terrenos em pequenas extensões (de 5 a 10 hectares) e mão-de-obra familiar, e que os camponeses
possuam o mínimo de segurança para desenvolvê-los, que neste caso poderia ser o cato de coca: “Eu
considero que os produtores chaparenhos, se têm algo de respaldo, poderiam desenvolver qualquer outro
produto. Obviamente em escalas mínimas, ou seja, com perdas, mas de todas as formas, lhes daria algo
de recursos com o tempo. Não seria algo excludente. Evidentemente, é uma lógica distinta do que estão
pensando os camponeses, não vão ter todo o controle sobre todo o movimento desta economia, mas lhes
vai dar algo de ganho adicional”.
Segundo Feliciano Mamani, prefeito de Villa Tunari, a principal diferença dos projetos de
desenvolvimento aplicados hoje e os que eram aplicados anteriormente é que agora todos eles são feitos
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em conjunto com as organizações representantes dos cocaleiros. “Agora ninguém pode entrar pela
124

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125 janela, todos têm que entrar pela porta da frente”. Ele diz que os projetos financiados por organizações
internacionais são hoje coordenados com as prefeituras, com as federações, com os comitês cívicos, etc.
Antes, o dinheiro do desenvolvimento alternativo causava divisões entre as comunidades, fomentava
entidades paralelas aos sindicatos. “Era gato e cachorro entre organizações, quem nos fazia brigar? O
dinheiro do desenvolvimento alternativo (...). Agora temos uma política muito diferente (...). Estamos
avançando no desenvolvimento alternativo”.

Dona Isabela
A poucos quilômetros da sede da prefeitura de Villa Tunari e de tantas conversas otimistas,
está a casa de Dona Isabela Rivera. Ela fica justo na beira da estrada e está com o pátio cheio de folhas de
coca secando. Quase puro quíchua fala Dona Isabela e nossa comunicação é no começo mediada por um
jovem peão que a ajuda de vez em quando.
Com 58 anos registrados na cédula de identidade, mas não guardados na memória, ela vive
sozinha. Seu marido faleceu, seus filhos estão grandes. Às vezes vêm para ajudar, mas não muito. Para
a sua plantação de coca, único cultivo que tem, precisa contratar estes peões, já que não dá conta do
trabalho sozinha.
Conta que outubro é uma boa época para a coca, pois faz calor. No inverno, as folhas não
crescem muito, “dá bichinhos” e tem que comprar veneno. Mas no verão a colheita é boa e a coca sai
bonita. O sol também é bem vindo neste dia de secagem, pois se o tempo está fechado, a coca não seca
bem, negreia e perde o sabor. A coca de Dona Isabela, que ocupa todo o pátio, vai dar menos de um pa-
cote depois de seca. Esta medida equivale a 50 libras ou aproximadamente 19 kilos. Com a libra da coca
valendo 12 pesos bolivianos, Dona Isabela com sorte vende a sua produção por 600 pesos bolivianos, algo
em torno de 80 dólares.
A coca, explica, se colhe três, no máximo quatro vezes ao ano. Seu rendimento por colheita
varia, um cato pode render de dois até seis pacotes, dependendo do tempo e da qualidade das terras.
Supondo que renda quatro pacotes por colheita, um cato garantiria a uma unidade familiar 600 pesos
bolivianos por mês, o que Dona Isabela vai receber com a coca do pátio. Ela diz que com isso não dá para
viver: “Como vai dar? Em cada quatro meses colhe, e depois tem que comprar remédios para a folha e
para as ervas, custa dinheiro. Não dá. Tudo está caro”.
Ela participou de marchas até La Paz. Delas, só lembra do frio e da presença de Evo. Confunde-
Terra e território
se com as reivindicações e com os anos. Já quase indo embora, pergunto se posso tirar uma foto. Descon- 126
fiada, diz que é velha, não fica bem. Fazemos um trato: se a foto sai ruim, apagamos. Apoiada na mesa, ao
lado de um vaso de flores, Dona Isabela se vê bonita e sorri.

Terra e território
127

MOVIMENTO SOCIAL E POLÍTICO NO CHAPARE

A reunião ordinária da Central Chipiriri acontece a cada primeira terça-feira do mês. Em abril
de 2008, estavam reunidas cerca de 70 pessoas. Eram representantes dos 11 sindicatos afiliados, da prefei-
tura de Villa Tunari, do comitê cívico da região, do comitê de vigilância da prefeitura, das comerciantes de
coca, da rádio comunitária e da própria diretoria da central e da diretoria da central de mulheres. Havia
sanções para os que faltassem à reunião. Cada dirigente faltante ou que não trouxera os delegados de base
estipulados, teria que pagar 50 pesos bolivianos.
Assim são as coisas no Chapare, a vida sindical camponesa é tida como muito importante, fonte
de sobrevivência durante tantos anos de luta. O sistema de multas e obrigatoriedade de participação em
reuniões é comum em quase todos os movimentos camponeses bolivianos e também em muitos dos mo-
vimentos populares, mas ele por si só não garante a extensa participação em reuniões. Apesar de muitos
dizerem que participam das atividades comunais (reuniões, bloqueios, serviços comunais, etc.) por causa
das sanções, as multas pagas raramente excedem o dinheiro perdido com os dias parados. É, portanto,
muito mais um motivo moral que econômico.
O ampliado começou às nove horas da manhã, no interior do mercado de coca do povoado
de Chipiriri. A mesa era conduzida por Homar Claros, secretário executivo da central. Ele apresenta os
mais de dez pontos de pauta para serem avaliados pelos demais. Eles passavam por informes da prefeitura
acerca de obras e projetos; debates sobre os problemas políticos do país, como a nova constituição e os
conflitos com a agroindústria; precauções acerca de roubos acontecidos em um dos sindicatos; ou avisos
duros sobre o controle interno do cato de coca.
As discussões eram intensas, algumas vezes em tom de cobrança e acusações, outras vezes em
tom de conciliação. “A palavra, companheiro”, assim se iniciavam quase todas as falas que ocuparam o dia
inteiro de debates, resquícios do sindicalismo operário. Contudo, a continuação geralmente vinha em um
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128

Terra e território
129 quíchua pontuado com uma ou outra expressão em castelhano. quechuañol, assim o descrevem. Apesar da
população do Chapare ser migrante de distintas partes do país, o quíchua é tido como um idioma geral.
Ali ninguém fazia falas de defesa contundentes do governo, nem havia divisões ou brigas inter-
nas por haver mais ou menos acordo político com as linhas nacionais do MAS, diferente de ocorria com
outros movimentos. Não houve nenhuma preocupação em afirmar a autonomia perante o governo, pois
havia entre eles um imenso consenso de que este é o seu governo, Evo é o seu presidente, e o MAS é o
seu instrumento político. Sendo isso um a priori, as discussões políticas se focam mais em como ajudar
o governo, no geral utilizando a imensa força de mobilização característica do movimento cocaleiro em
marchas, atos públicos ou denúncias contra a “oligarquia da meia lua”.
A discussão se estendeu até tarde da noite, com somente uma pausa para almoçar às duas horas
da tarde. Foram mais de doze horas de uma reunião que não se esvaziou em nenhum momento. Era um
dia de semana e, com exceção dos representantes da prefeitura, ninguém recebia salários ou liberações
para estar ali. A imensa maioria eram camponeses “de base” (com cargos em sindicatos ou sem nenhum
cargo) e discutiam cada uma das pautas, da mais cotidiana até mais política conjuntural.

Mulheres cocaleiras
Das mais de 70 pessoas presentes na reunião da Central Chipiriri, cerca de 15 eram mulheres,
e algo como cinco pediram a palavra. Maria Eugênia se destacava entre elas. Jovem, falava sem hesitar, em
61.Segundo Maria Eugenia,
cada sindicato possui além do
voz alta e clara. Dava informes sobre a situação política do país, sobre atividades congressuais nacionais e
seu secretário geral uma secre- seminários de formação. Na hora do almoço, coordenou a atuação das mulheres. Não usava pollera nem
tária geral, de mulheres. Eles tranças, e tinha o cabelo preso em um rabo de cavalo. O chapéu, contudo, guardava na parte de cima as
chamam estas duas figuras de usuais flores de plástico da cholita cochabambina.
“dirigente” e “dirigenta” de
sindicato. Contudo, normal- Ela ocupa atualmente o cargo de secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de
mente quem é considerado a Cochabamba, entidade que existe subordinada à Federação do Trópico, e que coordena as atividades
autoridade máxima do sindi- políticas femininas. Dos informes que deu, um deles era acerca do congresso da sua federação. Participam
cato é o dirigente, cabendo à
mulher mais a coordenação de
deste congresso quatro representantes por sindicato: secretário geral, secretária geral61 e duas delegadas.
assuntos femininos. A proporção de gênero que não é completamente livre, representantes de qualquer sexo, e nem de auto-
organização, só mulheres, é explicada por Maria Eugênia: “Porque tanto mulheres como homens têm
que ter uma só visão. Por isso na convocatória se põe um homem e três mulheres. Em cada comissão tem
que haver homens. Porque talvez como mulheres não temos muita preparação, (...) temos filhos, temos
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que cuidar da casa, tudo o demais, não participamos muito dos cursos. Os homens estão um pouco mais 130
preparados, se nos equivocamos em alguma coisa, eles nos ajudam (...) Somos como dois tourinhos que
vamos arar bem juntos, mas às vezes as mulheres estão mais raquíticas, mais fracas”.
Uma das principais funções, portanto, das organizações de mulheres no Trópico é a realização
de seminários de formação e capacitação política das próprias mulheres. Paralelamente, são organizados
cursos de corte e costura, que são vistos como atividades de auto-suficiência, “é uma forma de aprendiza-
do, se faz vestimentas, polleras, blusas, tudo o que se necessita aqui no trópico”, explica Maria Eugenia.
Como mãe solteira, chefe de família e que cuida do seu próprio chaco, Maria Eugênia conhece
o machismo na região. Lembra que quando começou a freqüentar as reuniões, os homens não aceitavam
a presença das mulheres, “diziam ‘o que sabe ela e por que veio?’. Então sempre te marginavam e a gente
chorava. Até agora há muito machismo”. Ela conta, contudo, que foi desse choro que se aprendeu a elevar
a voz e superar o medo. “Consegui romper esta cadeia de machismo, não me calam fácil. Sempre peço a
palavra e digo assim duro, e digo as verdades (...). Porque se nós não fazemos, quem vai fazer? Porque para
os homens é melhor também”.
Mas a identificação do machismo interno não interfere na concordância com os companheiros
sobre o debate político nacional, como demonstrou a marcha de mulheres de 1995. Assim como as orga- 62.Bono Juancito Pinto é
nizações cocaleiras “de homens”, as “de mulheres” têm atualmente como principal bandeira a “defesa da uma espécie de Bolsa Escola
boliviana, dá 200 pesos boli-
Bolívia e seus recursos naturais”. Para Maria Eugênia, isso significa hoje a aprovação da nova Constituição vianos anuais a famílias que
Política do Estado, porque ela é a primeira que “foi feita pelos e para os bolivianos. Em contrapartida, a têm crianças de 6 a 10 anos
atual constituição não foi feita pelos bolivianos, foi feita por gente especializada em roubar (...) A nova matriculadas em escolas pú-
blicas. Renta Dignidad é tam-
constituição reflete toda a nossa realidade”. Ela defende, como os demais dirigentes cocaleiros, o governo bém uma política de bonifica-
de Evo Morales como uma verdadeira revolução voltada para as camadas mais pobres da população, dan- ção para os bolivianos maiores
do como exemplo as políticas assistenciais do Bono Juancito Pinto e a Renta Dignidad62. de 60 anos, que oferece 2400
Por todos os avanços do governo, as mulheres do trópico estão dispostas a ofertar suas vidas. pesos bolivianos anuais para
os que não possuem nenhum
“Não importa se vamos defender com nossas vidas. Nós como dirigentas estamos dispostas a morrer. Se tipo de aposentadoria e 1800
algumas vão morrer, algumas vão morrer”. Não se trata de mera bravata, a convicção de Maria Eugênia é pesos bolivianos para os que
expressada algumas semanas antes da realização do referendo do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. possuem.
Ela enxerga a iniciativa como uma tentativa de resgate de poder dos grupos oligarcas tradicio-
nais. “Estamos vendo que temos que ir a Santa Cruz a nos enfrentar com eles. Porque em Santa Cruz
muitos de nossos companheiros estão em favor da gente. Porque lá estão impondo a autonomia (...). E nós
Terra e território
131 como mulheres estamos analisando bem esta conjuntura e acreditamos que temos que derrotá-los (...).
Porque nossos filhos já não podem viver nesta escravidão, nestas condições péssimas”. Apesar da vontade
das cocaleiras de irem a Santa Cruz no dia 4 de maio, o governo pediu a todos os movimentos sociais
que se manifestassem pacificamente, evitando conflitos fatais. Portanto, no dia 4 de maio, o movimento
cocaleiro em conjunto com demais movimentos camponeses organizou uma concentração de centenas de
milhares de pessoas em Cochabamba, em completo repúdio aos estatutos autonômicos.
A única coisa que desanima Maria Eugênia acerca do processo político que vive o país são as bri-
gas internas, de egos de dirigentes e dirigentas. O atual preconceito que há da parte das militantes antigas
com relação às novas a incomoda muito. “Elas sempre nos dizem ‘vocês são novas’, entre mulheres há esta
discriminação. Por que tem que nos tratar assim? Se sempre vivemos aqui”. Ela descreve o personalismo,
o apadrinhamento e a perseguição interna de dirigentes que começam a se destacar como uma “guerra
suja”. Percebe nisso um erro muito grande, pois acha que a organização não pode depender de algumas
poucas pessoas, todas têm que estar preparadas. “Não somos solitários! Por exemplo, a Federação do Tró-
pico pode encabeçar [uma luta] primeiro, mas depois as outras organizações se somam e assim podemos
ganhar. Porque sozinhos não podemos”.
Tal conflito fará, provavelmente, com que Maria Eugenia saia da federação. “Eu não estou mui-
to preocupada com cargos, por isso digo que vou cumprir e vou sair. Porque não gosto de brigar por coisas
assim. Gosto de brigar por defender meus direitos, a minha vida. Mas assim, brigar pessoalmente não”,
desabafa. Ao final, o problema dela não é isolado. A história do instrumento político tão reivindicado
pelos cocaleiros, o MAS-IPSP, é inteiramente pontuada por brigas internas de lideranças.

