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FABIANO DE LEMOS BRITTO

CRÍTICA E MODERNIDADE EM FOUCAULT

UMA TRADUÇÃO DE “QU’EST-CE QUE LA CRITIQUE ? [CRITIQUE ET


AUFKLÄRUNG], DE MICHEL FOUCAULT

Rio de Janeiro
2005
FABIANO DE LEMOS BRITTO

CRÍTICA E MODERNIDADE EM FOUCAULT

UMA TRADUÇÃO DE “QU’EST-CE QUE LA CRITIQUE ? [CRITIQUE ET


AUFKLÄRUNG], DE MICHEL FOUCAULT

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.

Orientador:
Ricardo José Correa Barbosa

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Rio de Janeiro
2005

2
CRÍTICA E MODERNIDADE EM FOUCAULT

UMA TRADUÇÃO DE “QU‟EST-CE QUE LA CRITIQUE ? [CRITIQUE ET


AUFKLÄRUNG], DE MICHEL FOUCAULT

Fabiano de Lemos Britto

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Filosofia.

_______________________________________________

Prof. Ricardo José Correa Barbosa – Orientador

_______________________________________________________

Prof. André Queiroz

________________________________________________________

Prof. Luiz Bernardo Leite Araújo

3
Para Oréstia, irmã na insurreição.

4
Talvez já não seja possível mensurar a importância de algumas presenças que,
mais que eu mesmo, escreveram esse texto. A constante confiança e a firme amizade do
professor Ricardo Barbosa são amplamente responsáveis por todo um trabalho do qual
essa dissertação é apenas o resultado mais acabado – seria preciso agradecê-lo por uma
trajetória inteira. A prontidão com que os professores André Queiroz e Luiz Bernardo se
apresentaram para compor a banca desse trabalho apenas reforça minha admiração e
meu respeito em relação a eles. Há também os que escreveram o avesso desse texto:
Pedro Lemos, Leonardo Teixeira, Maria Celeste, José Estrela, Luisa Daou, Diego Terry.
Somente alguns conhecem os becos de cada uma dessas palavras – para eles, um
silêncio, não de descanso, mas de promessa.

Esse trabalho contou com o apoio de uma bolsa de mestrado concedida pela
FAPERJ, sem a qual não poderia tê-lo concluído.

5
RESUMO

LEMOS, Fabiano. Crítica e modernidade em Foucault - uma tradução de “Qu‟est-ce


que la Critique ? [Critique et Aufklärung], de Michel Foucault. Orientador:
Ricardo Barbosa. Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005, 113 pp.

O trabalho é constituído de uma tradução da conferência de Michel Foucault,


pronunciada diante da Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978,
intitulada “Qu‟est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]”, um ensaio introdutório,
e um aparato crítico - composto de uma explicação sobre a situação do texto e um
conjunto de notas ao final da tradução. A conferência, que não foi incluída na coletânea
Dits et écrits, publicada sob a coordenação de François Ewald e Daniel Defert em 1994,
pela editora Gallimard, gira em torno da leitura que Foucault faz do artigo de Kant
“Resposta à pergunta: que é a Aufklärung?”, de 1784. Contudo, em um segundo
momento, Foucault se volta sobre seu próprio trabalho, traçando os limites e os
procedimentos daquele que poderia ser entendido como um projeto geral de seu
pensamento. Em “Caminhos do Esclarecimento”, nosso ensaio introdutório, tentamos
apontar para o modo como esses dois momentos estão conectados, ou seja, como a
leitura que Foucault faz da Aufklärung faz surgir uma nova dimensão na sua leitura de
Kant e da modernidade, uma dimensão ética que, ao mesmo tempo, o aproximaria de
certos conceitos articulados pela crítica kantiana, permitiria uma inscrição de seu
próprio trabalho na modernidade, e levaria a uma abordagem retrospectiva mais ampla
de suas próprias pesquisas. A reflexão sobre o Esclarecimento e sobre o ethos crítico da
modernidade levaria Foucault, assim, ao encontro do seu próprio trabalho, fazendo
surgir uma perspectiva onde já não seria possível falar de fases, mas se tentaria
compreender as dinâmicas de uma pesquisa sempre em movimento.

6
RESUMÉ

LEMOS, Fabiano. Crítica e modernidade em Foucault - uma tradução de “Qu‟est-ce


que la Critique ? [Critique et Aufklärung], de Michel Foucault. Orientador:
Ricardo Barbosa. Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005, 113 pp.

Le travail s‟est constitué d'une traduction de la conférence de Michel Foucault,


prononcée à la Société Française de Philosophie en 27 de mai de 1978, titrée "Qu'est-
que la Critique? [Critique et Aufklärung ]", d'une une essai introductif, et d'un un
appareil critique - composé d' une explication sur la situation du texte et un ensemble de
notes à l'fin de la traduction. La conférence, n‟étant pas enfermée dans les Dits et écrits,
édités sous la coordination de François Ewald et Daniel Defert en 1994, pour les
éditions Gallimard, tourne autour de la lecture qui Foucault fait de l'article de Kant
"Résponse à la question: qu‟est-ce que l'Aufklärung?", de 1784. Cependant,
deuxièmement, Foucault revient sur son propre travail, traçant les limites et les
procédures de ce qui pourrait être compris comme le projet général de sa pensée. Dans
"Caminhos do Esclarecimento", notre essai introductif, nous essayons de remarquer la
manière pour laquelle ces deux moments sont reliés, c‟est a dire, comment la lecture que
Foucault fait de l'Aufklärung fait apparaître une nouvelle dimension dans sa lecture de
Kant et de la modernité, une dimension éthique qui, en même temps, l'approcherait à
certains concepts articulés pour la critique kantienne, lui permettrait une inscription de
son propre travail dans la modernité, et menerait à une abordage plus large des ses
propres recherches. La réflexion sur les Lumières et l‟ethos critique de la modernité
menerait Foucault, ainsi, au rencontre de son travail même, faisant apparaître une
perspective où il ne serait plus possible de parler des phases, mais on essayerait de
comprendre les dynamiques d'une recherche toujours dans le mouvement.

7
SUMÁRIO

Introdução........................................................................................... 10

I. Caminhos do Esclarecimento
Ensaio Introdutório............................................................................ 20
1. FOUCAULT, LEITOR DE KANT
Ressonâncias, percursos, distâncias................................................................... 21

1.1. As Vozes do presente....................................................................................... 23


1.2. O enigma e seus duplos.................................................................................... 31

2. TRADIÇÃO CRÍTICA E MODERNIDADE


Da emancipação à reescritura de si..................................................................... 38

2.1. Dinastias........................................................................................................... 40
2.2. Inventários........................................................................................................ 49

3. CONCLUSÕES
A chantagem, a ousadia, a aposta....................................................................... 59

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... 62

II. O que é a Crítica? [Crítica e Aufklärung], de Michel Foucault


Tradução e notas................................................................................. 68
Sobre a situação do texto e sua tradução................................................................ 69

O que é a Crítica? [Crítica e Aufklärung]............................................................... 73

Notas....................................................................................................................... 105

8
Et qui
aujourd‟hui
dira
quoi?

Antonin Artaud

9
INTRODUÇÃO

10
No dia 4 de janeiro de 1978, Michel Foucault abre seu curso anual no Collège de
France, que recebe dessa vez o título geral Securité – territoire – population. Desde as
primeiras aulas fica claro que um movimento novo está sendo feito: surge o problema
da governamentalização, onde a leitura dos opúsculos sobre história de Kant ocupa um
papel fundamental. Paralelamente, Foucault estreita os laços com Paul Veyne e suas
pesquisas sobre a Antiguidade, o que o faz repensar todo seu projeto de uma Histoire de
la sexualité a partir de um retorno mais profundo aos gregos e aos romanos. Retorno
que abrirá uma dimensão inédita em seus trabalhos, que até então haviam se mantido
nos limites históricos da formação de nossa modernidade, recuando, no máximo, até o
Renascimento, como, por exemplo, em Les mots et les choses1. Por outro lado, podemos
também notar uma acentuada preocupação metodológica recorrente nos artigos e
entrevistas de Foucault a partir de fins dos anos setenta, e até o fim de sua vida. Não que
Foucault não tenha tido essa preocupação antes: de fato, cada novo trabalho era uma
oportunidade para reposicionar o anterior, para modular os resultados de pesquisas
antecedentes em relação aos novos resultados, estabelecendo entre estes e aqueles nexos
de continuidade que permitiriam observar a trajetória de um projeto em curso. O que
ocorre, contudo, a partir dos últimos anos da década de setenta é uma avaliação mais
geral, uma leitura mais ampla sobre quais seriam, afinal, os elementos básicos, as
pressuposições fundamentais, os objetos, os procedimentos específicos desse projeto
arqueológico-genealógico que Foucault começara a empreender desde a década de
sessenta. A governamentalização, o retorno aos antigos, a preocupação com o projeto
geral: esses três problemas não apenas convivem paralelamente em um mesmo período,
eles estão profundamente imbricados no que poderia ser considerado um momento novo
na trajetória de Foucault. Não no sentido de um desvio, de uma mudança radical, mas,
ao contrário, como o momento em que o conjunto das pesquisas se abre como que por
inteiro; como resultado, poderíamos dizer, mais geral de uma longa trajetória. O ano de
1978 marca, se não o início, ao menos o ponto exemplar desse novo movimento.
Tal leitura torna impossível o estabelecimento de fases na trajetória de Foucault.
A fase tenta encontrar o retrato estagnado de uma pesquisa que não pára de se
movimentar, e para a qual o movimento é condição sine qua non. Falar de uma fase
arqueológica, de uma fase genealógica, de uma fase hermenêutica ou ética em

1
Cf. Les mots et les choses, Cap. II, “La prose du monde”.

11
Foucault seria ignorar os nexos de continuidade que tornam a arqueologia-genealogia
um projeto móvel; seria, enfim, perverter a idéia de movimento que subjaz ao conceito
de ruptura em nome de uma demarcação redutora dos objetos dentro de um
determinado período. André Queiroz aponta muito explicitamente o risco desse
equívoco:
“Não compreender a dança das cartografias é se deixar
enganar pela rigidez dos traços, dos mapas, das fases. Com o risco
de nos perdermos de Foucault e de seus movimentos. O que seria,
em última instância, esquecermos de seus impasses, suas curvas,
seus riscos e, mesmo, seus paradoxos, para trazê-lo “congelado”
em uma imagem que, sob qualquer aspecto, jamais poderá ser, ao
menos, um ícone de Michel Foucault”2.

Nesse sentido, os últimos textos de Foucault são imprescindíveis para dissolver


esse tipo de leitura. Entre eles, a conferência pronunciada diante da Sociedade Francesa
de Filosofia em 27 de maio de 1978, com o título Qu‟est-ce que la critique [Critique et
Aufklärung], articula de modo bastante conciso os problemas-chave desse período. A
partir de uma leitura que Foucault faz do texto de Kant ”Resposta à pergunta: o que é
Esclarecimento?”3 as relações entre esses problemas vão sendo analisados com uma
clareza difícil de encontrar em outro texto de Foucault. Texto, portanto, fundamental
para uma leitura do trabalho de Foucault como projeto. Paradoxalmente, a conferência
permanece muito pouco conhecida. Não foi incluída na cuidadosa e exaustiva edição
dos Dits et écrits organizada por François Ewald e Daniel Defert em 1994 já que não
havia recebido o imprimatur de Foucault, que, em testamento, havia proibido qualquer
publicação póstuma não autorizada. Mesmo a brecha que os editores encontraram para a
publicação dos cursos de Foucault no Collège de France e de certas comunicações suas
– que assume que sua palavra proferida publicamente não deixa de carregar em si uma
autorização desses textos – não impediu que a única edição francesa dessa conferência
tenha sido publicada num veículo de pequena circulação, de difícil acesso: o Bulletin de
la Societé Française de Phiosophie. De fato, o Bulletin publicara em junho de 1990 –

2
QUEIROZ, A. Foucault – o paradoxo das passagens, p. 25.
3
KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, artigo publicado originalmente em 12 de
dezembro de 1783 no jornal Berlinische Monatsschrift, reunida posteriormente na edição da Academia,
vol. VIII, pp. 32-42. Além do original, Foucault consultava constantemente a tradução de S. Piobetta
reunida em Opuscules historiques, publicada em 1947 pela editora Aubier. Em português, pode-se
consultar a edição bilíngüe com tradução de Floriano de Souza Fernandes, na compilação Textos seletos,
publicada em 1974 pela editora Vozes.

12
portanto, mais de dez anos depois de sua leitura – o texto integral dessa conferência e do
debate que a seguiu. Contudo, e, mais uma vez, apesar de sua importância, o destino
desse texto não encontrou ainda sua amplitude: as traduções que existem – para o
inglês, o italiano, o alemão e o castelhano – são todas parciais, se não fragmentadas, e
em alguns casos – como na versão espanhola – publicadas igualmente em veículos
praticamente inacessíveis4. Assim, embora alguns estudiosos das pesquisas de Foucault
tenham recentemente reconhecido a relevância desse texto – como é o caso, por
exemplo, de Mariapaola Fimiani5 e de Fréderic Gros6 - pode-se dizer que ele permanece
relativamente desconhecido.
Uma primeira aproximação de Qu‟est-ce que la critique? apresenta ainda outra
grande dificuldade: trata-se, aparentemente, de um texto muito heterogêneo, onde as
observações de Foucault em torno de Kant, da Aufklärung e da governamentalização
ocupam uma primeira parte da conferência, que dariam lugar, em um segundo
momento, a uma extensa análise sobre os problemas de método das pesquisas
arqueológico-genealógicas, que, por sua vez, seriam seguidas, finalmente, por um
debate disperso e até certo ponto pouco frutífero com os membros da Sociedade.
Quanto ao debate final, de fato, podemos dizer que pouco acrescenta ou esclarece em
relação aos problemas levantados no texto de Foucault, ainda que sirva como excelente
ilustração das reações dos intelectuais diante dos procedimentos da arqueologia-
genealogia. Mas no que diz respeito à conferência propriamente dita, a heterogeneidade
pode esconder algo que está no centro de nossa leitura: entre a questão da Aufklärung e
a tentativa de pôr em evidência os problemas de método de suas pesquisas, Foucault nos
leva a um campo geral onde a preocupação metodológica surge, senão como
conseqüência, ao menos como continuidade do ethos crítico caracterizado pela
maioridade que Kant define em seu artigo de 1783. Não é por acaso que a leitura de
Kant sirva como ponto de partida para explicitar os procedimentos das pesquisas de
Foucault. Isso porque a filosofia kantiana precisou fazer ver, talvez mais que nenhuma
outra, de que maneira uma propedêutica filosófica, que deve cuidar dos limites e dos

4
Para maiores detalhes sobre a Sociedade e sua publicação, além das traduções existentes,ver, infra,
nossa Nota sobre o texto e a tradução.
5
Notadamente em Foucault et Kant, publicado em 1999.
6
F. Gros chama a atenção para a conferência de 1978 em Foucault in Lectures de Michel Foucault vol.2
– Sur les Dits et écrits, publicado em 2003. Gros também organizou a edição do curso de Foucault no
Collège de France em 1982, L´hérmeneutique du sujet, publicada em 2001 na França e traduzida para o
português em 2004.

13
caminhos do pensamento, deve levar a uma autonomia desse pensamento. Em Kant, é
exatamente a solidez de um edifício crítico, que faz o pensamento se questionar sobre o
que pode pensar – e como pode, efetivamente, fazê-lo – que garante a possibilidade de
se fazer uso, corretamente, do próprio entendimento. A lição que enxergamos quando
encontramos o artigo de Kant sobre a Aufklärung na mesma trajetória que se iniciara
com a Crítica da razão pura poucos anos antes é a de que não se pode chegar à
autonomia, não se pode pôr em questão a governamentalização, sem que antes se tenha
promovido uma volta sobre o próprio ato de filosofar – só se chega ao Sapere aude!7 de
Horácio através do Gnôthi seautón de Sócrates. Essa lição talvez seja o maior legado de
Kant para as pesquisas de Foucault, e a conferência diante da Sociedade Francesa de
Filosofia em maio de 1978 corresponde ao lugar onde essa dívida é anunciada, um tanto
obscurecida pela aparente heterogeneidade de seus dois momentos.
Talvez a tarefa mais urgente e difícil da crítica seja colocar-nos diante de nós
mesmos. A essa dificuldade a arqueologia respondeu, quase como numa missão,
incorporando em seus procedimentos a ousadia com que a Aufklärung veio ocupar seu
espaço entre os homens de conhecimento. “Ousa saber!”, dizia Kant, se apropriando de
Horácio. Mas essa atitude de nada valeria se não nos levasse a interrogar o estatuto
mesmo de nosso pensamento. Kant levou a cabo esse empreendimento através da
análise das condições a priori do sujeito e de toda experiência possível. Foucault o fez,
por sua vez, indicando a irredutível historicidade dessa forma-sujeito e dessa forma-
experiência. O que há de essencial aqui, no entanto, é que em ambos a pesquisa das
condições (transcendentais em Kant, epistemológicas em Foucault) é seguida de perto
pela constante interrogação sobre os caminhos e os resultados dessa mesma pesquisa. É
dessa forma que a ousadia da crítica resulta não apenas no gesto insurreto contra a
autoridade de um entendimento externo, mas também no gesto precavido que leva o
homem ao encontro de si mesmo; resulta, enfim, no movimento em que o homem volta
seu olhar sobre si para se interrogar sobre o que está fazendo agora, e, assim,
vislumbrar, de um novo patamar, o que fez até agora. Nota-se, portanto, a importância
das pesquisas de Foucault em torno dos estóicos, por exemplo, nos últimos anos de sua
vida: com eles aprendemos essa técnica específica do cuidado de si que é a de voltar o

77
KANT, Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?, Ak 35. A expressão “Vale et sapere aude!” é
de Horácio (Epístolas, 1, 2, 40) e parece ter sido indicada a Kant por seu amigo Johanm Georg Hamman,
em carta de 1759.Cf. KANT., Correspondance, p.140.

14
olhar sobre si mesmo8. Mantidas todas as distâncias, o que se mostra evidente é o fato
de que tanto Foucault quanto Kant assimilam ao problema da governamentabilidade, da
autonomia em nossa modernidade, uma preocupação com o projeto geral de suas
pesquisas. Em um caso, como no outro o ethos crítico é acompanhado por um cuidado
metodológico muito preciso. É claro que não podemos suprimir as incontornáveis
diferenças entre a crítica como ethos e a crítica como propedêutica. Mas é nas difíceis
relações entre o problema da Aufklärung e a investigação metodológica , no
deslocamento mesmo entre Aufklärung e crítica, conforme promovido por Kant, que
Foucault encontrará um dos eixos da modernidade:

“Não pretendo mostrar a oposição que havia em Kant entre a


análise da Aufklärung e o projeto crítico. Seria, acredito, fácil mostrar
que para Kant mesmo esta verdadeira coragem de saber, que era
invocada pela Aufklärung, esta mesma coragem de saber consiste em
reconhecer os limites do conhecimento; e seria fácil mostrar que, para
ele, a autonomia está longe de ser oposta à obediência aos soberanos.
Mas é inegável que Kant fixou à crítica, em seu empreendimento de
desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade, como
tarefa primordial, como prolegômeno a toda Aufklärung, presente e
futura, conhecer o conhecimento”.9

Na realidade, quando Foucault chama a atenção para essa diferença, está menos
preocupado em realmente distinguir os dois procedimentos críticos do que em anunciar
um campo que se abre entre um e outro, onde cada um é chamado a se posicionar em
relação ao outro. É nesse sentido que a divisão que Foucault promove na modernidade
entre uma “analítica da verdade” e uma “ontologia crítica de nós mesmos”10 pode ser
mais amplamente entendida: não uma distinção rígida e redutora, mas uma estratégia
que permite a Foucault seu trabalho nesta última linha. A modernidade se constitui nos
interstícios dessas duas instâncias. E se a questão primordial da arqueologia-genealogia
era de fato a de circunscrever os modos de objetivação e de subjetivação em nossa
modernidade11, então os dois momentos da conferência não se mostram tão distantes
assim, mas se apóiam sobre o solo de um projeto geral que os engloba.

8
Cf. sobre isso as aulas de 17 e 24 de fevereiro de 1982 no último curso pronunciado por Foucault no
Collège de France, que recebera o título L´Herméneutique du sujet.
9
QC, p. 7.
10
DE, IV, 351, p. 687.
11
CF., por exemplo, DE IV, 345, 631-636.

15
Podemos dizer, portanto, que, ao encontrar um plano onde a pesquisa é levada a
se encontrar consigo mesma, as questões enfim levantadas diante da Sociedade
reposicionam todo o trabalho de Foucault até então; colocam-no, mais que nunca, sob o
domínio de um projeto que se questiona incessantemente, ou, ainda, que teria como uma
de suas tarefas fundamentais promover esse questionamento. A grande importância da
leitura de Kant para Foucault não é tanto fazer surgir novos objetos – como se poderia
crer em relação a governamentabilidade – mas a de promover uma nova dinâmica a
partir de nexos de continuidade finalmente explicitados – e que só poderiam ser
explicitados exatamente nesse ponto, em que o problema da subjetividade se agrega ao
do governo de si e da autonomia, até culminar no cuidado de si e na estética da
existência, em torno dos quais se desenvolveria o último curso que Foucault daria no
Collège de France, pouco antes de sua morte.
A conferência de maio de 1978 reorganiza, assim, o grande arquivo dos textos
de Foucault, e faz surgir sobre muitos deles, até então negligenciados, uma luz antes
insuspeitável.

* * *

O trabalho que se segue está dividido em duas partes principais. Na última,


temos a tradução da conferência Qu‟est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung],
precedida por uma Nota sobre o texto e sua tradução, e seguida por um aparato crítico
composto de um conjunto de referências que contextualizam as menções de Foucault e
dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia a certos textos, acontecimentos e
pessoas, e que tentam localizar pontos de tangência entre algumas passagens do texto
lido por Foucault e o restante de seus trabalhos. Quanto à primeira parte, fizemos
preceder nossa tradução da conferência por um Ensaio introdutório, que chamamos
Caminhos do Esclarecimento. O maior risco em um tipo de empreendimento como esse
é não resistir à tentação de produzir um comentário, procedimento diante do qual
Foucault, inúmeras vezes, confessou seu horror. O comentário é a “repetição daquilo
que, do lado de fora [do texto] não parou de murmurar”12, a tentativa de reduzir o
movimento do discurso à palavra derradeira, de fazê-lo dizer, enfim, aquilo que, quer

12
DE I, 38, 525.

16
por carência, quer por descuido de seu autor, ele não pôde dizer. Sabe-se, entretanto,
que Foucault escreveu inúmeras apresentações, prefácios, resenhas de livros, e,
principalmente, nunca se censurou por fazer suas leituras pessoais dos incontáveis
autores, de filosofia e de literatura, com que trabalhou. Nesse sentido, como fugir à
ameaça redutora do comentário? Podemos arriscar uma resposta para esse impasse na
compreensão que Foucault faz do procedimento mesmo da arqueologia: não se trata de
explicar, como compreenderam, apressadamente, Sartre e Jean-Luc Godard13 ao lerem
Les mots et les choses, mas, antes de descrever, ou mais explicitamente de inventar uma
descrição possível, escavar uma via de acesso ao texto que não o perverta, mas que o
coloque em um novo movimento. E, em 1968, Foucault responde aos leitores da revista
Esprit sobre essa sua forma de abordar o discurso: o que se pretende é “tratar o discurso
passado, não como um tema para um comentário, que o reanimaria, mas como um
monumento, a descrever em sua disposição própria”; e acrescenta a nota quanto ao
termo monumento: “Tomo essa palavra de empréstimo ao Sr. Canguilhem. Ele descreve,
melhor que eu mesmo, aquilo que quis fazer”14. O que tentamos, portanto, em nosso
Ensaio introdutório é afastar ao máximo qualquer leitura redutora ou conclusiva. Nossa
intenção é, muito antes, multiplicar as referências, desdobrar as relações, propor novas
leituras e novas táticas de leitura, sem com isso erguer qualquer pretensão de
originalidade. Da mesma forma, não pretendemos falar em nome do texto, mas
promover encontros, questionar o discurso a partir de outros: por isso a conferência
pode e deve ser lida conjuntamente com outros trabalhos de Foucault, já que não se trata
de repetir os murmúrios que não cessariam de se manifestar externamente a ela, mas
seguir até onde for possível os incontáveis caminhos que ela apenas indica.

13
As reações de Sartre e do cineasta Jean-Luc Godard diante do trabalho de Foucault, à época da
publicação de Les mots et les choses, contam entre as primeiras de uma longa série de incompreensões no
meio intelectual, especialmente francês. Godard reage contra “o reverendo padre Foucault” , afirmando:
“Se não gosto de Foucault é porque ele nos diz “Em tal época as pessoas pensavam assim ou assado e
depois, a partir de tal época achava-se que...” Por mim, tudo bem, mas será que ele consegue ser tão
seguro?”Sartre, por sua vez, acusa Foucault de recusar a história em nome de recortes históricos que
corresponderiam apenas a uma aspiração geral da nova geração filosófica de então. Tratar-se-ia, assim, de
substituir “o movimento por uma sucessão de imobilidades”.Tanto um quanto outro parece ignorar que os
recortes históricos de Foucault são estratégicos, móveis, e têm por função apenas promover uma via de
acesso aos discursos do passado que não seja inquestionadamente universalista. Como de costume,
Foucault não respondeu diretamente à crítica de Sartre, dizendo apenas, ironicamente, que Sartre era um
homem ocupado, e, portanto, não tinha tido tempo de ler seu livro. Sobre a polêmica Godard-Sartre-
Foucault, cf. ERIBON, D. Michel Foucault, pp.159-170.
14
DE I, 58, 682.

17
Em Caminhos do Esclarecimento tentamos demarcar as duas séries de
problemas erguidas na conferência, a leitura de Kant e as questões sobre o método,
sempre fazendo com que elas se encontrassem no que poderia ser considerado o projeto
mais geral de Foucault. Analisamos, assim, quanto a Kant, duas formas de diálogo
possíveis entre a filosofia crítico-transcendental e as descrições arqueológico-
genealógicas, de acordo com a interpretação do artigo de 1783 sobre a Aufklärung feita
diante da Sociedade, que seriam: o problema do presente ou da atualidade e a questão da
constituição do sujeito. Quanto aos problemas de método, visamos demarcar como a
compreensão que Foucault tem de seu próprio trabalho como parte de uma tradição
crítica inaugurada pela Aufklärung, e, em seguida, como essa mesma compreensão
encontra o problema da reescritura de si como modelo de pensamento. Ao longo dessas
análises, recorreremos sempre que necessário às leituras de diversos estudiosos de
Foucault. Algumas, como as de Gilles Deleuze, François Ewald e Daniel Defert,
mostram-se fundamentais para uma problematização sempre renovada de seus
trabalhos. De qualquer forma, nossa intenção aqui não é discutir amplamente essas
leituras, mas apenas utilizá-las como referências. Mesmo porque a pluralidade da
arqueologia-genealogia de Foucault, sua potencial interdisciplinaridade, colocou toda
sua reflexão em um debate infinitamente crescente, amplamente manipulável sob
diversas perspectivas – o que não significa nenhum tipo de traição de seu pensamento.
Foucault parece, inclusive, avesso a essa fidelidade simplista, negando para si mesmo a
condição de Autor (com a necessária maiúscula) detentor da verdade de seu discurso e
afirmando freqüentemente que gostaria que sua obra fosse utilizada sempre como uma
caixa de ferramentas. No ensaio que se segue, e nas notas que construímos ao redor da
conferência, nosso maior desafio foi justamente fazer o uso mais legítimo possível
desses instrumentos. Com todos os riscos próprios de seu manuseio.

* * *

Nas notas de rodapé e nas notas referentes à tradução da conferência de Foucault


são utilizadas as seguintes abreviações:

18
AS – FOUCAULT, M. L‟archéologie du savoir;

DE – FOUCAULT, M. Dits et écrits. Segue à abreviação, respectivamente, o


número do volume, do texto e das páginas onde se encontra a citação;

MC – FOUCAULT, M. Les mots et les choses;

MF – ERIBON, D. Michel Foucault;

QC – FOUCAULT, M “Qu‟ est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”in


Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 84e. année, n.2, avril-juin, 1990;

RPE – KANT, I. “Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?” in Textos


seletos.

Para maiores informações sobre as edições utilizadas e possíveis traduções,


deve-se consultar a Bibliografia ao final do ensaio introdutório.

