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02/09/2018 A estética de Luigi Pareyson: alguns princípios fundamentais e alguma aplicação da articulista | Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

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Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas


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A estética de Luigi Pareyson: alguns princípios fundamentais e alguma aplicação da


articulista

A estética de Luigi Pareyson: alguns princípios fundamentais e alguma aplicação da articulista

Maria Helena Nery Garcez 1

Resumo: O texto apresenta alguns dos princípios fundamentais do pensamento estético do filósofo italiano Luigi Pareyson: o caráter filosófico da estética, a
distinção entre estética e poética, sua definição de arte, a questão do esteticismo e do conteudismo, a leitura e interpretação da obra de arte e o problema da sua
avaliação. Apresenta também algumas aplicações desses princípios, motivadas pela sua intenção didática.

Palavras-chave: Estética da formatividade; Definição de arte na estética de Luigi Pareyson; Leitura e interpretação da obra de arte.

Résumé: Ce texte présente quelques principes fondamentales de la pensée esthétique du philosophe italien Luigi Pareyson: le caractère philosophique de l
´esthéstique, la distinction entre esthétique et poétique, sa définition de l´art, la question de l´esthéticisme et du spiritualisme esthétique, la lecture et l
´interprétation de l´oeuvre d´art et le problème de son jugement. Il présente aussi quelques applications de ces principes, dues à son intention didactique.

Mots-clés : Esthétique de la formativité ; Définition de l´art dans l´esthétique de Luigi Pareyson ; Lecture et interpretation de l´oeuvre d´art.

O lúcido pensamento estético do filósofo italiano Luigi Pareyson (1918-1991) ainda é pouco conhecido no Brasil. Em minha experiência docente, tanto na
graduação quanto na pós-graduação do Curso de Letras da Universidade de São Paulo, tenho constatado a falta que faz uma reflexão mais profunda sobre o
fenômeno artístico nos currículos dos que se preparam para serem professores, mestres, doutores, pesquisadores e críticos de literatura. Tal carência na
formação - a disciplina Teoria Literária não a preenche cabalmente - se torna muito visível quando, ao participar numa banca, se examina uma dissertação ou
tese e se encontram afirmações equivocadas, elementares e falsos lugares comuns, juízos apressados, que o exercício de uma reflexão detida teria evitado.
Aliás, isso não ocorre apenas em trabalhos estudantis, mas também em textos de crítica literária e em livros de ensaios. Daí ter-me ocorrido divulgar – ainda que

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sucintamente – alguns dos princípios fundamentais da estética pareysoniana nesta Revista Estéticas e Poéticas, como colaboração no sentido de principiar a ir
preenchendo essa lacuna e como convite para que os interessados se aprofundem mais, indo às obras citadas e a outras que descubram por si próprios.

Em meio a discussões dos que não veem a estética como filosofia, Luigi Pareyson afirma-se como defensor do caráter filosófico da estética. Para ele, a estética é
filosofia, isto é, reflexão especulativa sobre a experiência estética do artista, do leitor, do fruidor de qualquer beleza, do crítico, do historiador, do técnico da arte. É
para este uso que ele reserva o termo. No âmbito da estética entra a contemplação da beleza, quer artística, quer natural ou intelectual, a atividade dos artistas, a
interpretação e avaliação das obras de arte, bem como as teorias das diversas artes (a Teoria da Literatura, por exemplo). Compete também à estética dar uma
definição da arte, sempre a partir da reflexão sobre a experiência artística, e cada filósofo formulador de uma teoria estética não deve pretender que a sua seja a
única verdadeira; deve estar disposto a defendê-la de críticas injustas, mas também a corrigi-la com base em objeções fundamentadas, instituindo-se, assim, um
verdadeiro diálogo com o pensamento de outros.
Ensina Pareyson que a estética estuda a estrutura da experiência artística, mas não define normas para o artista nem critérios para o crítico. Quando,
eventualmente, a estética fala de leis e de critérios, eles não são prescritos por ela, mas por ela encontrados na própria experiência da arte. É o crítico quem é
leitor e avaliador, intérprete e juiz. Mas o método da crítica – isso sim – constitui um dos muitos problemas sobre o qual a estética deve refletir.