A voz soberana do cocaleiro


No dia 13 de abril de 2002, o Trópico de Cochabamba amanheceu calado. “Não tínhamos
voz, era como se estivessem tapando a nossa boca assim”, diz Geronimo Anturiano. Estavam em meio à
Guerra da Coca e, no dia anterior, o governo de Jorge Quiroga havia utilizado seu último recurso para
debilitar o movimento cocaleiro: confiscar os equipamentos da Rádio Chipiriri, rádio comunitária de
responsabilidade da Federação do Trópico.
Geronimo, que há oito anos trabalha na rádio, conta que a ação da polícia, combinada com
forças militares, foi completamente ilegal. “Nem sequer trouxeram um aviso prévio, que dissesse mini-
mamente ‘por favor, vocês não têm esta documentação, precisam apresentar até tal data. Caso contrário,
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vamos fechar’”. Vieram, abriram a porta, pegaram os equipamentos e foram embora. 132
No meio dos conflitos com as forças combinadas do governo, a rádio cumpria um papel im-
portantíssimo frente à desinformação generalizada que promoviam os meios de comunicação tradicionais
sobre o Chapare e os cocaleiros. “Porque muitas emissoras, sejam elas nacionais, locais ou departamen-
tais, não relatavam o que acontecia aqui no trópico, a matança, os feridos, os mal-tratos físicos, isso não
se via. Então, nesta rádio tínhamos toda esta informação e enviávamos a nível departamental, nacional
e mundial, inclusive”, explica Geronimo. Fazer parar a rádio era um grande golpe contra as organizações
sindicais chaparenhas.
Logo, a recuperação dos equipamentos entrou nas negociações dos cocaleiros com o governo.
Em junho, o governou cedeu e os cocaleiros receberam de volta os equipamentos da rádio, junto com
diversos outros pontos de reivindicação. Geronimo conta, em tom de anedota, que o governo dizia que
estava doando equipamentos para a rádio, quando se comprovou no momento da sua entrega que eram
exatamente os mesmos que haviam sido retirados.
Por ser uma rádio de propriedade do movimento sindical cocaleiro, a rádio sempre possuiu
recortes políticos. Geronimo dá o exemplo de quando a agência de cooperação americana Usaid quis
veicular seus programas na rádio. “Estes programas tinham a finalidade de desorientar as organizações,
eram contra elas. Eles diziam que não era bom ter as plantações da folha de coca, porque isso era droga, e
que tínhamos que fazer plantações de palmito, abacaxi. E diziam que iam dar dinheiro para pôr secadoras
ou colheitadoras. E isso não era bom para a organização, estava começando a dividir. No sindicato, uns
estavam com associações, outros estavam com o sindicato. Então, pensamos, se vamos colocar estas men-
sagens, o sindicalismo pode morrer”. A primeira saída pensada pela rádio foi cobrar preços exorbitantes
da agência norte-americana, para que ela desistisse de veicular seus programas. Mas quando ela aceitou
os preços, deixou a equipe da rádio sem saber o que fazer. “E que fazemos? Começamos a fazer truques,
deixávamos o que nos era conveniente, e o resto apagávamos. E o financiador, não sei se escutava ou não,
mas pagava de qualquer forma”, lembra Geronimo.
Mas hoje já não há tantos conflitos. Os dois anos de Evo Morales na região mudou muita coisa.
As associações paralelas promovidas pela cooperação internacional já se esfacelaram, se incorporaram de
novo aos sindicatos. O cotidiano da rádio está mais calmo, já não é necessário fazer plantão à noite para
escutar pelo telefone as notícias dos conflitos.
Contudo, nem tudo está às mil maravilhas. A rádio sofre com um gravíssimo problema econô-
Terra e território
133 mico e foi, ironicamente, o governo Evo Morales um dos responsáveis indiretos por isso. Por nove anos
consecutivos, a rádio recebeu verbas da ONG holandesa CAF (Communication Assistance Foundation)63.
63.A CAF mudou de nome E em 2005, ano de renovação deste projeto de financiamento, a equipe da rádio estava com muitas ex-
em 2004, tornando-se “Free pectativas. Havia feito um estudo de transmissão para começar também a veicular programas televisivos
Voice - Dutch support for Me- e formar uma rede de comunicação em todo o trópico. Igualmente, Evo Morales havia acabado de ser
dia in development”
eleito presidente e isso obviamente significava tempos melhores para o Chapare. Mas Geronimo conta
que a resposta da sua financiadora foi desconcertante: “ela já não podia ajudar, porque o objetivo que
traçamos havia chegado, os nossos sonhos foram cumpridos. Porque fizemos o companheiro Evo chegar à
presidência, por esta rádio. Então, a CAF nos felicitou, dizendo que a organização que haviam financiado
cumpriu a sua meta”.
Os resultados dos problemas financeiros apareceram duramente neste começo de 2008. Um
dos locutores da rádio foi embora e o contrato com o diretor da rádio, um comunicador profissional, tam-
bém terminou e ele voltou à Cochabamba. A equipe, que antes era composta por seis pessoas - o diretor, o
secretário administrador (Geronimo), dois locutores e dois operadores - está hoje reduzida a quatro.
A alternativa foi pedir a ajuda da federação, para que ela garantisse a existência da rádio. “En-
tão, começamos incomodar nas reuniões das centrais e da federação, dizendo que eles levassem mais a
sério”. A federação decidiu então cobrar uma contribuição anual de 12 bolivianos de cada afiliado para a
manutenção da rádio. Com os 18 mil afiliados que tem a federação, esta contribuição significaria 2,5 mil
dólares mensais para a rádio, o que garantiria parte do pagamento dos seus salários e custos de operação.
A outra parte é garantida pela cobrança de anúncios de casas comerciais da região e serviços.
Geronimo também estava presente na reunião da Central Chipiriri. Ele deu um extenso infor-
me sobre a situação vulnerável da rádio e sobre a necessidade dos sindicatos de recolher as suas contri-
buições. Logo, seguiu-se uma longa discussão. Alguns reclamavam que a locutora que ficou não fala bem
quíchua, outros davam dicas para a programação, e finalmente, chegaram à conclusão de que deveria
haver um seminário de formação sobre comunicação. Geronimo escutava e dava também as suas opiniões
como representante da equipe da rádio, que tinha várias limitações para responder a todas as demandas.
São nestas conversas sindicais, que vão dos tons mais exaltados aos mais conciliatórios, que se define
cotidianamente os rumos da Rádio Chipiriri, a voz soberana dos cocaleiros.

Terra e território
Visita à Federação do Trópico 134
A sede da Federação do Especial Trópico fica em frente à Praça Busch, em Cochabamba. Na
primeira vez que eu passei por lá, recém chegada na cidade, tinha a firme intenção de entrevistar Júlio
Salazar, secretário-geral da federação. Não consegui a entrevista, foram quase duas horas de espera dentro
de uma sala onde ficava ao mesmo tempo a secretária, a mesa de Salazar, a pessoa que estava sendo aten-
dida e todas as demais que queriam falar com ele. Ao menos, acompanhei brevemente o cotidiano desta
mescla intrigante de sindicato e partido.
Júlio Salazar, além do seu cargo na federação, exerce também a função de presidente
departamental do MAS-IPSP. A federação serve como sede do partido, assim como a sua sala principal
tem esta dupla função. O dirigente cocaleiro coordena muitas das atividades do partido dali, assim como
atende organizações base da federação e movimentos amigos.
No tempo que estive ali, por exemplo, me chamou a atenção um senhor dirigente dos
64.Bandeira quadriculada for-
aposentados, que na época organizava um ato em defesa da Renta Dignidad. Era ajudado por um assessor mada por sete cores símbolo
do partido na redação da convocatória do ato, já que ele tinha muitas dificuldades com a palavra escrita. do Qullasuyu quando a cor
Pediu a Júlio bandeiras do partido, da Bolívia e wiphalas64, além de cartazes para organizar a agitação branca está no meio.
do ato. O assessor lhe indicou que era melhor utilizar mais bandeiras bolivianas, pois isso tornaria a
comunicação do ato mais eficaz, dialogaria com o nacionalismo boliviano.
Tudo me impressionava, ou melhor, me horrorizava. Nunca havia visto tamanha confusão en-
tre um movimento social e um partido. Minha experiência com o movimento estudantil brasileiro me
ensinou a considerar o aparelhamento dos movimentos sociais feito pelos partidos de esquerda uma
das coisas mais condenáveis que existe na política. Portanto, ele sempre é feito às escondidas, nunca tão
explicitamente.
Mas, e quando o partido em questão é um instrumento político do próprio movimento? É
aprovado em seus fóruns enquanto partido político e, portanto, se constitui teoricamente enquanto
um braço do movimento? Enfim, era a pergunta que passava em minha cabeça todo o tempo. Procurei
mais coisas, cartazes, panfletos, etc., que indicassem que ali também funcionava a sede de uma federação
cocaleira. Achei um adesivo, imitando o logo da coca-cola: “Coma coca, uma folha a menos para a
droga”.
Cansada de esperar, perguntei à secretária se haveria uma outra ocasião mais tranqüila, onde
eu poderia conversar com os dirigentes cocaleiros. Ela me escreveu em um papel “Shinahota, 26/10/07.
Terra e território
135 Aniversário do presidente”. Lá iam estar os principais dirigentes durante todo dia, me garantiu. Perguntei
se era o presidente da federação. Ela respondeu que sim, de todas as federações. “Seu nome?”, perguntei
muito jornalista, fazendo anotações. Ela respondeu rindo: ”Evo Morales”.

De movimento social a movimento político


Desde a sua fundação, no início dos anos 1990, a Coordenadora das Seis Federações do Trópico
teve somente um representante máximo, Evo Morales. Mesmo agora, sendo presidente da República, os
cocaleiros não permitiram que ele abandonasse esta função. Segundo alguns, é um mecanismo para que
ele não se afaste das suas bases e sempre volte ao trópico para prestar contas da sua política.
Os cocaleiros sempre reivindicaram para si a paternidade MAS-IPSP (Movimento ao Socialismo
– Instrumento Político pela Soberania dos Povos) ou simplesmente instrumento político (IP). Por mais
que o MAS tenha contado com outros setores importantes para a sua consolidação, é inegável que os
cocaleiros foram e continuam sendo uma força central.
Segundo Francisco Mijia, cocaleiro fundador do instrumento, a idéia de formá-lo se popularizou
entre os cocaleiros durante a marcha de 94, “foi neste momento que a proposta ficou mais clara”. Os
cocaleiros estavam cansados da sua impotência frente aos governos da época, que dificilmente cumpriam
os seus acordos e que promulgavam leis impopulares sem que os movimentos sociais pudessem fazer
qualquer coisa. “Então era para enfrentar estes governos de turno, que estavam acabando com as
organizações produtivas do trópico, e para também acabar com as leis malditas, como a Opção Zero e
também a lei de imunidade. Com isso queríamos acabar. Nós estivemos em seminários, contratamos
pessoas para passar cursos sobre política. Era para que houvesse uma união entre orgânico e político.
Porque antes era diferente, a organização muito à parte e a política muito à parte. Mas discutimos e
entramos em acordo, todas as centrais e federações juntas”, conta Mijia.
Feliciano Mamani, prefeito de Villa Tunari, conta que a repressão foi um importante fator para
que os cocaleiros aprendessem a falar de política. “Os governantes nos diziam que a nossa política era
machado e pá. E como vamos suportar isso? Também tínhamos direito de formar uma política, também
temos o direito de ter um prefeito, um presidente, um deputado”, diz ele.
Mas, de fato, a criação do instrumento político partiu de uma iniciativa conjunta dos cocaleiros
com outros setores. Ele foi surgiu em 1995, no congresso “Terra, Território e Instrumento Político”,
onde participaram camponeses (CSUTCB), colonos (CSCB), mulheres camponesas (FNMCB-BS) e
Terra e território
136

Terra e território
137 indígenas do oriente (CIDOB). A representação nacional dos cocaleiros se dividia entre a CSUTCB e a
CSCB. A idéia era que houvesse uma “participação direta dos militantes sindicais mediante uma adesão
65.DO ALTO, Hervé, op. cit., coletiva das suas organizações, sem criar uma estrutura partidária”65. Em teoria, portanto, não era uma
p. 75. Tradução da autora.
incorporação destes movimentos a um movimento político, mas sim a criação de um braço eleitoral
tático. Este instrumento também respondia a uma demanda histórica de evitar as tradicionais divisões
66.Idem, p. 75. que sofriam as organizações sociais nos momentos eleitorais, debilitando muito a sua luta66. O nome
dado a este instrumento foi, a princípio, Assembléia pela Soberania dos Povos (ASP) e o seu encarregado
político era o dirigente camponês Alejo Véliz.
Contudo, não se pode ignorar um outro importante fator para a criação deste instrumento: a
Lei de Participação Popular, promulgada um ano antes. Como já comentamos anteriormente, a lei abria
espaços para a participação de camponeses dentro da política institucional local e, caso eles quisessem
disputar estes espaços, igualmente necessitavam de um instrumento eleitoral. De fato, na primeira
eleição que o instrumento político participou - com a sigla de Esquerda Unida e em coalizão com o
67.KOMADINA, Jorge, et al., Partido Comunista da Bolívia (PCB) – em dezembro de 1995, foram eleitos 11 prefeitos, na sua maioria
op. cit., p. 31. camponeses do Chapare67.
Alejandro Almaraz, ex-membro da direção nacional do MAS e atual Vice-ministro de Terras, diz
que o entendimento dos dirigentes do instrumento era uma espécie de apropriação da LPP, ir crescendo a
partir das prefeituras: “Eles pensavam que o negócio não era chegar na prefeitura, mas sim ir avançando:
prefeituras, parlamento e algum dia ganhar a eleição nacional. E estes eram os que estão agora, Evo,
os potosinos – os dirigentes camponeses potosinos também era muito fortes – e outros que ficaram à
margem do MAS e que faziam parte desta idéia inicial: Alejo Véliz de um lado, e o Mallku do outro”.
68.O deputado plurinomi- Contudo, o instrumento político enfrentou um grande problema nos seus primeiros anos de
nal é eleito com a somatória
existência: a negativa constante da Corte Nacional Eleitoral em lhe dar a sua personalidade jurídica.
dos votos nacionais em uma
determinada sigla. Já o depu- Portanto, de 1995 até 1999, quando se consegue a sigla do MAS (Movimento ao Socialismo), o instrumento
tado uninominal é eleito com teve que participar das eleições com siglas emprestadas e coalizões.
somatória dos votos regionais. Logo, as brigas internas entre as lideranças camponesas no interior deste movimento começaram
São, portanto, duas eleições
diferentes.
a dar seus frutos. A principal delas era entre Evo Morales, que representava o setor cocaleiro, e Alejo
Véliz, que tinha uma considerável base em outras regiões camponesas cochabambinas. Esta briga leva a
uma grande quantidade de sindicatos cocaleiros a boicotar a candidatura de Véliz em 1997, quando ele
concorria à presidência e a deputado plurinominal68 pelo ASP, que novamente estava em aliança com a
Terra e território
Esquerda Unida69. O voto cruzado, que fez com que regionalmente os cocaleiros votassem em Evo Morales 138
para deputado uninominal, mas não votassem em Véliz nacionalmente, se explicitou no resultado das
eleições: Evo Morales foi eleito com 70%, o deputado uninominal com a melhor porcentagem de votos 69.Este boicote é relatado por
em todo o país, e Alejo Véliz, cabeça de chapa, não conseguiu os votos suficientes para ser eleito deputado Hervé do Alto. DO ALTO,
Hervé, op. cit., p. 78. Tradu-
plurinacional. ção da autora.
Este fenômeno impulsionou o racha dentro do instrumento, fazendo com que os “evistas”
adotassem a sigla de IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos) e os “alejistas” ficassem com
ASP. O ideal de instrumento político já aparecia bastante arranhado, pois se pretendia a representar de
uma ampla gama de movimentos sociais se dividiu com uma simples briga de caudilhos.
Um pouco antes das eleições municipais de 1999, a sigla “MAS” é oferecida a Evo Morales.
Ironicamente, tratava-se de uma sigla criada por um antigo membro da Falange Socialista Boliviana,
partido de extrema direita. Aceitando a sigla com muita dificuldade, o setor evista consegue agregar-lhe
o IPSP, dando o nome atual do partido. Contudo, a cor azul, cor do coorporativismo fascista boliviano,
não pôde ser mudada. Em 1999, a sigla MAS-IPSP obteve 3,3% dos votos nacionais, enquanto o grupo de 70.KOMADINA, Jorge, et al.,
Alejo Véliz, em coligação com o PCB, conseguiu angariar somente 1,1% dos votos70. op. cit., p. 33-34.
Os votos do MAS, apesar de serem massivos na região do Chapare, também contaram com
uma votação expressiva na província cochabambina de Ayopaya, onde Roman Loayza era importante
dirigente camponês. Além disso, 61% dos votos que obteve a sigla não provinham do departamento
de Cochabamba, mas sim do resto do país, o que indicava que o “grupo do Evo” tinha bases políticas
nacionais, apesar da sua vanguarda política estar concentrada em Cochabamba.
A adoção da sigla “MAS” teve outras conseqüências. Ela era inaceitável para Felipe Quispe,
então secretário-executivo da CSUTCB, eleito inclusive para mediar os grupos “evistas” e “alejistas” na
confederação. Quispe havia participado de algumas reuniões do IPSP, mas, segundo ele, a adoção da sigla
fascista negaria completamente a identidade indígena do instrumento. A partir deste momento, Quispe
começou uma aproximação maior com o setor de Alejo Véliz e criou o seu próprio partido em 2000, o
Movimento Indígena Pachakuti (MIP), processo que veremos mais à frente.
O instrumento político idealizado pelos movimentos camponeses em 1995, inicia os anos 2000
como instrumento de alguns setores e de outros não. É inegável que a sua relação com o movimento
cocaleiro é da mais orgânica possível, sendo factível para este setor o seu entendimento como braço político.
Para a CSUTCB, contudo, esta relação foi diferente, pois dependia das suas direções políticas. Inclusive,
Terra e território
139 é pela briga que se instalou dentro desta confederação a partir da negação de Quispe de participar do
instrumento, que se cria duas confederações camponesas paralelas. Para a Cidob, o instrumento político
sempre foi um processo alheio, já que se afasta da sua consolidação logo depois de 1995 por se inclinar
neste período a táticas eleitorais clientelistas de alianças com partidos tradicionais. Segundo Hervé do
Alto “esta antecipada baixa [da Cidob], à qual sucederiam múltiplas fases de aproximação e afastamento,
permite identificar a lealdade de geometria variável das organizações sociais em relação ao instrumento
71.DO ALTO, Hervé, op. cit., político, oscilando entre a lealdade incondicional (que ilustra o setor cocaleiro) e a permanente negociação
p. 76. Tradução da autora.
de fidelidades políticas”71.
Fato é que, a partir da criação deste instrumento e do seu funcionamento como estrutura
autônoma das entidades que o propuseram, o fracionamento dos movimentos sociais bolivianos foi um
processo constante. A CSUTCB se parte em duas, uma parte identificada com o discurso indianista
de Quispe, e outra com o MAS. No oriente, apesar da Cidob ter uma relação bastante variável com o
MAS, um setor organizado em torno da Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz (CPESC) é mais
72.Sobre isso fala Eduardo radicalizado e se identifica com o instrumento político. Inclusive o MST, tem o setor de Santa Cruz com
Córdova: “Há alguns que di-
mais proximidade com o MAS e outros setores nacionais que adotam posturas mais autônomas.
zem que os 21 mil mineiros
que foram despedidos foram
produzir coca. Mas isso não Mineiros e cocaleiros
é verdade, alguns se foram, São muito comuns as comparações entre o protagonismo recente do movimento cocaleiro
muitos se foram e não fica-
ram e voltaram às cidades ou
com o antigo protagonismo mineiro. Um dos maiores propagadores da tese de que a vanguarda dos
a outros lugares. Mas dos que movimentos sociais bolivianos passou na década de 1980 dos mineiros para os produtores cocaleiros é
se foram não ficaram muitos. Filemón Escobar, que se amparou na sua experiência de ex-assessor político do movimento mineiro para
Em um trabalho que vi dos
se tornar um dos maiores ideólogos do instrumento político.
anos 90, a proporção de ex-
mineiros entre os camponeses Não se pode afirmar, contudo, que houve um deslocamento populacional significativo das
cocaleiros era ao redor de 4% minas ao Chapare, como muitos pensam. Em 1986, um ano depois das demissões em massa de mineiros
a 5%. Em uma federação de que marcou a decadência do seu movimento, o Chapare vivia uma das suas maiores crises com a baixa
cocaleros que eu estudei, era
ao redor de 5%. Em um tra-
do preço da folha de coca. A grande maioria dos mineiros que em 85 se migraram para lá, provavelmente
balho que se fez em 2002 em se dirigiu a outras regiões posteriormente. De fato, houve uma migração mineira nas décadas anteriores,
outra zona era de 2,5%”. mas a população de ex-mineiros no Chapare hoje não é muito significante72.
Mas, como todo movimento social boliviano da atualidade, o movimento cocaleiro tem sim
muitas referências nas lutas do operariado mineiro. Filemón Escobar, em particular, é fonte de muitas
Terra e território
delas. Para explicar a estratégia de luta do movimento cocaleiro dentro da democracia representativa, 140
ele recorre ao bloco parlamentar mineiro: “A Tese de Pulacayo diz textualmente que ‘na próxima luta
eleitoral, nossa tarefa consiste em levar um bloco operário o mais forte possível ao parlamento, ressaltando
que ao ser antiparlamentários não podemos deixar o campo livre aos nossos inimigos de classe. Frente ao 73.Entrevista citada em:
KOMADINA, Jorge, et al.,
eleitoralismo, oponhamos a formação do bloco parlamentar mineiro”73. Portanto, a idéia do instrumento op. cit., p. 38. Tradução da
político tem, segundo Escobar, total convergência com as idéias mineiras, já que eles igualmente não se autora.
submetiam a um partido político, mas sim ao movimento do qual fazem parte, o movimento operário.
Mas Jorge Komadina, investigador social de Cochabamba, aponta que o bloco mineiro foi
uma exceção na experiência deste movimento: “a regra foi a estratégia insurrecional ou a participação
74.KOMADINA, Jorge, et al.,
eleitoral mediada pelos partidos de esquerda que atuavam como ventríloquos dos do movimento operário op. cit., p. 39. Tradução da
e camponês”74. autora.

