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A OMC tem futuro?

por Clodoaldo Hugueney Filho em 27/02/2015

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A Organização Mundial do Comércio vive um


momento decisivo. A difícil situação econômica e
as mudanças estruturais por que passa a entidade
criam um cenário complicado para a conclusão da
Rodada Doha e, em consequência para a própria sobrevivência da OMC, apesar dos ingentes esforços, às
vezes ao menos parcialmente bem-sucedidos, de seu diretor-geral, o brasileiro Roberto de Azevêdo. Para o
Brasil, como grande exportador agrícola e país que mantém níveis muito reduzidos de apoio doméstico à sua
agricultura e não subsidia suas exportações, a conclusão da Rodada será um passo importante para trazer a
área de agricultura para dentro das regras da OMC. O sucesso, favorável a todos, depende de uma ativa
participação do Brasil, tanto porque interesses fundamentais brasileiros estão em jogo no futuro do sistema
multilateral de comércio, como porque a partir da Rodada de Doha o papel brasileiro na OMC cresceu.

O cenário atual

De tempos para cá o noticiário sobre as negociações na OMC tem sido consistentemente negativo. Por um lado,
a Rodada de Doha já é dada como morta, faltando apenas realizar o enterro. Os resultados alcançados em Bali
foram considerados, por uns, irrisórios e sem significação, sinalizando que o pacote tão duramente construído
antes de Bali, com ingentes esforços do diretor-geral Roberto Azevêdo, e depois quase bloqueado em Bali,
onde de novo Azevêdo foi incansável em tentar salvá-lo, não seria capaz de colocar a OMC nos trilhos e de
abrir caminho para a conclusão da Rodada. Outros reconheceram sua significação após anos de fracassos, mas o
consideraram desequilibrado ao apresentar como principal resultado o acordo de facilitação de comércio.
Destes alguns, aqui no Brasil e em outras partes, queixavam-se da falta de avanços na liberalização da
agricultura. Outros, pelo contrário, consideravam que os interesses da segurança alimentar haviam sido postos
de lado. Essas dissensões refletem tanto posições e interesses divergentes, como o cansaço com uma
negociação que já se arrasta por mais de dez anos e a perda de credibilidade do processo com desmobilização e
desincentivo para negociar.

Esse clima voltou a prevalecer após Bali e terminou por quase fazer fracassar o acordo, quando o novo governo
indiano bloqueou sua implementação, exigindo um entendimento sobre estoques públicos de alimentos. Na
verdade, o pacote quase soçobrou, não só pela posição da Índia, mas pela falta de entusiasmo com o que havia
para implementar. O insucesso do pacote seria assim a pá de cal na Rodada em circunstâncias onde, muitos dos
que nela já não tinham interesse, não teriam que assumir o ônus do fracasso. No apagar das luzes, o acordo
finalmente alcançado entre os EUA e a Índia, o que, aliás, era previsível que ocorresse cedo ou tarde, pôde ser
homologado em Genebra e o ano de 2014 termina com um desfecho não tão negativo. De novo, poucos deram
atenção ao ocorrido mostrando que as negociações na OMC já não despertam tanto interesse.

Enquanto isso, do outro lado do mundo, assistíamos a uma maratona de reuniões que começou com a reunião
da APEC em Pequim. Na verdade, como sempre acontece com essas grandes cúpulas muitas das decisões
importantes ocorreram em encontros bilaterais à margem das reuniões. Na área de comércio, o encontro entre
os presidentes Xi Jinping e Obama foi ocasião para o anúncio da adesão da China ao acordo sobre produtos de
tecnologia da informação (ITA, na sigla em inglês) numa mudança de posição da China que reflete a reforma
em curso rumo a um novo modelo de crescimento e sinaliza a opção chinesa por seguir avançando em seu
processo de abertura. Foram também anunciados os acordos de livre-comércio entre a China e a Austrália, que
vinham sendo negociados há cerca de dez anos, e o acordo China-Coreia do Sul, cuja negociação seguiu seu
curso, enquanto a negociação do acordo trilateral China-Coreia do Sul-Japão, ficava prejudicada pelas
divergências políticas entre a China e o Japão.