Uma distinção particularmente importante – considero que seria um progresso vê-la incorporada à terminologia de nosso campo do saber – é a que o pensador
estabelece entre estética e poética. Se a estética é especulativa, filosófica, a poética, pelo contrário, constitui um programa de arte, tem um caráter normativo e
operativo. Se há algumas teorias estéticas, as poéticas ganham de muito: são bastante numerosas. Exemplos de estéticas: a idealista, a da formatividade, a da
recepção; exemplos de poéticas: o programa de arte do realismo, da arte nova, do cubismo, do abstracionismo. Tal distinção teria uma razão de ser mais
profunda ou seria apenas uma preferência pessoal do filósofo, uma espécie de “mania" de ir contracorrente?
Respondendo a essa pergunta, examinemos o alerta de Pareyson e suas razões: não devemos tomar como estética uma proposta que é,
essencialmente, uma poética, isto é, não devemos tomar como conceito de arte aquilo que não é senão um programa de arte. Qual a importância desse cuidado?
Evita erros elementares, pois, quando se apresenta ou se considera o particular como geral ou universal, o que é apenas uma proposta operativa e normativa por
reflexão especulativa, por teoria filosófica da arte, aquilo que é só um programa de arte, os planos se confundiram. Quantas vezes, nos tempos de maior êxito do
romance neorrealista, aqui no Brasil, vi, em dissertações, teses, artigos e ensaios, que os admiradores dessa poética avaliavam como subprodutos artísticos
romances criados noutras poéticas.
Se é legítimo propor um programa de arte impregnada de valores sociais, políticos, morais ou religiosos, o que não é legítimo é transformar essa poética numa
concepção geral de arte e afirmar que só será arte a obra que for criada de acordo com os valores nela propostos. Quando isso ocorre, acontece um travestismo
de uma poética em estética. Daí a lição fundamental: não transformar um programa particular de arte em conceito geral da arte. Se uma obra for engajada ou
não, figurativa ou abstrata, erudita ou popular, lírica ou realista, filosófica ou pura, isso pouco importa do ponto de vista da estética, pois, para ela, todas as
poéticas são válidas. O que, de fato, lhe importa é que a obra seja efetivamente arte. Para tal discernimento é preciso, após a tomada de consciência a respeito
da poética de determinada obra – e isso nem sempre é uma tarefa fácil –, que o pensador da estética ou o estudioso dessa obra, não a julgue segundo seu
próprio gosto, – evidentemente ele existe – mas que, deixando-o de lado, na medida do possível, se baseie na própria obra.
De acordo com a teoria desenvolvida passo a passo na reflexão pareysoniana, que não reproduzo aqui em toda sua complexidade, mas apenas para
ela remeto os interessados, seu juízo deverá consistir em “comparar a obra tal como é com a obra tal como ela própria queria ser”. (PAREYSON, 1984, p.176).
Se a obra se sai bem nessa comparação ela está bem lograda, é um êxito, é arte. Naturalmente tal conclusão a que o filósofo chega só poderá ficar clara para
quem tiver acompanhado o raciocínio que rigorosamente ele desenvolve ao longo dos capítulos 9 e 10 da obra Os problemas da estética (1984).

Ao procurar definir a arte, diz Luigi Pareyson, que ela é produção de objetos radicalmente novos, que constituem verdadeiros incrementos da
realidade, “inovações ontológicas”. Deixa bem claro que “ela não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de um projeto” previamente concebido
(PAREYSON,1984, p.32), mas “um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (IDEM, ibidem). Para melhor entendimento, lembremos
que inventar vem do verbo latino invenire, que significa encontrar. Na atividade artística, portanto, o fazer e o inventar/encontrar são simultâneos. Mais: não se
trata de um simples facere, mas de um perficere (per+facere), que significa fazer com inteireza, acabar, fazer com perfeição.
Segundo o filósofo italiano, essas são as características da forma, termo que usa no sentido de organismos vivos, autônomos, independentes,
exemplares na sua perfeição e originais. Sua estética é, pois, uma estética da formatividade, “que concebe as obras de arte como organismos vivendo de vida

