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Dubar
A Socialização
Título: A Socialização
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prévia autorização escrita do Editor.
Claude Dubar é professor de Sociologia na Universidade
1 994).
Por que razão se fala hoje de crise de identidades? Esta expressão remete-nos
para fenómenos múltiplos: dificuldade de inserção profissional dos jovens,
aumento da exclusão social, diluição das categorias que servem para se definir e
definir os outros…
(CNRS-Lille 1)
Introdução
O termo “identidade” reapareceu tanto no vocabulário das ciências sociais como
na linguagem corrente. Um pouco por todo o lado. fala-se de “crise das
identidades”
Para cada estádio, esta adaptação é descrita por Piaget como a resultante e a
articulação de dois movimentos complementares ainda que de natureza
diferente:
Estas estruturas mentais são inseparáveis das formas relacionais pelas quais elas
se exprimem em relação ao outro. Assim, a cada um dos estádios definidos por
Piaget, podemos fazer corresponder formas típicas de socialização que
constituem modalidades de relação da criança com outros seres humanos. Passa-
se, deste modo, segundo o autor, do egocentrismo inicial do recém-nascido
caracterizado por “uma indistinção do Eu e do mundo” à inserção terminal do
adolescente escolarizado no mundo profissional e na vida social do adulto. Entre
estes dois estádios extremos, a criança aprendeu, em primeiro lugar, a exprimir
sentimentos diferenciados graças à estruturação de percepções organizadas (e à
solicitação do meio envolvente); em segundo lugar, aprendeu a imitar os seus
semelhantes, diferenciando nitidamente o pólo interno (o Eu) do pólo externo (o
Objecto); em seguida, graças à palavra, aprendeu a praticar trocas
interindividuais, descobrindo e respeitando as relações de constrangimento
exercidas pelo adulto; finalmente, aprendeu a passar do constrangimento à
cooperação, graças ao domínio conjunto da “reflexão como discussão
interiorizada consigo mesmo” e da discussão como “reflexão socializada com o
outro”, o que lhe permitiu, simultaneamente, adquirir o sentido da justificação
lógica e da autonomia moral (cf. quadro 1.1.). :,
Quadro 1.1.
(2) A partir dos finais dos anos 60, Piaget passou a referir-se a um
desenvolvimento em quatro estádios: sensório-motor (I II e III), pré-operatério
(IV), operatório concreto (V) e formal (VI).
:::::::
formas de socialização
::::::::
“Um grupo de crianças joga aos berlindes. Quer do ponto de vista da prática das
regras, quer do da consciência destas, o comportamento das crianças varia com o
nível etário… Pode-se dizer que os mais pequenos não jogam ao berlinde;
manipulam as bolas tratando-as segundo esquemas perceptivos e motores muito
simples… A criança responde às propriedades do objecto (forma, consistência,
tamanho…) segundo alguns esquemas corporais (empurrar, puxar, amontoar,
etc.). A criança brinca sozinha mesmo quando está em grupo. Não há
cooperação, e não há, :, rigorosamente, o sentimento de que uma ganha e a outra
perde. Na realidade, ela não tem consciência de que algumas jogadas são
permitidas e outras proibidas… Os maiores, pelo contrário, são totalmente
absorvidos pelo seu jogo. Se os interrogarmos sobre as regras, eles respondem:
“as regras foram feitas por nós… podemos mudá-las na condição de estarmos de
acordo, mas enquanto se mantiverem todos devem respeitá-las.” (Piaget, 1932).
Este debate faz aparecer, em primeiro lugar, uma série de convergências entre as
primeiras análises de Piaget e as presentes, por exemplo, em L’Éducation morale
(Durkheim, 1902-1903) ou em De la Division du travail social (Durkheim,
1893).
Nas suas investigações formais, Piaget não fornece traduções operatórias destes
três aspectos da socialização. Encontramos traduções sociológicas diversas ao
longo desta obra (cf. quadro 1.3.). Para Piaget, eles constituem os materiais de
base com os quais se estrutura o desenvolvimento da criança e se constrói a sua
socialização activa.
Este “paralelismo psicossociológico” explica a razão por que Piaget, nas suas
análises do desenvolvimento da criança, nunca pôde separar — mesmo por uma
abstracção metodológica que teria sido legítima — as formas sociais de
cooperação das formas lógicas de construção mental. Piaget não só recusou
sempre postular a anterioridade lógica ou cronológica das estruturas sociais
relativamente às estruturas mentais, como também nunca realizou nenhuma
dissociação metodológica de umas relativamente às outras. “Assim, como ele
escreveu, se o progresso lógico acompanha o da socialização, dever-se-á admitir
que a criança se torna capaz de operações racionais porque o seu
desenvolvimento social a torna apta à cooperação ou dever-se-á admitir, pelo
contrário, que são as suas aquisições lógicas individuais que lhe permitiriam
compreender os outros e que a conduziriam assim à cooperação? Uma vez que
estes dois tipos de progresso se desenvolvem paralelamente, a :, questão parece
não ter solução, a não ser que eles constituam dois aspectos indissociáveis de
uma só e mesma realidade que é simultaneamente social e individual” (1965, p.
158).
Esta tentativa apoia-se numa série de hipóteses causais que se pode explicitar da
seguinte forma (cf. esquema 1.2.):
Esquema 1.2.
:::::::::
*
*
Estatuto
socioprofissional
do pai (CSP)
(alto/médio/baixo)
:o Causalidade
Estruturação das
divisão do trabalho
Ambiente familiar
*
Tipo de
estruturação das
regras educativas
(flexível/rígido/fraco)
:o Correlação
Desenvolvimento mental como
processo de equilibração
Sucesso escolar dos filhos
Posição ao longo da
escola primária
(adiantado/na altura
certa/atrasado)
*** Indicador
::::::::::
Quadro 1.3.
:::::::
PIAGET:
PERCHERON:
Transacção Indivíduo/instituições:
compromisso entre desejos individuais
e valores colectivos
PIAGET:
Cognitivo :o regras
Afectivo :o valores
Expressivo :o signos
PERCHERON:
Pertença + Relação
Identidade social
PIAGET:
permitindo a construção de
um programa de vida
“possível”
PERCHERON:
Construção/selecção de um
::::::::::
A partir do que foi dito, vê-se claramente como é que a tentativa de tornar
operatória uma abordagem da socialização, previamente definida de uma forma
muito “piagetiana” (cf. quadro 1.3.), conduz a uma forma específica de análise
da linguagem aqui análise estatística do vocabulário político em crianças dos 10
aos 15 anos. destinada a discernir as linhas de força, as dimensões essenciais do
campo das representações políticas.
Esta passagem de uma forma de equilíbrio para outra implica uma primeira fase
de desestruturação que corresponde a uma crise das formas de transacção
anterior, uma segunda fase de desequilíbrio que corresponde a uma acomodação
sem assimilação (simples adaptação sem reequilibração) ou a uma assimilação
sem acomodação (simples crescimento sem reequilibração) e uma última fase de
reestruturação que corresponde a um novo equilíbrio dos dois processos. Este
“modelo” pode ser considerado como o contributo mais importante de Piaget
para a análise dos processos da socialização.
ERIKSON, E. H. (1950), Childhood and Society, New York and C.o, trad.
Enfance et société, Neufchâtel, 1957.
LACAN, J. (1953), Le séminaire — Livre III, Les psychoses, Paris, Seuil, 1981.
NISBET, R.-A. (1966), The sociological tradition, New York, Basic Books, trad.
française, La tradition sociologique, Paris, PUF, Soiologies, 1984.
PIAGET’ J.; GARCIA, R. (1987), Vers une logique des significations, Genève,
Muriande.
(*) O ano entre parêntesis corresponde geralmente à data da primeira edição das
obras.
A socialização na antropologia
e o funcionalismo
A este estudo pioneiro seguiram-se muitos outros, alguns dos quais tinham
pretensões mais teóricas. Todos eles se organizaram à volta de uma tese comum:
a personalidade dos indivíduos é o produto da cultura onde nasceram. Mais
precisamente, “as instituições com as quais o indivíduo está em contacto no
decurso da sua formação produzem nele um tipo de condicionamento que, a
longo prazo, acaba por criar um certo tipo de personalidade” (Lefort, 1969, p.
49). E esta posição, explicitada, matizada e ilustrada por Kardiner, que serve de
fio condutor à sua obra intitulada pertinentemente L’individu et sa société (1939)
e que começa por uma critica argumentada às teses de Freud sobre a
universalidade do complexo de Édipo. Retomando, a propósito das ilhas
Marquesas (cf. encaixe 2.1.), a ideia aceite, alguns anos antes, por Malinowski a
propósito das ilhas Trobriand (9), Kardiner constata que nestas sociedades, não
aparece nenhuma manifestação de um qualquer complexo edipiano porque não
existe nenhuma instituição susceptível de o engendrar. Mas o que é uma
instituição? É um “conjunto de esquemas de conduta, de modelos (pattern) de
comportamentos fixados pela repetição de acções individuais, uma formalização
do comportamento humano” (Lefort, p. 36). O conjunto destas instituições
constitui a cultura de uma sociedade que é também, segundo a célebre definição
de Linton, “a configuração geral dos comportamentos aprendidos e os seus
resultados, cujos elementos são adoptados e transmitidos pelos membros de uma
dada sociedade” (1945, p. 13).
(9) Foi, sem dúvida, Malinowski, graças às suas notáveis pesquisas sobre os
habitantes das ilhas Trobriand, quem, pela primeira vez, criticou empiricamente
a universalidade do complexo de édipo, formulado por Freud, enunciando,
simultaneamente, os princípios de uma abordagem “científica” funcional da
cultura (Malinowski, 1944). Mas, contrariamente a Kardiner e a Linton, ele não
atribuiu à socialização a importância que lhe deram, posteriormente, os teóricos
da antropologia cultural.
Linton, que realizou um longo inquérito nas ilhas Marquesas (cf. encaixe 2.1.),
chega à conclusão de que não há “nenhuma ou poucas disciplinas de base”. O
recém-nascido não é confiado à mãe mas aos maridos secundários daquela, de
tal forma que “a criança cresce no meio de vários pais de entre os quais nenhum
reivindica prerrogativas nem exerce uma autoridade rígida, não existindo assim
uma inflação anormal da imagem parental”. A amamentação dura pouco tempo
(menos de quatro meses) porque “os habitantes das ilhas Marquesas acreditam
que ela torna a criança difícil de educar e menos submissa” e sobretudo, segundo
Linton, porque as mulheres têm um grande orgulho na firmeza e na beleza dos
seus seios” e estão “convencidas de que um amamento prolongado estraga os
seios”. A forma de alimentar é brutal: “deita-se o bebé no chão da casa enquanto
a mãe fica perto dele com uma mistura de leite de coco e de fruta com pão
cozido… ela pega numa mão cheia desta mistura e, mantendo firme o rosto da
criança, enfia-lhe a comida na boca”. Não se esforçam por obter um controlo
anal do bebé antes de ele perfazer um ano de idade: “o homem limita-se a mudar
o tecido de casca de árvore no qual a criança está deitada. Mais tarde, a criança é
levada em braços pelo homem para perto e posta em posição para fazer as suas
necessidades”. As crianças passam a maior parte do dia na água e aprendem a
nadar antes de aprender a andar. Estão nuas e nunca sozinhas mas são
constantemente vigiadas (embora sem muita preocupação, segundo o autor)
pelos maridos secundários. Se os adultos estão ocupados, deixa-se a criança
chorar. No caso de ela gritar e se tornar muito incómoda, “pode acontecer que
um adulto a acalme masturbando-a”. Aliás, prossegue Linton, “a masturbação
das meninas inicia-se muito cedo: logo que nascem, manipulam-se
sistematicamente os lábios para que estes cresçam e se tornem mais longos e,
pensava-se, mais bonitos” (Kardiner, id., pp. 226-227).
