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Simon J.

Kistemaker

As Parábolas de JESUS

Tradução: Eunice Pereira de Souza

Produzido em Português com autorização do próprio autor

Diretoria Executiva:
Diretor-Presidente:
Editor: Cláudio Marra
Diretor-Comercial:

Revisão:

Arte:

Composição:

1ª Edição 1992 – 3000 exemplares

CASA EDITORA PRESBITERIANA


Rua Miguel Teles Jr., 382/294 – Cambuci.
01540-040 – São Paulo – SP.
Fone: (11)-270-7099
APRESENTAÇÃO

As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como


o primeiro do Autor – Simon Kistemaker -, e que esta Editora produz e
oferece ao público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de
língua portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos
dados informativos, este Autor ainda não é lido via língua portuguesa,
não obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo
teólogo e expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além
de outras obras de sua autoria particular, o Autor também forma
parceria com Willian Hendriksen na série Comentário do Novo
Testamento, que ora é publicado por esta Editora. De sua Autoria é
Hebreus, Pedro e Judas, Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos
(este último já se acha em preparação, em dois volumes, e em breve
virá a lume).
Além disso, o Autor tem sido um dos colaboradores estrangeiros
no curso de mestrado em teologia, no Brasil, especialmente no
Seminário Teológico José Manoel da Conceição (J.M.C.), em São Paulo.
Ele faz parte da plêiade de Teólogos calvinistas que ainda permeiam
(graças a Deus!) o seio da Igreja do Cordeiro. Esta Editora, bem como
toda a IPB, ficamos em dívida para com o renomado Autor.
Ao prepararmos este livro, uma incontida emoção e uma
profunda convicção nos fizeram antever o quanto será ele uma bênção
na vida cristã de cada leitor, seja ele ministro do Evangelho, ou seja,
leigo, porém, estudioso e ativo na Seara de Nosso Mestre Jesus Cristo.
Isto afirmamos sobre bases sólidas, pois eis aqui um livro rico em
requisitos positivos: Sua simplicidade fica logo em admirável
evidência. Dele podem beber todos quanto possuam alguma cultura e
quantos são detentores de cultura privilegiada. Também eis um livro
que se destinada a toda classe de leitores interessados em aumentar
sua visão da literatura mais linda do mundo – as parábolas de
Jesus! Sua abrangência o torna ainda mais rico e útil. Além de
discorrer sobre todas as parábolas de nosso Senhor, nos Evangelhos,
ainda nos fornece muitos lados e detalhes para a melhor compreensão
dessa literatura tão complexa. Finalmente, resta-nos mencionar sua
precisão e fidelidade à sã doutrina. O Autor revela total respeito
para com a Palavra de nosso Senhor.
Louvamos ao senhor e convidamos a cada leitor solícito a ler e
meditar nesta obra tão preciosa, resvalando-se dela para outra muito
mais preciosa ainda – as próprias parábolas!
Ainda uma palavra sobre um amigo que preferiu permanecer no
anonimato, por meio de que obtemos autorização para esta
publicação. Ele não quis aparecer, todavia, registramos o nosso apreço
e gratidão em sua referência. Obrigado, amigo oculto! O leitor não
saberá que é você, todavia nós sabemos, e, acima de tudo, o Senhor
da Igreja sabe... e é isto que importa! Agradecemos ao Dr. Simon
Kistemaker por não ter requerido de nós royalty (=pagamento de
direitos autorais). Esperamos que este livro seja um meio dentre
tantos outros para a maior glorificação do Nome de Jesus Cristo, o
Senhor da Igreja... “até que ele venha”! Maranata!

Dezembro de 1992
Valter Graciano Martins
Editor

PREFÁCIO

Livros sobre parábolas, escritos a partir de uma perspectiva


evangélica, são poucos e, a maior parte das vezes, desatualizados:
muitos dos que foram publicados deixaram de ser reeditados. Ao
escrever este livro, procurei ir ao encontro da necessidade do pastor
que deseja consultar um livro evangélico que contenha todas as
parábolas de Jesus e a maior parte do que é dito sobre elas nos
Evangélicos Sinóticos.
Este livro procura atingir o nível adequado de pastores
teologicamente treinados. Tendo os pormenores técnicos sido
restringidos a notas de rodapé, o texto, em si, pode ser de grande
ajuda a qualquer um que pretenda estudar seriamente a Bíblia. O livro
apresenta uma biografia selecionada.
Muitas pessoas colaboraram para tornar este livro uma
realidade. Quero expressar meus agradecimentos ao Seminário
Teológico Reformado por me ter liberado do trabalho aos sábados; ao
diretor e bibliotecário da Livraria Tyndale, em Cambridge, Inglaterra; a
meus alunos assistentes, Dana W. Casey, Edward Y. Hopkins e James
Theodore Lester; à minha secretária, Mrs. Kathleen Sapp; à minha
esposa, Jean, que datilografou o manuscrito; e aos revisores, Mrs.
Mary L. Hulton e P. Ronald Carr.
Possa este livro ajudar os pastores a preparar seus sermões a
respeito das parábolas de Jesus.

Simon J. Kistemaker
1980
ABREVIATURAS

ATR Anglican Theological Review


BA Biblical Archaeologist
Bib Bíblica
BibLeb Bibel und Leben
CBQ Catholic Biblical Quartely
EvQ Evangelical Quarterly
ExpT Expository Times
HTR Harvard Theological Review
Interp Interpretation
JBL Journal of Biblical Literature
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
JTS Journal os Theological Studies
NAB New American Bible
NASB New American Standart Bible
NEB New English Bible
NIDNTT New International Dictionary of New Testament Theology
NIV New International Version
Novt Novum Testamentum
NTS New Testament Studies
RefR Reformed Review
ScotJT Scottish Jounal of Theology
SB H. L. Strack and P. Billerbeck, Kommentar
StTh Studia Theologia
TB Tyndale Bulletin
TDNT Theological Dictionary of the New Testament
TynHBut Tyndale House Bulletin
TS Theological Studies
TZ Theologische Zeitschrift
ZNW Zeitschrift für die Neuentestamentliche Wissenschaft
ZPEB Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible
ZTK Zeitschrift für Theologie und Kirche

Livro da Bíblia

Gn Jr Lc
Êx Lm Jo
Lv Ez At
Nm Dn Rm
Dt Os 1,2 Co
Js Jl Gl
Jz Am Ef
Rt Ob Fp
1,2 Sm Jn Cl
1,2 Rs Mq 1,2 Ts
1,2 Cr Na 1,2 Tm
Ed Hc Tt
Ne Sf Fm
Et Ag Hb
Jó Zc

Introdução
Com muita freqüência, os jornais trazem, junto aos editoriais,
com destaque, uma caricatura. Com poucas linhas, o artista traça o
esboço humorístico de um fato político, social ou econômico, atual.
Através do desenho ele transmite uma mensagem contundente e
direta, cuja eloqüência um redator dificilmente poderia alcançar.

Contando parábolas, Jesus desenhava quadros verbais que


retratavam o mundo ao seu redor. Ensinando através das parábolas,
ele descrevia aquilo que acontecia na vida real. Isto é, ele usava uma
história tirada do cotidiano, para, através de um fato já aceito e
conhecido, ensinar uma nova lição. Essa lição, na maior parte das
vezes, vinha no final da história e provocava um impacto que
precisava de tempo para ser entendido e assimilado. Quando ouvimos
uma parábola, acenamos com a cabeça, concordando, porque a
história é como a vida real e fácil de ser entendida. No entanto,
mesmo que se ouça a aplicação da parábola, ela nem sempre é
compreendida. Vemos a história se desenrolar diante de nossos olhos,
mas nem sempre percebemos seu significado1. A verdade permanece
escondida até que nossos olhos se abram e possamos vê-la mais
claramente. Então, a nova lição da parábola se torna significativa.
Como Jesus disse a seus discípulos: “A vós outros vos é dado o
mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se ensina por meio de
parábolas” (Mc 4.11).

Formas

A palavra parábola, no Novo Testamento, tem uma conotação


ampla que inclui formas de parábolas que são, geralmente, divididas
em três categorias2. Há as autênticas parábolas, histórias em forma de
parábolas e ilustrações.

1. PARÁBOLAS AUTÊNTICAS. Essas usam como ilustração um


fato comum do dia-a-dia, e são facilmente compreendidas por
qualquer um que as ouça. Qualquer pessoa entende a verdade
transmitida; não há motivo para objeção ou crítica. Todos já viram
uma semente germinar (Mc 4.26-29); o fermento levedando a massa
(Mt 13.33); crianças brincando numa praça (Mt 11.16-19; Lc 7.31,32);
uma ovelha desgarrada do rebanho (Mt 18.12-14); uma mulher que
perde uma moeda em sua própria casa (Lc 15.8-10). Essas e muitas
outras parábolas começam retratando verdades evidentes a respeito
da natureza do homem. São contadas, usualmente, no presente.

2. HISTÓRIAS EM FORMA DE PARÁBOLAS. Diferindo das


parábolas autênticas, a história em forma de parábola não se
relaciona com uma verdade óbvia ou com um costume geralmente
aceito. A verdadeira parábola é contada como um fato, com o verbo

1
R. Schippers, “The Mashal-character of the Parable of the Pearl”, em Studia
Evangelica, cd F. L. Cross (BcrIin: Akademíe-Verlag, 1964), 2:237.
2
F. Haucck, TDNT, V:752.
no presente. A história em forma de parábola, por outro lado, se refere
a um acontecimento em particular, que teve lugar no passado —
geralmente a experiência de uma pessoa. É, por exemplo, a
experiência de um fazendeiro que semeou trigo e, mais tarde,
percebeu que seu inimigo semeara o joio no mesmo pedaço de chão
(Mt 13.24-30). É a história de um homem rico, cujo administrador
defraudou os seus bens (Lc 16.1-9); ou, é o relato a respeito de um
juiz que julgou a causa de uma viúva atendendo a seus inúmeros
pedidos (Lc 18.1-8). O interesse dessas histórias não está na narrativa,
porque o que é significativo nelas não é o fato, mas a verdade
transmitida.

3. ILUSTRAÇÕES. As histórias ilustrativas registradas no


Evangelho de Lucas são, geralmente, classificadas como histórias que
servem de modelo, de exemplo. Incluem a parábola do bom
samaritano (Lc 10.30-37); a parábola do rico insensato (Lc 12.16-21);
a parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31); e a parábola do fariseu e o
publicano (Lc 18.9-14). Essas ilustrações diferem das histórias em
forma de parábolas pelo seu propósito. Enquanto a história em forma
de parábola é uma analogia, as ilustrações contêm exemplos a serem
imitados ou evitados. Elas focalizam, diretamente, o caráter e a
conduta de um indivíduo; a história em forma de parábola faz isso
apenas indiretamente.

Nem sempre é simples classificar uma parábola. Algumas delas


apresentam características dos dois grupos — da autêntica parábola e
da história em forma de parábola — e podem ser classificadas de um
modo ou de outro. Os Evangelhos registram, também, numerosas
afirmações em forma de parábola. É, muitas vezes, difícil determinar
quando uma declaração de Jesus constitui uma autêntica parábola, ou
quando é uma declaração em forma de parábola. O ensinamento de
Jesus a respeito do fermento (Lc 13.20,21) é classificado como uma
verdadeira parábola, mas sua mensagem sobre o sal (Lc 14.34,35) é
considerada uma afirmação em forma de parábola. No entanto,
algumas declarações de Jesus são apresentadas como parábolas. Por
exemplo: “Propôs-lhe também uma parábola: Pode porventura um
cego guiar a outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lc 6.39).

No que uma parábola difere de uma alegoria? O Peregrino de


John Bunyan é uma representação alegórica do caminhar de um
cristão pela vida. Os nomes e as circunstâncias encontrados no livro
representam a realidade. Cada fato, cada característica ou afirmação
são simbólicos e devem ser interpretados ponto a ponto em seu
significado real para que possam ser corretamente entendidos. Uma
parábola, por sua vez, é fiel à vida e ensina, geralmente, apenas uma
verdade básica. Em suas parábolas, Jesus usou muitas metáforas,
como, por exemplo, um rei, servos e virgens, mas estas nunca se
afastaram da realidade. Não estão nunca relacionadas com um mundo
de fantasia ou ficção. São histórias e exemplos tirados do mundo em
que Jesus vivia e transmitem uma verdade espiritual, através da
comparação. Os pormenores da história são o sustentáculo da
mensagem que a parábola transmite. Não devem ser analisadas ponto
a ponto e interpretadas como uma alegoria, pois perderiam o seu
significado.

Composição

Embora, de um modo geral, seja verdade que uma parábola


ensina somente uma lição básica, esta regra nem sempre é definitiva.
Algumas das parábolas de Jesus têm composição complexa. A
composição da parábola do semeador apresenta quatro partes e cada
parte pede uma interpretação. Do mesmo modo, a parábola sobre as
bodas não é uma história única, pois tem acrescentado uma parte a
respeito de um convidado que não está usando roupas apropriadas
para a ocasião. Também, a conclusão da parábola sobre os lavradores
maus se desvia do cenário da vinha para o de construtores e seus
negócios. Por causa dessa complexidade, é sensato o exegeta não se
prender a um ponto único na interpretação da composição das
parábolas.

Ao ler as parábolas de Jesus, nós nos perguntamos por que são


deixados de lado vários detalhes que deveriam fazer parte da
história. Por exemplo, na história do amigo que bate à porta de seu
vizinho, no meio da noite, para pedir três pães, a mulher do vizinho
não é mencionada. Na parábola do filho pródigo, o pai é uma figura
marcante, mas nem uma palavra é dita a respeito da mãe. A
parábola das dez virgens apresenta o noivo, mas ignora
completamente a noiva. Esses pormenores, entretanto, não são
relevantes na composição geral das parábolas, especialmente se
compreendermos o artifício literário das tríades, muitas vezes usado
nas parábolas de Jesus. Na parábola do amigo que vem bater à porta
no meio da noite, há três personagens: o viajante, o amigo e o
vizinho. A parábola do filho pródigo também fala de três pessoas: o
pai, o filho mais jovem e o irmão mais velho. Na história das dez
virgens, encontramos três elementos: as cinco virgens prudentes, as
cinco virgens tolas e o noivo.

Além disso, nas parábolas de Jesus não é o começo da história o


que é importante, porém o seu final. A importância recai sobre a
última pessoa mencionada, o último feito ou a última declaração. O
“efeito final” da parábola é deliberadamente elaborado em sua
composição3. Foi o samaritano que procurou aliviar a dor do homem
ferido, não o sacerdote ou o levita. Embora os dois servos que
apresentaram cinco e dois talentos adicionais a seu senhor tenham
recebido louvor e elogios, foi o fato de ter enterrado seu único talento
na terra que trouxe ao terceiro servo escárnio e condenação. Na
parábola sobre o proprietário de terras que durante o dia contratou

3
A. M. Hunter, The Parables Then and Now (London: Westminster Press, 1971), p.
12.
homens para trabalhar em sua vinha e, às seis horas, ouviu
reclamações de alguns dos trabalhadores, o mais importante é a
resposta do dono: “Amigo, não te faço injustiça... são maus os teus
olhos porque eu sou bom?” (Mt 20.13,15).

A arte de elaborar e contar parábolas, demonstrada por Jesus,


não encontra paralelo na literatura. Mas bem semelhantes às
parábolas de Jesus são aquelas dos antigos rabinos dos dois primeiros
séculos da era cristã. Essas parábolas eram apresentadas,
comumente, com uma pergunta: “Uma parábola: A que se
assemelha?” Nessas parábolas, também, o artifício literário da tríade e
a ênfase final eram usados. Por exemplo:

Uma parábola: A que se assemelha? A um homem que estava


viajando pela estrada, quando encontrou um lobo. Conseguiu escapar
dele e seguiu adiante, relatando aos outros seu encontro com o lobo.
Então, ele encontrou um leão e escapou dele; e seguiu adiante,
contando a todos o encontro com o leão. A seguir, ele encontrou uma
cobra e escapou dela. Após esse acontecimento, ele se esqueceu dos
dois anteriores e prosseguiu contando o caso da cobra. Assim também
é Israel: as últimas dificuldades o fazem esquecer as primeiras4.

Entretanto, a semelhança entre as parábolas de Jesus e as dos


rabinos está apenas na forma. As parábolas dos rabinos,
normalmente, são apresentadas para explicar ou elucidar a Lei,
versículos das Escrituras, ou uma doutrina. Elas não são usadas para
ensinar novas verdades, como acontece com as parábolas de Jesus.
Através das parábolas, Jesus explicava os grandes temas de seu
ensinamento; o reino dos céus; o amor, a graça e a misericórdia de
Deus; o governo e a volta do Filho de Deus; o modo de ser e o destino
do homem5. Enquanto que as parábolas dos rabinos não ensinam
senão a aplicação da Lei, as de Jesus são parte da revelação de Deus
ao homem. Em suas parábolas, Jesus revela novas verdades, pois ele
foi comissionado por Deus para tornar conhecida a vontade e a
Palavra de Deus. As parábolas de Jesus, portanto, são as revelações de
Deus; as dos rabinos, não.

Propósito

As parábolas mostram que Jesus estava perfeitamente


familiarizado com a vida humana em seus múltiplos aspectos e
significado. Ele tinha conhecimento de como cultivar a terra, lançar a
semente, extirpar as ervas daninhas e colher os frutos. Ele se sentia
em casa, em uma vinha; sabia a época da colheita dos frutos da
4
I. Epstein, cd., “Seder Zeraim Berakoth 13a”, in The Babylonian Talmud (London:
Soncino Press, 1948); p.73.
5
Hauck, TDNT, V:758. J. Jeremias, na oitava edição de seu Die Gleichnisse Jesu
(Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1970), p. 8, faz notar que as parábo1as de
Jesus podem ter contribuído para o desenvolvimento do gênero literário das
parábolas dos rabinos.
videira e da figueira, e estava a par do quanto se pagava por um dia
de trabalho. Ele não apenas estava familiarizado com a rotina do
fazendeiro, do pescador, do construtor e do mercador, mas se
encontrava igualmente à vontade entre os chefes de Estado, os
ministros das finanças de uma corte real, os juízes das cortes de
justiça, os fariseus e os coletores de impostos. Ele compreendeu a
pobreza de Lázaro, embora fosse convidado para jantar com os ricos.
Suas parábolas retratam a vida de homens, mulheres e crianças; o
pobre e o rico; os que são marginalizados e os que são exaltados. Pelo
seu conhecimento da amplitude da vida humana, ele era capaz de
ministrar a todas as camadas sociais. Ele falava a linguagem do povo
e seus ensinamentos eram adequados ao nível daqueles que o
ouviam. Jesus usava parábolas para tornar sua linguagem acessível ao
povo, para ensinar às multidões a Palavra de Deus, para chamar seus
ouvintes ao arrependimento e à fé, para desafiar os que criam a
transformar palavras em atos e para exortar seus seguidores a
permanecerem atentos.

Jesus usou as parábolas para comunicar a mensagem de


salvação de um modo claro e simples. Seus ouvintes podiam,
prontamente, entender a história do filho pródigo, dos dois devedores,
da grande ceia e do fariseu e o publicano. Através das parábolas, eles
identificavam Jesus com o Cristo que ensina com autoridade a
mensagem redentora do amor de Deus.

Dos relatos do Evangelho, todavia, tomamos conhecimento que


a interpretação das parábolas era feita em particular, no círculo dos
discípulos. Jesus lhes disse: “A vós outros é dado o mistério do reino
de Deus, mas aos de fora tudo se ensina por meio de parábolas, para
que: vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não
entendam, para que não venham a converter-se e haja perdão para
eles” (Mc 4:11,12).

Isso significa que Jesus, que foi enviado por Deus para proclamar
a redenção dos homens caídos e pecadores, esconde essa mensagem
através de parábolas incompreensíveis? As parábolas são, então, um
tipo de enigma compreendido apenas pelos iniciados?

As palavras de Marcos 4.11,12 devem ser entendidas no


contexto mais amplo, no qual o escritor as colocou 6. No capítulo
anterior, Marcos relata que Jesus encontrara descrença, blasfêmia e
6
J. Jeremias. The Parables of Jesus (New York: Scribner, 1063), pp. 13.18, sustenta
que essas palavras de Jesus foram deslocadas e pertencem a Outro escrito; devem
ser interpretadas sem relação com o contexto de Marcos 4. De acordo com Jeremias,
o escritor inseriu passagem proveniente de outra tradição, por causa do sentido
comum da palavra parábola, que ele afirma significar, originalmente, enigma.
Jeremias atribui, assim, dois sentidos à palavra parábola, em Marcos 4. O primeiro
significando parábola autêntica, e o segundo, enigma. As regras da exegese, no
entanto, não apóiam a interpretação de Jeremias, pois, a menos que o evangelista
revele um significado diferente para uma palavra do texto, essa deve conservar o
mesmo sentido através de toda a passagem.
oposição direta. Ele foi acusado de estar possuído por Belzebu e de
expelir demônios, pelo príncipe dos demônios (Mc 3.22). O contraste
que Jesus apresenta, conseqüentemente, é entre aqueles que
acreditavam e os que não acreditavam, entre seguidores e oponentes,
entre os que aceitavam e os que rejeitavam a revelação de Deus. Os
que fazem a vontade de Deus recebem a mensagem das parábolas,
porque pertencem à família de Jesus (Mc 3.35). Os que tentam destruir
Jesus (Mc 3.6) não conhecem a salvação, por causa da dureza de seus
corações. É uma questão de fé e descrença. Os que acreditam ouvem
as parábolas e as recebem com fé e entendimento, mesmo que a
completa compreensão venha, apenas, gradualmente. Os incrédulos
rejeitam as parábolas porque elas são estranhas à sua maneira de
pensar7. Recusam-se a perceber e entender a verdade de Deus. Assim,
por causa de seus olhos cegos e seus ouvidos surdos, privam a si
mesmos da salvação proclamada por Jesus, e trazem sobre si mesmos
o julgamento de Deus.

Não nos surpreende que os discípulos de Jesus não tenham


entendido completamente a parábola do semeador (Mc 4.13). Os
seguidores mais próximos estavam perplexos com os ensinamentos
da parábola porque não tinham visto ainda a importância da pessoa e
do ministério de Jesus, em relação à verdade de Deus revelada na
parábola. Somente pela fé foram capazes de ver aquelas verdades da
qual as parábolas davam testemunho8. Jesus explicou de modo mais
pormenorizado a parábola do semeador e a do trigo e do joio (em
outras, ele, de quando em quando, acrescentava esclarecimentos às
conclusões). Aos discípulos foi dado ver a relação entre os
acontecimentos que Jesus descrevia na parábola do semeador e o
reino dos céus, iniciado na pessoa de Jesus, o Messias9.

Interpretação

Na igreja primitiva, os Pais da igreja começaram a procurar nas


Escrituras do Velho Testamento vários significados ocultos
relacionados com a vinda de Jesus. Como conseqüência natural dessa
tendência, os Pais começaram a encontrar significados ocultos nas
parábolas de Jesus. Influenciados, talvez, pela apologética judaica,
substituíram a simplicidade das Escrituras pela especulação sutil. O
resultado foi, as interpretações alegóricas das parábolas. Por isso,
desde o tempo dos Pais da igreja, até meados do século XIX, muitos
exegetas interpretaram as parábolas alegoricamente.

Orígenes, por exemplo, acreditava que a parábola das dez


7
W. L.ane, The Gospel According to Mark (Grande Rapids: Eerdmans, 1974), p. 158;
W. Hendriksen, Gospel of Mark (Grand Rapids: Baker llook House, 1975), p. 145; H.
N. Ridderbos, The Coming of the Kingdom (Philadelphia: Presbyterian & Reformed,
1962), p.124.
8
. C.E.B. Cranfield, “St. Mark 4.1-34’, Scot IT 4(1951): 407. . C.E.B. Cranfield, “St.
Mark 4.1-34’, Scot IT 4(1951): 407.
9
Lane, Mark, p.160.
virgens estava cheia de símbolos ocultos. As virgens, disse Orígenes,
são todos aqueles que receberam a Palavra de Deus. As prudentes
acreditam e levam uma vida de justiça; as tolas acreditam, mas
falham no agir. As cinco lâmpadas das prudentes representam os
cinco sentidos, que são todos preparados para o seu uso apropriado.
As cinco lâmpadas das tolas deixaram de fornecer luz e se
encaminharam para a noite do mundo. O óleo é o ensinamento da
Palavra e os vendedores de óleo são os mestres. O preço que eles
cobram pelo óleo é a perseverança. A meia-noite é a hora do descuido
imprudente. O grande clamor ouvido vem dos anjos que despertam
todos os homens. o noivo é Cristo que vem para encontrar a noiva, a
igreja. Assim Orígenes interpretou a parábola.

Entre os comentaristas do século XIX, era comum identificar os


pormenores da parábola. Na parábola das dez virgens, a lâmpada
acesa representava as boas obras; e o óleo, a fé daquele que crê.
Outros viram o óleo como uma representação simbólica do Espírito
Santo.

Ainda assim, nem todos os intérpretes das parábolas tomaram o


caminho da alegoria. Por ocasião da Reforma, Martinho Lutero tentou
mudar a maneira de interpretar as Escrituras. Ele preferiu um método
de exegese bíblica que levava em consideração a localização histórica
e a estrutura gramatical da parábola. João Calvino foi ainda mais
direto. Ele evitou totalmente as interpretações alegóricas das
parábolas e procurou estabelecer o ponto principal de seu
ensinamento. Quando ele constatava o significado de uma parábola,
não se preocupava com os seus pormenores. Em sua opinião, os
detalhes não tinham nada a ver com aquilo que Jesus pretendia
ensinar através da parábola.

Durante a segunda metade do século XIX, C. E. van Koetsveld,


um estudioso alemão, deu novo impulso ao modo de abordar o
assunto, iniciado pelos Reformadores. Ele mostrou que as
extravagantes interpretações alegóricas das parábolas, feitas por
numerosos comentaristas, obscureciam mais que esclareciam o ensino
de Jesus10. Para interpretar uma parábola apropriadamente, o exegeta
precisa apreender seu significado básico e distinguir o que é, ou não,
essencial. Van Koetsveld foi seguido, em sua maneira de abordar as
parábolas, pelo teólogo alemão A. Jülicher, que observou que, embora
o termo parábola seja usado freqüentemente pelos evangelistas, a
palavra alegoria jamais é encontrada nos relatos dos Evangelhos11.

No final do século passado, as amarras que atavam a exegese


das parábolas foram cortadas e uma nova era de pesquisa teve

10
C. E. van Koetsveld, De Gelykenissen van den Zaligmaker (Schoonhoven, 1869),
vols. 1, 2.
11
A. Jülicher, Die Gleichnisredcn Jesu (Tübingen: Buchgesellschaft, 1963), vols. 1, 2.
início12. Enquanto Jülicher via Jesus como um professor de princípios
morais, C. H. Dodd o considerou como uma pessoa histórica, dinâmica,
que, com seus ensinamentos, provocou um período de crise. Disse
Dodd: “A tarefa de um intérprete de parábolas é descobrir, se puder, a
aplicação da parábola na situação pretendida pelos Evangelhos”13.
Jesus ensinava que o reino de Deus, o Filho do Homem, o Juízo e as
bem-aventuranças passavam a fazer parte da história daquela época.
Para Jesus, de acordo com Dodd, o reino significava o governo de Deus
exemplificado em seu próprio ministério. Portanto, as parábolas
ensinadas por Jesus devem ser entendidas como diretamente
relacionadas com a efetiva situação do governo de Deus na terra.

J. Jeremias continuou o trabalho de Dodd. Ele, também, desejou


descobrir os ensinamentos das parábolas que remetem de volta ao
próprio Jesus. Jeremias se dispôs a traçar o desenvolvimento histórico
das parábolas, o que acreditava ocorrer em dois estágios. O primeiro
diz respeito à situação real do ministério de Jesus, e o segundo é uma
reflexão sobre o modo como as parábolas eram postas em prática pela
igreja cristã primitiva. A tarefa a que Jeremias se propôs era a de
recuperar a forma original das parábolas para ouvi-Ias na própria voz
de Jesus14. Com o seu profundo conhecimento da terra, da cultura, dos
costumes, do povo e da língua de Israel, Jeremias foi capaz de reunir
um rico cabedal de informações que fazem de sua obra um dos livros
de maior prestígio a respeito das parábolas.

Apesar disso, uma questão se apresenta: pode a forma original


ser separada do contexto histórico sem sucumbir a um acúmulo de
adivinhações? Por outro lado, o texto das parábolas pode ser tomado e
aceito como uma representação real do ensino de Jesus. Isto é, o texto
bíblico que o evangelista nos entregou reflete o contexto histórico no
qual as parábolas foram, originalmente, narradas. Dependemos do
texto que recebemos e agimos acertadamente quando deixamos as
parábolas e seu assentamento histórico intacto. Isso pede confiança —
que os evangelistas, ao registrarem as parábolas, tenham
compreendido a intenção de Jesus ao ensiná-las nas circunstâncias por
eles descritas15. Na ocasião em que as parábolas foram registradas,
testemunhas e ministros da Palavra transmitiram a tradição oral das
palavras e feitos de Jesus (Lc 1.1, 2). Por causa do elo com as
testemunhas, podemos confiar que o contexto no qual as parábolas
estão inseridas se refere ao tempo, lugares e circunstâncias nas quais
Jesus, originalmente, as ensinou.

Mais recentemente, representantes de nova corrente da


12
Consulte os interessantes estudos de M. Black, “The Parables as Alegoty”, BJRL42
(1960): 273-87; R. E. Brown, “Parable and Allegory Reconsidered”, NTS 5 (1962): 36-
45.
13
C.H. Dodd, The Parables of the Kingdon (London, Nesbit and Co., 1935), p. 26.
14
Jeremias, Parables, pp. 113,114.
15
A. M. Iirouwer, De Gelykenissen (Leiden: Brill, 1946), p. 247; G.V. Jones, The Art
and Truth of the Parables (L.ondon: S.P. C.K., 1964), p. 38.
hermenêutica têm, de maneira crescente, deslocado as parábolas de
seu assentamento histórico para uma ênfase literária claramente
baseada numa estrutura existencial16. Quer dizer, esses estudiosos
tratam as parábolas como literatura existencial, as removem de suas
amarras históricas e substituem sua significação original por uma
mensagem contemporânea. Negam que o sentido da parábola tem
sua origem na vida e ministério de Jesus17; não estão interessados em
suas fontes e bases, mas, antes, em sua forma literária e sua
interpretação existencial18. Para eles, a estrutura literária da parábola
é importante porque leva o homem moderno a um momento de
decisão: tem que aceitar ou rejeitar o desafio colocado diante dele.

Aceitamos prontamente a idéia de que as parábolas chamam o


homem à ação; na aplicação da parábola do bom samaritano, ao
intérprete da lei que o questionou, Jesus disse: “Vai, e procede tu de
igual modo” (Lc 10.37). Entretanto, o existencialista, em sua
interpretação da parábola, enfatiza o modo imperativo e menospreza
o modo indicativo no qual a parábola foi contada. Ele separa as
palavras de Jesus de sua disposição cultural e, assim, as despoja do
poder e autoridade que Jesus lhes deu.

Além do mais, ao tratar as parábolas como estruturas literárias


separadas de seu assentamento original, o existencialista precisa
estabelecer para elas uma nova base. Assim, ele coloca as parábolas
num contexto contemporâneo. Mas, esse método dificilmente pode ser
chamado de exegético, pois insufla no texto bíblico uma filosofia
existencial. Isso é eisegese, não exegese. Infelizmente, o cristão
comum, que procura orientação para o entendimento das parábolas
com os representantes da nova escola hermenêutica, precisa,
primeiro, buscar conhecer a filosofia existencial, a teologia neoliberal e
o jargão literário do estruturalismo, para que possa se beneficiar com
seus pontos de vista.

Princípios

Interpretar parábolas não exige um treinamento completo em


teologia e filosofia, mas implica que o exegeta se atenha a alguns
princípios básicos de interpretação. Esses princípios, em resumo,
estão relacionados com a história, a gramática e a teologia do texto
bíblico. Sempre que possível, o intérprete deve fazer um estudo da
conjuntura histórica da parábola, incluindo uma análise pormenorizada
das circunstâncias religiosas, sociais, políticas e geográficas reveladas
16
M. A. Tolbert, Perspectives on lhe Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1979),
p.20.
17
D. O. Via, ir., em “A response to Crossan, Funk, and Peterson”, Semeia 1 (1974):
222, afirma: ‘Não tenho absolutamente interesse, nem mesmo na Pessoa do Jesus
histórico”.
18
J. D. Crossan, em “The Good Samaritan” Towards a Generic Definition of Parable’,
Semeia 2 (1974): 101, parece indicar que é mais importante para uma proposição
ser interessante que ser verdadeira.
na parábola. A disposição da parábola do bom samaritano, por
exemplo, exige certa familiaridade com a instrução do clero daqueles
dias. O intérprete da lei, procurando Jesus e perguntando-lhe o que
fazer para herdar a vida eterna, deu início à conversação que levou à
história do bom samaritano.

Em relação à parábola do bom samaritano, o exegeta deveria se


familiarizar com a origem, a classe social e a religião dos samaritanos,
com as funções, ofício e residência do sacerdote levita; com a
topografia da área entre Jerusalém e Jericó; e com o conceito judaico
de boa vizinhança. Observando o contexto histórico da parábola, o
intérprete apreende a razão por que Jesus contou essa história e
compreende a lição que Jesus procurou transmitir através da
parábola19.

A seguir, o exegeta deve atentar para a estrutura literária e


gramatical da parábola. Os modos e tempos de verbos empregados
pelo evangelista em relação à parábola são muito significativos e
lançam luz sobre o principal ensinamento da história. As palavras
estudadas em seu contexto bíblico, assim como em escritos extra
canônicos são parte essencial do processo de interpretação de uma
parábola. Assim, o estudo da palavra próximo no contexto do
comando “Ama o teu próximo como a ti mesmo”, como foi dado no
Velho e Novo Testamentos, resulta num exercício gratificante. O
intérprete precisa, também, levar em consideração a introdução e a
conclusão de uma parábola, pois podem conter um artifício literário
como uma questão de retórica, uma exortação ou uma ordem. A
parábola do bom samaritano é concluída com o comando direto: “Vai,
e procede tu de igual modo” (Lc 10.37). O intérprete da lei, que tinha
perguntado a Jesus a respeito do que fazer para herdar a vida eterna,
não teve como deixar de se envolver no cumprimento da ordem de
amar a seu próximo como a si mesmo. As introduções, e
especialmente as conclusões contêm as diretrizes que ajudam o
intérprete a encontrar os pontos principais das parábolas.

Ainda, o ponto principal de uma parábola deve ser comparado


teologicamente com os ensinamentos de Jesus e com o resto das
Escrituras20. Quando o ensino básico de uma parábola foi
completamente explorado e está corretamente entendido, a unidade
das Escrituras se manifestará e o sentido apropriado da passagem
poderá ser visto em toda a sua simplicidade e limpidez.

Por último, o intérprete da parábola deve traduzir seu significado


em termos apropriados às necessidades de hoje. Sua tarefa é aplicar o
ensinamento central da parábola à situação de vida da pessoa que
está ouvindo sua interpretação. Na parábola do bom samaritano, a

19
L. Berkhof, PrincipIes of Biblical Interpretation (Grand Rapids: Baker Book House,
1952), p. 100.
20
A. B. Mickelsen, Interpreting the Bible (Grand Rapids: Ecrdmans 1963), p. 229.
ordem para amar o próximo se torna cheia de significado quando a
pessoa que foi roubada e ferida na estrada de Jericó não é mais uma
figura de um passado distante. Ao contrário, o próximo que clama pelo
nosso amor é o sem-teto, carente e oprimido. Ele vem ao nosso
encontro na estrada de Jericó das páginas diárias dos jornais e do
noticiário colorido da televisão.

Classificação

As parábolas de Jesus podem ser agrupadas e classificadas de


várias formas. As do semeador, da semente germinando
secretamente, do trigo e do joio, da figueira estéril, e a da figueira
brotando são, todas, parábolas naturais. Várias parábolas de Jesus
dizem respeito ao trabalho e ao salário. Algumas delas são a respeito
dos trabalhadores da vinha, do arrendatário e do administrador infiel,
O tema de outras são as bodas e festas ou ocasiões solenes. Essas
incluem a parábola das crianças brincando na praça, a das dez
virgens, a da grande ceia e a do banquete das bodas. Outras, ainda,
têm como motivo geral o achado e o perdido. Essas incluem as
parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e a do filho perdido.

Nem sempre, no entanto, é fácil classificar uma parábola. A


parábola da rede é uma parábola natural, ou deve ser agrupada com
as que falam de trabalho e salário? Onde colocar a parábola do bom
samaritano? Fica claro que a classificação das parábolas pode ser, de
certo modo, arbitrária, e, em alguns casos, forçada.

Os Evangelhos Sinóticos apresentam parábolas com


correspondentes em dois ou mesmo três dos Evangelhos, e também
parábolas específicas de um único evangelista. Enquanto Marcos tem
apenas uma parábola peculiar a seu Evangelho (a da semente
crescendo secretamente), Mateus e Lucas têm várias. Em minha
apresentação das parábolas, segui a seqüência dos Evangelhos,
discutindo primeiro as de Mateus, com a exclusiva de Marcos estudada
entre a parábola do semeador e a do trigo e o joio, e, então, as
apresentadas no Evangelho de Lucas. Nas parábolas que têm
correspondente, a seqüência quase uniforme de Mateus, Marcos e
Lucas foi adotada. Escolhi esse procedimento a fim de ajudar o leitor
que queira consultar um estudo dos paralelos sinóticos, por exemplo,
Synopsis of the Four Golspels de K. Aland21. Nesse estudo sobre as
parábolas, referências a palavras gregas e hebraicas são freqüentes.
Quando elas aparecem são transliteradas e traduzidas. A Bíblia Inglesa
usada é a Nova Versão Internacional (com permissão da Comissão
Executiva). Para ajudar o leitor, o texto é transcrito integralmente no
princípio de cada parábola. As parábolas que têm correspondentes nos
três Evangelhos Sinóticos são apresentadas na seqüência de Mateus,
Marcos e Lucas. Um total de quarenta parábolas e declarações em

21
K. Aland, Synopsis of lhe Four Gospels (Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt,
1976).
forma de parábolas são estudadas neste livro. Todas as principais
parábolas estão arroladas, assim como a maior parte das declarações
em forma de parábola. Naturalmente, uma seleção foi necessária com
relação a essas declarações, por isso a parábola do sal está incluída e
a da candeia foi omitida. Apenas as declarações em forma de parábola
que se encontram nos Evangelho Sinóticos foram estudadas, não
aquelas encontradas no Evangelho de João.

A literatura a respeito das parábolas é volumosa — uma


interminável corrente de livros e artigos. Dificilmente uma parábola
terá sido negligenciada pelos recentes estudiosos. Novas concepções
provindas dos estudos sobre a cultura e a lei judaicas têm sido
valiosas no avanço para uma melhor compreensão dos ensinamentos
de Jesus, O objetivo deste livro é presentear o pastor e o verdadeiro
estudioso da Bíblia com um acervo abrangente e contemporâneo dos
escritos sobre as parábolas, sem se prender a pormenores. As notas
de rodapé e a bibliografia selecionada auxiliam o estudioso de teologia
que desejar prosseguir mais intensamente no estudo das parábolas de
Jesus. Através do material bibliográfico e do índice, ele terá acesso à
literatura disponível sobre as parábolas de Jesus.
1. O Sal

Mateus 5.13 “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido,
como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para,
lançado fora, ser pisado pelos homens”.

Marcos 9.50 “Bom á o sal; mas se o sal vier a tornar-se insípido, como
lhe restaurar o sabor? Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os
outros”.

Lucas 14.34,35 “O sal é certamente bom; caso, porém, se torne


insípido, como restaurar-lhe o sabor?”. “Nem presta para a terra, nem
mesmo para o monturo; lançam-no fora. Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça”.

Através da história, o sal tem sido usado para preservar e dar


gosto aos alimentos. É uma das necessidades básicas da vida. Seu uso
é universal e seu provimento é aparentemente inesgotável. Mas além
de suas qualidades úteis, o sal tem, também, propriedades
destrutivas. Ele pode transformar o solo fértil em terra árida e
devastada22. A área ao redor do Mar Morto é um exemplo.

Nos tempos atuais, achamos inconcebível que o sal possa deixar


de ser salgado. O cloreto de sódio (nome químico do sal de cozinha) é
um composto estável. Ele não possui qualquer impureza. No antigo
Israel, entretanto, o sal era obtido pela evaporação da água do Mar
Morto. A água continha várias outras substâncias, além do sal. A
evaporação produz cristais de sal e cloreto de potássio e de magnésio.
Porque os cristais de sal são os primeiros a se formarem durante o
processo de evaporação, eles podem ser recolhidos e fornecem,
assim, sal relativamente puro. Se o sal resultante da evaporação não
for, no entanto, preservado, e se, com o tempo, os cristais se tornarem
úmidos e liquefeitos, o que restar será insípido e inútil23.

22
Dt 29.22,23; Jz 9.45; Jó 39.6; SI 107.34; Jr 17.6; Sf 2.9.
23
Jeremias, Parables, p. 169; J. H. Marshall, The Gospel of Luke (Grand Rapids:
Eerdmans,1978), p. 596; Hauck, TDNT, 1.229.
O que se pode fazer com o sal insípido? Não serve para nada. Os
fazendeiros não querem esse produto químico em suas terras, pois, no
estado bruto, prejudica as plantas. Jogar esse resíduo na pilha de
estrume também não resolve, pois, comumente, o esterco é
espalhado na terra, como fertilizante. A única coisa que se pode fazer
com o sal insípido é lançá-lo fora onde será pisado24. Se o sal perder
sua propriedade básica e deixar de ser salgado25, não se poderá mais
recuperá-la.

No Sermão da Montanha, Jesus se dirigiu à multidão e a seus


discípulos, dizendo-lhes: “Vós sois o sal da terra”. Como o sal tem a
característica de impedir a deterioração, assim também os cristãos
devem exercer uma influência moral na sociedade em que vivem. Por
suas palavras e atos devem restringir a corrupção espiritual e moral.
Como o sal é invisível (no pão, por exemplo) e, ainda assim, um
agente poderoso, também os cristãos nem sempre são vistos, mas
individual e coletivamente permeiam a sociedade e constituem uma
força refreadora num mundo perverso e depravado.

“Tende sal em vós mesmos, e paz uns com os outros”, diz Jesus
(Mc 9.50). Ele exorta seus seguidores a usar dotes espirituais para
promover a paz26, primeiro em casa, e depois com os outros. Porque
os cristãos não têm sido capazes de viver em paz entre si mesmos,
têm perdido sua eficiência no mundo.

Muitas pessoas podem jamais ter lido a Bíblia, todavia


constantemente observam aqueles que já a leram. Na Igreja Cristã
primitiva, o eloqüente Crisóstomo, certa vez, disse que se os cristãos
vivessem a vida que se espera deles, os incrédulos desapareceriam.

24
E. P. Deatrick, em “Salt, Sou, Savior”, 13A 25 (1962): 47, citando Lamsa, menciona
que no moderno Israel “o sal insípido é espalhado em terraços cobertos com terra.
Por causa do sal, a terra endurece. Os terraços são, então, usados como áreas de
lazer e de brincadeiras de crianças”.
25
O verbo em Mateus 5.13 e Lucas 13.34 para “tomar-te insípido” é môrainein, que
tem o sentido original de “fazer tolice”, na voz ativa, e “fazer-se de tolo”, na voz
passiva. W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich e F. Danker, A Greek-English Lexicon
of the New Testament (Chicago: University of Chicago Presa, 1978), p. 531.
26
W. Nauck, “Salt asa Metaphor”, St Th 6 (1953); 176.
2. Os Dois Fundamentos

Mateus 7.24-27 “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e
as pratica, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua
casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram
os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu,
porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas
minhas palavras e não as pratica, será comparado a um homem
insensato, que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva,
transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto
contra a casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruma”.

Lucas 6.47-49 “Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas


palavras e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. E
semelhante a um homem que, edificando uma casa, cavou, abriu pro-
funda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente,
arrojou-se o rio contra aquela casa, e não a pôde abalar, por ter sido
bem construída. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um
homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e
arrojando-se o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi
grande a ruína daquela casa”.

Jesus se referiu, muitas vezes, a tempestades repentinas que


transformavam o leito seco de um riacho em correntes violentas. São
cenas comuns em Israel, onde o tempo muda de repente e altera, às
vezes, drasticamente a paisagem.

As construções rurais dos dias de Jesus eram, geralmente, feitas


com barro endurecido. Os ladrões conseguiam cavar buracos através
das paredes de tais casas (Mt 6.19). Quatro homens fizeram uma
abertura no teto da casa onde Jesus estava ensinando, para por ela
fazer baixar o leito onde estava seu amigo paralítico (Mc 2.3,4). Para
quem construía era uma questão de economia construir longe de
possíveis cursos de água, mesmo que essas valas permanecessem
secas por vários anos27.

27
E. F. F. Bishop, em “Jesus of Palestine” (London; Lutterworth Press, 1955), p. 86,
faz referencia a casas de barro, entre Gaza e Asquelon, que tinham sido construídas
O construtor prudente escolhe um local sobre a rocha. Assim, ele
não temerá que uma chuva torrencial, provocando o súbito
transbordamento de um riacho, arraste a casa, nem receará as
rajadas de vento que se abaterão sobre ela. O alicerce da casa
construída sobre a rocha resistirá.

O construtor insensato constrói sua casa como se estivesse


erguendo uma tenda. Não lhe ocorre que a casa deve ter uma
estrutura mais permanente. Ele edifica sua casa sobre a areia,
possivelmente por causa do acesso mais fácil a um riacho próximo.
Enquanto o tempo está bom e o céu permanece azul os ocupantes da
casa nada têm a temer. Quando, quase sem que se possa prever, o
tempo muda, as nuvens se acumulam, a chuva cai, os riachos
transbordam e o vento sopra, a casa vem abaixo com grande
estrondo.

Os dois evangelistas, Mateus e Lucas, mostram algumas


diferenças na narrativa da parábola. Podemos explicar essas variações
atentando para os diferentes leitores a quem elas se destinavam.
Mateus escreveu para o leitor judeu, que vivia em Israel, enquanto
Lucas levava o evangelho aos helenos, que viviam na Ásia Menor e no
Mediterrâneo. Para um judeu acostumado com as técnicas de
construção que prevaleciam no antigo Israel, a parábola a respeito dos
dois construtores se explicava por si mesma. Lucas, contudo, não
escrevia para um povo que vivia na Galiléia, ou na Judéia. Ele se
dirigia a gregos ou helenos. Por isso, Lucas substituiu por
procedimentos de construção usuais entre eles, aqueles comuns em
Israel28. O construtor cava, abrindo profunda vala, e assenta o alicerce
da casa sobre a rocha, descreve Lucas. Além da diferença na maneira
de construir, Lucas tinha que levar em consideração as mudanças
geográficas e climáticas. Enquanto Mateus escreveu sobre a chuva
caindo, o riacho transbordando e o vento soprando forte, Lucas se
referiu à enchente que veio e à força da correnteza se arrojando
contra a casa. Mateus fala de se construir sobre a areia; Lucas, de se
construir sobre a terra. Esses pormenores diferentes não alteram o
significado da parábola. O construtor é prudente quando constrói a
casa sobre base sólida.

Uma pessoa que ouve as palavras de Jesus e as pratica é como o


construtor prudente. E tolo aquele que, ouvindo palavras de Jesus, não
as obedece. Tal pessoa pode ser comparada ao construtor que
constrói sua casa sobre a areia, ou sobre a terra, sem alicerce.

bem longe de um curso de água, para evitar que uma súbita mudança de sua
direção as atingisse. Mas, durante um inverno no deserto de Neguebe, um leito seco
se encheu subitamente, mudou seu curso, e inundou completamente um
acampamento beduíno, causando a morte de pessoas e de gado.
28
Jeremias, Parables, p. 27. As casas gregas eram, muitas vezes, construídas com
porões (= alicerces), o que não era comum na Palestina.
Essa parábola faz eco às palavras do profeta Ezequiel. Ele
descreve uma parede frágil que é construída, a chuva torrencial, o
granizo batendo com força e a violência do vento que explode. Assim,
a parede cai (Ez 13.10-16).

Ao concluir o Sermão da Montanha (Mt 5-7), ou o sermão da


planície (Lc 6), Jesus queria que seus ouvintes não apenas ouvissem,
mas, também, praticassem o que ele lhes havia dito. É insuficiente
apenas ouvir as palavras de Jesus. Aquele que crê deve aceitar a
palavra de Jesus e construir sua fé apenas nele. Jesus é o fundamento
sobre o qual o homem prudente constrói. Nas palavras de Paulo:
“Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento
como prudente construtor; e outro edifica sobre ele. Porém, cada um
veja como edifica. Porque ninguém pode lançar outro fundamento,
além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo” (1 Co 3.10,11).

O prudente ouve atentamente e direciona sua vida de acordo


com as palavras de Jesus. Aquele que ouve as palavras de Jesus e não
as pratica se arruinará completamente. Não gasta tempo cavando e
assentando seu alicerce. Sua casa fica pronta logo e é
temporariamente adequada às suas necessidades, mas quando a
adversidade chega como um furacão, a casa que não tem Jesus como
fundamento tomba, e sua ruína é completa.

Essa parábola chama a atenção, indiretamente, para o


julgamento de Deus, que todos, quer prudentes ou insensatos, terão
que enfrentar. O prudente que construiu sua fé, baseado em Jesus,
está apto a resistir às tempestades da vida. Ele permanece seguro,
supera e triunfa. Nas Bem-aventuranças, Jesus chama o pobre, o
manso e o perseguido de bem-aventurados. Na parábola, os que
construíram sobre a Rocha demonstram firmeza em tudo que fazem.
Eles ouvem a palavra de Deus e a praticam. Por isso, nunca serão
destruídos. Acreditam em Jesus e obedecem à sua palavra.
3. Meninos na Praça

Mateus 11.16-19 “Mas a quem hei de comparar esta geração? É


semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos
companheiros: ‘Nós vos tocamos flauta e não dançastes; entoamos
lamentações, e não pranteastes’. Pois veio João, que não comia nem
bebia, e dizem: ‘Tem demônio’. Veio o Filho do homem, que come e
bebe, e dizem: ‘Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de
publicanos e pecadores’. Mas a sabedoria é justificada por suas
obras”.

Lucas 7.31-35 “A que, pois, compararei os homens da presente


geração, e a que são eles semelhantes? São semelhantes a meninos
que, sentados na praça, gritam uns para os outros: ‘Nós vos tocamos
flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes’. Pois
veio João Batista, não comendo pão nem bebendo vinho e dizeis: ‘Tem
demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizeis: ‘Eis aí
um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores’. Mas
a sabedoria é justificada por todos os seus filhos”.

Jesus contou uma parábola interessante sobre crianças


brincando numa praça. Ele extraiu a cena diretamente do cotidiano:
uma visão conhecida de crianças inventando suas brincadeiras e
representando-as. O “faz de conta” podia, muito bem, ter acontecido
assim: vários meninos e meninas estavam brincando na praça,
provavelmente vazia. Algumas crianças queriam brincar de
casamento. Além da noiva e do noivo, precisavam de um tocador de
flauta, pois um grupo deveria dançar na festa. Embora o noivo e a
noiva estivessem prontos, e uma das crianças providenciasse a
música de flauta, o resto das crianças se recusou a dançar. Não
estavam interessados em brincar de casamento.

Em outro exemplo, algumas crianças queriam representar um


funeral. Uma delas tinha que se fingir de morta, enquanto outras
cantavam um canto fúnebre. O resto tinha que chorar — mas se
recusaram. Não queriam participar daquela brincadeira fúnebre. As
crianças que tinham inventado as brincadeiras sentaram-se e
disseram aos outros:

Nós vos tocamos flauta,


e não dançastes;
entoamos lamentações,
e não chorastes.

Aplicação

De acordo com o evangelho de Mateus, as crianças sentadas na


praça gritam aos seus companheiros. No Evangelho de Lucas, as
crianças estão gritando umas para as outras. Na apresentação de
Mateus, um grupo de crianças é criativo e sugere duas brincadeiras
diferentes a um outro grupo29. O relato de Lucas dá a impressão de
que um grupo queria representar uma brincadeira alegre e o outro,
uma triste. Nenhum dos grupos queria aceitar a sugestão do outro. É
provável, ainda, que apenas a reprovação de um dos grupos tenha
sido registrada30, e que o uso de “uns para os outros” não deva ser
indevidamente enfatizado.

Mas, como se aplica a parábola? Basicamente, há dois modos de


se aplicar a cena que Jesus descreveu. Primeiro, as crianças que
sugeriram as brincadeiras de casamento e funeral representam Jesus
e João Batista, respectivamente. As crianças que se recusaram a
brincar são os judeus. João veio a eles de forma tão pungente quanto
um canto fúnebre, mas eles não estavam dispostos a ouvi-lo. Para se
livrarem de João, diziam que estava endemoninhado. Jesus,
entretanto, veio e trouxe alegria e felicidade, contudo os judeus
zombaram dele porque entrava nas casas dos marginalizados, moral e
socialmente, e comia e bebia com eles.

A segunda interpretação é o oposto da primeira. As crianças que


sugeriram a brincadeira alegre do casamento e a triste do funeral são
os judeus que queriam que João fosse alegre e que Jesus se
lamentasse. Quando nenhum dos dois viveu conforme a expectativa
deles, então se queixaram. Disseram a João: “Nós vos tocamos flauta,
e não dançastes”. E, disseram a Jesus: “Entoamos lamentações, e não
chorastes31”.

Das duas, a segunda explicação é a mais plausível. Primeiro, ela


estabelece uma ligação definida entre “os homens da presente

29
Jeremias, em Parables, p. 161, segue a sugestão de Bishop, em Jesus of Palestine,
p. 104. Jeremias escreve: “O fato de algumas crianças estarem sentadas talvez
implique que estivessem satisfeitas em apenas se queixar e se lamentar, deixando
para outros, tarefas mais cansativas”. Há no entanto, grande perigo em se ir tão
longe na interpretação do texto.
30
Marshall, Luke, p. 300.
31
E. Mussner, em “Der nicht erkannte Kairos (Mt 11.16-19 = L.c 7.31-35)”. Bid
40(1959)600; descreve todas as crianças sentadas e gritando.
geração” (Lc 7.31) e as crianças que faziam recriminações. Os judeus
estavam descontentes tanto com João Batista como com Jesus, assim
como as crianças com os seus companheiros. Segundo, ela coloca as
queixas das crianças, aplicadas a João e a Jesus, numa ordem
cronológica32. João veio como um asceta que vivia de gafanhotos e mel
silvestre — não era de seu agrado comer pão e beber vinho —, e os
judeus o acusaram de ser possuído pelo demônio. Jesus, ao contrário,
comia pão e bebia vinho, e eles o chamaram de glutão e beberrão,
amigo dos publicanos e “pecadores”. Deus enviou seus mensageiros
nas pessoas de João e Jesus, mas seus contemporâneos nada fizeram
senão achar faltas neles.

Paralelos

As brincadeiras que as crianças queriam brincar e suas


conseqüentes reclamações estão em consonância com o Livro de
Eclesiastes, que poeticamente observa que há tempo para tudo. Há
“tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de
saltar de alegria” (Ec 3.4), diz o Pregador.

Os insultos que os judeus lançaram sobre Jesus, entretanto, não


eram, de modo algum, inofensivos. Eles o acusaram de ser glutão e
beberrão. Essa era a descrição de um filho desobediente, que, de
acordo com a lei de Moisés, devia ser apedrejado até à morte (Dt
21.20,21). O relacionamento de Jesus com os marginalizados social e
moralmente, que eram olhados como apóstatas pelos lideres
religiosos, foi considerado reprovável. Por causa desse convívio, os
judeus achavam que o próprio Jesus devia ser considerado apóstata33.

A literatura dos rabinos apresenta um paralelo extraordinário.


Embora seja difícil afirmar quando foi escrito e qual sua origem, na
forma oral, o texto é interessante:

Jeremias falou diretamente ao Santo, louvado seja Ele: Tu


enviaste Elias, de cabelos encaracolados, para agir em
benefício deles, e eles riram dele, dizendo: “Olha como ele
ondula seus cabelos!”, e zombavam dele, chamando-o de
“aquele dos cabelos crespos”. E, quando Tu fizeste com que
Eliseu se levantasse para agir em benefício deles, disseram-
lhe, ironicamente: “Sobe, calvo; sobe, calvo! 34”.

Conclusão

O ponto culminante dessa parábola diverge nas descrições dos


dois Evangelhos. Os relatos de Mateus e Lucas variam na frase

32
A. Plummer, The Gospel of Luke (ICC) (New York: C. Scribner & Sons, 1902), p. 163.
33
Mt 9.11; Lc 5.30; 15.1,2; 19.7.
34
Piska 26, em W. 6. Ilraude, Pesikta Rabbati, 2 vols. (New Haven: YaIe University
Press, 1968,69), 1: 526-27. Ver também, 5H II; 161.
conclusiva. “Mas a sabedoria é justificada por suas obras” (Mt 11.19),
e “Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos” (Lc 7.35). Já
foi sugerido que a diferença pode ser devida a uma expressão do
aramaico, que foi mal traduzida35. Qualquer que seja a causa, no
entanto, não varia o sentido que as palavras transmitem. A sabedoria
significa a sabedoria de Deus; ela pode ser mesmo um circunlóquio
para o próprio Deus. De acordo com Mateus, as obras divinas de Jesus
(Mt 11.5) são provas da sabedoria de Deus. No evangelho de Lucas, os
filhos de Deus são testemunhas da veracidade de sua sabedoria. Por
exemplo, publicanos e mulheres sem moral, rejeitados como
marginais pelos religiosos daqueles dias, viram revelada em João
Batista e em Jesus a sabedoria de Deus. Ambos, João e Jesus
proclamaram a mensagem de redenção — João, com toda a
austeridade, no Jordão (Lc 3.12, 13); e Jesus, ao redor da mesa, em
suas casas (Lc 5.30).

4. O SEMEADOR

Mateus 13.1-9 “Naquele mesmo dia, saindo Jesus de casa, assentou-se


à beira-mar; e grandes multidões se reuniram perto dele, de modo que
entrou num barco e se assentou; e toda a multidão estava em pé na
praia. E de muitas coisas lhes falou por parábolas e dizia: Eis que o
semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do
caminho, e, vindo as aves, a comeram. Outra parte caiu em solo
rochoso, onde a terra era pouca, e logo nasceu, visto não ser profunda
a terra. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz,
secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e a
sufocaram. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto: a cem, a
sessenta e a trinta por um. Quem tem ouvidos para ouvir , ouça”.

Marcos 4.1-9 “Voltou Jesus a ensinar à beira-mar. E reuniu-se


numerosa multidão a ele, de modo que entrou num barco, onde se
assentou, afastando-se da praia. E todo o povo estava à beira-mar, na
praia. Assim, lhes ensinava muitas coisas por parábolas, no decorrer
do seu doutrinamento. Ouvi: Eis que saiu o semeador a semear. E, ao
semear, uma parte caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a
comeram. Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo
nasceu, visto não ser profunda a terra. Saindo, porém, o sol, a
queimou; e, porque não tinha raiz, secou-se. Outra parte caiu entre os
espinhos; e os espinhos cresceram e a sufocaram, e não deu fruto.
Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto, que vingou e cresceu,
produzindo a trinta, a sessenta e a cem por um. E acrescentou: Quem
tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Lucas 8.4-8 “Afluindo uma grande multidão e vindo ter com ele gente
de todas as cidades, disse Jesus por parábola: Eis que o semeador saiu
35
Jeremias, Parables, p. 162. nº 44.
a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho; foi
pisada, e as aves do céu a comeram. Outra caiu sobre a pedra; e,
tendo crescido, secou por falta de umidade. Outra caiu no meio dos
espinhos; e estes, ao crescerem com ela, a sufocaram. Outra, afinal,
caiu em boa terra; cresceu e produziu a cento por um. Dizendo isto,
clamou: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Composição

Em nossas sociedades industrializadas, a agricultura tem-se


preocupado sempre com a produção de alimentos. Cultivar a terra não
é simplesmente um meio de vida; ao contrário, tornou-se um modo de
ganhar a vida. A moderna tecnologia tem sido amplamente aplicada a
métodos de cultivo, de tal modo que o agricultor se tornou um técnico
em diversas áreas — um especialista na aplicação de fertilizantes,
herbicidas e inseticidas — e um homem de negócios que conhece o
custo da produção, o valor de seu produto e a situação do mercado.

Quando Jesus ensinou a parábola do semeador a seus ouvintes


na Galiléia, eles podiam, literalmente, ver o agricultor lançando a
semente nos campos próximos, durante o mês de outubro. O
evangelista não nos diz quando Jesus contou a parábola, mas pode
muito bem ter sido na ocasião em que o semeador saiu para semear.
As multidões (de acordo com Mateus, grandes multidões) tinham
vindo até à praia, à margem noroeste do Lago da Galiléia. Talvez
chegassem a milhares. Para se dirigir a tamanha multidão, Jesus usou
um púlpito flutuante, sentando-se num barco, muito provavelmente
afastado da praia36. Desse modo, a superfície da água refletia sua voz
que, num dia calmo, podia alcançar seus ouvintes à distância. Aquele
ambiente natural funcionava mais eficientemente que os atuais
sistemas usados para a comunicação com o público.

Jesus não precisava explicar as atividades do lavrador. Eles,


talvez, o estivessem vendo, à distância, no trabalho, semeando grãos
de trigo e cevada. Provavelmente haviam passado ao lado de seu
campo, no caminho para a praia. Na sociedade agrícola daqueles dias,
muitos dos que ali estavam eram donos de terra, ou já haviam
trabalhado no seu cultivo.

Cultivar a terra era relativamente fácil nos dias de Jesus. Embora


a parábola não nos conte nada a respeito de métodos de cultivo,
aprendemos no Velho Testamento (Is 28.24,25; Jr 4.3 e Os 10.11,12) e
nos escritos dos rabinos que, no final de um longo e quente verão, o
fazendeiro ia para o campo semear trigo e cevada sobre o solo
endurecido. Ele arava a terra para cobrir a semente e esperava que a
chuva de inverno viesse fazer germinar os grãos37.

36
W. NeiI, “Expounding The Parables”, Exp T 78 (1965): 74.
37
J. Jeremias, “Palastinakundliches zum Gleichnis vom S~emann”, NTS 13(1967): 48-
53. Ver também Parables, p.l2.
Na parábola de Jesus, o lavrador partiu para o campo levando
seu suprimento de grãos numa bolsa que trazia a tiracolo. Com passos
ritmados, lançava as sementes em faixas, pelo campo. Não se
preocupava com os poucos grãos que caíam à beira do caminho, nem
com aqueles que eram lançados em terra pouco profunda, onde as
rochas despontavam. Também não se preocupava com o trigo caído
entre os espinheiros que cresceriam na primavera, abafando as
sementes. Para o lavrador, tudo aquilo fazia parte de seu dia de
trabalho.

A descrição é corriqueira e precisa. O lavrador não podia impedir


que os grãos caíssem em solo duro. Cedo ou tarde viriam as aves e os
comeriam. Alguns pássaros comeriam até mesmo as sementes
lançadas no campo. Acontecia comumente. Também, pouco ele podia
fazer a respeito das rochas. Assim era a terra. Ele havia tentado
acabar com os espinheiros arrancando suas raízes, mas estes
teimavam em renascer.

A expectativa do lavrador estava no tempo da ceifa, quando iria


colher. Um lucro médio, naqueles dias, podia ser menos que dez por
um38. Se tivesse um retorno de trinta por um, ou uma colheita mais
favorável que rendesse sessenta por um, seria um acontecimento
excepcional. Muito raramente, talvez, ele conseguiria colher a cem por
um (Gn 26.12). Resumindo, o semeador não estava interessado nos
grãos que perdia enquanto semeava. Sua esperança estava no futuro,
na colheita, que ele esperava com ansiedade.

Nenhum dos ouvintes de Jesus discordou dele. Mas, o clímax da


história deve ter surpreendido seus ouvintes: em vez de uma
colheita normal com um lucro de dez vezes, Jesus falou de um
retorno de cem por um. O ponto principal da história é, portanto,
uma colheita abundante.

Propósito

A parábola do semeador é uma das poucas encontradas nos três


Evangelhos Sinóticos. Quando incorporaram a história de Jesus a
respeito do lavrador semeando e colhendo, cada um dos escritores
dirigiu-se a seus próprios leitores. Mateus, Marcos e Lucas,
obviamente, colocaram a parábola no contexto de seus respectivos
Evangelhos para mostrar o ponto central do ensino de Jesus.

No Evangelho de Mateus, o capítulo 13 é precedido por um


38
Jeremias. “Palãstinakundliches”, p. 53; ver, também, K. D. Whitc, “The Parable of
the Sower., lIS 15 (1964): 300-7; P. B. Payne, “lhe Order of Sowing and Ploughing”
NTS 25 (12978): 123-29. Os ensinos do Velho Testamento (Amós 9.13; Jeremias
31.27; Ezequiel 36.29,30) e, os ensinos dos escritos dos rabinos e das pseudo-
epígrafes parecem ser o de que a terra produzirá fruto em abundância, na era
Messiânica. N. A. Dahl, “The Parables of Growth”, StTh 5 (1951): 153; SB, IV: 880-90.
relato a respeito do ministério de Jesus no âmbito de cura (capítulos 8
e 9). Concluindo essa parte, Mateus registra que Jesus ensinava nas
sinagogas, pregava as boas-novas do reino, e curava todos os tipos de
doenças e enfermidades (9.35). Então, ele olhou para as multidões, e
porque não tinham quem as orientasse espiritualmente, teve
compaixão delas. Ele as comparou a ovelhas sem pastor. “E então se
dirigiu a seus discípulos: A seara na verdade é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande
trabalhadores para a sua seara” (9.37,38). No capítulo 10, Mateus
registra como Jesus enviou os doze apóstolos, comissionados para
buscar as ovelhas perdidas de Israel. Mas Jesus advertiu os discípulos
sobre rejeição, perseguição e morte. Eles encontrariam oposição,
hostilidade constante e correriam risco de vida. Mateus volta ao
mesmo assunto nos dois capítulos seguintes. As multidões tinham
seguido João Batista, mas o povo dizia que ele tinha demônio. Sobre
Jesus, diziam que era glutão e beberrão, amigo de publicanos e
“pecadores” (11.19). Em Corazim, Betsaida, e Cafarnaum o povo se
recusou a se arrepender e a crer em suas palavras. Parecia que Jesus
tinha semeado em terra pouco profunda, e que as sementes por ele
lançadas não tinham germinado. Ainda assim, apesar das dúvidas de
João Batista (11.3), da descrença dos galileus (11.21,23) e da
hostilidade dos líderes religiosos (12.2, 24,38), o reino de Deus se
instalou e prosperou. As pessoas que fazem a vontade de Deus são
parte e parcela do reino. São o irmão, a irmã e a mãe de Jesus (12.50).

Neste ponto, Mateus apresenta a parábola do semeador. A


estrutura da redação do relato evangélico revela a mão habilidosa de
um arquiteto literário39. O evangelista preparou a cena para a parábola
do semeador. O objetivo é alertar seus leitores para a inesperada
colheita arrecadada no reino de Deus.

De outro lado, Marcos parece enfatizar o ministério no âmbito do


ensino, de Jesus ao longo das praias do Lago da Galiléia. Ele começa a
passagem, dizendo: “Voltou Jesus a ensinar à beira-mar” (4.1).
Enquanto Mateus omite a referência ao fato de Jesus ter-se assentado
num bote, “à beira-mar”, Marcos se refere ao lago por, pelo menos,
três vezes, no versículo introdutório. Marcos informa a seus leitores
que, uma vez mais, Jesus se encontrou com uma grande multidão,
junto ao mar (vejam-se 2.13 e 3.7). Ele intercala três parábolas de seu
evangelho (o semeador, a semente germinando e o grão de mostarda)
nesse ponto de sua narrativa para indicar o lugar onde foram
ensinadas, a quem Jesus se dirigia, e o propósito delas.

O escritor do terceiro Evangelho expõe uma versão abreviada da


parábola do semeador e a coloca em um contexto sobre a aceitação e
a rejeição. As palavras e os feitos de Jesus foram prontamente aceitos
pelas pessoas comuns, pelos coletores de impostos, mulheres de má

39
H. N. Ridderbos, Studies in Scripture and lts Authority(St. Catharines: Paideia
Presa, 1978), p. 50.
fama e outros (7.29,37; 8.1-3), mas encontraram firme oposição da
parte dos fariseus e dos intérpretes da lei (7.30,39). A versão de Lucas
da parábola difere pouco das de Mateus e Marcos, embora seja muito
mais curta e mostre alguma diferença de vocabulário. “Essas
mudanças mostram que Lucas ou a tradição oral se sentiram à
vontade para modificar pormenores na narração da história, coisa que
os modernos pregadores costumam fazer quando tornam a contar as
parábolas40”.

Mateus 13.18-23 “Atendei vós, pois, à parábola do semeador. A todos


os que ouvem a palavra do reino e não a compreendem, vem o
maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi
semeado à beira do caminho. O que foi semeado em solo rochoso,
esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não
tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; em lhe
chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se
escandaliza. O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a
palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas
sufocam a palavra, e fica infrutífera. Mas o que foi semeado em boa
terra é o que ouve a palavra e a compreende; este frutifica e produz a
cem, a sessenta e a trinta por um”.

Marcos 4.13-20 “Então, lhes perguntou: Não entendeis esta parábola e


como compreendereis todas as parábolas? O semeador semeia a
palavra. São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada;
e, enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada
neles. Semelhantemente, são estes os semeados em solo rochoso, os
quais, ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não
têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes
chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se
escandalizam. Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que
ouvem a palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza
e as demais ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela
infrutífera. Os que foram semeados em boa terra são aqueles que
ouvem a palavra e a recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem
por um”.

Lucas 8.11-15 “Este é o sentido da parábola: a semente é a palavra de


Deus. A que caiu à beira do caminho são os que a ouviram; vem, a
seguir, o diabo e arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder
que, crendo, sejam salvos. A que caiu sobre a pedra são os que,
ouvindo a palavra, a recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem
apenas por algum tempo e, na hora da provação, se desviam. A que
caiu entre espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram
sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da vida; os seus frutos
não chegam a amadurecer. A que caiu na boa terra são os que, tendo
ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com
perseverança”.
40
I. H. Marshall, “Tradition and Theology’ in Luke”, Tyn H Bull 20(1969); 63.
A parábola do semeador é uma das poucas que Jesus explicou a
seus discípulos e a outros que estavam junto dele. A primeira vista, a
parábola parece não necessitar de explicação, mas, na realidade,
precisa ser aplicada para que possa ser entendida espiritualmente. A
pergunta inicial dos discípulos: “Por que lhes falas por parábolas?”
Recebe uma resposta que não é prontamente entendida. Jesus diz:
“Porque a vós outros é dado conhecer os mistérios do reino dos céus,
mas àqueles não lhes é isto concedido. Pois ao que tem se lhe dará, e
terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será
tirado. Por isso lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e,
ouvindo, não ouvem nem entendem.” (Mt 13.11-13).

Notamos que os discípulos perguntam por que Jesus fala ao povo


por parábolas, e que ele responde por que lhes fala por parábolas.
Marcos dá ainda mais ênfase à distinção entre nós e eles, registrando:
“Aos de fora se ensina por meio de parábolas” (4.11).

O que, precisamente, queria Jesus dizer ao se referir aos


“mistérios do reino”? Se Jesus é o Grande Mestre (= Rabi), esperamos
que ele ensine verdades espirituais numa linguagem simples. Seria
difícil crer que Jesus, adotando uma determinada maneira de falar,
pretendesse ocultar o seu ensino das multidões, e, ainda assim, falar
dos mistérios do reino.

Os documentos de Cunrã se referem ao papel do Mestre da


Justiça, comissionado para revelar os mistérios divinos. Além disso, o
Mestre deveria instruir seus discípulos sobre a revelação por ele
recebida de Deus41. Jesus trouxe revelação divina ao ensinar a seus
discípulos os segredos do reino dos céus. Os outros, aqueles que não
faziam parte do círculo mais restrito dos discípulos de Jesus (quer
dizer, os de fora), não tinham a compreensão do reino como o tinham
os seguidores mais próximos de Jesus42.

Jesus, indiretamente, se refere à exigência do novo nascimento


espiritual para a entrada no reino de Deus (Jo 3.3-5). Em outras
palavras, a capacidade e o privilégio de discernir os segredos do reino
foram dados aos discípulos. Aos de fora, esse privilégio não foi
concedido43.
41
F. E Bruce, Second Thoughts on the Dead Sea Scrolls (London: Paternoster Presa,
1956), p. 101.
42
B. Van Elderen, “lhe Purpose of the Parables According to Matthew 13.10-17”, em
Ncw Dimensions in Evangelical New Testament Studies, cd. R. N. Longenecker e M.
C. Tenney (Grande Rapids: Zondervan, 1974), p. 185.
43
W. Hendriksen. lhe (iospel of Mattew (Grand Rapids: Baker Book House, 1973), p.
553. J. R. Kirkland rejeita essa explicação e afirma que pessoas esclarecidas e
eruditas v&m a verdade escondida nas parábolas, mas os menos inteligentes e
menos perspicazes, não. Veja seu ‘Thc Earliest Understanding of Jesus’ Use of
Parables: Mark IV 10-12 in Context”, Novt 19(1977): 13. A proposição de Kirkland
desaparece diante da oração de Jesus: “Graças te dou, 6 Pai, Senhor do céu e da
terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos
As multidões a quem Jesus se dirigia são referidas como “eles”.
Isso, si mesmo, não surpreende em vista dos ais proferidos por Jesus
às cidades impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11.20-
24). Jesus recebia oposição constante dos anciãos, escribas, fariseus e
de toda a hierarquia religiosa. Mateus parece ter empregado um
termo simples para os judeus que cercavam Jesus — são, apenas,
“eles” “.

Entretanto, os segredos do reino não devem permanecer


escondidos para sempre. Marcos acrescenta as seguintes palavras à
explicação de Jesus sobre a parábola do semeador: “Pois nada está
oculto, senão para ser manifesto; e nada se faz escondido, senão para
ser revelado” (4.22)44. A verdade que Jesus proclama por meio das
parábolas é entregue àqueles que vêem e compreendem.

Mateus, em contraste, diz que aquele que tem receberá em


abundância, e o que não tem, até o que tem lhe será tirado (13.12).
Escrevendo para os judeus, Mateus deixa implícita a idéia de que os
judeus, a quem não fora dada a percepção espiritual, e que rejeitam
as palavras de Jesus, devem abandonar o entendimento que têm dos
ensinos do Velho Testamento, a respeito do reino de Deus. Pois, sem
uma compreensão espiritual desses ensinamentos, os oráculos do
Velho Testamento perdem o seu significado. Assim, mesmo que eles
(os judeus) vejam, não vêem; ainda que ouçam, não ouvem e não
entendem (Mt 13.13).
Todos os evangelistas citam as palavras de Isaías 6.9,10 —De
sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías:

“Ouvireis com os ouvidos, e de nenhum modo entendereis;


vereis com os olhos, e de nenhum modo percebereis. Porque
o coração deste povo está endurecido, de mau grado
ouviram com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos; para
não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos,
entendam com o coração, se convertam e sejam por mim
curados.” (Mt 13.14,15)

Os três evangelistas Sinóticos parecem empregar a citação de


Isaías para expressar a razão pela qual aqueles que tinham
endurecido seus corações perderão, até mesmo, sua herança
espiritual45. Outros comentaristas interpretam o uso de Isaías 6.9,10
como lição ou advertência quanto aos resultados de um coração
empedernido46.

Dos três evangelistas Sinóticos, Marcos apresenta o relato

pequeninos.” (Mt 11.25).


44
Kirkland, “Earliest Understanding”, pp. 16-20.
45
Hendriksen, Mark, p. 154.
46
Marshall, Luke, p. 323.
completo da interpretação da parábola feita por Jesus47. Ele inclui uma
recriminação de Jesus: “Não entendeis esta parábola?” (4.13). Por
implicação, Marcos indica que a parábola do semeador é única. Talvez
o fato desta parábola ter sido uma das poucas que foram explicadas
por Jesus, lhe dê um significado especial. Mas, as palavras de
recriminação também indicam que os discípulos, cujos corações eram
esclarecidos, deveriam ter entendido o sentido básico da parábola.

O relato de Mateus é mais preciso em sua composição. Foi


Mateus quem deu o título dessa parábola à igreja: parábola do
semeador. E é o Evangelho de Mateus que estabelece um tom
pedagógico, com uniformidade de estilo e frases simétricas de efeito.