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própria, dotados de legalidade interna e que propõe uma concepção dinâmica da beleza artística”. (PAREYSON, 1984,p.33). A Divina comédia, Os irmãos
Karamázov, o Grande sertão: veredas são formas no sentido pareysoniano, isto é, vivem de uma vida própria, dotados de uma lei interna e, em qualquer tempo,
se nos oferecem a uma decifração inexaurível.

Apesar de a obra de arte ser, como enfatiza o pensador, uma obra que aceita valer só como forma - e é essa a sua especificidade - no entanto ele faz notar que
ela não se reduz a ser apenas forma, mas é, ao mesmo tempo, uma forma e um mundo. Ao fazer arte, explica ele, o artista não abdica de sua weltanschauung,
mas, implícita ou explicitamente, a introduz na própria obra. Se esta é bem sucedida, a presença dos valores daquela visão de mundo se converte numa
contribuição ativa e intencional para o seu valor artístico, sendo preciso tê-los em conta ao proceder à sua avaliação estética. A arte não consegue ser tal sem
que nela confluam outros valores, pois lembra Pareyson retomando Dewey, a arte é sempre mais que arte; dela emana uma pluralidade de significados
espirituais e nela se anuncia uma variedade de funções humanas. Os diversos valores contribuem para a realização do valor artístico, mas não se anulam nele;
pelo contrário, alimentam-no e enriquecem-no. Tornemos mais concreta esta explanação com um exemplo tirado da obra pessoana.
Ao criar cada um de seus heterônimos, Alberto Caeiro ou Ricardo Reis, por exemplo, Fernando Pessoa dotou-o de uma mundividência própria, criou-o
com um mundo de valores que se patenteiam em seus poemas e contribuem ativa e intencionalmente para o seu valor artístico. Não afirmo que a visão de
mundo expressa em cada um desses heterônimos corresponda à de Pessoa; ele é apenas um dos fragmentos do complexo pessoano e, para discernir a
mundividência do poeta de Orpheu seria preciso abarcar o drama constituído pelo conjunto dos heterônimos e de toda a sua obra.
Os poemas Alberto Caeiro e as Odes Ricardo Reis, além de serem formas, isto é, organismos autônomos e completos, são weltanschauungen; são
expressivos enquanto seu próprio ser é um dizer e mais do que ter um significado elas são um significado. Ademais, as obras desses heterônimos alcançam ser
poesia não apesar de sua intenção - mais implícita do que explícita - de exercer nela uma missão moral, de trazer para o palco da cena dramática uma visão de
mundo não cristã e difundir valores de um neopaganismo. Elas são poesia precisamente porque sua intenção moral não é fim extrínseco da obra, mas fim
imanente, já que foi seu ponto de partida, a mola propulsora de sua criação. A presença de uma filosofia e de uma moral nos poemas Alberto Caeiro ou Ricardo
Reis não empana seu valor estético, pois essa presença constituiu estímulo e ocasião de arte, fez-se poesia. Seu ponto de partida foi filosófico; por isso, não
houve subordinação da arte à filosofia, mas assunção da filosofia na arte. O próprio Fernando Pessoa demonstrou ter tido nítida consciência disso quando
afirmou, num texto de sua prosa: “Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas”. (PESSOA, 1976, p. 36).
Pareyson discorda, ainda, dos que condicionam a presença da filosofia na obra poética exclusivamente quando esta se encarna em imagens. Pensa
que a filosofia pode estar presente como tal na obra literária e contribuir para o seu valor artístico, pois também há arte em poemas que declaram com rigor
especulativo um pensamento filosófico despido de imagens; neste caso, mais do que poesia filosófica, diz o autor, o que encontramos é a poesia “da” própria
filosofia. As Odes Ricardo Reis ou os poemas Alberto Caeiro não são, pois, “poesia filosófica”, mas poesia da filosofia. Se neles encontramos, com relativa
freqüência, uma conversão do pensamento filosófico em imagens (comparações, alegorias, metáforas, anáforas, paradoxos e várias outras), na maior parte das
vezes, em Alberto Caeiro principalmente, verifica-se um despojamento, uma linguagem nua e quase despida de ornatos, que o aproxima, sob este ponto de vista,
de Lucrécio e de Dante. Podemos afirmar que, nesses trechos especulativos, há uma formulação essencial e insubstituível do pensamento, que constitui um dos
traços mais característicos do estilo do Guardador de Rebanhos: sua predileção pelo aforismo. Mais do que conter ou significar ou transmitir o pensamento, os
aforismos de Alberto Caeiro são seu pensamento.
Para finalizar essa questão da presença da filosofia na obra literária, importa estabelecer outra importante distinção acerca de seus modos de
presença: a explícita e a implícita. Esta última “é aquela pela qual tudo na obra, mesmo a mínima inflexão estilística, é significante, revela a espiritualidade do
autor e, por isso, também o seu modo de pensar, a sua Weltanschauung, a sua filosofia”. (PAREYSON, 1984, p.48). Podemos oferecer o exemplo do poema
XXXVIII, do Guardador de Rebanhos:

“Bendito seja o mesmo sol de outras terras


Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
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Porque isso é natural – mais natural


Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral... (PESSOA, 1972, p,223)

Embora o pensamento filosófico esteja presente de modo explícito nesse poema, há em seu primeiro verso, algo que não está tão explícito, mas está
implícito e que me despertou para o ponto de vista sob o qual abordei os poemas do heterônimo Alberto Caeiro em meu trabalho de livre-docência. A estrutura
estratificada de prece “Bendito seja”, aliada à referência ao sol, fez-me recordar um outro poema – esse, originalmente cantado – o “Cântico do Sol” de São
Francisco de Assis. Principiei vendo que o sub-texto desse poema era o Cântico medieval, com o qual ele dialogava e fui pouco a pouco descobrindo que
praticamente todos os poemas Caeiro mantinham um acirrado diálogo, uma relação intertextual com o poema de Francisco, num polêmico confronto de suas
respectivas visões de mundo. Diria ter sido uma inflexão estilística, que poderia ter passado despercebida – como passara aos que haviam lido o poema antes,
pois ninguém escrevera sobre isso até então – que me revelou o quanto a visão de Natureza do heterônimo Alberto Caeiro se contrapunha à visão tradicional
cristã, consubstanciada no “Cântico do Sol”. Francisco constituiu um paradigna de visão da Natureza – paradigma transcendente – , Alberto Caeiro constituiu
outro paradigma, este imanente, pagão. Discernimos, não só pelo poema que transcrevemos, mas pela totalidade dos poemas Alberto Caeiro, como sua poesia
se inscreveu na e deu continuidade à tradição da poesia da Natureza, que teve momentos altamente significativos em Lucrécio (séc.I a.C) e em São Francisco de
Assis (séc.XIII d.C).

Avançando na explicitação dos conceitos pareysonianos, vejamos que fazer arte para nosso autor, mais do que dar forma a um conteúdo espiritual
significa formar uma matéria, o que, no caso da poesia, trata-se de dar uma configuração a um complexo de palavras. Antes de qualquer outra coisa, fazer um
poema, por exemplo, é produzir um objeto sensível, material, um objeto que passa a existir como coisa entre coisas, extrinsecado numa realidade sonora e
visual. O processo de formação de uma matéria e o de formação de conteúdos é simultâneo, melhor coincidente, daí que, na arte, expressividade e produtividade
coincidam.
A forma é o resultado da formação de uma matéria, matéria formada, e o conteúdo é o modo de formar aquela matéria, o que significa carregar as
inflexões formais de sentidos, conferindo a função e a capacidade de exprimir e de significar a todos os aspectos da obra. Já não se trata só de inseparabilidade
de forma e conteúdo, mas, verdadeiramente, de identidade, pois a própria matéria formada é conteúdo expresso. Ao analisar uma obra poética, não é possível,
pois, isolar a consideração de seu significado espiritual da consideração de seus valores formais. Ler a obra de arte constitui, portanto, uma tarefa complexa e
delicada; exige que se reconstrua a obra na plenitude de sua realidade sensível, que se alcance “fazer falar o seu próprio rosto físico” (PAREYSON, 1984, p.59),
de modo a fazê-la revelar também o seu significado espiritual e o seu valor artístico. Procuremos ver, mediante um exemplo tirado de Os Lusíadas, como isso se
pode dar.
Quando, em meio ao relato que Vasco da Gama faz ao rei de Melinde, essa voz enunciadora interrompe seu discurso épico para introduzir um
episódio lírico e, através de uma apóstrofe, se expressa nos versos, que se tornaram imortais:

Estavas, linda Inês, posta em sossego


De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito
(...) (CAMÕES, 1985, III, 120)

como não se dar conta de que o tom da enunciação se tornou melancólico, nostálgico, pesaroso? O metro decassílabo heroico, usado anteriormente para narrar
feitos guerreiros e naáuticos, não teve de se abrandar, deixando de lado “a fúria grande e sonorosa” da canora tuba, para evocar aquele tão tocante “caso triste e
dino da memória”? Como não se dar conta de que a voz enunciadora estabelece essa relação dialogal com a “linda Inês”, em que o tratamento é de intimidade, o
tu? A apóstrofe que, muitas vezes, é usada para uma intervenção rude num discurso (lembremos o célebre: Quousque, tandem, Catilina, ...), aqui se apresenta
branda, quase terna. Como não notar que o poeta fez cair a cesura do verso heroico – que é sempre na 6ª sílaba – precisamente sobre o nome da personagem
central do episódio, fazendo convergir o foco da atenção sobre ela? E como não perceber que o qualificativo “linda” – de si mesmo tão banal – forma, na dicção
do verso, uma só palavra com o nome da dama invocada, que então se torna “Lindinês”, encaminhando subrepticiamente para a impressão de que o atributo da

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beleza lhe é como que inerente? Mais: como não perceber que essa voz, quase que em surdina, recorda à “Lindinês” e, por extensão, a nós, as circunstâncias
de sua tragédia? E que essa dorida atmosfera de melancolia, envolvendo a invocação/evocação da “Lindinês”, é criada pela forma verbal durativa, no imperfeito
do indicativo, com que se abre a estância – “Estavas” – transportando-a, para a sua e a nossa contemplação, numa situação de serenidade e idealidade
paradisíaca, estática, fora do tempo? Reforçando a sugestão criada pelo tempo verbal, acrescenta-se imediatamente o vocativo, a circunstância modal: “posta em
sossego”, a rima branda ou grave ou paroxítona ou ainda feminina, como, aliás, ela o é em toda a estância, e, ainda, nesse imortal primeiro verso, o domínio da
sonoridade sibilante. Tudo contribui para evocar o estado paradisíaco, numa entonação pesarosa, porque tudo já está irremediavelmente perdido. Uma
observação a mais: a caracterização de “Lindinês” é passiva: “posta em sossego”. É claro que essa passividade intensifica vigorosamente a condição estática de
“Lindinês”, no momento em que foi surpreendida pela voz que a evoca. Podemos perguntar: quem é o agente dessa passiva? Quem a pôs em sossego? Mas as
perguntas ficam ecoando sem resposta. “Lindinês” está descuidadamente sossegada, como se a corte fosse o Éden e nela não houvesse serpentes nem frutos
proibidos.
O segundo verso, contudo, nos diz de um “doce fruito”. De novo o qualificativo é comum, nem erudito nem requintado, mas, no contexto, impregnado
de sentidos. Nessa expressão tão simples estão contidas, até aonde fui capaz de ver, as significações de juventude, de amor correspondido, de provas vivas
desse amor, os filhos, de felicidade, enfim. Atentemos novamente para o fato de a cesura privilegiar o termo fundamental “colhendo”, que traz implícita a ideia de
ter havido um trabalho e um esforço de “Lindinês” para conseguir tais “fruitos” (sua vitória) e salientemos que “fruito” também está enfaticamente ressaltado pelo
acento final do verso, na 10ª sílaba. A voz enunciadora, no terceiro verso, chama a atenção de “Lindinês” para “aquele” estado de passivo sossego sobre os
louros, assim nomeando-o: “Naquele engano da alma” e desse modo desmente o quadro de felicidade anteriormente criado. Aparece um termo recorrente do
léxico camoniano e que, em Os Lusíadas, constitui um leitmotiv. A experiência das navegações e as freqüentes escaramuças em que os navegantes se
