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C. H. Mackintosh - Deuteronômio
C. H. Mackintosh - Deuteronômio
NO PRINCÍPIO
As Trevas e a luz
"E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo". Aqui
estava, em boa verdade, uma esfera na qual só Deus podia operar. O homem, na
vaidade do seu coração, tem sempre mostrado estar pronto a interferir com Deus
noutras e mais elevadas esferas de atuação, porém, na cena que temos perante nós
o homem não teve lugar, até que, com efeito, se tornou, como tudo mais, o objeto
do poder criador.
Deus esteve só na criação. Ele olhou desde a Sua habitação eterna de luz para a
imensidade assolada e viu nela a esfera na qual os Seus planos e desígnios
maravilhosos haviam ainda de ser realizados e manifestados — onde o Filho eterno
havia ainda de viver, trabalhar, testificar, sofrer e morrer, a fim de mostrar, à vista
de mundos maravilhados, as perfeições gloriosas da Divindade. Tudo era trevas e
caos; Deus é o Deus de luze ordem. "Deus é luz, e não há nele treva nenhuma" (1 Jo
1:5). As trevas e a confusão não podem viver na Sua presença, quer encaremos o
fato sob o ponto de vista físico, moral, intelectual ou espiritual.
"E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas". Pôs- -se a ponderar sobre o
teatro das Suas futuras operações. Isto era um panorama verdadeiramente sombrio:
uma vista em que havia amplo lugar para o Deus de luz e vida operar. Somente Ele
podia iluminar as trevas, fazer brotar vida, substituir o caos por ordem e fazer
separação entre as águas, onde a vida pudesse manifestar-se sem medo da morte.
Eram operações dignas de Deus.
"E disse Deus: Haja luz. E houve luz". Quão simples! E, contudo, como é próprio de
Deus! "Ele falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu" (SI 33:9).
A infidelidade pode perguntar: Como? Onde? Quando? A resposta é: "Pela fé,
entendemos que os mundos, pela palavra de Deus, foram criados; de maneira que
aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hb 11:3). Isto satisfaz o espírito
dócil. A filosofia pode rir-se desdenhosamente por isto, e declará-lo ignorância
rude ou credulidade cega, própria de um século de semi-barbarismo, mas
completamente imprópria de homens que vivem num século iluminado da história
do mundo, quando o museu e o telescópio nos têm posto de posse de fatos dos quais
os escritores sagrados nada sabiam. Que sabedoria! Que conhecimento! Ou antes,
que loucura! Que falta de senso! Que inaptidão para compreender o fim e o
desígnio da Sagrada Escritura!
Certamente, não é o objetivo de Deus fazer de nós astrônomos ou geólogos, ou
ocupar-nos com pormenores que o microscópio ou o telescópio põem diante de
cada rapaz da escola. O Seu objetivo é conduzir-nos à Sua presença como
adoradores, com corações e a razão ensinados e devidamente governados pela Sua
Palavra. Contudo, isto nunca satisfaria o chamado filósofo, que, desprezando o que
ele chama preconceitos de mentes vulgares e tacanhas dos discípulos sinceros da
Palavra de Deus, pega ousadamente no seu telescópio, e com ele examina os céus
distantes, ou desce aos profundos recessos da terra em busca de stratum, formações
geológicas e fósseis — todos os quais, segundo os seus cálculos, aperfeiçoam
grandemente, se é que não contradizem absolutamente, o relato inspirado.
Com tais "oposições da falsamente chamada ciência" (1 Tm 6:20) nada temos que
ver. Acreditamos que todas as verdadeiras descobertas, quer em cima nos céus,
quer em baixo na terra, ou nas águas debaixo da terra, concordarão com o que está
escrito na Palavra de Deus; e se não estiverem assim da harmonia são
perfeitamente desprezíveis, segundo o parecer de todo verdadeiro amante da
Escritura Sagrada. Isto dá grande tranquilidade ao coração em dias como estes, tão
férteis em especulações de saber e teorias estrondosas; que, afinal, em muitos casos,
cheiram a racionalismo e infidelidade positiva. É indispensável ter o coração
inteiramente fundado quanto à plenitude, a autoridade, perfeição, majestade e
inspiração plenária das Sagradas Escrituras. Ver-se-á como isto é a única
salvaguarda eficaz contra o racionalismo da Alemanha e a superstição de Roma. O
conhecimento perfeito e a sujeição profunda à Palavra de Deus são as grandes
aspirações do momento presente. Que o Senhor, na Sua muita graça, aumente
abundantemente tanto uma como outra destas aspirações.
"E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus
chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite". Temos aqui os dois grandes símbolos
tão largamente empregados em toda a Palavra de Deus. A presença da luz faz o dia;
a falta dela faz a noite. O mesmo se dá com a história das almas. Há os "filhos da
luz" e os "filhos das trevas". E uma diferença muito clara e solene. Todos aqueles
em quem resplandeceu a luz da vida — todos ,os que foram eficientemente
visitados com "o Oriente do alto" (Lc 1:78); todos os que receberam a luz do
conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo —, quem quer que sejam e
onde quer que se encontrem, pertencem à primeira classe, são "filhos da luz, e
filhos do dia".
Por outro lado, todos os que ainda estão nas trevas da natureza, na cegueira da
natureza e na incredulidade da natureza — todos os que não receberam ainda em
seus corações, pela fé, os raios resplandecentes do Sol da justiça — estão ainda
envoltos nas trevas da noite espiritual: são "filhos das trevas, filhos da noite".
Que o leitor pergunte a si mesmo, na presença d'Aquele que esquadrinha os
corações, a qual destas duas classes de pessoas pertence, neste momento. Que
pertence a uma ou outra, é fora de dúvida. Pode ser pobre, desprezado e iletrado;
mas se, pela graça de Deus, há um laço que o liga ao Filho de Deus, "a luz do
mundo", então é, na realidade, um filho do dia, e está destinado a brilhar, dentro
em pouco, nessa esfera celestial, aquela região de glória, da qual o "Cordeiro que foi
morto" será o Sol central, para todo o sempre.
Nada disto é obra nossa. E o resultado do desígnio e operação do Próprio Deus, que
nos deu luz e vida, gozo e paz, em Jesus, e no Seu sacrifício consumado na cruz.
Porém, se o leitor é totalmente estranho à ação santa e à influência da luz divina; se
os seus olhos não foram abertos para ver alguma beleza no Filho de Deus, então,
ainda que tivesse toda a ciência de Newton, ainda que tivesse sido enriquecido com
todos os tesouros da filosofia, ainda que tivesse bebido com avidez em todos os
cursos da ciência humana, ainda que o seu nome fosse adornado com todos os
títulos que as Escolas e Universidades do mundo lhe pudessem dar, continuaria a
ser um "filho da noite", um "filho das trevas"; e se morrer na sua presente condição
ficará na escuridão e horror de uma noite eterna. Não leia, portanto, nem mais
uma página sem ter ficado inteiramente certo se pertence ao "dia" ou à "noite".
O ponto sobre o qual desejo agora falar é a criação das luzes. "E disse Deus: Haja
luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam
eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos. E sejam para
luminares na expansão dos céus, para alumiar a terra. E assim foi. E fez Deus os
dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor
para governar a noite; e fez as estrelas".
O sol é o grande centro de luz, o centro do nosso sistema. Em redor dele giram os
astros menores. Dele recebem, também, a sua luz. Por isso, o sol pode,
legitimamente, ser visto como um símbolo próprio d'Aquele que em breve há-de
levantar-Se, trazendo cura nas Suas asas, para alegrar os corações daqueles que
temem o Senhor. A aptidão e beleza do símbolo é inteiramente clara para quem,
tendo passado a noite em vigília, presencia o nascer do sol dourando com os seus
raios o céu oriental. As neblinas e as sombras da noite são dispersas, e toda a
criação parece aclamar o regresso do astro de luz. Assim será, em breve, quando
aparecer o Sol da Justiça. As sombras da noite fugirão, e toda a criação
regozijar-se-á com o raiar de uma "manhã sem nuvens" — o alvorecer de um dia
brilhante e interminável de glória.
A Lua
A lua, sendo por si mesma opaca, recebe toda a sua luz do sol. A lua reflete sempre
a luz do sol, salvo quando a terra e as suas influências intervém (1). Tão depressa o
sol se põe no nosso horizonte, a lua apresenta-se para receber os seus raios de luz e
refleti-los outra vez sobre o mundo na escuridão; ou no caso de ser visível durante
o dia exibe sempre uma luz pálida, como resultado inevitável de aparecer na
presença de maior claridade. E verdade, como tem sido observado, que o mundo às
vezes interpõe-se: nuvens escuras, neblinas cerradas, e vapores gelados, também,
levantam-se da superfície da terra e ocultam da nossa vista a luz prateada da lua.
__________
(1) É um fato interessante que a lua, quando vista através de um poderoso
telescópio, apresenta o aspecto de uma vasta ruína da natureza.
Contudo, assim como o sol é o símbolo lindo e próprio de Cristo, do mesmo modo a
lua nos lembra admiravelmente a Igreja. A origem da sua luz está oculta para a
vista. O mundo não O vê, mas ela vê-O; e é responsável por refletir os Seus raios de
luz sobre o mundo de trevas. O mundo não tem meio de conhecer coisa alguma de
Cristo senão por meio da Igreja. "Vós", diz o apóstolo Paulo, "sois a nossa carta,...
conhecida e lida por todos os homens". E acrescenta: "Porque já é manifesto que
vós sois a carta de Cristo" (2 Co 3:2).
Que lugar de responsabilidade! Quão sinceramente deve ele vigiar contra tudo que
impede o reflexo da luz celestial de Cristo em todos os seus caminhos! Porém,
como deve a Igreja refletir esta luz?- Permitindo que a luz brilhe sobre ela em todo
o seu brilho límpido. Se a Igreja tão-somente andar na luz de Cristo, há-de,
certamente, refletir a Sua luz; e isto mantê-la-á sempre na sua própria posição.
A luz da lua não é sua. Do mesmo modo acontece com a Igreja. Ela não é chamada
para se mostrar a si mesma ao mundo. Deve, simplesmente, refletir a luz que
recebe. E obrigada a estudar, com santa devoção, o caminho que o Senhor trilhou
aqui no mundo; e mediante a energia do Espírito Santo, que habita nela, seguir
nesse caminho. Mas, ah! O mundo com as suas neblinas, nuvens, e os seus vapores,
intervém e oculta a luz e mancha a epístola. O mundo não pode ver muito dos
traços do caráter de Cristo naqueles que se chamam pelo Seu nome; na verdade,
em muitos casos, eles apresentam um contraste humilhante, em vez de uma
semelhança. Possamos nós estudar Cristo devotamente, de modo a podermos
imitá-Lo mais fielmente.
As Estrelas
As estrelas são luminares distantes. Brilham noutras esferas, e têm pouca ligação
com este sistema, a não ser que pode ver-se a sua cintilação. "Uma estrela difere em
glória de outra estrela". Assim será no reino futuro do Filho de Deus. Ele
resplandecerá com brilho vivo e eterno, o Seu Corpo, a Igreja, refletirá, fielmente,
o Seu brilho sobretudo à sua volta; enquanto que os santos, individualmente,
brilharão nessas esferas que o Justo Juiz lhes distribuir, como galardão do serviço
fiel prestado durante a noite da Sua ausência.
Este pensamento deve animar-nos a uma mais ardente e vigorosa diligência por
conformidade com o nosso Senhor ausente (veja-se Lc 19:12-19).
Em seguida são introduzidas as ordens inferiores da criação. O mar e a terra são
criados para transbordar com vida. Alguns podem sentir-se autorizados a
considerar as operações de cada novo dia como simbolizando as várias
dispensações e os seus grandes princípios característicos de ação. Quero apenas
dizer, a este respeito, que existe uma grande necessidade, quando a Palavra de
Deus é tratada deste modo, de vigiar, com todo o zelo, a operação da imaginação; e
também de prestar a maior atenção à analogia da Escritura, de contrário corremos
o risco de fazer erros graves. Não me sinto disposto a entrar numa tal linha de
interpretação; portanto, limitar-me-ei àquilo que julgo ser o sentido claro do texto
sagrado.
CAPÍTULO 2
Um Descanso Verdadeiro
No entanto não deve supor-se que nós perdemos de vista o fato importante que o
dia de sábado será guardado outra vez na terra de Israel e sobre toda a criação: será
incontestavelmente: "... resta ainda um repouso para o povo de Deus" (Hb 4:9).
Quando o Filho de Abraão, Filho de Davi, e Filho do homem, assumir a Sua
posição de governo sobre toda a terra, haverá um sábado glorioso — um descanso
que o pecado nunca mais interromperá. Porém, agora Ele é rejeitado, e todos os
que O conhecem e O amam são chamados a tomar o seu lugar com Ele na Sua
rejeição; são chamados para "sair fora do arraial, levando o Seu vitupério" (Hb
13:13).
Se a terra pudesse guardar um sábado, não haveria vitupério; porém, o próprio fato
de a igreja professa procurar fazer do primeiro dia da semana o sábado revela um
princípio profundo. E apenas o esforço de voltar a uma posição terrestre, e a um
código terrestre de moral.
Muitos podem não ver isto. Muitos verdadeiros cristãos podem,
conscienciosamente, guardar o dia de sábado, como tal; e nós temos o dever de
respeitar as suas consciências, posto que nos seja perfeitamente lícito pedir-lhes
para apresentarem a base bíblica das suas convicções. Não devemos pôr um
tropeço ou ferir as suas consciências, mas devemos procurar instruí-los. Todavia,
não estamos por agora ocupados com a consciência ou as suas convicções, mas
somente com o princípio que se encontra à raiz daquilo que pode ser chamado a
questão do sábado; e apenas apresento a questão ao leitor, o que é mais conforme
com o fim e o espírito do Novo Testamento, a guarda do sétimo dia ou o sábado, ou
a guarda do primeiro dia da semana ou o dia do Senhor?(1).
__________
(1) Este assunto será tratado outra vez, se o Senhor permitir, no capítulo vinte do
Êxodo; quero, todavia, acentuar aqui, que muita da incompreensão quanto ao
assunto importante do sábado pode ser justamente atribuída à conduta impensada
e injusta de alguns, que, no seu zelo pelo que chamam liberdade cristã, a respeito
do sábado, esquecem as pretensões de consciências honestas, e, também, o lugar
que o dia do Senhor ocupa no Novo Testamento.
E sabido que alguns tomam as suas vocações semanais simplesmente para
mostrarem a sua liberdade, e deste modo causam escândalo desnecessário. Uma tal
conduta nunca poderia ser ditada pelo Espírito de Cristo. Se eu for livre e claro de
mente, deverei respeitar as consciências de meus irmãos; e, além disso, não creio
que aqueles que assim se conduzem compreendam realmente os privilégios
verdadeiros e preciosos ligados com o dia do Senhor. Devemos ser agradecidos por
estarmos livres de toda a ocupação e distração secular, para podermos pensar em
recorrer a essas coisas, com o fim de mostrar a nossa liberdade.
A boa providência de Deus preparou as coisas de tal modo, para o Seu povo, em
todo o Império Britânico, que todos podem, sem prejuízo pecuniário, gozar o resto
do dia do Senhor, visto que toda a gente é obrigada a abster-se de fazer negócio
nesse dia. Isto deve ser considerado, por toda a mente normal, como uma
misericórdia de Deus; porque, se assim não fosse, o coração ambicioso do homem
roubaria, possivelmente, o crente do doce privilégio de frequentar a Assembleia de
Deus no dia do Senhor. E quem poderá dizer o que seria o efeito de ocupação
ininterrupta com as coisas deste mundo? Aqueles que, desde domingo de manhã
até sábado à tarde, respiram a atmosfera densa do mercado, do estabelecimento ou
da fábrica, podem fazer uma ideia do que isso seria. O ato de alguns introduzirem
medidas para a profanação pública do dia do Senhor não pode ser tomado como
bom sinal. Tais medidas marcam, certamente, o progresso da infidelidade. Mas há
alguns que ensinam que a expressão "o dia do Senhor" se refere ao "dia do juízo", e
que o apóstolo exilado se achou, de fato, arrebatado pelo Espírito ao dia do Senhor
anunciado no Velho Testamento. Não creio que o original possa dar uma tal
interpretação; e, além disso, temos em 1 Tessalonicenses 5:2 e 2 Pedro 3:10, as
palavras exatas, "o dia do Senhor", cujo original é inteiramente diferente da
expressão acima mencionada. Isto esclarece o assunto plenamente, tanto quanto se
refere à crítica; e quanto à interpretação é bem claro que a maior parte do
Apocalipse está ocupada, não com "o dia do Senhor", mas com acontecimentos
antecedentes a esse dia.
O Rio de Deus
Finalmente, é-nos apresentado o rio de Deus no último capítulo do Livro do
Apocalipse (1). "E mostrou-se o rio puro da água da vida, claro como cristal, que
procedia do trono de Deus e do Cordeiro". "Há um rio cujas correntes alegram a
cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo" (Salmo 46:4). É este o
último lugar em que achamos o rio. A sua origem nunca poderá ser tocada — o seu
curso nunca mais interrompido. "O trono de Deus" é expressivo de estabilidade
eterna; e a presença do Cordeiro é a evidência de estar fundado sobre o
fundamento da redenção efetuada. Não se trata do trono de Deus na criação, nem
em providência, mas em redenção. Quando contemplo o Cordeiro, vejo a sua
relação comigo como pecador. "O trono de Deus", como tal, apenas me deteria;
porém, quando Deus Se revela na Pessoa do Cordeiro, o coração é atraído, e a
consciência tranquilizada.
___________
(1) Comparem-se também Ezequiel 47:1-12; e Zacarias 14:8.
CAPÍTULO 3
A QUEDA
Esta parte do livro apresenta-nos o colapso de toda a cena que temos estado a
comentar. Abunda em princípios muito importantes; e tem sido, muito
justamente, em todos os tempos, recurso como um tema frutífero para os que
desejam apresentar a verdade quanto à ruína do homem e o remédio de Deus.
A serpente apresenta-se com uma pergunta atrevida quanto à revelação divina —
um modelo terrível e precursor de todas as perguntas infiéis levantadas desde
então por aqueles que, infelizmente, têm servido fielmente a causa da serpente no
mundo; perguntas que só podem ser atendidas pela autoridade suprema e a
majestade da Escritura Sagrada.
O fim claro de cada tentação era convencer o Bendito Senhor a deixar a posição de
inteira dependência de Deus e perfeita sujeição à Sua vontade. Mas foi tudo em
vão. "Está escrito", foi a resposta invariável do único homem dependente,
abnegado e perfeito. Outros podiam pensar em agir por si próprios; mas Ele
preferia que Deus, o Pai, agisse por Si.
Que exemplo para os fiéis em todas as suas circunstâncias! Jesus agarrou-Se às
Escrituras, e assim venceu. Sem qualquer outra arma, salvo a espada do Espírito,
manteve-se no conflito e ganhou um triunfo glorioso. Que contraste com o
primeiro Adão! Um usou tudo para advogar por Deus; o outro teve tudo para lutar
contra Ele. O jardim, como todas as suas delícias, num caso; o deserto, com todas as
suas privações, no outro; confiança em Satanás, num caso; confiança em Deus, no
outro; completa derrota num caso; vitória completa no outro. Bendito seja para
sempre o Deus de toda a graça, por ter confiado todo o nosso socorro a um Senhor
tão poderoso para vencer — poderoso para salvar!
A Consciência
Vejamos agora até que ponto Adão e Eva beneficiaram com a vantagem da
promessa da serpente. Isto levar-nos-á a um ponto profundamente importante em
relação com a queda do homem. O Senhor Deus tinha ordenado isto de tal
maneira, que, com e por meio da queda, o homem havia de alcançar aquilo que
antes não possuía, e isso era a consciência, um conhecimento tanto do bem como
do mal. Isto não podia o homem ter tido, evidentemente, antes. Não podia ter
conhecimento coisa alguma do mal, tanto mais que não havia mal para ser
conhecido. Ele estava num estado de inocência, o qual é um estado de ignorância
do mal. O homem recebeu uma consciência com e por meio da queda; e vemos que
o primeiro efeito da consciência foi fazer dele um covarde. Satanás tinha enganado
completamente a mulher; havia-lhe dito, "os vossos olhos se abrirão, e sereis como
Deus, sabendo o bem e o mal". Mas tinha deixado de fora uma parte importante da
verdade, a saber, que conheceriam o bem sem o poder para o fazer; e que
conheceriam o mal sem o poder de o evitar. O seu próprio esforço para se elevarem
à escala da existência moral incluía a perda da verdadeira exaltação. Tornaram-se
aviltados, impotentes, escravos de Satanás, com uma consciência culpada: criaturas
horrorizadas. "Os olhos de ambos foram abertos", sem dúvida, mas, ah! para que
espetáculo! Foi só para descobrirem a sua nudez. Abriram os seus olhos para a sua
própria condição, que era "desgraçada, e miserável, e pobre, e cega, e nua".
"Conheceram que estavam nus", — triste fruto da árvore do conhecimento!
Não foi nenhum novo conhecimento da excelência divina que alcançaram —
nenhum raio novo de luz divina da sua pura e eterna fonte —, ah! não! o primeiro
resultado do seu esforço desobediente pelo conhecimento foi a descoberta de que
estavam nus.
Bem, é bom compreendermos isto; bom, também, sabermos como a consciência
opera — para vermos que apenas pode fazer de nós cobardes, como sendo o
conhecimento íntimo daquilo que somos. Muitos perdem-se quanto a isto; julgam
que a consciência nos trará a Deus. Foi assim no caso de Adão e Eva? Certamente
que não. Nem tampouco será no caso de qualquer pecador. Como poderia ser?-
Como poderia a compreensão do que eu sou trazer-me jamais a Deus, se não for
acompanhada pela fé do que Deus é? Impossível; produzirá em mim vergonha,
censura e remorso. Pode também ocasionar certos esforços da minha parte, para
remediar a condição que mostra; mas estes próprios esforços, longe de nos
aproximarem de Deus, atuam, pelo contrário, como um véu para O ocultar da
nossa vista. Assim, no caso de Adão e Eva, a descoberta da sua nudez foi seguida
por um esforço próprio para a ocultar: "... e coseram folhas de figueira, e fizeram
para si aventais." E este o primeiro relato que temos do esforço do homem para
remediar, por seu próprio expediente, a sua condição; e a sua consideração
atenciosa dar-nos-á não pouca instrução quanto ao verdadeiro caráter da
religiosidade humana em todas as épocas. Em primeiro lugar, vemos, não só no
caso de Adão, mas em todos os casos, que os esforços do homem para remediar a
sua situação são baseados sobre o sentido da sua nudez. Ele está, claramente, nu, e
todas as suas obras são o resultado de ser assim. Um tal esforço nunca poderá
valer-nos. Devemos saber que estamos vestidos, antes de podermos fazer qualquer
coisa agradável aos olhos de Deus.
E esta, note-se, é a diferença entre a verdadeira Cristandade e a religião humana.
Aquela é baseada sobre o fato do homem estar vestido; esta, sobre o fato de estar
nu. A primeira tem como seu ponto de partida aquilo que a última tem como seu
alvo. Tudo quanto um verdadeiro cristão faz é porque está vestido —
perfeitamente vestido; tudo quanto o mero religioso faz é com o fim de se vestir.
Nisto está a grande diferença. Quanto mais examinarmos o engenho da religião do
homem, em todas as suas fases, tanto mais veremos a sua inteira insuficiência para
remediar o seu estado, ou mesmo para satisfazer a sua compreensão desse estado.
Pode ser muito bom por algum tempo. Pode servir enquanto a morte, o juízo, e a
ira de Deus são vistos à distância, se é que são vistos de fato; mas quando um
homem é chamado a enfrentar estas realidades, descobrirá em boa verdade, que a
sua religião é uma cama muito curta para ele se poder estender e uma coberta
muito estreita para se embrulhar.
CAPÍTULOS 4 E 5
CAIM E ABEL: DIFERENTES ATITUDES DE DOIS PECADORES PERANTE
DEUS
As Duas Naturezas
Nada pode haver de mais importante, em si, do que uma compreensão correta da
doutrina da chefia federal. Se o leitor abrir a sua Bíblia em Romanos 5:12-21, verá
que o apóstolo inspirado contempla toda a raça humana como sendo
compreendida debaixo de duas cabeças. Não pretendo demorar-me em
considerações acerca dessa passagem, mas apenas referir-me a ela, em ligação com
o assunto de que estou tratando.
O capítulo 15 de 1 Coríntios dará também instrução de um caráter semelhante. No
primeiro homem, temos pecado, desobediência, e morte. No Segundo Homem,
temos justiça, obediência, e vida. Assim como trazemos a natureza do primeiro, do
mesmo modo temos a do segundo. Sem dúvida, cada natureza mostrará, em cada
caso específico, as suas próprias energias peculiares; mostrará em cada indivíduo
que as possui os seus próprios poderes peculiares. Contudo, existe a possessão
absoluta de uma natureza real, abstrata, e positiva.
Ora assim como a maneira de recebermos a natureza do primeiro homem é por
meio do nascimento, assim também o modo de recebermos a natureza do Segundo
homem é por meio do novo nascimento. Tendo nascido, participamos da natureza
do primeiro; sendo "nascidos de novo", participamos da natureza do último.
Um recém-nascido, embora inteiramente incapaz de representar o ato que reduziu
Adão à condição de um ser decaído, é, todavia, participante da sua natureza; assim,
também, um recém-nascido de Deus, uma alma regenerada, embora nada tenha
que ver com a obediência perfeita do "homem Cristo Jesus", é, contudo,
participante da Sua natureza. Verdade é que, ligado com a velha natureza, há
pecado; e ligado com a nova, há justiça — o pecado do homem no primeiro caso; a
justiça de Deus no último: todavia, em todo o tempo, existe a participação de uma
natureza verdadeira em boa fé, seja qual for o seu complemento.
Os filhos de Adão participam da natureza humana e suas consequências; os filhos
de Deus participam da natureza divina e seus resultados. A velha natureza é
segundo "a vontade do varão" (Jo 1:13); a segunda é segundo "a vontade de Deus";
como Tiago, pelo Espírito Santo, nos diz, "Segundo a sua vontade, ele nos gerou
pela palavra da verdade" (Tg 1:18).
De tudo quanto se tem dito, segue-se que Abel não fazia distinção alguma natural
de seu irmão Caim. A distinção entre eles não era baseada em coisa alguma da sua
natureza ou das circunstâncias, porque, quanto a estas, "não há diferença". Em que
consistiu, portanto, a grande diferença? A resposta é tão simples quanto o
evangelho da graça de Deus a pode fazer. A diferença não consistiu neles, na sua
natureza ou nas suas circunstâncias, mas inteiramente nos seus sacrifícios. Isto
torna o assunto muito simples para qualquer pecador verdadeiramente convicto —
para alguém que sinta verdadeiramente que não só participa de uma natureza
pecaminosa, mas que é, em si próprio, também, pecador.
A história de Abel apresenta a uma tal pessoa o único fundamento verdadeiro da
sua aproximação e relação com Deus. Mostra-lhe, distintamente, que não pode
chegar a Deus sobre a base de coisa alguma que pertença ou seja da natureza; e tem
de procurar fora de si mesmo, e na pessoa e obra de outrem, a base verdadeira e
eterna da sua ligação com o Deus santo, Verdadeiro e Justo.
O capítulo onze de Hebreus apresenta-nos o assunto do modo mais distinto e
compreensível. "Pela fé, Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo
qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons,
e por ela, depois de morto, ainda fala". Aqui é-nos dito que não foi de modo
nenhum uma questão quanto a homens, mas quanto aos seus sacrifícios — não foi
uma questão quanto ao ofertante, mas acerca da sua oferta. Aqui está a grande
diferença entre
Caim e Abel. O leitor não pode ficar indiferente quanto à compreensão deste fato,
pois que nele está envolvida a verdade quanto à posição de qualquer pecador
perante Deus.
"E falou Caim com seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se
levantou Caim contra o seu irmão Abel e o matou". Assim tem sido sempre: os
Cains têm perseguido e matado os Abéis. Em todos os tempos, o homem e a sua
religião são os mesmos; a fé e a sua religião são as mesmas: e onde quer que se têm
encontrado, tem havido conflito.
Contudo, é bom notar que o ato de assassínio praticado por Caim foi a verdadeira
consequência — o próprio fruto — da sua falsa religião. Os seus fundamentos eram
maus, e a superestrutura edificada sobre eles era também má. Nem tão-pouco ficou
satisfeito com o ato de assassínio; mas tendo ouvido a sentença de Deus,
desesperado sem o perdão, por sua ignorância de Deus, saiu da Sua presença
bendita, e edificou uma cidade e teve na sua família os inventores e apreciadores
das ciências úteis e ornamentais — agrônomos, músicos e mestres de toda a obra de
metais.
Por ignorar o caráter divino, ele disse que o seu pecado era grande demais para ser
perdoado. Não era que reconhecesse realmente o seu pecado, mas que não
conhecia a Deus. Mostrou inteiramente o fruto terrível da queda no próprio
pensamento que proferiu acerca de Deus. Não queria o perdão, porque não queria
Deus. Não tinha o verdadeiro sentido da sua própria condição; nem desejo de
Deus; nem entendimento do terreno de aproximação do pecador de Deus. Era
radicalmente corrupto — fundamentalmente mau; e tudo que desejava era fugir da
presença de Deus e perder-se no mundo com as suas ocupações. Pensou que podia
viver muito bem sem Deus, e portanto dispôs- se a aformosear o mundo, tanto
quanto pôde, com o fim de o tornar um lugar aprazível, e ele próprio um homem
digno de respeito nele; embora aos olhos de Deus o mundo estivesse debaixo da
maldição, e ele fosse um fugitivo e vagabundo.
O Caminho de Caim
Tal era "o caminho de Caim", caminho no qual milhões estão correndo, neste
momento. Tais pessoas não são, de modo nenhum, destituídas do elemento
religioso no seu caráter. Gostariam de oferecer alguma coisa a Deus e de fazer
alguma coisa para Ele. Julgam que é próprio apresentar-Lhe os resultados do seu
labor. Desconhecem-se a si próprios, e vivem na ignorância do caráter de Deus.
Porém a par de tudo isto existe o esforço diligente de melhorar o mundo; de tornar
a vida agradável em vários modos; de adornar a cena com as cores mais belas. O
remédio de Deus para purificação do pecado é rejeitado, e os esforços do homem
para melhorar a sua condição são postos em seu lugar. Este é "o caminho de Caim"
(Judas 11).
O leitor tem apenas que olhar em redor de si para ver como este "caminho"
prevalece na atualidade. Embora o mundo esteja manchado com o sangue de "um
maior do que Abel", o próprio sangue de Cristo, vede como o homem procura
torná-lo um lugar agradável! Como aconteceu nos dias de Caim, em que os sons
agradáveis da "harpa e do órgão", sem dúvida, abafavam, aos ouvidos do homem,
completamente o clamor do sangue de Abel. Assim também agora o ouvido do
homem é enchido com outros sons, em vez daqueles que emanam do Calvário; e os
seus olhos são atraídos por outro objeto que não um Cristo crucificado. Os recursos
do seu gênio são também empregados para fazer deste mundo uma estufa na qual
são produzidos, na sua forma mais rara, todos os frutos que a natureza tanto deseja.
E não somente são as necessidades reais do homem, como criatura, supridas, como
o gênio inventivo da mente humana é posto a trabalhar com o fim de descobrir
coisas que, logo que os olhos as veem, o coração deseja-as, e não somente as deseja,
mas julga que a vida seria insuportável sem elas.
Assim, por exemplo, há alguns anos, as pessoas sentiam-se satisfeitas por gastar
dois ou três dias numa viagem de cem milhas; ao passo que agora podem fazê-la em
três ou quatro horas,(1) e não somente isso, mas lamentar-se-ão tristemente se
tiverem de chegar cinco ou dez minutos atrasados. Com efeito, o homem tem que
evitar o incômodo da vida. Deve viajar sem fadiga, e ouvir notícias sem ter de
dispender paciência com elas. Colocará linhas férreas através da terra, e linhas
telefônicas abaixo do mar, como se quisesse antecipar, do seu próprio modo, esse
bendito e glorioso século em que "não haverá mais mar"(2).
(1) O autor escreveu a sua obra no século XVIII, quando muitas das invenções que
são do nosso conhecimento não passavam sequer pela mente do homem (N. do T.).
(2) Na verdade, Deus usa todas essas coisas para o progresso dos Seus próprios
desígnios; e o servo do Senhor pode usá-las também livremente; porém isto não
nos impede de ver o espírito que as caracteriza
Em complemento de tudo isto, existe muita religião, assim chamada; mas, ah! a
própria caridade é obrigada a alimentar a apreensão de que muito daquilo que
passa por ser religião é apenas um parafusinho na grande máquina que foi
construída para conveniência do homem e sua exaltação. O homem não pode viver
sem religião. Não seria respeitável sem ela: e, portanto, fica contente em consagrar
um sétimo do seu tempo à religião; ou, como ele pensa e professa, aos seus
interesses eternos; e então tem seis-sétimos para consagrar aos seus interesses
temporais; mas quer trabalhe para o tempo, quer para a eternidade, é realmente
para si próprio que trabalha. Tal é, pois, "o caminho de Caim". Que o leitor não
deixe de meditar bem no assunto. Veja onde este caminho começa, para onde
conduz, e onde acaba.
Como é diferente o caminho do homem da fé! Abel sentiu e reconheceu a
maldição; viu a nódoa do pecado, e, na energia santa da fé, ofereceu aquilo que
podia enfrentá-lo, e enfrentá-lo perfeitamente — do modo divino. Buscou e achou
um refúgio em Deus; e em vez de edificar uma cidade na terra, ele achou apenas
uma sepultura nas suas entranhas. A terra, em cuja superfície se manifestaram as
energias e o gênio de Caim e sua família, estava manchada com o sangue de um
justo. Que o homem do mundo se não esqueça disto; lembre-se disto o homem de
Deus; que o crente mundano se recorde deste fato. A terra que trilhamos está
manchada com o sangue do filho de Deus. O mesmo sangue que justifica a Igreja
condena o mundo. A sombra carregada da cruz de Jesus pode ser vista pelo olhar
da fé, pairando sobre todo o brilho e resplendor deste mundo evanescente. "O
mundo passa". Em breve terá tudo acabado, tanto quanto diz respeito ao estado
atual de coisas. Ao "caminho de Caim" seguir-se-á "o engano de Balaão", na sua
forma consumada; e então virá "a contradição de Coré". E depois? "O abismo"
abrirá a sua boca para receber os ímpios, e fechá-la-á outra vez, para os encerrar na
"negrura das trevas" (Judas 13).
CAPÍTULO 5
O REINADO DA MORTE
Em confirmação do que atrás fica dito podemos passar uma vista de olhos ao
capítulo 5 e encontrarmos nele o relato humilhante da fraqueza do homem e sua
sujeição ao domínio da morte. Ele podia viver centenas de anos e gerar "filhos e
filhas"; mas, por fim, tinha que ser escrito que "morreu". "A morte reinou desde
Adão até Moisés". E, mais, "aos homens está ordenado morrerem uma vez". O
homem não pode vencer esta lei. Não pode, por meio do vapor, da eletricidade ou
coisa alguma mais ao alcance do seu gênio, desarmar a morte do seu aguilhão
terrível. Não pode, por sua energia, pôr de lado a sentença de morte, embora possa
produzir os confortos e prazeres da vida.
Mas donde veio esta coisa estranha e temível, a morte? Paulo dá-nos a resposta a
esta pergunta: "... por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte" (Rm 5:12). Aqui temos a origem da morte. Veio pelo pecado. O pecado
quebrou em dois o elo que ligava a criatura ao Deus vivo; e, isto feito, ela foi
entregue ao domínio da morte, do qual domínio não tinha poder algum para se
libertar. E isto, note-se, é uma das muitas provas do fato da impossibilidade do
homem para se encontrar com Deus. Não pode comunhão entre Deus e o homem,
salvo no poder da vida; mas o homem está debaixo do poder da morte; por isso, não
pode haver comunhão com base em meios naturais.
A vida não pode ter comunhão com a morte, assim como não há comunhão entre a
luz e as trevas, a santidade e o pecado. O homem tem que se encontrar com Deus
num terreno absolutamente novo, e sobre um novo princípio, a saber, a fé; e esta fé
habilita-o a reconhecer a sua própria posição de "vendido ao pecado", e, portanto,
sujeito à morte; enquanto que, ao mesmo tempo, habilita-o a compreender o
caráter de Deus, como o dador de uma nova vida—vida para além do poder da
morte—uma vida que nunca pode ser tocada pelo inimigo, nem perdida por nós.
E isto o que caracteriza a segurança da vida do crente. Cristo é a sua vida — um
Cristo ressuscitado e glorificado —, um Cristo vitorioso sobre todas as coisas que
podiam ser contra nós. A vida de Adão era fundada sobre a sua própria obediência;
e, portanto, quando desobedeceu perdeu o direito à vida. Porém, Cristo, tendo vida
em Si Mesmo, veio ao mundo, e satisfez inteiramente todas as circunstâncias do
pecado do homem, de todos os modos possíveis; e, submetendo-Se à morte,
destruiu aquele que tinha o seu império, e, na ressurreição, torna-se a vida e justiça
de todos os que creem no Seu excelente nome.
Ora, é impossível que Satanás possa tocar nesta vida, quer seja na sua origem, no
seu meio, o seu poder, a sua espera, ou a sua duração. Deus é a sua origem; Cristo
ressuscitado é o seu meio; o Espírito Santo, o seu poder; o céu é a sua esfera; e a
eternidade a sua duração. Por isso, como podia esperar-se, para aquele que possui
esta maravilhosa vida toda a cena é alterada; e, enquanto, em certo sentido, tem
que ser dito, "no meio da vida estamos na morte", todavia, noutro sentido, pode
dizer-se, "no meio da morte estamos na vida". Não há morte na esfera em que o
Cristo ressuscitado introduz o Seu povo. Como podia haver? Não a aboliu Ele? Não
pode ser uma coisa abolida e existente ao mesmo tempo, e para as mesmas pessoas;
a Palavra de Deus diz- nos que foi abolida. Cristo esgotou a cena da morte, e
encheu-a de vida; e, portanto, não é a morte, mas a glória que está em frente do
crente. A morte está atrás dele, e atrás dele para sempre. Quanto ao futuro, é todo
de glória—glória sem nuvens. É verdade que pode muito bem ser que ele tenha de
adormecer — "dormir em Jesus" — mas isso não é morte, mas "vida em atividade".
O próprio fato de partir para estar com Cristo não pode alterar a esperança
específica do crente, a qual é encontrar Cristo nos ares, para estar com Ele, e ser
semelhante a Ele, para sempre.
(1) É evidente que Enoque não sabia nada quanto ao modo de "fazer o melhor dos
dois mundos". Para ele havia apenas um mundo. Assim devia ser conosco.
Oh! quanta coisa se acha compreendida nestas três palavras, "andou com Deus"!
Que separação e renúncia própria! Que santidade e beleza moral! Que graça e
afabilidade! Que humildade e ternura! E, todavia, que zelo e energia! Que
paciência e longanimidade! E, contudo, que fidelidade e decisão firme! Andar com
Deus abrange tudo que está dentro dos limites da vida divina, quer seja ativa ou
passiva. Compreende o conhecimento do caráter de Deus tal qual Ele o revelou.
Implica também a compreensão do parentesco que temos com Ele. Não se trata da
mera maneira de viver de regras e regulamentos; nem de elaborar planos de ação;
nem tão-pouco de resoluções de andar cá e lá, fazer isto ou aquilo. Andar com
Deus é muito mais do que qualquer ou todas estas coisas. Além disso, pode por
vezes levar- -nos contrariamente aos pensamentos dos homens, e até mesmo dos
nossos irmãos, se eles próprios não estiverem andando com Deus. Pode, por vezes,
acarretar-nos a acusação de trabalharmos demais; por outras vezes, de fazermos
muito pouco. Porém, a fé que nos habilita a andar "com Deus" habilita-nos
também a ligar o valor próprio aos pensamentos do homem.
A Esperança da Igreja
Assim, temos em Abel e Enoque instrução valiosa quanto ao sacrifício sobre o qual
descansa a fé; e quanto às perspectivas que a fé agora antevê; ao passo que, ao
mesmo tempo, andar "com Deus", abrange todos os pormenores da vida atual que
se acham entre estes dois pontos. "O SENHOR dará graça e glória"; e entre a graça
que se revelou e a glória que há-de ser revelada existe a certeza feliz de que "o
SENHOR não negará bem algum aos que andam na retidão" (SI 84:11).
Tem sido dito que "a cruz e a vinda do Senhor no términus da existência da Igreja
na terra", e este términus, são prefigurados no sacrifício de Abel e na trasladação de
Enoque. A Igreja conhece a sua justificação perfeita pela morte e ressurreição de
Cristo, e espera pelo dia em que Ele há-de vir para a levar para Si mesmo. Ela, "pelo
Espírito da fé", aguarda a esperança da justiça (G1 5:5). Não espera por justiça,
tanto mais que ela, pela graça, já a tem; mas aguarda a esperança que pertence
propriamente à condição em que ela foi introduzida.
O leitor deve procurar estar ciente quanto a isto. Alguns expositores da verdade
profética, não vendo o lugar específico da Igreja, a sua porção e esperança,
cometem erros tristes. Com efeito, lançam nuvens tão carregadas e neblina tão
densa em volta da "estrela resplandecente da manhã", que é a própria esperança da
Igreja, que muitos santos, no presente, parecem não poder chegar acima da
esperança do remanescente de Israel, a qual consiste em ver nascer "o Sol da
Justiça" trazendo salvação debaixo das suas asas (Ml 4:2). Nem tão-pouco isto é
tudo. Muitíssimas pessoas têm sido privadas do poder moral da esperança do
aparecimento de Cristo por meio do ensinamento que têm recebido para
esperarem vários acontecimentos e circunstâncias antes da Sua manifestação à
Igreja. A restauração dos Judeus, o progresso da imagem de Nabucodonosor, a
revelação do homem do pecado — todas estas coisas, argumenta-se, devem ter
lugar antes de Cristo vir. Que isto não é verdade pode ser comprovado por muitas
passagens do Novo Testamento, se fosse este o lugar próprio para as apresentar.
A Igreja, à semelhança de Enoque, será tirada do meio do mal que a rodeia, e do
mal que há-de vir. Enoque não foi deixado para ver o mal do mundo elevar-se ao
máximo, e o juízo de Deus desencadeado sobre ele. Não viu como "se romperam
todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram". Foi levado antes
de ter ocorrido qualquer destas coisas; e apresenta- se perante o olhar da fé como
um símbolo encantador daqueles que não dormirão, mas que serão transformados,
"num momento, num abrir e fechar de olhos" (1 Co 15:51-52). Trasladação, e não
morte, era a esperança de Enoque; e, quanto à esperança da Igreja, é expressa,
rapidamente, pelo apóstolo do seguinte modo: "Esperar dos céus a Seu Filho" (1 Ts
1:10). O crente mais simples e menos letrado pode compreender e gozar esta
esperança. Pode também, em certa medida, experimentar e manifestar o seu poder.
Pode não poder estudar profecia, mas pode, bendito seja Deus, provar a
bem-aventurança, a realidade, o conforto, o poder, e virtude elevada e separada
dessa esperança celestial que propriamente lhe pertence, como membro desse
corpo celestial, a Igreja; cuja esperança não é apenas ver o "Sol da Justiça", por mais
bem-aventurada que possa ser no seu próprio lugar, mas ver "a estrela da manhã"
(Ap 2:28). E assim como no mundo a estrela da manhã é vista por aqueles que a
esperam, antes do sol nascer, do mesmo modo Cristo, como a Estrela da manhã,
será visto pela Igreja, antes que o remanescente de Israel possa ver os raios do "Sol
da Justiça".
CAPÍTULOS 6 A 9
O DILÚVIO E NOÉ
"E disse o SENHOR: Destruirei". Nada menos do que isto produziria efeito. Tinha
de haver inteira destruição daquilo que havia corrompido o caminho de Deus na
terra. "Os valentes, os varões de fama", tinham de ser varridos da terra, sem
distinção, "...toda a carne" tinha de ser posta de lado, como imprópria para Deus.
"O fim de toda a carne é vindo perante a minha face". Não era apenas o fim de
alguma carne; não, toda estava corrompida, à vista do Senhor — toda era
irremediavelmente má. Havia sido experimentada, e fora achada em falta; e o
Senhor anuncia o Seu remédio a Noé nestas palavras: "Faze para ti uma arca de
madeira de Gofer."
A Fé de Noé
Noé foi assim posto ao corrente dos pensamentos de Deus quanto a tudo à sua
volta. O efeito da Palavra de Deus foi pôr a descoberto as raízes de tudo aquilo em
que o olhar do homem podia descansar com complacência e vaidade.
O coração humano podia inchar-se de orgulho, e o seio suspirar com emoção, à
medida que os olhos contemplavam a classe brilhante dos homens de arte, homens
de talento, "os valentes", e "varões de fama". O som da harpa e do órgão pedia
comoção à alma, enquanto que, ao mesmo tempo, a terra era cultivada e as
necessidades do homem eram supridas de forma a contradizer todo o pensamento
acerca do juízo que se aproximava. Mas, oh! aquelas palavras, "destruirei"! Que
obscuridade sombria lançavam sobre aquela cena fulgurante! Não poderia o gênio
do homem inventar um meio de salvação? Não podiam "os valentes" libertar-se
pela sua muita forçai Ah! não! Havia um meio de escapar, porém tinha sido
revelado à fé, não à vista—não à razão, nem à imaginação.
"Pela fé, Noé, divinamente avisado das coisas que ainda não se viam, temeu, e, para
salvação da sua família, preparou a arca, pela qual condenou o mundo, e foi feito
herdeiro da justiça que é segundo a fé" (Hb 11:7).
A Palavra de Deus faz com que a Sua luz brilhe sobre tudo aquilo por que o coração
humano é enganado. Remove, completamente, o brilho com que a serpente cobre
um mundo frívolo, enganador e passageiro, sobre o qual pende a espada do juízo
divino. Porém, é somente a "fé" que pode ser "avisada" por Deus, quando as coisas
de que Ele fala ainda se não veem. A natureza é governada por aquilo que vê — é
governada pelos seus sentidos. A fé é governada pela Palavra pura de Deus —
inestimável tesouro neste mundo sombrio! —; isto dá estabilidade, sejam quais
forem as aparências exteriores. Quando Deus falou a Noé do julgamento pendente
não havia sintoma dele. Fazia parte das coisas que se não viam. Contudo, a Palavra
de Deus tornou-o uma realidade presente para o coração que era capaz de juntar
essa palavra com a fé. A fé não precisa ver uma coisa, antes de crer, porque "a fé é
pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus" (Rm 10:17).
Tudo que o homem de fé precisa saber é que Deus tem falado; isto dá perfeita
certeza à sua alma. "Assim diz o Senhor" resolve tudo. Uma simples linha da
Sagrada Escritura é resposta abundante para toda a argumentação e todas as
fantasias da mente humana; e quando se tem a Palavra de Deus como base das
convicções pode-se aguentar calmamente a maré cheia de opinião e dos
preconceitos humanos. Foi a Palavra de Deus que fortaleceu o coração de Noé
durante a sua longa carreira de serviço; e essa mesma Palavra tem fortalecido
milhões de santos, desde esse dia até ao presente, em face das contradições do
mundo.
Por isso, nunca poderemos dar valor demasiado à Palavra de Deus. Sem ela, tudo é
incerteza; com ela tudo é luz e paz. Onde ela brilha, marca para o homem de Deus
um trilho seguro e abençoado; onde ela não brilha, fica-se atônito no meio da
confusão da perplexidade da tradição. Como poderia Noé ter pregado a justiça,
durante 120 anos, se não tivesse tido a Palavra de Deus como o fundamento da sua
pregação?- Como poderia ele ter resistido ao escárnio e ao sarcasmo do mundo
infiel? Como podia ele ter perseverado em testificar do "juízo futuro", quando nem
sequer uma nuvem tinha aparecido no horizonte do mundo? Impossível. A Palavra
de Deus era o fundamento em que ele se apoiava, e "o Espírito de Cristo"
habilitava-o a ocupar, com santa decisão, esse terreno elevado e inabalável.
As Águas do Juízo
Isto mostra-nos a doutrina da cruz de um modo intenso. Vemos ali,
imediatamente, o juízo de Deus abrangendo na Sua sentença a natureza e o seu
pecado; e, ao mesmo tempo, a revelação da Sua graça salvadora, em toda a sua
amplitude e adaptação perfeita àqueles que, segundo o juízo de Deus, têm chegado
ao ponto mais baixo da sua condição moral. "Com que o Oriente do alto nos
visitou" (Lc 1:78). Onde? Precisamente onde estamos, como pecadores. Deus
desceu até às profundezas da nossa ruína. Não existe um ponto em todo o estado do
pecador onde a luz desse bendito sol do Oriente do alto não tenha penetrado;
porém, se assim tem penetrado, deve, em virtude do que é, revelar o nosso
verdadeiro caráter. A luz deve julgar todas as coisas que lhe são postas; contudo, ao
mesmo tempo que o faz, dá também "conhecimento da salvação na remissão dos
pecados". A cruz, ao mesmo tempo que revela o juízo de Deus contra "toda a
carne", mostra a Sua salvação para o pecador perdido e culpado. O pecado é
perfeitamente julgado — o pecador perfeitamente salvo —, e Deus perfeitamente
revelado e inteiramente glorificado na cruz.
Se o leitor consultar, por um momento, a 1 Epístola de Pedro, encontrará muita luz
lançada sobre este assunto. No terceiro capítulo, versículos 18-22, lemos: "Porque
também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para
levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito;
no qual (Espírito) também foi e pregou (— por Noé —) aos espíritos (— agora —)
em prisão; os quais em outro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de
Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto
é, oito) almas se salvaram pela água, que também, como uma verdadeira figura,
agora vos salva, batismo, não do despojamento(1), da imundícia da carne, mas da
indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus
Cristo; o qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado
os anjos e as autoridades e as potências".
__________
(1) E impossível sobreestimar a sabedoria do Espírito Santo, como é vista na
maneira como trata da ordenação do batismo, na passagem acima. Conhecemos o
mau uso que se tem feito do batismo; conhecemos o lugar falso que tem obtido nos
corações de muitos; conhecemos como a eficácia que somente pertence ao sangue
de Cristo tem sido atribuída ao batismo da água; sabemos como a graça
regeneradora do Espírito Santo tem sido transferida para o batismo da água; e, com
o conhecimento de tudo isto, não podemos senão ser despertados com o modo com
que o Espírito de Deus guarda o assunto, frisando que não é a mera lavagem da
impureza da carne com água, mas a resposta de uma boa consciência para com
Deus, cuja resposta temos, não por meio do batismo, por muito importante que
possa ser, como uma ordenação do reino, mas pela ressurreição de Jesus Cristo, o
qual foi entregue por nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação.
O batismo, escusado será dizer, como uma ordenação de instituição divina, e no
seu lugar divinamente apontado, é muito importante e profundamente
significativo; porém, quando encontramos homens, de um modo ou de outro,
pondo a figura no lugar da substância, somos obrigados a expor a obra de Satanás à
luz da Palavra de Deus.
Esta passagem é muito importante. Coloca a doutrina da arca e a sua ligação com a
morte de Cristo claramente perante nós. Como no dilúvio, também na morte de
Cristo todas as vagas e ondas do julgamento divino passaram por cima daquilo que,
em si, era sem pecado. A criação foi sepultada debaixo do dilúvio da justa ira do
Senhor; e o Espírito de Cristo exclama: "... todas as tuas ondas e vagas têm passado
sobre mim" (SI 42:7). Aqui está uma verdade profunda para o coração e
consciência do crente. "Todas as ondas e vagas" de Deus passaram sobre a
imaculada Pessoa do Senhor Jesus, quando Ele foi crucificado na cruz; e como
bendita consequência nenhuma delas ficou para passar sobre a pessoa do crente.
No Calvário vemos, em boa verdade, romperem-se todas as fontes do grande
abismo, e as janelas do céu abrirem-se. "Um abismo chama outro abismo, ao ruído
das tuas catadupas" (SI 42:7). Cristo bebeu o cálix, e suportou a ira. Pôs-se a Si
Próprio, judicialmente, sob o peso de todas as responsabilidades do Seu povo, e
rasgou-os gloriosamente. O conhecimento deste fato dá paz duradoura à alma. Se o
Senhor Jesus enfrentou tudo que era contra nós, se tirou do caminho todo o
obstáculo, se tirou o pecado, se Ele esgotou o cálix da ira e julgamento por nós, se
afastou toda a possibilidade de nuvens, não devemos nós gozar de paz duradoura?
Indubitavelmente. Paz é a nossa porção inalienável. A nós pertence-nos a
bem-aventurança santa e incontável que o amor pode dar-nos sobre a base da obra
de Cristo consumada.
A Esperança da Igreja
A Igreja de Deus não espera a ocasião do mundo arder em brasas, mas o
aparecimento da "resplandecente estrela da manhã" (Ap 22:16).
Porém, seja qual for o modo como contemplem o futuro, qualquer que seja o ponto
de vista de onde o contemplemos, quer o assunto que preocupa a visão da alma seja
a Igreja na glória, quer o mundo em chamas, a vinda do Noivo ou o ladrão de noite,
a Estrela da Manhã ou o Sol da justiça, a trasladação ou o dilúvio, devemos sentir a
importância inefável de contar com o testemunho de Deus em graça para com os
pecadores perdidos. "Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui agora o dia da
salvação" (2 Co 6:2). "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não
lhes imputando os seus pecados" (2 Co 5:19). Ele está procedendo agora à
reconciliação; julgará no fim; agora é tudo graça; então será só ira; agora Deus
perdoa o pecado por meio da cruz; então puni-lo-á, no inferno, e isso para sempre.
Agora Ele está dando uma mensagem da graça mais pura, mais rica, mais liberal:
fala aos pecadores de uma redenção efetuada por meio do precioso sacrifício de
Cristo. Declara que a questão do pecado foi liquidada. Espera a oportunidade de
poder ser gracioso. "A longanimidade de nosso Senhor é a salvação" (2 Pe 3:15). "O
Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é
longânimo para convosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos
venham a arrepender-se" (2 Pe 3:9). Tudo isto torna o momento presente de
solenidade peculiar. Pura graça proclamada! — pura ira pendente! Como tudo isto
é solene! Profundamente solene!
E com que profundo interesse devemos nós prosseguir o desenrolar dos desígnios
divinos! A Bíblia lança a sua luz sobre estas coisas, e luz tal, também, que não
precisamos, como alguém disse, "de ficar a olhar ociosamente para os
acontecimentos, como aqueles que não sabem de onde são nem para onde vão".
Devemos conhecer corretamente o nosso rumo. Devemos compreender
completamente a tendência de todos os princípios que agora operam. Devemos
conhecer o turbilhão para o qual todas as correntes tributárias estão correndo
rapidamente. Os homens sonham com um século áureo; prometem a si um milênio
das artes e ciências; alimentam-se com o pensamento de que "amanhã será como
hoje e mais abundante". Contudo, oh! como são inteiramente vãos estes
pensamentos, sonhos e promessas! A fé pode ver as nuvens ajuntando-se
carregadas em volta do horizonte do mundo. O juízo aproxima-se. O dia da ira está
perto. A porta da salvação será em breve fechada. A "grande desilusão" em breve se
verificará com intensidade terrível. Como é necessário, portanto, levantar a voz do
aviso — procurar, por meio de um testemunho fiel, contrariar a complacência
lamentável do homem. Verdade é que, fazendo-o, ficaremos sujeitos à acusação
que Acabe fez contra Mica de sempre profetizar o mal; mas isso não deve dar-nos
cuidado. Profetizemos o que a Palavra de Deus profetiza, e façamo-lo
simplesmente com o propósito de "persuadir os homens". A Palavra de Deus só
remove de debaixo dos nossos pés uma concavidade com o fim de pôr em seu lugar
um fundamento que nunca pode ser abalado. Tira-nos apenas uma esperança
ilusória para nos dar em seu lugar "uma esperança que não se envergonha". Tira
"uma cana quebrada" para nos dar "a rocha dos séculos". Acaba com uma "cisterna
rota, que não retém a água", para abrir em seu lugar "o manancial de águas vivas"
(Jr 2:13). Isto é amor verdadeiro. É o amor de Deus. Ele não clamará "paz, paz,
quando não há paz"; nem "fará reboco de cal não adubada" (Ez 22:28). Anela ter o
coração do pecador descansado sossegadamente na Sua Arca eterna de segurança,
gozando comunhão com Ele, e acalentando a esperança de que, quando toda a
ruína, desolação, e o juízo tiverem passado, descansará Consigo na criação
restaurada.
Voltemos agora para Noé e vejamo-lo numa nova posição. Vimo-lo ocupado na
construção da arca, depois em segurança na arca, e vamos vê-lo sair agora dela e
tomar o seu lugar na nova terra. "E lembrou-se Deus de Noé." Tendo sido
consumada a obra do juízo, a família salva e tudo que lhe dizia respeito foi
lembrado: "... e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas.
Cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e a chuva dos céus
deteve-se" (cap. 8:1). Os raios de sol começaram agora a incidir sobre a terra que
havia sido batizada com o batismo de juízo. O juízo é "obra estranha de Deus". Ele
não tem prazer nela, embora seja por meio dele glorificado. Bendito seja o Seu
nome, Ele está sempre pronto a abandonar o lugar do juízo e entrar no lugar de
misericórdia, porque Se compraz nela (').
(1) Quero mencionar aqui, para meditação do leitor, um pensamento muito vulgar
com aqueles que se entregam especialmente ao estudo do que é chamado "a
verdade dispensacional". Diz respeito a Enoque e Noé. O primeiro foi levado,
como vimos, antes de vir o juízo; ao passo que o último foi conduzido através do
julgamento. Ora, é vulgar pensar-se que Enoque é figura da Igreja, que será levada
antes do pecado atingir o auge, e antes que o julgamento divino caia sobre ele. Por
outro lado, Noé é uma figura do remanescente de Israel, que será conduzido
através das águas profundas da aflição, e do fogo do julgamento, e levado ao pleno
gozo da bem-aventurança milenial em virtude do concerto eterno de Deus. Posso
acrescentar que aceito inteiramente este pensamento quanto aos pais do Velho
Testamento. Entendo que tem o apoio do assunto geral e da analogia da Escritura
Sagrada.
O Corvo e a Pomba
"E aconteceu que, ao cabo de quarenta dias abriu Noé a janela da arca que tinha
feito: e soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de
sobre a terra." A ave imunda escapou-se, e achou, sem dúvida, um lugar de repouso
em qualquer carcaça flutuante. Não voltou a procurar a arca. Não aconteceu assim
com a pomba. "A pomba porém não achou repouso para a planta do seu pé e voltou
a ele para a arca... e tornou a enviar a pomba fora da arca. E a pomba voltou a ele
sobre a tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico." Agradável
símbolo da mente regenerada, que no meio de toda a desolação busca e acha o seu
repouso e a sua porção em Cristo; e não somente isso, mas que também lança mão
do título da herança, e mostra a prova bendita que o julgamento é passado e uma
nova terra se apresenta inteiramente à vista. A mente carnal, pelo contrário, pode
descansar em qualquer coisa menos em Cristo. Pode alimentar-se de toda a
imundície. "A folha de oliveira" não tem encanto para ela. Pode achar tudo que
precisa numa cena de morte, e por isso não está ocupada com o pensamento de um
novo mundo e as suas glórias; porém, o coração que é ensinado e exercitado pelo
Espírito de Deus só pode descansar e regozijar-se naquilo em que Ele descansa e Se
regozija. Descansa na Arca da Sua salvação "até aos tempos da restauração de tudo"
(At. 3:21). Que assim seja com o leitor e comigo; que Jesus seja o lugar de repouso e
a porção dos nossos corações, para que não tenhamos que buscá-los num mundo
que jaz sob o juízo de Deus. A pomba voltou para Noé, e esperou pelo seu tempo de
repouso: e nós devemos encontrar sempre o nosso lugar com Cristo, até ao tempo
da Sua exaltação e glória, nos séculos vindouros. Aquele que há-de vir,
"certamente virá, não tardará" (Hc 2:3). Tudo quanto precisamos, a este respeito, é
de um pouco de paciência. Que Deus dirija os nossos corações no Seu amor, e "na
paciência de Cristo".
Isto ensina-nos uma lição muito simples, mas ao mesmo tempo muito oportuna.
No momento em que o coração deixa escapar a realidade do próprio Deus, não há
possibilidade de pôr limite à sua decadência; encontra-se de caminho para as
piores formas de idolatria. No parecer da fé, uma ordenação é somente válida à
medida que transmite Deus, em poder vivo, à alma; isto é, enquanto a fé pode fruir
Cristo por meio dela, segundo a Sua própria determinação. Além disso, não vale
nada; e se ela, ainda que seja na mínima escala, se interpõe entre o coração e o Seu
trabalho precioso e a Sua gloriosa Pessoa deixa de ser uma ordenação de Deus, para
se tornar num instrumento do diabo. Segundo o juízo da superstição a ordenação é
tudo, e Deus é deixado de fora; e o nome de Deus é somente usado para a enaltecer
e dar-lhe uma melhor posse do coração humano e uma influência poderosa sobre a
mente. Foi assim que os israelitas adoraram a serpente de metal. Aquilo que havia
sido um meio de bênção para eles, por ter sido usado por Deus, tornou-se, quando
os seus corações deixaram o Senhor, um objeto de veneração supersticiosa; e
Ezequias teve que quebrá-la em pedaços. Em si mesmo era apenas um "Nehustan",
mas quando usado por Deus era um meio da mais rica bênção. Ora a fé reconheceu
que ela era aquilo que a revelação divina havia dito que era; porém a superstição,
arremessando, como sempre faz, com a revelação divina ao largo, perdeu o
verdadeiro propósito de Deus com o objeto, e com efeito, fez do próprio objeto um
deus (2 Reis 18:4).
E, prezado leitor, não existe nisto uma lição profunda para os nossos dias? Creio
que sim. Vivemos numa época de ordenações. A atmosfera, que envolve a igreja
professa, está cheia de elementos duma religião tradicional, a qual rouba à alma
Cristo e a Sua plena salvação. Não é que as tradições humanas neguem
abertamente que existe a pessoa de Cristo ou a cruz de Cristo: se o fizessem os
olhos de muitos podiam ser abertos. Mas, não é assim. O mal é de um caráter muito
mais ímpio e perigoso. As ordenações são ajuntadas a Cristo e à Sua obra. E assim o
pecador não é salvo somente por Cristo, mas por Cristo e as ordenações. Desta
maneira ele é defraudado de Cristo completamente; porque, sem dúvida, ver-se-á
que Cristo e as ordenações provarão, como consequência, ser ordenações e não
Cristo. E um pensamento muito sério para todos os que professam uma religião de
ordenações. "Se vos deixardes circuncidar Cristo de nada vos aproveitará" (G1 5:2).
Tem que ser Cristo unicamente, ou nada. O diabo convence os homens de que
honram Cristo sempre que se preocupam muito com as Suas ordenações; enquanto
que, ao mesmo tempo, ele sabe muito bem que eles estão, na realidade, pondo
Cristo inteiramente de parte, e divinizando as ordenações. Desejo repetir aqui uma
observação que já fiz algures, a saber, que a superstição faz tudo da ordenação; a
infidelidade, a profanidade e o misticismo, nada fazem dela; a fé usa-a segundo
instruções divinas.
A Embriaguez de Noé
O último parágrafo deste capítulo apresenta-nos um espetáculo humilhante. O
senhor da criação falhou em se governar a si próprio: "E começou Noé a ser
lavrador da terra e plantou uma vinha. E bebeu do vinho e embebedou -se; e
descobriu-se no meio de sua tenda." Que estado para Noé, o único homem justo, o
pregador da justiça! Ah! o que é o homem?-! Vejamo-lo onde quer que for, e
veremos só fracasso. No Éden, falhou; na terra restaurada, falhou; em Canaã,
falhou; na Igreja, ele falha e na presença da bem-aventurança do milênio, falhará:
O homem falha em toda a parte, e em todas as coisas: nada há de bom nele. Quer as
suas vantagens sejam grandes, os seus privilégios vastos, a sua posição agradável,
ele só pode mostrar falha e pecado.
Devemos, contudo, pensarem Noé sob dois aspectos, a saber, como uma figura, e
um homem e enquanto o símbolo é cheio de beleza e significado, o homem é cheio
de pecado e loucura. Todavia, o Espírito Santo escreveu estas palavras: "Noé era
varão justo e reto em suas gerações; Noé andava com Deus" (Gn 6:9). A graça
divina tinha coberto todos os seus pecados, e vestido a sua pessoa com um manto
imaculado de justiça. Apesar de Noé ter mostrado a sua nudez, Deus não a viu,
porque não olhava para ele na fraqueza da sua própria condição, mas no pleno
poder da justiça divina. Por isso podemos ver quão perdido se encontrava —
totalmente alienado de Deus e dos Seus pensamentos — Cam, na carreira que
adotou; evidentemente não conheceu nada da bem-aventurança do homem cuja
iniquidade é perdoada e cujos pecados são cobertos; pelo contrário, Sem e Jafé
mostram, com o seu procedimento, um exemplo perfeito do método divino de
tratar com a nudez humana; pelo que herdam uma bênção, enquanto que Cam
herda uma maldição.
CAPÍTULO 10
Ninrode e Babilônia
Esta parte do livro menciona as gerações dos três filhos de Noé, notando,
especialmente, Ninrode, o fundador do reino de Babel, ou Babilônia, um nome que
ocupa um lugar proeminente nas páginas inspiradas. Babilônia é um nome muito
conhecido — uma influência bem conhecida. Desde o capítulo dez do Gênesis ao
capítulo dezoito do Apocalipse, Babilônia aparece perante nós repetidas vezes e
sempre como alguma decididamente hostil àqueles que ocupam, presentemente, a
posição de testemunho público de Deus. Não é que devamos pensar na Babilônia
do Velho Testamento como sendo idêntica com a Babilônia do Apocalipse. De
modo nenhum. Creio que a primeira é uma cidade; a última, um sistema; porém
tanto a cidade como o sistema exercem uma grande influência sobre o povo de
Deus. Mal Israel tinha começado as guerras de conquista da terra de Canaã, quando
"uma capa babilônica" lançou profanação e dor, derrota e confusão, nas suas
hostes. É o primeiro relato que temos da influência perniciosa de Babilônia sobre o
povo de Deus; contudo qualquer estudante das Escrituras conhece o lugar que
Babilônia ocupa através de toda a história de Israel.
Não é este o lugar para notar, em pormenor, as várias passagens nas quais a cidade é
apresentada. Quero apenas frisar que, sempre que Deus tem um testemunho
corporativo na terra, Satanás tem uma Babilônia para manchar e corromper esse
testemunho. Quando Deus liga o Seu nome com uma cidade na terra, então
Babilônica toma a forma de uma cidade; e quando Deus liga o Seu nome com a
Igreja, então Babilônica toma a forma dum sistema religioso corrompido, chamado
"a grande prostituta", "a mãe das abominações", etc. Em resumo, a Babilônica de
Satanás é sempre vista como o instrumento moldado e talhado pela sua mão, com o
propósito de impedir a operação divina, quer seja com o antigo Israel, quer com a
Igreja agora.
Através de todo o Velho Testamento Israel e Babilônia são vistos, com efeito, em
lugares opostos: quando Israel se encontra poderoso, Babilônia está em decadência;
e quando Babilônia prospera, Israel está em declínio. Deste modo, quando Israel
falhou inteiramente como testemunho do Senhor, "o rei de Babilônia lhe quebrou
os ossos" (Jr 50:17), e anexou-o. Os vasos da casa de Deus, que deviam permanecer
na cidade de Jerusalém, foram levados para a cidade de Babilônia. No entanto,
Isaías, na sua profecia sublime, conduz-nos ao oposto de tudo isto: mostra-nos, em
magnificentes tons, um quadro em que a estrela de Israel se vê em ascendência, e
Babilônia inteiramente submersa. "E acontecerá que, no dia em que o SENHOR
vier a dar-te descanso do teu trabalho, e do teu tremor, e da dura servidão com que
te fizeram servir, então, proferirás este dito contra o rei da Babilônia e dirás: Como
cessou o opressor! A cidade dourada acabou!... Desde que tu caíste, ninguém sobe
contra nós para nos cortar" (Is 14:3-8).
Isto quanto à Babilônia do Velho Testamento. Porém, quanto à Babilônia do
Apocalipse, o leitor só tem que abrir os capítulos 17 e 18 desse livro para ver o seu
caráter e fim. Ela é apresentada em contraste com a noiva, a esposa do Cordeiro; e
quanto ao seu fim, é lançada como uma grande mó ao mar (18:21); depois do que
temos as bodas do Cordeiro, com toda a sua bem-aventurança e glória.
Contudo, não pretendo prosseguir este assunto tão interessante aqui: apenas quis
deitar-lhe uma vista de olhos em ligação com Ninrode. Estou certo de que o leitor
se julgará plenamente recompensado, por qualquer incômodo que tiver em
examinar, atenciosamente, todas as passagens, nas quais o nome de
Babilônia é mencionado. Voltemos agora para o nosso capítulo.
"E Cuxe gerou a Ninrode; este começou a ser poderoso na terra. E este foi poderoso
caçador diante da face do SENHOR; pelo que se diz: Como Ninrode, poderoso
caçador diante do SENHOR. E O princípio do seu reino foi Babel, e Ereque, e
Acade, e Calné, na terra de Sinar." Aqui temos, pois, o caráter do fundador de
Babilônia: foi "poderoso na terra", — "poderoso caçador diante da face do
SENHOR". Tal foi a origem de Babilônia; e o seu caráter, através de todo o Livro de
Deus, corresponde a isso admiravelmente. E sempre apresentado como uma
influência poderosa na terra, agindo em antagonismo positivo a tudo que deve a
sua origem ao céu; e não é antes desta Babilônia ter sido inteiramente abolida que
se ouve o grito, entre as hostes celestes, "Aleluia! Pois já o Senhor, Deus
Todo-Poderoso reina" (Ap 19:6). Então toda a caçada poderosa de Babilônia terá
acabado para sempre, quer seja a sua caça às feras, para as dominar; ou a sua caça às
almas, para as destruir. Todo o seu poder, e toda a sua glória, toda a sua pompa e o
seu orgulho, a sua riqueza e luxúria, a sua luz e alegria, e o seu brilho e resplendor,
terão passado para sempre. Ela terá sido varrida com o espanador da destruição, e
lançada nas trevas, no horror e desolação de uma noite eterna. "Até quando,
Senhor?"
CAPÍTULO 11
A CONSTRUÇÃO DE BABEL
CAPÍTULO 12
O livro de Gênesis ocupa-se, na sua maior parte, com a história de sete homens, a
saber: Abel, Enoque, Noé, Abraão, Isaque, Jacó e José. Existe, não duvido, uma
linha específica de verdade apresentada em ligação com cada um destes homens.
Assim por exemplo, em Abel temos a grande verdade fundamental da aproximação
de Deus por meio da expiação — expiação compreendida pela fé. Em Enoque
temos a própria porção e esperança da família celestial; enquanto que Noé nos
mostra o destino da família terrestre. Enoque foi levado para o céu antes do
julgamento; Noé foi conduzido através do julgamento para uma terra restaurada.
Desta maneira, temos em cada um o caráter distinto da verdade, e, como
consequência, uma fase clara de fé. O leitor poderá prosseguir o assunto
inteiramente em ligação com o capítulo 11 de Hebreus; e eu estou certo que
encontrará muito interesse e proveito fazendo-o. Vamos prosseguir com a
dissertação seguinte, a saber, a chamada de Abraão.
O Chamado de Abraão
Comparando os capítulos 12:1 e 11:31 com Atos 7:2-4, vemos uma verdade de
valor prático para a alma. "O Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, e da tua
parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei." Tal foi a
comunicação feita a Abraão — uma comunicação do mais definido caráter,
destinada por Deus a atuar sobre o coração e a consciência de Abraão. "O Deus da
glória apareceu a Abraão, nosso pai, estando na Mesopotâmia, antes de habitar em
Harã, e disse-lhe: Sai da tua terra e dentre a tua parentela e dirige-te à terra que eu
te mostrar.
Então saiu da terra dos caldeus, e habitou em Harã. E dali, depois que seu pai
faleceu, Deus o trouxe para esta terra em que habitais agora" (At 7:2-4). O
resultado desta comunicação é apresentado no capítulo 11:31: "E tomou Tera a
Abrão, seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora, mulher
de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos Caldeus, para ir à terra de Canaã; e
vieram até Harã, e habitaram ali... e morreu Tera em Harã."
De todas estas passagens concluímos que os laços da natureza impediram a resposta
plena da alma de Abraão à chamada de Deus. Embora chamado para Canaã,
contudo, demora-se em Harã, até que os laços da natureza sejam quebrados pela
morte, e então, com passo decidido, toma o seu caminho para o lugar que "o Deus
da glória" o havia chamado. Isto é cheio de significação. As influências da natureza
são sempre hostis à plena realização e poder prático da "chamada de Deus". Somos
tristemente propensos a tomar caminho mais baixo do que aquele que a chamada
divina põe diante de nós. E necessária muita simplicidade e integridade de fé para
habilitar a alma a elevar-se à altura dos pensamentos de Deus, e fazer nosso aquilo
que Ele revela.
A oração do apóstolo Paulo (Ef 1:15-22) demonstra inteiramente como ele, por
intermédio do Espírito Santo, teve a noção da dificuldade que a Igreja havia
sempre de ter que lutar, para compreender "a esperança da sua vocação e quais as
riquezas da glória da sua herança nos santos"; porque, evidentemente, se falharmos
em compreender a chamada, não poderemos "andar como é digno" dela. Eu devo
saber para onde sou chamado, antes de poder ir para lá. Tivesse a alma de Abraão
estado inteiramente sob o poder da verdade que "a chamada de Deus" era para
Canaã, e que ali, também, estava a "sua herança", e ele não poderia ter ficado em
Harã. E assim é conosco. Se formos conduzidos pelo Espírito Santo à compreensão
da verdade que somos chamados com uma chamada celestial; que o nosso lar, a
nossa porção, a nossa esperança e a nossa herança são de cima, "onde Cristo está à
destra de Deus", nunca poderemos ficar satisfeitos por manter uma posição, buscar
um nome, ou ter uma herança na terra. As duas coisas são incompatíveis; é este o
verdadeiro modo de encarar o assunto. A chamada celestial não é um dogma vazio,
uma teoria ineficaz, nem uma especulação tosca. Ou é uma realidade divina, ou
não é absolutamente nada. A chamada de Abraão para Canaã era uma especulação?
Era uma simples teoria a respeito da qual ele podia falar ou argumentar, ao mesmo
tempo que continuava em Harã? Não, seguramente. Era uma verdade, uma
verdade divina, prática e poderosa. Ele fora chamado para Canaã, e Deus não
podia, possivelmente, aprovar a sua demora noutro lugar. Foi assim com Abraão, e
assim é conosco. Se quisermos ter a aprovação divina, e a presença divina, devemos
procurar, pela fé, agir segundo a chamada divina. Quer dizer, devemos procurar
atingir em experiência, na prática, e no caráter moral, o ponto para o qual Deus nos
chamou, e esse ponto é a plena comunhão com Seu Filho — comunhão com Ele na
Sua rejeição neste mundo, e na Sua aceitação no céu.
Porém, assim como no caso de Abraão foi a morte que quebrou o laço pelo qual a
natureza o prendia a Harã, do mesmo modo, no nosso caso, é a morte que quebra o
laço pelo qual a natureza nos liga a este mundo. Devemos compreender a verdade
que morremos em Cristo, a nossa Cabeça e nosso Representante — que o nosso
lugar na natureza, e no mundo, se encontra entre as coisas que eram —, e que a
cruz de Cristo é para nós o que o Mar Vermelho foi para Israel, a saber, aquilo que
nos separa, para sempre, da terra, da morte e julgamento. Só assim poderemos
andar "como é digno da vocação com que fomos chamados" — a nossa chamada,
santa, elevada e celestial —, a nossa "chamada de Deus em Cristo Jesus".
A Fome e o Egito
Ora, Abraão podia ter raciocinado da mesma maneira, com respeito à fome. Ele
estava no próprio lugar onde Deus o tinha posto; e, evidentemente, não recebeu
instruções para o deixar. Na verdade, a fome estava ali; e, além disso, o Egito ficava
perto, oferecendo alívio da pressão; ainda assim o dever do servo de Deus era claro.
E melhor morrer-se de fome em Canaã, se assim tiver de ser, do que viver na
luxúria no Egito.
É muito melhor sofrer no caminho de Deus do que estar à vontade no de Satanás. E
melhor ser-se pobre com Cristo do que rico sem Ele. Abraão teve "ovelhas, e vacas,
e jumentos, e servos, e servas, e jumentas e camelos". Prova real, diria o coração
natural, indubitavelmente, da retidão do passo que havia dado, descendo ao Egito.
Mas, oh! ele não tinha altar — não havia comunhão com Deus. O Egito não era o
lugar da presença de Deus. Abraão perdeu mais do que ganhou indo para lá. Este é
sempre o caso. Nada pode compensar a perda da nossa comunhão com Deus.
A falta de opressão temporária, e o acesso às maiores riquezas, são apenas pobres
equivalências daquilo que se perde por nos afastarmos, ainda que seja só a ponta
dum cabelo, do caminho reto da obediência. Como temos que acrescentar o nosso
amém a isto! Quantos, com o fim de evitarem a provação e o exercício espiritual
ligados com o caminho de Deus, se têm desviado para a corrente do presente
século mau, e acarretado desse modo pobreza, tristeza e mágoa sobre as suas almas!
Pode muito bem ser que tenham, para usar a frase que é muito vulgar, "feito
dinheiro", aumentado os seus bens, conseguido os favores do mundo e que sejam
"muito estimados" pelos seus Faraós, alcançando um nome e uma boa posição entre
os homens. Porém, estas coisas são uma equivalência própria para a alegria em
Deus, comunhão e liberdade de coração, uma consciência pura e tranquila, um
espírito de louvor, um testemunho vigoroso e serviço eficaz? Ai daquele que pensa
que sim! E contudo estas bênçãos incomparáveis têm sido, por vezes, vendidas por
um pouco de bem-estar, alguma influência e dinheiro.
Prezado leitor, devemos vigiar contra a tendência de nos afastarmos do caminho
estreito, todavia seguro, por vezes áspero e contudo sempre agradável, mas simples
e sempre de obediência. Vigiemos com zelo e rigor pela "fé e a boa consciência" (1
Tm 1:19), a qual não pode ser compensada por nada. Se vier a provação, devemos
esperar em Deus, em vez de descermos ao Egito; e assim a provação, em vez de ser
uma ocasião de tropeço, será uma oportunidade de obediência. Quando, somos
tentados a seguir o curso do mundo, lembremo-nos d'Aquele "que se deu a si
mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a
vontade de Deus, nosso Pai" (G1 1:4). Se tal foi o Seu amor por nós, e era tal o Seu
sentido do verdadeiro caráter deste presente século mau, que Se deu a Si Mesmo a
fim de nos libertar dele, negá-Lo-emos lançando-nos outra vez naquilo de que a
Sua cruz nos libertou«?- Permita Deus que não! Que Deus nos guarde em Sua mão
e à sombra das Suas asas, até vermos Jesus como Ele é, sermos semelhantes a Ele,
andarmos e estarmos com Ele para sempre.
CAPÍTULO 13
Ló
Contudo, houve uma prova mais profunda para Abraão do que a própria fome, isto
é, a resultante da companhia de um que, evidentemente, não andava na energia da
fé nem na compreensão de responsabilidade pessoal. Parece claro que Ló foi desde
o princípio levado mais pela influência e exemplo de Abraão do que pela sua
própria fé em Deus. Isto é um caso muito vulgar. Se olharmos para a história do
povo de Deus, podemos ver facilmente como em todos os grandes movimentos
produzidos pelo Espírito Santo determinados indivíduos se ligaram com eles sem
que fossem pessoalmente participantes do poder que havia promovido o
movimento. Tais pessoas podem continuar por algum tempo, quer seja como um
peso morto sobre o testemunho, quer como um impedimento ativo sobre ele.
Assim, no caso de Abrão, Deus chamou-o para deixar a sua parentela; mas ele
levou a sua parentela consigo. Tera fê-lo demorar na sua viagem, até que a morte o
tirou do caminho. Ló seguiu-o mais longe, até que "as ambições de outras coisas"
(Mc 4:19) o venceram, e falhou inteiramente.
A mesma coisa vê-se no grande movimento da saída de Israel do Egito. "O vulgo,
que estava no meio deles" causou muita profanação, fraqueza e dor: é o que lemos
em Números 11:4: "o vulgo, que estava no meio deles, veio a ter grande desejo;
pelo que os filhos de Israel tornaram a chorar e disseram: Quem nos dará carne a
comerá" Da mesma maneira aconteceu também nos primeiros dias da Igreja; e não
só então mas em todos os avivamentos que têm tido lugar até ao presente muitos
têm sido induzidos por influências, que, não sendo divinas, mostraram ser
evanescentes; e as pessoas assim induzidas cedem, mais tarde ou mais cedo, e
encontram o seu próprio nível. Nada que não seja de Deus perdurará.
Precisamos de compreender o elo entre Deus e nós. Eu devo conhecer-me como
um que foi chamado por Ele para a posição que ocupo, de contrário não terei
estabilidade e não poderei mostrar consistência nela. De nada serve seguirmos no
rasto de outros apenas porque é o seu trilho. Deus dará graciosamente a cada um o
trilho para seguir, uma esfera onde se mover, e uma responsabilidade a cumprir; e
nós somos obrigados a conhecer a nossa chamada e o cargo dela, para que, pela Sua
graça, ministrada diariamente às nossas almas, possamos trabalhar eficazmente
para Sua glória. Não importa qual possa ser a nossa medida, desde que seja o que
Deus nos tem dado. Podemos ter "cinco talentos" ou apenas "um"; contudo, se
usarmos esse "um" com os olhos postos no Mestre, poderemos estar certos de ouvir
dos Seus benditos lábios as palavras "bem está", como se tivéssemos usado os
"cinco". Isto é animador. Paulo, Pedro, Tiago e João tinham cada um a sua aptidão
peculiar: o seu ministério específico; e assim é com todos; ninguém precisa de
interferir com outrem. Um carpinteiro tem a serra e a plaina, um martelo e um
formão, e faz uso deles como necessita. Nada pode ser mais inútil do que a
imitação. Se olharmos para as várias ordens da criação no mundo natural, não
vemos imitação. Todas têm a sua própria esfera, a sua própria função. E se é assim
no mundo natural, quanto mais no espiritual. O campo é bastante largo para todos.
Em cada casa há vasos de vários tamanhos e feitios. O dono precisa deles todos.
Devemos, portanto, prezado leitor, procurar ver se estamos andando segundo uma
influência divina ou humana; se a nossa fé está posta na sabedoria do homem ou no
poder de Deus; se estamos fazendo as coisas porque os outros as fazem, ou porque o
Senhor nos chamou para as fazermos; se somos meramente fortalecidos pelo
exemplo e influência do nosso semelhante ou sustentados pela fé em Deus. São
interrogações sérias. É, sem dúvida, um privilégio desfrutarmos a comunhão dos
nossos irmãos; porém se formos amparados por eles em breve fracassaremos. Do
mesmo modo, se nos afastamos da nossa aptidão a nossa ação será forçada,
desagradável, enfadonha e fora do natural. É muito fácil ver quando um homem
está trabalhando no seu lugar e segundo a sua capacidade. A afetação, o disfarce e a
imitação são desprezíveis em absoluto.
Por isso se não podemos ser grandes, sejamos honestos; e embora não possamos ser
brilhantes, sejamos verdadeiros. Se uma pessoa vai além da sua altura sem saber
nadar terá muito que estrebuchar. Se um barco se fizer ao mar sem lastro e em
condições de navegar, será certamente arrojado para o porto ou perdido. Ló saiu de
"Ur dos Caldeus", mas caiu nas planícies de Sodoma. A chamada de Deus não tinha
tocado o seu coração, nem a herança de Deus enchido a sua visão.
Que pensamento solene! Ponderemo-lo seriamente! Bendito seja Deus, há um
caminho para cada um dos Seus servos, ao longo do qual brilha a luz do Seu
semblante, e andar nele deve ser o nosso principal gozo. A sua aprovação é
bastante para o coração que O conhece. É verdade que nem sempre podemos
inspirar a aprovação, e o assentimento dos nossos irmãos: podemos
frequentemente ser mal compreendidos; porém não podemos evitar estas coisas.
"O dia" aclarará todas estas coisas (1 Co 3:13) e o coração fiel pode alegremente
esperar por esse dia, sabendo que então "cada um receberá de Deus o louvor" (1 Co
4:5).
Ló Escolhe a Campina
Que escolheu, então, Ló, quando lhe foi dada preferência?- Escolheu Sodoma. O
próprio lugar que estava prestes a ser julgado. Mas como foi isto?- Porque escolher
um tal lugar?- Porque olhou para as aparências e não para o caráter intrínseco e
destino futuro. O caráter intrínseco era "ímpio". O seu destino era o julgamento"
para ser destruída por "fogo e enxofre do céu". Porém, pode dizer-se, "Ló não sabia
nada disto". Talvez não, nem tão-pouco Abraão; mas Deus sabia; e se Ló tivesse
permitido que Deus escolhesse a sua herança por ele, Ele certamente não teria
escolhido um lugar que estava prestes a destruir. Mas ele não o fez. Fez juízo por si
mesmo. Sodoma agradava-lhe, embora não agradasse a Deus. Os seus olhos
cobiçaram "a campina, que era toda bem regada", e o seu coração foi atraído por
ela.
"Armou as suas tendas até Sodoma".
Tal é a escolha da natureza! "Demas me desamparou, amando o presente século" (2
Tm 4:10). Ló desamparou Abraão pelo mesmo motivo. Deixou o lugar do
testemunho e pôs-se no lugar do Juízo.
A Parte de Abraão
"E disse o SENHOR a Abrão, depois que Ló se apartou dele: Levanta, agora, os teus
olhos e olha desde o lugar onde estás, para a banda do norte, e do sul, e do oriente,
e do ocidente; porque toda esta terra que vês te hei-de dar a ti e à tua semente, para
sempre". A "contenda" e a separação, longe de prejudicarem o estado espiritual de
Abraão, revelaram, em compensação, os seus princípios celestiais e fortaleceram,
na sua alma, a vida da fé. Além disso esclareceram as suas perspectivas e
libertaram-no da companhia de um que só podia ser um peso morto para si. Assim
tudo contribuiu para bem e produziu abundantes bênçãos. É, ao mesmo tempo,
muito solene e animador notar que, afinal, os homens encontram sempre o seu
próprio meio. Os que correm sem ser enviados caem, de um modo ou de outro, e
regressam àquilo que professavam ter abandonado. Por outro lado, aqueles que são
chamados por Deus e se apoiam n'Ele são, pela Sua graça, mantidos. A sua vereda
"é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Pv
4:18). Este pensamento deve manter-nos humildes, vigilantes e em oração.
"Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia" (1 Co 10:12), porque "muitos
primeiros serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros" (Mt 19:30).
"Aquele que perseverar até o fim será salvo" (Mt 10:22), é um princípio que, seja
qual for a sua aplicação, implica um amplo comportamento moral. Muitos barcos
têm partido do porto com pompa e todas as velas alçadas, por entre aclamações,
vivas, e perspectivas agradáveis de uma viagem feliz; mas, infelizmente,
tempestades, ondas, escolhos, rochedos e bancos de areia, mudaram o aspecto das
coisas; e a viagem, que começara com esperança, acabou em desastre. Refiro-me
aqui apenas ao caminho do serviço e testemunho, e, de modo nenhum, à questão
da aceitação eterna do crente em Cristo. Esta, bendito seja Deus, não descansa, de
modo nenhum, em nós, mas n'Aquele que disse "...dou-lhes a vida eterna, e nunca
hão-de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão". No entanto, não sabemos
nós todos que muitos encetam algum serviço especial ou testemunho debaixo da
impressão que são chamados por Deus para o fazer, e, depois de algum tempo,
desistem"?- Indubitavelmente. E, além disso, muitíssimos empreendem a profissão
de algum princípio especial de atividade, acerca da qual não foram divinamente
ensinados ou cujas consequências tão-pouco consideraram na presença de Deus, e,
como resultado inevitável, foram achados, depois de algum tempo, em
transgressão aberta desses mesmos princípios. Tudo isto é lamentável e deve ser
cuidadosamente evitado. Tende a enfraquecer a fé dos eleitos de Deus, e dá lugar a
que os inimigos da verdade falem injuriosamente. Cada um deve receber a sua
chamada e a sua comissão diretamente do Próprio Mestre. Todos os que Cristo
chama para qualquer serviço especial mantê-los-á, infalivelmente, porque Ele
nunca chamou ninguém para militar à sua própria custa. Porém se quisermos
militar sem sermos enviados, não somente teremos que aprender a custa da nossa
parvoíca, mas também de mostrá-la.
Todavia, isto não quer dizer que alguém possa apresentar-se como se fosse a
personificação de qualquer princípio, ou um exemplo de algum caráter especial de
serviço ou testemunho. Deus nos livre! Isto seria a maior tolice, e um conceito
vazio. É obrigação do ensinador mostrar a Palavra de Deus; e é dever do servo
manifestar a vontade do Senhor; porém, enquanto isto é inteiramente
compreendido e admitido, devemos sempre lembrar a necessidade profunda que
há de contar-se com o custo, antes de decidirmos edificar uma torre, ou entrar a
militar. Se isto fosse seriamente ponderado, haveria muito menos confusão e falha
no nosso meio. Abraão foi chamado por Deus de Ur para Canaã, e por isso Deus
conduziu-o pelo caminho. Quando Abraão se demorou em Harã, Deus esperou por
ele; quando desceu ao Egito, Deus restaurou-o; quando precisou de orientação,
Deus guiou-o; quando houve contenda e separação, Deus tomou conta dele; de
maneira que Abraão somente tinha que dizer, "Oh! Quão grande é a tua bondade,
que guardaste para os que te temem, e que tu mostraste àqueles que em ti confiam
na presença dos filhos dos homens!" (SI 31:19). Abraão nada perdeu com o litígio.
Ele tinha a sua tenda e o seu altar antes; e teve a sua tenda e o seu altar depois. "E
Abrão armou as suas tendas, e veio, e habitou nos carvalhais de Manre, que estão
junto a Hebrom; e edificou ali um altar ao SENHOR". LÓ podia escolher Sodoma;
mas quanto a Abraão, ele buscou e achou tudo em Deus. Não havia altar em
Sodoma. Enfim, todos quantos viajam nessa direção andam em busca de alguma
coisa completamente diferente disso. Nunca é a adoração a Deus, mas o amor do
mundo, que os leva ali, E ainda que consigam o seu objetivo, que é isso? Como
acabai Deste modo: "E ele satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar a sua alma"(Sl
106:15).
CAPÍTULO 14
Separação e Comunhão
Mas recorde-se que separação genuína do mundo só pode ser o resultado de
comunhão com Deus. Eu posso excluir-me do mundo e constituir-me o centro do
meu ser, à semelhança dum monge ou dum cínico; contudo, separação para Deus é
uma coisa muito diferente. Uma esfria e contrai-se, a outra aquece e expande.
Aquela lança-nos sobre nós próprios; esta faz-nos sair em atividade e amor pelos
outros. A primeira faz da personalidade e dos seus interesses o nosso centro; a
última faz de Deus e a Sua glória o nosso centro. Assim, no caso de Abraão, vemos
que o próprio fato da sua separação habilitou-o a prestar um serviço eficaz àquele
que se havia metido em dificuldades pelos seus caminhos mundanos. "Ouvindo,
pois, Abrão que o seu irmão estava preso, armou os seus criados, nascidos em sua
casa, trezentos e dezoito, e os perseguiu até Dã... e tornou a trazer toda a fazenda e
tornou a trazer também a Ló, seu irmão, e a sua fazenda, e também as mulheres, e o
povo". Ló era, afinal, irmão de Abraão; e o amor fraterno deve atuar. "Na angústia
nasce o irmão" (Pv 17:17); e acontece muitas vezes que uma época de adversidade
suaviza o coração, e torna-o susceptível de amabilidade, até mesmo para com
aqueles de quem nos tenhamos separado; e é notável que, enquanto lemos no
versículo 12 que "tomaram a Ló, filho do irmão de Abrão", no versículo 14 lemos,
"ouvindo, pois, Abrão que o seu irmão estava preso". As exigências da aflição de
um irmão são atendidas pela afeição do coração dum irmão. Isto é divino. A fé
verdadeira, ao mesmo tempo que nos torna sempre independentes, nunca nos
torna indiferentes. Nunca se agasalha no seu manto, enquanto um irmão sente
arrepios de frio. Existem três coisas que a fé faz: "purifica o coração", "age por
amor" e "vence o mundo"; e todos estes resultados da fé são admiravelmente
apresentados em Abraão, nesta ocasião. O seu coração estava purificado das
abominações de Sodoma; ele mostrou amor verdadeiro por seu irmão Ló; e,
finalmente, ficou completamente vitorioso sobre os reis. Tais são os frutos
preciosos da fé, esse princípio celestial, honroso para Cristo.
CAPÍTULO 15
Filho e Herdeiro
Nele vemos o desenrolar dos dois grandes princípios de filiação e direito de
sucessão. "Então disse Abraão: Senhor Jeová, que me hás de dar, pois ando sem
filhos, e o mordomo da minha casa é o Damasceno Eliézer?- Disse mais Abrão: Eis
que me não tens dado semente, e eis que um nascido na minha casa será o meu
herdeiro." Abraão desejava um filho, pois sabia, de fonte divina, que a sua
"semente" herdaria a terra (capítulo 13:15). A filiação e sucessão acham-se
inseparavelmente ligadas nos pensamentos de Deus: "...aquele que de ti será
gerado, esse será o teu herdeiro." A filiação é a base de todas as coisas; e, além disso,
é o resultado do desígnio soberano e da operação de Deus, como lemos em Tiago
1:18, "segundo a sua vontade, ele nos gerou". Em conclusão, é baseada no princípio
eterno de ressurreição. Como poderia ser de outra formai O corpo de Abraão
estava "morto"; pelo que, no caso, como em qualquer outro, a filiação tem que ser
no poder da ressurreição. A natureza está morta e não pode conceber nem gerar
nada para Deus. Ali estava a herança estendendo-se perante os olhos do patriarca,
em todas as suas magnificentes dimensões, mas onde estava o herdeiro? O corpo de
Abraão e o ventre de Sara respondiam ambos "morte". Mas Jeová é o Deus da
ressurreição, e, portanto, um "corpo morto" era a coisa mais apropriada para agir.
Não estivesse a natureza morta e Deus tê-la-ia dado à morte antes de poder
revelar-Se inteiramente. A cena mais agradável para o Deus vivo é aquela da qual a
natureza, com todos os seus poderes de ostentação e pretensões vazias, foi
inteiramente expulsa pela sentença da morte. Portanto, a Palavra de Deus a Abrão
foi: "Olha, agora, para os céus, e conta as estrelas, se as podes contar. E disse-lhe:
Assim será a tua semente". Quando o Deus da ressurreição enche a visão não há
limite para a bênção da alma, porque Aquele que pode vivificar os mortos, pode
fazer tudo.
A Fé de Abraão
"E creu ele no Senhor, e foi-lhe imputado isto por justiça." A atribuição da justiça a
Abraão é, aqui, fundada sobre a sua crença no Senhor como Aquele que vivifica os
mortos. É neste caráter que Ele Se revela no mundo onde reina a morte; e quando a
alma crê n'Ele, como tal, isso é-lhe contado por justiça à Sua vista. Isto
necessariamente põe o homem de lado, no tocante à sua cooperação, pois que
poderá ele fazer no meio de uma cena de morte*?- Acaso pode ele ressuscitar os
mortos«?- Pode abrir as portas da sepultura?- Pode libertar-se a si próprio do poder
da morte e sair em vida e liberdade para além dos limites do seu império funesto?-
Indubitavelmente que não. Pois bem, se não pode fazer nada disto, não pode
conseguir a justiça, nem tão-pouco dar-se a si próprio o lugar de filho. "Deus não é
Deus dos mortos, mas dos vivos" (Mt 22:32), e, portanto, visto que o homem se
encontra debaixo do poder da morte e sob o domínio do pecado não pode conhecer
a posição de filho —nem a condição de justiça. Assim, só Deus pode conceder a
adoção de filhos, e somente Ele pode imputar a justiça, e tanto uma coisa como a
outra estão ligadas com a fé n'Ele como Aquele que ressuscitou Cristo de entre os
mortos.
E desta maneira que o apóstolo trata da questão da fé de Abraão, em Romanos
4:23-24, onde, diz ele: "Ora, não só por causa dele está escrito que lhe fosse tomado
em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos
naquele que dos mortos ressuscitou a Jesus, nosso Senhor". Aqui o Deus da
ressurreição é-nos apresentado como o objeto da fé, e a nossa fé n'Ele é vista como
o único fundamento da nossa justiça. Se Abraão tivesse olhado para o firmamento,
ornado de inumeráveis estrelas, e então atentasse "para o seu próprio corpo já
amortecido" (Rm 4:19), como poderia compreender a ideia de uma semente tão
numerosa como essas estrelas«? Impossível. Porém, ele não atentou para o seu
próprio corpo, mas para o poder do Deus de ressurreição, e, visto que esse era o
poder que havia de produzir a semente, podemos ver facilmente que as estrelas do
céu e a areia na praia do mar são, na verdade, apenas figuras fracas; pois que objeto
natural poderia, possivelmente, exemplificar o efeito desse poder que ressuscita os
mortos«?
Assim também, quando um pecador ouve as boas novas do evangelho, se olhasse
para a luz imaculada da presença divina, e então atentasse para as profundezas
desconhecidas da sua natureza pecaminosa, bem poderia exclamar, como poderei
jamais chegar ali?- Como poderei jamais ser digno de habitar nessa luz<? Onde está
a resposta?- Nele mesmo? Não, graças a Deus, mas n'Aquele bendito Senhor que
foi do seio do Pai até à cruz e à sepultura, e dali para o trono, enchendo assim, na
Sua Pessoa e obra, o espaço compreendido entre esses dois extremos. Não pode
haver nada mais elevado do que o seio de Deus — o lugar eterno de habitação do
Filho; e nada mais baixo do que a cruz e a sepultura; mas — verdade espantosa! —
encontramos Cristo em todos esses lugares. Eu encontro-O no Seio do Pai, e
encontro-0 na sepultura. Ele entrou na morte a fim de poder deixar atrás de Si, no
pó dela, o peso completo dos pecados e das iniquidades do Seu povo. Cristo, na
Sepultura, mostra o fim de tudo que é humano — o fim do pecado — o limite
máximo do poder de Satanás. A Sepultura de Jesus é o termo de tudo. Porém, a
ressurreição conduz-nos para além desse fim e constitui a base eterna na qual a
glória de Deus e a bênção do homem repousam para sempre. No momento em que
o olhar da fé repousa num Cristo ressuscitado, há uma resposta triunfal a todas as
interrogações quanto ao pecado, o juízo, a morte e a sepultura. Aquele que
enfrentou, divinamente, tudo isto está vivo de entre os mortos; e tomou o Seu
lugar nos céus à destra da Majestade; e, não somente isto, mas o Espírito desse
Senhor ressuscitado e glorificado constitui o crente num filho. O crente é
vivificado por meio da sepultura de Cristo; como lemos, "...quando vós estáveis
mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente
com ele, perdoando-vos todas as ofensas (Cl 2:13).
Herança e sofrimentos
Mas em seguida o capítulo apresenta-nos outro assunto muito importante, a saber,
o direito de sucessão. Havendo sido estabelecida a questão de filiação e justificação
— e incondicionalmente estabelecida —, o Senhor disse a Abraão: "Eu sou o
SENHOR, que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para a
herdares". Aqui temos a grande questão do direito de sucessão e do caminho
peculiar que os herdeiros escolhidos devem trilhar antes de alcançarem a herança
prometida. "E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de
Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também
com ele sejamos glorificados." O nosso caminho para o reino encontra-se através
do sofrimento, aflições e tribulações; mas, graças a Deus, nós podemos dizer pela
fé: "...as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em
nós há de ser revelada" (Rm 8:17-18). Mais ainda, sabemos que "a nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória muito
excelente" (2 Co 4:17).E finalmente "também nos gloriamos nas tribulações,
sabendo que a tribulação produz a paciência; e a paciência, a experiência, e a
experiência, a esperança" (Rm 5:3-4). E uma grande honra e um privilégio
verdadeiro sermos autorizados a beber do cálix do nosso bendito Mestre, e sermos
batizados com o Seu batismo; para viajarmos em bem-aventurada companhia com
Ele ao longo da estrela que conduz diretamente à gloriosa herança. O Herdeiro e os
co-herdeiros alcançam a herança pelo caminho do sofrimento.
CAPÍTULO 16
A Impaciência de Sarai
Aqui vemos a incredulidade lançando as suas sombras escuras sobre o espírito de
Abraão, e então afastando-o outra vez, por um pouco de tempo, do caminho da
confiança simples e feliz em Deus. "E disse Sarai a Abrão: Eis que o SENHOR me
tem impedido de gerar." Estas palavras indicam a impaciência usual da
incredulidade; e Abrão devia tê-las considerado desse modo e esperar
pacientemente no Senhor o cumprimento da Sua promessa graciosa. O coração
naturalmente prefere tudo a ter que esperar. Lançará mão de qualquer expediente
— qualquer plano —, qualquer recurso, em vez de se conservar nessa posição.
Uma coisa é crer numa promessa, ao princípio, e outra muito diferente esperar,
pacientemente, o seu comprimento. Podemos ver esta diferença constantemente
exemplificada numa criança. Se eu prometer a meu filho alguma coisa, ele não
pensa em duvidar da minha palavra; contudo, eu posso ver como ele anda muito
agitado e impaciente a respeito de como e quando cumprirei a minha promessa. E
não pode o maior sábio ver um verdadeiro espelho, no qual se pode ver a si
próprio, na conduta de uma criança?- Certamente. Abrão mostra fé, no capítulo
15, e todavia falha em paciência, no capítulo 16. Daí a beleza e força das palavras
do apóstolo em Hebreus 6, "para que... sejais imitadores dos que pela fé e paciência
herdam as promessas." Deus faz uma promessa, a fé crê nela; a esperança
antecipa-a; a paciência espera resignadamente por ela.
Existe no mundo comercial alguma coisa como "o valor atual" de uma letra ou nota
promissória, porque se os homens têm que esperar pelo seu dinheiro, devem ser
pagos por terem de esperar. Ora no mundo da fé existe alguma coisa como o valor
presente das promessas de Deus; e a balança que acerca esse valor é o
conhecimento experiente que o coração tem de Deus; porque da minha apreciação
de Deus dependerá a minha apreciação da promessa de Deus; e, além disso, o
espírito paciente e subjugado encontra o seu pleno galardão em esperar em Deus o
cumprimento de tudo que Ele prometeu.
No entanto, quanto a Sara o valor real das suas palavras a Abraão, é este, "o Senhor
faltou-me; talvez que a minha criada egípcia possa servir de meu recurso." Tudo
serve, menos Deus, para um coração que está debaixo da influência da
incredulidade. É verdadeiramente admirável observarmos as ninharias a que
recorremos quando perdemos a noção da presença de Deus, da Sua fidelidade
infalível e suficiência indubitável. Perdemos aquela condição calma e equilibrada
da alma tão necessária ao próprio testemunho do homem de fé; e, à semelhança
dos outros, entregamo-nos a qualquer ou todos os expedientes, de maneira a
atingirmos o fim desejado, e chamamos a isso "o uso dos meios".
Porém, é uma coisa amarga afastarmo-nos do lugar de absoluta dependência de
Deus. As consequências devem ser desastrosas. Se Sara tivesse dito, "a Natureza
faltou-me, mas Deus é o meu recurso", como teria sido tudo tão diferente! Este
teria sido o seu próprio lugar, porque a natureza estava, de fato, em falta para com
ela. Mas era a natureza numa forma, e, portanto, ela quis experimentá-la doutra
maneira. Não tinha aprendido a desviar a vista inteiramente da natureza. No juízo
de Deus, e da fé, a natureza em Agar não era melhor do que a natureza em Sara. A
Natureza, quer velha quer jovem, é a mesma para Deus; e portanto a mesma para a
fé; porém, ah! nós só nos achamos no poder desta verdade quando encontramos
por experiência o nosso centro vivo no Próprio Deus! Quando a nossa atenção é
desviada desse Ente Glorioso, estamos preparados para o expediente mais indigno
de incredulidade. E só quando nos achamos encostados ao único Deus vivo e
verdadeiro que podemos deixar de olhar para qualquer meio natural. Não se trata
de desprezarmos os instrumentos de que Deus Se serve. De modo nenhum. Fazê-lo
seria ousadia e não fé. A fé aprecia o instrumento, não por si mesmo, mas por causa
d'Aquele que o usa. A incredulidade vê apenas o instrumento, e julga o sucesso
dum caso pela eficiência aparente dele, em vez da suficiência d'Aquele que, em
graça, o usa — à semelhança de Saul, que, quando olhou para Davi e em seguida
para o filisteu, disse: "Contra este filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois
tu ainda és moço" (1 Sm 17:33). Todavia, a questão no coração de Davi não era se
ele era capaz ou não, mas se o Senhor o era.
O caminho da fé é um caminho muito simples e muito estreito. Por um lado, não
exalta os meios; por outro, não os despreza. Aprecia-os simplesmente por serem os
meios que Deus usa. Existe uma grande diferença entre o emprego que Deus faz da
criatura para me servir, e o emprego que eu faço dela para excluir Deus. Esta
diferença não é suficiente tomada em conta. Deus usou os corvos para suprir as
necessidades de Elias, mas Elias não os empregou para excluir Deus. Se o coração
confiar verdadeiramente em Deus não se incomodará quanto aos Seus meios.
Esperará n'Ele, na doce certeza de que, por quaisquer meios que lhe agradem, Ele
abençoará, proverá, suprirá todas as coisas.
Agar
Ora no caso que temos perante nós, neste capítulo, é evidente que Agar não era o
instrumento de Deus para o cumprimento da Sua promessa a Abrão. Deus
tinha-lhe prometido um filho, sem dúvida, mas não havia dito que este seria filho
de Agar; e, de fato, vemos pela narrativa que tanto Abrão como Sara
"multiplicaram a sua dor" lançado mão do recurso de Agar: porque, "vendo ela que
concebera, foi sua senhora desprezada aos seus olhos". Isto era apenas o princípio
das múltiplas dores que resultaram da pressa que houve em aproveitar os recursos
da natureza. A dignidade de Sara foi pisoteada por uma serva egípcia, e ela
achou-se no lugar de fraqueza e desprezo. O verdadeiro lugar de dignidade e poder
é o lugar de admissão de fraqueza e dependência. Não há ninguém tão
independente de tudo como o homem que anda realmente por fé, e que espera só
em Deus; porém, logo que um filho de Deus se torna devedor à natureza ou ao
mundo perde a sua dignidade e terá que sentir, rapidamente, a sua perda. Não é
uma coisa fácil avaliar o prejuízo sofrido com o desvio, na mais pequena medida,
do caminho da fé. Não há dúvida que todos os que andam nesse caminho
encontrarão sofrimento e tentações; porém uma coisa é certa, que as bênçãos e a
alegria que peculiarmente lhes pertencem são infinitamente maiores do que um
contrapeso; ao passo que, quando se afastam, têm que enfrentar maiores provações,
e nada mais.
"Então disse Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti." Quando não temos razão,
estamos, a maior parte das vezes, prontos a lançar a culpa sobre outrem. Sarai
colhia apenas o fruto da sua proposta, e todavia diz a Abrão, "Meu agravo seja sobre
ti", e então, com autorização de Abraão, ela procura desembaraçar-se da provação
que a sua própria impaciência havia trazido sobre si. "E disse Abrão a Sarai: Eis que
tua serva está na tua mão, faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e
ela fugiu de sua face." Isto não pode ser. "A serva" não pode ser despedida com
tratamento duro. Quando cometemos erros, e somos chamados a enfrentar os seus
resultados, não podemos contrariar esses resultados conduzindo-nos a nós próprios
com mão dura. Experimentamos constantemente este método, mas podemos ter a
certeza que com isso agravamos as coisas. Se temos feito mal, devemos
humilhar-nos e confessar o mal e esperar em Deus por libertação. Mas não houve
nada disto no caso de Sarai. Mas o contrário. Não há o sentido de haver feito mal; e
assim, longe de esperar em Deus por livramento, ela procura libertar-se a seu
modo. Contudo ver-se-á sempre que todos os esforços que fazemos para emendar
os nossos erros, antes de haver inteira confissão deles, só conseguem tornar o nosso
caminho mais difícil. Assim Agar teve que regressar e dar à luz a seu filho, cujo
filho mostrou não ser o filho da promessa, mas uma grande provação para Abrão e
a sua casa, como teremos ocasião de ver na sequência.
O Retorno de Agar
Bom, devemos ver tudo isto sob um duplo aspecto: primeiro, como um princípio
prático de muito valor; e depois debaixo do ponto de vista doutrinário. E, quanto
ao ensino prático, podemos ver que, quando, devido à incredulidade de nossos
corações, cometemos erros, não é num momento nem tão-pouco por nosso próprio
expediente que podemos remediá-los. As coisas devem seguir o seu curso. "Tudo o
que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne da
carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito do Espírito ceifará a vida
eterna" (G1 6:7-8). Este é um princípio inalterável, que encontramos
constantemente nas páginas Sagradas, e também nas páginas da nossa história
pessoal. A graça perdoa o pecado e restaura a alma, mas aquilo que é semeado tem
que ser colhido. Abrão e Sarai tiveram de suportar a presença da escrava e de seu
filho durante alguns anos, e então libertaram-se deles segundo o método de Deus.
Existe bem-aventurança peculiar em nos entregarmos nas mãos de Deus. Se Abrão
e Sarai tivessem feito assim, nesta ocasião, nunca teriam sido incomodados com a
presença da escrava e seu filho; porém, tendo-se feito devedores à natureza,
tiveram de sofrer as consequências. Todavia, enfim!, nós somos, por vezes, "como o
novilho ainda não domado" (Jr 31:18), quando seria o nosso gozo inexcedível
comportarmo-nos como a "criança desmamada para com sua mãe" (SI 131:2). Nada
pode ser mais oposto do que um novilho teimoso e uma criança desmamada.
Aquele simboliza uma pessoa lutando insensatamente debaixo do jugo das
circunstâncias, e tornando o seu jugo mais doloroso por meio dos seus esforços
para se libertar dele; esta mostra alguém curvando humildemente a sua cabeça a
tudo e tornando a sua porção mais agradável mediante completa sujeição de
espírito.
A Lei e a Graça
E agora quanto à parte doutrinária deste capítulo. Podemos pensar em Agar o seu
filho como figuras do concerto das obras e de todos os que são desse modo trazidos
à escravidão (veja-se G1 4:22-25). "A carne" é, nesta passagem importante, posta
em contraste com "a promessa"; e deste modo não temos apenas a ideia divina do
que significa o termo "carne", mas também quanto aos esforços de Abraão para
obter a semente por meio de Agar, em vez de descansar na "promessa" de Deus. Os
dois concertos são simbolizados por Agar e Sara, e são diametralmente opostos um
ao outro: um engendra a escravidão, tanto mais que levantou a questão quanto à
competência do homem para "fazer" e "não fazer", e fez a vida inteiramente
dependente dessa competência. "O homem que fizer estas coisas por elas viverá"
(G1 3:12). Este era o concerto de Agar. Porém o concerto de Sara revela Deus como
o Deus da promessa, a qual promessa é inteiramente independente do homem e
baseada na boa vontade e aptidão de Deus para a cumprir.
Quando Deus faz uma promessa não há "se" ligado com ela. Ele fá-la
incondicionalmente, e está decidido a cumpri-la; e a fé descansa n'Ele, em perfeita
liberdade de coração. Não é preciso esforço da natureza para conseguir o
cumprimento de uma promessa divina. Foi aqui, precisamente, que Abraão e Sara
falharam. Eles fizeram um esforço da natureza para conseguir um determinado
fim, o qual estava absolutamente assegurado por uma promessa de Deus. Este é o
grande erro da incredulidade. Por meio da sua atividade impaciente levanta uma
neblina obscura em volta da alma, que impede os raios da glória divina de a
alcançarem. "Não fez ali muitas maravilhas por causa da incredulidade deles" (Mt
13:58). Uma característica eficaz da fé é que sempre deixa o campo livre para Deus
Se revelar; e, verdadeiramente, quando Ele Se revela, o homem deve tomar o lugar
de um feliz adorador.
O erro pelo qual os Gálatas se deixaram arrastar foi o acréscimo de alguma coisa da
natureza àquilo que Cristo já tinha realizado por eles na cruz. O evangelho que
lhes havia sido pregado, e que eles tinham recebido, era a apresentação simples da
graça de Deus, perfeita e incondicional. Jesus Cristo havia, evidentemente, sido
representado perante eles como crucificado (G1 3:1). Isto não era apenas uma
promessa divina, mas sim uma promessa divina e gloriosamente consumada. Cristo
crucificado correspondia perfeitamente tanto às exigências de Deus como às
necessidades do homem. Porém os falsos ensinadores transtornavam tudo isto, ou
procuravam transtorná-lo, dizendo: "...Se vos não circuncidardes, conforme o uso
de Moisés, não podeis salvar-vos" (At 15:1). Isto, como Paulo lhes disse, era, na
realidade, tornar Cristo de nenhum efeito.
o Deus Todo-poderoso
Aqui é-nos apresentado o remédio de Deus para o fracasso de Abraão. "Sendo, pois,
Abrão da idade de noventa e nove anos, apareceu o SENHOR a Abrão e disse-lhe:
Eu sou o Deus Todo- Poderoso; anda em minha presença e sê perfeito"(1). Este
versículo é muito compreensivo. É evidente que Abraão não havia andado na
presença do Deus Todo-Poderoso quando aceitou o recurso de Sara acerca de Agar.
E somente a fé que pode habilitar alguém a andar na presença do Deus
Todo-Poderoso. A incredulidade introduzirá sempre alguma coisa da
personalidade — as circunstâncias, casos secundários e coisas semelhantes —, e
deste modo a alma é privada do gozo e da paz, elevação calma e santa
independência, que resultam de se descansar nos braços d'Aquele que pode fazer
todas as coisas. Creio que necessitamos de ponderar isto profundamente. Deus não
é uma realidade presente para as nossas vidas como devia ser, ou seria, se nós
andássemos em simplicidade de fé e dependência d'Ele.
__________
(1) Desejo fazer aqui uma observação quanto à palavra "perfeito". Quando Abraão
foi convidado a ser "perfeito" isso não queria dizer perfeito em si mesmo; porque
ele nunca o foi, e nunca poderia sê-lo. Queria dizer simplesmente que ele devia ser
perfeito quanto ao objetivo posto perante o seu coração — que a sua esperança e
expectativa deviam ser inteiramente centralizadas no "Todo- Poderoso".
Examinando o Novo Testamento, vemos que a palavra "perfeito" é usada, pelo
menos, em quatro sentidos distintos. Em Mateus 5:48 lemos, "Sede vós, pois,
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus". Aqui compreendemos
Pelo contexto que a palavra "perfeito" diz respeito à nossa conduta. Nos versículos
44 e 45 lemos, "Amai a vossos inimigos ..., para que sejais filhos do Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre
justos e injustos". Por isso, ser "perfeito" no sentido do versículo 48 é agir segundo
um princípio de graça para com todos, até mesmo para com os que são injustos e
hostis. Um cristão fazendo valer a lei, ou defendendo e contendendo pelos seus
direitos, não é perfeito como o Seu Pai; porque o seu Pai está agindo em graça,
enquanto que ele recorre à justiça.
A questão aqui não é de saber se é bom ou mal recorrer à lei (quanto aos irmãos
Coríntios 6 é conclusivo). O que digo é que um cristão que assim procede está
agindo num caráter que é diretamente oposto ao do seu Pai; porque, certamente,
Ele não vai para o tribunal com o mundo. Ele não está agora no tribunal, mas no
lugar de misericórdia — no trono de graça. Manda as Suas bênçãos sobre aqueles
que, se fosse para a justiça com eles, deviam estar no inferno. Pelo que é claro que
um cristão, quando leva alguém ao tribunal, não é "perfeito" como é perfeito seu
Pai que está nos céus.
No fim do capítulo 18 de Mateus temos uma parábola que nos ensina que todo
aquele que defende os seus direitos é ignorante do verdadeiro caráter e efeito
próprio da graça. O servo não era injusto em exigir o que lhe era devido, mas não
tinha graça. Era inteiramente diferente do seu Mestre. Tinham-lhe sido perdoados
dez mil talentos, e todavia pôde agarrar um dos seus conservos pela garganta por
uma importância mesquinha de cem dinheiros. Qual foi o resultado? Foi entregue
aos atormentadores. Perdeu-se o feliz sentido da graça e foi deixado para ceifar os
frutos amargos de ter defendido os seus direitos, enquanto que ele mesmo era um
objeto de graça. E note-se, além disso, que foi chamado "servo malvado" não por
ter uma dívida de "dez mil talentos", mas por não ter perdoado os "cem dinheiros".
O Senhor teve muita graça para lhe perdoar a sua dívida, mas ele não teve graça
para arrumar o assunto com o seu conservo. Esta parábola fala numa voz solene a
todos os cristãos que estão prontos a entrar em demanda; pois embora na sua
aplicação seja dito "assim vos fará também meu Pai celestial se do coração não
perdoardes cada um a seu irmão as suas ofensas , contudo o princípio de aplicação
geral é que um homem agindo em justiça perderá o sentido da graça.
Em Hebreus 9 temos outro sentido do termo "perfeito". Aqui também o contexto
arruma a importância da palavra. E "perfeito" a respeito da consciência. E um
emprego importante do termo. O adorador sob a lei nunca poderia ter uma
consciência perfeita, pela simples razão que nunca teve um sacrifício perfeito. O
sangue de novilhos e cordeiros era suficiente para a ocasião, mas não podia servir
para sempre e, portanto, não podia dar uma boa consciência. Agora, porém, até o
crente mais fraco em Jesus tem o privilégio de ter uma consciência perfeita. Por
quê? É por ser melhor do que o adorador debaixo da lei Não, mas porque tem um
melhor sacrifício. Se o sacrifício de Cristo é perfeito para sempre, a consciência do
crente é perfeita para sempre. As duas coisas andam necessariamente juntas. Para
um cristão não ter uma consciência perfeita é uma desonra para o sacrifício de
Cristo. E o mesmo que dizer que o Seu sacrifício é apenas temporário e não eterno
nos seus efeitos; e o que vem a ser isto senão baixá-lo ao nível dos sacrifícios sob a
dispensação Moisaica?
É preciso distinguir entre a perfeição na carne e perfeição quanto à consciência. A
pretensão da primeira equivale a exaltar o eu; recusar a segunda é desonrar Cristo.
O crente mais simples em Cristo deve ter uma consciência perfeita; ao passo que
Paulo não tinha, não podia ter, perfeita carne. A carne não é apresenta na Palavra
de Deus como uma coisa que pode ser melhorada, mas sim como uma coisa que foi
crucificada. Isto faz uma grande diferença. O cristão tem o pecado em si, mas não
sobre si. Por quê? Porque Cristo, O Qual não tinha pecado em Si, teve o pecado
sobre Si, quando foi pregado na cruz.
Finalmente, em Filipenses 3 temos outros dois sentidos da palavra "perfeito". u
apóstolo diz, "Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito"; mas um pouco
depois diz, "Pelo que todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo '. A
primeira passagem diz respeito à conformidade eterna e plena do apostolo com
Cristo em glória. Enquanto que a segunda refere-se à nossa possessão de Cristo
como o objeto das afeições do coração.
Somente Deus
"Anda em minha presença." Isto é verdadeiro poder. Andar assim implica não
termos nada perante os nossos corações salvo Deus. Se a minha expectativa for
baseada nos homens e nas coisas não estarei andando perante Deus, mas antes
perante os homens e as coisas. É da máxima importância saber quem ou o que
tenho perante mim como objetivo. Em quem confio?- Em quem ou no que
descanso, neste momento«? Deus enche inteiramente o meu futuro? Os homens e
as circunstâncias têm alguma coisa a ver com isso? Há algum lugar para a criatura?
O único meio de nos elevarmos acima do mundo é andarmos por fé, porque a fé
enche o ambiente de tal modo com Deus, que não há lugar para a criatura — nem
para o mundo. Se Deus enche o meu raio de visão, eu nada mais posso ver; e então
posso dizer com o salmista: "Ó minha alma, espera somente em Deus, porque d'Ele
vem a minha esperança. Só Ele é minha rocha e a minha salvação; é a minha
defesa; não serei abalado"(Sl 62:5-6). Esta palavra "só" é profundamente
penetrante. A natureza não pode dizer isto. Não é que ela, sob a influência do
cepticismo atrevido e blasfemo, ponha Deus completamente de lado; mas,
indubitavelmente, não pode dizer, "só Ele".
É bom vermos que, como no caso da salvação, e em todos os pormenores da vida
presente, dia a dia, Deus não compartilhará a Sua glória com a criatura. Desde o
princípio até ao fim tem de ser "só Ele"; e isto, também, em realidade. De nada
servirá termos a palavra dependência de Deus nos nossos lábios, enquanto os
nossos corações estão realmente confiando em qualquer recurso da criatura. Deus
mostrará isto plenamente; Ele examinará o coração; passará a fé pelo fogo. "Anda
em minha presença e sê perfeito." Chegamos assim ao ponto principal. Quando a
alma pode, por graça, libertar-se de todas as expectativas queridas da natureza,
então, e só então, está preparada para deixar Deus agir; e quando Ele atua tudo
deve estar bem. Deus não deixará nada por fazer. Ele fará tudo em favor daqueles
que põem simplesmente a sua confiança n'Ele. Quando a sabedoria infalível, o
poder onipotente, e o amor infinito se combinam, o coração confiado pode gozar
de descanso calmo. A não ser que achemos qualquer circunstância grande ou
pequena demais para "o Deus Todo-Poderoso" não temos fundamento próprio para
um pensamento ansioso sequer. Isto é uma verdade maravilhosa, eminentemente
calculada para pôr todos aqueles que acreditam nela na mesma presença bendita
em que encontramos Abraão neste capítulo. Quando Deus lhe havia dito, com
efeito, "deixa tudo Comigo, e Eu arrumarei tudo por ti, muito para além dos teus
desejos e da tua esperança — a semente e a herança, e tudo que lhes pertence de
direito, serão eternamente estabelecidas, segundo o concerto com o Deus
Altíssimo —, "Então caiu Abraão sobre o seu rosto". Na verdade, bem-aventurada
atitude! A única própria para um pecador inteiramente vazio, fraco e inútil, poder
ocupar na presença do Deus vivo, o Criador dos céus e da terra, Possuidor de todas
as coisas — "o Deus Onipotente".
"E falou Deus com ele." E quando o homem está por terra que Deus pode falar com
ele em graça. A atitude de Abraão aqui é a expressão bela de inteira prostração na
presença de Deus, no sentido de inteira fraqueza e nulidade. E tal humilhação,
note- -se, é segura precursora da revelação do Próprio Deus. E quando a criatura se
humilha que Deus pode mostrar-Se no esplendor puro do que Ele é. Ele não dará a
Sua glória a outrem: pode manifestar-Se e permitir que o homem adore em face
dessa revelação; porém, até que o pecador tome o seu próprio lugar não pode haver
revelação do caráter divino. Como é diferente a atitude de Abraão neste capítulo
daquela que tomou no capítulo precedente! Ali ele tinha a natureza perante si;
aqui tem o Deus Todo-Poderoso. Naquele ele era um ator; neste é adorador. Antes
ele deixara-se levar pelo plano de Sara; agora entrega-se a si, e as suas
circunstâncias, o seu presente e o seu futuro, nas mãos de Deus, e deixa que Deus
atue nele, por ele, e por seu intermédio. Por isso, Deus pode dizer, "farei...",
"estabelecerei...", "darei". Numa palavra, é tudo Deus e os Seus desígnios; e isto é
descanso verdadeiro para o coração que conhece alguma coisa de si próprio.
A Circuncisão
O concerto da circuncisão é agora introduzido. Os membros da família da fé
devem trazer em seu corpo o selo desse pacto. Não pode haver exceção: "...será
circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por dinheiro; e estará o meu
concerto na vossa carne por concerto perpétuo. E o macho com prepúcio, cuja
carne do prepúcio não estiver circuncidada, aquela alma será extirpada dos seus
povos; quebrantou o meu concerto" (versículos 13 e 14). Em Romanos 4:3 é-nos
dito que a circuncisão é um selo de justiça: "Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi
imputado como justiça." Sendo assim considerado justo, Deus pôs o Seu "selo"
sobre ele.
CAPÍTULO 18
As Profecias e a Esperança
Antes de terminar este capítulo quero fazer uma observação, a qual, quer seja
considerada como resultado da verdade nele contida, quer não, é, contudo, digna
de consideração. É da máxima importância, no estudo das Escrituras, fazer-se
distinção entre o governo moral de Deus sobre o mundo e a esperança específica da
Igreja. Todo o corpo da profecia do Velho Testamento, e uma grande parte do
Novo, tratam do governo moral de Deus sobre o mundo, e oferecem, assim, um
assunto de interesse palpitante para cada cristão. E interessante saber o que Deus
está fazendo, e fará, com todas as nações da terra. E de interesse ler os pensamentos
de Deus quanto a Tiro, Babilônia, Nínive e Jerusalém; acerca do Egito, da Assíria, e
a terra de Israel. Numa palavra, o curso da profecia do Velho Testamento requer a
atenção reverente de todo o verdadeiro crente. Mas não se esqueça que não
encontramos nele a própria esperança da Igreja. Como seria possível? Se não temos
nele a existência da Igreja diretamente revelada, como poderíamos ter aí a
esperança da Igreja?- Impossível! Não é que a Igreja não possa encontrar ali uma
seara rica de princípios morais, os quais ela pode usar com o maior proveito. Pode,
incontestavelmente; mas isto é muito diferente de querer encontrar nestas
profecias a revelação da existência e da esperança específica da Igreja. E, contudo,
uma grande parte da profecia do Velho Testamento tem sido aplicada à Igreja! e
esta aplicação tem embrulhado todo o assunto em tal confusão que as mentes
simples são afastadas do estudo, e, retraindo-se estudo da profecia, têm também
descuidado outro estudo que é inteiramente distinto da profecia, que é o da
esperança da Igreja. Não necessitamos repetir que esta esperança não tem relação
alguma com o que Deus vai fazer com as nações da terra, mas consiste em ir ao
encontro do Senhor Jesus nas nuvens dos céus, para estar com Ele para sempre, e
ser para sempre semelhante a Ele.
Muitos podem dizer — não temos cabeça para a profecia. Talvez não, mas tendes
um coração para Cristo? Certamente, se amardes Cristo, ansiareis pelo Seu
aparecimento, embora vos falte capacidade para o estudo profético. Uma esposa
terna poderá não ter cabeça para compreender os negócios de seu marido; mas tem
lugar no seu coração para o seu regresso a casa. Pode não compreender a escritura
dele ou a sua disposição; mas conhece os seus passos e reconhece a sua voz. O mais
iletrado santo, se tão-somente tiver afeição ao Senhor Jesus, pode sentir o mais
intenso desejo de O ver; e esta é a esperança da Igreja. O apóstolo Paulo podia dizer
aos tessalonicenses,".. .dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir ao Deus vivo
e verdadeiro e esperar dos céus a Seu Filho... Jesus, que nos livra da ira futura" (1 Ts
1:10). Ora, os santos tessalonicenses podiam, evidentemente, no momento da sua
conversão, saber pouco, se é que sabiam alguma coisa, da profecia ou do assunto
especial de que ela trata; e contudo eles ficaram nesse próprio momento de posse e
no poder da esperança da Igreja — a vinda do Filho de Deus. Assim é em todo o
Novo Testamento. Nele, sem dúvida, temos profecia — e nele temos, também, o
governo moral de Deus; mas, ao mesmo tempo, inúmeras passagens que podem ser
acrescentadas como prova do fato que a esperança dos cristãos, nos tempos
apostólicos, a esperança simples, sem impedimento, desembaraçada, era A VINDA
DO NOIVO. Possa o Espírito Santo avivar essa bem-aventurada esperança na
Igreja, reunindo os eleitos e preparando um povo pronto para o Senhor.
CAPÍTULO 19
O Crente e o Mundo
Existem dois métodos que são usados graciosamente pelo Senhor de maneira a
afastar o coração deste século mau. O primeiro consiste em pôr diante dele o
atrativo e a estabilidade das "coisas que são de cima". O segundo consiste em
declarar fielmente a natureza efêmera e instável das "coisas que são da terra."
O capítulo 12 de Hebreus fecha com um lindo exemplo de cada um destes
métodos. Depois de expor a verdade que somos chegados ao monte de Sião, com
todos os seus gozos dependentes e privilégios, o apóstolo continua, dizendo: "vede
que não rejeiteis ao que fala; porque se não escaparam aqueles que rejeitaram o que
na terra os advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus, a
voz do qual moveu, então, a terra, mas, agora, anunciou, dizendo: Ainda uma vez
comoverei, não só a terra, senão também o céu. E esta palavra: Ainda uma vez,
mostra mudança das coisas móveis, como coisas feitas, para que as imóveis
permaneçam". Ora, é muito melhor ser-se atraído pelos gozos do céu do que
impelido pelas dores da terra. O crente não deve esperar até ser afastado das coisas
temporais. Não deve esperar que o mundo o rejeite antes de ele próprio desprezar o
mundo. Ele deve abandonar o mundo no poder da comunhão com as coisas
celestiais. Não há dificuldade em deixar o mundo quando nós, pela fé, nos
apegamos a Cristo; a dificuldade está então em conservar o mundo. Se a um
varredor fosse deixado um legado de dez mil libras anuais, ele não continuaria a
varrer as ruas. Do mesmo modo se nós compreendermos o valor da nossa porção
entre as realidades imutáveis do céu teremos muito pouca dificuldade em
abandonar as alegrias ilusórias da terra.
Ló Sentado à Porta
Vejamos agora a parte solene da história inspirada que temos perante nós.
Vemos nela "Ló assentado à porta de Sodoma", o lugar de autoridade. É evidente
que tem feito progresso. Tem "triunfado no mundo". Debaixo do ponto de vista
mundano, a sua carreira havia sido feliz. A princípio ele "armou as suas tendas até
Sodoma". Depois, sem dúvida, encontrou o caminho para ali; e agora
encontramo-lo assentado à porta — um lugar proeminente e de influência. Como
tudo isto é tão diferente da cena com que abre o capítulo precedente! Mas, ah! a
razão é óbvia. "Pela fé Abraão habitou na terra da promessa, como em terra alheia,
morando em cabanas" (Hb 11:9). Não encontramos um tal relato quanto a Ló(1)
Nunca poderia dizer-se: "pela fé Ló assentou-se à porta de Sodoma". Ah! não, ele
não tem lugar no nobre exército dos homens de fé — a grande nuvem de
testemunhas do poder da fé. O mundo era a sua armadilha, as coisas temporais a
sua ruína. Ele não "ficou firme como vendo o invisível". Atentou para "as coisas
que se veem e são temporais"; ao passo que Abraão atentou para "as coisas que se
não veem e são eternas". Havia uma diferença material entre estes dois homens, os
quais, embora tivessem partido juntos do princípio, atingiram um fim muito
diferente, tanto quanto se refere ao seu testemunho público. Sem dúvida Ló foi
salvo, todavia foi "como que pelo fogo", porque, verdadeiramente, "a sua obra foi
queimada". Pelo contrário, Abraão teve uma entrada abundante no "reino eterno
de nosso Senhor Jesus Cristo".
__________
(') Seria uma pergunta sondável para o coração se disséssemos, "estou fazendo isto
por Tudo o que não é de fé é pecado; e "Sem fé é impossível agradar a Deus",
(compare Rm 14:23 e Hb 11:6).
Além disso, não vemos que a Ló tivesse sido permitido gozar qualquer dos altos
privilégios e distinções com que Abraão foi favorecido. Em vez de receber a visita
do Senhor, Ló afligia a sua alma justa; em vez de gozar de comunhão com o Senhor,
está a uma distância lamentável do Senhor; e, por último, em vez de interceder
pelos outros, ele tem muito que pedir por si próprio. O Senhor ficou para
conversar com Abraão e limitou-Se a mandar os Seus anjos a Sodoma; e estes anjos
puderam com dificuldade ser persuadidos a entrar em casa de Ló ou aceitar a sua
hospitalidade: "E eles disseram: não, antes na rua passaremos a noite." Que
repreensão! Que diferença na prontidão com que foi aceite o convite de Abraão,
como se depreende das palavras, "Assim faze como tens dito".
A Eleição de Ló
Existe muita coisa no ato de alguém participar da hospitalidade de outrem. Quer
dizer, quando encarado inteligentemente, plena comunhão com ele: "...entrarei
em sua casa e com ele cearei, e ele comigo" (Ap 3:20); "...se haveis julgado que eu
seja fiel ao Senhor, entrai em minha casa, e ficai ali" (At 16:15). Se Paulo e Silas não
tivessem julgado Lídia fiel não teriam aceitado o seu convite.
Por isso as palavras dos anjos a Ló encerram uma condenação da sua posição em
Sodoma. Preferiam ficar toda a noite na rua a entrar debaixo do telhado de um que
estava numa posição má. De fato, o seu único objetivo indo a Sodoma parece ter
sido o de libertar Ló, e isto, também, por causa de Abraão; pois que lemos: "E
aconteceu que, destruindo Deus as cidades da campina, Deus se lembrou de
Abraão e tirou a Ló do meio da destruição, derribando aquelas cidades em que Ló
habitava".
Isto é fortemente acentuado. Foi simplesmente por amor de Abraão que se
permitiu a Ló escapar: o Senhor não simpatiza com uma mente mundana; e foi
uma mente assim que levou Ló a estabelecer-se entre a corrupção dessa cidade
culpada. A fé nunca o levou para ali; nenhuma mente espiritual lhe indicou o
caminho para lá; "a sua alma justa" nunca o deixou lá. Foi precisamente o amor por
este século mau que o levou em primeiro lugar a "escolher", depois a "armar as tuas
tendas", e por fim a "assentar-se à porta de Sodoma". Mas oh! que parte ele
escolheu! Era verdadeiramente uma cisterna rota que não podia reter água; uma
cana quebrada que feriu a sua mão. E uma coisa amarga, de qualquer modo,
orientarmo-nos por nós próprios; podemos estar certos de fazer os erros mais
graves. E infinitamente melhor deixar que Deus nos guie em todos os nossos
caminhos e entregá-los, no espírito de uma criança, ao Senhor, que quer e pode
fazer tudo por nós; pôr a pena, com efeito, na Sua bendita mão, e deixá-Lo delinear
toda a nossa carreira, segundo a Sua sabedoria infalível e o Seu amor infinito.
Sem dúvida, Ló pensou que estava fazendo bem para si e sua família, quando se
mudou para Sodoma; porém, o resultado mostrou como ele estava equivocado, e
ressoa também aos nossos ouvidos uma voz de profunda solenidade — uma voz
que nos diz para termos cuidado no modo como cedemos ao desejos de um espírito
mundano. "Contentai-vos com o que tendes." Por quê? E porque temos uma boa
situação no mundo? Por que temos tudo que os nossos corações enganadores
procuram? Por que não há nem sequer uma simples fenda nas nossas
circunstâncias por meio da qual um desejo vão possa escapar-se? Deve ser este o
fundamento do nosso bem estará De modo nenhum. Então? "Porque Ele disse: não
te deixarei nem te desampararei" (Hb 13:5). Bendito quinhão! Se Ló estivesse
contente com o que tinha nunca teria procurado as planícies bem regadas de
Sodoma.
CAPÍTULO 20
ABRAÃO EM GERAR
O Homem de Deus Exposto à Reprovação do Mundo
Neste capítulo temos duas coisas distintas: a primeira é a degradação moral a que
um filho de Deus por vezes se expõe à vista do mundo; a segunda a dignidade
moral que sempre lhe pertence à vista de Deus. Abraão mostra outra vez receio das
circunstâncias que o coração pode facilmente compreender. Ele vai peregrinar a
Gerar e teme os homens dessa cidade. Compreendendo que Deus não estava ali,
esquece-se que Ele está sempre consigo. Parece estar mais ocupado com os homens
de Gerar do que com Aquele que é mais forte do que eles. Esquecendo a aptidão de
Deus para proteger sua mulher, ele recorre ao mesmo estratagema que, anos antes,
adotara no Egito. Isto é muito censurável. O pai dos fiéis perdeu-se por desviar os
olhos de Deus. Perdeu, por um pouco de tempo, a sua concentração em Deus e por
isso cedeu. Quão verdade é que somos fortes somente na medida em que nos
apegamos a Deus na nossa inteira fraqueza. Enquanto nos mantivermos no
caminho por Ele indicado nada nos poderá prejudicar. Se Abraão tivesse sabido
apoiar-se em Deus, os homens de Gerar não se teriam intrometido com ele; e foi
seu privilégio vindicar a fidelidade de Deus no meio das dificuldades mais
espantosas. E assim teria também conservado a sua própria dignidade, como
homem de fé.
E sempre motivo de dor para o coração ver como os filhos de Deus O desonram, e,
como consequência, se rebaixam diante do mundo, perdendo o sentido da Sua
suficiência para todas as emergências. Enquanto vivermos na compreensão da
verdade que todas as nossas fontes estão em Deus, estaremos acima do mundo, em
forma e feitio. Nada há de mais nobre para o ente moral como a fé: conduz
inteiramente para além do alcance dos pensamentos do mundo; pois como podem
os homens do mundo, até mesmo os crentes mundanos, compreender a vida da fé?
Impossível: a fonte de onde ela emana está muito além da sua compreensão: eles
vivem à superfície das coisas presentes. Desde que possam ver o que lhes parece
um fundamento próprio para a esperança e a confiança, são esperançosos e
confiantes; porém a ideia de descansarem unicamente nas promessas do Deus
invisível não a compreendem. No entanto, o homem da fé mantém-se calmo no
meio de cenas nas quais a natureza nada pode ver. Por isso é que a fé parece
sempre, no parecer da natureza, uma coisa imprevidente, temerária e visionária.
Ninguém senão os que conhecem a Deus pode jamais aprovar as ações da fé,
porque ninguém senão eles podem realmente compreender o terreno sólido e
verdadeiramente razoável de tais ações.
O Temor de Abraão
Neste capítulo vemos o homem de Deus expondo-se à censura e exprobração dos
homens do mundo, por motivo das suas ações, debaixo do poder da incredulidade.
Assim terá de ser sempre. Nada senão a fé pode dar ao caráter e à carreira de um
homem verdadeira elevação. Podemos, na verdade, ver alguns que são
naturalmente retos e honrados nos seus caminhos; contudo, não podemos confiar
na retidão e honra da natureza: apoiam-se num mau fundamento, e estão sujeitas a
ceder a todo o momento. É só a fé que pode dar um tom moral verdadeiramente
elevado, porque liga a alma em poder vivo com Deus, a única origem de verdadeira
moralidade. E um fato notável que, no caso de todos aqueles que Deus tem
graciosamente recebido, vemos que, quando se afastam da carreira da fé, eles
descem ainda mais do que os seus semelhantes. Isto explica a conduta de Abraão,
nesta parte da sua história.
Mas há outro fato de muito interesse e valor a notar aqui. vemos que Abraão tinha
alimentado alguma coisa má durante anos: havia começado, parece, a sua carreira
com certa reserva na sua alma, a qual reserva era o resultado da sua falta de plena
confiança em Deus. Se ele tivesse podido confiar inteiramente em Deus quanto a
Sara, não teria havido necessidade de qualquer reserva ou subterfúgio. Deus
tê-la-ia resguardado de todo o mal; e quem pode fazer mal àqueles que são os
felizes objetos da Sua proteção? Todavia, Abraão pôde, em misericórdia, arrancar a
raiz de todo o mal — confessá-lo, julgá-lo, inteiramente, e deixá-lo. Este é o
verdadeiro modo de agir. Não pode haver verdadeira bênção e poder enquanto não
for trazida à luz cada partícula de fermento e calcada aos pés. A paciência de Deus
é ilimitada. Ele pode esperar. Pode aturar-nos; mas nunca guiará uma alma ao
ponto culminante de bênção e poder enquanto o fermento conhecido continuar
por julgar. Mas basta quanto a Abimeleque e Abraão. Vejamos agora a dignidade
moral deste, à vista de Deus.
CAPÍTULO 21
ISAQUE E ISMAEL
MORIÁ
A alma que tem achado todas as suas fontes em Deus pode, sem hesitação,
afastar-se de todas as correntes da natureza. Podemos prescindir da criatura, na
proporção em que nos tivermos familiarizado com o Criador, e nada mais. Tentar
deixar as coisas visíveis de qualquer outro modo, que não seja a energia da fé que
lança mão do invisível, é o esforço mais inútil que se pode imaginar. Não pode ser
conseguido. Enquanto não achar tudo em Deus, eu conservarei o meu Isaque. E
quando podemos dizer pela fé, "Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem
presente na angústia", que podemos também acrescentar, "pelo que não
temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o
meio dos mares" (SI 46:1-2).
Para ilustrar:
O vapor de uma máquina de caminho de ferro seria de pouca utilidade sem os
carris firmemente estendidos; o vapor é o poder por meio do qual somos
transportados; e as linhas representam a direção. Escusado será dizer que as linhas
seriam de pouca utilidade sem o vapor. Bom. Abraão foi abençoado com as duas
coisas. Ele tinha o poder de ação conferido por Deus e a ordem de atuar dada
também por Deus. A sua dedicação era de caráter definido; e isto é profundamente
importante. Vemos por vezes muitas coisas que se parecem com dedicação, mas
que, na realidade, são apenas a atividade irregular de uma vontade que não está sob
a ação poderosa da Palavra de Deus. Essa dedicação aparente é inútil, e o espírito
donde ela emana desaparecerá rapidamente.
Podemos estabelecer este princípio: sempre que a dedicação ultrapasse os limites
divinamente marcados é duvidosa. Se não chegar a atingir estes limites é
defeituosa; se correr sem eles é desordenada. Concordo em absoluto que há
operações extraordinárias do Espírito de Deus nas quais Ele mantém a Sua própria
soberania e Se eleva acima dos limites normais; mas, em tais casos, a evidência da
atividade divina será suficientemente forte para incutir convicção em toda a mente
espiritual; nem tão- pouco estas operações interferirão, de nenhum modo, com a
verdade do princípio que a verdadeira dedicação será sempre fundamentada e
governada por princípio divino. Sacrificar um filho poderia parecer um ato de
extraordinária dedicação; mas não se esqueça que o que deu valor a esse ato, à vista
de Deus, foi o fato simples de ser baseado no mandamento de Deus.
A Adoração
Temos, ainda, outra coisa ligada com o verdadeiro afeto, e isto é o espírito de
adoração: "... eu e o moço iremos até ali... e havendo adorado". O servo
verdadeiramente consagrado terá em vista, não o seu serviço, por muito grande
que seja, mas o Senhor, e isto produzirá o espírito de adoração. Se eu amar o meu
mestre, segundo a carne, pouco se me dará se limpo os seus sapatos ou se guio a sua
carruagem; porém se eu pensar mais em mim do que nele, preferirei ser cocheiro
do que engraxador. E assim precisamente no serviço do Mestre celestial: se eu
pensar só n'Ele, estabelecer igrejas e fazer tendas será o mesmo para mim.
Podemos ver a mesma coisa no ministério angélico. A um anjo não interessa se é
mandado destruir um exército ou proteger a pessoa de qualquer herdeiro da
salvação. E o Mestre Quem enche inteiramente a sua visão. Como alguém
observou, "se dois anjos fossem enviados do céu, um para governar um império e o
outro para varrer as ruas, eles não discutiriam quanto ao seu trabalho". Isto é
verdadeiro, e devia ser assim conosco. O servo deveria estar sempre ligado com o
adorador, e o trabalho das nossas mãos perfumado com a respiração ardente dos
nossos espíritos. Em suma, devíamos partir sempre para o nosso trabalho no
espírito daquelas palavras memoráveis, "eu e o moço iremos até ali, e havendo
adorado tornaremos a vós". Isto guardar-nos-ia efetivamente daquele serviço
meramente maquinal no qual estamos tão prontos a cair: fazer as coisas por amor
de as fazer, e estando mais ocupados com o nosso trabalho do que com o Senhor.
Tudo deve partir da simples fé em Deus e obediência à Sua Palavra.
CAPÍTULO 23
A CAVERNA DE MACPELA
A Morte de Sara
Esta pequena parte inspirada dá instrução proveitosa e agradável à alma. Nela o
Espírito apresenta-nos um exemplo magnífico do modo como o homem da fé deve
comportar-se para com aqueles que estão de fora. Ao mesmo tempo que é verdade,
verdade divina, que a fé torna o crente independente do homem do mundo, não é
menos verdade que a fé mostrar-lhe-á sempre como andar honestamente com ele.
Somos exortados a andar "honestamente para com os que estão de fora" (1 Ts 4:12),
a zelarmos "o que é honesto, não só diante do Senhor, mas também diante dos
homens" (2 Co 8:21) e a não devermos coisa alguma a ninguém (Rm 13:8). São
preceitos importantes — preceitos que, até mesmo antes da sua enunciação, eram
devidamente observados em todos os tempos pelos servos fiéis de Cristo, mas que,
nos tempos modernos, não têm, infelizmente, sido suficientemente cumpridos.
O capítulo 23 do Gênesis é, portanto, digno de especial atenção. Abre com a morte
de Sara, e apresenta Abraão num novo estado, a chorar por ela: "veio Abraão
lamentar a Sara e chorar por ela." Um filho de Deus tem de enfrentar estas coisas;
mas não deve encará-las como os demais. O grande fato da ressurreição vem em
seu alívio, e dá uma característica peculiar à sua dor (1 Ts 4:13-14). O homem de fé
pode estar à beira da sepultura de um irmão ou de uma irmã na feliz compreensão
de que ela não guardará por muito tempo o seu cativo. "Porque, se cremos que
Jesus morreu e ressuscitou, assim também aos que em Jesus dormem Deus os
tornará a trazer com ele" (1 Ts 4:14).
A redenção da alma assegura a redenção do corpo; a primeira já a temos, a última
esperamo-la (Rm 8:23).
A Fé na Ressurreição
Ora eu creio que comprando Macpela para cemitério Abraão manifestou a sua fé
na ressurreição. "Levantou-se de diante do seu morto". A fé não pode contemplar a
morte por muito tempo; tem um objeto mais elevado, bendito seja "o Deus vivo",
que o deu. A ressurreição enche para sempre o olhar da fé; e, no seu poder, pode
levantar-se de diante dos mortos. Há muita coisa a tirar desta ação de Abraão.
Precisamos de compreender o seu significado mais claramente, porque somos
propensos a estar ocupados com a morte e suas consequências. A morte é o limite
do poder de Satanás; porém onde Satanás termina, Deus começa a atuar. Abraão
compreendeu isto quando se levantou e comprou a cova de Macpela como lugar de
repouso para Sara. Isto foi a expressão do pensamento de Abraão quanto ao futuro.
Ele sabia que nos séculos vindouros a promessa de Deus quanto à terra de Canaã
será cumprida, e pôde depositar o corpo de Sara na sepultura "na esperança
gloriosa da ressurreição".
Os filhos de Hete nada sabiam a este respeito. Os pensamentos que ocupavam a
alma do patriarca eram inteiramente desconhecidos dos filhos incircuncisos de
Hete. Para eles era uma coisa de pouca importância onde ele sepultava os seus
mortos, mas não era de modo nenhum um caso sem importância para ele.
"Estrangeiro e peregrino sou entre vós; dai-me possessão de sepultura convosco
para que eu sepulte o meu morto de diante da minha face." Podia parecer-lhes
muito estranho que ele fizesse tanta questão quanto ao lugar duma sepultura; mas,
amados, "o mundo não nos conhecer; porque o não conhece a ele" (1 Jo 3:1). Os
melhores característicos da fé são aqueles que são incompreensíveis para o homem
natural. Os Cananeus não faziam ideia das expectativas que caracterizavam os atos
de Abraão. Não formavam ideia que ele esperava a posse da terra, enquanto
procurava apenas um bocado onde, como homem morto, pudesse esperar pelo
tempo de Deus e o método de Deus, isto é, A MANHÃ DA RESSURREIÇÃO.
Sentia que não tinha contendas com os filhos de Hete, e por isso estava preparado
para descansar a sua cabeça na sepultura e permitir que Deus agisse por ele, e com
ele, e por seu intermédio.
"Todos estes morreram na (ou segundo) a fé, sem terem recebido as promessas,
mas, vendo-as de longe e crendo nelas e abraçando-as, confessaram que eram
estrangeiros e peregrinos na terra" (Hb 11:13). Isto é na verdade uma feição
excelente da vida divina. Essas "testemunhas", das quais o apóstolo fala em
Hebreus 11, viveram não apenas pela fé, mas, mesmo quando chegaram ao fim da
sua carreira, conheceram que as promessas de Deus eram tão reais e satisfatórias
para as suas almas como quando no princípio da sua carreira. Ora, eu creio que esta
compra de um lugar para sepultura na terra era uma prova do poder da fé, não
somente para a vida mas para a morte. Por que estava Abraão tão interessado nesta
comprai Por que mostrou tanto interesse em legalizar os seus direitos ao campo e à
cova de Efrom sob os princípios do direito? Por que essa determinação em pesar o
preço como "correntes entre mercadores? FÉ, é a resposta. Ele fez tudo por fé. Ele
sabia que a terra era sua por promessa, e que em glória a sua descendência havia
ainda de possuí-la, e até então ele não seria devedor àqueles que ainda haviam de
ser desapossados.
CAPÍTULO 24
O Chamado da Igreja
Quando nos voltamos para o Novo Testamento os grandes acontecimentos que
chamam a nossa atenção são, em primeiro lugar, a rejeição e morte de Cristo; em
segundo lugar, Israel é posto de parte; e, por último, dá-se a chamada da Igreja para
ocupar a elevada posição de noiva do Cordeiro.
Ora tudo isto corresponde exatamente com este e os dois capítulos precedentes. A
morte de Cristo necessitava ser um fato consumado, antes que a Igreja,
propriamente dita, pudesse ser chamada. "A parede de separação" que estava no
meio tinha que ser derrubada (Ef 2:14) antes que "o novo homem" pudesse ser
criado. E bom compreendermos isto para podermos conhecer o lugar que a Igreja
ocupa nos caminhos de Deus. Enquanto a dispensação judaica durasse havia a mais
estrita separação entre judeus e gentios, e por isso a ideia de ambos serem unidos
num novo homem estava longe da ideia de um judeu. Os judeus consideravam-se a
si próprios numa posição de inteira superioridade à que tinham os gentios, e
consideravam-nos completamente impuros, e com os quais não era lícito
juntarem-se (At 10:28).
Se Israel tivesse andado com Deus segundo a verdade do parentesco para o qual Ele
graciosamente os havia trazido, teriam continuado no seu lugar peculiar de
separação e superioridade; mas eles não fizeram isto; e, portanto, quando tinham
enchido a medida da sua iniquidade, crucificando o Senhor da vida e glória, e
rejeitando o testemunho do Espírito Santo, vemos como Paulo foi levantado para
ser ministro de uma nova coisa, a qual era retida nos desígnios de Deus, ao mesmo
tempo que o testemunho a Israel continuava. "Por esta causa, eu, Paulo, sou o
prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios; se é que tendes ouvido a dispensação
da graça de Deus, que para convosco me foi dada: como me foi este mistério
manifestado..., o qual, noutros séculos, não foi manifestado aos filhos dos homens,
como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas"
(profetas de Novo Testamento); "a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um
mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo evangelho" (Ef 3:1-6).
Isto é conclusivo. O mistério da Igreja, composta de judeus e gentios, batizada pelo
Espírito para um corpo, unida à Cabeça gloriosa no céu, nunca havia sido revelado
até aos dias de Paulo. O apóstolo continua a dizer acerca deste mistério, "do qual
fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo a operação
do seu poder" (versículo 7). Os apóstolos e profetas do Novo Testamento
formaram, com efeito, o primeiro lanço deste edifício glorioso (vede Ef 2:20).
Sendo isto assim, segue-se, como consequência, que o edifício não podia ter sido
começado antes. Se o edifício tivesse existido desde os dias de Abel, o apóstolo teria
dito, "revelado aos santos do Velho Testamento". Porém ele não disse isso, e
portanto nós concluímos que, seja qual for a posição atribuída aos santos do Velho
Testamento, eles não podem possivelmente pertencer ao corpo que não tinha
existência, salvo nos propósitos de Deus, até à morte e ressurreição de Cristo, e a
descida subsequente do Espírito Santo. Salvos eles estavam, bendito seja Deus —
salvos pelo sangue de Cristo e destinados a gozar a glória celestial com a Igreja;
porém eles não podiam fazer parte daquilo que não existiu até séculos depois do
seu tempo.
Era fácil entrarmos numa maior discussão acerca desta verdade importante, se
fosse este o lugar para o fazer; porém, quero continuar com o estudo do nosso
capítulo, depois de ter apenas tocado numa questão de grande interesse, por ser
sugerida pela posição que ocupa o capítulo 24 de Gênesis.
Pode perguntar-se se devemos encarar esta parte interessante da Escritura Sagrada
como figura da chamada da Igreja pelo Espírito Santo. Quanto a mim, sinto-me
feliz por a tratar apenas como, uma ilustração dessa gloriosa obra. Não podemos
supor que o Espírito de Deus ocupasse um capítulo todo simplesmente com os
pormenores de uma família, se essa família não fosse uma exemplificação de
alguma grande verdade.
"Porque tudo o que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito, para que, pela
paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança" (Rm 15:4). Isto é
enfático. Portanto, o que devemos aprender com este capítulo? Creio que nos dá
uma linda ilustração ou símbolo do grande mistério da Igreja. E importante vermos
que, ao mesmo tempo que não há revelação direta deste mistério no Velho
Testamento, há, todavia, cenas e circunstâncias as quais o manifestam de uma
maneira notável. Como, por exemplo, este capítulo. Como já foi observado, tendo
o filho sido oferecido, em figura, e recobrado de entre os mortos, e o tronco do qual
havia saído este filho paternal posto de parte, Sara, o mensageiro é enviado pelo pai
para procurar uma noiva para o filho.
Uma Esposa para o Filho
Para a boa compreensão de todo o capítulo, devemos considerar os seguintes
pontos: 1. —o pacto,- 2. —o testemunho; 3-—os resultados. É encantador
notarmos como a chamada e exaltação de Rebeca foram fundadas sobre o pacto
entre Abraão e o seu servo. Ela não sabia nada a esse respeito, embora fosse, nos
desígnios de Deus, o objetivo de tudo isso. Assim é com a Igreja de Deus como um
todo, e cada parte constituinte: "... no teu livro todas estas coisas foram escritas, as
quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia" (SI
139:16). "Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, como também
nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em caridade" (Ef 1:3, 4). "Porque os que dantes
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que Ele seja o primogênito de entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a
esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou, e aos que
justificou, a esses também glorificou" (Rm 8:29-30).
Estas passagens estão todas de harmonia com o assunto que passamos
imediatamente a considerar. A chamada, a justificação, e a glória da Igreja são
fundadas no propósito eterno de Deus — a Sua Palavra e juramento retificados
pela morte, ressurreição e exaltação de Seu Filho. Muito antes, antes do raiar do
tempo, nos profundos recessos da mente eterna de Deus, acha-se este maravilhoso
propósito a respeito da Igreja, o qual não pode, de nenhum modo, ser separado do
pensamento divino quanto à glória do Filho. O juramento entre Abraão e o servo
tinha como seu objetivo a procura de uma noiva para o filho. Foi o desejo do pai
acerca do filho que levou a toda a dignidade posterior de Rebeca.
E agradável vermos isto. Agradável ver como a segurança e bênção da Igreja estão
inseparavelmente ligadas com Cristo e a Sua glória: "Porque o varão não provém da
mulher, mas a mulher, do varão. Porque também o varão não foi criado por causa
da mulher, mas a mulher, por causa do varão" (1 Co 11:8-9). O mesmo acontece
com a parábola da ceia: "O reino dos céus é semelhante a um certo rei que celebrou
as bodas de seu filho" (Mt 22:2). O FILHO é o grande objeto de todos os desígnios
de Deus: e se alguém é trazido para a bênção, ou glória, ou dignidade, só o pode ser
por ligação com Ele. O direito a estas coisas, e até mesmo à própria vida, foi
perdido pelo pecado; porém Cristo cumpriu a pena do pecado; Ele
responsabilizou-Se por tudo a favor do Seu corpo, a Igreja: foi pregado na cruz
como seu substituto, levou os seus pecados no Seu corpo sobre a cruz, e baixou à
sepultura sob o peso deles. Por isso nada pode ser mais completo do que a
libertação da Igreja de tudo que era contra ela. Ela é vivificada da sepultura de
Cristo, onde todos os seus pecados foram deixados. A vida que ela tem é uma vida
tomada do outro lado da morte, depois de todas as exigências possíveis terem sido
satisfeitas. Por isso, esta vida é ligada e fundada sobre a justiça divina, tanto mais
que o direito de Cristo à vida é baseado sobre o fato de ter esgotado inteiramente o
poder da morte; e Ele é a vida da Igreja. Desta maneira a Igreja goza de vida divina;
ela encontra-se em justiça divina; e a esperança que a anima é a esperança de
justiça (vede, entre outras, as passagens seguintes, Jo 3:16,36; 5:39,40;
6:27,40,47,68; 11:25;17:2; Rm 5:21;6:23; 1 Tm 1:16; 1 Jo 2:25; 5:20; Judas 21; Ef 2:1
a 6,14,15; Cl 1:12-22;2:10-15; Rm l:17;3:21-26;4:5,23-25; 2 Co 5:21; Gl 5:5).
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
Em Berseba: a Restauração
Todavia, Isaque, por fim, deixa os filisteus e dirige-se a Berseba. "E apareceu-lhe o
SENHOR naquela mesma noite e disse: Eu sou o Deus de Abraão, teu pai. Não
temas, porque eu sou contigo, e abençoar-te-ei" (versículo 24). Note-se que não se
trata apenas da bênção de Deus, mas do Próprio Senhor. Por quê? Porque Isaque
havia deixado os filisteus com toda a sua inveja, contenda e disputas e ido para
Berseba. Aqui o Senhor pôde mostrar-Se ao Seu servo. A bênção da Sua mão liberal
podia segui-lo durante a sua peregrinação em Gerar; mas a Sua presença não podia
ser gozada ali. Para podermos gozar da presença de Deus devemos estar onde Ele
está, e certamente o Senhor não pode ser encontrado entre as contendas e disputas
de um mundo ímpio; por isso, quanto mais cedo um filho de Deus sair de um tal
estado de coisas, tanto melhor. Isaque assim o verificou. No seu espírito não havia
paz; e incontestavelmente ele não servia, de modo nenhum, aos filisteus
peregrinando entre eles. É um erro muito vulgar supor-se que servimos os homens
do mundo misturando-nos com eles nos seus caminhos e andando na sua
companhia. O único meio de os servirmos é permanecermos à parte deles no poder
da comunhão com Deus, e assim mostrar- lhes o padrão de um caminho mais
excelente.