Encaixe 2.1.
Entre os habitantes das ilhas Marquesas, há duas vezes e meia mais homens do
que mulheres. A causa deste fenómeno é desconhecida ou é escondida. Por isso,
o lar marquesiano é poliândrico. Há um marido principal e maridos secundários,
excepto nos lares mais pobres… Os lares mais abastados podem ter mais de
quatro homens para uma mulher e a casa do chefe tem onze ou doze homens
para três ou quatro mulheres. Todos os membros do grupo assim formado têm
direitos sexuais uns sobre os outros, constituindo-se assim uma espécie de
casamento de grupo…
(10) Linton assinala que a iniciação não acaba com a cerimónia da tatuagem dos
jovens: “quando um homem chega aos 30 anos, sobretudo quando se tratava de
um grande guerreiro, ele submetia-se a uma nova operação de tatuagem
acompanhada de uma pintura do corpo todo”. Existe, portanto, uma relação
visível entre a cor dos corpos e o grau de socialização: os “velhos” eram
geralmente todos pintados de verde, o que permitia identificá-los muito
facilmente (Kardiner, op. cir., p. 232).
(11) Esta socialização informal das crianças em grupos que reúnem rapazes e
raparigas do mesmo nível etário ocupa também um lugar essencial nas
sociedades africanas (Rabuin, 1979).
— a desigualdade numérica dos sexos (cuja causa real se ignora) está ligada à
hipótese de a organização dos habitantes das ilhas Marquesas constituir uma
adaptação a este facto considerado primordial: a poliândria, a importância dada à
paternidade, o afastamento do ciúme, que permite preservar os principais
interesses do grupo”, a posição dominante da mulher na sexualidade e também o
seu “descrédito no folclore” (papão “comedor de homens”) são, entre outras,
considerados por Linton como instituições primárias decorrentes desta segunda
característica fundamental do “núcleo psicológico marquesiano”;
— este risco pode ser evitado pela emergência de um novo tipo de cultura
proveniente da “necessidade de um conjunto de ideias e de valores mutuamente
compatíveis aos quais todos os membros possam aderir para justificar a sua
pertença comum”. Esta emergência implica a reconstituição de um novo núcleo
cultural a partir de uma reorganização de elementos antigos e novos provenientes
de inovadores culturais; pressupõe, simultaneamente, a reconstituição de uma
nova estrutura do Eu (personalidade de base) assegurada através de uma
socialização comum.
(13) Para uma apresentação global e uma síntese crítica das diferentes correntes
funcionalistas, podemos consultar o capítulo que G. Rocher lhes consagra na sua
obra Introduction à la sociologie générale (1968, t. 2, pp. 160-176) assim como
o artigo de Merton publicado em Éléments de méthode et de théorie socialogique
(1965, trad. francesa, pp. 65-139).
A teoria da acção segundo Parsons
O que interessa a Parsons é construir uma teoria geral que integre todos os
elementos da acção humana e dê conta das suas singularidades e variações.
Partindo do acto individual, ele depara-se, em primeiro lugar, com a interacção,
dado que qualquer acção humana pressupõe, de qualquer forma, uma relação
com o outro. Ora, a interacção só é possível segundo Parsons, quando “uma
norma comum se impõe simultaneamente aos dois actores”. Só se pode
comunicar (tendo em conta o que Parsons chama de “dupla contingência”) se se
possuir um código comum mínimo (eventualmente uma linguagem gestual
interpretada da mesma forma por todos…). Esta norma comum, de acordo com
Parsons, só pode derivar de uma cultura partilhada que implique “um sistema de
valores que subentenda as normas que orientam os actores” (1937, p. 15).
Mas o acto individual persegue igualmente os objectivos. Para poderem ser
alcançados, estes objectivos implicam motivações que nos reenviam para as
necessidades do organismo. Pressupondo a existência de uma cultura comum aos
actores, a acção humana não é apenas interacção, é também satisfação de uma
necessidade que pressupõe, também ela, a existência de um corpo que lhe
fornece a energia necessária para se realizar.
A fase anal constitui uma transição essencial entre a dependência oral e a ligação
amorosa (a2). Ela acompanha, no bebé, a primeira diferenciação de si como
objecto por oposição à mãe (e já não em fusão com ela), graças às frustrações
resultantes das proibições :, anteriores. Ao encorajar, sob formas diversas, o
controlo esfincteriano (segundo Parsons, protótipo simbólico do controlo de si),
a mãe permite também que a criança desempenhe o seu primeiro papel
autónomo em interacção com ela: ao dar prazer à mãe, a criança “não só se sente
amada como ama muito”, (id., p. 43). Ela pode. assim, interiorizar activamente
um conjunto de valores essenciais da cultura do grupo social e preparar-se para
enfrentar a primeira grande crise do desenvolvimento, graças ao suporte (b2) que
constitui esta primeira autonomia em relação à mãe.
Esquema 2.1.
:::::::
A: Adaptação
Adolescência (c4)
b1: permissividade
L: Estabilidade normativa
I: Integração
a: fases da socialização
b: mecanismos específicos
c: fases e crises :,
::::::
A querela da hipersocialização
Num artigo acutilante, o sociólogo Dennis Wrong (1961) acusa Parsons de fazer
da “sociedade dos homens” uma realidade que não é “muito diferente da
sociedade das abelhas” com a única reserva de que “o resultado atingido neste
caso pelo instinto é no outro caso atingido por outros caminhos”. Ao qualificar a
teoria de Parsons como uma “concepção hipersocializada do homem”, Wrong
denuncia a redução da socialização por Parsons a um “puro e simples treino”,
eliminando assim a questão central colocada desde o século XVIII por Hobbes:
“Como é possível haver uma coesão social numa sociedade sempre ameaçada
pela guerra de uns contra os outros?”.
(15) Parece que Parsons teve de suportar reacções hostis em Harvard pelo facto
de criticar vigorosamente P. Sorokin, titular da cadeira de Sociologia. Parece
também haver uma relação entre esta rejeição relativa e o envolvimento de
Parsons na análise da prática médica no hospital de Boston. Agradeço a Béatrice
Appay por me ter feito descobrir estes aspectos importantes da biografia do mais
impressionante dos teóricos da sociologia do século XX (Appay. 1989). Cf.
também o livro de Gouldner The Coming Crisis of Western Socialogie (1970),
onde se poderá encontrar uma biografia de Parsons e uma critica equilibrada da
sua teoria.
O que aconteceria se não entrássemos neste padrão? Para Parsons, e para todos
os culturalistas, inscrevemo-nos numa trajectória de desvio. Os que não saem da
primeira infância (ou da adolescência) com o sentimento de pertença cultural
bem vincado — seja por não terem conseguido identificar-se, seja porque, tendo-
se identificado, não interiorizaram normas ou valores particulares — têm de
assumir a sua posição de desviantes e lutar pelo seu reconhecimento por um
outro grupo que não o da família de origem, ou para inflectirem os valores e as
normas do grupo onde se querem integrar. Como Ruth Benedict dizia sobre as
três sociedades que estudou, alguns conseguem-no e podem mesmo tornar-se
prestigiosos inovadores, outros falham e são excluídos, marginalizados ou, nas
sociedades modernas, são acompanhados ou mesmo “psiquiatrizados”. Mas, em
qualquer dos casos, são excepções que só marginalmente têm a ver com a teoria
sociológica na versão de Parsons… :,
Ao contrário de Parsons, Merton recusa fechar-se numa teoria geral. Ele advoga
a elaboração de “teorias de médio alcance” (*middle range theories*),
estritamente articuladas com as investigações empíricas e, portanto, susceptíveis
de serem enriquecidas ou mesmo invalidadas por elas.
Esta última hipótese assenta na ideia de uma adesão diferencial aos valores do
grupo de pertença. Esta diferenciação enraiza-se nas histórias anteriores dos
membros do grupo: aqueles para quem o grupo representa um prolongamento do
seu grupo social de origem estarão mais ligados aos seus valores do que aqueles
que conheceram uma mobilidade anterior; a ligação destes últimos, por sua vez,
será diferente consoante a mobilidade anterior foi ascendente ou descendente.
Por fim, a ligação pode ser mínima naqueles que são originários de um grupo
social que partilha os mesmos valores dos do grupo dirigente da instituição.
Neste último caso, o grupo de referência é justamente o grupo social de origem
do indivíduo. É uma situação já bem conhecida na sociologia (Girod, 1971) sob
a designação de “contramobilidade social”.
Estas atitudes explicam-se pelo facto de que uma fracção significativa dos
adultos que, tendo seguido em regime nocturno uma formação longa, se situam
numa trajectória de contramobilidade social: oriundos de famílias de camadas
médias (professores, técnicos superiores) ou superiores (engenheiros,
directores…), estes adultos não conseguiram concluir o 12.o ano ou obter um
diploma do ensino superior e encontraram-se, deste modo, na situação de
operários ou de empregados. Ao compararem-se a alguns membros das suas
famílias que pertencem a profissões “intelectuais”, consideram-se como
desclassificados e sentem uma frustração marcada pelos modelos culturais das
camadas sociais “superiores”. A sua motivação para prosseguir os estudos, obter
um diploma de fim de curso e “tornar-se quadro”, explica-se pelo
desnivelamento entre os valores e as normas do grupo “profissional” de pertença
e os do grupo “social” de referência, similares ou próximos dos da família de
origem ou da família por afinidade. Encontram-se, por isso, “subjectivamente”
envolvidos numa trajectória de promoção social, que mais não é do que uma
maneira de restabelecer a sua posição social de origem (dai o termo
contramobilidade social porque, afinal de contas, eles encontram-se numa
situação de não-mobilidade intergeracional): :,
(18) Esta abordagem dos cursos nocturnos por C. de Montlibert tem de ser
situada na sua época: os anos 60 em França onde o modelo da “promoção social”
predomina em matéria de formação continua As análises dos comportamentos
em formação dos adultos franceses serão, de futuro, complexificadas,
nomeadamente, pelo papel crescente das empresas e pela subida do desemprego
(Dubar, 1983).
(19) O termo paradigma é utilizado aqui num sentido mais lato do que no
capítulo 1: designa as representações de um fenómeno (aqui: a socialização)
características de algumas “correntes” transversais às várias disciplinas das
ciências humanas e fornece “modelos de inteligibilidade” do funcionamento
deste fenómeno.
