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Claude

Dubar

A Socialização

Construção das Identidades Sociais

Colecção Ciências da Educação


Orientada por

Maria Teresa Estrela e Albano Estrela

Título: A Socialização

Construção das identidades sociais e profissionais

Autor: Claude Dubar

Tradução de: Annette Pierrette R. Botelho e Estela Pinto Ribeiro Lamas

Revisão técnica e científica: José Alberto Correia e João Caramelo

Executor gráfico: Bloco Gráfico

Editor: Porto Editora

Titulo da edição original: LA SOCIALISATION

Construction des identités sociales et professionnelles

(Edição original: ISBN 2-200-21620-3) (2.e édition revue)

c Armand Colin Éditeur, Paris, 1991,1995

Copyright para a Língua Portuguesa

C Porto Editora, Lda. - 1997

Rua da Restauração, 365

4099 PORTO CODEX - PORTUGAL

Reservados todos os direitos.

Esta publicação não pode ser reproduzida nem transmitida, no todo ou em parte,
por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocopia, gravação ou outros, sem
prévia autorização escrita do Editor.
Claude Dubar é professor de Sociologia na Universidade

de Versailles-Saint Quentin en Ivelines. Consagrou a sua

tese e numerosas publicações à formação contínua e à

inserção dos jovens. Animou várias investigações colectivas

no seio do LASTREE (CNRS, Universidade de Lille I) e do

CEREQ (Ministérios da Educação e do Trabalho) que

alimentaram esta síntese teórica.

Coordenou recentemente duas obras colectivas:

Cheminements professionnels et mobilités sociales (La

Documentation francaise, 1992) e Genèse et dynamique

des groupes professionnels (Presses Universituires de Lille,

1 994).

Por que razão se fala hoje de crise de identidades? Esta expressão remete-nos
para fenómenos múltiplos: dificuldade de inserção profissional dos jovens,
aumento da exclusão social, diluição das categorias que servem para se definir e
definir os outros…

Compreender como se reproduzem e se transformam as identidades sociais


implica esclarecer os processos de socialização através dos quais elas se
constroem e se reconstroem ao longo da vida.

A dimensão profissional das identidades adquire uma importância particular.


Porque se tornou um elemento raro, o emprego condiciona a construção das
identidades sociais; porque conhece mutações impressionantes, o trabalho obriga
a transformações identitárias delicadas; porque acompanha cada vez mais
frequentemente as evoluções do trabalho e do emprego, a formação intervém
nestes domínios identitários muito para além do período escolar. Este livro
fornece instrumentos de análise, quadros teóricos e resultados empíricos que
permitem perceber a dinâmica em curso da socialização profissional e das
identidades sociais.

Agradeço vivamente aos colegas que, ao criticarem as sucessivas versões deste


manuscrito, me obrigaram a uma maior clareza e rigor na minha escrita: Béatrice
Appay, Catherine Cailloux, Catherine Marry, Catherine Paradeise, Pierre Doroy,
Heari Mandras, Jean-René Treanton merecem particular destaque nestes
agradecimentos. Agradeço também a Martine Laplanche, Violaine Lecerf
Véronique Testelin que interpretaram e corrigiram as diferentes versões do texto;
a sua paciência e profissionalismo tornaram possível este trabalho.

Reportório das Siglas

bep — Brevet d ‘Études Professiounelles (niveau V) —

Diploma de Estudos Profissionais (nível V)

btp — Bãtiments et Travaux Publics — Obras Públicas

bts — Brevet de Technicien Supérieur (nivenu iii) — Diploma de Técnico


Superior (nível iii)

cap — Certificat d’Aptitude Professionnelle (niveau v)

— Certificado de Aptidão Profissional (nível V)

cep — Certificat d’Études Primaires — Certificado de Estudos Primários

cereq — Centre d’Études et de Recherches sur les Qualifications — Centro de


Estudo e de Investigações sobre as Qualificações

CNAM — Conservatoire National des Arts et Métiers — Conservatório


Nacional das Artes e Ofícios

cnrs — Centre National de la Recherche Scientifique —

Centro Nacional da Investigação Cientifica

DEST — Diplôme d’Études Supérieures Techniques (niveau II) — Diploma de


Estudos Superiores Técnicos (nível II)
dut — Diplôme Universitaire de Techologie (niveau III) — Diploma
Universitário de Tecnologia (nível III)

eseu — Examen Spécial d’Entrée à l’Université (nivenu IV) — Exame Especial


de Entrada na Universidade (nível IV)

GLYSI — Groupe Lyonnais de Socialogie Industrielle (CNRS-Lyon II) —


Grupo de Lyon de Sociologia Industrial (CNRS-Lyon II)

LASTREE — Laboratoire de Sociologie du Travail, de

l’Éducation et de l’Emplei (CNRS-Lille I) — Laboratório de Sociologia do


Trabalho, da Educação e do Emprego

(CNRS-Lille 1)

LEP — Lycée d’Enseignement Professionnel — Liceu de Ensino Profissional

LERSCO — Laboratoire d’Études et de Recherches sur la Classe Ouvrière


(CNRS-Nantes) — Laboratório de Estudos e de Investigação sobre a Classe
Operária (CNRS-Nantes)

LEST — Laboratoire d’Économie et de Sociologie du Travail (CNRS) —


Laboratório de Economia e de Sociologia do Trabalho (CNRS)

MRT — Ministère de la Recherche et de la Technologie —

Ministério da Investigação e da Tecnologia

PIRTTEM — Programme Interdisciplinaire Technologie-Travail-Emploi-Mode


de vie — Programa Interdisciplinar Tecnologia-Trabalho-Emprego-Modo de
Vida

PME — Petites et Moyennes Entreprises — Pequenas e Médias Empresas

OP — Ouvrier Professiounel — Operário Profissional

os — Ouvrier Spécialisé — Operário Especializado

Introdução
O termo “identidade” reapareceu tanto no vocabulário das ciências sociais como
na linguagem corrente. Um pouco por todo o lado. fala-se de “crise das
identidades”

sem se saber bem o conteúdo desta expressão: dificuldades de inserção


profissional dos jovens, aumento da exclusão social, mal-estar face às mudanças,
desagregação das categorias que servem para se definir a si próprio e para definir
os outros… Como em qualquer período que se segue a uma crise económica de
grande dimensão, a incerteza quanto ao futuro domina todos os esforços de
reconstrução de novos quadros sociais: os do passado já não são pertinentes e os
do futuro ainda não estão estabilizados.

A identidade de alguém é, no entanto, aquilo que ele tem de mais precioso: a


perda de identidade é sinónimo de alienação, de sofrimento, de angústia e de
morte. Ora, a identidade humana não é dada, de uma vez por todas, no acto do
nascimento: constrói-se na infância e deve reconstruir-se sempre ao longo da
vida. O indivíduo nunca a constrói sozinho: ela depende tanto dos julgamentos
dos outros como das suas próprias orientações e autodefinições. A identidade é
um produto de sucessivas socializações.

Esta noção de socialização apela para um esclarecimento, uma redefinição e


mesmo uma reabilitação. Ao longo da história das ciências sociais - história
curta se a compararmos com a das ciências da matéria ou da vida —, o termo
“socialização” foi utilizado em diversos sentidos, e adquiriu conotações
consideradas, por vezes, hoje como negativas ou ultrapassadas: inculcação das
crianças, endoutrinamento dos indivíduos, imposição de normas sociais,
constrangimentos impostos pelos poderes tanto ameaçadores quanto anónimos…
Esta situação levou a que certos sociólogos tentassem banir esta noção do
vocabulário científico da sua disciplina. Mas suprimir uma palavra não elimina
um problema central: como discernir a dinâmica das identidades sem ter em
conta tanto a sua construção individual como social?

A primeira parte deste livro, concebida como uma iniciação, é consagrada à


apresentação sucinta de algumas grandes teorias centradas, parcial ou
totalmente, na análise dos processos de socialização. Ela constitui um convite à
(re)leitura de alguns autores e de textos importantes ela é acompanhada pela
apresentação esquemática de algumas :, investigações recentes inspiradas nestas
grandes correntes teóricas; finalmente, ela culmina com a apresentação de uma
problemática daquilo que poderia constituir hoje as bases de uma teoria
sociológica operatória da construção das identidades.

Entre as múltiplas dimensões da identidade dos indivíduos, a dimensão


profissional adquiriu uma importância particular. Porque se tornou um bem raro,
o emprego condiciona a construção das identidades sociais; porque sofreu
importantes mudanças, o trabalho apela a subtis transformações identitárias;
porque acompanha intimamente todas as mudanças do trabalho e do emprego, a
formação intervém nas dinâmicas identitárias muito para além do período
escolar. A segunda parte apresenta algumas importantes contribuições das
ciências sociais no domínio especifico da socialização profissional. Da
sociologia das “profissões” nos EUA à economia dos “mercados do trabalho”,
passando pelo estudo das “relações profissionais”, explora-se alguns dos mais
importantes domínios da actual investigação sobre a dinâmica das identidades
profissionais.

A terceira parte apresenta uma síntese dos resultados empíricos de várias


investigações que, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, se realizaram em
França; apresenta uma tipologia das identidades salariais em fase de
reestruturação nas empresas e na sociedade francesas. Ela apoia-se tanto em
trabalhos recentes, por vezes acabados de realizar, como sobre inquéritos mais
antigos, agora reinterpretados à luz destes trabalhos recentes. Nesta terceira
parte, mostramos até que ponto a identidade profissional se tornou num objecto
importante da actual sociologia francesa, num objecto que está sempre em
construção e em debate.
I

Socialização e Construção Social


da Identidade

A socialização da criança na psicologia piagetiana e os seus prolongamentos


sociológicos

Aplicado à criança, o termo “socialização” designa um dos objectos essenciais


da psicologia genética. A literatura consagrada ao desenvolvimento da criança é
abundante e constitui um importante acervo de resultados e de análises empíricas
imprescindível a qualquer teorização dos processos de socialização (1). Porém, é
raro encontrar aí reflexões epistemológicas sobre as condições de uma
abordagem científica e sobre os problemas colocados pela confrontação de
pontos de vista disciplinares (biologia, psicologia, sociologia).

(1) Entre as inúmeras sínteses de investigação sobre a socialização ta criança,


citamos, em língua francesa, a já muito antiga mas sempre sugestiva realizada
por Daval (1964) e outra mais recente de Doise e Deschamps (1986); em língua
inglesa, as de Erikson (1950) e de D. A. Goslin (1979) e, mais recente, a de
Bruner (1983).

É o caso do texto de J. Piaget, publicado na primeira parte dos Études


sociologiques e intitulado “L’explication en sociologie” (1965). Ele aborda
frontalmente a problemática das relações entre a explicação sociológica e as
explicações psicológicas e biológicas e desenvolve, no que diz respeito aos
fenómenos da socialização, argumentos sugestivos. Estes argumentos
constituem, sem dúvida, a primeira tentativa de superar as oposições entre os
pontos de vista psicológico e sociológico — oposições fundadoras da sociologia,
segundo Durkheim — e a primeira tentativa estimulante de proceder a uma
definição de uma abordagem sociológica da socialização que fosse
complementar e não antagónica das perspectivas psicogenéticas, nomeadamente
daquela que Piaget construiu e aperfeiçoou ao longo da sua obra. Esta (nova)
abordagem da socialização foi parcialmente utilizada tanto no campo da
sociologia da educação como no da sociologia política. :,

1.1. A Abordagem Piagetiana da Socialização

Piaget interessou-se prioritariamente pelo desenvolvimento mental da criança e


definiu-o como uma construção contínua mas não linear. O desenvolvimento
mental da criança realiza-se por etapas sucessivas e constitui aquilo que Piaget
designa por processo de equilibração, ou seja, o processo que assegura “a
passagem de um estádio de menor equilíbrio a um outro de equilíbrio superior”
(1964, p. 10). Este processo activa dois elementos heterogéneos: estruturas
variáveis, definidas como “formas de organização da actividade mental”, que é
simultaneamente cognitiva e afectiva; um funcionamento constante que provoca
a passagem de uma forma a uma outra através de um movimento de
desequilíbrio seguido de um restabelecimento do equilíbrio e a passagem a uma
nova forma.

Este desenvolvimento mental tem sempre uma dupla dimensão individual e


social: as estruturas através das quais circulam normalmente todas as crianças
são simultaneamente “cognitivas” (internas ao organismo) e “afectivas”, quer
dizer, relacionais (orientadas para o exterior). Assim, o reflexo de sucção do
recém-nascido é simultaneamente a manifestação de uma tendência instintiva e a
expressão das primeiras emoções dirigidas para a mãe ou para aquela (ou aquele)
que a substitui. Para Piaget, estas estruturas evolutivas que lhe servem para
definir os estádios do desenvolvimento da criança (cujo número varia de acordo
com os escritos do autor…) são indissociáveis das condutas, já não definidas em
termos behavioristas como simples reacções a estímulos externos (o célebre
esquema

S :o R analisado nomeadamente por Pavlov), mas entendidas como respostas às


necessidades resultantes da interacção entre o organismo e o seu meio físico e
social. Assim, qualquer acção (gesto, sentimento, pensamento…) é concebida
como uma tentativa para reduzir uma tensão, um desequilíbrio entre as
necessidades do organismo e os recursos do meio: ela é finalizada em torno de
um objectivo a atingir (restabelecer o equilíbrio) e definida pelos instrumentos
accionados para a realizar. Esta acção consuma-se quando a necessidade é
satisfeita, isto é, quando o equilíbrio é (re)encontrado. Este modelo homeostático
(o movimento definido como restabelecimento de um equilíbrio com o
ambiente), muito difundido nesta época nas ciências da vida, conduz Piaget a
conceber o desenvolvimento da criança e, portanto, a sua socialização — que
constitui um elemento

essencial daquele — como um processo activo de adaptação descontínua a


formas mentais e sociais cada vez mais complexas.

Para cada estádio, esta adaptação é descrita por Piaget como a resultante e a
articulação de dois movimentos complementares ainda que de natureza
diferente:

— a assimilação consiste em “incorporar as coisas e as pessoas externas” às


estruturas já construídas. Assim, a sucção é prioritariamente, para o recém-
nascido, um reflexo de incorporação bucal do mundo (vivido como “realidade a
sugar” de acordo com os termos de Piaget) que o conduz a generalizar a conduta
(ele chupa o seu polegar, os dedos de outrem, os objectos que lhe são
apresentados…) a tudo aquilo que lhe dá :, prazer depois de na prática ter
discriminado aquilo que correspondia à sua necessidade vital (o seio da mãe, o
biberão…). Da mesma forma, o reflexo do sorriso é, em primeiro lugar,
reservado a algumas pessoas (quinta semana) antes de ser generalizado a
qualquer rosto humano. Mais tarde, transformar-se-á em expressão voluntária de
um sentimento diferenciado. Estas condutas envolvem, assim, formas de
assimilação especificas a cada um dos estádios de desenvolvimento da criança:
num determinado momento elas constituem uma modalidade de relação com o
mundo adaptada a um estádio de maturação biológica da criança. Quando a
criança evolui, tornam-se simultaneamente necessárias e possíveis novas formas
de assimilação;

— a acomodação consiste em “reajustar as estruturas em função das


transformações exteriores”. Assim, as mudanças do ambiente são fontes
perpétuas de ajustamentos: se se passar do seio materno ao biberão, o reflexo de
sucção modifica-se; os sorrisos modificam-se também de acordo com as pessoas
que se debruçam sobre o bebé… Estas variações contribuem para aquilo a que
Piaget denomina por “construção do esquema prático do Objecto”, que é uma
condição para a descoberta activa da permanência dos objectos (materiais ou
humanos) mesmo quando eles estão ausentes. Estas variações permitem,
também, as estruturações do espaço e do tempo e a emergência das modalidades
sucessivas de reconhecimento das relações de causalidade. Estes quatro
elementos (esquemas práticos, espaço, tempo, causalidade) entram na
composição das estruturas mentais características de cada um dos estádios
significativos do desenvolvimento da criança.

Estas estruturas mentais são inseparáveis das formas relacionais pelas quais elas
se exprimem em relação ao outro. Assim, a cada um dos estádios definidos por
Piaget, podemos fazer corresponder formas típicas de socialização que
constituem modalidades de relação da criança com outros seres humanos. Passa-
se, deste modo, segundo o autor, do egocentrismo inicial do recém-nascido
caracterizado por “uma indistinção do Eu e do mundo” à inserção terminal do
adolescente escolarizado no mundo profissional e na vida social do adulto. Entre
estes dois estádios extremos, a criança aprendeu, em primeiro lugar, a exprimir
sentimentos diferenciados graças à estruturação de percepções organizadas (e à
solicitação do meio envolvente); em segundo lugar, aprendeu a imitar os seus
semelhantes, diferenciando nitidamente o pólo interno (o Eu) do pólo externo (o
Objecto); em seguida, graças à palavra, aprendeu a praticar trocas
interindividuais, descobrindo e respeitando as relações de constrangimento
exercidas pelo adulto; finalmente, aprendeu a passar do constrangimento à
cooperação, graças ao domínio conjunto da “reflexão como discussão
interiorizada consigo mesmo” e da discussão como “reflexão socializada com o
outro”, o que lhe permitiu, simultaneamente, adquirir o sentido da justificação
lógica e da autonomia moral (cf. quadro 1.1.). :,

Quadro 1.1.

Desenvolvimento mental e socialização em seis estádios

(2) segundo Piaget (1964)

(2) A partir dos finais dos anos 60, Piaget passou a referir-se a um
desenvolvimento em quatro estádios: sensório-motor (I II e III), pré-operatério
(IV), operatório concreto (V) e formal (VI).

:::::::

Os estádios de desenvolvimento (versão 1964) — Dimensão individual:


estruturas mentais — Dimensão social:

formas de socialização

I. Estádio dos reflexos — Tendências instintivas - Egocentrismo inicial

II. Estádio dos primeiros habitus motores — Percepções organizadas - Primeiros


sentimentos diferenciados

III. Estádio da inteligência sensório-motora — Regulações elementares de ordem


prática — Imitação como primeira “socialização da acção”

IV. Estádio da inteligência intuitiva — Imagens e intuicões representativas


“génese do pensamento” — Submissão aos adultos por constrangimento

V. Estádio da inteligência concreta — Passagem às operações:

Explicações pelo atomismo — Sentimentos e práticas de cooperação

VI. Estádio da inteligência abstracta-formal – Construção de teorias ;


Pensamento hipotético-dedutivo; Categoria do “possível” — Inserção social e
profissional

::::::::

Esta passagem do constrangimento à cooperação, isto é, a passagem da


submissão à ordem social (parental e escolar) para a autonomia pessoal através
da cooperação voluntária (com os adultos e as outras crianças) constitui um
ponto essencial na análise piagetiana da socialização. É em torno desta passagem
que, desde 1932, na obra Le Jugement moral chez l’enfant, Piaget define o
núcleo duro da sua concepção de socialização e a diferencia da de Durkheim.

Para melhor compreender esta concepção, sigamos o autor na descrição do seu


exemplo favorito: o jogo de berlindes.

“Um grupo de crianças joga aos berlindes. Quer do ponto de vista da prática das
regras, quer do da consciência destas, o comportamento das crianças varia com o
nível etário… Pode-se dizer que os mais pequenos não jogam ao berlinde;
manipulam as bolas tratando-as segundo esquemas perceptivos e motores muito
simples… A criança responde às propriedades do objecto (forma, consistência,
tamanho…) segundo alguns esquemas corporais (empurrar, puxar, amontoar,
etc.). A criança brinca sozinha mesmo quando está em grupo. Não há
cooperação, e não há, :, rigorosamente, o sentimento de que uma ganha e a outra
perde. Na realidade, ela não tem consciência de que algumas jogadas são
permitidas e outras proibidas… Os maiores, pelo contrário, são totalmente
absorvidos pelo seu jogo. Se os interrogarmos sobre as regras, eles respondem:
“as regras foram feitas por nós… podemos mudá-las na condição de estarmos de
acordo, mas enquanto se mantiverem todos devem respeitá-las.” (Piaget, 1932).

Nesta obra da sua juventude, Piaget distinguia quatro estádios que


correspondiam a quatro concepções da norma:

— o estádio “motor e individual” (antes dos 2 anos). Neste estádio, só se pode


falar de norma por referencia às “regras motoras”;

— o estádio “egocêntrico” (dos 2 aos 5 anos) que começa quando a criança


recebe do exterior o conjunto das regras codificadas. Neste estádio, mesmo ao
brincar em grupo, cada criança brinca para si. A confusão entre o eu e o mundo
exterior e a ausência de cooperação constituem um só e mesmo fenómeno: o
egocentrismo que só pode ser limitado pelo constrangimento;

— o estádio da cooperação emergente (7 aos 12 anos). Neste estádio, cada


jogador procura ganhar aos outros, o que provoca o aparecimento da
preocupação com um controlo mútuo e com a unificação das regras, as quais,
contudo, permanecem informais apesar de serem parcialmente negociadas
(jogada a jogada);

— o estádio da codificação das regras (depois dos 12 anos). Neste estádio, os


jogadores tomam consciência da existência e da necessidade de regras formais.
No domínio intelectual, eles verificam a coerência dessas regras e, no domínio
moral, eles discutem a sua justificação.

Poder-se-ia, assim, associar estas quatro formas sucessivas da socialização a


quatro maneiras de jogar: uma forma gestual e motora que só é regulada por uma
repressão directa que pode ser afectuosa (“seu maroto”) ou violenta (um par de
bofetadas); uma maneira solitária e egocêntrica que só pode ser regulada pelo
constrangimento (“se não vens comer, quando chegares já não há nada…”); uma
maneira cooperativa, mas informal, que pode sempre degenerar e deve ser
vigiada mais ou menos discretamente (“não, não tens o direito de fazer isso…”;
uma maneira cooperativa formalizada e dinâmica que assenta na negociação
recíproca e na adaptação comum às situações: a regulamentação inclui neste
caso a consciência das regras sociais existentes e a capacidade de jogar
colectivamente de acordo com estas regras.

O próprio Piaget resume o processo geral da socialização da criança através das


quatro transformações seguintes (1964, pp. 71-75):

— a passagem do respeito absoluto (aos pais) para o respeito mútuo


(crianças/adultos e crianças/crianças); :,

— a passagem da obediência personalizada ao sentimento da regra: esta torna-se.


no último estádio, a expressão de um acordo mútuo, um verdadeiro “contrato”;
— a passagem da heteronomia total à autonomia reciproca, que implica no
último estádio a fixação de sentimentos novos como “a honestidade, a
camaradagem, o fair play, a justiça”;

— a passagem da energia à vontade que constitui uma “regulação activa da


energia” (supondo uma hierarquização, nomeadamente uma hierarquização entre
dever e prazer).

No fim do processo de socialização da criança, “os valores morais organizam-se


em sistemas autónomos comparáveis aos agrupamentos lógicos”.
Reencontramos aqui o “núcleo duro” da concepção piagetiana da socialização: a
reciprocidade entre estruturas mentais e estruturas sociais, a correspondência, em
cada estádio, entre as operações lógicas e as acções morais, isto é, sociais: “a
moral é uma espécie de lógica dos valores e das acções entre indivíduos da
mesma forma que a lógica é uma espécie de moral do pensamento” (1964, p.
72).

1.2. Durkheim e Piaget: um debate inacabado

Na segunda parte da obra Jugernent moral…, Piaget envolve-se num debate


construtivo com Durkheim que se insere numa “confrontação das teses
essenciais da sociologia e da psicologia genética que dizem respeito
precisamente à natureza empírica das regras morais”.

Este debate faz aparecer, em primeiro lugar, uma série de convergências entre as
primeiras análises de Piaget e as presentes, por exemplo, em L’Éducation morale
(Durkheim, 1902-1903) ou em De la Division du travail social (Durkheim,
1893).

Piaget adopta a definição durkheimiana da educação entendida como


“socialização metódica da geração jovem” (Durkheim, 1911, ed. 1966, p. 92),
precisando — como, aliás, o faz Durkheim — que esta socialização não depende
somente da geração precedente, mas também dos próprios indivíduos. Cada
geração deve socializar-se por si própria, tendo por base os “modelos culturais
transmitidos pela geração precedente” (Durkheim, 1902-1903, ed. 1963, p. 4).
Para ambos, a socialização é uma “educação moral”. Enquanto para Durkheim
ela é, basicamente, uma transmissão do “espírito de disciplina” assegurada pelo
constrangimento, complementada por uma “ligação aos grupos sociais” e
interiorizada livremente graças à “autonomia da vontade” (Durkheim, 1902-
1903), para Piaget, ela é, fundamentalmente, uma construção, sempre activa e
até interactiva, de novas “regras do jogo”, implicando o desenvolvimento
autónomo da “noção de justiça” e a substituição de “regras de constrangimento”
pelas “regras de cooperação” (Piaget, 1932, p. 419).

Piaget reconhece, aliás tal como Durkheim, que a socialização se baseou


historicamente no constrangimento e na conformidade “natural” a modelos
exteriores. Ele partilha a teoria do “pecado mortal” desenvolvida por Durkheim
(1893): “A existência da moral :, só pode ser assegurada se houver sanções” que
reforçam o sentimento moral na medida em que o “pecado mortal” é “aquilo que
ofende os estados fortes e definidos do sentimento colectivo”. Neste sentido, a
socialização contém em si uma dimensão repressiva: aqueles que transgridem
abertamente as regras aceites devem ser punidos e é essencial que as sanções
exercidas sejam proporcionais à gravidade dos crimes cometidos. Como
escreveu Piaget, “a exterioridade inicial das relações sociais desencadeia
inevitavelmente um certo realismo moral” (1932, p. 136). Se as regras, tal como
as crenças e os valores que as fundamentam, se impõem, fundamentalmente, do
exterior (tanto na criança como nas sociedades ditas “primitivas”), é também
preciso que as sanções “recaiam” sobre aqueles que as transgridem, contribuindo
assim para consolidar o respeito pelas regras pelos outros.

Piaget e Durkheim estão também de acordo no reconhecimento da


individualização crescente da vida social à medida que as trocas se desenvolvem
e se complexificam. A passagem de uma solidariedade mecânica por “imitação
exterior” para a solidariedade orgânica através da “cooperação e
complementaridade” (Durkheim, 1993) desenvolve a individualização e a
diferenciação das relações sociais. Ora, “a vida social, à medida que se
individualiza, torna-se mais interiorizada” (Piaget, 1932, p. 138). É necessário,
por isso, apelar para a autonomia da vontade mais do que para o medo da
repressão. A socialização torna-se, assim, cada vez mais voluntária.

Onde Piaget se afasta de Durkheim é quando este estabelece uma equivalência


pura e simples entre os objectivos e os efeitos do constrangimento externo e os
da cooperação voluntária. Na realidade, como assinalou Nisbet (1966, trad.
1984, pp. 114 e seguintes), Durkheim, depois de na primeira parte De la Division
du travail social ter oposto as sociedades ditas “primitivas” apoiadas na
solidariedade mecânica às sociedades industriais apoiadas na solidariedade
orgânica, relativiza esta posição na segunda parte desta obra. Ele escreveu
nomeadamente que “a divisão do trabalho só pode ser consumada entre os
membros de uma sociedade já constituída… Embora a divisão do trabalho
suponha a vida social, esta pode existir para além daquela… Existem sociedades
cuja coesão é assegurada essencialmente pela comunidade de crenças e de
sentimentos e… foi destas sociedades que saíram aquelas, cuja unidade é
assegurada pela divisão do trabalho” (Durkheim, 1893, 8.a ed. 1967, pp. 259-
261). Deste modo, Nisbet realça com pertinência que “no seguimento da obra de
Durkheim a sociedade tornou-se um conjunto complexo de elementos sociais e
psicológicos que, inicialmente, eram apenas específicos das sociedades
primitivas”. De facto, “Durkheim considera que os atributos da solidariedade
mecânica são a característica permanente de todos os factos sociais” (Nisbet, id.,
p. 116). Sem ir tão longe, Piaget constata e critica também o facto de, para
Durkheim, o constrangimento social característico da sociedade mecânica
possuir a mesma função e assegurar os mesmos efeitos que a cooperação, que é
um atributo da solidariedade orgânica, a saber, o desenvolvimento em cada um
de uma “consciência colectiva”, simultaneamente, intrínseca e exterior ao
indivíduo. É esta assimilação que Piaget rejeita, não por :, “psicologismo”, mas
porque ele não partilha da mesma concepção que Durkyheim tem da sociedade
moderna e não interpreta da mesma forma a passagem das sociedades
tradicionais às sociedades industriais: “as nossas sociedades civilizadas
contemporâneas tendem cada vez mais a substituir a regra de constrangimento
pela regra de cooperação”. Faz parte da essência da democracia considerar a lei
como um produto da vontade colectiva e não como emanação de uma vontade
transcendente ou de uma autoridade de direito divino” (Piaget, 1932, p. 419).

Ao contrário de Durkheim, Piaget estabelece, assim, um corte radical e uma


oposição efectiva entre as relações de constrangimento fundamentadas nos laços
de autoridade e no sentimento do sagrado (sociedades tradicionais) e as relações
de cooperação fundamentadas no respeito mútuo e na autonomia da vontade
(sociedades modernas). A passagem das primeiras para as segundas é
apresentada por Piaget como a confluência de uma “evolução intelectual” e do
“desenvolvimento moral” que torna possível a construção voluntária de novas
relações sociais que englobam a evolução e o desenvolvimento das próprias
crianças. O que Durkheim não teve em conta é “que existem relações sociais
específicas aos próprios grupos infantis: as regras das crianças também são
sociais. Elas apoiam-se sobre outros tipos de relação de autoridade… e alguns
pedagogos questionam-se mesmo sobre a possibilidade de utilizar estas regras
nas aulas” (Piaget, 1932, p. 417).

Finalmente, entre Durkheim e Piaget existe uma divergência a propósito da


seguinte questão: poder-se-á ainda falar “da” sociedade a propósito das
sociedades modernas? DurkLeim pensa que sim e Piaget duvida: “a moral
apresentada ao indivíduo pela sociedade não é homogénea porque *a sociedade
em si não é única. (3) A sociedade é o conjunto das relações sociais” (Piaget,
1932, id.). Ora, para Piaget os dois tipos de relações precedentes
(constrangimento/cooperação) são fundamentalmente diferentes, razão pela qual
ele não pode definir a socialização apenas em termos de integração — mesmo
que activa –numa sociedade unificada. O seu debate com Durkheim deve ser
situado na própria concepção do social, de forma a que se possa esclarecer assim
as condições de uma abordagem sociológica da socialização.

(3) Sublinhado do autor.

(4) Isto é, a representação mais geral do que é “o social” na comunidade dos


especialistas de ciências sociais. Considera-se geralmente que há dois grandes
‘paradigmas” do social: o paradigma “holista” que considera a sociedade como
uma totalidade, um “organismo”; e o paradigma “individualista” ou “atomista”
que a considera como um conjunto de indivíduos aut6nomos (Boudon,
Bourricaud, 1982). De facto, a maioria dos teóricos da sociologia combinam
elementos retirados destes dois paradigmas.

A concepção paradigmática (4) do social, de Piaget, só será explicitada muito


mais tarde, no texto citado no princípio deste capítulo e intitulado “A explicação
em sociologia” (1965). Situando-se na polémica estéril que opõe G. Tarde e
Durkheim, onde o primeiro f “entendia a sociedade como o resultado da
socialização dos indivíduos” assegurada por imitação (1965, p. 28), e o segundo
considerava a “consciência colectiva” como uma substancia e uma causa, “um
núcleo inconsciente de emanações conscientes” (p. 29), Piaget rejeita esta
oposição e qualifica a sua posição de *relativista*, definindo aquilo que ele
denomina de “todo social”: “nem uma reunião de elementos anteriores, nem uma
entidade :, nova, mas um sistema de relações, onde cada uma das relações,
enquanto relação, engendra uma transformação dos elementos que relaciona” (p.
29). A posição de Piaget nem individualista-atomista, que define o social como
agregação de indivíduos, nem holista-organicista, que considera o social como
uma globalidade realista, pode ser qualificada de relacionista-construtivista na
medida em que ela considera a sociedade como “um sistema de actividades cujas
interacções elementares consistem em acções que se modificam umas às outras
de acordo com determinadas leis de organização ou de equilibração” (pp. 29-30).
A socialização pode, por isso, ser definida como um processo descontinuo de
construção colectiva de condutas sociais que integra três aspectos
complementares:

— o aspecto cognitivo representando a estrutura da conduta e traduzindo-se em


regras;

— o aspecto afectivo representando o energético da conduta e exprimindo-se em


valores;

— o aspecto expressivo (ou “conativo”) representando os significantes da


conduta e simbolizando-se em signos.

Nas suas investigações formais, Piaget não fornece traduções operatórias destes
três aspectos da socialização. Encontramos traduções sociológicas diversas ao
longo desta obra (cf. quadro 1.3.). Para Piaget, eles constituem os materiais de
base com os quais se estrutura o desenvolvimento da criança e se constrói a sua
socialização activa.

Esta construção assenta na correlação essencial entre estruturas sociais e


estruturas mentais, isto é, entre a socialização concebida como construção de
formas de organização das actividades e a socialização concebida como modos
de desenvolvimento dos indivíduos. Assim, o social pode ser sempre analisado e
reconstruído, tanto a partir da análise “objectiva” das formas de organização
colectiva e da sua génese, como a partir da análise “subjectiva” dos conteúdos de
representações mentais e individuais e do seu aparecimento. A correspondência
entre estas duas abordagens baseia-se no paralelismo psicossociológico que
postula a reciprocidade entre as representações mentais — interiorização das
estruturas sociais — e as cooperações sociais - exteriorização das estruturas
mentais.

Este “paralelismo psicossociológico” explica a razão por que Piaget, nas suas
análises do desenvolvimento da criança, nunca pôde separar — mesmo por uma
abstracção metodológica que teria sido legítima — as formas sociais de
cooperação das formas lógicas de construção mental. Piaget não só recusou
sempre postular a anterioridade lógica ou cronológica das estruturas sociais
relativamente às estruturas mentais, como também nunca realizou nenhuma
dissociação metodológica de umas relativamente às outras. “Assim, como ele
escreveu, se o progresso lógico acompanha o da socialização, dever-se-á admitir
que a criança se torna capaz de operações racionais porque o seu
desenvolvimento social a torna apta à cooperação ou dever-se-á admitir, pelo
contrário, que são as suas aquisições lógicas individuais que lhe permitiriam
compreender os outros e que a conduziriam assim à cooperação? Uma vez que
estes dois tipos de progresso se desenvolvem paralelamente, a :, questão parece
não ter solução, a não ser que eles constituam dois aspectos indissociáveis de
uma só e mesma realidade que é simultaneamente social e individual” (1965, p.
158).

Compreende-se melhor a dificuldade experimentada pelo autor, quando, na


análise dos processos de socialização, procura precisar os objectos da psicologia
e da sociologia. Por vezes, ele inclui a primeira na segunda: “a psicologia da
criança constitui um sector da sociologia consagrado ao estudo da socialização
do indivíduo” (1965, p. 23). Outras vezes, afirma a autonomia da perspectiva
sociológica: “a análise sociológica dos factos de socialização pressupõe um
método novo incidindo sobre o conjunto do grupo, considerado como sistema de
interdependências construtivas” (id., p. 16). Ele chega mesmo a reconhecer, com
humor, a superioridade desta abordagem: “a sociologia possui o grande
privilégio de situar as suas investigações numa escala superior à da nossa
modesta psicologia e, por conseguinte, de dominar os segredos de que
dependemos” (Piaget, 1966, p. 248). Mas qual é este “novo método” que permite
à sociologia “situar-se numa escala superior”? Piaget nunca o clarifica. Nesta
perspectiva, o debate com Durkheim foi sempre inacabado…

Os seguidores de Piaget apenas constataram que “Piaget não criou um


paradigma psicossociológico do desenvolvimento cognitivo” (Doise, 1982). Se a
sua concepção relacionista do social é claramente explicitada do ponto de vista
teórico e se demarca da de Durkheim, a verdade é que ela continua sem tradução
metodológica: no objecto “socialização da criança” Piaget não realizou a
distinção entre um ponto de vista psicológico, centrado nas estruturas mentais, e
um ponto de vista sociológico, focalizado nas formas sociais de cooperação.
Será que outros o fizeram depois dele? Será possível construir uma abordagem
sociológica de inspiração piagetiana?

1.3. Uma aplicação em sociologia da educação

Em que medida esta teoria do desenvolvimento psicogenético como equilibração


pode servir a análise sociológica? Não será que ela se opõe à abordagem
“clássica” da sociologia da educação, que, por exemplo, realça as desigualdades
sociais de sucesso escolar e de inserção profissional, as determinações de origem
social sobre o nível escolar e a posição social? Não voltaremos com Piaget a cair
numa dessas pseudoteorias do “homem médio” já criticadas por Durkheim
(1987) na sua polémica com G. Tarde e com as suas explicações através da
imitação?

Podemos encontrar elementos interessantes de resposta a estas questões numa


investigação recente realizada por um investigador em psicologia, que se
reclama explicitamente de Piaget e que procura esclarecer alguns mecanismos
responsáveis pelas desigualdades sociais de sucesso escolar. Através de uma
pesquisa empírica, J. Lautray procurou confirmar a hipótese de que “as
condições de vida e de trabalho ligadas ao estatuto socioeconómico dos pais
determinam as práticas educativas que, por sua vez, influenciam o :,
desenvolvimento intelectual da criança” (Lautray, 1984, p. 18). Para
operacionalizar esta hipótese. Lautray, a partir de uma amostra de crianças de
escola elementar, identificou três tipos de estruturação do ambiente familiar:
uma estruturação fraca, correspondendo à ausência de regras e de previsibilidade
que é pouco favorável à reestruturação em caso de desequilíbrio; uma
estruturação rígida, constituída por regras fixas e constrangedoras e, por isso,
pouco favorável ao desequilíbrio inicial necessário ao desenvolvimento; uma
estruturação flexível, correspondendo a regras condicionais favoráveis
simultaneamente ao desequilíbrio e à reestruturação. Ele estabelece a seguinte
relação: “quanto mais alta for a profissão do pai na hierarquia social, mais
flexível é o tipo de estruturação, e quanto mais baixa for a profissão, mais rígido
será o tipo de estruturação” (id., p. 115). Ele demonstrou, finalmente, que, “do
ponto de vista do estádio atingido no seu desenvolvimento operatório, as
crianças educadas num ambiente familiar flexível estão em avanço relativamente
aos outros dois grupos” (id., p. 214). Referenciando-se explicitamente ao
processo de equilibração das estruturas cognitivas de Piaget, ele procurou
estabelecer deste modo uma dupla relação entre, por um lado, o ambiente
educativo familiar e o sucesso escolar das crianças e, por outro, entre o ambiente
familiar e “o papel dos pais no sistema de produção”.

Esta tentativa apoia-se numa série de hipóteses causais que se pode explicitar da
seguinte forma (cf. esquema 1.2.):

— a verificação de uma relação estatística entre o sucesso escolar das crianças


(medida aqui pelo facto de ela estar adiantada ou em atraso na escolaridade
primária) e a posição social dos seus pais (medida através do grupo
socioprofissional do pai) pode ser decomposta recorrendo a uma variável
intermediária: o tipo de estruturação do ambiente familiar (medido através de um
questionário que permitiu dividir as famílias em três tipos: fraco/flexível/rígido);

— a relação estatística verificada entre sucesso escolar e tipo de estruturação


familiar pode ser interpretada através do esquema teórico de equilibração das
estruturas cognitivas (Lautray, p. 237): “um ambiente familiar apresentando em
simultâneo perturbações capazes de suscitarem desequilíbrios e regularidades
capazes de permitirem reequilibrações (flexíveis) parece mais favorável ao
processo de reconstrução de novas estruturas mentais que os ambientes que são
ricos em regularidades, mas pobres em perturbações (fracas)”. Se os alunos
pertencentes a fami1ias em estraturação flexível estão frequentemente mais
“adiantados” que os outros, é porque o seu ambiente familiar facilita o
desenvolvimento mental que se exprime através do seu sucesso escolar;

— a relação estatística verificada entre o tipo de estruturação familiar e o


estatuto social medido pela posição socioprofissional do pai (as famílias
“flexíveis” têm muitas vezes um estatuto social elevado) pode ser interpretada
recorrendo à hipótese seguinte os pais transferem para o universo familiar os
modos de organização e de estruturação das tarefas que regem o seu trabalho
profissional. As famílias situadas :, na base da escala social (pais operários ou
empregados) adoptam uma estruturação rígida porque as tarefas profissionais
dos pais (as do pai pelo menos) são “concebidas por outros e directamente
submetidas ao controlo hierárquico” sendo, portanto, rígidas. As famílias
situadas no topo da escala (quadros das empresas, patrões ou profissões liberais)
adoptam uma estruturação flexível porque as suas tarefas profissionais implicam
iniciativas e responsabilidade sendo, portanto, estruturadas de uma forma
flexível.

Esquema 1.2.

Esquema explicativo desenvolvido por J. Lautray (1984)

:::::::::

Posição social dos pais

*
*
Estatuto
socioprofissional

do pai (CSP)

(alto/médio/baixo)

:o Causalidade

Estruturação das

tarefas e dos papéis na

divisão do trabalho
Ambiente familiar

*
Tipo de

estruturação das
regras educativas

(flexível/rígido/fraco)

:o Correlação
Desenvolvimento mental como

processo de equilibração
Sucesso escolar dos filhos

Posição ao longo da

escola primária

(adiantado/na altura

certa/atrasado)

*** Indicador

::::::::::

Considerando as correlações estatísticas postas em evidência, as variáveis


intimamente a elas ligadas e a explicação causal de conjunto, verifica-se que,
entre elas, surgem hipóteses explicativas complexas que exigem ser traduzidas e
testadas empiricamente. A este respeito, podemos interrogar-nos acerca dos
pontos seguintes:

— o que é que mede, de facto, o sucesso escolar ou mais concretamente o facto


de se estar avançado ou atrasado na escola primária? Será que o sucesso
sanciona um nível (estádio?) de desenvolvimento mental na criança ou um grau
de adequação entre as regras, os valores e os signos (tipo de linguagem e
dependência da linguagem) do universo familiar e dos universos da escola? As
pesquisas realizadas a este propósito pelo sociólogo inglês Basil Berustein
mostram a grande importância que o código linguístico que rege as
comunicações no seio da família (e nomeadamente entre a mãe e as crianças)
tem no sucesso escolar das crianças. As crianças de origem popular, que utilizam
um “código restrito”, encontram-se muito mais frequentemente em situação de
insucesso escolar do que aquelas que utilizam, no universo familiar, um “código
generalizado” que supõe uma relação com a língua (de tipo :, abstracto, formal,
distanciado…) valorizada pela escola (Bernstein, 1971). Sem serem
contraditórias com as interpretações de Lautray, estas análises evitam a noção de
“desenvolvimento mental” para se centrarem exclusivamente nas formas de
comunicação interpretadas em termos de cultura e de poder e não em termos
cognitivos (cf. capítulos II e III);

— quais são os pressupostos da hipótese de que os universos profissionais dos


pais (principalmente as do universo profissional do pai) se transferem para a
família e para a educação da criança? Para além de implicar uma representação
muito simplificada do funcionamento da divisão do trabalho (de tipo
“taylorista”), esta hipótese pressupõe a existência de uma correspondência
estreita entre condições de vida (familiar) e condições de trabalho (profissional),
não só no plano material (remuneração e nível de vida), mas também no plano
social (organização do trabalho/organização doméstica). Ela pressupõe, portanto,
uma fraca autonomia da esfera familiar em relação à do trabalho profissional.
Não será este pressuposto contraditório com a posição de Piaget que afirma a
crescente multiplicidade dos tipos de relações sociais e a ausência de unidade do
funcionamento social? Não poderão as normas familiares ser construídas em
oposição às do universo profissional (do pai)? Não terão as normas familiares
mais relações com as normas que regem as fami1ias dos pais (da mãe) do que
com aquelas que estruturam o trabalho profissional (do pai)? As recentes
investigações no que se refere à influência do nível de instrução e da origem
social das mães sobre o sucesso escolar dos filhos (Establet, 1988) mostram que
as mudanças biográficas e culturais de uma geração para a outra influenciam os
resultados escolares dos filhos tanto, e até mais, do que as condições económicas
dos pais. O inquérito realizado entre 1962 e 1972, sob a direcção de A. Girard,
junto de uma coorte de alunos que terminaram a escola primária em França,
puseram em realce esta influência: para rendimentos iguais, as habilitações dos
pais estão nitidamente correlacionadas com o sucesso escolar das crianças,
enquanto o inverso não é verdadeiro: para as mesmas habilitações, os
rendimentos das fami1ias exercem pouca influência no rendimento escolar das
crianças (P. Clerc, 1964).

Embora possamos considerar como globalmente verdadeiro, como conclui J.


Lautray, que “são as mesmas pessoas as que têm as condições de vida e as
condições de trabalho mais constrangentes,” (1984, p. 2403 e que “são as
crianças cujos pais têm as condições de vida mais constrangentes aquelas que
têm menor êxito escolar”, não se pode inferir dai que as condições económicas
dos pais determinam directamente o desenvolvimento intelectual das crianças.
Para além dos mecanismos que, num dado momento, regem a organização
familiar, existem outros que influenciam a estruturação cognitiva das crianças.
As formas e conteúdos de comunicação entre filhos e pais (nomeadamente as
mães) têm tanta influência como as regras da vida em comum. Estas regras não
podem também ser deduzidas directamente das tarefas profissionais realizadas
pelos pais (nomeadamente o pai): :, elas derivam, também, dos modelos culturais
transmitidos de uma geração para a outra, e resultam do tipo de formações
seguidas pelos pais (nomeadamente pelas mães).

A pesquisa de J. Lautray representa, no entanto, uma tentativa interessante de


aplicação dos esquemas piagetianos numa perspectiva sociológica. Ela constitui
uma tradução empírica do processo de equilibração enquanto processo de
construção de estruturas mentais dependentes das condições sociais: para passar
de uma forma de relações para outra, é necessário poder mudar as regras
anteriores bem como a relação com estas regras. E necessário, por isso, estar
inserido num ambiente “flexível”, mas estruturante: a capacidade de construir na
família este tipo de “meio” de socialização depende das condições de vida, dos
valores e do sistema educativo familiar que constituem, para Lautray, as três
dimensões dos seus tipos de estruturação do ambiente familiar. A socialização da
criança depende muito das condições sociais — tanto familiares como escolares
— da sua construção: analisá-las e medir os seus efeitos constitui o objecto
tradicional da sociologia da educação (cf. capítulo III).

1.4. Uma transposição para a socialização política

No preâmbulo da exposição dos resultados de uma pesquisa sobre o universo


político das crianças, A. Percheron (1974) desenvolve a definição de uma
“nova” abordagem dos fenómenos da socialização, que se inscreve também na
continuidade da problemática piagetiana, e na sua sociologização operatória.
Criticando a abordagem da socialização de Durkheim, esta nova abordagem
propõe uma definição da socialização entendida como aquisição de um código
simbólico resultante de “transacções” entre o indivíduo e a sociedade
(Percheron, 1974, p. 25). O termo transacção constitui uma transposição directa
da equilibração piagetiana: “qualquer socialização é o resultado de dois
processos diferentes: processo de assimilação e de acomodação. Pela
assimilação, o sujeito procuraria modificar o seu ambiente para o tornar mais
conforme aos seus desejos e diminuir os seus sentimentos de ansiedade e de
intensidade; pelo contrário, pela acomodação, o sujeito teria tendência a
modificar-se para responder às pressões e aos constrangimentos do ambiente”.
Desta problemática de base, A. Percheron retira um conjunto de consequências
que constituem, segundo ele, a problemática da socialização política:

1. A socialização é um processo interactivo e multidirecional: pressupõe uma


transacção entre o socializado e os socializadores; não sendo adquirida de uma
só vez, ela passa por renegociações permanentes no seio de todos os subsistemas
de socialização. Como afirma A. Percheron, “a socialização assume a forma de
um acontecimento, de um ponto de encontro ou de compromisso entre as
necessidades e os desejos do indivíduo e os valores dos diferentes grupos com os
quais ele se relaciona” (1974, p. 26).

2. A socialização não é apenas, nem fundamentalmente, transmissão de valores,


normas e regras, mas “desenvolvimento de uma dada representação do mundo“,
nomeadamente de mundos especializados”, neste caso, o mundo político. Esta
representação não é imposta de uma forma acabada pela família de origem ou
pela escola, mas cada indivíduo “constrói-a lentamente, utilizando imagens
retiradas das diferentes representações existentes, que ele reinterpreta para
formar um todo original e novo” (idem). Certamente que existem sistemas
tipificados de “representações automáticas” que permitem “respostas rápidas e
estereotipadas” (Moscovici, 1972, p. 282), mas o indivíduo reutiliza-os de
acordo com as suas aspirações e experiências.

3. A socialização não é, fundamentalmente, o resultado de aprendizagens


formalizadas, mas o produto, constantemente reestruturado, das influências
presentes ou passadas dos múltiplos agentes de socialização. Esta “socialização
latente” é muitas vezes impessoal e mesmo não intencional: se se pode falar de
aprendizagem é de uma aprendizagem informal e implícita cujo “papel é de tal
forma importante que é ela que alarga a influência do ensino e da maioria das
mensagens da sociedade” (id., p. 27).

4. A socialização é essencialmente uma construção lenta e gradual de um código


simbólico que não constitui, como em Durkheim, um conjunto de crenças e de
valores herdados da geração precedente, mas um “sistema de referência e de
avaliação do real” que permite “comportar-se de uma certa forma, numa dada
situação”. Reactualizando a abordagem piagetiana, mobilizando os resultados
mais seguros da psicolinguística e aplicando-os ao campo da política, A.
Percheron realça “que nunca há uma relação ‘objectiva’ com o político e que a
significação de qualquer conceito e de qualquer noção constrói-se através da sua
relação com outras noções, após uma série de mediações e de transformações:
não há objecto, lei ou partido político, fora das representações que subjazem a
estes conceitos e não há representações fora do conjunto das atitudes que
organizam qualquer apreensão do real” e, portanto, nos permitem orientarmo-
nos. Assim “socializar-se é aprender a representar um significado (político neste
caso) com a ajuda de um dos múltiplos significantes que serve à sua
representação” (id., p. 37).

5. A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção de


identidade, ou seja, de pertença e de relação. Socializar-se é assumir o
sentimento de pertença a grupos (de pertença ou de referência), ou seja, “assumir
pessoalmente as atitudes do grupo que, sem nos apercebermos, guiam as nossas
condutas” (id., p. 32). A. Percheron chama a atenção para uma aquisição
essencial da antropologia cultural (cf. capítulo II): o sinal decisivo de pertença
ao grupo é a aquisição daquilo que Sapir chamava “saber intuitivo” (1967, t. 1,
p. 41) e que Halbwachs designava de acordo com a interessante fórmula
“começar a pensar com os outros” (1950, p. 48). Este saber implica assumir-se,
pelo menos parcialmente, o passado, o presente e o projecto do grupo “tal como
eles se exprimem no código simbólico comum que funda. menta a relação entre
os membros” (Percheron, id., p. 32). :,

Mas qualquer abordagem empírica de identidade torna-se particularmente


complexa pelo facto de “não haver uma identificação única” dos indivíduos (cf.
capitulo V). A criança tem de construir a sua própria identidade através de uma
integração progressiva das suas diferentes identificações positivas e negativas,
quer devido à multiplicidade dos grupos de pertença ou de referência, quer
devido à ambivalência das identificações: ambivalência entre o desejo de ser
como os outros, aceite pelos grupos de que se faz parte ou aos quais se quer
pertencer, e a aprendizagem da diferença ou o desejo de oposição àqueles
grupos. Como afirmava Lacan “o eu é um objecto comparável a uma cebola;
poderíamos descascá-lo e encontraríamos as sucessivas identificações que o
constituem” (1953, 1981, p. 144).

Esta integração das identidades depende certamente do “sistema relacional do


sujeito” (Percheron, id., p. 34), mas ela só se manifesta através da coerência de
uma linguagem, isto é, através da estruturação dos signos e dos símbolos que
constitui, no fim de contas, “a modalidade especifica da existência de um
conjunto de símbolos que permite à linguagem estar em relação com um
dominio de objectos” (Foucault, 1969, p. 125). Eis a razão pela qual, tendo
definido a socialização política da criança como um processo de construção de
uma identidade, A. Percheron opta por estudar “alguns aspectos dos fenómenos
e processos de socialização recorrendo ao estudo da constituição do vocabulário
político das crianças, do desenvolvimento das representações que a ele se
associam e, sobretudo, recorrendo à organização do vocabulário em dimensões
específicas” (id., pp. 37-38).

Quadro 1.3.

Categorias de análise da socialização de A. Percheron reutilizando J. Pinget

:::::::

Categorias de análise da socialização:


Processo essencial

PIAGET:

Equilibração adaptações sucessivas entre o Eu e o Mundo

PERCHERON:

Transacção Indivíduo/instituições:
compromisso entre desejos individuais
e valores colectivos

Categorias de análise da socialização:

Domínios distintos e articulados

PIAGET:

Cognitivo :o regras

Afectivo :o valores

Expressivo :o signos

PERCHERON:

Pertença + Relação
Identidade social

Categorias de análise da socialização:


Resultado

PIAGET:

Estruturação de uma inteligência formal

permitindo a construção de
um programa de vida

“possível”

PERCHERON:

Construção/selecção de um

código simbólico “especializado” :,

::::::::::

A partir do que foi dito, vê-se claramente como é que a tentativa de tornar
operatória uma abordagem da socialização, previamente definida de uma forma
muito “piagetiana” (cf. quadro 1.3.), conduz a uma forma específica de análise
da linguagem aqui análise estatística do vocabulário político em crianças dos 10
aos 15 anos. destinada a discernir as linhas de força, as dimensões essenciais do
campo das representações políticas.

É que a organização das representações — a estrutura do vocabulário político


neste caso — permite discernir, simultaneamente, a estruturação objectiva do
campo político, referenciando os sistemas de palavras às posições no espaço em
função dos usos linguisticos das diversas “forças políticas”, e as estruturações
subjectivas das diferentes categorias de crianças referenciando-as às
características sociais (profissão do pai, local de habitação, etc.), psicológicas e
biológicas (nível etário) destas crianças.

Os resultados empíricos da investigação de A. Percheron confirmam uma


hipótese importante: a estruturação do vocabulário político das crianças depende
tanto da idade como das características sociopolíticas do meio ambiente. Entre
os 10-11 anos e os 13-15 anos produzem-se reorganizações significativas que
manifestam uma actividade de reestruturação simbólica por parte das próprias
crianças. Tanto as representações como as escolhas políticas não são transmitidas
e constituídas de uma vez para sempre; constroem-se como se fossem rearranjos
periódicos, resultantes, simultaneamente, de novas assimilações de elementos
retirados dos diversos sectores do ambiente

(família, escola, pares, área residencial, freguesia, etc.) e de acomodações às


evoluções desses sectores, que permitem reorganizar de forma suficientemente
coerente os elementos (palavras, fórmulas, posições, símbolos…) de um sistema
de representações políticas cada vez mais interiorizado e constitutivo da
identidade social a ser construída pela própria criança. Neste sentido, a pesquisa
de A. Percheron desenvolve uma abordagem de tipo piagetiana, prolongando-a
sociologicamente de forma a que a identidade em construção é encarada como
uma componente de pertença social (cf. capitulo V).

1.5. Uma perspectiva “genética” e “restrita” da socialização

A teoria piagetiana da socialização da criança, tanto psicológica como


sociológica, permite, finalmente, uma dupla ruptura, necessária a qualquer
perspectiva operatória dos factos de socialização:

— uma ruptura com uma concepção da “formação” (5) encarada como


inculcação de regras, normas ou valores por parte das instituições junto de
indivíduos passivos que assim são progressivamente modelados por estes
esquemas de pensamento e de :, acção. É esta concepção. anunciada por
qualquer perspectiva funcionalista da socialização (cf. capítulo II), que constitui
uma espécie de paradigma simplista e redutor — que Boudon e Bourricaud
(1982, p. 483) chamam de socialização-condicionamento — e que implica,
simultaneamente, uma representação substancialista das instituições (aparelhos
de socialização) e uma concepção determinista e mecanicista das práticas
individuais (comportamentos aprendidos);

(5) Utilizaremos, às vezes, o termo “formação” como sinónimo de


“socialização” ainda que em França este termo seja muitas vezes associado à
ideia de aprendizagem de tipo escolar, de cursos “formalizados” e organizados
por instituições para ensinar saberes a indivíduos considerados ignorantes. Mas
todas as investigações cientificas sobre a socialização mostram que esta
representação está muito afastada dos processos reais de aprendizagem
socializada.

— uma ruptura com uma representação linear e unificada da formação entendida


como acumulação de conhecimentos ou progressão contínua das competências.
As noções de “estádio” e de processo de equilibração reenviam para uma
concepção dinâmica da socialização da criança como desestruturação e
reestruturação de equilíbrios relativamente coerentes, mas provisórios: a
passagem de uma coerência para outra implica uma crise” e a reconstrução de
novas formas de transacção (assimilação/acomodação) entre o indivíduo e o seu
meio social.

Esta passagem de uma forma de equilíbrio para outra implica uma primeira fase
de desestruturação que corresponde a uma crise das formas de transacção
anterior, uma segunda fase de desequilíbrio que corresponde a uma acomodação
sem assimilação (simples adaptação sem reequilibração) ou a uma assimilação
sem acomodação (simples crescimento sem reequilibração) e uma última fase de
reestruturação que corresponde a um novo equilíbrio dos dois processos. Este
“modelo” pode ser considerado como o contributo mais importante de Piaget
para a análise dos processos da socialização.

No entanto, ele deixa em aberto uma questão fundamental: dever-se-á limitar o


processo de socialização assim concebido às crianças e considerar a adolescência
como o período biográfico de consumação desse processo? No contexto
socioeconómico da época, esta posição era defendida por Piaget pelas razões
seguintes:

— o estádio de inteligência formal é considerado como tendo sido atingido, por


uma maioria dos adolescentes, no momento em que se inserem na actividade
profissional: num contexto em que as competências necessárias para o primeiro
emprego apelam essencialmente para as capacidades de raciocínio adquiridas no
final da escolaridade, o equilíbrio pode realizar-se na e pela inserção
profissional;

— as características sociocognitivas dos adolescentes ao entrar na vida activa


estruturam o conjunto do percurso profissional ulterior: as mudanças
significativas de situação de actividade são raras e os estatutos adquiridos na
entrada valem para o conjunto da vida activa. As relações socioafectivas que se
ligam à esfera familiar e à esfera profissional formam um conjunto coerente que
assegura aos adolescentes uma integração espontânea no meio social familiar,
estruturante para a personalidade que se tornou adulta.

O que é que acontecerá quando não se verificam as condições sociais que


permitiam a equilibração das actividades durante a adolescência? O que se
passará quando as organizações de trabalho modificam as suas exigências,
excluem uma fracção dos jovens e :, transformam as suas regras de
funcionamento? Como pensar a socialização quando a inserção no primeiro
emprego se torna precária ou provisória para inúmeros jovens e quando as
mudanças de emprego, de ofício ou de profissão se multiplicam ao longo da vida
activa? Quais as consequências da dissociação crescente entre as esferas da
actividade social e da não coincidência sistemática dos acontecimentos (saída da
escola, entrada numa actividade estável. casamento). que marcam a entrada no
“estádio terminal” de Piaget?

Poder-se-á responder a estas perguntas de várias formas. que têm incidências


diferentes sobre a própria concepção de socialização entendida como processo
“genético .

A primeira consiste em considerar que estas transformações invalidam o


tratamento piagetiano da socialização no seu conjunto. E o sentido, por exemplo,
da crítica que um comentador de Piaget (Furth, 1981, pp. 15, e seguintes) levanta
quando escreve: as condições de socialização na família, já não se enquadrando
funcionalmente com as condições de filiação nas organizações, geram problemas
insolúveis aos jovens… a crise da adolescência torna-se aguda e durável devido
às disparidades entre competências requeridas, disposições adquiridas e
motivações presentes”. É por isso que, segundo este autor, os processos descritos
por Piaget “já não podem aplicar-se às condições sociais, radicalmente diferentes
daquelas que as tinham gerado”. Devido à transformação das formas de produzir
e das formas sociais anteriores, o processo de socialização ter-se-ia
“transformado profundamente” e já não se enquadraria “nos pressupostos da
abordagem de Piaget”. Em particular, o processo de socialização teria tendência
a “envolver a totalidade da vida dos indivíduos”, pondo assim em causa “a ideia
da existência de um estádio terminal” e “a própria ideia de estádio”. A
abordagem de Piaget estaria assim historicamente ultrapassada e deveria ser
substituída por uma outra problemática.

A segunda, mais fecunda, consiste em conservar o “núcleo duro” da teoria


piagetiana, ou seja, a sua concepção da forma geral e dos mecanismos de base do
processo de socialização: descontínua, actuando por desequilíbrios e
reequilíbrios, implicando um duplo movimento de acomodação e de assimilação,
ligando estruturas lógicas e formas sociais de cooperação. Este processo deve
passar a ser concebido como permanente e mais complexo: permanente, porque
a socialização já não acaba com a entrada no mercado do trabalho (acabamento
do “adulto médio” segundo Piaget), mas prolonga-se durante toda a vida
segundo o mesmo mecanismo de base (equilibração); mais complexo, porque já
não se pode falar de “estádio terminal” e porque a noção de estádio deve, em
consequência disto, ser relativizada. Segundo o que parece, foi o que Piaget e os
seus colaboradores fizeram no último período levando em conta as mudanças
socioeconómicas: “os estádios da teoria piagetiana do desenvolvimento são…
períodos de estabilidade relativa… que comportam todo o tipo de flutuações que
nascem de situações mutáveis com as quais o indivíduo se confronta” (Piaget,
Garcia, 1987, p. 157). Na síntese consagrada aos adultos, G. Malglaive, ao
comentar este texto, acrescenta: “a referência aos estádios, sendo problemática
em relação à criança, torna-se enganadora ou até mesmo nefasta em relação ao
adulto” (Malglaive, 1990, p. 157). As conclusões de trabalhos recentes de
psicologia cognitiva reintroduzem “o mundo simbólico” como mediação
essencial entre as estruturas :, lógicas e as operações concretas, servindo-se,
nomeadamente, da noção de “Sistemas de Representação e de Tratamento”, de
J.-M. Hoc (1987). Estes trabalhos permitiram precisar melhor o funcionamento
das estruturas lógicas. Piaget e Garcia escrevem: “cada período ou cada estádio
têm problemas específicos que o sujeito é capaz de apreender… Em cada
período… o sujeito não utiliza uma única relação lógica mas várias. A linha de
construção de cada estrutura lógica segue um caminho complexo que lhe é
específico e as linhas do desenvolvimento não coincidem. Os estádios de
desenvolvimento não são determinados pelo desenvolvimento das relações
lógicas enquanto tais (6) (qual deveríamos privilegiar?). Dizer que determinadas
estruturas características são activadas em cada estádio não é, contudo, afirmar
que o estádio é definido por uma única estrutura lógica” (Piaget, Garcia, id., p.
158). A cronologia dos estádios torna-se, então, muito mais incerta: algumas
crianças — assim como alguns adultos — podem ter êxito em provas “formais”
e falhar em provas “concretas”; podem mobilizar estruturas formais em
determinadas situações (escolares, por exemplo) e estruturas concretas noutras
(situações de trabalho ou da vida quotidiana). Os exemplos não faltam e
mostram que um raciocínio abstracto desenvolvido por um aluno (“criança” ou
“adulto”) na aula não é transferível para uma situação extra-escolar. Pode estar-
se seguro e ter boas notas nas provas teóricas em electricidade e não conseguir
mobilizar os conhecimentos num problema prático de montagem eléctrica…

(6) Sublinhado dos autores.

O facto é que, na análise do desenvolvimento cognitivo, não podemos esquecer


as representações sociais através das quais os indivíduos atribuem um sentido às
suas situações de aprendizagem. Como afirma G. Vergnaud (M. R. T., 1989, pp.
54 e seguintes), “o que um sujeito aprende numa situação nova depende do que
faz nessa situação e da interpretação que lhe dá”. Referindo-se ao papel atribuído
por Piaget, nas suas últimas obras, à “tomada de consciência” (1974), o autor
clarifica as condições de aquisição de um esquema, isto é, dos invariantes
lógicos que permitem a generalização ou a transferência de uma competência de
uma situação para outra: “para que estes invariantes se tornem objectos, é
preciso que a linguagem e as outras formas simbólicas permitam designá-los e
identificá-los e, simultaneamente, que outros sujeitos (pares, formadores)
possam debater, com o sujeito em formação, a veracidade ou a falsidade dos
enunciados produzidos”.

A relação essencial que Piaget estabelece entre estruturas lógicas e formas


sociais é, portanto, sempre mediatizada por representações simbólicas e
nomeadamente pela linguagem que tem uma função essencial de “codificação
das situações vividas” (Bruner, 1983). Não é, pois, possível isolar a análise
“genética” do desenvolvimento cognitivo da análise “cultural” dos sistemas
simbólicos e das “representações” que servem para definir e interpretar as
situações vividas. O processo individual de socialização não se desenvolve num
vazio cultural: activa formas simbólicas e processos culturais. A abordagem
“restrita” da psicologia genética reenvia-nos para abordagens “gerais” que fazem
da socialização não só um aspecto do processo de desenvolvimento individual,
mas também a pedra angular de todo o funcionamento social.

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(*) O ano entre parêntesis corresponde geralmente à data da primeira edição das
obras.

A socialização na antropologia
e o funcionalismo

A psicologia genética esclarece alguns mecanismos fundamentais que tornam o


recém-nascido, egocêntrico e totalmente dependente, num adulto, membro
cooperativo e relativamente autónomo da “sociedade”. Mas esta abordagem da
socialização é “restrita”: é unicamente centrada no indivíduo-criança e ignora ou
minimiza as enormes variações que se podem observar nos “produtos” da
socialização segundo as épocas, os tipos de sociedades, os meios sociais, os
grupos ou as classes sociais. Descobrindo e analisando o funcionamento de
sociedades diferentes — designadas ainda, por vezes, de sociedades “primitivas”
—, os etnólogos e os antropólogos mostraram a diversidade das formas de
socialização. A acumulação de inquéritos, incidindo sobre as sociedades
“tradicionais”, mostra claramente que os adultos produzidos pelas diferentes
sociedades são tão diferentes quanto os procedimentos educativos que lhes eram
aplicados quando crianças e que estes procedimentos não podem ser reduzidos a
mecanismos universais (7). Como afirma C. Lefort, no prefácio da obra de
Kardiner, considerada como uma das obras fundadoras da antropologia cultural:
“a interpretação do desenvolvimento da criança está rigorosamente subordinada
aos resultados dos inquéritos realizados em diferentes sociedades” (Kardiner,
trad. 1969, p. 19). :,

(7) Desde a década de sessenta, os trabalhos de antropologia cognitiva


(Dougherty, 1985) e de psicologia transcultural (Warren, 1980) renovaram a
questão dos “universais cognitivos” e mostraram que comportamentos muito
diversos, ligados a formas bastante diferentes de aprendizagem, poderiam
remeter para os mesmos processos cognitivos elementares (categorização,
generalização, diferenciação, resolução de problemas…).

Poder-se-á no entanto, retirar da comparação destes inquéritos um modelo geral


do funcionamento da socialização? Veremos que essa foi uma das maiores
preocupações de alguns sociólogos teóricos das diversas correntes funcionalistas
das ciências sociais e que conduziu à construção de uma síntese tão ambiciosa
como frágil. Estes esforços de teorização produziram, apesar disso, categorias e
modelos de análise que servem, ainda hoje, para analisar factos da socialização.
Estes instrumentos permitem simultaneamente, compreender os limites de
qualquer teoria “geral” da socialização e discernir os problemas com que se deve
confrontar a sociologia empírica para fazer avançar o conhecimento dos
mecanismos concretos da produção social das personalidades.
2.1. Cultura e personalidade:

uma abordagem culturalista” da socialização

Ao apresentar e comparar três sociedades muito diferentes — os Pueblos do


Novo México, os Dobu da Nova Guiné oriental e os Kwakiutls da costa noroeste
da América —, Ruth Benedict concluía o seu estudo da seguinte forma: “a maior
parte das pessoas estão moldadas à sua cultura, devido à grande maleabilidade
da sua natureza original: elas são adaptáveis à forma modelizadora da sociedade
onde nasceram” (1935, trad. francesa, p. 336). Ela punha em evidência uma
oposição radical — que se tornou muito célebre entre a personalidade e a
organização dos índios Zuñi qualificada de apolínea porque “incrivelmente
doce”, baseada no equilíbrio e na sobriedade e que se exprimia através de um
“cerimonialismo interminável”, e a personalidade dos Kwakiutls qualificada
como dionisíaca porque movida pela rivalidade permanente dos indivíduos e dos
grupos, agitada por lutas, concorrências e destruições potlatchianas (8) e
manifestando-se por constantes “demonstrações de emoções”. R. Benedict
esclarecia, por outro lado, que nem todos os indivíduos se sentiam à vontade no
interior de cada uma destas sociedades e que só aqueles que ela designava por
“bafejados pela sorte” possuíam as “virtualidades que se aproximam dos
modelos de comportamento presentes na sua sociedade” (id., p. 337). Os outros
procuram escapar e só rara e dificilmente o conseguem. Assim, “cada tribo
possui os seus anormais que nela não participam” (id., p. 341), mas os modos de
expressão desses anormais e os seus destinos sociais variam igualmente de uma
sociedade para a outra: alguns, acusados de feitiçaria, tornam-se feiticeiros (um
deles até acaba a vida como governador de Zuñi), enquanto outros são
fisicamente eliminados; alguns passam a ser reconhecidos pelo novo papel que
assumem na sociedade (como alguns homens-mulheres de Zuñi), :, enquanto
outros falham e são rejeitados… (id., pp. 344-349). Para Ruth Benedict, o caso
destes indivíduos não é do domínio da psiquiatria mas a sua existência depende
do grau de tolerância da sociedade a que pertencem.

(8) O “potiatcht” dos índios da costa oeste da América do Norte consiste em


dádivas e contradádivas entre as famílias clãs e tribos num espírito fortemente
agonístico. Ele releva do “facto social total”, segundo Marcel Mauss que o
analisou longamente no Essai sur le don (Mauss, 1950). R. Benedict considera-o
igualmente uma característica da Cultura de Kwakiutis e Lévi-Strauss refere-se-
lhe, muitas vezes, ao longo da sua obra, para ligar estas práticas ao conjunto das
estruturas de trocas (de bens, de palavras, de mulheres…) desta sociedade (Lévi-
Strauss, 1958).