19
I. Caminhos do Esclarecimento
Ensaio Introdutório

20
1. FOUCAULT, LEITOR DE KANT
Ressonâncias, percursos, distâncias

Para os que fizeram de Foucault um anti-racionalista, a leitura que a


arqueologia-genealogia empreende de Kant pode parecer, no mínimo, insólita15. Como
compreender que um autor que, durante tanto tempo se pôs à margem da razão, para dar
voz ao grande arquivo da loucura, da doença, do crime e da sexualidade, pôde voltar-se
para esse que construiu seu mais sólido edifício – ou que, ao menos o pretendeu? E, o
que é mais difícil, como pôde chegar a encontrar entre aqueles trabalhos e esse edifício
uma espécie de continuidade que os tornaria fraternos, talvez um mesmo solo que lhes
serviria de condição de emergência?
Mas os que fizeram de Foucault um anti-racionalista jamais levaram em conta a
complexidade das relações que suas pesquisas teciam com a ratio ocidental,
submetendo toda crítica e toda leitura a uma espécie de “chantagem”, como afirma
Foucault:

“Creio que a chantagem que se exerceu freqüentemente


em relação a toda crítica da razão ou a toda interrogação crítica
sobre a história da racionalidade (ou você aceita a razão, ou você
cai no irracionalismo) age como se não fosse possível fazer uma
crítica racional da racionalidade, como se não fosse possível fazer
uma crítica racional de todas as ramificações e de todas as
bifurcações, uma história contingente da racionalidade”16.

Foucault jamais aceitou essa imposição. Trata-se, sobretudo, de “uma razão de


princípio: o respeito do racionalismo como ideal não deve jamais constituir uma
chantagem para impedir a análise das racionalidades realmente operantes”17. A partir
daí, a leitura de Kant não é só compreensível, ela é mesmo fundamental. E é na
conferência de 27 de maio de 1978, diante da Sociedade Francesa de Filosofia, que
Foucault fará vir a público sua leitura da filosofia crítica de Kant.

15
Muitos parecem ter tido a mesma impressão do crítico italiano Giorgio Marramao, enxergando um
“Foucault insólito” que estaria nos apresentado, através de uma análise parcial ou deficiente, um “Kant
insólito”.Cf. Marramao, G., citado em FIMIANI, M., Foucault et Kant, p.11.
16
DE IV, 330, 440.
17
DE IV, 279, 36.

21
Não que essa leitura já não viesse sendo feita; sua história não era tão recente e
nem um pouco casual. Desde muito cedo Foucault se ocupou de Kant. De fato, seu
primeiro livro que atingiu um pequeno, mas relevante reconhecimento foi a História da
Loucura, publicado em 1961, que era, na verdade, sua tese principal de doutorado,
defendida naquele mesmo ano sob orientação de Georges Canguilhem. Essa tese,
entretanto, devia ser acompanhada de uma outra, uma tese complementar, que Foucault
dedicara a uma tradução da Antropologia de um ponto de vista pragmático
(Anthropologie in pragmatischer Hinsicht, publicada por Kant em 1798), acompanhada
de uma longa introdução e notas. A editora parisiense Vrin publicaria em 1964 essa
tradução e as notas, mas a introdução fora substituída pelo próprio Foucault por duas
páginas de um conciso Informe Histórico, e permanece inédita, guardada nos arquivos
do Centre Michel Foucault. Do mesmo modo, às considerações da conferência se
seguirão diversos outros trabalhos em que Kant, a crítica e a Aufklärung encontram-se
tematizados pontualmente: surgem, por exemplo, textos como Le sujet et le pouvoir, de
1982 e também o artigo e a conferência, mais conhecidos, ambos de 1984, que
receberam o mesmo título, Qu‟ est-ce que les Lumières? Mesmo em seus livros, como
em As Palavras e as coisas, as presenças da filosofia crítica e da figura de Kant não são
nada silenciosas. Já ali Foucault define a modernidade em torno delas; quando trata do
aparecimento das ciências humanas no campo do conhecimento é a elas que se refere:

“O que se passou na época de Ricardo, de Cuvier e de


Bopp, esta forma de saber que se instaurou com a economia, a
biologia e a filosofia, o pensamento da finitude que a crítica
kantiana prescreveu como tarefa para a filosofia, tudo isto
forma ainda o espaço imediato de nossa reflexão. É neste lugar
que nós pensamos”18.

Mas a especificidade de Qu‟est-ce que la Critique?, como apontamos desde a


nossa Introdução, reside no fato de que ela permite entrever de que forma toda essa
reflexão sobre a modernidade e o kantismo resulta na problematização dos

18
MC, p. 396. Em sua biografia de Foucault, Didier Eribon levanta a hipótese de que a redação de Les
mots et les choses teria tido início a partir da inédita Introduction à l‟Anthropologie de Kant. Um fato que
parece corroborar, em certa medida, essa hipótese, é a viagem empreendida por Foucault um ano antes da
publicação do livro até São Paulo, afim de submeter sua primeira versão à análise de Gerard Lebrun,
grande especialista em Kant, então professor da Universidade de São Paulo. Cf. MF, pp. 119 e 159.

22
procedimentos e dos conceitos articulados pelas pesquisas arqueológicas-genealógicas.
A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: através de que percursos, indicados na
conferência, a leitura que Foucault faz de Kant se estende na direção de uma leitura de
seu próprio trabalho? Para tentar respondê-la, precisaríamos fazer a conferência
funcionar como uma espécie de abertura, ou via de acesso, poderíamos dizer, exemplar,
a esse problema: partindo dela, e sem jamais perdê-la de vista, nós a ultrapassaríamos
rumo ao grande conjunto das investigações de Foucault. Talvez esse movimento, esse
salto mesmo, nunca possa ser completado; o que nos importa, entretanto, é anunciar sua
possibilidade.
Demarcamos, portanto, dois eixos dessa leitura em torno de Kant que podem ser
apreendidos a partir conferência, e que nos parecem servir mais adequadamente de
campo de confronto – de diálogo, e não de batalha – entre a arqueologia e a filosofia
transcendental de Kant, circunscrevendo os ecos e as distâncias entre uma e outra. O
primeiro eixo é o da nova função do presente, da atualidade, na reflexão filosófica
moderna; o segundo é o do sujeito e das formas possíveis de se pensar a subjetividade
entre nós, modernos. De um ao outro, o espaço da Crítica, que a Aufklärung delimitou no
pensamento ocidental desde o momento em que nos perguntamos, com Kant, quem,
afinal, somos. Certamente essas duas questões não se apresentam de forma tão explícita
ao longo da conferência, mas de sua subterraneidade não se pode inferir uma
irrelevância. Ao contrário, se esses problemas não vêm à tona, e porque funcionam, todo
o tempo, ao fundo das discussões levantadas – eles são mesmo seu espaço, sua
perspectiva. Nosso trabalho nesse ensaio introdutório não é resgatar uma clareza que a
leitura de Foucault não teria atingido, mas tentar demonstrar que suas implicações vão
muito além daquilo que o texto, lido isoladamente, poderia sugerir.

1.1 As vozes do presente

No difícil espaço em que se desdobram as reflexões de Qu‟est-ce que la


Critique?, espaço aparentemente descontínuo, que serve de solo para uma leitura
inesperada de Kant e para um retorno de Foucault sobre seu próprio trabalho, o que se
desenha é, sobretudo, uma urgência. O artigo de Kant sobre a Aufklärung implica um

23
questionamento sobre o estado atual das pesquisas arqueológico-genealógicas. Se o
problema central da conferência é o de fazer surgir, através da definição kantiana da
Aufklärung e da Crítica, um ethos ou uma atitude própria da modernidade que permita a
Foucault inscrever seus trabalhos na longa tradição que ela inaugura, e no limite dessa
tradição, a questão do presente e da atualidade mostra-se fundamental, já que é ela que
determinará a perspectiva a partir da qual essa inscrição poderá ocorrer. Qual é a
atualidade do meu pensamento diante dessa atitude tão ancestral que tomamos por
eterna, mas cujo primeiro gesto surgiu há duzentos anos, nesse pequeno texto kantiano?
Através de que conceitos, ou de que relações conceituais, promovo a entrada das minhas
reflexões filosóficas agora nessa modernidade que, desde muito tempo se pretende
emancipada, esclarecida? Esses problemas, que Foucault se coloca, com uma espécie de
despudor até então sem precedentes, diante da Sociedade, trazem à tona o primeiro eixo
de um plano que desfaz a suposta descontinuidade dos dois momentos da conferência: o
presente. O presente é o único lugar possível em que o sujeito formula suas reflexões, é
nele que nós, modernos, podemos ousar saber, que podemos, enfim, nos tornar maiores,
como diria Kant. Por outro lado, toda e qualquer História a ser escrita tem como ponto
de partida o presente, e se apresenta mesmo como uma História do presente na medida
em que investiga as condições de emergência de nossa atualidade. Esse era certamente
um dos motivos principais do projeto filosófico de Foucault, e, ao empreender uma
história, sob a forma de uma descrição arqueológico-genealógica, de nossa modernidade
ele deverá encontrar os problemas de método de sua pesquisa, não porque aquela
explicaria as lacunas deixadas por estes, nem mesmo porque poderiam servir-lhes de
causa, simplesmente, mas porque ambos os questionamentos só são possíveis a partir
desse campo urgente do presente. Também Kant já compreendia a relevância da
atualidade em seu artigo de 1783 – e em diversos outros momentos de seu sistema essa
preocupação aparecerá, igualmente. Quem somos nós? Todo o edifício crítico foi
construído em torno dessa questão, e, em sua arquitetônica, seria impossível ignorar o
lugar onde essa pergunta deveria assumir essa espessura que demanda, ao mesmo
tempo, uma abordagem teórica, metodológica, e histórico-política: quem somos nós
agora? Questão fundamental, o presente revela o primeiro acesso à leitura que Foucault
faz de Kant, e do modo como essa se insere na revisão que a arqueologia-genealogia faz
de si mesma.

24
Em primeiro lugar, a própria forma como as pesquisas de Foucault vão sendo
elaboradas, ano após ano – a sua démarche mesma – já deixam perceber uma
abordagem muito mais voltada para os problemas que vão se colocando a partir da
atualidade do que para a edificação de um sistema. Isso não quer dizer que a
demarcação de um projeto seria impossível, mas que essa demarcação não poderia fazer
surgir uma teoria, definitivamente consolidada. É no próprio ato da investigação e da
reflexão que esse projeto ganha seu movimento, seu modo dinâmico, sua procédure.
Talvez os livros de Foucault, tomados isoladamente, não possam deixar suficientemente
clara essa característica. Seria preciso buscar uma visão mais ampla de suas pesquisas
que incorporasse esse arquivo menos monolítico, constituído por textos, entrevistas,
artigos, povoado por todo tipo de questão, formulado a partir de diferentes pontos da
trajetória da arqueologia-genealogia; enfim, seria preciso buscar nesse conjunto de
textos ditos menores, do qual Qu‟est-ce que la Critique? faz parte, essa visão do
presente como condição mesma de toda reflexão. Deleuze aponta muito bem essa
característica do trabalho de Foucault:

“Se as entrevistas de Foucault fazem parte, plenamente, de sua


obra, é porque prolongam a problematização histórica de cada um
de seus livros ruma à construção do problema atual, seja este a
loucura, o castigo, ou a sexualidade”19.

É nesses textos, portanto, que vemos surgir, sob a forma de uma presentificação
intermitente, a preocupação metodológica que atravessa boa parte da conferência sobre
a Crítica. Pouco mais de um mês antes dela, em uma entrevista durante sua estada no
Japão, Foucault lembra esse aspecto de seu trabalho: “É verdade que, em meus livros,
tentei apreender um acontecimento que me pareceu, que me parece importante para
nossa atualidade, mesmo sendo um acontecimento anterior”20. Assim, mesmo um
retorno tão longo como o da História da sexualidade, um salto tão grande até os gregos,
todo esse movimento iniciado no final da década de setenta na arqueologia-genealogia
trata sempre de uma questão atual, da genealogia de um acontecimento atualmente
dado. É por isso que Foucault pode afirmar, em sua conferência, que não há nenhum

19
DELEUZE, G. Foucault, p. 122.
20
DE III, 234, 374.

25
anacronismo em se interrogar sobre o processo de Sócrates a partir do problema da
Aufklärung21: partindo da modernidade, chegamos aos gregos a partir da urgência dessa
questão que, incessantemente, nos é colocada, a da ousadia de conhecer. Não que
Sócrates seja um precursor de Kant. As rupturas que a arqueologia aponta na história do
pensamento ocidental afastam irredutivelmente essa espécie de continuidade. O que se
busca é mostrar como, ao falar de Sócrates, ou de Descartes, ou de Velázquez, é sempre
a partir de nossa modernidade, de nossa atualidade, que a genealogia se desdobra, a
partir desse campo do ethos que nos torna fraternos a Kant.
Em Qu‟est-ce que la Critique?, a questão do presente atravessa o texto através
de um conceito muito caro a Foucault em todo o seu trabalho, o de acontecimento
[événement], e, ainda mais especificamente, no de prova de eventualização, [épreuve
d‟événementialization]22. A prova de eventualização é um parâmetro de análise histórica
que visa encontrar a singularidade de um elemento de saber ou de um mecanismo de
poder precisos, determinando o máximo de sua positividade para além de qualquer
critério de legitimação que os investisse como certos ou errados, tanto de uma
perspectiva lógica quanto de uma perspectiva ética. Ela compreende, portanto, tal
mecanismo, ou tal elemento, como um acontecimento para o qual a reflexão tem como
tarefa determinar a singularidade. Ao mantermos essa máxima positividade do dado
histórico como acontecimento, encontramos a urgência de nossas questões: na História
da Loucura, a arqueologia só se interessa pelos loucos do século XVII na medida justa
em que eles podem indicar quão recente é a invenção de nossa alma enferma pela
psiquiatria, e que podem fazer ver que, o que hoje acreditamos ter sido sempre assim,
constitui um acontecimento, que em um dado instante tornou-se possível em nossa
história. O événement funciona, assim, como índice do presente.
É evidente que essa compreensão assume em Foucault uma dimensão muito
particular, mas a idéia de uma indexação do presente através do acontecimento pode ser
lida como uma ressonância de sua leitura de Kant, e aqui devemos seguir além do texto
sobre a Aufklärung. No artigo de 1783, Kant havia se perguntado qual era a
especificidade desse novo modo de pensar, o que era, afinal, a época da Crítica.
Quatorze anos depois, no Conflito das Faculdades, a atualidade de Kant era um pouco
diferente: era a época da Revolução Francesa. Ainda que no primeiro texto Kant tenda
21
QC, p.58.
22
QC, pp. 47-48.

26
a subjugar a importância da revolução, feita pelo povo, à verdadeira reforma do
23
pensamento, feita pelo governo , há entre ele o segundo menos uma ruptura que uma
complementaridade, em um sentido próximo ao que Foucault articula quando posiciona
suas pesquisas mais recentes em relação às anteriores. O que a Revolução Francesa
permitiu ver era um sentido novo para o presente; como acontecimento, ela serve de
índice, ou se quisermos nos ater ao vocabulário kantiano, ela é o signo no campo do
presente, que em sua positividade mais ampla demarca a especificidade mesma desse
presente. Mas não nos enganemos ao procurar o signo assinalado pela Revolução
Francesa do lado de sua grandiosidade, de seus golpes violentos ou das catástrofes. No
Conflito das Faculdades Kant mostra que se trata exatamente do contrário: “é
simplesmente no modo de pensar dos espectadores que se trai publicamente nesse jogo
de grandes transformações”24. A Revolução Francesa, portanto, não se abre como
acontecimento-índice-signo pelo seu espetáculo, mas pelo modo como foi pensada,
como despertou todo tipo de paixão entre seus espectadores. Como em Foucault, a
positividade do acontecimento não está em sua face mais óbvia, mas é no modo como
ele foi experimentado que o seu presente pôde se apresentar: não é no conceito de
sexualidade que encontraremos a possibilidade de sua genealogia, mas nas múltiplas
formas assumidas por esse conceito empiricamente, nos pressupostos do cuidado de si,
nas regras de conduta sexual, na normatização biológica e clínica do sexo.
Françoise Proust aprofunda esse tema levantado por Foucault, afim de encontrar
em toda a reflexão histórica de Kant uma predominância da questão do acontecimento e
da atualidade:

“Quer esses textos se apresentem sob a forma de tese (...)


(Idéias de uma história universal), ou de narrativas ficcionais
(Conjecturas sobre o provável começo da história humana); quer
se dêem como previsões (Conflito das faculdades) ou intervenções
(O que é o Esclarecimento?), são todos histórias do presente,
histórias programáticas do presente (...). A história deve ser do
presente e para o presente. O diagrama é estabelecido em vista de
um programa que se lhe deve extrair. „Onde estamos?‟ significa:
que pode e deve acontecer? Que acontecimentos podemos
adivinhar sobre o horizonte do presente? Não: que podemos saber
para guiar nossa ação futura?, mas: que acontecimentos presentes

23
RPE, Ak 36-37.
24
KANT, O Conflito das Faculdades [ Der Streit der Fakultäten], Ak 85.

27
ou recentes nos são dados para que adivinhemos seu sentido e
reflitamos nas experiências futuras?”25

Ao voltar-se sobre a Revolução Francesa, o que a filosofia crítica deve


encontrar, portanto, é a si mesma, seu modo próprio de proceder e sua atualidade: “é o
ato da modernidade: ser crítico, fazer uma crítica do presente”26.
Mas as ressonâncias não escondem as distâncias: sabemos que Kant sempre
acaba por reenviar esse registro que o acontecimento suscita à abrangência da
universalidade, e no Conflito das faculdades as pequenas paixões dos espectadores
levam, certamente, ao encontro da Moral (pressuposta também nos outros textos de
Kant sobre a História). Nesse ponto Foucault afasta-se, sensivelmente, através de uma
outra perspectiva, para encontrar, à sua própria maneira, a Crítica e a Aufklärung. O que
Foucault chama, em Qu‟est-ce que la Critique?, de “prova de eventualização” como
procedimento de entrada na questão da Aufklärung, é a radicalização da imanência, que
a Crítica kantiana só podia seguir até certo nível, como passo intermediário rumo à
destinação do Homem. Em Foucault, o presente é o único campo possível, e por isso a
investigação deve lançar mão de todo um instrumental que a mantém ao nível das
abordagens provisórias, estratégicas, afim de que elas não resultem em conclusões
universais. Lembremos uma vez mais procedimento da descrição arqueológico-
genealógica a partir dessa “prova de eventualização”:“Tomar conjuntos de elementos
onde se pode demarcá-los, numa primeira aproximação, logo de maneira completamente
empírica e provisória, as conexões entre os mecanismos de coerção e os conteúdos de
conhecimento”27. Presentificação absoluta dos conjuntos visados, eis o que produz uma
positividade mais ampla dos elementos na arqueologia-genealogia e que a filosofia
kantiana não admitiria. O transcendental limitava e tomava-lhe a voz para dizer o certo
e o errado; ele vinha garantir a luz lá mesmo onde o acontecimento estava cego. Essa
leitura kantiana do presente, na verdade, subjaz a toda a modernidade: a Crítica e o
Esclarecimento nos legaram, de fato, uma nova função da atualidade no ato mesmo de
ousar saber, mas esse papel esteve sempre limitado pela exigência transcendental. No
emaranhado do agora os modernos procuraram sempre o fio seguro do eterno, do supra-
histórico. Na aula de 10 de março de 1976 de seu curso anual do Collège de France,
25
PROUST, F. Kant, le ton de l‟histoire, pp. 307-308.
26
Idem, p. 309.
27
QC, p. 48.

28
Foucault circunscreve com maior precisão essa função do presente que se inaugura com
Kant:
“No fundo, na história e no campo historico-político do
século XVIII, o presente era sempre o momento negativo, era
sempre algo oco, calma aparente, esquecimento (...). Ao contrário,
agora [na virada do século XVIII para o XIX], no gabarito de
inteligibilidade da história, a partir do momento em que a história
é polarizada pela relação nação/ Estado, virtualidade/ atualidade,
totalidade funcional da nação/ universalidade real do Estado,
vocês vêem bem que o presente vai ser o momento mais cheio, o
momento de maior intensidade, o momento solene em que se faz a
entrada do universal no real (...). O presente já não é o momento
do esquecimento. É, ao contrário, o momento em que vai brilhar a
verdade, aquele em que o obscuro, ou o virtual, vai revelar-se em
plena luz. O que faz com que o presente se torne, ao mesmo tempo,
revelador e analisador do passado”28.

É somente desde esse plano preciso que a Aufklärung e toda nossa modernidade
a que ela deu origem pôde, enfim, tentar responder à questão “qual diferença o hoje
introduz em relação a ontem?”29.
Seria interessante demonstrar essa tese de Foucault sobre o novo dispositivo de
análise histórica a partir de discursos que seguiram destinos aparentemente tão distintos.
Por um lado há o presente como momento de superação, são os pensadores da fé e da
Revolução – não que se coloquem ao lado das armas ou dos gritos de guerra, sendo,
muitas vezes, contra eles; mas são os pensadores que primeiro se erguem para dizer, de
alguma forma, que o futuro é agora. É desse lado que encontramos a escatologia
hegeliana, não apenas ao fim de sua História da filosofia, ou nas passagens da
Fenomenologia do Espírito que tratam da Revolução Francesa, mas já no primeiro texto
que Hegel publica com seu nome, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e
Schelling30. O primeiro capítulo desse trabalho intitula-se, justamente, “As diferentes
formas que aparecem no filosofar de nossos dias”,e, nele, diante do estado de
indiferença da filosofia, em que o pensamento de Fichte ainda se mantém, estagnado,
Hegel propõe a superioridade do pensamento de Schelling, que começa a surgir como o

28
FOUCAULT, M. Il faut défendre la société, pp. 203-204, grifo nosso.
29
DE IV, 339, 562.
30
Hegel já havia publicado pequenos textos, em sua maioria resenhas críticas, sem assinar seu nome até a
publicação desse seu Differenzschrift em 1801.

29
“último ato da reflexão filosófica”31.Da mesma forma, Richard Wagner, quando em
1849 escrevia sobre a revolução, mostrava-se particularmente hegeliano: algo está na
iminência de ocorrer, dizia, e apurava o sofisticado ouvido para perceber “um pavoroso
ruído in crescendo permanente” que anunciava a destruição de uma velha ordem para o
cumprimento de um “paraíso de felicidade nunca antes imaginado”32. De outro lado
encontram-se os pensadores da crise, em que o presente não promete nenhuma glória
vindoura; o signo que ele abre é o da decadência, resultado lógico de uma série de
decisões e caminhos mal-sucedidos. É essa a análise de Husserl, por exemplo, no texto
citado por Foucault em sua conferência, a Krisis33. A Europa está cansada, não há como
esperar o paraíso wagneriano porque o presente deve ser um presente de luta: os “bons
europeus” devem impedir a Europa do “afundamento na hostilidade ao espírito e na
barbárie”34.
Ora, entre Hegel, Wagner e Husserl, a herança kantiana une mais que separa.
Não importa tanto se o presente nos traz o paraíso ou a miséria. O que todos esses
discursos articulam é aquela nova função que a crítica vai atribuir à atualidade para a
qual Foucault chamava a atenção: o presente é o universal intumescido a tal ponto que
já não se pode mais procurá-lo em outro lugar, ele se revela aos nossos olhos –
ofuscante, silencioso, venturoso ou decadente, tanto faz – para vir a ser o juiz do
passado e o guardião do futuro.
Na arqueologia, o presente encontra-se desamarrado de um princípio universal;
ele é o limite da análise arqueológica, na medida em que não permite que o caráter
empírico e provisório com que essa análise aborda seus objetos seja ultrapassado em
nome de um sistema ou de uma filosofia da história. Daí também que poder e saber não
podem representar, nos conjuntos circunscritos pela pesquisa, quaisquer entidades
transcendentais, mas apenas funções, meramente “metodológicas”35. O presente
adquire, assim, uma dimensão que era insuspeitável em Kant, ainda tão firmemente
comprometido com o saber e com o homem. Mas a incontornabilidade dessa distância
não pode anular a relevância do momento de encontro. Ponto de reflexão privilegiado, o

31
HEGEL, Diferença..., p. 47.
32
WAGNER, R. “La Revolución” in Escritos y confesiones, pp. 109-110.
33
QC, p. 44. Ver, infra, nota 15 da tradução.
34
HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia, III, p. 96.
35
QC, p. 48.

30
presente abre, assim, entre Foucault e Kant, um campo de discussão muito amplo, onde
o que está em jogo não é tanto a História, mas o estatuto mesmo do pensamento.

1.2 O enigma e seus duplos

Ainda mais subterrâneos que a questão do presente, os problemas em torno do


sujeito e das formas de subjetividade modernas só surgem, em toda sua importância, no
texto de Qu‟est-ce que la Critique? se levarmos em conta o modo como Foucault
definiu seu projeto geral a partir desse tema. Em As Palavras e as Coisas, a
modernidade irrompe no momento mesmo em que o sujeito kantiano surge como o mais
difícil postulado: “postulado antropológico”, diante do qual toda a modernidade buscou
se posicionar, e que atravessa nossas reflexões “desde o momento em que o homem
apareceu como duplo empírico-transcendental”36. Já aqui Kant tem um papel
fundamental de divisa na história da razão ocidental; não ainda a partir da atitude crítica
definida em seu artigo sobre a Aufklärung, mas, de um modo mais amplo, em seu teoria
do sujeito.O cogito cartesiano encontrava toda sua positividade na busca da série e da
ordem que pudessem garantir, mais adequadamente, o afastamento dos erros e das
ilusões. O que o sujeito transcendental kantiano inaugura é um novo movimento: trata-
se agora de saber o limite de um pensamento que se volta sobre si mesmo, e assim, se
duplica. De qualquer forma, a divisa demarcada pelo kantismo não faz da filosofia
transcendental um sistema inequívoco, diante do qual nos calaríamos. Antes, ela faz
desse sistema algo quase inatingível, que nossa modernidade buscou muito mais
responder do que seguir tão de perto.
Mas é em um artigo de 1982, The subject and the power (sua primeira versão
tendo surgido nos Estados Unidos), que Foucault, ao fazer uma retrospectiva dos
motivos de seus trabalhos afirma: “Não é, portanto, o poder, mas o sujeito que constitui
o tema geral de minhas pesquisas”37. Assim, se a leitura de Kant promovida diante da
Sociedade é, como supomos, realmente essencial para se compreender o projeto
filosófico de Foucault, essa circunscrição global não pode deixar de se apresentar nela,
de uma ou outra forma.
36
MC, p. 332.
37
DE IV, 306, 223.

31
O problema do sujeito aparece, grosso modo, de duas formas em Qu‟est-ce que
la Critique?: uma que é diretamente interna ao texto, corresponde à leitura do modo de
subjetivação que o dispositivo do ethos crítico faz funcionar no pensamento moderno a
partir da Aufklärung; a segunda, que é externa, é justamente o nexo de continuidade
entre os textos sobre Kant e a Crítica e as pesquisas da História da sexualidade. No
primeiro caso, a pergunta que nos colocamos é: de que maneira a atitude crítica do
Esclarecimento constituiu um modo de subjetividade que garantiu ao homem, como
duplo empírico-trancendental sua espessura propriamente política? Seria preciso,
portanto, tentar descobrir como a reflexão de Foucault se desloca do sujeito
transcendental para o sujeito crítico a partir do solo mesmo da modernidade. No
segundo caso, formularíamos a questão geral sobre como Foucault compreende o
problema do sujeito como motivo fundamental de seu trabalho a partir mesmo das
implicações entre ethos crítico e cuidado de si.
Primeiro passo, portanto, na tentativa de abordar esses problemas: é preciso que
recuemos até a inédita Introduction à l‟Anthropologie. Embora o texto permaneça
praticamente inacessível, graças ao interesse de pesquisadores como Mariapaola
Fimiani38 e Fréderic Gros39 podemos ter alguma idéia do conteúdo dessa introdução. O
que ela parece ressaltar, em todo caso, segundo os indícios fornecidos por Fimiani é a
divisão fundamental que Foucault encontra na sujeito kantiano, que se conjugariam na
figura do homem. Tese que anima boa parte do desenvolvimento dos últimos capítulos
em As Palavras e as Coisas, e que teria, portanto, aí, seu primeiro desdobramento.
Nesse momento da leitura de Foucault em torno de Kant encontramo-nos sobre o
primeiro nível do sujeito que circunscreverá a modernidade. Quando Foucault se volta
para a Antropologia kantiana está interessado justamente nessa ruptura operada pela
filosofia crítica no homem. Texto tardio de Kant, essa Antropologia de um ponto de
vista pragmático, publicada em 1798 – embora como resultado de uma trajetória de
quase trinta anos de ensino sobre o tema, segundo o autor40 - é a resposta mais
finalizada da pergunta “O que é o homem?”, que já vinha sendo formulada, pelo menos,
desde 177541. Diante dessa resposta toda modernidade foi chamada a se posicionar.