Note-se o progresso da alma de Isaque e o efeito moral da sua carreira: "... subiu
dali..., e apareceu-lhe o SENHOR..., e edificou ali um altar, e invocou o nome do
SENHOR, e armou ali a sua tenda; e os servos de Isaque cavaram ali um poço".
Aqui temos progresso muito abençoado. Desde o momento em que deu um passo
no caminho próprio, ele foi de força em força. Entrou no gozo da presença do
Senhor — provou a doçura da verdadeira adoração e mostrou o caráter de um
estrangeiro e peregrino e achou refrigério — um poço que não lhe foi disputado,
porque os filisteus não estavam ali.
Nem tão-pouco devemos nós, quando estamos numa posição errada, perguntar,
como tantas vezes se pergunta: "Onde se pode encontrar alguma coisa melhor? A
ordem de Deus é, "Cessai de fazer mal!" e quando agimos sobre este santo preceito
é-nos dado outro, a saber: "aprendei a fazer o bem". Se esperarmos aprender a fazer
o bem, antes de deixarmos de fazer o mal, estamos completamente enganados.
"Desperta tu que dormes e levanta-te de entre os mortos, e Cristo te esclarecerá"
(Ef 5:14).
Prezado leitor, se estás fazendo alguma coisa que sabes ser má, ou se estás
identificado, de qualquer modo, com aquilo que entendes ser contrário à Bíblia,
escuta a Palavra do Senhor: "Cessai de fazer mal" (Is 1:16). Podes estar certo que se
obedeceres a esta palavra não mais terás dúvidas quanto à carreira que deves
seguir. E a incredulidade que nos leva a dizer, "não posso deixar o mal antes de
encontrar alguma coisa melhor". Que o Senhor nos dê fé simples e um espírito
dócil.
CAPÍTULOS 27 A 35
CAPÍTULO 27
ISAQUE AS PORTAS DA ETERNIDADE
Tremendas Consequências
Podemos estar certos de só acumular dores e aflições sempre que tiramos as nossas
circunstâncias, o nosso destino e a nós próprios das mãos de Deus(1). Aconteceu
assim com Jacó, como teremos ocasião de ver no prosseguimento do estudo.
Alguém disse que "quem considerar a vida de Jacó, depois de ele fraudulentamente
ter obtido a bênção de seu pai, verá que ele gozou de muito pouca felicidade neste
mundo. Seu irmão decidiu matá-lo, para o evitar ele foi obrigado a fugir da casa de
seu pai; seu tio Labão enganou-o, assim como ele havia enganado seu pai, e
tratou-o com grande dureza; depois de vinte e um anos de servidão, ele foi
obrigado a deixá-lo ocultamente, não sem correr o risco de ser reconduzido ao
ponto de partida, ou assassinado por seu irmão irritado; apenas se tinham passado
os seus temores teve que sofrer a baixeza de seu filho Ruben, em profanar a sua
cama; em seguida teve que deplorar a traição e crueldade de Simeão e Levi para
com os Siquémitas; depois teve que sentir a perda da esposa amada; foi depois
enganado por seus filhos e teve que lamentar o suposto fim prematuro de José; e,
para completar tudo, foi obrigado pela fome a ir para o Egito, e ali morreu em terra
estranha. Assim os caminhos da providência são justos, maravilhosos e
instrutivos".
__________
(') Nunca devemos esquecer, em ocasiões de provação, que o que nós precisamos
não é de mudança de circunstâncias, mas de vitória sobre o Eu.
CAPÍTULO 28
Frutos Amargos
Vamos seguir agora Jacó nos seus passos depois de ter deixado a casa de seu pai,
para o vermos como vagabundo solitário na terra. E aqui que os principais
desígnios de Deus a seu respeito começam a manifestar-se. Jacó começa agora a
compreender, em certa medida, os frutos amargos do seu procedimento para com
Esaú. Enquanto que, ao mesmo tempo, Deus é visto elevando-Se acima de toda a
fraqueza e loucura do Seu servo e manifestando a Sua graça soberana e profunda
sabedoria na forma como trata com ele.
Deus cumprirá o Seu propósito, não importa quais sejam os instrumentos usados
para esse fim, mas se um filho Seu, em impaciência de espírito, e incredulidade de
coração, se desliga das Suas mãos, deve esperar muito exercício doloroso e
disciplina aflitiva. Foi assim com Jacó: não teria que fugir para Harã se tivesse
permitido que Deus atuasse por ele. Deus teria certamente tratado com Esaú, e
feito com que ele encontrasse o seu lugar e a sua parte; e Jacó poderia ter gozado
aquela doce paz que nada pode conceder salvo inteira sujeição em todas as coisas
aos desígnios de Deus.
E aqui está onde a fraqueza dos nossos corações é constantemente manifestada.
Não permanecemos inativos nas mãos de Deus; queremos atuar e, por meio da
nossa atuação, impedimos a manifestação da graça e poder de Deus em nosso favor.
"Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (SI 46:10), é um preceito ao qual nada senão
o poder da graça divina pode habilitar alguém a obedecer. "Seja a vossa equidade
notória a todos os homens.
Perto está o Senhor. Não estejais inquietos por coisa alguma; antes, as vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação
de graças" (Fp 4:5-6).
Qual será logo o resultado de atuar assim? "E a paz de Deus, que excede todo o
entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo
Jesus" (Fp 4:7).
Contudo, Deus domina graciosamente a nossa loucura e fraqueza, não obstante
termos de colher os frutos dos nossos métodos impacientes, Ele serve-Se deles para
nos ensinar ainda maiores lições da Sua graça e perfeita sabedoria. Isto, ao mesmo
tempo que não justifica a incredulidade e a impaciência, mostra,
maravilhosamente, a bondade do nosso Deus, e conforta o coração até mesmo
quando passamos por circunstâncias dolorosas por causa das nossas faltas. Deus
está acima de tudo; e, além disso, é Sua prerrogativa tirar bem do mal; dar comida
do comedor é doçura do forte; e por isso, embora seja verdade que Jacó foi
obrigado a exilar-se da casa de seu pai em consequência do seu próprio ato
impaciente e enganoso, é igualmente verdade que ele nunca poderia ter aprendido
o significado de "Betel" se tivesse ficado em casa. Deste modo os dois lados do
quadro são fortemente marcados em cada acontecimento da história de Jacó. Foi
quando ele foi expulso, pela sua própria loucura, da casa de Isaque, que foi levado a
provar, em certa medida, a bem- aventurança e solenidade da "casa de Deus".
Betel
"Partiu, pois, Jacó de Berseba, e foi-se a Harã; e chegou a um lugar onde passou a
noite, porque já o sol era posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a pôs por
sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar".
Aqui encontramos o vagabundo na própria situação onde Deus podia encontrá-lo,
e na qual podia revelar o Seu propósito de graça e glória.
Nada podia ser mais expressivo do desamparo e da necessidade do que a condição
de Jacó posta aqui perante nós. Abaixo a abóbada do céu, com uma pedra por
almofada, na situação desamparada do sono. Foi assim que o Deus de Betel
manifestou a Jacó os Seus propósitos a seu respeito e quanto à sua descendência. "E
sonhou: e eis era posta na terra uma escada, cujo topo tocava nos céus; e eis que os
anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que o SENHOR estava em cima dela
e disse: Eu sou o SENHOR, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaque. Esta
terra em que estás deitado ta darei a ti e à tua semente. E a tua semente será como o
pó da terra; e estender-se-á ao ocidente, e ao oriente, e ao norte, e ao sul; e em ti e
na tua semente serão benditas todas as famílias da terra. E eis que eu estou contigo,
e te guardarei por onde quer que fores, e te farei tornar a esta terra, porque te não
deixarei, até que te haja feito o que te tenho dito".
Aqui temos, na verdade, "graça e glória" (SI 84:11). A escada posta na terra leva
naturalmente o coração a meditar na revelação da graça de Deus na Pessoa e na
obra de Seu bendito Filho. Foi na terra que essa obra maravilhosa foi consumada, a
qual forma a base eterna e sólida de todos os desígnios divinos acerca de Israel, a
Igreja, e o mundo em geral. Foi na terra que Jesus viveu, trabalhou e morreu, para
que, por meio da Sua morte, pudesse tirar do caminho todos os obstáculos ao
cumprimento do propósito divino de abençoar o homem.
Porém, o topo da escada tocava nos céus. Formava o meio de comunicação entre o
céu e a terra; e "eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela"—figura notável
e bela d Aquele por quem Deus veio até ao mais profundo da necessidade do
homem, e por quem também levantou o homem e o assentou na Sua presença para
sempre, no poder da justiça divina! Deus supriu as necessidades do cumprimento
de todos os Seus planos, apesar da loucura e pecado do homem; e é motivo de gozo
eterno de qualquer alma encontrar-se por meio do ensino do Espírito Santo,
dentro dos limites do propósito gracioso de Deus.
O profeta Oséias leva-nos ao tempo quando aquilo que foi prefigurado pela escada
de Jacó terá o seu pleno cumprimento. "E, naquele dia, farei por eles aliança com as
bestas-feras do campo, e com as aves do céu, e com os répteis da terra; e da terra
tirarei o arco, e a espada, e a guerra, e os farei deitar em segurança. E desposar-te-ei
comigo para sempre; desposar-te-ei comigo em justiça, e em juízo, e em
benignidade, e em misericórdias. E desposar-te-ei comigo em fidelidade, e
conhecerás o SENHOR. E acontecerá, naquele dia, que eu responderei, diz o
SENHOR, eu responderei aos céus, e estes responderão à terra. E a terra
responderá ao trigo, e ao mosto, e ao óleo; e estes responderão a Jezreel. E
semeá-la-ei para mim na terra e compadecer-me-ei de Lo-Rufama; e a Lo-Ami
direi: Tu és o meu povo!; e ele dirá: Tu és o meu Deus!" (Os 2:18-23). Há também
uma expressão acerca da visão de Jacó no Evangelho de João, capítulo 1:51: "Na
verdade, na verdade vos digo que, daqui em diante, vereis o céu aberto e os anjos
de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem".
CAPÍTULOS 29 A 31
Dois Negociantes
Contudo, é admirável ver como ele ingressa numa atmosfera tão adequada à sua
condição moral. O pechincheiro Jacó encontra-se com o explorador Labão, e
vê-los, de fato, ambos esticando os nervos para se excederem um ao outro em
astúcia. Não devemos estranhar o caso em Labão, pois ele nunca havia estado em
Betel: nunca vira o céu aberto e uma escada posta na terra cujo topo tocava nos
céus; nem tinha ouvido promessas grandiosas dos lábios do Senhor, garantindo-lhe
toda a terra de Canaã, com uma posteridade inumerável. Não é de admirar, pois,
que ele mostrasse um espírito avaro e abjeto; não tinha outro recurso. E escusado
esperar do homem do mundo outra coisa que não seja um espírito mundano, e
princípios e métodos mundanos; não tem nada superior; e não podemos tirar uma
coisa limpa duma imunda. Porém, encontrar Jacó, depois de tudo que havia visto e
ouvido em Betel, a lutar com um homem do mundo, e procurando, por tais meios,
acumular riquezas, é notavelmente humilhante.
E todavia, enfim, não é um caso raro encontrar os filhos de Deus esquecendo assim
os seus altos destinos, e a herança celestial, para descerem à arena com os filhos
deste mundo, a fim de ali lutarem pelas riquezas e honras de uma terra ferida de
pecado e perdida. Na verdade, isto é de tal forma verdadeiro que, em muitos casos,
é difícil descortinar uma simples evidência daquele princípio que o apóstolo João
nos diz "que vence o mundo" (Jo 5:4). Olhando para Jacó e Labão, e
considerando-os segundo princípios naturais, será difícil notar neles qualquer
diferença. E preciso ficar-se atrás das cenas e compreender os pensamentos de
Deus quanto a ambos para ver como diferem um do outro. Todavia foi Deus Quem
os fez diferir, e não Jacó; e assim é agora. Por muito difícil que possa ser descortinar
alguma diferença entre os filhos da luz e os filhos das trevas, há, todavia, uma
grande desigualdade—uma diferença baseada no fato solene que os primeiros são
"vasos" de misericórdia, que "para glória já dantes preparou", enquanto que os
últimos são "os vasos da ira(1), preparados (não por Deus, mas pelo pecado) para a
perdição (Rm 9:22-23). Isto faz uma diferença muito séria. Os Jacós e os Labães são
diferentes materialmente, e serão para sempre diferentes, embora os primeiros
possam falhar tristemente na realização e manifestação prática do seu verdadeiro
caráter e dignidade.
__________
(1) É muito interessante notar como o Espírito de Deus, em Romanos 9, e, na
verdade, através de toda a Escritura, nos precaver contra as conclusões horrendas
que a mente humana tira da doutrina da eleição de Deus. O que Ele diz dos "vasos
da ira" é que eles são simplesmente para "destruição". Não diz que Deus os
"preparou".
Ao passo que, por outro lado, quando se refere aos vasos de misericórdia, diz que
Deus "para glória já dantes os preparou". Isto é notável.
Se o leitor consultar por um momento Mateus 25:34 a 41 há-de encontrar outro
caso notável e belo da mesma coisa.
Quando o rei se dirige aos que estão à Sua direita, diz-lhes; "Vinde, benditos de
meu Pai, possuí por herança o Reino que vos está preparado, desde a fundação do
mundo" (versículo 34).
Porém quando fala aos que estão à Sua esquerda, diz: "Apartai-vos de mim,
malditos." Não diz, "malditos de meu Pai". E, além disso, acrescenta, "para o fogo
eterno" preparado, não para vós, mas "para o diabo e seus anjos" (versículo 41).
Em suma, é, portanto, claro que Deus "preparou" um reino de glória e "vasos de
misericórdia" para herdarem esse reino; mas não preparou "o fogo eterno" para os
humanos, mas sim para "o diabo e seus anjos"; nem tão-pouco preparou os "vasos
para ira", mas eles mesmos se prepararam para isso.
A Palavra de Deus estabelece tão claramente a "eleição" como nos avisa contra "a
condenação". Todos os que se encontrarem no céu terão de dar graças a Deus por
isso, e todo aquele que se achar no inferno terá de agradecer a si próprio por isso.
O Conhecimento de si Mesmo
Não pode deixar de notar-se o fato que visto Jacó ter falhado em entender e julgar
o caráter natural da sua carne perante Deus, foi, na providência de Deus, levado
para a própria esfera na qual esse caráter foi inteiramente revelado nos seus traços
mais largos. Foi conduzido a Harã, o país de Labão e Rebeca, a própria escola
donde esses princípios, de que ele era um adepto notável, tinham emanado, e onde
eram ensinados, mostrados e mantidos. Se alguém quisesse aprender o que Deus
era tinha de ir a Betel; se desejasse conhecer o que o homem era devia ir a Harã.
Mas Jacó havia falhado em receber a revelação que Deus lhe dera de Si Próprio em
Betel, e portanto foi para Harã, e ali mostrou o que era — e, oh! que contendas e
que mesquinhez! Que subterfúgios e que astúcia! Não mostra confiança santa em
Deus, nem fé e esperança n'EIe.
É verdade que Deus estava com Jacó — porque nada pode impedir o brilho da
graça divina. Além disso, ele reconhece a presença e fidelidade de Deus, em certa
medida. Todavia, nada pode fazer sem um projeto e um plano: não deixa que Deus
trate da questão das suas mulheres e do seu salário, mas procura arranjar tudo por
meio da sua habilidade e procedimento. Numa palavra, é o "suplantador" em tudo.
Veja o leitor, por exemplo, o capítulo 30:37 a 42, e diga se é possível encontrar uma
melhor obra-prima de esperteza. É verdadeiramente um retrato perfeito de Jacó.
Em vez de permitir que Deus multiplicasse "todos os salpicados e malhados, e todos
os morenos entre os cordeiros", como evidentemente o Senhor teria feito, se Jacó
tivesse confiado n'Ele, ele dispôs-se a conseguir a sua multiplicação por meio de
um plano que só podia ter achado a sua origem na mente de um Jacó. O mesmo
aconteceu com todos os seus atos, durante os vinte anos em que morou com Labão;
e finalmente, ele, muito caracteristicamente "raspa-se", mantendo deste modo, em
tudo, conformidade consigo próprio.
O Conhecimento do Deus da Graça
Ora, é segundo o verdadeiro caráter de Jacó, de lugar em lugar da sua
extraordinária história, que se obtém uma maravilhosa vista da graça divina.
Ninguém senão Deus poderia suportar uma pessoa como Jacó assim como ninguém
senão Deus teria tratado com uma pessoa assim. Graça começa pelo ponto mais
baixo. Recebe o homem como ele é, e trata com ele no pleno conhecimento do que
ele é. É de grande importância compreender este aspecto da graça no ponto de
decisão de alguém; habilita-nos a levar, com firmeza de coração, as descobertas
posteriores de vileza pessoal, que tão frequentemente abalam a confiança e
perturbam a paz dos filhos de Deus.
Muitos não compreendem desde o princípio a ruína completa da sua natureza, tal
qual se manifesta na presença de Deus, embora os seus corações hajam sido
atraídos pela graça, e as suas consciências tranquilizadas, de algum modo, pela
aplicação do sangue de Cristo. Por isso, à medida que vão avançando na sua
carreira, começam a fazer descobertas mais profundas do mal em seus corações, e,
sendo deficientes na sua compreensão da graça de Deus, e da eficácia e extensão do
sacrifício de Cristo, levantam imediatamente a questão acerca de serem filhos de
Deus. Deste modo são tirados a Cristo e atirados para cima de si próprios, e então
ou se entregam às ordenações, de modo a manterem o seu tom de devoção, ou
caem outra vez inteiramente no mundanismo e na carnalidade. Estas
consequências são desastrosas, e o resultado de não se ter o coração estabelecido na
graça.
E isto que torna o estudo da história de Jacó tão interessante e útil. Ninguém pode
ler estes três capítulos sem ser despertado pela graça maravilhosa que pôde cuidar
de um como Jacó, e não apenas cuidar dele, mas dizer, depois da descoberta plena
de tudo que havia nele, que não "viu iniquidade em Israel, nem contemplou
maldade em Jacó" (Nm 23:21). Deus não diz que não havia perversidade e
iniquidade em Jacó. Uma tal afirmação não daria confiança ao coração — a própria
coisa, sobre todas as coisas, que Deus quer dar. Nunca daria ânimo ao coração de
um pobre pecador dizer-lhe que nele não havia pecado — porque, enfim, ele sabe
muito bem que há —, porém, se Deus diz, com base no sacrifício perfeito de Cristo,
que não vê pecado sobre si, isso dá, infalivelmente, paz ao seu coração e à
consciência. Se Deus tivesse escolhido Esaú, não teríamos tido, de modo nenhum,
uma tal demonstração da graça; é por esta razão, que ele não aparece perante nós
na luz amável em que vemos Jacó. Quanto mais o homem se afunda, mais a graça
de Deus se eleva. À medida que o meu débito aumenta, nos meus cálculos, de
cinquenta para quinhentos talentos, do mesmo modo, a minha apreciação da
graça, e a experiência do amor que, não tendo nós nada com que pagar, pôde
liberalmente perdoar-nos tudo (Lc. 7:42), se elevam.
Bem podia o apóstolo dizer, "... bom é que o coração se fortifique com graça e não
com manjares, que de nada aproveitaram aos que a eles se entregaram" (Hb 13:9).
CAPÍTULO 32
A consciência má de Jacó
"E foi também Jacó o seu caminho, e encontraram-no os anjos de Deus". Apesar de
tudo, a graça de Deus ainda segue Jacó. Nada pode alterar o amor de Deus. Quem
Ele ama, e como ama, ama- -o até ao fim. O Seu amor é como Ele Próprio, "o
mesmo ontem, e hoje, e eternamente" (Hb. 13:8). Contudo, o pouco efeito que "o
exército de Deus" produziu em Jacó pode ser visto pelos seus atos descritos neste
capítulo. "E enviou Jacó mensageiros diante da sua face a Esaú, seu irmão, à terra
de Seir, território de Edom." Jacó sente-se evidentemente inquieto a respeito de
Esaú, e com razão: havia-o tratado mal, e a sua consciência não estava tranquila.
Contudo em vez de confiar em Deus sem reservas, ele entrega-se outra vez aos seus
planos, de modo a impedir a ira de Esaú. Procura entender-se com Esaú, em vez de
apoiar-se em Deus.
"E ordenou-lhes, dizendo: Assim direis a meu senhor Esaú: Assim diz Jacó, teu
servo-. Como peregrino morei com Labão e me detive lá até agora." Tudo isto
indica uma alma muito afastada do seu centro em Deus. "Meu senhor", e "teu
servo", não é a linguagem própria de um irmão ou de alguém cônscio da dignidade
da presença de Deus; mas era a linguagem de Jacó, e de Jacó, também, com uma má
consciência.
"E os mensageiros tornaram a Jacó, dizendo: Fomos a teu irmão Esaú; e também ele
vem a encontrar-te, e quatrocentos varões com ele. Então, Jacó temeu muito e
angustiou-se." Mas o que faz ele primeiramente?- Confia em Deus? Não, começa a
atuar:
"... repartiu em dois bandos o povo que com ele estava, e as ovelhas, e as vacas, e os
camelos. Porque dizia: Se Esaú vier a um bando, e o ferir, o outro bando escapará."
O primeiro pensamento de Jacó era sempre um plano, e ele não é mais que um
verdadeiro exemplo do pobre coração humano. Verdade é que depois de ter feito o
seu plano ele volta-se para Deus, e pede-Lhe libertação; mas tão depressa acaba de
orar, recomeça os seus planos. Bom, orar e fazer planos nunca dará resultado. Se eu
fizer planos, estou confiando, mais ou menos, nos meus planos; mas quando oro,
devo descansar unicamente em Deus. Por isso, as duas coisas são inteiramente
incompatíveis: destroem-se virtualmente uma à outra. Quando a minha vista está
ocupada com a minha própria administração das coisas não estou preparado para
ver Deus atuar por mim; e nesse caso, a oração não é a expressão da minha
necessidade, mas apenas o cumprimento supersticioso de alguma coisa que julgo
deve ser feita, ou pode ser o pedido a Deus para santificar os meus planos. Isto
nunca dará resultado. O princípio não é pedir a Deus para santificar e abençoar os
meus planos, mas pedir-Lhe para o fazer Ele Próprio (1).
__________
(1) Sem dúvida, quando a fé deixa Deus atuar, Ele empregará os Seus meios; porém
isto é uma coisa totalmente diferente de Ele aceitar e abençoar os planos e
preparativos da incredulidade e impaciência. Esta distinção não é suficientemente
compreendida.
Isto foi uma nova era na história do suplantador e engenhoso Jacó. Até aqui ele
havia-se agarrado aos seus meios e caminhos; mas agora é levado a dizer "não te
deixarei ir". Bom, o leitor dirá que Jacó não se exprimiu assim até que "a juntura da
sua coxa foi tocada". Este simples fato é suficiente para concretizar a verdadeira
interpretação de toda a cena. Deus lutava com Jacó para o levar a este ponto. Já
vimos que, quanto ao poder de Jacó na oração, tão depressa pronunciava algumas
palavras a Deus mostrava logo o verdadeiro segredo da independência da sua alma,
dizendo: "Eu o aplacarei (a Esaú) com o presente." Teria dito isto se tivesse
realmente compreendido o significado do oração ou da verdadeira dependência
em Deus? Certamente que não. Se tivesse esperado só em Deus, para aplacar Esaú,
poderia ter dito: "eu o aplacarei com o presente?" Decerto que não! E preciso que
Deus e a criatura conservem o seu lugar distinto, e sempre assim será com toda a
alma que conhece a santa realidade de uma vida de fé.
Mas, oh! aqui está onde nós falhamos, se podemos falar uns pelos outros! Sob a
fórmula plausível e aparentemente piedosa de usarmos meios, nós realmente
encobrimos a infidelidade dos nossos pobres corações enganosos; pensamos que
estamos esperando em Deus para abençoar os nossos meios, ao passo que, na
realidade, O afastamos confiando nos meios, em vez de dependermos d'Ele, Oh!
que os nossos corações possam compreender o mal deste procedimento! Possamos
nós aprender a confiar mais simplesmente em Deus somente, para que assim a
nossa história possa ser mais caracterizada por aquela santa elevação acima das
circunstâncias através das quais estamos passando. Não é uma coisa fácil chegar a
conhecer-se a nulidade da criatura até ao ponto de poder dizer-se: "não te deixarei
ir se me não abençoares". Dizer isto do coração e permanecer no seu poder é o
segredo de todo o verdadeiro poder. Jacó disse-o quando a juntura da sua coxa foi
tocada; mas não antes. Lutou muito, até ceder, porque a sua confiança na carne era
grande. Porém, Deus pode deprimir até ao pó o caráter mais ativo. Ele sabe como
tocar a mola do poder da natureza, e escrever a sentença de morte inteiramente
sobre ela; e até que isto não for feito não pode haver verdadeiro poder com Deus
ou o homem. Temos de ser "fracos" para podermos ser "fortes". "O poder de Cristo"
só pode "repousar sobre nós" em ligação com o conhecimento das nossas fraquezas.
Cristo não pode pôr o selo da Sua aprovação sobre o poder da natureza, a sua
sabedoria ou a sua glória: todas estas coisas têm de submergir-se para que Ele possa
levantar-Se. A natureza humana nunca poderá constituir, de modo nenhum, uma
base para manifestar a graça ou o poder de Cristo; pois se pudesse sê-lo então a
carne podia gloriar- se na Sua presença; mas isto, como sabemos, nunca poderá ser.
E assim como a manifestação da glória de Deus, e o nome ou caráter de Deus, estão
ligados com o afastamento completo da natureza, do mesmo modo a alma nunca
poderá gozar a revelação daquela enquanto esta não for posta de parte. Por isso,
embora Jacó fosse intimado a dizer o seu nome, ou seja "Jacó é um suplantador",
todavia não recebe revelação do nome d'Aquele que havia lutado com ele até o
deixar por terra. Jacó recebeu para si o nome de "Israel, ou príncipe", o que
representava um grande passo andado; mas quando diz: "Dá-me, peço-te, a saber o
teu nome", recebe a resposta: "Porque perguntas pelo meu nome?" O Senhor
recusa dizer o Seu nome, embora tivesse levado Jacó ao ponto de dizer a verdade
quanto a si mesmo e o abençoasse de acordo com ela.
CAPÍTULOS 33 E 34
Siquém
Então Jacó muda-se para Siquém, e compra terreno, faltando deste modo ainda à
medida divina, e o nome pelo qual chama o seu altar é indicativo do estado moral
da sua alma. Chama-o "El-elohe-Israel" ou "Deus, o Deus de Israel". Isto era fazer
uma ideia muito contratual de Deus. Verdade seja que é nosso privilégio conhecer
Deus como nosso Deus; porém é muito melhor conhecê-Lo como Deus da Sua
própria casa, e contemplarmo-nos a nós próprios como partes dessa casa. É
privilégio do crente conhecer Cristo como sua Cabeça; contudo é maior privilégio
conhecê-Lo como a Cabeça do Seu corpo, a Igreja, e conhecermo-nos como
membros desse corpo.
Teremos ocasião de ver, quando chegarmos ao capítulo 35, como Jacó é levado a
formar uma ideia de Deus mais elevada; em Siquém ele estava numa condição
espiritual baixa, e foi obrigado a sentir as suas consequências; como sucede sempre
que não alcançarmos a posição que nos é destinada. As duas tribos e meia que
ficaram do lado de cá do Jordão foram as primeiras a cair nas mãos do inimigo.
Assim aconteceu com Jacó. Vemos, no capítulo 34, os frutos amargos da sua
peregrinação em Siquém. É lançada uma mancha sobre a sua família, a qual Simeão
e Levi procuram limpar, na energia e violência da natureza, e que levou ainda a
uma mais profunda dor; e foi isso, também, que tocou Jacó ainda mais vivamente
do que o insulto feito a sua filha: "Então disse Jacó a Simeão e a Levi: Tendes-me
turbado, fazendo-me cheirar mal entre os moradores desta terra, entre os cananeus
e fereseus, sendo eu pouco povo em número, ajuntar-se-ão, e ficarei destruído, eu
e minha casa" (capítulo 34:30). Deste modo, foram as consequências quanto a si
próprio que mais afligiram Jacó. Parece que viveu sempre em constante perigo
para si e sua família, mostrando em toda a parte um espírito ansioso, cauteloso,
tímido e calculista, inteiramente incompatível com uma vida de genuína fé em
Deus.
CAPÍTULO 35
O Altar de Betel
Contudo, há outra coisa a notar no regresso de Jacó a Betel. Ele é convidado a
edificar um altar ao Deus que lhe apareceu, quando fugia diante da face de seu
irmão. E assim lembrado do dia da sua "angústia". É bom, por vezes, que as nossas
mentes sejam levadas desta maneira ao ponto em que na nossa história nos
achamos lançados ao degrau mais baixo da escala. Deste modo Saul foi
reconduzido ao tempo em que era pequeno aos seus olhos. É este o ponto de
partida para todos nós. "...Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos..." (1 Sm
15:17), é um ponto de que necessitamos de ser lembrados muitas vezes. E então
que o coração descansa realmente em Deus. Depois começamos a sentir que somos
alguma coisa, e o Senhor é obrigado a ensinar- nos outra vez a nossa própria
inutilidade.
Quando se entra no princípio ao serviço ou se é chamado a dar testemunho, que
sensação se tem então de fraqueza pessoal e incapacidade! E, como consequência,
que dependência de Deus, que apelos sinceros e fervorosos Lhe são então feitos por
auxílio e poder! Mais tarde começamos a pensar que, por termos estado tanto
tempo ao serviço, podemos desempenhar bem o nosso cargo sós, pelo menos já não
existe a mesma sensação de fraqueza, ou a mesma dependência simples em Deus; e
então o nosso ministério torna-se pobre, fraco, petulante, uma coisa faladora, sem
unção ou poder—uma coisa que resulta não da operação exaustiva do Espírito mas
das nossas próprias mentes desgraçadas.
Desde os versículos 9 a 15 Deus renova as Suas promessas a Jacó e confirma o seu
novo nome de "príncipe", em vez de "suplantador"; e Jacó chama outra vez o nome
daquele lugar "Betel".
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
JUDÁ E TAMAR
CAPÍTULOS 39 A 45
Existe muito mais de valor prático na compreensão deste princípio do que pode
parecer à primeira vista. O intuito de Satanás, bem como a tendência de nossos
corações é sempre levar-nos a ficar aquém do objetivo de Deus em todas as coisas, e
sobre tudo no que diz respeito ao centro da nossa união como cristãos. E um
sentimento vulgar que "o sangue do Cordeiro é a união dos santos", isto é, que é o
sangue que forma o seu centro de união. Ora que é o sangue infinitamente precioso
de Cristo que nos põe individualmente como adoradores na presença de Deus, é
bem-aventuradamente verdadeiro. O sangue, portanto, forma a base divina da
nossa comunhão com Deus. Porém tratando-se do centro da nossa união como
Igreja, devemos ter em vista o fato que o Espírito Santo nos reúne para a Pessoa de
um Cristo ressuscitado e glorificado; e esta grande verdade dá o caráter—caráter
elevado e santo—à nossa união como cristãos. Se tomarmos outra posição, que não
esta, então, formamos inevitavelmente uma seita ou ismo. Se nos reunirmos em
volta de uma ordenação, por muito importante que seja, ou em torno de uma
verdade, por mais indiscutível, fazemos de alguma coisa o nosso centro, que não
Cristo.
Por isso é muito importante ponderar as consequências práticas que resultam da
verdade de sermos reunidos para um Cristo ressuscitado e glorificado no céu. Se
Cristo estivesse na terra, seríamos reunidos para Ele aqui; mas, visto que está
oculto nos céus, a Igreja toma o seu caráter da posição que Ele tem ali. Por isso,
Cristo podia dizer: "Não são do mundo, como eu do mundo não sou", e também, "e
por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na
verdade". (Jo 17:16-19). Assim também em 1 Pedro 2:4-5: "Chegando-vos para ele,
a pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens, mas para com Deus eleita e
preciosa, vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e
sacerdócio santo, para oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo". Se somos reunidos para Cristo, temos de ser reunidos para Ele como
Ele é, e onde Ele está; e quanto mais o Espírito de Deus conduzir as nossas almas à
compreensão disto, tanto mais veremos o caráter da conduta que nos convém. A
noiva de José foi unida a si, não na cova nem no cárcere, mas na dignidade e glória
da sua posição no Egito; e, no seu caso, não podemos ter dificuldade em perceber a
grande diferença entre as duas posições.
Além disso, lemos, "e nasceram a José dois filhos (antes que viesse o ano da fome)"
(capítulo 41:50). Aproximava-se uma época de tribulações; mas antes disso veio o
fruto da sua união. Os filhos que Deus lhe deu foram chamados à existência antes
deste tempo de provação. Assim será com respeito à Igreja. Todos os seus membros
serão chamados, o corpo será acabado e ligado à Cabeça no céu, antes da "grande
tribulação" que há-de vir sobre toda a terra.
Embora os olhos estejam obscurecidos, a visão da fé é penetrante. Ele não vai ser
enganado quanto à posição destinada a Efraim e Manassés nos desígnios de Deus.
Não tem que estremecer, como seu pai Isaque, em capítulo 27:33, "estremeceu de
um estremecimento muito grande", em face de um erro quase fatal. Antes pelo
contrário. A sua resposta ao filho menos instruído é, "eu sei meu filho, eu sei". O
poder de senso não tem, como no caso de Isaque, obscurecido a sua visão espiritual.
Aprendera na escola da experiência a importância de se manter agarrado aos
propósitos divinos, e a influência da natureza não pode afastá-lo deles.
No capítulo 48:11 temos um lindo exemplo do modo como o nosso Deus sempre se
eleva acima de todos os nossos pensamentos, e Se mostra melhor do
Aspectos Proféticos
E também a graça admirável de José em tudo: embora exaltado por Faraó, ele
oculta-se, com efeito, e conserva o povo em permanente obediência ao rei. Faraó
diz: "Ide a José" (capítulo 41:55), e José, com efeito, diz: "tudo o que tendes e sois
deveis a Faraó". Tudo isto é muito interessante e conduz a alma a esse tempo
glorioso em que o Filho do homem tomará as rédeas do governo nas Suas mãos, por
decreto divino, e dominará sobre toda a criação redimida; a Sua Igreja—a noiva do
Cordeiro— ocupando o lugar mais próximo e de maior intimidade, segundo os
desígnios eternos. A casa de Israel, plenamente restaurada, será alimentada e
mantida pela Sua mão graciosa; e, toda a terra conhecerá a profunda
bem-aventurança de estar sob o Seu cetro. Finalmente, tendo posto todas as coisas
em sujeição, Ele entregará outra vez as rédeas do governo nas mãos de Deus, para
que "Ele seja tudo em todos". De tudo isto podemos fazer alguma ideia da riqueza e
abundância da história de José. Em suma, ela põe perante nós, distintamente, em
figura, a missão do Filho à casa de Israel — a Sua humilhação e rejeição — os
profundos exercícios, arrependimento e restauração final de Israel —, a união da
Igreja com Cristo, a Sua exaltação e o governo universal, e, por fim, aponta-nos o
tempo em que "Deus será tudo em todos". É escusado frisar que todas estas coisas
são largamente ensinadas, e plenamente estabelecidas, através de todo o cânon
inspirado; não estabelecemos, portanto, a sua verdade sobre a história de José;
contudo é consolador encontrarmos aqui tais símbolos destas verdades preciosas;
provam-nos a unidade divina que atravessa toda a Escritura. Quer nos voltemos
para o Gênesis ou Efésios — os profetas do Velho ou do Novo Testamento —
aprendemos as mesmas verdades: "TODA A ESCRITURA É DIVINAMENTE
INSPIRADA."
FIM
— CAPÍTULO 1 —
A REDENÇÃO
As Parteiras Hebreias
Os versículos finais deste capítulo oferecem-nos uma lição edificante com a conduta
dessas mulheres tementes a Deus, Sifrá e Puá. Arrostando com a ira do rei não
executaram o seu plano cruel e por isso Deus lhes fez casas."...aos que me honram,
honrarei" (1 Sm 2:30). Recordemos sempre esta lição e atuemos de acordo com ela.
— CAPÍTULO 2 —
O NASCIMENTO DE MOISÉS
O Fracasso de Satanás
Esta parte do Livro do Êxodo abunda em princípios profundos de verdade divina—
princípios que podemos subdividir da seguinte forma: o poder de Satanás, o poder de
Deus e o poder da fé.
No último versículo do primeiro capítulo lemos: "Então, ordenou Faraó a todo o seu povo,
dizendo: A todos os filhos que nascerem lançareis no rio". Este era o poder de Satanás. O
rio era o lugar da morte; e, por meio da morte, o inimigo procurou frustrar os propósitos de
Deus. Tem sido sempre assim. A serpente sempre tem vigiado com olhar maligno os
instrumentos que Deus está prestes a usar para realizar os Seus desígnios. Vejamos o
caso de Abel, em Gênesis, capítulo 4. A serpente não estava espreitando aquele vaso de
Deus para o pôr de parte por meio da morte? Vejamos o caso de José, em Gênesis,
capítulo 37. Aí o inimigo procura pôr o homem escolhido por Deus num lugar de morte.
Vejamos o caso da "semente real", em 2 Crônicas, capítulo 22; a matança promovida por
Herodes, em Mateus 2; e a morte de Cristo, em Mateus 27. Em todos estes casos vemos
o inimigo procurando, com a morte, interromper a corrente de atuação divina.
Mas, bendito seja Deus, há qualquer coisa depois da morte. Toda a esfera de ação divina,
pelo que respeita à redenção, está para além dos limites do domínio da morte. Quando o
poder de Satanás se esgota é que o de Deus começa a mostrar-se. A sepultura é o limite
da atividade de Satanás; mas é aí que começa também a atividade divina. Isto é uma
verdade gloriosa. Satanás tem o poder da morte; porém, Deus é o Deus dos vivos e dá a
vida que está fora do alcance e poder da morte—uma vida na qual Satanás não pode
tocar. O coração encontra doce refrigério nesta verdade, num mundo onde reina a morte.
A fé pode contemplar calmamente Satanás empregando a plenitude do seu poder; ela
pode apoiar-se sobre a potente intervenção de Deus na ressurreição. Pode postar-se
junto da sepultura que acabou de fechar-se sobre um ente amado e beber dos lábios
d'Aquele que é "a ressurreição e a vida" a elevada garantia de uma imortalidade gloriosa.
Ela sabe que Deus é mais forte que Satanás e pode portanto esperar, serenamente, a
manifestação desse poder superior, e enquanto assim espera encontra a sua vitória e a
sua paz. Temos um nobre exemplo deste poder da fé nos primeiros versículos do capítulo
que estamos considerando.
Os Pais de Moisés
"E foi-se um varão da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu,
e teve um filho, e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo,
porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos e a betumou com betume e pez; e,
pondo nela o menino, a pôs nos juncos à borda do rio. E a irmã do menino postou-se de
longe, para saber o que lhe havia de acontecer" (versículos l a 4).
Aqui temos uma cena de tocante interesse, qualquer que seja o ponto de vista por que a
encaramos. Na realidade, era simplesmente o triunfo da fé sobre as influências da
natureza e da morte, deixando lugar para que o Deus da ressurreição agisse na Sua
esfera e no caráter que Lhe é próprio. É certo que o poder do inimigo está patente, visto a
criança ter de ser colocada em tal posição — em princípio, uma posição de morte. E, além
disso, era como se uma espada atravessasse o coração da mãe ao ver o seu filho
precioso exposto à morte. Satanás podia agir e a natureza podia chorar; contudo, o
Vivificador dos mortos estava detrás daquela nuvem sombria e a fé via-O ali iluminando o
cume dessa nuvem com os Seus raios brilhantes e vivificadores. "Pela fé, Moisés, já
nascido, foi escondido três meses por seus pais, porque viram que era um menino
formoso; e não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:23).
A Arca de Junco
Assim, esta digna filha de Levi ensina-nos uma santa lição. A sua arca de juncos
betumada com betume e pez proclama a confiança que ela tinha na verdade que havia
qualquer coisa que, como no caso de Noé, "pregoeiro da justiça", podia defender aquele
"menino formoso" das águas da morte. Devemos nós supor que esta "arca" fosse apenas
uma invenção humana? Foi inventada por previsão e habilidade do homem'?- Foi a
criança colocada na arca por inspiração do coração da mãe, que alimentava a doce mas
ilusória esperança de salvar, por esse meio, o seu ente querido da morte? Se a nossa
resposta a estas interrogações fosse afirmativa perderíamos, quanto a mim, o ensino
precioso de todo o assunto. Como admitir a suposição que a "arca" fosse inventada por
quem não via outro destino para o seu filho senão afogando-o? Não há outra maneira de
encarar essa significante estrutura senão como um saque da fé apresentado na tesouraria
do Deus da ressurreição. Aquela arca foi inventada pela fé, como vaso de misericórdia,
para conduzir o "menino formoso" através das águas da morte ao lugar que lhe era
designado pelos propósitos imutáveis do Deus vivo. Quando contemplamos esta filha de
Levi curvada sobre aquela "arca" de juncos, que a sua fé havia construído, despedindo-se
do seu filho, concluímos que ela segue as mesmas pisadas que seu pai Abraão deu
quando se levantou de diante do seu morto para comprar a cova de Macpela aos filhos de
Hete (Gênesis, capítulo 23). Não vemos nela apenas a energia da natureza que se
debruça sobre o objeto das suas afeições prestes a cair nas garras do rei dos terrores.
Não, mas reconhecemos nela a energia da fé que a habilitou a postar-se, como
vencedora, junto da margem do caudal frio da morte, observando o vaso escolhido de
Jeová até que passe em segurança para a outra margem.
Sim, prezado leitor, a fé pode voar ousadamente a essas regiões que estão muito
afastadas deste mundo de morte e vasta desolação; e com o seu olhar de águia
atravessar essas nuvens que se acumulam sobre a sepultura e ver como o Deus da
ressurreição cumpre os Seus desígnios eternos numa esfera onde os dardos da morte
não podem jamais chegar. Ela pode postar-se sobre a Rocha dos Séculos e esperar em
atitude de triunfo enquanto as vagas da morte bramam e se desfazem a seus pés.
Deixai-me perguntar: que valor tinha o mandamento do rei para alguém que possuía estes
princípios celestiais?
Que importância tinha esse mandamento para uma mulher que podia permanecer
calmamente ao lado da sua "arca de juncos" e encarar impavidamente a morte? O
Espírito Santo responde: "não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:26). O espírito que
sabe um pouco o que é ter comunhão com Aquele que ressuscita os mortos nada receia e
pode fazer coro triunfante com 1 Coríntios 15: "Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde
está, ó inferno, a tua vitoriai Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a
lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo". Pode
pronunciar estas palavras de triunfo sobre Abel martirizado, sobre José no fundo da cova,
sobre Moisés na arca de juncos, sobre "a semente real" exterminada por mão de Atália e
sobre os inocentes de Belém, assassinados por ordem do cruel Herodes; e, acima de
tudo, no túmulo do Capitão da nossa salvação.
Contudo, é possível que alguns não possam distinguir a obra da fé na arca de juncos.
Alguns talvez não possam ultrapassar a compreensão da irmã de Moisés, a qual se
"postou de longe, para saber o que lhe havia de acontecer". É que a "sua irmã" não
estava à altura da mãe pelo que respeitava à fé. Sem dúvida, havia nela esse profundo
interesse, essa verdadeira afeição, que vemos em "Maria Madalena e a outra Maria,
assentadas defronte do sepulcro" (Mt 27:61). Porém, naquela que fez a arca de juncos
havia alguma coisa muito superior ao interesse ou afeto. E certo que a mãe do menino
não se postou de longe para ver o que havia de acontecer ao seu filho; e, por isso, à
semelhança do que acontece frequentemente, a dignidade da fé poderia parecer, no seu
caso, indiferença. Porém, não era indiferença, mas, sim, verdadeiro engrandecimento da
fé. Se o afeto natural não a obrigava a ficar junto daquele ambiente de morte era apenas
porque o poder da fé lhe havia confiado uma obra mais nobre na presença do Deus da
ressurreição. A fé dela havia aberto lugar para Deus naquele ambiente, e Ele manifesta-
Se logo duma maneira gloriosa.
A Filha de Faraó
"E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam pela borda do
rio; e ela viu a arca no meio dos juncos e enviou a sua criada, e a tomou. E, abrindo-a, viu
o menino, e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele e disse: Dos
meninos dos hebreus é este" (versículo 5-6). Aqui, pois, começa a soar a resposta divina
em doce murmúrio aos ouvidos da fé. Deus intervinha em tudo isto. O racionalismo, o
cepticismo, a infidelidade, e o ateísmo, podem rir-se desta ideia. E a fé também; mas são
risos diferentes. Os primeiros riem com desprezo da ideia da intervenção divina num
banal passeio duma princesa real pela margem do rio. A segunda ri de cordial
contentamento ao pensar que Deus está em tudo. E, de fato, se alguma vez Deus
interveio em qualquer coisa foi neste passeio da filha do Faraó, embora ela o não
soubesse.
Uma das mais ditosas ocupações da alma regenerada é seguir as pegadas divinas em
circunstâncias e acontecimentos que a mente irrefletida atribui ao acaso ou à fatalidade.
Por vezes a coisa mais banal pode ser um importantíssimo elo numa cadeia de
acontecimentos de que Deus Se está servindo para levar avante os Seus grandiosos
desígnios. Vejamos, por exemplo, Ester 6:1; que encontramos? Um monarca pagão que
passa uma noite inquieta. Nada há de extraordinário nisso, podemos supor; e, no entanto,
esta circunstância constitui um elo numa grande cadeia de acontecimentos providenciais,
ao fim da qual surge a maravilhosa libertação dos descendentes oprimidos de Israel.
Assim sucedeu com a filha do Faraó e o seu passeio pela margem do rio. Mas ela não
pensava que estava ajudando os intentos do "Senhor Deus dos hebreus"! Mal ela sabia
que o bebê que chorava na arca de juncos viria ainda a ser o instrumento do Senhor para
abalar a terra do Egito até aos seus alicerces! E contudo era assim. O Senhor pode fazer
com que a cólera do homem redunde em Seu louvor (SI 76:10) e restringir o restante
dessa cólera. Como a verdade deste fato transparece claramente nas palavras que se
seguem!
"Então, disse sua irmã à filha de Faraó: Irei eu a chamar uma ama das hebreias, que crie
este menino para ti? E a filha de Faraó disse-lhe: Vai. E foi-se a moça e chamou a mãe do
menino. Então, lhe disse a filha de Faraó: Leva este menino e cria-mo; eu te darei teu
salário. E a mulher tomou o menino e criou-o. E, sendo o menino já grande, ela o trouxe à
filha de Faraó, a qual o adotou; e chamou o seu nome Moisés e disse: Porque das águas
o tenho tirado" versículos (7 a 10).
A fé da mãe de Moisés encontra aqui a sua inteira recompensa; Satanás fica embaraçado
e a sabedoria maravilhosa de Deus é revelada. Quem poderia supor que aquele que
havia dito às parteiras das hebreias "se for filho, matai-o", acrescentando, "a todos os
filhos que nascerem lançareis no rio", havia de ter na sua própria corte um desses
próprios filhos? O diabo foi vencido com as suas próprias armas, porque Faraó, de quem
queria servir-se para frustrar os propósitos de Deus, foi usado por Deus para alimentar e
educar esse Moisés, que havia de ser o Seu instrumento para confundir o poder de
Satanás. Providência notável! Maravilhosa sabedoria! Certamente, "até isto procede do
Senhor" (Is 28:29). Possamos nós confiar n'Ele com mais simplicidade, e então a nossa
carreira será mais brilhante e o nosso testemunho mais eficaz.
A Sua Educação
Meditando sobre a história de Moisés é necessário considerar este grande servo de Deus
debaixo do ponto de vista duplo do seu caráter pessoal e o seu caráter figurativo.
No caráter pessoal de Moisés há muito, muitíssimo, que aprender. Deus teve não só de o
elevar como de o treinar, dum e doutro modo, durante o longo espaço de oitenta anos:
primeiro na casa da filha do Faraó e depois "atrás do deserto". À nossa fraca mentalidade
oitenta anos parecem muito tempo para a preparação dum ministro de Deus. Mas os
pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos. O Senhor sabia que eram
necessários esses dois períodos de quarenta anos para preparar o Seu vaso eleito.
Quando Deus educa alguém, fá-lo duma maneira digna de Si e do Seu Santo serviço. O
seu trabalho não o confia a noviços. O servo de Cristo tem muitas lições que aprender,
deve passar por vários exercícios e padecer muitos conflitos em segredo antes de estar
realmente apto a agirem público. A natureza humana não gosta deste método — prefere
evidenciar-se em público a aprender em particular. Gosta mais de ser contemplada e
admirada pelos homens do que de ser disciplinada pela mão de Deus. Porém isto não
serve. Nós temos que seguir o caminho traçado pelo Senhor.
A natureza pode precipitar-se no campo das operações, mas Deus não a quer ali. É
necessário que aquilo que é humano seja quebrantado, consumido e posto de lado: o
lugar que lhe compete é o da morte. Se a natureza teima em entrar em atividade, Deus,
na Sua fidelidade infalível e na Sua perfeita sabedoria, ordena as coisas de tal maneira
que o resultado dessa atividade se transforma em fracasso e confusão. Ele sabe o que
há-de fazer com a nossa natureza, onde deve ser colocada e como guardá-la. Oh! que
todos possamos estar mais íntima comunhão com Deus no que diz respeito aos Seus
pensamentos quanto ao "eu" e tudo que com ele se relaciona. Assim cairemos menos em
erro, a nossa vida será mais fiel e moralmente elevada, o nosso espírito estará tranquilo e
o nosso serviço será, então, mais eficiente.
____________________
(1) Em João 17:21- 23 fala-se da unidade que a Igreja tinha a responsabilidade de
manter, mas em que falhou completamente, e da unidade que Deus realizará
infalivelmente e que manifestará em glória.
— CAPÍTULO 3 —
A Escola de Deus
Vamos agora retomar a história pessoal de Moisés e considerar este grande servo de
Deus durante o período tão interessante da sua vida de solidão, período este que não vai
além de quarenta dos seus melhores anos, se assim podemos dizer. O Senhor, na Sua
bondade, Sua sabedoria e Sua fidelidade, põe o Seu servo à parte, livre das vistas e dos
pensamentos dos homens, para o poder educar debaixo da Sua imediata direção. Moisés
tinha necessidade disso. Havia passado quarenta anos na casa do Faraó; e, conquanto a
sua estadia ali não deixasse de ser proveitosa, todavia, tudo que tinha aprendido ali não
era nada em comparação com o que aprendeu no deserto. O tempo passado na corte
pode ter sido valioso, mas a sua estadia no deserto era indispensável.
Nada há que possa substituir a comunhão secreta com Deus ou a educação que se
recebe debaixo da Sua disciplina. "Toda a ciência dos egípcios" não havia habilitado
Moisés para o serviço a que devia ser chamado. Havia podido seguir uma carreira
brilhante nas escolas do Egito, e deixara-as coberto de honras literárias, com uma
inteligência enriquecida por vastos conhecimentos e o coração cheio de orgulho e
vaidade. Havia podido tomar os seus títulos nas escolas dos homens, mas tinha ainda de
aprender o alfabeto na escola de Deus. Porque a sabedoria e a ciência humanas, por
muito valor que tenham em si mesmas, não podem fazer de ninguém um servo de Deus
nem qualificar alguém para desempenhar qualquer cargo no serviço divino. Tais
conhecimentos podem qualificar o homem natural para desempenhar um papel
importante diante do mundo: porém é necessário que todo aquele que Deus quer
empregar ao Seu serviço seja dotado de qualidades bem diferentes, qualidades aliás que
só se adquirem no santo retiro da presença de Deus.
Todos os servos de Deus têm aprendido por experiência a verdade do que acabamos de
dizer: Moisés em Horeb, Elias no ribeiro de Kerith, Ezequiel junto ao rio Chebar, Paulo na
Arábia, e João em Patmos, são todos exemplos da grande importância de estarmos a sós
com Deus. E se considerarmos o Servo Divino, vemos que o tempo que Ele passou em
retiro foi dez vezes aquele que gastou no Seu ministério público. Ainda que perfeito em
inteligência e vontade, passou trinta anos na casa humilde de um carpinteiro de Nazareth,
antes de se manifestar em público. E, mesmo depois de ter entrado na Sua carreira
pública, quantas vezes o vemos afastar-Se das vistas dos homens, para gozar a solidão
santa da presença do Pai!
Pode perguntar-se, como poderá a falta de obreiros, que tanto se faz sentir, ser suprida
se é necessário que todos passem por uma educação secreta tão prolongada antes de
tomarem o seu trabalhou Mas isto é um assunto do Mestre, e não nosso. É Ele Quem
sabe chamar os obreiros, e Quem sabe também prepará-los. Não é obra do homem. Só
Deus pode chamar e preparar um verdadeiro obreiros, e se Ele toma muito tempo para
educar um tal homem, é porque assim o julga bom; sabemos que, se outra fosse a Sua
vontade, Ele podia realizar esta obra num instante. Uma coisa é evidente: Deus tem tido
todos os Seus servos muito tempo a sós Consigo, tanto antes como depois da sua
entrada no ministério público; ninguém poderá dispensar este treino, e sem esta
disciplina, sem este exercício privativo, nunca seremos mais que teóricos superficiais e
inúteis. Todo aquele que se aventura numa carreira pública sem se haver pesado na
balança do santuário, e medido na presença de Deus, parece-se com um navio saindo à
vela sem lastro próprio, que terá fatalmente de soçobrar ao primeiro embate do vento.
Pelo contrário, existe para todo aquele que tem passado pelas diferentes classes da
escola de Deus uma profundidade, uma solidez, e uma constância que são os elementos
essenciais na formação do caráter de um verdadeiro e eficiente servo de Deus.
Por isso, quando vemos Moisés, à idade de quarenta anos, afastado de todas as honras e
magnificência de uma corte, para passar quarenta anos na solidão do deserto, podemos
esperar vê-lo empreender uma carreira de serviço notável; no que aliás não ficamos
desapontados. Ninguém é verdadeiramente educado senão aquele a quem Deus educa.
Não está dentro das possibilidades do homem preparar um instrumento para serviço do
Senhor. A mão do homem é incapaz de moldar um "vaso idôneo para uso do Senhor" (2
Tm 2:21). Somente Aquele que quer usá-lo pode prepará-lo; e no caso presente temos
um exemplo singularmente belo do Seu modo de o fazer.
No Deserto
"E APASCENTAVA Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midiã; e levou o
rebanho atrás do deserto e veio ao monte de Deus, a Horebe" (versículo 1). Aqui temos,
pois, uma mudança admirável na vida de Moisés. Lemos em Gênesis, capítulo 46:34, que
"todo o pastor de ovelhas é abominação para os egípcios" e no entanto, Moisés, que era
"instruído em toda a ciência dos egípcios", é transferido da corte do Egito para trás do
deserto para apascentar um rebanho de ovelhas e preparar-se para o serviço de Deus.
Seguramente isto não "é o costume dos homens" (2 Sm 7:19) nem o curso natural das
coisas: é um caminho incompreensível para a carne e o sangue. Nós havíamos de pensar
que a educação de Moisés estava terminada logo que se tornou mestre de toda a
sabedoria do Egito, gozando ao mesmo tempo das vantagens que oferece a este respeito
a vida de uma corte. Poderíamos supor que um homem tão privilegiado havia de ter não
apenas uma instrução sólida e extensa mas também uma distinção tal em suas ações que
o tornariam apto para cumprir toda a espécie de serviço. Porém, ver um tal homem, tão
bem dotado e instruído, ser chamado a abandonar a sua elevada posição para ir
apascentar ovelhas atrás do deserto, e qualquer coisa incompreensível para o homem,
qualquer coisa que humilha até ao pó o seu orgulho e a sua glória, mostrando que as
vantagens humanas são de pouco valor diante de Deus; mais ainda, que são "como
esterco", não somente aos olhos do Senhor, mas aos olhos de todos aqueles que têm
sido ensinados na Sua escola (Fp. 3:8).
Existe uma diferença enorme entre o ensino humano e o divino. Aquele tem por fim
cultivar e exaltar a natureza; este começa por a "secar" e a pôr de lado. "Ora, o homem
natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e
não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2:14). Podeis
esforçar-vos por educar o homem natural tanto quanto puderdes, sem que jamais
consigais fazer dele um homem espiritual. "O que é nascido da carne é carne, e o que é
nascido do Espírito é espírito" (Jo 3:6). Se alguma vez um "homem natural" educado pôde
esperar ter êxito no serviço de Deus, esse tal foi Moisés: ele era "instruído... e poderoso
em suas palavras e obras" (At 7:22); e todavia teve que aprender alguma coisa "atrás do
deserto" que as escolas do Egito nunca lhe haviam ensinado. Paulo aprendeu muito mais
na Arábia do que jamais havia aprendido aos pés de Gamaliel (¹). Ninguém pode ensinar
como Deus; e é necessário que todos aqueles que querem aprender d'Ele estejam a sós
com Ele. Foi no deserto que Moisés aprendeu as lições mais preciosas, mais profundas,
mais poderosas e mais duráveis; e é ali que devem encontrar-se todos os que queiram
ser formados para o ministério.
______________________
(1) O leitor não deve supor, nem por um momento, que pretendemos com estes
comentários depreciar o valor de uma instrução realmente proveitosa ou a cultura das
faculdades intelectuais. De modo nenhum. Se, por exemplo, o leitor é pai deve adornar a
mente de seu filho com conhecimentos úteis: deve ensinar-lhe tudo que poderá ser
utilizado mais tarde no serviço do Mestre: não deve embaraçá-lo com aquilo que ele terá
de pôr de parte seguindo a carreira cristã, nem deve conduzi-lo, com o fim de lhe dar uma
educação brilhante, por uma região da qual é quase impossível sair com uma inteligência
imaculada. Seria tão lógico encerrá-lo numa mina de carvão durante dez anos, com o fim
de o pôr em condições de discutir as propriedades da luz e da sombra, como fazê-lo
caminhar sobre o lodaçal da mitologia pagã com o fim de o preparar para a interpretação
dos oráculos de Deus ou de o fazer capaz de pastorear o rebanho de Cristo.
A Sarça
"E apareceu-lhe o Anjo do SENHOR em uma, chama de fogo no meio de uma sarça; e
olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: agora
me virarei para lá e verei esta grande visão, porque a sarça se não queima" (versículos 2-
3). Era efetivamente uma grande visão, porque uma sarça ardia e não se consumia. A
corte do Faraó nunca poderia oferecer nada de semelhante. Porém, era uma visão
graciosa porque nela era simbolizada de um modo notável a situação dos eleitos de Deus.
Eles encontravam-se no meio do forno do Egito; e o Senhor revelava-se no meio de uma
sarça ardente. Porém, assim como a sarça se não consumia, tão-pouco eram eles
consumidos, porque Deus estava com eles. "O SENHOR dos Exércitos está conosco: o
Deus de Jacó é o nosso refúgio" (SI 46:7). Aqui temos força e segurança, vitória e paz.
Deus conosco, Deus em nós, e Deus por nós. Isto é provisão abundante para todas as
necessidades.
Não há nada mais interessante e mais instrutivo do que a maneira como aprouve ao
Senhor revelar-Se a Moisés na passagem que estamos considerando. Ele ia confiar-lhe o
encargo de tirar o Seu povo do Egito, para que eles fossem a Sua Assembleia, para
habitar no meio deles tanto no deserto como na terra de Canaã; e é do meio de uma
sarça que lhe fala. Símbolo belo, solene e próprio do Senhor habitando no meio do Seu
povo eleito e resgatado; "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29)-não para MOS
consumir, mas para consumir em nós e à nossa volta tudo que é contra a Sua santidade,
e que é, portanto, um perigo para a nossa verdadeira e eterna felicidade. "Mui fiéis são os
teus testemunhos; a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (Salmo 93:5).
O Velho e o Novo Testamento encerram vários casos em que Deus Se manifesta como
"um fogo consumidor": como por exemplo o caso de Nadabe e Abiú, em Levítico 10.
Tratava-se de uma ocasião solene. Deus habitava no meio do Seu povo, e queria manter
este numa posição digna de Si Próprio. Não podia ter feito outra coisa. Não seria para
Sua glória nem para proveito dos Seus se Ele tolerasse qualquer coisa, neles
incompatível com a pureza da Sua presença. O lugar de habitação de Deus tem que ser
santo.
Do mesmo modo, em Josué, capítulo 7, temos outra prova notável, no caso de Acã, de
que o Senhor não pode sancionar o mal com a Sua presença, qualquer que seja a forma
que o mal possa revestir ou por muito oculto que possa estar. O Senhor é "um fogo
consumidor", e, como tal, tinha de agir a respeito de tudo que pudesse manchar a
Assembleia no meio da qual habitava. Procurar unir a presença de Deus com o pecado
não julgado é o indício da impiedade.
Ananias e Safira (Atos, 5) dão-nos a mesma lição. Deus o Espírito Santo habitava na
Igreja, não somente como uma influência, mas, sim, como uma pessoa divina, de tal
maneira que ninguém podia mentir na Sua presença. A Igreja era, e é ainda agora,
morada de Deus; e é Ele Quem deve governar e julgar no meio dela. Os homens podem
reviver em união a concupiscência, a impostura e a hipocrisia; mas Deus não pode fazê-
lo. Se quisermos que Deus ande conosco, devemos julgar os nossos caminhos, ou então
Ele os julgará por nós (veja 1 Co 11:29-32).
Em todos estes casos e em muitos mais que podíamos aduzir, vemos a força destas
palavras solenes, "a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (SI 93:5).
Para aquele que a tiver compreendido, esta verdade produzirá sempre sobre ele um efeito
moral idêntico àquele que exerceu sobre Moisés: "Não te chegues para cá; tira os teus
sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa" (versículo 5). O lugar
da presença de Deus é santo, e só se pode caminhar por ele com os pés descalços.
Deus, habitando no meio do Seu povo, comunica à Assembleia desse povo um caráter de
santidade que é a base de todo o santo afeto e de toda a santa atividade. O caráter da
habitação deriva do caráter d'Aquele que a habita.
A aplicação deste princípio à Igreja, que é agora a habitação de Deus, em Espírito, é da
maior importância prática. Assim como é bem-aventuradamente verdade que Deus habita,
pelo Seu Espírito, em cada membro da Igreja, dando deste modo um caráter de santidade
ao indivíduo, é igualmente certo que Ele habita na Assembleia; e, por isso, a Assembleia
deve ser santa. O centro em volta do qual os membros se reúnem é nada menos do que a
Pessoa de um Cristo vivo, vitorioso e glorificado. O poder que os une é nada menos do
que o Espírito Santo; e o Senhor Deus Todo-Poderoso habita neles e entre eles (vede Mt
18:20; 1 Co 6:19; 3:16-17; Ef 2:21-22). Se tais são a santidade e dignidade que
pertencem à morada de Deus, é evidente que nada impuro, quer seja em princípio, quer
na prática, deve ser tolerado. Todos os que estão relacionados com esta habitação
deviam sentir a importância e solenidade destas palavras, "o lugar em que tu estás é terra
santa." "Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá" (1 Co 3:17). Estas
palavras são dignas de toda a aceitação da parte de todos os membros da Assembleia —
de cada pedra viva no Seu santo templo! Possamos nós todos aprender a pisar os átrios
do Senhor com os pés descalços!
— CAPÍTULO 4 —
A PREPARAÇÃO DO SERVO
A Vara
Porém Moisés tinha de aprender uma lição muito importante, tanto a respeito da vara
como da mão que devia usá-la. Ele tinha que aprender, e o povo tinha de ser convencido.
"E Ele disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e tornou-se em cobra; e Moisés fugia
dela. Então disse o Senhor a Moisés: Estende a tua mão e pega-lhe pela cauda.(E
estendeu a sua mão e pegou-lhe pela cauda, e tornou-se em vara na sua mão). Para que
creiam que te apareceu o SENHOR; Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque e o Deus de Jacó" (versículo 5). Trata-se de um sinal profundamente significante.
A vara tornou-se serpente e Moisés fugia dela assustado; mas, segundo ordem do
Senhor, pegou-lhe pela cauda e tornou-se numa vara. Não há nada mais próprio do que
esta figura para expressar a ideia do poder de Satanás voltado contra si mesmo, e deste
fato encontramos numerosos exemplos nos meios que Deus usa; o próprio Moisés foi um
exemplo notável. A serpente está inteiramente debaixo do poder de Cristo, e logo que
chegar ao fim da sua insensata carreira, será lançada no lago de fogo, para ali receber os
frutos da sua obra por toda a eternidade:"... a antiga serpente, "o acusador" e adversário
(Ap 12:9-10) será eternamente aterrado com a vara do ungido de Deus.
A Mão Leprosa
"E disse-lhe mais o SENHOR: Mete agora a mão no teu peito; E, tirando-a, eis que a sua
mão estava leprosa, branca como a neve. E disse: Torna a meter a tua mão no teu peito.
E tornou a meter a sua mão no peito; depois tirou-a do peito; e eis que se tornara como a
sua outra carne" (versículos 6 a 7). A mão leprosa e a sua purificação representam o
efeito moral do pecado e a maneira como o pecado foi tirado pela obra perfeita de Cristo.
Posta no peito, a mão limpa tornou-se leprosa; e a mão leprosa, posta no peito, ficou
limpa. A lepra é uma figura bem conhecida do pecado; e assim como o pecado entrou no
mundo pelo primeiro homem do mesmo modo foi tirado pelo segundo. "Porque, assim
como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um
homem" (I Co 15:21).
A degradação veio por um homem, e pelo homem a redenção; pelo homem veio a ofensa
e pelo homem o perdão; pelo homem veio o pecado e pelo homem a justiça; a morte veio
ao mundo por um homem; por um homem, a morte foi abolida, e a vida, a justiça e a
glória foram introduzidas na terra. Assim, a serpente será não só eternamente vencida e
confundida, como todos os vestígios da sua obra abominável serão apagados e
destruídos e destruídos por meio do sacrifício expiatório d Aquele que Se "manifestou
para desfazer as obras do diabo" (1 Jo 3:8).
A Falta de Eloquência
Com tudo isto o coração de Moisés não se deu por satisfeito.
"Então, disse Moisés ao SENHOR.- Ah! Senhor! Eu não sou homem eloquente, nem de
ontem, nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou
pesado de boca e pesado de língua" (versículo 10). Que terrível lentidão! Nada senão a
paciência infinita do Senhor poderia suportá-la. Evidentemente, quando Deus lhe disse,
"certamente eu serei contigo" dava-lhe a garantia infalível de que nada lhe faltaria de tudo
que fosse necessário. Se fosse necessário uma língua eloquente, que devia Moisés fazer
senão entregar o caso Aquele que lhe havia dito "EU SOU" 4 Eloquência, sabedoria,
poder, energia, estavam encerrados nesse tesouro inesgotável.
"E disse-lhe o SENHOR: Quem fez boca do homem"?- Ou quem fez o mudo, ou o surdo,
ou o que vê, ou o cego?- Não sou eu, o SENHOR ?-Vai, pois, agora, e eu serei com a tua
boca e te ensinarei o que hás de falar" (versículos 11 a 12). Graça profunda, adorável e
incomparável! Como é própria de Deus! Não há ninguém que seja como o Senhor, nosso
Deus, cuja graça paciente supera todas as nossas dificuldades e é suficientemente
abundante para todas as nossas necessidades e fraquezas. "EU O SENHOR" deveria
fazer cessar para sempre todos os argumentos dos nossos corações carnais. Mas, ah! o
raciocínio é difícil de derribar, e levanta-se de novo perturbando a nossa paz e
desonrando Aquele bendito Senhor que Se apresenta às nossas almas em toda a
plenitude da Sua graça, a fim de que sejamos cheios dela, segundo as nossas
necessidades.
É bom recordarmo-nos que, quando temos o Senhor conosco, as nossas deficiências e
fraquezas são uma ocasião para que Ele manifeste a Sua graça e infinita paciência. Se
Moisés tivesse recordado isto, a sua falta de eloquência não o teria perturbado. O
apóstolo Paulo aprendeu a dizer: "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas
fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas
fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de
Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte" (2 Co 12:9-10). Esta é, sem dúvida,
a linguagem de um que chegou a um alto grau na escola de Cristo. É a experiência de um
homem que não se havia afligido por não possuir eloquência, por quanto havia
encontrado, na graça preciosa do Senhor Jesus Cristo, uma resposta a todas as suas
necessidades, quaisquer que fossem.
O conhecimento desta verdade deveria ter livrado Moisés da sua excessiva desconfiança
e da timidez que o dominava. Depois de o Senhor, em Sua misericórdia, lhe haver
assegurado que estaria com a sua boca, ele deveria ficar tranquilo quanto à questão da
eloquência. Aquele que fez a boca do homem podia, se houvesse necessidade disso,
enchê-la da mais poderosa eloquência. Para a fé, isto é bem simples; porém o pobre
coração incrédulo confia infinitamente mais numa língua eloquente do que n'Aquele que a
criou. Este fato seria inexplicável se não conhecêssemos de que elementos se compõe o
coração natural. O coração natural não pode confiar em Deus; e esta é a causa do defeito
humilhante de desconfiança no Deus vivo, que se manifesta até mesmo entre os filhos de
Deus, quando eles se deixarem dominar, de algum modo, pela natureza humana. Por
isso, no caso presente, Moisés hesita ainda: "Ah, Senhor! Envia por mão daquele a quem
tu hás de enviar" (versículo 13). Esta exclamação equivalia, com efeito, recusar o
privilégio glorioso de ser o único mensageiro do Senhor ao Egito e a Israel.
A Falsa Humildade
Todos nós sabemos como a humildade que Deus promove é uma graça inestimável.
"Revesti-vos de humildade" é um preceito divino; e a humildade é, incontestavelmente, o
adorno mais próprio para um pecador. Porém se recusarmos tomar o lugar que Deus nos
designa ou seguir o caminho que a Sua mão nos traça, não somos humildes.
No caso de Moisés é evidente que não tinha verdadeira humildade, visto que a irado
Senhor se acendeu contra ele (versículo 14). Longe de ser humildade, o seu sentimento
havia ultrapassado os limites de simples fraqueza. Enquanto se revestiu da aparência
excessiva de timidez, embora repreensível, a graça de Deus suportou-o e respondeu-lhe
com reiteradas promessas; porém, logo que esse sentimento tomou caráter de
incredulidade e lentidão de coração, a justa ira do Senhor acendeu-se contra Moisés; e
em lugar de ser ele o único instrumento na obra de testemunho e libertação de Israel, teve
de repartir com outro este honroso privilégio.
Nada há que seja mais desonroso para Deus ou mais perigoso para nós do que uma
humildade fingida. Quando, com o pretexto de não reunirmos certas virtudes e condições,
recusamos tomar o lugar que Deus nos dá, não mostramos humildade, visto que se
pudéssemos convencermo-nos de que possuíamos essas virtudes e essas condições
imaginaríamos que tínhamos direito a esse lugar. Por exemplo, se Moisés possuísse uma
medida de eloquência como ele julgava necessária, temos motivos para crer que estaria
pronto a partir. Ora a questão é de saber qual o grau de eloquência que ele necessitava
para poder cumprir a sua missão, enquanto que a resposta é que sem Deus nenhum grau
de eloquência humana é suficiente; ao passo que com Deus o mais simples gago pode
ser um ministro eficiente.
Eis aqui uma grande verdade prática. A incredulidade não é humildade, mas orgulho.
Recusa crer em Deus porque não encontra no ego uma razão para crer. Este é o cúmulo
da presunção. Se quando Deus fala me recuso a acreditar, com base nalguma coisa que
há em mim, faço de Deus mentiroso (l Jo 5:10). Se quando Deus declara o Seu amor, eu
não me julgo digno dele, faço de Deus mentiroso e manifesto o orgulho inerente de meu
coração. O simples pensamento de que posso merecer outra coisa que não seja o
inferno, só pode ser considerado como a mais completa ignorância da minha condição
perante Deus e do que Deus requer de mim. Enquanto que recusar o lugar que o amor
redentor de Deus me indica, com base na expiação efetuada por Cristo, é fazer de Deus
mentiroso e aviltar o sacrifício de Cristo na cruz.
O amor de Deus é derramado espontaneamente; não é atraído pelos meus méritos, mas,
sim, pela minha necessidade. Tão-Pouco se trata do lugar que mereço, mas do lugar que
Cristo merece. Cristo tomou o lugar do pecador na cruz, para que o pecador pudesse
tomar lugar com Ele na glória. Cristo tomou o lugar que o pecador merecia, para que o
pecador pudesse participar daquilo que Cristo merece. Deste modo, o ego é
completamente posto de parte: esta é a verdadeira humildade. Ninguém pode ser
verdadeiramente humilde antes de ter chegado ao lado celestial da cruz; porém ali
encontra vida divina, justiça divina e a misericórdia de Deus. Então acaba para sempre o
ego, quanto às pretensões de justiça própria, e é-se nutrido com a abundância de outrem.
Então está-se preparado, moralmente, para tomar parte no brado que há de ressoar
através da abóbada incomensurável dos céus por todos os séculos eternos, "Não a nós,
SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória" (SI 115:1).
Certamente nos ficaria mal se nos detivéssemos sobre os erros e fraquezas de um servo
tão honrado como foi Moisés, de quem está escrito que foi "fiel em toda a sua casa, como
servo, para testemunho das coisas que se haviam de anunciar" (Hb 3:5). Porém, se não
nos devemos deter sobre elas, num espírito de própria satisfação, como se em
circunstâncias semelhantes nós pudéssemos proceder de uma maneira diferente,
devemos, sem dúvida, aprender as santas lições que elas têm por fim ensinar-nos.
Devemos aprender a julgarmo-nos a nós próprios, e a pormos confiança implícita em
Deus—a pormos de lado o ego de modo que Deus possa atuar em nós, por nosso
intermédio e por nós. Este é o verdadeiro segredo do poder.
— CAPÍTULOS 5 e 6 —
ISRAEL OPRIMIDO
E OS RECURSOS DIVINOS
A Escravidão
O resultado da primeira visita a Faraó parece ter sido bem pouco animador. O
pensamento de perder os israelitas levou-o a tratá-los com maior crueldade e a sujeitá-los
a redobrada vigilância. Sempre que o poder de Satanás é restringido a um ponto o seu
furor aumenta. Assim aconteceu neste caso. A fornalha ia ser apagada pela mão do amor
libertador; porém, antes de o ser, ela arde com mais intensidade e ferocidade. O diabo
não gosta de soltar nenhum daqueles que tem tido debaixo da sua garra terrível. Ele é "o
valente", e quando "guarda, armado, a sua casa, em segurança está tudo quanto tem" (Lc
11:21). Porém, bendito seja Deus, há "outro mais valente do que ele", que lhe tirou "a sua
armadura em que confiava", e repartiu os seus despojos pelos objetos favorecidos do Seu
amor eterno.
"E depois, foram Moisés e Aarão e disseram a Faraó: Assim diz o SENHOR, Deus de
Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto" (capítulo 5:1). Tal
era a mensagem do Senhor a Faraó. Deus reivindicava inteira libertação para o povo, sob
o fundamento de ser o Seu povo e a fim de que pudessem celebrar-Lhe uma festa no
deserto. Nada pode jamais satisfazer Deus acerca dos Seus eleitos senão a sua inteira
libertação do jugo da servidão. "Desligai-o e deixa-o ir", é, realmente, o grande lema dos
desígnios de Deus acerca daqueles que, embora retidos em servidão por Satanás, são,
todavia, os herdeiros da Sua vida eterna.
Quando contemplamos os filhos de Israel no meio dos fornos de tijolo do Egito, temos
perante nós uma figura exata da condição de todo o filho de Adão segundo a carne. Ei-los
ali, esmagados sob o jugo mortífero do inimigo, sem poder para se libertarem. A simples
menção da palavra liberdade não fez mais que aumentar o rigor do opressor para reforçar
as cadeias dos seus cativos e carregá-los com um fardo ainda mais opressivo. Era, pois,
absolutamente necessário que a salvação viesse de fora. Mas de onde havia de vir?-
Onde estavam os recursos para pagar o seu resgate?- Ou onde estava a força para
quebrar as cadeias? E, admitindo que ambas as coisas existiam, onde estava a vontade
para o conseguira Quem estaria disposto a libertá-los?- Ah! Não havia esperança nem de
dentro nem de fora. Apenas podiam olhar para cima. O seu refúgio era Deus: Ele tinha
tanto o poder como o querer; e podia efetuar a redenção por poder e por preço. No
Senhor, e somente n'Ele estava a salvação do povo de Israel oprimido e arruinado.
É sempre assim em todos os casos. "E em nenhum outro há salvação, porque certo sim!
debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser
salvos" (At 4:12). O pecador está debaixo do poder daquele que o domina com um poder
despótico. Está "vendido sob o pecado" (Rm 7:14); está preso à vontade do diabo (2 Tm
2:26) — preso com as cadeias da concupiscência, da ira e da cólera, fraco (Rm 5:6), "sem
esperança e sem Deus" (Ef 2:12). Tale a condição do pecador. Como poderia, pois,
libertar-se? Que poderia fazer?- Sendo escravo de outrem tudo que faz, fá-lo na
qualidade de escravo. Os seus pensamentos, as suas palavras, os seus atos são os
pensamentos, as palavras e os atos de um escravo. Sim, ainda mesmo quando chora e
suspira por liberdade, as suas próprias lágrimas e suspiros são provas melancólicas da
sua escravatura. Pode lutar por liberdade; mas a sua própria luta, embora evidencie um
desejo de liberdade, é a declaração positiva da sua escravatura.
A Velha Natureza
Tão-pouco se trata de uma questão da condição do pecador: a sua própria natureza está
radicalmente corrompida—inteiramente debaixo do poder de Satanás. Por isso, não só
necessita de ser introduzido numa nova posição, mas também de ser dotado de uma
nova natureza. A natureza e a condição andam sempre unidas. Se fosse possível o
pecador melhorar a sua condição, de que lhe serviria isso enquanto a sua natureza
continuasse a ser irremediavelmente má? Um nobre poderia recolher e adotar um
mendigo e outorgar-Ihe a fortuna e a posição de nobre, mas nunca poderia transmitir-lhe
nobreza; e assim a natureza do mendigo nunca poderia achar satisfação ocupando a
posição de um nobre. É necessário possuir-se uma natureza que corresponda à posição,
e uma posição que corresponda aos desejos, aos afetos, e às tendências dessa natureza.
Por isso, o evangelho da graça de Deus ensina-nos que o crente é introduzido numa
posição inteiramente nova e que já não é considerado como estando no seu anterior
estado de culpa e condenação, mais sim num estado de eterna e perfeita justificação. A
condição em que Deus o vê agora não é apenas de pleno perdão, mas um estado de
perfeição tal que a santidade infinita não pode achar nele tanto como uma simples nódoa
de pecado. Foi tirado da sua condição de culpa e colocado para sempre numa nova
condição de justiça imaculada. Não é que, de modo nenhum, a sua antiga condição haja
sido melhorada. Isto seria inteiramente impossível, "Aquilo que é torto não se pode
endireitar" (Ec 1:15). "Pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?-"
(Jr 13:23). Nada há mais oposto à verdade fundamental do evangelho que a teoria do
melhoramento gradual da condição do pecador. O pecador é nascido numa má condição,
e enquanto não "nascer de novo" não pode estar em qualquer outra. Poderá procurar
melhorar-se. Pode tomar a resolução de ser melhor no futuro — de "voltar uma nova
página" da sua existência —, de alterar o seu modo de vida; porém, com tudo isto não
consegue sair de sua condição de pecador. Poderá fazer-se religioso, como se ousa
dizer, poderá tentar orar, poderá observar diligentemente as ordenações, e revestir as
aparências de uma reforma moral; contudo nenhuma destas coisas poderá, no mínimo,
alterar a sua posição perante Deus.
A Nova Natureza
A questão é semelhante à questão da natureza. Como poderá o homem alterar a sua
natureza? Poderá submetê-la a uma série de operações, poderá dominá-la e discipliná-la;
porém continuará a ser natureza. "Aquele que é nascido da carne é carne" (Jo 3:6). E
necessário que haja uma nova natureza, assim como uma nova disposição. Mas como
poderá o pecador adquiri-las? - Crendo o testemunho que Deus de Seu Filho deu. "A
todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que
creem no seu nome" (Jo 1:12). Aqui aprendemos, que todos os que creem no nome do
unigênito Filho de Deus, têm o direito ou o privilégio de serem feitos filhos de Deus. São
feitos participantes de uma nova natureza e têm a vida eterna. "Aquele que crê no Filho
tem a vida eterna" (Jo 3:36). "Na verdade, na verdade vos digo que, quem ouve a minha
palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, e não entrará em condenação,
mas passou da morte para a vida" (Jo 5:24). "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti
só por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3). "E o
testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem
tem o Filho tem a vida"(1 Jo 5:11,12).
O Fundamento da Justificação
Tal é a doutrina das Sagradas Escrituras quanto à questão importante da condição da
natureza. Porém, como é que o crente é feito participante da natureza divina?- Essa
mudança admirável depende inteiramente da grande verdade que "JESUS MORREU E
RESSUSCITOU" (1 Ts 4:14). Este bendito Senhor deixou o seio do amor eterno, o trono
da glória, as mansões de luz imarcescível, veio a este mundo de dores e pecado, tomou
sobre Si a forma da carne do pecado, e, depois de haver manifestado e glorificado
perfeitamente Deus em todos os atos da Sua vida bendita no mundo, morreu na cruz sob
peso de todas as transgressões do Seu povo. E deste modo satisfez tudo que era ou
podia ser contra nós. Ele engrandeceu e honrou a lei (Is 42:21); e, fazendo-o, tornou-Se
maldição sendo pendurado no madeiro. Todos os direitos divinos foram satisfeitos, todos
os inimigos reduzidos ao silêncio e os obstáculos foram todos derribados. "A misericórdia
e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram" (Sl 85:10). A justiça divina foi
satisfeita, e o amor infinito pode derramar-se, com todas as virtudes mitigantes e
refrigerantes, no coração quebrantado do pecador; enquanto que, ao mesmo tempo, o
caudal purificador e expiador, que brotou do lado ferido do Cristo crucificado, satisfaz
perfeitamente todos os desejos ardentes da consciência culpada e convencida de pecado.
O Senhor Jesus tomou o nosso lugar na cruz: foi o nosso substituto. Ele morreu, "o justo
pelos injustos" (I Pe 3:18); foi feito "pecado por nós" (2 Co 5:21); morreu em lugar do
pecador; foi sepultado e ressuscitou, havendo cumprido tudo. Por isso nada há
absolutamente contra o crente: ele está unido a Cristo e encontra-se na mesma condição
de justiça "porque, qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo 4:17).
Eis aqui o que dá paz inabalável à consciência. Seja não estamos numa condição de
culpa, mas de justificação; se Deus nos vê em Cristo e como a Cristo, então a nossa parte
é uma paz perfeita. "Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso
Senhor Jesus Cristo" (Rm 5:l).
O sangue do Cordeiro cancelou toda a culpa do crente, riscou o seu grande débito e deu-
lhe uma folha perfeitamente em branco, na presença daquela santidade que não pode ver
o mal (He 1:13).
Porém, o crente não só achou paz com Deus, como foi feito filho de Deus; e como tal
pode gozar a doçura da comunhão com o Pai e o Filho, no poder do Espírito Santo.
O Crente é Filho de Deus
A cruz deve ser encarada debaixo de dois modos diferentes: em primeiro lugar, satisfaz
os direitos de Deus; e em segundo lugar é a expressão do amor de Deus. Se
considerarmos os nossos pecados em ligação com os direitos de Deus como Juiz,
acharemos na cruz a plena liquidação desses direitos. Deus, como Juiz, ficou satisfeito e
glorificado na cruz. Porém há mais do que isto. Deus tem afetos bem como direitos; e na
cruz do Senhor Jesus Cristo todos esses afetos são, de um modo tocante e agradável,
anunciados aos ouvidos do pecador; enquanto que ao mesmo tempo, ele é feito
participante de uma nova natureza, a qual é capaz de gozar esses afetos e de ter
comunhão com o coração donde eles emanam. "Porque também
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1
Pe 3:18). Desta forma não somente somos introduzidos numa nova condição, como
trazidos a uma Pessoa, o Próprio Deu" e somos dotados de uma natureza que pode achar
as suas delícias n'Ele. "E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por
nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação" (Rm 5:11).
Moisés Desanimado
Contudo, a prova mais dolorosa para Moisés não foi motivada pelo juízo que Faraó fez da
sua missão. O servo fiel e consagrado de Cristo deve esperar sempre ser considerado
pelos homens deste mundo como um simples entusiasta visionário. O ponto de vista
donde o contemplam é tal que não nos permite esperar deles outra coisa. Quanto mais
fiel for o servo ao seu Mestre divino, quanto mais seguir as Suas pisadas, quanto mais
conforme for à Sua imagem, tanto mais, possivelmente, será considerado, pelos filhos
deste mundo, como um que "está fora de si". Portanto, este juízo nem deve surpreendê-lo
nem desanimá-lo. Porém é uma coisa infinitamente mais penosa para ele quando o seu
serviço e o seu testemunho são mal interpretados, desprezados ou rejeitados por aqueles
que são os próprios objetos deste serviço e testemunho. Quando isto acontece ele tem
muita necessidade de estar com Deus, no segredo dos Seus pensamentos, no poder da
comunhão, para ter o seu espírito fortalecido na realidade imutável da sua carreira e
serviço. Em circunstâncias tão difíceis, se não se está plenamente persuadido da missão
divina, e consciente da presença divina, a queda será quase certa.
Se Moisés não tivesse sido amparado assim, o seu coração teria fraquejado inteiramente
quando o agravamento da opressão do poder de Faraó arrancou aos oficiais dos filhos de
Israel palavras de desalento e desânimo como estas: "O SENHOR atente sobre vós e
julgue isso, porquanto fizestes o nosso cheiro repelente diante de Faraó e diante de seus
servos, dando-lhes a espada nas mãos para nos matar" (versículo 21). Isto era muito
triste; e Moisés assim o sentiu, pois que "tornou ao SENHOR e disse: Senhor! Por que
fizeste mal a este povo? Por que me enviaste? Por que desde que entrei a Faraó para
falar em teu nome, ele maltratou a este povo; e, de nenhuma maneira livraste o teu povo"
(versículos 22 a 23). No próprio momento em que a libertação parecia estar perto, as
coisas tomaram um aspecto muito desanimador; assim como acontece com a natureza,
em que a hora mais escura da noite é com frequência aquela que precede imediatamente
o amanhecer. Assim será certamente nos últimos dias da história de Israel: a hora da
mais profunda obscuridade e da mais espantosa angústia, precederá a aparição repentina
do "Sol da Justiça" (Mt 4:1:2), emergindo detrás das nuvens, e trazendo salvação debaixo
das suas asas para curar eternamente a filha do Seu povo (Jr 6:14; 8:11).
A Resposta do SENHOR
Pode muito bem perguntar-se até que ponto o "por que " de Moisés foi ditado por uma
verdadeira fé ou uma vontade mortificada. Contudo, o Senhor não repreende Moisés por
esta objeção motivada pela grandeza da aflição do momento. "Agora verás o que hei de
fazer a Faraó; porque, por mão poderosa, os deixará ir, sim, por mão poderosa os lançará
de sua terra" (capítulo 6:1), foi a Sua bondosa resposta.
Esta resposta está cheia de graça peculiar. Em vez de censurar a insolência daquele que
se atreve a duvidar dos caminhos inescrutáveis do grande EU SOU, o misericordioso
Senhor procura aliviar o espírito cansado do Seu servo mostrando-lhe o que em breve ia
fazer. Esta maneira de agir é digna de Deus, de quem desce toda a boa dádiva e todo o
dom perfeito (Tg 1:5, 17), "Pois ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos
pó" (SI 103:14).
Nem tampouco é só em Seus atos, mas, sim, em Si Mesmo, em Seu próprio nome e
caráter, que Ele quer fazer conhecer ao coração o seu alívio: é nisso que está a bem-
aventurança plena, divina, e eterna. Quando o coração pode encontrar em Deus o seu
alívio, quando pode refugiar-se no lugar seguro que lhe oferece o Seu nome, quando
pode achar no Seu caráter a resposta a todas as suas necessidades, então está
verdadeiramente muito acima da região da criatura —pode abandonar as promessas
tentadoras do mundo é considerar as pretensões altivas do homem pelo seu justo valor. O
coração dotado com o conhecimento prático de Deus não só pode olhar para o mundo e
dizer "tudo é vaidade", mas pode também poros seus olhos em Deus e dizer; "todas as
minhas fontes estão em ti" (Sl 87:7).
O Nome do SENHOR
"Falou mais Deus a Moisés e disse: Eu sou o SENHOR. E eu apareci a Abraão, a Isaque,
e a Jacó, como o Deus Todo-poderoso; mas pelo meu nome, o SENHOR, não lhes fui
perfeitamente conhecido. E também estabeleci o meu concerto com eles, para dar-lhes a
terra de Canaã, a terra de suas peregrinações, na qual foram peregrinos. E também tenho
ouvido o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizam, e me lembrei do
meu concerto" (versículos 2 a 5). "O SENHOR" é o título que Deus toma como Libertador
do Seu povo, em virtude da Sua aliança de pura e soberana graça. Ele revela-se a Si
como a grande Origem natural do amor redentor, estabelecendo os Seus conselhos,
cumprindo as Suas promessas, e libertando o Seu povo eleito de todo o inimigo e de todo
o mal. Era privilégio de Israel permanecer para sempre sob a salvaguarda desse título
significativo, o qual nos revela Deus atuando para Sua própria glória, e levantando o Seu
povo oprimido a fim de mostrar nele essa glória.
"Portanto, dize aos filhos de Israel: Eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das
cargas dos egípcios, vos livrarei da sua servidão e vos resgatarei com braço estendido e
com juízos grandes. E eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que
eu sou o SENHOR, VOSSO Deus, que vos tiro de debaixo das cargas dos egípcios; e eu
vos levarei à terra, acerca da qual levantei minha mão, que a daria a Abraão, e a Isaque,
e a Jacó, e vo-la darei por herança, eu o SENHOR" (versículos 6 a 8). Tudo isto proclama
a graça mais pura, mais livre, mais rica. O Senhor apresenta-Se ao coração do Seu povo
como Aquele que ia operar por eles, neles, e com eles para manifestação da Sua glória.
Por muito desamparados e arruinados que estivessem, Ele havia descido para fazer ver a
Sua glória e manifestar a Sua graça e mostrar um exemplo do Seu poder na sua plena
salvação. A sua glória e a salvação do Seu povo estavam inseparavelmente unidas. Mais
tarde todas estas coisas haviam de lhes ser recordadas, como lemos no Livro de
Deuteronômio, capítulo 7:7-8, "O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu,
porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis
menos em número do que todos os povos: mas porque o SENHOR VOS amava; e, para
guardar o juramento que jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos
resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito".
Nada há mais próprio para estabelecer e firmar o coração tremente e duvidoso do que o
conhecimento de que Deus nos tomou tais quais somos, que conhece perfeitamente o
que somos; e que, além disso, nunca poderá descobrir em nós alguma coisa que possa
alterar o caráter e a medida do Seu amor: "...como havia amado os Seus que estavam no
mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13:1). Aquele que Ele ama, ama-o até ao fim. Esta
verdade é motivo de gozo inexplicável. Deus sabia tudo a nosso respeito—conhecia o pior
que havia em nós, quando manifestou o Seu amor para conosco no dom de Seu Filho.
Sabia o que necessitávamos, e fez ampla provisão para tudo isso. Sabia qual era o
débito, e pagou-o. Sabia o que havia por fazer, e fez tudo. As Suas próprias exigências
tinham de ser cumpridas, e cumpriu-as. É tudo obra Sua. Por isso, vêmo-Lo dizer a Israel,
Eu "...vos tirarei...", "vos livrarei", "vos tomarei por meu povo", "vos levarei à terra..", "Eu
sou o Senhor". Isto era o que Ele queria fazer com base naquilo que Ele era. Enquanto
esta grande verdade não for inteiramente compreendida e não for recebida pela alma no
poder do Espírito Santo, não pode haver uma paz sólida. Não se pode ter o coração feliz
nem a consciência tranquila antes de se saber e crer que todos os direitos divinos já
foram divinamente satisfeitos.
— CAPÍTULOS 7 a 11 —
Estes cinco capítulos formam uma parte distinta, cujo conteúdo pode ser dividido em três
pontos, a saber: os Dez Juízos do SENHOR, a resistência de "Janes e Jambres" e as
quatro objeções de Faraó.
Os Dez Juízos
Toda a terra do Egito tremeu debaixo dos golpes sucessivos da vara de Deus. Todos,
desde o monarca sentado no seu trono à criada moendo no moinho, tiveram de sentir o
peso terrível dessa vara. "Enviou Moisés, seu servo, e Arão, a quem escolhera. Fizeram
entre eles os seus sinais e prodígios, na terra de Cam. Mandou às trevas que a
escurecessem; e elas não foram rebeldes à sua palavra. Converteu as suas águas em
sangue, e assim fez morrer os peixes. A sua terra produziu rãs em abundância, até nas
câmaras dos seus reis. Falou ele, e vieram enxames de moscas e piolhos em todo o seu
território. Converteu as suas chuvas em saraiva e fogo abrasador, na sua terra. Feriu as
suas vinhas e os seus figueirais e quebrou as árvores dos seus termos. Falou ele, e
vieram gafanhotos e pulgão em quantidade inumerável, e comeram toda a erva da sua
terra e devoraram o fruto dos seus campos. Feriu também a todos os primogênitos da sua
terra, as primícias de todas as suas forças" (SI 105:26 -36).
Aqui, o Salmista dá-nos uma ideia resumida desses terríveis castigos que por dureza do
seu coração Faraó trouxe sobre a sua terra e o seu povo. Este soberbo monarca havia
empreendido a tarefa de resistir à vontade soberana e ao caminho do Deus Altíssimo; e,
como consequência justa desta atitude, foi entregue à cegueira judicial e dureza de
coração. "Porém o SENHOR endureceu o coração de Faraó, e não os ouviu, como o
SENHOR, tinha dito a Moisés. Então, disse o SENHOR a Moisés: Levanta-te, pela manhã
cedo, e põe-te diante de Faraó, e dize-lhe: Assim diz o SENHOR, o Deus dos hebreus:
Deixa ir o meu povo, para que me sirva. Porque esta vez enviarei todas as minhas pragas
sobre o teu coração, e sobre os teus servos, e sobre o teu povo, para que saibas que não
há outro como eu, em toda a terra. Porque agora tenho estendido a mão para te ferir a ti e
ao teu povo com pestilência e para que sejas destruído da terra; mas deveras para isto te
mantive, para mostrar o meu poder em ti e para que o meu nome seja anunciado em toda
a terra" (capítulo 9:12-16).
Janes e Jambres
Vamos considerar agora, em segundo lugar, a oposição de "Janes e Jambres", magos do
Egito. Nunca teríamos conhecido os nomes desses dois inimigos da verdade se o Espírito
Santo os não houvesse mencionado em ligação com os "tempos perigosos" dos quais o
apóstolo Paulo avisa seu filho Timóteo. É da máxima importância que o leitor crente
compreenda claramente o verdadeiro caráter da resistência que esses dois encantadores
opuseram a Moisés, e para que ele faça uma ideia completa do assunto, citaremos toda a
passagem da epístola de Paulo a Timóteo, passagem aliás profundamente importante e
solene.
Nos Últimos Dias
"Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos; porque haverá
homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis,
caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados,
orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de
piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te. Porque deste número são os que
se introduzem pelas casas e levam cativas mulheres néscias carregadas de pecados,
levadas de várias concupiscências, que aprendem sempre, e nunca podem chegar ao
conhecimento da verdade. E, como Janes e Jambres resistiram a Moisés, assim também
estes resistem à verdade, sendo homens corruptos de entendimento e réprobos quanto à
fé. Não irão, porém, avante; porque a todos será manifesto o seu desvario, como também
o foi o daqueles" (2 Tm 3:1-9).
Ora, a natureza desta resistência à verdade é particularmente solene. A oposição que
Janes e Jambres fizeram a Moisés consistiu simplesmente em imitar, até onde lhes foi
possível, tudo aquilo que ele fazia. Não vemos que eles atribuíssem a um poder
enganador ou mau os sinais que ele fazia, mas antes que procuraram neutralizar os seus
efeitos sobre a consciência fazendo eles as mesmas coisas. O que Moisés fazia, também
eles o podiam fazer, de modo que, afinal não havia grande diferença. Um era tão bom
como os outros. Um milagre. Se Moisés fazia milagres para tirar o povo do Egito, eles
podiam fazer milagres para os obrigarem a ficar no país. Onde estava, pois, a diferença?
De tudo isto aprendemos a verdade solene que a resistência mais diabólica ao
testemunho de Deus, no mundo, vem daqueles que, embora imitem os efeitos da
verdade, têm apenas a "aparência de piedade" e "negam a eficácia dela" (2 Tm 3:5). As
pessoas desta condição podem fazer as mesmas coisas, adotar os mesmos costumes e o
mesmo ritual, empregar a mesma linguagem e professar as mesmas opiniões dos outros.
Se o cristão verdadeiro, constrangido pelo amor de Cristo, dá de comer aos que têm
fome, dá vestuário aos nus, visita os enfermos, espalha as Escrituras, distribui tratados,
contribui para a divulgação do evangelho, faz oração, canta hinos espirituais, prega o
evangelho, o formalista pode fazer todas estas coisas; e isto, note-se, é o caráter especial
da resistência oposta à verdade "nos últimos tempos" — é o espírito de Janes e Jambres.
Quão necessário é compreendermos esta verdade! Quão importante é recordar que,
assim "como Janes e Jambres resistiram a Moisés", assim também esses "amantes de si
mesmos", do mundo e dos prazeres "resistem à verdade"! Não querem viver sem
"aparência de piedade", mas, enquanto adotam a "forma", porque é hábito, detestam "a
eficácia" dela, porque essa significa a renúncia própria. "A eficácia da piedade" implica o
reconhecimento dos direitos de Deus, o estabelecimento do Seu reino no coração, e, por
consequência a Sua manifestação na vida e no caráter; porém o formalista nada sabe
disto. "A eficácia" da piedade nunca poderá estar de acordo com nenhum destes
caracteres horrendos descritos na passagem acima reproduzida; porém "a aparência",
encobrindo-os, permite-Ihes viverem sem terem de se submeter, e isto agrada ao
formalista. Ele não gosta de dominar as suas tentações, de interromper os seus prazeres,
de refrear as suas paixões, de pôr em regra os seus afetos, de que o seu coração seja
purificado. Somente precisa de bastante religião para poder tirar o melhor partido da vida
presente e do mundo futuro. Desconhece o que significa abandonar o mundo que passa,
por ter achado "o mundo vindouro".
Considerando as diversas formas de oposição de Satanás à verdade de Deus, vemos que
o seu método tem sido sempre, em primeiro lugar, opor a violência; e, depois, se este
método falha, corrompê-la por meio de imitação. Por isso, procurou em primeiro lugar
matar Moisés (capítulo 2:15), e tendo falhado em realizar o seu propósito, procurou imitar
as suas obras.
O mesmo aconteceu com a verdade confiada à Igreja de Deus. Os primeiros esforços de
Satanás manifestaram-se em ligação com a ira dos principais sacerdotes e anciãos do
povo por meio do tribunal, o cárcere e a espada. Porém, na passagem que reproduzimos
da 2a epístola a Timóteo não se faz menção de tais processos. A violência aberta foi
substituída por um meio mais astuto e perigoso de uma profissão vazia, ineficaz e a
imitação. O inimigo, em vez de se apresentar coma espada da perseguição na mão,
passeia com o manto da profissão sobre os ombros, professando e imitando aquilo que
em outro tempo combateu e perseguiu; e, por este meio consegue vantagens
assombrosas no tempo presente. As formas horríveis que o pecado moral tem revestido,
e que de século para século têm manchado as páginas da história da humanidade, longe
de se encontrarem apenas naqueles lugares onde naturalmente poderiam buscar-se, nos
antros e cavernas das trevas humanas, acham-se cuidadosamente ocultas debaixo das
pregas do manto de uma profissão fria, impotente e sem influência, e esta é uma das
obras-primas de Satanás.
É natural que o homem, como ser caído e corrompido, seja egoísta, cobiçoso, vaidoso,
altivo; mas que seja tudo isto sob a capa formosa da "aparência de piedade" denota a
energia especial de Satanás na sua resistência à verdade "nos últimos dias".
É natural que o homem manifeste abertamente esses vícios repugnantes — a
concupiscência e paixões—, que são o resultado forçoso do seu afastamento da origem
de santidade infinita e pureza, porque o homem será sempre o que ele é até o fim da sua
história. Por outra parte, quando se vê o nome santo do Senhor Jesus
Cristo associado com a perversidade e a maldade implacável do homem; quando se
veem os princípios santos ligados com práticas ímpias; quando se veem todos os
característicos da corrupção dos gentios, mencionados no primeiro capítulo da epístola
aos Romanos, ligados com a "aparência de piedade", então, de verdade, pode dizer-se,
eis aqui o caráter horrível dos "últimos dias", a resistência de "janes e jambres".
A Aparência de Piedade
Contudo, os magos do Egito só puderam imitar os servos do Deus vivo em três coisas, a
saber: tornaram as suas varas em serpentes (capítulo 7:12); transformaram a água em
sangue (capítulo 7:22), e fizeram subir as rãs sobre a terra (capítulo 8:7); porém, quanto
ao quarto sinal, que implicava a exibição da vida, em ligação com a manifestação da
humilhação da natureza, viram-se inteiramente confundidos e tiveram de reconhecer "isto
é o dedo de Deus" (capítulos 8:16 a 19). Assim sucede também com os que resistem nos
últimos dias. Tudo quanto fazem é segundo o poder direto de Satanás e dentro dos limites
do seu poder. Além disso, o seu fim específico é resistirem à verdade.
As três coisas que Janes e Jambres puderam executar foram caracterizadas por poder
satânico, morte e impureza; quer dizer, as serpentes, o sangue e as rãs. Foi assim que
"resistiram a Moisés" e, "assim também estes resistem à verdade", e impedem a sua ação
moral sobre a consciência. Nada há que tanto contribua para enfraquecer o poder da
verdade como ver pessoas que não se encontram sob a sua influência fazerem as
mesmas coisas que aqueles que estão debaixo dela fazem. Assim opera Satanás no
momento atual. Ele procura fazer com que todos os homens sejam considerados como
cristãos; quer fazer-nos crer que estamos rodeados de "um mundo cristão", porém esse
pretenso mundo cristão não passa de uma cristandade professa, a qual, longe de dar
testemunho da verdade é aqui destinada, segundo os propósitos do inimigo da verdade,
para se opor à influência purificadora da verdade.
Em resumo, o servo de Cristo, testemunha da verdade, está rodeado, de todos os lados,
pelo espírito de "Janes e Jambres"; e é conveniente que recorde este fato, que conheça
inteiramente o mal com que tem que lutar e não esqueça que se trata da imitação que o
diabo faz da realidade de Deus, produzida, não pela vara de um mago declaradamente
mau, mas, sim mediante os atos de falsos religiosos, que têm "aparência de piedade",
mas negam a eficácia dela"; pessoas que fazem coisas aparentemente boas e justas,
mas que não têm a vida de Cristo em suas almas, nem o amor de Deus em seus
corações, nem tampouco o poder da Palavra de Deus em suas consciências. "Não irão
porém avante", acrescenta o apóstolo, "porque a todos será manifesto o seu desvario,
como também o foi o daqueles". Com efeito a insensatez de Janes e Jambres foi
manifesta a todos, quando não somente se viram impotentes para continuar a imitar os
atos de Moisés e Arão, como foram envolvidos nos juízos de Deus. Isto é um ponto muito
importante. A insensatez de todos aqueles que não possuem mais do que a aparência
será manifestada. Não somente serão incapazes de imitar os efeitos plenos e próprios da
vida e poder divinos, como eles mesmos virão a ser os objetos dos juízos que resultaram
da rejeição da verdade que eles próprios rejeitaram.
Alguém dirá que tudo isto não encerra instrução para uma época, como a nossa, de
aparência sem eficácia'?- Certamente que tem; são exemplos que deveriam exercer
influência sobre toda a consciência em poder vivo e falar a todos os corações com
assentos solenes e penetrantes: deveriam levar-nos a examinarmo-nos seriamente para
sabermos se estamos dando testemunho da verdade e se andamos segundo a eficácia
da piedade ou se somos um obstáculo dela neutralizando os seus efeitos por só termos a
sua aparência. Os efeitos da eficácia da piedade serão manifestados se nós
permanecermos nas coisas que temos aprendido (2 Tm 3.14). Só aqueles que são
ensinados por Deus poderão permanecer nessas coisas—aqueles que, pelo poder do
Espírito de Deus, têm bebido da água da vida na fonte pura da inspiração divina.
Graças a Deus, em todas as frações da Igreja professa há muitas destas pessoas. Aqui e
ali, há muitos cujas consciências foram lavadas no sangue expiador do "Cordeiro de
Deus", e cujos corações batem com verdadeiro afeto pela Pessoa do Senhor Jesus, e
cujos espíritos são animados com "a bendita esperança" de O verem assim como Ele é e
de serem feitos eternamente semelhantes à Sua imagem. E animador podermos pensar
em tais pessoas. É uma misericórdia inefável podermos ter comunhão com aqueles que
podem dar a razão da sua esperança e da posição que ocupam como filhos de Deus. Que
o Senhor aumente o seu número dia a dia: e que a eficácia da piedade se espalhe mais e
mais nestes últimos dias, para que se levante um testemunho brilhante e bem mantido ao
nome d'Aquele que é digno de ser exaltado!
A Primeira Objeção
A primeira destas objeções encontra-se no capítulo 8:25. "Então, chamou Faraó a Moisés
e a Arão e disse: Ide e sacrificai ao vosso Deus nesta terra". E desnecessário acentuar
aqui que, quer sejam os magos com a resistência que opõem ou Faraó com as suas
objeções, é realmente Satanás que está atrás de toda esta cena: e o seu objetivo, nesta
proposta de Faraó, consistia em impedir o testemunho do nome do Senhor—um
testemunho ligado com a separação completa entre o Seu povo e o Egito. É evidente que
um tal testemunho não podia ser dado se eles tivessem continuado no Egito, ainda
mesmo que tivessem oferecido sacrifícios ao Senhor. Os israelitas ter-se-iam então
colocado no mesmo terreno que os egípcios, e teriam posto o Senhor ao mesmo nível dos
deuses do Egito. Então os egípcios poderiam ter dito aos israelitas: "Não vemos nenhuma
diferença entre nós; vós tendes o vosso culto, e nós temos o nosso; é tudo a mesma
coisa".
Os homens consideram perfeitamente natural que cada qual tenha uma religião, seja qual
for. Contanto que sejamos sinceros e não haja interferência na crença do próximo, pouco
importa a forma da nossa religião. Tais são os pensamentos dos homens a respeito
daquilo que eles chamam religião; porém é bem claro que a glória do nome de Jesus não
é tida em conta em tudo isto. O inimigo opor-se-á sempre à ideia de separação, e o
coração do homem nunca poderá compreendê-la. O coração humano pode aspirar à
piedade, porque a consciência testifica que não está tudo em regra; mas ao mesmo
tempo anela seguir o mundo: gosta de sacrificar a Deus na terra; assim quando se aceita
uma religião mundana e se recusa sair ou fazer separação dela (2 Co 6), o fim de
Satanás é conseguido. O seu plano invariável, desde o princípio, consiste em impedir o
testemunho dado ao nome de Deus na terra. Tal era o fim escuro da proposta, "Ide e
sacrificai ao vosso Deus nesta terra". Que fim o do testemunho, se esta proposta tivesse
sido aceite! O povo de Deus no Egito e o Próprio Deus associado com os ídolos do Egito!
Que terrível blasfêmia!
A Religião
Prezado leitor, nós deveríamos ponderar estas coisas seriamente. Este esforço para
induzir o povo de Israel a sacrificar a Deus no Egito revela um princípio muito mais
importante do que poderíamos, à primeira vista, supor. O inimigo regozijar-se-ia se
conseguisse obter, de qualquer modo, e de uma vez para sempre, em quaisquer
circunstâncias, até mesmo a aparência de sanção divina para a religião do mundo. Ele
não põe dificuldades a uma religião desta espécie. O seu intento é alcançado tão
eficientemente por meio daquilo que é chamado "o mundo religioso" como de qualquer
outro modo; e, por isso, quando consegue que um verdadeiro cristão acredite na religião
do mundo, obtém um grande triunfo.
É um fato bem conhecido que nada há que provoque tanta indignação como este princípio
divino de separação deste presente século mau. Podemos ter as mesmas opiniões,
pregar as mesmas doutrinas e fazer o mesmo trabalho: porém, se procurarmos, ainda que
seja na mais pequena medida, agir segundo a ordem divina, que é: "Destes afasta-te" (2
Tm 3:5), "saído meio deles" (2 Co 6:17), podemos estar certos de encontrar a mais
violenta oposição. Como se explica isto? Principalmente devido ao fato que os cristãos,
estando separados da vã religião, rendem um testemunho a Cristo que nunca poderiam
dar enquanto estivessem ligados com ela.
Existe um grande diferença entre Cristo e a religião do mundo. Um pobre hindu, envolvido
em trevas, pode falar da sua religião, mas nada sabe de Cristo. O apóstolo, não diz, "se
há algum conforto na religião" (Fp 2:1); embora os devotos de uma religião qualquer
achem incontestavelmente nela aquilo que lhes parece ser consolação. Paulo, pelo
contrário, achou a sua consolação em Cristo, depois de haver experimentado plenamente
a inutilidade da religião, ainda que na sua forma mais bela e imponente (comparem-se Gl
l:13-14; Fp 3:3-ll).
É verdade que o Espírito Santo fala-nos da "religião pura e imaculada" (Tg 1:27); porém o
homem descrente não pode, de modo nenhum, participar dela; porque como poderá ter
parte naquilo que é " puro e imaculado" ? Esta religião é do céu, a fonte de tudo que é
puro e excelente; está exclusivamente diante de nosso "Deus e Pai"; serve para exercício
das funções da nova natureza, com a qual são dotados todos aqueles que creem no
nome do Filho de Deus (Jo l: 12 e 13; Tg 1:18; 1 Pe 1:23; l Jo 5:1). Finalmente, define-se
pelos dois principais aspectos da benevolência e santidade pessoal "visitar os órfãos e as
viúvas nas suas tribulações" (Tg 1:27).
Se examinarmos a lista dos verdadeiros frutos do Cristianismo, veremos que estão todos
classificados sob estes dois pontos principais; e é profundamente interessante notar que,
quer nos voltemos para o capítulo 8 do Êxodo ou o primeiro de Tiago, a separação do
mundo é apresentada como uma qualidade indispensável no verdadeiro serviço a Deus.
Nada que seja manchado com o contato "deste século mau" pode ser aceitável diante de
Deus, nem receber da Sua mão o selo" puro e imaculado". "Pelo que saí do meio deles, e
apartai-vos, diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para
vós Pai, e vós serreis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso" (2 Co 6:17-
18).
Não havia no Egito nenhum lugar de reunião para o Senhor e o Seu povo redimido; sim,
para eles, a redenção e a separação eram uma e a mesma coisa. Deus havia dito: "desci
para livrá-los", (Êx 3:8) e nada senão isto podia satisfazê-Lo ou glorificá-Lo. Uma salvação
que deixasse o povo no Egito não podia ser salvação de Deus. Além disso, devemos
recordar que o desígnio do Senhor, com a salvação de Israel, assim como na destruição
de Faraó, era para que o Seu nome fosse anunciado em toda a terra (capítulo 9:16); e
que declaração poderia haver desse nome ou caráter, se o Seu povo tivesse de Lhe
prestar culto no Egito? Ou não teria havido nenhum testemunho ou seria um testemunho
falso. Portanto, era necessário, para que o caráter de Deus fosse plena e fielmente
declarado, que o Seu povo fosse inteiramente libertado e completamente separado do
Egito; e é, essencialmente, necessário, agora, para que um testemunho claro e sem
equívoco seja dado ao Filho de Deus, que todos que são realmente Seus sejam
separados deste presente século mau. Tal é a vontade de Deus; e para este fim Cristo
entregou-Se a Si mesmo. "Graça e paz, da parte de Deus Pai e da de nosso Senhor
Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente
século mau, segundo a vontade de Deus nosso Pai, ao qual seja dada glória para todo o
sempre Amém!" (Gl 1:3-5).
Os Gálatas começavam a dar crédito a uma religião carnal e mundana — uma religião de
ordenações —, uma religião de "dias e meses, de tempos e de anos"; e o apóstolo
começa a sua epístola dizendo-lhes que o Senhor Jesus Cristo Se deu a Si mesmo com o
propósito de libertar o Seu povo todo desse sistema. O povo de Deus deve ser separado,
não com base na sua santidade mas porque é o Seu povo, e para que possa responder
inteligentemente ao fim que Deus propusera pondo-o em relação Consigo e associando-o
com o Seu nome. Um povo que continuasse a viver no meio das abominações e
contaminações do Egito não podia ser um testemunho do Deus santo; nem tampouco,
agora, todo aquele que se associa com as contaminações de uma religião mundana e
corrompida não pode ser uma testemunha fiel e poderosa de um Cristo crucificado e
ressuscitado.
O que é o Mundo
Tudo isto é bastante claro; porém, prezado leitor, aonde nos conduz quanto a este
mundo"?- Seguramente, fora dele, e isto de um modo completo. Estamos mortos para o
mundo e vivos para Cristo. Somos participantes ao mesmo tempo da Sua rejeição pelo
mundo e da Sua aceitação no céu; e o gozo desta faz-nos considerar como nada a
provação daquela. Ser lançado fora do mundo, sem saber que tenho um lugar e uma
parte no céu, seria insuportável para mim; porém, quando as glórias do céu enchem a
visão da alma, é necessário muito pouco da terra.
Mas, pode perguntar-se, "Que é o mundo?" Seria difícil encontrar um termo tão mal
definido como "o mundo" ou "a mundanidade"; pois em geral nós somos propensos a
fazer a mundanidade um ou dois pontos acima do lugar onde nos achamos situados
espiritualmente. A Palavra de Deus, porém, define com perfeita precisão o que significa o
termo "o mundo", quando o designa como aquilo que "não é do Pai" (l Jo 2:15 e 16). Por
isso, quanto mais profunda for a minha comunhão com o Pai, mais penetrante será a
minha compreensão daquilo que é mundano. É esta a forma divina de ensino. Quando
mais vos deleitardes no amor do Pai, tanto mais desprezareis o mundo. Mas quem é
aquele que revela o Pai<? É o filho. Como?- Pelo poder do Espírito Santo. Pelo que,
quanto mais habilitado eu estiver, no poder do Espírito, não contristado, a deleitar-me na
revelação que o Filho nos tem dado do Pai, tanto mais exato será o meu discernimento
quanto àquilo que é do mundo. É à medida que o reino de Deus ganha terreno no
coração, que o nosso juízo quanto à mundanidade se torna mais reto. Não é fácil definir o
que é mundanismo. É, como alguém disse, "sombreado gradualmente desde o branco ao
preto carregado". Isto é verdadeiro. Não se pode estabelecer um limite e dizer: "é aqui
que começa o mundanismo"; porém a sensibilidade viva e delicada da natureza divina
recua perante ele; e tudo que nós necessitamos é andar no poder dessa natureza, a fim
de nos mantermos alheados a toda a espécie de mundanismo. "Andai em Espírito e não
cumprireis a concupiscência da carne" (Gl 5:16). Andai com Deus, e não andareis com o
mundo. As distinções frias e as regras rígidas para nada servem. É o poder da vida divina
que nós precisamos. Precisamos de compreender a significação espiritual do "caminho de
três dias no deserto", o qual nos separa para sempre não apenas dos fornos de tijolo e
dos exatores do Egito, mas também dos seus templos e altares.
A Segunda Objeção
A segunda objeção do Faraó participava muitíssimo do caráter e tendência da primeira.
"Então, disse Faraó: Deixar-vos-ei ir, para que sacrifiqueis ao SENHOR vosso Deus no
deserto; somente que, indo, não vades longe" (capítulo 8:28). Não podendo retê-los no
Egito, procurava ao menos retê-los perto das fronteiras, para poder agir contra eles por
meio das diversas influências do país. Desta forma o povo podia ser reconduzido e o
testemunho mais facilmente aniquilado que se eles nunca tivessem saído do Egito.
Aqueles que tornam para o mundo, depois de aparentemente o terem deixado, causam
muito mais dano à causa de Cristo do que se nunca se houvessem afastado dele; porque
virtualmente confessam que, tendo provado as coisas divinas, descobriram que as coisas
terrenas são melhores e satisfazem mais.
E isto ainda não é tudo. O efeito moral da verdade sobre as consciências dos incrédulos e
tristemente embaraçado pelo exemplo dos professos que regressam às coisas que
aparentemente haviam deixado. Não é que tais casos concedam autorização a ninguém
para rejeitar a verdade de Deus, tanto mais que cada um é responsável por si mesmo e
terá de prestar contas dos seus atos a Deus. Contudo, o efeito produzido é, como em
tudo mais, mau. "Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo,
pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e
vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora
não conhecerem o caminho da justiça do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo
mandamento que lhes fora dado" (2 Pe 2:20-21).
Por esse motivo, se as pessoas não estão dispostas a ir longe, é melhor não partirem. O
inimigo sabia isto bem; daí a sua segunda objeção. Uma posição de proximidade satisfaz
admiravelmente os seus propósitos. Aqueles que ocupam esta posição não são nem uma
coisa nem outra; com efeito, qualquer que seja a sua influência, conduz, infalivelmente,
para o lado mau.
É muito importante ver claramente que o fim de Satanás em todas estas objeções era pôr
obstáculos ao testemunho que só podia ser rendido ao nome do Deus de Israel por meio
de uma peregrinação de três dias através do deserto. Isto era, em boa verdade, ir muito
longe —ir muito mais longe do que Faraó podia imaginar, ou até onde lhe era possível
seguir Israel. Que grande bênção seria se todos os que fazem profissão de sair do Egito
se separassem dele pelo espírito do seu entendimento e pela elevação do seu caráter; se
conhecessem a cruz e a sepultura de Cristo como os limites estabelecidos entre eles e o
mundo! Ninguém pode colocar-se nesse terreno na energia da sua natureza. O Salmista
pôde dizer:
"E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum
vivente" (Sl 143:2). O mesmo acontece a respeito da separação verdadeira e efetiva do
mundo. "Nenhum vivente" pode realizá-la. E somente como "morto com Cristo", e
ressuscitado também nele, pela fé, no poder de Deus(Cl 2:12),que o homem pode ser
justificado diante de Deus e separado do mundo. Eis o que podemos chamar "ir muito
longe". Permita Deus que todos os que fazem profissão de cristãos e se chamam por este
nome possam assim afastar-se! Então a sua lâmpada dará uma luz constante, a sua
trombeta dará um sonido inteligível e a sua conduta será elevada; a sua experiência será
rica e profunda; a sua paz correrá como um rio; os seus afetos serão celestiais e as suas
vestes imaculadas. E, acima de tudo, o nome do SENHOR Jesus será glorificado neles
pelo poder do Espírito Santo, segundo a vontade de Deus Pai.
A Terceira Objeção
A terceira objeção de Faraó requer atenção especial de nossa parte. "Então, Moisés e
Arão foram levados outra vez a Faraó, e ele disse-lhes: Ide, servi ao SENHOR, vosso
Deus. Quais são os que hão-de ir? E Moisés disse: Havemos de ir com os nossos
meninos e com os nossos velhos; com os nossos filhos, e com as nossas filhas, e com as
nossas ovelhas, e com os nossos bois havemos de ir; porque festa ao SENHOR temos.
Então ele lhes disse: Seja o SENHOR assim convosco, como eu vos deixarei ir a vós e a
vossos filhos; olhai que há mal diante da vossa face. Não será assim; andai agora vós,
varões, e servi ao SENHOR; pois isso é o que pedistes. E os lançaram da face de Faraó"
(capítulo 10:8 a 11).
De novo vemos como o inimigo procura dar um golpe de morte no testemunho dado ao
Deus de Israel. Os pais no deserto e os filhos no Egito! Que terrível anomalia! Isto teria
sido apenas libertação parcial, ao mesmo tempo inútil para Israel e desonrosa para o
Deus de Israel. Isto não era possível. Se os filhos fossem deixados no Egito, não se podia
dizer que os pais os tivessem deixado. Tudo quanto podia dizer-se, em tal caso, era que
em parte eles serviam ao Senhor e em parte a Faraó. Porém, o Senhor não podia ter
parte com Faraó. Era necessário que possuísse tudo ou nada. Eis aqui um princípio
importante para os pais cristãos. Possamos nós tê-lo no íntimo dos nossos corações! É
nosso privilégio contar com Deus quanto aos nossos filhos, e criá-los "na doutrina e
admoestação do Senhor" (Ef 6:4). Nenhuma outra parte deve satisfazer-nos quanto aos
nossos "pequeninos" senão aquela mesma que nós próprios desfrutamos.
A Quarta Objeção
A quarta e última objeção de Faraó relacionava-se com os rebanhos e as manadas.
"Então, Faraó chamou a Moisés e disse: Ide, servi ao SENHOR: somente fiquem vossas
ovelhas e vossas vacas; vão também convosco as vossas crianças (capítulo 10:24). Com
que perseverança disputou Satanás cada palmo do caminho de Israel para fora do Egito!
Em primeiro lugar procurou mantê-los no país; então diligenciou tê-los perto do país;
depois esforçou-se por reter parte do povo; e por fim, depois de haver falhado nestas três
tentativas, esforçou-se por fazê-los partir sem meios alguns para servir ao Senhor. Já que
não podia reter os servidores procurava ficar com os meios que eles tinham para servir,
pensando obter o mesmo resultado por um meio diferente. Já que não podia induzi-los a
oferecerem sacrifícios no país, queria enviá-los fora do país sem vítimas para os
sacrifícios.
A Resposta de Moisés
A resposta de Moisés a esta última objeção de Faraó dá-nos um relato dos direitos
soberanos do Senhor sobre o Seu povo e tudo que lhes pertence. "Moisés, porém, disse:
Tu também darás em nossos mãos sacrifícios e holocaustos, que ofereçamos ao
SENHOR nosso Deus. E também o nosso gado há de ir conosco, nem uma unha ficará;
porque daquele havemos de tomar para servirão SENHOR nosso Deus; porque não
sabemos com que havemos de servir ao Senhor, até que cheguemos lá" (versículos 25-
26). É somente quando o povo de Deus toma o seu lugar, com fé simples e infantil, sobre
o terreno elevado em que a morte e ressurreição os colocou, que podem ter um
conhecimento adequado dos seus direitos sobre eles: "...não sabemos com que havemos
de servir ao SENHOR, até que cheguemos lá". Quer dizer, não sabiam qual era a sua
responsabilidade, nem quais as exigências de Deus até que tivessem andado "três dias
de caminho" . Estas coisas não podiam ser conhecidas no meio da atmosfera corrompida
do Egito. É indispensável que a redenção seja conhecida como um fato consumado antes
que se possa ter uma percepção justa ou completa da responsabilidade. Tudo isto é
perfeito e belo.
"Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de
Deus" (Jo 7:17). É necessário que, por meio do poder da morte e ressurreição, estejamos
fora do Egito. É quando ocupamos o nosso lugar, pela fé, nesses átrios gloriosos em que
o sangue precioso de Cristo nos introduz; quando podemos olhar em redor de nós e
contemplar os resultados maravilhosos do amor que nos resgatou; quando contemplamos
atentamente Aquele que nos trouxe para este lugar e nos deu todas estas riquezas, que
somos constrangidos a exclamar, como um dos nossos poetas exclamou:
"Nem uma unha ficará". Que nobres palavras! O Egito não é o lugar próprio para guardar
coisa alguma que pertença aos remidos do SENHOR. Deus é digno de tudo: "alma, corpo
e espírito" — tudo que somos e tudo quanto temos pertencem-Lhe:"...não somos de nós
mesmos", porque "fomos comprados por bom preço" (I Co 6:19, 29) e é nosso grande
privilégio consagrarmo-nos com tudo quanto temos Àquele a Quem pertencemos e a cujo
serviço fomos chamados. Nada se vê aqui do espírito legalista. As palavras "até que
cheguemos lá" são a salvaguarda divina contra este mal horrível. Nós fizemos a
caminhada de "três dias" antes que pudesse ser ouvida ou compreendida uma só palavra
quanto ao sacrifício. Estamos de posse plena e indiscutível da vida de ressurreição e da
justiça eterna. Deixamos a terra da morte e das trevas; fomos trazidos a Deus Mesmo, de
forma que podemos possuí-Lo no poder dessa vida com que fomos dotados e nessa
esfera de justiça na qual fomos colocados: servir é, pois, todo o nosso gozo. Não existe
em nosso coração um só afeto do qual Ele não seja digno; não há em todo o Seu rebanho
uma vítima que seja preciosa demais para ser imolada no Seu altar. Quanto mais perto
andarmos d'Ele, tanto melhor compreenderemos que a nossa comida e a nossa bebida é
fazer a Sua santa vontade. O crente considera como seu maior privilégio o de servir ao
Senhor, e deleita-se em todo o exercício e em toda a manifestação da natureza divina.
Não caminha carregando com um peso insuportável às costas ou um jugo incômodo ao
pescoço. O jugo foi "despedaçado por causa da unção" (Is 10:27); o fardo foi tirado para
sempre pelo sangue da cruz, e ele avança "resgatado" "regenerador" e "desembaraçado"
em conformidade com estas palavras consoladoras: "DEIXA IR O MEU POVO".
A Ultima Praga
"E o SENHOR disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó e sobre o Egito;
depois, vos deixará ir daqui; e quando vos deixar ir totalmente, a toda a pressa vos
lançará daqui"(capítulo 11:1). Ainda mais um golpe duro deve cair sobre este monarca de
coração endurecido e sobre o seu povo, antes de ser obrigado a deixar ir o povo
favorecido pela graça soberana de Deus.
_______________________
(¹) Exige uma grande diferença entre o método divino de tratar com os gentios e os
rejeitadores do evangelho. Quanto aos primeiros, lemos: "E, como eles se não importaram
de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso" (Rm
1:28): mas acerca dos últimos, está escrito, "...porque não receberam o amor da verdade
para se salvarem... Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira,
para que sejam julgados todos..." (2 Ts 2:10-12). Os gentios rejeitaram o testemunho da
criação, e são, portanto, entregues a si próprios. Os rejeitadores do evangelho recusam o
brilho pleno da luz que refulge da cruz, e, portanto, Deus enviar-lhes-á em breve a
"operação do erro". Tudo isto é profundamente solene nestes dias em que há tanta luz e
tanta profissão religiosa.
— CAPÍTULO 12 —
A PÁSCOA
O Cordeiro Guardado
"Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, tome cada um para si
um cordeiro, segundo as casas dos pais, um cordeiro para cada casa... O cordeiro, ou
cabrito, será, sem mácula, um macho de um ano, o qual tomareis das ovelhas ou das
cabras, e o guardareis até ao décimo quarto dia deste mês, e todo o ajuntamento da
congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículos 3 a 6). Eis aqui a redenção do
povo de Israel baseada sobre o sangue do cordeiro segundo o desígnio eterno de Deus.
Isto dá à redenção toda a sua estabilidade divina.
A redenção não foi o resultado de um segundo pensamento de Deus. Antes que o mundo
existisse, ou Satanás, ou o pecado; antes que a voz de Deus houvesse interrompido o
silêncio de eternidade e chamado os mundos à existência, Ele tinha os seus grandes
desígnios de amor, e estes desígnios não podiam achar jamais um fundamento
suficientemente sólido na criação. Todos os privilégios, todas as bênçãos e as glórias da
criação repousavam sobre a obediência de uma criatura, e, no próprio momento em que
esta caiu, tudo foi perdido. Porém, a tentativa de Satanás de corromper a criação apenas
serviu para abrir o caminho à manifestação dos propósitos profundos de Deus quanto à
redenção.
Esta maravilhosa verdade é-nos apresentada em figura debaixo do fato que o cordeiro
devia ser guardado desde o dia dez "até ao décimo quarto dia". Este cordeiro era
indiscutivelmente uma figura de Cristo, como nos ensina, sem dúvida, a passagem da I
Coríntios 5:7: "Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós". Na primeira epístola
de Pedro faz-se alusão à guarda do cordeiro durante estes quatro dias:
"Sabendo que não foi com cosias corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados
da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes do vossos pais, mas com o
precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual na
verdade, em outro tempo, foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas
manifestado nestes últimos tempos; por amor de vós" (versículos 18-20).
Todos os desígnios de Deus, desde toda a eternidade, tinham relação com Cristo; e
nenhum esforço de inimigo podia interferir com esses desígnios: antes pelo contrário,
esses esforços apenas contribuíram para a manifestação e a estabilidade inabalável da
sabedoria insondável de Deus. Se "o Cordeiro imaculado e incontaminado" foi "conhecido
antes da fundação do mundo", certamente que a redenção devia estar no pensamento de
Deus antes da fundação do mundo. O bendito Senhor não teve que improvisar um plano
para remediar o terrível mal que o inimigo havia introduzido na criação. Não, Ele apenas
teve que tirar do tesouro inexplorado dos Seus maravilhosos desígnios a verdade quanto
ao Cordeiro imaculado, conhecido desde a eternidade, e que devia ser "manifestado
nestes últimos tempos por amor de nós".
Quando a criação saiu das mãos do Criador, mostrando em cada fase e em cada parte a
obra admirável da Sua mão—provas infalíveis do seu eterno poder, e da sua divindade
veja (Rm 1:20) —, não houve necessidade do sangue do Cordeiro. Porém, quando "por
um homem entrou o pecado no mundo", foi revelado o pensamento mais alto, mais rico,
mais profundo, mais pleno da redenção pelo sangue do Cordeiro. Esta verdade gloriosa
apareceu primeiramente através da nuvem espessa que rodeava os nossos primeiros
pais, quando saíram do jardim do Éden; a sua luz começou a brilhar nas figuras e
sombras da dispensação moisaica; e, por fim, resplandeceu sobre o mundo com todo o
seu esplendor, quando "o Oriente do alto nos visitou" na Pessoa do Deus manifestado em
carne (1 Tm 3:16); e os seus ricos e gloriosos resultados serão realizados quando aquela
grande multidão vestida de branco, e tendo palmas em suas mãos, se reunir em torno do
trono de Deus e do Cordeiro, e toda a criação descansar sob o cetro de paz do Filho de
Davi.
Assim, o cordeiro tomado no dia dez e guardado até ao dia catorze mostra-nos Cristo
conhecido de Deus, desde a eternidade, porém manifestado na plenitude dos tempos por
amor de nós. O desígnio eterno de Deus em Cristo vem a ser o fundamento da paz do
crente. Nada menos do que isto seria suficiente. Somos reconduzidos muito para lá da
criação, para lá dos limites do tempo, além da entrada do pecado e de tudo que pudesse
possivelmente afetar o fundamento da nossa paz. A expressão "conhecido antes da
fundação do mundo" faz-nos retroceder às profundidades insondáveis da eternidade, e
mostra-nos Deus fazendo os Seus próprios planos de amor redentor e baseando-os sobre
o sangue expiador do Seu precioso Cordeiro imaculado.
Cristo foi sempre o pensamento primário de Deus, e por isso, logo que começa a falar ou
atuar, Ele aproveita a ocasião para manifestar Aquele que ocupava o lugar mais elevado
em Seus conselhos e afetos; e, seguindo a corrente de inspiração divina, descobrimos
que cada cerimônia, cada rito, cada ordenação, e cada sacrifício indicava "o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29); porém em nenhum de uma forma tão
evidente como a Páscoa. O cordeiro da páscoa, com tudo que com ele se ligava,
apresenta-nos uma das figuras mais interessantes e instrutivas das Escrituras.
O Cordeiro Imolado
Na interpretação deste capítulo 12 de Êxodo temos que tratar com unta assembleia e um
sacrifício é: "todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículo
6). Não se trata tanto de um número de famílias e alguns cordeiros (o que por certo é
muito verdade) como de uma assembleia e um cordeiro. Cada família era a expressão
local de toda a assembleia reunida em torno do cordeiro. O antítipo deste ato têmo-lo em
toda a Igreja de Deus reunida pelo Espírito Santo em nome do Senhor Jesus, da qual
cada assembleia em particular, onde quer que se reúna, deve ser a expressão local.
"Vendo Eu Sangue..."
Note-se que o israelita não descansa sobre os seus próprios pensamentos, nos seus
sentimentos ou na sua experiência, a respeito do sangue. Isto teria sido descansar sobre
um fundamento fraco e movediço. Os seus pensamentos e os seus sentimentos podiam
ser profundos ou superficiais: mas, quer fossem profundos, quer superficiais, nada tinham
que ver com o fundamento da sua paz. Deus não havia dito: "vendo vós o sangue, e
avaliando-o como ele deve ser avaliado, eu passarei por cima de vós" .Isto teria bastado
para lançar um israelita em profundo desespero quanto a si próprio, visto que é
impossível para o espírito humano apreciar o valor do precioso sangue do Cordeiro de
Deus. O que dava paz era a certeza de que os olhos do Senhor estavam postos sobre o
sangue, e que Ele apreciava o seu valor. Isto tranquilizava o coração. O sangue estava de
fora da porta, e o israelita encontrava-se dentro de casa, de modo que não podia ver
aquele sangue; mas Deus o via, e isso era perfeitamente suficiente.
A aplicação deste fato à questão da paz do pecador é bem clara. O Senhor Jesus Cristo,
havendo derramado o Seu precioso sangue, em expiação perfeita pelo pecado, levou
esse sangue à presença de Deus, e fez ali aspersão dele; e o testemunho de Deus
assegura o crente de que as coisas estão liquidadas a seu favor—liquidadas, não pelo
apreço que ele dá ao sangue, mas, sim, pelo próprio sangue, que tem um tão grande
valor para Deus, que, por causa desse sangue, sem mais um jota ou um til, Ele pode
perdoar com justiça todo o pecado e aceitar o pecador como um ser perfeitamente justo
em Cristo. Como poderia alguém desfrutar paz segura se a sua paz dependesse da sua
apreciação do sangue?- Seria impossível! A melhor apreciação que o espírito humano
possa tomar do sangue estará sempre infinitamente abaixo do seu valor divino; e,
portanto, se a nossa paz dependesse da apreciação que lhe devíamos dar, nós jamais
poderíamos gozar de uma paz segura, e seria o mesmo que se a buscássemos pelas
obras da lei (Rm 9:32; Gl 2:16; 3:10). O fundamento de paz ou há de ser somente o
sangue, ou então nunca teremos paz. Juntar-lhe o valor que nós lhe damos, é derrubar
todo o edifício do cristianismo, precisamente como se conduzíssemos o pecador ao pé do
monte Sinai e o puséssemos debaixo do concerto da lei. Ou o sacrifício de Cristo é
suficiente ou não é. Se é suficiente, por que essas dúvidas e temores?- As palavras dos
nossos lábios confessam que a obra está cumprida, mas as dúvidas e temores do
coração declaram que não. Todo aquele que duvida do seu perdão perfeito e eterno,
nega, tanto quanto lhe diz respeito, o cumprimento do sacrifício de Cristo.
Há muitas pessoas que fogem da ideia de pôr em dúvida deliberada e abertamente a
eficácia do sangue de Cristo, mas que, todavia, não têm uma paz segura. Estas pessoas
dizem estar completamente convencidas da suficiência do sangue de Cristo, desde que
possam estar certas de ter parte nele — desde que possam ter a verdadeira fé. Há muitas
almas preciosas nesta infeliz condição. Ocupam-se mais da sua fé e dos seus interesses
do que com o sangue de Cristo e a palavra de Deus. Por outras palavras, olham para o
seu íntimo, em vez de olharem para Cristo. Isto não é o procedimento da fé, e, por
conseguinte, carecem de paz. O israelita protegido pela umbreira da porta manchada de
sangue podia dar a estas almas uma lição muito apropriada — não fora salvo pelo
interesse que tinha no sangue nem pelos seus pensamentos acerca dele, mas
simplesmente pelo próprio sangue. Sem dúvida, ele tinha uma parte bem-aventurada no
sangue; assim como os seus pensamentos também estavam postos nele; porém, Deus
não havia dito: "Vendo eu o vosso apreço pelo sangue passarei por cima de vós". Ah!
não; o SANGUE, com o seu mérito exclusivo e eficácia divina estava posto perante Israel;
e se eles tivessem tentado pôr só que fosse um bocado de pão asmo ao lado do sangue,
como base de segurança, teriam feito do Senhor mentiroso e negado a suficiência do Seu
remédio.
Os Pães Asmos
Mas como devia ser comido este cordeiro?- "...com pães asmos; com ervas amargosas a
comerão". O fermento é empregado, invariavelmente, através das Escrituras, como
símbolo do mal. Nunca é usado nem no Velho nem no Novo Testamento como
simbolizando alguma coisa pura, santa ou boa. Assim, neste capítulo, a celebração da
festa com "pães asmos" é figura da separação prática do mal como resultado próprio de
havermos sido lavados dos nossos pecados no sangue do Cordeiro e a própria
consequência da comunhão com os Seus sofrimentos. Nada senão pão perfeitamente
livre de fermento podia ser compatível com o cordeiro assado. Uma simples partícula
daquilo que era figura destacada do mal teria destruído o caráter moral de toda a
ordenação. Como poderíamos nós associar qualquer espécie de mal como a nossa
comunhão com Cristo nos Seus sofrimentos?- Seria impossível. Todos aqueles que, pelo
poder do Espírito Santo, têm compreendido a significação da cruz, não terão dificuldade,
pelo mesmo poder, de afastar entre eles o fermento. "Porque Cristo, nossa páscoa, foi
sacrificado por nós. Peio que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o
fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade" (1
Co 5:7-8). A festa de que se fala nesta passagem é a mesma que, na vida e conduta da
Igreja, corresponde à festa dos pães asmos. Esta durava "sete dias"; e a Igreja,
coletivamente, e o crente individualmente, são chamados para andar em santidade
prática, durante os sete dias, ou seja todo o tempo da sua carreira aqui na terra; e isto,
note-se, como resultado imediato de haverem sido lavados no sangue, e tendo comunhão
com os sofrimentos de Cristo.
O israelita não deitava fora o fermento a fim de ser salvo, mas, sim, porque estava salvo;
e se deixasse de o deitar fora, não comprometia com isso a sua segurança por meio do
sangue, mas simplesmente a comunhão com a assembleia. "Por sete dias não se ache
nenhum fermento nas vossas casas; porque qualquer que comer pão levedado, aquela
alma será cortada da congregação de Israel, assim o estrangeiro como o natural da terra"
(versículo 19). O corte de uma alma da congregação corresponde precisamente à
suspensão de um cristão da comunhão, quando acede àquilo que é contrário à santidade
da presença de Deus. Deus não pode tolerar o mal. Um simples pensamento impuro
interrompe a comunhão da alma; e enquanto a mancha produzida por este pensamento
não for tirada pela confissão, baseada na intercessão de Cristo, não é possível
restabelecer a comunhão (vide 1 Jo 1:5 -10). O cristão sincero regozija-se nisto; e dá
louvores em memória da santidade de Deus (SI 97:12). Ainda que pudesse, não
diminuiria, nem por um momento, o estalão: é seu gozo inexcedível andar na companhia
d Aquele que não andará nem por um momento com uma simples partícula de "fermento".
Graças a Deus, nós sabemos que nada poderá jamais partir em dois o laço que une o
verdadeiro crente com Ele. Somos salvos pelo Senhor, não com uma salvação temporária
ou condicional, mas "com uma eterna salvação" (Is 45:17). Porém, salvação e comunhão
não são a mesma coisa. Muitas pessoas estão salvas, e não o sabem; e muitas, também,
estão salvas sem terem o gozo da salvação. É impossível que eu sinta o gozo de estar
sob a verga da porta manchada de sangue, se houver fermento em minha casa. É um
axioma na vida divina. Oxalá fosse escrito em nossos corações! A santidade prática,
embora não seja a base da nossa salvação, está intimamente ligada com o gozo da
salvação. O israelita não era salvo pelos pães asmos, mas, sim, pelo sangue; e todavia o
fermento tê-lo-ia cortado da comunhão. E assim quanto ao cristão, ele não é salvo por
sua santidade prática, mas pelo sangue; porém se se entrega ao mal, em pensamento,
por palavras, ou ações, não terão verdadeiro gozo da salvação, nem verdadeira
comunhão com a pessoa do Cordeiro.
É nisto, sem dúvida, que está o segredo de uma boa parte da esterilidade espiritual e falta
de paz constante que se observa entre os filhos de Deus. Não praticam a santidade: não
guardam a festa dos "pães asmos" (Êx 23:15). O sangue acha-se sobre as ombreiras da
porta, porém o fermento dentro de suas casas impede-os de gozarem a segurança que o
sangue concede. A permissão do mal destrói a nossa comunhão, embora não quebre o
laço que nos une eternamente a Deus. Aqueles que pertencem à Assembleia de Deus
devem ser santos. Não somente foram libertados da culpa e das consequências do
pecado, como também da sua prática, do seu poder e do amor do pecado. O próprio fato
de haverem sido libertados pelo sangue do cordeiro da páscoa impunha aos israelitas a
obrigação de deitarem fora de suas casas o fermento. Não podiam dizer, segundo a
linguagem terrível do antinomianismo, "agora que estamos livres, podemos conduzir-nos
como nos aprouver". De modo nenhum! Se haviam sido salvos feia graça, era para
andarem em santidade. A alma que se aproveita da liberdade da graça divina e da
redenção que há em Cristo Jesus para "continuar no pecado" prova claramente que não
compreende nem a graça nem a redenção.
A graça não somente salva a alma com uma eterna salvação, como lhe dá uma natureza
que se deleita em tudo que pertence a Deus, porque é divina. Nós somos feitos
participantes da natureza divina, a qual não pode pecar, porque é nascida de Deus. Andar
na energia desta graça é, na realidade, "guardar" a festa dos pães asmos. Não existe
"fermento velho" nem "fermento da malícia" (1 Co 5:8) na nova natureza, porque é
nascida de Deus e Deus é santo e "Deus é amor". Por isso é evidente que não é com o
fim de melhorar a nossa velha natureza, que é irreparável, nem tampouco de obtermos a
nova natureza, que tiramos de nós o mal, mas, sim, porque temos o mal em nós. Nós
temos a vida e, no poder desta vida, tiramos o mal. É somente quando estamos libertados
da culpa do pecado que compreendemos ou exibimos o verdadeiro poder da santidade.
Tentar consegui-lo por qualquer outro meio é esforço inútil. A festa dos pães asmos só
pode ser guardada sob o abrigo perfeito do sangue.
____________________
1) antinomia: contradição entre duas leis ou princípios; oposição recíproca Nota do editor.
As Ervas Amargas
Vemos nas "ervas amargosas", que deviam acompanhar os pães asmos, a significação e
mesma utilidade moral. Não podemos desfrutar da participação dos sofrimentos de Cristo
sem recordarmos o que tornou necessários esses sofrimentos, e esta recordação deve,
necessariamente, produzir um espírito de mortificação e submissão, ilustrado, de um
modo apropriado, nas ervas amargosas da festa da páscoa. Se o cordeiro assado
representa Cristo sofrendo a ira de Deus em Sua Própria Pessoa na cruz, as ervas
amargosas mostram que o crente reconhece a verdade que Ele sofreu por nós. "O castigo
que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (Is 53:5).
Por causa da leviandade dos nossos corações é bom compreendermos a profunda
significação das ervas amargosas. Quem poderá ler os Salmos 6,22,38,69,88, e 109, sem
compreender, em alguma medida, o significado dos pães asmos com ervas amargosas?-
Uma vida praticamente santa, unida a uma profunda submissão de alma, deve ser o fruto
da comunhão verdadeira com os sofrimentos de Cristo, porque é de todo impossível que
o mal moral e a leviandade de espírito possam subsistir na presença desses sofrimentos.
Mas, pode perguntar-se não sente a alma um gozo profundo no conhecimento que Cristo
levou os nossos pecados, e que esgotou, inteiramente, por nós, o cálice da ira justa de
Deus? Por certo que é assim. E este o fundamento inabalável de todo o nosso gozo. Mas,
poderemos nós esquecer que foi" por nossos pecados" que Ele sofreu ? Poderemos
perder de vista a verdade, poderosa para subjugar a alma, que o bendito Cordeiro de
Deus inclinou a Sua cabeça sob o peso das nossas transgressões? Certamente que não.
Devemos comer o nosso cordeiro com ervas amargosas; as quais, não se esqueça, não
representam as lágrimas de um sentimentalismo desprezível e superficial, mas sim as
experiências profundas e verdadeiras de uma alma que compreende com inteligência
espiritual o significado e efeito prático da cruz.
Contemplando a cruz, descobrimos nela aquilo que elimina a nossa culpa e dá doce paz e
gozo. Porém, vemos que ela põe de lado, inteiramente, também, a natureza humana—
representa a crucificação da "carne" e a morte do "homem velho" (veja-se Romanos, 6:6;
Gl. 2-.20; 6:14; Cl. 2:11). Estas verdades, nos seus resultados práticos, implicam muitas
coisas "amargosas" para a nossa natureza: exigem a renúncia própria, a mortificação dos
nossos membros que estão sobre a terra (Cl 3:5), e a consideração do "homem velho"
como morto para o pecado (Rm 6). Todas estas coisas podem parecer terríveis de
encarar; porém, uma vez que se há entrado na casa cujas portas estão manchadas com o
sangue veem-se de uma maneira muito diferente. As mesmas ervas que, para o gosto de
um egípcio, eram, sem dúvida, tão amargosas, formavam uma parte integral da festa de
redenção de Israel. Aqueles que são remidos pelo sangue do Cordeiro, e conhecem o
gozo da comunhão com Ele, consideram como uma "festa" tirar o mal e ter a velha
natureza no lugar da morte.
A Comunhão e a Paz
"E nada dele deixareis até pela manhã; mas o que dele ficar até pela manhã, queimareis
no fogo" (versículo 10). Este mandamento ensina-nos que a comunhão da congregação
de Israel não devia ser, de modo nenhum, separada do sacrifício sobre o qual se baseava
essa comunhão. O coração deve guardar sempre a lembrança viva de que toda a
verdadeira comunhão está inseparavelmente ligada com a redenção efetuada. Crer que
se pode ter comunhão com Deus sobre qualquer outro fundamento é imaginar que Deus
pode ter comunhão com o pecado que há em nós; e pensar em comunhão com o homem,
com base em qualquer outro fundamento, é apenas formar uma união impura, da qual
nada pode resultar senão confusão e iniquidade. Em suma: é necessário que tudo esteja
fundamentado sobre o sangue e inseparavelmente ligado com ele. Este é o significado
simples da ordenação que mandava comer o cordeiro da páscoa na mesma noite em que
o sangue havia sido derramado. A comunhão não pode ser separada do seu fundamento.
Portanto, que belo quadro nos oferece a congregação de Israel protegida pelo sangue e
comendo em paz o cordeiro assado com pães asmos e ervas amargosas! Nenhum temor
de juízo, nenhum temor da ira do SENHOR, nenhum temor da tempestade terrível da
justa vingança, que, à meia-noite, ia varrer, veementemente, toda a terra do Egito! Tudo
estava em paz profunda atrás das portas manchadas de sangue. Nada tinham a temer de
fora; e nada dentro podia perturbá-los, salvo o fermento, que teria dado um golpe mortal
em toda a sua paz e bem-aventurança. Que exemplo para a Igreja! Que exemplo para o
cristão! Que Deus nos ajude a contemplarmo-lo com um olhar iluminado e um espírito
dócil!
O Vestido de Israel
Contudo, não esgotamos ainda o ensino desta tão instrutiva ordenação. Consideramos a
posição de Israel e a comida de Israel, vamos agora falar do estado de Israel.
"Assim, pois, o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos pés, e o
vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente; esta é a Páscoa do Senhor"
(versículo 11). Deviam comer a páscoa como um povo que estava preparado para deixar
atrás de si o país da morte e das trevas, da ira e do juízo, e marchar em demanda da terra
da promissão—a herança que lhes estava reservada. O sangue que os havia preservado
da sorte dos primogênitos do Egito era também o fundamento da sua libertação da
escravidão do Egito; e agora só lhes restava porem-se em marcha e andar com Deus
para a terra que manava leite e mel. É verdade que não haviam ainda atravessado o Mar
vermelho; tampouco haviam andado o "caminho de três dias". Contudo, eram já, em
princípio, um povo redimido, um povo separado, um povo de peregrinos, um povo
esperançoso, um povo que dependia de Deus; e era preciso que os seus trajos
estivessem de harmonia com a sua presente condição e o destino futuro. Os lombos
cingidos indicavam uma separação rigorosa de tudo aquilo que os rodeava e mostravam
que eles eram um povo preparado para servir. Os pés calçados mostravam que estavam
prontos a abandonar o seu estado presente; enquanto que o cajado era o emblema
significativo de um povo de peregrinos numa atitude de apoio em qualquer coisa que
estava fora de si mesmos. Que característicos preciosos! Prouvera a Deus que fossem
vistos em cada membro da família dos Seus remidos.
Prezado leitor, meditemos "estas coisas (l Tm 4:15). Pela graça de Deus, experimentamos
a eficácia purificadora do sangue de Jesus; neste estado é nosso privilégio alimentarmo-
nos da sua adorável Pessoa e deleitarmo-nos nas Suas "riquezas incompreensíveis" (Ef
3:8), tendo parte nos Seus sofrimentos e sendo feitos "conforme à sua morte" (Fp 3:10).
Mostremo-nos, pois, com pães asmos e ervas amargosas, os lombos cingidos, os sapatos
nos pés, e o cajado na mão. Numa palavra: que sejamos notados como um povo santo,
um povo crucificado, vigilante e diligente—um povo que mancha, claramente, ao encontro
de Deus no caminho para a glória—, "destinado para o reino". Que Deus nos conceda
penetrar na profundidade e no poder de todas estas coisas; de forma que não sejam
apenas teorias, ou princípios de conhecimento bíblico e simples interpretação; mas, sim,
realidades vivas, divinas, conhecidas por experiência e manifestadas na vida, para glória
de Deus.
— CAPÍTULO 13 —
O Verdadeiro Cristianismo
O verdadeiro Cristianismo não é senão a manifestação da vida de Cristo implantada em
nós pela operação do Espírito Santo, segundo os desígnios eternos de Deus de graça
soberana; e todas as nossas obras antes desta implantação de nova vida não são mais
que "obras mortas" (Hb 6:1), das quais a nossa consciência deve ser purificada do
mesmo modo que das "más obras" (Hb 9:14).
A expressão "obras mortas" inclui todas as obras que os homens fazem com o fim de
obter a vida. Se alguém busca a vida, é evidente que ainda não a tem. É possível que
seja muito sincero em a buscar, mas a sua própria sinceridade forma evidente o fato que,
por enquanto, ainda não a alcançou. Assim, pois, todo o esforço feito com o fim de obter a
vida é obra morta, tanto mais que é feito sem a vida de Cristo, a única vida verdadeira, e a
única fonte de onde podem emanar as boas obras. E note-se que não é uma questão de
"obras más"; ninguém pensaria em obter a vida por tais meios. Não! Pelo contrário, ver-
se-á como as pessoas recorrem constantemente às "obras mortas" a fim de aliviarem a
Sua consciência sob a sensação das "obras más", ao passo que a revelação divina nos
ensina que a consciência necessita de ser purificada tanto de umas como das outras.
Além disso, quanto à justiça, lemos que "todas as nossas justiças são como o trapo da
imundícia" (Is 64:6). Não é dito aqui apenas que "todas as nossas iniquidades são como
trapo da imundícia". Quem ousaria dizer o contrário? Porém o fato é que os melhores
frutos que podemos produzir, sob a forma de piedade e da justiça, são representados nas
páginas da verdade eterna como "obras mortas" e "trapo da imundícia". Os mesmos
esforços que fazemos para conseguir a vida provam que estamos mortos; e os nossos
esforços para alcançarmos a justiça provam apenas que estamos vestidos com trapos de
imundícia. É só como possuidores da vida eterna e da justiça divina de podemos andar no
caminho das boas obras que Deus nos preparou. As obras mortas e os trapos imundos
não podem ser permitidos nesse caminho. Ninguém senão "os resgatados do Senhor" (Is
51:11) pode passar por ele. Era na qualidade do povo remido que Israel guardava a festa
dos pães asmos e santificava os primogênitos ao Senhor., Já consideramos a primeira
destas ordenações; quanto a esta última é rica em instruções.
— CAPÍTULO 14 —
O MAR VERMELHO
O Propósito de Deus
Não existe sequer uma posição em toda a peregrinação dos remidos de Deus cujos
limites não hajam sido cuidadosamente traçados pela mão da sabedoria infalível e o amor
infinito. O alcance e a influência peculiar de cada posição são calculados com cuidado. Os
Pi-Hairotes e os Migdoles estão dispostos de maneira a estarem em relação com a
condição moral daqueles que Deus está conduzindo através dos caminhos sinuosos e
dos labirintos do deserto, e também para que manifestem o Seu próprio caráter. A
incredulidade sugere com frequência esta pergunta: "Porque é isto assim ? Deus sabe; e,
sem dúvida, revelará a razão, sempre que essa revelação promova a Sua glória e o bem
do Seu povo. Quantas vezes somos tentados a perguntar por que e com que fim nos
achamos nesta ou naquela circunstância! Quantas vezes ficamos perplexos quanto à
razão de nos vermos expostos a esta ou àquela prova! Quão melhor seria curvarmos as
nossas cabeças em humilde submissão, dizendo, "está bem", e ―tudo acabará bem"!
Quanto à Deus Quem determina a nossa posição, podemos estar certos que é uma
posição sensata e salutar; e até mesmo quando nós, louca e obstinadamente,
escolhemos uma posição, o Senhor, em Sua misericórdia, domina a nossa loucura e faz
com que as influências das circunstâncias da nossa própria escolha operem para nosso
bem espiritual.
É quando os filhos de Deus se encontram nos maiores apertos e dificuldades que têm o
privilégio de ver as mais preciosas manifestações do caráter e da atividade de Deus; e é
por esta razão que Ele os coloca frequentemente numa situação de prova, a fim de poder
mostrar-Se de um modo mais notável. O Senhor podia ter conduzido Israel através do
Mar Vermelho para muito além do alcance das hostes de Faraó, muito antes que este
houvesse saído do Egito, porém isto não teria glorificado inteiramente o Seu nome, nem
teria confundido de uma maneira tão completa o inimigo, sobre o qual queria ser
"glorificado" (versículo 17). Também nós perdemos muitas vezes de vista esta preciosa
verdade, e o resultado é que os nossos corações fraquejam na horta da provação. Se tão
somente pudéssemos encarar as crises graves como uma oportunidade de Deus pode
mostrar, em nosso favor, a suficiência da graça divina, as nossas almas conservariam o
seu equilíbrio, e Deus seria glorificado, até mesmo no profundo das águas.
A Salvação do SENHOR
"Moisés, porém, disse ao povo: Não temais; estai quietos, e vede o livramento do
SENHOR, que hoje vos fará: porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais vereis
para sempre. O SENHOR pelejará por vós e vós calareis" (versículos 13 -14). Eis aqui a
atitude que a fé toma em face da provação: "estai quietos". Para a carne e o sangue isto é
impossível. Todos os que conhecem, em alguma medida, a impaciência do coração
humano, ante a perspectiva de provações e aflições, poderão fazer uma ideia do que
significa estar quieto. A nossa natureza quer fazer alguma coisa. E por isso correrá de um
lado para o outro: quer ter parte na obra; e embora possa pretender justificar os seus atos
desprezíveis, fazendo-os acompanhar do título pomposo e vulgar de emprego legítimo de
meios, na realidade eles são apenas os frutos claros e positivos da incredulidade que
sempre põe Deus de parte, e nada vê senão as nuvens escuras da sua própria criação. A
incredulidade cria e aumenta as dificuldades, e, então, leva-nos a procurarmos vencê-las
por meio das nossas atividades inúteis e precipitadas, as quais, na realidade, apenas
lançam poeira em redor de nós, e assim nos impede de vermos a salvação de Deus. Pelo
contrário, a fé eleva a alma acima das dificuldades até Deus, e habilita-nos a estarmos
"quietos". Nada ganhamos com os nossos esforços impacientes e inquietos. "Não
podemos fazer um cabelo branco ou preto, tão-pouco podemos juntar um côvado à nossa
estatura" (Mt 5:36,6:27). Que poderia Israel fazer junto do Mar Vermelhou Podia secá-lo?
Podia aplanar as montanhas?- Podia aniquilar as hostes do Egito?- Impossível.
Encontravam-se encerrados dentro de um muro impenetrável de dificuldades, à vista do
qual a natureza não podia fazer mais que tremer e sentir a sua completa impotência.
Porém, para Deus era precisamente o momento de atuar. Quando a incredulidade é
afastada da cena, Deus pode intervir; e, para podermos ver os Seus atos, nós temos de
estar "quietos". Cada movimento da natureza é, com efeito, um impedimento para a nossa
percepção e gozo da intervenção divina a nosso favor.
— CAPÍTULO 15 —
UM CÂNTICO DE VITÓRIA
A Redenção e o Culto
Nisto, como em tudo o mais, eles foram figuras de todos nós. Nós precisamos de saber
que estamos salvos, no poder da morte e ressurreição, antes de podermos prestar a Deus
culto claro e inteligente. Haverá sempre na alma reserva e hesitação, provenientes, sem
dúvida, da sua incapacidade em compreender a redenção que há em Cristo Jesus. Pode
haver o reconhecimento do fato que há salvação em Cristo Jesus, e em nenhum outro;
porém compreender, pela fé, o verdadeiro caráter e fundamento dessa salvação,
realizando-a como nossa, é coisa muito diferente. O Espírito de Deus revela, com clareza
inconfundível, na Palavra de Deus, que a Igreja está unida a Cristo na morte e
ressurreição; e, demais, que Cristo ressuscitado e assentado à destra de Deus é a
medida e o penhor da aceitação da Igreja. Quando se crê isto, a alma é transportada para
lá das regiões da dúvida e incerteza. Como pode o crente duvidar quando sabe que é
representado continuamente diante do trono de Deus por um advogado, Jesus Cristo, o
Justo?- É privilégio até do mais fraco dos membros da Igreja de Deus saber que foi
representado por Cristo na cruz, e que todos os seus pecados foram confessados,
levados, julgados e expiados ali. É uma realidade divina, que, quando aceite pela fé, dá a
paz. Mas nada menos que isto pode jamais dar paz. Pode existir o desejo mais sincero,
ardente, ansioso e verdadeiro de Deus; poderão observar-se pia e devotadamente todas
as ordenações, deveres e práticas da religião, mas o único meio de libertar a consciência
do sentido do pecado é vê-lo julgado na pessoa de Cristo, oferecendo-Se uma vez como
sacrifício pelo pecado na cruz de maldição. Se o pecado foi ali julgado uma vez para
sempre, o crente deve, portanto, considerá-lo, agora, como uma questão divinamente e
eternamente arrumada. E que a questão do pecado foi assim julgada está provado pela
ressurreição do nosso Substituto. "Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente;
nada se lhe deve acrescentar, e nada se lhe deve tirar. E isso faz Deus para que haja
temor diante dele" (Ec 3:14).