A este estudo pioneiro seguiram-se muitos outros, alguns dos quais tinham
pretensões mais teóricas. Todos eles se organizaram à volta de uma tese comum:
a personalidade dos indivíduos é o produto da cultura onde nasceram. Mais
precisamente, “as instituições com as quais o indivíduo está em contacto no
decurso da sua formação produzem nele um tipo de condicionamento que, a
longo prazo, acaba por criar um certo tipo de personalidade” (Lefort, 1969, p.
49). E esta posição, explicitada, matizada e ilustrada por Kardiner, que serve de
fio condutor à sua obra intitulada pertinentemente L’individu et sa société (1939)
e que começa por uma critica argumentada às teses de Freud sobre a
universalidade do complexo de Édipo. Retomando, a propósito das ilhas
Marquesas (cf. encaixe 2.1.), a ideia aceite, alguns anos antes, por Malinowski a
propósito das ilhas Trobriand (9), Kardiner constata que nestas sociedades, não
aparece nenhuma manifestação de um qualquer complexo edipiano porque não
existe nenhuma instituição susceptível de o engendrar. Mas o que é uma
instituição? É um “conjunto de esquemas de conduta, de modelos (pattern) de
comportamentos fixados pela repetição de acções individuais, uma formalização
do comportamento humano” (Lefort, p. 36). O conjunto destas instituições
constitui a cultura de uma sociedade que é também, segundo a célebre definição
de Linton, “a configuração geral dos comportamentos aprendidos e os seus
resultados, cujos elementos são adoptados e transmitidos pelos membros de uma
dada sociedade” (1945, p. 13).

(9) Foi, sem dúvida, Malinowski, graças às suas notáveis pesquisas sobre os
habitantes das ilhas Trobriand, quem, pela primeira vez, criticou empiricamente
a universalidade do complexo de édipo, formulado por Freud, enunciando,
simultaneamente, os princípios de uma abordagem “científica” funcional da
cultura (Malinowski, 1944). Mas, contrariamente a Kardiner e a Linton, ele não
atribuiu à socialização a importância que lhe deram, posteriormente, os teóricos
da antropologia cultural.

Aplicada ao recém-nascido e à criança, a instituição define-se, segundo


Kardiner, pelo conjunto das disciplinas de base que fornecem os modelos de
“gestão do corpo” da criança, ou seja, as respostas, extremamente variáveis de
acordo com as culturas, às questões que dizem respeito a) à amamentação e ao
alimento do bebé; b) às circunstâncias e modalidades do desmame; c) à relação
com a nudez, as roupas, as fraldas…; d) à relação com a limpeza, os
excrementos…; e) às atitudes para com a masturbação infantil, etc. É este
conjunto de “disciplinas orais, anais e sexuais” que Kardiner refere como
“instituições primárias” e que o antropólogo se deve esforçar por observar para
compreender as “experiências de base” a partir das quais o indivíduo incorpora
na sua personalidade a cultura do seu grupo social. Tal como Freud, Kardiner
atribui à primeira infância uma posição privilegiada na formação do Eu, que ele
define como sendo “a soma de todos os processos de adaptação subjectivamente
percepcionados” (1939, p. 90). Tal como Freud, Kardiner atribui uma
importância relevante aos mecanismos de frustração que permitem o “tratamento
social do instinto” e a formação das primeiras ligações sociais (por fixação, :,
introjecção, deslocamento e transferência de acordo com as categorias de Freud).
Mas em oposição a Freud, Kardiner não conclui sobre a existência de algum
mecanismo universal de construção do Eu, mas constata a existência de uma
variabilidade extrema das disciplinas de base que produzem “os traços comuns a
todas as personalidades numa dada sociedade” (id., p. 99).

Linton, que realizou um longo inquérito nas ilhas Marquesas (cf. encaixe 2.1.),
chega à conclusão de que não há “nenhuma ou poucas disciplinas de base”. O
recém-nascido não é confiado à mãe mas aos maridos secundários daquela, de
tal forma que “a criança cresce no meio de vários pais de entre os quais nenhum
reivindica prerrogativas nem exerce uma autoridade rígida, não existindo assim
uma inflação anormal da imagem parental”. A amamentação dura pouco tempo
(menos de quatro meses) porque “os habitantes das ilhas Marquesas acreditam
que ela torna a criança difícil de educar e menos submissa” e sobretudo, segundo
Linton, porque as mulheres têm um grande orgulho na firmeza e na beleza dos
seus seios” e estão “convencidas de que um amamento prolongado estraga os
seios”. A forma de alimentar é brutal: “deita-se o bebé no chão da casa enquanto
a mãe fica perto dele com uma mistura de leite de coco e de fruta com pão
cozido… ela pega numa mão cheia desta mistura e, mantendo firme o rosto da
criança, enfia-lhe a comida na boca”. Não se esforçam por obter um controlo
anal do bebé antes de ele perfazer um ano de idade: “o homem limita-se a mudar
o tecido de casca de árvore no qual a criança está deitada. Mais tarde, a criança é
levada em braços pelo homem para perto e posta em posição para fazer as suas
necessidades”. As crianças passam a maior parte do dia na água e aprendem a
nadar antes de aprender a andar. Estão nuas e nunca sozinhas mas são
constantemente vigiadas (embora sem muita preocupação, segundo o autor)
pelos maridos secundários. Se os adultos estão ocupados, deixa-se a criança
chorar. No caso de ela gritar e se tornar muito incómoda, “pode acontecer que
um adulto a acalme masturbando-a”. Aliás, prossegue Linton, “a masturbação
das meninas inicia-se muito cedo: logo que nascem, manipulam-se
sistematicamente os lábios para que estes cresçam e se tornem mais longos e,
pensava-se, mais bonitos” (Kardiner, id., pp. 226-227).

Encaixe 2.1.

Os habitantes das ilhas Marquesas segundo Linton (1920-1922)

Os habitantes das ilhas Marquesa constituem um povo da Polinésia que vive


numa ilha do Pacífico central a mais ou menos dez graus a sul do equador e que
são de uma extrema beleza física, sobretudo as mulheres. Foram os últimos
habitantes da Polinésia a serem cristianizados e resistiram muito tempo à
influência dos brancos, chegando mesmo a escorraçar os missionários. Quando
foram submetidos, reagiram não procriando… Ilhas montanhosas, cercadas por
falésias abruptas, as Marquesas são formadas por vales estreitos separados uns
dos outros por esporões rochosos. :,

De vez em quando, estas ilhas são vitimas de secas prolongadas e destruidoras


que originam péssimas colheitas e escassez de água. Estas secas. que se
prolongavam. por vezes, durante três anos, provocavam verdadeiras fomes, e
podiam reduzir a população a um terço, levando, por vezes, os indígenas a
praticar o canibalismo.

A propriedade agrícola apenas consta de árvores ou jardins dispersos pelos vales.


A terra é propriedade colectiva da tribo, administrada pelo chefe, mas as árvores
e as colheitas são propriedade individual. Em cada nascimento planta-se uma
árvore que será propriedade do recém-nascido. Apesar disso, a base da
alimentação é fornecida pela pesca que se organiza numa base comunitária com
a ajuda de redes gigantes colocadas entre os barcos. Antigamente, os habitantes
das ilhas Marquesas eram robustos canibais e, excepcionalmente, até as
mulheres tinham autorização para comer carne humana. Persiste um canibalismo
cerimonial destinado a incorporar as qualidades do indivíduo que se come (em
geral. de uma outra tribo) com preferência pelas crianças.

A instituição dos mestres-artesãos é uma marca saliente da cultura marquesiana.


O tuhunga (mestre-artesão), personagem importante, trabalha por encomenda e,
enquanto trabalha, é alimentado pelo cliente e entoa cânticos sagrados. Ninguém
o pode substituir porque ninguém sabe reproduzir a sua maneira de cantar. Deste
modo, ele pode acumular grandes riquezas e tornar-se uma personagem
poderosa. Em troca de uma retribuição, ele ensina a sua arte aos jovens que lhe
pedem.

O estatuto social é determinado pela primogenitura, independentemente do sexo.


Pratica-se, regularmente, a adopção. Através dos parentes que possuem em cada
geração a posição social mais elevada, os habitantes das ilhas Marquesas
estabelecem a sua genealogia (que, por vezes, recua até sessenta ou oitenta
gerações). Os casamentos são endogâmicos à tribo, verificando-se uma grande
mobilidade. Todas as profissões, excepto a de padre cerimonial — especializada
no domínio do além e sem poder económico —, estão abertas às mulheres, mas
as mais prestigiosas (tuhunga) são reservadas às filhas primogénitas. Há pouca
divisão do trabalho entre os sexos.

Entre os habitantes das ilhas Marquesas, há duas vezes e meia mais homens do
que mulheres. A causa deste fenómeno é desconhecida ou é escondida. Por isso,
o lar marquesiano é poliândrico. Há um marido principal e maridos secundários,
excepto nos lares mais pobres… Os lares mais abastados podem ter mais de
quatro homens para uma mulher e a casa do chefe tem onze ou doze homens
para três ou quatro mulheres. Todos os membros do grupo assim formado têm
direitos sexuais uns sobre os outros, constituindo-se assim uma espécie de
casamento de grupo…

Apesar de existirem poucas normas de disciplina entre os habitantes das ilhas


Marquesas (Linton notou que não existia qualquer punição para os delitos,
nomeadamente para o roubo de alimentos), existe, no entanto, o perigo constante
de infringir os tabus, o perigo :, imaginário dos papões (*vehini-hai*, espíritos-
papões que se acredita roubarem as criancinhas e comerem-nas), o perigo real
dos canibais (“se uma tribo inimiga atacassse uma criança perdida, esta seria,
certamente, comida ou sacrificada*). É por isso que, havendo pouca
aprendizagem organizada antes da puberdade (“a criança leva uma vida
totalmente livre”), se assiste, a partir dos 8 anos, à formação de bandos mistos
(mais rapazes do que raparigas, tendo em conta a demografia) que se organizam
para se protegerem dos perigos. As crianças podem ficar afastadas das suas
casas, dois ou três dias, vivendo da pesca e dos saques, dançando e cantando;
entregam-se a jogos sexuais, imitando os pais (mãe e maridos, principal e
secundários). “As raparigas são instruídas sobre os problemas sexuais desde a
mais tenra infância e ensinam-lhes a mexer as ancas e a tomar atitudes muito
enraizadas no comportamento sexual. A técnica erótica era desenvolvida até ao
extremo. Os dois sexos orgulhavam-se, com a mesma sinceridade, das suas
proezas neste domínio que discutiam sem pudor. Com excepção das crianças
pertencentes à mesma família, considerava-se como natural que qualquer
encontro entre jovens de sexos diferentes conduzisse ao acto sexual. As meninas
começavam as danças totalmente vestidas mas terminavam-nas completamente
nuas, produzindo os efeitos que se pode esperar desta situação.” (id., pp. 232-
233)

Entre a idade da puberdade e a do casamento, os jovens formam um grupo


conhecido pelo nome de Kaioi: vestem-se com roupas complicadas e passam
horas a pintar o corpo. Tornam-se os principais animadores da tribo, dançando e
cantando nas festas e cerimónias em troca de generosas recompensas. Só então
— talvez por volta dos 14-15 anos — começa o ensino: os padres ensinam-lhes
os cânticos e as genealogias. Raparigas e rapazes aprendem juntos sem regras
particulares mas, “durante o ensino da parte mais esotérica deste saber, mestre e
aluno são submetidos a tabus muito rígidos” (id., p. 230). É durante este período
que intervém a iniciação (10) que consistia na feitura de uma tatuagem
minuciosa que podia durar várias semanas e era obra de especialistas reputados;
as raparigas eram tatuadas individualmente e sem rito particular, excepto as
primogénitas do chefe. Os rapazes eram tatuados em grupos e, a seguir, tinham
direito a uma festa colectiva no decurso da qual as raparigas dançavam não nuas,
mas sim vestidas com saias totalmente entrançadas “que elas levantavam durante
o canto final para mostrar as partes genitais”. Este gesto “era sinal de que o fim
do período Kaioi tinha chegado e que era oportuno os jovens escolherem uma
parceira e estabelecerem-se”. Ao mesmo tempo, o rapaz começava a estudar
“para se tornar membro de uma qualquer profissão que tinha escolhido” (id., p.
230). :,

(10) Linton assinala que a iniciação não acaba com a cerimónia da tatuagem dos
jovens: “quando um homem chega aos 30 anos, sobretudo quando se tratava de
um grande guerreiro, ele submetia-se a uma nova operação de tatuagem
acompanhada de uma pintura do corpo todo”. Existe, portanto, uma relação
visível entre a cor dos corpos e o grau de socialização: os “velhos” eram
geralmente todos pintados de verde, o que permitia identificá-los muito
facilmente (Kardiner, op. cir., p. 232).

Percebe-se melhor a razão pela qual Kardiner responde negativamente à


pergunta: “Será que o complexo de édipo se manifesta de uma forma qualquer na
sociedade marquesiana?” (id., p. 297). O antropólogo não só não recolheu
“nenhum relato em que se vê o filho matar o pai e possuir a mãe”, mas, se
tivermos em conta a organização global da sociedade marquesiana e a natureza
particular das disciplinas de base a que são submetidos os seus membros,
compreendemos as razões desta ausência. Nas ilhas Marquesas, o rapaz nunca
tem ocasião de adoptar uma atitude de dependência referente à união com a mãe;
esta mostra-se cruel porque se sente frustrada. Se a dependência se exerce
fundamentalmente em relação ao pai e aos maridos secundários, a criança não
tem razão para os odiar porque estes não a maltratam nem a enganam.

A personalidade marquesiana é, consequentemente, muito diferente da dos


adultos ocidentais. Nas ilhas Marquesas pratica-se a poliândria e o casamento de
grupo e o ciúme é desconhecido, “salvo quando se bebe”. As mulheres
desempenham um papel importante na sexualidade, mas a sua potência sexual
“depende de preliminares complicados durante os quais lhes é impossível chegar
ao orgasmo… talvez por causa de um condicionamento precoce ao jogo
prolongado sem orgasmo”. Nunca se fala de impotência masculina pois esta é
muito rara. O habitante das ilhas Marquesas é “essencialmente um ser muito
educado”, de “modos doces” e com “uma reduzida capacidade de explorar
outrem”, sendo o seu único objecto de ódio a pessoa capaz de frustrar as suas
necessidades essenciais ou de o humilhar publicamente (o que pode conduzi-lo
ao suicídio). A mulher ocupa, “no folclore, uma posição muito próxima da do pai
na nossa cultura e é por isso que ela é a vítima habitual dos maus olhados”.

Em vários domínios, a socialização da criança marquesiana é diferente e mesmo


oposta à socialização actual da criança ocidental. As relações da criança
marquesiana com a sua mãe estão reduzidas ao mínimo e são os homens que se
encarregam de tratar dela; não há constrangimentos nem quanto à limpeza nem
quanto a roupas impostas; não existe nenhuma restrição sexual nem exigência de
obediência; não há escola nem aprendizagem obrigatória antes da puberdade,
mas sim uma grande liberdade colectiva no seio dos grupos de crianças; a sua
instrução só começa na altura da iniciação que a transforma num membro de
pleno direito da sociedade. Se se pode, com rigor, distinguir alguma fase ligada
tanto à maturação biológica quanto às instituições sociais (Linton só delimita
claramente o período que vai dos 8 anos à puberdade, o dos bandos das
crianças,), não se pode facilmente transferir para a sociedade marquesiana
qualquer um dos “estádios” construídos por Piaget. Através da observação e da
imitação, a criança marquesiana impregna-se progressivamente na “cultura” do
seu grupo; de seguida, e de uma maneira informal, experimenta-a em grupos que
reúnem crianças do mesmo nível etário (11): desencadeia-a, de uma maneira
formalizada, no seio do grupo Kaioi; por fim, faz-se reconhecer como membro
da sociedade pela imitação coincidindo com um curto período de instrução e
com o seu casamento. :,

(11) Esta socialização informal das crianças em grupos que reúnem rapazes e
raparigas do mesmo nível etário ocupa também um lugar essencial nas
sociedades africanas (Rabuin, 1979).

A hipótese da personalidade de base

Fundamentalmente a abordagem da antropologia cultural

consiste assim na descrição da formação das personalidades individuais


entendida como uma incorporação progressiva da cultura da sociedade de
pertença. Como afirma Linton: “a cultura é totalmente exterior ao indivíduo que
nasce, e torna-se parte integrante da sua personalidade na idade adulta” (1936, p.
322). “O que transforma um agregado de indivíduos numa sociedade ou num
grupo social não é apenas a sua organização, mas também e sobretudo o seu
espírito de corpo, isto é, a cultura feita corpo, no duplo sentido de interiorização
do corpo biológico, dos gestos, posturas, atitudes constitutivas da cultura do
grupo (“modos de fazer, de sentir, de pensar”), e de exteriorização dos seus
modos de estar em conjunto num “corpo de regras específicas” que constituem a
manifestação da “comunidade das ideias e dos valores”, bem como “a aptidão
para agir voluntariamente em grupo”” (Linton, id., pp. 114-116).

Mas a abordagem culturalista não se limita a esta descrição. Kardiner, depois da


apresentação, muitas vezes longa e minuciosa, das “culturas” que toma como
exemplo (para além da das ilhas Marquesas, a da Tanala de Madagascar é
igualmente descrita por Linton, tal como a de uma cidade média americana),
desenvolve um conjunto de análises com o intuito de reconstruir o que ele
designa por “estrutura da personalidade de base (Eu) do indivíduo, isto é, o
conjunto dos instrumentos de adaptação que um indivíduo partilha com todos os
outros numa dada sociedade” (Kardiner, 1939, p. 291). Esta noção — muitas
vezes traduzida pela simples fórmula “personalidade de base” e, por vezes,
transformada em “conceito sociológico” (Dufrenne, 1953) — não é simples de
compreender e deu lugar a interpretações diversificadas, por vezes caricaturais
(Dufrenne, id., p. 127). O próprio Kardiner criou várias definições diferentes,
entre as quais se encontra a que é mais utilizada na tradição sociológica:
“configuração psicológica particular comum aos membros de uma dada
sociedade e que se manifesta por um certo estilo de vida sobre o qual os
indivíduos constroem variantes singulares” (Kardiner, citado por Dufrenne, id.,
p. 128). Se se comparar esta definição tardia com a primeira, pode-se, se dar
conta de um “deslocamento” do cultural (instrumentos de adaptação que nos
reenviam para as instituições no sentido definido anteriormente) para o
psicológico (configuração que reenvia a tipos de personalidades descritos em
termos psicológicos). Na realidade, na sua primeira obra, Kardiner preocupava-
se em distinguir a noção de “personalidade de base” da de “carácter” concebido
como “conjunto de atitudes do eu, habituais e decorrentes do status social, do
sexo, etc.” (1939, p. 291). Dizer que um esquimó (um “eu”) se pode mostrar
teimoso e desconfiado é para Kardiner uma manifestação de carácter. Mas dizer
que a personalidade de base de um Esquimó (um “Eu”) difere da de um
habitante das ilhas Marquesas é mostrar que ela é o produto de instituições
diferentes, que ela integra modelos diferentes de comportamento, que ela
constitui um outro “quadro que contém todas as diferenças de carácter”. Por
outras palavras, é preciso distinguir o “Eu” (personalidade de base) abstracto,
reconstruído pelo investigador a partir da configuração das instituições
primárias, :, dos “eus” (carácteres individuais) concretos que constituem modos
singulares e únicos de viver as mesmas instituições e de recorrer aos mesmos
modelos.

Pretender que, em cada sociedade, existe uma “estrutura da personalidade de


base” dos indivíduos é propor uma hipótese ousada: a de que existe uma
coerência entre todos os modelos de comportamento, um núcleo duro
assegurando a unidade das instituições primárias, uma “unidade cultural”
susceptível de ser reconstruída de forma convincente, recorrendo a algumas
propriedades do sistema (o que Linton designa por “núcleo psicológico”).

Na sua descrição, Linton distingue três características essenciais do “núcleo


psicológico da cultura das ilhas Marquesas (Kardiner. 1939, pp. 256-957):

— a angústia provocada pela falta de alimentação baseia-se na hipótese de que


“inúmeras instituições foram, inicialmente, meios para a evitar, apesar de,
actualmente, terem uma outra utilidade”. Por exemplo, para Linton a
antropofagia, a ausência de punição para o roubo, a relação dos adultos com a
alimentação da criança fazem parte das instituições segregadas por esta
“angústia primordial”:

— a desigualdade numérica dos sexos (cuja causa real se ignora) está ligada à
hipótese de a organização dos habitantes das ilhas Marquesas constituir uma
adaptação a este facto considerado primordial: a poliândria, a importância dada à
paternidade, o afastamento do ciúme, que permite preservar os principais
interesses do grupo”, a posição dominante da mulher na sexualidade e também o
seu “descrédito no folclore” (papão “comedor de homens”) são, entre outras,
considerados por Linton como instituições primárias decorrentes desta segunda
característica fundamental do “núcleo psicológico marquesiano”;

— a natureza das disciplinas de base e, nomeadamente, a quase ausência de


proibições constituem a terceira marca significativa deste “núcleo”. Ela
corresponde à hipótese clássica da determinação do Eu pelas experiências de
base da primeira infância e nomeadamente pelo modo de gestão dos corpos e das
reacções iniciais às frustrações.

Será que estas três características essenciais permitem definir a estrutura do Eu


marquesiano? Manifestamente não, dado que Kardiner, na sua síntese final,
acrescenta três dimensões às instituições de base produtoras da estrutura do Eu:
as relações entre os sexos (que não considera como simples efeito da relação
demográfica homens/mulheres); a mobilidade social (e nomeadamente a
primogenitura que desempenha um papel essencial na circulação dos poderes); o
regime de propriedade que determina, segundo Kardiner, a ausência de qualquer
outra ansiedade que não seja a da alimentação… A indeterminação no que diz
respeito à composição do “núcleo” da cultura (12) e a imprecisão referente às
relações entre os elementos deste “núcleo” (instituições primárias) não são tidas
em conta :,

(12) Um autor tentou teorizar e generalizar o modelo de Kardiner propondo


cinco dimensões fundamentais e estruturantes das instituições primárias e,
portanto, o “núcleo cultural de uma personalidade”: “a ecologia, o sistema de
manutenção, as práticas educativas, as variáveis de personalidade e os sistemas
projectivos” (Whiting, 1961

pp. 355 e seguintes).

nesta síntese de Kardiner. Recusando-se a privilegiar uma característica


particular através da qual todas as outras ganhariam uma significação (não se
vislumbra, aliás, qual delas se dvee privilegiar…), não podendo justificar o
número e a natureza das instituições de base necessárias para reconstruir a
estrutura de base (as três de Linton ou as seis da sua síntese ou outras ainda…),
Kardiner tenta basear a sua demonstração na distinção entre as instituições
primárias que produzem a estrutura do Eu e as instituições secundárias
produzidas pela estrutura do Eu. O autor espera validar a sua escolha das
propriedades essenciais da cultura mostrando empiricamente que a configuração
das instituições primárias permite, através da estrutura do Eu, dar conta da
globalidade das instituições secundárias (as que dizem essencialmente respeito
às crenças e às representações por um lado e às práticas simbólicas por outro).
Mas, ao fazê-lo, ele assume o risco do arbítrio: qualquer pessoa poderá
seleccionar as características culturais que lhe parecem mais determinantes em
função dos seus pressupostos. Basta ler atentamente o quadro de Kardiner (id., p.
301) para verificar que inúmeras instituições secundárias poderiam ser
consideradas como primárias e vice-versa. Há manifestamente uma
“circularidade entre os diversos elementos institucionais” que torna “frágil”
qualquer tentativa de introduzir nelas uma causalidade convincente (Lefort, id.,
p. 38).

A socialização na abordagem culturalista

Será que a socialização, considerada como o “processo que comanda a formação


e o equilíbrio da personalidade”, pode ser decomposta num conjunto de
mecanismos gerais que asseguram a incorporação da cultura nas personalidades
individuais dos membros de uma sociedade? Será que se pode sustentar a
hipótese da existência de uma estrutura comum a todas estas personalidades que
partilham a mesma cultura? Em caso afirmativo, em que condições?

Linton tentou elaborar categorias aplicáveis às sociedades modernas. Resume o


contributo essencial da perspectiva culturalista numa fórmula geral: “as
sociedades são constituídas de tal forma que só podem exprimir a sua cultura por
intermédio dos indivíduos que a compõem e só podem perpetuá-la pela
preparação destes indivíduos” (1936, p. 301). Mas, contrariamente às sociedades
tradicionais que possuem uma forte unidade cultural, as sociedades modernas
são definidas por ele como “agregados de subculturas e de elementos gerais que
resultam da sua interacção”. Distingue ainda quatro tipos de características
culturais que intervêm na modelação das personalidades individuais (1936, pp.
304-305):

— as características gerais (“núcleo da cultura de uma sociedade”) que são


comuns a todos os membros: a linguagem, os valores de base, os modelos
essenciais de relações sociais, os costumes comuns…;

— as características especializadas, comuns a certas categorias socialmente


reconhecidas que partilham o mesmo status social: os sexos, os níveis etários, as
classes sociais, os grupos profissionais…; :,

— as características alternativas que relevam das opções de reacção perante as


mesmas situações…;

— as particularidades individuais que dizem respeito às escolhas pessoais e que


são essenciais aos processos de inovação cultural…

Linton esquematiza também em linhas gerais a dinâmica das sociedades


modernas:

— o número de características culturais que formam o “núcleo da cultura de uma


sociedade” tem tendência a diminuir com a complexificação social;

— quando a importância do “núcleo” se torna demasiado restrita, a cultura tende


a tornar-se num “leque de opções”, e já não propõe um modelo de vida coerente
a todos os indivíduos de uma mesma sociedade global: corre-se então um risco
de “desintegração cultural”;

— este risco pode ser evitado pela emergência de um novo tipo de cultura
proveniente da “necessidade de um conjunto de ideias e de valores mutuamente
compatíveis aos quais todos os membros possam aderir para justificar a sua
pertença comum”. Esta emergência implica a reconstituição de um novo núcleo
cultural a partir de uma reorganização de elementos antigos e novos provenientes
de inovadores culturais; pressupõe, simultaneamente, a reconstituição de uma
nova estrutura do Eu (personalidade de base) assegurada através de uma
socialização comum.

Linton — como Kardiner e todos os antropólogos culturalistas — acredita na


possibilidade e na necessidade de reconstituição de culturas comuns a todos os
membros de uma mesma sociedade. Para isso, baseia-se na convicção de que
existe “uma série de experiências subculturais de base presentes em todas as
sociedades se bem que com frequências variáveis” (id., p. 511). Na sua opinião,
estas experiências de base reflectem “elementos psicológicos subjacentes… que
se mantêm escondidos” (id., p. 333). Elas ligam-se, finalmente, à primordial
necessidade do indivíduo de ter uma pertença social estável: “cada indivíduo
considera os modelos da sua própria subcultura como guias do seu
comportamento e raramente tenta imitar os modelos de outras subculturas
mesmo quando os conhece bem” (id., pp. 305-306).
É por isso que a socialização da criança é essencialmente analisada como
processo de incorporação progressiva de tratados gerais característicos da cultura
do grupo de origem, aquele que é suposto definir a sua pertença social de base.
Mesmo se a socialização do indivíduo é também a aquisição das características
particulares dos seus futuros grupos estatutários e preparação para as opções e
escolhas dos seus elementos culturais singulares, ela é fundamentalmente
concebida como um treino (*training*) para assimilar os elementos de base da
cultura de pertença, aquela que melhor corresponde às “experiências de base”,
incorporadas ao longo da primeira infância. Esta fidelidade às raízes constitui,
finalmente, uma condição essencial da manutenção e da transmissão entre as
gerações dos núcleos culturais específicos a cada sociedade. É por isso que
qualquer teoria global das :, sociedades se confronta com a questão da
reprodução cultural. Como imaginar que uma sociedade possa ser mantida se os
seus membros não aderem ao núcleo cultural comum que transmitem à geração
seguinte? Mas como pensar esta transmissão quando cada geração pretende
construir a sua própria cultura? Como conciliar esta exigência de reprodução
com a dinâmica cultural das sociedades modernas? É, em grande parte, para
responder a estas questões que os teóricos funcionalistas tiveram que construir
concepções da socialização que permitissem simultaneamente dar conta da
reprodução dos “núcleos culturais” e ter em conta as mudanças das
“personalidades individuais” (entre as gerações e no decorrer de uma vida).

2.2. A “teoria suprema” da socialização: Parsons e o sistema liga

Entre as tentativas funcionalistas (13) de construção de uma teoria “geral” (e não


“restrita” no sentido que lhe demos no capítulo I) da socialização, incluída na
Teoria Geral da Sociedade. a de Talcott Parsons é triplamente interessante. Em
primeiro lugar, porque aparece totalmente “fechada”, isto é, logicamente acabada
numa espécie de axiomática geral das ciências humanas. Em segundo lugar,
porque utiliza elementos de inúmeros autores cujos contributos pretende
sintetizar: tanto Freud, como DurkLeim, Weber Pareto… Finalmente, porque foi
a partir da sua crítica que se desenvolveram as novas abordagens mais
operatórias da socialização..

(13) Para uma apresentação global e uma síntese crítica das diferentes correntes
funcionalistas, podemos consultar o capítulo que G. Rocher lhes consagra na sua
obra Introduction à la sociologie générale (1968, t. 2, pp. 160-176) assim como
o artigo de Merton publicado em Éléments de méthode et de théorie socialogique
(1965, trad. francesa, pp. 65-139).
A teoria da acção segundo Parsons

O ponto de partida da teoria de Parsons é a análise da acção humana partindo de


uma divisão de um acto elementar em quatro elementos essenciais: “a acção
pressupõe um actor, uma situação parcialmente controlada por ele, uma
combinação de fins e de meios submetidos às escolhas do actor por critérios
normativos” (Bourricaud, 1977, p. 32). O conjunto dos meios e dos fins é, por
vezes, chamado objecto por Parsons que reutiliza um termo essencial de Freud:
este termo permite-lhe definir a acção humana como uma relação objectal, ou
seja, como um comportamento orientado para fins e tendo uma significação para
o actor. Ele inscreve-se, por isso, também no prolongamento de Max Weber que
faz da sociologia a ciência da acção social definida como uma conduta que “tem
uma significação subjectiva”, isto é, como uma conduta, “pelo menos
parcialmente, orientada para o comportamento de outrem” (1920, p. 5). :,

Parsons (1937) conceptualiza a acção humana através das quatro proposições


seguintes:

— é orientada para objectivos (*goals*) que implicam antecipações da parte do


actor;

— desenvolve-se em situações estruturadas por recursos;

— é regulada por normas que guiam a relação do actor com os meios;

— implica uma motivação, um gasto de energia que se aplica à relação do actor


com o objectivo que ele persegue.

O que interessa a Parsons é construir uma teoria geral que integre todos os
elementos da acção humana e dê conta das suas singularidades e variações.
Partindo do acto individual, ele depara-se, em primeiro lugar, com a interacção,
dado que qualquer acção humana pressupõe, de qualquer forma, uma relação
com o outro. Ora, a interacção só é possível segundo Parsons, quando “uma
norma comum se impõe simultaneamente aos dois actores”. Só se pode
comunicar (tendo em conta o que Parsons chama de “dupla contingência”) se se
possuir um código comum mínimo (eventualmente uma linguagem gestual
interpretada da mesma forma por todos…). Esta norma comum, de acordo com
Parsons, só pode derivar de uma cultura partilhada que implique “um sistema de
valores que subentenda as normas que orientam os actores” (1937, p. 15).
Mas o acto individual persegue igualmente os objectivos. Para poderem ser
alcançados, estes objectivos implicam motivações que nos reenviam para as
necessidades do organismo. Pressupondo a existência de uma cultura comum aos
actores, a acção humana não é apenas interacção, é também satisfação de uma
necessidade que pressupõe, também ela, a existência de um corpo que lhe
fornece a energia necessária para se realizar.

Numa síntese tardia Parsons decompõe (1996, capítulo 2) o sistema da acção em


quatro subsistemas funcionalmente interligados:

— o subsistema biológico, o do organismo neuropsicológico, que se define pelas


suas necessidades e fornece a energia da acção;

— o subsistema psíquico, o da personalidade, que se define pelas suas


motivações que dão conta dos objectivos da acção;

— o subsistema social, o da interacção dos actores, que impõe normas à acção;

— o subsistema cultural, o dos sistemas simbólicos, que envolve valores (mas


também conhecimentos e ideologias…) e que permite encontrar a informação
necessária à acção.

Parsons pode desta forma definir a acção como uma “estrutura de


interdependência baseada na hierarquização sucessiva dos mecanismos de
controlo da acção”. Estes mecanismos podem, com efeito, ser pensados em torno
de um modelo cibernético, definido sucintamente como o estudo comparado dos
sistemas informáticos e o sistema nervoso humano. Nesta comparação intervêm
três conceitos essenciais: a informação, a energia e a regulação que aqui se
define como um “controlo que consiste na comparação dos resulta :, dos obtidos
com as previsões e, em caso de desvio, no desenvolvimento de operações
correctivas (Couttignal, 1966, p. 118). É em torno deste “modelo” da cibernética
— hoje já ultrapassado — que Parsons constrói o seu Sistema da Acção como
uma integração dos seus quatro subsistemas possuindo cada um deles
mecanismos de regulação (controlo)

“ciberneticamente hierarquizados”: quanto mais um subsistema controlar os


outros, tanto mais rico ele é em informação; quanto mais um subsistema é
controlado pelos outros, tanto mais rico em energia ele é (Rocher, 1968, pp. 209
e seguintes). Assim, a cultura controla o sistema social que controla a
personalidade que, por sua vez, controla o organismo.
A socialização: o sistema LIGA

Entre a definição analítica da acção produzida nas primeiras obras de Parsons (


1937) e a síntese dos quatro subsistemas do Sistema Geral da Acção apresentada
em obras tardias (1966), aparece uma teoria da socialização elaborada em
colaboração com Bales (1955) e baseada numa concepção inteiramente
funcional do sistema social. O sistema social constrói-se, com efeito a partir de
quatro imperativos funcionais definidos da forma seguinte:

— a função de estabilidade normativa (por vezes, designada pela letra L como


latência”) significa que o sistema social deve assegurar a manutenção e a
estabilidade dos valores e das normas de tal modo que estes sejam conhecidos
dos actores e interiorizados por eles;

— a função de integração (*I* como “integração”) significa que o sistema social


deve assegurar a coordenação necessária entre os actores, membros do sistema;

— a função de “persecução dos objectivos” (*G* como “goal-attainment”)


significa que o sistema social deve permitir a definição e a realização dos
objectivos da acção;

— a função de adaptação (*A* como “adaptação”) deve assegurar a adequação


dos meios aos objectivos perseguidos e, portanto, uma adaptação eficaz ao meio
ambiente.

Pode-se facilmente estabelecer uma correspondência entre estas quatro funções


do sistema social e os quatro subsistemas da acção:

— a estabilidade normativa (“pattern-maintenance”) assegura a articulação do


sistema social com o sistema cultural, garantindo assim a ligação entre os
valores culturais e as normas que regulam a acção;

— a integração assegura a coesão interna do sistema social, garantindo a eficácia


colectiva das normas;

— a persecução dos objectivos assegura a articulação do sistema social com o


sistema das personalidades, garantindo a compatibilidade entre os objectivos da
acção e as normas e valores legítimos da sociedade;

— a adaptação assegura a articulação do sistema social com o organismo,


controlando a adequação dos meios aos objectivos da acção. :,

É o processo de socialização, pelo qual qualquer indivíduo se torna portador do


seu sistema social, que assegura a interiorização (*internalization*) na
personalidade destes quatro imperativos funcionais integrados, designados,
muitas vezes, por “sistema LIGA”. A análise pormenorizada que Parsons (1955)
faz deste sistema apoia-se em duas fontes essenciais: as aquisições da psicanálise
de Freud e os resultados das investigações sobre o funcionamento da interacção
em pequenos grupos (R.-F. Bales, especialista destas investigações, é também
co-autor da obra de referência). Essa análise organiza-se em torno das fases
essenciais do desenvolvimento da personalidade segundo Freud, reinterpretando-
as como momentos de um processo “de interiorização de objectos através das
interacções que constituem um sistema de relações sociais” (1955, p. 40),
assegurando o estabelecimento de um controlo social da aprendizagem
(*learning-social control*).

A primeira fase, que se segue ao “traumatismo” do nascimento, organiza-se em


torno da identificação primária do bebé à mãe com quem estabelece uma relação
de dependência oral (a1) sobre o modo da posse (a mãe é “aquela que queríamos
ter”). Esta fusão original cria uma identidade mãe-filho (*mather-child identity*)
que é designada de “protossocial”, já que o bebé não está ainda socializado. Com
efeito, a atitude predominante da mãe é a permissividade (b1) que permite ao
bebé exprimir as suas necessidades vitais e “interiorizar a mãe como um
objecto” (id., p. 65). Parsons insiste no poder da mãe, primeiro agente
socializador: é dela que depende o aparecimento desta primeira identificação,
isto é, de que depende a generalização do seu universo a outros objectos. A boca
é “o veículo desta generalização” (id., p. 66) e é a atitude da mãe que permite o
prolongamento dos investimentos do bebé sobre novos objectos. É ela também
que permitirá deste modo o desencadear da primeira função do processo de
socialização: o estabelecimento de novas especificidades do objectivo (G), de
novas relações de objecto. Mas o seu papel não acaba aqui. Parsons e os seus
colegas, verificando, tal como Freud, que “o superego da criança não se forma à
imagem dos pais mas à imagem do superego destes” (Freud, 1920, trad. 1981),
define a identificação primária como “o primeiro reconhecimento das normas e
dos valores como indicadores (*standard*) que balizam o campo da acção”
(1955, p. 63). A mãe, mas também o pai e eventualmente os familiares mais
chegados, através das suas atitudes, vão permitir ao pequenino fazer a primeira
aprendizagem dos “padrões” da acção, exprimindo-lhe o que pensam que é
permitido ou proibido fazer, em função do seu próprio superego, que não é mais
do que a interiorização das normas e dos valores da cultura. Efectua-se, deste
modo, a primeira função da socialização: a estabilidade normativa (L) não por
puro condicionamento, mas pela modelação de atitudes na sequência das sanções
que constituem as respostas dos primeiros socializadores às investidas da
criança. Nesta interacção, a criança aprende as primeiras normas entendendo-as
como respostas a esta passagem da permissividade às primeiras proibições.

A fase anal constitui uma transição essencial entre a dependência oral e a ligação
amorosa (a2). Ela acompanha, no bebé, a primeira diferenciação de si como
objecto por oposição à mãe (e já não em fusão com ela), graças às frustrações
resultantes das proibições :, anteriores. Ao encorajar, sob formas diversas, o
controlo esfincteriano (segundo Parsons, protótipo simbólico do controlo de si),
a mãe permite também que a criança desempenhe o seu primeiro papel
autónomo em interacção com ela: ao dar prazer à mãe, a criança “não só se sente
amada como ama muito”, (id., p. 43). Ela pode. assim, interiorizar activamente
um conjunto de valores essenciais da cultura do grupo social e preparar-se para
enfrentar a primeira grande crise do desenvolvimento, graças ao suporte (b2) que
constitui esta primeira autonomia em relação à mãe.

A crise edipiana, ao ser acompanhada pela descoberta de que é preciso “partilhar


a mãe com este intimo estranho, o pai”, provoca “a primeira expansão do
universo social” assim como a “diferenciação da identidade de sexo“. Esta
autêntica revolução no desenvolvimento dá-se através do que os autores chamam
“a cisão binária”, isto é, a passagem de um sistema a dois para um sistema a
quatro, resultante de um primeiro desdobramento das atitudes (id., p. 79). Esta
cisão permite a diferenciação de sexo no universo familiar: 1. a criança dotada
das suas primeiras normas (aquilo que é permitido ou proibido ao eu, menino ou
menina) encontra-se agora perante três colectivos distintos; 2. os pais (fonte de
aprovação e de reforço das normas); 3. o “nós” das pessoas do mesmo sexo (o
papa e eu rapaz; a mamã e eu rapariga mais, eventualmente, os irmãos e as
irmãs, que são fonte de conformidade sexuada); 4. o nós familiar que constitui o
primeiro objecto colectivo interiorizado pela criança enquanto tal (e não como
relação do eu com os outros). Esta “interiorização da colectividade familiar
enquanto objecto assim como os seus valores” é considerada crucial por Parsons.
Já não se trata de uma fusão como na “crise oral”, mas sim de uma identificação
colectiva que permite a realização da função de integração social (I) na base da
partilha de normas e valores comuns. Esta identificação é acompanhada por uma
“diferenciação sexuada do universo social”, já que, agora, o mundo se divide
entre “os que têm um dos sexos e os que não têm esse sexo” (id., p. 80). Parsons
não retoma a tese tão célebre quanto controversa de Freud sobre “o desejo do
pénis”, constitutiva da identidade feminina. Defende a ideia de que a
identificação com um papel sexual (*sex-role identification*) que acompanha a
interiorização da colectividade familiar constitui um mecanismo essencial que
assegura, em simultâneo, a integração de um indivíduo no sistema social e a sua
adaptação antecipada à divisão sexuada dos papéis sociais. Ao socializar-se na
família (ou “grupo primário”), a criança define-se, concomitantemente, como um
ser sexuado que tem de obedecer a normas específicas.

A resolução da crise edipiana permite à criança iniciar a fase de latência (a3) e


consolidar o sistema dos quatro papéis familiares (pai/mãe/menino/menina) na
sua personalidade social. A criança poderá assim sair da esfera interna da família
para experimentar um primeiro sistema social global (*latency-child society*)
constituído pela trilogia “família, escola, grupo dos pares” (id., p. 52). Esta
experiência é acompanhada pela passagem de categorias particulares (os papéis
familiares) a uma “categorização universalista” (p. 122), a qual permite a adesão
a regras gerais e imparciais (cf. Piaget que Parsons invoca para reforçar a sua
análise) e pela interiorização de novos papéis sociais já não baseados em :,

gratificações imediatas, mas naquilo que os autores chamam “denegações de


reciprocidade” (b3). A criança deverá passar a ser, ao mesmo tempo, um filho ou
uma filha na família, um aluno-aluna na sua turma e um/uma colega no grupo
etário e tudo isto sem esperar recompensas particulares, para além das que
resultam de estar em continuidade com as expectativas dos “agentes
socializadores”. Parsons insiste mais uma vez na importância dos papéis
assumidos pelos “agentes socializadores” no estabelecimento desta nova função
de “persecução dos objectivos” (G) que caracteriza esta nova fase. Aprender os
ofícios de aluno-aluna, de filho-filha e de bom/boa colega não pode fazer-se sem
uma colaboração mínima dos professores, dos pais e dos “grandes” (o irmão
mais velho, a irmã mais velha, etc.), sem a partilha das mesmas normas (função
L) e sem a integração no mesmo sistema social (função 1). A teoria parsoniana
integra tudo isto.

O momento da segunda grande crise que constitui a adolescência é marcante na


socialização do indivíduo. Trata-se, agora. de “abandonar a família de
orientação” para ser reconhecido como membro adulto de um grupo de pertença
de tipo “universalista” e já não “particularista” como era a fami1ia de origem.
Para o jovem, trata-se de entrar em novos campos de interacção (casamento,
profissão…) aprendendo novos papéis que implicam o reconhecimento social da
sua maturidade (a4). Este reconhecimento pressupõe um novo relacionamento
com as regras sociais que permitem a “manipulação das sanções” (b4), ou seja,
uma capacidade de se adaptar a um novo universo institucional adaptando as
regras às motivações, a partir daqui conscientes e reconhecidas como legítimas.
Trata-se, de certa forma, de reconstruir uma adaptação (A) voluntária graças às
aquisições interiorizadas nas suas socializações anteriores. A superação da crise
da adolescência e a adaptação social à idade adulta dependem do sucesso
daquela reconstrução.

Esquema 2.1.

O sistema LIGA e a socialização segundo Parsons

:::::::

A: Adaptação

a4: maturidade (8-16 object systems)

b4: manipulação das sanções

G: Persecução dos objectivos

a3: latência (4-8 object-family role systems)

b3: denegação da reciprocidade

Adolescência (c4)

Crise oral (cl)

a1: dependência oral (mother-child identity)

b1: permissividade

L: Estabilidade normativa

Fase edipiana (c3)

a2: ligação amorosa (parent-self object differentiation)


b2: apoio anal 2)

I: Integração

Fase anal (c2)

Fonte: Parsons 1955, p. 41

a: fases da socialização

b: mecanismos específicos

c: fases e crises :,

::::::

O esquema 2.1 . retirado de Parsons ( 1955, p. 41 ) faz coincidir as quatro fases


“biográficas” da socialização dos indivíduos com as quatro funções estruturais”
da socialização concebida como processo social. Esta correspondência é
inteiramente justificada pela apresentação precedente. Ela implica, de facto, que
as funções mais decisivas da socialização (a interiorização das normas e dos
valores e a integração social) sejam também aquelas que são realizadas mais
cedo e que a personalidade social esteja já constituída, desde a primeira infância,
pela assimilação das grandes “formas de orientação” da fami1ia de origem (os
célebres “pattern-variebles” que não foram abordados aqui, mas que estão
presentes e discutidos em todas os livros franceses consagrados à obra de
Parsons). Apesar de não ser a única leitura possível da síntese dedicada
especificamente à socialização ( 1955) que contém desenvolvimentos
importantes referentes à ambivalência e ao desvio como “desregramentos da
interacção e fontes de mudança social” (Bourricaud, p. 144), esta apresentação
não está, no entanto, em contradição com a teoria geral parsoniana, ironicamente
chamada por W. Mills (trad. 1967) de “Teoria Suprema”. Efectivamente, ela
assenta na ideia de que o processo de socialização deve normalmente conduzir à
adaptação das personalidades individuais ao sistema social tal como funciona
nas estruturas mais profundas, ou seja, nas estruturas que exprimem o sistema
simbólico e cultural existente. A conformidade precoce dos indivíduos às normas
e aos valores é assegurada pelos agentes socializadores que também foram
socializados neste sistema e que se encontram legitimados para garantir o seu
papel socializador. Quanto mais cedo esta conformidade intervém na existência,
mais ela se integra precocemente na personalidade em formação e mais
possibilidades ela tem de conduzir com sucesso a uma adaptação. É este
“esquema culturalista” que Parsons partilha com os teóricos da antropologia
cultural (14) e que completado com uma metáfora cibernética lhe permite
transpô-lo para as sociedades modernas e, antes de mais, para a sociedade
americana onde o conformismo representava, pelo menos na época, uma norma
essencial. O “sistema social”, de acordo com Parsons, representa, deste ponto de
vista, o complemento indispensável à “cultura” dos antropólogos e permite a
generalização do modelo “culturalista” da socialização para as sociedades
contemporâneas (Rocher, 1972). Esta generalização tornar-se-á objecto de
múltiplas e contundentes críticas que levarão a pôr em causa a própria
pertinência do ponto de vista funcionalista que orientou a sua efectivação. :,

(14) Parsons desenvolve longamente a questão da generalização do seu esquema


a culturas tradicionais regidas por outras estruturas de parentesco. Considera a
sua teoria como susceptível de ser generalizada, com a condição de distinguir os
tipos de papéis (*role-patterns*) da sua aplicação especifica a uma dada cultura.
Ao defender a tese da universalidade das quatro funções e dos quatro papéis de
base no “grupo primário” (papéis de pai, mãe, filho e filha), considera como
equivalentes funcionais as diversas formas e combinações assumidas por estes
papéis nas diversas culturas (1955, pp. 106 e seguintes).

2.3. Críticas do funcionalismo:

da hipersocialização à socialização antecipatória

A querela da hipersocialização

Num artigo acutilante, o sociólogo Dennis Wrong (1961) acusa Parsons de fazer
da “sociedade dos homens” uma realidade que não é “muito diferente da
sociedade das abelhas” com a única reserva de que “o resultado atingido neste
caso pelo instinto é no outro caso atingido por outros caminhos”. Ao qualificar a
teoria de Parsons como uma “concepção hipersocializada do homem”, Wrong
denuncia a redução da socialização por Parsons a um “puro e simples treino”,
eliminando assim a questão central colocada desde o século XVIII por Hobbes:
“Como é possível haver uma coesão social numa sociedade sempre ameaçada
pela guerra de uns contra os outros?”.

Esta querela do indivíduo hipersocializado provocou o protesto de Parsons que


redefine a socialização como “sistema de relações dinâmicas” destinado a
resolver aquilo que ele chama de “paradoxo do social” e que ele enuncia deste
modo: “as sociedades humanas são compostas por indivíduos autónomos” e, no
entanto, “não são puros agregados de indivíduos”. Em sua opinião, a sua teoria
da socialização dá conta das condições onde o indivíduo pode ser “obrigado,
induzido, constrangido ou motivado para participar na vida social”. Ele insiste
na importância da passagem da socialização primária marcada pela dependência
e considerada como “hierárquica e naturalista” para a socialização secundária
submetida às interacções e concebida como “igualitária e artificialista”. A
passagem de uma para a outra marca uma ruptura na “conquista da autonomia”,
assegurando ao mesmo tempo a continuidade necessária à manutenção das
normas e dos valores da geração precedente. Porque, como diz Parsons,
“socializar um indivíduo é torná-lo semelhante aos outros membros do grupo e
particularmente aos seus pais”. É isto que assegura, em sua opinião, a
identificação que permite à criança ser “semelhante sem ser idêntica”
(Bourricaud, 1977, p. 192).

Esta querela da hipersocialização incide sobre um aspecto essencial: serão as


eventuais identificações da primeira infancia decisivas quanto às identidades
futuras do indivíduo? Serão estas identificações necessárias à estruturação da
personalidade da criança? Será que elas assegurarão a continuidade das normas e
dos valores entre as gerações? Como verificar empiricamente a relação entre
estas identificações e os comportamentos ou as representações da idade adulta?
Não estaremos nós diante de um postulado inverificável e demasiado arbitrário,
resultante do impacto da psicanálise no conjunto das ciências humanas? Isto
parece ser um dos pontos fulcrais desta querela. A relação de Parsons com a
psicanálise merece ser esclarecida. Lembramos que ele tinha iniciado estudos de
biologia com a intenção de empreender uma carreira médica, mas, convertido às
ciências sociais por um dos seus professores, interrompeu-os dando início a
novos estudos em economia e sociologia — nomeadamente na Escola de
Economia em Londres — e começou a :, ensinar em 1927 no departamento de
Economia de Harvard onde publicou, em 1937, a sua obra mais marcante The
Structure of Social Action, o que lhe provocou, aliás, um atraso considerável na
sua carreira institucional em Harvard (15). No início dos anos quarenta,

(15) Parece que Parsons teve de suportar reacções hostis em Harvard pelo facto
de criticar vigorosamente P. Sorokin, titular da cadeira de Sociologia. Parece
também haver uma relação entre esta rejeição relativa e o envolvimento de
Parsons na análise da prática médica no hospital de Boston. Agradeço a Béatrice
Appay por me ter feito descobrir estes aspectos importantes da biografia do mais
impressionante dos teóricos da sociologia do século XX (Appay. 1989). Cf.
também o livro de Gouldner The Coming Crisis of Western Socialogie (1970),
onde se poderá encontrar uma biografia de Parsons e uma critica equilibrada da
sua teoria.

regressa de novo ao Hospital-Geral da região de Boston onde inicia um estudo


da prática médica que marcará decisivamente a continuação da sua obra (cf.
segunda parte. capítulo 6). Foi aí que descobriu a psicanálise ao mesmo tempo
que toma forma a sua teoria da acção enquadrada na sua concepção da
socialização. Esta foi fortemente impregnada pelas teses de Freud que, de certo
modo, foram reforçadas e generalizadas pela concepção funcional da estrutura
social. Na realidade, desde que Parsons se persuadiu de que o sistema social —
cimentado por valores comuns — constitui condição para o sucesso da
comunicação (interacção) entre os indivíduos e que este sistema só pode ser
interiorizado nas personalidades e não manter-se exterior a elas, a tese da
socialização precoce constitui a solução mais simples para o problema
precedente: identificando-se com os seus próximos, a criança interioriza as
normas e os valores deles e torna-se assim um actor desejoso de comunicar com
aqueles que têm a mesma experiência que ela, reproduzindo assim as normas e
os valores da sociedade e do seu meio de origem. Deste modo, a teoria de
Parsons não pôde evitar produzir uma espécie de axiomática formal que reduz as
acções individuais a esquemas analíticos pré-construídos (Chazel, 1972).
Segundo Parsons, o indivíduo hipersocializado mesmo sem querer — seja qual
for a cultura de origem — torna-se, na idade adulta, um agente socializador que
reproduz as normas e os valores que também o socializaram. O paradoxo de
Hobbes (“a guerra de uns contra outros”) resolve-se assim: não fazemos guerra
aos nossos semelhantes, identificamo-nos com eles.

O que aconteceria se não entrássemos neste padrão? Para Parsons, e para todos
os culturalistas, inscrevemo-nos numa trajectória de desvio. Os que não saem da
primeira infância (ou da adolescência) com o sentimento de pertença cultural
bem vincado — seja por não terem conseguido identificar-se, seja porque, tendo-
se identificado, não interiorizaram normas ou valores particulares — têm de
assumir a sua posição de desviantes e lutar pelo seu reconhecimento por um
outro grupo que não o da família de origem, ou para inflectirem os valores e as
normas do grupo onde se querem integrar. Como Ruth Benedict dizia sobre as
três sociedades que estudou, alguns conseguem-no e podem mesmo tornar-se
prestigiosos inovadores, outros falham e são excluídos, marginalizados ou, nas
sociedades modernas, são acompanhados ou mesmo “psiquiatrizados”. Mas, em
qualquer dos casos, são excepções que só marginalmente têm a ver com a teoria
sociológica na versão de Parsons… :,

Merton e a socialização antecipatória: a teoria do grupo de referência

Ao contrário de Parsons, Merton recusa fechar-se numa teoria geral. Ele advoga
a elaboração de “teorias de médio alcance” (*middle range theories*),
estritamente articuladas com as investigações empíricas e, portanto, susceptíveis
de serem enriquecidas ou mesmo invalidadas por elas.

Funcionalista porque defensor da “análise funcional” que procura encontrar as


relações entre as estruturas de um grupo social com as funções que ele
desempenha, Merton critica as teorias funcionalistas universais — como
explicitamente a de Malinowski e implicitamente a de Parsons — que assentam
em postulados universais infalsificáveis (16) e “impregnados de ideologia”.
Defende um funcionalismo heurístico, capaz de fornecer hipóteses “submetidas a
uma crítica teórica rigorosa paralelamente à acumulação de investigações
empíricas” (Merton, trad. francesa, 1965, p. 138).

(16) O termo “infalsificável” é uma tradução do termo utilizado por K. Popper


para designar um dos critérios fundamentais de uma teoria científica: o facto de
se poder “falsificá-la”, isto é, demonstrá-la como falsa através da sua
confrontação com um conjunto de procedimentos empíricos (Popper, 1959).

Merton interroga-se sobre o seguinte fenómeno: por que razão alguns


indivíduos, em determinadas situações, se definem ou se referem positivamente
a um grupo social que não é o seu grupo de pertença? Os exemplos abundam: as
meninas que acham “ridículo” brincar com bonecas e preferem correr nos
bosques com os irmãos; os filhos de emigrantes que rejeitam as suas tradições e
valorizam as atitudes dos seus companheiros autóctones; os operários que
frequentam cursos do mesmo modo que os técnicos da empresa em que
trabalham; os estudantes que preferem os “biscates” às aulas da faculdade… O
primeiro autor a introduzir esta noção, talvez Herbert Hyman, opunha o grupo de
referência (*out-group*) ao grupo de pertença (*in-group*) e interrogava-se
sobre o papel do primeiro na definição do estatuto do indivíduo (1942). Merton
tenta precisar o sentido desta noção e teorizá-la (*middle range*) a partir de uma
releitura do inquérito alargado realizado aos soldados americanos durante a
Segunda Guerra Mundial e conhecido pela designação de American Soldier. Ele
ficou, com efeito, surpreendido com o facto de os autores do inquérito
verificarem a existência de correlações inesperadas entre as variáveis de situação
e as variáveis de atitude dos soldados. Assim, a título de exemplo, aqueles que se
encontravam em unidades em que as promoções eram rápidas (força aérea)
estavam muito menos satisfeitos e tinham opiniões mais desfavoráveis sobre as
suas hipóteses de promoção, enquanto que os que estavam nas unidades que
tinham promoções mais raras encontravam-se mais frequentemente satisfeitos e
acreditavam muito mais na hipótese da sua promoção (Merton, trad. 1965, p.
210). Para interpretar estas relações, os autores do inquérito invocam a noção de
frustração relativa que subentende que cada um julgue a sua situação
comparando-se com uma categoria ou um grupo diferente do seu. Assim, e
voltando ao exemplo precedente: “Um grau elevado de mobilidade suscita
expectativas sucessivas que não podem ser satisfeitas, resultando daí uma
frustração para aquele que se mantém na mesma posição”. O aviador de base
compara-se com o seu colega que se tornou oficial :, subalterno e sente-se
frustrado enquanto que o polícia se compara aos seus parceiros e considera-se
satisfeito. A partir da acumulação de exemplos (“45% dos “azuis” afectos a
unidades novas sem veteranos afirmam estar prontos a ir para uma zona de
combate, contra 35% dos “azuis” colocados em unidades mais antigas e 15% dos
veteranos”), Merton coloca uma primeira hipótese que considera sólida: “Num
grupo, os membros subordinados, ou ainda não integrados, têm sempre
tendência para partilhar os sentimentos e para se conformarem com os valores do
núcleo mais prestigiado e respeitado pelo grupo”. Assim, os “azuis” das
unidades novas equiparam-se aos outros “azuis”. enquanto que os das unidades
antigas se equiparam aos “veteranos” os quais, já tendo sofrido bastante,
recusam qualquer idealização do “tiroteio”. Ao aplicar esta hipótese geral a
outros casos, Merton realça a questão “dos mecanismos de assimilação dos
valores”: será que os novos adoptam as posições dos mais prestigiados do grupo
porque estabelecem mais facilmente relações com eles? Será que, à partida, têm
motivações de promoção individual? Será que querem ser aceites pelo grupo
dirigente? Será que formam entre eles um agregado ou um subgrupo organizado?
Merton resume todas estas questões numa interrogação global sobre as
condições da mudança dos valores e das normas que fazem com que os membros
de um grupo “identifiquem o seu destino com o de um outro grupo e já não
tenham confiança nos seus interesses e valores” (id., p. 223).

O próprio autor propõe um esboço de resposta com a noção de socialização


antecipatória. Trata-se do processo pelo qual um indivíduo aprende e interioriza
os valores de um grupo (de referência) ao qual deseja pertencer. Esta
socialização ajuda-o a “impor-se no grupo” e deveria “facilitar a sua adaptação
no seio do grupo”. Mas, segundo Merton, não existem, no momento em que
escreve (1950, trad. 1965, p. 227), “dados comprovativos” sobre esta questão.

Debruçar-nos-emos de seguida sobre esta questão.

Em primeiro lugar, verifiquemos que a noção de socialização antecipatória foi


aplicada por Merton a adultos e não a crianças. Trata-se de aprender
antecipadamente as normas, os valores e os modelos de um grupo ao qual não se
pertence. Notemos também que esta noção está logicamente ligada às noções de
“grupo de referência” e de “frustração relativa”: porque se compara aos
membros de um outro grupo, o indivíduo sente-se frustrado em relação a eles e
quer tornar-se parecido com eles para, talvez um dia, vir a ser reconhecido por
eles como “membro”. Assinalemos, finalmente, que Merton evoca, por várias
vezes, “casos” de mobilidade que implicam a passagem efectiva de um grupo
social a um outro a que ele associa um conjunto de designações pejorativas e até
depreciativas: “renegado, traidor, apóstata, cata-vento, pérfido, desertor,
herético” (id., p. 246). Condensadamente ele explica a origem destas
designações depreciativas: “o renegado simboliza, então, a fraqueza dos valores
e dos suportes de um grupo” (id., p. 246).

O que é que acontece, de um ponto de vista funcional, se se pressupõe que a


maior parte dos indivíduos têm tendência a identificarem-se não ao seu grupo de
pertença, mas sim a um grupo de referência mais prestigiado? Várias situações
são possíveis. Ou a instituição onde se encontram (ou mesmo como diz Merton,
a estrutura social) oferece :, oportunidades de mobilidade ascendente (“a
socialização antecipatória só é funcional numa estrutura social que promove a
mobilidade”): a coesão do grupo dá lugar à competição entre os seus membros;
todos acabam por partilhar as normas e os valores do grupo dominante e alguns
conseguem integrar-se nele, os outros, excluídos e amargurados, serão
ameaçados pela anomia. Ou a instituição (ou a estrutura social) não promove a
mobilidade e o grupo de pertença partilha uma frustração colectiva que pode
resultar numa acção reivindicativa ou numa explosão de desanimo. Ou ainda
cada um associa a solidariedade para com os seus companheiros com a
competição pelo acesso a algumas posições em aberto: os valores partilhados são
então um misto dos valores “dominantes” e dos valores partilhados pelo grupo
de base. Ou então, por fim, a situação provoca uma segmentação do grupo entre
os que aderem aos valores dominantes, aqueles que mantendo os valores do
grupo dominado os combinam com os primeiros, aqueles que, identificando-se
com estes valores, procuram suscitar a acção colectiva e aqueles que,
interiorizando a impossibilidade de mobilidade, caem na anomia (17).

(17) Uma tentativa de modelização das hipóteses de frustração em função da


estrutura das situações de interacção — e nomeadamente de competição — foi
realizada por R. Boudon (1977).

Esta última hipótese assenta na ideia de uma adesão diferencial aos valores do
grupo de pertença. Esta diferenciação enraiza-se nas histórias anteriores dos
membros do grupo: aqueles para quem o grupo representa um prolongamento do
seu grupo social de origem estarão mais ligados aos seus valores do que aqueles
que conheceram uma mobilidade anterior; a ligação destes últimos, por sua vez,
será diferente consoante a mobilidade anterior foi ascendente ou descendente.
Por fim, a ligação pode ser mínima naqueles que são originários de um grupo
social que partilha os mesmos valores dos do grupo dirigente da instituição.
Neste último caso, o grupo de referência é justamente o grupo social de origem
do indivíduo. É uma situação já bem conhecida na sociologia (Girod, 1971) sob
a designação de “contramobilidade social”.

Um estudo empírico: formação continua e contramobilidade social

No final dos anos sessenta, C. de Montlibert analisou o público de um Centro de


Promoção Superior do Trabalho em França. Trata-se de adultos, na maior parte
dos casos, empenhados na vida profissional, que estudavam à noite para obter
um diploma, estruturado em unidades capitalizáveis. A maioria deles eram
operários e empregados em empresas ou administrações da região da Lorena. O
diploma de fim de curso (Diploma de Estudos Superiores Técnicos) situava-se
ao nível do bacharelato cientifico (12.o ano + 3) e podia permitir o acesso a um
emprego de quadro. A maior parte dos “estagiários” entravam no “sistema de
formação” sem um diploma profissional anterior ou com um Certificado de
Aptidão Profissional (CAP), o que significava que tinham de frequentar aulas e
acumular “unidades” durante pelo menos cinco anos para terem hipóteses de
conseguirem o diploma de fim de curso (Montlibert, 1968, p. 208). :,

O autor verificou. em primeiro lugar, a existência de uma alta taxa de abandono


entre os estagiários: só chegam ao fim do curso uma baixa percentagem dos
inscritos no primeiro ano. Nem todos os que conseguem acabar o curso se
tornam quadros: dois terços são técnicos superiores ou engenheiros alguns anos
após terem terminado os estudos. Ele compara, em seguida, através de um
questionário, as características e as atitudes dos alunos inscritos com as de uma
amostra (grupo controlo), com as mesmas propriedades no que diz respeito ao
nível etário, ao estado civil e à categoria socioprofissional de pertença (id., p.
209). Consegue, deste modo, pôr em realce um conjunto de diferenças
significativas entre os dois grupos, tanto no que diz respeito às atitudes como à
trajectória social. Assim. enquanto 8% dos adultos do grupo controlo se
encontravam numa posição social inferior à do pai (“desclassificação”), esta
percentagem é de 26% para os alunos que frequentavam o curso. Verifica-se
também uma diferença análoga, mas em sentido inverso. no que diz respeito às
trajectórias de “promoção”.

Uma das questões em que se verificam as diferenças mais importantes nas


respostas dadas pelos dois grupos era a seguinte: “Há no vosso agregado familiar
pessoas que ocupam uma das seguintes profissões?”. Quando se trata de
profissionais intelectuais (engenheiros, directores, estudantes, professores) os
“estagiários” respondem muito mais vezes positivamente e muito menos vezes
positivamente quando se trata de profissões como “operários” ou “empregados”.

Para interpretar estes resultados, C. de Montlibert apoia-se na teoria mertoniana


da socialização antecipatória e do grupo de referência: “os alunos que se
identificam com os engenheiros apercebendo-se da “distancia social” que estes
mantêm com os seus subordinados, reproduzem este comportamento por
antecipação: não será uma prova de fidelidade aos valores do grupo a que se
deseja pertencer rejeitar, em maior ou menor grau, os colegas de trabalho?” (id.,
p. 216).

Estas atitudes explicam-se pelo facto de que uma fracção significativa dos
adultos que, tendo seguido em regime nocturno uma formação longa, se situam
numa trajectória de contramobilidade social: oriundos de famílias de camadas
médias (professores, técnicos superiores) ou superiores (engenheiros,
directores…), estes adultos não conseguiram concluir o 12.o ano ou obter um
diploma do ensino superior e encontraram-se, deste modo, na situação de
operários ou de empregados. Ao compararem-se a alguns membros das suas
famílias que pertencem a profissões “intelectuais”, consideram-se como
desclassificados e sentem uma frustração marcada pelos modelos culturais das
camadas sociais “superiores”. A sua motivação para prosseguir os estudos, obter
um diploma de fim de curso e “tornar-se quadro”, explica-se pelo
desnivelamento entre os valores e as normas do grupo “profissional” de pertença
e os do grupo “social” de referência, similares ou próximos dos da família de
origem ou da família por afinidade. Encontram-se, por isso, “subjectivamente”
envolvidos numa trajectória de promoção social, que mais não é do que uma
maneira de restabelecer a sua posição social de origem (dai o termo
contramobilidade social porque, afinal de contas, eles encontram-se numa
situação de não-mobilidade intergeracional): :,

Esta interpretação dá conta pelos menos parcialmente das diferenças de atitudes


entre este grupo e o grupo controlo (dos que não frequentam nenhum curso): são
menos frequentemente sindicalizados. acreditam menos na possibilidade de uma
promoção interna sem diploma, são mais críticos em relação aos seus colegas de
trabalho, os que se encontram na situação de contramobilidade aderem muito
menos às normas do grupo profissional a que pertencem “objectivamente”. Pelo
menos parcialmente, eles interiorizaram as opiniões, as atitudes, as crenças do
grupo dos quadros a que se referem “subjectivamente”: desvalorização dos
executantes, hostilidade em relação à acção sindical operária, valorização do
diploma, etc. Eles estão empenhados num processo de socialização antecipatória
aos “modelos culturais” do grupo de referência: os cursos nocturnos são somente
um elemento desta socialização latente, essencialmente informal, que está
enraizada na infância, na rede de relações familiares e na história pessoal (18).

(18) Esta abordagem dos cursos nocturnos por C. de Montlibert tem de ser
situada na sua época: os anos 60 em França onde o modelo da “promoção social”
predomina em matéria de formação continua As análises dos comportamentos
em formação dos adultos franceses serão, de futuro, complexificadas,
nomeadamente, pelo papel crescente das empresas e pela subida do desemprego
(Dubar, 1983).

2.4. Uma perspectiva funcional e “generalizada” da socialização

Apesar das diferenças entre as diversas concepções analisadas neste capítulo,


emerge uma abordagem comum que tende a conceber a socialização como um
mecanismo explicativo de inúmeras condutas individuais e como uma
modelagem das personalidades, de acordo com as características mais
estruturantes das culturas consideradas essenciais ao funcionamento social.

Vejamos as principais críticas dirigidas a esta abordagem, tenha ela um cunho


mais “culturalista” e elaborada a partir de exemplos de sociedades tradicionais
(Kardiner) ou um cunho mais “estruturo-funcionalista” e construída a partir do
exemplo da sociedade americana (Parsons):
— esta abordagem considera a formação da criança de acordo com um modelo
de adestramento (ef. Wrong) ou de acordo com o esquema do condicionamento
(Boudon, Bourricaud, 1982, p. 483) que implicam ambas a assimilação precoce
e inconsciente de esquemas corporais e atitudes culturais que se espera
determinam as condutas futuras. Este paradigma (19) da “socialização-
condicionamento” faz do indivíduo socializado uma espécie de autómato
determinado ou programado pelas experiências passadas e não um actor livre das
suas escolhas e responsável pelos seus actos; :, esta abordagem privilegia as
experiências da primeira infância e as “disciplinações de base” impostas pela
cultura do grupo social de origem: as primeiras relações inconscientes ou
recalcadas, marcam muito mais o indivíduo do que as seguintes e constituem
tipos de personalidade que exprimem a cultura do grupo de origem Este
paradigma “psicanalítico” impregna, mais ou menos, todas as versões da
abordagem culturo-funcional e faz do adulto socializado um produto do
complexo parental de onde ele é originário;

(19) O termo paradigma é utilizado aqui num sentido mais lato do que no
capítulo 1: designa as representações de um fenómeno (aqui: a socialização)
características de algumas “correntes” transversais às várias disciplinas das
ciências humanas e fornece “modelos de inteligibilidade” do funcionamento
deste fenómeno.

— esta abordagem confere à cultura, considerada como um todo, uma eficácia


sui generis sobre os indivíduos que ela modela ou impregna de uma forma
geralmente inconsciente. Este paradigma “holista” tende a não ser operatório
como até se torna um obstáculo à análise sociológica das condutas individuais
nas sociedades modernas. Estas tendem a fazer do indivíduo livre e racional o
ponto de partida obrigatório de qualquer análise e do individualismo o referente
de qualquer discurso mobilizador (L. Dumont, 1983).

Será que estas críticas, tanto filosóficas como científicas, invalidam totalmente a
abordagem culturo-funcional da socialização, considerada, contudo, durante
muito tempo como “clássica”? (Gouidner, 1970). Não é esta a nossa opinião e o
uso que dela faz Merton mostra que ela conserva um valor heurístico na
condição de a aplicar em análises empíricas sólidas. Ela permanece útil tanto
para analisar e compreender as condutas daqueles que cresceram em contextos
culturais tradicionais e bastante integrados, como para fornecer hipóteses
explicativas das condutas individuais ditas “modernas”. Há uma vertente da
sociologia que ainda hoje está impregnada por esta abordagem e tenta adaptá-la
às evoluções das sociedades contemporâneas.