Mas, antes de iniciarmos a interpretação da parábola


propriamente dita, devemos observar que a imagem usada por Jesus é
retratada, também, em 2 Esdras 9.30-33:

Disseste: “Ouvi, Israel: atentai para as minhas palavras, raça


de Jacó. Esta é a minha lei, que eu semeei entre vós, para
que dê fruto e vos traga glória para sempre”. Mas, nossos
pais que receberam tua lei não a guardaram; não observaram
os teus mandamentos. Não que o fruto da lei tenha perecido;
isto é impossível, pois tu és a lei. Os que a receberam
pereceram, porque deixaram de guardar a boa semente, que
neles foi semeada48.

Nos dias de Jesus o verbo “semear” podia ser empregado


metaforicamente, com o sentido de “ensinar”. Podemos presumir que
esta era a maneira de falar nas sinagogas locais. A formulação e a
interpretação de Jesus da parábola do semeador combinam muito bem
com o padrão de linguagem da época.

O que nos surpreende na interpretação da parábola é a ausência


de certos fatores. O primeiro deles é a figura do semeador. Apesar de
ser mencionada apenas como meio de introdução da parábola, sua
presença na interpretação, embora presumida, não é explicada. Em
vez disso, a ênfase cai sobre a semente que é lançada. Lucas chama a
semente de “a palavra de Deus”; Marcos a chama simplesmente de
“palavra”. E Mateus, em vista da citação de Isaías, diz, por implicação:
“A todos os que ouvem a palavra do reino, e não a compreendem,
vem o maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o
que foi semeado à beira do caminho” (13.19). Embora pudéssemos
esperar alguma referência à chuva, que obviamente aumentaria a
47
B. Gerhardsson, em “The Parable of the Sower and Its lnterpretation”, NTS 14
(1967-68): 192, conclui que a parábola e sua interpretaç5o caminham juntas como a
mão e a luva. “Se a parábola — na forma como a conhecemos — veio de Jesus,
também sua interpretação”. Veja C. F. D. Moule, “Mark 4.1-20. Yet once more”,
Neotestamentica et Semitica (1969): 95 -113.
48
New English Bible, lhe Apoctypha (Oxford Cambridge: Oxford and Cambridge
Universtity Prcss. 1970).
colheita, nada é dito (veja, por exemplo, Dt 11.14,17)49. Nenhuma
menção é feita ao trabalho árduo de arar o campo, embora seja claro
que foi parte do processo. A provisão de chuva por parte de Deus e o
esforço do homem no trabalho do campo não têm nenhuma
significação na construção e Interpretação da parábola.

As ênfases da parábola são os altos e baixos por que passa o


lavrador em seu trabalho de cultivar a terra50. Ele pode perder parte do
que plantou, neste exemplo por três vezes, mas na colheita final tem
uma safra abundante.

Aplicação

Quando mencionou pormenores, tais como a beira do caminho,


os lugares rochosos e os espinhosos, Jesus, evidentemente, pretendia
aplicar a lição da semente e do solo às pessoas que ouviam a
mensagem do reino (Mateus), a Palavra de Deus (Lucas). Mateus usa o
presente do particípio grego, referindo-se aos que são chamados a
ouvir e receber a Palavra de Deus. A passagem explica também como
a Palavra de Deus é ouvida por quatro diferentes tipos de ouvintes51.

Mateus, bem como Lucas, apresentam a palavra coração. “Vem o


maligno e arrebata o que lhes foi semeado no coração” (13.19). A
Palavra de Deus alcança o coração daquele que a ouve, mas antes que
a Palavra possa produzir qualquer efeito, o maligno (Mateus), Satanás
(Marcos), ou o diabo (Lucas) vem e a arrebata. Na parábola, os
pássaros descem à beira do caminho e devoram os grãos. Diz Marcos:
“São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada; e,
enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada neles”
(4.15). Poderíamos dizer: “entra-lhes por um ouvido e sai pelo outro”.
Algumas pessoas ouvem polidamente o evangelho, e só. O evangelho
não tem valor para elas, pois seus corações são endurecidos como os
caminhos pisados, à beira das plantações. Ignoram completamente o
resumo da lei de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração...” (Mt 22.37).

De início, parece que uma semente lançada em solo rochoso brota


muito facilmente. As rochas, aquecidas no verão, desprendem, pouco
a pouco, nos meses de inverno, o calor armazenado. Há chuva
suficiente e o calor e a umidade fazem germinar, prontamente, o
grão. Os brotos verdes despontam rapidamente, e enquanto o resto
do campo está ainda árido e infrutífero, apresentam um espetáculo
impressionante. O olho treinado do lavrador vê a diferença. Ele sabe
que a aparência das hastes verdes no solo rochoso é enganosa.
Quando cessarem as chuvas e o sol da primavera chegar

49
Gerhardsson, “Parable of the Sower”, p. 187.
50
C. H. Dodd, lhe Parables of the Kingdom (London: Nesbjt and Co., 1935), p. 182.
51
Gerhardsson, “Parable of lhe Sower”, p. 175.
esquentando a terra, as plantas murcharão. Elas não têm, no solo,
raízes profundas capazes de suprir a planta de água. Elas definharão
e morrerão.

Na interpretação desse segmento da parábola, tanto Mateus


como Marcos destacam o aspecto do imediatismo. “Semelhantemente
são estes os semeados em solo rochoso, os quais, ouvindo a palavra,
logo a recebem com alegria. Mas eles não têm raiz em si mesmos,
sendo antes de pouca duração; em lhes chegando a angústia ou a
perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam” (Mc 4. 16,
17). O imediatismo é ressaltado na rápida germinação do grão lançado
em terreno rochoso.

Enquanto Mateus e Marcos atribuem a apostasia às dificuldades


e à perseguição, Lucas fala em “hora da provação” (Lc 8.13). Os
evangelistas se referem ao sofrimento que faz com que as pessoas
mudem de opinião sobre a religião. Quando chega a hora de tomar
posição e pagar o preço, mudam de interesse e se desligam da fé que
uma vez abraçaram com alegria. Uma palavra define essas pessoas:
superficialidade. O sol, geralmente considerado fonte de felicidade e
alegria, é retratado aqui em termos de angústia e perseguição52. A
razão desse aparente rigor é a falta de umidade. O justo, por outro
lado, floresce como uma árvore plantada junto a corrente de águas (Sl
1.3). Ao leviano falta convicção, coragem, estabilidade e
perseverança. Ele é influenciado por qualquer vento de doutrina que
sopre em seu caminho. Porque não tem profundidade, sua vida
espiritual tem significação passageira.

A semente lançada entre os espinhos parece ter maior


probabilidade de crescer e de se desenvolver do que aquela que foi
lançada em solo pouco profundo. Primeiro, após um período de
germinação, as plantas começam a brotar. De fato, por ocasião da
primavera parecem viçosas e não se diferenciam das outras. Mas,
quando o calor do sol se torna mais forte e aquece a terra, as raízes
dos espinheiros e dos cardos renascem. Depois de descansarem
durante o inverno, estão prontas para uma nova estação, e em
questão de semanas os espinhos e os cardos já ultrapassaram o trigo
em altura. Elas o privam da umidade e dos nutrientes da terra e,
literalmente, o sufocam até à morte.

O solo em que a semente foi lançada não é duro como o chão


pisado da beira do caminho, nem raso e rochoso. Ele é, antes, um solo
bom — fértil e úmido. O único problema é que aquele chão tem outros
residentes permanentes, outras raízes. A semente lançada em terra
fértil e úmida terá, muito breve, que disputá-la com raízes que
crescem e se desenvolvem abaixo do solo, e com verdejantes cardos e
espinhos à superfície. Resumindo, dois tipos de plantas estarão
lutando por um lugar ao sol e vencerá aquela que assentou suas raízes
52
Jülicher, Gleichnisreden, 2: 528.
antes e mais profundamente.

“Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a


palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as
demais ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela
infrutífera” (Mc 4.18,19). O homem que leva uma vida dupla — religião
aos domingos e vida sem religião durante a semana — logo descobrirá
que “os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais
ambições” vencerão, e sua fé se tornará sem valor. A mensagem do
evangelho não pode florescer e dar fruto; ao contrário, ela é sufocada
pelos cuidados do mundo. Esse homem tem levado uma vida dupla,
desde o início. Encontrou segurança na riqueza e no que Relegou,
propositadamente, sua fé a um lugar secundário. Ele é O que colhe
espinhos e cardos e, eventualmente, apenas espinhos e Mesmo o que
tem lhe é tirado.

Estas três representações do campo não devem desencorajar o


dor. Do mesmo modo, as três descrições das pessoas cuja fé se ti
infrutífera não devem desanimar o crente verdadeiro. A semente que
lançada em boa terra produziu colheita abundante. As pessoas que
respondem com fé ao evangelho são inumeráveis, multidões
incalculáveis. “Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a
palavra e a compreende; frutifica, e produz a cem, a sessenta e a
trinta por um” (Mt 13.23)53. Marcos apresenta uma ordem ascendente
de a trinta, a sessenta e a cem por um”. Lucas, na parábola
propriamente dita, apenas cita que “produziu a cem por um”, mas na
interpretação, diz: “A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido
de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com
perseverança” (8.15). Onde Lucas usa “retêm”, Marcos usa “recebem”
e Mateus “compreende”.

Quem é, então, aquele que possui um coração reto e bom?


Responde: “o que ouve a palavra e a compreende”. Mateus,
naturalmente tem em mente a citação de Isaías. O homem reto de
coração faz a vontade de Deus e, ouvindo o chamado de Deus — “a
quem enviarei?” —, responde confiante: “Envia-me a mim, ó Senhor”.
Ele é aquele que ouve e pratica a Palavra. Ele compreende porque seu
coração é receptivo à verdade de Deus. Todo o seu ser — vontade,
mente e emoção — é tocado pela Palavra. Há um crescimento
53
The Gospel of Thomas, trans. B. M. Metzger, Citação 9, afirma o seguinte: ‘Jesus
Eis que o semeador saiu para semear, encheu sua mão e semeou (a semente).
Algumas (sementes) caíram no caminho. Os pássaros vieram e as apanharam.
Outras caíram sobre as rochas e não lançaram raízes para a terra nem espigas para
o céu. E outras caíram entre espinhos. Eles abafaram as sementes e os vermes as
comeram. E outras caíram em boa terra, e lançaram bom fruto para o céu.
Produziram sessenta por um e cento e vinte um”. É óbvio que o escritor do
Evangelho de Tomé fundiu a parábola do semeador num molde gnóstico. A razão
porque o escrito conclui a parábola com “cento e vinte por um” pode muito bem ter
sido pelo fato de que ele acreditava ser o número 12 o número’ perfeição. Veja H.
Montefiore e H. E. W. Turner, Thomas and the Evangelists (London: SCM Presa,
1962), p. 48.
espiritual, e aquele que crê frutifica; ele faz a vontade de Deus54.

O que a parábola ensina? Alguns estudiosos têm chamado a


parábola do semeador de parábola das parábolas. Isso não significa
que tenha maior destaque nos Evangelhos Sinóticos, mas, antes, que
ela contêm quatro parábolas em uma. Embora todas as quatro sejam
apenas aspectos de uma verdade particular: a Palavra de Deus é
proclamada e ocasiona uma divisão entre os que a ouvem; o povo de
Deus recebe a Palavra, a compreende, e obedientemente a cumpre;
outros deixam de ouvir pela dureza de seus corações, por serem
basicamente superficiais, ou por interesse em riquezas e posses. Essas
pessoas não frutificam e, espiritualmente falando, até aquilo que têm
lhes será tirado. A parábola, portanto, atinge aqueles que realmente
fazem parte da igreja e os que estão “à margem”. Este é o tom
principal da parábola. Todos os seus pormenores fazem convergir,
para esse ponto, o foco da atenção. A proclamação fiel do evangelho
nunca deixará de produzir fruto, “trinta, sessenta ou mesmo cem
vezes o que foi semeado”.

5. A Semente Germinando Secretamente

Marcos 4.26-29: “Disse ainda: O reino de Deus é assim como se um


homem lançasse a semente à terra; depois, dormisse e se levantasse,
de noite e de dia, e a semente germinasse e crescesse, não sabendo
ele como. A terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois, a
espiga, e, por fim, o grão cheio na espiga. E, quando o fruto já está
maduro, logo se lhe mete a foice, porque é chegada a ceifa”.

O Evangelho de Marcos não é conhecido por suas dissertações;


ao contrário, em sua narrativa o autor retrata Jesus como um homem
de ação. Mesmo assim, o evangelista apresenta material didático,
como a preleção sobre os sinais do final dos tempos (capítulo 4).
Marcos não está interessado em aumentar o número de parábolas. Ele
parece ter feito uma seleção do material que tinha à disposição 55.
Escolheu as parábolas do semeador, da semente germinando
secretamente e do grão de mostarda. Essas parábolas obviamente
detalham o plantio da semente, a germinação e o amadurecimento, a
ceifa e a colheita56. Marcos usa as parábolas para ilustrar a natureza
54
20. Kingsbury, Parables of Jesus, p. 62.
55
Veja-se, por exemplo, Marcos 4.2, 10, 13 e 33, onde o plural ‘parábolas’ é usado
consistentemente.
56
Lane, Mark, p. 149.Ridderbos, em Coming of lhe Kingdom, p. 142, é de opinião que
Marcos escolheu essas três parábolas para ensinar “o significado positivo da demora
do reino de Deus como foi ensinada por Jesus.

Composição

Por falta de alguns pormenores, a história da semente


germinando secretamente é, em si mesma, de algum modo, simplista.
Nada é dito a respeito da preparação do solo, da chuva caindo, da
extração da erva daninha, ou da fertilização. A vida do lavrador parece
semelhante à da semente plantada: dormir à noite e despertar pela
manhã. Ao chegar o tempo da colheita, o fruto maduro é ceifado.

A parábola deixa de lado os detalhes por mais significativos que


possam ser e coloca ênfase na semeadura, na germinação e na ceifa.
Não devemos pensar que o fazendeiro passe seu dia ociosamente.
Naturalmente que não; ele tem trabalho pesado para ser feito. Lavrar
a terra, fertilizá-la e limpá-la das ervas daninhas toma muito de seu
tempo. Além das tarefas diárias, ele tem que cuidar das compras e
das vendas, planejar e preparar a colheita. Tudo isso está
subentendido e dado como certo na parábola. Observamos, também,
que Deus providenciará a chuva necessária 57. Ele controla os
elementos da natureza.

Este é exatamente o ponto. Desde o momento em que lança a


semente, o lavrador deve confiar a Deus a germinação, o crescimento,
a polinização e a maturação. Ele pode descrever o processo da
germinação do trigo, mas não pode explicá-lo. Depois que a semente
foi semeada, ela absorve a umidade do solo, incha e brota. Após uma
semana ou duas, as primeiras hastes aparecem na superfície;
gradualmente as plantas começam a lançar rebentos, ganham altura e
desenvolvem as espigas. Então, quando a planta morre, sua cor muda
do verde para o dourado; o grão amadurece e é chegada a hora da
ceifa. O fazendeiro não pode explicar esse crescimento e
desenvolvimento58. Ele é apenas um trabalhador que no tempo certo
semeia e colhe. Deus guarda o segredo da vida. Deus mantém o
controla.

Interpretação

A parábola da semente germinando secretamente só é

do julgamento”.
57
Quando Marcos escreve que a terra “por si mesma” produz o grão ele não quer
dizer que o solo produz a colheita sem a provisão de Deus, mas que a ajuda do
fazendeiro não é necessária no processo de germinação do grão. W. Michaelis, Die
Gleichnjsse Jesu (Hamburg: FurcheVerlag, 1956), p. 38. Além disso, a ênfase na
produção do grão não deve ser colocada sobre o solo, nem na própria semente. R.
Stuhlmann “Bcobachtungen zu Markus IV. 26- 29”, NTS 19 (1972-73): 156.
58
Jülicher, Gleichnisreden, 2: 540.
encontrada no Evangelho de Marcos. Mateus e Lucas não se referem a
ela, e não temos maiores informações do que as encontradas nesses
versículos de Marcos 4.26-2959. A parábola é introduzida pela
sentença: “O reino de Deus é assim”.

Há várias interpretações dessa parábola. Alguns comentaristas


explicam o relato alegoricamente: Cristo semeou e na ocasião certa
virá para a ceifa; o resto da parábola se refere ao trabalho invisível do
Espírito Santo na igreja e na alma60. Outros têm destacado um dos
seguintes fatores: a semente o período de amadurecimento, a ceifa;
ou o contraste entre semear e ceifar61. Certamente, todas essas
interpretações — mesmo as alegóricas (quando qualificadas) —
apresentam pontos positivos.

João Calvino olhou além do Originador dessa parábola e viu os


ministros da Palavra semeando a semente. Eles não devem
desanimar, diz Calvino, quando não vêem resultados imediatos. Jesus
ensina que devem ser pacientes e os faz recordar o processo de
germinação, como acontece na natureza. Não devem se agastar ou se
inquietar, mas depois de terem proclamado a Palavra, devem se
ocupar das tarefas do dia — dormir à noite, levantar pela manhã e
fazer tudo o que há para ser feito. Como a semente chega à
maturação no tempo próprio, assim o fruto do trabalho do pregador,
eventualmente, aparecerá. Os ministros do evangelho devem ter
coragem e continuar sua obra decidida e confiantemente62.

Deus está atuando no processo da germinação da semente, em


seu crescimento, desenvolvimento e maturação. “O fruto é o resultado
da semente; o fim está implícito no começo. O infinitamente grande já
está ativo no infinitamente pequeno63”. E bom relembrar a afirmativa
jubilosa de Paulo “de que aquele que começou boa obra em vós há de
completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).

Na parábola, o lavrador é apenas um auxiliar da obra divina. Ele


lança a semente, e dia após dia faz o trabalho necessário — dá
59
Há paralelos na literatura apostólica, inclusive 1 Clemente 23.4: “Ó insensatos:
Comparai-vos a uma árvore. Tomai uma videira, por exemplo: ela primeiro espalha
suas folhas, então o botão e a flor, e Somente após, primeiro a uva verde e então a
madura.” Apostolic Fathers, vol.2 ed. R. M. Grant e H. H. Graham (Camden. N. J.:
Thomas Nelson & Sons, 1965), p. 48. Ver também, II Clemente 11.3, e o Evangelho
de Tomé, Citação 21.
60
H. B. Swete, The Gospel According lo St. Mark (L.ondon: Macmillan & Co., 1909), p.
85.
61
Para uma classificação abrangente dessas interpretações, veja C. E. B. Cranfield:
“Message of Hope, Mark 4.21-32”, Interp 9(1955): 158-162.
62
J.Calvin, Harmonyof lhe Evangelists (Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1949), 2:128.
Embora Calvino dê atenção ao período de crescimento, dá ênfase igual àquele que
semeia o grão. O criticismo de Cranfield tem algum valor: Calvino considerou a
parábola endereçada aos discípulos de Jesus. No entanto, a aplicação, no
comentário de Calvino, parece muito mais abrangente do que o mero círculo dos
doze discípulos. Ver Cranfield: “Message of Hope”, p. 159.
63
Jeremias, Parables, p. 152.
andamentos à sua tarefa. Tem confiança que a época da colheita
chegará. Sabe, pela experiência, quantos dias se passarão desde a
semeadura até à ceifa64. E quando a colheita está madura ele não
espera mais. O dia da ceifa chegou. Do mesmo modo, os ministros da
Palavra têm a tarefa divina de proclamar as boas-novas de salvação
em Cristo Jesus. Eles, também, devem permanecer de lado, enquanto
Deus efetua a obra secreta de crescimento e desenvolvimento. No
tempo de Deus, o ministro verá os resultados quando chegar a hora de
ceifar.

A parábola da semente germinando secretamente é, realmente,


uma parábola de seqüência: a colheita segue a semeadura, no tempo
devido. A manifestação do reino de Deus sucede o ministério fiel da
Palavra de Deus. Um leva ao outro, e nada acontece sem o secreto
poder operante de Deus. “A lição é: a vitória está assegurada; a
colheita se aproxima e chegará, com certeza, no momento apropriado
decidido no plano eterno de Deus. O reino de Deus será revelado em
todo o seu resplendor65”.

As últimas palavras da parábola são, de certo modo,


reminiscência de Joel 3.13: “Lançai a foice, porque está madura a
seara”. Sem dúvida, a passagem se refere definitivamente ao dia do
julgamento quando o Senhor, de acordo com Apocalipse 14.12-16,
envia o seu anjo para ceifar a terra. Nesse ínterim, aqueles que foram
enviados para proclamar a Palavra têm que aprender a ter a paciência
do lavrador. “Sede, pois, irmãos, pacientes, até à vinda do Senhor. Eis
que o lavrador aguarda com paciência o precioso fruto da terra...” (Tg
5.7). Falta de paciência é uma característica humana. Ela aparece até
mesmo na descrição de João, das almas daqueles que foram mortos
por causa da Palavra de Deus. Eles clamam em alta voz: “Até quando,
Ó Soberano Senhor...?” e a resposta que recebem é que devem
esperar ainda por algum tempo (Ap 6.9-11). Deus está no comando e
determina quando é chegado o tempo da colheita. Ninguém, nem
mesmo Jesus, sabe o dia e a hora (Mt 24.36).

64
Os fazendeiros do centro-oeste americano têm um ditado que diz que o milho
“deve estar à altura dos joelhos pelo quatro de julho.”
65
Hendriksen, Mark, p. 170.
6. O Joio e o Trigo

Mateus 13.24-30 “Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos


céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu
campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele,
semeou o joio no meio do trigo e retirou-se. E, quando a erva cresceu
e produziu fruto, apareceu também o joio. Então, vindo os servos do
dono da casa, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no
teu campo? Donde vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um
inimigo fez isso. Mas os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e
arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio,
não arranqueis também com ele o trigo. Deixai-os crescer juntos até à
colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o
joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo, recolhei-o no
meu celeiro”.

A parábola sobre o trigo e o joio é peculiar ao Evangelho de


Mateus, assim como a parábola da semente germinando secretamente
é encontrada apenas em Marcos. A palavra joio não é uma tradução
adequada da palavra original grega zizania, que significa “uma erva
daninha que nasce nas plantações de grãos, parecida com o trigo 66”.
Não podemos determinar se a palavra se refere, ou não, a uma
variedade venenosa dessa erva. De qualquer modo, a planta se parece
com o trigo e cresce exclusivamente em campos cultivados67. Na
verdade, a planta é uma degeneração do trigo. A cizânia pode ser
comparada à aveia silvestre, que cresce livremente nos trigais da
América do Norte, e que são difíceis de se erradicar.

O Campo do Fazendeiro

Depois da parábola do semeador e de sua interpretação, Mateus


relata que Jesus contou à multidão uma outra parábola, a história de
um fazendeiro abastado. Ele tinha servos e também ajudantes, no
tempo da colheita.

Como fazendeiro eficiente, esse dono de terras tinha usado boa


semente em seu campo. É óbvio que ele não tinha interesse nenhum
em semear erva daninha, que iria lhe causar grande problema. A boa
semente não está misturada ao joio. O fazendeiro tinha semeado boa
semente em seu campo (quando e como isso foi feito não é
importante para a história).

Assim que ele acabou de semear o trigo do inverno, veio seu


inimigo. Ele chegou escondido pelas trevas, enquanto todos dormiam,
e semeou joio por sobre o trigo. Com certeza não fez isso pelo campo
todo. Aqui e ali, ele espalhou a semente. Ninguém poderia saber, até à
chegada da primavera, que o joio estava crescendo entre o trigo68. O
joio tem a aparência exata do trigo. Mas, quando as plantas começam
a espigar, qualquer um pode distinguir o trigo do joio — “pelos seus
frutos os conhecereis” (Mt 7.20).

Nessa hora, no entanto, é impossível tentar resolver o problema.


Qualquer um andando pelo trigal para remover o joio vai pisar o trigo.
Além disso, as raízes do trigo e do joio estão tão emaranhadas que
quem puxar o joio vai arrancar também o trigo.

Os empregados do fazendeiro o alertaram sobre o problema e


até mesmo mostraram vontade de fazer algo a respeito. Queriam
saber de onde tinha vindo o joio. O fazendeiro apenas lhes explicou
que um inimigo tinha feito aquilo e deveriam deixar tudo como estava
até à chegada da ceifa. Então, os ceifeiros receberiam instruções para
colher o joio e atá-lo em feixes, e para recolher o trigo no celeiro. O
fazendeiro usará os feixes de joio — semente e palha — como
66
W. Bauer et al. Lexicon, p. 339.
67
L. löw, Die Flora der Juden (Hildersheim: 1967), 1:725. SB, 1:667.
68
Meu sogro comprou uma fazenda no Canadá, no final de 1930. Logo viu que os
campos estavam cobertos com um tipo de erva chamada “margarida”. Do
proprietário anterior, ele ficou sabendo a causa: alguns anos antes, um vizinho
rancoroso havia montado a cavalo, um dia, e espalhado pelo campo sementes de
“margarida”. O resultado é visto até hoje.
combustível. Assim transformará em lucro uma desvantagem: terá
aquecimento para o inverno.

Embora, no final, o fazendeiro consiga resolver de algum modo


aquela situação, ele sabe que o joio absorveu umidade e nutrientes
que se destinavam ao trigo. Sua produção de grão será
substancialmente menor que a esperada. Apesar de toda a sua
experiência de cultivo, ele foi incapaz de ver a diferença entre o trigo
e o joio antes que as plantas começassem a espigar e o tempo da
colheita estivesse próximo69. Só meses após o mal ter sido feito, o
fazendeiro se deu conta de que seu inimigo o atacara insidiosamente.
Ele tem, então, que enfrentar as conseqüências da trama perpetrada
por seu inimigo.

Interpretação

Mateus 13.36-43 “Então, despedindo as multidões, foi Jesus para casa.


E, chegando-se a ele os seus discípulos, disseram: Explica-nos a
parábola do joio do campo. E ele respondeu: O que semeia a boa
semente é o Filho do Homem; o campo é o mundo; a boa semente são
os filhos do reino; o joio são os filhos do maligno; o inimigo que o
semeou é o diabo; a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são
os anjos. Pois, assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim
será na consumação do século. Mandará o Filho do Homem os seus
anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que
praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá
choro e ranger de dentes. Então, os justos resplandecerão como o sol,
no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

De acordo com Mateus, os discípulos de Jesus lhe pediram uma


explicação sobre a parábola do joio70. A explicação é dada em poucas
palavras. Pode ser lida assim:

1. “O que semeia a boa semente é o Filho do homem;


2. o campo é o mundo;
3. a boa semente são os filhos do reino;
4. o joio são os filhos do maligno;
5. o inimigo que o semeou é o diabo;
6. a ceifa é a consumação do século, e
7. os ceifeiros são anjos”.

Embora a interpretação da parábola seja dada por Jesus, a


composição da explicação parte de Mateus. Mateus toma o ensino de
Jesus e ordena suas palavras numa lista de sete conceitos71. (O arranjo
69
Jülicher, em Gleichnisreden, 2: 548, afirma que o joio amadurece antes do trigo.
70
Compare-se Mateus 15.15, onde a mesma questão da explicação da parábola é
levantada. Consulte-se M. de Goedt, “L’Eplication dela Parable de L’Ivraie (Mt XIII,
36-43)’, RB 66 (1959): 35. Veja-se J. Jeremias, “Das Gleichnis vom Unkraut Unter
dem Wiezen, “em Neotesstamentica et Patristica (Leiden: Brill, 1962), p. 59.
71
R. Schippers, Gelijkenissen van Jezus (Kampen: J. H. Kok, 1962), p. 71.
de nomes e dados é uma característica de Mateus, como fica evidente
desde o primeiro capítulo de seu Evangelho).

Na interpretação, nenhuma menção é feita ao fato de que o


inimigo veio quando todos dormiam. Também é omitida a referência
ao crescimento e à maturação do trigo e do joio, e nada é dito sobre o
ajuntamento do trigo no celeiro e dos feixes de joio lançados ao fogo.
Em sua interpretação, Jesus omite a referência aos servos. Ele talvez
tenha feito isso para focalizar a atenção no ponto mais significativo da
parábola: o conflito entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. E,
nesse conflito, Satanás perde a batalha. Do mesmo modo, a conversa
dos servos com o fazendeiro parece não ter importância para a
interpretação da parábola. É deixada de lado; apenas uma referência a
ela é feita no resumo onde o fato do joio ser arrancado e lançado ao
fogo se torna importante (Mt 13.40). Na verdade, a conclusão da
interpretação é uma visão das coisas que acontecerão no final dos
tempos, Jesus, realmente, está dizendo: “com as Escrituras do Velho
Testamento, vou lhes dizer o que vai acontecer”.

“Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão


do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade
e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de
dentes. Então, os justos resplandecerão como o sol, no reino de
seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Da maneira usual, o ensinamento de Jesus reflete direta e


indiretamente as Escrituras do Velho Testamento72. Jesus parece se
referir à profecia de Sofonias: “De fato consumirei todas as coisas
sobre a face da terra, ... os homens e os animais (1.2,3), quando fala
de extirpar de seu reino tudo aquilo que traga escândalo e todo aquele
que pratique a iniqüidade. A frase “os lançarão na fornalha acesa”
lembra Daniel 3.6: “... lançado na fornalha de fogo ardente.” O próprio
conceito se assemelha a Malaquias 4.1: “Pois eis que vem o dia, e
arde como fornalha; todos os soberbos, e todos os que cometem
perversidade, serão como o restolho...” A passagem: “Então os justos
resplandecerão como o sol”, lembra Daniel 12.3: “Os que forem
sábios, pois, resplandecerão, como o fulgor do firmamento; e os que a
muitos conduzirem à justiça, como as estrelas sempre e
eternamente.” E para completar, devemos ler, também, Malaquias
4.2: “Mas para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da
justiça...”

72
Jeremias, em Parables, pp. 8485, afirma que “é impossível deixar de concluir que
a interpretação sobre o joio vem do próprio Mateus.” De acordo com Kingsbury, em
Parables of Jesus, p. 109, Jesus é o Senhor exaltado, que exorta os cristãos na
igreja de Mateus a serem obedientes à vontade de Deus. No entanto, como
observa R. H. Gundry “A resposta à questão de origem é o ensino de Jesus.” The
use of the Old Testament in St. Matthew’s Gospel (Leiden: Brill, 1967), p. 213.
Resumindo, não temos que chegar à mente imaginativa de Mateus. Antes, a
origem desse ensinamento está em Jesus mesmo.
Sem dúvida, na interpretação de Jesus, ressoa o eco das
palavras e sentimentos dos profetas. A parábola do joio é,
realmente, aquela na qual Jesus ensina o julgamento que está para
vir; pode ser chamada de a parábola da ceifa.

Os servos estavam dispostos a arrancar o joio, embora


pudessem, no processo, arrancar também o trigo — o sistema de
raízes do joio é bem mais desenvolvido que o do trigo. Mas o
fazendeiro diz: vamos esperar até à ceifa, quando, então, os ceifeiros
separarão o trigo do joio.

O fazendeiro conhece o seu negócio. Se permitir que os


empregados arranquem o joio, perderá sua safra de trigo, pois o
trigo não pode ser separado do joio. Se perder sua colheita, dará ao
seu inimigo a satisfação que ele pretendia.

Em vez disso, o dono de terras decide esperar que toda a


plantação amadureça. Fará a separação na ocasião da ceifa. Tanto o
joio quanto o trigo estarão maduros para a colheita.

O joio são os filhos do maligno, e a boa semente são os filhos do


remo. Como os dois — o mal e o bem — amadurecem não é explicado,
e será sensato não tentarmos ir além da parábola, em busca de
explicação73.

Enquanto os dois crescem e amadurecem, o fazendeiro não


pode fazer nada para remediar a situação. Essa incapacidade não
provém da ignorância. Pelo contrário, o lavrador, plenamente ciente
do problema, espera o tempo certo. Ele sabe o que deve ser feito. Ele
sabe de onde veio o joio e como foi semeado em seu campo — à noite,
enquanto todos dormiam.

Jesus, ao interpretar a parábola, disse que o fazendeiro que


semeia boa semente é o Filho do homem. O Filho do homem é o
próprio Jesus, que tomando a forma humana, se fez semelhante ao
homem (Fp 2.7,8). Ele veio semear a boa semente, os filhos do reino,
a nova humanidade em Cristo. O campo onde a semente é lançada é o
mundo. É onde tem lugar o drama entre o bem e o mal. O inimigo que
semeia o joio é o diabo, e o joio são os filhos do maligno.

É interessante notar que o campo, o mundo, pertence ao


fazendeiro —a Jesus. Nesse campo cresce o trigo e o joio. Não importa
onde o homem viva na terra. Onde quer que viva estará em
propriedade que pertence a Jesus74. Ele é o trigo ou o joio, um OU
outro. Ele é filho do reino ou filho do maligno. Tanto o trigo quanto o
joio estarão maduros quando o dono das terras enviar os ceifeiros
para o campo.
73
Ridderbos, coming of the Kingdom, p. 139.
74
Schippers, Gelijkenissen p. 71.
Quando chegar o final dos tempos, os ceifeiros, que são anjos de
Deus, separarão o bom do mau, o trigo do joio, os filhos do reino dos
filhos do maligno. No conflito entre Deus e Satanás — tudo que causa
escândalo e todo aquele que pratica a iniqüidade — é arrancado e
lançado ao fogo ardente. Os filhos do reino, por outro lado,
resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Eles são os justos. São
abençoados. Permanecerão para sempre.

Aplicação

Esta parábola de Jesus põe em confronto o bem e o mal, e


ensina que o bem prevalecerá. Na parábola, os servos perguntam ao
fazendeiro de onde veio o joio: “Donde vem, pois, o joio?” A resposta
concisa do fazendeiro foi: Um inimigo fez isso”. Os servos,
naturalmente, podiam ter desabafado sua contra o inimigo75, mas
voltaram sua atenção para o joio e manifestaram a vontade de
arrancá-lo. O fazendeiro disse: “Não!”.

Os servos refletem a impaciência de muitos cristãos no reino de


Deus. Com o pretexto de manter a pureza da igreja, crentes zelosos
têm causado dano incalculável, julgando e afastando outros cristãos
da igreja.

Qualquer jardineiro sabe que, às vezes, é impossível ver a


diferença entre uma planta que produzirá belas flores e outra que se
transformará apenas em erva daninha. Nos antigos versos:

Há tanto bem no pior de nós,


E tanto mal no melhor de nós,
Que dificilmente qualquer um de nós
poderá falar dos demais de nós76.

Ninguém deve deduzir que a parábola ensina a eliminação da


disciplina ou desaprova o cumprimento e a aplicação da lei. Ao
contrário, as Escrituras ensinam muito claramente que a disciplina
deve ser mantida e que a lei deve ser preservada. Jesus ensina,
explicitamente, a doutrina da disciplina em Mateus 18.15-17. Ao
esboçar o procedimento, no entanto, ele indica que a disciplina deve
ser conduzida com espírito de amor e delicadeza. O processo deve se
desenvolver cautelosa e pacientemente. O objetivo da disciplina deve
ser, sempre, a salvação e recuperação da pessoa envolvida.

Em Romanos 13, Paulo ensina que: “não há autoridade que não


proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele
instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à

75
W. G. Doty, “An Interpretation of the Weeds and Wheat”, Interp 25 (1971): 189.
76
Com agradecimentos a Hunter, Parables, p. 48, que parece ter um estoque
infindável de verses, poemas e ditados.
ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos
condenação. Porque os magistrados não são para temor quando se faz
o bem, e, sim, quando se faz o mal” (13.1-3). Deus investiu de
autoridade os magistrados para preservar a lei, punir o que pratica o
mal e impedir o crime.

A parábola, entretanto, nos instrui a ter paciência e a não nos


autonomearmos juízes. “Sede vós também pacientes, e fortalecei os
vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Irmãos, não vos
queixeis uns dos outros, para não serdes julgados. Eis que o juiz está
às portas”. (Tg 5.8,9).

À primeira vista, a parábola pode dar a impressão de que há dois


tipos de indivíduos neste mundo, o bom e o mau, e que os bons serão
sempre bons e os maus permanecerão maus para sempre. Mas isso
não é totalmente correto. As Escrituras não ensinam que Deus tenha
criado os homens bons e que Satanás criou os maus. Deus criou gente
— artesanato divino —, e ele regenera aqueles que escolheu por obra
da graça de seu Espírito. Os maus, embora criados por Deus, foram
corrompidos por Satanás e são usados por ele para influenciar o povo
regenerado de Deus77. São o joio entre o trigo. O trigo e o joio
amadurecem lado a lado até à ceifa. Então, serão separados.

A parábola do joio contém uma lista compacta de termos


similares, em forma de glossário. A aparente simplicidade na
explicação dos termos é quase um desafio a que se faça o mesmo em
relação a outras parábolas ensinadas por Jesus. Muitos comentaristas
têm visto isso como um convite explícito para explicar as parábolas à
maneira de Jesus. Por exemplo, ao explicar a parábola das cinco
virgens prudentes e as cinco virgens néscias (Mt 25.1-13), alguns
comentaristas da igreja primitiva davam explicações variadas para a
palavra óleo. Para Hilário, o óleo era o fruto das boas obras; para
Agostinho, o óleo significava alegria; Crisóstomo dizia que o óleo
significava a ajuda dada aos necessitados; e Orígenes considerava o
óleo como sendo a palavra de ensinamento78.

Obviamente, os comentaristas não têm a sabedoria demonstrada


por Jesus para interpretar parábolas. Devem ser cautelosos, para não
verem nas parábolas pensamentos e conceitos que elas não
pretendem ensinar. Na verdade, serão sensatos se buscarem o
ensinamento básico da parábola, na própria parábola, ou em seu
contexto, e limitarem sua interpretação ao ensino transmitido pela
parábola.

77
Calvin, Harmony of the Evangelists, 2:120.
78
Numerosos exemplos são encontrados nas séries, Works of lhe Father, coletados
por Tomás de Aquino. Veja Coomentary on the Four Gospels, 1, Si. Matthew (Oxford:
n. p. 1842).
7. O Grão de Mostarda

Mateus 13.31,32 “Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos


céus é semelhante a um grão de mostarda, que um homem tomou e
plantou no seu campo; o qual é, na verdade, a menor de todas as
sementes, e, crescida, é maior do que as hortaliças, e se faz árvore, de
modo que as aves do céu vêm aninhar-se nos seus ramos”.

Marcos 4.30-32 “Disse mais: A que assemelharemos o reino de Deus?


Ou com que parábola o apresentaremos? É como um grão de
mostarda, que, quando semeado, é a menor de todas as sementes
sobre a terra; mas, uma vez semeada, cresce e se torna maior do que
todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves do céu
poderem aninhar-se à sua sombra”.
Lucas 13.18,19 “E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que
o compararei? É semelhante a um grão de mostarda que um homem
plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu
aninharam-se nos seus ramos”.

Jesus contou duas parábolas para falar a respeito do fenomenal


crescimento do reino dos céus: a parábola do grão de mostarda e a
parábola do fermento. As duas formam um par, e são, na verdade,
duas faces de uma mesma moeda. A parábola do grão de mostarda
retrata o crescimento do reino em extensão e a do fermento descreve
a intensidade desse crescimento79.

Mateus colocou as duas em seu capítulo de parábolas (Mt 13);


provavelmente por causa do assunto. Lucas, por outro lado,
incorporando as parábolas no decorrer da chamada narrativa da
viagem (Lc 9.51 — 19.27), talvez reflita uma seqüência mais histórica,
embora não possamos afirmar isso, com certeza. Podemos, apenas,
presumir que Jesus tenha ensinado essas duas parábolas, juntas, na
mesma ocasião80.

A Semeadura e o Crescimento

Vinte e cinco alunos acompanham seu professor a Washington


D.C., para ver a Casa Branca. Quando voltam à sala de aula, o
professor pede que cada um deles faça uma descrição da visita. Vinte
e cinco redações refletem vinte e cinco aspectos da residência
presidencial. Uma criança, talvez, escreva: “A Casa Branca parece...”,
seguindo-se uma descrição daquilo que lhe pareceu mais interessante.
Outra criança, todavia, pode usar a mesma introdução, mas na
redação retratar uma perspectiva da Casa Branca, inteiramente
diferente.

Jesus tornou familiar a seus seguidores várias das características


do reino de Deus. Por meio de parábolas, ele procurou descrever as
facetas do poder soberano de Deus. Assim, ele introduz suas
parábolas com a frase: “O remo dos céus é semelhante...”

A parábola do grão de mostarda, em contraste com a do trigo e


do joio, é muito curta. Em poucas palavras, Jesus descreve o
surpreendente tamanho da mostardeira (“árvore”, em Mateus e Lucas;
“hortaliça”, em Marcos) que se desenvolve da menor das sementes.
Obviamente, Jesus realça a diferença entre o pequenino grão e a
grande árvore. Ele não diz nada sobre a qualidade da mostarda. Ele
poderia ter mencionado seu uso na comida e nos remédios, sua cor e
seu gosto, mas esse não era o propósito da parábola.
79
A. B. Bruce. The Parabolic Teaching of Christ (New York: A. C. Armstrong, 1908), p.
91.
80
Michaelis, Gleichnisse, p. 55. No Evangelho de Tome, as parábolas do grão de
mostarda e do fermento estão separadas. Elas têm o mesmo estilo (com ligeiras
variações) dos relates canônicos. Vejam-se Citações 20 e 96.
Jesus usa um exemplo da vida diária. Na nossa sociedade
moderna de comida enlatada, engarrafada e empacotada, muitos não
conhecem uma horta. Mas nos dias de Jesus quase todo mundo tinha
sua própria plantação. Mesmo os religiosos pagavam o dízimo das
especiarias colhidas — hortelã, endro e cominho (Mt 23.23). Em cada
quintal havia uma mostardeira. A planta podia, muitas vezes, ter
crescido no campo ao lado do canteiro de hortaliças, porque exige
muito espaço. Em Mateus, o jardineiro plantou a semente em um
campo; em Lucas, numa horta; e em Marcos, na terra.

O horticultor tomou apenas uma das sementes de mostarda.


Seus dedos pareciam grandes demais para segurar uma semente tão
pequena. Ele plantou a semente em seu campo porque sabia que
aquela coisinha minúscula tinha a capacidade de se transformar numa
planta do tamanho de uma árvore81. precisava de apenas uma planta,
e ele sabia do contraste entre a semente e a planta82. De fato, o
tamanho insignificante da semente de mostarda se tornou proverbial,
no primeiro século. Jesus, uma vez disse: “Se tiverdes fé como um
grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele
passará” (Mt 17.2O)83. Tanto Mateus como Marcos dizem
explicitamente que o grão de mostarda é a “menor de todas as
sementes84”. O contraste, no entanto, se torna mais marcante, porque
a afirmativa é posta em comparação com a descrição da planta
adulta: “crescida, é maior do que as hortaliças, e se faz árvore”.
Aquele minúsculo grão, depositado no solo, se transforma numa
árvore. Um milagre!

Concluindo a parábola, Jesus se refere ao Velho Testamento, às


passagens de Daniel 4.12 e Ezequiel 17.23 e 31.6. A passagem de
Daniel era bem conhecida de seus ouvintes, pois se referia a um
sonho de Nabucodonosor sobre uma árvore que se tornava tão forte
que sua altura chegava até ao céu. Debaixo dela, os animais do
campo achavam sombra e em seus ramos as aves do céu vinham se
aninhar. Jesus, que fala as palavras de Deus (Jo 3.34), ensina,
indiretamente, as Escrituras chamando, através de uma alusão verbal,
a atenção para uma parábola messiânica, em Ezequiel 17.23: “No
81
Alguns manuscritos trazem “grande árvore”, em Lucas 13.19. B. M. Metzger, em A
Textual Commentary on the Greek New Testament (London, New York: United Bible
Societies, 1971), p. 162, escreve: “Embora alguns copistas possam ter suprimido
mega, para harmonizar Lucas com o texto preponderante de Mateus (13.32), é muito
mais provável que, com o interesse de enfatizar o contraste entre o grão de
mostarda e a árvore, o termo mega tenha sido acrescentado, também, em alguns
testemunhos, no paralelo de Mateus”.
82
A semente da mostarda negra (sinapis nigra) cresce predominantemente nas
regiões do sul e do leste dos países mediterrâneos, Mesopotâmia e Afeganistão. É a
menor das sementes de trCs ou quatro variedades de mostarda. Lõw, Die Flora der
Juden, 1: 521, O. Michel, TDNT, III: 810-12.
83
Para exemplos dos escritos dos rabinos, veja SB, 1: 669.
84
É possível que os dois evangelistas tenham acrescentado essa explicação como
ajuda ao leitor.
monte alto de Israel o plantarei, e produzirá ramos, dará frutos e se
fará cedro excelente. Debaixo dele habitarão animais de toda sorte, e
à sombra dos seus ramos se aninharão aves de toda espécie85”.

O Cumprimento

Através da parábola, Jesus ensina que o reino de Deus pode


parecer sem importância e insignificante, especialmente na Galiléia de
28 AD. Mas, o evangelho do reino, proclamado por um carpinteiro
transformado em pregador, provocará um impacto tremendo no
mundo todo. Os seguidores de Jesus eram um grupo de pescadores
“rudes” a quem foi ordenado que fizessem discípulos de todas as
nações. Esses seguidores puseram o mundo em chamas, com a
mensagem de salvação, que hoje é proclamada em quase todas as
línguas conhecidas da terra. O pequenino grão semeado na Galiléia,
no nascer da nova era do Cristianismo, se tornou uma árvore que,
hoje, prove abrigo e descanso para os povos de todos os lugares. E o
dia ainda não se acabou.

A árvore ainda não alcançou maturidade; ainda está crescendo86.


Olhamos para o fenômeno do seu crescimento e sabemos que Deus
está operando o desenvolvimento do seu reino. Sabemos que
inúmeros povos desse planeta ainda não ouviram as boas-novas do
amor generoso de Deus. Nações inteiras estão virtualmente
destituídas da sombra e do abrigo oferecidos pelo reino de Deus. Os
ramos da árvore devem continuar a crescer e a se estender até
àquelas regiões que ainda precisam do evangelho para que multidões
possam encontrar refúgio e descanso87. E quando o evangelho do reino
de Deus tiver sido pregado a todas as nações do mundo, então o fim
virá (Mt 24.14) e a árvore terá alcançado sua plenitude.

85
J. W. Wevers, Ezekiel (Greenwood, 5. C.: Attic Press, 1969), p. 139. C. L. Feinberg,
em The Prophecy of Ezekiel (Chicago: Mood Press, 1969), p. 97, diz que os versículos
finais de Ezequiel 17 ‘sem dúvida, apresentam uma profecia messiânica”. Veja,
também, D. M. G. Stalker, Ezekiel (London: 5. C. M. Presa, 1968), p. 154; J. B. Taylor,
Ezekiel (Downers Grove, III:Inter Varsity Presa, 1969), p. 146; e, J. Mánek, Und
Brachte Frucht (Stuttgart: Calwer, 1977), p. 28.
86
Os estudiosos hesitam em se referir à planta da mostarda como uma árvore. Veja
R. W. Funk: “The Looking-Glass Tree is for the Birds”, lnterp 27 (1973): 5. No
entanto, ela alcança uma altura de mais ou menos três metros. A linguagem popular
descrevia o fenômeno do crescimento da mostarda, naqueles dias, como “uma
árvore”.
87
Os rabinos costumavam chamar os gentios de “aves do céu”. Veja Hunter,
Parables, p. 45, e Kingsbury, Parables of Jesus, p. 82. Também, H. K. McArthur, “The
Parable of the Mustard Seed”, CBO 33(1971): 208; O. Kuss, “Zum Sinngehalt des
Doppclgleichnissesvom Senfkom und Sauerteig”, Bib 40 (1959): 653.
8. O Fermento

Mateus 13.33 “Disse-lhes outra parábola: O reino dos céus é


semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três
medidas de farinha, até ficar tudo levedado”.

Lucas 13.20,21 “Disse mais: A que compararei o reino de Deus? É


semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três
medidas de farinha, até ficar tudo levedado”.

O método visual era um dos recursos pedagógicos mais usados


por Jesus. Sempre que ensinou às multidões a respeito do reino de
Deus, ele usou exemplos tirados diretamente do cotidiano. Quando
menino, em Nazaré, viu sua mãe fazendo pão. Primeiro, ela dispunha
as vasilhas e panelas; então, pegava farinha, água e fermento, e
adicionava uma pitada de sal. Ela misturava os ingredientes e deixava
a massa descansar. Seu trabalho, até ali, estava feito; o fermento
agiria e faria a massa crescer. Quando o processo da fermentação
estivesse completo, ela dividiria e assaria os pães.

Jesus contou a história de uma mulher fazendo pão — cena


comum do dia-a-dia. A mulher apanhou uma pequena quantidade de
fermento, misturou-o a uma grande quantidade de farinha, e assou
pão suficiente para uma refeição de cem pessoas. Tanto Mateus
quanto Lucas indicam que a mulher usou três satas de farinha. Uma
sata equivale a, mais ou menos, 13,13 litros. Assim, a mulher tomou
cerca de 39 litros de farinha — mais de 20 quilos —, pretendendo fazer
uma grande quantidade de pão. É demais, naturalmente, para o
consumo diário de uma família pequena88. Mas Sara, mulher de
Abraão, assou o mesmo tanto, quando três homens vieram visitá-los
em Manre (Gn 18.6). E, em pelo menos outras duas referências, o total
de três medidas (seah, ou um EFA) é mencionado em relação à farinha
usada para o pão (Jz 6.19 e 1 Sm 1.24).

Há quem argumente que as traduções modernas confundem o


sentido básico do versículo traduzindo a palavra grega zume como
fermento e não como levedo. A não ser entre o povo judeu, o uso do
levedo não é muito conhecido, e por isso o conceito de fermento está
na introdução: “O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma
mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até ficar tudo
levedado” (Mt 13.33). O fermento, como o conhecemos hoje, é limpo,
fresco, saudável e até saboroso. E feito da cultura de uma solução de
sal e açúcar à qual se adiciona amido. O levedo, no entanto, era
conseguido com uma porção de massa guardada da semana anterior,
à qual eram adicionados sucos para facilitar o processo de
fermentação. Se o levedo fosse contaminado por uma cultura de
bactérias nocivas, essa contaminação passaria para o pão até que o
processo fosse interrompido, quando comessem pão não levedado
durante uma semana, como faziam por ocasião da Páscoa89.

Jesus não teve a intenção de considerar nocivo o levedo. Ele


usou o exemplo do levedo por causa de seu poder oculto. O fermento
e o levedo fazem a massa crescer, permeando-a inteiramente. Depois
de misturados à farinha, o fermento ou o levedo não podem mais ser
encontrados. Ficam escondidos e invisíveis.

Esta parábola tão curta tem sido interpretada de várias


maneiras. Jerônimo, por exemplo, identificou a mulher com a igreja 90.
As três medidas de farinha têm sido explicadas como sendo os três
ramos da raça humana (descendentes de Sem, Cão e Jafé); os gregos,

88
Jeremias, em Parables, p. 147, afirma sumariamente: “Nenhuma dona-de-casa
amassaria tão grande quantidade de pão”.
89
Para uma descrição mais minuciosa, veja-se C. L. Mitton, “Leaven”, Expt
T84(1973), 339-43.
90
R. C. H. Lenski, Interpretation of St. Matthew’s Gospel (Columbus: Lutheran Book
Concern, 1943), pp. 530-32).
judeus e samaritanos; ou o coração, a alma e a mente91. Essas
interpretações são especulativas, imaginativas e de pouco valor.

A parábola destaca o fato de o fermento, uma vez adicionado à


farinha, permear toda a porção de massa, até que cada partícula seja
atingida. O fermento fica invisível, mas todos podem ver o seu efeito.
É assim que o reino de Deus demonstra seu poder e sua presença no
mundo de hoje.

Na parábola do grão de mostarda, Jesus tornou conhecida a


expansão aparente do reino. Na parábola do fermento, ele focaliza a
atenção no poder interior do reino e em sua influência sobre tudo.

A parábola do grão de mostarda ilustra o programa evangelístíco


global da igreja em obediência à comissão de Cristo e seus seguidores
para que fizessem discípulos em todas as nações. A parábola do
fermento torna claro que essa obediência a Cristo traz como
conseqüência a cristianização de cada setor e de cada segmento da
vida. O seguidor de Cristo deixa sua luz brilhar diante dos homens,
para que vejam suas boas obras e glorifiquem seu Pai que está nos
céus (Mt 5.16). Ele alivia o sofrimento dos pobres e dos aflitos; luta
pela causa da justiça, em favor dos oprimidos; exige honestidade dos
que foram eleitos ou escolhidos para governar as nações; ergue o
estandarte da moralidade e da decência; defende a santidade da vida;
respeita as leis da natureza; exige integridade nos negócios, no
comércio, na indústria, no trabalho e nas profissões (médicas,
jurídicas, religiosas); e na área da educação, explica
significativamente que em Cristo “todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento estão ocultos” (Cl 2.3). O seguidor de Cristo torna o
ensinamento das Escrituras de especial relevância em todos os
lugares. “Está claro para todo aquele que tiver olhos para ver, que o
“fermento” do poder de Cristo, nos corações e nas vidas dos homens e
em todas as esferas humanas, tem exercido, de milhares de maneiras,
uma influência completa. E essa influência ainda continua92”. Quem
tem ouvidos para ouvir, ouça.
O que, precisamente, queria Jesus dizer com a expressão “reino
dos céus”? É um sinônimo de igreja? O povo de Deus, individual e
coletivamente, confessa o nome de Jesus Cristo como seu Salvador.
Juntos constituem a igreja. Nessa igreja recebem dons e poderes que
se tornam capazes de guardar cuidadosamente a lei de Deus,
proclamar universalmente o evangelho da salvação e promover
efetivamente o governo de Deus93. A igreja, então, é constituída de
91
F. Godet, Commentaiy on St. Luke’s Gospel (Grand Rapids: Kregel, reprint of 1870
ed.), 2: 122. R. W. Funk, em “I3eyond Criticism in Quest of Literacy: The Parable of
the Leaven”, Interp 25 (1971) entende o numero três escatologicamente e escreve:
“Três medidas de farinha apontam para o poder sacramental do Reino para a
ocasião festiva de uma epifania”, p. 163. Devemos acentuar, no entanto, o poder e
não o significado da farinha ou do número três.
92
Hendriksen, Matthew, p. 568.
93
Para um estudo mais abrangente, veja-se Ridderbos, Coming of the Kingdom,
cristãos que praticam os ensinamentos de Cristo em todas as esferas
da vida. Assim procedendo, promovem o reino de Deus, no qual o
governo de Cristo é aceito. Resumindo, cada área da vida influenciada
pelo ensinamento de Cristo (o fermento) pertence ao reino.

9. O Tesouro Escondido

Mateus 13.44 “O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no


campo, o qual certo homem, tendo-o achado, escondeu. E,
transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele
campo”.

10. A Pérola

Mateus 13.45,46 “O reino dos céus é também semelhante a um que


negocia e procura boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de
grande valor, vende tudo o que possui e a compra”.

Em sua série de sete parábolas, Mateus elabora


cuidadosamente as duas primeiras — o semeador, o trigo e o joio —
registrando a interpretação de cada uma delas. As outras cinco são

especialmente as páginas 342-56.


um tanto curtas na forma, e diretas no tocante ao assunto. Apenas
duas sentenças constituem cada uma das parábolas — do tesouro
oculto e da pérola; a primeira sentença de cada uma delas é a
conhecida frase introdutória: “O reino dos céus é semelhante a...” O
ponto principal da parábola se encontra, naturalmente, na segunda
frase.

Encontramos essas duas parábolas apenas no Evangelho de


Mateus. Não sabemos se Jesus contou-as em seqüência ou se Mateus
reuniu-as pelo assunto ao organizar seu material. Permanece o fato de
que as duas estão relacionadas94.

Estritamente falando, as frases que apresentam as duas


parábolas não são inteiramente condizentes. Numa o reino dos céus é
semelhante a um tesouro; e na outra, a um mercador. Não devemos,
no entanto, abordar as duas parábolas com a mente analítica
ocidental. Devemos, antes, procurar seu sentido básico buscando
entendê-las como foram entendidas pelos discípulos, que primeiro as
ouviram.

Composição

Jesus contou a história de um homem que achou um tesouro


escondido num campo. Rapidamente, tornou a enterrá-lo e voltou
alegre para casa, a fim de vender tudo o que possuía, para comprar o
campo.

As crianças, muitas vezes, fantasiam que em algum lugar, em


alguma casa velha, ou celeiro, vão descobrir um tesouro que ninguém
viu. Na nossa sociedade sofisticada, consideramos isso irreal;
pensamos que tais coisas não acontecessem mais. Entretanto, de
tempos em tempos, descobertas são feitas: um pastor encontrou,
perto do Mar Morto, rolos de pergaminho de dois mil anos de
existência; um mergulhador localizou, afundado na costa da Flórida,
um navio espanhol do século 17, cheio de ouro e prata; e um
fazendeiro, arando o seu campo, em Suffolk, Inglaterra, achou um
cofre que guardava belos pratos de prata, do tempo dos romanos95.

Um tesouro tinha sido enterrado em um campo. Quem o


enterrara e por quanto tempo permanecera ali, são perguntas que não
temos como responder. Sabemos que, na antiga Palestina, um país

94
Alguns estudiosos citam o Evangelho de Tomé, onde as duas parábolas estão
separadas (Hidden Treasures, Citação 109; and Pearl, Citação 76). Isso é verdade,
também, em relação às parábolas do grão de mostarda e do fermento. A evidência
disponível, no entanto, nIo~ conclusiva, O assunto é discutido por O. Glombitza, “Der
Perlenkaufmann”, NTS 7 (1960. 61): 153-61. Ver também J. C. Fenton: “Expounding
the Parables: IV. lhe Parables of lhe Treasure and the Pearl (Mt 13.4446)”, Expt
77(1966): 178-80; J. Dupont: “Les Paraboles du Trésor et dc la Pene”, NTS 14 (1967-
68): 408-18.
95
E. A. Armstrong, The Gospel Parables (New York: Sheed and Ward, 1967), p. 154.
freqüentemente em guerra, as pessoas achavam mais seguro guardar
seu tesouro, ou parte dele, no campo do que em suas casas. Em casa,
os ladrões podiam roubá-lo; no campo ficaria em maior segurança.
Mas, se o proprietário morresse na guerra, levaria para o túmulo o seu
segredo, e ninguém, jamais, poderia saber onde enterrara o tesouro.

O homem que encontrou tal tesouro podia ser um empregado ou


mesmo um arrendatário daquele campo. Talvez estivesse arando,
cavando buracos, ou plantando uma árvore. De qualquer modo, ele
bateu em alguma coisa dura debaixo da terra, cujo som não parecia o
de uma pedra. Ele cavou e encontrou um tesouro. Não nos é contado
de que tesouro se tratava, mas o homem ficou maravilhado. Nunca
tinha visto um tesouro tão valioso. Tudo aquilo poderia ser seu, se
comprasse o campo.

Em segundos, arquitetou um plano. Rapidamente, pôs o tesouro


de volta no lugar, cobriu-o com terra e foi para casa. Sabia que o atual
proprietário do terreno não tinha enterrado o tesouro ali. Assim, se o
dono lhe vendesse o terreno, ele teria a posse do tesouro, que, então,
seria seu de direito96. precisava de dinheiro e pôs à venda tudo o que
tinha. Algumas pessoas talvez tenham meneado a cabeça, reprovando
aquela atitude tão impetuosa. Mas o homem sabia o que estava
fazendo. Com o dinheiro, poderia comprar o campo e teria para si o
tesouro.

Em poucas palavras, Mateus relata a parábola da pérola,


contada por Jesus. Um mercador está à procura de pérolas e encontra
uma de excepcional valor. Vai, vende tudo que possui, e compra
aquela pérola única.

A história é muito parecida com a do homem que encontrou o


tesouro. A mesma dedicação é encontrada em ambas as parábolas.
Cada um dos homens quer ter o objeto de seu desejo mesmo que isso
lhe custe o que ajuntou em toda a sua vida. Os dois, literalmente,
vendem tudo o que têm para conseguir o tesouro e a pérola.

No tempo do Velho Testamento, as pérolas, aparentemente, não


eram conhecidas, mas já no primeiro século da era cristã, tinham-se
tornado símbolo de status entre os ricos97. Jesus disse a seus ouvintes:
“Nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas” (Mt 7.6), e Paulo
queria que as mulheres de seu tempo se vestissem modestamente:
“não com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário
dispendioso” (1 Tm 2.9). No Apocalipse, uma voz dos céus, diz:
96
Não devemos pôr em dúvida a moral daquele homem, pois não sabemos como
eram as leis de propriedade, nos dias de Jesus. A parábola não dá ênfase à conduta
ética do homem que encontrou o tesouro. Para um estudo mais detalhado, veja-se J.
D. M. Derrett, Law in the New Testament (London: Longman and Todd, 1970), pp. 1-
16.
97
B. T. D. Smith, The Parables of the Synoptic Gospels (Cambridge: S. P. C. K., 1937),
p. 145.
“Choram e pranteiam os mercadores da terra, porque já ninguém
compra a sua mercadoria, mercadoria de ouro, de prata, de pedras
preciosas, de pérolas” (Ap 18.11,12).

Nos dias de Jesus e dos apóstolos, as pérolas eram muito


procuradas. Os mercadores tinham que ir ao Mar Vermelho, ao Golfo
Pérsico, e até mesmo à Índia para encontrá-las. As pérolas inferiores
vinham do Mar Vermelho; as melhores vinham do Golfo Pérsico e das
costas do Ceilão (hoje Sirilanka) e da Índia98. Um mercador tinha que
viajar muito para conseguir as melhores e maiores pérolas.

O homem, cuja história Jesus contou, está à procura das mais


finas pérolas. Não sabemos para onde viajou, mas um dia encontrou
uma de grande valor. Para ele, era uma oportunidade única na vida.
Não sossegou enquanto não a teve. Pensou muito, fez todos os
cálculos, avaliou seus bens, e decidiu vender tudo o que tinha para
comprar aquela pérola única, perfeita.

Devemos notar que o mercador não foi deliberadamente de um


apanhador de pérolas para outro, em busca de uma excepcional.
Enquanto as procurava, no decorrer normal de seu trabalho, ele se
deparou com a melhor de todas as pérolas que já havia visto. Como o
homem que descobriu o tesouro, o mercador, de repente, viu a pérola.
Era uma questão de agora —ou nunca: vender tudo e comprar! Típico
negociante oriental mantém o rosto impassível durante o negócio.
Quando a pérola for sua, haverá tempo para celebrar.

“Nada vale, nada vale, diz o comprador, mas,


indo-se, então se gaba”. (Pv 20.14)

Aplicação

Os amigos e conhecidos dos dois homens das parábolas devem


ter sacudido suas cabeças em desaprovação, quando os viram vender
tudo que possuíam. Devem ter ficado surpresos, quando logo a seguir
tiveram conhecimento do lucro obtido. E tiveram que mostrar respeito;
os homens sabiam o que estavam fazendo.

Os dois, no entanto, não especularam. Não havia nenhum risco


na compra do campo, ou na aquisição da pérola; o que fora comprado
valia o preço. O que fizeram foi o mais sensato. Por acaso, encontram
aqueles bens, e seria tolice ignorá-los. Diante da oportunidade, tudo
que tiveram que fazer foi adquirir o tesouro e a pérola.

Ao comprar o campo e a pérola, os dois homens não fizeram


sacrifício algum, mesmo vendendo tudo o que possuíam. “Há uma
diferença básica entre o valor de uma compra e um sacrifício. A

98
Smith, Parables, p. 146. Veja Schippers, Gelijkenissen, p. 103; Jeremias, Parables,
p. 199 Hauck, TDNT, IV: 472.
compra é a aquisição de um objeto de valor equivalente. O sacrifício,
de outro lado, é uma dádiva que não espera recompensa99”. Tanto o
homem que encontrou o tesouro quanto o mercador de pérolas
pagaram o preço justo pelo que compraram. Viram a oportunidade e
se mostraram dispostos a pagar o preço devido. Deram tudo o que
tinham em troca do único bem desejado.

O que, então, as parábolas ensinam? Pais da Igreja, como Irineu


e Agostinho, identificam o tesouro e a pérola com Cristo. Pensaram
acertadamente. O recém-convertido diz exatamente a mesma coisa:
‘Achei o Cristo’. O novo cristão, de repente, encontrou Cristo. Alegre,
ele volta para casa, abandona o seu modo de vida, e se devota
completamente a seu Senhor. Alguns vendem tudo o que têm para
buscar instrução teológica, a fim de se ordenarem ministros ou
missionários do Evangelho de Cristo.

É Cristo quem oferece o tesouro e a pérola aos viajantes da


vida100. Alguns deles estão buscando; outros estão andando a esmo.
Subitamente, encontram Jesus e acham nele um tesouro inestimável.
Sua resposta a Jesus é de entrega total. Alegremente vendem tudo o
que têm, para ter Jesus. A salvação, naturalmente, é plena e de graça,
e não pode ser comprada. É uma dádiva. Significa que Jesus exige o
coração do homem. Como nas palavras do antigo hino:

Tudo, ó Cristo, a ti entrego,


Por ti tudo deixarei;
Resoluto, mas submisso,
Sempre a ti eu seguirei.

Tudo entregarei! Tudo entregarei!


Tudo, sim, Jesus bendito, por ti deixarei!

11. A Rede

Mateus 13.47-50 “O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede


que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie. E, quando já
está cheia, os pescadores arrastam-na para a praia e, assentados,
escolhem os bons para os cestos e os ruins deitam fora. Assim será na
consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus dentre os
justos, e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de
dentes”.

Somente o Evangelho de Mateus registra a parábola da rede101.

99
E. Linnemann, Parables of Jesus: Introduction and Exposition (London: 5. P. C. K.,
1966), p. 100.
100
Hunter, Parables, p. 80. Também Michaelis, Gleichnisse, p. 66.
101
No Evangelho de Tomé, Citação 8, encontramos uma parábola semelhante, uma
Está claramente associada à parábola do trigo e do joio; a
interpretação de ambas focaliza o dia do juízo final. Ainda assim, ficam
evidentes diferenças importantes. Na parábola do joio, Jesus acentuou
a idéia de paciência. Essa idéia não aparece na parábola da rede102.

A parábola do joio é mais descritiva. Ela menciona o fazendeiro,


seus servos, e os ceifeiros, mas na parábola da rede apenas os
pescadores e suas tarefas são mencionados. O joio é semeado no
campo depois que o fazendeiro já tinha plantado o trigo, ao passo que
os peixes próprios para serem consumidos, e os impróprios, estão
sempre juntos no Mar da Galiléia. A parábola do joio descreve as
condições do campo, no presente, e a ceifa como um acontecimento
futuro. A parábola da rede, por outro lado, retrata a separação dos
peixes, no presente103.

A Pesca

A maior parte dos discípulos de Jesus era de pescadores por


profissão; tinham deixado suas redes e seus barcos para seguir Jesus e
se tornarem pescadores de homens. Quando Jesus lhes contou a
parábola da rede, compreenderam cada nuança da história. Jesus se
referiu exatamente ao modo de vida que levavam antes.

A margem norte do Mar da Galiléia é um dos melhores lugares


de pesca, em Israel. As plantas arrastadas pela correnteza do rio
Jordão são depositadas na enseada, ao norte. Essas plantas atraem e
alimentam cardumes vastos e variados. Vinte e cinco espécies nativas,
pelo menos, já foram identificadas naquele lado104.

Embora houvesse várias maneiras de pescar, nos dias de Jesus,


um dos mais eficientes era o uso do arrastão. Esse tipo de rede tinha
dois metros de largura e perto de cem metros de comprimento. Tinha
cortiça na parte superior para mantê-la à tona e pesos na parte
inferior, para mantê-la ao fundo. Às vezes, os pescadores fixavam uma
das extremidades da rede na praia, enquanto um barco puxava a
outra ponta pelo lago, fazendo uma curva e trazendo a rede de volta à
praia. Outras vezes, saíam dois barcos da praia, formando um
semicírculo com a rede; juntos, os homens a puxavam para apanhar
os peixes e juntá-los nos barcos. O uso do arrastão exigia a força de

cuja ênfase difere radicalmente: “E ele disse: O homem é como um pescador que
lançou sua rede ao mar, ele a recolheu quando estava cheia de pequenos peixes.
Entre eles o pescador achou um peixe grande. O pescador sensato lançou de volta
ao mar todos os pequenos peixes (e) escolheu o grande, sem dificuldade. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça”.
102
Mánek, Frucht, p. 50. Ver, também, Jeremias, Parables, p. 226.
103
Michaelis, Gleichnisse, pp. 68-69. Consulte, também, B. Gerhardsson, “The Seven
Parables in Mattew XIII”, NTS 19 (1972- 1973): 18-19.
104
G. Cansdale, AnimaIs of I3ible Lands (Grand Rapids: Zondervan, 1970), p. 216.
Consulte, também, Dalman, Arbeit und Sitte, 4: 351, que faz referência a vinte e
quatro espécies.
seis homens ou mais. Enquanto uns remavam, outros lançavam ou
puxavam a rede e outros ainda batiam na água para guiar os peixes
para a rede105.

Pescadores experimentados procuravam localizar um bom


cardume antes de começar a pescar. Mas, uma vez lançada a rede, os
homens puxavam todos os peixes apanhados por ela. Obviamente, os
peixes estavam misturados, pois não podiam selecioná-los, enquanto
pescavam106.

A rede apanhava os peixes próprios e impróprios para o


consumo —os bons e os maus. Peixes de todos os tipos e tamanhos se
debatiam ao serem puxados para a praia. Muitas espécies eram
consideradas impuras, de acordo com as normas de alimentação dos
judeus. Peixes sem barbatanas e sem escamas não podiam ser
comidos (Lc 11.10), e tinham que ser lançados de volta à água. Os
peixes pequenos, também, eram abandonados. Somente os peixes em
condição de serem negociados eram apanhados e colocados em
recipientes adequados. A classificação dos peixes, enfim, determinava
o valor da pesca; até à hora da escolha, era impossível avaliar o lucro
obtido.

Explicação

Jesus usa a parábola da rede para descrever o dia do juízo. Ele


se dirige a seus discípulos que sabiam como apanhar e selecionar os
peixes. Ele fala a linguagem deles e consegue, assim, comunicar
efetivamente uma verdade espiritual. Jesus faz, ainda, uma breve
interpretação da parábola. “Assim será na consumação do século:
Sairão os anjos e separarão os maus dentre os justos, e os lançarão na
fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.49,50). As
palavras são quase idênticas àquelas usadas por Jesus em sua
interpretação da parábola do trigo e do joio. “Pois, assim como o joio é
colhido e lançado ao fogo, assim será na consumação do século.
Mandará o Filho do homem os seus anjos que ajuntarão do seu reino
todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade, e os lançarão na
fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.40-42).

Argumentar que a interpretação da parábola da rede não se


ajusta aos termos da própria parábola, porque os peixes impróprios
para serem comidos são jogados de volta à água, e não em uma
fornalha acesa, é ilógico. Do mesmo modo, alguém poderia afirmar
que a interpretação da parábola do trigo e do joio é inadequada, pois o
joio não range os dentes. Jesus usa linguagem simbólica e transfere a
mensagem da parábola para o destino espiritual do homem: céu ou

105
Há uma interessante descrição a respeito em W. O. E. Oesterley, The Gospel
Parables in lhe Light of Their Jewish Background, (New York: Macmillan Co., 1936),
pp. 85-86.
106
Dodd, Parables, p. 188.
inferno. Na parábola do trigo e do joio, o destino do homem é o céu,
onde os justos resplandecerão como o sol, ou o inferno, onde há choro
e ranger de dentes.

A interpretação dada omite todos os pormenores descritivos a


respeito dos pescadores lançando a rede e trazendo para a praia o
produto da pesca; apenas a separação dos peixes bons, daqueles sem
valor, é explicada. Portanto, não é prudente usar a própria
interpretação para os detalhes da parábola107. Os pormenores fazem
parte do quadro total do produto da colheita. A rede traz todos os
peixes apanhados, e os pescadores, simplesmente, não podem
escolher enquanto pescam. Do mesmo modo, os seguidores de Jesus,
escolhidos para serem pescadores de homens, não têm como
selecionar quando e a quem proclamar o evangelho. Usando as
palavras de outra parábola, os servos de Cristo saem pelas ruas e
reúnem todos os que encontram, tanto bons como maus (Mt 22.10). O
apelo do evangelho é dirigido a todos, sem discriminação.

Na parábola da rede, os pescadores lançam a rede, juntam o que


conseguiram apanhar, e separam os peixes108. Na interpretação são os
anjos que vêm e separam os ímpios dos justos. Assim, podemos
deduzir que os pescadores, também, pertencem à multidão da qual os
anjos recolherão os Ímpios. Os ímpios serão retirados da multidão dos
justos.

O termo ímpio é abrangente: ele se refere, também, àquelas


pessoas que na aparência fazem parte da igreja, mas no íntimo não
têm qualquer ligação com a verdadeira igreja. Com a boca confessam
o Credo Apostólico, mas em seus corações não possuem a fé genuína
em Jesus Cristo.

Essas pessoas são como aquelas descritas na parábola do


semeador: têm seus corações endurecidos (o solo à beira do
caminho); são cristãos apenas superficialmente (o solo rochoso);
amam os bens e os prazeres do mundo (o solo cheio de espinheiros).
Estão na igreja, mas não pertencem a ela. No dia do juízo final, os
anjos de Deus virão e os separarão do povo de Deus, e os lançarão no
fogo ardente reservado para eles.
O que a parábola ensina? Diz aos seguidores de Jesus: vão à sua
tarefa diária de testemunhar aos outros, onde quer que estejam;
tragam-nos para a igreja; façam com que se lembrem sempre da
necessidade da fé e do arrependimento; que eles estejam atentos

107
Por exemplo, Lenski, em Matthew’s Gospel, p. 547, diz que “a rede é o
Evangelho”.
108
Em um curto e interessante estudo, J. Mánek, “Fishers of Men”, NovT 2 (1958):
13841, mostra que há inimizade entre o mar e Deus (Ap 21.1). “Porque o mar é lugar
de revolta contra Deus, ele não pode participar do mundo novo, no futuro. Ele
passará juntamente com outros poderes demoníacos, como está demonstrado na
visão do novo céu e da nova terra, em Ap. XXI.1”, p. 139. Os pescadores de homens,
portanto, os resgatarão de um ambiente hostil a Deus.
para o dia do juízo, quando, então, a separação entre o ímpio e o justo
acontecerá.

Mateus, apropriadamente, fecha a série de sete parábolas (sete


é o número da perfeição) com a parábola da rede. Essa última
parábola lembra, uma vez mais, o dia dos dias, quando se dará o juízo
final109.

O escritor da Epístola aos Hebreus resume sucintamente: “E,


assim, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez e,
depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma
vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda
vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação” (Hb 9.27,28).

12. O Credor Incompassivo

Mateus 18.21-35 “Então, Pedro, aproximando-se, lhe perguntou:


Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe
perdoe? Até sete vezes? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até
109
Veja W. F. Albright e C. S. Mann, Matthew (New York: Doubteday, 1971), p. cxliv.
sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o reino dos céus é
semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos.
E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil
talentos. Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que
fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a
dívida fosse paga. Então, o servo, prostrando-se reverente, rogou: Sê
paciente comigo, e tudo te pagarei. E o senhor daquele servo,
compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo,
porém, aquele servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia
cem denários; e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me
deves. Então, o seu conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê
paciente comigo, e te pagarei. Ele, entretanto, não quis; antes, indo-
se, o lançou na prisão, até que saldasse a dívida. Vendo os seus
companheiros o que se havia passado, entristeceram-se muito e foram
relatar ao seu senhor tudo que acontecera. Então, o seu senhor,
chamando-o, lhe disse: Servo malvado, perdoei-te aquela dívida toda
porque me suplicaste; não devias tu, igualmente, compadecer-te do
teu conservo, como também eu me compadeci de ti? E, indignando-se,
o seu senhor o entregou aos verdugos, até que lhe pagasse toda a
dívida. Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não
perdoardes cada um a seu irmão”.

A História

Jesus, alguma vez, negou-se a atender qualquer um que tenha


vindo a ele em arrependimento e fé? Claro que não! Nunca, não
importa que pecado tivesse cometido. Essa é a nossa resposta.
Sabemos isso porque “a Bíblia nos diz”. Mas, quantas vezes nos
esquecemos do nosso próximo? Uma coisa é Jesus perdoar alguém
que tenha cometido um crime odioso; outra, nós perdoarmos o nosso
próximo que cai, constantemente, no mesmo pecado.

Pedro, conhecedor da Lei e dos Profetas, bem como da tradição


judaica, sabia que devia perdoar seu semelhante. Sabia qual era o seu
dever. Mas, qual o limite? Há limite, afinal? Pedro pensava que devia
perdoar até sete vezes. Ele achava que sete vezes seria suficiente, e
que Jesus, provavelmente, diria algo como: “Sim, Pedro, é bastante”. A
misericórdia sem limite não encoraja uma vida de pecados? Jesus não
concordaria com Pedro: “Há limite para tudo?”.