Contudo, enquanto é admitido em geral que tudo isto é verdadeiro quanto à Igreja
coletivamente, muitos têm grande dificuldade em fazer a sua aplicação pessoal. Estão
prontos a dizer com o Salmista: "Verdadeiramente bom é Deus para com Israel, para com
os limpos de coração. Quanto a mim..." (SI 73:1- 2). Olham para si, em vez de olharem
para Cristo na morte e Cristo na ressurreição. Estão mais ocupados com a apropriação de
Cristo do que com Cristo Mesmo. Pensam na sua capacidade em vez de pensarem nos
seus privilégios. São retidos num estado de incerteza inquietante; e, por conseguinte,
nunca podem tomar o lugar de adoradores ditosos e inteligentes. Oram por salvação em
vez de se regozijarem na possessão consciente dela. Olham para os seus frutos
imperfeitos em vez de contemplarem a perfeita expiação de Cristo.
Bom, examinando as várias notas deste cântico, no capítulo 15 de Êxodo, não
encontramos uma nota sequer acerca do ego nem dos seus feitos: tudo se refere ao
Senhor desde o princípio ao fim. Começa assim: "Cantarei ao SENHOR, porque
sumamente se exaltou; lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro". Isto é uma amostra de
todo o cântico. É um simples relato dos atributos e obras do Senhor. No capítulo 14 os
corações dos israelitas haviam sido, com efeito, encurralados sob a pressão excessiva
das circunstâncias; porém no capítulo 15 essa pressão é tirada, e os seus corações
encontram plena saída num suave cântico de louvor. O ego é esquecido; as
circunstâncias são perdidas de vista, e um só objeto enche a sua visão, e esse é o
Próprio Senhor no Seu caráter e em Suas obras. Assim eles puderam dizer: "Pois tu,
SENHOR, me alegraste com os teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos" (SI 92:4).
Isto é culto verdadeiro. É quando o pobre ego, com tudo quanto lhe pertence, é perdido
de vista e somente Cristo enche os nossos corações, que podemos oferecer a Deus culto
verdadeiro. Os esforços de uma piedade carnal não são precisos para despertar na alma
sentimentos de devoção. Não temos necessidade nenhuma de recorrer à pretendida
ajuda da religião, assim chamada, para inflamar na alma a chama do culto aceitável a
Deus. Ah! Não; deixai que o coração esteja ocupado somente com a Pessoa de Cristo, e
os "cânticos de louvor" serão a consequência natural. É impossível que o olhar esteja
fixado n'Ele sem que o espírito se curve em santa adoração. Se contemplarmos o culto
dos exércitos celestiais, que rodeiam o trono de Deus e do Cordeiro, veremos que é
sempre acompanhado da apresentação de algum traço especial das perfeições ou obras
divinas. Assim deveria ser com a Igreja na terra; e quando é de outra maneira, é porque
nos deixamos vencer por coisas que não têm lugar nas regiões da clara luz e da pura
bem-aventurança.
Eis aqui as provações do deserto. "Que havemos de comera" e "que havemos de bebera"
As águas de Mara puseram à prova o coração de Israel e mostraram o seu espírito
murmurador; mas o Senhor mostrou-lhes que não havia amargura que Ele não pudesse
dulcificar com a provisão da Sua graça: "...e o SENHOR mostrou-lhe um lenho que lançou
nas águas, e as águas se tornaram doces: ali lhes deu estatutos e uma ordenação, e ali
os provou". Que formosa figura d'Aquele que foi, em graça infinita, lançado às águas da
morte, para que essas águas nada mais nos pudessem dar senão doçura, para todo o
sempre. Verdadeiramente, podemos dizer: "Na verdade já passou a amargura da morte",
e nada mais nos resta senão as doçuras eternas da ressurreição.
O versículo 26 põe diante de nós o caráter importante desta primeira etapa dos remidos
de Deus no deserto. Encontramo-nos em grande perigo, nesta hora, de cair num espírito
mal disposto, impaciente de murmuração. O único remédio contra este mal é
conservarmos os olhos postos em Jesus —"olhando para Jesus" (Hb 12:2). Bendito seja o
Seu nome, Ele sempre Se mostra à altura das necessidades do Seu povo; e eles, em vez
de se queixarem das suas circunstâncias, deviam fazer delas o motivo de se aproximarem
mais d'Ele. É assim que o deserto se torna útil para nos ensinar o que Deus é. É uma
escola na qual aprendemos a conhecer a Sua graça constante e os Seus amplos
recursos. "E suportou os seus costumes no deserto por espaço de quase quarenta anos"
(At 13:18).
O homem espiritual reconhecerá sempre que vale a pena ter águas amargas para Deus
as dulcificar:".. .também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a
paciência; e a paciência, a experiência, e a experiência, a esperança" (Rm 5:3 -5).
— CAPITULO 16 —
As Murmurações do Povo
"E PARTIDOS de Elim, toda a congregação dos filhos de Israel veio ao deserto de Sim,
que está entre Elim e Sinai, aos quinze dias do mês segundo, depois que saíram da terra
do Egito". Vemos aqui Israel numa posição notável e muito interessante. É ainda o
deserto, sem dúvida, mas é um lugar de paragem muito importante e significativo, a
saber, "entre Elim e Sinai". Aquele era o lugar onde haviam recentemente provado as
águas refrescantes do ministério divino; este era o lugar onde eles deixaram o terreno da
graça soberana e se colocaram debaixo do concerto das obras. Estes fatos tornam "o
deserto de Sinai" uma parte particularmente interessante da jornada de Israel. O Seu
aspecto e influência são acentuados grandemente como qualquer outro ponto em toda a
sua história. Vêmo-los aqui como os objetos da mesma graça que os havia tirado da terra
do Egito, e, portanto, todas as suas murmurações são imediatamente atendidas por
suprimento divino. Quando Deus opera na manifestação da Sua graça não há
impedimento. As bênçãos que Ele derrama correm sem interrupção. E só quando o
homem se coloca debaixo da lei que perde tudo; porque então Deus tem de permitir que
ele se certifique de quanto pode exigir com base nas suas próprias obras.
Quando Deus visitou e redimiu o Seu povo e os tirou da terra do Egito, não foi,
certamente, com o propósito de os deixar morrer de fome e de sede no deserto. Eles
deviam saber isto. Deviam ter confiado n'Ele e andado na confiança daquele amor que os
havia libertado gloriosamente dos horrores da escravidão do Egito.
Deviam ter recordado que era infinitamente melhor estar com Deus no deserto do que nos
fornos de tijolo com Faraó. Mas não; o coração humano acha uma coisa muito difícil dar
crédito a Deus pelo seu amor puro e perfeito: tem muito mais confiança em Satanás do
que em Deus. Vede, por um momento, toda a dor e sofrimento, a miséria e degradação
que o homem tem sofrido por causa de ter dado ouvidos à voz de Satanás, e contudo
nunca tem uma palavra de queixa quanto ao seu serviço ou desejo de se libertar das suas
mãos. Não está descontente com Satanás nem cansado de o servir. Colhe repetidas
vezes os frutos amargos nesses campos que Satanás tem aberto de si; e, todavia, pode
ser visto repetidas vezes a semear a mesmíssima semente e a passar pelos mesmos
trabalhos.
Mas como é diferente quando se trata de Deus! Quando nos dispomos a andar nos Seus
caminhos, estamos prontos, à primeira aparência de dificuldades ou provações, a
murmurar e a rebelarmo-nos. Na verdade, não há nada em que tanto falhamos como no
desenvolvimento de um espírito confiante e agradecido. Esquecemos facilmente dez mil
bênçãos na presença de uma simples privação. Os nossos pecados foram todos
perdoados, "fomos aceites no amado"(Ef 1:6) efeitos herdeiros e co-herdeiros com
Cristo—esperamos a glória eterna; e além de tudo mais, o nosso caminho através do
deserto está coberto de misericórdias inumeráveis; e todavia deixai que uma nuvem,
apenas como palma da mão de um homem, apareça no horizonte, e as ricas
misericórdias do passado são por nós prontamente esquecidas à vista desta pequena
nuvem, que, afinal, pode muito vem desfazer-se em bênçãos sobre a nossa cabeça.
Este pensamento deveria humilhar-nos profundamente diante de Deus. Como somos
diferentes nisto, e em tudo mais, do nosso bendito Modelo! Vede-O—o verdadeiro Israel
no deserto—rodeado de feras e jejuando durante quarenta dias. Como Se conduziu Ele?
Murmurou?- Queixou-Se da Sua sorte?- Desejou achar-Se noutras circunstâncias? Ah!
não. Deus era a porção do Seu cálice e a parte da Sua herança (SI 16). E, portanto,
quando o tentador se aproximou de Lhe oferecer o necessário, glórias, distinções, e as
honras desta vida, Ele recusou-os e manteve firmemente a posição de absoluta
dependência de Deus e implícita obediência à Sua palavra. Só aceitaria do mesmo modo
o pão e a glória das mãos de Deus.
Como foi tão diferente com Israel segundo a carne! Tão depressa sentiu o sofrimento da
fome "Murmurou contra Moisés e contra Arão, no deserto" (versículo 2). Parece que
haviam perdido a compreensão de haverem sido libertados pela mão do Senhor, porque
disseram:"... porque nos tendes tirado para este desertou" E também no capítulo 17:3,
lemos: "...o povo murmurou contra Moisés, e disse: porque nos fizeste subir do Egito, para
nos matares de sede, a nós, e aos nossos filhos, e ao nosso gado?" Assim, eles
manifestaram em todas as ocasiões um espírito irritado e de queixume, e mostraram quão
pouco realizavam a presença do seu Poderoso e infinitamente gracioso Libertador.
Ora, não há nada que tanto desonre a Deus como um espírito murmurador por parte
daqueles dos que Lhe pertencem. O apóstolo apresenta como característico especial da
corrupção dos gentios que, "...tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus,
nem lhe deram graças" (Rm 1:21). E então segue-se o resultado prático deste espírito
ingrato, "antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se
obscureceu". Aquele que deixa de reter um sentido grato da bondade de Deus tornar-se-á
rapidamente "entenebrecido". Assim Israel perdeu o sentido de estar nas mãos de Deus;
e isto levou-os, como podia esperar-se, a trevas mais espessas, visto que os
encontramos, mais tarde na sua história, dizendo: "Porque nos traz o SENHOR a esta
terra, para cairmos a espada e para que nossas mulheres e nossas crianças sejam por
presa"?-" (Nm 14:3). Tal é a atitude que a alma que não está em comunhão toma.
Começa por perder a noção de estar nas mãos de Deus para seu bem, e, termina por se
julgar nas Suas mãos para seu mal. Que triste progresso!
O Maná
Contudo, como Israel estava debaixo da graça, as suas necessidades são supridas de
uma maneira maravilhosa, como lemos no versículo 4, deste capítulo: "Então, disse o
SENHOR, a Moisés: Eis que vos farei chover pão dos céus". Quando se achavam
envolvidos pela nuvem fria da incredulidade, eles haviam dito: "Quem dera que nós
morrêssemos por mão do SENHOR, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto
às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar!" Porém, agora Deus diz que lhes
dará "pão dos céus". Abençoado contraste! Que diferença espantosa entre as panelas de
carne, os alhos porros e as cebolas do Egito e este maná celestial— "o pão dos
poderosos"! (SI 78:25). Aquelas coisas pertenciam aterra, este pão era do céu.
Mas este alimento celestial era necessariamente, uma experiência da condição de Israel,
como está escrito, "...para que eu seja se anda em minha lei ou não". Era preciso ter-se
um coração separado das influências do Egito para se dar por satisfeito, ou apreciar "o
pão dos céus". Com efeito, sabemos que o povo não se contentou com este pão, antes o
desprezou, declarou-o "pão vil" e desejou carne.
Desta forma os israelitas mostraram quão pouco separados estavam os seus corações do
Egito e como não estavam dispostos a andar na lei de Deus: "..em Seu coração se
tornaram ao Egito" (At 7:39).
Porém, longe de serem reconduzidos para ali, foram transportados, por fim, para além de
Babilônia (At 7:43). Eis uma lição solene e salutar para os cristãos. Se aqueles que foram
libertados deste presente século mau não andam com Deus com corações agradecidos,
satisfeitos com a provisão que Ele fez para os remidos no deserto, estão em perigo de
cair nos laços da influência de Babilônia. É uma reflexão muito séria, que requer gosto
celestial para se poder alimentar do Pão do céu. A natureza não pode saborear um tal
alimento; suspira sempre pelo Egito, e, portanto, deve ser sempre dominada. É nosso
privilégio, como aqueles que foram batizados na morte de Cristo e ressuscitados "pela fé
no poder de Deus" (Cl 2:12), alimentarmo-nos de Cristo como "o pão da vida que desceu
do céu" (Jo 6:51).
— CAPITULO 17 —
REFIDIM
A Rocha Ferida
"E clamou Moisés ao SENHOR, dizendo: Que farei a este povo? Daqui a pouco me
apedrejarão. Então, disse o SENHOR a Moisés: Passa diante do povo e toma contigo
alguns dos anciãos de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com que feriste o rio, e vai.
Eis que eu estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horebe, e tu ferirás a rocha, e dela
sairão águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos anciãos de
Israel" (versículos 4 a 6). Assim tudo é suprido pela graça mais perfeita. Cada
murmuração ocasiona uma nova manifestação da graça. Aqui vemos como as águas
refrescantes jorraram da rocha ferida—uma ilustração formosa do Espírito dado como
fruto do sacrifício efetuado por Cristo. No capítulo 16 temos uma figura de Cristo
descendo do céu para dar vida ao mundo. O capítulo 17 mostra-nos uma figura do
Espírito Santo "derramado" em virtude da obra consumada de Cristo. "Porque bebiam da
pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" (1 Co 10:4). Mas quem poderia beber
antes da pedra ser ferida? Israel poderia ter contemplado essa rocha e morrer de sede ao
mesmo tempo que a contemplava, porque antes que fosse ferida pela vara de Deus não
podia dar refrigério. Isto é bem claro. O Senhor Jesus Cristo era o centro e base de todos
os desígnios de amor e misericórdia de Deus. Por Seu intermédio deveria correr toda a
bênção para o homem. As correntes da graça deviam emanar do "Cordeiro de Deus";
porém era necessário que o Cordeiro fosse morto—que a obra da cruz fosse um fato
consumado, antes que muitas destas coisas fossem realizadas. Foi quando a Rocha dos
séculos foi ferida pela mão de Jeová, que as comportas do amor eterno foram abertas de
par em par e os pecadores perdidos convidados pelo Espírito Santo a beber
abundantemente e livremente: "...O dom do Espírito Santo" é o resultado da obra
consumada pelo Filho de Deus sobre a cruz. "A promessa do Pai..." (Lc 24:49) não podia
ser cumprida antes que Cristo se assentasse à destra da Majestade nos céus, depois de
ha ver cumprido toda a justiça, respondido a todas as exigências da santidade,
engrandecido a lei tornando-a justa, suportado a ira de Deus contra o pecado, destruído o
poder da morte, e tirado à sepultura a sua vitória. Havendo feito todas estas coisas, subiu
ao alto, "levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens. Ora isto—ele subiu—que é,
senão que também, antes, tinha descido às partes mais baixas da terral Aquele que
desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as
coisas" (Ef 4:8-10).
Este é o verdadeiro fundamento da paz e da bem-aventurança e glória da Igreja, para
todo o sempre.
A Água da Rocha
Antes de a rocha ser ferida a corrente de bênção estava retida e o homem nada podia
fazer. Que poder humano poderia fazer brotar água da pederneira? E do mesmo modo,
podemos perguntar, que justiça humana poderia conseguir autorização para abrir as
comportas do amor divino?- Este é o verdadeiro modo de pôr à prova a competência do
homem. Não podia, por seus feitos, suas palavras ou sentimentos, prover um fundamento
para a missão do Espírito Santo.
Seja o que for ou faça o que puder, ele não pode fazer isto. Mas, graças a Deus, tudo
está consumado; Cristo terminou a obra; a verdadeira Rocha foi ferida, e as águas
refrescantes brotaram, de forma que as almas sedentas podem beber. "A água que eu lhe
der", diz Cristo, "se fará nele uma fonte de água que salte para ávida eterna" (Jo 4:14). E
mais adiante, lemos: "E, no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé, e
clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz
a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isto disse ele do Espírito, que
haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por
ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 7:37 - 39).
Assim como temos no maná uma figura de Cristo, de igual modo temos uma figura do
Espírito Santo na água brotando da rocha." Se tu conheceras o dom de Deus (Cristo)... tu
lhe pedirias, e ele te daria água viva" — quer dizer, o Espírito.
Tal é, portanto, o ensino ministrado à mente espiritual com a rocha ferida; todavia, o nome
do lugar no qual esta figura foi apresentada é um memorial perpétuo da incredulidade do
homem. "E chamou o nome daquele lugar Massa" (que quer dizer tentação) "e Meribá"
(que quer dizer murmurar) "por causa da contenda dos filhos de Israel, e porque tentaram
ao SENHOR, dizendo: Está o SENHOR no meio de nós, ou não?" (versículo 7). Levantar
uma tal interrogação, depois de tantas e repetidas garantias evidentes da presença de
Jeová, prova a incredulidade profundamente arraigada no coração humano. Era, de fato,
tentar o Senhor.
Foi assim também que os judeus, tendo a presença de Cristo com eles, pediram um sinal
do céu, tentando-o.
A fé nunca atua assim; crê na presença divina e goza dela, não por meio de um sinal,
mas pelo conhecimento que tem do próprio Deus. Conhece que Deus está presente para
gozar d'Ele. Que o Senhor nos conceda um espírito de verdadeira confiança n'Ele!
Amaleque
O ponto sugerido a seguir por este capítulo é de particular interesse para nós. "Então,
veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Pelo que disse Moisés a Josué:
Escolhe-nos homens, e sai, peleja contra Amaleque: amanhã, eu estarei sobre o cume do
outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão" (versículos 8 e 9). O dom do Espírito
Santo conduz à luta. A luz reprime e luta com as trevas. Onde tudo é obscuridade não há
luta; porém a mais pequena luta indica a presença da luz: "...a carne cobiça contra o
Espírito, e o Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais
o que quereis" (Gl 5:17). Assim acontece com este capítulo: a rocha é ferida e as águas
brotam dela, e lemos imediatamente, "então veio Amaleque e pelejou contra Israel".
Esta é a primeira vez que Israel se vê em luta com um inimigo exterior. Até este momento
o SENHOR havia pelejado por eles, conforme lemos em capítulo 14: "O SENHOR
pelejará por vós e vos calareis". Porém, agora é dito: "Escolhe-nos homens". Em boa
verdade, Deus tem agora que lutar em Israel, assim como havia lutado por eles. E nisto
que está a diferença, quanto ao símbolo; e quanto ao antítipo, sabemos que existe uma
grande diferença entre os combates de Cristo por nós e a luta do Espírito Santo em nós.
Aqueles acabaram, bendito seja Deus, a vitória foi ganha, e uma paz gloriosa e eterna foi
alcançada. Esta, pelo contrário, continua ainda.
Faraó e Amaleque representam dois poderes ou influências diferentes: Faraó representa
o impedimento à libertação de Israel do Egito; Amaleque representa o estorvo á sua
caminhada com Deus pelo deserto. Faraó serviu-se das coisas do Egito para impedir
Israel de servir ao Senhor; por isso prefigura Satanás, que se serve "deste presente
século mau" (Gl 1:4) contra o povo de Deus. Amaleque, pelo contrário, é-nos apresentado
como o protótipo da carne. Era neto de Esaú, o qual preferiu um prato de lentilhas ao
direito de primogenitura (veja-se Gn 36:12), e foi o primeiro que se opôs ao avanço de
Israel depois do seu batismo "na nuvem e no mar" (1 Co 10:2). Estes fatos servem para
definir o seu caráter com grande distinção; e, além disso, sabemos que Saul foi deposto
do trono do reino de Israel em consequência de ter falhado em destruir Amaleque (1 Sm
15). E, mais descobrimos que Hamã é o último dos amalequitas de quem se fala nas
Escrituras. Foi enforcado, em consequência do seu pecaminoso atentado contra a
semente de Israel (veja-se Es 3:1). Nenhum amalequita podia entrar na congregação do
Senhor. E, finalmente, no capítulo que temos perante nós, o Senhor declara guerra
perpétua a Amaleque.
Todas estas circunstâncias podem ser consideradas como dando evidência concludente
do fato que Amaleque é uma figura da carne. A ligação entre o seu conflito com Israel e a
água correndo da rocha é a mais notável e instrutiva e está de perfeita harmonia com o
conflito do crente com a sua natureza pecaminosa; conflito este, que, como sabemos, é a
consequência de ele ter a nova natureza e o Espírito Santo habitar em si. A luta de Israel
começou logo que se acharam de posse da redenção e depois de haverem provado o
"manjar espiritual" e bebido "da pedra espiritual" (I Co 10:3-4). Antes de encontrarem
Amaleque nada tinham que fazer. Não contenderam com Faraó; não destruíram o poder
do Egito nem despedaçaram as cadeias da servidão; não dividiram o mar nem
submergiram as hostes de Faraó nas suas águas; não fizeram descer pão do céu, nem
tiraram água da pederneira. Não fizeram nem poderiam fazer nenhuma destas coisas;
porém agora são chamados para lutar com Amaleque. O conflito anterior tinha sido todo
entre Jeová e o inimigo. Eles apenas tiveram que estar "quietos" e contemplar os triunfos
poderosos do braço estendido do Senhor e gozar os frutos da vitória. O Senhor havia
lutado por eles; porém agora luta neles e por meio deles.
— CAPÍTULO 18 —
O JUDEU, O GENTIO
E A IGREJA DE DEUS
Chegamos agora ao fim de uma parte verdadeiramente notável do Livro de Êxodo. Vimos
como Deus, no exercício da Sua perfeita graça, visitou e redimiu o Seu povo, tirando-o da
terra do Egito e livrando-o primeiro da mão do Faraó e depois da mão de Amaleque.
Demais, vimos no maná um símbolo de Cristo descendo do céu; e na rocha uma figura de
Cristo ferido pelo Seu povo; e na água que brotava da rocha um símbolo do Espírito
Santo. Então segue-se, em ordem notável e formosa, uma figura da glória vindoura,
dividida nas suas três partes principais, a saber: Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus.
Durante a época de rejeição de Moisés pelos seus irmãos, ele foi posto de parte e
favorecido com uma noiva — a companheira da sua rejeição. No princípio deste livro
fomos levados a ver o caráter da relação de Moisés com esta esposa. Foi para ela
"esposo sanguinário" . Isto é precisamente o que Cristo é para a Igreja. A sua união com
Ele é baseada na morte e ressurreição; e ela é chamada à comunhão dos Seus
sofrimentos. É, como sabemos, durante a época da incredulidade de Israel, e da rejeição
de Cristo, que a Igreja é formada; e quando estiver completa, segundo os desígnios de
Deus e houver entrado nela a plenitude dos gentios (Rm 11:25), Israel entrará outra vez
em cena.
Assim foi com Zípora e o antigo Israel. Moisés enviara-a para junto de seu sogro durante
o perigo da sua missão junto de Israel; e logo que este saiu como povo inteiramente livre,
lemos que "Jetro, sogro de Moisés, tomou a Zípora, a mulher de Moisés, depois que ele
lha enviara, com seus dois filhos, dos quais um se chamava Gérson; porque disse: Eu fui
peregrino em terra estranha; e o outro se chamava Eliezer, porque disse: O Deus de meu
pai foi minha ajuda e me livrou da espada de Faraó. Vindo, pois, Jetro, o sogro de Moisés,
com seus filhos e com sua mulher a Moisés no deserto ao monte de Deus, onde se tinha
acampado, disse a Moisés: Eu, teu sogro Jetro, venho a ti, com tua mulher e seus dois
filhos com ela. Então, saiu Moisés ao encontro de seu sogro, e inclinou-se, e beijou-o, e
perguntaram um ao outro como estavam, e entraram na tenda. E Moisés contou a seu
sogro todas as coisas que o SENHOR tinha feito a Faraó e aos egípcios por amor de
Israel, e todo o trabalho que passaram no caminho, e como o SENHOR os livrara. E
alegrou-se Jetro de todo o bem que o SENHOR tinha feito a Israel, livrando-o da mão dos
egípcios. E Jetro disse: Bendito seja o SENHOR, que vos livrou das mãos dos egípcios e
da mão de Faraó; que livrou a este povo de debaixo da mão dos egípcios. Agora sei que
o SENHOR é maior que todos os deuses: porque na coisa em que se ensoberbeceram,
os sobrepujou. Então, tomou Jetro, o sogro de Moisés, holocaustos e sacrifícios para
Deus; e veio Arão, e todos os anciãos de Israel, para comerem pão com o sogro de
Moisés diante de Deus" (versículos 2 a 12).
Esta cena é profundamente interessante. Toda a congregação se reuniu, em triunfo,
perante o Senhor: o gentio apresentou sacrifícios, e, para completar o quadro, a esposa
do libertador juntamente com os filhos que Deus lhe havia dado, são introduzidos. É, em
resumo, uma ilustração particularmente admirável do reino vindouro.
"O Senhor dará graça a glória" (SI 84:11). Vimos nas páginas anteriores deste livro muito
da operação da "graça"; e aqui temos um quadro formoso de "glória" da autoria do
Espírito Santo—um quadro que deve ser considerado particularmente importante por nos
mostrar as várias esferas em que será manifestada essa glória.
"Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus" são termos bíblicos que nunca poderão ser
esquecidos sem transtornar o curso perfeito da verdade que Deus revelou na Sua
Palavra. Existiram sempre desde que o mistério da Igreja foi inteiramente desenrolado
pelo ministério do apóstolo Paulo e existirão através do milênio. Por isso, devem ter lugar
na mente de todo o estudante espiritual da Escritura Sagrada.
O apóstolo ensina-nos, claramente, na sua Epístola aos Efésios, que o mistério da Igreja
não foi dado a conhecer noutros séculos aos filhos dos homens como lhe fora revelado a
ele. Mas, embora não houvesse sido diretamente revelado, acha-se representado em
figura de uma maneira ou de outra; como, por exemplo, no casamento de José com uma
mulher egípcia e no casamento de Moisés com uma mulher da Etiópia (uma mulher
cusita; Nm 12:1) O tipo ou sombra de uma verdade é uma coisa muito diferente de uma
revelação direta e positiva da mesma verdade. O grande mistério da Igreja não foi
revelado até que Cristo, em glória celestial, o revelou a Saulo de Tarso. Por isso, todos
aqueles que procuram o desenrolar deste mistério na lei, nos profetas ou nos Salmos,
achar-se-ão ocupados em labor ininteligente. Quando, contudo, o encontram revelado
claramente na Epístola aos Efésios, podem, com interesse e proveito, traçar os seus
símbolos nas Escrituras do Velho Testamento.
Deste modo, temos nos primeiros versículos deste capítulo uma cena milenial. Todas as
esferas de glória se abrem em visão perante nós. "Os judeus" estão aqui como as
grandes testemunhas na terra da fidelidade, da misericórdia e do poder de Jeová. E isto
precisamente que os judeus foram em séculos passados, é o que são atualmente e o que
serão para sempre. "O gentio" lê no livro dos desígnios de Deus quanto aos judeus as
suas mais profundas lições. Segue a história maravilhosa desse povo peculiar e eleito —
"um povo terrível desde o seu princípio" (Is 18:2). Vê tronos e impérios derrubados e
nações destruídas até os seus fundamentos, todo o homem e todas as coisas são
compelidas a abrir caminho para que seja estabelecida a supremacia desse povo sobre o
qual Deus pôs o Seu afeto. "Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses;
porque na coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou" (versículo 11); é o
testemunho de um gentio quando a página da história judaica está aberta perante si.
Por fim, "a Igreja de Deus" coletivamente, como é ilustrada por Zípora, e os seus
membros individualmente, conforme os vemos em figura nos filhos de Zípora, são
apresentados como ocupando a mais íntima ligação com o libertador. Tudo isto é perfeito
na sua ordem. Se nos pedirem provas, responderemos: "Falo como a entendidos, julgai
vós mesmos o que digo" (1 Co 10:15).
Não pode fundar-se uma doutrina sobre um símbolo; porém, quando uma doutrina é
revelada, pode discernir-se o símbolo dela com exatidão e estudá-la com proveito. Em
todos os casos o discernimento espiritual é essencialmente necessário, quer seja para
compreender a doutrina quer para discernir o símbolo: "...o homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (I Co 2:14).
— CAPITULO 19 —
ISRAEL
AO PÉ DO MONTE SINAI
O Pacto da Graça
Eis-nos agora chegados a um ponto muito importante na história de Israel. O povo fora
conduzido ao pé do "monte palpável, acesso em fogo" (Hb 12:18). A cena de glória
milenial, que nos apresenta o capítulo anterior, desaparecera. Fora apenas um momento
breve de sol durante o qual fora proporcionada uma viva imagem do reino; porém o sol
desvaneceu-se rapidamente e grossas nuvens amontoaram-se sobre esse "monte
palpável", onde Israel, num espírito funesto e insensível de legalismo, abandonou o pacto
de graça de Jeová pela aliança das obras do homem. Impulso fatal! Que foi seguido dos
resultados mais funestos. Até aqui, como temos visto, nenhum inimigo pôde subsistir
diante de Israel — nenhum obstáculo pôde deter a sua marcha vitoriosa. Os exércitos de
Faraó haviam sido destruídos; Amaleque e o seu povo haviam sido passados a fio de
espada: tudo fora vitória, porque Deus interviera a favor do Seu povo, em conformidade
com as promessas que fizera a Abraão, Isaque e Jacó.
Nos primeiros versículos do capítulo que temos perante nós, o Senhor resume de uma
maneira tocante aquilo que tem feito por Israel: "Assim falarás à casa de Jacó e
anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei
sobre asas de águias, e vos trouxe a mim; agora, pois, se diligentemente ouvirdes a
minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de
entre todos os povos; porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e
o povo santo" (versículos 3 a 6). Note-se que o Senhor disse: "a minha voz" e "o meu
concerto". Que dizia essa "voz" e que implicava esse "concerto"? A voz de Jeová tinha-se
feito ou vir para impor as leis e as ordenações de um legislador severo e inflexível? De
modo nenhum. Falou para dar liberdade aos cativos—para prover um refúgio da espada
do destruidor—,para preparar um caminho para que os remidos pudessem passar, para
fazer descer pão do céu, para fazer brotar água da rocha. Tais foram as expressões
graciosas e inteligíveis da "voz" do Senhor até ao momento em que Israel acampou
defronte do monte.
Quanto ao Seu "concerto" era um concerto de pura graça. Não impunha condições, não
podia nada, não punha nenhum fardo sobre os ombros nem jugo no pescoço. Quando "o
Deus da glória apareceu" a Abrão em Ur dos caldeus (At 7:2), de certo que não lhe disse
"farás isto" e "não farás aquilo". Oh! não; uma tal linguagem não seria segundo o coração
de Deus. Ele prefere muito mais pôr uma mitra limpa sobre a cabeça do pecador do que
pôr um jugo de ferro sobre o seu pescoço (Zc 3:5; Dt 28:48). A Sua palavra a Abraão foi:
"DAR-TE-EI". A terra de Canaã não podia ser adquirida pelas obras do homem, mas
devia ser dada pela graça de Deus. Assim era; e, no princípio do livro do Êxodo vemos
Deus descendo em graça para cumprir a Sua promessa aos descendentes de Abrão. O
estado em que encontrou essa posteridade não importava, tanto mais que o sangue do
cordeiro Lhe dava um fundamento perfeitamente justo para realizar a Sua promessa.
Evidentemente não havia prometido a terra de Canaã à posteridade de Abrão com base
em qualquer coisa que houvesse antevisto neles, porque isto teria destruído a verdadeira
natureza de uma promessa. Em tal caso teria sido um pacto e não uma promessa: "ora as
promessas foram feitas a Abraão", não por um pacto (veja-se Gálatas 3).
Por isso, no princípio desse capítulo 19, faz-se lembrar ao povo a graça com que o
Senhor havia tratado com eles até ali, e recebem também a garantia daquilo que ainda
hão-de ser, contanto que continuem a atender a "voz" celestial de misericórdia e a
permanecer no "pacto" de graça. "Sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os
povos". Como podiam eles conseguir isto? Podiam consegui-lo aos tropeções pela
escada da própria justiça e do legalismo? Seriam uma "propriedade peculiar" quando
amaldiçoados pelas maldições de uma lei transgredida—violada antes mesmo de a
haverem recebido? Seguramente que não. Logo, como ia ser esta "propriedade peculiar"?
Permanecendo naquela posição em que o Senhor os viu quando obrigou o profeta
ambicioso a exclamar: "Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas as tuas moradas,
ó Israel! Como ribeiros se estendem, como jardins ao pé dos rios; como árvores de
sândalo o SENHOR a plantou, como cedros junto às águas. De seus baldes manarão
águas, e a sua semente estará em muitas águas; e o seu rei se exalçará mais do que
Agague, e o seu reino será levantado. Deus o tirou do Egito; as suas forças são como as
do unicórnio; consumirá as gentes, seus inimigos, e quebrará seus ossos, e com as suas
setas os atravessará" (Nm 24:5 - 8).
Um Compromisso Presunçoso
Contudo, Israel não estava disposto a ocupar esta posição. Em vez de se regozijarem
com "a santa promessa" de Deus, aventuraram-se a tomar o voto mais presunçoso que
lábios humanos podiam pronunciar. "Então, todo o povo respondeu a uma voz e disse:
Tudo o que o SENHOR tem falado faremos" (versículo 8). Esta linguagem era ousada.
Não disseram, "esperamos fazer" ou "procuraremos fazer" o que o Senhor disser; o que
teria mostrado certo grau de desconfiança em si mesmos. Mas não: pronunciaram-se da
maneira mais absoluta: "Faremos". Nem tampouco isto era a linguagem de alguns
espíritos presunçosos, cheios de confiança em si mesmos que presumiam representar
toda a congregação. Não; "Todo o povo respondeu a uma voz". Abandonaram unânimes
a "santa promessa" —o "concerto santo."
E agora, veja-se o resultado. Logo que Israel pronunciou o seu "voto" singular, assim que
decidiu "fazer" tudo o que o Senhor mandasse, deu-se uma mudança no aspecto das
coisas. "E disse o SENHOR a Moisés: Eis que eu virei a ti numa nuvem espessa... e
marcarás limites ao povo em redor, dizendo: Guardai-vos, que não subais o monte, nem
toqueis o seu termo; todo aquele que tocar o monte certamente morrerá". Vemos nesta
passagem uma mudança notável: Aquele que acabava de dizer,"... vos levei sobre asas
de águias e vos trouxe a mim", agora oculta-Se "numa nuvem espessa" e diz: "Marcarás
limites ao povo em redor". Os acentos agradáveis de graça são trocados pelos "trovões e
relâmpagos" do monte fumegante. O homem havia ousado falar das suas miseráveis
obras na presença da magnificente graça de Deus. Israel dissera: "Faremos", e portanto é
preciso que sejam postos à distância de forma a poder verse claramente o que é que
podem fazer. Deus toma o lugar de distância moral; e o povo não pensa de modo nenhum
em encurtá-la, porque todos estão cheios de temor e tremendo; e não era de admirar,
porque a visão era; "terrível" — tão terrível que "Moisés disse: Estou todo assombrado e
tremendo (Hb 12:25). Quem poderia suportar a vista desse "fogo consumidor", que era a
justa expressão da santidade divinal "...O SENHOR veio de Sinai, e lhes subiu de Seir;
resplandeceu desde o monte Para, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia
para eles o fogo da lei" (Dt 33:2). O termo "fogo", aplicado à lei, mostra a sua santidade.
"O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29) — que não transige com o mal em
pensamento, palavras ou ações.
Desta forma, pois, Israel cometeu um erro fatal em dizer, "faremos". Isto era fazer um voto
que não podiam, ainda mesmo que quisessem, cumprir; e nós conhecemos aquele que
disse "melhor é que não votes do que votes e não pagues" (Ec 5:5). O próprio caráter do
voto implica a competência de o cumprir; e onde está a competência do homem?- Para
um pecador desamparado fazer um voto, seria o mesmo que um homem falido passar um
cheque sobre um banco. Aquele que faz um voto nega a verdade quanto à sua própria
condição e natureza. Está arruinado, que poderá fazer?-Encontra-se inteiramente sem
forças, e não pode querer nem fazer nada bom. Israel cumpriu o seu voto?- Fizeram tudo
que o Senhor lhes havia mandado? O bezerro de outro, as tábuas feitas em pedaços, o
sábado profanado, as ordenações menosprezadas e abandonadas, os mensageiros de
Deus apedrejados, o Cristo rejeitado e crucificado, e a resistência ao Espírito, são provas
esmagadoras de como o homem violou os seus votos. Acontecerá assim sempre que a
humanidade caída fizer votos.
Não se regozija o leitor cristão no fato de que a sua salvação eterna não descansa sobre
os seus miseráveis votos e resoluções, mas sim sobre a "oblação do corpo de Jesus
Cristo, feita uma vez"? (Hb 10:10). Oh, sim, é sobre este fato que está fundado o nosso
gozo, que nunca pode falhar. Cristo tomou todos os nossos votos sobre Si Mesmo e
cumpriu-os gloriosamente para todo o sempre. A Sua vida de ressurreição corre nos Seus
membros e produz neles resultados que os votos e as exigências da lei não podiam
produzir. Ele é a nossa vida e a nossa justiça. Que o Seu nome seja precioso para os
nossos corações e que a Sua causa domine sempre a nossa vida. Que a nossa comida e
a nossa bebida seja gastar e gastarmo-nos no Seu glorioso serviço.
Não posso terminar este capítulo sem mencionar uma passagem do Livro de
Deuteronômio, que pode oferecer alguma dificuldade para certos espíritos e que se
relaciona com o assunto que acabamos de tratar. "Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das
vossas palavras, quando me faláveis a mim, o SENHOR me disse-. Eu ouvi a voz das
palavras deste povo, que te disseram; em tudo falaram eles bem" (Dt 5:28). Poderia
parecer, segundo estas palavras, que o Senhor aprovava que eles tivessem feito um voto;
porém, se o leitor se der ao trabalho de ler todo o contexto, desde o versículo 24 ao
versículo 27, verá imediatamente que não se trata de um voto, mas da expressão do seu
terror por causa das consequências do seu voto. Não podiam suportar aquilo que lhes era
ordenado. "Se ainda mais ouvíssemos a voz do SENHOR, nosso Deus, morreríamos.
Porque, quem há, de toda a carne, que ouviu a voz do Deus vivente falando do meio do
fogo, como nós, e ficou vivo? Chega-te tu, e ouve tudo o que disser o SENHOR nosso
Deus; e tu nos dirás tudo o que te disser o SENHOR nosso Deus, e o ouviremos, e o
faremos". Era esta a confissão da sua incapacidade para se encontrarem com o Senhor
sob o aspecto terrível a que o seu legalismo orgulhoso os havia levado. É impossível que
o Senhor possa aprovar o abandono de graça imutável por um fundamento movediço de
"obras da lei".
— CAPÍTULO 20 —
A LEI
A Lei e a Graça
É da maior importância compreender o verdadeiro caráter e o objeto da lei moral, como
nos é apresentada neste capítulo. Existe uma tendência no homem para confundir os
princípios da lei com graça, de sorte que nem a lei nem a graça podem ser perfeitamente
compreendidas. Alei é despojada da sua austera e inflexível majestade, e a graça é
privada de todos os seus atrativos divinos. As santas exigências de Deus ficam sem
resposta, e as profundas e múltiplas necessidades do pecador permanecem insolúveis
pelo sistema anômalo criado por aqueles que tentam confundir a lei com a graça. Com
efeito, nunca podem confundir-se, visto que são tão distintas quanto o podem ser duas
coisas. Alei mostra-nos o que o homem deveria ser; enquanto que a graça demonstra o
que Deus é. Como poderão, pois, ser unidas num mesmo sistema?- Como poderia o
pecador ser salvo por meio de um sistema formado em parte pela lei e em parte pela
graça? Impossível: ele tem de ser salvo por uma ou por outra.
A lei tem sido às vezes chamada "a expressão do pensamento de Deus". Mas esta
definição é inteiramente inexata.. Se a considerássemos como a expressão daquilo que o
homem deveria ser, estaríamos mais perto da verdade. Se eu considerar os dez
mandamentos como a expressão do pensamento de Deus, então, pergunto, não há nada
mais no pensamento de Deus senão "farás" isto e "não farás" aquilo? Não há graça, nem
misericórdia nem bondade? Deus não manifestará aquilo que é, nem revelará os
segredos profundos desse amor que enche o Seu coração? Não existe nada mais no
coração de Deus senão exigências e proibições severas"? Se fosse assim, teríamos de
dizer que "Deus é lei" em vez de dizermos que" Deus é amor". Porém, bendito seja o Seu
nome, existe muito mais em Seu coração do que jamais poderão expressar os "dez
mandamentos" pronunciados no monte fumegante. Se quero saber o que Deus é, devo
olhar para Cristo; "porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl
2:9). "Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo
1:17). Certamente, na lei achava-se uma certa medida de verdade; continha a verdade
quanto àquilo que o homem deveria ser. Como tudo que emana de Deus, a lei era perfeita
— perfeita para alcançar o fim a que era destinada; porém esse fim não era, de modo
nenhum, revelar, perante pecadores culpados, a natureza e o caráter de Deus. Não havia
graça nem misericórdia. "Quebrantando alguém a lei de Moisés, morre sem misericórdia"
(Hb 10.28). "O homem que fizer estas coisas viverá por elas" (Lv 18:5; Rm 10:5). "Maldito
todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei,
para fazê-las" (Dt 27:26; Gl 3:10). Nada disto era graça. Com efeito, o monte Sinai não
era o lugar para se procurar tal coisa. Jeová revelou-Se ali em majestade terrível, no meio
da obscuridade, trevas, tempestade, trovões e relâmpagos. Estas circunstâncias não são
aquelas que acompanham uma dispensação de graça e misericórdia; mas eram próprias
de uma dispensação de verdade e justiça: e a lei não era mais que isso.
Na lei Deus declara o que o homem deveria ser, e pronuncia a maldição sobre ele se o
não for. Ora quando o homem se examine à luz da lei descobre que é precisamente
aquilo que a lei condena. Como poderá ele, portanto, obter a vida por meio da lei? A lei
propõe a vida e a justiça como os fins a alcançar, guardando-a; mas mostra-nos, desde o
primeiro momento, que nos encontramos num estado de morte e iniquidade. Precisamos
desde o primeiro momento das mesmíssimas coisas que a lei propõe alcançar-nos no fim.
Como vamos nós, portanto, obtê-las? Para cumprir aquilo que a lei requer é preciso que
eu tenha vida; e para ser o que a lei exige devo possuir a justiça; e se eu não tiver vida e
justiça sou "maldito". Porém, o fato é que eu não tenho uma nem a outra. Que devo então
fazer? Eis a questão. Que respondam aqueles que querem ser "doutores da lei" (1 Tm
1.7): que deem uma resposta própria para uma consciência reta, curvada sob o sentido
duplo da espiritualidade e inflexibilidade da lei e a sua carnalidade desesperada.
O Propósito da Lei
A verdade é que, como nos ensina o apóstolo, a lei veio para que a ofensa abundasse
(Rm 5:20). Isto mostra-nos claramente o verdadeiro objetivo da lei: veio a propósito para
que o pecado se fizesse excessivamente maligno (Rm 7:13). Era, em certo sentido, como
um espelho perfeito enviado para revelar ao homem o seu desarranjo moral. Se eu me
puser diante de um espelho com o meu vestuário desarranjado, o espelho mostra-me o
desarranjo, mas não o põe em ordem. Se eu fizer descer sobre um muro tortuoso um
prumo, o prumo mostra a tortuosidade, mas não a altera. Se eu sair numa noite escura
com uma luz, esta revela-me todos os obstáculos e dificuldades que se acham no
caminho, mas não os remove. Além disso, o espelho, o prumo, e a luz não criam os males
que revelam distintamente: nem os criam nem os afastam, apenas os revelam. O mesmo
acontece com a lei: não cria o mal no coração do homem nem tampouco o tira; mas
revela-o com infalível exatidão.
"Que diremos pois? É a lei pecado?- De modo nenhum; mas eu não conheci o pecado
senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: Não
cobiçarás" (Rm 7:7). O apóstolo não diz que não teria tido "concupiscência". Não, mas
apenas que não a teria conhecido. A "concupiscência" existia; mas ele estava às escuras
quanto ao fato, até que a lei, como a luz do Deus Onipotente, brilhou nos recessos
tenebrosos do seu coração e revelou o mal que nele havia Assim como um homem numa
câmara escura pode estar rodeado de poeira e confusão sem contudo poder ver nada por
causa da escuridão. Mas deixai que os raios de sol penetrem ali e ele distinguirá
imediatamente tudo. São os raios de sol que formam o pó? Certamente que não. O pó
encontra-se ali, e os raios de sol apenas o detectam e revelam. Isto é apenas uma
simples ilustração dos efeitos da lei: julga o caráter e a condição do homem. Julga o
pecador e encerra-o debaixo da maldição: vem para julgar o que ele é e amaldiçoa-o se
ele não é o que ela lhe diz que deve ser.
A Mensagem da Graça
Além disso, quando Deus deu, no monte Sinai, as exigências severas do concerto das
obras, dirigiu-Se exclusivamente a um povo. A sua voz foi ouvida unicamente dentro dos
estreitos limites da nação judaica; porém, quando, nas planícies de Belém, "o anjo do
Senhor" proclamou "novas de grande alegria", acrescentou estas palavras características,
"que será para todo o povo" (Lc 2:10). Quando o Cristo ressuscitado enviou os Seus
arautos de salvação, a Sua mensagem era redigida assim: "Ide por todo o mundo, pregai
o evangelho a toda a criatura" (Mc 16:15). A onda poderosa da graça, que tinha a sua
origem no seio de Deus e o seu leito no sangue do Cordeiro, estava destinada a elevar-
se, na energia irresistível do Espírito Santo, muito acima dos estreitos limites de Israel e
rolar através do comprimento e largura de um mundo manchado de pecado. "Toda a
criatura" devia ouvir "na sua própria língua" a mensagem da paz, a palavra do evangelho,
o relato da salvação pelo sangue da cruz.
Finalmente, para que nada pudesse faltar para dar a prova aos nossos corações
legalistas que o monte Sinai não era, de modo nenhum, o lugar onde os segredos
profundos do coração de Deus foram revelados, o Espírito Santo disse, tanto por boca de
um profeta como de um apóstolo: "Quão formosos os pés dos que anunciam a paz, dos
que anunciam coisas boas!" (Is 52:7; Rm 10:15). Porém, daqueles que queriam ser
doutores da mesma lei o Espírito Santo disse: "Eu quereria que fossem cortados aqueles
que vos andam inquietando" (Gl 5:12).
A Lei e o Evangelho
Desta forma, é evidente que a lei não é nem o fundamento de vida para o pecador nem a
regra de vida para o cristão. Cristo é tanto uma coisa como a outra. Ele é a nossa vida e a
nossa regra de vida. Alei só pode amaldiçoar e matar. Cristo é a nossa vida e justiça. Ele
fez-Se maldição por nós sendo pregado no madeiro. O Senhor desceu ao lugar onde
estava o pecador—ao lugar da morte e do juízo —, e, havendo, pela Sua morte, cumprido
inteiramente tudo que era ou poderia ser contra nós, tornou-Se, na ressurreição, a origem
de vida e o fundamento de justiça para todos os que creem no Seu nome. Possuindo
assim a vida e a justiça n'Ele, somos chamados para andar, não apenas como a lei
ordena, mas "como ele andou" (1 Jo 2:6). Será desnecessário afirmar que matar, cometer
adultério ou roubar, são atos diretamente opostos à moral cristã. Mas se um cristão
regulasse a sua vida segundo esses mandamentos ou de acordo com o decálogo
produziria esses frutos raros e delicados de que fala a epístola aos Efésios?- Poderiam os
dez mandamentos fazer com que um ladrão não roubasse mais e trabalhasse a fim de
poder ter que dar? Transformariam jamais um ladrão num homem laborioso e liberais
Não, por certo. A lei diz: "Não furtarás"; mas acaso diz, "dá àquele que está em
necessidade" — vai, dá de comer ao teu inimigo, veste-o e abençoa-o —, vai e alegra por
teus sentimentos benevolentes e teus atos beneficentes o coração daquele que procura
sempre prejudicar-te? De modo nenhum; e, contudo, se eu estivesse sob a lei, como
regra, ela só podia amaldiçoar-me e matar-me. Como pode ser isto, sendo o padrão do
Novo Testamento muito mais elevado"? É porque sou fraco e a lei não me dá forças nem
me mostra misericórdia. A lei exige força daquele que não tem nenhuma e amaldiçoa-o se
ele não pode mostrá-la. Mas o evangelho dá forças àquele que não tem nenhuma, e
abençoa-o na manifestação dessa força. A lei propõe a vida como o fim da obediência; o
evangelho dá vida como o próprio e único fundamento de obediência.
Mas, para não fatigar o leitor à força de argumentos, pergunto, se a lei é, realmente, a
regra de vida do crente, em que parte do Novo Testamento se apresenta ela assim a
Evidentemente o apóstolo não tinha tal pensamento quando disse. "Porque, em Cristo
Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas sim o ser um nova
criatura. E, a todos quantos andarem conforme esta regra, paz e misericórdia sobre eles e
sobre o Israel de Deus" (Gl 6:15-16). Qual regra? A lei?- Não, mas sim a "nova criatura".
Em capítulo 20 de Êxodo não encontramos uma só palavra quanto à "nova criação". Pelo
contrário, este capítulo é dirigido ao homem tal qual ele é, no seu estado natural da velha
criação, e põe-no à prova para saber o que ele pode realmente fazer. Ora se a lei era a
regra pela qual os crentes deviam andar, por que pronuncia o apóstolo a sua bênção
sobre os que andam segundo uma regra totalmente diferente? Por que não diz ele, "a
todos quantos andarem conforme a regra dos dez mandamentos"1? Não é evidente,
segundo esta passagem, que a Igreja de Deus tem uma regra mais elevada segundo a
qual deve andara É, indiscutivelmente. Os dez mandamentos, embora façam parte, como
todos os verdadeiros crentes admitem, do cânon de inspiração, nunca poderiam ser a
regra de fé para todo aquele que tenha, pela graça infinita, sido introduzido na nova
criação—todo aquele que tem recebido nova vida em Cristo.
A Lei é Perfeita
Mas, pode perguntar-se, "a lei não é perfeita? E se é perfeita que mais pode desejar-se?-
A lei é divinamente perfeita. Na verdade, a própria perfeição da lei é a razão de
amaldiçoar e matar aqueles que não são perfeitos e pretendem subsistir perante ela. "A
lei é espiritual, mas eu sou carnal" (Rm 7:14). É inteiramente impossível fazer-se uma
ideia justada perfeição e espiritualidade da lei. Porém, esta lei perfeita estando em contato
com a humanidade caída—esta lei espiritual entrando em contato com a mente carnal—
só podia produzir a "ira" e a "inimizade" (Rm 4:15; 8:7). Por quê?- É porque a lei não é
perfeita?- Ao contrário, é porque ela o é e o homem é pecador. Se o homem fosse
perfeito cumpriria a lei em toda a sua perfeição espiritual; e até mesmo no caso de
crentes verdadeiros, embora tragam ainda consigo uma natureza corrompida, o apóstolo
ensina-nos: "Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a
carne, mas segundo o espírito" (Rm 8:4): ".. .porque quem ama aos outros cumpriu a lei...
O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor" (Rm 13:8 e
10). Se eu amar o próximo não furtarei aquilo que lhe pertence; pelo contrário, procurarei
fazer-lhe todo o bem que puder. Tudo isto é claro e fácil de compreender por uma alma
espiritual; mas não toca na questão da lei, quer seja como fundamento de vida do
pecador ou de regra de vida para o crente.
— CAPITULO 21 a 23 —
AS ORDENANÇAS
E AS PENALIDADES
O Servo Hebreu
Tal é, pois, o caráter duplo da instrução que pode coligir-se das leis e ordenações
consideradas em conjunto; e quanto mais as examinamos em pormenor, mais
impressionados ficamos com o sentido da sua plenitude e beleza. Tomemos, por
exemplo, a primeira ordenação que nos é apresentada, a saber, a que se refere ao servo
hebraico. "Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro,
de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era homem
casado, sairá sua mulher com ele. Se seu senhor lhe houver dado uma mulher, e ela lhe
houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele saíra só
com seu corpo. Mas, se aquele servo expressamente disser.- Eu amo a meu senhor, e a
minha mulher e a meus filhos, não quero sair forro, então, seu senhor o levará aos juízes,
e o fará chegar à porta, ou ao postigo, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e
o servirá para sempre" (capítulo 21:2 a 6). O servo era inteiramente livre quanto a tudo
que lhe dizia respeito. Havia cumprido todas as exigências da lei e poderia portanto partir
com absoluta liberdade; mas, por causa do amor à sua mulher, ao seu amo e aos seus
filhos submetia-se à servidão perpétua; e não somente isto, queria levar também no seu
corpo as marcas dessa servidão.
O Verdadeiro Servo
O leitor inteligente reconhecerá facilmente como tudo isto tem aplicação ao Senhor Jesus
Cristo. N'Ele vemos Aquele que estava no seio do Pai antes que existissem todos os
mundos—o objeto das Suas delícias eternas — e que podia ter ocupado este lugar por
toda a eternidade, sendo o Seu lugar pessoal e inteiramente peculiar, tanto mais que
nada o obrigava a abandoná-lo, salvo esta obrigação que o amor inefável criara e
inspirara. Mas era tal o Seu amor para com o Pai, Cujos desígnios estavam incluídos e
para com a Igreja coletivamente e cada membro dela individualmente, cuja salvação
estava em causa, que veio ao mundo, voluntariamente, humilhando-Se a Si Mesmo,
tomando a forma de servo e as marcas de serviço perpétuo sobre Si. No Salmo 40 faz-se
provavelmente uma alusão a estas marcas: "...as minhas orelhas furaste". Este Salmo é a
expressão do afeto de Cristo por Deus. "Então disse: Eis aqui venho; no rolo do livro está
escrito de mim: Deleito-me em fazer a tua vontade, ó meus Deus; sim a tua lei está dentro
do meu coração" (versículos 7 e 8). Veio para fazer a vontade de Deus, qualquer que
pudesse ser essa vontade. Jamais fez a Sua vontade, nem mesmo na aceitação e
salvação de pecadores, ainda que certamente o Seu coração amantíssimo, com todas as
suas afeições, estivesse posto inteiramente nessa obra gloriosa. Sem dúvida, não recebe
nem salva senão como servo dos desígnios do Pai. "Tudo que o Pai me dá virá a mim; e o
que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. Porque eu desci do céu não para
fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai, que
me enviou, é esta: que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o
ressuscite no último dia" (Jo 6:37 -39).
Nesta passagem, temos um dos mais interessantes aspectos do caráter de servo do
Senhor Jesus Cristo. Em graça perfeita, Ele considera-Se responsável por receber todos
os que estão incluídos nos desígnios divinos; e não só de recebê-los, mas de os guardar
em todas as dificuldades e provações da sua carreira de desvios na terra, sim, até mesmo
no caso da própria morte, no caso de ela vir, e de os ressuscitar no último dia. Oh, quão
seguro está até o membro mais fraco da Igreja de Deus! É objeto dos desígnios eternos
de Deus, de cujo cumprimento o Senhor Jesus Cristo é o fiador. Jesus ama o Pai, e a
segurança de cada membro da família redimida está em proporção com a intensidade
desse amor. A salvação do pecador que crê no Filho de Deus não é, em certo aspecto,
senão a expressão do amor de Cristo pelo Pai. Se um dos que creem n'Ele pudesse
perder-se por qualquer causa, o fato indicaria que o Senhor Jesus Cristo era incapaz de
dar cumprimento à vontade de Deus, o que seria uma blasfêmia contra o Seu santo
nome, ao qual seja dada a honra e majestade pelos séculos eternos!
Desta forma temos no servo hebraico uma figura de Cristo em Seu afeto ao Pai. Porém
há alguma coisa mais do que isto: "Eu amo a minha mulher e a meus filhos. ""Cristo amou
a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com lavagem da
água, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível" (Ef 5:25 -27). Existem outras passagens das
Escrituras que nos apresentam Cristo como antítipo do servo hebraico, tanto no Seu amor
pela Igreja, como corpo, como para com todos os crentes, individualmente. O leitor
encontrará ensino sobre este ponto nos capítulos 13 de Mateus, 10 e 13 de João e 2 de
Hebreus.
O PODER DO SANGUE
"De Longe"
Este capítulo abre com uma expressão notavelmente característica de toda a
dispensação moisaica. "Depois, disse a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu e Arão, Nadabe e
Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e inclinai-vos de longe... eles não se cheguem nem
o povo suba com ele." Podemos buscar de um ao outro extremo da lei sem encontramos
estas palavras: "Aproximai-vos". Ah, não; essas palavras nunca poderiam ser ouvidas do
cume do Sinai, nem do meio das sombras da lei. Só podiam ser pronunciadas do lado
celestial da sepultura vazia de Jesus, onde o sangue da cruz abriu uma perspectiva
perfeitamente clara para a visão da fé. As palavras "de longe" são tão características da
lei como as palavras "vinde" o são do evangelho. Sob a lei, a obra que podia dar direito ao
pecador a aproximar-se não se realizava jamais. O homem não cumpriu a sua promessa
de obediência, e o "sangue de bodes e bezerros" (Hb 9:12) não podia expiar o pecado
nem dar paz à sua consciência perturbada. Por isso, ele tinha de permanecer "longe". Os
votos do homem haviam sido violados e o seu pecado estava por purificar; como, pois,
podia aproximar-se ? O sangue de dez mil bezerros não podia limpar nem uma só das
manchas da consciência ou dar-lhe o sentimento pacífico da intimidade com um Deus
reconciliado.
Contudo, "o primeiro" concerto está aqui consagrado com sangue. Um altar é edificado ao
pé do monte com doze pedras, segundo as doze tribos de Israel. ―E enviou certos jovens
dos filhos de Israel, os quais ofereceram holocaustos, e sacrificaram ao SENHOR
sacrifícios pacíficos de bezerros. E Moisés tomou a metade do sangue e a pôs em bacias;
e a outra metade do sangue espargiu sobre o altar... então, tomou Moisés aquele sangue,
e o espargiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue do concerto que o SENHOR tem
feito convosco sobre todas estas palavras" (versículos 5,6 e 8). Embora fosse impossível,
como nos diz o apóstolo, que o sangue dos touros e dos bodes tirasse os pecados,
contudo santificava quanto à purificação da carne (Hb 10:4; 9.13), e como "sombra dos
bens futuros" servia para manter o povo em relação com Deus (Hb 10:1).
A Manifestação de Deus
"E subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú e setenta dos anciãos de Israel, e viram o Deus
de Israel e debaixo de seus pés havia como uma obra de pedra de safira e como o
parecer do céu na sua claridade. Porém ele não estendeu a sua mão sobre os escolhidos
dos filhos de Israel; mas viram a Deus, e comeram e beberam" (versículos 9 a 11). Assim
se manifestava "o Deus de Israel" em luz e pureza, majestade e santidade. Nada disto era
o desenrolar dos afetos do coração do Pai ou os doces acentos da voz do Pai
derramando paz e inspirando confiança no coração. Não; a "obra de pedra de safira"
falava daquela pureza e luz inacessíveis que obrigavam o pecador a manter-se "longe".
Contudo, eles "viram a Deus e comeram e beberam". Prova tocante da tolerância e da
misericórdia divina bem como do poder do sangue!
Encarando o conjunto desta cena como uma simples ilustração, existe nela muito para
interessar o coração. O campo demarcado está em baixo, tem cima o pavimento de
safira; mas o altar, ao pé do monte, fala-nos desse caminho pelo qual o pecador pode
subtrair-se à corrupção da sua própria condição e elevar-se à presença de Deus, para aí
fazer festa e adorar em perfeita paz. O sangue que corria em redor do altar era o único
direito que o homem tinha para subsistir na presença dessa glória cujo parecer "era como
um fogo consumidor no cume do monte aos olhos dos filhos de Israel".
"E Moisés entrou no meio da nuvem, depois que subiu ao monte; e Moisés esteve no
monte quarenta dias e quarenta noites." Para Moisés isto significava uma posição
verdadeiramente elevada e santa. Foi chamado aparte da terra e das coisas terrenas.
Alheado das influências naturais, é encerrado com Deus para ouvir da Sua boca os
profundos mistérios da Pessoa e obra de Cristo; porque é isso, com efeito, que nos é
representado no tabernáculo, cheio de significação em todos os seus acessórios—"figuras
das coisas que estão nos céus" (Hb 9:23).
O bendito Senhor sabia bem qual ia ser o fim do concerto das obras do homem; todavia,
mostra a Moisés, em figuras e sombras, os Seus preciosos pensamentos de amor e
desígnios eternos de graça, manifestados e garantidos por Cristo.
Bendita seja para sempre a graça que não nos deixou sob um concerto de obras. Bendito
seja Aquele que aquietou os trovões da lei e apagou as chamas do monte Sinai pelo
sangue do concerto eterno (Hb 13:20) e que nos deu uma paz que nenhum poder da terra
ou do inferno pode abalar. "Aquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos
pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai, a ele glória e poder para todo o
sempre. Amém (Ap 1:5-6).
— CAPÍTULO 25 —
O TABERNÁCULO
A Ordem Divina
Este capítulo é o começo de um dos mais ricos filões da mina inesgotável de inspiração—
um veio no qual cada pancada do alvião descobre riquezas incontáveis. Sabemos qual é
o único alvião com o qual podemos trabalhar numa tal mina, a saber, o ministério distinto
do Espírito Santo. A natureza humana nada pode fazer aqui. A razão é cega e a
imaginação completamente inútil; a inteligência mais elevada, em vez de estar em estado
de interpretar os símbolos sagrados, parece-se mais a um morcego ante o resplendor do
sol, chocando-se contra os objetos que é inteiramente incapaz de discernir. Devemos
obrigar a razão e a imaginação a ficarem a parte, enquanto, com um coração puro, um
olhar sensato e pensamentos reverentes entramos nos recintos santos e contemplamos
fixamente o mobiliário cheio de significado. Deus o Espírito Santo é o único que nos pode
guiar através dos recintos da casa do Senhor e de interpretar para as nossas almas o
verdadeiro significado de tudo que se apresenta à nossa vista. Querer dar a sua
explicação com o auxílio de faculdades não santificadas seria mais absurdo do que tentar
reparar um relógio com as tenazes e o martelo de um ferreiro. "As figuras das coisas que
estão no céu" (Hb 9:23) não podem ser interpretadas pela mente natural, ainda mesmo a
mais cultivada. Devem ser lidas à luz do céu. O mundo não tem nenhuma luz que possa
revelaras suas belezas. Aquele que produziu as figuras é o único que pode explicar o que
elas significam. E Aquele que deu os símbolos é quem pode interpretá-los.
Para a vista do homem parecerá que há irregularidade na maneira como o Espírito
apresenta o mobiliário do tabernáculo; mas, na realidade, como poderia esperar-se, existe
a mais perfeita ordem, a precisão mais notável e a exatidão mais minuciosa. Desde o
capítulo 25 ao capítulo 30, inclusive, temos uma parte distinta do Livro do Êxodo. Esta
parte subdivide-se em duas partes, das quais a primeira termina no versículo 19 do
capítulo 27, e a segunda no fim do capítulo 30. A primeira começa com a descrição da
arca do concerto, dentro do véu, e termina com o altar de bronze e o átrio no qual o altar
devia ser posto. Quer dizer, dá-nos, em primeiro lugar, o trono do juízo do Senhor, sobre
o qual Ele se assentava como Senhor de toda a terra; e este trono conduz-nos àquele
lugar onde o Senhor encontra o pecador em virtude e com base na obra de uma expiação
consumada. Depois, na segunda parte temos a maneira de o homem se aproximar de
Deus—os privilégios, as honras, e as responsabilidades daqueles que, como sacerdotes,
podem aproximar-se da presença Divina para prestarem culto e gozarem da Sua
comunhão. Deste modo a ordem é perfeita e bela. Como poderia ser de outro modo, visto
que é divinal A arca e o altar de bronze apresentam, em certo sentido, dois extremos. A
primeira era o trono de Deus estabelecido em "justiça e juízo" (SI 89:14). A última era o
lugar onde o pecador podia aproximar-se, porque "a misericórdia e a verdade" iam
adiante do rosto de Jeová. O homem, por si mesmo, não ousava aproximar-se da arca
para se encontrar com Deus, porque o caminho do santuário não estava ainda descoberto
(Hb 9:8). Porém, Deus podia vir ao altar de bronze para encontrar o pecador. "A justiça e
o juízo" não podiam admitir o pecador no santuário; mas a misericórdia e a verdade
podiam fazer sair Deus—não envolto naquele resplendor irresistível e majestade com que
costumava brilhar do meio das colunas místicas do Seu trono—"os querubins de glória"—,
mas rodeado daquele ministério gracioso que nos é apresentado, simbolicamente, no
mobiliário e nas ordenações do tabernáculo.
Tudo isto nos pode muito bem recordar o caminho que percorreu Aquele bendito Senhor
que é o antítipo de todos estes símbolos —a substância destas sombras. Ele desceu do
trono eterno de Deus no céu até à profundidade da cruz no Calvário. Deixou toda a glória
do céu pela vergonha da cruz, a fim de poder conduzir o Seu povo remido, perdoado e
aceite por Si Mesmo, e apresentá-lo inculpável diante daquele próprio trono que Ele havia
abandonado por amor deles. O Senhor Jesus preenche, em Sua própria Pessoa e obra,
todo o espaço entre o trono de Deus e o pó da morte, assim como a distância entre o pó
da morte e o trono de Deus. N'Ele Deus desceu, em perfeita graça, até ao pecador, e
n'Ele o pecador é conduzido, em perfeita justiça, até Deus. Todo o caminho, desde a arca
ao altar, está marcado com as pegadas do amor; e todo o caminho desde o altar de
bronze até a arca de Deus estava salpicado com sangue da expiação; e todo adorador ao
passar por esse caminho maravilhoso vê o nome de Jesus impresso em tudo que se
oferece à sua vista. Que este nome venha a ser o mais precioso de nossos corações!
Vamos proceder agora ao exame dos capítulos que se seguem.
E interessante notar que a primeira coisa que o Senhor revela a Moisés é o Seu propósito
gracioso de ter um santuário ou santa habitação no meio do Seu povo — um santuário
formado de materiais que indicavam Cristo, a Sua Pessoa, a Sua obra, e o fruto precioso
dessa obra, como os vemos à luz, no poder e diversas mercês do Espírito Santo. Além
disso, estes materiais eram o fruto fragrante da graça de Deus — as ofertas voluntárias
de corações consagrados. Jeová, cuja Majestade o céu dos céus não poderia conter (l Rs
8:27), achava o Seu agrado em habitar numa tenda erigida para Si por aqueles que
nutriam o desejo ardente de saudar a Sua presença no meio deles. Este tabernáculo pode
ser considerado de duas maneiras; primeira, como uma "figura das coisas celestiais"; e,
segunda, como uma figura profundamente significativa do corpo de Cristo. Os vários
materiais de que se compunha este tabernáculo serão apresentados à nossa
consideração à medida que formos desenrolando o assunto. Portanto, vamos considerar
os três assuntos mais importantes que este capítulo põe diante de nós, a saber: a arca, a
mesa e o castiçal.
A Arca no Templo
Contudo, a arca não deveria viajar sempre. As "aflições" de Davi(Sl 132:1) bem como as
guerras de Israel deviam ter um fim. A oração, "Levanta-te, Senhor, no teu repouso, tu e a
arca da tua força" (SI 132:8) devia ainda de ser feita e atendida. Esta petição sublime teve
o seu cumprimento parcial nos dias auspiciosos de Salomão, quando "os sacerdotes
trouxeram a arca do concerto do SENHOR ao seu lugar, ao oráculo da casa, ao lugar
santíssimo, até debaixo das asas dos querubins. Porque os querubins estendiam ambas
as asas sobre o lugar da arca e cobriam a arca e os seus varais por cima. E os varais
sobressaíram tanto que as pontas dos varais se viam desde o santuário diante do oráculo,
porém de fora não se viam; e ficaram ali até ao dia de hoje' (1 Rs 8:6 - 8). A areia do
deserto devia ser trocada pelo piso de ouro do templo (1 Rs 6:30). As peregrinações da
arca haviam chegado ao seu termo: "adversário não havia, nem algum mau encontro", e,
portanto, fizeram sobressair os varais.
Esta não era a única diferença entre a arca no tabernáculo e no templo. O apóstolo,
falando da arca na sua habitação do deserto, descreve-a como "a arca do concerto,
coberta de ouro toda em redor, em que estava um vaso de ouro, que continha o maná, e
a vara de Arão, que tinha florescido, e as tábuas do concerto" (Hb 9:4). Estes eram os
objetos que a arca continha durante as suas jornadas no deserto—o vaso de maná era o
memorial da fidelidade do Senhor em prover a todas as necessidades dos Seus remidos
através do deserto, e a vara de Aarão era "um sinal para os filhos rebeldes" para acabar
com "as suas murmurações" (Compare-se Ex 16:32 - 34 e Nm 17:10). Porém, quando
chegou o momento em que "os varais" deviam ser retirados, logo que as peregrinações e
as guerras de Israel terminaram, quando "a casa magnífica em excelência" (1 Cr 22:5) foi
terminada, quando o sol da glória de Israel havia chegado, em figura, ao zênite com o
esplendor e a magnificência do reino de Salomão, então os memoriais das necessidades
e faltas do deserto desapareceram, e nada ficou senão aquilo que constituía o
fundamento eterno do trono do Deus de Israel e de toda a terra. "Aia arca, nada havia,
senão só as duas tábuas de pedra que Moisés ali pusera junto a Horebe" (I Rs 8:9).
Mas toda esta glória devia ser obscurecida pelas nuvens carregadas do fracasso humano
e o descontentamento de Deus. Os pés devastadores dos incircuncisos haviam ainda de
atravessar as ruínas dessa magnífica casa, e o desaparecimento do seu brilho e da sua
glória devia provocar o assobio dos estranhos (1 Reis 9:8). Este não é o momento de
continuar em pormenor este assunto; limitar-me-ei a referir ao leitor a última menção que
a Palavra de Deus faz da " arca do concerto" —uma passagem que nos transporta a uma
época em que a loucura humana e o pecado não perturbarão mais o lugar de repouso da
arca, e em que a arca não será guardada num tabernáculo de cortinas nem tampouco
num templo feito por mãos. "E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu
grandes vozes, que diziam-. Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do Seu
Cristo, e ele reinará para todo o sempre. E os vinte e quatro anciãos, que estão
assentados em seus tronos diante de Deus, prostraram-se sobre seu rosto e adoraram a
Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor, Deus Todo-Poderoso, que és, e que eras, e
que hás de vir, que tomaste o teu grande poder e reinaste. E iraram-se as nações, e veio
a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de dares o galardão
aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu nome, a pequenos e a
grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra. E abriu-se no céu o templo de
Deus, e a arca do seu concerto foi vista no seu templo; e houve relâmpagos, e vozes, e
trovões, e terremotos, e grande saraiva" (Ap 11.15 -19).
O Propiciatório
Segue-se por sua ordem o propiciatório. "Também farás um propiciatório de ouro puro; o
seu cumprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura, de um côvado e meio.
Farás também dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do
propiciatório. Farás um querubim na extremidade de uma parte e o outro querubim na
extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório farás os querubins nas
duas extremidades dele. Os querubins estenderão as suas asas por cima, cobrindo com
as suas asas o propiciatório; as faces deles, uma defronte da outra; as faces dos
querubins estarão voltadas para o propiciatório. E porás o propiciatório em cima da arca,
depois que houveres posto na arca o Testemunho, que eu te darei. E ali virei a ti e falarei
contigo de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins (que estão sobre a arca do
Testemunho), tudo que eu te ordenar para os filhos de Israel" (versículos 17 a 22).
Jeová declara aqui o Seu desígnio misericordioso de descer do monte ardente para tomar
o Seu lugar sobre o propiciatório. Podia fazer isto, visto que a tábuas da lei estavam
guardadas intactas na arca, e os símbolos do Seu poder, tanto na criação como na
providência, se elevavam à direita e à esquerda como acessórios inseparáveis deste
trono em que o Senhor Se havia assentado — um trono de graça fundado na justiça e
sustido pela justiça e o juízo. Ali brilha a glória do Deus de Israel. Dali emanavam os Seus
mandamentos suavizados e tornados agradáveis pela origem graciosa de onde saíam— à
semelhança do sol do meio-dia, cujos raios ao passarem através de uma nuvem vivificam
e fecundam sem que o seu resplendor nos cegue.
"Os seus mandamentos não são pesados" quando recebidos do propiciatório, porque
estão ligados com a graça que dá ouvidos para ouvir e o poder para obedecer.
O Candelabro
O castiçal de ouro puro vem a seguir, porque os sacerdotes de Deus têm necessidade de
Luz bem como de alimento: e têm tanto uma coisa como a outra em Cristo. Neste castiçal
não se faz menção de outra coisa que não seja ouro. "Tudo será de uma só peça, obra
batida de ouro puro" (versículo 36). "As sete lâmpadas", as quais se "acenderão para
alumiar defronte dele", exprimem a perfeição da luz e energia do Espírito, baseadas e
ligadas com a eficácia perfeita da obra de Cristo. A obra do Espírito Santo nunca poderá
ser separada da obra de Cristo. Isto é indicado, de um modo duplo, nesta magnífica
imagem do castiçal de ouro. As sete lâmpadas estando ligadas à cana de ouro batido
indicam-nos a obra cumprida por
Cristo como a única base da manifestação do Espírito na Igreja. O Espírito Santo não foi
dado antes de Jesus ter sido glorificado (comparem-se João 7:39 com Atos 19:2 a 6). Em
Apocalipse, capítulo 3, Cristo é apresentado à igreja de Sardes como Aquele que tem "os
sete espíritos". Quando o Senhor Jesus foi exaltado à destra de Deus, então derramou o
Espírito Santo sobre a Sua Igreja, a fim de que ela pudesse brilhar segundo o poder e a
perfeição da sua posição no lugar santo, a sua própria esfera de ser, de ação e de culto.
Vemos, também, que uma das funções particulares de Arão consistia em acender e
espevitar essas sete lâmpadas. "E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos
de Israel que te tragam azeite de oliveira puro, batido, para a luminária, para acender as
lâmpadas continuamente. Arão as porá em ordem perante o SENHOR continuamente,
desde a tarde até à manhã, fora do véu do Testemunho, na tenda da congregação;
estatuto perpétuo é pelas vossas gerações. Sobre o castiçal puro porá em ordem as
lâmpadas, perante o SENHOR, continuamente" (Lv 24:1-4). Desta maneira, podemos ver
como a obra do Espírito Santo na Igreja está ligada com a obra de Cristo na terra e a Sua
obra no céu. "As sete lâmpadas" estavam no tabernáculo, evidentemente, mas a atividade
e diligência do sacerdote eram necessárias para as manter acesas e espevitadas. O
sacerdote necessitava continuamente dos "espevitadores" e dos "apagadores" para
remover tudo que pudesse impedir o livre curso do "azeite batido". Esses espevitadores e
apagadores eram igualmente feitos de "ouro batido" porque todas essas coisas eram o
resultado imediato da operação divina. Se a Igreja brilha, é unicamente pela energia do
Espírito, e esta energia está fundada em Cristo, que, em virtude do desígnio eterno de
Deus, veio a ser, em Seu sacrifício e sacerdócio, o manancial e poder de todas as coisas
para a Sua Igreja. Tudo é de Deus. Quer olhemos para dentro desse véu misterioso e
contemplemos a arca com a sua coberta e as duas figuras significativas, ou admiremos o
que está da parte de fora desse véu, a mesa pura e o castiçal puro, com os seus vasos e
respectivos utensílios — tudo nos fala de Deus, quer seja revelando-Se em ligação com o
Filho ou o Espírito Santo.
A chamada celestial coloca o leitor cristão no próprio centro de todas estas preciosas
realidades. O seu lugar não está apenas no meio das" figuras das coisas que estão no
céu", mas no meio das "próprias coisas celestiais". Tem "ousadia para entrar no santuário
pelo sangue de Jesus". É sacerdote para Deus. O pão da proposição lhe pertence. O seu
lugar é à mesa pura, para comer o pão sacerdotal, na luz. do Espírito Santo. Nada o
poderá privar desses privilégios divinos. São seus para sempre. Esteja em guarda contra
tudo que possa privá-lo do gozo deles. Guarde-se contra toda a irritabilidade, a cobiça, de
todo o sentimento e imaginações. Domine a sua natureza, lance o mundo fora de seu
coração, afugente Satanás. Que o Espírito Santo encha inteiramente a sua alma de
Cristo. Então será praticamente santo e sempre ditoso. Dará fruto, e o Pai celestial será
glorificado, e o seu gozo será completo.
— CAPÍTULO 26 —
A ESTRUTURA DO
TABERNÁCULO
Os Materiais
Esta parte do livro do Êxodo inclui a descrição das cortinas e da cobertura do tabernáculo,
nas quais a mente espiritual discerne as sombras das várias fases e traços do caráter de
Cristo. "E o tabernáculo farás de dez cortinas de linho fino torcido, e pano azul, e púrpura,
e carmesim; com querubins as farás, de obra esmerada". Aqui temos os diferentes
aspectos do "homem Jesus Cristo" (1 Tm 2:5). O "linho fino torcido" representa a pureza
imaculada da Sua vida e do Seu caráter; enquanto que o "azul, púrpura e carmesim" no-
Lo apresentam como "o Senhor do céu", que deve reinar segundo os desígnios divinos,
mas Cuja realeza deve ser o resultado dos Seus sofrimentos. Desta forma, temos n'Ele
um homem puro, homem celestial, régio e sofredor. Os diferentes materiais mencionados
aqui não eram apenas limitados às "cortinas" do tabernáculo, como deviam ser também
usados para o "véu" (versículo 31), a "coberta" da porta da tenda" (versículo 36), a
coberta da "porta do pátio" (capítulo 27:16), e "os vestidos do ministério" e "os vestidos
santos para Arão" (capítulo 39:1). Em suma, era Cristo em todo as partes, Cristo em tudo,
somente Cristo (¹).
__________________
(¹) A expressão "puro e resplandecente" (Ap 19:8) dá força e formosura peculiar ao
símbolo que o Espírito Santo nos apresenta no "linho fino torcido". Com efeito, não é
possível encontrar-se um emblema mais exato de natureza imaculada.
O Linho Torcido
O "linho fino torcido", como figura da humanidade imaculada de Cristo, abre um
manancial precioso e abundante de pensamento para a inteligência espiritual: dá-nos um
tema sobre o qual nunca é demais meditar. A verdade quanto à humanidade de Cristo
deve ser recebida com toda a exatidão escriturai, mantida com energia espiritual,
guardada com santo zelo e confessada com poder celestial. Se estivermos enganados
quanto a este ponto de capital importância não podemos estar dentro da verdade sobre
coisa alguma. É uma verdade essencial e fundamental, e se não for recebida, defendida e
confessada tal qual Deus a revelou na Sua santa Palavra, todo o edifício não terá solidez.
Nada pode ser mais deplorável que o relaxamento que parece prevalecer e predominar
nos pensamentos e expressões de alguns sobre esta doutrina tão importante. Se
houvesse mais reverência pela palavra de Deus, haveria um conhecimento dela mais
perfeito; e, deste modo, evitar-se-iam essas declarações errôneas e irrefletidas que
certamente devem entristecer o Espírito de Deus, Cuja incumbência é testemunhar de
Jesus. Quando o anjo anunciou a Maria as boas novas do nascimento do Salvador, ela
disse-lhe: "Como se fará isto, visto que não conheço varão"?- "A sua fraca inteligência era
incapaz de compreender, muito menos profundar, o estupendo mistério de "Deus
manifestado em carne" (l Tm 3:16). Mas note-se com atenção a resposta do anjo—
resposta dada não a um espírito céptico, mas a um coração piedoso, embora ignorante.
"Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra;
pelo que também o Santo que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus" (Lc 1:34-
35). Maria imaginava, sem dúvida que este nascimento deveria ter lugar segundo os
princípios ordinários da geração. Mas o anjo corrige o seu equívoco, e, corrigindo-o,
anuncia uma das maiores verdades da revelação. Declara que o poder divino estava
prestes a formar UM HOMEM VERDADEIRO—" o segundo homem, o Senhor do céu" (1
Co 15:47): um homem cuja natureza seria divinamente pura, inteiramente incapaz de
receber ou de comunicar a mais pequena mancha. Este Ser santo foi formado, à
"semelhança da carne do pecado", sem pecado na carne. Participou inteiramente da
carne e do sangue sem uma partícula ou sombra de mal ligado com eles.
Esta verdade é de primacial importância, nunca será retida com fidelidade e firmeza
excessiva. A encarnação do Filho, a segunda Pessoa da Trindade eterna, a Sua entrada
misteriosa em carne pura e sem mácula, formada pelo poder do Altíssimo, no ventre da
virgem, é o fundamento do "mistério da piedade" (I Tm 3:16), do qual a cimalha é o Deus-
homem glorificado no céu, a Cabeça, Representante e Modelo da Igreja remida de Deus.
A pureza essencial da Sua humanidade satisfez perfeitamente as exigências de Deus;
enquanto que a sua realidade correspondia às necessidades do homem. Era homem,
porque só um homem podia responder pela ruína do homem. Porém, era homem tal que
podia dar satisfação a todas as exigências do trono de Deus. Era um homem imaculado,
verdadeiro homem, em quem Deus podia achar o Seu agrado, e em quem o homem
podia apoiar-se sem reservas.
Não é preciso recordar ao leitor esclarecido que tudo isto, separado da morte e
ressurreição, é perfeitamente inútil para nós. Nós tínhamos necessidade não somente de
um Cristo encarnado, mas de um Cristo crucificado e ressuscitado. Na verdade, Ele fez-
se carne para ser crucificado; mas é por Sua morte e ressurreição que a Sua encarnação
veio a ser eficaz para nós. É um erro moral crer que Cristo tomou o homem em união
consigo na encarnação. Isto era impossível. Ele Próprio ensina expressamente o
contrário. "Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não
morrer, fica ele só; mas se morrer dá muito fruto" (Jo 12:24). Não podia haver nenhuma
união entre carne santa e pecaminosa, pura e impura, corruptível e incorruptível, mortal e
imortal. A morte é a única base de união entre Cristo e os Seus membros eleitos. É em
ligação com as palavras "levantai-vos, vamos" (Mc 14:42) que o Senhor diz: "Eu sou a
videira, vós as varas" (Jo 15:5). Porque "se fomos plantados juntamente com ele na
semelhança da sua morte... o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja desfeito" (Rm 6:5-6). "No qual também estais circuncidados, com a
circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a circuncisão de Cristo.
Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus,
que o ressuscitou dos mortos" (Cl 2:11-12).
Os capítulos 6 de Romanos e 2 de Colossenses nos dão um relato pormenorizado da
verdade sobre este importante assunto. Foi unicamente como morto e ressuscitado que
Cristo e o Seu povo puderam tornar-se em um. O verdadeiro grão de trigo tinha de cair na
terra e morrer antes que a espiga pudesse ser formada e recolhida no celeiro celestial.
Porém, embora isto seja uma verdade claramente revelada nas Escrituras, é igualmente
claro que a encarnação formava, por assim dizer, os alicerces do glorioso edifício; e as
cortinas de "linho fino" apresentam-nos, em figura, a beleza moral do "Homem Jesus
Cristo". Já vimos a maneira como Ele foi concebido; e, ao longo do curso da Sua vida aqui
na terra, encontramos exemplos e mais exemplos da mesma imaculada pureza. Passou
quarenta dias no deserto, sendo tentado pelo diabo, mas nada em Sua natureza
respondeu às vis sugestões do tentador. Podia tocar os leprosos sem ser contaminado.
Podia tocar o esquife de um defunto sem contrair o fedor da morte. Podia passar incólume
pela atmosfera mais contaminada. Era, quanto à Sua humanidade, como um raio de sol
que vinha da fonte de luz, o qual pode passar, sem ser atingido, pelo ambiente de maior
contaminação. Foi perfeitamente único em natureza, caráter e constituição.
Só Ele podia dizer: "Não permitirás que o teu santo veja corrupção" (Sl 16:10). Isto estava
em relação com a Sua humanidade, que, sendo perfeitamente santa e pura, podia levar o
pecado. "Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro" (1 Pe
2:24). Não no madeiro, como alguns querem ensinar-nos, mas "sobre o madeiro". Foi na
cruz que Cristo levou os nossos pecados, e somente ali. "Aquele que não conheceu
pecado, o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5:21).
O Azul
"Azul" é a cor etérea e indica o caráter celestial de Cristo, o Qual, a despeito de ter
entrado em todas as circunstâncias de verdadeira e autêntica humanidade—exceto o
pecado—era "o Senhor do céu"
(1 Co 15:47). Sendo homem verdadeiro, andou sempre com o sentimento da Sua própria
dignidade, como estrangeiro celestial: jamais olvidou donde tinha vindo, onde estava ou
para onde ia. A fonte de todo o Seu gozo estava nas alturas. A terra não podia fazê-lo
mais rico nem mais pobre. Achou que este mundo era "uma terra seca e cansada, onde
não havia água" (Sl 63:1); e, por isso, o Seu espírito só podia dessedentar-se nas alturas.
Era inteiramente celestial: "...ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho
do Homem, que está no céu" (Jo 3:16).
A Púrpura
"Púrpura" indica realeza, e mostra-nos Aquele que havia "nascido rei dos judeus", que Se
apresentou como tal à nação judaica e foi rejeitado; que fez uma boa confissão perante
Pôncio Pilatos, declarando-Se rei, quando, para a visão humana, não havia um simples
traço de realeza. "Tu dizes que eu sou rei" (Jo 18:37). E ".. .vereis em breve o Filho do
homem assentado à direita do poder e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26:64). E, por
fim, a inscrição sobre a Sua cruz, em hebraico, grego e latim—a linguagem da religião, da
ciência e do governo—declara, perante todo o mundo, que Ele era "Jesus Nazareno, Rei
dos Judeus". A terra negou-Lhe os Seus direitos — desgraçadamente para ela—mas não
aconteceu o mesmo com o céu: ali os Seus direitos foram plenamente reconhecidas. Foi
recebido como um vencedor nas moradas eternas da luz, coroado de glória e honra, e
assentou-Se, por entre aclamações dos exércitos celestiais, no trono da majestade nas
alturas, até que Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés. "Por que se
amotinam as nações e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os
príncipes juntos se mancomunam contra o SENHOR e contra o seu ungido, dizendo:
Rompamos as suas ataduras e sacudamos de nós as suas cordas. Aquele que habita nos
céus se rirá; o Senhor zombará deles. Então, lhes falará na sua ira, e no seu furor o
confundirá. Eu, porém, ungi o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Recitarei o
decreto: O SENHOR me disse: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei
as nações por herança e os confins da terra por tua possessão.
Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os despedaçarás como a um vaso de
oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao
SENHOR com temor e alegrai-vos com tremor. Beijai o Filho, para que se não ire, e
pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira. BEM-AVENTURADOS
TODOS AQUELES QUE NELE CONFIAM" (Salmo 2).
O Carmesim
O "carmesim", quando genuíno, é produzido pela morte e f ala-nos dos sofrimentos de
Cristo:".. .Cristo padeceu por nós na carne" (1 Pe 4:1). Sem morte, tudo teria sido inútil.
Podemos admirar "o azul" e a "púrpura", mas sem o "carmesim" o tabernáculo teria
perdido um aspecto importante. Foi por meio da morte que Cristo destruiu aquele que
tinha o império da morte. O Espírito Santo, pondo diante de nós uma figura admirável de
Cristo — o verdadeiro tabernáculo —, não podia omitir aquela fase do Seu caráter que
constitui o fundamento da Sua união com o Seu corpo, a Igreja, o Seu direito ao trono de
Davi e o senhorio de toda a criação. Em suma, o Espírito não somente nos mostra o
Senhor Jesus, nestas cortinas simbólicas, como homem imaculado, homem real, mas
também como homem sofredor; aquele que, por meio da morte, adquiriu o direito àquilo
que, como homem, tinha direito nos desígnios divinos.
A Primeira Cortina
Contudo, as cortinas do tabernáculo não são apenas a expressão dos diferentes aspectos
do caráter de Cristo, como põem também em evidência a unidade e firmeza desse
caráter. Cada um desses aspectos está exposto na sua própria perfeição; e nunca
interfere com ou prejudica a beleza de outro. Tudo era harmonia perfeita aos olhos de
Deus e foi assim apresentado no "modelo que no monte se mostrou" a Moisés e na sua
reprodução no meio do povo. "Cinco cortinas se enlaçarão à outra; e as outras cinco
cortinas se enlaçarão uma com a outra" (versículo 3). Tal era a proporção e firmeza em
todos os caminhos de Cristo, como homem perfeito, andando pelo mundo, em qualquer
situação ou relação que O considerarmos. Quando atua segundo um desses caracteres,
não encontramos absolutamente nada que seja incompatível com a integridade divina de
outro. Ele foi, em todo o tempo, em todo o lugar e em todas as circunstâncias, o homem
perfeito. Nada n'Ele faltava a essa encantadora e bela proporção que Lhe era própria, em
todos os Seus atos. "Todas estas cortinas serão de uma medida"(versículo 2).
Um par de cinco cortinas pode muito bem simbolizar os dois aspectos principais do
caráter de Cristo atuando a favor de Deus e do homem. Vemos os mesmos dois aspectos
na lei, a saber, o que era devido a Deus e o que era devido ao homem; de forma que,
quanto a Cristo, se olharmos de passagem, vemos que Ele podia dizer, "a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40); e se pensarmos na Sua conduta, vemos esses dois
elementos ordenados com perfeita precisão, e não só ordenados, mas inseparavelmente
unidos pela graça celestial e a energia divina que habitaram na Sua gloriosa Pessoa.
"E farás laçadas de pano azul na ponta de uma cortina, na extremidade, na juntura; assim
também farás na ponta da extremidade da outra cortina, na segunda juntura... Farás
também cinquenta colchetes de ouro, e ajuntarás com estes colchetes as cortinas, uma
com a outra e será um tabernáculo" (versículos 4 e 6). Nas "laçadas" de azul e nos
"colchetes de ouro" temos a manifestação daquela graça celestial e energia divina em
Cristo que Lhe proporcionou ligar e harmonizar perfeitamente as reivindicações de Deus e
as pretensões do homem; de forma que, satisfazendo tanto umas como outras, Ele
nunca, nem por um momento, perturbou o Seu caráter. Quando os homens astutos e
hipócritas o tentaram com a pergunta: "É lícito pagar o tributo a César, ou não?" a Sua
resposta foi, "Dai... a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22:17-21).
Nem foi apenas César, mas o homem em todas as suas relações que recebeu a resposta
a todas as suas pretensões em Cristo. Da mesma maneira que reuniu na Sua Pessoa a
natureza de Deus e humana, satisfez em Seus passos de perfeição as exigências de
Deus e as pretensões do homem. Seria muito interessante seguir, através da narrativa do
evangelho, a exemplificação do princípio sugerido pelas "laçadas de azul" e os "colchetes
de ouro"; devo, porém, deixar que o leitor prossiga este estudo sob a direção do Espírito
Santo, o Qual deseja alargar-Se sobre cada aspecto d 'Aquele bendito Senhor que é Seu
propósito exaltar.
— CAPÍTULO 27 —
O ALTAR DE COBRE
E O ÁTRIO
O Altar de Cobre
O prosseguimento deste estudo tão interessante, e o confronto das passagens acima
mencionadas, recompensarão amplamente o leitor. Passemos agora ao altar de cobre.
Este altar era o lugar onde o pecador se aproximava de Deus, pelo poder e em virtude do
sangue da expiação. Estava colocado à porta do tabernáculo da "tenda da congregação",
e sobre ele era derramado todo o sangue dos sacrifícios. Era construído de "madeira de
cetim e cobre". A madeira era a mesma do altar de ouro do incenso, mas o metal era
diferente, e a razão desta diferença é obvia. O altar de bronze era o lugar onde o pecado
era tratado segundo o juízo divino. O altar de ouro era o lugar onde o perfume precioso da
aceitabilidade de Cristo subia para o trono de Deus. A "madeira de cetim", como figura da
humanidade de Cristo, era a mesma num caso e no outro; porém no altar de cobre vemos
Cristo sob o fogo da justiça divina; no altar de ouro vemos como Ele satisfaz os afetos
divinos. No primeiro, o fogo da ira divina foi apagado, no último, o fogo do culto sacerdotal
é aceso. A alma deleita-se de encontrar Cristo tanto num como no outro; porém o altar de
cobre é o único que responde às necessidades de uma consciência culpada, como a
primeira coisa para um pobre pecador desamparado, necessitado e convicto. Não é
possível haver paz sólida, quanto à questão do pecado, enquanto o olhar da fé não
descansar em Cristo como o antítipo do altar de cobre. É necessário que eu veja o meu
pecado reduzido a cinzas na fornalha desse altar, antes de poder gozar de paz de
consciência na presença de Deus. É quando sei, pela fé no testemunho de Deus, que Ele
Próprio tratou do meu pecado na Pessoa de Cristo, no altar de cobre—que deu satisfação
a todas as Suas justas exigências —, que tirou o meu pecado da Sua santa presença, de
modo que nunca mais pode voltar, que posso gozar paz divina e eterna — e não antes.
O Ouro e o Cobre
Quero fazer aqui uma observação sobre o significado do "ouro" e do "cobre" nos
utensílios do tabernáculo. O "ouro" é símbolo da justiça divina, ou da natureza divina no
"Homem Jesus Cristo". "Cobre" é o símbolo da justiça, pedindo o julgamento do pecado,
como no altar de cobre; ou o julgamento da impureza, como na pia de cobre. Isto explica
a razão por que dentro da tenda do tabernáculo tudo era ouro — a arca, o propiciatório, a
mesa, o castiçal e o altar do incenso. Todas estas coisas eram os símbolos da natureza
divina e da excelência pessoal inerente do Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, fora da
tenda do tabernáculo tudo era cobre—o altar de cobre e os seus utensílios, a pia e a sua
base.
É preciso que as exigências da justiça, quanto ao pecado e à impureza, sejam
divinamente satisfeitas antes que possa haver alguma alegria pelos preciosos mistérios
da Pessoa de Cristo, tais como nos são revelados no interior do santuário de Deus. É
quando posso ver todo o pecado e impureza perfeitamente julgados e lavados que posso,
como sacerdote, aproximar-me e adorar no santuário, e gozar a plena manifestação da
formosura e perfeição do Deus Homem, Cristo Jesus.
O leitor poderá, com muito proveito, prosseguir com a aplicação deste pensamento em
pormenor, não apenas no estudo do tabernáculo e o templo, mas também em várias
passagens da Palavra de Deus; por exemplo, no capítulo 1 de Apocalipse Cristo aparece
"cingido pelos peitos com um cinto de ouro" e tendo os Seus "pés semelhantes a latão
reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha". O "cinto de ouro" é o símbolo
da Sua justiça intrínseca. Os pés semelhantes a latão reluzente" são a expressão do juízo
inflexível sobre o mal- o Senhor não pode tolerar o mal, antes pelo contrário, tem de
esmagá-lo debaixo dos Seus pés.
Tal é o Cristo com Quem temos de tratar. Julga o pecado, mas salva o pecador. A fé vê o
pecado reduzido a cinzas no altar de cobre; vê toda a impureza lavada na pia de cobre; e,
finalmente, goza de Cristo, tal como é revelado, no secreto da presença divina, pela luz e
poder do Espírito Santo. A fé acha-O no altar de ouro, em todo o valor da Sua
intercessão. Alimenta-se d'Ele à mesa pura. Reconhece-O na arca e no propiciatório
como Aquele que responde a todas as exigências da justiça divina, e, ao mesmo tempo,
satisfaz todas as necessidades humanas. Contempla-O no véu, como todas as figuras
místicas. Vê escrito o Seu nome precioso em todas as coisas. Oh, que os nossos
corações estejam sempre prontos a apreciar e louvar este Cristo incomparável e glorioso!
Nada pode ser de tanta importância como o conhecimento claro da doutrina do altar de
cobre; quero dizer, como é ensinada por meio dele. E devido à falta de clareza sobre este
ponto que muitas almas se lamentam toda a vida. A questão da sua culpa nunca foi clara
e completamente liquidada no altar de cobre. Nunca chegaram a realizar pela fé que o
Próprio Deus liquidou para sempre, na cruz, a questão dos seus pecados. Buscam paz
para as suas consciências atribuladas na regeneração e a sua evidência—os frutos do
Espírito, a sua disposição, sentimentos e experiência —, coisas muito boas e valiosas em
si, mas que não formam o fundamento da paz. E o conhecimento daquilo que Deus tem
feito no altar de cobre que enche a alma de paz. As cinzas no altar contam-me a história
que TUDO ESTÁ CUMPRIDO. Os pecados do crente foram todos tirados pela própria
mão do amor redentor. "Aquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós, para
que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5:21). Todo o pecado deve ser julgado,
porém os pecados do crente já foram julgados na cruz; por isso ele está perfeitamente
justificado. Supor que pode existir qualquer coisa contra o crente, mesmo o mais fraco, é
negar toda a obra da cruz. Os pecados e as iniquidades do crente foram todos tirados
pelo Próprio Deus, e portanto foram perfeitamente quitados. Desapareceram com a vida
que o Cordeiro de Deus derramou na morte.
Certifique-se o leitor de que o seu coração está inteiramente fundado na paz que Jesus
fez pelo sangue da sua cruz.
— CAPÍTULO 28 —
AS VESTES
DOS SACERDOTES
Estes capítulos mostram-nos o Sacerdócio em todo o seu valor e eficácia, e estão cheios
de interesse. A própria palavra "sacerdócio" desperta no coração um sentimento da mais
profunda gratidão pela graça que não só nos abriu um caminho para entrarmos na
presença de Deus, como nos deu o necessário para ali nos mantermos, segundo o
caráter e as exigências dessa posição elevada e santa.
O Sacerdócio de Arão
O sacerdócio de Arão era um dom de Deus por um povo que, por natureza própria, estava
distante e necessitava de alguém que aparecesse em seu nome continuamente na Sua
presença. O capítulo 7 da epístola aos Hebreus ensina-nos que a ordem do sacerdócio
estava ligada com a lei, que fora estabelecida segundo "a lei do mandamento carnal"
(versículo 16) e que fora impedida de permanecer pela morte (versículo 23) e que os
sacerdotes dessa ordem estavam sujeitos às fraquezas humanas. Portanto, esta ordem
não podia dar perfeição, e por isso devemos bendizer a Deus por não ter sido instituída
com "juramento". O juramento de Deus só podia fazer-se em ligação com aquilo que
devia durar eternamente, e isto era o sacerdócio perfeito, imortal, e intransmissível do
nosso grande e glorioso Melquizedeque, que dá ao Seu sacrifício e ao Seu sacerdócio
todo o valor, e a dignidade e glória da Sua incomparável Pessoa. O simples pensamento
de que temos um tal sacrifício e um tal Sacerdote faz com que o coração palpite com as
mais vivas emoções de gratidão.
O Cinto
O "cinto" é o símbolo bem conhecido do serviço; e Cristo é o Servo perfeito—o Servo dos
desígnios divinos e das necessidades profundas e variadas do Seu povo. Com espírito de
sincera dedicação, que nada podia impedir, Ele cingiu-se para a Sua obra; e quando a fé
vê assim o Filho de Deus cingido julga, certamente, que nenhuma dificuldade é grande
demais para Si. No símbolo que temos perante nós vemos que todas as virtudes, méritos,
e glórias de Cristo, na Sua natureza divina e humana, entram plenamente no Seu caráter
de servo. "E o cinto de obra esmerada, do seu éfode, que estará sobre ele, será da
mesma obra, da mesma obra de ouro, e de pano azul e de púrpura, e de carmesim e de
linho fino torcido" (versículo 8). A fé disto deve satisfazer todas as necessidades da alma
e os mais ardentes desejos do coração. Não vemos Cristo apenas como a vítima imolada
no altar, mas também como o cingido Sumo Sacerdote sobre a casa de Deus. Bem pode,
pois, o apóstolo inspirado dizer, "cheguemo-nos,... retenhamos... consideremo-nos uns
aos outros" (Hb 10:19-24).
O Manto do Éfode
"Também farás o manto do éfode todo de pano azul... e nas suas bordas farás romãs de
pano azul, de púrpura e de carmesim, ao redor das suas bordas; e campainhas de ouro
no meio delas, ao redor. Uma campainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouro e
outra romã haverá nas bordas do manto ao redor, e estará sobre Arão, quando ministrar,
para que se ouça o seu sonido, quando entrar no santuário diante do SENHORA quando
sair, para que não morra" (versículos 31 a 35).
O manto azul do "éfode" exprime o caráter celestial do nosso Sumo Sacerdote, que
penetrou nos céus, para além do alcance da visão humana; porém, pelo poder do Espírito
Santo, há um testemunho da verdade de estar vivo na presença de Deus; e não apenas
um testemunho, mas fruto também. "Uma campainha de ouro e uma romã, outra
campainha de ouro e outra romã". Tal é a ordem cheia de beleza. O verdadeiro
testemunho da grande verdade que Jesus vive sempre para interceder por nós estará
sempre ligado com fertilidade no Seu serviço. Oh, se ao menos pudéssemos
compreender mais profundamente estes mistérios preciosos e santos! (¹).
__________________
(¹) É desnecessário advertir que existe uma propriedade divina e significativa em todas as
figuras que nos são apresentadas na Palavra de Deus. Assim, por exemplo, a "romã",
quando aberta verifica-se que consiste de um número de sementes contidas num líquido
vermelho. Certamente, isto fala por si. Que a espiritualidade, e não a imaginação, faça o
seu juízo.
A Lâmina de Ouro
"Também farás uma lâmina de ouro puro e nela gravarás, à maneira de gravuras de
selos.- SANTIDADE AO SENHOR. E atá-la-ás comum cordão de fio azul, de maneira que
esteja na mitra; sobre a frente da mitra estará. E estará sobre a testa de Arão, para que
Arão leve a iniquidade das coisas santas, que os filhos de Israel santificarem em todas as
ofertas de suas coisas santas; e estará continuamente na sua testa, para que tenham
aceitação perante o SENHOR" (versículos 36 a 38). Eis aqui uma verdade importante
para a alma. A lâmina de ouro sobre a testa de Arão era figura da santidade do Senhor
Jesus Cristo: "e estará CONTINUAMENTE NA SUA testa, para que TENHAM aceitação
perante o SENHOR". Que descanso para o coração por entre as flutuações da nossa
experiência! O nosso Sumo Sacerdote está sempre na presença de Deus por nós. Somos
representados por e aceites n'Ele. A Sua santidade pertence-nos. Quanto mais
profundamente conhecermos a nossa própria vileza e fraquezas, tanto mais
experimentaremos a verdade humilhante que em nós não habita bem algum, e mais
fervorosamente bendiremos o Deus de toda a graça por esta verdade consoladora:
"estará continuamente na sua testa, para que tenham aceitação perante o SENHOR".
Se o leitor for um daqueles que são frequentemente tentados e sobrecarregados com
dúvidas e temores, com altos e baixos no seu estado espiritual, com tendências a
contemplar o seu pobre coração, frio, inconstante e rebelde—se for tentado com incerteza
excessiva e falta de santidade —, deve apoiar-se de todo o coração sobre esta verdade
preciosa: que o seu Sumo Sacerdote representa-o diante do trono de Deus. Deve fixar os
seus olhos na lâmina de ouro e ler, na inscrição gravada nela, a medida da sua aceitação
eterna perante Deus. Que o Espírito Santo o ajude a provar a doçura peculiar e o poder
mantenedor desta doutrina divina e celestial!
— CAPÍTULO 29 —
A CONSAGRAÇÃO
DO SACERDOTE
A Unção
"E tomarás o azeite da unção e o derramarás sobre a sua cabeça " (versículo 7). Nestas
palavras temos o Espírito, mas é preciso notar que Arão foi ungido antes de o sangue ser
derramado, porque nos é apresentado como figura de Cristo, que, em virtude daquilo que
era em Sua Própria Pessoa, foi ungido com o Espírito Santo muito antes que fosse
cumprida a obra da cruz. Em contrapartida, os filhos de Arão não foram ungidos senão
depois de ser espargido o sangue, "degolarás o carneiro, e tomarás do seu sangue, e o
porás sobre a ponta da orelha direita de Arão, e sobre a ponta da orelha direita de seus
filhos, como também sobre o dedo polegar da sua mão direita, e sobre o dedo polegar do
seu pé direito: e o resto do sangue espalharás sobre o altar ao redor" (¹). "Então, tomarás
do sangue que estará sobre os altar e do azeite da unção e o espargirás sobre Arão e
sobre as suas vestes e sobre seus filhos, e sobre os as vestes de seus filhos com ele"
(versículos 20 e 21). No que diz respeito à Igreja, o sangue da cruz é o fundamento de
tudo. Ela não podia ser ungida com o Espírito Santo até que a sua Cabeça ressuscitada
tivesse subido ao céu e depositado sobre o trono da Majestade divina o relato do
sacrifício que havia oferecido. "Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos
testemunhas. De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai e
promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis" (At 2:32-33);
comparem-se também Jo 7:39; At 19:1 - 6). Desde os dias de Abel que haviam sido
regeneradas almas pelo Espírito Santo e experimentado a Sua influência, sobre as quais
operou e a quem qualificou para o serviço; porém a Igreja não podia ser ungida com o
Espírito Santo até que o Seu Senhor tivesse entrado vitorioso no céu e recebesse para
ela a promessa do Pai. A verdade desta doutrina é ensinada, da forma mais direta e
completa, em todo o Novo Testamento; e a sua integridade estreita é mantida, em figura,
no símbolo que temos perante nós, pelo fato claro que, embora Arão fosse ungido antes
de o sangue haver sido derramado (versículo 7), contudo os seus filhos não o foram, e
não podiam ser ungidos senão depois (versículo 21).
____________________
(¹) O ouvido, as mãos e os pés são consagrados a Deus no poder da expiação efetuada e
mediante a energia do Espírito Santo.
A Preeminência de Cristo
Porém, aprendemos alguma coisa mais com a ordem da unção neste capítulo, além da
verdade importante acerca da obra do Espírito, e a posição que a Igreja ocupa. A
preeminência do Filho é-nos também apresentada. "Amaste a justiça e aborreceste a
iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus
companheiros" (SI 45:7; Hb 1:9). É preciso que o povo de Deus mantenha sempre esta
verdade nas suas convicções e experiências. Por certo, a graça infinita de Deus é
manifestada no fato maravilhoso que pecadores culpados e dignos do inferno sejam
chamados companheiros do Filho de Deus; mas nunca devemos esquecer, nem por um
momento, o vocábulo "mais". Por mais íntima que seja a união—e é tão íntima quanto os
desígnios eternos do amor divino a podiam fazer—, é, contudo, necessário que Cristo
tenha em tudo a preeminência" (Cl 1:18). Não podia ser de outra maneira. Ele é Cabeça
sobre todas as coisas — Cabeça da Igreja, Cabeça sobre a criação, Cabeça sobre os
anjos, o Senhor do universo. Não existe um só astro de todos os que se movem no
espaço que não Lhe pertença e não se mova sob a Sua orientação. Não existe um verme
sequer que se arrasta sobre a terra, que não esteja sob os Seus olhos incansáveis. Ele
está acima de todas as coisas; é toda a criatura "o primogênito de entre os mortos" "o
princípio da criação de Deus" (Cl l:15-18;Ap 1:5). "Toda a família nos céus e na terra" (Ef
3:15) deve alinhar, na classe divina, sob Cristo. Tudo isto será reconhecido com gratidão
por todo o crente espiritual; sim, a sua própria articulação produz um estremecimento no
coração do crente. Todos os que são guiados pelo Espírito regozijar-se-ão com cada nova
manifestação das glórias pessoais do Filho; da mesma maneira que não poderão tolerar
qualquer coisa que se levante contra elas. Que a Igreja se eleve às mais altas regiões e
glória, será seu gozo ajoelhar aos pés d'Aquele que se baixou para a elevar, em virtude
do Seu sacrifício, à união Consigo; o qual havendo plenamente correspondido a todas as
exigências da justiça divina, pode satisfazer todos os afetos divinos, unindo-a em um
Consigo Mesmo, em toda a aceitação infinita com o Pai, na Sua glória eterna: "Não se
envergonha de lhes chamar irmãos" (Hb 2:11).
___________________
Nota: Evitei propositadamente tocar no assunto das ofertas em capítulo 29 visto que
teremos ocasião de considerar as diferentes classes de sacrifícios, por sua ordem, nos
nossos estudos sobre o Livro de Levítico, se o Senhor permitir.
— CAPÍTULO 30 —
O CULTO, A COMUNHÃO
E A ADORAÇÃO
Propriamente falando, portanto, assim o altar de cobre nos apresenta Cristo no valor do
Seu sacrifício, o altar de ouro mostra-nos Cristo no valor da Sua intercessão. Este fato
dará ao leitor uma melhor compreensão do motivo por que a ocupação sacerdotal é
introduzida entre os dois altares. Existe, como podia esperar-se, uma relação íntima entre
os dois altares, pois que a intercessão de Cristo está fundada sobre o Seu sacrifício.
"E uma vez no ano Arão fará expiação sobre as pontas do altar, com o sangue do
sacrifício das expiações; uma vez no ano fará expiação sobre ele, pelas vossas gerações;
santíssimo é ao SENHOR" (versículo 10). Tudo repousa sobre o fundamento inabalável
do SANGUE ESPARGIDO. "Quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com
sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão. De sorte que era bem
necessário que as figuras das coisas que estão no céu assim se purificassem; mas, as
próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes. Porque Cristo não
entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém, no mesmo céu, para
agora comparecer, por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:22-24).
A Pia de Cobre
Nos versículos 17 a 21 temos a "pia de cobre com a sua base" — o vaso da purificação e
a sua base. Estas duas coisas são sempre mencionadas conjuntamente (veja-se
capítulos 30:28; 38:8; 40:11). Era nesta pia que os sacerdotes lavavam as mãos e os pés,
e desta forma mantinham aquela pureza que era essencial ao cumprimento das suas
funções sacerdotais. Não significava, de modo nenhum, uma nova questão do sangue;
mas simplesmente um ato mediante o qual se mantinham em aptidão para o serviço
sacerdotal e o culto.
"E Arão e seus filhos nela lavarão as suas mãos e os seus pés. Quando entrarem na
tenda da congregação, lavar-se-ão com água, para que não morram, ou quando se
chegarem ao altar para ministrar, para acender a oferta queimada ao SENHOR" (versículo
20). Não pode haver verdadeira comunhão com Deus se a santidade pessoal não for
diligentemente mantida. "Se dissermos que temos comunhão com ele e andarmos em
trevas, mentimos e não praticamos a verdade" (1 Jo 1:6). Esta santidade pessoal só pode
proceder da ação da Palavra de Deus nas nossas obras e nos nossos caminhos:"... pela
palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor" (Sl 17:4). O nosso
enfraquecimento constante no ministério sacerdotal pode ser causa de negligenciarmos o
uso conveniente da pia de cobre. Se os nossos caminhos não são submetidos à noção
purificadora da Palavra de Deus — se continuarmos em busca ou na prática de alguma
coisa que, segundo o testemunho da nossa própria consciência, é claramente condenada
pela Palavra de Deus, o nosso caráter sacerdotal carecerá certamente de poder. A
perseverança deliberada no mal e o verdadeiro culto sacerdotal são de todo
incompatíveis. "Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade" (Jo 17:17). Se houver
em nós impureza, não podemos gozar a presença de Deus. O efeito da Sua presença
será então convencer-nos do mal pela luz santa da Sua Palavra. Porém, quando,
mediante a graça, sabemos purificar os nossos caminhos, acautelando-nos segundo a
Palavra de Deus, então estamos moralmente em estado de gozar a Sua presença.
O leitor perceberá imediatamente que se abre aqui um vasto campo de verdade prática e
como a doutrina da pia de cobre é largamente apresentada no Novo Testamento. Oh! que
todos aqueles que têm o privilégio de pôr os pés nos átrios do santuário com vestidos
sacerdotais e de se aproximarem do altar de Deus, par exercer o sacerdócio, mantenham
as mãos e os pés limpos pelo uso da verdadeira pia de cobre!
Talvez seja interessante notar que a pia de cobre com a Sua base era feita "dos espelhos
das mulheres que se ajuntaram, ajuntando-se à porta da tenda da congregação" (capítulo
38:8). Este fato é cheio de significado. Estamos sempre prontos a ser como o homem que
"contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e foi-se, e
logo se esqueceu de como era" (Tg 1:28). O espelho da natureza nunca poderá dar-nos
uma vista clara e permanente da nossa verdadeira condição. "Aquele, porém, que atenta
bem para a lei perfeita da liberdade e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas
fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito" (Tg 1:25). Aquele que recorre
continuamente à Palavra de Deus e a deixa falar ao seu coração e à sua consciência será
mantido na atividade santa da vida divina.
A Santa Unção
Os versículos 22 e 23 tratam "do azeite da santa unção", com a qual eram ungidos os
sacerdotes com todos os utensílios do santuário.
Nesta unção discernimos uma figura das várias graças do Espírito Santo, as quais se
acharam em Cristo em toda a sua plenitude divina. "Todos os teus vestidos cheiram a
mira, a aloés e a cássia, desde os palácios de marfim de onde te alegram" (SI 45:8).
"Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude" (At 10:38).
Todas as graças do Espírito Santo, em sua perfeita fragrância, se concentraram em
Cristo; e é somente d'Ele que podem emanar. Quanto à Sua humanidade, foi concebido
do Espírito Santo; e, antes de entrar no Seu ministério público, foi ungido com o Espírito
Santo; e, finalmente, havendo tomado o Seu lugar nas alturas, derramou sobre o Seu
corpo, a Igreja, os dons preciosos do Espírito, em testemunho da redenção efetuada
(veja-se Mt 1.20; 3:16-17; Lc 4:18-19; At 2:33; 10:45-46; Ef 4:8-13).
É como aqueles que estão associados com este bendito e eternamente glorificado Senhor
que os crentes são feitos participantes dos dons e graças do Espírito Santo; e, além
disso, é na medida em que andam em intimidade com Ele que gozam ou emitem a Sua
fragrância.
O homem não regenerado não conhece estas coisas. "Não se ungirá com ele a carne do
homem" (versículo 32). As graças do Espírito nunca poderão ser ligadas com a carne,
porque o Espírito Santo não pode reconhecer a natureza. Nem um só dos frutos do
Espírito foi jamais produzido no solo estéril da natureza. E necessário nascer de novo (Jo
3:7). E só como unidos com o novo homem, como sendo parte da nova criação, que
podemos conhecer alguma coisa dos frutos do Espírito Santo.
É inútil procurar imitar esses frutos e virtudes. Os mais belos frutos que jamais cresceram
no campo da natureza, no seu mais alto grau de cultivo — os traços mais amáveis que a
natureza pode apresentar— devem ser inteiramente rejeitados no santuário de Deus.
"Não se ungirá com ele a carne do homem, nem fareis outro semelhante conforme a sua
composição: santo é, e será santo para vós. O homem que compuser tal perfume como
este, ou que dele puser sobre um estranho, será extirpado dos seus povos". Não deve
haver imitação da obra do Espírito: tudo tem que ser do Espírito: inteiramente e realmente
do Espírito. Demais, aquilo que é do Espírito não deve ser atribuído ao homem:"... o
homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2:14).
Num dos cânticos dos degraus há uma alusão magnífica a este azeite da unção. "Oh!
quão bom e quão suave é", diz o salmista, "que os irmãos vivam em união! É como o óleo
precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla
das suas vestes" (Sl 133:1- 2). Os próprios vestidos do chefe da casa sacerdotal, depois
de ele haver sido ungido com o azeite da santa unção, devem mostrar os seus preciosos
efeitos. Que o leitor possa experimentar o poder desta unção, e conhecer o que é ter "a
unção do Santo" e ser selado com o Espírito Santo da promessa! (l Jo 2:20; Ef 1:13).
Nada tem valor, segundo a apreciação de Deus, salvo aquilo que está ligado com Cristo,
e tudo aquilo que estiver assim ligado com Ele pode receber a santa unção.
Resumo
Assim, pois, chegamos, no nosso rápido estudo, ao fim de uma parte distinta do livro do
Êxodo. Começamos pela "arca do concerto" até que chegamos ao "altar do cobre";
retrocedemos do altar de cobre e chegamos à "santa unção"; e oh! que divagação esta,
se tão somente for feita à luz infalível do Espírito Santo, em vez da companhia vacilante
da luz da imaginação humana!
Que divagação, contanto que seja feita não por entre as sombras de uma dispensação
que acabou, mas no meio das glórias e das poderosas atrações do Filho de Deus,
representadas por estas coisas! Se o leitor ainda não fez esta divagação, verá mais do
que nunca o seu afeto atraído para Cristo se a fizer; terá uma maior concepção da Sua
glória, da Sua beleza, da Sua excelência e do Seu poder para sanar a consciência e
satisfazer o coração sedento; os seus olhos estarão fechados para as atrações do mundo
e os ouvidos não prestarão atenção às pretensões e promessas da terra. Em suma,
estará pronto a pronunciar o amém fervoroso às palavras do apóstolo (1 Co 16:22),
quando disse: "SE ALGUÉM NÃO AMA AO SENHOR JESUS CRISTO SEJA ANÁTEMA;
MARANATA" (¹).
__________________
(¹) É interessante notar o lugar que ocupa este anátema aterrador. Acha-se no final de
uma longa epístola, no decorrer da qual o apóstolo teve de reprimir alguns pecados dos
mais grosseiros e vários erros de doutrina. Quão solene e significativo é, portanto, o fato
de que quando anuncia o seu anátema não o lança contra aqueles que haviam
introduzido esses erros e pecados, mas sim contra todo aquele que não ama ao Senhor
Jesus Cristo. Por que é isto assim' É acaso porque o Espírito de Deus faz pouco caso dos
erros ou pecados' Seguramente que não; toda a epístola nos revela os Seus
pensamentos quanto a estes males. A verdade é que quando o coração está cheio de
amor para com o Senhor Jesus Cristo, existe uma salvaguarda positiva contra toda a
espécie de falsa doutrina e má conduta. Se alguém não ama a Cristo não se pode
calcular quais as ideias que possa adotar ou o caminho que possa seguir. Logo, a forma
do anátema e o lugar que ocupa na epístola.
— CAPÍTULO 31 —
O SERVIÇO
Bezalel e Aoliabe
Os primeiros versículos deste breve capítulo recordam a chamada divina e os
qualificativos de "Bezalel" e ―Aoliabe" para fazerem o trabalho da congregação. "Depois,
falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Eis que eu tenho chamado por nome a Bezalel, o
filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. E o enchi do Espírito de Deus, de sabedoria, e
de entendimento, e de ciência em todo o artifício... e eis que eu tenho posto com ele a
Aoliabe, o filho de Aisamaque, da tribo de Dã, e tenho dado sabedoria ao coração de todo
aquele que é sábio de coração, para que façam tudo que eu tenho ordenado". Quer seja
para a obra do tabernáculo, na antiguidade, ou para "a obra do ministério", agora, é
necessário que aqueles que são empregados nela sejam divinamente escolhidos,
divinamente chamados, divinamente qualificados e divinamente nomeados; e tudo deve
ser feito segundo o mandamento de Deus. Não estava dentro das atribuições do homem
selecionar, chamar, qualificar ou nomear os obreiros para a obra do tabernáculo; nem
tampouco o pode fazer para a obra do ministério. Demais, ninguém podia presumir de se
nomear a si próprio para a obra do tabernáculo; nem tampouco ninguém pode agora
nomear-se a si próprio para a obra do ministério. Era tudo, é e deve ser absolutamente da
competência divina. Pode haver quem corra por seu próprio impulso ou quem seja
enviado por colegas; mas não se esqueça que todos aqueles que correm sem serem
enviados por Deus serão mais cedo ou mais tarde cobertos de vergonha e confusão. Tal
é a sã doutrina que nos é sugerida pelas palavras "eu tenho chamado", "eu tenho posto",
"eu tenho dado", "eu tenho ordenado". As palavras de João Batista, "o homem não pode
receber coisa alguma senão lhe for dada do céu", serão sempre verdadeiras. O homem
tem, pois, muito pouco em que se vangloriar, menos ainda de que invejar ao seu próximo.
Existe uma lição útil a tirar da comparação deste capítulo com o capítulo 4 de Gênesis:
"Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e de ferro" (versículo 22). Os descendentes
de Caim eram dotados de talento profano para fazer de uma terra maldita e cheia de
gemidos um lugar agradável sem a presença de Deus. "Bezalel" e "Aoliabe" pelo contrário
foram dotados com perícia divina para embelezar um santuário que devia ser santificado
e abençoado pela presença divina e a glória do Deus de Israel.
Gostaria de pedir ao leitor que fizesse à sua própria consciência a seguinte pergunta:
Consagro eu o que quer que possuo de perícia ou energia aos interesses da Igreja, que é
o lugar de habitação de Deus, ou ao embelezamento de um mundo ímpio e sem Cristo?
Não diga em seu coração "não sou divinamente chamado ou dotado para a obra do
ministério". Note-se que embora todos os israelitas não fossem Bezaleles ou Aoliabes
todos podiam servir os interesses do santuário. Existia uma porta aberta para todos
poderem comunicar. E assim é agora. Cada um tem um lugar para ocupar, um ministério
a cumprir, uma responsabilidade a desempenhar; e tanto o leitor como eu estamos, neste
próprio momento, promovendo os interesses da Casa de Deus — O Corpo de Cristo, a
Igreja — ou cooperando nos planos ímpios de um mundo que ainda está manchado com
o sangue de Cristo e o sangue de todos os santos mártires. Oh! ponderemos
profundamente estas coisas, na presença d'Aquele que esquadrinha os corações, a
Quem ninguém pode enganar e de Quem todos são conhecidos.
— CAPÍTULO 32 —
APOSTASIA
Vamos agora contemplar alguma coisa diferente daquilo que tem até aqui ocupado a
nossa atenção. "As figuras das coisas que estão no céu" (Heb. 9:23) passaram perante os
nossos olhos — Cristo em Sua gloriosa Pessoa, em Seus deveres de misericórdia e em
Sua obra perfeita, tal como são representados no tabernáculo e nos seus utensílios
místicos. Havemos estado em espírito no monte e ouvido as próprias palavras de Deus,
as doces declarações dos pensamentos celestiais, afeição e propósitos, dos quais Jesus
é "o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o último".
"Faze-nos Deuses"
Mas agora somos convidados a descer outra vez à terra para contemplar a ruína que o
homem faz de tudo em que põe a sua mão.
"Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, ajuntou-se o povo a Arão, e
disseram-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; porque enquanto a
este Moisés, a este homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe
sucedeu" (versículo 1). Que degradação se manifesta aqui! Faze-nos deuses!
Abandonavam Jeová para se porem debaixo da tutela de deuses feitos por mãos de
homens. Nuvens escuras e névoas espessas cobriam o monte; eles estavam fartos de
esperar por aquele que se havia ausentado e de se apoiarem num braço invisível, embora
real. Imaginaram que um deus feito com "um buril" valia mais que o Senhor; preferiam um
bezerro que podiam ver em vez do Deus invisível mas presente em toda a parte — uma
falsificação visível à realidade invisível!
Desgraçadamente, sempre, assim tem sucedido na história do homem. O coração
humano deseja alguma coisa que se possa ver— aquilo que responda e satisfaça os
sentidos. Só a fé pode ficar firme "como vendo o invisível" (Hb 11:27). Assim, em todos os
tempos, os homens têm tido a tendência para levantar imitações das realidades divinas e
de se apoiarem nelas. Vemos assim como as falsificações da religião se têm multiplicado
ante os nossos olhos. Aquelas coisas que sabemos, por meio da autoridade da Palavra
de Deus, serem realidades divinas e celestiais têm sido transformadas em imitações
humanas e terrenas pela Igreja professa. Cansada de se apoiar sobre um braço invisível,
de confiar num sacrifício invisível, de recorrer a um sacerdote invisível, de esperar a
direção de um chefe invisível, tem-se ocupado em "fazer" estas coisas; e, desta forma,
através dos séculos, tem estado ocupada, de "buril" na mão, talhando e gravando uma
coisa após outra, de sorte que agora já não achamos mais analogia entre muita coisa que
vemos em torno de nós e o que lemos na Palavra de Deus do que aquela que existe entre
um bezerro "fundido" e o Deus de Israel.
"Faze-nos deuses! Que pensamento! O homem convidado a fazer deuses e o povo
disposto a pôr a sua confiança neles! Prezado leitor, olhemos no íntimo e em torno de nós
e vejamos senão descobrimos algo de semelhante. Lemos a respeito da história de Israel
que todas estas coisas lhes sobrevieram como figuras, "e estão escritas para aviso nosso,
para quem já são chegados os fins dos séculos" (I Co 10:11). Procuremos, pois,
aproveitar o "aviso". Acordemos que ainda que não façamos precisamente "um bezerro
de fundição" nos prostramos diante dele. O pecado de Israel é, sem dúvida, um "tipo" de
alguma coisa em que corremos o risco de cair. Sempre que, em nosso coração, deixamos
de nos apoiar exclusivamente em Deus, quer seja no que se refere ao assunto da
salvação, quer no tocante às necessidades da nossa vida, estamos dizendo, em princípio,
"faze-nos deuses". É desnecessário dizer que, em nós mesmos, não somos de nenhuma
maneira melhores que Arão ou os filhos de Israel; e se eles honraram um bezerro em
lugar do Senhor, nós corremos o risco de atuar segundo o mesmo princípio e de
manifestar o mesmo espírito. A nossa única salvaguarda é estarmos muito tempo na
presença de Deus. Moisés sabia que "o bezerro de fundição" não era Jeová, e portanto
não o reconheceu. Porém, quando nos afastamos da presença divina é impossível prever
os erros crassos em que podemos cair e todo o mal em que podemos ser arrastados.
As Realidades da Fé
Nós somos chamados a viver pela fé; nada podemos ver pela vista dos sentidos. Jesus
subiu às alturas e é-nos dito para esperarmos pacientemente pelo Seu aparecimento. A
Palavra de Deus, aplicada ao coração na energia do Espírito Santo, é o fundamento de
confiança em todas as coisas, temporais e espirituais, presentes e futuras. Deus fala-nos
do sacrifício cumprido por Cristo; nós cremos pela graça e pomos as nossas almas sob a
eficácia deste sacrifício, e sabemos que nunca seremos confundidos.
Fala-nos de um sumo sacerdote, que penetrou nos céus, Jesus, o Filho de Deus, cuja
intercessão é toda poderosa; nós, pela graça, cremos e apoiamo-nos confiadamente
sobre o Seu poder e sabemos que seremos salvos para todo o sempre. Fala-nos do
Chefe vivo com Quem estamos unidos no poder da vida de ressurreição, e de Quem
nenhuma influência angélica, humana ou diabólica nos poderá separar e, pela graça,
cremos e apoiamo-nos a esse Chefe bendito com fé simples e sabemos que nunca
havemos de perecer. Fala-nos do aparecimento glorioso do Filho, vindo dos céus; nós,
pela graça, cremos e procuramos experimentar o poder purificador desta "esperança
bendita" (Tt 2:13); e sabemos que não sofreremos nenhum desengano. Fala-nos de uma
herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus
para nós, e que estamos guardados na virtude de Deus (1 Pe 1:4-5); de posse da qual
herança entraremos a seu devido tempo; e, pela graça, cremos e sabemos que não
seremos confundidos. Diz-nos que os cabelos da nossa cabeça estão todos contados e
que nada nos faltará; e mediante a graça cremos e gozamos uma doce tranquilidade de
coração.
E assim é, ou, pelo menos, assim quisera Deus que fosse. Porém o inimigo está sempre
ativo, buscando fazer com que estas realidades divinas sejam desprezadas por nós —
Procura induzir-nos a pegar no "buril" da incredulidade e fazermos os nossos próprios
deuses. Vigiemos contra ele; oremos para sermos guardados dele; testifiquemos contra
ele; atuemos contra ele; e desta forma ele será confundido, Deus será glorificado e nós
próprios seremos abundantemente abençoados.
O Bezerro de Fundição
Quanto a Israel, neste capítulo, a sua rejeição de Deus foi a mais completa. "E Arão lhes
disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de
vossos filhos, e de vossas filhas e trazei-mos... e ele os tomou das suas mãos, e formou o
ouro comum buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então, disseram: Estes são teus
deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito. E Arão, vendo isto, edificou um altar
diante dele; e Arão apregoou, e disse: Amanhã será festa ao SENHOR" (versículos 2 a 5).
Isto era pôr Deus de parte e substituí-Lo por um bezerro. Quando puderam proclamar que
um bezerro os tinha tirado do Egito, abandonaram, evidentemente, toda a ideia da
presença e do caráter do verdadeiro Deus. "Depressa" se desviaram do caminho que
Deus lhes tinha ordenado, para cometerem um erro tão grosseiro e espantoso! E Arão, o
irmão e companheiro de Moisés no seu cargo, conduziu-os neste extravio; e pôde dizer
diante de um bezerro: "Amanhã será festa ao SENHOR"! Como isto é triste! Quão
humilhante! Deus destituído por um ídolo! Um objeto "esculpido por artifício e imaginação
dos homens" foi posto em lugar do "Senhor de toda a terra"!
- CAPÍTULO 33 –
MEDIAÇÃO
E RESTAURAÇÃO
A Tenda da Congregação
O Senhor recusa acompanhar o seu povo à terra prometida: ".. .eu não subirei no meio de
ti, porquanto és povo obstinado, para que não te consuma eu no caminho" (versículo 3).
No princípio deste livro, o Senhor pôde dizer: "Tenho visto atentamente a aflição do meu
povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores,
porque conheci as suas dores". Porém, agora tem que dizer: "Tenho visto a este povo, e
eis que é povo obstinado". Um povo afligido é objetivo da graça, mas um povo obstinado
é necessário que seja humilhado. O clamor de Israel oprimido havia obtido resposta por
meio da manifestação da graça; mas o cântico idólatra de Israel deve ser atendido pela
voz de severa admoestação.
"Povo obstinado és; se um momento subir no meio de ti, de consumirei; porém agora tira
de ti os teus atavios, para que eu saiba o que te hei-de fazer"(versículo 5). É só quando
somos despojados dos atavios da nossa natureza que Deus pode tratar conosco. Um
pecador despido pode ser revestido; porém um pecador coberto de ornamentos deve ser
despido. É necessário que sejamos despojados de tudo que pertence ao ego, antes de
podermos ser revestidos daquilo que pertence a Deus.
"Então, os filhos de Israel se despojaram dos seus atavios, ao pé do monte Horebe". Ali
estavam, ao pé deste memorável monte, a sua festa e os seus cânticos haviam sido
trocados por amargas lamentações, os seus atavios postos de parte, as tábuas da lei em
pedaços. Tal era a sua condição quando Moisés se dispôs a agir imediatamente de
acordo com o seu estado. Agora já não podia reconhecer o povo no seu caráter corpóreo.
A assembleia havia-se contaminado inteiramente levantando um ídolo de sua própria
fabricação em lugar de Deus — um bezerro em lugar do Senhor.
"E tomou Moisés a tenda, e a estendeu para si fora do arraial, desviada longe do arraial, e
chamou-lhe a tenda da congregação." Assim o campo foi rejeitado como o lugar da
presença divina. Deus já não estava ali, nem podia estar por mais tempo, porque havia
sido deposto por uma invenção humana. Um novo centro de reunião foi, pois,
estabelecido. "E aconteceu que todo aquele que buscava o SENHOR, saiu à tenda da
congregação que estava fora do arraial ".
Eis aqui um princípio precioso da verdade que a mente espiritual facilmente
compreenderá. O lugar que Cristo ocupa agora é "fora do arraial" (Hb 13:13), e nós
somos convidados a ir ao Seu encontro, "fora do arraial". É necessária muita sujeição à
Palavra de Deus para se poder saber exatamente o que significa realmente o arraial, e
muito poder espiritual para se poder sair dele; e muito mais ainda para se poder, quando
se está "longe", atuar a favor dos que estão dentro do arraial no poder combinado da
santidade e da graça — a santidade que nos separa da contaminação do arraial e a graça
que nos habita a atuar a favor daqueles que estão dentro dele.
"E falava o SENHOR a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo; depois,
tornava ao arraial, mas o moço Josué, filho de Num, seu servidor, nunca se apartava do
meio da tenda". Moisés manifesta maior energia espiritual que o seu servo Josué. E muito
mais fácil tomar uma posição de separação do campo do que proceder acertadamente
par com aqueles que estão dentro dele.
— CAPÍTULO 34 —
O MONTE HOREBE
E O EVANGELHO
Em capítulo 34 Deus dá as segundas tábuas da lei, não para serem quebradas, mas para
serem guardadas na arca, em cima da qual, como já fizemos notar, Jeová ia tomar o Seu
lugar como Senhor de toda a terra no governo moral. "Então, ele lavrou duas tábuas de
pedra, como as primeiras; e levantou-se Moisés pela manhã de madrugada, e subiu ao
monte Sinai, como o SENHOR lhe tinha ordenado; e tomou as duas tábuas de pedra na
sua mão. E o SENHOR desceu numa nuvem e se pôs junto a ele; e ele apregoou o nome
do SENHOR. Passando, pois, o SENHOR perante a sua face, clamou: JEOVÁ, o
SENHOR, Deus misericordioso e piedoso, tardio em iras e grande em beneficência e
verdade; que guarda a beneficência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a
transgressão, e o pecado; que ao culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade
dos pais sobre os filhos e sobre os filhos até à terceira e quarta geração" (versículos 4 a
7). Lembremo-nos que Deus é visto aqui no Seu governo moral do mundo e não como é
visto na cruz — não como brilha na face de Jesus Cristo —, não como é proclamado no
evangelho da Sua graça. Eis uma exibição de Deus no evangelho: "E tudo isso provém de
Deus, que nos reconciliou consigo mesmo, por Jesus Cristo e nos deu o ministério da
reconciliação, isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, NÃO LHES
IMPUTANDO os seus pecados e pôs em nós a palavra da reconciliação" (2 Co 5:18-19).
Não ter "ao culpado por inocente" e não "imputar o pecado" são termos que nos
apresentam duas ideias de Deus totalmente diferentes. Visitar "a iniquidade" e tirá-la não
é certamente a mesma coisa. A primeira é Deus agindo em Seu governo; a segunda é
Deus no evangelho. Em capítulo 3 da 2a epístola aos Coríntios, o apóstolo põe em
contraste o "ministério" mencionado em Êxodo, capítulo 34, como "o ministério" do
evangelho. O leitor fará bem em estudar esse capítulo com atenção. Aprenderá com essa
lição que todo aquele que considera o ponto de vista do caráter de Deus dado a Moisés,
no Monte Horebe, como explicando o evangelho, deve ter realmente uma compreensão
muito imperfeita do que é o evangelho. Eu não posso descobrir os segredos profundos do
coração do Pai nem na criação, nem mesmo no governo moral. O filho pródigo poderia ter
achado o seu lugar nos braços d'Aquele que Se revelou no Monte Sinais João poderia ter
inclinado a sua cabaça no coração desse Senhora Seguramente que não. Porém, Deus
revelou-Se na face de Jesus Cristo; Ele nos revelou, com harmonia divina, todos os Seus
atributos na obra da cruz. Foi ali que "a misericórdia e a verdade se encontraram, a justiça
e a paz se beijaram" (SI 85:10). O pecado é completamente tirado e o pecador que crê
perfeitamente justificado "PELO SANGUE DA CRUZ".
Quando vemos Deus assim revelado, temos apenas, à semelhança de Moisés, de inclinar
a cabeça à terra e adorar — atitude que convém a um pecador perdoado e recebido na
presença de Deus!
— CAPÍTULOS 35 a 40 —
A CONSTRUÇÃO
DO TABERNÁCULO
O Desprendimento Voluntário
Estes capítulos contêm uma recapitulação de diversas partes do tabernáculo e seu
mobiliário; e visto que já expliquei o que creio ser o significado das partes mais
proeminentes, é desnecessário acrescentar mais.
Existem, contudo, duas coisas nesta parte do livro das quais podemos tirar instruções
muitos úteis, a saber, em primeiro lugar os sacrifícios voluntários do povo; e, em segundo,
a obediência implícita do povo a respeito da obra do tabernáculo do testemunho.
"Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu de diante de Moisés, e veio todo
homem, a quem o seu coração moveu, e todo aquele cujo espírito voluntariamente o
impeliu, e trouxeram a oferta alçada ao SENHOR, para a obra da tenda da congregação,
e para todo o seu serviço, e para as vestes santas. E, assim, vieram homens e mulheres,
todos dispostos de coração; trouxeram fivelas, e pendentes, e anéis, e braceletes, e todo
vaso de ouro; e todo homem oferecia oferta de ouro ao SENHOR, e todo homem que se
achou com pano azul, e púrpura, e carmesim, e linho fino, e pelos de cabras, e peles de
carneiro tintas de vermelho, e peles de texugos, os trazia; todo aquele que oferecia oferta
alçada de prata ou de metal, a trazia; por oferta alçada ao SENHOR; e todo aquele que se
achava com madeira de cetim, a trazia para toda a obra do serviço. E todas a mulheres
sábias de coração fiavam com as mãos, e traziam o fiado, o pano azul, a púrpura, o
carmesim e o linho fino. E todas as mulheres, cujo coração se moveu em sabedoria,
fiavam os pelos das cabras. E os príncipes traziam pedras sardônicas, e pedras de
engaste para o éfode e para o peitoral, e especiarias, e azeite para a luminária, e para o
óleo da unção, e para o incenso aromático. Todo homem e mulher, cujo coração
voluntariamente se moveu a trazer alguma coisa para toda a obra que o SENHOR
ordenara se fizesse pela mão de Moisés" (capítulo 35:20 a 29). E mais adiante lemos: "E
vieram todos os sábios que faziam toda a obra do santuário, cada um da obra que fazia, e
falaram a Moisés, dizendo: O povo traz muito mais do que basta para o serviço da obra
que o SENHOR ordenou se fizesse... porque tinham material bastante para toda a obra
que havia de fazer-se" (capítulo 36:4 a 7).
Que quadro encantador da dedicação à obra do santuário! Não foram precisos esforços,
apelos ou argumentos solenes par constranger os corações do povo a darem. Oh! não: os
corações foram voluntariamente movidos. Este era o próprio princípio. A corrente de
sacrifícios voluntários vinha dos corações: "Príncipes", "homens", "mulheres", todos
sentiam que era para eles um doce privilégio darem ao Senhor, não com um coração
estreito ou mão mesquinha, mas de um modo principesco trouxeram "muito mais do que
bastava."
A Obediência Implícita
Em segundo lugar, quanto à obediência do povo está escrito: "Conforme tudo o que o
SENHOR ordenara a Moisés, assim fizeram os filhos de Israel toda a obra. Viu, pois,
Moisés toda a obra, e eis que a tinham feito; como o SENHOR ordenara, assim a fizeram;
então, Moisés os abençoou" (capítulo 39:42 a 43). O Senhor havia dado instruções
minuciosas relativas a toda a obra do tabernáculo. Cada estaca, cada base, cada
colchete, cada cordão estavam exatamente nos seus lugares. Não houve lugar disponível
para os recursos, a razão ou o sentido comum do homem. O Senhor não delineou um
plano deixando ao homem a tarefa de o completar; nem deixou nenhuma margem para o
homem fazer introduzir as usas combinações. De modo nenhum. "Atenta, pois, que o
faças conforme ao modelo que te foi mostrado no monte (Êx 25:40, 26:30; Hb 8:5).
Este mandato não deixava lugar para invenções humanas. Se fosse permitido ao homem
fazer uma simples estaca, essa estaca estaria, seguramente, fora de lugar, no parecer de
Deus. Podemos ver em capítulo 32 o que "o buril" do homem produz. Graças a Deus, o
buril não teve lugar no tabernáculo. Neste caso eles fizeram precisamente o que lhes fora
dito—nada mais, nada menos. Eis aqui uma lição proveitosa para a igreja professa!
Existem muitas coisas na história de Israel que devemos procurar seriamente evitar: as
suas murmurações de impaciência, os seus votos de legalismo, e a sua idolatria; porém
na sua devoção e na sua obediência podemos imitá-los. Que a nossa devoção seja mais
sincera e a nossa obediência mais implícita. Podemos afirmar com toda a segurança que
se tudo não tivesse sido feito conforme ao modelo mostrado "no monte" não poderíamos
ler, no final do livro, que "então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do
SENHOR encheu o tabernáculo, de maneira que Moisés não podia entrar na tenda da
congregação, porquanto a nuvem ficava sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o
tabernáculo" (capítulo 40:34-35). O tabernáculo era, para todos os efeitos, conforme ao
modelo divino, e, portanto, podia ser cheio da glória divina.
Existem tomos de instruções nesta verdade. Estamos sempre prontos a considerar a
Palavra de Deus insuficiente até para os mínimos pormenores ao culto e serviço de Deus.
Mas isto é um grande erro, erro que tem sido a origem de abundantes males e erros na
igreja professa. A Palavra de Deus é suficiente para todas as coisas, quer seja no que se
refere à salvação e conduta pessoal, quer no tocante à ordem e governo da Assembleia.
"Toda Escritura, divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para
corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente
instruído para toda boa obra" (2 Tm 3:16-17). Estas palavras resolvem toda a questão. Se
a Palavra de Deus prepara um homem perfeitamente para toda boa obra", segue-se,
necessariamente, que tudo o que não se acha nas suas páginas não pode ser uma boa
obra. Demais, recordemos que a glória divina não pode ligar-se com aquilo que não for
conforme ao modelo divino.
CONCLUSÃO
Prezado leitor, acabamos de percorrer juntos as páginas deste livro precioso. Tenho a
confiança que temos recolhido algum fruto do nosso estudo. Confio que temos recolhido
alguns pensamentos edificantes acerca de Jesus e do Seu sacrifício, à medida que
avançamos. É verdade que os nossos pensamentos mais elevados não podem ser mais
que mesquinhos, e que o que percebemos de mais profundo é muito superficial
comparado com a intenção de Deus em todo este livro. É agradável recordarmos que,
pela graça, estamos no caminho que conduz àquela glória em que conheceremos como
somos conhecidos; e onde os nossos corações se deleitarão com o resplendor do
semblante d'Aquele que é o princípio e o fim de todos os caminhos de Deus, quer seja na
criação, na providência ou na redenção. Encomendo-o, pois, ao Senhor em corpo, alma e
espírito, orando para que possa compreendera profunda bem-aventurança de ter a sua
parte em Cristo, e para que seja guardado na esperança da Sua vinda gloriosa. Amém.
FIM
— CAPÍTULO 1 —
O HOLOCAUSTO
A Vítima
Vamos prosseguir agora com o exame do holocausto, que, como
havemos acentuado, representa Cristo oferecendo-se a Si
mesmo incontaminado a Deus.
"Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá macho
sem mancha." A glória essencial e dignidade da pessoa de
Cristo formam a base do cristianismo. Ele transmite esta
dignidade e essa glória a tudo que faz e a cada uma das
funções que assume. Nenhuma função podia de algum modo
acrescentar glória Aquele que é sobre todos, "Deus bendito
eternamente" (Rm9:5) — "Deus manifestado em carne" (1 Tm
3:16) —, o glorioso "Emanuel"—Deus conosco —, o Verbo
eterno, o Criador e Mantenedor do universo. Que função
poderia acrescentar dignidade a uma tal Pessoal De fato,
sabemos que todas as Suas funções estão relacionadas com a
Sua humanidade; e assumindo essa humanidade, Ele desceu da
glória que tinha com o Pai antes da criação do mundo.
Desceu, deste modo, a fim de glorificar Deus perfeitamente
no próprio meio de uma cena onde tudo Lhe era hostil. Veio
para ser "devorado" por santo e inextinguível zelo (SI
69:9) pela glória de Deus e a realização eficiente dos Seus
desígnios eternos.
O Sacrifício
"Depois, degolará o bezerro perante o SENHOR; e os filhos
de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue e espargirão o
sangue à roda sobre o altar que está diante da porta da
tenda da congregação." No estudo da doutrina do holocausto
é absolutamente indispensável não esquecer que o ponto
principal que ressalta dele não é ir ao encontro da
necessidade do pecador, mas apresentar a Deus aquilo que
Lhe é infinitamente agradável. Cristo, como é prefigurado
no holocausto, não é para a consciência do pecador, mas
para o coração de Deus.
Além disso, no holocausto a cruz não é demonstração da
abominação do pecado, mas a devoção inabalável de Cristo ao
Pai. Nem tampouco é a cena de Deus descarregar a Sua ira
sobre Cristo por Ele levar sobre Si o pecado, mas sim a
sublime complacência do Pai em Cristo, o sacrifício
voluntário e cheio de fragrância. Finalmente a "expiação",
como a vemos no holocausto, não é apenas proporcionada às
exigências da consciência do homem, mas o desejo intenso do
coração de Cristo em fazer a vontade de Deus e estabelecer
os propósitos divinos — um desejo que não O impediu de
entregar a Sua vida imaculada e preciosa como "oferta
voluntária" "de cheiro" suave a Deus.
Nenhum poder da terra ou do inferno, homens ou demônios,
pôde demovê-Lo de cumprir este desejo. Quando Pedro,
ignorantemente, e com palavras de falsa ternura, procurou
dissuadi-lo a não ir ao encontro da vergonha e degradação
da cruz, "dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo
nenhum te acontecerá isso", qual foi a Sua resposta? "Para
trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque
não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que
são dos homens" (Mt 16:22-23). De igual modo, noutra
ocasião, disse aos Seus discípulos, "Já não falarei muito
convosco, porque se aproxima o príncipe deste mundo e nada
tem em mim mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai e
que faço como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos
daqui" (Jo 14:30-31). Estas e muitas outras passagens
correlativas das Escrituras mostram-nos a fase da obra de
Cristo no holocausto em que o primeiro pensamento é
evidentemente "oferecer-se a Si mesmo imaculado a Deus".
Os Sacerdotes
Em perfeita harmonia com tudo quanto tem sido exposto a
respeito deste ponto especial no holocausto está o lugar
que ocupam os filhos de Arão e as funções que lhes são
assinaladas nele. Eles "espargirão o sangue... porão fogo
sobre o altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo", também
"porão em ordem os pedaços, a cabeça e o redenho, sobre a
lenha que está no fogo em cima do altar". Estas coisas
estavam bem em evidência e formam um aspecto notável do
holocausto, em contraste com a expiação do pecado, na qual
os filhos de Arão não são mencionados. "Os filhos de Aarão"
representam a Igreja, não como "um corpo", mas como casa
sacerdotal. Isto compreende-se facilmente. Se Arão era uma
figura de Cristo, a casa de Arão era uma figura da casa de
Cristo, como lemos na Epístola aos Hebreus, capítulo 3
versículo 6: "Mas Cristo, como Filho, sobre a sua própria
casa; a qual casa somos nós". E, "Eis-me aqui a mim e aos
filhos que Deus me deu" (Hb 2:13). Agora é privilégio da
Igreja, na medida em que é dirigida e ensinada pelo
Espírito Santo, fixar os olhos e deleitar-se nesse aspecto
de Cristo que nos é apresentado no símbolo com que abre o
livro de Levítico. "A nossa comunhão é com o Pai", que,
graciosamente, nos convida a ter parte com Ele nos Seus
pensamentos acerca de Cristo. É verdade que nunca podemos
elevar-nos à altura desses pensamentos; mas podemos ter
participação neles pelo Espírito Santo que habita em nós.
Não se trata aqui de uma questão de se ter a consciência
tranquilizada pelo sangue de Cristo, como o que levou sobre
Si o pecado, mas de comunhão com Deus na rendição perfeita
de Cristo na cruz.
"... e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o
sangue e espargirão o sangue à roda sobre o altar que está
diante da porta da tenda da congregação." Aqui temos uma
figura da Igreja trazendo o memorial de um sacrifício
consumado e oferecendo-o no lugar de aproximação individual
de Deus. Mas devemos lembrar que é o sangue do holocausto e
não o da expiação do pecado. É a Igreja penetrando, no
poder do Espírito Santo, no pensamento admirável da
comprovada devoção de Cristo a Deus, e não o pecador
convicto valendo-se do valor do sangue de quem carregou com
o pecado. Desnecessário é dizer que a Igreja é composta de
pecadores arrependidos; mas "os filhos de Arão" não
representam os pecadores arrependidos, mas, sim, os santos
em adoração. É na qualidade de "sacerdotes" que têm de
intervir no holocausto. Muitos erram quanto a isto.
Imaginam que, pelo fato de se tomar o lugar de adorador —
para que se é convidado pela graça de Deus e tornado idôneo
para o fazer pelo sangue de Cristo — não tem que se
considerar como pecador indigno. Isto é um grande erro. O
crente, em si mesmo, nada é absolutamente. Mas em Cristo é
um adorador purificado. Não está no santuário como pecador
culpado, mas como sacerdote em adoração, vestido com os
vestidos de glória e ornamento. Ocupar-me da minha culpa na
presença de Deus, não é, pelo que me diz respeito,
humildade mas sim incredulidade, pelo que respeita ao
sacrifício.
Todavia, é bem evidente que a ideia de levar o pecado — a
imputação do pecado—, ou da ira de Deus, não aparece no
holocausto. È certo que lemos: "... para que seja aceito
por ele, para a sua expiação"; mas é "expiação" não segundo
a profunda enorme culpa humana, mas segundo a perfeita
rendição de Cristo a Deus e a intensidade do prazer de Deus
em Cristo. Isto dá-nos a mais elevada ideia da expiação. Se
contemplamos a Cristo como o sacrifício pelo pecado, vemos
expiação efetuada segundo as exigências da justiça divina
em relação ao pecado. Mas quando vemos a expiação no
holocausto, é segundo a medida da boa vontade e capacidade
de Cristo para cumprir a vontade de Deus, segundo a medida
de complacência de Deus em Cristo e na Sua obra. Quão
perfeita deve ser a expiação que é o fruto da devoção de
Cristo a Deus! Poderia haver alguma coisa além distou
Certamente que não. O aspecto da expiação que o holocausto
dá é o que deve ocupar a família sacerdotal nos átrios da
casa do Senhor, para sempre.
A Preparação do Sacrifício
"Então, esfolará o holocausto, e o partirá nos seus
pedaços. O ato cerimonial de "esfolar" era particularmente
expressivo. Era simplesmente remover a cobertura exterior,
a fim de se patentear completamente o que havia no
interior. Não era suficiente a oferta ser exteriormente
"sem mancha", "as entranhas" deviam ser postas a descoberto
para que cada músculo e cada juntura pudessem ser vistas.
Era só no caso do holocausto que se mencionava
especialmente este ato. Isto está perfeitamente de acordo
com o conjunto do tipo, e tende a fazer realçar a profunda
devoção de Cristo ao Pai.
Não se limitava a cumprir uma missão. Quanto mais se
revelavam os segredos da Sua vida íntima e as profundidades
do Seu coração eram exploradas, tanto mais manifesta se
tornava essa pura devoção à vontade do Pai, e o desejo
ardente pela Sua glória. Estas eram as fontes de ação do
grande Antítipo do holocausto. Ele foi seguramente o
perfeito holocausto.
"E o partirá nos seus pedaços". Este ato apresenta uma
verdade um tanto semelhante à que é ensinada no "incenso
aromático moído‖ (Lv 16:12).
O Espírito Santo deleita-se em se deter sobre a doçura e
fragrância do sacrifício de Cristo, não só como um todo,
como também em todos os seus mínimos pormenores. Considerai
o Holocausto como um todo e vê-lo-eis sem mancha.
Considerai-o em todas as suas partes e vereis como é o
mesmo. Assim era Cristo; e como tal é prefigurado neste
importante tipo.
"E os filhos de Arão, os sacerdotes, porão fogo sobre o
altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo. Também os
filhos de Arão, os sacerdotes, porão em ordem os pedaços, a
cabeça e o redenho, sobre a lenha que está no fogo em cima
do altar". Isto era uma posição elevada para a família
sacerdotal. O holocausto era totalmente oferecido a Deus.
Era tudo queimado sobre o altar (!); o homem não
participava dele; mas os filhos do sacerdote Arão, sendo
também sacerdotes, mantinham-se em redor do altar de Deus
contemplando a chama que se erguia do sacrifício aceitável
em aroma suave. Era uma posição elevada — uma elevada
comunhão — uma elevada ordem no serviço sacerdotal —, uma
figura notável da Igreja em comunhão com Deus relacionada
no perfeito cumprimento da Sua vontade na morte de Cristo.
Como pecadores convictos, contemplamos a cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, e vemos nela aquilo que satisfaz todas
as nossas necessidades. A cruz, neste aspecto, dá perfeita
paz à consciência. Por isso, como sacerdotes, como
adoradores purificados, como membros da família sacerdotal,
nós podemos olhar para a cruz sob outra luz diferente, ou
seja a completa consumação do santo propósito de Cristo de
cumprir, até mesmo na morte, a vontade do Pai. Como
pecadores convictos, permanecemos junto do altar de cobre,
e encontramos paz por meio do sangue da expiação; mas, como
sacerdotes, permanecemos ali para observar e admirar a
perfeição daquele holocausto — a perfeita rendição e
apresentação a Deus d'Aquele que era incontaminado.
____________________
(1) E talvez conveniente, em ligação com este ponto,
informar o leitor que o vocábulo hebraico traduzido por
"queimado" no caso do holocausto é inteiramente diferente
daquele que é empregado na expiação do pecado. Vou referir,
devido ao interesse peculiar do assunto, algumas passagens
em que ocorre esta palavra. A palavra usada no holocausto
significa "incenso" ou "queimar incenso", e ocorre nas
seguintes passagens numa ou noutra das suas diferentes
inflexões: Levítico 6:15, "... e todo o incenso... e o
acenderá sobre o altar". Deuteronômio 33:1. "E farás um
altar para queimar incenso". Salmo 66:15, "... odorante
fumo de carneiros"; "... o incenso que queimaste nas
cidades de Judá"; Cantares 3:6, "... colunas de fumo,
perfumada de mirra, de incenso". As passagens podiam
multiplicar-se, porém estas bastam para mostrar o uso da
palavra que ocorre no holocausto.
A palavra hebraica traduzida por "queimar", em ligação com
a expiação do pecado, significa queimar, em geral, e
aparece nas seguintes passagens: Gênesis 11:3, "... façamos
tijolos, e queimemo-los bem"; Levítico 10:16, "E Moisés
diligentemente buscou o bode da expiação e eis que já era
queimado"; 2 Crônicas 16-14, "... e fizeram-lhe queima mui
grande".
Assim, a oferta por expiação do pecado não só era queimada
num lugar diferente, como é adotada uma palavra diferente
pelo Espírito Santo para expressar o ato pelo qual era
consumida. Ora nós não podemos imaginar, nem por um
momento, que esta distinção seja apenas uma troca de
palavras, cujo emprego é indiferente. Creio que a sabedoria
do Espírito Santo é tão manifestada no emprego das duas
palavras como em qualquer outro ponto de diferença entre as
duas ofertas. O leitor espiritual não deixará de dar o
próprio valor a esta interessante distinção.
A Lei do Holocausto
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Dá ordem a Arão e a
seus filhos, dizendo: Esta é a lei do holocausto: o
holocausto será queimado sobre o altar toda a noite até
pela manhã, e o fogo do altar arderá nele. E o sacerdote
vestirá a sua veste de Unho, e vestirá as calças de Unho
sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo
houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto
ao altar. Depois, despirá as suas vestes, e vestirá outras
vestes, e levará a cinza fora do arraial para um lugar
limpo. O fogo, pois, sobre o altar arderá nele, não se
apagará; mas o sacerdote acenderá lenha nele cada manhã, e
sobre ele porá em ordem o holocausto, e sobre ele queimará
a gordura das ofertas pacíficas. O fogo arderá
continuamente sobre o altar; não se apagará" (Lv 6:8 -13).
O fogo no altar consumia o holocausto e a gordura da oferta
pacífica. Era a própria expressão da santidade divina que
encontrou em Cristo e no Seu perfeito sacrifício um
elemento próprio para se alimentar. Esse fogo não devia
nunca extinguir-se. Tinha de haver manutenção perpétua
daquilo que representava a ação da santidade divina. No
meio das trevas e vigílias silenciosas da noite o fogo
ardia sobre o altar de Deus.
"E o sacerdote vestirá a sua veste de linho". Aqui, o
sacerdote toma, em figura, o lugar de Cristo, cuja justiça
pessoal é representada pela veste de linho. Havendo-se
entregado a Si mesmo à morte de cruz, a fim de cumprir a
vontade de Deus, entrou no céu com a Sua própria justiça,
levando consigo os sinais de ter completado a Sua obra. As
cinzas atestavam que o sacrifício estava consumado e que
havia sido aceito por Deus. Essas cinzas, postas ao lado do
altar, indicavam que o fogo tinha consumido o sacrifício —
que era um sacrifício não apenas consumado, mas aceito. As
cinzas do holocausto declaravam a aceitação do sacrifício.
As cinzas da expiação do pecado declaravam que o pecado
fora julgado.
Muitos dos pontos que temos estado a considerar
reaparecerão perante nós no decorrer do estudo dos
sacrifícios com mais clareza, precisão e poder. Postas cm
contraste umas com as outras, as ofertas adquirem mais
relevo. Consideradas em conjunto dão-nos uma visão completa
de Cristo. São como espelhos dispostos de tal maneira que
refletem, sob diferentes aspectos, a imagem do verdadeiro e
único sacrifício perfeito. Nenhuma figura por si só pode
representá-Lo em toda a sua plenitude. E necessário
contemplarmo-Lo na vida e na morte como Homem e como Vítima
em relação com Deus e conosco; e é assim que no-Lo
apresentam os sacrifícios de Levítico.
Deus, que satisfez misericordiosamente as necessidades das
nossas almas, permita que a nossa inteligência seja também
iluminada para compreendermos e desfrutarmos aquilo que nos
preparou.
— CAPÍTULO 2 —
____________
(1) Não se salienta a ideia de levar o pecado. Mas, claro,
quando há expiação existe a questão de pecado.
_______________
(1) "Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Gl 4:4). Esta
passagem é muito importante, visto que apresenta o bendito
Senhor como Filho de Deus e Filho do homem. "Deus enviou o
seu Filho, nascido de mulher". Que precioso testemunho!
c) O Incenso
Outro ingrediente da oferta de manjares, que requer a nossa
atenção, é "o incenso". Como tivemos ocasião de verificar,
a oferta de manjares era à base de "flor de farinha". O
"azeite" e "o incenso" eram os dois principais ingredientes
acrescentados; e, na realidade, a relação entre estes dois
é muito instrutiva. O "azeite" simboliza o poder do
ministério de Cristo; "o incenso" simboliza o seu objetivo.
O primeiro ensina-nos que Ele fez tudo pelo Espírito de
Deus; o último que fez tudo para glória de Deus.