Será que estas críticas, tanto filosóficas como científicas, invalidam totalmente a
abordagem culturo-funcional da socialização, considerada, contudo, durante
muito tempo como “clássica”? (Gouidner, 1970). Não é esta a nossa opinião e o
uso que dela faz Merton mostra que ela conserva um valor heurístico na
condição de a aplicar em análises empíricas sólidas. Ela permanece útil tanto
para analisar e compreender as condutas daqueles que cresceram em contextos
culturais tradicionais e bastante integrados, como para fornecer hipóteses
explicativas das condutas individuais ditas “modernas”. Há uma vertente da
sociologia que ainda hoje está impregnada por esta abordagem e tenta adaptá-la
às evoluções das sociedades contemporâneas.
Bibliografia do Capítulo II
1950.
KARDINER, A. (1939), The Individual and his Society, New York, Columbia
University Press, trad. L’individu et sa société, Paris, Gallimard, 1969.
LINTON, R. (1936), The study of man, New York, Appleton Century, trad. Y.
Delsaut. *De
pp. 145-279
MERTON, R. K. (1950), “Contributions to the Theory of Reference Group
Behavior” (avec A. Kitt), trad. par H. Mendras, Éléments de théorie et de
méthode sociologique, Paris, Plon 1965, pp. 202-236.
PARSONS, T. (1937), The Structure of Social Action, New York, Mac Graw-
Hill.
PARSONS, T.; BALES, R. F. (en coll. avec Zelditch, M., Olds, J., Slater, P.
(1955), Family, Socialization and Interaction Process, Glencoe, The Free Press.
POPPER, K. (1959), The Logic of Scientific Discovery, New York, Harper and
Row, trad. française, La logique de la découverte scientifique, Paris, Payot,
1973.
Bourdieu retoma esta nação filosófica clássica utilizada por inúmeros autores
(Héran, 1987), conferindo-lhe uma definição mais complexa, mais dialéctica e
que pretende ser mais operatória. Define os habitus como “sistemas de
disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e
organizadores de práticas e de representações” (1980, p. 88). Presença activa e
sintética de todo o passado que o produziu, o habitus é a estrutura geradora das
práticas “perfeitamente conformes à sua lógica e às suas exigências”, :, que
exclui as práticas mais improváveis, “à primeira vista, consideradas
impensáveis” (1980, p. 90). Produzindo apenas práticas “determinadas pelas
condições de produção passadas e antecipadamente adaptadas às suas exigências
objectivas”, o habitus assegura, nomeadamente, “a correspondência entre a
probabilidade a priori e a probabilidade ex post” (id. , p. 105) e, portanto, “a
correlação muito estreita entre as probabilidades objectivas (por exemplo, as
hipóteses de acesso a este ou àquele bem ou serviço) e as esperanças
mais íntimas (“os efeitos do habitus inscrevem-se para sempre no corpo e nas
crenças” id., p. 96), percepcionando, querendo e fazendo (“esquemas de
percepção de pensamento e de acção”) apenas aquilo que é estritamente
conforme às suas condições sociais anteriores, não se vislumbra de onde poderia
vir a mudança: se cada um reproduzisse estritamente aquilo que conheceu, então
as condições que engendraram os habitus manter-se-iam imutáveis pelas práticas
saídas destes habitus.
Ora, será exactamente isto o que Bourdieu quer dizer? Na maioria dos textos em
que expõe a concepção do habitus
Tal como faz P. Bourdieu em várias ocasiões (1974. pp. 5, 19, 22; 1980, pp. 102
e seguintes), pode-se também fazer do habitus não o produto de uma condição
social de origem, mas o produto de uma trajectória social definida através de
várias gerações e mais precisamente através da “orientação da trajectória social
da linhagem” (1974, pp. 5 e 29); neste caso já não podemos definir de uma
forma sincrónica as “estruturas objectivas” que produzem habitus. O filho de um
operário, sendo este filho de camponês e propenso à ascensão social e ao
abandono da condição operária, não será educado da mesma maneira que o filho
de um operário, também este filho de operário, e persuadido que não se pode sair
da condição operária. Enquanto o primeiro arrisca ter um “habitus de pequeno
burguês” — sendo de origem operária mas com uma socialização antecipatória
de pequena burguesia —, o segundo terá um habitus operário “tradicional”. A
estrutura das situações que ambos encontram não será percepcionada da mesma
maneira pelo primeiro e pelo segundo. Assim, o primeiro poderá ter um bom
sucesso escolar, poderá investir nos estudos para “não ser operário como o pai”,
enquanto que o segundo sairá da escola mais cedo com, por exemplo, um
diploma do ensino técnico curto “para ter um bom ofício (de operário) como o
do pai”. Na segunda interpretação, o habitus não é essencialmente a cultura do
grupo social de origem, mas a orientação da família (a “vocação” corresponde à
“orientação” da trajectória familiar — cf. 1974, p. 16), a identificação antecipada
a um grupo de referência cujas condições sociais não são as da família ou do
grupo de origem.
Quadro 3.1.
::::::::::::
(Burguês)
“distinto”, agradável, amplo (espírito, gesto, etc.), generoso, nobre, rico, ousado
(nas ideias, etc.), liberal, livre, maleável, natural, agradável, desenvolto, seguro,
aberto, vasto, etc.
(Pequeno-burguês)
(Povo)
::::::::::::
Uma das questões mais delicadas que coloca esta versão da teoria dos campos é
a do grau de autonomia de cada um dos campos em relação ao espaço global das
classes sociais e à sua estruturação essencial (dominante/dominada) e secundária
(ascendente ou com pretensões/descendente ou ameaçada). Se o volume do
capital cultural está cada vez mais dependente do volume global do capital da
família de origem — reconvertendo o capital económico em capital cultural à
medida da “ascensão” do campo escolar na hierarquia dos campos —, não se
compreende como é que os mesmos agentes provenientes das fracções
dominantes da classe dominante não conseguem dominar todos os campos em
que investem os seus capitais. A introdução em algumas análises, como aquelas
que são feitas na parte final do Le sens pratique, de uma nova espécie de capital,
o capital simbólico, que tem por principal função “a legitimação do arbitrário”,
permitindo transformar “relações arbitrárias de domínio em relações legitimas”
(1980, pp. 210-2113, vai no mesmo sentido: cada um dos campos tende a ser
estruturado de acordo com posições de poder que são sistematicamente ocupadas
pelas mesmas classes e fracções de classes. :,
(23) É o que faz, parece, J.-C. Passeron (1986) quando distingue a auto-
reprodução escolar da reprodução social. Na sua opinião, “é ao historiador o não
ao sociólogo que compete descrever a renovação das configurações produzidas
polo encontro heterogéneo do processos que não se podem tratar como
evoluções sistemáticas desde que se considerem como independentes” (p. 76).
147-166.
(25) Habermas defende a ideia que não existe teoria operatória da socialização
na obra de Marx uma vez que ele pensa que o desenvolvimento das forças
produtivas determina necessariamente as relações de produção e, por isso,
determina o conjunto das relações sociais ( 1981, p. 212). Esta constatação é
particularmente bem confirmada pela leitura de uma síntese sobre o lugar da
socialização nas abordagens económicas que se reclamam do marxismo (Palloix,
Zarifian, 1981).
::::::::::::
::::::
Ora, se Max Weber distingue, sistematicamente, nas suas últimas obras, quatro
tipos de acção humana (cf. quadro 4.2.), só opõe duas formas gerais de
orientação dos comportamentos de um indivíduo em relação àqueles de outrem:
aquele a que chama acção comunitária ou “processo de entrada na comunidade”
(*Vergemeinschaftuag*) que traduzimos por “socialização comunitária” e aquele
que chama acção societária ou “processo de entrada na sociedade”
(Vergesellschaftung) que traduziremos por “socialização societária” (27).
Segundo Weber, a diferença essencial entre estas duas “formas fundamentais de
se relacionar com o comportamento do outro” reside no facto de a segunda se
basear em regras (*Ordnuagen*) que foram estabelecidas “de forma puramente
racional tendo em conta a finalidade” (*Zwecirationalitãt*) e que assentam,
portanto, em conformidades subjectivas voluntárias a estas regras, consideradas
como “expressões de interesses comuns mas limitados”, enquanto que a primeira
tem por base expectativas (*Erwartungen*) de comportamentos fundamentados
em hipóteses subjectivas de sucessos que se podem exprimir sob a forma de
“julgamentos objectivos de possibilidade”, vindos do costume ou do respeito
pelos valores partilhados. Enquanto a socialização “comunitária” pressupõe :,
uma colectividade de pertença (*Verband*) e, nomeadamente, uma “comunidade
linguística”, a socialização societária não é mais do que “a expressão de uma
constelação de interesses variados” (p. 365).
Quadro 4.2.
::::::
Tipos de acção:
Fundamento da regularidade:
Ordem legítima:
fundamento de legitimidade:
Tipos de agrupamentos:
:::::::::
uma oposição radical entre duas formas de agrupamentos (*Verein*) de que uma
(a “comunidade”) é, à partida, definida como “vida orgânica e real”, “vida
comum verdadeira e durável” associada a “tudo aquilo em que se confia, à
intimidade, vivendo exclusivamente em conjunto”, enquanto a outra (a
“sociedade”) é apresentada como “vida virtual e mecânica”, “passageira e
aparente” e associada a “tudo o que é público” e constitui apenas uma “pura
justaposição de indivíduos”.
Não há dúvida que, para Tõnnies, o que constitui o elemento primário, originário
da realidade social e, por isso mesmo, o objecto elementar da sociologia, não é o
indivíduo mas a comunidade definida como “conjunto das relações necessárias e
dadas entre diferentes indivíduos que dependem uns dos outros”, relações
organizadas à volta das três relações fundamentais que são, em sua opinião:
— a relação entre uma mãe e o filho (“a relação maternal mais profunda
enraizada no instinto e no prazer”);
É, sem dúvida, George Herbert Mead, na sua obra intitulada Self, Mind and
Society (1934), quem pela primeira vez descreveu, de forma coerente e
argumentada, a socialização como construção de uma identidade social (um self
na terminologia de Mead) na e pela interacção — ou a comunicação — com os
outros. Complementar e não antagonista da perspectiva de Piaget (cf. capítulo 1),
esta teorização tem o mérito de colocar “o agir comunicacional” (e não
“instrumental”) no centro do processo de socialização e fazer depender a lógica
da socialização das formas institucionais da construção do Eu e, nomeadamente,
das relações comunitárias (e não somente “societárias”) que se instauram entre
os socializadores e o socializado.
Como Max Weber, Mead considera que “o facto mais importante é o acto social
que implica a interacção de diferentes organismos, isto é, que implica a
adaptação recíproca das suas condutas na elaboração do processo social” (trad.,
p. 39). O acto elementar é o :, gesto que constitui uma adaptação à reacção do
outro. Mas há dois tipos de gestos. Quando um barulho muito intenso ecoa atrás
de si, você desata a correr (Mead), quando chove, abre o guarda-chuva (Weber):
são gestos reflexos que não implicam nenhuma intenção relativamente a outrem.
