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Terra e território
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FICHA TÉCNICA
Junho 2008
Sobre a publicação
Agradecimentos
RESUMO/ABSTRACT
Este livro investiga os movimentos camponeses e indígenas na Bolívia. Concentra-se em três movimentos
distintos, que ocupam também regiões geográficas bastante diferentes: o movimento sem-terra boliviano
do departamento ocidental de Santa Cruz de la Sierra; o movimento cocaleiro da região tropical do
departamento de Cochabamba; e o movimento aimará do departamento de La Paz, província Omasuyus.
O trabalho foi feito a partir do acompanhamento do cotidiano de comunidades rurais e de uma intensa
pesquisa bibliográfica, o que traz um panorama mais amplo sobre as disputas pela terra e pelo território
na Bolívia.
This book investigates the peasant and indigenous movements in Bolivia. It focuses in three different
movements, which are also set in very different geographical regions: the landless movement at the
west-side department of Santa Cruz de la Sierra; the coca growers’ movement at the tropical region on
Cochabamba department; and the aymara movement at La Paz department, Omasuyus province. The
work was based on the rural communities’ daily life investigation and on a deep bibliographical research,
which brings a wider view on the Bolivian land and territory disputes.
Palavras-chave:
Bolivia, peasant movement, indigenous movement, landless movement, coca growers, aymaras,
decolonization, Evo Morales period.
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9 ÍNDICE
Prólogo 13
Dedico este trabalho ao povo boliviano, que não se rendeu à barbárie e ainda acredita na humanidade.
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PRÓLOGO
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“É incrível. As pessoas na França estudam anos, têm acesso a jornais, revistas, noticiários, etc., e mesmo assim, elegem
um fascista para presidente. Em compensação, aqui na Bolívia, as pessoas muitas vezes nem certidão de nascimento
têm, mas têm um entendimento das coisas impressionante”.
Vários motivos me levaram à Bolívia. Mas a frase desta amiga francesa, que quando cheguei, já
morava há sete anos no país, resume o principal deles. O “entendimento das coisas” boliviano pode ser
chamado de diversas formas: de consciência de classe, de autodeterminação dos povos, de excesso de
politização, até de ignorância.
De qualquer forma, a conversa embalou e logo me lembrei da minha adolescência vivida em Ribeirão
Preto, no interior de São Paulo. Contei para minha amiga que, no Brasil, adolescentes de classe média como
eu só discutiam temas sociais nas aulas de redação preparatórias para os concorridos vestibulares paulistas.
Nestas aulas, éramos estimulados a apresentar soluções para os problemas da sociedade, geralmente nos
dois últimos parágrafos dos textos. A grande maioria das soluções apresentadas – festejadíssimas pelos
nossos mestres – passava pela melhoria do sistema educacional no país. Aquecimento global, violência
urbana, tráfico de drogas, desemprego: tudo se resolveria se o povo fosse mais educado.
Márcio Pochmann, economista da Universidade Estadual de Campinas, há pouco tempo escreveu
sobre a nossa incrível crença na educação para resolver o problema específico do desemprego. Compa-
rando dados do final da década de 1980 e do final da década de 1990 no Brasil, percebeu que o número
de jovens empregados era de cerca de 16 milhões em ambos períodos. Em contrapartida, o número de
jovens desempregados foi de 1 milhão a 3,3 milhões. Sendo que, segundo números do Ministério da
Educação, houve um aumento de 43% nas matrículas no ensino superior, somente no período de 1995 a
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2000. A questão central é, segundo Pochmann, que o desemprego no país é estrutural, não é uma questão
de falta de ajuste entre a demanda do mercado e a formação do trabalhador1. Contudo, se a educação 16
não garante a inclusão, a falta dela sim garante a exclusão, criando um critério bastante perverso a partir
1.Entrevista com Marcio
deste recorte. Pochmann no site: http://
Mas estas estatísticas pouco importam para o imaginário da classe média brasileira. Exemplos da vida www.educacional.com.br/
real recheiam os nossos meios de comunicação, as nossas conversas cotidianas. Famílias desequilibradas entrevistas/entrevista0027.asp
investem em bens quando têm dinheiro, famílias bem estruturadas investem na educação de seus filhos.
Programas assistenciais em favelas tiram crianças do crime e as ensinam a fazer todo tipo de atividade.
Quantos jovens brasileiros não sonham em ultrapassar a barreira da pobreza ao serem esforçados, ao estu-
darem bastante? Nada disso é mentira, mas transpor este tipo de resolução de problemas individuais para
uma resolução sistêmica é de uma superficialidade tão grande que chega a ser criminosa.
O entendimento das coisas boliviano, aquele muitas vezes do analfabeto sem cidadania, obviamente
não é o que o senso comum brasileiro entende por educação. Ele é o oposto dela. Não se trata de uma luta 2.Criollo é o termo que de-
para galgar degraus da sociedade, fugindo da miséria, mas sim de uma luta por libertação. Ele não tem signa o descendente de espa-
suas causas simples de localizar, mas foi forjado durante estes quinhentos anos de presença espanhola. nhóis nascido na América La-
tina. Uma explicação bastante
Parte dele, obviamente, vem do movimento operário, mineiro, fortíssimo durante quase todo o século completa sobre as diversas
passado no país. Mas a organização em sindicatos de todos os tipos, juntas de vizinhos, federações, formas de utilizar o termo nos
coordenadorias, etc., não se deve somente a esta contribuição. Ela parte também de um passado indígena diferentes países da América
Latina pode ser encontrada
muito relembrado, de organização comunitária forte, de uma relação de respeito com a terra e com os
em: http://es.wikipedia.org/
recursos naturais, de uma revolta histórica frente à presença espanhola e ao Estado criollo2 que foi imposto wiki/Criollo
a partir da independência da nação.
Na Bolívia hoje, as memórias se cruzam em uma coexistência de tempos históricos diferentes,
como foi formulado pelo sociólogo boliviano Zavaleta Mercado3. Trata-se de combater ao mesmo tempo 3.ZAVALETA Mercado, René
apud URQUIDI, Vivian. Mo-
os colonizadores europeus; o capitalismo que se expande por todos os lados e impõe um modelo de vimento Cocaleiro na Bolívia.
mercado de terras e de trabalho assalariado; as políticas neoliberais que vendem os recursos naturais para Editora Hucitec. São Paulo,
estrangeiros; o imperialismo do governo estadunidense, que interveio militarmente inúmeras vezes na 2007.
dizimação dos plantadores de coca; a elite criolla e racista que nunca aceitou a presença indígena fora da
sua situação histórica de servidão.
As lutas bolivianas - sejam elas pré, anti ou de superação do capitalismo - são um fenômeno estranho
ao Brasil, apesar de acontecerem justo cruzando a fronteira oeste. São lutas de uma população que
teve massacrados seus valores, cultura e formas de organização social. Mas ela só se organiza porque
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17 permanece, quinhentos anos depois, explorada. O mundo continua miserável, com escravos, fome,
corrupção, violência e pobreza. As respostas que encontra neste resgate ao passado e nesta luta contra o
presente mesquinho trazem um conhecimento novo, distinto do conhecimento formal ao qual estamos
acostumados. Ele é o inverso de submissão e colonização.
Este livro tem como finalidade cruzar esta fronteira, ver as causas do turbilhão que vive o nosso país
vizinho, mas de forma aprofundada e contextualizada. Talvez as pessoas queiram saber mais do que o
efeito para o consumidor brasileiro das políticas de nacionalização do gás de Evo Morales. Talvez ainda
haja um sentido de solidariedade entre povos que acenda um interesse dos brasileiros para saber como
vivem e o que pensam os bolivianos.
Escolhi o movimento camponês e indígena como tema geral porque ele foi o grande protagonista dos
processos políticos e sociais destes últimos anos na Bolívia. O termo “terra” é ligado ao trabalho agrícola,
à reprodução biológica, faz parte do repertório camponês. O termo “território” é ligado à gestão política
do espaço ocupado, à reprodução social e cultural, faz parte do repertório indígena. Juntos formam a
palavra de ordem deste intenso movimento que nas próximas páginas será apresentado.
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MAPA DA BOLÍVIA 18
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Passei o meu último aniversário em Cochabamba. Estava na casa de amigos e era uma sexta-
feira. No meio do jantar, meu anfitrião saiu e começou a montar uma churrasqueira improvisada,
tentando deixar os carvões em brasa. Quando eles já estavam quentes, ele colocou em cima um papel de
seda grande, em cujo centro havia uma série de ervas, torrões de açúcar em forma de amuletos e mais
um ou outro objeto. Tratava-se do q’owa, uma oferenda à Pachamama, a mãe-terra, e que em Cochabamba
se repetia toda primeira sexta-feira do mês. O que é queimado é chamado de mesa e nela podem ser
acrescentados objetos diversos, comidas e folhas de coca. É um dia festivo, os homens vão às chicherias
(botecos onde se bebe chicha, um fermentado de milho típico da região dos vales bolivianos) e a cidade
toda ganha um cheiro de incenso graças à queima das mesas.
Uma das características mais marcantes da Bolívia para o visitante estrangeiro é a fortíssima
presença indígena na vida cotidiana da população. Não é necessário passar muitos dias no país para
perceber isso, é visível em praticamente todo o território boliviano - com mais intensidade no campo, mas
também nas cidades. Por todo lado vemos mulheres vestidas como cholitas: uma camisa justa de botões
na frente e de mangas curtas ligeiramente bufantes; uma saia pregueada chamada pollera, que vai até o
joelho ou, se forem de La Paz, até o tornozelo; e duas tranças compridas, que levam nas extremidades
penduricalhos de fios trançados. Trata-se de uma roupa que as mulheres indígenas aprenderam a
vestir nos tempos de colônia e mantêm esta tradição até hoje. Nos centros urbanos, as cholitas estão
sempre presentes nos negócios informais de rua, nas pequenas vendas de frutas, pães, refrescos, doces e
quinquilharias chinesas.
Segundo dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), a população
indígena boliviana é de 66%, de um total de pouco mais de oito milhões de habitantes. Na área rural, esta
porcentagem aumenta muito mais, chega a 79%. Deste total de povos indígenas, 40% se identifica como
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aimará, grupo étnico tem a sua origem anterior à chegada dos incas e que se concentra principalmente 22
nos departamentos de La Paz e Oruro. Outros 50% se identifica como quíchua, grupo étnico que fala a
antiga língua dos incas e que se tornou uma espécie de idioma geral dos indígenas na colônia1. 1.CEPAL / NAÇÕES UNI-
DAS. Los pueblos indígenas
de Bolivia: diagnóstico socio-
demográfico a partir del cen-
so del 2001, p. 42-46. Santiago
do Chile, 2005. Disponível
em: http://www.cepal.org.ar/
publicaciones/xml/3/23263/
bolivia.pdf
Quanto mais tempo se passa na Bolívia, mais perceptível e entendível se torna este elemento
indígena. No início, é somente algo exótico, objeto de pensamentos generalizantes. Aos poucos, ele
invade os sentidos. Não resta outra opção que não vivê-lo, mesmo sabendo que não fazemos parte dele.
Trata-se de uma identidade em constante mutação, em relação dialética com o presente vivido e o passado
reconstituído. Ele é como as cholitas que têm como principal característica uma roupa imposta pela colônia
ou o quíchua, código geral das populações indígenas andinas, que serviu ele mesmo para dizimar algumas
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23 línguas regionais, mas que hoje é um símbolo forte da cultura pré-colonial, resistente a muitos anos de
presença massiva da língua espanhola.
Com dois terços da população nacional indígena, é possível dizer que na Bolívia qualquer
mobilização popular tem em suas fileiras uma quantidade gigantesca de índios. No caso do movimento
camponês, ele se confunde profundamente com o movimento indígena. É extremamente difícil tratar os
dois enquanto movimentos isolados, as suas histórias e lutas se cruzam desde o tempo da chegada dos
espanhóis. Portanto, determinar o quanto de tal organização é indígena ou é camponesa é, no geral, uma
tarefa que depende mais das movimentações políticas da época, de quais são as pautas e as bandeiras que
levantam a população, do que necessariamente de uma caracterização racial em si.
As duas repúblicas
Os camponeses, na época da colônia, não existiam enquanto tal. Eram brancos ou índios,
tratava-se de uma demarcação étnica por parte dos espanhóis necessária para o estabelecimento da colônia.
Pablo Regalsky, pesquisador do Centro de Comunicação e Desenvolvimento Andino (Cenda), caracteriza
essa etnicidade da seguinte forma: “Está claro que o próprio colonialismo promoveu a diferença cultural
como forma de dominação. A etnicidade é um subproduto do colonialismo. Contudo, a etnicidade tem
2.REGALSKY, Pablo. Etni-
cidad y clase: El Estado boli- um duplo caráter e pode se transformar em uma ferramenta política de resistência. Nisto consiste a sua
viano y las estrategias andinas fluidez, o seu duplo caráter contraditório de instrumento classificatório de dominação e de resistência”2. A
de manejo de su espacio, p. história deste movimento ora indígena, ora camponês, ora ambos reflete esta dinâmica entre identidades
38. CEIDIS / CESU-UMSS
/ CENDA e Plural. La Paz,
impostas ou autodefinidas, entre opressão e resistência.
2003. Tradução da autora. Durante a colônia, como coloca Regalsky, era necessário estabelecer esta diferença para
justificar a invasão de território, o uso de mão-de-obra gratuita, a catequização dos índios, etc. Nesta
época, para facilitar a exploração da força de trabalho indígena nas recém descobertas minas de prata,
a Coroa Espanhola estabeleceu com as elites indígenas locais um acordo baseado no antigo sistema de
tributos inca, a mita. Ela consistia em um fornecimento anual de força de trabalho servil, recrutada nas
comunidades. Os incas utilizavam esta mão de obra para atividades militares, construção de obras públicas,
rituais, etc. Em troca da mita, neste momento utilizada para o trabalho nas minas, a Coroa dava aos
indígenas liberdade de organização em suas comunidades tradicionais, os ayllus, sob obediência aos seus
respectivos caciques ou kurakas (autoridades locais). As leis e as autoridades tradicionais indígenas eram,
portanto, mantidas. Este sistema predominava nas regiões altiplânicas da Bolívia, sendo a colonização das
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.
terras baixas, do oriente boliviano, um processo diferente e muito mais recente. 24
Isso resultou, nesta parte ocidental boliviana, no que foi chamado de sistema de “duas
repúblicas”, a república dos espanhóis e a república dos índios. Ambas deviam obediência à Coroa
espanhola, mas cada uma possuía sistemas legislativos e administrativos diferentes. O poder acumulado
pela elite indígena, que controlava a mão-de-obra disponível, começou a incomodar a elite criolla. No final
do século XVIII e princípios do século XIX, há uma demanda maior por mão-de-obra livre para trabalhar
nas fazendas e nos centros urbanos, além de haver um movimento do sistema capitalista como um todo
para acabar no campo com mão-de-obra servil, escrava ou de pequenos produtores de subsistência e
transformá-la em assalariada.
Regalsky caracteriza o processo da seguinte forma: “quando a burguesia [boliviana] começa a
se desenvolver mais, no fim do século XVIII, começa a querer se livrar desta elite e exercer o controle
diretamente através do mercado, tanto de terras quanto de força de trabalho”. A elite indígena era
indesejada porque trazia um empecilho para o assalariamento da mão-de-obra, já que a controlava segundo
os seus costumes e normas jurídicas, e também porque administrava parte considerável do território
boliviano através das comunidades indígenas.
O katarismo e a CSUTCB
Paralelamente ao declínio do Pacto Militar Camponês, um outro setor do campesinato boliviano
começou a se reorganizar com base em elementos étnicos. O movimento katarista surgiu na província de
Omasuyus, norte da cidade de La Paz e ao leste do lago Titicaca, e resgatou com muita força uma memória
de lutas indígenas de libertação contra o jugo europeu e criollo, tendo enquanto referência mais forte a
figura de Tupac Katari. Aimará, Katari coordenou uma rebelião em conjunto com Bartolina Sisa e cercou
a cidade de La Paz em 1781, chefiando 40 mil indígenas. A rebelião aconteceu paralelamente a muitas
outras, como a de Tupac Amaru no Peru e de Tomás Katari em Potosi. Eram lutas para a reconstituição
do território originário, profundamente radicalizadas e questionadoras da presença espanhola.
Já na década de 1970, o katarismo denunciava o nacionalismo enquanto forma de dominação
européia. No modelo universalista e liberal de Estado-nação, a etnicidade era mais uma vez utilizada como 6. REGALSKY, Pablo, op. cit.,
p. 43. Tradução da autora.
“ferramenta de resistência da comunidade andina”6.
O movimento se espalhou pelas regiões aimarás, criando laços também dentro de setores urba-
nos. O principal feito do katarismo, contudo, foi a criação da Confederação Sindical Única dos Traba-
lhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) em 1979, que substituiu a antiga Confederação Nacional de
Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CNTCB), entidade marcada pelo clientelismo do Pacto Militar
Camponês. O katarismo foi, portanto, o movimento que dirigiu a reorganização do campesinato enquan-
to setor independente e autônomo. A CSUTCB representou um grande avanço nas futuras lutas sociais
no país, pela primeira vez na história uma só entidade tinha a capacidade de mobilizar todos os setores
camponeses indígenas do país, incluindo os do ocidente.
Ao filiar-se à COB (Central Operária Boliviana), a CSUTCB resgatou a luta conjunta entre
camponeses e trabalhadores urbanos, e isso marcou diversas mobilizações do final dos anos 1970 até
meados dos 1980. Contudo, em 1985, o operariado boliviano sofreu um grande golpe na sua principal
força motriz, os mineiros. Foi aprovado o decreto 21060, que promovia o enxugamento do aparato estatal
e reformas econômicas de “estabilização”. A conseqüência direta foi a demissão de cerca de vinte mil
trabalhadores mineiros estatais e, a partir deste momento, a dianteira das mobilizações e lutas populares
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29 na Bolívia passou ao movimento camponês indígena.
Os cocaleiros
Durante os anos de 1980, foi se formando um outro importante ator nas lutas sociais na
Bolívia: o movimento cocaleiro. Junto com as políticas de ajuste estrutural, iniciou-se uma intervenção
norte-americana muito mais forte no controle do narcotráfico e de tudo que se ligava a este na Bolívia.
O estopim deste processo foi a aprovação da Lei 1008, em 1988, que militarizava a região tropical do
departamento de Cochabamba. Ali, segundo cálculos unilaterais do governo, havia produção de folha de
coca “excedentária” e que deveria ser controlada e erradicada.
O pesquisador Eduardo Córdova, da Universidade Mayor de San Simon, de Cochabamba,
pontua que o efeito prático da lei era de criminalizar os movimentos camponeses da região do Chapare:
“Trata-se de uma lei inconstitucional. Segundo ela, uma pessoa é culpada e depois tem que demonstrar a sua
inocência. Ela inverte os princípios jurídicos. A partir dela, a repressão contra os camponeses no Trópico
de Cochabamba foi muito grande”. Isso trouxe como conseqüência uma organização dos camponeses
cocaleiros muito maior, que passaram cada vez mais a adotar uma postura autônoma e enquanto setor
diferenciado dos demais setores de produtores rurais, buscando um discurso antiimperialista em
resposta à presença americana e resgatando a folha de coca enquanto um símbolo da cultura indígena e
de resistência. No terceiro capítulo uma descrição muito mais ampla será feita dos efeitos das políticas
antidrogas na região do Chapare.
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Indígenas do oriente – a outra etnicidade 32
Paralelo a esta história de êxito, um outro movimento começava a aparecer no cenário nacional.
Em agosto de 1990 uma marcha de indígenas saiu de Trinidad, departamento de Beni, em direção a La
Paz. 800 indígenas chegaram à sede do governo e pela primeira vez fizeram com que o país percebesse 11.LEHM Arcaya, Z. apud
GARCIA Linera, Álvaro (co-
a sua existência. Esquecidos e alvos fáceis do abuso dos madeireiros e fazendeiros das regiões baixas ord.); CHÁVEZ Leon, Marxa;
bolivianas, eles pediam o reconhecimento da sua cultura e dos seus territórios. COSTAS Monje, Patricia.
Eram indígenas provindos dos departamentos de Beni, Santa Cruz, Tarija, Chuquisaca, de Los movimientos sociales en
Bolivia, p. 219. Editora Plu-
diversas etnias, como chimanes, yuracarés, movimas, sirionós, guaranis, matacos, tacanas, etc11. A marcha ral. La Paz, 2008.
teve tanto impacto na opinião pública que o governo emitiu imediatamente oito decretos, reconhecendo
quatro territórios indígenas e se comprometendo a formar uma comissão de regularização dos direitos
indígenas nas terras baixas (Amazônia e leste boliviano)12. 12.GARCIA Linera, Álvaro
(coord.) et al., idem, p. 217.
A história do oriente boliviano, por mais que tenha relação profunda com a do ocidente, traçou
caminhos diversos. A expansão das fazendas criollas se deu em menor grau neste território pela grande
extensão de terras e dificuldades no seu domínio devido ao clima e à vegetação tropical. A colonização 13.Ainda hoje, esta região
de fato ficou muito mais nas mãos dos padres jesuítas, que estabeleceram nesta região missões nos moldes possui mais de 30 povos in-
dígenas, grande maioria dos
das que foram feitas no Brasil e no Paraguai. Ao contrário do oriente, que sempre contou com indígenas 36 reconhecidos pela nova
aimarás ou quíchuas, as terras baixas bolivianas concentravam dezenas de povos indígenas13. Constituição Política do Es-
A Reforma Agrária de 1953 praticamente se limitou nesta área a eliminar legalmente o tado, ainda em processo de
trabalho servil, sendo que até hoje em algumas regiões14 o trabalho escravo e servil permanece, apesar das aprovação.
denúncias das mais diversas organizações. Não houve divisão de terras nessa área, pois era um território
reservado para a criação de empresas agrícolas segundo as políticas públicas pensadas pelo nacionalismo 14.Chaco de Tarija e áreas de
coleta de castanhas na Amazô-
desenvolvimentista. O decreto 3464, que estabeleceu a reforma agrária em 2 de agosto de 1953, dava nia boliviana.
proteção a propriedades pequenas e médias e a empresas agrícolas, concentradas em sua maioria na região
de Santa Cruz15. 15.DUNKERLEY, James, op.