Mas a resposta de Jesus é: “Não te digo que até sete vezes, mas
até setenta vezes sete”. Jesus multiplica os dois números, sete e dez
— números que simbolizam a perfeição — e acrescenta um outro sete:
Ele quer dizer, não sete vezes, mas setenta vezes — sete vezes; isto é,
a perfeição vezes a perfeição e mais a perfeição110. Ele indica a idéia
de infinito. A misericórdia de Deus é tão grande que não pode ser
medida; você, Pedro, deve também mostrar misericórdia a seu
próximo.
110
A frase pode também ser traduzida como “setenta vezes sete”. Veja-se, Gn 4.24.
Para explicar a magnitude do amor misericordioso de Deus, que
deve se refletir em seu povo, Jesus ensina a parábola do servo
incompassivo. Ele conta a história, e o faz muito bem.

Um rei reuniu seus oficiais (= servos), no dia marcado para o


acerto de contas111. Um deles lhe devia a astronômica soma de dez mil
talentos. De fato, a expressão “dez mil talentos” traz implícito o
significado de algo que não se pode numerar ou contar, algo infinito112.
Além disso, o talento era, naqueles dias, o mais alto valor monetário
do sistema financeiro. Comparando, vemos que o total anual de
impostos que Herodes, o Grande, recebia de todo o reino era de,
aproximadamente, novecentos talentos113. Está claro que o ministro
das finanças devia a seu senhor uma quantia enorme. Não nos é
contado o que ele havia feito com o dinheiro; esse fato não tem
importância. Ele devia a soma de dez mil talentos, e tinha que pagar.
Ele sabia que jamais conseguiria todo aquele dinheiro, no dia marcado
para o ajuste de contas.

Quando ficou diante de seu senhor, ouviu o veredicto: ele, sua


mulher, seus filhos e tudo o que possuía seriam vendidos para o
pagamento da dívida. Era demais para ele. Atirou-se aos pés do
soberano, implorando misericórdia, e pediu: “Sê paciente comigo e
tudo te pagarei”. Ele implorou misericórdia, não o perdão. Prometeu
restituição, sabendo que poderia pagar apenas uma pequena parte e
não mais. Como resposta, recebeu o que menos esperava — quitação
da dívida. Seu senhor teve piedade dele, cancelou o seu débito e
deixou-o ir114. Inacreditável! Que alegria! Quanta bondade!

Este foi apenas o primeiro ato do drama115. O segundo ato é


paralelo ao primeiro: o ministro das finanças se torna senhor e
encontra um outro oficial do rei.

Descendo as escadas do palácio real, o servidor público

111
Quando um monarca oriental convocava seus secretários do tesouro, deixava de
lado os oficiais menores. Etc se encontrava com os oficiais do alto escalão do serviço
público. Veja-se K H. Rengstorf, TDNT 11; 266 que destaca que a palavra servo é a
forma lingüística usual para a relação de sujeição ao rei, nas despóticas monarquias
do antigo oriente.
112
H. O. Liddell e R. Scott, A Greek English Lexicon (Oxford: Clarendon Presa, 1968),
p. 1154. A soma de dez mil talentos chega a vários milhões de dólares.
113
Josephus, Antiquities 17:318-20. Judéia, lduméia e Samaria pagavam Seiscentos
talentos de impostos anualmente. Galiléia e Peréia pagavam duzentos talentos;
Batanéia e Traconitis, bem como Auranitis pagavam cem talentos.
114
O ministro das finanças expôs sua falta de condição para pagara dívida e pediu
um adiamento. Prometia pagar tudo dentro de um ano. Desse modo, o dinheiro
devido renderia juros ao rei. Na realidade, o débito (=daneion) que o rei perdeu era
um empréstimo. Derrett, Law in the New Testament, pp. 39-40.
115
Para um estudo simétrico da parábola, veja-se F. H. Breukelman, ‘Eine Erklárung
des Gleichnisses vom Schaiksknecht”, Parrhesia, Festschrift honoring Karl Barth
(Zürich: 1966), pp. 261-87.
absolvido encontrou um outro servidor que lhe devia cem denários.
Realmente, era muito pouco — alguns dias de trabalho e a soma seria
conseguida. Mas o servidor público agarrou-o pelo pescoço e o
sufocava, exigindo pagamento imediato: “Paga-me o que me
deves”116. O devedor atirou-se aos pés do ministro das finanças e
pediu: “Sê paciente comigo e te pagarei”. Ele não precisava dizer:
“Pagarei tudo”, porque o total era pequeno. Estava claro que ele
pagaria tudo. Mas o ministro das finanças se recusou, lançou o homem
na prisão, esperando que alguém opusesse em liberdade sob fiança, e
pagasse a dívida.

O terceiro ato apresenta as testemunhas do segundo ato; e é,


também, a segunda e última confrontação do rei com o servidor
público.

Nada foi feito às escondidas; era difícil guardar segredos, no


palácio. Outros viram o que tinha acontecido e não podiam manter
silêncio. Tinham que contar ao rei. O rei, quando ouviu a história, ficou
zangado. Chamou o servo e o repreendeu: “Servo malvado, perdoei-te
aquela dívida toda porque me suplicaste, não devias tu, igualmente,
compadecer-te do teu conservo, como também eu me compadeci de
ti?” Com isso, entregou-o aos carcereiros para que o torturassem até
que a divida fosse paga117.

A conclusão é que todo aquele que recebeu perdão deve estar


pronto a perdoar quem quer que esteja em débito com ele, e deve
fazê-lo de todo o coração.

A Lição

Esta história movimentada, contada em pormenores


expressivos, acentua o contraste entre o amor infinito e a misericórdia
de Deus e o comportamento mesquinho do homem, que tenta
justificá-lo com base na lei. Jesus usa essa parábola para dizer a Pedro
algo a respeito da grandeza do amor misericordioso de Deus para com
o homem pecador. O pecado do homem é tão grande que Deus tem
que perdoá-lo infinitamente mais que a conta de setenta vezes sete. A
misericórdia de Deus não pode ser medida. Podemos calculá-la apenas
vaga e aproximadamente, ao contar a história do servidor público que
devia a seu senhor uma soma que beirava a milhões.

Embora a palavra justiça não seja encontrada na parábola, os

116
O conservo não podia pagar, pois estava indo ao rei para quitar seu imposto
anual. Prendendo seu companheiro, o ministro das finanças ofendeu o rei, privando-
o de receber o que lhe cri devido, naquele dia. Consulte-se Derrett, Law in the
Newlestament, pp. 41-42.
117
“A tortura era empregada regularmente, no Oriente, contra um governador
desleal, ou contra qualquer um que atrasasse os impostos, a fim de descobrir onde
escondia o dinheiro, ou para extorquir a soma de seus parentes e amigos”. Jeremias,
Parables, 212.
conceitos expressos são os de misericórdia e justiça. São conceitos
bíblicos porque ocorrem repetidamente no Velho Testamento,
revelados pelos salmistas e profetas118.

Cantarei a bondade e a justiça;


a ti, SENHOR, cantarei (Sl 101.1).

O povo judeu sabia muito bem que tinha que praticar a


misericórdia e a compaixão. Deus lhes dissera expressamente: “Se
emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te
haverás com ele como credor que impõe juros. Se do teu próximo
tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol;
porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se
deitaria? Será, pois, que, quando alguém clamar a mim, eu o ouvirei,
porque sou misericordioso” (Ex 22.25-27)119. A justiça se manifestava
de diversas maneiras. Por exemplo, as exigências do Ano do Jubileu
eram impostas; durante aquele ano, os que haviam alienado suas
propriedades entravam de novo na posse delas e os escravos
adquiririam sua liberdade120. Resumindo, o judeu dos dias de Jesus
sabia que misericórdia e justiça não podem ser tratadas
separadamente. Estão interligadas.

É por esse motivo que Jesus conta a parábola do credor


incompassivo. Ele ensina que a prática da misericórdia não se coloca
apenas ocasionalmente ao lado da justiça. Jesus ensina a aplicação de
ambas, da justiça e da misericórdia. Muitas vezes, entendemos justiça
como uma norma que deve ser aplicada rigorosamente, a misericórdia
como um abandono ocasional dessa norma. Exercemos essa opção
como um “direito”, e, freqüentemente, somos elogiados ao mostrar
indulgência121. Reconhecemos que a justiça contém um tanto de
misericórdia, mas, no geral, sentimos que esta não deve ser mostrada
a toda hora.

No tempo do Velho Testamento, entretanto, Deus instruiu seu


povo a considerar misericórdia e justiça como normas iguais. Normas
essas que devem ser, ambas, eficientes e funcionais, pois refletem a
maneira como Deus se relaciona com o seu povo. Com o tempo, a
ênfase se alterou. Escritos do período entre os Testamentos
proclamam que, no dia do juízo, a justiça prevalecerá e a misericórdia
terá fim. “Então o Altíssimo será visto no trono do julgamento, e
haverá um fim para toda piedade e paciência. Apenas o julgamento
permanecerá” (2 Esdras 7.33, 34 NEB).
118
Sl 103.6,8; Mq 6.8. Consulte-se F. Notscher, “Righteousness (justice)” na
Encyclopedia of Biblical Theology (London: 1970), 2: 782.
119
SB, 1: 800-1.
120
O sistema do Ano do Jubileu, do Velho Testamento não funcionava muito bem.
Não por causa da lei de Deus, mas pelo egoísmo e avareza do homem. Os profetas
do Velho Testamento pregavam a justiça, baseados, constantemente na lei. Veja-se
A. H. Leitch, “Righteousness”, em ZPEB, 5:108.
121
Linnemann, Parables, pp. 111-13; Hunter, Parables, p. 69.
Aplicação

Em nossa sociedade temos, às vezes, enfatizada a misericórdia,


em detrimento da justiça. A preocupação exageradamente
escrupulosa para com os “direitos” do criminoso tem alcançado
extensão tal que os direitos do ofendido acabam por ser
completamente ignorados. As Escrituras não ensinam que a
misericórdia anula a justiça; nem ensinam que a justiça elimina a
misericórdia. As duas normas são igualmente válidas.

Como Jesus mostrou a Pedro que ele devia perdoar o seu


próximo, vezes sem fim? Ele contou a história de um homem cujo
débito era esmagadoramente grande e que implorou piedade quando
a justiça foi aplicada. Seu senhor cancelou a dívida e mostrou infinita
misericórdia. O homem foi posto em liberdade e pôde conservar sua
mulher, filhos e tudo quanto possuía122. Estava isento de sua dívida.

Jesus não contou a história de um homem que, várias vezes, dia


após dia, vinha diante de seu senhor para implorar perdão pelos
pecados que repetidamente cometia. Em vez disso, para realçar o
nosso débito para com Deus, ele ensina a história de um homem que
tinha uma enorme dívida com o seu senhor. “Se observares, SENHOR,
iniqüidades, quem, SENHOR, subsistirá? Contigo, porém, está o
perdão, para que te temam” (SI 130.3,4). A desesperança do homem
se revela quando ele está diante de Deus123. Seu pecado é esmagador
porque ele transgrediu a lei de Deus. Merece a morte. Mas ele sabe
que Deus é um Deus de misericórdia. Quando Davi tinha desobedecido
a Deus, levantando o censo de Israel e Judá, ao fazer cumprir a justiça,
Deus deu a ele três escolhas: três anos de fome, três meses de
perseguição, ou três dias de peste. Davi respondeu: “Caiamos nas
mãos do SENHOR, porque muitas são as suas misericórdias...” (2 Sm
24.14; 1 Cr 21.13). Deus revelou a Davi o seu pecado, deu-lhe o
veredicto e mostrou misericórdia.

No segundo ato da história, Jesus mostra que o homem


perdoado deve refletir a misericórdia e a compaixão de Deus. Se Jesus
não tivesse descrito o servidor público, de joelhos, implorando
misericórdia, e tivesse contado apenas a segunda metade da história,
com o homem forçando seu companheiro a pagar-lhe a dívida,
poderíamos dizer que prevaleceu a justiça mesmo que rigorosa 124. Mas

122
“A lei judaica apenas permitia a venda de um israelita cm caso de roubo, se o
ladrão não pudesse devolver o que tinha roubado; a venda da esposa era
terminantemente proibida sob a jurisdição dos judeus; conseqüentemente, o rei e
seus ‘servos’ representam os gentios”. Jeremias, Parables, p. 211. Ver, também, SB,
1: 798. Mas a parábola não se refere ao povo judeu, e, portanto, a lei judaica não se
aplica. Veja-se Derrett, Law in the New Testament, p. 38.
123
R. S. Wallace, Many Things in Parables (New York: Harper and Brothers, 1955), p.
171.
124
Wallace, Many Things, p. 174; Linnemann, Parables, p. 111.
o homem tinha sido perdoado de uma dívida enorme, e agora
encontrava um companheiro que, devendo-lhe uma ninharia, pedia
misericórdia. Ele perdoaria?

Corrie ten Boom, conhecida oradora e autora, esteve prisioneira,


durante a II Grande Guerra, em um campo de concentração alemão,
sofrendo muito nas mãos de um dos guardas alemães. Anos mais
tarde, um dia, testificou sua alegria no Senhor, numa reunião na
Alemanha do após guerra. Depois do encontro, enquanto algumas
pessoas conversavam com ela, aquele mesmo guarda alemão
aproximou-se de Corrie e lhe pediu que o perdoasse. Num clarão de
reconhecimento, ela se lembrou da dor e da angústia sofrida na
prisão, por causa daquele guarda. Agora, ele ali estava, à sua frente,
pedindo-lhe misericórdia. E aquele que não merecia, recebeu o
perdão. Triunfou a misericórdia!

O servidor público retratado na parábola não perdoaria. Aplicaria


o princípio da justiça sem misericórdia. Em vez de deixar triunfar a
misericórdia, escolheu a vitória da justiça. Esse foi seu erro. Tiago
escreve que “o juízo é sem misericórdia para com aquele que não
usou de misericórdia” (2.13). O servo se recusou a refletir a
compaixão que seu mestre lhe mostrara. Porque não mostrou piedade
por seu companheiro, mas exigiu justiça, teve que enfrentar, uma vez
mais, seu senhor, o rei. Exigindo justiça se afastou de seu mestre e de
seu companheiro125.

No último ato desse drama, o servo incompassivo reencontra,


face a face, o seu irado senhor. O que o servo fizera a seu devedor, o
senhor faz agora a ele: a justiça é administrada sem misericórdia. O
servo lançou a si próprio na miséria, para sempre.

Deus não pode relevar que alguém se recuse a mostrar


misericórdia, pois isto contraria sua natureza, sua Palavra e seu
testemunho. Deus perde aceitando o pecador como se este não tivera
pecado jamais. Deus perdoa dívida do pecador e recomenda que não
peque mais (Sl 103.12 e Jr 31.34). Deus espera que o pecador
perdoado faça o mesmo. Ele se torna o representante de Deus quando
mostra a característica divina da graça misericordiosa.

A conclusão da parábola é expressa em palavras que nos são


familiares Quando Jesus ensinou o Pai Nosso, continuou, dizendo:
“Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso
Pai celeste vos perdoará; se porém, não perdoardes aos homens (as
suas ofensas), tão pouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas”
(Mt 6.14,15)126.

125
D. O. Via, Jr., The Parables (Philadelphia: Fortress Press, 1967), p. 142.
126
Veja-se, também, Marcos 11.25 e Colossenses 3.13.
13. Os Trabalhadores da Vinha

Mateus 20.1-16 “Porque o reino dos céus é semelhante a um dono de


casa que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua
vinha. E, tendo ajustado com os trabalhadores a um denário por dia,
mandou-os para a vinha. Saindo pela terceira hora, viu, na praça,
outros que estavam desocupados e disse-lhes: Ide vós também para a
vinha, e vos darei o que for justo. Eles foram. Tendo saído outra vez,
perto da hora sexta e da nona, procedeu da mesma forma, e, saindo
por volta da hora undécima, encontrou outros que estavam
desocupados e perguntou-lhes: Por que estivestes aqui desocupados o
dia todo? Responderam-lhe: Porque ninguém nos contratou. Então,
lhes disse ele: Ide também vós para a vinha. Ao cair da tarde, disse o
senhor da vinha ao seu administrador: Chama os trabalhadores e
paga-lhes o salário, começando pelos últimos, indo até aos primeiros.
Vindo os da hora undécima, recebeu cada um deles um denário. Ao
chegarem os primeiros, pensaram que receberiam mais; porém
também estes receberam um denário cada um. Mas, tendo-o recebido,
murmuravam contra o dono da casa, dizendo: Estes últimos
trabalharam apenas uma hora; contudo, os igualaste a nós, que
suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas o proprietário, respondendo,
disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo
um denário? Toma o que é teu e vai-te; pois quero dar a este último
tanto quanto a ti. Porventura, não me é lícito fazer o que quero do que
é meu? Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom? Assim, os
últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos porque muitos
são chamados, mas poucos escolhidos.

Conhecida pelo título de “Os Trabalhadores da Vinha”127, esta


história é uma das parábolas encontradas em Mateus, a respeito do
reino. Entretanto, esta parábola não termina com a mensagem: “Vai, e
procede tu de igual modo”, no reino do céu. Seu enfoque não é a
relação de trabalho e economia com o estabelecimento de um
pagamento justo. Antes, as palavras e os atos do empregador,
teologicamente falando, apontam para Deus, que dá aos homens,
livremente, suas dádivas. Na verdade, ecoa na história o verso de um
dos Salmos de Davi: “Oh! Provai, e vede que o SENHOR é bom...” (Sl
34.8).

O Trabalho e os Trabalhadores

Embora a parábola não cite a época específica do ano em que os


trabalhadores são mais necessários na vinha, podemos presumir que

127
Jeremias, em Parables, p. 136, d~ mais ênfase ao empregador que aos
trabalhadores e, conseqüentemente, fala da parábola do Bom Empregador. Veja-se,
também, Hunter, Parables, p. 70. Mánek, Frucht, p. 55, chama a parábola de
“Pagamento Igual”.
seja em setembro128, quando se dá a colheita da uva. Durante o mês
de setembro, o período entre o levantar e o pôr-do-sol, em Israel, vai,
aproximadamente, das 6 horas da manhã até às 6 horas da tarde.
Descontando os períodos de descanso para as refeições e as orações,
um trabalhador judeu, nos dias de Jesus, considerava normal uma
jornada de dez horas de trabalho129. Em Israel, a temperatura do meio
do dia é ainda mais alta em setembro, de modo que os trabalhadores
no campo ou nas vinhas experimentavam literalmente “o calor do
dia”.

O proprietário de uma vinha de tamanho regular resolveu colher


suas uvas, em um determinado dia. Todos os seus servos, que
trabalhavam para ele, regularmente, durante todo o ano, saíram para
a vinha às seis horas da manhã, enquanto o dono foi até à praça da
cidade próxima, ao romper da aurora. Ele precisava encontrar alguns
trabalhadores desempregados que estivessem dispostos a trabalhar
por dia, pela soma razoável de um denário130. Bem cedo, entre cinco e
seis horas da manhã, alguns homens dispostos a trabalhar já
permaneciam pela praça à espera de algum empregador que viesse
oferecer-lhes trabalho. O proprietário da vinha falou com os homens,
mencionou o pagamento diário de um denário — com o qual todos
concordaram — e levou-os para a jornada de dez horas de trabalho.
Os trabalhadores, estando desempregados, dependiam do empregado
que, por acaso, precisasse deles por um curto período de tempo. E
claro que precisavam muito mais do empregador do que este
precisava deles.

Nos dias de Jesus, os trabalhadores se consideravam


privilegiados ao conseguir um salário. Providenciando trabalho, o
empregador demonstrava sua bondade. Era um ato de graça da parte
do empregador131. Passar horas ociosas na praça significava para o
trabalhador que ele e sua família teriam que contar com a caridade
dos outros. O trabalhador não tinha recursos próprios, e as dádivas
dos ricos nem sempre aconteciam. Conseqüentemente, um dia todo
de trabalho era uma bênção para o trabalhador e sua família.
Enquanto os servos e os novos contratados estão ocupados
trabalhando na vinha, o proprietário volta à praça para ver se
consegue encontrar mais alguns trabalhadores. São entre oito e nove
128
A. C. Schultz, em “Vine, Vineyard”, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas
comecem a amadurecer em Julho, a colheita acontece em setembro. A. C. Schultz,
em “Vine, Vineyard”, ZPEB, 5: 882, afirma que, embora as uvas comecem a
amadurecer em Julho, a colheita acontece em setembro. Consulte-se Dalman, Arbcit
und Sitte, IV:336. DerretI, “Workers in lhe Vineyard: A parablc of Jesus”, Journal of
Jewish Studics 25 (1974): 72, publicano, também, em Studies in lhe New Testament
(Lciden: Brill, 1977), 1:56.
129
F. Gryglewicz, “lhe Gospel of lhe Overworkcd Workers”, CBQ 19(1957): 192. Veja-
se SB, 1:830.
130
Um denário era um pagamento justo por um dia de trabalho e suficiente para
sustenta, um trabalhador e sua família. Veja-se Mánek, Frucht, p. 56.
131
A diferença de condições de trabalho de antigamente e de hoje é surpreendente.
Veja-se Oesterley, Parables, p. 107.
horas, e muitos estão ainda à toa, na praça. O empregador pergunta-
lhes se trabalhariam o resto do dia em sua vinha. Ele lhes promete um
salário justo, embora não especifique a quantia. Os trabalhadores,
conhecendo a reputação do dono da vinha, confiam nele plenamente.
Sabem que não ficarão desapontados ao fim do dia.

À medida que o trabalho progride, o proprietário e seu capataz


calculam o número de horas de trabalho necessárias ainda para
terminar a tarefa antes que a noite caia. Fica evidente a necessidade
de mais trabalhadores extras. O dono da vinha sabe exatamente
quando certas uvas devem ser colhidas. Se forem deixadas na videira
por mais um ou dois dias acumularão açúcar demais. O valor de
mercado das uvas de vindima superior depende da quantidade correta
de açúcar. Se o dia da colheita cai numa sexta-feira, o fazendeiro faz
tudo o que pode para conseguir trabalhadores adicionais e completar
a tarefa antes do sábado132.

Idas à praça próxima se repetem a intervalos regulares, ao meio-


dia e às três da tarde, com sucesso variado. Ao entardecer, parece
que o projeto não estará completo até ao cair da noite, a menos que
mais trabalhadores sejam contratados. O proprietário volta à praça às
cinco horas e encontra alguns homens por ali. Pergunta por que estão
na praça, àquela hora do dia. Eles respondem que ninguém veio
contratá-los. O empregador diz: “Ide também vós para a vinha”. Não
faz nenhuma menção ao pagamento.

O dono da vinha sabe que é permitido aos trabalhadores


consumir quanta uva desejarem. Ele espera perder, com isso,
aproximadamente três por cento da colheita. Contratando
trabalhadores ao final da tarde, porém, não corre o risco de perder
tanta uva. Ele espera que apliquem sua energia no trabalho da
colheita. “Ide também vós para a vinha”.

As Horas e os Pagamentos

Na parábola toda, o empregador é a figura dominante. Ele visita


a praça ao romper da aurora, contrata os trabalhadores, observa a
necessidade de trabalhadores extras, retorna, ainda, repetidas vezes à
praça, para contratar mais homens. É ele que instrui seu capataz para
pagar os trabalhadores, e ele mesmo se dirige àqueles que murmuram
contra ele. O proprietário mantém o controle da situação do começo
ao fim. De fato, ele é aquele a quem se compara o reino dos céus, na
frase introdutória133.
132
Os relógios não eram usados; o dia era dividido em horas a partir do nascer do
sol, muito embora o dia judeu comece ao pôr-do-sol. Veja-se Jeremias, Parables, p.
136, nº 21. Derrett, “Workers in lhe Vineyard”, p. 56.
133
A frase introdutória, entretanto, é apenas um ponto de partida. Ridderbos, Coming
of the Kingdom, p. 141. O dono da vinha é a figura central da parábola e sua palavra
e seus atos ilustram o significado do reino.
Várias questões surgem a respeito da administração da vinha.
Por exemplo: por que o proprietário volta à praça por, pelo menos,
quatro vezes a fim de contratar novos trabalhadores? O esperado seria
que ele fizesse uma estimativa cuidadosa de quantos trabalhadores
seriam necessários para cumprir a tarefa, antes que viesse a noite.
Mas, não devemos aplicar a lógica ocidental a uma história que
provém da cultura oriental. A lei da procura e da oferta foi, sem
dúvida, observada. Além disso, trabalhadores contratados mais tarde,
no dia, chegavam à vinha descansados e com energia para gastar. O
empregador obtinha um bom retorno dos trabalhadores que
trabalhavam energicamente durante meio dia ou menos.

Os trabalhadores podiam ser contratados por hora e esperavam


ser pagos imediatamente após o término de sua tarefa134. Aqueles que
permaneceram na praça durante todo o dia podiam ter voltado para
casa logo de manhã, quando ninguém os havia contratado. Em vez
disso, esperavam que alguém viesse e os contrastasse, mesmo que
para apenas uma parte do dia. Esses trabalhadores não eram vadios
que passavam o tempo em conversas vazias. Tinham família para
sustentar, e por isso esperavam ansiosos que alguém os contratasse.
Até às cinco horas da tarde, esperavam ainda, desejando que alguém
precisasse de seus serviços por apenas uma hora, ou com a esperança
de combinar alguma tarefa para o dia seguinte. A seu modo,
mostravam confiança, dedicação e necessidade.

Os trabalhadores recebiam seu pagamento no final do dia. Os


empregadores observavam as normas bíblicas de não reter o
pagamento do trabalhador diarista durante a noite (Lv 19.13) e não
tirar vantagem de um contratado por ser ele pobre e necessitado. “No
seu dia lhe darás o seu salário, antes do pôr-do-sol; porquanto é pobre
e disso depende a sua vida; para que não clame contra ti ao SENHOR,
e haja em ti pecado” (Dt 24.15). O proprietário da vinha ciente, dessas
injunções, dá instruções a seu capataz para que pague aos
trabalhadores o seu salário. Ele é retratado como um homem justo e
de confiança. Apenas aos trabalhadores contratados às seis horas da
manhã ele havia prometido um denário pela tarefa do dia. Aos
trabalhadores empregados às nove horas ele prometera o que fosse
justo. Com os que foram requisitados mais tarde, no dia, nada foi
combinado a respeito do pagamento. Eles foram para a vinha
confiando plenamente no proprietário, e certos de que ele lhes pagaria
ao anoitecer.

O fazendeiro é um homem de palavra. Quando instrui seu


134
A regra dos rabinos era que um homem empregado por hora, para uma tarefa,
devia receber seu salário todos os dias. Veja-se Baba Mezia III a e Nezikin I, em
Babylonian Talmud, (Boston: Bennet, n.d.), p. 633. Veja-se, também, SB, 1:832.
Pagando antes os trabalhadores contratados por último, e dando a eles um salário
igual, o proprietário evitou possíveis pechinchas, que lhe tomariam tempo
considerável. Veja-se DerretI, “Workers in the Vineyard’, p. 63.
capataz para pagar aos trabalhadores, recomenda que pague
primeiramente os que foram contratados por último, e sucessivamente
até chegar aos primeiros. Que surpresa quando os que foram
contratados às cinco horas receberam um denário135! Eles estão
contentes, alegres e cheios de gratidão. Sabem que o dono da vinha é
não apenas digno de confiança e honesto, mas, também, um homem
generoso. Todos os trabalhadores contratados no decorrer do dia
recebem o mesmo pagamento e testificam a bondade e a
generosidade do empregador.

Aqueles trabalhadores contratados ao amanhecer, entretanto,


que haviam suportado o calor do dia, esperam receber mais que um
denário cada um. Eles, também, desejam experimentar a
generosidade do empregador. Mas seu desejo não se cumpre.
Recebem um denário, como haviam combinado antes de começar o
trabalho. Acham o acontecido injusto; tornam claro seu
descontentamento e seu desapontamento, murmurando contra o
fazendeiro. Não se dirigem a ele com bons modos. Zangados, fazem
uma série de queixas: Trabalhamos pesado durante todo o dia,
suportamos o calor e o suor, e recebemos um denário; outros vieram
às cinco da tarde, trabalharam uma hora e receberam, também, um
denário.

O empregador não se mostra ofendido. Dirige-se a um dos


trabalhadores, evidentemente o que falava pelo grupo, e o chama de
“amigo”. A conotação é de reprovação, mas o tom é amigável136. Ao
responder ao queixoso, o fazendeiro se mostra senhor da situação.
“Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário?” O
trabalhador insatisfeito pode recorrer à justiça, mas não terá êxito,
pois as evidências são contra ele. Ele concordou em trabalhar o dia
todo por um denário, que lhe foi pago. Sua acusação de injustiça não
passa de um disfarce para a inveja e a avareza. O empregador não
discute, não se explica e nem se justifica. Simplesmente faz a
pergunta que o outro tem que responder afirmativamente: “Não
combinaste comigo um denário?” Ao fazer a pergunta, já tem incluído
a resposta. “Não me é lícito fazer o que quero do que é meu?”.

O ponto de discussão não é a fraude ou a decepção. Ao


135
Durante o reinado do rei Agripa II, por volta de 60 A.D., os claustros do lado
oriental do templo de Jerusalém foram construídos com a ajuda de cerca de 18.000
trabalhadores. O tesoureiro do templo e seus cooperadores decidiram pagara cada
operário o salário de um dia todo, mesmo que trabalhasse apenas durante uma
hora. Veja-se Josephus, Antiquities 20:219-20; Derreti, “Workers in the Vineyard’, p.
63.
136
A palavra hetaire aparece três vezes no Novo Testamento: 1) na parábola dos
trabalhadores da vinha (Mt 20.13); 2) na parábola das bodas, quando o rei se dirige
ao convidado que não se apresenta vestido para as bodas (Mt 22.12); 3) no relato da
prisão de Jesus no Getsêmani, quando Jesus diz: “Amigo, para que vieste?” (Mt
26.50). De acordo com K. H. Rengstorf, TDNT II:701, o termo “sempre denota uma
relação de obrigação mútua entre aquele que fala e o que ouve, a qual foi
desprezada e escarnecida pelo ouvinte”.
contrário, ninguém é tratado com injustiça. A maior parte dos
trabalhadores experimentou a generosidade do fazendeiro. Se há
alguém que sacrificou a parte econômica pela benevolência, este é o
proprietário da vinha. Teria sido melhor para ele se tivesse pago aos
trabalhadores a quantia exata merecida137. Ele é acusado por sua
generosidade. “Ou são maus os teus olhos porque eu sou bom?”, ele
pergunta. Com essa última pergunta, o empregador põe à mostra a
falsidade dos empregados desapontados. Ele demonstrara bondade e
gentileza enquanto eles mostraram inveja a avareza. Eles
permanecem cegos à bondade do proprietário até que a máscara que
escondia seu descontentamento é removida pela questão: “Ou são
maus os teus olhos porque eu sou bom?”.

Assim é o reino dos céus, diz Jesus. Porque Deus é tão bom,
triunfa o princípio da graça. No mundo, o conceito é o de que aquele
que trabalha mais recebe mais138. Isso é justo. Mas, no reino de Deus,
os princípios do mérito e da capacidade são postos de lado para que a
graça prevaleça.

Graça

Não há na parábola a intenção de ensinar economia ou negócios.


Ela não existe para ser usada como exemplo de relações humanas, na
área do trabalho e da administração. A lição que a parábola transmite
é a de que a graça vale mais que a justiça imparcial e as práticas
lucrativas de negócio. O empregador da parábola foi à praça, várias
vezes, durante o dia, e viu, atrás de cada trabalhador, uma família
necessitando de sustento. Ele sabia que uma fração de denário não
seria suficiente para as necessidades diárias de uma família. No fim do
dia, pagou aos trabalhadores que contratara no decorrer do dia, não
em relação às horas trabalhadas, mas de acordo com a necessidade
de seus dependentes. Ele era uma pessoa muito generosa.

Quando Jesus ensinou a parábola, estava diante de pessoas


treinadas na doutrina judaica do mérito. Seus contemporâneos
acreditavam que o homem deve acumular a seu crédito numerosas
boas obras, que possam ser convertidas em recompensas, para assim
poder reclamá-las diante de Deus. Essa era a doutrina das obras, no
tempo de Jesus139. O povo conhecia a graça de Deus exaltada em
salmos e orações. Não obstante, dava ênfase ao meritório valor das
obras.
Ao ensinar a parábola, Jesus mostrou que Deus não trata os
homens de acordo com o princípio do mérito, da justiça ou da
economia. Deus não está interessado em lucros. Deus não trata o

137
C. L. Mitton, Expounding lhe Parables, VII. lhe Workers in lhe Vineyard (Mateus
20.1-6), Expt 77 (1966): 308.
138
Os cidadãos do reino dos céus devem conhecer plenamente os princípios
operantes no reino. Veja-se Wallace, Parables, p. 125.
139
Oesterley, Parables, p. 104.
homem na base do “toma lá dá cá”, ou “uma boa ação merece
recompensa”. A graça de Deus não pode, simplesmente, ser dividida
em quantidades proporcionais ao mérito acumulado pelo homem.
Havia em circulação, na época, uma moeda chamada pondion, que
valia a duodécima parte de um denário140. Na graça de Deus, no
entanto, não circulam porcentagens, porque “todos nós temos
recebido da sua plenitude, e graça sobre graça” (Jo 1.16).

Aplicação

Deus é tão bom;


Deus é tão bom;
Deus é tão bom;
Tão bom ele é para mim.

Esta simples canção, cantada em muitas línguas, através do


mundo, expressa vividamente o sentido básico da parábola. No reino
dos céus, a bondade de Deus prevalece e se revela àqueles que,
somente pela graça, entraram no reino. O fato do fazendeiro pagar um
denário àqueles a quem dissera que receberiam o que fosse justo e
também àqueles a quem nada fora prometido, foi um ato de pura
bondade. Todos os trabalhadores receberam o mesmo pagamento,
que era suficiente para o sustento de suas famílias. Aqueles
trabalhadores, que tinham combinado trabalhar pela soma de um
denário ao dia, tinham que reconhecer que o fazendeiro era um
homem justo, que honrava seus compromissos. Justiça e bondade,
exemplificadas na parábola, são características fundamentais no reino
de Deus.

O contexto da parábola diz respeito à pergunta de Pedro e à


resposta de Jesus. Pedro perguntou o que ele e os discípulos seus
companheiros receberiam por seguirem a Jesus: “Eis que nós tudo
deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?” Jesus respondeu que
seus seguidores receberiam incontáveis bênçãos espirituais:

“Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando,


na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da
sua glória, também vos assentareis em doze tronos para
julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver
deixado casas ou irmãs, ou pai, ou mãe (ou mulher), ou
filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas
vezes mais, e herdará a vida eterna. Porém, muitos primeiros
serão últimos; e os últimos, primeiros (Mt 19.27-30)141.

140
T. W. Manson, lhe Sayings of Jesus (London: SCM Presa, 1950), p. 220.
141
Os paralelos dos Evangelhos de Mateus e Marcos são idênticos exceto no fato de
que em Mateus a parábola dos trabalhadores na vinha é acrescentada como uma
ilustração da expressão: “Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos,
primeiros” (Mt 19.30; 20.16; Mc 10.31). Em Locas 13.30, a expressão também
ocorre, embora em contexto inteiramente diferente.
Jesus ilustra o significado da última sentença “muitos primeiros
serão últimos; e os últimos, primeiros” — através da parábola dos
trabalhadores na vinha. Ele conclui a parábola com as mesmas
palavras, embora cm ordem inversa: “Os últimos serão primeiros, e os
primeiros serão últimos”.

Dizendo isso, Jesus não tem a intenção de mostrar a Pedro e aos


outros discípulos que a posição do primeiro e do último no reino será
invertida. A parábola usa, antes, a expressão para indicar que, no
reino dos céus, a igualdade é a regra. A recompensa, igual para todos,
mesmo que o trabalho possa variar, transcende a tarefa realizada
pelos discípulos, e conseqüentemente por qualquer um que se
disponha a seguir a Jesus. O dom de Deus é a graça plena142. Sua
graça é suficiente para todos143.

Os discípulos eram os ouvintes de Jesus. Não podemos afirmar


que havia outras pessoas presentes. Os discípulos, desde crianças,
tinham aprendido a doutrina do mérito. Era necessário deixarem de
lado esse ensinamento para que pudessem apreciar inteiramente a
bondade de Deus e para que pudessem entender que seu próprio
lugar no reino era um dom da graça. Mais que isso: no decorrer do
tempo, receberiam, na igreja, com agrado, os gentios. Pedro, por
exemplo, seria enviado à casa de Cornélio, o centurião romano, para
pregar o evangelho, batizar os que criam, e para louvar a Deus por ter
concedido, também aos gentios, “o arrependimento para vida” (At
11.18). Os gentios receberiam a mesma dádiva que Deus havia dado
aos judeus que acreditaram em Jesus. Paulo chama isto de mistério, e
conclui que “os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e
co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho”
(Ef 3.6).

Quem, então, são os murmuradores? Embora a parábola não


deva ser interpretada alegoricamente144, a questão referente aos
murmuradores é válida. Eles podem ser comparados ao irmão mais
142
A. H. McNeile, The Gospel Accordíng to St. Matthew (London: McMillan and Co.,
1915), p. 285.
143
As versões bíblicas atribuem Mateus 20.16 a Jesus. O texto não é parte da
observação feita pelo dono da vinha, mas é uma conclusão repetida por Jesus como
seqüência de Mateus 19.30. O NEB, entretanto, não apresenta o versículo como
citação, e por isso se conclui que ele é o fecho dado por Mateus à parábola.
Jeremias, em Parables, p. 36, chega a sugerir que “deixemos de lado o versículo 16”.
Por outro lado, Morison, em SÉ. Matthew, p. 356, e Derrett, em “Workers in lhe
Vineyard”, p. 51, sustentam que as palavras de Mateus 20.16 são a aplicação da
parábola feita por Jesus mesmo. Falta clareza ao argumento de que Jesus não
proferiu as palavras do versículo 16. Ele não é convincente.
144
Os pais da igreja primitiva se entregavam a interpretações fantasiosas. Irineu, por
exemplo, interpretou os cinco períodos de trabalho, durante os quais os
trabalhadores foram contratados, como cinco períodos da história, começando com
Adão. O período das nove horas ao meio-dia seria aquele de Noé a Abraão; o das
doze às três incluía o período de Abraão a Moisés; o das três às cinco significava o
tempo entre Moisés e Cristo, e a última hora aponta para o período entre a ascensão
e a volta do Senhor.
velho da parábola do filho pródigo. Juntos, refletem a atitude de alguns
fariseus que, por causa de seu zelo na observação da lei de Deus,
contavam ter um lugar privilegiado no reino de Deus. Os fariseus
esperavam que Deus os recompensasse por suas obras e se recusasse
a abençoar os pecadores indignos. Jesus mostrou-lhes (presumindo-se
que estivessem ali) por intermédio da parábola, que Deus é um Deus
de justiça que honra sua Palavra, mas que oferece, também, suas
misericórdias aos que não as merecem, mas que, apesar disso, são
vasos de sua graça145.

A parábola ensina que quando o homem chega diante de Deus,


ele não recebe uma porção cuidadosamente calculada da graça divina.
Deus, antes, lhe concede livremente as dádivas do perdão, da
reconciliação, da paz, da alegria, da felicidade e da segurança.
“Segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus...” (Fp
4.19) todas as suas necessidades. O cristão deve se alegrar com os
que se convertem e passam a fazer parte da igreja de Jesus Cristo.
Não deve haver ceticismo. Mas, a história ensina que esse ceticismo
tem existido repetidamente. Quando George Whitefield e John e
Charles Wesley levaram o evangelho às classes menos favorecidas da
sociedade do século dezoito, foram criticados e provocaram a ira dos
cristãos convencionais146. William Booth, que teve compaixão dos
moradores dos bairros pobres de Londres e que deu a eles “sopa,
sabão e salvação”, foi condenado pelos presunçosos membros da
igreja de sua época.

Esta parábola nunca será aceita por aqueles que querem impor
à salvação regras e estipulações feitas pelos homens. No reino dos
céus, como as Escrituras ensinam, não existe a burocracia humana. A
graça de Deus é plena e livre para todo aquele que venha a ele pela
fé. E todos os que são vasos de sua graça proclamam com o salmista:

Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom,


e sua misericórdia dura para sempre (Sl 107.1).

145
Mitton, “Expounding the Parables”, p. 310.
146
Hunter, Parables, p. 72.
14. Os Dois Filhos

Mateus 21.28-32 “E que vos parece? Um homem tinha dois filhos.


Chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai hoje trabalhar na vinha. Ele
respondeu: Sim, senhor; porém não foi. Dirigindo-se ao segundo,
disse-lhe a mesma coisa. Mas este respondeu: Não quero; depois,
arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: O
segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e
meretrizes vos precedem no reino de Deus. Porque João veio a vós
outros no caminho da justiça, e não acreditastes nele; ao passo que
publicanos e meretrizes creram. Vós, porém, mesmo vendo isto, não
vos arrependestes, afinal, para acreditardes nele”.

Somente no Evangelho de Mateus encontramos a parábola a


respeito dos dois filhos. Ela é marcada pela simplicidade e por ser
resumida nas conhecidas palavras de Tiago: “Tornai-vos, pois,
praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós
mesmos” (1.22). Ela ensina que a pessoa que se recusa a fazer o que
lhe é pedido, mas que, mais tarde muda de idéia e faz a tarefa, é
melhor que aquela que promete cuidar de suas obrigações, mas
nunca as realiza.

O Evangelho de Mateus coloca a parábola imediatamente após


o incidente ocorrido quando os principais sacerdotes e os anciãos do
povo questionara a autoridade de Jesus. Jesus, por sua vez, lhes
propôs outra questão perguntando-lhes a respeito do batismo de
João, se era dos céus ou do homem. E a resposta deles foi: “Não
sabemos”. A resposta de Jesus à indagação a respeito de sua
autoridade foi: “Nem eu vos digo com que autoridade faço estas
coisas”.

Enquanto ensinava no templo, e com os principais sacerdotes e


os anciãos a escutá-lo, Jesus continuou o curso de seu pensamento
com uma história sobre um pai e seus dois filhos. O pai possuía uma
vinha, que era a fonte de recursos da família. Por isso, o trabalho na
vinha era comunitário e realizado por todos os membros da família. O
pai dirigiu-se ao primeiro filho e disse-lhe pra ir trabalhar na vinha,
naquele dia em particular147. É irrelevante se era o começo da
primavera quando as vinhas eram podadas, ou verão quando as ervas
daninhas eram arrancadas, ou outono quando as uvas eram colhidas.
É o pedido feito e o atendimento dado a ele que são essenciais.
“Filho, vai hoje trabalhar na vinha”. O filho sem se preocupar em se

147
J.M. Derrett, “The Parables of the Two Sons”, Studia Theologica 25 (1971); 109-
16, também publicada em Studies in the New Testament, 1:76-84, segue Jülicher,
Gleichnisreden, 2:367. Derrett destaca que o primeiro filho era o mais velho e
deveria ser o sucessor do pai. “Um filho mais velho pode muito bem ter mais
interesse na forma que na substância”. (Studies p. 81).
mostrar cortês para com o pai, respondeu apenas: “Não quero”148. Ele
errou em não se dirigir respeitosamente ao pai, chamando-o de
senhor, e nem procurou uma desculpa para sua má vontade.
O pai teve que se dirigir ao segundo filho, com o mesmo pedido,
a fim de ter o trabalho feito na vinha149. Esse filho, na polida maneira
oriental, dirigiu-se ao pai corretamente, e disse: “Sim, senhor”.
Entretanto, não foi. Prometeu ao pai um dia todo de trabalho. Era
uma promessa que não pretendia cumprir.

Interpretação

Jesus colocou para os que o ouviam a inevitável questão: “Qual


dos dois fez a vontade do pai?”. Os principais sacerdotes e os anciãos
do povo não podia mais se esconder atrás de uma ignorância fingida.
Foram forçados a responder, mesmo compreendendo que a parábola
fala da hierarquia eclesiástica de Israel. Eles responderam: o filho que
o primeiro se recusou, mas que, mais tarde, mudando de idéia, fez a
vontade do pai.

Jesus esclarece o que a história sobre o pai e seus dois filhos


significa realmente, no contexto de sua época. O primeiro filho, diz
Jesus, é a personificação dos coletores de impostos e das meretrizes
que viviam uma vida de pecado e que se recusavam a fazer a
vontade de Deus. Mas, quando veio João Batista “... pregando
batismo de arrependimento para a remissão de pecados” (Mc 1.4), os
marginalizados pela moral e pela sociedade se arrependeram,
creram, e entraram no reino de Deus. Assim fizeram a vontade do pai.

O segundo filho retrata a atitude dos líderes religiosos dos dias


de Jesus. São aqueles que fazem tudo para serem vistos pelos
homens: “Praticam, porém, todas as suas obras com o fim de serem
vistos dos homens; pois nos banquetes e as primeiras cadeiras nas
sinagogas, as saudações nas praças e o serem chamados mestres
pelos homens” (Mt 23.5-7). São aqueles que não praticam o que
148
A evidência textual, em relação à sua leitura varia. Tecnicamente há três
variações. (a) De acordo com o Códice Sinaítico e outros manuscritos, o primeiro
filho disse não, mas se arrependeu; o segundo disse sim, mas não foi. Essa é a
leitura em traduções tais como AV, RSV e NIV. (b) De acordo com o Códice do
Vaticano e outros manuscritos, o primeiro filho diz sim, mas não vai; o segundo diz
não, mas se arrepende. Quem faz a vontade do Pai? A resposta varia: “o último dos
dois”, “o último”, “o segundo”. Traduções incluindo NASB, NAB e NEB, seguem o
Códice do Vaticano. (c) O assim chamado texto Ocidental segue a ordem do Códice
Sinaítico, com exceção da resposta à questão: “Qual dos dois fez a vontade do
Pai?”, que é “o último”. Isto significa que o filho que disse sim, mas não foi,
cumpriu o pedido do pai. Absurdo. A escolha fica, portanto, entre (a) ou (b). Veja J.
R. Michaels, “The Parable of the Regretful Son”, HTR 61 (1968): 15-26. A ordem não
afeta o sentido da parábola. Consulte-se Metzger, Textual Commentary, pp. 55-56.
149
Metzger, em Textual Commentary, p. 56, indica que a comissão do Novo
Testamento Grego das Sociedades Bíblicas Unidas optou pela ordem seguida pelo
Códice Sinaítico. Para substanciar essa escolha Metzger escreve: “Poderíamos
argumentar que se o primeiro filho tivesse obedecido, não havia razão para chamar
o segundo”.
pregam. João Batista veio a eles, mostrando-lhes o caminho da
justiça. Ouviram suas palavras, mas não creram nelas. Simplesmente
o ignoraram. Viram, no entanto, que os publicanos aceitaram a
mensagem de João e foram batizados. Não obstante, rejeitaram o
propósito de Deus para si mesmos, recusando-se a serem batizados
por João (Lc 7.30).

A aplicação da parábola é dinâmica. Os coletores de impostos e


as meretrizes tinham-se recusado a obedecer a vontade de Deus.
Mas, quando ouviram a mensagem de arrependimento voltaram-se
para Deus, em obediência. Eram como o filho que disse: “Não quero”,
mas que, mais tarde, mudou de idéia e foi trabalhar na vinha. Eles
eram como Zaqueu que disse a Jesus: “Senhor, resolvo dar aos
pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho
defraudado alguém, restituo quatro vezes mais”. (Lc 19.8).

Os líderes religiosos que, presumivelmente, eram peritos na lei


de Deus, mostravam uma aquiescência apenas aparente.
Interiormente, no entanto, se recusavam a aceitar a Palavra de Deus,
viesse ela pela palavra escrita dos profetas, ou pela palavra falada de
João Batista e de Jesus. Eram como o filho que disse a seu pai: “Sim,
senhor”, porém não foi.

Embora essa parábola seja relativamente curta e sua


mensagem seja simples, a lição que ensina não é, de modo algum,
trivial. Ela contém o ensino do Velho e Novo Testamento: obedecer a
Palavra de Deus, escutar a sua voz e fazer a sua vontade. Como disse
Samuel a Saul: “Eis que o obedecer é melhor que a gordura dos
carneiros” (1 Sm 15.22), do mesmo modo Jesus instrui seus
discípulos: “Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando” (Jo
15.14). O próprio Jesus fala abertamente de sua obediência a Deus, o
Pai, dizendo: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria
vontade; e sim, a vontade daquele que me enviou. E a vontade de
quem me enviou é esta: Que nenhum eu perca de todos os que me
deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.38,39).
15. Os Lavradores Maus

Mateus 21.33-46 “Atentai noutra parábola. Havia um homem, dono


de casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe, construiu
nela um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores.
Depois, se ausentou do país. Ao tempo da colheita, enviou os seus
servos aos lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam. E os
lavradores, agarrando os servos, espancaram a um, mataram a outro
e a outro apedrejaram. Enviou ainda outros servos em maior número;
e trataram-nos da mesma sorte. E, por último, enviou-lhes o seu
próprio filho, dizendo: A meu filho respeitarão. Mas os lavradores,
vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos,
matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança. E, agarrando-o,
lançaram-no fora da vinha e o mataram. Quando, pois, vier o senhor
da vinha, que fará àqueles lavradores? Responderam-lhe: Fará
perecer horrivelmente a estes malvados e arrendará a vinha a outros
lavradores que lhe remetam os frutos nos seus devidos tempos.
Perguntou-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os
construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular;
isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? Portanto,
vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um
povo que lhe produza os respectivos frutos. Todo o que cair sobre
esta pedra ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará
reduzido a pó. Os principais sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas
parábolas, entenderam que era a respeito deles que Jesus falava; e,
conquanto buscassem prendê-lo, temeram as multidões, porque estas
o consideravam como profeta”.

Marcos 12.1-12 “Depois, entrou Jesus a falar-lhes por parábola: Um


homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, construiu um
lagar, edificou uma torre, arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se
do país. No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para
que recebesse deles dos frutos da vinha; eles, porém, o agarraram,
espancaram e o despacharam vazio. De novo, lhes enviou outro
servo, e eles o esbordoaram na cabeça e o insultaram. Ainda outro
lhes mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes enviou, dos quais
espancaram uns e mataram outros. Restava-lhe ainda um, seu filho
amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo: Respeitarão a meu filho.
Mas os tais lavradores disseram entre si: Este é o herdeiro; ora,
vamos, matemo-lo, e a herança será nossa. E, agarrando-o, mataram-
no e o atiraram para fora da vinha. Que fará, pois, o dono da vinha?
Virá, exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros.
Ainda não lestes esta Escritura: A pedra que os construtores
rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do
Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos? E procuravam prendê-lo,
mas temiam o povo; porque compreenderam que contra eles
proferira esta parábola. Então, desistindo, retiraram-se”.

Lucas 20.9-19 “A seguir, passou Jesus a proferir ao povo esta


parábola: Certo homem plantou uma vinha, arrendou-a a lavradores e
ausentou-se do país por prazo considerável. No devido tempo,
mandou um servo aos lavradores para que lhe dessem do fruto da
vinha; os lavradores, porém, depois de o espancarem, o despacharam
vazio. Em vista disso, enviou-lhes outro servo; mas eles também a
este espancaram e, depois de o ultrajarem, o despacharam vazio.
Mandou ainda um terceiro; também a este, depois de o ferirem,
expulsaram. Então, disse o dono da vinha: Que farei? Enviarei o meu
filho amado; talvez o respeitem. Vendo-o, porém, os lavradores,
arrazoavam entre si, dizendo: Este é o herdeiro; matemo-lo, para que
a herança venha a ser nossa. E, lançando-o fora da vinha, o mataram.
Que lhes fará, pois, o dono da vinha? Virá, exterminará aqueles
lavradores e passará a vinha a outros. Ao ouvirem isto, disseram: Tal
não aconteça! Mas Jesus, fitando-os, disse: Que quer dizer, pois, o
que está escrito: A pedra que os construtores rejeitaram, esta veio a
ser a principal pedra, angular? Todo o que cair sobre esta pedra ficará
em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó.
Naquela mesma hora, os escribas e os principais sacerdotes
procuravam lançar-lhe as mãos, pois perceberam que, em referência
a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo”.

De acordo com Mateus, marcos e Lucas, Jesus contou a


parábola dos lavradores maus, durante a última semana de sua vida
na terra. Entre um evangelista e outro pode haver variações em
pequenos detalhes, mas todos transmitem, com fidelidade, o ensino
de Jesus. O Evangelho de Tomé, apócrifo, também apresenta a
parábola150. A história deve ser fiel ao fato e reproduz a história
eclesiástica de Israel. As pessoas que cercavam Jesus entenderam a
história, porque responderam à parábola, dizendo: “Tal não
aconteça!” (Lc 20.16). Além disso, os fariseus, os principais
sacerdotes e os mestres da lei sabiam que essa parábola era
endereçada a eles.

A História

Um dono de terras tinha um terreno e decidiu transforma-lo


num vinhedo. Depois de ter plantado os tenros brotos da uva, ele os
protegeu dos animais selvagens, tais como as raposas e os javalis (Ct
2.15; Sl 8.13) plantando uma sebe ao redor da vinha. Também
equipou a vinha com um lagar e uma torre. A torre era usada durante
a colheita na vigilância contra os ladrões, e podia, também, servir de
morada ao lavrador.

Evangelho de Tomé, Citação 65: “Ele disse: ‘Um homem bom tinha uma vinha.
150

Entregou-a a arrendatários para que a cultivassem e ele pudesse receber deles os


seus frutos. Ele enviou seu servo para que os arrendatários lhe entregassem o fruto
da vinha. Eles o agarraram (e) espancaram; um pouco mais e o teriam matado. O
servo foi (e) contou tudo a seu senhor. Seu senhor disse: Talvez ele não os
conhecesse. Enviou outro servo; os lavradores maus, também, o espancaram.
Então, o dono da vinha, agarraram-no (e) o mataram. Quem tem ouvido, ouça’. De
modo interessante, o Evangelho de Tomé. Citação 66, continua. “Jesus disse:
Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram. Ela é a pedra angular”.
O projeto todo era uma aventura financeira para o fazendeiro.
Ele plantou novas videiras num solo ainda não testado. Arrendou a
vinha a lavradores, mas teria que esperar durante quatro anos até
que as videiras começassem a produzir. Durante esse período, ele
teria que sustentar os lavradores, comprar adubo e suprimentos para
a vinha, e esperar que o quinto ano lhe trouxesse algum lucro 151. Um
novo vinhedo não era, portanto, um empreendimento que trouxesse
retorno financeiro imediato; era, antes, uma promessa de resultados
permanentes que beneficiariam sucessivas gerações.

O fazendeiro saiu para viajar durante um longo período. Na sua


ausência, os lavradores cultivariam a vinha, podariam os galhos e
cuidariam de plantações de vegetais entre as videiras durante os
primeiros anos. Os arrendatários trabalhavam como meeiros e tinham
direito a uma parte do que fosse produzido. O lucro restante
pertencia ao proprietário. Os lavradores tinham feito um contrato com
o dono da terra para cultivar a vinha. Durante os quatro primeiros
anos seriam sustentados pelo proprietário. Passados esses anos de
trabalho árduo, a vinha poderia se tornar uma fonte de lucro para o
dono.

Quando se aproximou a época da colheita, no quinto ano, o


fazendeiro enviou seu servo152 para receber o lucro da vindima153. Os
contatos entre o proprietário e os arrendatários devem ter sido
mínimos, durante os primeiros quatro anos. Essa falta de
aproximação pode ter resultado em alienação e mesmo em atitudes
hostis da parte dos lavradores, como descreve a parábola. A razão
exata da amarga animosidade não é exposta, mas fica evidente no
relato154. O servo foi agarrado, espancado e mandado de volta a seu
senhor. Voltou com as marcas físicas de um corpo ferido. O fato
serviu ao proprietário como mensagem de que os arrendatários não
151
Derrett, Law in the New Testament, p. 290.
152
Onde Marcos e Lucas, vem como o Evangelho de Tomé falam de um servo,
Mateus usa o plural. De acordo com Mateus, numerosos servos são enviados, e são
espancados, apedrejados e mortos. Essa pode ser uma tentativa deliberada de
Mateus de ligar a parábola ensinada por Jesus à história eclesiástica de Israel. Um
toque de alegria está presente, embora não em relação à pessoa do filho: J. A. T.
Robinson. “The Parable of the Wicked Husbandman: A Test of Synoptic
Relationships”, NTS 21 (1975); 451. 1 Rs 18.13; 2 Cr 24.21; Mt 23.37; Lc 13.34; At
7:52; 1 Ts 2.15; e Hb 11.37, tornam evidente que alguns profetas foram mortos e
apedrejados até a morte.
153
Porque o texto afirma explicitamente que o servo foi receber “dos frutos da
vinha” (Mc 12.2; Lc 20.10), presumindo que o proprietário enviou o servo quando as
uvas estavam prontas para serem colhidas.
154
Alguns estudiosos vêem um paralelo entre a dominação estrangeira de vastos
territórios da Galiléia, antes e durante o tempo do ministério de Jesus e o
proprietário retratado na parábola. Dodd, Parables p. 125; Jeremias, Parable, p. 74;
M. Hengel, “Das Gleichnis von den Weingartner Mc 12.1-12 ins Lichte der
Zenonpapyri und der rabbinische Gleichnisse”, ZNM 59(1968); 11-25; J. E. e R. R.
Newell, “The Parable of the Wicked Tenantes”, NovT 14 (1972): 226-37. No entanto,
a parábola não indica de modo algum que os arrendatários fossem oprimidos por
um dono de terras estrangeiro. Ao contrário, os lavradores e não o proprietário são
chamados de malvados (kakous), Mt 21.41. Consulte-se SB, 1:871.
tinham a intenção de pagar o lucro exigido, proveniente da colheita
das uvas eles queriam guardar, para si mesmos, o lucro total, talvez
como recompensa pelos anos de labuta e cuidado dispensados à
vinha, antes que viesse a colheita. Ao mandarem o servo de volta,
espancado, e de mãos vazias, os arrendatários não deixaram dúvidas
quanto à sua intenção de reter o total do lucro da safra.

Porque o fruto da vinha tinha que ser vendido, o lucro exigido


pelo fazendeiro poderia ser pago em épocas variadas, durante o ano.
O proprietário, portanto, mandou um outro servo aos seus
arrendatários, com o mesmo pedido. Ele, sem dúvida, se referiu ao
contrato assinado entre os arrendatários e o proprietário, que
expunha claramente os termos. Mas eles o receberam do mesmo
modo como tinham recebido seu predecessor. Bateram-lhe na
cabeça, trataram-no insultuosamente e, também, o enviaram de volta
com as mãos vazias (Lc 20.11). Uma vez mais se mostraram
abertamente desafiadores: não queriam partilhar com ninguém o
lucro obtido na colheita. O proprietário mostrou elogiável tolerância.
Ele não opôs força à força, nem declarou nulo ou cancelado o
contrato, como tinham feito os arrendatários. Depois de algum
tempo, talvez na safra seguinte, o proprietário enviou um terceiro
servo155. Outra vez, os lavradores se recusaram a ceder o pedido do
proprietário; foram violentos, ferindo (Lc 20.12 ou matando o
servo(Mc 12.5)). Mas, enquanto o dono continuava enviando os
servos156, os arrendatários, ferindo-os e matando-os, tornavam
conhecido o fato de que a vinha permanecia em suas mãos. Eles a
tinham feito produtiva; portanto, argumentavam, tinham direito ao
que fosse produzido pela vinha e, mesmo, à própria vinha.

O proprietário entendeu que os arrendatários estavam agindo


como donos legítimos da propriedade que era sua. Como último
recurso ele enviou seu filho, dizendo a si mesmo que os lavradores
reconheceriam sua autoridade, quando se confrontasse com seu filho.
“A meu filho respeitarão”, disse. Os simples servos não impunham o
mesmo respeito que seria devido a um filho que fosse enviado157.
Enviaria seu único filho, o herdeiro da vinha.

Os arrendatários, no entanto, não estavam dispostos a abrir


mão da vinha. Quando viram o filho se aproximando, devem ter
pensado que o dono tinha morrido e que seu filho tinha tomado seu
lugar. Se esse fosse o caso, pouco restaria no caminho da posse total
da vinha, se o filho fosse afastado. Os arrendatários, então, poderiam

155
Derrett, em Law in the New Testament, pp. 289-99, entende que o segundo servo
procurou os arrendatários no final da segunda ceifa, e o terceiro, na safra seguinte.
Assim, por três anos consecutivos os lavradores guardaram para si o lucro da vinha.
156
Apenas Marcos relata que após ter enviado sucessivamente três servos, o
proprietário ainda enviou outros. Mateus diz que dois grupos de servos, em duas
diferentes ocasiões, foram enviados. Lucas fala de três servos que sucessiva e
individualmente procuravam os lavradores.
157
Dodd, Parables, p. 125.
proclamar que tinham cuidado da vinha fielmente, que não haviam
pago aluguel algum durante vários anos, e que o legítimo proprietário
das terras tinha morrido158. No tempo legal, os lavradores estariam
habilitados à posse exclusiva da propriedade. Os juízes locais mui
provavelmente favoreciam os lavradores e dariam como legal a
operação.

Os arrendatários decidiram matar o herdeiro e tomar para si a


herança. Eles o receberam na vinha, mas, depois, para não macular a
vinha com sangue, eles o mataram fora159. Eles o abandonaram ali,
presumindo que os servos que o acompanhavam cuidaram do
funeral.

A paciência do dono das terras se esgotou. Os arrendatários


tinham cometido erro desastroso ao matar seu filho. Medidas foram
tomadas para arranca-los da terra e leva-los à justiça, e o
proprietário, reclamando plena posse da propriedade, escolheu outros
lavradores para tomar conta da vinha. Esses eram servos que lhe
dariam a parte estipulada da colheita, no tempo devido.

O significado

A história contada por Jesus foi prontamente aceita pelos que o


ouviam. Ela retratava a situação real de um fazendeiro que, ausente
de tempos em tempos, enviava um servo para recolher a parte justa
do lucro anual da vinha. Os que o ouviam conheciam as
circunstâncias descritas por Jesus na parábola. Podiam imaginar o
final da história e dar sugestões de como se executaria a justiça.

Jesus se dirigia aos principais sacerdotes, fariseus e mestres da


lei. Eles devem ter reconhecido, rapidamente, a citação da profecia
de Isaías.

Agora, cantarei ao meu amado


o cântico do meu amado a respeito da sua vinha.
O meu amado teve uma vinha
num outeiro fertilíssimo.
Sachou-a, limpou-a das pedras
e a plantou de vides escolhidas;
edificou no meio dela uma torre
e também abriu um lagar.
Ele esperava que desse uvas boas,
mas deu uvas bravas. (Is 5.1-2)

158
Derrett, Law in the New Testament, pp. 300-4. Os arrendatários podiam mesmo
citar Dt 20.6, para a própria justificação: “Qual o homem que plantou uma vinha e
ainda não a desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e
outrem a desfrute...”.
159
Ambos Mateus e Lucas afirmam que os lavradores atiraram o filho para fora da
vinha e, então, o mataram. Marcos inverte a ordem, dizendo que primeiro o
mataram e, então, o lançaram fora da vinha.
O povo judeu sabia esse cântico de cor; eles o haviam
aprendido no culto da sinagoga onde era cantado de tempos em
tempos160. Sabiam, também, o seu final:

Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos


é a casa de Israel,
e os homens de Judá
são a planta dileta do SENHOR;
este desejou que exercessem juízo,
e eis aí quebrantamento da lei;
justiça, e eis aí clamor. (Is 5.7).

Os líderes religiosos, especialmente, sabiam que a parábola se


aplicava a eles. Sabiam que Jesus estava se referindo aos profetas
que Deus enviara a Israel. Alguns desses profetas foram mortos por
causa da mensagem que traziam. Um deles, Zacarias, foi assassinado
no pátio do templo, entre o santuário e o altar (2 Cr 24.20,21; Mt
23.25). Com habilidade, Jesus ensinou a seus ouvintes o significado
dessas passagens tão conhecidas do Velho Testamento. Quando Jesus
falou a respeito do filho do dono da vinha que, tendo sido enviado à
vinha, foi assassinado pelos arrendatários, falou, profeticamente, de
sua própria morte iminente161.

Jesus perguntou aos que o ouviam: “Quando, pois, vier o senhor


da vinha, que fará àqueles lavradores?” Ele usou palavras que trazem
à memória aquelas do Cântico da Vinha (Is 5.4-5). Suas palavras eram
dirigidas contra os líderes do povo. Eles tinham rejeitado a mensagem
de João Batista, e tinham questionado a autoridade de Jesus, a ponto
de o desafiarem abertamente. Na verdade, rejeitaram o último
mensageiro de Deus162.

A resposta à pergunta de Jesus foi que um castigo imediato


deveria ser aplicado aos lavradores assassinados. Deveriam ser
mortos e a vinha arrendada a outros163.

Falando diretamente à multidão, Jesus fez referência ao Salmo


118, uma passagem das Escrituras bastante conhecida por todos
aqueles fiéis que tinham vindo à Jerusalém, na época da Páscoa. Esse
salmo seria entoado num dia determinado, durante a festa.
160
E. Werner, The Secret Bridge (New York: Columbia University Press, 1959), p.
140.
161
Dodd, Parables, p. 131: Hengel, “Gleichnis”, p. 37. Jeremias, em Parables, pp. 72-
73, observa que, embora Jesus falasse profeticamente de si mesmo, “o significado
messiânico do filho podia não ser admitido pela maior parte dos seus ouvintes”.
162
Lane, Mark, p. 419.
163
Não fica claro, no texto, que seriam os outros arrendatário. Jeremias, Parables, p.
76, com base em uma das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os mansos,
porque herdarão a terra”. (Mt 5.5), afirma que os “outros” são os pobres. A lógica
dessa afirmativa não é muito convincente. Um argumento a ser usado talvez seja o
uso da palavra “povo” (=ethnos), em Mt 21.43, com referência aos gentios.
Participavam do coral dos cânticos, os sacerdotes, os peregrinos e os
prosélitos que cantavam as palavras do salmo diante dos portões do
templo. Um coro dos peregrinos cantava a parte do salmo que fala da
pedra, a pedra angular (Sl 118.22-25)164. Referindo-se a esse salmo
familiar, e especialmente aos versículos a respeito da pedra rejeitada,
Jesus perguntou aos ouvintes se nunca tinham lido nas Escrituras:

A pedra que os construtores rejeitaram,


essa veio a ser a principal pedra,
angular; isto procede do SENHOR
e é maravilhoso aos nossos olhos.
(Sl 118.22-23)165.

Esta questão de retórica proposta por Jesus tinha que ser


respondida afirmativamente. Jesus transferiu a figura dos
arrendatários que rejeitaram os servos para a dos construtores que
rejeitaram a pedra. Os lavradores maus, matando o filho, destruíram
a si mesmos; e os construtores, deixando de lado a pedra que se
tornou a pedra angular, fizeram-se de tolos. A pedra, pela vontade do
Senhor, veio a ser a pedra principal, a pedra angular do portal do
edifício. Originariamente, a pedra pode ter sido referência a um dos
blocos da construção do templo de Salomão, que veio a ser a
principal pedra, pedra de esquina do edifício166.

Jesus deixou implícito que ele era a personificação do filho do


proprietário da vinha, bem como a pedra rejeitada pelos construtores.
Mais que isso, os doutores da lei e os outros líderes religiosos eram os
arrendatários da vinha e os construtores que haviam posto de lado a
pedra principal. Assim, Jesus falou de sua morte e exaltação
iminentes.

Teologia

A parábola, como registrada pelos evangelistas, tem um foco


cristológico definido. O assassinato do filho traz a inevitável
transferência do arrendamento para outros lavradores, e a rejeição da
pedra resulta em sua maravilhosa exaltação. A parábola ensina,
portanto, as imagens paralelas da rejeição do filho e da rejeição da
pedra167. Ambas representam o Filho de Deus.

164
A. Weiser, The Psalms (Philadelphia: Westminster Press, 1962), p. 724.
165
Embora a citação (118.22) seja repetida em At 4.11 e 1 Pe 2.7, não há razão para
se aceitar que a igreja tenha acrescentado estas palavras à parábola dos lavradores
maus.
166
Jeremias, TDNT, 1:792. A pedra rejeitada se referia a Abraão, Davi ou ao Messias,
de acordo com os rabinos. Os construtores eram descritos como os mestres da Lei.
SBI: 875-76.
167
M. Black, em “The Christological Use of the Old Testament in the New Testament”
NTS 18 (1971-72): 13, chama a atenção para a interpretação messiânica da pedra
e, conseqüentemente, fala da pedra e do filho rejeitados.
Ao mencionar dois grupos separados de servos enviados pelo
dono de terras para receber sua parte no produto da vinha, Mateus,
aparentemente, faz alusão às duas divisões de profetas – os antigos e
os últimos profetas. Ele não adianta qualquer pormenor a respeito do
filho do dono da vinha. Marcos e Lucas, no entanto, o chamam de
“filho amado”, que traz a conotação de único filho 168. A expressão
“filho amado” foi usada, também, por ocasião do batismo de Jesus e
em sua transfiguração. Marcos escreve que o dono de terras enviou
seu filho por último. A palavra último ressoa claramente nos primeiros
versículos da Epístola aos Hebreus: “Havendo Deus, outrora, falado
muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes
últimos dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas
as coisas, pelo qual também fez o universo”. (Hb 1.1,2).

Além disso, enquanto Marcos diz que o filho foi morto dentro da
vinha, Mateus e Lucas escrevem que os lavradores maus apanharam
o filho, atiraram-no fora da vinha e, então, o mataram. Fica implícito
que os arrendatários deixaram o corpo ali, de modo que os que por lá
estivessem, o enterrassem. Uma vez mais, o leitor ouve o eco na
Epístola aos Hebreus: “Por isso foi que também Jesus, para santificar
o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta” (Hb 13.12).
Se a parábola terminasse com a morte do filho e com a ida do
proprietário à vinha, o sacrifício da vida do filho teria sido
desnecessária. O proprietário poderia ter ido até à vinha
imediatamente após seus servos terem sido maltratados. A exaltação
do filho não teria sido retratada, então, pela parábola da vinha. Mas,
através da figura da rejeição, Jesus liga o Salmo 118 à parábola e a
citação do Salmo revela que a pedra rejeitada é destinado o lugar
mais importante entre todas as outras pedras da construção. O
Senhor exaltou a pedra principal.

Jesus, deliberadamente, entrelaçou a figura da vinha e da


pedra, dizendo: “Portanto vos digo que o reino de Deus vos será
tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos
frutos. Todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços; e aquele
sobre quem ela cair ficará reduzido a pó” (Mt 21.43,44)169. O reino de
Deus se torna a vinha onde outro povo produzirá frutos. Ao mesmo
tempo, a pedra reduz a pedaços e esmaga oponentes do Filho. A
“vinha” e a “pedra angular” são metáforas prontamente entendida
pelos ouvintes teologicamente treinados, os líderes religiosos. Da
profecia de Isaías eles sabiam que “a vinha do Senhor dos Exércitos...
será pedra de tropeço e rocha de ofensa às duas casas de Israel.

168
Gn 22.2; Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22; 2 Pe 1.17.
169
A evidência textual parece se tornar mais forte pela inclusão de Mt 21.44 que
pela sua omissão. É possível, naturalmente, olhar o versículo como sendo uma
interpolação de Lc 20.18. Não obstante, “a antigüidade da leitura e sua importância
na tradição do texto” devem ser vistas como fatores decisivos para sua
conservação. Metzger, em A Textual Commentary, p. 58, não obstante, sugere que
o versículo pode ser um acréscimo ao texto.
Muitos dentre eles tropeçarão... cairão, serão quebrantados...”. (Is
8.13-15)170.

O propósito da parábola e a citação do Salmo não escaparam


aos líderes religiosos. Todos os três evangelistas relatam que
“compreenderam que contra eles proferia esta parábola”. Eles, de
fato, seriam esmagados pelo Filho que tinham rejeitado, mas a quem
Deus tinha exaltado.

Aplicação

A parábola se aplicava, de maneira óbvia, aos principais


sacerdotes, aos fariseus, escribas e anciãos do povo. Eles eram
descritos como maus lavradores e como construtores
preconceituosos. Eles se rebelaram contra o dono da vinha, mataram
seu filho e rejeitaram a pedra principal, angular. Escolheram a
inimizade contra Deus e seu Filho. Foram esmagadoramente
derrotados e tiveram morte inesperada.

Qual é o propósito da parábola? Jesus ensina que,


aparentemente, a paciência infinita de Deus se estende a todos os
que se opõem a ele, mas que, quando essa paciência se esgota, na
rejeição de seu Filho, o castigo imediato de Deus se segue com toda a
certeza.

A passagem proclama uma mensagem de certeza e confiança


àqueles que fielmente seguem a Jesus. Mesmo que a igreja possa
experimentar tempos de adversidade, Jesus Cristo é o Rei eterno cuja
vitória é certa. Nas palavras de uma confissão do século 16.

Esta igreja existe desde o principio do mundo e


permanecerá até ao fim. Isso emana do fato de que Cristo
é o Rei eterno, do que se conclui que ele não pode deixar
de ter súditos. E esta santa igreja é protegida por Deus do
furor do mundo todo. Nunca será destruída mesmo que,
às vezes, possa afigurar-se pequenina e possa mesmo
parecer que se apaga171.

170
Outras referências à pedra são encontradas em: Is 28.16; Dn 2.34,44,45; At 4.11;
Rm 9.33; Ef 2.20; e 1 Pe 2.6.
171
The Belgic Confession, artigo 27.
16. As Bodas

Mateus 22.1-14 “De novo, entrou Jesus a falar por parábolas, dizendo-
lhes: O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as bodas
de seu filho. Então, enviou os seus servos a chamar os convidados
para as bodas; mas estes não quiseram vir. Enviou ainda outros
servos, com esta ordem: Dizei aos convidados: Eis que já preparei o
meu banquete; os meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo está
pronto; vinde para as bodas. Eles, porém, não se importaram e se
foram, um para o seu campo, outro para o seu negócio; e os outros,
agarrando os servos, os maltrataram e mataram. O rei ficou irado e,
enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e lhes
incendiou a cidade. Então, disse aos seus servos: Está pronta a festa,
mas os convidados não eram dignos. Ide, pois, para as encruzilhadas
dos caminhos e convidai para as bodas a quantos encontrardes. E,
saindo aqueles servos pelas estradas, reuniram todos os que
encontraram, maus e bons; e a sala do banquete ficou repleta de
convidados. Entrando, porém, o rei para ver os que estavam à mesa,
notou ali um homem que não trazia veste nupcial e perguntou-lhe:
Amigo, como entraste aqui sem veste nupcial? E ele emudeceu.
Então, ordenou o rei aos serventes: Amarrai-o de pés e mãos e lançai-
o para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes. Porque
muitos são chamados, mas poucos, escolhidos”.

Assim a parábola da grande ceia é peculiar a Lucas, a parábola


das bodas pertence ao Evangelho de Mateus. Pode haver alguma
semelhança entre as duas, e o tema parece comum a ambas; mas as
diferenças são tão fundamentais, que é bom trata-las como parábolas
distintas.

A parábola

Jesus contou a história de um rei que preparou um banquete


para festejar as núpcias de seu filho. O rei – e não sua mulher, nem
seu filho, mas o rei – fez os preparativos. Para a ocasião feliz do
casamento, o rei planejou cuidadosamente a festa. Ele queria que
todos os importantes dignatários de seu reino estivessem presentes.
Mandou, então que fossem anunciadas as bodas.

Era costume, naqueles dias, os convites serem entregues em


mãos e os convidados serem relembrados do acontecimento, no dia
da festa. Mas ao entregar os convites, os servos do rei não foram bem
recebidos. Os dignatários e membros da nobreza fizeram saber aos
servos que não estavam absolutamente interessados na festa.
Expressaram amargura e rebeldia. Mesmo sabendo que o convite real
era equivalente a uma ordem real, se recusaram a tomar
conhecimento do comunicado do rei.

Uma sombra se abateu sobre o palácio real. Pessoas de alta


posição no reino, abertamente, menosprezavam o rei. Eles se
recusavam a honrá-lo com sua presença no casamento do príncipe
herdeiro. Mas, o rei continuou os preparativos para a festa, e, quando
chegou o dia das núpcias de seu filho, enviou novamente os servos
para fazer lembrar aos dignatários de todo o reino que eram
convidados ao banquete. Fez saber que tudo estava pronto.

No entanto, infelizmente, a atitude do rei não teve o resultado


esperado. Ele, talvez. Até soubesse o tipo de resposta que seus
servos receberiam, quando fossem enviados pela segunda vez. Já,
antes, tinham recebido respostas negativas e hostis. Certamente
enfrentariam a mesma amargura e o mesmo ressentimento, se não
pior. Os servos partiram com a mensagem real: Meus bois e cevados
já foram abatidos, e tudo está pronto; vinde para as bodas 172. Mas, os
convidados não deram atenção ao convite. Agiram de modo
ostensivamente desafiante: uns foram para o seu campo, outros para
o seu negócio, e, quando os servos do rei insistiram um pouco mais
com um terceiro grupo, foram maltratados. Alguns foram mortos.