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A socialização como incorporação dos habitus

3.1. Uma definição problemática do habitus

Oriundo da palavra latina utilizada pela tradição escolástica, e traduzindo a


palavra grega héxis, usada por Aristóteles para designar “as disposições
adquiridas pelo corpo e pela alma” o termo habitus foi utilizad por Durkheim
num livro publicado com o título évolution Pédagogique en France (1904-1905)
onde afirma: “há em cada um de nós um estado profundo de onde os outros
derivam e encontram a sua unidade: é sobre ele que o educador deve exercer
uma acção durável… é uma disposição geral do espírito e da vontade que
possibilita uma visão das coisas numa determinada

perspectiva… no cristianismo corresponde a uma certa atitude da alma, a um


certo habitus do nosso ser moral” (ed. 1968, p. 37). Durkheim define, assim a
educação como “a constituição de um estado interior e profundo que orienta o

indivíduo num sentido definido para a vida inteira” (id., p. 38).

Bourdieu retoma esta nação filosófica clássica utilizada por inúmeros autores
(Héran, 1987), conferindo-lhe uma definição mais complexa, mais dialéctica e
que pretende ser mais operatória. Define os habitus como “sistemas de
disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e
organizadores de práticas e de representações” (1980, p. 88). Presença activa e
sintética de todo o passado que o produziu, o habitus é a estrutura geradora das
práticas “perfeitamente conformes à sua lógica e às suas exigências”, :, que
exclui as práticas mais improváveis, “à primeira vista, consideradas
impensáveis” (1980, p. 90). Produzindo apenas práticas “determinadas pelas
condições de produção passadas e antecipadamente adaptadas às suas exigências
objectivas”, o habitus assegura, nomeadamente, “a correspondência entre a
probabilidade a priori e a probabilidade ex post” (id. , p. 105) e, portanto, “a
correlação muito estreita entre as probabilidades objectivas (por exemplo, as
hipóteses de acesso a este ou àquele bem ou serviço) e as esperanças

subjectivas (as “motivações” e as “necessidades”)”. Na medida em que, pondo


de lado qualquer estratégia que lhes parece muito arriscada tendo em conta as
suas experiências

anteriores, os indivíduos acabam geralmente por só desejarem na prática o que


têm hipótese de conseguir tendo em conta o seu passado, o habitus assegura
“esta espécie de submissão imediata a uma ordem que leva a fazer da
necessidade uma virtude” (id., p. 90, fórmula muitas vezes retomada pelo autor).
É esta espécie de regulação de base que Bourdieu chama “processo puramente
social e quase mágico de socialização” (id., p. 96) uma vez que assegura,
simultaneamente, a adesão subjectiva e a participação activa dos agentes à
reprodução da posição social, provocando ao mesmo tempo a incorporação de
um “mundo de senso comum cuja evidência imediata se transforma em
objectividade e assegura o consenso” (id., p. 97).

Definido deste modo, o habitus parece excluir qualquer possibilidade de


mudança social. Se cada indivíduo está condicionado de maneira coerente (“tudo
acontece como se

o habitus fabricasse coerência e necessidade a partir do acidental e da


contigência”, id., p. 134), desde a primeira infância, tanto nas posturas corporais
como nas suas crenças

mais íntimas (“os efeitos do habitus inscrevem-se para sempre no corpo e nas
crenças” id., p. 96), percepcionando, querendo e fazendo (“esquemas de
percepção de pensamento e de acção”) apenas aquilo que é estritamente
conforme às suas condições sociais anteriores, não se vislumbra de onde poderia
vir a mudança: se cada um reproduzisse estritamente aquilo que conheceu, então
as condições que engendraram os habitus manter-se-iam imutáveis pelas práticas
saídas destes habitus.

Ora, será exactamente isto o que Bourdieu quer dizer? Na maioria dos textos em
que expõe a concepção do habitus

— em todo o caso posteriores à Reproduction (1970) - tem o cuidado de lembrar,


várias vezes (nomeadamente: 1974, pp. 4, 5, 10, 28; 1980, pp. 103, 104, 105,
134…), que o habitus tende somente a reproduzir as estruturas das quais é o
produto “na medida em que as estruturas nas quais funciona são idênticas ou
homólogas às estruturas objectivas das quais é o produto”. Esta distinção entre
“condições de produção” e “condições de funcionamento” do habitus introduz
um elemento fundamental de incerteza na teoria do habitus.

Podemos, com efeito, interpretar as “condições de produção” do habitus de duas


formas diferentes situando-nos, antes de mais, a nível individual. Podemos
traduzir a expressão “estruturas objectivas que produzem o habitus” pela de
configuração das situações sociais nas quais decorreu a infância de um
indivíduo. Tudo depende então das relações entre esta configuração de origem e
as situações sociais vividas na idade adulta. Um filho :, de um operário, que se
tornou também operário (e que se casou com a filha de um operário), encontrar-
se-á face a situações “homólogas” daquelas que produziram o seu “habitus
operário” e reagirá como aprendeu precocemente, contribuindo assim para
reproduzir todo o grupo operário. Um filho de um operário que se torna
empregado de escritório e que casa com a filha de um empregado defrontar-se-á
com situações inéditas e terá de inventar práticas para se adaptar a essas
situações: o seu “hubitus operário” conduzi-lo-á a ser um empregado especial,
vivendo as situações (familiares de trabalho, de lazer…) mais como um operário
do que como um empregado. Para se adaptar, ele deverá ou converter, pelo
menos parcialmente, o habitus de origem, ou renunciar ao seu estatuto de
emprego, para se encontrar numa situação mais conforme (“de estrutura
homóloga”) à sua condição de origem. Nesta primeira interpretação —
perfeitamente culturalista —, o habitus não é senão a cultura do grupo de
origem, incorporada na personalidade, importando os seus esquemas em todas as
situações ulteriores e provocando inadaptações sempre que estas situações se
distanciam demasiado das da infância.

Tal como faz P. Bourdieu em várias ocasiões (1974. pp. 5, 19, 22; 1980, pp. 102
e seguintes), pode-se também fazer do habitus não o produto de uma condição
social de origem, mas o produto de uma trajectória social definida através de
várias gerações e mais precisamente através da “orientação da trajectória social
da linhagem” (1974, pp. 5 e 29); neste caso já não podemos definir de uma
forma sincrónica as “estruturas objectivas” que produzem habitus. O filho de um
operário, sendo este filho de camponês e propenso à ascensão social e ao
abandono da condição operária, não será educado da mesma maneira que o filho
de um operário, também este filho de operário, e persuadido que não se pode sair
da condição operária. Enquanto o primeiro arrisca ter um “habitus de pequeno
burguês” — sendo de origem operária mas com uma socialização antecipatória
de pequena burguesia —, o segundo terá um habitus operário “tradicional”. A
estrutura das situações que ambos encontram não será percepcionada da mesma
maneira pelo primeiro e pelo segundo. Assim, o primeiro poderá ter um bom
sucesso escolar, poderá investir nos estudos para “não ser operário como o pai”,
enquanto que o segundo sairá da escola mais cedo com, por exemplo, um
diploma do ensino técnico curto “para ter um bom ofício (de operário) como o
do pai”. Na segunda interpretação, o habitus não é essencialmente a cultura do
grupo social de origem, mas a orientação da família (a “vocação” corresponde à
“orientação” da trajectória familiar — cf. 1974, p. 16), a identificação antecipada
a um grupo de referência cujas condições sociais não são as da família ou do
grupo de origem.

É óbvio que estas duas interpretações do habitus e das condições objectivas” de


produção não são idênticas. Em ambos casos, a socialização é certamente uma
incorporação duradoira das formas “de sentir, de pensar e de agir” do grupo de
origem, mas enquanto, no primeiro caso, este habitus é concebido como um
produto das “condições objectivas” (o filho de um operário tem um habitus
operário), no segundo caso é apresentado como uma impregnação de atitudes
subjectivas provenientes da linhagem da faml1ia (o filho de operário pode ter um
habitus de pequeno burguês). No primeiro caso, pode-se comparar
“objectivamente” situações encontradas na idade adulta a situações vividas na
infância (a :, estrutura é homóloga se as situações relevam das mesmas
categorias sociais); no segundo caso, esta comparação já não tem sentido porque
a situação “objectiva” depende dos “esquemas de percepção, de apreciação e de
acção” com os quais os indivíduos a apreendem (situações classificadas
socialmente de formas diferentes podem ser vividas de maneira semelhante).
Assim, quando Bourdieu apresenta o habitus como um tipo de tendência do
grupo para persistir no seu ser” (1974, p. 30), tem o cuidado de indicar que esta
tendência “não tem sujeito”, que é “capaz de inventar, na presença de situações
novas, novos meios de realizar as funções antigas” e que opera “a um nível
muito mais profundo” do que as tradições familiares ou as estratégias
conscientes dos indivíduos. O grupo pode, portanto, “persistir no seu ser social”,
assumindo formas diferentes e adaptando-se a situações diversas. Da mesma
maneira, quando Bourdieu afirma que os habitus que engendram as práticas e as
“estratégias objectivas” dos indivíduos “cumprem sempre, em parte, funções de
reprodução”, ele acrescenta que são “objectivamente orientadas para a
conservação ou o aumento (20) ” do património” bem como para “a manutenção
ou a melhorial da posição do grupo” (id., p. 30). Assim, reproduzir as condições
de produção pode significar querer aceder a um estatuto social superior e não
manter o estatuto de origem. Para conhecer o habitus de um indivíduo, não basta
conhecer as “condições objectivas” em que foi criado, mas é necessário também
conhecer o habitus dos pais e o dos parentes e, sobretudo, a sua relação com o
futuro. Poder-se-ia, deste modo, apreender a mudança, mas com a condição de a
incluir numa trajectória social característica da linha de descendência ou de um
“grupo social” previamente definido como tal.

(20) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho este aspecto.

Classes sociais e habitus: posições e trajectórias

Será que se pode encontrar na obra de Bourdieu um conjunto de habitus


específicos associados às grandes classes sociais e esclarecendo os diferentes
modos de socialização, que tenha por base a definição do habitus entendido
como sistema de disposições ligadas a uma trajectória social?

Nos diferentes trabalhos do autor encontram-se múltiplas referências que opõem


as classes sociais, quer pela sua posição num espaço de poder
(dominantes/dominadas), quer pela sua trajectória global numa temporalidade
referenciada a duas ou três gerações (ascendentes/descendentes), quer ainda por
uma combinação destes dois critérios (grande burguesia/pequena burguesia
ascendente/pequena burguesia em declínio/classes populares). Cada uma das
classes ou fracções de classe é definida, simultaneamente, por um estilo de vida
(bens consumidos, práticas culturais, etc.) e por uma relação especifica com o
futuro que inclui os seus “recursos de capital económico e cultural” (volume e
estrutura do património). Uma classe social torna-se, assim, “a classe dos
indivíduos dotados do mesmo habitus” (1980, p. 100), isto é, providos das
mesmas disposições em relação ao futuro porque partilham das mesmas
trajectórias típicas. :,

A descrição dos habitus toma muitas vezes a forma de oposições de “qualidades”


ou de “virtudes” que estão enraizadas na língua comum e que servem para
caracterizar um estilo de relações. uma maneira de se comportar física e
moralmente, uma atitude geral diante do futuro traduzindo-se por qualificativos
triviais. Os que estão reunidos, por exemplo, no quadro 3.1., são apresentados
pelo autor para sublinhar “um aspecto fundamental entre o grande (ou o lato) e o
pequeno a partir do qual se engendram todas as oposições particulares” (1974, p.
26). Assim, no mesmo texto, o pequeno-burguês (em ascensão) é apresentado
como “um proletário que se faz pequeno para se tornar burguês”: de origem
popular, limita a sua descendência “muitas vezes a um produto único, concebido
e moldado em função de expectativas rigorosamente selectivas da classe
importadora”, inclina-se perante a família nuclear “muito unida, mas restrita e
um pouco opressiva”, investe muito na escola e incentiva a sua progenitura ao
maior sucesso possível, manifesta através da sua postura física (o que Bourdieu
designa de héxis corporal) que deve fazer-se pequeno para poder passar pela
porta estreita que dá acesso à burguesia: à força de ser estrito e sóbrio, discreto e
severo na sua maneira de vestir e de falar, nos gestos e no porte, falta-lhe sempre
um pouco de presença física, de capacidade de actuação, de ousadia e de
disponibilidade económica” (id., p. 25). Ele opõe-se, assim, em tudo, ao
(verdadeiro) burguês, o qual pode mostrar disponibilidade económica (nos
gastos) e ousadia (de ideias) porque dispõe, simultaneamente, dos meios
(económicos) e dos códigos (culturais): tendo apenas a preservar uma posição
adquirida e não tentar aceder a uma posição superior, o grande burguês
manifesta, em todas as suas atitudes, esta “coincidência realizada do ser e do
dever-ser que justifica e autoriza todas as formas intimas e exteriorizadas da
certeza de si, segurança, :, desenvoltura graça, facilidade maleabilidade,
liberdade, elegância ou, numa palavra natural” (id., p. 27). O pequeno-burguês,
segundo Bourdieu, distingue-se do operário e do camponês que se mantiveram
na sua condição de origem e que não tendo tido a pretensão de se tornarem e,
portanto, de parecerem burgueses, podem ser o que são isto é, serem de condição
“modesta”, mas com um falar franco e um “sólido” sentido da realidade que eles
não confundem com os seus desejos, e que os faz parecer “pacóvios” e com
“pouco à-vontade* quando se encontram no universo burguês do qual não
dominam os modos (económicos) de se enriquecer, nem o código (cultural) das
“boas maneiras” e da linguagem distinta.

Quadro 3.1.

Os habitus de classe segundo Bourdieu

::::::::::::

(Burguês)

“distinto”, agradável, amplo (espírito, gesto, etc.), generoso, nobre, rico, ousado
(nas ideias, etc.), liberal, livre, maleável, natural, agradável, desenvolto, seguro,
aberto, vasto, etc.
(Pequeno-burguês)

“pretensioso”, limitado, empertigado, com “ares de”, pequeno, mesquinho,


sovina, cerimonioso, exigente, formalista, severo, rígido, crispado, constrangido,
escrupuloso, preciso, etc.

(Povo)

“modesto”, atabalhoado, forçado, embaraçado, tímido, mal-


jeitoso,“incomodado”. pobre, “modesto”, “bom filho”, “de boa natureza”, franco
(fala), sólido

Fonte: 1974, p. 26. :,

::::::::::::

Esta descrição pressupõe que o habitus produto da socialização dos indivíduos


exprima, simultaneamente, uma posição (em cima/em baixo) e uma trajectória
(linear /ascendente) que se traduzem por uma mesma “visão do mundo
económico e social” (a qe Bourdieu chama, por vezes um “éthos de classe”), que
se afirma em todos os domínios da vida pública e privada. Porque foi
precocemente incorporada no duplo sentido de estruturação do corpo de
pertença” e de constituição de um “espírito de corpo”, esta disposição essencial,
característica da pertença de classe, pode, assim, escapar em grande medida à
consciência e deixar os indivíduos na ilusão da escolha quando apenas activam o
habitus que os modelou. Assim reformulada a questão inicial das relações entre
“condições de produção” e “condições de funcionamento” do habitus torna-se
um falso problema já que o indivíduo aplica sempre os mesmos esquemas em
todas as situações que encontra e que, à custa de “retraduções”, “transferências”
ou “transposições sistemáticas” de acordo com as diversas situações, “todas as
práticas de um mesmo agente são objectivamente harmonizadas entre si, sem
necessidade de uma procura intencional de coerência e são objectivamente
orquestradas, sem recorrerem a uma concertação consciente com as dos outros
membros da mesma classe” (1974, p. 31). A socialização, segundo Bourdieu, ao
assegurar a incorporação dos habitus de classe, produz a pertença de classe dos
indivíduos, ao mesmo tempo que reproduz a classe enquanto grupo que partilha
o mesmo habitus.

3.2. Uma problemática ambígua dos campos sociais


“Num campo, agentes e instituições estão em luta, com forças diferentes e
segundo regras constituídas neste espaço de jogo, para se apropriarem dos
benefícios específicos que estão em jogo neste campo Os que dominam o campo
possuem os meios de o fazer funcionar em seu benefício, mas devem contar com
a resistência dos dominados” (1980, p 136). Esta fórmula resume, de uma forma
condensada, a essência da teoria dos “campos sociais” que Bourdieu elaborou
em complementaridade com a dos habitus.

Embora se baseie no que há de comum entre as análises sociológicas e as


económicas consagradas à passagem das sociedades “tradicionais” à sociedade
capitalista “moderna”, :, Bourdieu toma em consideração a segmentação
crescente do espaço social em domínios (“campos”) especializados dotados de
regras próprias de funcionamento. O campo económico não funciona como o
campo escolar nem como o campo da família ou da política. Em conformidade
com a maioria dos economistas, Bourdieu considera estes “campos sociais”
como mercados onde se trocam bens específicos, materiais ou simbólicos, e
onde capitais de um certo tipo produzem benefícios do mesmo tipo de acordo
com regras particulares.

Bourdieu, ao contrário dos teóricos neoclássicos dos mercados concorrenciais,


considera que, em cada um dos campos pertinentes do social, a estrutura das
trocas é fundamentalmente assimétrica. Não só os capitais investidos em cada
um dos campos são desiguais como os proveitos obtidos não dependem só do
volume, mas também da estrutura dos capitais investidos. A maior parte das
análises de Bourdieu colocam em jogo um espaço a duas dimensões: “na
primeira dimensão (os agentes são distribuídos) de acordo com o volume global
do capital que possuem nas diferentes espécies; na segunda dimensão (os
agentes são distribuídos) de acordo com a estrutura do seu capital, isto é,
segundo o peso relativo das diferentes espécies de capital económico e cultural,
no volume total do capital” (1987, p. 152).

Um dos exemplos mais regularmente tratados por Bourdieu é o campo escolar,


visto ser considerado como particularmente estratégico. Para que as crianças
possam obter graus escolares mais elevados, isto é, simultaneamente mais
prestigiantes e mais rentáveis economicamente, as famílias devem investir o
capital especifico a este campo, o capital cultural. São, com efeito, as crianças
cujos pais têm diplomas de ensino superior que mais hipóteses têm de fazer
estudos prolongados e obter títulos universitários; ao invés, as crianças de pais
sem diploma são as que mais frequentemente experimentam insucesso escolar
(Girard, Bastide, 1973). 0 volume do capital económico da família (património e
rendimento da família) está menos correlacionado com o sucesso escolar dos
filhos do que o volume do capital cultural, medido pelos tipos de diplomas dos
pais. A classe dominante (grande burguesia), definida principalmente pelo
volume do capital económico, sendo baixo o volume do seu capital cultural (já
que não há necessidade de diploma para possuir e/ou gerir uma empresa), sofre a
concorrência, no campo escolar (21), da pequena burguesia ascendente que
possui essencialmente capital cultural (já que são precisos diplomas para se ser
professor, engenheiro ou médico). Para manter a posição dominante no conjunto
da sociedade (21), a classe dominante deve reconverter uma parte do seu capital
económico em capital cultural (Bourdieu, Boltanski, Saint-Martin, 1973) com
tanta mais veemência quanto as regras do jogo económico têm tendência a
mudar e a fazer depender do diploma o acesso às posições de direcção
(permitindo, assim, tornar o domínio económico mais anónimo e, portanto,
menos ameaçado pelas lutas das classes dominadas). Assim, os filhos da grande
burguesia são

(21) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho este aspecto.

levados, por todos os meios possíveis, a seguir :, estudos superiores


(dissimulando deste modo os pais o seu fraco capital cultural institucionalizado
em diplomas através de um capital cultural objectivado em livros, obras, etc., e
sobretudo através da utilização intensiva e selectiva dos melhores liceus, escolas,
etc.) e a obter os títulos escolares mais rentáveis (escolas conceituadas),
condição para ocuparem posições de chefia no campo económico. Assistimos,
deste modo, a um reequilíbrio da estrutura do capital global (conjunto dos
recursos económicos e culturais) que permite à classe dominante manter a sua
posição com base na mudança das regras do jogo económico. Também a
pequena burguesia ascendente se reproduz enquanto tal, visto que a maioria dos
filhos não conseguem ocupar os postos de direcção, remetendo as suas ambições
para a geração vindoura. Quanto às classes populares, só lhes resta resignarem-
se ao menor sucesso dos seus filhos, o que se traduz numa reprodução da sua
posição (inferior) de origem.

Realçando a “posição cada vez mais estratégica do campo escolar, no conjunto


dos instrumentos da reprodução social”, Bourdieu, Boltanski e Saint-Martin
consideram, assim, que a mudança mais importante do período em curso reside
na “transformação do sistema das estratégias de reprodução das fracções das
classes superior e média, as mais ricas em capital económico… estando estas
transformações na origem da utilização que fazem do sistema de ensino” (1973,
p. 62). Retomando uma ideia similar numa obra recente, Bourdieu esclarece que
as “duas grandes mudanças” que afectaram os modos de reprodução dominantes
são, “por um lado, o acréscimo no próprio campo económico, da importância
relativa do título escolar (associado ou não à propriedade) relativamente ao titulo
de propriedade económica; por outro lado, assiste-se, entre os detentores de
capital cultural, ao declínio dos diplomas técnicos em benefício dos diplomas
que garantam uma cultura geral de tipo burocrático” (1989, p. 386). Assim, a
reconversso do capital económico em capital cultural, que faz do campo escolar
um espaço cada vez mais essencial à reprodução do poder, permite à classe
dominante consolidar a sua legitimação simbólica.

Uma das questões mais delicadas que coloca esta versão da teoria dos campos é
a do grau de autonomia de cada um dos campos em relação ao espaço global das
classes sociais e à sua estruturação essencial (dominante/dominada) e secundária
(ascendente ou com pretensões/descendente ou ameaçada). Se o volume do
capital cultural está cada vez mais dependente do volume global do capital da
família de origem — reconvertendo o capital económico em capital cultural à
medida da “ascensão” do campo escolar na hierarquia dos campos —, não se
compreende como é que os mesmos agentes provenientes das fracções
dominantes da classe dominante não conseguem dominar todos os campos em
que investem os seus capitais. A introdução em algumas análises, como aquelas
que são feitas na parte final do Le sens pratique, de uma nova espécie de capital,
o capital simbólico, que tem por principal função “a legitimação do arbitrário”,
permitindo transformar “relações arbitrárias de domínio em relações legitimas”
(1980, pp. 210-2113, vai no mesmo sentido: cada um dos campos tende a ser
estruturado de acordo com posições de poder que são sistematicamente ocupadas
pelas mesmas classes e fracções de classes. :,

A autonomia relativa, a especificidade das regras do jogo, o modo particular de


estruturação funcionam, de facto, como tantas armadilhas para as outras classes,
visto que, a la limite, qualquer membro da classe dominante pode dominar
qualquer campo, reconvertendo uma parte do seu capital económico em capital
cultural ou simbólico, específico do funcionamento deste campo. A existência de
uma espécie de equivalente geral dos capitais, que permite a conversão de um
tipo de capital noutro, conduz assim a uma “economia geral das práticas”
justificadora da redução de todas as práticas sociais a práticas “económicas”, isto
é, a práticas instrumentais, supondo, simultaneamente, o aumento do património
(riqueza), o melhoramento da posição (prestígio) e o crescimento do seu poder
legítimo, isto é, a estrutura optimizada de combinação do capital económico, do
capital cultural e do capital simbólico. A noção de “campo” perde, assim, uma
grande parte do seu interesse heurístico.

3. 3. Do habitus à identidade: da dupla redução à dupla articulação

Segundo Bourdieu, a importância do habitus deriva do facto de se poder pensar e


analisar um conjunto coerente de disposições subjectivas — capazes,
simultaneamente, de estruturar representações e gerar práticas — como o
produto de uma história, ou seja, como o produto de uma sequência
necessariamente heterogénea de condições objectivas, sequência essa que define
a trajectória dos indivíduos como movimento único através de campos sociais,
tais como a

família de origem, o sistema escolar ou o universo profissional (22). Para


estabelecer esta correspondência entre condições objectivas e disposições
subjectivas, Bourdieu viu-se na necessidade de operar uma dupla redução que
lhe permitisse especificar, simultaneamente, o mecanismo de interiorização das
condições objectivas e o mecanismo de exteriorização das disposições
subjectivas. É à custa desta dupla redução que o habitus poderá ser definido,
simultaneamente, como produto de condições “objectivas” interiorizadas (a
posição e a trajectória do grupo social de origem) e como produtor de práticas
conduzindo a efeitos “objectivos” (a posição do grupo de pertença) que
reproduzem a estrutura social, assegurando, desta forma, a continuidade do
habitus individual.

(22) Bourdieu retoma um “esquema elementar do pensamento teórico: a


activação do passivo” (Héran, 1987) mas acrescentando-lhe a tese de uma
correspondência necessária entre as transmissões “passivas” e as incorporações
“activas”.

A primeira redução consiste, para Bourdieu, em ter de limitar o conjunto das


condições objectivas que produzem o habitus a “uma posição diferencial no
espaço social” (1989, p. 9), o que implica definir este último como
“exterioridade recíproca das posições” e “sistema unificado de diferenças” (id.).
O habitus é, deste modo, definido como estando “ligado geneticamente (e
também estruturalmente) a uma posição”, isto é, ele é produzido através de um
ponto de vista único e coerente que resume, ao mesmo tempo, a :, posição de
uma trajectória de classe no espaço das trajectórias possíveis (alta/média/baixa) e
a posição de um indivíduo num qualquer campo social (alto/médio/baixo). A
partir do momento em que esta homologia de posições está assegurada, o habitus
pode ser pensado como incorporação e interiorização desta posição única.

A segunda redução consiste em ligar necessariamente a percepção ou a visão do


campo social operada pelo habitus — e, em particular, a classificação que este
produz no interior do espaço social (alto/baixo) — à orientação e à previsão
necessárias para gerar práticas, em particular o que Bourdieu designa por “a
assunção de posição prática sobre este espaço” (“estou em cima ou em baixo e
tenho que me manter nessa posição”). Esta relação necessária entre
posição/disposição, visão/previsão, percepção/orientação é muitas vezes
chamada conatus ou “tendência para se perpetuar de acordo com a sua
determinação interna” (id.). De acordo com Bourdieu, é ela que permite
“perpetuar uma identidade que é diferente”, isto é, perpetuar uma posição
relativa constante no seio do espaço social considerado como “sistema das
diferenças constitutivas da ordem social” (id.).

É esta dupla redução — da objectividade à “posição diferencial” e da


subjectividade à “tendência a perpetuá-la” — que, segundo Bourdieu, permite
assimilar o habitus a uma identidade social definida como identificação a uma
posição (relativa) permanente e às disposições que lhes estão associadas. Ela
permite assegurar a permanência das identidades individuais e a reprodução das
estruturas sociais

— concebidas, simultaneamente, como espaços estruturados nas mesmas


“posições” (alto/baixo) e como relações de dominação (dominante/dominados)
entre “posições” constantemente reproduzidas — através de todas as formas de
mudança, que não são mais do que reconversões de estratégias objectivas que
não modificam a estruturação do espaço social. Para isso, é necessário e
suficiente que cada habitus funcione segundo os mesmos princípios e que todas
as estratégias tenham “objectivamente” o mesmo resultado: a reprodução do
espaço das posições. É isto que fundamenta a reprodução do espaço das
posições. É isto também que fundamenta a possibilidade de uma “economia
geral das práticas” à custa dos mesmos tipos de reduções do que as que
permitiram a constituição da economia política como disciplina cientifica,
independentemente das suas versões e das correntes teóricas.

Uma outra definição da identidade (cf. capitulo 5) implicaria a hipótese inversa


de uma dualidade irredutível das lógicas constitutivas do social e,
nomeadamente, da que estrutura as representações do poder e orienta as práticas
correspondentes (lógica “relacional” ou “comunicacional”) e da que comanda as
estratégias “económicas” do crescimento do capital sob todas as formas (lógica
“estratégica” ou “instrumental”). Esta posição suporia não assimilar a priori o
espaço social das posições (alto/baixo) na esfera “económica” ao espaço social
das posições (dominante/dominado mas também incluído/excluído) na esfera
“relacional” que não pode ser reduzida a um campo secundário ao serviço de
estratégias económicas. É o que faz Bourdieu quando evoca, por exemplo, a
existência de um “capital social” constituído pelo conjunto das “relações” que
um indivíduo pode mobilizar para o seu êxito escolar ou social. Longe de
funcionar segundo :, a sua própria lógica, este campo “relacional” é descrito
como se estivesse estruturado pelas mesmas regras de optimização dos lucros
que estruturam o campo “económico”. Ora, sempre houve uma tradição
sociológica que recusou assimilar a lógica “comunitária” das relações sociais à
lógica “económica” das estratégias de optimização (cf. capítulo 4). E na
condição de distinguir radicalmente — como hipótese teórica e posição
metodológica — estas duas lógicas (23) que podemos definir a identidade social
como a dupla articulação problemática de uma orientação “estratégica” e de uma
posição “relacional” que resulta da interacção de uma trajectória social e de um
sistema de acção. Nesta hipótese já não existe harmonia pré-estabelecida entre as
identidades “para si” produzidas pela trajectória passada e as identidades “para o
outro” incluídas num sistema de acção (cf. capítulo 5). Em vez da dupla redução
operada pela teoria do habitus, esta teoria da identidade baseia-se na dupla
articulação seguinte:

(23) É o que faz, parece, J.-C. Passeron (1986) quando distingue a auto-
reprodução escolar da reprodução social. Na sua opinião, “é ao historiador o não
ao sociólogo que compete descrever a renovação das configurações produzidas
polo encontro heterogéneo do processos que não se podem tratar como
evoluções sistemáticas desde que se considerem como independentes” (p. 76).

— uma primeira articulação entre “trajectória” e “sistema” implicando a recusa,


a priori, da homologia das posições e do mecanismo sistematicamente
reprodutor do habitus. Longe de reduzir a trajectória a uma “posição objectiva”,
define-a antes como um “recurso subjectivo”, isto é, um balanço subjectivo das
capacidades para enfrentar os desafios específicos de um dado sistema. Longe
de assimilar a relação ao sistema (campo social especifico e não espaço social
geral) a uma posição “objectiva” no sistema (campo), ela considera-a uma
oportunidade estratégica para a realização dos objectivos dos indivíduos. Por
esta razão, o encontro de uma trajectória e de um sistema já não conduz
necessariamente ao prolongamento da trajectória e à reprodução do sistema:
pode-se ai encontrar um balanço positivo ou negativo das capacidades de acordo
com as leituras que os indivíduos fazem do sistema e das suas oportunidades
para os indivíduos, tal como pode haver oportunidade ou não do sistema de
acordo com a reconstrução subjectiva que os indivíduos fazem da trajectória.
Assim sendo, a hipótese “consolidação da identidade/reprodução do sistema” só
é uma das hipóteses possfve s: todas as outras o são igualmente a priori;

— a segunda articulação entre “trajectória anterior” e “estratégia” implica a


recusa, a priori, da continuidade necessária entre as visões de futuro da
trajectória — incluindo as apreciações de oportunidade do sistema — e os
balanços da trajectória passada que mobilizam as representações investidas no
sistema. O passado não determina mecanicamente a visão do futuro; a um tipo
de trajectória anterior “objectivamente” determinada não corresponde
necessariamente um tipo de estratégia de futuro “subjectivamente” construída.
Entre a trajectória e a estratégia intercala-se o conjunto de relações internas ao
sistema onde o indivíduo deve definir a sua identidade especifica; da mesma
forma, entre representação e oportunidade do sistema interpõe-se a :, trajectória
dos indivíduos a partir da qual fazem um julgamento das características e
evoluções prováveis do sistema. Por este facto, a hipótese “visões do futuro
reproduzindo percepções do passado” é apenas um dos casos possíveis da
articulação entre representações (e categorias) herdadas da trajectória passada e
estratégias (e categorizações) tornadas possíveis pelas oportunidades do sistema.

3. 4. Uma perspectiva “causal-probabilística” da socialização

A problemática assim amplificada concebe a socialização como um processo


biográfico de incorporação das disposições sociais vindas não somente da
família e da classe de origem, mas também do conjunto dos sistemas de acção
com os quais o indivíduo se cruzou no decorrer da sua existência. Sem dúvida,
ela implica uma causalidade histórica do passado sobre o presente, da história
vivida sobre as práticas actuais, mas esta causalidade é probabilística: exclui
qualquer determinação mecânica de um “momento” privilegiado em relação aos
seguintes. Quanto mais as pertenças sucessivas ou simultâneas forem múltiplas e
heterogéneas, mais se abre o campo do possível e menos se exerce a causalidade
de um provável determinado.

Se as identidades sociais são produzidas pela história dos indivíduos, elas


também são produtoras da sua história futura. Este futuro depende não só da
estrutura “objectiva” dos sistemas nos quais se desenvolvem as práticas
individuais e nomeadamente do estado das relações sociais no interior destes
campos, mas também do balanço “subjectivo” das capacidades dos indivíduos
que influenciam as construções mentais das oportunidades destes campos. As
identidades resultam, portanto, do encontro de trajectórias socialmente
condicionadas por campos socialmente estruturados. Mas estes dois elementos
não são necessariamente homogéneos e as categorias significativas das
trajectórias não são necessariamente as mesmas do que aquelas que estruturam
os campos da prática social. Este desfasamento abre espaços irredutíveis de
liberdade que tornam possíveis, e, por vezes, necessárias, reconversões
identitárias que engendram rupturas nas trajectórias e modificações possíveis das
regras do jogo nos campos sociais.

Permanece em aberto a questão da redução, legitima ou não, de todas as


dimensões da socialização a espécies de capitais convertíveis umas nas outras e
cumuláveis num valor único, balanço de todos os investimentos sucessivos e
simultâneos. Esta redução não é uma consequência necessária do “modelo” geral
da socialização que reconstruímos a partir da obra de Bourdieu, e cuja
interpretação permanece susceptível de debate (Accardo e Corcuff, 1989); é,
quando muito, uma simplificação cómoda que permite interpretar as correlações

— mais ou menos fortes — entre posições actuais e posições passadas ou entre


posições em campos diferentes. Dá conta de uma forma de socialização que
permanece, sem dúvida, maioritária (a reprodução das posições relativas e das
disposições ligadas a estas posições), mas que não é única. Privilegia a
continuidade em relação às rupturas, a coerência em relação às contradições.
Permite explicar a reprodução da ordem social, mas compreende mal a produção
de mudanças verdadeiras.

Bibliografia do capítulo III

ACCARDO, A.; CORCUFF, P. (1989), La sociologie de Bourdieu, textes choisis


et commentés, Paris, Le Mascaret.

BOURDIEU, P.; PASSERON, I.-C. (1970), La reproduction. Les fonctions du


système d’enseignement, Paris, Éd. de Minuit.

BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L.; SAINT-MARTIN, M. (de) (1973), “Les


stratégies de reconversion”, Informations sur les sciences sociales, 12 (5), 1973,
pp. 61-113.

BOURDIEU, P. (1974), “Avenir de classe et causalité du probable”, Revue


française de sociologie, XV, pp. 342.

BOURDIEU, P. (1980), Le sens pratique, Paris. Éd. de Minuit.

BOURDIEU, P. (1987), “Espace social et pouvoir symbolique”, Choses dites,


Paris, Éd. de Minuit, pp.

147-166.

BOURDIEU, P. (1989), La Noblesse d’État, Paris, Éd. de Minuit.

DURKHEIM, E. (1904-1905), *L’évolution pédagogique en France, Paris, PUF,


2.e éd., 1969.

GIRARD, A.; BASTIDE, R. (1973), “De la fin des études élémentaires à


l’entrée dans la vie professionnelle ou à l’université”, Population, n.o 3, pp. 571-
593.

HÉRAN, F. (1987), “La seconde nature de l’habitus”, Revue française de


sociologie, XXVIII, 3. pp. 385-416.

PASSERON, J.-C. (1986), “Hegel ou le passager clandestin. La reproduction


sociale et l’Histoire”, Esprit, 6, M 1667, pp. 63-81.

A socialização como construção social da realidade

As abordagens culturais e funcionais da socialização acentuam uma


característica essencial da formação dos indivíduos: esta constitui uma
incorporação dos modos de ser (de sentir, de pensar e de agir) de um grupo, da
sua visão do mundo e da sua relação com o futuro, das suas posturas corporais,
assim como das suas crenças intimas. Quer se trate do grupo de origem no seio
do qual se desenrolou a primeira infância e ao qual pertence “objectivamente” ou
de um grupo exterior no qual quer integrar-se e ao qual se refere
“subjectivamente”, o indivíduo socializa-se, interiorizando valores, normas,
disposições que o tornam um ser socialmente identificável.

Mas estas abordagens admitem um mesmo pressuposto que as conduz a reduzir a


socialização a uma qualquer forma de integração social ou cultural unificada,
muito enraizada num condicionamento inconsciente. Este pressuposto é o da
unidade do mundo social, quer à volta da cultura de uma sociedade “tradicional”
e pouco evolutiva, quer à volta de uma economia generalizada que impõe a todos
os membros das sociedades “modernas” a sua lógica de maximização dos
interesses materiais ou simbólicos.

As teorias reunidas neste capítulo não admitem este pressuposto unificador.


Colocam a interacção e a incerteza no seio da realidade social, assim definida
como confronto entre “lógicas” de acção funcionalmente heterogéneas. Não se
aceita o postulado de que cada indivíduo procura adaptar-se à cultura do grupo e
reproduzir as “tradições” culturais ou optimizar as riquezas e as posições de
poder segundo o tipo de sociedade no qual se encontra. Todos os indivíduos são
confrontados por esta dupla exigência e devem aprender a serem reconhecidos
pelos outros, assim como a cumprirem as melhores performances possíveis. A
socialização não pode, pois, reduzir-se a uma dimensão única e neste caso
consiste em gerir esta dualidade irredutível. :,

4.1. A dualidade do social: trabalho e interacção (Hegel); agir instrumental e agir


comunicacional (Habermas)

É necessário um (breve) desvio filosófico para discernir a raiz desta dualidade do


social. Este desvio incide sobre a definição mais geral da socialização na
tradição alemã e sobre as consequências da sua utilização nas ciências sociais.

É num texto da juventude de Hegel — conhecido por Philosophie de l’esprit


d’iéna — que Jurgen Habermas (1967, trad. 1973, pp. 163 e seguintes) afirma
ter encontrado o “fundamento do processo de formação do espírito humano”
que constitui, quanto a si, a primeira formulação sintética da “unidade
problemática do processo de socialização” (Sotializierung*) determinado pela
articulação de “três modelos de formação heterogéneos”.

Este fundamento teórico, que sistematiza “não só as etapas no decorrer do


processo de formação do espírito, mas também os princípios (24) da formação,
foi abandonado por Hegel na sua obra Phénoménologie de l’Esprit para ser
substituído pela célebre divisão enciclopédica em espírito subjectivo, espírito
objectivo e espírito absoluto. Ora, segundo Habermas, a primeira teorização — a
de Iéna — revelou-se, e revela-se ainda, muito mais fecunda do que a segunda.
Não só porque influenciou parcialmente o pensamento de Marx e dos
“hegelianos de esquerda” que se apropriaram de Hegel, abandonando a
identidade do espírito e da natureza no saber absoluto, mas sobretudo porque
inspirou várias correntes importantes das ciências sociais que, de uma forma ou
outra, se referem a esta “teoria dos três mundos” (subjectivo, objectivo, social)
como matriz de uma problemática operatória do processo de socialização
(*sozializierung*), concebido como exteriorização do subjectivo e interiorização
do objectivo na constituição do mundo social. A socialização é definida,
simultaneamente, como “individualização do recém-nascido” e como
“movimento de construção do mundo social”. Esta relação entre o
desenvolvimento dos indivíduos, conducente a “identidades sociais”, e a
estruturação dos sistemas sociais, que servem de suporte a “mundos sociais”,
constitui, segundo Habermas, a problemática fundadora das “ciências sociais
clássicas” — que se encontra tanto em Durkheim (Habermas, 1981, p. 171)
como em Weber (id., p. 210) ou em Marx (id., pp. 208-209). Todos eles
consideram que “a socialização é o processo explicativo primeiro e que só com a
socialização é que há individualização” (id., p. 171).

(24) Sou eu, Claude Dubar, que sublinho.

A nível filosófico, este processo de socialização considerado como formação do


espírito é apresentado por Habermas, retomando Hegel, como a unidade
dialéctica das três mediações entre o sujeito e o objecto, consideradas como “três
modelos de relações dialécticas que têm um valor comparável: a representação
simbólica, o processo do trabalho

e a interacção baseada na reciprocidade” (id., p. 164). :,

A dialéctica da interacção é exposta, em primeiro lugar, a partir da ilustração da


relação amorosa. Na segunda ´Leçon d’iéna, Hegel define o amor como sendo “o
conhecer que se conhece no outro” e, por isso, como resultante de um saber de
“duplo sentido”:

“Cada um é o mesmo que o outro naquilo em que se opõe ao outro. Distinguir-se


do outro é, por isso, para ele, supor-se como sendo o outro, e há ar precisamente
um conhecimento (…) pelo facto de a sua oposição parecer voltar-se para a
identidade para si, dito por outras palavras, ele sabe ser ele mesmo nesta forma
de se ver no outro.” ( 1973, p. 172)

Esta relação de reconhecimento recíproco não é, pois, apresentada por Hegel


como consequência imediata da intersubjectividade, mas como reconciliação de
um conflito anterior e, portanto, resultante de um processo social. Esta luta pelo
reconhecimento encontra a sua expressão mais célebre na dialéctica do mestre e
do escravo da Phénoménologie de l’Esprit. Na Philosophie d’iéna, o jovem
Hegel fala de uma “causalidade do destino”, dando como exemplo a punição que
atinge aquele que destrói uma “relação moral”. A causalidade do destino é
apenas o movimento que faz nascer da “experiência da negatividade da vida
desunida o desejo de um regresso ao que se perdeu, levando a identificar na
existência estranha combatida a sua própria existência negada”. Ela conduz à
definição de identidade como resultado de um reconhecimento reciproco:
“conhecimento do facto que a identidade do eu só é possível graças à identidade
do outro que me reconhece, identidade essa dependente do meu próprio
conhecimento” (id., p. 176).

Esta definição de base da identidade do eu, como “identidade do universal e do


singular”, isto é, daquilo que, em cada um, releva da espécie (universal) e
daquilo que só releva dele próprio (singular), já não se coloca, no jovem Hegel,
como um dado primeiro, uma unidade originária abstracta da consciência pura
ou da percepção como em Descartes ou em Kant, mas como o produto de um
processo conflituoso que implica práticas sociais, relações objectivas e
representações subjectivas. O reconhecimento reciproco é, portanto, o ponto de
chegada possível e não o ponto de partida obrigatório da socialização. No texto
de Hegel, contrariamente ao Cogito cartesiano ou à posição de Kant, que
pressupõe, na sua filosofia prática, a autonomia do sujeito, não há “a
harmonização prévia daqueles que agem no quadro de uma intersubjectividade
sem rupturas”. E não há também, como na Phénoménologie de l’Esprit, a
emergência de um saber absoluto que resuma os conhecimentos parciais e
dependentes dos indivíduos em relação mútua. Segundo Habermas, o jovem
Hegel produz uma problemática fecunda da socialização já que “não relaciona a
constituição do eu com a reflexão de um eu solitário, fechado sobre si próprio,
mas entende esta constituição a partir dos processos da sua formação”.
Consequentemente, o que é importante já não é a reflexão (*cogito*…) enquanto
tal, mas o meio (*Mitte*) onde se desenvolve este processo conflitual de
identificação do universal e do singular. Torna-se necessário ter em conta outras
mediações para a construção do eu. :,
A dialéctica da representação caracteriza o meio no qual se realiza a apropriação
subjectiva do objecto pelo sujeito. Classicamente, Hegel distingue a intuição
imediata povoada “das produções noctumas da imaginação, do império
efervescente e ainda desorganizado das imagens” (id., p. 182), da linguagem que
constitui “a primeira categoria sob os auspícios da qual o espírito já não é
pensado como interior, mas antes como um meio que não está fora nem dentro,
logos de um mundo e não reflexão de uma consciência solitária” (p. 184). Pelo
seu carácter de sistema cultural preexistente a qualquer existência individual e
impondo as suas categorias fundamentais ao indivíduo, a linguagem constitui,
portanto, o primeiro pressuposto de qualquer interacção envolvendo na
comunicação toda uma sociedade e toda uma cultura singulares, ou seja, o que
Hegel chama um “povo”.

“A linguagem só existe como língua de um povo… É o universal, em si mesmo


reconhecido, que ecoa da mesma forma na consciência de todos; qualquer
consciência que fala torna-se de imediato uma outra consciência na linguagem…
É apenas no seio de um povo que a linguagem se torna… expressão do que cada
um pensa.” (p. 193)

No artigo citado (1967), Habermas desenvolve pouco esta mediação pela e na


linguagem. Para ele, a linguagem só ganha sentido no seio dos dois sistemas de
actividades considerados como os mais estruturantes da identidade: a actividade
instrumental — ainda chamada estratégica — que une, à volta dos processos de
trabalho, as finalidades económicas e os meios técnicos e organizacionais para
os atingir, e a actividade comunicacional que estrutura a interacção entre os
indivíduos — e, portanto, a sua identidade — através das práticas de linguagem.
Ao contrário da perspectiva “piagetiana” da socialização da criança (cf. capítulo
1), a dialéctica motriz da socialização não se situa, para Habermas, entre o
organismo e o meio, nem entre a maturação subjectiva do indivíduo e as
incitações objectivas do contexto, mas, como o indica o próprio titulo do artigo,
situa-se na ligação entre o trabalho e a interacção, isto é, situa-se entre a
dinâmica das actividades instrumentais — sistemas de acção racional
referenciados a um fim, segundo a definição de Max Weber — e a natureza das
actividades comunicacionais — sistemas de poder e de legitimidade mas
também de libertação e reciprocidade. Segundo Habermas, “é desta ligação que
depende essencialmente tanto o processo de formação do espírito como o da
espécie” (id., p. 211).

Na apresentação de Habermas, a dialéctica do trabalho ocupa assim uma posição


central. Ao encontrar no jovem Hegel uma construção próxima daquela que
Marx e Engels desenvolveram numa parte essencial da sua obra comum,
Habermas situa, na esfera do trabalho e da troca, a raiz da identidade e da
“institucionalização do reconhecimento reciproco” nas sociedades modernas.
Marx tinha, aliás, reconhecido a Hegel a paternidade desta concepção do
trabalho como “essência do homem”, nomeadamente no célebre texto
Manuscrits de 1844: :,

“O que há de notável na fenomenologia hegeliana… é que Hegel concebe a


auto-construção do homem como um processo. a objectivação como a des-
objectivação, a exteriorização como a superação desta exteriorização, e discerne
a essência do trabalho e compreende o homem objectivo, homem verdadeiro
porque real. resultado do seu próprio trabalho.” (p. 209)

Haberrnas analisa precisamente a relação, realçada por Hegel, entre a


institucionalização da reciprocidade e a troca dos produtos do trabalho: é na
divisão do trabalho e na troca dos produtos do trabalho que está enraizada a
emergência do trabalho abstracto e do dinheiro como equivalente geral, que
fornece o modelo do comportamento recíproco. A forma institucional desta troca
é concretizada através do contrato no qual “a palavra proferida adquire um valor
normativo”. A acção complementar dos actores “mediatizada pelos símbolos que
fixam as expectativas de comportamentos obrigatórios… eis como a relação de
reconhecimento recíproco… é codificada enquanto tal por intermédio de uma
institucionalização da reciprocidade que se situa ao nível da troca dos produtos
do trabalho” (id., p. 196).

Retomada criticamente por Marx, esta problemática constitui o núcleo da teoria


da dialéctica das forças produtivas e das relações sociais de produção
considerada, justamente ou não, como “inversão” da posição hegeliana: a causa
da perturbação dos sistemas de trabalho e da transformação dos modos de
produção reside na contradição entre “o poder de dispor dos processos naturais
acumulados pelo trabalho” (e de os desenvolver para a satisfação das
necessidades sociais) e “o quadro institucional das interacções que obedecem
ainda a regras naturais e constrangedoras” (nomeadamente o poder de decidir a
natureza da produção, da organização e da repartição dos produtos). A dialéctica
forças produtivas/relações de produção em Marx retoma, então, a dialéctica
trabalho/interacção do jovem Hegel, alargando-a e tornando-a historicamente
operatória. Ambos partilham o mesmo ponto de vista, segundo o qual “o
processo de formação”, no decurso da história universal, depende dos
“mecanismos da reprodução da vida social” e estes enraízam-se nas interacções
que se estabelecem durante o trabalho, a que Marx aplica o conceito de “relações
de produção”, matriz da sua análise das classes sociais, das suas lutas e do
processo histórico que dai decorre.

O que Habermas censura no pensamento de Marx — nomeadamente o que


aparece na primeira parte da Idéalogie allemande — é o facto de não explicar a
ligação entre trabalho e interacção de uma forma dialéctica e aberta, reduzindo
“um destes dois momentos ao outro sob o titulo não especificado de prática
social”… e, portanto, reduzindo “a actividade comunicacional à actividade
instrumental” que se torna deste modo “o paradigma que permite produzir todas
as categorias: tudo é absorvido pelo próprio movimento (*Selbsthewegung*) da
produção”. Segundo ele, é esta a razão pela qual “a intuição genial da ligação
dialéctica entre as forças produtivas e as relações de produção constitui o objecto
de uma falsa interpretação de natureza mecanicista” (p. 210) (25). :,

(25) Habermas defende a ideia que não existe teoria operatória da socialização
na obra de Marx uma vez que ele pensa que o desenvolvimento das forças
produtivas determina necessariamente as relações de produção e, por isso,
determina o conjunto das relações sociais ( 1981, p. 212). Esta constatação é
particularmente bem confirmada pela leitura de uma síntese sobre o lugar da
socialização nas abordagens económicas que se reclamam do marxismo (Palloix,
Zarifian, 1981).

Recusando radicalmente — como o Hegel da Philosephie d’iéna, antes da


globalização do espírito humano no saber absoluto — reduzir um destes dois
momentos ao outro (trabalho/forças produtivas e interacção/relações de poder),
Habermas mantém a ideia de uma autonomia irredutível das três mediações
essenciais do processo de socialização, em particular das duas dialécticas
motrizes: a do trabalho e da produção por um lado e a da interacção e do poder
por outro:

“O desenvolvimento das forças produtivas técnicas, que inclui a construção de


máquinas capazes de aprender e de exercer funções de controlo que simulam
todo o espaço de exercício da actividade instrumental muito para além das
capacidades da consciência natural e substituem as realizações humanas, não se
confunde com o facto de nos libertarmos de normas capazes de consumar a
dialéctica da relação moral numa interacção livre, isenta de dominação, na base
de uma reciprocidade vivida sem constrangimentos. A libertação relativamente à
fome e à miséria não coincide necessariamente com a libertação relativamente à
servidão e à humilhação.” (pp. 210-211)

Na esteira de Weber, Habermas distingue quatro conceitos fundamentais de


acção em sociologia: o agir teleológico ou instrumental correspondente à
Zweckrationalitãt de Weber, o agir regulado por normas correspondente à
Wertrationalitãt, o agir dramatúrgico (cf. Goffman) correspondente à Affektual
de Weber e o agir comunicacional definido a partir do processo de interacção
concebido como negociação das “definições de situações” e tradução dos
“mundos vividos” (Habermas, 1981, tomo 1, p. 98 e seguintes). Ele defende a
hipótese da polarização dos modos de acção à volta dos dois extremos e da
passagem da “regulação de acordo com a norma” à “apresentação
comunicacional de si” (tomo 2, pp. 51 e seguintes).

Defende, portanto, a tese da coexistência de dois modos de acção essenciais nas


sociedades modernas: o agir instrumental ou estratégico que estrutura os
processos de domínio da natureza (trabalho) e o agir comunicacional ou
relacional que estrutura os processos de comunicação social (interacção). A
actividade instrumental corresponde, pois, à dialéctica do trabalho e ao universo
das regras técnicas e a actividade comunicacional à dialéctica da interacção e ao
universo das normas jurídicas, radicalmente distinto do da técnica (cf. quadro
4.1.).

Assim, segundo Habermas, não é legítimo (nem “científica” nem “moralmente”)


reduzir os processos de comunicação social (interacção) cujo desafio histórico é
“a libertação das formas de domínio e de dependência e a sua substituição pelas
formas de reconhecimento recíproco” a produtos ou a aspectos dos processos
instrumentais e em particular dos processos de produção (trabalho). A questão da
socialização desenrola-se precisamente, segundo ele, nesta relação entre trabalho
e interacção, isto é, entre processos ou “sistemas” de produção e processos ou
“mundos vividos” das relações sociais, sem :, que, de forma alguma, os
segundos possam reduzir-se aos primeiros. Noutros termos, tanto para Habermas
como para o jovem Hegel, as identidades sociais e, correlativamente, as formas
de relações sociais nas quais estão enraizadas e se exprimem não podem ser
deduzidas dos sistemas de trabalho ou de produção e das “forças produtivas”.
Reduzir os “mundos vividos” e os processos identitários a um aspecto ou um
produto dos “sistemas” é suprimir a questão da socialização e, portanto, retirar
toda a autonomia às ciências sociais (Habermas, 1981, tomo 2, pp. 331 e
seguintes).
Quadro 4.1.

Representação do processo de socialização (*Sozializierung*) segundo


Habermas com base em Hegel (*Philosaphie d’iéna*)

::::::::::::

Categorias — Mundo objectivo — Mundo subjectivo — Mundo social

Mediações entre sujeito e objecto — Dialéctica do trabalho —Dialéctica da


representação — Dialéctica da interacção

Categorias - Utensílios - Símbolos - Relações

Categorias — Actividade instrumental — … — Actividade


comunicacional

Identidades da consciência (momentos da identidade) —Consciência manhosa


(identidade REIVINDCADA) —

Consciência denominação (identidade REPRESENTADA) —

Consciência reconhecida (identidade RECONHECIDA)

Instrumentos de socialização — Regras técnicas — Esquemas cognitivos —


Normas jurídicas

Processo — Exteriorização (*Entfremdung*) Apropriação — Cisão/alienação


(*Entausserung*) Reconciliação

Esfera - Produção - Linguagem - Comunicações

::::::

A crítica de Haberrnas apoia-se, portanto, numa orientação teórica essencial,


orientação essa ligada de um ou de outro modo ao funcionalismo e que postula a
existência de um sistema económico e social concebido como globalidade
integrada e que considera a socialização como um processo de integração auto-
regulada por este sistema. :,

4.2. Socialização comunitária e socialização societária uma leitura de Max


Weber

A importância atribuída à interacção na própria definição do social e a recusa em


considerar “a sociedade” como uma totalidade unificada e funcional
caracterizam uma tradição sociológica de que Max Weber é, sem dúvida, o
teórico mais fecundo, referido por inúmeros sociólogos ainda hoje (26). Cada
um faz dele a sua própria leitura; a que é proposta aqui insiste na dualidade da
socialização concebida como construção de formas sociais significativas mas
diferenciadas.

(26) Um aumento de interesse pelo pensamento de Max Weber manifesta-se em


inúmeros campos da sociologia desde
o principio da década de 80, tendo sido finalmente levada a cabo uma edição
científica das suas obras completas.

Lembremos, antes de mais, a posição complexa de Max Weber no que diz


respeito à própria definição do social como actividade humana dotada de um
sentido subjectivo e “que está ligada ao comportamento de outrem em relação ao
qual orienta o seu desenvolvimento” (1920, trad. 1971, p. 4). Em oposição ao
pensamento de Marx, o de Weber recusa separar as estruturas (Estados,
empresas, sociedades por acção, instituições…) dos sistemas de acção que as
engendraram e que as mantêm em actividade: “as estruturas… são somente
desenvolvimentos e resultados de acções específicas de pessoas singulares,
únicos agentes compreensíveis de uma actividade orientada significativamente”
(p. 12). A questão geral da socialização (*Sozializierung*) não é, pois, separável
para Max Weber da das formas da actividade humana e, nomeadamente, dos
modos de orientação de um comportamento individual em relação aos de
outrem.

Ora, se Max Weber distingue, sistematicamente, nas suas últimas obras, quatro
tipos de acção humana (cf. quadro 4.2.), só opõe duas formas gerais de
orientação dos comportamentos de um indivíduo em relação àqueles de outrem:
aquele a que chama acção comunitária ou “processo de entrada na comunidade”
(*Vergemeinschaftuag*) que traduzimos por “socialização comunitária” e aquele
que chama acção societária ou “processo de entrada na sociedade”
(Vergesellschaftung) que traduziremos por “socialização societária” (27).
Segundo Weber, a diferença essencial entre estas duas “formas fundamentais de
se relacionar com o comportamento do outro” reside no facto de a segunda se
basear em regras (*Ordnuagen*) que foram estabelecidas “de forma puramente
racional tendo em conta a finalidade” (*Zwecirationalitãt*) e que assentam,
portanto, em conformidades subjectivas voluntárias a estas regras, consideradas
como “expressões de interesses comuns mas limitados”, enquanto que a primeira
tem por base expectativas (*Erwartungen*) de comportamentos fundamentados
em hipóteses subjectivas de sucessos que se podem exprimir sob a forma de
“julgamentos objectivos de possibilidade”, vindos do costume ou do respeito
pelos valores partilhados. Enquanto a socialização “comunitária” pressupõe :,
uma colectividade de pertença (*Verband*) e, nomeadamente, uma “comunidade
linguística”, a socialização societária não é mais do que “a expressão de uma
constelação de interesses variados” (p. 365).

(27) Esta formulação evita a utilização de neologismos inúteis (sociação,


societização… ) e, sobretudo, evita que se confunda a socialização em geral
(*sozializierung*) com a socialização societária (Vergesellschaftung).

Quadro 4.2.

Categorias da socialização em Max Weber

::::::

Tipos de acção:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — tradicional/emocional


racional em valor

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) — racional em finalidade

Relação social dominante:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — solidariedade herdada

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) — entendimento por implicação


mútua voluntária

Fundamento da regularidade:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — costume

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) — interesses específicos

Ordem legítima:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — Crença religiosa;


Abandono ao líder; Fé nos valores

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) — convenções; direito

fundamento de legitimidade:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — tradicional/carismática

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) — Legal/racional


Forma dominante de disposição:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — Sentimento de pertença


comum

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) —Compromisso ou coordenação


de interesses motivados racionalmente

Tipos de agrupamentos:

Vergemeinschaftung (Socialização “comunitária “) — Família; Outras


comunidades afectivas; Nação

Vergesellschaftung (Socialização “societária”) - Instituição (Anstalt); Associação


(Verein) ; Empresa (Betrieh)

Fonte: Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, 1920, capítulo I (tradução parcial


Économie et Société, Plon).

:::::::::

Esta distinção weberiana baseia-se explicitamente na célebre oposição


comunidade-sociedade que serviu de título à obra de Ferdinand Tonnies
Gemeinschaft und Geselischaft publicada, pela primeira vez, em 1887 e que
pode ser considerada como um dos primeiros — e dos mais célebres — manuais
de sociologia. Neste texto, F. Tõnnies desenvolve :,

uma oposição radical entre duas formas de agrupamentos (*Verein*) de que uma
(a “comunidade”) é, à partida, definida como “vida orgânica e real”, “vida
comum verdadeira e durável” associada a “tudo aquilo em que se confia, à
intimidade, vivendo exclusivamente em conjunto”, enquanto a outra (a
“sociedade”) é apresentada como “vida virtual e mecânica”, “passageira e
aparente” e associada a “tudo o que é público” e constitui apenas uma “pura
justaposição de indivíduos”.

Não há dúvida que, para Tõnnies, o que constitui o elemento primário, originário
da realidade social e, por isso mesmo, o objecto elementar da sociologia, não é o
indivíduo mas a comunidade definida como “conjunto das relações necessárias e
dadas entre diferentes indivíduos que dependem uns dos outros”, relações
organizadas à volta das três relações fundamentais que são, em sua opinião:
— a relação entre uma mãe e o filho (“a relação maternal mais profunda
enraizada no instinto e no prazer”);

— a relação entre um homem e uma mulher enquanto esposos (“instinto sexual


que só se torna relação social pelo hábito de viver em conjunto”);

— a relação entre irmãos e irmãs descendendo da mesma mãe (“amor fraternal, a


relação mais humana das relações entre os seres humanos”).

A imbricação destas três relações primitivas (filiação, aliança e consanguinidade)


é analisada por Tõnnies como a unidade elementar mais imediata que torna
possível a “comunidade das vontades humanas” por esta tripla aproximação “de
sangue, de ligação e de espírito” que constitui “a raiz de todas as colectividades
humanas” (*Gesamtheit*). Trata-se, para Tõnaies, de uma “forma geral de
vontade comum determinante, que se tornou tão natural como a própria língua” e
só ela é capaz de engendrar os dois sentimentos que estão na base de todo o tipo
de vida comum durável: a concórdia (concórdia: aliança cordial e entendimento
pacifico) e a compreensão (*con-prendere*: um assumir comum e, portanto,
acção colectiva).

Para Tõnnies, esta formação comunitária (Gemeinschaft) opõe-se ponto por


ponto à forma “societária” (Gesellschaft) definida como “grupo de indivíduos
organicamente separados”, no seio do qual “cada um está virado para si, num
estado de tensão relativamente a todos os outros”. Enquanto, na Gemeinschaft,
os indivíduos “permanecem ligados apesar da separação”, na Gesellschaft,
“estão separados apesar da ligação”. Sem ser “natural”, nem produzida pela
“vontade organica”, esta última forma social é analisada por Tõnnies como o
resultado de um processo histórico que é o da emergência da sociedade industrial
e da produção capitalista.

A deslocação operada por Max Weber

Apesar de retomar parcialmente a oposição instaurada por Tõnnies, Max Weber


fá-la funcionar de uma forma completamente diferente. Em primeiro lugar,
enquanto que, para :, o primeiro, as características da comunidade e as da
sociedade constituem representações “realistas” das relações sociais e excluem-
se, pois, mutuamente; para Weber, elas constituem tipos-ideais, produtos de
pontos de vista específicos e não contraditórios sobre o real, razão pela qual em
sua opinião “a grande maioria das relações sociais têm, em parte, o caracter de
uma socialização comunitária e, em parte, o de uma socialização societária”
(1920, p. 42). Assim, qualquer relação “societária” que se desenvolve por um
longo período tende a fazer nascer valores sentimentais característicos da relação
comunitária (Weber toma como exemplo os casos da partilha da mesma unidade
militar, da mesma sala de aula ou da mesma oficina); inversamente, uma relação
predominantemente comunitária pode ser orientada, em parte, no sentido de uma
racionalidade resultante da vontade de todos ou de parte dos seus membros
(Weber cita o exemplo da família “explorada como socialização societária em
certas ocasiões por alguns dos seus membros”). Em segundo lugar, o esquema
analítico de Weber (cf. quadro 1.2.) não opõe dois “estados” sociais estáticos e
fixos como os de Tõnnies mas dois processos dinâmicos de instauração de
relações sociais orientadas por mecanismos diferentes. A socialização societária
não é um condicionamento passivo de pertença a uma sociedade estabelecida,
mas uma modalidade de entrada voluntária nas relações “de tipo societário”.
Assim, afirma Weber, “a participação num mercado cria entre os parceiros
isolados relações societárias já que eles são obrigados a orientar mutuamente o
seu comportamento relativamente aos outros” (id., p. 43). É, pois, a estrutura da
situação de mercado que impõe, aos que querem nela participar, a adopção de
um tipo de relações privilegiadas baseadas na procura de uma optimização do
interesse mútuo.

A última diferença, e não a menos importante, que Weber introduz relativamente


a Tõnnies, é a definição da passagem histórica de uma socialização comunitária
dominante a uma socialização societária dominante encarada como
racionalização social. Recusando qualquer julgamento de valor sobre este
processo de modernização, que ele reconhece historicamente na esfera
económica como na política e na religiosa/cultural, Max Weber analisa-o como a
passagem progressiva de uma forma (28) dominante — mas não exclusiva — de
actividade social orientada por um fim (*Zwectrationalitãt*), para um tipo
dominante — mas não necessariamente hegemónico — de legitimidade política
de tipo racional (legal-racional) e, portanto, a passagem para um processo
dominante de socialização “societária” (Vergesellschaftung) baseado em regras
partilhadas, em função de interesses coordenados e motivados “racionalmente”.

(28) Max Weber vai explicitamente buscar a G. Simmel (1917) a noção de


“forma social” para designar as “formas de socialização”, isto é, em simultâneo
os tipos de organização social e os modos de orientação das acções individuais.

Um dos mecanismos essenciais desta racionalização que instaura novas relações


sociais reside, segundo Weber, na fragmentação do espaço social “em domínios
juridicionais distintos fixados oficialmente e determinados por regras
específicas, isto é, determinados por leis ou regulamentos administrados” (1946,
p. 196). Por oposição à “socialização :, comunitária”, que assume formas
unificadoras e que assenta no ajustamento das pertenças (família, clã, aldeia,
etnia…), a socialização societária implica, de acordo com Weber, uma
dissociação e uma autonomização crescente dos campos de actividade social
cuja configuração depende das relações entre os interesses dos actores
implicados. Esta fragmentação do social é correlativa da burocratização das
instituições, fechadas numa multiplicidade de administrações especializadas e
impessoais encarregadas de aplicar e de elaborar regulamentações cada vez mais
diversas, manifestando, através desta dispersão, a primazia crescente da regra
pela regra. A figura do expert profissional dotado “do monopólio legítimo de
uma competência atestada, baseada na especialização do saber e na delegação de
autoridade legal” (1946, p. 678), torna-se assim o produto típico da socialização
“societária”, mecanismo essencial da racionalização social.

Esta racionalização, traço essencial das sociedades modernas, é apresentada por


Weber como um processo tendencial, constantemente atravessado por crises, e
não como um movimento linear. De facto, tal como o predomínio da
socialização “societária” não acaba com a existência da socialização
“comunitária”, também a racionalização crescente é acompanhada, de acordo
com certas análises weberianas (29), da manutenção de tensões entre a
racionalidade

visando um fim e a racionalidade orientada por valores (Wertrationalitãt), de


tensões entre o poder legal racional e as outras formas de poder, nomeadamente
do poder carismático. Uma tal constatação pressupõe que o processo de
racionalização social seja considerado como um conjunto de tendências não
lineares e não inevitáveis, confrontando-se constantemente com as lógicas
específicas de cada um dos campos de actividade social, progressivamente mais
fechados.

(29) Para uma apresentação sintética destas análises, podemo-nos referir a R.


Nisbot (1966, pp. 107 e seguintes), a J. Habermas (1981, t. 1, pp. 228 e
seguintes) e a R. Raynaud (1987).

Assim, segundo Max Weber, as classes sociais, definidas em termos puramente


“societários” como o conjunto dos indivíduos caracterizados por “oportunidades
comuns de acesso a bens e rendimentos” e, portanto, por “interesses económicos
comuns dependendo das condições dos mercados (dos bens e do trabalho)”, não
eliminam os grupos de estatutos definidos mais em termos “comunitários” como
grupos sociais cujos membros partilham o mesmo estilo de vida e apreendem o
mesmo ritual de distinções sociais, visando manter o seu nível de prestígio. A
socialização “de classe” que é, para M. Weber, um processo voluntário
implicando a entrada em (inter)acção na esfera do trabalho para defender os seus
interesses “económicos”, não elimina — sem por isso a reforçar necessariamente
— a socialização “estatutária” que é predominantemente imposta aos indivíduos
pelo seu contexto e se transfere para a esfera “cultural”. Encontrar-se-ia o
mesmo tipo de coexistência de uma lógica “societária” e de uma lógica
“comunitária” na esfera política dos partidos, no seio dos quais, a
burocratização, longe de eliminar os chefes carismáticos, assegura o seu regresso
periódico que é necessário à mobilização de tipo “comunitário” dos militantes e
dos eleitores. Assim, segundo Weber, se “a diferenciação entre classe, estatuto e
partido só :, foi possível graças a um vasto processo de socialização societária e,
em particular, graças a um quadro político de actividade (o Estado-nação) no
interior do qual operam” (1946, p. 195), pelo contrário, a intervenção
racionalizadora do Estado acentua a dissociação das esferas económicas,
políticas e culturais criando “secções-distintas e autónomas de actividades
comunitárias concorrentes” (id., p. 201).

Assim, pode-se analisar o processo de racionalização ou de modernização como


um processo complexo e aberto baseado em combinações múltiplas entre as duas
formas opostas de socialização — “societária” e “comunitária” — e numa
articulação não funcional entre as três esferas constituídas pela lógica das
actividades de trabalho (“económico”), pela lógica das representações
simbólicas (“culturais”) e pela lógica das estruturas de organização e de poder
(“político”). A tendência histórica que conduziu ao desenvolvimento simultâneo
da lógica “económica” das actividades (optimização dos resultados), da forma
“legal-racional” dos poderes (regulamentação burocrática das relações) e da
estrutura “distintiva” das formas culturais (fechamento e encerrarnento dos
domínios) produz efeitos perversos não desejáveis, que obrigam que a análise
tenha em conta as motivações afectivas e as orientações éticas dos indivíduos, ou
seja, que tenha em conta as formas tradicionais e carismáticas de relações de
poder e as estruturas comunitárias de expressão “cultural”. Mais do que
desembocar num tipo de individualidade única e estereotipada, o movimento de
sociedades modernas conduziria a uma forte diferenciação das identidades de
acordo com todas as possíveis combinações entre lógicas de actividade, formas
de poder e níveis culturais. A relativa autonomia dos diferentes campos e a não
coincidência crescente das posições dos indivíduos nestes campos contribuem
também para o aprofundamento desta diferenciação de identidades.

4.3. A socialização como construção de um eu (*soi/) na relação com o outro


(*autrui*) (G. H. Mead)

É, sem dúvida, George Herbert Mead, na sua obra intitulada Self, Mind and
Society (1934), quem pela primeira vez descreveu, de forma coerente e
argumentada, a socialização como construção de uma identidade social (um self
na terminologia de Mead) na e pela interacção — ou a comunicação — com os
outros. Complementar e não antagonista da perspectiva de Piaget (cf. capítulo 1),
esta teorização tem o mérito de colocar “o agir comunicacional” (e não
“instrumental”) no centro do processo de socialização e fazer depender a lógica
da socialização das formas institucionais da construção do Eu e, nomeadamente,
das relações comunitárias (e não somente “societárias”) que se instauram entre
os socializadores e o socializado.