Quando alguém lhe estende a mão, você estende-lhe a sua, se ele faz menção de
o agredir com um murro, você recua: são gestos simbólicos (30), “símbolos
significativos que têm um sentido definido” (id., p. 40). Neste último caso, Mead
designa-os por linguagem e define-os a partir do facto de eles fazerem “nascer
implicitamente naquele que os realiza a mesma reacção que produzem,
explicitamente, naqueles a quem eles se dirigem” (id., p. 41). Esta reacção
significativa e simbólica, que “tem a mesma significação para todos os
indivíduos de uma dada sociedade ou de um grupo social” e origina a mesma
atitude naqueles que a realizam e naqueles que a ela reagem, constitui, para
Mead, a origem da consciência ou daquilo que ele designa por espírito (Mind) e
que ele caracteriza como “a adopção da atitude do outro relativamente a si ou
relativamente à sua própria conduta” (id., p. 41).
(30) É esta associação constante da interacção e do simbolismo que faz com que
G. H. Mead seja considerado o fundador do interaccionismo simbólico do qual
encontraremos outros representantes no decurso desta obra.
Na sua obra de síntese consagrada à socialização (1986, trad. 1966), Peter Berger
e Thomas Luckmann (B. L.) retomam e aprofundam as análises de Mead,
introduzindo uma distinção interessante entre socialização primária e
socialização secundária.
Na sua análise da socialização primária, introduzem no esquema meadiano a
problemática dos saberes elaborada pela corrente fenomenológica e,
nomeadamente, por Alfred Schütz (ed. 1967). A socialização define-se, antes de
mais, pela imersão dos indivíduos naquilo que chama “mundo vivido”, o qual é,
simultaneamente, um “universo simbólico e cultural” e um “saber sobre este
mundo”. A criança absorve o mundo social no qual vive “não como um universo
possível entre outros, mas como o mundo, o único mundo :, existente e
concebível, o mundo tout court“. Fá-lo a partir de um saber (31) de base que é,
segundo Schütz, quer pré-reflexivo quer pré-dado, e que funciona como uma
evidência, mas também como uma reserva de categorias com a ajuda das quais:
(31) O termo inglês knowledge deve antes ser traduzido pelo termo “saber” do
que por “conhecimento”.
— fornece a estrutura no interior da qual tudo aquilo que ainda não é conhecido
acabará por ser mais tarde conhecido (B. L., p. 94).
Estas condições serão tanto mais importantes e difíceis de reunir quanto maior
for a distancia entre os conteúdos da socialização primária e os da socialização
secundária. Quando a ruptura é notória, assiste-se a verdadeiras “alternações”,
isto é, a transformações totais da identidade; assiste-se a situações de
“alteridade” do indivíduo no decorrer da socialização secundária. “O protótipo
histórico da alternação é a conversão religiosa” (B. L., p. 215). Esta só pode
perdurar no seio de uma comunidade religiosa que tem capacidade para criar
todas as condições precedentes e, nomeadamente, constituir uma estrutura eficaz
de plausibilidade que assegura a separação do convertido dos seus antigos
correlegionários “pelo menos no decurso da fase essencial da iniciação”.
não são garantidas por uma instancia única de controlo social e de legitimidade
cultural. Assim sendo, os aparelhos de socialização primária (famílias,
escolas…) entram em interacção com os aparelhos de socialização secundária
(empresas, profissões…) provocando crises de legitimidade dos diversos saberes
e das transformações possíveis dos “mundos legítimos”. A mutação dos sistemas
de trabalho e de produção, e mais geralmente de acção instrumental, pode assim
ser acompanhada de socializações secundárias que põem em causa as hierarquias
e os saberes da socialização primária, nomeadamente através de uma mudança
das interacções, das relações sociais, em suma, através da acção
comunicacional. Esta mudança social implica que o processo de diferenciação
social e de autonomização dos campos da prática social — nomeadamente da
acção instrumental de tipo “económico” — possa entrar em contradição com o
processo de reprodução das instituições educativas e, nomeadamente, das
relações de autoridade, de domínio e de poder que caracterizam a acção
comunicacional ou de tipo “relacional”. Esta contradição só se pode analisar em
relação com os conflitos sociais que opõem grupos ou “actores” sociais
definidos não só pelo seus interesses “estratégicos”, mas também pelas suas
identidades “culturais”. É, de facto, graças à transformação possível das
identidades na socialização secundária que se podem pôr em causa as relações
sociais interiorizadas ao longo da socialização primária: a possibilidade de
construir outros “mundos” para além daqueles que foram interiorizados na
infância está na base do sucesso possível de uma mudança social não
reprodutora.
Devido ao seu enraizamento nos dois tipos de agir social (a acção instrumental
“estratégica” que pressupõe um olhar sobre o mundo, uma categorização activa e
o agir comunicacional “expressivo” que pressupõe a partilha de uma linguagem,
de um código e do seu uso nas relações directas), estas representações activas
envolvendo os diversos tipos de saber constituem os melhores indicadores
possíveis das identidades sociais, resultados simultaneamente estáveis e
provisórios de um processo de socialização concebido em termos estratégico e
comunicacional.
Bibliografia do capítulo 4
GOFFMAN, E. (1963), Stigma, Prentice Hall, trad. Stigmate. Les usages sociaux
des handicaps,
MARX, K.; ENGELS, F. (1844), Les manuscrits de 1844, õuvres, Économie II,
Pléiade, Gallimard, 1968.
MEAD, G. H. (1933), Mind, Self and Society, trad. L’esprit, le sai et la société,
présentation de J. Cazeneuve, Paris, PUF, 1963.
(32) Para uma síntese das abordagens psicanalíticas da identidade, podo-se ler a
síntese de J. Cain (1967) intitulada significativamente: Le double jeu.
Assim vista, será que a noção de identidade pode ser incluída numa perspectiva
sociológica? Certamente que não se nos mantivermos numa perspectiva
fenomenológica da relação interindividual Eu-Outro, ou numa perspectiva
psicanalítica redutora que considera o Eu como o elemento de um sistema
fechado em relação dinâmica mas “interna” com o Id e o Superego que rejeita no
“ambiente envolvente” o conjunto das instituições e das relações sociais (35).
Certamente que
(36) Não era a posição do próprio Freud que escreve: “Todas as relações que
foram até agora objecto de investigações psicanalíticas podem, de direito, ser
consideradas como fenómenos sociais” (Freud, trad. 1981, p. 76). Portanto, seria
preciso diferenciar e distinguir as diversas correntes psicanalíticas; já que os
escritos mais sociológicos de Freud foram considerados, durante muito tempo,
pela maioria dos psicanalistas como os menos científicos e os menos pertinentes
(cf. Enriquez, 1983, pp. 32 e seguintes).
(41) A distinção é desenvolvida de uma forma muito clara por Habermas (tomo
II, pp. 118 e seguintes).
Quadro 5.1.
:::::::
Processo relacional
Identidade para outro
Actos de atribuição:
— identidades atribuídas/propostas
— identidades assumidas/incorporadas
Alternativa entre:
— cooperação-reconhecimentos
— conflitos/não-reconhecimentos
PODER”
\\
Processo biográfico
Identidade para si
Actos de pertença:
— identidades herdadas
— identidades visadas
Alternativa entre:
— continuidades :o reprodução
— rupturas :o produção
::::::::::::
Parece, pois, que este último grupo não corresponde, na análise de Sainsaulieu, a
uma identidade no trabalho verdadeiramente típica: os seus membros investem
no campo do trabalho da mesma forma que os “negociadores” possuem em parte
os mesmos valores que os outros assalariados da sua geração e da sua origem
social e só se distinguem dos outros pelas normas relacionais específicas. Sem
dúvida que é esta a razão pela qual não constituem um modelo identificatório
retido pelo autor na tipologia que desenvolve no prefácio da segunda edição
(1985, p. 1) cuja importância diminui “no decurso dos anos”, razão pela qual os
outros tipos são considerados como “capazes de esclarecer as lógicas dos actores
no decurso deste período” (id., p. 111).
Deste modo, a construção das quatro identidades típicas no trabalho, feita por
Sainsaulieu, baseia-se na constatação — ou na hipótese - de uma grande
coerência entre lógicas de actores no trabalho e normas relacionais no seio da
empresa. Num esquema recapitulativo :, produzido posteriormente (1987, p.
213), situa estas posições identitárias no interior de um espaço ortogonal
estruturado pela dupla oposição individual/colectivo e oposição/ aliança:
(45) Mas também imagens do eu que se privilegia num dado momento da sua
biografia: elas podem dizer respeito ao
1972).
Bibliografia do capítulo 5
BAUDELOT, C. (1988), “La jeunesse n’est plus ce qu’elle était: les diff~cultés
d’une description”, Revue économique, I, pp. 189-224.
BOLTANSKI, L. (1982), Les cadres: la formation d’un groupe social, Paris, éd.
de minuit.
GOFFMAN, E. (1963), Stigma, Prentice Hall, trad. Stigmate. Les usages sociaux
des handicaps, Paris, Éd. de Minuit, 1975.
:as “abordagens” da
socialização profissional
Na sua síntese histórica, J. Le Goff (1977) mostra como, antes da expansão das
Universidades, a partir do século XIII, o trabalho era considerado uma arte e
abrangia todos os que integravam as corporações definidas como “regulamentos
corporativos para garantir a competência jurídica, isto é, a autorização de exercer
e de defender o seu monopólio e os seus privilégios no interesse do bem
comum” (Olivier Martin, 1938). As artes liberais e as artes mecânicas, os artistas
e os artesãos, os intelectuais e os trabalhadores manuais provinham de um
mesmo tipo de organização corporativa que assumia a forma de “ofícios
juramentados” nas “cidades juramentadas”, onde “se professava uma arte”. O
termo “profissão” deriva desta “profissão de fé” consumada nas cerimónias
rituais de entronização nas corporações (cf. encaixe 6.1.).
— observar as regras;
— guardar os segredos;
Encaixe 6.1.