O rei, justamente, irado, enviou seus soldados para punir os


assassinos e queimar sua cidade. Desabafou assim a sua ira, mas
ainda queria que pessoas viessem e celebrassem com ele as bodas
de seu filho. Por isso, ordenou aos servos que fossem às esquinas das
ruas e convidasse qualquer um que quisesse vir à festa. Tanto
pessoas boas como más vieram em grande número, de modo que a
sala do banquete se encheu de convidados.

Um dos convidados, no entanto, se recusou a usar o traje


nupcial que lhe foi oferecido, quando chegou. Por causa de sua roupa,
ele ficou muito em evidência. Chegou, então, o momento da entrada
do rei no salão do banquete. Ele examinou seus convidados com
aprovação, até notar aquele que se tinha recusado a usar vestimenta
apropriada. Surpreso, o rei exclamou: “Amigo, como entraste aqui
sem veste nupcial?” O homem ficou calado. Não podia contar ao rei,
na frente de todos os outros convidados, que se recusara a usar o
traje que lhe fora oferecido ao chegar. Permaneceu em silêncio. O rei
ordenou a seus servos que amarrassem o convidado obstinado e o
lançassem lá fora, nas trevas.

Explicação

A parábola do banquete das bordas é a terceira de uma série de


três, e é o ponto culminante do grupo que inclui ainda as parábolas

Um paralelo no Velho Testamento é o convite para o banquete da Sabedoria,


172

registrado em Provérbios 9.2-5.


dos dois filhos e dos lavradores maus. Estas três parábolas sobre o
reino foram enunciadas no decorrer da última semana de Jesus na
terra, quando ele experimentou a hostilidade dissimulada dos
fariseus, dos principais sacerdotes e dos anciãos do povo, enquanto
estes preparavam suas armadilhas para apanha-lo em contradição.
Sem temor, Jesus ensinou a parábola das bodas, que era dirigida,
claramente, contra seus oponentes. Esta parábola, no entanto deve
ser lida e entendida n contexto histórico dos eventos que encerram o
ministério de Jesus.

Na introdução da parábola, ressoa uma nota de alegria e


felicidade. O rei prepara, com esmero, um banquete para festejar as
bodas de seu filho. Celebrando, ele convida altos dignatários para o
banquete. O ato de comer e beber juntos, alegremente expressa com
naturalidade, o laço de paz e união que deve existir entre o
hospedeiro e seus convidados173. Um banquete, obviamente, não é
preparado apenas com o propósito de satisfazer o apetite. Enquanto o
dono da casa e seus hóspedes comem juntos, conversam e se tornam
mais íntimos. O embaraço desaparece e um espírito de entendimento
e afinidade toma seu lugar. Nos banquetes devem prevalecer a paz e
a harmonia.

Aqueles que foram convidados pelo rei recusaram-se a ir. No


oriente, assim como em qualquer outro lugar, espera-se que os
convidados aceitem o convite real, como uma obrigação. Espera-se,
também, que os convidados ao casamento tragam presentes
apropriados à ocasião. Porque os convidados da parábola não
poderiam agir de maneira recíproca, convidando o rei e sua família
para uma festa semelhante, os presentes deveriam ser caros –
especialmente sendo o casamento do filho do rei174. Recusar o convite
traria sérias implicações que poderiam resultar em problemas e
hostilidades. A recusa poderia ser interpretada como uma declaração
de que o filho do rei não merecia um presente, que os convidados não
aprovavam o casamento e que não manteriam mais sua fidelidade ao
rei175. O rei é obrigado a tomar medidas que assegurem sua
autoridade. Faz isso enviando os servos pela segunda vez, mas,
agora, com o apelo urgente de que venham imediatamente. Não
toma, ainda, nenhuma outra medida. O rei espera que os convidados
tenham mudado de idéia e aceitem seu convite.

Os convidados, no entanto, não tinham mudado seus


sentimentos. Vão para seus próprios negócios, ignorando a
mensagem do rei. Quando os mensageiros insistem, fazendo ver a
urgência do convite real, eles demonstram-lhes seu desprezo, os
ridicularizam e não hesitam mesmo em matá-los176.
173
Mánek, Frutch, p. 61
174
Derrett, Law in the New Testament, p. 139
175
Derrett, Law in the New Testament, p. 139, chama a atenção para o fato de Sir
Thomas More ter-se recusado a assistir à coroação da Rainha Ana Bolena, em 1534.
176
Alguns escritores consideram que este detalhe, bem como alguns outros, vão
Jesus está contando a história de Israel, e seus ouvintes
entendem que ele se refere aos profetas enviados por Deus, com a
mensagem urgente de arrependimento. Mas Israel, em vez de aceitar
o chamado de Deus e se arrepender, trata de maneira vergonhosa os
profetas, e mata alguns deles (Mt 23.35)177. Jesus rememora a seus
ouvintes a página negra do livro de sua história. Os fariseus, mestres
da lei, sacerdotes e anciãos compreendem que ele está se referindo a
eles.

Jesus continua e descreve um rei zangado, que envia seu


exército para destruir os assassinos e queimar sua cidade. O rei,
tendo feito lembrar seus convidados, pela segunda vez, através de
seus servos, e vendo que seus mensageiros são escarnecidos e
mesmo assassinados, compreende as conseqüências políticas do fato.
É de importância capital que ele enfrente aqueles que se opõem à
sua lei. Ordena às suas tropas que destruam os assassinos e
queimem sua cidade178. E indiferente que isso tenha acontecido no
próprio dia das bodas, ou imediatamente após. Significativo é o fato
de o rei ter exercido sua autoridade; ele governa e exige obediência.

Embora a referência à queima de uma cidade possa ser alusão


à destruição de Jerusalém, em 70 AC, é mais adequado pensar que o
povo que ouvia Jesus estivesse familiarizado com os relatos históricos
de reis enviando tropas para destruir os adversários e para tocar fogo
em suas cidades179. Os ouvintes de Jesus provavelmente viram a
figura irada do rei como a personificação de Deus. Eles sabiam que
“... Deus é fogo que consome, é Deus zeloso” (Dt 4.24). A paciência
de Deus não dura para sempre, e quando sua misericórdia não
encontra arrependimento, o resultado é o juízo.

O rei convida o povo da cidade e de seus arredores para os


salões festivos do banquete nupcial. Eles vêm de longe e de perto, os
bons e os maus, e enchem os lugares deixados vazios pelos
convidados indignos. O rei é um retrato de benevolência e representa
a misericórdia e o amor de Deus estendidos aos pecadores180. Pessoas

além dos limites do exagero oriental. Veja-se, por exemplo, Armstrong, Parables, p.
103; Oesterley, Parables, p. 123; Linnemann, Parables, p.94; e Jeremias, Parables,
p. 68. Entretanto, K. H. Rengstorf, cm “Die Stadt der Mõrder (Ml 22.7), Judentum,
Urchristentum, Kirche, Festschrift honoring J. Jeremias (Berlin: Tõpelmann, 1960),
pp. 106-29, acumulou uma coleção de incidentes, nos quais mensageiros enviados
por reis eram escarnecidos ou mortos.
177
2 Cr 30.1-10. Josephus, Antiquities 9:264-265, escreve que os mensageiros de
Ezequiel foram escarnecidos, agarrados e assassinados. Para comparar, leia-se
Judite 1.11.
178
A expressão “suas tropas”, embora plural em grego, ~ um semitismo. Jeremias,
Parables, p. 68, n5 75.
179
Rengstorf, “Stadt der Mörder”, pp. 106-24. Veja-se, especialmente, suas
conclusões, nas páginas 125-29.
180
D. O. Via, Jr., em “The Relationship of Form to Content in the Parables: The
Wedding Feast”; Interp 25 (1971): 181, é de opinião que o rei é ‘inquestionável e
de todos os caminhos da vida recebem
o convite e respondem afirmativamente.

Os servos do rei saúdam as pessoas, quando estas chegam ao


palácio, e dizem a cada hóspede que use as roupas feitas para a
ocasião. O rei convida o povo e espera que usem as vestes que
providenciou. Vestindo o traje nupcial, ninguém mostra pobreza ou
miséria. Cada um dos convidados pode esconder sua condição social
e econômica atrás das roupas oferecidas pelo rei181. As vestes eram
imaculadas e brancas, cor que na cultura oriental significa alegria e
felicidade182. Segundo os costumes, um hospedeiro não comia com os
convidados, num banquete formal; ele apenas se apresentava entre
eles durante a refeição183.

Qualquer um pode vir ao casamento do filho do rei? A resposta


é que todos são bem-vindos, contanto que usem as vestes nupciais.
Quando o rei chega ao salão do banquete e nota que um dos
convidados não está vestido de maneira apropriada, considera o fato
como um insulto deliberado. Ele não pode tolerar obstinação,
desacato ou recusa. Ele quer que seu convidado aceite tudo que ele
tenha a oferecer. Qualquer um que resolva declinar a oferta do rei,
provoca sua ira e vai sofrer as conseqüências. O único convidado que
apareceu no banquete usando suas próprias roupas foi sumariamente
retirado do salão e lançado fora, na escuridão da noite. Cheio de
remorsos, ele geme e range os dentes. Não são todos que
permanecem no salão da festa das bodas. Apenas aqueles que
aceitam o convite do rei, e chegam ao local obedecendo seus termos,
poderão ficar.

O Livro do Apocalipse, em especial, fala a respeito dos justos


usando vestes brancas de linho fino, resplandecente e imaculado184.
Deus providência essas vestiduras que representam a justiça de Deus
com seu povo. Deus lhes dá a veste da justiça que simboliza que
quem a usa foi perdoado, seus pecados foram resgatados, e ele é um
membro da casa de Deus, por intermédio de Cristo. Quando o pai se
alegrou com a volta do filho pródigo à casa, ele o vestiu de roupas
finas, para mostrar que o passado do filho fora esquecido (Lc
15.22)185. Como o rei da parábola queria que todos os convidados

imutável’. No entanto, Orei mostra amor, misericórdia e paciência de um lado, e


desgosto, ira e vingança, de outro.
181
Para um estudo mais pormenorizado acerca do fornecimento devestes aos
convidados, por pane do rei, veja Hendriksen, Matthew, pp. 797-98. Consultem-se
referências das Escrituras em 2 Rs 10.22; Is 61.10; Ap 19.7,8.
182
Derrett, Law in the New Testament, p. 142, contrasta as vestes limpas e alvas
com as sujas que significam luto. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p. 187; SB 1:
878-79.
183
Jeremias Parables, p. 187.
184
Ap 3.4,5,18 e 19.8. No último versículo, o escritor acrescenta a explicação de que
o linho representa os atos de justiça dos santos.
185
Jeremias, Parables, pp. 130 e 189.
usassem as roupas nupciais, por ele providenciadas, assim Deus
deseja que os pecadores venham à festa de seu filho e usem as
vestiduras brancas que simbolizam o arrependimento, o perdão e a
justiça.

O convidado que não estava usando a veste branca, no


banquete real, sem dúvida, representa o pecador que se auto-
justifica. Ele quer que todos saibam que não precisa da morte
sacrificial e do sangue expiatório de Cristo, para entrar no céu. Ele
não ouve as palavras de Jesus: “Ninguém vem ao Pai senão por mim”
(Jo 14.6), e, por isso, quando chega diante de Deus, é lançado fora. É
absolutamente impossível chegar diante de Deus sem a veste
protetora oferecida por Jesus Cristo.

O parágrafo termina com as palavras: “Porque muitos são


chamados, mas poucos escolhidos”. Tanto o começo quanto o fim da
parábola se referem a pessoas que tinham sido convidadas. Aqueles
que se recusaram a ir, assim como o convidado que não vestiu as
roupas apropriadas para as bodas, não fazem parte do grupo dos que
foram escolhidos. Embora o convite seja universal e extensivo a todos
os povos, apenas aqueles que o aceitam com fé e arrependimento
são destinados à vida eterna (At 13.48).

Deus não se compraz com a morte do perverso; ele quer que


ele viva (Ez 18.23; 33.11). O desejo amoroso de Deus é que “nenhum
pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pe 3.9).
Mas, se o homem faz saber que não sente necessidade de Jesus, ele,
assim, recusa a justiça dispensada por ele. Ele tem que se
arrepender, dando-se conta de que não tem merecimento algum para
chegar à presença de Deus, e que necessita das vestes de justiça que
Jesus provê. Um coração “compungido e contrito” (SI 51.17) é
necessário para que se queira aceitar, prontamente, essa vestidura.

O convite do evangelho é proclamado a todo o mundo, mas


relativamente poucos respondem à oferta de salvação. Mesmo entre
os que aceitam o convite há muitos que se contentam com uma
simples profissão de fé. A profissão de fé deve demonstrar renovação
de vida186. O crente deve transformar em atos suas palavras. Embora
Deus escolha sem olhar as obras, essa escolha se expressa
plenamente quando o eleito vive uma vida de obediência a Deus187.

A escolha envolve o Deus Triúno. Os escolhidos são “eleitos


segundo a presciência de Deus Pai.” Eleitos “em santificação do
Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1
Pe 1.2). Deus elege e o homem responde. A eleição divina representa
um lado do quadro; o outro é a responsabilidade do homem em

186
Calvin, Harmony of the Evangelists, 11:175.
187
G. Schrenk, TDNT, IV: 187.
aceitar o convite de Deus com fé verdadeira188. As palavras: “Porque
muitos são chamados, mas poucos escolhidos” são complemento de
“porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e
são poucos os que acertam com ela” (Mt 7.14).

17. A Figueira

Mateus 24.32-35 “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os


seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo
o verão. Assim também vós: quando virdes todas estas coisas, sabei
que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará
esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra,
porém as minhas palavras não passarão”.

Marcos 13.28-31 “Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os


seus ramos se renovam, e as folhas brotam, sabeis que está próximo
o verão. Assim, também vós: quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não
passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a
terra, porém as minhas palavras não passarão”.

Lucas 21.29-33 “Ainda lhes propôs uma parábola, dizendo: Vede a


figueira e todas as árvores. Quando começam a brotar, vendo-o,
sabeis, por vós mesmos, que o verão está próximo. Assim também,
quando virdes acontecerem estas coisas, sabei que está próximo o
reino de Deus. Em verdade vos digo que não passará esta geração,
sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas
palavras não passarão”.

Os evangelhos revelam que Jesus era um arguto observador da


natureza. Seu ensino, constantemente, faz alusão ao meio ambiente
que cercava a ele e a seus ouvintes. As parábolas não são exceção,
pois, muitas vezes, se referiam à vida do fazendeiro, do pescador e
dos pastores. Os ouvintes de Jesus viviam mais próximos da natureza
do que fazemos nós agora, e não tinham dificuldade para entender o
significado de sua mensagem. Nos tempos bíblicos, a figueira era
muito comum em Israel, especialmente nas proximidades de
Jerusalém, onde Betfagé (= “casa dos figos”) se localizava. Em Israel,
um dito popular sempre lembrado e que se referia ao reinado calmo
de Salomão, afirmava que um homem está em segurança “debaixo
de sua videira, e debaixo de sua figueira” (1 Rs 4.25 e Mq 4.4).

Durante o verão, a figueira com suas largas folhas verdes


oferece boa sombra. Mas, diferentemente de outras árvores, tais
como a oliveira, o cedro e a palmeira, ela perde suas folhas com a

188
J. Morison, A Practical Commentary on the Gospel According to St. Matthew
(Boston: Bartlett & Co, 1884), p 407.
aproximação do inverno. Mesmo quando outras árvores, que também
costumam perder as folhas, começam a mostrar sinais de vida, logo
no início da primavera — a amendoeira, por exemplo —, a figueira
continua a apontar para o céu seus ramos nus, até que chegue o
verão. Então, a seiva começa a correr, os rebentos intumescem, e,
em alguns dias, as tenras folhas novas aparecem. A natureza
proclama que o perigo da noite gelada e mortal já passou e o verão
está próximo.

Jesus talvez tenha ensinado a parábola da figueira florescente


durante a primeira semana de abril, exatamente quando as árvores
começam a dar os primeiros sinais de vida. “Quando já os seus ramos
se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão189”.
Esta era a linguagem que seus ouvintes entendiam.

A questão, no entanto, era se o povo seria capaz de interpretar


este sinal teológica e espiritualmente. As pessoas tinham vindo a
Jesus, repetidamente, pedindo por um sinal, mas Jesus não tinha o
hábito de apresentar sinais. Certa vez, ele dissera aos fariseus que
nenhum outro sinal seria dado senão aquele do profeta Jonas (Mt
12.39), e uma outra vez ele os censurou por serem capazes de
interpretar o aspecto do céu; porém não serem capazes de discernir
os sinais dos tempos (Mt 16.2,3). Saberiam seus discípulos
reconhecer o sinal da figueira ao florescer? “Assim também vós:
quando virdes todas estas coisas, sabeis que está próximo, às
portas190”.

O ponto focalizado na ilustração é óbvio: quando as árvores


começam a mostrar as tenras folhas, todos sabem que o verão está
próximo. Lucas acrescentou: “todas as árvores191”. Ele generalizou,
quando escreveu: “Vede a figueira e todas as árvores. Quando
começam a brotar, vendo-o, sabeis por vós mesmos que o verão está
próximo.” Lucas dá menos ênfase à figueira que às pessoas que
olham as árvores: elas podem ver a evidência por si mesmas.

Qual é, pois, a comparação? Os evangelistas diferem na


narrativa. Mateus inclui tudo. Escreve: “Assim também vós: quando
virdes todas estas coisas, sabeis que está próximo, às portas”.
189
Lõw, Die Flora der Juden, 1.240, destaca que a palavra verão (grego = theros)
em hebraico pode ter ocasionado um jogo de palavras: gayis (= verão; fruto do
verão) e ges (= fim da vida; tempo do castigo final). Veja-se, também, 1. Dupont,
‘La parable du figuier qui bourgeonnne (MCXIII, 28,29 ei. par.)”, RB 75(1968): 542,
que se refere à profecia de Amós 8.1,2, na qual o cesto de frutos de verão tem
significado escatológico.
190
Dupont, “Parble fu figuier”, p. 532. As palavras “assim também” dão a impressão
de que os discípulos são comparados a um outro grupo. O ‘vós” do versículo
precedente (Mi 24.32; Mc 13.28; Lc 21.30) deve ser entendido no sentido geral de
“todos sabem que o verão está próximo.
191
Um outro exemplo da generalização é encontrado em Lc 11.42, “... porque dais o
dízimo da hortelã da arruda e de todas as hortaliças...” O paralelo é encontrado em
Mt 23.23, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho...”.
Marcos varia ligeiramente, dizendo: “... quando virdes acontecer
estas coisas”, que é igual à versão de Lucas. Mas Lucas tem um final
diferente: “... sabei que está próximo o reino de Deus.” Ele omite a
frase, “próximo, às portas192”.

A expressão “quando virdes” ocorre no começo do sermão


escatológico de Jesus: “Quando, pois, virdes o abominável da
desolação situado onde não deve estar...” (Mt 24.15; Mc 13.14; Lc
21.20). Inegavelmente, as palavras “estas coisas” ou “todas estas
coisas” devem referir-se às predições delineadas anteriormente, no
discurso. Os discípulos de Jesus perguntaram: “Dize-nos quando
sucederão estas coisas” (Mc 13.4). O sermão todo a respeito do final
dos tempos (Mc 13.5-23 e paralelos), especialmente a parte sobre o
cerco de Jerusalém e o aparecimento de falsos profetas, está
resumido na expressão: “estas coisas ,ou todas estas coisas193”. A
expressão se refere, também, ao “abominável da desolação” que foi
profetizado que viria ao templo de Jerusalém. “Quando, porém, virdes
Jerusalém sitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua
devastação” (Lc 21.20).

Jesus aplica esta verdade diretamente a seus contemporâneos.


“Em verdade vos digo”, diz ele a seus discípulos, “que não passará
esta geração sem que tudo isto aconteça” (Mc 13.30). Uma vez mais
ele generaliza, usando a expressão “tudo isto”. Com certeza, os
discípulos seriam capazes de constatar como estavam próximas a
profanação e a destruição do templo, tanto quanto saberiam como
estava próxima a chegada do verão, olhando para a figueira. Mas, o
texto diz, “não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”. E
todas estas coisas preditas no sermão sobre o final dos tempos vão
muito além do tempo dos contemporâneos de Jesus194. Porém, os
rolos de Cunrã têm lançado significativa luz na compreensão da frase
“esta geração”. A expressão significa uma duração que não se limita
a um período de vida, e não deve ser entendida literalmente 195. Ela se
refere a pessoas que persistem e permanecem fiéis até ao fim. Inclui,
portanto, os discípulos que ouviram as palavras dos próprios lábios de
Jesus, aqueles que testemunharam a queda de Jerusalém, e os
192
As palavras de Mateus e Marcos, “próximo, às portas”, indicam a chegada
iminente do Senhor que está vindo como Juiz e Redentor. “Sede vós também
pacientes, e fortalecei os vossos corações, pois a vinda do Senhor está próxima. Eis
que o juiz está às portas”. (Tg 5.8,9) Notem-se as palavras do Apocalipse: “Eis que
estou à porta, e bato” (3.20). Mänek, Frucht,p.34.
193
Lane, Mark, p. 448; C. B. Cousar, “Eschatology and Mark’s Tbeologia Crucis, A
Critical Analysius of Mark 13”, lnterp 24 (1970): 325; G.R. I3easley — Murray, A
Commentary on Mark Thirteen (London, New York: Macmillan, 1957), p. 97.
194
As interpretações variam quanto ao significado da expressão “esta geração”: a)
O povo judeu dos dias de Jesus. Beasley — Murray, Commentary p. 100; b) O povo
judeu como uma raça. Hendriksen, Matthew, p. 868; e) A humanidade em geral
(Jerônimo); d) Os fiéis na igreja. A. L. Moore, The Parousia in the New Testament,
(Leiden; Brill, 1966), pp. 131 -32.
195
E. E. Ellis, The Gospel of Luke (The Century Bible) (London: Nelson, 1966), pp.
246-47. A expressão é usada em 1 QpHab 2.7; 7.2.
crentes que, através dos séculos, com perseverança, têm esperado o
cumprimento das profecias que dizem respeito ao final dos tempos.

A imagem da figueira florescente é comumente associada a um


período de bênçãos (Jl 2.22) e raramente está relacionada com
destruição e calamidade. A parábola, como tal, não deve ser vista
basicamente ligada às calamidades profetizadas no sermão196. A
ênfase deve permanecer, antes, na redenção que se torna evidente
na vinda do reino de Deus. Embora Mateus e Marcos falem de
calamidades, como a fome e terremotos, como sendo “o princípio das
dores” (Mt 24.8; Mc 13.8), Lucas as omite. Ele apresenta as palavras
de Jesus emolduradas de prazeirosa expectativa. “Ora, ao começarem
estas coisas a suceder, exultai e erguei as vossas cabeças; porque a
vossa redenção se aproxima” (Lc 21.28). Lucas usa praticamente a
mesma linguagem na aplicação da parábola da figueira florescente:
“Assim também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que
está próximo o reino de Deus” (Lc 21.31). Naturalmente, os termos
“redenção” e “reino de Deus”, neste contexto, se referem à futura
consumação da salvação197. Eles se referem à derradeira vinda do
reino de Deus, quando o povo de Deus será libertado da aflição.
Então, também, “a própria criação será redimida do cativeiro da
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21).

A parábola conclui, dizendo: “Passará o céu e aterra, porém as


minhas palavras não passarão.” O que passa se torna parte do
passado e não significa mais nada para o presente198. O sentido da
parábola é o de que as palavras de Jesus não perdem seu impacto
quando urna predição, em particular, se cumpre no tempo. São tão
válidas hoje, como o eram quando foram primeiro proferidas.

Qual é a mensagem da parábola? Até ao dia do retorno de


Cristo, quando o reino de Deus virá em toda a sua plenitude,
nenhuma geração estará livre de calamidade. Mas, nenhum cristão
deve desanimar-se ou entregar-se ao desalento. Ele deve observar os
sinais dos tempos com muito cuidado, do mesmo modo como observa
uma figueira que floresce e saberá que os acontecimentos que o
cercam são anunciadores de uma nova era. A parábola, assim, exorta
o crente a perseverar atento. As adversidades que ele enfrenta não
devem abater o seu ânimo e enfraquecer a sua confiança. Elas
devem, antes, confirmar a sua expectativa da aproximação do fim
glorioso do qual essas adversidades são os prenúncios. Mesmo que os
crentes, através dos tempos, tenham sofrido aflições e enfrentado
infortúnios, o cristão, hoje, mais que nunca, é encorajado pelas
palavras de Paulo: “E digo isto a vós outros que conheceis o tempo,
que já é hora de vos despertardes do sono, porque a nossa salvação
está agora mais perto do que quando no princípio cremos. Vai alta a

196
Mänek, Frucht, p. 34.
197
Marshall, Luke, pp. 777,779.
198
Ridderbos, Coming of the Kingdom, p. 502.
noite e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as obras das trevas, e
revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13.11,12).
18. O Servo Vigilante

Marcos 13.32-37 “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém


sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de
sobreaviso, vigiai e orai; porque não sabeis quando será o tempo. É
como um homem que, ausentando-se do país, deixa a sua casa, dá
autoridade aos seus servos, a cada um a sua obrigação, e ao porteiro
ordena que vigie. Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono
da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela
manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache
dormindo. O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai!”.

Lucas 12.35-38 “Cingido esteja o vosso corpo, e acesas, as vossas


candeias. Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu
senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que, quando vier
e bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aqueles servos a
quem o senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em verdade vos
afirmo que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-
se, os servirá. Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira,
bem-aventurados serão eles, se assim os achar”.

O título deste capítulo se aplica bem mais à parábola registrada


no Evangelho de Marcos, que àquela que encontramos em Lucas. Em
Marcos, todos os servos recebem uma obrigação específica do senhor
da casa, que está pronto para partir. Ao porteiro é dito que se
mantenha vigilante. Os ouvintes, no entanto, são incluídos porque o
comando universal é dado no plural: “Vigiai, pois, porque não sabeis
quando virá o dono da casa” (Mc 13.35)199.

Na parábola de Lucas, espera-se que todos os servos estejam


prontos para abrirem a porta, quando o dono da casa estiver de volta
de uma festa de casamento, numa determinada noite. Também, a
admoestação geral dada (no plural) a todos que a ouvem, é:
“Cingidos estejam os vossos corpos e acesas as vossas candeias”. (Lc
12.35) Um título mais apropriado à parábola de Lacas seria “os servos
à espera”.

As duas parábolas, em Marcos 13 e Lucas 12, não são idênticas


na forma. Não apresentam sentenças ou frases paralelas. Ainda
assim, o ensinamento básico dos dois relatos é o mesmo. Ambos
apresentam a mensagem da vigilância para os servos que aguardam
a chegada de seu senhor. Na parábola de Marcos, o senhor vai se
ausentar, provavelmente para outro país200, e no Evangelho de Lacas
o senhor está participando de uma festa de casamento. Em Marcos,
embora todos os indícios sejam de que chegará em casa à noite, os
199
O imperativo da segunda pessoa plural da voz ativa é usado aqui e no versículo
paralelo de Mateus 24.42.
200
“Ausentando-se” ( = apodemos) não significa, necessariamente, partir para um
país distante. Pode querer dizer, simplesmente, sair da província, como, por
exemplo, da Galiléia e Decapolis.
servos não sabem quando o senhor voltará, “se à tarde, se à meia-
noite, se ao cantar do galo, se pela manhã”. Lucas apresenta uma
lista semelhante de períodos de tempo. “Quer ele venha na segunda
vigília, quer na terceira, bem-aventurados serão eles, se assim os
achar”. Marcos adota o costume romano de dividir a noite em quatro
vigílias, cada uma com três horas de duração201. Lucas, no entanto,
divide a noite em três vigílias202.

Marcos 13.33-37

Ninguém sabe, absolutamente, a hora em que Jesus voltará. Os


anjos do céu não têm essa informação, nem mesmo o Filho sabe a
respeito. Somente o Pai sabe. “Estai de sobreaviso, vigiai203 (e orai);
porque não sabeis quando será o tempo.” Como vigia o crente?

É como um homem que tem certo número de servos, e um


deles é o porteiro noturno. Quando o dono da casa se prepara para
partir por um tempo indefinido, dá a cada um dos servos uma tarefa
determinada. O porteiro, por exemplo, deve vigiar a entrada da
propriedade. As casas, em Israel, eram, muitas vezes, separadas das
estradas ou ruas por um muro alto que as cercava. A casa
propriamente dita, juntamente com outras construções, ficava
afastada do portão. Perto da entrada ficava a pequena casa do
porteiro. O porteiro era a última segurança daqueles que moravam
dentro dos muros da propriedade204. Dele se esperava que estivesse
atento à noite e que descansasse durante o dia. Dormir em serviço
era falta grave, que contrariava as instruções explícitas dadas pelo
dono da casa (Mc 13.34,36).

De certo modo, as tarefas destinadas aos outros servos não


parecem tão importantes quanto à do vigia, e os servos não são
instruídos a ajudar o porteiro em sua missão. Nesse ponto, a ênfase
da parábola se transfere. Os ouvintes próximos, os discípulos de Jesus
são exortados a permanecer vigilantes. Jesus aplica a parábola
diretamente a seus seguidores com a intenção de que eles entendam
a exortação espiritualmente205. Fica claro que o proprietário da casa
201
SB, 1:688. Em At 12.4, Lucas registra, fielmente, as vigílias romanas: “quatro
escoltas de quatro soldados cada uma”, guardavam Pedro durante a noite. Veja-se,
também, Mt 14.25 e Mc 6.48, onde é narrado que Jesus caminhou sobre o Mar da
Galiléia durante a quarta vigília da noite.
202
Dodd, Parables, p. 162.
203
O acréscimo de “e orai” talvez derive de Mc 14.38. É mais fácil explicar a
inserção que a omissão. Metzger, Textual Commentary, p. 112.
204
SB, 11:47. De acordo com o Mishna, quando no pátio havia mais que uma
residência. o proprietário podia exigir que os moradores ajudassem a pagar o
porteiro, Smith, Parables p. 105.
205
J. Dupont, “La Parabole du Maitre Qui Rentre dans La Nuit”, Melanges Bibliques,
Festshrift honoring 13. Rigaux (Gembloux: Duculot, 1970), p. 96. Jeremias, em
Parables, p. 55, afirma que a parábola foi dirigida aos escribas, que possuíam as
chaves do reino dos céus. É difícil deduzir do texto e do contexto que é realmente
assim. Consulte-se Smith, Parables, p. 106.
personifica o Filho do Homem que, no tempo conhecido apenas pelo
Pai, virá “com grande poder e glória” (Mc 13.26). Os seguidores de
Jesus são aconselhados a permanecer vigilantes, a não dormir, mas a
esperar a sua volta. Como o vigia espera paciente e ansiosamente a
volta do dono da casa, durante qualquer uma das quatro vigílias da
noite, assim devem estar alertas os seguidores de Jesus, despertos e
atentos à sua vinda.

O dono da casa não podia determinar com precisão a hora de


sua chegada. Podia ser a qualquer hora, cedo ou tarde. Do mesmo
modo, ninguém é capaz de afirmar a hora exata da volta de Jesus.
Pode ser a qualquer tempo. Assim como o porteiro não podia dizer
que seu senhor estaria de volta durante a quarta vigília, pouco antes
do amanhecer206, também os seguidores de Jesus não podem afirmar
que Jesus voltará quando tiver passado a noite de adversidades. A
volta de Jesus acontecerá inesperadamente (Mc 13.36). Por isso Jesus
exorta não apenas seus ouvintes próximos, mas se dirige a todo o
povo: “O que, porém, vos digo, digo a todos: Vigiai!”

O tom de vigilância permeia toda a parábola, pois em cada


versículo a idéia se expressa positiva ou negativamente. Aqueles que
ouvem a parábola não devem ser encontrados adormecidos. São
exortados a se manter alertas, pois não podem saber quando Jesus
virá207.

Lucas 12.35-39

A parábola dos servos vigilantes é análoga à do porteiro. É


comum se afirmar que ambas derivam de uma parábola original,
ensinada por Jesus208. Disso se deduz que a comunidade cristã
primitiva ou os evangelistas criaram a versão atual dos Evangelhos.
Entretanto, os dois relatos sobre o porteiro e os servos vigilantes são
tão diferentes no vocabulário e na estrutura das frases que é
impossível aceitar uma parábola original. É muito mais simples
afirmar que ambas as parábolas vieram dos lábios de Jesus. Uma é
relatada por Marcos, a outra por Lucas.

No relato de Lucas, a parábola é apresentada como uma


comparação. Após ter feito uma exortação à vigilância, Jesus compara
206
Michaelis, Gleichnisse, p. 84.
207
O Evangelho de Mateus não registra uma parábola semelhante à do porteiro. Mas
há versículos paralelos em Mt 24.42: Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia
vem o vosso Senhor”; e em Mt 25.13: ‘Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a
hora”. Marcos e Lucas não registram a parábola das dez virgens (Ml 25.1-13). Por
causa da incorporação dessa passagem, Mateus deve ter suprimido a parábola do
servo vigilante.
208
Armstrong, Parables, p. 124; Dodd, Parables, pp. 161,162; Jeremias, Parables, p.
55; Mánek Frucht, p. 35. É Michaelis, em Gleichnisse, p. 82. que considera a
possibilidade de as dua parábolas, que diferem uma da outra, serem basicamente a
mesma, por causa de sua afinidade a um tema comum. Consulte-se Marsahll, Luke,
p. 537.
o estado de alerta “a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar
ele das festas de casamento; para que, quando vier e bater à porta,
logo lha abram.” Jesus diz a seus discípulos que estejam preparados
para o serviço e que mantenham acesas as suas lâmpadas.
Claramente, a mensagem que Jesus transmite deve ser entendida
espiritualmente. Na parábola que fala sobre o porteiro, mesmo que a
todos os servos tenha sido confiada uma tarefa a ser realizada
durante a ausência de seu senhor, o vigia tem que se manter
acordado e responder à batida na porta, quando o dono da casa
voltar, durante a noite. Na parábola de Lucas, todos os servos
esperam pelo regresso do senhor. São os únicos que abrem a porta
para ele, quando ele bate. Embora não possam saber ao certo quando
ouvirão a batida — a qualquer hora, entre as dez da noite e as seis da
manhã —, eles sabem que naquela noite seu senhor voltará para casa
vindo de um banquete de núpcias. Mas, por que devem todos os
servos se manter acordados? E por que devem todos eles atender à
porta209? A resposta a esta pergunta é que Jesus queria retratar o
relacionamento de confiança que existia entre o senhor e seus
servos. Nesta curta parábola, a passagem: “bem-aventurados aqueles
servos” (Lc 12.37,38) ocorre duas vezes. Também, através da
comparação, Jesus destaca o laço de amizade existente entre ele e os
discípulos.

Aos discípulos é dito que estejam vestidos e prontos para o


serviço210, e que mantenham acesas as suas candeias. O uso de
candeias acesas sugere um período de trevas durante o qual os
discípulos devem permanecer alertas, prontos para servirem a
Jesus211, quando ele voltar. A parábola retrata o senhor fora da porta
de sua própria casa, batendo e esperando que os servos a abram e o
recebam em sua própria casa. A imagem se repete na carta
endereçada à igreja em Laudicéia: “Eis que estou à porta e bato; se
alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e
cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20).

A parábola continua com uma recomendação: “Bem-


aventurados aqueles servos a quem o senhor quando vier os encontre
vigilantes.” A seqüência natural seria que os servos, após abrirem a
porta, se ocupassem em servir ao seu senhor. Entretanto, uma série
inesperada de acontecimentos tem lugar: o senhor se torna o servo.

209
Dupont, “Parabole”, p. 105.
210
No grego, é usado o particípio perfeito do verbo perizonnumi junto com o
imperativo do verbo eimi. Esse uso do perfeito significa conseqüência. Isto é, a
ordem é que estejam sempre vestidos para o serviço: estar prontos sempre!
211
Dodd, Jeremias, e outros colocam esta parábola na categoria das “parábolas da
crise’. A categoria inclui parábolas tais como a dos servos vigilantes, a do ladrão à
noite, a do servo fiel e do infiel, e a das dez virgens. Embora a observação seja
correta, as assim chamadas parábolas da crise não podem ser limitadas à morte de
Jesus. Elas focalizam, também, a segunda vinda. Morris, Luke, p. 216; 1. H.
Marshall, Eschatology and The Parables (London: Tyndale Press, 1973), pp. 34,35.
Ele se veste para o serviço, seus servos tomam lugar à mesa e
ele os serve212. Sem dúvida, o fato contraria o costume normal tão
bem descrito na parábola sobre a recompensa do servo (Lc 17.7-10).
Entretanto, essa inversão de papéis está plenamente de acordo com
o ensino e a conduta de Jesus. Ele ensinou o papel do servo muito
claramente, no cenáculo, quando lavou os pés de seus discípulos213.
Resumindo, dentro do contexto da parábola dos servos vigilantes,
Jesus faz uma referência velada a si mesmo.

Uma vez mais, os servos que haviam esperado seu senhor


voltar são elogiados. Os servos cumpriram o que deles era esperado:
aguardar a volta de seu senhor. Assim também, a todos os crentes,
não apenas aos discípulos de Jesus, é recomendado que permaneçam
prontos, atentos e aguardando a volta do seu Senhor. Se estiverem
vestidos e prontos para o serviço, com suas lâmpadas acesas e
fulgurantes na noite escura, o Senhor, quando vier, não negará sua
recompensa.

212
Jeremias, Parables, p. 54 nº 18, chama Lucas 12.37b de secundário, pré-Lucas.
Ele destaca a palavra amen (que Locas usa apenas seis vezes) assim como a
redundância semítica de parelthon. Juntamente com Outros estudiosos, ele
considera esse versículo um detalhe alegórico, o que pode ser verdade. Não
obstante, não existe razão para que sejam questionadas a historicidade e a
autenticidade do que foi dito.
213
Jo 13.1-7; também Lc 22.27.
19. O Ladrão

Mateus 24.42.44 “Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem
o vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a
que hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a
sua casa. Por isso, ficai também vós apercebidos; porque, à hora em
que não cuidais, o Filho do Homem virá”.

Lucas 12. 39-40 “Sabei, porém, isto: se o pai de família soubesse a


que hora havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria arrombar a sua
casa. Ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não
cuidais, o Filho do Homem virá”.

No Evangelho de Lucas, a parábola do ladrão vem em seguida à


dos servos vigilantes. Por ser tão breve, é considerada, antes, uma
declaração em forma de parábola que uma parábola propriamente
dita. Enquanto a parábola dos servos vigilantes mostra a promessa se
transformando em recompensa, a parábola do ladrão, que vem à
noite, constitui uma advertência. A primeira descreve um
acontecimento jubiloso; a outra, um desastre iminente.

O ensino dessa declaração em forma de parábola é muito


simples. Enquanto o dono da casa está dormindo, ladrões chegam à
sua moradia. Cavam um buraco na parede de tijolos, arrombam a
casa, e roubam todos os bens do proprietário. Se o dono da casa
soubesse a que horas viriam os ladrões, vigiaria para impedir o roubo.

Esta declaração em forma de parábola se baseia em fatos da


vida real, pois assaltos acontecem freqüentemente, especialmente
em tempos de recessão econômica. A imagem do ladrão, à noite, se
aplica ao dia da vinda do Senhor, nas Epístolas e no Apocalipse. Paulo
usa a imagem para o retorno do Senhor:

“Vós mesmos estais inteirados com precisão do que o dia do


Senhor vem como ladrão de noite. Quando andarem
dizendo: Paz e seprança2 eis que lhes sobrevirá repentina
destruição, como vem à dor do parto à que está para dar à
luz; e de nenhum modo escaparão. Mas, vós, irmãos, não
estais em trevas, para que esse dia como ladrão vos apanhe
de surpresa”. (1 Ts 5.2-4)

Pedro pinta um quadro semelhante: “Virá, entretanto, como


ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso
estrondo e os elementos se desfarão abrasados: também a terra e as
obras que nela existem serão atingidas.” (2 Pe 3.10). No livro do
Apocalipse, João registra a carta endereçada à igreja em Sardes. O
Senhor elevado e exaltado diz: “Lembra-te, pois, de como tens
recebido e ouvido, guarda-o, e arrepende-te. Porquanto, se não
vigiares, virei como ladrão, e não conhecerás de modo algum em que
hora virei contra ti” (Ap 3.3). E, outra vez, diz: (“Eis que venho como
vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas
vestes, para não andar nu, e não se veja a sua vergonha”). (Ap
16.15)214

Jesus profetiza sua própria volta no contexto de seu sermão a


respeito dos últimos acontecimentos. Ele instrui seus seguidores a
que estejam atentos para o imprevisto de seu retorno. Ele compara o
tempo de sua vinda aos dias de Noé.

“Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio,


comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até
ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam,
senão quando veio o dilúvio e os levou a todos. Assim será
também a vinda do Filho do homem”. (Mt 24.38,39)

Na parábola do ladrão, à noite, Jesus repete a mesma


advertência: “Por isso ficai também vós apercebidos, porque, à hora
em que não cuidais, o Filho do homem virá215”.

Jesus está advertindo seus próprios discípulos a respeito de um


perigo iminente? Esperamos que os seguidores de Jesus aguardem o
tempo de sua volta como uma ocasião jubilosa. Aqueles que ouvem
com atenção e obediência as palavras de Jesus estarão preparados,
quando ele vier. Para eles seu retorno será um acontecimento feliz.
Mas, para todos, mesmo para os discípulos de Jesus, é colocada uma
palavra de advertência contra a apostasia. Afinal, entre os doze
discípulos estavam Pedro, que negou seu Senhor, e Judas, que o
traiu216.

A parábola é dirigida àqueles que esperam o retorno glorioso de


Jesus e àqueles que estão ignorando as instruções de Jesus. Enquanto
a imagem da vinda do Filho do homem evoca alegre expectativa

214
O Evangelho de Tomé registra a parábola do ladrão em duas de suas citações,
mas não tem aplicação cristológica: “Portanto eu vos digo: Se o dono da casa sabe
quando vem o ladrão ele estará vigiando antes que venha (e) não deixará que
arrombe a casa de seu reino para levar os seus bens. Mas vós deveis estar alertas
contra o mundo; cingi vossos lombos com grande poder, para que nenhum ladrão
possa achar um modo de chegar até vós” (Citação 21b). “Jesus disse: Bem-
aventurado é o homem que sabe em que parte (da noite) virá o ladrão, para que se
levante e ajunte seu.., e cinja seu lombo antes que venham” (citação 103).
215
Alguns estudiosos afirmam que a expressão ‘Filho do homem” não pode ser
original, mas que deve ter sido introduzida pela igreja cristã primitiva. Jeremias,
Parables, pp. 50,51; Manek, Frucht, p. 66; 6. Schneider, Parusiegleichnisse im
Lukas-Evangelium (Stuttgart: 1975), p. 22. Entretanto, “a predição da vinda do Filho
do homem é uma parte consistente do ensino de Jesus...” Marshall, Luke, p. 534.
Veja-se R. Maddox, “The Function of the Son of Man”, NTS 15(1968-9); 51.
216
Jeremias, Parables, p. 50, é de opinião que os discípulos não precisavam ser
advertidos. A parábola, então, se aplica à igreja primitiva, para advertir o povo
quanto ao julgamento que está para vir. Marshall, em Eschatology, p. 35, questiona
seriamente esta opinião.
entre os fiéis, a imagem de um ladrão à espreita cria ansiedade e
tristeza naqueles que não estão preparados.

O que a parábola ensina? Nos dias que precedem a vinda do


Senhor, muitas pessoas vivem ignorando totalmente o julgamento
iminente. Sua vinda acontecerá sem aviso. O inesperado do
acontecimento para os que não estão atentos pode ser comparado ao
momento imprevisto quando um ladrão chega para arrombar e
roubar. Aqueles que se preparam e estão prontos não serão
surpreendidos quando o tempo do retorno de Jesus chegar.
20. O Servo Fiel e Prudente

Mateus 24.45-51 “Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem o


senhor confiou os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu
tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando
vier, achar fazendo assim. Em verdade vos digo que lhe confiará
todos os seus bens. Mas, se aquele servo, sendo mau, disser consigo
mesmo: Meu senhor demora-se, e passar a espancar os seus
companheiros e a comer e beber com ébrios, virá o senhor daquele
servo em dia em que não o espera e em hora que não sabe e castigá-
lo-á, lançando-lhe a sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger
de dentes”.

Lucas 12.41-46 “Então, Pedro perguntou: Senhor, proferes esta


parábola para nós ou também para todos? Disse o Senhor: Quem é,
pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus
conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado
aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.
Verdadeiramente, vos digo que lhe confiará todos os seus bens. Mas,
se aquele servo disser consigo mesmo: Meu senhor tarda em vir, e
passar a espancar os criados e as criadas, a comer, a beber e a
embriagar-se, virá o senhor daquele servo, em dia em que não o
espera e em hora que não sabe, e castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte
com os infiéis”.

A parábola do servo fiel está entre aquelas nas quais Jesus


ensina a necessidade da vigilância. Além de enfatizar a vigilância,
Jesus, também, reforça a característica da fidelidade. Em resumo, a
parábola se refere a um servo que recebe a responsabilidade de
administrar a casa, na ausência de seu senhor. Se ele provar ser fiel e
prudente, o senhor o recompensará generosamente ao regressar.
Mas, se for preguiçoso, indigno e descuidado, o senhor voltará
quando não estiver sendo esperado e lhe infligirá severa punição.

O Servo Fiel

Mateus e Lucas, ambos, mostram que Jesus se dirigia a seus


discípulos (Mt 24.1; Lc 12.22). Quando Jesus estava ensinando seus
discípulos, foi interrompido por Pedro que perguntou se a parábola se
referia a eles ou a todos217. Isto é, o ensino de Jesus se aplicava
especificamente a seus discípulos? Ou era para ser aplicado também
aos outros? Foi Pedro, o porta-voz dos doze, quem fez a pergunta. Ele
estava sempre pronto a indagar (Mt 15.15). Perguntou Pedro:

217
Jeremias, Parables, p. 99, considera Lc 12.41 como uma “situação criada”,
embora seu “uso lingüístico mostre que se achava na fonte de Locas”. No entanto,
por causa da referência aos discípulos (Lc 12.22) como os que ouviam diretamente
a Jesus, não é possível rejeitar o caráter histórico da pergunta de Pedro (Lc 12.41).
“Senhor, proferes esta parábola218 para nós ou também para todos?”
Jesus respondeu a Pedro contando uma outra parábola: a história a
respeito de um servo fiel.

O senhor de um determinado número de servos tinha que deixar


sua casa por algum tempo. Fez os planos necessários para sua
viagem e chamou um dos servos que, na sua opinião, seria capaz de
administrar o dia-a-dia da casa219. Confiou-lhe a responsabilidade de
cuidar dos outros conservos, de alimentá-los no devido tempo, e de
provar sua fidelidade e prudência, durante a ausência de seu senhor.
Se encontrar tudo em ordem quando voltar, o senhor tem a intenção
de promover o servo passando-o a administrador de todos os seus
bens.

O servo demonstra duas características indispensáveis:


fidelidade e prudência. Ele é digno de confiança porque quando diz
sim, é sim, e quando diz não, é não. Seus conservos sabem que ele
não falta à sua palavra. Podem confiar nele. Ele, também, é
perspicaz, pois sabe antecipar os problemas, e está sempre
preparado para enfrentá-los e resolvê-los, efetivamente. Com
aparente facilidade, tem sempre o controle da situação.

Quando o senhor volta de sua viagem, inspeciona tudo e


encontra tudo em ordem. Fica contente com as referências elogiosas
feitas a seu servo. Como recompensa à sua fidelidade, o senhor
promove o servo à posição de administrador de todos os seus bens.
Ele sabe, agora, que o servo passou no teste, administrando sua casa
com eficiência. Como prêmio, coloca-o na segunda posição de
comando.

O Servo Infiel

Quando um senhor coloca alguém como responsável por sua


casa, ele escolhe um servo em quem confia e de quem espera boa
conduta. Quer deixar sua casa em mãos seguras. Mas, nem sempre a
natureza humana é confiável, e o senhor pode cometer um grande
erro quando faz sua escolha por determinado servo, em quem pensa
poder confiar. Em outras palavras, o senhor nunca pode ter a certeza
absoluta de que o servo corresponderá às suas expectativas.

O servo pode aparentar confiabilidade, antes de ser escolhido,


mas, quando seu mestre parte, ele revela seu verdadeiro caráter. É
ardiloso, cruel e descontrolado. Com base em outras viagens feitas
218
A expressão “esta parábola” não deve ser tomada literalmente como se referindo
apenas parábola do ladrão. Tomada mais amplamente, ela inclui a parábola do
porteiro. Esse uso abrangente da palavra parábola é encontrado também em Lc
15.3 que inclui as histórias da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo.
219
O termo oikonomos pode significar: a) um escravo de confiança a quem se dá
autoridade na casa de seu senhor (Lc 12.42); b) um oficial público coletor de rendas
(Rm 16.23); c) um administrador (Lc 16.1), SB, 11:219.
pelo seu senhor, o servo calcula que ele vai demorar bastante. Na
ausência do dono, o servo maltrata os outros servos, seus
companheiros. Ele se sente seguro ao fazê-lo, pensando que o dia da
volta de seu senhor está distante. Passa o tempo na companhia de
bêbados, com os quais se entrega a excessos de comida e bebida220.

Seu senhor se apressa a voltar para casa, e aparece súbita e


inesperadamente. O que fará o senhor com o servo que foi
irresponsável e infiel? Ouve as histórias sobre seu comportamento,
suas farras e sua indolência. Nada lhe escapa. Ele toma conhecimento
de tudo. O senhor agora é o juiz e o executor da lei. Ele deve
pronunciar o veredicto e declarar culpado o ofensor. Então,
administrará a punição apropriada.

Jesus disse: “E castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os


hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 24.51). Há uma
versão em inglês que diz: “Cortá-lo-á em pedaços.” Este texto é de
difícil interpretação, pois se a frase for tomada literalmente, como
poderá ser lançado com os hipócritas? É possível que o texto
apresente uma expressão idiomática, que deva ser entendida
metaforicamente221, como, por exemplo, a expressão “esfolar vivo Os
escritos de Cunrã lançam nova luz sobre o texto222. A expressão
“cortá-lo-á em pedaços” é uma tradução mais literal de “cortá-lo
fora”, tirá-lo do meio de seu povo. Desse modo, está em harmonia
com o ensinamento do Salmo 37, que afirma que o justo herdará a
terra, mas o ímpio será exterminado223. O servo que falhou diante de
seu senhor recebe o oposto da recompensa recebida pelo servo
responsável e fiel. Ele é separado, lançado fora e extirpado de seu
povo.

Interpretação

O relato da parábola é idêntico nos Evangelhos de Mateus e


Lucas, exceto na escolha das palavras da narrativa. Por exemplo, o
servo fiel e prudente no Evangelho de Mateus é um mordomo fiel e
prudente no Evangelho de Lucas; embora Lucas se refira a ele como
“servo” no restante da parábola. Mateus escreve que o servo mau
passa a espancar os seus companheiros, mas Lucas diz que ele passa

220
Na parábola do servo fiel e do infiel ecoa a história de Aicão. Veja-se R. H.
Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha (Oxford: Clarendon Press, 1977), 2: 715.
221
Bauer, et al, Lexicon, p. 200, admite o significado de “punir com a maior
severidade”.
222
O. Betz, em “The Dichotomized Servant and the End of Judas Iscariot”, RQ
5(1964): 46, se refere a 1QS2:16,17: “Deus ‘separará’ o hipócrita pela maldade, de
modo que será extirpado do meio de todos os filhos da Luz; ... ele terá a parte que
lhe cabe no meio daqueles excomungados para sempre.” O verbo dichotomein e a
frase tithenai meros tinos são hapax legomena, no Novo Testamento, são,
portanto, passíveis de várias interpretações. Consulte ieremias, Parables, p. 57 nº
30, 31.
223
Salmos 37.9a, 22b, 34b, 38b.
a espancar os criados e as criadas. Este servo terá seu lugar com os
hipócritas, de acordo com Mateus, e um lugar com os infiéis, segundo
Lucas224.

Algumas outras pequenas diferenças podem, ainda, ser


apontadas, mas que importância têm? Naturalmente, o apóstolo
Mateus, guiado pelo Espírito Santo, se recordou de tudo que Jesus lhe
havia dito (Jo 14.26). Lucas confiou nas informações que lhe foram
dadas pelas testemunhas oculares e pelos ministros da Palavra (Lc
1.2)225. Os dois escritores foram inspirados pelo Espírito Santo,
quando escreveram seus Evangelhos, embora cada um reflita seu
próprio estilo e propósito. Como judeu, Mateus procurou trazer o
evangelho aos judeus seus contemporâneos. Lucas, helenista,
escreveu seu Evangelho para aqueles que, naqueles dias, falavam
grego.

Ao usar o termo mordomo, no começo de sua parábola, Lucas


quer chamar a atenção para o chefe dos servos que é o responsável
pela casa de seu senhor226, com seus criados e criadas. Ao usar a
palavra servo, em todo o restante da parábola, Lucas mostra,
claramente, que vê os responsáveis pela administração de modo
muito semelhante ao de Mateus. O uso de palavras diferentes,
portanto, pode ser atribuído ao estilo característico de cada escritor.
Isso é especialmente verdade com respeito ao uso da palavra
hipócritas que ocorre mais freqüentemente no Evangelho de
Mateus227. Lucas, por outro lado, usa o termo infiéis, que no contexto
não difere em sentido da palavra usada por Mateus, pois um hipócrita
é, de fato, um infiel228.

A parábola pretende chamar a atenção para a responsabilidade


que recebem os seguidores de Jesus. Alguns desses seguidores
recebem privilégios maiores que outros, mas são investidos de
responsabilidades, também maiores. Porque cada um tem o seu
próprio dever no serviço do Senhor229; ninguém está excluído ou
isento. A parábola, na seqüência de Mateus, serve de introdução à
parábola das dez virgens e à dos talentos. Para Jesus todos são
224
O uso de amem, característico de Jesus, em Mateus 24.47, é alethos, em Lc
12.44.
225
Os dois evangelistas podem ter tido acesso a uma fonte comum, quando
escreveram seus Evangelhos. É possível, também, que Locas tenha consultado o
Evangelho de Mateus, quando escreveu o seu. W. C. Allen, The Gospel According to
St. Matthew (ICC) (Edinburgh: T&T Clark, 1922), p. 262.
226
Michel, TDNT, V:150.
227
A palavra é usada treze vezes no Evangelho de Mateus (6:2,5,16; 7.5; 15.7;
22.18; 23.13,15,23,25,27,29; e 24.51), uma vez em Marcos (7.6), e três vezes no
Evangelho de Lucas (6.42; 12.56; e 13.15).
228
Plummer, Luke, p. 333.
229
Michaelis, Gleichnisse, p. 74 e Jeremias, Parables, p. 56, por causa da pergunta
de Pedro (Lc 12.41), aplicam a parábola de Lucas aos apóstolos. Mas, esta
interpretação significaria que a parábola tem pouco ou nenhum significado em
relação aos cristãos.
responsáveis.

Jesus é representado pelo senhor da casa. Ele parte, com a


promessa de seu retorno. Na ausência de Jesus, seus seguidores
recebem privilégios e responsabilidades. Se o crente for fiel e
prudente no desempenho de seus deveres, Jesus o recompensará
abundantemente, em sua volta. Mas, se for infiel e agir
irresponsavelmente, a volta de Jesus será para ele um acontecimento
inesperado, do qual resultará sua completa separação do povo de
Deus e conseqüente punição.

Enquanto Mateus conclui a parábola com a expressão


conhecida: “ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 24.51)230, Lucas
termina a seqüência das três parábolas sobre a vigilância (o porteiro,
o ladrão e o servo fiel e prudente) com palavras conclusivas de Jesus,
registradas apenas por Lucas:

“Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu


senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade,
será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não
soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de
reprovação, levará poucos açoites. Mas àquele a quem
muito foi dado, muito será exigido; e àquele a quem muito
se confia, muito mais lhe pedirão” (Lc 12.47, 48).

230
A expressão é registrada seis vezes por Mateus e uma vez por Lucas (Mt 8.12;
13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28).
21. As Dez Virgens

Mateus 25.1-13 “Então, o reino dos céus será semelhante a dez


virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o
noivo. Cinco dentre elas eram néscias, e cinco, prudentes. As néscias,
ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo; no
entanto, as prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas
vasilhas. E, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e
adormeceram. Mas, à meia-noite, ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí
ao seu encontro! Então, se levantaram todas aquelas virgens e
prepararam as suas lâmpadas. E as néscias disseram às prudentes:
Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se
apagando. Mas as prudentes responderam: Não, para que não nos
falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o vendem e comprai-o.
E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as que estavam
apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta.
Mais tarde, chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor, senhor,
abre-nos a porta! Mas ele respondeu: Em verdade vos digo que não
vos conheço. Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora”.

Apenas Mateus registrou a parábola das dez virgens. Ele,


habilmente, colocou a parábola após o sermão de Jesus sobre o final
dos tempos. Na última parte desse sermão, Jesus fala da divisão entre
os que são eleitos, atentos e fiéis, e aqueles que não o são. “Então
dois estarão no campo, um será tomado, e deixado o outro; duas
estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e deixada a
outra” (Mt 24.40,41). O servo fiel e prudente será responsável por
todos os bens de seu senhor, mas o servo infiel terá seu lugar com os
hipócritas (Mt 24.45-5 1). Na parábola das dez virgens, cincos entram
na casa do noivo; as outras cinco encontram fechada a porta. Este
tema da separação entre os bons e os maus continua na parábola dos
talentos (Mt 25.14-30), e na descrição de um pastor separando as
ovelhas dos cabritos (Mt 25.31-33).

As Bodas

Jesus conta a história de dez damas de honra que, de acordo


com o costume nupcial do lugar, naquela época, se preparavam para
aguardar a chegada do noivo. É uma história interessante que tem
como objetivo ensinar a lição da necessidade de se estar preparado.

Embora as informações a respeito sejam variadas e imprecisas,


podemos supor que nos dias de Jesus o casamento acontecia em
idade precoce. Porque a maturidade sexual se dá na adolescência,
em Israel os casamentos eram contratados nos seus primeiros
anos231. Era costume a noiva se cercar de dez damas de honra232,
escolhidas entre suas melhores amigas e da mesma idade que ela.

A sentença introdutória: “Então o reino dos céus será


semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a
encontrar-se com o noivo”, descreve a cena233. Isto é, dez moças
adolescentes tomaram suas lâmpadas e foram para a casa da noiva
com o propósito de prepará-la para o encontro com o noivo. A
sentença introdutória, naturalmente, não se refere ao encontro
acontecido entre o noivo e as dez virgens, pois este acontece mais
tarde, no desenrolar da história (Mt 25.10).

Não devemos imaginar essas jovens sentadas em algum lugar,


na estrada, no meio da noite, vencidas pelo sono enquanto o óleo de
suas lâmpadas se acaba e estas se apagam. É melhor vê-las
ocupadas, na casa da noiva, enfeitando-a e cuidando dos últimos
preparativos. Não podemos afirmar com certeza que o texto também
faz alusão à noiva, como algumas versões bíblicas indicam em notas
de rodapé234. É fato, no entanto, que o objetivo da parábola não se
refere à noiva. Ela focaliza as damas de honra, e, especialmente, as
cinco néscias235. As dez moças deviam acompanhar a noiva à casa do
noivo, ou de seus pais, onde, de acordo com o costume, acontecia o
casamento236.

Cinco das moças eram displicentes, cinco eram prudentes (ou


previdentes). As displicentes tinham apanhado suas lâmpadas, mas
deixaram de levar o óleo. Que tipo de lâmpadas eram essas que
precisavam de freqüente reabastecimento para continuar brilhando?
As pequenas lamparinas usadas em casa não seriam apropriadas para
uma procissão ao ar livre, porque o vento apagaria sua chama. As

231
P. Trutza, “Marriage”, ZPEB, pp. 4, 96, indica que “os rabinos fixavam doze anos,
como a idade mínima para as meninas se casarem e treze para os meninos.
232
“As damas de honra cercavam a noiva, toda de branco, e eram, usualmente,
dez.” Daniel. Rops, Daily Life in Palestina of the Time of Christ (London: 1962), p.
124. Do mesmo modo J. A. Findlay, Jesus and his parables (London: Epsworth Press,
1951), pp. 111-112, se refere às dez damas vistas por ele numa cidade da Galiléia,
a caminho da casa da noiva, para fazer-lhe companhia enquanto esperava a
chegada do noivo.
233
Jeremias, “Lampades:, ZNW 55 (1964): 199.
234
A evidência textual para a inclusão das palavras, “e a noiva”, no final do primeiro
versículo, vem de uma combinação de testemunhos ocidentais e cesarianos.
Metzger, Textual Commentary’, p. 62.
235
Oesterley, Parables, p. 136.
236
Jeremias, TDNT, IV:1100.
Lâmpadas do cortejo das bodas eram tochas. Consistiam de uma
longa vara com trapos encharcados de óleo no topo. Quando acesos
esses archotes queimavam com grande brilho, iluminando o cortejo
festivo, em sua caminhada até à casa do noivo. Entretanto, por causa
da brilhante chama ardente, a vasilha de cobre, que continha o óleo,
logo se esvaziava. De quinze em quinze minutos os trapos deviam ser
novamente encharcados, para conservar a tocha ardendo237. Aquelas
que levavam as tochas deviam, pois, ter à mão um suprimento de
óleo suficiente para mantê-las acesas, especialmente se fosse
esperado que as damas de honra apresentassem sua dança, à luz das
tochas, na chegada.

As cinco moças displicentes tinham chegado à casa da noivas


completamente despreparadas; foram negligentes e não Levaram
consigo o óleo extra. Porque não precisaram de suas tochas até ao
começo do cortejo, elas não tiveram, infelizmente, consciência de seu
descuido.

O noivo estava atrasado para seu encontro com a noiva. A


demora pode ter sido causada pelos acertos relativos à questão do
dote. Este antigo costume, mencionado freqüentemente nas
Escrituras238, consiste na dádiva de bens da parte da família do noivo
para a família da noiva. A conversa a respeito do dote podia tomar
tempo considerável e levar a discussões prolongadas239. Quando tudo
estava devidamente combinado, e as partes de pleno acordo, a festa
de casamento tinha início. O noivo não podia ir ao encontro da noiva
antes que o dote fosse pago e o contrato de casamento assinado240.

Enquanto esperavam, as damas de honra ficaram sonolentas e


acabaram adormecendo. Tanto as prudentes quanto as néscias
dormiram. O tempo passou rapidamente. Mas, de repente, à meia-
noite, ouviu-se um grito: “Eis o noivo! Saí ao seu encontro”. O noivo e
seus acompanhantes se aproximavam alegremente da casa da noiva.
Dentro, as damas de honra acordaram rapidamente, levantaram-se,
se retocaram e puseram em ordem as suas lâmpadas241. Todas as dez
tinham suas tochas ardendo brilhantemente, mas cinco delas
237
Jeremias, “Lampades”, p. 198. Também SB, I, 969 se refere a esta pratica em
Israel, quando a noiva é trazida da casa de seu pai à de seu marido, durante a
noite. Ela é precedida por um cortejo que carrega dez tochas feitas de varas às
quais são atados recipientes de bronze, onde trapos ensopados de óleo são acesos
e usados para iluminar o caminho.
238
Gn 34.12; Ëx 22.16; 1 Sm 18.25.
239
Daniel-Rops, Daily Life, p. 122.
240
Para um estudo mais pormenorizado, consulte-se H. Granqvist, Marriage
Conditions in a Palestinian Village (Helsingfors: 1931), pp. 132-55. “Se o preço pela
noiva já tivesse sido pago, as bodas podiam se realizar a qualquer tempo; podia
acontecer que o fechamento do contrato fosse adiado até ao dia do casamento,
mas, em qualquer caso, o noivo não podia levar a noiva antes que tudo estivesse
estabelecido”, p. 155.
241
No Novo Testamento, o sentido de “pôr em ordem, preparar”, dado a kosmeo,
ocorre somente em Mt 25.7. H. Sasse, TDNT, III: 867.
perceberam que sem óleo extra suas tochas estariam completamente
apagadas antes que o cortejo começasse. Tentaram contar às outras
o seu problema. Disseram: “Dai-nos do vosso azeite, porque as
nossas lâmpadas estão-se apagando”. Mas as cinco moças, que
tinham levado consigo as vasilhas de óleo, sabiam que a cada quinze
minutos teriam que reabastecer suas próprias tochas, e mantê-las
acesas durante todo o cortejo, bem como durante a dança à luz das
tochas, ao chegarem. O bom senso lhes dizia que o óleo que traziam
consigo seria suficiente para cinco tochas, mas não para dez.
Delicadamente se recusaram a repartir o óleo. Aconselharam as
moças a irem aos que o vendiam para comprá-lo.

As cinco moças que tinham passado o tempo esperando e


dormindo tinham, agora, que correr até a um vendedor, acordá-lo e
comprar o óleo necessário. Nesse intervalo, o noivo chegou e o
cortejo começou. Todos foram à casa do noivo para participar da
festa. A entrada do salão das bodas foi fechada, na casa do noivo, e
ninguém mais, que não tivesse feito parte do cortejo, tinha permissão
para entrar. Este era um procedimento costumeiro entre os ricos
daqueles dias242.

A parábola termina com a cena das cinco moças que


encontraram a porta fechada, pedindo: “Senhor, senhor, abre-nos a
porta.” Seu insistente chamado trouxe à porta o noivo, que disse às
moças que não tinha nada a ver com elas243. Elas estavam muito
atrasadas.

O Significado

A conclusão que Jesus dá à parábola é simples e direta: “Vigiai,


pois, porque não sabeis o dia nem a hora”. Ele, evidentemente, se
refere a si mesmo, e nessa parábola ensina a respeito de seu próprio
retorno. Ele é o noivo, é aquele que vem. Repetidamente, durante seu
ministério, ele fez referências ao noivo. À questão sobre por que seus
discípulos não jejuavam, Jesus respondeu: “Podem acaso estar tristes
os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles?
Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias
hão de jejuar” (Mt 9.15). Além disso, o final da parábola das dez
virgens é um claro eco do ensino de Jesus, registrado em Mt 7.21-
23244:

“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino


dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está
nos céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: “Senhor,

242
Oesterley, Parables, p. 135.
243
Na literatura rabínica a expressão: “não vos conheço” pode ser usada por um
mestre para suspender um aluno durante uma semana, SB, 1:469; IV:I, 293.
244
Marshall, em Eschatology and the Parables, p. 39, destaca que, com respeito a Mi
7.21-23 e Mi 25.11,12, “é difícil não ouvir neles o tom do Filho do Homem”.
Senhor! Porventura não temos nós profetizado em teu nome,
e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não
fizemos muitos milagres? Então lhes direi explicitamente:
Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a
iniqüidade”.

O ensinamento óbvio é que Jesus exclui do reino dos céus todo


aquele que deixa de fazer a vontade de Deus, o Pai. No dia da volta
de Jesus, eles podem chamá-lo pelo nome e mostrar suas obras
religiosas, mas porque não fizeram a vontade do Pai não terão parte
no reino.

Cinco das virgens da parábola são chamadas de prudentes. São


aquelas que estavam preparadas. São sábias porque estavam
completamente preparadas para a situação e seguiram as instruções
usuais cuidadosamente245. As Escrituras ensinam que uma pessoa
prudente tem verdadeiro discernimento da vontade de Deus.

As cinco moças chamadas de néscias (= displicentes) e que são


o centro da parábola não parecem culpadas de nenhum mal. Tinham
a melhor das intenções, e desejavam à noiva e ao noivo muitos anos
de felicidades. Mas não fizeram a vontade dos noivos por causa de
sua negligência ao esquecer o óleo necessário. “Acaso se esquece a
virgem dos seus adornos, ou a noiva do seu cinto?” (Jr 2.32). A
resposta é, naturalmente, que não. No entanto, essas cinco moças se
esqueceram de se preparar adequadamente para a tarefa que lhes
fora determinada. Chegaram despreparadas e por isso não foram
recebidas no salão das bodas246.

Nada na parábola indica que se esperava que as dez moças


permanecessem acordadas. As prudentes, assim como as tolas,
caíram no sono enquanto esperavam. A vigilância não é, portanto, a
característica marcante ensinada nesta parábola. Antes, o que é
predominante é a disposição de estar preparado.

Como o noivo, na cultura e nos dias de Jesus, podia vir a


qualquer hora da noite, assim Jesus virá, subitamente, no dia de sua
volta.

Interpretações

A parábola das dez virgens tem sido interpretada


245
G. Bertram, TDNT, IX:234.
246
O rabino Johanan ben Zakkai, contemporâneo dos apóstolos, contou a parábola
de um rei que convidou seus servos para um banquete, sem marcar a data. Os
servos prudentes se vestiram para a ocasião e ficaram à espera à porta do palácio.
Os servos displicentes continuaram trabalhando e tiveram que ir ao banquete com
as roupas sujas. O rei se alegrou com os prudentes, mas se zangou com os servos
descuidados. Shabbath 153a, Moed I, The Babylonian Talmud, (London: Soncino
Presa, 1938), p. 781.
alegoricamente, de inúmeras maneiras, desde a igreja primitiva até
aos nossos dias. Em tais interpretações, Jesus é o noivo e as dez
virgens, a igreja. A igreja se constitui de bons e maus, os eleitos e os
rejeitados, os sábios e os displicentes. As lâmpadas que eles
carregam são as boas obras, porque os cristãos são exortados a
deixarem suas obras brilhar diante dos homens. O óleo é o Espírito
Santo, pois quanto Samuel ungiu Davi com óleo, o Espírito Santo
desceu sobre ele. Os mercadores de óleo são Moisés e os profetas. E
o alarme: “Eis o noivo!” É o chamado da trombeta de Deus, quando
da volta de Cristo.

Este tipo de interpretação leva à confusão e, freqüentemente,


termina em absurdos. Alguns intérpretes entendem que o óleo
significa alegria ou amor, enquanto outros o vêem como boas obras
ou como a ajuda prestada aos necessitados. Outros, ainda,
consideram o óleo como sendo a palavra de ensino247. Além disso, a
falta de caridade na atitude das virgens prudentes, em relação às
cinco virgens em apuros, poderia ser questionada. A resposta
negativa — “Não vos conheço” — exigiria, também, uma avaliação
crítica. Interpretações alegóricas e o questionamento detalhado de
partes da parábola, no entanto, vão contra o espírito do ensino de
Jesus248. Na parábola das dez virgens, o intérprete não deve perder de
vista a floresta por causa das proverbiais árvores. Deve buscar o
sentido principal da parábola.

Quando o profeta Natã procurou o rei Davi e lhe contou a


história de um homem rico que tomou a cordeirinha que pertencia a
um homem pobre, Davi reagiu imediatamente e quis punir a principal
figura da história — o rico. Então, Natã dirigiu-se a Davi, e disse: “Tu
és o homem” (2 Sm 12.1-10). Natã transmitiu a mensagem principal
da parábola com grande eficiência, pois provocou uma resposta
imediata de Davi. Se, por outro lado, a parábola for interpretada
alegoricamente, perde seu impacto. Então o homem rico é Davi e o
pobre é Urias; a cordeirinha se transforma em Bate-Seba, mas o
viajante em visita, de certo modo, não cabe na alegoria. Resumindo,
interpretar alegoricamente os detalhes de uma parábola desvia a
história de sua direção e, muitas vezes, resulta em disparates.

A mensagem central da parábola é dirigida aos seguidores de


Jesus. Os que são prudentes e estão constantemente buscando
cumprir a vontade de Deus são os que fervorosamente oram:
“Maranata”, “Vem, Senhor Jesus”. Mas os displicentes parecem não
prestar atenção à volta iminente do Senhor. A parábola é dirigida a
247
Tomás de Aquino reuniu numerosos exemplos provindos de obras dos pais da
igreja. Commentary on the Four Gospels, 1, ST. Matthew, (Oxford: p. 1842), pp. 844-
50.
248
Jeremias, em Parables, p. 51, escreve que “Mateus viu na parábola uma alegoria
a Parousia de Cristo”. Entretanto, como Michaelis, em Gleichnisse, p. 94, observa
corretamente: a parábola tem sido sempre uma parábola sobre a volta de Cristo.
Não há razão para considerá-la uma alegoria.
eles para suscitar de suas bocas as palavras: Quão tolo se pode ser!

A parábola das dez virgens deve ser vista no amplo contexto


dos ensinamentos de Jesus a respeito de sua volta. A conclusão:
“Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora” (Mt 25.13) é uma
repetição dos versículos precedentes: “Mas a respeito daquele dia e
hora ninguém sabe” (Mt 24.36), e, “Portanto, vigiai, porque não
sabeis em que dia vem o vosso Senhor” (Mt 24.42). É Jesus quem
profere seu familiar: “Em verdade vos digo” (Mt 25.12), indicando
assim que fala a respeito de sua própria volta. São palavras de Jesus,
não de um noivo adolescente. Isto é, por meio da parábola, Jesus
ensina claramente a seus seguidores que devem estar preparados
para o sete retomo. Os que não estiverem preparados serão
excluídos, para sempre, do reino, quando Jesus voltar. Esses são os
que ouvirão Jesus dizer: “Em verdade vos digo que não vos conheço”.
São os insensatos que não têm lugar, em seu estilo de vida249, para os
pensamentos a respeito da volta de Cristo. Para eles, o dia do Senhor
virá inesperadamente, e estarão completamente despreparados250.
Então será tarde demais para qualquer mudança.

No contexto em que Jesus contou esta parábola, o tema da volta


(vinda) do senhor (noivo) predomina. O senhor do servo, a quem foi
dada autoridade, volta no tempo apropriado; o noivo vem à meia-
noite; e na parábola dos talentos, o senhor volta depois de longo
tempo (Mt 25.19). Dentro desta composição, a parábola das dez
virgens adquire sua verdadeira dimensão.

Na parábola do servo investido de autoridade, ele é caracterizado


como fiel e prudente; na parábola seguinte, cinco virgens são
descritas como prudentes; e na parábola dos talentos, dois dos servos
são chamados de bons e fiéis. Sem dúvida, pois, a primeira parábola
ensina fidelidade e sabedoria; a segunda sabedoria; e a terceira
fidelidade251.

249
Schippers, Gelijkenissen, p. 114.
250
R. A. Batey, New Testament Nuptial Imagery, (Leiden: Brill, 1971), p. 47.
251
Lenski, St. Matthew’s Gospel, p. 961.
22. Os Talentos

Mateus 25.14-30 “Pois será como um homem que, ausentando-se do


país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu
cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua
própria capacidade; e, então, partiu. O que recebera cinco talentos
saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco. Do
mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois. Mas o que
recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu
senhor. Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e
ajustou contas com eles. Então, aproximando-se o que recebera cinco
talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco
talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o
senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o
muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. E, aproximando-se
também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, dois talentos me
confiaste; aqui tens outros dois que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito
bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei;
entra no gozo do teu senhor. Chegando, por fim, o que recebera um
talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas
onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste, receoso, escondi
na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondeu-lhe, porém, o
senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e
ajunto onde não espalhei? Cumpria, portanto, que entregasses o meu
dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é
meu. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez. Porque a todo o
que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até
o que tem lhe será tirado. E o servo inútil, lançai-o para fora, nas
trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes.

A parábola dos talentos ensina que os servos do Senhor devem


ser fiéis, administrando pronta e eficientemente o que lhes foi
confiado, até ao dia do ajuste de contas. Como se espera que as
noivas aguardem a chegada do noivo, assim também é esperado que
os servos aguardem a volta de seu senhor. Embora a parábola das
virgens não mencione nada a respeito de algum trabalho feito
durante sua vigília noturna, a parábola dos talentos ensina que os
servos devem se ocupar durante a ausência de seu senhor252. As duas
parábolas mostram que tanto as mulheres como os homens devem
estar alerta enquanto esperam a volta do Senhor.

De acordo com Mateus, Jesus dirigiu-se aos seus discípulos, ao


falar sobre o final dos tempos (Capítulo 24), e prosseguiu com
algumas parábolas relacionadas com a sua volta. Tudo isso aconteceu
dois ou três dias antes da celebração da Páscoa (Mt 26.2). Por sua
vez, Lucas registra no capítulo 19.12-27, que Jesus ensinou a parábola
das dez minas depois de ter deixado Jericó, e ao se aproximar de
Jerusalém, pouco antes ou no próprio Domingo de Ramos. Essa
parábola se assemelha à dos talentos, embora as duas não sejam
idênticas253. Mas com base na estrutura e no assentamento histórico
dado a elas pelos evangelistas, além da própria finalidade das
parábolas, crê que Jesus as ensinou em duas diferentes ocasiões254.

A parábola dos talentos é a mais longa registrada no Evangelho


de Mateus. Relata de maneira pormenorizada a conversa havida entre
o senhor e seus servos. A conclusão, um tanto longa, liga-a as outras
parábolas.