Outros acordos e entendimentos ainda poderiam ser citados, mas o que importa ressaltar é a demonstração de
vitalidade dada pela região da Ásia-Pacífico, que atrai cada vez mais os interesses do mundo, e o fato de que os
países da região, com a China à frente, perseguem uma agenda comercial de abertura, integração de cadeias
produtivas e modernização industrial e tecnológica. Com exceção do acordo entre os EUA e a UE a agenda de
negociação comercial hoje concentra-se na região asiática e do Pacífico, refletindo o deslocamento do centro da
globalização para essa região. Enquanto isso, aqui no Brasil seguimos com uma política comercial que não mais
responde aos interesses de nosso desenvolvimento e às mudanças em curso no cenário global.

O noticiário sobre a OMC concentra-se no episódico e reflete posturas negociadoras que não têm a ver com a
realidade atual. Os despachos sobre as reuniões na área do Pacífico mostram uma parte de um cenário que é
muito mais complexo e desafiador. O universo do lago Léman segue girando ao redor dos textos que estão de
há muito sobre a mesa com certo descaso pelo cenário maior e com a previsível perda de substância e
significação. Como o primo pobre das organizações de Bretton Woods o GATT deixou para a OMC um duplo
legado: uma certa relutância a olhar o cenário maior e a colocar os temas de comércio no contexto
macroeconômico e uma tradição negociadora centrada na interminável barganha por concessões cada vez mais
difíceis de obter com o aumento do número de participantes e com a ampliação da agenda das negociações. No
velho GATT esses traços eram mais facilmente absorvidos, pois a organização era comandada por um grupo
pequeno de países que dominavam a maior parte do comércio mundial e a liderança conceitual e programática
do Fundo e do Banco eram incontestes. Na OMC, com mais de 180 membros com interesses muito divergentes
e com uma distribuição maior do poder favorecendo um enfoque multilateral baseado no consenso, e ante um
cenário internacional complexo, a falta de visão geral e a cultura de negociação gattiana, contribuíram para a
paralisia do processo negociador.

Ainda mais num momento como o atual, marcado por uma conjuntura negativa e pelas transformações
estruturais em curso, profundas e complexas. Estamos simplesmente frente a um processo de desestruturação do
ordenamento internacional montado no pós-guerra e diante da incapacidade de desenhar novas regras e
instituições que deem respostas aos desafios do século XXI. Trata-se de uma crise sistêmica que abarca as
formas de regulação da economia, da política e das relações internacionais. Esse será um período longo de
transição e o porto final ao qual chegaremos é incerto.

A conjuntura atual está marcada pela incerteza com relação aos rumos da economia global. Mesmo nos EUA,
onde os sinais de recuperação são mais positivos, ainda existem interrogações importantes na área econômica,
mas não só nela como mostram as análises sobre as vicissitudes do sistema político e sobre as respostas às
crises externas. Na Europa e no Japão o panorama na área econômica é muito mais preocupante. Nos países
emergentes e no mundo em desenvolvimento, em geral, as taxas de crescimento estão arrefecendo mostrando
que numa economia globalizada não há ilhas isoladas de prosperidade. Na própria China, que hoje responde por
cerca de 30% do crescimento mundial, os desafios para levar adiante as reformas e sustentar taxas de
crescimento da ordem de 7% são crescentes. O rebalanceamento interno pode ter começado, mas o crescimento
do saldo comercial chinês e a divergência entre as performances de exportação e importação mostram que
novos ajustes serão necessários para fazer avançar o rebalanceamento externo. Por outro lado, a mudança no
panorama energético e a queda recente nos preços do petróleo produzirão câmbios nos fluxos financeiros de
grande magnitude e podem alimentar o reordenamento em curso na economia global.
Assiste-se a um deslocamento do poder econômico, que antecede a crise, mas foi por ela acelerado. Esse
deslocamento tem uma dimensão Norte-Sul, com os países em desenvolvimento concentrando hoje uma
percentagem crescente do PIB e do comércio mundial, com fluxos crescentes de comércio e investimento entre
eles, e uma dimensão Leste-Oeste, com a região do Pacífico suplantando o Atlântico como centro e motor da
globalização. Nessas condições, vemos o crescimento de forças favoráveis a uma redistribuição do poder e
forças que se contrapõem e tentam preservar a ordem vigente.