A carta patente redigida por Henrique III em 1585 revela um outro aspecto
característico da comunidade moral corporativa. Ratificando os estatutos dos
mercadores de vinho e dos estalajadeiros, o rei estabelecia “de forma perpétua o
dito estado…”. Noutros termos, o estado juramentado, uma vez criado, passava a
existir a titulo definitivo como “corpo, confraria e comunidade”. Esta perenidade
da comunidade era entendida de duas formas. Uma delas era que, logo que
instituída pela autoridade real, a comunidade com os seus direitos e privilégios
era reconhecida como um corpo permanente no Estado, e os seus estatutos já não
tinham de ser de novo ratificados pelos monarcas posteriores. A segunda era que
aqueles que entravam nesta comunidade continuavam membros dela até ao fim
da :, vida — pelo menos em princípio. Esta ideia de que a pertença a uma
corporação era o compromisso para uma vida encontrava-se sob diferentes
formas na linguagem corporativa. Estava subentendida no termo estado, tal
como era empregue pelo rei na célebre carta patente e de uma forma mais
generalizada no vocabulário social do Antigo Regime que designava a profissão
de um artesão. Segundo o jurista Loyseau, o estado era “a dignidade e a
qualidade” que eram “os atributos mais imutáveis e os mais inseparáveis de um
homem”. Em consequência, quando um artesão entrava no ofício adquiria um
estado particular, uma condição social e uma qualidade ontológica permanente
que partilhava com aqueles que exerciam o mesmo ofício e que o distinguia dos
membros das outras profissões. O estado de um artesão determinava
definitivamente o seu lugar na ordem social e definia os seus direitos, as suas
dignidades e obrigações, de uma forma bastante similar à da pertença de um
indivíduo, a um outro nível, a um dos três estados do reino: o Clero, a Nobreza e
o Terceiro Estado. Considerava-se, portanto, o
Na sua obra de síntese, R. Nisbet (1966) mostra até que ponto todos os
fundadores da sociologia, na sua reflexão teórica e nos seus trabalhos empíricos,
concederam um lugar central à análise das actividades profissionais. Assim, por
exemplo, Le Play, nos seis tomos da obra Les ouvriers européens (primeira
edição, 1855), considerada por Nisbet “a primeira obra de sociologia científica
do século XIX” (trad., p. 85), analisa 45 tipos de situações operárias,
combinando não só três formas fundamentais de famílias (patriarcal, instável,
família de raiz), mas também seis níveis de estatutos internos à classe operária
(domésticos, jornaleiros, tarefeiros, chefes de ofício, proprietários simples,
proprietários operários) assentes em três critérios essenciais: 1. o ofício exercido;
2. o lugar ocupado no interior da profissão; 3. a natureza do contrato que liga o
operário ao patrão. Em meados do século XIX, Le Play refere-se,
constantemente, às bases económicas e profissionais da família e da vida
comunitária e considera que “só a actividade que exerce permite ao homem dar
um sentido ao meio envolvente” (Nisbet, p. 89). Assim, aos seus olhos “as
associações profissionais constituem uma das glórias da Inglaterra e explicam
em grande medida a supremacia intelectual que esta goza nessa época,
especialmente no domínio científico” (id. , p. 91).
Podemos ver, através destes quatro exemplos, até que ponto as análises,
reflexões ou propostas dos “primeiros sociólogos”, no que se refere às
actividades e às associações profissionais, se inscrevem na continuidade da
prática comunitária dos ofícios. Não para desenvolver, como o fizeram tantos
outros pensadores conservadores da sua época, uma denúncia nostálgica do
individualismo interesseiro ou dos conflitos sociais, mas sim para enraizar a
relação dos homens com o seu trabalho numa perspectiva comunitária e tentar
definir as condições de uma organização económica socialmente viável.
Eis a razão por que esta sensibilidade e este tipo de abordagem não se opõem
verdadeiramente nem ao ponto de vista de um Spencer, que via na elaboração e
no desenvolvimento das “profissões” a característica essencial de uma sociedade
civilizada (1896), nem, e sobretudo, às perspectivas de um Max Weber que,
como já vimos (cf. capítulo 4), considerava que a “profissionalização”
(*Verberuflichtung*) constituía um dos processos essenciais da modernização,
isto é, da passagem de uma “socialização principalmente comunitária” em que o
estatuto é atribuído a uma “socialização fundamentalmente societária” onde o
estatuto social “depende das tarefas efectuadas e dos critérios racionais de
competência e de especialização” (1920, capítulo 2). Esta oposição entre a
transmissão hereditária dos estatutos e dos ofícios (*ascription*) e a livre
escolha individual das formações e das profissões (*achievement*) é uma das
justificações clássicas da diferença entre “ofício” e “profissão” e um dos
argumentos mais frequentes da superioridade atribuída às “profissões” na
sociologia anglo-saxónica dominante (Boudon-Bourricaud, 1982, pp. 437 e
seguintes). Mas esta oposição não impede que uma parte dos sociólogos
envolvidos transfiram para as “profissões” de hoje uma parte ou a totalidade das
suas representações dos ofícios de ontem. A profissão adquire neste caso uma
dimensão comunitária estruturante do sistema social global. :,
Como sublinham Jackson (1970, p. 6), Heilbron (1986, p. 72) e Desmarez (1986,
pp. 25-27), o aparecimento da sociologia das “profissões” nos Estados Unidos
não derivou directamente da tradição dos fundadores, mas de uma estratégia de
profissionalização dos sociólogos confrontados, durante a crise de 1929, com os
pedidos do governo Hoover para compreender a evolução da sociedade e ajudar
a definir a sua política. Adoptando o grande projecto de William Fielding
Ogburn, que visava promover uma sociologia “neutra” e “imparcial” contra a
sociologia “moral” e “implicada”, representada nomeadamente por Small e os
seus colegas de Chicago, uma fracção dos sociólogos americanos pôs-se ao
serviço das agências governamentais e “constitui-se numa comunidade científica
abrigada do mundo exterior” (Desmarez). Nos anos que se seguem, Ogburn e os
seus companheiros tornam-se membros influentes das instâncias encarregadas de
definir a política de investigação das ciências sociais e de animar o Social
Science Research Council. Puseram em prática novas orientações, mais
centradas nas camadas privilegiadas da sociedade do que nas camadas
discriminadas pela evolução social. O interesse pelas associações profissionais,
consideradas como “modelos de todas as ocupações”, cresce, enquanto que o
peso das investigações sobre as classes populares ou sobre os sindicatos tende a
diminuir (Desmarez, id, p. 27). O modelo do “profissional” (professional),
distinto quer do empresário quer do operário, desenvolve-se rapidamente na
literatura sociológica desta época tanto nos Estados-Unidos como no Canadá
(Marshall, 1939).
Numa recolha de artigos intitulada Men and their work (1958), Everett Hughes
analisa, por várias ocasiões, a relação entre o “profissional” e o seu cliente no
que se refere à relação entre o sagrado e o profano, o clero e o laico, o iniciado e
o não-iniciado. Insiste no facto de que o termo “profissional” deve ser tomado
como categoria da vida quotidiana e “que não é descritivo mas implica um
julgamento de valor e de prestígio” (p. 42) Se não se encontra em Hughes uma
“teoria da profissão”, encontra-se uma multiplicidade de indicações e de pistas
para reflexão baseadas ou não em trabalhos empíricos que desenham um quadro
de abordagem muito sugestivo. :,
Este processo de projecção pessoal numa carreira futura por identificação aos
membros de um “grupo de referência” vai ao encontro da teoria mertoniana da
“socialização antecipatória” (cf. capítulo 2). A identificação social dos
indivíduos em formação releva, sem dúvida, de uma lógica da “frustração
relativa”: comparando-se aos membros do meio envolvente dotados de um
estatuto social mais elevado, forjam para si uma identidade não a partir do seu
“grupo de pertença”, mas sim por identificação a um “grupo de referência” a que
gostariam de pertencer no futuro e em relação ao qual se sentem frustrados. Esta
:, identificação antecipada, que implica uma aquisição cautelar, por parte dos
indivíduos em causa, das normas, dos valores e dos modelos de comportamento
dos membros do “grupo de referência”, é consideravelmente favorecida pela
existência de etapas promocionais instituídas, permitindo assim planificar o
acesso a este grupo. Ela permite dar conta do grau de implicação
(*commitment*) dos indivíduos nas suas tarefas (Becker, 1960). Aplica-se, por
isso, particularmente bem à socialização profissional, tal como Hughes a analisa
para o caso dos médicos.
O interesse da abordagem que resumimos reside mais na sua fecundidade
operatória do que na originalidade e no rigor do “modelo” apresentado. Este
modelo permitiu desenvolver vários estudos empíricos que se reclamam dele
mas abre também importantes pistas metodológicas e teóricas que, ao que
parece, só foram parcialmente exploradas (Becker e Carper, 1956). Entre as
investigações empíricas que aplicam este “modelo”, uma das mais célebres é a
que Fred Davis, realizou, durante três anos, estudando cinco promoções
sucessivas de enfermeiras e que foi objecto de uma obra (1966) e de uma
quinzena de artigos (Davis 1968), um dos quais resume as seis etapas da
“conversão doutrinal” das enfermeiras da forma seguinte:
Será que isto significa que as actividades assalariadas “comuns” — isto é, todas
aquelas que não dizem respeito ao processo de profissionalização — não
envolvem nenhuma socialização profissional? A posição de E. Hughes a este
respeito era claramente negativa (Chapoulie, 1984) e parece ser validada pela
análise empírica de tipo “interaccionista” realizada sobre um conjunto de
empregos (Desmarez cita “os talhantes, os desportistas, os actores, os guardas da
prisão, os engenheiros do som, os strip-teasers dos dois sexos, os polícias, os
jogadores profissionais de cartas e os contabilistas”). É preciso, no entanto,
assinalar que a maior parte das noções engendradas a partir do estudo das
“profissões” (médicos, juristas…) ou das “semiprofissões” (enfermeiras…), tais
como o compromisso (*commitment*), o “clic” (psyching out), o choque da
realidade… são muitas vezes ambíguas e dificilmente transponíveis para outros
“empregos” mesmo independentes (Olesen e Whittaker, 1970). Esta constatação
é ainda mais verdadeira para o universo da grande empresa e, nomeadamente,
para os seus assalariados menos qualificados (operários, empregados de
escritório…) que ficam totalmente fora das análises interaccionistas. Tudo se
passa como se a socialização profissional não dissesse verdadeiramente respeito
àqueles cujas condições de trabalho eram definidas e controladas de acordo com
as normas (tayloristas ou não) da grande empresa capitalista. Esta não é
analisada como um meio de socialização profissional no sentido definido
anteriormente. A sua análise é remetida para a sociologia do trabalho, das
organizações e das relações profissionais (*Industrial Relation*) que não utiliza
os mesmos paradigmas que a sociologia das “profissões”.
Bibliografia do Capítulo VI
HUGHES, E. C. (1958), Men and their work, Glencoe, The Frce Press, 2.e éd.,
1967.
54-61. :,
412-437.
TRIPER, P. (1984), Approches sociologiques du marché du travail. Essai de
sociologie de la sociologie du travail. Thèse d’État, Paris VII, multig.
— as instituições mais eficazes para esta função são instituições educativas que
permitem instaurar uma formação profissional específica (*formal training*);
— uma divisão das tarefas que se estabelece entre os diversos ofícios envolvidos
na base de “relações relativamente estáveis” que permitem, por exemplo, “traçar
uma espécie de organigrarna da divisão das tarefas na medicina comparável no
seu todo aos que se podem estabelecer para empresas integradas”; nesta divisão
do trabalho, “todas as tarefas organizadas à volta do trabalho de cura são, em
última instancia, controladas pelos médicos” (id., p. 48);
7. 3. Profissionalização e desprofissionalização:
(Legault). :,
(50) Esta dualidade do espaço está ligada por alguns autores à manutenção das
duas fontes julgadas irredutíveis de poder na organização económica: o poder do
capital c o poder do saber (“logocracias”) que não pode ser totalmente
apropriado pelo capital (Derber, Schwartz, Magrass. 1989, pp. 5 e seguintes).