Neste panorama, os povos indígenas desta região pouco ou nada participaram do processo. Os cit., p.105.
que estavam incorporados nas fazendas enquanto peões e trabalhadores servis saíram às cidades. Porém,
muitos estavam ainda isolados em seus territórios, lutando contra os avanços das forças que concentram
poderes políticos e econômicos nestes locais, como madeireiros, agroindustriais e petroleiras, mas sem
estarem minimamente incorporados aos debates nacionais. Até hoje, uma das maiores lutas políticas de
muitos destes povos é conseguir documentos pessoais que possam garantir-lhes um mínimo de seguridade
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33 pública e status de cidadania.
16.Albó aponta que o pri- A década de noventa inicia apontando perspectivas para estas populações. As organizações
meiro despertar étnico na
América Latina foi com os
indígenas já haviam passado por um período de estruturação interna, embalados pela criação da
povos shuar nos anos 1960 na Confederação Indígena do Oriente Boliviano (Cidob) em 1982 e por iniciativas de outras populações
Amazônia equatoriana. Isso indígenas amazônicas em outras partes da América Latina16. A marcha de 1990 é resultado, portanto,
depois desembocou na criação desta organização crescente17. Além disso, a memória dos 500 anos de presença espanhola aproxima uma
da Confederação de Naciona-
lidades Indígenas da Amazô- série de ONGs de defesa dos direitos indígenas destas organizações, e a sua luta por reconhecimento
nia Equatoriana (Confeniae), ganha um destaque internacional. Trata-se de mais um resgate da etnicidade, que desta vez não tem
que forma, em conjunto com relação com a cultura andina e altiplânica, mas que têm um inimigo comum a esta, a ocupação dos seus
a Associação Interétnica de
Desenvolvimento da Selva Pe-
territórios e a tentativa de eliminação gradual da sua cultura e modo de vida.
ruana (Aidesp) e com a Cidob, “Terra e território” é o grande mote das mobilizações dos anos 1990 e unia estes movimentos
a Coordenadora Indígena da étnicos a todos aqueles que se organizam no campo de forma mais sindical. É com este princípio somado
Bacia Amazônica (Coica), em ao de autodeterminação que será pensado pela primeira vez o Instrumento Político Pela Soberania dos
1984. Esta organização ajudou
muito na estruturação dos tra- Povos (IPSP), que depois irá adotar a sigla de MAS. Impulsionado pelo setor cocaleiro, ele é aprovado
balhos da Cidob na Bolívia. em 1995 em um congresso conjunto da CSUTCB, da Confederação Sindical de Colonos da Bolívia
In: ALBÓ, Xavier. Pueblos in- (CSCB)18, da Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia – Bartolina Sisa (FNMCB-BS), e a
dios en la política, p. 184-205.
Plural / Cipca. La Paz, 2002.
Cidob (que neste momento já se chamava Confederação de Povos Indígenas da Bolívia).
17.GARCIA Linera, Álvaro Das primeiras revoltas do milênio à “revolução democrática cultural”
(coord.) et al., op. cit., p. 218. No início dos anos 2000, as lutas e mobilizações começaram a entrar no terreno urbano. Já
havia uma avaliação consensuada dos setores urbanos de que os ajustes econômicos aplicados durante os
18.O termo colono neste con-
texto remete ao camponês que anos 1990 não distribuíram riquezas, mas sim contribuíram para tornar a Bolívia um país mais pobre e
foi levado pelo Estado a zonas dependente.
de colônias, onde obtiveram O estopim se dá em 2000 na cidade de Cochabamba, com a privatização da água. A tentativa
dotação de parcelas de terras.
Estes colonos se organizam na
malfadada do governo Banzer de privatizar os serviços de água causou uma grande mobilização que uni-
CSCB e são diferentes, por- ficou ambientalistas, camponeses, moradores de bairros e trabalhadores urbanos. Parte destes serviços
tanto, dos colonos em estado não era controlada pelo Estado, mas sim por juntas comunitárias e, na prática, seria expropriada pelo
de servidão nas fazendas antes governo para ser cedida a uma empresa privada. Esta frente social travou uma batalha intensa na cidade,
da reforma agrária.
articulou-se com ativistas de San Francisco nos Estados Unidos (EUA) para pressionar a empresa ameri-
cana Bechtel que estava negociando com o governo, e por fim, conseguiu barrar a privatização da água.
Terra e território
A Guerra da Água foi chamada de primeira revolta do milênio e foi também a primeira conquista efetiva 34
dos movimentos sociais bolivianos contra o neoliberalismo que avassalava o país.
A largada havia sido dada. Para movimentos sociais bolivianos estava clara a possibilidade não
somente de barrar as políticas do governo quanto também de avançar nas suas próprias pautas. A Guerra
do Gás, melhor explicada no capítulo quarto, lançou nacionalmente a agenda de outubro, com a propos-
ta de nacionalização e industrialização do gás natural. Marchas nacionais de camponeses neste período
pediam a modificação da Lei Inra (Instituto Nacional de Reforma Agrária), uma nova Reforma Agrária, e
a refundação das bases do país através de uma Assembléia Constituinte, propagando os ideários descolo-
nizadores de plurinacionalidade e reconhecimento das diversas etnicidades e das autonomias indígenas.
Em 2002, cocaleiros também tinham a sua própria Guerra pela Coca, na qual denunciavam o fechamento
de seus mercados e a violência que viviam devido à militarização da região.
Foi em meio a tantas revoltas populares, que vinham avançando nas suas reivindicações, que
dois presidentes da Bolívia caíram (Sánchez de Lozada em 2003 e Carlos Mesa em 2005). Em 2005,
novas eleições foram chamadas e Evo Morales, eleito presidente, inicia a chamada “revolução democrática
cultural”. Ele era o único candidato com a capacidade de fazer a Bolívia “governável”, ou seja, de parar as
revoltas populares crescentes. Isso se deve em parte porque seu governo podia responder às reivindicações
populares e em parte também porque possuía uma imensa legitimidade enquanto liderança social.
***
Escrevo este texto enquanto este governo está em vigência e seus rumos estão ainda abertos, mas
já se pode notar muitos dos seus efeitos na sua principal base de sustentação, o movimento camponês e
indígena.
Contudo, a pretensão aqui não é estabelecer uma análise do que é o governo de Evo Morales.
Claro que em muitos momentos as interpretações – que são muitas – vão aparecer. A questão central é
demonstrar a linha histórica que levou a estes indígenas coloniais, depois camponeses e depois indígenas
novamente, a lutarem tão ferozmente pela sua soberania. Trata-se de uma luta tão forte que derrubou
presidentes, recuou o imperialismo norte-americano, e tem força suficiente para refundar o país e começar
a história de novo.
Para entender as forças motrizes deste movimento político e social, acompanhei entre setembro
de 2007 e junho de 2008 três movimentos com culturas camponesas distintas.
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35 Relato as experiências por certa ordem cronológica e espacial, pois escolhi o percurso tendo
em vista a perspectiva de uma brasileira. Cruzei a fronteira sul mato-grossense com o departamento
boliviano de Santa Cruz, região oriental do país. Lá, encontrei uma estrutura agrária bastante parecida
com a do Brasil: grandes latifúndios; monocultura de soja e de cana; trabalho assalariado miserável;
movimentos indígenas enfraquecidos na sua imensa diversidade e por anos e anos de missões religiosas;
milícias armadas de latifundiários, trabalho escravo e servil, crimes gritantes contra os direitos humanos
que são geralmente omitidos pela grande imprensa local; e, por fim, um recente movimento sem-terra,
inspirado pelo brasileiro, que simboliza boa parte dos desafios e contradições que vivem os camponeses
desta região.
Em seguida, fui ao Chapare, região militarizada graças à política norte americana de Guerra
contra as Drogas, causando a morte de dezenas de camponeses plantadores de coca entre os anos de
1980 e 1990. Trata-se de uma zona tropical que reúne camponeses migrantes do altiplano, mas que
conformaram uma identidade cocaleira e se transformaram, pela fortíssima repressão sofrida, em um dos
atores mais fortes do movimento camponês boliviano. Não é gratuito que dali surgiu o impulso central
para a criação do MAS-IPSP e dali provém o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales.
Por fim, num caminho que vai das terras baixas bolivianas ao altiplano andino, de leste à oeste,
conheci o movimento aimará da província de Omasuyus, no departamento de La Paz. Ali os camponeses
não são migrantes, sempre ocuparam o território onde estão. Sua luta pode se focar no resgate aos recursos
naturais, mas acima de tudo lutam pela sua reconstituição enquanto povo, em contraposição ao Estado
colonial. Resgatam com força os seus símbolos culturais aimarás e heróis da luta pela sua libertação, como
Tupac Katari e seu cerco à cidade de La Paz em 1781. Eles foram atores políticos essenciais do período
de 2000 a 2005, e suas mobilizações, chamadas de rebeliões indígenas aimarás, interpelaram com muita
radicalidade a estrutura do Estado boliviano.
Terra e território
36
MAPA DE SANTA CRUZ
Detalhe
Terra e território
37
Terra e território
38
Terra e território
39
Ao encontrar uma pessoa pela primeira vez, Luiz Guerra raramente esboça reação. Quando
muito, vira seu rosto para o lado oposto, com vergonha ou desdém. Luiz tampouco fala muitas palavras,
mas “mama”, “papa” e “casa” estão no seu vocabulário de grunhidos típicos de crianças de dois anos de
idade. É filho único, sem muitos amigos. Costuma brincar com o loro bravo de estimação ou - quando
chove - com garrafas de plástico vazias em poças d’água.
Luiz mora com seus pais em Pueblos Unidos, uma comunidade formada por famílias do Mo-
1.O MST-B não é de uma afi- vimento Sem Terra – Bolívia (MST-B)1 que fica na província de Guarayos, norte do departamento de
liação ou de um braço inter-
nacional do Movimento dos
Santa Cruz. As famílias reivindicam 16 mil hectares nesta área, que serão terras coletivizadas, propriedade
Trabalhadores Rurais Sem da pessoa jurídica “Comunidade Agroecológica de Pueblos Unidos”. A posse das terras ainda não está
Terra (MST) brasileiro, apesar finalizada, mas a comunidade já conta com uma resolução de assentamento no local, o que os permite
de muitas referências políticas
produzir e viver nas terras legalmente.
e organizativas no movimento
sem-terra brasileiro. Há muitas crianças como Luiz na comunidade, entre um e oito anos. Quando as crianças
atingem uma idade maior, a ida das famílias para povoados maiores é quase inevitável. Com quase dois
de fundação, Pueblos Unidos ainda não conta com uma escola própria. É por questões como educação e
saúde – há um posto de saúde, mas falta médico e medicamentos – que muitas das 350 famílias que estão
legalmente morando na comunidade não passam a maioria do tempo nela. Boa parte dos moradores,
contudo, está esperançosa com a melhoria de infra-estrutura da comunidade e estão aguardando ajudas
governamentais. Com isso, poderão se estabelecer de forma mais constante em Pueblos Unidos.
A área de urbanização fica perto da entrada da comunidade e é nela que se concentram as
habitações das famílias, uma grande construção retangular que serve de sede das atividades comunais
(assembléias, reuniões, aulas etc.), três vendas, o posto de saúde e um poço – que fica no meio de um
terreno aberto, ao redor do qual se dispõem os principais prédios. Todas as construções são cabanas,
Terra e território
com tetos de folhas de motacu, uma palmeira abundante nesta região, e paredes de madeira ou chuchiu, 40
uma espécie de bambu. Os carros não entram na área de urbanização, pois ela é separada da estrada que
leva a Pueblos Unidos pelo Rio Grande. O acesso à comunidade é, portanto, sempre feito de barco ou
canoa. O que parece encantador aos olhos dos visitantes, um símbolo de reclusão ou mesmo rebeldia
da comunidade é, na verdade, um grande problema. Toda a produção de Pueblos Unidos tem que ser
transportada em barcos precários, o que dificulta o cotidiano e a auto-suficiência dos moradores.
As crianças que ficam na comunidade inventam o que fazer. As maiores ajudam seus pais nas
plantações. As outras gostam de imitar as atividades dos adultos, brincam de canoa, acompanham as
assembléias do lado de fora da sede. Têm muita vontade de ir à escola e, quando se identificam, dizem
seus nomes, sua idade, e a classe equivalente que estariam se estivessem na escola. Quando as famílias
chegaram a essas terras, em setembro de 2006, foi contratado um professor para alfabetizar as crianças.
Mas por problemas econômicos, o professor teve que ser dispensado.
Neste momento, a comunidade conta somente com a ajuda voluntária da professora Fabiola
Rojas, que visita a comunidade todos os finais de semana para alfabetizar os adultos da comunidade. São
ao todo 90 alunos, que acompanham duas turmas, uma que vai da primeira a terceira série e outra que
vai da quarta a sexta série. A professora ensina castelhano e matemática e tem como suporte de ensino
as cartilhas Yo sí puedo2, que fazem parte de um programa recém criado pelo governo Evo Morales de 2.Em tradução literal “Eu pos-
so sim”.
erradicação do analfabetismo, inspirado por um programa equivalente de Hugo Chávez na Venezuela.
Não há apoio para os outros materiais escolares, como cadernos, canetas, giz de lousa, etc. As aulas, apesar
de serem voltadas para os adultos, contam com extensa participação das crianças. Algumas arrumam
cadernos e lápis e passam a fazer seus próprios rabiscos, outras simplesmente correm de um lado para o
outro, como numa festividade.
Luiz, chamado por Caluchito pelas outras crianças de Pueblos Unidos em referência a seu pai, é
muito novo e ainda não se encanta muito pelas atividades na sede. Passa a maior parte do tempo do lado
oposto da urbanização, na venda de seus pais. Trata-se da maior venda da comunidade, a única que conta
com um gerador de eletricidade e, portanto, com um refrigerador que pode oferecer bebidas geladas nos
dias quentes que predominam nesta região. Quem cuida da venda é a sua mãe, Benita, que mantém as
contas em um caderno pequeno. Seu pai não sabe ler muito bem e se volta mais para o trabalho no cam-
po, onde têm pequenas plantações de arroz, batata, tomate e verduras.
Juan Carlos Guerra, o Calucho, tem 29 anos e faz parte do movimento sem-terra desde 2001,
Terra e território
41 um ano após a criação do movimento na Bolívia. Lembra com orgulho o passado de lutas que levou a
conquista das terras de Pueblos Unidos. Entre 2001 e 2006, estas famílias tiveram que ocupar e desocupar
3.Trata-se de uma parceria mais de quatro localidades, muitas vezes enfrentando conflitos violentos com os latifundiários da região
que o movimento sem-terra norte do departamento de Santa Cruz. “Entramos em La Luna, de La Luna nos tiraram; depois de San
tem com o Centro de Estudos Caetano nos tiraram; de Guadalupe nos tiraram, e paramos em Yuquises, onde ficamos por um ano”,
Jurídicos e Investigação Social,
organização sediada em Santa
conta Calucho. E Yuquises traz aos sem-terra de Pueblos Unidos muitas lembranças amargas.
Cruz de la Sierra, especializa-
da em questões agrárias. O assentamento em Yuquises
Segundo Javier Aramayo, o assessor jurídico dos sem-terra e que acompanha todas as batalhas
4.Terras fiscais são terras de
legais empreendidas pelo movimento3, a descoberta na fazenda Los Yuquises se deu sem querer. Na época,
propriedade do Estado boli- o movimento havia feito uma brigada para localizar terras fiscais4 que poderiam ser revertidas para a
viano que ainda não tiveram reforma agrária. No dia 8 de agosto de 2004, quando esta brigada cruzava Los Yuquises, propriedade do
nenhuma destinação. fazendeiro Rafael Paz, encontrou homens que carregavam armamento moderno. Os sem-terra estavam em
maior número e os detiveram. Logo descobriu na fazenda todo tipo de armamento, metralhadoras, fuzis,
5.Região que fica no departa- granadas tipo limão, aparatos de radiocomunicação. “Era obviamente um arsenal que havia entrado na
mento de Tarija. Bolívia via contrabando, pela fronteira com o Paraguai”, diz o assessor.
Aramayo tem a convicção de que este material era utilizado para fomentar os “comitês de
6.O massacre de Pananti ocor- autodefesa da terra”, que seriam um braço armado dos latifundiários da região. Ele explica que houve
reu em novembro de 2001 uma organização das famílias detentoras de terras para evitar o avanço dos assentamentos sem-terra e
no departamento de Tarija, dos questionamentos às suas propriedades. “O movimento sem-terra se inicia com força na região do
quando um grupo de para-
militares armados atacou um
Grande Chaco5, onde passa a ter um caráter mais orgânico no final dos anos 1990. Logo em 2000 começa
acampamento do movimento, a tomar mais corpo e a se relacionar com outras organizações sociais, e neste ano há uma proliferação
ferindo e matando campone- impressionante de assentamentos. Foram afetadas as propriedades de muitos deputados, senadores,
ses sem-terra. autoridades, militares, etc. E em 2001, ocorre o massacre de Pananti6, e ele foi uma espécie de contestação
violenta dos grupos de poder para a eliminação seletiva dos lideres do MST. E o efeito disso foi que, em
vez do movimento ser extinto no Grande Chaco, ele começa em Santa Cruz a partir de 2002. E neste
7.Do departamento de Santa momento são afetadas grandes famílias do norte crucenho7, que é uma espécie de pólo de desenvolvimento
Cruz.
agrícola e industrial, onde o Estado concentrou grandes capitais entre os anos 1960 e 1970”. Portanto, a
partir da experiência na região do Grande Chaco, as famílias detentoras de terras passaram a se preparar
para o conflito com os camponeses sem-terra.
Terra e território
Aramayo ainda explica uma particularidade da expansão do movimento no norte crucenho. Por 42
ser uma região que concentrou muitos investimentos estatais para a produção agrícola, houve também
nela um estímulo à migração de famílias do oriente ao ocidente, para se tornarem mão-de-obra destas
fazendas. “Estas famílias vão vivendo ao redor destas fazendas. Então quem compõe majoritariamente o
movimento sem-terra na região? São os filhos da antiga fracassada reforma agrária. São os jovens nascidos
e criados em Santa Cruz, filhos daqueles que haviam sido trazidos como força de trabalho para fortalecer
as antigas fazendas tradicionais da região, para sustentar esta burguesia agrícola”.
A descoberta de armas em Yuquises faz parte deste contexto. Logo após a descoberta, foram
feitas denúncias ao Ministério Público e a imprensa foi chamada. O movimento decidiu que permaneceria
assentado na fazenda até que o processo terminasse e tudo fosse investigado. Além da denúncia do
armamento ilegal, era denunciada a falta de atividade produtiva do local, motivo suficiente para a reversão
da propriedade da terra.
“Nós dizíamos que o movimento havia se tornado um defensor da democracia”, diz Aramayo.
Mas isso, obviamente, não foi reconhecido na opinião pública. A imprensa, conta ele, deturpou tudo:
“diziam que havia um campo de treinamento guerrilheiro, com mais de 60 trabalhadores e que estavam
atrapalhando a atividade produtiva de Santa Cruz e que este campo estava sendo assessorado por
colombianos, guatemalenses, peruanos, e que tinham campos de tiros e torres de comunicação à satélite.
Fizeram uma montagem para desprestigiar o movimento”.
Após terem encontrado as armas, o clima era muito tenso. Aramayo conta uma situação que
ilustra isso. A região era isolada, e para que as autoridades a alcançassem eram necessárias várias horas
de viagem. Durante a noite, chegaram representantes de vários ministérios, de organizações de direitos
humanos, da defensoria pública, e eles se prepararam para iniciar uma reunião. Estavam todos com
medo, pois era uma situação delicada e passível de um conflito armado a qualquer momento. O que eles
não sabiam era que havia sido organizado um sistema de sentinelas, no qual cada guarda comunicava a
sua posição através de foguetes. Quando soou a troca de estalidos, as autoridades se desesperaram e se
jogaram ao chão, com todos os seus guarda-costas por cima, para divertimento geral dos que ali estavam.
A investigação nos órgãos de governo correu e inclusive o serviço de inteligência do exército
boliviano chegou a confirmar, através do Ministro de Governo da época, Saul Lara, uma corrida a
armamento na região de Santa Cruz. Mas, ao final, todo processo foi arquivado, absolutamente ninguém
foi indiciado pela existência daquele armamento.
Terra e território
43 E aí, os papéis se inverteram. Os militantes do movimento passaram a ser acusados de terroristas
e a pressão dos latifundiários crescia a cada dia para que eles fossem despejados da fazenda. “O governo
8.Los Tiempos, 13/05/2005. é cúmplice e inimigo dos produtores e da institucionalidade crucenha, por isso põe todo o poder do
Agropecuarios acusan al gobi-
erno. Disponível em: http:// Estado para mostrar os do bando sem-terra como vítimas e não como o que realmente são: delinqüentes
www.lostiempos.com/noti- organizados para a subversão”, disse na ocasião José Céspedes, presidente da CAO (Câmara Agroindustrial
cias/13-05-05/13_05_05_ do Oriente)8. No dia 15 de setembro de 2004, a CAO publicou uma carta aberta no jornal La Razón, que
nac4.php. Tradução da autora.
ameaçava textualmente que, se o governo não tomasse iniciativas para impedir as ocupações de terras, os
agroempresários iriam “defender seus direitos com seus próprios meios”9. Ou seja, não somente foram
identificadas e denunciadas iniciativas paramilitares, mas também os promotores desta iniciativa, via
9.QUIROGA, Omar; NÚÑEZ, CAO, explicitaram que elas poderiam acontecer.
Eulogio. Estudio de impacto
en políticas de tierra y terri-
No dia 8 de maio de 2008, a ameaça de “justiça com seus próprios meios” dos latifundiários se
torio: estudio de caso de “Los concretizou. Rafael Paz, dono de Yuquises, contratou para esta ocasião mais de uma centena de homens
Yuquises”, p. 16. CIPCA Re- para despejar à força os camponeses do MST que estavam em sua propriedade. Calucho descreve a ação
gional Santa Cruz. Santa Cruz dos paramilitares assim: “Primeiro queimaram nosso arroz e quando os companheiros foram tentar salvar
de la Sierra, 2005. Tradução
da autora. seus produtos, prenderam nove deles. Eles foram torturados, amarrados, vendaram seus olhos. Era uma
gente drogada, que tiraram da prisão e contrataram para brigar com a gente”. Segundo ele, os militantes
do MST seqüestrados foram resgatados pelos sem-terra do próprio assentamento, que se organizaram para
enfrentar os contratados.