Institucionalidade: tática ou estratégia?


A tese do instrumento político, contudo, teve uma outra conseqüência: evitar que os cocaleiros
adotassem a tática da guerrilha contra os constantes abusos que sofriam. Segundo Escobar, esta foi uma
grande conquista. “Eu lhes dizia: ‘a única forma de defender a folha de coca não é agarrando os ferros,
a única forma de defendê-la é com os sindicatos cocaleiros se transformando em força política, e a única 75.Idem, p. 39. Tradução da
maneira de isso acontecer é entrarmos na linha da democracia representativa”75. autora.
Mas, no princípio do movimento, não era somente a idéia da guerrilha que se opunha a estratégia
parlamentar. Havia dentro do instrumento político, percepções da disputa parlamentar enquanto tática,
como podemos ver nas palavras de Román Loayza, escritas em 2000: “Participamos dos espaços que nos
76.LOAYZA, Román apud
oferecem na sociedade neoliberal, eleições municipais, nacionais, propostas de leis, participação popular, KOMADINA, Jorge, et al.,
reforma educativa, saúde, assentamentos humanos, defesa da biodiversidade e dos recursos genéticos e op. cit., p. 39. Tradução da
naturais, etc. para pressionar o modelo e atacar com nossas demandas e necessidades até que ele arrebente autora.
pelas suas próprias limitações internas”76.
Komadina, que identifica nestas palavras uma “leitura tática e instrumental” da democracia
como um todo77 e não uma crítica a um sistema político específico, aponta que esta visão de Loayza 77.KOMADINA, Jorge, et al.,
foi superada dentro do MAS em 2002. Neste ano, segundo ele, o instrumento político foi impactado op. cit., p. 39.
com o segundo lugar obtido por Evo nas eleições presidenciais, o que demonstrava pela primeira vez a
possibilidade real de eleger um presidente. “A partir dos seus resultados o MAS interiorizou uma estratégia
Terra e território
141 democrática e eleitoral para chegar ao poder”78. De dentro do partido, portanto, não viriam mais críticas
sistêmicas ao Estado boliviano, ele já se consolidava como um a priori da sua ação.
78.Idem, p.53. Tradução da Pablo Regalsky lamenta profundamente esta mudança, apesar de localizar as raízes dela já
autora. nas primeiras gestões realizadas pelo MAS em prefeituras, através da LPP. “Inicialmente, o instrumento
político, que eu apoiei muitíssimo, possuía uma base estratégica de independência política do campesinato
e dos trabalhadores e da defesa da terra e do território. O principal era terra e território, mas baseado
neste modelo de independência política, do Estado e de qualquer partido político (...). Mas na prática, ele
acabou sendo o contrário, acabou sendo o mediador que permitiu rearticular os movimentos camponeses
com o Estado, no exercício dos governos municipais. Agora, tudo isso foi um processo contraditório”.
Hervé do Alto concentra parte do seu trabalho nestas contradições do MAS. Ele identifica
como conseqüência deste maior eleitoralismo uma espécie de “oligarquização” do MAS, que após 2002
começou a incorporar cada vez mais intelectuais da esquerda que tinham um peso mais importante que
os camponeses e indígenas no momento de definir quais seriam as figuras parlamentares. “Enquanto os
militantes têm dificuldades para adaptar-se a este novo âmbito que é o parlamento, os intelectuais e/ou ex-
militantes da esquerda, muito mais cômodos no manejo da atividade parlamentar tendem a se apropriar
da palavra pública do MAS-IPSP e, portanto, a definir eles mesmos as orientações do partido”.
Contudo, não se pode generalizar que há uma mão de via única da esfera política em direção à
social. Hervé do Alto pontua que nos casos de profundas crises do Estado e de intensa mobilização social,
as bases dos movimentos populares (inclusive as do próprio MAS) apontam uma agenda que obriga o
partido a mudar o rumo das suas políticas. Ele cita o exemplo da reivindicação de nacionalização dos
hidrocarbonetos, na qual o partido oficialmente defendia somente o aumento das regalias petroleiras
de 18% para 50%, mas a pressão dos seus próprios sindicatos de base o fez incorporar a proposta mais
avançada. “A explicação que propomos aqui deste fenômeno é essencialmente estrutural: a ausência de
aparato partidário que caracteriza o MAS-IPSP permite entender porque suas bases, cuja estruturação se
sustenta em formas organizativas previamente existentes, como sindicatos ou juntas vicinais, apresentam
79.DO ALTO, Hervé, op. cit., uma forte sensibilidade ao ‘que sucede’ dentro do espaço dos movimentos sociais, o que explica a
p. 88. Tradução da autora. tendência de se mobilizarem se existem motivos para fazê-lo dentro deste espaço”79.

Terra e território
MAPA DE ACHACACHI 142

Detalhe

Terra e território
143

4 - O movimento indígena de Omasuyus

Terra e território
144

Terra e território
145

REBELIÕES AIMARÁS

A promessa de Katari
Uma grande extensão de terras se espalha na região entre a Cordilheira Real dos Andes e o Lago
Titicaca. Filetes de água correm do degelo dos altos picos nevados da cordilheira em direção ao lago, per-
seguindo o trajeto do sol num caminho de leste a oeste. Estas águas irrigam a região, tornando-a apta para
o cultivo de cereais, de tubérculos e para a criação de animais. Desde os tempos pré-incas, agricultores po-
voam densamente a região - hoje chamada província Omasuyus, localizada no departamento de La Paz.
A capital da província, Achacachi, é o centro de comércio da região. Ali se reúnem os campone-
ses todas as quartas e domingos para distribuir seus produtos e comprar outros de necessidades básicas.
Saindo da cidade em direção sul, já a caminho de La Paz, passamos por uma ponte, quase imperceptível
para os viajantes pela pequenez do riacho que ela atravessa.
Em aimará q’alachaka significa ponte de pedra. Ali, em Q’alachaka, se formou no início dos
anos 2000 o terceiro grande exército indígena da história da Bolívia, comparável aos exércitos de Tupac
Katari (1781) e Zárate Willka (1899). Armados com mausers da década de 1950, reminiscências da Revolu-
ção Nacional de 1952, estes camponeses aimarás demonstraram todo o seu repúdio ao Estado boliviano.
Eles reivindicavam a refundação do Qullasuyu, região correspondente à Bolívia dentro do território inca,
1.ALBÓ, Xavier, op. cit.. p.
o Tawantisuyu, que em quíchua significa “as quatro jurisdições unidas”1. Carregavam a wiphala, bandeira
173.
de sete cores que, dependendo da disposição destas, representa cada uma das regiões incas. Quando a cor
branca cruza a diagonal da bandeira, trata-se de uma bandeira do Qullasuyu.
Os aimarás em estado de guerra portavam acima de tudo as lembranças da sua história rebelde.
Traziam marcadas as palavras pronunciadas por Tupac Katari mais de duzentos anos antes: “Eu morro,
mas amanhã voltarei convertido em milhares de milhares”. Esperança de libertação para os índios aimarás
da região ocidental boliviana, estas palavras sempre foram símbolos de terror para a população criolla ur-
Terra e território
bana. Tupac Katari realizou um cerco da cidade de La Paz que durou meses, deixou a cidade sem comida 146
e ameaçou inundá-la pela parte sul, abrindo os diques que forneciam água à cidade. Para a elite mestiça
que até hoje vive na sede do governo boliviano, a memória katarista é uma memória de medo, cerco e
comprovação de uma suposta barbárie indígena.
O protesto era ancestral, mas focava em uma exploração ainda visível e existente. No início do
nosso século, os índios bolivianos identificam a velha dominação colonial e racial com o nome moderno
de neoliberalismo, mas que igualmente usurpa suas terras, seus recursos naturais, questiona seus modos
de vida e de entendimento de mundo.

***
A história sobre a rebelião aimará de 2000 a 2005 me foi relatada por alguns personagens que
participaram ativamente dos protestos e por outros que tornaram destes protestos seu objeto de estudo
apaixonado.
Felipe Quispe, El Mallku2, era secretário executivo da CSUTCB de 1998 a 2003, dirigente
2.Mallku significa em aimará
máximo da principal organização social boliviana. Nascido em Jisk’a Axariya, uma comunidade próxima significa condor ou líder. In:
ao lago Titicaca e na província de Omasuyus, ele focou muito da sua gestão em mobilizações na sua re- CRABTREE, John. Perfiles
gião natal. Rufo Yanarico e Eugenio Rojas fizeram parte do comitê de bloqueio de 2003, e participaram de la protesta, p. 61. Funda-
de todas as demais mobilizações anteriores. Eugenio Rojas é atualmente prefeito de Achacachi e Rufo, ción Unir / Fundación PIEB.
La Paz, 2005.
funcionário da prefeitura. Marxa Chávez é uma jovem socióloga pacenha, que tem em Omasuyus o seu
foco de estudo. Pablo Mamani é professor de sociologia da Universidade Pública de El Alto (Upea),
importante centro de reflexão da identidade aimará por estar localizada em um centro urbano com um
movimento étnico muito forte. Xavier Albó é um antropólogo estudioso do movimento indígena bolivia-
no e em especial o aimará.

A convulsão de movimentos de 2000


As mobilizações iniciaram em Omasuyus em abril de 2000, com bloqueios de estrada. Elas
coincidiram com a Guerra da Água em Cochabamba e com diversos outros protestos nacionais contra
a Lei de Águas do governo de Hugo Banzer. Rufo Yanarico se lembra bem desta época, em especial do
conflito que houve em Achacachi no dia 9 de abril de 2000 entre os camponeses e os militares do quartel
que está na própria cidade.
Terra e território
147 Ele conta que neste dia, um domingo de feira, os camponeses estavam reunidos por dois mo-
tivos. O primeiro era a comemoração da Revolução Nacional, iniciada nesta mesma data. O segundo,
era um protesto contra a lei de privatização da água, porque “o general Banzer queria vender as águas do
nevado do Illampu, e toda esta água teríamos que pagar. Ali abaixo tem uma lagoa e dela, com o degelo,
descem as águas até aqui”. Neste protesto houve um enfrentamento entre os camponeses e os militares do
regimento Ayacucho, localizado na própria cidade de Achacachi. O conflito logo causou a morte de dois
jovens. Estas mortes enraiveceram os camponeses, que matam um capitão do exército como represália.
Rufo conta que o capitão foi tirado ainda vivo do hospital, mas “os camponeses, ao ver morto um irmão,
tiraram o capitão do hospital e o mataram”. Depois, com esta mesma força impulsionada pela raiva, en-
traram na prisão e na escola base da polícia, e ali queimaram papéis e confiscaram armas.
Felipe Quispe, que acompanhava as mobilizações desde La Paz, esteve nas negociações poste-
riores ao 9 de abril entre os camponeses e o governo. O governo a princípio queria prender todos os en-
volvidos na morte do capitão, “tinham que ir para a prisão 70 pessoas da comunidade (...). Porque matar
um branco é como matar um deus, quem mata o branco é visto como um diabo. Então, a gente exigiu do
3.GARCIA Linera, Álvaro (co- governo que eles identificassem no exército os soldados que haviam matado os dois jovens camponeses.
ord.) et al., op. cit., p. 122. E eles diziam que isso era intocável. E a gente dizia que da nossa parte também era intocável, não íamos
investigar nada. Porque era uma ação comunitária, toda as pessoas se levantaram e mataram o capitão”.
As negociações se concluíram no dia 14 de abril3 sem nenhum avanço concreto, já que a Lei
4.Idem, p. 122. de Águas já havia sido cancelada pelo governo por mobilizações anteriores4. Além disso, ninguém acabou
sendo preso pelo conflito em Achacachi, nem os militares, nem os camponeses. A diferença, pontua
Quispe, é que os infratores do lado do exército “carregam condecorações. As ruas e as praças deste país
levam os nomes destes assassinos, desta gente que mata a nação indígena”.
Mas logo em setembro e outubro de 2000 as mobilizações iniciaram de novo, tanto em Oma-
suyus quanto nacionalmente. Na região do trópico cochabambino, os cocaleiros enfrentavam a política
da coca zero, com forte militarização e repressão aos cultivos da folha. Haviam se mobilizado com um
bloqueio da estrada que liga Cochabamba a Santa Cruz para pedir a não construção de mais um quartel
5.Idem, p. 404. militar no Chapare, a permissão de um cato de coca por família e a aplicação de políticas reais de desen-
volvimento alternativo5. Ao mesmo tempo, os professores rurais e urbanos protestavam fortemente contra
os salários baixos e faziam uma forte greve nacional.
Terra e território
A região de Achacachi se mobilizava segundo as reivindicações da CSUTCB que incluíam, 148
entre outros pontos: a revisão da Lei Inra; a revisão do decreto 21060 aprovado em 1985: marco do início
das políticas neoliberais na Bolívia com a demissão dos trabalhadores mineiros e políticas de estabilização
econômica; o estabelecimento de mercados camponeses; e a doação de tratores para a mecanização do
campo. Tratava-se de uma lista bastante ambiciosa, de mais de 70 pontos, mas a junção de diversos movi-
mentos nacionais em mobilização fez com que a reivindicação da CSUTCB fosse mais factível.
Durante mais de duas semanas, as principais estradas da Bolívia estavam bloqueadas, e a cidade
de La Paz estava completamente cercada, com todos os caminhos que vão ao interior do departamento
fechados6. A principal cidade do país teve que receber alimentos por via aérea. Os movimentos indígenas, 6.Ibidem, p. 124.
que agora já não eram somente camponeses, mas também contavam com um importante setor urbano da
cidade de El Alto, também ameaçavam com a inundação da cidade. Era a mais completa recriação da saga
de Katari, presente no planejamento de cada ação de mobilização.
“São os maiores bloqueios que houve no país nos últimos 25 anos”, diz Marxa Chávez. “Há uma
preocupação de todos os setores urbanos, pelo menos da zona central. ‘Que está acontecendo, o que vai
acontecer?’. Toda a cidade está cercada e a memória do cerco é muito forte, Tupac Katari fez um cerco que
durou de seis meses a La Paz. Então a memória indígena de mobilização recupera estas formas tão antigas
de pensar a política, de cercar La Paz”. O cerco de 2000, segundo ela, fez explicitar as heranças coloniais
que persistem na cidade: “Era muito evidente o racismo que havia em La Paz, a visualização dos índios
como selvagens que iam entrar, que iam assaltar e queimar a cidade. Era isso o que dizia a elite branca que
vive na zona sul. La Paz historicamente está constituída assim, como muitas cidades coloniais. E continua
sendo uma cidade colonial. Há espaços que os indígenas até agora não podem entrar. Se você vai a um
café na zona sul com uma pessoa que se veste de pollera, não te servem, não querem te atender”.