Como Max Weber, Mead considera que “o facto mais importante é o acto social
que implica a interacção de diferentes organismos, isto é, que implica a
adaptação recíproca das suas condutas na elaboração do processo social” (trad.,
p. 39). O acto elementar é o :, gesto que constitui uma adaptação à reacção do
outro. Mas há dois tipos de gestos. Quando um barulho muito intenso ecoa atrás
de si, você desata a correr (Mead), quando chove, abre o guarda-chuva (Weber):
são gestos reflexos que não implicam nenhuma intenção relativamente a outrem.
Quando alguém lhe estende a mão, você estende-lhe a sua, se ele faz menção de
o agredir com um murro, você recua: são gestos simbólicos (30), “símbolos
significativos que têm um sentido definido” (id., p. 40). Neste último caso, Mead
designa-os por linguagem e define-os a partir do facto de eles fazerem “nascer
implicitamente naquele que os realiza a mesma reacção que produzem,
explicitamente, naqueles a quem eles se dirigem” (id., p. 41). Esta reacção
significativa e simbólica, que “tem a mesma significação para todos os
indivíduos de uma dada sociedade ou de um grupo social” e origina a mesma
atitude naqueles que a realizam e naqueles que a ela reagem, constitui, para
Mead, a origem da consciência ou daquilo que ele designa por espírito (Mind) e
que ele caracteriza como “a adopção da atitude do outro relativamente a si ou
relativamente à sua própria conduta” (id., p. 41).

(30) É esta associação constante da interacção e do simbolismo que faz com que
G. H. Mead seja considerado o fundador do interaccionismo simbólico do qual
encontraremos outros representantes no decurso desta obra.

Segundo Mead, a conversação por gestos está, assim, na origem de qualquer


linguagem, ela é o “modelo” (*pattern*) de qualquer comunicação e “a essência
da significação” já que comporta os dois aspectos de qualquer processo social: a
reacção de adaptação do outro e a antecipação do resultado do acto: “através do
gesto, a significação implica uma referência ao resultado do acto social que
aquele indica ou desencadeia; o outro reage adaptando-se a este gesto: esta
reacção é a significação do gesto”.

Esta análise de base reconcilia a sociologia weberiana com a psicologia


behaviorista na condição de se definir o comportamento (social) como uma
reacção significativa ao gesto do outro. Ela permite a Mead desenvolver uma
análise minuciosa da socialização como construção progressiva da comunicação
do Eu como membro de uma comunidade que participa activamente na sua
existência e, portanto, na sua mudança.

A primeira etapa essencial desta socialização meadiana é a “tomada em conta”


pela criança dos papéis desempenhados pelos que lhe são próximos, aqueles que
Mead chama de “outros significativos”. O papel é justamente este conjunto de
gestos que funciona como símbolos significantes e associados para formar uma
“personagem” socialmente reconhecida. A criança pequena começa a socializar-
se, não imitando passivamente a mãe ou o pai, mas recriando, através de gestos
organizados, com as bonecas o papel da mamã ou o papel do seu papa com as
ferramentas ou o jornal. Muitas vezes, a criança inventa para si um “duplo” com
o qual brinca, assumindo atitudes, trocando de papéis, mudando os seus gestos e
mesmo a sua voz. Estes “companheiros invisíveis e imaginários que a maior
parte (das crianças) criam na sua existência” servem, deste modo, para
“organizar as reacções que elas provocam nos outros e que provocam, assim,
nelas próprias” (id., p. 127). São particularmente importantes para assumir os
diferentes papéis dos “outros significativos” através de “jogos livres” que são,
por si só, o assumir dos papéis. :,

Uma segunda etapa será ultrapassada quando — a partir da entrada para o


jardim-escola — a criança passa do jogo livre para os jogos com regras e deve
ser capaz “de tomar a atitude de qualquer indivíduo que participa na jogada”. A
aprendizagem é longa e progressiva, continuando a criança, muitas vezes, a
brincar sozinha apesar de estar com os outros (cf. Piaget, cap. 1). Quando as
crianças se reúnem para “brincar aos índios”, cada um pode interpretar os papéis
à sua vontade e construir “o seu próprio filme”. Mas se começam um jogo de
futebol, será preciso compreender progressivamente que cada jogador tem um
“papel organizado”, que o guarda-redes fica na baliza e que o defesa deve
protegê-lo, que não se pode sair do campo com a bola, nem marcar golos com a
mão: a criança deverá interiorizar as regras do jogo, isto é, compreender “que a
atitude de um obriga a uma atitude apropriada por parte do outro”. A passagem
do jogo livre, “no qual se assume o papel do outro significativo”, ao jogo com
regras, onde “se respeita uma organização vinda de fora”, pressupõe que se
aceda a uma nova compreensão do outro. Este “outro” já não é um parceiro
singular do qual se assume um papel particular, mas antes é “a organização das
atitudes daqueles que estão comprometidos num mesmo processo social”, a
comunidade, a equipa, o grupo que dá ao indivíduo a unidade do Eu. Mead
chama-lhe “o outro generalizado” e faz da identificação àquele o mecanismo
central da socialização definida como construção do Eu.

A última etapa da socialização consiste, segundo Mead, no reconhecimento


como membro destas comunidades, nas quais a criança progressivamente se
identificou com os Outros Generalizados. Este reconhecimento do Eu implica
que o indivíduo não seja somente um membro passivo do grupo, que interiorizou
os seus “valores gerais”, mas que seja um actor que desempenha no grupo um
“papel útil e reconhecido”. É neste processo que intervém uma dialéctica,
mesmo um desdobramento, entre o “eu” identificado pelo outro e reconhecido
por ele como “membro do grupo” (faço parte da equipa de futebol, vou aos
treinos, paguei a quota, posso dizer: “eu”, membro da equipa X) e o “eu” que se
apropria de um papel activo e específico no seio da equipa e “que reconstrói
activamente a comunidade a partir de valores particulares ligados ao papel que
assume” (eu sou guarda-redes, “bato-me” por ser seleccionado, faço ganhar a
equipa não deixando entrar golos por desleixo e faço progredir uma estratégia
defensiva eficaz). É do equilíbrio e da união destas duas facetas do Eu — o “eu”
que interiorizou “o espirito” do grupo e o “eu” que me permite afirmar-me
positivamente no grupo — que dependem a consolidação da identidade social e,
portanto, o sucesso do processo de socialização. Para Mead, a socialização
desenvolve-se ao mesmo tempo que a individualização: quanto mais se é Eu-
próprio, melhor se é integrado no grupo.

O que importa neste processo é o duplo movimento pelo qual os indivíduos se


apropriam subjectivamente de um “mundo social”, “do espírito” (Mind) da
comunidade a que pertencem e, ao mesmo tempo, se identificam com os papéis,
ao aprender a jogar de uma forma pessoal e eficaz. Na realidade, na educação, ao
identificarem-se aos seus próximos (outros significativos), as crianças começam
por “absorver” o mundo social geral (*Society*) :, mas filtram-no à sua maneira
através de atitudes particulares que, simultaneamente, definem as suas relações
específicas com os outros e seleccionam determinados papéis em detrimento de
outros (bom guarda-redes, bom em Matemática…). Assim, “a criança das
classes populares acabará não só por morar num mundo muito diferente daquele
das crianças das classes superiores, como acabará também por se diferenciar do
seu vizinho, que pertence, apesar de tudo, à mesma classe: através da mediação
dos seus pais ou de um adulto a que se identifica, a criança poderá interiorizar
uma atitude de aceitação do seu destino, de resignação, de ressentimento amargo
ou de revolta febril” (Berger e Luckmann, 1966, p. 192).

A passagem das primeiras identificações aos outros significativos para a


construção de uma identidade social por “abstracção dos papéis” e “identificação
com o Outro Generalizado” não suprime esta tensão entre a pertença, largamente
imposta (“herdada”), a comunidades preexistentes e a selecção activa
(“escolhida”) de papéis socialmente legítimos. É por isso que G. H. Mead insiste
sobre os riscos constantes da “dissociação do Eu” que acompanha a socialização
(op. cit., p. 122): entre um “eu” que implica necessariamente um esforço de
conformidade ao grupo para se fazer (re)conhecer e um “eu” que corre sempre o
risco de ser anulado ou desconhecido pelos outros, o Eu (self) em construção
arrisca-se a ser dissociado entre a identidade colectiva sinónima de disciplina, de
conformismo e de passividade e a identidade individual sinónima de
originalidade, de criatividade, mas também de risco e de insegurança. Apesar de
tudo, a conclusão de Mead acrescenta um elemento importante a Max Weber: se
a sociedade (*Society* sinónimo aqui de gesellschaft) não pode ser construída
sem ser fiel ao espírito (*Mind*) da comunidade (*community* sinónimo de
gemeinschaft) na qual se euraíza, ela só pode fazê-lo através da acção
coordenada de indivíduos socializados (self) que constroem e inventam novas
relações, produtoras de social. Ao socializar-se, os indivíduos criam a sociedade
da mesma forma que reproduzem a comunidade.

4.4. Socialização secundária e mudança social (P. Berger e T. Luckmann)

Na sua obra de síntese consagrada à socialização (1986, trad. 1966), Peter Berger
e Thomas Luckmann (B. L.) retomam e aprofundam as análises de Mead,
introduzindo uma distinção interessante entre socialização primária e
socialização secundária.
Na sua análise da socialização primária, introduzem no esquema meadiano a
problemática dos saberes elaborada pela corrente fenomenológica e,
nomeadamente, por Alfred Schütz (ed. 1967). A socialização define-se, antes de
mais, pela imersão dos indivíduos naquilo que chama “mundo vivido”, o qual é,
simultaneamente, um “universo simbólico e cultural” e um “saber sobre este
mundo”. A criança absorve o mundo social no qual vive “não como um universo
possível entre outros, mas como o mundo, o único mundo :, existente e
concebível, o mundo tout court“. Fá-lo a partir de um saber (31) de base que é,
segundo Schütz, quer pré-reflexivo quer pré-dado, e que funciona como uma
evidência, mas também como uma reserva de categorias com a ajuda das quais:

(31) O termo inglês knowledge deve antes ser traduzido pelo termo “saber” do
que por “conhecimento”.

— “programa” os esquemas pelos quais o indivíduo percepciona o mundo


objectivo;

— objectiva o mundo exterior no interior de uma linguagem e de um aparelho


cognitivo nela fundado;

— ordena, a partir do interior da linguagem, objectos que são apreendidos


enquanto realidades;

— fornece a estrutura no interior da qual tudo aquilo que ainda não é conhecido
acabará por ser mais tarde conhecido (B. L., p. 94).

É a incorporação deste “saber de base” na e com a aprendizagem “primária” da


linguagem (falar, depois ler e escrever) que constitui o processo fundamental da
socialização primária porque assegura em simultâneo “a posse subjectiva de um
eu e de um mundo” e, portanto, a consolidação dos papéis sociais redefinidos
por B. L. como “tipificações de condutas socialmente objectivadas”, isto é,
simultaneamente “modelos predefinidos de condutas típicas” e códigos que
permitem a definição social das situações, ou seja, “que no quadro de uma
situação comum são pertinentes tanto aos olhos de ego como do outro”. Estes
saberes de base, objectos da socialização primária, dependem essencialmente das
relações que se estabelecem entre o mundo social da família e o universo
institucional da escola e são, simultaneamente, “campos semânticos” que
permitem categorizações de situação e “programas de iniciação formalizados”
que permitem a construção e a antecipação de condutas sociais. A escola
assegura, com efeito, a legitimação de certos saberes sociais em detrimento de
outros — favorecendo assim certos tipos de famílias —, e tem assim um papel
decisivo na distribuição dos saberes. Nesta problemática, não restam dúvidas de
que os saberes de base incorporados pelas crianças dependerão não só das
relações entre a família e o universo escolar, mas também da sua própria relação
com os adultos, que asseguram a sua socialização. A chave essencial de
compreensão dos mecanismos e dos resultados da socialização primária é, assim,
a valorização que é feita dos diferentes saberes possuídos pelos diferentes
adultos “socializadores” e das relações que estabelecem com os diversos
“socializados”.

Mas o interesse essencial do texto de Berger e Luckmann reside na tentativa de


construir uma teoria operatória da socialização secundária que não é uma
simples reprodução dos mecanismos da socialização primária. Se é certo que a
obra de B. L. integra algumas fórmulas que podem ser interpretadas neste último
sentido (“a estrutura de base de qualquer socialização secundária deve
assemelhar-se à da socialização primária”, p. 180), a economia geral do texto
conduz a uma teorização muito mais original. :,

De facto, é possível propor a dupla hipótese: por um lado, “a socialização nunca


é completamente conseguida” (p. 146) e, por outro, “a socialização nunca é total
nem acabada” (p. 188). Portanto, é preciso dar um lugar importante à
socialização secundária provisoriamente definida como “interiorização de
submundos institucionais especializados” e “aquisição de saberes específicos e
de papéis directa ou indirectamente enraizados na divisão do trabalho” (p. 189).
Antes de mais, trata-se da incorporação de saberes especializados — que
chamaremos saberes profissionais — que constituem saberes de um novo
género. São maquinismos conceptuais que têm subjacentes um vocabulário,
receitas (ou fórmulas, proposições, procedimentos), um programa formalizado e
um verdadeiro “universo simbólico” veiculando uma concepção do mundo
(*Weltsanschauung*) mas que, contrariamente aos saberes de base da
socialização primária, são definidos e construídos por referência a um campo
especializado de actividades e são, portanto, “situados diversamente no interior
do universo simbólico enquanto globalidade” (p. 191). A aquisição destes
saberes pressupõe a socialização primária anterior e coloca, à partida, “um
problema de consistência entre as interiorizações originais e novas”. Aqui, vários
casos são possíveis desde o simples prolongamento da socialização primária por
uma socialização secundária cujos conteúdos concordam, simultaneamente, com
o “mundo vivido” pelos membros de família de origem e, portanto, com os
saberes construídos anteriormente, até à transformação radical da realidade
subjectiva construída aquando da socialização primária. A análise
pormenorizada deste último caso pressupõe que a socialização secundária possa
constituir uma ruptura em relação à socialização primária como, por exemplo,
quando “a criança com mais idade acaba por reconhecer que o mundo
representado pelos seus pais, este mesmo mundo que considerou anteriormente
pré-dado, é, de facto, o mundo das pessoas sem educação, o mundo das classes
inferiores” (B. L., p. 194). A tese defendida pelos autores é que, neste caso, “é
preciso vários choques biográficos para desintegrar a realidade massiva
interiorizada durante a primeira infância” (p. 195). Estes, ao acompanharem um
duplo processo de “mudança de mundo” e de “desestruturação/reestruturação de
identidade”, pressupõem, para terem êxito, as condições seguintes:

— um assumir de “distanciamento de papéis” que inclui uma disjunção de


“identidade real” e de “identidade virtual” (Goffman, 1963);

— técnicas especiais que asseguram uma forte identificação ao futuro papel


visado, um forte compromisso pessoal (*commitment*);

— um processo institucional de iniciação que permite uma transformação real


da “casa” do indivíduo e uma implicação dos socializadores na passagem de uma
“casa” para a outra;

— a acção continua de um “aparelho de conversação” que permite manter,


modificar e reconstruir a realidade subjectiva incluindo uma “contradefinição da
realidade” (transformação do mundo vivido pela modificação da linguagem); :,

— a existência de uma “estrutura de plausibilidade“, isto é, de uma instituição


mediadora (“o laboratório de transformação”), que permita a conservação de
uma parte da identidade antiga acompanhando a identificação a novos outros
significativos, percepcionados como legítimos.

Estas condições serão tanto mais importantes e difíceis de reunir quanto maior
for a distancia entre os conteúdos da socialização primária e os da socialização
secundária. Quando a ruptura é notória, assiste-se a verdadeiras “alternações”,
isto é, a transformações totais da identidade; assiste-se a situações de
“alteridade” do indivíduo no decorrer da socialização secundária. “O protótipo
histórico da alternação é a conversão religiosa” (B. L., p. 215). Esta só pode
perdurar no seio de uma comunidade religiosa que tem capacidade para criar
todas as condições precedentes e, nomeadamente, constituir uma estrutura eficaz
de plausibilidade que assegura a separação do convertido dos seus antigos
correlegionários “pelo menos no decurso da fase essencial da iniciação”.

Os autores assinalam dois outros exemplos típicos de “alternação” que envolvem


procedimentos complexos de socialização secundária: o endoutrinamento
político e a psicoterapia. Nos dois casos, o desafio do processo, isto é, a
transformação de identidade, depende da articulação duradoira de um “aparelho
de legitimação” e de uma “reinterpretação da biografia passada”, à volta de uma
estrutura do tipo “antigamente pensava… agora sei”. A ruptura biográfica deve
poder ser vivida e legitimada como uma “separação cognitiva entre trevas e luz”,
o que pressupõe que o trabalho “biográfico” de redefinição dos acontecimentos
passados possa inscrever-se no quadro de um “aparelho de conversação”, ele
próprio inserido numa estrutura legitimadora de plausibilidade: a reunião de
célula ou a cura psicanalítica podem corresponder, por exemplo, a estas
exigências.

Esta abordagem da socialização “secundária” como conversão da identidade e do


mundo social coloca duas questões que não são resolvidas no texto citado:

1. Existirão estruturas sociais ou tipos de sociedade que implicam, da parte dos


seus membros, rupturas sistemáticas entre socializações primária e secundária?

2. Em que é que o “sucesso” de uma socialização secundária está ligado às


condições e aos resultados da socialização primária?

O desencadear de uma socialização secundária em ruptura com a socialização


primária é associado, pelos autores, a dois tipos de situações muito diferentes. A
primeira é aquela na qual a socialização primária não foi conseguida por várias
razões (acidentes biográficos, etc.): a socialização secundária permite então
construir uma identidade mais satisfatória — ou simplesmente mais consistente
— do que aquela produzida pela socialização primária. A segunda circunstância
— que é apenas evocada - é aquela onde as identidades anteriores se tornam
“problemáticas“, onde as identificações aos outros significativos se tornam
débeis, e até inexistentes, e onde se cria um “mercado dos mundos disponíveis”
(B. L., p. 234) acompanhado por uma “consciência geral da relatividade de todos
os :, mundos”. Esta situação é particularmente provável num “contexto socio-
estrutural com uma mobilidade acentuada, com uma transformação da divisão do
trabalho e da distribuição social dos saberes”. Nestas situações, a questão da
socialização secundária torna-se um problema essencial colocado pela
transformação do trabalho, dos saberes e das relações sociais. Ela já não está
ligada aos insucessos da socialização primária, mas sim às pressões exercidas
sobre os indivíduos para modificar as suas identidades e as tornar compatíveis às
mudanças em curso. A construção de um aparelho de socialização secundário
eficaz torna-se então um desafio essencial ao êxito do processo de mudança
social.

A relação entre “sucesso” da socialização secundária e “condições” da


socialização primária constitui um dos pontos cruciais da teoria. Embora
recusando qualquer determinação mecânica da socialização primária sobre a
socialização secundária, não podem considerá-los como totalmente
independentes. A socialização secundária nunca apaga totalmente a identidade
“geral” construída no final da socialização primária. Em condições institucionais
bem precisas ela pode, contudo, transformar uma identidade “especializada”
numa outra, se bem que muito diferente. Impõe-se precisar que relações unem a
identidade “geral” (e o “mundo” correspondente) vinda da socialização primária
e as identidades “especializadas” (e os “mundos” associados) construídas,
desconstruídas e reconstruídas no decurso da socialização secundária. Esta
questão da articulação das identidades “especializadas” (profissionais, culturais,
políticas…) no seio de uma identidade “global” (individual e social, Self and
Society de acordo com as categorias de Mead) não é a priori resolvida pela
abordagem fenomenológica: só pode ser descrita empiricamente, verificada mas
não teorizada (cf. capítulo 5).

Apesar desta limitação, a problemática da “construção social da realidade”


permite abordar a questão da socialização numa perspectiva da mudança social e
não somente da reprodução da ordem social. Ao relacionar a questão da
diferenciação do social em “esferas” especializadas dotadas de uma autonomia
cada vez maior à constatação da tendência para a formação se generalizar ao
conjunto da existência biográfica, esta teoria permite definir a mudança social
como um processo conjunto de “construção de um mundo específico” e de
“transformação de uma identidade especializada” e, portanto, da socialização
secundária em ruptura com a socialização primária.

Esta possibilidade de mudança social “real” — isto é, não reprodutora das


relações sociais e das identidades anteriores — depende, antes de mais, das
relações entre os aparelhos de socialização primária e secundária, ou seja,
depende das relações entre as instituições de legitimação dos saberes “gerais”
(de base) que asseguram a construção dos “mundos sociais” na infância e os
sistemas de utilização e de construção dos saberes “especializados” que
legitimam a reconstrução permanente dos “mundos especializados”. Estes
aparelhos de socialização já não podem ser considerados como órgãos
funcionalmente integrados numa globalidade social (como nas teorias
funcionalistas): possuem uma autonomia crescente e contribuem para a
construção de “mundos” diferenciados à volta de saberes cada vez mais
dissociados. A coerência e a hierarquização dos saberes já :,

não são garantidas por uma instancia única de controlo social e de legitimidade
cultural. Assim sendo, os aparelhos de socialização primária (famílias,
escolas…) entram em interacção com os aparelhos de socialização secundária
(empresas, profissões…) provocando crises de legitimidade dos diversos saberes
e das transformações possíveis dos “mundos legítimos”. A mutação dos sistemas
de trabalho e de produção, e mais geralmente de acção instrumental, pode assim
ser acompanhada de socializações secundárias que põem em causa as hierarquias
e os saberes da socialização primária, nomeadamente através de uma mudança
das interacções, das relações sociais, em suma, através da acção
comunicacional. Esta mudança social implica que o processo de diferenciação
social e de autonomização dos campos da prática social — nomeadamente da
acção instrumental de tipo “económico” — possa entrar em contradição com o
processo de reprodução das instituições educativas e, nomeadamente, das
relações de autoridade, de domínio e de poder que caracterizam a acção
comunicacional ou de tipo “relacional”. Esta contradição só se pode analisar em
relação com os conflitos sociais que opõem grupos ou “actores” sociais
definidos não só pelo seus interesses “estratégicos”, mas também pelas suas
identidades “culturais”. É, de facto, graças à transformação possível das
identidades na socialização secundária que se podem pôr em causa as relações
sociais interiorizadas ao longo da socialização primária: a possibilidade de
construir outros “mundos” para além daqueles que foram interiorizados na
infância está na base do sucesso possível de uma mudança social não
reprodutora.

Subjectivamente, a mudança social é, portanto, inseparável da transformação das


identidades, isto é, é simultaneamente inseparável dos “mundos” construídos
pelos indivíduos e das “práticas” que decorrem destes “mundos”. Estando
orientada fundamentalmente para a formação da identidade social, a socialização
primária só pode ser bem sucedida se tiver subjacente um processo de
incorporação da “realidade tal qual ela é” (Mead), de adaptação ao “princípio de
realidade” que implica a renúncia ao “principio de prazer” (Freud), de integração
na sociedade existente e nas suas “relações sociais de produção e de reprodução”
(Marx). Só a socialização secundária pode produzir identidades e actores sociais
orientados pela produção de novas relações sociais e susceptíveis de se
transformarem elas próprias, através de um acção colectiva eficaz, isto é,
duradoira. É por esta razão que qualquer análise dos processos e condições da
mudança ou da inovação se confronta com a questão da aprendizagem colectiva
pelos actores das capacidades de “invenção de novos jogos, de novas regras e de
novos modelos relacionais” (Crozier-Friedberg, 1977, pp. 338 e seguintes). Para
isso não basta abrir os “espaços de jogos”, criando “zonas de incerteza” que
permitam os “investimentos estratégicos”; é necessário também assegurar a
existência de um aparelho de formação (socialização secundária), que permita a
transformação das identidades de actor num sentido que não se limite à
reprodução ou adaptação das identidades anteriores, mas que permita envolver-
se numa verdadeira criação institucional (Sainseulieu, 1987). Trata-se, pois, de
inventar novas regras federativas, novos colectivos (Reynaud, 1989). 0
sindicalismo pode constituir, por exemplo, um aparelho de socialização
secundária, permitindo a transformação das identidades “dominadas” em
identidades :,

“militantes”, que resistem à dominação e que contribuem para a produção de


novas regras do jogo. As empresas “inovadoras” procuram hoje aplicar ou
controlar um aparelho de socialização deste tipo que permite transformar
identidades de executivos em identidades de “assalariados mobilizados” (cf.
terceira parte). Nestes dois casos, a transformação da socialização e das
identidades parece constituir uma condição primordial para o sucesso da
mudança social. Nesta problemática que se apoia na articulação da socialização
primária com a secundária, a reprodução social das identidades aparece como
um resultado entre muitos outros — o resultado mais provável na maior parte
das sociedades que não estão declaradamente em crise — desta articulação que
corresponde a uma homologia acentuada entre os aparelhos de socialização e a
uma acentuada continuidade das identidades. Quando a socialização secundária
transforma as identidades provenientes da socialização primária, as relações
entre “mundos gerais” e “mundos especializados” tornam-se instáveis e podem
evoluir quer para uma crise durável quer para uma conversão do mundo social à
volta do “mundo especializado” construído na socialização secundária. Por fim,
é preciso ter em conta os casos em que não tendo a socialização inicial
estruturado a identidade social, a socialização secundária, se não puder construir
uma identidade especializada, leva a uma desestruturação durável dos indivíduos
e à sua exclusão do espaço social. Na articulação dos grandes tipos de acção
(Weber) com os mecanismos de aprendizagem (Piaget) e com as relações entre
trajectórias e sistemas (Bourdieu), encontramos quatro “modelos de
socialização” que correspondem à hipótese fundamental do dualismo social em
que se baseia todo este capítulo.

4.5. Uma perspectiva “compreensiva” da socialização

O último elo necessário para a elaboração teórica consistia em encontrar “a


entrada” principal para o fenómeno identitário concebido como produto da
socialização. Esta entrada é fornecida pelo esclarecimento fenomenológico e
compreensivo, complemento estritamente indispensável do ponto de vista causal
desenvolvido no capítulo precedente: é através da análise dos “mundos”
construídos mentalmente pelos indivíduos a partir da sua experiência social que
o sociólogo pode reconstruir melhor as identidades típicas pertinentes num
campo social específico. Estas “representações activas” estruturam os discursos
dos indivíduos nas suas práticas sociais “especializadas” graças ao domínio de
um vocabulário, à interiorização das “receitas”, à incorporação de um
“programa”. Em resumo, graças à aquisição de um saber legítimo que permite,
ao mesmo tempo, a elaboração de “estratégias práticas” e a afirmação de uma
“identidade reconhecida”. As dimensões mais significativas destas
representações activas são:

— a relação com os sistemas, com as instituições e com os detentores dos


poderes directamente implicados na vida quotidiana envolve a implicação e o
reconhecimento do indivíduo, o “envolvimento” e o “desinteresse”, a
participação ou a contestação, a identidade virtual reivindicada e a identidade
realmente reconhecida; :,

— a relação com o futuro do sistema e com o seu próprio futuro envolve as


orientações estratégicas que resultam da apreciação das capacidades e das
oportunidades, da interiorização da trajectória e da história do sistema;

— a relação com a linguagem, isto é, com as categorias utilizadas para descrever


uma situação vivida, ou seja, o modo de articulação dos constrangimentos
externos e dos desejos internos, das obrigações exteriores e dos projectos
pessoais, das solicitações do outro e das iniciativas do eu.

É, pois, na compreensão interna das representações cognitivas e afectivas,


perceptíveis e operacionais, estratégicas e identitárias que reside a chave da
construção operatória das identidades. Esta construção só pode ser feita a partir
das representações individuais e subjectivas dos próprios actores. Implicando o
reconhecimento (ou o não-reconhecimento) de outrem, constitui necessariamente
uma construção conjunta. Efectivamente, a representação como dimensão da
identidade não preexiste totalmente ao discurso que a exprime. Ela constitui
“uma actividade mimética na medida em que produz qualquer coisa, a saber,
justamente a recomposição dos factos através da intriga” (Ricaeur, 1985). É esta
passagem do “representado” ao operatório, do passivo ao activo, do “já
produzido” ao “em construção” que permite definir as identidades como
dinâmicas práticas e não como “dados objectivos” ou “sentimentos subjectivos”.

Devido ao seu enraizamento nos dois tipos de agir social (a acção instrumental
“estratégica” que pressupõe um olhar sobre o mundo, uma categorização activa e
o agir comunicacional “expressivo” que pressupõe a partilha de uma linguagem,
de um código e do seu uso nas relações directas), estas representações activas
envolvendo os diversos tipos de saber constituem os melhores indicadores
possíveis das identidades sociais, resultados simultaneamente estáveis e
provisórios de um processo de socialização concebido em termos estratégico e
comunicacional.

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Para uma teoria sociológica da identidade

O recurso à noção de identidade, para concluir esta primeira parte consagrada às


teorias da socialização, decorre do capítulo precedente constituindo, ao mesmo
tempo, um empreendimento perigoso pois que, como afirma Erikson, “quanto
mais se escreve sobre este tema, mais as palavras instauram uma limitação à
volta de uma realidade tão insondável como invasora de todo o espaço” (1968, p.
5). A conceptualização esboçada neste capítulo recusa a distinção da identidade
individual da colectiva (Tap, 1980) para fazer da identidade social uma
articulação entre duas transacções (cf. capítulo 1): uma transacção “interna” ao
indivíduo e uma “externa” estabelecida entre o indivíduo e as instituições com as
quais interage (cf. capítulo 4). A abordagem que serve de base a este capítulo dá
uma importância tão grande aos processos “culturais” (cf. capítulo 2) como às
estratégias de ordem “económica” (cf. capítulo 3). Empenha-se particularmente
em salientar e definir categorias de análise (cf. quadro 5.1.) que sejam
operatórias para as pesquisas empíricas (cf. terceira parte).

5.1. No ponto de partida: a dualidade no social

As teorias apresentadas no capítulo precedente levam a considerar a divisão do


Eu como a forma primordial de manifestação da identidade (Laing, 1961, p. 25).
Aqui, é preciso voltar à psicanálise e às suas contribuições mais sólidas.
Lembremos que, para Freud, o Eu é, simultaneamente, uma instancia defensiva
das agressões do real exterior, uma :,
“agência” de coerência das representações e de adaptação à realidade e uma
organização de investimento libidinal. O tu é atravessado por conflitos
permanentes entre o Id, que comporta todos os desejos recalcados, e o Superego,
sede das normas e das interdições sociais (Freud, 1913, trad. pp. 105 e
seguintes). Foi, sem dúvida, Lacan que na sua leitura de Freud mais insistiu
nesta “discordância primordial na relação do organismo com a sua realidade”
(Lacan, 1966, p. 93), nesta “subversão do sujeito” na sua actividade desejadora
(id., 1971, pp. 151 e seguintes), que ele localiza no estádio do espelho e na
experiência precoce da criança (“antes que o Eu se objective na dialéctica da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua no universal a
função de sujeito”, id., p. 90) experimentando, na sua imagem, “a sua
discordância com a sua própria realidade”. Esta interpretação da descoberta mais
importante de Freud — “a estrutura do sujeito como descontinuidade no real” —
parece opor-se a outras leituras (32) mais “humanistas” e mais “optimistas”
como, por exemplo, a de Erikson, que define a identidade do Eu desta forma:
“sentimento subjectivo e tónico de uma unidade pessoal (*sameness*, traduzida
normalmente por similitude) e de uma continuidade temporal que constitui o
princípio mais profundo de qualquer determinação à acção e para o pensamento
que eu possuo” (1968, p. 14). O autor apoia-se, nomeadamente, numa carta de
Freud (1926) reivindicando a sua identidade judaica muito bem definida como
“intimidade de uma estrutura psíquica comum bem protegida” (Erikson, p. 16).
As duas posições precedentes não são apesar disso contraditórias já que Erikson
insiste no facto de a “identidade nunca estar instalada, nunca estar acabada já
que aquilo que envolve o Eu é instável” (p. 20) e que os indivíduos atravessam
obrigatoriamente crises de identidade ligadas a “fissuras internas do eu” (33)
(id., p. 87).

(32) Para uma síntese das abordagens psicanalíticas da identidade, podo-se ler a
síntese de J. Cain (1967) intitulada significativamente: Le double jeu.

(33) Erikson interessou-se particularmente pela crise da adolescência, a


propósito da qual elaborou uma teoria próxima daquela que está esboçada aqui.

A divisão intrínseca à identidade (34) tem de, finalmente e sobretudo, ser


esclarecida pela dualidade da sua própria definição: identidade para si e
identidade para o outro são inseparáveis e estão ligadas de uma forma
problemática. Inseparáveis porque a identidade para si é correlativa do Outro e
do seu reconhecimento: eu só sei quem eu sou através do olhar do Outro.
Problemáticas porque “a experiência do outro nunca é directamente vivida por
si… de tal forma que nos apoiamos nas nossas comunicações para nos
informarmos sobre a identidade que o outro nos atribui… e, portanto, para
forjarmos uma identidade para nós próprios” (Laing, p. 29). Ora, todas as nossas
comunicações com os outros são marcadas pela incerteza: posso tentar pôr-me
no lugar dos outros, tentar adivinhar o que pensam de mim, até imaginar o que
pensam que eu penso deles, etc. Não posso colocar-me na sua pele. Eu nunca
posso ter a certeza que a minha identidade para mim coincide com a minha
identidade para o Outro. A identidade nunca é dada, é sempre construída e a
(re)constroir numa incerteza maior ou menor e mais ou menos durável. :,

(34) Poder-se-ia também ligar Erikson à teória durkheimiana do homo duplex


(ser individual/ser social) resumida,

nomeadamente, em éducation et Socialogie* (1911). Quanto às convergências e


divergências entre esta teoria e as

de Freud, cf. Bastide (1950).

Assim vista, será que a noção de identidade pode ser incluída numa perspectiva
sociológica? Certamente que não se nos mantivermos numa perspectiva
fenomenológica da relação interindividual Eu-Outro, ou numa perspectiva
psicanalítica redutora que considera o Eu como o elemento de um sistema
fechado em relação dinâmica mas “interna” com o Id e o Superego que rejeita no
“ambiente envolvente” o conjunto das instituições e das relações sociais (35).
Certamente que

(35) “A psicanálise nunca conseguiu conceptualizar o ambiente envolvente de


uma forma operatória” (Eritson, op. cit., p. 20).

sim se restituirmos esta relação identidade para si/identidade para outro ao


interior do processo comum que a torna possível e que constitui o processo de
socialização. Deste ponto de vista, a identidade não é mais do que o resultado
simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e
objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que,
em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições. Que traz, então,
esta noção a mais ou de diferente do que as noções de grupo, classe ou categoria,
utilizadas numa perspectiva macrossocial ou que as noções de papel e de estatuto
definidas a partir de uma perspectiva microssocial? A resposta parece clara: tenta
introduzir a dimensão subjectiva, vivida, psíquica no âmago da análise
sociológica. Esta noção de identidade introduz esta hipótese paradoxal que
inverte de qualquer maneira as posições psicanalíticas “correntes” que opõem o
Eu e o seu sistema “interior” (Id, Superego…), considerado essencial ao
Ambiente e à sua organização “externa” que é muitas vezes considerada não
essencial (36): “a ironia da situação é que

(36) Não era a posição do próprio Freud que escreve: “Todas as relações que
foram até agora objecto de investigações psicanalíticas podem, de direito, ser
consideradas como fenómenos sociais” (Freud, trad. 1981, p. 76). Portanto, seria
preciso diferenciar e distinguir as diversas correntes psicanalíticas; já que os
escritos mais sociológicos de Freud foram considerados, durante muito tempo,
pela maioria dos psicanalistas como os menos científicos e os menos pertinentes
(cf. Enriquez, 1983, pp. 32 e seguintes).

aquilo que eu considero a mais pública realidade é considerada pelos outros


como o meu fantasma mais pessoal e que aquilo que eu suponho ser o meu
mundo “interior” mais intimo revela-se como o que possuo de mais em comum
com os outros” (Laing, p. 42). Esta inversão que faz “do mais íntimo” aquilo que
também é “o mais social” não elimina a divisão do Eu como realidade originária
da identidade: ela instala-o no próprio social (37), abordando-o através da
expressão individual dos “mundos subjectivos” que são, simultaneamente,
“mundos vividos” e “mundos expressos”, portanto, mundos susceptíveis de
serem apreendidos empiricamente (Dubar, 1990\b). Esta inversão justifica-se
pela tentativa de compreender as identidades e as suas eventuais fracturas como
produtos de uma tensão ou de uma contradição interna ao próprio mundo social
(entre o agir instrumental e o comunicacional, o societário e o comunitário, o
económico e o cultural, etc.) e nunca em primeiro lugar como resultados do
funcionamento psíquico e dos seus recalcamentos biográficos. :,

(3) Cuja estrutura é, simultaneamente, o produto e o reflexo das estruturas


cognitivas e relacionais dos seus membros (Lévi-Strauss, 1977).

5.2. No centro da teoria: uma articulação de dois processos identitários


heterogéneos

A divisão do Eu como expressão subjectiva da dualidade do social aparece


claramente através dos mecanismos de identificação. Cada um é identificado por
outro, mas pode recusar esta identificação e definir-se de outra forma. Nos dois
casos, a identificação utiliza categorias socialmente disponíveis e mais ou
menos legítimas a níveis diferentes (nomeações oficiais de Estado,
denominações étnicas, regionais, profissionais… até diferentes
idiossincrasias…). Chamaremos actos de atribuição aos que visam definir “que
tipo de homem (ou de mulher) você é”, isto é, a identidade para outro; actos de
pertença aqueles que exprimem “que tipo de homem (ou de mulher) você quer
ser, isto é, a identidade para si”. Não há correspondência necessária entre “a
identidade predicativa de si” que exprime a identidade singular de uma dada
pessoa, com a sua história individual vivida, e as identidades “atribuídas por
outro”, quer se trate das identidades numéricas que vos definem oficialmente
como ser único (estado civil, códigos de identificação, números de ordem…),
quer se trate das identidades genéricas que permitem aos outros classificarem-
vos como membros de um grupo, de uma categoria, de uma classe. Contudo, a
identidade predicativa de si reivindicada por um indivíduo é “a condição para
que esta pessoa possa ser identificada genérica e numericamente por outros”
(Habermas, 1981, tomo II, p. 115). É, efectivamente, pela e na actividade com
outros, implicando um sentido, um objectivo e/ou uma justificação, uma
necessidade (um “fim”, um-zu-Motiv, ou uma “causa”, um-zu-Welt* no
vocabulário de Alfred Schütz, pondo bem em destaque a dualidade social), que
um indivíduo é identificado e é conduzido a aceitar ou recusar as identificações
que recebe dos outros ou das instituições. Pensamos na análise exemplar de
Howard Becker sobre a génese do comportamento desviante, a partir dos seus
estudos sobre os fumadores de marijuana e os músicos de jazz: a identidade
desviante forja-se no decurso de um processo (*career*) que constitui uma
“transacção entre um grupo e um indivíduo considerado pelo grupo como tendo
transgredido uma norma”. Não é apenas a transgressão, mas também e sobretudo
a etiquetagem (*labelling*) pelos outros que produz, segundo Becker, o desvio.
Assim, o autor, prosseguindo a sua análise, conclui que a identidade desviante é
o produto de uma transacção entre a identificação imposta por outro e a
subcultura do grupo desviante (Becker, 1963, p. 36), chegando a fazer do acto
desviante a causa do seu estatuto principal, isto é, aquele através do qual o
próprio desviante se define e ao qual se identifica activamente (*commitrnent*).

Assim, o célebre teorema de Thomas, principio da predição criativa, de acordo


com o qual “quando os homens consideram certas situações como reais, estas
são reais nas suas consequências” e segundo o qual se realiza “uma modelagem
do indivíduo a partir da imagem que os outros têm dele e da definição que dão
dele” (Merton, 1950, pp. 140 e seguintes), só pode ser operatório se incluir a
questão da transacção entre a identidade :, atribuída e a identidade aceite (ou
recusada) pelo indivíduo em causa (38). Não se pode, por exemplo, considerar
como equivalente um processo pelo qual um toxicómano definido como tal
reivindica a sua identidade de drogado (Becker) e o processo pelo qual o aluno
com insucesso escolar interioriza as predições dos seus professores (Rosenthal et
Jacobson, 1968), a não ser na condição de termos verificado empiricamente que
um e outro se definem eles próprios conforme as predições de outros.

(35) Encontra-se uma outra análise exemplar desta transacção identitária


resultante de uma etiquetagem (“És um ladrão”) no texto muito belo de Sartre,
consagrado à biografia de Jean Genet (Sartre, 1952).

Encontramo-nos aqui perante dois processos heterogéneos que algumas teorias


sociológicas têm tendência, sem demonstração convincente, a reduzir a um
mecanismo único (cf. capítulo 3). O primeiro diz respeito à atribuição da
identidade pelas instituições e pelos agentes directamente em interacção com o
indivíduo. Não pode analisar-se fora dos sistemas de acção nos quais o indivíduo
está implicado e resulta de “relações de força” entre todos os actores implicados
e da legitimidade — sempre contingente — das categorias utilizadas. A
“construção” legítima destas categorias constitui um desafio essencial neste
processo que, uma vez concluído, se impõe colectivamente, pelo menos durante
um certo tempo aos actores implicados. O processo leva a uma forma variável de
etiquetagem, produzindo o que Goffman chama as identidades sociais “virtuais”
dos indivíduos assim definidos (Goffman, 1963, p. 57).

O segundo processo diz respeito à interiorização activa, à incorporação da


identidade pelos próprios indivíduos. Não pode analisar-se fora das trajectórias
sociais pelas quais e nas quais os indivíduos constroem “identidades para si” que
não são mais que “a história que contam a si daquilo que são” (Laing, p. 114) e
que Goffman chama de identidades sociais “reais”. Estas utilizam também
categorias que devem, antes de mais, ser legítimas para o próprio indivíduo e
para o grupo a partir do qual define a sua identidade-para-si. Este grupo de
referência pode ser diferente daquele ao qual pertence “objectivamente” para
outro (cf. capítulo 2). É, contudo, o único que tem “subjectivamente”
importância para o indivíduo. Sem esta legitimidade “subjectiva”, não se pode
falar de identidade-para-si.

Vejamos: estes dois processos não coincidem obrigatoriamente. Quando os seus


resultados diferem, há “desacordo” entre a identidade social “virtual”
emprestada a uma pessoa e a identidade social “real” que ela se atribui a si
própria (Goffman, 1963, trad. p. 12). As “estratégias identitárias” destinadas a
reduzir o desvio entre as duas identidades são uma consequência deste
desacordo. Elas podem assumir duas formas: ou a de transacções “externas”
entre o indivíduo e os outros significativos que visam acomodar a identidade
para si à identidade para o outro (transacção chamada “objectiva”), ou a de
transacções “internas” ao indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma
parte das suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de
construir para si novas identidades no futuro (identidades visadas) procurando
assimilar a identidade-para-outro à identidade-para-si. :, Esta transacção
chamada subjectiva constitui um segundo mecanismo central do processo de
socialização concebido como produtor de identidades sociais. As estratégias
identitárias podem, portanto, ser comparadas aos processos de equilibração de
Piaget (cf. capítulo 1).

A abordagem sociológica aqui desenvolvida faz da articulação entre as duas


transacções a chave do processo de construção das identidades sociais. De facto,
a transacção subjectiva depende, com efeito, de relações com o outro que são
constitutivas da transacção objectiva. A relação entre as identidades herdadas,
aceites ou recusadas pelos indivíduos, e as identidades visadas, em continuidade
ou em ruptura com as identidades precedentes, depende dos modos de
reconhecimento pelas instituições legítimas e pelos seus agentes que estão
directamente em relação com os sujeitos em causa. A construção das identidades
faz-se, pois, na articulação entre os sistemas de acção que propõem identidades
virtuais e as “trajectórias vividas” (39) no interior das quais se forjam as
identidades “reais” a que aderem os indivíduos. A construção da identidade
pode, também, ser analisada tanto em termos de continuidade entre identidade
herdada e identidade visada, como em termos de ruptura que implica conversões
subjectivas (cf. capítulo 4). Ela pode também traduzir-se tanto por acordos como
por desacordos entre identidade virtual, proposta ou imposta pelo outro, e
identidade real interiorizada ou projectada pelo indivíduo. Esta abordagem
pressupõe, portanto, em simultâneo, uma relativa autonomia e uma articulação
necessária entre as duas transacções: as configurações identitárias constituem
então formas relativamente estáveis mas sempre evolutivas de compromissos
entre os resultados destas duas transacções diversamente articuladas (cf. quadro
5.1.).

(39) A noção de “trajectória vivida” designa a forma como os indivíduos


reconstroem subjectivamente os acontecimentos da sua biografia social que
julgam significativos.
Esta problemática pressupõe que se conceba e se analise a transacção
“objectiva” como uma confrontação entre as procuras e as ofertas de identidades
possíveis e não simplesmente como produtos de atribuições de identidades pré-
construídas. Esta transacção pressupõe, pois — para se articular com a outra —,
a redefinição do processo de categorização pelo qual se constroem as identidades
oferecidas aos indivíduos. Deve ser concebida como uma verdadeira negociação
entre os que procuram uma identidade em situação de abertura do seu campo do
possível e os que oferecem uma identidade em situação de incerteza no que diz
respeito às identidades virtuais a propor. Esta negociação identitária constitui
um processo comunicacional complexo, irredutível a uma “etiquetagem” (40)
autoritária de identidades predefinidas na base das trajectórias individuais.
Implica fazer da qualidade das relações com o outro um critério e um desafio
importante da dinâmica das identidades. Pressupõe, nomeadamente, uma
redefinição dos critérios mas também das condições (41) de identidades e de
competências associadas às identidades oferecidas. Esta transacção carece,
portanto, que, em diferentes níveis, se possa definir o processo de produção de
identidades novas como uma construção conjunta que inclua as suas
confirmações objectivas e subjectivas. :,

40 O uso incontrolado deste termo (*labelling*) pelos sociólogos provem muitas


vezes do facto de as análises de Goffman ou de Becker, que incluem esta
negociação identitária, terem sido radicalizadas por alguns dos seus rivais
influenciados, nomeadamente, pelo pensamento de Foucalt.

(41) A distinção é desenvolvida de uma forma muito clara por Habermas (tomo
II, pp. 118 e seguintes).

Quadro 5.1.

Categorias de análise da identidade

:::::::
Processo relacional
Identidade para outro

Actos de atribuição:

“Que tipo de homem ou de mulher você

é” = diz-se que você é

Identidade — numérica (nome atribuído) — genérica (género atribuído)

Identidade social “virtual”

Transacção objectiva entre:

— identidades atribuídas/propostas

— identidades assumidas/incorporadas

Alternativa entre:

— cooperação-reconhecimentos

— conflitos/não-reconhecimentos

“Experiência relacional e social do

PODER”

Identificação com instituições


julgadas estruturantes ou legitimas

\\

Processo biográfico
Identidade para si

Actos de pertença:

“Que tipo de homem ou de mulher

você quer ser” = você é que diz que é

Identidade predicativa do Eu (pertença reivindicada)

Identidade social “real”

Transacção subjectiva entre:

— identidades herdadas

— identidades visadas

Alternativa entre:

— continuidades :o reprodução

— rupturas :o produção

“Experiência das estratificações,

discriminações e desigualdades sociais”

Identificação com categorias


julgadas atractivas ou protectoras

Identidade social marcada pela dualidade :,

::::::::::::

A problemática definida deste modo baseia-se na hipótese de uma dualidade do


funcionamento social, irredutível a qualquer postulado de harmonização
funcional, associada em geral à ideia de “comunidades” integradas, ou a
qualquer redução das condutas a estratégias instrumentais de ordem “societária”.
Os dois processos coexistem e nenhum mecanismo macrossocial pode garantir,
por exemplo, que as trajectórias socioescolares produzirão indivíduos providos
de atitudes relacionais preadaptadas ao funcionamento óptimo dos sistemas
sociais do futuro. Nenhuma harmonia preestabelecida assegura a coincidência
entre as antecipações estratégicas dos indivíduos (em termos de rendimentos, de
poderes e de prestígios) com as exigências comunicacionais dos sistemas (em
termos de empatia, de cooperação e de trocas). Nenhuma instancia simbólica
reguladora (a religião, o Estado…) é capaz de assegurar a continuidade
necessária entre as identidades reconhecidas ontem e as de amanhã. O desafio é
certamente o da articulação destes dois processos complexos mas autónomos:
não se faz a identidade das pessoas sem elas e, contudo, não se pode dispensar os
outros para forjar a sua própria identidade.

5.3. Um mecanismo comum aos dois processos: a tipificação

Se os dois processos que concorrem para a produção das identidades — o


processo biográfico (identidade para si) e o processo relacional, sistemático,
comunicacional (identidade para outro) - são heterogéneos, a verdade é que eles
utilizam um mecanismo comum: o recurso a esquemas de tipificação (Berger et
Luckman, 1966) que implicam a existência de tipos identitários, isto é, “de um
número limitado de modelos socialmente significativos para realizar
combinações coerentes de identificações fragmentárias” (Erikson, p. 53). Estas
categorias particulares que servem para identificar os outros e para se identificar
a si mesmo são variáveis de acordo com os espaços sociais onde se exercem as
interacções e as temporalidades biográficas e históricas onde se desenvolvem as
trajectórias (42). Assim, as categorias pertinentes no campo
religioso(praticante/não-praticante/não-crente ou
católico/protestante/muçulmano/judeu/ateu, etc.) não são as mesmas das do
campo político (direita/esquerda…)

(42) Laurence Hirschfeld, antropólogo, mostrou numa investigação recente


(1988) que existem dois tipos de processos diferentes de conhecimento social”: o
primeiro está ligado à identificação com o outro com a ajuda de categorizações
— nomeadamente éticas — adquiridas precocemente pelas crianças “a partir de
características salientes”; o segundo esta ligado à auto-identificacão pessoal dos
indivíduos e assenta na construção progressiva de categorias “ligadas”.

ou das do campo do trabalho (activo/inactivo, assalariado/não-assalariado,


execução/enquadramento, etc.). A priori, nada permite hierarquizar :, os
diferentes campos de identificação nem estabelecer correspondências necessárias
entre as posições internas aos diferentes campos (católico-direita-pesscal de
enquadramento/não-católico -esquerda-pessoal de execução): apenas podemos
verificar a existência de correlações significativas através da análise empírica.
Também nada permite afirmar a priori que as categorias que servem para se
identificar no decorrer da vida são as mesmas ou são facilmente comparáveis
entre elas. Pode-se sustentar a hipótese de que estas categorias dependem muito
das idades da vida e que existe um certo fechamento entre as esferas de
identificação de um mesmo indivíduo num dado momento: a teoria dos papéis é
inteiramente compatível com esta hipótese de dispersão das identidades
subjectivas (para si) de acordo com os cenários sociais onde sucessivamente o
indivíduo se investe (cf. capítulo 4).

Não se pode concluir, no entanto, daqui que se deva renunciar à noção de


identidade social se a definirmos e a problematizarmos. No processo de
identificação do outro existem categorias mais sintéticas — as categorias sociais
— que servem para englobar homologias de posições em sistemas no interior
dos quais passa a quase totalidade dos indivíduos de uma mesma geração (“a
formação da identidade constitui essencialmente um problema de geração”,
Erikson, p. 26). Em França, organismos oficiais como o INSEE fabricam e
modificam categorias gerais (CSP: categorias socioprofissionais de 1954 até
1982, PCS: profissões e categorias sociais desde 1982…) que permitem
classificar o conjunto dos indivíduos recenseados segundo critérios que
combinam essencialmente a pertença e a posição “profissional” com o nível e o
tipo de estudos “escolares”. Apesar de ser historicamente contingente, a
prioridade atribuída aos campos profissional e escolar confere uma legitimidade
particular a estas categorias e, portanto, aos campos sociais a partir dos quais
elas são construídas e reconstruídas (Desrosières et alii, 1983).

Estas categorizações legítimas influenciam necessariamente o processo de


construção das identidades para si. Mas não as determinam mecanicamente nem
as fixam de um vez por todas. Por um lado, os indivíduos de cada geração
devem reconstruir as suas identidades sociais “reais” a partir: 1. das identidades
sociais herdadas da geração precedente (“a nossa primeira identidade social é
sempre conferida”, Laing, p. 116); 2. das identidades virtuais (escolares…)
adquiridas no decorrer da socialização inicial (“primária”); 3. das identidades
possíveis (profissionais…) acessíveis durante a socialização “secundária”; 2. Por
outro lado, as próprias categorias pertinentes de identificação social evoluem no
tempo e permitem antecipações recíprocas nas quais se podem encaixar as
negociações identitárias. Assim, nada é mais importante para a análise
sociológica do que localizar os movimentos que afectam os modelos sociais de
identificação, isto é, os tipos identitários pertinentes. Estes não podem ser
assimilados às categorias sociais existentes oficialmente num dado momento,
que estão sempre ameaçadas de uma relativa obsolescência, nomeadamente em
períodos de crise (Desrosières, Thevenot, 1988). Os tipos identitários pertinentes
devem, também e sobretudo, ser apreendidos a partir das identificações “reais”
dos indivíduos entre eles e para eles. Os processos de identificação futura devem
ser lidos

a :, partir da forma como os indivíduos utilizam, pervertem, aceitam ou recusam


as categorias oficiais já que elas implica reorganizações permanentes tanto dos
domínios como das categorias identitárias. É por isso que as tipologias dos
sociólogos devem tentar “colar-se às tipificações recíprocas dos próprios
indivíduos que são produzidas nas negociações

complexas com as instituições pertinentes e os seus agentes significativos (cf.


terceira parte).

5.4. O processo identtitário biográfico

Se os modos de construção das categorias sociais a partir dos campos escolar e


profissional adquiriram uma grande legitimidade e certamente porque tanto as
esferas do trabalho e do emprego (assalariado para mais de 80% da população
activa e problemático para mais de 10% desde o princípio dos anos 80) como a
da formação (escolar mas também profissional, inicial mas também contínua)
constituem domínios pertinentes das identificações sociais dos próprios
indivíduos (cf. terceira parte). Historicamente, nem sempre foi assim e é, sem
dúvida, após a crise que começou no fim dos anos 60 que estas ligações
“emprego-formacão” (Tanguy et alii, 1986) foram reforçadas no seio dos
processos identitários, pelo menos para os indivíduos da geração em causa
(aqueles que entraram no mercado do trabalho na segunda metade dos anos 70).
Considerando a evolução das políticas de gestão do emprego ao longo dos anos
80, tudo se passa como se o conjunto dos activos, incluindo os da geração
precedente, passasse a estar afectado por este movimento a “formação” tornou-
se uma componente cada vez mais valorizada não somente acesso aos empregos,
mas também nas trajectórias de emprego e nos abandonos de emprego. Se o
emprego é cada vez mais central para os processos identitários (Schnapper,
1989, a formação está cada vez mais estritamente a ele ligada.

Isso não significa, contudo, que se devam reduzir as identidades sociais a


estatutos de emprego e a níveis de formação. É evidente que, antes de se
identificar pessoalmente com grupo profissional ou com um tipo de diplomados,
um indivíduo, desde a infância, herda uma identidade sexual, mas também uma
identidade étnica e uma identidade de classe social que são as dos seus pais, de
um deles ou dos que estão encarregados de o educar. de facto, a primeira
identidade vivida e experimentada pessoalmente pela criança constrói-se sempre
na relação com a mãe ou com aquela (aquele?) que a substitui: é por isso que a
psicanálise é imprescindível em qualquer abordagem da identidade individual.
No entanto, é nas e pelas categorizações dos outros — e, nomeadamente, as dos
parceiros da escola (“professores” e “pares”) — que a criança experimenta a sua
primeira identidade social. Esta não é escolhida mas conferida pelas instituições
e pelos que rodeiam a criança, tanto na base das pertenças étnicas, políticas,
religiosas, profissionais e culturais dos seus pais, como na base das suas
performances escolares. A escola Primária constitui. assim um momento
decisivo para a primeira construção da identidade social, apesar de muitas :,
vezes bastante desconectada de qualquer universo profissional (Isambert-Jamad,
1984). Assim. se “aprendemos a ser o que nos dizem que somos” (Laing, p.
116), então nós devemo-nos construir através de todas as relações face a face,
todas as identificações com o outro significativo e depois com o outro
generalizado (med), adquirindo um “saber sobre o que nós somos no mais
profundo de nós”.
Desta dualidade entre a nossa identidade para o outro conferida e da nossa
identidade para si construída, mas também entre a nossa identidade social
herdada e a nossa identidade escolar visada nasce um campo de possibilidades,
onde se desenrolam desde a infância a adolescência e ao longo de toda a vida
todas as nossas estratégias identitárias (43). Assim, por exemplo, aparece a partir
do estádio “fálico-motor” (por volta dos 5 anos) uma alternativa na posição que
as crianças adoptam em relação à sua “identidade conferida”: ou “extirpar esta
identidade estranha que nos doaram e criar uma identidade para si que de uma
forma obstinada procuramos confirmar” ou “exibirmos a nossa identidade de
origem e agarrar-se a ela para a valorizar” (Laing, p. 116). Esta escolha de
partida liga-se, segundo Erikson, a uma alternativa ainda mais primitiva entre a
“plenitude” de um “sentimento de confiança de base” (que reenvia para uma
integração sucedida, decorrente de uma “bondade experimentada” entre o
exterior e o interior), ou uma “desconfiança de base” (resultante de todas as
experiências infantis não coroadas de sucesso na experiência da integração)
(Erikson, p. 84). A alternativa parece ser sempre recorrente. Certas trajectórias
são antes de mais marcadas pela continuidade inter e intra reracional, outras são
marcadas por rupturas de qualquer natureza que implicam o retomar de
identidades anteriormente adquiridas ou construídas.

(43) Um exemplo particularmente interessante de estratégia identitária no campo


do local é desenvolvido por O. Benoìt-guilbot a propósito das escolhas do bairro
de habitação, em frança, durante os anos 70 (1986,pp. 127 e seguintes).

Entre os acontecimentos mais importantes para a identidade social, a saída do


sistema escolar e o confronto com o mercado de trabalho constituem
actualmente um momento essencial na construção da identidade autónoma. Com
certeza, o leque das escolhas de orientação escolar mais ou menos forçadas ou
assumidas representa uma antecipação importante do futuro estatuto social. A
entrada numa “especialidade” disciplinar ou técnica constitui um acto
significativo da identidade virtual. Mas é no confronto com o mercado do
trabalho que, sem dúvida, se situa hoje o desafio identitário mais importante dos
indivíduos da geração da crise (44). Este confronto assume formas sociais
diversas e significativas segundo os países, os níveis escolares e as origens
sociais. Mas é da sua saída que depende, simultaneamente, a identificação pelo
outro das suas competências, do seu estatuto e da carreira possível e a construção
para si do projecto, das aspirações e da identidade possível. Este afrontamento
com a incerteza diz respeito praticamente a todos os níveis etários, rapazes e
raparigas, autóctones ou emigrados, estudantes ou sem diploma. :,
(44) Da mesma forma, é na experiência da reforma, qualificada por A.-M.
Guillemard como “morte social”, e, portanto no momento da saída do mercado
do trabalho, que se decidem as mais delicadas estratégias identitárias da

geração de entre as duas guerras (a.-m guillemard, 1972).

Para esta geração, este afrontamento acontece em condições históricas


particulares (Baudelot, 1988): uma alta taxa de desemprego que afecta de uma
forma diferenciada os que entram no mercado de trabalho segundo os países, os
níveis escolares, as origens sociais e o sexo; um processo rápido de
modernização tecnológica e de mudanças organizacionais nas empresas,
administrações, serviços; um prolongamento da transição entre a saída da escola
e o acesso a um emprego cada vez menos considerado estável (“perpétuo”). Do
resultado deste primeiro confronto dependem as modalidades de construção de
uma identidade “profissional” de base que constitui não só uma identidade no
trabalho, mas também e sobretudo uma projecção de si no futuro, a antecipação
de uma trajectória de emprego e o desencadear de uma lógica de aprendizagem,
ou melhor, de formação (cf. terceira parte). Poderíamos chamá-la occupational
identity para melhor designar, tal como o fazem E. Hughes, A. Strauss e H.
Becker, a identificação a uma carreira na sua globalidade (*career*), a
implicação (*commitment*) num tipo de actividades e a experiência da
estratificação social, as discriminações étnicas e sexuais, as desigualdades de
acesso às diferentes profissões (cf. capítulo 6). Esta construção de identidade
para si no confronto com o mercado de trabalho ou com os “sistemas de
emprego” é hoje coincidente com o “drama social do trabalho”, de que falava
Hughes, já que, para uma fracção dos jovens, ela implica o risco de uma
exclusão durável de um emprego estável (cf. capítulo 8) e, para todos os jovens,
ela exige a invenção de estratégias pessoais de apresentação de si (“aprender a
vender-se”), que ameaçam ser determinantes para o desenvolvimento futuro da
sua vida profissional. Não se trata somente de uma situação de “escolha do
oficio” ou de obtenção de diplomas, mas da construção pessoal de uma
estratégia identitária que põe em jogo a imagem do eu, a apreciação das suas
capacidades, a realização dos seus desejos.

Mesmo quando é reconhecida por um empregador, esta primeira “identidade


profissional para si” já não tem hipóteses de ser definitiva. É regularmente
confrontada com as transformações tecnológicas, organizacionais e de gestão de
emprego das empresas e das administrações. Está votada a sofrer ajustamentos e
reconversões sucessivas. Ela corre o risco de ser tanto mais ameaçada, quanto
especializadas e estreitas são as categorias a partir das quais ela se construiu.
Implica projecções no interior das opções de futuro que, para alguns, ainda não
existem e, para outros, arriscam-se a ser profundamente modificadas. Ela é, por
isso, fortemente marcada pela incerteza apesar de teoricamente acompanhar a
passagem da adolescência à vida adulta, e, portanto, a uma forma de estabilidade
social.

Quais os modelos de identificação social que actualmente dispõem os indivíduos


que entram no mercado do trabalho para se definirem no campo do trabalho, do
emprego e da formação? As categorias sociais oficiais ainda constituem
referências pertinentes? Quem são essas “pessoas colectivas de onde as pessoas
individuais retiram o nome comum que as designa?” (Boltanski, 1982, p. 7)?
Quais são as “identidades de aspiração” que permitem projecções de futuro
eficazes para a acção? Se se admitir, com razoes sociológicas convincentes, que
a identidade de um quadro ou a de um engenheiro constitui um modelo
pertinente para uma parte dos jovens envolvidos em estudos superiores longos
ou uma :, parte dos adultos já confirmados nesta identidade “para si”, o que
acontece com as outras identidades? A identidade operária ou a identidade
tecnicista constituem modelos unívocos de identificação? Em caso afirmativo, a
que posições elas correspondem nos campos do trabalho, do emprego e da
formação? Em caso negativo, por que modelos foi esta identidade actualmente
substituída? A última parte deste livro será, em parte, consagrada a estas
questões. Mas apenas em parte, porque o processo biográfico de identificação
com estes modelos sociais é insuficiente para a análise: ele interfere
necessariamente com um processo relacional que interessa precisar agora.

5.5. O processo identitário relacional

Para realizar a construção biográfica de uma identidade profissional e, portanto,


social, os indivíduos devem entrar em relações de trabalho, participar de uma
forma ou de outra em actividades colectivas de organizações, intervir de uma
forma ou de outra no jogo de actores. Esta perspectiva da identidade conduz-nos
à definição dada por R. Sainsaulieu: “forma como os diferentes grupos no
trabalho se identificam com os pares, com os chefes, com outros grupos, a
identidade no trabalho baseia-se em representações colectivas diferentes, que
constroem actores no sistema social da empresa” (1985, p. 9). Contrariamente à
que deriva da perspectiva biográfica, esta definição situa a identidade na
“experiência relacional e social do poder” (id., p. 342) considerando, por isso,
que as relações de trabalho são o “lugar” onde se experimenta “o confronto dos
desejos de reconhecimento num contexto de acesso desigual, movediço e
complexo”. Para Sainsaulieu, a identidade, mais do que um processo biográfico
de construção do eu, é um processo relacional de investimento do eu. A noção
“actor do eu” remete não para um simples papel passageiro numa encenação
provisória, mas sim para um investimento essencial em relações duráveis que
põem em causa o reconhecimento recíproco dos parceiros. Trata-se, portanto, de
uma transacção objectivamente verificável na análise das situações de trabalho e
dos sistemas sociais da empresa. Desta transacção dependem as identidades
daqueles que nelas se comprometem ou nela se comprometeram.

Quais serão as dimensões pertinentes desta transacção analisada como relação de


poder para R. Sainsaulieu? No quadro sintético que produz no fim da sua análise
(1985, p. 392), figuram, simultaneamente, as modalidades constitutivas das
identidades no trabalho e os indicadores que nos permitem caracterizá-las; se as
distinguirmos, encontramos três dimensões identitárias:

— o campo de investimento (“acesso ao poder”) permite distinguir os tipos que


implicam um investimento no trabalho (modelos “negociador” e “promocional”
e, em menor grau, de “afinidade”), do tipo que se caracteriza por um acesso ao
poder fora do trabalho (modelo “de refúgio”) e do tipo associado a um não-
acesso a nenhum destes dois campos (modelo “de fusão”); :,

— as normas de comportamento relacional são designadas da seguinte forma:


individualismo (modelo “de refúgio”), unanimismo (modelo “de fusão”),
solidariedade e rivalidade democrática (modelo “negociador”), separatismo
(modelo “de afinidade”) e integração e submissão (modelo “promocional”);

— os valores provindos do trabalho são os seguintes: económico (a pessoa dos


chefes) para os “de refúgio”, estatutário (a regra e também a massa) para os “de
fusão”, a criatividade (a profissão mas também o perito) para os “negociadores”,
as pessoas (do chefe e dos colegas para os “de afinidade” e um misto dos valores
precedentes (a regra e a pessoa dos chefes) para os “promovidos”.

Contrariamente à tipologia várias vezes reafirmada no decurso da sua análise e


baseada nos quatro “modelos de relação no trabalho” capazes de “esclarecerem
lógicas de actores operários, empregados, mestres e técnicos”
(refúgio/fusão/negociação/afinidade), o quadro evocado anteriormente distingue
cinco “produtos culturais do trabalho organi-` zado” designados através de cinco
categorias associadas a grupos profissionais:
— os “O.S. mulheres, emigrados, empregados jovens” são associados à norma
do refúgio e ao valor “económico” dominante (o salário);

— os “O.S. homens, velhos, empregados antigos” são definidos pela norma de


unanimismo e referenciados aos valores da massa, da regra e do estatuto, em
conformidade com o modelo de fusão;

— os “operários profissionais, quadros médios e superiores” são associados às


normas democráticas e aos valores do oficio (O.P.) ou da criação (quadros
superiores), em conformidade com o modelo da negociação;

— os “operários novos profissionais, os agentes técnicos e o pessoal não


estável” são identificados com as normas e valores do modelo “de afinidade“;

— os “mestres e quadros sul alternos” são definidos pela norma


“integração/submissão” e partilham uma parte dos valores do “modelo de fusão”
(a regra) e uma parte dos valores do modelo de refúgio (a pessoa dos chefes).

Parece, pois, que este último grupo não corresponde, na análise de Sainsaulieu, a
uma identidade no trabalho verdadeiramente típica: os seus membros investem
no campo do trabalho da mesma forma que os “negociadores” possuem em parte
os mesmos valores que os outros assalariados da sua geração e da sua origem
social e só se distinguem dos outros pelas normas relacionais específicas. Sem
dúvida que é esta a razão pela qual não constituem um modelo identificatório
retido pelo autor na tipologia que desenvolve no prefácio da segunda edição
(1985, p. 1) cuja importância diminui “no decurso dos anos”, razão pela qual os
outros tipos são considerados como “capazes de esclarecer as lógicas dos actores
no decurso deste período” (id., p. 111).

Deste modo, a construção das quatro identidades típicas no trabalho, feita por
Sainsaulieu, baseia-se na constatação — ou na hipótese - de uma grande
coerência entre lógicas de actores no trabalho e normas relacionais no seio da
empresa. Num esquema recapitulativo :, produzido posteriormente (1987, p.
213), situa estas posições identitárias no interior de um espaço ortogonal
estruturado pela dupla oposição individual/colectivo e oposição/ aliança:

— a identidade “de refúgio” combina a preferência individual com a estratégia


de oposição;

— a identidade “de fusão” combina a preferência colectiva com a estratégia de


aliança;

— a identidade “negociadora” alia a polarização no colectivo com uma


estratégia de oposição;

— a identidade “de afinidade” alia a preferência individual com uma estratégia


de aliança.

Estes novos desenvolvimentos teóricos já não estabelecem correspondência entre


estes modelos identitários e categorias profissionais correntes. Os termos
“fervilhar” e “brilhar” fazem pensar que as mesmas posições identitárias podem
ser, agora, investidas pelos membros das diversas categorias profissionais — no
velho sentido — segundo a dinâmica das relações que se estabelecem entre os
indivíduos e as diversas instituições onde eles se situam e, nomeadamente, na
empresa cuja função identitária se torna, segundo o autor, cada vez mais central.

Esta hipótese vai parcialmente ao encontro da do carácter estruturante da


transacção objectiva pela construção das identidades virtuais (“para outro”) no
seio do processo relacional. Possui o inconveniente de privilegiar o espaço das
relações de trabalho na empresa como desafio prioritário, e mesmo único desta
transacção. O que está aqui em causa é o reconhecimento da identidade para os e
nos investimentos relacionais dos indivíduos. Este processo implica uma
transacção que pode ser conflitual entre os indivíduos portadores de desejos de
identificação e de reconhecimentos e as instituições que oferecem estatutos,
categorias e formas diferenciadas de reconhecimentos. Põe em jogo espaços de
identificação prioritários (lugares nos quais é reconhecido o “estatuto principal”
no sentido de Goffman) no seio dos quais os indivíduos se consideram como
suficientemente reconhecidos e valorizados. O facto de poder “jogar” com
diferentes espaços e de poder assim “negociar” os investimentos e “gerir” as
pertenças constitui um elemento essencial da transacção objectiva. Os parceiros
desta transacção são, efectivamente, múltiplos: o grupo de pares no seio da
oficina, do escritório ou da equipa de trabalho, o superior hierárquico, outros
responsáveis da empresa, o dirigente sindical ou o eleito local, o formador,
mediador do universo da formação, o cônjuge e o universo da família, etc.

Pode-se, pois, com Sainsaulieu, colocar a hipótese de que o investimento


privilegiado num espaço de reconhecimento identitário está intimamente
dependente da natureza das relações de poder neste espaço, do lugar que o
indivíduo ocupa e do seu grupo de pertença. Não se pode, portanto, considerar a
empresa ou o trabalho (no sentido restrito do posto de trabalho) como o espaço
privilegiado de reconhecimento da identidade social: este reconhecimento
depende da legitimidade das categorias utilizadas para identificar os indivíduos.
O espaço de reconhecimento das identidades é inseparável dos espaços de :,
legitimação dos saberes e competências associados às identidades (45). A
transacção objectiva entre os indivíduos e as instituições é, antes de mais, aquela
que se organiza à volta do reconhecimento e do não-reconhecimento das
competências, dos saberes e das imagens de si que constituem os núcleos duros
das identidades reivindicadas.