O incenso representa aquilo que na vida de Cristo era
exclusivamente para Deus. Isto é evidente pelo segundo
versículo: "E a trará (a oferta de manjares) aos filhos de
Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um punhado da
flor de farinha e do seu azeite com todo o seu incenso; e o
sacerdote queimará este memorial sobre o altar; oferta
queimada é; de cheiro suave ao SENHOR". Assim era a
verdadeira oferta de manjares — o Homem Cristo Jesus. Em
Sua vida bendita havia o que era exclusivamente para Deus.
Cada pensamento, cada palavra, cada olhar, cada ato Seu
exalava um perfume que subia diretamente para Deus. E assim
como o símbolo era "o fogo do altar" que fazia sair o
cheiro suave do incenso, assim no Antítipo quanto mais
"provado" era, em todas as cenas e circunstâncias da Sua
bendita vida, tanto mais manifesto se tornava que, na Sua
humanidade, não havia nada que não pudesse subir, como
cheiro suave, ao trono de Deus. Se no holocausto vemos
Cristo "oferecendo-se a si mesmo imaculado a Deus", na
oferta de manjares vêmo-Lo apresentar a Deus toda a
excelência intrínseca da Sua natureza humana e perfeita
atividade. Um homem perfeito, vazio de si, obediente, na
terra, fazendo a vontade de Deus, agindo pela autoridade da
Palavra e mediante o poder do Espírito, exalava um perfume
suave que só podia ter aceitação divina. O fato de todo "o
incenso" ser consumido sobre o altar revela a sua
importância da maneira mais simples.
d) O Sal
Agora só nos falta considerar um ingrediente que fazia
parte da oferta de manjares, a saber, "o sal". "E toda a
oferta dos teus manjares salgarás com sal; e não deixarás
faltar à tua oferta de manjares o sal do concerto do teu
Deus; em toda a tua oferta oferecerás sal". A expressão "o
sal do concerto" revela o caráter permanente desse
concerto. Deus Mesmo tem ordenado assim o seu emprego em
todas as coisas para que nunca haja alteração —nenhuma
influência poderá corrompê-lo. Sob o ponto de vista
espiritual e prático, é impossível dar demasiado apreço a
um tal ingrediente. "A vossa palavra seja sempre agradável,
temperada com sal" (Cl 4:6). Em todas as conversas, o Homem
perfeito mostrava sempre o poder deste princípio. As Suas
palavras não eram simplesmente palavras de graça, mas
palavras de penetrante poder—palavras divinamente adaptadas
para preservar de toda a mancha e influência corrupta.
Nunca pronunciou uma palavra que não fosse perfumada com
"incenso" e "temperada com sal". O primeiro era de todo
agradável a Deus; o último, o mais proveitoso para o homem.
Às vezes, infelizmente, o coração corrompido do homem e o
seu gosto viciado não podiam tolerar a acidez da oferta de
manjares salgada por determinação divina. Observemos, por
exemplo, a cena na sinagoga de Nazaré (Lc 4:16-29). O povo
podia dar-lhe testemunho e "todos... se maravilham das
palavras de graça que saíam da sua boca"; mas logo que
passou a temperar essas palavras com sal, que tão
necessário era a fim de os preservar da influência
corruptível do seu orgulho nacional, eles de boa vontade O
teriam precipitado do cume do monte em que a sua cidade
estava edificada.
Assim também em Lucas 14, logo que as Suas palavras de
"graça" atraíram "grandes multidões", Ele deitou-lhes
imediatamente o "sal" ao anunciar em palavras de santa
fidelidade os resultados seguros de O seguirem. "Vinde, que
já tudo está preparado". Aqui estava a "graça". Mas logo em
seguida diz: Qualquer de vós que não renunciar a tudo
quanto tem não poder ser meu discípulo. Aqui estava o
"sal". A graça é atrativa; mas "o sal é bom". Um discurso
agradável pode ser popular; mas um discurso temperado com
sal nunca o será. A multidão pode, em certas ocasiões e sob
determinadas circunstâncias, seguir por um pouco de tempo o
puro evangelho da graça de Deus; mas logo que o "sal" de
uma aplicação fervorosa e fiel é introduzido, o auditório é
reduzido ao número daqueles que foram trazidos sob o poder
da Palavra.
b) O Mel
Porém, havia outro ingrediente tão claramente excluído da
oferta de manjares quanto o "fermento", e este era o "mel".
"Porque de nenhum fermento, nem de mel algum oferecereis
oferta queimada ao SENHOR" (versículo 11). Portanto, assim
como o "fermento" é a expressão daquilo que é positiva e
manifestamente mau na natureza, podemos considerar o "mel"
como o símbolo expressivo do que é aparentemente doce e
atrativo. Ambos são proibidos por Deus — ambos eram
cuidadosamente excluídos da oferta de manjares —, ambos
impróprios para o altar. Os homens podem aventurar-se, como
Saul, a distinguir entre o que é "vil e desprezível" (1 Sm
15:9) e o que não é: porém o juízo de Deus conta o polido
Agaque com o mais vil dos filhos de Amaleque. Não há dúvida
que existem boas qualidades morais no homem, que devem ser
consideradas pelo seu valor. "Achaste mel come o que te
basta". Mas recorde-se que não era admitido na oferta de
manjares nem no seu Antítipo. Havia a plenitude do Espírito
Santo; havia o fragrante odor do incenso; havia a virtude
preservativa do "sal do concerto". Todas estas coisas
acompanhavam a "flor de farinha" na Pessoa da verdadeira
"oferta de manjares"; mas nenhum mel.
Que lição se encontra aqui para os nossos corações! Sim,
que volume de sã instrução! O bendito Senhor Jesus sabia
como dar à natureza e às suas relações o lugar próprio.
Sabia a quantidade de "mel" que era conveniente; podia
dizer a Sua mãe: "Não sabeis que me convém tratar dos
negócios de meu Pai" E todavia podia dizer também ao
discípulo amado: "Eis aí tua mãe". Por outras palavras,
nunca permitiu que as pretensões da natureza interferissem
com a apresentação a Deus de todas as energias da perfeita
humanidade de Cristo. Maria e outros também podiam ter
pensado que as suas relações humanas com o bendito Senhor
lhes dava algum direito ou influência peculiar com base em
motivos puramente naturais.
"Chegaram, então, seus irmãos e sua mãe; e, estando de
fora, mandaram-no chamar. E a multidão estava assentada ao
redor dele, e disseram-lhe: Eis que tua mãe e teus irmãos
(segundo a carne) te procuram e estão lá fora" (Mc 3:31-
32).
Qual foi a resposta de Aquele que a oferta de manjares
simbolizava em Sua perfeição? Abandonou Ele imediatamente a
Sua missão a fim de atender a chamada da natureza? De modo
nenhum. Se o tivesse feito, teria sido a mesma coisa que
misturar "mel" com a oferta de manjares, o que não podia
ser permitido. O mel foi fielmente excluído nesta ocasião,
assim como em todas as ocasiões em que os direitos de Deus
deviam ser atendidos, e, em seu lugar, o poder do Espírito,
o odor do "incenso" e as virtudes do "sal" foram
ditosamente patenteados. "E ele lhes respondeu, dizendo:
Quem é minha mãe e meus irmãos? E, olhando em redor para os
que estavam assentados junto dele disse: Eis aqui minha mãe
e meus irmãos. Porquanto qualquer que fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe" (') (Mc
3:33-35).
Há poucas coisas que o servo de Cristo encontra mais
difíceis do que harmonizar, com precisão espiritual, as
pretensões das relações naturais, de forma a não as deixar
interferir com os direitos do Mestre. No caso do nosso
bendito Senhor, como bem sabemos, este ajustamento era
divino. No nosso caso, acontece frequentemente que os
deveres divinamente reconhecidos são abertamente
negligenciados para dar lugar àquilo que imaginamos ser o
serviço de Cristo. A doutrina de Deus é constantemente
sacrificada à obra aparente do evangelho. Porquanto é bom
lembrar que a verdadeira dedicação parte sempre de um ponto
em volta do qual estão inteiramente asseguradas todas as
reivindicações de Deus. Se eu tenho uma colocação que
requer os meus serviços desde as dez às dezesseis horas
todos os dias, não tenho o direito de sair para fazer
visitas ou pregar durante aquelas horas. Se estou
estabelecido, sou forçado a manter a integridade desse
negócio de uma maneira cristã. Não tenho o direito de
correr para lá e para cá para pregar, enquanto o meu
negócio fica abandonado e em desordem, trazendo vergonha
sobre a santa doutrina de Deus. Um homem pode dizer: "eu
sinto-me chamado para pregar o evangelho e acho que o meu
emprego ou negócio é um embaraço". Bem, se es divinamente
chamado e apto para a obra do evangelho e não podes
conciliar as duas coisas, então renuncia à tua colocação ou
liquida o teu negócio de uma maneira cristã e parte em nome
do Senhor. Mas, claro, enquanto eu continuar no meu emprego
ou mantiver o meu negócio, o meu trabalho no evangelho deve
partir de um ponto no qual os meus deveres nessa ocupação
ou nesse negócio são inteiramente cumpridos. Isto é
consagração. Tudo o mais é confusão, por mais bem
intencionado. Bendito seja Deus, temos um exemplo perfeito
perante nós na vida do Senhor Jesus e ampla direção para o
novo homem, na Palavra de Deus; de forma que não há razão
para cometermos erros nas diversas responsabilidades que
formos chamados, na providência de Deus, a desempenhar ou
quanto aos vários deveres que o governo moral de Deus tem
estabelecido em relação com tais responsabilidades.
____________________
(1) Quão importante é vermos nesta magnífica passagem que
fazer a vontade de Deus põe a alma num parentesco com
Cristo do qual os Seus irmãos segundo a carne nada sabiam,
pois não se baseia em laços naturais. Era tão verdadeiro a
respeito daqueles irmãos como a respeito de outra qualquer
pessoa, que "aquele que não nascer de novo não pode ver o
reino de Deus". Maria não podia ter sido salva pelo simples
fato de ser a mãe de Jesus. Ela precisa ter fé pessoal em
Cristo como qualquer outro membro da família decaída de
Adão. Precisa de passar por meio do novo nascimento da
velha criação para a nova. Foi por ter entesourado as
palavras de Cristo em seu coração que esta bem-aventurada
mulher foi salva. Não há dúvida que ela foi especialmente
agraciada por ter sido escolhida como um vaso para tão
santa missão, mas, como qualquer pecador, ela precisava de
"alegrar-se em Deus, seu Salvador". Ela permanece no mesmo
plano, está lavada no mesmo sangue, vestida com as mesmas
vestes de justiça e entoará o mesmo cântico como todos os
remidos de Deus.
Este simples fato dará força adicional e clareza a um ponto
que foi já frisado, a saber: que a encarnação não
significou Cristo tomar a nossa natureza em união consigo.
Esta verdade deve ser escrupulosamente ponderada. E
inteiramente apresentada em 2 Coríntios 5: "Porque o amor
de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um
morreu, logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para
que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele
que por eles morreu e ressuscitou. Assim que, daqui por
diante, a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que
também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo,
agora; já não o conhecemos desse modo. Assim que, se alguém
está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já
passaram, eis que tudo se fez novo" (versículos 14-17).
— CAPITULO 3 —
__________________
(1) "O peito" e "a espádua" são emblemáticos de amor e
poder — força e afeição.
(2) Há força e beleza no versículo 31: "... o peito será de
Aarão e de seus filhos". É privilégio de todos os
verdadeiros crentes alimentarem-se das afeições de Cristo —
do amor imutável desse coração que bate com amor imortal e
imutável por eles.
O Gozo da Comunhão
E, certamente, é motivo de grande alegria para todo o
verdadeiro sacerdote saber (para empregar a linguagem do
nosso símbolo) que
Deus teve a Sua parte, antes de ele receber o peito e a
espádua. Este pensamento dá força e fervor, engrandecimento
e alegria ao culto e à comunhão. Revela a graça maravilhosa
d'Aquele que nos deu o mesmo objetivo, o mesmo tema, e a
mesma alegria que Ele tem. Nada inferior—nada menos do que
isto podia satisfazê-Lo. O Pai quer que o pródigo se
alimente do bezerro cevado, em comunhão consigo. Não lhe dá
um lugar inferior à Sua própria mesa, nem qualquer outra
porção senão aquela de que Ele Próprio se alimenta. A
linguagem do sacrifício é esta: "era justo alegrarmo-nos e
folgarmos" — "comamos e alegremo-nos". Tal é a preciosa
graça de Deus! Sem dúvida, temos motivos para nos
alegrarmos, pois participamos de uma tal graça. Porém,
quando podemos ouvir o bendito Deus dizer "comamos e
alegremo-nos", dos nossos corações devia brotar uma
corrente contínua de louvores e ações de graças. O gozo de
Deus na salvação de pecadores e o Seu gozo na comunhão dos
santos podem muito bem despertar a admiração dos homens e
dos anjos por toda a eternidade.
__________________
(1) O leitor deve lembrar-se que o assunto tratado no texto
deixa inteiramente por considerar uma verdade muito
importante e prática ensinada em João 14:21-28, a saber, o
amor particular do Pai para com o filho obediente e a
comunhão especial de tal filho com o Pai e o Filho. Que
esta verdade seja gravada em nossos corações pela pena do
Deus Espírito Santo.
O Julgamento Pessoal
Finalmente, a diferença entre a oração e a confissão, pelo
que diz respeito ao estado do coração perante Deus, e o seu
sentimento moral de aversão ao pecado, não pode ser, de
modo algum considerada demais.
É muito mais fácil pedir, de uma maneira geral, o perdão
dos nossos pecados do que confessar esses pecados. A
confissão implica o julgamento pessoal; pedir o perdão pode
não envolver e, em si, não envolve esse juízo. Isto, só por
si, seria o suficiente para salientara diferença. O juízo
próprio é um dos mais valiosos e saudáveis exercícios da
vida cristã. Portanto, tudo que tende a produzi-lo deve ser
altamente apreciado por todo o cristão sincero.
A diferença entre pedir perdão e confessar o pecado é
continuamente exemplificada no nosso tratamento com as
crianças. Se uma criança tem feito alguma maldade, acha
menos dificuldade em pedir ao pai que a perdoe do que em
confessar abertamente e sem reservas a maldade. Ao pedir
perdão, a criança pode ter em seu pensamento um determinado
número de coisas que tendam a diminuir o sentimento do mal,
pode pensar que, afinal, não havia muita razão para a
censurarem, embora seja conveniente pedir perdão ao pai;
enquanto que, ao confessar a maldade, faz o seu próprio
julgamento.
Além disso, ao pedir perdão a criança pode ser influenciada
principalmente pelo desejo de escapar às consequências da
sua maldade; enquanto que um pai sensato procurará
despertar no filho exatamente a convicção do mal, e essa
convicção só pode conseguir-se em relação com franca
confissão da falta relacionada com o julgamento de si
próprio.
Assim é também na maneira de Deus proceder para com os Seus
filhos, quando eles procedem mal. Tudo tem de ser exposto
completamente e julgado pela pessoa. Ele quer fazer-nos
recear não só as consequências do pecado — que são
inexprimíveis — mas detestar também o próprio mal, por
causa da sua hediondez aos Seus olhos. Se fosse possível,
quando cometemos pecado, sermos perdoados simplesmente,
porque pedimos perdão, a nossa compreensão do pecado e
atitude perante ele não seriam tão intensas; e, como
consequência, a nossa apreciação da comunhão com que somos
abençoados não seria tão elevada. O efeito moral de tudo
isto sobre o caráter da nossa constituição espiritual e a
natureza da vida prática deve ser claro para todo o crente
experimentado (1).
________________
(1) O caso de Simão, o mago, em Atos 8, pode apresentar uma
dificuldade para o leitor. Mas basta dizer dele que uma
pessoa que está "em fel de amargura e laço de iniquidade"
nunca podia ser apresentada como modelo para os filhos de
Deus. O seu caso não interfere, de modo algum, com a
doutrina de 1 João 1:9. Ele não tinha o parentesco de filho
e, consequentemente, não beneficiava da advocacia do nosso
Advogado junto do Pai. Devo acrescentar ainda que o assunto
da oração do Senhor não está de modo algum envolvido neste
caso. Desejo limitar-me à passagem que se segue. Devemos
evitar sempre a adoção de regras rígidas. Uma alma pode
clamar a Deus em quaisquer circunstâncias e pedir o que
carece. Ele está sempre pronto a ouvir e a responder.
O "Pecado" e os "Pecados"
Esta série de pensamentos está intimamente relacionada e
plenamente confirmada por dois princípios estabelecidos na
"Lei do sacrifício pacífico".
No versículo 13 do capítulo 7 de Levítico lemos: "Com os
bolos oferecerá pão levedado". E ainda no versículo 20
lemos: "Porém, se alguma pessoa comer a carne do sacrifício
pacífico, que é do SENHOR, tendo ela sobre si a sua
imundícia, aquela pessoa será extirpada dos seus povos".
Aqui temos as duas coisas claramente postas diante de nós,
a saber; o pecado em nós e o pecado sobre nós. O "fermento"
era permitido porque havia pecado na natureza do adorador.
A "imundícia" não era permitida porque não devia haver
pecado na consciência do adorador. Onde há pecado não pode
haver comunhão. Deus tem provido expiação pelo sangue para
o pecado que Ele sabe existir em nós. Por isso lemos acerca
do pão levedado no sacrifício pacífico "E de toda oferta
oferecerá um deles por oferta alçada ao SENHOR, que será do
sacerdote que espargir o sangue da oferta pacífica"
(versículo 14). Por outras palavras, o "fermento" (2) na
natureza do adorador estava perfeitamente expiado pelo
"sangue" do sacrifício. O sacerdote que recebe o pão
levedado é quem deve espargir o sangue. Deus afastou da Sua
vista o nosso pecado para sempre. Apesar do pecado estar em
nós, não é objeto para fixar os Seus olhos. Ele vê só o
sangue; e portanto pode andar conosco e consentir
ininterrupta comunhão consigo. Porém, se permitirmos que "o
pecado" que está em nós se desenvolva na forma de
"pecados", então, tem de haver confissão, perdão e
purificação, antes de podermos comer outra vez da carne da
oferta pacífica. A exclusão do adorador, por causa de
impureza mencionada no cerimonial, corresponde à suspensão
de um crente da comunhão, por causa de pecado por
confessar. Intentar ter comunhão com Deus em nossos pecados
implicaria a blasfema insinuação de que Ele podia andar em
companhia do pecado. "Se dissermos que temos comunhão com
ele, e andarmos em trevas, mentimos e não praticamos a
verdade" (1 Jo 1:6).
______________
(2) O leitor não deve esquecer que o fermento é sempre um
símbolo do mal (N. do T.).
O Culto
Este último ponto está relacionado e baseado sobre outra
verdade fundamental da "lei do sacrifício pacífico". "Mas a
carne do sacrifício de louvores da sua oferta pacífica se
comerá no dia do seu oferecimento; nada se deixará dela até
amanhã." Quer dizer, a comunhão do adorador nunca deve
separar-se do sacrifício sobre o qual a comunhão está
baseada. Desde que se tenha energia espiritual para manter
a conexão, o culto e a comunhão subsistirão em frescura e
aceitação, mas só assim. Devemos estar perto do sacrifício,
no espírito do nosso entendimento, as afeições do nosso
coração e a experiência das nossas almas. É isto que dará
poder e duração ao nosso culto. Pode dar-se o caso de
começarmos qualquer ato ou expressão de culto com os nossos
corações ocupados imediatamente com Cristo; e, antes de
chegarmos ao fim, estarmos ocupados com o que estamos
fazendo ou dizendo ou com as pessoas que nos escutam; e,
desta forma, caímos naquilo que pode chamar-se "iniquidade
nas nossas coisas santas". Isto é profundamente solene e
deveria tornar-nos vigilantes. Começamos o culto no
Espírito e acabamos na carne. Devemos ter sempre o cuidado
de não nos afoitarmos a proceder, nem por um momento, para
lá da energia do Espírito, porque o Espírito manter-nos-á
sempre ocupados com Cristo. Se o Espírito Santo nos inspira
"cinco palavras" de adoração ou de ações de graças,
pronunciemos as cinco e calemo-nos. Se continuarmos a
falar, estamos comendo a carne do nosso sacrifício depois
do tempo fixado; e, longe de ser "aceitável", é, na
realidade, "uma abominação". Lembremo-nos disto e vigiemos.
Não há necessidade para alarme. Deus quer que sejamos
guiados pelo Espírito e assim cheios de Cristo em todo o
nosso culto. Ele só pode aceitar aquilo que é divino; e,
portanto, não quer que seja apresentado senão o que é
divino.
"E, se o sacrifício da sua oferta for voto ou oferta
voluntária, no dia em que oferecer o seu sacrifício se
comerá; e o que dele ficar também se comerá no dia
seguinte" (Lv 7:16). Quando a alma se eleva a Deus em um
ato voluntário de adoração, tal adoração provêm de uma
maior medida de energia espiritual do que quando procede
simplesmente de alguma graça particular do próprio momento.
Se se há recebido uma favor especial da mão do Senhor, a
alma eleva-se imediatamente em ação de graças. Neste caso,
o culto é suscitado por e ligado com esta mercê de graça,
qualquer que possa ser, e acaba aí. Porém quando o coração
é levado pelo Espírito Santo a qualquer expressão
voluntária ou deliberada de louvor, o culto terá um caráter
mais duradouro. Todavia, o culto espiritual ligar-se-á
sempre com o precioso sacrifício de Cristo.
"E o que ainda ficar da carne do sacrifício ao terceiro dia
será queimado no fogo. Porque, se da carne do seu
sacrifício pacífico se comer ao terceiro dia, aquele que a
ofereceu não será aceito, nem lhe será imputado; coisa
abominável será, e a pessoa que comer dela levará a sua
iniquidade". Nada tem qualquer valor, segundo o juízo de
Deus, senão aquilo que está intimamente ligado com Cristo.
Pode existir muita aparência de culto, e ser, afinal, a
mera excitação e expressão de sentimentos naturais. Pode
haver uma grande aparente devoção, que é, simplesmente,
devoção carnal.
A natureza pode excitar-se, no campo religioso, de diversas
maneiras, tais como pompa, cerimônias, procissões,
atitudes, ricas vestimentas, uma liturgia eloquente e todos
os atrativos de um esplêndido ritualismo; e, contudo, pode
haver uma absoluta ausência de culto espiritual. Sim,
acontece frequentemente que os mesmos gostos e inclinações,
que são excitados e satisfeitos por formas pomposas de um
culto chamado religioso, encontrariam um alimento mais
apropriado na ópera ou nos concertos.
Aqueles que sabem que "Deus é espírito e aqueles que o
adoram devem adorá-Lo em espírito e em verdade" (João 4) e
que desejam rememorá-Lo devem pôr-se em guarda contra tudo
isto. A religião, assim chamada, reveste-se, em nossos
dias, dos mais poderosos atrativos. Abandonando a grosseria
da idade média, ela chama em seu auxílio todos os recursos
de gosto requintado de um século iluminado e culto. A
escultura, a música, e a pintura, vazam os seus ricos
tesouros no seu seio, a fim de que ela possa, com isso,
preparar um poderoso narcótico para embalar as multidões
irrefletidas numa sonolência, que só será interrompida
pelos indescritíveis horrores da morte, do juízo e do lago
de fogo. Ela pode também dizer: "Sacrifícios pacíficos
tenho comigo; hoje paguei os meus votos... Já cobri a minha
cama com cobertas de tapeçaria, com obras lavradas com Unho
fino do Egito; já perfumei o meu leito com mirra, aloés e
canela" (Pv 7:14-17). Assim a religião corrompida seduz,
por sua poderosa influência, aqueles que não querem escutar
a voz celestial da sabedoria.
Guarde-se o leitor de tudo isto. Certifique-se de que o seu
culto está inseparavelmente ligado com a obra da cruz. Veja
se Cristo é o fundamento, Cristo o elemento e o Espírito
Santo o poder do seu culto. Guarde-se de que o ato exterior
do seu culto não se alongue para lá deste poder íntimo. É
necessária muita vigilância para se evitar este mal. Os
seus manejos secretos são dos mais difíceis de detectar e
impedir. Podemos começar um hino no verdadeiro espírito de
culto, e, por falta de poder espiritual, podemos, antes de
chegar ao fim, cair no mal que corresponde ao ato do
cerimonial de comer a carne do sacrifício pacífico ao
terceiro dia. A nossa única salvaguarda consiste em
estarmos perto de Jesus. Se elevarmos os nossos corações em
"ações de graças" por qualquer mercê especial, façamo-lo no
poder do nome e do sacrifício de Cristo. Se as nossas almas
se elevam em adoração "voluntária", que seja na energia do
Espírito Santo. Deste modo o nosso culto terá aquela
frescura, essa fragrância e profundidade de tom, essa
elevação moral, que devem resultar do fato de se ter o Pai
por objeto, o Filho por fundamento e o Espírito Santo com o
poder do culto.
_________________
NOTA: É interessante observar que, embora o sacrifício
pacífico seja o terceiro na ordem dos sacrifícios, contudo
"a Lei" dele é dada depois de todos. Esta circunstância não
deixa de ter a sua importância. Em nenhum dos sacrifícios a
comunhão do adorador é tão claramente revelada como no
sacrifício pacífico. No holocausto vemos Cristo oferecendo-
se a Si mesmo a Deus. Na oferta de manjares, temos a
perfeita humanidade de Cristo. Depois, passando ao
sacrifício pelo pecado, aprendemos que o pecado em sua raiz
é inteiramente expiado. No sacrifício pelo sacrilégio, há
plena provisão para os pecados na vida presente. Mas em
nenhum é revelada a comunhão do adorador. A comunhão
pertence ao "sacrifício pacífico"; e, daí, creio, a posição
que ocupa a ''lei deste sacrifício". Aparece no fim de
todas, ensinando-nos com isso que, quando se trata de uma
questão de a alma se alimentar de Cristo, tem de ser um
Cristo completo, considerado sob todas as fases possíveis
da Sua vida — o Seu caráter, a Sua Pessoa, Sua Obra, e Seu
cargo. E, além disso, que, quando tivermos acabado para
sempre com o pecado e os pecados, deleitar-nos-emos em
Cristo e nos alimentaremos d'Ele por todos os séculos
eternos. Seria, creio, uma falta grave no nosso estudo dos
sacrifícios se deixássemos de considerar uma circunstância
tão digna de ser notada como a que acabamos de frisar. Se a
"lei do sacrifício pacífico" fosse dada pela ordem em que
ocorre o próprio sacrifício viria imediatamente depois da
lei da oferta de manjares; porém em vez disso, são dadas "A
lei da expiação do pecado" e "a lei da expiação da culpa"
e, então, em conclusão, segue-se a "lei do sacrifício
pacífico".
— CAPÍTULOS 4 a 5:13 —
OS SACRIFÍCIOS QUE
NÃO SÃO DE CHEIRO SUAVE
O Sangue da Vítima
Depois lemos: "Também porá o sacerdote daquele sangue sobre
as pontas do altar do incenso aromático, perante o SENHOR,
altar que está na tenda da congregação". Isto assegurava a
adoração da assembleia. Pondo o sangue sobre "o altar de
ouro", a verdadeira base de adoração era mantida; de forma
que a chama do incenso e a sua fragrância podiam subir
continuamente. Finalmente, "todo o resto do sangue do
novilho derramará à base do altar do holocausto, que está à
porta da tenda da congregação". Aqui temos o que satisfaz
plenamente as exigência da consciência de cada indivíduo;
pois o altar de cobre era o lugar de acesso individual. Era
onde Deus encontrava o pecador.
Nas outras duas categorias, "um príncipe" ou "qualquer
outra pessoa do povo da terra", era apenas uma questão de
consciência individual; e portanto uma única coisa era
feita com o sangue. Era todo derramado "à base do altar do
holocausto" (compare-se verso 7 com os versos 25,30).
Existe em tudo isto uma precisão divina que requer toda a
atenção do leitor, se deseja compreender os pormenores
maravilhosos deste símbolo (').
O efeito do pecado individual não podia prolongar-se para
além dos limites da consciência do indivíduo. O pecado de
"um príncipe" ou de "qualquer outra pessoa do povo", não
podia, em sua influência, atingir "o altar do incenso" — o
lugar da adoração sacerdotal. Não podia tão-pouco chegar ao
"véu do santuário" — o limite sagrado da habitação de Deus
no meio do Seu povo. É bom ponderar isto. Nunca devemos
levantar uma questão de pecado pessoal ou falta no lugar de
culto sacerdotal ou na assembleia. Deve ser tratada no
lugar de aproximação pessoal. Muitos erram sobre este
ponto. Vêm à assembleia ou lugar público de culto com a sua
consciência manchada, e desta forma arrastam toda a
assembleia e contaminam o seu culto. Deveria examinar-se
rigorosamente este mal e haver cuidadosa vigilância contra
ele. Precisamos de andar com maior vigilância para que a
nossa consciência possa estar sempre na luz. E quando
falhamos, como, infelizmente, acontece em tantas coisas,
devemos tratar com Deus sobre a nossa falta em oculto, para
que a nossa verdadeira adoração e a posição da assembleia
possam ser mantidas sempre plenamente com clareza diante da
alma.
____________________
(1) Alguns podem encontrar dificuldade no fato de a palavra
"própria" se referir ao adorador e não ao sacrifício; mas
isto não pode de modo algum afetar a doutrina exposta no
texto, que é fundada no fato de que uma palavra empregada
no holocausto é omitida na oferta de expiação pelo pecado.
O contraste subsiste, quer pensemos no ofertante ou na
oferta.
A Gordura da Vítima:
Imagem da Excelência de Cristo em sua Morte pelo Pecado
Contudo, embora o objetivo principal na oferta de expiação
do pecado seja mostrar o que Cristo se fez por nós, e não o
que Ele era em Si mesmo, há um rito em relação a este
símbolo que revela claramente a Sua aceitabilidade pessoal
por Jeová. Este rito é estabelecido nas seguintes palavras:
"E toda a gordura do novilho da expiação tirará dele: a
gordura que cobre a fressura, e toda a gordura que está
sobre a fressura, e os dois rins, e a gordura que está
sobre eles, que está sobre as tripas, e o redenho de sobre
o fígado, com os rins, tirará, como se tira do boi do
sacrifício pacífico; e o sacerdote a queimará sobre o altar
do holocausto" (versículos 8-10). Assim, a excelência
intrínseca de Cristo não é omitida, nem mesmo na oferta de
expiação do pecado. A gordura queimada sobre o altar é a
expressão adequada da apreciação divina do valor da pessoa
de Cristo, qualquer que fosse o lugar que, em perfeita
graça, tomasse, em nosso favor ou em nosso lugar; foi feito
pecado por nós, e a oferta de expiação é a sombra que O
apresenta sobre este aspecto. Porém, visto que era o Senhor
Jesus Cristo, o eleito de Deus, o Santo, o Seu Filho puro,
imaculado e eterno que foi feito pecado, a gordura da
oferta de expiação era portanto queimada sobre o altar,
como material próprio para o fogo que era a exibição da
santidade divina.
Mas até mesmo neste ponto vemos o contraste entre a oferta
de expiação e o holocausto. No caso do último, não era
apenas a gordura, mas toda a oferta que era queimada sobre
o altar, porque representava Cristo sem relação alguma com
o pecado. No caso da primeira, não havia nada a queimar
sobre o altar senão a gordura, porque se tratava de uma
questão de levar o pecado, embora Cristo fosse o portador.
A glória divina da pessoa de Cristo brilha até mesmo por
entre as trevas espessas desse madeiro de maldição a que
consentiu que O pregassem como maldição por nós. A aversão
daquilo com que, no exercício do amor divino, Ele ligou a
Sua bendita pessoa, na cruz, não podia evitar que o cheiro
suave do Seu valor subisse até ao trono de Deus.
Vemos assim a revelação do profundo mistério da face de
Deus se ter ocultado daquilo que Cristo se fez, e o modo
como o coração de Deus se deleitou no que Cristo era. É
isto que dá um encanto peculiar à oferta de expiação. Os
raios brilhantes da glória pessoal de Cristo resplandecendo
por entre a terrível escuridão do Calvário, o Seu valor
pessoal destacando-se nas próprias profundidades da Sua
humilhação, o deleite de Deus n'Aquele de quem havia
ocultado a Sua face, em justificação da Sua justiça
inflexível, tudo isto é mostrado no fato de a gordura da
oferta de expiação do pecado ser queimada sobre o altar.
________________
(1) O texto diz respeito unicamente à expiação de pecados
em que o sangue era trazido para dentro do santuário. Havia
ofertas pelo pecado das quais Arão e seus filhos
participavam (veja-se Lv 6:26, 29; Nm 18:9-10).
Cristo: O Antítipo
O pecado foi removido pelo sangue da vítima, e Jeová disse
estas palavras: "Ser-lhe-á perdoado". A vítima havia
morrido em lugar dele; e ele vivia em lugar da vítima.
Tal era o tipo. E, quanto ao antítipo, quando o olhar da fé
descansa sobre Cristo como o sacrifício de expiação, vê-O
como Aquele que, havendo tomado uma perfeita vida humana,
deu essa vida na cruz, porque o pecado foi ali e então
ligado por imputação com ela. Mas vê-O também como Aquele
que, tendo em Si mesmo o poder da vida divina e eterna,
saiu por meio dele do sepulcro e agora comunica esta Sua
vida de ressurreição—divina e eterna — a todos os que creem
no Seu nome. O pecado desapareceu, porque a vida a que foi
ligado desapareceu. E agora em lugar da vida a que fora
ligado o pecado, todos os verdadeiros crentes possuem a
vida a que está unida a Justiça.
_______________
(1) Temos um exemplo notavelmente belo na precisão divina
das Escrituras em 2 Coríntios 5:21: "Aquele que não
conheceu pecado, o fez pecado por nós para que nele
fôssemos feitos justiça de Deus". O significado do vocábulo
"fez" não é, como poderia supor-se, o mesmo em ambas as
cláusulas desta passagem.
A questão do pecado nunca poderá ser levantada quanto à
vida ressuscitada e vitoriosa de Cristo; mas é esta a vida
que os crentes possuem. Não há outra vida. Tudo fora dela é
morte, porque fora dela tudo está sob o poder do pecado.
"Aquele que tem o Filho tem a vida"; e aquele que tem a
vida tem a justiça também. As duas coisas são inseparáveis,
porque Cristo é tanto uma como a outra. Se o juízo e morte
de Cristo, na cruz, foram realidades, então a vida e a
justiça do crente são realidades. Se a imputação do pecado
foi uma realidade para Cristo, a imputação da justiça ao
crente é uma realidade. São tão reais uma como a outra,
porque se não fosse assim Cristo teria morrido em vão. O
verdadeiro e incontestável fundamento de paz é este: que as
exigências da natureza de Deus, quanto ao pecado, foram
perfeitamente satisfeitas. A morte de Jesus satisfê-las
todas e satisfê-las para sempre. Qual é a prova disto para
a consciência despertada"?- O grande fato da ressurreição.
Um Cristo ressuscitado proclama plena libertação do crente
—a sua perfeita absolvição de toda a demanda possível. "O
qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para
nossa justificação" (Rm 4:25). Para um crente não saber que
o seu pecado foi tirado, e tirado para sempre, é fazer
pouco caso do sangue da sua divina oferta de expiação. É
negar que se fez perfeita apresentação— a aspersão do
sangue sete vezes perante o Senhor.
_________________
(1) A Epístola aos Efésios apresenta um aspecto muito
elevado da Igreja nas alturas, não meramente como uma
prerrogativa, mas também quanto ao método. O direito é
certamente o sangue; mas o método é assim estabelecido: "
Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito
amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas
ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça
sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo" (Ef 2:4-6).
________________
(1) Existe um princípio precioso ligado com a expressão
"contra o Senhor". Embora o caso em questão fosse de dano
causado a um próximo, o Senhor vê-o como uma transgressão
contra Si. Tudo deve ser encarado em relação com o Senhor.
Pouco importa a quem concerne diretamente, Jeová deve ter o
primeiro lugar. Assim, quando a consciência de Davi foi
traspassada pela frecha da convicção, a respeito do seu
procedimento para com Urias, ele exclama, "Pequei contra o
Senhor" (2 Sm 12:13). Este princípio não prejudica em nada
os direitos do homem ofendido.
_________________
(1) Da comparação de Mateus 5:23-24 com Mateus 18:21-22,
aprendemos um princípio admirável acerca do modo de
resolver agravos e ofensas entre dois irmãos.
O ofensor é obrigado a retroceder do altar para ir arrumar
o assunto com aquele a quem ofendeu; pois não pode haver
comunhão com o Pai enquanto um irmão tem "alguma coisa
contra mim". Mas, então, note-se a bela maneira em que o
ofendido é ensinado para receber o ofensor. "Senhor, até
quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe
perdoarei?- Até sete?- Jesus lhe disse: Não te digo que até
sete, mas até setenta vezes sete". Tal é o método divino de
arrumar todas as questões entre irmãos. "Suportando-vos uns
aos outros, e perdoando-vos, uns aos outros, se algum tiver
queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim
fazei vós também" (Cl 3:13).
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NOTA: Os versículos finais do capítulo VI juntamente com
todo o capítulo VII tratam da lei dos vários sacrifícios a
que já nos referimos. Existem, todavia, alguns pontos na
lei da Expiação do Pecado e da Expiação da Culpa que
merecem a nossa atenção antes de deixarmos esta importante
parte do nosso livro.
A santidade pessoal de Cristo não é apresentada em nenhum
dos sacrifícios de um modo tão notável como na Expiação do
Pecado. "Fala a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei
da expiação do pecado: no lugar onde se degola o holocausto
se degolará a expiação do pecado perante o SENHOR; coisa
santíssima é... Tudo o que tocar a sua carne será santo...
Todo varão entre os sacerdotes a comerá; coisa santíssima
é" (Lv 6:25-29). Assim também falando na oferta de
manjares, coisa santíssima é, como santos são a oferta da
expiação da culpa e a expiação do pecado. Isto é notável e
surpreendente. O Espírito Santo não tinha necessidade de
guardar com tanto zelo a santidade de Cristo no holocausto;
mas a fim de que a alma não perdesse de vista esta
santidade, ao contemplar o lugar que o bendito Senhor tomou
na oferta da expiação do pecado, somos repetidas vezes
alertados do fato pelas palavras "coisa santíssima é". E
verdadeiramente edificante e consolador ver a santidade
essencial e divina da pessoa de Cristo brilhar com intensa
claridade no meio da escuridão terrível do Calvário. A
mesma ideia é observável na "lei da expiação da culpa"
(veja-se Lv 7:1-6). Nunca a expressão "o Santo de Deus", a
respeito do Senhor, foi tão clara como quando Ele "foi
feito pecado" na cruz de maldição. A vileza e negrura
daquilo com que Ele se identificou na cruz serviu apenas
para ressaltar claramente que Ele era "santíssimo". Embora
tivesse tomado sobre Si o pecado. Ele era isento de pecado.
Embora sofrendo a ira de Deus, era as delícias do Pai.
Embora privado da luz do semblante de Deus. Ele habitava no
seio do Pai. Que precioso mistério! Quem poderá sondar a
sua profundidade? Como é maravilhoso encontrarmos o seu
símbolo de um modo notável na "lei da expiação do pecado".
Demais, o leitor deveria procurar compreender o significado
da expressão "Todo o varão entre os sacerdotes a comerá". O
ato cerimonial de comer a oferta da expiação do pecado ou
da expiação da expiação da culpa era expressivo de completa
identificação. Porém, para comer a expiação do pecado —
fazer dos pecados de outrem os seus próprios — requeria um
maior grau de energia sacerdotal, como é expresso nos
varões "entre os sacerdotes". "Disse mais o SENHOR a Arão:
E eu, eis que tenho dado a guarda das minhas ofertas
alçadas, com todas as coisas santas dos filhos de Israel;
por causa da unção as tenho dado a ti e a teus filhos por
estatuto perpétuo. Isto terás das coisas santíssimas do
fogo: todas as suas ofertas, com todas as suas ofertas de
manjares e com todas as suas expiações do pecado, e com
todas as suas expiações da culpa, que me restituírem, serão
coisas santíssimas para ti e para teus filhos. No lugar
santíssimo o comerás; todo o varão o comerá; santidade será
para ti. Também isto será teu: a oferta alçada dos seus
dons com todas as ofertas movidas dos filhos de Israel; a
ti, a teus filhos, e a tuas filhas contigo, as tenho dado
por estatuto perpétuo; todo o que estiver limpo na tua casa
as comerá" (Nm 18:8-11).
Era necessária uma maior energia sacerdotal, para se comer
da oferta da expiação do pecado ou da expiação da culpa do
que para participar simplesmente das ofertas movidas e da
oferta alçada com seus dons. As "filhas" de Arão podiam
comer das últimas. Ninguém senão os filhos de Arão podia
comer das primeiras. Em geral, a frase "o varão" exprime
alguma coisa em relação com a ideia divina: a palavra
"fêmea" com o desenvolvimento humano. A primeira frase
apresenta alguma coisa em força, a segunda mostra a sua
imperfeição. Como são tão poucos entre nós os que têm
energia sacerdotal suficiente para os tornar capazes de
fazerem seus os pecados e culpas de outrem! O bendito
Senhor Jesus fez isto perfeitamente. Aproximou-Se dos
pecados do Seu povo e sofreu a pena deles na cruz.
Identificou-Se inteiramente conosco de forma que podemos
saber, com plena e ditosa certeza, que toda a questão de
pecado e culpa foi divinamente resolvida. Se a
identificação de Cristo foi perfeita, então a liquidação
foi igualmente perfeita; e que foi perfeita declara-o a
cena passada no Calvário. Tudo está cumprido. O pecado, as
transgressões, as exigências de Deus; as exigências do
homem, tudo foi eternamente liquidado; e, agora, paz
perfeita é a parte de todos aqueles que aceitam, pela
graça, como verdadeiro o testemunho de Deus. Isto é tão
simples quanto Deus o pode fazer, e a alma que o crê é
feliz. A paz e felicidade do crente dependem inteiramente
da perfeição do sacrifício de Cristo. Não é uma questão do
seu modo de o receber ou dos seus pensamentos ou
sentimentos a respeito dele. É simplesmente uma questão de
dar crédito, pela fé, ao testemunho de Deus quanto ao valor
do sacrifício. O Senhor seja louvado pelo Seu próprio meio
simples e perfeito de paz! Que muitas almas atribuladas
sejam induzidas pelo Espírito Santo a compreendê-lo!
Terminaremos aqui as nossas considerações sobre uma das
mais ricas passagens de todo o cânone de inspiração. É
muito pouco o que temos podido coligir dela. Temos apenas
penetrado abaixo da superfície de uma mina inesgotável. Se
temos contudo conseguido que o leitor se sentisse
inclinado, pela primeira vez, a considerar as ofertas como
outras tantas representações variadas do grande Sacrifício,
e se ele se sentiu impulsionado a rojar-se aos pés do
grande Mestre para aprender mais das profundidades vivas
destas coisas, não posso deixar de pensar que foi alcançado
um fim pelo qual, devo sentir-me profundamente grato.
— CAPÍTULOS 8 e 9 —
O SACERDÓCIO
Considerações Gerais
Havendo considerado a doutrina do sacrifício, tal qual se
desenrola nos primeiros sete capítulos deste livro,
chegamos agora ao assunto do sacerdócio. Os dois assuntos
estão intimamente ligados. O pecador necessita de um
sacrifício, o crente necessita de um sacerdote. Nós temos
tanto um como outro em Cristo, que, havendo-se oferecido a
Si mesmo a Deus sem mácula, entrou na esfera do Seu
ministério sacerdotal, no santuário celeste. Não precisamos
de outro sacrifício nem de nenhum outro sacerdote, Jesus é
divinamente suficiente. Comunica o valor e a dignidade da
Sua própria pessoa a todos os cargos que desempenha e a
todas as obras que realiza. Quando o vemos como sacrifício,
sabemos que temos n'Ele tudo que um sacrifício perfeito
podia ser; e, quando o vemos como sacerdote, sabemos que
todas as funções do sacerdócio são perfeitamente cumpridas
por Ele. Como sacrifício, Ele põe o Seu povo em permanente
relação com Deus; e, como sacerdote, mantém-nos nela,
segundo a perfeição do que Ele é. O sacerdócio é destinado
àqueles que estão já em certo parentesco com Deus; como
pecadores por natureza e na prática, já pelo sangue de
Cristo chegamos perto de Deus (Ef 2:13). Somos postos em
parentesco permanente com Ele: estamos perante Ele como o
fruto da Sua obra. Ele tirou os nossos pecados de uma
maneira digna de Si para que pudéssemos estar na Sua
presença para louvor do Seu nome, como demonstração daquilo
que Ele pode realizar pelo poder da morte e ressurreição.
Mas, embora libertos de tudo que podia ser contra nós,
apesar de estarmos perfeitamente aceitos no Amado, não
obstante sermos perfeitos em Cristo, ainda que
soberanamente exaltados, somos, ainda assim, em nós
próprios, enquanto aqui andamos, pobres e fracas criaturas,
sempre prontos a extraviarem-se, prestes a tropeçar,
expostos a múltiplas tentações, provas e ardis. Como tais,
nós necessitamos do ministério incessante do nosso "Sumo
Sacerdote", cuja presença no santuário das alturas nos
mantém na plena integridade desse parentesco em que, pela
graça, estamos colocados. "Vive sempre para interceder por
eles" (Hb. 7:25). Não seria possível mantermo-nos aqui, nem
por um momento, se Ele não vivesse por nós nas alturas.
"...Porque eu vivo, e vós vivereis" (Jo 14:19). "Porque, se
nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela
morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados,
seremos salvos pela sua vida" (Rm. 5:10). A "vida" e a
"morte" estão inseparavelmente ligadas na economia da
graça. Porém, note-se que a vida vem depois da morte. É à
vida de Cristo ressuscitado de entre os mortos, e não à Sua
vida aqui na terra, que o apóstolo se refere na última
passagem reproduzida. Esta distinção é eminentemente digna
da atenção do leitor. A vida do nosso bendito Senhor Jesus,
enquanto aqui andou, era, desnecessário é dizer,
infinitamente preciosa; porém não entrou na esfera do Seu
serviço sacerdotal antes de haver realizado a obra de
redenção. Nem podia ter feito isso, "visto ser manifesto
que nosso Senhor procedeu de Judá, e, concernente a essa
tribo, nunca Moisés falou de sacerdócio" (Hb 7:14). "Porque
todo sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e
sacrifícios; pelo que era necessário que este também
tivesse alguma coisa que oferecer. Ora, se ele estivesse na
terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda
sacerdotes que oferecem dons segundo a lei" (Hb 8:3 - 4).
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por
um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos,
isto é, não desta criação, nem por sangue de bodes e
bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado uma eterna redenção[...].
Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos,
figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora
comparecer por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:11-12 e
24).
O céu, e não a terra, é a esfera do ministério sacerdotal
de Cristo;
e nessa esfera Ele entrou quando se ofereceu a Si mesmo sem
mácula a Deus. Nunca entrou no templo terrestre como
sacerdote. Subia frequentemente ao templo para ensinar, mas
nunca para sacrificar ou queimar incenso. Ninguém jamais
foi ordenado de Deus para desempenhar as funções do
ministério sacerdotal na terra, salvo Aarão e seus filhos.
"Se ele estivesse na terra nem tão-pouco sacerdote seria."
É um ponto de grande interesse e valor, em relação com a
doutrina do sacerdócio. O céu é a esfera do sacerdócio de
Cristo e a redenção efetuada a sua base. Excluindo o
sentido em que todos os crentes são sacerdotes (1 Pe 2:5),
não existe tal coisa como sacerdote na terra. A não ser que
um homem possa provar a sua descendência de Aarão, a menos
que possa provar a sua genealogia até essa origem antiga,
não tem direito de exercer o ministério sacerdotal. A
própria sucessão apostólica, admitindo que pudesse ser
provada, não teria valor algum neste caso, tanto mais que
os próprios apóstolos não eram sacerdotes, salvo no sentido
acima referido.
O membro mais fraco da família da fé é tanto sacerdote como
o próprio apóstolo Pedro. É um sacerdote espiritual; adora
num templo espiritual; serve a um altar espiritual; oferece
um sacrifício espiritual; está vestido com vestes
espirituais. "Vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para
oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo" (1 Pe2:5). "Portanto, ofereçamos sempre, por
ele, a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos
lábios que confessam o seu nome. E não vos esqueçais da
beneficência e comunicação, porque, com tais sacrifícios,
Deus se agrada" (Hb 13:15-16).
Se um dos descendentes diretos da casa de Arão se
convertesse a Cristo entraria num gênero inteiramente novo
de serviço sacerdotal. E note-se que a passagem que
acabamos de reproduzir apresenta as duas grandes classes de
sacrifício espiritual que o sacerdote espiritual temo
privilégio de oferecer. Existe o sacrifício de louvor a
Deus e o sacrifício de benevolência aos homens. Uma
corrente de grato louvor que sobe até ao trono de Deus e
uma corrente de benevolência ativa correndo para um mundo
necessitado. O sacerdote espiritual mantém-se com uma mão
levantada para Deus, apresentando o incenso de grato louvor
e a outra para ministrar, em verdadeira benevolência, todas
as formas de necessidade humana. Se estas coisas fossem
mais bem compreendidas, que santa elevação, e que graça
moral, não comunicariam ao caráter cristão! Elevação, visto
que o coração estaria sempre levantado para a Origem
infinita de tudo que pode elevar-se, graça moral, uma vez
que o coração estaria sempre aberto a tudo aquilo que
necessitasse da sua simpatia. As duas coisas são
inseparáveis. A ocupação imediata do coração com Deus deve,
necessariamente, elevá-lo e alargá-lo. Por outro lado, se
se anda à distância de Deus, o coração se comprimirá e
aviltará. Intimidade de comunhão com Deus—realização
habitual da nossa dignidade sacerdotal —, é o único remédio
eficaz para as tendências de decadência e egoístas da velha
natureza.
________________
(1) Uma comparação da epístola aos Efésios com a primeira
epístola de Pedro dará ao leitor instrução proveitosa a
respeito do aspecto duplo da posição do crente.
A primeira apresenta-o assentado no céu; a última como
peregrino e sofredor na terra.
O Oitavo Dia
"E Arão e seus filhos fizeram todas as coisas que o SENHOR
ordenou pela mão de Moisés" (Lv8:36). "Então, entraram
Moisés e Arão na tenda da congregação; depois; saíram e
abençoaram o povo; e a glória do SENHOR apareceu a todo o
povo. Porque o fogo saiu de diante do SENHOR e consumiu o
holocausto e a gordura sobre o altar; o que vendo todo o
povo, jubilou e caiu sobre as suas faces" (Lv 9:23,24).
Temos aqui uma cena do "oitavo dia" uma cena da glória da
ressurreição. Arão, havendo oferecido o sacrifício,
levantou as suas mãos em atitude de bênção sacerdotal sobre
o povo; e então Moisés e Arão retiraram-se para dentro do
tabernáculo, e desapareceram, enquanto que toda a
assembleia esperava da parte de fora. Finalmente, Moisés e
Arão, representando Cristo no Seu caráter duplo de
Sacerdote e Rei, saem e abençoam o povo; a glória aparece
em todo o seu esplendor, o fogo consome o sacrifício e toda
a congregação se prostra em adoração na presença do Senhor
de toda a terra.
Ora, tudo isto era literalmente feito na consagração de
Aarão e seus filhos. E, além disso, tudo isto era o
resultado de estrita adesão à Palavra do Senhor. Porém,
antes de deixar esta parte do assunto, quero recordar ao
leitor que todos estes capítulos são apenas "uma sombra dos
bens vindouros". Isto, na verdade, pode dizer-se a respeito
de toda a economia Moisaica (Hb 10:1). Arão e seus filhos
conjuntamente representam Cristo e a Sua casa sacerdotal.
Arão só representa a Cristo nas Suas funções vicárias e
intercessórias.
Moisés e Arão juntos representam Cristo como Rei e
Sacerdote. "O oitavo dia" representa o dia da glória da
ressurreição, em que a congregação de Israel verá o Messias
assentado no Seu trono como Sacerdote Real, e em que a
glória do Senhor há de encher toda a terra como as águas
cobrem o mar. Estas verdades sublimes são largamente
desenroladas na Palavra de Deus e brilham como pedras
preciosas de esplendor celestial através das páginas
inspiradas: mas, não seja o caso de terem para o leitor o
aspecto de novidade suspeita, envio-o às seguintes provas
escriturais: Números 14:21; Isaías 9:6-7; 11; 25:6 a
12:32:1; 2; 35; 37:31,32; 40:1 a5; 54,59:16a21;60a66;
Jeremias 23:5a8; 30:10a24; 33:6a22; Ezequiel48:35;
Daniel7:13,14; Oséas 14:4 a 9; Sofonias 3:14 a 20; Zacarias
3:8 a 10; 6:12,13; 14.
O Sangue da Vítima
Consideremos agora o segundo ponto desta parte do Livro, a
saber, a eficácia do sangue. É um ponto amplamente
desenrolado e que ocupa um lugar proeminente. Quer
contemplemos a doutrina do sacrifício ou a doutrina do
sacerdócio, vemos que o derramamento do sangue ocupa o
mesmo lugar importante. "Então, fez chegar o novilho da
expiação do pecado: e Arão e seus filhos puseram as suas
mãos sobre a cabeça do novilho da expiação do pecado: e o
degolou; e Moisés tomou o sangue, e pôs dele com o seu dedo
sobre as pontas do altar em redor, e expiou o altar depois;
derramou o resto do sangue à base do altar, e o santificou,
para fazer expiação por ele" (8:14-15).
"Depois, fez chegar o carneiro do holocausto; e Arão e seus
filhos puseram as mãos sobre a cabeça do carneiro; e o
degolou; e Moisés espargiu o sangue sobre o altar, em
redor" (versículos 18 e 19). "Depois, fez chegar o outro
carneiro, o carneiro da consagração; e Arão com seus filhos
puseram as suas mãos sobre a cabeça do carneiro; e o
degolou; e Moisés tomou do seu sangue e o pôs sobre a ponta
da orelha direita de Arão, e sobre o polegar da sua mão
direita e sobre o polegar do seu pé direito. Também fez
chegar os filhos de Arão; e Moisés pôs daquele sangue sobre
a ponta da orelha direita deles, e sobre o polegar da sua
mão direita, e sobre o polegar do seu pé direito; e Moisés
espargiu o resto do sangue sobre o altar, em redor"
(versículos 22 a 24).
O significado dos vários sacrifícios já foi explicado, até
certo ponto, nos primeiros capítulos deste volume; porém
das passagens que acabamos de citar ressalta o lugar
importante que o sangue ocupava na consagração dos
sacerdotes. Era preciso um ouvido manchado de sangue para
escutar as comunicações divinas; a mão espargida com sangue
era necessária para executar os serviços do santuário; e
era preciso que o pé estivesse manchado com sangue para
trilhar os átrios da casa do Senhor. Tudo isto é perfeito
em sua própria ordem. O derramamento de sangue era o
fundamento de todo o sacrifício pelo pecado, e estava
ligado com todos os vasos do ministério e com todas as
funções do sacerdócio. Em todo o conjunto do serviço
Levítico notamos o valor, a eficácia, o poder e a ampla
aplicação do sangue. "E quase todas as coisas, segundo a
lei, se purificam com sangue" (Hb 9:22). Cristo entrou, por
Seu próprio sangue, no mesmo céu.
Aparece no trono da majestade nos céus em virtude de tudo
que cumpriu na cruz. A sua presença no trono atesta o valor
e a aceitação do Seu sangue expiatório. Está ali por nós.
Bendita segurança! Vive sempre. Nunca muda; e nós estamos
n'Ele e como Ele é, Ele apresenta-nos ao Pai em Sua própria
perfeição eterna, e o Pai acha prazer em nós, assim
apresentados, do mesmo modo que Se compraz n'Aquele que nos
apresenta. Esta identificação é tipicamente representada em
"Arão e seus filhos" pondo as suas mãos sobre a cabeça dos
sacrifícios. Estavam todos diante de Deus no valor do mesmo
sacrifício. Quer fosse "o novilho da expiação", "o carneiro
do holocausto" ou "o carneiro da consagração", eles punham
conjuntamente as suas mãos sobre todos. E verdade que só
Arão fora ungido antes de o sangue haver sido derramado.
Estava vestido com as vestes do seu ofício e ungido com o
azeite da santa unção antes que seus filhos fossem vestidos
ou ungidos. A razão é óbvia, Arão simboliza Cristo em Sua
excelência incomparável e dignidade própria; e, como
sabemos, Cristo apareceu em todo o Seu valor pessoal e foi
ungido pelo Espírito Santo antes da realização da Sua obra
expiatória. Em todas as coisas Ele tem a preeminência (Cl
1).
Contudo, existe a mais completa identificação, depois,
entre Aarão e seus filhos; como há a mais completa
identificação entre Cristo e o Seu povo. "O que santifica,
como os que são santificados, são todos de um" (Hb 2:11). A
distinção pessoal realça o valor da unidade mística.
O Poder do Espírito
Esta verdade de distinção e unidade da Cabeça e dos membros
conduz-nos naturalmente ao nosso terceiro e último ponto,
isto é, o poder do Espírito. Podemos notar tudo que se
verifica entre a unção de Aarão e de seus filhos com ele. O
sangue é derramado, a gordura é queimada sobre o altar, e o
peito era movido por oferta de movimento perante o Senhor.
Por outras palavras, o sacrifício é consumado, o seu cheiro
suave sobe até Deus e Aquele que o ofereceu sobe no poder
da ressurreição e toma o Seu lugar nas alturas. Tudo isto
se realiza entre a unção da Cabeça e a unção dos membros.
Lemos e comparemos as passagens. Primeiramente, quanto a
Aarão só, lemos: "E lhe vestiu a túnica, e cingiu-o como
cinto, e pôs sobre ele o manto; também pôs sobre ele o
éfode cingiu-o com o cinto lavrado do éfode o apertou com
ele. Depois, de pôs-lhe o peitoral, pondo no peitoral o
Urim e o Tumim; e pôs a mitra sobre a sua cabeça, e na
mitra, diante do seu rosto, pôs a lâmina de ouro, a coroa
da santidade, como o SENHOR ordenara a Moisés. Então,
Moisés tomou o azeite da unção, e ungiu o tabernáculo e
tudo o que havia nele, e o santificou; e dele espargiu sete
vezes sobre o altar e ungiu o altar e todos os seus vasos,
como também a pia e a sua base, para santificá-los. Depois,
derramou do azeite da unção sobre a cabeça de Arão e ungiu-
o, para santificá-lo" (versículos 7 a 12).
Aqui só Arão é apresentado. O azeite da unção é derramado
sobre a sua cabeça, e isso, também, em ligação imediata com
a unção de todos os vasos do tabernáculo. Toda a assembleia
era autorizada a presenciar como o sumo sacerdote punha as
suas vestes oficiais, a mitra, e depois recebia a unção; e
não somente isto, mas como, à medida que se lhe punha cada
peça do vestuário, que se realizava cada ato, que se
celebrava cada cerimônia, podia ver-se como tudo estava
baseado sobre a autoridade da Palavra. Não havia em tudo
nada vago, nada arbitrário, nada imaginativo. Tudo era
divinamente estável. As necessidades da congregação eram
inteiramente providas e providas de tal maneira que podia
dizer-se, "...assim o SENHOR ordenou se fizesse".
Na unção só de Arão, antes do derramamento de sangue, temos
uma figura de Cristo, que, antes de se oferecer a Si mesmo
sobre a cruz, estava inteiramente só. Não podia haver união
entre Ele e o Seu povo, salvo sobre o fundamento da morte e
ressurreição. Esta verdade tão importante já foi mencionada
e tratada, até certo ponto, em conexão com o assunto do
sacrifício; porém aumenta o seu poder e interesse vê-la tão
intimamente ligada com a questão do sacerdócio. Sem
derramamento de sangue não há remissão — o sacrifício não
estava completo. Assim, também, sem derramamento de sangue
Arão e seus filhos não podiam ser ungidos juntos. Que o
leitor tome nota deste fato. Certifique-se dele, porque é
digno da sua mais profunda atenção.
Guardemo-nos sempre de passar ligeiramente qualquer
circunstância na economia Levítica. Cada coisa tem a sua
voz específica e próprio significado; e Aquele que delineou
e desenvolveu esta ordem pode explicar ao coração e
entendimento o que essa ordem significa.
"Tomou Moisés também do azeite da unção e do sangue que
estava sobre o altar e o espargiu sobre Arão e sobre as
suas vestes, sobre os seus filhos e sobre as vestes de seus
filhos com ele. E santificou a Arão e as suas vestes e seus
filhos, e as vestes de seus filhos com ele" (Lv8:30).
Porque não foram os filhos de Arão ungidos com ele na
ocasião citada no versículo 12? Simplesmente porque o
sangue não havia sido derramado. Quando "o sangue" e "o
azeite" puderam ser ligados, então Arão e seus filhos
puderam ser "ungidos" e "santificados" juntos; mas não
antes. "E por eles me santifico a mim mesmo, para que
também eles sejam santificados na verdade" (Jo 17:19). O
leitor que pudesse passar ao de leve uma circunstância tão
notável, ou dizer que ela nada significa, tem ainda que
aprender a avaliar devidamente as figuras do Velho
Testamento — "as sombras dos bens futuros". E, por outro
lado, aquele que admite que significa alguma coisa, mas
que, não obstante, recusa inquirir e compreender o que é
esse alguma coisa, está causando sério prejuízo à sua
própria alma e manifestando pouco interesse pelos preciosos
oráculos de Deus.
"E Moisés disse a Arão e a seus filhos: Cozei a carne
diante da porta da tenda da congregação e ali a comei com o
pão que está no cesto da consagração, como tenho ordenado,
dizendo: Arão e seus filhos a comerão. Mas o que sobejar da
carne e do pão queimareis com fogo. Também da porta da
tenda da congregação não saireis por sete dias, até ao dia
em que se cumprirem os dias da vossa consagração; porquanto
por sete dias o SENHOR vos consagrará. Como se fez neste
dia, assim o SENHOR ordenou se fizesse, para fazer expiação
por vós. Ficareis, pois, à porta da tenda da congregação
dia e noite, por sete dias, e fareis a guarda do SENHOR,
para que não morrais: porque assim me foi ordenado"
(versículos 31 a 35). Estes versículos oferecem um belo
símbolo de Cristo e o Seu povo alimentando-se juntos dos
resultados da expiação efetuada. Arão e seus filhos,
havendo sido ungidos em conjunto, em virtude do
derramamento de sangue, são apresentados aqui à nossa vista
fechados no recinto do tabernáculo por "sete dias". Uma
figura notável da atual posição de Cristo e Seus membros
durante esta dispensação, encerrados com Deus e aguardando
a manifestação da glória. Bem-aventurada posição! Bem-
aventurada parte! Bem-aventurada esperança! Estar-se
associado com Cristo, encerrado com Deus, esperando o dia
da glória, e, esperando a glória, nutrir-se das riquezas da
graça divina no poder da santidade, são bênçãos da mais
preciosa natureza, privilégios da mais elevada ordem. Oh,
se fôssemos capazes de os compreender bem, se tivéssemos
corações para os gozar e possuíssemos um sentimento
profundo da sua magnitude! Que os nossos corações estejam
separados de tudo que pertence a este presente século mau,
de forma a podermos alimentar-nos do conteúdo do "cesto das
consagrações", que é nosso próprio alimento como sacerdotes
no santuário de Deus.
- CAPÍTULO 10 —
O HOMEM CORROMPE
AS INSTITUIÇÕES DIVINAS
Nadabe e Abiú
Estamos, pois, preparados, de certo modo, para ouvir as
palavras com que abre o nosso capítulo. "E os filhos de
Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário, e
puseram neles fogo, e puseram incenso sobre ele, e
trouxeram fogo estranho perante a face do SENHOR, o que
lhes não ordenara". Que contraste com a cena da última
parte do nosso estudo! Ali tudo foi feito "como o SENHOR
ordenou", e o resultado foi a manifestação da glória. Aqui
é feita qualquer coisa que o Senhor não ordenam, e o
resultado é o juízo. Apenas cessou o eco do grito de
vitória e já os elementos de um culto corrompido estavam
preparados. Apenas a posição divina lhes havia sido
atribuída e já era deliberadamente abandonada por
negligência do mandamento divino. Apenas estes sacerdotes
acabavam de ser instalados quando falham gravemente no
cumprimento das suas funções sacerdotais.
E em que consistiu a sua faltai Eram falsos sacerdotes?
Eram apenas pretendentes a este oficiou De modo nenhum.
Eram filhos legítimos de Arão — verdadeiros membros da
família sacerdotal—, sacerdotes devidamente ordenados. Os
vasos do seu ministério e as suas vestes sacerdotais também
estavam em ordem. Em que consistiu, pois, o seu pecado?
Mancharam as cortinas do tabernáculo com sangue humano, ou
profanaram o recinto sagrado com algum crime que ofendesse
a moral? Não existem provas de que tivessem feito tais
coisas. Este foi o seu pecado: "...trouxeram fogo estranho
perante a face do SENHOR, O que lhes não ordenara". Aqui
estava o seu pecado. Afastaram-se na sua adoração da
Palavra de Jeová que os havia claramente instruído acerca
do modo do seu culto.
Já aqui aludimos à plenitude divina e suficiência da
Palavra do Senhor quanto a todos os pormenores do serviço
sacerdotal. Não havia sido deixada nenhuma lacuna para o
homem introduzir aquilo que lhe parecesse conveniente ou
desejável. "Isto é o que o SENHOR ordenou" era suficiente.
Esta ordem tornava tudo muito simples e claro. Nada se
exigia do homem senão um espírito de implícita obediência à
ordem divina. Mas falhou nisto.
O homem tem mostrado sempre má disposição em seguir o
caminho de estrita adesão à Palavra de Deus. Os atalhos
parece terem sempre apresentado encantos irresistíveis para
o pobre coração humano. "As águas roubadas são doces, e o
pão comido a ocultas é suave" (Pv 9:17). É a linguagem do
inimigo; porém o coração humilde e obediente sabe muito bem
que o caminho da submissão à Palavra de Deus é o único que
conduz a "águas" que são realmente "doces" ou o "pão" que
pode verdadeiramente ser chamado "suave". Nadabe e Abiú
podiam pensar que uma espécie de "fogo" era tão boa como a
outra; porém não era da sua competência decidir nesse
sentido. Deveriam ter atuado segundo a Palavra do Senhor;
mas, em lugar disso, agiram segundo a sua própria vontade,
e colheram os seus terríveis frutos. "Mas não sabe que ali
estão os mortos; que os seus convidados estão nas
profundezas do inferno" (Pv 9:18).
______________
(1) Para que o leitor se não sinta perturbado com a
dificuldade a respeito das almas de Nadabe e Abiú, devo
dizer que uma tal questão nunca deve ser levantada. Em
casos como o de Nadabe e Abiú, em Levítico 10; Core e a sua
companhia, em Números 16; toda a congregação, exceto Josué
e Calebe, cujas ossadas ficaram no deserto, segundo Números
14 e Hebreus 3; Acã e sua família, Josué 7; Ananias e
Safira, em Atos 5; os que foram julgados por abusos à mesa
do Senhor, I Coríntios 11, a questão da salvação da alma
nunca é levantada. Devemos ver neles simplesmente os atos
solenes da administração de Deus no meio do Seu povo. Este
conhecimento alivia a alma de todas as dúvidas.
O Senhor habitava entre os Querubins para julgar o Seu povo
em todas as coisas; e Deus Espírito Santo habita na Igreja
para ordenar e governar, segundo a perfeição da Sua
presença. A Sua presença era tão real e pessoal que Ananias
e Safira puderam mentir-Lhe e Ele pôde executar o juízo
sobre eles. Foi uma exibição tão real e imediata dos Seus
atos administrativos como temos no caso de Nadabe e Abiú ou
Acã ou qualquer outro.
É uma grande verdade de que se deve tomar nota. Deus não só
é a favor do Seu povo como está com ele e neles. Deve
contar-se com Ele em todas as coisas, quer grandes, quer
pequenas. Ele está sempre presente para dar consolação e
auxílio. Está ali para castigar e julgar. Está presente
para as necessidades de cada momento. Ele é suficiente. Que
a fé espere n'Ele. "Onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18:20). E,
certamente, onde Ele está nada mais precisamos.
___________________
(1) Alguns têm pensado que, devido ao lugar especial que
esta recomendação a respeito do vinho ocupa, Nadabe e Abiú
teriam estado debaixo da influência de bebida forte, quando
ofereceram o ''fogo estranho". Mas, seja como for, devemos
estar agradecidos por este princípio tão valioso referente
à nossa conduta, como sacerdotes espirituais. Temos de
evitar tudo que produz os mesmos efeitos sobre o homem
espiritual que a bebida forte produz sobre o homem físico.
Desnecessário é dizer que o crente deve ser propriamente
zeloso quanto ao uso do vinho ou bebida forte. Timóteo,
como sabemos, precisou de uma recomendação apostólica para
se convencer até mesmo a tocar-lhe, por amor da sua saúde
(1 Tm 5). Uma agradável prova da abstinência habitual de
Timóteo e do amor solícito do Espírito por intermédio do
apóstolo. Devo dizer que o nosso sentido moral sente--se
ofendido por ver crentes fazendo uso de bebida forte em
casos que, seguramente, não necessitam dela como remédio.
Trememos ao ver um crente tornar-se um simples escravo de
um hábito, seja o que for esse hábito. É uma prova de que
não mantém o seu corpo em sujeição e corre o perigo de ser
"reprovado" (1 Co 9:27).
______________
(1) Alguns poderão pensar talvez que a linguagem de
Levítico 10:9 lhes proporciona ocasional condescendência
nas coisas que contribuem para excitar a mente, visto que
se diz "vinho nem bebida forte... bebereis, quando
entrardes na tenda da congregação". A isto podemos
retorquir que o santuário não é um lugar para o crente
visitar ocasionalmente, mas sim, um lugar em que ele
habitualmente vai servir e adorar. É a esfera em que ele
deve viver e mover-se, e existir. Quanto mais perto de Deus
vivemos, menos podemos passar sem a Sua presença; e ninguém
que conheça o gozo profundo de ali estar poderá
condescender a qualquer coisa que o prive desse lugar. Não
existe dentro dos limites da terra coisa alguma que possa
constituir um substituto para a mente espiritual, para uma
hora de comunhão com Deus.
— CAPITULO 11 —
Introdução
O Livro de Levítico pode ser considerado "o guia do
sacerdote", porque é esta a sua característica. Está cheio
de princípios para orientação dos que desejam gozar de
intimidade com Deus no serviço sacerdotal. Tivesse Israel
continuado a andar com o Senhor segundo a graça pela qual
Ele os havia acabado de tirar da terra do Egito, e eles
teriam sido, para Si, "um reino sacerdotal e povo santo"
(Ex 19:6). Foi isto porém que deixaram de fazer. Afastaram-
se, colocaram-se debaixo da lei e não puderam cumpri-la.
Por isso, o Senhor teve de eleger determinada tribo, e
dessa tribo uma certa família, e dessa família determinado
homem, e a esse homem e seus filhos foi dado o elevado
privilégio de se aproximarem de Deus como sacerdotes.
Ora os privilégios de uma tal posição eram imensos; mas ela
tinha também as suas grandes responsabilidades. Requeria o
exercício constante de um espírito de discernimento. "Os
lábios do sacerdote guardarão a ciência, e da sua boca
buscarão a lei, porque ele é o anjo do SENHOR dos
Exércitos" (Mq 2:7). O sacerdote não só devia levar o juízo
da congregação perante o Senhor, como também expor as
ordenações do Senhor à congregação. Devia ser o instrumento
sempre pronto de comunicação entre o Senhor e a assembleia.
Não só devia conhecer, pessoalmente, os pensamentos de
Deus, como interpretá-los para o povo.
Tudo isto requeria naturalmente uma vigilância contínua,
uma atenção permanente e um estudo constante das páginas
inspiradas, a fim de assimilar, até ao íntimo da sua alma,
todos os preceitos, juízos, estatutos, leis, mandamentos e
ordenações do Senhor Deus de Israel, de forma a poder
instruir a congregação nas "coisas que deviam ser feitas".
Não havia lugar para caprichos ou invenções, nem para as
interferências plausíveis do homem ou invenções astutas de
conveniência humana. Tudo fora prescrito com precisão
divina e a peremptória autoridade da expressão "assim diz o
SENHOR". Minuciosos como eram os pormenores dos
sacrifícios, ritos e cerimônias, não foi deixado lugar para
a imaginação do homem. Nem sequer lhe era permitido decidir
qual a espécie de sacrifício que se devia oferecer em
qualquer ocasião, nem de que maneira devia apresentar-se
esse sacrifício. O Senhor havia previsto tudo. Nem o
sacerdote nem a congregação tinham qualquer autoridade para
decretar, estabelecer ou sugerir tanto como um simples
pormenor na larga série das ordenações da dispensação
mosaica. Tudo era ordenado pela Palavra do Senhor; o homem
só tinha de obedecer.
Para o coração obediente isto constituía uma misericórdia
indizível. É absolutamente impossível dar o valor devido ao
privilégio de podermos recorrer à Palavra de Deus e
encontrar nela, dia a dia, instruções completas sobre todos
os pormenores respeitantes à fé e ao nosso serviço.
Tudo que necessitamos é uma vontade submissa, um espírito
humilde, e um coração sincero. O livro que Deus deu para
nos guiarmos é tão completo como podíamos desejar. Nada
mais precisamos. Imaginar, ainda que seja por momentos, que
alguma coisa pode ser acrescentada pela sabedoria humana
constitui um insulto feito ao cânone sagrado. Ninguém pode
ler o Livro de Levítico sem admirar o extremo cuidado do
Deus de Israel em proporcionar ao Seu povo instruções tão
pormenorizadas quanto a tudo que se refere ao Seu serviço e
culto. O leitor mais superficial poderá, ao menos, aprender
esta interessante e proveitosa lição.
Atualmente, mais do que em qualquer outra época, é
necessário fazer chegar esta lição aos ouvidos da Igreja
professa. De toda a parte surgem dúvidas sobre a
suficiência divina das Sagradas Escrituras. Nalguns casos
estas dúvidas são expressas abertamente e com
propósito deliberado; noutros, com menos frequência, são
insinuadas encobertamente por meio de alusões ou
inferências. Dizem ao navegante cristão, direta ou
indiretamente, que a carta divina não basta para os
múltiplos e complicados pormenores da viagem—que tem havido
tantas alterações no oceano da vida, desde que essa carta
foi feita, que, em muitos casos, é inteiramente deficiente
para os propósitos da moderna navegação.
Dizem-lhes que as correntes, marés, costas, canais e praias
desse oceano são totalmente diferentes agora do que eram há
alguns séculos, e que, por conseguinte, temos de recorrer
ao auxílio, que a moderna navegação dispensa, a fim de
suprir as deficiências da velha carta, a qual, admitem, de
fato, ter sido perfeita para a época em que foi escrita.
O nosso veemente desejo é que o leitor cristão possa, com
clareza e decisão, opor-se a este grave insulto feito ao
Livro inspirado, do qual cada linha procede do coração do
Pai, e foi escrita por homens inspirados por Deus Espírito
Santo. Desejamos que possa contestar esse insulto, quer ele
se apresente sob a forma de uma audaz blasfêmia ou sob uma
astuciosa e plausível inferência. Seja qual for o disfarce
com que se apresente, deve a sua origem ao inimigo de
Cristo, que é o inimigo da Bíblia e inimigo da alma.
Se, na verdade, a Palavra de Deus não fosse suficiente,
então, em que situação ficaríamos? Para onde nos
voltaríamos? A quem nos dirigíamos pedindo socorro se o
Livro do nosso Pai fosse, de algum modo, defeituoso? Deus
diz que o Seu livro "pode instruir-nos perfeitamente para
toda boa obra" (2 Tm 3:17). O homem diz: não; há muitas
coisas sobre as quais a Bíblia não se pronuncia, e que,
todavia, precisamos de saber. Em quem devemos crer? Em Deus
ou nos homens? A nossa resposta aos que põem em dúvida a
divina suficiência da Escritura é simplesmente esta: Ou não
és homem de Deus, ou aquilo para que buscas encontrar
aprovação não é "uma boa obra". Isto é bem claro e ninguém
poderá vê-lo de outro modo se considerar cuidadosamente a
passagem de 2 Timóteo 3:17.
Oh, se tivéssemos um sentimento mais profundo da plenitude,
da majestade e da autoridade da Palavra de Deus! Temos
absoluta necessidade de ser fortificados neste ponto.
Precisamos de um sentimento profundo, vigoroso e constante
da autoridade suprema do cânone sagrado e da sua completa
suficiência para todos os tempos, climas e posições, para
todos os estados pessoais, sociais, e eclesiásticos, de
modo a podermos resistir a todos os esforços que o inimigo
faz para depreciar este inestimável tesouro. Que os nossos
corações compreendam mais do espírito destas palavras do
Salmista: "A tua palavra é a verdade desde o princípio, e
cada um dos teus juízos dura para sempre " (SI 119:160).
Esta série de pensamentos foi-nos sugerida no decorrer da
análise ao capítulo onze do Livro de Levítico. Nele vemos
como o Senhor faz uma descrição admirável em pormenores dos
animais, aves, peixes e répteis, dando ao Seu povo os
sinais para poderem conhecer os que eram limpos e os que
eram imundos. A súmula de todo este notável capítulo
encontra-se nos últimos dois versículos: "Esta é a lei dos
animais, e das aves, e de toda alma vivente que se move nas
águas, e de toda alma que se arrasta sobre a terra, para
fazer diferença entre o imundo e o limpo, e entre os
animais que se podem comer e os animais que não se devem
comer."
Digerir a Palavra
É de recear que muitos dos que leem a Bíblia não assimilem
a Palavra. Estas duas coisas são completamente diferentes.
Uma pessoa pode ler capítulo após capítulo, livro após
livro, e não assimilar uma só linha. Podemos lera Bíblia
como se cumpríssemos uma rotina monótona; porém, por falta
de faculdades assimiladoras — de órgãos digestivos — não
tiramos nenhum proveito com a leitura. Devemos ter isto bem
presente em nosso pensamento. O gado que pasta na erva
verde pode ensinar-nos uma salutar lição. Primeiro,
alimenta-se diligentemente do refrescante pasto, depois
repousa tranquilo a remoê-lo. Belo e admirável quadro do
cristão alimentando-se do conteúdo precioso do volume
inspirado, para depois o digerir intimamente. Que esta
experiência se generalize mais e mais entre nós! Se
estivéssemos mais habituados a fazer da Palavra de Deus o
alimento necessário às nossas almas, o nosso estado seria
certamente mais vigoroso e salutar. Guardemo-nos de fazer
da leitura da Bíblia uma forma morta, um dever frio, um
trabalho de rotina religiosa.
O mesmo cuidado é necessário quanto à exposição pública da
Palavra de Deus. Que os que expõem as Escrituras aos seus
semelhantes se alimentem previamente delas e as digiram por
si mesmos. Que leiam e assimilem, em particular, não apenas
para os outros, mas para si mesmos. É triste ver um homem
ocupado continuamente em procurar alimento para outros,
enquanto que ele próprio morre de fome. Por outro lado os
que assistem ao ministério público da Palavra não devem
fazê-lo maquinalmente e por força de hábito religioso, mas,
sim, com o sincero desejo de "ler", tomar nota, aprender e
assimilar intimamente o que ouvem. Assim os que ensinam e
os que são ensinados gozarão de uma vida espiritual sã e
bem provida e manifestar-se-á o caráter próprio da vida
cristã.
Animais Aquáticos
Vejamos agora o que o cerimonial levítico nos ensina acerca
de "tudo o que há nas águas". Aqui também encontramos a
dupla marca. "Isto comereis de tudo o que há nas águas:
tudo o que tem barbatanas e escamas nas águas, nos mares e
nos rios; aquilo comereis. Mas tudo o que não tem
barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios, todo réptil
das águas, e toda alma vivente que há nas águas, estes
serão para vós abominação" (versículos 9 e 10). Duas coisas
eram necessárias para que um peixe fosse considerado limpo,
no sentido cerimonial, "barbatanas e escamas", que,
evidentemente, representavam certa aptidão para o elemento
e o meio em que deviam mover-se.
Porém, havia mais do que isso. Creio que temos o privilégio
de poder discernir nas propriedades naturais com que Deus
dotou as criaturas que vivem nas águas certas qualidades
espirituais que pertencem à vida cristã. Se o peixe precisa
de "barbatanas" para se mover na água e de "escamas" para
resistir à ação desse elemento, também o crente precisa de
força espiritual para poder avançar através da cena que o
rodeia e, ao mesmo tempo, resistir à sua influência,
impedindo que ela penetre em si, mantendo-a no exterior.
Estas qualidades são preciosas. As barbatanas e as escamas
têm muita significação e oferecem muita instrução para o
crente. Sob o aspecto cerimonial, elas falam-nos de duas
coisas que nos são particularmente necessárias, a saber:
energia espiritual para avançarmos através do elemento que
nos rodeia e força para nos preservar da sua ação. De nada
nos servirá uma sem a outra. É inútil possuir a força
necessária para avançar através do mundo, se não podemos
resistir à influência do mundo; e ainda que pareça sermos
capazes de resistir à influência mundana, contudo, se nos
falta a força somos defeituosos. As "barbatanas" sem as
"escamas" não serviriam, nem tampouco as "escamas", sem as
"barbatanas". Ambas eram requeridas para se considerar o
peixe limpo, segundo o cerimonial; e nós, para sermos
adequadamente equipados, precisamos de estar protegidos
contra a influência penetrante de um mundo que jaz no
maligno, e, ao mesmo tempo, dispor de capacidade para
prosseguir rapidamente.
A conduta de um cristão deve mostrar que ele é estrangeiro
e peregrino na terra. A sua divisa deve ser "avançar";
sempre e unicamente avançar. Sejam quais forem as suas
circunstâncias, ele deve ter os seu s olhos postos no lar
que está para além deste mundo passageiro. Está dotado,
pela graça, de capacidade espiritual para ir avante — para
vencer energicamente todos os obstáculos e realizar as
ardentes aspirações do seu espírito nascido do céu. E,
enquanto prossegue assim vigorosamente, "forçando a sua
passagem para os céus", ele tem de guardar e proteger o seu
homem interior contra todas as influências exteriores.
Oh, se fôssemos mais inclinados a avançar! Se tivéssemos
mais apego às coisas que são de cima e mais desprendimento
às coisas deste mundo! Se, devido a estas considerações
sobre as sombras cerimoniais do Livro de Levítico,
chegarmos a desejar mais ardentemente esses dons, que,
embora tão obscuramente representados, nos são, contudo,
tão necessários, teremos motivos para bendizer ao Senhor.
As Aves
Nos versículos 13 a 24 do nosso capítulo temos a lei
respeitante às aves. Todas as que eram da espécie
carnívora, isto é, todas as que se alimentavam de carne,
eram imundas. As onívoras, ou as que comiam de tudo, eram
imundas. Todas as que, embora dotadas da faculdade de se
elevarem aos céus, se arrastavam na terra, eram imundas.
Quanto a esta última classe havia exceções (versículos 21 e
22); mas a regra geral, o princípio determinado, a
ordenação em vigor, eram tão distintos quanto possível:
"todo réptil que voa, que anda sobre quatro pés, será para
vós uma abominação" (versículo 20). Tudo isto é muito
simples como meio de instrução para nós. As aves que se
alimentavam de carne; as que ingeriam tudo; e todos os
répteis que voavam, deviam ser considerados imundos para o
Israel de Deus, pois assim o determinara o Deus de Israel.
O homem espiritual não terá dificuldade em reconhecer a
conveniência de semelhante ordenação. Nos hábitos das três
classes de aves citadas aqui podemos ver não só o motivo
lógico por que eram declaradas imundas, mas também a
admirável representação daquilo que existe na natureza
humana, e de que todo o verdadeiro cristão deve guardar-se.
Deve recusar tudo quanto seja de natureza carnal. Além
disso não deve alimentar-se indistintamente de tudo que lhe
é apresentado. Deve provar se "as coisas em que se
discorda" são puras. Deve ter cautela com tudo que ouve.
Deve exercer juízo espiritual sobre todas as coisas,
discernindo-as segundo o discernimento divino. Finalmente,
deve usar, por assim dizer, as suas asas — deve elevar-se
por meio das asas da fé ao seu lugar na esfera celeste a
que pertence. Em resumo, não deve haver nada vil, nada
confuso, nada imundo na vida do cristão.
Os Répteis
Quanto aos répteis a regra era a seguinte: "Todo réptil que
se arrasta sobre a terra será abominação; não se comerá"
(versículo 41).
Quão admirável é a graça condescendente do Senhor! Pode
curvar-Se para dar instruções acerca de um réptil! Não
queria deixar o Seu povo embaraçado acerca das coisas mais
vulgares. O guia do sacerdote continha as mais
pormenorizadas instruções sobre todas as coisas. Deus não
queria que o Seu povo fosse contaminado por causa do
contato com o que era imundo, nem que provasse o que era
imundo. Eles não pertenciam a si próprios, e, portanto, não
deviam proceder como bem lhes parecesse. Pertenciam ao
Senhor, invocavam o Seu nome; estavam identificados com
Ele.
A Sua Palavra devia ser a sua regra de conduta em todas as
coisas. Por ela deviam aprender o estatuto cerimonial
relativo aos animais, às aves, aos peixes e répteis. Não
deviam apoiar-se nos seus próprios pensamentos, seguir o
seu raciocínio ou deixarem-se guiar pelas suas próprias
imaginações, em assuntos desta natureza. A Palavra de Deus
devia ser o seu único guia. As outras nações podiam comer o
que entendessem; mas Israel gozava o grande privilégio de
só comer o que era do agrado do Senhor.
— CAPITULO 12 —
A PURIFICAÇÃO DA MULHER
QUE DÁ À LUZ
— CAPÍTULOS 13 e 14 —
A LEI DO LEPROSO
Introdução
Entre todas as funções que, segundo o ritual moisaico, eram
desempenhadas pelo sacerdote, nenhuma requeria atenção mais
paciente ou adesão mais rigorosa às instruções divinas
contidas no guia do sacerdote, do que o discernimento da
lepra e seu tratamento conveniente. Este fato deve ser
evidente a todos os que estudam com alguma atenção a parte
importante e muito extensa do Levítico a que acabamos de
chegar.
Duas coisas requeriam a solicitude e vigilância do
sacerdote, a saber: a pureza da congregação e a graça que
não podia admitir a exclusão de qualquer membro, salvo por
motivos claramente determinados. A santidade não podia
permitir que continuasse dentro da assembleia qualquer
pessoa que devesse ser excluída; e, por outra parte, a
graça não podia permitir que estivesse fora quem devia
estar dentro dela. Por isso, o sacerdote tinha a mais
instante necessidade de ser vigilante, calmo, sensato,
paciente, terno e muito experiente. Certos sintomas podiam
parecer de pouca importância, quando, na realidade, eram
muito graves; outros podiam parecer lepra, sem o ser. Eram
precisos a maior atenção e sangue-frio. Um juízo
precipitado ou uma conclusão demasiado apressada podiam
conduzir a sérias consequências, quer para a congregação
quer para qualquer dos seus membros.
Isto explica a repetição frequente de frases como estas: "O
sacerdote examinará" — "O sacerdote encerrará o que tem a
praga por sete dias" — "O sacerdote ao sétimo dia o
examinará" — "O sacerdote o encerrará segunda vez por sete
dias" — "O sacerdote «o sétimo dia, o examinará outra vez"
— "E o sacerdote o examinará" —
"Então o sacerdote o declarará por limpo". Nenhum caso
devia ser julgado ou decidido precipitadamente. Não se
devia formar uma opinião por ouvir dizer. O exame pessoal,
discernimento sacerdotal, tranquila reflexão, estrita
adesão à Palavra escrita—o guia santo e infalível —, todas
estas coisas eram formalmente requeridas do sacerdote, se
queria fazer um juízo reto de cada caso. Em todas as coisas
ele não devia deixar-se guiar pelos seus próprios
pensamentos, sentimentos ou sabedoria. A Palavra de Deus
continha instruções minuciosas, estabelecidas para se
submeter a elas. Cada pormenor, cada característica, cada
movimento, cada variação, cada sombra e caráter, cada
sintoma particular e cada afeição — tudo estava ampla e
divinamente previsto; de sorte que bastava que o sacerdote
conhecesse bem a Palavra de Deus e se conformasse com ela
em todas as coisas para evitar erros.
Já dissemos o bastante quanto ao sacerdote e suas santas
responsabilidades.
A Lepra
Consideremos agora a praga da lepra e o seu desenvolvimento
numa pessoa, no vestuário ou na habitação.
Considerando esta doença sob o ponto de vista físico, nada
pode ser mais asqueroso; e, sendo inteiramente incurável,
oferece-nos um quadro vivo e aterrador do pecado — o pecado
na natureza humana —, o pecado nas nossas circunstâncias, o
pecado na assembleia.
Que lição para a alma no fato que uma enfermidade tão
horrorosa e humilhante seja empregada como figura do mal
moral, quer seja num membro da assembleia de Deus, quer nas
circunstâncias de qualquer membro ou na própria assembleia.
A Responsabilidade do Sacerdote
Mas observe-se o cuidado, a vigilância, a perfeita
paciência recomendados ao sacerdote para evitar que se
considerasse como lepra o que não o era ou que aquilo que
na realidade era lepra pudesse escapar à sua atenção.
Muitas afecções podiam aparecer "na pele" — o lugar para
manifestações da lepra — "semelhantes à praga da lepra", as
quais, depois de uma paciente investigação do sacerdote, se
verificava serem apenas superficiais. Isto requeria muita
atenção. Qualquer mancha podia aparecer na superfície da
pele, a qual, ainda que requeresse ser examinada por aquele
que atuava por Deus, não era, na realidade, mancha. E
contudo, o que parecia ser apenas uma mancha superficial
podia ser alguma coisa mais profunda do que a pele, alguma
coisa interna, que afetasse os elementos ocultos do
organismo. Tudo isto requeria a maior atenção por parte do
sacerdote (veja-se os versículos 2-11). Uma simples
negligência, um ligeiro descuido, podiam ter graves
consequências. Podiam ocasionar a contaminação da
assembleia devia à presença da pessoa declarada leprosa ou
a expulsão, por qualquer mancha apenas superficial, de um
verdadeiro membro do Israel de Deus.
Ora, em tudo isto há um fundamento precioso de instrução
para o povo de Deus. Existe uma diferença entre a
enfermidade pessoal e a energia positiva do mal — entre
meros defeitos e imperfeições da consulta e a atividade do
pecado nos membros. Sem dúvida, importa velar sobre as
nossas fraquezas; pois se não vigiarmos, se não as
julgarmos e não nos guardarmos delas podem tornar-se na
fonte de um mal positivo (veja-se versículos 14 a 28). Tudo
que procede da nossa natureza deve ser julgado e
mortificado. Não devemos ser indulgentes para com as
fraquezas pessoais em nós próprios, ainda que devamos ser
indulgentes para com as dos nossos semelhantes. Tomemos por
exemplo o caso de um temperamento irascível. É um caso que
devemos condenar em nós próprios, embora devamos tolerá-lo
nos nossos semelhantes. A semelhança da "inchação do
apostema", no caso de um israelita (versículos 19-20), pode
chegar a ser causa de verdadeiro contágio — motivo para
exclusão da assembleia. Toda a forma de fraqueza deve ser
vigiada, não seja o caso de se tornar ocasião de pecado.
Uma "cabeça calva" não era lepra, mas era onde a lepra
podia declarar-se, e, pois isso, tinha de ser vigiada. Há
mil e uma coisas que, em si mesmas, não são pecaminosas,
mas que podem chegar a ser ocasião de pecado ser não se
exercer sobre elas vigilância. E não se trata somente do
que, no nosso parecer, pode ser designado por defeitos ou
fraquezas pessoais, mas até de coisas em que os nossos
corações estão dispostos a gloriar-se. A agudez do gênio, o
bom humor e a vivacidade de espírito, podem chegar a ser
fonte e centro de contaminação.
Cada pessoa tem uma ou outra tendência de que deve guardar-
se — alguma coisa que o obriga a estar sempre em guarda.
Quão ditosos somos nós, pois temos um Pai carinhoso a quem
podemos expor todas estas coisas! Confiados no amor
indulgente e infatigável, temos o precioso privilégio de
poder entrar sempre na Sua presença para Lhe contar tudo
que pesa sobre o coração e obter graça para sermos ajudados
em todas as nossas necessidades e obter vitória sobre todo
o mal.
Não há motivos para desanimar enquanto vemos sobre a porta
da tesouraria de nosso Pai esta inscrição: "Ele dá maior
graça". Preciosa inscrição! O seu valor não tem limites: é
incalculável, é infinito.
A Praga da Lepra
Vejamos agora como se procedia em cada caso em que a praga
da lepra era indiscutível e claramente determinada. O Deus
de Israel podia tolerar as enfermidades e os defeitos, mas
a partir do momento em que a enfermidade se tornava um caso
de corrupção, ou fosse na cabeça, na barba, na testa ou em
qualquer outra parte do corpo, não podia ser tolerada na
santa congregação. "Também as vestes do leproso, em quem
está a praga, serão rasgados, e a sua cabeça será
descoberta, e cobrirá o beiço superior e clamará: Imundo,
imundo! Todos os dias em que a praga estiver nele, será
imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora
do arraial" (versículos 45 - 46). Descreve-se aqui a
condição, ocupação e o lugar do leproso. Os vestidos
rasgados, a cabeça descoberta, o lábio superior coberto e
gritando: Imundo, imundo! E tendo de morar fora do arraial
na solidão do deserto vasto e terrível! Que podia haver de
mais humilhante e deprimente do que isto? "Habitará só" Era
impróprio estar em comunhão ou ter a companhia do seu povo.
Era excluído do único lugar, em todo o mundo, onde se
conhecia e gozava a presença do Senhor.
Prezado leitor, contempla neste pobre e solitário leproso o
tipo expressivo da pessoa em quem o pecado opera. E este
realmente o seu significado. Não é, como veremos
imediatamente, um pecador perdido, arruinado, culpado e
convicto, cuja culpa e miséria são manifestos, e, portanto,
objetivo próprio para o amor de Deus e o sangue de Cristo.
Não; no leproso excluído vemos uma pessoa em que o pecado
está atuando — uma pessoa em quem está a energia do mal. E
isto que mancha, exclui e priva do gozo da presença divina
e da comunhão dos santos. Enquanto o pecado operar não pode
haver comunhão com Deus ou com o Seu povo. "Habitará só; a
sua habitação será fora do arraial". Até quando? "Todos os
dias em que a praga estiver nele". Há aqui uma grande
verdade prática. A atividade do mal é o golpe de morte da
comunhão. Pode haver aparências exteriores, puro
formalismo, fria profissão, mas não pode haver nenhuma
comunhão enquanto o mal continuar a atuar. Não importa qual
seja o caráter do mal ou a sua importância, ainda que seja
insignificante ou apenas um mau pensamento, enquanto
continuar a atuar impedirá ou causará a suspensão da
comunhão. E quando se forma a empola, quando surge à
superfície, quando se descobre inteiramente, que pode
combater-se e tirá-lo pela graça de Deus e pelo sangue do
Cordeiro.
A PURIFICAÇÃO DO LEPROSO
O Ofício do Sacerdote
Vamos proceder agora ao exame atento das belas e
significativas ordenações relativas à purificação do
leproso, nas quais encontraremos algumas das mais preciosas
verdades do evangelho.
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Esta será a lei
do leproso no dia da sua purificação: será levado ao
sacerdote; e o sacerdote sairá fora do arraial" (capítulo
14:1-3). Já vimos qual era o lugar que o leproso ocupava:
estava fora do arraial, num lugar moralmente distante de
Deus, do Seu santuário e da Sua congregação. Demais, morava
em triste solidão e numa condição de impureza. Estava fora
do alcance de socorros humanos; e, ele próprio, nada podia
fazer senão contaminar as pessoas e as coisas em que
tocasse. Era, pois, claramente impossível que pudesse fazer
qualquer coisa para se purificar. Se, realmente, só podia
poluir com o seu próprio contato, como poderia ele
purificar-se a si mesmo? Como poderia ele contribuir para a
sua purificação ou cooperar nesse sentido? Era impossível.
Como leproso imundo, nada podia fazer por si mesmo; tudo
tinha de ser feito para ele. Não podia abrir caminho para
Deus, mas Deus podia abrir caminho até ele. Estava separado
de Deus. Não havia para ele auxílio, quer em si quer nos
seus semelhantes. É evidente que um leproso não podia
purificar outro; e é igualmente claro que se um leproso
tocasse numa pessoa limpa, esta ficava imunda. O seu único
recurso estava em Deus. Tinha de ficar a dever tudo à graça
de Deus.
Por isso lemos: "O sacerdote sairá fora do arraial". Não se
diz: "O leproso ira ao arraial". Isto estava inteiramente
fora de discussão. Era inútil falar ao leproso em ir a
qualquer lugar ou fazer qualquer coisa. Estava condenado à
triste solidão; para onde poderia ele ir? Coberto de
manchas incuráveis, que podia ele fazer? Podia suspirar por
convívio com alguém e desejar ser limpo, mas os seus
suspiros eram os de um leproso solitário e desvalido. Podia
fazer esforços para se purificar, mas os seus esforços só
podiam provar que ele estava imundo e contribuírem para
propagar o mal. Antes que pudesse ser declarado "limpo" era
necessário que se realizasse uma obra a seu favor—obra que
ele não podia fazer nem ajudar a fazer —, obra que tinha de
ser totalmente efetuada por outrem. O leproso devia manter-
se "tranquilo" e ver o sacerdote fazer uma obra em virtude
da qual a lepra podia ser perfeitamente curada. O sacerdote
fazia tudo. O leproso nada fazia.
O Sacerdote Perfeito
"Então, o sacerdote ordenará que, por aquele que se houver
de purificar, se tomem duas aves vivas e limpas, e pau de
cedro, e carmesim, e hissopo. Mandará também o sacerdote
que se degole uma ave num vaso de barro sobre águas vivas".
Na saída do sacerdote fora do arraial — a sua saída do
lugar onde Deus habitava—vemos o bendito Senhor Jesus
descendo do seio do Pai, Sua morada eterna, para vir a este
nosso mundo corrompido, onde nos via afundados na lepra
corruptora do pecado. A semelhança do bom Samaritano chegou
ao pé de nós. Não se limitou a vir até meio caminho, ou até
perto do fim — percorreu todo o caminho. Isto era
indispensável. Segundo as santas exigências do trono de
Deus, não teria podido purificar-nos da nossa lepra se
tivesse permanecido no seio do Pai. Podia chamar mundos à
existência pela palavra da Sua boca; mas para purificar os
homens da lepra do pecado era preciso alguma coisa mais.
"Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho
unigênito". Quando se tratou de criar o mundo, Deus só teve
que falar. Quando se tratou de salvar pecadores, teve de
dar o Seu Filho. "Nisto se manifesta o amor de Deus para
conosco: que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para
que por ele vivamos. Nisto está o amor, não em que nós
tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e
enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados" (1
Jo4:9-10 – ECRF da SBTB).
Mas a vinda e a missão do Filho estavam longe de realizar
tudo que fazia falta. Pouco aproveitaria ao leproso, na
realidade, se o sacerdote se limitasse a sair fora do
arraial para observar a sua desesperada situação. O
derramamento de sangue era absolutamente necessário antes
que a lepra pudesse ser tirada. Era necessária a morte de
uma vítima sem mancha. "Sem derramamento de sangue não há
remissão" (Hb 9:22). E note-se que o derramamento de sangue
era a verdadeira base da purificação do leproso. Isto não
era apenas uma circunstância que, em ligação com outras,
contribuía para a purificação do leproso. De nenhum modo. O
sacrifício da vida era o fato principal e de maior
importância. Isto feito, o caminho estava aberto e todas as
barreiras eram removidas: Deus podia tratar em graça
perfeita com o leproso. Devemos fixar bem este ponto, se
queremos compreender plenamente a gloriosa doutrina do
sangue.
O Sangue Espargido
"E sobre aquele que há - de purificar-se da lepra espargirá
sete vezes; então, o declarará por limpo e soltará a ave
viva sobre a face do campo". Quanto mais refletimos sobre o
capítulo 13 tanto mais claramente vemos como era
absolutamente impossível o leproso fazer qualquer coisa
para sua própria purificação. Tudo que ele podia fazer era
"cobrir o beiço superior"; e tudo que podia dizer era:
"Imundo, imundo!" Competia a Deus, e a Deus somente, buscar
o meio e realizar a obra pela qual o leproso pudesse ser
perfeitamente purificado; e, demais, pertencia a Deus, e só
a Ele, declarar "limpo" o leproso. Por isso está escrito,
"o sacerdote espargirá" e "ele o declarará limpo". Não é
dito "o leproso espargirá e declarar-se-á ou considerar-se-
á limpo". Isto de nada serviria. Deus era o Juiz—Deus era o
único que podia curar; Deus, e só Deus podia purificar. Só
Ele sabia o que era a lepra, como podia ser removida e
quando se devia declarar limpo o leproso.
O leproso podia continuar toda a sua vida coberto de lepra
e todavia ignorar por completo qual era o seu mal. Era a
Palavra de Deus — A Palavra da Verdade —, o testemunho
divino, que declarava toda a verdade quanto à lepra; e nada
menos que essa mesmíssima autoridade podia declarar o
leproso limpo, e isto somente sobre o fundamento sólido e
indiscutível da morte e ressurreição. Existe uma conexão
preciosa entre os três pontos mencionados no versículo 7: o
sangue é espargido, o leproso declarando limpo e a ave viva
solta. Não há uma simples palavra sobre o que o leproso
devia fazer, dizer, pensar ou sentir. Bastava saber que era
leproso: um leproso declarado, julgado, coberto de lepra da
cabeça aos pés. Para ele isto era bastante; tudo o mais
pertencia a Deus.
O Oitavo Dia
a) O Sacrifício pela Culpa
"E, ao oitavo dia, tomará dois cordeiros sem mancha, uma
cordeira sem mancha, de um ano, e três dízimas de flor de
farinha para oferta de manjares amassada com azeite, e um
logue, de azeite. E o sacerdote que faz a purificação
apresentará o homem que houver de purificar-se com aquelas
coisas perante o SENHOR, à porta da tenda da congregação. E
o sacerdote tomará um dos cordeiros e o oferecerá por
expiação da culpa e o loque de azeite; e os moverá por
oferta movida perante o SENHOR" (versículos 10-12).
Aqui é introduzida toda a série de oferendas; mas é a
Expiação da Culpa que se oferece primeiro, visto que o
leproso é considerado como um verdadeiro transgressor. Isto
é verdadeiro em todos os casos. Como aqueles que pecaram
contra Deus, temos todos necessidade de Cristo, pois foi
Ele quem fez expiação pelos nossos pecados na cruz. "Ele
mesmo levou, em seu corpo, os nossos pecados sobre o
madeiro". O primeiro aspecto em que Cristo se apresenta ao
pecador é o do antítipo da Expiação da Culpa.
O Logue de Azeite
Contudo, Deus não se limita a apagar os nossos pecados pelo
sangue expiador de Jesus. Isto, em si, é uma grande obra;
mas há alguma coisa ainda mais importante: "Também o
sacerdote tomará do logue de azeite e o derramará na palma
da sua própria mão esquerda. Então, o sacerdote molhará o
seu dedo direito no azeite que está na sua mão esquerda e
daquele azeite, com o seu dedo, espargirá sete vezes
perante o SENHOR; e o restante do azeite, que está na sua
mão, o sacerdote porá sobre a ponta da orelha direita
daquele que tem de purificar-se, e sobre o dedo polegar da
sua mão direita, e sobre o dedo polegar do seu pé direito,
em cima do sangue da oferta pela expiação da culpa; e o
restante do azeite que está na mão do sacerdote, o porá
sobre a cabeça daquele que tem de purificar-se; assim, o
sacerdote fará expiação por ele perante o SENHOR"
(versículos 15 a 18).
Assim, os nossos membros não só são purificados pelo sangue
de Cristo, mas também consagrados a Deus no poder do
Espírito. A obra de Deus não é somente negativa mas também
positiva. O ouvido já não deve ser o meio de comunicar o
que é imundo, antes deve estar pronto a escutar" a voz do
Bom Pastor". A mão já não deve usar-se como instrumento de
injustiça, mas deve estender-se para atos de justiça, graça
e verdadeira santidade. O pé não deve pisar mais os
caminhos da tolice, mas percorrer o caminho dos santos
mandamentos de Deus. E, finalmente, o homem deve consagrar-
se a Deus na energia do Espírito Santo.
É interessantíssimo observar que o "azeite" era posto sobre
"o sangue" da "expiação da culpa". O sangue de Cristo é a
base divina das atividades do Espírito Santo. O sangue e o
azeite vão juntos. Como pecadores nada poderíamos saber do
azeite salvo sobre o fundamento do sangue. O azeite não
podia ser posto sobre o leproso enquanto não lhe tivesse
sido aplicado o sangue da expiação da culpa. "Em quem
também, depois que crestes, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa". A exatidão divina do símbolo desperta a
admiração da mente regenerada. Quanto mais atentamente a
examinamos — quanto mais nos concentramos nela à luz das
Escrituras — mais percebemos e apreciamos a sua beleza,
força e precisão. Tudo está, como podia justamente esperar-
se, em perfeita harmonia com as analogias da Palavra de
Deus. Não é necessário nenhum esforço para compreender
isto. Tomemos Cristo como a chave que abre o rico tesouro
das figuras; exploremos o precioso conteúdo à luz da
lâmpada de inspiração divina; deixemos que o Espírito Santo
seja o intérprete; e assim seremos infalivelmente
edificados, iluminados e abençoados.
c) O Holocausto
"E depois degolará o holocausto". Esta oferta apresenta-nos
o aspecto mais elevado da morte de Cristo. É Cristo
oferecendo-Se a Deus sem mancha, sem qualquer relação quer
com a culpa, quer com o pecado. É Cristo caminhando para a
cruz, numa consagração voluntária, e oferecendo-se ali em
sacrifício de cheiro suave a Deus.
d) A Oferta de Manjares
"E o sacerdote oferecerá o holocausto e a oferta de
manjares sobre o altar; assim, o sacerdote fará expiação
por ele, e será limpo (versículo 20). A oferta de manjares
simboliza "o homem Cristo Jesus" na Sua perfeita vida
humana. Está intimamente ligada, no caso do leproso, com o
holocausto; e o mesmo sucede na experiência diária de cada
pecador salvo. Quando sabemos que as nossas transgressões
estão perdoadas e que a raiz ou princípio do pecado está
julgado, então podemos, pelo poder do Espírito Santo e
segundo a nossa capacidade, gozar comunhão com Deus em
relação Aquele Ser bendito que viveu uma vida humana
perfeita, aqui, na terra, e que Se ofereceu sem mancha a
Deus, na cruz. Assim, as quatro classes de oferendas se nos
apresentam por sua ordem divina, na purificação do leproso
— a saber, a expiação da culpa, a expiação do pecado, o
holocausto e a oferta de manjares, mostrando cada uma um
aspecto particular de nosso bendito Senhor Jesus Cristo.
Da Perdição à Glória
Aqui termina o relato das disposições do Senhor sobre o
leproso; e oh, que maravilhoso relato! Que exposição da
hediondez do pecado, da graça e santidade de Deus, da
preciosidade da Pessoa de Cristo e a eficácia da Sua obra!
Nada pode ser mais interessante do que observar os rasgos
da graça divina saindo do recinto sagrado do santuário para
ir ao lugar imundo, onde, de cabeça descoberta, embuçado e
com as vestes rasgadas, se encontrava o leproso. Deus
procurava o leproso onde ele estava; mas não o deixava ali.
Manifestava-se pronto a cumprir uma obra em virtude da qual
podia conduzir o leproso a um lugar mais elevado e a uma
comunhão mais íntima do que ele jamais havia conhecido. Em
virtude desta obra, o leproso era conduzido do seu lugar de
imundície e solidão para a própria porta do tabernáculo da
congregação, o lugar dos sacerdotes, para ali gozar dos
privilégios sacerdotais (compare-se Êxodo 29:20, 21, 32).
Como poderia elevar-se a tal posição? Por si mesmo era
impossível. Por muito que pudesse fazer, teria definhado e
morrido na sua lepra, se a graça soberana do Deus de Israel
não tivesse descido sobre ele para o elevar do lugar imundo
até o colocar entre os príncipes do Seu povo.
Se alguma vez existiu um caso em que a questão dos esforços
humanos, dos méritos humanos e da justiça humana, pôde ser
plenamente provada e arrumada para sempre, é
incontestavelmente o caso do leproso. Seria uma lamentável
perda de tempo discutir tal questão em presença de um caso
semelhante. Deve ser evidente, até mesmo para o leitor mais
superficial, que nada senão a graça divina, reinando pela
justiça, podia ir ao encontro das condições e necessidades
do leproso. E de que maneira gloriosa e triunfante opera a
graça de Deus! Desce às maiores profundidades a fim de
elevar o leproso às maiores alturas. Vede o que o leproso
perdeu e o que ganhou! Perdeu tudo o que pertencia à
natureza e ganhou o sangue da expiação e a graça do
Espírito—simbolicamente falando. Em boa verdade, os seus
ganhos eram incalculáveis. Se nunca tivesse sido posto fora
do arraial, nunca teria alcançado tão infinita riqueza. Tal
é a graça de Deus! Tal é o poder e o valor, a virtude e a
eficácia do sangue do Senhor Jesus!
Como tudo isto nos recorda forçosamente o filho pródigo, em
Lucas 15! Nele a lepra havia também alastrado e surgido à
superfície. Havia estado longe num lugar imundo, onde os
seus próprios pecados e o intenso egoísmo dos habitantes da
terra longínqua tinham criado uma situação de solidão em
redor de si. Mas, bendito seja para sempre o profundo e
terno amor do Pai, sabemos como tudo acabou: o pródigo
encontrou uma nova posição mais elevada e entrou numa
comunhão mais íntima do que antes conhecera. Nunca antes se
tinha morto um "bezerro cevado" para ele. Nunca se lhe
havia vestido "o melhor vestido". E a que devia tal
distinção? Seria devido aos méritos do pródigo? Oh, não;
era simplesmente devido ao amor do Pai.
Prezado leitor, permita que lhe faça esta pergunta: pode
debruçar-se sobre o relato do procedimento de Deus para com
o leproso, em Levítico 14, ou da conduta do Pai para com o
pródigo, em Lucas 15, sem sentir intensamente o amor que
existe em Deus? Esse amor que se manifesta na Pessoa e obra
de Cristo, que é relatado nas Escrituras Sagradas e
derramado sobre o coração do crente pelo Espírito Santo?
Que o Senhor nos dê uma comunhão mais íntima e constante
consigo mesmo!
— CAPITULO 15 —
A IMPUREZA INERENTE À
NATUREZA HUMANA
A Água e o Sangue
Porém, bendita seja a graça que proveu um tão eficaz
remédio para a contaminação da carne! Esta provisão é
apresentada sob duas formas distintas em todo o Livro de
Deus e particularmente na parte que estamos examinando, a
saber: "água" e "sangue". Estão ambas baseadas sobre a
morte de Cristo. O sangue que expia e a água que limpa
saíram do lado ferido de Cristo crucificado (compare-se ]o
19:34 com 1 }o 5:6). "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho,
nos purifica de todo pecado" (1 Jo 1:7). E a Palavra de
Deus limpa os nossos hábitos e a nossa conduta (SI 119:9;
Ef 5:26). Assim, somos mantidos em estado próprio à
comunhão e ao culto, embora passando por uma cena onde tudo
está poluído e trazendo conosco uma natureza cujos impulsos
deixam uma mancha.
Já foi notado que este capítulo trata de uma classe de
impurezas menos graves do que a lepra. Isto explica o fato
de a expiação o não ser aqui prefigurada por um bezerro ou
um cordeiro, mas, sim, pela menor ordem dos sacrifícios, a
saber: "duas rolas". Mas, por outro lado, a virtude
purificadora da Palavra é recordada constantemente nos atos
cerimoniais de "lavar", "banhar", e "enxugar". "Como
purificará o jovem o seu caminhou Observando-o conforme a
tua palavra" (SI 119:9). "Vós, maridos, amai vossa mulher,
como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou
por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da
água, pela palavra." (Ef 5:25-26). A água ocupava um lugar
muito importante no sistema levítico de purificação, e,
como uma figura da Palavra, nada pode ser mais interessante
ou instrutivo.
Desta forma, podemos resumir os pontos mais importantes
deste capítulo quinze de Levítico. Aprendemos de uma
maneira admirável a intensidade da santidade da presença
divina. Nem uma mancha, nem uma nódoa pode tolerar-se um só
instante nessa região santa. "Assim, separareis os filhos
de Israel das suas imundícias, para que não morram nas suas
imundícias, contaminando o meu tabernáculo, que está no
meio deles" (versículo 31).
Aprendemos outra vez que a natureza humana é uma fonte
permanente de impureza. Está irremediavelmente corrompida,
e não só está corrompida como é contagiosa. Acordada ou a
dormir, ereta ou deitada, a nossa natureza está corrompida
e contamina. O seu próprio contato transmite corrupção. É
uma lição profundamente humilhante para a orgulhosa
humanidade; mas assim é. O Livro de Levítico põe um espelho
fiel diante da nossa natureza. Não deixa à "carne" nada em
que possa gloriar-se. Os homens podem orgulhar-se da sua
civilização, do seu sentido moral e da sua dignidade. Que
estudem o terceiro Livro de Moisés, e nele verão o que tudo
isto vale realmente aos olhos de Deus.
Finalmente, temos outra vez o ensino do valor expiatório do
sangue de Cristo e a virtude purificadora e santificadora
da preciosa Palavra de Deus. Quando pensamos na pureza
irrepreensível do santuário e refletimos sobre a impureza
irremediável da nossa natureza, temos que perguntar: "Como
poderemos entrar e permanecer ali"? A resposta encontra-se
no "sangue e água" que saíram do lado de Cristo crucificado
— Cristo que entregou a Sua vida à morte por nós, para que
pudéssemos viver por Ele. "Três são os que testificam na
terra: o Espírito e a água e o sangue; e", bendito seja
Deus, "estes três concordam num". O Espírito não nos dá uma
mensagem diferente daquela que encontramos na Palavra, e a
Palavra e o Espírito em conjunto declaram-nos a
preciosidade e eficácia do sangue.
Não podemos dizer, portanto, que o capítulo quinze de
Levítico foi escrito "para nosso ensino"? Não ocupa um
lugar definido no cânone divino? Certamente. Haveria uma
lacuna se fosse omitido. Ensina-nos, o que não podíamos
aprender da mesma maneira em nenhuma outra passagem da
Escritura. É certo que todas as Escrituras nos ensinam a
santidade de Deus, o aviltamento da natureza, a eficácia do
sangue e o valor da Palavra; porém o capítulo que acabamos
de estudar apresenta-nos essas grandes verdades e grava-as
sobre o nosso coração de um modo especial.
Que cada parte do Volume de nosso Pai seja mais preciosa
para os nossos corações. Que cada um dos Seus testemunhos
seja mais doce do que o mel e que cada um dos Seus "justos
juízos" ocupe o seu devido lugar em nossas almas.
— CAPITULO 16 —
Introdução
Este capítulo apresenta alguns dos princípios mais
importantes que, de algum modo, merecem a atenção da alma
regenerada. Apresenta a doutrina da expiação com um poder e
uma plenitude pouco vulgares. Em suma, devemos incluir o
capítulo décimo sexto de Levítico entre as porções mais
importantes e preciosas da Inspiração; se é que podemos
fazer comparações onde tudo é divino.
Considerando este capítulo sob o ponto de vista histórico,
vemos como ele nos dá um relato das cerimônias do grande
dia da expiação em Israel, mediante a qual eram
estabelecidas e mantidas as relações do Senhor com a
assembleia e eram expiados os pecados, faltas e fraquezas
do povo, de forma que o Senhor Deus pudesse habitar no meio
deles. O sangue que era derramado neste solene dia formava
a base do trono do Senhor no meio da congregação. Em
virtude deste sangue, o Deus santo podia fazer a Sua
habitação no meio do povo, apesar de todas as suas
impurezas. O dia dez do sétimo mês era.um dia único em
Israel. Não havia outro dia semelhante em todo o ano. Os
sacrifícios deste dia formavam o fundamento dos caminhos de
Deus em graça, misericórdia, paciência e longanimidade.
Além disso, aprendemos nesta parte da história inspirada
que "o caminho do santuário não estava ainda aberto". Deus
estava oculto atrás do véu e o homem tinha de manter-se à
distância. "E falou o SENHOR a Moisés, depois que morreram
os dois filhos de Arão, quando se chegaram diante do SENHOR
e morreram. Disse, pois, o SENHOR a Moisés: Dize a Arão,
teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para
dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a
arca, para que não morra; porque eu apareço na nuvem sobre
o propiciatório".
O caminho não estava aberto para que o homem pudesse
aproximar-se em todo o tempo da presença divina, nem
existia nenhum meio, em todo o cerimonial moisaico, que lhe
permitisse ficar ali continuamente. Deus estava encerrado
dentro, longe do homem; e o homem estava fora, separado de
Deus, e o "sangue de bodes e bezerros" não podia abrir o
caminho para um lugar de encontro permanente. Era
necessário "o sacrifício de um nome mais nobre e sangue
mais precioso".
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a
imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios
que continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os
que a eles se chegam. De outra maneira, teriam deixado de
se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes,
nunca mais teriam consciência de pecado. Nesses
sacrifícios, porém, cada ano se faz comemoração dos
pecados, porque é impossível que o sangue dos touros e dos
bodes tire pecados" (Hb. 10:1-4). Nem o sacerdócio levítico
nem os sacrifícios levíticos podiam conduzir à perfeição. A
insuficiência está gravado nos último, a debilidade sobre o
primeiro e a imperfeição sobre um e outros. Um homem
imperfeito não podia ser um sacerdote perfeito e um
sacrifício imperfeito não podia dar uma boa consciência.
Arão não era competente para se sentar dentro do véu e os
sacrifícios que ele oferecia não podiam rasgar esse véu.
Dissemos o bastante sob o ponto de vista histórico do
capítulo. Consideremo-lo agora sob o ponto de vista típico.
Os dois Bodes
"Também tomará ambos os bodes e os porá perante o SENHOR, à
porta da tenda da congregação. E Arão lançará sortes sobre
os dois bodes: uma sorte pelo Senhor e a outra sorte pelo
bode emissário. Então, Arão fará chegar o bode sobre o qual
cair a sorte pelo SENHOR e o oferecerá para expiação do
pecado. Mas o bode sobre que cair a sorte para ser bode
emissário apresentar-se-á vivo perante o Senhor, para fazer
expiação com ele, para enviá-lo ao deserto como bode
emissário" (versículos 7 a 20). Nestes dois bodes temos os
dois aspectos da expiação já referidos. "A sorte pelo
SENHOR" caía sobre um, e a sorte pelo povo caía sobre o
outro. No caso do primeiro não se tratava das pessoas ou
dos pecados que deviam ser perdoados, nem dos desígnios de
Deus de graça para com os Seus eleitos. Estas coisas,
desnecessário é dizer, são de uma importância infinita; mas
não estão compreendidas no caso do "bode sobre o qual caía
a sorte pelo SENHOR" . Este bode simbolizava a morte de
Cristo, mediante a qual Deus foi perfeitamente glorificado,
com respeito ao pecado em geral. Esta grande verdade está
plenamente exposta na expressão notável "Uma sorte pelo
SENHOR". Deus tem uma parte especial na morte de Cristo —
uma parte distinta —, uma parte que não deixaria de ser
eterna ainda que nenhum pecador fosse salvo. A fim de se
compreender a força desta asserção é preciso recordar como
Deus tem sido desonrado neste mundo. A Sua verdade tem sido
desprezada; a Sua autoridade tem sido desdenhada; a Sua
majestade tem sido desconsiderada; a Sua lei tem sido
desobedecida; os Seus direitos têm sido esquecidos; o Seu
nome tem sido blasfemado e o Seu caráter difamado.
O Bode "Azazel"
"Havendo, pois, acabado de expiar o santuário, e a tenda da
congregação, e o altar, então, fará chegar o bode vivo. E
Arão porá ambas as suas mãos sobre a cabeça do bode vivo e
sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de
Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus
pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao
deserto, pela mão de um homem designado para isso. Assim,
aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à
terra solitária; e o homem enviará o bode ao deserto".
Aqui temos, pois, a segunda ideia ligada com a morte de
Cristo, a saber: o perdão completo e final do povo. Se a
morte de Cristo constitui o fundamento da glória de Deus,
constitui também a base do perfeito perdão dos pecados dos
que põem nela a sua confiança. Este segundo objetivo é,
bendito seja Deus, apenas uma aplicação secundária é, e
inferior de expiação, embora os nossos corações néscios
sejam propensos a considerá-la como o aspecto mais elevado
da cruz. Isto é um erro. A glória de Deus está em primeiro
lugar; a nossa salvação em segundo. Manter a glória de Deus
era o objetivo principal e querido do coração de Cristo.
Ele seguiu este objetivo desde o princípio ao fim com
propósito definido e resoluta fidelidade. "Por isso o Pai
me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la" (Jo
10:17). "Agora, é glorificado o Filho do homem, e Deus é
glorificado nele. Se Deus é glorificado nele, também Deus o
glorificará em si mesmo, e logo o há de glorificar" (Jo
13:31 - 32), "Ouvi-me, ilhas, e escutai, vós, povos de
longe! O SENHOR me chamou desde o ventre, desde as
entranhas de minha mãe, fez menção do meu nome. E fez a
minha boca como uma espada aguda, e, com a sombra da sua
mão, me cobriu, e me pôs como uma flecha limpa, e me
escondeu na sua aljava. E me disse: Tu és meu servo, e
Israel, aquele por quem hei de ser glorificado" (Is49:l-3).
A glória de Deus era, pois, o objetivo supremo do Senhor
Jesus Cristo na vida e na morte. Viveu e morreu para
glorificar o nome de Seu Pai. A Igreja perde alguma coisa
com isto? De modo nenhum. E Israel? Tampouco. Mas, e os
gentios? Também não. A sua salvação e bem-aventurança não
podiam estar melhor asseguradas do que sendo parte da
glória de Deus. Escutai a resposta divina dada a Cristo, o
verdadeiro Israel, na passagem sublime que acabamos de
citar. "Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as
tribos de Jacó, e tomares a trazer os guardados de Israel;
também te dei para luz dos gentios, para seres a minha
salvação até à extremidade da terra".
E não é preciso sabermos que Deus é glorificado pela
abolição dos nossos pecados? Podemos perguntar, onde estão
os nossos pecados? Foram tirados. Como? Pelo sacrifício de
Cristo na cruz, pelo qual Deus foi glorificado para toda a
eternidade. Assim é. Os dois bodes, do dia da expiação,
dão-nos o duplo aspecto de um único ato. Num vemos como é
mantida a glória de Deus; no outro, como são tirados os
pecados. Um é tão perfeito como o outro. Pela morte de
Cristo nós somos inteiramente perdoados e Deus é
perfeitamente glorificado.
Existe um só ponto pelo qual Deus não haja sido glorificado
na cruz? Nem sequer um. Tampouco há um ponto sequer em que
não estamos perfeitamente perdoados. Digo "nós", porque
ainda que a congregação de Israel seja o objetivo primário
contemplado na formosa e admirável ordenação do bode
expiatório, todavia pode dizer-se sem reserva que toda a
alma que crê no Senhor Jesus Cristo está tão perfeitamente
perdoada como Deus é perfeitamente glorificado pelo
sacrifício da cruz. Quantos pecados de Israel levava o bode
expiatório? "Todos". Palavra preciosa! Não ficava nenhum. E
para onde os levava ele? "A uma terra solitária"—uma terra
onde nunca se poderiam encontrar, porque não havia ninguém
para os procurar. Seria possível que um sacrifício fosse
mais perfeito? Seria possível obter um quadro mais real do
sacrifício consumado de Cristo sob o seu primário e
secundário aspecto? Era impossível. Podemos contemplar um
tal quadro com intensa admiração, e, contemplando-o,
exclamar: "Em verdade, aqui andou o pincel do Mestre!"
— CAPITULO 17 —
— CAPÍTULOS 18 - 20 —
UM POVO SANTO, COMO O
SENHOR É SANTO
_______________
(1) Os versículos 16 e 17 do capítulo 19 requerem atenção
especial. "Não andarás como mexeriqueiro entre o teu povo".
Esta recomendação é conveniente ao povo de Deus de todos os
tempos. Um mexeriqueiro faz mal incalculável. Diz-se com
razão que um mexeriqueiro faz mal a três pessoas; a si
próprio, àquele que o escuta e à pessoa de quem fala. Faz
tudo isto de uma maneira direta, e quanto às consequências
indiretas quem pode descrevê-las? Guardemo-nos
cuidadosamente deste horrível mal. Não permitamos que um
mexerico saia jamais dos nossos lábios; e recusemos sempre
dar ouvidos aos mexeriqueiros. Saibamos sempre como afastar
uma língua difamadora com um olhar severo, do mesmo modo
que o vento norte leva a chuva.
No versículo 17 vemos o que deve ocupar o lugar da
bisbilhotice. "Não deixarás de repreender o teu próximo e
nele não sofrerás pecado". Em lugar de difamar junto de
outro o nosso semelhante, somos chamados a ir com ele e
repreendê-lo, no caso de haver mal. Este é o método divino.
O método de Satanás é usar o mexeriqueiro.
— CAPÍTULOS 21 e 22 —
Aplicação Prática
Ora, nós temos ao mesmo tempo o sacerdote perfeito e o
perfeito sacrifício na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo.
O qual "havendo-se oferecido a si mesmo a Deus sem pecado"
penetrou nos céus como nosso grande Sumo Sacerdote, vivendo
sempre para interceder por nós. A Epístola aos Hebreus
trata pormenorizadamente destes dois pontos. Põe em
contraste admirável o sacrifício e o sacerdócio do sistema
Moisaico com o sacrifício e o sacerdócio de Cristo. N'Ele
temos a perfeição divina, quer O consideremos como a vítima
quer como o Sacerdote. Temos tudo que Deus podia exigir e
tudo que o homem podia necessitar. O Seu precioso sangue
tirou todos os nossos pecados; e a Sua poderosa intercessão
mantém-nos em toda a perfeição do lugar em que fomos
introduzidos pelo Seu sangue. "Nele estamos perfeitos" (Cl
2:10); e contudo somos tão fracos em nós mesmos, temos
tantas faltas e fraquezas, somos tão inclinados a errar e
tropeçar no nosso caminho, que não poderíamos estar de pé
um só instante se não fosse porque "Ele vive sempre para
interceder por nós".
Já nos ocupamos destas coisas nos primeiros capítulos deste
livro, e portanto não julgamos ser necessário insistir
nelas aqui. Os que compreendem alguma coisa das grandes
verdades fundamentais do Cristianismo e têm alguma
experiência da vida cristã poderão compreender como é que,
estando "perfeitos nele, que é a cabeça de todo o
principado e potestade" (Cl 2:10), necessitam, todavia,
enquanto estão neste mundo, no meio de fraquezas, conflitos
e lutas da terra, da advocacia do seu adorável e divino
Sumo Sacerdote. O crente está "lavado, santificado e
justificado" (1 Co 6); está "aceito no Amado" (Ef 1:6).
Quanto à sua pessoa nunca poderá ir a juízo (veja-se
Jo5:24, onde a palavra é krisin, e não katakrisin). A morte
e o juízo estão atrás dele, porque está ligado a
Cristo, que passou por essas coisas em seu lugar. Todas
estas coisas são verdades divinas a respeito mesmo do
membro mais fraco, ignorante e imperfeito da família de
Deus; mas visto que traz consigo uma natureza má, que está
irremediavelmente arruinada e que não pode ser disciplinada
por ser incorrigível, por habitar um corpo de pecado e
morte, está rodeado por todos os lados de influências
hostis e é chamado a lutar continuamente com as forças
combinadas do mundo, da carne e do mal — não poderia
manter--se, e muito menos fazer progresso, se não estivesse
protegido pela poderosa intercessão do seu Sumo Sacerdote,
que leva os nomes do Seu povo sobre o Seu peito e os Seus
ombros.
Sabemos que muitas pessoas têm encontrado grande
dificuldade em conciliar a ideia da perfeita posição do
crente em Cristo com a necessidade do sacerdócio. "Se",
argumentam, "está perfeito, que necessidade tem de um
sacerdote»?-" As duas coisas são tão claramente ensinadas
na Palavra de Deus como são compatíveis uma com a outra e
compreendidas na experiência de todo o cristão devidamente
instruído. É da maior importância compreender com clareza e
exatidão a harmonia perfeita destes dois pontos.
O crente é perfeito em Cristo; mas, em si mesmo, é uma
pobre e débil criatura, exposta sempre a cair. Por isso, a
inefável bem-aventurança de ter à destra da Majestade nos
céus Um que pode tratar de todos os seus interesses — Um
que o sustem continuamente pela destra da Sua justiça, que
nunca o abandonará; que é poderoso para o salvar até ao
fim; que "é o mesmo ontem, hoje e para sempre"; que o fará
passar em triunfo através de todas as dificuldades e
perigos que o rodeiam; e, que, por fim, o apresentará
inculpável perante a Sua excelsa glória, com gozo
inexcedível.
Bendita seja para sempre a graça que tão abundantemente fez
provisão para todas as nossas necessidades pelo sangue de
uma Vítima Incontaminada e pelo divino Sumo Sacerdote!
Prezado leitor, esforcemo-nos por andar de tal maneira que
nos guardemos "da corrupção do mundo" (Tg 1:27), e a
mantermo-nos separados de todas as relações impuras, a fim
de podermos gozar os mais elevados privilégios e
desempenhar as funções mais altas da nossa posição como
membros da casa sacerdotal de que Cristo é o Chefe. Temos
"ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus";
"temos um grande sumo sacerdote sobre a casa de Deus" (Hb
10). Nada jamais nos poderá roubar estes privilégios.
Contudo, a nossa comunhão pode ser perturbada, o nosso
culto pode ser impedido, as nossas santas funções podem
serdes curadas. Estas questões cerimoniais, contra as quais
os filhos de Aarão eram advertidos, nesta parte do Livro,
têm o seu antítipo na economia cristã. Eram exortados
contra contatos impuros? Também nós o somos. Tiveram de ser
exortados contra ligações impuras? Também nós fomos
exortados a esse respeito. Tiveram de ser exortados contra
toda a sorte de impureza cerimonial? Também nós somos
exortados a purificarmo-nos de "toda a imundícia da carne e
do espírito" (2 Co 7:1). Foram privados de muitos dos mais
elevados privilégios sacerdotais devido a deformações
físicas e enfermidades corporais1? Acontece o mesmo conosco
devido às imperfeições morais e a um crescimento espiritual
imperfeito.
Quererá alguém pôr em dúvida a importância prática destes
princípios? Não é evidente que quanto mais apreciarmos as
bênçãos ligadas a esta casa sacerdotal de que fomos feitos
membros, em virtude do nosso novo nascimento, tanto mais
guardaremos de tudo que, de alguma maneira, tende a tirar-
nos o gozo delas? Sem dúvida. É isto o que torna o estudo
desta parte tão importante para a nossa vida. Oxalá
sintamos o seu poder por meio da aplicação do Espírito
Santo! Então gozaremos o nosso lugar de sacerdotes. Então
desempenharemos fielmente as nossas funções sacerdotais.
Seremos capazes de "apresentar os nossos corpos em
sacrifício vivo a Deus"(Rm 12:1). Seremos capazes de
"oferecer sacrifícios de louvor continuamente a Deus, como
o fruto de nossos lábios, dando graças em seu nome" (Hb
13:15). Como membros da "casa sacerdotal" e do "sacerdócio
santo" seremos capazes de "oferecer sacrifícios agradáveis
a Deus, por Jesus Cristo" (1 Pe 2:5). Seremos capazes de
antecipar, até certo ponto, o tempo feliz em que as
aleluias de louvor inteligente e fervoroso de uma criação
redimida subirão ao trono de Deus e do Cordeiro durante
toda a eternidade.
— CAPITULO 23 —
O Dia do Descanso
Ao todo são oito; mas é evidente que o Sábado ocupa um
lugar único e independente. É mencionado primeiro e as
características e circunstâncias que o acompanham são
plenamente expostas; e então, lemos: "Estas são as
solenidades do SENHOR, as santas convocações, que
convocareis no seu tempo determinado" (versículo 4). De
sorte que, propriamente falando, como o leitor atento
poderá observar, a primeira grande solenidade de Israel era
a Páscoa e a sétima era a festa dos Tabernáculos. Quer
dizer, tirando-lhe a sua forma típica, temos primeiro a
redenção; e depois, na última de todas, a glória do
milênio. O cordeiro da Páscoa prefigurava a morte de Cristo
(l Co5:7); e a festa dos Tabernáculos simbolizava "os
tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela
boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio"
(At3:21).
Tais eram as festas que abriam e fechavam o ano judaico. A
expiação é a base, a glória a pedra cimeira do edifício;
enquanto que entre os dois pontos temos a ressurreição de
Cristo (versículos 10 a 14), o ajuntamento da Igreja
(versículos 15 a 21), o despertar de Israel ao sentimento
da sua glória há muito perdida (versículos 24 - 25), o seu
arrependimento e a cordial recepção do Messias (versículos
27e 32). E para que não faltasse um só traço a esta grande
representação típica, temos ainda o remédio para os gentios
poderem entrar no fim da colheita e respigar os campos de
Israel (versículo 22). Tudo isto torna o quadro divinamente
perfeito e desperta no coração de todos aqueles que amam as
Escrituras uma profunda admiração. Poderá haver alguma
coisa mais completai O sangue do Cordeiro e a santidade
prática baseados nela; a ressurreição de Cristo de entre os
mortos e Sua assunção ao céu; a descida do Espírito Santo,
em todo o poder do Pentecostes, para formara Igreja; o
despertar do remanescente, seu arrependimento e
restauração; a bênção do "pobre e do estrangeiro"; a
manifestação da glória; e o descanso e a bem-aventurança do
reino. Estas são as coisas que este maravilhoso capítulo
contém, e a cujo exame pormenorizado vamos agora proceder.
Que Deus Espírito Santo seja o nosso Mestre!
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos
de Israel e dize-lhes: As solenidades do SENHOR, que
convocareis, serão santas convocações; estas são as minhas
solenidades. Seis dias obra se fará, mas ao sétimo dia será
o sábado do descanso, santa convocação; nenhuma obra
fareis; sábado do SENHOR é, em todas as vossas habitações".
O lugar dado aqui ao sábado é cheio de interesses. O Senhor
ia dar uma figura de todas as Suas ações em graça com o Seu
povo; e, antes de o fazer, apresenta o sábado como a
expressão significativa do descanso que resta para o povo
de Deus. Era uma festa que devia ser observada por Israel,
mas era também uma figura do que ainda há - de vir, quando
toda essa obra grande e gloriosa prefigurada neste capítulo
há - de ser cumprida. E o descanso de Deus, no qual podem
entrar agora, em espírito, todos os que creem; mas cujo
pleno cumprimento ainda não chegou (Hb 4). Agora
trabalhamos. Descansaremos dentro em pouco. Em certo
sentido o crente entra no descanso; noutro, trabalha para
entrar nele. Encontrou o seu descanso em Cristo; esforça-se
por entrar no seu repouso em glória. Encontrou o seu pleno
repouso mental em tudo que Cristo fez por ele, e o seu
olhar repousa sobre esse sábado eterno em que entrará
quando todos os seus trabalhos e conflitos do deserto
tiverem acabado. Não pode descansar no meio de uma cena de
pecado e miséria. Descansa em Cristo, o Filho de Deus, que
"tomou a forma de servo". E, enquanto assim descansa, é
chamado para trabalhar como obreiro com Deus, na plena
certeza de que, quando o seu labor tiver terminado, gozará
de repouso eterno e permanente nessas mansões de luz
inalterável e de pura felicidade em que o labor e a
tristeza não entrarão.
Bendita perspectiva! Que possa bilhar mais e mais cada hora
que passa ante a visão da fé! Possamos nós trabalhar,
trabalhar para entrar nele. Encontrou o seu descanso final!
E verdade que há gozo antecipado deste sábado eterno; porém
apenas nos faz desejar com mais ardor a bendita realidade,
essa "santa convocação", que não se dissolverá nunca.
Já temos observado que o sábado ocupava um lugar aparte e
independente neste capítulo. Isto é evidente pelas palavras
do versículo quatro, onde o Senhor parece começar de novo
com a expressão: "Estas são as solenidades do SENHOR", como
para distinguir o sábado das sete festas que se seguem,
ainda que é, em realidade, o tipo do repouso a que essas
festas introduzem a alma.
A Páscoa
"Estas são as solenidades do SENHOR, as santas convocações,
que convocareis no seu tempo determinado: no mês primeiro,
aos catorze do mês, pela tarde, é a Páscoa do SENHOR"
(versículos 4 e 5). Aqui temos, pois, a primeira das sete
solenidades periódicas — a oferta do cordeiro da páscoa
cujo sangue havia ocultado o Israel de Deus da espada do
anjo destruidor na terrível noite em que os primogênitos do
Egito foram abatidos. E o reconhecido tipo da morte de
Cristo; e, por isso, o seu lugar neste capítulo é próprio.
É a base de tudo. Nada podemos saber de repouso, santidade,
comunhão, salvo sobre a base da morte de Cristo.
É interessante e admirável observar que logo que se fala do
repouso de Deus o assunto de que se trata imediatamente é o
sangue do cordeiro da páscoa. Era como se dissesse: "Existe
repouso, mas aqui está o vosso direito a ele". Sem dúvida,
o labor faz-nos-á capazes de gozar o repouso, mas é o
sangue que nos dá direito a gozar do repouso.
O Dia da Expiação
A festa das trombetas está intimamente ligada com outra
solenidade, isto é, "o dia da expiação". "Mas, aos dez
deste mês sétimo será o Dia da Expiação; tereis santa
convocação, e afligireis a vossa almas; e oferecereis
oferta queimada ao Senhor. E, naquele mesmo dia, nenhuma
obra fareis, porque é o Dia da Expiação, para fazer
expiação por vós, perante o SENHOR, vosso Deus... sábado de
descanso vos será; então, afligireis a vossa alma; aos nove
do mês, à tarde, de uma tarde a outra tarde, celebrareis o
vosso sábado" (versículos 27-32). Assim, depois do toque
das trombetas segue-se um intervalo de oito dias, e então
temos o dia da expiação, com o qual estas coisas estão
relacionadas, isto é, aflição da alma, expiação do pecado,
e descanso do labor. Todas estas coisas encontrarão em
breve o seu próprio lugar na experiência do remanescente
judeu. "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos
salvos" (Jr 8:20). Tal será a comovedora lamentação do
remanescente quando o Espírito de Deus tiver tocado os seus
corações e consciências:"... e olharão para mim, a quem
traspassaram; e o prantearão como quem pranteia por um
unigênito; e chorarão amargamente por ele, como se chora
amargamente pelo primogênito. Naquele dia, será grande o
pranto em Jerusalém, como o pranto de Hadade-Rimmon no vale
de Megido. E a terra pranteará, cada linhagem à parte" (Zc
12:10-14).
Que profundo pranto, que intensa aflição, que verdadeira
penitência haverá quando, sob a poderosa ação do Espírito
Santo, a consciência do remanescente relembrar os pecados
do passado, a indiferença pelo sábado, a transgressão da
lei, o apedrejamento dos profetas, a crucifixão do Filho e
a resistência ao Espírito! Todas estas coisas se
apresentarão ante a consciência iluminada e exercitada e
produzirão uma profunda aflição da alma.
Mas o sangue de expiação responderá por tudo." Naquele dia
haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os
habitantes de Jerusalém contra o pecado e contra a
impureza" (Zc 13:1). Ser-lhes-á concedido sentir a sua
culpa e serem afligidos e serão também levados a ver a
eficácia do sangue e a achar paz perfeita — um sábado de
descanso para as suas almas.
Ora, quando tais resultados tiverem sido verificados na
história de Israel, dos últimos dias, o que devemos nós
esperara Certamente, A GLÓRIA. Quando tiver sido removida
"a cegueira" e "o véu" for tirado, quando o coração do
remanescente se voltar para o Senhor, então os brilhantes
raios do "Sol da Justiça" incidirão, trazendo saúde,
restauração e poder libertador, sobre um pobre povo,
verdadeiramente arrependido e aflito.
Seria necessário todo um volume para tratar este assunto
com todos os pormenores. As experiências, lutas, provações
e dificuldades e por fim as bênçãos do remanescente estão
amplamente descritas nos Salmos e nos Profetas. A
existência de um tal corpo deve ser claramente reconhecida
antes de se poder estudar os Salmos e os Profetas
inteligentemente e com proveito. Não quer dizer que não
possamos aprender muito com essas porções de inspiração,
porque "toda a Escritura é proveitosa". Mas a maneira mais
segura de fazer um bom uso de qualquer porção da Palavra de
Deus é compreender bem a sua aplicação primária. Se,
portanto, aplicarmos à Igreja ou corpo celestial as
passagens que se referem, rigorosamente falando, ao
remanescente judeu ou corpo terrestre, seremos envolvidos
em graves erros tanto a respeito de um como do outro. De
fato, acontece em muitos casos, que a existência de um tal
corpo como o remanescente é completamente ignorada, e a
verdadeira posição e esperança da Igreja são inteiramente
perdidas de vista. Estes erros são graves e o leitor deve
evitá-los. Não suponha, nem por um momento, que são meras
especulações próprias para ocupar a atenção dos curiosos,
sem qualquer poder prático. Não pode haver suposição mais
falsa. O quê? Não tem importância sabermos se pertencemos
ao céu ou à terra ? Não importa saber se estaremos em
descanso nas mansões celestiais ou passando pelos juízos do
Apocalipse na terra? Quem pode admitir uma ideia tão
extravagante? A verdade é que não é fácil encontrar
verdades mais práticas do que a que descreve os destinos do
remanescente terrestre e da Igreja celestial. Não
prosseguirei com o assunto; mas o leitor o encontrará
merecedor de estudo atento e profundo. Terminaremos esta
parte com uma vista de olhos à festa dos tabernáculos — a
última das solenidades do ano judeu.
_________________
NOTA — No final do capítulo lemos. "Assim, pronunciou
Moisés as solenidades do SENHOR aos filhos de Israel". Este
era o seu verdadeiro caráter, o seu título original; mas no
Evangelho de João são chamadas "festas dos judeus". Durante
longo tempo tinham deixado de ser as festas do Senhor. Ele
estava excluído delas. Eles não O queriam; e, por isso, em
João 7, quando Jesus foi convidado a subir a Jerusalém à
"festa dos judeus", "a dos tabernáculos", Ele respondeu,
dizendo: "Ainda não é chegado o meu tempo"; e quando subiu
foi "como em oculto" para tomar o Seu lugar fora de todas
as cerimônias oficiais, e convidar toda a alma sedenta a
vir a Si e beber. Há nisto uma lição solene. As
instituições divinas degeneram rapidamente nas mãos dos
homens; mas, quão bem-aventurada coisa é saber que a alma
sequiosa que sente a secura e aridez relacionadas com um
sistema de vazia religiosidade e formalidade só tem que
refugiar-se em Jesus e beber de graça da Sua fonte
inesgotável e desta forma tornar-se um meio de bênção para
outros.
— CAPÍTULO 24 —
— CAPÍTULO 25 —
O Ano de Descanso
"Falou mais o SENHOR a Moisés no monte de Sinai, dizendo:
Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando tiverdes
entrado na terra, que eu vos dou, então, a terra guardará
um sábado ao SENHOR. Seis anos semearás a tua terra, seis
anos podarás a tua vinha, e colherás a sua novidade. Porém,
ao sétimo ano, haverá sábado de descanso para a terra, um
sábado ao SENHOR; não semearás o teu campo, nem podarás a
tua vinha. O que nascer de si mesmo da tua sega não segarás
e as uvas da tua vide não tratada, não vindimarás; ano de
descanso será para a terra. Mas a novidade do sábado da
terra vos será por alimento, a ti, e ao teu servo, e à tua
serva, e ao teu jornaleiro, e ao estrangeiro que peregrina
contigo; e ao teu gado, e aos teus animais que estão na tua
terra, toda a sua novidade será por mantimento" (versículos
1 -7).
Aqui temos, pois, a característica especial da terra do
Senhor. Queria que ela gozasse um ano sabático e nesse ano
devia haver uma prova da rica profusão com que abençoaria
os que a ocupavam como seus rendeiros. Felizes esses
privilegiados vassalos! Que honra dependerem imediatamente
do Senhor! Livres de impostos, encargos ou renda! Deles bem
podia dizer-se: "Bem-aventurado o povo a quem assim sucede!
Bem-aventurado é o povo cujo Deus é o SENHOR!" (SI 144:15).
Sabemos, infelizmente, que Israel falhou em tomar plena
possessão dessa rica terra que o Senhor lhe dava. Ele dera-
a toda; dera-a para sempre. Eles tomaram apenas uma parte,
e esta por algum tempo. Contudo, a propriedade está ali,
embora os rendeiros hajam sido expulsos dela:"... a terra
não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha:
pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo".
Que quer isto dizer senão que Cana pertence especialmente
ao Senhor e que Ele quer conservá-la por meio das tribos de
Israel? Em boa verdade, "a terra é do SENHOR", mas isso é
outra coisa muito diferente. É evidente que Lhe aprouve, em
Seus propósitos inescrutáveis, tomar posse especialmente do
país de Canaã. e submeter este país a um tratamento
especial, a fim de o distinguir de todos os outros países,
chamando-o propriamente Seu e distinguindo-o com juízos,
ordenações e solenidades periódicas, cuja simples
contemplação ilumina a inteligência e comove o coração.
Onde lemos que haja em toda a terra um país que goze de um
ano de ininterrupto repouso — um ano da mais rica
abundância? O racionalista pode perguntar: "Como se podem
fazer estas coisas?" O céptico pode duvidar que fossem
possíveis; mas a fé recebe uma resposta satisfatória dos
lábios do Senhor: "Se disserdes: Que comeremos no ano
sétimo, visto que não havemos de semear nem colher a nossa
novidade? Então, eu mandarei a minha bênção sobre vós no
sexto ano, para que dê fruto por três anos. E, no oitavo
ano, semeareis, e comereis da colheita velha até ao ano
nono; até que venha a sua novidade, comereis a velha"
(versículos 20-22). O homem natural podia dizer: "Que
faremos das nossas semeaduras?" A resposta de Deus é: "Eu
mandarei a minha bênção". A benção de Deus é muito melhor
do que a "semeadura" do homem. Não ia deixá-los passar fome
no ano sabático. Deviam alimentar-se dos frutos da Sua
bênção, enquanto celebravam o Seu ano de repouso — um ano
que indicava o sábado eterno que resta para o povo de Deus.
O Ano do Jubileu
"Também contarás sete semanas de anos, sete vezes sete
anos, de maneira que os dias das sete semanas de anos te
serão quarenta e nove anos. Então, no mês sétimo, aos dez
do mês, farás passar a trombeta do jubileu; no Dia da
Expiação fareis passara trombeta por toda a vossa terra"
(versículos 8 - 9). E muito interessante notar as diversas
maneiras em que estava prefigurado na economia Judaica o
repouso milenial. Cada sétimo dia era um dia sabático; cada
sétimo ano era um ano sabático; e ao cabo de sete vezes
sete anos havia um jubileu. Cada uma destas solenidades
típicas apresenta à vista da fé a perspectiva bendita do
tempo em que o labor e a pena cessariam; quando "o suor do
rosto" não será mais necessário para satisfazer as
necessidades da fome; quando uma terra milenária,
enriquecida por abundantes chuvas de graça divina, e
fertilizada pelos brilhantes raios do Sol da justiça,
verterá a sua abundância nos celeiros e lares do povo de
Deus. Ditoso tempo! Feliz povo! Quão bem-aventurada coisa é
estar seguro de que estas coisas não são quadros da
fantasia ou rasgos da imaginação, mas, sim, verdades
substanciais de revelação divina para serem desfrutadas
pela fé, que é "O firme fundamento das coisas que se
esperam, e a prova das coisas que se não veem". De entre
todas as solenidades judaicas o jubileu parece ter sido a
mais comovedora e alegre. Estava intimamente ligada ao
grande dia da expiação. Era quando o sangue da vítima era
derramado que o som libertador da trombeta do jubileu se
fazia ouvir através dos montes e vales da terra de Canaã.
Esse sonido tão desejado tinha o objetivo de despertar a
nação do próprio centro do seu ser moral, agitar as maiores
profundidades da alma e fazer correr um rio de alegria
divina e inefável por toda a largura e comprimento do país.
"No dia da expiação fareis soar a trombeta por toda a vossa
terra". Nem um irmão devia ficar sem ser despertado pelo
"som alegre" da trombeta. O aspecto do jubileu era tão
vasto como o aspecto da expiação sobre a qual se baseava o
jubileu. "E santificareis o ano quinquagésimo e apregoareis
liberdade na terra a todos os seus moradores; Ano de
Jubileu vos será, e tomareis, cada um à sua possessão, e
tomareis cada um, à sua família. O ano quinquagésimo vos
será jubileu; não semeareis, nem segareis o que nele nascer
de si mesmo, nem nele vindimareis as uvas das vides não
tratadas. Porque jubileu é, santo será para vós; a novidade
do campo comereis. Neste ano do jubileu tomareis cada um à
sua possessão" (versículos 10-13).
Todo o povo, em todo o país, quaisquer que fossem as suas
condições, podia sentir a santa consoladora influência
desta nobre instituição. O exilado regressava ao país; o
cativo era libertado; o devedor perdoado; as famílias
abriam os seus braços para receber em seu seio os membros
há muito tempo afastados; cada herança passava para a posse
do seu antigo possuidor. O som da trombeta era o sinal bem-
vindo e comovedor para todo o cativo escapar do cativeiro —
para o escravo pôr de lado as cadeias da escravidão, para o
homicida voltar para casa, e os pobres e arruinados tomarem
posse da herança perdida.
Apenas acabava de ecoar pela terceira vez o som alegre da
trombeta e já a onda poderosa da bênção se levantava
majestosamente para atingir com a sua ondulação os rincões
mais afastados da terra favorecida do Senhor.
— CAPÍTULO 26 —
— CAPÍTULO 27 —
A EXPIAÇÃO:
A MESMA MEDIDA PARA TODOS
INTRODUÇÃO
A Genealogia
Depois destas breves considerações sobre o conjunto do volume divino, vamos
prosseguir agora com os nossos comentários sobre a parte que temos perante
nós.
Em capítulo 1 temos a declaração da genealogia; e em capítulo 2 o
reconhecimento da bandeira. "Então, tomaram Moisés e Arão a estes homens,
que foram declarados pelos seus nomes, e ajuntaram toda a congregação no
primeiro dia do segundo mês, e declararam a sua descendência segundo as
suas famílias, segundo a casa de seus pais, pelo número dos nomes dos de
vinte anos para cima, cabeça por cabeça; como o SENHOR ordenara a Moisés,
assim os contou, no deserto de Sinai" (Nm 1:17-19).
Há nisto alguma palavra para nós? Apresenta alguma lição espiritual para a
nossa inteligência? Certamente. Em primeiro lugar, esta passagem sugere ao
leitor esta importante pergunta: Posso eu declarar a minha descendência? Há
grandes motivos para recear que existem centenas, senão milhares, de cristãos
professos que não são capazes de fazer esta declaração. Não podem dizer
clara e decididamente, "agora somos filhos de Deus" (1 Jo 3:2). "Porque todos
sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus". "E, se sois de Cristo, então, sois
descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa" (Gl 3:26,29).
"Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de
Deus... O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus" (Rm 8:14-16).
Esta é a genealogia do cristão e é seu privilégio poder declará-la. E nascido de
cima, nascido de novo, nascido da água e do Espírito, quer dizer, pela Palavra e
pelo Espírito Santo, (Compare Jo 3;5; Tg 1:18; 1 Pe 1:23; Ef 5:26). O crente faz
remontar a sua descendência a um Cristo ressuscitado na glória. Esta é a
descendência do cristão. Tanto quanto interessa à nossa descendência natural,
se nos remontamos à sua origem, e então a declaramos lealmente, temos de
ver e admitir que procedemos de uma linhagem arruinada. A nossa família está
decaída. Os nossos bens estão perdidos; o nosso próprio sangue está
manchado; estamos irremediavelmente arruinados; jamais poderemos
recuperar a nossa posição original; o nosso primeiro estado e a herança que lhe
pertencia estão irreparavelmente perdidos. Um homem poderá traçar a sua
linha genealógica através de uma raça de nobres, de príncipes ou de reis; mas
se quiser declarar francamente a sua descendência não poderá deter-se sem
chegar a um chefe decaído, arruinado, proscrito.
Devemos chegar à origem de uma coisa para sabermos o que ela realmente é.
É assim que Deus vê as coisas e as julga, e nós devemos pensar como Ele, se
queremos pensar retamente. O Seu juízo dos homens e das coisas tem de
predominar para sempre. O juízo do homem é apenas efêmero, dura apenas
um dia; e por isso, segundo a apreciação da fé e do bom senso, pouco importa
ser-se julgado por algum juízo humano (1 Co 4:3). Oh, quão pouco! Prouvera a
Deus que pudéssemos sentir mais profundamente quão pouca importância tem
sermos julgados pelo juízo humano! Possamos nós andar diariamente na
verdadeira compreensão da sua insignificância! Isso nos daria um
engrandecimento calmo e uma santa dignidade tais que nos colocariam acima
da influência da cena através da qual estamos passando. O que é a posição
nesta vida? Que importância pode ligar-se a uma genealogia que,
honestamente traçada e fielmente declarada, deriva de um tronco arruinado?
Um homem só pode orgulhar-se do seu nascimento se não tem em contra a sua
verdadeira origem: é "nascido em pecado e concebido em iniquidade". Tal é a
origem do homem — tal é o seu nascimento. Quem poderá vangloriar-se de um
tal nascimento, de semelhante origem? Quem, senão aquele cujo entendimento
o deus deste século cegou?
Mas quão diferente é com o cristão! A sua linguagem é celestial. A sua árvore
genealógica tem as suas raízes no solo da nova criação. A morte jamais poderá
partir a linha, visto que é formada na ressurreição. Quanto a isto é conveniente
estar-se inteirado. É da maior importância que o leitor esteja completamente
inteirado sobre este ponto fundamental. Pode ver facilmente por este capítulo
primeiro de Números quão essencial era que cada membro da congregação de
Israel pudesse declarar a sua descendência. A incerteza quanto a este ponto
teria sido funesta; teria produzido irremediável confusão. Dificilmente podemos
imaginar um israelita que, chamado a declarar a sua genealogia, se
expressasse da maneira duvidosa adotada por muitos cristãos nestes dias. Não
podemos imaginar que ele dissesse: "Bem, não tenho a certeza. As vezes
alimento a esperança que pertenço ao tronco de Israel; porém em certas
ocasiões receio muito não pertencer à congregação do SENHOR. Estou em
absoluta incerteza e em trevas." Podemos conceber uma tal linguagem?-
Decerto que não. Muito menos podemos imaginar que alguém mantivesse a
ideia monstruosa de que ninguém podia, de modo algum, estar certo de ser ou
não um verdadeiro israelita antes do dia do juízo.
Podemos estar certos de que todas essas ideias e argumentos— esses
temores, dúvidas e interrogações — eram desconhecidos de todo israelita.
Cada membro da congregação era convidado a declarar a sua descendência
antes de ocupar o seu posto nas fileiras como homem de guerra. Cada um
podia dizer como Saulo de Tarso, "circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de
Israel" (F1 3:5). Tudo estava determinado e claro para a marcha e o combate do
deserto.
Ora, não será lícito perguntar: "Se um judeu podia estar seguro da sua
genealogia, porque não poderá um cristão estar certo da sua?-" O leitor deve
examinar esta questão, e se faz parte dessa numerosa classe de pessoas que
nunca podem chegar à bendita segurança da sua linguagem celestial, do seu
nascimento espiritual, rogamos-lhe que se detenha, e nos deixe debater este
importante ponto. Talvez esteja disposto a perguntar:" Como posso estar certo
de que sou real e verdadeiramente um filho de Deus, membro de Cristo,
nascido da Palavra e do Espírito de Deus? Fosse o mundo meu, e eu o daria
para ter a certeza desta importante questão."
Bem, desejamos sinceramente auxiliar o leitor neste assunto. De fato um dos
objetivos que nos propusemos em redigir estes "Comentários" é o de auxiliar as
almas ansiosas, respondendo às suas perguntas, na medida em que o Senhor
nos dá capacidade para o fazer, resolvendo as suas dificuldades e tirando do
seu caminho as pedras de tropeço.
Antes do mais, vamos apontar uma característica especial que pertence a todos
os filhos de Deus, sem exceção. E um traço muito simples, mas muito precioso.
Se não o possuímos, em maior ou menor grau, é prova que não somos da raça
celestial; mas se o possuímos, é evidente que somos dessa raça, e podemos,
portanto, sem nenhuma dificuldade ou reserva, "declarar a nossa
descendência". Que característica é essa? Uma grande característica de família
Nosso Senhor Jesus Cristo dá-nos a resposta. Diz-nos que "A sabedoria é
justificada por todos os seus filhos" (Lc 7:35; Mt 11:19). Todos os filhos da
sabedoria, desde os dias de Abel até ao momento atual, têm sido distinguidos
por esta grande característica de família, sem uma única exceção. Todos os
filhos de Deus — todos os filhos da Sabedoria—têm sempre exibido, de certo
modo, este traço moral—têm justificado a Deus.
Justificar a Deus
Que o leitor pese esta declaração. Pode ser que ache que é difícil compreender
o que significa justificar a Deus; mas uma ou duas passagens da Escritura
tornarão, esperamos, isto muito claro.
Em Lucas 7 lemos que "todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido
batizados com o batismo de João, justificaram a Deus. Mas os fariseus e os
doutores da lei rejeitaram o conselho de Deus contra si mesmos, não tendo sido
batizados por ele" (Lc 7:29-30). Aqui temos as duas gerações colocadas, por
assim dizer, face a face. Os publicanos justificavam a Deus e condenavam-se a
si próprios. Os fariseus justificavam-se a si mesmos e julgavam a Deus. Os
primeiros submetiam-se ao batismo de João — o batismo do arrependimento.
Os últimos recusavam esse batismo — recusavam arrepender-se, humilhar-se e
condenarem-se a si mesmos.
Aqui temos, pois, as duas grandes classes em que se tem dividido toda a família
humana, desde os dias de Abel e Caim até aos nossos dias; e aqui temos
também o modo mais simples de provar a nossa linhagem". Já tomamos o lugar
de condenação própria? Já nos curvamos com verdadeiro arrependimento
perante Deus?- Isto é o que justifica a Deus. As duas coisas andam
juntas—sim, são uma e a mesma coisa. O homem que se condena a si mesmo
justifica a Deus, e o homem que justifica a Deus condena-se a si próprio. Por
outro lado, o homem que se justifica a si mesmo julga a Deus; e o que julga a
Deus justifica-se a si mesmo.