O que vem ocorrendo na OMC é um episódio menor desse roteiro maior em desdobramento. As dificuldades
em concluir a Rodada de Doha estavam presentes em seu nascimento e no DDA, e davam a impressão de que
se assistiria a uma profunda transformação na organização no sentido de um processo decisório mais
equilibrado e transparente e de uma abordagem dos temas de desenvolvimento não como exceções, mas como
princípios centrais, e uma integração da agricultura nas disciplinas da OMC. Como toda transformação
importante ela passou por avanços e retrocessos: as negociações agrícolas e a atuação do G20 são bons
exemplos dessas idas e vindas. Enquanto a Rodada se desenvolvia as transformações no mundo foram se
acelerando e novos desafios foram sendo colocados com o surgimento de temas fora da agenda e o
deslocamento do interesse negociador para outras áreas. Exemplos dessas tendências são o foco em cadeias
globais de valor e nos temas de regulação e a interpenetração entre temas comerciais e geopolíticos presente no
lançamento das negociações do TTP e do TTIP. A essas dificuldades estruturais veio juntar-se a maior crise
econômica desde a crise de 1929, a qual, como aquela, teve seu epicentro nos países desenvolvidos, mas afetou
todo o mundo. Se não houve um protecionismo sistêmico, o que se deve, em parte, à OMC, também seria muito
esperar que a liberalização comercial caminhasse, ainda mais quando boa parte dela recairia nas políticas
agrícolas dos países desenvolvidos onde o desemprego atingiu níveis críticos.

Que a OMC tenha resistido e preservado, ainda que de forma precária, seu papel como foro negociador e seu
sistema de solução de controvérsias, é uma demonstração de que a organização segue sendo vista pelos seus
membros, desenvolvidos e em desenvolvimento, como uma instituição e um conjunto de regras relevantes e
mesmo essenciais. Na verdade, a relevância da OMC cresceu com a crise e com as transformações em curso.
Sem a âncora da OMC e do sistema multilateral de comércio um mundo mais multipolar, como o que ora se
desenha, com potências e cadeias produtivas regionais, poderia evoluir para um mundo de blocos com modelos
excludentes de regulação. Além disso, a busca por mercados como forma de sair da crise poderia levar a uma
competição selvagem onde ao final todos perderiam. Esses desafios seguem presentes reafirmando a
necessidade de fortalecer o SMC e seu pilar central a OMC.

A conclusão da Rodada de Doha


Os resultados de Bali, que agora voltam a ser vistos como um pacote passível de implementação, deram algum
alento ao foro e hoje volta a ser possível pensar numa agenda pós-Bali e em uma reforma da OMC. Bali não era
Doha e o pacote aprovado era o possível, mas entreabriu as portas para pensar o futuro. Como sempre este
herdará um passado e a necessidade de concluir, ainda que de forma menos abrangente, a Rodada. As
dificuldades do momento não aconselham uma ambição elevada que já se mostrou difícil de alcançar em
melhores momentos. Pensar o futuro sem concluir a Rodada deixaria uma ferida aberta que só dificultaria o
consenso sobre as reformas necessárias para garantir a relevância da OMC no futuro, as quais, para serem
duradouras, necessitam estar apoiadas em forte consenso. Tentar pensar as duas questões em conjunto é
possível, mas difícil, porque criaria um novo equilíbrio negociador e porque as reformas requerem tempo para
maturar e melhores dias para serem aprovadas. Para mim, o futuro da OMC depende da conclusão da Rodada.

Nesses dois temas temos interesses estratégicos. Devemos rever nossas posições e atuar de forma propositiva e
determinada para mover as negociações da Rodada a bom termo e para pensar e acordar em Genebra qual OMC
desejamos para o século XXI. A conclusão da Rodada é o primeiro passo. Para o Brasil, como grande
exportador agrícola e país que mantém níveis muito reduzidos de apoio doméstico à sua agricultura e não
subsidia suas exportações, a conclusão da Rodada será um passo importante para trazer a área de agricultura
para dentro das regras da OMC, limitando os abusos dos grandes subsidiadores. Será também uma
oportunidade para repensar nossa política comercial e sua agenda externa. A finalização das negociações pode
ser o cenário para trocarmos mudanças em nossas políticas comercial e industrial, que teríamos mesmo que
fazer, por concessões de nossos parceiros comerciais.