10.Bolpress.com, 21/06/2005. Contudo, grande parte destes contratados foi convocada para trabalhar como peões nos cam-
Enviados a los Yuquises con pos de cultivo, não para formarem uma guarda paramilitar de Rafael Paz e despejar os sem-terra. José Luis
engaños para enfrentar a
Alvarada contou à imprensa que eles foram contratados por Vicente Socompi, funcionário de Rafael Paz,
los Sin Tierra advierten con
tomar la casa de Rafael Paz. que lhes disse que iam “roçar e fazer a colheita de arroz, e ficou de nos pagar 50 pesos bolivianos por
Disponível em: http://www. dia. Roçamos só um dia e Socompi não nos avisou nada, não nos disse que havia gente ali, ele nos levou
bolpress.com/art.php?Cod=2 direto ao matadouro. Inclusive quando houve enfrentamento com os sem-terra, Socompi não estava com
005001365&PHPSESSID=2a
320f85dc64affeaa85342b265e
a gente, ficou no acampamento mais atrás”10.
420d. Tradução da autora. De qualquer forma, 67 destes homens contratados por Paz ficaram sob a guarda do MST de-
pois do enfrentamento, para serem entregues mais uma vez às autoridades, pois se esperava que alguma
iniciativa fosse tomada. Este fato, ao invés de evidenciar a iniciativa aberta paramilitar, levou a imprensa
a acusar os sem-terra de seqüestradores. As pessoas que foram mantidas por somente alguns dias pelos
do movimento sem-terra eram sempre identificadas como “reféns”, sem levar em conta que o que pedia
Terra e território
44
Terra e território
45 o MST era que estas pessoas fossem julgadas pela justiça e não eram utilizadas como moeda de troca para
nenhuma negociação.
11.Los Tiempos, 13/05/2005, O setor agroindustrial obviamente bradava contra os “delitos flagrantes contra a vida e a
op. cit. Tradução da autora. liberdade”11 destes “reféns”, omitindo o fato de que eles foram levados à área para despejarem os sem
terra e nem sequer sobre esta condição foram avisados pelos seus contratantes. Ironicamente, os “seqües-
12.Bolpress.com, 21/06/2005, trados” pelo MST quando chegaram a Santa Cruz após a sua tão reivindicada libertação foram aos meios
op. cit. de comunicação não para reclamar dos abusos sofridos nas mãos dos sem-terra, mas sim para pedir o
pagamento dos seus serviços prestados12. “Com uma mentira muito grande nos levaram e graças à gente
eles já são donos destas terras”, comentaram eles para a Bolpress, uma publicação on-line alternativa, e
13.Bolpress.com, 21/06/2005, concluíram “eles nos fizeram brigar entre pobres”13.
idem. Tradução da autora.
No dia seguinte ao enfrentamento dos sem-terra com os contratados de Paz, uma conferência de
imprensa foi organizada pelo MST na praça central de Santa Cruz de la Sierra. A intenção era denunciar os
ataques aos direitos humanos promovidos pelos latifundiários, que estavam ameaçando um assentamento
feito na defesa dos interesses públicos. No final da atividade, o dirigente do MST que estava organizando
14.Expressão utilizada para a conferência, Silvestre Saisari, foi atacado até ficar inconsciente pela Unión Juvenil Cruceñista (UJC). Na
identificar os indígenas prove- ocasião, ele disse a uma publicação local: “Arrastaram-me até me levarem outra vez à praça, em frente à
nientes do ocidente altiplâni- sala de imprensa, onde tiraram meus documentos, meu celular. Começaram a mexer nas minhas coisas e
co boliviano.
gritavam ‘vamos te matar, colla14 de merda. Agora sim você vai ver o que é sofrer’ (...) Não entendia porque
estavam gritando, porque estavam me batendo. Pedi-lhes para parar, mas continuaram me batendo na
boca, no nariz, no rosto e começaram a me chutar (...). Sentia-me muito mal, e perdi a consciência quando
15.Entrevista dada para a pu- me bateram atrás da orelha”15.
blicação El Nuevo Dia. Cit. in: E no dia 25 de maio, cerca de nove meses depois da descoberta das armas e da presença do
QUIROGA, Omar et al., p. movimento em Yuquises - e depois de muita pressão dos latifundiários - o despejo finalmente foi efetiva-
18. Tradução da autora.
do. Na época, o movimento já tinha nestas terras cerca de 3,5 mil hectares cultivados, em sua maioria de
arroz. Aramayo lembra que chegou em Yuquises cerca de 24 horas antes do despejo. Documentaram a
produção que era equivalente a 400 mil dólares, e de tudo isso nada foi recuperado. “Tocaram fogo, de
propósito. Houve companheiros detidos, perseguidos, ilegalmente. Consideraram proprietários de toda
esta produção os fazendeiros, nada deveria ser assim”, lembra ele.
Não houve maior resistência ao despejo, pois o MST contava com a promessa do governo de
dotação imediata de terras fiscais, assim que saíssem da fazenda Los Yuquises. O movimento deu um
Terra e território
prazo de cinco dias para que as terras fossem dotadas, mas, no dia 30 de maio, o governo voltou atrás no 46
que haviam combinado. “O Ministro de Desenvolvimento Sustentável, Erwin Aguilera, afirmou que o
Estado não negociará com o MST nenhuma dotação de terras em Santa Cruz. Contudo, esclareceu que
estudam a entrega de terras florestais aos camponeses que não participam em invasões”16. A partir desta 16.El Deber. Cit. in: QUIRO-
demonstração do governo, as famílias do MST que estavam em Yuquises começaram novamente as suas GA, Omar et al., p. 22.
Tradução da autora.
ações de pressão, indicando constantemente uma volta à fazenda improdutiva. Ao final, somente com a
entrada do governo Evo Morales a tão esperada dotação de terras foi feita. A propriedade de Rafael Paz
continuou intacta, mas os sem terra conseguiram a dotação de terras fiscais em uma área vizinha.
Calucho recorda bem de um diálogo que teve com algumas autoridades no momento do
despejo. “Eu falei pro capitão ‘eu não vou me render nunca, porque sou homem e preciso de terra para
trabalhar’, ‘Mas vocês são uns invasores! Por que fazem tanta desordem?’, me disse ele e eu respondi
‘Porque eu estou com a razão. Sou boliviano e tenho o direito de ter um pedaço de terra para trabalhar. E
é por isso que vou lutando. E vou entrar de novo aí. Vocês estão me tirando daí, mas vou entrar de novo”.
E por ironia do destino, foi este mesmo exército que acompanhou Calucho, sua família e mais centenas
de outras na chegada a Pueblos Unidos em 5 de setembro de 2006, quando finalmente foram legalizadas
terras para a conformação da sua tão esperada comunidade.
Terra e território
48
Pueblos Unidos tem este nome porque reúne famílias que vieram de diversas localidades do
departamento de Santa Cruz e, principalmente, dos departamentos que ficam no altiplano boliviano –
Chuquisaca, La Paz, Oruro e Cochabamba. A maioria dos seus moradores fala pelo menos dois idiomas,
no geral quíchua e castelhano. Como “filhos da fracassada reforma agrária”, os trabalhadores sem-terra
espelham uma das histórias mais duras do campo boliviano. Seus pais vieram do altiplano porque as
políticas agrárias na região não evitaram a criação de minifúndios incapazes muitas vezes de garantir a
soberania alimentar das famílias que neles viviam. Estes camponeses não tiveram escolha para além de
se tornarem empregados em terras alheias e esperavam contar com a sorte para talvez, algum dia, ter a
sua própria terra que trabalhar. Para conseguir isso, contudo, tiveram e têm até hoje que enfrentar uma
luta arraigada com as poderosas famílias que controlam as terras do oriente do país, como demonstrou a
experiência de Yuquises.
Seus inimigos conquistaram suas terras nos governos nacionalistas, muitas vezes de forma ile-
gal, por relações pessoais com os políticos no poder, geralmente sem nenhum amparo em uma política
de interesse público. Apesar da Reforma Agrária de 1953 proibir o latifúndio, ela permitia extensões de
terra de até 50 mil hectares, sendo que há comprovadamente dotações de terra maiores que esta área. A
dinâmica da distribuição de terras entre os anos 1950 até os 1990 funcionou muitas vezes conforme os 17.ROMERO, Carlos. “La vio-
lencia como componente del
interesses políticos de cada governo. Se no altiplano era interessante manter o ritmo da distribuição de proceso agrario boliviano”.
terras para garantir a imensa quantidade de milícias camponesas favoráveis ao regime, o que se reproduziu 19/08/2005. Artigo disponí-
também no Pacto Militar Camponês, o ocidente era utilizado como espaço de barganhas políticas com vel em: www.cejis.org
apadrinhados17. Ali se acomodou a elite com grandes extensões de terras, latifúndios escondidos sob a
denominação empresas agrícolas. O movimento sem-terra boliviano tem, portanto, enquanto ação pri-
mordial a “reivindicação de uma verdadeira reforma agrária no oriente boliviano”, como caracteriza o seu
Terra e território
49 dirigente Silvestre Saisari.
As características da malfadada reforma agrária no oriente boliviano poderiam ser ligadas a
várias situações. Uma delas seria a de que as relações entre os fazendeiros e os colonos nesta região
possuíam na década de 1950 um grau de exploração diferente do que no altiplano e nos vales, o que
não teria acarretado no oriente a explosão de tomadas de terras tal como houve no ocidente depois da
revolução nacional. Talvez por este mesmo motivo não havia organizações sindicais camponesas fortes
18.CEJIS / FSUTC-AT-SC. na região que pudessem liderar o processo. Além disso, por a região ter uma grande quantidade de
Situación y desafíos del movi- terras baldias, não havia uma necessidade direta de desapropriação das fazendas que já existiam. Por fim,
miento campesino cruceño, p.
157. Santa Cruz, 2006.
quando se viram ameaçados, os latifundiários rapidamente denominaram as suas propriedades enquanto
empresas agrícolas, protegidas pela lei, ou dividiam as suas terras entre parentes18.
O resultado da reforma agrária em Santa Cruz pode ser resumido em números bastante simples.
De 1953 a 1992, período em que o decreto de reforma agrária de 1953 esteve vigente, foram dotados cerca
de 23 milhões de hectares a aproximadamente 13 mil proprietários. Metade destes proprietários eram
19.Dados do arquivo do Ins-
tituto Nacional de Reforma grandes, com propriedades acima de 500 hectares – sendo quatro delas maior do que 50 mil hectares.
Agrária (INRA) boliviano. In: A outra metade eram pequenos ou médios, com propriedades entre um a 500 hectares. Os primeiros
CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. detiveram 97% das terras, os segundos, somente 3%19.
cit., p. 159.
Aramayo apresenta dados de ilegalidades: “Neste período se pode considerar de que de cada 10
processos agrários que se tramitaram, sete estão com vícios irregulares de nulidade absoluta ou relativa
(...). Além disso, a antiga reforma agrária distribuía a terra com a condição de que quem a recebia teria que
apresentar um plano de investimentos, no qual se comprometia a fazer atividades produtivas e se reportar
ao Estado. Não faziam nada, ninguém revisava o plano de investimentos”.
20.CEJIS / FSUTC-AT-SC, No início da década de noventa, a corrupção nos órgãos de reforma e gestão agrária chegou
op. cit., p. 162. a um nível insustentável. Na época, estourou o caso Bolibras, no qual o Ministro da Educação Hedim
Céspedes, do governo Paz Zamora, tramitou a seu favor uma dotação de 100 mil hectares de terras20. Estes
e outros casos obrigaram o governo a intervir nos órgãos responsáveis – na época o Conselho Nacional de
Reforma Agrária e o Instituto Nacional de Colonização – e a propor uma série de ações para reestruturar
as políticas agrárias no país.
Terra e território
60
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los. Então, estes produtores estão à mercê destas empresas, que lhes provêm sementes, fertilizantes e 64
pesticidas”, explica ela.
Vedia, contudo, reconhece que há muito que desenvolver na comunidade e confia que com
o tempo e com a consolidação financeira, poderão ter verbas para estruturaram melhor os seus projetos
ecológicos. “O manejo ecológico não pode existir se não há uma pesquisa, uma unidade que classifique
as espécies, as suas potencialidades, os riscos que se pode cometer. E por isso mesmo, planejamos ter um
fundo comum para contratar técnicos e pesquisadores. Assim, sozinhos, não podemos dar conta disso”.
Ele comenta que a intenção final é que Pueblos Unidos seja um centro de propagação de inovação
tecnológica, que ajude outras comunidades no manejo ecológico, na produção de sementes, no controle
de pragas etc. “Muitas vezes, sabemos que estamos gerando o mesmo problema, com as pragas, com o
desmonte talvez não ordenado. Mas agora é muito difícil pensar que vamos fazer um manejo sustentável
desde o princípio, pois neste momento brigamos com a fome que temos”.
Reunião comunal
Às sete horas da manhã, os sem-terra se reúnem na sede. É dia 8 de outubro de 2007, segunda
feira, e a reunião precisa acontecer cedo, antes que o trabalho no chaco comece. Chove, a sede está cercada
de poças d’água, que são evitadas pelos adultos e comemoradas pelas crianças. Garrafas de plástico viram
barcos de navegação.
Estão presentes cerca de setenta membros da comunidade, dentre eles menos de dez mulheres e
nenhuma pede a palavra. Elas se limitam a tirar as suas dúvidas com os companheiros ao lado e a vigiar as
crianças que brincam ao redor da sede. Chama a atenção também o fato de haver muitos homens jovens,
solteiros e sem família ainda. É o caso de Davi Moreno, 24 anos, secretário geral da comunidade. Ele faz a
chamada das diversas comunidades que vivem em Pueblos Unidos e coordena o restante da reunião.
Eles estão discutindo o contrato da venda de mil toneladas de soja, fruto da produção deste
final de ano, proposto pela empresa Fênix, a mesma que oferece assistência técnica à comunidade. O
contrato é lido em voz alta. Muitos pontos são destacados, todos estão desconfiados. Não concordam
com a proposta de que a colheita seja feita pela empresa, ou que esta estabeleça uma data para retirar a
sua produção. Além disso, exigem que haja fiscais da comunidade no momento do exame da qualidade
e de pesagem dos grãos. No ano anterior, procedimentos parecidos os prejudicaram na venda da sua
produção. Agora querem pesquisar bastante antes de assinar qualquer contrato, querem se informar
Terra e território
65 mais acerca do mercado de soja e acerca dos procedimentos jurídicos deste tipo de negociação. Segundo
a sua experiência de lutas, a letra escrita pomposamente, com linguagem técnica jurídica, sempre foi um
símbolo de injustiça.
Finalmente encarregam Nazário Quispe, membro do diretório executivo da comunidade,
responsável pelos contratos e de levar o documento a Santa Cruz para que seja revisto por um advogado e
ser renegociado com a empresa Fênix. Este processo é demorado, mas é a única forma de tentar garantir
que não haja atropelos e que todas as famílias fiquem informadas e possam opinar acerca dos rumos da
sua propriedade. Nazário também leva muita responsabilidade, pois sabe que um erro seu acarretará em
muito prejuízo à comunidade inteira, além de muitas críticas públicas de seus companheiros.
Terra e território
69
A oeste de Pueblos Unidos, na província de Ichilo, também no norte de Santa Cruz, se encontra
a Comunidade Agroecológica Tierra Prometida, uma outra comunidade do MST. Ali estão assentadas
cerca de cem famílias, com um movimento que iniciou nestas mesmas terras desde 1999. Diferente de
Pueblos Unidos, estas famílias ainda não contam com nenhuma resolução de assentamento. A ocupação
do assentamento é, portanto, débil, pois as famílias que lá estão não sabem se vão poder ficar nesta área
por muito tempo.
Este assentamento surgiu antes mesmo da existência organizada do movimento sem-terra.
Um grupo de camponeses da região se organizou para ocupar algumas terras da reserva Choré, onde
havia muitas madeireiras. Nesta época, eram assessorados pelos sindicatos locais. Encontraram terras
desocupadas que poderiam se assentar e logo foram formadas cinco comunidades. Com o tempo, estas
comunidades se consolidaram enquanto comunidades do MST boliviano, participando das suas lutas
nacionais.
A demora na dotação de títulos e nos trâmites do processo de legalização do assentamento
causou muitas fissuras nas comunidades. Algumas começaram a ter discordância com o projeto de dotação
coletiva e logo passaram a se denominar sindicatos. Das cinco comunidades que havia, somente duas se
mantiveram enquanto movimento sem-terra. As outras logo passaram a se chamar sindicatos agrários.
33.Camba é o termo para “Não sei porque se separaram. Talvez porque pensavam que como sindicatos iam conseguir
denominar a população das os títulos mais rápido. Mas é ao contrário. Nós temos um processo de trâmite bem avançado. Eles
terras baixas. tem um memorial pequeno, nós temos uma pasta grossa assim. Só falta para a gente conseguir a nossa
personalidade jurídica, o que a prefeitura nos está negando”, explica Celestino Pacheco. Ele é um dos
que iniciaram o processo de ocupação destas terras, há quase dez anos. Chegou em Santa Cruz quando
tinha vinte e poucos anos, e nestas terras se casou e teve quatro filhos, que são collas-camba33, segundo as
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70
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71 suas palavras. Migrante de Oruro, não queria seguir o destino dos mineiros da região, que morrem aos
40 anos devido aos rigores da profissão, ao exemplo de seu pai. “Santa Cruz é um paraíso”, diz ele, “aqui
faz calor, não falta comida”.
Como todos os integrantes da comunidade, Pacheco lamenta as suas divisões. No fundo,
acredita que estes sindicatos só se formaram pela ganância dos seus camponeses. “Isso de sindicato,
eu já conheço e não gosto. Porque tem companheiro que pega a sua terra para fazer negócio e eu não
quero terra para negócio, quero terra para trabalhar”. Na realidade, se trata de uma disputa entre ter a
propriedade coletiva ou ter a propriedade individual.
O trâmite da titulação é um problema que depois estas cinco comunidades (duas do MST e
três sindicais) vão ter que resolver. Ele foi iniciado antes da sua divisão, e apresentava as terras enquanto
um território único, de 12 mil hectares, para simplificar os caminhos burocráticos. Além disso, segundo
a legislação nacional, a prioridade de dotações de terra é dada a comunidades, não a indivíduos, nem
que sejam pequenos proprietários. Provavelmente, se saírem os papéis de titulação, estes serão coletivos,
em nome de uma organização que representa as cinco comunidades, queiram os camponeses habitantes
da área ou não.
Sebastiana Ortiz, que também está no assentamento desde a sua fundação, diz que a principal
vantagem do movimento sem terra em relação aos sindicatos é que em comunidade é possível ter mais
apoio para o desenvolvimento produtivo: “Os companheiros nos disseram que em comunidade pode vir
muita ajuda. Se vem, seria bom. Porque não há nada ainda. Porque às vezes queremos plantar madeirá-
veis, organizar pesca e não tem ajuda, não tem financiamento. Sozinhos, sempre falta dinheiro”.
Os assentados em Tierra Prometida também são unânimes em afirmar que o movimento sem-
terra tem mais preocupação com o meio ambiente que os sindicatos. “Nós temos uma outra idéia de
trabalhar a terra, de fazer um trabalho conjunto. Não queremos matar muita floresta, queremos reflorestar
com árvores frutíferas, madeiráveis. Porque se a gente derruba as árvores, logo o vento passa e espalha o
fogo para todos os lados. E depois, a terra perde umidade, fica seca e não dá mais para plantar nada. (...)
Quando eu cheguei aqui, tudo era floresta. Plantava cebola, pimentão, tomate, cenoura, era uma beleza.
Agora, a terra está seca, é mais difícil”, diz Celestino.
Carlitos Vedia, que também faz parte do movimento sem-terra da região, classifica os sindicatos
como mais tranqüilos, não querem saber de nada. Em comparação, o MST participa de vários movimentos,
congressos e marchas. Ele mesmo foi nas duas últimas marchas nacionais convocadas e aprecia estar
Terra e território
sempre participando de tudo. 72
A grande maioria das famílias, a exemplo da de Pacheco e Sebastiana, não mora em Tierra
Prometida. Vivem nos povoados que ficam por perto, como Enconada. Os motivos são variados. O
primeiro deles é que em Tierra Prometida não tem um poço d’água profundo, falta estrutura para tudo.
Como não têm titulação das terras, não há quase nenhuma infraestrutura para viver. Além disso, eles não
têm muita segurança em produzir na comunidade e a parte comunitária das terras não é cultivada. Sabem
que, apesar dos anos que estão lá, sempre correm o risco de despejo.
As divisões causaram muita mágoa nos camponeses, que também relembram os áureos tempos
de unidade. “Agora somos só dois grupinhos, Tesouro e XV de Agosto. Antes não, antes era bonito, todos
juntos, as cinco comunidades”, diz Carlitos.
“Tem que continuar caminhando, nem que seja em cima de quatro patas”
Com esta frase Crescencio Torres concluiu a nossa conversa. A inspiração dela veio quando
falava de seu pai, um bravo lutador de Potosi, que nunca desistia. Crescencio é também um militante
antigo, esteve na organização dos que foram pela primeira vez ocupar as terras que hoje chamam de Tierra
Prometida. No momento, está muito desanimado. A titulação não chega, todos se dividiram e ele, além
de tudo isso, não pode trabalhar. Tem uma ferida na perna que não se cura e, portanto, não lhe permite
andar com firmeza. Não tem esposa nem filhos, vive em uma pequena cabana em Enconada, contando
sempre com a ajuda da sua irmã para se alimentar.
Ele foi vítima de um atropelamento durante a marcha de novembro de 2006 que pedia
a aprovação da Lei 1715, de Recondução da Reforma Agrária. De Tierra Prometida, participaram 60
pessoas na marcha, sendo que dez alcançaram a cidade de La Paz, completando quase trinta dias de
caminhada. A participação de Crescencio foi interrompida perto de Cochabamba, quando pela manhã
estavam levantando acampamento para continuar a marcha. Neste momento, um motorista atingiu
desgovernadamente várias pessoas participantes da marcha, matando duas e ferindo mais nove, dentre
elas Crescencio.