Assim acontece em todos os casos. E note-se que no próprio momento em que
nos colocamos no terreno de arrependimento e própria condenação, Deus toma
o lugar de Justificador. Deus justifica sempre aqueles que se condenam a si
mesmos. Todos os Seus filhos O justificam, e Ele justifica a todos os Seus
filhos. No momento em que Davi disse: "Pequei contra o SENHOR", foi-lhe
respondido, "também o SENHOR traspassou o teu pecado" (2 Sm 12:13).0
perdão divino segue com a mais intensa rapidez a confissão humana.
Por isso segue-se que nada pode ser mais insensato do que alguém
justificar-se a si mesmo, visto que é necessário que Deus seja justificado em
Suas palavras e ganhe a contenda quando é julgado (compare SI 51:4; Rm 3:4).
Deus tem de ter a vantagem no fim e então se verá em sua verdadeira luz o que
vale toda a justificação pessoal. Portanto, o mais sensato é condenarmo-nos a
nós próprios. Isto é o que todos os filhos da sabedoria fazem. Nada assinala
melhor o caráter dos verdadeiros membros da família da sabedoria como o
hábito e o espírito de se julgarem a si mesmos. Ao passo que, por outro lado,
nada distingue tanto os que não são desta família como o espírito de própria
justificação.
Estas coisas são dignas da mais séria reflexão. O homem natural culpa tudo e
todas as coisas—qualquer e todos exceto a si mesmo. Porém, quando a graça
opera, existe prontidão em julgar o ego, e em tomar um lugar humilde. Este é o
verdadeiro segredo de bênção e paz. Todos os filhos de Deus se têm mantido
sobre esse terreno bendito; têm manifestado essa bela característica e
alcançado esse importante resultado. Não encontramos tanto como uma
simples exceção em toda a história da ditosa família da sabedoria; e podemos
dizer com toda a segurança que se o leitor tem sido levado verdadeira e
realmente a reconhecer-se como perdido — a condenar-se a si próprio—e a
ocupar o lugar do verdadeiro arrependimento, então é, verdadeiramente, um
dos filhos da sabedoria, e pode, portanto, com ousadia e decisão, "declarar a
sua descendência".
Queremos insistir neste ponto desde o princípio: é impossível qualquer pessoa
reconhecer a própria "bandeira" e tomar o seu partido a não ser que possa
"declarar a sua descendência". Em suma, é impossível tomar uma verdadeira
posição no deserto enquanto houver alguma dúvida quanto a esta grande
questão. Como poderia um israelita desse tempo ocupar o seu lugar na
assembleia—como poderia ele estar nas fileiras—e avançar pelo deserto se
não pudesse declarar distintamente a sua descendência? Teria sido impossível.
Outro tanto sucede com o cristão no tempo presente. O progresso na vida do
deserto — sucesso na luta espiritual — está fora de questão se houver qualquer
dúvida quanto à descendência espiritual. Temos de poder dizer: "Sabemos que
passamos da morte para a vida" — "Sabemos que somos de Deus." "... temos
crido e conhecido" (1 Jo 3:14; 5:19; Jo 6:69), antes que seja possível haver
verdadeiro progresso na vida e na carreira cristã.
Prezado leitor, pode declarar a tua descendência ? Isto é para você um ponto
perfeitamente estabelecido?- Está esclarecido a este respeito até ao mais
profundo da sua alma? Quando está a sós com Deus, é uma questão
perfeitamente resolvida entre Ele e você? Indague e veja. Certifica-se da
verdade. Não se apoia na mera profissão. Não diga, "sou membro desta ou
daquela igreja; tomo a ceia do Senhor; professo esta ou aquela doutrina; fui
educado na religião; levo uma vida moral; não faço mal a ninguém; leio a Bíblia
e faço as minhas orações; tenho culto doméstico; contribuo liberalmente para
obras filantrópicas e religiosas". Tudo isto pode ser inteiramente certo a respeito
do leitor, sem contudo ter uma só pulsação de vida divina, nem um só raio de
luz celestial.
Nenhuma destas coisas, nem todas juntas, podiam ser aceites como uma
declaração de descendência espiritual. É preciso o testemunho do Espírito de
que é um filho de Deus, e este testemunho acompanha sempre a fé simples do
Senhor Jesus Cristo. "Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o
testemunho" (1 Jo 5:10). Não e uma questão, de modo algum, de buscar a
evidência em seu próprio coração. Não se trata de um conhecimento baseado
em formas, sentimentos e experiências. Nada disso. Mas de uma fé verdadeira
em Cristo. É ter a vida eterna no Filho de Deus. É testemunho imperecível do
Espírito Santo. É crer em Deus segundo a Sua Palavra. "Na verdade, na
verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou
tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a
vida" (Jo 5:24).
O Combate do Cristão
Esta é a verdadeira forma de declarar a sua descendência; e pode estar certo
disto, tem que poder declará-la antes de poder sair à guerra". Não queremos
dizer que não pode ser salvo sem esta declaração. Deus nos guarde de dizer tal
coisa.
Cremos que há centenas de membros do verdadeiro Israel espiritual que não
são capazes de declarar a sua descendência. Mas perguntamos, estão acaso
em estado de ir à guerra ? São vigorosos soldados? Longe disso. Eles nem
sequer sabem o que é verdadeiro conflito; pelo contrário, as pessoas desta
classe confundem as suas dúvidas e temores, os seus momentos tristes e
incertos por verdadeiro conflito cristão. Isto é um erro muito grave; mas
infelizmente é também dos mais frequentes. E frequente justificar-se um estado
de alma baixo, triste e legalista com o argumento de conflito cristão, ao passo
que, segundo o Novo Testamento, o verdadeiro conflito cristão ou luta é travado
numa região onde as dúvidas e temores são desconhecidos.
E quando nos mantemos na luz pura da plena salvação de Deus — salvação
num Cristo ressuscitado — que podemos realmente entrar na luta que nos é
própria como cristãos. Devemos supor que as nossas lutas legítimas, a nossa
culpável incredulidade, a nossa recusa em nos submetermos à justiça de Deus,
as nossas dúvidas e argumentos, podem ser considerados como uma luta
cristã? De modo nenhum. Todas estas coisas devem ser consideradas como
um conflito com Deus; ao passo que o conflito cristão se trava contra Satanás.
"Porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais" (Ef 6:12).
Este é conflito cristão. Mas pode um tal conflito ser sustentado por aqueles que
continuamente duvidam se são cristãos ou não? Não creio. Poderíamos
imaginar um israelita em luta contra Amaleque no deserto ou com um cananeu
na terra prometida enquanto fosse incapaz de "declarar a sua descendência ou
reconhecer a sua bandeira" ? Isto seria inconcebível. Não, não; todo membro da
congregação, que podia sair à guerra, estava perfeitamente certo e seguro
desses dois pontos. Na verdade, não teria podido sair se o não estivesse.
E, enquanto tratamos do importante assunto do combate do cristão, será
conveniente chamar a atenção do leitor para três passagens das Escrituras do
Novo Testamento nas quais o conflito é apresentado sob três diferentes
aspectos, isto é, em Romanos 7:7-24; Gálatas 5:17; Efésios 6:10-17. Se o leitor
prestar atenção por um momento a estas passagens, procuraremos indicar o
caráter de cada uma.
A Bandeira
Porém, como tem sido acentuado, havia outra coisa tão necessária para o
homem de guerra como a declaração inequívoca da sua descendência, e essa
era o reconhecimento distinto da sua bandeira. As duas coisas eram essenciais
para a marcha e luta do deserto. Além disso, eram inseparáveis. Se um homem
não soubesse a sua descendência, não podia reconhecer a sua bandeira e
assim era lançado em desesperada confusão. Em vez de se conservarem sob a
sua bandeira e marcharem em ordem, teriam seguido pelo caminho uns dos
outros e sido atropelados mutuamente. Cada um devia conhecer o seu posto e
ocupá-lo—conhecer a sua bandeira e manter-se sob ela. Assim avançavam
juntos; progrediam, faziam o trabalho e faziam a guerra. O benjamita tinha o seu
posto, e o efraimita o seu, e nenhum devia interferir com o caminho do outro
nem cruzar-se com ele.
Era assim com todas as tribos, em todo o campo do Israel de Deus. Cada uma
tinha a sua descendência e o seu posto; e nenhuma delas dependia dos seus
próprios pensamentos: tudo era disposto por Deus. Ele deu a descendência, e
indicou a bandeira; nem tampouco havia necessidade de comparar, uns com
outros ou qualquer fundamento para inveja; cada um tinha o seu posto para
ocupar, o seu trabalho para fazer, e havia espaço bastante para todos. Havia a
maior variedade e contudo a mais perfeita unidade. "Os filhos de Israel
assentarão as suas tendas, cada um debaixo da sua bandeira, segundo as
insígnias da casa de seus pais. —E os filhos de Israel fizeram conforme tudo o
que o SENHOR ordenara a Moisés; assim, assentaram o arraial segundo as
suas bandeiras; e assim marcharam, cada qual segundo as suas gerações,
segundo a casa de seus pais" (Nm 2:2,34).
Assim, no acampamento da antiguidade, bem como agora na Igreja,
aprendemos que "Deus não é o autor de confusão".
Nada podia ser tão primorosamente disposto como os quatro acampamentos
compostos cada um de três tribos, formando um perfeito quadrado, cada lado
do qual ostentava a sua bandeira específica. "Os filhos de Israel assentarão as
suas tendas, cada um debaixo da sua bandeira, segundo as insígnias da casa
de seus pais; ao redor, defronte da tenda da congregação, assentarão as suas
tendas O Deus dos exércitos de Israel sabia como dispor as suas hostes. Seria
um grande erro supor que os guerreiros de Deus não estavam organizados
segundo o mais perfeito sistema de tática militar.
Nós podemos gloriar-nos do nosso progresso nas artes e ciências, e podemos
imaginar que o exército de Israel, comparado com o que vemos nos "tempos
modernos", apresentava um espetáculo de grosseira desordem e rústica
confusão. Mas isto é um conceito vago. Podemos estar certos que o
acampamento de Israel estava disposto e provido da maneira mais perfeita,
pela mais simples e concludente de todas as razões, a saber, que estava
disposto e abastecido pela mão de Deus. Seja-nos concedido isto, que Deus
tem feito tudo, e nós diremos, com absoluta confiança, que tudo foi feito com
perfeição.
Isto é um princípio muito simples, mas muito feliz. Naturalmente não poderá
satisfazer um céptico ou um infiel: e o que os satisfaria?
O papel de um céptico é duvidar de tudo e é sua prerrogativa não crer nada.
Mede tudo segundo a sua própria medida, e rejeita tudo aquilo que não pode
harmonizar com as suas próprias ideias. Estabelece as suas premissas com
assombroso sangue-frio, e deduz ato contínuo as conclusões. Mas se as
premissas são falsas, as conclusões também devem ser falsas. A característica
que invariavelmente acompanha as premissas de todos os cépticos,
racionalistas e infiéis, consiste sempre em excluir Deus; de onde se segue que
as suas conclusões têm que ser fatalmente falsas. Em contrapartida, o crente
humilde toma como ponto de partida o grande princípio que Deus é; e não
apenas que Deus é, mas que Se ocupa das Suas criaturas, que Se interessa
nos negócios dos homens e Se ocupa deles.
Que consolação para o crente! Porém, a incredulidade não aceita de modo
algum isto. Introduzir Deus é transtornar todos os argumentos dos cépticos,
porque todos eles se baseiam na completa exclusão de Deus.
Contudo, não escrevemos agora para combater infiéis, mas para a edificação
dos crentes, e todavia convém às vezes chamar a atenção sobre o estado de
completa corrupção de todo o sistema de infidelidade; e isto não pode ser
mostrado tão clara e forçosamente como pelo fato que todo esse sistema
descansa inteiramente sobre a exclusão de Deus. Compreendamos isto bem, e
todo o sistema desmoronar-se-á aos nossos pés. Se cremos que Deus é, então
seguramente todas as coisas devem ser encaradas em relação com Ele.
Devemos ser todas as coisas segundo o Seu ponto de vista.
Mas isto não é tudo. Se cremos que Deus é, então temos de ver que o homem
não pode julgá-Lo. Deus deve ser o Juiz do bem e do mal do que é digno de Si e
que não o é. E o mesmo acontece também a respeito da Palavra de Deus. Se é
verdade que Deus é, e que nos tem falado e dado uma revelação, então,
seguramente, essa revelação não pode ser julgada pela razão humana. Está
acima e além de tal tribunal. Imagine-se a pretensão de medir a Palavra de
Deus pelas regras dos cálculos humanos! E todavia é isto precisamente que
tem sido feito em nossos dias com o precioso livro de Números, com o qual
estamos agora ocupados e com o estudo do qual prosseguiremos, pondo de
lado a infidelidade e a sua aritmética.
O Livro e a Alma
Sentimos que é muito necessário, nos nossos comentários e reflexões sobre
este livro, bem como sobre todos os outros, lembrar duas coisas, a saber:
primeiro, o livro; e, depois, a alma: o livro e o seu conteúdo; a alma e as suas
necessidades. Existe o perigo de esquecermos a alma e as suas necessidades
por estarmos muito ocupados com o livro. E, por outro lado, há o perigo de
esquecermos o livro por estarmos absorvidos com a alma. Devemos atender às
duas coisas. E podemos dizer que o que constitui um ministério eficiente, quer
escrito quer oral, é o próprio ajustamento destas duas coisas.
Há ministros que estudam a Palavra diligentemente, e, pode ser,
profundamente. São versados em conhecimento bíblico; beberam amplamente
na fonte da inspiração. Tudo isto é da maior importância e de grande valor. Um
ministério sem isto será de fato estéril. Se um homem não estuda a sua Bíblia
com cuidado e com oração, terá pouco para dar aos seus leitores ou aos seus
ouvintes; pelo menos que valha a pena eles terem. Aqueles que trabalham na
Palavra devem cavar para si próprios, e “cavar fundo".
Mas é preciso pensar na alma—antecipar a sua condição e suprir as suas
necessidades. Se isto é perdido de vista, o ministério carecerá e fim, efeito e
poder. Será ineficiente e infrutífero. Em suma, as duas coisas devem ser
combinadas e convenientemente proporcionadas. Um homem que meramente
estuda o livro será inábil. Um homem que apenas estuda a alma será deficiente.
Um homem que estuda devidamente ambas as coisas será um bom ministro de
Jesus Cristo.
Ora nós desejamos, segundo a nossa capacidade, ser isto para o leitor; e por
isso, ao avançar, na sua companhia, através do livro maravilhoso que está
aberto perante nós, queremos não só indicar as suas belezas morais e
desenrolar as suas santas lições, mas sentimos também ser nosso dever
imperioso fazer casualmente uma ou outra pergunta ao leitor, a fim de o induzir
a ver até que ponto essas lições estão sendo aprendidas e essas belezas
apreciadas.
Creio que o leitor não se oporá a isto, e por isso, antes de terminar esta primeira
parte, quero fazer uma ou duas perguntas sobre ela.
CAPÍTULOS 3 e 4
A Igreja no Mundo
Tal é a Igreja de Deus no mundo—uma coisa separada, dependente, indefesa,
dependendo em tudo do Deus vivo. Está calculada para dar vivacidade, força e
clareza aos nossos pensamentos a respeito da Igreja de forma a encararmo-la
como o antítipo do acampamento no deserto; e não é de modo nenhum um
capricho ou precipitação considerá-la assim, visto que 1 Coríntios 10-11
claramente o mostra. Temos plena liberdade para dizer que o acampamento de
Israel era literalmente o que a Igreja é moralmente. E, ainda mais, que o deserto
era literalmente para Israel o que o mundo e moral e espiritualmente para a
Igreja de Deus. O deserto era a esfera e ação e perigo para Israel—não era a
origem dos seus suprimentos ou contentamentos e o mundo é a esfera da lida
da Igreja e do perigo que ela corre, e não a origem dos seus suprimentos e
gozo.
É conveniente compreender este fato em todo o seu poder moral. A assembleia
de Deus no mundo, à semelhança da "congregação no deserto", está
inteiramente na dependência de Deus. Falamos, note- se, do ponto de vista
divino—do que a Igreja é à vista de Deus. Vista do ponto de vista humano —
contemplada como ela é, no seu próprio estado prático atual, é, infelizmente,
outra coisa. Ocupamo-nos apenas por agora com a ideia verdadeira e normal
que Deus tem da Igreja no mundo.
E não se esqueça, nem por um momento, que, tão certo como havia um
acampamento no deserto—uma congregação no deserto - assim há agora a
Igreja de Deus, o corpo de Cristo no mundo.
Indubitavelmente, as nações do mundo conheciam pouco dessa congregação
da antiguidade, e preocupavam-se menos com ela; mas isso não enfraquecia
nem afetava o grande fato da sua existência. Do mesmo modo, os homens do
mundo conhecem pouco da Igreja de Deus—o corpo de Cristo—e menos se
preocupam com ela; mas isso não afeta, de modo nenhum, a grande verdade
que existe realmente tal coisa neste mundo, e que tem existido sempre desde
que o Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes.
Decerto, a congregação da antiguidade teve as suas provações, os seus
conflitos, as suas dores, as suas tentações, as suas lutas, as suas
controvérsias—as suas excitações internas—as suas inumeráveis dificuldades,
que exigiam os variados recursos que havia em Deus - o ministério precioso do
profeta, sacerdote e rei que Deus lhe havia dado; já que, como sabemos,
Moisés estava ali como "rei em Jesurun", e como o profeta levantado por Deus;
e Arão estava ali também para exercer todas as funções sacerdotais.
Mas apesar de todas estas coisas que havemos enumerado — apesar da
fraqueza, o fracasso, o pecado, a rebelião, contendas, a verdade é que havia ali
um fato notável para ser conhecido dos homens, dos demônios e dos anjos, a
saber: uma grande congregação, que se elevava a qualquer coisa como três
milhões de almas (— segundo o uso habitual de cálculo—) viajando pelo
deserto, dependendo inteiramente de um braço invisível, guiada e tratada pelo
Deus eterno, cujos olhos não se afastavam um só momento desse misterioso e
simbólico exército; sim, Deus habitava no meio dela, do Seu povo, e nunca o
abandonou, apesar da sua incredulidade, do seu esquecimento, da sua
ingratidão e rebelião. Deus estava ali para o manter e guiar, para o guardar e
conservá-lo, dia a dia; e deu-lhes água da rocha.
Isto era seguramente um fato admirável—um profundo mistério. Deus tinha uma
congregação no deserto—mantida à parte de todas as nações circunvizinhas,
separada para Si. É possível que as nações do mundo nada conhecessem,
nada se preocupassem, não pensassem nada desta assembleia. Certo é que o
deserto nada produzia para sustento ou refrigério. Havia nele serpentes e
escorpiões—havia perigos e ciladas— seca, aridez e desolação. Porém havia
também aquela maravilhosa assembleia mantida de tal maneira que confundia
a razão humana.
E, prezado leitor, recordemos que isto era uma figura. Uma figura de quê? Uma
figura de alguma coisa que tem estado em existência durante dezenove
séculos; existe ainda; e existirá até ao momento em que o Senhor Jesus Cristo
se levantar da Sua atual posição o descer aos ares. Numa palavra, é uma figura
da Igreja de Deus neste mundo. Quão importante é reconhecer este fato! Que
pena ter sido perdido de vista! E como é tão pouco compreendido até mesmo
nos nossos dias! E todavia todo o cristão é responsável por reconhecê-lo e de o
confessar na prática. Não pode ser evitado. E verdade que existe atualmente no
mundo alguma coisa que corresponde ao acampamento no deserto?
Certamente; existe a Igreja no deserto. Há uma assembleia que passa por este
mundo como Israel passava pelo deserto.
E, além disso, o mundo é, moral e espiritualmente, para a Igreja o que o deserto
era, literal e praticamente, para Israel. Israel não encontrou fontes do deserto; e
a Igreja de Deus não encontra fontes no mundo. Se as encontra, traio seu
Senhor. Israel não era do deserto, mas passava por ele; e a Igreja de Deus não
é do mundo, mas está de passagem pelo mundo.
Se o leitor se compenetrar inteiramente disto, verá o lugar de completa
separação que pertence à Igreja de Deus no seu conjunto e a cada um dos seus
membros individualmente.
A Igreja, do ponto de vista de Deus a seu respeito, está tão completamente
separada deste mundo como separado estava o acampamento de Israel no
meio do deserto que o rodeava. Existe tão pouco de comum entre a igreja e o
mundo, como havia entre Israel e a areia do deserto. As mais brilhantes
atrações e as mais sedutoras fascinações do mundo são para a Igreja de Deus
o que eram para Israel as serpentes, os escorpiões e os mil outros perigos do
deserto.
QUEM É DO Senhor?
Mas, antes de prosseguirmos propriamente com o exame da obra e serviço dos
Levitas, devemos contemplar por um momento a cena em Êxodo 32, na qual
desempenham uma parte muito importante e notável. Referimo-nos, como o
leitor compreenderá imediatamente, ao bezerro de ouro. Durante a ausência de
Moisés, o povo perdeu tão completamente de vista Deus e os Seus direitos que
levantou um bezerro de fundição e se prostrou diante dele. Este terrível ato
exigia um juízo sumário.
"E, vendo Moisés que o povo estava despido, porque Arão o havia despido para
vergonha entre os seus inimigos, pôs-se em pé Moisés, na porta do arraial e
disse: Quem é do SENHOR, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os
filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Cada um
ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial, de porta
em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo e cada um a seu
próximo. E os filhos de Levi fizeram conforme a palavra de Moisés; e caíram do
povo, aquele dia, uns três mil homens. Porquanto Moisés tinha dito: Consagrai
hoje as vossas mãos ao SENHOR porquanto cada um será contra o seu filho e
contra o seu irmão; e isto para ele vos dar hoje bênção" (Êx 32:25-29).
Foi um momento de prova. Não podia ser de outra maneira, visto que se dirigia
ao coração e à consciência a grande questão, "Quem é do Senhor?- Nada
podia ser mais penetrante. A pergunta não era "Quem quer trabalhar" Não; era
uma pergunta muito mais profunda e premente. Não se tratava de saber quem
iria aqui ou ali fazer isto ou aquilo. Podia haver muita ação e movimento, e, ao
mesmo tempo, ser apenas o impulso de uma vontade indomável, que, agindo
segundo a natureza religiosa, dava uma aparência de devoção e piedade
eminentemente calculada para se enganar e enganar outros.
Mas estar do lado do Senhor envolve a renúncia da vontade própria — sim, a
própria rendição, e isto é essencial ao servo verdadeiro ou ao verdadeiro
obreiro. Saulo de Tarso encontrava- -se neste terreno quando exclamou:
"Senhor, que queres que eu faça?-" Que palavras, do obstinado, cruel e feroz
perseguidor da Igreja de Deus!
"Quem é do Senhor"? É o leitor? Examine-se e veja. Examine-se atentamente.
Lembre-se que a questão não é de modo algum, "Que estás fazendo?-" Não; é
mais profunda.
Se estais do lado do Senhor, estais pronto para qualquer coisa e todas as
coisas—pronto para estar quieto e pronto para ir avante; pronto para ir para a
direita ou para a esquerda; pronto a ser ativo ou estar sossegado; pronto a
manter-se de pé ou estar deitado. O ponto importante é este: o abandono
próprio aos direitos de outrem, e esse é Cristo, o Senhor.
Isto é um assunto de grande alcance. De fato, não conhecemos nada mais
importante, neste momento, que esta importante pergunta: "Quem é do
Senhor?" Vivemos em dias de muita obstinação. O homem exulta com a sua
liberdade. E isto dá-se, de modo proeminente, em assuntos religiosos.
Precisamente como acontecia no acampamento de Israel, nos dias do capítulo
trinta e dois de Êxodo—os dias do bezerro de ouro. Moisés estava ausente e a
vontade humana estava operando; o buril foi posto em ação. E qual foi o
resultado"?- O bezerro de fundição; e no seu regresso Moisés encontrou o povo
nu e na idolatria. E então fez-se a pergunta solene e indagadora: "Quem é do
Senhor?” Isto obrigava a uma decisão, ou, melhor, punha o povo à prova.
Tampouco é diferente agora. A vontade do homem domina sobretudo em
assuntos de religião.
O homem gloria-se dos seus direitos, da liberdade da sua vontade e livre
arbítrio. E a negação do senhorio de Cristo; e portanto convém mantermo-nos
em guarda e certificarmo-nos de que tomamos realmente partido com o Senhor
contra nós mesmos; que tomamos a atitude de simples sujeição à Sua
autoridade. Então não estaremos ocupados com o volume ou caráter do nosso
serviço; será nosso único objetivo fazer a vontade de nosso Senhor.
Ora, atuar assim debaixo da direção do Senhor pode muitas vezes dar a
impressão de estreiteza na nossa esfera de ação; mas com isto não temos
absolutamente nada que ver. Se um amo diz ao seu criado para permanecer na
sala e não se mover enquanto ele não tocar a campainha, qual é a obrigação
daquele servos Evidentemente estar quieto e não abandonar esta posição ou
atitude, ainda que os seus conservos considerem uma falta a sua aparente
inatividade e ociosidade; pode estar certo de que o seu amo aprovará e
justificará a sua conduta. Isto é bastante para todo o servo consagrado, cujo
único desejo for não tanto fazer muita coisa, mas sim fazer a vontade do seu
Senhor.
Em suma, a questão para o acampamento de Israel, nos dias do bezerro de
ouro, a questão para a Igreja, nestes dias de vontade humana, é esta, "Quem é
do Senhor? Que momentosa questão! Não consiste em perguntar quem está do
lado da religião, da filantropia, ou da reforma morais Pode praticar-se
largamente uma ou todas estas coisas e contudo ter uma vontade inteiramente
indomável. Não esqueçamos isto; pelo contrário, diremos antes que devemos
ter isto continuamente em vista. Podemos ser muito zelosos em promover todos
os diversos sistemas de filantropia, religião e reformas morais, e, durante todo o
tempo, estarmos a servir o ego e a vontade própria. E uma consideração
ponderosa e solene; e é conveniente prestarmos-lhe a mais sincera atenção.
Atravessamos uma época em que a vontade do homem é constantemente
lisonjeada. Cremos, sem sombra de dúvidas, que o verdadeiro remédio para
este mal se encontra envolvido nesta interrogação: "Quem é do Senhor?-"
Existe um imenso poder prático nesta pergunta. Estar realmente do lado do
Senhor é estar pronto para qualquer coisa que Ele possa julgar própria para nos
chamar, não importa o que for. Se a alma está disposta a dizer verdadeiramente
"Senhor, que queres que eu faça?- Fala, Senhor, for que o teu servo ouve",
então estamos prontos para todas as coisas. Por isso no caso dos Levitas, eles
foram chamados para matar "cada um o seu irmão, cada um o seu
companheiro, cada um o seu vizinho". Era uma tarefa terrível para a carne e o
sangue. Porém as circunstâncias requeriam-no.
Os direitos de Deus haviam sido desonrados aberta e descaradamente. A
invenção humana havia entrado em ação com o cinzel e um bezerro havia sido
levantado. A glória de Deus havia sido convertida em semelhança de um boi
que come erva; e portanto todos os que estavam do lado do Senhor foram
convidados a cingir a espada. A natureza podia dizer: "Não; sejamos
indulgentes, compassivos e misericordiosos. Conseguiremos mais por
benevolência do que por severidade. Nenhum bem pode haver em ferir as
pessoas. Existe muito mais poder em amor do que no rigor. Amemo-nos uns
aos outros. Assim poderia a natureza humana ter feito as suas
sugestões—podia argumentar e racionar desta forma. Porém, a ordem era clara
e terminante, "Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa". A espada era a
única coisa que era de utilidade enquanto estivesse ali o bezerro de ouro.
Falar de amor em semelhante momento seria escarnecer dos direitos do Deus
de Israel. Compete ao verdadeiro espírito de obediência prestar o próprio
serviço que convém às circunstâncias.
Um servo não tem que raciocinar, deve, simplesmente, fazer o que se lhe
manda. Fazer uma pergunta ou expor uma objeção é abandonar o nosso lugar
de servo. Poderia parecer uma tarefa terrível matar um irmão, um companheiro
ou um vizinho. Porém a Palavra do Senhor era imperativa. Não deixava lugar
para pretextos; e os levitas, por graça, mostraram uma pronta e completa
obediência. "E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés".
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos de Israel que lancem
fora do arraial a todo leproso, e a todo o que padece fluxo, e a todos os imundos
por causa de contato com algum morto. Desde o homem até à mulher os
lançareis; fora do arraial os lançareis, para que não contaminem os seus
arraiais, no meio dos quais eu habito. E os filhos de Israel fizeram assim, e os
lançaram fora do arraial; como o SENHOR; falara a Moisés, assim fizeram os
filhos de Israel" (versículos 1-4).
Aqui temos desenrolado perante nós, em poucas palavras, o grande princípio
fundamental em que é baseada a disciplina da assembleia—um princípio,
podemos dizer, da maior importância, embora, infelizmente, tão pouco
compreendido ou observado! Era a presença de Deus no meio do Seu povo
Israel que exigia santidade da parte deles. "Para que não contaminem os seus
arraiais, no meio dos quais eu habito." O lugar em que habita o Santo Senhor
deve ser santo. É uma verdade clara e necessária.
Já observamos que a redenção era a base da habitação de Deus no meio do
Seu povo. Mas devemos recordar que a disciplina era essencial à Sua
permanência entre eles. Deus não podia habitar onde o pecado era deliberada e
declaradamente aprovado. Bendito seja o Seu nome, Ele pode suportar e
suporta a fraqueza e a ignorância; mas os Seus olhos são puros demais para
contemplarem o mal, e não podem ver a iniquidade. O mal não pode habitar
com Deus, e Deus não pode ter comunhão com o mal. Isto envolveria a
negação da Sua natureza; e Ele não pode negar-Se a Si Mesmo.
Pode, todavia, fazer-se a seguinte objeção: Deus o Espírito Santo não habita
individualmente no crente, e todavia há nele muito mate É verdade que o
Espírito Santo habita no crente com base na redenção efetuada. Está ali não
para sancionar o que é da natureza, mas como o selo do que é de Cristo; e nós
gozamos da Sua presença e da Sua comunhão precisamente na medida em
que o mal em nós é habitualmente julgado. Quererá alguém sustentar que
podemos realizar a presença do Espírito em nós e deleitarmo-nos nela e ao
mesmo tempo permitir a nossa depravação natural e dar satisfação aos desejos
da carne e da mente?- Não; é preciso julgarmo-nos, afastar de nós tudo o que é
inconsistente com a santidade de dAquele que habita em nós. O nosso "homem
velho" não é reconhecido de modo algum. Não tem existência diante de Deus.
Foi condenado inteiramente na cruz de Cristo. Sentimos, enfim, a sua
influência, lamentamo-nos e julgamo-nos por causa dela; mas Deus vê-nos em
Cristo—em Espírito—na nova criação. E, além disso, o Espírito Santo habita no
corpo do crente com base no sangue de Cristo; e esta habitação exige o
julgamento do mal em todas as formas e feitios.
O Julgamento do Mal na Igreja
Assim é também a respeito da assembleia. Sem dúvida há mal nela — mal em
cada membro individualmente e, portanto, mal no corpo coletivo. Mas o mal tem
que ser julgado; e se é julgado não é permitido que atue, é anulado. Porém
dizer-se que uma assembleia não tem que julgar o mal não é nada mais nada
menos que estabelecer o antinomianismo. Que diríamos nós de um cristão
professo que asseverasse que não era solenemente responsável por julgar o
mal em si mesmo e nos seus caminhos?
Podíamos, com absoluta decisão, declará-lo antinomianista. E se é mau para
um só indivíduo tomar uma tal posição, não será proporcionalmente para uma
assembleia? Não vemos como é que isto possa ser posto em dúvida.
Qual teria sido o resultado se Israel tivesse recusado obedecer ao
"mandamento" peremptório dado no começo do capítulo que temos perante
nós?- Suponhamos que diziam: "Não somos responsáveis de julgar o mal, nem
cremos que é próprio de pobres mortais como nós, fracos e falíveis, julgar seja
quem for. Estas pessoas com lepra, e outros males são Israelitas como nós e
têm tanto direito a todas as bênçãos e privilégios do acampamento como nós;
não cremos portanto que seja justo pô-los fora."
Ora, qual seria, perguntamos, a réplica de Deus a tais objeções?- Se o leitor
quiser abrir apenas um instante o capítulo 7 de Josué encontrará uma resposta
tão solene quanto podia dar-se. Acerque- se e examine atentamente esse
"grande monte de pedras" no vale de Acor. Leia a inscrição que está sobre ele.
Qual é<?- "Deus deve ser em extremo tremendo na assembleia dos santos e
grandemente reverenciado por todos os que o cercam." (SI 89:7). "Porque o
nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29). Qual é o significado de tudo
isto? Escutemo-lo e ponderemo-lo! A concupiscência havia concebido no
coração de um membro da congregação e deu à luz o pecado. Então?- Isto
envolvia toda a congregação?- Sim, realmente, esta é a verdade solene. "Israel
(não apenas Acã) pecou, e até transgrediram o meu concerto que lhes tinha
ordenado, e até tomaram do anátema, e também furtaram, e também mentiram,
e até debaixo da sua bagagem o puseram. Pelo que os filhos de Israel não
puderam subsistir perante os seus inimigos; viraram as costas diante dos seus
inimigos, porquanto estão amaldiçoados; não serei mais convosco, se não
desarraigardes o anátema do meio de vós" (Js 7:11-12).
Isto é particularmente solene e tocante. Faz seguramente repercutir aos nossos
ouvidos uma alta voz e transmite uma solene lição aos nossos corações. Havia,
até onde a narrativa nos informa, muitas centenas de milhares em todo o
acampamento de Israel tão ignorantes do fato do pecado de Acã como o próprio
Josué parece ter sido; e todavia foi dito "Israel pecou... transgrediram...,
tomaram do anátema, furtaram e mentiram".
Como era isto?- A assembleia era uma. A presença de Deus no meio da
congregação constituía-a em uma unidade, unidade tal que o pecado de cada
um era o pecado de todos "Um pouco de fermento leveda toda a massa." A
razão humana pode pôr dúvidas sobre isto, como certamente duvida de tudo
que está para além do seu limitado alcance. Mas Deus vê, e isto é bastante
para o espírito crente. Não nos compete perguntar, por quê? Como?- Ou por
que motivo?- O testemunho de Deus regula todas as coisas, e nós só temos
que crer e obedecer. Basta-nos saber que o fato da presença de Deus exige
santidade, pureza, e o julgamento do mal. Lembremos que isto não se requer
com base no princípio justamente repudiado por todo o espírito humilde, "...não
te chegues a mim, porque sou mais santo do que tu" (Is 65:5). Não, não; é
inteiramente sobre o fundamento do que Deus é: "Sede santos, porque eu sou
santo."
Deus não pode dar a sanção da Sua santa presença ao mal por julgar.
O quê?- Dar a vitória em Ai com Acã no acampamento? Impossível! A vitória em
tais circunstâncias teria sido uma desonra para Deus, e a coisa pior que poderia
acontecer a Israel. Isto não podia ser. Israel devia ser castigado. Deviam ser
humilhados e quebrantados. Devem descer ao vale de Acor—o lugar de
perturbação — por que só ali pode ser aberta "uma porta de esperança" quando
o mal tem entrado (Os2:15).
O leitor não deve compreender mal este grande princípio prático. Tem sido,
receamos, muito mal compreendido, por muitos do povo do Senhor. Muitos há
que parece pensarem que nunca poderá ser correto para aqueles que estão
salvos pela graça, e que são eles próprios monumentos assinalados de
misericórdia, exercerem disciplina de qualquer forma ou sobre seja o que for.
No parecer de tais pessoas Mateus 7:1 parece condenar completamente o
pensamento do nosso empenho em julgar. Não é dito, argumentam,
expressamente por nosso Senhor para não julgarmos?- Não são estas as Suas
próprias palavras: "Não julgueis, para que não sejais julgados"1?- Sem dúvida.
Mas que significam estas palavras?-
Querem dizer que não devemos julgar a doutrina e maneira de vida dos que se
apresentam para a comunhão cristã?- Prestam algum apoio à ideia de que, seja
qual for a crença de um homem, ou o que ele ensina ou faz, devemos recebê-lo
de igual modo? Pode ser esta a força e o significado das palavras do Senhor?
Quem poderia ceder, ainda que por um momento, a uma coisa tão monstruosa,
como esta?- Nosso Senhor não nos diz, neste mesmíssimo capítulo, que nos
devemos acautelar "dos falsos profetas"? Mas como podemos acautelar-nos de
alguém, se não devemos julgará Se o juízo não deve exercer-se em nenhum
caso, porque dizer-nos para nos acautelarmos?
Leitor cristão, a verdade é tão simples quanto possível. A assembleia de Deus é
responsável por julgar a doutrina e a moral de todos os que pedem para
ingressar nela. Não temos que julgar as razões, mas sim os atos. O apóstolo
inspirado ensina-nos diretamente no capítulo quinto de 1 Coríntios que somos
obrigados a julgar todos os que tomam lugar na assembleia. "Porque, que tenho
eu em julgar também os que estão de fora?- Não julgais vós os que estão
dentro? ...Tirai pois de entre vós a esse iníquo" (versículos 12-13).
Isto é muito claro. Nós não temos de julgar os que estão de "fora"; mas temos
de julgar os que estão "dentro". Isto é, os que ocupam o lugar de cristãos — que
são membros da assembleia — esses estão todos ao alcance do julgamento.
No próprio momento em que um homem é admitido na assembleia, toma o seu
lugar nessa esfera onde a disciplina se exerce sobre tudo que é contrário à
santidade de Aquele que habita ali.
Ora, apesar de não estarmos debaixo de lei, podemos, ainda assim, tirar muita
instrução das suas instituições; ainda que não estamos sujeitos ao aio,
podemos aprender com ele boas lições. Se, pois, temos transgredido contra
alguém, não basta confessar o nosso pecado a Deus e ao nosso irmão; temos
de fazer restituição: somos convidados a dar uma prova prática de que nos
julgamos quanto ao ato sobre que havemos transgredido.
Duvidamos que este dever seja compreendido como deveria ser. Cremos que
há um meio de agir superficial, petulante e pachorrento, a respeito do pecado e
das faltas, que são verdadeiramente dolorosas para o Espírito Santo. Ficamos
contentes com a simples confissão de lábios sem o sentimento profundo e
sincero do mal do pecado à vista de Deus. O próprio mal não é julgado na sua
origem moral, e, como consequência desta brincadeira com o pecado, o
coração torna-se duro e a consciência perde a sua sensibilidade. Isto é muito
sério. Conhecemos poucas coisas mais preciosas do que uma consciência
sensível. Não queremos dizer uma consciência escrupulosa, que é dominada
pelas suas próprias excentricidades; ou uma consciência mórbida, que é
dirigida pelos seus próprios temores. Estes dois gêneros de consciência são
dois hóspedes importunos e difíceis de manter.
Mas referimo-nos a uma consciência terna, que é governada em tudo pela
Palavra de Deus e que se submete, em todos os casos, à Sua autoridade.
Consideramos esta descrição da consciência como um tesouro inestimável. Ela
regula todas as coisas, toma conhecimento das coisas vulgares relacionadas
com os nossos hábitos diários—o nosso modo de vestir, a nossa casa, os
nossos móveis, a nossa mesa e todo o nosso modo de viver, em espírito e estilo
— o modo de conduzir os nossos negócios, ou, se a nossa tarefa for servir os
outros, a forma como nos desempenhamos do serviço, seja o que for. Em suma,
tudo está sujeito à influência moral de uma consciência sensível. "E por isso",
diz o bem-aventurado apóstolo, "procuro sempre ter uma consciência sem
ofensa, tanto para com Deus como para com os homens" (At 24:16).
E isto que bem podemos ambicionar. Existe qualquer coisa moralmente bela e
atrativa no exercício do maior e mais dotado servo de Cristo. Com todos os seus
excelentes dons, com todos os seus poderes maravilhosos, e um profundo
conhecimento dos caminhos e desígnios de Deus, com tudo que tinha para falar
e gloriar-se, com todas as revelações que lhe haviam sido feitas no terceiro céu,
em suma, ele, o mais venerado e privilegiado dos santos, fazia uma santa
diligência para manter uma consciência livre de ofensa tanto para com Deus
como para com os homens; e se, num momento de descuido, pronunciava uma
palavra precipitada, como fez dirigindo-se a Ananias, o sumo sacerdote, estava
pronto, imediatamente, a confessar e fazer restituição, de forma que a
expressão precipitada, "Deus te ferirá, parede branqueada", foi retirada e
substituída por esta palavra de Deus: "Não dirás mal do príncipe do teu povo".
Ora nós não cremos que Paulo tivesse podido retirar-se para descansar nessa
noite com uma consciência livre de ofensa se não tivesse retirado as suas
palavras. Deve haver confissão quando fazemos ou dizermos alguma coisa má;
e se não houver confissão, a nossa comunhão será certamente interrompida.
Comunhão com pecado por confessar sobre a consciência é uma
impossibilidade moral. Podemos falar dela, mas é apenas uma ilusão. Devemos
manter uma consciência limpa se queremos andar com Deus. Nada há tanto
para temer como a insensibilidade moral, uma consciência impura, um sentido
moral surdo que podem permitir que passe toda a sorte de coisas sem serem
julgadas; com essa insensibilidade pode cometer- se o pecado, passar por cima
dele, e dizer friamente: "Que mal fiz eu?"
Prezado leitor, vigiemos com santo cuidado contra estes males. Procuremos
cultivar uma consciência delicada. Isto requererá de nos o que foi exigido a
Paulo, a saber, exercício. Contudo, é um exercício bendito, e que produzirá os
mais preciosos frutos. Não devemos supor que há alguma coisa parecida com o
legalismo neste exercício; não; é inteiramente cristão. Com efeito,
consideramos essas nobres palavras de Paulo como a própria personificação,
em forma resumida, de toda a prática do cristão. Andar sempre com uma
consciência sem ofensa , tanto para com Deus como para com homens .
compreende todas as coisas.
Mas, ah, em quão pouca conta temos habitualmente os direitos de Deus ou os
direitos do nosso próximo! Quão longe está a nossa consciência do que deveria
ser! Descuidamos direitos de toda a sorte, contudo não sentimos isso. Não há
abatimento nem contrição perante o Senhor. Cometemos transgressões em mil
e uma coisas, e contudo não há confissão nem restituição. Deixam-se passar
coisas que deviam ser julgadas, confessadas e afastadas. Há pecado em
nossos atos sagrados; há irreflexão e indiferença de espírito na assembleia e à
mesa do Senhor; roubamos a Deus de diversas maneiras; pensamos segundo
os nossos próprios pensamentos, falamos as nossas próprias palavras;
fazemos o que é do nosso próprio agrado; e o que é tudo isto senão roubar a
Deus, visto que não somos de nós mesmos, mas fomos comprados por bom
preço?
Ora, nós não podemos deixar de pensar que tudo isto deve infelizmente impedir
o nosso crescimento espiritual. Entristece o Espírito de Deus e põe obstáculos
ao Seu glorioso ministério de Cristo às nossas almas, sem o qual não podemos
crescer na vida espiritual. Sabemos, por diversas passagens da Palavra de
Deus, quanto Ele aprecia um espírito terno e um coração contrito, "...mas eis
para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha
palavra" (Is 66:2). Deus pode habitar com uma tal pessoa; mas com o
endurecimento e a insensibilidade, com a frieza e a indiferença, Ele não pode
ter comunhão. Oh! exercitemo-nos, pois, para termos sempre uma consciência
pura e lícita, tanto para com Deus como para com os nossos semelhantes.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes:
Quando um homem ou mulher se tiver separado, fazendo voto de nazireu, para
se separar para o SENHOR, de vinho e de bebida forte se apartará; vinagre de
vinho ou vinagre de bebida forte não beberá; nem beberá alguma beberagem
de uvas; nem uvas frescas nem secas comerá. Todos os dias do seu nazireado,
não comerá coisa alguma que se faz da vinha, desde os caroços até às cascas.
Todos os dias do voto do seu nazireado sobre a sua cabeça não passará
navalha; até que se cumpram os dias, que se separou para o SENHOR, santo
será, deixando crescer as guedelhas do cabelo da sua cabeça. Todos os dias
que se separar para o SENHOR, não se chegará a corpo de um morto. Por seu
pai, ou por sua mãe, por seu irmão, ou por sua irmã, por eles se não
contaminará, quando forem mortos; porquanto o nazireado do seu Deus está
sobre a sua cabeça. Todos os dias do seu nazireado, santo será ao SENHOR"
(versículos 1 -8).
A ordenação do nazireado está cheia de interesse e instrução pratica. Vemos
nela o caso de um que se põe de parte, de uma forma muito especial, de coisas
que, embora não sejam absolutamente pecaminosas em si, são, todavia,
prejudiciais à inteira consagração de coração que se manifesta no nazireado.
Em primeiro lugar, o Nazireu não devia beber vinho. O fruto a videira, sob
qualquer forma que fosse, estava-lhe proibido. Ora o vinho, como sabemos, é o
símbolo natural de alegria terrestre — expressão daquele gozo social a que o
coração humano é inteiramente capaz de se entregar. O nazireu devia
abster-se cuidadosamente no deserto. Para ele era uma ordenação. Não devia
excitar sua natureza com o uso de bebida forte. Durante todos os dias da sua
separação era chamado a observar a mais rigorosa abstinência do vinho.
Tal era o símbolo, e está escrito para nossa instrução—e escrito também neste
maravilhoso livro de Números tão rico em suas lições do deserto. Isto é o que
podíamos esperar. A instituição solene do nazireado encontra o seu lugar
apropriado no livro de Números. Está em perfeita harmonia com o caráter do
livro, o qual, como já foi acentuado, contém tudo que pertence especialmente à
vida do deserto.
Indaguemos pois qual é a natureza da lição que se nos ensina na abstinência
do nazireu de tudo que pertencia à videira, desde os caroços até às cascas.
__________
(1) Estes termos referem-se evidentemente às profecias do Velho Testamento.
Ha passagens nas Epístolas aos Romanos e aos Gálatas em que todos os
crentes são considerados como a semente de Abraão (Veja-se Rm 4:8-17; G1
3:7, 9, 21; 6:16); mas isto é sem dúvida uma coisa muito diferente. Não temos
revelação da "Igreja", assim propriamente chamada, nas Escrituras do Velho
Testamento.
Deus sabe o que diz; e portanto não devemos favorecer nada que se pareça
com uma maneira ligeira e irreverente de manejar a Palavra de Deus. Quando o
Espírito fala de Jerusalém, quer dizer Jerusalém; se quisesse referir-Se à Igreja
tê-lo-ia dito. Não nos ocorreria tratar um documento humano respeitável como
tratamos o volume inspirado. Aceitamos como certo que um homem sabe não
somente o que quer dizer, como diz o que quer dizer; e se é assim a respeito de
um pobre falível mortal, quanto mais a respeito do Deus vivo e único sábio, que
não pode mentirá?
Mas devemos pôr fim ao estudo desta parte do capítulo e deixar que o leitor
medite sozinho sobre a ordenação do nazireu, tão cheia de sagrado ensino para
o coração. Desejamos que considere, de um modo especial, o fato de o Espírito
Santo nos ter dado a exposição completa da lei do nazireado no livro de
Números — o livro do deserto. E não somente isto, mas que considere
atentamente a própria instituição. Quer procure compreender a razão por que o
nazireu não devia beber vinho; por que não devia cortar as suas tranças; e por
que não devia tocar um corpo morto. Que medite sobre estas três coisas, e
procure recolher a instrução abrangida por elas. Que se interrogue. "Desejo
realmente ser um nazireu?- — andar no caminho estreito de separação para
Deus? E, se é assim, estou pronto a abandonar todas as coisas que tendem a
contaminar, a distrair e impedir os nazireus de Deus? E, por fim, lembre-se de
que virá tempo em que "o nazireu pode beber vinho", ou, por outras palavras,
em que não haverá necessidade de vigiar contra as diversas formas do mal
íntimo ou exterior; tudo será puro; os afetos poderão ter livre curso; as vestes
poderão ser envergadas sem cinto ao nosso redor; não haverá mal para termos
de nos separar, e portanto não haverá necessidade de separação. Em suma,
haverá "novos céus e nova terra, em que habita a justiça". Que Deus, em Sua
infinita misericórdia, nos guarde até que venha esse bendito tempo em
verdadeira consagração de coração para Si.
CAPÍTULO 9
Casos Particulares
Contudo, o capítulo que agora temos aberto diante de nós apresenta-nos a
páscoa inteiramente do ponto de vista do deserto; e explicará ao leitor porque
se faz menção da seguinte circunstância: "E houve alguns que estavam
imundos pelo corpo de um homem morto; e no mesmo dia não podiam celebrar
a Páscoa; pelo que se chegaram perante Moisés e perante Arão aquele mesmo
dia."
Aqui estava uma dificuldade prática — algo anormal, como diríamos —, alguma
coisa imprevista e portanto a questão foi submetida a Moisés e Arão.
"Chegaram-se perante Moisés" — o expoente dos direitos de Deus —; e "se
chegaram perante Arão" — o expoente dos recursos da graça de Deus. Parece
haver algo de distinto e enfático na maneira como se faz alusão a estes dois
funcionários. Os dois elementos dos quais eles são a expressão parecem ser
essenciais para a solução de um dificuldade como aquela que se apresenta
aqui.
"E aqueles homens disseram-lhe: Imundos estamos nós pelo corpo de um
homem morto; por que seríamos privados de oferecer a oferta do SENHOR a
seu tempo determinado no meio dos filhos de Israel?" Fez-se sinceramente
confissão da contaminação, e a questão que se apresentava era esta: deviam
ser privados do santo privilégio de comparecer ante o Senhor como Ele
ordenara ? Não havia recurso para tal caso?-
Uma questão extremamente interessante, sem duvida, mas para a qual não
havia ainda sido encontrada resposta. Não temos um tal caso previsto na
instituição em Êxodo 12, apesar de encontrarmos nela uma exposição completa
de todos os ritos e cerimônias da testa. Estava reservado ao deserto
desenvolver este novo ponto. Era da marcha atual do povo — nos pormenores
verdadeiros na vida do deserto — que se apresentava a dificuldade para a qual
tinha de se encontrar uma solução. Por isso, o relato de toda a questão é feito
muito a propósito no livro de Números, o livro do deserto.
"E disse-lhes Moisés: Esperai, e ouvirei o que o SENHOR VOS ordenará." Bela
atitude! Moisés não tinha resposta para dar; mas sabia quem a tinha e dirigiu-se
a Ele. Isto era a coisa melhor e mais prudente que Moisés podia fazer. Não teve
a pretensão de poder dar uma resposta. Não se envergonhou de dizer, "não
sei".
Com toda a sua sabedoria e conhecimentos, não hesitou em mostrar a sua
ignorância. Isto é verdadeira sabedoria—verdadeiro conhecimento. Poderia
parecer humilhante para um homem na posição de Moisés parecer ignorante
aos olhos da congregação ou qualquer dos seus membros, sobre qualquer
assunto. Aquele que tinha tirado o povo do Egito, que o havia conduzido através
do Mar Vermelho, que havia conversado com o Senhor e recebido a sua missão
do grande "Eu sou", seria possível que fosse incapaz de responder a uma
dificuldade originada por um caso tão simples como aquele que estava agora
perante si?- Era realmente verdade que uma pessoa como Moisés ignorava o
justo caminho a seguir a respeito de homens que estavam contaminados por
um corpo mortos?
Quão poucos há que, apesar de não ocuparem uma posição tão elevada como
Moisés, não teriam procurado dar uma resposta qualquer a uma tal questão!
Mas Moisés era o homem mais manso de toda a terra. Não podia ter a
presunção de falar quando nada tinha para dizer. Oh! se nós seguíssemos mais
fielmente o seu exemplo neste assunto! Evitaríamos muitas tristes figuras,
muitos disparates, e esforços inúteis. Além disso isto far-nos-ia mais
verdadeiros, mais simples e mais naturais. Somos por vezes bastante
insensatos Para termos vergonha de parecer ignorantes. Levianamente
imaginamos que a nossa reputação de sabedoria e inteligência é afetada
quando pronunciamos essas palavras tão expressivas de uma verdadeira
grandeza moral, "Não sei".
É um grande erro. Damos sempre muito mais importância às palavras de um
homem que não tem pretensões a um conhecimento que não possui. Mas não
estamos dispostos a escutar um homem que está sempre pronto a falar com
frívola confiança de si mesmo. Oh! Andemos sempre no espírito destas palavras
agradáveis: "Esperai, e ouvirei o que o SENHOR vos ordenará."
"Então falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel, dizendo:
Quando alguém entre vós ou entre as vossas gerações for imundo por corpo
morto, ou se achar em jornada longe de vós, contudo, ainda celebrará a Páscoa
ao SENHOR. No segundo mês, no dia catorze, de tarde, a celebrarão: Com
pães asmos e ervas amargas a comerão."
Na páscoa são apresentadas duas grandes verdades fundamentais, a saber: a
redenção e a unidade do povo de Deus. Estas verdades são imutáveis. Nada
poderá destruí-las. Pode haver fraquezas e infidelidade de diversas formas,
mas essas gloriosas verdades de eterna redenção e perfeita unidade do povo
de Deus permanecem em toda a sua força e poder. Por isso essa ordenação,
que tão vivamente simboliza essas verdades, era de obrigação perpétua. As
circunstâncias não deviam impedir o seu cumprimento. A morte ou a distância
não deviam interrompê-la. "Quando alguém entre vós ou entre as vossa
gerações for imundo por corpo morto, ou se achar em jornada longe de vós,
contudo, ainda celebrará e páscoa ao SENHOR."
Celebrar a festa era tão impressivo para cada membro da congregação que em
Números 9 se toma uma medida especial para aqueles que não estavam em
condições de a celebrar segundo a ordem prescrita. Essas pessoas deviam
celebrá-la no "dia catorze do segundo mês". A graça provia a todos os casos de
contaminação evitável ou de ausência.
Se o leitor se voltar par o segundo livro de Crônicas 30, verá que Ezequias e a
congregação em seus dias se aproveitaram deste gracioso recurso. "E
ajuntou-se em Jerusalém muito povo para celebrar a Festa dos Pães Asmos, no
segundo mês; uma mui grande congregação... então, sacrificaram a Páscoa no
dia décimo-quarto do
segundo mês" (versículos 13-15).
A graça de Deus pode valer-nos na nossa maior fraqueza, contanto que a
sintamos e confessemos (1). Mas que esta verdade tão preciosa não nos leve a
tratar levianamente o pecado ou contaminação. Embora a graça permitisse o
segundo mês em vez do primeiro não permitia, por esse motivo, o menor
relaxamento quanto aos ritos e cerimônias da festa. Os "pães asmos e ervas
amargas" deviam ter sempre o seu lugar; nada do sacrifício devia guardar-se
até o dia seguinte, e nenhum osso devia ser quebrado. Deus não pode
consentir que o padrão da verdade ou santidade seja rebaixado. O homem por
causa de fraqueza, faltas ou o poder das circunstâncias, podia estar atrasado,
mas não podia faltar ao padrão. A graça permitia aquela falta; a santidade
proibia esta; e se alguém tivesse suposto que, devido à graça, podia passar
sem a santidade, teria sido cortado da congregação.
__________
(1) O leitor notará com muito interesse e proveito o contraste entre o ato de
Ezequias em 2 Crônicas 30 e o ato de Jeroboão em 1 Reis 12:32. O primeiro
aproveitou-se da provisão da graça divina, o último seguiu o seu próprio
estratagema. O segundo mês era permitido por Deus: o oitavo mês foi
inventado pelo homem. A provisão divina suprindo as necessidades do homem
e as invenções do homem opondo-se à Palavra de Deus, são coisas totalmente
diferentes.
Isto não nos diz nada? Certamente que sim. Ao passarmos as páginas destes
maravilhoso livro de Números, devemos lembrar sempre que as coisas que
aconteceram a Israel são figuras para nós, e que é, ao mesmo tempo, o nosso
dever e privilégio estudar estas figuras e procurar compreender as santas lições
que estão destinadas por Deus a proporcionar-nos.
Que devemos então aprender com os regulamentos relativos à páscoa no
segundo mês?- Por que se ordenava especialmente a Israel não omitir nenhum
rito ou cerimônia nessa ocasião especial? Por que é que neste capítulo nono de
Números as instruções para o segundo mês são muito mais pormenorizadas do
que as que correspondem ao primeiro? Não é porque a ordenação fosse mais
importante num caso do que no outro, porque a sua importância, no juízo de
Deus, era sempre a mesma. Não é tampouco porque houvesse uma sombra de
diferença na ordem, em ambos os casos, porque essa era também a mesma.
Contudo, o leitor que medita sobre este capítulo fica surpreendido com o fato de
lermos simplesmente, quando se menciona a celebração da páscoa no primeiro
mês, "segundo todos os seus estatutos e segundo todos os seus ritos a
celebrareis". Mas, por outro lado, quando se trata do segundo mês, temos uma
relação pormenorizada do que eram esses ritos e estatutos. "Com pães asmos
e ervas amargas a comerão. Dela nada deixarão até à manhã, e dela não
quebrarão osso algum; segundo todo o estatuto da páscoa a celebrarão"
(compare-se versículo 3 com os versículos 11-12).
Ensinamentos Práticos
O que é, perguntamos, que este simples fato nos ensinai Cremos que nos
ensina claramente que não devemos nunca rebaixar o padrão nas coisas de
Deus por causa das faltas e fraquezas do povo de Deus; mas, pelo contrário, ter
cuidado especial em manter o padrão em toda a sua integridade divina. Sem
dúvida, deve haver o sentimento profundo do fracasso—quanto mais profundo
tanto melhor; mas a verdade de Deus não pode ser sacrificada. Podemos contar
sempre, com confiança, com os recursos da graça divina, enquanto procuramos
manter, com decisão inquebrantável, o padrão da verdade divina.
Procuremos reter sempre isto nos pensamentos dos nossos corações.
Corremos o perigo, por um lado, de esquecer que o fracasso é um fato—sim,
grande fracasso, infidelidade e pecado. E, por outro lado, corremos o risco de
esquecer, em vista desse fracasso, a fidelidade infalível de Deus, apesar de
tudo. A Igreja professante tem falhado, e tornou-se uma autêntica ruína; e não
só isso, mas nós próprios falhamos individualmente e temos contribuído para a
ruína. Devemos sentir tudo isto — senti-lo profunda e constantemente.
Devemos ter sempre presente em nossos espíritos perante Deus o sentimento
íntimo e humilhante da maneira triste e vergonhosa como nos temos conduzido
na casa de Deus. Olvidar o fato que temos falhado seria aumentar grandemente
as nossas faltas O que nos convém é profunda humildade e um espírito deveras
quebrantado ao recordar tudo isto; e estes sentimentos e exercícios se
revelarão necessariamente por uma conduta humilde no meio da cena em
vivemos.
"Todavia, o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece
os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da
iniquidade" (2 Tm 2:19). Aqui está o recurso dos fiéis, em face da ruína da
cristandade. Deus nunca falta, nunca muda, e nós apenas temos de nos
separar da iniquidade e apoiarmo-nos n'Ele. Devemos fazer o que é reto, e
segui-lo diligentemente, e deixar as consequências ao Seu cuidado.
Pedimos sinceramente ao leitor que preste toda a sua atenção aos
pensamentos precedentes. Desejamos que se detenha uns momentos e que,
no espírito de oração, considere todo este assunto. Estamos convencidos de
que a questão propriamente considerada, dos dois lados, ajudar-nos-á a
encontrar o nosso caminho por entre as ruínas que nos cercam. A recordação
da condição da Igreja e da nossa própria infidelidade nos manterá humildes;
enquanto que, ao mesmo tempo, a compreensão da regra invariável de Deus
nos separará do mal que nos rodeia e nos guardará firmes no caminho da
separação. As duas coisas juntas nos preservarão eficazmente de uma vã
pretensão, por um lado, e do relaxamento e indiferença, por outro. Devemos ter
sempre ante as nossas almas o fato humilhante de que temos fracassado,
falhado, e contudo manter a grande verdade que Deus é fiel.
Estas são por excelência as lições do deserto—lições para os dias atuais —
lições para nós. São sugeridas forçosamente pelo relato inspirado da páscoa no
mês segundo — um relato particular do livro de Números — o grande livro do
deserto. É no deserto que o fracasso humano claramente se manifesta; e no
deserto são manifestados os infinitos recursos da graça divina. Mas repetimos
mais urna vez a afirmação — e que ela seja profunda e largamente gravada em
nossos corações — as mais ricas provisões da graça e da misericórdia divina
não dão o menor motivo para baixar o padrão da verdade divina.
Se alguém tivesse alegado contaminação ou distância como desculpa para não
celebrar a páscoa ou para a celebrar de modo diferente do ordenado por Deus,
teria sido seguramente expulso da congregação. E assim é conosco, se
consentimos em abandonar qualquer verdade de Deus por se haver verificado o
fracasso—se por incredulidade de coração abandonamos o padrão de Deus e
deixamos o fundamento de Deus—se tiramos um argumento do estado de
coisas em redor de nós para nos desembaraçarmos da autoridade da verdade
de Deus sobre a consciência ou influência formativa sobre a nossa conduta e
caráter—é bem claro que a nossa comunhão está suspensa (1).
__________
(1) Note-se, de uma vez para sempre, que a exclusão de um membro da
congregação de Israel corresponde à exclusão de um crente da comunhão por
causa de pecado não julgado.
CAPÍTULO 10
AS TROMBETAS DE PRATA
Hobabe
Mas vejamos a que foi devido essa tocante manifestação de graça. "Disse,
então, Moisés a Hobabe, filho de Reuel, o midianita, sogro de Moisés: Nós
caminhamos para aquele lugar de que o SENHOR disse; Vo-lo darei: vai
conosco, e te faremos bem; porque o SENHOR falou bem sobre Israel. Porém
ele lhe disse: Não irei; antes, irei à minha terra e à minha parentela. E ele disse:
Ora, não nos deixes; porque tu sabes que nós nos alojamos no deserto; de
olhos nos servirás" (versículos 29-31).
Ora, se não conhecêssemos alguma coisa dos nossos próprios corações e a
sua inclinação para se apoiarem na criatura em vez do Deus vivo, podíamos
muito bem ficar admirados com esta passagem. Podíamo-nos sentir tentados a
perguntar: O que esperava Moisés dos olhos de Hobabe? O Senhor não era
suficiente?- Não conhecia Ele o deserto? Permitiria Ele que eles se
extraviassem? De que serviam a nuvem e a trombeta? Não valiam mais que os
olhos de Hobabe? Logo, por que buscou Moisés o auxílio humano?
Ah! Infelizmente podemos compreender muito bem a razão! Todos
conhecemos, para nossa tristeza e prejuízo do coração, a inclinação para se
apoiar em alguma coisa que os nossos olhos podem ver. Não nos agrada
mantermo-nos no terreno de absoluta dependência de Deus para cada passo
da jornada. Encontramos dificuldade em nos apoiarmos a um braço invisível.
Um Hobabe a quem podemos ver inspira-nos mais confiança que o Deus vivo a
Quem não podemos ver. Avançamos com confiança e satisfação quando
contamos com o apoio e a presença de algum pobre mortal como nós; mas
hesitamos, trememos e desanimamos quando somos chamados para avançar
em simples fé em Deus.
Estas afirmações podem parecer fortes; mas a questão é esta: são
verdadeiras? Haverá algum cristão que, ao ler estas linhas, não reconheça
francamente que é mesmo assim? Temos todos a propensão para nos
apoiarmos num braço de carne, e isto apesar de mil e um exemplos da loucura
de atuar deste modo. Temos comprovado, vezes sem conta, a vaidade de toda
a confiança da criatura, e todavia queremos confiar na criatura. Por um lado,
temos comprovado repetidas vezes a realidade do apoio que se encontra na
Palavra e no braço do Deus vivo. Temos visto que nunca nos faltou, que nunca
nos desapontou, antes, que sempre tem feito tudo mais abundantemente do
que temos pedido ou pensado; e contudo estamos sempre prontos a descrer
n'Ele, prontos a apoiarmo-nos numa cana rachada e a recorrermos a cisternas
rotas.
Até agora temos estado ocupados, no estudo deste livro, com a maneira de
Deus dirigir o Seu povo no deserto e prover as suas necessidades. Temos
percorrido os dez primeiros capítulos e visto neles um exemplo da sabedoria,
bondade e previsão do Deus de Israel.
Mas agora chegamos a um ponto em que nuvens sombrias se amontoam em
redor de nós. Até este ponto, Deus e os Seus atos têm estado diante de nós;
mas agora somos chamados para contemplar o homem e os seus miseráveis
caminhos. Isto é sempre triste e humilhante. O homem é o mesmo em toda a
parte. No Éden, na terra restaurada, no deserto, na terra de Canaã, na Igreja, no
Milênio, está provado que o homem é um fracasso. No próprio momento em que
parte, ele falha.
Assim, nos dois primeiros capítulos de Gênesis vemos Deus atuando como
Criador; tudo está feito e ordenado com perfeição divina, e o homem é posto
nesta cena para gozar os frutos da sabedoria, bondade e poder divino. Porém
no capítulo 3 tudo é alterado. Logo que o homem atua é para desobedecer e
introduzir a ruína e desolação. Assim também depois do dilúvio, em que a terra
passou por aquele profundo e terrível batismo, e em que o homem toma outra
vez o seu posto, mostra se tal qual é, dá provas de que, longe de poder dominar
e governar a terra, não pode sequer governar-se a si próprio (Gn 9). Apenas
Israel havia sido tirado do Egito, quando fizeram um bezerro de ouro. O
sacerdócio acabava apenas de ser estabelecido, e já os filhos de Arão
ofereciam fogo estranho. Saul é eleito rei, e logo se mostra voluntarioso e
desobediente.
Assim também quando nos voltamos para o Novo Testamento, encontramos a
mesma coisa. Apenas é fundada a Igreja e dotada com os dons do Pentecostes,
ouvimos tristes murmurações e descontentamento. Em suma, a história do
homem, desde o princípio ao fim, aqui, ali, e em toda a parte, está marcada com
o fracasso. Não existe tanto como uma simples exceção desde o Éden ao fim
do milênio.
E conveniente considerar este fato solene e grave, e dar-lhe um lugar no
recôndito do coração. Está iminentemente calculado para corrigir todas as
falsas ideias sobre o verdadeiro caráter e condição do homem. É conveniente
recordar que a terrível sentença que encheu de terror o coração do voluptuoso
rei de Babilônia foi pronunciada, com efeito, sobre toda a raça humana e contra
todo o indivíduo filho ou filha de Adão caído, isto é: "Pesado foste na balança, e
foste achado em falta."
O leitor já aceitou plenamente esta sentença contra si próprio? E uma pergunta
muito séria. Sentimo-nos constrangidos a insistir nela. O leitor é um dos filhos
da sabedoria?- Justifica Deus e condena-se a si mesmos Já tomou o seu lugar
como pecador culpado e digno do inferno'? Se assim é, Cristo é para si. Ele
morreu para tirar o pecado e levar os seus muitos pecados. Confie n'Ele e tudo
que Ele é e tudo quando possui é seu. Ele é a sua sabedoria, a sua justiça, a
sua santificação e redenção, Todos os que creem simplesmente e de coração
em Jesus deixaram completamente o antigo terreno de culpa e condenação e
são vistos por Deus sobre o novo terreno de vida eterna e justiça divina. Estão
aceites no Cristo ressuscitado e vitorioso. "Qual ele é, somos nós também neste
mundo" (I Jo 4:17).
Pedimos sinceramente ao leitor que se não entregue ao repouso até que esta
questão importante seja clara e inteiramente resolvida à luz da Palavra de Deus
e na Sua presença. Desejamos que Deus, o Espírito Santo, atue sobre coração
e a consciência do leitor inconvertido e indeciso e o conduza aos pés do
Salvador.
Vamos proceder agora com os nossos comentários sobre o capítulo.
"E aconteceu que, queixando-se o povo, era mal aos ouvidos do Senhor;
porque o Senhor ouviu-o, e a sua iras se acendeu, e o fogo do SENHOR ardeu
entre eles e consumiu os que estavam na ultima parte do arraial. Então, o povo
clamou a Moises, e Moises orou ao SENHOR, e o fogo se apagou. Pelo que
chamou aquele lugar Tabera, porquanto o fogo do SENHOR se acendera entre
eles. E o vulgo, que estava no meio deles, veio a ter grande desejo; pelo que os
filhos de Israel tornaram a chorar, e disseram: Quem nos dará carne a comerá
Lembramo-nos dos peixes que no Egito comíamos de graça; e dos pepinos, e
dos melões, e dos porros, e das cebolas, e dos alhos. Mas agora a nossa alma
se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos."
Aqui o pobre coração humano descobre-se inteiramente. Os seus gostos e as
suas inclinações são manifestos. O povo suspira pela terra do Egito e volve os
olhos ávidos para os seus frutos e panelas de carne. Não dizem nada sobre as
chicotadas dos exatores, nem do labor dos fomos de tijolo. Há um completo
silêncio sobre estas coisas. De nada se lembram agora, salvo os recursos
mediante os quais o Egito tinha satisfeito a cobiça da natureza.
Quantas vezes sucede o mesmo conosco! Uma vez que o coração perde o
vigor da vida divina quando as coisas divinas começam a perder o seu sabor,
quando o primeiro amor declina, quando Cristo deixa de ser uma porção
preciosa e absolutamente suficiente para a alma, quando a Palavra de Deus e a
oração perdem o seu encanto e se tomam enfadonhos, insípidos e maquinais,
então os olhos volvem-se para o mundo, o coração segue os olhos, e os pés
seguem o coração. Esquecemos, em tais momentos, o que o mundo era para
nós quando estávamos nele e éramos dele. Esquecemos o labor da escravidão,
a miséria e a degradação que encontramos ao serviço do pecado e de Satanás,
e só pensamos nos prazeres e comodidade e de nos vermos livres dos penosos
exercícios, conflitos e ansiedades que se acham no caminho do povo de Deus
no deserto.
Tudo isto é muito triste e deveria conduzir a alma ao mais profundo juízo
próprio. É terrível quando aqueles que decidiram seguir o Senhor começam a
cansar se do caminho e das provisões de Deus. Quão terrivelmente devem ter
soado estas palavras aos ouvidos do Senhor: "Mas agora a nossa alma se
seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos"!
Ah! Israel, que te faltava mais? Esse alimento celestial não era suficiente para
ti? Não podias viver daquilo que a mão do teu Deus te proporcionava?
O Maná
E nos permitimo-nos fazer perguntas semelhantes? Encontramos sempre o
nosso maná celestial suficiente para as nossas necessidades? Que significa a
pergunta frequentemente levantada por cristãos professos sobre o bem ou mal
que há neste ou naquele prazer mundano? Não temos nós ouvido dos próprios
lábios de pessoas que fazem profissão destacada palavras como estas: "Como
devemos então passar o tempo? Não podemos estar sempre a pensar em
Cristo e nas coisas celestiais. Devemos ter um pouco de recreio." Isto não é um
pouco semelhante à linguagem de Israel em Números 1? Sim, é, realmente; e
assim como é a linguagem, assim é a conduta. O próprio fato de nos
entregarmos a outras coisas demonstra infelizmente que Cristo não é suficiente
para os nossos corações. Quantas vezes, por exemplo, não descuramos a
Bíblia para ler avidamente uma literatura mundana. Que significam os
periódicos abertos e a Bíblia quase sempre fechada e coberta de pó? Estas
coisas não falam claro? Não será isto desprezar o maná e suspirar ou, antes,
comer os alhos e as cebolas?
Chamamos especialmente a atenção dos jovens cristãos para o fato que está
agora diante de nós. Estamos profundamente impressionados com o
sentimento do perigo em que eles estão de cair no mesmo pecado de Israel,
segundo o relato neste capitulo. Não resta dúvida de que estamos todos em
perigo, mas especialmente os jovens entre nós. Aqueles de entre nós que são
avançados em idade não estão tão sujeitos a serem arrastados pelas frívolas
pretensões do mundo -os seus concertos, as suas diversões, os seus prazeres,
os seus cânticos inúteis e a sua literatura supérflua. Mas os jovens querem ter
um pouco do mundo. Anseiam prová-lo por si mesmos. Não acham que Cristo
seja suficiente para o coração. Querem algum recreio.
Mas há! Que pensamento! Como é triste ouvir um cristão dizer- -Quero algum
recreio. Em que vou passar o dia? Não posso estar sempre a pensar em Jesus.
Gostaríamos de perguntar a todos aqueles que assim falam: em que
empregarás a eternidade? Cristo não será suficiente para os séculos
incontáveis?- Precisarás de recreio lá d Suspirarás por literatura inútil, canções
frívolas e prazeres levianos ?
Dir-se-á, talvez: seremos diferentes então. Em que sentido? Temos a natureza
divina - temos o Espírito Santo; temos Cristo por nossa porção; pertencemos ao
céu; fomos trazidos a Deus. Mas temos uma natureza má-replicará alguém.
Bem, devemos cuidar dela? É por isso que suspiramos por recreio? Devemos
esforçar-nos por ajudar a nossa miserável carne a nossa natureza corrupta a
passar o dia? Não, somos convidados a negá-la, a mortificá-la, a considerá-la
como morta. Isto é o recreio cristão. E este o modo de o cristão empregar o dia.
Como podemos nós crescer na vida divina se nos preocupamos apenas em
fazer provisões para a carne? O alimento do Egito não pode alimentar a nova
natureza; e a grande questão para nós é esta: qual queremos realmente
alimentar e fomentar: a nova ou a velha natureza ? E óbvio que a natureza
divina não pode de modo algum alimentar-se com os periódicos, canções fúteis,
e literatura insubstancial; por isso, se nos entregamos, em qualquer medida, a
estas coisas, as nossas almas murcharão e desfalecerão.
Que Deus nos dê graça para pensar nestas coisas atentamente. Andemos em
Espírito para que Cristo possa ser sempre a porção suficiente dos nossos
corações. Tivesse Israel, no deserto, andado com Deus, e nunca teria dito: "Mas
agora a nossa alma se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos
nossos olhos"! Esse maná teria sido amplamente suficiente para eles. E assim é
conosco. Se realmente andamos com Deus, neste deserto, as nossas almas se
contentarão com a parte que Ele nos dá, e essa parte é um Cristo celestial.
Poderá Ele jamais deixar de satisfazer-nos? Não satisfaz Ele o coração de
Deus? Não enche Ele todo o céu com a Sua glória? Não é Ele o tema do cântico
dos anos e o objeto supremo da sua homenagem e adoração? Não é Ele o
assunto dos desígnios e propósitos eternos?- A história dos Seus caminhos não
envolve a eternidade?
Que resposta temos nós para dar a todas estas interrogações? Que outra
resposta poderíamos dar senão um sim sincero sem reserva nem hesitação?
Pois bem, não é este bendito Senhor, no profundo mistério da Sua Pessoa e
glória moral dos Seus caminhos e segundo o brilho e bem-aventurança do Seu
caráter, suficiente para os nossos corações? Carecemos de alguma coisa
mais? Necessitamos dos jornais e de alguma vulgar revista par encher o vazio
nas nossas almas? Devemos deixar Cristo por uma diversão ou por um
concerto?
Oh! Como é triste termos de escrever assim! E mesmo muito triste, mas é muito
necessário; e aqui fazemos formalmente esta pergunta ao leitor: Achas
realmente que Cristo e insuficiente para satisfazer? Se assim é, estás num
estado alarmante de alma, e cumpre te examinar este assunto e examiná-lo
atentamente. Inclina o teu rosto perante Deus, e julga-te honestamente.
Abre-Lhe tudo. Confessa-Lhe até que ponto tens caído e te extraviaste pois
certamente assim tens feito sempre que o Cristo de Deus não tem sido bastante
para ti. Confessa tudo no secreto do teu coração a Deus e não descanses até
estares plena e ditosamente restaurado à comunhão Consigo comunhão de
coração no tocante ao Filho do Seu amor.
As Pessoas Estrangeiras
Mas devemos voltar ao nosso capítulo, e fazendo o chamamos a atenção do
leitor para uma expressão cheia de importantes avisos para nós: "E o vulgo, que
estava no meio deles, veio a ter grande desejo; pelo que os filhos de Israel
tornaram a chorar." Não há nada mais prejudicial para a causa de Cristo ou
almas do Seu povo do que a união com pessoas de princípios diferentes. E
muito mais perigoso do que ter de tratar com inimigos declarados e conhecidos,
Satanás sabe isto bem, e por isso faz constantes esforços para levar o povo de
Deus a ligar-se com aqueles que têm princípios ambíguos; ou, por outro lado
para introduzir falsos elementos, falsos professos, no meio dos que procuram,
de qualquer modo, seguir um caminho de separação do mundo.
No Novo Testamento encontramos repetidas referencias a este caráter especial
do mal. Encontramo-las profeticamente nos evangelhos e historicamente nos
Atos e nas epístolas. Assim, temos o joio e o fermento em Mateus 13. Então, em
Atos, encontramos pessoas aderindo à assembleia que eram como "o vulgo" de
Números 11. E, finalmente, temos as referências apostólicas a elementos
adulterados que o inimigo havia introduzido com o fim de corromper o
testemunho e subverteras almas do povo de Deus. Assim o apóstolo fala de
"falsos irmãos que se tinham entremetido" (Gl 2:4). Judas fala também de
"alguns que se introduziram" (versículo 4).
De tudo isto aprendemos a necessidade urgente de vigilância por parte do povo
de Deus; e não só de vigilância, mas também de absoluta dependência do
Senhor, o único que pode preservar o Seu povo da introdução de falsos
elementos, e guardá-lo de todo o contato com homens de princípios mistos e
caráter duvidoso. "O vulgo" terá certamente "grande desejo", e o povo de Deus
corre o perigo iminente de ser desviado da sua própria simplicidade e de se
sentir enfastiado do maná celestial, o seu próprio alimento. O que é necessário
é absoluta decisão por Cristo por meio de devoção por Ele e a Sua causa. Onde
um grupo de crentes pode andar em verdadeira devoção a Cristo e notória
separação do mundo, não há perigo de pessoas de caráter ambíguo
procurarem um lugar entre eles, ainda que Satanás procure, sem dúvida,
sempre manchar o testemunho introduzindo hipócritas. Tais pessoas
conseguem entrar, e por seus maus caminhos trazem opróbrio sobre o nome do
Senhor. Satanás sabia muito bem o que estava a fazer, quando induziu o vulgo
a unir-se à congregação de Israel. Não foi imediatamente que se manifestaram
os efeitos dessa mistura. O povo havia saído com mão forte; tinham passado o
Mar Vermelho e entoado o cântico da vitória nas suas margens. Tudo parecia
brilhante e prometedor; mas, não obstante, "o vulgo" estava ali, e o efeito da sua
presença bem depressa se manifestou.
Assim é sempre na história do povo de Deus. Podemos distinguir nos grandes
movimentos espirituais que têm tido lugar de século em século certos
elementos de decadência que, ocultos da vista, ao princípio, pela grande
corrente de graça e energia, se mostraram logo que essa corrente começou a
baixar.
Isto é muito grave e exige uma santa vigilância. Diz respeito tanto aos
indivíduos como forçosamente à assembleia do povo de Deus coletivamente.
Nos primeiros dias da nossa juventude, quando o zelo e o fervor nos
caracterizavam, a corrente da graça deslizava tão ditosamente que muitas
coisas podiam passar sem ser julgadas, as quais eram, na realidade, sementes
atiradas ao solo pela mão do inimigo, e que, a seu tempo, é certo germinarem e
frutificarem. Por isso segue se que tanto as assembleias dos cristãos como os
próprios cristãos individualmente devem estar sempre de atalaia - mantendo
sempre ciosamente guarda para que o inimigo não ganhe vantagem neste caso.
Onde o coração é leal a Cristo, é certo que tudo acabará bem. O nosso Deus é
tão misericordioso, que toma cuidado de nós e nos preserva de mil e uma
ciladas. Possamos nós confiar n'Ele e louvá-Lo.
Eldade e Medade
Mas devemos terminar esta parte do livro, e, antes de o fazer, queremos aludir
por um momento ao espírito verdadeiramente excelente com que Moisés
enfrenta as novas circunstâncias em que ele próprio se havia colocado. Uma
coisa é retroceder ante o peso da responsabilidade e cuidado e outra muito
diferente comportarmo-nos com graça e verdadeira humildade para com
aqueles que são chamados para compartilhar esse peso conosco. As duas
coisas são totalmente diferentes, e podemos muitas vezes ver a diferença
ilustrada de uma maneira notável. Na cena que temos diante de nós, Moisés
manifesta aquela delicada humildade que o caracterizava de um modo tão
especial.
"Porém no arraial ficaram dois homens [dos setenta]; o nome de um era Eldade,
e o nome do outro era Medade; e repousou sobre eles o Espírito (porquanto
estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizaram no
arraial. Então, correu um moço, o anunciou a Moisés, e disse: Eldade e Medade
profetizam no arraial. E Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus
jovens escolhidos, respondeu e disse: Senhor meu, Moisés, proíbe-lho. Porém
Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Tomara que todo o povo do
SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!" (versículos
26-29).
Isto é lindo. Moisés estava muito longe desse espírito miserável de inveja que
não deixa falar ninguém senão ele próprio. Estava preparado pela graça para se
alegrar com todas as manifestações de verdadeiro poder espiritual, não
importava onde nem por quem. Sabia muito bem que não podia haver
verdadeira profecia senão pelo poder do Espírito de Deus; e onde quer que
esse poder fosse exibido, quem era ele para procurar extingui-lo ou impedi-lo?
Oxalá que houvesse mais deste excelente espírito! Que cada um de nós o
busque! Que tenhamos graça para nos regozijarmos sinceramente com o
testemunho e serviço de todo o povo do Senhor, ainda que não nos seja
possível ver todas as coisas do mesmo ponto de vista e ainda que o nosso
método e a nossa medida não sejam diferentes! Nada pode ser mais
desprezível que aquele espírito de inveja e ciúme que não permitirá que um
homem tome interesse em qualquer trabalho senão o seu. Podemos estar
certos de que de quer que o Espírito de Cristo está atuando nos corações, aí
haverá a compreensão para abraçar o vasto campo da obra do nosso bendito
Senhor e todos os Seus amados obreiros têm regozijo sincero pelo trabalho ser
feito, seja quem for o obreiro que o faz. Um homem cujo coração está cheio de
Cristo, poderá dizer e dizê-lo sem afetação - contanto que a obra se faça
contanto que Cristo seja glorificado, contanto que as almas sejam salvas,
contanto que o rebanho do Senhor seja alimentado e cuidado, não me interessa
saber quem faz o trabalho.
Este é o espírito justo que devemos cultivar e está em flagrante contraste com a
ocupação mesquinha e egoísta que só se regozija no trabalho em que o próprio
eu tem um lugar proeminente. Que o Senhor nos liberte de tudo isto e nos dê
aquele estado de alma que Moisés expressou quando disse: "Tens tu ciúmes
por mim? Tomara que todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR
lhes desse do seu Espírito!
O Juízo da Cobiça
O parágrafo final do nosso capítulo mostra-nos o povo entregue ao miserável e
fatal gozo daquilo por que os seus corações tinham cobiçado. "E ele
satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar as suas almas" (SI 106-15). Obtiveram
aquilo por que suspiravam e encontraram nele a morte. Queriam carne; e com a
carne veio o juízo de Deus. Isto é muito solene. Tenhamos em conta a
advertência! O pobre coração está cheio de desejos e de odiosa cobiça. O
maná celestial deixa de o satisfazer. Necessita de alguma coisa mais. Deus
permite que o tenhamos. Mas, então? Fraqueza, esterilidade, juízo! Oh, Senhor,
guarda os nossos corações unidos sempre só a ti! Sê Tu sempre a porção
suficiente das nossas almas, enquanto atravessamos este deserto, e até
vermos a Tua face em glória!
CAPÍTULO 12
MIRIÃ, ARÃO E A MULHER CUSITA DE MOISÉS
Aparte resumida do nosso livro de que nos acercamos agora pode ser
considerada sob dois aspectos distintos: em primeiro lugar, é simbólica; e em
segundo, é moral ou prática.
Na união de Moisés com "a mulher cusita" temos uma figura do grande e
maravilhoso mistério da união da Igreja com Cristo, sua Cabeça. Este assunto
já foi tratado no nosso estudo sobre o livro do Êxodo; porém vêmo-lo aqui,
através de um prisma particular, como aquilo que provoca a inimizade de Arão o
e Miriã. Os atos soberanos da graça encontram oposição daqueles que se
mantêm sobre o terreno das relações naturais e privilégios carnais. Sabemos,
segundo o ensino do Novo Testamento, que a extensão da graça aos gentios foi
o que provocou o ódio mais cruel e terrível dos judeus. Não a queriam; não
acreditavam nela ou, antes, não queriam sequer ouvir falar dela. Em Romanos,
capítulo 11, faz se uma alusão notável a isto, quando o apóstolo, referindo se
aos gentios, diz: "Porque assim como vós também, antigamente, fostes
desobedientes a Deus, mas agora alcançastes misericórdia pela desobediência
deles, assim também estes (judeus), agora, foram desobedientes, para também
alcançarem misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada" (Rm 11:30-31).
Isto é precisamente o que temos simbolizado na história de Moisés. Antes de
tudo, ele apresentou se a Israel, seus irmãos segundo a carne, mas eles, em
sua incredulidade, o aborreceram.
Lançaram no fora e nada queriam com ele. Isto tornou-se, na sabedoria de
Deus a ocasião de misericórdia para a estrangeira, pois, oi durante o período de
rejeição de Moisés por Israel que ele formou a união mística com uma noiva
gentílica. Contra esta união Miriã e Arão falam neste capítulo 12: e a sua
oposição desencadeia o juízo de Deus. Miriã fica leprosa, uma pobre pessoa
contaminada, objeto próprio de misericórdia que ali aflui sobre ela pela
intercessão do próprio contra quem ela havia falado.
O símbolo é completo e o mais notável. Os judeus não têm crido na gloriosa
verdade de misericórdia para os gentios e portanto a ira tem caído sobre eles o
mais possível. Mas serão trazidos a Deus dentro em pouco com base na
simples misericórdia, assim como tem acontecido com os gentios. Isto é
deveras humilhante para aqueles que procuravam permanecer sobre o princípio
da promessa e privilégio nacional; mas assim é na sabedoria da dispensação de
Deus, sabedoria cujo pensamento arranca ao apóstolo inspirado esta
magnificente doxologia: "O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria,
como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Porque quem compreendeu o intento do
Senhor? Ou quem foi seu conselheiro?- Ou quem lhe deu primeiro a ele, para
que lhe seja recompensado? Porque dele, e por ele, e para ele são todas as
coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!" (Rm 11:33-36).
Isto basta quanto ao sentido típico do nosso capítulo. Vejamos agora o seu lado
prático e moral,
"E falaram Miriã e Arão contra Moisés, por causa da mulher cusita, que tomara;
porquanto tinha tomado a mulher cusita. E disseram: Porventura, falou o
SENHOR somente por Moisés? Não falou também por nós? E o SENHOR O
ouviu. E era o varão Moisés muito manso, mais do que todos os homens que
havia sobre a terra. E logo o SENHOR disse a Moisés, e a Arão e a Miriã: Vós
três saí à tenda da congregação. E saíram eles três. Então, o SENHOR desceu
na coluna da nuvem e se pôs à porta da tenda: depois, chamou Arão e a Miriã, e
eles saíram ambos. E disse: Ouvi agora as minhas palavras; se entre vós
houver profeta, eu, o SENHOR, em visão a ele me farei conhecer ou em sonhos
falarei com ele. Não é assim com o meu servo Moisés, que é fiel em toda a
minha casa. Boca a boca falo com ele, e de vista, e não por figuras; pois ele vê
a semelhança do SENHOR; por que, pois, não tivestes temor de falar contra o
meu servo, contra Moisés? Assim, a ira do SENHOR contra eles se acendeu; e
foi-se. E a nuvem se desviou de sobre a tenda; e eis que Miriã era leprosa como
a neve; olhou Arão para Miriã, e eis que era leprosa" (versículos 1-10).
É uma coisa muito grave falar-se contra o servo do Senhor. Podemos estar
certos de que, mais cedo ou mais tarde, Deus tratará do caso. No caso de Miriã,
o juízo divino caiu imediatamente e de um modo solene. Era uma falta grave,
sim, positiva rebelião falar contra um a quem Deus, havia elevado de uma
maneira tão notável e que havia sido incumbido de uma missão divina; e que,
além disso, no próprio assunto de que eles se queixavam, tinha agido em
perfeita harmonia com os desígnios de Deus e proporcionava um tipo desse
glorioso mistério que esteve oculto em Seus pensamentos eternos: a união de
Cristo e a igreja.
Mas, em todo o caso, é um erro fatal ainda que seja contra o mais fraco e mais
humilde dos servos de Deus. Se o servo faz mal, se está em erro ou tem falhado
em qualquer coisa, o próprio Senhor tratará com ele; mas que os seus
conservos tenham em conta como procuram tomar conta do assunto, para não
serem achados, à semelhança de Miriã, entremetendo-se para seu próprio
dano.
A Intercessão de Moisés
Aqui Moisés manifesta o Espírito do seu Mestre e ora por aqueles que tão
severamente tinham falado contra ele. Isto era vitória, vitória - de um homem
manso - vitória da graça. Um homem que conhece o seu próprio lugar na
presença de Deus é capaz de se elevar acima de toda a maledicência. Não se
deixa perturbar por ela, a não ser por causa daqueles que a praticam. Pode bem
perdoá-la. Não é atingível, pertinaz, nem se ocupa consigo mesmo. Sabe que
ninguém o pode pôr mais baixo do que ele merece estar; e, por isso, se alguém
fala contra, ele pode humildemente curvar a cabeça e passar em frente,
entregando se a si próprio e deixando a sua causa nas mãos d'Aquele que julga
justamente e que seguramente retribuirá a cada um segundo as suas obras.
Isto é verdadeira dignidade. Possamos nós compreendê-la um pouco melhor, e,
então, não estaremos tão dispostos a cederá cólera se alguém julga que é
oportuno falar afrontosamente de nós ou do nosso trabalho; pelo contrário,
seremos capazes de levantar os nossos corações em ardente oração por eles,
e assim fazer descer bênção sobre eles e as nossas almas.
As linhas finais do nosso capitulo confirmam o ponto de vista típico ou de
dispensação que nos arriscamos a sugerir. "E disse o SENHOR a Moisés: Se
seu pai cuspira em seu rosto, não seria envergonhada sete dias? Esteja
fechada sete dias fora do arraial; e, depois, a recolham. Assim, Miriã esteve
fechada fora do arraial sete dias, e o povo não partiu, até que recolheram a
Miriã. Porém, depois, o povo partiu de Hazerote; e assentaram o arraial no
deserto de, Parã" (versículos 14-16). Podemos considerar Miriã, assim fechada
fora do acampamento, como uma figura da condição presente da nação de
Israel, a qual, em consequência da sua implacável oposição ao pensamento
divino de misericórdia para com os gentios, está posta de parte.
Mas quando tiverem decorrido os " sete dias", Israel será restaura do com base
na graça soberana exercida para com eles por meio da intercessão de Cristo.
CAPÍTULO 13
A INCREDULIDADE
Josué e Calebe
"E Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, dos que espiaram a terra,
rasgaram as suas vestes. E falaram a toda a congregação dos filhos de Israel,
dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra muito boa. Se o
SENHOR se agradar de nós, então, nos porá nesta terra, e no-la dará, terra que
mana leite e mel. Tão-somente na sejais rebeldes contra o SENHOR e não
temais o povo desta terra, porquanto são eles nosso pão; retirou-se deles o seu
amparo, e o SENHOR é conosco; não os temais. Então, disse toda a
congregação que os apedrejassem."
E porque deviam ser apedrejados? Era por terem mentido? Era por haverem
proferido blasfêmias ou feito algum mal? Não; era por causa do seu ousado e
sincero testemunho da verdade. Haviam sido enviados a espiar a terra e fazer
um relato exato a respeito dela.
Fizeram isto; e por isso "disse toda a congregação que os apedrejassem com
pedras". O povo não gostava então mais da verdade do que agora. A verdade
nunca é popular. Não há lugar para ela neste mundo ou no coração humano. A
mentira e o erro, em todas as suas formas, será aceite, mas a verdade nunca.
Josué e Calebe tiveram que afrontar, no seu tempo, o que todas as verdadeiras
testemunhas do Senhor, em todos os tempos, têm experimentado e terão de
experimentar, isto é, a oposição e o aborrecimento da massa dos seus
semelhantes. Seiscentas mil vozes levantaram se contra dois homens que
simplesmente disseram a verdade e confiaram em Deus. Assim tem sido; assim
é; e assim será até esse glorioso momento em que "a terra se encherá do
conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" (Is 11: 9).
Mas, oh! Quão importante é estar-se habilitado, à semelhança de Josué e
Calebe, a dar um testemunho claro, firme e completo da verdade de Deus!
Quão importante é manter a verdade quanto à própria parte e herança santos!
Existe uma grande tendência para corromper a verdade - para a desperdiçar e
abandonar e rebaixar o seu padrão. Daí a necessidade urgente de possuirá
verdade em poder divino na alma e podermos dizer, ainda que na nossa
pequena medida, "nós dizemos o que sabemos e testificamos o que vimos" (Jo
3:11). Calebe e Josué não só haviam estado na terra, mas haviam estado com
Deus por causa da terra. Tinham olhado para ela do ponto de vista da fé.
Sabiam que a terra era deles no propósito de Deus; que, como dom de Deus,
era digna de ser possuída; e que, pelo poder de Deus, ainda haviam de a
possuir. Eram homens cheios de fé, de coragem e poder.
Bem-aventurados homens! Viviam na luz da presença divina, enquanto toda a
congregação estava envolta nas sombras escuras da sua incredulidade. Que
contraste! E isto que sempre marca a diferença até mesmo entre o povo de
Deus. Encontramos constantemente pessoas de quem não podemos ter
duvidas de que são filhos de Deus; mas que, não obstante, parecem nunca
chegar à altura da revelação divina quanto à sua posição e parte que têm como
santos de Deus. Estão sempre cheios de dúvidas e temores; sempre rodeados
de nuvens; sempre do lado escuro das coisas. Olham para si mesmos ou para
as suas circunstâncias ou dificuldades. Nunca são alegres e felizes; nunca
podem mostrar essa alegre confiança e coragem que convém a um cristão e
que glorifica a Deus.
Tudo isto é verdadeiramente deplorável, e não deveria ser; podemos estar
seguros de que aqui há algum grave defeito, qualquer coisa radicalmente má. O
cristão deveria estar sempre tranquilo e feliz; sempre disposto, haja o que
houver, a louvar a Deus. A sua alegria não provém de si mesmo ou da cena
através da qual passa, mas do Deus vivo e está fora do alcance de toda a
influência terrestre. Ele pode dizer: "Deus meu, fonte de todas as minhas
alegrias." Este é o doce privilégio do mais fraco filho de Deus. Mas é aqui
justamente que falhamos de um modo tão triste. Desviamos os nossos olhos de
Deus para os fixarmos em nós próprios ou nas circunstâncias, nos agravos ou
nas dificuldades; por isso tudo é trevas e descontentamento, murmurações e
lamentações. Isto não é, de modo nenhum, cristianismo. E
incredulidade—incredulidade sombria, mortal, que desonra a Deus e deprime o
coração."... Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza e de amor e
de moderação" (2 Tm 1:7).
Tal é a linguagem de um Calebe verdadeiramente espiritual, linguagem dirigida
àquele cujo coração sentia o peso das dificuldades e perigos que o rodeavam.
O Espírito de Deus enche a alma do verdadeiro crente de uma santa ousadia.
Dá elevação moral acima da atmosfera fria e tenebrosa que o rodeia e leva a
alma à claridade deslumbradora daquela região "onde os vendavais e as
tempestades jamais se desencadeiam".
Como Combater?
Não nos oferece isto uma solene lição? Certamente. Como é que, nós, como
cristãos, falhamos assim em fazer valer praticamente a nossa posição celestial?
Somos libertados do juízo pelo sangue do Cordeiro; somos libertados deste
presente século pela morte de Cristo; mas não atravessamos o Jordão, em
espírito e fé, para tomar posse da nossa herança celestial. Crê-se geralmente
que o Jordão é um tipo da morte como fim da nossa vida natural neste mundo.
Isto, em um sentido, é verdade. Porém, como se explica que, quando Israel, por
fim, atravessou o Jordão tiveram de começar a combaterá Seguramente nós
não teremos de combater quando chegarmos ao céu. Os espíritos dos que têm
partido na fé em Cristo não estão a combater no céu. Não estão em conflito de
qualquer forma. Estão em repouso. Estão à espera da manhã da ressurreição;
mas esperam no repouso, não em conflito.
Por isso, há alguma coisa mais simbolizada no Jordão do que o fim da vida do
indivíduo neste mundo. Devemos encará-lo como a figura da morte de Cristo
sob um grande aspecto; assim como o ar Vermelho é uma figura da morte de
Cristo sob outro aspecto; e o sangue do cordeiro da páscoa de outro. O Sangue
do cordeiro havia posto Israel ao abrigo do juízo de Deus sobre o Egito. As
águas do Mar Vermelho haviam libertado Israel do próprio Egito e de todo o seu
poder. Mas eles tinham de atravessar o Jordão, tinham de pôr a planta do pé
sobre a terra da promissão e manter o seu lugar ali a despeito de todos os
inimigos, Tinham de lutar por cada polegada de Canaã.
E qual é o significado deste último episódio? Nós temos de combater pelo céu?
Quando um cristão adormece e o seu espírito parte para estar com Cristo no
paraíso, é ainda uma questão de combaterá Claro que não. Que devemos então
aprender com a travessia do Jordão e as guerras de Canaã? Simplesmente isto:
Jesus foi morto; deixou este mundo; não só morreu por nossos pecados, mas
quebrou todos os elos que nos ligavam a este mundo; de forma que nós
estamos mortos para o mundo, mortos para o pecado e mortos para a lei. A
vista de Deus e no juízo da fé temos tanto que ver com este mundo como um
morto tem que ver com o mundo. Somos chamados para nos considerarmos
como mortos para o mundo e vivos para Deus por Jesus Cristo nosso Senhor:
para vivermos no vigor da nova vida que possuímos em união com Cristo
ressuscitado. Pertencemos ao céu; e é mantendo a nossa posição como
homens celestiais que temos de combater com os espíritos perversos nos
lugares celestiais na própria esfera que nos pertence e da qual eles não foram
ainda expulsos.
Se nos contentarmos em "andar à maneira dos homens" em viver como aqueles
que pertencem a este mundo em parar junto ao Jordão, se nos contentarmos
em viver como "habitantes da terra", se não aspiramos à nossa própria parte e
posição celestial, então não conhecemos nada do conflito de Efésios 6:12. E
procurando viver como homens celestiais, no tempo presente na terra, que
compreenderemos o significado do conflito que é o antítipo das guerras de
Israel em Canaã. Não teremos de combater quando chegarmos ao céu; mas se
desejamos viver uma vida celestial na terra; se procuramos comportar nos como
aqueles que estão mortos para o mundo e vivos n Aquele que desceu por nós
às águas frias do Jordão, então, certamente, temos de combater.
Satanás não se poupara a esforços para nos impedir de viver no vigor da nossa
vida celestial; e daí o conflito. Procurará fazer nos andar como aqueles que têm
um posição terrestre, para sermos cidadãos deste mundo, para contendermos
pelos nossos direitos, para mantermos a nossa distinção e dignidade, par
desdizer praticamente essa grande verdade cristã fundamental que estamos
mortos com Cristo e ressuscitados com Ele.
Se o leitor se voltar por um momento para Efésios 6, verá como o autor
inspirado apresenta este interessante assunto. "No demais, irmãos meus,
fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a
armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do
diabo. Porque não temos que lutar contra carne e sangue (como Israel teve de
fazer em Canaã), mas sim contra os principados, contra as potestades, contra
os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade
nos lugares celestiais. Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que
possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes" (versículos
10-13).
Aqui temos o próprio conflito cristão. Não se trata aqui de uma questão de
concupiscência da carne ou da fascinação do mundo ainda que, seguramente,
temos de vigiar contra essas coisas más das "ciladas do diabo". Não do seu
poder, que está para sempre destruído, mas daqueles meios ardilosos e ciladas
por meio dos quais procura impedir que os cristãos deem cumprimento à sua
posição e herança celestial.
Ora, é na condução deste conflito que nós falhamos tão assinaladamente. Não
aspiramos a tomar aquilo para que temos sido chamados. Muitos de nós
estamos satisfeitos por saber que estamos ao abrigo do juízo pelo sangue do
Cordeiro. Não compreendemos o profundo significado do Mar Vermelho e do rio
Jordão: não nos apoderamos praticamente da sua importância espiritual.
Andamos como os demais homens, a própria coisa pela qual o apóstolo
censurou os Coríntios. Vivemos e atuamos como se pertencêssemos a este
mundo, ao passo que a Escritura ensina e o nosso batismo expressa que
estamos mortos para o mundo, assim como Jesus está morto para ele, e que
n'Ele também ressuscitamos Pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos
mortos (Cl 2:12).
Que o Espírito Santo conduza as nossas almas à realidade destas coisas.
Possa Ele apresentar-nos os preciosos frutos desse país celestial que é nosso
em Cristo e nos fortaleça no Seu próprio poder no homem interior, que
possamos ousadamente atravessar o Jordão e pôr os pés na Canaã espiritual.
Vivemos, como cristãos, muito abaixo dos nossos privilégios, Consentimos que
as coisas que se veem nos roubem o gozo das coisas que se não veem. Oh,
que possamos ter uma fé mais forte para tomar posse de tudo que Deus nos
tem dado livremente em Cristo!
Devemos prosseguir agora com a nossa história.
"E os homens que Moisés mandara a espiar a terra e que, voltando, fizeram
murmurar toda a congregação contra ele, infamando a terra, aqueles mesmos
homens, que infamaram a terra, morreram de praga perante o SENHOR. Mas
Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, que eram dos homens que foram
espiar a terra, ficaram com vida" (versículos 3 6 a 3 8).
E espantoso pensar que entre aquela vasta assembleia de seiscentos mil
homens, além das mulheres e crianças, só houve dois que tiveram fé no Deus
vivo. Não falamos certamente de Moisés, mas simplesmente da congregação.
Toda a assembleia, salvo duas exceções brilhantes, estava dominada por um
espírito de incredulidade. Não podiam confiar em Deus para os introduzir na
terra; não, pensaram que Ele os tinha trazido ao deserto para ali morrerem; e
certamente podemos dizer que eles colheram os frutos da sua incredulidade. As
dez testemunhas falsas morreram da praga; e os muitos milhares que aceitaram
o seu falso testemunho foram obrigados a regressar ao deserto para ali
vaguearem para cima e para baixo durante quarenta anos e morrerem então e
ali serem sepultados.
Mas Josué e Calebe permaneceram sobre o bendito terreno de fé no Deus vivo,
essa fé que enche a alma de coragem e da mais alegre confiança. E deles
podemos dizer que colheram segundo a sua fé. Deus há de honrar sempre a fé
que ele tem infundido na alma. E Seu próprio dom, e Ele não pode, podemos
dizer com reverência, senão reconhecê-lo onde quer que ele existir. Josué e
Calebe puderam, no simples poder da fé, resistir a uma tremenda corrente de
infidelidade . Mantiveram a sua confiança em Deus em face de todas as
dificuldades; e Ele honrou a sua fé de uma maneira assinalada no fim pois
enquanto os cadáveres dos seus irmãos se reduziam a pó nas areias do
deserto, os seus pés pisavam as colinas cobertas de vinhedos e os vales férteis
da terra de Canaã. Aqueles declararam que Deus os havia tirado do Egito para
morrerem no deserto; e o seu fim foi segundo a sua palavra. Estes declaram
que Deus podia introduzi-los na terra, e foram tratados segundo a sua palavra.
Isto é um princípio muito importante, "Seja-vos feito segundo a vossa fé" (Mt
9:29). Lembremo-nos disto. Deus deleita-Se na fé Gosta de ser crido; e
conferirá sempre honra àqueles que n'Ele confiam. Pelo contrário, a
incredulidade é dolorosa para Si. Desonra-O e provoca-O e traz trevas e a
morte sobre a alma. E o mais terrível pecado duvidar do Deu s vivo que não
pode mentir e abrigar dúvidas quando Ele tem falado. O diabo é o autor de
todas as interrogações duvidosas. Compraz-se em fazer vacilar a confiança da
alma; mas não tem qualquer poder sobre a alma que confia simplesmente em
Deus. Os seus dardos inflamados não podem atingir aquele que está escondido
atrás do escudo da fé. E, oh! Quão precioso é viver uma vida de pueril confiança
em Deus! E isto que faz o coração tão feliz e enche a boca de louvor e ações de
graças. Desvanece todas as nuvens e neblinas, e faz resplandecer o nosso
caminho com os raios benditos do semblante do nosso Pai. Por outro lado, a
incredulidade enche o coração de toda a sorte de interrogações, lança-nos
sobre nós próprios, escurece a nossa senda e faz-nos verdadeiramente
miseráveis.
O coração de Calebe estava cheio de alegre confiança, enquanto que os
corações dos seus irmãos estavam cheios de murmurações e queixas. Assim
será sempre. Se queremos ser felizes, devemos estar ocupados com Deus e o
que O rodeia. Se queremos ser infelizes, temos de estar só ocupados com o
ego e o que o rodeia. Vejamos por um momento o capítulo primeiro de Lucas. O
que foi que encerrou Zacarias em mudo silêncio?- Foi a incredulidade. O que
era que enchia coração e abria os lábios de Maria e Isabel? A fé. Aqui está a
herança. Zacarias teria podido juntar-se a essas duas mulheres Piedosas em
seus cânticos de louvor, se a sombria incredulidade não tivesse selado os seus
lábios em melancólico silêncio. Que quadro! Que lição! Ah, possamos nós
aprender a confiar com mais simplicidade em Deus! Que o espírito da dúvida
esteja longe de nós! Que sejamos, no meio de uma cena infiel, fortes na fé que
glorifica Deus.
O pecado Voluntarioso
Mas é impossível fecharmos os olhos ao fato aterrador que os direitos de
Cristo—o valor da verdade, a autoridade da Escritura Sagrada, estão sendo
postos de lado cada vez mais, cada dia, cada semana e cada ano. Cremos que
nos aproximamos de um momento em que haverá tolerância para tudo exceto
para a verdade de Deus. Convém, portanto, velar cuidadosamente para que a
Palavra de Deus tenha o seu próprio lugar no coração; e para que a consciência
seja governada em tudo pela sua santa autoridade. Uma consciência sensível é
um tesouro preciosíssimo para trazermos conosco, dia a dia uma consciência
que sempre dá uma verdadeira resposta à ação da Palavra de Deus, que se
curva, sem hesitação, às suas simples indicações. Quando a consciência está
em bom estado, há sempre um poder regulador com que atuar sobre o curso
prático e o nosso caráter.
A consciência pode ser comparada ao regulador de um relógio. Pode acontecer
que os ponteiros do relógio estejam errados, mas enquanto o regulador tiver
poder sobre a mola, haverá sempre meio de corrigir os ponteiros. Se esse poder
deixa de existir, todo o relógio se torna inútil. Assim é com a consciência.
Enquanto permanece fiel ao contato da Escritura, aplicado pelo Espírito Santo,
há sempre um poder regulador, seguro e certo; porém se ela se torna apática,
dura ou viciada, se recusa uma resposta verdadeira às palavras "Assim diz o
SENHOR", há pouca ou nenhuma esperança. Então torna-se um caso
semelhante àquele referido no nosso capítulo. "Mas a alma que fizer alguma
coisa à mão levantada, quer seja dos naturais quer dos estrangeiros, injuria ao
SENHOR-, e tal alma será extirpada do meio do seu povo, pois desprezou a
palavra do SENHOR e anulou o seu mandamento; totalmente será extirpada
aquela alma, e a sua iniquidade será sobre ela" (versículos 30-31).
Isto não é pecado de ignorância, mas um pecado insolente voluntarioso, para o
qual nada resta senão o juízo implacável de Deus: “... a rebelião é como o
pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniquidade e idolatria" (1 SI 15:23). São
palavras solenes num momento como o presente, em que a vontade do homem
se desenvolve com força extraordinária. Está calculada para sustentar a nossa
vontade; mas a Escritura ensina o contrário. Os grandes elementos da perfeição
humana — da perfeita virilidade — são estes: a dependência e a obediência. Na
proporção em que alguém se afasta destes elementos, afasta-se do verdadeiro
espírito e atitude que convém a um homem. Por isso, quando volvemos os
nossos olhos para Aquele que foi o Homem perfeito — o Homem Cristo Jesus,
vemos estes dois grandes traços perfeitamente ordenados e plenamente
revelados desde o princípio ao fim. Esse Santo bendito nunca Se afastou, nem
por um momento, da atitude de perfeita dependência e absoluta obediência.
Para ilustrar e comprovar este fato, levar-nos-ia a toda a narrativa do evangelho.
Mas tomemos a cena da tentação, e aí encontraremos um exemplo do conjunto
dessa vida bendita. A resposta que invariavelmente dava ao tentador era: "Está
escrito". Nenhum argumento, nenhuma contestação, nenhuma pergunta. Vivia
da Palavra de Deus. Venceu Satanás retendo firmemente a única verdadeira
posição de um homem — dependência e obediência Podia depender de Deus;
e queria obedecer-Lhe. Que podia Satanás fazer num caso como aquele?
Absolutamente nada.
Pois bem, este é o nosso modelo. Nós, tendo a vida de Cristo, somos chamados
para viver em dependência e obediência habitual. Isto é andar em Espírito. Este
é o caminho seguro e feliz do cristão. A independência e a desobediência
andam juntas. São inteiramente anticristãs e indignas.
Encontramos estas duas coisas no primeiro homem, assim como encontramos
as duas contrárias no Segundo homem. Adão no Éden procurou ser
independente; não estava contente em ser homem e permanecer no único
verdadeiro lugar e espírito de um homem, e tornou-se desobediente. Aqui está o
segredo da queda da humanidade; estes são os dois elementos que formam a
virilidade decaída. Siga- se ato onde se quiser antes do dilúvio, depois do
dilúvio; sem a lei, sob a lei: gentio, pagão, judeu, turco ou cristão nominal —
analise-se minuciosamente, e ver-se-á que ela resume nestas duas partes
componentes: independência e desobediência. E quando chegamos ao fim da
história do homem neste mundo, quando o contemplamos essa última triste
cena na qual ele tem de figurar, como o vemos? Em que caráter aparece ele?
Como "O rei perverso" e o "iníquo".
Que Deus nos dê graça para ponderar bem estas coisas. Cultivemos um
espírito humilde e obediente, Deus tem dito: "Eis para quem olharei: para o
pobre e abatido de espírito, e que treme da minha palavra" (Is 66:2). Que estas
palavras penetrem bem nos nossos ouvidos e nos nossos corações; e que a
constante aspiração das nossas almas seja:"... da soberba guarda o teu servo,
para que se não assenhoreie de mim" (1).
__________
(1) Desejamos lembrar especialmente aos leitores jovens que a verdadeira
salvaguarda contra os pecados de ignorância é o estudo da Palavra de Deus; e
a verdadeira proteção contra os pecados arrogantes é a sujeição à Palavra de
Deus. Precisamos de ter sempre estas coisas em vista. Existe uma forte
tendência entre os crentes jovens para se introduzirem na corrente deste século
e se deixarem imbuir do seu espírito. Daí a independência, a vontade própria e
a autoconfiança, a presunção, e a pretensão a serem mais sábios do que os
anciãos — todas estas coisas são detestáveis à vista de Deus, e inteiramente
opostas ao espírito do Cristianismo.
Queremos sincera e amavelmente insistir com os nossos jovens para que se
guardem contra estas coisas e cultivem um espírito humilde. Lembrem-se de
que Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes.
Apenas nos falta, antes de terminar os nossos comentários sobre esta parte,
notar o caso do profanador do sábado e a instituição do "cordão de azul".
O Cordão Azul
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize- lhes que
nas bordas das suas vestes façam franjas, pelas suas gerações; e nas franjas
das bordas porão um cordão azul. E nas franjas vos estará, para que o vejais, e
vos lembreis de todos os mandamentos do SENHOR, e os façais; e não
seguireis após o vosso coração, nem após os vossos olhos, após os quais
andais adulterando. Para que vos lembreis de todos os meus mandamentos e
os façais, e santos sejais a vosso Deus. Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus, que
vos tirei da terra do Egito, para vos ser por Deus; eu sou o SENHOR VOSSO
Deus" (versículos 37-41).
O Deus de Israel queria manter o Seu povo em uma contínua recordação dos
Seus santos mandamentos. Daí a magnífica instituição do "cordão de azul" que
era destinado a ser um memorial celestial ligado às bordas dos seus vestidos,
de forma que a Palavra de Deus, pudesse ser sempre trazida à memória nos
pensamentos de seus corações. Sempre que um Israelita punha os seus olhos
sobre o cordão azul devia pensar no Senhor, e mostrar uma sincera obediência
aos Seus estatutos.
Tal era a grande intenção prática do "cordão azul". Mas quando nos voltamos
para Mateus 23:5, vemos o triste uso que o homem tinha feito da instituição
divina. "E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens; pois
trazem largos filactérios e alargam as franjas dos seus vestidos." Assim a
própria coisa que havia sido instituída com o propósito de os levar a recordarem
o Senhor, e a prestarem obediência humilde à Sua preciosa Palavra, fora
convertida em ocasião de própria exaltação e orgulho religioso. Em vez de
pensarem em Deus e na Sua Palavra, pensaram em si próprios e no lugar que
ocupavam no conceito dos homens. "E fazem todas as suas obras a fim de
serem vistos pelos homens." Nem um pensamento de Deus. O espírito original
da instituição foi completamente perdido, enquanto que a forma exterior era
guardada para fins egoístas.
Não podemos ver alguma coisa semelhante a isto em redor de nos e entre nós
mesmos? Pensemos nisto séria e profundamente. Consideremo-lo a fim de não
convertermos o memorial celestial numa divisa terrestre, e o que deveria
levar-nos a uma humilde obediência em ocasião de exaltação própria.
Capítulo 16
O SACERDÓCIO
A Rebelião de Corá
O capítulo que acabamos de considerar é o que podemos chamar uma
digressão da história da vida de Israel no deserto, exceto, com efeito, o curto
parágrafo acerca do que havia profanado o sábado. Prevê o futuro, quando,
apesar de todo o seu pecado e loucura, das suas murmurações e rebelião,
Israel possuirá a terra de Canaã e oferecerá sacrifícios de justiça e cânticos de
louvor ao Deus da sua salvação. Nele temos visto como o Senhor Se eleva
muito acima de toda a incredulidade e desobediência, da vaidade e
voluntariosidade demonstradas nos capítulos 13 e 14, olhando para a plena e
final realização do Seu próprio desígnio eterno e o cumprimento da Sua
promessa a Abraão, Isaque e Jacó.
"E Corá, filho de Jizar, filho de Coate, filho de Levi, tomou consigo a Dã e a
Abirão, filhos de Eliabe, e a Om, filho de Pelete, filhos de Ruben. E
levantaram-se perante Moisés com duzentos e cinquenta homens dos filhos de
Israel, maiorais da congregação, chamados ao ajuntamento, varões de nome. E
se congregaram contra Moisés e contra Arão e lhes disseram: Demais é já; pois
que toda a congregação é santa, todos eles são santos, e o SENHOR está no
meio deles; por que, pois, vos elevais sobre a congregação do SENHOR?"
(versículos l a 3).
Aqui penetramos, pois, na solene história do que o Espírito Santo, por
intermédio de Judas, chama "A contradição de Corá". A rebelião é atribuída a
Corá, porque ele foi o chefe religioso dela. Parece ter possuído influência
suficiente para juntar em volta de si um grande número de homens influentes —
"maiorais chamados 30 ajuntamento, varões de nome". Em suma, era uma
rebelião formidável e muito séria: e nós faremos bem em examinar atentamente
a sua origem e características morais.
É sempre um momento muito crítico na história de uma assembleia quando o
espírito de deslealdade se manifesta; porque, se não for reprimido de um modo
justo, é certo seguirem-se as mais desastrosas consequências. Em todas as
assembleias há elementos capazes de serem seduzidos, e basta que se levante
um espírito rebelde e dominador para os por em movimento e atear em chama
devoradora o fogo que tem estado latente em oculto. Há centenas e milhares
prontos sempre a agruparem-se em redor do estandarte da revolta, logo que
este tiver sido alçado, mas que não têm nem a coragem nem o vigor para o
erguer. Satanás não pegará em qualquer como instrumento de tal obra.
Necessita para ela de um homem manhoso, hábil e enérgico — um homem de
força moral — que tenha influência sobre o ânimo dos seus semelhantes e uma
vontade de ferro para prosseguir com os seus projetos. Sem dúvida, Satanás
incute muito de tudo isto naqueles que usa nos empreendimentos diabólicos.
Em todo o caso, sabemos, com efeito, que os grandes chefes de todos os
movimentos rebeldes são geralmente homens de um espírito superior, capazes
de manejar, segundo a sua própria vontade, a multidão inconstante, que, à
semelhança do oceano, se presta a ser levada por todos os ventos de
tempestade. Tais homens sabem, em primeiro lugar, como excitar as paixões
dos povos; e, em segundo lugar, como as manejar, depois de agitadas. O seu
meio mais poderoso — a alavanca com que podem eficientemente levantar as
massas—é a questão dos seus direitos e da sua liberdade. Se podem ser bem
sucedidos em persuadir o povo de que é privado da sua liberdade, e que os
seus direitos são infringidos, estão seguros de reunir ao redor deles um número
de espíritos inquietos, e de causar dano grave.
CAPÍTULOS 17 e 18
"Escrito está"
Quem poderá contradizer isto? O racionalista pode escarnecer disto e formular
mil perguntas. A fé contempla essa vara carregada de frutos e vê nela uma
encantadora figura da nova criação em que todas as coisas são de Deus. A
infidelidade pode argumentar com fundamento na impossibilidade aparente de
uma vara seca florescer e dar frutos no decurso de uma noite. Mas a quem
parece isso impossíveis Aos infiéis, aos racionalistas, aos cépticos. E por quê?
Porque eles excluem sempre a Deus. Lembremos isto. A infidelidade exclui
invariavelmente a Deus, tira os seus argumentos e chega às suas conclusões
nas trevas da meia-noite. Não há tanto como um simples raio de verdadeira luz
no conjunto dessa esfera em que a infidelidade opera. Exclui a única origem de
luz e deixa a alma envolta nas sombras e na mais profunda tristeza das trevas
que pode sentir-se.
Convém que o leitor se detenha aqui e pondere atentamente este solene fato.
Medite calma e seriamente este aspecto especial da fidelidade, do racionalismo
ou do cepticismo. Começa, prossegue e acaba excluindo a Deus. Aborda o
mistério da germinação, florescimento e fruto da vara de Arão com um infiel e
audacioso " Como?." Este é o grande argumento de todo o infiel. Pode formular
dez mil perguntas mas não pode resolver uma. Ensinará a duvidar de tudo, mas
não dará nada em que crer.
Tal é, prezado leitor, a infidelidade. E de Satanás, que sempre tem sido, é e
será o grande inquiridor. Onde quer que se seguir o rasto de Satanás, encontrar
sempre formulando perguntas. Enche o coração de toda a sorte de "se" e
"como", e assim submerge a alma em densas trevas. Se tão-somente pode
lograr fazer uma pergunta, já tem conseguido o seu fim. Contudo é
perfeitamente importante com uma simples alma que crê que Deus é e Deus
tem falado.
Eis aqui a nobre resposta da fé às interrogações da infidelidade, a solução
divina a todas as dificuldades do incrédulo. A fé introduz sempre Aquele que é
sempre excluído pela infidelidade. Pensa com Deus; a infidelidade pensa sem
Ele.
Por isso, nós dizemos ao leitor e, particularmente, aos cristãos que nunca
devem admitir nenhuma interrogação quando Deus tem falado. Se o fizerem,
Satanás os terá imediatamente debaixo de seus pés. A sua única segurança
contra Satanás encontra-se nessa resposta inexpugnável e imortal: "Está
escrito". De nada aproveitará argumentar com ele com fundamento na
experiência, nos sentimentos ou observação; tem de ser absoluta e
exclusivamente sobre o fundamento de que Deus é e de que Deus tem falado.
Satanás não pode de modo algum lançar mão deste argumento de peso. E um
mento invencível. Pode reduzir tudo o mais a simples fragmento, mas isto
confunde-o e afugenta-o logo.
Vemos isto ilustrado de um modo notável na tentação do Senhor. O inimigo,
segundo o seu método habitual, acercou-se do bendito Senhor para insinuar
uma dúvida—com uma pergunta "Se tu és o Filho de Deus" Como lhe
respondeu o Senhor? Disse-lhe: “Bem sei que sou o Filho de Deus - recebi esse
testemunho dos céus abertos e do Espírito de unção, que desceu e sinto e creio
que tenho experimentado que sou o Filho de Deus? Não; essa não era a
maneira de responder ao tentador. Então, como? "Está escrito".
Tal foi a resposta repetida pela terceira vez do Homem obediente e submisso; e
tal deve ser a resposta de todo o que quiser vencer o tentador.
Assim, quanto à vara florescente de Arão, se alguém pergunta: "Como pode ser
tal coisa? É contrário às leis da natureza; e como podia Deus atravessar-Se
sobre os princípios estabelecidos da filosofia natural?-" A resposta da fé é
sublime em sua simplicidade. Deus pode atuar como Lhe agrada. Aquele que
chamou os mundos à existência pode fazer brotar, florescer e frutificar uma vara
num momento. Tudo se torna simples e tão claro quando Deus é introduzido.
Tudo é lançado em desesperada confusão quando Deus é posto de parte.
Intentar limitar Deus—falamos com reverência— o Criador Onipotente do vasto
universo por certas leis na natureza ou certos princípios da filosofia natural é
nada menos do que ímpia blasfêmia. E quase pior do que negar a Sua
existência. É difícil dizer qual é pior, se o ateu que diz que não há Deus ou o
racionalista que mantém que Deus não pode fazer o que Lhe apraz.
Sentimos a enorme importância de poder examinar-se as verdadeiras origens
das teorias plausíveis que estão mais em voga no tempo presente. O espírito
humano está ocupado em formar sistemas, tirar conclusões e raciocinar em
termos que excluem completamente o testemunho das Escrituras Sagradas e
afastam Deus da Sua própria criação. É preciso ensinar aos jovens a imensa
diferença entre os fatos de ciência e as conclusões dos cientistas.
Um fato é um fato onde quer que se encontre, quer seja na geologia, quer na
astronomia ou qualquer outro ramo da ciência; mas os argumentos, as
conclusões e os sistemas dos homens são outra coisa muito diferente. Ora a
Escritura nunca toca em fatos de ciência; mas o raciocínio dos homens de
ciência encontra-se constantemente em colisão com a Escritura. Infelizmente, é
assim com tais homens! E quando é esse o caso devemos, com inteira decisão,
denunciar esse raciocínio exclamando como o apóstolo:
"Seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso."
De bom grado prosseguiríamos com as nossas considerações sobre este ponto,
apesar de uma divagação, pois sentimos a sua gravidade. Porém, temos de nos
contentar em insistir sinceramente
m O leitor a que dê à Sagrada Escritura o supremo lugar em seu coração e no
seu espírito. Devemo-nos curvar, com absoluta - submissão, não à autoridade
de "Assim diz a Igreja", ou "assim dizem os pais", ou "assim dizem os doutores",
mas ante a expressão "Assim diz o Senhor" - "Assim está escrito". Esta é a
nossa única segurança contra a corrente invasora de incredulidade que ameaça
varrer os fundamentos do pensamento religioso em toda a extensão da
cristandade. Ninguém escapará, salvo os que são ensinados e governados pela
Palavra do Senhor. Que o Senhor aumente o seu número!
Os Ministérios na Igreja
Assim era quanto ao sacerdócio antigo; e assim é quanto ao ministério no
tempo presente. Todo o ministério na Igreja de Deus e o fruto da graça divina e
dom de Cristo, Cabeça da Igreja. Não existe qualquer outra origem de
ministério. Desde apóstolos aos dons mais humildes todos procedem de Cristo.
O grande princípio básico de todo o ministério está englobado nestas palavras
de Paulo aos Gálatas, nas quais fala de si mesmo como "apóstolo (não da parte
dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que
o ressuscitou dos mortos") (Gl 1:1).
Aqui está, note-se bem, a origem sublime de onde emana todo o ministério. Não
é do homem, ou pelo homem, de nenhuma maneira e de nenhuma forma. O
homem pode pegar em varas secas e moldá-las ou trabalhá-las a seu gosto; e
pode consagrá-las e ordená-las, dando-lhes certos títulos oficiais retumbantes.
Mas de que serve isso? São apenas varas secas, mortas. Podemos dizer com
razão: Onde é que se vê nelas um simples ramo de frutos? Onde se vê nelas
uma simples flor?- Ou antes, onde se vê um só rebento?-Até mesmo um só
botão basta para que exista alguma coisa divina. Mas à parte tudo isto não pode
haver ministério vivificante na Igreja de Deus. É o dom de Cristo e somente o
dom que faz de um homem um ministro. Sem isso é uma pretensão vazia
alguém nomear-se ou ser nomeado por outros para ser ministro.
O leitor aceita completamente este princípio? É tão claro para a sua alma como
um raio de sol?- Tem alguma dificuldade a seu respeito? Se assim é,
rogamos-lhe que procure libertar o seu espírito de todos os pensamentos e
preconceitos, seja qual for a sua origem, que se eleve acima das neblinas
obscuras da tradição: Tome o Novo Testamento e estude, como se estivesse na
presença de Deus, o décimo segundo e o décimo quarto capítulos de 1
Coríntios; assim como Efésios 4:7-12.
Nestas passagens encontrará todo o assunto do ministério desenvolvido, e verá
que todo o ministério, quer seja apóstolos, profetas, doutores, pastores ou
evangelistas é de Deus - tudo dimana de Cristo, a Cabeça exaltada da Igreja.
Se um homem não for possuidor de um dom de Cristo não é um ministro. Todo
o membro do corpo tem uma obra a cumprir. A edificação do corpo é promovida
pela própria ação de todos os membros, quer sejam proeminentes, quer
obscuros, "airosos" ou "desairosos". Em suma, todo o ministério é de Deus, e
não do homem; é por Deus, e não pelo homem. Não existe coisa alguma na
Escritura como um ministro humanamente ordenado. Tudo é de Deus.
Não devemos confundir dons ministeriais com um cargo local. Vemos os
apóstolos ou seus delegados ordenando anciãos e nomeando diáconos; mas
isto era uma coisa inteiramente distinta de dons ministeriais. Esses anciãos e
diáconos podiam possuir e exercer - dons especiais no corpo; os apóstolos não
os ordenaram para exercer tais dons, mas somente para desempenharem o
cargo local. O dom espiritual era dado pela Cabeça da Igreja, e era
completamente independente do cargo local.
É necessário compreender a distinção entre dom e cargo local. Reina a maior
confusão entre as duas coisas em toda a igreja professante, e o resultado é que
o ministério não é compreendido. Os membros do corpo de Cristo não
entendem o seu lugar ou a sua função. A eleição humana, ou a autoridade
humana, de uma forma ou de outra, é considerada essencial para o exercício do
ministério na Igreja. Mas na realidade não existe tal coisa na Escritura. Se há,
nada mais fácil do que apresentá-la. Convidamos o leitor a mencionar uma só
linha, de uma capa à outra, no Novo Testamento em que uma chamada
humana, uma nomeação humana ou a autoridade humana, tenham alguma
coisa que ver com o exercício do ministério (1).
__________
(1) Até mesmo no caso da nomeação de diáconos em Atos 6 vemos que era um
ato apostólico. "Escolhei, pois, irmãos, de entre vós, sete varões, de boa
reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos
sobre este importante negócio". Aos irmãos foi permitido escolherem os
homens, visto que se tratava de administrar o seu dinheiro. Mas a nomeação,
era divina. E isto, recorde-se, referia-se apenas ao assunto dos diáconos, que
deviam administrar os interesses práticos da Igreja. Mas quanto à obra de
evangelistas, pastores e ensinadores, é um assunto independente da escolha
humana e da autoridade humana - depende simplesmente do dom de Cristo (Ef
4:11).
Ah, não! Bendito seja Deus, o ministério na Sua Igreja não é dos homens, nem
pelos homens, "mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que o ressuscitou dos
mortos." "Deus colocou os membros nos corpo, cada um deles como quis" (1
Co 12:18), "Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom
de Cristo. Pelo que diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos
homens... deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento
dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo, até
que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a
varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4:7-13).
Aqui todos os graus de dons ministeriais são colocados sobre um e mesmo
terreno, de apóstolos e evangelistas e doutores. São todos conferidos pela
Cabeça da Igreja; e, uma vez conferidos, tornam os seus possuidores
imediatamente responsáveis ante a Cabeça no céu e os membros na terra. A
ideia de qualquer possuidor de um dom positivo de Deus se fazer consagrar por
autoridade humana é um insulto tão grande à Majestade Divina como se Arão
tivesse ido com a sua vara florida na mão para ser ordenado para o sacerdócio
por algum dos seus semelhantes. Arão foi chamado por Deus, e isso era
bastante para si. E assim hoje todos os que possuem um dom divino são
chamados por Deus para o ministério e não necessitam nada mais, salvo
desempenhar o seu ministério exercendo o dom.
Será precioso acrescentar que é inútil os homens decidirem ser ministros a não
ser que realmente possuam o dom?- Um homem pode presumir ter um dom,
mas isso pode ser apenas um conceito inútil da sua própria mente. É tão mau,
senão pior, alguém agir segundo a força da sua própria imaginação tola como
se propor atuar sobre o poder de autoridade injustificável dos seus
semelhantes. O que nós defendemos é o seguinte: o ministério é de Deus
quanto à sua origem, poder e responsabilidade. Não cremos que esta afirmação
seja posta em dúvida pelos que estão dispostos a serem ensinados
exclusivamente pela Escritura. Todo o ministro, seja qual for o seu dom, deve
poder dizer, segundo a sua medida: "Deus pôs-me no ministério". Mas se um
homem se serve desta linguagem sem possuir qualquer dom, é, para não dizer
mais, pior do que indigno. O povo de Deus pode realmente ver onde existe
verdadeiro dom espiritual. E mais que certo haver poder. Mas se os homens
fingem ter o dom ou poder sem a realidade, a sua loucura será prontamente
manifesta a todos. Os pretendentes podem estar certos de mais cedo ou mais
tarde se acharem no seu próprio terreno.
Dissemos o bastante quanto ao ministério e sacerdócio. A origem de cada um é
divina. O verdadeiro fundamento de cada um consiste na vara florida. Que isto
esteja sempre presente em nossas mentes. Arão podia dizer: "Deus pôs-me no
sacerdócio"; e se fosse convidado a apresentar a prova, podia referir a vara
frutífera. Paulo dia dizer: "Deus pôs-me no ministério"; e quando foi convidado a
apresentar as provas, pôde apontar os milhares de selos da sua obra. Assim
deve ser sempre em princípio, qualquer que seja a medida. O ministério não
deve ser meramente em palavras ou língua, mas em verdade. Deus não
reconhecerá um discurso, mas sim o poder.
Porém antes de deixarmos este assunto, cremos ser absolutamente necessário
fazer sentir ao leitor a importância de distinção entre ministério e sacerdócio. O
pecado de Corá consistiu nisto: não contente em ser ministro, ambicionou ser
sacerdote; e o pecado da cristandade é do mesmo caráter. Em vez de deixar
que o ministério descanse sobre a própria base do Novo Testamento, exibindo
os seus próprios característicos, e desempenhando as suas próprias funções, é
exaltada ao sacerdócio uma casta sacerdotal, cujos membros devem
distinguir-se de seus irmãos pela sua maneira de vestir e certos títulos. Não
existe qualquer base para estas coisas no Novo Testamento.
Uma das partes mais importantes do livro de Números está agora aberta ante
os nossos olhos, apresentando para nossa consideração o rito altamente
interessante e instrutivo da "Bezerra Ruiva". Um estudante atencioso das
Escrituras poderia naturalmente sentir-se disposto a inquirir a razão por que
temos esta figura em Números e não em Levítico. Nos sete primeiros capítulos
desse livro temos um relato pormenorizado da doutrina do sacrifício, e todavia
não temos alusão nenhuma à bezerra ruiva. Por quê? Que devemos apreender
com o fato desta formosa ordenação ser apresentada no livro de Números e em
nenhum outros Cremos que nos oferece outra ilustração notável do caráter
distinto do nosso livro.
A bezerra ruiva é eminentemente um tipo do deserto. Era uma provisão feita por
Deus para a profanação do caminho e prefigura a morte de Cristo como
purificação do pecado e resposta às nossas necessidades durante a nossa
peregrinação pelo mundo corrompido para o nosso descanso eterno na mansão
celestial. É uma figura muito instrutiva, que nos descobre uma verdade preciosa
e necessária. Que o Espírito, que inspirou o seu relato, se compraza em no-la
explicar e aplicar às nossas almas!
"Falou mais o SENHOR a Moisés e a Arão, dizendo: Este é o estatuto da lei,
que o SENHOR ordenou, dizendo: Dize aos filhos de Israel que te tragam uma
bezerra ruiva sem defeito, que não tenha mancha, e sobre que não subiu jugo"
(versículos 1-2).
O Sangue
"Que não tenha mancha, e sobre que não subiu jugo." E necessário lembrar e
pensar tanto uma como outra destas expressões. O Espírito Santo destinou-as
para mostrar a perfeição de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que era
puro intimamente, mas também livre exteriormente de todo o rasgo de pecado.
Nem na Sua Pessoa, nem ainda nas Suas relações não esteve, de modo
algum, sujeito às exigências do pecado ou da morte. Entrou, louvado seja para
sempre o Seu nome, em toda a realidade das nossas circunstâncias e
condições; mas em Si não havia pecado, e sobre Si não subiu jugo de pecado.
E a dareis a Eleazar, o sacerdote; e a tirará fora do arraial, e se degolará diante
dele" (versículo 3).
°0 leitor atencioso da Escritura não passará por alto qualquer expressão, por
mais vulgar que lhe possa parecer que ela seja.
Antes terá sempre presente que o livro que tem aberto diante de si é de Deus e
portanto perfeito - perfeito no seu conjunto - perfeito em todas as suas partes.
Cada palavra está cheia de significado. Cada ponto por menor que seja, cada
característica e circunstância contém algum ensino espiritual para a alma. Sem
dúvida, os infiéis e os racionalistas falham redondamente na compreensão
deste poderoso fato, e, como consequência, quando se acercam do volume
divino, cometem o mais triste dano. Veem defeitos onde o estudioso espiritual
vê pedras preciosas. Veem incongruências onde o discípulo consagrado,
ensinado pelo Espírito, vê harmonia divina e glória moral.
Isto é o que poderíamos esperar; e é bom recordá-lo nestes dias. "Deus é o Seu
próprio intérprete", tanto da Escritura como da providência; e se nós
esperarmos n'Ele, há-de certamente torná-las claras. Mas, assim como com a
providência, "A cega incredulidade é mais do que certo errar e esquadrinhar os
caminhos de Deus em vão", do mesmo modo é certo errar com as Escrituras e
investigar a Sua Palavra inutilmente. E o fervoroso poeta poderia continuar;
porque, certamente, a incredulidade não investigará apenas os caminhos de
Deus e a Palavra de Deus em vão, mas converterá uma e outra numa ocasião
de ataque blasfemo contra o Próprio Deus, contra a Sua natureza, contra o Seu
caráter e também contra revelação que Lhe aprouve dar-nos. Os infiéis
quebrariam bruscamente a lâmpada da inspiração, apagariam a sua luz
celestial e envolver-nos-iam a todos naquela profunda melancolia de trevas
morais que envolvem a sua mente desencaminhada.
Fomos levados a entrar na precedente linha de pensamento enquanto
meditávamos sobre o versículo terceiro do nosso capítulo. Estamos ansiosos
por cultivar o hábito de estudo profundo e atento da Escritura Sagrada. É da
máxima importância. Dizer ou pensar que existe tanto como uma simples
cláusula, uma simples expressão, desde uma à outra capa do volume inspirado,
que não mereça a nossa meditação na dependência divina, é insinuar que
Deus, o Espírito Santo, pensou que valia a pena escrever o que nós pensamos
e não valer a pena estudar.
"Toda a Escritura divinamente inspirada é" (2 Tm 3:16). Isto requer reverência
da nossa parte. "Porque tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi
escrito" (Rm 15:4). Isto deve despertar o nosso interesse. A primeira destas
passagens prova que a Escritura vem de Deus; a última prova que vem para
nós. Aquela e esta juntas ligam-nos a Deus pelo elo divino da Sagrada Escritura
- um elo que o diabo procura, nestes dias, quebrar; e isso por meio de agentes
de reconhecido valor moral e poder intelectual. O diabo não escolhe um homem
ignorante ou imoral para lançar os seus ataques especiais sobre a Bíblia,
porque sabe muito bem que um ignorante não poderia falar e um homem imoral
não seria escutado. Mas escolhe astuciosamente uma pessoa amável,
benevolente e popular - alguém moralmente irrepreensível - um estudioso
diligente, um profundo escolar, um grande e original pensador. Desta forma
atira poeira aos olhos dos simples, dos ignorantes, e dos incautos.
Leitor cristão, lembra-te disto: se pudermos profundar em tua alma o sentimento
inefável do valor da tua Bíblia; se pudermos desviar-te das rochas e areias
movediças do racionalismo e da infidelidade; se formos usados como meios de
estabelecer e fortalecer a tua alma na certeza de que quando estás debruçado
sobre as páginas sagradas das Escrituras, estás bebendo da fonte cuja água
correu gota a gota para ela do próprio seio de Deus; se pudermos alcançar
algum ou todos estes resultados, não teremos de lamentar a digressão que
fizermos do nosso capítulo, ao qual regressamos agora.
"E a dareis a Eleazar, o sacerdote; e a tirará fora do arraial, e se degolará diante
dele."
No sacerdote e na vítima temos uma figura da pessoa de Cristo. Ele foi, ao
mesmo tempo, a Vítima e o Sacerdote. Mas não tomou as Suas funções
sacerdotais até que a Sua obra como vítima foi cumprida. Isto explica a
expressão na terceira cláusula do versículo terceiro, "e se degolará diante dele".
A morte de Cristo foi cumprida na terra, e não podia, portanto, ser apresentada
como o ato de sacerdócio. O céu e não a terra é a esfera do Seu serviço
sacerdotal.
O apóstolo, na epístola aos Hebreus, declara expressamente como súmula de
uma esmerada e maravilhosa peça de argumento, que "temos um sumo
sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da Majestade,
ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e
não o homem. Porque todo sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e
sacrifícios; pelo que era necessário que este também tivesse alguma coisa que
oferecer. Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria,
havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei" (Hb 8:1-4). "Mas,
vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito
tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por sangue de
bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário,
havendo efetuado uma eterna redenção. Porque Cristo não entrou num
santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para
agora comparecer, por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:11-12,24. "Mas este,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra
de Deus" (Hb 10:12).
De todas estas passagens tomadas em ligação com Números 19:3 aprendemos
duas coisas, a saber: que a morte de Cristo não é apresentada como o ato
próprio e normal do sacerdócio; e, além disso, que o céu, não a terra, é a esfera
do Seu serviço sacerdotal. Não há nada novo nestas afirmações; têm sido
apresentadas repetidas vezes por outras e é importante notar tudo que tende a
ilustrar a perfeição e precisão da Sagrada Escritura. E interessantíssimo
encontrar uma verdade, que brilha nos páginas do Novo Testamento, incluída
em qualquer ordenação ou cerimônia dos tempos do Velho Testamento. Estas
descobertas são sempre bem recebidas pelo leitor inteligente da Palavra de
Deus. A verdade é, sem dúvida, a mesma onde quer que for achada; mas
quando se oferece subitamente aos nossos olhos com brilho invulgar no Novo
Testamento e é divinamente prefigurada no Velho, não temos apenas a verdade
estabelecida, mas a unidade do volume ilustrada e reforçada.
Não podemos deixar despercebido o lugar onde a vítima era morta. "E a tirará
fora do arraial." Como já foi acentuado, o sacerdote e a vítima estão
identificados e formam conjuntamente um tipo de Cristo; mas acrescenta-se, "e
se degolará diante dele", simplesmente, porque a morte de Cristo não podia ser
apresentada como um do sacerdócio. Que maravilhosa precisão! E todavia não
é maravilhosa, pois que mais podíamos esperar de um livro do qual cada linha
vem diretamente de Deus?- Se tivesse sido dito "e ele a degolará", Números 19
estaria em desacordo com a epístola aos Hebreus. Mas não; a harmonia do
volume mostra refulgentes glórias. Que Deus nos dê graça para podermos
discerni-las e apreciá-las.
Por isso, Jesus sofreu fora da porta. "E por isso também Jesus, para santificar o
povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta" (Hb 13:12). Tomou lugar
de fora e a Sua voz faz-se ouvir desde ali. Ouvimo-la?- Compreendemo-la? Não
devemos nós considerar mais atentamente o lugar onde Jesus morreu?
Devemos ficar satisfeitos com recolha dos benefícios da morte de Cristo sem
buscarmos a comunhão com Ele na Sua rejeição?- Deus nos livre de tal!
"Saiamos pois a ele fora do arraial, levando o seu vitupério" (Hb 13:13) (1).
__________
(1) O arraial, na passagem citada, refere-se em princípio ao judaísmo; mas tem
uma notável aplicação moral a todo o sistema religioso estabelecido pelo
homem e governado pelo espírito e princípios deste século mau.
Existe um imenso poder nestas palavras. Deveriam excitar todo o nosso ser
moral a buscar s completa identificação com o Salvador que foi rejeitado.
Devemos vê-lo morrer fora da porta, enquanto colhemos os benefícios da sua
morte permanecendo dentro do arraial?- Buscaremos uma morada, e um lugar,
e um nome, e uma porção nesse mundo, do qual o nosso Senhor e Mestre é
expulso?- Aspiraremos a um lugar no mundo que não pode tolerar esse bendito
Senhor a quem devemos a nossa felicidade presente e eterna?-Aspiraremos ali
honra, posição, e riqueza, onde o nosso Senhor encontrou apenas uma
manjedoura, uma cruz e uma sepultura emprestadas?- Que a linguagem dos
nossos corações seja: "Longe de nós tal pensamento". E que a linguagem das
nossas vidas seja: "Longe de nós tal coisa!" Possamos nós pela graça de Deus,
e em resposta sincera à chamada do Espírito, dizer "Saiamos!"
Leitor cristão, não esqueçamos nunca que, quando encaramos a morte de
Cristo, vemos duas coisas, a saber: a morte de uma vítima e a morte de um
mártir - uma vítima pelo pecado, um mártir pela justiça - uma vítima sob a mão
de Deus, um mártir às mãos do homem. Ele sofreu pelo pecado para que nós
nunca tivéssemos que sofrer. Bendito seja o Seu nome para sempre! Porém os
Seus sofrimentos de mártir, os Seus sofrimentos pela justiça das mãos do
homem, são sofrimentos que conhecemos. "Porque a vós vos foi concedido, em
relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele" (Fp
1:29). É positivamente um dom ser permitido sofrer com Cristo. Apreciamos
isso?
Contemplando a morte de Cristo, como é simbolizada na ordenação da bezerra
ruiva, vemos nela não apenas como o pecado é completamente tirado, mas
também o juízo deste presente século mau." O qual se deu a si mesmo por
nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a vontade de
Deus Pai" (Gl 1:4). As duas coisas são juntas aqui por Deus; e nós não
devemos evidentemente nunca separá-las. Temos o juízo do pecado, em sua
raiz e suas ramificações; e o juízo deste mundo. O primeiro dá perfeito
descanso à consciência exercitada; enquanto que o último liberta o coração da
influência intrigante do mundo, em suas múltiplas formas. Aquele purifica a
consciência de todo o sentimento de culpa; este rompe o laço que liga o
coração e o mundo.
E absolutamente necessário que o leitor compreenda e experimente
praticamente a conexão que existe entre estas duas coisas. E muito possível
perder de vista esta grande conexão, até mesmo contendendo e mantendo
muitas verdades evangélicas; e pode afirmar-se afoitamente que sempre que
esta ligação não existe, deve haver um grave defeito no caráter cristão.
Encontramos frequentemente almas sinceras que têm sido despertadas pelo
poder convincente do Espírito Santo, mas que ainda não têm conhecido, para
tranquilidade das suas consciências perturbadas, o pleno valor da morte
expiatória de Cristo, tirando, para sempre, todos os seus pecados e trazendo-as
para perto de Deus, sem uma mancha sobre a alma ou tormento na
consciência.
Se este for o estado atual do leitor, deve considerar a primeira cláusula do
versículo que acabamos de citar: "O qual se deu a si mesmo por nossos
pecados." E uma afirmação bendita para uma alma atribulada. Resolve toda a
questão do pecado. Se é verdade que Cristo se deu a Si Mesmo por meus
pecados, nada mais resta senão alegrar-me com o fato precioso de que os
meus pecados foram tirados! Aquele que tomou o meu lugar, que carregou os
pecados, que sofreu por mim e em meu lugar, está agora à destra de Deus
coroado de honra e glória. Isto me basta. Todos os meus pecados foram tirados
para sempre. Se não tivessem sido tirados, Ele não estaria onde agora está. A
coroa de glória que cinge a Sua bendita cabeça é a prova de que os meus
pecados foram perfeitamente expiados, e portanto paz perfeita é a minha
porção - uma paz tão perfeita quanto a obra de Cristo a pode fazer.
Mas não esqueçamos nunca que a mesmíssima obra que tirou para sempre os
nossos pecados, nos livrou deste presente século mau. As duas coisas vão
juntas. Cristo não somente me libertou das consequências dos meus pecados,
como também do poder atual do pecado, e das exigências e influências que a
Escritura chama "o mundo". Tudo isto, contudo, se tornará mais claro à medida
que prosseguimos com o estudo do nosso capítulo.
"E Eleazar, o sacerdote, tomará do seu sangue com o seu dedo e dele espargirá
para a frente da tenda da congregação sete vezes". Aqui temos o sólido
fundamento de toda a verdadeira purificação. Sabemos que, no símbolo que
temos diante de nós, se trata apenas, como o apóstolo inspirado nos diz, de
uma questão da "purificação da carne" (Hb 9:13). Porém, devemos ver o tipo
mais além do antítipo - além da sombra a substância. Na sétupla aspersão do
sangue da bezerra ruiva para a frente da tenda da congregação temos uma
figura da apresentação perfeita do sangue de Cristo a Deus, como o único lugar
de encontro entre Deus e a consciência. O número "sete", como tem sido
frequentemente observado, é expressivo de perfeição; e, na figura que temos
perante nós, vemos a perfeição ligada à morte de Cristo, como expiação pelo
pecado apresentada a Deus e aceitada por Ele. Tudo descansa sobre terreno
divino.
O sangue foi derramado e apresentado ao Deus santo como perfeita expiação
pelo pecado. Isto, quando é simplesmente aceito pela fé, deve aliviar a
consciência de todo o sentimento de culpa e todo o temor de condenação. Nada
há diante de Deus senão a perfeição da obra expiatória de Cristo. O pecado foi
julgado e os nossos pecados foram tirados. Foram completamente apagados
pelo precioso sangue de Cristo. Crer nisto é entrar no perfeito repouso da
consciência.
E aqui note-se que não há mais alusão à aspersão do pecado em todo este
singularmente interessante capítulo. Isto precisamente de harmonia com a
doutrina de Hebreus 9 e 10. É outra ilustração da harmonia divina do Volume
Sagrado. O sacrifício de Cristo, sendo divinamente perfeito, não necessita de
ser repetido. A sua eficácia é divina e terna.
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por
sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado um eterna redenção. Porque, se o sangue dos
touros e bodes e a cinza de uma novilha, esparzida sobre os imundos, os
santificam, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que,
pelo Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo imaculado e Deus, purificará a
vossa consciência das obras mortas para servirdes ao Deus vivo?-" (Hb
9:11-14).
Note-se a força destas palavras "uma vez" e "terna redenção". Veja-se como
mostram a perfeição e a eficácia divina do sacrifício de Cristo. O sangue foi
derramado uma vez para sempre. Pensar na repetição dessa grande obra seria
negar seu valor eterno e todo suficiente, e rebaixá-lo ao nível do sangue dos
touros e bodes.
Mas continuemos. "De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas
que estão no céu assim se purificassem; mas as próprias coisas celestiais, com
sacrifícios melhores do que estes. Porque Cristo não entrou num santuário feito
por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer,
por nós, perante a face de Deus; nem também para a si mesmo se oferecer
muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santuário com sangue
alheio. Doutra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a
fundação do mundo; mas agora na consumação dos séculos uma vez se
manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo" (Hb 9:23-26).
O pecado foi, portanto, tirado. Não pode ter sido aniquilado e ao mesmo tempo
estar sobre a consciência do crente. Isto é claro. Tem de admitir-se que os
pecados do crente foram apagados e a sua consciência perfeitamente
purificada ou que Cristo tem que morrer outra vez. Porém, este último caso não
só está fora de discussão como seria desnecessário, pois como diz o apóstolo
assim "como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso
o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma vez para tirar os pecados de
muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para
salvação."
Existe algo de maravilhoso no paciente esmero com que o Espírito Santo
debate todo este assunto. Expõe, exemplifica e fortalece a grande doutrina da
perfeição do sacrifício de modo a dar convicção à alma e libertar a consciência
do seu pesado fardo. Tal é a superabundante graça de Deus que Ele não só
cumpriu a obra da nossa eterna redenção, como maneira mais paciente e
esmerada, tem debatido, arguido e provado o ponto em questão, de forma a
não deixar o mínimo fundamento para objeção.
Escutemos os Seus poderosos argumentos, e que o Espírito possa aplicá-los
em poder ao coração do leitor!
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das
coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada
ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam. Doutra maneira, teriam deixado
de se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam
consciência de pecado. Nesses sacrifícios, porém, cada ano, se faz
comemoração dos pecados porque é impossível que o sangue dos touros e dos
bodes tire pecados" (Hb 10:1-4).
Mas o que o sangue dos touros nunca poderia fazer, o sangue de Jesus fê-lo
para sempre. Isto faz toda a diferença. Todo o sangue que até hoje correu em
redor dos altares de Israel—os milhões de sacrifícios oferecidos segundo as
exigências do ritual mosaico não podia apagar uma nódoa da consciência ou
dar ao Deus que detesta o pecado o direito de receber o pecador. "Porque é
impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados." "Pelo que,
entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me
preparaste; holocaustos e oblações pelo pecado não te agradaram. Então,
disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de mim), para fazer, ó
Deus, a tua vontade... Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do
corpo de Jesus Cristo, feita uma vez" (Hb 10:4-10).
Note-se o contraste. Deus não Se agradou na série interminável de sacrifícios
sob a lei. Não Lhe agradavam. Deixavam inteiramente incompleto o que Ele
tinha em Seu coração amantíssimo proposto fazer pelo Seu povo, a saber:
libertá-los completamente do pesado fardo do pecado e trazê-los a Si em
perfeita paz de consciência e liberdade de coração. Isto Jesus fez pelo sacrifício
do Seu bendito corpo. Fez a vontade de Deus; e, bendito seja para sempre o
Seu nome, não tem que fazer outra vez a Sua obra. Podemos recusar crer que
a obra está feita -recusar entregar as nossas almas à sua eficácia - entrar no
repouso que ela tem a propriedade de comunicar - recusar gozar a santa
liberdade de espírito que é capaz de nos dar; porém, a obra permanece na sua
imperecível virtude; e os argumentos do Espírito a respeito dessa obra
subsistem também em sua força e clareza sombrias as sugestões de Satanás,
nem os nossos próprios argumentos incrédulos podem jamais tocar alguma
destas verdades. Podem interferir, e, infelizmente, interferem com o gozo que
as nossas almas têm da verdade; mas a verdade em si permanece a mesma.
"E assim todo o sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas
vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados; mas este,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para
sempre à destra de Deus, daqui em diante esperando ate que os seus inimigos
sejam postos por escabelo de seus pés. Porque, com uma só oblação,
aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (Hb 10:11 -14). E em virtude
do sangue de Cristo que nos e conferida uma eterna perfeição; e, podemos
certamente acrescentar, é devido também a esse sangue que as nossas almas
podem essa perfeição. Ninguém imagine que está prestando honra à obra de
Cristo ou ao testemunho do Espírito a respeito dessa obra quando recusa
aceitar aquela perfeita remissão de pecados que lhe é anunciada pelo sangue
da cruz. Não é um sinal de verdadeira piedade ou de pura religião o que a graça
Deus tem feito por nós em Cristo e o que o relato do espírito eterno tem
apresentado às nossas almas nas páginas inspiradas.
Leitor cristão, não parece estranho que, apresentando a Palavra de Deus à
nossa vista Cristo assentado à destra de Deus, em virtude da redenção
cumprida, nós não estamos virtualmente em melhores circunstâncias do que
aqueles que tinham um sacerdote humano de pé ministrando cada dia e
oferecendo os mesmos sacrifícios? Nós temos um sacerdote divino que se
assentou para sempre. Eles tinham simplesmente um sacerdote humano, que
nunca podia, de modo algum, no desempenho das suas funções oficiais,
sentar-se; e todavia nós não estamos no estado de espírito, na compreensão da
alma, na condição presente da consciência, em melhores circunstâncias do que
eles?- Será possível que, com uma obra perfeita em que podemos descansar,
as nossas almas nunca conheçam perfeito descanso?
O Espírito Santo, como temos visto nas diversas passagens citadas da epístola
aos Hebreus, nada omitiu para satisfazer as nossas almas quanto à questão da
completa remoção do pecado pelo precioso sangue de Cristo. Por que, pois,
não há de o leitor gozar, neste próprio momento, paz de consciência perfeita e
certa<? O Sangue de Jesus nada mais fez por si do que o sangue de um touro
podia fazer por um adorador judeu
Pode ser contudo que o leitor esteja pronto a dizer em resposta a tudo quanto
temos procurado indicar-lhe: "Não duvido em absoluto da eficácia do sangue de
Jesus. Creio que purifica de todo o pecado. Creio formalmente que todos os que
põem simplesmente a sua confiança nesse sangue estão perfeitamente salvos,
e serão eternamente felizes. A minha dificuldade não está de modo algum
nisso. O que me atormenta não é a eficácia do sangue, na qual eu creio
plenamente, mas o meu interesse pessoal nesse sangue, do qual não tenho
prova aceitável. Esse é o segredo de todas as minhas dificuldades. A doutrina
do sangue é tão clara como os raios solares; mas a questão do meu interesse
nela está envolvido em desesperada
escuridão.
Ora se esta é a expressão dos sentimentos do leitor sobre este tão importante
assunto, isso apenas prova a sua necessidade de ponderar atentamente o
capítulo décimo nono de Números. Verá ali como a verdadeira base de toda a
purificação se encontra nisto: que o sangue da expiação tem sido apresentado a
Deus e aceito por Ele. É uma verdade preciosa, mas muito pouco
compreendida. É de toda a importância que a alma realmente ansiosa tenha
uma visão clara do assunto da expiação.
É tão natural para todos nós estarmos ocupados com os nossos pensamentos e
sentimentos sobre o sangue de Cristo, e pouco com o próprio sangue e os
pensamentos de Deus seu respeito. Se o sangue foi perfeitamente apresentado
a Deus, se Ele o aceitou e se glorificou a Si mesmo tirando o pecado, então que
resta para a consciência divinamente exercitada senão encontrar perfeito
descanso no que tem satisfeito todos os direitos de Deus, conciliado os Seus
atributos, e lançado os fundamentos dessa base maravilhosa sobre a qual
podem encontrar-se o Deus aborrecedor do pecado e o pecador arruinado?
Por que introduzir a questão do meu interesse no sangue de Cristo, como se a
obra não estivesse completa sem alguma coisa da minha parte, chama-se-lhe o
que se quiser, o meu interesse, os meus sentimentos, a minha experiência, a
minha aplicação, ou qualquer outra coisa? Por que não descansar somente em
Cristo? Isto seria realmente ter interesse n'Ele. Mas logo que o coração começa
estar ocupado com a questão do seu próprio interesse - logo que a vista é
desviada do objetivo divino que a Palavra de Deus e o Espírito Santo
apresentam-então seguem-se trevas espirituais e perplexidade; e a alma, em
vez de se regozijar na perfeição da obra de Cristo, é atormentada pelos seus
pobres e imperfeitos sentimentos.
Bendito seja Deus, o fundamento da obra de "purificação do pecado é estável e
paz perfeita para a consciência.
A obra da expiação fez-se. Tudo está consumado. O grande Antítipo da bezerra
ruiva foi morto. Entregou-Se a Si mesmo à morte sob a ira e o juízo de um Deus
santo, para que todos os que põem a sua confiança n'Ele pudessem conhecer,
no profundo secreto das suas almas, purificação divina e perfeita paz. Estamos
purificados quanto à consciência, não pelos nossos pensamentos quanto ao
sangue, mas pelo próprio sangue. Devemos insistir nisto. Deus mesmo tem feito
valer o nosso título, e esse título encontra- se somente no sangue. Oh! Esse
precioso sangue de Jesus que fala de profunda paz para toda a alma atribulada
que repousa simplesmente sobre a sua eterna eficácia! Por que é, podemos
perguntar, que a bendita doutrina do sangue é tão pouco compreendida e
apreciada ? Por que persistem as pessoas em confiar em alguma coisa mais ou
em misturar com ela outras coisas? Que o Espírito Santo guie o leitor, enquanto
lê estas linhas, a concentrar e fixar o seu coração e a sua consciência no
sacrifício expiatório do Cordeiro de Deus.
As Cinzas
Havendo procurado desta maneira apresentar ao leitor a verdade preciosa
revelada na morte da bezerra ruiva, pedimos-lhe agora para meditar, por alguns
momentos, na forma como a bezerra ruiva era queimada. Temos visto o
sangue, contemplemos agora as cinzas. Naquele temos a morte sacrificial de
Cristo, como o único meio de purificação o pecado. Nestas temos o memorial
dessa morte aplicado ao coração pelo Espírito mediante a Palavra, de forma a
remover qualquer manha contraída na nossa conduta do dia a dia.
Isto dá uma grande perfeição e beleza a este interessantíssimo tipo. Deus não
tem feito apenas provisão para os pecados passados, mas também para a
contaminação no presente, de forma a podermos estar sempre diante de Si em
todo o valor da obra perfeita de Cristo. Ele quer que, estando inteiramente
limpos, pisemos os átrios do Seu santuário, os sagrados recintos da Sua
presença. E não somente nos vê assim como, bendito seja o Seu nome para
sempre, deseja que façamos outro tanto no íntimo da nossa consciência. Quer
dar-nos, pelo Espírito, mediante a Palavra, o profundo sentimento de pureza à
sua vista, de forma que a corrente de comunhão Consigo possa ocorrer sem
agitação e sem obstáculos.
"Mas se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os
outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (Jo
1:7). Porém, se deixarmos de andar na luz - se esquecermos e, no nosso
esquecimento, tocarmos qualquer coisa imunda, como é restaurada a nossa
comunhão?
Apenas pela remoção da contaminação. E como pode ser isto efetuado?
Mediante a aplicação aos nossos corações e às nossas consciências da
verdade preciosa da morte de Cristo. O Espírito Santo produz o juízo próprio e
traz a nossa memória a verdade preciosa de que Cristo sofreu a morte por essa
contaminação que nós tão fácil e indiferentemente contraímos. Não se trata de
uma nova aspersão do sangue de Cristo - uma coisa desconhecida na
Escritura; mas da lembrança da Sua morte trazida ao coração contrito, em novo
poder, pelo ministério do Espírito Santo.