38
FIMIANI, M. Foucault et Kant.
39
GROS, F. Foucault et la philosophie.
40
KANT, Anthropologie..., Ak 121, nota.
41
Cf. KANT, Cours de métaphysique, Ak 120.

32
Mas, como já apontamos, não se trata de uma posição inequívoca. Nesse sentido
somos tanto mais modernos quanto reagimos a esse duplo kantiano. Entre Kant e a
modernidade que se lhe seguiu abriu-se o espaço de um ressentimento diante da ruptura
profunda provocada por aquele entre natureza e liberdade. Ofuscados pelo brilho desse
rasgo, nem os românticos, nem os existencialistas ou os fenomenólogos puderam
apreender a positividade do “enigma kantiano, que, há cerca de duzentos anos
assombrou [a medusé] o pensamento ocidental, tornando-o cego à sua própria
modernidade”42. Em Qu‟est-ce que la Critique? (e, igualmente, nos dois textos de
Foucault de 1982 que receberam o título Qu‟est-ce que lês Lumières?) a modernidade é
inaugurada a partir dessa ousadia do conhecimento que a Aufklärung exige para a
maioridade do homem: fazer uso do próprio entendimento, dirá Kant; “não querer ser
governado”, nem mesmo diante da “autoridade do dogmatismo”43. É por essa via que,
ao nos afastarmos de Kant, tentando recuperar a unidade perdida entre sujeito e objeto,
natureza e liberdade, sonhando com uma síntese difícil, sempre a ser atingida; é no
momento mesmo em que ousamos fazer a filosofia crítica recuar até uma origem
unívoca para a qual ela já seria cega, ou avançar na direção de um Absoluto que teria
várias formas que ela se encontraria, mais uma vez, com Kant. Se, por uma lado, a
atitude crítica indicada no artigo de 1783 sobre o Esclarecimento legou à modernidade
essa tarefa infinita do questionamento das condições de todo e qualquer pensamento,
por outro, essa modernidade consolidou-se em torno da incompreensão desse homem
kantiano, surgindo muito mais como o resultado daquilo que Foucault chama, em sua
Introduction inédita, de “perigo fichteano”44. Perigo que, em As Palavras e as Coisas,
corresponde ao “sono antropológico” dos modernos:

“A configuração antropológica da filosofia moderna


consiste em reduplicar o dogmatismo, em reparti-lo em dois níveis
diferentes que se apóiam e se limitam um pelo outro: a análise pré-
crítica do que é o homem em sua essência se torna a analítica de
tudo o que pode se dar em geral à experiência do homem”45.

42
DE I, 40, 546. Esse texto, de 1966, intiulado Une histoire restée muette é uma resenha do livro de E.
Cassirrer sobre a filosofia do Esclarecimento, de 1932.
43
QC , p.39.
44
FOUCAULT, M. Introduction à l‟Anthropologie de Kant, p. 24, citado em FIMIANI, op. cit., p. 105.
45
MC, p. 352.

33
Friedrich Schiller, leitor contemporâneo da filosofia transcendental, já ilustra
essa reação diante da ruptura. Ao lermos, por exemplo, a sexta carta da série sobre a
educação estética do homem, podemos nos dar conta do quanto – e a que preço – a
modernidade se esforçou para reencontrar a harmonia do homem: “Foi a própria cultura
que abriu essa ferida na humanidade (...). O entendimento intuitivo e o especulativo
dividiram-se com intenções belicosas em campos opostos”46.
É desse modo, entre essa espécie de ressentimento e a assimilação do ethos
crítico que Kant é visado por Foucault como acontecimento. Em várias passagens de As
Palavras e as Coisas notamos essa abordagem se operar. Foucault considera que entre a
época clássica do cogito cartesiano e o problema do sujeito transcendental de nossa
modernidade, Kant é o ponto de juntura: “le moment kantien fait charnière”47. Ao
proceder assim, submete a filosofia kantiana àquela “prova de eventualização” à qual a
conferência faz menção48, encontrando seu máximo de positividade, na singularidade
frágil que a faz oscilar entre a forma de um sistema cujo imperativo geral de não querer
ser governado permite questionar, e a forma desse próprio imperativo.
Outra perspectiva que se abre a partir da longa genealogia do ethos crítico
empreendida em toda a primeira parte da conferência é a questão dos modos de
subjetividade e, mais especificamente, de problematização de si. Esse é o nexo de
continuidade que envia as considerações em torno de Kant às pesquisas da História de
sexualidade, e devem ser mantidas aqui todas as distâncias. O Gelehter, ao assumir a
coragem de fazer uso do próprio entendimento, e ao assumi-la especialmente diante do
“Obedeça!” de Frederico II, estará constituindo para si uma subjetividade, um modo de
constituir a si mesmo propriamente moderno. Na História da sexualidade a questão
colocada é como o sujeito se abre diante de si mesmo enquanto sujeito de desejo. Há, de
fato, um deslocamento, mas que não deve esconder essa pergunta que se vê formulada
ao longo de todo o trabalho da arqueologia-genealogia: como o homem pode se
constituir como sujeito? Desde que momento a modernidade irrompeu e fez surgir esse
sujeito que fala, trabalha e vive, esse sujeito louco, doente e criminoso, esse sujeito, que
enfim, volta-se sobre si mesmo e se vê como sujeito de desejo?

46
SCHILLER, F. A educação estética do homem numa série de cartas, Carta VI.
47
MC, pp. 338-339.
48
QC, p. 47.

34
Aqui, mais uma vez, devemos nos remeter à Antropologoia de Kant. Publicada
após ter como garantia a solidez do edifício representado pelas três Críticas, o que ela
traz é a espessura mais concreta do duplo empírico-transcendental: trata-se do homem
no momento em que articula suas duas dimensões, no momento em que reflete, e reflete
sobre si mesmo. O problema da Antropologia não é mais um problema de
conhecimento, mas um problema instrumental, pragmático, como o indica o título
completo do texto. E não restará qualquer dúvida quanta a isso, uma vez que Kant tenha
feito esse seu anúncio logo de partida: o que uma antropologia de um ponto de vista
pragmático visa é determinar “aquilo que o homem, enquanto ser livre em seus atos, faz
ou pode e deve fazer de si mesmo”49. A pergunta “O que é o homem?” deve comportar,
no momento em que finalmente pode ser respondida por Kant, essa outra: “Como o
homem se faz?”.Experiência de si: eis o momento da Antropologia onde a divisa do
Esclarecimento, o sapere aude!, converge em um Facit aude!, em uma ousadia de fazer-
se. Assim, ela vai analisar os motivos transcendentais das três Críticas – faculdade de
conhecer, faculdade de desejar, e sentimento de prazer e desprazer – sob a ótica de seus
possíveis usos. Nota-se bem o quanto esse momento kantiano pode interessar a
Foucault. Por um lado, ele ressalta a difícil positividade do duplo empírico-
transcendental, que deve ser mantido nessa tensão fundamental. Por outro,ela insere,
através do problema do uso de si, que Foucault lerá como sendo o da experiência de si,
essa instância do sujeito onde o homem ganha uma espessura, como, a uma só vez,
objeto e sujeito de conhecimento. E ao fazer uso de seu entendimento, ao se posicionar
diante da Bíblia, do direito e da ciência, o homem esclarecido encontra a possibilidade
de se constituir como sujeito autônomo. Diante de todo o processo de
governamentalização cujas origens Foucault reenvia, em sua conferência, aos séculos
XV ou XVI, ele exerce a “arte da inservitude voluntária”50. Passamos do sujeito
pragmático ao sujeito político no exato momento em que o uso de si mesmo, ou a
experiência de si, é radicalizado na direção da crítica da verdade: “ A crítica teria
essencialmente por função o desassujeitamento [désassujettissement] no jogo do que se
poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade”51.

49
KANT, Anthropologie..., Ak 119.
50
QC, p. 39.
51
Idem.

35
Certamente Kant não poderia ir tão longe. Também aqui as diferenças se
multiplicam. Kant remetia, em última instância, a experiência de si a um Eu puro
transcendental, assim como fazia o presente se submeter ao fio condutor da História
Universal. Como se poderia prever, para Foucault, a experiência do sujeito jamais
poderia se refletir numa unidade transcendental de apercepção, mas simplesmente em
seus modos, dada uma determinada configuração epistemológica, no caso, a da
modernidade.. A Antropologia coloca o problema da experiência do homem e do
homem como experiência, de uma forma que acaba por legitimar a universalidade do
sujeito. As pesquisas de Foucault se deterão justamente no momento anterior ao
universal, indagando quais são os modos pelos quais uma cultura pode objetivar suas
experiências de subjetividade (constituindo um saber que engloba a ciência, as formas
da literatura, as regras e as leis sociais), e quais são os modos através dos quais ela
produz uma subjetividade diante de um conjunto de dispositivos de saber e poder (nas
técnicas de si, por exemplo, mas também na forma mais amplas de auto-determinação
que constitui o ethos crítico). As descrições arqueologico-genealógicas de Foucault
visam essa experiência do homem sem quaisquer universais: nem mesmo o sujeito, mas
seus modos. A auto-crítica da Arqueologia do saber afasta de vez o risco das unidades
totalizantes que os livros anteriores não haviam negado com ênfase suficiente:

“(...) de maneira geral, a História da Loucura dedicava uma


parte bastante considerável, e além disso, muito enigmática, ao
que se encontra aí designado como uma „experiência‟, mostrando,
assim, o quanto se permanecia próximo de admitir um sujeito
anônimo e geral da história(...), em As Palavras e as Coisas a
ausência de balizagem metodológica pôde fazer com que se
acreditasse nessas análises em termos de totalidade cultural”52.

Somente no segundo volume de sua História da sexualidade, ao rever os limites


desse projeto iniciado quase uma década antes, é que Foucault vai resgatar a noção de
experiência como ponto de interseção dos três eixos de seu trabalho, que nunca
deixaram de trabalhar conjuntamente, mas que, agora, apresentam-se de forma mais
evidente: “O projeto seria então o de uma história da sexualidade como experiência – se

52
FOUCAULT, M. L‟Archéologie du savoir, pp. 26-27. Cf., igualmente, como o conceito de experiência
é definido de forma estratégica e empírica em Nietzsche, Freud, Marx, conferência de 1967 (DE I, 46,
571 e 579).

36
se entende por experiência a correlação, numa cultura, entre domínios de saber, tipos de
normatividade e formas de subjetividade”53.
Não a descoberta do princípio universal, mas a descrição dos modos: eis o
procedimento que levará toda a pesquisa de Foucault ao encontro daquilo que, na
conferência sobre a Crítica e a Aufklärung, denomina-se “as singularidades puras”54. O
Esclarecimento inaugura um novo modo pelo qual o homem se faz., e o problema do
sujeito, tomado em sua dimensão política, redimeniona as considerações da
Antropologia no sentido das exigências feitas no artigo de 1783 A leitura arqueológico-
genealógica em torno de Kant radicaliza os pressupostos da filosofia transcendental
afim de encontrar as condições históricas do aparecimento dessa invenção moderna que
é o homem, e que, sob essa perspectiva, traz, desde seus primeiros momentos na história
do pensamento, a tarefa de se auto-consituir.

53
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité, vol. II – L‟usage de plaisir, p. 10.
54
QC, p. 50.

37
2. TRADIÇÃO CRÍTICA E MODERNIDADE
Da emancipação à reescritura de si

Se na economia interna de Qu‟est-ce que la Critique? os problemas do presente


e do sujeito ainda permaneciam funcionando subterraneamente –ainda que como
dimensões fundamentais da pergunta sobre o Esclarecimento – a análise que Foucault
empreende da definição kantiana para a Aufklärung, por sua vez, não pode deixar de
ocupar o centro inequívoco e explícito desse debate, já que é através dela que todo o
trabalho da arqueologia-genealogia poderá ser mais precisamente circunscrito no
domínio do pensamento moderno. Não se pode negar que a abordagem da nova função
do presente e dos novos modos de subjetivação já apontavam para essa circunscrição,
mas ainda eram vias de acesso epistemológicas a esse acontecimento que foi a
Aufklärung: o que se anuncia no horizonte do conhecimento ao final do século XVIII,
tendo a filosofia crítica de Kant como uma espécie de limite ou balizamento, é um novo
modo de se interrogar sobre a atualidade e sobre uma experiência de si mesmo, do qual
as pesquisas arqueologico-genealógicas fazem parte, radicalizando-o. Mas a própria
possibilidade de promover essa radicalização é externa a esses problemas, e está mesmo
no âmago da definição que Kant dá à Aufklärung: ela é justamente a ousadia à qual
esses novos elementos fazem referência, necessariamente. Ao se debruçar sobre a
resposta de Kant à pergunta O que é o Esclarecimento?, Foucault encontrará essa
atitude que exige uma autonomia própria para o pensamento; e, portanto, poderá,
igualmente, operar sua inscrição na modernidade a partir de um paradigma ético. Traçar
as fronteiras entre essa dimensão ética explícita na conferência – e nos textos da mesma
época concernentes ao assunto – e as outras, mais subterrâneas pode não ser uma
atividade tão óbvia, uma vez que entre as mudanças estritamente epistemológicas e a
inauguração dessa nova atitude na modernidade, um mesmo solo, uma mesma épistèmé
serve de condição de emergência histórica.
Mas encontremos a especificidade desse artigo de Kant dedicado à responder
uma questão urgente, que um jornal colocava diante de um público que não se limitava
ao restrito círculo dos eruditos esclarecidos. É para esse público amplo que Kant se
dirige ao responder O que é a Aufklärung?. Sua resposta ainda é a grande referência

38
dessa atitude que a modernidade parece ter seguido de perto. “Esclarecimento
[Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade [Unmündigkeit]”.55 Unmündigkeit,
a palavra utilizada por Kant, significa, literalmente, algo como a não-emancipação, a
dependência no sentido tanto jurídico quanto psicológico ou intelectual.
Etimologicamente, o termo deriva de Mund, em alemão, “boca”, e o sufixo –keit denota
normalmente capacidade, habilidade, que vem negada pelo prefixo Un -, formando
literalmente uma palavra que significaria, amplamente, a incapacidade de fazer uso da
boca, ou seja, de se expressar, de dizer algo em seu próprio nome.56 Podemos dizer que
a resposta kantiana define o princípio segundo o qual os alemães sonhavam construir
uma sociedade cosmopolita: Sapere aude ! – o Gelehrter, o erudito esclarecido, é o
homem que não deixa se deixa conduzir por outros. A saída ética em direção à
modernidade, a saída desse estado menor, significa, sobretudo, fazer uso do próprio
entendimento, ter a ousadia de admitir esse entendimento, cuja estrutura teórica já
estava traçada há três anos, contados a partir da data do artigo da Berlinische
Monatsschrift, na primeira crítica, seja a única bússola do ato de raciocinar. Não se
deve, portanto, na medida em que se deseja atingir esse estado de emancipação, aceitar
irrefletidamente a autoridade de outros, seja ele um diretor espiritual, um médico, ou
mesmo um livro. No artigo de 1984, que recebeu inicialmente o título What is
Enlightenment?, Foucault caracteriza a mudança que a definição de Kant comporta: “a
Aufklärung é definida pela modificação da relação pré-existente entre a vontade, a
autoridade, e o uso da razão”57, ou seja, a entrada no domínio da modernidade daquilo
que a conferência de 1978 chama justamente de “indocilidade refletida”58 Mas é bom
lembrar, com Kant, que a Aufklärung não é simplesmente um estado a ascender, mas
um processo e uma tarefa: “Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em um época
esclarecida [aufgeklärten Zeitalter]?”, a resposta será: “não, vivemos em uma época de
esclarecimento [ Zeitalter der Aufklärung]””. E em seguida acrescenta a referência: “ou
o século de Frederico”,59 século que encontrará, no caminho da crítica e da
emancipação, o problema da formação cultural que a elas conduz.

55
KANT, I. RPE, Ak 35.
56
Meus sinceros agradecimentos ao professor Ricardo Barbosa por essa observação.
57
DE IV, 339, 564.
58
QC 39.
59
KANT, I. , op. cit. , p. 112.

39
Por todas essas demarcações promovidas por Kant, nota-se o deslocamento que
esse texto produz. Principalmente com relação à questão do sujeito, há uma fundamental
mudança de perspectiva: Kant serviu, de fato, como um balizamento estratégico frente à
modernidade, no momento mesmo em que propõe esse enigma no campo dos saberes,
que foi o sujeito como duplo empírico-transcendental. Vimos o quanto a Introdução à
Antropologia ainda inédita, e certas passagens fundamentais de As Palavras e as Coisas
insistiam nesse ponto, tomando como ponto de partida tanto a Antropologia de um
ponto de vista pragmático quanto a Crítica da razão pura. O breve artigo sobre a
Aufklärung parece fazer, enfim, o problema do sujeito encontrar sua vocação política.
Não mais uma interrogação sobre o modo como a pergunta “O que é o homem?” vai
exigir novos modelos de racionalidade, mas como ela vai responder àquilo que
Francesco Paolo Adorno chama de um “imperativo ético, que é, ao mesmo tempo, uma
necessidade política”: “converter o trabalho sobre o exterior em um trabalho de
transformação do sujeito”60, refletir sobre o domínio que o mundo pode exercer sobre si
para chegar ao poder que se pode exercer sobre si mesmo. Com relação às leituras
anteriores que Foucault faz de Kant, trata-se não de uma ruptura, mas de um
alargamento do domínio de suas pesquisas, que culmina numa abertura por onde
Foucault poderá se inscrever nessa tradição crítica, que foi, sobretudo, a emergência de
um ethos que atravessou toda a modernidade. Como conseqüência desse gesto, ou ao
menos no mesmo movimento que ele, que o coloca, deliberada e intempestivamente ao
lado de Kant, de Nietzsche e de Hegel, Foucault deverá atingir o limite máximo da
atitude crítica, ao incorporá-la, internamente, ao seu projeto filosófica. À exigência de
emancipação, representada nas pesquisas da arqueologia-genealogia como uma crítica
racional da razão, uma visada sobre o próprio trabalho será acrescentada, do mesmo
modo pelo qual o próprio Kant reposicionava suas pesquisas correntes em relação às
anteriores: o que poderíamos denominar uma reescritura de si.

2.1 Dinastias

Quando Kant publica seu artigo sobre o Esclarecimento em 1784, a pergunta


Was ist Aufklärung? já habitava o universo dos eruditos alemães. Moses Mendelssohn

60
ADORNO, F. P. Le style du philosophe – Foucault et le dire vrai, p. 50.

40
havia empreendido pouco antes, no mesmo Berlinische Monatsschrift uma resposta a
essa mesama questão; e pode-se regredir ainda mais se quisermos encontrar sua origem
editorial : em um artigo de 1783 sobre o casamento civil, Johann Friedrich Zöllner
adiciona uma nota com a seguinte observação: “O que é o Esclarecimento? Essa
questão, que é quase tão importante quanto o que é a verdade, deveria, de fato, ser
respondida antes que alguém começasse a se esclarecer! E eu ainda não a encontrei
respondida em nenhum lugar”61. Os artigos de Mendelssohn e Kant viriam em seguida,
e a eles sucederiam tantos outros quantas foram as tentativas de conceituar esse termo
que, por todos os lugares, das universidades aos jornais, ocupara os debates entre os
intelectuais. O que é Aufklärung? Trata-se, sobretudo, em um primeiro momento de
apreender a especificidade dessa nova palavra: “sob o nome de Esclarecimento os
corações e as mentes dos homens estão confusos”62. A função do erudito nesse primeiro
momento é compreender e conceituar, enfim, determinar essa atualidade que se abre
diante da humanidade como um novo mundo. A resposta de Mendelssohn se detém
longamente sobre esse ponto; Zöllner havia apontado o caminho certo – é necessário
desfazer a confusão dos corações e das mentes, estado no qual o grande público ainda se
encontra:

“As palavras esclarecimento, cultura [Kultur] e educação


[Bildung] são recentes em nossa linguagem. Elas pertencem
correntemente apenas ao discurso literário. As massas quase
não as compreendem. (...)O uso lingüístico, que parece querer
criar distinções entre essas palavras sinônimas, ainda não teve
tempo de estabelecer suas fronteiras”.63

Tamanho esforço para definir o conceito de Aufklärung não constitui o conjunto


de tentativas isoladas de diferentes pensadores em diagnosticar sua atualidade. Muito
antes, ele é o resultado de uma tomada de posição ampla desses filósofos, teólogos,
literatos – uma posição que chega mesmo às vias da institucionalização: tanto Zöllner,
quanto Mendelssohn, no momento em que escrevem seus artigos, são membros da
Berliner Gesellschaft für Aufklärung wirkender Gelehrter [Sociedade berlinense dos

61
ZÖLLNER, J. F. “Ist es ratsam das Ehebündnis ferner durch die Religion zu sanzieren? [ É
conveniente sancionar ultriormente o vínculo conjugal através da religião?]” citado in SCHMIDT, J.
(org.) What is enlightenment – eighteenth century answers and twentieth century questions, p. 2.
62
Idem.
63
MENDELSSOHN, M. “On question: What is Enlightenment?” in SCHMIDT, J., op. cit., p. 53.

41
eruditos em prol do Esclarecimento], socidade secreta conhecida também como
Mittwochgesellschaft [Sociedade da Quarta-feira], que tinha por função organizar
debates em torno justamente da questão O que é Aufklärung?64. Há, portanto, uma
dimensão política no Esclarecimento que não se deixa adivinhar apenas pelas mudanças
estruturais na sociedade como um todo, nem pelas diversas formas de reflexão a que
essas mudanças deram lugar: ela se encontra como que no cruzamento entre essas duas
séries de acontecimento. O que poderíamos chamar de dimensão político-filosófica, ou
mesmo crítico-institucional da Aufklärung é precisamente a decisão da qual o
estabelecimento da sociedade secreta de Zöllner e Mendelssohn dá testemunho: decisão
de definir a Aufklärung, de reunir os eruditos afim de que, determinados os limites dessa
palavra, determinado, enfim, esse conceito tão confuso, eles possam dedicar suas
críticas e reflexões àquilo que cada um compreende como a tarefa do Esclarecimento.
Com tudo isso, é importante notarmos que, se no artigo kantiano o que sobressai é o
duplo significado da Aufklärung, como conceito e como tarefa, é preciso remetermos
essa distinção a esse momento fundamental, em que um Gelehrter, porta-voz de um
grupo de outros tantos eruditos, firmes em um mesmo propósito, vem propor:
precisamos definir o Esclarecimento, somente após isso estaremos aptos a nos
esclarecer.
Kant não pertenceu à Sociedade da Quarta-feira, embora mantivesse com
muitos de seus integrantes importantes debates, públicos ou particulares (através de sua
correspondência pessoal), e tenha sido um grande colaborador da Berlinische
Monatsschrift, revista que funcionava como uma espécie de órgão de difusão das idéias
da sociedade secreta.65 Quando publica seu artigo, Kant ainda não tinha sequer lido o de
Mendelssohn, como lembra bem Foucault66, e o próprio Kant67. Subsiste, assim, uma
pequena, mas considerável distância entre o texto de Kant e os dos eruditos preocupados
em conceituar a Aufklärung: aquilo que Foucault chama de “o problema novo”68, ou de

64
Para maiores detalhes sobre a Sociedade da Quarta-feira, , ver o artigo de Günther Birtsch, “The Berlin
Wednesday Society” in SCHMIDT, J. op. cit. , pp. 235-252, e, igualmente, a nota de Heinz Wismann em
sua tradução francesa do artigo de Kant in KANT, Oeuvres philosophique, t. II, p. 1440.
65
Kant colaborou com quinze artigos para a revista, entre 1784 e 1796. O texto sobre a Aufklärung, lido e
deabatido em uma das reuniões da Mittwochgesellschsft, foi a segunda colaboração de Kant, precedida do
trabalho sobre a História Universal de um ponto de vista cosmopolita, publicada um mês antes.
66
DE IV, 339, 563.
67
RPE Ak 42.
68
DE IV, 339, 563.

42
“nova atitude crítica (...) da qual Kant abrira a possibilidade”69 reside nessa diferença
que seu artigo introduz, o Esclarecimento é, sim, um conceito, mas é, principalmente,
um projeto diante do qual deve-se assumir um outro ethos. Um ethos cuja forma se
desenha na coragem da crítica. Isso não quer dizer que Kant estivesse aquém ou além de
seu tempo: “Eu não creio, por um lado, que Kant se sentiu estranho à Aufklärung, que
era para ele sua atualidade e no interior da qual ele intervinha; não seria somente por
esse artigo da Aufklärung, mas por muitos outros motivos...”70 Muito pelo contrário,
como já vimos, é também pela radicalização desse presente que o artigo de Kant
encontrará sua singularidade. Dentro de seu presente, o que a crítica kantiana inaugura
é uma dinastia.
Muito raramente Foucault utiliza o termo dinastia [dynastie], e nunca
especificamente em relação a Kant, mas seu uso parece indicar a legitimidade dessa
apropriação que fazemos aqui. Sempre que recorre a essa definição (que não se encontra
tão amplamente elaborada a ponto de podermos caracterizá-la como um conceito),
Foucault aponta não a formação de uma escola filosófica que se perpetuaria a partir de
possíveis herdeiros de seus sistemas de pensamento, mas a constituição de uma série de
problemas que são comuns a vários sistemas filosóficos, já que são elementos
integrantes daquilo que Foucault chama de solo epistemológico de uma determinada
cultura. Isso aparece de forma um pouco mais explícita em sua conferência A verdade e
as formas jurídicas, quando Foucault, a propósito de uma leitura de O Anti-édipo, de
Deleuze e Guattari, mais uma vez, tenta se desvencilhar da classificação de
estruturalista:

“Faço um parêntese para lembrar que tudo que tento


dizer, que tudo que Deleuze, com mais profundidade, mostrou
em seu Anti-édipo, faz parte de um conjunto de pesquisas que
não dizem respeito, ao contrário do que disseram nos jornais,
àquilo que tradicionalmente se chama “estrutura” (...) Se me
perguntassem o que eu faço e o que os outros fazem melhor que
eu, diria que não fazemos uma pesquisa de estrutura. Eu faria
um jogo de palavras e diria que o que nós fazemos são
pesquisas de dinastia. Eu diria, jogando com as palavras
gregas dínamis dinasteia, que procuramos fazer aparecer
aquilo que, na história de nossa cultura permaneceu até agora

69
QC 41.
70
QC 62.

43
como o mais escondido, o mais ocultado, o mais
profundamente investido: as relações de poder”.71

O que a descrição arqueologico-genealógica promove é a descoberta (ou


invenção, talvez) dessas séries de problemas que recobrem as divergências numa dada
cultura porque funcionam como sua condição: a dinastia que Kant inaugura e que
fundará todo o ethos filosófico da modernidade como ethos crítico. É assim, por
exemplo, que, por ocasião de sua aula de 26 de fevereiro de 1975 no Collège de France,
ao abordar a questão das divergências entre a Igreja e o Estado quanto ao tratamento dos
doentes mentais por volta do final do século XIX, Foucault reconhecerá a formação
desse campo comum, que é aberto por uma nova série de problemas insistentemente
retomados por ambos os partidos: “É assim que, como vocês estão vendo, se constitui,
sempre na dinastia dessa história das convulsões, esse entrelaçamento e essa batalha
entre o poder eclesiástico e o poder médico”.72 O que a dinastia permite ver é o
funcionamento das relações de poder sob o fundo das grandes polêmicas, o modo como
o conceito encontra-se investido, mais profundamente, de um uso possível, capaz de
penetrar nos sistemas de pensamento mais divergentes. E, nesse caso, tanto faz que o
texto de Kant seja contemporâneo do de Mendelssohn: a dinastia funda seu próprio
tempo, e este último insere uma mudança relevante naquilo que o primeiro já
considerava tão relevante.
Dessa perspectiva, a crítica como ousadia do saber é a dimensão da Aufklärung
que autoriza Foucault a determinar o uso do Esclarecimento: “esse problema que nos
torna fraternos em relação à Escola de Frankfurt”, diz em sua conferência diante da
Sociedade, esse “problema da Aufklärung, que é talvez, afinal, o problema da filosofia
moderna”73 se apresenta como a série de questões que demanda uma atitude capaz de
recobrir toda a modernidade, “de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e
Max Weber”74. É através desse mesmo ethos que Baudelaire se encontrará igualmente

71
DE II, 139, 554.
72
FOUCAULT, M. Les Anormaux, p. 284, grifo nosso. Também ao falar sobre a função da literatura na
modernidade, Foucault recorre a esse termo: “trata-se, sobretudo, de uma passagem para o “fora”: a
linguagem escapa ao modo de ser do discurso – quer dizer, da dinastia da representação – e a palavra
literária se desenvolve a partir dela mesma, formando uma rede, onde cada ponto, distinto dos outros,
distante mesmo dos mais vizinhos, está situado em relação a tudo em um espaço que, ao mesmo tempo,
os abriga e os separa” (DE I, 38, 520, grifo nosso).
73
QC 45.
74
DE IV, 351, 688.