(45) Mas também imagens do eu que se privilegia num dado momento da sua
biografia: elas podem dizer respeito ao

espaço de habitação mais do que ao espaço de profissão (O. Benoft-Guilhot,


1986), ou sobre o espaço associativo

na ausência do espaço profissional (a.-M. Guillemard,

1972).

5.6. A identidade como espaço-tempo geracional

Vejamos mais claramente a necessária articulação dos dois processos identitários


que acabam de ser definidos. Se o processo biográfico pode ser definido como
uma construção no tempo pelos indivfduos de identidades sociais e profissionais
a partir das categorias oferecidas pelas instituições sucessivas (família, escola,
mercado do trabalho, empresa… ) e consideradas, simultaneamente, como
acessíveis e valorizantes (transacção “subjectiva”), o processo relacional diz
respeito ao reconhecimento, num dado momento e no seio de um espaço
determinado de legitimação, das identidades associadas aos saberes,
competências e imagens de si propostas e expressas pelos indivíduos nos
sistemas de acção. A articulação destes dois processos representa a projecção do
espaço-tempo identitário de uma geração confrontada com as outras na sua
caminhada biográfica e o seu desenvolvimento espacial. As formas sociais desta
articulação constituem, simultaneamente, a matriz das categorias que estruturam
o espaço das posições sociais (alto/baixo mas também dentro/fora do emprego) e
a temporalidade das trajectórias sociais (estabilidade/mobilidade mas também
continuidade/ruptura).

A definição geral da identidade como espaço-tempo geracional (Erikson, 1968)


resume bem a teoria esboçada neste capítulo. A identidade social não é
“transmitida” por uma geração à seguinte, ela é construída por cada geração com
base em categorias e posições herdadas da geração precedente, mas também
através das estratégias identitárias desenroladas nas instituições que os
indivíduos atravessam e para cuja transformação real eles contribuem. Esta
construção identitária adquire uma importância particular no campo do trabalho,
do emprego e da formação que ganhou uma forte legitimidade para o
reconhecimento da identidade social e para a atribuição do estatuto social. Ora, é
também neste campo que importantes abordagens sociológicas contribuíram para
precisar os mecanismos da socialização profissional.

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II

:as “abordagens” da

socialização profissional

Das “profissões” à socialização profissional

6.1. História e terminologia

O termo “sociologia das profissões” é uma tradução do inglês sociology of the


professions (46) que exige um esclarecimento prévio. Em francês, o termo
“profissão” tem (pelo menos) dois sentidos correspondentes a dois termos
ingleses diferentes. Ele designa ao mesmo tempo:

(46) Utilizaremos no seguimento desta segunda parte a palavra “profissão” para


traduzir o termo inglês profession, a palavra “emprego” para traduzir o termo

occupation e a palavra “ofício” para traduzir o sentido do termo inglês craft. Os


termos profissão e profissional assim como ofício, sem indicação particular, vão
ser utilizados no sentido geral de actividade remunerada.

— o conjunto dos “empregos” (em inglês: occupations) reconhecidos na


linguagem administrativa, nomeadamente nas classificações dos recenseamentos
do Estado;

— as “profissões” liberais e sábias (em inglês: professions), isto é, learned


professions, nomeadamente os médicos e os juristas.

A terminologia francesa complica-se mais se introduzirmos um terceiro termo, o


de “ofício” (*métier*). As “profissões” (liberais) e os “ofícios” têm, no
Ocidente, uma origem comum: as corporações. Na Idade Média, a partir do
século XI e de forma totalmente instituída no século XV, “idade de ouro das
corporações”, distinguiam-se:

— os que tinham “direito a pertencer à corporação”, isto é, os que podiam fazer


parte de uma corporação reconhecida; :,
— os que não tinham esse direito: jornaleiros, trabalhadores braçais, carrascos…

Na sua síntese histórica, J. Le Goff (1977) mostra como, antes da expansão das
Universidades, a partir do século XIII, o trabalho era considerado uma arte e
abrangia todos os que integravam as corporações definidas como “regulamentos
corporativos para garantir a competência jurídica, isto é, a autorização de exercer
e de defender o seu monopólio e os seus privilégios no interesse do bem
comum” (Olivier Martin, 1938). As artes liberais e as artes mecânicas, os artistas
e os artesãos, os intelectuais e os trabalhadores manuais provinham de um
mesmo tipo de organização corporativa que assumia a forma de “ofícios
juramentados” nas “cidades juramentadas”, onde “se professava uma arte”. O
termo “profissão” deriva desta “profissão de fé” consumada nas cerimónias
rituais de entronização nas corporações (cf. encaixe 6.1.).

O juramento englobava, de acordo com formas muito variadas, três


compromissos:

— observar as regras;

— guardar os segredos;

— prestar honra e respeito aos jurados, controladores eleitos e reconhecidos pelo


Poder Real.

Foi só com a expansão e a consolidação das Universidades que as artes liberais e


artes mecânicas começaram a dissociar-se, chegando a uma oposição entre:

— as “profissões” derivadas das “septem artes liberales” que se ensinavam nas


Universidades e “cujas produções pertenciam mais ao espírito que à mão”
(*Grande Encyclopédie*);

— os “ofícios” derivados das artes mecânicas “onde as mãos trabalham mais do


que a cabeça” (J.-J. Rousseau) e que se desvalorizam na sociedade do Antigo
Regime a ponto de a Enciclopédia lhes dar a definição seguinte no século XVIII:
“ocupações que exigem a utilização dos braços e que se limitam a um dado
número de operações mecânicas.”

Podemos, assim, associar à oposição entre “profissões” e “ofícios” um conjunto


de distinções socialmente estruturantes e classificadoras que se reproduziram
através dos séculos: cabeça/mãos, intelectuais/manuais, alto/baixo, nobre/vilão,
etc. Acontece ainda que “ofícios” e “profissionais” participam do mesmo
“modelo” de origem: as corporações, isto é, “corpos, confrarias, e comunidades”
no seio dos quais os membros “estavam unidos por laços morais e por um
respeito às regulamentações pormenorizadas dos seus estatutos”, constituem
“estados” reconhecidos pelo Poder Real (Sewell, 1980, trad. p. 53). Deste modo,
como escreve Sewell (cf. encaixe 6.1.): “dizer-se do ofício de um artesão que era
a sua profissão denotava um compromisso ou um juramento público solene”. A
par da oposição ofício/profissão, subsistia o reconhecimento de uma profunda
similitude: a “dignidade e a qualidade” de um “estado juramentado” socialmente
legítimo e pessoalmente incorporado graças à “eficácia simbólica dos ritos
sociais” (Heilbron, 1986). :,

Encaixe 6.1.

A profissão de fé corporativista segundo Sewell

As actividades das confrarias de ofício demonstram que as corporações eram


“corpos e comunidades” tanto no sentido moral como no sentido legal do termo
e que os seus membros estavam unidos por laços morais e por um respeito às
regulamentações pormenorizadas dos seus estatutos. A natureza destes laços
revela-se no epíteto de “ofício juramentado” — ou “estado juramentado”, para
retomar o termo da carta patente de Henrique III, datada de 1585 — que
designava frequentemente estes corpos e comunidades. O acto essencial que
interligava os membros da corporação consistia num juramento religioso solene,
similar na forma aos juramentos pronunciados pelos padres aquando da sua
ordenação, pelos monges no acto de ingressarem nas ordens, pelo rei na sua
coroação, pelos cavaleiros ao ingressarem na ordem da cavalaria ou no
juramento de fidelidade ao senhor ou, ainda, pelos universitários ao receberem o
grau de doutor. Assim, dizer que o ofício de um artesão era a sua profissão
denotava um compromisso ou um juramento público solene. Os juramentos mais
importantes eram prestados pelos mestres, no momento da sua admissão, no
entanto — facto significativo — também os aprendizes eram geralmente
obrigados a prestar juramento quando principiavam a sua aprendizagem. Fazer a
aprendizagem de um ofício não consistia somente em adquirir a habilidade
necessária para exercer uma actividade adulta. Era também entrar numa
comunidade moral com motivações profundas, uma comunidade de homens que
tinha prestado um juramento solene de fidelidade, e que sendo filhos espirituais
de um santo patrono o veneravam em conjunto no dia da sua festa. Em suma, a
corporação não se contentava em ser uma associação de homens, partilhando a
mesma personalidade legal, mas assumia-se também como uma fraternidade
espiritual juramentada.

A carta patente redigida por Henrique III em 1585 revela um outro aspecto
característico da comunidade moral corporativa. Ratificando os estatutos dos
mercadores de vinho e dos estalajadeiros, o rei estabelecia “de forma perpétua o
dito estado…”. Noutros termos, o estado juramentado, uma vez criado, passava a
existir a titulo definitivo como “corpo, confraria e comunidade”. Esta perenidade
da comunidade era entendida de duas formas. Uma delas era que, logo que
instituída pela autoridade real, a comunidade com os seus direitos e privilégios
era reconhecida como um corpo permanente no Estado, e os seus estatutos já não
tinham de ser de novo ratificados pelos monarcas posteriores. A segunda era que
aqueles que entravam nesta comunidade continuavam membros dela até ao fim
da :, vida — pelo menos em princípio. Esta ideia de que a pertença a uma
corporação era o compromisso para uma vida encontrava-se sob diferentes
formas na linguagem corporativa. Estava subentendida no termo estado, tal
como era empregue pelo rei na célebre carta patente e de uma forma mais
generalizada no vocabulário social do Antigo Regime que designava a profissão
de um artesão. Segundo o jurista Loyseau, o estado era “a dignidade e a
qualidade” que eram “os atributos mais imutáveis e os mais inseparáveis de um
homem”. Em consequência, quando um artesão entrava no ofício adquiria um
estado particular, uma condição social e uma qualidade ontológica permanente
que partilhava com aqueles que exerciam o mesmo ofício e que o distinguia dos
membros das outras profissões. O estado de um artesão determinava
definitivamente o seu lugar na ordem social e definia os seus direitos, as suas
dignidades e obrigações, de uma forma bastante similar à da pertença de um
indivíduo, a um outro nível, a um dos três estados do reino: o Clero, a Nobreza e
o Terceiro Estado. Considerava-se, portanto, o

ofício como um meio de assegurar a posição na vida.

6.2. A problemática das “profissões”: um consenso entre os fundadores da


sociologia?

Na sua obra de síntese, R. Nisbet (1966) mostra até que ponto todos os
fundadores da sociologia, na sua reflexão teórica e nos seus trabalhos empíricos,
concederam um lugar central à análise das actividades profissionais. Assim, por
exemplo, Le Play, nos seis tomos da obra Les ouvriers européens (primeira
edição, 1855), considerada por Nisbet “a primeira obra de sociologia científica
do século XIX” (trad., p. 85), analisa 45 tipos de situações operárias,
combinando não só três formas fundamentais de famílias (patriarcal, instável,
família de raiz), mas também seis níveis de estatutos internos à classe operária
(domésticos, jornaleiros, tarefeiros, chefes de ofício, proprietários simples,
proprietários operários) assentes em três critérios essenciais: 1. o ofício exercido;
2. o lugar ocupado no interior da profissão; 3. a natureza do contrato que liga o
operário ao patrão. Em meados do século XIX, Le Play refere-se,
constantemente, às bases económicas e profissionais da família e da vida
comunitária e considera que “só a actividade que exerce permite ao homem dar
um sentido ao meio envolvente” (Nisbet, p. 89). Assim, aos seus olhos “as
associações profissionais constituem uma das glórias da Inglaterra e explicam
em grande medida a supremacia intelectual que esta goza nessa época,
especialmente no domínio científico” (id. , p. 91).

Da mesma forma, quando Tõnnies esclarece o conceito de “Gemeinschaft“,


assinala que a relação típica desta associação é “a amizade, isto é, uma
comunidade de ordem espiritual e intelectual baseada no trabalho em comum,
num ofício comum (*Beruf*) e, portanto, em crenças comuns” (1887, citado por
Nisbet, p. 101). Refere as corporações e as :, associações de operários como
modelos de “gemeinschaft” ao lado das igrejas e das ordens espirituais.

é inútil lembrar o lugar que ocupa a actividade exercida — enquanto indicador


da posição nas relações sociais de produção” — nas definições que Marx e
Engels dão das classes sociais cuja luta constitui, para eles, o motor da História.

Numa outra perspectiva, Durkheim, na conclusão da obra Suicide (1897) e, mais


explicitamente ainda, no prefácio da segunda edição de De la division du travail
social

(1902), faz da reestruturação das corporações ou antes das associações


profissionais constituídas “fora do Estado, embora submetidas à sua acção”, a
melhor das soluções capaz de estabelecer “uma disciplina moral de um género
novo sem a qual todas as descobertas da ciência e todos os progressos do bem-
estar só poderiam formar indivíduos descontentes” ( 1893, 8.a ed. p. 440).
Durkheim esclarece que não se trata de uma restauração das antigas corporações,
“varridas pela evolução histórica das nossas sociedades”, mas da instauração de
associações profissionais de um novo tipo que, reconhecidas, simultaneamente,
pelo Estado e pelas famílias dos membros livremente associados, constituiriam
novos “corpos intermediários” investidos de uma autoridade legal e assegurando
as bases concretas da integração e da regulação sociais.

Podemos ver, através destes quatro exemplos, até que ponto as análises,
reflexões ou propostas dos “primeiros sociólogos”, no que se refere às
actividades e às associações profissionais, se inscrevem na continuidade da
prática comunitária dos ofícios. Não para desenvolver, como o fizeram tantos
outros pensadores conservadores da sua época, uma denúncia nostálgica do
individualismo interesseiro ou dos conflitos sociais, mas sim para enraizar a
relação dos homens com o seu trabalho numa perspectiva comunitária e tentar
definir as condições de uma organização económica socialmente viável.

Eis a razão por que esta sensibilidade e este tipo de abordagem não se opõem
verdadeiramente nem ao ponto de vista de um Spencer, que via na elaboração e
no desenvolvimento das “profissões” a característica essencial de uma sociedade
civilizada (1896), nem, e sobretudo, às perspectivas de um Max Weber que,
como já vimos (cf. capítulo 4), considerava que a “profissionalização”
(*Verberuflichtung*) constituía um dos processos essenciais da modernização,
isto é, da passagem de uma “socialização principalmente comunitária” em que o
estatuto é atribuído a uma “socialização fundamentalmente societária” onde o
estatuto social “depende das tarefas efectuadas e dos critérios racionais de
competência e de especialização” (1920, capítulo 2). Esta oposição entre a
transmissão hereditária dos estatutos e dos ofícios (*ascription*) e a livre
escolha individual das formações e das profissões (*achievement*) é uma das
justificações clássicas da diferença entre “ofício” e “profissão” e um dos
argumentos mais frequentes da superioridade atribuída às “profissões” na
sociologia anglo-saxónica dominante (Boudon-Bourricaud, 1982, pp. 437 e
seguintes). Mas esta oposição não impede que uma parte dos sociólogos
envolvidos transfiram para as “profissões” de hoje uma parte ou a totalidade das
suas representações dos ofícios de ontem. A profissão adquire neste caso uma
dimensão comunitária estruturante do sistema social global. :,

6.3. Institucionalização da sociologia das “profissões” nos estados-unidos

Como sublinham Jackson (1970, p. 6), Heilbron (1986, p. 72) e Desmarez (1986,
pp. 25-27), o aparecimento da sociologia das “profissões” nos Estados Unidos
não derivou directamente da tradição dos fundadores, mas de uma estratégia de
profissionalização dos sociólogos confrontados, durante a crise de 1929, com os
pedidos do governo Hoover para compreender a evolução da sociedade e ajudar
a definir a sua política. Adoptando o grande projecto de William Fielding
Ogburn, que visava promover uma sociologia “neutra” e “imparcial” contra a
sociologia “moral” e “implicada”, representada nomeadamente por Small e os
seus colegas de Chicago, uma fracção dos sociólogos americanos pôs-se ao
serviço das agências governamentais e “constitui-se numa comunidade científica
abrigada do mundo exterior” (Desmarez). Nos anos que se seguem, Ogburn e os
seus companheiros tornam-se membros influentes das instâncias encarregadas de
definir a política de investigação das ciências sociais e de animar o Social
Science Research Council. Puseram em prática novas orientações, mais
centradas nas camadas privilegiadas da sociedade do que nas camadas
discriminadas pela evolução social. O interesse pelas associações profissionais,
consideradas como “modelos de todas as ocupações”, cresce, enquanto que o
peso das investigações sobre as classes populares ou sobre os sindicatos tende a
diminuir (Desmarez, id, p. 27). O modelo do “profissional” (professional),
distinto quer do empresário quer do operário, desenvolve-se rapidamente na
literatura sociológica desta época tanto nos Estados-Unidos como no Canadá
(Marshall, 1939).

Encontramos esta perspectiva particularmente desenvolvida na obra ainda


considerada por muitos sociólogos anglo-saxónicos como uma referência: The
Professions de Carr-Saunders e Wilson publicada em 1933, obra essa que se
segue a um primeiro ensaio mais sintético realizado apenas por Carr-Saunders
(1928). Tendo por base uma definição de profissão que se tornou clássica
(“dizemos que uma profissão emerge quando um número definido de pessoas
começa a praticar uma técnica definida, baseada numa formação especializada”)
e que marca a continuidade com os ofícios manuais qualificados (*skilled*), a
obra analisa sistematicamente a evolução do trabalho e dos diferentes
“empregos” em termos de profissionalização, isto é: 1. de especialização dos
serviços que permite aumentar a satisfação de uma clientela; 2. de criação de
associações profissionais que obtêm para os seus membros “a protecção
exclusiva dos clientes e dos empregadores que requerem o serviço do seu ofício”
e que, como clarifica o autor, “colocam uma linha de separação entre eles e as
pessoas não qualificadas” que permite aumentar o prestígio do “ofício” (o
exemplo dos cirurgiões ingleses que se demarcam dos barbeiros em 1844 é
sistematicamente citado) definindo e controlando as regras de conduta
profissional ainda designadas “códigos de ética e de deontologia profissionais”;
3. (este ponto é o mais relevante) de constituição de uma formação específica
assente num “corpo sistemático de teoria” que permite a aquisição de uma
cultura profissional. A obra de Carr-Saunders termina fazendo :, uma verdadeira
apologia do “profissional” que ele entende concretizar “uma alternativa ao
empresário que procura apenas o ganho financeiro e representa uma solução para
determinados problemas da organização comercial”. As profissões encarnam,
assim, segundo o autor, “o ideal de serviço” assente numa competência
especializada (*adequate qualification*) e constituem “um progresso da
expertise ao serviço da democracia”.

É impressionante constatar, como faz J. Heilbron (1986), a grande semelhança


entre o conteúdo do artigo “Profession” da International Encyclopedia of the
Social Sciences, redigido por Carr-Saunders na edição de 1933, e o de Parsons
na edição de 1968, onde se pode ler: “O desenvolvimento e a importância
estratégica crescente das “profissões” constituem, sem dúvida, a mudança mais
importante que se deu no interior do sistema de emprego das sociedades
modernas… Do ponto de vista das transformações estruturais da sociedade do
século XX, a emergência massiva do fenómeno “profissional” (*professional
complex*) ultrapassa em significado as da especificidade dos modos de
organização de tipo capitalista ou socialista” (1968, p. 545). E se, com Marc
Maurice (1972, p. 215), notamos que o essencial da definição e dos critérios de
Carr-Saunders se encontra já “num dos primeiros estudos sistemáticos sobre uma
profissão”, precisamente o de A. Flexner, em 1915, incidindo sobre o trabalho
social (“Flexner, de acordo com os seus critérios, só reconhecia como
verdadeiras profissões o exercício da medicina, do direito, dos técnicos de
engenharia e das artes: literatura, pintura, música”), devemos reconhecer uma
longa tradição da sociologia das “profissões” pelo menos nos EUA, marcada por
uma impressionante continuidade do objecto e do recorte da realidade social.
Podemos, com J. Heilbron, resumir esta continuidade, dizendo que, para Carr-
Saunders, em 1933, como para Parsons, em 1968 (e já para Flexner, em 1915), a
“profissão” representa “a fusão da eficácia económica e da legitimidade
cultural”. Para compreender porquê, é preciso avançarmos para o que Chapoulie
chama “a teoria funcionalista das profissões” (1973, p. 88) que constitui, a
muitos títulos, uma teorização ex post desta longa tradição.

6.4. A teoria funcionalista das “profissões”

No seu célebre artigo “Structure sociale et processus dynamique: le cas de la


pratique médicale moderne” (trad. 1955, pp. 193-255), Parsons faz da relação
terapêutica médico-doente o modelo da relação entre um “profissional” e um
cliente assente em três dimensões específicas do papel profissional articulando
normas sociais e valores culturais:
— um saber prático ou “ciência aplicada” articula uma dupla competência, a que
assenta num saber teórico adquirido no decurso de uma formação longa e
sancionada e a que se apoia na prática, na experiência de uma “relação
agradável”. Esta dimensão do papel profissional associa ao valor do
“universalismo da ciência” a norma da “valorização da realização”
(*achievement*); :,

— uma competência especializada ou “especificidade funcional” que se


apresenta como uma dupla capacidade, a que se apoia na especialização técnica
da competência e que limita a autoridade do “profissional” ao domínio legitimo
da sua actividade e a que funda o seu poder social de prescrição e de diagnóstico
numa “relação mais ou menos recíproca”;

— um interesse desapegado (*detached concern*), característica da dupla atitude


do “profissional”, que une a norma de neutralidade afectiva com o valor de
orientação para o outro, de interesse empático para o cliente e para a sua
expectativa incondicional.

O papel médico, como qualquer papel profissional, exerce-se, segundo Parsons,


numa interacção com o papel do doente — cliente do “profissional” — que é,
simultaneamente, dependente do médico pelo seu desejo incondicional de ficar
melhor e autónomo em consequência da limitação da competência do médico e
da independência deste em relação a qualquer tutela hierárquica e pública
(“segredo médico”). Se o médico for “obrigado” a ocupar-se do seu doente, o
doente deve “dizer tudo” ao seu médico no domínio da sua especialidade: esta
obrigação recíproca cria a possibilidade de institucionalização da troca e,
portanto, da profissionalização do papel do médico assegurada pelas instituições
de formação, de cuidar, de controlo profissional, etc.

A institucionalização dos papéis em “profissões” resulta, pois, em primeiro


lugar, segundo Parsons, de um equilíbrio das motivações entre a “necessidade”
que o cliente tem do profissional e a necessidade que este tem de ter clientes, o
que é característico das “profissões liberais”. Esta institucionalização deriva
também de uma dinâmica de legitimação que pode apoiar-se neste ajustamento
dos papéis para definir um corpo de saberes independente dos indivíduos que
desempenham o papel e susceptível de ser ensinado, testado, controlado com a
participação dos próprios “profissionais” e o reconhecimento do Estado
regulador.
Este “modelo” de Parsons não é inteiramente partilhado — muito longe disso —
por toda a sociologia das “profissões”. Assim, M. Maurice constata, ao comparar
as características das “profissões” utilizadas por oito “dos mais eminentes”
autores anglo-saxónicos (Flexner, Greenwood, Cogan, Carr-Saunders, Barber,
Wilensly, Moore, Parsons), que apenas há concordância em um “dos dez
critérios mais citados: a especialização do saber; a seguir aparecem a formação
intelectual e o ideal de serviço (seis em oito)” (1972, p. 215). Ao contrário, e
depois de constatar que “as investigações empíricas que se reclamam da análise
parsoniana estudam os corpos profissionais em si mesmos e não a partir da
posição na estrutura social”, Chapoulie é da opinião de que existe um grande
acordo sobre o “tipo ideal profissional”, quer este seja abordado do ponto de
vista da conduta, quer da organização ou da categoria, e que “o monopólio na
realização das tarefas profissionais é descrito na maior das vezes como se se
apoiasse:

— numa competência técnica e cientificamente fundamentada;

— na aceitação e na utilização de um código ético que regula o exercício da


actividade i profissional” (1973, p. 92). :,

Para além disso, Chapoulie acrescenta propriedades derivadas que são


“genericamente retidas para completar o tipo ideal:

— uma formação profissional longa em estabelecimentos especializados;

— um controlo técnico e ético das actividades exercidas pelo conjunto dos


colegas. considerados como os únicos competentes;

— um controlo reconhecido legalmente e organizado com o acordo das


autoridades legais;

— uma comunidade real (o sublinhado é dele) dos membros que partilham


“identidades” e “interesses” específicos;

— uma pertença, através dos rendimentos de prestígio e de poder, às fracções


superiores das camadas médias” (id., p. 93).

Entre a definição residual que resulta da comparação de M. Maurice e a


definição rigorosa proposta por Chapoulie, o termo “profissão” sofre uma
inflexão. Na primeira definição (saber formalizado e ideal de serviço), podemos
incluir um amplo conjunto de grupos profissionais, que procuram ser
reconhecidos como tais; a utilização da segunda definição deve ser reservada a
algumas categorias intelectuais com estudos superiores e organizadas de forma a
manterem e consolidarem o seu monopólio junto de um público. Assim, no
primeiro caso, põe-se a tónica no reconhecimento de uma competência (saber
legitimado); no segundo, a profissão é um grupo social específico, organizado e
reconhecido que ocupa uma posição elevada baseada numa formação longa. A
primeira inclui todos os especialistas altamente qualificados e assalariados a
quem é reconhecido um saber legítimo; a segunda restringe o número de
especialistas e exclui os membros de todas as “semiprofissões”, “quase-
profissões” ou “pseudoprofissões” relativamente aos quais os numerosos estudos
citados por Chapoulie concluem que, na melhor das hipóteses, elas se encontram
no decurso de um processo de profissionalização.

Esta variação na extensão do campo onde se aplica o termo “profissão” torna-o,


segundo os dois autores, pouco operatório para analisar grupos profissionais
concretos. Mas, para além das definições imprecisas do termo “profissão”, a
perspectiva funcionalista distingue-se dos outros pontos de vista (e
nomeadamente do ponto de vista “interaccionista simbólico” que trataremos a
seguir) por uma dupla afirmação: por um lado, as profissões formam
comunidades reunidas à volta dos mesmos valores e da mesma “ética de
serviço”; por outro, o seu estatuto profissional é validado por um saber
“científico” e não apenas prático. A primeira é particularmente reafirmada num
artigo de Goode, um dos principais discípulos de Parsons, a propósito das
“profissões” jurídicas (1957): a aceitação, a formação e a difusão de um código
de deontologia entre os “profissionais” são apresentadas como componentes
ligadas de um processo de aquisição de um estatuto “profissional” que permite,
simultaneamente, regular a concorrência interna entre os práticos e pagar o preço
da autonomia relativa concedida pelas autoridades legais. A segunda é
claramente desenvolvida num pequeno artigo de Wilensky intitulado: “the
professionalization :, of everyone” (1964) no qual a posse de um saber teórico,
graças a estudos longos, é apresentada, simultaneamente, como a garantia de
uma competência verdadeira e especializada num sector de actividade ancorada
numa motivação experimentada e como o meio mais eficaz para evitar um
afluxo excessivo de praticantes na “profissão”. Assim, comunidade ética e saber
científico, que constituem as duas características específicas de uma “profissão”
descrita numa perspectiva funcional (cf. capítulo 2), são inseparáveis da
distinção cultural e do fechamento social.
Existe, no entanto, uma ruptura assinalável entre a teorização generalizante de
Parsons e o conteúdo das análises empíricas referidas anteriormente: por
exemplo, não se encontram traduções operatórias das dualidades evidenciadas no
“modelo” de origem: teoria e prática, técnica e social, desapego e interesse. Ora,
estas articulações são essenciais do ponto de vista funcionalista: primeiro,
porque implicam, como afirma Parsons, que, “na nossa sociedade, é a ciência
que constitui a tradição cultural essencial” (1955, p. 250) e que a crença
partilhada na capacidade que a ciência possui de responder a certas
“necessidades básicas” constitui uma condição essencial da eficácia
“profissional”; de seguida, porque pressupõem um ajustamento eficaz entre as
motivações do “profissional” e as dos seus clientes que permitem a validação da
sua autoridade e a justificação dos “privilégios” que lhe são conferidos” (id.);
por fim, e se calhar sobretudo, porque estas articulações significam que um
conjunto de actividades ligadas a certas “necessidades básicas” ou a certas
“funções sociais” devem escapar à lógica comercial e financeira do “mundo dos
negócios” e serem confiadas a actores “orientados-para-a-colectividade” e a
instituições específicas (id., p. 247). Passa-se, por exemplo, o mesmo com tudo o
que diz respeito à saúde, à justiça, às liberdades ou à educação e, talvez ainda, de
uma forma mais geral, no que diz respeito aos serviços personalizados. Sem este
conjunto de “relações aos valores”, o modelo “profissional” não poderia, de
acordo com Parsons, funcionar e legitimar-se por muito tempo. Ora, é
justamente este sistema cultural que várias abordagens criticas contribuíram para
pôr em causa, até mesmo, segundo alguns, para estilhaçar.

6.5. A abordagem do interaccionismo simbólico

Numa recolha de artigos intitulada Men and their work (1958), Everett Hughes
analisa, por várias ocasiões, a relação entre o “profissional” e o seu cliente no
que se refere à relação entre o sagrado e o profano, o clero e o laico, o iniciado e
o não-iniciado. Insiste no facto de que o termo “profissional” deve ser tomado
como categoria da vida quotidiana e “que não é descritivo mas implica um
julgamento de valor e de prestígio” (p. 42) Se não se encontra em Hughes uma
“teoria da profissão”, encontra-se uma multiplicidade de indicações e de pistas
para reflexão baseadas ou não em trabalhos empíricos que desenham um quadro
de abordagem muito sugestivo. :,

Para Hughes, “o ponto de partida de qualquer análise sociológica do trabalho


humano é a divisão do trabalho“. Não se pode separar uma actividade do
conjunto daquelas onde ela se insere e dos procedimentos de distribuição social
das actividades. Consequentemente, as questões mais pertinentes a serem
colocadas, perante qualquer trabalho, são, segundo o autor, as seguintes: O que é
que considera ser sujo, penoso ou vergonhoso no seu trabalho? Tem a
possibilidade de delegar os trabalhos sujos? A quem? Como? Em caso negativo,
porque continua a fazê-los? Assim, o “profissional” é, simultaneamente, aquele
que pode delegar as “tarefas sujas” a terceiros e só fazer o que está ligado a uma
satisfação simbólica e a uma definição prestigiosa (“curar os doentes”).

Para apreender o fenómeno “profissional”, Hughes introduz, no único artigo


inédito de recolha, duas noções essenciais que designa por “diploma” (licence) e
“mandato” (*mandate*). A licence é a autorização legal para exercer algumas
actividades que outros não podem exercer; o mandato é a obrigação legal de
assegurar uma função específica. Ora, segundo ele, licence e “mandato”
constituem as bases da divisão moral do trabalho” que define como sendo “o
processo pelo qual diferentes funções valorizadas por uma colectividade são
distribuídas, entre os seus membros, por grupos, categorias e indivíduos, em
simultâneo”. Sendo objecto de conflitos essenciais, esta divisão do trabalho
implica uma hierarquização das funções e uma separação entre funções
essenciais (sagradas) e funções secundárias (profanas). Existem duas operações
que presidem à selecção dos profissionais: separá-los dos outros (licence) e
confiar-lhes uma missão (*mandate*).

Hughes distingue então dois atributos essenciais aos “profissionais” munidos de


um diploma e de um mandato. O primeiro dos atributos, designado “saber
inconfessável” (*guilty knowledge*), espécie de conhecimento embaraçoso que
caracteriza um aspecto essencial da relação entre o “profissional” e o seu cliente:
“jurista, polícia, médico, repórter, sábio, diplomata, secretária particular…
devem ter autorização para ouvir — guardando sigilo — coisas culpabilizadoras
ou, pelo menos, informações embaraçosas ou perigosas” (p. 82). O exemplo
apresentado, mais uma vez, é o do padre que recebe e absolve os pecados veniais
e mortais em troca de uma separação com o mundo profano simbolizado pela
“sotaina(!) e o celibato”. No centro da profissionalidade, explica Hughes,
encontra-se uma transacção (*bargain* e não trade, do mesmo modo o cliente é
um client e não um customer), um pacto entre quem pratica, devidamente
creditado (diplomado) e mandatado, e os parceiros particulares, pacto que
consiste na troca das “coisas perigosas” que devem ficar secretas. Em que
consiste esta transacção entre aquele que dá e aquele que recebe o serviço do
“profissional”? Trata-se, diz o autor, “da transferência legítima, pela sociedade,
de uma parte das suas funções sagradas a um subconjunto reconhecido”, da
projecção do mal, do maldito, do doente — em resumo do tabu — sobre os
“profissionais” legitimados para se responsabilizarem pelo saber em causa e
mantê-lo em segredo. Se os exemplos canónicos do médico e do advogado são
frequentemente associados à figura deste “profissional”, é porque as
características eminentemente secretas, íntimas e tabu da doença e do crime são
evidentes. Mas, diz Hughes, pode-se alargar a análise a um :, conjunto
considerável de actividades: basta que estas tenham sido definidas como
“sagradas” e que o segredo da sua importância estratégica possa ser preservado.
Assim, tudo o que diz respeito à coesão comunitária, aos “ritos de passagem” e
às relações entre tempos individuais e tempos sociais (nascimentos, mortes,
casamentos…) deve ser confiado a “profissionais” que vão guardar o segredo
sobre as significações “reais” da sua “missão” simbólica. Deste modo, a própria
natureza do saber do “profissional” está no cerne da “profissão”: trata-se de um
segredo social confiado pela autoridade a um grupo específico, que o autoriza e
o mandata para trocar sinais de transgressão pelas marcas de reintegração social
e de reabilitação moral. A justificação científica é apenas, nesta problemática,
uma cortina de fumo.

Quando passa do sentido restrito de “profissional” ao sentido lato, Hughes


introduz um segundo critério da profissão: a existência de instituições destinadas
“a proteger o diploma e a manter o mandato dos seus membros”. As
organizações profissionais devem manter os profissionais longe do público dos
profanos sempre prontos a lançar sobre eles a suspeita de charlatanismo ou de
abuso de poder. A organização deve, portanto, proteger o segredo e reactivar
regularmente a autorização e o mandato: eles constituem intermediários entre o
Estado e os profissionais ecrãs entre estes profissionais e o público. A
organização deve assim zelar pela aprendizagem e pela reprodução do ritual
entre os profissionais. O ritual constitui, com efeito, uma protecção
indispensável contra os “riscos do ofício” e a sua importância depende da
natureza do mandato: “quanto maior for o risco, mais o ritual deve ser
desenvolvido”. A organização deve ainda gerir a questão, eminentemente crítica,
segundo Hughes, dos erros profissionais. Enquanto “os profanos consideram as
técnicas profissionais como um meio, os profissionais consideram-nas como
uma arte”. Assim, a organização desempenha um papel essencial na
desculpabilização em caso de erro desde que as regras da arte tenham sido
respeitadas. No caso de as regras da arte não terem sido respeitadas, o papel da
organização é desembaraçar-se das “ovelhas ranhosas”, dos falsários e dos
incompetentes: eles não souberam “gerir” o cerne da sua relação com o cliente
que é de ordem simbólica (manipulação do tabu) e que se deve apoiar na
confiança e no respeito estrito das regras profissionais (“deontologia”).

Um último critério ocupa um lugar muito importante nas análises de Hughes


respeitante às profissões em sentido lato. É a sua definição de profissão enquanto
carreira e enquanto meio de socialização. Se o grupo profissional é, sem dúvida,
segundo ele, “aquele que reivindica o mandato de seleccionar, formar, iniciar e
disciplinar os seus próprios membros e de definir a natureza dos serviços que
deve realizar e os termos nos quais devem ser feitos” e se este mandato tem a ver
com “certas funções sagradas que implicam o segredo”, então este mandato é,
necessariamente, acompanhado por um desenvolvimento de uma “filosofia”, de
uma “visão do mundo”, que inclui os pensamentos, valores e signifïcações
envolvidos no trabalho. Compreende-se, portanto, por que é que este mandato
pode ir até ao monopólio que exclui todo o não-membro do exercício do trabalho
e que regula a totalidade das relações que dizem respeito à actividade.
Compreende-se :, também por que é que este mandato é, em geral, acompanhado
por um conjunto de discriminações em relação a todas as categorias sociais
suspeitas de não serem capazes de cumprir este mandato e de não saberem
manter este segredo. Assim, qualquer profissão tende a constituir-se em “grupo
de pares com o seu código informal, as suas regras de selecção, os seus
interesses e a sua linguagem em comum” e a segregar estereótipos profissionais
que excluem, realmente, os que não lhe são conformes. Hughes assinala, a este
respeito, como estes estereótipos, nos EUA, se organizam geralmente à volta das
características “branco, anglo-saxónico, homem e de cultura protestante” que
constituem as “características esperadas por todos os altos status“. As lutas dos
“novos grupos” de mulheres, de negros, de minorias étnicas ou religiosas para
“entrar na profissão” não suprimem os estereótipos mas deslocam-nos,
hierarquizando, nomeadamente, subfunções desvalorizadas (*dirty works*) e
subpúblicos que confiam a estes novos grupos. Assim, como assinala o autor,
não é raro nos EUA que aos contramestres negros se atribua a responsabilidade
de gerir exclusivamente grupos de negros poucos qualificados e que se lhes dê o
nome de “testa de ferro” (*straw boss*). Da mesma forma, também as médicas
são frequentemente remetidas para a prestação de cuidados às crianças e
alcunhadas “médicas-galinhas” (*hen doctor*), etc. Assiste-se, assim, a uma
hierarquização e a uma segregação internas ao grupo profissional que reserva o
essencial do mandato e do segredo apenas aos profissionais dotados de
características conformes ao estereótipo dominante.

Compreende-se, assim, por que é que numerosos estudos empíricos


desenvolvidos em torno de paradigmas do interaccionismo simbólico (cf.
capítulo 4) punham em questão a existência das comunidades “profissionais”
integradas e reguladas, em conformidade com o modelo parsoniano. Os
inquéritos de Freidson (1970), que retomam e completam os de Hall (1949),
insistem nas importantes diferenciações internas ao corpo médico e mostram as
múltiplas adaptações dos médicos aos pedidos dos seus doentes, diferenciados
de acordo com as classes sociais. Solomon (1961) põe em evidência, por
exemplo, a correlação entre as pertenças étnicas e sociais dos médicos e a
posição na comunidade hospitalar estruturada pela hierarquia das funções do
hospital. D. C. Lortie (1959) realizou um célebre estudo, várias vezes citado por
Hughes, que mostra a forte heterogeneidade do grupo dos juristas, pondo
(também aí) em correlação as origens sociais e universitárias dos juristas com a
sua posição no seio da divisão do trabalho jurídico e a natureza da sua clientela.

6.6. A socialização profissional em Hughes

Num célebre artigo publicado em 1955 e retomado no capítulo 9 de Men and


their work Hughes formula aquilo que chama “um esquema geral de referência
para estudar a “formação” (*training*) para profissões muito diversas”. Intitula-
o “a fabricação de um médico” e apresenta esta fabricação como uma espécie de
“modelo” da socialização profissional concebida, simultaneamente, como uma
iniciação, no sentido etnológico, a :, “cultura profissional” (neste caso médica) e
como uma conversão, no sentido religioso, do indivíduo a uma nova concepção
do eu e do mundo, em resumo, a uma nova identidade (47).

(47) Encontramos, nas análises de Hughes, uma notável síntese entre os


contributos mais sólidos da antropologia cultural (cf. capítulo 2) e os do
interaccionismo simbólico (cf. capítulo 4) que viabiliza uma perspectiva
sociológica da identidade profissional (cf. capítulo 5).

Três mecanismos específicos da socialização profissional são particularmente


explicitados por Hughes. O primeiro designa. o de “passagem através do
espelho” e consiste em “olhar o espectáculo do mundo às avessas, de forma a ver
as coisas invertidas como se tivessem sido escritas no espelho”. É uma espécie
de imersão na “cultura profissional” que aparece brutalmente como o “inverso”
da cultura profana e coloca a angustiante questão da forma como “as duas
culturas interagem no interior do indivíduo”. A crise e o dilema instaurados pela
“identificação progressiva com o papel” só podem ser dissipados por uma
renúncia voluntária aos estereótipos profissionais no que diz respeito à natureza
das tarefas (*tasks, skills*), à concepção do papel, à antecipação das carreiras e à
imagem do eu que constituem, segundo o autor, os quatro elementos de base da
identidade profissional. Esta descoberta da “realidade desencantada” do mundo
profissional pode “ser fugaz se acontece muito cedo ou muito tarde,
traumatizante se acontece numa altura imprópria”, excitante ou mesmo
inebriante (*inspiring*) se acontece na altura certa.

O segundo mecanismo importante diz respeito ao que se poderia chamar “a


instalação na dualidade” entre o “modelo ideal” que caracteriza a “dignidade da
profissão”, a sua imagem de marca, a sua valorização simbólica, e o “modelo
prático” que diz respeito “às tarefas quotidianas e aos trabalhos pesados” e que
mantém poucas relações com o primeiro. Hughes assinala que esta distância
entre os “modelos sagrados” e as “diversas vias da prática quotidiana” é objecto
de um debate constante no seio dos grupos profissionais e que as lutas para
manter o controlo das tarefas nobres” constituem uma chave para a compreensão
do meio profissional, caracterizado por “uma tendência constante para que as
actividades auxiliares e rotineiras se tornem fins em si”. Assim, no processo de
socialização intervém “uma série de escolhas de papéis”, ou seja, “interacções
com os outros significativos que tentam reduzir esta dualidade e representam
passagens constantes de um modelo a outro”. A formação de um “grupo de
referência” no seio da profissão, representando em simultâneo uma antecipação
das posições desejáveis e uma instância de legitimação das suas capacidades,
constitui um mecanismo essencial de gestão desta dualidade.

Este processo de projecção pessoal numa carreira futura por identificação aos
membros de um “grupo de referência” vai ao encontro da teoria mertoniana da
“socialização antecipatória” (cf. capítulo 2). A identificação social dos
indivíduos em formação releva, sem dúvida, de uma lógica da “frustração
relativa”: comparando-se aos membros do meio envolvente dotados de um
estatuto social mais elevado, forjam para si uma identidade não a partir do seu
“grupo de pertença”, mas sim por identificação a um “grupo de referência” a que
gostariam de pertencer no futuro e em relação ao qual se sentem frustrados. Esta
:, identificação antecipada, que implica uma aquisição cautelar, por parte dos
indivíduos em causa, das normas, dos valores e dos modelos de comportamento
dos membros do “grupo de referência”, é consideravelmente favorecida pela
existência de etapas promocionais instituídas, permitindo assim planificar o
acesso a este grupo. Ela permite dar conta do grau de implicação
(*commitment*) dos indivíduos nas suas tarefas (Becker, 1960). Aplica-se, por
isso, particularmente bem à socialização profissional, tal como Hughes a analisa
para o caso dos médicos.
O interesse da abordagem que resumimos reside mais na sua fecundidade
operatória do que na originalidade e no rigor do “modelo” apresentado. Este
modelo permitiu desenvolver vários estudos empíricos que se reclamam dele
mas abre também importantes pistas metodológicas e teóricas que, ao que
parece, só foram parcialmente exploradas (Becker e Carper, 1956). Entre as
investigações empíricas que aplicam este “modelo”, uma das mais célebres é a
que Fred Davis, realizou, durante três anos, estudando cinco promoções
sucessivas de enfermeiras e que foi objecto de uma obra (1966) e de uma
quinzena de artigos (Davis 1968), um dos quais resume as seis etapas da
“conversão doutrinal” das enfermeiras da forma seguinte:

— a inocência inicial: é o reino sem partilha dos estereótipos profissionais da


enfermeira devota, altruísta, disponível…;

— a consciência da incongruência: é a perturbação, a crise que se segue à


tomada de consciência de que a profissão não é exactamente “aquilo que se
esperaria” e de que as categorias estereotipadas (dedicação, altruísmo…) pelas
quais as aprendizes enfermeiras a representavam são “incongruentes”, estranhas
ao “mundo” entrevisto. O autor fala de “choque da realidade” (*reality shack*)
…;

— o psyching out (“clic“): é a intuição geralmente apresentada como brutal de


“aquilo que se deve fazer” para estar em conformidade com as expectativas das
instrutoras, é a arte de “sentir” (*o pif*), de “adivinharem exactamente aquilo
que se espera delas”; algumas não conseguem totalmente…;

— a simulação do papel: é a instalação no falsidade, a aceitação do abismo que


separa o papel a desempenhar dos estereótipos anteriores, é o desencadear do
“clic” apesar do que implica. Davis fala de alienação do Eu…;

— a interiorização antecipada: é a etapa da constituição de uma dupla


personalidade por antecipação da carreira: é a aceitação de uma dualidade entre
o eu profano e o eu profissional em troca da oportunidade de uma carreira mais
ou menos assegurada…;

— a interiorização estável: é a aquisição dos reflexos profissionais, a


incorporação do papel que permite a rejeição estabilizada do eu “profano”, a
instalação numa nova visão profissional do mundo reforçada pelos contactos
regulares das “profissionais”…
Uma outra investigação inspirada pelo “modelo” de Hughes foi conduzida por
Dan Lortie junto dos estudantes de Direito de Chicago, incidindo sobre uma
amostra que foi acompanhada durante vários anos após a sua saída da
universidade (in Vollmer e Mills :, 1966, pp. 98-101). Lortie constata
igualmente, nos discursos dos jovens juristas, o testemunho da “substituição
gradual de imagens estereotipadas” (exóticas e dramáticas) por percepções
subtis, complexas e ambíguas mas radicalmente diferentes (rotineiras e “terra a
terra”). Verifica que o desenvolvimento de uma “autoconcepção profissional”
intervém após a obtenção do diploma durante o período em que o indivíduo
interioriza uma nova imagem profissional que se torna um aspecto muito
significativo da sua personalidade. As respostas dos jovens juristas apresentam
uma forte homogeneidade e um grande consenso no que diz respeito: 1. à
opinião de que os estudos os preparam mal (dois terços dos casos); 2. à opinião
de que os exercícios práticos e as capacidades sociais são muito mais
importantes do que os “conhecimentos” para exercer o ofício; 3. à constatação
de que as transformações importantes da sua personalidade aconteceram por
ocasião da imersão (*hurly-burly*) no mundo do trabalho depois de terem
obtido o seu diploma.

A solução habitual da fase de conversão última — por abandono e rejeição dos


estereótipos — e de dualidade entre “modelo ideal” e “normas práticas” constitui
segundo Hughes, o último mecanismo importante. Este mecanismo refere-se ao
ajustamento da concepção do Eu, isto é, da sua identidade em vias de
constituição que implica “a tomada de consciência das suas capacidades físicas,
mentais e profissionais, dos seus gostos e desgostos” com as hipóteses de
carreira que o profissional pode realisticamente esperar no futuro. Em primeiro
lugar, trata-se de identificar as possibilidades de progressão profissional tendo
em conta as fases significativas do seu desenvolvimento e as suas sequências
específicas de aprendizagem, sabendo que, embora estejam institucionalizadas
algumas possibilidades, outras, apesar de “informais ou não reconhecidas”,
seguramente existem enquanto regularidades de mudanças constatáveis,
geralmente ligadas a modificações na composição das actividades. Trata-se, em
seguida, de localizar as decisões cruciais que põem em relação os critérios de
sucesso profissional com as oportunidades de mobilidade e que implicam
escolhas cuidadas de grupos de referência e de “outros significativos” que
acabam por determinar a órbita onde nos inscreveremos no futuro. Trata-se,
finalmente, de desencadear estratégias de carreira definidas em termos de riscos,
de projecções do Eu no futuro e de previsões mais ou menos realistas da
evolução do sistema. Hughes é assim conduzido a definir a carreira como “soma
total destas disposições e orientações que fornece a chave da distribuição dos
profissionais entre as diferentes vias da carreira e os diferentes tipos de práticas”
(1958, p. 159).

6.7. Alcance e limites do paradigma interaccionisita

E. Hughes e os sociólogos por vezes reunidos sob a designação de “escola de


Chicago” tiveram o grande mérito de ligar estreitamente o universo do trabalho
aos mecanismos da socialização. Ao defini-lo como um “drama social” (*social
drama of work*), Hughes sublinhava o facto essencial de que o “mundo vivido
do trabalho” não podia

ser :, reduzido a uma simples transacção económica (o uso da força de trabalho


em troca de um salário): põe em destaque a personalidade individual e a
identidade social do sujeito, cristaliza as suas esperanças e a sua imagem do Eu,
compromete a sua definição e o seu reconhecimento sociais. Mas, sobretudo, a
perspectiva interaccionista simbólica mostrou-se fecunda na medida em que
obrigava a abandonar a análise sincrónica da “situação de trabalho” ou mesmo
do “sistema social” (cf. as análises de Elton Mayo e da escola das relações
humanas) para, numa perspectiva diacrónica, os substituir, realçando a
importância da carreira encarada no duplo sentido de categorias de emprego e de
trajectórias socioprofissionais (Becker e Strauss, 1970). Como afirma P. Tripier
(1987), a escola de Chicago permitiu o desenvolvimento de novas abordagens da
qualificação redefinindo-a como “uma articulação entre trajectória provável e
sistema ocupacional, isto é, entre um sistema de expectativas legítimas (o que é
que eu quero tendo em conta o que sei e o que fiz anteriormente?) e um sistema
de oportunidades (o que posso esperar tendo em conta a evolução provável das
posições profissionais?)”. Suscitando a utilização de análises transversais e
estruturais dos sistemas de emprego, ela permitiu pôr em evidência o que Tripier
chama “sistemas ocupacionais” (48) que ele define como a “selecção natural das
oportunidades nas biografias”.

(48) Preferimos traduzir occupational system por “sistema de emprego” e o


termo occupational socialization por “socialização profissional” para não criar
neologismos inúteis. Na perspectiva de Hughes, exercer uma “profissão” ou
ocupar um “emprego” implica uma “socialização profissional”.

Esta perspectiva coloca a socialização profissional no centro da análise das


realidades do trabalho. Fá-lo sob condição de definir o termo “profissional” de
uma forma muito mais lata do que aquela que foi dada anteriormente pela
sociologia das “profissões” (Elliott, 1972). Ora, sob este ponto de vista, o
balanço das investigações da escola de Chicago é marcado por ambiguidades
importantes. O modelo das “profissões liberais” (sentido restrito) permanece
muito fecundo apesar de adoptar uma definição de profissão diferente da dos
funcionalistas, como assinala P. Desmarez: para estes, “uma profissão é um
ofício que conseguiu que quem o pratique disponha de um monopólio sobre as
actividades que ele implica e de um lugar na divisão do trabalho que os impeça
de se confrontarem com a autoridade do profano no exercício do seu trabalho”
(Desmarez, 1986, p. 169). Como sublinha P. Tripier (1984), esta definição está
muito marcada pelo contexto dos Estados Unidos e pela referência implícita ao
Taft Hartley Act de 1947 que instaura uma distinção jurídica entre as actividades
(*Professions*) cujos membros podem organizar-se em associações profissionais
e aquelas (*Occupations*) cujos membros só se podem organizar em instituições
sindicais. Apesar de uma minoria de assalariados ter conseguido fazer
reconhecer a sua actividade como uma “profissão”, a maior parte não o consegue
ou só o consegue parcialmente (fala-se então de “semiprofissões”). Este
reconhecimento como “profissão” parece assim constituir um desafio social que
depende, nomeadamente, da capacidade que têm os membros de uma qualquer
actividade para se coligarem, para :, desenvolverem uma argumentação
convincente (Paradeise, 1988), e para se fazerem reconhecer e legitimar através
de uma multiplicidade de acções colectivas.

Será que isto significa que as actividades assalariadas “comuns” — isto é, todas
aquelas que não dizem respeito ao processo de profissionalização — não
envolvem nenhuma socialização profissional? A posição de E. Hughes a este
respeito era claramente negativa (Chapoulie, 1984) e parece ser validada pela
análise empírica de tipo “interaccionista” realizada sobre um conjunto de
empregos (Desmarez cita “os talhantes, os desportistas, os actores, os guardas da
prisão, os engenheiros do som, os strip-teasers dos dois sexos, os polícias, os
jogadores profissionais de cartas e os contabilistas”). É preciso, no entanto,
assinalar que a maior parte das noções engendradas a partir do estudo das
“profissões” (médicos, juristas…) ou das “semiprofissões” (enfermeiras…), tais
como o compromisso (*commitment*), o “clic” (psyching out), o choque da
realidade… são muitas vezes ambíguas e dificilmente transponíveis para outros
“empregos” mesmo independentes (Olesen e Whittaker, 1970). Esta constatação
é ainda mais verdadeira para o universo da grande empresa e, nomeadamente,
para os seus assalariados menos qualificados (operários, empregados de
escritório…) que ficam totalmente fora das análises interaccionistas. Tudo se
passa como se a socialização profissional não dissesse verdadeiramente respeito
àqueles cujas condições de trabalho eram definidas e controladas de acordo com
as normas (tayloristas ou não) da grande empresa capitalista. Esta não é
analisada como um meio de socialização profissional no sentido definido
anteriormente. A sua análise é remetida para a sociologia do trabalho, das
organizações e das relações profissionais (*Industrial Relation*) que não utiliza
os mesmos paradigmas que a sociologia das “profissões”.

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Profissões, organizações e relações profissionais

A partir do momento em que abandonou o quadro estreito da análise das


“profissões liberais ou intelectuais”, a sociologia das profissões debateu-se com
dificuldades consideráveis que explicam em larga medida a sua divisão relativa
em múltiplas correntes teóricas e a sua interacção forte com outros ramos da
sociologia: sociologia do trabalho, das organizações, das relações profissionais.

7.1. A “profissão” como organização: dos processos sociais estruturantes

No próprio núcleo da sociologia das “profissões” nos Estados Unidos, a partir


dos anos 60, abordagens diferentes centradas na organização tendem a fazer
evoluir as teorias funcionalista e interaccionista. No interior da “corrente”
funcionalista, as análises de Merton tiveram um papel importante nesta
evolução. Na continuidade das análises interaccionistas, os trabalhos de Freidson
(1970) dão, particularmente, um bom testemunho da evolução das
problemáticas. Esta foi igualmente induzida pelo desenvolvimento do salariado
entre os “profissionais”: tanto nas grandes empresas de forma capitalista — é o
caso dos juristas americanos — como também e talvez sobretudo em instituições
(hospitais, escolas e universidades, centros sociais…) centradas em serviços para
particulares e não orientadas para o lucro. :,

O contributo essencial de Merton é, sem dúvida, ter distinguido as funções


manifestas das funções latentes das organizações profissionais e das suas
políticas de formação. A propósito de uma análise da formação dos médicos
(1957), pôs em evidência os dois processos essenciais pelos quais uma
“profissão” se transforma em “organização fechada” utilizando a missão de
serviço que lhe foi confiada para provocar um “efeito perverso” de segregação
social.

Ao primeiro mecanismo, Merton chama a burocratizacão das carreiras cujo


instrumento mais importante é o diploma que abre, por si só, o acesso a uma
carreira profissional no termo de um curn’culo preestabelecido. Generalizando
este modelo de burocratização elaborado a propósito das formações médicas,
Merton (1957a) indo, aliás, ao encontro de Hughes (1958, capítulo 10), distingue
cinco etapas neste processo:

— na sua concorrência com outros “empregos afins”, para se fazer reconhecer


ou confirmar como “profissão”, um grupo de praticantes tem interesse em ligar-
se a uma instituição;

— as instituições mais eficazes para esta função são instituições educativas que
permitem instaurar uma formação profissional específica (*formal training*);

— esta formação aberta, antes de mais, a “profissionais” institucionaliza-se por


sua vez em currículo para se abrir a jovens e tornar-se escola profissional
(*vocational school*);

— esta escola integra-se na universidade que permite a multiplicação dos pré-


requisitos e níveis de formação até à sanção última, o diploma;

— a formação assim estandardizada e hierarquizada torna-se um quadro de


sequencialização das carreiras, estando cada nível de formação associado a um
estádio de carreira.

Este processo burocrático permite, antes de mais, estabelecer uma separação


entre os “verdadeiros profissionais” integrados na instituição e tendo
ultrapassado todo o curso de formação ou parte dele e os “falsos” profissionais
periféricos que não transitaram pela “via real”. Permite de seguida distinguir, no
interior da própria profissão, aqueles que passaram pela “porta grande” da via
universitária baseada numa formação geral valorizada e aqueles que entraram
pela “porta pequena” da via profissional especializada e desvalorizada. Esta
burocratização das carreiras permite, finalmente, legitimar o poder interno à
profissão através de cursos e diplomas de elites reservados a categorias
específicas encarregadas da manutenção da “ordem simbólica da profissão”
(Freidson).
Assim, de “profissão” aberta a todos aqueles que sentem vocação para a
concretização de um ideal do serviço (função manifesta), o grupo profissional
torna-se, neste modelo, uma “organização fechada”, preocupada, antes de mais,
com a sua própria reprodução (função latente).

Este mecanismo de base, centrado na formação e na carreira, é completado por


um outro que leva “naturalmente” o grupo profissional a multiplicar as
regulamentações, as normas estatutárias e os privilégios diferenciados pelos seus
próprios membros. A profissão torna-se, assim, um “corpo” por vezes mais
preocupado com o seu funcionamento interno e com o respeito pelos seus
procedimentos burocráticos do que com a qualidade dos serviços oferecidos aos
clientes. :,

Uma abordagem clássica da “profissão médica” (Freidson, 1970) chega mesmo a


definir a profissão médica como uma organização formal e informal “que escapa
de tal forma ao controlo dos clientes, dos profanos, que são os seus
empregadores, e do Estado, que ela praticamente não é incitada a recorrer a
outras formas de controlo (trad. 1984, p. 206). Três mecanismos concorrem para
tornar, segundo Freidson, a profissão médica uma organização:

— uma divisão das tarefas que se estabelece entre os diversos ofícios envolvidos
na base de “relações relativamente estáveis” que permitem, por exemplo, “traçar
uma espécie de organigrarna da divisão das tarefas na medicina comparável no
seu todo aos que se podem estabelecer para empresas integradas”; nesta divisão
do trabalho, “todas as tarefas organizadas à volta do trabalho de cura são, em
última instancia, controladas pelos médicos” (id., p. 48);

— a existência de porta-vozes oficiais da “profissão” que é, assim, dotada de


uma identidade jurídica e susceptível “de estender as suas vantagens jurídicas e
estratégicas através de negociações com a autoridade soberana”. Esta
organização “oficial” tem uma função essencial: persuadir o Estado e a opinião
pública de que a profissão merece ser apoiada e deve auto-regular-se;

— as redes de relações informais que estruturam os diversos meios do trabalho e


hierarquizam a “profissão” em função dos diversos segmentos da clientela; esta
estrutura informal, segundo Freidson, não é reconhecida como uma organização
mas desempenha um papel essencial no reconhecimento de competências
profissionais que são muito mais diversificadas e hierarquizadas do que aquelas
que estão implícitas na “legenda oficial segundo a qual qualquer médico está
apto a trabalhar utilizando a mesma competência técnica e moral” (id., p. 208).

Esta análise conduz, assim, a ligar a estruturação e a evolução de uma


“profissão” à construção e à racionalização de organizações muito próximas do
modelo da grande empresa industrial ou da administração pública (como é para
alguns o caso do hospital). O objectivo tanto da organização “profissional” como
da organização industrial não será o de assegurar o monopólio de uma clientela
ao mesmo tempo que controla a competência dos seus membros? Não se
baseiam ambas numa divisão do trabalho que permite, simultaneamente,
melhorar a sua eficácia e hierarquizar, controlando, as competências necessárias?
O fosso entre o universo das “profissões” e o do trabalho industrial não estará,
por isso, bastante subestimado?

7. 2. A organização profissional do trabalho na produção capitalista: a dupla


fonte do poder

Segundo os historiadores do trabalho, tanto na Europa como na América do


Norte, o nascimento e a extensão das manufacturas foram precedidos e
acompanhados por um sistema de “trabalho ao domicilio” característico do
capitalismo mercantil. Neste sistema, os :, mercadores enviavam materiais e
dinheiro aos artesãos de oficina doméstica que trabalhavam em casa, em geral,
com a ajuda de membros da sua própria família. Os mercadores faziam contratos
com estes trabalhadores ao domicilio para o fabrico de bens ou de peças que
deviam ser entregues numa data estabelecida em troca de uma percentagem fixa
à peça. Os trabalhadores utilizavam os adiantamentos de fundos para comprar as
matérias-primas e as ferramentas de que precisavam e podiam trabalhar ao seu
ritmo e eram livres de trabalhar com as suas próprias técnicas. Eram mais
subempreiteiros do que assalariados no sentido moderno do termo: artesãos ou
operários de ofício, eles assumiam plenamente a responsabilidade do seu
trabalho e a organização da sua produção (Lallemant, 1989).

Durante todo o século XIX e começo do século XX, os mercadores capitalistas


procuraram aumentar o controlo que exerciam deslocando o lugar de produção
da casa para a fábrica. Eles admitiam que os trabalhadores autónomos, mais do
que para manter um ritmo de trabalho cada vez mais intenso exigido pela
concorrência na feitura da mercadoria, tinham tendências intrínsecas para a
bebida, a dança ou descanso. É assim que as manufacturas podem ser analisadas
como invenções sociais destinadas a quebrar a autonomia dos produtores e a
aumentar o poder de supervisão directa exercida pelos capitalistas (Marglin,
1970; Derber e Schwartz, 1988).

Mas, na maior parte das indústrias e durante longos períodos, os proprietários


das manufacturas, tal como antes destes os mercadores, continuaram
dependentes dos trabalhadores de ofício por causa do seu conhecimento dos
modos de fabricação dos produtos. O próprio Frederick Taylor, fundador da
“organização cientifica do trabalho”, reconhece-o: “Os trabalhadores de cada um
destes ofícios possuíam um saber que lhes tinha sido transmitido por via oral. O
contramestre e os administrativos sabiam, melhor do que ninguém, que o seu
próprio saber e a sua competência estavam longe de poder igualar o saber e a
habilidade (*skill*) de todos os trabalhadores debaixo das suas ordens” (citado
por Montgomery, 1979, p. 9).

Os operários de ofício exploravam individual e colectivamente esta situação para


manter, com os seus novos empregadores, negociações características da
“organização profissional do trabalho” que reproduziam certas características
do “trabalho ao domicilio” (Montgomery, 1979). Segundo a análise clássica de
Alain Touraine, para a França, o “sistema profissional do trabalho” assegura a
manutenção do controlo dos “profissionais de fabrico” sobre o processo de
trabalho enquanto o empregador controla o processo de produção. Os operários
de ofício utilizam o capital e o equipamento do proprietário, contratam alguns
dos seus ajudantes, geralmente não-especializados (por vezes, os filhos ou pais),
e vigiam a forma como o trabalho é feito, assegurando as tarefas mais delicadas.
A sua “qualificação” é complexa e baseia-se no domínio dos saberes
profissionais adquiridos pela experiência e pela aprendizagem (Touraine, 1955).
De acordo com a síntese de David Montgomery para os Estados Unidos, as
negociações entre os capitalistas e os trabalhadores de ofício não eram
certamente uniformes, mas englobavam, muitas vezes, uma :, partilha dos riscos
e dos lucros da empresa. Constituíam, portanto, trabalhadores de um tipo
particular “parcialmente empregados, parcialmente administradores e
parcialmente empresários independentes” (Montgomery, 1979, capítulo 1).

As negociações internas entre empregadores e “profissionais de ofício” levaram,


em certos ramos, a formas curáveis de associação colectiva. Assim, no sector do
aço nos Estados Unidos, desenvolveu-se, no fim do século XIX, uma cooperação
entre os grandes magnatas e os respectivos sindicatos. O sindicato de cada
indústria estabelecia um contrato com o proprietário para produzir um dado
número de toneladas de aço cuja taxa variava de acordo com os preços do
mercado. O proprietário fornecia o edifício, o material e as ferramentas e
assegurava a comercialização do produto final. Os “profissionais de oficio”
organizados no sindicato dirigiam o resto: recrutamento dos “não-especialistas”,
partilha das tarefas com estes, organização técnica, horários de trabalho,
pagamento dos salários. Coexistindo com o poder patronal baseado no capital, o
poder sindical baseava-se no monopólio do oficio e na organização do “closed
shop” (Stone, 1970). Noutros ramos ou empresas já não era o sindicato dos
trabalhadores de ofício, mas indivíduos — “profissionais de ofício”
particularmente empreendedores — que se tornavam “contratadores internos”,
que negociavam com a companhia a produção a realizar e a sua parte nos lucros
e que recrutavam assistentes e supervisionavam o seu trabalho. Eles constituíam
uma aristocracia salarial ganhando, frequentemente, o triplo do operário médio e
partilhando com os outros trabalhadores de oficio as tarefas de supervisão e de
controlo do trabalho dos não-especialistas (Derber e Schwartz, 1988).

Muitos outros exemplos de organização profissional do trabalho são analisados


na literatura histórica e sociológica. Apesar das variações nacionais e temporais,
estes exemplos mostram a força histórica de um modelo de organização que se
apoia em três grupos estratificados baseados numa dupla fonte de poder e de
legitimidade:

— os dirigentes de empresa retiram o seu poder através da sua relação com o


capital (económico e financeiro) e a sua legitimidade do seu sucesso económico
no mercado dos bens e dos serviços;

— os “profissionais de ofício” retiram o seu poder a partir da relação com o


saber (técnico e especializado) e a sua legitimidade da sua posição individual e
colectiva na organização e no mercado do trabalho;

— os assalariados não-profissionais (ou não-qualificados) são duplamente


excluídos da esfera do capital e do domínio legítimo da competência.

Este modelo de organização é profundamente instável: o interesse dos dirigentes


é, de facto, o de reduzir a autonomia e o poder dos “profissionais de ofício”
assegurando para si, recorrendo a vias diversificadas, o controlo directo da
organização do trabalho: o progresso técnico e os novos métodos de organização
“científica” do trabalho têm, em parte, este objectivo. O interesse dos
profissionais é o de se organizarem para defenderem a sua posição e protegerem
a “insubstitubilidade” da competência (Paradeise, 1987): o sindicato :, de ofício
e o controlo das formações têm, em parte, estes objectivos. Quanto ao interesse
dos não-profissionais, é o de poderem aceder às formações e às carreiras que
lhes permitem conquistar os saberes profissionais legítimos, sob pena de estes
saberes serem banalizados arrastando a proletarização geral de todos os
assalariados. Por isso, compreende-se por que é que a interpretação das
evoluções é sempre complexa e polémica: a interacção constante das duas
relações de trabalho (a relação salarial e a relação profissional) correspondentes
às duas fontes de poder (capital e saber) não permite uma visão simplista dos
movimentos que afectam a organização do trabalho e a estruturação das
actividades na economia capitalista.

7. 3. Profissionalização e desprofissionalização:

Debate permanente e duplo movimento recorrente

Será possível construir uma definição comum às duas realidades profissionais


que acabámos de descrever no seu movimento interno: a “profissão liberal ou
sábia” no seu processo de organização, de assalariamento e de diferenciação
interna que advém do controlo dos dirigentes; o “ofício” (assalariado ou não)
integrado na organização capitalista, ameaçado pelas estratégias dirigentes e
tentando salvaguardar a autonomia? Num artigo de síntese, que confronta as
teses sobre estes dois movimentos, Marie-José Legault propõe a seguinte
definição: “a profissão é uma organização susceptível de estandardizar a
formação, de definir o saber legítimo e de controlar a oferta de trabalho através
de um monopólio da referida definição” (1988, p. 164). Esta definição aplica-se,
com efeito, aos dois movimentos precedentes e permite, segundo a autora,
encontrar um núcleo comum a certas problemáticas recentes muitas vezes
designadas por “neomarxistas” e a outras consideradas, por vezes, como
“neoweberianas” (Saks, 1983).

As primeiras (ditas “neomarxistas”) assentam numa esquematização comum não


necessariamente contraditória com as segundas (ditas “neoweberianas”): a
passagem do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista conduz à
concentração do capital e à burocratização das empresas. A proporção do
emprego qualificado (profissional, no sentido acima referido) relativamente ao
emprego total aumenta com a evolução tecnológica e com a especialização das
funções de gestão. Este aumento manifesta-se no emprego assalariado das
grandes empresas ou administrações burocráticas e não na forma empresarial do
emprego independente. Esta última é típica de um modo de produção mercantil e
opõe-se, na teoria marxista, à lógica da organização capitalista. O crescimento
do emprego assalariado significa, portanto, “a conservação pelos profissionais
assalariados do hermetismo do saber (49) necessário ao empresário capitalista”

(Legault). :,

(49) Muitas análises insistem no esoterismo do saber e do seu modo de


aprendizagem por impregnação como critério

essencial do “ofício” comum às profissões independentes (artesãos,


agricultores…) e aos assalariados “profissionais de ofício” (cf. Darré, 1987;
Delbos e Jorion, 1984; Pharo, 1985; Tripier, 1984; Zarca, 1988).

Perante esta constatação, M.-J. Legault distingue três correntes principais na


recente literatura sociológica e económica:

— uma primeira corrente defende a tese de um determinismo capitalista


conducente a um processo irreversível de proletarização e de
desprofissionalização (ou desqualificação) a partir do momento em que haja
racionalização e assalariamento que impliquem economias de mão-de-obra e
divisões das tarefas (Braverman, 1976);

— uma segunda corrente defende a tese de uma polarização das qualificações


(desqualificação da maioria, sobrequalificação de uma minoria). Os
sobrequalificados que melhoram a sua posição seriam aqueles que participam em
tarefas de gestão ou de concepção (Johnson, 1972, e Freyssenet, 1974) essenciais
à valorização do capital;

— uma terceira corrente desenvolve a hipótese de uma não-proletarização dos


profissionais assalariados devido ao novo modo de gestão da mão-de-obra posto
em prática pelas empresas, modo de gestão esse específico desta categoria de
assalariados e valorizando a profissionalização e os valores da expertise (Larson,
1977); Derber et alii, 1989).

Esta última corrente pressupõe, portanto, que perdura o modelo da organização


profissional — isto é, simultaneamente, alguns aspectos da forma profissional de
organização do trabalho e da organização profissional dos assalariados “de tipo
corporativo” — ainda que sob novas formas, ou seja, constantemente renovadas
(Segrestin, 1985). Esta corrente implica, pois, a referência a um duplo espaço
que interessa articular: o espaço da organização do trabalho “interno” da
empresa que deve permitir evidenciar zonas de autonomia e iniciativas dos
profissionais assalariados e o espaço da organização profissional “externo“,
transversal às empresas e que permite aos profissionais assalariados manter
formas de associação, de construção e de defesa das suas competências e
capacidades de expertise (50). Ao contrário das outras duas correntes, esta não
postura nenhuma correspondência necessária, a prior), entre a posição dos
indivíduos no interior do processo de trabalho e a sua pertença de classe (ou a
sua posição nas relações sociais de produção). Pôr em correspondência as
posições ocupadas nos espaços é que pode permitir empiricamente definir as
identidades profissionais e sociais dos assalariados.