De lá, ele foi levado ao Hospital Viedma, em Cochabamba. Por causa da demora na liberação
de verbas do seguro de acidentes do motorista, uma semana se passou até que a necessária operação na sua
perna fosse feita. Depois, Crescencio foi transferido para a Clínica de Acidentados nesta mesma cidade,
onde iniciou a sua demorada recuperação. A perna continuava infeccionada, a ferida não cicatrizava,
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73 as dores se mantinham. Segundo o Dr. Andrade, médico desta clínica, a operação feita após o acidente
foi inadequada, com pinos mal postos e placas impróprias para curar seus ossos. Em junho de 2007,
34.A Bolívia não conta com
um sistema de saúde público uma das placas teve que ser retirada e, desde então, a ferida se cicatrizou, mas a fratura na perna não se
que garanta atendimento gra- restabeleceu. Para se recuperar, Crescencio terá que passar por outra cirurgia, mas agora já não possui
tuito à população, como o Sis- cobertura do seguro do motorista. A cirurgia custa 1500 dólares e ele ainda não tem idéia de como vai
tema Único de Saúde (SUS)
brasileiro.
arrecadar este dinheiro, já que nem o dinheiro das passagens até Cochabamba para fazer as consultas ele
tem34. Ironicamente, o motorista irresponsável, que até agora não respondeu juridicamente pelo caso, é
um médico e possui uma clínica privada em Monteiro35.
Crescencio foi acompanhado desde o princípio por Thomas Siron, um estudante francês que
35.Estas informações foram fazia o seu doutorado sobre o Movimento Sem Terra boliviano. “Foi um dos poucos que me ajudaram.
retiradas da carta de Thomas
Siron, que ajudou Crescencio Ele me acompanhava sempre no hospital, foi um filho de Deus”, diz Crescencio. Contudo, em setembro
no seu primeiro ano de conva- de 2007, Thomas teve que voltar para França para entregar a sua tese.
lescença. Crescencio não vê resultados no processo que está sendo levado contra o motorista, está
descrente de tudo. Não pode trabalhar, mal consegue andar. A cabana em que vive o deixa sujeito a
goteiras, mosquitos e furtos. Sua alimentação irregular, sem muito cálcio, também atrapalha bastante na
sua recuperação.
Quando recebe visitas, fala do seu acidente com desânimo, voz baixa. Mostra as radiografias,
identifica os pinos mal postos. Por último, prefere mostrar a carta escrita por Thomas, que exprime
em palavras claras os motivos para a sua revolta angustiada. Após fazer um extenso relato acerca do seu
tratamento médico, a carta termina assim:
“A causa de Crescencio, sua recuperação física e moral (já que o abandono não ajuda a recupe-
rar suas forças) não é somente uma causa monetária, mas também uma causa de justiça social. Como os
feridos de outubro negro em El Alto, ainda que não com balas, Crescencio foi vitimado enquanto lutava
por seu povo, por sua classe e pela sua pátria e para conseguir dias melhores para todos, em uma sociedade
sem mais dominação, onde todos e todas tenham sua terra e o seu direito a se reproduzir”.
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74
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diz Soruco. 80
Esta elite aposta então no discurso da autonomia regional, na construção do inimigo comum
altiplânico, aproveitando-se da dispersão dos movimentos sociais da região. “No passado, o discurso au-
tonomista recorria ao argumento do isolamento geográfico e da marginalização das decisões políticas es-
tatais, ou seja, à falta do Estado em um vasto território. Na etapa contemporânea, o argumento é inverso.
Ou seja, a invasão por parte dos migrantes collas promovida pelo Estado centralizador – ou seja, muito 41.SORUCO, Ximena (co-
ord.) et al., op. cit., p. 162.
Estado – e a apropriação dos indígenas das terras altas dos recursos naturais, considerados exclusivos dos Tradução da autora.
crucenhos”, diz Plata41.
Um dos exemplos que Plata utiliza para demonstrar este autonomismo moderno é uma citação
de Sérgio Antelo, membro da Nación Camba: “Sob o argumento de que ‘todos somos bolivianos’ e temos
direito a tudo que supostamente contém o país, foram socializadas ‘as terras sem dono’ que se encontram
no ‘Oriente selvagem’, (...) o que deu origem a invasões étnicas sobre territórios que não lhes correspon-
42.ANTELO, Sergio (negrito
dem (...) nem por história, nem por falsos direitos constitucionais”42. Antelo aparentemente se esquece de no original) apud SORUCO,
que os territórios que hoje correspondem ao departamento de Santa Cruz um dia também foram por sua Ximena (coord.) et al., op. cit.,
vez invadidos - não somente “etnicamente”, mas também culturalmente, militarmente e economicamente p. 143. Tradução da autora.
- pelos seus tão enaltecidos antepassados hispânicos.
Contudo, a maior contradição que há no discurso desta elite é que ela foi justamente o único
setor da sociedade crucenha beneficiado pelo Estado “andino-cêntrico”. Após o auge da borracha no
século XIX, esta elite entrou em decadência e só conseguiu se reestruturar a partir da Revolução Nacional
de 1952, quando a política agrária do MNR promovia a agroindústria no oriente boliviano. Desta forma,
houve inúmeros créditos e ajudas estatais, como o deslocamento de mão-de-obra do ocidente, para con-
formar uma nova burguesia agrária baseada nas recém criadas empresas agrícolas. De fato, foi a ditadura
de Banzer, que durou de 1971 a 1978, que deu extensões imensas de terras a esta elite, consolidando o
modelo do latifúndio desta região. Os cultivos cíclicos desta região, como a cana e a soja, foram os únicos
de fato a obter subsídio do Estado boliviano.
Contudo, se muito do apoio material vinha de dentro do território nacional, esta elite sempre 43.Brasil de Fato, op. cit.
teve as suas perspectivas voltadas para fora. A começar pelo modelo de produção da região, exportador
desde a época da borracha. “Essa burguesia nacional, que foi criada pelo Estado nacional, tem uma visão
local, regional. Está olhando o exterior, mas localmente. Não olha para o ocidente. É uma visão anti-
nacional”, diz Plata43. Por isso, não está minimamente preocupada com soberania alimentar da população
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81 boliviana e em criar políticas agrárias que respondam às demandas internas do país.
Mas além das perspectivas econômicas estarem voltadas para fora e para a exportação, as pers-
pectivas culturais desta elite também se voltam para fora. È um regionalismo que resgata o passado his-
pânico e aponta para referentes culturais dominantes norte-americanos para se definir. Ignora completa-
mente a existência de uma cultura boliviana geral.
Há poucos anos, tornou-se um escândalo nacional a declaração de uma Miss Bolívia: “Infeliz-
mente as pessoas que não conhecem muito sobre a Bolívia e pensam que somos todos índios. É o lado
oeste do país, La Paz, a imagem que reflete isso, estas pessoas de baixa estatura e índias. Eu sou do outro
lado do país, do lado leste, que não é frio, é quente. Nós somos altos, somos pessoas brancas e sabemos
inglês. Este conceito errôneo de que a Bolívia é somente um país andino está equivocado. A Bolívia tem
muito a oferecer e este é o meu trabalho como embaixadora do meu país, fazer com que as pessoas saibam
44.Citação retirada do filme
boliviano Quien mató la lla- sobre a diversidade que temos”44. Yayita Toledo, que representava a Bolívia no concurso de Miss Universo
mita blanca?. Tradução da em 2004, falava sobre os preconceitos que os estrangeiros têm sobre o seu país.
autora.
A aparente regionalização da política
Contudo, no panorama político atual boliviano, as elites crucenhas ganham um papel de desta-
que nacional. A oposição mais forte ao governo de Evo Morales não é encabeçada por partidos tradicio-
nais, mas sim pelo Comitê Cívico de Santa Cruz. Diversos intelectuais apontam como causa deste proces-
so a grande crise do sistema político boliviano, que estourou no início deste século com as mobilizações de
2000 e ainda persiste. Reflexo desta crise é a baixíssima votação que os partidos tradicionais tiveram na úl-
tima eleição nacional frente à esmagadora vitória do MAS-IPSP, de 53,7%. Em 2005, o MNR, partido do
anterior governo, obteve somente 6,5% dos votos; a UN (Unidade Nacional), liderada pelo ex-empresário
Samuel Doria Medina, que pertenceu ao MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) anteriormente,
obteve 7,8%; e o Podemos (Poder Democrático Social), agrupação liderada por Jorge Quiroga, ex-ADN
(Ação Democrática Nacionalista, partido de Hugo Banzer) obteve 28,6%.
José Blanes aponta como uma das causas deste processo a Lei de Participação Popular. A lei
regionaliza a política, incluindo no processo institucional as lideranças locais, que antes somente estavam
envolvidas com as organizações sociais. “Então, uma estrutura de participação na gestão do Estado é
aberta, e ela absorve uma quantidade muito grande das lideranças que antes eram somente lideranças
sociais, e agora são polivalentes. Ao mesmo tempo em que é um líder social, pode ser um líder estatal.
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Os partidos começam a se regionalizar”. Mas os partidos tradicionais já não conseguem lidar com esta 82
nova situação política e são amplamente rechaçados nas eleições a partir de 2000 como símbolos da velha
política. Blanes conclui que o resultado deste processo é uma mistura explosiva de Estado com sociedade
civil “Eu diria que por um lado a sociedade perde identidade como sociedade civil, mas ganha com muita
força em sua relação com o Estado. Há mais mobilização que nunca, há mais representação que nunca,
mas ao mesmo tempo há mais clientelismo que nunca”.
Na crise deste Estado-nação, que foi amplamente questionado pela esquerda e pela direita, o
conflito entre estes dois pólos, de classe, aparece como um conflito de regiões. Intelectuais como Eduardo
Paz, professor de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés, não descartam a possibilidade de estar
em marcha uma tentativa de “balcanização” da Bolívia. “Por isso é que a experiência iugoslava tem que ser
45.O atual embaixador norte-
tomada em conta. No coração da Europa havia uma nação muito forte desde a Segunda Guerra Mundial, americano da Bolívia, Philip
e que em uma guerra nos anos 1990 se converteu em diversas nações. E este perigo existe na Bolívia. E Goldberg, foi assessor político
pode ser anedótico, mas nos perguntamos: por que o embaixador dos EUA na Bolívia45 é o mesmo que na Bósnia e acompanhou de
foi o representante dos EUA na época do fracionamento da Iugoslávia?”. Tal fragmentação só pode ser perto o processo da guerra ci-
vil iugoslava e o posterior jul-
pensada no contexto do governo de Evo Morales, com a possibilidade de que políticas radicalizadas sejam gamento do presidente sérvio
implementadas com um apoio majoritário da população, fechando os limites da democracia representati- Slobodan Milosevic.
va para os setores de poder econômico boliviano.
Uma outra possibilidade, de caráter não-fragmentador do território nacional, seria um golpe
de Estado. De fato, Manfred Reyes Villa, governador de Cochabamba, ex-militar e aluno da Escola das
Américas no Panamá, chegou a pedir às forças armadas que interviessem no governo para garantir um
processo mais democrático de Assembléia Constituinte em novembro de 2007. “Eu creio que tentaram
golpes e vão continuar tentando. Nunca deixaram de procurar militares que estivessem dispostos a isso”,
diz Paz. Mas, até o momento, todas as declarações das Forças Armadas Bolivianas deram pleno respaldo
ao governo de Evo e à integração nacional.
De fato, o desgaste da direita tradicional transforma as organizações sociais regionais, como os
comitês cívicos, em seus melhores representantes. O Comitê Cívico de Santa Cruz, por exemplo, possui
atores no seu interior que não são exclusivamente da região, como a CAO e a Câmara de Hidrocarbo-
netos de Bolívia. Pablo Regalsky vê uma imensa influência brasileira na presença destes atores: “A CAO
tem enquanto núcleo fundamental os sojeiros brasileiros, colombianos e peruanos, que controlam as
melhores terras produtivas do oriente e a Câmara de Hidrocarbonetos é controlada pela Petrobrás. Toda
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83 esta ofensiva política da direita, que as pessoas dizem ‘são os crucenhos, são os cambas’, na verdade está
plenamente respaldada pelo projeto expansionista, imperial brasileiro”.
Sobre o arco de alianças que a direita articula no país, Paz identifica cinco principais instrumen-
tos, incluindo também as empresas petroleiras: “Quais são os atributos da oposição? Tem cinco instru-
mentos. Por ter maioria no senado, podem dali boicotar qualquer impulso parlamentar para mudança.
Segundo, os meios de comunicação, que são convertidos em um grande instrumento articulador de toda
a oposição a Evo Morales, com todos os canais de televisão e os jornais (...). Terceiro, o Poder Judiciário,
que era uma herança dos governos anteriores (...). Quarto, as empresas petroleiras, que se converteram
nos tesoureiros dos comitês cívicos, para fomentar mobilizações populares e grandes campanhas publicitá-
rias contra o governo. E quinto, a Embaixada dos EUA, que de maneira muito sutil e hábil foi articulando
aonde tinha influência todas estas forças para debilitar o governo”.
Houve também erros do governo Evo que permitiram este grande fortalecimento das regiões
“opositoras”. Como vimos no caso de Yuquises, no início de 2005 o conflito agrário no norte de
Santa Cruz era fortíssimo. Neste embate entre camponeses e latifundiários, estes últimos começaram a
questionar fortemente a figura do governador, indicado pelo governo central, que era considerado pouco
agressivo por eles. Ou seja, o governo Mesa hesitou para adotar uma postura violenta contra os sem-terra.
Neste momento, a reivindicação de que os governadores fossem eleitos aumentou muito e junto com as
eleições presidenciais chamadas em 2005 (dois anos antes do previsto), foram chamadas também eleições
diretas para os governadores.
46.A atual Constituição Polí-
tica do Estado boliviana prevê
Estas eleições não eram previstas constitucionalmente46 na Bolívia e, para que estes governadores
que os governadores sejam pudessem ocupar seus cargos, um acordo foi feito com o recém eleito presidente Evo Morales, que os
nomeados pelo Presidente da nomeia. “Eu creio que neste momento deveria estar claro de que eram empregados do Poder Executivo,
República e dependem admi- que não tinham poder autônomo próprio. O problema é que estando Evo Morales respaldado pela lei, lhes
nistrativamente do Ministério
da Presidência. deram muitas possibilidades de ter poder desde de janeiro de 2006, através de uma administração cada
vez mais independente, de se converterem em administradores de recursos importantes... E o governo, ao
invés de controlar esta administração, acabou permitindo que ela se ampliasse”, diz Paz.
A conformação dos governos departamentais opositores se deu logo em 2006, no primeiro ano
do governo de Evo. Sob a mesma pressão que levou às eleições diretas para governadores, foi convocado
um referendo para determinar se a Bolívia seria um país centralizado ou com autonomias departamentais.
Nacionalmente, a autonomia departamental perdeu. Mas em quatro departamentos, Pando, Beni, Santa
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Cruz e Tarija, os que conformam as terras baixas bolivianas ao leste e ao norte do altiplano, o “sim”
ganhou. Desde então, suas autoridades locais se prenderam a esta demanda comprovada por autonomia
departamental, e a partir desta demanda passaram a fazer oposição ao governo. Estes quatro departamentos
são chamados de “meia-lua”.
O maior problema da autonomia departamental que é aplicada hoje, não é a autonomia em si,
mas o fato dela não ser regulamentada. Por ser uma medida inexistente no arcabouço legal boliviano, não
há nada que regule a gestão dos governos departamentais e que os ligue à gestão nacional. Portanto, estes
departamentos concretizam ações que podem ser consideradas desobediências civis, como no recente
caso dos Estatutos Autonômicos. É uma verdadeira guerra de versões na disputa de quem tem mais
legitimidade para efetivar políticas estatais, o governo central ou os departamentos, que se apresentam
factualmente como estados separados.
Paz ainda cita um outro fator que fortaleceu estes governos departamentais opositores: o au-
mento da arrecadação graças à política de nacionalização dos hidrocarbonetos, pois os governos depar-
tamentais ganham uma porcentagem do Imposto Direto dos Hidrocarbonetos (IDH). “Veio a naciona-
lização dos hidrocarbonetos e grande parte da renda petroleira é destinada a estes governos. Então, não
somente eles ganham autonomia de ação, mas ganham recursos econômicos. E o que fazem os prefeitos?
Deixam de prestar contas ao Estado, adquirem cada vez mais independência e usam estes recursos para se
fortalecer contra o governo central”, explica ele. Estas verbas são utilizadas para organizar manifestações
sociais pró-autonomia ou para fomentar campanhas publicitárias contrárias ao governo.
O ano de 2007 foi inteiramente marcado pelas disputas acerca da Assembléia Constituinte.
Propagada como um espaço de consenso nacional tanto pelo governo quanto pela oposição, a Consti-
tuinte não se concretiza como tal, pelas profundas divergências entre os dois grupos. Ao perceber que o
consenso não seria viável e que o MAS era a força majoritária do processo, a oposição se retira e se nega a
estar presente nas sessões que determinam o texto final. A partir deste momento, a sua tática passa a ser
deslegitimar a Constituinte e incentivar a criação dos estatutos autonômicos dos departamentos da meia-
lua, apresentados como continuação da vontade popular expressada em 2006. Esta situação culmina no
dia 15 de dezembro de 2007, quando, ao mesmo tempo em que Evo Morales apresentava à nação o texto
final da nova Constituição Política do Estado (CPE) no Palácio Quemado em La Paz, se apresentava em
Santa Cruz o texto final do Estatuto Autonômico da região, redigido por ilustres locais que nem sequer
Terra e território foram eleitos para tal atividade.
O ano de 2008 começa então com duas agendas. A agenda do governo central, que tem que fa- 86
zer passar por referendo a sua CPE, acompanhada do referendo de limitação da extensão da propriedade
agrária; e a agenda da meia-lua, que quer aprovar os seus Estatutos Autonômicos. O departamento de San-
ta Cruz, que possui a maior população dos quatro, foi vanguarda de todo este processo e anunciou o seu
referendo autonômico para o dia 4 de maio, apesar da Corte Nacional Eleitoral ter declarado o processo
nulo. Enquanto isso, o governo central ainda enfrenta problemas para aprovar a data dos seus referendos,
já que importantes núcleos de poder como o senado são hegemonizados pela oposição.
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MAPA DE COCHABAMBA 88
Detalhe
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CHAPARE
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A região 94
O lugar denominado Chapare ou Trópico de Cochabamba na verdade é composto por três 3.KOMADINA, Jorge (co-
províncias do departamento de Cochabamba: Chapare, Tiraque e Carrasco. É uma região onde predomina ord.); GEFFROY, Celine. El
um clima tropical, muito úmido, com extensões de terra planas, mas que vão se acidentando a oeste, na poder del movimiento políti-
província de Chapare, à medida que se aproximam da província mais altiplânica de Ayopaya. co. Estrategia, tramas organi-
zativas e identidad del MAS
Ali, vivem atualmente no mínimo 40 mil famílias de pequenos produtores agrícolas3, que se en Cochabamba (1999-2005),
organizam em sindicatos agrários, como o de Santa Helena. Há hoje 1087 sindicatos na região, agrupados p. 82. CESU, DICYT-UMSS,
em 109 centrais sindicais4. Por fim, estas se organizam dentro de seis federações camponesas: Federação Fundación PIEB. La Paz,
2007.
do Especial do Trópico de Cochabamba, Federação Mamoré Bulo Bulo, Federação Carrasco Tropical,
Federação Centrais Unidas, Federação Especial Yungas do Chapare e Federação Chimoré. Estas federações
se agrupam em uma Coordenadora, que é quem responde unificadamente ao movimento cocaleiro do 4.DIRECO (Dirección Na-
Chapare. cional de Reconversión Agrí-
cola). Coca en cifras – datos a
A formação destas organizações sociais está ligada ao histórico de colonização desta área. nivel nacional, p. 43-45. 2005.
Durante a colônia, esta era uma área muito pouco habitada, com presença considerável dos índios
yuracarés. Segundo o pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da
Universidad Mayor de San Simón, já no fim do século XVII houve uma guerra entre os yuracarés e os 5.Segundo entrevista feita
espanhóis pelo controle da produção da folha de coca. A coca era um mercado importante nesta época, com Fernando Salazar.
pois era muito consumida nas minas de Potosi, no norte argentino e chileno. Em termos gerais, a coca
ocupava o quarto ou quinto lugar nas exportações bolivianas5. Um estudo do final do século XVIII indica 6.SPEDDING, Alison. Kaw-
que a coca representava cerca de 30% do valor total dos produtos nacionais comercializados no mercado sashun coca. Economía cam-
de Potosi6. pesina cocalera en los Yungas
y el Chapare, p. 56. PIEB. La
Ainda no final do século XVII, apareceram na região missões franciscanas. Elas fundaram Paz, 2005.
povoados que existem até hoje, como San Antonio que depois foi rebatizado de Villa Tunari na década de
19407. Mas a colonização veio de forma mais contínua a partir do século XX, quando muitos camponeses 7.GARCIA Linera, Álvaro (co-
e fazendeiros começam a colonizar espontaneamente a região. ord.) et al., op. cit., p. 383.
Muitos pesquisadores8 apontam como marco o final da Guerra do Chaco, quando prisioneiros 8.SPEDDING, Alison, op.
paraguaios foram utilizados para construir uma via que ligava Villa Tunari a Cochabamba, fato que cit., p. 91. GARCIA Linera,
impulsionou a abertura da região. Fernando Salazar aponta uma outra conseqüência desta guerra para a Álvaro (coord.) et al., op. cit.,
p. 384.
região: muitos dos soldados convocados eram colonos em trabalho servil nas fazendas criollas bolivianas.
Ao voltarem da guerra, estes soldados não queriam mais trabalhar nestas fazendas e começam a procurar
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95 terras próprias no trópico cochabambino.