44
inscrito nessa dinastia moderna: nele, “em quem se reconhece, geralmente, uma das
consciências mais agudas da modernidade no século XIX”75, encontramos uma
importância do presente análoga à que habitava o artigo de Kant. “Vocês não têm o
direito de desprezar o presente” : esse seria, por um lado, o mote geral da crítica de arte
de Baudelaire, segundo Foucault.76 Por outro, a coragem da crítica, a “arte de não ser
governado” baudelaireana é precisamente o dandismo: “o dandismo, que é uma
instituição fora das leis, tem leis rigorosas às quais todos os seus assuntos estão
estritamente submetidos, quaisquer que sejam, além disso, seu ardor e a independência
de seu caráter”.77 Aqui está, portanto, a variante do motivo central da Aufklärung,
segundo a leitura de Foucault, que Baudelaire institui com sua crítica e com seu
dandismo: afinal, não se trata de não ser governado de nenhum modo – nada seria mais
estranho para Kant, por exemplo, do que essa anarquia – mas de “não ser governado
desse modo, por esse modo, em nome desses tais princípios, em vista de tais objetivos, e
por meio de tais procedimentos”78. A dificuldade que Kant colocava em sua
Antropologia, mas também antes, em seu artigo sobre o Esclarecimento, era justamente
essa: como, uma vez tendo questionado a “autoridade do dogmatismo”79 – as leis, de
acordo com Baudelaire – pode-se constituir novas leis, agora inteiramente
fundamentadas no uso do próprio entendimento, que sejam capazes de constituir
sujeitos autônomos.
A ousadia da crítica, a coragem do dandismo. De Kant a Baudelaire, eis a atitude
na qual Foucault encontra o movimento de suas próprias pesquisas. Pois a crítica do
dogmatismo assume em Foucault a forma de uma arqueologia-genealogia que procura
investigar de que modo foram possíveis, historicamente, a formação de subjetividades e
objetividades na história da ratio ocidental. A crítica em Foucault, enfim, é o trabalho
dessas do pensamento sobre si mesmo, da razão, abandonada o tanto quanto possível de
seus universais, sobre as formas de racionalidade.

“Mas o que é o filosofar hoje em dia – quero dizer a


atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento
sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber
75
DE IV, 339, 569.
76
Idem.
77
BAUDELAIRE, C. “Le peintre de la vie moderne” in Oeuvres completes, p. 806.
78
QC 38.
79
QC 39.

45
de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
em vez de legitimar o que já se sabe?”80

Pensar um outro pensamento sempre foi a obsessão do trabalho de Foucault.


Obsessão levada a tal ponto que pode, de fato, confundir os espíritos simplistas, como
os chamava o próprio Foucault, que passaram a considerá-lo um inimigo da verdade,
retomando a chantagem do racionalismo à qual já nos referimos. Ora, não devemos
esquecer que, ao participar da dinastia moderna, do ethos esclarecido, ao se inscrever,
através de um gesto voluntário na tradição inaugurada por Kant e seu artigo sobre a
Aufklärung, a pesquisa da arqueologia-genealogia não poderia aceitar o anarquismo de
uma total ausência de subjetividades, muito menos relacionar-se com a verdade sob a
forma de uma mera negação: “acredito demais na verdade para não supor que existam
diferentes verdades e diferentes maneiras de dizê-la”.81 Tal radicalidade, por mais que
possa se pretender filiada a uma tradição que remonta a Kant, será facilmente rejeitada
por um racionalismo defensivo. Pois, por uma via estranha à verve do Esclarecimento, a
modernidade se cercou de cuidados com o Universal e com a Verdade frente a essa
ousadia da crítica, quase sempre excessiva, que levava ao excesso de poder:

“Porque, à força de nos advertirmos que nossa


organização social ou econômica carecia de racionalidade, nós
nos encontramos diante, não sei, se de razão demais ou de
menos, em todo caso, certamente diante de poder demais; à
força de nos ouvirmos cantar as promessas da revolução, não
sei, se lá onde ela é produzida é boa ou má, mas nós nos
encontramos diante da inércia de um poder que
indefinidamente se mantinha; e à força de nos ouvirmos cantar
a oposição entre as ideologias da violência e a verdadeira
teoria científica da sociedade, do proletariado e da / história,
nós nos reencontramos com duas formas de poder que se
assemelham como dois irmãos: fascismo e stalinismo.”82

Da mesma maneira, todo o esforço que a arqueologia-genealogia empreende


para se desvencilhar do humanismo – ampliado em muito pela polêmica em torno da
“morte do homem”, que As Palavras e as Coisas anunciava – é resultado da posição
que esse humanismo tece diante da crítica; ele se opõe ao próprio princípio de uma

80
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité – vol 2: L‟usage des plaisirs, p. 13.
81
DE IV, 357, 733.
82
QC 44-45.

46
auto-constituição precedida de um questionamento radical das certezas, dos universais.
Sua crítica sempre precisou se apoiar “em certas concepções do homem tomadas de
empréstimo à religião, à ciência, à política”.O humanismo é a continuidade lógica do
sono antropológico, da contínua redução do saber a um antropomorfismo bem-
intencionado. Assim, “desse ponto de vista, as Luzes e o humanismo encontram-se mais
em um estado de tensão que de identidade”.83
A fraternidade com a Escola de Frankfurt a que Foucault faz alusão em sua
conferência, e que deve ser lida aqui mais especificamente como uma alusão ao trabalho
de Adorno e Horkheimer, especialmente em Dialética do Esclarecimento, é deduzida da
tentativa desse último trabalho de colocar a razão ocidental sob a ótica de uma história
da civilização e de seu desenvolvimento tecnológico. Pensar, portanto, um outro
pensamento, que denuncia de que forma o Esclarecimento como processo – cuja origem
Adorno e Horkheimer encontram não em Kant, mas nos gregos – integrou em si uma
mistificação do próprio conceito de razão:

“A insossa sabedoria para a qual não há nada de novo


sob o sol, porque todas as cartas já teriam sido jogadas,
porque todos os grandes pensamentos já teriam sido pensados
(...) reproduz tão-somente a sabedoria fantástica que ela
rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz
sem cessar o que já era. O que seria diferente é igualado.(...)
esclarecimento corrói a injustiça da antiga desigualdade, o
senhorio não mediatizado, perpetua-o, porém, ao mesmo
tempo, na mediação universal, na relação de cada ente com
cada ente”84

A cumplicidade intelectual que Foucault ergue entre os seus trabalhos e os da


Escola de Frankfurt se depreende da forma como a atitude crítica se desenvolveu dois
séculos depois do artigo de Kant, sobretudo na Alemanha85: trata-se de colocar a própria
razão sob a interrogação da crítica, de descobrir de que excessos ela própria se tornou
responsável. Portanto, não mais a pergunta sobre os limites e as liberdades que o

83
DE IV 339, 573.
84
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, pp. 26-27. Não se pode
esquecer, contudo, que o interesse pelos trabalhos da Escola de Frankfurt foi despertado em Foucault pela
leitura da obra de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, publicada em 1929, Punishment and Social
Structures, à qual se faz referência em Vigiar e punir. Cf. sobre isso, a entrevista a Ducio Tromadori no
mesmo ano da conferência diante da Sociedade, DE IV, 281, 73.
85
QC 42.

47
Esclarecimento deveria garantir, mas uma outra, ainda na dinastia desta, que pretende
revelar as novas formas de poder que a Aufklärung instituiu no momento mesmo em que
a ousadia do Sapere aude! se transformou numa forma estática e totalitária da razão, “ao
mesmo tempo como despotismo e como luz”.86
Mendelssohn, Kant, Baudelaire, Adorno e Horkheimer. Na modernidade
desenhada por Foucault, um espaço que recobre diferenças tão grandes não pretende
eliminá-las, mas descobrir seu solo comum. Já insistimos anteriormente sobre o quanto
a proximidade com os problemas da filosofia kantiana não poderia simplesmente apagar
as distâncias em relação à arqueologia-genealogia.87 Também no caso de Baudelaire, o
dandismo encontra um limite em seu romantismo tardio, ainda que não mais ingênuo ou
nostálgico. Quanto à Escola de Frankfurt, o próprio Foucault ressalta suas divergências:
“a relação com a história é um elemento que me decepcionou nos representantes da
Escola de Frankfurt”, que sempre articularam uma filosofia da história em um sentido
clássico, um tipo de raciocínio “ao mesmo tempo, modesto e crédulo demais”88 A
heterogeneidade ainda se tora mais aguda se considerarmos essas outras figuras que
Foucault inscreve em sua linhagem: Bataille, pela maneira como, nele, a atitude crítica
se reflete no problema do sujeito, ou antes, dos modos de dessubjetivação (no erotismo
próprio do êxtase sexual e religioso); Nietzsche, com sua filosofia intempestiva,
forçando o pensamento ao encontro de uma experiência-limite do homem; ou ainda
Heidegger, Hegel, Husserl, Max Weber, Canguilhem, Barthes, Blanchot, Bachelard,
apenas para citarmos mais alguns que são inseridos nessa dinastia infinita da
modernidade de Foucault. Em todos eles, uma contemporaneidade, que é sempre uma
experiência de sua própria atualidade, e uma atitude, cuja pergunta Was ist
Aufklärung?, pronunciada pela primeira vez em um jornal alemão, há mais de duzentos
anos, desencadeou todos os ecos. E, enquanto estivermos em busca de uma outra forma
de pensamento que dê conta, não simplesmente da Verdade, mas, mais
fundamentalmente, da possibilidade de dizê-la, ainda seremos excessivamente
modernos.

86
DE IV 361, 768.
87
Cf. supra, cap. 1.
88
DEIV 281, 76.

48
2.1 Inventários

Após ter traçado o que poderíamos chamar de uma genealogia do ethos


moderno, remetendo, diferentemente de seu artigo sobre a definição kantiana da
Aufklärung, a uma época mais recuada em relação ao Esclarecimento como período
histórico – chegando ao Renascimento, por exemplo – Foucault parte para uma análise
da posição de suas próprias pesquisas a partir dessa atitude, e dos elementos conceituais
e metodológicos que animas essas pesquisas. Temos insistido até aqui no modo como
esses dois momentos se encontram fundamentalmente articulados, como a questão da
emancipação, da maioridade que a época da Crítica exigia para si, leva Foucault a
refletir sobre aquilo que seria o seu próprio projeto filosófico. Não se trata de recuperar
uma unidade inequívoca da obra que teria se dispersado nos procedimentos sempre tão
empíricos da arqueologia-genealogia, muito menos de defender para si mesmo uma
perspectiva de trabalho que a figura inquestionável do Autor transformaria na mais
próxima possível da Verdade. Também já apontamos antes todo o esforço de Foucault
para afastar de suas pesquisas essas duas noções estagnantes, a de obra e a de autor.
Então qual o sentido dessa volta sobre si mesmo, dessa organização retrospectiva do que
foi dito até então? Porque agora circunscrever a diversidade, que até então constituíra
uma de suas maiores características, nos limites de um projeto geral; porque, enfim
proceder esse inventário de todo seu trabalho? A hipótese das fases encontraria aí uma
guinada ética no pensamento de Foucault, que seria ao mesmo tempo uma crise – e que
o levaria a um recolhimento maior e uma reflexão mais profunda sobre o método. Além
de lançar mão de uma hipótese que se aproxima muitas vezes de um psicologismo
incompatível com os domínios de trabalho de Foucault, essa hipótese explica muito
pouco exatamente por querer explicar tudo. Se há um inventário sendo feito por
Foucault, esse inventário é absolutamente móvel, estratégico, múltiplo. Ao procurar seu
projeto geral, o que se busca é uma outra forma de se pensar um pensamento, o seu
próprio: não a descoberta, mas a invenção, a reescritura de si.
Não que essa busca seja nova na arqueologia-genealogia. Para cada livro escrito,
todos os outros assumem uma outra dimensão, e é nesse sentido que se pode falar de
uma leitura retrospectiva estratégica. É o que acontece, por exemplo, na Introdução da
Arqueologia do saber, livro sobre os “problemas de método” – e não exatamente um

49
livro de método, um livro de metodologia – como já anunciava uma nota breve em As
Palavras e as Coisas.89 Ali, a História da Loucura, As Palavra s e as Coisas e O
Nascimento da Clínica são visados a partir daquilo que agora o livro sobre o método
podia esclarecer, que podia, enfim, mesmo trazer a eles muitas “correções e críticas
internas”.90 Diante dos problemas elaborados na Arqueologia, os livros anteriores se
mostram como antes não poderiam tê-lo feito:

“De uma maneira geral, a História da Loucura dedicava


uma parte bastante considerável, e aliás, bem enigmática, ao
que se designava como uma “experiência”, mostrando assim o
quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito
anônimo e geral da história. Em Nascimento da clínica, o
recurso à análise estrutural, tentado várias vezes, ameaçava
subtrair a especificidade do problema colocado e o nível
característico da arqueologia. Enfim, em As Palavras e as
Coisas, a ausência de balizagem metodológica permitiu que se
acreditasse em análises em termos de totalidade cultural”91

Essa reescrita de suas pesquisas, não tem por função deter seu movimento, muito
pelo contrário ela é a manifestação de um movimento novo, certamente uma ruptura,
mas somente se não empregarmos a palavra para designar um corte delimitador, que
deixaria para trás tudo que lhe antecede. A ruptura é a invenção de um novo espaço,
cuja força de criação arrasta consigo sua grande matéria-prima, o conjunto heterogêneo
e fluido dos escritos que lhe são anteriores. Já em uma primeira aproximação, a
coragem, ou mais explicitamente, a ousadia, que está associada a essa auto-crítica, que,
bem nos moldes da autonomia pretendida pelo Esclarecimento, é também uma auto-
constituição segundo outros princípios – pode ser lida sem equívocos: “Não me
pergunte quem eu sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado
civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. 92
Não se pode mais ver nessa posição uma desvinculação total e inconseqüente com todo
e qualquer princípio.
Contudo, a visada retrospectiva que Foucault anuncia em seus últimos anos se
caracteriza mais pela compreensão de um projeto geral, o que não acontecia antes: já

89
MC 13.
90
AS 26-27.
91
Idem.
92
AS 28.

50
não se procura apenas encontrar um novo espaço pra os trabalhos empreendidos até
então diante de uma pesquisa mais atual, mas circunscrever o todo dessas pesquisas.
Em 1978 essa tentativa começa a ser feita, ainda de uma maneira tímida, diante da
Sociedade. Desse momento em diante, Foucault inúmeras vezes retornará ao tema do
motivo geral de seus trabalhos. A longa entrevista a Ducio Tromabodri, realizada
igualmente em 1978, mas publicada somente dois anos mais tarde, por exemplo, fornece
elementos importantes sob esse aspecto: nela, Foucault aborda detalhadamente todo o
percurso de suas pesquisas, recua até seus anos de formação, especificando sua atitude
frente a sistemas de pensamento como o humanismo, a fenomenologia e mesmo a teoria
crítica da Escola de Frankfurt, lembra o contato que teve com Nietzsche, Bataille,
Blanchot, explica sua posição diante das polêmicas em torno de seus trabalhos, trata da
recusa de certos tratamentos (como o de filósofo ou mestre), relembra seu envolvimento
político ao longo de mais de trinta anos, ressalta os problemas de método levantados em
suas análises. Essa disposição singular para falar tão longamente desses temas garante a
essa entrevista um lugar privilegiado na questão que Foucault coloca para si mesmo a
respeito de seu trabalho, e parece se orientar a partir daquilo que é dito em sua primeira
resposta a Trombadori: “Tenho completa consciência de me deslocar sempre, ao mesmo
tempo, em relação às coisas que me interessam e em relação àquilo que já pensei.”93
Nesse ponto não se fala ainda explicitamente em projeto, mas todas as coordenadas já
estão dadas: um novo deslocamento, agora por um movimento mais amplo que os
anteriores. Artigos como The subject and the power, publicado originalmente nos
Estados Unidos em 1982, o verbete Foucault, escrito pelo próprio, sobre si mesmo, para
um dicionário de filósofos, sob o pseudônimo de Michelle Florence, em 1984, e, por
fim, o artigo sobre o texto de Kant e a Aufklärung e a aula no Collège de France sobre o
mesmo assunto, ambos também de 1984 – onde a inscrição na tradição crítica funciona
como o resultado mais inusitado dessa busca de um projeto mais amplo – retomarão, um
a um, a mesma intermitente preocupação.
Uma dimensão desse retorno sobre si mesmo pode ser depreendida da questão
que levará Foucault em direção aos gregos e aos romanos: a ascese, que assumirá,
segundo sua perspectiva, o valor de uma estética da existência. Muito já se discutiu em
torno do valor metodológico desse salto dado pela arqueologia-genealogia, recuando

93
DE IV 281, 41.

51
por mais de dez séculos o domínio de suas pesquisas, mas, sem querermos subestimar a
relevância dessas questões, poderíamos nos concentrar naquele que seria o núcleo
problemático de Foucault ao abordar os antigos: toda a série de questões que surgem a
partir da prática ascética, da constituição de si mesmo como modo de filosofar. Como
fazer de si mesmo, e de todos os modos de relação dos outros para consigo (e da
verdade para consigo, igualmente) uma atitude filosófica? Aí está a proximidade entre a
interrogação articulada na leitura do artigo de Kant sobre a Aufklärung e as pesquisas do
cuidado de si entre os gregos e romanos; a genealogia da primeira questão leva
necessariamente ao trabalho acerca da segunda:

“E diria que quem quiser fazer a história da subjetividade


– ou antes, a história das relações entre sujeito e verdade –
deverá tentar encontrar a muito longa e muito lenta
transformação de um dispositivo de subjetividade, definido pela
espiritualidade do saber e pela prática da verdade pelo sujeito,
neste outro dispositivo de subjetividade que é o nosso e que é
comandado, creio, pela questão do conhecimento do sujeito por
ele mesmo e da obediência do sujeito à lei”.94

Se a atividade filosófica da atualidade pode ser lida como um trabalho crítico do


pensamento sobre si mesmo, como já apontava a Introdução do Uso dos prazeres, então
toda a série de pesquisas em torno da estética da existência, das práticas e técnicas de si,
encontra-se duplamente vinculada ao projeto filosófico do Esclarecimento no qual
Foucault se inscreve: como forma de questionamento da atualidade e como prática de
uma reflexão crítica que, como lembra a conferência de 1978, poderia ser encontrada na
formulação ampla “como não ser governado desse modo”.95 A insistência com que
Foucault lia Sêneca não estaria apontando o surgimento de um novo problema, que
circunscreveria um possível último Foucault a partir de uma pesquisa sobre a filosofia
antiga – basta lembrarmos que os gregos não são considerados nem admiráveis nem

94
FOUCAULT, M. L‟herméneutique du sujet , p. 385. Esse texto é a transcrição póstuma do curso
ministrado por Foucault no Collège de France para o trimestre letivo de 1981-1982, todo dedicado a
explorar as questões em torno da prática de si como forma de reflexão filosófica.
95
QC 38.

52
exemplares96 - mas, antes, fornecem uma outra dimensão para o antigo problema do
sujeito.
Já indicamos anteriormente como o trabalho com os antigos denotava,
sobretudo, uma questão atual.97 Ora, dos gregos a Kant, mantidas todas as diferenças
fundamentais que o trabalho da arqueologia-genealogia deverá ressaltar, o movimento
que se opera é precisamente aquele que está sendo feito diante dos membros da
Sociedade Francesa de Filosofia no dia 27 de maio de 1978: um questionamento de seus
próprios princípios. A estética da existência em Foucault certamente opera no regime da
reescritura, da mudança e da ruptura consigo mesmo (“tornar-se capaz de se desprender
de si mesmo” como ética própria do intelectual 98), mas com isso não se pode pretender
dizer que ela não se orienta segundo princípios. São esses princípios, agora retomados
na tentativa mais ampla de delimitar um projeto, que se abrem para exame na
conferência de Foucault. Podemos identificar um movimento análogo em Kant. De fato,
pode-se fazer uma leitura da filosofia kantiana como um todo a partir do modo como
Kant inseriu cada um de seus livros no caminho de um projeto filosófico. Em Kant,
distintamente de Foucault, a preocupação transcendental levava à busca de um sistema
que, embora tenha se modificado ao longo dos anos – especialmente a partir de 1770,
com a primeira concepção de uma Crítica da razão pura, a ser publicada onze anos
99
mais tarde - já era procurado enquanto tal desde o início: em seu primeiro texto,
Considerações para uma verdadeira avaliação das forças vivas [Gedanken Von der
wahren Schätzung der lebendingen Kräfte, 1747], numa passagem que hoje poderia nos
parecer tangenciar o pedantismo, a idéia de um sistema que deve se completar é clara:
“Já prescrevi a trilha [Bahn] na qual me manterei. Devo lançar minha carreira [Lauf] e
nada me impedirá de completá-la”.100 Em textos como o artigo sobre a Aufklärung, o

96
DE IV 354, 698, numa das suas últimas entrevistas, publicada poucos dias após sua morte, Foucault
responde às perguntas de André Scala sobre seus últimos trabalhos. A passagem citada encontra-se logo
no começo da entrevista, quando Foucault responde veementemente a duas questões: “ – Um estilo de
existência, é admirável. Você achou os gregos admiráveis? – Não. – Nem exemplares, nem admiráveis?
– Não.”
97
Cf. supra, capítulo 1, seção 1.1, As vozes do presente.
98
DE IV 350, 675.
99
Referimo-nos às idéias abordadas na Dissertação de 1770 sobre os princípios do mundo sensível e
inteligível [ De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis] que, segundo alguns especialistas,
já anunciaria algumas concepções fundamentais do projeto crítico que lhe seguiu. Igualmente importante,
nesse sentido, é a famosa Carta a Marcus Herz de 21 de fevereiro de 1772.
100
KANT, I. loc. cit. Ak 18 citado in GOETSCHEL, W. Contituting critique – Kant‟s writing as critical
praxis, p.18.

53
prefácio à primeira Crítica (tanto o primeiro quanto o segundo), ou mesmo o prefácio
do Conflito das Faculdades denunciam essa constante preocupação de Kant de
descrever o seu projeto, e todos os seus procedimentos e métodos, diante das condições
atuais da reflexão filosófica. Mas é em passagens como o último e curto parágrafo do
prólogo da terceira Crítica que Kant se aproxima mais efetivamente da auto-análise de
Foucault. Trata-se ainda de descrever as condições metodológicas de um trabalho dentro
de um determinado horizonte histórico, mas, além disso, também de demarcá-lo, ao
mesmo tempo, como um projeto geral e como um momento específico na trajetória
desse projeto.
Assim, de um lado temos Foucault, anunciando a posição de suas pesquisas
frente a um quadro geral de trabalhos em cuja dinastia elas também se inscreveriam:
“Tal é o quadro geral dessa pesquisa que eu chamaria de histórico-filosofica; eis como
se pode agora orientá-la”101, diz, para em seguida levantar os procedimentos próprios da
arqueologia-genealogia. De outro, Kant, após uma avaliação do trabalho desenvolvido
em suas duas primeiras Críticas, infere a fundamental necessidade do problema do juízo
para se concluir a arquitetônica do edifício crítico, e determina o espaço preciso de suas
pesquisas nesse momento, em função de seu sistema geral:

“Com isso, termino, portanto, minha inteira tarefa crítica.


Passarei sem demora à doutrinal, para arrebatar sempre que
possível de minha crescente velhice o tempo em certa medida
ainda favorável para tanto. É obvio que não haverá aí
nenhuma parte especial para a faculdade do juízo, pois com
respeito a ela a crítica toma o lugar da teoria; e que porém,
segundo a divisão da filosofia em teórica e prática e da
filosofia pura nas mesmas partes, a metafísica da natureza e a
dos costumes constituirão aquela tarefa”.102

Entre um e outro, um modo semelhante pelo qual a questão sobre si mesmo,


tomada do ponto de vista do projeto de um trabalho e seus procedimentos, se articula
com uma perspectiva mais ampla desse projeto e com a demarcação mais precisa do
momento no qual ele se encontra: não é difícil deduzir nesse espaço os dois principais
eixos da Aufklärung segundo a leitura que Foucault faz da definição de Kant, o da

101
QC 47.
102
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo, B X.

54
crítica radical – que leva ao problema da constituição de si mesmo – e o da positividade
do presente.
Os problemas metodológicos erguidos pela arqueologia-genealogia, tratados na
parte da conferência imediatamente anterior ao debate com os membros da Sociedade,
funcionam como o núcleo dessa nova escrita de si proposta por Foucault a partir,
justamente, dos últimos anos da década de setenta. Não se deve entender essa visão
retrospectiva, essa organização de um inventário a partir da entrada de um método que
antes não estaria exatamente definido. Se tivermos que tratar de um método dos
trabalhos de Foucault, este deverá ser entendido como o resultado das análises
empíricas, e, portanto, posterior a elas, num certo sentido: dado um conjunto de dados
empíricos – análises filosóficas, regulamentos institucionais, cartas, enfim, documentos
diversos que constituiriam os discursos de um arquivo – o método tem por função
delimitar, estrategicamente, quais dentre todos esses elementos podem, de fato, fazer
surgir as relações entre poder e saber no campo estudado: portanto, quando se fala de
método da arqueologia e da genealogia, “não se trata de demarcar, através deles,
princípios gerais da realidade, mas de fixar, de alguma forma, a frente de análise, o tipo
de elemento que lhe deve ser pertinente.”103 Deleuze lembra bem a característica
empírica dessa método a posteriori de Foucault: “É isso o essencial do método
concreto. Somos forçados a partir de palavras, de frases e de proposições. Só que as
organizamos num corpus determinado, variável conforme o problema colocado”.104 É
por isso que o novo recorte de Foucault em suas pesquisas deverá resultar em um outro
problema de método, não contraditório em relação aos problemas de método anteriores,
como os da Arqueologia do saber, mas simplesmente mais amplos, redimensionados a
partir de novos eixos de problemas já recorrentes.
A principal característica dessa pesquisa geral sobre os modos de subjetividade
modernos é encontrada na conferência de Foucault na resistência a apresentar o corpo
monolítico de um sistema de pensamento, que obteria resultados fixos e precisos a partir
de princípios bem determinados. De forma menos paradoxal do que se poderia
imaginar, a generalidade do projeto filosófico que Foucault defende para si nesse
momento tem como principal característica a insistência na multiplicidade e na
singularidade: multiplicidade irredutível dos conjuntos analisados (nenhum
103
QC 48.
104
DELEUZE, G. Foucault, p. 28.

55
“fechamento”105), singularidade absoluta dos resultados encontrados (a “singularidade
como efeito”106). Se a conferência chama a atenção para a importância desses dois
critérios, que orientariam todo o procedimento arqueológico-genealógico, devemos
lembrar que a novidade que ela traz não está exatamente aí, já que a recusa dos
universais já animava o trabalho de Foucault desde a História da Loucura, pelo menos.
O que seria da ordem da novidade, se pudéssemos designar assim a invenção de algo
que sempre esteve presente, potencialmente, encontra-se na formulação dos
procedimentos que visam essa multiplicidade e essa singularidade.
Em primeiro lugar, a problematização das relações causais no âmbito dessas
pesquisas levará Foucault a restrição das condições de admissão estratégica de
princípios unificadores. Esse problema já havia surgido na Arqueologia do saber, mas
estava ali colocado estritamente no que diz respeito às formações discursivas, ou seja,
limitava-se a uma análise das unidades possíveis no campo do saber, dos discursos, e
não das práticas – acabava encontrando, assim, o conceito de raridade dos
enunciados.107 O domínio dos problemas que Foucault trata aqui, diante da Sociedade,
é, evidentemente, mais amplo: a raridade dos discursos deve dar lugar a uma série de
três princípios negativos que serviriam de bússola metodológica não apenas para as
formações discursivas, mas, também, para as relações entre os enunciados e as práticas.
Se a Arqueologia do saber não apontava para essas relações, já discerníveis na História
da Loucura e no Nascimento da Clínica, a conferência de 1978 vai agora redimensionar
a questão metodológica das relações causais a partir não mais de uma raridade, mas de
uma piramidalização. Assim:

“1) não se reconhece valor causal senão nas explicações


que visam uma última instância valorizada como profunda, e
somente ela; economia para uns, demografia para outros;
2) não se reconhece como tendo valor causal senão o que
obedece a uma piramidalização em direção à causa ou ao núcleo
causal, à origem unitária;
3) e, enfim, não se reconhece valor causal senão no que
estabelece uma certa inevitabilidade ou, ao menos, no que se
aproxima da necessidade”.108

105
QC 51.
106
Idem.
107
Cf. AS pp. 155-165.
108
QC 50-51.

56
Vemos tratar-se de um conjunto de limites estratégicos bem mais amplos que
aqueles que na Arqueologia do saber visavam, por exemplo, atribuir a diferença entre as
formações discursivas questionadas em As palavras e as Coisas e o conceito de discurso
ou enunciado definidos pela lingüística.
Em segundo lugar, a compreensão da arqueologia e da genealogia como eixos
que devem estar articulados em todo o trabalho de Foucault torna-se, enfim, explícita. É
bem verdade que as análises de Vigiar e punir já indicavam a mútua referência do poder
e do saber: “não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber,
nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder”. 109
Mas talvez a preocupação em definir mais precisamente o uso do termo genealogia e o
campo que ele derivava parece ter eclipsado importantes passagens como essa, e levado
ao equívoco generalizado de se atribuir à publicação de Vigiar e punir o
estabelecimento de uma ruptura com os trabalhos anteriores. Certas passagens de
Qu‟est-ce que la Critique? podem facilmente desfazer esse equívoco, insistindo sobre a
concepção de arqueologia e genealogia como eixos indissociáveis.