(50) Esta dualidade do espaço está ligada por alguns autores à manutenção das
duas fontes julgadas irredutíveis de poder na organização económica: o poder do
capital c o poder do saber (“logocracias”) que não pode ser totalmente
apropriado pelo capital (Derber, Schwartz, Magrass. 1989, pp. 5 e seguintes).

Este modo de colocar o problema encontra-se com a dos investigadores


(“neoweberianos”) que se referem à noção weberiana de “fechamento social”
para designar “o processo pelo qual uma dada categoria social tende a regular a
seu favor as condições de mercado face à competição actual ou potencial dos
pretendentes (*outsiders*), restringindo o acesso às oportunidades específicas de
um grupo restrito de elegíveis” (Saks, 1983). Segundo esta posição, os
profissionais assalariados como os “profissionais” liberais

são :, aqueles que conseguiram “organizar a aquisição e a legitimidade da sua


competência, em vastos campos funcionais, na base dos títulos oficiais de que
são detentores” (Larson, 1977). Devem dotar-se para isso de “instituições
próprias que disponham, por delegação, de autoridade pública, do poder de
validar e sancionar os seus membros” (Paradeise, 1987). É preciso, portanto, que
existam, para eles, “elos estruturais entre um nível de instrução formal elevado e
uma posição reconhecida na divisão social do trabalho” (Larson, idem).

Estes elos só podem resultar de um trabalho de argumentação bem sucedido,


isto é, “de uma aptidão reconhecida para produzir e se apropriar das declarações
que são autoridade” (idem). Esta aptidão tem que ser reconhecida não só pelos
públicos externos que devem ser persuadidos do valor da “necessidade” à qual
responde a profissão, mas também pelos públicos internos que são os potenciais
empregadores e os outros profissionais (Paradeise, 1988). O trabalho de
argumentação deve, pois, ligar a esfera da prática, isto é, a demonstração da
eficácia do profissional na satisfação da “necessidade” com a esfera da teoria,
isto é, a legitimidade “científica” da disciplina na qual a profissão se fundamenta
(idem). Este trabalho de reconhecimento científico da disciplina é
particularmente difícil já que necessita do consentimento dos outros “sábios” das
disciplinas já constituídas que formam “sistemas anónimos que servem para a
construção de novos enunciados válidos, de quadros teóricos no interior dos
quais as propostas pertinentes devem ser ordenadas para ganhar sentido”
(Larson, 1977). A capacidade dos profissionais para “dominarem a definição de
um campo autorizado da ciência” constitui, de acordo com esta abordagem, uma
das condições essenciais para estabelecer e manter um “fechamento simbólico”
aos olhos dos outros parceiros implicados na sua actividade.

Assim, compreende-se melhor o interesse para os empregadores em


reconhecerem o poder e a competência legítimos de profissionais que poderão
colocar ao serviço dos objectivos da sua empresa em troca de salários e de
perspectivas interessantes de carreira. É nesta transacção entre o
reconhecimento por parte do empregador de uma competência baseada num
título e a mobilização (*commitment*) pelo profissional assalariado desta
competência ao serviço da empresa que assenta o “novo (?) modo de gestão da
mão-de-obra” que preserva os profissionais da proletarização e mantém uma
separação entre eles e os assalariados que não começaram ou não conseguiram a
sua “profissionalização”. Como qualquer transacção, esta é instável e depende
do conjunto das relações que caracteriza a situação dos profissionais, os quais
arriscam sempre uma desprofissionalização, mas também a dos não-profissionais
que aspiram sempre a uma profissionalização.

Não existe, no entanto, nenhuma “lei geral” que permita concluir uma
profissionalização generalizada ou uma de profissionalização maciça dos
assalariados na empresa capitalista. Desde há muito tempo que se observam
movimentos cruzados e complexos de integração de “profissionais” que mantêm
ou aumentam o seu poder de expertise nas organizações de tipo burocrático, de
desprofissionalização ou “desqualificação” de profissionais de ofício perdendo a
sua autonomia e o seu controlo devido ao progresso :, técnico e ao
enfraquecimento da organização interna, de profissionalização ou
“requalificação” de novas categorias de assalariados conseguindo organizar e
fazer reconhecer o monopólio da competência; sem falar das “reconversões” de
um outro tipo de profissionalidade que permita manter estatutos profissionais
pelas transformações estruturais das empresas. Estas diferentes dinâmicas
profissionais podem sempre analisar-se como resultados incertos e frágeis das
transacções salariais entre os indivíduos em causa e os parceiros das relações de
trabalho: os seus empregadores mas também os seus clientes ou o seu público, as
suas organizações profissionais ou sindicais mas também as suas instituições de
formação. Esta abordagem revelou-se particularmente fecunda para compreender
o movimento secular da socialização profissional (51).

(51) Contudo, falta-lhes ter em conta as “transacções subjectivas” necessárias


aos indivíduos para se envolverem numa dinâmica profissional; é este o motivo
por que o termo “identidade” é pouco utilizado por estas correntes.

7.4. A qualificação como produto codificado de “modelos profissionais”

Existirão, contudo, “modelos” que permitem caracterizar os termos da


transacção precedente, entre as competências exigidas pelos empregadores
(qualificações dos empregos) e as competências adquiridas pelos assalariados
(qualificações dos indivíduos)? Será que existirão correspondências típicas entre
os modos de codificação das categorias de empregos e os princípios de
codificação das formações através das quais se definem os indivíduos? Se
recusarmos qualquer postulado de adequação preestabelecida entre os dois
processos, ao mesmo tempo que definimos a qualificação como socialização
profissional (Alaluf, 1986), podemos, pelo menos a título de hipótese,
reconhecer na literatura modos de ajustamento entre estes dois tipos de
codificação.

Para apresentar estes modelos hipotéticos, apoiar-nos-emos em resultados de


dois trabalhos muito diferenciados (devido aos países, às categorias e aos
períodos em causa) e, no entanto, largamente convergentes. O primeiro é uma
síntese, elaborada por W. E. Moore (1969), dos quatro níveis de identidade
profissional (*Occupational Socialization*), presentes em numerosas análises
americanas dos anos 60. O segundo é uma tentativa de elaboração de três
“modelos de valorização da força de trabalho” estreitamente ligados a três tipos
de opções de emprego descobertas por P. Rivard (1986) nas suas investigações
sobre a qualificação dos quadros nas empresas francesas. O facto de um dos
“níveis de identificação” (Move) não corresponder a nenhum “modelo de
valorização” (Rivard) explica-se facilmente pela diferença das populações
abrangidas (e também, sem dúvida, pela diferença dos países de referência).
Veremos que outros trabalhos permitem acrescentar um quarto “modelo” aos
propostos por Rivard, reforçando assim a convergência das duas sínteses. :,

O ponto de partida da síntese de Moore é a seguinte questão: quais são os


quadros legítimos de identificação dos assalariados que a literatura sociológica
admite? Moore coloca a hipótese de que estes “espaços” resultam em parte da
interiorização de “normas de emprego” (*Occupational Norms*) que exprimem
as principais “formas de lealdade” dos assalariados em relação às instituições
pertinentes e ao Outro significativo (Mead). Estabelece uma distinção importante
entre as normas ideais e formais transmitidas pela formação e as normas práticas
e informais consolidadas pela experiência do trabalho (cf. capítulo 6). Verifica
que são estas últimas que estruturam de uma maneira duradoira as identificações
dos assalariados e que asseguram formas diversas de implicação profissional
continua (*continuing occupational commitment*), as quais permitem a
confirmação de identidades profissionais, constituindo, igualmente,
identificações a comunidades profissionais significativas de cada um dos níveis
de interesse iniciais.

O ponto de partida de P. Rivard é diferente. Interroga-se sobre as expectativas de


carreira dos quadros e sobre as diversas representações comuns a partir das quais
indivíduos e empregadores baseiam os seus comportamentos. Associa estas
representações, simultaneamente, a estratégias típicas de “defesa, imposição,
reforço da legitimidade do modelo argumentativo” da competência do
assalariado e a etapas profissionais de progressão típicas baseadas em lógicas
económicas e sociais, específicas e irredutíveis umas às outras. É a esta
correspondência entre estratégias de carreira e etapas profissionais que Rivard
chama “modelo de valorização” e que ele apresenta a partir de três figuras ideal-
típicas que são o oficial, o físico e o artífice.

Estas três figuras correspondem de perto aos três espaços de identificação de


Moore e às três comunidades profissionais que lhes estão ligadas. Por esta razão
vamos apresentá-las ao mesmo tempo.

O modelo do artífice: valorização pelo resultado e identificação a um posto (Job)

A unidade elementar que define o emprego é o POSTO, ou seja, um conjunto de


tarefas (prescritas), de resultados (previstos) e de meios (atribuídos). O núcleo
duro da competência é a :formação na tarefa (no campo), ou seja, a capacidade
de produzir resultados a partir da experiência e do domínio da actividade de
trabalho. O salário sanciona a contribuição para a tarefa principal, contribuição
essa que produz o valor acrescentado incorporado no resultado do trabalho.

A codificação principal é a que classifica os postos segundo a sua importância na


produção dos resultados. A codificação dos indivíduos decorre da precedente e
baseia-se nas experiências anteriores (cana de recomendações, currículo…) e nas
aptidões medidas por testes específicos. A carreira é concebida, apenas, como
uma progressão para postos cada vez mais importantes susceptíveis de
produzirem resultados acrescidos/mais positivos. O êxito profissional mede-se a
partir destes: é uma “carreira através dos postos” baseada na acumulação
“interna” de competências operacionais. :,

A identificação principal é a que liga o indivíduo ao colectivo de trabalho, o qual


constitui uma verdadeira “comunidade profissional” com a sua linguagem
própria, as suas normas informais, as suas alegrias e os seus sofrimentos
profundamente inferiorizados (Moore). Este colectivo define-se a partir de um
conjunto relativamente limitado de postos (*closely related set of jobs*)
estruturados em torno de um chefe ou de um responsável detentor da identidade
colectiva. é em relação a ele que se define a lealdade e é por ele que passam
todas as antecipações de futuro (Moore).

A estratégia de qualificação essencial é uma regulação dos fluxos dominada pelo


empresário. Há pouca ou nenhuma codificação da visibilidade dos resultados
obtidos. A argumentação essencial é destinada a valorizar os autodidactas e a
reconhecer as diferentes formas de experiência profissional úteis à empresa
(Rivard).

O modelo do oficial: valorização pela função e identificação com um estatuto

A unidade elementar aqui é a FUNÇÃO, “estado” no sentido do Antigo Regime,


isto é, o mandato atribuído por delegação de um poder central e oficializado por
um acto oficial. Trata-se de um serviço a manter/preservar/consolidar e que
implica uma responsabilidade inerente ao estatuto possuído: o oficial é
proprietário da sua patente militar. Este estatuto é, pois, inseparável de uma
HABILITAÇÃO especializada resultante de uma FORMAÇÃO
PROFISSIONAL inicial e contínua. Esta formação constitui uma condição para
postular ao nível das funções organizadas as longas filas hierarquizadas de tipo
burocrático.

A codificação principal é a que ordena os indivíduos em diferentes escalões da


fila de funções. A carreira não é mais que a sequência das funções cada vez mais
importantes desempenhadas numa sequência de etapas. Ela resulta de jogos de
actores muito complexos que dependem, simultaneamente, de factores
demográficos, de decisões políticas e de interacções estratégicas entre os
parceiros desta “regulação conjunta” (J.-D. Reynaud).

A identificação principal é a que liga o indivíduo ao seu estatuto, ou seja, à


comunidade daqueles que ocupam as mesmas funções. Quer se trate de
associações profissionais ou de uniões sindicais de ofício, estas comunidades de
identificação são transversais em relação às empresas e estruturam identidades
profissionais “de tipo corporativo” fortemente ligadas à manutenção e à
reprodução de normas oficiais que legitimam a função desempenhada.

A estratégia de qualificação consiste em “criar um grupo de postos similares e


em definir, depois, as condições necessárias à ocupação destes postos” (Rivard).
O funcionamento mais frequente é a cooptação aceite tacitamente por todas as
partes implicadas. A argumentação essencial do grupo profissional incide sobre a
utilidade e o valor das novas funções a criar. :,

O modelo do físico: valorização pela formação e

identificação com a disciplina (sector, indústria…)

A unidade elementar de definição é aqui a ESPECIALIDADE, isto é, a


competência especializada adquirida pela formação de base e pelos saber-fazer
adquiridos pelas aprendizagens cumulativas. Teoricamente, existe uma
correspondência estreita entre as vias de ensino disciplinar e as vias
“profissionais”. A carreira sanciona o domínio progressivo da soma dos
conhecimentos (saberes formalizados) e dos saber-fazer correspondentes.

A codificação principal é a que classifica os indivíduos no interior dos diferentes


níveis de conhecimento da disciplina. Ela deve assegurar uma equivalência entre
os empregos que correspondem ao mesmo nível em todas as empresas ou
instituições. A mobilidade externa é, assim, permitida e favorecida para
contornar os constrangimentos demográficos e assegurar a progressão ao longo
da especialidade.

A identificação principal é a do indivíduo com a sua reputação no seio da


comunidade disciplinar. Ele procura, antes de mais, o reconhecimento pelos
pares e a implicação profissional é fortemente condicionada pela esperança de
um intensificar deste reconhecimento muitas vezes enraizado numa concepção
da “vocação” (*commitment to a calling*, segundo Moore).
A estratégia profissional é a da acumulação dos saberes e da luta pela
manutenção da raridade da formação.

Na tipologia de Moore, encontramos um quarto espaço de identificação,


constitutivo do modelo da EMPRESA

Na tipologia de Rivard, a lealdade em relação ao empregador é incluída no


modelo do artífice, que se baseia, de facto, na articulação de dois níveis
pertinentes: o dos postos de trabalho e o da empresa que os define e os codifica
para alcançar os seus resultados. Porque Rivard se interessa unicamente pelos
quadros e desenvolve o modelo do quadro de produção autodidacta que progride
na sua empresa a partir dos seus resultados produtivos, não pode separar a
identificação com o posto da identificação na empresa. Moore, pelo contrário,
interessa-se também pelos assalariados de execução dos quais uma fracção só se
define a partir do colectivo imediato de trabalho. É preciso dizer que a maior
parte destes não têm qualificação reconhecida nem hipóteses de carreira. São,
portanto, excluídos do espaço de qualificação interna das empresas e não
relevam de nenhum dos modelos de valorização construídos por Rivard.

Na literatura sociológica, encontramos outras tipologias de “modelos


profissionais” que se aplicam quer a uma categoria de assalariados quer ao
conjunto dos diplomados. Assim, Hughes distingue e opõe os scientist (modelo
do físico), o manager e o professional (1958, pp. 142 e seguintes), Goldthrope e
Lockwood definem, junto dos operários e empregados ingleses, três orientações:
instrumental (centrada no resultado financeiro); :, burocrática (centrada no
estatuto social); e solidária (centrada no grupo de trabalho ou na empresa)
consideradas como tipos-ideais (1968, pp. 86 e seguintes). Todas estas tipologias
se unem e podem ser consideradas como variantes dos quatro “modelos”
precedentes.

7.5. A qualificação como resultado instável das relações profissionais

Uma última visão sobre estes “modelos” de qualificação consiste em salientar os


sistemas de relações profissionais que lhes estão subjacentes e em caracterizar a
sua dinâmica histórica. Devemos, com efeito, colocar a hipótese de que cada
“modelo” corresponde a uma configuração particular de actores entre os quais se
negoceia a construção, a reprodução e a transformação das qualificações.

Um ramo particular da sociologia estuda, há mais de trinta anos, a dinâmica dos


sistemas de relações profissionais (*Industrial Relations*, cf. Dunlop, 1958) em
relação com o processo de industrialização e mais globalmente com a evolução
das sociedades industrializadas. Parte de uma teoria universalista da
industrialização baseada na hipótese de uma convergência de todas as sociedades
industriais para um modelo único de relações institucionalizadas de trabalho,
constatando uma extrema diversidade das formas de regulação entre os
diferentes actores da vida económica (Sellier, 1986). Esta teoria universalista,
centrada na hipótese da diversidade irredutível das formas de acção colectiva e
de regulamentação conjunta, dá lugar a teorias estratégicas que assumem esta
diversidade pondo em causa as orientações funcionalistas que privilegiavam o
consenso e desenvolvem novos modelos de inteligibilidade (J.-D. Reynaud,
1989). De acordo com aquela hipótese, a qualificação dos assalariados
representa um desafio essencial aos três parceiros principais: os empregadores,
os trabalhadores e o Estado.

Os interesses dos empregadores e dos assalariados são, a prior), divergentes e


até mesmo antagónicos. Os empregadores procuram um compromisso viável
(mas não necessariamente óptimo) entre a redução dos custos de produção e a
sobrevivência da empresa. Constrangidos, perseguem um duplo objectivo: dispor
de uma mão-de-obra que tenha as qualidades exigidas para a melhor produção
possível e assegurar que esta mão-de-obra tenha o custo mais reduzido possível.
Estes dois objectivos raramente podem ser atingidos espontaneamente. Para os
atingir, os empregadores devem, pois, negociar, individual ou colectivamente, as
condições de trabalho e de remuneração. Inversamente os assalariados procuram
valorizar ao máximo a força de trabalho e minimizar a sua dependência. Têm ao
seu alcance a possibilidade de desorganizar o processo de produção quer seja por
abandono individual, quer por acção colectiva. Mas interessa-lhes, muitas vezes,
negociar a valorização da sua competência e aumentar a sua “insubstitubilidade”
(C. Paradeise, 1988). Podem, nomeadamente, dirigir-se ao Estado para garantir,
valorizar ou melhorar o seu diploma escolar e a sua competência profissional. O
Estado pode, por sua vez, fazer :, pressão sobre os empregadores para que
participem na formação dos seus assalariados e reconheçam os diplomas
escolares que ele confere.

A construção dos espaços de qualificação é, assim, o produto de todas estas


negociações em interacção que levam ao confronto entre diversas categorias de
actores com interesses e representações diferentes mas com obrigatoriedade de
realizar uma “apropriação mútua” (Weber). Estas negociações estão cada vez
mais descentralizadas e sucedem-se a níveis diferentes com múltiplos parceiros:
empresas, ramo profissional, região, nação, quadro europeu… Estão dependentes
dos “modelos da competência” trazidos por cada um dos actores e dos modos de
organização herdados das formas históricas de desenvolvimento das empresas,
dos ramos, das nações. Esta dispersão da negociação torna cada vez mais difícil
a definição de normas profissionais comuns e acarreta o risco de uma profusão
de regras jurídicas cada vez menos aplicadas (J.-D. Reynaud, 1989).

Para que as negociações resultem em compromissos que codifiquem,


simultaneamente, os requisitos exigidos pelos empregadores e as qualidades
adquiridas pelos assalariados e legitimadas pelo Estado, é preciso que os
parceiros consigam construir espaços comuns de racionalidade a partir de
lógicas diferentes. É preciso, pois, que partilhem um processo conjunto de
socialização que implique uma acção comum (o processo de trabalho),
representações comuns (um modelo da competência) e interacções positivas (cf.
capítulo 4). O quadro deste processo pode ser: 1. o colectivo de trabalho, 2. a
empresa, 3. a função, 4. o ramo profissional ou a disciplina, o que corresponde
aos quatro “modelos” precedentes. Os actores pertinentes não são os mesmos em
cada um dos casos, mas o desafio é sempre a construção conjunta da
profissionalidade dos indivíduos, que implica a articulação de três processos:

— o processo de formação inicial e contínua das competências pela articulação


das suas diversas origens: saber formalizado, saber-fazer, experiência;

— o processo de construção e de evolução dos empregos e da sua codificação


nos sistemas de emprego;

— o processo de reconhecimento das competências, resultado do jogo das


relações profissionais.

A análise pormenorizada de uma comparação internacional centrada sobre as


coerências nacionais entre estes três processos permitirá justificar a necessidade
de os articular para compreender as dinâmicas da socialização profissional.

7.6. Socialização, organização e relações profissionais: uma comparação


internacional

No fim de uma longa investigação comparativa entre a França e a antiga


Alemanha Federal, Maurice, Sellier e Silvestre publicaram uma síntese
organizada em torno da :, articulação das três relações que consideram como
estruturantes das “coerências societais” a relação educativa (ou profissional), a
relação organizacional e a relação industrial (MSS, 1 982).

O ponto de partida da sua análise é a tentativa de explicar as diferenças de


hierarquia dos salários entre os dois países: a relação entre o salário médio dos
não-operários-e dos operários era, em 1970, de 1,42 em França contra 1,33 na
RFA; o coeficiente de variação dos salários masculinos era de 55% em França e
de 33% na RFA; os desvios devidos à antiguidade eram muito mais acentuados
em França do que na RFA, etc. Para dar conta destas diferenças sistemáticas, os
autores partem de uma análise dos movimentos de mobilidade (educativa,
profissional e social) que não são apenas diferentes nos dois países, como “se
orientam, também, segundo princípios diferentes”. Estes têm por base a relação
educativa e, nomeadamente, a relação formação geral — formação profissional.
Assim, enquanto que, nos anos 60, na RFA, 68% dos indivíduos pertencentes ao
mesmo nível etário tinham frequentado uma formação profissional inicial de
aprendizes, em França essa percentagem era apenas de 29%; se, na RFA, apenas
10% dos aprendizes não tinham obtido o seu diploma, em França 60%
abandonavam a sua formação inicial sem obter o CAP (Certificado de Aptidão
Profissional). A socialização profissional aparece, assim, muito diferente nesta
época, de um pais para o outro: enquanto para a maioria dos jovens alemães a
socialização profissional consiste numa “preparação para a qualificação
industrial”, para a massa dos jovens franceses é sobretudo uma “iniciação a
saber-fazer específicos” completada depois por uma “socialização na empresa”.
Assim sendo, o que os autores chamam o espaço de qualificação é
fundamentalmente diferente nos dois países: enquanto na RFA ele se organiza
em torno das relações entre sistema de formação profissional e “indústria” (ramo
estruturado pelas relações empregadores-sindicato), na França organiza-se muito
mais em torno das relações entre os assalariados e a sua empresa e através de
uma forte influência do Estado na distribuição dos diplomas. Assim, segundo os
autores, “as tendências para a promoção individual são em França mais
importantes do que as tendências favoráveis à identificação colectiva” (MSS, pp.
80-81). Enquanto que na RFA existe um “espaço único de qualificação marcado
pela aprendizagem operária na base e alargado para os diplomas profissionais
intermediários não operários”, em França só se encontram “espaços segmentados
pelas triagens/orientações/selecções realizadas pelas empresas a partir de uma
mão-de-obra pouco diferenciada profissionalmente”.

Estas diferenças na relação educativo-profissional são de seguida relacionadas


com as características da “relação organizacional“, isto é, os modos de
funcionamento dos colectivos de trabalho e de estruturação das empresas. A
análise incide aqui sobre as diferenças de identidade do mestre francês e do
Meister alemão que refle tem “dois modos de organização do sistema de
trabalho“. Enquanto na França as exigências do posto de trabalho contam muito
mais do que os perfis dos trabalhadores e se observa um “primado da
antiguidade”, na RFA é a qualificação dos trabalhadores que prima sobre o perfil
dos postos e :,

que provoca um “primado da profissionalidade baseada nos diplomas de


formação profissional”. Assim sendo, o mestre na França tem um papel
“essencialmente hierárquico, marcado pela distância salarial com os operários”
(poder compensatório do salário) e depende essencialmente do “sistema
organizacional da empresa (daí a sua fragilidade e o seu mal-estar)”, enquanto
que na Alemanha ele constitui um mediador entre “gestão técnica e gestão
social” e integra-se numa linha de autoridade baseada nas competências
técnicoprofissionais reconhecidas (do facharbeiter ao Graduiert Ingenieur via o
meister). Esta identidade profissional do Meister é inseparável da “forte
autonomia” do grupo operário (*Arbeiteischaft*)” ancorada na profissionalidade
reconhecida e expressa por uma “ligação colectiva à eficácia (*Leistung*)”.
Contrasta, segundo os autores, com a identidade do mestre francês cuja
profissionalidade — como a dos outros assalariados — “depende mais da
empresa que o emprega e o nomeia para o seu posto do que das formações
adquiridas” (MSS, p. 208).

As diferenças da relação educativa e da relação organizacional estão ligadas, por


fim, aos dois “sistemas de relações industriais”, isto é, ao conjunto das regras e
dos actores que presidem à negociação colectiva das relações de trabalho. Ao
caracter estruturante das “indústrias” (ramos profissionais) e à existência de uma
“lógica de produção” dominante e partilhada em conflito, no sistema alemão, os
autores opõem uma polarização das empresas (“heterogeneidade social e
profissional dos ramos”) e um domínio da “lógica administrativa”, no sistema
francês. Estas diferenças são perfeitamente coerentes com as precedentes: é à
volta da relação formação profissional-organização do trabalho baseada na
profissionalidade que, na RFA, o ramo (“indústria”) se estrutura como “espaço
de qualificação” e como “lugar essencial das relações profissionais”; pelo
contrário, em França, é à volta da relação integração na empresa-organização
baseada na divisão em postos que a empresa se constitui como “espaço de
mobilidade interna” e “lugar de exercício do poder administrativo”.

Esta tripla análise daquilo a que os autores não chamam “sistema” mas antes
“relações sociais” definidas como “conjunto estruturado de relações de
cooperação, competição e domínio, que os trabalhadores mantêm entre eles, na
produção ou na sua preparação” põe em evidência as “coerências societais” (p.
240). Segundo eles, um conceito-chave desta análise é o de “socialização”
definido como “aprendizagem das relações sociais nos processos de mobilidade
(espaços de qualificação)” (MSS, p. 242). É porque estes espaços (chamados
também “espaços profissionais”) estão estruturados de uma forma diferente em
França e na Alemanha que os modos de socialização profissional são também
profundamente diferentes e mesmo opostos entre os dois países: nível de
instrução geral/formação profissional, experiência e
profissionalidade/antiguidade e eficácia, homogeneidade do ramo/localização
dos conflitos na empresa, lógica administrativa/lógica produtiva

(quadro 7.1.). :,

Quadro 7.1.

Os espaços profissionais em França e na antiga RFA segundo MSS (1982)

:::::::

França:

Centralização hierárquica e administrativa das decisões

+ Localização dos conflitos na empresa; Experiência profissional (antiguidade) +


Nível de instrução

RFA:

Co-gestão, descentralização e lógica produtiva (oficina) +

Homogeneização do ramo; Profissionalidade, eficácia

(*Leistung*) + Formação profissional

:::::::::

Apesar dos problemas metodológicos ligados à construção da comparabilidade e


ao ponto de vista adoptado na comparação (Doray-Dubar, 1989), esta análise faz
avançar a compreensão das relações estreitas que ligam o ensino, a organização
do trabalho e o campo das “relações profissionais”. Numa última parte mais
teórica, os autores recapitulam as posições adoptadas pelas diversas correntes da
sociologia e da economia a propósito destas relações estruturantes entre a
socialização concebida como “construção social dos actores” e a organização
considerada como “estruturação dos espaços de trabalho e de mobilidade”.
Consideram, com pertinência, que os diversos paradigmas (tecnológico,
ecológico, accionista, político…) forjados por estas disciplinas só permitem
muito parcialmente construir abordagens operatórias das “interacções entre
processos de socialização e lógicas de organização” e que estas abordagens
necessitam de se centrar nas lógicas intermediárias (entre o macrossocial único e
o microssocial diverso) que constituem “a construção das identidades colectivas
dos actores” (socialização e trajectórias) e “a estruturação dos espaços de
qualificação” (organização e divisão do trabalho). A definição que eles adoptam
do indivíduo (“actor que contribui para estruturar os sistemas que organizam a
lógica da sua acção”) está próxima da problemática da socialização adoptada na
primeira parte deste livro.

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Das profissões aos mercados do trabalho

A renovação da “sociologia das profissões” foi acelerada pela crise dos anos 60
(EUA) e 70 (Europa Ocidental). O aumento de um desemprego estrutural,
afectando, nomeadamente, fracções inteiras da juventude, colocou o problema
do emprego no centro das análises. A questão fundamental já não é saber quais
as actividades que constituem “profissões” ou que indivíduos se tornam
“profissionais”, mas sim compreender, e se possível explicar, simultaneamente,
as transformações do acesso aos empregos e as reestruturações das etapas
profissionais que implicam exclusões duradoiras da esfera das actividades
reconhecidas.

Esta é uma das razões essenciais pelas quais a atenção dos sociólogos se
deslocou claramente da análise do trabalho e das profissões para a análise do
funcionamento dos mercados do trabalho. Foi assim que os sociólogos se
reencontraram com as mais antigas preocupações dos economistas e os seus
múltiplos esforços para produzirem teorias novas do (ou dos) mercado(s) do
trabalho. A tónica deslocou-se também, ao mesmo tempo, para as formas de
funcionamento das organizações. Neste capítulo, veremos de que modo estas
novas orientações contribuíram também para renovar as problemáticas da
socialização profissional.

8.1. Profissão e mercado do trabalho: interrogações fecundas

Entre as críticas feitas à “teoria dominante das profissões”, as dos economistas


do trabalho são importantes pelo menos por duas razões. Por um lado, porque
partem de um ponto de vista “societário” sobre o trabalho e não de um ponto de
vista “comunitário” :, sobre as profissões: é enquanto anomalia, excepção. e até
mesmo entrave ao funcionamento do mercado de trabalho que eles consideram o
facto profissional. Por outro lado, porque a persistência e até a extensão do
fenómeno profissional, apesar da existência teórica de um mercado do trabalho
concorrencial (e medidas políticas visando instaurá-lo), obrigou certos
economistas, nomeadamente americanos, a elaborar novas teorias do mercado
do trabalho que integram a dimensão da socialização profissional.

De facto, é durante os anos 50 e 60 nos Estados Unidos que se multiplicam os


estudos empíricos. visando explicar as desigualdades de salários, confrontando-
as com o “modelo” económico dominante: a teoria neoclássica do “capital
humano”. De acordo com este modelo, o assalariado é concebido “como gestor
de um capital que ele constitui a partir de investimentos e cujos serviços,
combinados com os do capital material, são transformados em produto
(salários)” (Silvestre. 1978, p. 166). Estes investimentos em capital humano
definem a oferta de trabalho que vai ao encontro da procura de trabalho das
empresas num “mercado” concebido a partir do modelo da concorrência perfeita,
isto é, cuja unidade é mantida através da gratificação dos investimentos dos
trabalhadores e da fixação de “salários compensadores” pelas empresas.
Segundo este modelo, as empresas “fixam os salários de forma a assegurar a
realização dos investimentos em capital humano correspondente ao factor “raro”,
assegurando-lhes uma óptima combinação produtiva” (id., p. 184). Assim, cada
assalariado que fez o mesmo tipo de investimento deve receber o mesmo salário,
e as desigualdades entre salários devem poder ser explicadas pelas diferenças de
níveis de investimentos medidos por variáveis interpretáveis nestes termos: o
nível de educação, a experiência profissional, a mobilidade voluntária
constituem as variáveis mais usuais medidas pelos estudos empíricos. Ora, se
estas variáveis aparecem fortemente correlacionadas com os níveis de salário,
existem outras “que não estão significativamente ligadas aos níveis de
investimentos dos trabalhadores” mas que, por vezes, se relacionam mais
fortemente com os níveis de salários. É o caso das diferenças de salários entre
homens e mulheres, entre brancos e minorias étnicas, entre rurais e urbanos, com
diplomas e trajectórias profissionais equivalentes. O caso da antiguidade na
empresa ou na profissão aparece, por exemplo, como a variável mais relacionada
com o salário no inquérito sobre os EUA de Rees e Shultz (1970) e que, segundo
Silvestre, constitui “uma das investigações mais sistemáticas efectuadas sobre a
formação dos salários num mercado do trabalho urbano”: na grande maioria dos
ofícios em causa, “as variâncias explicadas pela antiguidade atingem 30% e, em
três de doze casos, ultrapassam 50%” (Silvestre, 1978, p. 199). Noutros
inquéritos (Harrison, 1973), o tamanho das cidades ou a taxa de urbanização
explica também uma parte considerável da variação dos salários (de 40% a
60%). Todos estes estudos levaram os economistas a reconhecer “a existência de
leis de compartimentação que vão no sentido oposto ao da unidade económica
do mercado do trabalho: discriminação entre os sexos ou as raças, efeito da
origem social, da empresa e das formas de organização colectiva do trabalho”
(Silvestre, id., p. 208). :,

Ora, estas observações permitem reinterpretar, desde os anos 50 nos EUA, os


resultados de certas investigações sociol6gicas sobre as “profissões”. Quando
um sociólogo como Goode põe a tónica na comunidade profissional, não de um
“mercado institucionalizado” em consequência de

será pelo indício da existência de um monopólio das profissões estabelecidas?


Quando Hughes e os seus colaboradores analisam discriminações profissionais
em relação às mulheres ou aos não brancos, não será isto indicativo de uma
segmentação do mercado de trabalho? Quando outros estudos mostram que a
mobilidade e a repartição geográficas de certas “profissões” (médicos,
advogados…) estão ligadas às concentrações da clientela abastada, não será, de
novo, uma característica de “mercado institucional” ou, de acordo com a
expressão de um artigo célebre de Clark Kerr, o indício da existência de um
processo de “balcanização do mercado do trabalho” (1954)?

Estas constatações vão levar determinados economistas a propor novas


abordagens, e até mesmo uma nova teoria do funcionamento do mercado do
trabalho, que consideram estas compartimentações internas não como
imperfeições do modelo neoclássico (teorias da concorrência imperfeita), mas
como modos de estruturação do espaço profissional que dão conta do carácter
estratégico do que anteriormente se considerava como simples obstáculos
contingentes à concorrência.

Uma primeira abordagem em termos de “segmentação do mercado do trabalho,


d’ autoria de Edwards, Gordon e Reich (1973), inscreve-se no prolongamento da
análise marxista do funcionamento da força de trabalho e considera a
compartimentação do mercado do trabalho como o resultado dos modos de
gestão da força do trabalho pelo capital Esta compartimentação resulta das
“novas estratégias capitalistas de resposta às tensões e contradições suscitadas
pelo próprio desenvolvimento”, levando a distinguir, cada vez mais nitidamente,
e a articular “dois espaços de mobilização da força de trabalho”: um sector
central caracterizado por uma “forte integração dos trabalhadores nas estruturas
onde se regula o uso da força do trabalho” através de uma organização colectiva
dos assalariados e de regras negociadas de gestão das carreiras e, portanto, por
uma forte

estabilidade do emprego sobretudo composto por homens, brancos, de origem


urbana; um sector periférico composto por empregos residuais, não protegidos e
cada vez mais precários ocupados por mulheres, estrangeiros ou minorias, e
trabalhadores de origem rural. Segundo estes autores, foram as exigências da
produção de massa e a consequente

cação da produção e “o controlo crescente sobre o uso directo da força de


trabalho” que motivaram a constituição de um sector central composto por
grandes empresas, com uma “força de trabalho homogénea e organizada” que
interessava integrar (estabilidade, regularidade, disponibilidade) e regular
(relações industriais), em troca de salários elevados da estabilidade de emprego.
O residual é enviado para o sector periférico que constitui um conjunto de
“zonas de menor resistência que permitem aumentar a eficácia global do
processo de valorização”. O “modelo profissional”,recuperado pelas direcções
das grandes empresas constitui assim, um elemento essencial da integração do
sector central. :,

A segunda abordagem, designada por Silvestre (1978, p. 266) como “teorias da


estratificação do mercado do trabalho”, é, em parte, posterior à abordagem
precedente e já não se referencia à análise marxista. Esta abordagem é
proveniente tanto da obra de Doeringer e Piore (1971) como do “modelo da
competição dos empregos” de Thurow (1972), que constituirá, em França, uma
das referências do modelo da inégalité des Chances de R. Boudon (1973). Ela
comporta duas vertentes complementares: uma microeconómica e
microssociológica centrada na empresa a partir do conceito de mercado interno
do trabalho; uma outra macroeconómica e sociológica centrada no sistema social
definido em termos de estratificação.

O nível “macro” é teorizado por Thurow de acordo com o modelo da


“competição dos empregos”. Ele postura que o rendimento de um trabalhador é
determinado: 1. pela sua posição numa ordem de preferência estável; 2. pelo tipo
de distribuição dos empregos disponíveis. “Os salários são função das
características dos empregos e os trabalhadores estão distribuídos pelos
empregos disponíveis de acordo com a sua posição na ordem de preferência…
Os ajustes do mercado de trabalho traduzem relações de indivíduos com estratos
hierarquizados que os acolhem selectivamente” (Silvestre, 1978, p. 267). Assim,
o espaço dos empregos é estruturado pelas características de estratificação do
sistema social onde se formam as hierarquias e se distribuem selectivamente os
indivíduos. Considerando a posição social de origem e o nível de diploma como
elementos de base da estratificação, Boudon desenvolveu, nesta base, o seu
modelo das estruturas elementares de mobilidade, dando conta da permanência
da desigualdade das hipóteses sociais apesar de uma redução relativa da
desigualdade das hipóteses escolares (1973).

O nível “micro” parte da distinção entre mercado interno e mercado externo do


emprego que constituem dois espaços articulados de gestão da não-de-obra O
mercado interno é definido como “uma unidade de decisão, tal como uma
empresa, onde a repartição do trabalho e a remuneração são governadas por um
conjunto de regras e de procedimentos administrativos” (Doeringer e Piore, p.
1). O tipo ideal do mercado interno, “tal como o acesso aos postos elevados, e
condicionado pela existência prévia de um itinerário profissional a todos os
níveis de uma organização na qual este itinerário se constrói”. Este espaço de
mobilidade, onde “a progressão e a valorização profissional são construídas na
base do diploma e na forma como é adquirida a experiência profissional”, é
assim definido com base no *modelo profissional burocrático no qual o diploma
serve para distinguir os assalariados internos dos externos e a carreira para
assegurar a integração nos objectivos da organização. Estas “vias de promoção”
são, de facto, descritas como “características de uma gestão administrada da
mão-de-obra” pela qual regras rígidas governam, simultaneamente, a formação
dos salários e a distribuição dos trabalhadores. Os autores insistem no facto de
que neste modelo “são os processos de formação e os seus efeitos na empresa
onde eles se desenrolam que são importantes para a compreensão do
funcionamento dos mercados internos do trabalho” (Doeringer e Piore, pp. 17-
18). Segundo estes autores, a construção do espaço da mobilidade é um
fenómeno de socialização e o seu :, funcionamento faz parte da organização:
“tendo-se entrado, os postos e as hipóteses de promoção são fortemente
determinados pela estrutura das organizações” (Silvestre, p. 276).

Ao contrário do mercado interno, o “mercado externo” está subordinado à


concorrência (Doeringer e Piore, 1971). De acordo com esta formalização, as
trajectórias de mobilidade são, deste modo, compostas por dois momentos muito
diferentes: o momento que precede “a inserção” que se desenvolve no “mercado
externo” numa situação concorrencial e o momento da “mobilidade interna”. Se
se admitir que a concorrência no “mercado externo” se faz principalmente em
função dos diplomas e das características da formação escolar, a fase de inserção
será tanto mais longa e difícil quanto mais baixo for o nível escolar e quanto
mais ou menos adaptada ao estado da concorrência tiver sido a formação
profissional inicial. De acordo com esta representação, a grande maioria dos
assalariados deveriam, um dia, inserir-se numa forma qualquer de “mercado
interno” e passar de uma fase “de inserção”, essencialmente dependente do nível
escolar, para uma fase de “qualificação”, comandada pelas normas formais e
informais do “mercado interno”, apesar de estes assalariados multiplicarem os
empregos de “espera” e as estratégias de procura de emprego que incluem a
aquisição eventual de formações complementares.

Assim, a análise “micro” do funcionamento dos mercados internos integra-se na


teoria “macro” da estratificação do mercado de trabalho. Os estratos
hierarquizados do sistema social deveriam corresponder aos diferentes níveis de
emprego constitutivos das diferentes vias dos “mercados internos”. O nível de
entrada de um indivíduo dependeria essencialmente do seu nível escolar e o seu
itinerário ulterior seria determinado pelas regras de funcionamento do “mercado
interno” no qual está inserido. A posição social de um indivíduo num dado
momento da sua carreira resultaria, portanto, da simples combinação do seu
nível de diploma inicial — ele próprio dependente da posição social de origem

— com as características do mercado interno (ou: dos mercados sucessivos…)


no qual se encontra (ou: se encontrou sucessivamente).

Nesta formalização, o mercado de trabalho é assim duplamente estratificado:


verticalmente, pelos níveis de diploma que condicionam os pontos de entrada no
mercado de trabalho e reflectem a estratificação “societal” do sistema social;
horizontalmente, pelos tipos de mercado interno que nos remetem para modos de
gestão dos empregos pelas empresas que condicionam as trajectórias dos
assalariados ao longo da carreira e exprimem as características “económicas” das
empresas. De acordo com este modelo, as desigualdades de salários já não se
explicam unicamente pelas diferenças de investimentos em “capital humano”
dos indivíduos, mas também através das interacções entre estas estratégias
individuais e os modos de estruturação dos mercados internos Os “privilegiados”
de certas categorias profissionais resultariam, assim, da articulação forte entre
certas categorias individuais ligadas a características socialmente valorizadas e
certas políticas de gestão interna dos empregos ligadas a configurações
económicas ou políticas particulares.

8.2. Mercado primário e mercado secundário: a hipótese dualista


A formalização do funcionamento do mercado do trabalho muda quando é
introduzida uma descontinuidade mais ou menos radical entre “mercado
primário” e “mercado secundário” (Berger e Piore, 1980). A abordagem, neste
caso, opõe dois tipos de sistemas de emprego que, tendencialmente,
correspondem a dois tipos de processos de trabalho (produção de
massa/produção unitária ou de pequena escala). Nestes autores, esta distinção
traduz uma diferença significativa quanto à incerteza do mercado dos produtos
(procura estável e previsível/instável e imprevisível) e, portanto, das condições
de valorização do capital e de uso da força de trabalho. Para estes autores, o
suposto dualismo do mercado (do produto/do trabalho) tem, grosso modo.
correspondência na dimensão das empresas: as grandes empresas interessam-se
pelos segmentos da procura estável e previsível, as pequenas pelas fracções da
procura instável e imprevisível. Corresponde, igualmente, a formas de
organização do trabalho e de modernização tecnológica diferentes. Remete, por
fim, para formas institucionais diferentes: apenas as empresas “dominantes”
possuem um “mercado interno” e formas de regulação conjunta; as empresas
“dominadas” que não possuem esse mercado podem ainda assumir um papel
regulador essencial: o mercado secundário “contribui para a flexibilidade
económica graças à maleabilidade da gestão de mão-de-obra que o sector
primário, confrontado com a amplitude dos investimentos e o poder das
organizações sindicais, não se pode permitir” (id. , p. 101). Os dois sectores são,
pois, nesta perspectiva, profundamente complementares mesmo se entre eles
existe uma descontinuidade fundamental tanto no que diz respeito ao processo
de trabalho como à gestão do emprego (Campinos, Marry, 1986, p. 218).

Uma carácterística importante desta formalização, fortemente ideal-típica, reside


no lugar atribuído à formação na definição distintiva dos dois mercados e nas
modalidades de acesso dos indivíduos àqueles. Efectivamente, segundo estes
autores, as diferenças entre os mercados de trabalho podem ser explicadas “em
termos de meios pelos quais as pessoas apreendem e compreendem o seu
trabalho”. Deste ponto de vista, distinguem dois processos de aprendizagem
(*learning processes*). “No primeiro, as pessoas apreendem um conceito
abstracto e, quando estão perante uma operação concreta de trabalho, deduzem a
partir dela a forma como realizá-la”, o que pressupõe uma “imagem mental” do
produto (*mental picture of a car*) e o conhecimento dos princípios essenciais
que presidem ao seu fabrico (*rudimentary principies governing its operation*):
a aprendizagem pode ser designada abstracta e a compreensão de intrínseca. Na
modalidade alternativa de aprendizagem concreta e de compreensão extrínseca,
as pessoas apreendem as operações particulares directamente e organizam-nas
mentalmente, em relação a espaços que são externos ou extrínsecos às próprias
operações, por exemplo, em relação a uma sequência temporal ou a um lugar
físico ou social onde as operações são realizadas” (ia, pp. 19-20).
Tendencialmente estas duas formas de aprendizagem remetem-nos para modos
de socialização :, diferentes: enquanto a formação “on the job” é a forma
privilegiada da aprendizagem concreta, a formação formalizada é necessária para
a aprendizagem abstracta. Para além de ser diferente para as empresas o custo
destes tipos de formação, a diferença essencial reside na relação entre o modo de
aprendizagem e o grau de incerteza dos mercados do trabalho, entre “uma
componente estável que está associada a uma divisão relativamente extensiva do
trabalho utilizando recursos altamente especializados e uma componente instável
onde a produção recorre a uma divisão do trabalho menos articulada e utiliza
uma força de trabalho menos especializada e, consequentemente, com
capacidade de mobilidade que permite acompanhar as flutuações da procura
através de uma grande variedade de actividades” (id., p. 79).

Assim, o “mercado secundário do trabalho” não é, à partida, considerado como a


resultante de um movimento de exclusão do conjunto dos “mercados internos”
considerados como “mercado primário do trabalho”, mas como estruturação de
um novo sistema de emprego, alternativo e complementar do precedente, e
baseado em aprendizagens concretas, que permitem uma adaptabilidade a formas
diversas de trabalhos pouco especializados e uma mobilidade “horizontal” entre
empregos instáveis ligados às incertezas do mercado. O dualismo do mercado do
trabalho remeteria, portanto, para dois modos opostos e funcionalmente ligados
de socialização profissional.

Esta perspectiva articula-se, em Berger e Piore, com hipóteses incidindo sobre a


dualidade das estratégias dos indivíduos em matéria de emprego e de trabalho,
bem como sobre os sistemas de representação da actividade profissional e da
articulação dos papéis na esfera do trabalho e fora dele. Estas hipóteses apontam
para a existência de uma forte adequação entre os modos de funcionamento do
“mercado secundário” e estratégias e representações das categorias
culturalmente mais afastadas das formas de mobilização interna no mercado
primário do trabalho: as mulheres, os adolescentes, os camponeses, os
imigrados, os trabalhadores sazonais (Berger, Piore, p. 18; Campinos, Marry, p.
219). Uma das questões centrais do movimento de dualização seria, assim, a
crescente separação de dois sistemas de representações das relações entre o
trabalho e o não trabalho, o primeiro sistema tinindo aprendizagem
abstracta/mobilização para o trabalho/carreira e o segundo ligando aprendizagem
concreta/mobilização fora do trabalho/empregos precários.

A diferença essencial com a formalização precedente em termos de estratificação


reside, pois, na concepção que se constrói dos processos de socialização. Na
versão dualista, já não existe sistema unificado e estratificado de socialização
mas, tendencialmente, dois modos distintos e até opostos de socialização,
integrando as dimensões familiares, étnicas, escolares e profissionais. Para uns
(predominando no “mercado primário”), mobilização para o trabalho, integração
nacional, diploma escolar e carreira profissional formam um sistema de
representações e de acção orientado para a estabilidade de emprego e realização
profissional. Para outros (predominando no “mercado secundário”), mobilização
familiar, particularidade étnica, insucesso escolar e ausência de carreira
constituem igualmente um sistema de acção marcado pela instabilidade, a
precariedade e o carácter :,

instrumental do trabalho. Contrariamente às perspectivas da estratificação,


introduz-se uma descontinuidade entre aqueles que se inserem nos “mercados
internos” e aqueles que nunca o conseguem, entre aqueles que se integram, em
graus diferentes, num “modelo profissional” e aqueles que nunca se integram.

Devemo-nos questionar sobre a pertinência desta dicotomia globalizante: nem as


investigações empíricas nem as sínteses teóricas mais recentes (Marsden, 1989)
(52) parecem validá-la (cf. os exemplos seguintes). Mas devemos também tomar
consciência do ressurgimento de uma oposição estrutural já assinalada no
principio da nossa apresentação do “facto profissional”: qualquer construção de
uma organização ou de um mercado de tipo “profissional” é acompanhada por
um processo de exclusão dos “não-profissionais”. O facto de uns gozarem de
“direito de integração” pressupõe que outros não gozem desse direito. Qualquer
socialização profissional é também selecção e, portanto, virtualmente exclusão.

8.3. Mercados do trabalho fechados e modo integrado de socialização


profissional

Num artigo extraído da sua tese sobre a marinha mercante francesa, C. Paradeise
(1984) definiu os “mercados do trabalho fechados” como sendo “espaços sociais
onde a distribuição da força de trabalho pelos empregos está subordinada a
regras impessoais de recrutamento e de promoção”. Ela inclui nos “mercados do
trabalho fechados “tanto os “mercados das profissões liberais” e das “profissões
com estatuto nacional” como os “mercados internos das firmas” e também “um
número importante de empregos privados, localizados num sector, num oficio,
numa firma”. Atribui-lhes certas características do ideal-tipo da burocracia como
sistema racional-legal, segundo Max Weber, reconhecendo também que nem
todos estes mercados se integram nas organizações “burocráticas” privadas ou
públicas. A partir do exemplo da marinha mercante, a autora constata,
finalmente, que “a formação constitui a ossatura do mercado sobre a qual ela age
de diferentes maneiras”: organizando o acesso aos empregos e criando uma
ligação rígida entre formação/antiguidade/qualificação/salário, regulando as
relações entre os interesses dos três parceiros (Estado, empregadores,
assalariados) e assegurando “a reprodução orgânica da competência… através de
diplomas dificilmente negociáveis no mercado de trabalho exterior” (id., pp.
356-357).

(52) Marsden, na sua obra, apoiando-se em C. Keir (1954), distingue três e não
dois tipos de mercado do trabalho: os mercados internos com qualificações não
transferíveis, os mercados profissionais com qualificações transferíveis e os
mercados ocasionais.

Não é, pois, a natureza do trabalho nem a sua organização, nem mesmo as suas
relações internas que asseguram o “fechamento” deste tipo de “mercado”
institucionalizado. :,

Este “fechamento” é assegurado pelas condições de funcionamento do sistema


de emprego, isto é, do conjunto das relações profissionais institucionalizadas que
se organizam à volta de uma “super-regra” (Reynaud, 1979) que pretende
articular os interesses dos trabalhadores aos dos empregadores “com a ajuda de
procedimentos que escapam às leis do mercado liberal”. Ora, como assinala C.
Paradeise, entre estes procedimentos os que dizem respeito à formação ocupam
um lugar estratégico para regular o acesso aos empregos, a evolução das
carreiras e as remunerações. Trata-se, portanto, tanto de “sistemas de formação”
como de “mercados primários do trabalho”, se definirmos a formação como um
“processo de socialização em meio marítimo” (1983, p. 357), que inclui tanto
formações iniciais de inserção no emprego, como “formações em alternância
que associam a aquisição dos saberes e dos saber-fazer e que permitem “a
promoção interna efectiva dos assalariados pela comunicação entre os diversos
níveis de formação” e “a caminhada ao longo de um ciclo de vida que é,
também, um ciclo de aquisição de experiências“. Podemos, pois, interpretar este
“mercado de trabalho fechado” como um modo integrado de socialização
profissional que permite realizar — em certas condições económicas e
demográficas evidenciadas pela autora — uma articulação “eficaz” entre os três
“momentos” do processo (formação geral prévia/formação profissional de
acompanhamento de carreira/experiência do trabalho ou do ofício que constitui
“um poderoso argumento de mobilização e de negociação no jogo
institucional”). É esta articulação que permite, nomeadamente, um
funcionamento eficaz da regulação conjunta entre os parceiros implicados.

Esta interpretação daquilo que C. Paradeise chama “mercado do trabalho


fechado” poderia ser transposta para numerosos sistemas integrando formação,
emprego e trabalho como os “sistemas profissionais fechados” de tipo
corporativo, cuja persistência no decurso dos anos 60 e 70 foi analisada por D.
Segrestin (1985). A constatação de que as organizações burocráticas públicas e
privadas souberam perfeitamente integrar este “modelo” no seu funcionamento,
permitindo, assim, a pelo menos uma parte dos seus assalariados (quadros,
nomeadamente), desenvolver uma forte mobilização para a empresa em troca de
perspectivas de carreira e, para alguns, do acesso a posições de poder. Pode-se
também estender este “modelo” a certas categorias operárias como as da
siderurgia onde “a aquisição da qualificação se identifica com a passagem por
diferentes postos qualificantes e a progressão ao longo de diferentes vias de
empregos” (de Bonnafos, 1985).

Este “modelo” apareceu como um modelo de tal forma geral que chegou a servir
de suporte a numerosas concepções “substancialistas” da qualificação baseadas
na ideia de uma “correspondência estreita entre o grau de complexidade das
tarefas e as competências desencadeadas pelos trabalhadores na sua execução”
(Campinos e Marry, 1986, p. 199). Esta formalização, seja ela entendida “por
referência a uma situação arquetípica” realizando “a identidade do trabalho e do
trabalhador” através da figura do artesão (Rolle, 1988, p. 46) ou interpretada em
termos de estratégia patronal, destinada a integrar os trabalhadores na empresa e
a assegurar a mobilização produtiva, põe em evidência o

lugar :, estratégico da formação concebida como socialização no trabalho, na


empresa e na carreira gestão do emprego. De facto, é em torno do controlo das
formas e das regras, assegurando as correspondências entre formação e
mobilização no trabalho, por um lado, e formação e progressão de emprego, por
outro, que se estabelecem, sem dúvida, as relações sociais de trabalho mais
decisivas: entre a contribuição salarial (mobilização no trabalho) e a retribuição
patronal (esperanças objectivas de progressão no emprego). A formação na
empresa constitui, assim, a mediação essencial que assegura, simultaneamente,
as condições da mobilização e as esperanças subjectivas de promoção.

Qualificação e mercado interno de trabalho

Foi, curiosamente, necessário perto de meio século para que a sociologia


francesa do trabalho recuperasse as intuições de P. Naville ligando estreitamente
a qualificação à formação sem dissolver a especificidade da primeira na
generalidade da segunda. De facto, impõe-se constatar, como J.-D. Reynaud
(1987, p. 87), que a grande maioria dos estudos franceses relativos à qualificação
utilizaram, durante mais de vinte anos, “uma teoria da qualificação incluída no
Traité de sociologia du travail de Friedmann e Naville (1961, 1962) e cuja
origem se encontra na “segunda parte dos Problèmes Humains du machinisme
industriel (1946), particularmente no capítulo consagrado ao automatismo”, e
que resume deste modo: “o estudo das tarefas reais e das tendências da técnica e
da organização” e cuja obra de Touraine Évolution du travail ouvrier aux usines
Renault (1955) representava o primeiro exemplo seguido por tantos outros.

Assim, enquanto os sociólogos do trabalho franceses, partilhando o movimento


de penetração do taylorismo nas empresas francesas e a transferência dos
métodos americanos da Job Evaluation, reduziam a qualificação à qualificação
do trabalho, e até mesmo do posto de trabalho, os sociólogos da educação
abandonavam pura e simplesmente a noção de qualificação para considerar, tal
como Bourdieu e Passeron (1970), o sistema de formação — reduzido ao
“sistema escolar” — como um instrumento da reprodução social, preformando
os hábitos da jovem geração de maneira a corresponderem às exigências dos
postos e das funções que teriam de ocupar em função da sua posição de origem
na estrutura de classe (cf. capítulo 3). Assim, trabalho e formação encontravam-
se dissociados por muito tempo, tal como a qualificação do posto se encontra
dissociada da qualificação individual daquele que o ocupa. Por este facto, e ao
contrário das recomendações de Naville, a “estrutura das qualificações” na
esfera do trabalho e a “estrutura dos diplomas” na esfera da formação já não
eram analisadas em conjunto, mas concebidas como harmoniosamente
preajustadas na esfera do sistema de classes e da sua necessária reprodução
(Bourdieu e Passeron), ou consideradas como puros jogos inscritos nas relações
de força e das lutas sociais (Touraine).

Um dos interesses mais tangíveis da “teoria” esboçada por j.-D. Reynaud (1987)
é o de romper com esta discrepância, para inscrever a qualificação no cerne do
funcionamento :, do mercado do trabalho, levando em conta os
desenvolvimentos mais recentes da teoria económica examinados anteriormente.

A elaboração teórica de Reynaud baseia-se num certo número de trabalhos


sociológicos recentes dos quais alguns foram objecto de comunicações nas
Primeiras Jornadas de Sociologia do Trabalho em Nantes consagradas à
qualificação (Dubar, 1987). Por exemplo, o estudo de J. Saglio mostra uma
notável estabilidade das qualificações na metalurgia (estruturadas em torno do
operário profissional P1 com um CAP realizado em três anos) entre 1936 e 1975
num contexto em que os sistemas de trabalho sofriam profundas alterações. Por
exemplo, as investigações evocadas por P. Tripier (1987) sobre as qualificações
dos técnicos de informática mostram que, para um mesmo posto de trabalho,
podem ser nomeados, classificados e pagos diferentemente (analista e chefe de
programa) segundo os diplomas e o “potencial” daquele que o ocupa. Por
exemplo, Margaret Maruani e Chantal Nicole (1987) mostram, nas suas
investigações sobre a organização de um jornal de província, que as mesmas
tarefas são realizadas tanto por homens como por mulheres, com qualificações e
remunerações muito diferentes porque os primeiros são operários do Livro
“protegidos” ao passo que as segundas são antigas empregadas não protegidas
por um estatuto. Poderíamos multiplicar os exemplos, mostrando que a análise
das tarefas realizadas é radicalmente insuficiente para dar conta das diferenças
de qualificação, e que só é possível compreender os funcionamentos concretos
das qualificações e dos salários em numerosos ramos profissionais se se tiver em
consideração o mercado de trabalho entendido como “institutional market“, isto
é, um mercado de trabalho estruturado por relações profissionais mais ou menos
institucionalizadas.

Destes diferentes exemplos e mais especificamente das investigações de C.


Paradeise e de D. Segrestin, J.-D. Reynaud retira um “esboço de teoria”
organizado em quatro tempos que reproduzimos aqui de uma forma aproximada
(1987, pp. 86 e seguintes). A qualificação é definida como:

1. uma regulação contínua: considerada como “resultado da combinação das


estratégias patronais e salariais que dizem respeito à organização de um mercado
de trabalho específico e concreto; as regras dizem respeito às condições de
acesso ao emprego, de segurança de emprego, de evolução de carreira; resultam
da interacção entre regras impostas pelos empregadores e regras que visam
proteger certas categorias de assalariados; as regras podem ir até à “modelação”
da formação e à abolição dos diplomas que a sancionam, podem estar
parcialmente implícitas e exprimir
“regularidades nacionais” que se imponham às duas partes;

2. produto de um mercado interno do trabalho no sentido de Doeringer e Piore


(1971): implicando uma parte de gestão administrada das carreiras, e
oportunidades de promoção, do futuro profissional das pessoas em causa;
implicando vias de emprego fortemente controladas e dependentes da
organização da produção no sector em :, causa; implicando um controlo, da parte
do Estado, dos diplomas que dão acesso a um sector; implicando um peso muito
grande da formação, da especialização e da hierarquia dos diplomas na
organização do trabalho;

3. ligada a um tipo de organização da produção: o que leva a verificar que a


regulação conjunta que está na origem do sistema de qualificação é igualmente
estruturante da organização da produção; o que conduz a procurar modelos de
regulação capazes de estruturarem, simultaneamente, a organização da produção
e a hierarquia das qualificações, portanto de igual modo, a organização da
formação mesmo “sector”;

4. produzida pelo sistema de relações profissionais: ultrapassa largamente a


negociação formal dos parceiros sociais e “assenta numa cultura profissional e
na afirmação de um actor colectivo” (p. 104); trata-se de uma “regulação
complexa que não está ligada à negociação colectiva tradicional e que aí se
exprime só em parte”.

Este modelo teórico, que faz da qualificação o produto de uma socialização


profissional integrada num “mercado interno” do trabalho, coloca, na própria
opinião do autor, a questão da sua generalização aos sectores onde existem
“mercados externos do trabalho com fraca regulação para a mão-de-obra banal”.
Deveremos considerá-los como não abrangidos pela qualificação ou como
desencadeando um outro modelo de socialização profissional?

No seio da sociologia do trabalho e das relações profissionais, encontramos a


questão que foi anteriormente colocada pelos economistas que construíram um
modelo de dualismo do mercado do trabalho. Serão os assalariados, que não
acedem a um “mercado fechado”, empregados, “independentemente de qualquer
processo de socialização profissional num conjunto mais integrado” (Silvestre,
1978, p. 282) ou estarão eles dependentes de um outro “processo de socialização
baseado noutros mecanismos de aprendizagem” (Berger e Piore, 1980)?
8.4. Mercados secundários do trabalho e modo alternativo de socialização
profissional?

Quando uma fracção de jovens correm o risco de não aceder, ao longo da sua
vida activa, a qualquer “mercado fechado do trabalho” e, portanto, a nenhum
estatuto profissional estável, e quando um grupo de trabalhadores idosos corre o
risco de ser precocemente excluído, como se deve interpretar a multiplicação das
acções de formação que lhes estão destinadas em todos os países
industrializados?

As investigações sobre esta questão são tão recentes como o próprio fenómeno.
No entanto, é indiscutível que se assiste, desde o fim dos anos 70, à emergência
de inúmeros :,

dispositivos de formação, cada vez mais complexos, destinados quer a favorecer


a inserção dos jovens com menos habilitações quer a reconverter os
trabalhadores vitimas de despedimentos quer a ajudar os desempregados de
longa duração a reinserirem-se no mercado de trabalho (Dubar, 1985, segunda
edição, capítulo 6). As populações a quem se dirigem estes dispositivos es ao em
situações de exclusão não apenas profissional, mas também social e escolar: a
sua formação, fora do emprego, mas também da escola, não pode ser apoiada
geralmente na experiência directa do trabalho (a não ser sob a forma de “estágios
práticos” que originam muitas vezes apenas uma inserção truncada nos
colectivos de trabalho) e pode dificilmente estruturar-se a partir de
aprendizagens cognitivas formalizadas em cursos coerentes (a não serem
algumas experiências “pesadas” de tipo “remediação cognitiva”). A sua
socialização profissional aparece, pois, fortemente problemática’ tanto do ponto
de vista “estrutural” da sua inserção no emprego como do ponto de vista
“biográfico” da sua construção de uma competência reconhecida.

As investigações em curso não permitem responder à questão inicial: que formas


alternativas de socialização permitirão uma inserção no “mercado secundário do
emprego” que não esteja marcada pela instabilidade permanente e pelo seu ciclo:
trabalhos precários/períodos de desemprego/estágios de formação? Não se pode,
contudo, negar os esforços empreendidos pela maioria dos Estados para tentar
construir dispositivos múltiplos destinados a atingir este objectivo. As formas
institucionais de estruturação desta “transição profissional” (Rose, 1984) são
variáveis de acordo com o país e os públicos-alvo, mas elas manifestam sempre
uma responsabilidade acrescida dos organismos de gestão do emprego na
problemática da “exclusão” (em França é, nomeadamente, o caso da ANPE).

Numa investigação colectiva, levada a cabo junto de jovens desempregados de


um dispositivo de inserção social e profissional (Dubar et alii, 1987), são
analisadas as representações que estes jovens têm do trabalho, do emprego e da
formação (cf. terceira parte). A maioria deles parecem excluídos há muito tempo
do acesso a qualquer forma de mercado fechado do trabalho e referem-se a
formas de emprego (“biscates”) e de formação (“diplomas de cursos de pequena
duração”) muito distantes das que regem a evolução dos mercados internos do
trabalho nas grandes empresas. Apesar de tudo, as suas representações não são
homogéneas e a análise não permite validar a hipótese de um dualismo nítido
(cf. terceira parte).

Se concluímos a pesquisa citada admitindo a hipótese de emergência de um novo


modo de socialização que designámos “pós-escolar”, foi porque os materiais
recolhidos tinham permitido, simultaneamente, discernir elementos de
constituição de um novo sistema de formação (estágios em alternância,
procedimentos de acolhimento, informação, orientação, estágios em empresas…)
e discernir a multiplicação de novas trajectórias que combinam períodos de
desemprego, empregos precários e estágios de formação de diversos tipos
(inserção, qualificação, adaptação). E se devemos manter-nos prudentes quanto à
interpretação deste novo processo, é porque ele não está, ainda, completamente :,
institucionalizado em França. O modelo do “mercado secundário” não remete
ainda para nenhuma instancia claramente definida de estruturação: a rede
localizada dos “actores” institucionais (organismos de formação, administrações,
pequenas empresas “dominadas”, municípios…) não pode ainda ser considerada
como um suporte coerente do novo modo de socialização em gestação. Isto
pressuporia, com efeito, que os diferentes momentos do processo (formação
geral, formação profissional, formação prática) pudessem ser coordenados de
maneira eficaz em torno de numa instancia que assegurasse a regulação do
conjunto. Não é manifestamente, ainda, o caso, apesar de as tendências de
estruturação se desenvolverem aqui e acolá.

Se esta hipótese se confirmasse no futuro, assistir-se-ia a uma importante


mutação da socialização profissional que seria acompanhada por uma dualização
crescente do mercado do trabalho. Ao lado do reforço de um modo “integrado”
de socialização construído em torno da grande empresa dos sectores ou das
“profissões”, constituir-se-ia então um modo “alternativo” de socialização
centrado no tecido das PME dominadas e no aparelho estatal de tratamento
social do desemprego largamente centralizado. Os dois espaços sociais
correspondentes a estes dois modos de socialização seriam profundamente
diferentes e até mesmo opostos: as relações trabalho/fora do trabalho,
estabilidade/progressão, reconhecimento/não-reconhecimento não poderiam ser
as mesmas das que regem os “mercados fechados”. Então, quais as formas que
poderiam assumir? Seriam as que caracterizam os “mercados abertos” mais
concorrenciais e mais flexíveis (Piore e Sabel, 1984)? Seriam novas formas de
mercados fechados com uma regulação conjunta e mais individualizada
(Reynaud, 1989)? Este é um desafio essencial às políticas económicas e sociais
neste fim de milénio.

8.5. Mobilidades profissionais e mercados do trabalho: uma investigação


empírica

Se existem correspondências entre as características de emprego dos indivíduos


e os modos de funcionamento dos mercados de trabalho nos quais se encontram,
como as apreender empiricamente? Como relacionar “segmentos” típicos do
mercado de emprego com “formas” significativas de mobilidade? Escolhemos
uma investigação norueguesa como exemplo das complexidades metodológicas
e dos contributos sociológicos deste tipo de abordagem. Esta investigação tinha
um objectivo essencial: evidenciar as relações que existem entre perfis de
assalariados e modos de gestão do emprego pelas empresas. Procura-se, por isso,
ligar empiricamente as duas significações do conceito de socialização
profissional que repetidamente temos procurado distinguir e articular:

— a estruturação das actividades pelos empregadores;

— as trajectórias e as estratégias de emprego dos

indivíduos. :,

A. L. Stinchcombe (1979): Tipos de mobilidade e segmentos do mercado do


trabalho na Noruega (53)

(53) Agradeço a C. Paradeise e a P. Bernard terem-me dado a conhecer esta


investigação.

A investigação consiste numa análise secundária de dados estatísticos incidindo


sobre uma amostra de cerca de 7000 indivíduos, compostos por três coortes de
activos, que nasceram, respectivamente, em 1921, 1931 e 1941 e que foram
interrogados acerca da sua mobilidade profissional (mudanças de empregos, de
empregadores, de ramos…) desde a sua entrada no mundo do trabalho até à data
do inquérito (1971). A pergunta à qual o autor tenta responder é a seguinte: em
que é que a segmentação do mercado do trabalho, segundo grandes tipos de
funcionamento, influencia a mobilidade profissional e social dos indivíduos?
Para responder, o autor constrói uma tipologia dos sectores de actividade,
cruzando principalmente a situação dominante do mercado dos produtos
(concorrência/monopolista; parcial ou total) e as características dominantes da
gestão dos empregos (recrutamento de diplomados ou não/sectores de
promoção/segmentação interna…). Chega assim a sete tipos (cf. encaixe 8.1.)
que vão desde o sector primário tradicional (agricultura, pesca, caça…) até ao
sector dos serviços burocráticos, que lhe permitem um reagrupamento das
nomenclaturas dos sectores. De seguida, analisa os grandes movimentos de
mobilidade em função da idade e do ano de nascimento, pondo em evidência
estruturas permanentes de mobilidade de acordo com a idade e que permitem
validar a hipótese de uma dupla origem da mobilidade: a procura de melhorar o
emprego no mesmo sector ou tipo de actividade valorizando a experiência
(crescimento da mobilidade com a idade) e a procura de melhorar o emprego na
ausência de perspectivas no sector (mobilidade forte desde o princípio da
carreira). Chega a um modelo que distingue quatro tipos de movimentos
significativos válidos, cada um deles, por cinco anos:

— um modelo característico dos “mercados abertos” que implica uma forte


mobilidade externa, que cresce com a idade (“quanto mais idade se tem, menos
tempo se permanece no mesmo emprego”);

— um modelo característico dos “mercados internos” que implica uma elevada


taxa de mobilidade sem que haja mudança de empregador e, consequentemente,
baixas taxas de mobilidade externa;

— um modelo típico dos “mercados profissionais” que implica elevadas taxas de


mudança de empregadores ou de sectores acompanhadas da permanência no
mesmo tipo de actividade;

— um modelo marcado pela ausência de qualquer mobilidade significativa.

Stinchcombe constrói a seguir indicadores que permitem associar cada um dos


sete tipos de sectores a estes grandes modelos de mobilidade. Define, desta
forma, duas dimensões empiricamente mensuráveis de estruturação dos
mercados do trabalho: :,

— a continuidade dos empregos medida pela taxa de assalariados que nunca


mudaram de tipo de trabalho (categoria) durante os cinco anos, mudando de
empregadores mas mantendo-se no mesmo ramo: uma taxa elevada (+ 42%) é o
índice de uma forte estruturação interna do sector;

— o fechamento do mercado do trabalho medido pela taxa de assalariados que


ficam no mesmo ramo mudando de empregador: uma taxa de mais de 30% é o
índice de um mercado “relativamente fechado”.

O cruzamento destas duas dimensões leva a um quadro te rapolar no seio do qual


cada tipo de sector é caracterizado, simultaneamente, por um modo de
estruturação do mercado do trabalho (relativamente aberto ou fechado) e um tipo
de mobilidade de emprego (continuidade ou descontinuidade):

— os mercados relativamente fechados com forte continuidade de ocupações


caracterizam tanto os “serviços profissionais” (ex.: educação, publicidade,
saúde…) como as “pequenas empresas com trabalhadores qualificados” (ex.:
mecânica…);

— os mercados preferencialmente fechados com forte de continuidade de


ocupações caracterizam os “serviços burocráticos” (ex.: exército, polícia…);

— os mercados preferencialmente abertos com forte continuidade de ocupações


caracterizam as grandes empresas dos sectores fortemente capitalistas;

— os mercados preferencialmente abertos com forte de continuidade de


ocupações caracterizam os sectores capitalistas clássicos (bens de consumo…), o
pequeno comércio e os serviços, assim como o sector primário tradicional.