O surgimento do Quartel de Q’alachaka


Ao mesmo tempo, os bloqueios no interior do país eram muito intensos. Foi nesta mobiliza-
ção que surgiu o Quartel Indígena de Q’alachaka. Logo atrás da pequena ponte que marca a entrada da
cidade de Achacachi há uma montanha. Este era um dos pontos de bloqueio estratégicos da região de
Omasuyus e os camponeses o mantinham através de turnos feitos pelas comunidades. Os bloqueadores
se reuniam nesta montanha e ali faziam assembléias, discussões, planejavam táticas e se preparavam para
o enfrentamento.
Terra e território
149

Terra e território
Eugenio Rojas vê o quartel de Q’alachaka como um espaço de formulação política, de resgate 150
das suas próprias raízes: “aí se formavam as pessoas, se discutia temas importantes, daí nasce a reconsti-
tuição de Qullasuyo. Fala-se muito de Tupac Katari, de nossa economia, nossa identidade, nossa história.
Este quartel é um lugar onde se gera idéias, se debate. E as discussões são diárias, feitas em todos os dias
do bloqueio de caminhos. Porque a cada dia vêm pessoas novas, um dia é turno de um grupo, outro dia é
de outro. E pensamos também as nossas ações, ‘se o governo não responde, que medidas vamos tomar?’.
Vão surgindo estratégias revolucionárias, são táticas pensadas diariamente”.
Mas o quartel, obviamente, não era somente um espaço de discussão política, era principal-
mente um espaço de resistência, no qual as pessoas portavam armas, dispostas a um enfrentamento
intenso. Esta disposição à luta armada é explicada por Felipe Quispe por duas motivações. A primeira
seria o resgate da luta rebelde dos antepassados índios contra o branco opressor, como a luta de Tupac
Katari. A segunda seria a experiência de alguns militantes aimarás com as guerrilhas armadas das décadas
anteriores, como o Exército Guerrilheiro Tupac Katari (EGTK) do início da década de 1990. “Para que
não houvesse desarme, colocaram os mausers abaixo junto com as bases, as armas mais modernas mais
acima, e os morteiros, as armas mais pesadas, lá em cima, na montanha, para que ninguém as visse. A
imprensa, o exército, ninguém podia ver, só de avião se podia ver. Eu estava ali permanente no comando.
E o chamam Quartel Q’alachaka, mas isso vem da nossa militância, dos Ayllus Rojos, do EGTK. Todas
estas pessoas se encapuzam, pegam armas e estão com as bases”, conta Felipe.
As armas provêm principalmente da Guerra do Chaco da década de 1930 e da Revolução de
1952. Eugenio Rojas explica que os governos posteriores tentaram retomar as armas dos camponeses,
mas eles, espertos, “entregaram as armas mais antigas e ficaram com as novas. Uma boa estratégia que
tomaram os nossos avós”.
Marxa Chávez crê que a criação do Quartel Indígena de Q’alachaka é o evento mais importante
que acontece neste bloqueio: “É outro ponto de trajetória [aimará] muito radical, muito importante para
o movimento indígena. Um exército indígena destas características não era visto desde 1899, quando
houve o exército indígena de Zárate Willka, com suas próprias armas, com os seus próprios caudilhos”.
Das mobilizações de setembro e outubro de 2000, Rufo lembra em especial da grande união
que havia entre os camponeses e os professores rurais: “Os professores cancelavam as suas aulas e vinham
aqui por turno dormir em Q’alachaka, onde estávamos bloqueando. Era pleno inverno, fazia frio. Os cam-
poneses também baixavam por turno, não se cansavam, não se pode cansar. Quando se declara alguma
Terra e território
151 guerra, levantamento ou conflito social, as pessoas não se cansam em Omasuyus”.

Assassinos em nossa terra


7.Ibidem, p. 123. Frente à toda convulsão social que tomava o país e que causou a morte de nove pessoas e mais
de uma centena de feridos, o governo Banzer cedeu no início de outubro7. A CSUTCB conseguiu a
aprovação de quase todas as suas demandas, “praticamente destruímos o governo de Banzer, porque a
8.Felipe Quispe cita como
conquistas da mobilização de mobilização era contundente”, diz Felipe Quispe8.
2000 “uma resolução para Na ocasião das negociações, as declarações de Felipe Quispe às autoridades de governo ficaram
construir uma universidade conhecidas e ajudaram a fazer crescer o sentimento étnico de povo oprimido historicamente pelo bran-
indígena, uma sede para a
CSUTCB, a modificação da
co estrangeiro: “Eu não vou olhar nos olhos de vocês, porque os seus olhos estão banhados do sangue
Lei Inra, mil tratores, merca- indígena (...). Isso me dói como Mallku maior. Isso me dói porque vocês, inquilinos, se apropriaram da
dos camponeses, 3,8 milhões nossa terra”9.
de hectares de terras para os Pablo Mamani, que pesquisa as estruturas simbólicas da resistência aimará, considera estas in-
camponeses. Eram 72 pontos,
conseguimos até liberar os pe- terpelações de Felipe Quispe como marcos. Segundo ele, antes “ninguém se atrevia a falar assim com um
quenos devedores”. ministro, com um presidente. Essa foi uma ruptura radical nos meios de comunicação (...). São elementos
que abrem e rompem status de conveniência, questionam de maneira radical o Estado e as elites criollas
9.GARCIA Linera, Álvaro do país”.
(coord.) et al., op. cit., p. 123.
Tradução da autora. A mobilização aimará de 2001
Apesar da imensa pauta conquistada em outubro de 2000, já no início de 2001 era perceptível a
pouca vontade do governo de cumprir com o prometido. Anunciados para maio, os bloqueios de estradas
voltaram a aparecer em junho na região de Omasuyus e em outras províncias vizinhas no departamento
de La Paz, como Los Andes, Manco Cápac, Camacho e Franz Tamayo. Ao contrário do que aconteceu em
2000, a mobilização não tinha um caráter nacional e se focava na região aimará.
Além da exigência do cumprimento dos acordos anteriores, de reivindicação mais corporativa,
10.Idem, p. 126.
esta mobilização continha novas pautas em evidência. Pela primeira vez, eram apresentadas demandas
étnicas, como soberania territorial, autogoverno indígena, substituição de símbolos coloniais do Estado
11.Ibidem, p. 126. boliviano por símbolos indígenas, como mudança de bandeira, de hino e de heróis nacionais10. Tratava-se
de uma forte expressão de um nacionalismo indígena aimará11, com uma mobilização que tinha como
foco acima de tudo a construção de um projeto político, muito mais do que conquistas específicas dentro
Terra e território
do Estado boliviano. 152
“Em 2001 vai continuar o nosso pedido. Mas então falávamos não simplesmente de recursos,
mas também falávamos da nova Bolívia, que é a reconstituição de Qullasuyu. Vamos expor que há duas
Bolívias, Felipe Quispe falou muito sobre isso. Uma Bolívia do poder econômico e do poder político e
outra Bolívia que não tem o que comer. Então, qual era a alternativa? Era refundar a Bolívia, mas sob a
lógica dos povos indígenas, seus princípios políticos e econômicos”, conta Eugenio Rojas.
O bloqueio de estradas interrompeu fluxos turísticos importantes, como o que liga a cidade de
La Paz ao santuário de Copacabana, no Lago Titicaca. Durante quase um mês, o governo esperou que 12.ALBÓ, Xavier, op. cit., p.
a mobilização se enfraquecesse, já que estava concentrada somente em um departamento do país. Con- 88.
tudo, em julho de 2001, o Ministro de Governo se impacientou e ameaçou mandar cinco mil homens a
zona de Achacachi para acabar com o bloqueio12. Mais uma vez, os governos bolivianos atiravam contra os
seus próprios pés, na sua completa ignorância sobre a lógica de mobilização indígena camponesa.
A mobilização se intensificou, e o Quartel de Q’alachaka voltou a aparecer com muita força.
No dia 13 de julho, mais de 25 mil camponeses desceram armados aos pontos de bloqueio, dispostos a
enfrentar o exército. “Os aimarás dizem ‘não, o exército não vai entrar aqui e se querem entrar, ‘vamos ter
guerra. Será exército indígena contra exército republicano’. Então eles saem com suas armas e o exército
do governo vai avançando com tanques. Foi um momento tão tenso, ia haver matança. Os companhei-
ros, por mais aguerridos que sejam, não têm armas, têm mausers de cinqüenta anos. O exército tinha
metralhadoras, fuzis modernos”, lembra Marxa Chávez. Segundo ela, é o segundo ponto importante da
trajetória dos aimarás, pois em 2000 este exército se forma e em 2001 “ele aparece publicamente, disposto
a enfrentar. É algo muito radical”.
Neste momento de tensão, os setores sociais de Cochabamba através de Evo Morales (cocalei-
ros) e Oscar Oliveira (Coordenadoria da Água) indicaram a sua solidariedade à mobilização aimará e a sua
disposição a se juntar aos bloqueios. Contudo, já no dia 18 de julho, dia seguinte ao anúncio, começou o 13.GARCIA Linera, Álvaro
diálogo com o governo13, evitando assim o conflito entre os aimarás e o exército. (coord.) et al., op. cit., p. 127.

A Guerra do Gás e a derrocada de Goni em 2003


No início de 2003 entra um novo governo, Gonzalo Sánchez de Lozada inicia então o seu se-
gundo mandato como presidente boliviano. O governo do MNR logo no início repudia os acordos feitos
nas mobilizações camponesas anteriores, dizendo que eles careciam de validação jurídica.
Terra e território
153 Tratava-se de um governo de profundo corte neoliberal, que começa com a aplicação de polí-
ticas de ajustes econômicos ortodoxos, vistas de forma muito negativa pela população. Uma delas foi o
impostazo, que causou já em janeiro de 2003 um conflito entre a polícia nacional mobilizada contra o
exército sob mando do governo. A população urbana de La Paz logo se juntou ao conflito em defesa da
polícia e morreram 32 pessoas nos dois dias que duraram os enfrentamentos.
Marxa Chávez aponta que a linha neoliberal do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, o
Goni, já não condizia com as discussões que havia na sociedade: “As pessoas estavam justamente questio-
nando o neoliberalismo e Goni aparece com uma proposta neoliberal. Além disso há um questionamento
ao primeiro governo dele, de 1993 a 1996, quando se capitalizou tudo, foram vendidas todas as empresas
públicas de Bolívia”.
No início do mês de setembro de 2003, o departamento de La Paz voltou a se mobilizar. Foram
duas marchas que caminham em direção a La Paz, nenhuma muito massiva ou com cobertura midiática.
Uma saiu de Caracollo, cidade ao sul de La Paz, liderada por Felipe Quispe. Participavam dela setores do
seu partido, o Movimento Indígena Pachakuti, estudantes e moradores de El Alto. A outra saiu de Hua-
rina, na própria província de Omasuyus, e foi convocada pela Federação Departamental de Camponeses,
e juntava principalmente a direção do movimento sindical camponês da região.
14.Edwin Huampo, da pro-
víncia pacenha Los Andes, foi
Além do cumprimento dos acordos anteriores, as marchas reivindicavam a libertação de um
preso por participar da deci- dirigente camponês preso pela execução de justiça comunitária14 e, mais importante, incorporavam o
são de justiça comunitária de pedido de não-exportação, nacionalização e industrialização do gás natural. Na época, o governo queria
matar dois ladrões. GARCIA exportar o gás boliviano aos Estados Unidos através de portos chilenos. Isso causou um grande impacto
Linera, Álvaro (coord.) et al.,
op. cit., p. 128. na população, que nunca perdoou o país vizinho por ter anexado a parte litoral boliviana no final do
século XIX, deixando o país sem saída para o mar.
“Queríamos dizer ao governo que não se vendesse o gás, porque eles queriam vender o gás ao
Chile. E a gente se perguntava por que, pois o gás deveria ser para a gente. Os bolivianos não tinham gás
e para vender havia. É um recurso não-renovável e tem que ficar para o país, não pode vender a outros”,
diz Rufo Yanarico.
Marxa Chávez, contudo, localiza o início das discussões sobre o gás antes do governo de Sán-
chez de Lozada. Tratava-se de uma discussão mais massiva do que a que houve em 2000, com a ameaça
de privatização da água: “A água, que havíamos defendido em 2000 com todas as comunidades aimarás e
com Cochabamba, se torna uma discussão também geral porque se começa a falar dos hidrocarbonetos.
Terra e território
Banzer morre e delega o governo a Tuto Quiroga, e aí se começa a falar da possibilidade da venda do 154
gás. (...) Havia nas rádios, nas ruas, grupos de discussão sobre os recursos naturais e o racismo. Foi um
processo muito forte de discussão coletiva, já não somente em nível de comunidades aimarás ou de Co-
chabamba, mas algo generalizado. Eu creio que era um processo de preparação coletiva para um futuro
enfretamento”.
Contudo, as marchas do início de setembro não causaram muita adesão pública, e os manifes-
tantes decidem apelar para outra forma de mobilização. “As pessoas começaram a falar ‘não vamos sair
daqui, temos que deixar na cidade o cheiro de índio, o cheiro da Pachamama’ (...). Diziam ‘vamos ficar
em La Paz, em greve de fome’. E nós, como dirigentes, nos perguntávamos aonde. Porque se ficássemos
em qualquer lugar, o governo no meio da noite ia nos despejar. Aí tivemos a idéia de ficar na Rádio San
Gabriel, que era uma rádio católica”, conta Felipe Quispe.
Mas as coisas não foram tão fáceis, e os responsáveis pela rádio cobraram aluguel dos grevistas.
A solução apareceu quando autoridades do governo visitaram a rádio para começar uma negociação:
“Para que não houvesse greve de fome, veio o Ministro de Assuntos Camponeses e Indígenas. Seqüestra-
mos a ele e a seu vice-ministro, além de diretores. Todas as pessoas fechamos dentro da rádio. Nós somos
preparados para este tipo de seqüestro, porque já havíamos aprendido antes”, explica Felipe Quispe. Para
liberar as autoridades, os camponeses pediam duas coisas: a liberação do dirigente preso por justiça comu-
nitária e que o governo pagasse o aluguel da rádio. Seus pedidos foram prontamente atendidos.
Alguns dirigentes, conta Rufo Yanarico, saíram da greve de fome na rádio, localizada em El
Alto, para organizar bloqueios nas suas comunidades. “Chamamos as bases para que nos apóiem, mas as
pessoas estavam um pouco cansadas. Saímos com o bloqueio em Q’alachaka. Mas às 10h da manhã sai
o quartel e prendem Eugenio (Rojas) e o levam ao Quartel de Ayacucho”. Este bloqueio começou no dia
15 de setembro de 2003.
Rufo lembra que os soldados levaram Eugenio à Achacachi, que na época era do Comitê de Blo-
queio, para denunciá-lo frente à população local: “Eles diziam às pessoas que ele que prejudicava o povo,
que não deixava as pessoas trabalharem, que saía a bloquear. E Eugenio sabia porque estava bloqueando,
então foi discurso contra discurso. Aí o povo defende a Eugenio, e acontece o contrário, os militares
recebem pedradas e se escapam ao quartel”.
Depois deste episódio, o governo decide no dia 20 de setembro, tomar ações mais enérgicas
contra os bloqueios. A desculpa era recuperar turistas que estavam isolados em Sorata, pois a estrada que
Terra e território
155 liga a cidade com La Paz estava interrompida em Omasuyus. Rufo estava voltando do bloqueio para sua
comunidade, Tacamara, quando viu um helicóptero chegando no quartel Ayacucho. Dentro dele estava
15.Cit in: GUTIÉRREZ, Ra- o então Ministro de Governo Carlos Sánchez Berzain. Ele estava organizando no quartel uma ofensiva
quel; ESCÁRZGA, Fabíola militar para trazer os turistas e dispersar o bloqueio na região.
(coordenadoras). Movimiento
indígena en América Latina: Foi em Warisata, povoado que fica justamente entre Sorata e Achacachi, que se enfrentaram o
resistencia y proyecto alter- exército com os camponeses. Eugenio Rojas conta15 que a população local organizou uma resistência aos
nativo, Volumen II, p. 60-67. militares, impedindo a sua passagem com a destruição de pontes e caminhos. Quando eles finalmente
Casa Juan Pablos / Centro
Cultural / S. A. de C.V./ Cen-
conseguiram alcançar Warisata, enfrentaram-se primeiro com as mulheres e jovens, que não possuíam
tro de Estúdios Andinos y Me- armas de fogo, somente pedras e paus. No momento de ingressar à comunidade, os militares utilizaram
soamericanos / Benemérita armas de fogo e assim se endureceu a guerra entre “Exército Indígena de Omasuyus contra o exército libe-
Universidad Antónoma de ral de Sánchez de Lozada”16. O conflito começou às 15h e terminou às 19h, e resultou na morte de cinco
Puebla. 2006.
pessoas, inclusive de uma menina de nove anos17, a maioria estava alheia ao conflito.
A morte destas pessoas somada ao fato do exército ter metralhado a Escola de Warisata, símbo-
16.Cit. in: GUTIÉRREZ, Ra-
quel et al., op. cit., p. 63. Tra- lo da cultura aimará, mexeu amplamente com a opinião pública e teve, mais uma vez, um efeito multipli-
dução da autora. cador da mobilização. Felipe Quispe lembra de uma senhora, parente de uma das vítimas: “Esta mulher
teve quase doze filhos, e aparecia bem forte pelos meios de comunicação (...). E as pessoas são muito
sentimentais no nosso país, viam-na com muitos filhos, perguntando como ia sustentá-los, chorando
17.GARCIA Linera, Álvaro
(coord.) et al., op. cit., p. 129. pelas telas de televisão. Então esta dor, estas lágrimas de Warisata perfuraram os corações de pedra dos
que viviam em El Alto e em La Paz”.
A partir do massacre de Warisata, a população de El Alto se juntou maciçamente às mobiliza-
ções. De 20 de setembro até 17 de outubro, quando Goni caiu, o país se convulsionou. Os bloqueios de
estrada se multiplicaram para outros territórios, e a vanguarda da ação política passou a ser a cidade El
Alto, com o seu fortíssimo movimento de juntas de vizinhos. Os moradores de El Alto desciam à cidade
de La Paz continuamente, paralisando suas atividades e cercando mais uma vez a sede do governo. Com
a mobilização, houve massacres violentos, que chegaram a ter até 26 mortos em um dia, como o massacre
18.Idem, p. 129. do Rio Seco. Os mineiros de Huanuni e Caracoles se juntaram à mobilização, e, ao final, se provocou
uma greve geral dos setores urbanos das principais cidades do país18.
Marxa Chávez vê este período como uma conjunção de todas as forças sociais da Bolívia: “Em
outubro, é como se tivéssemos juntado Cochabamba, com o altiplano aimará, com El Alto, e com a força
de cidades como La Paz e Oruro. Tudo em um só tempo. É como se fossem diferentes tempos políticos
Terra e território
juntos também, não? O tempo sindical, político, dos mineiros que chegam de Oruro a La Paz em outubro. 156
O tempo das comunidades do norte (Omasuyos), que também vão chegar, e que estão já na construção
deste quartel indígena. A cidade de El Alto, que se insurreciona totalmente, é uma cidade tomada pelos
moradores, a polícia não pode entrar ao menos que seja disparando. A cidade de La Paz, que também
se junta à mobilização. A cidade de Cochabamba, que volta a sair. Oruro e Potosi que estão totalmente
mobilizadas”.
A agenda de outubro, que reivindica a nacionalização dos hidrocarbonetos, a sua industrializa-
ção, e a reversão generalizada das políticas neoliberais dos anos anteriores, é forjada em meio a todas estas
reivindicações. Ela é resultado de um sentimento nacionalista difuso, contrário à exportação do gás por
portos chilenos, que se desenvolve em uma agenda contundente e popular, que expõe questões centrais
para país. Ela consegue reverter definitivamente o processo neoliberal boliviano, derrocando Sánchez de
Lozada e obrigando os governos futuros a olhar mais para as necessidades internas do país do que para as
recomendações políticas e econômicas internacionais.
Os camponeses de Omasuyus, enquanto o conflito urbano se intensificava em diversas partes
do país, se preparavam para chegar à cidade de La Paz. Segundo Felipe Quispe, era a concretização do seu
terceiro plano de ação, a tática mais ambiciosa dentro deste projeto político aimará.
A primeira, chamada de Plano Pulga, se realizava quando as mobilizações estavam enfraqueci-
das. “À noite picávamos, atacávamos o inimigo, e depois íamos embora. E assim começava. A pulga de
pica e salta constantemente”, explica Quispe. Assim, por exemplo, os caponeses bloqueavam caminhos
pela noite e durante o dia saiam. A operação era repetida sempre que o caminho era desbloqueado, des-
gastando as autoridades. A segunda tática era o Plano Formiga Colorada, que acontecia quando havia
manifestações maciças, marchas ou bloqueios.
O terceiro plano, o Plano Tarajchi, um pássaro da região andina, se consistia em “assalto aos
quartéis, às casas dos ricos, ao palácio de governo”, era, segundo Quispe, a tomada efetiva do poder. Os
indígenas de Omasuyus de fato chegaram a La Paz em outubro de 2003, mas chegaram tarde, depois que
Goni já havia renunciado.
“Os irmãos jovens caminhavam aqui pela cordilheira, clandestinamente. A gente caminhava
pela estrada, até a cidade de La Paz. Já tínhamos preparado o cerco, no qual teríamos que morrer. Antes
que acontecesse isso, Gonzalo Sánchez de Lozada abandonou o governo, escapou... E já estávamos a pon-
to de começar a guerra civil, igual a de 1952. Todos estávamos dispostos a morrer, a dar nossas vidas. Eu
Terra e território
157 creio que foi uma boa hora para Goni sair, senão, teríamos guerra civil”, conta Rufo Yanarico.
Felipe Quispe lamenta, “se isso tivesse acontecido, já estaríamos muito diferente. Agora já não
seriamos Bolívia, já seriamos Qullasuyu. Porque a gente teria feito outra coisa, não somos Evo Morales”.
A Guerra do Gás derrubou Gonzalo Sánchez de Lozada em 17 de outubro de 2003. A instabi-
lidade política da Bolívia continuou durante o mandato de Carlos Mesa, seu vice, que também foi obri-
gado a renunciar em 2005. Neste mesmo ano, foram chamadas novas eleições, das quais sai presidente o
ex-cocaleiro Evo Morales.