“Ao falar de arqueologia, de estratégia e de genealogia,


não penso que se trate de demarcar aí três níveis sucessivos
que seriam desenvolvidos uns a partir dos outros, mas muito
mais de caracterizar três dimensões necessariamente
simultâneas da mesma análise, três dimensões que deveriam
permitir em sua simultaneidade mesma retomar o que há de
positivo, o que quer dizer que elas são as condições que tornam
aceitável uma singularidade cuja inteligibilidade se estabelece
pela delimitação das interações e das estratégias às quais ela
se integra”110

Tal como saber e poder não podem ser analisados como entidades em si –
“nunca se deve considerar que existe um saber ou um poder, menos ainda o saber ou o
poder, que seriam eles mesmos operantes. Saber, poder, isso não é nada mais que uma
grade de análise”111 – igualmente não se pode pressupor a genealogia

109
FOUCAULT, M. Surveiller et punir, p.27. Dois anos antes da conferência, Foucault já chamava a
atenção para esse vínculo, ou antes, essa reciprocidade, entre a saber e poder, no primeiro volume da
História da sexualidade, A vontade de saber: “Entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma
exterioridade, ainda que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas
diferenças”, p. 130.
110
QC 52.
111
QC 49.

57
independentemente da arqueologia, ou vice-versa. Eixos, ou, como nos diz a
conferência, níveis, necessariamente distintos, ambos visam a multiplicidade e a
singularidade. Ambos integram uma trabalho que, agora, em maio de 1978, se propõe
publicamente a uma auto-crítica, que, a partir da leitura que Foucault faz da Aufklärung,
deverá se apresentar também como uma transformação.

58
3. CONCLUSÕES
A chantagem, a ousadia, a aposta

Nada poderia ser menos produtivo, do ponto de vista do pensamento, do que


aquilo que Foucault chamou de chantagem, a obrigação irredutível de se filiar à longa
tradição ocidental do racionalismo. Contudo, ser racional ou não ser racional deixa de
ser uma opção válida para um pensamento que está preocupado em interrogar a razão. A
chantagem quer o comprometimento tranqüilizador dos que buscam um nome sob o
qual podem se resguardar dos riscos do irracional, e todas as figuras que tem origem aí
– a loucura, a falsidade, o erro. A chantagem, portanto, coagula a crítica naquilo que
seria a sua atitude fundamental, ao menos desde que Kant fazia a sua pergunta “O que é
a Aufklärung?”: a ousadia. A ousadia da Crítica que, no horizonte de seu próprio tempo,
deve forçar sempre o pensamento na direção de seu limite. A ousadia limítrofe,
portanto. Nada mais anacrônico que uma modernidade que quer encontrar
definitivamente o repouso de uma certeza. Nada, entretanto, mais comum. Acusa-se o
trabalho da arqueologia-geneaalogia de um niilismo ingênuo, no mesmo sentido em que
se busca encontrar em Nietzsche, enfim, um modo de desarmar a potência de seu riso
cínico, acusando-o de uma contradição pueril. Tanto quanto Nietzsche, Foucault é um
trabalhador no campo das iminências. Paul-Michel Foucault, Michelle Florence, Michel
Foucault, o filósofo mascarado112: desabrigado de um nome, afastando de si até mesmo
a insígnia brilhante do Autor, o pensamento faz da crítica um ethos, uma experiência de
si mesmo: “Não me pergunte quem eu sou e não me diga para permanecer o mesmo”.113
A favor da ousadia, e em detrimento da chantagem, Foucault impõe o risco de
uma aposta: talvez a modernidade seja bem outra coisa que essa escolha redutora. É
preciso, portanto, denunciar o anacronismo de um pensamento que busca o fim de seu
movimento próprio. É preciso reencontrar, naquele que foi, talvez, o maior
representante do que viria a se caracterizar como o Racionalismo Esclarecido, algo
diferente de uma filiação à Verdade. O que a arqueologia-genealogia de Foucault

112
Paul-Michel é o nome de batismo de Foucault. Michelle Florence é o pseudônimo sob o qual assina
um artigo sobre si mesmo em 1984 (cf. supra, cap. 2, seção 2.2, Inventários); o “filósofo mascarado” é
como Foucault se apresenta numa entrevista a Christian Delacampagne para o suplemento dominical do
Le monde em 1980 (Cf. DE IV 285, 104-110), afim de se manter anônimo.
113
AS 28.

59
empreende é uma nova dinastia, não mais fundada na relação sujeito-verdade, da
perspectiva do conhecimento, mas nas múltiplas formas assumidas pela subjetividade
moderna diante da exigência de emancipação erguida pela Aufklärung; uma inversão,
portanto: um deslocamento na direção de uma perspectiva ética, onde a Crítica não é
apenas a demarcação epistemológica de um limite, mas, muito mais amplamente, uma
atitude. Sapere aude!
Uma nova dimensão para uma questão na qual Foucault já se detinha há algum
tempo. Se a modernidade era antes o plano de trabalho das investigações arqueológicas,
ou mesmo seu ponto de partida, agora ela surge como condição última de uma tradição
de reflexão na qual Foucault pode se inscrever. Do mesmo modo, se Kant aparecia antes
como o marco até certo ponto negativo em relação à modernidade – como em As
Palavras e as Coisas, onde sua figura aparece como um “ponto de juntura”114 – agora
funciona mais positivamente, como fundador de uma forma de reflexão que ultrapassa
os cânones do racionalismo ou do anti-racionalismo, e coloca sob o mesmo domínio
Nietzsche e Max Weber, Hegel e os representantes da escola de Frankfurt. Inversão que
só se torna possível porque a atitude crítica, de Kant a Foucault, deve ser um encontro
consigo mesmo, uma avaliação do projeto filosófico e de seus procedimentos na sua
atualidade. A dinastia leva aos inventários: eis a chave que a conferência diante da
Sociedade Francesa de Filosofia em maio de 1978 nos oferece para compreendermos
melhor a posição dessa visada retrospectiva, de um projeto geral que nada teria de
sistematicamente fechado.
De todos os inventários constituídos por Foucault, de todas as formas
encontradas para uma possível organização de seus ditos e de seus escritos, nenhum
pode se impor como o mais verdadeiro, ou o mais legítimo. A arqueologia-genealogia
acompanhava de perto, poderíamos dizer, a forma intempestiva da filosofia de
Nietzsche, mas estava, ao mesmo tempo, incontornavelmente ligada a um ethos que lhe
impunha o problema do sentido. Problema que a obstinação de seu empirismo não podia
deixar ser respondido a partir de nenhum transcendental, nenhum universal
inquestionável, e que, desse modo, se condenava, voluntariamente a se constituir, antes
de tudo, como uma pergunta, incessante, sobre si mesmo. Lá onde uma resposta era
esperada, no momento seguinte a todas as imperdoáveis formas de destruição de nossas

114
MC 338-339.

60
certezas, a única aurora possível não nos garantirá absolutamente nenhuma nova figura
onde pudéssemos, enfim, depositar nossa boa fé. Nem o Homem, nem o Sujeito, nem a
Verdade. Apenas um gesto, quase imperceptível, que não faz outra coisa senão mostrar
a malha complicada em que o pensamento, desde Kant, ou desde os gregos, vem se
debatendo. O gesto quase irritante, tamanha é sua insistência, em que, para cada
pergunta feita, um espelho nos é mostrado. Infinitamente. No inventário de Foucault,
nesse mesmo que a conferência de maio de 1978 anuncia, a complexidade de um
pensamento que agora se olha inteiro, caberia em dois nomes, que de próprios muito
pouco ainda guardariam, e uma interrogação, que é o signo de um abandono. Michel
Foucault?

61
BIBLIOGRAFIA

Para uma lista detalhada das traduções disponíveis da conferência de Michel Foucault, e para sua
referência completa, referimo-nos à nota Sobre a situação do texto e sua tradução, que antecede nossa
tradução.

1. Textos de Michel Foucault

FOUCAULT, M. Dits et écrits, 4 vol., Paris: Gallimard, 1994.

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______________ Il faut défendre la société, Paris : Gallimard/ Seuil, 1997.

______________ L‟archéologie du savoir , Paris : Gallimard, 1969.

______________ Les anormaux, Paris : Gallimard/ Seuil, 2001

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______________ L‟herméneutique du sujet, Paris : Gallimard/ Seuil, 2001.

______________ Surveiller et punir, Paris : Gallimard : 1975.

______________ Qu‟est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”, Bulletin de la


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2. Textos sobre Michel Foucault

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__________ “Un pouvoir sans dehors” in Michel Foucault philosophe – rencontre


internationale. Paris 9, 10, 11, janvier 1988, Paris:Éd. Du Seuil, 1989.

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Kant‟s What‟s Enlightment?” in KELLY, M. (ed.) Critique and power – recasting
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Dialetic of Enlightment” in KELLY, M. (ed.) Critique and power – recasting the
Foucault/ Habermas debate, Massachussets: MIT Press, 1994.

LEBRUN, G. “Note sur la phenomenologie dans Lesa mots et les choses” in Michel
Foucaut philosophe: Rencontre internationale. Paris 9, 10 11 janvier 1998, Paris:
Éditions du Seuil, 1989.

QUEIROZ, A. Foucault – o paradoxo das passagens, Rio de Janeiro: Pazulin, 1999.

3. Textos de Kant

KANT, I. Anthopologie au point de vue pragmatique, trad. Michel Foucault, Paris:Vrin,


1964.

________ Correspondance, Paris: Gallimard, 1997.

________ Cours de métaphysique, Paris: Livre de poche, 1994

________ Crítica da Faculdade do Juízo, trad. Valério Rhoden e António Marques, Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

KANT, I. Crítica da Razão Pura, trad. Valério Rhoden e Udo Moosburger, São Paulo:
Abril Cultural, 1980.

________ Critique de la Faculté de juger, trad. Alexis Philonenko, Paris: Vrin, 1970.

64
________ Critique de la Faculté de juger, trad. Alain Renaut, Paris: Flammarion, 1995.

_________ Ideé d´une histoire universelle au point de vue cosmopolitique, trad. Jean-
Michel Muglioni, Paris:Bordas, 1998.

_________ Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, trad.


Rodrigo Naves e Ricardo Terra, São Paulo: Brasiliense, 1986.

________ Lógica , trad. Guido de Almeida, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

________ O Conflito das faculdades, Lisboa: Ed. 70, 1998.

________ Progressos da Metafísica, trad. Artur Mourão, Lisboa: Ed. 70, 1985.

________ “Réponse à question: qu‟est-ce que les Lumières?” in Oeuvres


philosophique, Paris: Plêiade, 1985.

________ “Resposta à pergunta: que é o Esclarecimento?”, trad. Florestan Fernandes in


Textos seletos, Petrópolis: Vozes, 1974.

4. Textos sobre Kant

ALQUIÉ, F. “Introduction” in KANT, I. Oeuvres philosophique, t.II, Paris: Gallimard,


1985.

ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, Rio de Janeiro: Relume-


Dumará, 1993.

CAYGILL, H. Dicionário Kant, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

LEBRUN, G. Kant e o fim da metafísica, São Paulo: Martins Fontes, 1993.

65
__________ Sobre Kant, São Paulo: Iluminuras, 2001.

PHILONENKO, A. “Introduction” in KANT, I. Critique da la faculté de juger, Paris:


Vrin, 1970.

PROUST, F. Kant, le ton de l´histoire, Paris: Payot, 1991.

RENAUT, A. “Présentation” in KANT, I. Critique de la faculté de juger, Paris:


Flammarion, 1995.

5. Outros textos citados

ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editora, 1985.

BAUDELAIRE, C. “Le peintre de la vie moderne” in Oeuvres completes, Paris: Robert


Laffon, 1980.

GOETSCHELL, W. Contituting critique, Durham: Duke University Press, 1994.

HEGEL, G. W. F. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, trad.


Carlos Morujão, Lisboa: IN/CM, 2003.

HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia, Rio Grande do Sul:


EDIPUCRS, 2002.
___________, La crise des sciences européennes et la phénomenologie transcendentale,
Paris: Gallimard, 1976.

66
SCHILLER, F. Textos sobre o belo, o sublime e o trágico, Lisboa: Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, 1997.

SCHMIDT, J., What is Enlightenment ? Eighteenth-Century Answers and Twentieth-


Century Questions, Berkeley: B.U.P., 1996.

WAGNER, R. Escritos y confessiones, Barcelona: Editorial Labor, 1975.

67
II. O que é a Crítica? [Crítica e Aufklärung], de Michel Foucault
Tradução e notas

68
Sobre a situação do texto e sua tradução

Fundada em 1901 por Xavier Léon e André Lalande, a Societé Française de


Philosophie é a instituição mais tradicional existente, nesse âmbito, na França, tendo
recebido célebres pensadores franceses para conferências – Durkheim, Lacan, Merleau-
Ponty, Sartre, para citar apenas alguns. Sediada no centro de Paris e administrada por
um conselho – do qual fazem parte, por exemplo, Paul Ricoeur e Suzanne Bachelard –
promove, anualmente, quatro conferências e um congresso internacional, e publica,
trimestralmente, a revista Bulletin de la Société Française de philosophie, além de
dicionários e, em número menor, obras individuais – em associação com a editora J.
Vrin, de Paris. As conferências são pronunciadas no anfiteatro Michelet, na Sorbonne, e
abertas ao público em geral. Atualmente, preside a Sociedade Bernard Burgeois, tendo
como vice-presidente Jean-Marie Beyssade.
Foucault faz sua primeira conferência diante da Sociedade em 22 de fevereiro de
1969, que recebe o título Qu‟est-ce qu‟un auteur?115. Quase dez anos depois, Qu‟est-ce
que la critique? [Critique et Aufklärung], em 27 de maio de 1978, terá lugar no mesmo
auditório116. A tradição impunha a essas comunicações – e ainda o faz – uma
determinada ordem: o presidente em exercício da Sociedade anuncia o conferencista,
que lê seu texto durante cerca de uma hora, para, em seguida, se iniciar um debate entre
os integrantes da mesa (o público não participa). Obviamente, esse ritual pode ser
ligeiramente alterado – Foucault, por exemplo, interpola seu texto com passagens
improvisadas, como se evidencia pelas hesitações e pelas repetições – mas sua forma
permanece basicamente a mesma.
As conferências pronunciadas diante da Sociedade, e seus respectivos debates,
normalmente são publicadas no Bulletin, um ou dois trimestres depois de sua leitura.
Este foi o caso da primeira conferência de Foucault, de 1969. Contudo, não foi o de Qu‟
est-ce que la critique?. Durante muitos anos a conferência permaneceu esquecida, não
sendo publicada, por motivos desconhecidos. Somente em 1990, seis anos após a morte

115
DE I, 69, 789-821. Ver, ao final da tradução, notas 1 e 4.
116
.Dessa vez, Foucault não dera nenhum título à sua comunicação, como ele mesmo declara, e ficará a
cargo da Sociedade mesma encontrar essa denominação pela qual a conhecemos hoje.

69
de Foucault, portanto, aparece na revista da Sociedade117. Como veículo de pouca
circulação, o Bulletin não pôde garantir ao texto um acesso muito amplo, embora o
tenha, certamente, tirado da obscuridade a que parecia estar condenado. Seguindo a
recomendação do testamento de Foucault, que proibia a publicação de qualquer texto
que não tivesse recebido seu imprimatur, a exaustiva coletânea organizada por Daniel
Defert e François Ewald em 1994, Dits et écrits, não reproduz a conferência. Apenas
cita, ao final do último volume, numa lista dos trabalhos que não se enquadram nos
critérios da coleção, a publicação do Bulletin como texto póstumo118. Por esse motivo,
ela permanece, senão totalmente, ao menos amplamente desconhecido dos leitores de
Foucault.
Opõe-se a esse fato o recente interesse de alguns pesquisadores sobre a leitura
que Foucault faz de Kant e da Aufklärung, que levou a algumas traduções da publicação
do Bulletin. Até o momento, temos notícia das seguintes traduções:

“¿Qué es la crítica? (Crítica y Aufklärung)” in DAIMON – Revista de Filosofia


de la Universidad de Murcia, n. 11, Julio-diciembre, 1995. Tradução parcial de Diego
Garcia Capilla.

“Crítica y Aufklärung” in Revista de Filosofia de la Universidad de Los Andes,


8, 1995. pp. 5-30. Tradução parcial de Jorge Dávila.

“What is Critique?” in SCHMIDT, James (ed.) What Is Enlightenment?


Eighteenth-Century Answers and Twentieth-Century Questions, Berkeley: Universty of
California Press, 1996, pp. 382-398. Traduzido parcialmente por Kevin-Paul Guinan.

“What is Critique.” in LOTRINGER, Sylvere and HOCHROCH, Lysa (eds.)


The Politics of Truth: Michel Foucault..). New York: Semiotext(e), 1997, pp. 23-82.
Tradução integral de Lysa Hocroth.

Illuminismo e critica, Roma: Dozelli, 1997. Tradução integral de P. Natoli.

117
“Qu‟ est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung]”, in Bulletin de la Société Française de
Philosophie, 84e. année, n. 2, avril-juin, pp. 35-63.
118
Cf. DE IV, Complément bibliographique établi par Jacques Lagrange, p. 838.

70
“Que és la crítica? [Crítica y Aufklärung]” in Sobre la Ilustración, Madrid: Tecnos,
2003. Tradução parcial de Luis Valdes.

As duas únicas versões com as quais não cotejamos nossa tradução foram a
italiana e a publicada na Revista de Filosofia da Universidade de Murcia. Todas as
outras nos serviram, em maior ou menor grau, e as diferenças relevantes em trechos
mais complexos da conferência constam das notas finais.
Algumas dificuldades ao longo da transposição do texto para o português nos
levaram a assumir cuidados que, embora não tenham a pretensão de defender nenhuma
teoria sobre o próprio ato de traduzir, denunciam nossa posição quanto a ele. Em
primeiro lugar, quanto a dificuldade de verter para a escrita um texto falado, com todas
as suas intervenções. Durante toda a conferência, Foucault acrescenta ao que é lido
desvios, observações paralelas, indica, como que à margem, certas referências, pontua
suas dúvidas. Esse tipo de atitude se reflete textualmente em construções nem sempre
aceitáveis do ponto de vista do estilo; repetições, elipses e zeugmas, anacolutos, ou
mesmo frases que não concluídas, longuíssimos períodos e inúmeras hesitações. A
língua francesa parece absorver um pouco melhor essa oralidade sem cair em um tom
demasiadamente coloquial. Mesmo assim, optamos, na maioria dos casos, por não
alterar essa ordem difícil, entrecortada, a menos que sua transcrição literal tornasse o
trecho incompreensível. Segundo esse mesmo critério, o de uma fidelidade maior para
com o literal, decidimos manter as inversões típicas da língua francesa, também
excetuando as passagens onde isso pudesse comprometer a assimilação de seu
significado. Assim, mantemos a inversão em “c‟est moins dans ce que nous
entreprenons (...) que dans l‟idée que nous fasons (...)”, traduzindo-a para “é menos
naquilo que empreendemos (...) que na idéia que fazemos (...)”. Aí não se trata de
nenhum coquetismo, mas de tentar preservar uma estrutura que não é gratuita na forma
de pensar francesa, e da qual Foucault fez amplo uso, ainda que nos seja um pouco
estranha. Quanto aos inúmeros neologismos e ao vocabulário técnico forjados Foucault,
que sempre causaram certa estupefação dos leitores, apresentamos nas notas o termo
original, muitas vezes recorrendo à traduções desse termo feitas por outros estudiosos
brasileiros quando encontrados em outros textos, embora nem sempre concordemos
com essas soluções. A comparação com outras traduções também nos auxilia nesse

71
ponto. Qu‟est-ce que la critique? se distancia da prosa sinuosa, mas contínua, com que
Foucault compôs obras como Les mots et les choses ou La vie des hommes infammes,
notadamente impregnada do estilo de Blanchot, Bataille e do humor de Jarry, por
exemplo. Nossa opção foi conservar essa especificidade: entre a escrita e a leitura,
optamos pela primeira, mas somente na medida em que, desse modo, a segunda adquire
os meios mais completos – e não, certamente, mais fáceis – de se tornar, legitimamente,
crítica.
Os números à margem e as marcações ao longo do corpo do texto indicam a
paginação original. Todas as notas numeradas são nossas, constando na publicação do
Bulletin apenas a nota a partir de um asterisco, logo no começo do texto, sobre sua
transcrição.

72
/O QUE É A CRÍTICA ? 35
1
[CRÍTICA E AUFKLÄRUNG]

Relatório da sessão de 27 de maio de 1978

A sessão foi aberta às 16 h 30 na Sorbonne, Anfiteatro Michelet, sob a


presidência do Sr. Henri Gouhier 2.

Sr. Henri Gouhier – Senhoras, senhoritas, senhores, eu gostaria inicialmente de


agradecer ao senhor Michel Foucault por ter inscrito essa sessão na agenda de um ano
tão ocupado, visto que nós o encontramos, eu diria, não no dia seguinte, mas há dois
dias de uma longa viagem ao Japão 3. É o que explica que a convocação enviada para
essa reunião seja um pouco mais lacônica; mas já que a comunicação de Michel
Foucault é uma surpresa, e como podemos pensar que seja uma boa surpresa, não faço
mais esperar tanto o prazer de ouvi-lo.

Sr. Michel Foucault – Eu lhes agradeço infinitamente por terem me convidado


para essa reunião, e diante dessa Sociedade. Creio já ter feito aqui uma comunicação há
uns dez anos, sobre o tema “O que é um autor?” 4.
/ Eu não dei título para a questão sobre a qual gostaria de lhes falar hoje. O Sr. 36

Gouhier bem quis lhes dizer, com indulgência, que foi por causa de minha estada no
Japão De fato, isso é uma atenuação bastante amável da verdade. Digamos que
efetivamente, até esses últimos dias, eu não tinha achado nenhum título; ou ainda, havia
um que me perseguia, mas que eu não quis escolher. Vocês verão porque: teria sido
indecente.
Na realidade, a questão da qual eu queria lhes falar, da qual eu quero sempre
lhes falar, é: O que é a crítica? Deveríamos tentar ter algumas conversas em torno desse
projeto que não cessa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia,
ao lado dela, contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia por vir, no lugar,
talvez, de toda filosofia possível. E parece que entre o grande empreendimento kantiano

O texto a seguir foi revisado, a partir da transcrição da Sra. Monique Emery, pelas Sras. Suzanne
Delorme, Christiane Menasseyre, Srs. François Azouvi, Jean-Marie Beyssade e Dominique Seglard.

73
e as pequenas atividades polemico-profissionais que carregam esse nome de crítica, me
parece que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente, empiricamente, a
partir dos séculos XV e XVI) uma certa maneira de pensar, de dizer, de, igualmente,
agir; uma certa relação àquilo que existe, àquilo que se sabe, àquilo que se faz; uma
relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros também e que nós
poderíamos chamar, digamos, de atitude crítica. Claro, vocês se espantarão de ouvir
dizer que há algo como uma atitude crítica e que seria próprio da civilização moderna,
já que houve tantas críticas, polêmicas etc, e que mesmo os problemas kantianos têm,
sem dúvida, origens bem mais distantes que estes séculos XV-XVI. Nós nos
espantamos também de ver que se tenta procurar uma unidade nessa crítica, já que ela
parece consagrada, por natureza, por função, eu diria por profissão, à dispersão, à
dependência, à pura heteronomia. Afinal, a crítica não existe a não ser em relação a
outra coisa que não ela mesma: ela é instrumento, meio para um futuro ou uma verdade
que ela não saberá e que não será; ela é um olhar sobre um domínio onde ela quer se
fazer de polícia e onde ela não é capaz de fazer a lei. Tudo isso faz com que ela seja
uma função que está subordinada em relação ao que constitui positivamente a filosofia,
a ciência, a política, a moral, o direito, a literatura etc. E, ao mesmo tempo, quaisquer
que sejam os prazeres ou as compensações que acompanhem essa curiosa atividade da
crítica, parece que ela traz consigo, muito regularmente, quase sempre, não somente
alguma rigidez de utilidade a qual ela reivindica, mas também que seja sustentada por
um tipo de imperativo mais geral – mais geral ainda que aquele de descartar os erros.
Há alguma coisa na crítica que se assemelha à virtude. E, de uma certa maneira, aquilo
sobre o que eu gostaria de lhes falar era a atitude crítica como virtude em geral. Para
fazer a história dessa atitude crítica há vários caminhos, eu queria simplesmente, mais
uma vez, lhes sugerir aquele que é um caminho possível / entre tantos outros. Eu 37
proporia a seguinte variação: a pastoral cristã, ou a igreja cristã enquanto exerceu uma
atividade precisa especificamente pastoral, desenvolveu essa idéia – singular, acredito, e
completamente estranha à cultura antiga – que cada indivíduo, qualquer que fosse a sua
idade, seu estatuto, e de uma extremidade à outra de sua vida, até no detalhe de suas
ações, devia ser governado e deixar-se governar, quer dizer, deixar-se dirigir à sua
salvação por alguém a quem se une através de uma relação global, e, ao mesmo tempo,
meticulosa, detalhada, de obediência 5. E essa operação de direção para a salvação, em

74
uma relação de obediência a alguém, deve se fazer em uma tripla relação com a
verdade: verdade entendida como dogma, verdade também na medida em que essa
direção implica um certo modo de conhecimento particular e individualizante dos
indivíduos, e, enfim, na medida em que essa direção se desdobra como técnica refletida,
comportando regras gerais, conhecimentos particulares, preceitos, métodos de exame,
de confissões, entrevistas, etc. Afinal, não se deve esquecer que aquilo que, durante os
séculos, se chamou na igreja grega como technè technôn, e na igreja romana latina
como ars artium, era precisamente a direção da consciência: era a arte de governar os
homens. Essa arte de governar, está claro, permaneceu durante muito tempo ligada a
práticas relativamente limitadas, enfim, mesmo na sociedade medieval, ligada à
existência conventual, ligada e praticada, sobretudo, em grupos espirituais relativamente
restritos. Mas creio que a partir do século XV, e desde antes da Reforma, pode-se dizer
que houve uma verdadeira explosão da arte de governar os homens; explosão entendida
em dois sentidos. Deslocamento, inicialmente, em relação ao seu núcleo religioso,
digamos, se quiserem, laicização, expansão na sociedade civil deste tema da arte de
governar os homens e os métodos para fazê-lo 6. E depois, em segundo lugar,
multiplicação dessa arte de governar em domínios variados: como governar as crianças,
como governar os pobres e os mendicantes, como governar uma família, uma casa,
como governar o exército, como governar os diferentes grupos, as cidades, os Estados,
como governar seu próprio corpo, como governar seu próprio espírito. Como
governar,creio que esta foi uma das questões fundamentais do que aconteceu no século
XV ou XVI. Questão fundamental à qual respondeu a multiplicação de todas as artes de
governar – arte pedagógica e arte política, arte econômica, se quiserem – e de todas as
instituições de governo, no sentido amplo que teve a palavra governo àquela época.
Logo, a questão “como não ser governado?”,me parece, não pode ser dissociada
desta governamentalização que me parece bastante característica dessas sociedades do
Ocidente europeu no século XVI. Eu não quero dizer com isso que, à
governamentalização, se oporia, / como que frente a frente, a afirmação contrária, “nós 38
não queremos ser governados, e nós não queremos ser inteiramente governados”. Quero
dizer que nesta grande inquietude em torno da maneira de governar, e na pesquisa sobre
as maneiras de governar, demarca-se uma questão perpétua que seria “como não ser
governado desse modo, por esse modo, em nome desses tais princípios, em vista de tais

75
objetivos, e por meio de tais procedimentos; não desse modo, não para isso, não através
deles?”. E se se dá a esse movimento da governamentalização, da sociedade e dos
indivíduos ao mesmo tempo, a inserção histórica e a amplitude que creio ter sido a sua,
parece que se poderia pôr desse lado o que chamaríamos de atitude crítica. Diante das
artes de governar, e como contrapartida, ou mais como seu parceiro e adversário ao
mesmo tempo, como maneira de se desconfiar delas, de recusá-las, de limitá-las, de lhes
encontrar uma justa medida, de transformá-las, de procurar escapar dessas artes de
governar, ou, em todo caso, deslocá-las, a título de reticência essencial, mas também, e,
por isso mesmo como linha de desenvolvimento delas, houve algo que nasceu na
Europa nesse momento; um tipo de forma cultural geral, a uma só vez atitude moral e
política, maneira de pensar etc., e que eu chamaria simplesmente a arte de não ser
governado ou, ainda, a arte de não ser governado desse modo e a esse preço. E eu
proporia então, como primeira definição da crítica, essa caracterização geral: a arte de
não ser governado desse modo.
Vocês me dirão que esta definição é ao mesmo tempo bem geral, bem vaga, bem
tênue. Claro! Mas creio assim mesmo que ela permitiria demarcar alguns pontos de
ancoragem precisos daquilo que tentei chamar de atitude crítica. Pontos de ancoragem
históricos, claro, e que poderíamos fixar assim:
1º. Primeiro ponto de ancoragem: em uma época em que o governo dos homens
era essencialmente uma arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa, ligada à
autoridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer ser governado
assim era essencialmente procurar na Escritura uma outra relação além daquela que
estava ligada ao funcionamento do ensino de Deus; não querer ser governado era uma
certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como quiserem) o magistério
eclesiástico, era o retorno à escritura, era a questão sobre o que é autêntico na Escritura,
do que foi efetivamente escrito na Escritura, era a questão sobre qual tipo de verdade
que dizia a escritura, como ter acesso a essa verdade da Escritura na escritura, e apesar,
talvez, do escrito; e até que se chega à questão finalmente muito simples: a Escritura era
verdadeira? Em suma, de Wycliffe 7 a Pierre Bayle, 8 a crítica se desenvolveu, de uma
parte, que acredito capital e não / evidentemente exclusiva, em relação à Escritura. 39
Digamos que a crítica é historicamente bíblica.