9.Colonos neste caso nova- A partir da Reforma Agrária de 1953, os governos começaram atuar de forma mais ativa na
mente não é o colono servil colonização da região como parte da sua política de modernização agrária. Em algumas regiões, como
das fazendas, mas sim o cam- em Chimoré em 1958, foram estabelecidas colônias dirigidas, prometendo aos colonos9 infraestrutura
ponês deslocado pelo Estado
para habitar e produzir em
produtiva, o que no final acabou se resumindo em mosquiteiros e algumas sementes. Muitas das colônias
uma área. que existem hoje, contudo, se formaram espontaneamente, com os camponeses se juntando e distribuindo
lotes entre si10. Em algumas regiões, como a de Ivirgarzama, os lotes variam entre 10 a 20 hectares. Nas
regiões mais perto de Villa Tunari, como o sindicato Santa Helena, os lotes raramente passam de 10
10.SPEDDING, Alison, op.
hectares.
cit., p. 92.
Com a pouca ajuda do governo para fomentar outros cultivos economicamente rentáveis, os
camponeses aos poucos se voltaram para o cultivo de coca, aproveitando que já havia um mercado deste
11.Idem, p. 92. produto tradicional em Villa Tunari11.
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Erradicação voluntária
Como estratégia para a eliminação da coca e a aplicação de outros cultivos, o Plano Trienal e a Lei
1008 estabeleciam uma política de erradicação compensada, na qual o produtor de coca oferecia uma
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certa quantidade de plantação de coca a ser eliminada em troca de dinheiro e insumos para iniciar outros 102
cultivos.
O sucesso desta política nos primeiros anos se deu principalmente porque muitos dos cocais já
estavam sendo abandonados. A enorme queda nos preços da coca de 1986 fez com que muitos camponeses,
em especial aqueles que não tinham terras e trabalhavam como partidários ou peões, voltassem para as
suas regiões de origem. Assim, com o passar dos anos, os proprietários tendiam a reduzir os seus cocais
com o que conseguiam cultivar somente com a mão-de-obra da sua própria família. Desta forma, a política
de erradicação compensada se encaixou perfeitamente para estes anos de baixa nos preços da coca, nos
quais os proprietários erradicavam os cocais que já não tinham mais condições de cultivar22.
Este abandono dos cocais não se deu imediatamente, sendo necessário alguns anos para que os 22.SPEDDING, Alison, op.
camponeses se convencessem que a queda no preço da coca não era um fenômeno temporário. Os dados cit., p. 95.
oficiais mostram que a erradicação compensada alcançou seu auge somente em 1990, época em que este
processo de abandono dos cocais culminava. Já quatro anos depois, em 1994, a erradicação compensada
chega a um mínimo, marcando o fim deste processo, pois os cocais não erradicados até este momento
eram o que uma família poderia cultivar23.
Até meados dos anos 1990, o preço do hectare erradicado chegou a um máximo de 2,5 mil dólares.
Alguns aproveitavam este alto valor para erradicar seus cocais e com o dinheiro investir na plantação de
23.Idem, p. 95
novos cocais, que novamente seriam erradicados. Muitos se dedicavam de fato aos cultivos alternativos,
mas as diversas dificuldades de mercado e de investimentos que estes representavam, os faziam voltar
ao cultivo de coca, que representava um ganho econômico mais estável. Os cocaleiros que tinham
muitos hectares de coca para oferecer à erradicação compensada juntaram uma pequena fortuna, mas
este dinheiro pouco foi aproveitado para o desenvolvimento da região. Alguns conseguiram estabelecer
pequenos negócios ou comprar carros para terem outras fontes de recursos. Contudo, a grande maioria,
segundo os próprios chaparenhos, desperdiçou seu dinheiro em bebedeiras ou com gastos excessivos e
desnecessários24.
Mas, é a história da Finsa a mais lembrada quando se pensa em todo o dinheiro que passou pela
região e não ficou. Trata-se de uma empresa financeira que apareceu no Chapare prometendo pagar
juros altíssimos às aplicações feitas na empresa. “O chaparenho fazia uma colheita e tudo o que ganhava 24.Ibidem, p. 324.
levavam a Finsa”, lembra Carlos Meneces. No final, a empresa faliu e com isso devorou centenas de
milhões de pesos bolivianos, recursos retirados da economia dos camponeses do trópico.
Terra e território
103 Os anos de erradicação compensada terminaram no segundo governo de Hugo Banzer Suárez, com a
25.Spedding aponta que, se- aplicação do seu Plano Dignidade em 1998. Segundo este plano, a erradicação voluntária teria que acabar
gundo este plano, durante o até o início do ano de 200225. Quem não erradicasse neste período toda a extensão de seus cocais, os teria
ano de 1998 a compensação erradicados forçosamente depois. Após esta medida, muitos dos enfrentamentos na região se acirraram,
voluntária iria diminuir gra-
dualmente de 2,5 mil dólares,
pois a presença militar era mais forte e agressiva na tarefa de identificar e erradicar cocais.
com valores que primeiro
eram de 1,5 mil dólares, de- Desenvolvimento alternativo
pois de 800 dólares e por fim
Paralelo à erradicação, o governo e os organismos internacionais propunham o desenvolvimento
chegariam a zero a partir de
outubro deste ano. Depois, alternativo de outros cultivos, numa política de substituição da folha da coca. Dos anos 1960 até meados
seria aplicada uma compensa- dos anos 1980, houve um incentivo vago à produção de cítricos26 e com o Plano Trienal (1986) e a Lei
ção comunitária, que também 1008 (1988) estas políticas ganharam mais corpo.
tinha compensação por hec-
tare erradicado, e o seu valor
A princípio elas eram combinadas à erradicação, com a distribuição de mudas e ferramentas para
começava com 800 dólares, novos cultivos como forma de pagamento aos cocais erradicados. Os principais produtos promovidos pelo
subia a 2 mil dólares no ano desenvolvimento alternativo eram então: palmito, banana e abacaxi. Aos poucos, diversas dificuldades,
de 1999 e baixava durante os
que não foram pensadas seriamente pelas instituições que promoveram estes cultivos, apareceram.
anos de 2000 e 2001 até 500
dólares. A partir de janeiro de José Encinas, de Ivirgarzama, está atualmente em uma comissão produtiva da Central Carrasco na
2002, não haveria mais com- qual coordena os produtores de palmito. Conta que começou a plantar palmito em 1994, com a ajuda das
pensação alguma e todos os co- políticas de desenvolvimento alternativo que lhe proveram de mudas e de formação técnica para o cultivo.
cais que ainda existissem iriam
ser erradicados. SPEDDING,
No início, cada unidade (interior do tronco da palmeira) era comprada pelos órgãos de desenvolvimento
Alison, op. cit., p. 47. alternativo por 1,50 peso boliviano. Depois, os preços foram baixando como conseqüência da política
de retirada paulatina de subvenções até chegaram ao valor de 0,30 peso boliviano no final da década de
1990. Com este valor, já não compensavam os altos custos da produção e grande parte dos produtores
26.Grupo de Trabajo “En de- desistiram do palmito.
fensa de la hoja de coca” apud
GARCIA Linera, Álvaro (co- A falta de mercados consumidores era o principal problema apresentando por estas políticas. Além
ord.) et al., op. cit., p. 387. do palmito, também o cultivo de abacaxi passou por esta situação. A produção repentina e massiva
desta fruta no Chapare logo fez o mercado saturar e seu preço caiu absurdamente, mais uma vez fazendo
com que os produtores voltassem a plantar coca. Um outro problema é que tanto o abacaxi quanto o
palmito não são produtos que possuem um grande mercado consumidor interno, sendo a sua produção
geralmente voltada para a exportação. Mas os mercados no exterior só são abertos quando uma série de
normas de cultivo, como certificações de utilização de agrotóxicos, de acondicionamento e de transporte
Terra e território
104
Terra e território
105 são cumpridas, imposições com custos muitas vezes inviáveis para o pequeno produtor.
A frustração com relação à falta de mercados sempre foi muito grande. Em 2002, por exemplo,
centenas de produtores “alternativos” de abacaxi, leite e palmito do Chapare foram até a cidade de
Cochabamba para deixar seus produtos na porta da agência estatal responsável pelo desenvolvimento
alternativo na região, em protesto pela falta de mercados prometidos pelo governo27.
Um outro problema é que a maioria destes cultivos, em especial a banana, requer uma quantidade de
terras bastante extensa para ser rentável. Ou seja, os camponeses mais pobres da região que possuíam lotes
27.SPEDDING, Alison, op. de cinco ou menos hectares já não tinham também a possibilidade de cultivar estes produtos.
cit., p. 41.
Além disso, todos estes cultivos requerem muito mais investimentos que a coca. José Encinas conta
que, para plantar um hectare de palmito se necessita ao redor de 1,5 mil dólares e poucos agricultores
têm condições começarem esta produção sozinhos, sem ajuda dos organismos de financiamento.
Normalmente, estes cultivos necessitam de mão-de-obra especializada, ou seja, já não se pode contar com
28.O Counter Narcotics Con- os membros da família.
solidation of Alternative De- Todas estas dificuldades fizeram com que os produtos alternativos tivessem poucos êxitos nestes anos
velopment Efforts (Concade)
de sua aplicação. Fernando Salazar aponta que, citando dados Concade28, somente 6,2% das famílias
foi um projeto elaborado pela
cooperação norte-americana camponesas que moram no Chapare hoje são exitosas com cultivos alternativos. Além disso, há cerca
através da AID-Usaid. Ele du- de 46,8% das famílias da região que desenvolvem produtos alternativos, mas o fazem paralelamente aos
rou de 1998 até 2005. cultivos da folha de coca e não são consideradas “exitosas”. Isso é explicado pelo simples fato de que é a
coca a que garante o sustento da família enquanto o cultivo alternativo ainda não é rentável ou em anos
de quedas bruscas de preços. “Foi a coca que gerou o desenvolvimento alternativo definitivo”, aponta
29.Os números apresentados
estão em: SALAZAR, Fernan- Salazar. O restante das famílias, 47%, vive com os recursos obtidos com os cultivos de coca e, além deles,
do. De la coca al poder. Políti- possuem cultivos tradicionais para consumo próprio. No geral estes são os camponeses mais pobres, com
cas públicas de sustitución de pequenos lotes e sem condições de fazer quaisquer investimentos para cultivar outras coisas29.
la economía de la coca y po-
breza en Bolivia, 1975-2004,
José Encinas crê, contudo, que se há empenho do Estado e dos organismos internacionais, é possível
p. 215. Consejo Latinoame- desenvolver seriamente outros cultivos no Chapare, pois há vontade política dos produtores de coca em
ricano de Ciencias Sociales. diminuir e racionalizar a sua produção. O principal problema que aponta é que nunca houve apoio real
Cochabamba, 2007. Trabalho
para isso. Do dinheiro que veio para apoiar o desenvolvimento alternativo durante os anos 1980 e 1990,
feito através do Programa
Clacso-Crop. a grande maioria ficou em salários de técnicos e obras super faturadas30: “Era um negócio dos anteriores
governos neoliberais feito em nome da gente. Mas o dinheiro era gasto por eles, farreavam. De todo o
dinheiro somente 10% ou 20% chegava ao agricultor”.
Terra e território
106
O desenvolvimento alternativo aplicado durante estes quase vinte anos de política de “Guerra con-
tra as drogas” é visto pelos camponeses locais como uma falácia. O dinheiro, que veio fácil através das
compensações paternalistas, foi gasto sem estimular o desenvolvimento local. Os produtos de substituição
30.Feliciano Mamani citou
eram cultivados somente se o camponês tivesse um lote grande suficiente e dinheiro para investir, além caso escolas que foram feitas
de serem voltados para o mercado externo, cheio de dificuldades para a inserção do pequeno produtor. pela Usaid a 120 mil dólares,
As obras criadas eram elefantes brancos, por onde escorria todo o dinheiro que teria que desenvolver a e que, ao serem copiadas pelas
prefeituras locais, foram feitas
região. Não houve tentativa real de desenvolvimento integral camponês, com preocupação com o seu a um terço do preço.
bem-estar e sustento da sua família.
No geral, o balanço é de que estas políticas foram e ainda são implementadas sem tomar em conta
a realidade do produtor camponês, as suas práticas cotidianas, a forma como organiza seu trabalho e a
sua vida, impondo um modelo de desenvolvimento não aplicável a grande maioria destes trabalhadores.
Fernando Salazar resume o desenvolvimento alternativo proposto durante este tempo em “compensações
e muita propaganda”.
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107
A RESISTÊNCIA COCALEIRA
Terra e território
113
Estratégia de domínio
A Guerra contra as Drogas, portanto, possui comprovada ineficácia no que diz respeito à sua
meta final, que é diminuir o consumo de drogas, além de aglutinar intensos sentimentos antiamericanos.
Estes fatos fazem muito palpável a tese de renomados intelectuais, como Noam Chomsky, que vêem nesta
política estadunidense uma estratégia de dominação política e econômica da região andina. Com ela,
vieram conjugados os ajustes estruturais da década de 1980, que implementaram o modelo neoliberal em
quase todo o mundo em desenvolvimento, as propostas de tratados de livre-comércio, as privatizações de
empresas nacionais, etc. Como um ciclo, tais políticas causaram mais pobreza no campo, mais dependên-
cia dos camponeses dos produtos ligados ao narcotráfico, mais intervenção militar, e mais atrelamento
destes governos ao governo norte-americano. 50.SPENCER, Bill; AMA-
Uma das políticas de controle econômico que era utilizada em nome das lutas antidrogas era TANGELO, Gina. “Drug
Certification”. In: Foreign
o certificado de drogas (drug certification) emitido pelo governo dos EUA. Através dele, o governo esta-
Policy In Focus, Vol. 6, No.
dunidense estabelecia unilateralmente metas para que os países produtores de drogas cumprissem anu- 5, março de 2001. Disponível
almente no combate ao narcotráfico. Caso não cumprissem, eram previstas muitas sanções econômicas em: http://www.foreignpolicy-
americanas, como corte de ajuda financeira ou voto negativo no Fundo Monetário Internacional (FMI) infocus.org/
ou Banco Mundial (BM) para eventuais empréstimos pedidos por estes países. Tais “sanções” não pos-
suíam nenhuma relação com o combate às drogas e tinham como única função punir países que even-
tualmente não estariam colaborando com o problema americano. Esta política foi fortemente criticada
51.POTTER, George Ann;
inclusive por especialistas americanos em políticas internacionais, pois contrariava a lógica de cooperação FARTHING, Linda. “Bolivia:
internacional requerida para enfrentar um problema como o narcotráfico, substituindo-a por uma lógica Eradication and Backlash”.
de chantagem unilateral50. O certificado de drogas ocorreu até 2002, quando as pressões dos países afeta- Junho, 2001. Disponível
dos tiveram efeito e o governo americano optou por políticas mais sutis de controle. em: http://www.fpif.org/
briefs/vol5/v5n38bolivia_
Linda Farthing e George Ann Potter apontam um outro problema das políticas americanas: body.html
o total descumprimento da Leahy Law, que obriga o governo norte-americano a retirar qualquer apoio
a forças armadas que desrespeitem os direitos humanos51. Os constantes abusos da FTC boliviana, do
Terra e território
117
Terra e território
exército colombiano, da ação militar dos EUA na ocupação do Iraque - e mais um sem número de 118
exemplos - nos indicam que provavelmente esta foi uma das leis mais ignoradas da história americana,
52.Entrevista dada a Week On-
pois apresenta franca oposição às políticas internacionais do país. Noam Chomsky, em uma entrevista line, em 08/02/2002, disponí-
a Week Online em 2002, identifica um ponto central com relação a isso: “Já faz um bom tempo se vel em: http://www.chomsky.
estabeleceu uma relação de muita proximidade entre violações de direitos humanos e ajuda e treinamento info/interviews/20020208.
htm. Tradução da autora.
militar dos EUA. Não é que os EUA gostem de torturar pessoas, é que simplesmente não se importam.
Para o governo estadunidense, violações de direitos humanos são uma conseqüência secundária”52. 53.No caso da Colômbia, o
Não se pode deixar de mencionar a conjugação da Guerra contra as Drogas com as políticas de tema do TLC tem invadido
ajustes estruturais, pelas quais passaram todo mundo em desenvolvimento a partir dos anos 1980. Estas as campanhas eleitorais nos
políticas de aplicação de pacotes econômicos ortodoxos e diminuição da função do Estado no que diz EUA. Os pré-candidatos de-
mocratas, Hillary Clinton e
respeito à garantia dos direitos sociais interromperam importantes processos de democratização pós-dita- Barack Obama, já se manifes-
duras militares, como no caso da Bolívia e do Equador. A agenda neoliberal se mantém até hoje, com a taram contrários à aprovação
recente aplicação dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) – quase consolidados no Peru e na Colômbia53 do TLC por denúncias de
violações dos direitos huma-
-, promovendo muitos conflitos na região andina, em especial com o campesinato. nos por parte do governo co-
No Equador, por exemplo, precedeu a chegada de Rafael Correa no poder uma série de lombiano.
mobilizações indígenas intensas, que pediam um referendo para a aprovação do TLC e a caducidade do
contrato com a petroleira Oxy. O TLC afetava substancialmente os produtores camponeses, ameaçados 54.Sobre as lutas contra o
TLC no Equador consultei:
com os diversos produtos agroindustriais subvencionados pelo governo norte-americano. A petroleira MOREANO, Alejandro,
Oxy possuía um contrato de exploração do petróleo que garantia meros 15% dos lucros aos cofres “Ecuador en la Encrucijada”,
equatorianos. Apareciam então como principais reivindicações da região temas antineoliberais, de e MALDONADO, Ana Maria
L. “Movimiento indígena, lu-
proteção dos usos, costumes e sobrevivência dos povos indígenas, andinos e camponeses, e também de cha contra el TLC y racismo
recuperação dos recursos naturais54. em Ecuador”. In: Revista del
No Peru, igualmente, várias manifestações foram feitas em rechaço ao TLC com os EUA, em Observatorio Social de Amé-
especial dos movimentos camponeses. Assim como no Equador, eram eles os mais afetados pelas políticas rica Latina. Ano VII No19
enero-abril 2006.
de abertura econômica. Contudo, a mobilização não ganhou a amplitude que ganhou no país vizinho e
tampouco se refletiu no panorama eleitoral. Em 2006, ano das mobilizações, foi eleito o candidato de 55.TLC dos EUA com o Peru
centro Alan Garcia, que não apresentava nenhuma resistência à aprovação do tratado55. já foi aprovado e assinado, mas
Como já vimos, estes temas de alguma forma já haviam aparecido na Bolívia, com a Guerra da ainda está em fase de imple-
mentação.
Água e a Guerra do Gás. Contudo, neste país se somou a estas mobilizações o movimento cocaleiro, que
atacava a outra política conjugada dos EUA na região andina: a Guerra contra as Drogas. A mistura ex-
Terra e território
119 plosiva destes temas levou Evo Morales ao governo e plantou uma arraigada certeza na população de que
os EUA são um inimigo, tanto por sua política econômica, quanto por sua política “social” de controle
das drogas.
A Colômbia, como sabemos, é um dos países onde esta política antidrogas se tornou mais
notória. Não quero aqui me estender sobre as conseqüências específicas do Plano Colômbia e da atuação
dos EUA no país. Para ter dimensão do seu fracasso, basta somente citar as acusações que pairam sobre
o presidente Álvaro Uribe, grande aliado dos EUA, de envolvimento com grupos paramilitares; a recente
invasão do território equatoriano pelo exército colombiano causando um imenso problema diplomático
na região; e a não diminuição dos plantios de coca, apesar do intenso investimento americano em fumi-
gações aéreas.
O fato da política antidrogas dos EUA não cumprir o fim a que se propõe e de desempenhar
uma de política externa de intervenção na América Latina tem consequências desastrosas do ponto de
vista social. São atacadas as partes mais empobrecidas envolvidas no ciclo de produção e consumo de
substâncias ilícitas, criminalizadas fortemente dentro e especialmente fora dos EUA. Não é de se espantar
que um dos repertórios mais fortes dos crescentes governos de esquerda e movimentos sociais andinos é
o pedido de soberania nacional frente às imposições norte-americanas.
Terra e território
120
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125 janela, todos têm que entrar pela porta da frente”. Ele diz que os projetos financiados por organizações
internacionais são hoje coordenados com as prefeituras, com as federações, com os comitês cívicos, etc.
Antes, o dinheiro do desenvolvimento alternativo causava divisões entre as comunidades, fomentava
entidades paralelas aos sindicatos. “Era gato e cachorro entre organizações, quem nos fazia brigar? O
dinheiro do desenvolvimento alternativo (...). Agora temos uma política muito diferente (...). Estamos
avançando no desenvolvimento alternativo”.
Dona Isabela
A poucos quilômetros da sede da prefeitura de Villa Tunari e de tantas conversas otimistas,
está a casa de Dona Isabela Rivera. Ela fica justo na beira da estrada e está com o pátio cheio de folhas de
coca secando. Quase puro quíchua fala Dona Isabela e nossa comunicação é no começo mediada por um
jovem peão que a ajuda de vez em quando.
Com 58 anos registrados na cédula de identidade, mas não guardados na memória, ela vive
sozinha. Seu marido faleceu, seus filhos estão grandes. Às vezes vêm para ajudar, mas não muito. Para
a sua plantação de coca, único cultivo que tem, precisa contratar estes peões, já que não dá conta do
trabalho sozinha.
Conta que outubro é uma boa época para a coca, pois faz calor. No inverno, as folhas não
crescem muito, “dá bichinhos” e tem que comprar veneno. Mas no verão a colheita é boa e a coca sai
bonita. O sol também é bem vindo neste dia de secagem, pois se o tempo está fechado, a coca não seca
bem, negreia e perde o sabor. A coca de Dona Isabela, que ocupa todo o pátio, vai dar menos de um pa-
cote depois de seca. Esta medida equivale a 50 libras ou aproximadamente 19 kilos. Com a libra da coca
valendo 12 pesos bolivianos, Dona Isabela com sorte vende a sua produção por 600 pesos bolivianos, algo
em torno de 80 dólares.
A coca, explica, se colhe três, no máximo quatro vezes ao ano. Seu rendimento por colheita
varia, um cato pode render de dois até seis pacotes, dependendo do tempo e da qualidade das terras.