Terra e território
158

O AIMARÁ POLÍTICO

Luta pela reivindicação ou reivindicação pela luta?


Nestes anos de luta intensa em Omasuyus, foram reivindicadas a não-privatização da água, listas
imensas de pedidos específicos da CSUTCB, símbolos nacionais indígenas em contraposição aos símbo-
los coloniais e, finalmente, a nacionalização e industrialização dos hidrocarbonetos.
Contudo, uma meta muito maior se transparece quando Felipe Quispe e Eugenio Rojas, por
exemplo, expõem as suas histórias. As reivindicações aparecem, portanto, como desculpas, formas de
mobilizar as pessoas em torno do seu grande projeto: a reconstituição do Qullasuyu, a tomada do poder
pelos indígenas originários.
Xavier Albó, contudo, vê nas mobilizações da região de Achacachi um terceiro e principal
impulso: a rixa interna dentro da CSUTCB entre os partidários de Felipe Quispe e os partidários de Evo 19.Isaac Ávalos, citado ante-
Morales. “E eu creio que a Guerra do Gás era a ocasião e não a causa principal. A causa principal era riormente é secretário execu-
tivo da CSUTCB ligada ao
conseguir sua hegemonia dentro da CSUTCB”, diz o antropólogo.
MAS, enquanto Rufo Calle é
Tal disputa ocasionou em 2001 uma divisão da entidade que persiste até hoje, com uma con- secretário executivo da mais
federação liderada por Quispe e outra por setores ligados ao MAS19. Então, se havia uma mobilização ligada ao grupo do Mallku.
de cocaleiros, o setor aimará de Omasuyus se mobilizava mais fortemente, numa disputa para ganhar a
legitimidade de vanguarda e de liderança. Às vezes, a balança pendia para o lado do altiplano, como em
setembro e outubro de 2000 quando as mobilizações lançaram Felipe Quispe como personagem impor-
20.Esta caracterização de lide-
tantíssimo da conjuntura boliviana; outras vezes, a balança pendia para o trópico cochabambino, como ranças em 2000 e 2002 é feita
em 2002 quando Evo Morales, então deputado, foi expulso do parlamento por perseguição política e as por Xavier Albó. In: ALBÓ,
mobilizações cocaleiras ganharam tanta notoriedade que foram chamadas de Guerra do Gás20. Aparen- Xavier, op. cit., p. 92.
temente, a rixa se esgotou em 2005, quando Evo Morales foi eleito presidente, suplantando em muito o
seu antigo adversário. Terra e território
159 De qualquer forma, não se pode explicar as mobilizações de 2000 a 2005 somente com a briga
de lideranças e de egos. Havia diferenças entre os projetos políticos de mudança apresentados pelo setor
aimará e pelo setor masista. Eles também disputavam entre si uma saída para a crise que enfrentava o
Estado-nação boliviano.
As reivindicações, no geral comuns aos dois blocos, diziam respeito à resistência frente à polí-
tica neoliberal, às privatizações, à pobreza crescente da população, à falta de soberania nacional, à dimi-
nuição dos salários, dos direitos trabalhistas, etc. Contudo, o grande tema de debate entre os dois blocos
sociais era o que fazer após o neoliberalismo ser derrotado.
A reconstituição do Qullasuyu era um projeto ambicioso, mas carecia de apelo para os setores
não aimarás da sociedade boliviana. “Era um projeto forte, mas utópico. Não era operativo”, aponta
Xavier Albó. Segundo ele, a proposta era excessivamente “ideológica” e não partia das próprias comuni-
dades para efetuar mudanças, num processo de baixo para cima, condição fundamental para uma efetiva
descolonização.
Em contrapartida, o projeto que apresentava o MAS-IPSP, por mais difuso que fosse, conseguia
travar um diálogo a nível nacional. Frente à necessidade de descolonização, respondia com a proposta de
Assembléia Constituinte, que teria caráter fundacional. Centrava-se muito nas propostas de nacionaliza-
ção das empresas privatizadas e em uma política externa independente e denunciante do imperialismo
norte-americano. Albó aponta no próprio Evo Morales algumas características importantes para que o
MAS tivesse maior aceitação: “Parte da habilidade política do Evo foi ter, sendo ele somente dirigente
cocaleiro, a habilidade de vestir camisetas muitos distintas. Recuperou o aimará de quando era menino,
se colocou ao lado dos mineiros, começou a brigar junto com eles”.
De qualquer maneira, o projeto masista conseguiu chegar à presidência da república em 2005.
Enquanto isso, os que lutavam pela reconstituição do Qullasuyu ou estão agora um pouco eclipsados, ou
aderiram ao projeto masista, tentando ver nele uma forma de aplicação do seu próprio, como é o caso do
vice-presidente Álvaro Garcia Linera.

A República de Qullasuyu
Eugenio Rojas define o projeto de reconstituição do Qullasuyu com o resgate da política e da
economia aimará. Esta política, segundo ele, não tem a lógica de dominação da política eurocêntrica ca-
pitalista “para o aimará a política é prestar serviço, não é dominar, presentear os nossos recursos naturais,
Terra e território
oprimir, massacrar. Não é essa a democracia e o princípio político do aimará, se não que é servir ao povo 160
(...) Então, a política é por turnos. Vão trabalhando por turno, esta região é para isso, essa é para aquilo,
este ano tem que ser esta região e aquela não. Esta é uma política de serviço, por estar neste território,
por ter o usufruto da terra”.
A economia aimará segue os princípios comunitários e coletivos: “Nós não aceitamos a empresa
privada, aqui não há empresas privadas. Verá hoje, são todas associações comunais, que fazem parte da
comunidade. Nós agora estamos impulsionando as empresas comunitárias, frente à empresa privada.
Isso é uma nova alternativa, que nos vai custar muito, mas estamos avançando bem nisso”, diz Eugenio a
partir também da sua experiência como prefeito.
Claro que a contraposição à política eurocêntrica e dominadora e à empresa privada são
fenômenos modernos, impossíveis de serem pensados em épocas pré-colombianas. A visualização do
indesejado também não é feita somente olhando para a Europa, para a fonte da colonização, como um
exercício de comparação teórica. É feita com a experiência objetiva da colonização na América Latina, com
todas as distorções e massacres que são conseqüências de uma imposição cultural, econômica e política.
Nos rincões da América Latina, a política eurocêntrica tomou características mais cruéis, personalistas,
corruptas e violentas. A empresa privada, símbolo de modernidade em outras partes, aqui será um novo
nome para as antigas empresas coloniais que expropriavam os povos originários para guardar as suas 21.Branco Marinkovic, pre-
riquezas em uma parte longínqua do globo. Portanto, esta retomada dos valores antigos, feita com maior sidente do Comitê Cívico de
contundência somente no século XX – quinhentos anos depois do início da colonização - só pode ser Santa Cruz, sofre um processo
entendida pela perspectiva histórica atual. atualmente por ter se apro-
priado indevidamente de 26
Da mesma maneira, a figura do q’ara, do homem branco, estrangeiro, é constantemente revista mil hectares, parte deles em
dentro da figura do elemento explorador. Se antes ele era o espanhol, que sugava a prata de Potosi e as território dos índios guarayos.
vidas dos índios nas minas, ele passou a ser na atualidade a figura do gringo americano que intervém
nos assuntos de política interna, que promove os massacres no Chapare, ou o latifundiário croata que se
apropria de territórios indígenas nas terras baixas do país21.
Portanto, a imagem do q’ara é sempre relacionada com a figura do que possui riquezas.
Contudo, estas riquezas não provêm de um esforço pessoal, segundo as teorias clássicas liberais, mas 22.GARCIA Linera, Álvaro
(coord.) et al., op. cit., p. 176.
são frutos da exploração dos povos indígenas, como aponta Garcia Linera22. Desta forma, trata-se de um
conflito de classes com forte elemento étnico, pois a sociedade de classes e colonial na Bolívia foi fundada
a partir deste recorte cultural: “A etnificação social é um componente estrutural da formação classista da
Terra e território
161 sociedade e, em muitos casos, é tanto ou mais visível, e, portanto, moralmente mobilizador, que o próprio
volume da riqueza possuída”23.
23.Idem, 176. Tradução da Garcia Linera ainda aponta que é justamente esta característica étnica que pôde fazer com que
autora. o movimento aimará, majoritariamente camponês, tivesse um braço tão forte na zona urbana como o
movimento de moradores de El Alto. “Ao ressaltar esta dimensão cultural da condição de classe, a etnicidade
24.Ibidem, 177. Tradução da como núcleo explicativo da opressão unificante, o movimento abre as portas para uma articulação com
autora. outros setores, de outras classes sociais etnicamente dominadas, ainda que economicamente menos
exploradas (transportistas, comerciantes, operários, etc.)”24.
25.O partido fundado em O Estado opressor, ainda com características coloniais, era a materialização deste q’ara. Era ele
meio a estas mobilizações por que regulava a exploração das empresas estrangeiras em território boliviano, era ele que permitia a inter-
Felipe Quispe, e pelo qual venção americana. Seu controle era feito por uma elite nacional que tinha muito mais em comum com os
Eugenio Rojas é prefeito de
estrangeiros do que com os próprios bolivianos. Portanto, a relação deste movimento com o Estado sem-
Achacachi, o Movimento In-
dígena Pachakuti, indica esta pre teve em vista a sua substituição por outro modelo, uma ruptura que apontasse para uma nova era25.
vontade política. Na tradição Esta sociedade “comunitarista” seria alcançada, segundo Felipe Quispe, “com a força das armas,
dos povos andinos “Pachaku- não pela via eleitoral”. Para ele, a participação no Estado é válida somente para se tornarem conhecidos
ti” significa mudança do
mundo e nova era. In: ALBÓ, e aprender como os q’aras controlam o poder. Eugenio Rojas, que é prefeito, aponta que o Estado traz
Xavier op. cit., p. 191. limitações de ação, mas garante que se sua comunidade achar necessário infringir as regras do Estado, ele
o fará: “Mas se fazemos bem ao nosso povo, não temos medo de sermos processados”.
26.GARCIA Linera, Álvaro Tal vontade de auto-governo e de autodeterminação se popularizou, segundo Garcia Linera,
(coord.) et al., op. cit., p. 180- com a luta contra a privatização da água26 em 2000. Tratava-se de uma privatização não de um bem estatal,
181. mas sim de um bem comunitário. O serviço de abastecimento de água, tanto nos vales de Cochabamba
quanto no altiplano de Omasuyus, era gestionado por sistemas comunitários e familiares. Além de ser
27.Em Cochabamba, por uma expropriação, sem indenização, destas estruturas de abastecimento27, a privatização da água ameaçava
exemplo, as organizações vici- a forma tradicional de gestão comunitária boliviana, principalmente no campo. Frente a isso, a figura do
nais se responsabilizavam pelo
abastecimento da água e ha-
Estado foi cada vez mais questionada nas mobilizações de Omasuyus.
viam construído, sem a ajuda Contudo, o movimento de Omasuyus não pode ser tomado como a totalidade do movimento
do Estado, toda a infraestrutu- aimará, assim como o seu projeto político não é geral para todas as agrupações aimarás. Tal observação é
ra para tal atividade.
feita por Xavier Albó, que lembra que organizações como a CSUTCB e a Conamaq (Conselho Nacional
de Markas e Ayllus do Qullasuyu) tem projetos políticos distintos, assim como Felipe Quispe e Evo Mora-
les, ambos aimarás, também são figuras políticas muito diferentes.
Terra e território
O antropólogo localiza, contudo, uma característica geral em todos eles: “Bom, eles querem se 162
reconstruir enquanto povo, isso é evidente. A reivindicação, de qualquer forma, não tem o problema que
há com os de outras partes, que é ter a sua terra, isso eles já têm. O que sim querem ter mais é seu próprio
governo nestes territórios”.