76
2º. Não querer ser governado – aí está o segundo ponto de ancoragem; não
querer ser governado deste modo é não querer mais aceitar certas leis porque elas são
injustas, porque, sob sua antigüidade, ou sob o brilho mais ou menos ameaçador que
lhes dá o soberano de hoje, elas escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é,
então, deste ponto de vista, diante do governo e da obediência que ele exige, opor os
direitos universais e imprescritíveis, aos quais todo governo, qualquer que seja, quer se
trate do monarca, do magistrado, do educador, do pai de família, deverá se submeter.
Em suma, se quiserem, encontrar-se-á aí o problema do direito natural.
O direito natural não é certamente uma invenção do Renascimento, mas ele
assumiu, a partir do século XVI, uma função crítica que conservará sempre. À questão
“como não ser governado?” ele responde dizendo: “quais são os limites do direito de
governar?”. Digamos que aí a crítica é essencialmente jurídica.
3º. E, enfim, “não querer ser governado” é evidentemente não aceitar como
verdadeiro, aqui passarei muito rapidamente, o que uma autoridade lhes diz ser
verdadeiro; ou, ao menos é não aceitá-lo porque uma autoridade lhes diz que é
verdadeiro, é não aceitá-lo a não ser se se considera por si mesmo como boas as razões
para aceitá-lo. E dessa vez a crítica tem seu ponto de ancoragem no problema da certeza
diante da autoridade.
A Bíblia, o direito, a ciência; a escrita, a natureza, a relação consigo; o
magistério, a lei, a autoridade do dogmatismo. Vê-se como o jogo da
governamentalização e da crítica, um em relação ao outro, deram lugar a fenômenos que
são, eu creio, capitais na história da cultura ocidental, quer se trate do desenvolvimento
das ciências filológicas, quer se trate do desenvolvimento da reflexão, da análise
jurídica, da reflexão metodológica. Mas, sobretudo, vê-se que o núcleo da crítica é
essencialmente o feixe de relações que une um ao outro, ou um aos dois outros, o poder,
a verdade e o sujeito. E se a governamentalização é de fato esse movimento pelo qual o
sujeito se dá o direito de interrogar a verdade, ora, a crítica será a arte da inservitude
voluntária, da indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função o
desassujeitamento no jogo do que poderia se chamar, em uma palavra, a política da
verdade.
/Esta definição, apesar de sua característica ao mesmo tempo empírica, 40
aproximativa, deliciosamente distante em relação à história que ela sobrevoa, eu teria a

77
arrogância de pensar que não é tão diferente daquela que Kant deu: não aquela da
crítica, mas justamente de uma outra coisa. Não está tão longe, em definitivo, da
definição que ele deu da Aufklärung 9. É característico, com efeito, que em seu texto de
1784 sobre o que é a Aufklärung, ele tenha definido a Aufklärung em relação a um certo
estado de menoridade no qual seria mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade.
Em segundo lugar, ele definiu essa menoridade, ele a caracterizou por uma certa
incapacidade na qual a humanidade seria mantida; incapacidade de se servir de seu
próprio entendimento, sem algo que seria justamente a direção de um outro, e ele
10
emprega leiten , que tem um sentido religioso historicamente bem definido. Em
terceiro lugar, acredito que seja característico que Kant tenha definido esta incapacidade
por uma certa correlação entre uma autoridade que se exerce e que mantém a
humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre esse excesso de autoridade e,
por outro lado, algo que ele considera, algo que ele chama uma deficiência de decisão e
de coragem. E, por conseqüência, essa definição da Aufklärung não vai ser
simplesmente um tipo de definição histórica e especulativa; haverá nessa definição da
Aufklärung alguma coisa que se revela um pouco ridícula, sem dúvida, de se chamar a
pregação, mas é em todo caso um apelo à coragem que ele lança nesta descrição da
Aufklärung. Não se deve esquecer que esse era um artigo de jornal. Haveria a fazer
sobre as relações da filosofia com o jornalismo a partir do século XVIII um estudo...A
menos que ele tenha sido feito, mas não estou certo... 11 é muito interessante ver a partir
de que momento os filósofos intervém nos jornais para dizer algo que é para eles
filosoficamente interessante, e que, portanto, se inscreve em uma certa relação com o
público, com efeitos de apelo. E, enfim, é característico que nesse texto da Aufklärung
Kant dê como exemplos da permanência da humanidade na menoridade, e, por
conseqüência, como exemplos, pontos sobre os quais a Aufklärung deve elevar este
estado de menoridade e tornar maiores, de certo modo, os homens, precisamente a
12
religião, o direito e o conhecimento . O que Kant descreveu como a Aufklärung é o
que eu tentei, em outro instante, descrever como a crítica, como essa atitude crítica que
se vê aparecer como atitude específica no Ocidente, a partir, creio, daquilo que foi
historicamente o grande processo de governamentalização da sociedade. E em relação a
esta Aufklärung (cuja divisa, vocês bem o sabem, e Kant o lembra, é “sapere aude”; não
sem que uma outra voz, a de Frederico II, diga em contraponto “que raciocinem o

78
13
quanto queiram, contanto que obedeçam” ), em todo caso, em relação a esta
Aufklärung, como Kant vai definir a crítica? Ou, em todo caso, já que não tenho a
pretensão de retomar o que foi o projeto crítico / kantiano em seu rigor filosófico – eu 41
não me permitirei isso diante de tal auditório de filósofos; não sendo eu mesmo
filósofo14, sendo, quando muito, crítico – em relação a esta Aufklärung, como se pode
situar a crítica propriamente dita? Se efetivamente Kant chama todo esse movimento
crítico anterior de Aufklärung, como ele vai situar aquilo que entende por crítica? Eu
diria, e essas são coisas completamente infantis, que em relação à Aufklärung, a crítica
será, aos olhos de Kant, aquilo que vai dizer ao saber: sabes bem até onde podes saber?
Raciocina o quanto queiras, mas sabes bem até onde podes raciocinar sem perigo? A
crítica dirá, em suma, que é menos daquilo que empreendemos com mais ou menos
coragem, que da idéia que nós fazemos de nossa consciência e de seus limites que
provém nossa liberdade, e que, por conseguinte, ao invés de deixar um outro dizer
“obedeça”, é nesse momento, quando se terá feito de sua própria consciência uma idéia
justa, que se poderá descobrir o princípio da autonomia, e que não se terá mais de ouvir
o obedeça, ou, mais ainda, que o obedeça será fundado sobre a autonomia mesma.
Não pretendo mostrar a oposição que havia em Kant entre a análise da
Aufklärung e o projeto crítico. Seria, acredito, fácil mostrar que para Kant mesmo esta
verdadeira coragem de saber, que era invocada pela Aufklärung, esta mesma coragem de
saber consiste em reconhecer os limites do conhecimento; e seria fácil mostrar que, para
ele, a autonomia está longe de ser oposta à obediência aos soberanos. Mas é inegável
que Kant fixou à crítica, em seu empreendimento de desassujeitamento em relação ao
jogo do poder e da verdade, como tarefa primordial, como prolegômeno a toda
Aufklärung, presente e futura, conhecer o conhecimento.

*
* *

Eu não queria insistir mais sobre as implicações desse tipo de deslocamento


entre Aufklärung e crítica que Kant quis então marcar. Queria simplesmente insistir
sobre esse aspecto histórico do problema que nos é sugerido pelo que aconteceu no
século XIX. A história do século XIX retomou muito mais a continuação do
empreendimento crítico tal como Kant o situou em recuo em relação à Aufklärung, que

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a algo coisa como a Aufklärung mesma. Dito de outra forma, a história do século XIX –
e, claro, a história do século XX mais ainda – pareceu dever, se não dar razão a Kant, ao
menos oferecer uma tomada de posição concreta a esta nova atitude critica, a esta
atitude crítica retraída em relação à Aufklärung, e da qual Kant abrira a possibilidade.
/Esta assimilação histórica que pareceu ser oferecida à crítica kantiana muito 42
mais que à coragem da Aufklärung, se constituía simplesmente nesses três traços
fundamentais: primeiramente, uma ciência positivista, quer dizer, tendo
fundamentalmente confiança nela mesma, apesar dela se encontrar cuidadosamente
crítica em relação a cada um de seus resultados; em segundo lugar, o desenvolvimento
de um Estado ou de um sistema estatal que se deu a si mesmo como razão e como
racionalidade profunda da história, e que, por outro lado, escolheu como instrumentos
procedimentos de racionalização da economia e da sociedade; e, assim, o terceiro traço,
na costura desse positivismo científico e do desenvolvimento dos Estados, uma ciência
de Estado ou um estatismo, se quiserem. Tece-se entre eles todo um tecido de relações
cerradas, na medida em que a ciência vai desempenhar um papel cada vez mais
determinante no desenvolvimento de forças produtivas; na medida em que, por outro
lado, os poderes de tipo estatal vão se exercer cada vez mais através de conjuntos
técnicos sofisticados. Por isso, o fato de que a questão de 1784, o que é a Aufklärung?,
ou antes, a maneira pela qual Kant, em relação a essa pergunta e à resposta que ele vai
lhe dar, tentou situar seu empreendimento crítico, interrogação sobre as relações entre
Aufklärung e Crítica, vai tomar legitimamente o caminho de uma desconfiança, ou, em
todo caso, de uma interrogação cada vez mais desconfiada: por quais excessos de poder,
por qual governamentalização, quanto mais incontornável a razão pela qual ela se
justifica, essa razão não é historicamente responsável?
Ora, o desenvolvimento dessa questão, acredito, não foi completamente o
mesmo na Alemanha e na França, e isso por razões históricas que se deveria analisar
porque são bem complexas.
Poder-se-ia dizer, grosso modo, o seguinte: é que, menos talvez por causa do
desenvolvimento recente de um Estado completamente novo e racional na Alemanha,
que por causa do velho pertencimento das Universidades à Wissenschaft e às estruturas
administrativas e estatais, essa desconfiança de que há algo na racionalização e até
mesmo na razão ela mesma que é responsável pelo excesso de poder, ora!, me parece

80
que essa desconfiança se desenvolveu sobretudo na Alemanha, e, digamos, para sermos
ainda mais breves, que ela se desenvolveu sobretudo no que se poderia chamar de uma
esquerda alemã. Em todo caso, da esquerda hegeliana à Escola de Frankfurt, houve toda
uma crítica do positivismo, do objetivismo, da racionalização, da technè e da
tecnicização, toda uma crítica das relações entre o projeto fundamental da ciência e da
técnica, que tem por objetivo fazer aparecer os laços entre uma presunção ingênua da
ciência, por um lado, e as formas de dominação próprias à forma da sociedade
contemporânea, de outro. Para tomar como exemplo aquele que foi, sem dúvida, / o 43
mais distante daquilo que se poderia chamar de uma crítica de esquerda, não se deve
esquecer que Husserl, em 1936, referiu a crise contemporânea da humanidade européia
a algo que se discutia nas relações do conhecimento com a técnica, da épistèmé com a
technè 15.
Na França, as condições do exercício da filosofia e da reflexão política foram
bem diferentes, e, por causa disso, a crítica da razão presunçosa e de seus efeitos
específicos de poder não parece ter sido orientada da mesma maneira. E seria, penso, ao
lado de um certo pensamento de direita, ao longo do século XIX e do século XX, que se
reencontraria essa mesma acusação histórica da razão ou da racionalização em nome
dos efeitos de poder que ela mantém consigo. Em todo caso, o bloco constituído pelas
Luzes e pela Revolução sem dúvida impediu, de uma maneira geral, que se recolocasse
realmente e profundamente em questão a relação da racionalização e do poder; talvez
também o fato de que a Reforma, quer dizer, o que eu creio ter sido, em suas raízes mais
profundas, o primeiro movimento crítico como arte de não ser governado, o fato de que
a Reforma não teve na França a amplitude e o resultado que ela conheceu na Alemanha,
fez sem dúvida com que na França essa noção de Aufklärung, com todos os problemas
que ela colocava, não tenha tido uma significação tão abrangente, além de não ter sido
uma referência histórica de tão longa eficácia quanto na Alemanha. Digamos que na
França contentava-se com uma certa valorização política dos filósofos do século XVIII,
ao mesmo tempo em que se desqualificou o pensamento das Luzes como um episódio
menor na história da filosofia. Na Alemanha, ao contrário, aquilo que era entendido por
Aufklärung era considerado, para o bem ou para o mal, pouco importa, mas, certamente,
como episódio importante, um tipo de manifestação brilhante da destinação profunda da
razão ocidental. Encontrou-se na Aufklärung, e em todo este período que, em suma, do

81
século XVI ao XVII serve de referência a esta noção de Aufklärung, tentou-se decifrar e
reconhecer a linha de inclinação mais acentuada da razão ocidental, já que era a política
à qual ela estava ligada que se fez objeto de um exame desconfiado. Tal é, se quiserem,
grosso modo, o cruzamento que caracterizou a maneira pela qual na França e na
Alemanha o problema da Aufklärung fora colocado ao longo do século XIX e de toda a
primeira metade do século XX.
Bem, eu creio que a situação na França mudou ao longo dos últimos anos, e que
de fato esse problema da Aufklärung (tal como ele fora tão importante para o
pensamento alemão desde Mendelssohn, Kant, passando por Hegel, Nietzsche, Husserl,
a Escola de Frankfurt, etc...), me parece que na França chegou-se a uma época em que
precisamente este problema da Aufklärung pôde ser retomado em uma vizinhança
bastante significativa com, / digamos, os trabalhos da Escola de Frankfurt. Digamos, 44
sempre para sermos breves, que – e isso não é surpreendente – é da fenomenologia e
dos problemas colocados por ela que nos retorna a questão do que é a Aufklärung. Ela
nos retornou, com efeito, a partir da questão do sentido e do que pode constituir o
sentido. Como se faz com que haja sentido a partir do contra-senso? Como o sentido
surge? Questão a qual vê-se bem que é complementar dessa outra: como se deu que o
grande movimento de racionalização nos tenha conduzido a tanto barulho, a tanto furor,
a tanto silêncio e tantos mecanismos melancólicos? Afinal, não se deve esquecer que A
16 17
Náusea é quase por um mês contemporânea da Krisis . E é pela análise, após a
guerra, disto, a saber, que o sentido não se constitui a não ser por sistemas de coação
característicos da maquinaria significante, é, parece-me, pela análise do fato de que não
há sentido a não ser por efeitos de coerção próprios das estruturas, que, por um estranho
atalho, se reencontrou o problema entre ratio e poder. Penso igualmente (e isso seria um
estudo a fazer, sem dúvida) que as análises da história das ciências (que também se
enraíza, sem dúvida, na fenomenologia, que na França seguiu, através de Cavaillès,
através de Bachelard, através de Georges Canguilhem, toda uma outra história), me
parece que o problema histórico da historicidade das ciências não existe sem ter
algumas relações e analogias, sem fazer até certo ponto eco a este problema da
constituição do sentido: como nasce, como se forma essa racionalidade, a partir de algo
que é totalmente diferente? Eis a recíproca e o inverso do problema da Aufklärung:
como se dá que a racionalização conduza ao furor do poder?

82
Parece-me que, sejam estas pesquisas sobre a constituição do sentido, com a
descoberta de que o sentido não se constitui a não ser pelas estruturas de coerção dos
significantes, sejam as análises feitas sobre a história da racionalidade científica, com os
efeitos de coação ligados à sua institucionalização e à constituição de modelos, tudo
isso, todas essas pesquisas históricas não fizeram, parece-me, nada a não ser recortar por
uma fresta estreita e como que através de um tipo de abertura universitária aquilo que
foi, afinal, todo o movimento de fundo de nossa história já há um século. Porque, à
força de nos advertirmos que nossa organização social ou econômica carecia de
racionalidade, nós nos encontramos diante, não sei, se de razão demais ou de menos, em
todo caso, certamente diante de poder demais; à força de nos ouvirmos cantar as
promessas da revolução, não sei, se lá onde ela é produzida é boa ou má, mas nós nos
encontramos diante da inércia de um poder que indefinidamente se mantinha; e à força
de nos ouvirmos cantar a oposição entre as ideologias da violência e a verdadeira teoria
científica da sociedade, do proletariado e da / história, nós nos reencontramos com duas 45
formas de poder que se assemelham como dois irmãos: fascismo e stalinismo. Retorno,
por conseguinte, da questão: o que é a Aufklärung? E é reativada assim a série de
problemas que marcara as análises de Max Weber: de que se trata essa racionalização
que nos convém que caracterize não somente o pensamento e a ciência ocidentais desde
o século XVI, mas também as relações sociais, as organizações estatais, as práticas
econômicas e talvez até o comportamento dos indivíduos? Do que se trata essa
racionalização em seus efeitos de coação e talvez de obscurecimento, de implantação
massiva e crescente, e jamais radicalmente contestada, de um vasto sistema científico e
técnico?
Esse problema, que nos obrigamos muito na França a retomar sobre nossos
ombros, este problema do que é a Aufklärung?, podemos abordá-lo por diferentes
caminhos. E o caminho pelo qual gostaria de abordá-lo, certamente não o retraço
absolutamente – e eu gostaria que acreditassem em mim – em um espírito de polêmica
ou de crítica 18. Duas razões, por conseguinte, fizeram com que eu não procurasse nada
além de marcar as diferenças e, de certo modo, ver até onde pode-se multiplicar, dividir,
demarcar uns em relação aos outros, desencaixar, se quiserem, as formas de análise
deste problema da Aufklärung, que é talvez, afinal, o problema da filosofia moderna.

83
Eu gostaria, logo em seguida, abordando esse problema que nos torna fraternos
19
em relação à Escola de Frankfurt , notar que, de qualquer modo, fazer da Aufklärung
a questão central quer dizer de fato um certo número de coisas. Quer dizer inicialmente
que nos engajamos em uma certa prática que se chamaria histórico-filosofica,, que não
tem nada a ver com a filosofia da história e a historia da filosofia, e com isso quero
dizer que o domínio de experiência ao qual se refere esse trabalho filosófico não exclui
nenhum outro, absolutamente.Não é a experiência interior, não são as estruturas
fundamentais do conhecimento científico, mas não é também um conjunto de conteúdos
históricos elaborados em outro lugar, preparados pelos historiadores e acolhidos
totalmente como fatos. Trata-se, de fato, nessa prática histórico-filosofica de se fazer
sua própria história, de fabricar, como por ficção, a história que seria atravessada pela
questão das relações entre as estruturas de racionalidade que articulam o discurso
verdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que lhe estão ligados, questão a qual se
vê bem que desloca os objetos históricos habituais e familiares aos historiadores para o
problema do sujeito e da verdade, do qual os historiadores não se ocupam. Vê-se
igualmente que esta questão investe o trabalho filosófico, o pensamento filosófico, a
análise filosófica, em conteúdos / empíricos desenhados precisamente por ela. Assim, 46
se quiserem, que os historiadores diante desse trabalho histórico ou filosófico venham
dizer: “sim, sim, claro, talvez”, em todo caso, não é nunca completamente isso, este que
é o efeito de interferência devido ao deslocamento em direção ao sujeito e a verdade da
qual falei. E que os filósofos, mesmo se eles não tomam todos os ares de galinhas
ofendidas 20, pensem geralmente: “ a filosofia, apesar de tudo, é bem outra coisa”, isso
sendo devido ao efeito de queda, devido a este retorno à empiricidade que não tem,
mesmo para ela, de ser garantida por uma experiência interior.
Concedamos a essas vozes ao lado toda a importância que elas têm, e esta
importância é grande. Elas indicam, ao menos negativamente, que se está no bom
caminho, quer dizer, que, através dos conteúdos históricos que se elabora e aos quais se
liga porque são verdadeiros ou valem como verdadeiros, coloca-se a questão: o que
então eu sou, eu que pertenço a essa humanidade, talvez a essa margem, neste momento,
neste instante de humanidade que está assujeitado ao poder da verdade em geral e das
verdades em particular? Dessubjetivar a questão filosófica pelo recurso ao conteúdo
histórico, libertar os conteúdos históricos pela interrogação sobre os efeitos de poder

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pelos quais esta verdade, da qual supostamente eles dependem, os afeta, é, se quiserem,
a primeira característica dessa prática histórico-filosofica. Por outro lado, essa prática
histórico-filosofica se encontra evidentemente em uma relação privilegiada com uma
certa época empiricamente determinável: mesmo se ela é relativa e necessariamente
vaporosa, esta época é, certamente, designada como momento de formação da
humanidade moderna, Aufklärung no sentido amplo do termo ao qual se referiram Kant,
Weber etc.; período sem datação fixa, com múltiplas entradas, já que se pode defini-lo
tanto pela formação do capitalismo quanto pela constituição do mundo burguês, o
posicionamento dos sistemas estatais, a fundação da ciência moderna com todos os seus
correlativos técnicos, a organização de uma coexistência entre a arte de ser governado e
aquela de não ser governado de tal modo. Privilégio, de fato, por conseguinte, para o
trabalho histórico-filosofico deste período, já que é aí que aparecem, de certo modo,
vivamente, e à superfície das transformações visíveis, estas relações entre poder,
verdade e sujeito que se trata de analisar. Mas privilégio nesse sentido que se trata de
formar a partir daí uma matriz para o percurso de toda uma série de outros domínios
possíveis. Digamos, se quiserem, que não é porque se privilegia o século XVIII, porque
se interessa por ele, que reencontramos o problema da Aufklärung; eu diria que é porque
se quer fundamentalmente pôr o problema “O que é a Aufklärung?” que se reencontra o
esquema histórico de nossa modernidade. Não se tratará de dizer que os Gregos do
século V são um pouco como os filósofos do século XVIII, ou bem que o século XII era
já / um tipo de Renascimento, mas de tentar ver sob quais condições, ao preço de quais 47
modificações ou de quais generalizações se pode aplicar, a não importa qual momento
da história, esta questão da Aufklärung de saber as relações dos poderes, da verdade e
do sujeito.
Tal é o quadro geral dessa pesquisa que eu chamaria de histórico-filosofica; eis
como se pode agora orientá-la.

*
* *

Eu disse anteriormente que gostaria, em todo caso, de traçar bem vagamente


outras vias possíveis além daquelas que me parecem ter sido até o presente as mais

85
voluntariamente seguidas. O que não é, de maneira alguma, acusar-lhes de não levarem
a nada, nem de não darem nenhum resultado válido. Eu gostaria simplesmente de dizer
e sugerir isto: parece-me que esta questão da Aufklärung desde Kant, por causa de Kant,
e provavelmente por causa desse deslocamento entre Aufklärung e crítica que ele
introduziu, foi essencialmente colocada em termos de conhecimento no momento da
constituição da ciência moderna; o que quer dizer, também, procurando aquilo que, já
com esse propósito, marcou os efeitos de poder indefinidos aos quais ela estava
necessariamente ligada pelo objetivismo, pelo positivismo, pelo tecnicismo etc.,
relacionando esse conhecimento às condições de constituição e de legitimidade de todo
conhecimento possível, e, enfim, procurando como, na história, se operou a passagem
para fora da legitimidade (ilusão, erro, esquecimento, recobrimento etc.). Em uma
palavra, é o procedimento de análise que me parece, no fundo ter, sido comprometido
pelo deslocamento da crítica em relação à Aufklärung operado por Kant. Parece-me que
a partir daí tem-se um procedimento de análise que é, no fundo, aquele que foi seguido
mais freqüentemente, procedimento de análise que se poderia chamar de uma
investigação da legitimidade dos modos históricos de conhecer. Em todo caso, é assim
que um certo número de filósofos do século XVIII, é assim que Dilthey, Habermas etc.,
o entenderam. Mais simplesmente ainda: que falsa idéia o conhecimento se fez dele
mesmo e a qual uso excessivo ele se encontrou exposto, a qual dominação, por
conseguinte, ele se encontrou ligado?
Ora! Mais do que este procedimento que toma a forma de uma investigação de
legitimidade dos modos históricos do conhecimento, poder-se-ia, talvez, visar um
procedimento diferente. Ele poderia tomar como entrada na questão da Aufklärung não
o problema do conhecimento, mas o do poder; ele avançaria não como uma investigação
da legitimidade, mas como alguma coisa que eu chamaria de prova de eventualização.21/ 48
Perdoem o horror da palavra! E então, o que ela quer dizer? O que eu entendi por
processo de eventualização, os historiadores devendo chorar de pavor, seria isto:
inicialmente, tomar os conjuntos de elementos onde se pode demarcar, em uma primeira
abordagem, logo, de maneira completamente empírica e provisória, as conexões entre
mecanismos de coerção e conteúdos de conhecimento. Mecanismos de coerção
diversos, talvez bem como conjuntos legislativos, regimentos, dispositivos materiais,
fenômenos de autoridade etc.; conteúdos de conhecimento que se tomarão igualmente

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em sua diversidade e em sua heterogeneidade e que se reterá em função dos efeitos de
poder dos quais eles são portadores enquanto são válidos como fazendo parte de um
sistema de conhecimento. O que se procura então não é saber o que é verdadeiro ou
falso, fundado ou não fundado, real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou
abusivo. Procura-se saber quais são os elos, quais são as conexões que podem ser
demarcadas entre mecanismos de coerção e elementos de conhecimento, quais jogos de
rejeição e de apoio se desenvolvem uns com os outros, o que faz com que tal elemento
de conhecimento possa adquirir efeitos de poder aplicados em um tal sistema a um
elemento verdadeiro ou provável, ou incerto ou falso, e o que faz com que tal
procedimento de coerção adquira as formas e as justificações próprias de um elemento
racional, calculado, tecnicamente eficaz etc.
Logo, neste primeiro nível, não operar a separação de legitimidade, não assinalar
o ponto do erro e da ilusão.
E é por isso que, a este nível, me parece que se pode utilizar duas palavras que
não têm por função designar entidades, poderes, ou qualquer coisa como os
transcendentais, mas somente operar, em relação aos domínios aos quais elas se
referem, uma redução sistemática de valor, digamos, uma neutralização quanto aos
efeitos de legitimidade e um esclarecimento sobre aquilo que os torna, em um certo
momento, aceitáveis, e que faz com que efetivamente tenham sido aceitos. Utilização
então da palavra saber, que se refere a todos os procedimentos e a todos os efeitos de
conhecimento que são aceitáveis em um momento dado e em um domínio definido; e,
em um segundo lugar, do termo poder, que não faz outra coisa senão recobrir toda uma
série de mecanismos particulares, definíveis e definidos, que parecem suscetíveis de
induzir comportamentos e discursos. Vê-se logo que esses dois termos não têm outro
papel que metodológico: não se trata de demarcar, através deles, princípios gerais da
realidade, mas de fixar, de alguma forma, a frente de análise, o tipo de elemento que lhe
deve ser pertinente. Trata-se, assim, de evitar fazer funcionar, inicialmente, a
perspectiva da legitimação, como o fizeram os termos conhecimento ou dominação.
Trata-se, igualmente, a todo momento da análise, de poder lhe dar um / conteúdo 49

determinado e preciso, tal elemento de saber, tal mecanismo de poder; nunca se deve
considerar que existe um saber ou um poder, menos ainda o saber ou o poder, que
seriam eles mesmos operantes. Saber, poder, isso não é nada mais que uma grade de