O Dinheiro Confiado

A palavra talento, como a usamos hoje, se refere a um dom


natural. Assim, se uma pessoa possui talento artístico e é criativa,
geralmente é muito admirada. Mas, no Novo Testamento, talento se
refere a uma moeda de uso corrente na época, e representa
determinado valor em dinheiro. Nesta parábola devemos pensar em

252
Plummer, St. Matthew, p. 347.
253
Muitos comentaristas pensam que Jesus, ao ensinar, usou mais que uma vez a
idéia básica, expressa nas duas parábolas, Morris, Luke, p. 273. Veja-se, também,
Geldenhuys, Luke, pp. 476-77; Plumer, St. Luke, p. 437; 1h. Zahn, Das
Evangelium des Lucas (Leipszig: A. Deichert, 1913), p. 628, nº 23; Lenski,
Matthew’s Gospel, p. 971. Outros, entre eles, Manson, Sayings, p. 313, vêem
duas versões de uma parábola original. Jeremias, Parables, p. 58, afirma que a
parábola dos talentos aparece em três versões: Mt 25.14-30; Lc 19.12-27; e no
trecho 18 do Evangelho dos Nazarenos. Na verdade, entretanto, é questionável
afirmar que três versões derivam de uma parábola original especialmente quando o
trecho do Evangelho Nazareno parece se basear no relato de Mateus. De fato, P.
Vielhauer conclui “que o conteúdo (do Evangelho dos Nazarenos) tinha semelhança
grosseira com o de Mateus, e conseqüentemente era (o Evangelho dos Nazarenos)
apenas uma forma secundária de Mateus”. New Testament Apocrypha, cd. E.
Hennecke e W. Schneemelcher (Philadelphia: Westminster Press, 1963), I:140.
254
J. Ellul, em “du texte au sermon (18). L.es talents. Matthieu 25/13-30”, Etudes
Théologiques et Religieuses 48 (1973): 125-38, questiona se é possível descobrir
a forma mais antiga da parábola. A mensagem da parábola é por demais complexa.
termos de um salário anual recebido por um trabalhador. As quantias
que o senhor confiou aos servos eram grandes, mas não
exageradamente vultosas.

Uma pessoa de posse reuniu seus servos e comunicou-lhes que


se ausentaria do país por um longo período de tempo. Ele tratou com
seus servos, não em base comercial, mas à maneira oriental, como
sócios em uma empreitada255. Sua reserva de caixa importava em oito
talentos, que ele confiou a seus três servos. O senhor conhecia seus
servos muito bem. Ele tinha aprendido a reconhecer a capacidade
deles e sabia que podia confiar-lhes sua riqueza. Esperava que
empregassem bem o dinheiro, de modo que, quando voltasse,
pudesse recompensá-los por incrementar seus lucros. Assim, deu ao
primeiro servo cinco talentos, ao segundo dois, e ao terceiro apenas
um talento.

Com certeza, contratos foram feitos acertando as condições


combinadas entre as partes. O capital, naturalmente, pertencia ao
senhor256. Em troca, o senhor poderia recompensar os servos
adequadamente, e eles poderiam esperar novas participações na
sociedade.

O primeiro servo investiu bem os cinco talentos, e logo havia


dobrado a quantia. Assim fez, também, o servo que recebera dois
talentos. Aquele a quem fora dado um talento, no entanto, teve medo
de investir. Talvez se sentisse diminuído pelo fato de ter sido confiada
aos outros servos uma quantia maior de dinheiro. Sabia que seu
senhor era um homem rigoroso, e que exigiria o lucro. Mas o lucro
conseguido com um talento seria pequeno em comparação com o
obtido com os cinco talentos, ou mesmo com os dois talentos do outro
servo. Então, não fez nada com o dinheiro, apenas o enterrou 257.
Assim ficaria em segurança. Por ocasião da volta de seu senhor,
poderia devolver-lhe a soma original de um talento.

Dois Servos

Depois de um longo tempo, o senhor voltou e chamou seus


servos para o acerto de contas258. O dia do ajuste chegara. Os livros
foram abertos e cada servo prestou contas do dinheiro que lhe havia
sido confiado.

255
J. D. M. Derrett, “The Parable of the Talents and Two Logia”, ZNW 56 (1965):
184-95, publicado em Law in the New Testament, pp. 17-31. Veja-se
especialmente a p. 18.
256
SB, 1:970. Dos ensinos dos rabinos fica evidente que tanto o capital como o lucro
pertenciam ao senhor dos servos. Entretanto, se o servo fosse hebreu, podia
acumular o lucro para si mesmo.
257
De acordo com os rabinos, “o dinheiro só pode ser guardado (colocando-o) na
terra”, Baba Mezia 42a, Nezikin I, The Babylonian Talmud, 250-51.
258
Mateus 18.23.
O primeiro servo apresentou não apenas os cinco talentos
recebidos, mas, também, os outros cinco que havia conseguido.
Devolveu a seu senhor o capital e o lucro, totalizando dez talentos.
Ele entregou a seu amo uma grande quantia de dinheiro, que
provava, sem dúvida, que tinha sido digno da confiança que nele fora
depositada. Sem chamar atenção para si mesmo, com simplicidade,
fez seu senhor notar os cinco talentos adicionais259.

A resposta do senhor foi equivalente à fidelidade do servo. Foi


generoso ao exaltá-lo e recompensá-lo. Primeiro exclamou: “Muito
bem”, elogiando o excelente desempenho do servo. A seguir,
chamou-o de servo “bom e fiel”. E, em terceiro, o colocou como
responsável por muitas coisas. Ainda, em quarto lugar, convidou-o a
se assentar à sua mesa e a celebrar com ele o resultado obtido 260.
Sentar-se à mesa com o senhor implica, obviamente, em igualdade.

O segundo servo apresentou-se diante do seu senhor com os


dois talentos, bem como com os dois a mais que ganhara no
investimento que fizera com o dinheiro. Também este servo não
procurou chamar a atenção para si mesmo, mas para os talentos que
conseguira. O senhor não foi menos generoso com o segundo servo
do que fora com o primeiro. Da mesma maneira, as recompensas
foram equivalentes à fidelidade demonstrada. O senhor provou ser
muito generoso.

Um Servo

Quando o terceiro servo se apresentou para prestar contas, a


cena mudou. Em vez de devolver o dinheiro que lhe fora confiado,
como tinham feito os dois primeiros, o servo começou a fazer um
pequeno discurso. Não louvou o senhor pela generosidade
demonstrada. Antes, descreveu seu senhor como um homem
rigoroso, que ceifava onde não havia semeado, e que recolhia onde
não havia espalhado a semente. Porque teve medo de arriscar, tinha
cavado um buraco na terra e enterrado ali o dinheiro. Parecia dizer a
seu senhor: “Porque o senhor teve tão pouca confiança em mim,
entregando-me apenas um talento? O que eu poderia realmente fazer
com ele, levando-se em conta que, se tivesse algum lucro, eu pouco
veria dele? Por desforra decidi nada fazer com o dinheiro261”.

Seu discurso foi caracterizado pela contradição. Ele falhou não


259
À luz de Lv 26.1-13 e Dt 28.1-14, os judeus sabiam que Deus concede
recompensa à obediência fiel. Por causa dessas bênçãos, o judeu obediente estaria,
econômica e politicamente, sempre em posição elevada.
260
A expressão “entra no gozo” do senhor ê equivalente a “entra no reino” ou
“entra na vida”. J. Schneider, TDNT, 11:677. A felicidade ou a alegria fazem pensar
em festa, Jeremias, Parables, p. 60, n~ 42; e pode significar um banquete, Smith,
Parables, p. 166; G. Dalman, The Words of Jesus (Edinburgh: 1. & 1. Clark, 1902), p.
117.
261
Derrett, Law in The New Testament, p. 26.
entendendo a bondade do senhor, mas vendo-o segundo sua própria
natureza invejosa e egoísta. Ele se sentiu diminuído, embora
afirmasse que temera fazer qualquer investimento com o dinheiro. Ele
não usou o talento de modo lucrativo, mas parecia esperar palavras
elogiosas por apenas tê-lo guardado em segurança262. Queria que
entendessem que não perdera nada do dinheiro de seu senhor.
Explicitamente, disse que o talento pertencia ao seu senhor. Ele o
conservara em segurança.

Por que o servo não guardou o dinheiro no banco, onde renderia


juros? Provavelmente não confiava nos banqueiros inescrupulosos
que podiam alterar ou invalidar o combinado263. Talvez, o servo
estivesse motivado por um desejo de vingança contra o senhor e, por
isso, tivesse decidido não depositar o dinheiro num banco. Embora o
investimento envolvesse algum risco, ele sabia que o senhor, ao
voltar, poderia recuperar o talento, com lucro264. Ao enterrar o talento
privaria o senhor dos juros acumulados. Assim, quando seu senhor
voltasse, o servo poderia devolver-lhe o único talento.

O Senhor

Quando o senhor entregou a soma de oito talentos aos seus três


servos, ele mesmo se tornou dependente da honestidade e da
lealdade dos servos. Se eles perdessem o dinheiro em transações
comerciais, seria um homem arruinado. Compreensivelmente,
pareceu bastante satisfeito quando o primeiro e o segundo servos
mostraram haver dobrado a quantia confiada a eles. Ele os louvou
pela diligência e os recompensou generosamente.

A chegada do terceiro servo com o único talento deixou claro ao


senhor que ele havia julgado mal o caráter de seu servo, que tinha se
equivocado ao depositar confiança nele, e que em vez de
recompensá-lo tinha que puni-lo.

A resposta do senhor à fraca desculpa do servo para sua


indolência foi o oposto da sua resposta aos outros dois servos.
Primeiro palavras de louvor não podiam ser pronunciadas. Segundo, o
senhor chamou o servo de mau e negligente. Terceiro, criticou-o pela
preguiça e falta de lealdade. E quarto, mandou que retirassem o
servo de sua presença, para sempre.

O servo foi julgado por suas próprias palavras. Sabia que seu
senhor esperava que seus servos se esforçassem ao máximo. De fato,
262
Michelis, Gleichnisse, p. 1110.
263
Daniel-Rops, em Palestine, p. 253, cita que os rabinos tentavam estabelecer
regras para o procedimento nos negócios, mas que, nem sempre, essas eram
observadas. Embora o empréstimo com juros fosse proibido pela lei de Moisés, os
rabinos conseguiram burla-la fazendo uma distinção entre empréstimo com juros e
usura. A usura era condenada.
264
Bauer, et al., Lexicon, p. 443.
o senhor era um homem que queria colher onde não havia semeado e
que agarrava a oportunidade quando esta se apresentava. Por estas
atitudes, se tornou um homem duro aos olhos do servo indolente.

“Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez”, disse o


senhor. Mesmo tendo afirmado explicitamente que o talento
pertencia ao senhor, o que o servo preguiçoso disse pôs fim à relação
senhor-servo265. A sociedade com os outros dois servos continuou,
enquanto o terceiro sabia que não era mais um dos sócios. Agora era
olhado como um devedor que tinha que pagar juros sobre o dinheiro
que tivera nas mãos. Se tivesse entregado o dinheiro aos banqueiros,
o senhor o teria exigido com juros. O senhor, então, voltando-se para
o servo, procurou recuperar o que, de direito, lhe pertencia, isto é, os
lucros esperados. “Ao que não tem, até o que tem lhe será tirado 266”.
Assim, todas as propriedades do servo lhe foram tomadas. O servo
era inútil para o seu senhor. Foi lançado fora, nas trevas (de acordo
com as palavras familiares de Jesus)267, onde “haverá choro e ranger
de dentes”.

O Significado

A parábola dos talentos se insere no conjunto de ensinamentos


de Jesus a respeito de sua volta. As damas de honra esperavam o
noivo; os servos que receberam dinheiro de seu amo, trabalharam. A
parábola ensina que, durante a ausência de Jesus, espera-se que seus
seguidores trabalhem diligentemente com os dons a eles confiados,
pois serão considerados responsáveis por eles, (na ocasião) de sua
volta. Por causa de pronunciamentos tais como “entra no gozo do teu
senhor” e “o servo inútil lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá
choro e ranger de dentes”, Jesus deixa entender que estas não são
apenas as palavras do senhor. São suas próprias palavras referindo-
se ao dia do juízo.

Quando os discípulos primeiro ouviram a parábola, podem ter


pensado que ela se aplicasse não a eles, mas aos seus
contemporâneos. Aos judeus tinha sido confiada a verdadeira Palavra
de Deus, como Paulo afirmou, anos mais tarde 268. Eles podiam ver o
paralelo do relacionamento do senhor com seus servos e de Deus
com Israel. Deus dera ao povo judeu a sua Palavra e esperava que
eles tornassem sua revelação conhecida em todos os lugares. Mas,
nos dias de Jesus, um judeu piedoso podia observar a Lei de Deus cm
seus pormenores e, ainda assim, negligenciar ao repartir as riquezas

265
Derrett, Law in the New Testament, p. 28.
266
Mt 25.29, exceto por pequenas variações, é idêntico a Mt 13.12 (e os paralelos,
Mc 4.25; Lc 8.18). Também a conclusão da parábola do servo investido de
autoridade tem enunciado semelhante, Lc 12.48. Veja-se, também, Lc 19.26.
267
Mt 8.12; 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; e Lc 13.28.
268
Rm 3.2. Em sua Epístola Pastoral a Timóteo, Paulo o exorta a guardar o que lhe
fora confiado. 1 Tm 6.20; 2 Tm 1.14.
da revelação de Deus. Os discípulos de Jesus talvez tenham visto os
fariseus defensores da lei e os mestres da lei personificados no servo
que enterrou o único talento que seu mestre lhe havia dado 269. Aos
líderes religiosos de Israel tinha sido confiado um depósito sagrado:
muitos deles falharam, no entanto, deixando de usá-lo de modo
apropriado. Eles se sentiam satisfeitos de poder devolvê-lo a Deus,
dizendo: “Temos guardado a Lei”. Guardaram para si mesmos o
depósito. Fazendo isso falharam, pois não o puseram para render.
Mas Deus, que lhes dera a guarda sagrada de sua revelação, um dia
os chamaria para o ajuste de contas.

A parábola dos talentos foi primeiramente endereçada aos


discípulos de Jesus. Eles eram os únicos a quem o evangelho tinha
sido confiado; a eles fora dito que pregassem o arrependimento e o
perdão, em nome de Cristo, a todas as nações, começando por
Jerusalém (Lc 24.47). Mas, o ensinamento da parábola não se limitava
aos discípulos. O autor da Epístola aos Hebreus advertiu
explicitamente os cristãos de seus dias, ao perguntar: “como
escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hb 2.3).
E, através dos séculos, a parábola dos talentos tem falado, e continua
a falar, a todos os cristãos. Eles devem ser o canal por onde a
mensagem da Palavra de Deus flui para o mundo que os cerca.

Conclusão

O servo a quem foi confiado um único talento guardou o


depósito em segurança, em um lugar escondido. Temeu investi-lo,
pois sabia que seu senhor exigiria seu talento, ao voltar. O receio,
portanto, sobrepujou o amor, a confiança e a fé270. O medo é o oposto
da confiança.

O cristão que trabalha com fé colherá imenso dividendo. Ele não


se preocupa consigo mesmo ou com seus próprios interesses, pois o
que quer que tenha pertence ao Senhor, e o que quer que faça o faz
pelo Senhor. Nenhum seguidor de Jesus pode jamais dizer que lhe
faltam dons para o serviço, simplesmente por não ter a estatura de
um Paulo, Lutero, Calvino ou Knox. A parábola ensina que cada um
dos servos recebeu dons: “segundo a sua própria capacidade”. Jesus
conhece a capacidade de cada cristão e espera receber frutos.

Como em várias outras parábolas, não devemos realçar e


aplicar pormenores específicos. O que importa é a mensagem central.
O ensino básico da parábola dos talentos é que cada crente é dotado
de dons diferentes, quanto a sua habilidade, e que esses dons devem
269
Dodd, Parables, p. 151; Jeremias, Parables, p. 62; Smith, Parables p. 168; E.
Kamlah, “Kntik und lnterpretation der Parabel von den anvertrauten Geldern: Matt
25,14ff.; Luke 19, 12ff.” Kerygma und Dogma 14 (1968): 28-38; J. Dupont. La
parabole des talents (Matt 25.14-30) ou des minas (Lc 19.12-27), “Revue de
Théologie et de Philosophie 19 (1969): 376-91.
270
Mänek, Frucht, p. 73.
ser postos a serviço da obra de Deus. No reino de Deus é esperado
que cada um empregue plenamente os dons que recebeu. No reino
de Deus não há lugar para zangões — apenas para as abelhas
operárias!
23. O Grande Julgamento

Mateus 25.31-46 “Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e


todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e
todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns
dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as
ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então, dirá o Rei
aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na
posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.
Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de
beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes;
enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão
os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de
comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos
forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos
enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá:
Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então, o Rei dirá também aos
que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o
fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome, e
não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo
forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes;
achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. E eles lhe
perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede,
forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? Então, lhes
responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de
fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. E
irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna”.

Estritamente falando, a passagem a respeito do juízo final é


muito mais uma profecia que uma parábola. Apenas a parte que fala
das ovelhas e dos cabritos pode ser considerada uma parábola. E
essa breve comparação serve perfeitamente ao propósito de Jesus,
quando ensina a seus discípulos a doutrina do último julgamento271.
Rapidamente, Jesus se refere a uma cena bucólica comum em seus
dias, O pastor reúne ovelhas e cabritos em um rebanho. Em áreas
onde a grama é escassa por causa da seca, os cabritos preferem
comer as folhas e os rebentos mais do que pastar272. Eles ficam no

271
Examinando a teologia de Mateus, 6. Gray, cm “The Judgment of the Gentiles in
Matthes’s Theology”, Scripture, Tradition and Interpretation, Festschrift
honoring E. F. Harrison (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 199-215, conclui que o
julgamento dos gentios não pode decididamente ser o julgamento final de todos os
homens”, p. 213. J. R. Michels, “Apostolic Hardships and Righteous Gentiles: A study
of Matthew 25.31-46w, JBL 84 (1965); 27-38; R. C. Oudersluys, ‘The Parable of lhe
Sheep and Goats (Matthew 25.3146): Eschatology and Mission, Then and Now”,
RefR 26 (1973): 151-61. Permanece o fato, no entanto, que a parábola como um
todo diz respeito ao último julgamento, e o último julgamento inclui todos os
homens e é final.
272
Cansdale, Animais of Bible Lands, p. 44.
mesmo rebanho com as ovelhas, mas nem os cabritos nem as
ovelhas se misturam. Ao entardecer, as ovelhas atendem ao chamado
do pastor, mas os cabritos, muitas vezes, o ignoram. Quando cai à
noite, as ovelhas preferem ficar ao ar livre, ao contrário dos cabritos,
que não suportam o frio e precisam se abrigar273.

O pastor põe as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Ele


não separa os machos das fêmeas, e, sim, as ovelhas dos cabritos.
Simbolicamente, coloca as ovelhas à sua direita e os cabritos de seu
lado esquerdo. As ovelhas valem mais que os cabritos274, e sua lã
branca, que não se confunde com a pele malhada dos cabritos, se
destaca como símbolo de justiça275. O bode, há muito tempo, vem
sendo associado com o mal. O Velho Testamento retrata o bode como
o portador do pecado, que é enviado para o deserto (Lv 16.20-22).
Mesmo nós, em nossa própria linguagem, usamos a passagem
registrada em Levítico. Além disso, o lado direito significa sempre o
que é bom, porém o esquerdo pode se referir a algo sinistro, sombrio,
mau e vil.

Todas as nações do mundo são comparadas a ovelhas e


cabritos que são separados pelo pastor, no fim do dia. As nações
serão reunidas diante do Filho do Homem sentado em seu trono na
glória celestial. Ao comando divino, os anjos se adiantarão e reunirão
os eleitos dos quatro ventos e os apresentarão diante do trono do
juízo (Mt 13.41,42; 24.31; 2 Ts 1.7,8; Ap 14.17-20). Todos os povos
estarão diante do Juiz. Tanto os bons, quanto os maus, os ímpios
como os justos. Ninguém será excluído. O Juiz separará uns dos
outros, como o pastor divide seu rebanho de ovelhas e cabritos
depois de tê-los apascentado durante o dia.

O Lado Direito

O tema da separação e do juízo se desenvolve através de todo o


Evangelho de Mateus. O trigo é ajuntado no celeiro, mas a palha é
queimada em fogo que não se extingue (Mt 3.12); o joio é separado
do trigo e atado em feixes para ser queimado, enquanto o trigo é
recolhido no celeiro (Mt 13.30). No final dos tempos, os anjos
separarão os justos dos maus, e os ímpios serão lançados na fornalha
acesa (Mt 13.49,50). As cinco virgens néscias encontram a porta
fechada e ouvem a voz do noivo dizer: “Não vos conheço” (Mt 25.12).
O servo negligente, que enterrou seu único talento, é lançado fora, na
escuridão (Mt 25.30). Na parábola das ovelhas e dos cabritos, o
princípio da separação e do julgamento é claramente aplicado.

O Filho do homem, como Jesus se refere a si mesmo, vem em


sua glória e se assenta em seu trono celestial, cercado por seus anjos.

273
Armstrong, Parables, p. 191; Jeremias, Parables, p. 206.
274
Dalman, Arbeit und Sïtte, VI: 217.
275
Jeremias, Parables, p. 206; Mánek, Frucht, p. 76.
Passagens das Escrituras, no Velho Testamento, reiteram esta
verdade que, sem dúvida, aponta para o último julgamento, como um
julgamento universal276. Na parábola das ovelhas e dos cabritos, Jesus
aceita todos aqueles trazidos diante dele, que foram eleitos desde a
eternidade. São aqueles que ouvem o Rei dizer: “Vinde, benditos de
meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a
fundação do mundo”. Eles são salvos, portanto, porque Deus, o Pai,
os tinha abençoado e lhes diz que tomem posse do reino que já antes
lhes havia sido preparado277. A salvação dos justos não tem raízes em
suas boas obras, senão na vontade de Deus, o Pai. As boas obras, que
os justos praticam, não são a raiz, mas, sim, o fruto da graça278. As
boas obras não são anuladas pela graça eletiva de Deus; são
esperadas de seus filhos benditos como uma efusão natural de
obediência e amor.

De modo interessante, sem explicação, o evangelista muda da


imagem do Filho do homem para a do Rei. Por que Mateus usa estes
dois títulos? Certamente, a identificação de Jesus, como o Filho do
homem, com a raça humana, é evidente por si mesma. Mas, a
transição do Filho do homem para o Rei se torna significativa à luz da
profecia de Daniel, onde a pessoa do Filho do homem vem com as
nuvens do céu. “Foi-lhe dado o domínio, a glória e o reino, para que
os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu
domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será
destruído” (Dn 7.13,14). O Filho do homem, incontestavelmente, é
Rei, e no dia do juízo fala como juiz soberano279.

As obras dos justos são atos de amor e misericórdia não


intencionais realizados para o próprio Cristo. Por seis vezes Jesus, ao
falar com os justos, usa o pronome da primeira pessoa singular — eu
—, contrapondo-a a vós que se refere a outros.

(Eu) tive fome e me destes de comer;


(Eu) tive sede e me destes de beber;
(Eu) era forasteiro e me hospedastes;
(Eu) estava nu e me vestistes;
(Eu estava) enfermo e me visitastes;
(Eu estava) preso e fostes ver-me280.

276
Zc 14.5; Mt 16.27; 19.28; 2 Ts 1.7; Jd 14,15; Ap 3.21; 20.11,12. No trecho
chamado “Parábolas”, no Livro de Enoque 62.5, o Ímpio “vê o Filho do homem
sentado no trono de sua glória”. Ele, que é o Messias, executa todos os pecadores
pela palavra de sua boca. Charles, Apocrypha and Pseudepigrapha, 2:228.
277
O tempo do verbo em “benditos” (=eulogemenoi) e em “preparados”
(=hetoimasmenen) indica ação que, praticada no passado, tem significado
permanente para o presente e o futuro.
278
Hendriksen, Matthew, p. 888.
279
Plummer, Si. Matthew, p. 350; Mánek, Frucht, p. 75; Manson, Sayings, p. 249.
280
No Testaments of the Twelve Patriarchs, Joseph 1.5,6, encontramos tênue eco
dessa passagem, embora reconhecidamente o pensamento divirja em muito do de
Mateus.
Em todos os seus atos, os justos têm demonstrado
responsabilidade humana e genuíno interesse. Provaram ser cidadãos
dignos do reino dos céus. No dia do juízo, receberão o privilégio de
tomar posse do reino. Em suas atividades diárias mostraram
fidelidade e diligência. No dia do julgamento, receberão sua
recompensa. Nas pequenas coisas da vida, os justos demonstraram
seu amor e lealdade. No último dia, serão honrados pelo próprio
Deus.

As pessoas que permanecem à direita de Jesus, o Rei, ouvem-no


dizer que o alimentaram quando estava faminto, e lhe deram de
beber quando tinha sede; e foram os únicos que o convidaram a
entrar, o vestiram, cuidaram dele, e o visitaram. Eles se preocuparam
com as pessoas com as quais Cristo se identificou. Mas, quem são
estas pessoas que se tornaram recipientes do amor e da bondade dos
justos? Esta é a questão que, surpreendidos, propõem a Jesus:
“Senhor, quando foi que te vimos com fome?” E a resposta do Rei é:
“Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Mas, quem são esses irmãos
de Cristo281?

No Novo Testamento, o próprio Cristo se identifica e é


identificado com seus seguidores282. A mais marcante ilustração do
laço que há entre Cristo e seus seguidores é o encontro de Paulo com
Jesus, na estrada de Damasco. “Por que me persegues?” — perguntou
Jesus. Paulo, de fato, estava perseguindo seus seguidores 283. Jesus é
um com os seus seguidores, pois cada cristão que crê é irmão ou irmã
de Cristo. Por isso, perseguindo os crentes, Paulo perseguia a Jesus284.

No Evangelho de Mateus, a expressão “meus pequeninos” se


refere aos discípulos de Jesus. Quando os doze discípulos são
enviados dois a dois, Jesus diz: “E quem der a beber ainda que seja

‘Eu fui vendido como escravo, e o Senhor me livrou; Fui levado cativo, e sua forte
mão me socorreu.
Fui cercado pela fome, e o Senhor mesmo me alimentou. Estava só, e Deus me
confortou;
Estava enfermo, e o Senhor me visitou;
Estava na prisão, e meu Deus foi benigno para comigo.” Charles, Apocrypha, 2:346.
281
Para um exame amplo, veja-se G. E. Ladd, “The Parable of lhe Sheep and the
Goats in Recent Interpretation”, New Dimensions in New Testament Study, ed.
R. N. Longenecker e M. C. Tenney (Grand Rapids: Zondervan, 1974), pp. 19 1-99.
282
Mt 10.40,42; Mc 13.13; Jo 15.5,18,20; 17.10,23,26; At 9.4; 22.7; 26.14; 1 Co
12.27; Gl 2.20; 6.17; Hb 2.17.
283
J. C. Ingelaire, “La ‘parabole’ du jugement dernier (Matthieu 25/31-46), “Revue
d’Histoire et de Philosophie Religieuses 50 (1970): 52.
284
H. E. W. Turner, “The Parable of the Sheep and the Goats (Matthew 25.3146)”,
ExpT (1966); 245, interpreta At 9.4, dizendo: “Com certeza, é um misticismo, mas
um misticismo de auto-identificação mais que de unificação’. Veja-se, também, C. L.
Mitton, “Present Justification and Final Judgment — A Discussion of the Parable of
the Sheep and the Goats.” ExpT 68 (1956): 46- 50.
um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu
discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu
galardão” (Mt 10.42)285. Quando ele chama uma criança e a coloca no
círculo dos discípulos, exorta os doze a também se tornarem crianças.
Os pequeninos que acreditam em Jesus pertencem a ele (Mt
18.5,6,10). Do mesmo modo, em Mateus 25.40, Jesus diz: “Em
verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes”. Qualquer auxilio prestado a
algum dos seguidores de Cristo é, portanto, prestado ao próprio
Cristo. Os cristãos são altamente exaltados, pois servirão de
referência aos atos de bondade que forem praticados ou omitidos.
Eles e Cristo são um!

O seguidor de Jesus é comissionado a ser uma testemunha viva


dele. É um representante do Rei, e a ele é dada autoridade para
testificar do Senhor. Um mensageiro pertence sempre àquele que o
enviou. O que é enviado deve representar sempre aquele que o
enviou.

Os que recebem os mensageiros do Rei e os tratam bem,


providenciando alimento quando têm fome, bebida quando têm sede,
roupas que os agasalhem quando têm frio, e que os confortem
quando estão doentes ou na prisão, estão fazendo isso, de fato, ao
próprio Rei. Negar a esses mensageiros, amor e misericórdia é o
mesmo que fechar as portas àquele a quem representam (Mt 10.40).

O Lado Esquerdo

Dois textos são básicos na passagem sobre o último


julgamento: Mt 25.40,45. “Em verdade vos afirmo que sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”; e,
“Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um
destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer.” São versículos
paralelos com praticamente as mesmas palavras. A omissão de
“meus... irmãos” no v.45 pode ser devida ao estilo. O primeiro dos
textos é afirmativo e endereçado aos judeus; o segundo é dirigido aos
ímpios, em termos negativos.

Os ímpios não cometeram nenhum crime. Não mataram


ninguém; não cometeram adultério; não roubaram. Seus pecados não
são de comissão, e, sim, de omissão. O que deixaram de fazer é
enumerado no dia do juízo. A lista completa das necessidades
atendidas pelos justos é repetida, mas, agora, as flagrantes omissões
são destacadas.

285
J. A. T. Robinson, “The ‘Parable’ of the Sheep and the Goats”, NTS 2 (1956): 225-
37, também publicado em Twelve New Testament Studies (Naperville: A. R.
Allenson, 1962), pp. 76-93, chama a atenção para esta passagem, mas por razões
lingüísticas.
(Eu) tive fome, e não me destes de comer;
(Eu) tive sede, e não me destes de beber;
Sendo forasteiro, não me hospedastes;
Estando nu, não me vestistes;
Achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me.

No julgamento, como descrito na passagem, nenhuma pergunta


será feita a respeito da fé ou do arrependimento em Cristo. Apenas
perguntas sobre conduta serão propostas286. A lista de feitos pode ser
cumprida por qualquer um; não há necessidade de treino na fé cristã
para se estar qualificado.

Quando os seguidores de Cristo, em necessidade, procuraram


aqueles que permanecerão à esquerda do Rei, foram rejeitados. Aqui
se coloca, realmente, a questão do ser a favor ou contra Cristo. Não
há posição neutra em relação a Jesus: o homem precisa escolher.
Como Jesus, sucintamente, colocou: “Quem não é por mim, é contra
mim; e quem comigo não ajunta, espalha” (Mt 12.30). Se um homem
recusa os apelos do evangelho e rejeita o seguidor de Jesus, ele
rejeita o Cristo e escolhe ficar do lado do inimigo287.

Estão incluídas aí as pessoas que nunca conheceram a Jesus?


Eles serão julgados como todos os outros que no dia do juízo
permanecerão diante do Filho do homem. O apóstolo Paulo referiu-se
a esta questão, quando escreveu sobre o julgamento justo de Deus:
“Assim, pois, todos os que pecaram sem lei, também sem lei
perecerão” (Rm 2.12). Apenas aqueles que obedecem à lei de Deus
são declarados justos288.

Por se recusarem a socorrer os seguidores de Cristo, os ímpios


se colocam fora da esfera das bênçãos de Deus. Estão sob maldição.
Ouvem as terríveis palavras: “Apartai-vos de mim, malditos, para o
fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. São condenados e
enviados para junto de Satanás e de seu séqüito289. Os ímpios são
separados de Cristo para sempre; e são enviados para um lugar onde
passarão a eternidade com Satanás e os seus. E o lugar que as
Escrituras descrevem como o inferno290.

No tribunal, aqueles que estiverem à esquerda do juiz se


surpreenderão e questionarão o veredicto: “Senhor, quando foi que te
286
Plummer, St. Matthew, p. 350.
287
Manson, Sayins, p. 251
288
“Há, portanto, uma correspondência exala entre o caráter de seus pecados como
‘sem lei’ e a destruição final vinda sobre eles, também, sem lei”’, J. Murray, The
Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1959), 1:70.
289
O tempo verbal nos particípios ‘malditos” (= kateramenoi) e “preparados” (=
hetoimasmenon) como os de Mt 25.34, indica que, praticada no passado, tem
validade no presente e no futuro.
290
Por exemplo: Is 33.14; 66.24; Mt 5.22; 13.42,50; 18.8,9; Lc 16.19-31; Jd 7; Ap
19.20; 20.10,14,15; 21.8.
vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te
assistimos?” A resposta a esta pergunta é que se recusaram a ver o
Cristo quando seus seguidores chegaram até eles. Fecharam seus
olhos e endureceram seus corações, quando os seguidores de Jesus
estavam precisando de ajuda para suas necessidades mais básicas.
“Sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a
mim o deixastes de fazer”. Jesus aponta para seus seguidores, seus
irmãos. São aqueles que crêem nele e constituem a igreja. Quando
são rejeitados, Cristo é rejeitado. Eles representam Jesus.

Diante do trono do julgamento, todas as nações estão reunidas:


as nações do mundo estão diante de Jesus. Embora cada pessoa seja
julgada individualmente, as nações também estarão diante do juiz,
coletivamente. O homem é considerado responsável por sua atitude e
resposta para com Jesus, sua Palavra e seu Reino, e recebe seu
veredicto como indivíduo. Mas ele faz parte de sua comunidade e é
um cidadão de sua nação. Juntamente com seus compatriotas carrega
a responsabilidade coletiva pelas ações postas em prática e
realizadas “contra o SENHOR e contra o seu Ungido...” (Sl 2.2).
Durante o seu ministério terreno, Jesus denunciou as cidades de
Corazim, Betsaida e Cafarnaum, porque não se arrependeram apesar
dos milagres que ele ali realizara (Mt 11.20-24). No dia do juízo,
haverá menos rigor para Tiro, Sidom e Sodoma, que para as cidades
do norte da Galiléia que não responderam à mensagem de Jesus. Elas
receberão julgamento coletivo.

Implicações

A parábola das ovelhas e dos cabritos é uma introdução à


descrição do último juízo. Como o pastor separa suas ovelhas dos
cabritos, assim também Jesus separa os justos dos ímpios no dia do
juízo. Naquele dia, todas as nações do mundo permanecem diante do
Filho do homem e são julgadas com base na aceitação ou rejeição
mostradas a ele, quando seus mensageiros proclamaram o seu
chamado291. O que se deduz deste quadro é que o julgamento só pode
acontecer quando a ordem da Grande Comissão tiver sido
plenamente cumprida. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as
nações...” (Mt 28.19). Quando este comando tiver sido cumprido, o
fim está próximo. Os seguidores de Jesus devem proclamar fielmente
a mensagem do reino a todas as nações, pois quando esta tarefa
estiver cumprida, o fim virá (Mt 24.14).

Os mensageiros do evangelho de Jesus experimentam fadiga e


sofrem fome, sede, frio, doença, solidão e prisão. Paulo relata suas
experiências e fala das vezes em que passou fome e sede; esteve nu
e com frio; nas vezes em que esteve em perigo entre patrícios e entre
gentios; e como esteve, muitas vezes, nas prisões; como foi açoitado

291
L. Cope, “Matthew XXV.31-46. ‘The Sheep and the Goats’ reinterpreted”, NovT
11(1969): 43.
e enfrentou o perigo de morte (2 Co 11.23-27)292. As pessoas que o
ouviam e que cuidaram dele por ocasião de seus julgamentos e de
suas tribulações, demonstraram genuíno amor. Esses atos, como
Paulo diz aos Filipenses que lhe haviam ofertado dádivas, eram
“aroma suave, como um sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (Fp
4.18). Mas, quando Paulo foi abandonado por todos, enquanto estava
sendo julgado, o Senhor estava ao seu lado, dando-lhe força. Aqueles
que o haviam desamparado, Paulo escreveu: “Que isto não lhes seja
posto em conta” (2 Tm4.16). Ele deixou o julgamento para o Senhor.
Embora representante de Jesus, não usou da autoridade daquele que
o enviara. Jesus é o juiz, e ele dará o veredicto no dia do juízo. Paulo
pode apenas orar para que o ato de deserção não fosse imputado
àqueles que deveriam tê-lo apoiado.

A auto-identificação de Jesus com seus irmãos não inclui todos


os pobres e necessitados do mundo. Ver na passagem sobre o juízo
final uma base para o amor cristão pelos pobres, considerados
indiscriminadamente, porque o pobre representa Cristo, é acrescentar
algo ao texto. Ver o Cristo na figura rejeitada do homem na estrada
de Jericó, ou de Lázaro à soleira da casa do rico, é aceitar uma
exegese falha293. A parábola das ovelhas e dos cabritos e seu
subseqüente quadro do dia do juízo final acentua a palavra irmão (Mt
25.40). Para Mateus o termo irmão não se aplica a todos, mas apenas
àqueles que aceitam Jesus como seu Senhor e Salvador294. Em seu
Evangelho, Mateus fornece um significado para a palavra irmão295.
Para ele a palavra significa um discípulo, um seguidor de Jesus.
Portanto, a frase “meus pequeninos irmãos”, em Mt 25.40, se refere
às pessoas que acreditam em Jesus. São membros de seu corpo, a
igreja.

Naturalmente, as palavras de Jesus: “Os pobres sempre os


tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26.11; Mc
14.7; Jo 12.8), não significam que, em sua ausência, Jesus seja
representado pelos pobres. Suas palavras são uma exortação para
que os pobres sejam cuidados, como Deus ordenou aos israelitas:
“Pois nunca deixará de haver pobre na terra; por isso eu te ordeno:
Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado,
para o pobre na terra” (Dt 15.11). Paulo era cuidadoso a respeito
desta mesma injunção, que recebera novamente ao se engajar na
missão aos gentios. Após ter recebido a destra de comunhão de
Tiago, Pedro e João, ele disse: “Recomendando-nos somente que nos
lembrássemos dos pobres...” (Gl 2.10).
292
J. Mänek, “Mit wem identifiziert sich Jesus? Eine exegetische Rekontruktion ad
Matt. 25.31-46, “Chrlst and SpirIt in the New Testament, ed. B. Lindars e S. S.
Smalley (Cambridge: University Press, 1973), p. 19.
293
Alguns comentaristas vêem o Cristo oculto nos confrontado, nos povos
necessitados e desafortunados do mundo. Por exemplo, Hunter, Parables, p. 118;
Armstrong, Parables, p. 193.
294
Mänek, “Exegetische Rekonstruktion”, p. 22; Mánek, Frucht, p. 79.
295
Mt 5.47; 12.48; 18.15; 23.8; 28.10.
Ninguém pode, jamais, ignorar os pobres, porque a ordem de
Deus: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é suficientemente
clara. O cumprimento da lei é o amor, e aquele que cumpre esta lei
régia está agindo bem (Tg 2.8). Assim, os cristãos têm a obrigação
divina de mostrar amor genuíno e sincero interesse pelos
necessitados e rejeitados, não importando a raça, origem, idade,
sexo, ou religião. Qualquer um se qualifica como o próximo e reclama
amor, porém nem todos são chamados de irmão ou irmã de Cristo.
Apenas aqueles que crêem em Cristo e fazem a vontade de Deus são
irmãos e irmãs de Cristo (Mt 12.48).

Na parábola e na apresentação da cena do juízo, as seguintes


pessoas aparecem individual e coletivamente: (1) o Filho do homem,
(2 todas as nações, (3) um pastor, (4) o Rei, (5) o Pai do Rei, (6) os
justos, (7) os irmãos do Rei, (8) os ímpios. É óbvio que Deus é o Pai do
Rei; embora Deus não seja o Juiz. O Rei é o Juiz que é comparado a
um pastor que separa as ovelhas dos bodes. Além disso, o rei é
também conhecido como o Filho do homem, que é como Jesus se
denomina. Os irmãos do Rei, também, estão presentes no
julgamento. Quem são eles? Jesus diz a seus discípulos que: “quando
na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua glória,
também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de
Israel” (Mt 19.28). O privilégio de julgar com Cristo não se limita aos
doze discípulos. Os santos julgarão o mundo, escreve Paulo à
congregação de Corinto (1 Co 6.2)296: O juiz não está sozinho, porém
fala pelos seus irmãos. Ele não julga seus irmãos; porém todas as
nações se apresentam diante de seu trono e são separadas em dois
grupos: os que estarão à direita do Juiz, porque ajudaram os irmãos; e
aqueles à esquerda, porque se recusaram a ajudar.

Nesta parábola, Jesus apresenta apenas um aspecto do quadro


do último julgamento. Outras passagens das Escrituras nos revelam
cenas adicionais do que acontecerá naquele dia297. A parábola das
ovelhas e dos cabritos descreve uma divisão entre os que foram
colocados à direita e aqueles que foram colocados à esquerda. A
descrição da cena do julgamento acaba com uma referência ao
destino permanente que terão. “E irão estes para o castigo eterno,
porém os justos para a vida eterna” (Mt 25.46). A conclusão indica
que o veredicto, para ambas as partes, é final e irrevogável. Os justos
gozarão para sempre a plenitude da vida, e os ímpios receberão a
maldição da punição eterna.

296
Manson, Sayings, p. 217.
297
Por exemplo: Dn 7.9,10; Ap 20.11-15.
24. Os Dois Devedores

Lucas 7.36-50 “Convidou-o um dos fariseus para que fosse jantar com
ele. Jesus, entrando na casa do fariseu, tomou lugar à mesa. E eis que
uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na
casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com ungüento; e,
estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas
lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés
e os ungia com o ungüento. Ao ver isto, o fariseu que o convidara
disse consigo mesmo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual
é a mulher que lhe tocou, porque é pecadora. Dirigiu-se Jesus ao
fariseu e lhe disse: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. Ele respondeu:
Dize-a, Mestre. Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia
quinhentos denários, e o outro, cinqüenta. Não tendo nenhum dos
dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles, portanto, o
amará mais? Respondeu-lhe Simão: Suponho que aquele a quem mais
perdoou. Replicou-lhe: Julgaste bem. E, voltando-se para a mulher,
disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste
água para os pés; esta, porém, regou os meus pés com lágrimas e os
enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; ela, entretanto,
desde que entrei não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a
cabeça com óleo, mas esta, com bálsamo, ungiu os meus pés. Por
isso, te digo: perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela
muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama. Então,
disse à mulher: Perdoados são os teus pecados. Os que estavam com
ele à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este que até perdoa
pecados? Mas Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz”.

A parábola dos dois devedores é relativamente curta, pois se


resume em apenas três versículos (Lc 7.41-43). A circunstância
histórica é a unção de Jesus por uma mulher pecadora, na casa de
Simão, o fariseu. A parábola ensina a verdade simples, ou seja, que o
grau de gratidão expressa por alguém cuja dívida foi perdoada é
diretamente proporcional ao total do débito. Um agiota que perdoa
uma dívida considerável receberá do devedor maior reconhecimento
e gratidão que de outro cujo débito cancelado seja insignificante.
Jesus pôs em prática esta verdade, na casa de Simão, o fariseu, que
estava visivelmente embaraçado com a presença de uma mulher de
má reputação. Mas Simão recebeu uma lição.

As Circunstâncias

Talvez tenha acontecido num sábado, quando Jesus pregara


durante o culto da manhã, na sinagoga local. Porque era considerado
um privilégio convidar um pregador visitante para o jantar298, Simão, o
fariseu, convidou Jesus para ir à sua casa a fim de participar, com ele
e com outros convidados, da refeição do meio-dia do Sabá.

O anfitrião, porém, foi negligente, esquecendo-se das regras


comuns de cortesia, não beijando Jesus, nem lavando seus pés ou
ungindo com óleo perfumado sua cabeça299. Chegou-se Jesus à mesa
e, como os outros convidados, tirou as sandálias300. A maneira típica
da época, os convidados se reclinavam em divãs ao redor da mesa,
apoiando-se sobre o braço esquerdo e mantendo livre a mão direita
para se servir da comida e da bebida, e seus pés ficavam estendidos,
afastados da mesa. Se não fosse inverno a refeição acontecia no
pátio, porque os judeus gostavam de comer ao ar livre301. Durante a
refeição, chegou uma mulher, que morava naquela cidade e que era
conhecida pela sua moral duvidosa. Ela caminhou rapidamente para
perto de Jesus, pretendendo lhe oferecer um vaso de alabastro, cheio
de ungüento perfumado.

Porque conhecia Jesus, ela queria presenteá-lo com aquele


perfume tão caro. Queria expressar-lhe sua gratidão por tê-la
ajudado, provavelmente ensinando-lhe a mensagem de salvação. Mas
ela não conseguiu controlar a emoção, e, antes que percebesse, suas
lágrimas corriam e caíam sobre os pés de Jesus. Ela não tinha uma
toalha para enxugar seus pés. Então, soltou seus cabelos para com
eles secá-los. Beijou seus pés, tomou o frasco de perfume e
derramou-o sobre eles.

Do ponto de vista de Simão, aquele era um incidente muito


embaraçoso. Se a mulher tivesse comprado o perfume tão caro com o
dinheiro ganho na prostituição, o presente seria impuro. De acordo
com Dt 23.18, Deus abominava tais ganhos, que, portanto, não
podiam ser trazidos à sua casa. Presentes de pessoas sem moral
eram considerados sujos e inaceitáveis por qualquer pessoa

298
Jeremias, Parables, p. 126.
299
O costume de ungir alguém com óleo vem da antigüidade. Sl 23.5; 45.7; 104.15;
Ez 23.41; Am 6.6. Daniel-Rops, Palestine, p. 208.
300
Um servo apanhava as sandálias dos hóspedes e as guardava até ao final da
refeição. A. C. Bouquet, Everyday Life In New Testament Times (New York:
Scribner, 1954), p. 71.
301
Daniel Rops, Palestine, p. 207.
respeitável. Além disso, a mulher desatara seu cabelo, estando na
companhia de homens; agindo assim, mostrara que espécie de
mulher era. Era contra os bons costumes que uma mulher soltasse
seus cabelos em público302.

O fariseu se admirava que Jesus permitisse que tudo isso


acontecesse. Ele começou a olhar Jesus com olhos diferentes. Se
Jesus fosse um profeta303, ele refletia, saberia que esta mulher era
uma pecadora, e que seu presente era maculado pelo pecado.
Nenhum profeta que se desse ao respeito permitiria que uma mulher
de má reputação o tocasse, infamando-o. Porque a mulher não
apenas tocou seus pés — fez mais, continuou beijando-os até que,
finalmente, se retirou. Jesus não compreendia?

A Parábola

Jesus pregava o evangelho da salvação e conclamava o povo ao


arrependimento e à fé em Deus. Talvez, mais cedo, naquele dia, a
mulher tivesse ouvido a mensagem de Jesus, e, agora, respondesse
positivamente à sua palavra. Vencida pela culpa, mesmo sabendo
que Deus a perdoaria, procurou Jesus. Foi incapaz de reter a torrente
de lágrimas que explodiu, expressando tristeza pelos pecados
cometidos e alegria pela graça recebida304.

Mas Simão, o fariseu, não pôde ver que essa mulher pecadora
experimentava a alegria da regeneração. Não se lhe ocorreu que ela
poderia ter sido perdoada e que se sentisse plena de felicidade.
“Jesus jamais deveria permitir que a mulher o tocasse”, disse Simão a
si mesmo.

Jesus sabia o que Simão pensava, e de modo gentil, mas


corrigindo-o, disse-lhe que apreciara o gesto da mulher, pois ela fizera
o que seu hospedeiro deveria ter feito por seu hóspede. Mas, antes de
Jesus dizer ao fariseu o que tinha visto na mulher, propôs-lhe uma
questão, em forma de parábola. Começou a parábola dizendo a Simão
que tinha algo a lhe falar. Simão estava pronto a ouvir.

Jesus contou a pequena história de um agiota que tinha dois


devedores. Um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta.
Um denário, naqueles dias, era quanto valia o salário diário de um
trabalhador rural. Nenhum dos dois devedores, na história de Jesus,
tinha fundos para pagar ao agiota. Aconteceu, então, o inesperado. O
credor cancelou a dívida de ambos. “Qual deles, portanto, o amará

302
Derrett, Law in the New Testament, p. 268.
303
Alguns manuscritos apresentam o artigo definido antes de “profeta”. A expressão
“o profeta” se referiria, então, ao grande Profeta que Deus providenciaria (Dt
18.15).
304
Marshall, Luke, p. 309. Calvin, Institutes of the Christian Religion, III. 4.33 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1944), p. 722.
mais?” — Jesus perguntou a Simão. Simão, meio relutante,
respondeu: “Suponho que aquele a quem mais perdoou”. De repente,
percebeu que a parábola o envolvia também. Ele sabia que Jesus não
tinha terminado a história. A aplicação, inevitavelmente, se seguiria
para explicar a presença da mulher, a atitude de Jesus em relação a
ela, e o papel de Simão como anfitrião.

“Vês esta mulher?” — perguntou Jesus. Naturalmente que


Simão via a mulher, mas Jesus queria que ele a visse em uma
dimensão espiritual. Os olhos de Simão estavam cegos, pois,
enquanto a olhava apenas como pecadora, deixava de vê-la como
alguém de quem os pecados haviam sido perdoados. Sua
autojustificação bloqueava sua visão. Em sua opinião, a mulher era
apenas uma pecadora. Jesus, no entanto, não o repreendeu, nem o
censurou, mas, de maneira magistral, ofereceu-lhe uma perspectiva
espiritual do acontecido.

“Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; não mc


saudaste com um beijo, nem me ungiste a cabeça com óleo”. Mas,
disse Jesus, “esta mulher, com suas lágrimas, lavou meus pés, e por
não ter uma toalha, enxugou-os com seus cabelos. Ela demonstrou
seu respeito mais profundo por mim, beijando meus pés. Além disso,
tomou um vaso de bálsamo perfumado e ungiu-os”.

Jesus via a mulher como uma pecadora que tinha sido


perdoada. Ele não especificou seus pecados. Apenas se referiu a eles
dizendo que eram muitos. E porque seus muitos pecados lhe tinham
sido perdoados, ela muito amou305. Ela queria expressar sua gratidão
a Deus e se voltara para Jesus, que fora enviado por Deus. Ele se
tornara o vaso que recebia a gratidão da mulher306.

A Mulher

A mulher não falou nada, durante o tempo em que esteve na casa


de Simão. Mas, seu gesto falou mais alto que palavras. Ela
desmanchou-se em lágrimas por causa de seus pecados. Como o
devedor que ouviu de seu credor que não lhe devia mais nada, assim
a mulher experimentou a graça misericordiosa de Deus. Por causa
dessa graça, ela queria expressar sua gratidão oferecendo a Jesus
uma dádiva preciosa. Isto é, mostrando seu amor a Jesus, ela provou
que seus pecados já tinham sido perdoados. Não foi por ela ter
demonstrado seu amor que obteve o perdão dos pecados307, pois,
sendo assim, ela teria merecido o perdão. Com esta parábola, Jesus
305
Jeremias, Parables, p. 127, destaca que o hebraico, o aramaico e o siríaco são
línguas que não têm palavras correspondentes para “obrigado” e “agradecimento”.
O conceito se expressa por meio de palavras tais como “amor” ou “bênção”.
306
H. Drexler “Die grosze Sünderin Lucas 7.36-50”. ZNW 59 (1968): 166.
307
Católicos romanos interpretam que o texto (Lc 7.47) diz que o amor merece
perdão. A versão NAB traduz o texto: “Eu vos digo porque seus muitos pecados são
perdoados — por causa de seu grande amor”.
ensinou que o débito dos dois homens foi cancelado sem qualquer
esforço da parte deles. Do mesmo modo, a mulher, aliviada do fardo
do pecado, podia mostrar sua gratidão beijando e ungindo os pés de
Jesus.

“Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.” Queria


Jesus dizer que Simão, o fariseu, amava pouco porque os pecados,
que lhe tinham sido perdoados, eram poucos? Dificilmente.

Simão não mostrou amor ou gratidão a Jesus, além do convite


para que fosse jantar em sua casa. Ele não tinha sentido qualquer
necessidade de ser perdoado. Apesar de tudo, a comparação
permanece. Jesus não elaborou o assunto, mas, por implicação, pediu
a Simão que reconhecesse e confessasse seus pecados para, assim,
experimentar a alegria que acompanha o poder purificador da graça
de Deus.

Jesus perguntou a Simão se ele tinha visto a mulher. Pelo


contraste exemplificado na parábola, Jesus, então, insinuou que
Simão deveria olhar para sua própria vida espiritual.

Depois de ter-se dirigido a Simão, Jesus voltou-se para a mulher


e disse: “Perdoados são os teus pecados”. Deus tinha perdoado seus
pecados. Jesus confirmou, então, a certeza da mulher de que ela
recebera o perdão dos seus pecados, dizendo-lhe que tinha sido
redimida: “A tua fé te salvou; vai-te em paz”. Ela já tinha professado
sua certeza com seus atos de amor e gratidão. Pela fé, ela expressara
a Jesus sua gratidão. Seu amor era, portanto, a conseqüência e não a
causa de sua salvação308. Com a paz de Deus em seu coração, a
mulher pôde enfrentar o mundo de novo, como um ser humano
regenerado. Com as palavras “vai-te em paz”, Jesus a abençoou na
despedida.

308
Morris, Luke, p. 149.
25. O Bom Samaritano

Lucas 10.25-37 “E eis que certo homem, intérprete da Lei, se


levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que
farei para herdar a vida eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está
escrito na Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas
as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo. Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente;
faze isto e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a
Jesus: Quem é o meu próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo
homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de
salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem
muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente,
descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou
de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e,
vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o
seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E,
chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho;
e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma
hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os
entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma
coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes
três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos
salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de
misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual
modo”.

A parábola do bom samaritano se tornou parte de nossa cultura


e de nosso vocabulário. É comum encontrarmos hospitais e
instituições de caridade usando esse nome. A estrada de Jericó é
mencionada em hinos e canções, e hoje os turistas podem encontrar
a Hospedaria do Bom Samaritano a meio caminho de Jerusalém para
Jericó.

Lugar e Povo

A caminho de Jerusalém, Jesus foi inquirido por um estudioso


das Escrituras do Velho Testamento a respeito de como fazer para
herdar a vida eterna. Esse teólogo, naturalmente, não fez a pergunta
por ignorância, mas porque queria testar Jesus e ouvir sua explicação
sobre as Escrituras. Ele se dirigiu a Jesus, chamando-o de “mestre”,
reconhecendo, assim, sua autoridade em assuntos religiosos. Ele
esperava de Jesus uma resposta para uma pergunta muito comum309.

Hábil e gentilmente, o Mestre instruiu seu aluno de teologia nos


ensinamentos e implicações da Palavra. Dirigiu-lhe outra pergunta:
“que está escrito na lei?” De fato, ele perguntou: “Como resumes a
lei, quando adoras na sinagoga?” O teólogo respondeu citando os dois
mandamentos ligados pela palavra amor: “Amarás o Senhor teu
Deus...” e “amaras o teu próximo como a ti mesmo310”.

Logo o doutor da lei compreendeu que Jesus tinha o controle da


situação e que sabia a resposta. Ao comentário de Jesus:
“Respondestes corretamente; faze isto, e viverás”, ele apôs a
questão: “Quem é o meu próximo?” Esse era o ponto fundamental.

O judeu vivia num círculo: o centro era ele mesmo, cercado por
seus parentes mais próximos, então pelos outros parentes, e,
finalmente, pelo círculo daqueles que proclamavam descendência
judaica e que se tinham convertido ao judaísmo. A palavra próximo
tinha um significado de reciprocidade: ele é meu irmão e eu sou
irmão dele311. Assim se fecha o círculo de egoísmo e etnocentrismo.
Suas linhas tinham sido cuidadosamente traçadas, a fim de assegurar
o bem-estar dos que se achavam dentro e negar ajuda aos que
estavam fora.

Nos dias de Jesus, havia uma marcada afluência de não-judeus


para Israel. Os samaritanos separavam os judeus do norte daqueles
do sul.

As forças de ocupação romanas estavam presentes em todos os


lugares, e viajantes helênicos visitavam Israel regularmente. Israel
funcionava como uma ponte entre as nações, e diariamente o judeu
esbarrava em estrangeiros. “Quem é o meu próximo?” — era uma
pergunta comum.

309
Mt 19.16. Consulte-se SB, 1:808, para fontes rabínicas.
310
Dt 6.5 e Lv 19.18.
311
B. Gerbardsson, The Good Samaritan — The Good Shepherd? (Lund,
Copenhagen: Gleerup, 1958), p. 7. quando um soldado judeu morreu em conflito
armado, a nação pranteia a morte de um irmão.
O estudioso de teologia não via qualquer problema com relação ao
primeiro grande mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus”. Mas o
amor a Deus não poderia se expressar separado do segundo
mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Ele via um
problema no segundo mandamento e fez a pergunta, esperando que
Jesus delineasse os limites. Mas, Jesus se recusou a responder
diretamente. Em vez disso, aplicou o princípio da regra áurea:
“Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também
a eles” (Lc 6.31), e contou a história do bom samaritano. Ele queria
que seu ouvinte lhe perguntasse: “Quem devo tratar como meu
próximo?”.

A história que Jesus contou é tão real e verdadeira que pode


muito bem se refletir a um acontecimento atual relatado por alguém
que foi assaltado e sobreviveu para contar o fato com todos os
pormenores. Embora nem a hora ou o local exatos sejam descritos, o
incidente pode muito bem ter acontecido naquele ano, não muito
longe de Jerusalém312.

A estrada de Jerusalém para Jericó tem apenas 27 quilômetros


(=17 milhas) de extensão, e ao longo desse trecho apresenta um
declive de 1200 metros (= 3300 pés). A área é praticamente deserta,
sem vegetação e marcada por penhascos de pedras calcáreas e
barrancos, em ambos os lados da estrada. Nos tempos bíblicos, a
estrada era conhecida como “o caminho (ladeira) do sangue”, muito
provavelmente por ser considerada insegura313. O trânsito de
peregrinos e caravanas era bastante pesado por ali. De tempos em
tempos, eles eram assaltados por bandidos que se escondiam atrás
das rochas314.

De acordo com a história contada por Jesus, um homem descia


a estrada de Jericó. Não nos é dito se era rico ou pobre. Ele foi
assaltado, e, porque reagiu, foi espancado. Em trapos, e quase morto,
foi abandonado à beira do caminho. Logo após o assalto, passou por
ali um sacerdote, a caminho de sua casa em Jericó 315. Ele olhou o
homem ferido, e passou de lado. Se estivesse montando um burrico,
na() teria se incomodado ao menos em saltar. Negou ao homem
qualquer ajuda ou esperança. Pouco depois, um levita fez exatamente
o mesmo: olhou-o e continuou seu caminho.

312
E. F. F. Bishop, “People on the Road to Jericho. The Good Samaritan — and the
Others” EvQ 42 (1970):2.
313
A expressão “subida de sangue” pode ser uma corruptela do hebraico “subida
de Adumim” Consulte-se Bishop, “People on the Road to Jericho”, p. 3. Veja-se,
também. Js 15.7 e 18.17 Bishop “Down from Jerusalem to Jericho” EvQ 35 (1963):
97-102.
314
Histórias sobre assaltantes ao longo da estrada de Jericó têm sido registradas
desde os tempos antigos até ao presente. Por exemplo, veja-se o comentário de
Jerônimo, Jr. 3.2.
315
Jericó era uma das cidades com alta concentração de sacerdotes, que tinham
fixado residência na “cidade das palmeiras”, SB, II:66 e 182.
Mais tarde veio um mercador, cujas roupas o identificavam
como um samaritano. Parou, e olhou para o homem, que,
desamparado jazia em seu próprio sangue. O samaritano se encheu
de pena. Se estivesse no lugar do homem ferido, estaria também
ansiando por ajuda. Aproximou-se e, cuidadosamente, ergueu o
ferido. Raspou em tiras um pedaço de linho para fazer ataduras,
aplicou azeite e vinho316, limpando e tratando as feridas do homem.

Então o samaritano, por assim dizer, caminhou a segunda


milha. Colocou o homem sobre seu próprio animal e, firmando-o,
levou-o à hospedaria mais próxima. Lá, cuidou dele o resto do dia e
durante a noite. Tendo negócios para cuidar, teve que deixar o ferido,
no dia seguinte; mas, primeiro, pagou ao hospedeiro duas moedas de
prata e lhe deu instruções para cuidar dele317. Disse também ao dono
da estalagem que se mais dinheiro fosse gasto, ele lhe pagaria,
quando voltasse de sua viagem.

Implicações

Jesus terminou a história perguntando: “Qual destes três te


parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos
salteadores?” O teólogo teve que dizer: “O que usou de misericórdia
para com ele”. Em outras palavras, o samaritano provou ser um
irmão do homem ferido. Com o conselho: “Vai, e procede tu de igual
modo”, Jesus o dispensou.

Na parábola, cinco pessoas são mencionadas (com exceção dos


ladrões). São, pela ordem: o homem assaltado e ferido, o sacerdote, o
levita, o samaritano e o dono da hospedaria. O ponto central não é
tanto o homem à beira da estrada, embora ele seja objeto de
atenção. Depois de roubado, ele foi primeiro negligenciado, mas
depois cuidado com bondade. O objeto da história não é o sacerdote,
nem o levita, ou o dono da estalagem. A figura central é o
samaritano. Ele é o autor, o agente e o principal personagem. Por isso
a parábola é chamada parábola do bom samaritano e não parábola do
homem que foi assaltado e ferido. O ferido é uma figura sem rosto,
cuja ocupação, nacionalidade, religião ou raça são ignoradas318.
316
Ap 6.6: “... e não danifiques o azeite e o vinho”. Azeite e vinho eram usados nos
primeiros socorros, nos tempos antigos. SB, 1: 428. O azeite era paliativo e o
vinho um anti-séptico.
317
As duas moedas de prata eram dois denários, quantia suficiente para pagar a
hospedagem por vários dias. Na parábola dos trabalhadores na vinha (Ml 20.1-16), o
salário diário dos trabalhadores é de um denário.
318
C. Daniel, ‘Les Esséniens et l’arrière — fond historique de la parabole du Bom
Samaritan”. NovT II(1969): 71-104, retrata a vítima como um essênio que foi
assaltado por zelotes. Os zelotes odiavam os essênios. Assim também o sacerdote e
o levita passaram de largo, porque pertenciam a diferentes ordens religiosas.
Entretanto, teria Jesus ensinado a lição apenas para condenar o ódio entre facções
religiosas rivais? Se fosse assim, ele teria sido mais explícito. E correto presumir
que o homem era judeu, porque assim entenderam aqueles que primeiro ouviram
Talvez, sem suas roupas, o homem não pudesse ser identificado pelo
sacerdote, pelo levita ou pelo samaritano. Resumindo, a identidade
do homem não importa. Ele faz apenas o papel do próximo — é só um
vulto.

Os ladrões vêm e vão. Cometem o crime e partem. É inútil,


portanto, especular se eram zelotes, se tinha alguma queixa contra o
homem — afinal de contas, o sacerdote, o levita e o samaritano não
foram atacados — ou se eram moradores das redondezas e que
viviam roubando os desventurados que por ali passavam.

O sacerdote e, presumivelmente, o levita estavam a caminho de


casa, vindos do templo, em Jerusalém. Pela lei, estavam impedidos de
tocar em um defunto319. Se transgredissem a regra, estariam criando
embaraços para si mesmos: socialmente (se tornando impuros),
financeiramente (pagando o funeral) e profissionalmente (sendo
suspensos de seus ofícios sacerdotais e levíticos)320.

Naturalmente, o homem assaltado e ferido não estava morto.


Mas, iria um sacerdote ou um levita desmontar de seu jumento,
apanhar uma vara e com ela tocar o ferido para verificar se estava
vivo, e, então, por fim, ministrar-lhe os primeiros socorros?
Dificilmente. Na história, entretanto, o homem estava vivo, e por isso
não havia desculpa convincente a ser apresentada pelos clérigos. Se
tiverem medo de cair numa emboscada, ou se tinham o coração
empedernido, ou se acreditavam estar interferindo no julgamento de
Deus, que golpeava um pecador perverso, ou se eram vaidosos
demais a respeito de sua posição de líderes religiosos para desmontar
e ajudar uma vítima desafortunada, jamais saberemos321. O fato é que
nenhum dos dois, nem o sacerdote nem o levita, mostrou
misericórdia.

O samaritano, como é descrito, enternece o coração de todos. É


a figura preferida na história. Sabe o que deve fazer e o faz bem.
Raça, religião, diferença de classes não são importantes para ele. Vê
um ser humano em dificuldades e o ajuda.

Jesus. Veja-se, também, B. Reicke, “Der harmherzige Samariter”, Verborum


Veritas, Festschrift honorig G. Stãhlin (Wuppertal; Brockhaus, 1970). p. 107.
319
Lv 21.1; Nm 19.11.
320
Derrett, “Law in the New Testament: Fresh Light on the Parable of the Good
Samaritan”, NTS 11(1964-65): 22-37, publicado em Law in the New Testament
(London: Longman and Todd, 1970), pp. 208-27).
321
Os motivos da atitude do sacerdote e do levita têm sido estudados por muitos
exegetas. Mas muitas explicações se baseiam em suposições, porque Jesus não
especificou a razão por que os clérigos se recusaram a ajudar. Omitindo-se,
deliberadamente, de explicar a razão, ele evitou que a parábola se tomasse um
ataque frontal aos religiosos daqueles dias. Em vez disso, ele criticou a falta de
misericórdia. Veja-se Oesterley, Parables, p. 162; H. Zimmerman, ‘Das Gleichnis
vom barmherzigen Samariter: Lukas 10.25-37, “Die Zeit Jesu, Festschrift honoring
H. Schlier (Freiburg, Basel, Vienna: 1970), p. 69; Jeremias, Parables, pp. 2034;
Miachelis, Gleichnisse, p. 208.
Os samaritanos, para sermos exatos, não eram um povo muito
simpático. Seu ódio pelos judeus explodia de diversas maneiras. Por
exemplo, certa vez, entre 9 e 6 A.C., tinham profanado a área do
templo para evitar que os judeus celebrassem a Páscoa. Fizeram isso
espalhando ossos humanos pelos pátios do templo322. Aos olhos dos
judeus, os samaritanos eram mestiços. Tinham-se estabelecido na
terra de Israel durante o exílio dos judeus, e sua Bíblia consistia
apenas dos cinco livros de Moisés. Tinham construído seu próprio
templo no monte Gerizim (Jo 4.20); os judeus o destruíram em 128
a.C. Por causa desse ódio profundo, os judeus não se davam com os
samaritanos323.

Ainda assim, esse viajante, reconhecido como um samaritano,


por suas roupas, seu modo de falar e suas maneiras, parou,
desmontou e ajudou com bondade o seu semelhante. Não perguntou
se o ferido era judeu, romano ou sírio. Para ele, aquela pessoa nua,
ferida, meio morta, era um irmão precisando de ajuda. Prontamente
pagou ao dono da hospedaria o suficiente para manter o homem na
estalagem por alguns dias. Deve, também, ter providenciado roupas.

O samaritano não praticou este ato de amor e caridade


esperando retorno. Ele podia ter pedido que o ferido ao se recuperar
lhe pagasse o que havia gastado. Mas, nem mesmo sabia se ele
expressaria alguma gratidão, quando soubesse quem o socorrera. O
modo de agir do samaritano representava um genuíno sacrifício de
dinheiro, posses, risco de saúde, segurança e muitas horas de
cuidado e amor324. Ele cumpriu a Regra Áurea.

A última pessoa mencionada na parábola, o dono da


hospedaria, recebe pouca atenção. Ele, possivelmente, conhecia o
samaritano de outras passagens por ali. Um relacionamento de
confiança mútua se estabelecera entre eles, o que é um testemunho
eloqüente da conduta moral do samaritano. Ele era um homem em
quem o hospedeiro podia confiar. “Cuida deste homem, e se alguma
coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar”. Sua palavra
valia ouro.

Paralelos do Velho Testamento

Embora a história possa se referir a um incidente recente, atual,


Jesus é o criador da parábola. Ao contar a parábola do bom
samaritano, ele chama a atenção de seu ouvinte versado em teologia
para, pelo menos, dois paralelos do Velho Testamento. O intérprete

322
Josephus, Antiquities 18:30.
323
15. SB 1:538. Mi 10.5; Lc 9.52,53; Jo 4.9. Nos cultos nas sinagogas judaicas, os
samaritanos eram amaldiçoados. Os judeus oravam a Deus que os excluísse da vida
futura.
324
Mänek, Frucht, p. 87.
da lei deve ter reconhecido as alusões feitas a essas conhecidas
passagens das Escrituras. Primeiro, há o relato registrado em 2 Cr
28.5-15. Fala do povo de Jerusalém e Judá, durante o reinando do rei
Acaz, em 734 A.C., que foi levado cativo para Samaria. O relato
termina com estas palavras:

“Homens foram designados nominalmente, os quais se


levantaram e tomaram os cativos e o despojo, e vestiram a
todos os que estavam nus; vestiram-nos, calçaram-nos e
lhes deram de comer e de beber, e os ungiram; a todos os
que, por fracos, não podiam andar, levaram sobre jumentos
a Jericó, cidade das palmeiras, a seus irmãos. Então voltaram
para Samaria”. (2 Cr 28.15)

Numerosas palavras-chave, naturalmente, reaparecem na


parábola do bom samaritano.

A segunda referência é o texto de Os 6.9: “Como hordas de


salteadores que espreitam alguém, assim é a companhia dos
sacerdotes, pois matam no caminho para Siquém; praticam
abominações325”.

Ensinando a parábola de modo a fazê-la soar como passagem


familiar das Escrituras, Jesus demonstra que suas palavras são uma
continuação das próprias Escrituras e uma explicação da Lei e dos
Profetas. Assim, sua hábil exposição do segundo grande
mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” revela uma
perspectiva mais profunda. Jesus se mostra como intérprete da Lei326.
Ele diz ao teólogo: “Faze isto, e viverás327”.

Aplicação

Em seu ministério terreno, Jesus torna conhecida uma dimensão


mais ampla da exigência da Lei: “Amarás o teu próximo como a ti
mesmo”. No Sermão da Montanha, o mandamento não se restringe
ao próximo, mas inclui, também, o inimigo: “Amai os vossos
inimigos”. (Mt 5.44; Lc 6.27)

Para o sacerdote e o levita descritos na parábola, a palavra


próximo se referia a um judeu que podia ser claramente identificado.
Mas alguém assaltado, espancado, nu e semimorto, simplesmente
não se qualificava como tal.

325
Mänek, Frucht, p. 88, considera a parábola em Midrash, comentário ou sermão a
respeito da Palavra de Deus, registrada em Os 6.6: “Pois misericórdia quero, e não
sacrifício...” Do mesmo modo, Derrett, em Law ln the New Testament, p. 227.
326
Derrett, Law in the New Testament, pp. 222-23, destaca que Jesus “tem um
papel semelhante ao de Moisés”.
327
As palavras de Jesus: “Faze isto, e viverás” recordam Dt 5.33; 6.24 e Lv 18.5.
Para o intérprete da lei que inquiria Jesus, a questão era como
traçar o limite. Ele queria saber se o amor tem limites. Queria se
autojustificar e se assegurar de estar cumprindo o que a Lei
ordenava.

Se a Lei pudesse ser usada como uma barreira protetora, seria


possível viver em paz dentro desse abrigo, onde tudo já estaria
interpretado e soaria familiar328. Mas, quando a Lei está em aberto —
“Amarás o teu próximo”, que inclui “Amai os vossos inimigos” —, uma
visão toda nova se destaca possibilitando um novo questionamento
dessa Lei.

Jesus não contou a história de um judeu que encontrou um


samaritano ferido, ao longo da estrada, e o ajudou, levando-o a uma
hospedaria próxima329. Tal história poderia provocar uma reação
contrária, porque o judeu seria considerado um traidor da causa
judaica. Do mesmo modo, se Jesus tivesse usado os três: o sacerdote,
o levita e o israelita, o efeito teria sido inteiramente diferente. Teria
criado um contraste entre o clero e os leigos com uma tendência
decididamente anticlerical. Mas, a apresentação do samaritano, na
conjuntura apropriada, surpreende agradavelmente o ouvinte e não o
predispõe a levantar objeções. O samaritano mostra como se deve
amar o próximo e ser como um irmão para ele.
Se o intérprete da lei tivesse quaisquer objeções teológicas,
elas desapareceram com o desenrolar da história. Jesus podia ter-se
referido ao estrangeiro que vivia entre os judeus e era tratado como
um natural do lugar330. Também, podia ter mencionado os judeus
convertidos e os que eram chamados tementes a Deus, que,
regularmente, assistiam aos serviços religiosos na sinagoga. Mas,
essas pessoas tinham como retribuir a bondade que recebiam. Além
disso, eram considerados amigos e, em alguns casos, membros da fé
judaica.

Jesus, no entanto, focaliza não o próximo — “Quem é o meu


próximo?” —, mas o único que mostrou amor e compaixão. O próximo
não é uma pessoa atraente. Na parábola ele é mostrado sujo de
sangue, nu e semimorto. Não tem condições para retribuir o amor, o
dinheiro e as roupas. Precisa de ajuda e não tem como ressarcir.
Deixar de atender esse próximo é incorrer na ira divina, pois significa
não apenas transgredir o segundo grande mandamento, mas,
também, deixar de praticar o primeiro.

A parábola do bom samaritano é atemporal. Podemos substituir


ocupações, nacionalidades e raças por equivalentes modernos, e
nada mudou desde o dia em que Jesus ensinou a parábola. Portanto,
a parábola não é uma história sobre alguém que, simplesmente,
328
Linnemann, Parables, p. 52.
329
Armstrong, Parables, p. 165.
330
Lv 19.34. Veja-se, também, Michaelis, Gleichnisse, p. 210.
praticou uma boa ação. Ela é uma denúncia contra qualquer um que
tenha erguido barreiras protetoras e construído com elas um
abrigo331.

“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” é uma ordem que


alcança além de nosso círculo de amigos e companheiros cristão. É
um chamado para que mostremos misericórdia aos desafortunados
que jazem pela estrada de Jericó que é a vida humana. É um clamor
às nações desenvolvidas para que atentem ao sofrimento e pobreza
sem fim, experimentados pelos povos subdesenvolvidos.

Desde os primeiros tempos patrísticos ao tempo atual, os


exegetas têm tentado interpretar, simbolicamente, a parábola. Há
variações numerosas e algumas até engraçadas. A interpretação de
Agostinho é clássica: o homem espancado e assaltado é Adão; os
ladrões são o demônio e seus anjos; o sacerdote e o levita são os
sacerdotes e ministros do Velho Testamento; o samaritano é Jesus; o
óleo é o conforto e o vinho a exortação ao trabalho; a hospedaria é a
igreja; as duas moedas são os mandamentos para amar a Deus e ao
próximo; e o dono da hospedaria é o apóstolo Paulo332.

É muito comum ver Jesus como o bom samaritano, que é amigo


e irmão de pessoas vindas dos variados caminhos da vida, de
qualquer nação e de todas as raças. Entretanto, ainda que o próprio
Lucas passa ter pensado assim quando registrou a parábola, ele não
nos dá a menor indicação de que Jesus pretendesse transmitir essa
mensagem. Nem o texto, nem o contexto, aceitam tal
interpretação333.

A mensagem que Jesus ensina através da parábola se resume


na expressiva exortação feita ao teólogo que provocou a história:
“Vai, e procede tu de igual modo”. Na linguagem de Tiago: “Tomai-
vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22).

331
Hunter, Parables, p. 111.
332
Agostinho, Quaestiones Evangeliorum, II, 19. Dodd, Parables, pp. 11,12.
Consulte-se Mänek, Frucht, pp. 88,89 para uma avaliação útil de modernas
interpretações. Veja-se Gerhardsson, Good Samaritan, pp. 1-31, para um estudo
elaborado de possíve1 derivados verbais; J. Daniélou, “Le Bon Samaritain”,
Mélanges Bibliques rédiges en I’honneur de A. Robert (Paris, 1956), pp. 454-
93; H. Binder, “Das Geheimnis vom barmherzigen Samariter”, TZ 15 (1959): 176-94.
333
Morris, Luke (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 191. W. Monselewski, Der
barmherzige Samariter. Eine auslegungsgeschichtliche Untersuchung zu Lukas
10.25-37 (Tübingen: Mohr-Siebeck, 1967), p. 16.
26. O Amigo Importuno

Lucas 11.5-8 “Disse-lhes ainda Jesus: Qual dentre vós, tendo um


amigo, e este for procurá-lo à meia-noite e lhe disser: Amigo,
empresta-me três pães, pois um meu amigo, chegando de viagem,
procurou-me, e eu nada tenho que lhe oferecer. E o outro lhe
responda lá de dentro, dizendo: Não me importunes; a porta já está
fechada, e os meus filhos comigo também já estão deitados. Não
posso levantar-me para tos dar; digo-vos que, se não se levantar para
dar-lhos por ser seu amigo, todavia, o fará por causa da importunação
e lhe dará tudo o de que tiver necessidade”.