Dialética e dualismo aimará


Há outras características gerais, porém, que identifica Xavier Albó nos aimarás. Uma das temáti-
cas freqüentemente tratadas na sua obra é o que ele chama de “aparente paradoxo aimará”, uma presença
sempre muito forte de elementos solidários e faccionalistas nas populações aimarás. Ele dá o exemplo
28.ALBÓ, Xavier, op. cit., p.
do ano 200028, no qual estas duas características se apresentaram ante a opinião pública de forma muito
15-16.
contundente. A intensa mobilização nos meses de setembro e outubro demonstrou um grande sentido
étnico e de identificação aimará, com o cerco da cidade de La Paz e o bloqueio de diversas estradas, resga-
tando constantemente figuras de heróis aimarás como Tupac Katari e Bartolina Sisa. Alguns meses antes,
contudo, um conflito entre os ayllus vizinhos Laymi e Qaqachaka causou a morte de 80 indígenas.
Não se trata de algo necessariamente inexistente em outros grupos. Albó lembra, como exemplo
disso, o intenso faccionalismo que houve na região dos vales cochabambinos logo após a Revolução de
1952, com conflitos fatais entre grupos camponeses rivais. Da mesma forma, o sentido comunitário, em
maior ou menor grau, é visto em sindicatos de regiões quíchuas em todo o país.
No caso aimará, seu objeto de estudo, Albó aponta que o comunitarismo é uma forma que o
grupo encontra para equilibrar os interesses individuais. A comunidade ganha grande importância jus-
tamente pela sua capacidade de resolver conflitos entre indivíduos e por não permitir que haja grandes
desigualdades no seu interior. Contudo, o gérmen deste tipo específico de individualismo aimará perma-
29.Idem, p. 30-31.
nece, e se desenvolve mais comumente na forma do faccionalismo29.
Ao contrário do ideário ocidental, que faz do indivíduo um princípio ordenador da sociedade,
os aimarás fazem da comunidade este princípio. Desta forma, os impulsos individuais, egoístas, que não
consideram a coletividade, são canalizados em formas coletivas: de grupos contra grupos no interior de
uma comunidade ou de comunidade contra comunidade em um espaço regional comum. Talvez o senti-
do da coletividade tenha se fortalecido especialmente devido à presença colonizadora que, ao impulsionar
a desagregação dos povos originários, acabou criando também o efeito contrário.
Contudo, não se pode negar que as adversidades vividas pelos aimarás como resultado da
Terra e território
163

Terra e território
colonização, como a privação de recursos naturais (terras férteis, água para irrigação, etc.), também são 164
motivos centrais para o faccionalismo. “O motivo quase onipresente neste faccionalismo é o acesso aos re-
cursos naturais. Neste ponto quase não há região – com exceções nos Yungas e zonas de colonização – nas 30.Ibidem, p. 32. Tradução da
quais não houve algum conflito, sequer ao nível de querela. São brigas por território”, pontua Albó30. autora.
Albó aponta alguns elementos que provocam mais o faccionalismo, como os recursos escassos,
e outros que provocam mais a solidariedade, como a identificação de um inimigo em comum. “Em gran-
de síntese, quando têm um objetivo em comum, estão juntos. E quando desaparece este objetivo comum,
pan pan pan , brigam entre eles”.
Esta dialética e união de contrários são aspectos centrais na estruturação simbólica aimará31. 31.Ibidem, p. 49.
Ela pode ser perceptível desde organizações sociais por metades, com povos que habitam um território
composto por partes mais altas e partes mais baixas, até entendimento dos objetos e da natureza, “há,
por exemplo, pedras masculinas (mais duras) e outra femininas (menos duras, porém mais resistentes); a
casa é considerada masculina e o pátio feminino; ou ao nível comunal, a torre da igreja é considerada é
32.Ibidem, p. 46. Tradução da
masculina, em contraste com o átrio ou a praça, que são femininos”32. autora.

O que é aimará?
Finalizando pelo início, cabe um esclarecimento aos leitores sobre a definição do que é ser
aimará. Segundo Mario Galindo, eram etnias aimarás as que compunham os senhorios collas, espécie de
reinos localizados ao redor do Lago Titicaca que duraram do século XII até o século XV, com a anexação
33.GALINDO S., Mario
da região colla (Qullasuyu) ao domínio inca33. (coord.); CRUZ A., Bonifa-
Hoje, contudo é muito difícil falar de etnias puras, estabelecendo, por exemplo, que todos os cio; PARDO V., Elizabeth;
que falam a língua aimará hoje são decendentes dos senhorios collas e os que falam quíchua, dos incas. A BUENO S., Ramiro. Visiones
aymaras sobre las autonomías.
utilização generalizada destes dois idiomas pelos povos andinos corresponde inclusive muito mais a um
Aportes para la construcción
fenômeno colonial. “O aimará era uma rama que ficou majoritária de uma língua geral maior. E quando del Estado nacional, p. 251.
chegam os espanhóis, eles borram todas as diferenças que havia entre os indígenas e circunscrevem os PIEB. La Paz, 2007.
indígenas em uma identidade determinada, ‘índios aimarás, índios quíchuas’. Então, estas são identifica-
ções coloniais”, explica Marxa Chávez.
As próprias regiões onde cada língua era falada também não correspondem às atuais divisões,
que têm áreas geográficas mais contínuas. Correspondiam mais a “zonas ecológicas”, nas quais “os aima-
rás estavam, sobretudo, em áreas de altitude mais aptas para o pastoreio, e os quíchuas nos vales mais
Terra e território
165 agrícolas”, aponta Xavier Albó34. Segundo ele, era muito provável que o pertencimento a um aylllu era
mais importante que a localização geográfica deste, e talvez até mais importante que a língua falada.
34.ALBÓ, Xavier, op. cit., p.
Marxa Chávez aponta, porém, que o fenômeno da forte identificação aimará de hoje se deve
173-174. Tradução da autora. muito mais a uma identidade politicamente construída do que uma cultura em si. “A população aimará
antes da colônia sofreu um processo de subordinação a tudo o que foi a dominação inca. Então, há uma
mistura, ninguém pode dizer que são culturas puras. Mas sim, há um processo de identificação muito
forte”. Segundo ela, o aimará enquanto folclore era aceito pela sociedade colonial, mas quando o aimará
passou a ser reivindicado como identidade política, esta identificação foi fortemente negada.
Mais uma vez tratamos de uma identificação que, apesar de ter raízes milenares, tem uma
relação dinâmica com o presente e só pode ser entendida a partir da sociedade que vivemos hoje. Dizer
“Nação Aimará” e “República Qullasuyu” é fruto muito mais de um processo histórico de reversão da
opressão étnica sofrida durante a colônia do que de uma mera vontade de voltar ao passado.

Terra e território
166

TRÊS HISTÓRIAS AIMARÁS

Antecedentes de 2000, a história do Mallku


Felipe Quispe começou a sua militância já nos anos 1970, quando o movimento étnico na
região altiplânica aimará estava reflorescendo com base na referência política de Tupac Katari. Ele fazia
parte de uma corrente chamada indianismo, que criou nesta época o Movimento Índio Tupac Katari (MI-
TKA). O indianismo se contrapunha ao Movimento Revolucionário Tupac Katari (MRTK), que possuía
uma linha mais nacionalista, pois foi justamente esta vertente que se inseriu na direção da CSUTCB.
A radicalidade é a característica mais marcante do indianismo, pois o seu discurso étnico e
contra os q’aras era muito forte. “Tem uma conotação política muito forte esta palavra ‘índio’”, explica
Marxa Chávez, “pois é a palavra que as elites usam para descriminar. Dizer ‘você é um índio’ é uma des-
qualificação total. Então, eles assumem essa visão e dizem ‘sim, somos índios e vamos nos liberar como
índios’. São eles que propõem coisas tão fortes como a guerra de raças contra os brancos, a expulsão dos
brancos”.
Felipe conta que o golpe de Estado de Garcia Meza, em julho de 1980, os fez abandonar o país.
Nesta época, ele fazia parte do Exército de Liberação Nacional e junto com companheiros, participou de
guerrilhas em outros países, como em El Salvador, na Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional.
“Ali aprendemos a fazer uma organização clandestina, conspirativa, como podíamos nos articular, a fazer
a luta armada”, diz ele.
Ao voltar para a Bolívia, estas pessoas passaram a participar do movimento sindical camponês
“Então aprendemos ali e logo em 1984 regressamos a La Paz e tivemos que ocupar as direções sindicais.
Eu fui secretário da federação. E com estes credenciais voltamos a rearticular a militância, a organizar os
quadros políticos. Sempre com esta mentalidade de sair à luta armada”.
Finalmente, no início dos anos 1990, foi formado o Exército Guerrilheiro Tupac Katari
Terra e território
167

Terra e território
(EGTK). Este exército juntava militantes antigos do indianismo, como o próprio Felipe Quispe, com 168
militantes da esquerda marxista tradicional, como os irmãos Raul e Álvaro Garcia Linera, que atualmente
é vice-presidente boliviano. “Eles eram do Movimento Nacionalista Revolucionário de Esquerda. Discu-
timos, eram totalmente marxistas, não sabiam nada da ideologia índia, tupac-katarista. Eles eram gente
da burguesia, dos ricos, queriam se proletarizar, se indianizar, queriam provar a coca, comer a comida
índia”, diz Felipe.
O EGTK, organização clandestina e pequena, se limitava a fazer ações midiáticas de ataque a
torres de televisão e embaixadas: “Fazíamos a nossa propaganda, quebrando as torres, colocando bombas
nas embaixadas, nas igrejas evangélicas, dos mórmons, acima de tudo era uma expressão contra os EUA”.
A ação guerrilheira também incluía treinamento dos novos militantes: “a gente, os velhos, havíamos
participado e nos submetido às regras das guerrilhas na América Central. E trouxemos isso. E queríamos
levar isso em prática, e levamos até certo ponto”.
Mas Felipe identificava discrepância com os militantes brancos. “Não sabiam cozinhar, porque
o pau tem que cruzar, e eles os metiam assim, e só fazia fumaça, nunca cozinhava a comida. Eles não
gostavam de fazer guarda durante a noite, buscavam a sua comodidade. Aí começamos a discrepar. Aí
aprendi também que no branco não se pode mandar, sempre tem este complexo de superioridade, sempre
tem este ‘eu’”.
Em 1992, a guerrilha é desbaratada pelo governo, suas lideranças são presas ou fogem do país.
A luta guerrilheira do EGTK acontece paralelamente a outras experiências latino-americanas dos anos
1990, como Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), ambos no Peru.
Mas não se compara a violência dos movimentos peruanos, pois suas ações efetivas se deram muito mais
no plano da propaganda. Xavier Albó também aponta outra característica própria do EGTK: “Diferente-
mente de outros grupos, como o MRTA, que apelava para figuras andinas, mas não tinha bases realmente
rurais e andinas, Felipe Quispe sim havia conseguido aglutinar um grupo de base, sobretudo na região
de Achacachi, e havia feito seus avanços para influir na poderosa CSUTCB desde o seu discurso mais 35.Idem, p. 80. Tradução da
radical e ideológico”35. autora.
Eugenio Rojas, que foi companheiro de Quispe no EGTK, acredita que a experiência foi po-
sitiva, mas vê muitos erros na atuação deles e das guerrilhas da época. “E eu conheço um pouco o que
era o Sendero Luminoso, eu trabalhei três meses ali na guerra. Era lamentável, eu era muito jovem e não
compreendia o que estávamos fazendo. (...) Era muito terror dentro na população indígena. Trouxemos
Terra e território
169 essa experiência para cá e quase a mesma coisa implementamos na Bolívia, este terror. Não era assim. Mas
estes erros nos fortaleceram no futuro. Percebemos que os guerrilheiros com o povo avançam melhor.
Dentro da massa, no meio das pessoas, a gente empurrando, mas junto, metido aí no meio. Eu era diri-
gente, Felipe era dirigente. Isso nos ajudou, não retroceder jamais, avançar diariamente com o povo. Isso
nos ajudou muito em 2000, 2001, 2003, 2005, e ainda continuamos”.
O irmão de Eugenio, Felipe Quispe, os irmãos Garcia e outras lideranças do EGTK foram
presos em 1992 e permaneceram cinco anos na prisão. Ao saírem ganharam uma grande atenção midiá-
tica, em especial Felipe Quispe, que passou a ser chamado de El Mallku. Já nesta época, ele demonstrava
especial capacidade denunciar publicamente os q’aras, o Estado colonial opressor e reivindicar a figura do
herói Tupac Katari, sempre muito presente na memória aimará.
Logo depois, em novembro de 1998, Felipe foi eleito secretário-executivo da CSUTCB como
mediação de uma rixa entre dois grupos cochabambinos, o grupo de Alejo Véliz e o grupo de Evo Mo-
rales. Logo, Quispe se aproxima mais do grupo de Véliz, segundo ele porque o grupo de Evo era muito
recuado nas suas ações: “Havia o grupo de Alejo Véliz, que tinha uma linha política mais ou menos pró-
xima de mim. E havia o grupo de Evo Morales, que não queria realizar os bloqueios de estradas, cortar
os produtos agropecuários, cercar as cidades, fazer greves marchas. (...) Mas nós, como tínhamos uma
posição radical e já havíamos feito a guerra de guerrilhas, pensávamos diferente. Desta forma, tivemos que
expulsar o grupo de Evo Morales”.
Esta expulsão ocorreu em março de 2000, quando Roman Loayza, então segundo nome da
CSUTCB, foi expulso da confederação. Em novembro deste mesmo ano, Felipe Quispe fundou seu pró-
prio partido, o MIP, o que acirrou a disputa entre o seu grupo e o grupo liderado por Evo Morales, que
até então encabeçava o único partido nascido de dentro das organizações camponesas, o MAS-IPSP.
Em janeiro de 2001, um congresso da CSUTCB em Oruro elege como secretário-executivo a
Humberto Choque. Contudo, o grupo de Felipe Quispe e as algumas federações departamentais que a
ele permaneciam fiéis, como a de La Paz, não reconhecem o congresso e em abril realizam um outro con-
gresso em La Paz. Ali, Felipe Quispe é reeleito como secretário executivo e começa o paralelismo sindical
da CSUTCB, que até hoje possui duas sedes e duas diretorias.
Segundo Marxa Chávez, de qualquer maneira a entrada de Felipe Quispe na liderança da CSU-
TCB é um marco, ao menos se levamos em conta o movimento específico de Achacachi. “Felipe é eleito
como máximo representante da CSUTCB em 98 e é interessante porque diferente dos outros dirigentes,
Terra e território
170
que estão muito imiscuídos na política partidária, o que ele faz é ir de comunidade em comunidade. Ele
passa pelas 200 comunidades de Omasuyos, a pé, de bicicleta, com um grupo de companheiros que o
apóiam”. Ela relata que, enquanto fazia a sua pesquisa em Omasuyus, as pessoas falvam deste trabalho
de base, este “processo de discussão ao nível das comunidades”, no qual se debatia política e recursos
naturais e que foi central para a luta contra a privatização da água em 2000.
Felipe Quispe conta que foi um processo de “re-indianização” das pessoas. “A maioria dos
camponeses eram militantes do MNR. Quando era mais jovem, meus irmãos mais velhos eram do MNR,
das milícias armadas. Porque aqui neste lugar havia patrões, e para tirar estes patrões tiveram que se armar.
Então, como estavam movimentizados [eram do MNR], como agora também estão neoliberalizados, o
que tinha que ser feito? Tinha que des-movimentizar, des-neoliberalizar, e finalmente re-indianizar, ou seja,
fazer com que reencontrem com seu próprio pensamento, que voltassem a ser índios, não simplesmente
camponeses”. Este trabalho era feito com cursos, seminários, palestras, uma espécie de “escola política
ideológica que eduque as pessoas, as massas”.
A partir deste processo, segundo Quispe, se conseguiu apresentar um discurso diferente frente
à nação. “Já não era colocar bombas, atirar, sabotar os meios econômicos dos ricos, era uma luta massiva,
de toda uma nação aimará, pedindo a sua livre autodeterminação. (...) Havíamos re-indianizado estas
pessoas. Então começa a sacudir a apatia, rompe o silêncio destes 500 anos, sai à luz pública um discurso
anti-q’ara, anti-branco, anti-colonial, anti-imperialista, anti-capitalista”.
Oito anos depois dos conflitos massivos de 2000, Felipe Quispe não ocupa nenhum cargo
dentro do movimento camponês indígena. Seus seguidores diminuíram consideravelmente de tamanho,
dado o que ele mesmo chama de “fenômeno Evo Morales”, que praticamente os destruiu a partir de 2005.
Muitos militantes passaram para o lado do MAS, como o seu velho companheiro de guerrilha Álvaro
Garcia Linera, hoje pilar das políticas de governo do MAS. “E a gente discutiu, queríamos levar Álvaro
Garcia como candidato à presidência, mas ele nem sequer quis sair como deputado nacional. Ele dizia
que ia sair como deputado constituinte pelo nosso movimento político, mas tampouco. Logo aparece nas
filas do MAS como candidato à vice-presidência, e isso é traição. Não há nenhuma carta de renuncia,
não há nada”.
Quispe acusa também Eugenio Rojas, prefeito de Achacachi pelo MIP, de ter passado para as
filas do MAS. “É como eu te dizia, muita gente foi para o outro lado. É como piolho, vão para o lado que
faz calor, e como o Evo está fazendo muito calor, estão vivendo aí, neste calor”, lamenta o Mallku. Terra e território
171 Vivendo como os aimarás
“Os aimarás diziam que tem que tratá-la como gente. Da batata, não se pode desperdiçar nada.
Assim vemos a natureza, com respeito”, me explica Seu Rufo Yanarico enquanto descascamos chuño no
36.Chacra, assim como chaco, gramado da sua pequena chacra36. Dona Marcelina, sua esposa, nos acompanha e verifica se os chuños
se refere à uma parcela de ter- estão bem descascados.
ra. É uma denominação mais
usada no altiplano Chuño é um tipo de batata ressacada, muito comum na alimentação tradicional andina. Quan-
do a colheita é feita, são separadas as batatas mais miúdas. Estas são espalhadas ao solo para que congelem
com as geadas noturnas. Depois, são pisadas para desidratar e o resto da secagem é feita pelo sol, muito
forte nos Andes durante o dia. Por fim, as cascas têm que ser tiradas, e o chuño está pronto para ser guar-
dado por anos e anos. Para comê-lo, basta cozinhá-lo em água.
Tacamara é uma comunidade de cerca de 400 famílias e fica aos pés do nevado Illampu, a me-
nos de vinte minutos por estrada de pedras saindo de Achacachi. Ali Seu Rufo nasceu, se criou, se casou e
teve seus três filhos: José, Marisol e Gabriel. Todos estudam na escola da comunidade, e José, que é filho
mais velho e tem hoje 17 anos, já participa com os pais das reuniões comunitárias.
A pequena chacra, de meio hectare, foi herança dos pais de Seu Rufo, que até 1952 eram colo-
nos na antiga fazenda de mesmo nome. O lote dos pais era garantido em troca do trabalho de segunda a
sábado nas terras da patroa, Dona Emiliana. Depois da revolução de 1952, o casal dividiu o lote de um
hectare entre os seus dois filhos homens. As filhas mulheres teriam que encontrar um marido para que
pudessem ter seus próprios terrenos.
Com somente meio hectare, explica Seu Rufo, infelizmente não se pode deixar a terra descan-
sar. A sorte é que há a água do degelo que sempre proveu a região de irrigação e a comunidade nunca
sofreu com as secas. Na sua chacra, Seu Rufo mantém pequenas plantações de cebola, fava, aveia, batata
e trigo. Além disso, possui três vacas, quatro porcos e uma galinha. As plantações garantem a comida
da família, enquanto o leite das vacas, que dão cada uma algo em torno de cinco litros ao dia, garante o
dinheiro para comprar material escolar, roupas, e demais necessidades de consumo.
A família vende o litro de leite por 2,3 pesos bolivianos à empresa Pil Andina. Seu Rufo se
surpreende ao saber que esta mesma empresa vende o seu litro de leite pasteurizado no supermercado a
5,50. De qualquer forma, como Don Rufo agora é chefe de recursos humanos (personal) da prefeitura de
Achacachi, a situação da família já não depende tanto da produção de leite. Com o marido funcionário
público, é Dona Marcelina quem cuida do dia a dia da chacra. Ela conta também com os filhos, que já
Terra e território
172

