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Esta pesquisa se situa no campo da Teoria e História da Historiografia, e tem como

meta principal analisar certas dimensões do fenômeno do tempo histórico (do ponto de
vista de sua interpretação e experiência) através da ideia de kairós. Esta palavra de origem
grega é utilizada para nomear o “tempo” de uma forma bastante diferente da ideia de
chronos, que se tornou a forma dominante de pensar o tempo na tradição filosófica
ocidental, incluindo a historiografia. De modo mais resumido possível, essa diferença
reside no fato de kairós não designar o tempo como uma sequência fixa e neutra de
“agoras” pontuais e vazios, mas sim a experiência “qualitativa” da temporalidade, o
“momento oportuno” para agir ou falar, tendo em vista as demandas e possibilidades de
cada situação histórica concreta. Sendo um conceito central para diferentes tradições, tais
como a retórica, teologia e filosofia, a ideia de kairós pode oferecer contribuições
decisivas para o pensamento histórico, sobretudo para as discussões sobre a
temporalidade e suas implicações para a pesquisa e a escrita da história.
Nesta pesquisa, o kairós é apresentado e discutido como um paradigma
fundamental do tempo histórico. A forma da experiência que melhor revela esse aspecto
kairológico do tempo histórico é o acontecimento – conceito que deve ser compreendido
em seu sentido fenomenológico. Assim, o acontecimento não é uma “ocorrência”
qualquer, mas se dá efetivamente como uma descontinuidade radical, uma ruptura com
um estado de coisas que envolve, por um lado, uma condição de crise, e por outro lado, a
abertura de novos horizontes de possibilidades, o que supõe um papel ativo por parte do
sujeito histórico no sentido de aproveitar ou não essa abertura de forma apropriada. A
temporalidade do acontecimento possui, portanto, um sentido manifestamente
kairológico, que perfaz o seu índice histórico (ou melhor, a sua historicidade) mais
fundamental, e que deve ser exposta ao longo deste trabalho.
Essas experiências kairológicas do acontecimento histórico foram ao longo do
tempo articuladas e transmitidas por meio da linguagem, e esta pesquisa selecionou como
seu objeto de análise uma dessas formas de transmissão: os manifestos. Trata-se de um
gênero textual tipicamente moderno, cuja intencionalidade básica é intervir em um estado
de coisas e transformar o curso da história. Esses textos tanto geram quanto demarcam
uma ruptura histórica, sendo ao mesmo tempo um reflexo e um instrumento para a
mudança, em função de sua linguagem fortemente performativa. Nesse sentido, os
manifestos foram mobilizados ao longo da modernidade como um dispositivo
comunicacional estratégico nas disputas por poder e reconhecimento, conjugando uma
apreensão crítica da situação histórica e um “chamado à ação” para responder ao
momento decisivo que o texto busca apresentar ao seu público.
Assim, esta pesquisa toma como fenômeno de base a publicação de alguns
manifestos, de modo a fazer ver o modo como eles apreendem a historicidade da
experiência desde um ponto de vista kairológico. Os manifestos selecionados para a
análise são: o Kairos Document (publicado em 1985 por um grupo de teólogos sul-
africanos no contexto da luta pelo fim do Apartheid); alguns manifestos das vanguardas
modernistas que emergiram nas primeiras décadas do século XX (em especial os
manifestos futuristas, simultaneísta, nunista, estridentista e o Manifesto Antropófago); e
o manifesto You are not a Gadget (publicado em 2010 por Jaron Lanier e que trata sobre
os impactos radicais que a Web 2.0 introduziu na vida social, política e cultural). A análise
pretende demonstrar que o que esses textos manifestam é, em última instância, a
historicidade do acontecer como ruptura e possibilidade: o kairós histórico.
É importante esclarecer que a diversidade contextual e temática entre esses
manifestos não constitui uma barreira hermenêutica para a realização deste trabalho; ao
contrário, ela o reforça na medida em que seu interesse preciso é analisar o modo como
esses textos articulam e transmitem o tempo histórico enquanto acontecimento e kairós.
Outro critério utilizado para essa escolha foi a pluralidade geográfica entre esses textos
(África do Sul, Europa, México, Estados Unidos e Brasil), que responde a uma
preocupação em ampliar as possibilidades de pesquisa histórica para além dos marcos do
eurocentrismo – o que aproxima este trabalho da ideia de “histórias transnacionais”. Por
fim, esse estudo temático acerca do kairós histórico procura refletir sobre as crises e
oportunidades que a condição histórica contemporânea apresenta, o que permitirá a esta
pesquisa oferecer uma contribuição para os debates mais recentes sobre o tempo histórico,
em especial as discussões, sobre presentismo (François Hartog), atualismo (Valdei Araujo
e Mateus Pereira) e o fim da história (especialmente a formulação dada por Francis
Fukuyama).
Na parte final da tese, após a análise documental, será feito um esforço de
sistematização de seus resultados em direção a uma teoria do kairós histórico. Nesse
ponto, a tese irá se deparar com a seguinte pergunta: o que exatamente fundamenta a
possibilidade de atribuir ao instante (kairós) um caráter de “histórico”? Para responder