Lucas registra o Pai Nosso de forma mais breve que a


encontrada no Evangelho de Mateus. Ele continua a oração não com
uma exortação aos homens para que se amem uns aos outros, mas
com uma parábola na qual Jesus ensina àquele que pede, que seja
persistente. O ensino da parábola sobre o amigo importuno é
reproduzido sucintamente na exortação do apóstolo: “Orai sem
cessar” (1 Ts 5.17). Apenas Lucas menciona a parábola do amigo que
vem à meia-noite. Em poucas e expressivas palavras, ele descreve o
quadro de um homem que não tinha pão — provavelmente usara o
último pedaço no jantar — e, então, recebe um amigo que chega de
viagem, à meia-noite334. A cidade era pequena e não era possível
obter pão, àquela hora, a menos que procurasse um vizinho de boa
vontade que lhe emprestasse alguns.

O viajante chegou à meia-noite, talvez para evitar o calor do


dia335. Cansado e com fome, procurou a hospitalidade do amigo. Mas,
pelo inconveniente da hora, pôs seu hospedeiro numa situação
embaraçosa: ou se recusava a hospedá-lo, porque não tinha pão, ou
ia procurar o vizinho para pedir alguns pães. Que situação! Se
recusasse a alimentar seu amigo viajante, faltaria às normas do bom
receber; e se fosse procurar seu vizinho, provavelmente o
incomodaria.

A história contada por Jesus talvez se baseasse em um fato real


e podia ser classificada entre aquelas que se iniciam sempre com a
pergunta: “Sabe o que aconteceu...?” Fez sorrir discretamente todos
aqueles que a ouviam porque era tão igual à própria vida. Todos
queriam saber como a história ia acabar.

As casas em Israel, especialmente nas áreas rurais, eram


pequenas consistindo de apenas um cômodo usado como sala de
jantar e dormitório336. A casa tinha uma porta que permanecia aberta
durante todo o dia. Mas, ao anoitecer, quando o sol se punha, o chefe
da família fechava a porta e fazia correr uma tranca de maneira que
se prendia nas laterais da porta, mantendo-a fechada para evitar os
intrusos337. Esteiras eram espalhadas e usadas como camas, nas
quais a família toda dormia. Em tais circunstâncias, era muito difícil
levantar no escuro e procurar algo.

O hospedeiro, desejando cumprir as normas de hospitalidade,


caminhou até à casa de seu vizinho e despertou-o, pedindo-lhe:
“Amigo, empresta-me três pães, pois um meu amigo, chegando de
viagem, procurou-me, e eu nada tenho que lhe oferecer”. Ele chamou
o vizinho de amigo, provavelmente para desencorajar qualquer
resposta zangada, embora não fosse próprio de um amigo acordar o
outro no meio da noite. A questão é saber quem merece o nome de
“amigo”. Aquele que foi prestativo com seu vizinho ou o que veio
acordá-lo pensando em seu hóspede?

334
Traduções de Lc 11.5 diferem na maneira de considerar a palavra amigo. A
versão NIV traduz: “Suponhamos que um de vós tenha um amigo e vá procurá-lo à
meia-noite...” Mas a versão NEB diz o seguinte: “Suponhamos que um de vós tenha
um amigo que vem procurá-lo no meio da noite...” O amigo é o vizinho que
empresta o pão, ou o viajante faminto? Quem é amigo de quem?
335
As viagens à noite eram comuns, nos dias de Jesus; as pessoas prudentes
viajavam à noite, como fez José com Maria e o menino Jesus (veja-se Mt 2.9,14).
336
A cozinha ficava, comumente, do lado de fora, ou sob um telheiro. Veja-se
Daniel-Rops, Palestine, p. 220.
337
Dalman, Arbeit und Sitte VII:70-72, 178-79; Armstrong, Parables, p. 80; e
Jeremias, Parables, p. 157.
Um pão, naqueles dias, não era maior que uma pedra que se
pudesse segurar com uma das mãos. Assim, Mateus, no contexto
paralelo registra: “Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura
o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra?” (Mt 7.9). Três desses pães eram
refeição suficiente para uma pessoa. A longa explicação do que pedia
emprestado era uma tentativa de descrever ao vizinho a situação
embaraçosa em que se achava e revela a esperança de que o amigo
o compreendesse. Naturalmente, o hospedeiro estava perfeitamente
ciente do problema que seu pedido causaria. Mesmo assim, ele pediu,
sabendo que era a única maneira de conseguir pão para oferecer a
seu amigo cansado e faminto.

Emprestar pão a um vizinho, cujo suprimento se esgotara, era


costume comum em Israel. Pela manhã, quando o pão fresco fosse
assado, o que fora emprestado era devolvido. O problema não era a
quantidade emprestada; era a hora.

A voz do vizinho estava longe de agradar. Numa reação bem


humana, de alguém cujo sono foi perturbado, ele respondeu: “Não me
importunes: a porta já está fechada e os meus filhos comigo também
já estão deitados. Não posso levantar-me para tos dar”. Ele mostrou
má vontade, não falta de condições para atender o pedido. Ele teria
que se levantar, acordar os filhos ao acender a lâmpada, achar o pão,
e retirar a tranca para abrir a porta. Seria muito mais fácil se o vizinho
desaparecesse na escuridão.

Mas o vizinho não lhe deu descanso nem o deixou dormir. Não
podia voltar para casa, onde seu amigo estava esperando, com as
mãos vazias. Continuou pedindo até que seu vizinho se levantou,
acendeu a lâmpada, removeu a tranca, abriu a porta e lhe entregou
os pães. O vizinho não fez isto por causa da amizade, mas por causa
da insistência daquele que estava pedindo.

A palavra insistência é a palavra-chave na conclusão da


parábola338. Ela retrata a atitude de um homem que se vê obrigado a
mostrar hospitalidade a um amigo que o procurou à meia-noite. No
contexto de sua cultura, ele sai de seus hábitos para providenciar
alimento para suprir as necessidades de seu amigo. Está disposto a
sacrificar a amizade com seu vizinho, a fim de se mostrar um bom
hospedeiro. Ele insiste. Sabe que seu pedido receberá resposta
apesar das circunstâncias adversas.

Nesta parábola, Jesus aplica claramente a regra judaica dos


338
Em todo o Novo Testamento, a palavra anaideia ocorre apenas aqui. Pode ser
traduzida como “falta de vergonha” para descrever a impertinência do homem que
acordou o vizinho. Jeremias, Parables, p. 158, e Marshall, Luke, p. 465, admitem
que a falta de vergonha pode ser atribuída, também, ao vizinho que se recusou a
atender o pedido do amigo. A palavra exprime, então, o sentido de “manter a
aparência”. O vizinho, portanto, atendeu o pedido, porque não queria trazer
vergonha para sua casa, com sua recusa.
contrastes339. E uma norma que destaca o maior ensinando o menor.
Nesse exemplo, chamando atenção para a insistência do hospedeiro,
que tem certeza de que o amigo lhe emprestará os pães, Jesus ensina
que podemos procurar Deus em oração, sabendo que ele vai nos
atender. “Digo-vos que, se não se levantar.., por ser seu amigo... o
fará por causa da importunação, e lhe dará tudo o de que tiver
necessidade. Por isso vos digo: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e
achareis; batei, e abrir-se-vos-á” (Lc 11.8,9). Se o vizinho acorda à
meia-noite e se levanta para emprestar os pães a seu amigo, muito
mais fará Deus, o Pai, respondendo à oração de seu filho, que o
procura em necessidade!

O que a parábola ensina? Não ensina que, como o vizinho


despertado do sono, Deus não gosta de ser importunado. Antes, ela
transmite a idéia de que, como o hospedeiro continuou a pedir,
sabendo que seu vizinho lhe abriria a porta e lhe daria pão, assim o
cristão deve continuar diligentemente em oração. Pela fé, ele sabe
que Deus atenderá seus pedidos, e lhe dará muito mais do que
necessita. Deus atende às orações em resposta à fé manifestada pelo
crente. Por isso, o cristão termina suas orações repetindo a palavra
amém. Nas palavras de um catecismo do século dezesseis, a respeito
do Pai Nosso:

Amém significa,
Assim será, com toda a certeza!
É muito mais certo
Que Deus ouça minha oração,
Do que eu estar realmente desejando
Aquilo pelo qual estou orando340.

339
Esta regra, chamada Kal Wa-homer (do menos importante para o mais
importante), era uma das sete regras de hermenêutica compiladas pelo Rabino
HilIel (60 A.C. a 20 DC.) H. L. Strack, Introduction to the Talinud and Midrash (New
York: Meridian Books, 1969), pp. 93-94.
340
Catecismo de Heidelbergae, questão 129.
27. O Rico Insensato

Lucas 12.13-21 “Nesse ponto, um homem que estava no meio da


multidão lhe falou: Mestre, ordena a meu irmão que reparta comigo a
herança. Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz
ou partidor entre vós? Então, lhes recomendou: Tende cuidado e
guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem
não consiste na abundância dos bens que ele possui. E lhes proferiu
ainda uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico produziu
com abundância. E arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei,
pois não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: Farei isto:
destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei
todo o meu produto e todos os meus bens. Então, direi à minha alma:
tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come,
bebe e regala-te. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a
tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que
entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus”.

“Não julgueis, para que não sejais julgados”, disse Jesus no


Sermão da Montanha. Ele estava plenamente consciente do
significado do que dizia, cercado por uma multidão. Alguém lhe pediu
que fosse juiz numa disputa de família. Dois irmãos vinham discutindo
a respeito de uma herança. O pai tinha morrido, e o irmão mais velho,
na opinião do mais novo, não tinha cumprido o que estava
especificado no testamento. Talvez a herança não tivesse sido
dividida por motivos religiosos341. Mas, o irmão mais novo fazia
objeção ao curso da ação e fez um apelo a Jesus. Dirigiu-se a ele
como “mestre”, que quer dizer “rabino342”.

Jesus, no entanto, negou-se a se envolver na disputa e a servir


de juiz e árbitro. Recusou-se a se tornar um outro Moisés, que tomou
partido em uma contenda e, como resultado, teve que deixar o
país343. Não se prestou a ser usado por alguém movido pelos próprios
interesses.

O irmão que pediu a Jesus para intervir parece ter ido, sozinho,
até Jesus. Não temos indícios de que o irmão mais velho tenha
concordado em ter uma terceira pessoa avaliando a situação. Nada é
revelado, também, a respeito dos pormenores da reclamação. O que
fica evidente é que a pessoa que se dirigiu a Jesus queria usá-lo como
advogado, juiz e árbitro. Resumindo, queria empregá-lo como se
emprega um servo. Deixou de ver Jesus como um mestre. Porque os
rabinos conheciam a Lei, e serviam duplamente como mestres e
advogados, o irmão, simplesmente, não conseguiu ver a diferença.

Por isso, depois de ter-se dirigido diretamente ao homem, Jesus


passou a ensinar à multidão uma lição espiritual, fazendo-lhes uma
recomendação geral, e contando-lhes uma parábola: “Tende cuidado
e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um
homem não consiste na abundância dos bens que ele possui”. Como
mestre Jesus advertiu o povo contra o perigo espiritual da avareza. A
avareza é idolatria344. É o culto à criatura em lugar do Criador. Jesus
foi direto à raiz do problema apresentado pelo homem. Descobriu a
origem do erro que o levou a pedir a Jesus que fosse seu advogado.
Pessoas avarentas não herdam o reino de Deus345.

As palavras de Jesus são elaboradas na primeira Epístola de


Paulo a Timóteo: “Porque nada temos trazido para o mundo nem
coisa alguma podemos levar dele; tendo sustento e com que nos

341
Sl 133.1. Josephus assinala que os essênios desistiam do direito à propriedade
privada morando juntos, como fazem os irmão de uma família. Wars 2:122.
342
Os judeus apelariam aos rabinos e fariam referência às Escrituras: Nm 27.1-7;
36.2-10; Dt 21.15-17.
343
Êx 2.14; At 7.27,35. O Evangelho de Tomé, Citação 72, apenas descreve Jesus
como um repartidor: “Um homem disse a ele: Fala com meus irmãos para que
dividam comigo os bens de meu pai. Ele disse: Homem, quem me pôs como
repartidor? Ele se voltou a seus discípulos e lhes disse: Não sou um repartidor,
sou?”
344
Cl 3.5.
345
1 Co 6.9,10. J. D. M. Derrett, “The Rich Fool: A Parable of Jesus concerning
Inheritance”. Studies in lhe New Testament (Lciden: Brili, 1978), 2:103.
vestir, estejamos contentes” (1 Tm 6.7,8). Comida, roupa e um abrigo
resumem as necessidades da vida. Qualquer coisa a mais é
abundância e deve ser repartida com os pobres.

A Parábola

A parábola do rico insensato deixa evidente que a vida, no


verdadeiro sentido da palavra, não depende de riquezas materiais. Há
alguns anos atrás, estavam muito em moda definições de felicidade:
“Ser feliz é...” Mas entre todas as definições, nenhuma mencionava
riqueza. A riqueza não traz felicidade. Antes, é, muitas vezes, causa
de ruína e destruição.

Na parábola de Jesus, um fazendeiro muito rico teve um verão


excepcional, porque na ocasião da ceifa tivera uma colheita
abundante. O fazendeiro arrazoava consigo mesmo o que fazer com a
colheita e onde guardá-la. Ele resolveu: “Farei isto: Destruirei os meus
celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto
e todos os meus bens.” Falando consigo mesmo e usando os
pronomes eu e meu repetidamente, ele revela seu extremo
egoísmo346. Deus tinha prometido encher plenamente os celeiros do
homem se este o honrasse com os primeiros frutos de tudo que
produzisse347. Esse fazendeiro não levava em consideração a
promessa de Deus. De fato, mostrou seu desrespeito derrubando seus
celeiros e construindo Outros maiores348. Queria ter o controle
completo da situação. Não se sentia seguro dependendo de Deus.
Mais que isso, jamais passou pela sua cabeça a idéia de ajudar os
pobres. Ao contrário, pensou em si mesmo, em seu próprio prazer e
segurança. Manifestou extrema desconsideração para com o resumo
básico da lei de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento; e amarás o
teu próximo como a ti mesmo”. Deus e o próximo não existiam para
ele. Pensava apenas nele mesmo.

“Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos bens para


muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te”. O homem rico
mostrava apenas auto-indulgência349, o enriquecimento de sua
própria vida não era ao menos considerado. A auto-indulgência é feita
de egoísmo. O círculo de sua vida tinha se reduzido a um ponto. Ela
não se caracterizava pelos pecados de comissão, mas, sim, pelos
pecados de omissão. Deixou de agradecer a Deus as riquezas
recebidas e foi negligente no cuidado ao próximo necessitado. Sem
Deus e sem o próximo, sua existência estava centrado nele mesmo.
Só, sem relação com Deus, queria garantir seu futuro. Tiago, em sua

346
Compare-se a parábola à história de Nabal que, com palavras e atos, mostrou-se
escravo de seus bens. 1 Sm 25.11.
347
Pv 3.10 e Dt 28.8.
348
Derrett, “The Rich Fool”, p. 112.
349
Compare-se com Ec 11.19.
Epístola, se dirige àquelas pessoas que dizem: “Hoje ou amanhã
iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano e negociaremos e
teremos lucros”. Replica Tiago: “Vós não sabeis o que sucederá
amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece
por instante e logo se dissipa” (Tg4.13,14).

Deus interveio chamando-o de louco350, e dizendo-lhe que


morreria naquela noite351. Perderia a vida e todas as suas riquezas.
Deus o chamou para prestar contas de seus bens. Queria fazer um
balanço de suas posses terrenas e espirituais.

O fazendeiro rico tinha empilhado sua colheita em celeiros e


acumulado riqueza suficiente para vários anos. Mas porque não
repartira seus bens com o próximo, nem havia ajustado contas com
Deus, seu saldo no banco espiritual estava a zero. Quando Deus
chamou o homem, a conta estava encerrada e não podia ser
alterada352.

“Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para


quem será?” A questão é retórica e implica que as riquezas do
homem, na verdade, pertencem a Deus. Ele as dá e tira no tempo
devido.

Conclusão

Jesus não disse que o homem devia se privar de riquezas


terrenas, prazer e bem-estar. Nem tentou dizer ao irmão mais novo,
que o procurou com uma queixa a respeito de sua parte da herança,
para se desprender de bens materiais. O homem deve compreender
que Deus é o dono de sua grande criação, e que colocou o homem
como despenseiro do mundo que criou353. Como despenseiro, o
homem deve periodicamente prestar contas a Deus. Quando deixa de
fazê-lo e age como se fosse proprietário de seus bens, transgride a lei
de Deus e se condena como louco. Sempre que vive para si mesmo,
ele está espiritualmente morto.

Na presença de Deus, nossas mãos estão vazias. “Porque nada


temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele”
(1 Tm 6.7). Apenas o que temos oferecido a Deus e a nosso próximo
permanecerá. A morte não pode tomar de nós nossas dádivas de
amor e gratidão, porque têm valor espiritual.
350
SI 14.1; 53.1.
351
A parábola do rico insensato, no Evangelho de Tomé, Citação 63, difere, em
ênfase e propósito, do relato canônico: “Jesus disse: havia um homem rico que
possuía muitos bens. Ele disse: usarei meus bens para semear e colher e plantar e
encher meus celeiros com frutos, para que nada me falte. Assim pensava consigo.
E, naquela noite, morreu. Quem tem ouvidos, ouça”.
352
Derrett, “The Rich Fool”, p. 114.
353
Sl 24.1.
Só uma vida, que breve passara;
Só o que é feito para Cristo subsistirá.

Jesus termina sua parábola instando o homem a armazenar


tesouro nos céus e a ser rico para com Deus. Assim Jesus ensinou no
Sermão da Montanha: “Porque onde está o teu tesouro, aí estará
também o teu coração” (Mt 6.21)354.

28. A Figueira Estéril

Lucas 13.6-9 “Então, Jesus proferiu a seguinte parábola: Certo homem


tinha uma figueira plantada na sua vinha e, vindo procurar fruto nela,
não achou. Pelo que disse ao viticultor: Há três anos venho procurar
fruto nesta figueira e não acho; podes cortá-la; para que está ela
ainda ocupando inutilmente a terra? Ele, porém, respondeu: Senhor,
deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao redor dela e lhe ponha
estrume. Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”.

O proprietário da vinha é tratado apenas como “certo homem”.


Se era rico ou não, pouco importa. O que conta não é o que ele é,
mas o que diz. Esse homem tinha uma figueira em sua vinha — coisa
muito comum em Israel. Depois de ela ter sido plantada, ele teve que
esperar três anos até que a árvore começasse a produzir. Então, de
acordo com a lei de Moisés (Lv 19.23), teria que esperar outros três
anos até que os frutos fossem considerados puros. Passados os
primeiros três anos, o proprietário foi procurar frutos na árvore. Ano

354
O contexto geral aponta, obviamente, para o ensinamento do Sermão da
Montanha. Portanto, a parábola pode ser vista como uma elaboração da instrução
de Jesus para que não armazenemos tesouros na terra, e, sim, nos céus (Mt 6.
19,20).
após ano, procurou e não encontrou fruto algum. A árvore era estéril.

Por causa de sua localização, deduzimos que a árvore tinha sido


muito bem cuidada. Ocupava uma parte do terreno que podia ter sido
usado para as videiras. Cada ano que a árvore permanecia estéril
significava prejuízo para o lavrador. Ela absorvia umidade e
nutrientes que serviriam para as videiras. A figueira era como uma
dívida que aumentava na medida em que se passavam os anos. Outra
árvore ou videira poderia ser plantada ali e, dentro de alguns anos,
produzir frutos. Há um tempo limite para a paciência do fruticultor.
Então basta!

O proprietário deu instruções ao homem que cuidava da vinha


para que cortasse a figueira. Mas ele pediu ao dono que tivesse ainda
um pouco mais de paciência. Queria dar mais um ano à árvore,
durante o qual cavaria o solo ao seu redor e a adubaria. “Se vier a dar
fruto, bem está, se não, mandarás cortá-la”.

A figueira tinha um papel muito importante na vida de um


israelita. Ele sabia que Deus a usava para indicar a prosperidade de
Israel — cada um vivendo em segurança, debaixo da sua videira e
debaixo da sua figueira355. O contrário também era verdadeiro.
Quando Deus se desagradava de seu povo por causa de sua
infidelidade, tornava isso conhecido, referindo-se à falta de fruto na
videira e na figueira356. Como nação, Israel era, muitas vezes,
representada por uma figueira. Tinha recebido lugar escolhido na
vinha de Deus e era, portanto, altamente privilegiada. Mas, o
privilégio traz a responsabilidade. Israel, no entanto, não
correspondeu ao privilégio357. O julgamento de Deus não podia mais
ser adiado, e a falta de figos na figueira simbolizava o desagrado de
Deus358.

A parábola que Jesus ensinou mostra, implícito, um contraste.


Se o homem que era responsável pela vinha dispensou cuidado
especial a uma figueira, durante um ano extra, quanto mais amor e
consideração, mostrará Deus para com o homem, e, certamente, para
com seu próprio povo359! Embora a parábola não diga se o dono

355
1Rs 4.25; Mq 4.4
356
Jr 8.13; Os 9.10; Hc 3.17.
357
A parábola é uma reminiscência do que está registrada em Is 5.1-7. Vides
escolhidas foram plantadas numa vinha num Outeiro fértil. Mesmo assim, após
todos os cuidados dedicados às vides, elas produziram uvas bravas. Veja-se,
também, a história de Aicão. Um pai diz a seu filho: “Meu filho, tu és como uma
árvore que o dono é forçado a Cortar porque não produz frutos, embora esteja
plantada junto da água. E ela lhe diz: Transplanta-me, e se, mesmo assim, eu não
der frutos, corta-me. Mas, seu dono lhe disse: junto da água não dás frutos, como,
então, frutificarás, estando em outro lugar?” Jeremias, Parables, p. 170; Charles,
Apocrypha and Pseudepigrapha, 2:775.
358
Is 34.4; Jr 5.17; 8.13; Os 2.12; Jl 1.17.
359
Mànek, Frucht, p. 93.
colheu figos no ano seguinte ou se figueira foi cortada, o ponto
central da história é que a paciência tem um tempo limite — um ano
e nada mais. A misericórdia de Deus é grande, mas, no fim, o dia do
juízo virá. O tempo da graça concedido ao pecador deve ser usado
por ele para se arrepender e voltar para Deus.

Jesus ensinou a parábola da figueira estéril, no contexto


histórico do triste feito de Pilatos que misturara sangue de galileus
aos sacrifícios que os mesmos realizavam (Lc 13.1-5). Seriam esses
galileus assassinados, pecadores que mereciam o castigo divino? A
resposta de Jesus foi negativa. “Se não vos arrependerdes”, disse
Jesus, “igualmente perecereis”. “Ou cuidais que aqueles dezoito,
sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais
culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém?”. De novo,
Jesus respondeu que não. Chamou outra vez seus ouvintes ao
arrependimento, e prosseguiu contando-lhes a parábola da figueira
estéril.

O que, então, ensina a parábola? No contexto das calamidades


que tinham atingido os galileus e os dezoito habitantes de Jerusalém.
Jesus afirmou a seus ouvintes que a paciência de Deus resulta em
julgamento se o pecador não se arrepende. A quem muito se confiou,
muito será exigido. O mesmo sentimento se repete no autor da
Epístola aos Hebreus, quando adverte os cristãos, na segunda metade
do primeiro século, a que prestem atenção ao evangelho. “Se, pois,
se tornou firme a palavra falada por meio de anjos, e toda
transgressão e desobediência recebeu justo castigo, como
escaparemos nós, se neg1igenciarmos tão grande salvação?” (2.2,3).

O ensino da parábola é que, quando o tempo designado para


que o homem se arrependa tiver se esgotado, o juízo de Deus estará
concluído. O tempo permitido por Deus é um período de graça, e
reflete sua misericórdia para com o homem. Deus não caminha
apenas a segunda milha. Anda a terceira, e, se necessário, a quarta, a
fim de salvar um pecador. Mas, quando sua paciência se exaure e o
chamado de Deus para que o homem se arrependa continua
negligenciado, então o julgamento é inevitável360.

Em nossas orações a Deus, em favor de pecadores


impenitentes, devemos pedir mais tempo. Como o jardineiro da
parábola pediu mais um ano ao proprietário da vinha, assim devemos
pedir um pouco mais de paciência. Do mesmo modo, Paulo, em seu
interesse por seus conterrâneos, constantemente implorava a Deus
por sua salvação: “Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha
súplica a Deus a favor deles é para que sejam salvos” (Rm 10.1).

360
A parábola pode ser vista como simbolicamente cumprida na maldição lançada à
figueira (Mt 21.18,19; Mc 11.12-14). É muito marcante que apenas Lucas tenha
registrado a parábola da figueira estéril e que dos evangelistas sinóticos ele seja o
único que não registra o fato de Jesus ter amaldiçoado a figueira.
Nossa preocupação é com o ganho361 eterno do homem e, por isso,
imploramos a Deus que exerça a paciência e conceda a graça.

29. Os Primeiros Lugares

Lucas 14.7-14 “Reparando como os convidados escolhiam os


primeiros lugares, propôs-lhes uma parábola: Quando por alguém
fores convidado para um casamento, não procures o primeiro lugar;
para não suceder que, havendo um convidado mais digno do que tu,
vindo aquele que te convidou e também a ele, te diga: Dá o lugar a
este. Então, irás, envergonhado, ocupar o último lugar. Pelo contrário,
quando fores convidado, vai tomar o último lugar; para que, quando
vier o que te convidou, te diga: Amigo, senta-te mais para cima. Ser-
te-á isto uma honra diante de todos os mais convivas. Pois todo o que
se exalta será humilhado; e o que se humilha será exaltado. Disse
também ao que o havia convidado: Quando deres um jantar ou uma
ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus
parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que eles, por sua vez,
361
J. Murray, The Epistle to the Romans (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), 2:47.
te convidem e sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-
aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a
tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos”.

Após o culto na sinagoga, aos sábados, os judeus costumavam


ter uma lauta refeição, para a qual, muitas vezes, havia vários
convidados362. Um dos principais dos fariseus convidara Jesus para um
desses almoços, com o propósito de armar-lhe uma cilada. Lá, bem
na frente de Jesus, estava um homem hidrópico. Jesus curaria o
homem, no Sábado, ou esperaria até à noite, quando o sábado
terminasse?

Jesus curou o homem e mandou-o para casa, porque os fariseus


se recusaram a responder à sua pergunta, se era ou não lícito curar
no sábado. Ainda lhes propôs outra questão, apelando para o seu
senso de compaixão e misericórdia: “Qual de vós, se o filho ou o boi
cair num poço, não o tirará logo, mesmo cm dia de sábado?” Também
a essa pergunta, que se referia a coisas da casa, os fariseus não
souberam o que responder.

Naquele ambiente hostil, onde alguns hóspedes tinham


egoisticamente tomado os melhores assentos junto à mesa, Jesus
ensinou a parábola dos convidados orgulhosos — uma lição de
humildade. Ele usou a cena de uma festa de casamento para a qual
certo número de pessoas havia sido convidados. Num banquete de
casamento, os divãs eram dispostos na forma de uma ferradura
alongada ao redor de uma mesa retangular. À cabeceira da mesa se
colocava a pessoa de maior destaque, com o segundo e o terceiro
lugares à esquerda e à direita desta pessoa363. Cada divã acomodava
três pessoas, cabendo à do meio a honra maior. O divã à esquerda da
cabeceira da mesa era o segundo em prioridade, e, depois, o divã da
direita. Conseqüentemente, os hóspedes judeus se orientavam pela
etiqueta social da época para encontrar o lugar certo à mesa. No
entanto, se a escolha de lugares ficasse a critério dos convidados,
muitos demonstravam seu egoísmo, preconceito e orgulho. Foi
exatamente isso que aconteceu, naquele dia, na casa do fariseu que
tinha convidado Jesus. Os fariseus e os doutores da lei tinham criado
um clima de soberba e arrogância desprovido de amor e humildade.
Nessas circunstâncias, Jesus ensinou uma lição de autodepreciação.

A parábola é encontrada apenas no Evangelho de Lucas,


embora o sentimento que ela expressa ocorra cm outros lugares dos
Evangelhos e Epístolas364. Naturalmente, nos lembramos de quando

362
SB, II:202.
363
A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah (Grand Rapids,
Eerdmans, 1953) 2:207. Veja-se, também, Morris, Luke, p. 231. Plummer, SI. Luke,
p. 356; SB, IV: 2.618.
364
Por exemplo: Mt 18.4; 23.12; Rm 12.16; 1 Pe 5.6.
Jesus lavou os pés dos discípulos, no cenáculo, na noite em que foi
traído.

O Exemplo

Os fariseus e os doutores da lei estavam acostumados com os


Provérbios de Salomão. Conheciam muito bem o trecho que diz: “Não
te glories na presença do rei, nem te ponhas no meio dos grandes;
porque melhor é que te digam: Sobe para aqui; do que seres
humilhado diante do príncipe” (Pv 25.6,7). Jesus se referiu habilmente
a esta passagem quando descreveu um salão cheio de convidados
para as bodas, assentados à mesa. Um convidado mais importante
chegou quando todos os assentos escolhidos junto da mesa estavam
já ocupados365. O anfitrião não podia permitir que esse hóspede tão
ilustre tomasse um lugar inferior. Isso seria uma quebra imperdoável
da etiqueta. Em tal caso, o hospedeiro tinha apenas uma escolha:
pedir à pessoa que ocupava o lugar de honra, ao qual não tinha
direito, que ocupasse um lugar inferior, e, então convidar o visitante
ilustre para ocupar o lugar de destaque. O convidado, humilhado,
aprenderia uma lição difícil de esquecer.

Ao chegar, não seria mais prudente ocupar o lugar de menor


destaque, à mesa? Se o anfitrião julgasse que o lugar ocupado era
modesto demais, convidaria o hóspede, dizendo: “Amigo, senta-te
mais para cima”. Conseqüentemente, o convidado seria honrado na
presença de todos os outros. Do lugar mais humilde até ao mais
honrado. As palavras de Jesus: “Pois todo o que se exalta será
humilhado; e o que se humilha será exaltado”, eram muito familiares
naquela época. Um contemporâneo de Jesus, o Rabino Hillel, citava
um provérbio judaico semelhante: “Minha própria submissão é minha
exaltação; minha própria exaltação é minha submissão366”.

Jesus não pretendia ensinar aos fariseus e teólogos apenas


algumas regras de boas maneiras à mesa. Ensinou uma lição de
humildade e amor dirigindo-se aos convidados que ali estavam, bem
como àquele que o convidara. Jesus disse ao hospedeiro que este não
devia convidar com interesse de ser recompensado: “Porque, se
amardes os que vos amam, que recompensa tendes?” (Mt 5.46). Se o
anfitrião convida seus parentes, amigos e conhecidos para comerem
com ele, com a intenção de que eles, depois, também o convidem,
estará pensando no quanto receberá de volta. Mas, se convida
pessoas que são financeira e socialmente impossibilitadas de retribuir
o convite, sua recompensa será paga pelo próprio Deus, por ocasião
da ressurreição.

Quem promoveria um banquete e convidaria a mais baixa

365
Os doutores da lei eram notórios por ocuparem lugares de honra nos banquetes.
Veja Mt 23.6 e seus paralelos: Mc 12.39; Lc 20.46.
366
Midrash Rabbath Leviticus, I, 5 (London: 1961), p. 9
classe da sociedade: os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos?
Financeiramente, os pobres dependem dos ricos, e aqueles que são
aleijados, coxos e cegos, muitas vezes, precisam da ajuda dos que
são fisicamente capazes. Essas pessoas não têm meios nem força
para retribuir os favores.

Quando o convite é extensivo às pessoas que não têm acesso


aos prazeres da mesa, gozados pelos ricos, a bênção se torna
merecida. Naturalmente, Jesus não estava dizendo que o anfitrião
deveria convidar apenas os oprimidos. Ele ensina que os nossos atos
devem ser praticados sem que esperemos reciprocidade. Devem ser
executados com espírito de humildade e amor desinteressados. Tais
atos recebem a aprovação divina, pois: “Sempre que o fizestes a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25.4411). Este
ensino universal não se limita ao oferecimento de banquetes, mas
inclui também todas as dádivas que não podem ser retribuídas por
aqueles que as recebem.
30. A Grande Ceia

Lucas 14.15-24 “Ora, ouvindo tais palavras, um dos que estavam com
ele à mesa, disse-lhe: Bem-aventurado aquele que comer pão no
reino de Deus. Ele, porém, respondeu: Certo homem deu uma grande
ceia e convidou muitos. À hora da ceia, enviou o seu servo para avisar
aos convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante,
todos, à uma, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um
campo e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro
disse: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te
que me tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me e, por isso, não
posso ir. Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o
dono da casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos
da cidade e traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os
coxos. Depois, lhe disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e
ainda há lugar. Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos
e obriga a todos a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque
vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados
provará a minha ceia”.

Ao ensinar na casa de um dos principais dos fariseus, Jesus


provocou o comentário de um dos convidados que estavam com ele à
mesa. Ele disse: “Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de
Deus.” Falando assim, deixava implícito que, a qualquer custo, ele
estaria presente nas festas celestiais. Mas, quando o convite para a
celebração desta festa nos céus chegasse, estaria ele disposto a
aceitá-lo? Jesus quis testar a sinceridade do homem e contou a
parábola sobre uma grande ceia.

A História

Uma pessoa abastada, numa certa cidade, preparou


cuidadosamente uma grande ceia. Ele tinha falado a respeito com
numerosos amigos que receberam bem sua idéia de oferecer um
banquete. Disseram-lhe que, quando tudo estivesse pronto, o que
tinha a fazer era falar, e eles iriam.

No dia da ceia, o homem mandou seu servo avisar os


convidados que já estava preparada a festa367. Ele chegou à casa do
primeiro convidado, e disse: “Vinde, porque tudo já está preparado.”
Infelizmente, o convidado tinha um compromisso e, com tristeza, teve
que recusar o convite. Disse ao servo: “Comprei um campo, e preciso
ir vê-lo”. Realmente, queria dizer: “Sinto muito, mas não posso
comparecer ao banquete. Os negócios vêm antes do prazer. Rogo-te
que me tenhas por escusado”. Mandou lembranças ao anfitrião, e
esperou que este o compreendesse.

367
A prática de enviar servos para chamar os convidados era muito comum nos
tempos antigos. Ester 6.14 e SB, 1:880.
O servo procurou o segundo convidado, e chamou-o para a ceia,
pois o anfitrião estava à espera: “Vinde, porque tudo já está
preparado”. O homem pareceu perplexo, ao ouvir o convite. Estava
tratando de negócios. Tinha acabado de pagar uma quantia razoável
por cinco juntas de bois e se preparava para experimentá-las. Não
podia sair, pois os homens que conduziam os bois dependiam dele.
Era o único que podia tomar decisões. Era o chefe, ali. Sair de sua
fazenda naquele momento, para tomar parte em um banquete, seria
muita irresponsabilidade. Ele expressou profundo pesar e pediu ao
servo que levasse suas saudações ao anfitrião. Tinha certeza de que o
outro entenderia sua situação embaraçosa.

O servo continuou, e bateu à porta do terceiro convidado. A


esta altura já estava preparado para receber resposta negativa ao
convite de seu senhor. Quando fez ao convidado, o chamado para o
banquete, ficou sabendo que este se casara durante aquela semana,
e estaria ocupado com suas próprias festas. Realmente, ele nem
precisava se justificar. Ninguém estranharia o fato de o noivo querer
ficar ao lado de sua noiva.

Depois de ter falado com todos os convidados, o servo voltou ao


anfitrião e transmitiu-lhe todas as desculpas e lembranças enviadas.
Compreensivelmente, o dono da casa não se sentiu satisfeito. Ficou
muito zangado. Não podia perder toda a comida preparada. Não tinha
outra escolha senão encher sua casa com outros convidados. Assim,
ordenou ao servo que fosse às ruas e becos da cidade e trouxesse
para a ceia os mendigos, aleijados, cegos e coxos, que encontrasse. O
servo cumpriu as ordens do seu amo, mas, quando os convidados já
estavam assentados, ainda sobrava lugar. O senhor o enviou, para
que buscasse todos os marginalizados pela sociedade, que
encontrasse pelos caminhos e atalhos da cidade. O anfitrião queria
que todos os lugares do banquete fossem ocupados, de modo que se
algum daqueles que convidara antes chegasse atrasado, não poderia
entrar, pois não haveria mais lugar.

Interpretação

Um dos convidados presentes à casa do fariseu ilustre tinha


dito: “Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus.” Ele
visualizava o céu como o lugar onde não há mais morte, luto,
lágrimas, ou dor (Ap 21.4), onde os cegos vêem e os coxos andam.
Que bênção se assentar em lugar reservado, à mesa de Deus, como
um filho seu, e participar com gozo da festa e da comunhão celestiais.

Jesus ensinou a parábola da grande ceia para mostrar que


mesmo tendo intenção de honrar nossas obrigações em relação a
Deus, quando os cuidados e interesses da vida terrena fazem seus
reclamos, nós os pomos em primeiro lugar, e oferecemos nossas
desculpas a Deus. Prometemos a Deus amá-lo com todo o nosso
coração, toda a nossa mente e toda a nossa alma. Porém, a promessa
prontamente se esvazia quando os interesses desta vida exigem
nossa atenção. Então, apresentamos nossas desculpas a Deus e
dizemos que ele deve compreender o acúmulo de nossas
responsabilidades, nossos compromissos, e que as oportunidades não
se apresentam com muita freqüência368. Nossas obrigações,
relacionamentos e conveniências contrariam, freqüentemente, a
promessa de amar a Deus e de servi-lo. Satisfazemos nossos próprios
interesses e esperamos que Deus nos dê uma segunda oportunidade.

As desculpas apresentadas pelos convidados simplesmente não


se sustentariam. Elas fazem referência a negócios e assuntos de
família que poderiam facilmente ficar em segundo plano em relação
ao convite anteriormente aceito. O campo ainda estaria lá no dia
seguinte, para ser vistoriado. Os bois poderiam descansar por uma
noite e os recém-casados poderiam concordar numa separação
ocasional.

A seqüência de desculpas atinge um limite. Na fala de Jesus,


após o almoço, percebemos uma nota de humor. Primeiro, o exemplo
do homem que tinha comprado um campo é despropositado — quem
compra um campo vai vê-lo antes de comprá-lo, não depois. Do
mesmo modo, a segunda desculpa não convence — as cinco juntas de
bois podiam ser postas para trabalhar no dia seguinte369. Além disso,
se o fazendeiro não tivesse experimentado as juntas de bois antes de
comprá-las, teria feito uma grande tolice. O terceiro exemplo foi o
ponto culminante das ilustrações. O marido recém-casado, incapaz de
deixar a esposa por uma noite, fornece excelente material para
inúmeras brincadeiras370.

Ao enumerar essas desculpas, o objetivo de Jesus era mostrar


sua inconsistência e fragilidade. Ninguém poderia levá-las a sério.
Elas simplesmente não resistiriam. Nos dias de Jesus todo mundo
sabia da importância de um convite para um banquete. Recusar-se a
atender o segundo convite constituía um insulto ao dono da casa —
em tal grau que, entre as tribos árabes, equivalia a uma declaração
de guerra371. O convite devia ser considerado uma ordem.

368
Schippers, Gelijkenissen, p. 45.
369
O fazendeiro que comprou cinco juntas de bois devia possuir muita terra.
Provavelmente, mais de 45 hectares (111 acres). Jeremias, Parables, p. 177.
370
H. Palmer, “Just Married, Cannot Come”, NovT 18 (1976):241-57. Veja
especialmente a página 248. O Evangelho de Tomé, Citação 64, tem uma série
maior de desculpas. A primeira: “Alguns comerciantes me devem dinheiro; virão me
procurar esta noite; preciso dar algumas ordens a eles. Peço para ser dispensado do
jantar.” O segundo convidado disse: “Comprei uma casa, estarei ocupado durante
todo o dia.” O terceiro disse: “Meu amigo vai se casar e eu vou ser responsável pela
festa. Peço desculpas por não ir ao banquete.” O quarto se desculpou, dizendo:
“Comprei uma vila; tenho que receber o aluguel; não poderei ir. Peço que me
tenhas por escusado”.
371
Plummer, St. Luke, p. 360.
Os que ouviam Jesus, na casa do fariseu, compreenderam que a
parábola era endereçada a eles. O hospedeiro e seus hóspedes
estavam sendo convidados novamente para o banquete de Deus, ao
qual já tinham aceitado comparecer. Eles viriam ou Deus deveria
procurar outros, porque os hóspedes convidados se recusavam a ir?
Jesus disse aos fariseus e aos doutores da lei que o banquete de Deus
não é um acontecimento a ser celebrado no final dos tempos. A festa
já está pronta e Deus espera, então, a resposta que têm para dar372.
Respondendo ao homem que tinha comentado: “Bem-aventurado
aquele que comer pão no reino de Deus”, Jesus falou: “Sim. Vinde,
porque a festa já está preparada. Os convidados devem vir agora.
Depois será tarde demais.” As instituições religiosas dos dias de Jesus
não estavam preparadas para aceitar a vinda do reino, apesar dos
sinais e maravilhas realizados por Jesus, diante de todos.

Pela parábola, Jesus deixou entrever que não haverá falta de


cidadãos no reino de Deus. Se os líderes religiosos de Israel
rejeitassem o convite de Deus para a entrada no reino, ele o
estenderia aos marginalizados pela sociedade, isto é, aos coletores de
impostos, indecisos e gentios373.

A mensagem de salvação não foi aceita pelos líderes religiosos


dos dias de Jesus. Ela muitas vezes foi alvo de escárnio e desprezo. O
povo comum a aceitou com ardor. Marginais, ignorantes, samaritanos
e gentios atenderam prontamente ao chamado de Jesus.

Colocação

A parábola da grande ceia foi contada por Jesus após um


almoço de sábado, que se seguiu ao culto da manhã. A parábola
sobre o banquete das bodas foi contada por Jesus nos últimos dias de
seu ministério terreno (Mt 22.1-14). As duas têm um tema comum,
mas sua disposição é inteiramente diferente. Em Lucas, a parábola é
dirigida aos fariseus e doutores da lei. Em Mateus, a parábola do
banquete nupcial se volta contra os líderes religiosos 374. O relato de
Mateus se refere à dura realidade de um rei que, provocado até à ira,
reage com pronto castigo. No Evangelho de Lucas, o quadro
apresentado é o de um anfitrião que, se sentindo deliberadamente
menosprezado, extravasa seus sentimentos convidando a escória da
sociedade.

Os quatro Evangelhos mostram, repetidamente, que Jesus


ensinava à maneira dos rabinos daquela época375. Para ele, ensinar

372
Huner, Parables, p. 94. Linnemann, p. 91.
373
Talvez a diferença entre os desamparados que vivem na cidade e os que
estavam fora, no campo, se refira ao judeu errante, que “não está longe do reino”,
e ao gentio destituído de instrução religiosa.
374
Palmer, “Just Married”, p. 256.
375
E. Schürer, A History of the Jewish People in the Time of Jesus Christ,
significava repetir. Assim, ensinou a parábola da grande ceia na
ocasião em que foi convidado para um almoço de sábado na casa de
um fariseu. Alguns dias antes de sua morte, ele contou a parábola
sobre o banquete de núpcias376.

Quando Jesus contou a parábola da grande ceia, aqueles que


tinham instrução religiosa e teológica puderam perceber a alusão a
duas passagens encontradas em Deuteronômio:

“Os oficiais falarão ao povo, dizendo: Qual o homem que


edificou casa nova e ainda não a consagrou? Vá, torne-se
para sua casa, para que não morra na peleja e outrem a
consagre. Qual o homem que plantou uma vinha e ainda não
a desfrutou? Vá, torne-se para sua casa, para que não morra
na peleja e outrem a desfrute. Qual o homem que está
desposado com alguma mulher e ainda não a recebeu? Vá,
torne-se para sua casa, para que não morra na peleja e
outro homem a receba” (Dt 20.5-7).

“Homem recém-casado não sairá à guerra, nem se lhe


imporá qualquer encargo; por um ano ficará livre em sua
casa e promoverá felicidade à mulher que tomou” (Dt 24.5).

Os teólogos sabiam que estas passagens eram válidas apenas


em relação à guerra e ao serviço militar e que não serviam de
desculpa para obrigações sociais377.

Eles conheciam, também, os costumes prevalecentes. Quando o


primeiro convite fosse feito, o hospedeiro poderia aceitar as
desculpas apresentadas. Recusar um segundo convite, quando tudo
já estava preparado, era não apenas faltar ao prometido, mas
também insultar o hospedeiro. A parábola, claramente, se dirigia e se
aplicava aos fariseus e doutores da lei. Se não aceitassem o convite
para serem hóspedes de Jesus, no reino de Deus, seriam deixados de
lado, e outros, que não mereciam seu respeito, tomariam seus
lugares.

Aplicação

O hospedeiro é, às vezes, visto como vítima das circunstâncias.


Seria compreensível que um dos convidados declinasse o convite,
mas o anfitrião fica sabendo que todos se recusaram a ir378. Talvez
Division II, vol. 1 (Edinburgh: T&T Clark, 1885), p. 324.
376
Palmer, “Just Married”, p. 255.
377
Morris. Luke, p. 234. P. II. Ballard, “Reasons for Refusing the Great Supper”, JTS
23(1972): 345.
378
Jeremias, Parables, p. 179, afirma que “podemos pensar que o hospedeiro era
um coletor dc impostos que, tendo-se tornado rico, tenha enviado convites com a
esperança de ser aceito nos mais altos círculos.” Ele se baseia na convicção de que
Jesus tenha usado uma história corrente, naqueles dias, de um rico publicano, Bar
seja mais lógico ver menosprezo deliberado no fato de que todos os
convidados — e não temos que nos ater a apenas três exemplos — se
recusaram a ir. Ainda que não tenham combinado ente si, o efeito foi
o mesmo. Os convidados refletiam a atitude da hierarquia religiosa.

Jesus envolveu a si mesmo na conclusão, quando disse: “Porque


vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados
provará a minha ceia.” Quem fala já não é mais o hospedeiro
dirigindo-se ao servo. Jesus é a figura central, é ele quem fala
“minha” ceia, e diz que nenhum dos convidados insolentes provará da
sua comida379. Jesus é o anfitrião que, através de seus servos, envia
convites chamando o povo para a festa no reino de Deus. Quando o
convite é enviado por Jesus, com seus servos falando ao povo, não
deve ser entendido como um chamado que pode ser aceito ou
rejeitado, de acordo com a própria vontade. O chamado é equivalente
a uma ordem que deve ser cumprida380. O povo de Deus, que é parte
e parcela da igreja, recebe o chamado para o serviço obediente. Já
responderam ao convite inicial. Agora, soa o chamado para o serviço.
Será que o povo de Deus vai responder à ordem de amar a Deus de
todo o coração e ao próximo generosamente381? O homem que come
do pão do banquete no reino de Deus é chamado de bem-aventurado,
porque obedece às leis do reino e cumpre as ordens do Rei.

A lição da parábola é clara. Jesus está enviando seus servos


com a mensagem da vinda do reino de Deus. Os que ouvem a
mensagem são convidados a fazer parte desse reino. Não devem
apresentar desculpas e se demorar porque Jesus não reservará um
lugar para eles382. Ele preencherá os lugares de seu reino com outros,
que virão daqui e dali. Ele quer que sua casa fique repleta. Ele diz:
“Obriga a todos a entrar”.

A parábola tem sentido obviamente missionário. Jesus reúne


seu próprio povo das ruas e becos da cidade, e das estradas e atalhos
dos campos. Ele não se envergonha de chamar de seus irmãos os
pobres, os aleijados, os cegos e os coxos (Hb 2.11). Estes são feitos
santos e pertencem à família de Deus. Numa época em que muitos
que pertencem à igreja oferecem fracas desculpas para não
participarem da obra contínua do reino de Deus, os servos fiéis de
Deus devem sair às ruas e becos da vida, com o convite para que

Ma’Jan, registrada no Talmud Palestino (1. Sanh. 6-23c par. 1. Hagh 2.77d). É
discutível, no entanto, se a parábola copia a história. Linnemann, Parables, pp.
160-62; F. Hahn, “Das Gleichnis von der Einladung Zum Festmahl, “Verborum
Veritas”, p. 67; Derrett, Law in lhe New Testament, p. 143.
379
Derrett, Law in the New Testament, p. 141, afirma que um hospedeiro enviaria
porções da comida a amigos que não pudessem comparecer ao banquete.
Distribuindo a comida aos pobres, o anfitrião recusou até mesmo “um sinal de
reconhecimento e reciprocidade”.
380
Michaelis, Gleichnisse, p. 158.
381
O. Glombitza, “Das Grosse Abendmahl Luk XIV 12-24, NovT 5 (1962):15.
382
Palmer, “Just Married”, p. 253.
todos aceitem a Jesus Cristo, o Salvador do mundo. Enquanto esses
que se recusam a tomar conhecimento do chamado de Jesus são
preteridos e perdem sua cidadania do reino, estranhos ao reino são
convencidos a responder, pela fé, ao chamado de Cristo.

O convidado precisa ter fé para aceitar o convite. Quando o


servo chega com o recado do hospedeiro: “Vinde, porque tudo já está
preparado”, o convidado vê apenas um homem383. Quando um
ministro da Palavra de Deus proclama a mensagem de salvação,
muitos que ouvem a Palavra vêem apenas um homem. É preciso fé
para que se possa ver e ouvir, através do pregador, Jesus Cristo, o
Salvador, que oferece, de graça, salvação plenária. O carcereiro de
Filipos procurou Paulo e Barnabé, e lhe foi dito: “Crê no Senhor Jesus,
e serás salvo, tu e tua casa” (At 16.31).

383
Wallace, Parables, p. 69.
31. O Construtor da Torre e o Rei Guerreiro

Lucas 14.28-33 “Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre,


não se assenta primeiro para calcular a despesa e verificar se tem os
meios para a concluir? Para não suceder que, tendo lançado os
alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem zombem
dele, dizendo: Este homem começou a construir e não pôde acabar.
Ou qual é o rei que, indo para combater outro rei, não se assenta
primeiro para calcular se com dez mil homens poderá enfrentar o que
vem contra ele com vinte mil? Caso contrário, estando o outro ainda
longe, envia-lhe uma embaixada, pedindo condições de paz. Assim,
pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não
pode ser meu discípulo”.

As parábolas gêmeas sobre o homem que queria construir uma


torre e o rei que devia partir para a guerra são encontradas apenas
no Evangelho de Lucas. Foram contadas quando Jesus seguia da
Galiléia para Jerusalém, acompanhado por grandes multidões. O povo,
de modo errôneo, via Jesus como um governante terreno que
caminhava para Jerusalém, a fim de estabelecer seu reino, e queriam
estar lá com ele e seus discípulos. Mas, em Jerusalém Jesus não
ocuparia nenhum trono secular. Seria, antes, aprisionado, julgado e
executado. Seus seguidores iriam perceber o custo do discipulado
antes mesmo de se decidirem a lançar sua sorte com Jesus384. Deviam
saber que qualquer um que não aborreça seus parentes e até sua
própria vida por causa de Jesus, não pode ser seu discípulo (Lc 14.25-
27).

Em termos semíticos, aborrecer significa amar menos alguém


ou alguma coisa. Significa que ninguém ou nada deve ter prioridade.
Tudo mais deve ser relegado a segundo ou terceiro plano. Apenas
aquele que afirmar: “Jesus é o primeiro em minha vida” pode ser seu
discípulo. Ser discípulo de Jesus significa carregar sua própria cruz e
seguir Jesus onde quer que ele vá. O único que disse: “Vinde a mim
todos os que estais cansados e sobrecarregados...” (Mt 11.28), disse
também: “Qualquer que não tomar a sua cruz, e vier após mim, não
pode ser meu discípulo” (Lc 14.27). “Ninguém que, tendo posto a
mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus” (Lc 9.62).
O discipulado exige compromisso de entrega total a Jesus. “É preciso
avaliar o custo”, Jesus disse à multidão que o acompanhava, “e
considerar o que realmente representa me seguir”.

384
O tema “o custo do discipulado” é estudado em livro do mesmo título, de Dietrich
Bonhoeffer. Neste trabalho, Bonhoeffer fala da auto-entrega e do auto-sacrifício dos
quais deu pessoal-mente testemunho, quando foi executado em 9 de abril de 1945,
numa prisão alemã.
As Duas Parábolas

Para ilustrar o que queria ensinar, Jesus contou duas parábolas


relativamente curtas. A primeira é tirada do cenário agrícola daqueles
dias, e a segunda de um fato político. As duas parábolas ensinam a
mesma lição e, com simplicidade, vão direto ao objetivo.

Suponhamos, diz Jesus, que um fazendeiro resolva construir


uma torre em sua fazenda. Ele precisa de um lugar onde guardar suas
ferramentas e suas provisões. Quer proteger sua propriedade de
estranhos e ladrões. Se construir a torre obterá respeito na
comunidade e sua propriedade aumentará seu valor. Reconhece a
necessidade da construção385, mas não se assenta para calcular o
total do custo do material e da mão de obra envolvidos. Começa a
construção da torre lançando os alicerces. Quando está ocupado com
a estrutura, o dinheiro acaba e ele tem que abandonar o projeto. Ali
fica a torre, inacabada, e, num certo sentido, sem valor. O fazendeiro
perdeu seu dinheiro investindo-o numa construção que não pode
usar, inacabada como está. Perdeu seu prestígio na comunidade, pois
todos os que vêem a estrutura incompleta o ridicularizam dizendo:
“Este homem começou a construir e não pôde acabar”. Ele se tornou
motivo de riso no lugar.

Com seus exemplos, Jesus vai da fazenda para o palácio.


Suponhamos, ele diz, que um rei precise combater outro rei. Uma
disputa territorial se estabeleceu, paixões se inflamaram, palavras de
retaliação e vingança se fizeram ouvir. Como líder, o rei precisava
decidir se partia ou não para a guerra. Ele seria completamente louco
se enviasse para a guerra seu exército de dez mil homens para se
confrontar com o dobro de soldados, no campo de batalha. Então se
assenta, antes, com seus conselheiros militares e calcula o risco de
partir para a guerra contra um inimigo superior em força. Se for
prudente, enviará alguns delegados para discutir os termos de paz
com o inimigo e evitar o derramamento de sangue386.

A ênfase é a mesma nas duas parábolas, embora variem os


pormenores. Na que fala sobre o construtor da torre, a mensagem é:
avalie o custo, antes de construir. Na do rei guerreiro, é: considere as
possibilidades de sucesso, antes de enviar seus soldados à batalha;
esteja pronto, e disposto a ceder. “Assim, pois, todo aquele que
dentre vós não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu
discípulo”, diz Jesus.
385
Smith, Parables, p. 220, raciocina que, por causa da referência ao custo do
alicerce, algo de maior valor que o simples erguimento de uma torre de vigia, em
uma vinha, deve ser levado em conta, talvez, uma construção rural”.
386
O Evangelho de Tomé, Citação 98, tem um interessante paralelo à parábola do
rei guerreiro: “Jesus disse: O reino do Pai é semelhante a um homem que queria
matar um outro homem poderoso. Ele sacou sua espada dentro de sua casa e
golpeou com ela a parede, até saber que sua mão tinha força suficiente. Então,
matou o homem poderoso”.
Conclusão

À primeira vista, o ensino das parábolas parece contrariar a


mensagem do evangelho de Cristo, de fazer discípulos de todas as
nações (Mt 28.19). Depois de refletir, no entanto, ninguém pode dizer
que as parábolas pretendam desencorajar possíveis discípulos. Em
conjunto, os dois exemplos usados por Jesus mostraram-lhes como se
tornar verdadeiros discípulos. Jesus não quer e nem precisa de
seguidores cujos corações não estejam totalmente comprometidos.
Tais seguidores são como as sementes que caem nos lugares
rochosos. Ouvem a Palavra e a recebem imediatamente, com alegria.
Mas, porque não têm raiz, não permanecem. Quando vem a
dificuldade e a perseguição, por causa da Palavra, desistem (Mt
13.20,21).

As parábolas põem em destaque dois pontos principais: (1) O


discípulo de Jesus deve ponderar tudo muito cuidadosamente; e, (2)
deve estar disposto a renunciar tudo por causa de Jesus387. O
discipulado não se baseia em emoções fingidas e entusiasmo
superficial. Estes vêm e vão. Mas o compromisso genuíno é o alicerce
no qual o discípulo de Jesus constrói. Ele tem que avaliar o custo, com
cuidado, e analisar os riscos que corre ao seguir Jesus. Deve renunciar
prontamente a seus parentes e posses, a fim de tomar sua cruz e
seguir a Jesus.

Três vezes Jesus repete o refrão: “não pode ser meu discípulo”
(Lc 14.26,27,33). Com toda a certeza, apenas aqueles que avaliaram
o custo e estão dispostos a renunciar a tudo por causa de Cristo são
verdadeiramente seus discípulos.

387
P. G. Jarvis, “Expouding the Parahles. V. The Tower-builder and the King going to
War (Luke 14.25-33), ExpT 77 (1966): 197.
32. A Ovelha Perdida

Mateus 18.12-14 “Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas,


e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e
nove, indo procurar a que se extraviou? E, se porventura a encontra,
em verdade vos digo que maior prazer sentirá por causa desta do que
pelas noventa e nove que não se extraviaram. Assim, pois, não é da
vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”.

Lucas 15.4-7 “Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem


ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e
nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a,
põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os
amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei
a minha ovelha perdida. Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no
céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove
justos que não necessitam de arrependimento”.

Entre as parábolas contadas por Jesus, a da ovelha perdida é a


que cm tido maior apelo entre as crianças. Elas conseguem visualizar
a ovelha perdida, o amor e a preocupação do pastor, e sua alegria e
felicidade quando a reencontra. Muitas canções e hinos têm sido
escritos sobre o tema.

Tanto Mateus quanto Lucas registraram a parábola da ovelha


perdida. Em resumo, os dois relatos se mostram idênticos, embora
haja variação nos pormenores. É bem possível que Jesus tenha
contado a parábola duas vezes, em ocasiões diferentes 388. Além disso,
histórias sobre pastores e ovelhas tinham particular interesse e
significado para a sociedade pastoril daqueles dias.

Em Mateus, bem como em Lucas, Jesus começa a parábola com


uma pergunta de retórica que, em Lucas, envolve os ouvintes (“Qual,
dentre vós”): “... que, possuindo cem ovelhas... não deixa no deserto
as noventa e nove...?” Alguém que possuísse cem ovelhas não era um
homem de muitos recursos. Ele mesmo tomava conta do rebanho,
conhecia-as pelo nome e as contava pelo menos uma vez por dia389.

Quando o pastor se distraiu por momentos, uma das ovelhas se


afastou, abocanhando algo aqui e ali, até que estava completamente

388
Marshall, Luke, p. 600’; Plummer, St. Luke, p. 368. Para um estudo mais
detalhado, consulte-se J. Jeremias, “Tradition und Redaktion in Lukas 15”, ZNW 62
(1971): 172-89.
389
E. F. F. Bishop, “The Parable of the Lost or Wandenng Sheep”, ATR 44 (1962): 50.
desgarrada do resto do rebanho. O pastor deixou o resto do rebanho
nos montes (Mateus) ou no deserto (Lucas)390. Embora a parábola diga
apenas que o pastor deixou as noventa e nove ovelhas, não menciona
que as deixou desprotegidas391. Além do mais, o objetivo da parábola
não são as noventa e nove, e, sim, aquela que se perdeu. As ovelhas
são animais gregários; vivem juntas em grupo. Quando uma ovelha se
separa do rebanho, fica desnorteada392. Deita no chão, imóvel,
esperando pelo pastor. Quando ele, afinal, a encontra, coloca-a sobre
os ombros, para caminhar de volta, mais depressa, até onde deixou o
rebanho393. Logo o pastor, a ovelha e o rebanho estão todos juntos
outra vez.

Este poderia ter sido o final da história, mas não foi. A história
cresce em emoção no seu clímax com a alegria que toma conta do
pastor. Jesus diz: “... em verdade vos digo que maior prazer sentirá
por causa desta, do que pelas noventa e nove, que não se
extraviaram” (Mt 18.13). Para ser verdadeira a felicidade precisa ser
compartilhada. O pastor vai para casa, chama seus amigos e vizinhos
e os convida a se alegrarem com ele, porque, diz o pastor: “... já achei
a minha ovelha perdida” (Lc 15.6). A tensão que o pastor sentira
enquanto procurava a ovelha extraviada tinha desaparecido, dando
lugar à alegria394. Ele comemora com seus amigos e vizinhos.

Aplicação

Os relatos de Mateus e Lucas diferem, obviamente, na


aplicação, por causa das circunstâncias históricas nas quais Jesus
contou a parábola. No Evangelho de Mateus, uma pergunta foi
proposta pelos discípulos: “Quem é, porventura, o maior no reino dos
céus?” Ao responder, Jesus, de modo muito significativo, colocou uma
criança no círculo dos discípulos e lhes disse: “Se não vos
converterdes e não vos tomardes como crianças, de modo algum
entrareis no reino dos céus” (Mt 18.3). Prosseguiu advertindo-os a
não fazer “tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim”,
nem a desprezá-los. Jesus, então, contou a parábola da ovelha
perdida e aplicou-a as crianças. “Assim, pois, não é da vontade de
390
M. Black. Ais Aramalc Approach lo lhe Gospels and Acts, 3rd cd. (Oxford;
Clarendon Press, 1967), p. 133, sugere que a palavra montes pode ter recebido a
influencia do aramaico tura, “que no siríaco da Palestina tinha dois sentidos:
montanha’ e ‘campo’, o ‘campo aberto’ em contraste com os lugares habitados”.
391
“Devemos imagina-las em algum lugar cercado” Smith, Parables, p. 188 nº 2.
392
Armstrong, Parables, p. 185.
393
Jeremias, Parables, p. 134, e Brouwer, Gelijkenissen, pp. 225-26, descreve o
pastor com uma ovelha ao redor do pescoço, segurando suas patas dianteiras e
traseiras com cada uma das mãos. Veja-se também SB, 11:209.
394
O Evangelho de Tomé, Citação 107, mostra uma tendência gnóstica na parábola,
acentuando o amor do pastor pela ovelha, por causa de seu tamanho: “Disse Jesus:
o reino é como um pastor que possuía cem ovelhas. Uma delas se extraviou; era a
maior delas. Ele deixou as noventa e nove e procurou aquela até encontrá-la. Após
o esforço, disse à ovelha: “Eu te quero mais que às noventa e nove”.
vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”.

No contexto, a expressão se refere às crianças, mas, levando


em conta a demonstração visual feita por Jesus, colocando uma delas
no círculo dos discípulos, “estes pequeninos” passam a ter conotação
espiritual. Jesus está se referindo àqueles cuja fé mantém a
simplicidade das crianças395. Como um pastor vigia suas ovelhas, e
até mesmo sai à procura daquela que se extravia, assim Deus cuida
daqueles que acreditam nele, especialmente as ainda crianças na
fé396. Se algum se extraviar, Deus irá a busca dele porque não quer
“que pereça um só destes pequeninos”.

O Evangelho de Lucas relata que Jesus foi cercado por


publicanos e “pecadores”, que tinham vindo para ouvi-lo397. Os
fariseus e os escribas se escandalizaram com isso e murmuravam:
“Este recebe pecadores e come com eles” (Lc 15.2). Cercado por
aqueles que ainda eram crianças no espírito, Jesus contou a parábola
da ovelha perdida, e concluiu, dizendo: “Digo-vos que assim haverá
maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por
noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.” Jesus
comparou os publicanos e as pessoas sem moral a uma ovelha que se
extraviou. Perdida, ela não respondeu mais ao chamado do pastor.
Não queria se mexer. Quando o pastor a encontrou, teve que erguê-la
e colocá-la em seus ombros para levá-la de volta ao rebanho.

Os coletores de impostos eram judeus empregados pelo


governo romano. O povo os considerava traidores e os afastava da
sociedade. Pertenciam à mesma classe dos marginalizados
moralmente. Um judeu não devia ter qualquer contato com tais
pessoas, e muito menos comer com elas. Havia barreiras entre os
judeus e os “pecadores”, mas estas não impediram que Jesus
ensinasse aos marginalizados a mensagem da salvação. Ele lançou
uma ponte sobre esse abismo e trouxe o pecador de volta para Deus.

Deus se alegra mais por um desses proscritos que se


arrependem que por noventa e nove justos que não necessitam de
arrependimento398. Ele está genuinamente interessado na salvação do
pecador. Como um pastor, ele vai à procura do homem que é incapaz

395
Morison, St. Matthew, p. 317.
396
Jeremias, Parables, p. 39, traduz Mt 18.14 da seguinte maneira: “não é da
vontade de Deus que nenhum destes mais pequeninos se perca.” Ele aplica a
expressão “mais pequeninos” aos apóstatas que deveriam receber o cuidado
pastoral por parte da comunidade cristã (p.40).
397
K. H. Rengstorf, TDNT, 1:327-28, apresenta uma dupla interpretação da palavra
pecador, como era entendida pela hierarquia judaica. (a) O pecador é “um homem
que vive em oposição, consciente ou intencionalmente, à vontade divina (Torá),
diferentemente do justo que faz da submissão a esta vontade sua alegria de viver”.
E (b) é o homem “que não se sujeita aos rituais farisaicos”.
398
As regras religiosas daquele século e do século seguinte falam mais sobre a
alegria de Deus na destruição do ímpio que sobre sua salvação. SB, 11:209.
de fazer qualquer coisa por si mesmo. Deus vai a busca do homem,
não o homem em busca de Deus. Neste ponto, o Cristianismo difere
das outras religiões do mundo399. Deus encontra o homem que está
perdido em pecado. Quando o pecador é encontrado, há júbilo no céu.
Naturalmente, há alegria por aquele que faz a vontade de Deus, mas,
quando um pecador volta para Deus, em arrependimento e fé, é
chegado o tempo da celebração. Um filho de Deus, que estava
perdido, foi achado.

399
Wallace, Parables, p. 52.
33. A Dracma Perdida

Lucas 15.8-10 “Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder
uma, não acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente
até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas,
dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha
perdido. Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos
de Deus por um pecador que se arrepende”.

Lucas, muitas vezes, apresenta seus assuntos aos pares.


Quando menciona um homem, com muita probabilidade se refere,
também, a uma mulher. No primeiro capítulo de seu Evangelho,
Zacarias e Isabel são apresentados; e no capítulo seguinte, José e
Maria, Simeão e Ana. Nos capítulos que se sucedem, se refere à viúva
de Sarepta e a Naamã, o siro. Nas parábolas, coloca a do homem com
o grão de mostarda junto à da mulher que adiciona o fermento à
massa. A parábola do pastor que encontra a ovelha perdida é seguida
pela parábola da mulher que encontra uma das suas moedas de
prata400. Essas duas parábolas formam um par, e transmitem,
virtualmente, a mesma mensagem. Assim é alcançado o objetivo de
Jesus ao se dirigir aos fariseus e doutores da lei.

Esta história, em sua concisão, é de uma beleza cintilante.


Revela toda a emoção da ansiedade, preocupação, exaltação e
alegria em uma ou duas linhas. E é, ainda, uma história completa!

Jesus fala a respeito de uma mulher que tinha dez moedas de


prata. Faziam parte de seu dote e eram usadas para enfeitar seu
penteado. O equivalente atual seria o anel de noivado e a aliança de
casamento cravejados de brilhantes. A perda de um desses brilhantes
causaria consternação, ansiedade e tristeza. Quando ela percebeu
que faltava uma das moedas, sabia que devia ter-se soltado e caído.
Era inconcebível que alguém a tivesse roubado401. Devia procurá-la
em sua própria casa.

As casas mais pobres eram construídas sem janelas. Junto do


teto, às vezes, faltavam algumas pedras na parede para permitir a
ventilação. Mas, essa abertura, além da entrada, não fornecia muita
luz para o interior da casa. Era escuro, dentro de casa, mesmo
durante o dia. A mulher teria que acender uma lamparina para poder
procurar a moeda no chão de pedra402. Nas casas da zona rural, os
400
Alguns estudiosos questionam a ordem em que as parábolas são apresentadas:
Armstrong, Parables, pp. 182,3; Linnemann, Parables, p. 68. Oesterley, Parables,
pp. 176-77, se opõe a qualquer inversão da ordem das parábolas, estabelecendo a
diferença entre a mente ocidental, que busca a seqüência lógica, e a maneira
oriental de pensar, que não leva em conta a simetria lógica.
401
Bishop, Jesus of Palestine (London: n p. 1955), p. 191 — Jeremias, Parables, p.
134.
402
J. Wilkinson, Jerusalem as Jesus Knew it (London: Thomas and Hudson, 1978),
animais eram, muitas vezes, guardados dentro de casa, embora
numa parte separada da habitada pela família403. Na casa eram,
ainda, guardadas as provisões.

Em algum lugar da casa estava a moeda que a mulher tinha


perdido. Ela pegou uma vassoura e, com a luz de uma lamparina
iluminando o cômodo, varreu tudo cuidadosamente. Cada lugar onde
a moeda poderia estar foi vasculhado, até que avistou um brilho de
metal, ou ouviu o tilintar da moeda no chão duro. Sua ansiedade e
preocupação desapareceram de repente e deram lugar à alegria e ao
júbilo. Queria repartir sua alegria com as amigas e vizinhas. Chamou-
as e disse: “Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha
perdido”. Palavras de contentamento foram trocadas, e quando o
marido voltou do campo, também se alegrou com a mulher. “Eu vos
afirmo”, disse Jesus, “que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos
de Deus por um pecador que se arrepende”. Como a casa da mulher
se encheu de riso e felicidade porque o que estava perdido foi
achado, assim os céus se rejubilam quando um pecador se arrepende
e volta a Deus, com fé. Como a mulher se alegrou com suas amigas e
vizinhas, assim Deus se alegra diante de seus anjos404. Como a moeda
pertencia à mulher que diligentemente procurou por ela, enquanto
estava perdida, assim o pecador que se arrepende pertence a Deus.
O amor de Deus está voltado para seu filho extraviado: “Mas Deus
prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).

Jesus mostrou o amor de Deus pelos “pecadores” de seus dias.


Ensinou aos publicanos e aos marginalizados, entrou na casa deles,
comeu e bebeu com eles, e foi chamado de “amigo de pecadores” (Mt
11.19). Por causa disso, até mesmo Jesus era considerado um
pecador, pelos fariseus.

As duas parábolas, a da ovelha perdida e a da dracma perdida,


têm uma verdade evangélica definida. A igreja, conhecida como o
corpo de Cristo, é chamada para estender seu amor e interesse aos
homens, mulheres e crianças que estão espiritualmente perdidos no
mundo. Os membros da igreja são convocados para procurar os que
estão perdidos e para dizer aos que vivem no pecado “que Cristo...
morreu pelos ímpios” (Rm 5.6). O fervor que Jesus mostrou,
associando-se aos chamados “pecadores” de seus dias, deve arder
em cada um dos membros da igreja, irradiando o calor do zelo

p. 28, comenta sobre escavações em Nazaré, onde se encontram casas que foram,
provavelmente, visitadas por Jesus. Ele diz: “O chão era desnivelado, feito de
grandes pedaços de basalto com consideráveis fendas entre eles. Mesmo com a luz
do sol, podemos imaginar a mulher da parábola de Lucas 15.18, procurando sua
moeda perdida, especialmente num cômodo de chão e paredes de pedra, e
pequenas janelas. Não é de admirar que ela tenha usado uma candeia”.
403
Dalman, Arbeit und Sitte, VII:111-12.
404
A. F. Walls, “In lhe Presence of the Angels (Luke XV. 10), NovT 3(1959): 316; SB,
11:212.
evangelístíco e se rejubilando com os “anjos de Deus por um pecador
que se arrepende”.
34. O Filho Pródigo

Lucas 15.11-32 “Continuou: Certo homem tinha dois filhos; o mais


moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me cabe. E
ele lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o filho mais
moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e
lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter
consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele
começou a passar necessidade. Então, ele foi e se agregou a um dos
cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a
guardar porcos. Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os
porcos comiam; mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si,
disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu
aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe
direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser
chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E,
levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai
o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou. E o
filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou
digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos:
Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e
sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos
e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu,
estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se. Ora, o filho
mais velho estivera no campo; e, quando voltava, ao aproximar-se da
casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos criados e
perguntou-lhe que era aquilo. E ele informou: Veio teu irmão, e teu
pai mandou matar o novilho cevado, porque o recuperou com saúde.
Ele se indignou e não queria entrar; saindo, porém, o pai, procurava
conciliá-lo. Mas ele respondeu a seu pai: Há tantos anos que te sirvo
sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito
sequer para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, esse teu
filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste
matar para ele o novilho cevado. Então, lhe respondeu o pai: Meu
filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu. Entretanto,
era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse
teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”.

As Circunstâncias

Jesus estava ensinando aos publicanos e àqueles considerados


marginais, por causa de sua conduta moral. Ensinava-lhes verdades
espirituais que diziam respeito ao reino de Deus, quando os líderes
religiosos daqueles dias manifestaram seu desagrado, murmurando
contra Jesus: “Este recebe pecadores e come com eles.” Aos olhos
dos escribas e fariseus, os publicanos, porque tinham-se vendido ao
governo romano, e as prostitutas, pelo seu pecado moral, estavam
banidos da comunidade religiosa de Israel, e estavam,
espiritualmente, mortos. Embora procurassem ganhar convertidos, os
doutores da Lei e os fariseus não tinham interesse em receber tais
convertidos para um relacionamento mais expressivo com Deus (Mt
23.15). Não podiam nem queriam entender que Deus deseja o
arrependimento que, quando demonstrado, causa imenso júbilo nos
céus.

Jesus contou a parábola do filho pródigo. Talvez fosse melhor


falar de dois filhos e seu pai. Nestes três personagens, Jesus
caracterizava seus ouvintes. Cada um dos que o ouviam tinha que se
mirar no espelho da parábola e pensar: “Este sou eu.” O filho pródigo
retratava aqueles que, por sua moral e pela sua classe social, eram
marginalizados. Seu irmão era o judeu que se auto justificava, e o pai
era o reflexo de Deus405. Jesus se dirigiu diretamente aos que o
ouviam. Chamou o pecador ao arrependimento e exortou o justo a
aceitar o pecador e a se alegrar com sua salvação. A parábola
descreve claramente o amor de Deus por seus filhos, tanto pelo
rebelde quanto pelo obediente. Os contemporâneos de Jesus tinham
plena consciência da paternidade de Deus406. Das profecias de
Jeremias eles sabiam que Israel tinha sido o filho que se desviara.
Efraim disse:

“Converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR


meu Deus. Na verdade, depois que me converti, arrependi-
me; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei
envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha
mocidade” (Jr 31.18,19)407.

O Filho Mais Novo

Jesus contou a história de um homem rico que tinha dois filhos,


provavelmente no final da adolescência. Os dois trabalhavam com o
pai na fazenda da família, mas o mais jovem deles se tornou
impaciente e queria partir para longe da casa dos pais. Queria ser
livre, para ir a outras terras e viver como lhe agradasse408. O pai
405
Jeremias, Parables, p. 128, afirma que a parábola não ~ uma alegoria, “mas uma
história tirada da vida.” Veja-se, também, Linnemann, Parables, p. 74, e Mánek,
Frucht, p. 103. Hunter, Parables p. 59, discorda porque “o pai e seus dois filhos...
são uma representação diretamente significativa”.
406
G. Quell, TDNT, V:972-74; e 6. Schrenk, TDNT, V:978.
407
Uma parábola remotamente semelhante à do filho pródigo vem do Rabino Meir:
“Isto é semelhante ao filho de um rei que tomou o caminho do mal. O rei enviou um
tutor para lhe fazer apelos, dizendo: ‘Arrepende-te, meu filho.’ O filho, no entanto, o
mandou de volta a seu pai com a mensagem: ‘Como posso ter a desfaçatez de
voltar? Estou envergonhado diante de ti.’ Então seu pai lhe mandou dizer: ‘Meu
filho, como pode um filho, jamais, se envergonhar de voltar para seu pai? E não é
para teu pai que estarás retornando”. The Midrash, Deuteronomy (London: n.p.,
1961), p. 53. Consulte-se, também, em F. W. Danker, Jesus and lhe New Age (St.
Louis, Clayton Pub. House, 1972), p. 170, o texto de uma carta em papiro que
contém o apelo de um filho desviado, pedindo perdão a sua mãe.
408
Sair de Israel e fazer parte da diáspora era muito comum. Tem sido ensinado que
notara que o filho queria partir, mas não disse nada. Ele poderia ter
feito ver ao filho sua posição na vida — ele e o irmão, um dia,
herdariam a fazenda toda. Eventualmente, o filho tomaria conta da
fazenda, dos servos e dos trabalhadores contratados. Em vez disso, o
pai esperou que o filho tomasse sua própria decisão.