Supondo que renda quatro pacotes por colheita, um cato garantiria a uma unidade familiar 600 pesos
bolivianos por mês, o que Dona Isabela vai receber com a coca do pátio. Ela diz que com isso não dá para
viver: “Como vai dar? Em cada quatro meses colhe, e depois tem que comprar remédios para a folha e
para as ervas, custa dinheiro. Não dá. Tudo está caro”.
Ela participou de marchas até La Paz. Delas, só lembra do frio e da presença de Evo. Confunde-
Terra e território
se com as reivindicações e com os anos. Já quase indo embora, pergunto se posso tirar uma foto. Descon- 126
fiada, diz que é velha, não fica bem. Fazemos um trato: se a foto sai ruim, apagamos. Apoiada na mesa, ao
lado de um vaso de flores, Dona Isabela se vê bonita e sorri.
Terra e território
127
A reunião ordinária da Central Chipiriri acontece a cada primeira terça-feira do mês. Em abril
de 2008, estavam reunidas cerca de 70 pessoas. Eram representantes dos 11 sindicatos afiliados, da prefei-
tura de Villa Tunari, do comitê cívico da região, do comitê de vigilância da prefeitura, das comerciantes de
coca, da rádio comunitária e da própria diretoria da central e da diretoria da central de mulheres. Havia
sanções para os que faltassem à reunião. Cada dirigente faltante ou que não trouxera os delegados de base
estipulados, teria que pagar 50 pesos bolivianos.
Assim são as coisas no Chapare, a vida sindical camponesa é tida como muito importante, fonte
de sobrevivência durante tantos anos de luta. O sistema de multas e obrigatoriedade de participação em
reuniões é comum em quase todos os movimentos camponeses bolivianos e também em muitos dos mo-
vimentos populares, mas ele por si só não garante a extensa participação em reuniões. Apesar de muitos
dizerem que participam das atividades comunais (reuniões, bloqueios, serviços comunais, etc.) por causa
das sanções, as multas pagas raramente excedem o dinheiro perdido com os dias parados. É, portanto,
muito mais um motivo moral que econômico.
O ampliado começou às nove horas da manhã, no interior do mercado de coca do povoado
de Chipiriri. A mesa era conduzida por Homar Claros, secretário executivo da central. Ele apresenta os
mais de dez pontos de pauta para serem avaliados pelos demais. Eles passavam por informes da prefeitura
acerca de obras e projetos; debates sobre os problemas políticos do país, como a nova constituição e os
conflitos com a agroindústria; precauções acerca de roubos acontecidos em um dos sindicatos; ou avisos
duros sobre o controle interno do cato de coca.
As discussões eram intensas, algumas vezes em tom de cobrança e acusações, outras vezes em
tom de conciliação. “A palavra, companheiro”, assim se iniciavam quase todas as falas que ocuparam o dia
inteiro de debates, resquícios do sindicalismo operário. Contudo, a continuação geralmente vinha em um
Terra e território
128
Terra e território
129 quíchua pontuado com uma ou outra expressão em castelhano. quechuañol, assim o descrevem. Apesar da
população do Chapare ser migrante de distintas partes do país, o quíchua é tido como um idioma geral.
Ali ninguém fazia falas de defesa contundentes do governo, nem havia divisões ou brigas inter-
nas por haver mais ou menos acordo político com as linhas nacionais do MAS, diferente de ocorria com
outros movimentos. Não houve nenhuma preocupação em afirmar a autonomia perante o governo, pois
havia entre eles um imenso consenso de que este é o seu governo, Evo é o seu presidente, e o MAS é o
seu instrumento político. Sendo isso um a priori, as discussões políticas se focam mais em como ajudar
o governo, no geral utilizando a imensa força de mobilização característica do movimento cocaleiro em
marchas, atos públicos ou denúncias contra a “oligarquia da meia lua”.
A discussão se estendeu até tarde da noite, com somente uma pausa para almoçar às duas horas
da tarde. Foram mais de doze horas de uma reunião que não se esvaziou em nenhum momento. Era um
dia de semana e, com exceção dos representantes da prefeitura, ninguém recebia salários ou liberações
para estar ali. A imensa maioria eram camponeses “de base” (com cargos em sindicatos ou sem nenhum
cargo) e discutiam cada uma das pautas, da mais cotidiana até mais política conjuntural.
Mulheres cocaleiras
Das mais de 70 pessoas presentes na reunião da Central Chipiriri, cerca de 15 eram mulheres,
e algo como cinco pediram a palavra. Maria Eugênia se destacava entre elas. Jovem, falava sem hesitar, em
61.Segundo Maria Eugenia,
cada sindicato possui além do
voz alta e clara. Dava informes sobre a situação política do país, sobre atividades congressuais nacionais e
seu secretário geral uma secre- seminários de formação. Na hora do almoço, coordenou a atuação das mulheres. Não usava pollera nem
tária geral, de mulheres. Eles tranças, e tinha o cabelo preso em um rabo de cavalo. O chapéu, contudo, guardava na parte de cima as
chamam estas duas figuras de usuais flores de plástico da cholita cochabambina.
“dirigente” e “dirigenta” de
sindicato. Contudo, normal- Ela ocupa atualmente o cargo de secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de
mente quem é considerado a Cochabamba, entidade que existe subordinada à Federação do Trópico, e que coordena as atividades
autoridade máxima do sindi- políticas femininas. Dos informes que deu, um deles era acerca do congresso da sua federação. Participam
cato é o dirigente, cabendo à
mulher mais a coordenação de
deste congresso quatro representantes por sindicato: secretário geral, secretária geral61 e duas delegadas.
assuntos femininos. A proporção de gênero que não é completamente livre, representantes de qualquer sexo, e nem de auto-
organização, só mulheres, é explicada por Maria Eugênia: “Porque tanto mulheres como homens têm
que ter uma só visão. Por isso na convocatória se põe um homem e três mulheres. Em cada comissão tem
que haver homens. Porque talvez como mulheres não temos muita preparação, (...) temos filhos, temos
Terra e território
que cuidar da casa, tudo o demais, não participamos muito dos cursos. Os homens estão um pouco mais 130
preparados, se nos equivocamos em alguma coisa, eles nos ajudam (...) Somos como dois tourinhos que
vamos arar bem juntos, mas às vezes as mulheres estão mais raquíticas, mais fracas”.
Uma das principais funções, portanto, das organizações de mulheres no Trópico é a realização
de seminários de formação e capacitação política das próprias mulheres. Paralelamente, são organizados
cursos de corte e costura, que são vistos como atividades de auto-suficiência, “é uma forma de aprendiza-
do, se faz vestimentas, polleras, blusas, tudo o que se necessita aqui no trópico”, explica Maria Eugenia.
Como mãe solteira, chefe de família e que cuida do seu próprio chaco, Maria Eugênia conhece
o machismo na região. Lembra que quando começou a freqüentar as reuniões, os homens não aceitavam
a presença das mulheres, “diziam ‘o que sabe ela e por que veio?’. Então sempre te marginavam e a gente
chorava. Até agora há muito machismo”. Ela conta, contudo, que foi desse choro que se aprendeu a elevar
a voz e superar o medo. “Consegui romper esta cadeia de machismo, não me calam fácil. Sempre peço a
palavra e digo assim duro, e digo as verdades (...). Porque se nós não fazemos, quem vai fazer? Porque para
os homens é melhor também”.
Mas a identificação do machismo interno não interfere na concordância com os companheiros
sobre o debate político nacional, como demonstrou a marcha de mulheres de 1995. Assim como as orga- 62.Bono Juancito Pinto é
nizações cocaleiras “de homens”, as “de mulheres” têm atualmente como principal bandeira a “defesa da uma espécie de Bolsa Escola
boliviana, dá 200 pesos boli-
Bolívia e seus recursos naturais”. Para Maria Eugênia, isso significa hoje a aprovação da nova Constituição vianos anuais a famílias que
Política do Estado, porque ela é a primeira que “foi feita pelos e para os bolivianos. Em contrapartida, a têm crianças de 6 a 10 anos
atual constituição não foi feita pelos bolivianos, foi feita por gente especializada em roubar (...) A nova matriculadas em escolas pú-
blicas. Renta Dignidad é tam-
constituição reflete toda a nossa realidade”. Ela defende, como os demais dirigentes cocaleiros, o governo bém uma política de bonifica-
de Evo Morales como uma verdadeira revolução voltada para as camadas mais pobres da população, dan- ção para os bolivianos maiores
do como exemplo as políticas assistenciais do Bono Juancito Pinto e a Renta Dignidad62. de 60 anos, que oferece 2400
Por todos os avanços do governo, as mulheres do trópico estão dispostas a ofertar suas vidas. pesos bolivianos anuais para
os que não possuem nenhum
“Não importa se vamos defender com nossas vidas. Nós como dirigentas estamos dispostas a morrer. Se tipo de aposentadoria e 1800
algumas vão morrer, algumas vão morrer”. Não se trata de mera bravata, a convicção de Maria Eugênia é pesos bolivianos para os que
expressada algumas semanas antes da realização do referendo do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. possuem.
Ela enxerga a iniciativa como uma tentativa de resgate de poder dos grupos oligarcas tradicio-
nais. “Estamos vendo que temos que ir a Santa Cruz a nos enfrentar com eles. Porque em Santa Cruz
muitos de nossos companheiros estão em favor da gente. Porque lá estão impondo a autonomia (...). E nós
Terra e território
131 como mulheres estamos analisando bem esta conjuntura e acreditamos que temos que derrotá-los (...).
Porque nossos filhos já não podem viver nesta escravidão, nestas condições péssimas”. Apesar da vontade
das cocaleiras de irem a Santa Cruz no dia 4 de maio, o governo pediu a todos os movimentos sociais
que se manifestassem pacificamente, evitando conflitos fatais. Portanto, no dia 4 de maio, o movimento
cocaleiro em conjunto com demais movimentos camponeses organizou uma concentração de centenas de
milhares de pessoas em Cochabamba, em completo repúdio aos estatutos autonômicos.
A única coisa que desanima Maria Eugênia acerca do processo político que vive o país são as bri-
gas internas, de egos de dirigentes e dirigentas. O atual preconceito que há da parte das militantes antigas
com relação às novas a incomoda muito. “Elas sempre nos dizem ‘vocês são novas’, entre mulheres há esta
discriminação. Por que tem que nos tratar assim? Se sempre vivemos aqui”. Ela descreve o personalismo,
o apadrinhamento e a perseguição interna de dirigentes que começam a se destacar como uma “guerra
suja”. Percebe nisso um erro muito grande, pois acha que a organização não pode depender de algumas
poucas pessoas, todas têm que estar preparadas. “Não somos solitários! Por exemplo, a Federação do Tró-
pico pode encabeçar [uma luta] primeiro, mas depois as outras organizações se somam e assim podemos
ganhar. Porque sozinhos não podemos”.
Tal conflito fará, provavelmente, com que Maria Eugenia saia da federação. “Eu não estou mui-
to preocupada com cargos, por isso digo que vou cumprir e vou sair. Porque não gosto de brigar por coisas
assim. Gosto de brigar por defender meus direitos, a minha vida. Mas assim, brigar pessoalmente não”,
desabafa. Ao final, o problema dela não é isolado. A história do instrumento político tão reivindicado
pelos cocaleiros, o MAS-IPSP, é inteiramente pontuada por brigas internas de lideranças.
Terra e território
Visita à Federação do Trópico 134
A sede da Federação do Especial Trópico fica em frente à Praça Busch, em Cochabamba. Na
primeira vez que eu passei por lá, recém chegada na cidade, tinha a firme intenção de entrevistar Júlio
Salazar, secretário-geral da federação. Não consegui a entrevista, foram quase duas horas de espera dentro
de uma sala onde ficava ao mesmo tempo a secretária, a mesa de Salazar, a pessoa que estava sendo aten-
dida e todas as demais que queriam falar com ele. Ao menos, acompanhei brevemente o cotidiano desta
mescla intrigante de sindicato e partido.
Júlio Salazar, além do seu cargo na federação, exerce também a função de presidente
departamental do MAS-IPSP. A federação serve como sede do partido, assim como a sua sala principal
tem esta dupla função. O dirigente cocaleiro coordena muitas das atividades do partido dali, assim como
atende organizações base da federação e movimentos amigos.
No tempo que estive ali, por exemplo, me chamou a atenção um senhor dirigente dos
64.Bandeira quadriculada for-
aposentados, que na época organizava um ato em defesa da Renta Dignidad. Era ajudado por um assessor mada por sete cores símbolo
do partido na redação da convocatória do ato, já que ele tinha muitas dificuldades com a palavra escrita. do Qullasuyu quando a cor
Pediu a Júlio bandeiras do partido, da Bolívia e wiphalas64, além de cartazes para organizar a agitação branca está no meio.
do ato. O assessor lhe indicou que era melhor utilizar mais bandeiras bolivianas, pois isso tornaria a
comunicação do ato mais eficaz, dialogaria com o nacionalismo boliviano.
Tudo me impressionava, ou melhor, me horrorizava. Nunca havia visto tamanha confusão en-
tre um movimento social e um partido. Minha experiência com o movimento estudantil brasileiro me
ensinou a considerar o aparelhamento dos movimentos sociais feito pelos partidos de esquerda uma
das coisas mais condenáveis que existe na política. Portanto, ele sempre é feito às escondidas, nunca tão
explicitamente.
Mas, e quando o partido em questão é um instrumento político do próprio movimento? É
aprovado em seus fóruns enquanto partido político e, portanto, se constitui teoricamente enquanto
um braço do movimento? Enfim, era a pergunta que passava em minha cabeça todo o tempo. Procurei
mais coisas, cartazes, panfletos, etc., que indicassem que ali também funcionava a sede de uma federação
cocaleira. Achei um adesivo, imitando o logo da coca-cola: “Coma coca, uma folha a menos para a
droga”.
Cansada de esperar, perguntei à secretária se haveria uma outra ocasião mais tranqüila, onde
eu poderia conversar com os dirigentes cocaleiros. Ela me escreveu em um papel “Shinahota, 26/10/07.
Terra e território
135 Aniversário do presidente”. Lá iam estar os principais dirigentes durante todo dia, me garantiu. Perguntei
se era o presidente da federação. Ela respondeu que sim, de todas as federações. “Seu nome?”, perguntei
muito jornalista, fazendo anotações. Ela respondeu rindo: ”Evo Morales”.
Terra e território
137 indígenas do oriente (CIDOB). A representação nacional dos cocaleiros se dividia entre a CSUTCB e a
CSCB. A idéia era que houvesse uma “participação direta dos militantes sindicais mediante uma adesão
65.DO ALTO, Hervé, op. cit., coletiva das suas organizações, sem criar uma estrutura partidária”65. Em teoria, portanto, não era uma
p. 75. Tradução da autora.
incorporação destes movimentos a um movimento político, mas sim a criação de um braço eleitoral
tático. Este instrumento também respondia a uma demanda histórica de evitar as tradicionais divisões
66.Idem, p. 75. que sofriam as organizações sociais nos momentos eleitorais, debilitando muito a sua luta66. O nome
dado a este instrumento foi, a princípio, Assembléia pela Soberania dos Povos (ASP) e o seu encarregado
político era o dirigente camponês Alejo Véliz.
Contudo, não se pode ignorar um outro importante fator para a criação deste instrumento: a
Lei de Participação Popular, promulgada um ano antes. Como já comentamos anteriormente, a lei abria
espaços para a participação de camponeses dentro da política institucional local e, caso eles quisessem
disputar estes espaços, igualmente necessitavam de um instrumento eleitoral. De fato, na primeira
eleição que o instrumento político participou - com a sigla de Esquerda Unida e em coalizão com o
67.KOMADINA, Jorge, et al., Partido Comunista da Bolívia (PCB) – em dezembro de 1995, foram eleitos 11 prefeitos, na sua maioria
op. cit., p. 31. camponeses do Chapare67.
Alejandro Almaraz, ex-membro da direção nacional do MAS e atual Vice-ministro de Terras, diz
que o entendimento dos dirigentes do instrumento era uma espécie de apropriação da LPP, ir crescendo a
partir das prefeituras: “Eles pensavam que o negócio não era chegar na prefeitura, mas sim ir avançando:
prefeituras, parlamento e algum dia ganhar a eleição nacional. E estes eram os que estão agora, Evo,
os potosinos – os dirigentes camponeses potosinos também era muito fortes – e outros que ficaram à
margem do MAS e que faziam parte desta idéia inicial: Alejo Véliz de um lado, e o Mallku do outro”.
68.O deputado plurinomi- Contudo, o instrumento político enfrentou um grande problema nos seus primeiros anos de
nal é eleito com a somatória
existência: a negativa constante da Corte Nacional Eleitoral em lhe dar a sua personalidade jurídica.
dos votos nacionais em uma
determinada sigla. Já o depu- Portanto, de 1995 até 1999, quando se consegue a sigla do MAS (Movimento ao Socialismo), o instrumento
tado uninominal é eleito com teve que participar das eleições com siglas emprestadas e coalizões.
somatória dos votos regionais. Logo, as brigas internas entre as lideranças camponesas no interior deste movimento começaram
São, portanto, duas eleições
diferentes.
a dar seus frutos. A principal delas era entre Evo Morales, que representava o setor cocaleiro, e Alejo
Véliz, que tinha uma considerável base em outras regiões camponesas cochabambinas. Esta briga leva a
uma grande quantidade de sindicatos cocaleiros a boicotar a candidatura de Véliz em 1997, quando ele
concorria à presidência e a deputado plurinominal68 pelo ASP, que novamente estava em aliança com a
Terra e território
Esquerda Unida69. O voto cruzado, que fez com que regionalmente os cocaleiros votassem em Evo Morales 138
para deputado uninominal, mas não votassem em Véliz nacionalmente, se explicitou no resultado das
eleições: Evo Morales foi eleito com 70%, o deputado uninominal com a melhor porcentagem de votos 69.Este boicote é relatado por
em todo o país, e Alejo Véliz, cabeça de chapa, não conseguiu os votos suficientes para ser eleito deputado Hervé do Alto. DO ALTO,
Hervé, op. cit., p. 78. Tradu-
plurinacional. ção da autora.
Este fenômeno impulsionou o racha dentro do instrumento, fazendo com que os “evistas”
adotassem a sigla de IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos) e os “alejistas” ficassem com
ASP. O ideal de instrumento político já aparecia bastante arranhado, pois se pretendia a representar de
uma ampla gama de movimentos sociais se dividiu com uma simples briga de caudilhos.
Um pouco antes das eleições municipais de 1999, a sigla “MAS” é oferecida a Evo Morales.
Ironicamente, tratava-se de uma sigla criada por um antigo membro da Falange Socialista Boliviana,
partido de extrema direita. Aceitando a sigla com muita dificuldade, o setor evista consegue agregar-lhe
o IPSP, dando o nome atual do partido. Contudo, a cor azul, cor do coorporativismo fascista boliviano,
não pôde ser mudada. Em 1999, a sigla MAS-IPSP obteve 3,3% dos votos nacionais, enquanto o grupo de 70.KOMADINA, Jorge, et al.,
Alejo Véliz, em coligação com o PCB, conseguiu angariar somente 1,1% dos votos70. op. cit., p. 33-34.
Os votos do MAS, apesar de serem massivos na região do Chapare, também contaram com
uma votação expressiva na província cochabambina de Ayopaya, onde Roman Loayza era importante
dirigente camponês. Além disso, 61% dos votos que obteve a sigla não provinham do departamento
de Cochabamba, mas sim do resto do país, o que indicava que o “grupo do Evo” tinha bases políticas
nacionais, apesar da sua vanguarda política estar concentrada em Cochabamba.
A adoção da sigla “MAS” teve outras conseqüências. Ela era inaceitável para Felipe Quispe,
então secretário-executivo da CSUTCB, eleito inclusive para mediar os grupos “evistas” e “alejistas” na
confederação. Quispe havia participado de algumas reuniões do IPSP, mas, segundo ele, a adoção da sigla
fascista negaria completamente a identidade indígena do instrumento. A partir deste momento, Quispe
começou uma aproximação maior com o setor de Alejo Véliz e criou o seu próprio partido em 2000, o
Movimento Indígena Pachakuti (MIP), processo que veremos mais à frente.
O instrumento político idealizado pelos movimentos camponeses em 1995, inicia os anos 2000
como instrumento de alguns setores e de outros não. É inegável que a sua relação com o movimento
cocaleiro é da mais orgânica possível, sendo factível para este setor o seu entendimento como braço político.
Para a CSUTCB, contudo, esta relação foi diferente, pois dependia das suas direções políticas. Inclusive,
Terra e território
139 é pela briga que se instalou dentro desta confederação a partir da negação de Quispe de participar do
instrumento, que se cria duas confederações camponesas paralelas. Para a Cidob, o instrumento político
sempre foi um processo alheio, já que se afasta da sua consolidação logo depois de 1995 por se inclinar
neste período a táticas eleitorais clientelistas de alianças com partidos tradicionais. Segundo Hervé do
Alto “esta antecipada baixa [da Cidob], à qual sucederiam múltiplas fases de aproximação e afastamento,
permite identificar a lealdade de geometria variável das organizações sociais em relação ao instrumento
71.DO ALTO, Hervé, op. cit., político, oscilando entre a lealdade incondicional (que ilustra o setor cocaleiro) e a permanente negociação
p. 76. Tradução da autora.
de fidelidades políticas”71.