"Então, queimará a bezerra perante os seus olhos... e o sacerdote tomará um
pedaço de madeira de cedro, e hissopo, e carmesim, e os lançará no meio do
incêndio da bezerra... E um homem limpo a juntará a cinza da bezerra e a porá
fora do arraial, num lugar limpo, e estará ela em guarda para a congregação dos
filhos de Israel, para a água da separação; expiação é" (Nm 19:5-9).
E o propósito de Deus que os Seus filhos sejam purificados de toda a
iniquidade, e que andem em separação deste presente século mau onde tudo é
morte e corrupção. Esta separação é efetuada pela ação da Palavra no coração
e o poder do Espírito Santo. "Graça e paz da parte de Deus Pai e da de nosso
Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos
livrar do presente século mau, segundo a vontade de Deus, nosso Pai" (Gl
1:3,4). "Aguardando a bem-aventurada esperança e o aparecimento da glória
do grande Deus e nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por
nós, para nos remir de toda iniquidade e purificar para si um povo seu especial,
zeloso de boas obras" (Tt 2:13-14).
E notável o modo como o Espírito de Deus apresenta constantemente, em
ligação íntima, o perfeito alívio da consciência de todo o sentimento de culpa e a
libertação do coração da influência moral deste presente século mau. Portanto,
prezado leitor, devemos ter o cuidado de manter a integridade desta conexão.
E, evidentemente, é só pela energia graciosa do Espírito Santo que podemos
fazer assim; mas deveríamos procurar, sinceramente, compreender e mostrar
na prática o laço bendito que existe entre a morte de Cristo considerada como
expiação do pecado e como poder moral de separação deste mundo. Muitos do
povo de Deus nunca vão mais além da primeira verdade, se é que chegam a
alcançá-la. Muitos parece estarem muito satisfeitos com o conhecimento do
perdão dos pecados pela obra expiatória de Cristo, enquanto que, ao mesmo
tempo, não chegam a compreender o estado de morte quanto ao mundo em
virtude da morte de Cristo e da sua identificação com Ele nessa morte.
As Manchas e as Cinzas
Consideremos agora, por um momento, a forma como as cinzas deviam ser
aplicadas.
"Aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem, imundo será sete
dias. Ao terceiro dia, se purificará com água e, ao sétimo dia, será limpo; mas,
se ao terceiro dia se não purificar, não será limpo ao sétimo dia. Todo aquele
que tocar a algum morto, cadáver de algum homem que estiver morto, e não se
purificar, contamina o tabernáculo do SENHOR; e aquela alma será extirpada
de Israel; porque a água da separação não foi espargida sobre ele, imundo
será; está nele ainda a sua imundícia" (versículos 11-13).
E uma coisa solene ter que tratar com Deus - andar com Ele, dia a dia, no meio
de uma cena contaminada e contagiosa. Deus não pode tolerar qualquer
impureza naqueles com os quais condescende andar e nos quais habita. Pode
perdoar e apagar os pecados; pode curar, limpar e restaurar; mas não pode
aprovar no Seu povo o mal que não seja julgado, nem pode permiti-lo. Seria
uma negação do Seu próprio nome e da Sua natureza se o fizesse. Isto é ao
mesmo tempo solene e muito animador. E nosso gozo termos de tratar com
Aquele Cuja presença requer e garante a santidade. Estamos de passagem por
um mundo em que estamos rodeados de influências corruptoras. Verdade é que
a contaminação não é agora contraída por tocar "um corpo morto, ou os ossos
de algum homem ou a uma sepultura." Estas coisas eram, como sabemos,
figuras de coisas morais e espirituais com as quais estamos em perigo de entrar
em contato diariamente e a toda a hora. Não duvidamos que aqueles que têm
muito que fazer com as coisas deste mundo, sentem de uma maneira penosa a
imensa dificuldade de sair delas com as mãos limpas. Daí a necessidade de
uma santa vigilância em todos os nossos hábitos e relações, não seja o caso de
contrairmos contaminação e interromper a comunhão com Deus. Ele quer
ter-nos em estado digno de Si Mesmo. "Sede santos, porque eu sou santo."
Mas o leitor sincero, cuja alma aspira à santidade, pode avidamente perguntar:
"Que devemos, então, fazer, se é verdade que estamos rodeados por todos os
lados de influências corruptoras, se somos tão inclinados a contrair essa
contaminação? Além disso, se é impossível ter comunhão com Deus com mãos
manchadas e uma consciência acusadora, que devemos fazer?-" Antes de tudo,
pois, devemos dizer, sede vigilantes. Contai sinceramente com Deus. Ele é fiel
e misericordioso - um Deus que ouve e responde à oração - um Dador liberal e
que não dirige reprovações. "Ele dá mais graça." Isto é positivamente um
cheque em branco que pode ser preenchido pela fé em qualquer momento. E o
propósito real da tua alma prosseguir ou avançar na vida divina e crescer em
santidade?- Então tenha cuidado na maneira como continuas, porque uma
simples hora de contato com o que mancha as tuas mãos e fere a tua
consciência entristece e também mancha a tua comunhão. Sê decidido. Não
sejas de coração dobre. Larga imediatamente a impureza, seja qual for, os
hábitos, relações ou qualquer outra coisa. Custe o que custar, renuncia a todas
elas. Seja qual for o prejuízo, renuncia a tudo. Nenhum interesse mundano, ou
vantagem terrestre pode compensar a perda de uma consciência pura e um
coração sossegado e a luz do semblante do Pai celestial. Não estás convencido
disto? Se estás, busca graça para pores em prática a tua convicção.
Mas, pode perguntar-se: "Que deve fazer-se quando se contrai contaminação?
Como deve remover-se a corrupção?" Escutemos a resposta em linguagem
figurativa de Números 19: "Para um imundo, pois, tomarão do pó da queima da
expiação e sobre ele porão água viva num vaso. E um homem limpo tomará
hissopo, e o molhará naquela água, e a espargirá sobre aquela tenda, e sobre
todo o fato, e sobre as almas que ali estiverem, como também sobre aquele que
tocar os ossos, ou a algum que foi morto, ou que faleceu, ou uma sepultura. E o
limpo, ao terceiro e sétimo dias, espargirá sobre o imundo; e, ao sétimo dia, o
purificará; e lavará as suas vestes, e se banhará na água, e à tarde será limpo"
(versículos 17-19).
O leitor dirá que, nos versículos doze e dezoito, é mostrada uma dupla ação. Há
a ação do terceiro dia e a ação do sétimo. Eram ambas essencialmente
necessárias para remover a contaminação cerimonial causada pelo contato
com as diversas formas de morte acima especificadas. Ora, o que era
simbolizado por este duplo ato? O que é que, na nossa história espiritual,
corresponde a esse ato? Cremos que é isto: Se, por falta de vigilância e energia
espiritual, tocamos alguma coisa impura e ficamos contaminados, podemos
desconhecer esse fato, mas Deus sabe tudo sobre o assunto. Ele tem cuidado
de nós e vela por nós; não como juiz indignado, bendito seja o Seu nome, ou um
austero crítico, mas como um Pai amantíssimo, que nunca nos imputará coisa
alguma, porque tudo foi, há longo temo, imputado Aquele que morreu em nosso
lugar.
Contudo, embora nada nos seja imputado por Ele, não deixará de nos fazer
sentir o mal profunda e vivamente. Será um fiel repreensor do que é impuro, e
pode reprovar tudo tanto mais energicamente quanto é certo que nunca o
considera contra nós. O Espírito Santo traz o nosso pecado à memória e isto
causa ao coração inexprimível angústia. Esta angústia pode continuar por
algum tempo. Pode dar instantes, dias, meses ou anos. Encontramos uma vez
um jovem cristão que se havia considerado infeliz durante três anos por ter ido
numa excursão com alguns amigos mundanos. Cremos que esta convicção do
Espírito Santo está simbolizada pela ação do terceiro dia. Ele recorda-nos o
nosso pecado, e então traz à nossa memória e aplica às nossas almas, por
meio da Palavra escrita, o valor da morte de Cristo como o que já tirou a
contaminação que tão facilmente contraímos. Isto corresponde à ação do
sétimo dia — tira a contaminação e restaura a comunhão.
E recorde-se atentamente que nunca podemos ser libertados da contaminação
de qualquer outro modo. Podemos procurar esquecer, curar ou passar
ligeiramente sobre a ferida, fazer pouco caso do assunto ou deixar ao tempo o
cuidado de o apagar da nossa memória. Mas isto de nada valerá; ou antes, é
trabalho perigoso. Não há nada mais desastroso do que gracejar com a
consciência ou os direitos da santidade. E é tão insensato como perigoso;
porque Deus tem, em Sua graça, preparado o meio de remover impureza que
Sua santidade detecta e condena. Mas a impureza tem de ser removida, de
contrário a comunhão é impossível. "Se eu te não lavar, não tens parte comigo"
(Jo 13:8).
A suspensão da comunhão do crente corresponde a extirpação de um membro
da congregação de Israel. O cristão não pode jamais ser separado de Cristo;
mas a sua comunhão pode ser interrompida por um simples pensamento
pecaminoso, e esse pensamento pecaminoso tem de ser julgado e confessado
e a sua mancha tirada, antes que a comunhão seja restaurada. É bom lembrar
isso. É uma coisa grave gracejar com o pecado. Podemos estar certos de que
não é possível comunhão com Deus e andar em contaminação. Pensar isso é
blasfemar o próprio nome, a própria natureza e o trono da majestade de Deus.
Não, prezado leitor, devemos conservar uma consciência limpa, e manter a
santidade de Deus, de contrário em breve faremos naufrágio da fé e cairemos
de todo.
Que o Senhor nos mantenha andando suave e ternamente, vigiando e orando
até que temos posto de lado os nossos corpos do pecado e morte e entrado
nesse bendito e resplandecente mundo celestial, onde o pecado, a morte e a
contaminação são desconhecidos.
No estudo das ordenações e cerimônias da dispensação levítica, nada é tão
notável como o cuidado cioso com que o Deus de Israel velava sobre o Seu
povo a fim de que ele pudesse ser preservado de toda a influência de
contaminação. De dia e de noite, acordados ou a dormir, em casa ou fora de
casa, no seio da família e no caminho solitário, os Seus olhos estavam postos
neles. Cuidava do seu alimento, do seu vestuário, dos seus hábitos e utensílios
domésticos. Instruiu-os cuidadosamente quanto ao que podiam e não podiam
comer, acerca do que podiam e do que não podiam vestir. Manifestou-lhes
também claramente os Seus pensamentos acerca do contato e manejo das
coisas. Em suma, rodeou-os de barreiras amplamente suficientes, se tão
somente lhes tivessem prestado atenção, para resistirem à corrente de
contaminação a que estavam expostos de todos os lados.
Em tudo isto, lemos em caracteres inconfundíveis, a santidade de Deus; mas
lemos claramente também a graça de Deus. Se a santidade divina não podia
consentir contaminação sobre o povo, a graça divina proveu amplamente à sua
remoção. Esta provisão é manifestada no nosso capítulo sob dois modos, a
saber: o Sangue da expiação e a água da separação.
Que preciosa provisão! Uma provisão que ilustra, ao mesmo tempo, a santidade
e a graça de Deus. Não conhecêssemos nós a ampla provisão da graça divina,
então os direitos elevados da santidade divina seriam inteiramente
esmagadores; mas estando seguros da primeira, podemos regozijar-nos de
todo o coração na última. Poderíamos nós desejar ver o padrão da santidade
divina rebaixado no mínimo? Longe de nós tal pensamento. Como poderíamos
sentir tal desejo, visto que a graça divina proveu amplamente o que a santidade
divina requeria?- Um israelita podia se estremecerão ouvir palavras como estas:
"Aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem, imundo será sete
dias." E, também: "aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem
que estiver morto, e não se purificar contamina o tabernáculo do SENHOR; e
aquela alma será extirpada de Israel." Tais palavras podiam, na verdade,
apavorar o seu coração. Podia sentir-se levado a exclamar: "Como poderia eu
jamais escapar à contaminação?
Mas, então, e as cinzas da bezerra queimada?- E a água da separação"? O que
significavam? Mostram o memorial do sacrifício da morte de Cristo, aplicada ao
coração pelo poder do Espírito de Deus. "Ao terceiro dia se purificará com ela, e
ao sétimo dia será limpo; mas, se ao terceiro dia se não purificar, não será limpo
ao sétimo dia." Se contraímos contaminação, ainda que seja por negligência,
essa contaminação deve ser removida, antes da nossa comunhão pode ser
restaurada. Contudo, não podemos libertar-nos da mancha por qualquer
esforço da nossa parte. A contaminação só pode ser removida pelo uso da
provisão graciosa de Deus, a água da purificação. Um israelita não podia
remover por seus próprios esforços a contaminação causada pelo contato de
um corpo morto, do mesmo modo que não tinha podido partir de Faraó ou
libertar-se do azorrague dos exatores de Faraó.
O Cansaço do Deserto
Mas agora a profetisa sai da cena e a voz da melodia é trocada pela voz de
murmúrio. A vida do deserto está a tornar-se penosa. As experiências do
deserto põem à prova a natureza humana; mostram o que está no coração.
Quarenta anos de fadiga e aflições produzem uma grande mudança no povo. E
raro, na verdade, encontrar exemplos de casos em que o vigor e a frescura da
vida espiritual se têm mantido e muito menos aumentado através de todos os
períodos da vida cristã e sua luta.
Este fato não deveria ser tão raro. Deveria ser justamente o contrário, visto que
é nos pormenores do tempo presente, nas duras realidades do nosso caminho
por este mundo, que experimentamos o que Deus é. Bendito seja o Seu nome,
Ele serve-Se de cada dificuldade do nosso caminho, para Se dar a conhecer
aos nossos corações em toda a doçura e ternura do amor que não conhece
alteração. A Sua bondade e tenra misericórdia nunca falha. Nada pode esgotar
essas fontes que estão no Deus vivo. Ele sempre será o que é, apesar de toda a
nossa maldade. Deus será sempre Deus, ainda que o homem se mostre infiel e
incrédulo.
Este é o nosso conforto, o nosso gozo e a origem da nossa força. Temos de
tratar com o Deus vivo. Que realidade! Venha o que vier, Ele Se mostrará à
altura de todos os acontecimentos - amplamente suficiente "para as
necessidades de cada momento". A Sua paciente graça pode suportar as
nossas múltiplas fraquezas, faltas e deficiências; e a Sua força se aperfeiçoa na
nossa fraqueza. A Sua fidelidade nunca falha, A Sua misericórdia é de
eternidade a eternidade. Os amigos falham ou desaparecem. Os laços mais
afetuosos de amizade partem-se neste mundo frio e sem coração. Os
companheiros de trabalho separam-se. As Miriãs e os Arãos morrem; mas Deus
permanece. Aqui está o grande segredo de toda a verdadeira e sólida
bem-aventurança. Se temos a mão e o coração do Deus vivo conosco, nada
temos que temer. Se podemos dizer: "O SENHOR é o meu Pastor", podemos
seguramente acrescentar: "nada me faltará".
Contudo, há as cenas de dor e provação no deserto; e nós temos de passar por
elas. Foi assim com Israel, no capítulo que temos perante nós. Foram
chamados para encontrar as penetrantes rajadas do vento do deserto, e
encontraram-nas com expressões de impaciência e descontentamento.
"E não havia água para a congregação; então, se congregaram contra Moisés e
contra Arão. E o povo contendeu com Moisés, e falaram, dizendo. Antes
tivéssemos expirado quando expiraram nossos irmãos perante o SENHOR! E
por que trouxestes a congregação do SENHOR a este deserto, para que
morramos ali, nós e os nossos animais? E por que nos fizestes subir do Egito,
para nos trazer a este lugar mau ? Lugar não de semente, nem de figos, nem de
vides, nem de romãs, nem de água para beber" (versículos 2 a 5).
Foi este um momento difícil para o espírito de Moisés. Não podemos fazer ideia
do que terá sido enfrentar seiscentos mil descontentes e ser obrigado a ouvir as
suas amargas invectivas e verse acusado de todas as calamidades que a sua
própria incredulidade havia levantado diante deles. Isto não era uma prova
normal de paciência e, indubitavelmente, nós não devemos estranhar que esse
querido e honrado servo achasse a ocasião demasiado difícil.
A Rocha e a Vara
Nesta passagem, dois objetos requerem a atenção do leitor, a saber: "a rocha" e
"a vara". Os dois apresentam Cristo à alma de uma maneira bendita; mas em
dois aspectos distintos. Em 1 Coríntios 10:4, lemos: "E beberam todos de uma
mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a
pedra era Cristo." Isto é claro e positivo. Não deixa lugar nenhum para exercício
da imaginação. "A pedra era Cristo", - Cristo ferido por nós.
Depois, no que respeita "à vara", devemos recordar que não era a vara de
Moisés - a vara de autoridade - a vara de poder. Isto não seria próprio da
ocasião. Essa vara tinha feito a sua obra. Tinha ferido a rocha uma vez, e isso
era bastante. E o que aprendemos de Êxodo 17:5-6, onde lemos: "Então, disse
o SENHOR a Moisés: Passa diante do povo e toma contigo alguns dos anciãos
de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com que feriste o rio", e vai. Eis que eu
estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horeb, e tu ferirás a rocha, e dela
sairão águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos
anciãos de Israel."
Aqui temos um tipo de Cristo ferido por nós pela mão de Deus em juízo. O leitor
notará a expressão, "a tua vara, com que feriste o rio". Por que o rio? Porque
deveria ser referido este golpe particular da vara? Êxodo 7:20 dá a resposta. "E
levantou (Moisés) a vara e feriu as águas que estavam no rio, diante dos olhos
de Faraó e diante dos olhos de seus servos; e todas as águas do rio se
tomaram em sangue." Era a vara que tornara a água em sangue que devia ferir
a rocha que "era Cristo" para que rios de vida e refrigério pudessem correr para
nós.
CAPÍTULO 21
A SERPENTE DE BRONZE
CAPÍTULOS 22 a 24
O Salário da Iniquidade
Estes três capítulos formam uma parte distinta do nosso livro - uma porção
verdadeiramente maravilhosa, abundante em instruções ricas e variadas. Nela
apresenta-se-nos, primeiro, o profeta cobiçoso e, em seguida, as suas sublimes
profecias. Existe qualquer coisa especialmente terrível no caso de Balaão.
Evidentemente, ele amava o dinheiro - um amor que não é invulgar,
infelizmente, nos nossos próprios dias! O ouro e a prata de Balaque foram para
este miserável um tentador engodo - um engodo demasiado atraente para ser
repelido. Satanás conhecia bem o seu homem e o preço por que podia ser
comprado.
Se o coração de Balaão fosse reto para com Deus, teria dado pouca atenção à
mensagem de Balaque; com efeito, não teria perdido um momento de reflexão
com a mensagem a enviar-lhe. Mas o coração de Balaão era mau, e por isso
vemo-lo no capítulo 22 na triste condição de um homem que atua por
sentimentos opostos. O seu coração estava inclinado a ir, porque estava
decidido quanto à prata e ao ouro; mas, ao mesmo tempo, havia uma espécie
de alusão a Deus - uma aparência de religiosidade usada como capa para
cobrir as suas práticas ambiciosas. Desejava muito o dinheiro; e de boa vontade
o receberia, mas só de uma forma religiosa. Miserável! O mais miserável! O seu
nome permanece nas páginas inspiradas como a expressão de uma fase tétrica
e terrível da história decadente do homem.
"Ai deles!", diz Judas, "porque entraram pelo caminho de Caim, e foram levados
pelo engano do prêmio de Balaão, e pereceram na contradição de Coré." Pedro
também apresenta Balaão como uma figura proeminente num dos quadros mais
sinistros da humanidade caída - um modelo sobre o qual são formados alguns
dos caracteres mais perversos. Fala daqueles que "tendo os olhos cheios de
adultério e não cessando de pecar, engodando as almas inconstantes, tendo o
coração exercitado na avareza, filhos de maldição- os quais, deixando o
caminho direito, erraram seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que
amou o prêmio da injustiça. Mas teve a repreensão da sua transgressão; o
mudo jumento, falando com voz humana, impediu a loucura do profeta" (2 Pe
2:14-16).
Estas passagens são solenemente conclusivas quanto ao verdadeiro caráter e
espírito de Balaão. O Seu coração estava posto no dinheiro - "amou o prêmio da
injustiça" - e a sua história tem sido escrita com a pena do Espírito Santo como
um aviso terrível a todos os professos para que se guardem da avareza, que é
idolatria. Não ponderaremos mais a triste história. O leitor pode meditar por
alguns momentos sobre o quadro apresentado em Números 22. Pode estudar
as duas figuras proeminentes: o astuto rei e o ambicioso e obstinado profeta; e
nós não duvidamos de que deixará o estudo com o sentimento profundo do mal
da avareza, o grande perigo moral de ter as afeições do coração postas nas
riquezas deste mundo e a grande bem-aventurança de ter o temor de Deus
perante os seus olhos.
O SENHOR Está a Favor do seu Povo
Vamos prosseguir agora com o exame dessas maravilhosas profecias
pronunciadas por Balaão em audiência com Balaque, rei dos moabitas.
E profundamente interessante assistir à cena que se desenrola nos lugares
altos de Baal, notar a grande questão em jogo, ouvir os oradores, ser admitido
atrás das cenas numa ocasião tão importante. Quão longe estava Israel de
suspeitar o que se passava entre o Senhor e o inimigo. Murmuravam talvez em
suas tendas no próprio momento em que Deus anunciava a sua perfeição pela
boca do profeta ambicioso. Balaque teria de boa vontade visto Israel
amaldiçoado; mas, bendito seja Deus, Ele não permitirá que alguém amaldiçoe
o Seu povo. Poderá ter de tratar com eles, Ele próprio, em segredo, acerca de
muitas coisas; mas não consentirá que alguém fale contra eles. Poderá ter de
os descobrir a si mesmos; mas não consentirá que um estranho os denuncie.
Isto é um ponto de grande interesse. A grande questão é não tanto o que o
inimigo possa pensar do povo de Deus ou o que eles próprios possam pensar
de si ou uns dos outros. A verdadeira questão - a questão de máxima
importância - é, o que pensa Deus deles? Ele conhece exatamente tudo que
lhes diz respeito: tudo que são; tudo que têm feito; tudo que há neles. Tudo é
claramente revelado aos Seus olhos perscrutadores. Os segredos mais íntimos
do coração, da carne, e da vida, são todos conhecidos por Ele. Nem os anjos,
nem os homens, nem os demônios nos conhecem como Deus nos conhece.
Deus conhece-nos perfeitamente; e é com Ele que temos de tratar, e podemos
dizer, na linguagem exultante do apóstolo: "Se Deus é por nós, quem será
contra nós? (Rm 8:31). Deus nos vê, pensa em nós, fala a nosso respeito, atua
por nós, segundo o que Ele mesmo tem feito de nós e por nós - segundo a
perfeição da Sua obra. "Os espectadores podem ver muitas faltas", mas, quanto
à nossa posição, o nosso Deus vê-nos só na perfeição de Cristo; somos
perfeitos n'Ele. Quando Deus contempla o Seu povo, vê nele a Sua própria
obra; é para glória do Seu santo nome e louvor da Sua salvação que nem uma
mancha se vê naqueles que são Seus — aqueles que, em graça soberana, fez
Seus. O Seu caráter, o Seu nome, a Sua glória e a perfeição da Sua obra estão
envolvidos na posição daqueles com os quais se relacionou.
Por isso, no momento em que qualquer inimigo ou acusador entra em cena, o
Senhor sempre coloca-Se na sua frente para receber e responder as
acusações; e a Sua resposta é sempre baseada, não sobre o que os Seus são
em si mesmos, mas sobre o que Ele tem feito deles por meio da perfeição da
Sua própria obra. A Sua glória está ligada com eles, e, justificando-os, Ele
mantém a Sua própria glória. Coloca-se entre eles e as línguas acusadoras. A
sua glória exige que eles sejam apresentados em toda a beleza com que os tem
revestido. Se o inimigo vem para amaldiçoar e acusar, Javé responde dando
livre curso à Sua eterna complacência naqueles que escolheu para Si Mesmo, e
os quais tornou idôneos de estar na Sua presença para sempre.
Tudo está exemplificado de uma forma notável no terceiro capítulo do profeta
Zacarias. Ali também o inimigo se apresenta para se opor ao representante do
povo de Deus. Como lhe responde Deus? Simplesmente purificando, vestindo e
coroando aquele que Satanás desejava amaldiçoar e acusar, de forma que
Satanás não teve nada para dizer. É reduzido ao silêncio para sempre. Os
vestidos sujos são tirados e aquele que era apenas um tição tirado do fogo é
feito um sacerdote com uma mitra - o que era apenas útil para as chamas do
inferno é agora idôneo de andar nos átrios do Senhor.
Assim também quando nos voltamos para o livro de Cantares, vemos a mesma
coisa. O Noivo, contemplando a noiva, diz-lhe: "Tu és toda formosa, amiga
minha, e em ti não há mancha" (Ct 4:7). Ela, falando de si, só pode, exclamar:
"Eu sou morena (Ct 1:5- 6). Assim também em João 13 o Senhor Jesus olha
para os discípulos e diz-lhes: "Vós estais limpos"; ainda que dentro, de algumas
horas um deles houvesse de negar e jurar que não O conhecia. E tão grande a
diferença entre o que somos em nós próprios e o que somos em Cristo - entre o
nosso estado positivo e o nosso estado possível.
Esta verdade gloriosa quanto à perfeição do nosso estado deve fazer-nos
descuidados quanto ao nosso estado prático? Longe de nós tal pensamento!
Pelo contrário, o conhecimento da nossa posição em Cristo, absolutamente
estabelecida e perfeita, é o próprio instrumento de que o Espírito Santo Se
serve para nos excitar à perfeição prática. Executemos essas palavras
poderosas da pena do apóstolo inspirado: "Portanto, se já ressuscitastes com
Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra
de Deus. Pensai nas coisas que são de cima e não nas que são da terra; porque
já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando
Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, então, também vós vos manifestareis
com ele em glória. Mortificai, pois, os vossos membros" (Cl 3:1-3). Não
devemos nunca medir a nossa posição pelo nosso estado, mas julgar sempre o
estado pela posição. Rebaixar a posição por causa do estado é dar o golpe de
misericórdia a todo o progresso e cristianismo prático.
Alinha de pensamento precedente está eficazmente ilustrada nas quatro
parábolas de Balaão. Para falar segundo a maneira dos homens nós nunca
teríamos tido um aspecto tão glorioso de Israel, como é visto na "visão do
Todo-poderoso" - do alto das rochas - por um que teve "os olhos abertos", se
Balaque não tivesse procurado amaldiçoá-los. O Senhor, bendito seja o Seu
nome, pode abrir rapidamente os olhos de um homem para o verdadeiro estado
do caso a respeito da posição do Seu povo e quanto ao juízo que faz deles.
Reivindica o privilégio de expor os Seus pensamentos a respeito deles. Balaque
e Balaão com "todos os príncipes de Moabe" podem reunir-se para ouvir
amaldiçoar e afrontar Israel; podem "edificar sete altares", e oferecer "um
bezerro e um carneiro sobre cada altar"; a prata e o ouro de Balaque podem
brilhar aos olhos do ambicioso profeta; mas todos os poderes da terra e o
inferno, dos homens e dos demônios combinados, na sua terrível e sombria
ordem de batalha, não podem evocar o menor alento de maldição ou de
acusação contra o Israel de Deus. Teria sido tão inútil o inimigo procurar um
defeito na formosa criação que Deus tinha declarado "muito boa" como lançar
uma acusação contra os remidos do Senhor.
Oh, não! Eles brilham em toda a beleza com que Ele os tem revestido, e tudo
que é preciso para os ver assim é subir ao "alto das rochas" - para termos "os
olhos abertos" e vê-los segundo o Seu ponto de vista - na "visão do
Todo-poderoso".
Havendo dado assim uma vista geral ao conteúdo destes notáveis capítulos,
vamos aludir rapidamente a cada uma das quatro parábolas em particular.
Descobriremos um ponto distinto em cada uma - uma característica no caráter e
condição do povo, visto na "visão do Todo-poderoso".
Aqui temos Israel escolhido e separado para ser um povo à parte e particular -
um povo que, segundo o pensamento divino a seu respeito, devia jamais, em
tempo algum, ou sob qualquer pretexto por qualquer razão, misturar-se com as
nações ou ser contado com elas. "Este povo habitará só". Isto é claro e enfático.
É verdadeiro quanto à semente literal de Abraão, e verdadeiro a respeito de
todos os crentes hoje em dia. Deste princípio desprendem-se imensos
resultados práticos. O povo de Deus deve estar separado para Si, não porque
seja melhor do que os outros, mas simplesmente em virtude do que Ele quer
que o Seu povo seja. Não prosseguiremos por agora este ponto; mas o leitor
fará bem examinando-o à luz da palavra divina. "Este povo habitará só, e entre
as nações não será contado".
Mas ao Senhor agrada, em Sua graça soberana unir-Se com o Seu povo; se os
chama para serem um povo separado no mundo - para habitar "só" e brilhar por
Ele no meio dos que ainda estão "nas travas e sombra da morte", só pode tê-los
numa condição que Lhe covinha. Tem de torná-los como desejaria tê-los - tais
como convém para louvor do Seu grande e glorioso nome. Por isso, na segunda
parábola, o profeta é obrigado a declarar não apenas o estado negativo, mas
também o estado positivo do povo.
Aqui abre-se perante nós uma nova cena. Temos estado no cume de Pisga
ouvindo o testemunho de Deus a respeito de Israel, e ali tudo era brilhante e
belo, sem uma nuvem e sem mancha. Mas agora achamo-nos nas planícies de
Moabe, e tudo é mudado. Ali estivemos ocupados com Deus e os Seus
pensamentos. Aqui temos de tratar com o povoe os seus caminhos. Que
contraste! Isto faz-nos lembrar o começo e o fim de 2 Coríntios 12. Nos
primeiros versículos temos a posição absoluta do cristão; nos versículos finais o
possível estado em que ele pode cair se não vigiar. Aquela posição mostra-nos
"um homem em Cristo" capaz de ser arrebatado ao paraíso, a todo o momento.
Esta possibilidade mostra-nos santos de Deus capazes de se entregarem a
toda a sorte de pecado e loucura.
Assim sucede com Israel visto do "cume das penhas" na "visão do
Todo-poderoso", e Israel visto nas planícies de Moabe. No primeiro caso, temos
a sua perfeita posição, no segundo o seu estado imperfeito. As parábolas de
Balaão dão-nos o conceito de Deus sobre o primeiro caso; a lança de Finéias o
seu juízo sobre o segundo. Deus nunca revogará o Seu decreto quanto à
posição em que tem colocado o Seu povo; mas tem de os julgar e castigar
quando os seus caminhos não são compatíveis com essa posição. É Sua santa
vontade que o estado deles corresponda à sua posição. Porém, foi aqui,
infelizmente, que o seu fracasso se manifestou. A natureza humana permite-se
atuar de diversas maneiras, e o nosso Deus é constrangido a empregar a vara
da disciplina, a fim de que o mal, que nós temos consentido se manifeste, possa
ser esmagado e submetido.
Assim sucede em Números 25. Balaão, depois de haver falhado na sua
tentativa de maldiçoar Israel, consegue induzi-los por meio dos seus ardis a
cometerem o pecado, esperando desta forma alcançar o seu fim. "Juntando-se
pois Israel a Baal-Peor, a ira do SENHOR se acendeu contra Israel. Disse o
SENHOR a Moisés: Toma todos os cabeças do povo e enforca-os ao SENHOR
diante do sol, e o ardor da ira do SENHOR se retirará de Israel" (versículos 3-4).
Depois temos o relato notável do zelo e da fidelidade de Finéias. "Então, o
SENHOR falou a Moisés, dizendo: Finéias, filho de Eleazar, o filho de Arão, o
sacerdote, desviou a minha ira de sobre os filhos de Israel, pois zelou o meu
zelo no meio deles; de modo que no meu zelo não consumi os filhos de Israel.
Portanto, dize: Eis que lhe dou o meu concerto de paz, e ele e a sua semente
depois dele terão o concerto do sacerdócio perpétuo; porquanto teve zelo pelo
seu Deus e fez propiciação pelos filhos de Israel" (versículos 10 a 13)
A glória de Deus e o bem de Israel eram os motivos que moviam a conduta do
fiel Finéias nesta ocasião. Era um momento crítico. Sentia que havia
necessidade de ação severa. Não era ocasião para mostrar uma falsa ternura.
Há momentos na história o povo de Deus em que o afeto pelo homem se
transforma em infidelidade para com Deus; e é da maior importância poder-se
discernir tais momentos. A pronta ação de Finéias salvou toda a congregação,
glorificou o Senhor no meio do Seu povo e frustrou completamente os planos do
inimigo. Balaão caiu no meio dos midianitas; mas Finéias tornou-se o possuidor
de um sacerdócio eterno. Isto basta quanto à instrução solene contida nesta
breve parte do nosso livro. Possamos nós aproveitar com ela. Que o Espírito de
Deus nos dê um sentimento tal da nossa perfeita posição em Cristo que a nossa
conduta espiritual possa estar mais de acordo com ela!
CAPÍTULO 26
Este capítulo, embora seja um dos mais extensos do nosso livro, não requer
muitos comentários ou exposição. Nele temos o relato da segunda numeração
do povo, quando estava a ponto de entrar na terra prometida. Como é triste
pensar que dos seiscentos mil homens de guerra, que foram contados no
princípio, só restam dois -Josué e Calebe! Todos os demais estão reduzidos a
pó, sepultados na areia do deserto - desapareceram todos. Os dois homens de
fé simples ficaram para receber o galardão da sua fé. Quanto aos incrédulos, o
apóstolo inspirado diz-nos que "os seus cadáveres caíram no deserto".
Como isto é solene e cheio de instrução para nós! A incredulidade impediu a
primeira geração de entrar na terra de Canaã, e ocasionou a sua morte no
deserto. Este é o fato em que o Espírito Santo baseia um dos avisos mais
penetrantes encontrado em todo o volume inspirado. Escutemo-lo.
"Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel,
para se apartar do Deus vivo. Antes exortai-vos uns aos outros, todos os dias,
durante o tempo que se chama HOJE, para que nenhum de vós se endureça
pelo engano do pecado. Porque nos tornamos participantes de Cristo, se
retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim. Enquanto se
diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração, como na
provocação. Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não todos
os que saíram do Egito por meio de Moisés. Mas, com quem se indignou por
quarenta anos? Não foi, porventura, com os que pecaram, cujos corpos caíram
no deserto? E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão aos que
foram desobedientes? E vemos que não puderam entrar por causa da sua
incredulidade. Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar
no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás. Porque também a nós
foram pregadas as boas novas, como a eles, mas a palavra da pregação nada
lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a fé naqueles que a
ouviram" (Hb 3:12-19; 4:1-2).
Aqui está o grande segredo prático. A Palavra de Deus misturada com a fé.
Preciosa mistura! A única coisa que pode realmente aproveitar a cada um.
Podemos ouvir muito, falar muito, professar muito, mas podemos ficar certos de
que a medida do verdadeiro poder espiritual - poder para superar as
dificuldades, poder para vencer o mundo, poder para avançar, poder para nos
apropriarmos do que Deus nos tem concedido - a medida deste poder é
simplesmente a de misturar a Palavra de Deus com a fé. A Sua palavra está
estabelecida para sempre no céu; e se está fixada em nossos corações pela fé,
há um laço divino que nos liga com o céu e tudo que lhe pertence; e, na
proporção em que os nossos corações estão assim ligados com o céu e com
Cristo que ali está, estaremos praticamente separados deste presente século e
elevados acima das suas influências. A fé toma possessão de tudo que Deus
tem dado. Penetra dentro do véu; mantém-se como vendo Aquele que é
invisível; ocupa-se com o que é invisível e eterno e não com o que é temporário.
Os homens pensam que as possessões terrenas estão seguras; a fé nada
conhece seguro senão Deus e a Sua Palavra. A fé aceita a Palavra de Deus e
guarda-a no recôndito da alma como um tesouro escondido - a única coisa que
merece ser chamada tesouro. O feliz possuidor deste tesouro torna-se
independente de todo o mundo. Pode ser pobre quanto às riquezas desta cena
passageira; mas se é rico na fé, é o possuidor de riqueza incontável - "riquezas
duradouras e justiça" - "as riquezas incompreensíveis de Cristo".
Prezado leitor, estes não são traços de fantasia - meras visões da imaginação.
Não; são verdades substanciais, realidades divinas, que hoje podes gozar em
toda a sua preciosidade. Se confias em Deus, segundo a Sua Palavra - se crês
o que Ele diz, porque é Ele Quem o diz - pois isto é fé - então, verdadeiramente
tens este tesouro que torna o seu possuidor independente de todo esta cena
onde os homens vivem só por vista. Os homens deste mundo falam do que é
positivo e real, querendo dizer com isso o que podem ver e experimentar; por
outras palavras, as coisas do tempo e dos sentidos -o que é tangível, palpável.
A fé não conhece nada positivo, nada real, senão a Palavra de Deus.
Ora foi a falta desta fé bendita que impediu Israel de entrar na terra de Canaã e
ocasionou a queda de seiscentos mil cadáveres no deserto. E é a falta desta fé
que mantém milhares do povo de Deus na escravidão e nas trevas, quando
deveriam andar em liberdade e na luz - essa falta de fé mantém-nos deprimidos
e tristes, quando deveriam andar no gozo e poder da plena salvação de Deus;
essa falta de fé mantém-nos no temor do juízo, quando deveriam andar na
esperança da glória; mantém-nos na dúvida se escaparão à espada do
destruidor no Egito, quando deveriam fazer festa com o trigo do ano precedente
na terra de Canaã.
Oh, se o povo de Deus considerasse estas coisas no secreto da Sua presença e
à luz da Sua Palavra! Então, verdadeiramente conheceriam melhor e
apreciariam plenamente a rica herança que a fé encontra na Palavra eterna de
Deus - compreenderiam claramente quais são as coisas que nos são dadas
livremente por Deus no Filho do Seu amor.
Que o Senhor envie a Sua luz e a Sua verdade e conduza o Seu povo à
plenitude da Sua possessão em Cristo, a fim de que eles possam tomar o seu
verdadeiro lugar e render um fiel testemunho d'Ele enquanto esperam o Seu
glorioso aparecimento.
CAPÍTULO 27 e 36
AS FILHAS DE ZELOFEADE
A conduta das filhas de Zelofeade, segundo o relato da parte com que abre este
capitulo, apresenta um notável e belo contraste com a incredulidade de que
acabamos de falar. Não pertenciam, certamente, à geração daqueles que estão
sempre prontos a abandonar o terreno divino, a rebaixar o padrão divino e a
renunciar aos privilégios conferidos pela graça divina, Não; essas cinco
mulheres não tinham simpatia por tais pessoas. Estavam decididas, pela graça,
a pôr o pé da fé no terreno mais elevado, e, com decisão santa e firme, fazer
seu o que Deus lhes havia dado. Leiamos o relato animador.
"E chegaram as filhas de Zelofeade, filho de Héfer, filho de Gileade, filho de
Maquir, filho de Manassés, entre as famílias de Manassés, filho de José (e
estes são os nomes de suas filhas: Macia, Noa, Hogla, Milca e Tirsa); e
puseram-se diante de Moisés e diante de Eleazar, o sacerdote, e diante dos
príncipes e de toda a congregação, à porta da tenda da congregação, dizendo:
Nosso pai morreu no deserto e não estava entre a congregação dos que se
congregaram contra o SENHOR na congregação de Corá; mas morreu no seu
próprio pecado e não teve filhos. Por que se tiraria o nome de nosso pai do meio
da sua família, porquanto não teve filhos? Dá-nos possessão entre os irmãos de
nosso pai" (versículos 1 a 4).
Isto é extraordinariamente belo. Faz bem ao coração ler palavras como estas
numa época como a presente, em que tão pouco caso se faz da posição e parte
que tem o povo de Deus e em que tantos se contentam em viver dia após dia,
ano após ano, sem sequer se preocuparem com as coisas que são dadas
gratuitamente por Deus. Nada é tão triste como ver o descuido e a completa
indiferença com que muitos cristãos professantes tratam questões tão
importantes como são a posição, a conduta e a esperança do crente e da Igreja
de Deus. Não é, de modo nenhum, nosso propósito entrar aqui nestas
questões. Temos feito isso repetidamente nos outros volumes dos "Estudos".
Desejamos meramente chamar a atenção do leitor para o fato que é ao mesmo
tempo pecar contra as nossas ricas misericórdias, e desonrar o Senhor,
evidenciar um espírito de indiferença a respeito de qualquer ponto de revelação
acerca da posição e parte da Igreja ou do crente individualmente.
Se Deus, na abundância da Sua graça, Se dignou conceder-nos privilégios
preciosos, não deveríamos nós buscar ardentemente saber o que são estes
privilégios? Não deveríamos procurar fazer nossos esses privilégios na
simplicidade da fé? É tratar o nosso Deus e a Sua revelação dignamente ser
indiferentes quanto a saber se somos servos ou filhos—se o Espírito Santo
habita em nós ou não - se estamos debaixo da lei ou debaixo da graça, se a
nossa vocação é celestial ou terrestre?
Decerto que não. Se há uma coisa mais clara na Escritura que outra, é isto: que
Deus Se compraz naqueles que apreciam e desfrutam a provisão do Seu
amor-aqueles que encontram a sua alegria n'Ele mesmo. O volume inspirado
abunda em evidência sobre este ponto. Vejamos o caso que temos diante de
nós no nosso capítulo. Aqui estavam essas filhas de José - porque assim as
devemos chamar-privadas do seu pai, desamparadas e desoladas, vistas
segundo o ponto de vista humano. A morte havia quebrado o laço que
aparentemente as ligava à própria herança do povo de Deus. E então"?-
Resignaram-se a renunciar a ela? Cruzaram os braços em fria indiferença?
Era-lhes indiferente se iam ter ou não um lugar e uma parte com o Israel de
Deus? Ah! Não prezado leitor, estas ilustres mulheres apresentam alguma coisa
que bem faremos em estudar e procurar imitar - qualquer coisa que, nos
atrevemos a dizer, regozijava o coração de Deus. Estavam certas de que havia
uma parte para elas na terra da promissão, da qual nem a morte nem qualquer
coisa que acontecesse no deserto podia jamais privá-las: "Porque se tiraria o
nome de nosso pai do meio da sua família, porquanto não teve filhos?" Podia a
morte, podia a falta de linhagem masculina - podia qualquer coisa frustrar a
bondade de Deus? Era impossível, "Dá-nos possessão entre os irmãos de
nosso pai."
Nobres palavras! Palavras que subiram diretamente ao trono e ao coração do
Deus de Israel. Era um testemunho dos mais poderosos dado aos ouvidos de
toda a congregação. Moisés foi colhido de surpresa. Aqui estava qualquer coisa
fora do alcance do legislador. Moisés era um servo, e um servo abençoado e
honrado. Mas, repetidas vezes, no curso deste maravilhoso livro de Números,
deste volume do deserto, levantam-se questões que ele é incapaz de resolver,
como por exemplo o caso dos homens imundos do capítulo 9 e as filhas de
Zelofeade nesta parte do livro.
"E Moisés levou a sua causa perante o SENHOR. E falou o SENHOR a Moisés,
dizendo: As filhas de Zelofeade falam retamente; certamente lhes darás
possessão de herança entre os irmãos de seu pai; e a herança de seu pai farás
passar a elas" (versículos 5 -7).
O Valor da Herança
Por isso, pois, nós estamos muito gratos às filhas de Zelofeade. Elas dão-nos
uma lição de inestimável valor. E mais do que isto. O seu ato deu ocasião à
revelação duma nova verdade, que devia ser a base de uma regra divina para
todas as gerações futuras. O Senhor ordenou a Moisés, dizendo: "Quando
alguém morrer, e não tiver filho, então, fareis passar a herança a sua filha."
Aqui temos o estabelecimento de um grande princípio, com respeito à questão
da herança, do qual, humanamente falando, não teríamos ouvido nada se não
fosse a fé e a conduta fiel destas notáveis mulheres. Se tivessem dado ouvidos
à voz da timidez e incredulidade - se tivessem recusado vir à frente de toda a
congregação em defesa dos direitos da fé, então, não só teria perdido a sua
própria herança e bênção, mas todas as futuras filhas de Israel, em semelhança
posição, teriam sido privadas de igual modo da sua parte. Ao passo que, pelo
contrário, agindo na preciosa energia da fé elas preservaram a sua herança;
alcançaram a bênção; receberam testemunho de Deus; os seus nomes brilham
nas páginas inspiradas e a sua conduta estabelece, por autoridade divina, um
precedente para todas as gerações futuras.
Mas isto basta quanto aos maravilhosos resultados da fé. Devemos, todavia,
lembrar que existe um perigo moral resultante da própria dignidade e elevação
que a fé confere àqueles que, pela graça, podem exercê-la. Devemos
guardar-nos cuidadosamente deste perigo. Isto é notavelmente ilustrado no
prosseguimento da história das filhas de Zelofeade, segundo o relato do último
capítulo do nosso livro.
"E chegaram os cabeças dos pais da geração dos filhos de Gileade, filho de
Maquir, filho de Manassés, das famílias dos filhos de José, e falaram diante de
Moisés e diante dos maiorais, cabeças dos pais dos filhos de Israel. E disseram:
O SENHOR mandou dar esta terra a meu senhor por sorte em herança aos
filhos de Israel; e a meu senhor foi ordenado pelo SENHOR, que a herança do
nosso irmão Zelofeade se desse a suas filhas. E, casando-se elas com algum
dos filhos das outras tribos dos filhos de Israel, então, a sua herança seria
diminuída da herança de nossos pais e acrescentada à herança da tribo de
quem forem; assim, se tiraria da sorte da nossa herança. Vindo também o ano
do jubileu dos filhos de Israel, a sua herança se acrescentaria à herança da tribo
daqueles com quem se casarem; assim, a sua herança será tirada da herança
da tribo de nossos pais. Então, Moisés deu ordem aos filhos de Israel, segundo
o mandamento do SENHOR, dizendo: A tribo dos filhos de José fala bem" (Nm
36:1-5).
"Os pais" da casa de José têm de ser ouvidos assim como as "filhas". A fé
destas era bela; mas havia o perigo de, no lugar distinto a que a fé as havia
elevado, poderem esquecer os direitos dos outros, e removerem os marcos que
assinalavam a herança de seus pais. Tinha de pensar-se nisto e providenciar
para o caso de vir a dar-se. Era natural supor que as filhas de Selofad casariam;
e além disso era possível que elas fizessem uma aliança fora dos limites da sua
tribo: e assim no ano do jubileu - essa grande instituição reguladora - em vez de
ajustamento, haveria confusão e quebra permanente na herança de Manassés.
Isto não podia ser; e portanto a sabedoria desses antigos pais é evidente.
Necessitamos de ser guardados de todos os lados a fim de que a integridade da
fé e o testemunho sejam devidamente mantidos. Não temos de resolver as
coisas com mão forte e vontade enérgica, ainda que tenhamos sempre uma fé
vigorosa, mas de estar sempre prontos a cedermos ao poder de ajustamento de
toda a verdade de Deus.
"Esta é a palavra que o SENHOR mandou acerca das filhas de Zelofeade,
dizendo: Sejam por mulheres a quem bem parecer aos seus olhos, contanto
que se casem na família da tribo de seu pai. Assim, a herança dos filhos de
Israel não passará de tribo em tribo; pois os filhos de Israel se chegarão cada
um à herança da tribo de seus pais. E qualquer filha que herdar alguma herança
das tribos dos filhos de Israel se casará com alguém da geração da tribo de seu
pai; para que os filhos de Israel possuam cada um a herança de seus pais.
Assim, a herança não passará de uma tribo a outra; pois as tribos dos filhos de
Israel se chegarão cada um à sua herança. Como o SENHOR ordenara a
Moisés, assim fizeram as filhas de Zelofeade. Pois (as cinco filhas) se casaram
com os filhos de seus tios. Das famílias dos filhos de Manassés, filho de José,
elas foram mulheres; assim, a sua herança ficou na tribo da família de seu pai"
(Nm 36:6-12).
Desta forma tudo é arrumado. As atividades da fé são regidas pela verdade de
Deus, e os direitos individuais são regulados de harmonia com os verdadeiros
interesses de todos; enquanto, ao mesmo tempo, a glória de Deus é
plenamente mantida, para que no tempo do jubileu, em vez de qualquer
confusão nas extremas da terra de Israel, a integridade de herança seja
garantida por concessão divina.
Nada pode ser mais instrutivo do que toda esta história das filhas de Zelofeade.
Possamos nós, realmente, aproveitar com ela!
CAPÍTULOS 28 E 29
A COMPLACÊNCIA DE DEUS EM CRISTO
Estes dois capítulos devem ser lidos em conjunto: formam uma parte distinta do
livro - uma parte cheia de interesse e instrução. O Segundo versículo do
capítulo 28 dá-nos uma exposição resumida do conteúdo de toda esta parte.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Dá ordem aos filhos de Israel e
dize-lhes: Da minha oferta, do meu manjar para as minhas ofertas queimadas,
do meu cheiro suave, tereis cuidado, para mas oferecer a seu tempo
determinado" (Nm 28:12).
Estas palavras dão ao leitor a chave para abrir toda esta parte do livro de
Números. É tão claro e simples quanto possível. "Minha oferta"; "Meu manjar";
"Minhas ofertas"; "... do meu cheiro suave." Tudo isto é fortemente acentuado.
Podemos aprender aqui que o grande e principal pensamento é Cristo em
relação a Deus. Não se trata tanto de Cristo suprindo as nossas necessidades -
ainda que certamente Ele as supre da maneira mais bendita, mas de Cristo
como alimentando e regozijando o coração de Deus. E o manjar de Deus— uma
expressão verdadeiramente assombrosa, e da qual pouco se discorre ou se
compreende. Somos todos tristemente propensos a olhar para Cristo como o
autor da nossa salvação - Aquele mediante quem somos perdoados e salvos do
inferno, o meio pelo qual toda a bênção corre até nós. Ele é tudo isto, bendito
seja o Seu nome. E o Autor da eterna salvação para todos os que Lhe
obedecem. Levou os nossos pecados em Seu próprio corpo sobre o madeiro;
morreu o Justo pelos injustos, para nos levar a Deus. Salva-nos dos nossos
pecados, do seu poder no tempo presente, e das suas consequências futuras.
Tudo isto é verdadeiro; e, consequentemente, de uma extremidade à outra dos
dois capítulos que temos perante nós, assim como em cada parágrafo, é
introduzida a expiação do pecado (veja-se cap 28:15,22,30;
29:3,11,16,19,22,25,28,31,34 e 3 8). Treze vezes se faz menção da oferta de
expiação pelo pecado; e, todavia, apesar disso, permanece o fato verdadeiro e
claro que o pecado ou a expiação do pecado não é, de modo nenhum, o
assunto principal destes capítulos. Não se faz referência ao pecado no versículo
que temos citado, embora esse versículo dê claramente um sumário do
conteúdo dos dois capítulos; nem há alusão alguma ao pecado até que
chegamos ao versículo quinze.
Será preciso dizer que a expiação do pecado é essencial visto se tratar do
homem e o homem ser pecador?- Seria impossível tratar do assunto de
aproximação do homem de Deus, do seu culto, ou da sua comunhão, sem
introduzir a morte expiatória de Cristo como o fundamento necessário. Isto é o
que o coração reconhece com grande alegria. O mistério do precioso sacrifício
de Cristo será, nos séculos eternos, a fonte de refrigério para as nossas almas.
Mas seremos acusados de socinianismo em nossos pensamentos se
afirmarmos que há qualquer coisa em Cristo e na Sua preciosa morte para além
do assunto dos nossos pecados e do suprimento das nossas necessidades?
Cremos que não. Pode alguém ler Números 28 e 29 e não ver isto? Vejamos
um fato simples que poderia despertar a atenção até de uma criança. Há
setenta e um versículos em toda esta parte e destes, treze fazem referência à
expiação do pecado, e os restantes cinquenta e oito estão ocupados com as
ofertas de cheiro suave.
Em suma, o tema especial aqui é o prazer de Deus em Cristo. De manhã e à
noite, dia a dia, semana após semana, de uma lua nova a outra, desde o
começo ao fim do ano, é Cristo na Sua fragrância e preciosidade para Deus. É
verdade - graças sejam dadas a Deus e a Jesus Cristo Seu Filho - o nosso
pecado expiado, julgado e tirado para sempre; as nossas transgressões são
perdoadas e a nossa culpa anulada. Porém, sobretudo isto, o coração de Deus
satisfaz-se, regozija-se e deleita-se em Cristo.
O que era o cordeiro da manhã e o da tardei Era uma expiação da culpa ou um
holocausto?- Escutemos a resposta nas próprias palavras de Deus: "E
dir-lhes-ás: Esta é a oferta queimada que oferecereis ao SENHOR: dois
cordeiros de um ano, sem mancha, cada dia, era contínuo holocausto. Um
cordeiro sacrificarás pela manhã e o outro cordeiro sacrificarás de tarde; e a
décima parte de um efa de fiorde farinha em oferta de manjares, misturada com
a quarta parte de um him de azeite moído. Este é o holocausto continuo,
instituído no monte Sinai, em cheiro suave, oferta queimada ao SENHOR"
(versículos 3 a 6).
E o que eram também os dois cordeiros do sábado? Uma expiação do pecado
ou um holocausto?- "Holocausto é do sábado, em cada sábado" (versículo 10).
Devia ser duplo, porque o sábado era uma figura do repouso que resta ainda
para o povo de Deus, quando haverá uma dupla apreciação de Cristo. Porém o
caráter da oferta é tão claro quanto possível. É Cristo em relação com Deus.
Este é o ponto especial do holocausto. A expiação pelo pecado é Cristo em
relação conosco. Nesta trata-se da questão da hediondez do pecado; naquele é
uma questão da preciosidade e excelência de Cristo.
Assim sucedia também no começo dos seus meses (versículo 11), na festa da
páscoa e dos pães asmos (versículos 16 a 25), na festa das primícias
(versículos 26 a 3 1), na festa das trombetas (cap. 29:1 -6), e na festa dos
tabernáculos (versículos 7 a 3 8). Em suma, em toda a série de festas a ideia
dominante é Cristo como odor agradável. A expiação do pecado não falta
nunca, mas as ofertas de cheiro suave ocupam o lugar de relevo, como é
evidente para todo o simples leitor. Julgamos que não é possível alguém ler
esta porção notável da Escritura sem notar o contraste entre o lugar da
expiação pelo pecado e o holocausto. Da primeira fala-se apenas como de "um
bode", enquanto que a segunda se nos apresenta na forma de "catorze
cordeiros", "treze bezerros", etc. Tal é o lugar destacado que as ofertas de
cheiro suave ocupam nesta Escritura
O VOTO AO SENHOR
CAPÍTULO 31
Temos neste capítulo a última cena da vida oficial de Moisés; assim como em
Deuteronômio 34 temos a última cena da sua história pessoal.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Vinga os filhos de Israel dos midianitas;
depois, recolhido serás ao teu povo. Falou, pois, Moisés ao povo, dizendo:
Armem-se alguns de vós para a guerra, e saiam contra os midianitas, para
fazerem a vingança do SENHOR nos midianitas. Mil de cada tribo entre todas
as tribos de Israel enviareis à guerra. Assim, foram dados dos milhares de Israel
mil de cada tribo: doze mil armados para a peleja. E Moisés os mandou à
guerra, de cada tribo mil, a eles e a Finéias, filho de Eleazar, o sacerdote, à
guerra com os utensílios santos e com as trombetas do alarido na mão. E
pelejaram contra os midianitas, como o Senhor ordenara a Moisés... e mataram
a todo varão" (versículos 3 a 7).
E uma passagem muito notável. O Senhor diz a Moisés: "Vinga os filhos de
Israel dos midianitas". E Moisés diz a Israel: "Façam a vingança do SENHOR
nos midianitas". O povo tinha sido seduzido pela astúcia das filhas de Midiã, por
causa da influência pecaminosa de Balaão, filho de Beor; e agora é-lhes pedido
para se limparem inteiramente de toda a contaminação que, por falta de
vigilância, eles haviam contraído. A espada tinha de ser desembainhada contra
os midianitas; e todos os despojos devem passar ou pelo fogo do juízo ou pela
água da purificação. Não pode permitir-se que fique por julgar a mais
insignificante parte do mal.
Ora esta guerra era o que nós podemos chamar anormal. Por direito, o povo
não devia ter nenhuma ocasião de a fazer. Não era uma das guerras de Canaã.
Era simplesmente o resultado da sua própria infidelidade—o fruto do seu
comércio ímpio com os incircuncisos. Por isso, ainda que Josué, filho de Num,
tinha sido devidamente nomeado para suceder a Moisés, como condutor da
congregação, não encontramos qualquer menção dele em relação com esta
guerra. Pelo contrário, é a Finéias, filho de Eleazar o sacerdote, que a condução
desta expedição é confiada; a qual ele empreende "com os utensílios santos e
com as trombetas do alarido."
Tudo isto é profundamente notável. O sacerdote é a pessoa proeminente; e os
instrumentos santos são as armas principais. É uma questão de limpar a
mancha causada pela sua associação impura com o inimigo; e portanto, em vez
de um general com espada e lança, é um sacerdote com instrumentos sagrados
que aparece em primeiro plano. É verdade que a espada está lá; mas não é a
coisa principal, mas sim o sacerdote com os vasos do santuário; e esse
sacerdote é o mesmíssimo que primeiro executa o juízo sobre o próprio mal que
tem aqui de ser vingado.
A moral de tudo isto é, ao mesmo tempo, clara e prática. Os midianitas
oferecem um tipo daquela espécie peculiar de influência que o mundo exerce
sobre os corações do povo de Deus—o poder fascinador e sedutor do mundo
empregado por Satanás para impedir a nossa entrada na posse da nossa parte
celestial. Israel não deveria ter tido nada que fazer com estes midianitas, mas
havendo, numa má hora — um momento sem vigilância — sido arrastado
àquela associação com eles, nada mais resta senão a guerra e completa
destruição.
Assim sucede conosco, como cristãos. O nosso próprio dever é atravessar este
mundo como peregrinos e estrangeiros; não tendo nada que fazer com ele,
senão sermos testemunhas pacientes da graça de Cristo e assim brilharmos
como luzes no meio das trevas morais que nos cercam. Mas infelizmente
deixamos de manter esta rígida separação; comprometemo-nos com alianças
com o mundo, e, por consequência, envolvemo-nos em dificuldades e conflitos
que de nenhum modo nos pertencem.
A guerra com Midiã não fazia parte da própria obra de Israel. Acarretaram-na
sobre si mesmos. Mas Deus é cheio de graça; e, por meio de uma aplicação
especial de ministério sacerdotal, eles puderam não só vencer os midianitas,
mas levar muitos despojos. Deus, em bondade infinita, tira bem do mal. Fará
com que do comedor saia comida e do forte doçura. A Sua graça brilha com
brilho excessivo nesta cena, visto que Ele consente de fato em aceitar uma
parte dos despojos tomados aos midianitas.
Mas o mal tem que ser completamente julgado. "Todo varão" tinha que ser
morto — todos em quem havia a energia do mal tinham que ser completamente
exterminados; finalmente o fogo do juízo e a água da purificação tinham que
fazer a sua obra sobre os despojos, antes que Deus ou o Seu povo pudessem
tocar num átomo deles.
Que lições santas temos aqui! Possamos nós aplicá-las aos nossos corações!
Possamos nós prosseguir um caminho de mais intensa separação e avançar na
nossa senda celestial como aqueles cuja porção e lar estão nas alturas! Que
Deus, em Sua misericórdia, nos conceda isso!
CAPÍTULO 32
O fato relatado neste capítulo tem dado lugar a grandes discussões. Tem-se
emitido diversas opiniões sobre a conduta das duas e meia tribos. Tinham razão
ou não em escolher a sua herança na margem do Jordão confinante com o
deserto"?- Esta é a questão. A sua conduta, sobre este assunto, era a
expressão de poder ou de fraqueza"? Como vamos formar um juízo reto neste
caso?
Em primeiro lugar, onde estava a porção propriamente dita de Israel—a herança
que lhe era divinamente destinada? Com toda a certeza, do outro lado do
Jordão, na terra de Canaã. Pois bem, este fato não deveria ter bastado?
Poderia ou teria um coração realmente verdadeiro — um coração que pensasse
e julgasse de acordo com Deus—ter alimentado a ideia de escolher outra parte
que não fosse aquela que Deus havia assinalado e destinado? Impossível.
Por isso, não temos necessidade de ir mais longe para ter um juízo divino sobre
este assunto. Era um erro e prova de pouca fé por parte de Rúben, Gade e a
meia tribo de Manassés buscar um limite do lado de cá do rio Jordão.
Regeram-se, na sua conduta, por considerações egoístas e mundanas — pela
vista dos seus olhos — por motivos carnais. Contemplaram "a terra de Jazer e a
terra de Gileade" e avaliaram-na inteiramente segundo os seus próprios
interesses, e sem nenhuma consideração pelo juízo e vontade de Deus. Se
tivessem simplesmente esperado em Deus, a questão de se estabelecerem do
lado de cá do Jordão nunca teria sido levantada.
Mas quando as pessoas não são simples e sinceras metem-se em
circunstâncias que dão lugar a toda a sorte de problemas. E muito importante
estarmos habilitados, pela graça divina, a seguir uma linha de conduta e a trilhar
um caminho tão inequívoco que não possam ser levantadas dificuldades. É
nosso santo e feliz privilégio comportarmo-nos de forma que não possa surgir
nenhuma complicação. O segredo de assim agir é andar com Deus e ter desta
forma a nossa conduta regulada pela Sua Palavra.
Mas Rúben e Gade não se guiavam assim, e isto é óbvio por toda a história.
Eram homens de coração dobre; homens de princípios mistos; meros
interesseiros; homens que buscavam os seus próprios interesses, e não as
coisas de Deus. Se estes últimos tivessem enchido os seus corações nada os
teria induzido a tomar a sua posição fora dos verdadeiros limites.
É muito claro que Moisés não tinha simpatia pela sua proposta. O juízo do
Senhor sobre a sua conduta não lhe consentia atravessar o Jordão. O seu
coração estava na terra prometida; e ele desejava ir para ali em pessoa. Como,
pois, podia ele aprovar a conduta de homens que não só estavam dispostos
como desejosos de se estabelecerem fora dela?-A fé nunca poderá estar
satisfeita com coisa alguma que não seja a verdadeira posição e porção do
povo de Deus. O olhar simples só pode ver, e um coração fiel só pode desejar a
herança dada por Deus.
Por isso, Moisés condenou imediatamente a proposta de Rúben e Gade. É
verdade que mais tarde ele moderou o seu juízo e deu o seu consentimento. A
sua promessa de atravessarem o Jordão armados diante dos seus irmãos
obteve de Moisés uma espécie de assentimento. Parecia uma extraordinária
manifestação de desinteresse e energia deixar atrás todos os seus e atravessar
o Jordão só para combater por seus irmãos. Mas onde haviam eles deixado os
seus? Tinham-nos deixado fora dos limites assinalados por Deus. Tinham-nos
privado de um lugar e de uma parte na verdadeira terra da promessa—essa
herança da qual Deus tinha falado a Abraão, a Isaque e a Jacó. E para quê?- Só
para terem boas pastagens para os seus gados. Com um objetivo como este as
duas e meia tribos abandonaram o seu lugar dentro dos limites do Israel de
Deus.
Pois bem, toda esta grave desinteligência, toda esta inquietação e este alarme,
era o resultado da falta cometida por Rúben e Gade. Decerto, podem
explicar-se e dar satisfação aos seus irmãos no tocante ao altar. Mas não teria
havido necessidade de explicações nem causa para alarme se eles não
tivessem tomado uma posição equívoca.
Aqui estava a origem de todo este mal, e é importante para o leitor entender
este ponto com clareza e deduzir dele a grande lição prática que está destinado
a ensinar-nos.
Toda a pessoa cuidadosa que pondere atentamente toda a evidência no caso
não pode duvidar, de modo algum, que as duas e meia tribos fizeram mal em se
deter junto ao Jordão e de estabelecer ali a sua habitação. Isto parece-nos
indiscutível até mesmo com base no que já havemos visto, e se mais provas
fossem necessárias, proporcionava-as o fato de que elas foram as primeiras a
cair em poder do inimigo (Veja 1 Rs 22:3).
Mas, o leitor poderá perguntar: Que importância tem tudo isto para nós? Este
pormenor da história tem algum significado ou instrução para nós? Sem dúvida.
Segreda aos nossos ouvidos com profunda solenidade: Não menosprezeis a
vossa posição—a vossa própria parte — dando-vos por satisfeitos com as
coisas deste mundo e tomando qualquer outra posição que não seja a morte e
ressurreição — o verdadeiro Jordão espiritual (1).
__________
(1) Sem dúvida, há muitos crentes sinceros que não veem a chamada celestial
e posição da Igreja — que não compreendem o caráter especial da verdade
ensinada na epístola aos Efésios — que são, contudo, segundo a luz que têm,
zelos consagrados, e de coração reto; mas estamos persuadidos de que tais
pessoas perdem bênção incalculável para as suas próprias almas, e ficam
muito aquém do verdadeiro testemunho.
As Cidades de Refúgio
As cidades de refúgio estavam situadas, três a oriente e três a ocidente do lado
do Jordão. Quer Rúben e Gade houvessem feito bem ou mal em se
estabelecerem a oriente deste limite divisório, Deus em Sua misericórdia não
quis deixar o homicida sem um refúgio contra o vingador do sangue. Pelo
contrário, segundo o Seu amor, determinou que essas cidades, que eram
designadas como provisão misericordiosa para o homicida, estivessem situadas
de forma a que sempre que houvesse necessidade de refúgio pudessem estar à
mão. Havia sempre uma cidade ao alcance de qualquer que pudesse estar
exposto à espada do vingador. Isto era digno do nosso Deus. Se acontecia
algum homicida cair nas mãos do vingador do sangue não era por falta de um
refúgio, mas porque tinha deixado de se aproveitar dele. Estavam tomadas
todas as precauções necessárias: as cidades estavam nomeadas e bem
definidas e eram publicamente conhecidas. Tudo fora disposto tão simples e tão
claro quanto possível.
Sem dúvida, era dever do homicida empregar toda a sua energia para alcançar
os recintos sagrados; e, claro, ele o faria. Não é provável que alguém fosse tão
cego, tão louco para cruzar os braços em fria indiferença e dizer: "Se estou
destinado a escapar, escaparei; os meus esforços não são necessários. Se não
estou destinado a escapar, decerto não escaparei, os meus esforços são
inúteis."
Não podemos imaginar que um homicida empregasse tal linguagem ou fosse
culpado de uma tolice como esta. Sabia muito bem que, se o vingador do
sangue conseguisse pôr mão nele, tais ideias de nada serviriam. Não havia
senão uma coisa a fazer e essa era escapar-se por sua vida — fugir do castigo
iminente — encontrar um abrigo seguro dentro das portas da cidade do refúgio.
Uma vez ali, podia respirar livremente. Nenhum mal o podia alcançar. No
instante em que cruzava a soleira da porta, estava tão seguro quanto a provisão
de Deus o podia tornar. Se um cabelo da sua cabeça pudesse ser tocado,
dentro dos limites da cidade, isso teria sido uma desonra e um opróbrio
infligidos à ordenação de Deus. Verdade é que devia ter cuidado. Não devia
atrever-se a sair fora da porta. Dentro, ele estava perfeitamente seguro. Fora
estava inteiramente exposto.
Nem sequer podia visitar os seus amigos. Era um desterrado da casa de seu
pai; era um prisioneiro da esperança. Ausente da casa do afeto do seu coração,
esperava pela morte do sumo sacerdote, que devia restituí-lo à liberdade
completa e restaurá-lo à sua herança e ao seu povo. Ora, nós cremos que esta
bendita instituição se referia especialmente a Israel. Eles mataram o Príncipe da
vida; porém, a questão é: como são considerados por Deus, como no caso do
assassino ou do homicida 4- No caso daquele, não há refúgio nem esperança.
Nenhum assassino podia acolher-se a uma cidade de refúgio.
Eis a lei do caso, segundo relato de Josué 20: "Falou mais o SENHOR a Josué,
dizendo: Fala aos filhos de Israel, dizendo: Apartai para vós as cidades de
refúgio, de que vos falei pelo ministério de Moisés; para que fuja para ali o
homicida que matar alguma pessoa por erro e não com intento; para que vos
sejam refúgio do vingador do sangue. E, fugindo para alguma daquelas cidades,
pôr-se-á à porta da cidade e proporá as suas palavras perante os ouvidos dos
anciãos da tal cidade; então, tomarão consigo na cidade: e lhe darão lugar, para
que habite com eles. E, se o vingador do sangue o seguir, não entregarão na
sua mão o homicida; porquanto não feriu a seu próximo com intento, e o não
aborrecia dantes. E habitará na mesma cidade até que se ponha a juízo perante
a congregação, até que morra o sumo sacerdote que houver naqueles dias;
então o homicida voltará e virá à sua cidade e à sua casa, à cidade de onde
fugiu" (Js 20:1-6).
Mas a respeito do assassino a lei era rigorosa e inflexível. "Ou, se a ferir com
instrumento de madeira que tiver na mão, de que possa morrer, e ela morrer,
homicida é; certamente morrerá o homicida. O vingador do sangue matará o
homicida; encontrando-o, matá-lo-á" (Nm 35:18-19).
O Homicida Involuntário: Israel Sob a Graça
Israel, pois, pela graça maravilhosa de Deus, será tratado como um homicida e
não como um assassino. "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem."
Estas poderosas palavras subiram aos ouvidos e ao coração do Deus de Israel.
Foram ouvidas e atendidas; nem nós devemos supor que a resposta foi
esgotada na sua aplicação no dia de Pentecostes. Não; é ainda válida e a sua
eficácia será ilustrada na história futura da casa de Israel.
Esse povo está atualmente debaixo da custódia de Deus. Estão desterrados do
país e da casa de seus pais. Mas o tempo vem em que serão restaurados à sua
própria terra, não pela morte do sumo sacerdote—bendito seja o Seu nome
imortal! Ele não pode jamais morrer—mas deixará o posto que agora ocupa e
apresentar-Se-á com um novo caráter, como Sacerdote Real, para Se assentar
sobre o Seu trono. Então, o exilado voltará à sua casa há longo tempo perdida e
à sua herdade abandonada. Mas não antes, de contrário seria ignorar que
tinham matado o Príncipe da Vida, o que seria impossível.
O homicida tem que permanecer fora da sua possessão até ao tempo
determinado; mas não é para ser tratado como assassino, porque o seu ato foi
involuntário. "Alcancei misericórdia"—diz o apóstolo Paulo, falando como um
exemplo para Israel — "Porque o fiz ignorantemente, na incredulidade" (1 Tm
1:13). "E agora, irmãos", diz Pedro, "eu sei que o fizestes por ignorância, como
também os vossos príncipes" (At 1:17).
Estas passagens unidas à intercessão preciosa d Aquele que foi morto,
colocam a Israel, da maneira mais distinta, no terreno do homicida e não no
terreno do assassino. Deus deu um refúgio e abrigo para o Seu povo muito
amado, e a seu devido tempo eles regressarão às suas habitações desde tanto
tempo, perdidas, na terra que o Senhor deu como um dom a Abraão, Seu amigo
para sempre.
Cremos que tal é a verdadeira interpretação da cidade de refúgio. Se
devêssemos considerá-la como susceptível de ser aplicada a um pecador que
se refugia em Cristo, só podia ser de uma maneira muito excepcional, visto que
nos encontraríamos rodeados por todos os lados por pontos de contraste em
vez de pontos de semelhança. Pois, em primeiro lugar, o homicida, na cidade
de refúgio, não estava isento de juízo, como lemos em Josué 20:6. Mas para o
crente em Jesus não existe e não pode haver juízo, pela razão mais simples de
todas as razões, que Cristo sofreu o juízo em seu lugar. Por outro lado, havia
também a possibilidade de o homicida cair nas mãos do vingador caso se
aventurar sair fora das portas da cidade. O crente em Jesus não pode perecer
jamais: está tão seguro como o Próprio Salvador.
O livro de Deuteronômio tem um caráter tão próprio como qualquer outro das
quatro divisões precedentes do Pentateuco. Se tivéssemos de formar a nossa
opinião segundo o título do livro, poderíamos supor que era uma simples repetição
do que havemos encontrado nos livros anteriores. Isso seria um grave erro. Não há
meras repetições na palavra de Deus. Na verdade, Deus nunca usa repetições, nem
na Sua Palavra nem nas Suas obras. Onde quer que sigamos o nosso Deus, quer seja
nas páginas da Sagrada Escritura, quer nos vastos domínios da criação, vemos
divina plenitude, variedade infinita, plano definido; e na proporção da
espiritualidade da nossa mente estará precisamente a nossa capacidade para
discernir e apreciar estas coisas. Nisto, como em tudo mais, nós precisamos ter os
olhos ungidos com colírio celestial.
Que infeliz conceito faz da inspiração o homem que pode pensar por um momento
que o quinto livro de Moisés é uma estéril repetição do que pode encontrar-se em
Êxodo, Levítico e Números! Até mesmo numa composição humana, nós não
esperamos encontrar uma tão flagrante imperfeição, muito menos na revelação
perfeita que Deus tão misericordiosamente nos tem dado na Sua santa Palavra. O
fato é que não existe, em todo o volume inspirado, uma simples frase supérflua,
nem uma cláusula excessiva, nem um relato sem o seu significado próprio ou a sua
aplicação direta. Se não compreendemos isto, temos ainda de aprender a
profundidade, a força e o significado das palavras "toda a Escritura divinamente
inspirada é" (2 Tm 3:16).
Palavras preciosas! Ah, se fossem entendidas de um modo mais completo nestes
nossos dias! E da maior importância que o povo do Senhor esteja arraigado,
fundado e estabelecido na grande verdade da inspiração plenária da Sagrada
Escritura. É de recear que a lassidão quanto a este importante assunto se vá
estendendo na igreja professa a uma aterradora proporção. Em muitos setores tem
chegado a ser moda tratar com desdém a ideia da inspiração plenária. E
considerada como verdadeira criancice e sinal de ignorância. E admitido por
muitos que é indício de uma profunda educação literária, de ideias liberais e de
originalidade intelectual, ser-se capaz, por livre crítica, de achar defeitos no
precioso livro de Deus. O homem toma a liberdade de julgar a Bíblia como se ela
fosse uma mera composição humana. Aventura-se a pronunciar-se sobre o que é e
o que não é digno de Deus. De fato, isto equivale efetivamente a julgar Deus. O
resultado imediato é, como podia esperar-se, profundas trevas e confusão tanto
para esses mesmos eruditos doutores como para todos os que são tão néscios que os
escutam. E quanto ao futuro, quem pode conceber o destino eterno de todos os que
terão de responder ante o tribunal de Cristo pelo pecado de blasfêmia contra a
Palavra de Deus e por desviarem centenas de almas com o seu ensino infiel?
Não ocuparemos, contudo, o tempo detendo-nos sobre a estultícia dos infiéis e
cépticos — embora chamados cristãos — ou os seus mesquinhos esforços de
desacreditar o incomparável volume que o nosso benigno Deus mandou escrever
para nosso ensino. Um dia eles reconhecerão o seu erro fatal. Deus queira que não
seja demasiado tarde! E, quanto a nós, que seja o nosso maior gozo e consolação
meditar sobre a Palavra de Deus, a fim de podermos descobrir sempre novos
tesouros nessa mina inesgotável — quaisquer novas glórias nessa revelação
celestial!
O livro de Deuteronômio ocupa um lugar muito distinto no cânone inspirado. As
linhas com que principia bastam para provar isto. "Estas são as palavras que Moisés
falou a todo o Israel, dalém do Jordão, no deserto, na planície defronte do Mar de
Sufe, entre Parã, e Tofel, e Labã, e Hazerote, e Di-Zaabe."
Isto basta quanto ao lugar no qual o legislador entregou o conteúdo deste
maravilhoso livro. O povo havia chegado ao lado oriental do Jordão e estava
prestes a entrar na terra da promissão. As suas peregrinações pelo deserto estavam
quase a findar, segundo compreendemos pelo terceiro versículo, no qual o ponto
do tempo está distintamente assinalado, assim como a posição geográfica no
versículo 1. "E sucedeu que, no ano quadragésimo, no mês undécimo, no primeiro
dia do mês, Moisés falou aos filhos de Israel, conforme a tudo o que o SENHOR lhe
mandara acerca deles."
Assim, não só temos o tempo e o lugar mencionados com divina precisão e
minuciosidade, mas aprendemos também das palavras citadas que as palavras ditas
ao povo, na planície de Moabe, estavam por certo longe de ser uma repetição do
que temos tido perante nós nos nossos estudos sobre os livros de Êxodo, Levítico e
Números. Disto temos uma nova e mais clara prova numa passagem do capítulo 29
do livro cujo estudo vamos encetar. "Estas são as palavras do concerto que o
SENHOR ordenou a Moisés, na terra de Moabe, que fizesse com os filhos de Israel,
além do concerto que fizera com eles em Horebe."
Repare o leitor especialmente nestas palavras. Falam de dois pactos, um em
Horebe e outro em Moabe; e o último, longe de ser uma simples repetição do
primeiro, é tão diferente quanto dois objetos podem ser diferentes um do outro.
Disto obteremos a mais clara e completa evidência com o estudo do profundo livro
que está agora aberto diante de nós.
Decerto, o título grego do livro, que significa segunda promulgação da lei, parece
suscitar a ideia de que pode ser uma simples recapitulação dos livros anteriores;
mas podemos estar certos de que não é assim. Com efeito, seria um erro grave
pensar assim. O livro tem o seu lugar próprio e específico. O seu assunto e objetivo
são tão claros quanto possível. A lição principal que nos é revelada é a obediência,
e isto não apenas na letra mas no espírito de amor e temor — uma obediência
baseada sobre um relação conhecida e desfrutada — uma obediência vivificada
pelo sentimento de obrigações morais do maior peso e do caráter mais influente.
O ancião legislador, o fiel, amado e honrado servo do Senhor estava prestes a
despedir-se da congregação. Ia para o céu e eles estavam prestes a atravessar o
Jordão; e por isso as suas dissertações finais são solenes e comovedoras no mais alto
grau. Passa em revista toda a sua história no deserto, e isto da maneira mais
comovente e impressionante. Relata as cenas e circunstâncias dos quarenta anos da
sua vida no deserto em estilo eminentemente calculado para tocar as mais íntimas
cordas morais do coração. Inclinamo-nos suspensos de admiração e deleite ante
estes preciosíssimos discursos. Possuem um encanto incomparável que procede das
circunstâncias em que foram expostos, bem como do poder divino do seu
conteúdo. Falam-nos com não menos eficiência do que àqueles a quem foram
especialmente dirigidos. Muitos dos seus apelos e exortações são-nos apresentados
com um poder de aplicação como se tivessem sido proferidos apenas ontem.
Aqui temos outra vez o mesmo precioso vínculo de ouro. A Palavra que chegou até
nós, na forma de boas novas, é a Palavra do Senhor que permanece para sempre; e
por isso a nossa salvação e a nossa paz são tão estáveis como a Palavra sobre a qual
estão fundadas. Se toda carne é como a erva, e toda a glória do homem como a flor
da erva, então que valor têm os argumentos dos infiéis? São tão desprezíveis como
erva seca ou como a flor murcha; e os homens que os expõem e os que são
influenciados por eles assim o compreenderão mais tarde ou mais cedo. Oh, a
pecaminosa loucura de argumentar contra a Palavra de Deus — argumentar contra
a única coisa neste mundo que pode proporcionar descanso e consolação ao pobre
e fatigado coração humano —, agir contra aquilo que traz as boas novas de salvação
a pobres pecadores —, que as traz diretamente do coração de Deus!
Obedeçamos a Escritura
E qual é o remédio soberano para este mal tão largamente espalhado? Ei-lo aqui,
absoluta e completa sujeição à autoridade da Sagrada Escritura. Não é que os
homens tenham de recorrer à escritura para obterem a confirmação das suas
opiniões e dos seus pontos de vista, mas de examinar as Escrituras a fim de saberem
quais são os pensamentos de Deus em todas as coisas e inclinarem todo o seu ser
moral à autoridade divina. Esta é a necessidade premente dos dias em que caiu a
nossa sorte — sujeição reverente, em todas as coisas, à autoridade suprema da
Palavra de Deus. Sem dúvida, haverá variedade na nossa medida de inteligência,
na nossa concepção e apreciação da Escritura; mas o ponto em que especialmente
insistimos com todos os cristãos é aquele estado de alma, aquela atitude de coração,
expresso nas preciosas palavras do salmista: "Escondi a tua palavra no meu coração
para eu não pecar contra ti." Isto, podemos estar certos, é agradável ao coração de
Deus. "Mas eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme
da minha palavra."
Nisto está o verdadeiro segredo da segurança moral. O nosso conhecimento da
Escritura pode ser muito limitado; mas se a nossa reverência por ela for profunda,
seremos preservados de mil e um erros e ciladas. E então haverá constante
crescimento. Cresceremos no conhecimento de Deus, de Cristo, e da Palavra
escrita. Deleitar-nos-emos em tirar dessas vivas e inesgotáveis profundidades das
Sagradas Escrituras e em vaguear através desses verdes pastos que a graça infinita
tem tão francamente aberto para o rebanho de Cristo. Assim a vida divina será
nutrida e fortalecida: a Palavra de Deus tomar-se-á mais e mais preciosa para as
nossas almas e nós seremos guiados pelo poderoso ministério do Espírito Santo à
plenitude, majestade e glória moral da Sagrada Escritura. Seremos libertados
completamente das influências destruidoras de todos os meros sistemas de
teologia, elevada, simples ou moderada. Que bendita libertação! Seremos
competentes para dizer aos defensores de todas as escolas de divindade abaixo do
sol que, sejam quais forem os elementos de verdade que possam ter nos seus
sistemas, temos nós em divina perfeição na Palavra de Deus; não torcidos ou
deformados para os amoldara uma sistema, mas, no seu próprio lugar, no amplo
círculo da revelação divina que tem o seu centro eterno na bendita Pessoa de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo.
CAPÍTULO 1
A Voz de Cristo
Graças a Deus, não há nenhuma necessidade para os Seus filhos nem para os Seus
servos de continuarem, nem mais uma hora, em ligação com o que é mau.
"Qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade." Mas como
havemos de saber o que é iniquidade? Pela Palavra de Deus. Qualquer coisa que for
contrária à Escritura, em moral ou em doutrina, é iniquidade, e eu devo
separar-me dela, custe o que custar. É um assunto individual. "Todo aquele que".
"Quem tem ouvidos". "Ao que vencer". "Se alguém ouvir a minha voz".
Eis o ponto. Notemo-lo bem. E a voz de Cristo. Não é a voz deste ou daquele bom
homem; não é a voz da igreja, a voz dos pais, a voz dos concílios gerais, mas a voz
de nosso amado Senhor e Mestre. E a consciência individual em contato direto
com a voz de Cristo, a Palavra de Deus viva e eterna — as Sagradas Escrituras. Se
fosse meramente uma questão de consciência humana, ou de critério ou de
autoridade, seríamos imediatamente submergidos em desesperada incerteza, visto
que um homem poderia considerar ser iniquidade, outro poderia considerá-lo
perfeitamente reto. Deve haver um padrão fixo para se seguir, uma autoridade
suprema da qual não pode haver apelo; e, bendito seja Deus, este padrão existe.
Deus tem falado; tem-nos dado a Sua Palavra; e é ao mesmo tempo o nosso dever, o
nosso elevado privilégio, nossa segurança moral e nosso verdadeiro gozo obedecer
a essa Palavra.
Não quero dizer à interpretação humana da Palavra, mas à própria Palavra. Isto é
muito importante. Não devemos ter absolutamente nada entre a consciência
humana e a revelação divina. Os homens falam-nos sobre a autoridade da igreja.
Onde devemos encontrá-la? Suponhamos uma alma realmente ansiosa, honesta,
sincera, que deseja conhecer o verdadeiro caminho. É-lhe dito para escutar a voz
da igreja. Ele pergunta, que igreja? E a grega, a latina, a anglicana ou a igreja
escocesa?- Não consegue duas respostas concordes. Ainda mais; há partidos em
conflito, seitas em contenda, escolas de pensamento oposto em uma e mesma
denominação. Os concílios têm diferido uns dos outros; os pais não têm sido de
acordo; os papas têm-se excomungado uns aos outros. No sistema anglicano temos
a igreja alta, a igreja humilde e a igreja liberal, cada uma fazendo diferença das
outras. Na igreja escocesa ou presbiteriana, temos a igreja escocesa, a presbiteriana
unida e a igreja livre. E em seguida se o investigador ansioso deixa esses grandes
corpos denominacionais em desesperada perplexidade a fim de orientação nas
fileiras dos protestantes dissidentes, encontra porventura alguma coisa melhor?
Ah, prezado leitor, é completamente inútil! A igreja professante no seu conjunto
tem-se insurgido contra a autoridade de Cristo, e não pode de modo algum ser guia
ou autoridade para ninguém. No segundo e terceiro capítulos do livro de
Apocalipse, a igreja é encarada sob o juízo, e o apelo, repetido sete vezes, é: "Quem
tem ouvidos, ouça" — o quê?- A voz da igreja?- Impossível! O Senhor nunca nos
mandará ouvir a voz do que está sob o juízo. Então, ouvir o quê>? "Ouça o que o
Espírito diz às igrejas."
E onde pode ser ouvida esta voz"? Unicamente nas Sagradas Escrituras, dadas por
Deus, em Sua infinita bondade, para guiar as nossas almas no caminho da paz e
verdade, não obstante a ruína desesperada da igreja, e as trevas espessas e
turbulenta confusão da cristandade professante. Não cabe nos limites da
linguagem humana mostrar o valor e a importância de contar com um guia divino
e portanto infalível e suficiente para a nossa carreira individual.
Mas note-se que nós estamos solenemente obrigados a nos inclinarmos a essa
autoridade e a seguir esse guia. É inteiramente inútil e na verdade moralmente
perigoso professar que temos um guia e uma autoridade divinos e não lhes
estarmos inteiramente sujeitos. Era isto que caracterizava os judeus nos dias de
nosso Senhor. Tinham as Escrituras, mas não as obedeciam. E um dos
característicos mais tristes na atual situação da cristandade e vangloriar-se da
possessão da Bíblia, enquanto que a autoridade dessa Bíblia é descaradamente
posta de lado.
Sentimos profundamente a gravidade deste fato e desejamos sinceramente
gravá-lo na consciência do leitor cristão. A Palavra de Deus é virtualmente
ignorada entre nós. São praticadas e sancionadas coisas por toda a parte, que não
somente não têm fundamento algum na Escritura, mas estão diametralmente
opostas a ela. Não somos exclusivamente ensinados nem absolutamente
governados pela Escritura.
Tudo isto é muito grave e exige a atenção de todo o povo do Senhor, em toda a
parte. Sentimo-nos compelidos a formular uma advertência aos ouvidos de todos
os cristãos, a respeito desta grave questão. De fato, é o sentido da sua gravidade e a
sua vasta importância moral que nos levou a empreender a obra de escrever
"Estudos sobre o Livro de Deuteronômio". A nossa fervorosa oração é que o
Espírito Santo possa usar estas páginas para trazer de novo os corações do amado
povo do Senhor ao seu verdadeiro e próprio lugar, ou seja o lugar de reverente
fidelidade à Sua bendita Palavra. Estamos persuadidos de que o que caracterizará
todos os que quiserem andar piamente, nas horas finais da história terrestre da
Igreja, será uma piedosa reverência à Palavra de Deus e uma verdadeira adesão à
Pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. As duas coisas estão
inseparavelmente unidas por um elo sagrado e imperecível.
"Voltai-vos e parti"
"O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis
estado neste monte. Voltai-vos e parti; ide à montanha dos amorreus, e a todos os
seus vizinhos e à planície, e à montanha, e ao vale, e ao Sul, e à ribeira do mar; à
terra dos cananeus, e ao Líbano, até ao grande rio, o rio Eufrates" (versículos 6 e 7).
Através de todo o livro de Deuteronômio poderemos ver que o Senhor trata muito
mais direta e simplesmente com o povo do que em qualquer dos três livros
precedentes; tão longe está de ser verdade que o Deuteronômio é uma mera
repetição do que temos tido diante de nós nos quatro volumes precedentes. Por
exemplo, na passagem que acabamos de citar não é mencionado o movimento da
nuvem; não se refere o sonido da trombeta. "O SENHOR, nosso Deus, nos falou."
Sabemos, pelo livro de Números que os movimentos do acampamento estavam
condicionados pelos movimentos da nuvem, comunicados pelo sonido da
trombeta. Mas neste livro não se faz alusão nem à nuvem nem à trombeta. É muito
mais simples e familiar. "O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo:
Tempo bastante haveis estado neste monte."
Como tudo isto é formoso! Nos recorda um pouco da amável simplicidade dos
tempos patriarcais, quando o Senhor falava aos pais como um homem fala ao seu
amigo. Não era pelo sonido de uma trombeta ou pelo movimento de uma nuvem
que o Senhor comunicava os Seus pensamentos a Abraão, Isaque e Jacó. Estava tão
perto deles que não havia necessidade nem lugar para a intervenção de agentes
caracterizados por cerimônia e a distância. Visitava-os, sentava-Se com eles,
participava da sua hospitalidade em toda a intimidade da amizade pessoal.
Tal é a encantadora simplicidade da ordem de coisas nos tempos patriarcais; e é isto
que confere um encanto especial às narrativas do livro de Gênesis.
Mas em Êxodo, Levítico e Números temos uma coisa muito diferente. Neles
expõe-se perante nós um vasto sistema de símbolos e sombras, ritos, ordenações e
cerimônias impostas ao povo naquele tempo, cujo significado nos é apresentado na
epístola aos Hebreus. "Dando nisto a entender o Espírito Santo que ainda o
caminho do Santuário não estava descoberto, enquanto se conservava em pé o
primeiro tabernáculo, que é uma alegoria para o tempo presente, em que se
oferecem dons e sacrifícios que, quanto à consciência, não podem aperfeiçoar
aquele que faz o serviço, consistindo somente em manjares, e bebidas, e várias
abluções e justificações da carne, impostas até ao tempo da correção" (Hb 9:8 a 10).
Debaixo deste sistema, o povo estava a uma certa distância d Deus. Não acontecia
com eles o mesmo que havia sido com seus pais, no livro de Gênesis. Deus estava
recolhido para eles; e eles permaneciam fora. As principais características do
cerimonial levítico, no que dizia respeito ao povo, eram servidão, trevas e
afastamento. Mas, por outro lado, os seus tipos e sombras indicavam aquele grande
sacrifício que é o fundamento de todos os maravilhosos desígnios e propósitos de
Deus, e mediante o qual pode, com perfeita justiça, e de acordo com o amor do Seu
coração, ter um povo perto de Si, para louvor da glória da Sua graça, por todos os
séculos áureos da eternidade.
Já fizemos notar que encontramos comparativamente muito pouco acerca de ritos
e cerimônias no livro de Deuteronômio. O Senhor é visto mais em direta
comunicação com o povo; e até mesmo os sacerdotes, no seu cargo oficial, raras
vezes aparecem perante nós; e se são mencionados é mais propriamente de um
modo moral e não cerimonial. Teremos amplas provas disto no decorrer dos nossos
comentários: é uma característica notável deste formoso livro.
"O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis
estado neste monte. Voltai-vos e parti e ide à montanha os amorreus." Que raro
privilégio para qualquer povo, ter o Senhor tão perto de si e tão interessado em
todos os seus movimentos e em tudo quanto lhes interessa, seja pequeno ou
grande! O Senhor sabia quanto tempo eles deveriam permanecer em um lugar
determinado e para onde deveriam em seguida dirigir os seus passos. Não tinham
necessidade de se preocupar com as suas jornadas, ou de qualquer coisa mais.
Estavam sob o olhar e nas mãos d'Aquele cuja sabedoria era infalível, cujo poder
era onipotente, cujos recursos eram inesgotáveis, cujo amor era infinito, que havia
tomado a Seu cargo cuidar deles, que conhecia todas as suas necessidades e estava
pronto a satisfazê-las, segundo todo o amor do Seu coração e a força do Seu santo
braço.
O que restava, portanto, podemos perguntar, para eles fazerem? Qual era o seu
dever simples e claro?- Apenas obedecer. Era seu elevado e santo privilégio
descansar no amor e obedecer aos mandamentos do Senhor, seu Deus do concerto.
Nisto estava o segredo bendito da sua paz, a sua felicidade e a sua segurança moral.
Não tinham nenhuma necessidade para se preocuparem com os seus movimentos
nem de fazerem projetos ou arranjos. As suas jornadas eram todas ordenadas por
Um que conhecia cada passo do caminho desde Horebe a Cades-Barnéia; e eles
tinham apenas de viver dia a dia em feliz dependência d'Ele.
Ditosa posição! Senda privilegiada! Sorte feliz! Mas isto exigia uma vontade
quebrantada — um espírito obediente — um coração submisso. Se, quando o
Senhor havia dito: "Tempo bastante haveis estado neste monte", eles, pelo
contrário, tivessem formado o propósito de o percorrer algum tempo mais, teriam
de o percorrer sem Ele. Só podiam contar com a Sua companhia, o Seu conselho e o
Seu auxílio no caminho da obediência.
Assim acontecia com Israel nas suas peregrinações pelo deserto, e assim acontece
conosco. É nosso precioso privilégio deixar todos os nossos assuntos não
meramente nas mãos do Deus do concerto, mas nas mãos de um Pai amantíssimo.
Ele arranja os nossos movimentos; determina os limites da nossa habitação; diz-nos
quanto tempo devemos permanecer num lugar e aonde devemos ir em seguida.
Tem tomado à Sua conta tudo quanto nos diz respeito, todos os nossos movimentos
e todas as nossas necessidades. A Sua graciosa Palavra diz-nos: "Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes, as vossas petições sejam em tudo conhecidas
diante de Deus, pela oração e súplicas, com ações de graças." E depois«?- "E a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos
sentimentos em Cristo Jesus" (Fp 4:6-7).
Calebe: A Fé
Mas, infelizmente, Israel não pôde confiar em Deus para os introduzir na terra!
Apesar da maravilhosa manifestação do Seu poder, Sua fidelidade, bondade e
ternura, desde os fornos de tijolo do Egito às fronteiras da terra de Canaã, eles não
creram. Com uma exposição de evidência que deveria satisfazer qualquer coração,
eles ainda duvidaram. "Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das vossas palavras,
indignou-se e jurou, dizendo: Nenhum dos homens desta maligna geração verá
esta boa terra que jurei dar a vossos pais, salvo Calebe, filho de Jefoné; ele a verá, e
a terra que pisou darei a ele e a seus filhos; porquanto perseverou em seguir ao
SENHOR."
"Não te hei dito que se creres verás a glória de Deus?" Tal é a ordem divina. Os
homens nos dirão que ver é crer; mas, no reino de Deus, crer é ver. Por que foi que
a nenhum dos homens daquela má geração foi consentido ver a boa terral
Simplesmente por que não creram no Senhor seu Deus. Em contrapartida, porque
foi Calebe autorizado a vê-la e a tomar posse dela? Simplesmente porque creu. A
incredulidade é sempre o grande impedimento no caminho da nossa visão da
glória de Deus. "E não fez ali muitas maravilhas, por causa da incredulidade deles."
Se Israel tivesse apenas crido, apenas confiado no seu Deus, apenas confiado no
amor de Seu coração e no poder do Seu braço, Ele os teria introduzido e
estabelecido no monte da Sua herança.
E é precisamente assim hoje com o povo do Senhor. Não ha limite para as bênçãos
que podemos gozar, se confiarmos mais plenamente em Deus. "Tudo é possível ao
que crê." O nosso Deus nunca dirá: "Haveis obtido já abundantemente; quereis
receber demasiado." Impossível. É gozo de Seu terno coração responder às maiores
esperanças da fé.
Procuremos obter abundantemente. "Abre bem a tua boca e ta encherei" (SI
81:10). A inesgotável tesouraria do céu está aberta de par em par para a fé. "E tudo
o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis." "E, se algum de vós tem falta de
sabedoria, peça-a a Deus que a todos dá liberalmente e o não lança em rosto; e
ser-lhe- á dada. Peça-a, porém, com fé, não duvidando." A fé é o segredo divino de
toda a questão, a fonte principal da vida cristã, desde o princípio ao fim. A fé não
vacila e não oscila. A incredulidade está sempre a vacilar e a oscilar, e por isso
nunca vê a glória de Deus nem o Seu poder. É surda à Sua voz e cega aos Seus atos;
deprime o coração e enfraquece as mãos; escurece o caminho e estorva todo o
progresso. Foi a incredulidade que manteve Israel fora da terra de Canaã durante
quarenta anos; e nós não podemos fazer ideia das inúmeras bênçãos, privilégios,
poder e vantagens que perdemos constantemente por causa da sua terrível
influência. Se os nossos corações estivessem verdadeiramente exercitados na fé,
quão diferente seria o estado de coisas no nosso meio! Qual é o segredo do
deplorável entorpecimento e esterilidade no vasto campo da profissão cristã?- A
que devemos atribuir o nosso estado de ruína, a nossa falta de ânimo, o nosso
raquítico crescimento? Como é que vemos resultados tão fracos em todas as
atividades da obra cristã?- Por que motivo há tão poucas conversões verdadeiras?
Porque estão os nossos evangelistas tão frequentemente abatidos por causa da
escassez da sua ceifai como havemos de responder a todas estas interrogações?
Qual é a causa?- Quererá alguém dizer que não é a nossa incredulidade?
Sem dúvida, as nossas divisões têm muito que ver com ela; o nosso apego às coisas
mundanas, a nossa sensualidade, a nossa indulgência, a nossa ociosidade. Mas qual
é o remédio para todos estes males?- Como vão ser os nossos corações movidos por
verdadeiro amor para com todos os nossos irmãos?- Pela fé — esse princípio
precioso "que opera por caridade." Assim o bendigo apostolo diz aos queridos
recém-convertidos em Tessalônica: ―A vossa fé cresce muitíssimo‖ depois?- "E a
caridade de cada um de vós abunda nuns para com os outros." Assim será sempre.
A fé põe-nos em contato direto com a fonte eterna de amor em Deus mesmo; e a
consequência forçosa é que os nossos corações são impulsionados em amor por
todos os que Lhe pertencem — todos em quem podemos, por mais débil que seja,
descobrir a Sua imagem bendita. Não podemos, de modo algum, estar perto do
Senhor e não amarmos todos os que, em todo o lugar, invocam o Seu nome com
um coração puro. Quanto mais perto estamos de Cristo, tanto mais intensamente
devemos estar unidos, em verdadeiro amor fraternal, com todos os membros do
Seu corpo.
E quanto ao mundanismo, em todas as suas diversas formas, como deve ser
vencido?- Escutemos a resposta de outro apóstolo inspirado. "Porque todo o que é
nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé.
Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?-" O
homem novo, andando no poder da fé, vive acima do mundo, acima dos seus
motivos, acima dos seus objetivos, dos seus princípios, seus costumes, seus
modelos. Nada tem em comum com ele. Movimenta-se precisamente contra a sua
corrente. Obtém todos os seus recursos do céu. A sua vida, a sua esperança, tudo
está ali; e anela ardentemente estar ali quando a sua obra na terra estiver
terminada.
Vemos assim que princípio poderoso é a fé. A fé purifica o coração, opera por
amor, e vence o mudo. Em suma, liga o coração, em poder vivo, com Deus Mesmo;
e este é o segredo da verdadeira elevação, santa benevolência e pureza divina. Não
é de estranhar, portanto, que Pedro fale dela como da "preciosa fé", porque é
verdadeiramente preciosa além de todo o pensamento humano.
Veja-se como este poderoso princípio atuou em Calebe, e o resultado bendito que
produziu. Foi-lhe permitido constatar a verdade dessas palavras proferidas séculos
mais tarde: "Seja-vos feito segundo a vossa fé." Creu que Deus tinha poder para os
fazer entrar na terra, e que todas as dificuldades e obstáculos eram simplesmente
substância para a fé. E Deus, como sucede sempre; respondeu à sua fé. "Então os
filhos de Judá chegaram a Josué em Gilgal; e Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu,
lhe disse: Tu sabes a palavra que o SENHOR falou a Moisés, homem de Deus, em
Cades- Barnéia, por causa de mim e de ti. Da idade de quarenta anos era eu quando
Moisés, servo do SENHOR, me enviou de Cades-Barnéia a espiar a terra; e eu lhe
trouxe resposta, como sentia no meu coração" - testemunho simples de uma
brilhante e encantadora fé! – ―mas meus irmãos, que subiram comigo, fizeram
derreter o coração do povo: eu, porém, perseverei em seguir ao SENHOR, meu
Deus. Então, Moisés, naquele dia, jurou, dizendo: Certamente a terra que pisou o
teu pé será tua e de teus filhos, em herança perpetuamente; pois perseveraste em
seguir o SENHOR, meu Deus. E, agora, eis que o SENHOR me conservou em vida,
como disse; quarenta e cinco anos há agora, desde que o SENHOR falou esta
palavra a Moisés, andando ainda Israel no deserto; e, agora, eis que já hoje sou da
idade de oitenta e cinco anos. E, ainda hoje, estou tão forte como no dia em que
Moisés me enviou; qual a minha força então era, tal é agora a minha força, para a
guerra, e para sair, e para entrar. Agora, pois, dá-me este monte de que o SENHOR
falou naquele dia; pois naquele dia, tu ouviste que os anaquins estão ali, grandes e
fortes cidades há ali; porventura, o SENHOR será comigo para os expelir, como o
Senhor disse" (Js 14:6-12).
Quão refrescantes são as expressões de uma fé simples! Quão edificantes! Quão
verdadeiramente alentadoras! Que contraste com as expressões lúgubres,
desanimadoras, insolentes e desonrosas para Deus, da incredulidade! "E Josué o
abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, Hebrom em herança. Portanto, Hebrom
foi de Calebe, filho de Jefoné o quenezeu, em herança, ate ao dia de hoje,
porquanto perseverara em seguir o SENHOR, Deus de Israel" (Js 14:13-15). Calebe,
como seu pai Abraão, foi firme na fé, dando glória a Deus; e nós podemos dizer,
com a maior segurança, que, visto que a fé sempre honra a Deus, Ele Se compraz
sempre em honrar a fé; e estamos convencidos que se 0 povo do Senhor pudesse
apenas confiar mais n'Ele, se eles se aproveitassem mais abundantemente dos Seus
infinitos recursos, seriamos testemunhas de um estado de coisas totalmente
diferente do que vemos à nossa volta. "Não te hei dito que se creres verás a glória
de Deus? Oh, se tivéssemos uma fé mais viva em Deus — uma apropriação mais
ousada da Sua fidelidade da Sua bondade e poder! Então poderíamos esperar
resultados mais gloriosos no campo do evangelho; mais zelo, mais energia, mais
intensa devoção na Igreja de Deus; e mais dos frutos fragrantes da justiça na vida
dos crentes individualmente.
Moisés não Entraria no País
Vamos agora por um momento deitar um vista de olhos aos versículos finais do
nosso capítulo, nos quais encontraremos sólida instrução. E, antes do mais, vemos
os atos do governo divino manifestados da maneira mais solene e impressionante.
Moisés refere-se da maneira mais tocante ao fato da sua exclusão da terra
prometida. "Também o SENHOR se indignou contra mim por causa de vós,
dizendo: Também tu lá não entrarás."
Notemos as palavras "por causa de vós". Era muito necessário recordar à
congregação que era por sua causa que Moisés, esse amado e honrado servo do
Senhor, era impedido de atravessar o Jordão e pôr o seu pé na terra de Canaã. E
certo que "falou imprudentemente com seus lábios"; mas eles "irritaram o seu
espírito" para isso. Isto deveria tê-los comovido ao mais íntimo da alma. Não só
falharam, devido à incredulidade, em entrar na terra, mas foram a causa da sua
exclusão, embora ele muito desejasse ver "esta boa montanha e o Líbano!" (veja SI
106:32-33).
Mas o governo de Deus é uma magna e terrível realidade. Não esqueçamos isto
nunca, nem por um só momento. A razão humana pode estranhar que algumas
palavras inconsideradas, algumas precipitadas expressões fossem a causa de não
conceder a um tal servo de Deus amado e honrado o que ele tão ardentemente
desejava. Mas o nosso lugar é curvar a cabeça em humilde adoração e santa
reverência, e não discutir ou julgar. "Não faria justiça o Juiz de toda a terral"
Certamente, Ele não pode cometer erros. "O Senhor, Deus Todo-poderoso,
verdadeiros e justos são os teus juízos"(Ap 16:7). "Deus deve ser em extremo
tremendo na assembleia dos santos e grandemente reverenciado por todos os que o
cercam" (SI 89:7). "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12 -29)' e "Horrenda
coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (Hb 10:31).
Acaso interfere com a ação e autoridade do governo divino o fato que nós, como
cristãos, estamos debaixo do reino da graça?- De modo nenhum. É tão certo hoje
como sempre foi que "o que o homem semear, isso também ceifará". Portanto, seria
um grave erro alegar a liberdade que há na graça divina para ter em pouca conta os
decretos do governo divino. As duas coisas são perfeitamente distintas e nunca
deverão ser confundidas. A graça pode perdoar — livre, plena e eternamente —
mas as rodas do carro do governo do Senhor rodam com poder esmagador e
aterradora solenidade. A graça perdoou o pecado de Adão; mas o governo de Deus
expulsou-o do Éden para ganhar a vida com o suor do seu rosto entre os espinhos e
cardos de uma terra amaldiçoada. A graça perdoou o pecado de Davi; mas a espada
do governo permaneceu sobre a sua casa até ao fim. Bate-Seba foi a mãe de
Salomão; mas Absalão levantou-se em rebelião.
E assim sucedeu com Moisés, a graça levou-o ao cume do Pisga e mostrou-lhe a
terra; mas o governo proibiu-o austera e absolutamente de entrar ali. Nem
tampouco afeta no mínimo este princípio capital a consideração de que Moisés, em
seu cargo oficial, como representante do sistema legalista, não podia introduzir o
povo na terra. Isto é verdade; mas deixa absolutamente intacta a solene verdade
que estamos considerando. Nem no capítulo 12 de Números, nem no primeiro
capítulo de Deuteronômio se diz qualquer coisa sobre Moisés, quanto ao seu cargo
oficial. É ele pessoalmente que temos perante nós, e é a ele que se proíbe entrar na
terra por ter falado inconsideradamente com os seus lábios.
Será conveniente para todos nós considerarmos, atentamente, na presença de
Deus, esta grande verdade prática. Podemos ficar certos de que quanto mais
profundamente entrarmos no conhecimento da graça, tanto mais sentiremos a
solenidade do governo de Deus, e acharemos inteiramente justificados os seus
decretos. Disto estamos perfeitamente convencidos. Mas existe Perigo iminente de
admitir, de uma forma ligeira e descuidada, as doutrinas da graça, enquanto que o
coração e a vida não se têm submetido à influência santificadora dessas doutrinas.
Ternos de vigiar com santo zelo contra este perigo. Nada há em todo este mundo
mais terrível do que a simples familiaridade carnal com a teoria da salvação pela
graça. Abre a porta a toda a forma de abusos. É por isso que sentimos a necessidade
de gravar na consciência do leitor a verdade prática do governo de Deus. Isto é
muito necessário em todos os tempos, mas especialmente nos nossos dias, em que
existe uma tendência terrível para converter a graça do nosso Deus em luxúria.
Descobriremos invariavelmente que aqueles que melhor sabem apreciar a
bem-aventurança de se estar debaixo do reino da graça também justificam
completamente as leis do governo de Deus.
Mas nós vemos, nas linhas finais do nosso capítulo, que o povo não estava de modo
algum preparado para se submeter à direção do governo de Deus. De fato, não
queriam a graça nem o governo. Quando convidados a subir imediatamente e
tomar posse da terra com a completa certeza de que a presença e o poder divino os
acompanhariam, hesitaram e recusaram ir. Entregaram-se completamente a um
espírito de negra incredulidade. Em vão Josué e Calebe fizeram chegar aos seus
ouvidos as mais animadoras palavras; em vão puseram diante dos seus olhos o rico
fruto da boa terra; em vão Moisés intentou demovê-los com palavras
enternecedoras; não quiseram subir, quando se lhes disse para subirem. E qual foi o
resultado? A sua decisão foi aceite. Segundo a sua incredulidade, assim lhes foi
feito. "E vossos meninos, de que dissestes: Por presa serão; e vossos filhos, que hoje
nem bem nem mal sabem, eles ali entrarão, e a eles a darei, e eles a possuirão.
Porém vós virai-vos e parti para o deserto pelo caminho do mar Vermelho."
Um Solene Ensino
"E disse-me o SENHOR; Dize-lhes: Não subais, nem pelejeis, pois não estou no
meio de vós, para que não sejais feridos diante de vossos inimigos. Porém,
falando-vos eu, não ouvistes; antes, fostes rebeldes ao mandado do SENHOR, e vos
ensoberbecestes, e subistes à montanha. E os amorreus, que habitavam naquela
montanha, vos saíram ao encontro; e perseguiram-vos, como fazem as abelhas, e
vos derrotaram desde Seir até Horma."
O Senhor não podia acompanhá-los no caminho da vontade própria e rebelião; e,
certamente, Israel, sem a presença divina, não podia medir-se com os amorreus. Se
Deus for por nós e conosco tudo deve ser vitória. Mas nós não podemos contar com
Deus se não andamos no caminho da obediência. E simplesmente o cúmulo da
loucura supor que podemos ter Deus conosco se os nossos caminhos não são retos.
"Torre forte é o nome do SENHOR; para ele correrá o justo e estará em alto retiro."
Mas se não andamos em justiça prática, é perversa vaidade falar de ter o Senhor por
nossa forte torre.
Bendito seja o Seu Nome, Ele pode valer-nos nas maiores profundidades da nossa
fraqueza e fracasso, contanto que haja verdadeira e sincera confissão do nosso
verdadeiro estado. Mas pretender que temos o Senhor conosco, enquanto estamos
fazendo a nossa própria vontade, e andando em evidente injustiça, não é outra
coisa senão maldade e dureza de coração. "Confia no SENHOR e faze o bem." Esta
é a ordem divina; mas falar de confiar no Senhor, enquanto se faz o mal, é
converter a graça de Deus em luxúria e pormo-nos completamente nas mãos do
diabo, que só busca a nossa ruma moral. "Porque, quanto ao SENHOR, seus olhos
passam por toda a terra para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é
Perfeito para com ele" (2 Cr 16:9). Quando temos uma boa consciência podemos
levantar a cabeça e avançar através de toda a sorte de dificuldades; porém intentar
andar na vereda da fé com uma má consciência é a coisa mais perigosa deste
mundo. Só podemos manter ao alto o escudo da fé quando os nossos lombos estão
com a É da máxima importância que os cristãos procurem manter a justiça prática
em todos os seus aspectos. Há um imenso valor e peso moral nestas palavras do
apóstolo Paulo: "E por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto
para com Deus como para com os homens." Procurava sempre usar a couraça da
justiça e estar vestido de linho branco, que é a justiça dos santos. E assim devemos
nós fazer. E nosso santo privilégio andar, dia a dia, com passo firme, na vereda do
dever, a senda de obediência, senda na qual resplandece sempre a luz do semblante
de Deus em aprovação. Então, seguramente, podemos contar com Deus,
apoiarmo-nos n'Ele, receber d'Ele, achar n'Ele todos os nossos recursos,
envolvermo-nos a nós próprios na Sua fidelidade, e assim avançar, em pacífica
comunhão e santa adoração para com o nosso lar celestial.
Não se trata, repetimos, de não podermos olhar para Deus na nossa fraqueza, no
nosso fracasso e até mesmo quando temos errado e pecado. Bendito seja o Seu
nome, podemos fazê-lo e os Seus ouvidos estão sempre atentos ao nosso clamor.
"Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça" (l Jo 1:9). "Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR!
Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas
súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? Mas
contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1-4). Não há limite para a
extensão da expiação, não ha limite para a virtude e eficácia do sangue de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, que purifica de todo o pecado; não há limite para a eficácia
da intercessão do nosso adorável Advogado, nosso Sumo Sacerdote, que pode
salvar até ao fim os que chegam a Deus por Ele.
Tudo isto é uma verdade bendita; verdade amplamente ensinada e ilustrada de
várias maneiras através do volume inspirado. Mas a confissão do pecado, e o
perdão do pecado não devem ser confundidos com a justiça prática. Existem duas
condições distintas em que podemos invocar a Deus: podemos invocá-Lo em
profunda contrição, e sermos ouvidos, ou podemos invocá-Lo com uma boa
consciência e um coração sincero, sermos ouvidos. Mas os dois casos são muito
distintos; e não só são distintos em si mesmos, como estão em acentuado contraste
com aquela indiferença e dureza de coração que presume contar com Deus apesar
de positiva desobediência e injustiça prática. É isto que é tão terrível aos olhos de
Deus e que deve motivar o Seu severo castigo. Ele reconhece e aprova a justiça
prática; pode perdoar livre e amplamente o pecado confessado; mas imaginar que
podemos pôr a nossa confiança em Deus, enquanto os nossos pés andarem pelo
caminho da iniquidade não é nada menos que a mais horrível impiedade. "Não vos
fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do SENHOR, templo do SENHOR,
templo do SENHOR é este. Mas, se deveras melhorardes os vossos caminhos e as
vossas obras, se deveras fizerdes juízo entre um homem e entre o seu companheiro,
se não oprimirdes o estrangeiro e o órfão e a viúva, nem derramardes sangue
inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal, eu
vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais, de século em século. Eis
que vós confiais em palavras falsas, que para nada são proveitosas. Furtareis vós, e
matareis, e cometereis adultério, e jurareis falsamente, e queimareis incenso a
Baal, e andareis após outros deuses que não conhecestes, e então vireis, e vos poreis
diante de mim nesta cada, que se chama pelo meu nome, e direis: Somos livres,
podemos fazer todas estas abominações? (Jr 7:4-10).
Deus trata em realidades morais; deseja a verdade no íntimo; e se os homens ousam
manter a verdade em injustiça, devem esperar o Seu justo castigo. É o pensamento
de tudo isto que nos az sentir o terrível estado da igreja professante. A passagem
solene que acabamos de citar do profeta Jeremias apesar de se referir,
primeiramente, aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém, tem uma
aplicação acentuada à cristandade. Vemos no terceiro capítulo da 2 epístola a
Timóteo que todas as abominações do paganismo, relatadas no final do primeiro de
Romanos, são reproduzidas nos últimas dias sob a verdade e vestida a couraça da
justiça.
É da máxima importância que os cristãos procurem manter a justiça prática em
todos os seus aspectos. Há um imenso valor e peso moral nestas palavras do
apóstolo Paulo: "E por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto
para com Deus como para com os homens." Procurava sempre usar a couraça da
justiça e estar vestido de linho branco, que é a justiça dos santos. E assim devemos
nós fazer. E nosso santo privilégio andar, dia a dia, com passo firme, na vereda do
dever, a senda de obediência, senda na qual resplandece sempre a luz do semblante
de Deus em aprovação. Então, seguramente, podemos contar com Deus,
apoiarmo-nos n'Ele, receber d'Ele, achar n'Ele todos os nossos recursos,
envolvermo-nos a nós próprios na Sua fidelidade, e assim avançar, em pacífica
comunhão e santa adoração para com o nosso lar celestial.
Não se trata, repetimos, de não podermos olhar para Deus na nossa fraqueza, no
nosso fracasso e até mesmo quando temos errado e pecado. Bendito seja o Seu
nome, podemos fazê-lo e os Seus ouvidos estão sempre atentos ao nosso clamor.
"Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça" (l Jo 1:9). "Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR!
Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas
súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? Mas
contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1-4). Não há limite para a
extensão da expiação, não ha limite para a virtude e eficácia do sangue de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, que purifica de todo o pecado; não há limite para a eficácia
da intercessão do nosso adorável Advogado, nosso Sumo Sacerdote, que pode
salvar até ao fim os que chegam a Deus por Ele.
Tudo isto é uma verdade bendita; verdade amplamente ensinada e ilustrada de
várias maneiras através do volume inspirado. Mas a confissão do pecado, e o
perdão do pecado não devem ser confundidos com a justiça prática. Existem duas
condições distintas em que podemos invocar a Deus: podemos invocá-Lo em
profunda contrição, e sermos ouvidos, ou pode- mos invocá-Lo com uma boa
consciência e um coração sincero, sermos ouvidos. Mas os dois casos são muito
distintos; e não só são distintos em si mesmos, como estão em acentuado contraste
com aquela indiferença e dureza de coração que presume contar com Deus apesar
de positiva desobediência e injustiça prática. É isto que é tão terrível aos olhos de
Deus e que deve motivar o Seu severo castigo. Ele reconhece e aprova a justiça
prática; pode perdoar livre e amplamente o pecado confessado; mas imaginar que
podemos pôr a nossa confiança em Deus, enquanto os nossos pés andarem pelo
caminho da iniquidade não é nada menos que a mais horrível impiedade. "Não vos
fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do SENHOR, templo do SENHOR,
templo do SENHOR é este. Mas, se deveras melhorardes os vossos caminhos e as
vossas obras, se deveras fizerdes juízo entre um homem e entre o seu companheiro,
se não oprimirdes o estrangeiro e o órfão e a viúva, nem derramardes sangue
inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal, eu
vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais, de século em século. Eis
que vós confiais em palavras falsas, que para nada são proveitosas. Furtareis vós, e
matareis, e cometereis adultério, e jurareis falsamente, e queimareis incenso a
Baal, e andareis após outros deuses que não conhecestes, e então vireis, e vos poreis
diante de mim nesta cada, que se chama pelo meu nome, e direis: Somos livres,
podemos fazer todas estas abominações?" (Jr 7:4-10).
Deus trata em realidades morais; deseja a verdade no íntimo; e se os homens ousam
manter a verdade em injustiça, devem esperar o Seu justo castigo. É o pensamento
de tudo isto que nos faz sentir o terrível estado da igreja professante. A passagem
solene que acabamos de citar do profeta Jeremias apesar de se referir,
primeiramente, aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém, tem uma
aplicação acentuada à cristandade. Vemos no terceiro capítulo da 2 epístola a
Timóteo que todas as abominações do paganismo, relatadas no final do primeiro
capítulo de Romanos, são reproduzidas nos últimas dias sob a capa da profissão
cristã e em relação imediata com "a forma de piedade". Qual há-de ser o fim de um
tal estado de coisas? Implacável ira. Os mais duros juízos de Deus estão reservados
para a grande massa de professos batizados que chamamos cristandade. O
momento aproxima-se rapidamente em que todo o amado povo de Deus adquirido
com Seu sangue será arrebatado deste mundo sombrio e pecaminoso ainda que
chamado "mundo cristão" para estar sempre com o Senhor, naquele doce lar de
amor preparado na casa do Pai. Então "a operação do erro" será enviada sobre a
cristandade — sobre as próprias nações onde a luz de um cristianismo para todo o
globo tem resplandecido; onde se tem pregado livre e plenamente o evangelho;
onde milhões de exemplares da Bíblia têm sido postos em circulação, e onde todos,
de um modo ou de outro, professam o nome de Cristo e se chamam a si próprios
cristãos.
E depois?- Que vai seguir-se a esta "operação do erro"? Algum novo testemunho?
Mais algumas oportunidades de misericórdia? Mais algum esforço da graça
longânima? Não para a cristandade! Não para os que rejeitam o evangelho de Deus.
Não para os professos de formas vazias e sem valor de cristianismo sem Deus e sem
Cristo! Os pagãos ouvirão "o evangelho eterno", "o evangelho do reino"; mas
quanto a essa coisa terrível, essa pavorosa anomalia chamada cristandade, "a vide
da terra", nada resta senão o lagar da ira do Deus Todo-poderoso, a escuridão das
trevas para sempre, o lago que arde com fogo e enxofre.
Leitor, estas são as verdadeiras palavras de Deus. Nada seria mais fácil que colocar
ante os teus olhos uma série incontestável de provas das Escrituras, mas isto seria
alheio ao nosso presente propósito. O Novo Testamento, do princípio ao fim,
revela a verdade solene acima exposta; e todo o sistema de teologia abaixo do sol
que ensina alguma coisa diferente mostrar-se-á, pelo menos sobre este ponto,
completamente falso.
CAPÍTULO 2
Incredulidade e Fé
As linhas finais do capítulo 1, mostram-nos o povo chorando diante do Senhor.
"Tornando, pois, vós e chorando perante o SENHOR, O SENHOR não ouviu a
vossa voz, nem voz escutou. Assim, em Cades estivestes muitos dias, segundo os
dias que ali estivestes."
Não havia mais sinceridade nas suas lágrimas do que nas suas palavras. O seu choro
não merecia mais crédito que a sua confissão. É possível que as pessoas confessem o
pecado e vertam lágrimas sem um verdadeiro sentimento de pecado na presença de
Deus. Isto é muito grave. É escarnecer de Deus. Sabemos, bendito seja para sempre
o Seu nome, que um coração verdadeiramente contrito é o Seu prazer. Com um tal,
Deus faz a Sua habitação. "Os sacrifícios para Deus são o espírito quebrantado; a
um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus" (SI 51:17). As
lágrimas que brotam de um coração arrependido são muito mais preciosas para
Deus do que as manadas de mil colinas, visto provarem que há um lugar nesse
coração para Ele; e isto é o que Ele busca, em Sua infinita graça. Quer habitar em
nossos corações e encher-nos do profundo, inefável gozo da sua própria presença.
Porém, a confissão e as lágrimas de Israel em Cades não eram sinceras; e, por isso, o
Senhor não pôde aceitá-las. O mais simples clamor de um coração quebrantado
sobe diretamente para o trono de Deus, e é imediatamente atendido pelo bálsamo
litigante do Seu amor perdoador; mas quando as lágrimas e a confissão vão juntas
com a vontade própria da rebelião, não são apenas desprezíveis, mas um
verdadeiro insulto à majestade divina.
Assim, pois, o povo teve de retroceder ao deserto e peregrinar ali durante quarenta
anos. Não havia outro recurso. Não quiseram subir àquela terra, em simples fé,
com Deus; e Ele não quis acompanhá-los quando quiseram subir por sua própria
vontade e própria confiança; e eles tiveram portanto de aceitar as consequências da
sua desobediência. Já que não querem entrar na terra, têm de cair no deserto.
Quão solene é tudo isto! E quão solene é o comentário do Espírito sobre o assunto
em capítulo 3 de Hebreus! E quão direta e eficazmente se aplica a nós próprios!
Vamos citar a passagem para proveito do leitor. "Portanto, como diz o Espírito
Santo, se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais o vosso coração, como na
provação, no dia da tentação no deserto, onde vossos pais me tentaram, me
provaram e viram, por quarenta anos, as minhas obras. Por isso, me indignei
contra esta geração e disse: Estes sempre erram em seu coração e não conheceram
os meus caminhos. Assim, jurei na minha ira que não entrarão no meu repouso.
Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se
apartar do Deus vivo. Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o
tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do
pecado. Porque nos tornamos principiantes de Cristo, se retivermos firmemente o
princípio da nossa confiança até ao fim. Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua
voz, não endureçais o vosso coração, como na provocação. Porque, havendo-a
alguns ouvido, o provocaram; mas não todos os que saíram do Egito por meio de
Moisés. Mas com quem se indignou por quarenta anos?- Não foi, porventura, com
os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto«? E a quem jurou que não
entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes?- E vemos que não
puderam entrar por causa da sua incredulidade. Temamos, pois, que, porventura,
deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para
trás. Porque também a nós foram pregadas as boas-novas, como a eles, mas a
palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a
fé naqueles que a ouviram" (Hb 3:7 a 19; 4:1-2).
Aqui, como em todas as páginas do livro inspirado, aprendemos que a
incredulidade é a coisa que mais entristece o coração do Deus e desonra o Seu
nome. E não só isso, mas que nos priva das bênçãos, das dignidades e privilégios
que a graça infinita outorga. Temos uma escassa ideia de quanto perdemos, em
todos os sentidos, por causa da incredulidade dos nossos corações. Assim como no
caso de Israel a terra estava perante eles em toda a sua fecundidade e beleza, e se
lhes mandou que subissem e tomassem posse dela, mas "Não puderam entrar por
causa da incredulidade", assim também acontece conosco: deixamos de possuir a
plenitude das bênçãos que a graça soberana põe ao nosso alcance. A própria
tesouraria do céu está aberta de par em par para nós, mas nós deixamos de nos
apropriar dela. Somos pobres, fracos, desprovidos e estéreis, quando podíamos ser
ricos, vigorosos, satisfeitos e fecundos. Somos abençoados com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo; mas quão pouco nos apropriamos disso!
Quão fraca é a nossa capacidade de compreensão! Quão pobres os nossos
pensamentos!
Assim, quem pode calcular quanto perdemos por causa da nossa incredulidade
quanto à questão da obra do Senhor no nosso meio? Lemos no evangelho de que
em certa localidade nosso bendito Senhor não pôde fazer sinais por causa da
incredulidade deles. Não nos diz isto nada«?- Também nós O impedimos por causa
da incredulidade? Alguém dirá talvez que o Senhor levará a Sua obra avante
independentemente de nós ou da nossa fé; ajuntará os Seus e completará o número
dos Seus eleitos, apesar da nossa incredulidade; nem todo o poder da terra e do
inferno, dos homens e dos demônios juntos, pode impedir a realização dos Seus
desígnios e propósitos; e quanto à Sua obra, não e por força nem por poder, mas
pelo Seu Espírito. Os esforços humanos são inúteis; e a causa do Senhor jamais
poderá ser desenvolvida pela excitação da natureza humana.
Ora, tudo isto é perfeitamente verdadeiro; mas deixa completamente intacta a
expressão inspirada acima reproduzida. "E não fez ali muitas maravilhas por causa
da incredulidade deles" (Mt 13:58). Essas pessoas não perderam bênçãos por causa
da sua incredulidade? Não impediram que fosse feito muito bem? Devemos ter
cuidado na maneira como cedemos à influência destruidora de um fatalismo que,
com certas aparências de verdade, é inteiramente falso, visto que nega toda a
responsabilidade humana e paralisa toda a santa energia na causa de Cristo.
Devemos ter em vista o fato que Aquele que, em Seus eternos desígnios, decretou o
fim, designou também os meios; e se nós, na pecaminosa incredulidade de nossos
corações, e sob a influência parcial da verdade cruzamos os braços e desprezamos
os meios, Ele nos porá de lado e prosseguirá a Sua obra por meio de outras mãos.
Fará a obra, bendito seja o Seu santo nome, mas nós perderemos a dignidade, o
privilégio e a bênção de ser Seus instrumentos.
Veja-se a cena admirável em capítulo 2 de Marcos. Ilustra eficazmente o grande
princípio que desejamos fazer compreender a todos os que lerem estas linhas.
Demonstra o poder da fé em relação com o cumprimento da obra do Senhor. Se os
quatro homens, cuja conduta é posta aqui diante de nós, se tivessem deixado
influenciar por um falso fatalismo, teriam argumentado que não valia a pena fazer
coisa alguma — se o paralítico devia ser curado, deveria ser sem nenhum esforço
humano. Porque haviam de incomodar-se a subir ao telhado da casa, descobrir o
telhado e baixar o doente até junto de Jesus?- Ah! Foi conveniente para o enfermo
e bom para eles não terem atuado com um tal infeliz raciocínio! Veja-se como
atuou a sua encantadora fé! Alegrou o coração do Senhor Jesus; trouxe o enfermo
ao lugar de cura, de perdão e bênção; e deu ocasião à manifestação do poder divino
que chamou a atenção de todos os presentes e deu testemunho da grande verdade
que Deus estava na terra na pessoa de Jesus de Nazaré, curando enfermidades e
perdoando pecados.
Muitos outros exemplos podiam ser acrescentados, mas não há necessidade. Toda a
Escritura estabelece o fato de que a incredulidade impede a nossa bênção, dificulta
a nossa utilidade, priva-nos do privilégio raro de sermos instrumentos reputados
de Deus na realização da Sua obra gloriosa e de ver as operações do Seu poder e do
Seu Espírito entre nós; e, por outro lado, que essa fé atrai bênçãos e poder não só
para nós próprios mas também para outros; que glorifica e satisfaz Deus, afastando
a criatura da cena e abrindo lugar para a manifestação do poder divino. Em suma,
não há limites para a bênção que poderíamos receber das mãos de Deus, se os
nossos corações fossem dirigidos por aquela fé simples que conta sempre com Ele e
que Ele Se compraz sempre em honrar. "Seja-vos feito segundo a vossa fé."
Preciosas palavras para a alma! Que elas nos animem a obter e mais
abundantemente dos inesgotáveis recursos que temos em Deus! Ele deleita-Se em
nos servir, bendito seja para sempre o Seu santo nome! A Sua palavra diz-nos:
"Abre bem a tua boca, e ta encherei" (SI 81:10). Nunca será demais o que
esperamos do Deus de toda a graça, que nos deu o Seu unigênito Filho, e nos dará
com Ele livremente todas as coisas.
Mas Israel não pôde confiar em Deus para os introduzir na terra; presumiram
entrar nela na sua própria força, e, como consequência, tiveram de fugir diante dos
seus inimigos. Assim terá de ser sempre. A arrogância e a fé são duas coisas
totalmente diferentes; a primeira só pode resultar em derrota e desastre; a última
em vitória segura e certa.
O Governo de Deus
CAPÍTULO 3
"Depois, nos viramos e subimos o caminho de Basã: e Ogue; rei de Basã, nos saiu ao
encontro, ele e todo o seu povo, à peleja em Edrei. Então, o SENHOR me disse:
Não o temas, porque a ele, e a todo o seu povo, e a sua terra tenho dado na tua mão;
e far-lhe-ás como fizeste a Seom, rei dos amorreus, que habitava em Hesbom. E
também o SENHOR, nosso Deus, nos deu na nossa mão a Ogue, rei de Basã, e a
todo o seu povo; de maneira que o ferimos, até que ninguém lhe ficou de restante.
E, naquele tempo, tomamos todas as suas cidades; nenhuma cidade houve que lhes
não tomássemos: sessenta cidades, toda a borda da terra de Argobe e o reino de
Ogue em Basã. Todas essas cidades eram fortificadas com altos muros, portas e
ferrolhos; além de outras muitas cidades sem muros. E destruímo-las, como
fizemos a Seom, rei de Hesbom, destruindo todas as cidades, homens, mulheres e
crianças. Porém todo o gado e o despojo das cidades, tomamos para nós por presa"
(versículos 1 a 7).
As instruções divinas quanto a Ogue, rei de Basã, eram precisamente idênticas às
que haviam sido dadas, no capítulo precedente, com respeito a Seom, amorreu; e
para compreender ambas, devemos considerá-las unicamente à luz do governo de
Deus - um assunto apenas pouco compreendido, ainda que de profundo interesse e
importância prática. Devemos distinguir corretamente entre a graça e o governo.
Quando contemplamos a Deus em ato de governo, vemo-Lo manifestando o Seu
poder em forma de justiça: punindo os malfeitores; derramando vingança sobre os
Seus inimigos; destruindo impérios; revolvendo tronos; destruindo cidades;
varrendo nações e tribos. Vemos-Lo ordenar ao Seu povo que mate homens,
mulheres e crianças a fio de espada; que incendeiem as suas habitações e
convertam as cidades em montões de escombros.
Esta passagem da Escritura é maravilhosa: põe diante de nós um tema que corre
através de todas as Escrituras do Velho Testamento — tema que requer a nossa
reverente e profunda atenção. Quer nos voltemos para os cinco livros de Moisés,
quer para os livros históricos, os Salmos ou os profetas, vemos como o Espírito
inspirador nos dá minuciosos pormenores dos atos de Deus em governo. Temos o
dilúvio nos dias de Noé, quando a terra, com todos os seus habitantes, com exceção
de oito pessoas, foi destruída por um ato de governo divino. Homens, mulheres,
crianças, gado, aves e répteis foram todos varridos e sepultados debaixo das ondas e
vagas do justo juízo de Deus.
Depois vemos nos dias de Ló como as cidades da planície, com todos os seus
habitantes, homens, mulheres e crianças foram, dentro de algumas horas,
entregues à completa destruição, destroçadas pela mão do Deus Todo-poderoso e
sepultadas sob as profundas e negras águas do Mar Morto — "Assim como Sodoma,
e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo- se corrompido como
aqueles e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo
eterno" (Judas 7).
Assim, também, conforme vamos passando as páginas da história inspirada, vemos
as sete nações de Canaã, homens, mulheres e crianças, entregues às mãos de Israel
para um juízo inexorável; do qual nada que respirava devia ser deixado vivo.
Porém, temos de dizer que, na verdade, o tempo nos faltaria até para referir todas
as passagens da Sagrada Escritura que põem diante de nós os atos solenes do
governo divino. Basta dizer-se que a linha de evidência se estende desde o Gênesis
ao Apocalipse, começando com o dilúvio e terminando com a destruição pelo fogo
do sistema atual de coisas.
Ora, a questão é esta: Somos competentes para compreender estes procedimentos
do governo de Deus? Compete-nos a nos julgá-los? Somos capazes de explicar os
profundos e terríveis mistérios da providência divinal Podemos nós explicar o fato
tremendo de crianças envolvidas no julgamento dos pais culpados ou somos
convidados a dar a sua razão?- A ímpia infidelidade pode escarnecer destas coisas;
o mórbido sentimentalismo pode escandalizar-se com elas; mas o verdadeiro
crente, o cristão piedoso, o estudante reverente da Sagrada Escritura, responderá a
todos com esta simples, mas certa, pergunta: "Não faria justiça o juiz de toda a
terral"
Prezado leitor, podemos estar certos de que esta é a única e verdadeira maneira de
resolver tais interrogações. Se o homem quer julgar as ações de Deus em Seu
governo; se pode tomar sobre si mesmo a responsabilidade de decidir sobre o que é
e o que não é digno de Deus fazer, então, na verdade, nós temos perdido
completamente o verdadeiro sentido de Deus. E isto é precisamente o que o diabo
procura conseguir. Quer afastar de Deus o coração; e para este fim, leva o homem a
raciocinar, a inquirir e a especular em regiões que estão tão longe do seu alcance
quanto o céu está acima da terra. Podemos compreender Deus? Se pudéssemos, nós
próprios seríamos Deus.
É, ao mesmo tempo, absurdo e ímpio, no mais alto grau, que fracos mortais se
atrevam a criticar os conselhos, decretos e desígnios do Criador todo-poderoso e
sábio Governador do universo. Seguramente, todos os que assim procedem se
darão conta mais cedo ou mais tarde, do seu terrível equívoco. Bom seria que todos
os inquiridores e chicaneiros prestassem atenção à pergunta penetrante do
apóstolo inspirado em Romanos 9: 'Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus
replicas? Porventura, a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste
assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um
vaso para honra e outro para desonra?
Quão simples! Quão convincente! E como é irrefutável! Este é o método divino de
ir ao encontro de todos os quês e porquês do raciocínio dos infiéis. Se o oleiro tem
poder sobre a massa que segura na mão — um fato que ninguém pensará contestar
— quanto mais o Criador de todas as coisas tem poder sobre as criaturas que as Suas
mãos têm formado! Os homens podem discorrer e argumentar interminavelmente
sobre o motivo por que Deus permitiu que o pecado entrasse no mundo; por que
não aniquilou imediatamente Satanás e os seus anjos; por que permitiu que a
serpente tentasse Eva; por que não evitou que ela comesse do fruto proibido. Em
suma, os porquês são intermináveis; mas a resposta é a mesma: "Mas, ó homem,
quem és tu, que a Deus replicas?" Como é monstruoso que um pobre verme da
terra se atreva a julgar os juízos inescrutáveis do Deus Eterno! Que cegueira e
arrogante loucura de uma criatura cujo entendimento está obscurecido pelo
pecado, e que, portanto, é absolutamente incapaz de formar um reto juízo sobre
qualquer coisa divina, celestial ou eterna, atrever-se a decidir como Deus deve agir
em um determinado caso! Ah, é de recear que milhares que hoje argumentam com
aparente destreza contra a verdade de Deus, descubram o seu erro fatal quando for
demasiado tarde para o corrigir!
E quanto a todos aqueles que, muito longe de ocuparem o terreno dos infiéis, estão
contudo perturbados com dúvidas e temores acerca de alguns dos atos do governo
de Deus, e sobre a terrível questão do castigo eterno (1), queremos sinceramente
recomendar-lhes que estudem e se encham do espírito desse pequeno e encantador
Salmo 131: "SENHOR, O meu coração não se elevou, nem os meus olhos se
levantaram; não me exercito em grandes assuntos, nem em coisas muito elevadas
para mim. Decerto, fiz calar e sossegar a minha alma; qual criança desmamada para
com sua mãe, tal é a minha alma para comigo."
__________
(]) Com respeito ao assunto solene do castigo eterno, queremos fazer algumas
observações, visto que muitos, tanto em Inglaterra como na América, estão
preocupados com as dificuldades a seu respeito.
Existem três coisas que, se forem bem ponderadas, estabelecerão, cremos, todo o
crente na doutrina, (continuação pg. seguinte).
I. A primeira é a seguinte: No Novo Testamento há setenta passagens em que a
palavra "eterna" ocorre. E aplicada à "vida" que os crentes possuem; à "glória" que
deverão gozar; é aplicada a Deus, Romanos 16:26; à "salvação" de que nosso Senhor
Jesus Cristo é o Autor; à "redenção" que Ele adquiriu para nós; e ao "Espírito".
De entre as setenta passagens referidas, que o leitor pode verificar imediatamente
se passar uma vista de olhos por uma concordância grega, há sete em que a mesma
palavra é aplicada ao "castigo" dos ímpios; ao "juízo" que os surpreenderá; ao "fogo"
que os há de consumir.
Ora, a questão é de saber sobre que princípio ou com que autoridade pode alguém
notar sete passagens e dizer que, nelas, a palavra não quer dizer "eterno", ao passo
que nas outras sessenta e três o significado é esse! Reputamos essa afirmação
absolutamente destituída de base e indignidade atenção de qualquer espírito
sensato. Admitimos plenamente que, se o Espírito Santo tivesse achado próprio,
quando falou do juízo dos ímpios, fazer uso de uma palavra diferente a que é usada
nas outras passagens, haveria razão para ponderar o fato. Mas não; o Espírito usa
invariavelmente a mesma palavra, de forma que se negarmos castigo eterno, temos
de negar também a vida eterna, a glória eterna, um Espírito eterno, um Deus
eterno, qualquer coisa eterna.
Em suma, se o castigo não é eterno nada é eterno tanto quanto se refere ao
argumento. Interferir com essa pedra da abóbada da revelação divina é reduzir o
conjunto de amontoado de ruínas em redor de nós. E é isto precisamente verdade.
E Ito é precisamente o que o diabo procura fazer. Estamos plenamente
convencidos que negar a verdade do castigo eterno é dar o primeiro passo nesse
plano inclinado que ao abismo sombrio do cepticismo universal.
II. A nossa segunda observação é tirada da grande verdade da imortalidade da
alma. Lemos no segundo capítulo de Gênesis, "E formou o SENHOR Deus o
homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi
feito alma vivente." Sobre esta passagem como sobre uma rocha irremovível,
mesmo se não tivéssemos outra base, nós baseamos a grande verdade da
imortalidade da alma humana. A queda do homem não fez diferença a este
respeito. Caído ou não, inocente ou culpado, convertido ou inconvertido, a alma
tem de viver para sempre.
A questão tremenda é esta: "Onde vai ela viver? Deus não pode permitir pecado na
Sua presença. "Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e a vexação não
podes contemplar" (Hc 1:13). Por isso, se o homem morre nos seus pecados, morre
impenitente, sem ter sido perdoado, impuro; então, seguramente, onde Deus está
ele nunca pode chegar; na verdade é o último lugar onde ele gostaria de ir. Nada há
para si senão uma eternidade infindável nesse lago que arde com fogo e enxofre.
II. E, por fim, cremos que a verdade do castigo eterno permanece
intimamente ligada com a natureza infinda da expiação efetuada por nosso Senhor
Jesus Cristo. Se nada menos que um sacrifício infinito pode libertar-nos das
consequências do pecado, essas consequências têm de ser eternas. Esta
consideração pode não ser talvez, na opinião de alguns, de muito peso, mas para
nós o s® poder é absolutamente irresistível. Devemos medir o pecado e suas
consequências, assim como medimos o amor divino e os seus resultados, não pelo
padrão do sentimento ou razão humanos, mas pelo padrão da cruz de Cristo.
Então quando o coração respira suavemente desta maneira, pode voltar-se, com
verdadeiro proveito, para as palavras do apóstolo inspirado, em 2 Coríntios 10.
"Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas, sim, poderosas em Deus,
para destruição das fortalezas; destruindo os conselhos e toda a altivez que se
levanta contra o conhecimento de Deus e levando cativo todo o entendimento à
obediência de Cristo."
Sem dúvida, o filósofo, o acadêmico, o pensador profundo sorriem
desdenhosamente ante um modo tão infantil de tratar questões tão importantes.
Porém, isto é um caso de pouca importância no parecer do discípulo piedoso de
Cristo. O mesmo inspirado apóstolo faz pouco caso de toda esta sabedoria e ciência
humanas. Diz ele: "Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem
por sábio neste mundo, faça-se louco para ser sábio. Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus; pois está escrito: Ele apanha os sábios na sua
própria astúcia. E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são
vãos" (1 Co 3:18-20). E outra vez: "Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos
sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o
escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a
sabedoria deste mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu
a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da
pregação"(1 Co 1:19-21).
Eis aqui o grande segredo moral de todo o assunto. O homem tem de reconhecer
que é simplesmente um néscio; e que toda a sabedoria do mundo é loucura.
Verdade humilhante, mas salutar! Humilhante, porque coloca o homem no seu
próprio lugar. Salutar, sim, preciosíssima, porque nos mostra a sabedoria de Deus.
Ouvimos, hoje em dia, falar muito da ciência, da filosofia e da cultura.
"Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?"
Compreendemos completamente o significado destas palavras?- Ah, é de recear
que são muito pouco compreendidas! Não falta quem de boa vontade procure
convencer-nos de que a ciência tem ido muito mais longe do que a Bíblia (1).
Infelizmente para a ciência e todos os que lhe prestam atenção! Se tem ido mais
longe do que a Bíblia, para onde tem ido? Na direção de Deus de Cristo, do céu, da
santidade, da paz? Não; mas inteiramente na direção oposta. E onde deve tudo
acabará Trememos ao pensar e sentimos relutância em formular a resposta.
Contudo devemos ser fiéis e declarar solenemente que o fim certo e seguro do
caminho ao longo do qual a ciência humana conduz os seus devotos é a negrura das
trevas para sempre.
__________
(1) Devemos fazer a distinção entre toda a ciência e a "falsamente chama ciência‖.
E além disso devemos fazer distinção entre os fatos da ciência e as conclusões dos
homens de ciência. Os fatos são o que Deus tem feito e está fazendo; mas quando os
homens dispõem a tirar as suas conclusões deste fatos, fazem os erros mais graves.
Todavia, é um verdadeiro alivio pensar que há muitos filósofos e homens de
ciência que dão a Deus o Seu devido lugar, e que amam a nosso Senhor Jesus Cristo
em sinceridade.
"O mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria." Que fez a filosofia da Grécia
pelos seus discípulos? Fez deles adoradores ignorantes de um "DEUS
DESCONHECIDO". A própria inscrição sobre o seu altar anunciava ao mundo a
sua ignorância e a sua vergonha.
E não podemos nós perguntar legalmente se a filosofia tem feito pelo cristianismo
mais do que fez pela Grécia ? Comunicou- nos o conhecimento do verdadeiro
Deus? Quem se atreverá a dizer que sim? Existem milhões de professos batizados
em toda a extensão da cristandade que não conhecem mais do verdadeiro Deus do
que esses filósofos que Paulo encontrou na cidade de Atenas.
O fato é este: todo aquele que conhece verdadeiramente Deus é o possuidor
privilegiado da vida eterna. Assim o declara o Senhor Jesus Cristo da maneira mais
clara no capítulo 17 de João. "E a vida eterna é esta: que conheçam a ti só por único
Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste." Isto é precioso para toda a alma
que, pela graça, tem obtido este conhecimento. Conhecer a Deus é ter vida — vida
eterna.
Moisés e o SENHOR
Os versículos finais do nosso capítulo apresentam um episódio especialmente
comovedor entre Moisés e o seu Senhor, cujo relato como nos é dado aqui está em
perfeita harmonia, como poderíamos esperar, com o caráter de todo o livro de
Deuteronômio.
"Também eu pedi graça ao SENHOR, no mesmo tempo, dizendo: Senhor JEOVÁ,
já começaste a mostrar ao teu servo a tua grandeza e a tua forte mão; porque, que
deus há nos céus e na terra, que possa fazer segundo as tuas obras e segundo a tua
fortaleza? Rogo-te que meu deixes passar, para que veja esta boa terra que está
dalém do Jordão, esta boa montanha e o Líbano! Porém o SENHOR indignou-se
muito contra mim, por causa de vós, e não me ouviu; antes, o SENHOR me disse:
Basta; não me fales mais neste negócio. Sobe ao cume de Pisga, e levanta os teus
olhos ao ocidente, e ao norte, e ao sul, e ao oriente, e vê com os teus olhos, porque
não passarás este Jordão. Manda, pois, a Josué e esforça-o e conforta-o; porque ele
passará adiante deste povo e o fará possuir a terra que apenas vires" (versículos 23 a
28).
E comovedor ver este eminente servo de Deus solicitar um pedido que não pôde
ser concedido. Anelava ver aquela boa terra dalém do Jordão. A porção escolhida
pelas duas e meia tribos não podia satisfazer o seu coração. Desejava pôr os seus pés
na própria herança do Israel de Deus. Mas não era possível. Havia falado
imprudentemente com os seus lábios junto das águas de Meribá; e, pelo solene e
irrevogável decreto do governo divino, foi proibido de atravessar o Jordão.
Tudo isto o amado servo de Cristo repete humildemente aos ouvidos do povo. Não
lhes oculta o fato que o Senhor havia recusado aceder ao seu pedido. É verdade que
teve de lhes recordar que fora por causa deles. Isso era moralmente necessário que
eles ouvissem. Todavia, diz-lhes, francamente, que o Senhor estava irritado com
ele, e que havia recusado ouvi-lo — recusara conceder-lhe que atravessasse o
Jordão e ordenara-lhe que resignasse o seu cargo e nomeasse o seu sucessor.
Ora, é altamente edificante ouvir tudo isto dos lábios do próprio Moisés.
Ensina-nos uma boa lição, se estamos dispostos a aprendê-la. Alguns de nós
achamos que é verdadeiramente duro confessar que temos feito ou dito qualquer
coisa má — duro reconhecer diante dos nossos irmãos que temos deixado de
compreender a mente do Senhor, em qualquer caso especial. Velamos pela nossa
reputação; somos sensíveis e obstinados. E contudo, por estranha contradição,
admitimos, ou parece que admitimos, em termos gerais, que somos criaturas
pobres, fracas e susceptíveis de errar; e que, abandonados a nós próprios, nada há,
por mais mau que seja, que não sejamos capazes de dizer ou fazer. Porém, uma
coisa é fazer uma humilhante confissão em termos gerais, e outra coisa muito
diferente reconhecer que, em qualquer caso especial, temos cometido um erro
crasso. Este último é uma confissão que muito poucos têm graça para fazer. Alguns
nunca podem admitir que hajam cometido uma falta.
Não foi assim com esse honrado servo cujas palavras acabamos de citar. Não
obstante a sua elevada posição como o chamado, fiel e amado servo do Senhor — o
chefe da congregação, cuja vara havia feito tremer a terra do Egito, não se
envergonhava de se apresentar perante toda a assembleia de seus irmãos e
confessar o seu erro, reconhecer que havia dito o que não devia, e que havia
sinceramente solicitado um pedido que o Senhor não podia conceder-lhe.
Acaso isto rebaixa Moisés no nosso conceito?- Pelo contrário; isto enaltece-o
imensamente. E moralmente encantador ouvir a sua confissão; ver como ele se
curva humildemente aos decretos do governo de Deus; notar a nobreza da sua
conduta para com o homem que ia suceder-lhe no seu ministério. Não havia
vestígio algum de ciúme ou inveja: nenhuma demonstração de orgulho ferido.
Com admirável resignação, ele renuncia ao seu elevado posto, coloca o seu manto
sobre os ombros do seu sucessor e anima-o a desempenhar com santa fidelidade os
deveres do alto cargo que ele próprio devia resignar.
"Aquele que se humilhar será exaltado." Como isto era verdadeiro no caso de
Moisés! Humilhou-se a si mesmo sob a poderosa mão de Deus. Aceitou a santa
disciplina que lhe era imposta pelo governo divino. Não proferiu uma única
palavra de murmuração ante a recusa do seu pedido. Curvou-se a tudo, e por isso
foi a seu próprio tempo exaltado. Se o governo de Deus o excluía de Canaã, a graça
conduzia-o ao cume de Pisga, de onde, na companhia do seu Senhor, lhe era
permitido ver aquela boa terra, em todas as suas belas proporções — vê-la, não
como herdada por Israel, mas como dada por Deus.
A Graça e o Governo
O leitor fará bem em ponderar seriamente sobre o assunto da graça e governo de
Deus. E um tema verdadeiramente importante e prático e encontra-se largamente
ilustrado na Escritura, embora apenas pouco compreendido por nós. Pode
parecer-nos maravilhoso e difícil de compreender que a um homem tão amado
como Moisés fosse recusada a entrada na terra da promissão. Mas vemos nisto uma
ação solene do governo divino, e temos de curvar as nossas cabeças e adorar. Não
se trata apenas do fato que Moisés, em sua capacidade oficial, como representante
do sistema legal, não podia introduzir Israel na terra prometida. Isto é verdade;
mas não é tudo. Moisés falara imprudentemente com os seus lábios. Ele e seu irmão
Arão não glorificaram a Deus na presença da congregação; e por esta razão "O
SENHOR disse a Moisés e a Arão: Porquanto não me crestes a mim, para me
santificar diante dos filhos de Israel, por isso não metereis esta congregação na
terra que lhes tenho dado."
Depois lemos: "E falou o SENHOR a Moisés e a Arão, no monte Hor, nos termos da
terra de Edom, dizendo: Arão recolhido será a seu povo, porque não entrará na
terra que tenho dado aos filhos de Israel, porquanto rebeldes fostes à minha
palavra, nas águas de Meribá. Toma a Arão e a Eleazar, seu filho, e faze-os subir ao
monte Hor. E despe a Arão as suas vestes e veste-as a Eleazar, seu filho, porque
Arão será recolhido e morrerá ali" (Nm 20:12, 23 a 25).
Tudo isto é muito solene. Aqui temos os dois condutores da congregação, os
próprios homens que Deus havia usado para tirar o Seu povo da terra do Egito com
poderosos sinais e prodígios — Moisés e Aarão —, homens altamente honrados
por Deus, e contudo proibidos de entrar em Canaã. E por quê? Notemos o motivo.
"Porquanto rebeldes fostes à minha palavra."
Que estas palavras penetrem bem fundo nos nossos corações. A rebelião contra a
Palavra de Deus é uma coisa terrível; e quanto mais elevada é a posição dos que
assim se revoltam, tanto mais grave é, em todo o sentido, e tanto mais solene e
rápido tem de ser o castigo divino. "A rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o
porfiar é como iniquidade e idolatria" (I Sm 15:23).
Estas palavras são graves e nós deveríamos meditar nelas seriamente. Foram
pronunciadas aos ouvidos de Saul, quando ele deixou de obedecer à Palavra de
Deus; e assim temos diante de nós os exemplos de um profeta, um sacerdote e um
rei, julgados todos pelo governo de Deus por atos de desobediência. O profeta e o
sacerdote foram proibidos de entrar na terra de Canaã, e o rei foi privado do seu
trono simplesmente porque desobedeceram à Palavra do Senhor.
Recordemos isto. A nós, na nossa imaginária sabedoria, podia parecer-nos que
tudo isto era muito severo. Mas somos nós juízes competentes? Esta é a questão
importante em tais assuntos. Tenhamos cuidado de como pretendemos julgar os
decretos do governo divino. Adão foi posto fora do paraíso; Arão foi despojado das
suas vestes sacerdotais; Moisés foi severamente proibido de entrar em Canaã; e
Saul foi exonerado do seu reino; e por quê?- Foi por causa daquilo que os homens
chamam um grave ofensa moral algum pecado escandaloso? Não; foi, em
todos os casos, por
negligenciarem à Palavra do Senhor. Este é o fato importante que devemos ter
sempre presente, nestes dias de obstinação humana em que os homens se
aventuram a impor as suas opiniões, a pensar por si mesmos, a julgar por si mesmos
e a atuarem por si próprios. Os homens perguntam orgulhosamente: "Acaso não
tem todo homem o direito de pensar por si próprio?" Nós respondemos, não,
certamente. Temos o dever de obedecer. Obedecer a quê? Não aos mandamentos
dos homens; não à assim chamada autoridade da igreja; não aos decretos dos
concílios; numa palavra, não a autoridade alguma meramente humana, diga-se o
que se quiser; mas simplesmente à Palavra do Deus vivo — o testemunho do
Espírito Santo—à voz da Escritura. E isto que reclama justamente a nossa
implícita, indiscutível obediência. Perante isso temos de curvar todo o nosso ser
moral. Não temos de raciocinar; não temos de especular; não temos de pesar as
consequências; nada temos que ver com os resultados; não temos de dizer: "Por
quê?" ou "Para quê?" E nosso dever obedecer e deixar tudo o mais nas mãos do
Mestre. O que tem que ver um servo com as consequências? Que tem ele que ver
com os resultados?- O dever essencial de um servo é fazer o que se lhe manda sem
atender a quaisquer outras considerações. Tivesse Adão pensado nisto e não teria
sido lançado fora do Éden. Tivessem Moisés e Arão recordado isto e teriam podido
atravessar o Jordão; tivesse Saul rememorado isto e não teria sido exonerado do seu
trono. E assim, à medida que vamos descendo na corrente da história humana,
vemos este princípio fundamental ilustrado, repetidas vezes; e podemos ficar
certos de que é um princípio de permanente e universal importância.
E recordemos que não devemos procurar enfraquecer este importante princípio
por quaisquer argumentos baseados na presciência de Deus sobre tudo que havia
de acontecer e tudo que o homem faria no decurso do tempo. Os homens
raciocinam desta maneira, mas é um erro fatal. Que tem que ver a presciência de
Deus com a responsabilidade do homem? O homem é responsável ou não? Esta é a
questão. Se é, como certamente cremos, então não pode permitir-se que coisa
alguma interfira com esta responsabilidade. O homem é convidado a obedecer
simplesmente à Palavra de Deus; não é, de modo algum responsável por conhecer
coisa alguma dos secretos desígnios e propósitos de Deus. A responsabilidade do
homem assenta sobre o que é revelado, não sobre o que é segredo. Que sabia, por
exemplo, Adão dos planos eternos de Deus quando foi colocado no jardim do Éden
e proibido de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal? A sua
transgressão foi acaso modificada pelo fato admirável de que Deus usou a ocasião,
dessa própria transgressão, para revelar à vista de todas as inteligências criadas o
Seu plano glorioso de redenção pelo sangue do Cordeiro? Claro que não. Recebeu
um mandamento claro; e a sua conduta deveria ter sido absolutamente governada
por esse mandamento. Desobedeceu, e foi lançado fora do Paraíso para um mundo
que tem, durante seis mil anos, exibido as terríveis consequências de um só ato de
desobediência — o ato de tomar do fruto proibido.
É verdade que, bendito seja Deus, a graça tem descido a este pobre mundo ferido
de pecado e aqui feito uma colheita como nunca poderia ter sido feita nos campos
de uma criação impecável. Mas o homem foi julgado pela sua transgressão. Foi
lançado fora pela mão de Deus em Seu governo; e, por um decreto desse governo,
tem sido obrigado a comer o pão no suor do seu rosto. "Tudo o que o homem
semear, isso também ceifará."
Aqui temos o relato resumido do princípio que se encontra através de toda a
Palavra, e é ilustrado em todas as páginas da história do governo de Deus. Merece a
nossa mais profunda atenção. É, infelizmente, muito pouco compreendido!
Deixamos cair as nossas almas debaixo da influência parcial e portanto das falsas
ideias sobre a graça, cujo efeito é o mais pernicioso. Graça é uma coisa, e governo é
outra. Nunca devem ser confundidos. Queremos sinceramente inculcar no coração
do leitor o fato importante que a gloriosa manifestação da graça soberana de Deus
nunca pode interferir com os decretos solenes do Seu governo.
CAPÍTULO 4
O Cristão e a Lei
E note-se que quando o Senhor fala dos Seus mandamentos, das Suas palavras, dos
Seus ditos, não quer dizer os dez mandamentos ou lei de Moisés. Sem dúvida, esses
dez mandamentos formam uma parte de todo o cânone da Escritura, a Palavra
inspirada de Deus; mas confundir a lei de Moisés com os mandamentos de Cristo,
seria simplesmente voltar as coisas em completa confusão; seria confundir o
judaísmo com o cristianismo, a lei com a graça. As duas coisas são tão distintas
quanto o podem ser duas coisas; e devem ser assim mantidas por todos os que
devem ser achados na corrente dos pensamentos de Deus.
Por vezes somos desviados pelo simples som das palavras; e por isso, quando
encontramos o vocábulo "mandamentos", concluímos imediatamente que deve
referir-se incontestavelmente à lei de Moisés. Mas isto é um grande e perverso
erro. Se o leitor não está seguro e convencido disto, feche este volume e leia,
atentamente, e com oração, como se estivesse na presença de Deus, com o espírito
livre de todas as influências teológicas e de todos os preconceitos de ensino
religioso, os primeiros cinco capítulos da epístola aos Romanos e toda a epístola aos
Gálatas. Verificará, da maneira mais clara, que o cristão não está, de modo
nenhum, debaixo da lei, para qualquer objetivo, quer para a vida, quer para a
justiça, para santidade ou para a conduta diária ou qualquer coisa mais. Em suma, o
ensino de todo o Novo Testamento estabelece, fora de toda a dúvida, que o crente
não está debaixo da lei, que não é do mundo, que não está na carne nem sob o
domínio dos seus pecados. A base sólida de tudo isto é a redenção cumprida que
temos em Cristo Jesus, em virtude da qual estamos selados com o Espírito Santo, e
deste modo indissoluvelmente unidos e inseparavelmente identificados com Cristo
ressuscitado e glorificado; de forma que o apóstolo João pode dizer de todos os
crentes, todos os filhos de Deus: "Assim como ele (Cristo) é, assim somos nós neste
mundo." Isto resolve toda a questão, para todos os que estão satisfeitos por serem
governados pela Sagrada Escritura. E quanto a tudo mais, a discussão é pior do que
inútil.
Havemo-nos afastado do nosso assunto imediato, a fim de esclarecer qualquer
dificuldade motivada pela má compreensão da palavra "mandamentos". O leitor
não pode ser exagerado em se guardar contra a tendência de confundir os
mandamentos do Senhor em João 14 com os mandamentos de Moisés em Êxodo
20. E, contudo, nós cremos reverentemente que Êxodo 20 é tão inspirado como
João 14.