Devemos reativar nossas alianças, a começar pelo G20 e retomar o diálogo com os principais parceiros sobre os
rumos da Rodada. Ao fixar o final de 2015 como um momento possível para se chegar a um acordo sobre
estoques públicos de alimentos o acordo que permitiu retomar o pacote de Bali criou uma data que pode servir
como catalisadora para mobilizar as negociações. As alternativas em termos da Rodada seriam decretar seu
fracasso, o que não será feito formalmente, mas ocorrerá por negligência ou abandono ante a impossibilidade de
conjugar esforços para um consenso possível; seguir almejando um pacote ambicioso o que provavelmente
demandará tempo e redundará no abandono das negociações ante a perda de interesse na Rodada, ou seja,
cairíamos na primeira alternativa; tentar construir um acordo possível até o final de 2015 que possa levar à
conclusão da Rodada ou como alternativa a um novo early harvest.
O tema da segurança alimentar é central e destrinchá-lo envolverá tratar de outros temas igualmente relevantes.
Como em agricultura os novos programas postos em vigor nos EUA e na UE têm vigência até o final da década
podemos pensar em resultados nessa área que procurem combinar redução de níveis de subsídios, sobretudo na
UE, e mudanças em programas vinculados à produção, em particular nos EUA, que sejam implementados ao
final do período de implementação da Rodada. Ao mesmo tempo se pode consolidar a eliminação dos subsídios
à exportação. Em acesso a mercados em agricultura e NAMA o nível de ambição teria que ser acomodado para
concentrar-se em consolidação, com alguns cortes em tarifas muito altas e tarifas aplicadas. A ênfase estaria
mais em equilíbrio do pacote do que em ambição. Um acordo dessa natureza dadas às circunstâncias da
economia mundial, se obtido no correr do próximo ano, poderia ter um impacto positivo na recuperação.
Poderia estar amarrado a um programa de trabalho para tratar temas pendentes, inclusive o aprofundamento dos
cortes nas barreiras nas fronteiras. Além disso, um acordo equilibrado ainda que limitado daria novo alento à
OMC e abriria caminho para a definição de uma nova agenda para a organização.

A agenda futura

Não há, nas circunstâncias atuais, nem liderança, nem capacidade de formulação, para levar adiante reformas.
As das instituições de Bretton Woods languidescem. Das do Conselho de Segurança já nem se fala tanto. Mais
que um mundo de gravidade zero, vivemos um momento no qual uns defendem o presente e veem o futuro
como mais do mesmo, enquanto outros pensam em algo diferente, mas não conseguem articular o que seria,
nem têm a capacidade e a disposição para tentar colocá-lo em prática. Vemos sinais insipientes de formas
alternativas de articulação (BRICS) e de respostas multilaterais inovadoras (Novo Banco de Desenvolvimento,
Banco Asiático de Infraestrutura).

É claro que a negociação comercial pode dar-se em outros foros, mas isso não é novidade. No momento atual,
ante as dificuldades da OMC e com o interesse negociador deslocando-se para uma nova agenda, como
exemplificado pelos mega-acordos, pode-se arguir que ao negociar 50% do comércio mundial e cobrir nessa
negociação temas que estão ou fora da agenda da OMC ou nela encontram abrigo limitado, se estaria criando
uma nova estrutura multilateral, semelhante às mencionadas acima, a qual refletiria o novo multilateralismo do
mundo multipolar. No entanto, tais negociações enfrentam as mesmas dificuldades para sua conclusão ligadas
ao momento atual e às mudanças estruturais, como o crescimento do movimento antiglobalização e a volta ao
debate dos temas da equidade e da distribuição, fenômenos que estão em parte ligados.

A antiglobalização tem uma face mais tradicional ligada aos movimentos sindicais e à crítica de seu aspecto
excludente e concentrador. Mais recentemente, contudo, esse movimento vem ganhando uma dimensão política
mais ampla ligada ao crescimento do nacionalismo e à desconstrução do mundo pós-liberal e de seus mitos.
Hoje as forças da globalização ainda prevalecentes e que ancoram o multilateralismo comercial encontram
rivais poderosos na construção de espaços regionais ou nacionais à margem da economia global ou com
vínculos decrescentes com o mundo globalizado.

Mudar de foro não elimina os problemas. Na verdade, a globalização requer uma instância reguladora
multilateral a qual se tornará cada dia mais relevante à medida que as transformações em curso na geografia do
comércio mundial, na integração de cadeias produtivas e na tecnologia vão colocando novas questões na agenda
que requerem soluções globais. Nessas circunstâncias, a reflexão sobre o futuro da OMC já começou na
academia, nos governos, na sociedade civil. Mesmo dentro da OMC essa reflexão não é nova, pois a
organização vem evoluindo desde sua criação.