Terra e território
173 têm idade para ajudar.
Quando terminamos de descascar o chuño, Marisol traz o almoço acompanhada de seus irmãos.
Estendem na grama um tecido grosso bem resistente, listrado de cores fortes e feito pela própria Dona
Marcelina. Nele sentamos em roda para almoçar. No centro, há outro pano, que traz embrulhados chuño,
favas, um pote com molho de pimenta e peixe frito do Titicaca. Tomamos um refrigerante de mamão.
Falam algo em aimará, a família toda ri. Dona Marcelina me explica que seus filhos querem me
adotar. Rimos todos. Sinto-me um pouco como Gringo, o gato da família. Devem pensar que eu, magra
e sem cor para os padrões bolivianos, passo fome no Brasil.
Mas não há tempo para muitas conversas. Dona Marcelina e Don Rufo têm uma reunião im-
portante às 11h, na praça da comunidade. Vou com eles até lá, para pegar a van que parte de volta para
Achacachi. Ao chegarmos na praça, percebo um grupo de homens reunidos no canto esquerdo e um
grupo de mulheres - algumas fiando lã, outras costurando – mais ao centro da praça. Seu Rufo e Dona
Marcelina se separam imediatamente, cada qual indo em direção ao grupo que lhes corresponde. Eu, por
sorte, encontro uma van que me leva direto a La Paz. No caminho vejo baixar José, o filho mais velho,
atrasado para a reunião.

A Escola Ayllu de Warisata


Para falar comigo, Basílio Quispe Churata pediu a autorização da prefeitura de Achacachi.
Tudo bem assinado e comprovado, para que ninguém lhe acusasse de atuar sem o aval da comunidade.
Ele tem oitenta anos e, vaidoso, veio vestindo seu poncho vermelho, pois sabe que junto com os jornalis-
tas há sessões de foto.
Os ponchos vermelhos são vestimentas masculinas tradicionais na região de Omasuyus, e são
utilizados na tradição aimará tanto para festividades quanto para a guerra. Cada detalhe agregado ao pon-
cho tem um significado, como o barrado verde que traz desejos de um bom cultivo. Já as listras escuras do
chamado poncho huayruru (vermelho e negro) indicam o passado de servidão, dos tempos de colonos nas
fazendas criollas. Trata-se de nunca esquecer, portanto, a luta pela liberdade.
Quase toda a região de Omasuyus sofreu com a servidão indígena. Diferentemente de outras
regiões de aimarás, as fazendas coloniais eram muitas ali. Seu atrativo vinha provavelmente da fertilidade
trazida pela irrigação natural e da proximidade com La Paz. Mas algumas poucas comunidades originárias
se mantiveram, pois provavelmente as suas terras não eram férteis, grandes ou interessantes o suficiente
Terra e território
para as fazendas. Warisata era uma destas poucas regiões de Omasuyus onde ainda viviam famílias indí- 174
genas livres.
Warisata, portanto, possui uma cultura autônoma aimará muito forte, e isso foi um dos princi- 37.Foi no Dia do Índio, em 2
pais motivos para ter sido ali onde surgiu a escola indígena mais importante do país. A escola de Warisata de agosto de 1953, que foi de-
se tornou referência para muitos outros projetos educativos indígenas latino-americanos e, mais que tudo, cretada a Reforma Agrária por
Hernán Siles Zuazo, na cidade
foi referência para o ideal de liberação indígena camponês. O dia da sua fundação, 2 de agosto, se tornou de Ucareña. Evo Morales, cin-
posteriormente o Dia do Ìndio, comemoração nacional de muito significado político na história posterior qüenta e três nos depois, na
boliviana37. mesma data e local, anunciou
a sua política de Revolução
A família de Seu Basílio era da comunidade Muramaya, uma das oito comunidades que fazem Agrária, com a titulação de
parte de Warisata. Ali seu pai, Manuel Quispe Siñani, havia conseguido comprar terras do seu antigo terras a camponeses e a doação
patrão. Basílio nasceu em 1928, e tinha somente três anos quando a Escola Ayllu de Warisata foi fundada, de tratores.
em 1931. A escola nasceu de uma iniciativa conjunta de um habitante de Warisata, Avelino Siñani, tio avô
de Basílio38, e Elizardo Perez, professor de origem mestiça formado em Sucre. 38.A irmã de Avelino Siñani,
Basílio, portanto, acompanhou desde muito pequeno a construção e consolidação dos princí- Martina, era avó paterna de
pios político-pedagógicos da escola. Antes da existência da escola, Avelino Siñani, que era um camponês Basílio.
que tinha alguma educação básica, ensinava a outros camponeses a ler, a escrever, e a fazer contas. As clas-
ses eram clandestinas, à noite e com o local sempre variando, pois os patrões da região não queriam que os
índios tivessem qualquer tipo de formação e puniam fortemente os que se envolviam nestas atividades.
Elizardo Pérez era nesta época funcionário do Ministério de Instrução Pública, inspetor de
assuntos indígenas do departamento de La Paz. Ele tinha como tarefa criar núcleos de educação para os
camponeses, e já há algum tempo procurava uma região onde pudesse desenvolver este projeto.
Seu Basílio explica que foi uma peregrinação. “O tempo passou e ele preparou o seu plano
de fundar um magistério. Primeiro se dirigiu a província Aroma, ao sul de La Paz, mas os fazendeiros
não deixaram que ele desenvolvesse seu projeto. Voltou a La Paz e em Miraflores, começou a organizar
educação para operários e para camponeses. Mas se deu conta que com o tempo, a cidade ia chegar até
ali e não ia ser conveniente para os camponeses. O segundo intento não deu muito resultado. Então saiu
para as margens do lago Titicaca, saindo de Copacabana, passando por Huata e chegou em Achacachi.
E ali lhe informaram que em Warisata havia uma escola particular clandestina e que necessitava um
professor do Estado”.
Era aparentemente contraditório que o Estado boliviano, que igualmente representava os
Terra e território
175 fazendeiros que tanto se opunham à instrução do indígena, tivesse a política de formar uma escola rural
camponesa. Seu Basílio explica isso com a Guerra do Chaco contra o Paraguai, que se iniciou em 1930
e que tinha como maior parte dos seus combatentes os indígenas recrutados. “Que lindo teria sido se
nossos irmãos camponeses soubessem se defender. Mas eles não sabiam mexer com armas, tinham poucos
conhecimentos. Desta maneira perdemos uma parte do chaco boliviano, perdemos petróleo. Por isso, o
presidente Daniel Salamanca disse que os nossos índios precisavam se civilizar, aprender a ler e a escrever”.
Era necessário formar uma massa com sentimento nacional, de inclusão dentro do espaço boliviano,
principalmente frente às constantes perdas territoriais que Bolívia vinha sofrendo na sua história.
Mas esta vontade do Estado boliviano não era mais do que um aval para que a escola funcio-
nasse, já que até os recursos para que ela fosse construída partiram dos esforços das comunidades de
Warisata. Ao chegar na região, Elizardo Perez fez uma reunião com as autoridades da comunidade, que
não somente concordaram com a construção da escola, mas também lhe ofereceram o terreno, materiais
de construção – barro, pedra, terra, palha, areia, cascalho, todos os recursos locais – e força de trabalho
comunitária para viabilizar o projeto.
Depois da sua fundação, boa parte da escola ainda continuava em construção. “Esta ocasião eu
já assisti. Eu levava merenda, coca e cigarro para os trabalhadores”, lembra Don Basílio Quispe. “Aqui es-
tavam trabalhando os irmãos camponeses como formigas. Alguns faziam os tijolos, outros traziam pedras,
tudo em comissões sob a orientação de Elizardo Perez, de mallkus, caciques e outras autoridades locais”.
Assim, a escola se concretizou como um fruto da comunidade.
Na realidade, o nacionalismo casado com o resgate do indígena é um fenômeno que contra-
ditoriamente vai se repetir a partir da Revolução de 1952. A reforma agrária devolve aos indígenas seu
território, e, apesar de serem identificados como camponeses e de terem chamado as suas comunidades
de sindicatos agrários, por baixo disso surgia a reconquista do manejo territorial indígena e as condições
para que fossem resgatadas formas de vida anteriores à colônia e à presença européia.
A mesma lógica seguiu Warisata. Sob os ideais de progresso nacionalistas que floresceram a par-
tir da Guerra do Chaco e que vão explodir na Revolução de 1952, foi formada esta escola que tinha como
função “civilizar” o índio, e, acima de tudo, promover o desenvolvimento no campo. Mas este espaço,
imensamente dependente da comunidade para se efetivar, acabou sendo um espaço de resgate cultural e
de resistência contra a opressão dos fazendeiros. Ao se pretender um espaço universalizante, se tornou um
foco de organização e reivindicação do indígena.
Terra e território
A filosofia pedagógica de Elizardo Perez aplicada ali tinha quatro preceitos básicos “estudo, 176
trabalho, produção e investigação”. Dentro destes parâmetros, os alunos aprendiam trabalhando para
a própria escola, que tinha os seus campos de cultivo e tinha as suas oficinas de carpintaria, mecânica,
tapeçaria, etc. Isso tornava a escola auto-sustentável, tanto na construção de obras internas, na reposição
de móveis, quanto na alimentação dos estudantes e professores. Depois, o excedente da produção, se
houvesse, poderia ser vendido e ajudaria na arrecadação de recursos para a escola.
Destes preceitos se pode tirar duas conclusões. A primeira, que tem a ver com o nacionalismo,
é a necessidade de promover o desenvolvimento no campo, de ensinar aos camponeses a fazer roupas,
móveis, casas, que eles possam criar as suas pequenas manufaturas, que eles introduzam o cultivo de
outros alimentos, como tomate, cebola, alface, para equilibrar a sua dieta alimentar, etc. Um espaço lhes
é dado para que se desenvolvam, para que se libertem da estrutura arcaica da servidão, e para que com
isso contribuam para o desenvolvimento da nação Bolívia. Era uma espécie de política de expansão das
escolas técnicas no espaço rural. Mas a segunda conclusão é que a auto-sustentabilidade do projeto apon-
tava não para um modelo de escola liberal, mas sim para um modelo de escola comunitária. Ao invés de
depender do Estado, ela era dependente da comunidade onde estava inserida. Ali, a transparência é total,
o controle social é feito diretamente pela comunidade, que incide sobre as políticas a serem desenvolvidas
pela escola. Neste sentido, o nacionalismo deu as condições para que as sementes do movimento indígena
atual fossem plantadas e cuidadas.
A forte ligação da escola com a comunidade era determinada pelo Parlamento Amauta, um con-
selho de representantes das comunidades que se encarregava de coordenar os serviços das comunidades
à escola. Amauta quer dizer sábio, e cada uma das comunidades de Warisata tinha que indicar um sábio
representante para este conselho. Destes, o que tinha mais experiência é o amauta maior, o que dirige o
parlamento.
Seu Basílio conta que o Parlamento Amauta se reunia semanalmente para estabelecer as tarefas
a serem cumpridas no período. As tarefas poderiam ser políticas, tratar de problemas da escola, nas quais
o conselho tinha que “coordenar com o diretor, com os professores e com as autoridades educativas e
interministeriais, de acordo com a necessidade”. Mas elas também poderiam ser bastante pontuais, como
organizar a irrigação e ajudar na manutenção dos cultivos, etc.
Em 1937, finalmente se concretizou o plano inicial de construir na escola um magistério. No
final da década de 1930, durante o curto governo nacionalista do General Germán Busch, herói da Guer-
Terra e território
177 ra do Chaco, Warisata se tornou um modelo nacional parra a educação rural, impulsionando a criação
de muitos núcleos de escolas indígenas espalhados em todo território boliviano. O magistério, portanto,
respondia à demanda crescente destes outros projetos similares, que careciam de professores formados
nesta pedagogia. Já em 1940, depois de três anos, saíam de Warisata os primeiros professores formados
pela própria escola.
Nesta época, a escola também mantinha vários contatos internacionais, pois experiências neste
sentido estavam sendo tentadas em muitos países da América Latina. Houve uma relação especial com o
governo de Lázaro Cárdenas no México, que era amigo pessoal de Elizardo Perez e que financiou parte da
construção do Pavilhão México, prédio que depois seria a sede do magistério de Warisata.
Em estilo neo-tihuanaco, a obra foi coordenada por vários artistas latino-americanos, que foram
buscar inspiração na antiga civilização pré-inca ao redor do Lago Titicaca. Um destes artistas era o perua-
no Mariano Fuentes Lira, tido como um segundo pai por Seu Basílio, que era um jovem aluno da escola
quando as obras do Pavilhão México começaram. O artista projetou os impressionantes portais que estão
nas extremidades do pavilhão. O que está a leste tem a inscrição “Arte neo-índia para o povo” e o que está
a oeste, “Trabalho é paz e liberdade”. Mas, logo em cima da frase se nota duas ramas de cereais cruzadas,
lembrando o símbolo comunista da foice e o martelo. Don Basílio explica que por isso pensavam que
eram comunistas, mas na realidade seu pai de criação queria interpretar a filosofia índia.
Independente da posição ideológica de Fuentes Lira, que provavelmente quis deixar ali um
recado, para os fazendeiros da região tudo que fosse contrário aos seus interesses era algo a ser combatido
fortemente, pois colocava em cheque o regime de servidão do qual dependia o seu bem-estar. Podia ser
nacionalismo, comunitarismo, indigenismo, socialismo, e, como comunismo era o nome que soava mais
feio, foi exatamente com ele que começaram a fazer a sua campanha de desprestígio da escola.
Em 1939, somente dois anos depois da fundação do magistério, caiu o governo de Germán
Busch e entrou na presidência Carlos Quintanilla. Era uma época de muita instabilidade política, cheia
de golpes e contra-golpes de Estado. O novo governo era mais identificado com a elite rural e mineira e
tentou eliminar as políticas nacionalistas anteriores. No início dos anos 1940, interveio na escola e nos
demais núcleos de educação indigenal, substituindo seus diretores e proibindo o Parlamento Amauta
de funcionar. As oficinas foram saqueadas e pararam de produzir, a escola entrou em uma profunda
decadência que levou ao seu fechamento em 1942. “Os filhos dos fazendeiros estavam no governo, eram
autoridades e chefes. Perceberam que a filosofia de Elizardo Perez dava resultado, e disseram ‘a escola
Terra e território
178