Fato é que, a partir da criação deste instrumento e do seu funcionamento como estrutura
autônoma das entidades que o propuseram, o fracionamento dos movimentos sociais bolivianos foi um
processo constante. A CSUTCB se parte em duas, uma parte identificada com o discurso indianista
de Quispe, e outra com o MAS. No oriente, apesar da Cidob ter uma relação bastante variável com o
MAS, um setor organizado em torno da Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz (CPESC) é mais
72.Sobre isso fala Eduardo radicalizado e se identifica com o instrumento político. Inclusive o MST, tem o setor de Santa Cruz com
Córdova: “Há alguns que di-
mais proximidade com o MAS e outros setores nacionais que adotam posturas mais autônomas.
zem que os 21 mil mineiros
que foram despedidos foram
produzir coca. Mas isso não Mineiros e cocaleiros
é verdade, alguns se foram, São muito comuns as comparações entre o protagonismo recente do movimento cocaleiro
muitos se foram e não fica-
ram e voltaram às cidades ou
com o antigo protagonismo mineiro. Um dos maiores propagadores da tese de que a vanguarda dos
a outros lugares. Mas dos que movimentos sociais bolivianos passou na década de 1980 dos mineiros para os produtores cocaleiros é
se foram não ficaram muitos. Filemón Escobar, que se amparou na sua experiência de ex-assessor político do movimento mineiro para
Em um trabalho que vi dos
se tornar um dos maiores ideólogos do instrumento político.
anos 90, a proporção de ex-
mineiros entre os camponeses Não se pode afirmar, contudo, que houve um deslocamento populacional significativo das
cocaleiros era ao redor de 4% minas ao Chapare, como muitos pensam. Em 1986, um ano depois das demissões em massa de mineiros
a 5%. Em uma federação de que marcou a decadência do seu movimento, o Chapare vivia uma das suas maiores crises com a baixa
cocaleros que eu estudei, era
ao redor de 5%. Em um tra-
do preço da folha de coca. A grande maioria dos mineiros que em 85 se migraram para lá, provavelmente
balho que se fez em 2002 em se dirigiu a outras regiões posteriormente. De fato, houve uma migração mineira nas décadas anteriores,
outra zona era de 2,5%”. mas a população de ex-mineiros no Chapare hoje não é muito significante72.
Mas, como todo movimento social boliviano da atualidade, o movimento cocaleiro tem sim
muitas referências nas lutas do operariado mineiro. Filemón Escobar, em particular, é fonte de muitas
Terra e território
delas. Para explicar a estratégia de luta do movimento cocaleiro dentro da democracia representativa, 140
ele recorre ao bloco parlamentar mineiro: “A Tese de Pulacayo diz textualmente que ‘na próxima luta
eleitoral, nossa tarefa consiste em levar um bloco operário o mais forte possível ao parlamento, ressaltando
que ao ser antiparlamentários não podemos deixar o campo livre aos nossos inimigos de classe. Frente ao 73.Entrevista citada em:
KOMADINA, Jorge, et al.,
eleitoralismo, oponhamos a formação do bloco parlamentar mineiro”73. Portanto, a idéia do instrumento op. cit., p. 38. Tradução da
político tem, segundo Escobar, total convergência com as idéias mineiras, já que eles igualmente não se autora.
submetiam a um partido político, mas sim ao movimento do qual fazem parte, o movimento operário.
Mas Jorge Komadina, investigador social de Cochabamba, aponta que o bloco mineiro foi
uma exceção na experiência deste movimento: “a regra foi a estratégia insurrecional ou a participação
74.KOMADINA, Jorge, et al.,
eleitoral mediada pelos partidos de esquerda que atuavam como ventríloquos dos do movimento operário op. cit., p. 39. Tradução da
e camponês”74. autora.
Terra e território
MAPA DE ACHACACHI 142
Detalhe
Terra e território
143
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144
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145
REBELIÕES AIMARÁS
A promessa de Katari
Uma grande extensão de terras se espalha na região entre a Cordilheira Real dos Andes e o Lago
Titicaca. Filetes de água correm do degelo dos altos picos nevados da cordilheira em direção ao lago, per-
seguindo o trajeto do sol num caminho de leste a oeste. Estas águas irrigam a região, tornando-a apta para
o cultivo de cereais, de tubérculos e para a criação de animais. Desde os tempos pré-incas, agricultores po-
voam densamente a região - hoje chamada província Omasuyus, localizada no departamento de La Paz.
A capital da província, Achacachi, é o centro de comércio da região. Ali se reúnem os campone-
ses todas as quartas e domingos para distribuir seus produtos e comprar outros de necessidades básicas.
Saindo da cidade em direção sul, já a caminho de La Paz, passamos por uma ponte, quase imperceptível
para os viajantes pela pequenez do riacho que ela atravessa.
Em aimará q’alachaka significa ponte de pedra. Ali, em Q’alachaka, se formou no início dos
anos 2000 o terceiro grande exército indígena da história da Bolívia, comparável aos exércitos de Tupac
Katari (1781) e Zárate Willka (1899). Armados com mausers da década de 1950, reminiscências da Revolu-
ção Nacional de 1952, estes camponeses aimarás demonstraram todo o seu repúdio ao Estado boliviano.
Eles reivindicavam a refundação do Qullasuyu, região correspondente à Bolívia dentro do território inca,
1.ALBÓ, Xavier, op. cit.. p.
o Tawantisuyu, que em quíchua significa “as quatro jurisdições unidas”1. Carregavam a wiphala, bandeira
173.
de sete cores que, dependendo da disposição destas, representa cada uma das regiões incas. Quando a cor
branca cruza a diagonal da bandeira, trata-se de uma bandeira do Qullasuyu.
Os aimarás em estado de guerra portavam acima de tudo as lembranças da sua história rebelde.
Traziam marcadas as palavras pronunciadas por Tupac Katari mais de duzentos anos antes: “Eu morro,
mas amanhã voltarei convertido em milhares de milhares”. Esperança de libertação para os índios aimarás
da região ocidental boliviana, estas palavras sempre foram símbolos de terror para a população criolla ur-
Terra e território
bana. Tupac Katari realizou um cerco da cidade de La Paz que durou meses, deixou a cidade sem comida 146
e ameaçou inundá-la pela parte sul, abrindo os diques que forneciam água à cidade. Para a elite mestiça
que até hoje vive na sede do governo boliviano, a memória katarista é uma memória de medo, cerco e
comprovação de uma suposta barbárie indígena.
O protesto era ancestral, mas focava em uma exploração ainda visível e existente. No início do
nosso século, os índios bolivianos identificam a velha dominação colonial e racial com o nome moderno
de neoliberalismo, mas que igualmente usurpa suas terras, seus recursos naturais, questiona seus modos
de vida e de entendimento de mundo.
***
A história sobre a rebelião aimará de 2000 a 2005 me foi relatada por alguns personagens que
participaram ativamente dos protestos e por outros que tornaram destes protestos seu objeto de estudo
apaixonado.
Felipe Quispe, El Mallku2, era secretário executivo da CSUTCB de 1998 a 2003, dirigente
2.Mallku significa em aimará
máximo da principal organização social boliviana. Nascido em Jisk’a Axariya, uma comunidade próxima significa condor ou líder. In:
ao lago Titicaca e na província de Omasuyus, ele focou muito da sua gestão em mobilizações na sua re- CRABTREE, John. Perfiles
gião natal. Rufo Yanarico e Eugenio Rojas fizeram parte do comitê de bloqueio de 2003, e participaram de la protesta, p. 61. Funda-
de todas as demais mobilizações anteriores. Eugenio Rojas é atualmente prefeito de Achacachi e Rufo, ción Unir / Fundación PIEB.
La Paz, 2005.
funcionário da prefeitura. Marxa Chávez é uma jovem socióloga pacenha, que tem em Omasuyus o seu
foco de estudo. Pablo Mamani é professor de sociologia da Universidade Pública de El Alto (Upea),
importante centro de reflexão da identidade aimará por estar localizada em um centro urbano com um
movimento étnico muito forte. Xavier Albó é um antropólogo estudioso do movimento indígena bolivia-
no e em especial o aimará.
Terra e território
Eugenio Rojas vê o quartel de Q’alachaka como um espaço de formulação política, de resgate 150
das suas próprias raízes: “aí se formavam as pessoas, se discutia temas importantes, daí nasce a reconsti-
tuição de Qullasuyo. Fala-se muito de Tupac Katari, de nossa economia, nossa identidade, nossa história.
Este quartel é um lugar onde se gera idéias, se debate. E as discussões são diárias, feitas em todos os dias
do bloqueio de caminhos. Porque a cada dia vêm pessoas novas, um dia é turno de um grupo, outro dia é
de outro. E pensamos também as nossas ações, ‘se o governo não responde, que medidas vamos tomar?’.
Vão surgindo estratégias revolucionárias, são táticas pensadas diariamente”.
Mas o quartel, obviamente, não era somente um espaço de discussão política, era principal-
mente um espaço de resistência, no qual as pessoas portavam armas, dispostas a um enfrentamento
intenso. Esta disposição à luta armada é explicada por Felipe Quispe por duas motivações. A primeira
seria o resgate da luta rebelde dos antepassados índios contra o branco opressor, como a luta de Tupac
Katari. A segunda seria a experiência de alguns militantes aimarás com as guerrilhas armadas das décadas
anteriores, como o Exército Guerrilheiro Tupac Katari (EGTK) do início da década de 1990. “Para que
não houvesse desarme, colocaram os mausers abaixo junto com as bases, as armas mais modernas mais
acima, e os morteiros, as armas mais pesadas, lá em cima, na montanha, para que ninguém as visse. A
imprensa, o exército, ninguém podia ver, só de avião se podia ver. Eu estava ali permanente no comando.
E o chamam Quartel Q’alachaka, mas isso vem da nossa militância, dos Ayllus Rojos, do EGTK. Todas
estas pessoas se encapuzam, pegam armas e estão com as bases”, conta Felipe.
As armas provêm principalmente da Guerra do Chaco da década de 1930 e da Revolução de
1952. Eugenio Rojas explica que os governos posteriores tentaram retomar as armas dos camponeses,
mas eles, espertos, “entregaram as armas mais antigas e ficaram com as novas. Uma boa estratégia que
tomaram os nossos avós”.
Marxa Chávez crê que a criação do Quartel Indígena de Q’alachaka é o evento mais importante
que acontece neste bloqueio: “É outro ponto de trajetória [aimará] muito radical, muito importante para
o movimento indígena. Um exército indígena destas características não era visto desde 1899, quando
houve o exército indígena de Zárate Willka, com suas próprias armas, com os seus próprios caudilhos”.
Das mobilizações de setembro e outubro de 2000, Rufo lembra em especial da grande união
que havia entre os camponeses e os professores rurais: “Os professores cancelavam as suas aulas e vinham
aqui por turno dormir em Q’alachaka, onde estávamos bloqueando. Era pleno inverno, fazia frio. Os cam-
poneses também baixavam por turno, não se cansavam, não se pode cansar. Quando se declara alguma
Terra e território
151 guerra, levantamento ou conflito social, as pessoas não se cansam em Omasuyus”.
Terra e território
158
O AIMARÁ POLÍTICO
A República de Qullasuyu
Eugenio Rojas define o projeto de reconstituição do Qullasuyu com o resgate da política e da
economia aimará. Esta política, segundo ele, não tem a lógica de dominação da política eurocêntrica ca-
pitalista “para o aimará a política é prestar serviço, não é dominar, presentear os nossos recursos naturais,
Terra e território
oprimir, massacrar. Não é essa a democracia e o princípio político do aimará, se não que é servir ao povo 160
(...) Então, a política é por turnos. Vão trabalhando por turno, esta região é para isso, essa é para aquilo,
este ano tem que ser esta região e aquela não. Esta é uma política de serviço, por estar neste território,
por ter o usufruto da terra”.
A economia aimará segue os princípios comunitários e coletivos: “Nós não aceitamos a empresa
privada, aqui não há empresas privadas. Verá hoje, são todas associações comunais, que fazem parte da
comunidade. Nós agora estamos impulsionando as empresas comunitárias, frente à empresa privada.
Isso é uma nova alternativa, que nos vai custar muito, mas estamos avançando bem nisso”, diz Eugenio a
partir também da sua experiência como prefeito.
Claro que a contraposição à política eurocêntrica e dominadora e à empresa privada são
fenômenos modernos, impossíveis de serem pensados em épocas pré-colombianas. A visualização do
indesejado também não é feita somente olhando para a Europa, para a fonte da colonização, como um
exercício de comparação teórica. É feita com a experiência objetiva da colonização na América Latina, com
todas as distorções e massacres que são conseqüências de uma imposição cultural, econômica e política.
Nos rincões da América Latina, a política eurocêntrica tomou características mais cruéis, personalistas,
corruptas e violentas. A empresa privada, símbolo de modernidade em outras partes, aqui será um novo
nome para as antigas empresas coloniais que expropriavam os povos originários para guardar as suas 21.Branco Marinkovic, pre-
riquezas em uma parte longínqua do globo. Portanto, esta retomada dos valores antigos, feita com maior sidente do Comitê Cívico de
contundência somente no século XX – quinhentos anos depois do início da colonização - só pode ser Santa Cruz, sofre um processo
entendida pela perspectiva histórica atual. atualmente por ter se apro-
priado indevidamente de 26
Da mesma maneira, a figura do q’ara, do homem branco, estrangeiro, é constantemente revista mil hectares, parte deles em
dentro da figura do elemento explorador. Se antes ele era o espanhol, que sugava a prata de Potosi e as território dos índios guarayos.
vidas dos índios nas minas, ele passou a ser na atualidade a figura do gringo americano que intervém
nos assuntos de política interna, que promove os massacres no Chapare, ou o latifundiário croata que se
apropria de territórios indígenas nas terras baixas do país21.
Portanto, a imagem do q’ara é sempre relacionada com a figura do que possui riquezas.
Contudo, estas riquezas não provêm de um esforço pessoal, segundo as teorias clássicas liberais, mas 22.GARCIA Linera, Álvaro
(coord.) et al., op. cit., p. 176.
são frutos da exploração dos povos indígenas, como aponta Garcia Linera22. Desta forma, trata-se de um
conflito de classes com forte elemento étnico, pois a sociedade de classes e colonial na Bolívia foi fundada
a partir deste recorte cultural: “A etnificação social é um componente estrutural da formação classista da
Terra e território
161 sociedade e, em muitos casos, é tanto ou mais visível, e, portanto, moralmente mobilizador, que o próprio
volume da riqueza possuída”23.
23.Idem, 176. Tradução da Garcia Linera ainda aponta que é justamente esta característica étnica que pôde fazer com que
autora. o movimento aimará, majoritariamente camponês, tivesse um braço tão forte na zona urbana como o
movimento de moradores de El Alto. “Ao ressaltar esta dimensão cultural da condição de classe, a etnicidade
24.Ibidem, 177. Tradução da como núcleo explicativo da opressão unificante, o movimento abre as portas para uma articulação com
autora. outros setores, de outras classes sociais etnicamente dominadas, ainda que economicamente menos
exploradas (transportistas, comerciantes, operários, etc.)”24.
25.O partido fundado em O Estado opressor, ainda com características coloniais, era a materialização deste q’ara. Era ele
meio a estas mobilizações por que regulava a exploração das empresas estrangeiras em território boliviano, era ele que permitia a inter-
Felipe Quispe, e pelo qual venção americana. Seu controle era feito por uma elite nacional que tinha muito mais em comum com os
Eugenio Rojas é prefeito de
estrangeiros do que com os próprios bolivianos. Portanto, a relação deste movimento com o Estado sem-
Achacachi, o Movimento In-
dígena Pachakuti, indica esta pre teve em vista a sua substituição por outro modelo, uma ruptura que apontasse para uma nova era25.
vontade política. Na tradição Esta sociedade “comunitarista” seria alcançada, segundo Felipe Quispe, “com a força das armas,
dos povos andinos “Pachaku- não pela via eleitoral”. Para ele, a participação no Estado é válida somente para se tornarem conhecidos
ti” significa mudança do
mundo e nova era. In: ALBÓ, e aprender como os q’aras controlam o poder. Eugenio Rojas, que é prefeito, aponta que o Estado traz
Xavier op. cit., p. 191. limitações de ação, mas garante que se sua comunidade achar necessário infringir as regras do Estado, ele
o fará: “Mas se fazemos bem ao nosso povo, não temos medo de sermos processados”.
26.GARCIA Linera, Álvaro Tal vontade de auto-governo e de autodeterminação se popularizou, segundo Garcia Linera,
(coord.) et al., op. cit., p. 180- com a luta contra a privatização da água26 em 2000. Tratava-se de uma privatização não de um bem estatal,
181. mas sim de um bem comunitário. O serviço de abastecimento de água, tanto nos vales de Cochabamba
quanto no altiplano de Omasuyus, era gestionado por sistemas comunitários e familiares. Além de ser
27.Em Cochabamba, por uma expropriação, sem indenização, destas estruturas de abastecimento27, a privatização da água ameaçava
exemplo, as organizações vici- a forma tradicional de gestão comunitária boliviana, principalmente no campo. Frente a isso, a figura do
nais se responsabilizavam pelo
abastecimento da água e ha-
Estado foi cada vez mais questionada nas mobilizações de Omasuyus.
viam construído, sem a ajuda Contudo, o movimento de Omasuyus não pode ser tomado como a totalidade do movimento
do Estado, toda a infraestrutu- aimará, assim como o seu projeto político não é geral para todas as agrupações aimarás. Tal observação é
ra para tal atividade.
feita por Xavier Albó, que lembra que organizações como a CSUTCB e a Conamaq (Conselho Nacional
de Markas e Ayllus do Qullasuyu) tem projetos políticos distintos, assim como Felipe Quispe e Evo Mora-
les, ambos aimarás, também são figuras políticas muito diferentes.
Terra e território
O antropólogo localiza, contudo, uma característica geral em todos eles: “Bom, eles querem se 162
reconstruir enquanto povo, isso é evidente. A reivindicação, de qualquer forma, não tem o problema que
há com os de outras partes, que é ter a sua terra, isso eles já têm. O que sim querem ter mais é seu próprio
governo nestes territórios”.
Terra e território
colonização, como a privação de recursos naturais (terras férteis, água para irrigação, etc.), também são 164
motivos centrais para o faccionalismo. “O motivo quase onipresente neste faccionalismo é o acesso aos re-
cursos naturais. Neste ponto quase não há região – com exceções nos Yungas e zonas de colonização – nas 30.Ibidem, p. 32. Tradução da
quais não houve algum conflito, sequer ao nível de querela. São brigas por território”, pontua Albó30. autora.
Albó aponta alguns elementos que provocam mais o faccionalismo, como os recursos escassos,
e outros que provocam mais a solidariedade, como a identificação de um inimigo em comum. “Em gran-
de síntese, quando têm um objetivo em comum, estão juntos. E quando desaparece este objetivo comum,
pan pan pan , brigam entre eles”.
Esta dialética e união de contrários são aspectos centrais na estruturação simbólica aimará31. 31.Ibidem, p. 49.
Ela pode ser perceptível desde organizações sociais por metades, com povos que habitam um território
composto por partes mais altas e partes mais baixas, até entendimento dos objetos e da natureza, “há,
por exemplo, pedras masculinas (mais duras) e outra femininas (menos duras, porém mais resistentes); a
casa é considerada masculina e o pátio feminino; ou ao nível comunal, a torre da igreja é considerada é
32.Ibidem, p. 46. Tradução da
masculina, em contraste com o átrio ou a praça, que são femininos”32. autora.
O que é aimará?
Finalizando pelo início, cabe um esclarecimento aos leitores sobre a definição do que é ser
aimará. Segundo Mario Galindo, eram etnias aimarás as que compunham os senhorios collas, espécie de
reinos localizados ao redor do Lago Titicaca que duraram do século XII até o século XV, com a anexação
33.GALINDO S., Mario
da região colla (Qullasuyu) ao domínio inca33. (coord.); CRUZ A., Bonifa-
Hoje, contudo é muito difícil falar de etnias puras, estabelecendo, por exemplo, que todos os cio; PARDO V., Elizabeth;
que falam a língua aimará hoje são decendentes dos senhorios collas e os que falam quíchua, dos incas. A BUENO S., Ramiro. Visiones
aymaras sobre las autonomías.
utilização generalizada destes dois idiomas pelos povos andinos corresponde inclusive muito mais a um
Aportes para la construcción
fenômeno colonial. “O aimará era uma rama que ficou majoritária de uma língua geral maior. E quando del Estado nacional, p. 251.
chegam os espanhóis, eles borram todas as diferenças que havia entre os indígenas e circunscrevem os PIEB. La Paz, 2007.
indígenas em uma identidade determinada, ‘índios aimarás, índios quíchuas’. Então, estas são identifica-
ções coloniais”, explica Marxa Chávez.
As próprias regiões onde cada língua era falada também não correspondem às atuais divisões,
que têm áreas geográficas mais contínuas. Correspondiam mais a “zonas ecológicas”, nas quais “os aima-
rás estavam, sobretudo, em áreas de altitude mais aptas para o pastoreio, e os quíchuas nos vales mais
Terra e território
165 agrícolas”, aponta Xavier Albó34. Segundo ele, era muito provável que o pertencimento a um aylllu era
mais importante que a localização geográfica deste, e talvez até mais importante que a língua falada.
34.ALBÓ, Xavier, op. cit., p.
Marxa Chávez aponta, porém, que o fenômeno da forte identificação aimará de hoje se deve
173-174. Tradução da autora. muito mais a uma identidade politicamente construída do que uma cultura em si. “A população aimará
antes da colônia sofreu um processo de subordinação a tudo o que foi a dominação inca. Então, há uma
mistura, ninguém pode dizer que são culturas puras. Mas sim, há um processo de identificação muito
forte”. Segundo ela, o aimará enquanto folclore era aceito pela sociedade colonial, mas quando o aimará
passou a ser reivindicado como identidade política, esta identificação foi fortemente negada.
Mais uma vez tratamos de uma identificação que, apesar de ter raízes milenares, tem uma
relação dinâmica com o presente e só pode ser entendida a partir da sociedade que vivemos hoje. Dizer
“Nação Aimará” e “República Qullasuyu” é fruto muito mais de um processo histórico de reversão da
opressão étnica sofrida durante a colônia do que de uma mera vontade de voltar ao passado.
Terra e território
166
Terra e território
(EGTK). Este exército juntava militantes antigos do indianismo, como o próprio Felipe Quispe, com 168
militantes da esquerda marxista tradicional, como os irmãos Raul e Álvaro Garcia Linera, que atualmente
é vice-presidente boliviano. “Eles eram do Movimento Nacionalista Revolucionário de Esquerda. Discu-
timos, eram totalmente marxistas, não sabiam nada da ideologia índia, tupac-katarista. Eles eram gente
da burguesia, dos ricos, queriam se proletarizar, se indianizar, queriam provar a coca, comer a comida
índia”, diz Felipe.
O EGTK, organização clandestina e pequena, se limitava a fazer ações midiáticas de ataque a
torres de televisão e embaixadas: “Fazíamos a nossa propaganda, quebrando as torres, colocando bombas
nas embaixadas, nas igrejas evangélicas, dos mórmons, acima de tudo era uma expressão contra os EUA”.