Não existe, no entanto, nenhuma “lei geral” que permita concluir uma
profissionalização generalizada ou uma de profissionalização maciça dos
assalariados na empresa capitalista. Desde há muito tempo que se observam
movimentos cruzados e complexos de integração de “profissionais” que mantêm
ou aumentam o seu poder de expertise nas organizações de tipo burocrático, de
desprofissionalização ou “desqualificação” de profissionais de ofício perdendo a
sua autonomia e o seu controlo devido ao progresso :, técnico e ao
enfraquecimento da organização interna, de profissionalização ou
“requalificação” de novas categorias de assalariados conseguindo organizar e
fazer reconhecer o monopólio da competência; sem falar das “reconversões” de
um outro tipo de profissionalidade que permita manter estatutos profissionais
pelas transformações estruturais das empresas. Estas diferentes dinâmicas
profissionais podem sempre analisar-se como resultados incertos e frágeis das
transacções salariais entre os indivíduos em causa e os parceiros das relações de
trabalho: os seus empregadores mas também os seus clientes ou o seu público, as
suas organizações profissionais ou sindicais mas também as suas instituições de
formação. Esta abordagem revelou-se particularmente fecunda para compreender
o movimento secular da socialização profissional (51).
Esta tripla análise daquilo a que os autores não chamam “sistema” mas antes
“relações sociais” definidas como “conjunto estruturado de relações de
cooperação, competição e domínio, que os trabalhadores mantêm entre eles, na
produção ou na sua preparação” põe em evidência as “coerências societais” (p.
240). Segundo eles, um conceito-chave desta análise é o de “socialização”
definido como “aprendizagem das relações sociais nos processos de mobilidade
(espaços de qualificação)” (MSS, p. 242). É porque estes espaços (chamados
também “espaços profissionais”) estão estruturados de uma forma diferente em
França e na Alemanha que os modos de socialização profissional são também
profundamente diferentes e mesmo opostos entre os dois países: nível de
instrução geral/formação profissional, experiência e
profissionalidade/antiguidade e eficácia, homogeneidade do ramo/localização
dos conflitos na empresa, lógica administrativa/lógica produtiva
(quadro 7.1.). :,
Quadro 7.1.
:::::::
França:
RFA:
:::::::::
STONE, K. (1970), “the Origins of Job Structure in the Steel Industry”, Review
of Radical Political Economies, 6, pp. 61-98.
A renovação da “sociologia das profissões” foi acelerada pela crise dos anos 60
(EUA) e 70 (Europa Ocidental). O aumento de um desemprego estrutural,
afectando, nomeadamente, fracções inteiras da juventude, colocou o problema
do emprego no centro das análises. A questão fundamental já não é saber quais
as actividades que constituem “profissões” ou que indivíduos se tornam
“profissionais”, mas sim compreender, e se possível explicar, simultaneamente,
as transformações do acesso aos empregos e as reestruturações das etapas
profissionais que implicam exclusões duradoiras da esfera das actividades
reconhecidas.
Esta é uma das razões essenciais pelas quais a atenção dos sociólogos se
deslocou claramente da análise do trabalho e das profissões para a análise do
funcionamento dos mercados do trabalho. Foi assim que os sociólogos se
reencontraram com as mais antigas preocupações dos economistas e os seus
múltiplos esforços para produzirem teorias novas do (ou dos) mercado(s) do
trabalho. A tónica deslocou-se também, ao mesmo tempo, para as formas de
funcionamento das organizações. Neste capítulo, veremos de que modo estas
novas orientações contribuíram também para renovar as problemáticas da
socialização profissional.
Num artigo extraído da sua tese sobre a marinha mercante francesa, C. Paradeise
(1984) definiu os “mercados do trabalho fechados” como sendo “espaços sociais
onde a distribuição da força de trabalho pelos empregos está subordinada a
regras impessoais de recrutamento e de promoção”. Ela inclui nos “mercados do
trabalho fechados “tanto os “mercados das profissões liberais” e das “profissões
com estatuto nacional” como os “mercados internos das firmas” e também “um
número importante de empregos privados, localizados num sector, num oficio,
numa firma”. Atribui-lhes certas características do ideal-tipo da burocracia como
sistema racional-legal, segundo Max Weber, reconhecendo também que nem
todos estes mercados se integram nas organizações “burocráticas” privadas ou
públicas. A partir do exemplo da marinha mercante, a autora constata,
finalmente, que “a formação constitui a ossatura do mercado sobre a qual ela age
de diferentes maneiras”: organizando o acesso aos empregos e criando uma
ligação rígida entre formação/antiguidade/qualificação/salário, regulando as
relações entre os interesses dos três parceiros (Estado, empregadores,
assalariados) e assegurando “a reprodução orgânica da competência… através de
diplomas dificilmente negociáveis no mercado de trabalho exterior” (id., pp.
356-357).
(52) Marsden, na sua obra, apoiando-se em C. Keir (1954), distingue três e não
dois tipos de mercado do trabalho: os mercados internos com qualificações não
transferíveis, os mercados profissionais com qualificações transferíveis e os
mercados ocasionais.
Não é, pois, a natureza do trabalho nem a sua organização, nem mesmo as suas
relações internas que asseguram o “fechamento” deste tipo de “mercado”
institucionalizado. :,
Este “modelo” apareceu como um modelo de tal forma geral que chegou a servir
de suporte a numerosas concepções “substancialistas” da qualificação baseadas
na ideia de uma “correspondência estreita entre o grau de complexidade das
tarefas e as competências desencadeadas pelos trabalhadores na sua execução”
(Campinos e Marry, 1986, p. 199). Esta formalização, seja ela entendida “por
referência a uma situação arquetípica” realizando “a identidade do trabalho e do
trabalhador” através da figura do artesão (Rolle, 1988, p. 46) ou interpretada em
termos de estratégia patronal, destinada a integrar os trabalhadores na empresa e
a assegurar a mobilização produtiva, põe em evidência o
Um dos interesses mais tangíveis da “teoria” esboçada por j.-D. Reynaud (1987)
é o de romper com esta discrepância, para inscrever a qualificação no cerne do
funcionamento :, do mercado do trabalho, levando em conta os
desenvolvimentos mais recentes da teoria económica examinados anteriormente.
Quando uma fracção de jovens correm o risco de não aceder, ao longo da sua
vida activa, a qualquer “mercado fechado do trabalho” e, portanto, a nenhum
estatuto profissional estável, e quando um grupo de trabalhadores idosos corre o
risco de ser precocemente excluído, como se deve interpretar a multiplicação das
acções de formação que lhes estão destinadas em todos os países
industrializados?
As investigações sobre esta questão são tão recentes como o próprio fenómeno.
No entanto, é indiscutível que se assiste, desde o fim dos anos 70, à emergência
de inúmeros :,
indivíduos. :,
Encaixe 8.1.
b) declínio do emprego. :,
:::::::
Quadro 8.2.
:::::::
Continuidade de tipo de emprego
3.
4. Mercados internos
- (menos de 42%):
7. Mercados profissionais
2.
5. Mercados abertos
::::::
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levada a cabo em dois centros de produção nucleares no decurso dos anos 1983-
1984 (Dubar, Engrand, 1986) e da conduzida junto de uma amostra de jovens
não diplomados que estavam integrados num dispositivo de inserção social e
profissional para os jovens de 16-18 anos (Dubar et alii, 1987). Estas duas
investigações, embora utilizando muito pouco a noção de identidade, levavam
igualmente à construção de quatro tipos de atitudes ou de “lógicas de acção”
combinando relações com o trabalho e com a qualificação, trajectórias de
emprego ou de desemprego e orientações sobre a formação. Confrontando estas
três investigações, podemos verificar a relativa convergência dos principais
resultados.
“São os OS saídos da escola por causa do insucesso escolar, não motivados para
a formação, incapazes de olharem para o futuro (incapazes de atribuírem valor a
si próprios/incapazes de efectuarem um cálculo elementar), que não têm o hábito
do rigor e da precisão (porque a empresa apenas fabricava produtos de baixa
qualidade), que não sabem controlar o seu próprio trabalho e que são difíceis de
mobilizar depois de décadas de taylorismo.” Esta frase de um director técnico,
recolhida durante um inquérito sobre as transformações recentes de uma empresa
de mobiliário e de decoração (Zarifian, 1988, p. 78) resume de forma notável a
identidade para outro atribuída por certos responsáveis de empresas àqueles que
são julgados a prior) desprovidos das “novas competências” que a empresa do
futuro exige, e considerados como incapazes de as adquirir. Em todas as
empresas inquiridas, alguns dirigentes ou quadros hierárquicos disseram estar
convencidos que uma parte do seu pessoal era incapaz de “seguir as evoluções
em curso e de beneficiar de formações de actualização. Os chamados OS, de
“baixo nível de qualificação” (BNQ), “operários de limpeza”, mas também, por
vezes,“executantes” e até mesmo simples “operários” dão azo, cada vez mais, a
actos de atribuição que visam categorizar (etiquetar) não só um conjunto de
postos de trabalho definidos a partir de tarefas prescritas, mas também um
conjunto de indivíduos considerados desprovidos das capacidades exigidas para
mudar as suas atitudes no trabalho, para acederem à formação e para
desenvolverem as suas competências profissionais. São assalariados que, tendo
sido contratados pela :, empresa para ocupar postos de trabalho para os quais
foram, então, julgados aptos, são considerados virtualmente como incompetentes
para cumprir qualquer que seja a função na empresa do futuro. Esta “identidade
social virtual” (cf. capítulo 5), assumindo a forma de um julgamento antecipado
de incompetência, resulta de uma transformação do modelo de gestão do pessoal
que substitui a cotação dos postos de trabalho pela apreciação dos “potenciais”
dos indivíduos, o que P. Zarifian chama “o modelo da competência” (1988, pp.
77 e ss). E se estes assalariados são considerados implicitamente “sem potencial”
é porque, em geral, não manifestaram indícios de uma mobilização mínima para
a empresa, de uma “boa vontade” de participação nas iniciativas impulsionadas
pela direcção ou pela hierarquia (círculos de qualidade, grupos de progresso,
reuniões de informação, etc.), de uma “conversão” mínima às novas normas,
muitas vezes informais, de trabalho ou de relação. Acrescenta-se a tudo isto, por
vezes, a existência de estigmas (alcoolismo, absentismo, grosseria…) que
reforçam as etiquetagens constitutivas desta identidade virtual de incompetente,
isto é, inapto para produzir os indícios da vontade para adquirir as competências
futuras…
Entre os indicadores cada vez mais privilegiados pelas empresas “em mutação”,
a participação voluntária em diferentes formações, que comportem sequências de
“actualização”, de “reciclagem” ou de “sensibilização”, é cada vez mais
valorizada. Ora, a principal característica comum a todos os assalariados que
relevam desta lógica, em todas as empresas inquiridas, é nunca terem pedido,
por iniciativa própria, desde a entrada na empresa, para seguir uma formação, e
não poderem conceber que uma formação que assuma totalmente ou em parte
uma forma escolar lhes pudesse ser destinada e até mesmo benéfica. A sua
identidade de trabalhador ou de trabalhadora, a sua identidade para si, forjou-se
na aprendizagem da tarefa, na aprendizagem directa do trabalho (“aprende-se
olhando e tocando”), na aquisição de saberes práticos na experiência directa das
tarefas a cumprir. Mesmo naqueles que ocupam empregos melhor classificados
— empregados, contramestres e mesmo técnicos —, o discurso sobre o modo
como aprenderam o seu trabalho, o seu posto ou a sua função, está desconectado
dos conhecimentos escolares considerados sistematicamente inúteis para
exercerem a função que ocupam. O seu julgamento de pertença muitas vezes
expresso por um “nós” anónimo reenvia para o colectivo daqueles que fazem o
mesmo trabalho e que aprenderam da mesma forma, no interior do mesmo
espaço restrito, os gestos e as relações de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 362-
368).