Terra e território
179 de Warisata tem que ser fechada, estes índios um dia vão se levantar, vão fazer bloqueio, vão invadir’. E
fecharam a escola”, lamenta Seu Basílio que na época havia acabado seu curso primário e queria iniciar
o magistério.
Toda a sua geração foi para La Paz e começaram a trabalhar para ganhar a vida. Basílio, na im-
possibilidade de se formar professor, se tornou cabeleireiro e trabalhou em um salão cujo dono era japo-
nês. Dali, Seu Basílio tirou algumas aprendizagens. A primeira é que até hoje sabe falar algumas palavras
em japonês. A outra é que se acostumou a ler muito jornal, pois tinha que ter assunto para falar com os
clientes, e mesmo quando estava em casa, pegava seus livros e continuava lendo.
No final da década de quarenta, o jovem Basílio teve que prestar serviço militar. Em 1948, sua
companhia serviu durante quatro meses como guarda do palácio de governo. Basílio logo começou a
conhecer as autoridades e a ganhar certa intimidade. O presidente da época era Henrique Hertzog, que
coincidentemente havia sido governador do departamento de La Paz em 1931 e estava presente na inau-
guração da escola. Um dia Basílio tomou coragem e disse ao presidente: “Minha Excelência, eu sou de
Warisata e você também fundou a nossa escola. Por favor, nos devolva a escola. Sem o magistério, meus
companheiros vieram a La Paz, são sapateiros, costureiros, mecânicos, carpinteiros”. Ele pediu então que
viesse uma comissão de Warisata a La Paz para ter uma audiência com ele. A comissão foi a La Paz, a
reunião aconteceu e neste mesmo ano a escola de Warisata voltou a funcionar.
Mas os rumos levaram Basílio, que sempre gostou de estar bem informado, a outros lados. Em
1952 estoura a revolução nacional na sede do governo boliviano e ele, reservista do exército, se incorpora
ao levante. “Eu estava na célula São Pedro, por células nos organizamos. No dia 8 de abril de 1952, já es-
távamos bem organizados e o governo não sabia nada. Victor Paz Estenssoro estava exilado na Argentina,
e quem liderava era o doutor Hernan Siles Zuazo. O sinal já estava preparado, às 3h da manhã dinamites
estouram em diferentes bairros da cidade. Eu estava lá, pronto. Não havia armamento, mas o plano era
atacar o arsenal de guerra de Chayapampa. Ali havia munições, armas, tudo, só precisava tomar. Toma-
mos todo, pegamos todos os armamentos. E eu, como eu sou reservista, peguei a arma e pronto”.
Ele explica também que naquela época o MNR não era como o MNR de Goni, neoliberal. “Foi
um bom partido nesta época. Mas, o que aconteceu? O fazendeiro se infiltrou, se apoderou da política do
MNR, nos enganou. Por isso que houve a Guerra do Gás, porque o camponês já havia dado conta”.

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A Escola Ayllu hoje 180
“A escola foi reaberta em 1948, e até agora continua. Mas não tem o mesmo objetivo, já mudou,
já não é escola produtiva. Simplesmente ensina a ler e a escrever, assim como qualquer outra escola”, me
explica Andrés Mamani, atual diretor da escola de Warisata. O Parlamento Amauta ainda existe, mas já
não atua como antes, quando os habitantes das comunidades se responsabilizavam de fato pelas tarefas
da escola. Agora, cumpre a função de simples conselho, que opina sobre os assuntos da escola, faz a me-
diação entre ela e a comunidade.
Um dos motivos para isso ter acontecido foram as reformas educacionais que teve Bolívia du-
rante a segunda metade do século XX, que conseguiram de forma mais eficiente incorporar a escola de
Warisata a um padrão nacional, e dificultaram o desenvolvimento autônomo da sua própria pedagogia.
“Não era individualista a Escola Ayllu de Warisata, era comunal, na aprendizagem também. Enquanto
agora é individual, o docente está na lousa, escreve, fala, o aluno olha e copia”, lamenta Andrés Mama-
ni.
Mas Mamani também conta sobre iniciativas para recuperar o modelo de escola produtiva.
Estão recuperando as oficinas, como a de tecidos e de carpintaria; mantêm ainda alguns campos de cul-
tivo de batatas e criam animais, como gado, ovelhas e galinhas. A iniciativa esbarra, contudo, na falta de
recursos para impulsionar estas políticas, para equipar uma oficina, por exemplo. Mamani tem esperanças
em uma lei que está trabalhando o governo atualmente que será chamada de Lei Avelino Siñani e Elizardo
Perez. Ela proporá um resgate à filosofia fundacional de Warisata, da escola produtiva.

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181

PERGUNTAS, CERTEZAS E ESPERANÇAS

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Com muitos percalços, idas e vindas, fiquei ao todo seis meses na Bolívia. Pouco tempo para
entender o país, mas tempo suficiente para acumular muitas dúvidas. Sendo este trabalho realizado em
meio a vários processos históricos – o mandato de Evo Morales, o profundo questionamento do Estado-
nação, a construção de auto-governos indígenas – muitas questões ficaram em aberto.
Evo conseguirá terminar o seu mandato? Se sim, sob quais concessões e condições? O país
se dividirá? Haverá golpe de Estado? A nova Constituição Política de Estado será finalmente aprovada?
Haverá uma legislação que limite efetivamente a propriedade de terras? A revolução agrária existirá de
verdade ou não passará de discurso? Essas perguntas podem ser respondidas em questões de meses ou
anos.
Mas há outras perguntas, que falam de processos históricos mais longos e profundos, como o
futuro do movimento indígena camponês boliviano. Conseguirá ele cumprir a tarefa de descolonização a
qual se propõe? Os inimigos, como vimos, são muitos: a oligarquia crucenha, o governo norte-americano, a
persistente herança colonial. Ou será que, ao final do processo, este movimento será novamente cooptado
pelos grupos dominantes reformulados? E o governo de Evo, é um caminho para esta descolonização
ou seria ele um caminho para a criação de novas elites? Marca o fim ou o começo deste processo de
emancipação? O limite é muito tênue.
Contudo, na intensa disputa e polarização que há no país, o regime burguês de democracia
representativa está se esgotando, pela esquerda ou pela direita. A Bolívia vive hoje um período pré (guerra
civil? golpe? revolucionário?), mas que é significativo por si só. Como no Chile de Allende, a Bolívia do
início dos anos 2000 viveu experiências de poder popular e de soberania.
Este fenômeno é ainda mais especial se considerarmos o período histórico que vivemos,
chamado de pós-moderno, “atomizado”, no qual as pessoas estão enterradas em números de bilhões de
Terra e território
habitantes e nada mais importa do que a sua sobrevivência imediata. Aceitar esta constatação é torná-la 184
verdade e as lutas bolivianas atuais só existem porque para grande parte da sua população este indivíduo
pós-moderno atomizado não é uma realidade.
A população boliviana sabe da sua história de dominação, e sabe que a história não acabou,
porque o neoliberalismo é o neocolonialismo, o “pongueaje” moderno. É por isso que, muito mais do
que as intrigas políticas dadas dentro do Palácio do Governo, a história dos últimos anos foi traçada em
assembléias, bloqueios, marchas e ocupações de terra. E mesmo com um representante deste movimento
ocupando a cadeira presidencial, a história persiste e continua sendo assim.

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185

LIVROS E ARTIGOS DE REFERÊNCIA

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Marchando por una vida sin violencia. Comité Coordinador de las Cinco Federaciones Del Trópico
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• CEJIS / FSUTC-AT-SC. Situación y desafíos del movimiento campesino cruceño. Santa Cruz, 2006.
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censo del 2001. Santiago do Chile, 2005. Disponível em: http://www.cepal.org.ar/publicaciones/
xml/3/23263/bolivia.pdf
• CRABTREE, John. Perfiles de la protesta, p. 61. Fundación Unir / Fundación PIEB. La Paz, 2005.
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Jornais consultados

http://www.brasildefato.com.br/
http://www.opinion.com.bo/
http://www.bolpress.com/
http://www.lostiempos.com/
http://www.la-razon.com/
http://bolivia.indymedia.org/

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LEGENDAS DAS FOTOS

P. 5. Colonos de San Julián se preparam para enfrentar grupo rival que promovia a votação do Estatuto
Autonômico de Santa Cruz. Em 04/05/2008.

P. 14. A dirigente da Federação de Colonos em San Julián dá instruções durante bloqueio. Em


04/05/2008

P. 20. Cholitas assistem ato repudiando a especulação no preço dos alimentos e o empresariado agrícola
em Cochabamba. Em 06/12/2007.]

P. 38. Colonos preparados para enfrentar grupo rival que promovia a votação do Estatuto Autonômico
de Santa Cruz. Em 04/05/2008.

P. 44. Casa de teto de motacu e parede de chuchiu na zona de urbanização improvisada em Pueblos
Unidos. Outubro, 2007.

P. 63. Campo de soja em Pueblos Unidos. Outubro, 2007.

P. 63. Benita com Caluchito no seu chaco recém preparado. Outubro, 2007.

P. 70. Sem-terras tomam café da manha em Tierra Prometida. Outubro, 2007.

P. 79. Dirigente comunitário de San Julián denuncia conteúdo do Estatuto Autonômico de Santa Cruz.
Terra e território
189 Logiero faz referência ás lojas maçônicas, pois os líderes cívicos de Santa Cruz são identificados
como maçons. Em 04/05/2008.

P. 84. Jovem ajeita pneus de ponto de bloqueio em San Julián. Em 03/05/2008.

P. 84. Moradores do bairro popular Plan 3000 de Santa Cruz de la Sierra à caminho de uma
manifestação contrária ao Estatuto Autonômico. Em 02/05/2008.

P. 84. Cartazes de denúncia do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. Em 02/05/2008.

P. 90. Secagem da coca de Dona Isabela, Três Arroyos, perto de Villa Tunari. Novembro, 2007.

P. 93. Seu Julián e Seu Andrés mostram como se faz a colheita da coca. Santa Helena, perto de Villa
Tunari. Novembro, 2007.

P. 104. Seu Carlos Meneces mostra plantação de banana promovida pelo desenvolvimento alternativo.
Novembro, 2007.

P. 117. Manifestantes em frente à Embaixada dos EUA. Junho, 2008.

P. 124. Dona Isabela em sua casa, Três Arroyos, perto de Villa Tunari. Novembro, 2007.

P. 128. Mercado de coca em Chipiriri. Novembro, 2007.

P. 136. Camponeses vêem a entrega da Nova Constituição Política do Estado. Ao fundo, está Evo
Morales na bancada do Palácio Quemado. Em 15/12/2007.

P. 144. Bloco da Federação Departamental de Camponeses de La Paz em manifestação em La Paz.


Junho, 2008.
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P. 149. Ponte de pedra, q’alachaka, local onde surgiu o quartel indígena. Atrás, a montanha onde os 190
camponeses se reuniam. Abril, 2008.

P. 163. Cholitas da cidade de El Alto em manifestação em La Paz. Junho, 2008.

P. 167. Felipe Quispe, El Mallku. Abril, 2008.

P. 167. “Jallalla Mallku”, “viva Mallku” já meio desbotando em Achacachi. Abril, 2008.

P. 167. Felipe Quispe, El Mallku. Abril, 2008.

P. 167. Folhas de coca.

P. 172. Dona Marcelina e Seu Rufo descascando chuno em Tacamara. Província Omasuyus,
departamento de La Paz. Maio, 2008.

P. 178. Seu Basílio Quispe com a assinatura de Mariano Fuentes Lira em obra no Pavilhão México da
Escola de Warisata. Abril, 2008.

P. 178. Prédio do magistério de Warisata. Abril, 2008.

P. 178. Detalhe Pavilhão México do prédio do magistério de Warisata. Abril, 2008.

P. 182. Pacenha e wiphala, Achacachi. Abril, 2008.

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SIGLAS

ADN - Ação Democrática Nacionalista


ASP - Assembléia pela Soberania dos Povos
BM - Banco Mundial
CAO - Câmara Agroindustrial do Oriente
Cidob - Confederação Indígena do Oriente Boliviano (na fundação) / Confederação de Povos
Indígenas da Bolívia (hoje)
CNE - Corte Nacional Eleitoral
CNTCB - Confederação Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolívia
COB - Central Operária Boliviana
Confeagro - Confederação Agropecuária Nacional
CPE - Constituição Política do Estado
CPESC - Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz
CSCB - Confederação Sindical de Colonos da Bolívia
CSUTCB - Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia
DEA - Drug Enforcement Agency
Digeco - Direção Geral da Coca
EGTK - Exército Guerrilheiro Tupac Katari
FMI – Fundo Monetário Internacional
FNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina Sisa
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Fobomade - Fórum Boliviano de Defesa do Meio Ambiente
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FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses Apiaguaiqui
Tumba de Santa Cruz
FTC - Força Tarefa Conjunta
IDH - Imposto Direto dos Hidrocarbonetos
Inra – Instituto Nacional de Reforma Agrária
LPP - Lei de Participação Popular
MAS-IPSP - Movimento ao Socialismo - Instrumento Político pela Soberania dos Povos
MIP - Movimento Indígena Pachakuti
MIR - Movimento de Esquerda Revolucionária
MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário
MST-B - Movimento Sem Terra - Bolívia
PCB - Partido Comunista da Bolívia
Podemos - Poder Democrático Social
SNRA - Serviço Nacional de Reforma Agrária
TCO - Terra Comunitária de Origem
TCP-Alba - Tratado de Comércio dos Povos - Alternativa Bolivariana para as Américas
TLC - Tratado de Livre Comércio
UJC - Unión Juvenil Cruceñista
Umopar - Unidade Móvel para Patrulha Rural
UN - Unidade Nacional

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GLOSSÁRIO

Acullico ou pijcheo – Comumente chamado de “mascar” de coca, mas não consiste em triturar as
folhas, mas sim pressioná-las com os dentes para aos pouco ir tirando a sua seiva.
Ayllu – Nome com o qual os povos andinos chamam as suas comunidades indígenas originárias.
Ayni – Sistema de trabalho recíproco, no qual uma família conta com o trabalho de outras unidades
familiares em uma determinada ocasião e, futuramente, o devolve em atividades equivalentes.
Camba – Como são chamados os habitantes das terras baixas bolivianas.
Chaco – Lote de terra, termo utilizado em Santa Cruz e entre os cocaleiros.
Chacra - Lote de terra, termo utilizado em Omasuyus.
Chaqueo – Processo de queima e derrubada do mato de um determinado terreno tanto para fins
agrícolas quanto pecuários.
Chicha – Bebida alcoólica fermentada de milho.
Chicheria – bares populares onde se bebe chicha.
Cholitas – Mulheres indígenas do ocidente boliviano que se vestem com sua roupa típica: pollera, blusa
rendada, chapéu e tranças. O tamanho e o estilo da pollera e do chapéu podem variar dependendo da
região.
Chuchiu – Espécie de bambu, com o qual se faz paredes para moradias.
Chuño – Espécie de batata desidratada.
Colla – Como são chamados os habitantes do altiplano boliviano.
Criollo - Descendente de espanhóis nascido na América Latina.
Kuraka – Chefe político da comunidade, cacique.
Mita – Sistema de fornecimento de força de trabalho servil recrutada nas comunidades pelo o governo,
forma de pagamento de tributos. Utilizado tanto pelos incas como pelos espanhóis.
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Motacu – Espécie de palmeira abundante nas terras baixas bolivianas, com a qual se faz forragem para 194
tetos de moradias.
Pachamama – Mãe-terra.
Pollera – Saia bastante rodada e volumosa utilizada pelas cholitas. Em La Paz são mais cumpridas, indo
até o tornozelo, e em Cochabamba são mais curtas, até o joelho.
Pongueaje – Sistema de trabalho servil dentro das fazendas criollas, na qual os camponeses para cultivar
e ter acesso a um lote de terras precisavam trabalhar nas terras do fazendeiro.
Q’owa – Cerimônia de oferenda à Pachamama.

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