E agora antes de deixarmos o assunto que nos tem ocupado, queremos referir, por
uns momentos, um caso de história inspirada que ilustra, de um modo notável, a
diferença entre um filho de Deus obediente e um filho desobediente.
Encontramo-lo em Gênesis 18 e 19. E um estudo profundamente interessante,
apresentando um contraste instrutivo, sugestivo e profundamente prático. Não
vamos insistir nele, porquanto já o fizemos, em certa medida, nos nossos "Estudos
sobre o Livro de Gênesis"; mas queremos apenas lembrar ao leitor que tem diante
de si, nestes dois capítulos, a história de dois santos de Deus. Ló era filho de Deus
tanto como Abraão. Não temos dúvida de que Ló está entre "os espíritos dos justos
aperfeiçoados" assim como Abraão lá está. Isto, cremos, não pode ser posto em
dúvida, visto que o inspirado apóstolo Pedro nos diz que Ló era justo e afligia a sua
alma com a conversação dos ímpios.
Mas note-se a grande diferença entre os dois homens! O Senhor mesmo visitou
Abraão, sentou-Se com ele, e compartilhou prontamente da sua hospitalidade. Isto
era na verdade uma elevada honra, um raro privilégio — um privilégio que Ló
nunca conheceu, uma honra que nunca conseguiu. O Senhor nunca o visitou em
Sodoma. Mandou-lhe meramente os Seus anjos, os Seus ministros de poder, os
agentes do Seu governo. E até mesmo eles, ao princípio, recusaram austeramente
entrar em casa de Ló ou aceitar o seu oferecimento de hospitalidade. A sua resposta
seca foi: "Não, antes na rua passaremos a noite." E quando entraram em sua casa foi
só para o protegerem da violência desordenada com que ele estava rodeado e para o
arrebatarem das circunstâncias miseráveis em que ele, por amor do ganho
mundano e da posição, se havia lançado. Poderia o contraste ser mais real?
Mas, notemos, além disso, que o Senhor se comprazia em Abraão, Se manifestou a
ele, lhe revelava os Seus pensamentos, lhe falava dos Seus planos e propósitos, o
que intentava fazer com Sodoma. Disse Ele: "Ocultarei eu a Abraão o que faço,
visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão
benditas toas as nações da terral Porque eu o tenho conhecido, que ele há de
ordenara seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do
SENHOR, para agirem com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre
Abraão o que acerca dele tem falado"(Gn 18:17a 19).
Dificilmente poderíamos encontrar uma ilustração mais eloquente de João
14:21-23, ainda que a cena ocorreu dois mil anos antes de se pronunciarem as
palavras. Encontramos alguma coisa parecida com isto na história de Ló? Ah, não
era possível! Não tinha intimidade com Deus, nem conhecimento da Sua mente,
nem profundava os Seus planos e propósitos. Como poderia fazê-lo? Mergulhado
como estava nos baixos morais de Sodoma, como poderia ele conhecer a mente de
Deus? Cego pela escura atmosfera que envolvia as cidades culpáveis da planície,
como poderia olhar para o futuro? Era inteiramente impossível. Se um homem está
misturado com o mundo só pode ver as coisas do ponto de vista mundano; só pode
medir as coisas pelo padrão mundano e pensar nelas com os pensamentos do
mundo. E por isso que a Igreja, em seu estado de Sardo, é ameaçada com a vinda do
Senhor como um ladrão em vez de ser animada com a esperança da Sua vinda
como a brilhante estrela da manhã. Se a igreja professante tem descido ao nível do
mundo — como infelizmente tem sucedido — ela só pode contemplar o futuro do
ponto de vista do mundo. Isto explica o sentimento de temor com que a grande
maioria dos cristãos professos encaram o assunto da vinda do Senhor. Esperam-No
como a um ladrão, em vez de O aguardarem como o bendito Noivo dos seus
corações. Quão poucos, comparativamente, são os que amam a Sua vinda. A grande
maioria dos professos — sentimos muito ter que escrever estas palavras —
encontram o seu tipo em Ló, não em Abraão. A Igreja deixou o seu próprio
fundamento; deixou a sua verdadeira elevação moral e misturou-se com o mundo
que aborrece e despreza o seu Senhor ausente.
Contudo, graças a Deus, "Tens em Sardo algumas pessoas que não contaminaram as
suas vestes"— algumas pedras vivas entre cinzas ardentes da profissão inanimada
— algumas luzes cintilantes entre a obscuridade de uma cristandade fria, nominal,
desapiedada, e mundana. E não só isto, mas na fase da história da igreja, que
podemos chamar de Laodicéia a qual nos apresenta um estado de coisas ainda mais
baixo e desesperado, quando o conjunto do corpo professante está a ponto de ser
vomitado da boca da "Testemunha fiel e verdadeira" — até mesmo nesse estado
avançado de fracasso e deserção as palavras cheias de graça: "Eis que estou à porta e
bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa , e com ele
cearei, e ele, comigo"(1), soam com poder encorajador aos ouvidos atentos.
__________
(1) Aplicar a carta solene de Cristo à igreja de Laodicéia, como vemos que é feito na
pregação evangélica, ao caso do pecador, é um grande erro. Sem dúvida, o
pregador é bem intencionado; mas o evangelho não é apresentado aqui. Não é
Cristo quem bate à porta do coração do pecador, mas à porta da igreja professante.
Que tremendo fato! Como é cheio de profunda e terrível solenidade, quanto à
igreja! Que fim a que ela chegou! Cristo fora dela! Mas que graça, da parte de
Cristo, bater à porta! Quer entrar! Ainda espera, em paciente graça, e imutável
amor, entrar em qualquer coração fiel que, individualmente, se abra para Ele. Se
alguém abrir a porta" — ainda que seja só uma pessoa! Em Sardo Ele podia falar
positivamente de "algumas pessoas"; em Laodicéia só pode falar dubiamente de
um. Mas se houvesse apenas um, Ele entraria em casa com ele e com ele cearia.
Precioso Salvador! Fiel amante das nossas almas! "Jesus Cristo, o mesmo ontem,
hoje e para sempre!"
Leitor, é caso para admirar que o inimigo procure mutilar e deturpar a carta solene
à igreja de Laodicéia — o corpo professante no último período da sua história?!
Não temos hesitação em dizer que aplicá-la meramente ao caso de uma alma
inconvertida é privar a igreja professante de um dos mais pertinentes, poderosos e
penetrantes apelos do Novo Testamento.
Assim, tanto nos dias da cristandade professante como nos dias dos patriarcas, nos
dias do Novo Testamento como nos do Velho, vemos a mesma importância e igual
valor dado ao ouvido atento e ao coração obediente. Abraão na planície de Manre,
o peregrino e estrangeiro, o fiel e obediente filho de Deus, experimentou o raro
privilégio de hospedar o Senhor da glória — um privilégio que não podia ser
conhecido por aquele que havia escolhido o seu lugar e a sua parte numa esfera
condenada à destruição. Assim também nos dias da indiferença e jactanciosa
pretensão de Laodicéia, o coração verdadeiramente obediente é animado com as
doces promessas de se assentar para cear com aquele que é "O amém, a testemunha
fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus". Em suma, seja qual for o estado
de coisas, não há limite para a bênção de toda a alma que quer atender só à voz de
Cristo e guardar os Seus mandamentos.
Recordemos isto. Deixemos que penetre no mais profundo do nosso ser moral.
Nada pode despojar-nos das bênçãos e privilégios que derivam da obediência. A
verdade deste fato brilha perante os nossos olhos em todas as páginas do volume de
Deus.
Em todas as épocas, em todos os lugares, e em todas as circunstâncias, a alma
obediente sentiu-se ditosa em Deus, e Deus achou nela o Seu prazer. E sempre
verdadeiro, qualquer que seja o caráter da dispensação, "Mas eis para quem olharei,
para o pobre e abatido de espírito e que teme da minha palavra" (Is 66:2). Nada
poderá jamais alterar ou perturbar isto. E o que vemos em capítulo 4 do precioso
livro de Deuteronômio, nas palavras com que abre esta parte: "Agora, pois, ó Israel,
ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais,
e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de vossos pais, vos dá." E o que
encontramos também nestas preciosas palavras do Senhor, em João 14, sobre as
quais já temos insistido: "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é
o que me ama." E, outra vez: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra" (1). A
mesma verdade resplandece com brilho peculiar nas palavras do inspirado
apóstolo João: "Amados, se o nosso coração nos não condena, temos confiança para
com Deus; e qualquer coisa que lhe pedirmos, dele a receberemos, porque
guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é agradável à sua vista. E o seu
mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos
amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento. E aquele que guarda os seus
mandamentos nele está, e ele nele" (1 Jo 3:21-24).
__________
(1) Existe uma diferença interessante entre os "mandamentos" e os "ditos" do
Senhor. Aqueles mostram distinta e definitivamente o que deveríamos fazer; estes
são a expressão do Seu pensamento. Se dermos uma ordem ao nosso filho, isso
representa a declaração do seu dever e se ele me ama, sentirá prazer em cumpri-la.
Mas se ele me ouvir dizer que gostaria de ver tal coisa feita, embora não lhe tenha
dito para a fazer, tocará muito mais profundamente o meu coração vê-lo fazer isso
a fim de me agradar, do que se lhe tivesse dado uma ordem positiva. Ora, não
deveríamos nós procurar agradar a Cristo?' Ele tornou- nos aceitáveis, e
certamente nós deveríamos procurar, de todos os modos possíveis, ser aceitáveis
para Ele. Ele acha o Seu deleite numa obediência amorosa; foi o que Ele próprio fez
para com o Pai. "Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40:8). "Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os
mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor" (Jo 15:10).
Oh! Se pudéssemos beber mais profundamente do Espírito de Jesus, andar nos Seus
benditos passos e render-Lhe uma mais perfeita, consagrada e sincera obediência,
em todas as coisas! Procuremos sinceramente realizar estas coisas, prezado leitor
cristão, para que o Seu coração possa achar em nós prazer e o Seu nome ser
glorificado em nós e na nossa carreira, dia a dia.
Aqui, também, tudo é tão claro como a luz do sol. Que significa a expressão:
"Quando estávamos na carne"? Significa — poderá significar que nós ainda
estamos nessa situação?- Não, evidentemente. Se eu disser: "Quando eu estava em
Londres", entenderá alguém que ainda estou em Londres?- A ideia é absurda. Mas
o que quer dizer o apóstolo com a expressão: "Quando estávamos na carne?-"
Refere-se simplesmente a uma coisa do passado, a um estado que já não existe.
Então, os crentes não estão na carne?- A Escritura assim o declara enfaticamente.
Mas quer isto dizer que não estão no corpo?- Decerto que não. Estão no corpo,
quanto ao fato da sua existência; mas não na carne, quanto ao terreno da sua
posição perante Deus.
Em capítulo 8 temos a mais clara declaração deste ponto. "Portanto, os que estão na
carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito,
se é que o Espírito de Deus habita em vós." Aqui temos a declaração de um fato
solene; e a publicação de um precioso e glorioso privilégio. "Os que estão na carne
não podem agradar a Deus." Podem ser irrepreensíveis, muito amáveis, muito
religiosos, muito benévolos, mas não podem agradar a Deus. A sua total posição é
falsa. A origem de onde emanam todas as correntes está corrompida; a raiz e tronco
de onde emanam todos os ramos estão podres — desesperadamente maus. Não
podem produzir um simples átomo de bom fruto — fruto que Deus possa aceitar.
"Não podem agradar a Deus." Devem colocar-se numa situação inteiramente nova;
devem ser uma nova vida, novos motivos, novos objetivos; numa palavra, devem
ser uma nova criação. Quão solene é tudo isto! Consideremo-lo a fundo, e vejamos
se compreendemos as palavras do apóstolo.
Mas, por outro lado, notemos os gloriosos privilégios de todos os verdadeiros
crentes. "Vós não estais na carne." Os crentes já não estão numa situação na qual
não podem agradar a Deus. Têm uma nova natureza, uma nova vida, cada
movimento da qual e quanto dela emana é agradável a Deus. O mais fraco alento
de vida divina é precioso para Deus. Desta vida o Espírito é o poder, Cristo o
objetivo, a glória a meta, o céu o lar. Tudo é divino, e portanto perfeito. Decerto, o
crente está sujeito a errar, inclinado por natureza a desviar-se, capaz de pecar.
Nele, isto é, na sua carne, não habita coisa alguma boa. Mas a sua posição está
fundada na eterna estabilidade da graça de Deus, e o seu estado é mantido pela
provisão divina que essa graça fez para si na preciosa expiação e prevalecente
advocacia do Senhor Jesus Cristo. Desta forma ele é para sempre libertado desse
terrível sistema em que as figuras proeminentes são: "A carne", "O pecado", "A
morte" — um triste grupo, sem dúvida! — e introduzido nessa cena gloriosa em
que as figuras proeminentes são "Vida", "Liberdade", "Graça", "Paz", "Justiça",
"Santidade", "Glória" e "Cristo".
"Porque não chegastes ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às trevas,
e à tempestade, e ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual os que a
ouviram pediram que se lhes não falasse mais; porque não podiam suportar o que
se lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado. E tão terrível
era a visão, que Moisés disse: Estou todo assombrado e tremendo. Mas chegastes ao
monte de Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares
de anjos, à universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos
céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados; e a Jesus, o
Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o
de Abel" (Hb 12:18-24).
Desta forma temos procurado resolver a dificuldade de qualquer leitor escrupuloso
que, até ao momento de abrir este livro, havia acalentado a convicção de que a
santidade prática e a verdadeira obediência só podem conseguir-se colocando os
crentes debaixo da lei. Esperamos que tenha seguido a evidência da Escritura que
temos posto diante de si. Se assim é, verá que colocar os crentes numa tal posição é
tirar os próprios fundamentos do cristianismo, abandonar a graça, deixar a Cristo,
voltar à carne, na qual não podemos agradar a Deus, e nos colocarmos debaixo da
maldição. Em suma, o sistema legal dos homens é diametralmente oposto ao
ensino de todo o Novo Testamento. Foi contra este sistema e os seus mantenedores
que o bem-aventurado apóstolo Paulo testificou durante toda a sua vida.
Detestou-o completamente e denunciou-o continuamente. Os mestres da lei
procuravam sempre minar e destruir os seus abençoados esforços e subverter as
almas dos seus amados filhos na fé. E impossível ler as suas fogosas expressões na
epístola aos Gálatas, as suas ardentes recomendações na sua epístola aos Efésios ou
os seus avisos solenes na epístola aos Hebreus e não ver quão intenso era o seu
aborrecimento a todo o sistema legalista dos mestres da lei, e quão amargamente
chorava sobre as ruínas do testemunho tão caro ao seu grande, amoroso e
consagrado coração.
Mas é possível que, depois de tudo quanto havemos escrito e a despeito de toda a
evidência da Escritura para a qual temos chamado a atenção do leitor, ele ainda se
sinta disposto a perguntar: "Não existe o perigo de ímpio relaxamento e leviandade
se o poder coercivo da lei é removido?" A isto respondemos simplesmente, dizendo
que Deus é mais sábio do que nós. Ele sabe melhor como curar o relaxamento e a
leviandade e como produzir a verdadeira espécie de obediência. Experimentou a
lei, e o que produziu ela? Produziu a ira. Deu lugar a que o pecado abundasse.
Desenvolveu "as paixões dos pecados". Introduziu a morte. Era a força do pecado.
Privou o pecador de todo o poder. Matou-o. Era a condenação. Amaldiçoava todos
que tinham de tratar com ela. "Todos aqueles pois que são das obras da lei estão
debaixo da maldição." E tudo isto, não por causa de algum defeito da lei, mas por
causa da absoluta impossibilidade de o homem a cumprir.
Não é evidente para o leitor de que nem a vida, nem a justiça, nem a santidade,
nem a verdadeira obediência cristã podiam jamais ser conseguidas debaixo da lei?
Será possível que, depois de tudo quanto tem passado em revista perante nós, possa
ter alguma simples objeção, uma simples dúvida, uma só dificuldade? Cremos que
não. Ninguém que esteja disposto a curvar-se perante o ensino e a autoridade do
Novo Testamento pode ser partidário, por um só momento, do sistema legalista.
Todavia antes de darmos por terminado este grave e importantíssimo assunto,
apresentaremos ao leitor uma ou duas passagens da Escritura nas quais as glórias
morais do cristianismo resplandecem com peculiar fulgor em vivo contraste com
toda a economia moisaica.
Antes de tudo, notemos a passagem tão conhecida com que abre o capítulo oitavo
de Romanos: "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em
Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei
do espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte.
Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus,
enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o
pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o espírito" (versículos 1 a 4).
Ora, nós devemos ter em conta que o versículo 1 mostra a posição de todo o
cristão, quer dizer, a sua posição perante Deus. Está "em Cristo Jesus". Isto é
conclusivo. Não está na carne; não está debaixo da lei; está absolutamente e
eternamente "em Cristo Jesus". Por isso não há, não pode haver condenação. O
apóstolo não fala nem se refere à nossa conduta ou ao nosso estado. Se assim fosse
não poderia, de modo algum, falar de "nenhuma condenação". A conduta cristã
mais perfeita que jamais se há observado, o estado mais perfeito que jamais se há
alcançado, dariam algum motivo para juízo e condenação. Não há um cristão na
face da terra que não tenha, diariamente, de julgar o seu estado e a sua conduta —
o seu estado cristão moral e a sua vida prática. Como poderia, pois, relacionar-se ou
basear-se a "não condenação" com a conduta cristã? Seria impossível. A fim de
estarmos livres de toda condenação, temos de possuir o que é divinamente
perfeito, e nenhuma conduta cristã o é ou jamais o foi. Até mesmo Paulo teve de
retirar as suas palavras (At 23:5). Arrependeu-se de haver escrito uma carta (2 Co
7:8). Um estado perfeito e uma perfeita conduta encontraram-se somente em Um
— Jesus. Em todos os demais, até nos mais santos e melhores se encontraram
defeitos.
Portanto, a segunda cláusula de Romanos 8 deve ser rejeitada como uma
intercalação. Não é Escritura. Isto, cremos, será compreendido por todo aquele que
é realmente ensinado por Deus, pondo de lado todas as questões de mera crítica.
Toda a mente espiritual descobrirá a incongruência entre as palavras "nenhuma
condenação" e "andam". As duas coisas não podem harmonizar-se. E aqui, sem
dúvida, é precisamente onde milhares de almas piedosas se têm visto envolvidas
em dificuldades quanto a esta passagem realmente magnífica e libertadora. O som
alegre, "Não há condenação", tem sido despojado do seu profundo, pleno e bendito
significado por uma cláusula introduzida por algum escriba ou copista cuja fraca
visão ficou deslumbrada, sem dúvida, pelo brilho dessa livre, absoluta, soberana
graça que resplandece na expressão com que abre o capítulo. Quantas vezes temos
nós ouvido palavras como estas: "Oh, sim, eu sei que não há condenação para os
que estão em Cristo Jesus! Mas isso é se eles não andam segundo a carne, mas
segundo o Espírito. Ora eu não posso dizer que ando assim,
Anelo fazê-lo; e deploro o meu fracasso. Daria todo o mundo para poder
conduzir-me com mais perfeição; mas, ah, tenho de julgar-me a mim mesmo — o
meu estado, a minha conduta, os meus caminhos, cada dia, cada hora! Sendo assim,
não me a atrevo aplicar a mim próprio as preciosas palavras, "não há condenação".
Espero poder fazê-lo, algum dia, quando tiver feito mais progresso em santidade
pessoal; mas, no meu estado atual, consideraria atrevida presunção apropriar a
mim próprio a preciosa verdade contida na primeira cláusula de Romanos 8."
Tais pensamentos têm passado pela mente de muitos de nós, se é que não têm sido
expressos por palavras. Mas a resposta mais simples e conclusiva para todos estes
argumentos encontra-se no fato de que a segunda cláusula de Romanos 8, 1, não é
de modo nenhum um texto da Escritura; mas uma enganadora interpolação,
estranha ao espírito do cristianismo; oposta a todo o conjunto de argumentação no
contexto em que ocorre; e totalmente destrutiva da sólida paz do cristão. E um fato
bem conhecido de todos os que estão ao corrente da crítica bíblica que todas as
autoridades de renome estão de acordo em rejeitar a segunda cláusula de Romanos
8:1 (1). Trata-se simplesmente de confirmar, como deve ser o caso de toda a boa
crítica, a conclusão a que a mente espiritual chega, sem nenhum conhecimento de
crítica.
__________
(1) Talvez que o leitor se sinta disposto, à semelhança de muitos outros, a dizer,
"Como pode um indivíduo inculto saber o que é a Escritura e o que não é? Deve ele
depender de mestres e críticos para lhe darem a certeza sobre um assunto tão grave
e importante? Se assim é, não será isso a velha história de procurar a autoridade
humana para confirmar a palavra de Deus?‖
De modo nenhum. E um caso muito diferente. Sabemos todos que todas as
traduções e os exemplares devem ser, em alguns pontos, imperfeitos, por serem
humanos; mas nós cremos que a mesma graça que deu a Palavra no original hebreu
e grego, tem, maravilhosamente, vigiado a nossa tradução, de forma que um pobre
homem, vivendo nas montanhas, pode ficar certo de possuir na sua Bíblia vulgar a
revelação da mente de Deus.
É maravilhoso, depois de todos os labores de mestres e críticos, como tão poucas
passagens tiveram de ser adaptadas; e sem nenhuma afetar qualquer doutrina
fundamental do Cristianismo. Deus que nos deu em Sua graça as Sagradas
Escrituras, no princípio, tem-nas guardado e preservado para a Sua igreja da
maneira mais maravilhosa. Além disso, aprouve-Lhe empregar os labores dos
sábios e críticos, através dos séculos, para limpar o texto de erros que, devido às
imperfeições humanas, haviam sido introduzidos. Estas correções devem
induzir-nos a duvidar que possuímos, de fato, a Palavra de Deus? Não; antes pelo
contrário levam-nos a bem-dizer a Deus pela Sua bondade em guardar a Sua
Palavra a fim de a preservar em sua integridade para a Sua igreja.
Mas, como aditamento a tudo quanto havemos dito a respeito desta questão, não
podemos deixar de pensar que a ocorrência da cláusula, "que não anda segundo a
carne, mas segundo o Espírito", em versículo 4, proporciona abundante evidência
da sua colocação imprópria no versículo 1. Não podemos admitir, nem por um
momento, o pensamento de redundância na Sagrada Escritura. Ora no versículo 4
é uma questão de conduta — uma questão do nosso cumprimento da "justiça da
lei", e por isso a cláusula encontra-se no seu próprio lugar, porque é divinamente
apropriada para ele. Uma pessoa que anda em Espírito — como todo o cristão deve
fazer — cumpre a justiça da lei. O amor é o cumprimento da lei; e o amor nos
levará a fazer o que os dez mandamentos não puderam conseguir, isto é, a amar os
nossos inimigos. Nenhum amante da santidade, nenhum defensor da justiça
prática, terá jamais de recear perder coisa alguma por abandonar o terreno legalista
e tomar o seu lugar na elevada plataforma do cristianismo — por abandonar o
monte do Sinai pelo monte de Sião — de passar de Moisés para Cristo. Não; apenas
alcança uma origem mais elevada, uma fonte mais profunda, uma esfera de
santidade mais ampla, justiça e obediência prática.
E então, se alguém se sentisse disposto a perguntar: "A linha de argumentação que
temos seguido não contribui para despojar a lei da sua glória característica"?-" A
nossa resposta é seguramente não. Longe disso, a lei nunca foi tão engrandecida,
tão justificada, tão confirmada, tão glorificada, como por essa preciosa obra que
forma o fundamento imperecível de todos os privilégios, bênçãos, dignidade e
glória do cristianismo. O bem- aventurado apóstolo antecipa e responde esta
própria interrogação na primeira parte da sua epístola aos Romanos. "Anulamos",
diz ele, "pois a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei" (Rm
3:31). De que modo poderia ser a lei mais gloriosamente justificada, honrada e
engrandecida que pela vida e morte do Senhor Jesus Cristo"?- Quererá alguém, por
um momento, manter a extravagante ideia que é engrandecer a lei pôr os crentes
debaixo dela? Cremos sinceramente que o leitor não é dessa opinião. Ah, não! Toda
essa série de coisas há de ser completamente abandonada por aqueles que têm o
privilégio de andar na luz da nova criação; que conhecem a Cristo como a sua vida,
e Cristo como a sua justiça — Cristo, sua santificação, Cristo, seu grande exemplo,
Cristo seu modelo, Cristo, tudo em todos; que acham o seu motivo para obediência
não no temor das maldições de uma lei quebrantada, mas no amor de Cristo,
segundo essas palavras perfeitamente belas: "O amor de Cristo" não a lei de Moisés
— "nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo, todos
morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si,
mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co 5:14-15).
Poderia a lei produzir alguma coisa semelhante a isto?- Impossível. Mas, bendito
seja para sempre o Deus de toda a graça, "O que era impossível à lei" — não porque
não era santa, justa e boa
— "visto como estava enferma pela carne" —o artífice era bom, mas o
material estava pobre e nada podia ser feito dele — "Deus, enviando o seu Filho em
semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para
que a justiça da lei se cumprisse em nós" — como ressuscitados com Cristo, unidos
a Ele pelo Espírito Santo no poder de uma nova e eterna vida — "que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8:3, 4).
Isto e somente isto é verdadeiro, prático cristianismo; e se o leitor voltar a sua
atenção para o segundo capítulo de Gálatas, descobrirá outra dessas excelentes e
brilhantes expressões do bendito apóstolo mostrando com divino poder e
plenitude a glória de vida e conduta cristãs. E em relação com a sua fiel repreensão
ao apóstolo Pedro, em Antioquia, quando este amado e honrado servo de Cristo,
por sua característica fraqueza, havia sido induzido a descer, por um momento, do
elevado terreno moral em que o evangelho da graça de Deus coloca a alma. Não
podemos fazer melhor do que reproduzir todo o parágrafo para proveito do leitor.
Cada frase está cheia de poder espiritual.
"E, chegando Pedro à Antioquia, lhe resisti na cara" — não procurou
desacreditá-lo e rebaixá-lo nas suas costas perante outros, ainda que "era
repreensível". "Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago,
comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando e se apartou
deles, temendo os que eram da circuncisão. E os outros judeus também
dissimulavam com ele, de maneira que até Barnabé se deixou levar pela sua
dissimulação. Mas, quando vi que não andavam bem e direitamente conforme a
verdade do evangelho, disse a Pedro na presença de todos: Se tu, sendo judeu, vives
como os gentios e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como
judeus«!- Nós somos judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios.
Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus
Cristo, temos também crido em Jesus Cristo para sermos justificados pela fé de
Cristo, e não pelas obras da lei, porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será
justificada. Pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo nós mesmos
também somos achados pecadores, é 'porventura' Cristo ministro do pecado«? De
maneira nenhuma (ou longe de nós tal pensamento). Porque, se torno a edificar
aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor" — pois se as coisas
eram boas, porque destruí-las«?- E se eram más, porque voltar a edificá-las«? —
"Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus. Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne vivo-a — não pela lei, como uma regra da vida, mas — na fé do
Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim. Não aniquilo a
graça de Deus; porque, se a justiça porém da lei, segue-se que Cristo morreu
debalde" (Gl 2:11-21).
Aqui temos, pois, uma das mais belas afirmações que poderíamos encontrar da
verdade quanto ao cristianismo prático. Mas o que chama imediatamente a nossa
atenção de um modo especial é a maneira bem precisa e formosa com que o
evangelho de Deus traça a senda do verdadeiro crente entre os dois erros fatais da
legalidade, por um lado, e da relaxação carnal, por outro. O versículo 19 da
passagem citada contém o remédio divino para esses dois perigos mortais. A todos,
quem quer que sejam e onde quer que estejam, que procuram pôr o cristianismo
debaixo da lei, de qualquer maneira, ou por qualquer motivo que seja, o nosso
apóstolo exclama: — aos ouvidos dos judeus dissimulados, com Pedro à sua cabeça,
e como resposta a todos os mestres da lei de todas as épocas — "Eu estou morto
para a lei."
Que tem a dizer a lei a um morto?- Nada. A lei aplica-se ao homem vivo, para o
amaldiçoar e matar, porque ele não a guardou. E um erro grave, com efeito,
ensinar que a lei está morta ou que foi abolida. Nada disso. Está viva em toda a sua
força e em todo o seu rigor, em toda a sua majestade, em toda a sua inflexível
dignidade. Seria um erro muito grave dizer que a lei de Inglaterra contra o
assassinato está morta. Mas se um homem está morto, a lei não se lhe aplica mais,
visto que está morto passou inteiramente para fora do seu alcance.
Porém, como está o crente morto para a lei<? O apóstolo responde: "Porque eu pela
lei estou morto para a lei." A lei havia ditado a sentença de morte em sua
consciência, segundo lemos em Romanos 7. "E eu, nalgum tempo, vivia sem lei,
mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri; e o mandamento que era
para vida, achei eu que era para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo
mandamento, me enganou e, por ele me matou."
Mas há mais do que isto. O apóstolo continua dizendo: "Já estou crucificado com
Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim." E aqui está a triunfante
resposta do cristão aos que dizem que, visto a lei moisaica estar anulada, não há
mais restrição legal sob a qual os judeus foram chamados a viver. A todos quantos
buscam liberdade para a indulgência própria, a resposta é: "Estou morto para a lei",
não para poder dar rédea solta à carne, mas "para poder viver para Deus."
Desta forma nada pode ser mais completo, nada mais moralmente belo que a
resposta do verdadeiro cristianismo à legalidade por um lado, e à libertinagem, por
outro. Autocrucificação; o pecado condenado; nova vida em Cristo; uma vida para
ser vivida para Deus; uma vida de fé no Filho de Deus; o amor de Cristo, que nos
constrange, como motivo originário dessa vida. O que pode exceder isto?- Quererá
alguém, em vista das glórias morais do cristianismo, lutar para pôr os crentes
debaixo da lei, para os pôr outra vez na carne, outra vez velha criação, novamente
sob a sentença de morte na consciência, novamente na escravidão, trevas, temor
da morte e condenação?-
Será possível que todo aquele que tem provado, até mesmo na mais fraca medida, a
doçura celestial do bendito evangelho de Deus, possa aceitar o desprezível sistema
mesclado de metade da lei e metade da graça que a cristandade oferece à alma?-
Quão terrível é encontrar os filhos de Deus, membros do corpo de Cristo, templos
do Espírito Santo, despojados dos seus gloriosos privilégios e carregados com um
pesado jugo que, como diz Pedro: "Nem nós nem nossos pais pudemos suportará"
(At 15:10). Rogamos sinceramente ao leitor crente que medite o que tem sido
exposto. Examine as Escrituras; e se achar que estas coisas são assim, então ponha
de lado para sempre a mortalha em que a cristandade envolve os seus iludidos
adeptos, e ande na liberdade com que Cristo libertou o Seu povo; arranque a venda
com que ela cobre os olhos dos homens e contemple as glórias morais que
resplandecem com fulgor celestial no evangelho da graça de Deus.
E então demonstremos por uma conduta santa, feliz, de graciosa conversação, que
a graça pode fazer o que a lei não pôde jamais conseguir. Que o nosso
comportamento dia a dia, no meio das cenas, circunstâncias, relações e associações
entre as quais havemos de viver, seja a resposta mais convincente a todos os que
contendem a favor da lei como regra de vida.
Finalmente, que o nosso desejo sincero e apaixonante aspiração seja procurar,
tanto quanto depende de nós, guiar todos os queridos filhos de Deus a um mais
claro conhecimento da sua posição e privilégios num Cristo ressuscitado e
glorificado. Possa o Senhor mandar a Sua luz e a Sua verdade no poder do Espírito
Santo, e juntar o Seu amado povo em redor de Si Mesmo para andar no gozo da Sua
Salvação, na pureza e luz da sua presença e para aguardar a Sua vinda!
Obedientes a Jesus Cristo
Não tentaremos fazer uma apologia pelo que talvez possa parecer a alguns dos
nossos leitores ser uma longa digressão do capítulo 4 de Deuteronômio. O fato é
que temos sido conduzidos ao que julgamos ser uma linha muito necessária de
verdade prática pelo primeiro versículo do capítulo, citado no começo desta parte.
Parece-nos absolutamente necessário, ao falar da importante questão da
obediência, procurar colocá-la na sua verdadeira base. Se Israel foi chamado a
"ouvi e a fazer", quanto mais o somos nós, que somos ricamente abençoados — sim,
"abençoados com todas as bênçãos espirituais" nos lugares celestiais em Cristo
Jesus. Somos chamados para a obediência, obediência de Jesus Cristo, como lemos
em 1 Pedro 1. "Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do
Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo." Somos chamados
para o mesmíssimo caráter de obediência que caracterizou a vida de nosso bendito
Senhor Jesus Cristo. Evidentemente, n'Ele não houve influência embaraçosa,
como infelizmente há em nós. Mas quanto ao caráter de obediência é o mesmo.
Isto é um imenso privilégio. Somos chamados para andar nas pisadas do Senhor
Jesus. "Aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou." Ora,
ponderando a senda de nosso Senhor, considerando a Sua maravilhosa vida, há um
ponto que requer a nossa profunda e reverente atenção — um ponto que se
relaciona de uma maneira muito especial com o livro de Deuteronômio, e que
consiste na maneira em que Ele sempre empregou a palavra de Deus—o lugar que
sempre deu às Sagradas Escrituras. Cremos ser um assunto da maior importância,
nestes dias. Ocupa um lugar proeminente através de todo o livro formoso com que
estamos presentemente ocupados. Com efeito, conforme temos já observado,
caracteriza o livro e é o que o distingue dos três livros precedentes no cânon
divino. Encontraremos provas e ilustrações disto em abundância à medida que o
vamos estudando. Por toda a parte a Palavra de Deus ocupa o seu lugar dominante
como a única regra, a única autoridade e o único padrão para o homem.
Apresenta-se em toda a situação e relação, em que se encontre e em toda a esfera
de ação durante toda a sua história moral e social. Diz-lhe o que deve fazer.
Proporciona-lhe amplo conselho em todas as dificuldades. Desce, como veremos,
aos mais minuciosos pormenores — tais que, na verdade, nos enche de admiração
pensar que o altíssimo e onipotente Senhor, que habita na eternidade, possa
ocupar-Se deles: ao pensar que o Criador onipotente e Mantenedor do vasto
universo pudesse deter-Se para legislar acerca do ninho de uma ave (cap. 22:6).
Tal é a palavra de Deus, a incomparável revelação, esse perfeito e inimitável
Volume que se mantém único na história da literatura. E podemos dizer que é um
dos encantos especiais do livro de Deuteronômio; e um dos seus especiais aspectos
mais interessantes é o modo como exalta a Palavra de Deus e reforça em nós o
santo, feliz dever de obediência inabalável.
Sim, repetimos, e queremos ardentemente acentuar as palavras — obediência
inabalável. Gostaríamos de fazer soar estas palavras salutares aos ouvidos dos
cristãos professos por toda a terra. Vivemos em dias especialmente caracterizados
pela glorificação da razão humana, do critério humano e da vontade humana. Em
suma, vivemos no que o apóstolo inspirado chama "o dia do homem". Por toda a
parte encontramos altivas, jactanciosas palavras sobre a razão humana e o direito
de cada homem julgar e pensar e raciocinar por si próprio. A ideia de sermos
absoluta e completamente governados pela autoridade da Sagrada Escritura é
tratada com soberano desdém por milhares de homens que são mestres e guias
religiosos da igreja professante. Se alguém afirma a sua crença reverente na
inspiração plenária, inteira suficiência e absoluta autoridade da Escritura, é logo
marcado como ignorante, de espírito apoucado, senão como de semilunático, na
opinião de alguns que ocupam as mais altas posições na igreja professante. Nas
nossas universidades, colégios e escolas, a glória moral do Volume Divino está
decaindo rapidamente, e, em vez dela, guia-se e ensina-se a nossa juventude a
andar na luz da ciência, na luz da razão humana. A própria Palavra de Deus é
impiamente colocada perante o juízo humano e reduzida ao nível da compreensão
humana. Tudo quanto se remonta mais além da fraca visão do homem é rejeitado.
Desta forma a Palavra de Deus é virtualmente posta de lado. Pois é evidente que se
a Escritura tem de ser submetida ao critério humano deixa de ser a Palavra de
Deus. E o cúmulo da loucura pensar em submeter uma revelação divina e portanto
perfeita a qualquer tribunal seja ele qual for. Ou Deus nos tem dado uma revelação,
ou não. Se o tem feito, essa revelação tem de ser soberana, suprema, acima e além
de toda a questão, absolutamente indiscutível, infalível, divina. Ante a sua
autoridade todos devem inclinar-se incondicionalmente. Supor, ainda que seja por
um momento, que o homem é competente para julgar a Palavra de Deus, capaz de
se pronunciar sobre o digno ou não digno de Deus dizer ou escrever, é
simplesmente pôr o homem no lugar de Deus. E isto é precisamente o que o diabo
aspira, embora muitos dos seus instrumentos não saibam que o estão ajudando nos
seus desígnios.
"Não esqueças"
Mas o pobre coração humano é propenso a afastar-se; e múltiplas influências estão
em operação ao redor de nós para nos desviarem do caminho estreito de
obediência. Não nos maravilhemos, pois, das solenes e tão repetidas admoestações
de Moisés aos corações e consciências dos seus ouvintes. Derrama o seu coração
amoroso na congregação tão querida para ele em brilhantes, sinceros e comoventes
acentos: "Tão-somente guarda-te a ti mesmo" — diz ele —, "e guarda bem a tua
alma, que te não esqueças daquelas coisas que os teus olhos têm visto, e se não
apartem do teu coração todos os dias da tua vida, e as farás saber a teus filhos e aos
filhos de teus filhos" (versículo 9).
São palavras graves para todos nós. Põem diante de nós duas coisas de inefável
importância a saber, responsabilidade individual e doméstica — testemunho
pessoal e familiar. O povo de Deus da antiguidade era responsável por guardar o
coração com toda a diligência, a fim de que não deixasse a preciosa Palavra de
Deus. E não somente isso, mas estavam solenemente obrigados a instruir os seus
filhos e os seus netos nela. Somos nós, com toda a nossa luz e privilégios, menos
responsáveis do que o antigo Israel*?- Claro que não. Somos imperativamente
chamados para nos entregarmos ao estudo diligente da Palavra de Deus, a aplicar
os nossos corações a ela. Não é bastante lermos à pressa alguns versículos ou um
capítulo, como diária rotina religiosa. Isto não satisfará em absoluto. Precisamos de
fazer da Bíblia o nosso supremo estudo absorvente; no qual nos deleitamos, em que
encontramos o nosso refrigério e recreio.
É de recear que muitos de nós lemos a Bíblia como um dever, enquanto que
encontramos o nosso deleite e recreio nos periódicos e literatura frívola. É de
admirar que o nosso conhecimento da Escritura seja superficial <?• Como podemos
conhecer alguma coisa das vivas profundidades e glórias morais de um Volume do
qual simplesmente pegamos como dever e lemos alguns versículos com sonolenta
indiferença, enquanto que, ao mesmo tempo, o jornal ou a novela romântica é
literalmente devorada?
Dir-se-á talvez em resposta: "Não podemos estar sempre lendo a Bíblia." Oxalá os
que assim falam pudessem dizer: "Não podemos estar sempre lendo o jornal ou
uma novela." E nós queremos também perguntar, qual deve ser o estado atual de
uma pessoa que pode dizer: "Não podemos estar sempre lendo a Bíblia"? Pode estar
em estado de saúde espiritual? Pode realmente amar a Palavra de Deus?- Pode ter
uma ideia exata da sua preciosidade, sua excelência e das suas glórias morais?- E
impossível.
Que significam as seguintes palavras a Israel: "Ponde, pois, estas minhas palavras
no vosso coração e na vossa alma, e atai-as por sinal na vossa mão, para que estejam
por testeiras entre os vossos olhos"<r (Dt 11:18). O "coração", a "alma", "a mão", os
"olhos" — tudo ocupado com a preciosa Palavra de Deus. Isto era verdadeira obra.
Não devia ser uma formalidade vazia, uma estéril rotina. O homem devia
entregar-se inteiramente com santa devoção aos estatutos e mandamentos de
Deus.
Sempre a Idolatria...
Mas talvez alguém diga: Isto diz-nos respeito? Os crentes devem aprender alguma
coisa do bezerro fundido de Israel? E os avisos feitos a Israel contra a idolatria
dizem respeito em sentido algum à Igreja? Corremos nós risco de nos curvarmos
ante uma imagem de fundição? E possível que nós, cujo elevado privilégio é andar
à luz universal do cristianismo do Novo Testamento, possamos jamais adorar um
bezerro fundido?
A tudo isto nós respondemos, antes do mais, na linguagem de Romanos 15, 4:
"Porque tudo que dantes foi escrito — incluindo Êxodo 22 e Deuteronômio 4 —
para nosso ensino foi escrito, para que, pela paciência e consolação das Escrituras,
tenhamos esperança." Esta breve passagem contém o nosso direito de percorrer o
vasto campo da Escritura do Velho Testamento e recolher e apropriarmo-nos das
suas preciosas lições para nos alimentarmos das suas "grandes e preciosas
promessas"; para beber nas suas profundas e variadas consolações e lucrar com os
seus solenes avisos e sãs admoestações.
E então, quanto a sermos capazes ou a estarmos sujeitos a cair no pecado grosseiro
de idolatria, temos uma notável resposta em 1 Coríntios 10, onde o apóstolo
inspirado emprega a própria cena do monte Horebe como um aviso para a Igreja de
Deus. O melhor que podemos fazer é citar toda a passagem. Nada há comparável à
Palavra de Deus. Possamos nós amá-la, exaltá-la e reverenciá-la mais e mais, dia a
dia!
"Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem" — aqueles cujos cadáveres caíram no deserto, bem como os que
alcançaram a terra da promessa —, "e todos passaram pelo mar, e todos foram
batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de um mesmo manjar
espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da
pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" — Quão enérgico, quão solene
e quão penetrante é isto para todos os críticos! — "Mas Deus não se agradou da
maior parte deles, pelo que foram prostrados no deserto. E essas coisas foram-nos
feitas em figura" — notemos atentamente isto — "para que não cobicemos as coisas
más" — coisas que são contrárias à mente de Cristo — "como eles cobiçaram. Não
vos façais, pois, idólatras" — de forma que os crentes professantes podem ser
idólatras — "como alguns deles; conforme está escrito: O povo assentou-se a comer
e a beber e levantou-se para folgar. E não nos prostituamos, como alguns deles
fizeram, e caíram num dia vinte e três mil. E não tentemos a Cristo, como alguns
deles também tentaram, e pereceram pelas serpentes. E não murmureis, como
também alguns deles murmuraram, e pereceram pelo destruidor. Ora, tudo isto
lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são
chegados os fins dos séculos. Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia"
(versículos 1 a 12).
Aqui aprendemos da maneira mais clara que não há medida de pecado ou de
loucura, não há forma de depravação moral em que não somos capazes de cair, em
qualquer momento, se não somos guardados pelo poder de Deus. Não existe
segurança para nós senão no abrigo da presença divina. Sabemos que o Espírito de
Deus não nos previne contra coisas a que não estamos expostos. Não nos diria:
"Não vos façais, pois, idólatras", se não fôssemos capazes de o ser. A idolatria toma
várias formas. Não se trata, portanto, de uma questão de forma, mas da própria
coisa em si; não da forma exterior, mas da raiz ou princípio da própria coisa. Lemos
que "a avareza é idolatria"; e um homem avarento é um idólatra. Quer dizer, um
homem que deseja ter mais que Deus lhe tem dado é um idólatra — é com efeito
culpado do pecado de Israel quando eles fizeram um bezerro de ouro e o adoraram.
O bem-aventurado apóstolo podia muito bem dizer aos Coríntios — dizer-nos a
nós — "Portanto, meus amados irmãos, fugi da idolatria." Porque somos
admoestados a fugir de uma coisa a que não estamos expostos? Há no Volume
divino algumas palavras fúteis? O que querem dizer essas palavras finais da
Primeira Epístola de João: "Filhinhos, guardai-vos dos ídolos?" Dizem-nos que
estamos em perigo de adorar ídolos?- Certamente que sim. Os nossos corações
traiçoeiros são capazes de se afastarem do Deus vivo e de levantar algum outro
objeto além d'Ele. E o que é isto senão idolatria?- Qualquer coisa que domine o
coração é o ídolo do coração, seja o que for: dinheiro, prazeres, poder ou qualquer
coisa mais; de forma que podemos bem ver a urgente necessidade dos muitos avisos
que nos são dados pelo Espírito Santo contra o pecado da idolatria.
Mas nós temos em capítulo 4 de Gálatas uma notável passagem, uma passagem que
fala, no mais impressionante tom, à igreja professante. Os gálatas, como todos os
outros gentios, haviam adorado ídolos; mas quando do acolhimento do evangelho,
haviam-se convertido dos ídolos para servir o Deus vivo e verdadeiro. Os
ensinadores judaizantes, não obstante, tinham vindo até junto deles e ensinado
que a menos que fossem circuncidados e guardassem a lei, não podiam ser salvos.
Ora, a isto o bem-aventurado apóstolo chama sem hesitação idolatria — um
retrocesso à grosseira e moral degradação dos tempos anteriores, e tudo isto depois
de haverem professado receber o glorioso evangelho de Cristo. Daí a força moral
da interrogação do apóstolo: "Mas, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que
por natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus", ou, antes, sendo
conhecidos de Deus, "como tomais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres,
aos quais de novo quereis servirá Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio
de vós que não haja trabalho em vão para convosco."
Isto é especialmente notável. Os gálatas não estavam voltando ostensivamente ao
culto dos ídolos. Não é improvável que tivessem repudiado com indignação uma
tal ideia. Mas, apesar disso, o apóstolo inspirado pergunta-lhes: "Como tornais
outra vez? O que significa esta interrogação, se eles não estavam voltando para a
idolatria? E o que vamos nós aprender, agora, de toda essa passagem?
Simplesmente isto: que a circuncisão, a observância da lei, a guarda de dias e
meses, e tempos e anos, tudo isto, embora em aparência fosse tão diferente, era
nada mais, nada menos que voltar à sua antiga idolatria. A observância de dias e o
culto de deuses falsos eram coisas pelas quais eles se apartavam do Deus vivo e
verdadeiro; de Seu Filho Jesus Cristo; do Espírito Santo; desse brilhante
agrupamento de dignidades e glórias que pertencem ao cristianismo.
Tudo isto é peculiarmente solene para os crentes professos. Duvidamos que a plena
importância de Gálatas 4:8-10 seja realmente compreendida pela grande maioria
daqueles que professam crer na Bíblia. Chamamos solenemente a atenção para
todo este assunto de todos aqueles a quem ele possa interessar. Rogamos a Deus
que o use com o propósito de despertar os corações e as consciências do Seu povo
em toda a parte para considerarem a sua posição, os seus hábitos, caminhos e
ligações; e indagarem até onde estão realmente seguindo o exemplo da assembleia
de Galácia na observância de dias santos e coisas que tais que só podem afastar-nos
de Cristo e da Sua gloriosa salvação.
Virá um dia que abrirá os olhos de milhares para a realidade destas coisas; e então
verão o que agora recusam ver — que as próprias formas mais grosseiras e
tenebrosas do paganismo podem ser reproduzidas sob o nome do cristianismo, e
relacionadas com as verdades mais sublimes que jamais deslumbraram o
entendimento humano.
Mas por tardos que possamos ser em admitir a nossa inclinação para cair no pecado
de idolatria, é muito claro no caso de Israel, que Moisés, ensinado e inspirado por
Deus, sentiu a profunda necessidade de os advertir desse pecado nos termos mais
solenes e tocantes. Fez-lhes apelos de todos os pontos de vista possíveis, e reiterou
os seus conselhos e admoestações de uma forma tão impressionante, que,
seguramente, eles ficavam sem desculpa. Nunca poderiam dizer que se caíam em
idolatria era por falta de aviso ou de pedidos cheios de graça e afetuosos. Pense-se
nas palavras seguintes: "Mas o SENHOR vos tomou e vos tirou do forno de ferro do
Egito, para que lhes sejais por povo hereditário, como neste dia se vê" (versículo
20).
Podia haver alguma coisa mais tocante do que isto? O Senhor, em Sua rica e
soberana graça, e por Sua poderosa mão tirara-os da terra da morte e trevas, um
povo redimido e libertado. Tirou-os para Si mesmo, para que eles pudessem ser o
Seu povo peculiar de entre todos os povos da terra. Como poderiam então
apartar-se d'Ele, do Seu concerto e dos Seus preciosos mandamentos?
Mas, ah, puderam e fizeram-no! Fizeram um bezerro de fundição. Então disseram:
"Estes são teus deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito." Pense-se nisto!
Um bezerro feito por suas próprias mãos — uma imagem, esculpida por parte e
imaginação humana, tinha-os tirado do Egito! Um objeto feito dos brincos das
orelhas das mulheres havia-os redimido e libertado! E isto foi escrito para nosso
ensino. Mas por que havia de ser escrito para nosso ensino se não fôssemos capazes
de cometer o mesmo pecado e não estivéssemos expostos a ele? Ou havemos de
admitir que Deus, o Espírito Santo, escreveu uma expressão desnecessária ou
admitir a nossa necessidade de admoestação contra o pecado de idolatria; e,
seguramente, a nossa necessidade de admoestação prova a nossa inclinação para
esse pecado.
Somos nós melhores do que Israel? De modo nenhum. Temos luz mais brilhante e
mais elevados privilégios; mas, no que nos diz respeito, somos feitos do mesmo
material, temos as mesmas capacidades e as mesmas inclinações que eles tinham. A
nossa idolatria pode tomar uma forma diferente da deles; mas idolatria é idolatria,
seja qual for a sua forma; e quanto mais elevados os nossos privilégios, tanto maior
o nosso pecado. Podemo-nos sentir talvez dispostos a estranhar que um povo
racional pudesse ser culpado de tão perversa loucura como a de fabricar uma vaca e
de se inclinar perante ela, e isto depois de ter tido uma tal manifestação da
majestade, poder e glória de Deus. Recordemos que a sua loucura está mencionada
para nossa admoestação; e que, nós com toda a nossa luz, todo o nosso
conhecimento, todos os nossos privilégios, somos avisados para "fugir da idolatria".
Meditemos atentamente em tudo isto e busquemos o proveito que dele se pode
tirar. Que todo o nosso coração seja cheio de Cristo, e então não teremos lugar para
ídolos. Esta é a nossa salvaguarda. Se nos afastamos, ainda que seja no mínimo
sentido, do nosso bendito Salvador e Pastor, somos capazes de cair nas formas mais
tenebrosas de erro e pecado moral. Luz, conhecimento, privilégios espirituais,
posição eclesiástica, benefícios sacramentais não são uma segurança para a alma.
São muito bons, no seu próprio lugar, e se forem convenientemente usados; mas,
em si mesmos, apenas aumentam o nosso perigo moral.
Nada pode manter-nos em segurança, justiça e felicidade senão a presença de
Cristo pela fé em nossos corações. Permanecendo n'Ele e Ele em nós, o maligno
não pode tocar-nos. Mas se a comunhão pessoal não for diligentemente mantida,
quanto mais alta for a nossa posição, maior será o nosso perigo e mais desastrosa a
nossa queda. Não houve nação abaixo da abóbada celeste mais favorecida e
exaltada do que Israel quando se juntou em redor do monte Horebe para ouvir a
Palavra de Deus. Não houve nação à face da terra mais aviltada ou mais culpado do
que ela quando se inclinou perante o bezerro de ouro, uma imagem feita por suas
próprias mãos.
O Julgamento Começa pela Casa de Deus
Devemos agora dar a nossa atenção a um fato do maior interesse apresentado no
versículo 21 do nosso capítulo, e isto é que Moisés, pela terceira vez, recorda à
congregação o tratamento judicial de Deus com ele próprio. Havia falado desse
fato, como havemos visto, em capítulo 1:37; e outra vez em capítulo 3:26; e aqui,
outra vez, ele diz-lhes; "Também o SENHOR se indignou contra mim, for causa
das vossas palavras, e jurou que eu não passaria o Jordão e que não entraria na boa
terra que o SENHOR, teu Deus, te dará por herança. Porque nesta terra morrerei,
não passarei o Jordão; porém vós o passareis e possuireis aquela boa terra."
Agora, podemos perguntar, por que está tríplice referência ao mesmo fato?- E por
que a especial menção em todas elas da circunstância que Javé estava indignado
com ele por causa deles?- Uma coisa é certa: não era com o propósito de lançar a
culpa sobre o povo, ou de se excluir a si próprio. Ninguém senão um infiel poderia
pensar tal coisa. Nós cremos que o simples objetivo era dar maior força moral ao
seu apelo, mais solenidade à voz da sua advertência. Se o Senhor estava indignado
com uma pessoa como Moisés; se ele, por causa de haver falado imprudentemente
junto às águas de Meriba, era proibido de entrar na terra prometida — por muito
que ele o desejasse — quão necessário era que eles tomassem cuidado! É uma coisa
séria ter que tratar com Deus — bem-aventurada, sem dúvida, além de toda a
expressão humana ou pensamento, mas muito séria, como o próprio legislador teve
ocasião de comprovar em sua própria pessoa.
Que é este o verdadeiro ponto de vista desta interessante questão parece evidente
pelas seguintes palavras: "Guardai-vos de que vos esqueçais do concerto do
SENHOR, VOSSO Deus, que tem feito convosco, e vos façais alguma escultura,
imagem de alguma coisa que o SENHOR, vosso Deus, vos proibiu. Porque o
SENHOR, teu Deus, é um fogo que consome, um Deus zeloso."
Isto é especialmente solene. Devemos permitir que este relato tenha toda a sua
força sobre as nossas almas. Não devemos tentar desviar os seus efeitos por
quaisquer falsas ideias sobre a graça. Ouvimos dizer às vezes que "Deus é um fogo
consumidor para o mundo". Sê-lo-á em breve, sem dúvida, mas agora está atuando
em graça, paciência e paciente misericórdia com o mundo. Não está agindo em
juízo com o mundo no tempo presente. Mas, como o apóstolo Pedro nos diz:
"Porque já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro
começa por nós, qual será o fim daqueles que são desobedientes ao evangelho de
Deus?-" Assim também em Hebreus 12, lemos: "Porque o nosso Deus é um fogo
consumidor." Não se fala aqui do que Deus será para o mundo, mas do que Ele é
para nós. Nem tampouco é, como alguns interpretam: "Deus é um fogo
consumidor fora de Cristo. Nós nada sabemos de Deus fora de Cristo. Fora de
Cristo não poderia ser nosso Deus."
Não, prezado leitor; a Escritura não necessita de tais contorções e rodeios. Deve ser
aceite como está. E clara e precisa; e tudo que temos de fazer é ouvir e obedecer. "O
nosso Deus é um fogo consumidor"; "um Deus zeloso", não para nos consumir,
bendito seja o Seu santo nome, mas para consumir o mal em nós e nos nossos
caminhos. E intolerante com tudo em nós que Lhe é contrário — contrário à sua
santidade; e, portanto, contrário à nossa felicidade, a nossa verdadeira, sólida
bênção. Como "Pai Santo", guarda-nos de uma maneira digna de Si mesmo; e
castiga-nos, a fim de nos tornar participantes da Sua santidade. Permite que o
mundo continue no tempo presente, não interferindo publicamente com ele. Mas
julga a Sua casa, e castiga os Seus filhos a fim de que possam mais amplamente
corresponder à Sua mente, e serem a expressão da Sua imagem moral.
E não é isto um imenso privilégio? Sim, verdadeiramente é um privilégio da ordem
mais elevada — um privilégio que emana da infinita graça do nosso Deus que
condescende em Se interessar por nós e Se ocupa até mesmo das nossas
enfermidades, das nossas faltas e dos nossos pecados, a fim de nos libertar deles e
nos fazer participantes da Sua santidade.
A Disciplina
Há uma passagem muito interessante a respeito deste assunto no princípio de
Hebreus 12, que, por ser de imensa importância prática, devemos citar para o
leitor: "Filho meu, não desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por
ele, fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama e açoita a qualquer que
recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque que
filho há a quem o pai não corrija?-Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são
feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos. Além do que, tivemos
nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos
sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na
verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este,
para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade,
toda a correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois,
produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela. Portanto, tornai a
levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados."
Existem três modos de receber o castigo divino: Podemos "desprezá-lo", como
alguma coisa vulgar, que pode acontecer a qualquer pessoa: não vemos a mão de
Deus nele. Podemos também "desmaiar" debaixo dele, como se fosse alguma coisa
pesada demais para a transportarmos — alguma coisa impossível de suportar. Não
vemos o coração do Pai nisso, nem reconhecemos o Seu gracioso objetivo com isso,
que é fazer-nos participantes da Sua santidade. Por último, podemos ser
"exercitados" por Ele. Este é o modo de recolher "o fruto pacífico de justiça que
depois produz". Não ousaremos "desprezar" uma coisa na qual vemos a mão de
Deus. Não necessitamos desmaiar ante uma provação em que discernimos
claramente o coração do Pai amantíssimo que não permitirá que sejamos provados
acima do que podemos suportar; senão que com a prova dará a saída a fim de
podermos suportá-la; e que também misericordiosamente nos explica o Seu
objetivo com a disciplina, e nos garante de que cada açoite da sua vara é uma prova
do Seu amor e uma resposta direta à oração de Cristo em João 17:11, na qual Ele
nos recomenda ao cuidado do "Pai Santo", a fim de sermos guardados segundo esse
nome e tudo que ele envolve.
Além disso, há três atitudes distintas do coração a respeito do castigo divino, a
saber: sujeição, aquiescência, e regozijo. Quando a vontade está quebrantada,
existe sujeição. Quando o entendimento está iluminado quanto ao objetivo em
castigo, há calmo consentimento. E quando os afetos estão ocupados com o coração
do Pai existe alegria. E nós podemos continuar com corações alegres segando a
ceara dourada dos frutos pacíficos de justiça para louvor d'Aquele que, em Seu
amor e compaixão, toma a Seu cargo cuidar de nós e tratar conosco em Seu
governo e concentrar o Seu cuidado sobre nós em particular como se tivesse de
atender só a cada um, individualmente, como se não tivesse de tratar de mais
ninguém.
Quão admirável é tudo isto! E como só o pensar nisso deveria ajudar-nos em todas
as nossas provações e experiências! Estamos nas mãos d'Aquele cujo amor é
infinito, cuja sabedoria é infalível, cujo poder é onipotente, cujos recursos são
inesgotáveis. Por que devemos então sentirmo-nos desanimados Se Ele nos castiga,
é porque nos ama e busca o nosso verdadeiro bem. Podemos pensar que o castigo é
duro. Podemo-nos sentir dispostos a estranhar, por vezes, como o amor nos pode
infligir sofrimento e dor; mas devemos lembrar que o amor divino é sábio e fiel, e
somente inflige dor, ou enfermidade para nosso proveito e bênção. Nem sempre
devemos julgar o amor pela forma com que se reveste. Considere-se uma mãe
apaixonada e terna aplicando um cáustico ao filho que ama como a sua própria
alma. Sabe perfeitamente que aquele cáustico produzirá a seu filho verdadeira dor
e sofrimento; e todavia ela aplica-o resolutamente, embora o seu coração sofra
agudamente por ter de o fazer. Mas sabe que é absolutamente necessário; crê que,
humana e cientificamente falando, a vida da criança depende disso. Sente que
alguns momentos de dor podem, com a bênção de Deus, restabelecer a saúde ao
seu querido filho. Assim, enquanto a criança está somente ocupada com o seu
sofrimento passageiro, a mãe está pensando no bem permanente que resultará; e se
ao menos a criança pudesse pensar como a mãe, o cáustico não séria tão difícil de
suportar.
Ora acontece precisamente assim com o assunto do tratamento disciplinar de
nosso Pai conosco; e a lembrança deste fato ajudar-nos-á grandemente a suportar
seja o que for que a Sua mão possa aplicar-nos como castigo. Poderá dizer-se talvez
que existe uma grande diferença entre a aplicação de um cáustico por alguns
minutos e anos de sofrimento corporal intenso. Há sem dúvida, mas há também
uma grande diferença entre os resultados conseguidos em cada caso. É o princípio
do assunto que devemos considerar. Quando vemos um amado filho de Deus, ou
um servo de Cristo, chamado a passar anos de intenso sofrimento, podemos
sentir-nos inclinados a estranhar por que é assim; e talvez o querido paciente possa
sentir-se também disposto a estranhar, e, por vezes, pronto a desmaiar sob o peso
da sua prolongada aflição. Poderá sentir-se induzido a exclamar: "Por que estou
assim? Pode isto ser amor? Pode isto ser a expressão do cuidado terno de um Pai?"
— "Sim, na verdade", é a resposta decidida e brilhante da fé. — É tudo amor —
divinamente justo. Por nada deste mundo eu quisera que fosse de outro modo. Sei
que este sofrimento transitório opera bênção eterna. Sei que o meu Pai
amantíssimo me pôs neste forno para me purificar da minha impureza e reproduzir
em mim a expressão da Sua própria imagem. Sei que o amor divino fará sempre o
que é melhor para o seu objetivo, e portanto, este intenso sofrimento é a coisa
melhor para mim. Sinto-o, evidentemente, pois não sou um pau ou uma pedra.
Meu Pai celestial quer que eu o sinta, assim como a mãe espera que o cáustico
resulte, pois de outro modo nenhum bem produziria. "Mas eu louvo-O de todo o
meu coração, pela graça que brilha no fato maravilhoso de Ele próprio Se ocupar
comigo, deste modo, para corrigir o que Ele vê que é mau em mim. Louvo-O por
me haver posto no forno do sofrimento; e como posso eu deixar de louvá-Lo
quando O vejo, em graça infinita, sentado sobre o forno para vigiar o processo de
purificação e me tirar logo que a obra estiver feita?
Este é, prezado leitor, o verdadeiro caminho, e tal é o espírito reto para passar
através do castigo de qualquer espécie, seja aflição corporal, perda de entes
queridos ou de bens, ou a força das circunstâncias. Devemos ver nisso a mão de
Deus, ler o pensamento do coração do Pai, reconhecer o propósito divino em tudo
isso. Isto nos permitirá justificar e glorificar a Deus no meio do forno de aflição.
Corrigirá todo o pensamento de murmuração e fará calar toda a expressão de mau
humor. Encherá os nossos corações da mais doce paz e as nossas bocas de louvor.
Aqui finda a parte que se aproxima do nosso tema imediato; mas não podemos
deixar de reproduzir a esplêndida doxologia que se desprende do transbordante
coração do apóstolo inspirado ao encerrar a grande parte dispensacional da sua
Epístola: "O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de
Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
Porque quem compreendeu o intento do Senhor?- Ou quem foi seu conselheiro?-
Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele" —
como a origem — "e por ele"— como o canal — "e para ele" — como o objetivo —
"são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!"
CAPÍTULO 5
OS DEZ MANDAMENTOS
Obediência e Serviço
Mas, bendito seja Deus, nós somos chamados à obediência. Somos chamados para
"ouvir" — chamados a inclinarmo-nos, em santa e reverente submissão à
autoridade. E aqui concordamos com a infidelidade e suas altas pretensões. A
senda do cristão piedoso e humilde está igualmente separada da superstição, por
um lado e da infidelidade por outro lado. A nobre resposta de Pedro ante o
Concílio, em Atos 5, inclui, no seu limitado resumo, uma completa resposta a
ambas. "Mais importa obedecer a Deus do que aos homens." Fazemos face à
infidelidade, em todos os seus aspectos, em todas as suas fases, e em suas mais
profundas raízes, com esta única e grave expressão: "Importa obedecer." E fazemos
face à superstição, seja qual for o traje com que se revista, com a importantíssima
frase: "Importa obedecer a Deus."
Aqui temos exposto, da forma mais simples, o dever de todo o verdadeiro crente.
Deve obedecer a Deus. O incrédulo pode rir desdenhosamente de um monge ou de
uma freira, e admirar-se de que um ser racional possa render completamente a sua
razão e o seu entendimento à autoridade de um mortal como ele, ou submeter-se a
regras e práticas tão absurdas, tão degradantes e tão contrárias à natureza. Mas ele,
incrédulo, gloria-se na sua suposta liberdade intelectual, e imagina que a sua
própria razão é uma guia suficiente para si. Não vê que está mais longe de Deus do
que o pobre monge ou freira que tanto despreza. Não sabe que, enquanto ele se
vangloria na sua vontade própria, está realmente sendo levado como cativo por
Satanás, o príncipe deste mundo e deus deste século. O homem foi criado para
obedecer — criado para olhar para alguém superior a si. O crente é santificado
para a obediência de Jesus Cristo — isto é, para o mesmo caráter de obediência que
foi manifestada por nosso adorável Senhor e Salvador.
Isto é de grande importância para todo aquele que deseja saber o que é a verdadeira
obediência cristã. Entender isto é o verdadeiro segredo de libertação da obstinação
do incrédulo e da falsa obediência da superstição. Jamais poderá ser reto fazer a
nossa própria vontade. Pode ser inteiramente errôneo fazer a vontade do nosso
semelhante. Tem de ser sempre reto fazer a vontade de Deus. Foi isto que Jesus
veio fazer; e o que sempre fez. "Eis aqui venho para fazer, ó Deus, a tua vontade"
(Hb 10:9). "Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40:8).
Ora nós somos chamados para mostrar este bendito caráter de obediência assim
como somos ensinados pelo apóstolo inspirado — Pedro —, no começo da sua
epístola, em que ele fala dos crentes como "eleitos segundo a presciência de Deus o
Pai, em santificação do Espírito, para obediência e aspersão de sangue de Jesus
Cristo."
Isto é um grande privilégio e, ao mesmo tempo, uma solene e santa
responsabilidade. Não devemos esquecer nunca, nem por um momento, que Deus
nos elegeu, e que o Espírito Santo nos separou, não só para a aspersão do sangue de
Jesus Cristo, mas também para a Sua obediência. Tal é o significado claro e a força
moral das palavras que acabamos de citar — palavras de inefável preciosidade para
todo aquele que ama a santidade —, palavras que eficientemente nos libertam da
vontade própria, do legalismo e da superstição. Bendita libertação!
Mas pode ser que o leitor esteja disposto a chamar a nossa atenção para a exortação
em Hebreus 13: "Obedecei a vossos pastores e sujeitai-vos a eles; porque velam por
vossa alma, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria
e não gemendo, porque isso não vos seria útil."
Palavras duplamente importantes, certamente, com as quais devemos também
ligar a passagem de 1 Tessalonicenses 5:12-13: "E rogamo-vos, irmãos, que
reconheçais os que trabalham entre vós, e que presidem sobre vós no Senhor, e vos
admoestam; e que os tenhais em grande estima e amor, por causa da sua obra." Bem
como 1 Coríntios 16:15-16: "Agora vos rogo, irmãos (sabeis que a família de
Estéfanas é as primícias da Acaia, e que se tem dedicado ao ministério [ou serviço]
dos santos), que também vos sujeitei aos tais e a todo aquele que auxilia na obra e
trabalha."
A tudo isto devemos acrescentar outra formosa passagem da 1 Epístola de Pedro:
"Aos presbíteros que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbítero com
eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de
revelar; Apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, tendo cuidado dele, não
por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto;
nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao
rebanho. E quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa de
glória" (capítulo 5:1 a 4).
Pode perguntar-se: "As passagens citadas não estabelecem o princípio de
obediência a certos homens? E, se é assim, por que fazer objeções à autoridade
humana? A resposta é simples. Onde quer que Cristo conceda um dom espiritual,
quer seja o dom de ensinar, o dom de governar, ou o dom de pastorear, é o dever e
privilégio dos crentes reconhecer e apreciar tais dons. Não o fazer, seria renunciar
às nossas próprias mercês. Mas devemos ter em vista o fato que, em todos esses
casos, o dom deve ser uma realidade — uma coisa evidente, palpável bona fide,
divinamente dada. Não é um homem assumir determinado cargo ou posição, ou ser
nomeado pelo seu semelhante para qualquer ministério assim chamado. Tudo isto
é perfeitamente inútil e pior do que inútil; é uma atrevida intromissão de um
sagrado domínio que há de, mais cedo ou mais tarde, atrair o juízo de Deus.
Todo o verdadeiro ministério é de Deus, e é baseado na possessão de um dom
positivo procedente do Cabeça da Igreja; de modo que podemos verdadeiramente
dizer: se não houver dom, não haverá ministério. Em todas as passagens acima
citadas vemos que é possuído um dom e em verdade uma obra feita. Além disso,
vemos um verdadeiro coração para os cordeiros e ovelhas do rebanho de Cristo;
vemos graça e poder divinos. A expressão em Hebreus 13 é: "Obedecei aos que vos
guiam." Ora, é essencial que um verdadeiro guia siga adiante de nós. Seria o
cúmulo da loucura que alguém tomasse o título de guia se desconhecesse o
caminho, e não tivesse nem a competência nem a vontade de seguir nele.
O Discernimento de Crente
Não existe dificuldade para a mente espiritual em reconhecer verdadeira graça e
poder. Podemos facilmente discernir se um homem procura, em verdadeiro amor,
alimentar as nossas almas com o pão da vida, e guiar-nos nos caminhos de Deus, ou
se ele busca exaltar-se a si mesmo e favorecer os seus próprios interesses. Aqueles
que vivem perto do Senhor podem prontamente discernir entre o verdadeiro
poder e a falsa pretensão. Além disso, nunca encontramos os verdadeiros ministros
de Cristo fazendo ostentação da sua autoridade ou vangloriando-se do seu cargo;
fazem a obra e deixam que ela fale por si mesma. No caso do bendito apóstolo
Paulo, vemo-lo, repetidas vezes, recorrer às provas evidentes do seu ministério —
à incontestável evidência produzida na conversão e bênção de almas. Podia dizer
aos coríntios, quando, mal guiados pela influência de algum pretendente à
auto-exaltação, punham em dúvida o seu apostolado: "Visto que buscais uma prova
de Cristo que fala em mim [...] examinai-vos a vós mesmos" (2 Co 13:3-5).
Isto era decisivo, terminava a questão. Eles próprios eram as provas vivas do seu
ministério. Se o seu ministério não era de Deus, o que eram eles e onde estavam?-
Mas era de Deus e isto era o seu gozo, seu conforto e sua força. Ele era "apóstolo
(não da parte dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo, e por
Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos)" (Gl 1:1). Gloriava-se na origem do seu
ministério; e, quanto ao seu caráter, tinha apenas que apelar para um corpo de
evidência suficiente para levar convicção a toda a mente sã. No seu caso, podia
verdadeiramente dizer-se que não era o discurso, mas o poder (1 Co 4:19).
Assim deve ser, em proporção, em todos os casos. Devemos procurar o poder.
Devemos ter a realidade. Os simples títulos nada são. Os homens podem dedicar-se
a outorgar títulos e nomear cargos; mas não têm mais autoridade para assim fazer
do que têm para nomear almirantes para a marinha ou generais para o exército. Se
víssemos um homem tomar o estilo e título de almirante ou general sem a devida
nomeação havíamos de considerá-lo idiota ou demente. Isto é apenas uma fraca
ilustração para mostrar a loucura de certos homens que se arrogam o título de
ministros de Cristo sem um átomo de dom espiritual ou autoridade divina.
Dir-nos-ão que não devemos julgará Somos obrigados a julgar: "Acautelai-vos,
porém, dos falsos profetas" (Mt 7:15). Como nos poderemos acautelar se não
podermos julgará Mas como havemos de julgará "Por seus frutos os conhecereis."
Não pode o povo do Senhor discernir a diferença entre um homem que vem para
eles, no poder do Espírito, dotado pelo Cabeça da Igreja, cheio de amor pelas suas
almas, que deseja ardentemente a sua verdadeira bênção, buscando não o que é seu
mas deles, um servo de Cristo, santo, humilde e cheio de graça, que não tem
pretensões a honras pessoais; e outro homem que vem com um título por ele
próprio tomado ou humanamente conferido, sem um simples vestígio de coisa
alguma divina ou celestial no seu ministério ou na sua vida<? Claro que pode;
ninguém em seu perfeito juízo pensará pôr em dúvida um fato tão claro.
Mas, além disso, podemos perguntar, o que significam essas palavras do venerando
apóstolo João? "Amados, não creiais em todo espírito, mas provai se os espíritos são
de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo" (1 Jo 4:1).
Como vamos provar os espíritos ou como vamos discernir entre os verdadeiros e os
falsos se não devemos julgará O mesmo apóstolo escrevendo "à senhora eleita"
faz-lhe esta solene advertência: "Se alguém vem ter convosco e não traz esta
doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o saúda
tem parte nas suas más obras." Não era ela responsável por atuar segundo esta
admoestação?- Certamente que assim. Mas como podia fazê-lo, se nós, não
devemos julgará E o que devia ela julgará Era se os que vinham a sua casa eram
ordenados, autorizados, ou diplomados por qualquer homem ou corporação
humana? Nada disso. A grande e importante questão para ela era quanto à
doutrina. Se traziam a verdadeira, a doutrina divina de Cristo — a doutrina de que
Jesus Cristo veio em carne, ela devia recebê-los em sua casa; se não, devia
fechar-lhes a porta com mão firme, não importava quem fossem ou de onde
viessem. Ainda que tivessem todas as credenciais que o homem pode outorgar, se
não traziam a verdade, ela devia recusar recebê-los em sua casa com firme decisão.
Isto poderia parecer muito severo, muito tacanho, muito fanático, mas com isto ela
nada tinha que ver. Tinha de ser tão tolerante e tão escrupulosa como a verdade. A
sua porta e o seu coração deviam ser bastante amplos para admitir todos os que
traziam Cristo, mas não mais. Havia de dar cumprimentos em prejuízo do seu
Senhor? Devia procurar fama de grandeza de coração ou tolerância de espírito
recebendo em sua casa e admitindo à sua mesa os ensinadores de um falso Cristo?
O simples pensamento é horrível.
Mas, por fim, no segundo capítulo de Apocalipse, vemos que ele recomenda a
igreja de Éfeso por haver posto à prova os que diziam ser apóstolos e o não eram.
Como poder ser isto se não devemos julgar? Não é evidente para o leitor que se tem
tomado em um sentido absolutamente falso as palavras do Senhor em Mateus 7:1:
"Não julgueis, para que não sejais julgados"«? E também as palavras do apóstolo em
1 Coríntios 4:5: "Portanto nada julgueis antes de templo?-" E impossível a Escritura
contra- dizer-se; e, por isso, qualquer que seja o verdadeiro significado das palavras
do Senhor: "Não julgueis", ou da expressão do apóstolo: "Nada julgueis", é
perfeitamente certo que não interferem, de modo algum, com a solene
responsabilidade de todos os crentes julgarem o dom, a doutrina e a vida de todos
os que tomam o lugar de pregadores, ensinadores e pastores na Igreja de Deus.
E, por outro lado, se nos perguntarem qual o significado das palavras "não julgueis"
e "nada julgueis", cremos que essas palavras nos proíbem simplesmente julgar os
motivos ou origens ocultas de ação. Com estes nada temos absolutamente que ver.
Não podemos penetrar abaixo da superfície; e, graças a Deus, não somos chamados
tampouco a fazê-lo; sim, somos positivamente proibidos disso. Não podemos ler os
desígnios do coração; é cargo e prerrogativa somente de Deus fazer isto. Mas dizer
que não devemos julgar a doutrina, o dom ou modo de vida daqueles que tomam o
lugar de pregadores e pastores na igreja de Deus é simplesmente opor-se à Sagrada
Escritura e desconhecer os próprios instintos da natureza divina implantados em
nós pelo Espírito Santo.
Por isso, podemos voltar com maior clareza e decisão à nossa tese de obediência
cristã. Parece perfeitamente claro que o mais completo reconhecimento de todo o
verdadeiro ministério na Igreja, e a completa submissão de nós próprios a todos os
que Cristo possa julgar aptos para levantar como pastores, ensinadores e guias,
entre nós, não podem nunca, de modo nenhum, interferir com o princípio
fundamental estabelecido na magnificente resposta ao concílio: "Mais importa
obedecer a Deus do que aos homens."
O fim e o objetivo de todo o verdadeiro ministro de Cristo será sempre guiar
aqueles a quem ministram na verdadeira senda de obediência à Palavra de Deus. O
capítulo que temos aberto perante nós, como, de fato, todo o livro de
Deuteronômio, mostra-nos claramente como Moisés, esse eminente servo de
Deus, procurava sempre e trabalhava diligentemente para incutir na congregação
de Israel a urgente necessidade da mais implícita obediência a todos os estatutos e
juízos de Deus. Não buscava nenhum lugar de autoridade para si mesmo. Nunca
exerceu senhorio sobre a herança de Deus. O seu grande tema, desde o princípio ao
fim, era a obediência — o ponto principal de todos os seus discursos — obediência
não a si, mas ao Senhor deles e seu. Julgava acertadamente que isto era o
verdadeiro segredo da sua felicidade, da sua segurança moral, da sua dignidade e
força. Sabia que um povo obediente deve também ser, necessariamente, um povo
invencível e invulnerável. Nenhuma arma usada contra eles podia ser eficaz, desde
que fossem governados pela Palavra de Deus. Numa palavra, sabia e cria que o
dever de Israel era obedecer ao Senhor; assim como pertencia ao Senhor abençoar
Israel. A sua única ocupação consistia em "ouvir", "aprender", "guardar" e "fazer" a
vontade revelada de Deus; e, fazendo-o, podiam contar com Ele, na mais completa
confiança de que seria seu escudo, sua força, sua salvaguarda, seu refúgio, seu
recurso, seu tudo em tudo. O único verdadeiro e próprio caminho para o Israel de
Deus é o caminho estreito da obediência sobre o qual a luz do semblante de Deus
brilha sempre em sinal de aprovação; e todos os que, pela graça, trilham esse
caminho encontrarão n'Ele "um guia, glória, uma defesa para os salvar de todo o
temor."
Isto é, certamente, suficiente. Nada temos a ver com as consequências. Podemos
deixá-las, em simples confiança, com Aquele de quem somos e a quem temos a
responsabilidade de servir. "Torre forte é o nome do SENHOR; para ela correrá o
justo, e estará em alto retiro" (Pv 18:10). Se estivermos fazendo a Sua vontade,
acharemos sempre no Seu nome uma torre forte. Mas, em contrapartida, se não
andarmos no caminho da justiça prática, se estivermos fazendo a nossa própria
vontade, se vivermos no descuido habitual da clara Palavra de Deus, então será
absolutamente inútil pensarmos que o nome do Senhor seja uma forte torre para
nós; antes, pelo contrário, o Seu nome será uma repreensão para nós, e levar-nos-á
a julgarmo-nos a nós próprios e a regressarmos ao caminho da justiça do qual nos
havemos afastado.
Bendito seja o Seu nome, a Sua graça nunca nos faltará, em toda a sua preciosidade,
plenitude e liberalidade, no lugar de auto-juízo e confissão, por muito que
tenhamos falhado ou nos tenhamos desviado. Mas isto é uma coisa muito
diferente. Podemos ter de dizer como o salmista: "Das profundezas a ti clamo, ó
SENHOR! Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das
minhas súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem
subsistirás Mas contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1 a 4). Mas,
uma alma clamando a Deus desde as profundezas e obtendo perdão é uma coisa; e
uma alma que olha para Ele na senda da justiça prática é outra. Devemos distinguir
atentamente entre ambas as coisas. Confessar os nossos pecados e obter o perdão
não deve confundir-se nunca com o andar com Deus. Ambos os casos são,
felizmente, verdadeiros; mas não são a mesma coisa.
Dois Pactos
Prosseguiremos agora com o nosso capítulo. Em versículo 2, Moisés lembra ao
povo a relação que têm com Javé por um pacto. Diz-lhes: "O SENHOR, nosso Deus,
fez conosco concerto, em Horebe. Não com nossos pais que fez o SENHOR este
concerto, senão conosco, todos os que hoje aqui estamos vivos. Face a face o
SENHOR falou conosco, no monte, no meio do fogo (naquele tempo, eu estava em
pé entre o SENHOR e vós, para vos notificar a palavra do SENHOR: porque
temestes o fogo e não subistes ao monte), dizendo", etc.
O leitor deve distinguir e compreender perfeitamente a diferença entre o concerto
feito em Horebe e o concerto feito com Abraão, Isaque e Jacó. São dois concertos
essencialmente diferentes. O primeiro era um concerto de obras, pelo qual o povo
se comprometia a fazer tudo quanto o Senhor havia dito. O último era um
concerto puramente de graça, pelo qual Deus garantia com juramento fazer tudo
quanto havia prometido.
A linguagem humana é insuficiente para mostrarmos a imensa diferença, a todos
os respeitos, entre estes dois concertos. Em seus fundamentos, em seu caráter, em
seus acessórios, e em seu resultado prático, são tão diferentes quanto o podem ser
duas coisas. O concerto de Horebe dependia da competência humana para o
cumprimento dos seus termos; e este fato só por si é mais que suficiente para
explicar o fracasso total de todo o pacto. O concerto com Abraão baseava-se na
competência divina para o cumprimento dos seus termos, e daí a absoluta
impossibilidade de sua quebra em um simples jota ou til.
A Lei
Havendo tratado em nossos "Estudos sobre o Livro de Êxodo"
pormenorizadamente do assunto da lei, e procurado mostrar o objetivo divino na
promulgação da mesma, e, além disso, feito constar a absoluta impossibilidade de
alguém alcançar vida ou justificação guardando-a, devemos recomendar ao leitor o
que ali temos escrito sobre este assunto profundamente interessante.
Parece estranho para quem é instruído exclusivamente pela Escritura que exista
tanta confusão de pensamento entre os cristãos professos sobre uma questão tão
clara e definitivamente estabelecida pelo Espírito Santo. Fosse apenas uma questão
de autoridade divina de Êxodo 20 ou Deuteronômio 5 como porções inspiradas da
Bíblia, e nós não teríamos uma palavra a dizer. Cremos plenamente que estes
capítulos são tão inspirados como o décimo sétimo de João ou o oitavo de
Romanos.
Mas o ponto não é este. Todo o verdadeiro cristão aceita, com fervorosa gratidão, o
precioso relato que toda a Escritura é dada por inspiração de Deus. E, demais,
regozija-se com a certeza de que "... tudo que dantes foi escrito, para nosso ensino
foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos
esperança" (Rm 15:4). E, finalmente, crê que a moralidade da lei é de permanente e
universal aplicação. O assassínio, o adultério, roubo, falso testemunho, avareza, são
ofensa — sempre ofensa — em toda a parte. Honrar os nossos pais é bom —
sempre bom em toda a parte. Lemos no capítulo 4 de Efésios: "Aquele que furtava
não furte mais." E também no capítulo 6, lemos: "Honra a teu pai e a tua mãe, que é
o primeiro mandamento com promessa; para que te vá bem, e vivas muito tempo
sobre a terra."
Tudo isto é divinamente tão claro e fixo que não há lugar para discussão. Mas
quando pensamos na lei como base de relação com Deus, entramos numa região de
pensamento inteiramente diferente. A Escritura, em múltiplas passagens,
ensina-nos, da maneira mais clara, que, como cristãos, como filhos de Deus, não
estamos sobre esse terreno. Os judeus estavam sobre esse terreno, mas não podiam
estar ali com Deus. Era morte e condenação. "Porque não podiam suportar o que se
lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado. E tão terrível era a
visão que Moisés disse: "Estou todo assombrado e tremendo" (Hb 12:20-21). O
Judeu descobriu que a lei era uma cama tão curta que não podia estender-se nela, e
um cobertor tão estreito que não se podia cobrir com ele.
Quanto aos gentios, nunca foram, por qualquer ramo da economia divina, postos
debaixo da lei. A sua condição está expressamente declarada no princípio da
epístola aos Romanos, como sendo "sem lei" — "porque, quando os gentios, que
não têm lei", etc. E, "Porque todos os que sem lei pecaram também sem lei
perecerão; e todos os que sob a lei pecaram pela lei serão julgados" (Rm 2:14 e 12).
Aqui as duas classes são postas em agudo e vivo contraste, quanto à questão da sua
posição dispensacional. O judeu, sob a lei; o gentio, sem a lei. Nada pode ser mais
claro. O gentio fora colocado sob o governo, na pessoa de Noé; mas nunca debaixo
da lei. Se alguém está disposto a duvidar disto, que produza uma simples linha da
Escritura para provar que Deus alguma vez colocou os gentios debaixo da lei.
Examine e veja. De nada vale argumentar, raciocinar e objetar. E absolutamente
inútil dizer "nós pensamos" isto ou aquilo. A questão é; "O que diz a Escriturai" Se
ela diz que os gentios foram postos debaixo da lei, cite-se a passagem. Nós
declaramos solenemente que ela não diz nada disso, mas precisamente o contrário.
Descreve a condição e o estado dos gentios como "sem lei" — "não tendo a lei".
Em Atos 10 vemos Deus abrir o reino dos céus aos gentios. Em Atos 14:27 vêmo-Lo
abrir "a porta da fé" aos gentios. Em Atos 28:28 vêmo-Lo enviar a Sua salvação aos
gentios. Mas buscamos em vão, em todas as páginas do bendito Livro, uma
passagem em que conste ter colocado os gentios debaixo da lei.
Rogamos sinceramente ao leitor crente que preste toda a sua atenção a esta
interessante e importante questão. Procure pôr de lado os seus pensamentos
preconcebidos e examine o assunto simplesmente à luz da Sagrada Escritura.
Sabemos bem que as nossas afirmações sobre este assunto serão consideradas por
muitíssimos como uma novela, senão como heresia formal; mas isto não nos
incomoda de forma alguma. E nosso desejo sermos ensinados absoluta e
exclusivamente pela Escritura. As opiniões, mandamentos e doutrinas dos homens
não pesam absolutamente nada em nosso ânimo. Os dogmas das diversas escolas de
teologia devem estimar-se pelo que valem. Exigimos a Escritura. Uma simples
linha de inspiração é amplamente bastante para resolver esta questão, e terminar
com a discussão para sempre. Mostrem- nos pela Palavra de Deus que os gentios
foram alguma vez postos debaixo da lei e nós nos curvaremos imediatamente; mas,
visto que não podemos encontrar isso nela mencionado, rejeitamos inteiramente a
ideia, e esperamos que o leitor faça a mesma coisa. A linguagem invariável da
Escritura, descrevendo a posição do judeu, é "debaixo da lei" -, e, descrevendo a
posição do gentio, é "sem lei". E claro que não podemos compreender como é que
qualquer leitor possa deixar de ver isto (1).
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(1) O leitor pode talvez sentir-se disposto a perguntar sobre que princípio será um
gentio julgado, se não está debaixo da lei. Romanos 1:20 ensina-nos claramente
que o testemunho da criação o deixa sem desculpa. Depois, em capítulo 2:15 é
posto sobre o fundamento da consciência. "Porque quando os gentios, que não têm
lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos
são lei, os quais mostram a obra da lei escrita no seu corações". Finalmente, quanto
a essas nações que se tornaram por profissão cristãs, serão julgadas sobre o
fundamento da sua profissão.
Se o leitor voltar a sua atenção, por um momento, para o capítulo 15 de Atos dos
Apóstolos, verá como a primeira tentativa para pôr os gentios convertidos debaixo
da lei foi tratada pelos apóstolos e toda a igreja em Jerusalém. A questão foi
levantada em Antioquia; e Deus, em Sua infinita bondade e sabedoria, ordenou as
coisas de modo a que ela não fosse ali resolvida, mas que Paulo e Barnabé fossem a
Jerusalém e discutissem plena e livremente o assunto de modo a que ele fosse
definitiva e unanimemente arrumado pela voz dos doze apóstolos e toda a igreja.
Como devemos bendizer a Deus por isto! Podemos, imediatamente, ver como a
decisão de uma assembleia local como a de Antioquia, até mesmo embora aprovada
por Paulo e Barnabé, não comportaria o mesmo peso como os doze apóstolo
reunidos em concílio em Jerusalém. Mas o Senhor, bendito seja o Seu nome,
tomou cuidado a fim de que o inimigo fosse completamente confundido; e que os
mestres da lei desses dias, e de todos os tempos sucessivos, fossem de um modo
claro e autorizado informados que não era segundo a Sua vontade que os cristãos
fossem postos debaixo da lei, sob pretexto algum.
O assunto é tão importante que nós não podemos deixar de citar algumas passagens
para o leitor. Cremos que animarão tanto o leitor como o autor destas linhas e que
eles se sentirão grandemente encorajados com o tocante discurso feito no concílio
mais notável e interessante que jamais esteve reunido.
"Então, alguns que tinham descido da Judéia ensinavam assim os irmãos: Se vos
não circuncidardes, conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos." Como isto
era terrível! Era de causar arrepios! Que fúnebre sonido para ecoar aos ouvidos dos
que haviam sido convertidos pelo esplêndido discurso de Paulo na sinagoga de
Antioquia! "Seja-vos, pois, notório, varões irmãos, que por este" — sem a
circuncisão ou as obras da lei de qualquer espécie — "se vos anuncia a remissão dos
pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é
justificado todo aquele que crê" "...e, saídos os judeus da sinagoga, os gentios
rogaram que no sábado seguinte lhes fossem ditas as mesmas coisas" (At 13:38 a
42).
Tal foi a gloriosa mensagem enviada aos gentios pelos lábios do apóstolo Paulo —
uma mensagem de livre, plena, imediata e perfeita salvação — completa remissão
dos pecados e perfeita justificação pela fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Mas,
segundo o ensino de "alguns que tinham descido da Judéia", tudo era insuficiente.
Cristo não era suficiente sem a circuncisão e a lei de Moisés. Os pobres gentios, que
nunca haviam ouvido falar da circuncisão ou da lei de Moisés, tinham de
acrescentar a Cristo e à Sua gloriosa salvação o guardar toda a lei!
Como o coração de Paulo deve ter ardido ao ver os amados gentios convertidos
postos debaixo de tão monstruoso ensino! Não viu nisso nada menos do que a
completa derrota do Cristianismo. Se a circuncisão tinha de ser acrescentada à
Cruz de Cristo — se a lei Moisés devia ser o complemento da graça de Deus, então
tudo ficava desfeito.
Mas, bendito seja o Deus de toda a graça, Ele permitiu que fosse levantada uma
nobre oposição a esse mortal ensino. Quando o inimigo se apresentou como um
aluvião, o Espírito Santo levantou um padrão contra ele. "Tendo tido Paulo e
Barnabé não pequena discussão e contenda contra eles, resolveu- se que Paulo,
Barnabé, e alguns dentre eles subissem a Jerusalém aos apóstolos e aos anciãos
sobre aquela questão. E eles, sendo acompanhados pela igreja, passaram pela
Fenícia e por Samaria, contando" — não a circuncisão mas — "a conversão dos
gentios, e davam grande alegria a todos os irmãos."
Os irmãos estavam na corrente do pensamento de Cristo e na doce comunhão com
o coração de Deus; e por isso alegravam-se por ouvir da conversão e salvação dos
gentios. Podemos ficar certos de que não lhes teria dado gozo algum ouvir que se
havia posto ao pescoço daqueles amados discípulos, que haviam sido trazidos para
a gloriosa liberdade do evangelho, o pesado jugo de circuncisão e a lei de Moisés.
Mas ouvir da Sua conversão a Deus, da sua salvação em Cristo, de haverem sido
selados com o Espírito Santo, enchia os seus corações de um gozo que estava em
encantadora harmonia com a mente do céu.
"Quando chegaram a Jerusalém, foram recebidos pela igreja e pelos apóstolos e
anciãos e lhes anunciaram quão grandes coisas Deus tinha feito por eles. Alguns,
porém, da seita dos fariseus que tinham crido se levantaram, dizendo que era
mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés."
Quem havia dito que era "mister" i Não era Deus certamente, porquanto, em Sua
infinita graça, lhes havia aberto a porta da fé, sem a circuncisão nem mandamento
algum de Moisés. Não; eram "alguns" que presumiam falar de tais cosias como
necessárias — homens que têm perturbado a Igreja de Deus desde esses tempos até
aos nossos dias —, homens que queriam ser "doutores da lei; e não entendendo
nem o que dizem nem o que afirmam" (l Tm 1:7). Os doutores da lei nunca sabem o
que está envolvido no seu escuro e triste ensino. Não têm a mínima ideia de quão
detestável é o seu ensino para o Deus de toda a graça, o Pai das misericórdias.
Ora, se é verdade, e o apóstolo diz que sim, que nós estamos mortos para a lei, que
possibilidade tem a lei de ser uma regra de vida para nós?- Demonstrou que era
unicamente uma regra de morte, maldição e condenação para aqueles que estavam
debaixo dela — aqueles que a tinham recebido por disposição dos anjos. Pode
demonstrar-nos ser alguma coisa mais para nós? Produziu a lei alguma vez frutos
vivos ou de justiça na história da algum filho ou filha de Adão"? Escutemos a
resposta do apóstolo: "Porque, quando estávamos na carne" — isto é, quando
éramos vistos como homens na nossa natureza pecaminosa —, "as paixões dos
pecados, que são pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a
morte" (Rm 7:5).
Os Dez Mandamentos
Havendo procurado mostrar, por meio de várias porções da Sagrada Escritura, a
gloriosa verdade de que os crentes não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça,
podemos agora prosseguir o nosso estudo deste capítulo 5 de Deuteronômio. Nele
temos os dez mandamentos; mas não exatamente como temos no capítulo 20 de
Êxodo. Existem alguns pequenos retoques característicos que exigem a atenção do
leitor.
Em Êxodo 20 temos história; em Deuteronômio 5 temos não só história mas
comentário. Neste último, o legislador apresenta motivos morais e faz apelos que
estariam inteiramente fora de lugar no primeiro. Num temos simplesmente fatos;
no outro, fatos e comentários — os fatos e a sua aplicação prática. Numa palavra,
não há o menor fundamento para imaginar que Deuteronômio 5 esteja destinado a
ser uma repetição literal de Êxodo 20; e é por isso que os miseráveis argumentos
em que os infiéis se baseiam sobre essa aparente diferença se reduzem a pó debaixo
dos nossos pés. São simplesmente infundados e inteiramente desprezíveis.
Comparemos, por exemplo, as duas Escrituras a respeito do assunto do sábado. Em
Êxodo 20, lemos: "Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias
trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu
Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem o teu filho, nem atua filha, nem o teu
servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro que está dentro
das tuas portas. Porque em seis dias fez o SENHOR OS céus e a terra, o mar e tudo
que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto, abençoou o SENHOR O dia de
sábado e o santificou."
Em Deuteronômio 5, lemos: "Guarda o dia de sábado, para o santificar, como te
ordenou o SENHOR, teu Deus. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o
sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhuma obra nele, nem
tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi,
nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de
tuas portas; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te
lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o SENHOR, teu Deus, te tirou
dali com mão forte e braço estendido; pelo que o SENHOR, teu Deus, te ordenou
que guardasses o dia de sábado" (versículos 12 a 15).
Ora, o leitor poderá ver imediatamente a diferença entre as duas passagens. Em
Êxodo 20 o mandamento para guardar o sábado é baseado na criação. Em
Deuteronômio 5 é baseado na redenção, sem nenhuma alusão à criação. Em suma,
os pontos de diferença surgem do caráter distinto de cada livro, e são
perfeitamente claros para toda a mente espiritual.
Com respeito à instituição do sábado devemos recordar que se baseia inteiramente
sobre a autoridade direta da Palavra de Deus. Outros mandamentos mostram
claramente deveres morais. Toda a gente sabe que é moralmente mau matar ou
roubar; mas, quanto à observância do sábado ninguém podia possivelmente
reconhecê-la como um dever se não tivesse sido claramente indicada por
autoridade divina. Daí a sua imensa importância e interesse. Tanto no nosso
capítulo como em Êxodo 20 está lado a lado com todos esses grandes deveres
morais que são universalmente reconhecidos pela consciência humana.
E não somente isto; mas vemos em outras diversas passagens das Escrituras que o
sábado é designado e apresentado, com especial proeminência, como um precioso
vínculo entre Javé e Israel; um selo do Seu pacto com eles; e um poderoso
elemento de prova do seu afeto por Ele. Toda a gente podia reconhecer o mal
moral do roubo e do assassinato; só aqueles que amavam a Javé e a Sua Palavra
podiam amar e honrar o Seu sábado.
O Evangelho não é Anunciado para a Conversão do Mundo, mas para tomar dele
um Povo para o Seu Nome
Mas, admitindo tudo isto, como sinceramente admitimos, nós, todavia, não
acreditamos na conversão do mundo pelos meios postos em prática. A Escritura
diz-nos que é quando os juízos divinos vierem sobre a terra que os habitantes do
mundo aprenderão a justiça. Esta simples cláusula da inspiração deveria ser
suficiente para provar que não é por meio do evangelho que o mundo será
convertido, e há centenas de cláusulas que empregam a mesma linguagem e
ensinam a mesma verdade. Não é pela graça, mas pelo juízo que os habitantes de
todo o mundo aprenderão a justiça.
Qual é pois o objetivo do evangelho"? Se não é para converter o mundo, com que
propósito é pregado? O apóstolo Tiago, no seu discurso no memorável concílio de
Jerusalém, dá a resposta direta e conclusiva a esta pergunta. Diz ele: "Simão relatou
como, primeiramente, Deus visitou os gentios." Para quê? Para os converter todos?
Antes pelo contrário: "Para tomar deles um povo para o seu nome." Nada pode ser
mais claro do que isto. Põe diante de nós o que deveria ser o grande objetivo de
todo o esforço missionário—aquilo que todo o missionário divinamente enviado e
divinamente ensinado terá presente em todos os seus benditos trabalhos. É para
tomar um povo para o Seu nome.
Quão importante é recordar isto! Quão necessário nos é ter diante de nós um
verdadeiro objetivo em todo o nosso trabalho! De que serve trabalhar com um
falso objetivo? Não é muito melhor trabalhar com o fim imediato do que Deus está
fazendo? Enfraquecerá as energias do missionário ou impedirá os seus movimentos
ter sempre presente o propósito divino do seu trabalho? Claro que não. Vejamos o
caso de dois missionários partindo para um campo missionário longínquo; um tem
por seu objetivo a conversão do mundo; o outro, tomar dele um povo. O último,
por razão do seu propósito, será menos enérgico, menos ativo, menos entusiasta do
que o primeiro? Não podemos crer; pelo contrário, o próprio fato de estar dentro
da corrente dos propósitos divinos comunicará à sua obra estabilidade e
consistência ao seu trabalho; e, ao mesmo tempo, encorajará o seu coração em face
das dificuldades e impedimentos que o rodeiam.
Porém, é perfeitamente claro que os apóstolos de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo não tinham tal objetivo, ao sair para o seu trabalho, como a conversão do
mundo. "Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e
for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado."
Isto foi dito aos doze. O mundo devia ser a sua esfera de trabalho. A sua mensagem
era para toda a criatura; a aplicação, àquele que crer. Era por excelência uma coisa
individual. A conversão de todo o mundo não devia ser o seu objetivo; isso será
efetuado por uma operação totalmente distinta, quando a presente ação de Deus
por meio do evangelho tiver produzido a separação de um povo para os céus (1). O
Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes não para converter o mundo, mas para
o "convencer" do pecado ou demonstrar a sua culpa em rejeitar o Filho de Deus (2).
O efeito da Sua presença devia ser provar o mundo culpado; e quanto ao grande
objetivo da Sua missão, era o de formar um corpo composto de crentes tanto de
judeus como de gentios. Com isto Ele tem estado ocupado durante os últimos mil e
oitocentos anos. Este é "o mistério" de que o apóstolo Paulo foi feito ministro, e o
qual ele desenrola tão completa e de modo tão bendito na sua epístola aos Efésios.
E impossível alguém compreender a verdade neste maravilhoso documento e não
ver que a conversão do mundo e a formação do corpo de Cristo são coisas tão
diferentes que não podem de modo algum andar juntas.
__________
(1) Queremos chamar a atenção do leitor para o Salmo 67. É uma das muitas
passagens que provam que a bênção das nações se segue à restauração de Israel.
"Deus tenha misericórdia de nós" [Israel] "e nos abençoe, e faça resplandecer o seu
rosto sobre nós. Para que se conheça na terra o teu caminho e em todas as nações
[...] Deus nos abençoará, e todas as extremidades da terra o temerão." Não poderia
haver uma prova mais bela ou poderosa do fato que é Israel, e não a igreja, que será
usada para bênção das nações.
(2) A aplicação de João 16:8 a 11 à obra do Espírito no indivíduo é, no nosso
parecer, um grave erro. Essa passagem refere-se ao efeito da Sua presença na terra
e a respeito do mundo no seu conjunto.
A sua obra na alma é uma obra preciosa, escusado será dizê-lo; mas não é a verdade
ensinada nesta passagem.
Considere o leitor a seguinte passagem: "Por esta causa, eu, Paulo, sou o prisioneiro
de Jesus Cristo por vós, os gentios, se é que tendes ouvido a dispensação da graça de
Deus, que para convosco me foi dada; como me foi este mistério manifestado pela
revelação como acima, em pouco, vos escrevi, pelo que, quando ledes, podeis
perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual, noutros séculos, não
foi manifestado aos filhos dos homens" — não foi manifestado nas Escrituras do
Velho Testamento; nem revelado aos santos ou profetas do Velho Testamento —
"como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas"
— quer dizer, aos profetas do Novo Testamento — "a saber, que os gentios são
co-herdeiros, e de um mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo
evangelho; do qual fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado,
segundo a operação do seu poder. A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada
esta graça de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas
incompreensíveis de Cristo e demonstrar a todos qual seja a dispensação do
mistério, que, desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou; para que
agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e
potestades nos céus" (Ef 3:1 a 10).
Vejamos outra passagem da epístola aos Colossenses: "Se, na verdade,
permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança do
evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há debaixo do
céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro. Regozijo-me, agora, no que padeço
por vós e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que
é a igreja; da qual eu estou feito ministro, segundo a dispensação de Deus, que me
foi concedida para convosco, para cumprir a palavra de Deus: o mistério que esteve
oculto desde todos os séculos e em todas as gerações e que, agora, foi manifesto aos
seus santos; aos quais Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste
mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, esperança da glória; a quem
anunciamos, admoestando a todo homem e ensinando a todo homem; em toda a
sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito em Jesus Cristo; e para isto
também trabalho, combatendo segundo a eficácia, que opera em mim
poderosamente" (Cl 1:23 a 29).
De estas e outras numerosas passagens o leitor poderá ver o objetivo especial do
ministério de Paulo. Certamente a ideia da conversão do mundo não entrava na
sua mente. Decerto, pregava o evangelho, em toda a sua profundidade, plenitude e
poder — pregava-o "desde Jerusalém e arredores até ao Ilírico" — "anunciava
entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo";
mas não com a ideia de converter o mundo. Estava mais bem informado. Sabia e
ensinava que o mundo se estava preparando para o juízo; sim, amadurecendo
rapidamente; que "os homens maus e enganadores irão de mal para pior"; que "nos
últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a
doutrinas de demônios, pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo
cauterizada a sua própria consciência, proibindo o casamento e ordenando a
abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis e para os que conhecem a
verdade, a fim de usarem deles com ações de graças" (1 Tm 4:1 a 4).
E, mais ainda, esta testemunha fiel e divinamente inspirada ensinou que "nos
últimos dias" — muito antes dos "últimos tempos" — "sobrevirão tempos
trabalhosos" [ou difíceis]; "porque haverá homens amantes de si mesmos,
avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos,
profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis,
sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos
deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a
eficácia dela" (2 Tm 3:1 a 5).
E por que era isto? Simplesmente porque as suas mentes estavam cegas por
preconceitos religiosos. Estavam sob a influência de doutrinas e mandamentos dos
homens. Por isso, embora tivessem as Escrituras, e se vangloriassem de as possuir,
eram tão ignorantes acerca delas e governavam-se tampouco por elas como os
pobres pagãos ignorantes que os rodeavam. Uma coisa é termos a Bíblia em nossas
mãos, em nossas casas, nas nossas igrejas, e outra muito diferente ter as verdades da
Bíblia atuando em nossos corações e consciências e brilhando nas nossas vidas.
Tome-se por exemplo o magno assunto de que estamos tratando e que nos tem
conduzido a esta larga digressão. Pode alguma coisa ser mais claramente ensinada
no Novo Testamento do que isto, ou seja, que o fim do presente estado de coisas
será uma terrível apostaria da verdade, e rebelião declarada contra Deus e o
Cordeiro?- Os Evangelhos, as Epístolas e o Apocalipse todos concordam em expor
esta verdade solene com tal clareza e simplicidade que até um menino em Cristo
pode vê-la.
E, contudo, quão poucos, comparativamente, creem isto! A grande maioria crê
precisamente o contrário. Creem que por meio das diversas atividades atualmente
em operação todas as nações serão convertidas. Em vão chamados a atenção para as
parábolas do Senhor em Mateus 13: o joio, o fermento e a semente de mostarda.
Como concordam elas com a ideia da conversão do mundo? Se o mundo inteiro vai
ser convertido pela pregação do evangelho, como é então que se encontra joio no
campo no fim do mundo? Como é que há tantas virgens loucas como sábias quando
o Esposo vem? Se todo o mundo há de ser convertido pelo evangelho, então para
quem é que "o dia do Senhor virá como ladrão de noite?" Ou o que significam estas
palavras terríveis: "Pois que, quando disserem: Há paz e segurança, então, lhes
sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida; e
de modo nenhum escaparão" (1 Ts 5:3). A vista de um mundo convertido, qual
seria a justa aplicação, a força moral dessas solenes palavras em capítulo primeiro
de Apocalipse: "Eis que vem com as nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos
que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele?" Onde se
encontrarão essas tribos em pranto se todo o mundo há de ser convertido?
Leitor, não é claro como a luz do sol que as duas coisas não podem, nem por um
momento, subsistir juntas? Não é perfeitamente claro que a teoria da conversão do
mundo por meio do evangelho está diametralmente oposta ao ensino de todo o
Novo Testamento? Como é então que a grande maioria dos crentes professos
persiste em a afirmará Só pode haver uma resposta e esta é que não se submetem à
autoridade da Escritura. E muito doloroso e solene ter de o dizer; mas é
infelizmente verdade! A Bíblia é lida na cristandade; mas as verdades da Bíblia não
são acreditadas — antes pelo contrário, são persistentemente rejeitadas. E tudo isto
ante a expressão de alarde tantas vezes repetida: A Bíblia, e somente a Bíblia é a
religião dos protestantes."
Mas não prosseguiremos este assunto, apesar de sentirmos o seu valor e
importância. Confiamos em que o leitor seja levado pelo Espírito Santo a sentir a
sua profunda solenidade. Cremos que o povo de Deus em toda a parte necessita de
ser despertado para conhecer como a igreja professante se apartou completamente
da autoridade da Escritura. Podemos estar certos de que está aqui a verdadeira
causa de toda a confusão, de todo o erro, de todo o mal entre nós. Temos nos
afastado da Palavra do Senhor, e d'Ele mesmo. Enquanto isto não for
compreendido, sentido e admitido, as coisas não podem mudar. O Senhor busca
verdadeiro arrependimento, um espírito realmente quebrantado, na Sua presença:
"... eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha
palavra" (Is 66:2).
Isto é sempre verdadeiro. Não há limite para a bênção, quando a alma se encontra
nesta bendita atitude. Mas tem de ser uma realidade. De nada servirá falar de se
estar "pobre e abatido"; devemos estar realmente nesse estado. E um assunto
individual — "para quem olharei".
Oh, que o Senhor, em Sua infinita misericórdia, nos guie, a cada um de nós, a um
verdadeiro auto-juízo sob a ação da Sua Palavra! Que os nossos ouvidos sejam
abertos para ouvir a Sua voz! Que os nossos corações sejam realmente volvidos
para Ele e a Sua Palavra! Voltemos as costas, com santa decisão, de uma vez para
sempre, a tudo que não estiver de acordo com a Sagrada Escritura! Isto, estamos
convencidos, é o que o Senhor Jesus Cristo espera de todos os que Lhe pertencem,
entre os terríveis e irremediáveis escombros da cristandade.
CAPÍTULO 6
Eu e a Minha Casa
"Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o SENHOR,
VOSSO Deus, para se vos ensinar, para que os fizésseis na terra a que passais a
possuir; para que temas ao SENHOR, teu Deus, e guardes todos os seus estatutos e
mandamentos, que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias
da tua vida; e que teus dias sejam prolongados. Ouve, pois, ó Israel, e atenta que os
guardes, para que bem te suceda, e muito te multipliques, como te disse o
SENHOR, Deus de teus pais, na terra que mana leite e mel. Ouve, Israel, o
SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR."
Aqui temos exposta a verdade fundamental que a nação de Israel era
especialmente responsável por manter e confessar, a saber: a unidade da Deidade.
Esta verdade encontra-se na própria fundação da economia judaica. Era o grande
centro em volta do qual o povo devia reunir-se. Enquanto a mantiveram, foram
um povo feliz, próspero e fértil; mas quando a abandonaram, tudo desapareceu.
Era o seu grande baluarte, e o que devia distingui-los de todas as nações da terra.
Foram chamados para confessar esta gloriosa verdade ante um mundo idólatra,
com "os seus muitos deuses e muitos senhores". Era elevado privilégio e santo
dever de Israel render um firme testemunho da verdade contida nessa importante
expressão: "O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR", em notável oposição aos
inúmeros deuses falsos dos pagãos à sua volta. Seu pai Abraão havia sido chamado a
sair do próprio meio da idolatria do paganismo, para ser um testemunho do único
Deus vivo e verdadeiro, para confiar n'Ele, andar com Ele, apoiar-se n'Ele e Lhe
obedecer.
Se o leitor se voltar para o último capítulo de Josué, encontrará uma notável alusão
a este fato, e o emprego importante que ele fez dela, no seu último discurso ao
povo. "Depois, ajuntou Josué todas as tribos de Israel em Siquém e chamou os
anciãos de Israel, e os seus cabeças, e os seus juízes, e os seus oficiais, e eles se
apresentaram diante de Deus. Então Josué disse a todo o povo: Assim diz o
SENHOR, Deus de Israel: Dalém do rio, antigamente, habitaram vossos pais, Tera,
pai de Abraão e pai de Naor: e serviram a outros deuses. Eu, porém, tomei a
Abraão, vosso pai dalém do rio, e o fiz andar por toda a terra de Canaã; também
multipliquei a sua semente e dei-lhe Isaque."
Aqui Josué recorda ao povo o fato de que seus pais haviam servido outros deuses —
um fato solene e muito importante, certamente, e que eles nunca deveriam ter
esquecido, visto que a sua recordação os teria advertido da sua grande necessidade
de vigilância sobre si mesmos, não fosse o caso de, de algum modo, regressarem ao
terrível e grosseiro mal de que Deus, em Sua graça soberana, e amor de eleição,
havia chamado seu pai Abraão. Teria sido prudente considerar que o mesmíssimo
mal em que seus pais haviam vivido, nos tempos antigos, era precisamente o
mesmo em que eles corriam o risco de cair .
Havendo apresentado este fato ao povo, Josué traz perante eles, com energia
invulgar e rara clareza, todos os principais acontecimentos da sua história, desde o
nascimento de seu pai Isaque ao momento em que lhes falava; e então termina com
o seguinte apelo: "Agora, pois, temei ao SENHOR, e servi-o com sinceridade e com
verdade, e deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do rio e no
Egito, e servi ao SENHOR. Porém, se vos parece mal aos vossos olhos servir ao
SENHOR, escolhei hoje a quem sirvais: se os deuses a quem serviram vossos pais,
que estavam dalém do rio, ou os deuses dos amorreus, em cuja terra habitais;
porém eu e a minha casa serviremos ao SENHOR" (versículos 1-3, 14).
Note-se a alusão repetida ao fato de que os seus pais haviam adorado deuses falsos;
e, além disso, de que a terra a que o Senhor os havia trazido havia sido poluída, de
uma extremidade à outra, pelas tenebrosas abominações da idolatria pagã.
Desta forma este fiel servo do Senhor procura, evidentemente por inspiração do
Espírito Santo, pôr diante do povo o perigo de abandonar a grande verdade central
e fundamental de um Deus vivo e verdadeiro, e de caírem outra vez na adoração de
ídolos. Faz-lhes ver a necessidade de absoluta e sincera decisão. "Escolhei hoje a
quem sirvais." Nada dá como uma decisão clara, franca e aberta por Deus. É-Lhe
devida em todos os tempos. O Senhor havia-lhes dado provas de que era
inconfundivelmente por eles remindo-os da escravidão do Egito e conduzindo-os
através do deserto e colocando-os na terra de Canaã. Por isso, serem inteiramente
por Ele nada mais era do que o seu serviço racional.
Quão intensamente o entendia assim Josué quanto ao que se referia a si mesmo
bem o demonstram aquelas palavras memoráveis : "Eu e a minha casa serviremos
ao SENHOR. " Belas palavras! Preciosa decisão! Uma religião nacional podia cair
em ruína, e infelizmente assim sucedeu em Israel, mas a religião pessoal e familiar
pode pela graça de Deus ser mantida, onde quer que seja, e em todos os tempos.
Graças a Deus por tudo isto! Que nunca o esqueçamos! "Eu e a minha casa" é a
resposta clara e alegre da fé à exortação de Deus: "Tu e a tua casa." Seja qual for o
estado do povo professo de Deus, em qualquer tempo, todo homem de Deus de
verdadeiro coração tem o privilégio de adotar essa imorredoura decisão e atuar de
acordo com ela: "Eu e a minha casa serviremos ao SENHOR."
Decerto, esta santa resolução só pode ser levada a efeito pela graça de Deus
concedida continuamente, mas podemos estar seguros de que quando o coração
está disposto a seguir completamente o Senhor toda a graça necessária será dada,
dia a dia; porque essas encorajadoras palavras terão sempre o seu valor: "A minha
graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza."
Vejamos agora, por um momento, o efeito aparente do apelo comovedor de Josué à
congregação. Parecia muito prometedor. "Então, respondeu o povo e disse: Nunca
nos aconteça que deixemos ao SENHOR para servirmos a outros deuses; porque o
SENHOR é o nosso Deus; ele é o que nos fez subir, a nós e a nossos pais, da terra do
Egito, da casa da servidão, e o que tem feito estes grandes sinais aos nossos olhos, e
nos guardou por todo o caminho que andamos, e entre todos os povos pelo meio
dos quais passamos. E o SENHOR expeliu de diante de nós a todas estas gentes, até
ao amorreu, morador da terra; também nós serviremos ao SENHOR, porquanto é
nosso Deus."
Tudo isto soava bem e despertava grandes esperanças. Parecia terem um sentido
claro da base moral do direito do Senhor sobre eles por obediência implícita.
Podiam relatar minuciosamente todos os Seus feitos poderosos em seu favor, e
fazer sinceros, sem dúvida, verdadeiros juramentos contra a idolatria e promessas
de obediência ao Senhor, seu Deus.
Um Coração Submisso
Moisés, tendo declarado a grande verdade fundamental contida no versículo 4:
"Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR", continua a insistir
com a congregação sobre o seu dever sagrado a respeito d'Aquele bendito Senhor.
Não era apenas que havia um Deus, mas que era o seu Deus; que Se havia dignado
relacionar com eles mediante um pacto. Tinha-os redimido, havia-os levado como
em asas de águias, e trazido a
Si mesmo, a fim de que eles pudessem ser o Seu povo, e Ele pudesse ser o seu Deus.
Fato bendito! Bem-aventurado parentesco! Mas havia que recordar a Israel a
conduta apropriada a um tal parentesco — conduta que só podia emanar de um
coração amoroso. "Amarás, pois, ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de
toda a tua alma, e de todo o teu poder." É nisto que está todo o segredo da
verdadeira religião prática. Sem isto tudo é de nenhum valor para Deus. "Dá-me,
filho meu, o teu coração." Quando se dá o coração, tudo o mais andará bem. O
coração pode ser comparado ao regulador de um relógio que atua sobre o cabelo de
mola, e este cabelo atua segundo a mola principal, e a mola principal atua sobre os
ponteiros fazendo-os movimentar sobre o mostrador. Se o relógio regula mal, não
bastará alterar apenas os ponteiros, é preciso ajustar o regulador. Deus olha para
um coração verdadeiramente reto, bendito seja o Seu nome! A Sua Palavra diz-nos:
"Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em
verdade" (1 Jo 3:18).
Quanto havemos de bendizê-Lo por estas comovedoras palavras! Como elas nos
revelam o Seu coração de amor! Certamente, Ele nos amou na realidade e de
verdade; e não pode ficar satisfeito com qualquer coisa mais, quer seja em nossa
conduta com Ele ou na nossa conduta uns com os outros. Tudo deve proceder
diretamente do coração.
"E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração" — na própria origem
de todas as saídas da vida. Isto é especialmente precioso. Tudo aquilo que há no
coração assoma aos lábios e aparece na vida. Quão importante, pois, é ter o coração
cheio da Palavra de Deus, tão cheio que não haja lugar para as vaidades e loucuras
deste presente século mau. Então, a nossa conversação será sempre com graça,
temperada com sal. "Do que o coração está cheio fala a boca." Por isso podemos
julgar o que há no coração pelo que fala a boca. A língua é o órgão do coração—o
órgão do homem. "O homem bom do tesouro do seu coração tira o bem, e o
homem mau do mau tesouro do seu coração tira o mal" (Lc 6:45). Quando o
coração é realmente dirigido pela Palavra de Deus, todo o caráter revela o bendito
resultado. Tem de ser assim, visto que o coração é a fonte principal de todo o nosso
estado moral; está no centro de todas aquelas influências morais que governam a
nossa história pessoal e moldam a nossa carreira prática.
Em todas as porções do livro divino vemos a importância que Deus dá à atitude e
estado do coração a respeito de Si e da Sua Palavra, o que é uma e a mesma coisa.
Quando o coração é sincero para com Ele, é certo que tudo irá bem; mas, por outro
lado, descobriremos que, quando o coração esfria e se descuida a respeito de Deus e
da Sua verdade, haverá, mais cedo ou mais tarde, abandono declarado da conduta e
verdade da justiça. Existe, portanto, muito força e valor na exortação feita por
Barnabé aos convertidos em Antioquia: "Exortou a todos que permanecessem no
Senhor a que, com firmeza de coração" (At 11:23). Quão necessário é isto agora
como o era então e será sempre! Este "propósito de coração" é muito precioso para
Deus. E o que nos poderemos aventurar a chamar o grande regulador moral. Dá
um formoso zelo ao caráter cristão que é desejado ardentemente por todos nós. E
um antídoto divino contra a indiferença, entorpecimento e formalidade tão
detestáveis para Deus. A vida exterior pode ser muito correta e o credo pode ser
muito ortodoxo, mas se faltar o propósito sincero do coração — união afetuosa de
todo o ser moral com Deus e o Seu Cristo — tudo é completamente desprezível.
E por intermédio do coração que o Espírito Santo nos instrui. Por isso, o apóstolo
orava pelos santos de Éfeso para que pudessem ter iluminados os olhos do seu
coração (Ef 1:18): "Para que Cristo habite pela fé nos nossos corações" (Ef 3:17).
Vemos assim como toda a Escritura está em perfeita harmonia com a exortação
feita no nosso capítulo. "E estes palavras que hoje te ordeno estarão no teu
coração." Como isto os teria mantido perto do seu Deus de concerto! Quão livres
estariam também de todo o mal e especialmente do mal abominável da idolatria —
o seu pecado nacional, o seu terrível embaraço! Se as palavras preciosas de Javé
tivessem encontrado o primeiro lugar no seu coração, teria havido pouco receio de
Baal, Quemos ou Astarote. Numa palavra, todos os ídolos teriam ocupado o seu
devido lugar e sido considerados pelo verdadeiro valor, se tão somente a palavra de
Javé tivesse sido permitida no coração de Israel.
E note-se especialmente aqui como tudo isto é fielmente característico do livro de
Deuteronômio. Não é tanto uma questão de guardar uma determinada ordem de
regras religiosas, a oferta de sacrifícios ou de frequência aos ritos e cerimônias.
Todas essas tinham, sem dúvida, o seu próprio lugar, mas não são, de modo
nenhum, o ponto proeminente ou dominante em Deuteronômio. Não; A
PALAVRA é o tema importante aqui. É a palavra de Javé no coração de Israel.
O leitor deve compreender bem este fato se quiser possuir a chave do encantador
livro de Deuteronômio. Não é um o livro de moral e afetuosa obediência. Ensina,
em quase todas as partes em que se divide, essa inestimável lição, que o coração
que ama, preza e honra a Palavra de Deus está pronto para todos os atos de
obediência, quer seja a oferta de um sacrifício ou a observância de um dia. Poderia
dar-se o caso de um israelita se encontrar num sítio e em circunstâncias em que era
impossível uma rígida adesão aos ritos e cerimônias; mas não poderia encontrar-se
num lugar e em circunstâncias em que não podia amar, reverenciar e obedecer a
Palavra de Deus. Onde quer que tivesse ido, ainda que tivesse sido levado como
cativo, desterrado para os fins da terra, nada podia roubar-lhe o elevado privilégio
de proferir e atuar essas benditas palavras: "Escondi a tua palavra em meu coração
para não pecar contra ti."
Palavras preciosas! Compreendem no seu âmbito o grande princípio do livro de
Deuteronômio; e nós podemos acrescentar o grande princípio da vida divina, em
todos os tempos, e em toda a parte. Um princípio que nunca poderá perder a sua
força moral e o seu valor. Permanece para sempre. Era verdadeiro nos dias dos
patriarcas; verdadeiro para Israel na terra; verdadeiro quanto à dispersão de Israel
até aos confins da terra; verdadeiro para o conjunto da igreja; verdadeiro para cada
crente em particular no meio das ruínas irreparáveis da igreja. Numa palavra, a
obediência é sempre o dever e elevado privilégio da criatura — obediência
simples, decidida, e absoluta à Palavra do Senhor. Isto é uma misericórdia inefável
pela qual bem podemos louvar o nosso Deus dia e noite. Ele deu-nos a Sua Palavra,
bendito seja o Seu nome, e exorta-nos a que essa Palavra habite abundantemente
em nós — que habite em nossos corações e que exerça o seu santo domínio sobre
toda a nossa conduta e caráter.
"E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; e as intimarás a teus
filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e
deitando-te, e levantando-te. Também as atarás por sinal na tua mão, e te serão por
testeiras entre os teus olhos. E as escreverás nos umbrais da tua casa e nas tuas
portas" (versículos 6 a 9).
Tudo isto é perfeitamente belo. A Palavra de Deus escondida no coração; brotando
em amorosa instrução para os filhos e em santo conversação no seio da família;
brilhando em todas as atividades da vida diária, de forma que todos os que
entravam as portas ou eram recebidos em cada pudessem ver a Palavra de Deus.
Era a norma de vida para cada um, para todos, e em todas as coisas.
Assim devia ser com o antigo Israel; e certamente assim deveria ser com o cristão
no tempo presente. Mas será assim? Os nossos filhos são assim ensinados? E nosso
propósito constante apresentar a Palavra de Deus, em todos os seus celestiais
atrativos, aos seus corações juvenis? Eles veem-na brilhar na nossa diária? Veem a
sua influência nos nossos hábitos, temperamento, relações de família, ou nas
nossas transações e negócios? E isto que entendemos por atar a palavra por sinal na
mão, e tê-la por testeira entre os olhos, escrita nos umbrais e nas portas.
Não Deve Haver Misericórdia para com os Cananeus, nem Pacto com Eles
A precedente linha de pensamentos habilitará o leitor a compreender as
primeiras linhas do nosso capítulo. Os cananeus não podiam receber misericórdia
às mãos de Israel. As suas iniqüidades haviam chegado ao ponto culminante, e
nada restava senão a inflexível execução do juízo divino. "Totalmente as destruirás;
não farás com elas concerto, nem terás piedade delas; nem te aparentarás com elas;
não darás as tuas filhas a seus filhos e não tomarás suas filhas para teus filhos; pois
fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do
SENHOR se acenderia contra vós e depressa vos consumiria. Porém assim lhes
fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas estátuas cortareis os seus
bosques e queimareis a fogo as suas imagens de escultura" (versículos 2 a 5).
Tais foram as instruções dadas pelo Senhor ao Seu povo. Eram claras e
explícitas. Não devia haver misericórdia para os cananeus, não podiam fazer
concerto com eles, nem unirem-se a eles, nem ter relações de qualquer espécie,
mas implacável juízo, intensa separação.
Sabemos, infelizmente, como Israel falhou tão depressa em cumprir tais
instruções. Apenas haviam posto os pés na terra de Canaã e já tinham feito um
pacto com os gibeonitas. Até mesmo o próprio Josué caiu na cilada. Os vestidos
esfarrapados e o pão bolorento desses matreiros iludiram os príncipes da
congregação e deram ocasião a que eles atuassem de um modo contrário ao claro
mandamento de Deus. Tivessem eles sido guiados pela autoridade da Palavra de
Deus e não teriam caído no grave erro de fazer uma aliança com a gente que
deviam ter exterminado completamente. Mas eles julgaram segundo a vista de seus
olhos e tiveram que sofrer as conseqüências (1).
__________
(1) E, ao mesmo tempo, instrutivo e uma boa advertência, ver que os vestidos, o pão bolorento, e as
palavras plausíveis dos gibeonitas fizeram o que os muros de Jericó não puderam fazer. Os ardis de Satanás
são mais para temer do que o seu poder. "Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar
firmes contra as astutas ciladas do diabo." Quanto mais atentamente consideramos as diversas partes de
toda a armadura de Deus, tanto mais claramente as vemos agrupadas sob estes dois princípios, obediência e
dependência. A alma que é realmente governada pela autoridade da Palavra e está em completa
dependência do poder do Espírito, está perfeitamente equipada para o conflito. Foi assim que o Homem
Cristo Jesus venceu o inimigo. O diabo nada podia fazer com um homem que era perfeitamente obediente
e de todo dependente. Estudemos, nisto, como em tudo mais, o nosso grande Exemplo!
"Todos os mandamentos que hoje vos ordeno guardareis o para os fazer, para
que vivais, e vos multipliqueis, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR jurou a
vossos pais. E te lembrarás de todo o caminho pelo qual o SENHOR, teu Deus, te
guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te tentar, para saber o
que estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos ou não" (versículos
1 e 2).
É, ao mesmo tempo, edificante e animador volver os olhos para todo o curso ao
longo do qual a mão fiel do nosso Deus nos tem conduzido; traçar os Seus atos
sábios e cheios de graça conosco; para nos recordar as Suas muitas maravilhosas
intervenções em nosso favor, como nos libertou deste aperto e daquela dificuldade;
como, muitas vezes, quando não sabíamos o que havíamos de fazer, Ele veio em
nosso socorro e abriu o caminho diante de nós, repreendendo os nossos temores e
enchendo os nossos corações com cânticos de louvores e ações de graças.
Não é para nos Orgulharmos de nossos Progressos
Não devemos, de modo nenhum, confundir este agradável exercício com o
hábito miserável de olharmos para trás sobre os nossos caminhos, os nossos
sucessos, o nosso progresso, o nosso serviço, o que temos podido fazer, embora
estejamos dispostos a admitir, de um modo geral, que fora apenas pela graça de
Deus que pudemos fazer algum trabalho para Ele. Tudo isto conduz apenas a
satisfação própria, a qual é destruidora de todo o verdadeiro pensamento espiritual.
A retrospecção pessoal, se nos é permitido empregar tal termo, é tão injuriosa no
seu efeito moral como na própria introspecção. Em suma, a ocupação por própria
iniciativa, em qualquer das suas múltiplas fases, é a mais perniciosa; é, tanto quanto
lhe é permitido operar, o golpe mortal da comunhão. Tudo quanto tende a exaltar
perante a mente a personalidade deve ser julgado e recusado, com firme decisão;
produz a esterilidade, a obscuridade e a fraqueza. Todo aquele que se detém para
rever os seus méritos ou os seus feitos entrega-se à mais miserável ocupação a que
alguém pode dedicar-se. Podemos estar certos de que não era a uma tal ocupação
que Moisés exortava o povo quando lhe disse: "E te lembrarás de todo o caminho
pelo qual o SENHOR, teu Deus, te guiou no deserto."
Aqui podemos recordar, por um momento, as palavras memoráveis do apóstolo
em Filipenses 3: "Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma
coisa faço, e é que, esquecendo- me das coisas que atrás ficam e avançando para as
que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de
Deus em Cristo Jesus" (versículos 13 e 14).
Ora, a questão é esta, quais eram as "coisas" de que o bem- aventurado apóstolo
falai Esquecera os atos preciosos de Deus com a sua alma através de toda a sua
jornada pelo deserto? Impossível; na realidade temos a mais clara e completa
evidência do contrário. Escutai as suas palavras tocantes perante Agripa: "Mas,
alcançando socorro de Deus, ainda até ao dia de hoje permaneço, dando teste-
munho tanto a pequenos como a grandes." Assim também, escrevendo ao seu
amado filho e cooperador Timóteo, ele revê o passado e fala das perseguições e
aflições que havia sofrido: "E o Senhor de todas me livrou." "Ninguém me assistiu
na minha primeira defesa; antes, todos me desampararam. Que isto lhes não seja
imputado. Mas o Senhor assistiu-me e fortaleceu-me, para que, por mim fosse
cumprida a pregação e todos os gentios a ouvissem; e fiquei livre da boca do leão"
(2 Tm 3:11; 4:16,17).
Portanto, a que se refere o apóstolo quando fala de "esquecer as coisas que atrás
ficam" ? Cremos que se refere a todas aquelas coisas que não tinham relação com
Cristo — coisas que podiam atuar como pesos e impedimentos; deviam ser todas
esquecidas no ardente prosseguimento dessas gloriosas realidades que estavam
diante de si Não podemos crer que Paulo ou qualquer outro filho de Deus ou servo
de Cristo pudesse jamais esquecer uma simples cena ou circunstâncias, em toda a
sua carreira, que, de qualquer modo, fosse um exemplo da bondade, benignidade,
terna misericórdia e fidelidade de Deus. Pelo contrário, cremos que será sempre
uma das mais agradáveis ocupações ter presente a feliz recordação de todos os
feitos do nosso Pai conosco durante a nossa passagem por este deserto para o nosso
eterno descanso.
Mas não queremos que o sentido das nossas palavras seja mal compreendido.
Não desejamos, de modo nenhum, dar apoio ao hábito de pensarmos apenas na
nossa própria experiência. Isto é muitas vezes uma fraca tarefa, e transforma-se por
si mesma em ocupação pessoal. Devemo-nos guardar contra isto como uma das
muitas coisas que tendem a diminuir o nosso tom espiritual e a afastar os nossos
corações de Cristo. Mas não devemos nunca ter receio do resultado de manter viva
a recordação dos caminhos e atos de Deus para conosco. Isto é um bendito hábito,
que tende sempre a elevar-nos acima de nós próprios e nos enche de louvores e
ações de graças.
OUVE, Ó ISRAEL
"Sabe, pois hoje, que o SENHOR, teu Deus, Passa diante de ti"
"Sabe, pois, hoje, que o SENHOR, teu Deus, que passa diante de ti, é um fogo que
consome, e os destruirá, e os derrubará de diante de ti; e tu os lançarás fora e cedo
os desfarás, como o SENHOR te tem dito" (versículo 3).
Aqui, pois, está a resposta divina a todas as dificuldades, por muito grandes que
sejam. Que eram nações poderosas, grandes cidades, muralhas fortificadas na
presença do Senhor? Simplesmente como palha diante do furacão. "Se Deus é por
nós, quem será contra nós?" As próprias coisas que amedrontam e embaraçam o
coração cobarde proporcionam ocasião para a manifestação do poder de Deus e do
magnífico triunfo da fé. A fé diz: "Concedam- me apenas isto, que Deus está diante
de mim e comigo, e eu posso ir seja aonde for." Assim a única coisa em todo este
mundo que realmente glorifica Deus é a fé que pode confiar n'Ele, O emprega e O
louva. E visto que a fé é a única coisa que glorifica Deus, é também a única coisa
que dá ao homem o seu próprio lugar de completa dependência de Deus, e isto
garante vitória e inspira louvor - louvor incessante.
Mas não devemos esquecer que há perigo moral no próprio momento de
vitória — perigo que provém do que somos em nós próprios. Existe o perigo de
auto-congratulação—uma terrível cilada para todos nós, pobres mortais. Na hora
do conflito, sentimos a nossa fraqueza, nulidade e necessidade. Isto é bom e
moralmente seguro. É bom ser-se levado às profundezas do ego e tudo que lhe
pertence, porque ali encontramos Deus em toda a plenitude e bem-aventurança do
que Ele é, e isto é vitória certa, segura e conseqüente louvor.
Moisés, o Intercessor
Mas devemos citar para o leitor o esplêndido parágrafo que encerra o nosso
capítulo—um parágrafo eminentemente apropriado para abrir os olhos de Israel
para a absoluta loucura de todos os seus pensamentos acerca de Moisés, dos seus
pensamentos a respeito deles mesmos, e os pensamentos que alimentavam a
respeito do bendito Senhor que tão maravilhosamente os havia suportado em toda
a sua negra incredulidade e atrevida rebelião.
"E prostrei-me perante o SENHOR aqueles quarenta dias e quarenta noites em
que estava prostrado; porquanto o SENHOR dissera que vos queria destruir. E orei ao
SENHOR,dizendo: SENHOR DEUS, não destruas o teu povo e a tua herança, que
resgataste com a tua grandeza, que tiraste do Egito com mão forte. Lembra-te dos
teus servos Abraão, Isaque e Jacó; não atentes para a dureza deste povo, nem para a
sua impiedade, nem para o seu pecado, para que o povo da terra donde nos tiraste
não diga: Porquanto o SENHOR OS não pôde introduzir na terra de que lhes tinha
falado e porque os aborrecia, os tirou para os matar no deserto. Todavia, são eles o
teu povo e a tua herança que tu tiraste com a tua grande força e com teu braço
estendido (versículos 25 a 29).
Que maravilhosas palavras para serem dirigidas por um ser humano ao Deus
vivo! Que súplicas poderosas em favor de Israel! Que abnegação! Moisés recusa a
dignidade que se lhe oferecia de ser o fundador de uma nação mais poderosa do
que Israel. Desejava apenas que o Senhor fosse glorificado e Israel perdoado,
abençoado e introduzido na terra prometida. Não podia suportar o pensamento de
que esse nome tão querido ao seu coração fosse de maneira alguma censurado; nem
tampouco podia presenciar a destruição de Israel. Estas eram as duas coisas que ele
temia; e quanto à sua própria exaltação, isso era precisamente o que menos o
preocupava. Este amado e honrado servo de Deus preocupava-se somente com a
glória de Deus e a salvação do Seu povo; e quanto a si próprio, as suas esperanças,
os seus interesses, tudo, em suma, podia descansar, com perfeita tranqüilidade, na
certeza de que a sua bênção individual e a glória divina estavam ligadas entre si por
um laço que nunca poderia ser quebrado.
E, oh, como tudo isto deve ter sido grato ao coração de Deus! Quão refrescantes
eram para o Seu Espírito as ardentes e amorosas súplicas do Seu servo! Como
estavam muito mais em harmonia coma Sua mente do que a intercessão de Elias
contra Israel, séculos depois! Como elas nos fazem lembrar o bendito ministério do
nosso grande Sumo Sacerdote que vive sempre para interceder pelo Seu povo e
cuja intervenção ativa em nosso favor nunca cessa nem um só momento!
E então quão comovedor e belo é observar o modo como Moisés insiste no fato
de que o povo era a herança do Senhor e que Ele os havia tirado do Egito. O Senhor
disse: "O teu povo, que tiraste do Egito. "Mas Moisés diz: O teu povo e a tua
herança, que resgataste com a tua grandeza." Isto é admirável. Na realidade toda
esta cena está cheia do maior interesse.
— CAPÍTULO 10 —
"Naquele mesmo tempo, me disse o SENHOR: Alisa duas tábuas de pedra, como
as primeiras, e sobe a mim a este monte, e faze uma arca de madeira. E, naquelas
tábuas, escreverei as palavras que estavam nas primeiras tábuas que quebraste, e as
porás na arca. Assim, fiz uma arca de madeira de cetim, e alisei duas tábuas de
pedra, como as primeiras, e subi o monte com as duas tábuas na minha mão. Então,
escreveu-o nas tábuas, conforme a primeira escritura, os dez mandamentos, que o
SENHOR vos falara no dia da congregação, no monte, do meio do fogo; e o SENHOR
mas deu a mim. E virei-me, e desci do monte, e pus as tábuas na arca que fizera; e
ali estão, como o SENHOR me ordenou" (versículos 1 a 5).
O amado e venerado servo de Deus parecia nunca se cansar de repetir aos
ouvidos do povo as mesmas interessantes, importantes e significativas frases do
passado. Para ele eram sempre frescas, preciosas. O seu coração deleitava-se nelas.
Nunca poderiam perder o seu encanto aos seus olhos; encontrava nelas um tesouro
inesgotável para o seu próprio coração e uma poderosa alavanca com que mover o
coração de Israel.
Estes poderosos e profundamente comovedores discursos recordam-nos
constantemente as palavras do apóstolo inspirado aos seus amados Filipenses: "Não
me aborreço de escrever-vos as mesmas coisas, e é segurança para vós" (Fp 3:1). O
pobre coração inconstante e vadio podia ansiar por qualquer novo tema; mas o fiel
apóstolo encontrou o seu mais intenso e infalível deleite em desenvolver e insistir
sobre esses preciosos assuntos que se acumulavam, em exuberância, em redor da
Pessoa e da cruz de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. Tinha achado
em Cristo tudo quanto necessitava para o tempo e a eternidade. A glória da Sua
Pessoa havia eclipsado completamente todas as glórias da terra e da natureza.
Podia dizer: "O que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na verdade,
tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de
Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas e as considero
como esterco, para que possa ganhar a Cristo" (Fp 3:7-8).
Esta é a linguagem de um verdadeiro cristão, de alguém que havia achado em
Cristo um objetivo absorvente e dominante. Que poderia o mundo oferecer a uma
tal pessoa? Que podia fazer por ele? Desejava as suas riquezas, suas honras,
distinções e prazeres? Considerava-as como esterco. Como era isto? Porque havia
achado Cristo. Havia visto n'Ele um objetivo que atraía de tal modo o seu coração
que ganhá-Lo, e conhecê-Lo e ser achatado d'Ele era o desejo predominante da sua
vida. Se alguém tivesse falado a Paulo de qualquer coisa nova, qual teria sido a sua
resposta? Se alguém lhe tivesse sugerido a idéia de triunfar no mundo ou de
procurar fazer fortuna, qual teria sido a sua resposta? Simplesmente esta: "Achei
tudo quanto preciso em Cristo; nada mais preciso. Encontrei n'Ele riquezas
inescrutáveis — riquezas duráveis e justiça. N'Ele estão escondidos todos os
tesouros da sabedoria e da ciência. Que necessidade tenho eu das riquezas deste
mundo, da sua sabedoria ou cultural Estas coisas passam todas como os vapores da
manhã; e até mesmo enquanto duram, são absolutamente inadequadas para
satisfazer os desejos e aspirações de um espírito imortal. Cristo é um objetivo
eterno, o centro do céu, o deleite do coração de Deus; bastar-me-á durante os
incontáveis séculos da esplendorosa eternidade que está diante de mim; e
certamente se Ele pode satisfazer o meu coração para sempre, pode satisfazer-me
no tempo presente. Devo voltar-me para os miseráveis farrapos deste mundo, as
suas ocupações, os seus prazeres, divertimentos, teatros, concertos, as suas riquezas
ou honras como um suplemento da minha porção em Cristo? Não o permitia Deus!
Tais coisas seriam simplesmente intoleráveis para mim. Cristo é o meu tudo, em
tudo, agora e para sempre."
Tal, podemos muito bem crer, teria sido a terminante resposta verbal do
bem-aventurado apóstolo; tal foi a resposta clara de toda a sua vida; e tal, prezado
leitor, deve ser também a nossa. Quão deplorável, quão profundamente
humilhante é ver um crente procurar no mundo alegria, recreio e passatempo!
Demonstra simplesmente que ele não tem encontrado em Cristo a Sua porção
satisfatória. Podemos estabelecer como principio imutável que o coração que está
cheio de Cristo não tem lugar para nada mais. Não se trata de uma questão de
coisas boas ou más; o coração não as quer; encontrou a sua parte e o seu descanso
atuais e ternos n'Aquele bendito Senhor que enche o coração de Deus e encherá o
vasto universo com os raios da Sua glória através de todos os séculos eternos.
A esta linha de pensamentos nos tem levado o fato interessante da incansável
repetição feita por Moisés de todos os grandes acontecimentos da história
maravilhosa de Israel desde o Egito até à fronteira da terra prometida. Para ele
eram motivo de uma perpétua festa; e não só encontrava o seu intenso deleite
contemplando-os como sentia a imensa importância de os expor perante toda a
congregação. Para ele não era, com certeza, incômodo, mas para eles era certo.
Quão grato para ele, e quão útil e necessário para eles apresentar os fatos
relacionados com os dois pares de tábuas — o primeiro par partido em pedaços ao
pé do monte e o segundo par encerrado na arca!
Que linguagem humana pode, de algum modo, desenvolver o profundo
significado e importância moral de tais fatos? As tábuas quebradas! Quão tocante!
Quão repleto de instrução salutar para o povo! Haverá alguém que se atreva a dizer
que temos uma repetição fútil dos fatos mencionados em Êxodo? Não será,
certamente, quem crê na inspiração do Pentateuco.
Não, leitor, o capítulo 10 de Deuteronômio preenche um vácuo e faz uma obra
propriamente sua. Nele o legislador mostra aos corações do povo cenas passadas e
circunstâncias de forma tal que dir-se-ia querer gravá-las nas próprias tábuas da
alma. Permite-lhes ouvir a conversa entre o SENHOR e ele próprio; conta-lhes o que
tivera lugar durante esses misteriosos quarenta dias sobre o cume do monte
envolto numa nuvem. Deixa que ouçam as alusões do Senhor às tábuas
quebradas—expressão apropriada e poderosa da completa inutilidade do concerto
do homem. Pois porque foram essas tábuas partidas ? Porque eles haviam falhado
vergonhosamente. Aqueles fragmentos espalhados contavam a história
humilhante da sua irremediável ruína com base na lei. Tudo estava perdido. Tal
era o significado claro do fato. Era espantoso, impressionante, inequívoco. Como
uma coluna quebrada sobre um túmulo, a qual explica, ao primeiro golpe de vista,
que o apoio e suporte da família jaz abaixo na terra convertendo-se em pó. Não há
necessidade de nenhuma inscrição porque nenhuma linguagem humana pode falar
com tal eloqüência ao coração como esse expressivo emblema. De igual modo as
tábuas quebradas estavam calculadas para transmitir ao coração de Israel o
tremendo fato, tanto quanto dizia respeito ao seu concerto, que estavam
inteiramente arruinados, irremediavelmente perdidos; estavam falidos sob o ponto
de vista da justiça da lei (Rm 8:3-4).
O Estrangeiro
E depois o pobre estrangeiro! Não é esquecido. "E ama o estrangeiro, dando-lhe
pão e vestido." Como isto é precioso! O nosso Deus cuida de todos os que se vêem
privados de apoio terreno, esperança humana e confiança na criatura. Todos eles
têm sobre Ele um direito especial a que Ele seguramente responde segundo todo o
amor do Seu coração. A viúva, o órfão e o estrangeiro são objetos especiais do Seu
eterno cuidado, e todos têm apenas que olhar para Ele em todas as suas variadas
necessidades para serem atendidos com Seus inesgotáveis recursos.
Mas Deus tem de ser conhecido para poder confiar-se n'Ele. ''Em ti confiarão os
que conhecem o teu nome; porque tu, SENHOR, nunca desamparaste os que te
buscam" (SI 9:10). Os que não conhecem Deus preferem muito mais uma apólice
de seguros ou uma renda vitalícia à Sua promessa. Mas o verdadeiro crente
encontra nessa promessa o infalível apoio do seu coração, porque conhece, confia e
ama Aquele que prometeu. Acha prazer no pensamento de contar absolutamente
com Deus, de ser inteiramente dependente d'Ele. Não quereria, por nada deste
mundo, estar noutra situação. Aquilo que faria quase perder o juízo a um incrédulo
é para o crente — o homem de fé—motivo do mais profundo gozo do seu coração.
A linguagem de um tal será sempre: "O minha alma, espera somente em Deus,
porque dele vem a minha esperança. Só ele é a minha rocha" (SI 62:5-6). Bendita
situação! Feliz porção! Que o leitor a conheça como uma realidade divina, um
poder vivo, em seu coração, pelo poderoso ministério do Espírito Santo! Então
estará em condições de sentir-se livre das coisas terrenas. Será capaz de dizer ao
mundo que é independente dele, tendo achado tudo quanto precisa para o tempo e
a eternidade no Deus vivo e em Cristo.
Mas notemos especialmente a provisão que Deus faz para o estrangeiro. E
muito simples — "pão e vestido". Isto é bastante para um verdadeiro estrangeiro,
como o bem-aventurado apóstolo diz a seu filho Timóteo: "Porque nada trouxemos
para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele. Tendo, porém,
sustento e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes (1 Tm 6:7-8").
Leitor cristão, consideremos isto. Que remédio para a impaciente ambição
temos aqui! Que antídoto contra a avareza! Que bendita libertação da excitação
febril da vida comercial, do espírito cobiçoso do século em que caiu a nossa sorte!
Se apenas nos contentássemos com a porção divinamente estipulada para o
estrangeiro, que história tão diferente teríamos para contar! Quão tranquilo e
suave seria o curso da nossa vida diária! Quão simples os nossos hábitos e gostos!
Quão indiferente ao mundo seria o nosso espírito e maneira de viver! Que moral
elevação sobre a indulgência pessoal e o fausto tão predominante entre os cristãos
professos! Comeríamos e beberíamos unicamente para glória de Deus e para
manter o corpo em bom funcionamento. Transpor estes limites, quer em comer
quer ou em beber, é transigir com "as concupiscências carnais que combatem
contra a alma" (1 Pe 2:11).
Mas, infelizmente, quanto disto existe, especialmente com respeito à bebida! E
simplesmente espantoso pensar no consumo de bebidas alcoólicas entre os cristãos
professos! Estamos plenamente convencidos de que o diabo tem conseguido
arruinar o testemunho de centenas, e dado lugar a que hajam naufragado na fé e
uma boa consciência por meio do uso de estimulantes. Milhares arruínam as suas
fortunas, as suas famílias, a saúde, e as suas almas por meio do desejo insensato, vil
e maldito dos estimulantes.
Não vamos pregar uma cruzada contra os estimulantes ou narcóticos. O mal
não está precisamente neles mas no uso desconhecido e mau que fazemos deles.
Sucede freqüentemente que pessoas que caem sob o horrível domínio da bebida
procuram deitar a culpa ao seu médico; mas é evidente que nenhum médico
propriamente dito aconselhará o seu doente a entregar-se ao uso dos estimulantes.
Poderá aconselhar o uso de "um pouco de vinho por causa do seu estômago e das
suas freqüentes enfermidades", e tem toda a autoridade para o fazer; mas por que
há de isto levar alguém a tornar-se um beberrão"?- Cada qual tem o dever de andar
no temor de Deus a respeito tanto do comer como do beber. Se o médico receita
um pouco de alimento nutritivo ao seu doente, deve culpar- se se o doente se torna
glutão? Decerto que não; o mal não está na receita do médico, ou no estimulante,
ou no alimento, mas no miserável desejo do coração.
Estamos persuadidos de que é aqui que está a raiz do mal; e o remédio
encontra-se naquela preciosa graça de Deus que, enquanto traz salvação a todos os
homens, ensina os que são salvos a "viver, neste presente século, sóbria, justa e
piamente" (Tt 2:12). E note-se que "viver piamente" quer dizer muito mais do que
temperança em comer e beber; quer dizer isto certamente, mas inclui também o
conjunto de domínio próprio — o domínio dos pensamentos, do temperamento,
da língua. A graça que nos salva não só nos diz como viver, mas ensina-nos como
fazê-lo, e se seguirmos o seu ensino estaremos muito contentes com as provisões de
Deus para o estrangeiro.
E, ao mesmo tempo, interessante e edificante notar o modo como Moisés
mostra o exemplo divino perante o povo como modelo. O Senhor "ama o
estrangeiro, dando-lhe pão e veste. Pelo que amareis o estrangeiro, pois fostes
estrangeiros na terra do Egito". Isto é muito tocante, não só deviam ter ante seus
olhos o modelo divino, mas lembrar também a sua própria história e experiência, a
fim de que os seus corações pudessem ser despertados em simpatia e compaixão
para com o pobre estrangeiro sem lar. Era dever e elevado privilégio do Israel de
Deus colocar-se nas circunstâncias e penetrar nos sentimentos dos outros. Deviam
ser os representantes morais daquele bendito Senhor cujo povo eles eram, e por
cujo nome eram chamados. Deviam imitá-Lo no cumprimento e suprimento das
necessidades e alegrar os corações dos órfãos, das viúvas e dos estrangeiros. E se o
antigo povo de Deus na terra foi chamado para este formoso curso de ação, quanto
mais o somos nós que fomos "abençoados com todas as bênçãos espirituais, nos
lugares celestiais, em Cristo." Possamos nós permanecer mais na Sua presença e
beber mais do Seu Espírito, para que assim possamos mais fielmente refletir as Suas
glórias morais sobre todos aqueles com quem entramos em contato!
Os versículos finais do nosso capítulo dão-nos um formoso sumário do ensino
prático que tem vindo a ocupar a nossa atenção. "Ao SENHOR, teu Deus, temerás; a
ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás. Ele é o teu louvor e o teu
Deus, que te fez estas grandes e terríveis coisas que os teus olhos têm visto. Com
setenta almas teus pais desceram ao Egito; e, agora, o SENHOR, teu Deus, te pôs
como as estrelas dos céus em multidão" (versículos 20 a 22).
Quão estimulante é tudo isto para o ser moral! Esta união do coração ao Senhor
mesmo por meio de tudo que Ele é e todos os Seus atos maravilhosos. Tudo isto é
inefavelmente precioso. E, podemos dizer, o secreto manancial de toda a
verdadeira devoção. Permita Deus que o autor e o leitor destas linhas realizem
continuamente o seu eficaz poder!
— CAPÍTULO 11 —
RETROSPECTIVA E FUTURO
A Terra Prometida
Devemos agora prosseguir, por um momento, com a encantadora descrição da
terra prometida que Moisés faz perante os olhos do povo. "Porque a terra que
entras a possuir não é como a terra do Egito, donde saíste, em que semeavas a tua
semente e a regavas com o teu pé, como a uma horta. Mas a terra que passais a
possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas; terra de
que o SENHOR, Teu Deus, tem cuidado: os olhos do SENHOR, teu Deus, estão sobre
ela continuamente, desde o princípio até ao fim do ano"
(versículos 10 a 12).
Que vivido contraste entre o Egito e Canaã! O Egito não tinha chuva dos céus.
Ali tudo era esforço humano. Não era assim na terra do Senhor; o pé humano nada
podia fazer ali, nem havia qualquer necessidade, porque a bendita chuva dos céus
caía sobre ela; o Senhor mesmo cuidava dela e a regava com as primeiras e últimas
chuvas. A terra do Egito estava dependente dos seus recursos; a terra de Canaã
dependia inteiramente de Deus — do que descia do céu. "O meu rio é meu", era a
linguagem do Egito. "O rio de Deus" era a esperança de Canaã. O costume do Egito
era regar com os pés; o hálito em Canaã era levantar os olhos ao céu.
No Salmo 65 temos uma encantadora descrição do estado de coisas na terra do
Senhor, vistas pelos olhos da fé. "Tu visitas a terra e a refrescas; tu a enriqueces
grandemente com o rio de Deus, que está cheio de água; tu lhe dás o trigo, quando
assim a tens preparada; tu enches de água os seus sulcos, regulando a sua altura; tu
a amoleces com a muita chuva; tu abençoas as suas novidades; tu coroas o ano da
tua bondade, e as tuas vereadas destilam gordura; destilam sobre os pastos do
deserto, e os outeiros cingem-se de alegria. Os campos cobrem-se de rebanhos e os
vales vestem-se de trigo; por isso, eles se regozijam e cantam" (versículos 9 a 13).
Quão perfeitamente belo! Pense-se por um momento em Deus refrescando a
terra e enchendo de água os seus sulcos! Pense-se na Sua condescendência em
fazer o trabalho de um lavrador para o Seu povo! Sim, e fazendo-o com agrado! Era
o gozo do Seu coração derramar os Seus raios de sol e refrescantes chuvas sobre "os
outeiros" e "os vales" do Seu amado povo! Era consolador para o Seu Espírito, assim
como era para louvor do Seu nome ver a videira, a figueira e a oliveira florescendo,
os vales cobertos de dourados cereais e as ricas pastagens cobertas de rebanhos de
ovelhas.
Se Obedecerdes... Eu Darei!
Assim deveria ter sido sempre e assim teria sido, se Israel tivesse andado em
simples obediência à santa lei de Deus. "E será que, se diligentemente obedecerdes
a meus mandamentos que hoje te ordeno, de amar ao SENHOR, teu Deus, e de o
servir de todo o teu coração e de toda a tua lama, então, darei a chuva da vossa
terra a seu tempo, a temporã e a serôdia, para que recolhas mosto, e o teu azeite. E
darei erva no teu campo aos teus gados, e comerás e fartar-te-ás" (versículos
13-15).
Assim o assunto ficava entre o Deus de Israel e o Israel de Deus. Nada podia ser
mais simples, nada mais abençoado. Para Israel era um elevado e santo privilégio
amar e servir o Senhor; era prerrogativa de Javé abençoar e fazer prosperar Israel.
A felicidade e a fertilidade deviam certamente acompanhar a obediência. O povo e
a sua terra estavam inteiramente dependentes de Deus; todos os seus suprimentos
deviam descer do céu, e por isso, enquanto andavam em obediência, as chuvas
copiosas caíam sobre os seus campos e vinhedos; os céus destilavam o orvalho e a
terra respondia com fertilidade e bênção.
Mas, por outro lado, quando Israel esqueceu o Senhor e desprezou os Seus
preciosos mandamentos, o céu tornou-se bronze e a terra de ferro; a esterilidade,
desolação, fome e miséria eram os tristes resultados da desobediência. Como
poderia ser de outro modo?- "Se quiserdes e ouvirdes, comereis o bem desta terra.
Mas se recusardes e fordes rebeldes, sereis devorados à espada; porque a boca do
SENHOR O disse" (Is 1:19-20).
Ora, em tudo isto há uma profunda instrução prática para a Igreja de Deus.
Apesar de não estarmos debaixo da lei, somos chamados à obediência, e na medida
em que somos capazes pela graça de render terna e cordial obediência somos
abençoados no nosso estado espiritual, as nossas almas são encorajadas, animadas e
fortalecidas e nós produzimos frutos de justiça, que são por Jesus para glória e
louvor de Deus.
O leitor verificará com muito proveito, em relação com este assunto prático, o
princípio do capítulo 15 de João—uma passagem preciosa da Escritura, que exige a
mais sincera atenção de todo o verdadeiro filho de Deus. "Eu sou a videira
verdadeira, e meu Pai é o lavrador. Toda vara em mim que não dá fruto, a tira; e
limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela
palavra que vos tenho falado. Estai em mim, e eu, em vós; como a vara de si mesma
não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes
em mim. Eu sou a videira, vós, as varas; quem está em mim, e eu nele, este dá
muito fruto, porque sem mim nada podereis fazer. Se alguém não estiver em mim,
será laçado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se
vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que
quiserdes, e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto; e
assim sereis meus discípulos. Como o Pai me amou, também eu vos amei a vós;
permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no
meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e
permaneço no seu amor" (versículos 1 a 10).
Esta importante passagem da Escritura tem sofrido bastante com a controvérsia
teológica e a luta religiosa. E tão clara como prática e só necessita de ser aceita tal
como está, em sua simplicidade divina. Se procurarmos introduzir-lhe o que não
lhe pertence, manchamos a sua integridade e perdemos a sua verdadeira aplicação.
Nela temos Cristo, a videira verdadeira, tomando o lugar de Israel, que se havia
tornado para o Senhor na degenerada planta de uma videira estranha. A cena da
parábola é, evidentemente, aterra e não o céu; não podemos imaginar uma videira
e um lavrador no céu. Alem disso, o Senhor disse: "Eu sou a videira verdadeira". A
figura é muito clara. Não é a Cabeça e os membros, mas uma árvore e as sua varas.
Além disso, o assunto da parábola é tão distinto quanto a própria parábola; não se
trata de vida eterna, mas de dar fruto. Se isto fosse tomado em conta contribuiria,
grandemente, para a compreensão desta passagem da Escritura tão mal entendida.
Numa palavra, aprendemos desta figura da videira e das varas que o verdadeiro
segredo de dar fruto e permanecer em Cristo, e o modo de permanecer em Cristo é
guardar os Seus preciosos mandamentos. "Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os manda-
mentos de meu Pai e permaneço no seu amor." Isto torna tudo tão simples. O meio
de dar fruto a seu tempo é permanecer no amor de Cristo, e a maneira de
demonstrar esta permanência é entesourar os Seus mandamentos em nossos
corações e render amorosa obediência a todos eles. Não correndo de um lado para
outro na mera energia da natureza; não é a excitação do simples zelo carnal
manifestando-se em esforços espasmódicos de devoção. Não; é qualquer coisa
muito diferente de tudo isto; é a obediência calma e santa do coração—obediência
amorosa ao nosso amado Senhor que alegra o Seu coração e glorifica o Seu nome.
Prezado leitor, apliquemos os nossos corações a este importante assunto de dar
fruto. Possamos nós compreender melhor em que ele consiste. Somos tão
propensos a cometer erros a este respeito. É de recear que muitíssimo daquilo que
passa por ser fruto não é tido por tal na presença divina. Deus não pode reconhecer
como fruto o que não é o resultado direto de permanecer em Cristo. Podemos
gozar de fama de muito zelo, energia e devoção entre os nossos companheiros, em
todas as atribuições da obra; podemos viajar muito como grandes pregadores,
obreiros consagrados na vinha, filantropos e reformadores morais; podemos
despender uma fortuna principesca em fomentar todos os grandes objetivos de
beneficência cristã, e ao mesmo tempo não produzir uma simples amostra de fruto
aceitável ao coração do Pai.
E, por outro lado, pode ser nossa sorte passar o tempo da nossa curta
permanência no mundo em obscuridade e sem admiração humana; podemos ser
tidos em pouca conta pelo mundo e a igreja professante; poderá parecer que
deixamos uma marca insignificante na areia do tempo; mas se permanecermos em
Cristo, se permanecermos no Seu amor, se entesourarmos as Suas palavras em
nossos corações, e nos rendermos a uma obediência santa e amorosa aos Seus
mandamentos, daremos fruto no tempo próprio, o nosso pai será glorificado, e nós
cresceremos no conhecimento prático de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Vamos considerar por um momento o que resta do nosso capitulo, em que
Moisés, com palavras de intensa solicitude, insta com a congregação para que sinta
a urgente necessidade de vigilância e atenção a respeito de todos os estatutos e
mandamentos do Senhor, seu Deus. O amado e fiel servo de Deus, e verdadeiro
amigo o povo, era incansável nos seus esforços para os levar àquela obediência
cordial que ele sabia ser, ao mesmo tempo, a fonte da sua cidade e abundância; e
assim como nosso bendito Senhor adverte os Seus discípulos pondo diante deles o
solene juízo da vara infrutífera, assim também Moisés avisa o povo quanto às
conseqüências certas e terríveis da desobediência.