Uma alternativa seria seguir esse caminho de transformações graduais, ad hoc e ao sabor dos acontecimentos, o
que teria a vantagem de evitar um debate sistêmico e a busca de um consenso difícil. Outra seria criar um
espaço para a reflexão e o desenvolvimento de uma agenda de reforma e abrir uma negociação da OMC do
século XXI, em linha com as transformações em curso e capaz de dar respostas aos novos desafios.
A linha das transformações graduais dificilmente responderá ao desafio de criar uma OMC do século XXI.
Ante a crise institucional que o mundo atravessa, tanto dentro dos países, como em escala global, faz-se
necessário um esforço de criação de novas regras e de instituições renovadas que consigam ancorar, não só a
globalização, mas a multipolaridade. Na verdade, a OMC, entre as organizações multilaterais, tem melhores
condições de preparar-se para o futuro e de desenhar as regras de um novo multilateralismo comercial, porque a
globalização lhe dá combustível, sua relevância segue sendo reconhecida e sua área de atuação não toca em
questões nevrálgicas da redistribuição do poder, como acontece com a reforma do Conselho de Segurança e as
mudanças nas instituições de Bretton Woods. Na verdade, a redistribuição do poder na área de comércio
mundial está em curso e será impossível revertê-la. Além disso, a OMC foi produto de uma grande
transformação a partir do GATT e a Rodada revelou uma nova capacidade de articulação dos países que não
estavam no centro das decisões e uma valorização da instância multilateral. Ou seja, as reformas já começaram
e tampouco será possível revertê-las.

Construir uma agenda sobre o futuro da OMC demandará tempo e não pode ser uma tarefa exclusiva de
negociadores comerciais. Ela deve envolver um processo amplo de consultas e a construção gradual de
consensos a partir das capitais. Essas tarefas pré-negociadoras poderiam ir sendo desenvolvidas enquanto se
procura concluir a Rodada. Em termos de agenda, uma reforma desse tipo da OMC e do sistema multilateral de
comércio poderia envolver cinco grandes áreas:

i) Nunca é demais começar pelos princípios e aí creio que dois temas são importantes: a correlação entre
desenvolvimento, liberalização e distribuição e a transformação das regras sobre países em desenvolvimento de
exceções do tipo S and D, em regras gerais. Os dois temas estão interligados. No primeiro, tratar-se-ia de dar
uma dimensão macro ao debate comercial elevando o perfil da OMC. A escolha do tema tem a ver com os
debates atuais sobre concentração da riqueza, que hoje é do interesse de países desenvolvidos e em
desenvolvimento. Ao mesmo tempo, esse tema abre caminho para a contribuição do comércio internacional e
da liberalização comercial para o desenvolvimento, permitindo repensar a dicotomia Norte-Sul. Um novo
enfoque para a ligação entre comércio e desenvolvimento permitiria construir um conjunto de regras que
superasse a ótica atual de ver o desenvolvimento como a conclusão natural de um processo de abertura e de
integração nas regras do sistema multilateral de comércio, o que tende a reduzir as medidas na área comercial
em favor dos países em desenvolvimento a medidas de tratamento especial e diferenciado, que cada vez se
concentram mais em uma mera postergação de obrigações;
ii) A OMC como foro negociador tem que enfrentar as questões relativas à estrutura e método de negociação
da OMC, nas quais dois temas sobressaem: a negociação em Rodadas, com base no single undertaking, e o
caráter multilateral ou plurilateral do processo negociador e dos acordos obtidos. No primeiro caso, as
vicissitudes da Rodada de Doha e a implementação de seus resultados a conta-gotas indicariam que a forma de
negociar em Rodadas deveria ser revista e que o single undertaking já não tem vigência. O segundo tema é
complexo e tem a ver com a essência de um sistema multilateral de comércio. Ao mesmo tempo, as
negociações plurilaterais são uma realidade e os interesses dos países em avanços em diferentes temas são
muitas vezes divergentes ou mesmo opostos. Como integrar as duas formas de negociação e as regras daí
resultantes é um desafio que terá que ser enfrentado;
iii) A agenda da organização teria que passar por um aggiornamento em três áreas: na área de reflexão
aprimorando as análises e o diálogo com a academia e a sociedade civil. Esse processo já está em curso, mas
poderia ser ampliado; na área de cooperação consolidando os programas de Aid for trade e a assistência aos
LDCs; na área de negociação incorporando novos temas, como questões cambiais e trabalhistas, dando a temas
antigos, como barreiras na fronteira, um novo enfoque em linha com a abordagem das cadeias de valor e os
temas de regulação. Essas questões junto com muitas outras comporiam uma agenda nova para a OMC dando à
organização uma dimensão mais abrangente. Além disso, a questão da nova agenda estaria intimamente ligada
ao tema da relação entre multilateralismo e negociações plurilaterais;
iv) As mudanças teriam que abarcar também as formas de articulação dentro da organização e os processos de
negociação. Uma parte da perda de relevância da OMC como foro negociador tem a ver com a dificuldade na
construção de consensos o que se deve em parte à agenda, mas também aos métodos de negociação e trabalho,
que o anterior DG Pascal Lamy chamou de “medievais”. No caso da articulação de posições e da atuação em
grupos se poderia valorizar as articulações temáticas, com foco preciso, como o G20, o Grupo de Cairns e o
G33, reduzindo o papel das divisões de tipo Norte-Sul. Quanto ao processo negociador se poderia inovar na
inter-relação entre pequenos grupos como o Green Room e o antigo Grupo dos 18 e processos multilaterais;
v) Finalmente, seria importante voltar a olhar os procedimentos do sistema de solução de controvérsias
abarcando desde temas gerais, como retaliação e questões relacionadas com a prática e as decisões do Órgão de
Apelação, até questões práticas como apoio à participação nos litígios.
Não cabe aqui desenvolver esses temas ou mesmo tentar formular lista exaustiva de questões. Esse menu
deveria estar aberto e ir sendo consolidado através de debates na fase inicial pré-negociadora. A negociação em
si, caso fosse encetada, deveria aguardar uma conjuntura mais favorável.