Por essa razão, não podem imaginar diferenciarem-se dos seus pares (“os
compinchas”, “as companheiras”, “os outros”…), para irem sozinhos para uma
formação voluntária que não seja imediatamente necessária ao trabalho e que
corre o risco de levar a um insucesso. Aceitam perfeitamente a ideia de uma
formação como obrigação interna e :,
Esta análise é confirmada por um estudo recente que incidiu sobre duas amostras
de assalariados vítimas de despedimentos colectivos, que põem em evidência
lógicas típicas de reacção salarial (Cherain e Demazière, 1989). Os assalariados
que partilham a identidade de executante ligada à estabilidade e pouco
implicados no seu trabalho são também aqueles que vivem mais dolorosamente
o processo de exclusão de que são alvo. Sofrem o despedimento como uma
sanção, “procurando a origem da exclusão num conjunto de erros que poderiam
ter cometido, negando, em simultâneo, a possibilidade de os ter cometido”.
Sentem a supressão do posto como um abandono pessoal (“eu já não agradava à
sociedade”) e de forma nenhuma estabelecem ligação entre esta decisão e o
sistema de atitudes no trabalho que era o deles antes do começo dos
despedimentos. Vivem, de imediato, o despedimento como uma exclusão e não
como uma retirada. :,
Num inquérito do mesmo tipo realizado junto de futuros técnicos, no fim dos
anos 60, M. Haicault qualificava de “conformados adaptados” os jovens (mais
ou menos 20%) que não tinham nenhuma aspiração para subir para além do
nível para que estavam preparados e que mostravam estar “totalmente
dependentes do sistema de organização e de hierarquia promocional da empresa”
(Haicault, 1969, pp. 95 e seguintes).
10
Este modelo ideal gera representações do operário do futuro que já não é, aliás,
na maior parte dos casos, designado como um operário: operador, colaborador,
polivalente, por vezes até técnico. Estas representações confrontadas com os
assalariados que existem actualmente servem para construir identidades virtuais
que constituem atribuições antecipadas e mais ou menos colectivas. É cada vez
mais ao confrontar-se com estas identidades virtuais que estes assalariados
devem confirmar ou não as suas identidades reais.
ofício ligado à sua formação inicial e projectarem-se numa via ligada a essa
especialidade, que implica uma progressão regular que combina, de forma
diversificada, a antiguidade e o aperfeiçoamento técnico nesta especialidade
(57). Para a maioria, o emprego actual não corresponde à especialidade
aprendida e é vivido como uma desclassificação temporária na espera do acesso
a um posto realmente “qualificado”: vivem dolorosamente a situação de trabalho
considerada como rotineira, monótona, simplista, desqualificada. :,
Estas reacções são fontes de conflitos potenciais com a “nova hierarquia” que
privilegia a mobilização colectiva de equipas polivalentes e gestionárias sobre a
coordenação burocrática das intervenções ou das operações de “especialistas”.
Vê-se bem a raiz identitária do conflito potencial: trata-se de renunciar a uma
identidade singular de “especialista” para se tornar membro substituível de uma
equipa mobilizada pela empresa, isto é, para se tornar, num primeiro momento
pelo menos, um assalariado sem identidade singular, um “homem sem
qualidade”, definido apenas pela sua disponibilidade e pelo seu “espirito de
equipa”. Entrar neste jogo, sem uma forma clara de acesso a uma nova
identidade mais valorizadora, é arriscar deixar o certo pelo incerto e encontrar-se
totalmente dependente das apreciações da hierarquia. Basta que as relações com
a hierarquia sejam vividas de uma forma conflituosa para que o processo leve a
um bloqueamento. O risco torna-se então demasiado grande e a defesa da
identidade de ofício constitui, então; a resposta menos ansiogénica face à
situação construída. :,
(58) Cf., a propósito deste ponto, as análises de B. Zarca que põem esta
transmissão no cerne da identidade de grupo e que a interpretam como “trama
simbólica do processo de identificação” (1988, p. 267). Cf. também as análises
estimulantes de Delbos e Jorion (1984).
A hipótese mais provável que sobressai dos trabalhos mais recentes é que “longe
de eliminar os saberes de ofício, longe de apagar as fronteiras entre os
procedimentos de fabrico, a automatização faz apelo a um conhecimento ainda
mais aprofundado e analítico das reacções da matéria-prima” (Zarifian et alii,
1988, p. 43). A investigação aprofundada levada a cabo por Jeantet e Tiger, junto
de operários (e da sua família) confrontados com as diferentes fases de
automatização de uma oficina de acabamentos mecânicos de uma grande
empresa de material eléctrico, confirma este resultado completando-o. Mesmo
que os operadores “encontrem nos novos equipamentos uma nova forma de
autonomia operatória” e que “o lugar do problema resida mesmo na relação do
instrumento com a :, matéria”, todos estão de acordo em reconhecer que “não é o
mesmo ofício” e que se tornou “um trabalho mental” cuja aprendizagem
consiste, antes de mais, em “fazer compreender uma lógica” (leantet, Tiger,
1985, pp. 11-13). A análise realizada por Y. Lucas junto dos antigos profissionais
e técnicos da aeronáutica leva igualmente a colocar o domínio de novos saberes
profissionais no centro das novas-carreiras técnicas (Lucas, 1989). A pesquisa
levada a cabo por M.-C. Vermelle numa unidade de fabrico de componentes
realça também a importância da estratégia do acesso aos “saberes de
procedimento” tanto para a performance económica do serviço como para a
construção de identidades profissionais reconhecidas (Vermelle, 1989).
Nada teria mudado? Será que a identidade de ofício reproduz, de uma geração
para a outra, a mesma crise baseada na mesma contradição entre os valores da
aprendizagem e os constrangimentos da organização económica? De um ponto
de vista puramente empírico, as observações acumuladas no final dos anos 50
vão no mesmo sentido daquelas que hoje dispomos e que incidem sobre os
jovens que saem, com ou sem diploma, do ensino técnico curto, e que estão ou
não empregados (Baudelot, 1988). Apenas com uma diferença: a maioria
daqueles que saem do lycée profissional começam pela experiência do
desemprego, por estágios de inserção ou de qualificação ou por empregos
precários. :, Aqueles que são fortemente marcados pelo modelo escolar
procuram, prioritariamente, “a certificação” (Dubar et alii, 1987, pp. 152-157):
sabem que o CAP já não é suficiente para conseguirem um emprego estável, mas
que é necessário para enfrentar o mercado “secundário” do trabalho. Da mesma
forma que os seus antepassados valorizam o FAZER mas pressentem de forma
confusa que já não se pode fazer (bem) sem saber (teórico). Ora, estando
bloqueados no acesso a formações mais longas e mais gerais, sonham voltar à
escola.
Para aqueles que não saíram da escola e que foram orientados para o ensino
profissional encontra-se, doravante, potencialmente aberta a perspectiva de obter
um baccalauréat (BAC). Pela primeira vez na sua história, desde 1987, o
sistema escolar francês produz baccalauréats profissionais que não foram
escolarizados liceus do ensino geral ou do ensino técnico e que tiveram estágios
em empresas. Qual é a identidade destes jovens neoprofissionais que as
empresas dizem procurar, agora, para alimentar as suas novas carreiras que nós
insistimos em designar “de ofício”? Será que vão reproduzir o percurso
identitário dos mais velhos (pais? mães?) saídos dos centros de aprendizagem
nos anos 50/60 ou saídos dos CET, em seguida dos LEP com um CAP ou BEP
nos anos 70/80? Em caso afirmativo, é preciso decidir-se a considerar a
identidade de ofício como definitivamente bloqueada na sociedade francesa. Em
caso negativo, será preciso analisar, com muito cuidado, os mecanismos desta
produção conjunta (escola/empresa) de uma identidade que é estratégica para o
sucesso económico da maioria das empresas comuns e para as relações
profissionais de uma sociedade moderna. Será que um modelo francês da
qualificação operária é possível?
11
Do modelo “carreirista” ao processo de mobilização:
O conjunto dos assalariados que possuem esta identidade nas seis empresas da
amostragem (LASTREE, 1989, pp. 388-389) têm em comum o facto de terem
conhecido, no passado, mobilidades diversas no interior da empresa ou, por
vezes, antes de ter dado entrada nesta. Menos frequentemente de origem operária
que os precedentes, mais frequentemente diplomados (aos níveis V, IV ou m),
eles insistem, antes de mais, no percurso interno na empresa e nos
conhecimentos que têm quanto ao seu funcionamento técnico e social (60). Um
dos termos-chave do discurso deles a propósito da trajectória — :, interessar-se”
— resume bem
A maior parte dos assalariados que partilham esta identidade insistem nas boas
relações que mantêm com a hierarquia da empresa: “recorrem a mim”. Quer
incida sobre problemas técnicos, relacionados com as avarias, os imprevistos, as
melhorias permanentes ou problemas de gestão relacionados com a animação
dos grupos, as atitudes dos responsáveis a seu respeito são o testemunho do
reconhecimento das suas capacidades e atitudes de cooperação que favorecem a
socialização antecipatória ao universo dos operários :, especializados, dos
técnicos superiores, e até mesmo ao universo dos chefes de atelier ou de serviço.
Por este facto, os assalariados em causa já não se definem como executantes,
mas sim como técnicos, colaboradores, contramestres ou quadros responsáveis.
Pode-se, portanto, falar de uma dimensão gestionária da sua identidade
profissional: eles são os únicos a expressar preocupações económicas na
realização do seu trabalho: preocupação da qualidade, do cliente, da
rendibilidade Mas, sobretudo, valorizam as tarefas de animação, de contacto, de
formação recíproca: tendo sido reconhecidos e promovidos, ou estando
subjectivamente seguros de o ser, eles apresentam-se como os prosélitos das
experiências em curso que suscitam reacções diversificadas. Interiorizaram
muito a lógica da reciprocidade e restituam-na de formas diversas: “o que é bom
para a empresa não é mau para nós, o inverso também” (LASTREE, 1989,
Dubar-Gadrey, p. 238); “Utilizo a política da empresa para evoluir e, ao mesmo
tempo, dou-lhe qualquer coisa em troca” (id., p. 351).
Estas questões colocam-se com tanta mais premência quanto são quase
exclusivamente os homens que levam a identificação à sua empresa até ela
invadir completamente a sua vida fora do trabalho. á la limite, a transacção
objectiva abole-se totalmente na transacção subjectiva quando o futuro da
empresa coincide com o futuro do indivíduo. No fim do processo já não há outro
para reconhecer a sua própria identidade. Como afirma Laing: “Experimenta-se,
assim, um sentimento intenso de frustração se já não se consegue encontrar esse
outro do qual precisamos para estabelecer uma identidade satisfatória” (1961, p.