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análise. Vê-se também que essa grade não é composta de duas categorias de elementos
estranhos um ao outro, o que seria do saber de um lado, e o que seria do poder de outro
– e o que eu disse antes lhes tornaria exteriores um ao outro - , porque nada pode figurar
como elemento de saber se, por um lado, não é conforme a um conjunto de regras e
coações características, por exemplo, de tal tipo de discurso científico em uma época
dada, e se, por outro lado, não é dotado de efeitos de coerção ou simplesmente de
incitação próprios ao que é validado como científico, ou simplesmente racional, ou
simplesmente admitido etc. Inversamente, nada pode funcionar como mecanismo de
poder se não se desdobra segundo procedimentos, instrumentos, meios, objetivos, que
possam ser validados em sistemas mais ou menos coerentes de saber. Não se trata então
de descrever o que é o saber e o que é o poder e como um reprimiria o outro, ou como o
outro abusaria de um, mas se trata mais de descrever um nexo de saber-poder que
permita compreender o que constitui a aceitabilidade de um sistema, seja este sistema a
doença mental, a penalidade, a delinqüência, a sexualidade etc.
Enfim, me parece que de nossa capacidade de observação empírica de um
conjunto diante de sua aceitabilidade histórica, diante da época mesma em que
efetivamente é observado, o caminho passa por uma análise do nexo saber-poder que o
sustenta, o retoma a partir do fato de que ele é aceito, em direção daquilo que o torna
aceitável, não obviamente em geral, mas lá somente lá onde ele é aceito: é isso que se
poderia caracterizar como retomá-lo em sua positividade. Tem-se então aí um tipo de
procedimento que, fora do cuidado de legitimação e, por conseguinte, descartando o
ponto de vista fundamental da lei, percorre o ciclo da positividade, indo do fato da
aceitação ao sistema de aceitabilidade, analisado a partir do jogo saber-poder. Digamos
que aí está o nível, aproximadamente, da arqueologia.
Em segundo lugar, vê-se logo que, a partir desse tipo de análise, um certo
número de perigos, que não podem deixar de aparecer como as conseqüências negativas
e custosas de tal análise, ameaça.
Essas positividades são conjuntos que não vêm de si, neste sentido de que,
quaisquer que sejam o hábito ou a usura que puderam torná-los familiares a nós,
qualquer que seja a força de cegueira dos mecanismos de poder que eles fazem
funcionar, ou quaisquer que sejam as justificações que eles elaboram, eles não se
tornaram aceitáveis por algum direito originário; e o que / se trata de ressaltar para bem

88
50

compreender o que pôde torná-los aceitáveis é que justamente isso não veio de si, não
estava inscrito em nenhum a priori, não estava contido em nenhuma anterioridade.
Resgatar as condições de aceitabilidade de um sistema e seguir as linhas de ruptura que
marcam sua emergência, eis aí duas operações correlativas. Não era evidente que a
loucura e a doença mental se sobrepusessem no sistema institucional e científico da
psiquiatria; não foi mais dado que os processos punitivos, o encarceramento e a
disciplina penitenciária viessem se articular em um sistema penal; não foi mais dado
que o desejo, a concupiscência, o comportamento sexual dos indivíduos devessem
efetivamente se articular uns sobre os outros em um sistema de saber e normalidade
chamado sexualidade. A demarcação da aceitabilidade de um sistema é indissociável da
demarcação do que o tornou difícil de ser aceito: sua arbitrariedade em temos de
conhecimento, sua violência em termos de poder, enfim, sua energia. Daí a necessidade
de se dar conta dessa estrutura, para melhor seguir seus os artifícios.
Segunda conseqüência, aí também custosa e negativa, é que esses conjuntos não
são analisados como universais aos quais a história traria, com suas circunstâncias
particulares, um certo número de modificações. Claro, tanto os elementos aceitos como
as condições de aceitabilidade podem ter atrás deles uma longa carreira, mas o que se
trata de retomar na análise dessas positividades são, de algum modo, as singularidades
puras; nem encarnação de uma essência, nem individualização de uma espécie:
singularidade como a loucura no mundo ocidental moderno, singularidade absoluta
como a sexualidade, singularidade absoluta como o sistema jurídico-moral de nossas
punições.
Nenhum recurso fundador, nenhuma fuga em uma forma pura, eis aí sem dúvida
um dos pontos mais importantes e mais contestáveis desse percurso histórico-filosofico:
se ele não quer cair nem em uma filosofia da história, nem em uma análise histórica, ele
deve se manter no campo de imanência das singularidades puras. Então o quê? Ruptura,
descontinuidade, singularidade, descrição pura, quadro imóvel, nenhuma explicação,
nenhuma passagem, vocês conhecem tudo isso. Dir-se-á que a análise dessas
positividades não depende destes procedimentos ditos explicativos, aos quais atribui-se
um valor causal, sob três condições:

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1) não se reconhece valor causal senão nas explicações que visam uma última
instância valorizada como profunda, e somente ela; economia para uns, demografia para
outros;
2) não se reconhece como tendo valor causal senão o que obedece a uma
piramidalização em direção à causa ou ao núcleo causal, à origem unitária;
/ 3) e, enfim, não se reconhece valor causal senão no que estabelece uma certa 51
inevitabilidade ou, ao menos, no que se aproxima da necessidade. A análise das
positividades, na medida em que se trata de singularidades puras referidas não a uma
espécie ou a uma essência, mas a simples condições de aceitabilidade, ora!, essa análise
supõe o desdobramento de uma rede causal ao mesmo tempo complexa e cerrada, mas
sem dúvida de um outro tipo, uma rede causal que não obedeceria justamente a
exigência de saturação por um princípio profundo, unitário, piramidalizante e
necessário. Trata-se de estabelecer uma rede que dê conta desta singularidade como de
um efeito: daí a necessidade da multiplicidade de relações, da diferenciação entre os
diferentes tipos de relação, da diferenciação entre as diferentes formas de necessidade
de encadeamentos, de decifração das interações e das ações circulares e de levar-se em
conta o cruzamento de processos heterogêneos. Portanto, nada de mais estranho a uma
tal análise que a rejeição da causalidade. Mas o que é importante é que não se trata
nessas análises de remeter a uma causa um conjunto de fenômenos derivados, mas de
pôr em inteligibilidade uma positividade singular naquilo quilo que ela tem justamente
de singular.
Digamos, grosso modo, que, por oposição a uma gênese que se orienta para a
unidade de uma causa principal difícil, de uma descendência múltipla, se trataria aí de
uma genealogia, quer dizer, qualquer coisa que tente retribuir as condições de aparição
de uma singularidade a partir de múltiplos elementos determinantes, de onde ela aparece
não como o produto, mas como o efeito. Tornar inteligível, mas deve-se ver bem que ela
não funciona segundo um princípio de fechamento. E aí não se trata de um princípio de
fechamento por um certo número de razões.
A primeira é que as relações que permitem dar conta deste efeito singular são, se
não em sua totalidade, ao menos numa parte considerável, relações de interações entre
indivíduos ou grupos, o que quer dizer que elas implicam sujeitos, tipos de
comportamento, decisões, escolhas: não é na natureza das coisas que se poderia

90
encontrar o sustentáculo, o suporte dessa rede de relações inteligíveis, e sim na lógica
própria de um jogo de interações com suas margens sempre variáveis de incertezas.
Nenhum outro fechamento 22 porque as relações que se tenta estabelecer para dar
conta de uma singularidade como efeito, essa rede de relações não deve constituir um
plano único. São relações que estão em perpétuo desprendimento umas em relação às
outras. A lógica das interações, em um nível dado, funciona entre os indivíduos,
podendo, ao mesmo tempo, conservar suas regras, seus efeitos singulares, sempre / 52
constituindo com outros elementos interações que se exercem em um outro nível, de
sorte que, de uma certa maneira, nenhuma dessas interações aparece ou primária ou
absolutamente totalizante. Cada uma pode ser relocada em um jogo que a extravasa; e,
inversamente, nenhuma, por mais localizada que seja, é sem efeito ou sem risco de
efeito sobre aquela da qual ela faz parte e que a envolve. Então, se quiserem, e,
esquematicamente, mobilidade perpétua, essencial fragilidade ou, mais ainda,
intricamento entre o que reconduz o mesmo processo e o que o transforma. Enfim, se
trataria aí de resgatar toda uma forma de análises que se poderia dizer estratégicas.
Ao falar de arqueologia, de estratégia e de genealogia, não penso que se trate de
demarcar aí três níveis sucessivos que seriam desenvolvidos uns a partir dos outros, mas
muito mais de caracterizar três dimensões necessariamente simultâneas da mesma
análise, três dimensões que deveriam permitir em sua simultaneidade mesma retomar o
que há de positivo, o que quer dizer que elas são as condições que tornam aceitável uma
singularidade cuja inteligibilidade se estabelece pela delimitação das interações e das
estratégias às quais ela se integra. É uma tal pesquisa, tendo em conta... [ faltam
algumas frases perdidas devido ao retorno da fita de gravação]... se produz como
efeito, e eventualização naquilo que se relaciona a algo cuja estabilidade, o
enraizamento, cujo fundamento, não é jamais tal que não se pudesse, de uma maneira ou
de outra, se não se pensar seu desaparecimento, ao menos demarcar aquilo pelo que e a
partir de que seu desaparecimento é possível.
Eu disse antes que, mais que pôr o problema em termos de conhecimento e de
legitimação, se trataria de abordar a questão pela via do poder e da eventualização. Mas,
como vocês vêem, não se trata de fazer funcionar o poder entendido como dominação,
possessão, a título de dado fundamental, de princípio único, de explicação ou de lei
incontornável; ao contrário, trata-se de considerá-lo sempre como relação num campo

91
de interações, trata-se de pensá-lo em uma relação indissociável com as formas de
saber, e trata-se de pensá-lo sempre de maneira que ele seja visto associado a um
domínio de possibilidade e, por conseguinte, de reversibilidade, de reversão possível.
Vocês vêem, assim, que a questão não é mais: por qual erro, ilusão,
esquecimento, por quais defeitos de legitimidade o conhecimento vem a induzir efeitos
de dominação que manifestam no mundo moderno o empreendimento de [palavra
inaudível]? A questão seria mais esta: como a indissociabilidade do saber e do poder no
jogo de interações de estratégias múltiplas pode induzir, ao mesmo tempo,
singularidades que se fixam a partir de suas condições de aceitabilidade, e um campo de
possíveis, de aberturas, de indecisões, de retornos e de deslocamentos eventuais / que as 53
torna frágeis, que as torna fugazes, que faz desses eventos nada mais, nada menos que
eventos? De que maneira os efeitos de coerção próprios a estas positividades podem ser,
não dissipados por um retorno à destinação legítima do conhecimento e por uma
reflexão sobre o transcendental ou sobre o quasi transcendental que a fixa, mas
invertidos ou desatados no interior de um campo estratégico concreto, deste campo
estratégico que os induziu, e a partir justamente da decisão de não ser governado?
Em suma, o movimento que fez desembocar a atitude crítica na questão da
crítica, ou ainda, o movimento que fez retomar em consideração o empreendimento da
Aufklärung dentro do projeto crítico, que era fazer com que o conhecimento pudesse
fazer dele mesmo uma justa idéia, esse movimento de desembocar, esse deslocamento, a
maneira de enviar a questão da Aufklärung à crítica, não se deveria tentar fazer agora o
caminho inverso? Não se poderia tentar percorrer essa via, mas em um outro sentido? E
se se deve pôr a questão do conhecimento em sua relação com a dominação, seria, de
partida, e antes de tudo, a partir de uma certa vontade decisória de não ser governado,
esta vontade decisória, atitude ao mesmo tempo individual e coletiva de sair, como disse
Kant, de sua menoridade. Questão de atitude. Vocês vêem porque eu não pude dar,
ousar dar um título à minha conferência, que teria sido “O que é a Aufklärung?”.

Sr. Henri Gouhier – Eu agradeço muitíssimo a Michel Foucault por nos ter
trazido um conjunto tão coordenado de reflexões que eu chamaria filosóficas, ainda que
ele tenha dito “não sendo eu mesmo filósofo”. Devo logo dizer que, após ter dito “não
sendo eu mesmo filósofo”, ele acrescentou “quando muito crítico”, o que quer dizer

92
mesmo um pouco crítico. E após sua exposição eu me pergunto se ser um pouco crítico
não é ser muito filósofo.

23
Sr. Noël Mouloud – Eu gostaria de fazer talvez duas ou três observações. A
primeira é a seguinte: o Sr. Foucault parece nos ter colocado diante de uma atitude geral
do pensamento, a recusa do poder, ou a recusa de uma regra constrangedora, que
engendra uma atitude geral, a atitude crítica. Ele passou daí a uma problemática que
apresentou como um prolongamento dessa atitude: trata-se dos problemas que são
colocados atualmente a respeito das relações do saber, da técnica e do poder. Eu veria,
de uma certa maneira, atitudes críticas localizadas, girando em torno de certos núcleos
de problemas, o que quer dizer, em uma grande medida, apreendendo as fontes, ou, se
quiserem, os limites / históricos. É preciso, já que não tenhamos uma prática, um 54

método que estabeleça certos limites, que ponha problemas, que conduza a impasses,
para que uma atitude crítica se desenhe. E assim, por exemplo, são esses os sucessos
metodológicos do positivismo, que, com as dificuldades que levantaram, engendraram,
diante dele, reações críticas que nós conhecemos, que apareceram há meio século, quer
dizer, a reflexão logicista, a reflexão criticista, penso na escola popperiana ou na
reflexão wittgensteiniana sobre os limites de uma linguagem científica normalizada.
Freqüentemente, através desses momentos críticos, vê-se aparecer uma resolução nova,
a pesquisa de uma prática renovada, de um método que tem ele mesmo um aspecto
regional, um aspecto de uma pesquisa histórica.

Sr. Michel Foucault – Você tem absolutamente razão. É bem nesta via que a
atitude crítica se engajou e que desenvolveu suas conseqüências de uma maneira
privilegiada no século XIX. Eu diria então que é o canal kantiano, quer dizer, que o
momento forte, o momento essencial da atitude crítica deve ser o problema da
interrogação do conhecimento sobre seus próprios limites ou os impasses, se quiserem,
que ele encontra em seu exercício primeiro e concreto.
O que me surpreendeu foram duas coisas. Por um lado, se quiserem, que este
uso kantiano da atitude crítica não tenha impedido – e para dizer a verdade, em Kant o
problema é muito explicitamente colocado – que a crítica pusesse também ( o problema
se isso é fundamental ou não, isso pode-se discutir) esta questão: o que é o uso da razão,

93
qual uso da razão pode possuir efeitos quanto ao abuso do exercício de poder, e, por
conseguinte, à destinação concreta da liberdade? Eu creio que Kant está longe de
ignorar esse problema, e houve, na Alemanha, sobretudo, todo um movimento de
reflexão em torno desse tema, se quiserem, generalizando, deslocando o problema
crítico estrito que o senhor citou para outras regiões. O senhor cita Popper, mas afinal
para Popper também o excesso de poder foi um problema fundamental.
Por outro lado, o que eu quis observar – e me desculpo pela característica de
completo sobrevôo, se posso dizer – é que me parece que a história da atitude crítica,
naquilo que ela tem de específico no Ocidente – e no Ocidente moderno desde os
séculos XV-XVII – deve procurar a origem nas lutas religiosas e nas atitudes espirituais
na segunda metade da Idade Média. No momento onde justamente se põe o problema:
como ser governado, vai-se aceitar ser governado assim? É então que as coisas estão em
seu nível mais concreto, o mais historicamente determinado: todas as lutas em torno da
pastoral na / segunda metade da Idade Média prepararam a Reforma, e, acredito, foram 55
a espécie de limiar histórico sobre o qual se desenvolveu esta atitude crítica.

24 25
Sr. Henri Birault – Não gostaria de bancar a galinha assustada! Estou
completamente de acordo com a maneira pela qual a questão da Aufklärung se encontra,
de uma só vez, retomada por Kant para sofrer, ao mesmo tempo, uma restrição teórica
decisiva, em função de imperativos de ordem moral, religiosa, política etc., que são
característicos do pensamento kantiano. Creio que aí, entre nós, há um acordo total.
No que concerne agora à parte mais diretamente positiva da exposição, já que se
trata de estudar ao nível do solo, de certo modo, ao nível do evento, os fogos cruzados
do saber e do poder, eu me pergunto se não há lugar, apesar de tudo, para uma questão
adjacente, e, digamos, mais essencialmente, ou mais tradicionalmente filosófica, que se
situaria em recuo em relação a esse estudo precioso e minucioso dos jogos do saber e do
poder em diferentes domínios. Esta questão metafísica e histórica poderia se formular
da seguinte maneira: não se pode dizer que em um certo momento de nossa história, e
em uma certa região do mundo, o saber nele mesmo, o saber como tal, tomou a forma
de um poder, ou de uma potência, enquanto que o poder, por sua vez, sempre definido
como um saber-fazer, uma certa maneira de saber agir ou de saber agir bem,
manifestou, enfim, a essência propriamente dinâmica do noético? Nada de espantoso, se

94
devia ser assim, que Michel Foucault pudesse então reencontrar e desembaraçar as redes
ou relações múltiplas que se estabeleceram entre o saber e o poder, já que ao menos a
partir de uma certa época o saber é, no fundo, um poder, e o poder, no fundo, um saber;
o saber e o poder de um mesmo querer, de uma mesma vontade que sou obrigado a
chamar de vontade de potência.

Sr. Michel Foucault – Sua questão se refere à generalidade deste tipo de


relação?

Sr. Henri Birault – Não tanto sobre sua generalidade quanto sobre sua
radicalidade ou seu fundamento oculto aquém da dualidade dos dois termos saber-
poder. Não é possível encontrar um tipo de essência comum do saber e do poder, o
saber se definindo nele mesmo como saber do poder, e o poder, de seu lado, se
definindo como saber do poder (sem explorar atentamente as múltiplas significações
desse duplo infinitivo)?

/ Sr. Michel Foucault – Absolutamente. Aí, justamente, eu fui 56


insuficientemente claro, na medida em que o que eu queria fazer, o que eu sugeri, é que
antes, ou aquém de uma espécie de descrição – grosso modo, há os intelectuais e os
homens de poder, há os homens de ciência e as exigências da indústria etc. – de fato,
tem-se toda uma rede trançada. Não somente de elementos de saber e de poder; mas
para que o saber funcione como saber, não pode ser se não na medida em que ele exerce
um poder. No interior de outros discursos de saber, em relação aos discursos de saber
possíveis, cada enunciado considerado como verdadeiro exerce um certo poder e ele
cria, ao mesmo tempo, uma certa possibilidade; inversamente, todo exercício de poder,
mesmo que se trate de se expor à morte, implica ao menos um saber fazer, e, afinal,
esmagar selvagemente um indivíduo é ainda uma certa maneira de compreendê-lo.
Então, se quiserem, estou completamente de acordo, e é isso que tentei fazer aparecer:
sob as polaridades que, para nós, parecem bem distintas daquelas do poder, tem-se uma
espécie de ofuscamento...
Sr. Noël Mouloud – Eu retorno à nossa referência comum, ao sr. Birault e a
mim: Popper. Um dos propósitos de Popper é o de mostrar que na constituição das

95
esferas de poder, qualquer que seja sua natureza, isto é, de dogmas, de normas
imperativas, de paradigmas, não é o saber ele mesmo que está engajado, que é
responsável, mas é uma racionalidade desviante que não é mais um saber
26
verdadeiramente . O saber – ou a racionalidade enquanto formadora é ela mesma
desprovida de paradigmas, desprovida de fórmulas. Sua iniciativa própria é de recolocar
em questão suas próprias certezas, sua própria autoridade, e de “polemizar contra ela
mesma”. É precisamente por esta razão que ela é racionalidade, e a metodologia, tal
qual Popper a concebe é a de desempatar, de separar esses dois componentes, de tornar
impossível a confusão ou a mistura entre o uso das fórmulas, a gestão dos
procedimentos e a invenção das razões. E eu me perguntaria, ainda que isto seja bem
mais difícil, se no domínio humano, social, histórico, as ciências sociais em seu
conjunto não exercem igualmente, e antes de tudo, o papel de abertura: há aí uma
situação muito difícil, porque elas são, de fato, solidárias da técnica. Entre uma ciência e
os poderes que a utilizam há uma relação que não é verdadeiramente essencial; ainda
que ela seja importante, ela permanece “contingente”, de uma certa maneira. São mais
as condições técnicas da utilização do saber, que estão em relação direta com o
exercício de um poder, de um poder que escapa à troca ou ao exame; mais que as
condições do saber mesmo; e é neste sentido que eu não compreendo completamente o
argumento. Por outro lado, o Sr. Foucault fez / observações esclarecedoras que ele 57
desenvolverá, sem dúvida. Mas eu me coloco a questão: há um laço verdadeiramente
direto entre as obrigações ou as exigências do saber e as do poder?

Sr. Michel Foucault – Eu estaria muito contente se se pudesse fazer assim,


quer dizer, se se pudesse dizer: há a boa ciência, aquela que é, ao mesmo tempo,
verdadeira e que não toca no poder vilão, e depois, evidentemente, os maus usos da
ciência, seja sua aplicação interessada, seja seus erros. Se os senhores me afirmarem que
é isso, ora!, eu partirei feliz.

Sr. Noël Mouloud – Eu não diria tanto, eu reconheço que o elo histórico, o elo
eventual, é forte. Mas eu observo várias coisas: que as novas investigações científicas
(as da biologia, das ciências humanas) recolocam o homem e a sociedade em uma
situação de não-determinação, abrindo-lhes vias de liberdade, e, assim, compelindo-os,

96
por assim dizer, a tomar novamente decisões. E mais, que os poderes opressivos se
apóiam raramente sobre um saber científico, mas, de preferência, sobre um não-saber,
sobre uma ciência reduzida anteriormente a um “mito”: conhecem-se os exemplos de
um racismo fundado em uma deformação “neo-lamarckiana da biologia” etc. E, enfim,
eu concebo muito bem que as informações positivas de uma ciência reclamam a
distância de um julgamento crítico. Mas me parece – e era aproximadamente esse o
sentido de meu argumento – que uma crítica humanista, que retoma critérios culturais e
axiológicos, não pode se desenvolver inteiramente, nem ser bem-sucedida, senão com o
apoio que lhe traz o conhecimento mesmo, fazendo a crítica de suas bases, de seus
pressupostos, de seus antecedentes. Isso concerne, sobretudo, aos esclarecimentos que
trazem as ciências do homem, da história; e me parece que Habermas, em particular,
inclui essa dimensão analítica naquilo que ele chama de crítica das ideologias, daquelas
mesmas que são engendradas pelo saber.

Sr. Michel Foucault – Eu penso que é esta a vantagem da crítica, justamente!

Sr. Henri Gouhier – Eu gostaria de lhe colocar uma questão. Estou


completamente de acordo sobre a maneira pela qual você operou seu recorte e sobre a
importância da Reforma. Mas me parece que há em toda a tradição ocidental uma
paixão crítica pelo socratismo. Eu queria lhe perguntar se a palavra crítica, tal como a
definiu e empregou, não poderia convir para chamar o que provisoriamente eu chamaria
de uma / paixão crítica do socratismo em todo o pensamento ocidental, que vai exercer 58

um papel nos retornos a Sócrates nos séculos XVI e XVII?

Sr. Michel Foucault – Você me retém por uma questão mais difícil. Eu direi
que este retorno do socratismo (sentimo-lo, demarcamo-lo, vemo-lo, historicamente,
parece-me, na virada do século XVI para o XVII) não foi possível senão sobre o fundo
dessa coisa, a meu ver muito mais importante, que foram as lutas pastorais e esse
problema do governo dos homens, governo no sentido muito pleno e muito amplo que
ele teve ao fim da Idade Média. Governar os homens era tomá-los pela mão, conduzi-los
até sua salvação por uma operação, uma técnica de condução detalhada, que implicou

97
todo um jogo de saber: sobre o indivíduo que se guiou, sobre a verdade para a qual se
guiou...

Sr. Henri Gouhier – Sua análise, você poderia retomá-la se fizesse uma
exposição sobre Sócrates e seu tempo?

Sr. Michel Foucault – É esse, com efeito, o verdadeiro problema. Aí, ainda,
para responder rapidamente sobre essa coisa difícil, me parece que, no fundo, quando se
interroga Sócrates desse modo, ou mesmo – eu, quando muito, ouso dizê-lo – eu me
pergunto se Heidegger, interrogando os pré-socráticos, não faz... não, não
completamente, não se trata de fazer um anacronismo e de reportar o século XVIII ao
V...Mas essa questão da Aufklärung que, como acredito, é mesmo fundamental para a
filosofia ocidental desde Kant, eu me pergunto se não é com ela que se expurga, de certa
forma, toda história possível, e até às origens radicais da filosofia, de sorte que o
processo de Sócrates, eu penso que se pode interrogá-lo validamente, e sem nenhum
anacronismo, mas a partir de um problema que é, e que foi percebido em todo caso por
Kant, como sendo um problema da Aufklärung.

27
Sr. Jean-Louis Bruch – Eu queria lhe colocar uma questão sobre uma
formulação que é central em sua exposição, mas que foi expressa sob duas formas que
me pareceram diferentes. Você falou ao fim de vontade da “vontade decisória de não ser
governado” como um fundamento ou um retorno da Aufklärung, que foi a matéria de
sua conferência. Você falou no início de “não ser governado assim”, de “não ser
governado desse modo”, de “não ser governado a esse preço”. Em um caso, a
formulação é absoluta., em outro, é relativa, e em função de quais critérios? É por haver
sentido o abuso da governamentalização que você chega à posição radical, vontade
decisória de não ser governado, eu me pergunto? E enfim, esta última posição / não 59
deve ela mesma ser objeto de uma interrogação, de um questionamento, o qual seria de
essência filosófica?

Sr. Michel Foucault – São duas boas questões.

98
Sobre o ponto das variações de formulações: não penso, com efeito, que a
vontade de não ser completamente governado seja alguma coisa que se pudesse
considerar como uma aspiração originária. Penso que, de fato, a vontade de não ser
governado é sempre a vontade de não ser governado assim, desse modo, por isso, a este
preço. Quanto à formulação de não ser completamente governado, ela me parece ser, de
certo modo, o paroxismo filosófico e teórico de alguma coisa que seria esta vontade de
não ser relativamente governado. E, quando no final eu disse vontade decisória de não
ser governado, então aí, erro de minha parte, era não ser governado assim, deste modo,
desta maneira. Eu não me referi a algo que seria um anarquismo fundamental, que seria
como a liberdade originária absolutamente rebelde e, no fundo, a toda
governamentalização. Eu não o disse, mas isso não quer dizer que eu o exclua
absolutamente. Creio que, com efeito, minha exposição se detenha aí: porque já tinha
durado muito tempo, mas também porque eu me pergunto... se se quer fazer a
exploração dessa dimensão da crítica que me parece tão importante, ao mesmo tempo
porque ela faz parte da filosofia, e porque ela não faz parte dela, se se explorou essa
dimensão, não seríamos reenviados, como base da atitude crítica, a algo que seria a
prática histórica da revolta, da não-aceitação de um governo real, por um lado, ou, por
outro lado, à experiência individual da recusa da governamentabilidade? O que me
espanta muito – mas eu talvez esteja influenciado, pois essas são as coisas das quais eu
me ocupo muito agora – é que, se esta matriz da atitude crítica no mundo ocidental deve
ser buscada na Idade Média, nas atitudes religiosas e concernindo ao poder pastoral, é
assim mesmo espantoso que vocês vejam a mística, como experiência individual, e a
luta institucional e política serem absolutamente solidárias e, em todo caso,
perpetuamente reenviadas uma à outra. Eu diria que uma das primeiras grandes formas
de revolta no Ocidente foi a mística; e todos estes centros de resistência à autoridade da
Escritura, à mediação pelo pastor, se desenvolveram, seja nos conventos, seja no
exterior dos conventos entre os leigos. Quando se vê que estas experiências, estes
movimentos de espiritualidade, muito freqüentemente serviram de vestimentas, de
vocabulário, mas, mesmo mais ainda, de maneiras de ser, e de suportes à esperança de
luta que se pode dizer econômica, popular, que se pode dizer, em termos marxistas, de
classes, eu acho que temos aí algo fundamental.