O quadro 8.2. resume as relações entre os quatro tipos de mobilidade que


correspondem a estes quatro tipos de mercado do trabalho e as percentagens
estatísticas a que chegou no inquérito.

Encaixe 8.1.

Classsificação dos sectores em sete tipos

segundo Stinchcombe (1979)


:::::::::::

1. Sector primário “tradicional” :o exemplo: pesca/agricultura:

— propriedade familiar, pequenas empresas, fracos investimentos;

— sector primário “pequeno-burguês”:

a) recrutamento entre as famílias já ingeridas no ramo,

b) declínio do emprego. :,

2. Sector “capitalista” clássico (concorrencial) :o exemplo: têxtil:

— pequenas firmas em competição no mercado dos produtos (MdP)/força de


trabalho pouco qualificada/grande proporção de grupos desfavorecidos/baixos
salários;

— indústrias de bens de consumo onde a competitividade no MdP é assegurada


graças ao emprego de trabalhadores desfavorecidos.

3. Sector competitivo com mercados locais e trabalhadores qualificados :o


exemplo: BTP/metalurgia/tipografia:

— monopólio parcial no MdP combinado com uma mão-de-obra qualificada (e


organizada);

— organização de oficio (*Craf*) no mercado do trabalho (MdT).

4. Sector capitalista com mercado alargado com trabalhadores qualificados e


organização burocrática :o exemplo: química/p e T (Correios e
Telecomunicações):

— monopólio quase total no MdT por razões diversas/salários acima da média;

— carreiras estáveis para trabalhadores qualificados e para engenheiros e


investigadores profissionais: mercado fechado com duas linhas de carreira para
execução/enquadramento;

— combinação entre regras de antiguidade e de formação: mercado “interno”.


5. Sector do comércio e serviços “pequeno-burgueses” e competitivos :o
exemplo: comércio de retalho/serviços a particulares:

— competitivo nos mercados locais, pequenas unidades (comércio de retalho),


não-assalariados ou empregados de PME;

— carreiras limitadas mas educação reconhecida.

6. Sector dos serviços “profissionais” (profissões liberais e intelectuais) :o


exemplo: artistas/médicos liberais:

— “profissionais” com estatutos obtidos pela educação e reconhecidos nas


diversas organizações;

— não integrados em organizações burocráticas.

7. Sector dos serviços “burocráticos” :o exemplo: bancos-


seguros/escolas/hospitais:

— tendência para o monopólio, para a gestão e para a não-produção;

— estrutura alargada de carreiras burocráticas transversais às organizações. :,

:::::::

Quadro 8.2.

Combinação dos dois indicadores de mercados sectoriais segundo Stinchcombe


(os algarismos reenviam à nomenclatura do encaixe 8.6.)

:::::::
Continuidade de tipo de emprego

+ (42% e mais) na mesma categoria:

— Fechamento do Mercado do Trabalho:

(+30% no mesmo sector)

6. Mercados profissionais e internos

3.

— (-30% no mesmo sector)

4. Mercados internos

- (menos de 42%):

— Fechamento do Mercado do Trabalho:

(+30% no mesmo sector)

7. Mercados profissionais

— (-30% no mesmo sector)

2.

5. Mercados abertos

::::::

Em conclusão, Stinchcombe considera ter validado a hipótese segundo a qual “a


teoria do estatuto atingido (*attainment status*) deve ser considerada como uma
teoria daquilo que os empregadores admitem ser válido e, só secundariamente,
como uma teoria daquilo que os trabalhadores possuem como características
julgadas válidas pelos empregadores” (pp. 241-242). Os constrangimentos
estruturais dos mercados do trabalho, através dos sectores, são largamente
preditivos dos percursos de mobilidade dos assalariados presentes. A
investigação indica em todo o caso uma (bastante) forte correspondência entre os
tipos de organização dos mercados do trabalho e os tipos de mobilidade dos
assalariados. Ela vai ao encontro dos resultados obtidos por outras investigações,
nomeadamente francesas (Desrosières, Gollac, 1982). Permite, pois, reforçar a
hipótese de quatro modos de socialização profissional que produzem quatro
configurações identitárias típicas das quais vamos apresentar as características
mais pertinentes na última parte.

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III

:a dinâmica das identidades profissionais e sociais

Introdução à terceira parte

Os quatro capítulos que finalizam esta obra (54) apresentam quatro


configurações identitárias, baseadas num conjunto de investigações empíricas,
exclusivamente francesas, realizadas entre o início dos anos 60 e o fim dos anos
80. Privilegiam os resultados de uma investigação colectiva recente levada a
cabo pelo LASTREE com a colaboração de outros investigados (55), centrada na
análise aprofundada de inovações de formação em seis grandes empresas
privadas em mutação rápida (LASTREE, 1989). Estes resultados assentam na
análise tipológica de 159 entrevistas de tipo não directivo (Michelat, 1975),
conduzidas junto de amostras aleatórias de assalariados (de OS a técnicos,
agentes técnicos e quadros médios) implicados nestas “inovações”, isto é,
incitados a formarem-se para mudar as suas atitudes no trabalho, alargar ou
modificar as suas competências e, por vezes, mudar de emprego, de serviço ou
de estabelecimento.

(54) As referências bibliográficas aparecem no fim do capítulo 12.

(55) A investigação, intitulada “Production et usage de la forTnation par et dans


l’entreprise” e realizada entre 1986 e 1988, foi financiada pelo PIRTTEM
(CNRS), a Délégation à la Fòrmation Professionnelle, o Commissariat Général
au Plan, a Région Nord-Pas-de-Calais e reunia, para além dos sociólogos do
LASTREE, economistas do trabalho e especialistas de ciências de gestão.

As entrevistas exploram três domínios essenciais: o “mundo vivido do


trabalho“, a trajectória socioprofissional e, nomeadamente, os movimentos de
emprego, a relação dos assalariados com a formação e especialmente a forma
como aprenderam o trabalho que fazem ou o que vão fazer. É na intersecção
destes três campos que é definida a identidade profissional destes assalariados
concebida, simultaneamente, como uma configuração apresentando uma certa
coerência típica e como uma dinâmica implicando evoluções significativas, em
resposta às mutações da empresa.

Os resultados desta investigação são, num primeiro momento, aproximados dos


obtidos por outras investigações precedentes do LASTREE, nomeadamente, da
investigação :,

levada a cabo em dois centros de produção nucleares no decurso dos anos 1983-
1984 (Dubar, Engrand, 1986) e da conduzida junto de uma amostra de jovens
não diplomados que estavam integrados num dispositivo de inserção social e
profissional para os jovens de 16-18 anos (Dubar et alii, 1987). Estas duas
investigações, embora utilizando muito pouco a noção de identidade, levavam
igualmente à construção de quatro tipos de atitudes ou de “lógicas de acção”
combinando relações com o trabalho e com a qualificação, trajectórias de
emprego ou de desemprego e orientações sobre a formação. Confrontando estas
três investigações, podemos verificar a relativa convergência dos principais
resultados.

Estes vão ao encontro das conclusões de inúmeras outras investigações


sociológicas, recentes ou mais antigas, centradas nas empresas, por exemplo: as
consagradas aos assalariados (operários ou técnicos) da siderurgia (de Bonnafos,
1988; Agache, 1993); a que foi conduzida pela equipa do GLYSI a propósito das
relações dos operários com as máquinas (Bernoux et alii, 1984); outras, mais
antigas, conduzidas por Sainsaulieu junto de inúmeras empresas públicas ou
privadas (Sainsaulieu, 1977); outras, ainda mais antigas, conduzidas por O.
Benoìt-Guilbot e M. Maurice junto dos assalariados da EDF (1965) ou por
Claude e Michelle Durand junto de uma amostra de grandes empresas durante a
década de sessenta (1971). As investigações integram também análises
consagradas a categorias daqueles que não têm emprego: os despedidos por
razões económicas abrangidos pela reconversão tecnológica (Cherain,
Demazière, 1989), desempregados de qualquer tipo (Schnapper, 1981),
desempregados de longa duração (Demazière, 1992), assalariados reconvertidos
(Lerolle, 1991), reformados (Guillemard, 1972), jovens em formação
profissional inicial (Baudelot, 1988; Haicault, 1969; Abboud, 1968). Em
qualquer dos casos — e independentemente dos métodos utilizados — as
investigações evidenciam diferenciações de atitudes, de opiniões, de horizontes
dentro das mesmas categorias quando confrontadas com mudanças importantes
(transformações do trabalho, dos modos de gestão do emprego, das políticas de
formação) ou quando se defrontam com novas situações (inserção profissional,
desemprego, reforma compulsiva…).

Os capítulos que se seguem retomam elementos significativos destas


investigações para os interpretar em termos de identidade profissional de acordo
com a problemática e as categorias definidas na primeira parte (cf. capítulo 5) e
enriquecidas pela segunda parte. Estes capítulos apresentam cada configuração
identitária como a resultante de uma dupla transacção, por um lado, entre o
indivíduo e as instituições (nomeadamente a sua empresa) e, por outro, entre o
indivíduo confrontado com uma mudança e o seu passado. Descrevem as
identidades como sendo produzidas pela articulação de uma identidade (virtual)
atribuída pelo outro e de uma identidade (virtual) para si construída através da
trajectória anterior. Estes últimos capítulos dedicam-se, ainda, a esclarecer a
relação entre as gerações ao comparar, à distância de vinte e cinco anos, as
atitudes dos jovens confrontados com o mercado do trabalho. :,

Do modelo de retirada ao processo de exclusão: a identidade do executante


“estável” ameaçado

9.1. A identidade para outro: a exclusão fora do modelo da competência

“São os OS saídos da escola por causa do insucesso escolar, não motivados para
a formação, incapazes de olharem para o futuro (incapazes de atribuírem valor a
si próprios/incapazes de efectuarem um cálculo elementar), que não têm o hábito
do rigor e da precisão (porque a empresa apenas fabricava produtos de baixa
qualidade), que não sabem controlar o seu próprio trabalho e que são difíceis de
mobilizar depois de décadas de taylorismo.” Esta frase de um director técnico,
recolhida durante um inquérito sobre as transformações recentes de uma empresa
de mobiliário e de decoração (Zarifian, 1988, p. 78) resume de forma notável a
identidade para outro atribuída por certos responsáveis de empresas àqueles que
são julgados a prior) desprovidos das “novas competências” que a empresa do
futuro exige, e considerados como incapazes de as adquirir. Em todas as
empresas inquiridas, alguns dirigentes ou quadros hierárquicos disseram estar
convencidos que uma parte do seu pessoal era incapaz de “seguir as evoluções
em curso e de beneficiar de formações de actualização. Os chamados OS, de
“baixo nível de qualificação” (BNQ), “operários de limpeza”, mas também, por
vezes,“executantes” e até mesmo simples “operários” dão azo, cada vez mais, a
actos de atribuição que visam categorizar (etiquetar) não só um conjunto de
postos de trabalho definidos a partir de tarefas prescritas, mas também um
conjunto de indivíduos considerados desprovidos das capacidades exigidas para
mudar as suas atitudes no trabalho, para acederem à formação e para
desenvolverem as suas competências profissionais. São assalariados que, tendo
sido contratados pela :, empresa para ocupar postos de trabalho para os quais
foram, então, julgados aptos, são considerados virtualmente como incompetentes
para cumprir qualquer que seja a função na empresa do futuro. Esta “identidade
social virtual” (cf. capítulo 5), assumindo a forma de um julgamento antecipado
de incompetência, resulta de uma transformação do modelo de gestão do pessoal
que substitui a cotação dos postos de trabalho pela apreciação dos “potenciais”
dos indivíduos, o que P. Zarifian chama “o modelo da competência” (1988, pp.
77 e ss). E se estes assalariados são considerados implicitamente “sem potencial”
é porque, em geral, não manifestaram indícios de uma mobilização mínima para
a empresa, de uma “boa vontade” de participação nas iniciativas impulsionadas
pela direcção ou pela hierarquia (círculos de qualidade, grupos de progresso,
reuniões de informação, etc.), de uma “conversão” mínima às novas normas,
muitas vezes informais, de trabalho ou de relação. Acrescenta-se a tudo isto, por
vezes, a existência de estigmas (alcoolismo, absentismo, grosseria…) que
reforçam as etiquetagens constitutivas desta identidade virtual de incompetente,
isto é, inapto para produzir os indícios da vontade para adquirir as competências
futuras…

9.2. A identidade “biográfica” para si: saberes práticos e estabilidade de emprego

Entre os indicadores cada vez mais privilegiados pelas empresas “em mutação”,
a participação voluntária em diferentes formações, que comportem sequências de
“actualização”, de “reciclagem” ou de “sensibilização”, é cada vez mais
valorizada. Ora, a principal característica comum a todos os assalariados que
relevam desta lógica, em todas as empresas inquiridas, é nunca terem pedido,
por iniciativa própria, desde a entrada na empresa, para seguir uma formação, e
não poderem conceber que uma formação que assuma totalmente ou em parte
uma forma escolar lhes pudesse ser destinada e até mesmo benéfica. A sua
identidade de trabalhador ou de trabalhadora, a sua identidade para si, forjou-se
na aprendizagem da tarefa, na aprendizagem directa do trabalho (“aprende-se
olhando e tocando”), na aquisição de saberes práticos na experiência directa das
tarefas a cumprir. Mesmo naqueles que ocupam empregos melhor classificados
— empregados, contramestres e mesmo técnicos —, o discurso sobre o modo
como aprenderam o seu trabalho, o seu posto ou a sua função, está desconectado
dos conhecimentos escolares considerados sistematicamente inúteis para
exercerem a função que ocupam. O seu julgamento de pertença muitas vezes
expresso por um “nós” anónimo reenvia para o colectivo daqueles que fazem o
mesmo trabalho e que aprenderam da mesma forma, no interior do mesmo
espaço restrito, os gestos e as relações de trabalho (LASTREE, 1989, pp. 362-
368).
Por essa razão, não podem imaginar diferenciarem-se dos seus pares (“os
compinchas”, “as companheiras”, “os outros”…), para irem sozinhos para uma
formação voluntária que não seja imediatamente necessária ao trabalho e que
corre o risco de levar a um insucesso. Aceitam perfeitamente a ideia de uma
formação como obrigação interna e :,

colectiva, ligada, por exemplo, à introdução de novas máquinas (“formam-nos”)


mas as formações “inovadoras” não entram neste quadro. Aliás, na grande
maioria dos casos, o seu superior (“o chefe”) não lhes propôs pessoalmente estas
formações: não são excluídos voluntariamente das formações “inovadoras”, não
se sentem implicados nelas não só porque elas não têm nenhuma relação visível
com o seu trabalho, mas porque eles não podem esperar nada em contrapartida…
e, pelo contrário, têm tudo a recear (o insucesso).

É aqui que encontramos a segunda característica comum a todos estes indivíduos


das seis empresas: não esperam qualquer evolução profissional, nem têm outra
perspectiva profissional senão a de se manterem no seu emprego e sobreviver na
empresa. Não tendo recebido formação profissional inicial (ou muito incompleta
ou numa especialidade sem relação com o emprego), não tendo recebido
formação contínua, só tendo conhecido mobilidades impostas, estando
fortemente subordinados ao posto ou à função, não estando inseridos em redes
que permitam uma acumulação de saberes técnicos (56), não conseguem
projectar-se em nenhuma ocupação interna ou externa à empresa. A única
evocação de futuro é a reforma mesmo quando ainda não têm 40 anos: estão
persuadidos de que nenhuma reconversão lhes é acessível e que a única hipótese
de manter o emprego é a procura da manutenção de uma estabilidade que eles
valorizam de todas as formas possíveis. Querem ser reconhecidos no seu posto,
no seu emprego, no seu trabalho; não podem imaginar que a empresa o possa
suprimir porque se identificam com ele e consideram esta eventualidade como
uma sanção intolerável (“não podem fazer-me isso”). A estabilidade ligada ao
desempenho do trabalho e adquirida pela experiência é, aliás, para eles, um valor
essencial: são “sempre os mesmos que mudam”, os que nunca conseguem fazer
nada “em condições”, os que são instáveis, imaturos. A mudança é uma sanção e
não um progresso porque destrói os saberes práticos acumulados e incorporados
com a experiência, a qual permite o aperfeiçoamento pelo domínio de todas as
possibilidades perante a mesma situação “concreta” de trabalho (LASTREE,
1989, pp. 86-387).

(56) a junção entre “mobilidade experimentada” e “ausência de acumulação de


saber” leva os investigadores do glysi a apelidá-los de “aventureiros” (bernoux
et aliii, 1984.)

9.3. A identidade “relacional” para si:

Dependência do chefe e trabalho instrumental

O seu espaço potencial de reconhecimento situa-se, pois, no interior da situação


concreta de trabalho: o posto, o atelier, o escritório, talvez o serviço, mas nunca a
empresa. Esta é uma entidade abstracta que os ultrapassa e que suscita incerteza
(“não estamos informados”), desconfiança (“os grandes escritórios”) e reacções
defensivas (“o que ai se trama…”). A empresa nunca intervém na definição que
dão de si próprios. A relação estruturante da sua identidade é a que mantêm com
o superior directo (“o chefe”) e é também um ponto comum a todos os
indivíduos deste tipo. Esta relação é, antes de mais, uma :, relação de grande
dependência: é o chefe que lhes distribui o trabalho, que aprecia o resultado e
que atribui eventuais prémios, é em torno dele que toda a vida do trabalho se
organiza. Mas esta relação parece, também, desestabilizada pelas evoluções em
curso e pelas inovações analisadas: de uma relação personalizada, por vezes de
tipo paternalista, passa-se a uma relação mais anónima, considerada ameaçadora
e, por vezes, estigmatizante. A maior parte dos assalariados deste tipo sentem-se
postos em causa no trabalho sem conseguirem encontrar as razões. Pede-se, por
exemplo, para mudarem de posto, e eles sentem esta incitação como uma sanção
não merecida. Sentem-se atingidos no seu próprio reconhecimento e ameaçados
pelas experiências em curso. Estas parecem-lhes opacas, incompreensíveis,
inaceitáveis. Essas experiências acentuam a distância com “o chefe” e acabam
por provocar divisões internas no grupo, que vão prejudicar o “bom ambiente”.
Conduzem, amiúde, a um sentimento mais ou menos afirmado de mal-estar e
mesmo de marginalização e, por vezes, de exclusão quando os despedimentos
são sugeridos.

Este sentimento é avivado pelo facto de as “inovações” não serem


acompanhadas de uma contrapartida financeira. Ora, qualquer contribuição
suplementar para a empresa só tem sentido para eles se for acompanhada por
uma retribuição correspondente: “Se o trabalho muda, o salário deve mudar; se
não muda, nós não temos razão para mudar.” A sua fraca retribuição monetária
pode, aliás, ser analisada como a contrapartida de uma fraca contribuição, pelo
menos julgada enquanto tal pelos chefes (Benoìt-Guilbot, 1965). Está aqui em
causa a última característica comum àqueles que partilham esta identidade e que
designámos de relação instrumental — “economista” no sentido dado por
Touraine (Touraine, Ragazzi, 1961, pp. 37 e seguintes) — no trabalho, isto é, o
facto de todos dizerem que trabalham “para ganhar a vida” e se esforçam, antes
de mais, “por fazer o que devemos para o que nos pagam”. Esta dimensão da sua
identidade privilegia radicalmente a transacção objectiva (equilíbrio
contribuição/retribuição) em relação à transacção subjectiva (relação
passado/futuro vivida em termos de estabilidade e de reprodução), o contexto
espacial (espaço de investimento e de reconhecimento) em relação ao contexto
temporal (a vida profissional não vivida em termos de progressão ou de
carreira). É por isso que a relação trabalho/fora do trabalho está no centro da sua
identidade e não pode ser analisada sem ter em conta as relações sociais de sexo
no seio da fami1ia e do colectivo de trabalho.

Verificam-se, de facto, diferenças significativas entre identidades masculinas e


femininas embora se refiram à mesma lógica geral. O universo familiar e
doméstico interfere muito mais vezes com o universo de trabalho no discurso das
mulheres, mas elas são menos reticentes à ideia de formação

— mesmo geral — do que os homens. Quanto aos homens — sobretudo os mais


idosos —, as diversas componentes da identidade (estabilidade do
emprego/aprendi agem na tarefa/dependência em relação ao chefe/relação
instrumental no trabalho) formam uma espécie de “sistema fechado” que integra
uma representação muito tradicional da fami1ia e da divisão sexual do trabalho
(defesa ou nostalgia da mulher doméstica, ausência de partilha das tarefas
domésticas, dependência material…). Neste senado, não se pode falar, em
relação a eles, de verdadeiro investimento fora do trabalho. Quanto às mulheres
— sobretudo as mais jovens —, as características identitárias :, parecem menos
integradas e a eventualidade de evoluções posteriores está mais frequentemente
presente em relação com o seu papel maternal: “quando as crianças
crescerem…”, “se o meu marido estivesse mais presente…”, “se pudesse
encontrar uma solução…”, a ideia de mudar de emprego, de entrar em formação,
de fazer um outro trabalho não é totalmente abandonada. Existe um outro
obstáculo muitas vezes invocado pelas mulheres deste primeiro tipo: o seu nível
escolar fraco, associado a uma falta de autoconfiança e a um receio das situações
escolares. A entrada em formação exige-lhes mediações particularmente difíceis
como o testemunha esta frase de uma operária têxtil: “Não tenho cabeça para
aprender… porque eu sei muito bem que não vou conseguir… Se querem
verdadeiramente ensinar-me, que me ensinem ao lado da minha máquina… com
uma operária como sempre fiz” (LASTREE, E. Dubar, p. 236).
9.4. Uma identidade de classe ou de fora do trabalho?

A identidade assim esboçada neste primeiro inquérito põe em evidência, tanto


nos homens como nas mulheres, uma forte dualidade entre uma identidade social
virtual de excluído e uma identidade social real de assalariado executante
estável, trocando a força do seu trabalho por um salário. É uma configuração
identitária muito similar à que designámos de operário tradicional na análise da
relação à formação dos assalariados das centrais nucleares (Dubar, Engrand,
1986, p. 45). Estando o risco de exclusão aqui praticamente ausente, pelo facto
de existir um estatuto, as características evidenciadas assemelham-se muito às
que caracterizam os assalariados precedentes antes da realização das
“inovações”:

— fraca implicação na actividade profissional e na relação “instrumental” com o


trabalho;

— valorização do “bom ambiente” e das relações imediatas com os pares;

— grande ligação à estabilidade do emprego e à experiência do posto;

— pouca ou nenhuma perspectiva profissional (progressão lenta na carreira);

— origem operária e fraco nível escolar;

— referência exclusiva à aprendizagem na tarefa e ausência de qualquer


formação voluntária;

— relações de dependência com a hierarquia e consciência de uma grande


barreira entre os grupos.

Tínhamos interpretado esta identidade em termos de identidade de classe na


medida em que o sentimento de pertença operária se traduzia, em 1983-1984,
para a maior parte dos assalariados que partilhava esta lógica, nesta empresa
particular, por uma valorização da acção colectiva, acompanhada até de várias
criticas em relação a certas práticas e evoluções sindicais (cf. Dubar, Engrand, p.
45). Estas duas atitudes praticamente já não aparecem no inquérito de 1987-1988
realizado em grandes empresas privadas em mutação. :,

Esta dualidade entre risco de exclusão e ligação à estabilidade “operária” assume


a forma de uma verdadeira ruptura nos operários da siderurgia ameaçados de
despedimento e cuja identidade foi longamente analisada por C. Agache (1993,
pp. 41 e seguintes, pp. 99 e seguintes, pp. 145 e seguintes). Os que partilham
esta “identidade antiga” centrada no amor ao trabalho bem feito, na fidelidade à
empresa (“nunca ausente”, “nunca atrasado”), na relação afectiva com o
trabalho, valorizando a coragem e a seriedade, a mobilização física e a
reciprocidade sentimental com o chefe, ficam chocados com as novas políticas
da empresa que contratam jovens finalistas do ensino secundário, valorizando
unicamente os saberes teóricos e difundindo o novo “modelo de competência”. A
sua identidade fica dividida entre a dedicação aos saberes práticos que os
valorizam e o reconhecimento incontornável dos saberes teóricos que os
excluem. Recusam admitir ser julgados “incompetentes” pelo facto de não
possuírem formação profissional nem formação escolar prolongada; mas não
podem negar que os diplomas são necessários e que os jovens finalistas do
ensino secundário tenham conhecimentos que eles nunca terão. Mesmo se
defendem a ideia de que “os dois são precisos” (manuais e intelectuais),
reconhecem que, enquanto os jovens diplomados acabarão por adquirir a
experiência, eles nunca vão adquirir os conhecimentos teóricos. É por isso que a
sua identidade é cruelmente distorcida: a manutenção das identificações
anteriores, constitutivas da “identidade para si”, é também o que pode provocar a
sua exclusão futura e a confirmação da “identidade para outro”: a
impossibilidade de qualquer conversão subjectiva reforça o insucesso de
qualquer negociação objectiva. Quando são despedidos, a sua reclassificação é
muito difícil e só pode ser feita “por constrangimento” (Lerolle, 1991). As duas
transacções reforçam-se, assim, negativamente para originar uma “lógica de
exclusão”.

A correspondência estabelecida aquando do inquérito nas centrais nucleares


entre “executante estável” e “pertença operária” deve, no entanto, ser
relativizada à luz dos resultados — em concordância com os nossos — de uma
investigação consagrada às identidades sociais dos técnicos (de BoMafos, 1988,
pp. 56-57, p. 95). Uma das identidades dos técnicos verificada pelo inquérito
corresponde estreitamente a esta primeira configuração que articula as
dimensões seguintes:

— uma representação da empresa que implica um papel marginal do indivíduo e


um papel preponderante da hierarquia;

— uma ausência de vontade de evolução social e uma valorização da “chance”


como factor de promoção;
— uma representação do sistema social de empresa como “sistema onde cada
um mantém o seu lugar”;

— uma relação com o trabalho cujo fim é o salário;

— uma grande integração no grupo de pertença imediato e uma grande


dependência hierárquica;

— a ausência de qualquer grupo de referência e de qualquer projecção de futuro


(dos “técnicos-técnicos”). :,

Não se definindo como operários mas sim como técnicos, os assalariados em


causa não são assim mais do que executantes estáveis que combinam a ausência
de qualquer estratégia de evolução profissional (transacção subjectiva
desfavorável) com um fraco nível de reconhecimento pela empresa (transacção
objectiva sem vantagens). O seu espaço de investimento permanece
problemático e já não está conectado a nenhum sistema de acção colectiva.
Mesmo que não sejam ameaçados por nenhuma exclusão, a curto prazo, também
não entram, tal como os precedentes, no novo “modelo da competência”.

9.5. Crítica do “modelo de retirada”

Será que esta configuração de executante estável virtualmente ameaçado de


exclusão está em consonância com o modelo de “retirada” de Sainsaulieu que
emana de investigações na empresa nos anos 60 e 70? Na apresentação que faz
deste modelo, a “retirada” está associada à verificação “de outras cenas de
investimentos sociais” e à recusa de qualquer compromisso pessoal nas relações
colectivas de trabalho. Na obra L’identité au travail (2.a edição, 1985), as
análises sobre este modelo incidem sobretudo sobre os empregos femininos e o
trabalho de escritório e postulam, simultaneamente, “uma ligação muito forte das
mulheres ao valor família” e uma “reprodução das relações familiares no
trabalho”. Estas atitudes conduzem, sobretudo, a que “a estagnação profissional
se mantenha para assegurar a continuidade das estruturas familiares tradicionais,
vendo no chefe um pai, um conselheiro e não uma autoridade técnica” (id., p.
167). Associada a uma “total dependência no trabalho” e a uma “incapacidade
para se opor aos outros”, a retirada engendra uma “identidade de colusão
generalizada”, isto é, segundo a definição de Laing, a interiorização de um “jogo
no qual participam várias pessoas que se enganam umas às outras de uma forma
complementar” (D. Laing, 1961, p. 98). Esta identidade seria a de inúmeras
“mulheres na fábrica e no escritório” e resultaria de uma “colusão típica com o
chefe” que permite salvaguardar um investimento prioritário na esfera familiar
“sem pôr em causa as relações de dominação” (id., p. 341). Este duplo jogo, que
permite salvaguardar um “duplo eu” (investido realmente na fami1ia e
aparentemente no trabalho), conduz, em última análise, à reprodução das
relações de dominação na fami1ia e no trabalho dissimulando-as através de
“falsas identidades” (“o eu falso” no sentido dado por Laing). Na parte final da
sua análise, Sainsaulieu levanta a hipótese de que “as relações femininas de
trabalho podem evoluir para um envolvimento colectivo maior desde que os
processos de progressão sejam desbloqueados” (id., p. 168). Interroga-se
também sobre a questão seguinte: “Será que este modelo de relações colectivas
de escritório com uma maioria de mulheres é o mesmo que o dos homens?”

As nossas análises precedentes levam a colocar uma questão dupla sobre a


pertinência da noção de retirada para compreender as configurações e as
dinâmicas identitárias deste primeiro tipo. Em primeiro lugar, o aumento do
desemprego e a escassez de empregos não são acompanhados, em França, por
uma diminuição das taxas de actividade feminina: :, as mulheres não só não
voltaram para casa como também aceleraram a sua entrada em todos os
segmentos do mercado do trabalho. A actividade feminina pode ficar dilacerada
entre os papéis de mãe/esposa e de mulher activa/profissional. A actividade
feminina pode manter-se dilacerada, e este dilaceramento pode não implicar uma
atitude de retirada da esfera do trabalho, mas, pelo contrário, pode estimular a
invenção de estratégias de carreira complexas, que de uma maneira diversificada
têm em conta as estratégias do cônjuge (C. Nicole, 1988). De seguida, a adopção
progressiva pelas empresas do “modelo de competência” torna cada vez mais
arriscada a manutenção e a exteriorização de atitudes de retirada no trabalho.
Estas arriscam-se a constituir-se imediatamente como sinais que desencadeiam
processos de exclusão. Ora, o que nos parece determinante é o mecanismo de
atribuição pela empresa de uma identidade virtual de excluído (identidade para
outro) e não o sentimento de pertença do indivíduo a um grupo, a uma categoria
de “retirada”. Feita pelos indivíduos, este tipo de projecção incide mais sobre a
reforma do que sobre a retirada. Com certeza, entre as condutas típicas de
reforma evidenciadas pela investigação de A.-M. Guillemard, a reforma-retirada
(1972, pp. 35 e seguintes, pp. 123 e seguintes) corresponde muito de perto às
características identitárias postas em destaque aqui (situação de trabalho do
passado de executante/fraco nível de instrução/fraca intensidade de
actividade/baixo nível de rendimento…). Mas a retirada que se segue à reforma
não é analisada como uma orientação voluntária mas como uma “transformação
ligada à passagem do trabalho ao não trabalho”, um processo de “retirada no ser
biológico” que se segue a uma “ruptura com o mundo social” (id., p. 37).
Quando os assalariados dizem que apenas estão à espera da reforma, afirmam
nunca a desejar de imediato; pelo contrário, desejam permanecer na empresa até
à reforma que só muito raramente é associada a projectos “positivos”.

9.6. O processo de exclusão: a articulação impossível das transacções

Esta análise é confirmada por um estudo recente que incidiu sobre duas amostras
de assalariados vítimas de despedimentos colectivos, que põem em evidência
lógicas típicas de reacção salarial (Cherain e Demazière, 1989). Os assalariados
que partilham a identidade de executante ligada à estabilidade e pouco
implicados no seu trabalho são também aqueles que vivem mais dolorosamente
o processo de exclusão de que são alvo. Sofrem o despedimento como uma
sanção, “procurando a origem da exclusão num conjunto de erros que poderiam
ter cometido, negando, em simultâneo, a possibilidade de os ter cometido”.
Sentem a supressão do posto como um abandono pessoal (“eu já não agradava à
sociedade”) e de forma nenhuma estabelecem ligação entre esta decisão e o
sistema de atitudes no trabalho que era o deles antes do começo dos
despedimentos. Vivem, de imediato, o despedimento como uma exclusão e não
como uma retirada. :,

Estes mesmos sentimentos são encontrados na experiência do desemprego


sintetizada por D. Schnapper no termo “desemprego total” e que diz respeito aos
assalariados, partilhando a identidade que aqui é descrita (Schnapper, 1981, pp.
55-115). Os sentimentos de humilhação (“já não nos sentimos como um
homem”, p. 56), de degradação (“já não precisam de nós”, p. 60), a ausência de
futuro (“depois vou atingir a reforma”, p. 61), de perda de virilidade para os
homens (“agora, as minhas mãos são como as de uma mulher”, p. 64), de perda
de afirmação social para as mulheres (“não me afirmo em nada”, p. 58), de
desinteresse generalizado (“não se pode fazer nada, cai-se diante de um
obstáculo”, p. 85) e, finalmente, de solidão e de dessocialização (“fica-se
amargurado”, p. 99) são sintomas da perda do laço social que constituíam as
relações anteriores de trabalho e do estatuto social próprias do emprego
precedente. Compreende-se melhor ainda a significação da estabilidade na
identidade social destes assalariados: é o reconhecimento pela empresa (através
do chefe directo) e, para além disso, pela sociedade, da legitimidade da
existência tal qual eles são (identidade para si), isto é, tal qual foram produzidos
pela sua socialização inicial e tal como eles se produziram através dessa
socialização. Esta identidade de base foi, de uma forma duradoira, reconhecida
no e pelo acesso ao emprego com o qual se identificaram. Alterá-la significa pôr
em causa a sua integridade.

Podemo-nos, além disso, interrogar sobre os elos implicitamente estabelecidos


entre a identidade de executante estável, associada ao estereótipo do “emprego
definitivo”, e o processo de exclusão desencadeado, nomeadamente, pelas
grandes empresas privadas em fase de modernização, que se associam às ideias
de inovação, de mudança e de mobilidade. Neste processo de exclusão parece ser
menos importante a posição ocupada pelo assalariado ou a antiguidade no posto
de trabalho do que a ruptura da dupla transacção característica da sua identidade
(cf. capítulo 5). Por um lado, o que é posto em causa pelas transformações nos
modos de gestão é o reconhecimento da sua competência, ou seja, estes modos
de gestão rompem com a transacção objectiva. Por outro lado, as modificações
do mercado interno do trabalho e a entrada de novos actores na situação de
trabalho (jovens diplomados…) conduzem à desestabilização dos critérios de
reconhecimento de si e à instauração de um processo de autodesvalorização que
desestrutura a transacção subjectiva. Desencadeia-se, assim, um circulo vicioso
“produto da relação dialéctica entre as reacções do agente ameaçado e as acções
dos superiores e dos concorrentes”; como no esquema da predição criativa, “o
processo de exclusão engendra pela sua própria dinâmica os erros e os fracassos
que lhe servem de motivos” (Boltanski, 1982, p. 437). Este processo tanto pode
dizer respeito aos quadros como ao pessoal de execução ou de chefia. As
hipóteses de ele se desencadear e de se consumar estão ligadas ao facto de o
indivíduo tender “a sobrestimar o valor que lhe é atribuído no mercado interno
do trabalho” e ao facto de o “papel que suporta a sua identidade se apresentar
sempre sob uma forma sincrética e não resistir ao questionamento” (idem).
Podemos, assim, chegar a somatizações ou formas de paranóia (Lemert, 1962)
ligadas à desestruturação brutal de identidades vividas como estáveis no interior
das grandes organizações. :,

9.7. Configuração identitária e geração: a génese biográfica da identidade


ameaçada

Na maior parte dos inquéritos anteriormente citados, os indivíduos deste tipo


pertenciam a gerações sucessivas. No entanto, no inquérito mais recente
(LASTREE, 1989), a maioria dos assalariados implicados nesta identidade eram
relativamente idosos e antigos na empresa: tendo entrado, na maior parte dos
casos, nos anos 60 e 70, só recentemente se viram confrontados com presença de
jovens diplomados em empregos parecidos e mesmo similares aos seus. Poder-
se-á, por isso, associar a génese desta identidade a um modo de entrada no
trabalho e de aprendizagem de uma (ou várias) geração(ões) anterior(es) à crise
do emprego?

No inquérito junto de jovens operários da região do Sena, com 18 a 20 anos, N.


de Maupeou-Abboud chegou igualmente a quatro categorias de assalariados
partilhando horizontes profissionais muito diferentes. Uma destas categorias
agrupa o que o autor designa “verdadeiros OS”, que têm uma fraca bagagem
escolar e que na sua vida profissional estavam na situação de “retirada” (N.
Abboud, 1968, pp. 65 e seguintes, pp. 171 e seguintes). As características
comuns a estes jovens são muito semelhantes às dos assalariados adultos ligados
à estabilidade e que nos inquéritos anteriores estavam ameaçados de exclusão
(ou vítimas desta): entrada precoce no trabalho (com 14 anos) para ajudar
financeiramente a fami1ia, trabalho vivido em função do salário, ausência de
qualquer projecto profissional a curto ou longo prazo, privação de qualquer
formação profissional, preocupação de sobrevivência no emprego, sem ligação
nem à empresa, nem aos sindicatos, prioridade absoluta à categoria do TER e
aos bens materiais… Sem evocar o termo identidade, N. Abboud colocava em
evidência uma forte coerência das atitudes, das representações e das condutas
que o autor recusava ser uma consequência mecânica das “características da
situação objectiva” ou das “concepções genéricas e abstractas em termos de
nível etário”. Na sua opinião, estamos perante “uma óptica global do trabalho, da
vida profissional e da vida social no interior de um mesmo horizonte
profissional”.

Num inquérito do mesmo tipo realizado junto de futuros técnicos, no fim dos
anos 60, M. Haicault qualificava de “conformados adaptados” os jovens (mais
ou menos 20%) que não tinham nenhuma aspiração para subir para além do
nível para que estavam preparados e que mostravam estar “totalmente
dependentes do sistema de organização e de hierarquia promocional da empresa”
(Haicault, 1969, pp. 95 e seguintes).

Encontramos nestas abordagens todas as características essenciais do conceito de


identidade social definida no capítulo 5, isto é, uma identidade que remete,
simultaneamente, para uma trajectória típica de emprego marcada pela
estabilidade e para uma forma de relação social marcada pela dependência.
Vinte e cinco anos mais tarde, é esta configuração identitária que se encontra, em
situação de ameaça de exclusão, na sociedade francesa.
Será que acontece o mesmo, uma geração mais tarde, aos jovens que saem do
sistema escolar sem diploma? Será que partilham ainda esta mesma identidade?
Na investigação :,

colectiva realizada sobre os jovens da região Nord-Pas-de-Calais que não têm


diploma e cuja idade se situa entre os 16 e os 18 anos (C. Dubar et alii, 1987),
constatou-se que apenas uma categoria de jovens — das quatro que também
foram distinguidas — partilhava esta identidade centrada na concepção
instrumental do trabalho e na valorização de uma aprendizagem prática que
implicava uma dúvida radical sobre a utilidade da formação escolar e uma
dependência passiva nas relações de trabalho (id., pp. 146-152). Estes jovens
eram rapazes e raparigas originários de famílias operárias entre as quais
praticamente nenhum dos membros tinha qualificação; tinham deixado a escola
aos 16 anos — o “college” ou o “lycée” profissional — sem qualquer diploma e
sem pena de não o terem adquirido, com uma forte interiorização do insucesso
escolar e uma profunda desvalorização de si próprios. Qualquer ideia de exame
ou de selecção tornara-se insuportável. O seu espaço de reconhecimento estava
limitado ao posto de trabalho, descrito apenas a partir dos efeitos físicos
(barulho, cadência, dureza…) e o seu tempo biográfico estava limitado apenas
ao horizonte de acesso problemático a um emprego precário que eles
consideravam como um meio de ganhar a vida. Três anos após o seu abandono
da escola, encontravam-se praticamente todos ainda no desemprego, depois de se
terem submetido a um ou vários estágios de inserção e alguns terem conhecido
empregos de duração limitada. A exclusão era, para eles, a primeira experiência
profissional, com tendência a ser incorporada à sua identidade sob a forma de
uma precarização durável da sua vida profissional.

A dinâmica identitária característica desta fracção dos assalariados é clara: o


risco de exclusão do emprego está a partir daí no cerne de uma configuração
anteriormente organizada em torno de três dimensões: estabilidade do emprego
— trabalho instrumental — dependência hierárquica. A atribuição de uma
identidade de OS — inclusive de operário —, associada ao modelo taylorista, foi
substituída por uma identidade virtual de incompetente, inapta para se adaptar às
evoluções em curso. Paralelamente, o acto de pertença a um estatuto de
executante estável, manual mas experimentado, dominando saberes práticos e
recusando a forma escolar, é desestabilizado pela hipervalorização da mudança,
pela prioridade concedida aos saberes teóricos e pelo apelo à formação geral. Por
este facto, a identidade social real, oriunda da trajectória ou da geração anterior,
já não é atractiva e nenhuma outra identidade parece acessível. É através desta
fractura que se insinua a ameaça de exclusão para aqueles que estão no emprego
ou que se instala precocemente o sentimento de exclusão nos que saem do
sistema escolar ou que estão no desemprego. O que se passa quando este
sentimento invade toda a identidade? Será viável uma identidade de excluído
definitivo? :,

10

Do operário de ofício ao “novo profissional”:


a identidade bloqueada

10.1. A identidade para outro: o modelo do operador polivalente e gestionário

“Um operário que se torna gestor do seu posto de trabalho e já não um


executante, que saiba regular a máquina, calcular uma percentagem do stock
compreender a importância da gestão dos stocks e dos movimentos, trabalhar
com precisões muito finas e ligações complexas, capaz de tomar em
consideração a organização da produção, de controlar o produto…”

É deste modo que o mesmo director técnico da empresa de mobiliário e


decorações define o operário ideal, pós-taylorista, que se opõe em todos os
aspectos à imagem do OS precedente (Zarifian, 1988, p. 79). Em todas as
empresas analisadas, no decurso da investigação sobre as inovações de
formação, difunde-se um “modelo da competência” que integra, sensivelmente,
as mesmas componentes (LASTREE, 1989, p. 445):

— o quadro de definição e de estruturação desta competência já não é o “ofício”


(no sentido velho de corporação e de especialidade) mas a empresa e a sua
actividade de base (por vezes chamada “ofício” da empresa num sentido novo);

— o objectivo desta competência é o domínio de um posto concebido muitas


vezes em termos de função que implica diversas formas de polivalência que vão
da capacidade :,

de estar em vários postos até ao alargamento das tarefas associadas a uma


mesma função (exemplo típico: vigilância activa + manutenção elementar +
autocontrolo + domínio informático associado);

— uma exigência cada vez mais incluída nesta competência é a compreensão do


conjunto dos procedimentos, isto é, um domínio intelectual mínimo dos
processos utilizados e dos seus encadeamentos. Já não se trata somente de seguir
procedimentos, mas de compreender para que servem para poder fazer face aos
imprevistos (avarias, incidentes…) e melhorar constantemente estes
procedimentos;

— uma dimensão essencial desta competência diz respeito à capacidade


gestionária dos assalariados definida desta forma: “preocupação com os custos
da exploração”, melhoria da qualidade, gestão dos stocks e dos movimentos,
respeito pelos prazos…

Este modelo ideal gera representações do operário do futuro que já não é, aliás,
na maior parte dos casos, designado como um operário: operador, colaborador,
polivalente, por vezes até técnico. Estas representações confrontadas com os
assalariados que existem actualmente servem para construir identidades virtuais
que constituem atribuições antecipadas e mais ou menos colectivas. É cada vez
mais ao confrontar-se com estas identidades virtuais que estes assalariados
devem confirmar ou não as suas identidades reais.

10.2. A identidade “biográfica” para si:

Diplomas técnicos e carreiras de ofício

A maioria dos assalariados envolvidos nesta oferta identitária são diplomados do


ensino técnico (CAP, BEP, BAC Técnicos, BTS-DUT…) que ocupam, em geral,
empregos de execução, por vezes muito repetitivos (operários de montagem,
operários de produção, operadoras de linhas de montagem, vigilantes ou
condutores de processos automatizados…) e, por vezes, mais autónomos
(reguladores, operários de manutenção, empregados de escritório…). O que eles
têm de comum é o facto de se definirem a partir de um

ofício ligado à sua formação inicial e projectarem-se numa via ligada a essa
especialidade, que implica uma progressão regular que combina, de forma
diversificada, a antiguidade e o aperfeiçoamento técnico nesta especialidade
(57). Para a maioria, o emprego actual não corresponde à especialidade
aprendida e é vivido como uma desclassificação temporária na espera do acesso
a um posto realmente “qualificado”: vivem dolorosamente a situação de trabalho
considerada como rotineira, monótona, simplista, desqualificada. :,

(57) este aspecto estruturante do “ofício de base”, ligado à importância da


experiência e do aperfeiçoamento, conduz os investigadores do GLYSI a chamá-
los — como em alguns sectores industriais — de “profissionais” (Bernoux et
alii, 1984).

Para outros, o posto actual é o ponto de chegada de um percurso profissional


ligado à sua especialidade, mas a sua definição mudou e já não se sentem à
vontade. Assim, todos se dizem bloqueados na situação profissional e
preocupados com o futuro: as perspectivas anteriores são questionadas pelas
novas formas de organização do trabalho e de gestão do emprego e não vêem
nenhuma perspectiva de futuro nas formas de polivalência que lhes são
propostas. Os que estão envolvidos nestas formas de polivalência declaram-se
tão bloqueados como os outros e são, também, incapazes de saber “o que lhes
vai acontecer” (LASTREE, 1989, pp. 389-390).

A sua relação com a formação esclarece este sentimento de bloqueamento muito


incorporado na identidade. Dizem-se todos favoráveis “à” formação e a maior
parte seguiu formações contínuas depois da sua entrada no trabalho. Mas quais
são estas formações? São quase exclusivamente cursos de aperfeiçoamento
técnico organizados no interior da empresa e sobre a sua especialidade. A sua
referência principal é o sistema de ensino técnico tal como o frequentaram na
sua formação inicial e a sua concepção de base liga estreitamente a formação à
promoção. Por isso, não reconhecem a utilidade das “formações inovadoras” que
lhes são propostas pela empresa e que privilegiam, de várias formas, a formação
geral. Pelas mesmas razões, resistem à ideia de cursos fora do tempo de trabalho
tanto mais se não estão associados, segundo eles, a nenhuma perspectiva de
futuro. Encontram-se, assim, face a um duplo bloqueamento: o que é
representado por uma formação geral não explicitamente ligada a saberes
técnicos especializados que consideram como os únicos instrumentos para o seu
“ofício”; o que é simbolizado pelo apelo ao voluntariado e ao investimento
pessoal em formações de empresa não ligadas a vias de progressão de emprego.
Esta é a razão por que estabelecem uma relação muito ambivalente com as novas
políticas de empresa: parecem-lhes em ruptura completa com o sistema de
valores e de crenças que tinha presidido à construção — muitas vezes frágil —
da sua identidade para si, na base da formação inicial. As regras do jogo
mudaram mas não podem abandonar aquelas com as quais se tinham
identificado, tanto mais que as novas regras lhes parecem opacas, arriscadas, e
mesmo ameaçadoras (LASTREE, 1989, S. Engrand, pp. 209-308).

Esta ameaça parece-lhes real quando entram em concorrência com jovens


contratados que possuem habilitações mais elevadas e que não têm a mesma
identidade de ofício. A sua preocupação essencial é, então, conformar-se com a
sua posição e o seu emprego e evitar qualquer estigmatização por parte dos
responsáveis. Adoptam então uma atitude de participação dependente e
vigilante: fazem formação sem acreditar muito nela e multiplicam os sinais de
boa vontade. Estão, de certa maneira, desdobrados: embora continuem a
acreditar numa progressão na sua especialidade e a defender, no seu intimo, uma
identidade de ofício, eles fingem-se actores da nova competência sem ilusões e
sem saber o que poderão ganhar no futuro com isso (LASTREE, M. Feutrie, pp.
331-337). :,

10.3. A identidade “relacional” para si:


reconhecimento suspenso e conflito latente

A maior parte dos assalariados que se definem como bloqueados evocam


relações difíceis com a hierarquia. Já não se sentem reconhecidos no trabalho e
queixam se de serem reduzidos a simples papéis de executante. A frustração é
ainda mais forte visto que este reconhecimento existira no passado e permitira-
lhes salvaguardar e até consolidar esta identidade de ofício mesmo quando ela
não se traduzia por um compromisso efectivo numa opção deste tipo. No
vocabulário tradicional das “relações humanas”, estes assalariados aliam a
consciência de uma forte contribuição à verificação de uma fraca retribuição
financeira e sobretudo simbólica (Benoìt-Guilbot, 1965).

Este questionamento do reconhecimento coincide com as mudanças de política


de gestão da empresa e, sobretudo, com a difusão das novas normas de
comportamento no trabalho. A incitação ao autocontrolo, por exemplo, é vivida
como uma suspeição já que sempre consideraram o trabalho bem feito como um
valor essencial. Da mesma forma, os discursos e as práticas que dizem respeito à
qualidade parecem ser evidentes ou desempenharem uma função encantatória: o
facto de se poder desconfiar de eles não terem tido em conta a qualidade parece-
lhes constituir um atentado à sua identidade. Desenvolvem quanto à
“polivalência” propósitos ambivalentes: distinguem nitidamente os incitamentos
ao alargamento das tarefas em torno de uma especialidade de base, a qual
aprovam, das reorganizações visando fazer aprender — superficialmente —
várias especialidades e a organizar a rotação por postos diferentes que pode
conduzir a uma espécie de dissolução da qualificação, ou seja, a uma dissolução
desta identidade de ofício que eles procuram preservar a todo o custo.

Estas reacções são fontes de conflitos potenciais com a “nova hierarquia” que
privilegia a mobilização colectiva de equipas polivalentes e gestionárias sobre a
coordenação burocrática das intervenções ou das operações de “especialistas”.
Vê-se bem a raiz identitária do conflito potencial: trata-se de renunciar a uma
identidade singular de “especialista” para se tornar membro substituível de uma
equipa mobilizada pela empresa, isto é, para se tornar, num primeiro momento
pelo menos, um assalariado sem identidade singular, um “homem sem
qualidade”, definido apenas pela sua disponibilidade e pelo seu “espirito de
equipa”. Entrar neste jogo, sem uma forma clara de acesso a uma nova
identidade mais valorizadora, é arriscar deixar o certo pelo incerto e encontrar-se
totalmente dependente das apreciações da hierarquia. Basta que as relações com
a hierarquia sejam vividas de uma forma conflituosa para que o processo leve a
um bloqueamento. O risco torna-se então demasiado grande e a defesa da
identidade de ofício constitui, então; a resposta menos ansiogénica face à
situação construída. :,

10.4. Uma articulação problemática das duas transacções

O bloqueamento pode ser interpretado de forma esclarecedora pela relação


problemática que se instaurou entre as duas transacções constitutivas da
identidade. A transacção subjectiva permanece positivamente virada para uma
esperança de progressão futura: o assalariado em causa contínua persuadido que
é capaz de ocupar um posto mais qualificado, de reencontrar e de reactualizar os
saberes técnicos adquiridos na sua formação inicial e contínua, de progredir no
interior da sua empresa se futuramente aparecerem oportunidades. O que ele não
pode aceitar é partir do zero, ser obrigado a reconverter esta postura de base que
constitui, simultaneamente, uma relação com os saberes e um conjunto de
saberes incorporados.

A transacção objectiva está completamente dependente das políticas de gestão da


empresa que, apesar de se apoiarem apenas em poucas informações realmente
utilizáveis e esclarecedoras, não se podem abstrair das actuais tendências
(Sainsaulieu, 1987, pp. 325 e seguintes). Ora, não é socialmente imaginável que
essas políticas conduzam, mesmo a longo prazo, a um processo de exclusão de
todos os assalariados que partilham, sob formas diversas, esta identidade. É
necessário, portanto, combinar as políticas de gestão com esta identidade, ou
seja, construir formas de transacção que tenham em conta estas lógicas
subjectivas ao mesmo tempo que as fazem evoluir para uma maior eficácia
produtiva. Não encontramos em nenhuma das empresas inquiridas nenhuma
solução para esta articulação eficaz. No decurso do último período e em relação
com a educação nacional multiplicaram-se experiências que consistiam em
reconverter massivamente assalariados de uma especialidade tradicional e
direccionada para uma “competência” larga definida a partir das exigências de
novos sistemas automatizados e de novas políticas de gestão (Doray, 1988; MRT,
1989). A transacção objectiva entre os assalariados e a empresa parece permitir
salvaguardar o núcleo duro das identidades de ofício resultante das transacções
subjectivas reactualizadas pelas formações que foram instituídas. É no respeito
pelo “modelo de formação” do ensino técnico francês e na sua adaptação às
trajectórias identitárias dos assalariados visados que estas experiências parecem
ter conseguido reconstruir identidades profissionais passíveis de articular
eficazmente as duas transacções. Qual é a natureza exacta destas identidades?
Não existem trabalhos que nos permitam apreciar os desbloqueamentos
possibilitados por estas formações que associam mais ou menos estreitamente a
empresa, a educação nacional e os próprios assalariados. A hipótese de que o
bloqueamento caracteriza hoje toda uma configuração identitária não é, apesar
disso, posta em causa.

10.5. Uma (nova) identidade de ofício?

A construção de uma identidade de ofício pressupõe uma forma de transacção


subjectiva que permite a autoconfirmação regular da sua evolução, concebida
como o domínio :, progressivo de uma especialidade sempre mais ou menos
vivida como uma arte. Mas pressupõe também confirmações objectivas por uma
comunidade profissional dotada dos seus próprios instrumentos de legitimidade.
A persistência através de toda a história industrial do “fenómeno corporativista”
(Segrestin, 1985) testemunha até que ponto a identidade de ofício, constitutiva
das “comunidades pertinentes de acção colectiva” — nomeadamente sindical —,
se revelou capaz de resistir e de se reproduzir através de todas as formas de
racionalização do trabalho e das empresas. É, sem dúvida, porque esta identidade
de ofício representa historicamente uma das formas de articulação mais sólidas
entre a identidade para si — através do esquema da aprendizagem que implica a
progressão aprendiz-companheiro-mestre (Ariès, 1973) e a transmissão de uma
cultura de ofício através das gerações (58) — e a identidade para outro —
através do modelo das relações profissionais baseadas na regulação conjunta das
organizações patronais e sindicais (Reynaud, 1989) —, que ela exprime uma
imbricação estável da transacção subjectiva que permite um desenvolvimento
autoconfirmado da identidade e da transacção objectiva que fornece
confirmações reguladas deste desenvolvimento autónomo.

(58) Cf., a propósito deste ponto, as análises de B. Zarca que põem esta
transmissão no cerne da identidade de grupo e que a interpretam como “trama
simbólica do processo de identificação” (1988, p. 267). Cf. também as análises
estimulantes de Delbos e Jorion (1984).

A última tentativa de desmantelamento das identidades de

ofício coincide com a emergência de uma nova configuração produtiva num


contexto económico exacerbado pela concorrência. As novas estratégias dos
grandes construtores que utilizam tecnologias microelectrónicas e ópticas cada
vez mais sofisticadas abalam as actividades de manutenção nas quais se
encontrava a maior parte dos operários de ofício; paralelamente, a
interpenetração crescente da procura e da produção desloca para montante do
fabrico as actividades de concepção que necessitam o domínio de saberes
teóricos sobre os progressos produtivos; por fim, a perturbação dos mercados
reintroduz as actividades comerciais e de serviço no seio das novas dinâmicas
económicas. Todos estes processos levam a um risco de marginalização das
actividades estruturadas na base dos ofícios. Dever-se-á por isso concluir que a
“identidade de ofício” como forma de estruturação das actividades e como modo
de socialização dos indivíduos está em decadência?

A hipótese mais provável que sobressai dos trabalhos mais recentes é que “longe
de eliminar os saberes de ofício, longe de apagar as fronteiras entre os
procedimentos de fabrico, a automatização faz apelo a um conhecimento ainda
mais aprofundado e analítico das reacções da matéria-prima” (Zarifian et alii,
1988, p. 43). A investigação aprofundada levada a cabo por Jeantet e Tiger, junto
de operários (e da sua família) confrontados com as diferentes fases de
automatização de uma oficina de acabamentos mecânicos de uma grande
empresa de material eléctrico, confirma este resultado completando-o. Mesmo
que os operadores “encontrem nos novos equipamentos uma nova forma de
autonomia operatória” e que “o lugar do problema resida mesmo na relação do
instrumento com a :, matéria”, todos estão de acordo em reconhecer que “não é o
mesmo ofício” e que se tornou “um trabalho mental” cuja aprendizagem
consiste, antes de mais, em “fazer compreender uma lógica” (leantet, Tiger,
1985, pp. 11-13). A análise realizada por Y. Lucas junto dos antigos profissionais
e técnicos da aeronáutica leva igualmente a colocar o domínio de novos saberes
profissionais no centro das novas-carreiras técnicas (Lucas, 1989). A pesquisa
levada a cabo por M.-C. Vermelle numa unidade de fabrico de componentes
realça também a importância da estratégia do acesso aos “saberes de
procedimento” tanto para a performance económica do serviço como para a
construção de identidades profissionais reconhecidas (Vermelle, 1989).

Estes novos saberes profissionais, bases potenciais da reconstituição de carreiras


e de identidades “de ofício”, aparecem, através destas investigações, diferentes
dos antigos saber-fazer e saberes de especialidade, apesar de reproduzirem uma
estrutura similar. São, em primeiro lugar, muito mais intelectualizados e apelam
para a apropriação de saberes teóricos sobre os procedimentos e não apenas à
apropriação de saberes empíricos sobre as operações elementares (Vermelle,
Zarifian, Lucas, idem). Em seguida, eles deslocam a qualificação do “gesto
operatório” para a “conceptualização executória” (Zarifian, id., p. 45) que
implica uma “distanciação do procedimento”, uma “representação mental do
processo”, uma “imagem mental do sistema técnico”. Por fim, eles são saberes
finalizados já não por uma intervenção manual especializada, mas através de
uma actividade de diagnóstico que se exerce, cada vez mais, a montante do
fabrico: prevenção das avarias, dos acasos, dos defeitos, mas, sobretudo,
participação na “definição dos sinópticos de instalação” e na “definição
ergonómica dos postos de comando” (Zarifian, id., p. 47).

Trata-se, todavia, de saberes profissionais de ordem operatória e não de saberes


científicos de natureza puramente cognitiva. Como os antigos saberes de ofício,
pressupõem que se ponha em relação conhecimentos técnicos de natureza teórica
com saberes práticos provenientes da experiência. Mesmo que a relação
teoria/prática pareça inverter-se em favor da teoria, a articulação é fundamental e
implica, simultaneamente, experiência acumulada e formação formalizada e
progressiva, relacionada com esta experiência.

É por isso que a emergência de novas identidades de ofício baseadas na cultura


técnica e traduzidas nas vias de progressão profissional constitui a hipótese mais
provável no que diz respeito às dinâmicas identitárias em curso nas grandes
empresas. Então como explicar a persistência dos bloqueamentos identificados
anteriormente?

10.6. A crise do espaço social de reconhecimento

Todas as análises históricas (Sewell, 1980) ou sociológicas (Segrestin, 1985) que


permitem compreender melhor (através das transformações tecnológicas,
económicas ou políticas) a reprodução das identidades de ofício insistem no
papel extremamente importante que desempenha o reconhecimento, pelos
poderes públicos (o Estado) e pelas :, populações (os clientes), do grupo
profissional portador da identidade colectiva e considerado como um verdadeiro
actor. Na realidade, para que uma identidade de ofício exista e se reproduza, é
preciso que um grupo profissional exista na sociedade “não como um simples
testemunho de outros tempos, mas como um actor inserido num sistema de
acção concreta que se vai construindo constantemente” (G. Latreille, 1980, p.
323). O sindicalismo desempenhou durante muito tempo este papel de actor
colectivo, pelo menos em certos sectores e ramos profissionais particularmente
estratégicos. No futuro, ele pode ainda ter um papel no reconhecimento destas
identidades virtuais. Mas, para que este reconhecimento seja produtor de
identidades, é preciso que exista um espaço social no seio do qual os grupos
profissionais adquiram legitimidade não somente face aos empregadores mas
também face ao Estado e aos consumidores. É esta a razão por que a empresa
não pode constituir um espaço pertinente de estruturação e de reconhecimento de
identidades deste tipo. A legitimidade dos poderes profissionais exige uma forma
de reconhecimento estatal que a formação contínua só assegura parcialmente. O
reconhecimento da utilidade social destes “novos ofícios” exige também formas
de visibilidade junto dos utentes. Ora, estas condições estão longe de serem
satisfeitas actualmente. É por isso que os indivíduos envolvidos neste processo
identitário não podem geralmente encontrar as garantias necessárias para o seu
hipotético reconhecimento social. O fechamento na empresa e a polarização
sobre a hierarquia directa bloqueiam a construção de espaços sociais de
reconhecimento. O enfraquecimento dos sindicatos limita a expressão colectiva
das reivindicações identitárias. A referência ao ofício permanece assim, muitas
vezes, puramente defensiva, ampliando os potenciais conflitos com os actores da
modernização da empresa.

10.7. A crise das “ideologias defensivas de ofício”

As identidades virtuais de “novos ofícios” centrados no domínio dos saberes de


procedimento e no reconhecimento de capacidades de expertise diferem das
antigas identidades de ofício numa característica essencial: elas já não serão
apenas o apanágio dos homens e já não poderão implicar o que C. Dejours
chama a “normopal ia viril” que, na sua opinião, é consubstancial das ideologias
defensivas de ofício (Dejours, 1988, p. 107). Na realidade, estas aparecem
historicamente ligadas “à construção social das relações de exploração entre
sexos no trabalho”, e, em simultâneo, à “defesa contra o sofrimento no trabalho”.
São inseparáveis da clivagem que valoriza o trabalho masculino (virilidade,
perigo, força, coragem…) e que desvaloriza o trabalho feminino (repetição,
pormenor, acabamentos…), clivagem essa que se baseia numa ideologia
naturalista de identificação (D. Kergoat e H. Hirata, 1988). Assim, a construção
das antigas identidades de ofício (cf. os mineiros, os operários da construção, os
camionistas…) implicava, no mesmo movimento, a construção social da
virilidade e, segundo C. Dejours, “o envolvimento de toda a :, sexualidade por
trás da bandeira da virilidade social” (ia, p.92). É por isso que esta “identidade
viril normopata” é qualificada pelo autor como falsa identidade na medida em
que ela constitui uma espécie de uniforme, de envelope protector “em forma de
palavras de ordem pouco singularizadas de um indivíduo para o outro” (id., p.
112). É o que Laing designa, com um significado semelhante, por “delusão“.
Encontramo-nos, aqui, bastante próximos do “modelo fusional” desenvolvido
por Sainsaulieu a propósito dos OS masculinos que se “integram na massa para
poderem suportar os constrangimentos e os confrontos e se envolvem em
“identificações projectivas e recíprocas entre pares” (1985, p. 334).
Fundamentalmente defensivas, estas identificações tornam difícil, mesmo
impossível, a construção de relações de reconhecimento recíproco,
nomeadamente, com o outro sexo considerado como “naturalmente inferior” na
esfera do ofício e “naturalmente dominado” na esfera doméstica.

Ora, a entrada maciça das mulheres no mercado do trabalho, e o seu acesso


crescente — apesar de ainda marcado pela desigualdade — à formação
profissional inicial e contínua tornam hoje mais difícil a reprodução de tais
identidades masculinas pelo menos pela geração jovem. A construção da
identidade masculina é hoje, aliás, considerada por C. Dejours como
problemática e definida como “a edificação singularizada de uma relação de
ironia e de subversão em relação a estes esquemas de conduta e de pensamento”
(id., p. 115). Sem dúvida, acontece o mesmo com a construção de novas
identidades de ofício que não sejam defensivas, mas ofensivas, nomeadamente,
no próprio terreno da gestão económica e que não sejam marcadas pela
“normopatia viril”, mas pela troca entre os sexos mutuamente reconhecidos
como parceiros de uma actividade qualificada e evolutiva.

São mais visíveis os obstáculos que provocam actualmente o bloqueamento das


identidades estruturadas em torno de um modelo “profissional” no seio das
grandes empresas. Na investigação sobre as centrais nucleares, tínhamos
definido esta configuração identitária com a noção de “negociação” (Dubar,
Engrand, 1986, pp. 44 e seguintes) que é a que utiliza Sainsaulieu para definir a
identidade dos técnicos e dos operários profissionais. Uma dupla reciprocidade
destacava-se nitidamente das entrevistas efectuadas então: por um lado, entre a
contribuição para a empresa e a retribuição que ela lhes trazia; por outro, entre a
vida de trabalho e a vida fora do trabalho. Aparecendo como conformistas e
relativamente passivos em matéria de formação, tinham uma velocidade modal
de progressão na carreira, característica dos antigos operários profissionais. Mas
basta que o crescimento das actividades diminua para que a sua progressão seja
bloqueada.

Na sua investigação sobre os técnicos, g. de bonnafos também designa como


técnicos bloqueados” aqueles que partilham a identidade de ofício; eles
consideram que o sistema de empresa bloqueie a utilização da sua competência
(“diluição na empresa”, “destruição da carreira”…) e que não se encontra aberta
nenhuma via de progressão. Significativamente eles agrupam-se “do lado dos
operários” já que a clivagem com os engenheiros lhes parece enorme.
Consideram-se em situação de perda de poder apesar do :,

papel activo que desempenham no trabalho. Nenhum menciona o sindicato como


actor capaz de desbloquear a situação (G. de Bonnafos, pp. 85 e seguintes).

No caso de despedimento, alguns “miraculados da reconversão” (Lerolle, 1991)


conseguem “prosseguir noutro sítio uma carreira bloqueada na empresa de
partida”, mas outros não o conseguem e são considerados, pelos agentes da
ANPE, como “casos difíceis” que entram numa “lógica de adiamento”
(Demazière, 1992).

A identidade bloqueada é então inseparável da crise dos ofícios, da sua


organização, da sua legitimidade e das suas representações que lhes são
associadas em França. O lugar e o estatuto do ensino profissional são, assim,
directamente postos em questão por este fenómeno.

10.8. Configuração identitária e geração: a mutação do ensino profissional

No fim dos anos 50, os jovens trabalhadores profissionais do sexo masculino


formados nos centros de aprendizagem e contratados em pequenas e médias
empresas nos arredores de Paris partilhavam os valores do ofício: revolta contra
os valores de autoridade, reivindicação de igualdade aos operários adultos,
ligação ao trabalho bem feito, ao valor do FAZER (N. Abboud, 1968, pp. 66-67).
Mas, ao fim de alguns anos, uma série de choques tinham abalado a sua visão do
mundo: “Sentem-se bloqueados” (id., pp. 199-200). Alguns “escolhem a revolta,
a consciência de classe, a oposição aos capitalistas, outros submetem-se e
desencorajam-se” (id., pp. 168-170) (59). Viviam todos intensamente o conflito
entre “o sistema de valores, normas e representações construído no decurso da
aprendizagem” e “as estruturas e políticas industriais que dificultam a sua
possibilidade de promoção” (id., p. 178). O seu horizonte era qualificado como
contraditório, o seu sentimento dominante era o de frustração porque “não é
possível tentar mudar uma situação que, no entanto, lhes desagrada”.

(59) No inquérito de M. Haicault sobre os futuros técnicos, os que ela chama de


“aspirantes veleidosos” tinham características comuns às dos jovens operários:
aspiração a uma promoção hierárquica simples no ofício e desencorajamento
face aos bloqueamentos da empresa (Haicault, 1969, pp. l 12 e seguintes).

Nada teria mudado? Será que a identidade de ofício reproduz, de uma geração
para a outra, a mesma crise baseada na mesma contradição entre os valores da
aprendizagem e os constrangimentos da organização económica? De um ponto
de vista puramente empírico, as observações acumuladas no final dos anos 50
vão no mesmo sentido daquelas que hoje dispomos e que incidem sobre os
jovens que saem, com ou sem diploma, do ensino técnico curto, e que estão ou
não empregados (Baudelot, 1988). Apenas com uma diferença: a maioria
daqueles que saem do lycée profissional começam pela experiência do
desemprego, por estágios de inserção ou de qualificação ou por empregos
precários. :, Aqueles que são fortemente marcados pelo modelo escolar
procuram, prioritariamente, “a certificação” (Dubar et alii, 1987, pp. 152-157):
sabem que o CAP já não é suficiente para conseguirem um emprego estável, mas
que é necessário para enfrentar o mercado “secundário” do trabalho. Da mesma
forma que os seus antepassados valorizam o FAZER mas pressentem de forma
confusa que já não se pode fazer (bem) sem saber (teórico). Ora, estando
bloqueados no acesso a formações mais longas e mais gerais, sonham voltar à
escola.

Para aqueles que não saíram da escola e que foram orientados para o ensino
profissional encontra-se, doravante, potencialmente aberta a perspectiva de obter
um baccalauréat (BAC). Pela primeira vez na sua história, desde 1987, o
sistema escolar francês produz baccalauréats profissionais que não foram
escolarizados liceus do ensino geral ou do ensino técnico e que tiveram estágios
em empresas. Qual é a identidade destes jovens neoprofissionais que as
empresas dizem procurar, agora, para alimentar as suas novas carreiras que nós
insistimos em designar “de ofício”? Será que vão reproduzir o percurso
identitário dos mais velhos (pais? mães?) saídos dos centros de aprendizagem
nos anos 50/60 ou saídos dos CET, em seguida dos LEP com um CAP ou BEP
nos anos 70/80? Em caso afirmativo, é preciso decidir-se a considerar a
identidade de ofício como definitivamente bloqueada na sociedade francesa. Em
caso negativo, será preciso analisar, com muito cuidado, os mecanismos desta
produção conjunta (escola/empresa) de uma identidade que é estratégica para o
sucesso económico da maioria das empresas comuns e para as relações
profissionais de uma sociedade moderna. Será que um modelo francês da
qualificação operária é possível?

11
Do modelo “carreirista” ao processo de mobilização:

a identidade de responsável em promoção interna

11.1. A identidade para outro: o modelo de evolução pela e na empresa

“Estamos de acordo em promover as pessoas com a condição de elas terem uma


visão mais responsável do seu posto e com a condição de aceitarem formar-se.
Tendo-se concluído a formação geral, entra-se num processo de progressão: está-
se mais propenso para a mobilidade, muito mais capaz de aceitar mudar de
especialidade, de ofício, até mesmo de deslocar-se. Está-se num processo que se
auto-alimenta e que prepara o futuro… Tenho a certeza que há necessariamente
um ofício do futuro para os generalistas que sejam capazes de se formar para
funções de ponta, mas também de evoluir para outras funções e, portanto,
capazes de fazer evoluir a empresa e de assumir responsabilidades de
formadores para os outros.”