A ação guerrilheira também incluía treinamento dos novos militantes: “a gente, os velhos, havíamos
participado e nos submetido às regras das guerrilhas na América Central. E trouxemos isso. E queríamos
levar isso em prática, e levamos até certo ponto”.
Mas Felipe identificava discrepância com os militantes brancos. “Não sabiam cozinhar, porque
o pau tem que cruzar, e eles os metiam assim, e só fazia fumaça, nunca cozinhava a comida. Eles não
gostavam de fazer guarda durante a noite, buscavam a sua comodidade. Aí começamos a discrepar. Aí
aprendi também que no branco não se pode mandar, sempre tem este complexo de superioridade, sempre
tem este ‘eu’”.
Em 1992, a guerrilha é desbaratada pelo governo, suas lideranças são presas ou fogem do país.
A luta guerrilheira do EGTK acontece paralelamente a outras experiências latino-americanas dos anos
1990, como Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), ambos no Peru.
Mas não se compara a violência dos movimentos peruanos, pois suas ações efetivas se deram muito mais
no plano da propaganda. Xavier Albó também aponta outra característica própria do EGTK: “Diferente-
mente de outros grupos, como o MRTA, que apelava para figuras andinas, mas não tinha bases realmente
rurais e andinas, Felipe Quispe sim havia conseguido aglutinar um grupo de base, sobretudo na região
de Achacachi, e havia feito seus avanços para influir na poderosa CSUTCB desde o seu discurso mais 35.Idem, p. 80. Tradução da
radical e ideológico”35. autora.
Eugenio Rojas, que foi companheiro de Quispe no EGTK, acredita que a experiência foi po-
sitiva, mas vê muitos erros na atuação deles e das guerrilhas da época. “E eu conheço um pouco o que
era o Sendero Luminoso, eu trabalhei três meses ali na guerra. Era lamentável, eu era muito jovem e não
compreendia o que estávamos fazendo. (...) Era muito terror dentro na população indígena. Trouxemos
Terra e território
169 essa experiência para cá e quase a mesma coisa implementamos na Bolívia, este terror. Não era assim. Mas
estes erros nos fortaleceram no futuro. Percebemos que os guerrilheiros com o povo avançam melhor.
Dentro da massa, no meio das pessoas, a gente empurrando, mas junto, metido aí no meio. Eu era diri-
gente, Felipe era dirigente. Isso nos ajudou, não retroceder jamais, avançar diariamente com o povo. Isso
nos ajudou muito em 2000, 2001, 2003, 2005, e ainda continuamos”.
O irmão de Eugenio, Felipe Quispe, os irmãos Garcia e outras lideranças do EGTK foram
presos em 1992 e permaneceram cinco anos na prisão. Ao saírem ganharam uma grande atenção midiá-
tica, em especial Felipe Quispe, que passou a ser chamado de El Mallku. Já nesta época, ele demonstrava
especial capacidade denunciar publicamente os q’aras, o Estado colonial opressor e reivindicar a figura do
herói Tupac Katari, sempre muito presente na memória aimará.
Logo depois, em novembro de 1998, Felipe foi eleito secretário-executivo da CSUTCB como
mediação de uma rixa entre dois grupos cochabambinos, o grupo de Alejo Véliz e o grupo de Evo Mo-
rales. Logo, Quispe se aproxima mais do grupo de Véliz, segundo ele porque o grupo de Evo era muito
recuado nas suas ações: “Havia o grupo de Alejo Véliz, que tinha uma linha política mais ou menos pró-
xima de mim. E havia o grupo de Evo Morales, que não queria realizar os bloqueios de estradas, cortar
os produtos agropecuários, cercar as cidades, fazer greves marchas. (...) Mas nós, como tínhamos uma
posição radical e já havíamos feito a guerra de guerrilhas, pensávamos diferente. Desta forma, tivemos que
expulsar o grupo de Evo Morales”.
Esta expulsão ocorreu em março de 2000, quando Roman Loayza, então segundo nome da
CSUTCB, foi expulso da confederação. Em novembro deste mesmo ano, Felipe Quispe fundou seu pró-
prio partido, o MIP, o que acirrou a disputa entre o seu grupo e o grupo liderado por Evo Morales, que
até então encabeçava o único partido nascido de dentro das organizações camponesas, o MAS-IPSP.
Em janeiro de 2001, um congresso da CSUTCB em Oruro elege como secretário-executivo a
Humberto Choque. Contudo, o grupo de Felipe Quispe e as algumas federações departamentais que a
ele permaneciam fiéis, como a de La Paz, não reconhecem o congresso e em abril realizam um outro con-
gresso em La Paz. Ali, Felipe Quispe é reeleito como secretário executivo e começa o paralelismo sindical
da CSUTCB, que até hoje possui duas sedes e duas diretorias.
Segundo Marxa Chávez, de qualquer maneira a entrada de Felipe Quispe na liderança da CSU-
TCB é um marco, ao menos se levamos em conta o movimento específico de Achacachi. “Felipe é eleito
como máximo representante da CSUTCB em 98 e é interessante porque diferente dos outros dirigentes,
Terra e território
170
que estão muito imiscuídos na política partidária, o que ele faz é ir de comunidade em comunidade. Ele
passa pelas 200 comunidades de Omasuyos, a pé, de bicicleta, com um grupo de companheiros que o
apóiam”. Ela relata que, enquanto fazia a sua pesquisa em Omasuyus, as pessoas falvam deste trabalho
de base, este “processo de discussão ao nível das comunidades”, no qual se debatia política e recursos
naturais e que foi central para a luta contra a privatização da água em 2000.
Felipe Quispe conta que foi um processo de “re-indianização” das pessoas. “A maioria dos
camponeses eram militantes do MNR. Quando era mais jovem, meus irmãos mais velhos eram do MNR,
das milícias armadas. Porque aqui neste lugar havia patrões, e para tirar estes patrões tiveram que se armar.
Então, como estavam movimentizados [eram do MNR], como agora também estão neoliberalizados, o
que tinha que ser feito? Tinha que des-movimentizar, des-neoliberalizar, e finalmente re-indianizar, ou seja,
fazer com que reencontrem com seu próprio pensamento, que voltassem a ser índios, não simplesmente
camponeses”. Este trabalho era feito com cursos, seminários, palestras, uma espécie de “escola política
ideológica que eduque as pessoas, as massas”.
A partir deste processo, segundo Quispe, se conseguiu apresentar um discurso diferente frente
à nação. “Já não era colocar bombas, atirar, sabotar os meios econômicos dos ricos, era uma luta massiva,
de toda uma nação aimará, pedindo a sua livre autodeterminação. (...) Havíamos re-indianizado estas
pessoas. Então começa a sacudir a apatia, rompe o silêncio destes 500 anos, sai à luz pública um discurso
anti-q’ara, anti-branco, anti-colonial, anti-imperialista, anti-capitalista”.
Oito anos depois dos conflitos massivos de 2000, Felipe Quispe não ocupa nenhum cargo
dentro do movimento camponês indígena. Seus seguidores diminuíram consideravelmente de tamanho,
dado o que ele mesmo chama de “fenômeno Evo Morales”, que praticamente os destruiu a partir de 2005.
Muitos militantes passaram para o lado do MAS, como o seu velho companheiro de guerrilha Álvaro
Garcia Linera, hoje pilar das políticas de governo do MAS. “E a gente discutiu, queríamos levar Álvaro
Garcia como candidato à presidência, mas ele nem sequer quis sair como deputado nacional. Ele dizia
que ia sair como deputado constituinte pelo nosso movimento político, mas tampouco. Logo aparece nas
filas do MAS como candidato à vice-presidência, e isso é traição. Não há nenhuma carta de renuncia,
não há nada”.
Quispe acusa também Eugenio Rojas, prefeito de Achacachi pelo MIP, de ter passado para as
filas do MAS. “É como eu te dizia, muita gente foi para o outro lado. É como piolho, vão para o lado que
faz calor, e como o Evo está fazendo muito calor, estão vivendo aí, neste calor”, lamenta o Mallku. Terra e território
171 Vivendo como os aimarás
“Os aimarás diziam que tem que tratá-la como gente. Da batata, não se pode desperdiçar nada.
Assim vemos a natureza, com respeito”, me explica Seu Rufo Yanarico enquanto descascamos chuño no
36.Chacra, assim como chaco, gramado da sua pequena chacra36. Dona Marcelina, sua esposa, nos acompanha e verifica se os chuños
se refere à uma parcela de ter- estão bem descascados.
ra. É uma denominação mais
usada no altiplano Chuño é um tipo de batata ressacada, muito comum na alimentação tradicional andina. Quan-
do a colheita é feita, são separadas as batatas mais miúdas. Estas são espalhadas ao solo para que congelem
com as geadas noturnas. Depois, são pisadas para desidratar e o resto da secagem é feita pelo sol, muito
forte nos Andes durante o dia. Por fim, as cascas têm que ser tiradas, e o chuño está pronto para ser guar-
dado por anos e anos. Para comê-lo, basta cozinhá-lo em água.
Tacamara é uma comunidade de cerca de 400 famílias e fica aos pés do nevado Illampu, a me-
nos de vinte minutos por estrada de pedras saindo de Achacachi. Ali Seu Rufo nasceu, se criou, se casou e
teve seus três filhos: José, Marisol e Gabriel. Todos estudam na escola da comunidade, e José, que é filho
mais velho e tem hoje 17 anos, já participa com os pais das reuniões comunitárias.
A pequena chacra, de meio hectare, foi herança dos pais de Seu Rufo, que até 1952 eram colo-
nos na antiga fazenda de mesmo nome. O lote dos pais era garantido em troca do trabalho de segunda a
sábado nas terras da patroa, Dona Emiliana. Depois da revolução de 1952, o casal dividiu o lote de um
hectare entre os seus dois filhos homens. As filhas mulheres teriam que encontrar um marido para que
pudessem ter seus próprios terrenos.
Com somente meio hectare, explica Seu Rufo, infelizmente não se pode deixar a terra descan-
sar. A sorte é que há a água do degelo que sempre proveu a região de irrigação e a comunidade nunca
sofreu com as secas. Na sua chacra, Seu Rufo mantém pequenas plantações de cebola, fava, aveia, batata
e trigo. Além disso, possui três vacas, quatro porcos e uma galinha. As plantações garantem a comida
da família, enquanto o leite das vacas, que dão cada uma algo em torno de cinco litros ao dia, garante o
dinheiro para comprar material escolar, roupas, e demais necessidades de consumo.
A família vende o litro de leite por 2,3 pesos bolivianos à empresa Pil Andina. Seu Rufo se
surpreende ao saber que esta mesma empresa vende o seu litro de leite pasteurizado no supermercado a
5,50. De qualquer forma, como Don Rufo agora é chefe de recursos humanos (personal) da prefeitura de
Achacachi, a situação da família já não depende tanto da produção de leite. Com o marido funcionário
público, é Dona Marcelina quem cuida do dia a dia da chacra. Ela conta também com os filhos, que já
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172
Terra e território
173 têm idade para ajudar.
Quando terminamos de descascar o chuño, Marisol traz o almoço acompanhada de seus irmãos.
Estendem na grama um tecido grosso bem resistente, listrado de cores fortes e feito pela própria Dona
Marcelina. Nele sentamos em roda para almoçar. No centro, há outro pano, que traz embrulhados chuño,
favas, um pote com molho de pimenta e peixe frito do Titicaca. Tomamos um refrigerante de mamão.
Falam algo em aimará, a família toda ri. Dona Marcelina me explica que seus filhos querem me
adotar. Rimos todos. Sinto-me um pouco como Gringo, o gato da família. Devem pensar que eu, magra
e sem cor para os padrões bolivianos, passo fome no Brasil.
Mas não há tempo para muitas conversas. Dona Marcelina e Don Rufo têm uma reunião im-
portante às 11h, na praça da comunidade. Vou com eles até lá, para pegar a van que parte de volta para
Achacachi. Ao chegarmos na praça, percebo um grupo de homens reunidos no canto esquerdo e um
grupo de mulheres - algumas fiando lã, outras costurando – mais ao centro da praça. Seu Rufo e Dona
Marcelina se separam imediatamente, cada qual indo em direção ao grupo que lhes corresponde. Eu, por
sorte, encontro uma van que me leva direto a La Paz. No caminho vejo baixar José, o filho mais velho,
atrasado para a reunião.
Terra e território
179 de Warisata tem que ser fechada, estes índios um dia vão se levantar, vão fazer bloqueio, vão invadir’. E
fecharam a escola”, lamenta Seu Basílio que na época havia acabado seu curso primário e queria iniciar
o magistério.
Toda a sua geração foi para La Paz e começaram a trabalhar para ganhar a vida. Basílio, na im-
possibilidade de se formar professor, se tornou cabeleireiro e trabalhou em um salão cujo dono era japo-
nês. Dali, Seu Basílio tirou algumas aprendizagens. A primeira é que até hoje sabe falar algumas palavras
em japonês. A outra é que se acostumou a ler muito jornal, pois tinha que ter assunto para falar com os
clientes, e mesmo quando estava em casa, pegava seus livros e continuava lendo.
No final da década de quarenta, o jovem Basílio teve que prestar serviço militar. Em 1948, sua
companhia serviu durante quatro meses como guarda do palácio de governo. Basílio logo começou a
conhecer as autoridades e a ganhar certa intimidade. O presidente da época era Henrique Hertzog, que
coincidentemente havia sido governador do departamento de La Paz em 1931 e estava presente na inau-
guração da escola. Um dia Basílio tomou coragem e disse ao presidente: “Minha Excelência, eu sou de
Warisata e você também fundou a nossa escola. Por favor, nos devolva a escola. Sem o magistério, meus
companheiros vieram a La Paz, são sapateiros, costureiros, mecânicos, carpinteiros”. Ele pediu então que
viesse uma comissão de Warisata a La Paz para ter uma audiência com ele. A comissão foi a La Paz, a
reunião aconteceu e neste mesmo ano a escola de Warisata voltou a funcionar.
Mas os rumos levaram Basílio, que sempre gostou de estar bem informado, a outros lados. Em
1952 estoura a revolução nacional na sede do governo boliviano e ele, reservista do exército, se incorpora
ao levante. “Eu estava na célula São Pedro, por células nos organizamos. No dia 8 de abril de 1952, já es-
távamos bem organizados e o governo não sabia nada. Victor Paz Estenssoro estava exilado na Argentina,
e quem liderava era o doutor Hernan Siles Zuazo. O sinal já estava preparado, às 3h da manhã dinamites
estouram em diferentes bairros da cidade. Eu estava lá, pronto. Não havia armamento, mas o plano era
atacar o arsenal de guerra de Chayapampa. Ali havia munições, armas, tudo, só precisava tomar. Toma-
mos todo, pegamos todos os armamentos. E eu, como eu sou reservista, peguei a arma e pronto”.
Ele explica também que naquela época o MNR não era como o MNR de Goni, neoliberal. “Foi
um bom partido nesta época. Mas, o que aconteceu? O fazendeiro se infiltrou, se apoderou da política do
MNR, nos enganou. Por isso que houve a Guerra do Gás, porque o camponês já havia dado conta”.
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A Escola Ayllu hoje 180
“A escola foi reaberta em 1948, e até agora continua. Mas não tem o mesmo objetivo, já mudou,
já não é escola produtiva. Simplesmente ensina a ler e a escrever, assim como qualquer outra escola”, me
explica Andrés Mamani, atual diretor da escola de Warisata. O Parlamento Amauta ainda existe, mas já
não atua como antes, quando os habitantes das comunidades se responsabilizavam de fato pelas tarefas
da escola. Agora, cumpre a função de simples conselho, que opina sobre os assuntos da escola, faz a me-
diação entre ela e a comunidade.
Um dos motivos para isso ter acontecido foram as reformas educacionais que teve Bolívia du-
rante a segunda metade do século XX, que conseguiram de forma mais eficiente incorporar a escola de
Warisata a um padrão nacional, e dificultaram o desenvolvimento autônomo da sua própria pedagogia.
“Não era individualista a Escola Ayllu de Warisata, era comunal, na aprendizagem também. Enquanto
agora é individual, o docente está na lousa, escreve, fala, o aluno olha e copia”, lamenta Andrés Mama-
ni.
Mas Mamani também conta sobre iniciativas para recuperar o modelo de escola produtiva.
Estão recuperando as oficinas, como a de tecidos e de carpintaria; mantêm ainda alguns campos de cul-
tivo de batatas e criam animais, como gado, ovelhas e galinhas. A iniciativa esbarra, contudo, na falta de
recursos para impulsionar estas políticas, para equipar uma oficina, por exemplo. Mamani tem esperanças
em uma lei que está trabalhando o governo atualmente que será chamada de Lei Avelino Siñani e Elizardo
Perez. Ela proporá um resgate à filosofia fundacional de Warisata, da escola produtiva.
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Com muitos percalços, idas e vindas, fiquei ao todo seis meses na Bolívia. Pouco tempo para
entender o país, mas tempo suficiente para acumular muitas dúvidas. Sendo este trabalho realizado em
meio a vários processos históricos – o mandato de Evo Morales, o profundo questionamento do Estado-
nação, a construção de auto-governos indígenas – muitas questões ficaram em aberto.
Evo conseguirá terminar o seu mandato? Se sim, sob quais concessões e condições? O país
se dividirá? Haverá golpe de Estado? A nova Constituição Política de Estado será finalmente aprovada?
Haverá uma legislação que limite efetivamente a propriedade de terras? A revolução agrária existirá de
verdade ou não passará de discurso? Essas perguntas podem ser respondidas em questões de meses ou
anos.
Mas há outras perguntas, que falam de processos históricos mais longos e profundos, como o
futuro do movimento indígena camponês boliviano. Conseguirá ele cumprir a tarefa de descolonização a
qual se propõe? Os inimigos, como vimos, são muitos: a oligarquia crucenha, o governo norte-americano, a
persistente herança colonial. Ou será que, ao final do processo, este movimento será novamente cooptado
pelos grupos dominantes reformulados? E o governo de Evo, é um caminho para esta descolonização
ou seria ele um caminho para a criação de novas elites? Marca o fim ou o começo deste processo de
emancipação? O limite é muito tênue.
Contudo, na intensa disputa e polarização que há no país, o regime burguês de democracia
representativa está se esgotando, pela esquerda ou pela direita. A Bolívia vive hoje um período pré (guerra
civil? golpe? revolucionário?), mas que é significativo por si só. Como no Chile de Allende, a Bolívia do
início dos anos 2000 viveu experiências de poder popular e de soberania.
Este fenômeno é ainda mais especial se considerarmos o período histórico que vivemos,
chamado de pós-moderno, “atomizado”, no qual as pessoas estão enterradas em números de bilhões de
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habitantes e nada mais importa do que a sua sobrevivência imediata. Aceitar esta constatação é torná-la 184
verdade e as lutas bolivianas atuais só existem porque para grande parte da sua população este indivíduo
pós-moderno atomizado não é uma realidade.
A população boliviana sabe da sua história de dominação, e sabe que a história não acabou,
porque o neoliberalismo é o neocolonialismo, o “pongueaje” moderno. É por isso que, muito mais do
que as intrigas políticas dadas dentro do Palácio do Governo, a história dos últimos anos foi traçada em
assembléias, bloqueios, marchas e ocupações de terra. E mesmo com um representante deste movimento
ocupando a cadeira presidencial, a história persiste e continua sendo assim.
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P. 136. Camponeses vêem a entrega da Nova Constituição Política do Estado. Ao fundo, está Evo
Morales na bancada do Palácio Quemado. Em 15/12/2007.
P. 167. “Jallalla Mallku”, “viva Mallku” já meio desbotando em Achacachi. Abril, 2008.
P. 172. Dona Marcelina e Seu Rufo descascando chuno em Tacamara. Província Omasuyus,
departamento de La Paz. Maio, 2008.
P. 178. Seu Basílio Quispe com a assinatura de Mariano Fuentes Lira em obra no Pavilhão México da
Escola de Warisata. Abril, 2008.
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SIGLAS
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GLOSSÁRIO
Acullico ou pijcheo – Comumente chamado de “mascar” de coca, mas não consiste em triturar as
folhas, mas sim pressioná-las com os dentes para aos pouco ir tirando a sua seiva.
Ayllu – Nome com o qual os povos andinos chamam as suas comunidades indígenas originárias.
Ayni – Sistema de trabalho recíproco, no qual uma família conta com o trabalho de outras unidades
familiares em uma determinada ocasião e, futuramente, o devolve em atividades equivalentes.
Camba – Como são chamados os habitantes das terras baixas bolivianas.
Chaco – Lote de terra, termo utilizado em Santa Cruz e entre os cocaleiros.
Chacra - Lote de terra, termo utilizado em Omasuyus.
Chaqueo – Processo de queima e derrubada do mato de um determinado terreno tanto para fins
agrícolas quanto pecuários.
Chicha – Bebida alcoólica fermentada de milho.
Chicheria – bares populares onde se bebe chicha.
Cholitas – Mulheres indígenas do ocidente boliviano que se vestem com sua roupa típica: pollera, blusa
rendada, chapéu e tranças. O tamanho e o estilo da pollera e do chapéu podem variar dependendo da
região.
Chuchiu – Espécie de bambu, com o qual se faz paredes para moradias.
Chuño – Espécie de batata desidratada.
Colla – Como são chamados os habitantes do altiplano boliviano.
Criollo - Descendente de espanhóis nascido na América Latina.
Kuraka – Chefe político da comunidade, cacique.
Mita – Sistema de fornecimento de força de trabalho servil recrutada nas comunidades pelo o governo,
forma de pagamento de tributos. Utilizado tanto pelos incas como pelos espanhóis.
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Motacu – Espécie de palmeira abundante nas terras baixas bolivianas, com a qual se faz forragem para 194
tetos de moradias.
Pachamama – Mãe-terra.
Pollera – Saia bastante rodada e volumosa utilizada pelas cholitas. Em La Paz são mais cumpridas, indo
até o tornozelo, e em Cochabamba são mais curtas, até o joelho.
Pongueaje – Sistema de trabalho servil dentro das fazendas criollas, na qual os camponeses para cultivar
e ter acesso a um lote de terras precisavam trabalhar nas terras do fazendeiro.
Q’owa – Cerimônia de oferenda à Pachamama.
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