encontraram conferiram-lhes uma visão sombria, trágica até, da realidade e dos relacionamentos humanos; tal visão perpassa toda a obra camoniana. Não é
apenas o amor que é enganoso; é o sossego, a segurança, a tranqüilidade, o estado de felicidade. O “engano da alma” recebe dupla adjetivação: “ledo” e “cego”,
como a conduzir à conclusão de que quando se está alegre e feliz não se vê o que se passa à volta. “Lindinês”, “posta em sossego”, não se deu conta da
atuação sorrateira da “Fortuna” – e aqui temos um elemento herdado da Antiguidade clássica neste poeta renascentista: próprio da Fortuna é mudar. A mudança
– outro dos grandes temas desta epopéia – age não só na história das nações ou no mar, sobre o qual diz: “Que, como tudo nele são mudanças” (CAMÕES,
1985, V, 66), mas também na vida privada das pessoas, sobretudo em seus casos de amor. Toda a Lírica camoniana está sob a égide da Fortuna.
A voz de Vasco da Gama nesses versos e no todo da estrofe como que explica a “Lindinês” o seu caso, elucida-lhe sua própria tragédia, que ele já
pode ver sob uma perspectiva de séculos e de experiência das injunções da história.
Encerro aqui essa digressão na qual pretendi oferecer, nos quatro simples versos que analisei, um breve exemplo de como entendo o “fazer falar o
rosto sensível da obra”. Retomando o fio da exposição dos conceitos pareysonianos, prossigamos.

Na leitura de uma obra poética (ou de qualquer obra de arte) é, portanto, preciso ter em conta de que nela não há nada de físico que não seja
significado espiritual nem nada de espiritual que não seja presença física. Esse é o princípio que Pareyson nomeia como o princípio da coincidência de
espiritualidade e fisicidade na obra de arte.
De acordo com ele, em nossas análises de poemas, por exemplo, deveremos evitar ora cair num sensualismo ou esteticismo (limitar-se apenas ao
aspecto sensível da obra), ora numa espécie de espiritualismo estético ou conteudismo (dirigir-se unicamente aos conteúdos da arte). Atendamos ao tão rico
quanto delicado conselho: “fazer falar o próprio rosto físico da obra com sentidos espirituais”, respeitando o casamento indissolúvel da forma e do conteúdo e não
separando o crítico aquilo que o poeta uniu.

Ler uma obra de arte, para Pareyson, significa executá-la, isto é, “fazê-la ser” na sua própria realidade e na vida com a qual ela própria quer viver. Para
executá-la é preciso associar-se ao seu processo criador, alcançar ver a obra no acto em que ela regula a sua própria formação. Assim como a obra solicitou o
artista a fazê-la como ela própria queria ser feita, assim ela solicita o leitor a executá-la como ela quer ainda existir. “(...) a fidelidade (do leitor) é devida mais à
obra enquanto formante do que à obra enquanto formada ”.(PAREYSON, 1984, p.165).
Aquele que critica deve comparar a obra qual é com a obra como ela queria ser, pois é nessa comparação que reside o critério e a possibilidade do
juízo. Dar-se conta do valor artístico da obra significa ver sua perfeição dinâmica, olhá-la como processo no acto de conseguir sua própria inteireza.
Em sua teoria estética, Pareyson evita acentuar uma consideração genética da obra de arte e privilegia uma consideração dinâmica. Enquanto a
primeira se dirige à reconstituição dos antecedentes históricos da obra e é apenas um dos modos de abordá-la, a dinâmica dirige-se a discernir a obra no acto de
aprovar-se e é indispensável para a apreciação de seu valor artístico. Trata-se de tentar reconstituir o desenvolvimento orgânico da obra, isto é, sua teleologia
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interna e a lei de sua perfeição.