Conclusão

As considerações acima se referem, em grande parte, ao papel da OMC como foro negociador. É claro que a
organização tem outras funções importantes, mas se sua função negociadora se vir debilitada a OMC perderá
boa parte de sua importância e cederá espaço a outros foros de negociação bilateral e plurilateral. Como
consequência, as demais funções da organização, em particular seu papel de pilar do sistema multilateral de
comércio e seu sistema de solução de controvérsias também se debilitarão. É chegada a hora de reconhecer o
desafio por que passa o sistema multilateral de comércio e atuar para reverter seu enfraquecimento.

Assim, o Brasil, membro fundador do GATT e país que sempre valorizou o sistema multilateral de comércio e
o foro da OMC para negociações comerciais, deveria engajar-se decididamente no programa pós-Bali
trabalhando pela conclusão da Rodada e desenvolvendo um exercício interno de reflexão sobre o futuro da
OMC. Na Rodada de Doha o Brasil alcançou um novo perfil nas negociações em Genebra. Isso dá ao país
credibilidade para construir consensos e exige responsabilidade em termos de uma contribuição para o sucesso
das negociações e a reforma da OMC. Esse exercício de reflexão e negociação deveria estar integrado em uma
revisão abrangente da política comercial brasileira que levasse a uma maior integração da economia brasileira
na economia internacional e a uma participação das exportações brasileiras nos fluxos mais dinâmicos do
comércio mundial.
O Itamaraty – que tem os melhores quadros em termos de negociação comercial e de conhecimento do sistema
multilateral de comércio e que sempre liderou a coordenação de nossas posições negociadoras para a OMC –
deveria ter todo o apoio para realizar um trabalho de atualização de nossas posições na Rodada, definir os
contornos de um pacote negociador possível e formular uma posição brasileira sobre o futuro da OMC.

Minha resposta à pergunta do título é, claro, sim. Mas a construção do futuro da OMC demandará grande
esforço, dadas às circunstâncias atuais, as mudanças em curso na ordem global, o debilitamento do
multilateralismo e das regras e instituições que a sustentam e a mobilização de forças contrárias ao seu
fortalecimento. O texto acima indica alguns caminhos possíveis. Ao mesmo tempo, procura mostrar que as
escolhas dos caminhos e o resultado final exigem uma ativa participação do Brasil, tanto porque interesses
fundamentais brasileiros estão em jogo no futuro do sistema multilateral de comércio, como porque a partir da
Rodada de Doha o papel brasileiro na OMC cresceu e hoje temos um brasileiro à frente da organização. Pelo
futuro da Rodada e da OMC devemos estar preparados para ter ativa participação e dar nossa contribuição para
a conclusão da Rodada e para o desenho da OMC do século XXI.

Janeiro de 2015

ESTA MATÉRIA FAZ PARTE DO VOLUME 23 Nº3 DA REVISTA POLÍTICA EXTERNA

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