99
/ No percurso desta atitude crítica, cuja história, me parece, encontra sua origem 60
nesse momento, não se deve interrogar agora o que seria a vontade de não ser
governado assim, desse modo etc., tanto sob sua forma individual, da experiência, como
sob a forma coletiva? Deve-se agora colocar o problema da vontade. Enfim, e dir-se-á
que isto é evidente, não se pode retomar esse problema seguindo o fio do poder sem
chegar, evidentemente, a se colocar a questão da vontade. Era tão evidente que eu
pudesse me aperceber disso antes; mas como esse problema da vontade é um problema
que a filosofia ocidental sempre tratou com infinita precaução e dificuldade, digamos
que eu tentei evitá-lo na medida do possível. Digamos que ele é inevitável. Eu lhes dei
então as considerações do trabalho que está se fazendo.

28
Sr. André Sernin – A qual lado você se ligaria mais? Seria ao lado de
Auguste Comte, eu esquematizo, que separa rigorosamente o poder espiritual do poder
temporal, ou, ao contrário, ao lado de Platão, que dizia que as coisas não iriam bem
enquanto os filósofos não fossem eles mesmos chefes do poder temporal?

Sr. Michel Foucault – Deve-se verdadeiramente escolher?

Sr. André Serninn – Não, não se deve escolher, mas a qual lado você se
inclinaria primeiramente...?

Sr. Michel Foucault – Eu tentaria escapar sutilmente!

29
Sr. Pierre Hadji-Dimou – Você nos apresentou com sucesso o problema da
crítica em seu elo com a filosofia, e você chegou a relações entre poder e conhecimento.
Eu queria trazer um pequeno esclarecimento à propósito do pensamento grego. Eu
penso que este problema já foi colocado pelo Sr. Presidente. “Conhecer” é ter o logos e
o mythos. Penso que, com a Aufklärung, não se chega a conhecer, o conhecimento não é
somente a racionalidade, não é somente o logos na vida histórica, há uma segunda fonte,
o mythos. Se se refere à discussão entre Protágoras e Sócrates, quando Protágoras põe a
questão a propósito da Politeia, do direito de punir, de seu poder, ele diz que vai
precisar e ilustrar seu pensamento à propósito do mythos – o mythos está ligado ao logos

100
porque há uma racionalidade: quanto mais nos é ensinado, mais é belo 30. Eis a questão
que eu queria acrescentar: suprimindo uma parte / do pensamento, o pensamento 61
irracional que chega ao logos, quer dizer, o mythos, chega-se a conhecer as fontes do
conhecimento, o conhecimento do poder que tem um sentido místico também?

Sr. Michel Foucault – Eu estou de acordo com sua questão.

31
Sr. Sylvain Zac – Eu queria fazer duas observações. O senhor disse, com
razão, que a atitude crítica pôde ser considerada uma virtude. Ora, há um filósofo,
Malebranche, que estudou essa virtude: é a liberdade de espírito. Por outro lado, eu não
estou de acordo com o senhor sobre as relações que estabelece em Kant entre seu artigo
sobre as Luzes e sua crítica do conhecimento. Este fixa evidentemente os limites, mas
ele mesmo não tem limite; ele é total. Ora, quando se lê o artigo sobre as Luzes vê-se
que Kant faz uma distinção muito importante entre o uso público e o uso privado. No
caso do uso público, essa coragem deve desaparecer. O que faz...

Sr. Michel Foucault – É o contrário, porque o que ele chama de uso público é...

Sr. Sylvain Zac – Quando alguém ocupa, por exemplo, uma cadeira de filosofia
na universidade, aí ele tem o uso público da palavra e não deve criticar a Bíblia: ao
contrário, no uso privado, ele pode fazê-lo.

32
Sr. Michel Foucault – É o contrário, e é isso que é muito interessante . Com
efeito, Kant diz: “há um uso público da razão que não deve ser limitado”. O que é esse
uso público? É aquele que circula de erudito em erudito, que passa através dos jornais e
das publicações, e que faz apelo à consciência de todos. Esses usos, esses usos públicos
da razão não devem ser limitados; e, curiosamente, o que ele chama de uso privado é o
uso, de certa forma, do funcionário. E o funcionário, o oficial, diz ele, não tem o direito
de dizer ao seu superior: “eu não te obedeço e tua ordem é absurda”. A obediência de
cada indivíduo, enquanto faz parte do Estado, ao seu superior, ao soberano ou ao
representante do soberano, é isso que ele chama curiosamente de uso privado.

101
Sr. Sylvain Zac – Concordo com o senhor, eu me enganei, mas resulta, no
entanto, que há neste artigo limites à manifestação da coragem. Esses limites, contudo,
eu os encontrei por toda parte, em todos os Aufklärer, em Mendelssohn, evidentemente.
Há, no movimento da / Aufklärung alemã, uma parte de conformismo que não se acha 62

mesmo nas Luzes francesas do século XVIII.

Sr. Michel Foucault – Eu estou completamente de acordo, não vejo muito bem
em que isso contesta o que eu disse.

Sr. Sylvain Zac – Eu não creio que haja um elo histórico íntimo entre o
movimento da Aufklärung que o senhor pôs na berlinda e o desenvolvimento da atitude
crítica, da atitude de resistência, do ponto de vista intelectual, ou do ponto de vista
político. O senhor não crê que se possa fazer essa precisão?

Sr. Michel Foucault – Eu não creio, por um lado, que Kant se sentiu estranho à
Aufklärung, que era para ele sua atualidade e no interior da qual ele intervinha; não seria
somente por esse artigo da Aufklärung, mas por muitos outros motivos...

Sr. Sylvain Zac – A palavra Aufklärung se encontra n‟A Religião nos limites da
33
simples razão, mas ela se aplica aí à pureza dos sentimentos, a algo interior .
Produziu-se uma inversão, como em Rousseau.

Sr. Michel Foucault – Eu queria terminar o que estava dizendo... Então Kant se
sente perfeitamente ligado a esta atualidade que ele chama de Aufklärung e que ele tenta
definir. E, em relação a esse movimento da Aufklärung, me parece que ele introduz uma
dimensão que nós podemos considerar como mais particular, ou, ao contrário, como
mais geral e mais radical, que é essa: a primeira audácia que se deve empregar quando
se trata do saber e do conhecimento, é a de conhecer o que se pode conhecer. É esta a
radicalidade e, para Kant, além disso, a universalidade de seu empreendimento. Eu
acredito nesse parentesco, sejam quais forem os limites, claro, das audácias dos
Aufklärer. Eu não vejo em que, se quiserem, o fato da timidez dos Aufklärer mudaria o

102
que quer que fosse nesta espécie de movimento que Kant fez, e do qual, creio, ele foi
bastante consciente.

Sr. Henri Birault – Eu creio que, com efeito, a filosofia crítica representa,
assim, um movimento ao mesmo tempo de restrição e de radicalização em relação à
Aufklärung em geral.

/ Sr. Michel Foucault – Mas seu elo com a Aufklärung era a questão de todo 63
mundo àquela época. O que estamos dizendo, o que é este movimento que nos precedeu
um pouco, ao qual pertencemos ainda, e que se chama Aufklärung? A melhor prova é
que o jornal devia publicar uma série de artigos, o de Mendelssohn, o de Kant... era a
questão da atualidade. Um pouco como nós; nós nos colocaríamos a questão: o que é a
crise dos valores atuais?

34
Sra. Jeanne Dubouchet – Eu gostaria de lhe perguntar o que o senhor
considera como sendo a matéria no caso do saber. O poder, creio ter compreendido, já
que tratava-se de não ser governado: mas qual a ordem do saber?

Sr. Michel Foucault – Justamente aí, se emprego essa palavra, é mais uma vez
essencialmente para fins de neutralização de tudo aquilo que poderia ser, seja
legitimação, seja mesmo simplesmente hierarquização dos valores. Se quiserem, para
mim – por mais escandaloso que isso possa e deva, com efeito, parecer aos olhos de um
erudito ou de um metodologista, ou mesmo de um historiador das ciências – para mim,
entre a proposição de um psiquiatra e uma demonstração matemática, quando falo de
saber, eu não faço, provisoriamente, diferença. O único ponto pelo qual eu introduziria
as diferenças era o de saber quais são os efeitos do poder, como queiram, de indução –
indução não no sentido lógico do termo – que essa proposição pode ter, por um lado, no
interior do domínio científico, no interior do qual ela é formulada – as matemáticas, a
psiquiatria etc. – e, por outro lado, quais são as redes de poder institucionais, não
discursivas, não formalizáveis, não especialmente científicas, às quais ela está ligada
desde que é posta em circulação. É isso o que eu chamaria de saber: os elementos de

103
conhecimento que, qualquer que seja seu valor em relação a nós, em relação a um
espírito puro, exercem, no interior de seu domínio, e no exterior, efeitos de poder.

Sr. Henri Gouhier – Creio que me resta agradecer a Michel Foucault por nos
ter propiciado uma sessão tão interessante e que vai nos dar lugar, certamente, a uma
publicação, que será particularmente importante.

Sr. Michel Foucault – Eu lhes agradeço.

104
NOTAS

As notas que seguem não têm por objetivo explicar o texto de Foucault onde ele seria
demasiado obscuro ou frágil. Elas buscam empreender, apenas, três procedimentos. Em primeiro lugar,
fornecer referências precisas imediatas quanto às pessoas, às obras e a algumas situações citadas no texto,
que, por um motivo ou outro, nos seriam estranhas, e que pelo seu caráter oral não puderam ser
levantadas originalmente. Em segundo lugar, reportar certos trechos da conferência e do debate a outros
desdobramentos semelhantes no trabalho de Foucault. Enfim, demarcar os problemas técnicos referentes
à tradução mesma, fazendo comparações com outras versões existentes e propondo alternativas, quando
necessário. Trata-se, portanto, fundamentalmente, de notas históricas, bibliográficas e técnicas. Para
maiores detalhes quanto às obras citadas aqui e suas respectivas edições, deve-se consultar a Bibliografia
ao final do ensaio introdutório.

1. Ao contrário da conferência pronunciada diante da Sociedade Francesa de Filosofia


em 22 de fevereiro de 1969, cujo título “Qu‟est-ce qu‟un auteur?” havia sido
atribuído pelo próprio Foucault (ver, adiante, nota 4), o título “Qu‟est-ce que la
Critique? [ Critique et Aufklãrung]” é póstumo, tendo sido atribuído pelo Conselho
editorial do Bulletin, cujo Diretor de Publicação, em 1990 – data da edição do texto
– era Jacques D‟Hondt.

2. Henri Gouhier (1898 – 1994), reconhecido historiador da filosofia e crítico literário


francês, professor da Sorbonne e membro da Academia Francesa a partir de 1979.
Entre seus trabalhos figuram obras de filosofia da história (L‟Histoire et sa
philosophie, 1952), teoria do teatro (Le théâtre et les arts à deux temps, 1989), e
numerosos estudos sobre Malebranche, Descartes, Maine de Biran e Pascal. Entre
os integrantes da mesa de debates é, certamente, o que tem maior contato com
Foucault, que, já na década de 40, assistira a suas aulas sobre a filosofia do século
XVII. Gouhier presidiu, ainda, a banca de exame da tese de doutorado de Foucault,
a Histoire de la folie, orientada por Georges Canguilhem.

3. Esses “dois dias” aparecem por força de expressão. Foucault estabeleceu relações
bastante produtivas com os intelectuais japoneses, e a viagem à qual Henri Gouhier
se refere ocorrera entre 2 e 29 de abril de 1978, período no qual Foucault
pronunciara diversas palestras em Tóquio e Kyoto, inclusive sobre o tema da

105
pastoral cristã que será apresentado em QC. Participa também de debates, concede
uma entrevista à TV japonesa NHK, viaja por várias cidades do Japão e chega a
praticar exercícios de zen budismo em Uenohara (prática cuja repercussão resultou
numa leitura zen da obra de Foucault por parte de certos círculos intelectuais
californianos). Mas a relação de Foucault com o Japão já havia se iniciado bem
antes. Em setembro e outubro de 1970, pronunciara diversas conferências em
Tóquio, Nagoya, Osaka e Kyoto,a convite do professor Moriali Watanabe. Nesse
mesmo período publica na revista japonesa Paidéia sua famosa resposta à crítica de
Derrida em torno de sua leitura do cartesianismo em Histoire de la folie (Cf. DE II,
104, 281-295).

4. Qu‟est-ce qu‟um auteur?, conferência pronunciada em 22 de fevereiro de 1969,


diante da mesma Sociedade, seguida de um debate com Maurice de Gandillac, Léo
Goldman, Jacques Lacan, Jules d‟Ormesson, Jean Ullmo, e o presidente da mesa,
Jean Wahl. Foi publicada primeiramente no Bulletin, exemplar do trimestre julho-
setembro de 1969. Em 1970, Foucault pronuncia uma versão ligeiramente
modificada na universidade de Buffalo (Nova Iorque), publicada nos Estados
Unidos em 1979, e que pode ser considerada a via de acesso de seu pensamento
entre os americanos, permanecendo, até hoje, um texto muito discutido. A versão
original, com suas variantes, pode ser encontrada em DE, I, 69, 789-821.

5. Problema central na pesquisa sobre a sexualidade e sobre a governamentabilidade, o


poder pastoral surge com muita freqüência nos trabalhos de Foucault a partir do
final da década de 70, tendo constituído, em maior ou menor grau, o eixo de seus
três últimos cursos no Collège de France, Du gouvernement du vivant (1979-1980),
Subjectivité et verité (1980-1981) e L‟herméneutique du sujet (1981-1982).
Conforme indícios fornecidos pelo próprio Foucault em diversas entrevistas, o
problema da pastoral cristã seria também o centro das discussões de Les aveux de la
chair, o quarto e inédito volume da Histoire de la sexualité, que, contudo, havia
sido o primeiro a ser redigido, em meados dos anos setenta. Bem próximas,
cronologicamente, de QC são as conferências pronunciadas no Japão durante a
estada à qual H. Gouhier faz menção ao abrir a sessão: elas tratam muito

106
pontualmente desse tema, indicando sua urgência durante esse período do trabalho
de Foucault. Duas dessas conferências podem ser encontradas em DE: La
philosophie analytique de la politique (DE III, 232, 534-551), e Sexualité et
pouvoir (DE III, 233, 552-570).

6. Mais ampla que o problema da pastoral cristã, a questão da governamentalização


ocupa lugar privilegiado no curso ministrado no Collège de France entre janeiro e
março de 1978, intitulado Securité – Territoire – Population. Dois anos depois, no
curso Du governement du vivant, cuja aula de 1° de fevereiro viria a ser publicada
sob o título La gouvernentalité , encontramos uma consonância exemplar com o
modo como Foucault aborda a articulação entre governamentabilidade e pastoral:
“Tentarei agora mostrar como essa governamentabilidade nasceu, por um lado, a
partir de um modelo arcaico, que foi o da pastoral cristã; em segundo lugar, se
apoiando sobre um modelo, ou, mais ainda, sobre uma técnica diplomatico-militar;
e, enfim, em terceiro lugar, como essa governamentabilidade não pôde tomar as
dimensões que tomou a não ser graças a uma série de instrumentos bem
particulares, cuja formação é contemporânea, precisamente, da arte de governar, e
que se chama, no sentido antigo do termo, o dos séculos XVII e XVIII, a polícia. A
pastoral, a nova técnica diplomático-militar, e, enfim, a polícia; creio que foram
esses os três grandes elementos a partir dos quais se pôde produzir este fenômeno
fundamental na história do Ocidente, que foi a governamentalização do Estado”
(DE III, 239, 657).

7. John Wycliffe (1324-1384), arcebispo inglês, foi o primeiro tradutor da Bíblia


Sagrada para o inglês, em 1382. Pouco se sabe com certeza sobre sua vida, mas
seus biógrafos costumam aproximar sua posição frente às doutrinas católicas de
então às de Lutero – o que o levou à fama de “reformador”. Inúmeras sociedades
religiosas, ao redor do mundo, adotam-no, atualmente, como patrono.

8. Pierre Bayle (1647-1706), filósofo protestante francês, atacou, radicalmente, ao


longo de diversos opúsculos, a intolerância dos católicos; seu Commentaire

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philosophique (1686) foi condenado mesmo pelos protestantes, incluindo os mais
moderados.

9. Trata-se do texto fundamental, aqui e em toda a leitura que Foucault faz de Kant,
Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (Tradução para o português:
“Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento?”, tradução de Floriano de Souza
Fernandes, in KANT, I. Textos seletos, Petrópolis: Vozes, 1974), publicada
originalmente, em dezembro de 1783 no periódico Berlinische Monastschrift.

10. Foucault refere-se ao verbo alemão leiten, que pode ser traduzido para o português
como conduzir, guiar, dirigir e que dá origem, etimologicamente, ao inglês lead,
com o mesmo sentido.Já no primeiro parágrafo do artigo de Kant encontramos a
referência ao verbo no substantivo Leitung (direção): “Unmündigkeit ist das
Unvermögen, sich seines Verstandes ohne Leitung eines anderen zu bedienen” (“A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de
outro indivíduo”, na tradução de Floriano de Souza Fernandes).

11. Pode-se dizer que o próprio Foucault se inscreveu, voluntariamente, nessa tradição.
François Ewald chama a atenção para essa característica do trabalho de Foucault, a
do “philosophe-journaliste” (Cf. EWALD, F. “Foucault et l‟actualité” in Au risque
de Foucault, pp. 203-212). Além de incontáveis artigos publicados em jornais e
revistas, declarações transmitidas via rádio ou televisão em todo o mundo, Foucault
colaborou, regularmente, e durante um breve período – a partir de agosto de 1978,
até fevereiro do ano seguinte – para o jornal italiano Corriere della sera, a pedido de
seu editor, Rizzoli, com uma série de reportagens sobre a revolução iraniana.
Renegando freqüentemente o título de filósofo (ver, infra, nota 14), Foucault por
vezes se considera como jornalista: “Eu me considero como um jornalista na medida
em que o que me interessa é a atualidade, o que se passa ao nosso redor, o que nós
somos, o que nos atinge” (citado em EWALD, F., op. cit., p.204).

12. Na passagem aqui aludida, que vai de Ak 37 a Ak 38, Kant utiliza o exemplo do
oficial cobrador de impostos, do padre e do professor (Lehrer) que, no exercício de

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suas funções institucionais, portanto, naquilo que Kant chama de uso privado
(Privatgebrauch) da razão, devem obedecer às leis, mas, cada um deles, enquanto
sábio (Gelehrter), no uso público (öffentlichen Gebrauche) da razão, devem gozar
da plena liberdade de raciocínio.

13. Cf. RPE, Ak 41. Sobre a citação de Horácio, feita por Kant, “Sapere aude!”, ver a
nota 7 da Introdução do presente trabalho.

14. Essa recorrente atitude de Foucault ao recusar o título de filósofo, preferindo outros
como historiador, jornalista, ou simplesmente escritor, está relacionada, por um
lado, com o papel polêmico que a figura do filósofo passou a desempenhar nas
universidades francesas depois de maio de 68; por outro, com a recusa do
academicismo universalista vigente, que exigia um compromisso irredutível com a
Verdade ou com a Razão, e com uma linha de pensamento.Sempre avesso às
polêmicas das opiniões, Foucault preferiu, simplesmente, não se submeter nem a um
papel, nem ao outro, defendendo para si mesmo uma idéia distinta do que seria a
própria filosofia. Entrevistado por Stephen Riggins em 1983, explicita sua visão
particularmente pragmática, associando-a a sua história individual: “(...) não penso
ter tido jamais o projeto de me tornar filósofo. Não tinha nenhuma idéia do que faria
de minha vida. Isso também, creio, é bastante característico das pessoas de minha
geração (...).Logo que fiz dezesseis ou dezessete anos, eu não sabia a não ser uma
coisa: a vida na escola era um ambiente protegido das ameaças exteriores, protegido
da política. E a idéia de viver em um ambiente estudantil, em um meio intelectual,
sempre me fascinou. O saber, para mim, é o que deve funcionar como o que protege
a existência individual, e o que permite compreender o mundo exterior. Creio que é
isso, o saber como meio de sobreviver, graças à compreensão” (DE IV, 336, 529).
Sobre a formação de Foucault e de sua compreensão de filosofia, a longa entrevista
concebida a D. Trombadori em 1978, publicada em 1980, é esclarecedora (DE IV,
281, 41-95. Ver, especialmente as passagens das páginas 42-46).

15. Pronunciada em Viena em março de 1935, a conferência Die Philosophie in der


Krisie der europäischen Menschheit foi mais tarde, em 1976, reunida no volume 6

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da edição de referência das obras completas de Husserl, Husserliana, em apêndice a
Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie. Somente a conferência de Viena encontra-se traduzida para o
português: HUSSERL, E. A crise da humanidade européia e a filosofia, tradução de
Urbano Zilles, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. Enquanto estudante de filosofia,
Foucault parece ter se interessado muito pela fenomenologia de Husserl, assistindo
às exposições de Merleau-Ponty sobre o tema. Alguns leitores de Foucault tentam
demarcar a trajetória de Foucault a partir de uma reação a essa fenomenologia.
Sobre isso, ver LEBRUN, G. “Notes sur la phénomenologie dans Les mots et les
choses” in Michel Foucault philosophe, pp.33-53.

16. Primeiro romance de Jean-Paul Sartre, La Nausée foi publicado originalmente em


1938, pela Gallimard. Em português: A Náusea, tradução de Rita Braga, Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 1980.

17. Ver, supra, nota 15.

18. É importante notar que o sentido da Crítica afastado aqui por Foucault é o
transcendental, kantiano. Quanto ao horror à polêmica, podemos citar a entrevista
concedida a Paul Rabinow, publicada em 1984: “Não gosto, de fato, de participar de
polêmicas. Se abro um livro onde um autor chama um adversário de “esquerdista
pueril”, logo o fecho.” (DE IV, 342, 591).

19. Para maiores detalhes sobre a leitura que Foucault faz da Escola de Frankfurt, e
sobre o significado dessa “fraternidade” intelectual ou crítica, remetemos à primeira
seção da segunda parte de nosso ensaio introdutório (“Dinastias”). A entrevista
concedida a D. Trombadori ao final de 1978 contém trechos importantes para essa
questão (DE IV, 281, 72-77).

20. No original, “pintades offensées”, literalmente “galinhas d‟angola ofendidas”. Jorge


Dávila traduz bem livremente por “presa de cacería herida”. Lysa Hocroth é literal:
“offended guinea-fowls”.

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21. No original, “épreuve d‟événementialisation”. Jorge Dávila traduz por “prueba de
„eventualización‟ ”, adicionando um par de aspas que não existe no original. Kevin-
Paul Guinan e Lysa Hocroth também recorrem a esse artifício e traduzem a
expressão igualmente por “examination of „eventualization‟”. O neologismo, de
difícil tradução, deriva de événement, que, podendo ser traduzido por acontecimento
ou evento, exprime um conceito fundamental para todo o pensamento de Foucault,
como ele mesmo explorará ao longo da conferência e mesmo em seu livro de 1969,
L‟archéologie du savoir. Foucault já havia recorrido a esse termo no início da
década de 60 com um significado diferente do utilizado aqui: analisando a obra de
Raymond Roussel, encontra essa événementialisation como um dos traços de sua
literatura, que se desdobraria a partir dos processos de sua escrita, liberando o
significado para sua multiplicidade (DE I, 10, 212-215). Já em 1968, o termo é
finalmente empregado como em QC. Em sua Réponse au Cercle d‟Épistemologie,
Foucault opõe o événement às “unidades naturais imediatas e universais do discurso.
(...) De fato, o apagamento sistemático das unidades inteiramente dadas permite
restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento: não é mais simplesmente
considerá-lo como uma jogada de uma estrutura lingüística, mas como a
manifestação episódica de uma significação mais profunda que ele; trata-se dele em
sua irrupção histórica(...)” (DE I, 59, 706-707). E, finalmente, uma semana antes da
sessão sobre a Aufklärung, Foucault esclarece diante de uma mesa redonda onde se
encontravam, entre outros, François Ewald, Alexandre Fontana, Carlo Ginzburg e
Arlette Farge: “Que se deve entender por eventualização [événementialisation]?
Uma ruptura de evidência, inicialmente. Lá onde se seria bastante tentado a se
referir a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a
uma evidência que se impusesse da mesma maneira a tudo, trata-se de fazer surgir
uma „singularidade‟” (DE IV, 278, 23). Cf., igualmente, a primeira seção da
primeira parte de nosso ensaio introdutório, sobre como esse termo indica a
preocupação com a questão do presente em Foucault.

22. No original, “fermeture”.

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23. Noël Mouloud, especialista em filosofia da linguagem e epistemologia. Sua obra
mais conhecida é Formes structurés et modes productifs, de 1958, publicada pela
editora Sedes.

24. Henri Birault, professor, à época, da Universidade de Paris IV, especialista em


fenomenologia, e presidente do Archive Husserl, fundado em 1967 por Paul Ricoeur
e do Centre de Phénoménologie. Especialista em Kierkegaard e em fenomenologia,
participou de debates em presença de Heidegger e Eugen Fink. Sua obra mais
conhecida é Heidegger et l‟expériencede la pensée, publicada bem depois da sessão
de QC, em 1986.

25. No original, “pintade effarouchée”, literalmente, “galinha d‟angola assustada”.


Henri Birault retoma, modificando-a, a expressão utilizada anteriormente por
Foucault. Ver, supra, nota 20.

26. Karl Popper desenvolveu uma complexa teoria do conhecimento humano que, ao
mesmo tempo, refuta o historicismo generalizado – como resultado, inclusive, de
uma recusa do empirismo de Hume – e introduz o criticismo como critério de
legitimidade das ciências, e do conhecimento em geral. Na França, sua filosofia foi
amplamente discutida entre os estudiosos de Koyré, Canguilhem e Cavaillès, círculo
ao qual pertenciam tanto Noël Mouloud quanto Henri Birault..Duas de suas obras
podem ser citadas quanto a essa sua perspectiva: Logik der Forschung, Vienna:
Julius Springer Verlag, 1935; e The Poverty of Historicism, London: Routledge,
1961.

27. Jean-Louis Bruch, especialista em ética antiga e moderna, foi reitor da Academie de
Créteil – universidade experimental, à maneira de Vincennes – em 1972-1973. Suas
obras de maior repercussão são sobre a filosofia moral de Kant, entre elas, La
philosophie religieuse de Kant, de 1968 (Paris: Aubier Montaigne).

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28. André Sernin, historiador da filosofia, é conhecido por suas biografias de filósofos,
entre elas a de Alain (Alain, un sage dans la cité, Paris: Laffont, 1985) e a de
Auguste Comte (Auguste Comte, prophète du XIXe siècle, Paris: Albatros, 1993).

29. Pierre Hadji-Dimou, economista e filósofo, sua obra de maior relevância é Note
critique sur le dynamisme des groupements en train de se faire
et son influence en matière des sources du droit, Paris: Vrin, 1958.

30. Hadji-Dimou se refere à passagem que se inicia no Protágoras, de Platão, em 320c.

31. Sylvain Zac, professor da Universidade Paris X, especialista em Maïmonide e


Spinoza. Seu livro La morale de Spinoza (Paris: PUF, 1972) é ainda hoje, na França,
uma grande referência sobre o filósofo.

32. Sylvain Zac se engana quanto à passagem de Kant em RPE, Ak 37. Ver, supra, nota
12.

33. Provavelmente Sylvain Zac refere-se ao trecho que se inicia no primeiro parágrafo
da Segunda Parte de Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft onde
o próprio Kant problematiza, muito brevemente, o uso do termo Aufklärung: “In
diesem Betracht ist der Name Tugend ein herrlicher Name, und es kann ihm nicht
schaden, dass es oft prablerisch gemissbraucht und (so wie neuerlich das Wort
Aufklärung) bespöttelt worden. [“Deste ponto de vista o termo Virtude é um termo
magnífico; e mesmo que se faça mal uso dele freqüentemente, por ostentação, e que
se zombe dele (como recentemente da palavra que designa o Esclarecimento) não se
pode evitá-lo”]” (Ak 57).

34. Jeanne Dubouchet, psicóloga e filósofa, desenvolveu a partir dos anos 70 uma série
de pesquisas sobre pedagogia infantil. Publicou em 1967 L‟écriture des adolescents
(Paris: Le François).

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