Um dia, o mais jovem se aproximou do pai e disse: “Pai, dá-me


a parte dos bens que me cabe.” Ele, naturalmente, não podia pedir a
divisão da propriedade porque o patrimônio da família devia
permanecer intacto enquanto o pai fosse vivo. Pedindo sua parte, o
filho mais novo confessava que não permaneceria mais com o pai,
que se aborrecia com a rotina diária e queria a parte a que tinha
direito para gastá-la como quisesse. O pai deu ao filho o que era seu,
provavelmente a nona parte da soma total409. Ele teria recebido um
terço da herança, por ocasião da morte do pai (Dt 21.17). Recebendo
sua parte por antecedência, o filho perdia o direito de exigir mais,
quando realmente se desse a partilha dos bens. O pai, embora
dividindo a propriedade, continuou administrando a fazenda. O pai,
não o filho mais velho, geria os bens da família410.

O filho mais novo recebeu sua parte e ajuntou “tudo o que era
seu Estava agora por conta própria e livre para ir. Pensava: “Tenho
dinheiro, vou viajar”. Poderia ir para a Babilônia, ao leste; à Ásia
Menor, ao norte; à Grécia e à Itália, ao oeste; ou ao Egito e África, ao
sul. Tinha o mundo à sua disposição. Diversos fatores influíram
profundamente no futuro do filho mais jovem. Seu idealismo juvenil,
sua inexperiência e falta de discrição, sua saída da fazenda para a
cidade, o dinheiro à mão — tudo teve um papel importante. Sua
intenção de viver por sua própria conta logo se frustrou, quando foi
cercado por falsos amigos. Princípios de vida e conduta, aprendidos
em casa, foram postos de lado e esquecidos. Foi descuidado e
perdulário411.A reprovação do irmão mais velho — “esse teu filho, que
desperdiçou os teus bens com as meretrizes” — não é mera
acusação. Baseava-se em informações que a família recebia, de
tempos em tempos, de como o caçula passava seus dias
dissolutamente. A desobediência às leis da economia e da moral não
podia continuar. Ele teve que pagar um preço pela vida desregrada.
Em relativamente pouco tempo, gastou tudo. Chegou ao fim da linha.

As notícias sobre a quebra da safra eram os principais


comentários naquela terra. A inflação levou os preços para os ares, os

havia cerca de oito vezes mais judeus (quatro milhões) que viviam em dispersão, do
que em Israel (meio milhão). Jercmias, Parables, p. 129.
409
Para um estudo mais detalhado, consulte-se Derrett, Law in the New
Testament, p. 107.
410
O pai deve ter seguido o costume daqueles dias, como encontramos em
Eclesiástico 33.22,23: “Em todas as tuas obras conserva a tua superioridade. Não
manches a tua reputação. Deixa seguir o curso da tua vida e, no tempo da tua
morte, reparte a tua herança” (NEB).
411
W. Foerster, TDNT, 1:507.
empregos eram raros, e a economia indicava que tempos difíceis
tinham chegado. O jovem de vida devassa estava sem dinheiro e sem
sequer um amigo que o ajudasse. Em terrível necessidade, percorreu
as ruas e arredores da cidade procurando serviço, mas tudo que pôde
achar foi a tarefa humilde de alimentar porcos. Ele tinha chegado
agora à degradação mais profunda, pois desde a infância aprendera,
como qualquer judeu, que o porco é um animal imundo (Lv 11.7)412.
Era agora empregado de um gentio e teve que abandonar o hábito de
guardar o Sábado. Nessa triste situação, estava alijado da religião de
seus pais espirituais413.9 Ele estava desesperado. Seu empregador o
fazia sentir que aqueles porcos tinham mais valor para ele que um
simples empregado. Sentia falta de amizade e consideração, mas
ninguém se importava com ele. Por causa da escassez de comida, sua
alimentação diária não era suficiente para acalmar suas dores de
fome. Queria até mesmo comer da comida dada aos porcos, as
vagens da alfarrobeira414.

A falta de consideração mostrada para com um pastor faminto


era mais do que o rapaz podia agüentar. Esse foi para ele o ponto
máximo. Buscara a bondade humana e não a pudera achar.

As notícias a respeito da fome o fizeram pensar em sua terra


natal. Começou a pensar em sua casa. Devia voltar? Quando essa
idéia lhe passou pela cabeça, primeiro ele a afastou. Os servos e os
contratados dificilmente esconderiam seu escárnio. Seu irmão mais
velho, de modo algum, o receberia bem se voltasse para casa, para
uma propriedade a que não mais tinha direito. Seu pai veria seu
segundo filho descalço e vestido como um pastor. Voltando, assim,
para casa, ele seria a figura abjeta de um mendigo.

O filho começou a pensar em seu pai — como o tinha magoado,


como seu pai lhe havia dado a parte da herança que ele, filho
pródigo, tinha esbanjado. Começou a falar consigo mesmo: “quantos
trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de
fome!” Ele se comparou, não com os servos que tinham emprego
estável, mas aos trabalhadores ajustados temporariamente.
Assalariados, como ele era na ocasião, viviam regiamente na fazenda
de seu pai.

Ele sabia que o amor de seu pai se estendia a todos aqueles

412
Os judeus estavam estritamente proibidos de criar porcos. “Não é permitido criar
porcos, onde quer que seja”; “Amaldiçoado seja o homem que criar porcos”. Baba
Kamma 82b, Nezikin I, The Babylonian Talmud, pp. 469,70.
413
Jeremias, Parables, p. 129, comenta que o homem foi “praticamente forçado a
abandonar a prática regular de sua religião”.
414
Vagens e sementes de locusta (alfarrobeira) são usadas como forragem para o
gado e para os porcos e, às vezes, são comidas pelos pobres. Não há necessidade
de dizer, como alguns estudiosos fazem, que o jovem roubava as vagens para
satisfazer sua fome. A máxima universal: “Não atarás a boca do boi, quando
debulha” (Dt 25.4), pode ser, certamente, aplicada.
que pertenciam ao amplo círculo de sua família. Sabia, também, que
tinha desobedecido ao mandamento: “Honra a teu pai e a tua mãe,
para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR teu Deus
te dá” (Ex 20.12)415. Ele tinha pecado contra Deus.

Quando caiu em si, estava pronto para confessar seus pecados


contra Deus e contra seu pai. Ele disse a si mesmo: “Levantar-me-ei e
irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de
ti416”. Sabia que tinha transgredido o mandamento de Deus, e que,
agindo assim, ofendera e magoara seu pai. Queria se corrigir.
Procuraria o pai e lhe diria: “Já não sou digno de ser chamado teu
filho; trata-me como um dos teus trabalhadores”.
Tudo que ousava pedir era um emprego temporário 417. Ansiava
pela reconciliação, sem esperar reintegração. Levantou-se e foi para
casa.

O Pai

Jesus apresentou a parábola, dizendo: “Certo homem tinha dois


filhos”. Mas, à medida que continuava, mostrou que esse homem
tinha um relacionamento extraordinário com os filhos: ele os amava
de modo sábio, com ternura e não possessivamente. Podemos
imaginar um pai ainda suficientemente moço para se opor
rigorosamente ao pedido de divisão dos bens, feito pelo filho mais
novo. O pai poderia ter recusado o pedido porque o filho era muito
jovem para receber sua parte dos bens. Nenhum argumento, no
entanto, foi usado. O pai consentiu que o filho se tornasse
independente e, embora ferisse seu coração vê-lo partir, sabiamente
guardou para si o que sentia418.

Podemos presumir que o pai tenha tentado descobrir onde vivia


o filho e o que fazia longe de casa. As notícias sobre a fome, com
certeza, chegaram até ele. Deve ter sabido das condições miseráveis
em que o filho vivia, e que determinariam a sua volta, porque
constantemente olhava ao longo do caminho por onde esperava que
ele regressasse.

Podemos perguntar por que os parentes próximos do rapaz não


o procuraram sabendo de sua situação tão degradante. Havia fartura
na fazenda. Teria sido carinhoso da parte deles enviar algo ao filho
para aliviar suas necessidades. O pai poderia ter enviado ao filho uma
mensagem, convidando-o a voltar. Tudo isso teria sido prova de
415
Derrett, Law in the New Testament, p. 111.
416
A palavra céu é um circunlóquio judaico para “Deus”. Se, 11:217.
417
Numa fazenda judaica havia três tipos de servos: primeiro, o escravo, que
pertencia à família de seu senhor e que gozava de inúmeros privilégios; depois a
classe inferior de criados e criadas (veja-se Lc 12.45); e, terceiro, os trabalhadores
temporários. Consulte-se Oesterley, Parables, pp. 185,86.
418
Michaelis, Gleichnisse, p. 138, pensa que o pai estava orgulhoso porque o filho
partira para terras estrangeiras.
amor.

Mas, aqui, nos deparamos com um contraste. O pai não


procurou seu filho para trazê-lo de volta a casa. Nas outras duas
parábolas, o pastor vasculhou os montes para encontrar a ovelha
perdida, e a mulher varreu o chão à procura da moeda. Mas o pai
ficou em casa. Há uma diferença entre uma ovelha e uma moeda, de
um lado, e um filho, de outro. O pastor só pode encontrar sua ovelha
se sair à procura dela pelos montes. A única maneira de a mulher
recuperar sua moeda é varrendo a casa. O pai, no entanto, tinha mais
que uma opção. A primeira, seria visitá-lo e chamá-lo de volta à casa.
A segunda era esperar paciente e prudentemente que o filho caísse
em si, confessasse seus pecados e buscasse a reconciliação. Assim,
estaria restabelecida a relação pai-filho. Então o que estava perdido
seria encontrado419.

O pai tinha o controle da situação, não o filho. O pai olhava na


direção de onde esperava que seu filho viesse. Quando o viu, seu
coração se compadeceu dele. Deixando de lado a dignidade e o
decoro, correu ao encontro do filho, descalço e maltrapilho, e,
abraçando-o, o beijou420. O pai aceitou o filho como membro da
família antes que ele pudesse atirar-se a seus pés para beijá-los,
como um escravo; ou, antes, que se ajoelhasse e lhe beijasse as
mãos. Abraçando-o e beijando-o, deixou que soubesse que era
considerado filho. Assim, não foi necessário que o jovem fizesse o
discurso que já havia preparado para dizer que gostaria de ser
empregado como trabalhador na fazenda de seu pai421. O pai o
impediu, beijando-o e tratando-o como filho. O filho confessou seu
pecado: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de
ser chamado teu filho”. Ele falou a verdade. Já não era mais digno por
causa de seu passado. Tinha perdido o direito legal à sua filiação.
Mas, o pai o aceitou como filho, e isso pôs fim a qualquer idéia de
trabalhar na fazenda como contratado. Assim determinou o
fazendeiro.

O longo período de espera chegara ao fim. O pai tinha seu filho


de volta. Portanto, era hora de comemorar. O pai ordenou aos servos
que lhe trouxessem as melhores roupas. Puseram-lhe um anel no
dedo e sandálias nos pés422. O filho foi tratado com muita honra pelo
pai, pois as melhores vestes estavam sempre guardadas para
hóspedes muito especiais. O anel era símbolo de autoridade; e, assim,
419
Schippers, Gelijkenissen, p. 170; H. Thielicke, The Waiting Father (New York:
Harper, 1959), p. 28; Mánek, Frucht, p. 101.
420
No relato sobre Davi saudando Absalão no palácio real, o beijo paternal
significava perdão. 2 Sm 14.33. Jeremias, Parables, p. 130: K. H. Rengstorf, Die Re-
Investur des Verlorenen Sohnes in der Gleichniseriàhlung Jesu Luk. 15.11-32 (Kóln,
Opladen: Westdeutscher Verlag, 1967), p. 19.
421
Metzger, Textual Commentary, p. 164.
422
Compare-se com Gn 41.42, onde José recebe um anel de sinete, roupas de linho
fino, e um colar de ouro, de Faraó. Veja-se, também, 1 Macabeus 6.15.
todos podiam ver que ele estava reintegrado423. Naturalmente, as
sandálias lhe foram dadas para indicar que era um homem livre. Os
escravos e os pobres andavam descalços. “Trazei também e matai o
novilho cevado”, disse o pai, “Comamos e regozijemo-nos”. Como o
pastor tinha chamado os amigos e vizinhos para festejarem com ele
por ter achado a ovelha perdida, e como a mulher celebrou a
recuperação da moeda com amigas e vizinhas, também o pai ordenou
que houvesse músicas e danças. Todos os membros da família e os
servos foram chamados para a festa. Era hora de celebrar e ser feliz.

“Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido


e foi achado”. O pai se referia ao fato de que o filho, deixando de ter
parte na herança da família, e dando por acabada sua obrigação
moral e material para com o pai, tinha-se desligado, voluntariamente,
de casa. Na prática, o filho estava morto424. Na verdade ele não tinha
mais nada a reclamar sobre a propriedade, quando o pai morresse.
“Este meu filho estava morto e reviveu”, disse o pai.

A parábola não diz como foram resolvidos os aspectos legais


dos direitos envolvidos com relação à herança425. Esse não é o
objetivo. O ponto importante é a volta do jovem e o fato de ter sido
aceito plenamente como filho.

O Filho Mais Velho

A parábola do filho pródigo poderia se encerrar com as


palavras: “E começaram a regozijar-se426”. Mas, então, a sentença
introdutória: “Certo homem tinha dois filhos” seria de pouca ou
nenhuma significância. A história estaria incompleta sem outras
referências ao filho mais velho.

O pai não era pai apenas do filho mais novo; era pai, também,
do filho mais velho. Seu primogênito tinha sido um filho leal, com
interesse pessoal na fazenda. Naturalmente, o filho sabia que era o
herdeiro. Ele estava fora, no campo, enquanto todos celebravam a
volta de seu irmão. Ele servia bem a seu pai, e seu pai aprovava o
zelo do filho. Mas, como pai, conhecia também as manifestações de
inveja, e sabia que a atitude do filho mais velho, em relação ao
423
Rengstorf, Re-Investitur, p. 29.
424
Rengstorf, Re-Investitur, p. 22, se refere ao costume legal, chamado
Ketsalsah, que é o desligamento de um membro da comunidade judaica, por
causa de conflito de interesse. Derreti, Law in the New Testament, p. 116, faz
notar que esse costume legal não se aplica às circunstâncias do filho pródigo,
porque ele não foi penalizado nem banido da família.
425
Consulte-se L. Schottroff, “Das Gleichnis vom Verlorenen Sohn”, ZTK 68
(1971); 39-41.
426
Entre Outros, J. T. Sanders, em “Tradition and Redaction in Lk XVG: 11-32, NTS
15 (1968-69): 433-38, argumenta que há duas parábolas separadas. Veja-se,
também, 1. J. O’Rourke, “Some Notes on Luke XV, 11-32, NTS 18 (1971-72): 431-
33, e Jeremias, Tradition und Redaktion in Lukas 15”, NW 62 (1971): 172-89, que
refuta o argumento.
caçula, estava influenciada por ela. Não nos é contado por que razão
o irmão mais velho foi o último, a saber, da volta do caçula 427. Pode
ter sido porque naquele dia ele tinha ido inspecionar a parte distante
da casa, e, por isso, tenha voltado mais tarde, naquela noite. Ao
chegar, ouviu a música e as danças e perguntou a um dos servos o
“que era aquilo”. Em segundos ficou sabendo que o irmão mais moço
tinha voltado e que o pai mandara matar o novilho cevado, porque
recebera de volta o filho, são e salvo.

O filho mais velho simplesmente não podia entender por que


seu pai estava tão feliz com a volta daquele filho inútil 428. Ninguém,
nunca, antes, expressara alegria e felicidade por causa do
primogênito; ninguém, nunca, fizera uma festa para aquele que ficara
em casa e que servia ao pai. O filho mais velho se recusou a entrar
em casa. Não tinha nada para tratar com seu sermão irresponsável,
que, ao voltar para casa, recebia a atenção de todos.

O pai tinha tido que sair de casa para ir ao encontro de um filho;


saiu de casa, outra vez, para encontrar o outro. Ele dera as boas-
vindas ao primeiro; saiu e fez o mesmo com o segundo. Tratou os dois
da mesma maneira. No entanto, o irmão mais velho não queria
tratamento igual. Ele censurou o pai, embora o pai continuasse a
argumentar com ele. Ao se justificar, o filho via a si mesmo como um
dos servos, não como filho. “Há tantos anos que te sirvo sem jamais
transgredir uma ordem tua”, disse ao pai. Ele não entendia o que
significava ser filho, e, assim, não podia ver o que estava implícito na
paternidade429. Acusou o pai de nunca lhe ter dado sequer um cabrito
para festejar com os amigos. Para seu irmão perdulário, ao contrário,
mandara matar o novilho cevado. Suas palavras eram cortantes e
amargas; recusava-se a tratar o pai como “pai” e a se referir ao irmão
como “irmão”. Insolentemente, disse: “Vindo, porém, esse teu filho,
que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar
para ele o novilho cevado”. Com estas palavras magoou o pai tanto
quanto o magoara o filho pródigo, com sua vida de dissipações. O
filho mais velho se afastava do pai, tanto quanto o fizera o irmão mais
moço. Aquele voltara para casa; o pai, agora, procurava argumentar
com o outro para que fizesse o mesmo.

Tanto o mais velho quanto o mais novo eram seus filhos, e o pai
se dirigiu ao mais velho com a mesma ternura com que se dirigira ao
caçula. Disse o pai: “Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que e
meu é teu430”. O pai ensinou-lhe o que significa ser filho: estar sempre

427
Rengstorf, Re-Invetitur, p. 54, faz perguntas sobre a expressão “no campo”. Seria
indício de que o filho não convivia bem com o pai e permanecesse longe de casa?
428
Thielicke, The Waiting Father, p. 32.
429
Morris, Luke, p. 244.
430
A palavra grega teknon (= criança) é muito mais afetuosa que a palavra huios
(= filho). A Nova Bíblia Inglesa emprega o sentido de teknon na tradução, “my
boy” ( =meu menino).
na presença do pai, como herdeiro. Mais ainda mostrou-lhe as
relações familiares de pai para filho e de irmão para irmão. Ele estava
dizendo: Porque és meu filho, eu sou teu pai; e porque o pródigo é
meu filho, ele é teu irmão431. Como uma família, disse o pai, “era
preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse teu
irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado432”. A
questão do relacionamento entre os filhos estava proposta. O filho
mais velho, que fielmente tinha servido o pai, na fazenda da família,
aceitaria ficar ao lado do pai quando este celebrava a volta do mais
jovem?

A parábola termina com um refrão: “Porque esse teu irmão


estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”. Estas palavras
repetem as proferidas na conclusão da parte que focaliza o filho mais
novo. As palavras ligam, inseparavelmente, os irmãos um ao outro e
ao pai.

Jesus não disse o que aconteceu depois. Parou ali,


propositalmente. Se tivesse mostrado a recusa do filho mais velho de
entrar em casa, teria fechado a porta. Deixando inacabada a história,
indicava que a porta permanecia aberta. O pai convidou o filho a
participar das festas; o filho tinha que se decidir. Cabia a ele a
decisão.

Aplicação

A intenção de Jesus era descrever a atitude dos fariseus e


mestres da Lei em relação aos coletores de impostos e às prostitutas.
Ele tinha sido acusado de receber aqueles pecadores e de comer com
eles. Tinham-lhe dado a entender que, associando-se com os
proscritos, ele mesmo seria banido. Jesus contou essa parábola na
qual o pai manda matar o novilho cevado e diz: “Comamos e
regozijemo-nos”. Queria mostrar aos escribas e fariseus por que
comia com publicanos e meretrizes.

Na pessoa do filho pródigo, os ouvintes de Jesus viram o retrato


dos marginalizados daqueles dias. Os coletores de impostos e os
“pecadores” eram judeus de nacionalidade, porém, por causa de sua
ocupação, tinham sido banidos da comunidade religiosa. Estavam
espiritualmente mortos, aos olhos dos judeus que permaneciam na
lei. O filho pródigo trabalhara para um empregador gentio; assim
como o coletor de impostos. O pródigo, no entanto, caiu em si e
voltou para casa de seu pai. Poderiam os publicanos fazer o mesmo e
voltar? A pergunta que Jesus propunha aos ouvintes era: “O que

431
Schippers, Gelijkenissen, p. 178.
432
Celebrar a volta do filho pródigo “era uma obrigação que o filho mais velho não
quis reconhecer.” Plummer, St. Luke, p. 379. Jeremias, Parables, p. 131, percebe
um tom de reprovação na voz do pai, quando diz a seu filho: “Devias te alegrar e
festejar, pois é o teu irmão que voltou para casa”.
acontece quando um publicano ou um ‘pecador’ se arrepende?”.

Jesus retratou o amor do pai pelo filho para deixar bastante


claro que o amor de Deus é infinito. Seus ouvintes reconheceram
Deus, na pessoa do pai. Sabiam que o pecado é sempre primeiro
contra Deus e depois contra o semelhante. Como Deus perdoa um
pecador e depois o reintegra como membro da sua família? A atitude
do pai, na parábola, representa o perdão amoroso de Deus oferecido
ao pecador que se arrepende. Como o pai disse aos servos:
“Comamos e regozijemo-nos”, assim Deus se alegra com seus anjos
por um pecador que se arrepende. Como nas parábolas da ovelha e
da dracma perdidas, todos os amigos e vizinhos se reúnem para
festejar, também na parábola do filho pródigo, o filho mais velho é
convidado a festejar e a alegrar-se.

Os fariseus e doutores da Lei não podiam deixar de entender a


pretendida identificação. Jesus tinha apontado seu dedo para eles,
quando contara a parte sobre o irmão mais velho. Jesus, entretanto,
não os acusou, de maneira alguma. Pela parábola, mostrou amor e
zelo genuínos, não apenas pelo pecador arrependido, mas, também,
pelo filho obediente. Pediu aos líderes religiosos daqueles dias para
celebrarem e alegrarem-se quando alguém social e moralmente
marginalizado se arrependesse. Pediu-lhes que aceitassem tais
pessoas com amor fraternal e que os reintegrassem na comunidade
religiosa. Jesus fez a proposta. Os fariseus e os doutores da Lei teriam
que tomar a decisão.

A parábola do filho pródigo proclama as boas-novas do


evangelho. Todos aqueles que voltaram suas costas para Deus, que
consideram a igreja fora de moda e aceitam a permissiva sociedade
atual, encontrarão um Pai celestial amoroso, esperando por eles, no
momento em que regressarem. Há uma volta ao lar para eles, porque
Deus é o lar433. Embora o arrependimento seja um mistério, o cristão
que tem amado e obedecido a Deus deve regozijar-se e alegrar-se,
quando um pecador se arrepende. Para ele são dirigidas as palavras:
“Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu”. Esta é a
mensagem para o justo que tem enfrentado batalhas pelo e com o
Senhor, que tem suportado o calor do dia e tem guardado a fé.

Do ponto de vista da economia, modernos filhos pródigos têm


dissipado milhões. Os pródigos de nossos dias esbanjam tempo e
talentos como se não tivessem valor. Não é de admirar que os justos
digam: “Imaginem se esses recursos fossem usados para difundir o
evangelho e construir o reino de Deus!” Ninguém pode discutir isso.
Deus não está interessado em tempo, energia e talentos gastos —
embora não perdoe o mau uso e o desperdício. Deus está interessado
na salvação dos seres humanos. Quando um pródigo moderno cai em
si e volta para Deus, há alegria nos céus. Como o céu se alegra, assim
433
Thielicke, The Waiting Father, p. 29.
a igreja deve celebrar e regozijar-se quando alguém espiritualmente
morto revive, e quando o que estava perdido é achado. Proclamar o
evangelho da salvação e ver pecadores serem salvos pelo
conhecimento de Cristo deve ser uma infindável celebração de vida
para todos os que crêem.

É esta uma história na qual apenas a graça de Deus é revelada?


A parábola é uma história do Cristianismo sem Cristo434? A resposta a
estas perguntas é que a parábola deve ser vista no contexto das
Escrituras. Do princípio ao fim, a Bíblia, desde a desobediência de
Adão e Eva até à descrição das multidões cercando o trono do
Cordeiro, é um comentário fluente a respeito desta parábola. É Jesus
que fala sobre o amor do Pai, que abre o caminho para a casa do Pai,
e que chama o pecador de volta à casa.

434
Para estudo destas questões, veja, Jülicher, Gleichnisreden, 2:364-65.
35. O Administrador Infiel

Lucas 16.1-9 “Disse Jesus também aos discípulos: Havia um homem


rico que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como
quem estava a defraudar os seus bens. Então, mandando-o chamar,
lhe disse: Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua
administração, porque já não podes mais continuar nela. Disse o
administrador consigo mesmo: Que farei, pois o meu senhor me tira a
administração? Trabalhar na terra não posso; também de mendigar
tenho vergonha. Eu sei o que farei, para que, quando for demitido da
administração, me recebam em suas casas. Tendo chamado cada um
dos devedores do seu senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao
meu patrão? Respondeu ele: Cem cados de azeite. Então, disse: Toma
a tua conta, assenta-te depressa e escreve cinqüenta. Depois,
perguntou a outro: Tu, quanto deves? Respondeu ele: Cem coros de
trigo. Disse-lhe: Toma a tua conta e escreve oitenta. E elogiou o
senhor o administrador infiel porque se houvera atiladamente, porque
os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os
filhos da luz. E eu vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei
amigos; para que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos
recebam nos tabernáculos eternos”.

De todas as parábolas ensinadas por Jesus, a parábola do


administrador infiel é a mais enigmática. Por esta razão, numerosas
interpretações têm sido dadas435. Cada uma delas tentando explicar o
435
Em ordem alfabética, a literatura representativa recente é a seguinte: J. D. M.
Derrett, “Fresh Light on St. Luke XVI:1. Tbe Parable of lhe Unjust Steward”, NTS 7
(1960-61): 198-219, publicado em Law inibe New Teslament (London: Longman
and Todd, 1970), pp. 48-77; J. D. M. Derrett, “Take thy Bond... and write Fifty
(Luke XVI.6) The Nature of the Bond”, JTS 23 (1972): 438- 40, pupblicado em
Studies in the New Testamenl (Leiden: Brill, 1977), 1:1-3. J. A. Fitzmyer, “The
Stoiyof the Dishonest Manager (Luke 16.1.13)”, TS 25 (1964):23-42, publicado em
Essays on lhe Semitic Background of the New Teslament (L.ondon: Society of
Biblical Literature, 1971), pp. 161-84. D. R. Fletcher, ‘The Riddle of lhe Unjust
Stewart: Is lrony the Key?” JBL 82 (1963): 15-30. E. Kamlah, “Die Parabel vom
ungerechten Verwalter (Luke 16:lff) in Rahmen der Knechtsgleichnisse’, Abraham
Unser Vater Festschrift honoring O. Michel (Leiden: Brill, 1963), pp. 276-94. F. J.
Moore, “The Parable of lhe Unjust Steward”, ATR 47(1965): 103-5. R. G. Lunt,
“Expounding the Parabies, III. The parable of the Unjust Steward (Luke 16.1-15)”,
ExpT 77 (1966): 132-36. L. J. Topei, “On the Injustice of lhe Unjust Steward: Luke
16:1-13,” CBQ (1975): 216-27, F. E. Wiiliams, “Is Almsgiving the Point of the ‘Unjust
Steward’?” JBL 83 (1964):293-97.
ensinamento da parábola à luz de suas implicações éticas. A
dificuldade que se apresenta ao leitor deve-se ao fato de a parábola
estar colocada em um contexto judaico, e por isso refletir as práticas
judaicas. Essa composição, com todos os seus fatores deve ser
reconstituída para que se obtenha um quadro claro e a compreensão
do ensinamento da parábola436.

Composição

Repetidamente, Deus dissera aos judeus que não cobrassem de


seus concidadãos juros sobre dinheiro, comida, ou qualquer outra
coisa. “Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está
contigo, não te haverás com ele como credor que impõe juros” (Ex
22.25; veja-se, também, Lv 25.36; Dt 15.8; 23.19). Deus ensinou a
seu povo a responsabilidade social e proibiu a usura, deixando
implícito que o usurário devia ser considerado um ladrão.

Sendo a natureza humana como é, práticas se desenvolveram


no decorrer do tempo objetivando burlar a lei de Deus. Os ricos, por
exemplo, escolhia.m uma pessoa de confiança como administrador.
Ele recebia plenos poderes para agir em nome de seu senhor.
Respondia por seu senhor, mas se usasse de usura, não seria o
senhor, e, sim, o administrador que seria levado ao tribunal. O rico
sempre obtinha lucro das transações de usura negociadas por seu
administrador. Mas, se tal transação fosse contestada no tribunal, o
rico estaria livre e a responsabilidade cairia sobre seu administrador.

O administrador, no entanto, tinha meios de se proteger,


aceitos até mesmo pelos fariseus e doutores da lei, e contra os quais
os magistrados nada podiam fazer a não ser reconhecê-los como mal
necessário. O administrador e o tomador do empréstimo redigiam um
acordo no qual o débito e os juros eram declarados como um todo. De
acordo com os líderes religiosos, a seguinte nota era considerada
exemplo de usura, e quem fosse responsável por ela poderia ser
levado aos tribunais: “Pagarei a Rubens 10 kor de trigo, no primeiro
dia do Nisã e se não o fizer, pagarei 4 kor de trigo a mais por ano 437”.
Mas, era considerada legal a seguinte: “Devo a Rubens 14 kor de
trigo”. O que a nota não explicava era que o tomador do empréstimo
tinha recebido apenas 10 kor e tinha que pagar a diferença em
juros438. Por exemplo, em 33-34 A.D., Herodes Agripa 1 estava para
falir e instruiu seu escravo libertado, Márcio, para tomar empréstimo
de alguém. Márcio foi procurar um banqueiro que o forçou a assinar
um título de 20.000 dracmas áticas. Na realidade, entretanto, ele
436
Oesterley Parables, pp. 192-203; DerretI, Law in lhe New Testament, p. 51.
Numerosas peculiaridades e expressões judaicas são evidentes na parábola.
Permanece a questão se ouvintes não-judeus entenderam a parábola nos dias de
Lucas. A tradição oral paralela à do Evangelho pode ter providenciado a chave para
um entendimento apropriado da parábola. Veja-se Marshall, Luke, p. 615.
437
Derrett Law in lhe New Teslament, p. 65.
438
Fitzmyer, Essays, p. 176.
recebeu 2.500 dracmas a menos439. Os juros estavam somados ao
capital, e o tomador do empréstimo teria que pagar o total, mesmo
que tivesse recebido uma soma consideravelmente menor440. O título,
em si, não explicaria os detalhes.

A taxa de juros para empréstimo de trigo chegava a vinte por


cento, com um adicional de cinco por cento de seguro contra a
flutuação dos preços e depreciação do valor do produto. Se
acontecesse de a mercadoria ser óleo de oliva, a taxa de juros era de
oitenta por cento acrescidos de mais vinte por cento da taxa de
seguro, totalizando cem por cento. O risco de tomar óleo de oliva
como empréstimo era muito grande. As colheitas de azeitonas são
imprevisíveis, e a qualidade do azeite varia de ano para ano, por
causa do tamanho e da qualidade das azeitonas. Óleos mais baratos,
extraídos de outras fontes, podiam ser adicionados ao óleo de oliva, e
os métodos usados para determinar sua pureza, eram ineficientes441.

O administrador tinha uma posição de confiança. Ele controlava


os bens de seu senhor e era considerado membro de sua casa.
Representava seu senhor e tinha plena autoridade para tratar com os
devedores da maneira que julgasse mais acertada. Os devedores,
portanto, tinham que aceitar as condições impostas pelo
administrador. Estas eram apenas de sua responsabilidade.

Se o administrador se mostrasse incompetente, ineficiente ou


indigno de confiança, o senhor o chamaria para prestar contas, e
depois, sumariamente, o despediria. O administrador não tinha como
procurar ajuda externa. Teria que deixar o emprego estaria sem
recursos próprios, e não seria bem recebido pelos companheiros442.

A História

Jesus contou uma história que poderia muito bem acontecer nos
dias de hoje. Fala de um homem rico que escolheu um administrador
para os seus negócios. Ele tinha inteira confiança no escolhido, mas
quando soube que ele estava dissipando seus bens, chamou-o e
disse-lhe para apresentar seus livros e prestar contas de sua
administração, pois estava despedido. Poderia procurar outro
emprego.

O administrador sabia que as acusações contra ele eram


verdadeiras, que tinha abusado da confiança de seu senhor, e que

439
Josephus, Antiquities, 18:157.
440
Derrett, Studies, 1:1-3.
441
Derrett, Law, p. 71.
442
Fitzmyer, em Essays, p. 177, é de opinião que o administrador recebia comissões
nas transações. Derrett, Law, p.74, mostra que o dinheiro envolvido em transações
de empréstimo pertencia ao senhor. Além disso, o administrador da parábola de
Jesus não tinha bens próprios e, por isso, fazia reservas para o futuro.
não poderia pedir misericórdia443. Sabia que um sucessor tomaria seu
lugar. O que o futuro reservava para aquele administrador? Tinha que
depender de sua própria engenhosidade. Não era fisicamente
capacitado para o trabalho braçal, e mendigar estava fora de
questão444. Ele arrazoava consigo mesmo, considerando possibilidades
e alternativas. De repente, exclamou: “Eu sei o que farei!” Controlaria
os negócios de modo que os devedores de seu senhor ficassem lhe
devendo obrigações, para que, depois de sua demissão, o
recebessem em suas casas.

Chamou os devedores, um a um. Dois exemplos são dados. O


primeiro veio e o administrador lhe perguntou quanto devia ao
senhor. Ele respondeu: “Cem cados de azeite”. Era uma quantidade
considerável de azeite, perto de 868 galões, ou 3.946 litros445. Uma
oliveira produz cerca de 120 quilos de azeitonas, ou 25 litros de
azeite446. O total de azeite devido viria de uma plantação com 150
árvores ou mais. O administrador disse ao devedor para apanhar a
conta, que registrava o valor devido e que o reduzisse à metade.

Ao devedor seguinte, fez a mesma pergunta: “Tu, quanto


deves?” E ele respondeu: “Cem coros de trigos”. O equivalente a cem
alqueires, que correspondem ao que cem acres produziam, naqueles
dias447. O administrador disse-lhe para apanhar sua conta e reduzir o
total em vinte medidas.

Nos dois exemplos, largas somas de dinheiro estavam


envolvidas. Assim mesmo, com a permissão do administrador, que já
tinha sido comunicado de sua demissão, os devedores mudaram os
números das contas. Podemos presumir que outros devedores
fizeram o mesmo.

Os devedores alteraram os totais porque sabiam que a taxa de


juros para o azeite emprestado era de cem por cento e para o trigo
emprestado vinte e cinco por cento. Satisfeitos, mudaram o total para
a soma que, realmente, deviam ao Senhor. Não falsificaram os
números, antes, de próprio punho, indicaram quanto tinham que
pagar. Resumindo, porque os juros da usura tinham sido retirados,
prevaleceu a honestidade.

Quando o administrador apresentou os livros a seu senhor, que


443
Ao contrário, o ministro das finanças, na parábola do credor incompassivo (Mt
18.21-35), ajoelhou-se e pediu a seu senhor que fosse paciente.
444
Eclesiástico 40.28 adverte: “Filho, não leves vida de mendigo; é melhor morrer
do que mendigar” (NEB).
445
SB, 11:218, faz esse cálculo baseando-se em Josephus, Antiquities 8.57. Jeremias,
Parables, p. 181, arredonda para 800 galões, quantia adotada pelos tradutores do
MV.
446
Dalman, Arbeit und Sitte, IV: 192.
447
Dalman, Arbeit und Sitte, 111:155,159. Veja-se, também, Jeremias, Parables, p.
181; SB, 11:218.
a seguir tomou conhecimento das alterações, ele foi elogiado por ter
agido com astúcia448. O administrador, não o senhor, manteve a
situação sob controle. Palavras de louvor foram proferidas porque o
administrador tinha assegurado para si mesmo a hospitalidade e a
generosidade dos devedores, tinha preparado o caminho para seu
sucessor, afastando qualquer má vontade da parte dos devedores, e
tinha dado a seu senhor a oportunidade de elogiá-lo por ter retirado
as taxas de usura e ter-se mostrado cidadão religioso e cumpridor da
lei. O administrador deve ter deixado seu senhor em posição mais
favorável, uma vez que este lhe dirigiu palavras de louvor449.

“E elogiou o senhor o administrador infiel porque se houvera


atiladamente”. A palavra infiel não pode ser aplicada à atitude do
administrador em relação aos devedores, porque, então, a sentença
“porque se houvera atiladamente” seria contraditória 450. Ela se refere
à vida anterior do administrador quando ele esbanjava os bens de seu
senhor. A caracterização é a mesma daquela usada para o juiz que,
com o correr do tempo, tinha estabelecido a reputação de ser injusto.
Quando julgou a causa da viúva, com certeza não lhe fez injustiça451.
Do mesmo modo, o administrador, por sua prévia carreira de
negócios escusos, é chamado de desonesto, mesmo que as instruções
que mais tarde deu aos devedores fossem honradas e louváveis, aos
olhos do público. O senhor não podia ir aos devedores e aplicar as
taxas de usura que anteriormente o administrador tinha combinado,
pois, então agiria como um agiota e poderia ser levado aos tribunais.
O senhor elogiou o servo por sua esperteza.

Aplicação

O que ensina a parábola, precisamente? A história do


administrador desonesto, posta à luz das circunstâncias judaicas
originais, ainda transmite uma mensagem importante para os nossos
dias. Qual é, então, a mensagem452? Jesus a resumiu, afirmando:
“Porque os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração
do que os filhos da luz. E eu vos recomendo: Das riquezas de origem
iníqua fazei amigos; para que, quando estas vos faltarem, esses
amigos vos recebam nos tabernáculos eternos453”.

448
I. H. Marshall, “Luke XVI.8 — Who Commented the Unjust Steward?” JTS 19
(1968): 617-19.
449
Derrett, Law, p. 73.
450
H. Drexler, “Zu Lukas 16.1-7”, ZNW 58(1967): 286-288, sustenta que porque o
senhor fora injusto com o administrador, pedindo-lhe contas e o despedindo, este se
vingou chamando os devedores.
451
O artigo definido e o substantivo grego (tes adikias), traduzidos adjetivalmente
em muitas versões, são os mesmos em Lc 16.8 e Lc 18.6.
452
H. Preisker, “Lukas 16.1-7”, TLZ 74 (1949):85-82. contrasta a parábola do
administrador desonesto com a do filho pródigo. O administrador continuou
escravizado ao poder do dinheiro, enquanto o filho pródigo gastou seu dinheiro e se
arrependeu.
453
Traduções mais antigas, seguindo literalmente o texto grego, obscurecem, de
O ponto que a parábola focaliza é o fato de que o administrador,
que tinha fama de desonesto, compreendendo que seu futuro estava
em perigo, procurou aprovação, sendo honesto e generoso com os
devedores de seu senhor. Não procurou riquezas do mundo, mas
distribuiu-as àqueles que deviam a seu senhor, embora o dinheiro não
fosse seu, e, num certo sentido, nem mesmo de seu patrão. Do
mesmo modo, os filhos da luz não devem colocar seus corações em
bens terrenos. Devem ser generosos e repartir parte do que possuem.
Podem agir assim porque essas posses não lhes pertencem, mas, sim,
a Deus. Quando doam dinheiro aos pobres, estão redistribuindo a
riqueza que lhes for confiada por Deus454. Jesus repetiu essa verdade
quando disse: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a
terra... mas ajuntai para vós outros tesouros no céu” (Mt 6.19,20). O
que Jesus ensinou tem raízes, de muitas formas e maneiras, nos
ensinamentos do Velho Testamento. Davi, na presença do povo de
Deus, orou: “Porque quem sou eu, e quem é o meu povo para que
pudéssemos dar voluntariamente estas coisas? Porque tudo vem de
ti, e das tuas mãos to damos” (1 Cr 29.14). Por intermédio da
parábola do administrador infiel, Jesus aconselha os seus seguidores a
dar de seu dinheiro tanto quanto possível para que possam receber
aprovação de Deus e serem bem-vindos à sua casa, para ali viverem
eternamente455.

Aqui encontramos, implícito, um ponto de contraste.


Indiretamente, Jesus diz: o administrador infiel, reduzindo o total das
dívidas, olhou para o futuro; muito mais deve o povo de Deus repartir
seus bens e olhar adiante, para sua casa eterna. O povo de Deus
deve usar suas posses materiais para fazer um investimento
espiritual, assim como o filho do mundo usa seu dinheiro para obter
lucros materiais. O tempo vem quando o dinheiro será coisa do
passado. Ao vir a morte, o espírito do homem volta para Deus, que o
deu (Ec 12.7). Deus recebe com alegria todos aqueles que não têm
colocado seu coração em tesouros da terra, mas têm ajuntado
tesouros nos céus456.

Os filhos do mundo sabem como usar suas posses terrenas e


como aplicá-las de modo materialístico. De repente, no entanto,
podem abandonar padrões desonestos sabendo que, em longo prazo,
a honestidade compensa. Por outro lado, cristãos que têm aprendido

algum modo, o significado da passagem. A NEB traduz Lucas 16.9 quase do mesmo
modo que a NIV: “Eu vos digo: Usai vossas riquezas materiais para fazer amigos
para vós mesmos, de modo que, quando o dinheiro for coisa do passado, possais
ser recebidos no lar eterno”.
454
Derrett, Law, p. 74.
455
SB, 11:221. Consulte-se, também, Willians, ‘Almsgiving”, p. 294; Lunt, ‘Parable”,
p. 134.
456
Com base nos estudos dos textos de Cunrã, a expressão “riquezas materiais”, o
mamom da injustiça, deve ser contrastada com as riquezas celestiais. Marshall,
Luke, p. 621.
o padrão da lei de Deus, têm, muitas vezes, a tendência de relaxar e
modificar os princípios cristãos. Querem o melhor dos dois mundos:
querem ter a fé cristã no conforto de uma sociedade abastada;
querem ser amados por Deus e, ao mesmo tempo, serem elogiados
pelos homens. Jesus disse: “Os filhos do mundo são mais hábeis na
sua própria geração do que os filhos da luz”. Se aqueles que não
professam servir a Deus compreendem que seus padrões são
fundamentais, não deveriam os que professam ser seu povo manter a
lei de Deus, praticar o que pregam e mostrar por palavras e atos que
o dinheiro, afinal, falha, mas as riquezas celestiais são eternas? Em
sua epístola pastoral, Tiago adverte os cristãos que fazem opção por
uma vida dupla. “Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo
é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo,
constitui-se em inimigo de Deus” (Tg 4.4).
36. O Rico e Lázaro

Lucas 16.19-31 “Ora, havia certo homem rico que se vestia de


púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava
esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro,
coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se
das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham
lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser levado
pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi
sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu
ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai
Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em
água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou
atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de
que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os
males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E,
além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte
que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os
de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te imploro que o
mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que
lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de
tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-
nos. Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for
ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se
não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir,
ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”.

A parábola do administrador infiel e a do rico e Lázaro têm


algumas coisas em comum. Primeiro, um ponto óbvio: as frases
introdutórias das duas parábolas são idênticas: “Havia certo homem
rico.” Segundo, o ensino da parábola do administrador infiel é a
advertência para que não ajuntemos tesouros na terra, e, sim, nos
céus. Este é, também, um dos temas da parábola do rico e Lázaro. E,
terceiro, nas duas parábolas encontramos o chamado para o
arrependimento, antes que seja tarde demais. Elas desafiam o
ouvinte a voltar ao ensinamento da lei de Deus a respeito do uso das
riquezas, ao exercício da honestidade e do respeito, e à prática da
misericórdia e do amor.

A parábola do rico e Lázaro pode ser vista como um drama em


dois atos, seguidos de urna conclusão. A primeira cena apresenta a
vida e a morte na terra; a segunda retrata o céu e o inferno. A
conclusão é dada na forma de uma aplicação implícita.

Aqui e Agora

Jesus contou a história sugestiva de um rico e um pobre 457. O


457
Antes dos dias de Jesus, uma história popular egípcia descrevia um rico vestido
rico se vestia de púrpura, ornamento de reis 458, suas roupas eram de
linho finíssimo, vindo do Egito. Dia após dia, ele gastava seu tempo
em banquetes porque não tinham nada para fazer. Passava sua vida
em festas. Apesar de toda a sua riqueza, o nome do homem não é
conhecido459. Tudo que sabemos é que tinha cinco irmãos que, como
ele mesmo, mostravam habitual menosprezo pela Palavra de Deus
revelada.

A segunda pessoa apresentada na história se achava no


extremo oposto do espectro econômico. Vivia em pobreza abjeta. Não
podia nem mesmo andar. Seus amigos tinham que carregá-lo e apoiá-
lo junto ao portão da mansão do rico. Por causa da falta de cuidados
médicos e de higiene pessoal, ele sofria de uma doença da pele e
tinha o corpo coberto de feridas. Seu corpo tinha definhado, a fome
era sua companheira constante e seu olhar ansioso se voltava para as
sobras de comida que tinham sido varridas do chão da sala de
jantar460 e reunidas para serem dadas aos cães e aos mendigos que
esperavam lá fora. Esse miserável ser humano só tinha a companhia
dos cães que vinham lamber-lhe as chagas. Embora tenha passado
pela vida como se fosse ninguém, seu nome ficou registrado: Lázaro,
forma abreviada de Eleazar, que significa “Deus ajuda461”.

Os dois homens eram judeus, mas o rico ignorava a ordem de


Deus para cuidar de seu compatriota abatido pela pobreza. O rico não
podia ser totalmente ignorante das Escrituras, pois os mestres da lei
diligentemente instruíam o povo acerca dos preceitos divinos. Além
disso, conhecia Lázaro e até mesmo sabia seu nome. O pobre
homem, que nunca se queixava, nem nunca se dirigia ao rico,
de fino linho e um pobre numa esteira de palha, cujos papéis se invertiam após a
morte. Veja F. L. Griffith, Stories of the High Priests of Memphis (Oxford: n.p.
1900), e H. Gresssmann, Vom relchen Man und armen Lazarus (Berlin: n.p.
1918). Esse conto popular foi trazido a Israel pelos judeus de Alexandria. Alterado,
tornou-se parte do folclore judaico. Na história modificada, um rico coletor de
impostos chamado Bar Ma’jan e um pobre mestre da lei foram sepultados. Após a
morte, o mestre da lei passeava ao longo dos riachos do paraíso, enquanto o coletor
de impostos, mesmo junto das águas, era incapaz de alcançá-las para mitigar sua
sede. G. Dalman Aramaische Dialektproben (Leipzig: Deichert, 1927), pp. 33-34.
458
A tinta púrpura era obtida do caramujo púrpura. SB, 11:220.
459
O nome Dives é o adjetivo latino para a palavra rico, em todas as versões
latinas. Ao rico têm sido dados nomes como Amonofis, Finees, Finaeus, Nineue, e
Neves, em vários manuscritos. H. J. Cadbuiy “A Proper Name for Dives”, JBL 81,
(1962):339-402; H. J. Cadbuty, “The Name of Dives”, JBL 84 (1965): 73; K. Grobel,
“... Whose Name was Neves”, NTS 10 (1963-64):373-82.
460
Os hóspedes, à mesa de um rico, usavam pedaços de pão para limpar a gordura
de entre os dedos. Esses pedaços não deviam ser colocados no prato da carne ou
do molho e não eram comidos pelos convidados. Era costume jogá-los para debaixo
da mesa. Oesterley, Parables, p. 205; Jeremias, Parables, p. 184.
461
Recentemente, alguns estudiosos têm procurado explicar o nome Lázaro.
Consulte-se R. Dunkerley, “L.azarus” NTS 5 (1958-59):321-27; 1. D. M. Derreti,
“Fresh light on St. Luke XVI: II. Dives and L.azarus and lhe Preceding Sayings”, NTS
7 (1960-1961): 364-480, publicado em Law ln the New Testament (London:
1970), pp. 78-99; C. H. Cave, “Lazarus and the Lukan Deuteronomy”, NTS 15 (1968-
69):319-25.
confiava em Deus, que o ajudava.

A morte veio e pôs fim ao sofrimento de Lázaro. Seu corpo, que


não era mais que pele e osso, foi rapidamente, removido. Porque não
havia ninguém para mostrar ou receber simpatia, seu funeral não foi,
ao menos, mencionado. Mas, Lázaro não estava sozinho na hora de
sua morte. Os anjos de Deus vieram e o levaram para um lugar de
honra nos céus. Estava assentado junto de Abraão, onde podia
desfrutar do Banquete Messiânico462.

O rico morreu, também. Sua vida de comodidade, luxo,


conforto, prazer e pompa, subitamente terminou. Talvez tenha sofrido
um ataque cardíaco. Seu funeral foi bem cuidado. Seus cinco irmãos
fizeram todos os arranjos necessários. Tocadores de flauta e
carpideiras vieram, e todos os seus amigos compareceram. O falecido
vivera com pompa; foi enterrado com pompa. Mas, todos aqueles que
vieram pranteá-lo, não podiam ver além do túmulo. Continuavam a
pensar nele como um homem rico, agora morto463. Enquanto Lázaro
foi levado pelos anjos para o seio de Abraão, o rico, despojado de
seus bens terrenos, foi para o inferno.

Então e Além

Tudo mudou no momento da morte. Lázaro recebeu um lugar


da mais elevada honra, junto do pai dos crentes. Os anjos o tinham
levado para junto de Abraão, onde gozava da companhia dos filhos de
Deus. O rico, que na terra vivia cercado de amigos, não era mais
considerado rico no inferno. Despojado de toda a sua riqueza, estava
só.

Do outro lado do túmulo, Lázaro mantinha silêncio em relação


ao rico, embora, compreensivelmente, conversasse com Abraão. Foi
Abraão quem respondeu aos pedidos do homem rico. Não foi Lázaro,
e, sim, Abraão quem o instruiu sobre as realidades dos destinos
eternos. O rico estava em tormentos, enquanto Lázaro gozava o
prazer da companhia de Abraão. No tormento do inferno estavam
incluídas a sede extrema e a agonia do fogo464.

O rico, no tormento do inferno, viu Abraão à distância e Lázaro


junto dele465. Reconheceu Abraão, o pai dos crentes. Sendo judeu, ele
462
O termo holpos (= “seio”) pode ser entendido como uma expressão oriental
significando recostar-se ou reclinar-se em uma festa ou banquete (Jo 13.23). Pode,
também, descrever amizade íntima (Jo 1.18). Veja-se,T. W. Manson, The Sayings
of Jesus (L.ondon: SCM Press, 1950), p. 299; SB, 11:225-27.
463
Michaelis, Gleichnisse, p. 217.
464
A sede e a dor eram o quinhão daqueles condenados a morrerem separados de
Deus. Veja-se 2 Ed 8.59; 2 Enoque 10.1,2.
465
Para descrever os indivíduos no céu e no inferno, Jesus usou imagens de corpos
humanos e suas funções, embora tanto o corpo de Lázaro como o do homem rico
estivessem sepultados na terra.
o conhecia como pai. Esperava que sua raça fosse levada em conta,
embora fosse muito mais física que espiritualmente filho de Abraão.
Mesmo no inferno, parecia não compreender que sua completa
indiferença às ordens de Deus na terra tinha posto fim a qualquer
reclamo de herança espiritual466. Durante sua vida, ele mesmo
rompera os laços espirituais com Abraão, ignorando as necessidades
de seu próximo. Em vez de amar o próximo como a si mesmo, vivera
não para este, nem para Deus, senão para si mesmo. Buscara sempre
a satisfação própria. Agora, no inferno, estava entregue a si mesmo.

O rico não se encontrava no inferno porque tinha vivido de


modo perverso, na terra. Seus muitos parentes e amigos podiam
testemunhar que tinha sido cidadão proeminente e que dera provas
de ser anfitrião muito generoso, quando recebia seus convidados.
Podiam falar dele com palavras calorosas de elogio e reconhecimento.
Entretanto, o rico não merecia os tormentos do inferno por causa do
que tinha feito na terra, mas, antes, pelo que deixara de fazer. Tinha
negligenciado o amor a Deus e ao próximo. Menosprezara Deus e sua
Palavra.

Mesmo no inferno, o rico continuava impenitente. Não pediu


misericórdia a Deus, mas a Abraão. Chamou Abraão de pai, e
esperava que o patriarca tivesse pena de um de seus
descendentes467. Instruiu Abraão a como mostrar misericórdia e enviar
alívio: “Manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me
refresque a língua”. Pôs de lado os preconceitos. Aceitaria
prontamente ser servido por um antigo mendigo, se pudesse. Ainda
assim, seu tom de voz deixava implícito que considerava Lázaro como
um servo que devia ser enviado a seu pedido, com a aprovação de
Abraão. Na terra, o rico nunca tinha ajudado Lázaro; no inferno,
entretanto, mostrava necessidade de ajuda. Reconheceu Lázaro, mas
não se dirigiu a ele, diretamente. Queria que Abraão o enviasse, como
um servo humilde que respondesse prontamente às ordens de um
rico. Em certo sentido, agia como se ainda estivesse na terra.

Enquanto Lázaro gozava dos prazeres celestiais, provavelmente


no cenário de um riacho corrente, o rico sofria a agonia ardente do
fogo do inferno468. Ele implorou por água para refrescar sua língua, e
466
Paulo, na Epístola aos Romanos, toca neste ponto, quando escreve: “E não
pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são
de fato israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos”
(Rm 9.6,7).
467
O judeu se orgulhava do fato de ser descendente de Abraão — Mt 3.8,9 e Jo 8.33-
39. Um judeu excomungado não chamaria Abraão de pai. O judeu, com boas obras
a seu crédito, pertencia ao povo do pacto de Israel e podia chamar Abraão de pai.
Veja-se Oesterley, Parables, p. 208.
468
Fica evidente, pelas muitas referências ao fogo do inferno, nos Evangelhos, que
Jesus ensinou, em termos francos, a doutrina do inferno. Reconhecidamente, a
palavra para inferno, nestes textos, é a palavra Gehenna e não Hades. Jesus o
descreveu como um lugar de castigo, como também fizeram os apóstolos. Vejam-
se, entre outras passagens: Mt 5.22,29,30; 7.19; 8.12; 10.28; 18.8,9; 22.33; 25.41;
viu que Lázaro poderia alcançá-la.

Abraão se dirigiu ao rico como “filho”, aceitando o parentesco


físico. Mesmo esse parentesco não devia trazer alívio ao homem, por
duas razões: (1) a lei da retribuição, e (2) o caráter irrevogável do
veredicto de Deus. Primeiro, a lei da retribuição estipulava que a vida
terrena de um homem, em palavras e atos, permanecia em relação
direta com seu destino na vida futura. O rico escolhera uma vida de
coisas boas na terra; no inferno sofria agonia. Lázaro, pelo contrário,
passara a vida na miséria, mas, depois, gozava do conforto dos céus.
Segundo, o irrevogável julgamento de Deus estava confirmado pelo
abismo intransferível existente entre o céu e o inferno. Ninguém
poderia ir do céu para o inferno e vice-versa469. Deus pronunciara seu
julgamento sem possibilidade de apelo. O destino fora selado no mo-
mento da morte.

Lázaro foi para o céu, e o rico para o inferno. Entre os dois


lugares, Deus colocou um grande abismo para tornar impossível a
passagem de uma situação para outra470.

O rico compreendeu que sua situação era permanente. Seu


próprio quinhão foi fixado, mas o de seus cinco irmãos, na terra, não
estava. Poderiam mudar a maneira de viver e, assim, evitar passar a
eternidade no inferno. Mais uma vez, ele chamou Abraão de “pai’”, e
outra vez queria usar Lázaro como servo. Implorou a Abraão que
enviasse Lázaro à casa de seus pais para avisar seus irmãos, a fim de
que não viessem para o lugar de tormento no qual se encontrava.
Estava ciente do grande abismo colocado entre o céu e o inferno, mas
pensava que alguém poderia, prontamente, ir do céu para a terra.
Pensava que Abraão tinha autoridade para enviar Lázaro. De algum
modo, compreendia que ele mesmo não poderia deixar o inferno para
voltar a terra. Tinha que ficar onde estava471.

Durante sua vida na terra, assim como durante a conversa do

e versículos paralelos.
469
Oesterley, Parables, p. 209, vê a doutrina da condenação eterna como
anticristã. Pergunta se Lucas 16.26 é uma interpolação e afirma que a passagem
“fica mais suave sem ov. 26”. Porque ele não apresenta evidência textual, tal
questionamento é inadmissível e demonstra uma recusa a lidar com a Palavra de
Deus escrita. E C. F. Evans, “Uncomfortable Words — V. (Luke 16.31)”, ExpT 81
(1969-70):230, que escreve: “Hoje, a parábola é considerada fundamento imperioso
para a crença de que a posição e o status do indivíduo são irrevogavelmente
fixados no momento da morte”.
470
No v. 26, o tempo perfeito do verbo grego sterizo indica estado resultante.
Entretanto, o uso de hopos implica em propósito e não resultado de alguma coisa
ocorrida. Morris, Luke, p. 254, A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New
Testament (New York: Hodder & Stoughton, George 11. Doran Company, 1919), p.
896.
471
Michaelis, Gleichnisse, p. 264, nº 151, sugere que Lázaro poderia aparecer, em
sonho ou visão, aos irmãos do rico. Entretanto, se este fosse o caso, o próprio
homem rico poderia fazer isso com muito mais eficácia.
rico com Abraão, Lázaro permaneceu em silêncio. Nem uma palavra
saiu de seus lábios sobre a audácia do rico de dizer a Abraão o que
fazer. O rico se dirigiu a Abraão, que lhe respondeu.

Abraão se recusou a permitir que um sinal dos céus fosse


enviado aos cinco irmãos do homem rico. Não permitiu nada que
vislumbrasse o oculto. A revelação de Deus fora dada e era suficiente
para a salvação. Abraão disse ao rico que seus parentes tinham
acesso aos cinco livros de Moisés, e aos livros dos profetas. Isto é,
tinham as Escrituras do Velho Testamento. “Ouçam-nos”.

O rico sabia que seu pai e seus irmãos não levavam a sério as
Escrituras. Seus cinco irmãos solteiros viviam ainda na casa do pai (o
número cinco é arbitrário) e viviam uma vida semelhante à que ele
levara na terra. Não eram as riquezas que eles desfrutavam que o
preocupavam472, e, sim, o seu menosprezo para com as Escrituras.
Chamou Abraão de “pai” pela terceira vez, assegurando-lhe que seu
pai e seus irmãos se arrependeriam se alguém de entre os mortos
ressuscitasse e fosse ter com eles. Não pediu mais que Lázaro fosse
enviado. Qualquer um poderia fazê-lo.

Abraão respondeu que ninguém ressuscitado de entre 473os


mortos seria capaz de lhes falar a respeito da revelação de Deus mais
claramente do que podiam achar nas Escrituras. Se um homem
rejeita a Palavra de Deus escrita, não se arrependerá nem será
persuadido por alguém que ressuscite. O rei Saul viu Samuel trazido
pela médium de En-Dor, e, ainda assim, não se arrependeu (1 Sm
28.7-25). Os fariseus viram Lázaro, irmão de Maria e Marta, sair do
túmulo. Não se arrependeram, antes, procuraram matá-lo (Jo 12.10).
O fato de o nome Lázaro, na parábola, ser o mesmo do ressuscitado
em Betânia, surpreende. Leva-nos a perguntar até que ponto pode
isto ser mera coincidência474. No entanto, porque não sabemos a
circunstância histórica precisa na qual a parábola foi contada, a
tentativa de ligá-la ao relato da ressurreição de Lázaro, em Betânia,
embora bem intencionada, dificilmente convence. Por outro lado, a
ressurreição de Lázaro e a ressurreição de Jesus demonstram
indubitavelmente que aqueles que se recusam a aceitar o
testemunho da revelação de Deus “tão pouco se deixarão persuadir,
ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”.

Aplicação

Não há, na parábola do rico e Lázaro, introdução nem conclusão

472
A dedução não é que um crente deva viver na pobreza para entrar nos céus.
Abraão, durante sua vida na terra, era considerado rico. O ponto em questão é a
relação com Deus e com o próximo. Mánek, Frucht, p. 108.
473
Plummer, St. Luke, p. 397.
474
Dunkerley, “Lazarus”, p. 322.
específica. A parábola pode ter sido contada em qualquer ocasião do
ministério terreno de Jesus. Mas, porque Lucas a registrou em seguida
à do administrador infiel, e porque ele revela a reação dos fariseus ao
ensino de Jesus: “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lc 16.13),
podemos deduzir que os fariseus estavam presentes quando Jesus
contou a parábola do rico e Lázaro475. Os fariseus eram,
provavelmente, os que ouviam a parábola. O contexto imediato
mostra que, porque amavam o dinheiro, ridicularizavam Jesus (Lc
16.14). Também porque se justificavam a si mesmos diante dos
homens, como Jesus afirmou (Lc 16.15). Deus, no entanto, conhecia
seus corações. Jesus via a contradição que havia em suas vidas e
contou a história de um homem que amava o dinheiro, vivia no luxo,
e pensava que o fato de ser descendente de Abraão lhe garantiria a
salvação. O conteúdo da parábola está ligado ao comentário dirigido
aos fariseus a respeito de vícios como o amor ao dinheiro e a
autojustificação476.

No contexto mais amplo da série de parábolas registradas por


Lucas, várias questões se impõem: “O que o rico e Lázaro
representam?’” e “Por que Jesus não contou a história de um rico
coletor de impostos e um pobre mestre da lei?” Os fariseus olhavam
os publicanos como “pecadores” que corriam o risco de perderem o
direito de ser chamados filhos de Abraão e de pertencer ao povo da
aliança de Deus. Na parábola, no entanto, Jesus retrata dois homens,
um rico e o outro pobre. O rico viveu uma vida respeitável, chamava
Abraão de pai, e foi viver a eternidade no inferno. O pobre jamais
abriu a boca, na terra ou no céu, embora ocupasse lugar de honra
junto ao pai Abraão.

Os fariseus foram capazes de se reconhecer no homem rico.


Reagiram veementemente contra a afirmação de Jesus de que não
poderiam servir a Deus e às riquezas. Ridicularizando Jesus,
ostensivamente revelaram que eram aqueles que amavam o dinheiro.
Eram, também, os únicos que prontamente chamavam Abraão de pai
e pensavam que seu parentesco com o patriarca lhes assegurava o
futuro. Três vezes o rico chamou Abraão de pai. Mas, Abraão, embora
aceitando a descendência física, chamando-o de “filho”, na primeira
vez, deixou claro, nas respostas subseqüentes, que um parentesco
físico era insuficiente477. Portanto, os fariseus não podiam contar com
o fato de serem da linhagem de Abraão para terem garantido um
lugar no céu.

475
Manson, Sayuings, pp. 296-301, e Hunter, Parables, p. 114, sugerem que a
parábola foi endereçada aos saduceus porque negavam a ressurreição. Esta seria,
na verdade, uma interpretação útil, se o contexto, direta ou indiretamente, se
referisse a eles.
476
Derrett, Law, p. 85, se refere à história de Dives e Lázaro como a “parábola da
inversão”. Veja-se, também, Oesterley, Parables, p. 203.
477
F. H. Capron, “Son in the Parable of the Rich Man and Lazarus”, ExpT 13 (1901):
523.
Além disso, os fariseus eram os que ensinavam a lei da
retribuição, em relação à vida futura. Essa doutrina, simplesmente,
não é compatível com o ensino de Jesus478. É estranha a ele. Mas Jesus
pôs a doutrina dos fariseus na boca de Abraão: “Filho, lembra-te de
que recebestes os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente os
males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos.”’
Jesus aplicou a lei da retribuição aos fariseus, que ouviram sua
própria teologia dos lábios de Abraão. Eles tinham criado um grande
abismo entre eles próprios e os proscritos morais e sociais. Esses
banidos da sociedade viviam em completa pobreza religiosa e
econômica. Ninguém da comunidade judaica lhes fornecia alimento
espiritual; estavam condenados a morrer de fome. Se alguém, alguma
vez, questionasse a atitude dos fariseus em relação a esses
marginalizados, ouviria como resposta que eles tinham Moisés e os
profetas, que ouvissem a lei e se arrependessem. Os fariseus ouviam
suas próprias palavras distinta e diretamente de Abraão. Estavam
retratados pelo rico, no inferno, e Lázaro representava os
marginalizados.

Os fariseus, mais que uma vez, haviam pedido a Jesus que lhes
desse um sinal dos céus479. Pediam isso com o propósito de testá-lo.
Provavelmente não teriam acreditado nele, mesmo que lhes
apresentasse um sinal sobrenatural. Agora, esses mesmos fariseus
ouviam o rico da parábola pedir a Abraão um sinal dos céus. Abraão
recusou. Ele disse: “Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tão pouco
se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os
mortos.” No pedido do rico, os fariseus ouviram o eco de suas
próprias palavras. A parábola era endereçada a eles480.

Conclusão

A lição ensinada por Jesus é atemporal; é a regra permanente


de como ouvir, obediente e agradecido, a Palavra de Deus. As
Escrituras nos ensinam a amar o Senhor nosso Deus de todo o nosso
coração, nossa alma e nossa mente, e ao próximo como a nós
mesmos. Este amor tem que ser materialmente expresso na
cuidadosa entrega de nossos dons ao Senhor e àqueles que, próximos
a nós, estão em dificuldade (SI 112.9; 2 Co 9.7). Este amor, também,
deve-se mostrar espiritualmente; primeiro, pelo crescimento na graça
e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2 Pe
3.18); e, segundo, ensinando nosso próximo a conhecer o Senhor (Jr
31.34; Hb 8.11).

Os ricos são realmente ricos quando repartem suas bênçãos


materiais e espirituais com os necessitados. Na verdade, são
terrivelmente pobres se guardam, para si mesmos, essas bênçãos.
478
Schippers, Gelijkenissen, p. 160.
479
Mt 12.38; 16.1; Mc 8.11; Lc 11.16; Jo 6.30.
480
Schippers, Gelijkenissen, p. 161.
Qualquer que ajunte egoisticamente riquezas materiais acaba
sofrendo bancarrota espiritual. Do mesmo modo, qualquer igreja que
deixa de evangelizar, morre espiritualmente.

Os cristãos das sociedades abastadas não podem deixar de ver


e ouvir as necessidades dos pobres na África, Ásia e América Latina.
Pelas notícias da mídia, encontram os necessitados junto à sua porta.
Esses são os que sofrem de fome física e espiritual, que anseiam pela
comida que cai da mesa do rico.
Em lugar algum as Escrituras ensinam que é pecado ser rico.
Repetidamente, no entanto, elas advertem o povo de Deus que
riquezas podem ser cilada e tentação que “afogam os homens na
ruína e perdição” (1 Tm 6.9). Quando o homem coloca Deus e seu
próximo necessitado em um plano secundário, e trata as Escrituras
com desprezo intencional, sua resposta responsável ao chamado para
o arrependimento pode não acontecer jamais481.

Na parábola soa uma nota de urgência para o homem que sábia


e obedientemente atenta para a Palavra de Deus. Ela o chama ao
arrependimento e à fé; diz-lhe que ele está vivendo no período da
graça; instrui-o a deixar de lado a autojustificação; e fá-lo lembrar que
o destino do homem é irrevogavelmente selado no momento da
morte. Resumindo, a parábola reitera as palavras do salmista: “Oxalá
ouvísseis hoje a sua voz! Não endureçais o vosso coração” (SI 95.7,8).

481
O Glombiiza, “Der reiche Mann und der arme L.arzan,s. Luk. XVI 19-31. Zur Frage
nach der Llotschaft des Texts”, NovT 12(1970):173.
37. O Fazendeiro e o Servo

Lucas 17.7-10 “Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou


em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e
põe-te à mesa? E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-
te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois, comerás tu e
beberás? Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o
que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito
quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos
apenas o que devíamos fazer”.

No mundo materialista da sociedade ocidental, a parábola do


fazendeiro e seu servo parece, de certo modo, fora de lugar. As
disputas trabalhistas, de um tipo ou de outro, são comuns, hoje em
dia. Salários mais altos e jornadas mais curtas são parte das
exigências da força de trabalho. Um empregado de determinado setor
não pode, simplesmente, passar para outro. Cada trabalhador deve
fazer a tarefa para a qual foi contratado.

A parábola contada por Jesus deixa entrever parte da relação


empregador x empregado, daqueles dias. Embora as circunstâncias
atuais sejam outras, a aplicação da parábola não tem limite no
tempo. A mensagem transmitida nesta pequena representação da
vida agrícola da sociedade do primeiro século é permanente e
relevante ainda hoje.

“Qual de vós”, disse Jesus, “tendo um servo ocupado na lavoura


ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e
põe-te à mesa? E que antes não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te
e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois tu comerás e beberás?
Porventura terá de agradecer ao servo por ter este feito o que lhe
havia ordenado? Assim, também vós, depois de haverdes feito quanto
vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas
o que deveríamos fazer482”.

O contexto da parábola é o relacionamento frio e impessoal do


mundo antigo, quando o que se esperava de um escravo era que
obedecesse ao que quer que seu senhor ordenasse. Se o dono desse

482
O adjetivo “inúteis” na sentença “somos servos inúteis”, não tem o sentido de
imprestável ou sem serventia. E mais uma expressão de modéstia no sentido de
falta de merecimento. “Somos servos, e não merecemos elogios” (NEB).
ordens ao servo para arar o campo durante o dia e preparar o jantar,
quando voltasse, ele, simplesmente, obedeceria, pois sabia que esta
era sua tarefa. Era simples assim. E, por ter feito sua tarefa, o escravo
não recebia agradecimentos, porque não era costume agradecer-lhes.

O que Jesus está dizendo com esta parábola? Ele quer que seus
seguidores entendam o que significa ser servo. Seus próprios
discípulos, que viviam num clima religioso de méritos e demérito,
perguntaram, mais de uma vez, qual deles seria o maior no reino dos
céus483. Jesus teve que ensinar: “Se alguém quer ser o primeiro, será
o último e servo de todos” (Mc 9.35). Ele mesmo deu o exemplo,
quando lavou os pés dos discípulos (Jo 13.1- 17) e, depois de instituir
a Santa Ceia, instruiu-os a agir como servos: “... o maior entre vós
seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve. Pois
qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Pois, no meio de
vós, eu sou como quem serve” (Lc 22.26,27)484.

Constantemente Jesus tinha que ensinar a seus discípulos que


não deviam trabalhar para o reino de Deus pensando em
recompensas. Deus não emprega seus servos para recompensá-los
por seus serviços. Nenhum servo pode, jamais, dizer: “Deus está em
débito comigo”. Deus não compra serviços como um empregador que
compra o tempo e a habilidade de seus empregados. E porque Deus
não entra numa relação empregador x empregado, ninguém pode,
jamais, reclamar de Deus, alegando serviços prestados485.

Para fazer seus discípulos entenderem o que significa servir,


Jesus contou-lhes a parábola do fazendeiro e seu servo. O fazendeiro
podia fazer as maiores exigências a respeito do tempo e da eficiência
de seu servo. Legitimamente podia agir assim, para o seu próprio
benefício e prazer. Se isso era verdadeiro na relação entre o
fazendeiro e o servo, Jesus perguntou, quanto mais verdadeiro será
para os servos de Deus486, que foram chamados para amar a seus
servos para serem santos, porque ele é santo, então, ninguém pode
reclamar dele recompensas por tarefas cumpridas. Ninguém tem o
direito de esperar dele palavras de elogio por ter feito o que devia. Se
Deus concede favores e recompensas, o faz pela graça dele e não
pelo mérito pessoal de cada um.

483
Mt 18.1; 20.21; Mc 9.34; 10.37; Lc 9.46; 22.24; e veja Mt 23.11.
484
Na parábola dos servos vigilantes (Lc 12.35-38), o senhor, quando chega,
prepara a refeição dos servos e os serve.
485
Comparem-se, entre outros, Sl 62.12; Mt 16.27; 2 Co 5.10; Ap 22.12.
486
Manson, Sayings, p. 302.
38. O Juiz Iníquo

Lucas 18.1-8 “Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar


sempre e nunca esmorecer: Havia em certa cidade um juiz que não
temia a Deus, nem respeitava homem algum. Havia também, naquela
mesma cidade, uma viúva que vinha ter com ele, dizendo: Julga a
minha causa contra o meu adversário. Ele, por algum tempo, não a
quis atender; mas, depois, disse consigo: Bem que eu não temo a
Deus, nem respeito a homem algum; todavia, como esta viúva me
importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha
a molestar-me. Então, disse o Senhor: Considerai no que diz este juiz
iníquo. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam
dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los? Digo-vos que,
depressa, lhes fará justiça. Contudo, quando vier o Filho do Homem,
achará, porventura, fé na terra?”.

Esta parábola é conhecida, também, como a parábola da


mulher persistente. E companheira daquela do amigo à meia-noite (Lc
11.5-8). Lucas apresenta as duas como relatos semelhantes: uma
sobre um homem, a outra sobre uma mulher (esta parábola é
encontrada apenas em Lucas). Embora pareça um tanto fora do
contexto, sua conclusão: “Contudo, quando vier o Filho do homem,
achará porventura fé na terra?” (18.8) a relaciona com o estudo
escatológico do capítulo precedente. Além disso, o assunto oração
aparece na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18.9-14) que vem
imediatamente a seguir.

A Viúva e o Juiz

Apenas duas pessoas representam os papéis principais: a viúva


e o juiz. O adversário da viúva é apenas mencionado. A parábola do
amigo à meia-noite também apresenta dois personagens centrais: o
hospedeiro e o vizinho, enquanto que o viajante é mencionado
apenas de passagem.

Parece que as viúvas, em Israel, passavam por grande


dificuldade; as numerosas leis protetoras indicam que eram oprimidas
e passavam grande privação. O próprio Deus defende a causa da
viúva (Dt 10.18) e amaldiçoa o homem que perverter seu direito (Dt
27.19). A viúva tomava o lugar do marido falecido e, no tribunal, era
considerada como tendo os mesmos direitos de um homem: “No
tocante ao voto da viúva ou da divorciada, tudo com que se obrigar
lhe será válido” (Nm 30.9). Qualquer um que pervertesse o direito da
viúva teria que enfrentar Deus, o juiz das viúvas (Sl 68.5).

Contudo, as viúvas eram maltratadas. O profeta Isaías queixa-


se de que os governantes da terra são rebeldes e ladrões. “Não
defendem o direito do órfão, e não chega perante eles a causa das
viúvas” (Is 1.23). E Malaquias afirma que Deus será testemunha veloz
contra aqueles que oprimem a viúva e o órfão (Ml 3.5).

Jesus contou a seus discípulos sobre uma viúva de certa cidade,


que não tinha ninguém para apoiá-la contra seu adversário, a não ser
um juiz iníquo487. Seu adversário não tinha nem mesmo que
comparecer no tribunal, o que é indício de que se tratava de uma
questão de dinheiro. Ela não podia pagar um advogado. Então, se
dirigiu diretamente ao juiz e queria que ele lhe servisse de advogado
e juiz488.

Em vez de ir ao tribunal da comunidade, ela procurou o juiz, que


era conhecido por todos pela sua má reputação489. Esse juiz não tinha
princípios religiosos e se mostrava imune à opinião pública.
Simplesmente não dava a mínima importância ao que falasse Deus ou
o homem. Assim era o juiz que a viúva procurou. Faltam-nos detalhes,
pois não nos é dito nada sobre a idade da mulher490, se era rica ou
pobre, e porque procurou um juiz que “não temia a Deus nem
respeitava homem algum”.

Viúva, ela é um retrato de vulnerabilidade. Seu único recurso é


levar sua causa ao juiz com o pedido: “Julga a minha causa contra o
meu adversário”. A expressão “julga a minha causa” é linguagem
jurídica, e significa, realmente, “aceita a minha causa”, ou “ajuda-me
a obter justiça491”.

Apesar da reputação do juiz de menosprezar esses assuntos, a


viúva pediu-lhe ajuda. Coerente com a própria fama, o juiz se recusou
a agir. Provavelmente dispensou a viúva, mandando-a para casa, com
a observação costumeira: “O caso seguinte, por favor”.
487
G. Schrenk, TDNT 1:375.
488
Derrett, ‘Law in the New Testament: The Unjust Judge”, NTS 18(1971.72): 188,
publicado em Studies in the New Testament (Leiden: Brill, 1977), 1:42.
489
De acordo com a lei dos fariseus, o judeu estava proibido de procurar tribunais
não judaicos. Paulo revela que na igreja primitiva esta mesma regra devia ser
seguida (1 Co 5.12 — 6.8). Muitas vezes, o povo procurava juízes gentios “se por
esse intermédio, apelando para algum argumento político ou fiscal, pudessem ter
frustrados os direitos de seus oponentes ou pudessem forçá-los a fazer o que a lei
ordinária deixara de fazer”. DerretI, “L.aw in lhe New Testament”, p. 184. Consulte-
se, também, Smith, Parables, p. 149.
490
Porque os casamentos eram contratados quando a moça tinha catorze ou quinze
anos, uma viúva podia ser bem jovem. Consulte-se SB, II: 374; Jeremias, Parables,
p. 153.
491
Derrett, “Law in the New Testament”, p. 187, Schrenk, TDNT, II: 443.
A única arma de que a mulher dispunha era procurar o juiz, dia
após dia, com o mesmo pedido: “Julga a minha causa contra o meu
adversário”. A viúva conseguiu irritar o juiz, que pensou: “Bem que eu
não temo a Deus, nem respeito homem algum, todavia, como esta
viúva me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por
fim, venha a molestar-me”. Ele não temia uma agressão física492; o
que estava acontecendo é que a persistência dela fazia aflorar o seu
lado bom. Em lugar de ir embora, quieta, que era o que ele esperava,
ela voltava, sempre, com o mesmo pedido. O juiz não podia suportar
mais a insistência da mulher. Ele cede, investiga o caso e aplica a
justiça.