105).
No inquérito que realizou, no fim dos anos 50, junto de jovens operários
parisienses, N. Abboud (1968, pp. 64 e seguintes, pp. 197 e seguintes) distinguia
já, nos jovens profissionais diplomados das grandes empresas modernas, a
presença de um horizonte de mobilidade apoiado na esperança de melhoria do
estatuto social e a ambição de se “tornar chefe”, de SER alguém (por oposição às
categorias do TER e do FAZER).
No seu inquérito sobre os futuros técnicos, no fim dos anos 60, M. Haicault
identificava “aspirantes engenheiros” que colocavam a sua representação
“correcta” do mundo profissional ao serviço “de uma estratégia de promoção
rigorosamente planificada” (Haicault, 1989, p. 128).
Ora, vinte e cinco anos mais tarde, é, sem dúvida, a partir da reactivação do
mercado interno do trabalho que as empresas estudadas extraem as condições
estruturais de realização destas novas formas de promoções e, portanto, de
construção, através da formação, destas novas identidades de “responsáveis
mobilizados”. Mais uma vez, verifica-se que mobilidade e formação internas são
as componentes estruturais de um sistema de emprego organizado em carreiras e
concebido como mercado fechado (Paradeise, 1987). Contrariamente às
configurações identitárias precedentes, neste caso, são as inovações estruturais
que tornam possível a realização de potencialidades biográficas que, na sua
ausência, permaneceriam virtuais. Sem o desenvolvimento de vias de progressão
profissional, a incitação à formação não poderia ter efeitos identitários tangíveis.
É no cerne deste encontro entre práticas pessoais de formações “integradas” e
construções estruturais de vias “internas” de mobilidade que se joga a
articulação entre identidade para si e identidade para outro.
O que acontece aos jovens que entram no mercado do trabalho sem diploma ou
pouco escolarizados? Uma parte deles aprendeu, a partir da sua socialização
familiar, escolar ou pós-escolar e/ou a partir da primeira confrontação com o
mercado externo do trabalho, que a formação inicial não bastava para
actualmente se construir uma identidade profissional. Estes jovens têm
estratégias de emprego e de formação multidireccionais (Dubar et alii, 1987, pp.
157-162) que combinam estágios múltiplos, empregos de espera e formas
pessoais de acesso a saberes profissionais. Utilizam intensamente as redes de
relações, nomeadamente as familiares (C. Mairy, 1983), para aceder a empregos
mesmo que precários e a formações mesmo que pouco qualificantes. Concebem
a vida profissional como uma evolução permanente no decurso da qual jamais
terão finalizado a aprendizagem e na qual terão de forjar uma identidade aberta a
todas as progressões possíveis. Como definir :, esta identidade de espera que não
pode organizar-se em tomo de uma especialização profissional de ponta sob pena
de ser desacreditada antes mesmo de ser experimentada a identidade? Como
construir uma futura identidade de empresa antes de ser admitido por ela? A
questão colocada é, uma vez mais, a da produção conjunta da qualificação
através da activação de formas diversificadas de alternância que garantam a
função identitária, assegurada à sua maneira pelo Duales System alemão. Para lá
da “qualificação” ou da “competência”, é, sem dúvida, a construção das
identidades profissionais e sociais que envolve, simultaneamente, as instituições
escolares e as instituições produtivas, a produção e a reprodução das gerações de
assalariados.
12
“Temos problemas com alguns dos jovens diplomados. Estão desapontados com
os empregos que ocupam e a empresa não lhes pode oferecer as carreiras que
desejam. Seguem muitos estágios de formação, muitas vezes sem o nosso
conhecimento e alguns acabam por se demitir para procurar emprego noutro
lado. De facto, eles estão aqui à espera…”
Esta constatação de um director dos recursos humanos de uma grande empresa
de telefones sanciona o fracasso relativo, na maior parte das empresas
analisadas, de uma política de recrutamento de jovens “universitários”
sobrediplomados relativamente aos empregos que ocupam e fortemente
desfasados relativamente a eles. Estes jovens trazem problemas às direcções das
empresas por dois motivos: por um lado, nenhuma das vias de progressão
profissional existentes parece ser-lhes adequada e o seu futuro na empresa é
problemático; por outro, eles não partilham as atitudes no trabalho dos
assalariados em promoção interna: mais individualistas, menos mobilizados para
a empresa, são muitas vezes mais críticos e parecem mais instáveis. Não é,
manifestamente, na empresa, que
Alguns assalariados mais idosos e mais antigos são também considerados como
“problemas”. A empresa inovadora não sabe muito bem como lidar com eles: ela
não quer abdicar dos seus serviços, reconhece o seu potencial, mas receia as suas
iniciativas individualistas. Eles ou elas construíram, por vezes, situações
consideradas confortáveis como aquelas que são chamadas “tapetes” numa
empresa terciária para designar as secretárias pessoais dos quadros superiores
que recusam inscrever-se em qualquer operação de mobilidade. Têm a sua
própria rede de relações internas ou externas à empresa que escapa à organização
formal como aqueles que são designados “os universitários” na empresa de
telefones. Têm dificuldade em se enquadrar nas normas e nos papéis colectivos,
facto que leva a que sejam chamados “individualistas” pelos responsáveis
desejosos de realizar as condições de uma “mobilização colectiva” (LASTREE,
1989, pp. 390 e seguintes).
Duvida-se, por vezes, que eles tenham lugar na empresa do futuro, que embora
lhes reconheça um potencial pessoal pensa excluí-los. De facto eles são
dificilmente classificáveis sendo este desvio parte integrante da sua identidade
para outro. Rigorosamente eles não fazem nada como os outros, razão pela qual
se lhes atribui identidades de excepção.
A grande maioria dos assalariados que pertencem a este último tipo identitário
são de origem não operária; ocupam, no entanto, em geral, empregos de
execução muito diversificados: operários, empregados, técnicos/as. Os mais
jovens possuem quase todos um BAC, um BTS ou um DUT. Os mais velhos
adquiriram um diploma — ou o que pensam ser equivalente — através de
formações contínuas voluntárias ou, então, estão em vias de adquirir o diploma
(inscrições no CNAM, no ESEU, para acesso à área de direito, para obtenção de
diplomas universitários por unidades capitalizáveis, inscrições em cursos por
correspondência…). Para isso esforçam-se por mobilizar uma parte dos recursos
da empresa: inscrevem-se no plano de formação para os estágios que lhes
interessam, por vezes pedem dispensas individuais de formação, negoceiam dias
livres para frequentar cursos. As únicas formações que lhes interessam são
externas à empresa e conduzem a diplomas reconhecidos: são muitas vezes
muito críticos em relação aos “estágios internos” criticando a sua utilidade e o
seu caracter integrador. Para eles, a formação é um direito individual, um
investimento pessoal que prolonga, duplica ou rectifica a formação escolar.
Este tipo de revelação que não é sistemática coexiste em geral com a afirmação
de um desejo de evoluir na empresa no caso de esta lhes oferecer oportunidades
interessantes. Mas muitas vezes, e em particular nas mulheres, as perspectivas
de progressão interna excluem explicitamente o acesso a funções de
enquadramento. Elas não querem “tornar-se chefe”, ter funções de autoridade,
ter de “julgar as outras”. Aquilo que desejam é serem “responsáveis por elas
próprias”, de já não estarem “na produção”, já não se sujeitarem à dependência
hierárquica. A aspiração identitária é a autonomia.
Jogam, por isso, um jogo perigoso que só tem hipótese de êxito se se apoiar em
redes afinitárias que os protegem das relações hierárquicas oficiais. É graças às
zonas de incerteza, provenientes da complexificação das relações de poder e, por
vezes, do desmembramento das formas de transacção institucional, que eles
podem assim utilizar a parte que lhes cabe nos espaços desocupados no interior
dos jogos institucionais legítimos. Mas eles são também constrangidos a praticar
esta estratégia oculta num universo fortemente estruturado por
“constrangimentos” económicos externos porque os projectos colectivos que
subentendem estes jogos legítimos só raramente têm em conta as aspirações
individuais.
Sempre à procura de si mesmo, o indivíduo assim investido nas suas redes está
também — pela e na formação — à procura de saberes. Estes saberes que
estruturam e desestruturam, ininterruptamente, a identidade não são nem saberes
praticados nascidos da experiência partilhada, nem saberes profissionais
construídos no ofício praticado, nem saberes de organização experimentados nos
jogos de poder, são saberes puros, teóricos e culturais, isto é, despidos de
qualquer interesse imediato que nunca indicarão o que há a fazer, mas somente o
que há a saber. Esta vontade de saber produz-se a si própria, no ciclo renovado
dos seus programas, das suas divisões e das suas progressões indefinidas. Ela
traduz assim, à sua maneira, a procura incessante “daquilo que o saber só pode
ensinar, ou seja, activar a ignorância” (Lacar, 1971, p. 156).
é também junto dos estudantes que é preciso procurar a presença de uma tal
identidade na geração do pós-guerra. Esta identidade estudantil define-se, antes
de mais, por uma recusa: recusa da identidade herdada do meio social e
“distanciamento relativamente à ideia insuportável de uma determinação” que
pesa sobre as suas escolhas de futuro. Manifesta-se, em seguida, ela ligação a
uma situação transitória, “a transfiguração simbólica da necessidade de
liberdade”, a vontade de ser apenas um “puro projecto de ser”, a aspiração a um
“modelo estudantil” feito de anticonformismo que disfarça mal uma obediência
às normas do meio intelectual e um conjunto de atitudes culturais impostas
(Bourdieu, Passeron, 1964, pp. 62 e seguintes). Se se pode admitir que esta
identidade não é mais do que a dos estudantes de origem burguesa, a verdade é
que, na época, ela :, impregna o conjunto do “meio” estudantil É típica do
“tempo dos estudos” (Verret, 1974) no decurso do qual são suspensas as
pertenças sociais anteriores e futuras em nome de uma lógica autónoma das
aprendizagens. Importa, então, não ser nada (de definitivo) para poder ser tudo
(o possível): adiar as escolhas implica manter uma identidade suspensa.
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(61) Entre os inquéritos citados, treze chegam a uma mesma tipologia de quatro
tipos (Abboud, 1968; Benoìt-Guilbot, 1965; Haicault, 1969; sainsaulieu, 1977;
Dubar, Engrand, 1986; Dubar et aliii, 1987; de Bonnafos, 1988; lastree, 1989;
Agache, 1989; Cherain, demazière, 1989; Lerolle, 1991; Demazière,
1992;Agache, 1993) e quatro a tipologias de três ou cinco tipos (Guillemard,
1972; Schnapper, 1981; bernoux et alii, 1984; Baudelot, 1986), próprios dos
precedentes na medida em que os podemos ligar ao mesmo
“modelo tetrapolar” (dubar, 1990). cf. bibliografia no fim da terceira parte (pp.
230-232.)
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— Transacção subjectiva
— continuidade
— ruptura
transacção objectiva:
— reconhecimento
— Não reconhecimento
(Capítulo 10)
(Capítulo 9)
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