essa pergunta de forma adequada, não basta apenas levar em conta questões
metodológicas sobre a historiografia. É necessário construir uma investigação que
considere o conceito de historicidade em sua dimensão ontológico-existencial. Desvelar
essa dimensão e identificar as suas consequências para a epistemologia da historiografia
será o objetivo da segunda parte deste trabalho. Desta feita, as relações entre acontecer,
historicidade e kairós serão abordadas desde um ponto de vista mais conceitual e
sistemático.
Nesse ponto, a pesquisa partirá do princípio de que as condições que prefiguram
a escrita da história não são estritamente historiográficas, mas são também ontológico-
existenciais. Refletir sobre essas condições não significa defender sub-repticiamente uma
ideologia do “sujeito universal”; trata-se, antes, de considerar a historicidade como um
fenômeno complexo que designa uma condição existencial fundamental, isto é, um modo
de ser do humano cuja inteligibilidade temporal não se apresenta simplesmente como um
fluxo de atualizações dispostas na série antes/depois (cronos), mas envolve o acontecer
disruptivo de um tempo saturado de possibilidades históricas (kairós). Para dar conta
dessa dimensão, a tese propõe uma discussão mais conceitual em torno de duas
perspectivas teóricas que, a despeito das substanciais diferenças de origem entre eles (ou
mesmo em função delas), convergem para o tema do kairós histórico.
A primeira perspectiva a ser analisada foi proposta por Walter Benjamin e está
sintetizada no conceito de tempo-de-agora (Jetztzeit). Aliás, não deve passar
despercebido o fato de Benjamin, um reconhecido esteta da forma, ter estruturado as suas
teses Sobre o conceito de história ao modo de um manifesto, como se este fosse a forma
apropriada para apresentar a ideia de tempo e história que o conteúdo das teses quer
expressar. O tempo-de-agora inscreve-se como ação e pensamento: designa tanto o
momento da ação revolucionária, como também fundamenta a possibilidade de conhecer
o passado, enquanto o “agora de sua cognoscibilidade”. A imagem do passado (e em
Benjamim o passado sempre se apresenta como imagem) não possui a eternidade de algo
já acabado e morto, mas apresenta-se como um “lampejo”: em cada “instante de perigo”
o passado adquire uma imagem única, cuja aparição é breve e, caso não seja capturada
pelo sujeito histórico, passará para nunca mais ser vista. Assim, a meta da historiografia
segundo Benjamin não é representar o passado “tal como ele propriamente ocorreu”, mas
capturar a imagem que se apresenta no tempo-de-agora como uma possibilidade passada,
à espera de ser realizada. É nesse sentido que pensamento e ação são conjugados a partir
de uma reorientação decisiva na ideia de tempo operada por Benjamin. Faz-se necessário,
assim, considerar com maior profundidade a maneira como o pensador alemão aborda o
tema do kairós histórico e suas implicações para a tarefa e função da historiografia.
O segundo conceito refere-se ao instante da decisão [Augenblick], central nas
formulações sobre o ser, a temporalidade e a historicidade que Martin Heidegger
apresentou em Ser e tempo e outros escritos coetâneos. O instante da decisão é a forma
como Heidegger designava a estrutura existencial mais autêntica/própria da
temporalidade Dasein, esse ente que somos a cada vez e cuja determinação fundamental
consiste em ser originariamente segundo o modo da possibilidade. Se, como afirma a tese
central do tratado, o sentido do ser da existência é temporal, esta deve assumir uma
arquitetura radicalmente diferente daquela que a tradição metafísica ocidental sedimentou
como a ideia “vulgar” de tempo, que o assume como sucessão contínua dos agoras
pontuais (cronos). Dessa nova arquitetura (kairológica) da temporalidade, que reflete a
descrição ontológica do Dasein, deriva um conceito renovado de história enquanto
historicidade ou, mais precisamente, a possibilidade (potência) de ser histórico,
fenômeno que se manifesta precisamente como um acontecer. Isso traz implicações
decisivas para a ciência historiográfica, as quais também serão discutidas no decorrer da
análise.
Para concluir, apresento os objetivos (geral e específicos) que orientam esta
pesquisa:

a) Desenvolver um estudo sobre o tema das historicidades e do acontecimento a partir


do conceito temporal de kairós, de modo a oferecer uma contribuição para o debate
teórico contemporâneo sobre o tempo histórico;
b) Articular uma análise interpretativa sobre os manifestos, considerando-os como um
fenômeno situado nas fronteiras entre texto e ação, e que oferecem um ponto de vista
privilegiado para pensar as relações entre acontecimento, historicidade e kairós;
c) Construir uma investigação que, conjugando reflexão teórica com pesquisa e análise
de fontes, aborde o tema das historicidades a partir de formas “alternativas” de
apresentação da história (os manifestos), de modo a contribuir para o alargamento do
campo de objetos possíveis da Teoria e História da Historiografia;
d) Elaborar uma compreensão sobre a relação entre historicidade, acontecimento e
kairós situada nas fronteiras entre a epistemologia com as esferas da ética, estética e
da ontologia que constituem a historicidade enquanto um fenômeno complexo e
multidimensional.

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