Aplicação

Na parábola do juiz iníquo, Jesus é muito mais específico que na


do amigo importuno. De fato, a interpretação e a aplicação da
mensagem da parábola, em Lc 11.5-8, devem ser buscadas no
contexto geral, enquanto que na parábola do juiz iníquo, encontramos
tanto a mensagem quanto a aplicação.

Jesus diz: “Considerai no que diz este juiz iníquo493”. Ele quer
que os discípulos prestem atenção às palavras do juiz. Elas são
importantes para a compreensão correta da parábola. Como fez na
parábola do amigo que veio à meia-noite, Jesus usa a regra dos
contrastes. Ele contrasta o pior que há no homem com o melhor que
há em Deus: “Considerai no que diz este juiz iníquo. Não fará Deus
justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora
pareça demorado em defendê-los?” Em outras palavras, ninguém
deve imaginar Deus como uma divindade inabalável que se compara
ao juiz da parábola. O sentido é que se esse juiz grosseiro e mal
humorado, que, segundo suas próprias palavras, não teme a Deus
nem aos homens, se comove com os pedidos da viúva, quanto mais
fará Deus justiça a seu próprio povo que ora a ele, de dia e de noite?

Além disso, não existe nenhuma relação entre a viúva e o juiz,


seja social, comunitária ou religiosa. O juiz quer ficar livre dela para
que até o laço advogado-cliente tenha fim. E, mesmo assim, esse juiz
inescrupuloso atende à viúva e lhe faz justiça. Deus, ao contrário,
escolheu seu próprio povo. Ele tem interesse especial nesse povo,

492
As traduções da palavra grega hypopiaze variam, e vão de um insulto ao
cometimento de um ato de violência — “acertar um soco no olho”. Derrett, “Law to
the New Testament”, p. 191, interpreta a palavra, como significando “perda de
prestígio”. É, portanto, comparável à palavra anaideia, de Lá 11.8, que pode ter o
sentido de “não ser alvo de reprovação; manter a aparência”. Veja-se D. R.
Catchpole, ‘The Son of Man’s Search for Faith (Luke XVIII 8b)” NovT l9 (1977):89. 1
Co 9.27 é o outro lugar, no Novo Testamento, onde a palavra hypopiaze é usada.
493
A expressão “juiz iníquo” define o contraste entre a injustiça personificada pelo
juiz terreno e Deus que ouve seus eleitos. Veja-se G. Delling, “Das Gleichnis voo
gottlosen Richter”, ZNW 53 (1962):14.
pois ele lhe pertence494. Quando esse povo lhe pede, noite e dia, Deus
toma para si sua causa e faz justiça. Assim, se a viúva tivesse pedido
a Deus, teria recebido justiça, porque Deus ouve e responde às
orações495. O juiz ouviu a mulher pelo motivo errado: para livrar-se
dela. Deus ouve seu povo porque o ama e defende sua causa. O juiz
age egoisticamente; Deus age em favor de seu povo.

Os filhos de Deus devem orar constantemente? A parábola


ensina que devem trazer sua causa diante de Deus, em oração
contínua. Devem orar sempre e não se tornarem ansiosos quando não
obtêm uma resposta imediata. Jesus ensina o poder da oração. Por
palavras e exemplos, ele demonstrou que os filhos de Deus devem
orar dia e noite, sem desanimar. Do mesmo modo, Paulo, em suas
Epístolas, repetidamente se refere ao fato de orar continuamente (dia
e noite) e com o máximo empenho, como, por exemplo, no seu desejo
de estar com a igreja em Tessalônica (1 Ts 3.10).

Se o povo de Deus clama a ele dia e noite, por que, às vezes,


ele demora a responder496? Jesus continua: “Não fará Deus justiça aos
seus escolhidos... embora pareça demorado em defendê-los?” E a
resposta implícita desta pergunta de retórica é: Naturalmente que
sim. Ele talvez faça seu povo esperar, pode testar sua paciência,
fortificar sua fé, mas, no tempo próprio, Deus responderá às orações
de seus eleitos497.

Deus não é como o juiz iníquo que se recusa a atender os pedidos


da viúva. Deus pode fazer seu povo esperar, mas fará justiça
incontinenti: “Digo-vos que depressa lhes fará justiça”.
Aparentemente há uma contradição na afirmativa de Jesus. Mas não é
o que acontece se propusermos duas simples questões e procurarmos
suas respostas. Primeiro, Deus fará justiça a seu povo? A resposta,
obviamente, é que sim. O povo de Deus pode confiar em sua
fidelidade. Ele não é como o juiz iníquo, em cujo caráter não se pode

494
Delling, “Gleichnis”, p. 15.
495
A linguagem da parábola é reminiscência de Eclesiástico 35.12-20, que faIa sobre
a justiça de Deus. “Porque o Senhor é um juiz”, diz Jesus Ben-Sirach. “Ele jamais
ignora o apelo do órfão ou da viúva” (NEB).
496
Muitos exegetas têm tentado uma explicação satisfatória para Lá 18.7b. A brusca
mudança do subjuntivo no v.7a, para o indicativo, em 7b, pode significar que o
versículo consiste de duas sentenças independentes. A última parte do v. 7 é
semelhante a Eclesiástico 25.19. Para interpretações deste versículo, veja-se H.
Riesenfeld, “Zu makrothumein (Lk 18.7) “Neutestamentliche Aufsãtze,
Festschrift honoring J. Schmid (Regensburg: Pustet, 1963), pp. 214-17; H. Ljungvik,
“Zur Erklãrung einer Lukas-Stelle (Luk. XVIII7)”, NTS 10(1963-64): 289-94; A.
Wifstrand, “Lukas xviii:7’, NTS 11(1964-65): 72-74: C. E. 13. Cranfield, “The Parable
of the Unjust Judge and the Eschatology of Luke-Acts”, Scot JT 16(1963): 297-301;
e Jerem ias, Parables, p. 154.
497
Plumer, St. Luke, p. 414, comenta que, embora o sentido exato não possa ser
determinado, o que é importante é suficientemente claro: ‘não importa o quanto a
resposta possa parecer demorada, a oração com fé e constância é sempre
respondida.
confiar. Segundo, o povo de Deus deve esperar até que suas orações
sejam respondidas? Ao contrário do juiz, Deus não se sente
incomodado porque seu povo ora a ele, de dia e de noite. Quando
Deus ouve as orações, não significa que cedeu em sua determinação
de não respondê-las. Deus responde às orações no tempo apropriado
e de acordo com seu plano498. E, quando o tempo vem, a oração é
prontamente atendida Deus não demora, pois seu ouvido está
sintonizado com a voz de seus filhos. Em tempos de tristeza, o tempo
de espera parece alongar-se, mas, quando o filho de Deus recebe
resposta às suas orações, e percebe o plano de Deus, admite que
Deus praticou a justiça em seu favor, sem demora499.

Jesus conclui a aplicação da parábola chamando a atenção para


sua volta: “Contudo, quando vier o Filho do homem achará
porventura fé na terra?” A pergunta, à primeira vista, parece não ter
relação com o que a precedeu. Mas, na última parte do capítulo
anterior Lucas registrou o ensino de Jesus sobre a vinda do Filho do
homem, no último dia500.

Ao referir-se à sua segunda vinda, Jesus liga o conceito de


justiça ao dia do juízo, quando ele será o Juiz dos vivos e dos mortos
(At 10.42). Jesus lembra a seus seguidores o dia de sua volta. Ele vai
encontrar, naquele dia, a fé simples como a de uma criança?

A volta do Filho do homem não pode ser questionada; o evento


se cumprirá no tempo escolhido por Deus. Podemos estar certos da
promessa de Jesus sobre sua volta. O outro lado da questão é saber
se o crente será fiel em suas orações. O seguidor de Jesus orará
continuamente pela vinda do reino de Deus (Mt 6.10; Lc 11.2) e pela
volta de Cristo (1 Co 16.22; Ap 22.17,20)? Jesus cumpre e,
eventualmente, completa sua obra de redenção através do corpo de
crentes do qual ele é o Cabeça. Jesus faz a obra confiada a ele. O
crente, no entanto, será fiel a Jesus, comunicando-se com ele,
constantemente, em oração? Haverá fé perseverante, quando ele
voltar?

Em certo sentido, a viúva persistente retrata a igreja em


oração501. O mundo oprime os seguidores de Jesus que não têm para
onde se voltar, a não ser para Deus. Eles esperam, em oração, a
intervenção de Deus, sabendo que ele ouvirá seus pedidos. A
semelhança entre o hospedeiro insistente, que tirou seu vizinho da
498
Marshal, Luke, p. 676, Morris, Luke, pp. 263-64.
499
Veja Delling, “Gleichnis”, p. 20: C. Spicq, “La parabole de la veuve obstinée et du
juge inert aux decisions impromptues (Lc xviii 1-8)”, RB 68(1961): 82-83.
500
Linnemann, Parables, p. 121, ousadamente escreve que a parábola não é
originalmente de Jesus; antes, é a palavra do Senhor que ascendeu “falada em
nome e espírito de Jesus para a comunidade de crentes”. Catchpole, ‘Son of Man’s
Search”, p. 104, refuta o argumento mostrando a inter-relação da parábola e do
contexto. Ele conclui que, na parábola, “ouvimos a voz do Jesus histórico”.
501
Delling, “Gleichnis”, p. 24.
cama, e a viúva que continuou insistindo com o juiz, é clara. Nenhum
dos dois tinha para onde ir. Os dois sabiam que, se continuassem
insistindo, acabariam sendo atendidos.

Por meio dessas parábolas. Jesus exorta seus seguidores a


permanecerem fiéis, mesmo que sua volta exija espera paciente. As
almas dos que morreram por causa da Palavra de Deus podem gritar:
“Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem
vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6.10). A
resposta que recebem é que esperem um pouco mais até que se
complete o número dos seus conservos e irmãos.

39. O Fariseu e o Publicano

Lucas 18.9-14 “Propôs também esta parábola a alguns que confiavam


em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros:
Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu,
e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si
mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os
demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como
este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo
quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem
ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus,
sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para
sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado;
mas o que se humilha será exaltado”.

O versículo introdutório desta parábola é propositalmente amplo


em seu escopo e não especifica um grupo determinado. Não
obstante, existe a tentação real de destacar os fariseus dos demais.
Reconhecidamente, muitos deles exibiam uma atitude de confiança
na própria justificação e olhavam com desprezo seus semelhantes.
Seria um erro deplorável atribuir esta atitude a todos os fariseus, pois
Nicodemos e José de Arimatéia, por exemplo, não poderiam ser
incluídos nesta categoria502. Por isso, Lucas generalizou, no primeiro
versículo.

O Fariseu

Nesta parábola, Jesus descreve a atitude de um fariseu em


particular, que cm sua própria maneira de ver, excedia o restante de
seus compatriotas na observância dos detalhes da Lei de Moisés503.
Cheia do espírito de auto-justificação e lançando olhares desdenhosos
aos que estavam a seu redor, o fariseu se encaminhou ao templo
para orar. Em suas palavras e atitude, mostrava que não precisava de
502
D. A. Hagner, “Pharisees”, ZPEB, 4:745-52.
503
Josephus, War, 1:110; Manson, Sayings, p. 309; SB, 11:239.
Deus porque confiava em si mesmo504. Sua autoconfiança era tão
grande que ele julgava ser capaz de manter o padrão que se havia
proposto. Conseqüentemente, menosprezava as pessoas que não
desejavam ou eram incapazes de manter esse padrão.

Ele foi ao templo de Jerusalém para orar. Deve ter sido no meio
da manhã, às 9 horas, ou no meio da tarde, às 15 horas — horas
determinadas para a oração. Dirigiu-se ao pátio externo, onde podia
ser visto e ouvido pelos homens, porque o pátio interno era acessível
apenas aos sacerdotes. Lá ele se postou e, olhando para os céus,
orava a respeito de si mesmo505. Sua oração estava centrado nele
mesmo, e pretendia que todos, ao seu redor, a ouvissem. Foi uma
oração curta: uma introdução, um elemento negativo e um elemento
positivo.

“Deus, graças te dou


Porque não sou como os demais homens —
roubadores, injustos e adúlteros —
nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e dou o dízimo de tudo quanto ganho”.

Na relativamente curta oração, a ênfase recai na primeira


pessoa do singular. O pronome eu ocorre, pelo menos, quatro vezes.
O fariseu orou em agradecimento. Nada pediu, porque confiava em si
mesmo e em sua auto-suficiência. Não tinha necessidade de se
confessar, pois guardava os mandamentos. As referências ao seu
semelhante foram feitas em termos negativos. Além disso, Deus
deveria estar satisfeito porque um fariseu, cumpridor da lei, se dirigia
a ele em oração. Ele não se dava conta de que a graça de Deus
evitara que caísse em pecados tão medonhos como o roubo, a
injustiça e o adultério. Não podia entender o que significava viver com
a consciência culpada, como o publicano.

Para sua própria glorificação, enumerou dois feitos


extraordinários que costumava praticar. Primeiro, além e acima do
que é exigido pela Lei, jejuava duas vezes por semana. A Lei
prescreve um dia de jejum por ano, no Iom Kipur (= o Dia do
504
Jeremias, Parables p. 139 nº 38; Manson, Saylngs, p. 309. Em sua carta aos
Filipenses, Paulo descreve sua vida passada, como fariseu: ‘Bem que eu poderia
confiar também na carne. Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu
ainda mais! Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de
Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da
igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível” (Fp 3.4.6).
505
Os manuscritos gregos diferem na ordem precisa das palavras pros heauton.
Estaria esta frase ligada à expressão verbal “estar em pé” ou ao verbo “orar”? A
tradução pode ser “de pé, separado por si mesmo, orava” ou “posto em pé, orava
para si mesmo”. Os tradutores da NIV escolheram a segunda forma, com uma
modificação. Entenderam a preposição pros no sentido de “a respeito de”, embora
na nota de rodapé traduzam como “para”. The Modern Language BibIe (New
Berkekey) traduz: “O fariseu pôs-se de pé e disse essa oração para si mesmo”.
Perdão)506, mas dá permissão para o jejum voluntário, em qualquer
tempo. Os fariseus instituíram a segunda-feira e a quinta-feira, como
dias de jejum durante os quais são feitas orações pela nação507.

Segundo, embora o dízimo sobre o produto comprado por ele já


tivesse sido entregue pelo produtor, o fariseu tornava a pagar, ele
mesmo, o dízimo de tudo o que se tornava seu508. Queria ser ele
mesmo a preservar a Lei de Deus, embora as suas exigências já
tivessem sido cumpridas pelos outros.

A oração do fariseu não era de todo incomum. Uma prece


semelhante, registrada no Talmude e proferida originariamente pelo
rabino Nadhunya ben Ha Kana, por volta de 70 A.D., diz:

“Graças te dou, ó Senhor meu Deus, que me tens dado a


minha porção com aqueles que se assentam em Bete ha-
Midrash (=casa do conhecimento) e não tens colocado
minha porção com aqueles que se assentam nas esquinas,
porque eu me levanto cedo por causa das palavras da Torá
e eles se levantam cedo por causa de conversas frívolas; eu
trabalho e eles trabalham, porém eu trabalho e recebo
minha recompensa; eu corro e eles correm, porém eu corro
para a vida do mundo futuro, e eles correm para a
destruição509”.

O fariseu, olhando ao seu redor, no pátio do templo, viu um


publicano. Ele agradeceu a Deus por ser diferente dos outros homens,
e, certamente, diferente daquele coletor de impostos. Ele estava livre
dos pecados cometidos por aquele traidor. Como se atrevia, esse
miserável, a entrar no templo? Davi não perguntou: “Quem subirá ao
monte do SENHOR? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O
que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma
à falsidade, nem jura dolosamente” (Sl 24.3,4). As palavras de Davi,
não condenavam esse publicano?

O Publicano

As sinagogas eram encontradas por todo o país e em


numerosos lugares de Jerusalém. O publicano não ousava entrar
numa sinagoga. O que ele procurava era um lugar onde pudesse orar
a Deus sem ser perturbado. Sendo judeu, tinha acesso ao pátio
externo do templo e podia ir até lá na hora de oração, pela manhã ou
à tarde. Só desejava um lugar onde pudesse permanecer afastado

506
Lv 16.29-31; 23.27-32; Nm 29.7; Jr 36.6.
507
SB, 11:241-44; SB, IV:1, 77-114. J. Behm, TDNT, IV: 924-35.
508
SB, 11:244-46; Jeremias, Parables, p. 140. Deus disse ao fazendeiro:
“Certamente darás os dízimos de todo fruto das tuas sementes, que ano após ano
se recolher do campo” (Dt 14.22).
509
Berakoth 28b, Zeraim, The Babylonian Talmud, p. 172.
dos outros que ali vinham para orar.

O publicano ouviu a Palavra de Deus, que o convenceu de seus


pecados. Sua consciência o estava incomodando; precisava de ajuda
espiritual. Queria chegar até Deus, mas estava sobrecarregado pelo
peso de sua própria indignidade diante de Deus e do homem. Nem
mesmo se atrevia a erguer os olhos para os céus, apenas ergueu as
mãos, em oração (1 Tm 2.8). Sentia vergonha pelos pecados
cometidos contra Deus e contra o próximo. Empregado dos romanos,
era objeto de desprezo e zombaria entre seu próprio povo. Sabia que
os tinha prejudicado, de tal modo que o viam como ladrão e traidor.
Não se surpreendia que os fariseus o considerassem pecador e
transgressor da lei de Deus.

A dívida que o coletor de impostos tinha para com o povo que


ele enganava era enorme. Ele não tinha possibilidade de pagá-la, e,
além disso, nem mesmo era capaz de se lembrar de quantos tinha
enganado510. A Lei fala claramente do pecado do roubo mediante
fraude, quando diz: “Quando alguma pessoa pecar, e cometer ofensa
contra o SENHOR, e negar ao seu próximo o que este lhe deu em
depósito, ou penhor ou roubo, ou tiver usado de extorsão para com o
seu próximo... restituirá aquilo que roubou, ou que extorquiu, ou o
depósito que lhe foi dado, ou o perdido que achou, ou tudo aquilo
sobre que jurou falsamente; e o restituirá por inteiro, e ainda a isso
acrescentará a quinta parte; àquele a quem pertence, lho dará no dia
da sua oferta pela culpa” (Lv 6.2-5). O publicano não tinha coragem
para aproximar-se do altar e dirigir-se ao sacerdote com sua oferta
pela culpa. Ficou próximo do altar. Não tinha para onde ir a não ser
para Deus, em oração.

Por causa de sua profissão tinha negligenciado a adoração a


Deus, na sinagoga e no templo. Agora, era chegado o momento de
confessar seus pecados diante de Deus, mesmo que não pudesse
pensar em apresentar sua oferta pelas suas culpas. Seus débitos para
com o povo eram grandes e variados demais. Pecara excessivamente
para poder fazer uma oferta pela sua culpa. Tudo o que podia fazer
era orar a Deus. Mas, porque negligenciara, por tanto tempo, sua vida
espiritual, nem mesmo sabia orar. Faltavam-lhe palavras de louvor,
adoração e gratidão. O fardo do pecado o oprimia. Queria expressar
sua culpa e só conseguia clamar por misericórdia. Rogava: “Ó Deus,
sê propício a mim, pecador!” E, enquanto pedia, batia no peito como
querendo mostrar a fonte do pecado — seu coração.

O pecador, como o publicano chamava a si mesmo, chegou


diante de Deus com as mãos vazias. Não apresentava méritos, nem
exigências. Não usou desculpas ou explicações. Comparar-se a outros
estava fora de cogitação. Ele sabia que era o pecador implorando
misericórdia. Seu grito: “Ó Deus, sê propício a mim” era um pedido
510
Jeremias, Parables, p. 143.
para que Deus perdoasse seus pecados e afastasse dele a sua ira511.
Pedia misericórdia, e era tudo o que se atrevia a pedir512. Orou e
esperou pela resposta de Deus.

Respostas

Na afirmação final, Jesus revelou como Deus respondeu às


orações do fariseu e do publicano: “Digo-vos que este (o publicano)
desceu justificado para sua casa, e não aquele (o fariseu)”. Deus
ouviu e respondeu ao grito angustiado do pecador em agonia
espiritual.

As pessoas que cercavam o fariseu certamente o consideravam


um santo que se esforçava diligentemente para obedecer a lei de
Deus. Acreditavam que Deus ouviria sua oração porque era uma
expressão de gratidão. Por outro lado, a oração do coletor de
impostos não estava acompanhada da exigida oferta pela culpa e não
poderia receber aprovação. Se alguém fosse chamado a julgar as
duas orações, provavelmente elogiaria o fariseu, e condenaria o
publicano513.

Deus ouviu as orações e sondou os corações dos dois homens.


O do fariseu era auto-suficiente, enquanto que o do publicano era
completamente vazio de autoconfiança. O fariseu se justificava diante
de si mesmo e, portanto, não tinha necessidade da misericórdia de
Deus. Ele tinha obedecido à Lei e não tinha consciência de quaisquer
pecados de comissão ou omissão. O publicano, no entanto, se dirigiu
a Deus usando a primeira linha do Salmo 51,o salmo penitencial de
Davi. Orou usando a própria linguagem das Escrituras: “Compadece-
te de mim, ó Deus...” (Sl 51.1)514. Ao seu pedido acrescentou a
palavra “pecador”, mas, mesmo nessa palavra ressoa o sentimento
do salmo de Davi. Deus responde à oração feita segundo as
Escrituras.

O publicano voltou para casa justificado diante de Deus, disse


Jesus. O homem que se chamou de “pecador” confiou inteiramente na
misericórdia de Deus515. Sua atitude em relação a Deus foi correta e,
por isso, foi aceito como filho de Deus, no reino dos céus. Confiou
simplesmente em seu Deus, que não desapontou sua fé. Diante de
Deus, o publicano estava absolvido. O fariseu, não. Um voltou
santificado; o outro como um pecador.

511
Consulte-se o estudo sobre o verbo hilaskomai, de F. Büchsel, TDNT III:316. The
Modern Language Bible (New Berkeley) fornece uma tradução literal do texto
grego: “Deus, tem misericórdia de mim, pecador” (Lc 18.13).
512
Manson, Sayings, p. 312.
513
Mànek, Frucht, p. 113; Linnemann, Parables, p. 61.
514
Jeremias, Parables, p. 144.
515
F. F. Bruce: “Justification in Non-Pauline Writings of the New Testament”, EQ 24
(1952): 68.
Jesus concluiu a parábola do fariseu e do publicano com as
mesmas palavras que usou para a parábola dos lugares à mesa: “Pois
todo o que se exalta será humilhado; e o que se humilha será
exaltado” (Lc 14.11).

A aplicação da parábola não é limitada nem pelo tempo, nem


pela cultura. “Fariseus” e “publicanos” são encontrados nas igrejas de
hoje. Se olharmos no espelho da Palavra de Deus, podemos
vislumbrá-los em nossa própria vida. Jesus ensina que a verdadeira
humildade leva à exaltação. Ele nos diz que olhemos apenas para ele
ao buscarmos a salvação. Quando estamos conscientes de nossa
própria insignificância diante de Deus e pedimos misericórdia, Deus
perdoa nossos pecados e nos salva através de seu Filho. Nas palavras
de Paulo: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos
quais eu sou o principal” (1 Tm 1.15).

40. As Dez Minas

Lucas 19.11-27 “Ouvindo eles estas coisas, Jesus propôs uma


parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de
Deus havia de manifestar-se imediatamente. Então, disse: Certo
homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar
posse de um reino e voltar. Chamou dez servos seus, confiou-lhes dez
minas e disse-lhes: Negociai até que eu volte. Mas os seus
concidadãos o odiavam e enviaram após ele uma embaixada,
dizendo: Não queremos que este reine sobre nós. Quando ele voltou,
depois de haver tomado posse do reino, mandou chamar os servos a
quem dera o dinheiro, a fim de saber que negócio cada um teria
conseguido. Compareceu o primeiro e disse: Senhor, a tua mina
rendeu dez. Respondeu-lhe o senhor: Muito bem, servo bom; porque
foste fiel no pouco, terás autoridade sobre dez cidades. Veio o
segundo, dizendo: Senhor, a tua mina rendeu cinco. A este disse:
Terás autoridade sobre cinco cidades. Veio, então, outro, dizendo: Eis
aqui, senhor, a tua mina, que eu guardei embrulhada num lenço. Pois
tive medo de ti, que és homem rigoroso; tiras o que não puseste e
ceifas o que não semeaste. Respondeu-lhe: Servo mau, por tua
própria boca te condenarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que
tiro o que não pus e ceifo o que não semeei; por que não puseste o
meu dinheiro no banco? E, então, na minha vinda, o receberia com
juros. E disse aos que o assistiam: Tirai-lhe a mina e dai-a ao que tem
as dez. Eles ponderaram: Senhor, ele já tem dez. Pois eu vos declaro:
a todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe
será tirado. Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram
que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha
presença”.

Quando Jesus estava indo para Jerusalém, as pessoas


acreditavam que o reino de Deus estava preste a vir. Durante seu
ministério de cura e ensinamento, Jesus tinha curado cegos, limpado
os leprosos e ressuscitado Lázaro, além de pregar as boas-novas516.
Acompanhando Jesus a Jerusalém, o povo esperava que o reino de
Deus se tornasse uma realidade.

Jesus sabia que o povo não tinha entendido a vinda do reino,


em termos espirituais. Não puderam ver que ele não seria, nem
poderia ser, um rei terreno, no reino de Deus. Para ajudá-los a
entender a implicação do reino, Jesus contou a parábola das minas.
Fez isso se referindo indiretamente a acontecimentos ocorridos há
mais de trinta anos atrás e que estavam gravados em suas memórias.

A História

O povo de Israel se lembrava com nitidez das calamidades


infligidas aos judeus durante os festejos da Páscoa do ano 4 a.C., no
pátio do tempo de Jerusalém. Herodes, o Grande, morrera não muito
antes da festa da Páscoa, e em seu testamento tinha determinado
que Arquelau fosse o rei517. No entanto, o reinado de Arquelau não se
tornaria efetivo até que César o aprovasse. Antes que o novo
escolhido pudesse viajar para Roma a fim de ser oficialmente coroado
rei — embora oficiais e soldados o aclamassem como tal —, um
distúrbio sem importância, no pátio do templo, degenerou em um
banho de sangue no qual três mil judeus foram mortos pelos soldados
de Arquelau. Em conseqüência, Arquelau ordenou que todos os
judeus voltassem para suas casas; eles deixaram a festa da Páscoa e
partiram.

Enquanto Arquelau foi a Roma, seus oficiais ficaram no


comando. Em vista dos tumultos e da violência no país, Arquelau
tinha pressa de se apresentar diante de César para se defender.
Cinqüenta deputados judeus procuraram o imperador romano
pleiteando a autonomia de Israel e acusando Arquelau de assassinar
três mil de seus compatriotas, no pátio do templo, em Jerusalém.
Esses cinqüenta deputados tiveram o apoio de mais de oito mil
judeus, em Roma518. Pediram a César que seu país fosse entregue a
governadores, e não a Arquelau.

Depois de alguns dias de deliberação, César indicou Arquelau


como o etnarca da Iduméia, Judéia e Samaria, e prometeu fazê-lo rei
se provasse capaz. Para o povo, no entanto, Arquelau, bem como seu
irmão Antipas (que governava a Galiléia e a Peréia, como tetrarca)
eram considerados reis519.

516
Mt 11.5,6; Lc 7.22.
517
Josephus, War 1:668; Antiquities 17:194.
518
Josephus, War 2:80; Antlqulties 17:300.
519
José levou Jesus e Maria para Nazaré e não para Belém, porque Arquelau reinava
(basileuei) na Judéia, Mi 2.22. Em Mc 6.14,22,26 Herodes Antiquas é chamado de
Arquelau deve ter passado tempo considerável em Roma,
porque foi envolvido em pelo menos dois litígios diante de César: um
contra seus parentes próximos, que queriam reclamar dele o trono, e
outro contra os cinqüenta deputados judeus que pleiteavam
autonomia. Também em Jerusalém os judeus se revoltaram, durante a
ausência de Arquelau. Por ocasião da festa de Pentecostes, em 4 a.C.,
eles tentaram obter a independência nacional.

Quando Arquelau, afinal, voltou para tomar posse de sua


etnarquia, aplicou punição exemplar. Assim, o sumo sacerdote Joazar
foi afastado de seu posto por ter dado apoio aos judeus rebeldes.
Arquelau foi extremamente rude no trato não só com os judeus, mas
também com os samaritanos520. Por suas ações, ele se tornou o mais
odiado dos governantes e, por causa das queixas contra ele, foi
afastado do cargo e banido em 6 a.D. Depois de seu reinado, Iduméia,
Judéia e Samaria passaram a ser administradas por governadores.
Mas o povo tinha recordações bem vivas do reinado de Arquelau.

A Parábola

Ao se aproximar de Jerusalém, junto com numerosos


peregrinos, para a festa da Páscoa, Jesus tinha apenas que dizer:
“Certo homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de
tomar posse de um reino, e voltar”, e todo o povo sabia que ele se
referia a Arquelau. Eles se recordavam do massacre de três mil
judeus, durante as celebrações da Páscoa, três décadas atrás. Jesus
continuou a chamar a atenção para esse incidente. Ele disse: “Mas os
seus concidadãos o odiavam, e enviaram após ele uma embaixada,
dizendo: Não queremos que este reine sobre nós. Quando ele voltou,
depois de haver tomado posse do reino, mandou chamar os servos”.

Jesus se referiu à história recente para estabelecer o cenário de


seu ensino sobre o reino de Deus. “Certo homem nobre”, Jesus disse,
“chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes:
Negociai até que eu volte”. A quantia era equivalente a três meses de
salário521. Não era uma quantia excessiva, o que cada um dos servos
recebeu, mas era suficiente para provar sua fidelidade ao rei. A
instrução que cada um recebeu a seguir foi: “Negociai até que eu
volte”. O rei esperava que seus servos soubessem administrar a
relativamente pequena soma de dinheiro, para, assim, obter lucro,
por ocasião de sua volta. A ordem deve ser vista e entendida no
contexto da cultura oriental da época, quando o comércio e a
barganha faziam parte do dia-a-dia.

rei. M. Zerwick, “Die Parabel vom Thronanwãrter”, Bib 40(1959): 662.


520
Josephus, War 2:111; Antiquitics, 17:339.
521
Considerando as oscilações dos valores monetários, os tradutores expressam sua
equivalência em termos de um período de trabalho.
A ausência de quaisquer termos de contrato pode indicar a
intenção de ludibriar a lei divina contra a usura. Muitas vezes, Deus
repetira a seu povo que não cobrasse dos seus concidadãos juros de
usura522. Mas, numerosos meios de fraudar a injunção tinham sido
postos em prática. Assim, enormes lucros eram obtidos em alguns
casos, principalmente quando o dinheiro era investido em negócios
que eram verdadeiras aventuras de alto risco. O primeiro servo
investiu o dinheiro e, quando seu senhor voltou, estava apto a lhe
mostrar um lucro de mil por cento. O segundo conseguiu um lucro de
quinhentos por cento523. Embora a parábola não mencione os lucros
obtidos por outros servos, o contexto deixa implícito que
experimentaram vários graus de sucesso. Do ponto de vista oriental,
portanto, não era comum alguém guardar seu dinheiro embrulhado
num lenço em vez de pô-lo para render. Negociar era parte da
cultura.

Quando o rei voltou e convocou seus servos, se alegrou com a


fidelidade daquele que ganhara outras dez minas. Elogiou-o pela sua
diligência e sabedoria; chamou-o de “bom” e o recompensou fazendo-
o responsável por dez cidades524. O segundo servo, após mostrar suas
cinco minas adicionais, recebeu proporcionalmente a mesma
recompensa. Foi colocado como responsável por cinco cidades. O
terceiro servo, ao devolver apenas a única mina que tinha recebido,
foi condenado.

Os três servos da parábola podem ser considerados como


pertencendo a três grupos. O primeiro, representa aqueles que obtêm
imensos lucros; o segundo aqueles cujo lucro é considerável; e o
terceiro, aqueles que não obtêm lucro algum. O terceiro servo,
portanto, é de um tipo completamente diferente525. Pode ser
considerado um servo inútil.

Quando o terceiro servo compareceu diante do rei e devolveu a

522
Ex 22.25; Lv 25.35-37; Dt 23.19.20; Ne 5.7; SI 15.5; Pv 28.8; Ez 18.8, 13, 17;
22.12.
523
Derrett, Law in the New Testament, p. 23, mostra que a cobrança de altas
taxas de juros não era incomum no mundo antigo. Como exemplo, se refere às
taxas de empréstimos cobradas por Catão, o Antigo.
524
Alguns estudiosos têm conjecturado se a palavra cidades entrou no texto por um
engano da palavra aramaica para talentos. Em aramaico, as duas expressões são
bastante semelhantes: cidades é kerakin e talentos é kakerin. E. Nestle sugere
um possível erro de leitura do texto, em um artigo publicado no Theologische
Literaturzeltung, nº 22, 1985. M. Black, Aramaic Approach, p. 2, defende a
sugestão de Nestle, embora Dalman, Words of Jesus, p. 67, tenha destacado que
no paralelo de Mt 25.21,23, os servos não recebem talentos, mas são colocados
responsáveis por muitas coisas. Lucas usa a palavra cidades para expressar o
conceito geral de muitas coisas. Além disso, um rei, tomando posse de seu reino,
podia investir seus servos de autoridade sobre cidades, o que não poderia (Mt 25)
ser feito por um senhor.
525
Lucas usa o artigo definido masculino com heteros (= outro) no sentido de
“diferente”. Plummer, St. Luke, p. 441.
única mina, fez saber que ela não lhe pertencia, mas, sim, ao rei e
que ele a tinha guardado em segurança, embrulhada num lenço. Ele
não a gastara nem os ladrões a haviam roubado. O medo o impedira
de pô-la para render. Ele conhecia a natureza exigente do rei e podia
descrever minuciosamente suas características. Ele disse: “Tive medo
de ti, que és homem rigoroso; tiras o que não puseste e ceifas o que
não semeaste”. Sabia que seu senhor era agressivo, que não hesitava
em tomar o que não era seu. O servo tinha consciência de sua própria
timidez. Temia a dureza do rei. Esperava apenas que, devolvendo a
soma intacta, o rei o deixasse partir em paz.

O rei, no entanto, não ficou nem um pouco satisfeito com a


insolência do servo. Não entendeu o medo do servo e não teve
paciência com sua desculpa inepta. Podia-se ver refletido na
descrição feita pelo servo, mas se o servo acreditasse no que ele
próprio dizia a respeito do rei, deveria, ao menos, ter depositado, no
banco, o dinheiro526.

O louvor e os elogios dirigidos aos dois primeiros servos se


tornaram escárnio e condenação para o terceiro. O rei, agindo agora
como juiz, disse ao servo que, com base em suas próprias palavras,
ele seria julgado. Se o servo sabia que seu senhor era um homem
exigente, deveria ter tido confiança na capacidade do rei de exigir
dos banqueiros o seu dinheiro com os juros devidos. Os banqueiros,
com toda a certeza, deveriam ter conhecimento de que o rei tirava o
que não colocara e colhia onde não havia semeado. Mas, embora
reconhecesse que o rei saberia exigir bons lucros dos banqueiros, o
servo nem mesmo considerou a possibilidade de depositar o dinheiro
no banco. Prontamente, orei o chamou de mau, querendo dizer que o
servo era incompetente, incapaz e inútil527.

A parábola é contada em tons fortes. O rei se dirige aos que


assistiam a cena: “Tirai-lhe a mina, e dai-a ao que tem as dez”. Eles
expressaram sua surpresa, ponderando ao rei: “Senhor, ele já tem
dez528”. A objeção à ordem do rei se refere ao fato do primeiro servo
já ter a maior soma de todos. Por que deveria receber a mina extra?
Esta ordem significa que o rico se tornará mais rico, e o pobre mais
pobre? Além disso, se o servo já tinha sido investido de autoridade
sobre dez cidades, iria se sentir recompensado recebendo a
relativamente pequena soma de uma mina? Afinal, todo o dinheiro

526
Morris, Luke, p. 275.
527
G. Harder, TDNT, VI:547,554.
528
Pelo texto toma-se difícil definir se este versículo faz parte da parábola ou se foi
inserido por copistas a partir de anotações feitas à margem. No entanto, essas
testemunhas (por exemplo, D. W. 565 e algumas das versões latinas, siríacas e
cópticas) que omitem o versículo, podem tê-lo feito por causa do paralelo de Mt
25.28,29 (que não o apresenta) ou por razões estilísticas, a fim de providenciar uma
ligação mais estreita entre Lá 19.24 e 26. Com base em evidência externa e
interna, entretanto, parece melhor conservar o v.25, Metzger, Textual
Commentary, p. 169.
que os servos receberam do rei e aquele que ganharam negociando
não seria depositado no tesouro real? É fácil multiplicarmos as
perguntas, mas a maior parte delas se resolve se compreendemos o
simbolismo que está implícito na parábola.

O dinheiro confiado aos servos foi-lhes entregue como um teste.


O rei queria experimentar sua lealdade e recompensá-los
adequadamente. Fez isso colocando um servo responsável por dez
cidades e o outro com a responsabilidade sobre cinco. Como
recompensa à sua lealdade ao rei, o primeiro servo recebeu o
dinheiro do terceiro. Agindo assim, o rei deixou claro que seu
relacionamento com o terceiro servo estava definitivamente
acabado529. Mostrou, ainda, que punha total confiança no primeiro
servo, investindo-o da responsabilidade retirada do outro. O total do
dinheiro deve ser visto, então, em termos de responsabilidade.

O rei não respondeu diretamente aos que o cercavam530. Usando


uma expressão um tanto proverbial531, ele, implicitamente, disse-lhes
por que deu a mina ao servo que tinha as dez minas: “A todo o que
tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado.” A
observação aponta para uma prática comum no mundo dos negócios.
Isto é, as pessoas prontamente emprestam dinheiro para aqueles cujo
retorno de capital mostra lucro substancial. Confiam num negócio de
sucesso porque sabem que o dinheiro investido trará dividendos. Mas,
quando os investidores sabem que a pessoa que está tomando
emprestado não consegue lucros sobre seu capital, depressa retiram
a quantia investida e reduzem, assim, ainda mais, o capital do
emprestador532. O dinheiro é entregue ao homem que corteja o
sucesso e tirado daquele que enfrenta a bancarrota.

Jesus terminou a parábola chamando a atenção para os


embaixadores que tinham protestado contra a escolha daquele rei.
Quando se apresentaram diante dele, o rei ordenou que fossem
executados. Não há registro de que Arquelau, ao voltar de Roma,
tenha mandado executar os cinqüentas judeus que tinham intentado
contra ele na corte de César. No entanto, é fato conhecido que ele
afastou do cargo o sumo sacerdote, por ter ajudado os rebeldes. Ele,
também, tratou o povo de modo mais cruel, depois de sua ida a
Roma.

Interpretação

529
Derrett, Law in the New Testament, p. 28.
530
A afirmação sobre quem fala em Lá 19.26, o rei ou Jesus, depende da
interpretação dada ao versículo anterior. Plummer, St. Luke, p. 443. Por causa da
expressão “eu vos declaro”, as palavras parecem refletir um comentário feito por
Jesus, Marshall, Luke, p. 708.
531
De modo semelhante a expressão ocorre em Mt 13.12; 25.29; Mc 4.25; e Lc 8.18.
532
Derrett, Law in the New Testament, p. 30.
Em certo sentido, a parábola das minas é uma parábola sobre o
reino, embora não seja apresentada pela frase familiar: “O reino dos
céus é semelhante...” A parábola, baseada em história verídica, foi
contada na ocasião quando o povo pensava que o reino de Deus
estava preste a vir. Da própria história recente, Jesus ensinou a seus
contemporâneos uma lição a respeito da vinda do reino.

A parábola pretendia ensinar ao povo que haverá um intervalo


entre sua primeira e segunda vindas. Como Arquelau partiu para
Roma, mas voltou, assim o Filho do homem partirá e, no tempo
escolhido por Deus, voltará. O rei deu a seus servos uma certa
quantia de dinheiro, com a ordem explícita de que a pusessem para
render. Quando assumiu a responsabilidade de governar sua
etnarquia, chamou os servos à sua presença, para prestarem contas
de suas atividades. Do mesmo modo, Jesus, ao partir da terra para o
céu, dotou seus seguidores com dons, e espera que eles operem
esses dons do modo mais fiel e fecundo durante sua ausência.
Quando chegar o tempo de seu retorno, ele convocará seus servos
diante de si, para receberem palavras de louvor e recompensa, ou
condenação e punição severa533.

O reino de Deus existe no presente, mas é, também, um estado


de expectativa a ser cumprido. Ele é, portanto, agora, mas, ao mesmo
tempo, ainda não. Jesus, embora eternamente rei, trará seu reino à
realização plena, somente após a sua volta. Então outorgará aos
servos fiéis grandes oportunidades de servi-lo, e, proporcionalmente,
fará punir os servos indolentes e maus. Durante sua ausência Jesus
dará ampla oportunidade para o serviço, bem como para a rebeldia534.

Aquelas pessoas que acompanhavam Jesus em sua jornada para


Jerusalém não deviam ter pensado que o reino traria, imediatamente,
alegria e felicidade a todos. Deviam, antes, Ler pensado em termos
de um intervalo durante o qual seriam provados. Então, após o
período de provação, os que tivessem se rebelado, seriam punidos.

Ninguém, dos que ouviam Jesus, o identificaria com o cruel


Arquelau dos dias passados535. Mas, seus ouvintes eram capazes de
entender que o intervalo da ausência de Arquelau, de certo modo, era
um paralelo da partida de Jesus e seu subseqüente retorno.

Simplesmente, a parábola não pode ser interpretada em todos


os seus detalhes, porque isso nos levaria a um absurdo total. O
objetivo da parábola é este: todos os seguidores de Jesus recebem
dons e oportunidades para servir. Ninguém pode dizer que, por não
ter a habilidade de um teólogo treinado ou a eloqüência de um orador
533
Ridderbos, Coming of lhe Kingdom, p. 515, comenta que é difícil explicar ‘A
parábola das minas de qualquer Outro modo que não como uma referência à
partida de Jesus da terra para o céu, e a vocação dos discípulos na terra”.
534
Plummer, St. Luke, p. 444.
535
Zerwick, “Thrononwärter”, p. 667.
talentoso, não pode servir ao Senhor. Tais argumentos não
prevalecem. A parábola ensina que todos os servos receberam uma
mina e cada um respondeu pelo dinheiro a ele confiado. Do mesmo
modo, cada um dos seguidores de Jesus foi dotado com dons e com
oportunidades de usarem esses dons para servir. De cada um é
esperado que faça o melhor possível. Logo, o tempo concedido por
Deus, em sua providência, estará findo, e, então, virá o juízo.

Eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que


tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras (Ap
22.12).
Conclusão

As parábolas de Jesus são únicas no contexto das Escrituras.


Embora algumas parábolas tenham sido registradas no Velho
Testamento, nos Evangelhos o grande número de parábolas e de
declarações em forma de parábola é marcante. Alguns exemplos
encontrados no Velho Testamento indicam que o hábito de contar
histórias não era desconhecido. O profeta Natã, por exemplo, contou a
Davi a história de um homem pobre cuja cordeirinha lhe foi tomada
por um homem rico. A aplicação: “Tu és o homem”, foi bastante
direta536. Nos escritos dos rabinos, também encontramos o ensino em
forma de parábolas, mas é realmente difícil podermos atribuir mais
que duas parábolas a uma única pessoa537. Entretanto, estima-se que
um terço dos ensinos de Jesus foi feito em forma de parábola.
Contando as parábolas e as ilustrações figurativas, alguns estudiosos
chegaram a um total de sessenta delas538. Todas são chamadas de
parábolas de Jesus.

Como, na conclusão de seu Evangelho, João escreve que nem


tudo que Jesus fez foi relatado (Jo 21.25), podemos presumir que nem
todas as parábolas contadas por ele foram registradas. Talvez
algumas das histórias atribuídas a Jesus, que encontramos em outras
fontes que não o Novo Testamento, sejam autênticas539. Também,
ensinando oralmente como os mestres de seus dias costumavam
fazer, Jesus repetia o que ensinava. Como mestre, ele tinha toda a
liberdade para contar determinada parábola mais que uma vez, de
formas diferentes, em cada caso. Quando viajou de Jericó para
Jerusalém, a fim de celebrar a Páscoa pela última vez, ele contou a
parábola das minas, baseando-a na circunstância histórica da ida de
Arquelau para um país distante para ser escolhido rei. Alguns dias
mais tarde, Jesus contou a seus discípulos a parábola dos talentos. As
duas, sem dúvida, têm muito em comum, embora apresentem
finalidade e propósito diferentes.

Jesus não apenas contou as parábolas; contou-as muito bem.


Muitas delas se destacam por serem breves, e, mesmo sendo curtas,
são brilhantes. Jesus buscou seu material em diversas fontes. Às
vezes, voltava-se para o Velho Testamento — como fez na parábola da
vinha e dos lavradores maus, tomando seu tema do “Cântico da
Vinha”, registrado em Isaías 5. Em outras ocasiões, tirava seus
exemplos diretamente da época, cultura e meio ambiente em que
536
2 Sm 12.14. Outros exemplos são a parábola da mulher tecoíta (2 Sm 14.4-7): e a
mensagem de Jeoás a Amazias (2 Rs 14.9).
537
Hunter, Parables, p. 15.
538
T. W. Manson, The Teaching of Jesus (Cambridge: University Press, 1951), p. 69,
conta um total de sessenta e cinco parábolas. A. M. Hunter, Interpreting the Parables
(Philadelphia: Westminster Press, 1960), p. 11, apresenta o número como “cerca de
sessenta”.
539
J. Jeremias, Unknown Saylngs of Jesus (London: S. P. C. K., 1958), p. 2.
vivia. Parábolas como a do semeador, da figueira estéril e do juiz
iníquo, são exemplos disto. Jesus, também, se baseava em
acontecimentos que eram bem conhecidos daqueles que o ouviam: o
nobre que partiu para um país distante, para ser escolhido rei, e o
homem desventurado que caiu nas mãos de salteadores, na estrada
de Jericó. Jesus é o Grande Mestre de todas estas parábolas. Embora
os evangelistas as tenham transmitido, nas parábolas nos deparamos
como os ensinamentos de Jesus. Elas são suas. Isto é, não tiveram
origem na mente de um evangelista540, e não foram criadas pela
comunidade cristã primitiva, que necessitava de uma história
particular, para com ela ilustrar o ensino de uma doutrina541. As
parábolas são originalmente de Jesus.

Naturalmente, os evangelistas registraram as parábolas de


Jesus, e, em seu ofício de escrever os Evangelhos, mostraram sua
própria individualidade. Diferenças de expressão, nos relatos paralelos
das mesmas parábolas revelam claramente o seu trabalho individual.
Além disso, o próprio fato de Jesus ter contado suas parábolas em
aramaico, enquanto que os Evangelhos as apresentam na língua
grega, deixa claro que o restabelecimento das palavras exatas de
Jesus constitui um problema542. A questão da origem, não a
autoridade, em relação à maneira específica de se expressar numa
determinada parábola, nem sempre é fácil de resolver. Se uma
parábola foi registrada apenas por um evangelista, a autenticidade
das palavras de Jesus não precisa ser discutida. Mas, quando uma
parábola ocorre em relatos paralelos do Evangelho e mostra variação
na maneira de narrar, a questão do estilo do evangelista, em
particular, se torna real. Mateus, Marcos e Lucas exibem suas próprias
características e tendências, ao registrar as parábolas de Jesus.

Características Gerais

O Evangelho de Marcos tem apenas seis parábolas, e, por isso,


não podemos falar muito sobre suas características. Dessas seis,
apenas uma é peculiar a Marcos: a da semente germinando
secretamente. As outras têm paralelos em Mateus e Lucas. São as
parábolas do semeador, do grão de mostarda, da vinha e dos
lavradores maus, da figueira e do servo vigilante. A parábola do servo
vigilante, que não está registrada no Evangelho de Mateus, é a única
das seis de Marcos que não diz respeito à natureza. De todas as
parábolas de Jesus, Marcos selecionou cinco que descrevem o
crescimento, na natureza. Esta evidência parece indicar que Marcos
era uma pessoa ligada à vida rural.
540
Jeremias, Parables, pp. 84-85, afirma que “é impossível deixar de concluir que a
interpretação da parábola do joio é do próprio Mateus”. Ele chegou a esta conclusão
baseando-se em considerações lingüísticas.
541
Jülicher, Gleichnisreden, 2:385406, considera a parábola da vinha e dos
lavradores maus, uma criação da igreja primitiva. Do mesmo modo, R. Bultmann,
The History of the Synoptic Tradition (New York: Harper and Row, 1963), p. 177.
542
Marshall, Eschatology and the Parables, p. 11.
O mundo de Mateus é amplo, e abrange de reis a servos. Ele
registra parábolas que descrevem ministros das finanças,
construtores, um fazendeiro que emprega trabalhadores temporários,
arrendatários, pescadores, um joalheiro, uma mulher assando pão, um
pastor, um pai e seus dois filhos, um ladrão, crianças brincando,
damas de honra e convidados para um banquete nupcial. Estas
parábolas focalizam pessoas543, e Mateus se revela um homem
interessado nelas.

Esse interesse é ainda mais pronunciado no Evangelho de


Lucas544. Nas parábolas que são próprias de Lucas, as pessoas, como
indivíduos, têm um lugar central: o amigo que chega à meia-noite, o
filho pródigo e seu irmão e pai, a mulher que perdeu sua moeda e o
pastor que encontrou sua ovelha, o rico e Lázaro, a viúva e o juiz, o
fariseu e o publicano e o samaritano cuidando da vítima dos ladrões.
Através destas parábolas, Lucas demonstra interesse em gente, como
indivíduos, a ponto de registrar nomes (Lázaro e Abraão),
nacionalidade (samaritano) e ocupação (coletor de impostos).

Lucas parece se movimentar entre pessoas comuns,


particularmente aquelas de recursos moderados. Os dois devedores
devem ao agiota um total de três meses de salário, o salário de seis
semanas cada um, e cada um dos dez servos recebe do senhor o
equivalente a três meses de salário. O fazendeiro tinha apenas um
servo, que ara seu campo e prepara seu jantar. Do mesmo modo, o
homem que prepara um banquete tem apenas um servo que chama
os convidados, e que traz para dentro de casa os pobres e os coxos.
Os ricos, nas parábolas apresentadas por Lucas, pertencem à classe
média alta545. Um fazendeiro, que tem excelente colheita e precisou
construir celeiros maiores para guardá-la, o homem que se vestia de
púrpura e finos linhos e vivia no luxo, o rico cujo administrador
atiladamente diminuiu o débito dos que deviam a seu senhor, e o pai
que repartiu a herança por causa do pedido do filho caçula. As
parábolas de Lucas retratam gente comum: um samaritano e seu
jumento, o mendigo lambido pelos cães, o pastor e seu rebanho, a
mulher e sua moeda, a viúva fazendo seu pedido e o publicano
batendo no peito.

Ao contrário, algumas das parábolas de Mateus retratam a


grandeza, o esplendor e a extravagância. O ministro das finanças deve
ao rei uma quantia que vai a milhões, um homem confia um total de
oito talentos a três de seus servos, um rei prepara um banquete de
núpcias e envia servos para chamar os convidados e soldados para
puni-los quando se recusam a vir, e o proprietário de uma vinha envia

543
M. D. Goulder, “Characteristics of the Parables in the Several Gospels”, JTS 19
(1968): 52.
544
Morris, Luke, p. 40.
545
Goulder, “Characteristics of the Parables”, p. 55.
seus servos, em grupos, para recolher o lucro dos arrendatários.
Muitos são da mais alta classe social. Outros, como o mercador de
pérolas e o senhor que investiu seu servo de autoridade estão entre os
moderadamente ricos.

A seleção de parábolas peculiar a cada escritor dos Evangelhos


traz à luz algumas de suas características. Mateus trata de histórias de
interesse financeiro; Lucas é o homem voltado para os pobres e para o
cidadão da classe média; enquanto que Marcos, embora apresente
poucas parábolas, demonstra interesse pela natureza. Além disso,
cada escritor dispõe as parábolas mais ou menos em grupos. Em uma
série (Mt 13), Mateus inclui sete, que não são postas juntas por acaso.
Essas sete revelam um padrão definido546. Após a parábola
introdutória, a do semeador, as do trigo e o joio e da rede formam um
par. Entre essas duas, há dois conjuntos de parábolas gêmeas:
primeiro, a do grão de mostarda e a do fermento; então, a do tesouro
escondido e a da pérola. As parábolas que Mateus registra nos
capítulos 24 o 25 de seu Evangelho têm perspectiva escatológica. As
parábolas da figueira, do ladrão, do servo fiel e prudente, das dez
virgens, dos talentos e a do grande julgamento apontam nessa
direção. Lucas, também, ordenou seu material de tal modo que, com
exceção das parábolas dos dois devedores e das minas, as que lhe são
peculiares se encontram na chamada narrativa da jornada ou grande
inserção de Lucas 9.51; 19.27. A parábola das minas, que é a última
das parábolas de Lucas, foi estrategicamente colocada para servir de
ponte entre a parte referente à jornada de Jesus para Jerusalém e a do
ministério de Jesus em Jerusalém547.

Algumas parábolas, que foram registradas por mais de um


escritor do Evangelho, refletem a situação de vida na qual foram
escritas548. Por exemplo, na interpretação da parábola do semeador,
especificamente sobre a semente lançada em solo rochoso, Mateus e
Marcos escrevem: “... em lhe(s) chegando a angústia ou a perseguição
por causa da palavra, logo se escandaliza(m)” (Mt 13.21; Mc 4.17).
Mas, em Lucas, achamos: “... na hora da provação se desviam” (Lc
8.13). Cada um, à sua própria maneira, expressa a mesma verdade:
em tempos de dificuldade, as pessoas abandonam a fé.
Semelhantemente, a parábola dos dois fundamentos é relatada por
Mateus em versão compreensível aos judeus que viviam na Judéia ou
Galiléia, e, por Lucas, numa versão apropriada aos helenistas que
viviam no estrangeiro.

Características Literárias

O estilo dos evangelistas difere, notadamente, com respeito às

546
B. Gerhardsson, “The Seven Parables in Matthew XIII”, NTS 19(1972-73): 18.
547
Marshall, Luke, p. 401.
548
G. E. Ladd, “The Sitz im Leben of the Parables of Matthew 13: the Soils, Studia
Evangelica, ed. F. L. Cross (Berlin: 1964), 2: 204.
parábolas por eles registradas. Enquanto o estilo de Marcos é bastante
simplista, o de Mateus, especialmente nas parábolas mais longas, é
marcado pelo uso de contrastes. De fato, as parábolas mais longas, no
Evangelho de Mateus, se apresentam em preto e branco549. Os
construtores edificam sobre a rocha ou na areia; o fazendeiro semeia
trigo, e seu inimigo semeia o joio, no mesmo campo; a rede apanha
peixes apropriados para o consumo e os que não o são; o rei se
mostra misericordioso, mas seu ministro das finanças, não; os
trabalhadores da vinha, contratados primeiro, murmuram, os
contrastados mais tarde se regozijam; dos dois filhos apenas um
obedece ao pai; o servo em quem o senhor confia pode ser fiel ou
mau; cinco virgens são prudentes e cinco são néscias; dois servos
põem seus talentos para render e um enterra o seu; no banquete
nupcial todos os convidados estão apropriadamente trajados, só um
não está. Mesmo nas parábolas mais curtas, o contraste fica evidente.
As crianças que brincam na praça são alegres ou tristes. Nas
parábolas de Mateus as pessoas são sábias ou tolas, boas ou más, fiéis
ou indolentes.

Enquanto Mateus filma em preto e branco, Lucas usa a cor. Seus


personagens são coloridos, pitorescos e bem construídos. O
samaritano personifica a compaixão; o amigo que bate à porta do
vizinho no meio da noite, e a viúva que faz periódicas visitas ao juiz
retratam a arte da persistência. Isso não significa que Lucas evite os
contrastes. Ele coloca o sacerdote e o levita em oposição ao
samaritano; o rico em oposição a Lázaro; e o fariseu em contraste com
o publicano. Mas Lucas apresenta suas figuras com mais cor e
detalhes que os outros evangelistas. No Evangelho de Mateus, o bom
e o mau são convidados para o banquete das bodas. Na apresentação
que Lucas faz da parábola da grande ceia, os pobres, estropiados,
cegos e coxos são bem-vindos. Na parábola dos talentos, um dos
servos enterra o seu. Em sua descrição da parábola das minas, Lucas
descreve um dos servos enrolando sua moeda em um pedaço de
pano. As pessoas que Lucas retrata são reais: pensam, falam e agem.
O mercador de pérolas não é descrito e, de certo modo, não tem vida.
O rico de Lucas, que obtém lucro numa colheita excepcional, é um
personagem que parece vivo. Ele fala consigo mesmo, faz planos e se
dispõe a agir. Mateus, geralmente, omite pormenores; apresenta um
mero esboço. É Lucas quem, por meio de sua pena ágil, acrescenta
profundidade e dimensão às parábolas.

Características Teológicas

Nas parábolas peculiares ao Evangelho de Lucas, o tema do


arrependimento e salvação é relevante. Lucas mostra de modo muito
mais claro que Mateus que Jesus chamou para a salvação os

549
Goulder, “Characteristics of the Parables”:, p. 56, quer incluir a parábola do
semeador, mas pode fazê-lo apenas baseando-se em sua interpretação nos capítulos
seguinteS. A parábola em si não revela contraste.
marginalizados, os pobres, os perdidos e os desprezados550.

O tema apresentado em Lucas 19.10: “Porque o Filho do homem


veio buscar e salvar o perdido”, é exemplificado em várias parábolas
de Lucas. São os dois devedores, a ovelha perdida, a moeda perdida, o
filho pródigo e o fariseu e o publicano. A parábola dos dois devedores
foi contada depois do incidente do Sábado, quando uma mulher entrou
na casa de Simão, o fariseu. Embora aos olhos do fariseu cumpridor da
lei fosse considerada desprezível, ela achou remissão de pecados e
paz para o seu coração. O filho desviado caiu em si numa pocilga
imunda, voltou para casa e foi reintegrado à família. O coletor de
impostos, considerado um marginalizado social pelo fariseu, bateu no
peito, orou a Deus e foi justificado. Há alegria no céu quando um
pecador se arrepende; festa na casa do pai, quando o filho volta; e paz
no coração do proscrito, quando Deus o justifica.

É Lucas que desenvolve o tema do amor de Jesus pelos pobres e


oprimidos. Quando os convidados se recusam a participar do grande
banquete, os pobres, estropiados, cegos e coxos são trazidos. Quando
ainda restam lugares vazios na casa, o servo recebe ordens para fazê-
los entrar. O pobre, que diariamente é carregado até ao portão da
casa do rico, é carregado por anjos até junto de Abraão, nos céus.

Lucas mostra que Jesus ama o pobre, mas adverte o rico para
que se arrependa e creia. A parábola do rico e Lázaro pretende
retratar a miséria da vida no além, do homem que na terra vivia no
luxo sem se importar com Deus e com o próximo. A parábola do rico
que queria armazenar seus bens materiais em celeiros maiores revela
a pobreza nua do homem que confia em suas riquezas e não em Deus.
A parábola do administrador infiel nos ensina a não dependermos de
riquezas, mas a distribuí-las para com elas fazer amigos e sermos
bem-vindos nas moradas eternas.

O amor ao próximo é um tema muito mais definido no Evangelho


de Lucas que nos outros. Através da parábola do bom samaritano,
Lucas indica que o conceito é ilimitado e sua aplicação universal. A
ordem para amar o próximo, portanto, transcende barreiras de raça,
cultura, idade, nacionalidade e língua.

Em pelo menos três parábolas próprias de seu Evangelho, Lucas


desenvolve o tema da fidelidade. O custo do discipulado é a lealdade
inabalável no cumprimento do dever. Na parábola do fazendeiro cujo
servo ara o campo durante o dia, prepara o jantar ao voltar para casa,
e nem ao menos recebe qualquer agradecimento, porque esta é a sua
tarefa diária, fica demonstrada claramente a devoção de todo o
coração com que um seguidor de Jesus o serve. A parábola do homem
que queria construir uma torre e aquela do rei que devia ir à guerra

550
A. Wikenhauser, New Testament lntroduction (New York: Herder and Herder,
1965), p. 217.
contra outro rei ilustram o custo do discipulado. Seguir a Jesus
significa desistir, voluntariamente, de tudo; nada deve prevalecer ao
discipulado.

Essa lealdade está expressa na parábola das dez minas. Nove


servos investem o dinheiro e cada um consegue receber algumas
minas a mais. Mas um deles guarda dentro de um lenço a sua mina e
recebe condenação pública por sua inutilidade. Os outros servos são
elogiados e recebem, como recompensa, grandes responsabilidades.
O tema da fidelidade é tratado, também, nas parábolas dos outros
evangelistas. Isto é, Mateus o aborda nas parábolas dos dois filhos, do
ladrão, do servo fiel, das virgens e dos talentos. Marcos se refere a ele
na parábola do servo vigilante.

Por fim, mas não menos importante, o tema da oração é exposto


em três parábolas de Lucas. O amigo que bate à porta do vizinho, à
meia-noite, e a viúva que procura sempre pelo juiz, são relatos
paralelos. As duas parábolas ensinam a doutrina da perseverança na
oração, que na comunidade cristã primitiva era resumida no preceito
apostólico: “Perseverai na oração551”. A parábola do fariseu e do
publicano menciona a oração, embora basicamente se refira à
justiça552.

Exceto pelos paralelos sinóticos do grão de mostarda e do


fermento, Lucas não tem qualquer parábola que ele apresente como
uma parábola sobre o reino. Marcos apresenta duas: a da semente
germinando secretamente e a do grão de mostarda. É Mateus quem
arrola as parábolas do reino. Um total de dez parábolas apresenta o
reino: a do trigo e do joio, a do grão de mostarda, a do fermento, a do
tesouro escondido, a da pérola, a da rede, a do credor incompassivo, a
dos trabalhadores na vinha, a das bodas e a das dez virgens. Também
a do semeador faz parte do contexto do “conhecimento dos segredos
do reino dos céus”, porque nela Jesus transmite um entendimento
básico a respeito da vinda do reino553.

Muitas das parábolas do reino, no Evangelho de Mateus têm,


uma perspectiva escatológica. A do trigo e do joio e a da rede são
semelhantes em sua conclusão: ambas falam da separação no juízo.
Do mesmo modo, a parábola das bodas termina com a expulsão do
homem que não estava vestido adequadamente. A das dez virgens e a
dos talentos retratam cinco moças tolas deixadas do lado de fora e um
servo negligente que é lançado nas trevas exteriores. Mateus conclui
suas parábolas com a do juízo final, na qual a separação das pessoas é
comparada à separação feita pelo pastor, que coloca as ovelhas à sua
direita e os cabritos à sua esquerda.

551
Rm 12.12; Ef 6.18; Fp 4.6; C1 4.2; l Ts 5.17.
552
P. T. O’Brien, “Prayer in Luke-Acts”, TB 24 (1973): 118.
553
Ridderbos, Coming of the Klngdom, p. 132.
À sua maneira metódica, Mateus agrupou um total de sete
parábolas no capítulo treze. Quatro delas podem ser consideradas dois
pares: a do grão de mostarda e a do fermento são similares; e a do
tesouro e a da pérola têm a mesma mensagem. No primeiro par, o
poder vitorioso da mensagem de salvação se expressa exteriormente
no crescimento da mostardeira e interiormente no crescimento da
massa levedada. No segundo par, ambas, a do fazendeiro que vendeu
tudo o que tinha para comprar o campo onde estava escondido o
tesouro e a do mercador que vendeu seus bens para comprar a pérola
valiosa, exemplificam a total submissão a Cristo e o valor infinito do
reino.

Pela escassez de parábolas, no Evangelho de Marcos, é difícil


afirmar se ele selecionou as suas com um propósito teológico. Duas
delas têm motivo escatológico: a da figueira e a do servo vigilante.
Nas outras, ele demonstra a ação de Deus operando ou na natureza
ou nas relações humanas. São as parábolas do semeador, da semente
germinando secretamente, do grão de mostarda e dos lavradores
maus. De modo geral, podemos dizer que, em todas as parábolas de
Marcos, o poder e o governo de Deus ficam evidentes.

Destinatários e Resposta

Quem eram as pessoas que ouviam as parábolas quando Jesus


as contava em público, ou em particular? Elas podem ser classificadas
em três categorias: os discípulos, as multidões e os adversários de
Jesus. A maior parte delas foi endereçada às multidões ou aos
discípulos554. De acordo com Mateus, as multidões ouviram a parábola
dos dois fundamentos, a das crianças na praça, a do semeador, a do
trigo e o joio, a do grão de mostarda e a do fermento. Os discípulos
ouviram a do tesouro escondido e a da pérola, a da ovelha perdida, a
do credor incompassivo e a dos trabalhadores na vinha. Além dessas,
foram contadas aos discípulos, em particular, as parábolas
escatológicas das dez virgens, dos talentos e a do julgamento final. Os
principais sacerdotes e os anciãos do povo eram os adversários de
Jesus. Eles ouviram as parábolas dos dois filhos, dos lavradores maus
e do banquete nupcial, que se aplicavam a eles.

Lucas revela que Jesus, freqüentemente, enfrentava seus


oponentes, contando-lhes parábolas, até mesmo em suas próprias
casas. Em pelo menos cinco ocasiões diferentes, Jesus ensinou os
fariseus, mestres da lei. Na primeira vez, convidado para jantar na
casa de Simão, o fariseu, ele contou a parábola sobre os dois
devedores. Em outra ocasião, durante um jantar semelhante, um
fariseu proeminente e seus hóspedes ouviram a parábola de Jesus
sobre o principal lugar à mesa, e sobre a grande ceia. Na terceira vez,
554
Linnemann, Parables, p. 35, apesar de todas as evidências, afirma: “Podem ser
encontradas apenas algumas poucas parábolas que Jesus dirigiu explicitamente aos
discípulos. A maior parte foi contada a seus oponentes, a homens que se ofendiam
com seu comportamento, ou se indignavam com o que ele dizia”.
um doutor da lei pediu a Jesus que lhe explicasse o significado da
palavra próximo e ouviu como explicação a história do bom
samaritano. Em uma quarta ocasião, quando os fariseus e doutores da
lei murmuravam contra Jesus porque entrava na casa dos “pecadores”
e comia com eles, foram convidados a olhar no espelho das parábolas
da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo, para verem,
na perspectiva real, seu relacionamento espiritual com os
marginalizados. Uma vez mais, quando Jesus disse aos fariseus: “Não
podeis servir a Deus e às riquezas”, zombaram de Jesus porque
amavam o dinheiro, e, então, Jesus contou-lhes a parábola do rico e
Lázaro.

As multidões, escreve Lucas, se encantavam com as maravilhas


que Jesus operava, embora todos os seus adversários se
envergonhassem (Lc 13.17). As multidões ouviram as parábolas dos
dois construtores, do semeador, do rico tolo, do grão de mostarda, do
fermento, do construtor da torre e do rei guerreiro e a das minas. Os
discípulos eram instruídos em particular, através de parábolas, tais
como a do amigo que veio à meia-noite, a do juiz iníquo, a do servo
vigilante, a do ladrão, a do servo fiel e prudente a quem o senhor
investiu de autoridade, a do administrador infiel e a do fazendeiro e
seu servo.

Três das parábolas de Marcos foram ouvidas pelas multidões: a


do semeador, a da semente germinando secretamente e a do grão de
mostarda. Duas foram contadas, em particular, para os discípulos: a
da figueira e a do servo vigilante. Por fim, a dos lavradores maus foi
dirigida aos principais sacerdotes, doutores da lei e anciãos.

As parábolas que têm paralelos geralmente têm os mesmos


ouvintes, embora um evangelista possa ser mais específico que outro.
Assim, Mateus conta que a parábola do grão de mostarda e a do
fermento foram apresentadas às multidões (Mt 13.34); Lucas indica
que o povo se achava na sinagoga, o que inclui muitos dos adversários
de Jesus (Lc 13.10,17). A parábola da ovelha perdida foi dirigida aos
oponentes de Jesus (Lc 15.1), de acordo com Lucas, e a seus
discípulos (Mt 18.1), de acordo com Mateus. Não é de todo impossível
que Jesus tenha contado a parábola duas vezes, para ouvintes
diferentes555. De fato, isso foi o que aconteceu quando Jesus contou à
multidão a parábola das minas, ao se aproximar de Jerusalém, para
sua última Páscoa. Alguns dias mais tarde, ele usou o mesmo motivo
para contar a seus discípulos a parábola dos talentos.

A maior parte das parábolas de Mateus tem um apelo indireto.


Comumente são apresentadas com a sentença: “O reino dos céus é
555
Jeremias, Parables, p. 41, admite a possibilidade de Jesus ter repetido suas
parábolas a mais de uma assistência. Ao mesmo tempo, insinua que Mateus e Lucas
se contradizem quando apresentam as palavras de Jesus como dirigidas a uma
multidão, em um exemplo, e aos discípulos em outro. Esse juízo parece um tanto
sem propósito à luz do ensinamento oral repetitivo usado por Jesus.
semelhante...” O reino é comparado a um semeador, à semente, a um
tesouro, a um mercador, à rede, a um rei ou dono de terras. Outras
parábolas são muito mais diretas, exigindo uma resposta pessoal.
Jesus, por exemplo, aplica a parábola sobre os dois fundamentos a
“todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica”. A
mensagem é — ouvir e, em resposta, agir. Na parábola de Mateus
sobre o credor incompassivo, é feito um apelo individual: “Assim
também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada
um a seu irmão” (Mt 18.35). O mesmo apelo direto se expressa nas
parábolas dos dois filhos, da figueira, do ladrão, do servo fiel e
prudente e das dez virgens. Nessas parábolas, a resposta induzida
aparece em forma de um chamado à prontidão constante, e de uma
exortação à vigilância e ao arrependimento. A parábola dos lavradores
maus provoca imediata resposta negativa dos principais sacerdotes e
fariseus; eles procuravam prender Jesus.

As parábolas de Lucas, muito mais que as de Mateus, convidam


a uma resposta: a Simão, o fariseu, é feita uma pergunta sobre a
parábola dos dois devedores; ao mestre da lei, após ter ouvido a
parábola do bom samaritano, é dito: “Vai, e procede tu de igual
modo”. Inúmeras parábolas são contadas no contexto de situações
que pedem respostas. São as do rico tolo, que Jesus contou quando
lhe foi pedido que dividisse uma herança; a da figueira estéril que
resultou de uma discussão a respeito do pecado dos galileus cujo
sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que eles mesmos
realizavam; as parábolas sobre os lugares de honra à mesa, e a
grande ceia, que vieram em resposta ao convite que Jesus recebera
para jantar; as da ovelha, da dracma e do filho perdido, que eram uma
resposta aos fariseus e doutores da lei que desaprovavam o fato de
Jesus comer com os marginalizados; e a das minas, dirigida ao povo
que pensava que o reino de Deus estava preste a vir. Quando ensinou
sobre o administrador infiel, Jesus fez um apelo a seus discípulos para
que não ajuntassem tesouros materiais. Também, instou com eles
para que vissem o resultado da adoração ao dinheiro, na parábola do
rico e Lázaro. Na do juiz iníquo o apelo se refere à perseverança na
oração; na do fariseu e o publicano, à humildade diante de Deus. Em
muitas parábolas de Lucas, a mensagem básica é o arrependimento
dos pecados. Isso acontece nas da figueira estéril, da grande ceia e na
tríade dos perdidos: ovelha, a moeda e o filho pródigo.

Às vezes, as parábolas de Lucas envolvem os ouvintes através


da introdução “qual de vós”. Desse modo, os ouvintes são parte
directa da parábola e cada um é compelido a responder. A do amigo
que vem à meia-noite começa com a pergunta: “Qual dentre vós,
tendo um amigo...” As do construtor da torre e do rei guerreiro, da
ovelha e da moeda perdidas e a do fazendeiro e seu servo têm
introduções semelhantes. Quer a assistência consista de amigos ou
adversários, a parábola que começa com uma cláusula introdutória
induz a uma resposta. Mateus usa a pergunta insinuante: “Que vos
parece?” como modo de apresentar as parábolas da ovelha perdida e
a dos dois filhos.

Representação

Em seu evangelho, Mateus apresenta Jesus a seus leitores, como


o Cristo, o Filho de Deus. Não é, portanto, de todo surpreendente que,
em sua seleção de parábolas, Mateus tenha coletado muitas, nas
quais a representação de Jesus fique evidente. Assim, na aplicação da
parábola das crianças brincando na praça, é o Filho do homem que
vem, comendo e bebendo, e que é chamado de glutão, beberrão e
amigo de publicanos e “pecadores”. Quando explica a parábola do
trigo e do joio, Jesus se identifica como o dono de terras. “O que
semeia a boa semente é o Filho do homem” (Mt 13.37). Na dos
lavradores maus, o filho do dono de terras é enviado aos arrendatários
e é morto por eles. O banquete das bodas acontece porque o filho do
rei está se casando. A parábola das ovelhas e dos bodes é
apresentada pela descrição do Filho do homem vindo em sua glória,
acompanhado de seus anjos, julgando as nações e separando o povo.

Naquelas assim chamadas parábolas escatológicas, as


referências a Jesus são implícitas e explícitas. O porteiro tem que
vigiar porque o dono da casa pode voltar, à qualquer hora, durante a
noite. A do ladrão é mais direta em sua aplicação: “Por isso ficai
também vós apercebidos; porque, à hora em que não cuidais, o Filho
do homem virá” (Mt 24.44). As parábolas das dez virgens, dos talentos
e das minas se referem à volta iminente de Jesus.

Deus é apresentado como Pai em várias das parábolas de


Mateus. O rei, na do credor incompassivo, é a personificação de Deus,
o Pai. “Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não
perdoardes cada um a seu irmão”, diz Jesus em sua aplicação (Mt
18.35). Na parábola dos dois filhos, um obedece e o outro desobedece
ao pai. A implicação é que os publicanos e as prostitutas, obedecendo
a vontade de Deus, o Pai, entram em seu reino. Ambas as parábolas, a
dos lavradores maus e a das bodas, retratam o pai enviando seu filho
e o pai preparando um banquete para o filho.

Embora a figura do pai seja apresentada por Lucas apenas na


parábola do filho pródigo, o terceiro evangelista apresenta algumas
parábolas nas quais Deus é diretamente mencionado. Assim, a vida do
rico tolo é exigida por Deus. O nome de Deus é citado várias vezes na
do juiz iníquo. E o fariseu e o publicano se dirigem a Deus, em oração.

É característico do Evangelho de Mateus representar Jesus em


muitas das parábolas — o que não acontece em Lucas. Do mesmo
modo, é Mateus quem destaca o papel de Deus Pai em várias de suas
parábolas. Lucas, ao contrário, enfatiza os relacionamentos entre
pessoas, como os exemplificados nas parábolas do bom samaritano,
do amigo à meia-noite, do filho pródigo e do rico e Lázaro.
Todos os escritores apresentam as parábolas de Jesus, mas cada
um emprega seu próprio talento, modo de ver e habilidade ao fazê-lo.
No entanto, a autoria das parábolas é de Jesus. Ele as criou, ele fala
através delas, e nelas se torna conhecido dos homens. Assim, as
parábolas, ainda que chegando até nós na forma apresentada pelos
evangelistas, nos dão a certeza de que, na verdade, ouvimos a voz de
Jesus.

Bibliografia Selecionada

Comentários

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Talmud und Midrasch, 5 vols. München: Beck, 1922-28.
Contra Capa

As Parábolas de Jesus é o primeiro livro do gênero, bem como o


primeiro do autor – Simon Kistemaker-, que esta Editora produz e
oferece ao público evangélico brasileiro – extensivamente ao leitor de
língua portuguesa de outros países. Aliás, até onde vão os nossos
dados informativos, este autor ainda não é lido via língua portuguesa,
não obstante ser amplamente conhecido e respeitado como lídimo
teólogo e expositor do Novo Testamento, já em muitas línguas. Além
de outras obras de sua autoria particular, o Autor também forma
parceria com Willian Hendriksen na série Comentário do Novo
Testamento, que ora é publicado por esta Editora. De sua autoria é
Hebreus, Pedro e Judas, Tiago e Epístolas de João e Atos dos Apóstolos
(este último já se acha em preparação em dois volumes, e em breve
virá a lume.

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