A interpretação, formula o filósofo, é o encontro de uma pessoa com uma forma. Esta apresenta uma infinidade de aspectos, cada um dos quais a
contém por inteiro, embora nunca se possa exaurir a sua infinidade. A pessoa, por sua vez, pode adotar infinitos pontos de vista, isto é, infinitos modos de ver a
obra, cada um dos quais contém toda sua espiritualidade, embora também não exaura todas as suas possibilidades. Ensina Pareyson que a interpretação ocorre
quando se instaura uma simpatia, uma congenialidade, um encontro entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos pontos de vista da pessoa.
Interpretar consiste, portanto, em sintonizar um ponto de vista pessoal com um aspecto da obra. Diria que um exemplo de encontro de um ponto de
vista pessoal com um ponto de vista de uma forma já foi dado, quando tratei do poema XXXVIII de O Guardador de Rebanhos. O processo da interpretação
parte, pois, de uma dualidade inicial, onde o sujeito procura ter seu objeto claramente diante de si, na sua inviolável independência para poder nele fixar a fundo
o olhar e chega a uma identidade final, onde a obra entrega-se plenamente à imagem que soube revelá-la.
Uma determinada interpretação, que parte de um ponto de vista, colhe um aspecto da obra (que apresenta infinitos aspectos) e, se cada um deles
contém a obra toda, estando, por isso, em condições de revelá-la por inteiro, todavia, nenhum deles pode pretender monopolizá-la. Dessa forma, quando
interpretamos uma obra literária apresentamos nosso encontro com aquela forma, olhada sob um de seus infinitos aspectos. Se esse aspecto foi capaz de
revelá-la por inteiro, sabemos também que ele não a esgota, que não é um ponto de vista necessário nem exclusivo. A obra de arte é inexaurível e é por isso que
o processo interpretativo é infinito.
A interpretação, enquanto revelação da obra é objetiva, mas enquanto expressão do intérprete é, ao mesmo tempo, pessoal. No entanto, pelo fato de
as interpretações poderem ser muitas e pessoais não se deve concluir que sejam arbitrárias e indiferentes. O processo interpretativo não está abandonado à
subjetividade, mas obedece a uma lei firmíssima, que é a própria obra e a um critério seguro, a congenialidade, que é a condição de penetração na obra.
Discernir o valor artístico da obra, julgá-la, diz-nos Pareyson, nada mais é do que comparar a obra tal qual é com a obra tal qual ela própria queria ser.

Para concluir, tenho a consciência da impossibilidade de dar conta da riqueza do pensamento estético e hermenêutico de Luigi Pareyson neste breve
artigo e nem tal pretensão me movia quando me decidi a escrevê-lo. Este texto tem apenas a intenção de formular um convite aos que chegaram até aqui, com
indagações e dúvidas, para que agendem um encontro pessoal com a estética do autor.

BIBLIOGRAFIA

CAMÕES, Luís Vaz de – Os Lusíadas.Porto, Porto Editora, 1985.


GARCEZ, Maria Helena Nery – Alberto Caeiro/”Descobridor da Natureza”? Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1985.
PAREYSON, Luigi – Os problemas da estética. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1984.
PESSOA, Fernando – Obras em prosa. 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Aguilar, 1976.
________________ Obra poética. 4ª ed., Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1972.

1. Professora Titular (aposentada) de Literatura Portuguesa da FFLCHUSP.


Grupo de Pesquisa do CNPq: A interpretação na Arte e nas Ciências Humanas segundo o pensamento de Luigi Pareyson.

Créditos.

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