Esta citação de um responsável dos recursos humanos de uma empresa de


mecânica (LASTREE, 1989, Dubar, Gadrey, pp. 129 e seguintes) que
desenvolveu uma importante inovação na formação (abertura de uma formação
geral modular pela empresa, fora do tempo de trabalho, para todo o pessoal)
traça um perfil de assalariado diferente do precedente e aparentemente inverso
do primeiro (cf. capítulo 9). A sua palavra de ordem é a evolução, como
contrário de estabilidade. O seu espaço de desenvolvimento já não é o ofício,
mas a empresa que o assalariado “responsável” contribui para fazer evoluir, ao :,
mesmo tempo que ela permite a sua evolução profissional. A identidade aqui
visada (identidade para outro) é, antes de mais, construída pela e na própria
empresa na base de uma reciprocidade dinâmica: em troca de um envolvimento
pessoal do assalariado no seu trabalho e no sucesso da empresa, esta assegura-
lhe, simultaneamente, a segurança “subjectiva” do emprego e a progressão
provável da sua carreira. A condição de validação e de sucesso desta troca reside
no envolvimento sem reservas do assalariado na formação realizada pela
empresa: ao fornecer a prova viva que esta formação constitui com certeza um
factor de evolução conjunta da empresa e do assalariado, aquele poderá, por sua
vez, tornar-se responsável e formador, alimentando, assim, a dinâmica do
sistema.

A identidade social virtual destes assalariados em evolução é, portanto, uma


identidade de empresa: identificados a ela, ao sucesso e ao seu nome, não podem
a priori definir-se nem pelo trabalho actual, nem pela formação inicial, nem pela
trajectória anterior, mas somente pelo e no projecto de empresa, que inclui
totalmente a realização potencial desta identidade. É através da predição criativa
que liga o sucesso da empresa ao próprio sucesso profissional e social que estes
assalariados terão de “construir a sua identidade evoluindo”. A integração
protectora da instituição-empresa que legitima as identidades que ela própria
produz constitui uma resposta à incerteza desta démarche.

Ao contrário do modelo tradicional do “quadro promovido” impregnado do


“espírito-da-casa”, a progressão interna já não é concebida como uma
recompensa para “serviços bons e leais” reservada para alguns eleitos,
escolhidos com muito cuidado, mas proposta como um acompanhamento
voluntário do sucesso colectivo da empresa. Trata-se, de certa maneira, de uma
identidade oferecida que deve provar a sua virtude mobilizadora à medida que se
desenvolvem as procuras. Obviamente que a competição não está excluída deste
modelo, representando a formação o lugar privilegiado onde ele se deve exercer.

11.2. A identidade “biográfica” para si: evolução profissional e formação


contínua interna e “integrada”

O conjunto dos assalariados que possuem esta identidade nas seis empresas da
amostragem (LASTREE, 1989, pp. 388-389) têm em comum o facto de terem
conhecido, no passado, mobilidades diversas no interior da empresa ou, por
vezes, antes de ter dado entrada nesta. Menos frequentemente de origem operária
que os precedentes, mais frequentemente diplomados (aos níveis V, IV ou m),
eles insistem, antes de mais, no percurso interno na empresa e nos
conhecimentos que têm quanto ao seu funcionamento técnico e social (60). Um
dos termos-chave do discurso deles a propósito da trajectória — :, interessar-se”
— resume bem

(60)A ligação sistemática estabelecida entre o projecto de mobilidade interna e a


acumulação de conhecimentos diversificados fá-los ser designados pelo termo
“promocionais na investigação do GLYSI (Bernoux et alii, 1984).

a importância destes saberes de organização na estruturação da identidade social


real. Querer compreender, saber mais, interrogar, documentar-se constituem as
expressões da sua pertença à empresa concebida, prioritariamente, como um
sistema sociotécnico que é fonte de saberes específicos, diferentes dos saberes
escolares e fortemente valorizados relativamente a estes. Não se trata apenas de
saberes práticos adquiridos no exercício do trabalho, mas sim de verdadeiros
saberes profissionais que necessitam de ser relacionados com conhecimentos
teóricos — adquiridos nos cursos mas também nas conversas e nas práticas de
documentação e de autoformação —, de saberes práticos adquiridos no terreno e
através da experiência destes saberes de organização, específicos da empresa e
que permitem estabelecer uma relação eficaz com os saberes anteriores. Eles
insistem muito, por isso, na utilização intensiva do sistema de formação interna à
empresa e mostram-se capazes de apreender alguns elementos de coerência
interna, tal como faz este assalariado quando enuncia as aprendizagens
necessárias para dominar todo o sistema de produção: aprender o posto através
da formação prática e recíproca; aprender o trabalho através das visitas e das
interrogações dos técnicos; aprender o produto através das formações gerais em
sala que incidem em “conteúdos”, não ligados ao trabalho actual (LASTREE, M
Feutrie, p. 329).

Esta formação, concebida como “unidade complexa de aprendizagens”, contribui


para estruturar uma identidade profissional de empresa e para reforçar um
sentimento de pertença a uma colectividade estruturada à volta do processo de
produção e da sua gestão técnica e social. Na realidade, o acesso a uma
linguagem técnica comum constitui a aquisição essencial destas práticas de
formação que permitem “compreender as pessoas com quem se trabalha” e
partilhar um conjunto de valores com elas. É graças a esta démarche que a maior
parte dos assalariados deste tipo se mostram capazes de exprimir, ou mesmo de
antecipar, no decurso das entrevistas, as mudanças em curso na sua empresa e de
apreender as oportunidades que as acompanham. Alguns já tinham concretizado
estas estratégias por promoções internas, outros tinham aprovado planos
personalizados de formação ligados a planos de carreira, outros, enfim, anteviam
a maneira como se poderiam inscrever no processo em curso.

11.3. A identidade “relacional” para si: reconhecimento recíproco e mobilização


no trabalho

A maior parte dos assalariados que partilham esta identidade insistem nas boas
relações que mantêm com a hierarquia da empresa: “recorrem a mim”. Quer
incida sobre problemas técnicos, relacionados com as avarias, os imprevistos, as
melhorias permanentes ou problemas de gestão relacionados com a animação
dos grupos, as atitudes dos responsáveis a seu respeito são o testemunho do
reconhecimento das suas capacidades e atitudes de cooperação que favorecem a
socialização antecipatória ao universo dos operários :, especializados, dos
técnicos superiores, e até mesmo ao universo dos chefes de atelier ou de serviço.
Por este facto, os assalariados em causa já não se definem como executantes,
mas sim como técnicos, colaboradores, contramestres ou quadros responsáveis.
Pode-se, portanto, falar de uma dimensão gestionária da sua identidade
profissional: eles são os únicos a expressar preocupações económicas na
realização do seu trabalho: preocupação da qualidade, do cliente, da
rendibilidade Mas, sobretudo, valorizam as tarefas de animação, de contacto, de
formação recíproca: tendo sido reconhecidos e promovidos, ou estando
subjectivamente seguros de o ser, eles apresentam-se como os prosélitos das
experiências em curso que suscitam reacções diversificadas. Interiorizaram
muito a lógica da reciprocidade e restituam-na de formas diversas: “o que é bom
para a empresa não é mau para nós, o inverso também” (LASTREE, 1989,
Dubar-Gadrey, p. 238); “Utilizo a política da empresa para evoluir e, ao mesmo
tempo, dou-lhe qualquer coisa em troca” (id., p. 351).

A sua identidade de empresa inscreve-se assim num círculo virtuoso que


combina forte contribuição e forte retribuição (Benoìt-Guilbot, 1965) e articula,
de forma dinâmica, as duas transacções que a constituem: ao estabelecerem uma
relação de colaboração recíproca com a instituição à qual se identificam, eles
contribuem para o reconhecimento dos saberes específicos que fundamentam a
sua esperança de evolução; eles podem, assim, consolidar esta esperança
reestruturando a sua trajectória passada como uma antecipação da sua progressão
futura. A transacção objectiva e a transacção subjectiva fortalecem-se e
confirmam-se uma à outra na construção de uma identidade simultaneamente
reconhecida na empresa e socialmente legitimável.

11.4. A transacção conseguida? Coincidência real ou aparente?

Contrariamente à identidade anterior, esta parece fazer coincidir a identidade


para si com a identidade para outro. Parece já que o sociólogo, em virtude da
construção que faz do objecto e das condições em que realiza a sua investigação,
corre o risco de ser vítima de uma ilusão de óptica. Na realidade, será que o
outro significativo pode, neste caso, ser aquele que é responsável pelo processo
identitário em questão? Tanto nas configurações precedentes onde o parceiro
principal da relação era “o chefe”, como nesta configuração, o parceiro de que
depende o reconhecimento vital da identidade não pode ser um daqueles que a
partilham e, a fortiori, um daqueles que contribuíram para a sua construção. É
suficiente que o sociólogo se tenha identificado como estando plenamente do
lado deste actor, para que os inquiridos tenham acentuado sistematicamente,
mesmo construído, as características conformes ao seu modelo identitário…

Qual é, portanto, o Outro Significativo junto do qual é necessário procurar o acto


de atribuição identitária mais estruturante? Será que ele pode ser encontrado no
interior da empresa quando a própria definição de identidade para si inclui a
pessoa colectiva? Se não, onde poderemos encontrat o Outro Significativo para
que a atribuição possa ter um :,

valor socialmente legítimo? A resposta parece clara: é no seio do sistema escolar


e no reconhecimento dos diplomas que sancionam as formações que se podem
legitimar ou não tais identidades de empresa. Ora, a maior parte das formações
— mesmo com forte componente geral — envolvidas por estas identidades não
são validadas por diplomas nacionais. A maior parte dos assalariados em questão
não têm um BAC mesmo quando seguiram formações gerais “de nível BAC” em
assuntos considerados estratégicos para a actividade da empresa.

É ao comparar esta configuração identitária centrada na empresa com a última


centrada no diploma (cf. capítulo 12) que aparece nitidamente a falha
constitutiva desta identidade aparentemente harmoniosa. Não só o
reconhecimento identitário fora da empresa é muito problemático, mas também
o reconhecimento, na empresa, dos jovens com um diploma mais elevado pode
criar uma situação conflitual. Apenas as empresas que recusaram as contratações
externas, incluindo as contratações aos níveis de responsabilidade dos
promovidos — e não é o caso de nenhuma das seis empresas estudadas —,
podem prevenir-se dos tais questionamentos identitários. Nas outras, o
reconhecimento dos promovidos que não têm um BAC arrisca-se
constantemente a entrar em conflito com a frustração dos jovens contratados
com o BAC (e por maioria de razão com os titulares de um diploma superior).
Estes atribuirão aos “quadros promovidos” uma identidade de “carreirista” e não
uma identidade de “responsável”. Se confrontarmos esta primeira investigação
com outras, verificaremos claramente a ambiguidade, mesmo a ambivalência,
desta identidade responsável/carreirista.

11.5. Uma (nova) identidade de empresa?

No seio do serviço que reagrupa o conjunto de centrais nucleares francesas, a


maioria dos quadros eram, no momento do inquérito, promovidos do cargo de
mestre ou dos agentes de execução. A maior parte destes e nomeadamente
aqueles que conheceram uma rápida evolução na carreira possuíam uma
identidade de “responsáveis mobilizados na e pela empresa” (Dubar, Engrand,
1986, p. 43), apresentando, de uma forma marcada, as características identitárias
analisadas neste capítulo. Para a maior parte deles, esta identificação com a
empresa abrangia a quase totalidade da sua vida fora do trabalho incluindo, para
alguns, a sua identidade genérica (o nome da empresa servia, por vezes, para
identificar o indivíduo junto de outrem, quase com a mesma valia que o nome do
pai possui…). Será que se trata de uma característica específica a algumas
grandes empresas públicas ou privadas ou de uma tendência geral das dinâmicas
identitárias em curso? Será que se assiste a uma espécie de patologia fusional
implicando processos de despersonalização por imersão nos “sistemas de
fantasmas sociais” (Laing, 1961, pp. 43 e seguintes) ou, pelo contrário, assiste-se
a identificações libertadoras através das quais indivíduos acedem a
reconhecimentos efectivos e a margens de autonomia acrescidas? O que se passa
com a :, dimensão relacional destas identidades de empresa? Qual é o
significado e o valor dos reconhecimentos pelo outro, no interior das relações de
poder nestas empresas? Será que, nestes casos, o risco de subestimar o agir
comunicacional ao agir estratégico e o risco de reduzir a identidade social a uma
simples posição estatutária não é grande?

Estas questões colocam-se com tanta mais premência quanto são quase
exclusivamente os homens que levam a identificação à sua empresa até ela
invadir completamente a sua vida fora do trabalho. á la limite, a transacção
objectiva abole-se totalmente na transacção subjectiva quando o futuro da
empresa coincide com o futuro do indivíduo. No fim do processo já não há outro
para reconhecer a sua própria identidade. Como afirma Laing: “Experimenta-se,
assim, um sentimento intenso de frustração se já não se consegue encontrar esse
outro do qual precisamos para estabelecer uma identidade satisfatória” (1961, p.
105).

A identificação total com a empresa, como qualquer identificação com um


colectivo, tem subjacente o risco de uma ilusão introjectiva, isto é, de uma
negação fantasmática da dualidade irredutível do social, de uma imersão no
fantasma da fusão consigo próprio, num esquecimento do facto irredutível que
“são os outros que vos dizem quem sois” (Laing, id., pp. 162 e seguintes). Será
por acaso que este processo envolve muito mais os homens do que as mulheres?
Se reintroduzirmos na análise não só o domínio dos homens sobre as mulheres
na esfera do trabalho e do poder, mas também os processos diferentes de
constituição das identidades de sexo, verificaremos que a resposta é negativa. Na
realidade, não só os quadros se podem investir totalmente na carreira se fizerem
recair sobre a sua esposa o essencial do trabalho de reprodução, mas é também
identificando-se totalmente à sua empresa que eles procuram suportar “o
sentimento de vazio e de futilidade que acompanha as práticas relacionais”
(Laing, id, p. 101). Reduzida a uma estratégia “carreirista”, a identidade
masculina aparece, assim, singularmente ilusória.

11.6. Uma identidade competitiva?

Na investigação sobre as identidades sociais dos técnicos, G. de Bonnafos


reconhece uma identidade de futuro quadro ou futuro engenheiro que possui a
maior parte das características distintivas do “responsável em promoção interna”
(1988, pp. 44 e seguintes, pp. 86 e seguintes). Para dar conta do seu “mundo
vivido do trabalho”, ele acrescenta à noção de responsabilidade a noção de
criação que valoriza as iniciativas, as resoluções de problemas e a capacidade de
contornar obstáculos. Está-se próximo do modelo do “labor” caro a H. Arendt
(1957) que se opõe ao modelo do trabalho mecânico (*animal laborans #k homo
faber*): um dos técnicos compara-se, aliás, a um marceneiro quando contempla
o seu projecto “depois de ter dado o último retoque”. Mas a característica mais
saliente desta identidade técnica, em tensão com o estatuto de engenheiro, é a
concepção agonística da vida profissional (“para evoluir, é preciso lutar por
isso”), o que implica não só a :, competição entre os pares (“é preciso salientar-
se entre os demais”) mas também a luta contra a organização (“fazer, mesmo
quando não é previsto nem autorizado”). Para ter sucesso, é preciso sentir-se
mais competente, mais dinâmico (“eu gosto de trabalhar”) mas também mais
diplomata (“sem relação não se consegue nada”) do que os outros.

A chave da construção desta identidade de “futuro quadro” reside, sem dúvida,


no acesso a estes saberes de organização que o autor chama “saberes sociais” e
que permitem, simultaneamente, resistir à especialização e tornar operatórios os
saberes teóricos adquiridos em formação. É o domínio destes saberes que
garante uma vantagem na com petição para a promoção mesmo se não são
reconhecidos por diplomas.

Este modelo da competição reforça a aparente coincidência entre a identidade


para outro, interna à empresa, e a identidade para si forjada por uma socialização
antecipatória ao universo dos quadros. Efectivamente, a empresa, ao definir-se
ela própria como competitiva, pode atrair e confirmar futuros quadros também
eles competitivos e tendo dado provas de tenacidade. Incita, então, uma pequena
parte dos seus técnicos a entrarem em competição para acederem a funções de
engenheiro mais ou menos reconhecidas, mais tarde. Mas, fazendo isto, provoca
efeitos de divisão interna quando a competitividade da empresa exige
cooperação e solidariedade. Assiste-se, portanto, a uma dissociação entre a
identidade virtual do responsável “animador e fonte de mobilização colectiva” e
a identidade real do futuro responsável “competidor e fazedor de rivalidades
pessoais”. Também aqui, a identidade do quadro promovido aparece muito mais
perturbada do que a nossa apresentação inicial poderia fazer crer: ele já não é um
verdadeiro executante, apesar de ainda estar ligado por relações horizontais aos
seus antigos pares, mas ele também nunca é completamente um quadro legítimo
porque não possui um diploma das “grandes escolas” e é incapaz de estabelecer
relações verticais de autoridade com os seu antigos parceiros.

11.7. Modelo fusional ou de negociação?

Na tipologia de L’identité au travail, o “quadro subalterno autodidacta”


encontra-se ligado, como o OS masculino, ao modelo fusional, enquanto “o
quadro de produção com uma carreira rápida” está ligado, como os OP, ao
modelo da negociação e da “solidariedade democrática” (Sainsaulieu, 1985, pp.
234 e 365).

Nem um nem outro destes modelos corresponde verdadeiramente ao processo


identitário que identificámos nas grandes empresas privadas em modernização
rápida no fim dos anos 80. A identidade de “responsável promovido” parece
situar-se a meio caminho destes dois modelos elaborados a partir de inquéritos
feitos nos anos 60.

Tal como no “modelo fusional”, o “responsável promovido” tem uma forte


identificação à empresa que, como vimos, podia conduzir a uma dissolução da
identidade por negação da dualidade. Estes responsáveis parecem, por outro
lado, escapar à situação clássica do “double bind” (Bateson, 1957), isto é, à
situação da dupla injunção contraditória

entre :, a exigência de “ficar preso à base” de onde são oriundos e a de aplicar as


“instruções do topo” que os promoveu, devido à profunda mudança do papel da
mestria nas empresas analisadas. Simultaneamente técnica e de animação, a nova
mestria já não é, pelo menos teoricamente, uma mestria que dá ordens, nem uma
mestria gestionária de pessoal, mas um recurso técnico e um substituto de
formação junto dos colectivos de trabalho. Por este facto, os responsáveis
promovidos definem-se, nestas empresas, menos como tampões entre a base e as
cúpulas e mais como gestores-animadores de equipas mais autónomas. Mas o
nosso método de inquérito nem sempre nos permitiu confrontar os discursos
recolhidos com observações directas: os resultados foram contrastados nas
situações em que se pôde realizar este confronto (LASTREE, 1989, E. Dubar e
M.-C. Vermelle, pp. 32-89).

Existe uma parte de “modelo de negociação” nos processos de acesso dos


assalariados ao estatuto de responsável reconhecido. É em troca de um
investimento na formação e em troca do domínio de saberes profissionais que a
promoção é finalmente obtida. É em resposta a uma mobilização efectiva para a
empresa que o reconhecimento da identidade de responsável é dado. É
negociando os seus planos de formação e de carreira no interior do plano de
empresa que os assalariados obtêm os meios de realização do seu trajecto. Trata-
se, pois, de uma transacção conseguida — e, portanto, de uma verdadeira
negociação — entre o indivíduo e a empresa e não de uma recompensa por
mérito ou de uma selecção com base em critérios pessoais. Pode-se, aliás,
considerar que uma parte dos promovidos eram “profissionais negociadores”
(por vezes, até antigos militantes sindicais) e que o seu acesso a funções de
técnicos ou de especialistas se inscreve muito mais na continuidade do que na
ruptura com a sua trajectória anterior.

Passa-se o mesmo quando caem numa situação de desemprego: os “criadores de


empresa” reconvertem a sua implicação e o seu “gosto pelo trabalho” num
projecto de promoção social já iniciado (Lerolle, 1991) e os poucos
“desempregados de longa duração” fazem de “voluntários” e inscrevem-se numa
“lógica de activação” (Demazière, 1992).

Será que se assiste, por isso, à emergência de um modelo da reciprocidade


susceptível de estabilizar esta identidade de “responsável mobilizado” conforme
a este modelo

managerial da competência de que esta identidade constitui a pretensa


interiorização?

Tudo depende do lugar institucional que “a empresa” tomará na configuração


social do futuro. Nada está definido a este respeito, apesar de o processo de
“reabilitação ideológica da empresa na sociedade francesa” (PIRTTEM, 1987)
ter já produzido efeitos evidentes. A problemática do que nós designamos a
“produção conjunta da qualificação” (Dubar, 1985) é, com efeito, colocada mas
não resolvida: Este processo está longe de estar generalizado apesar de um
número cada vez mais significativo de empresas se envolver em operações
conjuntas com a educação nacional para validar através de diplomas nacionais as
formações largamente negociadas. Por isso, o reconhecimento destas identidades
de “responsáveis promovidos” é frágil.

11.8. Configuração identitária e geração: a génese estrutural da identidade


promovida

No inquérito que realizou, no fim dos anos 50, junto de jovens operários
parisienses, N. Abboud (1968, pp. 64 e seguintes, pp. 197 e seguintes) distinguia
já, nos jovens profissionais diplomados das grandes empresas modernas, a
presença de um horizonte de mobilidade apoiado na esperança de melhoria do
estatuto social e a ambição de se “tornar chefe”, de SER alguém (por oposição às
categorias do TER e do FAZER).

Servindo-se da noção de “carreirização” (J.-R. Treanton, 1961), a autora


colocava a questão da generalização das carreiras, a questão da mobilidade no
interior destas “grandes empresas modernas” que ela considerava ser uma
condição de realização das aspirações de mobilidade destes jovens.

No seu inquérito sobre os futuros técnicos, no fim dos anos 60, M. Haicault
identificava “aspirantes engenheiros” que colocavam a sua representação
“correcta” do mundo profissional ao serviço “de uma estratégia de promoção
rigorosamente planificada” (Haicault, 1989, p. 128).

Ora, vinte e cinco anos mais tarde, é, sem dúvida, a partir da reactivação do
mercado interno do trabalho que as empresas estudadas extraem as condições
estruturais de realização destas novas formas de promoções e, portanto, de
construção, através da formação, destas novas identidades de “responsáveis
mobilizados”. Mais uma vez, verifica-se que mobilidade e formação internas são
as componentes estruturais de um sistema de emprego organizado em carreiras e
concebido como mercado fechado (Paradeise, 1987). Contrariamente às
configurações identitárias precedentes, neste caso, são as inovações estruturais
que tornam possível a realização de potencialidades biográficas que, na sua
ausência, permaneceriam virtuais. Sem o desenvolvimento de vias de progressão
profissional, a incitação à formação não poderia ter efeitos identitários tangíveis.
É no cerne deste encontro entre práticas pessoais de formações “integradas” e
construções estruturais de vias “internas” de mobilidade que se joga a
articulação entre identidade para si e identidade para outro.

O que acontece aos jovens que entram no mercado do trabalho sem diploma ou
pouco escolarizados? Uma parte deles aprendeu, a partir da sua socialização
familiar, escolar ou pós-escolar e/ou a partir da primeira confrontação com o
mercado externo do trabalho, que a formação inicial não bastava para
actualmente se construir uma identidade profissional. Estes jovens têm
estratégias de emprego e de formação multidireccionais (Dubar et alii, 1987, pp.
157-162) que combinam estágios múltiplos, empregos de espera e formas
pessoais de acesso a saberes profissionais. Utilizam intensamente as redes de
relações, nomeadamente as familiares (C. Mairy, 1983), para aceder a empregos
mesmo que precários e a formações mesmo que pouco qualificantes. Concebem
a vida profissional como uma evolução permanente no decurso da qual jamais
terão finalizado a aprendizagem e na qual terão de forjar uma identidade aberta a
todas as progressões possíveis. Como definir :, esta identidade de espera que não
pode organizar-se em tomo de uma especialização profissional de ponta sob pena
de ser desacreditada antes mesmo de ser experimentada a identidade? Como
construir uma futura identidade de empresa antes de ser admitido por ela? A
questão colocada é, uma vez mais, a da produção conjunta da qualificação
através da activação de formas diversificadas de alternância que garantam a
função identitária, assegurada à sua maneira pelo Duales System alemão. Para lá
da “qualificação” ou da “competência”, é, sem dúvida, a construção das
identidades profissionais e sociais que envolve, simultaneamente, as instituições
escolares e as instituições produtivas, a produção e a reprodução das gerações de
assalariados.

12

Do “modelo afinitário” ao processo de conversão:

a identidade autónoma e incerta

12.1. A identidade para outro: assalariados que trazem problemas

“Temos problemas com alguns dos jovens diplomados. Estão desapontados com
os empregos que ocupam e a empresa não lhes pode oferecer as carreiras que
desejam. Seguem muitos estágios de formação, muitas vezes sem o nosso
conhecimento e alguns acabam por se demitir para procurar emprego noutro
lado. De facto, eles estão aqui à espera…”
Esta constatação de um director dos recursos humanos de uma grande empresa
de telefones sanciona o fracasso relativo, na maior parte das empresas
analisadas, de uma política de recrutamento de jovens “universitários”
sobrediplomados relativamente aos empregos que ocupam e fortemente
desfasados relativamente a eles. Estes jovens trazem problemas às direcções das
empresas por dois motivos: por um lado, nenhuma das vias de progressão
profissional existentes parece ser-lhes adequada e o seu futuro na empresa é
problemático; por outro, eles não partilham as atitudes no trabalho dos
assalariados em promoção interna: mais individualistas, menos mobilizados para
a empresa, são muitas vezes mais críticos e parecem mais instáveis. Não é,
manifestamente, na empresa, que

eles querem construir ou consolidar a sua identidade inconstante. :,

Alguns assalariados mais idosos e mais antigos são também considerados como
“problemas”. A empresa inovadora não sabe muito bem como lidar com eles: ela
não quer abdicar dos seus serviços, reconhece o seu potencial, mas receia as suas
iniciativas individualistas. Eles ou elas construíram, por vezes, situações
consideradas confortáveis como aquelas que são chamadas “tapetes” numa
empresa terciária para designar as secretárias pessoais dos quadros superiores
que recusam inscrever-se em qualquer operação de mobilidade. Têm a sua
própria rede de relações internas ou externas à empresa que escapa à organização
formal como aqueles que são designados “os universitários” na empresa de
telefones. Têm dificuldade em se enquadrar nas normas e nos papéis colectivos,
facto que leva a que sejam chamados “individualistas” pelos responsáveis
desejosos de realizar as condições de uma “mobilização colectiva” (LASTREE,
1989, pp. 390 e seguintes).

Duvida-se, por vezes, que eles tenham lugar na empresa do futuro, que embora
lhes reconheça um potencial pessoal pensa excluí-los. De facto eles são
dificilmente classificáveis sendo este desvio parte integrante da sua identidade
para outro. Rigorosamente eles não fazem nada como os outros, razão pela qual
se lhes atribui identidades de excepção.

12.2. A identidade biográfica para si: a contramobilidade social

A grande maioria dos assalariados que pertencem a este último tipo identitário
são de origem não operária; ocupam, no entanto, em geral, empregos de
execução muito diversificados: operários, empregados, técnicos/as. Os mais
jovens possuem quase todos um BAC, um BTS ou um DUT. Os mais velhos
adquiriram um diploma — ou o que pensam ser equivalente — através de
formações contínuas voluntárias ou, então, estão em vias de adquirir o diploma
(inscrições no CNAM, no ESEU, para acesso à área de direito, para obtenção de
diplomas universitários por unidades capitalizáveis, inscrições em cursos por
correspondência…). Para isso esforçam-se por mobilizar uma parte dos recursos
da empresa: inscrevem-se no plano de formação para os estágios que lhes
interessam, por vezes pedem dispensas individuais de formação, negoceiam dias
livres para frequentar cursos. As únicas formações que lhes interessam são
externas à empresa e conduzem a diplomas reconhecidos: são muitas vezes
muito críticos em relação aos “estágios internos” criticando a sua utilidade e o
seu caracter integrador. Para eles, a formação é um direito individual, um
investimento pessoal que prolonga, duplica ou rectifica a formação escolar.

As formações que realizam ou que realizaram são estruturantes da sua


identidade: definem-se muito mais pelo diploma do que pelo trabalho. Têm
consciência de valerem mais do que o emprego que ocupam e de serem
diferentes da forma como a empresa os define oficialmente. Como em alguns
casos de quadros desejosos de se distinguirem dos seus pares, “todo o seu
discurso é orientado no sentido de negar que a ligação administra :, tive, a
pertença formal a uma categoria possa constituir uma característica pertinente da
identidade social” (Boltanski, 1982, p. 479). De facto, falam muito pouco da sua
situação de trabalho, mas muito mais das formações e dos projectos, até mesmo
da actividade exterior, como, por exemplo, este montador-electricista que, tendo
obtido por correspondência um diploma de electrónica (“na altura custou-me três
milhões”), repara televisões todos os sábados e durante as férias (lastree, 1989,
Dubar-Gadrey, pp. 380-384).

A sua identidade está, portanto, desdobrada: a falsa identidade, a identidade


oficial, é a que os outros associam à sua situação actual de trabalho, ao posto que
ocupam, ao grupo ao qual sentem que não pertencem “realmente”. A verdadeira
identidade — para si — é a que pretendem adquirir através das formações ou dos
fazeres culturais e que eles, muitas vezes, não procuram com tanta obstinação
porque, de qualquer modo, já a tinham encontrado na sua origem social e no seu
meio familiar (de Montlibert, cf. capítulo 2). O seu grupo de referência é muitas
vezes também o seu grupo de origem: é por isso que podem afirmar esta
identidade virtual para melhor se distanciarem das identidades oficiais que lhes
podem ser atribuídas; “é a autenticidade que os define realmente, é o que permite
que eles escapem à padronização” (Boltanski, idem).
É por esta razão que um dos momentos-chave das entrevistas realizadas com eles
é o momento em que, por vezes com meias-palavras e muitas vezes ironicamente
e sempre depois de terem ganho confiança no entrevistador, desvendam o
projecto que acarinham ou que realizam fora da empresa; este “outro lugar”, por
vezes indeterminado, para onde “estão de partida” ou que, por vezes, já está
presente numa esfera escondida, tão íntima como social: “criar uma PME”,
“tornar-se cabeleireira por conta própria”, “ser um dia professora do 1.o ciclo”,
“criar o meu gabinete de estudos”, “tornar-se jurista”, etc. A confidência não é
sistemática, a relação com a origem social ou o ambiente familiar é raramente
explicitada, o grau de envolvimento no projecto é, muitas vezes, fluido, mas toda
a entrevista toma uma coerência nova quando se revela a “lógica afectiva”
(Michelat, 1975, p. 232) que a subentende e lhe dá a sua significação identitária.

Este tipo de revelação que não é sistemática coexiste em geral com a afirmação
de um desejo de evoluir na empresa no caso de esta lhes oferecer oportunidades
interessantes. Mas muitas vezes, e em particular nas mulheres, as perspectivas
de progressão interna excluem explicitamente o acesso a funções de
enquadramento. Elas não querem “tornar-se chefe”, ter funções de autoridade,
ter de “julgar as outras”. Aquilo que desejam é serem “responsáveis por elas
próprias”, de já não estarem “na produção”, já não se sujeitarem à dependência
hierárquica. A aspiração identitária é a autonomia.

12.3. A identidade relacional para si: postura crítica e oportunismo

As relações que mantêm os assalariados atrás referidos com a hierarquia são


ambivalentes: reticentes, até mesmo rebeldes, relativamente a qualquer forma de
comportamento :,

autoritário, dizem-se muitas vezes participativos em qualquer iniciativa que vise


atenuar o carácter rotineiro do trabalho ou a sobrecarga de tarefas burocráticas
da organização. Aprovam o espirito das experiências em curso e participam
geralmente nos grupos organizados para este efeito. Apresentam-se mesmo, por
vezes, como parceiros activos dos seus responsáveis no exercício da função de
animador: valorizam o diálogo, os debates, as iniciativas destinadas a aumentar a
autonomia dos executantes. Mas também são muito críticos em relação à
persistência dos modos de gestão herdados do sistema anterior e que perduram
nas experiências em curso. Eles tornam-se mesmo francamente “vingativos”
quando a hierarquia lhes parece incapaz de desenvolver projectos participativos
ou racionalizadores da empresa. Esta relação pode tomar uma forma conflitual
quando a “competência” dos seus chefes é posta explicitamente em causa.
Nestas circunstâncias eles sentem-se na obrigação de mobilizar redes exteriores
ao serviço e até mesmo apelar para a arbitragem de responsáveis superiores para
deste modo evitar confrontos pessoais ameaçantes. Estes incidentes alimentam o
processo de rotulagem de que eles, por vezes, são objecto, reforçando assim a
sua dilaceração identitária. É assim que alguns forjam, pressionados por outrem,
esta “subcultura desviante” (Becker, 1963) que lhes permite partilhar com uma
rede de semelhantes a mesma postura crítica e os mesmos projectos ou
fantasmas de abandono da empresa.

No entanto, as atitudes relacionais continuam, na maior parte dos casos,


assinaladas pela marca do individualismo: não manifestam, geralmente, qualquer
consciência de pertença a um colectivo interno à empresa. Para realizar os seus
objectivos pessoais, eles tentam tirar partido das oportunidades que se
desenvolvem com as inovações. Inscrevem-se activamente nas iniciativas que
visam desenvolver a mobilidade, mas tentam antes de mais utilizá-las em seu
beneficio: beneficiar de formações que atribuem diplomas, aceder a postos que
lhes deixam mais autonomia para as iniciativas externas, escapar aos
constrangimentos da mobilização colectiva. Deste ponto de vista, eles integram-
se, claramente, na categoria daqueles que recebem uma forte retribuição em
troca de uma fraca retribuição, sendo pelo menos esta a opinião da sua hierarquia
(Benoìt-Guilbot, 1965). Pervertem assim os princípios oficiais que presidem à
implementação das inovações para os converterem em instrumentos de
realização dos seus próprios objectivos (lastree, 1989, pp. 416 e seguintes).

12.4. Uma articulação instrumental das duas transacções

De uma forma exactamente oposta à dos assalariados em promoção interna, os


indivíduos à procura de autonomia tentam pôr a transacção objectiva com a
empresa ao serviço da transacção subjectiva com eles próprios. Ao anteciparem
a sua trajectória futura não em função das oportunidades ou dos
reconhecimentos da parte da sua empresa actual, mas tendo por base prioritária a
sua história passada e as suas formações anteriores, eles :, procuram, nas suas
relações de trabalho e nas transacções com os superiores, os meios para fortificar
e construir projectos que, na sua génese e na sua finalidade, são estranhos às
dinâmicas colectivas da sua empresa.

Jogam, por isso, um jogo perigoso que só tem hipótese de êxito se se apoiar em
redes afinitárias que os protegem das relações hierárquicas oficiais. É graças às
zonas de incerteza, provenientes da complexificação das relações de poder e, por
vezes, do desmembramento das formas de transacção institucional, que eles
podem assim utilizar a parte que lhes cabe nos espaços desocupados no interior
dos jogos institucionais legítimos. Mas eles são também constrangidos a praticar
esta estratégia oculta num universo fortemente estruturado por
“constrangimentos” económicos externos porque os projectos colectivos que
subentendem estes jogos legítimos só raramente têm em conta as aspirações
individuais.

A identidade dividida destes assalariados revela, portanto, a ausência quase geral


de um lugar onde possam articular-se eficazmente os projectos estratégicos da
empresa com os projectos biográficos dos seus assalariados (Sainsaulieu, 1987,
pp. 359-367). Não só a maior parte das empresas não possui qualquer
informação sistemática das trajectórias dos assalariados, mas também muito
poucas se preocupam em recolher os projectos pessoais dos assalariados para
elaborar a gestão previsional dos “recursos humanos”. Podemos, a este respeito,
interrogarmo-nos sobre os efeitos do reducionismo economicista que preside
geralmente às tentativas de elaboração dos planos individuais de carreira (dos
quadros quase exclusivamente) na sua relação mais ou menos estreita com os
projectos da empresa. A redução destes planos a posições sucessivas nas grelhas
salariais deixa completamente de fora a questão das aspirações identitárias e,
portanto, das competências efectivas em que os assalariados estão prontos a
investir na sua vida de trabalho. Todas as mulheres questionadas, no inquérito
sobre as inovações de formação, e cuja identidade releva do modelo aqui
apresentado, insistem, no entanto, na exigência de “desenvolvimento pessoal” e
na sua aspiração a um “trabalho interessante e descontraído”, tendo uma relação
com “as possibilidades de aprender cada vez mais” no trabalho e insistem,
muitas vezes, na transferabilidade destas “valorizações” para a esfera familiar
(“ajudar as crianças a serem bem sucedidas nos estudos”, “abrir os seus
horizontes”, “comunicar com elas”, etc.). Efectivamente, trata-se de algo mais
do que de uma reorganização das condições de trabalho: trata-se de fazer evoluir
o próprio conteúdo das actividades, desenvolvendo, nomeadamente, a autonomia
interna e as relações externas (contactos com os clientes, os fornecedores, os
outros serviços…). É porque estes valores não lhes parecerem estar presentes nas
dinâmicas internas da empresa que elas reactivam aspirações a actividades
profissionais externas. O desdobramento da sua identidade não é, muitas vezes,
mais do que a contrapartida da dualidade da empresa tal como elas a vivem:
discurso oficial/práticas efectivas; organização formal/jogos informais; mudança
proclamada/permanência constatada, etc. A partir do momento em que as formas
da transacção objectiva não são modificadas, bem como as regras informais que
governam esta transacção (prioridade aos mais conformistas em detrimento dos
inovadores, aos homens em detrimento das :,

mulheres, ao conformismo em detrimento da crítica, etc.), a única maneira de


tentar “realizar-se no trabalho” é servir-se dessas regras — fingindo aderir-lhes
— para fazer avançar a única transacção importante, aquela que se estabelece
consigo na realização da identidade para si. Se nenhum “outro” exterior valida,
garante e reconhece esta transacção subjectiva, corre-se o risco evidente de um
solipsismo soberano. Ora, o perigo é grande em constatar que a empresa só
reconhece aqueles que a servem: querer servir-se dela é arriscar nunca ver
reconhecido aquilo que se deseja ser.

12.5. Identidade em formação ou identidade de rede?

O espaço privilegiado de reconhecimento destes assalariados não pode, então,


ser a empresa. Definindo-se, antes de mais, pelo seu diploma ou pela sua
formação actual ou passada, por vezes, também por uma “paixão” exterior ao
trabalho profissional exercido, denunciam o seu desejo de serem, antes de mais,
reconhecidos pelo valor dos seus títulos no espaço das posições escolares que é,
muitas vezes, transferido para a sua formação contínua. No inquérito sobre as
identidades profissionais dos operários da siderurgia, C. Agache nota que os
“jovens com BAC”, maioritariamente de origem não operária, “se definem, antes
de mais, não pelo seu trabalho, mas sim pela sua formação” (1989, pp. 113 e
seguintes). Não se apelidam de operários, mas, por vezes, de técnicos e quase
sempre como possuindo um BAC. Definem-se pelos seus saberes e não pelas
suas actividades. Consideram-se muitas vezes “em formação”. Como assinala
Boltanski, a propósito dos quadros que frequentam com assiduidade cursos e
estágios de qualquer tipo, “a intenção de se instruir, para além da idade
socialmente reconhecida para os estudos e de se manter, o mais tempo possível,
numa situação de aluno ou de estudante — isto é, numa situação de relativa
incerteza no que se refere ao futuro —, tende, sob a pressão dos
constrangimentos objectivos da carreira, a impor-se colectivamente a gerações e
a categorias inteiras de assalariados” (1982, p. 451).

Por este facto, a identidade para si é sempre, parcialmente, virtual: nunca se é o


que se faz, nem sequer aquilo que se é no presente. Finge-se sempre. D. Laing dá
o nome de “elusão” a esta construção de uma “situação instável” que “é produto
de si própria” (op. cit., p. 63). Ele define esta “elusão” como “uma relação em
que, acima de tudo, se finge estar longe do seu eu original para, de seguida,
fingir ter renunciado a esta simulação de forma a encontrar-se aparentemente no
ponto de partida” (id., p. 52).

Neste caso, a divisão do eu resulta de uma dissociação voluntária que implica


uma dupla simulação: a simulação de um “eu interior” vivido como verdadeiro,
autêntico mas indeterminado e não realizado; a simulação de um “eu exterior”
vivido como falso, não autêntico mas bem real e actualizado.

Esta personalidade considerada, por vezes, esquizóide, isto é, “a quem falta o


sentimento habitual de unidade da pessoa”, deve, neste caso, ser interpretada
como uma identidade :,

social continuamente desdobrada porque vivida como perpetuamente “em


transformação”. Cada sequência de formação bem sucedida, cada descoberta
cultural intensa, longe de estabilizar uma identidade profissional precisa,
engendra um desejo de formação complementar que reactiva o desdobramento
anterior, de uma forma que será tanto mais viva quanto ela for acompanhada por
uma actividade de trabalho vivida como constrangimento e regularmente
desvalorizada. O processo identitário auto-alimenta-se da vontade “de nunca ser
aquele que todos julgam que é” que encontra no acto de formação a sua última
confirmação. à pergunta: “Mas afinal quem é você?”, o indivíduo só pode
responder: “Eu estou em formação”.

Uma outra interpretação — complementar e não contraditória — deste


desdobramento consiste em esclarecê-lo através da sua posição sempre
ambivalente, situada na fronteira entre o interior e o exterior da empresa e
através do forte investimento nas redes de afinidade que são sempre internas e
externas. Estas redes permitem-lhes estar atentos às oportunidades de emprego
susceptíveis de os interessar ao mesmo tempo que adquirem os títulos ou as
competências valorizáveis no âmbito do que C. Sabel chama mercados abertos
do trabalho que atribuem, aos assalariados que ai se encontram, uma identidade
“de tipo Groucho Marx” (Sabel, 1991), devido ao seu jogo nas margens do
sistema.

Sempre à procura de si mesmo, o indivíduo assim investido nas suas redes está
também — pela e na formação — à procura de saberes. Estes saberes que
estruturam e desestruturam, ininterruptamente, a identidade não são nem saberes
praticados nascidos da experiência partilhada, nem saberes profissionais
construídos no ofício praticado, nem saberes de organização experimentados nos
jogos de poder, são saberes puros, teóricos e culturais, isto é, despidos de
qualquer interesse imediato que nunca indicarão o que há a fazer, mas somente o
que há a saber. Esta vontade de saber produz-se a si própria, no ciclo renovado
dos seus programas, das suas divisões e das suas progressões indefinidas. Ela
traduz assim, à sua maneira, a procura incessante “daquilo que o saber só pode
ensinar, ou seja, activar a ignorância” (Lacar, 1971, p. 156).

12.6. Uma identidade social individualista?

De todos os inquéritos recentes, baseados nas identidades sociais na empresa,


emerge este tipo de assalariado qualificado muitas vezes de individualista e
descrito como estando deslocado tanto em relação às normas colectivas dos
grupos profissionais como em relação aos jogos de poder que se integram na
organização.

Na investigação levada a cabo junto dos assalariados de centrais nucleares,


designámos os indivíduos que relevam deste tipo como “activos inadaptados”
que multiplicam as iniciativas de participação e de formação sem ter em conta a
lógica muito estruturante do “sistema de formação-carreira” (Dubar, Engrand”
1986, p. 46). Não se salientava no seu discurso qualquer consciência de pertença
a um colectivo interno ou externo à empresa :, nem um empenhamento em
utilizar as regras informais da empresa unicamente para garantir o seu projecto
individual, quase sempre, vago e incerto. O que era identificado como “relação
instrumental à empresa” não podia, então, ser ligado a nenhuma construção
identitária precisa. Não estando ameaçados de exclusão, tendo renunciado a
qualquer ideia de promoção interna, eles não se sentiam, apesar disso, como
pertencendo a algum grupo social particular e referiam-se a projectos exteriores
que pareciam muito míticos (“trabalhar por conta própria”, “criar a sua
empresa”.. .).

Na investigação incidindo sobre identidades sociais dos técnicos, G. de


Bonnafos realça a existência de um conjunto de representações muito
estruturadas em torno da reivindicação de autonomia e da imagem da empresa
como “sistema que dá hipótese de evolução ao indivíduo” (1988, p. 56). As
práticas de formação concebidas como “acumulação de conhecimentos que
poderão ser úteis noutras ocasiões” (id., p. 92) são fortemente estruturantes de
uma identidade que é definida como “técnica, colaboradora dos engenheiros”.
Não se trata tanto de uma identidade expressa em termos de pertença, mas de
uma identidade definida em termos de relação personalizada, de tal forma que a
podemos encontrar em algumas secretárias qualificadas que se apresentam como
“assistentes” ou “colaboradoras” pessoais do chefe de serviço (lastree, 1989,
Dubar-Gadrey, p. 360).

O “modelo afinitário” construído por R. Sainsaulieu sintetiza muito bem uma


parte importante destas características identitárias: “identidade instável e sempre
reconstruída, a identidade revela um desfasamento permanente entre os meios de
afirmação do eu e as possibilidades de reconhecimento colectivo” (1985, p. 339).
Associada a uma “perda de pertença aos grupos” e, simultaneamente, a uma
“forte implicação nas relações com os chefes e os colegas”, esta identidade
vivendo de “mal-estares” e de “ansiedades” aparece explicitamente como
estando em “crise permanente”.

Nas investigações incidindo sobre as situações exteriores à empresa e ao


emprego, aparece igualmente um tipo de identidade muito impregnado de
individualismo onde não se vive a situação em termos de exclusão, mas antes de
hipótese de “realização do eu”. Assim, aquilo que D. Schnapper chama
“desemprego invertido” (1981, pp. 116 e seguintes) corresponde à construção de
uma situação onde os períodos de desemprego são vividos como uma
recuperação de um tempo para si, como uma possibilidade de fazer finalmente
aquilo de que se gosta (“devorei livros durante um ano”, p. 118), como uma
reactualização de um ritmo de vida estudantil, como uma hipótese de retomar
estudos com uma componente muito cultural (“sociologia, história, psicanálise”,
p. 125). Este “mundo vivido” é analisado como um produto do desfasamento
entre o sistema de valores oriundo da formação inicial (universitária) —
“independência, a própria realização” — e o universo das normas vivido
anteriormente no trabalho (de execução) — postos de empregados dependentes e
muitas vezes rotineiros” — que produz uma recusa da identidade profissional e
uma espécie de retorno a uma identidade estudantil. De facto, os desempregados
em causa (na maioria desempregadas) não “entraram, subjectivamente, no
mercado do trabalho regular” (id., p. 130). O que o autor chama “a identidade
pelo discurso” :, substituindo “a identidade social que é dada normalmente pela
actividade profissional” (id., p. 130) não é mais do que esta identidade instável
em formação que caracteriza claramente os indivíduos em contramobilidade
social que recusaram investir-se num trabalho que consideram desqualificado.
As referências à vocação e à criação traduzem tanto a aspiração a “uma outra
cultura baseada na autenticidade” como a rejeição de uma “definição do eu
forjada a partir do trabalho de execução”. O desemprego pode então constituir
um parêntesis no desdobramento reactivando a esperança de escapar
duravelmente deste desdobramento.

É o caso de alguns assalariados despedidos qualificados de “verdadeiros


reconvertidos” que, “decepcionados com a sua actividade profissional anterior”,
encontram um novo equilíbrio num ofício totalmente diferente” (Lerolle, 1991)
bem como o de desempregados de longa duração “expeditos” que se inscrevem
numa lógica de autonomia (Demazière, 1992).

O modelo da “reforma-terceira idade” construído por A.-M. Guillemard (1972,


pp. 37-38) poderia muito bem corresponder à consumação biográfica desta
identidade. Neste modelo integram-se aposentados que se dedicam a
“actividades criadoras socialmente reconhecidas” que já tinham sido exercidas
mas de uma forma menos intensa durante a vida de trabalho. Um antigo quadro,
que se tornou escritor, utiliza uma expressão significativa para designar esta
recuperação de identidade que perseguiu durante toda a vida: “resumindo, voltei
a ser eu próprio” (p. 38). É apenas devido à reforma que permite libertar da
obrigação do trabalho instrumental ou constrangedor que alguns acedem a
formas mais ou menos reconhecidas e mais ou menos sucedidas de identidade de
artista, de identidade individualista dado que a actividade, sobretudo, expressiva
está pouco socializada e implica, muitas vezes, reconhecimentos limitados e, por
vezes, frustrações que subsistem.

Desta maneira encontramos uma minoria de assalariados que vivem o seu


despedimento como uma hipótese de “realização do eu num projecto” (Cherain,
Demazière, 1989) que vivem e que reactivam velhos sonhos de criança e
projectos profissionais que foram contrariados na adolescência (“eu queria ser
professor de ginástica, mas não foi possível por razões médicas”). Todos eles
insistem no carácter eminentemente pessoal das suas iniciativas de emprego e de
formação (“a minha formação fui eu sozinho que a encontrei na faculdade”) e na
sua reacção instrumental tanto relativamente à sua antiga empresa (“aproveitei
de X o que pude aproveitar, inclusive a minha saída da empresa”) como
relativamente aos dispositivos públicos de acompanhamento dos despedimentos
(“aproveitei o que me pode ser útil, mais nada”). Insistem muitas vezes na não-
identificação com o antigo emprego, condição necessária para tornar o
despedimento numa oportunidade de construção de uma nova identidade
profissional.

Contrariamente aos assalariados que vivem o desemprego e a reforma em termos


de exclusão e que não podem opor uma resistência eficaz à imposição por outro
de uma identidade conforme a este processo, estes indivíduos aproveitam o
desemprego ou a :, reforma para reavivar uma identidade para si construída por
uma divisão e um adiamento no decurso do seu período de trabalho. Será que se
pode falar de um reconhecimento identitário quando não existe, na maior parte
dos casos, uma profissionalização desta actividade que é praticada como um
lazer? Obviamente que não se trata de uma identidade de ofício que implica um
espaço profissional estruturado. Trata-se, mais, de uma identidade instável,
móvel, dilacerada que corresponde a uma dissociação duradoura entre a
identidade para si (herdada das origens e projectada num futuro inacessível) e a
identidade para outro (atribuída na base da actividade de trabalho e dos estatutos
sociais oficiais). É uma identidade que combina a mobilidade com a ausência
(ou a recusa) de enraizamento profissional ou organizacional. Constituída à volta
da reivindicação de autonomia, expõe aqueles que a vivem aos riscos do “vazio
social” (Barel, 1984), da dessocialização ligada ao desdobramento e mesmo à
estigmatização psiquiátrica que acompanha todas as formas ameaçantes de
fechamento sobre si próprio.

12.7. Configuração identitária e geração: o estudante tradicional, o assalariado


estudante

Na geração dos jovens operários parisienses, estudados por N. Abboud,


encontra-se apenas um tipo de expectativas susceptível de se aproximar
parcialmente da relação ao futuro aqui referida: é o dos jovens “companheiros”
das pequenas empresas tradicionais que, à conquista da “autonomia
profissional”, procuram tornar-se artesãos (1968, pp. 64-65). Eles definem o
trabalho pela aprendizagem e pela formação e só vivem a sua situação presente
de uma maneira provisória e pelo facto de ela lhes trazer experiência. Mas eles
constituem apenas uma pequena minoria do universo dos jovens operários
inquiridos.

Na sua investigação sobre os futuros técnicos, M. Haicault identificava, em


contrapartida, um grupo bastante importante (mais de um terço) de “rebeldes
inovadores” dos “projectos já há muito tempo desvirtuados” e não conformes à
orientação inicial. Eles valorizavam bastante a realização de si na profissão e
encontravam-se todos em lycées

é também junto dos estudantes que é preciso procurar a presença de uma tal
identidade na geração do pós-guerra. Esta identidade estudantil define-se, antes
de mais, por uma recusa: recusa da identidade herdada do meio social e
“distanciamento relativamente à ideia insuportável de uma determinação” que
pesa sobre as suas escolhas de futuro. Manifesta-se, em seguida, ela ligação a
uma situação transitória, “a transfiguração simbólica da necessidade de
liberdade”, a vontade de ser apenas um “puro projecto de ser”, a aspiração a um
“modelo estudantil” feito de anticonformismo que disfarça mal uma obediência
às normas do meio intelectual e um conjunto de atitudes culturais impostas
(Bourdieu, Passeron, 1964, pp. 62 e seguintes). Se se pode admitir que esta
identidade não é mais do que a dos estudantes de origem burguesa, a verdade é
que, na época, ela :, impregna o conjunto do “meio” estudantil É típica do
“tempo dos estudos” (Verret, 1974) no decurso do qual são suspensas as
pertenças sociais anteriores e futuras em nome de uma lógica autónoma das
aprendizagens. Importa, então, não ser nada (de definitivo) para poder ser tudo
(o possível): adiar as escolhas implica manter uma identidade suspensa.

O que é que teria acontecido à geração seguinte desta identidade de espera


construída em torno da formação e do tempo de estudos? A transformação
radical das condições da inserção profissional que sofreu um prolongamento
generalizado (Baudelot, 1988), o reforço do privilégio relativo dos estudantes no
acesso ao emprego articulado com uma democratização relativa do acesso às
diversas formas de ensino superior tendem, sem qualquer dúvida, a fazer evoluir
o modelo da identidade estudantil para uma diversificação acrescida das suas
formas segundo as vias de ensino e as suas relações com as posições sociais
futuras. Uma percentagem crescente de estudantes ultrapassaram a idade
“normal” para os estudos e ocupam um emprego assalariado. Muitas vezes, não
possuem qualquer objectivo preciso para prosseguirem os estudos superiores,
mas investem nos estudos o que melhor têm de si. A identidade já não tem muito
a ver com a dos estudantes diletantes e filhos de burgueses dos anos 60 que
deixavam transparecer uma relação distanciada com os estudos. Contudo, o que
há de comum entre eles é, simultaneamente, a recusa da identidade herdada e a
vontade de não atingir qualquer identidade definida: eles estão numa situação de
incerteza relativamente à sua identidade social que foi completamente definida
por eles numa relação com o saber teórico, constituindo esta relação o único
vector aceitável da sua identidade presente. Estes verdadeiros estudantes são
muitas vezes “falsos assalariados” (Magaud, 1974) que escondem
frequentemente a natureza do seu emprego.

Finalmente, o seu desdobramento parece maior e mais durável do que o dos


estudantes típicos da geração precedente. A identidade que recusam é a que
herdaram da sua experiência de trabalho e não apenas a que herdaram da sua
família de origem. A dissociação entre identidade herdada e identidade visada
não integra apenas o risco do que V. de Gaulejac chama nevrose de classe
(1987), mas ela inclui a prática de um desdobramento permanente da identidade
entre a que é desencadeada na esfera do trabalho e a que é investida — e
geralmente reconhecida — na formação ou no universo dos fazeres. Este
desdobramento implica um duplo jogo: fingir o investimento mínimo no trabalho
para obter em troca as condições para realizar uma formação ou para se entregar
à paixão; esconder os constrangimentos e as realidades culturais no seu meio de
trabalho para, em troca, obter o reconhecimento no universo da “vida
verdadeira”. Esta forma exacerbada de divisão do eu, ligada a uma espécie de
instalação num no man’s land social situado no âmago da dualidade entre o
estratégico e o comunicacional, não estará intimamente ligada ao
desenvolvimento de todas as formas “modernas” de mobilidade na incerteza?
Não constituirá ela, com a exclusão dos “baixos níveis” e com o bloqueamento
das identidades de ofício, uma das formas menos espectaculares mas mais
maciças da “crise actual das identidades”?
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conclusão

As formas elementares da actual identidade profissional e social

As quatro identidades profissionais típicas precedentes foram reconstruídas a


partir de diversos estudos empíricos largamente convergentes (61). Não são
deduzidas a partir de qualquer combinação a priori de variáveis, dimensões ou
atributos privilegiados. Estão enraizadas na esfera socioprofissional mas não se
reduzem a identidades no trabalho. Elas correspondem a trajectórias sociais
diferentes mas não são reduzidas a habitus de classe. Elas envolvem as
categorias oficiais, as posições nos espaços escolares e socioprofissionais, mas
não se resumem a categorias sociais. São intensamente vividas pelos indivíduos
em causa e reenviam tanto para definições de si como para rotulagens feitas
pelos outros: são, pois, formas identitárias no sentido em que foram definidas no
último capítulo da primeira parte.

(61) Entre os inquéritos citados, treze chegam a uma mesma tipologia de quatro
tipos (Abboud, 1968; Benoìt-Guilbot, 1965; Haicault, 1969; sainsaulieu, 1977;
Dubar, Engrand, 1986; Dubar et aliii, 1987; de Bonnafos, 1988; lastree, 1989;
Agache, 1989; Cherain, demazière, 1989; Lerolle, 1991; Demazière,
1992;Agache, 1993) e quatro a tipologias de três ou cinco tipos (Guillemard,
1972; Schnapper, 1981; bernoux et alii, 1984; Baudelot, 1986), próprios dos
precedentes na medida em que os podemos ligar ao mesmo

“modelo tetrapolar” (dubar, 1990). cf. bibliografia no fim da terceira parte (pp.
230-232.)

Estas formas identitárias podem ser interpretadas a partir dos modos de


articulação entre transacção objectiva e transacção subjectiva, como resultados
de compromissos “interiores” entre identidade herdada e identidade visada, mas
também de negociações “exteriores” entre identidade atribuída por outro e
identidade incorporada por si.

Como caracterizar os diversos resultados destas duas transacções? A transacção


subjectiva pode levar a uma continuidade entre identidade herdada e identidade
visada ou a uma ruptura, a um desfasamento, entre a definição do eu oriunda da
trajectória anterior e a projecção do eu no futuro. As identidades construídas no
modo da continuidade implicam um espaço potencialmente unificado de
realização, um sistema de emprego no interior do qual os indivíduos
desenvolvem trajectórias contínuas. Este espaço pode ser de tipo profissional (de
acordo com o modelo geral do ofício) ou de tipo organizacional (de acordo com
o modelo geral da burocracia ou da empresa). No primeiro caso, os indivíduos
constroem uma identidade profissional (de ofício), projectando-se num espaço
de qualificação que implica reconhecimentos de “profissionalidades”
estruturantes; no segundo caso, as identidades profissionais (de empresa)
constroem-se pela projecção no espaço de poder hierárquico que implica
reconhecimentos de “responsabilidades”, estruturantes da identidade. As
identidades construídas no modo da ruptura implicam, pelo contrário, uma
dualidade entre dois espaços e uma impossibilidade de se construir uma
identidade de futuro no interior do espaço produtor da sua identidade passada.
Para encontrar ou voltar a encontrar uma identidade, é preciso mudar de espaço.
A identidade :, projectada pode ser sobrevalorizada ou desvalorizada em relação
à identidade herdada. Ela está em ruptura com ela.

A transacção objectiva, articulada com a precedente, pode levar a um


reconhecimento social ou a um não-reconhecimento. No primeiro caso, existe
uma instituição que legitima a identidade visada pelo indivíduo: a empresa ou a
organização profissional na base do seu modelo identitário ou de competência, a
instituição escolar ou o organismo de formação na base do diploma possuído ou
dos saberes adquiridos. No segundo caso, as pretensões ao reconhecimento não
são adquiridas: o futuro da instituição não coincide com o futuro do indivíduo,
quer este futuro se tenha construído em continuidade, quer em ruptura com o
passado. Em termos interaccionistas, o reconhecimento é o produto de
interacções positivas entre o indivíduo visando a sua identidade real e o outro
significativo que lhe confere a sua identidade virtual; o não-reconhecimento
resulta, pelo contrário, de interacções conflituais, de desacordos entre
identidades virtuais e reais.

As duas transacções (62) são relativamente independentes, mas necessariamente


articuladas. Quando a transacção subjectiva se estabelece na base da ruptura, são
possíveis duas saídas para a transacção objectiva. Ou a ruptura é acompanhada
por um conflito entre a identidade atribuída pela instituição e a identidade
forjada pelo indivíduo, encontrando-se, neste caso, o indivíduo num processo de
exclusão que origina uma IDENTIDADE AMEAÇADA, ou então a ruptura é
acompanhada por confirmações legítimas pelo Outro da identidade para si e
encontramo-nos num processo de conversão que origina uma IDENTIDADE
INCERTA. OS dois tipos extremos (caps. 9 e 12) correspondem, sem dúvida, a
estes dois modos de articulação. Nos dois casos, a identidade desenha-se entre o
(62) O termo transacção é aqui utilizado no sentido amplo incluindo a transacção
com outro num sistema de acção e transacção consigo próprio num processo
biográfico. O uso de um mesmo termo justifica-se pela estrutura comum dos
processos relacional e biográfico.

espaço “interno” do trabalho, do emprego e da empresa e o espaço “externo” do


fora-do-trabalho, do desemprego ou da formação: as trajectórias comportam
empregos, formações possíveis e desempregos prováveis. Mas, num caso, a
passagem do trabalho ao fora-do-trabalho resulta de um conflito e toma a forma
de um processo de exclusão; no outro, a passagem é voluntária e é acompanhada
por formas de confirmações da sua legitimidade pelas instituições (diplomas
escolares ou práticas culturais reconhecidas).

Quando a transacção subjectiva se baseia na continuidade, os dois resultados da


transacção objectiva são mais simples de descrever: ou a progressão visada é
reconhecida, encorajada, confirmada e encontramo-nos num processo de
promoção que diz respeito a uma IDENTIDADE DE EMPRESA, ou então a
progressão visada é invalidada, recusada, infirmada e encontramo-nos num
processo de bloqueamento que diz respeito a uma identidade de ofício. Nos dois
casos, a construção da identidade decide-se num espaço único que estrutura a
natureza das competências e os modos legítimos de reconhecimento: espaço
organizacional da empresa ou espaço profissional do ofício. Trata-se, pois, das :,
duas principais formas de “mercados fechados do trabalho” que correspondem a
dois modos significativos de socialização profissional (cf. segunda parte). Os
dois tipos centrais (caps. 10 e 11) estão muito próximos destes dois novos modos
de articulação.

Os quatro processos identitários típicos

::::::

Identidade para si:

— Transacção subjectiva

identidade para outro:

— continuidade

— ruptura
transacção objectiva:

— reconhecimento

promoção (interna) identidade de empresa (capítulo 11)

conversão (externa) identidade de rede (capítulo 12)

— Não reconhecimento

bloqueamento (interno) identidade de ofício

(Capítulo 10)

exclusão (externa) :identidade de fora-do-trabalho

(Capítulo 9)

:::::

Assim reconstituído, o espaço social das identidades típicas constitui uma


espécie de meta-espaço que ultrapassa a esfera do trabalho e engloba a do fora-
do-trabalho. Cada configuração identitária implica uma relação com o espaço
social e, portanto, uma redistribuição dos subespaços que o estruturam. Estes
subespaços constituem, nomeadamente, sistemas de emprego (cf. capítulo 6) no
seio dos quais os indivíduos desenrolam a sua trajectória ao longo de vias reais
ou virtuais: vias de empresa, de ofício, de rede ou de exclusão (fora-do-
trabalho). Cada configuração identitária pode, portanto, ser associada a uma
espécie de “carreira” (aberta ou bloqueada) no interior destas vias potenciais que
constituem outros tantos espaços típicos de reconhecimento possível. Cada
configuração pode também ser esclarecida pelos tipos de relações profissionais e
pelos actores típicos destes diferentes espaços: actores “internos” à empresa,
actores que estruturam os ofícios ou os ramos profissionais, actores da formação,
actores da gestão social do desemprego… (cf. capítulo 7). A construção das
identidades é, portanto, inseparável da existência de espaços de emprego-
formação e dos tipos de relações profissionais que estruturam as diversas formas
específicas de mercados do trabalho: mercados internos das firmas, mercados
profissionais ou de ofícios, mercados externos… (cf. capítulo 8).

As configurações identitárias típicas poderiam ser abstractamente associadas a


“momentos” privilegiados de urna biografia profissional ideal: momento da
construção da identidade que corresponde tradicionalmente à formação
profissional inicial (cf. capítulo 12), momento da consolidação da identidade
ligado à inserção e à aquisição progressiva da` qualificação nas carreiras do
ofício (cf. capítulo 10), momento do reconhecimento da identidade que está
sujeita ao acesso a responsabilidades na empresa (capítulo 11), :, momento de
envelhecimento da identidade e da passagem progressiva à reforma (cf. capítulo
9). Mas, de facto, estes “momentos” nunca aparecem reunidos nos diferentes
tipos de carreiras profissionais associadas a cada configuração típica: a
estabilidade da primeira parece desembocar no risco de exclusão permanente; a
progressão na via especializada de “qualificação” (ofício) da segunda parece
estar hoje bloqueada; a promoção interna ligada ao desenvolvimento de
“competências” da terceira parece implicar uma grande dependência em relação
à empresa; a acumulação de diplomas e de formações da quarta parece ter
continuidade ao longo de toda a vida profissional e mesmo para além dela.
Assim, se desenham tipos de temporalidades profissionais discutas que
correspondem a modos de estruturação da identidade por projecções nos futuros
possíveis.

Se cruzarmos os tipos de espaços privilegiados com as temporalidades


estruturantes, chegamos a estes espaços-tempos constitutivos das configurações
identitárias mais elementares (cf. capítulo 5). Os quatro espaços-tempos
realçados empiricamente combinam os tipos de carreiras e os “momentos”
postos em destaque anteriormente: o espaço da formação está associado à
construção incerta da identidade; o espaço do ofício está ligado à consolidação e
ao bloqueamento de uma identidade especializada; o espaço da empresa é aquele
no qual se desenha o reconhecimento de uma identidade confirmada; o espaço
fora do trabalho é aquele onde se (des)estrutura uma identidade de exclusão.

Cada configuração elementar típica está associada a um tipo de saber


privilegiado que estrutura a identidade e que constitui a matriz de lógicas de
acção salarial, de “racionalidades” específicas. Os saberes práticos, oriundos
directamente da experiência de trabalho, não ligados a saberes teóricos ou gerais,
são estruturantes da identidade hoje ameaçada de exclusão; associada a uma
lógica instrumental do trabalho para o salário (ter), esta identidade conflitua com
o novo “modelo da competência” difundido nas empresas. Os saberes
profissionais que implicam articulações entre saberes práticos e saberes técnicos
estão no centro da identidade estruturada pelo ofício e hoje bloqueada na sua
consolidação; associada a uma lógica da qualificação no trabalho (FAZER), esta
identidade é, actualmente, desafiada a ser reconvertida ou a ser reestruturada em
função destas novas normas de competência. Os saberes de organização que
implicam outro tipo de articulações entre saberes práticos e teóricos estruturam a
identidade de empresa, que implica mobilização e reconhecimento; associada a
uma lógica da responsabilidade (SER), esta identidade é hoje valorizada pelo
modelo da competência, tornando-se, ao mesmo tempo, cada vez mais
dependente das estratégias de organização. Por fim, os saberes teóricos, não
ligados a saberes práticos ou profissionais, estruturam um tipo de identidade
marcado pela incerteza e pela instabilidade e muito virado para a autonomia e
para a acumulação de distinções culturais (saber); associada a uma lógica da
reconversão permanente é, simultaneamente, o produto e o alvo das incitações à
mobilidade (muito desenvolvidas nas empresas e nas administrações actuais).

Estas identidades profissionais e sociais, associadas a configurações específicas


de saber, são construídas

através dos processos de socialização, cada vez mais diversificados. :,

A socialização “inicial”, durante a infância, combina mecanismos de


desenvolvimento das capacidades e de construção de “regras, valores, sinais”
(Piaget) oriundos da família de origem, mas também do universo escolar e dos
grupos de pares onde as crianças fazem as primeiras experiências de cooperação.
É assim que elas constroem as suas primeiras identidades por assimilações e
acomodações sucessivas (cf. capítulo 1). Esta socialização contribui igualmente
para fornecer as referências culturais a partir das quais os indivíduos terão de
identificar os grupos de pertença e de referência, e de inferiorizar as
características culturais gerais, especializadas, opcionais e individuais (Linton), e
de antecipar as socializações ulteriores (cf. capítulo 2). Estas inscrevem-se nas
trajectórias sociais que implicam, a partir de “disposições” adquiridas no decurso
da primeira educação, a validação de “capitais económicos e culturais”
simultaneamente desiguais à partida e desigualmente rendíveis de acordo com os
campos da prática social (cf. Bourdieu, capítulo 3). Esta socialização contínua é
inseparável das mudanças estruturais que afectam os sistemas de acção e
induzem reconversões periódicas das identidades previamente constituídas e das
“construções mentais” que lhes estão associadas (cf. Berger e Luckmann,
capítulo 4).

As identidades estão, portanto, em movimento e esta dinâmica de


desestruturação/ reestruturação toma, por vezes, a forma de uma “crise das
identidades”. Cada configuração identitária tem hoje uma forma mista no
interior da qual as antigas identidades entram em conflito com as novas
exigências da produção e onde as antigas lógicas que perduram entram em
combinação e, por vezes, em conflito com as novas tentativas de racionalização
económica e social (Weber). São estas formas mistas de permanência e de
evolução, do antigo e do novo, do estável que se tornou ameaçante e do instável
que se tornou valorizante, que são evidenciadas pelas análises empíricas cada
vez mais numerosas que insistem tanto na permanência como na mudança. Entre
a tentação de interpretar os elementos de permanência destes tipos — e a sua
transversalidade sistemática em relação às categorias sociais — em termos
“psicológicos” ou “fenomenológicos” (cf. as categorias de
desilusão/ilusão/colusão/elusão em Laing), e a tentação para privilegiar os
elementos de evolução para os deduzir das novas estratégias e políticas
“económicas” ou “estruturais” das empresas e do Estado, a apresentação
adoptada tentou manter o ponto de vista sociológico definido na primeira parte
deste livro: as identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões
psicológicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas ou de
políticas económicas que se impõem a partir de cima, elas são construções
sociais que implicam a interacção entre trajectórias individuais e sistemas de
emprego, sistemas de trabalho e sistemas de formação. Produtos sempre
precários, se bem que muito construídos no processo de socialização, estas
identidades constituem formas sociais de construção das individualidades, em
cada geração, em cada sociedade. As que foram postas em evidência aqui dizem
respeito à França no fim dos anos 80: elas têm apenas a validade dos inquéritos
empíricos em que se apoiaram e que representam apenas uma pequena amostra
dos que foram realizados ou que ainda se realizam. Graças a estes inquéritos,
este trabalho poderá ser criticado e continuado com bases mais alargadas.

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