Os Limites do País
"Todo lugar que pisar a planta do vosso pé será vosso, desde o deserto, desde o
Líbano, desde o rio, o rio Eufrates, até ao mar ocidental, será; vosso termo.
Ninguém subsistirá diante de vós o Senhor vosso Deus porá sobre toda a terra que
pisardes o vosso terror, como já vos tem dito" (versículos 24 e 25).
Aqui estava o lado divino da questão. Toda a terra, em comprimento, largura e
plenitude, estava diante deles; eles só tinham que tomar posse dela, como dom
gratuito de Deus; eles só tinham de pôr os pés, com fé simples e conquistadora,
sobre essa formosa herança que a graça soberana lhes havia outorgado. Tudo isto
vemos cumprido no livro de Josué, capítulo 11:23: "Assim, no Josué tomou toda
esta terra conforme tudo que o SENHOR tinha dito a Moisés; e Josué a deu em
herança aos filhos de Israel, conforme às suas divisões, conforme às suas tribos: e a
terra repousou da guerra" (1).
__________
Sem dúvida era por fé que Josué podia tomar toda a terra, mas, com efeito, quanto à sua posse, o capítulo
(1)
Mas, ah, havia o lado humano da questão bem como o divino! Canaã prometida
pelo Senhor e conquistada por fé de Josué era uma coisa; e Canaã possuída por
Israel era outra muito diferente. Daí a grande diferença entre Josué e Juízes. Em
Josué vemos a fidelidade infalível de Deus à Sua promessa; em Juízes vemos o
miserável fracasso do povo logo desde o princípio. Deus empenhou a Sua palavra
imutável de que ninguém se lhes poderia opor; a espada de Josué — tipo do grande
Capitão da nossa salvação — cumpriu esta garantia sem lhe faltar um jota nem um
til, porém, o livro de Juízes relata o triste fato de que Israel falhou em expulsar o
inimigo — em tomar posse da concessão divina em toda a sua real magnificência.
E então?- A promessa de Deus ficou sem efeito? Não certamente, mas o fracasso
completo do homem é evidente. Em "Gilgal" o padrão da vitória fora desfraldado
acima das doze tribos, com o seu invencível capitão à cabeça. Em "Bochim" os
lamentadores tiveram de prantear a lamentável derrota de Israel.
Existe alguma dificuldade em compreender a diferença? Absolutamente
nenhuma; vemos ocorrer as duas coisas através de todo o livro divino. O homem
não consegue elevar-se à altura da revelação divina—não consegue tomar posse do
que a graça lhe outorga. Isto é tão verdadeiro na história da Igreja como o era na
história de Israel. No Novo Testamento, assim como no Velho, temos os Juízes e os
josués.
Sim, e na história de cada membro da igreja vemos a mesma coisa. Qual é o
cristão abaixo da abóbada do céu que viva à altura dos seus privilégios espirituais?
Qual é o filho de Deus que não tenha de deplorar o seu fracasso humilhante em
compreender e pôr em prática os elevados e santos privilégios da sua chamada por
Deus<? Mas acaso isto invalida a verdade de Deus? Não; bendito seja o Seu nome!
A sua Palavra mantém-se em toda a sua divina integridade e eterna estabilidade.
Assim como no caso de Israel a terra da promessa estava diante deles em todas as
suas belas proporções e atrativos divinos, e não somente isto, mas podiam contar
com a fidelidade e o poder onipotente de Deus para os fazer entrar e pôr em plena
possessão da terra, assim sucede conosco, somos abençoados com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo; não existe em absoluto limite para os
privilégios relacionados com a nossa posição, e quanto a gozá-los na atualidade é
apenas uma questão de tomar posse por fé de tudo que a graça soberana de Deus
tem feito para nós em Cristo.
Nunca devemos esquecer que é privilégio do crente viver ao mais alto nível da
revelação divina. Não há desculpa para uma baixa experiência ou uma conduta
superficial. Não temos direito algum para dizer que não podemos realizar a
plenitude da nossa parte em Cristo, que o padrão é demasiado elevado e os
privilégios tão vastos que não podemos esperar tais maravilhosas bênçãos e
dignidades no nosso imperfeito estado atual.
Tudo isto é perfeita incredulidade, e assim deve ser tratado por todo o
verdadeiro cristão. A questão é esta, a graça de Deus tem-nos dado estes
privilégios? A morte de Cristo deu-nos direito a eles? E o Espírito Santo tem
declarado que eles são a própria parte até do membro mais fraco do corpo de
Cristo? Se é assim, e a Escritura assim o declara, porque não os desfrutamos? Não
existe nenhum obstáculo do lado divino. E desejo do coração de Deus que
entremos na plenitude da nossa porção em Cristo. Escutemos a ardente aspiração
do apóstolo inspirado a favor dos santos de Éfeso e de todos os santos. "Pelo que,
ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus e a vossa caridade para
com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós, lembrando-me de vós
nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação, tendo
iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança
da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos e qual a
sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a
operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos
mortos e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e
potestade, e domínio e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas
também no vindouro. E sujeitou todas as coisas a seus pés e, sobre todas as coisas, o
constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
cumpre tudo em todos"(capítulo 1:15 a 23).
Com esta maravilhosa oração podemos aprender quão vivamente deseja o
Espírito Santo que compreendamos e gozemos os privilégios gloriosos da
verdadeira posição cristã. Quer sempre, por meio do Seu precioso e poderoso
ministério, manter os nossos corações em devida norma; mas, infelizmente, à
semelhança de Israel, nós afligimo-Lo com a nossa pecaminosa incredulidade e
roubamos às nossas almas incalculáveis bênçãos.
Mas, bendito seja o Deus de toda a graça, o Pai da glória, o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, Ele cumprirá a Sua preciosíssima verdade, sem lhe faltar um
jota ou um til, tanto a respeito do Seu povo terrestre como do celestial. Israel
gozará ainda completamente todas as bênçãos que lhe foram asseguradas pelo
concerto eterno, e a Igreja entrará ainda no pleno gozo de tudo quanto o amor
eterno e os desígnios divinos reservaram para ela em Cristo; e não somente isto
mas o bendito Consolador pode e quer conduzir o crente individualmente ao gozo
presente da esperança da vocação de Deus e do poder prático dessa esperança,
desligando o coração das coisas presentes e separando-o para Deus em verdadeira
santidade e viva devoção.
Que os nossos corações, prezado leitor, anelem mais ardentemente a completa
realização de tudo isto, para que possamos deste modo viver como aqueles que
encontram a sua porção e o seu descanso em um Cristo ressuscitado e glorificado!
Que Deus em Sua infinita bondade no-lo conceda em nome de Jesus Cristo e para
Sua glória!
A Bênção e a Maldição
Os versículos finais do nosso capítulo encerram a primeira divisão do livro de
Deuteronômio, que, como o leitor notará, consiste de uma série de discursos
dirigidos por Moisés à congregação de Israel—discursos memoráveis por certo, sob
qualquer ponto de vista que se considerem. As expressões finais estão,
desnecessário é dizer, em perfeita harmonia com o conjunto, e respiram o mesmo
ar de profundo fervor a respeito do assunto de obediência — um assunto que,
como temos visto, constituía um peso sobre o coração do amado orador em seus
afetuosos discursos de despedida do povo.
"Eis que hoje eu ponho diante de vós a bênção e a maldição: A benção quando
ouvirdes os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que hoje vos mando; porém a
maldição, se não ouvirdes os mandamentos do SENHOR ,VOSSO Deus, e vos
desviardes do caminho que hoje vos ordeno, para seguirdes outros deuses que não
conhecestes. E será que, havendo-te o SENHOR, teu Deus introduzido na terra, a
que vais para possuí-la, então, pronunciarás a bênção sobre o monte de Cerizim e a
maldição sobre o monte de Ebal. Porventura não estão eles daquém do Jordão,
junto ao caminho do pôr- do- sol, na terra dos cananeus, que habitam na campina
defronte de Gilgal, junto aos carvalhais de Moré? Porque passareis o Jordão para
entrardes a possuir a terra que vos dá o SENHOR, vosso Deus; e a possuireis e nela
habitareis. Tende, pois, cuidado em fazer todos os estatutos e os juízos que eu hoje
vos proponho" (versículos 26 a 32).
Aqui temos todo o resumo da matéria. A bênção está ligada com a obediência; a
maldição com a desobediência. O monte Gerizim esta defronte do monte
Ebal—fertilidade e esterilidade. Veremos, quando chegarmos ao capítulo 27, que o
monte Gerizim e as suas bênçãos são passados por alto. As maldições do monte
Ebal caem com terrível clareza aos ouvidos de Israel, enquanto que um silêncio
terrível reina no monte Gerizim. "Todos os que são das obras da lei estão sob a
maldição." A bênção de Abraão só pode cair sobre os que estão no terreno da fé.
Mais adiante insistiremos sobre este ponto.
— CAPÍTULO 12 —
Assim, desde a mesa de ouro no santuário à cidade de ouro, que de Deus desce
do céu, temos uma cadeia maravilhosa de evidência em prova da grande verdade
da indissolúvel unidade das doze tribos de Israel.
E, então, se for feita a pergunta: onde é vista esta unidade? Ou de que modo a
viram Elias, ou Ezequias, ou Josias, ou Paulo? A resposta é muito simples.
Viram-na pela fé; olharam para dentro do santuário de Deus, e ali, sobre a mesa de
outro, viram os doze pães mostrando a perfeita distinção de cada tribo a par da sua
perfeita unidade. Nada pode ser mais belo. A verdade de Deus tem de permanecer
para sempre. A unidade de Israel foi vista no passado e será vista no futuro; e
embora a unidade mais elevada da Igreja não seja vista no tempo presente, a fé
crê-a apesar disso, mantém-na e confessa-a em presença de milhentas influências
hostis.
E, agora, vejamos, por um momento, a aplicação prática desta gloriosa verdade,
conforme nos é apresentada no parágrafo final de Deuteronômio 13. A uma cidade
do extremo norte da terra de Israel, chega a notícia de que em determinada cidade
no extremo sul se ensina grave erro—erro mortal, que tende a desviar os
habitantes do Deus verdadeiro.
Que deve fazer-se? A lei é tão clara quanto possível; a senda do dever está
traçada com tanta clareza que é apenas preciso um olhar sincero para a ver, e um
coração consagrado para a trilhar. "Então, inquirirás e informar-te-ás, e com
diligência perguntarás." Isto é, seguramente, muito simples.
Mas alguns dos habitantes podiam dizer: "Que temos nós que ver no norte com
o erro ensinado no sul? Graças a Deus, não se ensina entre nós nenhum erro; é uma
questão inteiramente local; cada cidade é responsável pela manutenção da verdade
dentro das suas muralhas. Como poderíamos examinar todos os casos de erro que
podem surgir por aqui e por ali em toda a nossa terral Todo o nosso tempo seria
perdido, de modo que não poderíamos atender os nossos campos, os nossos
vinhedos, os nossos olivais, os nossos rebanhos e as nossas manadas. Tudo quanto
podemos fazer é manter as nossas fronteiras em ordem. Certamente, condenamos
o erro, e se alguém que o mantivesse ou ensinasse viesse aqui, e nós o soubéssemos,
fecharíamos resolutamente as portas contra ele. Não cremos que a nossa
responsabilidade vá mais além disto."
Ora, podemos perguntar, qual seria a resposta do verdadeiro israelita a toda
esta linha de argumento que, na opinião da mera natureza, parece muitíssimo
aceitável? Uma resposta muito simples e conclusiva, podemos estar certos. Teria
dito que era simplesmente a negação da unidade de Israel. Se cada cidade e cada
tribo tomasse uma posição de independência, então, verdadeiramente, o
sumo-sacerdote podia tomar os doze pães da mesa de ouro da proposição e
espalhá-los por toda a parte; a nossa unidade desapareceu- fragmentamo-nos todos
em átomos independentes e não temos um fundamento de ação nacional.
Além disso, o mandamento é bem claro e explícito: "Inquirirás, e
informar-te-ás, e com diligência perguntarás." Somos obrigados, portanto, por um
fundamento duplo: a unidade da nação e o mandamento claro do nosso Deus. De
nada serve dizer que não se ensina erro entre nós, a menos que nos queiramos
separar da nação; se pertencemos a Israel, então, na verdade, o erro é ensinado
entre nós, segundo dizem as palavras — "tal abominação se cometeu no meio de
ti." Até onde chegava a partícula "ti"? Até às fronteiras da nação. O erro ensinado
em Dã afetava os que habitavam em Berseba. Por quê? Por que Israel era una.
E, daí, a palavra é tão clara, tão precisa, tão enfática. Somos obrigados a
esquadrinhá-la. Não podemos cruzar os braços e sentar- nos em fria indiferença e
culpável neutralidade, de contrário seremos envolvidos nas terríveis
conseqüências deste mal; sim, estamos envolvidos nele até nos desembaraçarmos
dele julgando-o com inflexível decisão e implacável severidade.
Tal seria, prezado leitor, a linguagem de todo o israelita leal, e tal o seu modo de
agir quanto ao erro e mal encontrado onde quer que fosse. Falar ou atuar de outro
modo, seria simplesmente indiferença a respeito da verdade e glória de Deus, e
independência quanto à unidade de Israel. Se alguém dissesse que não era obrigado
a atuar segundo as instruções dadas em Deuteronômio 13:12 a 18, renunciava
completamente à verdade de Deus e à unidade de Israel. Todos eram obrigados a
atuar, de outra maneira seriam envolvidos no juízo dos culpados.
Comportai-vos Coerentemente!
"Filhos sois do SENHOR, VOSSO Deus; não vos dareis golpes, nem poreis calva
entre os vossos olhos por causa de algum morto. Porque és povo santo ao SENHOR,
teu Deus, e o SENHOR te escolheu de todos os povos que há sobre a face da terra,
para lhes seres o seu povo próprio" (versículos 1 e 2).
A cláusula com que começa este capítulo põe diante de nós a base de todos os
privilégios e responsabilidades do Israel de Deus. É um pensamento corrente entre
nós que temos de ter o parentesco antes de podermos saber os fatos de cumprir os
deveres que lhe pertencem. É verdade clara e inegável. Se um homem não é pai,
todos os argumentos ou explicações não lhe farão compreender os sentimentos ou
afetos do coração de um pai; mas assim que entra nesse parentesco, sabe-os todos.
Assim é com todo o parentesco e posição; e assim é nas coisas de Deus. Não
podemos compreender os afetos ou deveres de um filho de Deus até estarmos neste
terreno. Temos de ser crentes antes de podermos cumprir os deveres cristãos. Até
mesmo quando somos crentes, é somente pelo auxílio da graça do Espírito Santo
que podemos andar como tais; mas, evidentemente, se não estamos em terreno
cristão, nada podemos saber dos afetos ou deveres cristãos. Isto é tão claro que não
são necessários argumentos.
Ora bem, é, evidentemente, prerrogativa de Deus determinar como os Seus
Filhos devem conduzir-se, e é elevado privilégio e responsabilidade deles buscar,
em todas as coisas, ter a Sua graciosa aprovação. "Filhos sois do SENHOR, vosso
Deus; não vos dareis golpes. Não eram de si mesmos, pertenciam-Lhe, e portanto
não tinham o direito de dar golpes ou desfigurar os seus rostos pelos mortos. A
natureza, em seu orgulho e obstinação, podia dizer: Por que não podemos fazer o
que fazem os outros? Que mal pode haver em nos golpearmos, ou pôr calva entre
os nossos olhos? É apenas uma expressão de dor, um afetuoso tributo aos nossos
amados que partiram. Decerto que não pode haver nada moralmente mau em tão
apropriadas demonstrações de tristeza.
A tudo isto só havia uma resposta simples e elucidativa: "Filhos sois do SENHOR
vosso Deus". Este fato alterava tudo. Os pobres ignorantes e incircuncisos gentios
em redor deles podiam golpear- se e desfigurarem-se, visto que não conheciam a
Deus, e não estavam em relação com ele. Mas quanto a Israel, estava no elevado e
santo terreno de proximidade com Deus, e este fato devia dar tom e caráter a todos
os seus hábitos. Não eram chamados para adotar ou evitar qualquer hábito ou
costume particular a fim de serem filhos de Deus. Isto seria, como dizemos,
começar pelo fim; mas sendo seus filhos, deviam atuar como tais.
Um Povo Santo
"Filhos sois do SENHOR vosso Deus." Não diz: "Deveis ser um povo santo." Como
poderiam eles jamais converter-se num povo santo, ou um povo especial do
Senhor? Era de todo impossível. Se não eram o Seu povo, nenhum esforço seu
poderia jamais convertê-los em tal. Mas Deus, Em Sua soberana graça, em
cumprimento do Seu concerto com seus pais, tinha feito deles Seus filhos, feito
deles o seu povo peculiar de entre todas as nações da terra. Nisto estava o
fundamento sólido do edifício moral de Israel. Todos os seus hábitos e costumes,
todos os seus atos e caminhos, o seu alimento e o seu vestuário, o que faziam e o
que não faziam — em tudo deviam obedecer a um fato importante, com o qual não
tinham mais que ver do que com o seu nascimento natural, isto é, que eram na
realidade filhos de Deus, o Seu povo escolhido, povo da Sua própria possessão.
Não podemos deixar de reconhecer que é um privilégio da mais elevada ordem
ter o Senhor tão perto de nós, e tão interessado em todos os nossos hábitos e
caminhos. Para a mera natureza humana, para aquele que não conhece o Senhor,
que não está em relação com Ele a própria idéia da Sua santa presença, ou de
aproximação d'Ele, é simplesmente intolerável. Mas para todo o verdadeiro crente,
todo aquele que ama realmente a Deus, é um pensamento delicioso tê-Lo perto de
si, e saber que Ele Se interessa em todos os mais minuciosos detalhes da nossa
história pessoal e da nossa vida privada; que tem conhecimento do que comemos e
que vestimos; que cuida de nós de dia e de noite, dormindo e despertando, em casa
ou fora dela; em suma, que o Seu interesse e cuidado por nós vão muito além do
interesse e cuidado da mais terna e amorosa mão pelo seu filhinho.
Tudo isto é perfeitamente maravilhoso; e por certo que se o realizarmos de um
modo mais completo, viveremos uma espécie de vida muito diferente, e teremos
uma história diferente para contar. Que santo privilégio, que preciosa realidade
saber que o nosso amoroso Senhor está em nosso caminho de dia e junto do nosso
leito de noite; que os Seus olhos estão postos em nós quando nos vestimos de
manhã, quando nos sentamos para comer, quando nos ocupamos dos nossos
negócios, e em toda a nossa convivência desde manhã à noite. Que o sentimento de
tudo isto seja um poder vivo e permanente no coração de todo o filho de Deus
sobre a face da terra!
Desde o versículo 3 ao versículo 20, temos a lei a respeito dos animais limpos e
imundos, peixes e aves. Os princípios fundamentais a respeito de todos estes
animais já foram expostos em capítulo 11 de Levítico (1). Mas existe uma diferença
muito importante entre estas duas passagens da Escritura. As instruções em
Levítico são dadas primeiramente a Moisés e Aarão; em Deuteronômio são dadas
diretamente ao povo. Isto é perfeitamente característico dos dois livros. Levítico
pode ser chamado especialmente o livro de guia para os sacerdotes. Em
Deuteronômio os sacerdotes não ocupam um lugar de proeminência, enquanto
que o povo é posto em destaque. Isto é aparentemente notável em todo o livro, de
forma que não tem o menor fundamento a idéia de que Deuteronômio é uma
simples repetição de Levítico. Nada pode estar mais longe da verdade. Cada um
desses livros tem um alcance especial, o seu próprio desígnio e a sua própria obra.
O estudante piedoso vê e reconhece isto com prazer. Os infiéis estão,
obstinadamente, cegos e não podem ver nada.
Em versículo 21 do nosso capítulo é notavelmente apresentada a distinção
entre o Israel de Deus e o estrangeiro. "Não comereis nenhum animal morto; ao
estrangeiro, que está dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao
estranho, porquanto és povo santo ao SENHOR, teu Deus." O grande fato do
parentesco de Israel com o Senhor distinguia-o de todas as nações abaixo do Sol.
Não era que eles, em si mesmos, fossem, nem um fio, melhores ou mais santos do
que os outros; mas o Senhor era santo, e eles eram o Seu povo. "Sede santos, porque
eu sou santo."
As pessoas do mundo pensam por vezes que os cristãos são farisaicos em se
separarem das demais pessoas e em recusarem tomar parte nos prazeres e
divertimentos do mundo; mas não entendem realmente a questão. O fato é que,
para um crente participar nas vaidades e loucuras de um mundo pecaminoso seria,
falando em linguagem figurada, o mesmo que um israelita comer carne de um
animal que tivesse morrido. O crente, graças a Deus, tem alguma coisa mais com
que alimentar-se que as coisas mortas deste mundo. Tem o pão vivo que desceu do
céu, o verdadeiro maná; e não só isso, mas come "do trigo da terra de Canaã do ano
antecedente", tipo do Homem ressuscitado e glorificado nos céus. De todas estas
preciosíssimas coisas o pobre mundano inconvertido não sabe absolutamente
nada; e, por isso, tem de alimentar-se do que o mundo tem para lhe oferecer. Não
se trata do que há de mau ou bom nessas coisas quando consideradas em si mesmas.
Ninguém poderia, de modo nenhum, ter sabido coisa alguma do mal que havia em
comer alguma coisa que tivesse morrido se a Palavra de Deus não tivesse tratado do
assunto.
Este é o ponto importante para nós. Não podemos esperar que o mundo veja ou
pense como nós em casos de bem e mal. E nosso dever encarar as coisas do ponto
de vista divino. Muitas coisas podem ser perfeitamente compatíveis com a ação de
um homem mundano que um crente não deve de modo algum tocar, simples-
mente porque é cristão. A pergunta que o verdadeiro crente tem de fazer quanto a
tudo que se apresenta perante si é simplesmente esta: "Posso fazer isto para glória
de Deus? Posso relacionar o nome de Cristo com ele?" Se não pode, não deve
tocar-lhe.
Numa palavra, o padrão e norma do crente para todas as coisas é Cristo. Isto
torna tudo tão simples. Em vez de perguntar: Tal ou qual coisa é compatível com a
nossa profissão, os nossos princípios, o nosso caráter ou reputação? Temos de
perguntar: é compatível com Cristo? Nisto está toda a diferença. Qualquer coisa
que é indigna de Cristo é indigna de um crente. Se isto for plenamente
compreendido e admitido nos proporcionará uma grande regra prática que poderá
ser aplicada a milhentos detalhes. Se o coração for fiel a Cristo, se andarmos
segundo os instintos da natureza divina, fortalecidos pelo ministério do Espírito
Santo, e guiados pela autoridade da Sagrada Escritura, não seremos incomodados
com as questões do que é bom ou mau na nossa vida diária.
A Parte do Levita
Vamos encerrar agora esta parte citando o último parágrafo do nosso capítulo,
no qual encontraremos algum ensino prático muito valioso.
"Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e
os recolherás nas tuas portas. Então virá o levita (pois nem parte nem herança tem
contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e
comerão, e fartar-se-ão, para que o SENHOR ,teu Deus, te abençoe em toda a obra
das tuas mãos, que fizeres" (versículos 28 e 29).
Aqui temos uma encantadora cena doméstica, uma demonstração muito
tocante do caráter divino, um belo resplendor da graça
bondade do Deus de Israel. Faz bem ao coração respirar o ar fragrante de uma
passagem tal como esta. Forma um contundente e vívido contraste com o egoísmo
frio da cena em redor de nós. Deus quis ensinar o Seu povo a pensar e cuidar de
todos os que estavam em necessidade. O dízimo pertencia-Lhe, mas dava-lhe o
raro e excelente privilégio de o dedicar ao feliz objetivo de dar alegria aos corações.
Existe uma doçura especial nas palavras "virá", "comerão" e "fartar-se-ão".
Quão próprio do nosso Deus sempre bondoso! Deleita-Se em satisfazer as
necessidades de todos. Abre a Sua mão, e satisfaz o desejo de todo o ser vivente. E
não só isso, mas é Seu gozo fazer do Seu povo o canal mediante o qual possa correr
para todos a bondade e simpatia do Seu coração. Quão precioso é isto! Que
privilégio sermos os esmoleres de Deus, os despenseiros da Sua generosidade, os
expoentes da Sua bondade! Oxalá nós entrássemos mais plenamente na
bem-aventurança de tudo isto! Possamos nós respirar mais e mais a atmosfera da
presença divina, e então refletiremos mais fielmente o caráter divino!
Como o tema profundamente interessante e prático apresentado nos versículos
28 e 29 terá de ocupar a nossa atenção, em conexão com outros temas, nos nossos
estudos sobre o capítulo 26, não nos deteremos mais sobre ele aqui.
— CAPÍTULO 15 —
A REMISSÃO DO SENHOR
Um Mandamento de Amor
"Ao fim dos sete anos farás remissão. Este, pois, é o modo de remissão: que todo
o credor, que emprestou ao seu próximo uma coisa, o quite; não a exigirá do seu
próximo ou do seu irmão, pois a remissão do SENHOR É apregoada. Do estranho a
exigirás, mas o que tiveres em poder de teu irmão a tua mão o quitará, somente
para que entre ti não haja pobre; pois o SENHOR abundantemente te abençoará na
terra que o SENHOR, teu Deus, te dará por herança, para a possuíres, se somente
ouvires diligentemente a voz do SENHOR, teu Deus, para cuidares em fazer todos
estes mandamentos que hoje te ordeno. Porque o Senhor, teu Deus, te abençoará,
como te tem dito; assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarás
empréstimos; e dominarás sobre muitas nações, mas elas não dominarão sobre ti"
(versículos 1 a 6).
É verdadeiramente edificante observar o modo como o Deus de Israel
procurava sempre atrair os corações do Seu povo por meio dos diversos sacrifícios,
solenidades e instituições do cerimonial levítico. Havia o sacrifício do cordeiro de
manhã e á tarde, diariamente; havia o sábado santo, todas as semanas; havia a lua
nova, todos os meses; havia a páscoa, todos os anos; havia os dízimos cada três anos;
havia a remissão, cada sete anos; e havia o jubileu cada cinqüenta anos.
Tudo isto está repleto do mais profundo interesse. Conta a sua doce história, e
ensina a sua preciosa lição à alma. O cordeiro da manhã e da tarde, como sabemos,
apontava sempre para "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo". O sábado
era o encantador tipo do descanso que resta para o povo de Deus. A lua nova
prefigurava admiravelmente o tempo em que Israel restaurado refletirá os raios do
Sol da justiça sobre as nações. A páscoa era o memorial permanente da libertação
da nação da escravidão do Egito. O ano dos dízimos mostra o fato de o Senhor ter o
direito de propriedade da terra, como também da bela maneira como as Suas
rendas deviam ser dispendidas para satisfazer as necessidades dos Seus obreiros e
dos Seus pobres. O ano sabático era a promessa de um tempo brilhante quando
todos os débitos seriam cancelados, todos os empréstimos extintos, todas as
obrigações removidas. E, finalmente, o jubileu era o magnífico tipo dos tempos da
restituição de todas as coisas, quando os cativos serão postos em liberdade, o
desterrado voltará à sua herança por tanto tempo perdidas; e quando a terra de
Israel e toda a terra se regozijará sob o beneficente governo do Filho de Davi.
Ora, em todas estas belas instituições descobrimos duas características
proeminentes, a saber: glória para Deus, e bênção para os homens. Estas duas coisas
estão unidas entre si por um laço divino e eterno. Deus tem assim ordenado que a
Sua plena glória e a bênção completa da criatura sejam indissoluvelmente unidas.
Isto dá profundo gozo ao coração e ajuda-nos a entender de um modo mais perfeito
a força e beleza daquela expressão tão conhecida: "Nos regozijamos na esperança
da glória de Deus." Quando essa glória brilhar em todo o seu pleno esplendor,
então, certamente, a bem- aventurança humana, descanso e felicidade atingirão a
sua completa e eterna consumação.
Vemos uma encantadora garantia e prefiguração de tudo isto no ano sétimo.
Era "a remissão do Senhor", e portanto a sua bendita influência devia ser sentida
por todo o pobre devedor desde Dã até Berseba. O Senhor queria conceder ao Seu
novo o elevado e santo privilégio de ter comunhão Consigo fazendo saltar o
coração do devedor de alegria. Queria ensinar-lhes, se eles quisessem aprender, a
profunda bem-aventurança de perdoar tudo francamente. E nisto que Ele mesmo
Se deleita, bendito seja para sempre o Seu grande e glorioso nome!
O Servo Hebreu
Vamos citar agora a comovedora e bela instituição a respeito do servo hebreu.
Sentimos cada vez mais a importância de transcrever a própria linguagem do
Espírito Santo; porque embora possa dizer- se que o leitor tem a sua Bíblia para a
ela recorrer, sabemos, contudo, que quando se faz alusão a passagens da Escritura,
existe, em muitos casos, uma relutância para pôr de parte o livro que temos em
nossas mãos para ler o texto da Bíblia. E, além disso, nada há como a Palavra de
Deus; e quanto às observações que podemos fazer, o seu objetivo é simplesmente
auxiliar o prezado leitor crente a compreender e apreciar as Escrituras que
citamos.
"Quando teu irmão hebreu ou irmã hebréia se vender a ti, seis anos te servirá,
mas, no sétimo ano o despedirás forro de ti. E, quando o despedires de ti forro, não
o despedirás vazio. Liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do
teu lagar; daquilo com que o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado lhe darás"
(versículos 12 a 14).
Quão perfeitamente belo! Quão característico é tudo isto do nosso Deus
sempre bondoso! Não quer que o irmão se vá embora vazio. A liberdade e a
pobreza não estariam em harmonia moral. O irmão devia ser despedido para seguir
o seu caminho livre e provido, emancipado e dotado, não só com a sua liberdade
mas com uma liberal fortuna com a qual podia recomeçar a vida.
Na verdade, isto é divino. Não necessitamos que se nos diga em que escola se
ensinavam tais excelentes princípios éticos. Têm o próprio círculo do céu; emitem
o odor fragrante do próprio Paraíso de Deus. Não é desta maneira que o nosso Deus
tem tratado conosco? Todo o louvor seja dado ao Seu glorioso nome! Não só nos
tem dado a vida e liberdade, mas nos tem provido liberalmente com tudo que
podemos necessitar no tempo e na eternidade. Abriu-nos a inesgotável tesouraria
do céu; sim, deu o Filho do Seu coração por nós, e para nós —por nós, para nos
salvar; para nós, para satisfazer-nos. Deu-nos todas as coisas que pertencem à vida
e à piedade; tudo que pertence à vida que agora é e à que há de vir está plena e
perfeitamente assegurado pela mão liberal do nosso Pai.
E não será profundamente comovedor observar o modo como o coração de
Deus se expressa no estilo em que o servo hebreu devia ser tratado? "Liberalmente
o fornecerás." Não de má vontade ou por necessidade. Devia ser feito de um modo
digno de Deus. Os atos do Seu povo devem ser o reflexo de Si mesmo. Somos
chamados à elevada e santa dignidade de Seus representantes morais. E maravi-
lhoso; mas assim é, pela Sua graça infinita. Não só nos tem libertado das chamas do
inferno eterno, mas chama-nos para agirmos por Ele, e sermos semelhantes a Ele
no meio de um mundo que crucificou o Seu Filho. E não somente nos tem
conferido esta excelsa dignidade mas nos tem dotado de uma fortuna principesca
para a mantermos. Os recursos inesgotáveis do céu estão à nossa disposição. Tudo é
nosso, "pela Sua infinita graça". Oh, possamos nós realizar plenamente os nossos
privilégios, e assim mais fielmente cumprir as nossas responsabilidades!
Em versículo 15 do nosso capítulo temos um motivo muito comovedor
apresentado ao coração do povo—um motivo eminentemente calculado para
despertaras suas afeições e simpatias. "E lembrar-te-ás de que foste servo na terra
do Egito, e de que o SENHOR, teu Deus, te resgatou; pelo que te ordeno hoje esta
coisa." A recordação da graça do Senhor em os redimir do Egito devia ser o motivo
permanente, poderoso e fundamental das suas ações em prol dos seus irmãos
pobres. Isto é um princípio infalível; e nada menos do que isto poderá bastar. Se
buscarmos os nossos motivos fora de Deus mesmo, e os Seus atos conosco, depressa
desanimaremos na nossa carreira prática. E só na medida em que mantemos ante
os nossos corações a maravilhosa graça de Deus manifestada a nosso favor, na
redenção que há em Cristo Jesus, que podemos prosseguir um curso de verdadeira,
ativa benevolência, quer seja para com os nossos irmãos ou os que estão de fora. Os
meros sentimentos de benevolência fervilhando em nossos corações, ou
provocados pelas aflições e inquietações e necessidades dos outros, desaparecerão.
E só no próprio Deus vivo que podemos encontrar o manancial perenal dos nossos
motivos.
O Servo que Prefere Ficar com Seu Amo
EM versículos 16 e 17 é encarado um caso em que um servo podia preferir ficar
com o seu amo. "Porém será que, dizendo-te ele: Não sairei de ti, porquanto te ama
a ti e a tua casa, por estar bem contigo, então tomarás uma sovela e lhe furarás a
orelha, à porta, e teu servo será para sempre."
Comparando esta passagem com Êxodo 21:1 a 6, vemos uma acentuada
diferença devido, como podíamos esperar, ao caráter distinto de cada livro. Em
Êxodo predomina o aspecto típico; em Deuteronômio o moral. Por isso, no último
o escritor inspirado omite tudo o que se refere à mulher e aos filhos, como caso
estranho ao seu propósito, embora tão essencial à beleza e perfeição do tipo em
Êxodo 21. Referimos isto apenas como uma das muitas provas admiráveis de que o
Deuteronômio está muito longe de ser uma estéril repetição dos seus
predecessores. Não há repetição, por um lado, nem contradição, por outro, mas
uma encantadora variedade em perfeito acordo com o objetivo e o intento de cada
livro. Isto basta quanto à desprezível frivolidade e ignorância daqueles escritores
infiéis que têm tido a ímpia temeridade de apontar os seus dardos a esta
magnificente porção dos oráculos de Deus.
Em nosso capítulo temos, pois, o aspecto moral desta interessante instituição.
O servo amava o seu amo e sentia-se feliz em sua companhia. Preferia a escravidão
perpétua e a marca dela, com o amo a quem amava, à liberdade e uma porção
liberal separado dele. Isto, claro, agradava bem às duas partes. É sempre um bom
sinal, tanto para o amo como para o servo, quando as relações são de longa duração.
As mudanças contínuas podem, regra geral, ser tomadas como uma prova de culpa
moral em qualquer das partes interessadas. Sem dúvida, há exceções; e não
somente isso, mas nas relações de amo e servo, assim como em tudo mais, há dois
lados a considerar. Por exemplo, temos de considerar se o amo muda
constantemente de servos ou se o servo muda, continuamente, de amo. No
primeiro caso, as aparências são contra o amo; no último, contra o servo.
O Primogênito
Antes de terminar as nossas observações sobre este capítulo profundamente
interessante, citaremos para o leitor o último parágrafo. "Todo primogênito que
nascer entre as tuas vacas e entre as tuas ovelhas, o macho santificarás ao SENHOR,
teu Deus; com o primogênito do teu boi não trabalharás, nem tosquiarás o
primogênito das tuas ovelhas. Perante o SENHOR, teu Deus, os comerás, de ano em
ano, no lugar que o SENHOR escolher, tu e a tua casa. Porém, havendo nele algum
defeito, se for coxo, ou cego, ou tiver qualquer defeito, não o sacrificarás ao
SENHOR, teu Deus. Nas tuas portas, o comerás; o imundo e o limpo o comerão
juntamente, como da corça ou do veado. Somente o seu sangue não comerás; sobre
a terra o derramarás como água" (versículos 19 a 23).
Só o que era perfeito devia ser oferecido a Deus. O primogênito, o macho sem
mancha, figura apropriada do imaculado Cordeiro de Deus, oferecido na cruz por
nós, o fundamento imperecível da nossa paz, e alimento precioso das nossas almas,
na presença de Deus. Este era o princípio divino; a assembléia reunida, em redor
do centro divino, alegrando-se na presença de Deus com aquilo que era o tipo
determinado de Cristo, que é, ao mesmo tempo, o nosso sacrifício, nosso centro, e
nosso alimento. Eterna e universal homenagem seja dada ao Seu preciosíssimo e
glorioso nome!
— CAPÍTULO 16 —
O Fermento
E agora, depois de haver falado rapidamente do lugar, podemos, por instantes,
aludirão modo da celebração. Isto é, também, como poderíamos esperar,
característico do nosso livro. A parte essencial aqui é "os pães asmos". Mas o leitor
notará especialmente o fato interessante de que este pão é considerado "pão de
aflição". Ora, qual é o significado disto«?- Sabemos todos que o pão asmo é o tipo
daquela santidade de coração e vida essencial ao gozo da verdadeira comunhão
com Deus. Não somos salvos por santidade pessoal; mas, graças a Deus, somos
salvos para a santidade. Não é o fundamento da nossa salvação; mas é um elemento
essencial na nossa comunhão. O fermento permitido é o golpe mortal na
comunhão e adoração.
Não devemos esquecer, nem por um momento, este princípio fundamental na
vida de santidade pessoal e devoção prática que, como remidos pelo sangue do
Cordeiro, somos chamados, obrigados e estamos privilegiados a viver dia a dia no
meio das cenas e circunstâncias através das quais viajamos para o lugar do nosso
eterno repouso nos céus. Falar de comunhão e adoração enquanto vivemos em
pecado consciente é a prova triste de que não conhecemos nada nem de uma coisa
nem de outra. Para gozar comunhão com Deus ou a comunhão dos santos, e para
adorara Deus em espírito e em verdade, temos de viver uma vida de santidade
pessoal, uma vida de separação de todo mal consciente. Tomar o nosso lugar na
assembléia do povo de Deus, e professar tomar parte na santa comunhão e
adoração que Lhe pertencem, enquanto se vive em pecado oculto, ou consente o
mal nos outros, é profanar a assembléia, entristecer o Espírito Santo, pecar contra
Cristo e trazer sobre nós o juízo de Deus, que está agora julgando a Sua casa e
castigando os Seus filhos a fim de que não sejam condenados com o mundo.
Tudo isto é muito solene, e exige a mais viva atenção de todos os que desejam
realmente andar com Deus, e servi-Lo com reverência e santo temor. Uma coisa é
ter a doutrina do tipo na região do nosso entendimento e outra muito diferente ter
a sua lição moral gravada no coração e demonstrada em obras na vida diária. Que
todos os que professam ter o sangue do Cordeiro espargido sobre a sua consciência
procurem guardar a festa dos pães asmos. "Não sabeis que um pouco de fermento
faz levedar toda a massa<? Alimpai- vos, pois, do fermento velho, para que sejais
uma nova massa, assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, foi
sacrificado por nós. Pelo que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o
fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade"
(1 Co 5:6 a 8).
O Pão de Aflição
Mas que devemos compreender por "pão de aflição"? Não devemos antes
separar gozo, louvor e triunfo, em relação com a festa em memória da libertação da
escravidão e miséria do Egito? Sem dúvida, há profundo e verdadeiro gozo,
gratidão e louvor em ver realizada a bendita verdade da nossa plena libertação do
nosso primitivo estado com todas as suas conseqüências. Mas é evidente que estas
coisas não deviam ser os aspectos da festa pascal; com efeito, nem sequer são
mencionadas. Temos "o pão da aflição", mas nem uma palavra acerca do gozo,
louvor ou triunfo.
E por quê? Qual é a grande lição moral do pão de aflição para os nossos
corações? Cremos que põe diante de nós aqueles profundos exercícios de coração
que o Espírito Santo produz ao pôr, poderosamente, diante de nós o que custou ao
nosso adorável Senhor e Salvador o libertar-nos dos nossos pecados e do juízo que
esses pecados mereciam. Esses exercícios são também simbolizados pelas "ervas
amargas" de Êxodo 12, e são exemplificados, repetidas vezes, na história do antigo
povo de Deus, que eram guiados, sob a ação poderosa da Palavra e do Espírito de
Deus, a julgarem-se a si mesmos e afligirem as suas almas" na presença divina.
E recorde-se que não existe nada do elemento legal ou de incredulidade nestes
sagrados exercícios; muito longe disso. Quando um israelita participava do pão de
aflição com a carne assada da páscoa, queria dizer com isso que tinha dúvidas ou
temor quanto à sua plena libertação? Impossível! Como podia duvidará Estava na
terra; reunia-se no centro de Deus, na Sua própria presença. Como poderia então
duvidar da sua plena e definitiva libertação da terra do Egito? O pensamento é
simplesmente absurdo.
Mas embora não tivesse dúvidas ou temores quanto à sua libertação, contudo
tinha de comer o pão de aflição; era um elemento essencial na sua festa pascal:
"Porquanto apressadamente saíste da terra do Egito, para que te lembres do dia da
tua saída da terra do Egito, todos os dias da tua vida."
Isto era obra profunda e real. Não deviam esquecer nunca o seu êxodo do Egito,
mas guardar a lembrança dele, na terra da promissão em todas as gerações. Deviam
comemorar a sua libertação por meio de uma festa emblemática daqueles santos
exercícios que sempre caracterizam a verdadeira piedade cristã.
Queremos recomendar, sinceramente, à atenção do leitor toda a verdade
indicada pelo "pão de aflição". Cremos que isto é muito necessário a todos os que
professam grande familiaridade com o que é chamado as doutrinas da graça. Existe
grande perigo, especialmente para os novos professos, enquanto procuram evitar o
legalismo e a escravidão, de cair no extremo oposto de irreflexão—um terrível
ardil. Os crentes idosos e experimentados não estão sujeitos a cair neste triste mal;
são os novos entre nós que necessitam de ser solenemente avisados contra tal
perigo. Ouvem, talvez, falar muito da salvação pela graça, justificação pela fé,
libertação da lei e de todos os privilégios especiais da posição cristã.
Ora, desnecessário é dizermos que todas estas coisas são de capital importância;
e seria absolutamente impossível qualquer pessoa ouvir falar demasiado delas.
Oxalá se falasse mais dessas verdades, se escrevesse mais a seu respeito e se pregasse
mais sobre elas. Milhares do amado povo do Senhor passam todos os seus dias em
obscuridade, dúvidas, escravidão legal devido a ignorância dessas grandes verdades
fundamentais.
Mas, enquanto isto é, perfeitamente, verdadeiro, há, por outro lado, muitos
que, infelizmente, têm apenas uma familiaridade intelectual com os princípios da
graça, mas se julgarmos pelos seus hábitos e maneiras, expressões e
comportamento (a única maneira que temos de julgar) veremos que conhecem
muito pouco do poder santificador desses grandes princípios—do seu poder no
coração e na vida.
Ora, falando segundo o ensino da festa pascal, não estaria de acordo com a
mente de Deus alguém intentar guardar essa festividade sem os pães asmos, o pão
de aflição. Tal atitude não teria sido tolerada pelo antigo Israel. Era um ingrediente
absolutamente essencial. E assim, podemos estar seguros, é uma parte integral
daquela festa que nós, como cristãos, somos exortados a celebrar— cultivar a
santidade pessoal e aquele estado da alma que é tão apropriadamente expresso
pelas "ervas amargas", de Êxodo 12 ou o ingrediente de Deuteronômio, "o pão de
aflição", que mais tarde parece ser a figura permanente para a terra.
Numa palavra, pois, cremos que existe uma profunda e urgente necessidade
entre nós desses sentimentos e afetos espirituais, aqueles profundos exercícios da
alma que o Espírito quer produzir ao descobrir aos nossos corações os sofrimentos
de Cristo — quanto Lhe custou tirar os nossos pecados — o que Ele sofreu por nós
quando passou debaixo das ondas e vagas da justa ira de Deus contra os nossos
pecados. Carecemos, infelizmente—se nos é permitido falar pelos demais —
daquela profunda contrição de alma que emana da ocupação espiritual com os
sofrimentos e morte de nosso precioso Salvador. Uma coisa é ter o sangue de Cristo
espargido sobre a consciência e outra ter a morte de Cristo gravada de um modo
espiritual no coração e a cruz de Cristo aplicada, de um modo prático, a todo o
curso e caráter da nossa vida.
Como se explica que podemos cometer pecado tão facilmente em pensamento,
por palavras e obras?- Como se explica que haja tanta irreflexão, tanta insujeição,
tanta complacência, tanta ociosidade carnal, tanto daquilo que é frívolo e
superficial«?- Não será porque esse ingrediente figurado pelo "pão de aflição" falta
na nossa festa?- Não podemos duvidá-lo. Receamos que haja uma verdadeira falta
deplorável de seriedade e profundidade no nosso cristianismo. Há demasiada
discussão petulante dos profundos mistérios da fé cristã, demasiado conhecimento
intelectual sem o poder interior.
Tudo isto requer a mais séria atenção do leitor. Não podemos afastar a
impressão que temos de que este triste estado de coisas pode ser seguido
num determinado estilo de pregação do evangelho adotado, sem dúvida,
com a melhor das intenções, mas nem por isso menos pernicioso no seu efeito
moral. Basta que se pregue o Evangelho com simplicidade. Não pode, de
modo nenhum, ser apresentado com mais simplicidade do que o Espírito
Santo no-lo deu na Escritura.
Tudo isto é plenamente admitido; mas, ao mesmo tempo, estamos
persuadidos de que há um grave defeito na pregação de que falamos. Há
uma falta de profundidade espiritual, uma falta de santa seriedade. No
esforço de contrariar a legalidade, existe o que tende à irreflexão ou
leviandade. Ora, enquanto a legalidade é um grave mal, a irreflexão é muito
maior. Devemo-nos guardar contra ambas. Cremos que a graça é o remédio
para a primeira, a verdade para a última; mas é preciso sabedoria espiritual
para podermos ajustar, convenientemente, estas duas coisas. Se encontramos
uma alma profundamente exercitada pela poderosa ação da verdade,
inteiramente preparada pelo poderoso ministério do Espírito Santo, devemos
acrescentar-lhe profunda consolação da preciosa graça de Deus, revelada no
sacrifício divinamente eficaz de Cristo. Este é o remédio divino para um
coração quebrantado, um espírito contrito, uma consciência convicta.
Quando o profundo sulco é aberto pela relha espiritual, temos somente de
deitar nele a semente incorruptível do Evangelho de Deus, na certeza de que
ela criará raízes e dará fruto na estação própria.
Mas, por outro lado, se deparamos com uma pessoa que se conduz de
uma maneira ligeira, orgulhosa, de estado não quebrantado, empregando
uma linguagem presunçosa a respeito da graça, falando ruidosamente contra
a legalidade, e procurando, meramente de um modo humano, expor um
meio fácil de se ser salvo, achamos que é um caso que precisa da aplicação
solene da verdade ao coração e à consciência.
Tememos bastante que exista muito deste elemento espalhado pela igreja
professante. Empregando a linguagem do nosso tipo, diremos que existe
uma tendência para separar a Páscoa da festa dos pães asmos — para
descansar no fato de se estar libertado do juízo e esquecer o cordeiro assado, o
pão da santidade, e o pão de aflição. Ha realidade nunca poderão ser
separados, visto que Deus os uniu entre si; e, por isso, não cremos que
qualquer alma possa realmente estar gozando da preciosa verdade que
"Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós", sem procurar "guardar a festa".
Quando o Espírito Santo desenrola perante os nossos corações alguma coisa
da profunda bem-aventurança, preciosidade e eficácia da morte de nosso
Senhor Jesus Cristo, leva-nos a meditar no mistério dominante dos Seus
sofrimentos, a ponderar em nossos corações tudo que Ele passou por nós,
quanto Lhe custou lavar-nos das eternas conseqüências daquilo que nós,
desgraçadamente, cometemos tantas vezes com leviandade.
Ora isto é verdadeiramente obra santa, e conduz a alma àqueles exercícios
que correspondem com "o pão de aflição" na festa dos pães asmos. Existe
uma grande diferença entre os sentimentos produzidos pela nossa ocupação
com os nossos pecados e os sentimentos que resultam da ocupação com os
sofrimentos de Cristo para tirar os nossos pecados.
Decerto, nunca podemos esquecer os nossos pecados nem o abismo de
onde fomos tirados. Mas uma coisa é ocuparmo-nos com o abismo, e uma
coisa mais profunda e de maior importância ocuparmo-nos com a graça que
nos tirou dali, e o quanto custou ao nosso bendito Salvador fazê-lo. É este
último fato que devemos manter continuamente na memória dos
pensamentos de nossos corações. Somos tão inconstantes, tão susceptíveis de
esquecer isto.
Necessitamos de contar sinceramente com Deus para nos tornar aptos de
penetrar mais profunda e praticamente nos sofrimentos de Cristo e na
aplicação da cruz a tudo que há em nós que Lhe é antagônico. Isto nos
transmitirá profundidade de tom, ternura de espírito, intenso anelo por
santidade de coração e vida, separação prática do mundo, em todas as
diversas fases, santa submissão, zelosa vigilância sobre nós próprios, ou os
nossos pensamentos, as nossas palavras, os nossos caminhos: todo o nosso
comportamento na vida diária. Numa palavra, isto nos conduzirá a um tipo
de cristianismo muito diferente do que vemos em redor de nós, e que,
infelizmente, exibimos na nossa própria vida. Que o Espírito de Deus mostre aos
nossos corações, em Sua graça, pelo Seu direto e poderoso ministério, mais e mais o
que quer dizer a expressão "pães asmos", "carne assada no fogo" e "pão de aflição"
(1).
__________
(1) Para mais amplas observações sobre a Páscoa e a festa dos pães asmos, o leitor deve ler Êxodo 12 e
Números 9. No último, especialmente, se verá a ligação entre a Páscoa e a Ceia do Senhor. Isto é um ponto
do mais profundo interesse e de imensa importância prática. A Páscoa prefigurava a morte de Cristo; a
Ceia anuncia-a. Aquilo que a Páscoa era para o israelita fiel, é a ceia para a igreja. Se isto fosse mais
compreendido, haveria maior tendência a enfrentar a predominante irreflexão, indiferença e erro quanto
à mesa e ceia do Senhor.
Para todo aquele que vive habitualmente na atmosfera sagrada da Escritura, deve parecer estranho na
verdade notar a confusão de pensamento e a diversidade de prática a respeito de um assunto tão
importante e tão simples e claramente apresentado na Palavra de Deus.
A todo aquele que se inclina ante a Escritura não restará nenhuma dúvida de que os apóstolos e a
igreja primitiva se reuniam no primeiro dia da semana para partir o pão. Não existe no Novo Testamento
nem uma sombra de apoio para essa preciosíssima ordenança uma vez por mês, uma vez em cada trimestre,
ou uma vez em seis meses.
Isto só pode ser considerado como uma interferência humana com uma instituição divina. Sabemos
que se procura raciocinar muito com as palavras: "Todas as vezes que fizerdes isto"; mas não vemos como
qualquer argumento baseado nesta cláusula se possa manter um só momento, perante o precedente
apostólico em Atos 20:7. O primeiro dia da semana é, incontestavelmente, o dia para a igreja celebrar a
ceia do Senhor.
O leitor crente admite isto? Se o admite, atua de acordo com elei É, uma coisa séria descurar uma
ordenança especial de Cristo, que foi instituída por Ele, na noite em que foi traído, em circunstâncias tão
profundamente comovedoras. Seguramente, todos os que amam o Senhor Jesus Cristo em sinceridade
quererão recordá-Lo deste modo especial, segundo as Suas próprias palavras: "Fazei isto em memória de
mim." Podemos compreender que haja quem ame verdadeiramente a Cristo e viva em habitual descuido
deste precioso memorial? Se um israelita na antiguidade descurasse a Páscoa, teria sido "cortado". Mas isto
era lei, e nós estamos debaixo da graça. Com certeza; mas é isto uma razão para desprezarmos o
mandamento do Senhor?
Queremos deixar este assunto ã cuidadosa atenção do leitor. Existe muito mais interesse envolvido
nele do que nos damos conta. Cremos que toda a história da ceia do Senhor, durante os últimos dezoito
séculos, está cheia de interesse e instrução. Podemos ver na maneira como a ceia do Senhor tem sido
tratada um notável indício do verdadeiro estado da igreja. Na proporção em que a igreja se afastou de
Cristo e da Sua Palavra, descurou e perverteu a preciosa instituição da ceia do Senhor. E, por outro lado, na
medida em que o Espírito Santo operou, em qualquer época, em poder especial na igreja, a ceia do Senhor
tem encontrado o seu verdadeiro lugar nos corações do Seu povo.
Porém não podemos prosseguir com este assunto numa nota à margem; temo-nos aventurado a
sugeri-lo ao leitor, e esperamos que possa ser levado a prossegui-lo por si mesmo. Estamos certos de que o
achará um estudo muito proveitoso e sugestivo.
Te alegrarás...
Mas há outro ponto de profundo interesse que nos é apresentado em versículo
11 dos nosso capítulo. "E te alegrarás perante o SENHOR, teu Deus." Não
encontramos tais palavras na festa pascal, ou na festa dos pães asmos. Não estariam
em relação moral com qualquer destas solenidades. E certo que a Páscoa
encontra-se no próprio fundamento de todo o gozo que podemos experimentar
aqui ou no porvir; mas devemos recordar sempre a morte de Cristo, os Seus
sofrimentos, as Suas dores —tudo por que passou, quando todas as ondas e vagas da
justa ira de Deus passaram sobre a Sua alma. E sobre estes profundos mistérios que
os nossos corações estão ou deveriam estar, principalmente, postos, quando
rodeamos a mesa do Senhor e celebramos essa festa pela qual anunciamos a morte
do Senhor até que venha.
Mas é claro para todo o leitor espiritual e ponderado que os sentimentos
próprios a tão santa e solene instituição não são de caráter jubiloso. Certamente,
podemos regozijar-nos e nos regozijamos pensando em que os sofrimentos e as
dores de nosso bendito Senhor são passadas, e passadas para sempre; que essas
horas terríveis são passadas para nunca mais voltarem. Porém, o que recordamos
na festa não é simplesmente que já passaram, mas que foram suportadas por nós.
"Anunciais a morte do Senhor", e sabemos que, seja o que for que possa resultar
dessa morte preciosa para nós, quando meditamos sobre ela, o nosso gozo é
restringido por aqueles profundos exercícios da alma que o Espírito Santo produz
mostrando-nos os sofrimentos, as dores, a cruz e a paixão de nosso bendito
Salvador. As palavras do Senhor são: "Fazei isto em memória de mim"; mas o que
recordamos especialmente na Ceia é Cristo sofrendo e morrendo por nós; o que
anunciamos é a Sua morte; e com estas solenes realidades diante das nossas almas,
no poder do Espírito Santo, deve haver santa calma e serenidade.
Falamos, evidentemente, do que convém à imediata ocasião da celebração da
Ceia— dos sentimentos e afeições apropriados de um tal momento. Mas estes têm
de ser produzidos pelo poderoso ministério do Espírito Santo. De nada serviria
procurar por piedosos esforços próprios elevarmo-nos a um estado espiritual
apropriado àquele ato. Isto seria subir por degraus ao altar, uma coisa altamente
ofensiva para Deus. É só pelo ministério do Espírito Santo que podemos celebrar
dignamente a santa Ceia do Senhor. Só Ele nos pode habilitar a afastar toda a
ligeireza, todo o formalismo, toda a mera rotina, pensamentos errantes, e a
discernir o corpo e o sangue do Senhor nos emblemas que, por Sua própria ordem,
estão postos em cima da Sua mesa.
Mas na festa do Pentecostes a alegria era uma parte essencial. Nada ouvimos de
"ervas amargas" ou de "pão de aflição", nesta ocasião, porque é o tipo da vinda do
outro Consolador, a descida do Espírito Santo, procedendo do Pai e enviado por
Cristo ressuscitado, elevado e glorificado como o Cabeça nos céus, a fim de encher
os corações do Seu povo de louvor, ações de graças e triunfante gozo; sim, para os
levar à plena e bendita comunhão com o Seu Cabeça glorificado, no Seu triunfo
sobre o pecado, a morte, o inferno, Satanás e todos os poderes das trevas. A
presença do Espírito está relacionada com a liberdade, luz, poder e alegria. Por isso
lemos: "Os discípulos estavam cheios de gozo e do Espírito Santo." As dúvidas, os
temores e a escravidão legal desaparecem ante o precioso ministério do Espírito
Santo.
Porém, temos de distinguir entre a Sua obra e a Sua habitação em nós — a Sua
obra vivificadora e a Sua ação de nos selar. O primeiro alvor de convicção na alma
é o fruto da obra do Espírito. E a Sua bendita operação que conduz a todo o
verdadeiro arrependimento, e isto não é trabalho alegre; é muito bom, muito
necessário, absolutamente essencial; mas não é alegria, pelo contrário, é profunda
dor. Mas quando pela graça podemos crer no Salvador ressuscitado e glorificado,
então o Espírito Santo vem e faz em nós a Sua morada, como o selo da nossa
aceitação e o penhor da nossa herança.
Ora isto enche-nos de gozo inefável e pleno de glória; e estando assim, nós
próprios, cheios de alegria, nos tornamos canais de bênção para outros. "Quem crê
em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isso disse
ele do Espírito, que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo
ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 7:38-39). O
Espírito é o manancial de poder e gozo no coração do crente. Prepara-nos,
enche-nos e usa-nos como vasos no ministério a pobres, sedentas almas
necessitadas em redor de nós. Liga-nos com o Homem na glória, mantém-nos em
comunhão viva com Ele e habilita-nos para sermos, na nossa fraca medida, a
expressão do que Ele é. Todos os movimentos do crente devem exaltar a fragrância
de Cristo. Para aquele que professa ser cristão, exibir mau temperamento,
procedimento egoísta, ambição, avareza, espírito mundano, inveja e ciúme,
orgulho e ambição, é desmentir a sua profissão e trazer opróbrio sobre o glorioso
cristianismo que professa, e do qual temos um encantador tipo na festa das
semanas — uma festa proeminentemente caracterizada pelo gozo que tem a sua
origem na bondade de Deus, e que corre em todas as direções e abraça em seu
circulo todos os necessitados. "E te alegrarás perante o SENHOR teu Deus, tu, e teu
filho, e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que está dentro das tuas portas,
e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão no meio de ti."
Que belo! Como é perfeitamente formoso; oh, se o antítipo fosse mais fielmente
manifestado entre nós! Onde estão aquelas correntes refrigerantes que deveriam
fluir da Igreja de Deus? Onde essas epístolas imaculadas de Cristo conhecidas e
lidas de todos os homens? Onde podemos ver uma manifestação prática de Cristo
nos caminhos do Seu povo — alguma coisa para a qual podemos apontar e dizer:
"Ali há verdadeiro cristianismo?" Oh! Que o Espírito de Deus desperte os nossos
corações a um desejo mais intenso de sermos mais conformes à imagem de Cristo,
em todas as coisas! Queira Ele revestir do Seu poder a Palavra de Deus que temos
em nossas mãos e nos nossos lares; a fim de que ela possa falar aos nossos corações e
consciências e induzir-nos a julgar os nossos caminhos, as nossas relações e nós
próprios pela Sua luz divina, de forma que possa haver uma multidão de
testemunhas verdadeiramente consagradas e reunidas para o Seu nome, para
esperarem o Seu aparecimento! Quer o leitor unir-se conosco para pedir tal coisa?
Considerações Práticas
Mas, ah! A questão é esta: estamos desfrutando as bênçãos? Apropriamo-nos
delas? Agarramo-nos a elas no poder de uma fé sem artifício? Aqui está o segredo
de todo o assunto. Onde encontramos cristãos professos no pleno gozo do que a
Páscoa prefigurava, isto é, plena libertação do juízo e deste presente século mau?
Onde os encontramos no pleno e estabelecido gozo do seu Pentecostes, ou seja a
estadia, o selo, o penhor, a unção e o testemunho do Espírito Santo? Ponha-se à
maioria dos professos a simples questão: "Haveis recebido o Espírito Santos" E
veja-se a espécie de resposta que se recebe. Qual a resposta que o leitor pode dar?
Pode dizer: "Sim, graças a Deus, eu sei que estou lavado no precioso sangue de
Cristo, e selado com o Espírito Santo." E de recear que só muito poucos,
comparativamente, de entre a imensa multidão de professos em redor de nós
sabem alguma coisa destas preciosas coisas, que são contudo privilégios conferidos
até ao membro mais simples do corpo de Cristo.
Assim também quanto à Festa dos Tabernáculos, quão poucos compreendem o
seu significado! Decerto, ainda não chegou o seu cumprimento; mas o cristão é
chamado para viver no poder atual do que ela revela. "Ora, a fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não vêem." A
nossa vida deve ser regida e o nosso caráter formado pela influência combinada da
"graça" em que nos mantemos e a "glória" que esperamos.
Porém, se as almas não estão estabelecidas em graça, se nem ao menos sabem
que os seus pecados são perdoados; se se lhes ensina que é presunção ter a certeza
da salvação, e que é humildade e piedade viver em perpétua dúvida e temor; e que
ninguém pode estar seguro da sua salvação até comparecer ante o tribunal de
Cristo, como podem ocupar o terreno cristão, manifestar os frutos da vida cristã,
ou acalentar a própria esperança cristã? Se um israelita da antiguidade tivesse
dúvidas se era filho de Abraão, membro da congregação do Senhor, e se estava na
terra que lhe fora prometida, como poderia celebrar a festa dos pães asmos, o
Pentecostes ou dos Tabernáculos? Não teria havido sentido, significado ou valor
em tal procedimento; na verdade, podemos seguramente afirmar que nenhum
israelita teria pensado, nem por um momento, em nada
tão absurdo.
Como se compreende então que os cristãos professos, muitos deles, não
podemos duvidar, verdadeiros filhos de Deus, não parece serem numa capazes de
entrar no próprio terreno cristão? Passam os seus dias em dúvidas e temores, trevas
e incertezas. Os exercícios e serviços religiosos em vez de serem o resultado de
uma vida que possuem, e gozam são considerados como um caso de dever legal e
um meio de preparação moral para a vida futura. Muitas almas realmente piedosas
são mantidas neste estado todos os dias da sua vida: e quanto "à bendita esperança"
que a graça tem posto diante de nós, para animar os nossos corações e nos desligar
das coisas presentes, não se ocupam dela nem a entendem. É considerada como
mera especulação à qual se entregam alguns entusiastas visionários aqui e ali.
Esperam o dia do julgamento, em vez de esperarem a "resplandecente estrela da
manhã". Oram pelo perdão de seus pecados e pedem a Deus que lhes dê o Seu
Santo Espírito, quando deveriam regozijar-se na possessão segura da vida eterna,
justiça divina e o Espírito de adoção.
Tudo isto é diretamente oposto ao mais simples e claro ensino do Novo
Testamento; é inteiramente estranho ao próprio gênio do cristianismo, subversivo
da paz e liberdade do cristão, e destrutivo de todo o verdadeiro e inteligente culto
cristão, serviço e testemunho. E evidentemente impossível que as pessoas possam
comparecer perante o Senhor com seus corações cheios de louvor por privilégio
que não desfrutam ou mãos cheias de bênçãos que nunca têm realizado.
Chamamos a atenção do povo do Senhor, em todos os âmbitos da igreja
professante, para este importante assunto. Rogamos-lhes que examinem as
Escrituras e vejam se encontram nelas alguma coisa que os autorize a manter as
almas em trevas, dúvida e escravidão perpétua. Que há nelas avisos solenes, apelos
esquadrinhadores, graves advertências, é certo, e bendizemos a Deus por eles;
necessitamos deles e devemos ocupar diligentemente os nossos corações com eles.
Porém, o leitor deve compreender claramente que é privilégio até dos mais novos
em Cristo saber que todos os seus pecados lhes são perdoados, que estão aceitos em
Cristo, ressuscitados, selados com o Espírito Santo e que são herdeiros da glória
eterna. Tais são, por graça infinita e soberana, as suas bênçãos claramente
estabelecidas e asseguradas —bênçãos para as quais o amor de Deus os faz
bem-vindos, para as quais o sangue de Cristo os torna aptos, e as quais o Espírito
Santo lhes assegura.
Que o grande Pastor e Bispo das almas guie todo o Seu amado povo, os
cordeiros e ovelhas do rebanho que adquiriu com Seu sangue, a conhecer, pelo
ensino do Seu Santo Espírito, as coisas que lhes são concedidas gratuitamente por
Deus! E que aqueles que as conhecem, em certa medida, possam conhecê-las
plenamente e ostentar os preciosos frutos das mesmas numa vida de verdadeira
dedicação a Cristo e ao Seu serviço!
Há grandes motivos para temer que muitos de nós, que pretendemos estar
familiarizados com as mais elevadas verdades da fé cristã, não estamos
correspondendo à nossa profissão; não estamos agindo segundo o princípio
estabelecido em versículo 17 do nosso formoso capítulo:"Cada qual, conforme o
dom da sua mão, conforme à bênção que o SENHOR, teu Deus, te tiver dado." Parece
que esquecemos que, apesar de não termos nada que dar e nada a fazer pela
salvação, há muito que podemos fazer pelo Salvador, e muito que podemos dar aos
Seus obreiros e aos pobres. Existe o grande perigo de exagerar o princípio de nada
fazer e nada dar. Se nos dias da nossa ignorância e legal escravatura trabalhávamos
e contribuíamos por falsos princípios e com um falso objetivo, com certeza não
deveríamos fazer menos e dar menos agora que professamos saber que não só
estamos salvos mas abençoados com todas as bênçãos espirituais em Cristo
ressuscitado e glorificado. Necessitamos de ter cuidado em não nos contentarmos
com a simples compreensão intelectual e profissão verbal destas grandes e glori-
osas verdades, enquanto o coração e a consciência nunca sentiram a sua ação
sagrada, e a conduta foi foram posto sob a sua poderosa e santa influência.
Aventuramo-nos com toda a ternura e amor a oferecer ao leitor estas sugestões
práticas para sua consideração acompanhada de oração. Não queremos ferir,
ofender ou desanimar o mais simples cordeiro do rebanho de Cristo. E, demais,
podemos assegurar ao leitor que não estamos a atirar pedras a ninguém, mas
escrevendo simplesmente como que na imediata presença de Deus, e fazendo soar
aos ouvidos da igreja uma nota de advertência contra o que cremos firmemente ser
o nosso perigo comum. Cremos que existe uma chamada urgente, por todos os
lados, a nos humilharmos diante do Senhor, devido às nossas múltiplas fraquezas,
deficiências e inconsistência, e buscarmos graça junto d'Ele para sermos mais
verdadeiros, mais dedicados, mais precisos no nosso testemunho por Ele, nestes
dias sombrios e maus.
— CAPÍTULO 17 —
O Decreto Divino
Devemos lembrar que a divisão da Escritura em capítulos e versículos é um
arranjo inteiramente humano, por vezes muito conveniente, sem dúvida, para
referência, mas freqüentemente injustificável, visto que interfere com a ligação.
Assim podemos ver, num relance, que os versos finais do capítulo 16 estão muito
mais ligados com o que segue do que com o que precede.
"Juízes e oficiais porás em todas as tuas portas que o SENHOR ,teu Deus, te der
entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça. Não torcerás o
juízo, não farás acepção de pessoas, nem tomarás suborno, porquanto o suborno
cega os olhos dos sábios e perverte as palavras dos justos. A justiça, somente a
justiça seguirás, para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o SENHOR,
teu Deus."
Estas palavras ensinam-nos uma dupla lição: em primeiro lugar, expõem a
justiça imparcial e perfeita verdade que sempre caracterizam o governo de Deus.
Cada caso é tratado segundo os seus próprios méritos e com base em seus próprios
fatos. O juízo é tão claro que não existe uma sombra de fundamento para questão
alguma; toda a discórdia está absolutamente arrumada, e se é levantada qualquer
murmuração, é logo imposto silêncio ao murmurador com as palavras: "Amigo,
não te faço agravo." Isto é sempre verdadeiro em toda a parte e em todos os tempos
no santo governo de Deus, e faz-nos desejar aquele tempo quando esse governo for
estabelecido de mar a mar e desde o rio às extremidades da terra.
OS SACERDOTES LEVITAS
No Tempo de Eli
Tal era a idéia verdadeira, divina, quanto aos servos do Senhor da antiguidade.
Deviam viver das ofertas voluntárias apresentadas a Deus por toda a congregação.
Verdade é que, nos dias sombrios e maus dos filhos de Eli, encontramos alguma
coisa muito diferente desta encantadora ordem moral. Então, "...o costume
daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém algum sacrifício,
vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a carne, com um garfo de três
dentes em sua mão; e dava com ele na caldeira, ou na panela, ou no caldeirão, ou
na marmita; e...tudo quanto o garfo tirava o sacerdote tomava para si; assim faziam
a todo o Israel que ia ali a Siló. Também, antes de queimarem a gordura" — a
porção especial de Deus — "vinha o moço do sacerdote e dizia ao homem que
sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote, porque não tomará de ti carne
cozida, senão crua. E, dizendo-lhe o homem: Queimem primeiro a gordura de
hoje, e depois toma para ti quanto desejar a tua alma, então, ele lhe dizia: Não,
agora a hás de dar; e, se não, por força a tomarei. Era, pois, muito grande o pecado
desses jovens perante o SENHOR, porquanto os homens desprezavam a oferta do
SENHOR" (1 Sm 2:13 -17).
Tudo isto era verdadeiramente lamentável e terminou com o juízo solene de
Deus sobre a casa de Eli. Não podia ser de outro modo. Se os que ministravam ao
altar podiam ser culpados de tão terrível iniqüidade e impiedade, o juízo devia
seguir o seu curso.
Mas o estado normal das coisas, conforme é apresentado no nosso capítulo,
estava em vivo contraste com toda esta aterradora iniqüidade. O Senhor queria
rodear-Se das ofertas voluntárias do Seu povo, e destas ofertas queria alimentar os
Seus servos que ministravam ao Seu altar. Por isso, quando o altar de Deus era
atendido com diligência, fervor e devoção, os sacerdotes levitas tinham uma rica
porção, um abundante suprimento; e, por outro lado, quando o Senhor e o Seu
altar eram tratados com fria negligência, ou atendidos como mera rotina ou falso
formalismo, os servos do Senhor eram da mesma maneira esquecidos. Numa
palavra, estavam intimamente identificados com o culto e serviço do Deus de
Israel.
No Tempo de Ezequias
Assim, por exemplo, nos dias brilhantes do bom rei Ezequias, quando as coisas
estavam em seu vigor e os corações eram ditosos e verdadeiros, lemos: "E
estabeleceu Ezequias as turmas dos sacerdotes e levitas, segundo as suas turmas, a
cada um segundo o seu ministério; aos sacerdotes e levitas para o holocausto e para
as ofertas pacíficas, para ministrarem, e louvarem, e cantarem às portas dos arraiais
do SENHOR. Também estabeleceu a parte da fazenda do rei para os holocaustos e
para os holocaustos da manhã e da tarde, e para os holocaustos dos sábados, e das
Festas da Lua Nova, e das solenidades; como está escrito na Lei do SENHOR. E
ordenou ao povo, Moradores de Jerusalém, que desse a parte dos sacerdotes e
levitas, para que se pudessem dedicará Lei do SENHOR. E, depois que essa ordem se
divulgou, os filhos de Israel trouxeram muitas primícias de trigo, e de mosto, e de
azeite, e de mel, e de toda a novidade do campo; também os dízimos de tudo
trouxeram em abundância. E os filhos de Israel e de Judá que habitavam nas
cidades de Judá também trouxeram dízimos das vacas e das ovelhas e dízimos das
coisas sagradas que foram consagradas ao SENHOR, seu Deus; e fizeram muitos
montões. No terceiro mês, começaram a fazer os primeiros montões e no sétimo
mês acabaram. Vindo, pois, Ezequias e os príncipes e vendo aqueles montões,
bendisseram ao SENHOR e ao seu povo Israel. E perguntou Ezequias aos sacerdotes e
aos levitas acerca daqueles montões. E Azarias, o sumo sacerdote da casa de
Zadoque, lhe falou, dizendo: Desde que esta oferta se começou a trazer à Casa do
SENHOR, houve o que comer e de que se fartar e ainda sobejo em abundância,
porque o SENHOR abençoou ao seu povo, e sobejou esta abastança" (2 Cr 31:2-10).
Quão consolador é tudo isto! E quão animador! A profunda, cheia e prateada
onda de devoção afluía em redor do altar de Deus arrastando um amplo
suprimento para satisfazer todas as necessidades dos servos do Senhor e fazer
"montões". Podemos estar certos de que isto era grato ao coração do Deus de Israel,
como o era aos corações daqueles que se haviam dado a si mesmos, por Sua
chamada e designação, ao serviço do Seu altar e do Seu santuário.
E note-se especialmente essas preciosas palavras: "Como está escrito na lei do
SENHOR". Eis aqui a autoridade de Ezequias, a base sólida de toda a sua linha de
conduta, desde o princípio ao fim. Verdade é que a unidade visível da nação havia
desaparecido; o estado de coisas, quando ele começou a sua bendita obra, era
desanimador; mas a Palavra do Senhor era verdadeira, tão real, e tão direta em sua
aplicação nos dias de Ezequias como era nos dias de Davi ou de Josué. Ezequias
sentiu justamente que o capítulo 18:1 a 8 de Deuteronômio era aplicável ao seu
tempo e à sua consciência, e que ele e o povo estavam obrigados a atuar de acordo
com ele, segundo as suas possibilidades. Deviam os sacerdotes e levitas morrer de
fome porque a unidade de Israel havia desaparecido? Decerto que não. Deviam
permanecer firmes ou cair juntamente com a palavra, o culto, e a obra de Deus. As
circunstâncias podiam variar, e os israelitas podiam encontrar-se numa situação na
qual fosse impossível cumprir pormenorizadamente todas as ordenanças do
cerimonial levítico, mas nunca poderiam encontrar-se em circunstâncias tais que
não pudessem fazer o elevado privilégio de dar completa expressão à devoção de
seus corações pelo serviço, o altar e a lei do Senhor.
No Tempo de Neemias
Assim, pois, vemos, em toda a história de Israel, que quando as coisas eram
brilhantes e satisfatórias, o culto do Senhor, a Sua obra e os Seus obreiros eram
mantidos de uma maneira bendita. Mas, por outro lado, quando as coisas estavam
em decadência, quando os corações eram indiferentes, quando o egoísmo e os seus
interesses ocupavam o lugar principal, então todas estas coisas importantes eram
tratadas com negligência. Veja-se, por exemplo, Neemias 13. Quando esse amado e
fiel servo do Senhor voltou para Jerusalém, depois de uma ausência de alguns dias,
descobriu com profunda mágoa que, até durante tão pouco tempo, diversas coisas
não estavam bem; entre elas, os pobres levitas não tinham nada para comer.
"Também entendi que o quinhão dos levitas se lhes não dava, de maneira que os
levitas e os cantores, que faziam a obra, tinham fugido cada um para a sua terra"
(Ne 13:10). Não havia "montões" de primícias nesses dias tristes, e certamente seria
duro para esses homens trabalhar e cantar quando não tinham nada que comer.
Isto não estava conforme a lei do Senhor, nem segundo o Seu coração de amor. Era
uma vergonha para o povo que os servos do Senhor se vissem obrigados, devido a
sua grosseira negligência, a abandonar o culto e a obra de Deus, a fim de escaparem
à fome.
Isto era realmente um estado de coisas deplorável. Neemias sentiu-o
intensamente, como lemos: "Então, contendi com os magistrados e disse: Porque se
desamparou a Casa de Deus? Porém eu os ajuntei, e os restaurei no seu posto.
Então todo o Judá trouxe os dízimos do grão, e do mosto, e do azeite aos celeiros. E
por tesoureiros pus... porque se tinham achado fiéis";—tinham direito a confiança
de seus irmãos — "e se lhes encarregou a eles a distribuição para seus irmãos". Foi
necessário um número de homens experimentados e fiéis para ocupar a elevada
posição de distribuir aos seus irmãos os preciosos frutos da dedicação do povo;
podiam tomar conselho juntos e velar que o tesouro do Senhor fosse fielmente
administrado, segundo a Sua palavra, e que as necessidades dos Seus verdadeiros
obreiros de bona fide fossem completamente satisfeitas, sem preconceitos nem
parcialidade.
Tal era a formosa ordem do Deus de Israel—uma ordem a que todo o
verdadeiro israelita, tais como Neemias e Ezequias se compraziam em atender. A
rica maré de bênção corria do Senhor para o Seu povo, e voltava de novo para Ele,
e dessa maré fluente os Seus servos deviam tirar um completo suprimento para
todas as suas necessidades. Era uma desonra para Ele que os levitas se vissem
obrigados a regressar aos seus campos; isso demonstrava que a casa de Deus era
desprezada, e que não havia mantimento para os Seus servos.
No Tempo da Igreja
E agora pode perguntar-se: Que tem tudo isto a ver conosco? Que há de
aprender a Igreja de Deus de Deuteronômio 18:1 — 8? Para responder a esta
pergunta, devemos ver 1 Coríntios 9, onde o apóstolo inspirado trata do assunto
importante da manutenção do ministério cristão — um assunto tão pouco
compreendido pela grande massa dos cristãos professos. Quanto à lei do caso, é tão
distinta quanto possível. "Quem jamais milita à sua própria custai Quem planta a
vinha e não come do seu fruto"?- Ou quem apascenta o gado e não come do leite do
gado<? Digo eu isto segundo os homens? Ou não diz a lei também o mesmo?-
Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que trilha o grão.
Porventura, tem Deus cuidado dos bois? Ou não o diz certamente por nós?
Certamente que por nós está escrito; porque o que lavra, deve lavrar com
esperança, e o que debulha, deve debulhar com esperança de ser participante. Se
nós vos semeamos as coisas espirituais, será muito que de vós recolhamos as
carnais"? Se outros participam deste poder sobre vós, porque não, mais justamente,
nós? Mas nós" — aqui a graça resplandece em todo o seu brilho celestial — "não
usamos deste direito; antes, suportamos tudo, para não pormos impedimento
algum ao evangelho de Cristo. Não sabeis vós que os que administram o que é
sagrado comem do que é do templo?- E que os que de contínuo estão junto ao altar
participam do altar? Assim ordenou também o Senhor aos que anunciam o
evangelho, que vivam do evangelho. Mas" — aqui a graça afirma outra vez a sua
santa dignidade — "eu de nenhuma destas coisas use i e não escrevi isso para que
assim se faça comigo; porque melhor me fora morrer do que alguém fazer vã esta
minha glória. Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois
me é imposta essa obrigação; e ai de mim se não anunciar o evangelho! E, por isso,
se o faço de boa mente, terei prêmio; mas, se de má vontade, apenas uma
dispensação me é confiada. Logo, que prêmio tenho? Que, evangelizando, propo-
nha de graça o evangelho de Cristo, para não abusar do meu poder no evangelho"
(versículos 7 a 18).
Aqui temos esta interessante e importante questão apresentada em todos os
seus pormenores. O apóstolo inspirado expõe com a maior decisão e clareza a lei
divina sobre este ponto. "Assim ordenou também o Senhor aos que anunciam o
evangelho, que vivam do evangelho"; que assim como os sacerdotes e os levitas da
antiguidade viviam das ofertas apresentadas pelo povo, do mesmo modo, agora, os
que são realmente chamados por Deus, dotados por Cristo, e feitos aptos pelo
Espírito Santo, para anunciar o evangelho, e que se entregam com constância e
diligência a essa gloriosa obra, têm moralmente direito à manutenção temporal.
Não é que devam esperar daqueles a quem pregam uma soma estipulada. Tal idéia
não se encontra no Novo Testamento. O obreiro deve depender do seu Mestre e só
d'Ele para seu sustento. Ai dele se depender da Igreja ou dos homens, seja de que
forma for! Os sacerdotes e levitas tinham a sua porção do Senhor, e só d'Ele. Ele era
a sorte da sua herança. Decerto, Ele esperava que o povo O servisse na pessoa dos
Seus servos. Disse-lhes o que deviam dar, e abençoava-os quando davam; era seu
elevado privilégio bem como precioso dever dar; se tivessem recusado ou
negligenciado fazer isso, teriam acarretado a seca e a esterilidade sobre os seus
vinhedos (Ag 1:5-11).
Mas os sacerdotes e os levitas tinham de olhar só para o Senhor. Se o povo
deixava de trazer as suas ofertas, os levitas tinham de correr aos seus campos e
trabalhar para seu sustento. Não podiam mover uma ação contra ninguém por
dízimos e ofertas; só podiam apelar para o Deus de Israel, que os havia ordenado
para a obra e dado o trabalho para fazer.
Assim deve ser também agora com os servos do Senhor; devem contar
unicamente com Ele. Devem estar bem seguros de que Ele os preparou para a obra
e os chamou para ela, antes de tentarem alijar- se —por assim dizer—do meio das
circunstâncias, se se entregarem inteiramente à obra da pregação. Devem desviar
completamente os olhos dos homens, de todos os recursos da criatura e do apoio
humano, e depender exclusivamente do Deus vivo. Temos visto as mais desastrosas
conseqüências de uma atuação sob um impulso equivocado neste importante
assunto; homens que não são chamados por Deus, nem aptos para a obra,
abandonando as suas ocupações, e apresentando-se, segundo dizem, para viverem
pela fé e se consagrarem à obra. O resultado em todos os casos é um deplorável
fracasso. Alguns, quando começaram a ver as duras realidades da vereda frente a
frente, alarmaram-se de tal modo que perderam, com efeito, o seu equilíbrio
mental, perderam a razão por algum tempo e a paz; e outros voltaram logo outra
vez para o mundo.
Em suma, é nossa profunda convicção, depois de quarenta anos de observações,
que são muito poucos os casos em que é moralmente seguro e conveniente alguém
abandonar o seu trabalho profissional para ir pregar o evangelho. Deve ser tão
claro e indubitável para o que toma essa decisão poder dizer, como Lutero, na
Dieta de Worms; "Eis aqui; não posso atuar de outro modo: Deus me ajude!
Amém." Pode estar perfeitamente seguro de que Deus o susterá na obra a que o
chamou e que proverá todas as suas necessidades "segundo as Suas riquezas em
glórias, por Cristo Jesus" (Fp 4:19). E quanto aos homens e os seus pensamentos a
seu respeito e da sua carreira, deve simplesmente mencioná-los ao seu Mestre. Não
é responsável para com eles; nem jamais lhes pediu coisa alguma. Se fossem
obrigados a mantê-lo, poderiam reclamar ou levantar questões; mas visto que não é
assim, eles devem deixá-lo, recordando que para o seu Mestre ele está de pé ou cai.
O Apóstolo Paulo
Mas quando consideramos a esplêndida passagem dei Coríntios 9, vemos que o
bem-aventurado apóstolo, depois de haver estabelecido, fora de toda a discussão, o
seu direito a ser sustentado, o renuncia completamente. "Não usamos deste
direito." Trabalhava com suas mãos noite e dia para não ser pesado ou estorvo a
ninguém. "Para o que me era necessário, a mim", diz ele, "e aos que estão comigo,
estas mãos me serviram" (At 20:34). De ninguém cobiçou a prata, o ouro ou o
vestido. Viajava, pregava, visitava casa após casa, era o apóstolo laborioso, o
ardente evangelista, o pastor diligente, tinha o cuidado de todas as igrejas. Não
tinha direito ao sustento?- Com certeza. Devia ter sido o gozo da Igreja de Deus
suprir todas as usas necessidades. Contudo, ele nunca insistiu sobre os seus
direitos; pelo contrário, renunciou a eles. Mantinha-se a si próprio e aos seus
companheiros com o labor das suas mãos; e tudo isto como exemplo, conforme diz
aos anciãos de Éfeso: "Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é
necessário auxiliar os enfermos e recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse:
Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber."
Causa admiração pensar como este amado e venerando servo de Cristo, com as
suas longas viagens desde Jerusalém até ao Ilírico, os seus gigantescos trabalhos
como evangelista, pastor e mestre, tinha ainda tempo para trabalhar a fim de suprir
as suas necessidades e as dos outros. Na verdade, ele ocupou um plano moral muito
elevado. O Seu caso é um testemunho permanente contra o mercenarismo em
todas as formas e estilos. As alusões escarnecedoras dos infiéis aos ministros bem
remunerados não lhe podiam ser, de modo algum, aplicadas. Certamente, ele
nunca pregou por salário.
E, contudo, recebia com agradecimento o auxílio dos que sabiam como
prestá-lo. Uma e outra vez, a amada assembléia de Filipos supriu as necessidades do
seu venerado e amado pai em Cristo. Que felicidade para eles haverem feito isso!
Nunca será esquecido. O doce relato da sua devoção tem sido lido por milhões, os
quais têm sido confortados com o odor do seu sacrifício; está registrado no céu
onde jamais se esquece coisa alguma desta espécie; sim, está gravado no íntimo do
coração de Cristo. Escute-se a forma como o bem- aventurado apóstolo derrama o
seu coração agradecido ante os seus filhos muito amados. "Ora, muito me regozijei
no Senhor por, finalmente, reviver a vossa lembrança de mim; pois já vos tínheis
lembrado, mas não tínheis tido oportunidade. Não digo isto como por
necessidade"—feliz e abnegado servo! — "porque já aprendi a contentar-me com o
que tenho. Sei estar abatido e sei também ter abundância; em toda a maneira e em
todas as coisas, estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter
abundância como a padecer necessidade. Posso todas as coisas naquele que me
fortalece. Todavia, fizestes bem em tomar parte na minha aflição. E bem sabeis
também vós, ó filipenses, que, no princípio do evangelho, quando parti da
Macedônia, nenhuma igreja comunicou comigo com respeito a dar e a receber,
senão vós somente. Porque também, uma e outra vez me mandastes o necessário a
Tessalônica. Não que procure dádivas, mas procuro o fruto que aumente vossa
conta. Mas bastante tenho recebido e tenho abundância; cheio estou, depois que
recebi de Epafrodito o que da vossa parte me foi enviado como cheiro de suavidade
e sacrifício agradável e aprazível a Deus. O meu Deus, segundo as suas riquezas,
suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus" (Fp 4:10-19).
Que raro privilégio ser permitido confortar o coração de tão honrado servo de
Cristo, no fim da sua carreira e na solidão da sua prisão em Roma! Quão oportuno,
justo e belo era o ministério dos Filipenses! Que alegria receber os gratos
reconhecimentos do apóstolo! E quão preciosa também a certeza de que o seu
serviço havia ascendido como odor suave ao próprio trono e coração de Deus!
Quem não haveria preferido ser um filipense ajudando a suprir as necessidades do
apóstolo a um Coríntio levantando a questão do seu ministério, ou um gálata
entristecendo o seu coração! Que imensa diferença! O apóstolo não podia receber
nada da assembléia de
Corinto. O seu estado não o permitia. Alguns dessa assembléia serviram-no e o
seu serviço está registrado nas páginas inspiradas, recordado também nas alturas, e
será recompensado largamente no reino futuro. "Folgo, porém, com a vinda de
Estéfanas, e de Fortunato, e de Acaico; porque estes supriram o que da vossa parte
me faltava. Porque recrearam o meu espírito e o vosso. Reconhecei, pois, aos tais"
(I Co. 16:17,18).
Não intentaremos tratar plenamente deste assunto aqui; não temos tempo, nem
espaço, nem inclinação para nada dessa espécie. Sentimos simplesmente que é
nosso dever solene prevenir o leitor do perigo de ter alguma coisa que ver com a
consulta de espíritos dos mortos. Cremos que é uma obra perigosa. Não entraremos
na questão se as almas podem voltar a este mundo; sem dúvida, Deus pode permitir
que voltem se o julgar conveniente; mas isto deixamo-lo de lado. O ponto principal
que devemos ter sempre ante os nossos corações é a perfeita suficiência da
revelação divina. Que necessidade temos dos espíritos dos que já partiram?- O
homem rico julgava que se Lázaro voltasse à terra e falasse aos seus cinco irmãos,
isso teria um grande efeito. "Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos, para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham
também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Eles têm Aio/sés e os
Profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, Abraão meu pai, se algum dos mortos fosse
ter com eles, arrepender-se-iam. Porém Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e
aos Profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite" (Lc
16:27a 31).
Aqui temos esta questão completamente estabelecida. Se as pessoas não
ouvirem a Palavra de Deus, não acreditarem o que ela diz clara e solenemente
sobre si mesmas, do seu estado presente, e destino futuro, tampouco serão
persuadidas ainda que mil almas voltem e lhes digam o que viram, e ouviram, e
sentiram acima no céu ou no inferno em baixo; nada produziria efeito salvador ou
permanente nelas. Podia causar grande excitação, grande sensação; daria material
para conversação, e encheria as colunas dos jornais em toda a parte, mas assim
terminaria. As pessoas continuariam da mesma maneira com os seus negócios, a
sua loucura e vaidade, a ânsia dos prazeres e própria satisfação. "Se não ouvem a
Moisés e os profetas"—e nós podemos acrescentar, Cristo e os Seus apóstolos —
"tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite." o coração que se
não curva ante as Escrituras não se convencerá por nada; e quanto ao verdadeiro
crente tem na Sagrada Escritura tudo quanto pode necessitar, e portanto não tem
necessidade de recorrer ao movimento de mesas, à invocação dos espíritos ou
magia. "Quando vos disserem: Consultai os que têm espíritos familiares e os
adivinhos, que chilreiam e murmuram entre dentes;— não recorrerá um povo ao
seu Deus? A favor dos vivos interrogar-se-ão os mortos? A lei e ao testemunho! Se
eles não falarem segundo esta palavra, nunca verão a alva" (Is 8:19,20).
AS CIDADES DE REFÚGIO
Os Limites da Herança
Antes de citar o parágrafo final do nosso capítulo, queremos chamar a atenção
do leitor para o versículo 14, no qual temos uma encantadora prova do terno
cuidado de Deus pelo Seu Povo, e do interesse cheio de graça que toma em tudo
que, direta ou indiretamente, lhes diz respeito. "Não mudes o marco do teu
próximo, que colocaram os antigos na tua herança, que possuíres na terra, que te
dá o SENHOR, teu Deus, para a possuíres."
Esta passagem, tomada no seu pleno significado e primária aplicação, está
repleta de doçura, visto que nos apresenta o coração amorável de nosso Deus, e nos
mostra quão maravilhosamente Ele entra em todas as circunstâncias do Seu amado
povo. Os marcos não deviam ser tocados. A porção de cada qual devia ser mantida
intacta de conformidade com as linhas divisórias estabelecidas pelos que as
estabeleceram nos tempos antigos. O Senhor havia dado a terra a Israel: e não só
isso, mas havia destinado a cada tribo e a cada família a sua própria parte, marcada
com perfeita precisão, e indicada pelos marcos tão claramente que não podia haver
confusão, nem choque de interesses, nem interferências de uns com os outros, nem
fundamento para pleito ou controvérsia a respeito da propriedade. Ali estavam os
antigos marcos determinando a porção de cada um de maneira a evitar todo o
motivo possível de disputa. Cada qual possuía a sua parte como rendeiro do Deus
de Israel, que sabia tudo acerca da sua pequena propriedade, como dizemos; e cada
rendeiro tinha a satisfação de saber que os olhos do benévolo e altíssimo
Proprietário estavam postos na sua parcela de terra e a Sua mão sobre ela para a
proteger de todos os intrusos. Desta maneira ele podia habitar em paz à sombra da
sua parreira e debaixo da sua figueira, desfrutando o lote que fora assinalado pelo
Deus de Abraão, Isaque e Jacó.
Dissemos o bastante quanto ao sentido claro desta encantadora cláusula do
nosso capítulo. Mas tem certamente também um profundo significado espiritual.
Não há porventura marcos espirituais para a Igreja de Deus e para cada membro
dela, assinalando, com divina exatidão, os limites da nossa herança celestial — os
marcos que os antigos, os próprios apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo,
assentaram?- Evidentemente, há, e Deus tem os Seus olhos postos neles, e não
permitirá que sejam removidos impunemente. Ai do homem que intenta
tocar-lhes; terá que dar contas a Deus por esse ato! É uma coisa grave para qualquer
pessoa intrometer-se, de qualquer forma que seja, com o lugar, a porção e
perspectiva da Igreja de Deus; e é de recear que muitos o estão fazendo sem darem
conta disso.
Não intentaremos entrar na questão do que são estes marcos; procuramos fazer
isto no nosso primeiro volume de "Estudos sobre o Livro de Deuteronômio", bem
como nos outros quatro volumes da série; mas sentimos que é nosso dever avisar,
da maneira mais solene, todos aqueles a quem isto possa dizer respeito, que não
devem fazer o que, na Igreja de Deus, corresponde a arrancar os marcos em Israel.
Se na terra de Israel alguém se tivesse adiantado para sugerir algum novo arranjo
na herança das tribos, para ajustar a propriedade de cada um sobre qualquer novo
princípio, para estabelecer novas linhas divisórias, qual teria sido a resposta de
todo o israelita fiel? Muito simples, podemos estar certos. Teria respondido nos
termos da linguagem de Deuteronômio 19:14. Teria dito: Não queremos inovações
aqui; estamos perfeitamente contentes com esses sagrados e velhos marcos que os
antigos puseram na nossa herança. Estamos decididos, pela graça de Deus, a
mantê-los e a resistir, com firme propósito, a qualquer inovação moderna."
Tal teria sido, cremos, a resposta imediata de todo verdadeiro membro da
congregação de Israel; e certamente o crente não deveria ser menos decidido na
sua resposta a todos aqueles que, sob o pretexto de progresso e desenvolvimento,
querem arrancar os marcos da Igreja de Deus, e, em vez do ensino preciso de Cristo
e dos Seus apóstolos, nos oferecem a chamada luz da ciência e os recursos da
filosofia. Graças a Deus, não precisamos deles. Temos Cristo e a Sua Palavra; que se
lhes pode acrescentará Que necessidade temos nós do progresso ou de
desenvolvimento humano, quando temos "o que era desde o princípio? Que
podem fazer a ciência ou a filosofia por aqueles que possuem"toda a verdade? Sem
dúvida, precisamos, sim, ansiamos fazer progresso no conhecimento de Cristo;
ansiamos por um mais completo e mais evidente desenvolvimento de Cristo na
nossa conduta diária; mas a ciência e a filosofia não podem ajudar-nos neste
sentido; não; podem apenas mostrar que são um estorvo.
Leitor crente, procuremos manter-nos perto de Cristo, perto da Sua Palavra.
Esta é a nossa única salvaguarda, nestes dias sombrios e maus. Fora d'Ele, nada
somos, nada temos, nada podemos fazer. N'Ele temos tudo. Ele é a porção do nosso
cálice e a sorte da nossa herança. Possamos nós saber não apenas o que é estarmos
salvos n'Ele, mas separados para Ele, e satisfeitos com Ele, até esse dia brilhante em
que O veremos assim como Ele é, seremos semelhantes a Ele e com Ele estaremos
para sempre.
As Batalhas do Cristão
Bom é recordar isto. Nós, como cristãos, somos chamados para manter uma
constante guerra espiritual. Temos de lutar por cada polegada de terreno celestial.
O que os cananeus eram para Israel, são para nós os espíritos malignos nos lugares
celestiais. Não somos chamados para lutar pela vida eterna; já a obtivemos como
dom de Deus, antes de começarmos a lutar. Não somos chamados para lutar pela
salvação; estamos salvos antes de entrar em combate. E muito necessário saber por
que havemos de lutar, e contra quem temos de combater. O objetivo com que
lutamos é manter e mostrar praticamente a nossa posição celestial e o nosso caráter
no meio das circunstâncias e cenas da vida humana, dia após dia. E, por outro lado,
quanto aos nossos inimigos espirituais, são espíritos malignos que, durante o tempo
presente, são autorizados a ocupar os lugares celestiais. "Porque não temos que
lutar contra carne e sangue" — como Israel tinha de fazer em Canaã —, mas, sim,
contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais" (Ef 6:12).
Ora, a questão é esta: que necessitamos nós para prosseguir uma luta como estai
Devemos abandonar as nossas ocupações legais na terral Devemos separar-nos das
relações baseadas na natureza e confirmadas por Deus? E preciso que nos tornemos
ascéticos, místicos ou monges a fim de levarmos por diante a luta espiritual a que
somos chamados? De modo nenhum: para um cristão, fazer qualquer destas coisas
seria, por si mesma, uma prova de que se havia enganado por completo da sua
vocação, ou que tinha, logo no começo, caído na batalha. Somos imperativamente
exortados a fazer com as nossas mãos o que é bom, a fim de podermos ter que dar
ao necessitado. E não só isto, senão que temos, nas páginas do Novo Testamento, a
mais ampla instrução quanto à maneira de nos conduzirmos nas diversas relações
naturais que Deus mesmo tem estabelecido e nas quais tem posto o selo da Sua
aprovação. Por isso é perfeitamente claro que as ocupações terrenas e os graus de
parentesco não são, em si mesmos, um obstáculo a conduzirmos com êxito a luta
espiritual.
Portanto, de que necessita o guerreiro cristão? Um coração completamente
desembaraçado das coisas terrenas e naturais; e uma inconfundível confiança em
Deus. Mas como hão de estas coisas ser mantidas? Escutemos a resposta divina.
"Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau" —
isto é, todo o tempo compreendido desde a cruz à vinda de Cristo — "e, havendo
feito tudo, ficar firmes. Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos lombos com a
verdade, e vestida a couraça da justiça, e calçados os pés na preparação do
evangelho da paz; tomando sobretudo o escudo da fé, com o qual podereis apagar
todos os dardos inflamados do maligno. Tomai também o capacete da salvação e a
espada do Espírito, que é a palavra de Deus, orando em todo tempo, com toda
oração e súplica no Espírito e vigiando nisso com toda perseverança e súplica por
todos os santos" (Ef 6:13-18).
Prezado leitor, notemos os requisitos de um guerreiro cristão, como aqui nos
são apresentados pelo Espírito Santo. Não se trata da questão de uma casa, uma
vinha ou da esposa, mas de ter o homem interior dirigido pela "verdade"; a conduta
exterior caracterizada Pela "justiça prática"; os costumes e hábitos morais
caracterizados pela doce "paz" do evangelho; o homem completo sob o
impenetrável escudo da "fé"; o entendimento guardado pela absoluta certeza da
"salvação"; e o coração continuamente mantido e fortalecido pelo Poder da oração
e súplicas; e conduzido em sincera intercepção por todos os santos e especialmente
pelos amados obreiros do Senhor e do seu abençoado trabalho. Este é o modo em
que o Israel espiritual de Deus há de ser equipado para a luta que é chamado a
empreender contra os espíritos malignos nos lugares celestiais. Que o Senhor, em
Sua infinita bondade, torne estas cosias bem reais na experiência das nossas almas e
na vida prática, dia após dia!
A INVESTIGAÇÃO DE UM HOMICÍDIO
"Quando na terra que te der o SENHOR, teu Deus, para possuí-la se achar algum
morto, caído no campo, sem que se saiba quem o matou, então, sairão os teus
anciãos e os teus juízes"—os guardiões dos direitos da verdade e da justiça — "e
medirão o espaço até às cidades que estiverem em redor do morto. E na cidade
mais chegada ao morto, os anciãos da mesma cidade tomarão uma bezerra da
manada, que não tenha trabalhado nem tenha puxado com o jugo. E os anciãos
daquela cidade trarão a bezerra a um vale áspero, que nunca foi lavrado nem
semeado; e ali, naquele vale, degolarão a bezerra. Então, se achegarão os
sacerdotes, filhos de Levi" — os expoentes da graça e misericórdia—" (pois o
SENHOR, teu Deus, os escolheu para o servirem, e para abençoarem em nome do
SENHOR; e pelo seu dito, se determinará toda demanda e toda ferida)"—fato
bendito e confortante! — "E todos os anciãos da mesma cidade, mais chegados ao
morto, lavarão as suas mãos sobre a bezerra degolada no vale, e protestarão, e
dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os nossos olhos o não viram.
Sê propício ao teu povo Israel, que tu, ó SENHOR, resgataste, e não ponhas o sangue
inocente no meio do teu povo Israel. E aquele sangue lhes será expiado. Assim,
tirarás o sangue inocente do meio de ti, pois farás o que é reto aos olhos do
SENHOR" (versículos l a 9).
Uma passagem muito interessante e sugestiva da Sagrada Escritura está agora
ante os nossos olhos e requer a nossa atenção. Um pecado é cometido, um homem
é encontrado morto no campo; mas ninguém sabe nada acerca do caso, ninguém
pode dizer se é um homicídio ou assassinato, ou quem cometeu aquela morte. Está
absolutamente fora do alcance do conhecimento humano. E, todavia, o fato é
inegável. Cometeu-se pecado, e permanece como uma mancha na terra do Senhor,
e o homem é absolutamente incapaz de tratar dele.
Que há de então fazer-se?A glória de Deus e a pureza da Sua terra devem ser
mantidas. Ele sabe tudo sobre o assunto, e só ele pode tratá-lo como deve ser; e na
verdade a Sua maneira de tratar dele está cheia do mais precioso ensino.
Antes do mais, os anciãos e juízes aparecem em cena. Os direitos da verdade e
da justiça devem ser perfeitamente mantidos. Isto é uma verdade fundamental em
toda a Palavra de Deus. O pecado tem de ser julgado, antes de os pecados poderem
ser perdoados, ou o pecador justificado. Antes de poder ser ouvida a voz celestial
de misericórdia, a justiça tem de ser perfeitamente cumprida, o trono de Deus
justificado e o Seu nome glorificado. A graça reina em justiça. Bendito seja Deus
que é assim! Que verdade gloriosa para todos os que têm tomado o seu verdadeiro
lugar como pecadores! Deus tem sido glorificado quanto à questão do pecado, e
portanto pode, em perfeita justiça, perdoar e justificar o pecador.
Porém, temos de nos limitar simplesmente à interpretação da passagem
exposta; e, fazendo-o, encontraremos nela uma observação maravilhosa do futuro
de Israel. Com efeito, a grande verdade da expiação é apresentada; mas
especialmente a respeito de Israel. A morte de Cristo vê-se aqui nos seus dois
grandes aspectos, isto é, como a expressão da culpa do homem, e a manifestação da
graça de Deus: no primeiro aspecto temo-la representada no homem encontrado
morto no campo; no segundo na bezerra sacrificada no vale áspero. Os anciãos e os
juízes buscavam a cidade mais próxima do morto, e nada podia valer senão o
sangue de uma vítima sem mancha—o sangue d Aquele que foi sacrificado na
cidade culpada de Jerusalém.
O leitor notará, com muito interesse, que no momento em que os direitos da
justiça eram satisfeitos pela morte da vítima, um novo elemento era introduzido na
cena. "Então, se achegarão os sacerdotes, filhos de Levi." Isto é graça atuando sobre
a base bendita da justiça. Os sacerdotes são os canais da graça, assim como os juízes
são os guardiões da justiça. Quão perfeita e formosa é a Escritura em cada página,
cada parágrafo, cada sentença! Os ministros da graça só podiam apresentar-se
depois de o sangue ter sido derramado. A bezerra decapitada no vale alterava por
completo o aspecto das coisas. "Então, se achegarão os sacerdotes, filhos de Levi,
(pois o SENHOR, teu Deus, os escolheu para o servirem, e para abençoarem em
nome do SENHOR; e pelo seu dito"—fato bendito para Israel! Fato bendito para todo
o verdadeiro crente — "se determinará toda demanda e toda ferida." Tudo há de
estabelecer-se sobre o glorioso e eterno princípio da graça reinando em justiça.
Deste modo tratará Deus com Israel mais tarde. Não devemos intentar
intrometer-nos com a aplicação primária de todas essas surpreendentes
instituições que nos damos conta neste profundo e maravilhoso livro de
Deuteronômio. Sem dúvida, encerra lições para nós — lições preciosas; mas
podemos estar seguros de que o verdadeiro modo de apreciar e entender essas
lições é procurar o seu verdadeiro e próprio alcance. Por exemplo, quão precioso e
pleno de consolação é o fato de que é pela palavra do ministro da graça que toda
demanda e toda ferida se determinará, para Israel arrependido dentro em pouco, e
para toda a alma arrependida agora! Perdemos alguma coisa da profunda bênção de
tais coisas ao ver e reconhecer a própria aplicação da Escriturai Decerto que não;
longe disto, o verdadeiro segredo de aproveitar com qualquer passagem especial da
palavra de Deus é entender o seu verdadeiro alcance e propósito.
"E todos os anciãos da mesma cidade, mais chegados ao morto, lavarão as suas
mãos sobre a bezerra degolada no vale" (1). "Lavo as minhas mãos na inocência; e
assim andarei, SENHOR, ao redor do teu altar" (SI 26:6). O verdadeiro lugar para
lavarmos as nossas mãos é onde o sangue da expiação expiou para sempre a nossa
culpa. "E protestarão, e dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os
nossos olhos o não viram. Sê propício ao teu povo Israel, que tu, ó SENHOR,
resgataste, e não ponhas o sangue inocente no meio do teu povo Israel. E aquele
sangue lhes será expiado."
__________
(1)
Quão cheia de poder sugestivo é a figura do "vale"! Com quanta propriedade expõe o que este mundo
em geral, e a terra de Israel em particular, foi para nosso bendito Senhor e Salvador! Certamente, foi um
lugar escabroso para Ele, um lugar de humilhação, uma terra seca e sedenta, um lugar que nunca havia
sido tratado ou semeado. Mas, toda a homenagem Lhe seja prestada, por Sua morte, em este vale! Ele
obteve para este mundo e para a terra de Israel uma rica colheita de bênção que será recolhida durante o
período do milênio para pleno louvor do amor redentor. E até mesmo agora, Ele, desde o trono da
Majestade celestial, e nos, em espírito Consigo, podemos volver os olhos para esse vale como o lugar onde
foi consumada a bendita obra que forma o fundamento imperecível da gloria de Deus, da bênção da Igreja,
da restauração plena de Israel, do gozo de 'numeráveis nações e da gloriosa redenção desta geração de
gemidos.
"Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc. 23:34). "Ressuscitando
Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, e
vos desviasse, a cada um, das vossas maldades" (At 3:26). Assim, todo o Israel será
salvo dentro em breve, conforme os eternos desígnios de Deus, e em cumprimento
da sua promessa e juramento a Abraão, retificada e eternamente estabelecida pelo
precioso sangue de Cristo, ao Qual seja honra e louvor para sempre!
Os versículos 10 a 17 tratam, de um modo muito especial, do parentesco do
Senhor com Israel. Não nos deteremos sobre o assunto aqui. O leitor encontrará
numerosas referências a este assunto nas páginas dos profetas, nas quais o Espírito
Santo faz os mais comovedores apelos à consciência da nação—apelos fundados no
fato maravilhoso do parentesco a que Ele os havia trazido a Si mesmo, mas no qual
eles haviam tão lamentável e assinaladamente fracassado. Israel demonstrou ser
uma esposa infiel, e, como conseqüência disso, foi posta de lado. Mas o tempo virá
em que este povo por tanto tempo rejeitado, mas nunca esquecido, não será apenas
restabelecido, mas levado a um estado de bem-aventurança, privilégio e glória
como jamais foi conhecido no passado.
Isto não deve, nem por um momento, ser perdido de vista nem posto de lado.
Corre como uma brilhante linha de ouro através das Escrituras proféticas desde
Isaías a Malaquias; e o encantador tema é retomado e desenrolado no novo
Testamento. Veja-se por exemplo a brilhante passagem que é apenas uma de entre
cem: "Por amor de Sião, me não calarei e, por amor de Jerusalém, me não
aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua salvação, como
uma tocha acesa. E as nações verão a tua justiça, e todos os reis a tua glória; e
chamar-te-ão por um nome novo, que a boca do SENHOR nomeará. E serás uma
coroa de glória na mão do SENHOR, e um diadema real na mão do teu Deus. Nunca
mais te chamarão Desamparada, nem a tua terra se denominará jamais Assolada;
mas chamar-te-ão: Hefzibá [nela está o meu deleite]; e à tua terra: Beulá
[desposada], porque o SENHOR se agrada de ti; e com a tua terra o senhor se casará.
Porque, o como o mancebo se casa com a donzela, assim teus filhos se casarão
contigo; e, como o noivo se alegra com a noiva, assim se alegrará contigo o teu
Deus. O Jerusalém! Sobre os teu muros pus guardas, que todo o dia e toda a noite
contigo se não calarão; ó vós que fazeis menção do SENHOR, não haja silêncio em
vós, nem estejais em silêncio, até que confirme e até que ponha a Jerusalém por
louvor na terra. Jurou o SENHOR pela sua mão direita e pelo braço da sua força:
Nunca mais darei o teu trigo por comida aos teus inimigos, nem os estranhos
beberão o teu mosto, em que trabalhaste. Mas os que o ajuntarem o comerão e
louvarão ao SENHOR; e OS que O colherem beberão nos átrios do meu santuário... eis
o que o SENHOR fez ouvir até às extremidades da terra: Dizei à filha de Sião: Eis que
tua salvação vem; eis que com ele vem o seu galardão, e a sua obra e diante dele. E
chamar-lhes-ão povo santo remidos do SENHOR; e tu serás chamada a Procurada
cidade não desamparada" (Is 62).
Intentar desviar esta sublime e gloriosa passagem do seu próprio objeto e
aplicá-la à Igreja cristã, quer seja na terra, quer seja no céu, é fazer positivamente
violência à Palavra de Deus, e introduzir um sistema de interpretação
inteiramente destruidor da integridade da Sagrada Escritura. A passagem que
acabamos de transcrever com intenso deleite espiritual, aplica-se única e
literalmente a Sião, a Jerusalém, no sentido literal, à terra de Israel. Procure o
leitor entender e compenetrar-se bem deste fato.
Quanto à Igreja, a sua posição na terra é a de uma virgem desposada, não a de
uma mulher casada. As suas bodas terão lugar no céu (Ap. 19:7-8). Aplicar à Igreja
passagens como a anterior, é alterar inteiramente a sua posição e negar as mais
claras afirmações da Escritura quanto à sua chamada, a sua porção e a sua
esperança, as quais são puramente celestiais.
A Benevolência
"Quando acabares de dizimar todos os dízimos da tua novidade, no ano
terceiro, que é o ano dos dízimos, então, o darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e
à viúva, para que comam dentro das tuas portas e se fartem; e dirás perante o
SENHOR teu Deus: Tirei o que é consagrado de minha casa e dei também ao levita, e
ao estrangeiro, e ao órfão e à viúva, conforme todos os teus mandamentos que me
tens ordenado; nada traspassei dos teus mandamentos, nem deles me esqueci"
(versículos 12 e 13).
Nada pode ser mais belo que a ordem moral destas coisas. E precisamente
semelhante ao que temos em Hebreus 13:15: "Portanto, ofereçamos sempre, por
ele, a Deus sacrifício e louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome."
Eis aqui adoração. "E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque,
com tais sacrifícios, Deus se agrada" (versículo 16). Aqui temos benevolência ativa.
Juntando ambas, temos o que podemos chamar a parte superior e a inferior do
caráter cristão—louvando a Deus e fazendo bem aos homens. Preciosos
característicos! Possamos nós exibi-los fielmente! Uma coisa é certa, eles andarão
sempre juntos. Mostrai- nos um homem cujo coração está cheio de louvor a Deus,
e nós vos mostraremos um cujo coração está aberto a toda a forma de necessidade
humana. Pode não ser rico em bens deste mundo. Poderá ser obrigado a dizer,
como outro da antiguidade não se envergonhava de dizer: "Não tenho prata e nem
ouro"; mas terá as lágrimas de simpatia, o olhar de bondade, a palavra de ânimo, e
estas coisas falam mais eloqüentemente a um coração sensível do que o tilintar da
prata e do ouro. O nosso adorado Senhor e Mestre, nosso Grande Modelo, "andou
fazendo bem", mas nunca lemos de Ele dar dinheiro a alguém; na realidade,
podemos estar certos de que o bendito Senhor nunca teve uma moeda. Quando
teve de responder aos herodianos sobre o assunto de pagar o tributo a César, teve
de lhes pedir para Lhe mostrarem uma moeda; e quando foi convidado a pagar o
tributo, deu ordem a Pedro para buscá-la ao mar. Nunca trouxe dinheiro Consigo;
e, certamente, o dinheiro não é mencionado na lista de dons dados por Ele aos Seus
servos. Todavia, Ele andou fazendo bem, e nós temos de fazer o mesmo, em nossa
escassa medida; é, ao mesmo tempo, nosso elevado privilégio e dever de obrigação
fazer assim.
Note o leitor a ordem divina estabelecida em Hebreus 13 e ilustrada em
Deuteronômio 26. A adoração obtém o primeiro e mais elevado lugar. Não
esqueçamos nunca isto. Nós, em nosso sentimentalismo ou sabedoria, podíamos
imaginar que fazer bem ao nosso semelhante, a utilidade ou filantropia era a coisa
mais importante. Mas não é assim. "Aquele que oferece sacrifício de louvor me
glorificará" (SI 50:23). Deus habita entre os louvores do Seu povo. Deleita-Se em Se
rodear de corações transbordantes do sentido da Sua bondade, da Sua grandeza e
glória. Por isso, devemos oferecer "continuamente" a Deus os nossos sacrifícios de
louvor. Assim também diz o Salmista: "Louvarei ao Senhor em todo tempo; o seu
louvor estará continuamente na minha boca" (SI 34:1). Não é meramente de vez
em quando ou quando tudo corre bem ao redor de nós, quando as coisas correm
suavemente em prosperidade; não; mas "em todo tempo" — "continuamente". A
corrente de ações de graças deve correr ininterruptamente. Não há intervalo para
murmurações ou lamentações, mau humor ou insatisfação, tristeza ou desânimo.
Louvor e ações de graças devem ser a nossa contínua ocupação. Devemos cultivar
sempre o espírito de adoração. Cada alento, por assim dizer, deveria ser uma
aleluia. Cedo assim será. Louvor será a nossa ditosa ocupação enquanto a
eternidade deslizar ao longo do seu curso de séculos áureos. Quando já não houver
mais necessidade de "comunicações", dos nossos recursos ou da nossa simpatia;
quanto tivermos dito um eterno adeus a esta cena de dor e necessidades, morte e
desolação, então louvaremos o nosso Deus, para todo o sempre, sem obstáculo ou
interrupção, no santuário da Sua bendita presença nas alturas.
"E não vos esqueçais da beneficência e comunicação" (Hb 13:16). Existe um
interesse especial ligado com a maneira como isto é dito. Não diz: "Não vos
esqueçais dos sacrifícios de louvor". Não; mas não fosse o caso de, no pleno e feliz
gozo do nosso próprio lugar e porção em Cristo, esquecermos que estamos
passando por um cena de necessidade e miséria, provação e apertos, o apóstolo
acrescenta a salutar e muito necessária admoestação quanto a fazer bem e
comunicar com as necessidades dos outros. O israelita espiritual não só deve
regozijar-se de todo bem que o Senhor, seu Deus, lhe tem feito, como deve
também lembrar-se do levita, do estrangeiro, do órfão e da viúva—isto é, daquele
que não tem possessão terrena e é inteiramente consagrado à obra do Senhor; e
daquele que não tem casa, o que não tem protetor natural, e o que não tem estância
terrena. Assim deve ser sempre. O rico caudal da graça divina, descendo do seio de
Deus, deixa os nossos corações a transbordar, e este extravasamento refrigera e
alegra toda a nossa esfera de ação. Se apenas vivêssemos no gozo do que é nosso em
Deus, todos os nossos movimentos, todos os nosso atos, todas as nossas palavras, até
mesmo os nossos olhares fariam bem aos outros. O cristão, segundo a idéia divina,
é uma pessoa que tem uma mão levantada para Deus, apresentando sacrifícios de
louvor, e a outra cheia de fragrantes frutos da mais pura benevolência para
satisfazer toda a forma de necessidade humana.
Prezado leitor, ponderemos atentamente estas coisas. Apliquemos realmente os
nossos corações à mais sincera consideração das mesmas. Busquemos uma mais
completa realização e uma mais verdadeira expressão destes dois grandes aspectos
do cristianismo prático, e não nos demos por satisfeitos com nada menos.
(Capítulos 27 a 28)
Ao abrir o estudo desta parte notável do nosso livro, o leitor terá de ter em
conta que não pode ser, de modo nenhum, confundida com o capítulo 27. Alguns
expositores, procurando dar razão da falta de bênçãos naquele capítulo, têm
procurado encontrá-las neste. Mas isso é um grande erro —um erro fatal para a
própria compreensão de ambos os capítulos. O fato é que, os dois capítulos são
inteiramente distintos em fundamento, assunto e aplicação prática. O capítulo 2 7
é—para o descrever tão rápida e positivamente quanto possível— moral e pessoal.
O capítulo 28 é dispensacional e nacional. Aquele trata do princípio radical da
condição moral do homem como pecador completamente arruinado e incapaz de
chegar a Deus sobre o terreno da lei; este, por outro lado, suscita a questão de Israel
como nação debaixo do governo de Deus. Em suma, a comparação atenta dos dois
capítulos habilitará o leitor a ver a sua completa distinção. Por exemplo, que
relação podemos nós encontrar entre as seis bênçãos do nosso capítulo e as doze
maldições do capítulo 27? Nenhuma. Não é possível estabelecer a mais ligeira
relação. Mas até um menino pode ver o vínculo moral entre as bênçãos e as
maldições do capítulo 28.
Citemos uma ou duas passagens como exemplo. "E será que se ouvires a voz do
SENHOR teu Deus"—o grande tema de Deuteronômio, a chave mestra do
livro—"tendo, cuidado de guardar todos os seus mandamentos que eu te ordeno
hoje, o SENHOR, teu, Deus, te exaltará sobre todas as nações da terra. E todas estas
bênçãos virão sobre ti e te alcançarão, quando ouvires a voz do SENHOR, teu Deus"—
a única salvaguarda, o verdadeiro segredo da felicidade, segurança, vitória e força
— "Bendito serás tu na cidade e bendito serás no campo. Bendito o fruto do teu
ventre, e o fruto da tua terra, e o fruto dos teus animais, e a criação das tuas vacas, e
os rebanhos das tuas ovelhas. Bendito o teu cesto e a tua amassadeira. Bendito serás
ao entrares e bendito será, ao saíres" (versículos 1 a 6).
Não é evidente que estas não são as bênçãos pronunciadas pelas seis tribos no
monte Gerizim? O que aqui se nos apresenta é a dignidade nacional de Israel,
prosperidade e glória baseadas sobre a sua atenção diligente a todos os
mandamentos expostos perante nós neste livro. Era eterno propósito de Deus que
Israel tivesse a preeminência na terra sobre todas as nações. Este desígnio será
indubitavelmente cumprido, apesar de Israel ter, no passado, falhado
vergonhosamente em render aquela perfeita obediência que devia formar a base da
sua preeminência e glória nacional.
As Bênçãos Terrenas de Israel não se Aplicam à Igreja
Nunca devemos esquecer ou abandonar esta grande verdade. Alguns
expositores têm adotado um sistema de interpretação mediante o qual as bênçãos
do pacto com Israel são espiritualizadas e transferidas para a Igreja de Deus. Mas
isto é um erro fatal. Com efeito, é difícil expressar em palavras, ou mesmo
conceber os efeitos perniciosos de tal método de tratara preciosa Palavra de Deus.
Nada é mais certo de que tal procedimento está diretamente em oposição à mente e
à vontade de Deus. Deus não aprovará, nem pode aprovar tal forma de manejar a
Sua verdade, ou alienação das bênçãos e privilégios do Seu povo Israel.
Decerto, lemos em Gálatas 3; 14 "para que a bênção de Abraão chegasse aos
gentios por Jesus Cristo e para que, pela fé, nós recebamos" — o quê? Bênçãos na
cidade e no campo, bênçãos no nosso cesto e em nossas obras? Não; mas "a
promessa do Espírito". Assim sabemos também, pela mesma epístola, capítulo
4:26-27, que a Israel, restaurado, será permitido contar entre os seus filhos todos os
que são nascidos do Espírito durante o período do cristianismo. "Mas a Jerusalém
que é de cima é livre, a qual é mãe de todos nós, porque está escrito: Alegra-te,
estéril, que não dás à luz, esforça- te e clama, tu que não estás de parto; porque os
filhos da solitária são mais do que os da que tem marido."
Tudo isto é uma verdade bendita, mas não justifica a transmissão das promessas
feitas a Israel aos crentes do Novo Testamento. Deus tem prometido, com
juramento, abençoar a descendência de Abraão, Seu amigo—abençoá-la com todas
as bênçãos terrestres na terra de Canaã. Esta promessa mantém-se e é
absolutamente inalienável. Ai de todos os que intentam interferir com o seu
cumprimento literal no próprio tempo que Deus determinou! Já fizemos referência
a isto mesmo nos nossos estudos na primeira parte deste livro, e devemos por agora
contentar-nos em advertir solenemente o leitor contra todo o sistema de
interpretação que envolve tais graves conseqüências quanto à Palavra e caminhos
de Deus. Devemos recordar sempre que as bênçãos de Israel são terrestres; as da
Igreja são celestiais. "Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais, em Cristo."
Assim, a natureza e a esfera das bênçãos da Igreja são totalmente diferentes das
de Israel, e não devem confundir-se nunca. Porém, o sistema de interpretação
acima referido confunde-as, corrompendo a integridade da Sagrada Escritura e
prejudicando as almas. Pretender aplicar as promessas feitas a Israel à Igreja de
Deus, quer no presente, quer mais tarde, na terra ou no céu, é causar um completo
transtorno das coisas e produzir a mais desesperada confusão na exposição e
aplicação da Escritura. Sentimo-nos chamados, em simples fidelidade à Palavra de
Deus e à alma do leitor, a submeter este assunto a sua fervorosa atenção. Pode ficar
certo de que não é, de modo nenhum, uma questão de pouca monta; longe disso,
estamos convencidos que é inteiramente impossível que todo aquele que confunde
Israel com a Igreja, o celestial com o terrestre, seja um perfeito e correto intérprete
da Palavra de Deus.
Obediência e Desobediência
Todavia, não podemos prosseguir este assunto. Esperamos que o Espírito de
Deus desperte o coração do leitor de forma a sentir o seu interesse e importância e
lhe dê a compreensão da necessidade de manejar bem a Palavra da verdade. Se isto
for realizado, o nosso objetivo terá sido plenamente conseguido.
Com respeito a este vigésimo oitavo capítulo de Deuteronômio, se o leitor se
der conta do fato da sua completa distinção do capítulo precedente, poderá lê-lo
com inteligência espiritual e verdadeiro proveito. Não existe necessidade alguma
de elaborada exposição. O capítulo divide-se da forma mais clara e incontestável
em duas partes. Na primeira temos um relato completo e bendito dos resultados da
obediência (veja-se os versículos 1-15). E nós não podemos deixar de ficar
impressionados com o fato de a parte que contém as maldições (versículos 16-68)
ser três vezes mais extensa do que a que contém as bênçãos. Aquela consiste de
cinqüenta e três versículos, esta de quinze. O conjunto do capítulo é um impressi-
onante comentário sobre o governo de Deus, e uma poderosa ilustração do fato que
"o nosso Deus é um fogo consumidor". As nações da terra poderão todas aprender
com a maravilhosa história de Israel, de que Deus tem de castigar a desobediência,
e isso, também, antes de tudo, nos Seus. E se não poupou o Seu próprio povo, qual
será o fim dos que O não conhecem? "Os ímpios serão lançados no inferno e todas
as gentes que se esquecem de Deus" (SI 9:7). "Horrenda cosa é cair nas mãos do
Deus vivo" (Hb 10:31.) É o cúmulo da mais extravagante tolice qualquer pessoa
pretender tentar fugir à força absoluta de tais passagens ou explicá-las de um modo
acomodatício. Não pode ser. Leia-se o capítulo que está diante de nós e
comparece-se com a história atual de Israel, e ver-se-á que, tão certo como há um
Deus no trono da majestade nos céus, assim Ele castigará os malfeitores tanto no
presente como mais tarde. Não pode ser de outro modo. O governo que permitisse
a continuação do mal ou não quisesse julgá-lo, condená-lo ou puni-lo, não seria
um governo perfeito. Não seria o governo de Deus. E inútil basear argumentos
sobre a consideração parcial da bondade, benevolência e misericórdia de Deus.
Bendito seja o Seu nome! Ele é benigno, benévolo, misericordioso e clemente,
longânimo e compassivo; mas é santo, justo e verdadeiro; e "tem determinado um
dia em que, com justiça,há de julgar o mundo" [a terra habitada] "por meio do
varão que destinou; e disso deu certeza a todos ressuscitando-o dos mortos" (Atos
17:31).
A Cabeça ou a Cauda
Mas devemos terminar esta parte do livro; porém, antes de o fazer, sentimos o
dever de chamar a atenção do leitor para um ponto muito interessante em relação
com o versículo 13 do nosso capítulo. "E o, Senhor te porá por cabeça e não por
cauda; e só estarás em cima e não debaixo, quando obedeceres aos mandamentos
do SENHOR teu Deus, que hoje te ordeno, para os guardar e fazer."
Isto refere-se, sem dúvida, a Israel como nação. Está destinada a ser a cabeça de
todas as nações da terra. Tal é o seguro e determinado propósito de Deus a respeito
deles. Humilhados como estão, espalhados e perdidos entre as nações, sofrendo as
terríveis conseqüências da sua persistente desobediência, dormindo, como lemos
em Daniel 12, no pó da terra, contudo se levantarão, como nação, e brilharão em
glória mais resplandecente do que a de Salomão.
Tudo isto é ditosamente verdadeiro, sem dúvida, em numerosas passagens de
Moisés, dos Salmos, e dos Profetas e do Novo Testamento. Mas ao contemplar toda
a história de Israel, encontramos alguns textos notáveis de indivíduos que
puderam, por graça infinita, fazer suas as preciosas promessas contidas no
versículo 13, e isto em períodos sombrios e desanimadores da história nacional,
quando Israel, como nação, era a causa e não a cabaça. Vamos dar ao leitor um ou
dois exemplos, não apenas para exemplificar este ponto, mas também para pôr
diante de si um princípio de imensa importância prática e aplicação universal.
O Livro de Ester
Desviemos por um momento a nossa atenção para esse encantador livro de
Ester — um livro tão pouco compreendido ou apreciado—um livro do qual
podemos dizer em verdade que ocupa um lugar e ensina uma lição como nenhum
outro livro. Pertence a um período em que Israel não era, sem dúvida, a cabeça,
mas a cauda; mas, não obstante, mostra-nos o edificante e animador quadro de um
filho de Abraão conduzindo-se de tal maneira que alcança a posição mais elevada e
ganha uma magnífica vitória sobre o inimigo mais encarniçado de Israel.
Quanto ao estado de Israel, nos dias de Ester, era tal que Deus não podia
reconhecê-los publicamente. Por isso o Seu nome não se encontra no livro, desde o
princípio ao fim. O gentio era a cabeça e Israel a cauda. O parentesco entre o
Senhor e Israel já não podia ser reconhecido publicamente; mas o coração do
Senhor não podia nunca esquecer o Seu povo; e, podemos acrescentar, o coração
de um fiel Israelita não podia olvidar o Senhor ou a Sua santa lei; e estes são
precisamente os dois fatos que caracterizam de um modo especial este
interessantíssimo livrinho. Deus estava atuando ocultamente a favor de Israel, e
Mardoqueu agia publicamente por Deus. É digno de nota que nem o melhor
Amigo de Israel nem o seu pior inimigo se mencionam uma só vez no livro de
Ester; e, todavia, todo o livro está repleto das ações de ambos. O dedo de Deus está
marcado em cada elo da maravilhosa cadeia da providência; e, por outro lado, a
implacável inimizade de Amaleque aparece na cruel conspiração do arrogante
agagita.
Tudo isto é profundamente interessante. Na verdade, ao terminar o estudo
deste livro, bem podemos dizer: "Oh, que cenas! Transcendem a ficção e contudo
são verdadeiras!" Nenhum romance pode, de modo algum, exceder em interesse
esta simples e bendita história. Mas não nos alarguemos sobre o assunto, por muito
que gostaríamos de fazê-lo. O tempo e o espaço impedem- nos. Apenas nos
referimos a ele a fim de indicar ao leitor o valor inefável e a importância da
fidelidade individual no momento em que a glória nacional se havia desvanecido e
desaparecido. Mardoqueu manteve-se como uma rocha pela verdade de Deus.
Recusou com firme decisão reconhecer Amaleque. Salvaria a vida de Assuero e
curvar-se-ia à sua autoridade como a expressão do poder de Deus, mas não se
curvaria a Hamã. A sua conduta, neste negócio, era simplesmente orientada pela
Palavra de Deus. A autoridade para o seu modo de proceder devia se à encontrada
neste bendito livro de Deuteronômio. "Lembra-te do que te fez Amaleque no
caminho, quando saíeis do Egito; como te saiu ao encontro no caminho e te
derribou na retaguarda todos os fracos que iam após ti, estando tu cansado e
afadigado; e não temeu a Deus"—aqui estava o verdadeiro segredo de todo o
negócio—"Será, pois, que, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver dado repouso, de
todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR teu Deus, te dará por
herança, para possuí-la, então apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu;
não te esqueças" (Dt 25:17-19).
Isto era bastante claro para todo o ouvido circuncidado, para todo o coração
obediente, para toda a consciência reta. Igualmente clara é a linguagem de Êxodo
17:14a 16: "Então disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e
relata-o aos ouvidos de Josué, que eu totalmente hei de riscar a memória de
Amaleque de debaixo dos céus. E Moisés edificou um altar e chamou o seu nome:
SENHOR é minha bandeira. E disse: Porquanto jurou o SENHOR, haverá guerra do
SENHOR contra Amaleque de geração em geração."
Aqui estava pois a autoridade de Mardoqueu para recusar uma simples
inclinação de cabeça ao agagita. Como poderia um membro fiel da casa de Israel
inclinar-se ante um membro de uma casa com a qual o Senhor estava em guerra ?
Impossível. Podia vestir-se de um saco com cinza, jejuar e chorar pelo seu povo,
mas não podia, não queria e não ousaria inclinar-se ante um amalequita. Podia ser
acusado de orgulho, de cega obstinação, de estúpido fanatismo, e desprezível
baixeza de espírito; mas ele nada tinha que ver com tudo isso. Podia parecer
inexplicável parvoíce recusar o sinal vulgar de respeito ao mais nobre no reino;
mas esse nobre era um amalequita, e isso era o bastante para Mardoqueu. A
parvoíce era simples obediência.
E isto que torna o caso tão importante e de interesse para nós. Nada pode
jamais impedir-nos da nossa responsabilidade de obedecer à Palavra de Deus.
Podia ser dito a Mardoqueu que o mandamento a respeito de Amaleque era uma
coisa do passado, que dizia respeito aos dias vitoriosos de Israel. Fora natural Josué
lutar com Amaleque; Saul devia também obedecer à Palavra do Senhor em vez de
poupar Agague; mas agora tudo havia mudado; a glória havia deixado Israel, e era
absolutamente inútil tentar agir segundo Êxodo 17 ou Deuteronômio 25.
Estamos certos de que todos estes argumentos não teriam tido nenhuma
influência sobre Mardoqueu. Bastava-lhe saber que o Senhor havia dito:
"Lembra-te do que fez Amaleque.. .não te esqueças". Por quanto tempo devia durar
isto? "De geração em geração". A guerra do Senhor com Amaleque não devia cessar
até que o seu nome e a sua recordação fossem riscados de debaixo do céu. E por
quê? Por causa do tratamento cruel e desapiedado que deu a Israel. Tal era a
bondade de Deus para com o Seu povo! Como poderia então um fiel israelita
curvar-se ante um amalequita? Impossível. Pode Josué inclinar-se ante Amaleque?
De nenhuma maneira. Fê-lo Samuel? Não; antes "despedaçou a Agague, perante o
SENHOR, em Gilgal". Como poderia então Mardoqueu inclinar-se ante ele<r Não
podia fazer isso, custasse o que custasse. Não se importava que a forca estivesse
levantada para si. Podia ser enforcado, mas não podia render homenagem a
Amaleque.
E qual foi o resultado? Um esplêndido triunfo! Ali estava junto ao trono o
orgulhoso amalequita gozando a felicidade do favor real, fazendo ostentação das
suas riquezas, da sua glória, e a ponto de esmagar debaixo dos pés a semente de
Abraão. Por outro lado, ali estava Mardoqueu vestido de saco com cinza e banhado
em lágrimas. Que podia ele fazer? Podia obedecer. Não tinha espada nem lança;
mas tinha a Palavra de Deus, e, obedecendo simplesmente a essa Palavra, obteve
uma vitória sobre Amaleque tão decisiva e esplêndida no seu resultado como
aquela que foi ganha por Josué em Êxodo 17 — uma vitória que Saul deixou de
ganhar, embora rodeado por um exército de guerreiros escolhidos de entre as doze
tribos de Israel. Amaleque procurava enforcar Mardoqueu; mas em vez disso foi
obrigado a atuar como seu lacaio, e a conduzi-lo com esplendor e pompa real
através das ruas da cidade. "Pelo que disse Hamã ao rei: Quanto ao homem de cuja
honra o rei se agrada, traga a veste real de que o rei se costuma vestir, monte
também o cavalo em que o rei costuma andar montado, e ponha-se-lhe a coroa real
na cabeça; e entregue-se a veste do de um dos príncipes do rei, dos maiores
senhores, e vistam dele aquele homem de cuja honra o rei se agrada; e levem-no a
cavalo pelas ruas da cidade, e apregoe-se diante dele: Assim se fará ao homem de
cuja honra o rei se agrada! Então, disse o rei a Hamaã: Apressa-te, toma a veste e o
cavalo, como disseste, e faze assim para com o judeu Mardoqueu, que está
assentado à porta do rei; coisa nenhuma deixes cair de tudo quanto disseste. E
Hamaã tomou a veste o e o cavalo, e vestiu a Mardoqueu, e o levou a cavalo pelas
ruas da cidade, e apregoou diante dele: Assim se fará ao homem de cuja honra o rei
se agrada! Depois disso, Mardoqueu voltou para a porta do rei; porém Hamaã se
retirou correndo a sua casa, angustiado e coberta a cabeça" (Et 6:7a 12).
Aqui certamente Israel era a cabeça e Amaleque a cauda—Israel não como
nação, mas individualmente. Mas isto era apenas o começo da derrota de
Amaleque e da glória de Israel. Hamaã foi enforcado na própria forca que havia
levantado para Mardoqueu: "Então, Mardoqueu saiu da presença do rei com uma
veste real azul celeste e branca, como também com uma grande coroa de ouro e
com uma capa de linho e púrpura, e a cidade de Susã exultou e se alegrou."
Mas isto não foi tudo. O efeito da vitória maravilhosa de Mardoqueu fez
sentir-se em todas as direções nas cento e vinte e sete províncias do império.
"Também em toda província e em toda cidade aonde chegava a palavra do rei e a
sua ordem, havia entre os judeus alegria e gozo, banquetes e dias de folguedo; e
muitos, entre os povos da terra, se fizeram judeus; porque o temor dos judeus tinha
caído sobre eles." E para rematar tudo lemos: "... o judeu Mardoqueu foi o segundo
depois do rei Assuero, e grande para com os judeus, e agradável para com a
multidão de seus irmãos, procurando o bem do seu povo e trabalhando pela
prosperidade de toda a sua nação."
Ora bem, prezado leitor, isto não prova da maneira mais notável a grande
importância da fidelidade individual? Não deve animar-nos a permanecermos
firmes quanto à verdade de Deus, custe o que custará Veja-se os maravilhosos
resultados que se seguiram aos atos de um homem! Muitos poderiam ter condena-
do a conduta de Mardoqueu. Poderia ter parecido inexplicável obstinação recusar
um simples sinal de respeito ao mais alto membro da nobreza do império, mas não
era assim. Tratava-se de simples obediência. Era uma decisão por Deus, e levou a
uma magnífica vitória, cujos despojos seus irmãos recolheram até aos confins da
terra.
O Livro de Daniel
Para mais exemplos do assunto sugerido por Deuteronômio 28:13
recomendamos ao leitor Daniel 3 e 6. Ali poderá ver os gloriosos resultados morais
que puderam ser alcançados pela fé individual no verdadeiro Deus, nos dias em
que a glória nacional de Israel havia desaparecido; e a sua cidade e o templo
estavam em ruínas. Os três dignitários recusaram adorar a imagem de ouro.
ousaram enfrentar a ira do rei e resistir à voz de todo o império; sim, enfrentar o
próprio forno de fogo, antes que desobedecer. Podiam render as suas vidas, mas
não podiam abandonar a verdade de Deus.
E qual foi o resultado? Uma esplêndida vitória! Passearam dentro do forno de
fogo ardente com o Filho de Deus, e foram convidados a sair do forno como
testemunhas e servos do Deus Altíssimo. Glorioso privilégio! Dignidade
maravilhosa! E tudo como o simples resultado de obediência! Tivessem eles ido
com a multidão e inclinado a cabeça em adoração ao deus nacional para escaparem
ao terrível forno ardente, e o que teriam perdido! Mas, bendito seja Deus, puderam
manter-se firmes na confissão da grande verdade fundamental da unidade da
Deidade — a mesma verdade que havia sido calcada aos pés entre os esplendores
do reinado de Salomão, e o relato da sua fidelidade tem sido escrito pelo Espírito
Santo a fim de nos animar a trilharmos, com passo firme, a vereda de dedicação
individual, no mundo que aborrece a Deus e rejeita a Cristo, e à face de um
cristianismo que é indiferente à verdade. E impossível ler a narrativa e não
sentirmos todo o nosso ser renovado e atraído pelo desejo sincero de uma mais
profunda dedicação pessoal a Cristo e à Sua causa.
O efeito produzido pelo estudo de Daniel 6 deve ser idêntico. Não podemos
tomar a liberdade de citar a passagem e nos alargarmos em considerações sobre ela.
Apenas podemos recomendar a empolgante narrativa à atenção do leitor. E
excepcionalmente formosa e proporciona uma esplêndida lição para estes dias de
condescendência e pachorrenta profissão, nos quais nada custa dar o
consentimento nominal às verdades do cristianismo; e nos quais, sem embargo, há
tão escassos desejos de seguir, com firme decisão, o nosso Senhor rejeitado, ou
prestar inteira e decidida obediência aos Seus mandamentos.
Em face de tanta indiferença, como é consolador ler da fidelidade de Daniel!
Com decisão inflexível persistiu no seu santo hábito do orar três vezes ao dia com a
janela aberta para Jerusalém, embora soubesse que a cova dos leões era o castigo
imposto ao seu ato. Podia ter fechado a janela e corrido as cortinas e retirar-se para
a solidão do seu quarto para orar, ou podia ter esperado pela meia-noite quando
olhos humanos não podiam ver ou ouvidos humanos ouvir. Mas não; este amado
servo de Deus não quis esconder a luz debaixo da cama ou do alqueire. Estava em
jogo um grande princípio. Não só oraria unicamente ao Deus vivo e verdadeiro,
mas oraria com as "janelas abertas da banda de Jerusalém". E por que da banda de
Jerusalém? Porque era o centro de Deus. Porém, estava em ruínas. Decerto,
naquele tempo, e quando considerado desde o ponto de vista humano, mas para a
fé, e sob o ponto de vista divino, Jerusalém era o centro de Deus para o Seu povo
terrestre. Isto estava então e estará de novo fora de toda a dúvida. E não somente
isto, senão que o pó das suas ruínas é também precioso para o Senhor; e por isso
Daniel estava em plena comunhão com a mente de Deus quando abria as suas
janelas para a banda de Jerusalém e orava. O que ele fazia estava baseado na
Escritura como o leitor poderá ver em 2 Crônicas 6:38: "E se converterem a ti com
todo o seu coração e com toda a sua alma, na terra do seu cativeiro, a que os
levaram presos, e orarem para a banda da sua terra que deste a seus pais, e desta
cidade que escolheste e desta casa que edifiquei ao teu nome."
Aqui estava a autorização para Daniel. Foi isto que ele fez de todo indiferente
às opiniões humanas; e indiferente também absolutamente às penas e castigos.
Antes preferia ser lançado na cova dos leões do que renunciar à verdade de Deus.
Preferia ir para o céu com uma boa consciência do que permanecer na terra com
uma má consciência.
E qual foi o resultado? Outro esplêndido triunfo! "Assim foi Daniel tirado da
cova, e nenhum dano se achou nele, PORQUE CRERA NO SEU DEUS" (Dn 6:23).
Abençoado servo de Deus! Nobre testemunha! Certamente, ele era o cabeça,
nessa ocasião, e os seus inimigos a cauda. E de que modo? Simplesmente mediante
a obediência à Palavra de Deus. É isto que consideramos ser de grande importância
moral em nossos dias. É para exemplificar e dar ênfase a este fato que nos referimos
a esses exemplos de fidelidade individual numa época em que a glória nacional de
Israel estava por terra, a sua unidade desfeita e a sua política fragmentada. Não
podemos deixar de considerar tudo isto como um fato cheio de interesse, repleto
de alento e poder sugestivo, que nos dias mais obscuros da história de Israel como
nação temos os mais brilhantes e nobilíssimos exemplos de fé e dedicação pessoais.
Submetemos vivamente tal fato à atenção do leitor cristão. Consideramo-lo
altamente apropriado para fortalecer e levar os nossos corações a manterem-se
firmes pela verdade de Deus nos momentos atuais, em que há tanta coisa para os
desanimar no estado geral da igreja professante. Não é que devamos esperar
resultados tão rápidos e esplêndidos como os que se obtiveram nos casos a que nos
temos referido. Não se trata disso. Devemos recordar o fato que, seja qual for o
estado ostensível do povo de Deus em qualquer tempo, é privilégio de todo homem
de Deus, individualmente, trilhar a vereda estreita e colher os frutos preciosos da
obediência simples à Palavra de Deus e aos mandamentos de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo.
Isto, estamos persuadidos, é uma preciosa verdade para os nossos dias,
Possamos nós todos sentir o seu santo poder! Corremos o perigo iminente de
rebaixar o padrão de devoção pessoal devido ao estado geral de coisas. Isto é um
erro fatal; antes, é a sugestão do inimigo de Cristo e da Sua causa. Se Mardoqueu,
Sadraque, Mesaque, e Abednego, e Daniel tivessem atuado desta maneira, qual
teria sido o resultado?
Ah, não, prezado leitor, temos de recordar sempre que o nosso magno dever é
obedecer e deixar os resultados com Deus! Pode ser do Seu agrado permitir que os
Seus servos vejam resultados notáveis, ou achar conveniente permitir-lhes esperar
aquele grande dia que se está aproximando, em que não haverá o perigo de nos
enchermos de vaidade ao ver algum pequeno fruto do nosso testemunho. Seja
como for, o nosso dever é trilhara vereda bendita que nos é indicada pelos
mandamentos de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. Que Ele nos
habilite, pela graça do Seu Santo Espírito, a consegui-lo! Apeguemo-nos à verdade
de Deus com propósito de coração, completamente indiferentes às opiniões dos
nossos semelhantes, os quais nos podem acusar de estreitos, fanáticos, de
intolerância e coisas semelhantes. O nosso dever é prosseguir avante com o
Senhor!
— CAPÍTULO 29 —
(Capítulos 29 a 30)
Assim todo o Novo Testamento abunda em evidência para provar o uso errado
que constantemente se faz de Deuteronômio 29:29. Alargamo-nos sobre este
ponto porque estamos ao fato do modo como o povo de Deus é infelizmente
impedido por ele no seu conhecimento divino. O inimigo procura sempre
mantê-los nas trevas, quando deveriam andar à luz da revelação
divina—mantê-los como meninos que se alimentam de leite, quando deveriam,
como os que "têm idade", alimentar-se com "alimento sólido", tão liberalmente
provido para a Igreja de Deus. Fazemos apenas uma pequena idéia de como o
Espírito de Deus é entristecido e Cristo desonrado pelo fraco estado de coisas entre
nós. Quão poucos realmente conhecem as coisas que, liberalmente, nos são dadas
por Deus! Onde vemos que os próprios privilégios do cristão sejam compreendidos,
cridos e postos em prática?- Quão pobre é a nossa compreensão das cosias divinas!
Quão enfezado o nosso crescimento! Quão débil a nossa exposição prática da
verdade de Deus! Que carta de Cristo mais manchada apresentamos!
Prezado leitor crente, ponderemos seriamente estas coisas na presença divina.
Procuremos honestamente a raiz de todo este lamentável fracasso, julguemo-lo e
tiremo-lo a fim de podermos fielmente declarar de quem somos e a quem
servimos. Possamos nós mostrar mais claramente que Cristo é o nosso absorvente
objetivo!
CAPÍTULO 30
Ternura e Cuidado
O coração de Moisés ainda bate com profunda ternura e solicitude pela
congregação. Parece que nunca poderia cansar-se de derramar em seus ouvidos as
suas ardentes exortações. Sentia a necessidade delas; previu o seu perigo; e, como
pastor fiel e verdadeiro, procurou prepará-los com toda a ternura e profunda
compaixão da sua alma para o que os esperava. Ninguém pode ler as suas últimas
palavras sem se sentir comovido com o seu tom de peculiar solenidade.
Recordam-nos a despedida emocionante de Paulo aos anciãos de Éfeso. Ambos
estes amados e honrados servos compreenderam, de um modo vívido, a gravidade
da situação em que estavam, tanto eles como aqueles a quem se dirigiam. Deram-se
conta da gravidade dos interesses que estavam em causa e da necessidade urgente
de tratar com fidelidade com o coração e a consciência. Isto explica a terrível
solenidade dos seus apelos. Todo aquele que realmente se interessa pela situação e
destino do povo de Deus, num mundo como este, deve revestir-se de seriedade. O
verdadeiro sentido destas coisas, a compreensão delas na presença divina, deve,
necessariamente, comunicar uma santa gravidade ao caráter e um especial poder
ao testemunho.
"Depois, foi Moisés, e falou estas palavras a todo o Israel, e disse- lhes: Da idade
de cento e vinte anos sou eu hoje; já não poderei mais sair e entrar; além disso, o
SENHOR me disse: Não passarás o Jordão." Que comovente alusão à sua avançada
idade e à renovada e final referência ao tratamento do governo de Deus a respeito
de si mesmo! O objetivo imediato e claro de ambas as alusões era que o seu apelo
produzisse efeito nos corações e consciências do povo — reforçar a alavanca moral
com que procurava movê-los na direção de simples obediência. Se faz alusão aos
seus cabelos brancos ou à santa disciplina exercida sobre ele não é, certamente,
com o propósito de se exibir, ou expor as suas circunstâncias ou os seus
sentimentos ante o povo, mas simplesmente com o fim de tocar os mais íntimos
recônditos do seu ser moral por todos os meios possíveis.
"O SENHOR, teu Deus, passará diante de ti; ele destruirá estas nações diante de
ti, para que as possuas: Josué passará diante de ti, como o SENHOR tem dito. E o
SENHOR lhes fará como fez a Seom e a Ogue, reis dos amorreus, e à sua terra, os
quais destruiu. Quando, pois, o SENHOR vo-los der diante de vós, então, com eles
fareis conforme todo o mandamento que vos tenho ordenado." Nem uma palavra
de murmuração ou de queixa quanto ao que lhe tocava; nem a mais pequena
sombra de inveja ou ciúme com respeito àquele que devia ocupar o seu posto; não
há a mais leve aparência de nada disto; toda a consideração própria se acha
absorvida pelo grande propósito de animar os corações do povo a trilharem, com
passo firme, a senda da obediência que era então, como é agora, e sempre será, o
caminho da vitória, a vereda da bênção, a carreira da paz.
"Esforçai-vos, e animai-vos; não temais, nem vos espanteis diante deles, porque
o SENHOR, teu Deus, é O que vai convosco; não vos deixará nem vos desamparará."
Que palavras preciosas e animadoras, prezado leitor! Como estão eminentemente
calculadas para elevar o coração acima de toda a influência deprimente! O bendito
conhecimento da presença do Senhor e a recordação dos Seus atos de graça
conosco em dias passados hão de constituir sempre o verdadeiro segredo do nosso
avanço. A mesma mão poderosa que havia subjugado perante eles Seom e Ogue
podia subjugar todos os reis de Canaã. Os amorreus eram tão formidáveis como os
cananeus; o Senhor podia vencer a todos. "Ó Deus, nós ouvimos com os nossos
ouvidos, e nossos pais nos têm contado os feitos que realizaste em seus dias, nos
tempos da antiguidade. Como expeliste as nações com a tua mão e aos nossos pais
plantastes; como afligiste os povos aos nossos pais os alargaste" (SI 44:1 e 2).
Pense-se em Deus expelindo nações com Sua própria mão! Que resposta a
todos os argumentos e dificuldades de um sentimentalismo mórbido! Quão
superficiais e errôneos são os pensamentos de alguns a respeito dos atos
governamentais de Deus! Quão mesquinhos os conceitos do Seu caráter e dos Seus
atos! Quão absurdo o intento de julgar Deus pelo padrão do juízo e do sentimento
humano! É evidente que Moisés não simpatizava, de modo nenhum, com tais
sentimentos quando dirigiu à congregação de Israel a magnificente exortação
acima citada. Conhecia alguma coisa da gravidade e solenidade do governo de
Deus, alguma coisa da bem-aventurança de O ter por escudo no dia da batalha, um
refúgio e recurso em todas as horas de perigo e necessidade.
Josué é Chamado
Escutemos as palavras animadoras que ele dirigiu ao homem que devia ser o
seu sucessor. "E chamou Moisés a Josué e lhe disse aos olhos de todo o Israel:
Esforça-te e anima-te, porque com este povo entrarás na terra que o SENHOR jurou
a teus pais lhes dar; e tu os farás herdá-la. O SENHOR ,pois, é aquele que vai diante
de ti; ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te
espantes" (versículos 7 e 8).
Josué tinha necessidade de uma palavra para si mesmo, como aquele que era
chamado a ocupar um lugar preeminente e elevado na congregação. Mas a palavra
a si dirigida expressa a mesma preciosa verdade dirigida a toda a assembléia. E-lhe
prometida a presença e o poder divinos. Isto é bastante para todos: para Josué como
para o mais obscuro membro da assembléia. Sim, prezado leitor, é bastante para ti,
quem quer que sejas, ou qualquer que seja a tua esfera de ação. Não importa quais
sejam as dificuldades ou perigos que possam apresentar-se diante de nós, o nosso
Deus é amplamente suficiente para tudo. Contanto que tenhamos o sentido da
presença do Senhor conosco e a autoridade da Sua Palavra para a obra em que
estamos ocupados, podemos avançar com alegre confiança, embora se levantem
milhentas dificuldades e influências hostis.
O CÂNTICO DE MOISÉS
O Nome de Javé
"Então, Moisés falou as palavras deste cântico aos ouvidos de toda a
congregação de Israel, até se acabarem." Não será de mais dizer que uma das mais
sublimes e compreensíveis passagens do Volume divino está agora perante os
nossos olhos e que exige a nossa piedosa atenção. Compreende todo o curso dos
atos de Deus com Israel desde o princípio ao fim, e apresenta um relato muito
solene do seu pecado grave e da ira e juízo divinos. Mas, bendito seja Deus, começa
e termina com Ele; e isto é pleno da mais profunda e rica bênção para a alma. Se
não fosse assim, se tivéssemos apenas a história melancólica dos procedimentos
humanos, ficaríamos completamente oprimidos. Porém, neste magnífico cântico,
como de fato em todo o Volume, começamos com Deus e terminamos com Deus.
Isto dá uma bendita tranqüilidade ao espírito, e habilita-nos, em sossegada e santa
confiança, a prosseguir a história do homem, a ver como todas as coisas se
fragmentam em suas mãos e a ver os atos do inimigo em oposição aos desígnios e
propósitos de Deus. Podemos ver o completo fracasso e ruína da criatura, em todas
as suas formas, porque sabemos e estamos certos que Deus será Deus, apesar de
tudo. No fim Ele vencerá, e então tudo estará bem. Deus será tudo em todos, e não
haverá nem inimigo nem mal que possa opor-se em todo o vasto universo de
bênção do qual o nosso adorável Senhor Jesus Cristo será para sempre o centro
resplendoroso.
Mas devemos prosseguir com o cântico.
"Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei; e ouça a terra as palavras da minha boca."
O céu e a terra são convocados para ouvir esta magnificente efusão. O seu alcance é
medido com a sua grande importância moral. "Goteje a minha doutrina como a
chuva, destile o meu dito como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como
gotas de água sobre a relva. Porque apregoarei o nome do SENHOR; dai grandeza a
nosso Deus."
Eis aqui o sólido e imorredouro fundamento de tudo. Venha o que vier, o nome
do nosso Deus subsistirá para sempre. Nenhum poder da terra ou do inferno pode,
de modo algum, impedir os propósitos divinos ou deter o resplendor da glória
divina. Que suave repouso isto proporciona ao coração, no meio deste tenebroso,
triste e pecaminoso mundo, apesar do êxito aparente dos ardis do inimigo! O nosso
refúgio, o nosso recurso, ou doce alívio e consolação encontram-se no nome do
Senhor, nosso Deus, o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Na verdade, a
proclamação desse nome bendito será sempre como o orvalho e chuvisco sobre o
coração. Esta é, com efeito, a doutrina divina e celestial da qual a alma pode
alimentar- se e mediante a qual é sustentada em todos os tempos e em todas as
circunstâncias.
__________
(1)
Quão verdade é que os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos nem os seus caminhos
como os caminhos do homem! O homem atribui importância a territórios extensos, força material,
recursos pecuniários, exércitos bem disciplinados, esquadras poderosas. Deus, pelo contrário, não toma
tais coisas em consideração, são para Ele como o pó da balança. "Porventura, não sabeis? Porventura não
ouvis? Ou desde o princípio se vos não notificou isso mesmo? Ou não atentastes para os fundamentos da
terral Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores são para Ele como gafanhotos; Ele
é o que estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para neles habitar; o que faz voltar ao nada
os príncipes e torna coisa vã os juízes da terra" (Is 40:21). Por isso podemos ver a razão moral por que,
escolhendo um país para ser o centro dos Seus planos e conselhos terrestres, Javé não escolheu um de vasta
extensão, mas uma pequeníssima e insignificante faixa de terra de pouca importância, segundo o critério
dos homens. Mas, ah, que importância liga a este pedaço de terra! Que princípios se têm ali desenrolado!
Que acontecimentos se têm ali dado! Que feitos se têm operado ali! Que planos e propósitos vão ser ainda
ali realizados! Não existe um pedaço de terra à superfície da terra tão interessante para o coração de Deus
como a terra de Canaã e a cidade de Jerusalém. A escritura transborda de evidência a este respeito.
Poderíamos encher um volume com as provas. O tempo se aproxima rapidamente em que os fatos intensos
farão o que o mais claro e pleno testemunho da Escritura não consegue fazer, isto é, convencer os homens
de que a terra de Israel era, é, e será sempre o centro terrestre de Deus. Todas as demais nações devem a sua
importância, o seu interesse, o seu lugar nas páginas de inspiração simplesmente ao fato de estarem, de um
modo ou de outro, relacionadas com a terra e o povo de Israel. Quão pouco pensam ou sabem os
historiadores disto! Mas certamente todo aquele que ama a Deus deveria conhecer isto e ponderá-lo
devidamente.
Israel e a Igreja
Não podemos prosseguir este importantíssimo e sugestivo fato, mas pedimos ao
leitor que lhe dê a sua mais séria consideração. Verá como é inteiramente
desenrolado e ilustrado de um modo notável nas Escrituras proféticas do Velho e
do Novo Testamentos.
"Porque a porção do SENHOR é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança.
Achou-o na terra do deserto e num ermo solitário cheio de uivos; trouxe-o ao
redor, instruiu-o, guardou-o como a menina do seu olho" — a parte mais sensível e
delicada do corpo humano — "Como a águia desperta o seu ninho, se move sobre
os seus filhos, estende as suas asas, toma-os e os leva sobre suas asas" — a fim de os
ensinar a voar e os guardar de caírem — "assim, só o SENHOR O guiou; e não havia
com ele deus estranho. Ele o fez cavalgar sobre as alturas da terra e comer as
novidades do campo; e o fez chupar mel da rocha e azeite da dura pederneira,
manteiga de vacas e leite do rebanho, com a gordura dos cordeiros e dos carneiros
que pastam em Basã, e dos bodes, com a gordura da flor do trigo; e bebeste o sangue
das uvas, o vinho puro" (versículos 9 a 14).
Será necessário dizer que tudo isto se aplica primeiramente a Israel? Decerto, a
Igreja pode aprender muito com isto e aproveitá-lo; mas aplicar isto à Igreja
envolve dois erros da mais séria natureza: Implica nada menos que reduzir o nível
celestial da Igreja a um nível terrestre e uma indesculpável intromissão com o
lugar divinamente designado a Israel e à sua herança. Que tem que ver a Igreja de
Deus, o corpo de Cristo, com o estabelecimento das nações da terral Nada
absolutamente. A Igreja, segundo o pensamento de Deus, é estrangeira na terra. A
sua porção, a sua esperança, o seu lar, a sua herança, tudo que tem, é celestial. Se
nunca se houvesse falado na Igreja nenhuma diferença se teria observado no curso
da história deste mundo. A sua chamada, a sua carreira, o seu destino, o seu total
caráter e a sua conduta, os seus princípios e a sua moral são, ou deveriam ser,
celestiais. A Igreja nada tem que ver com a política deste mudo. A sua cidadania
está no céu, de onde espera o Salvador. Trai o seu Senhor, a sua chamada e os seus
princípios na proporção em que se intromete nos assuntos das nações. E seu
elevado e santo privilégio estar unida e moralmente identificada com um Cristo
rejeitado, crucificado, ressuscitado e glorificado. Tem tanto que ver com o atual
sistema de coisas ou com o curso da história deste mundo como o seu Cabeça
glorificado nos céus. "Não são do mundo, como eu do mundo não sou", diz o
Senhor Jesus Cristo, falando do Seu povo.
Isto é concludente. Determina a nossa posição e a nossa carreira do modo mais
preciso e definido. "Qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo 4:17). Isto
implica uma dupla verdade, a saber, a nossa perfeita aceitação por Deus e completa
separação do mundo. Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Temos de
andar nele como peregrinos e estrangeiros aguardando a vinda de nosso Senhor, o
aparecimento da brilhante Estrela da manhã. Não faz parte do nosso testemunho
interferir em assuntos municipais ou políticos. Somos convidados e exortados a
obedecer aos poderes constituídos, a orar por todos os que exercem autoridade,
pagar tributo e não dever nada a ninguém, para sermos "irrepreensíveis e sinceros,
filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e perversa" entre a
qual devemos resplandecer como astros no mundo, retendo a palavra da vida (Fp.
2:15-16).
De tudo isto podemos ver alguma coisa da grande importância prática de
"manejar bem a palavra da verdade". Temos apenas uma pequena idéia do dano
causado tanto à verdade de Deus como às almas do Seu povo, confundindo Israel
com a Igreja, o terrestre com o celestial. Impede todo o progresso no
conhecimento da Escritura e mancha a integridade da vida e do testemunho
cristãos. Isto poderá parecer uma estranha afirmação; mas nós temos visto a
verdade do fato dolorosamente ilustrada, vezes sem conta; e julgamos que nunca é
demais chamar a atenção do leitor para um tal assunto. Já nos referimos a ele mais
de uma vez no prosseguimento dos nossos estudos sobre o Pentateuco, e portanto
não insistiremos mais nele; antes vamos prosseguir com o capítulo.
Ruben e Judá
"Moisés nos deu a lei por herança da congregação de Jacó. E o Senhor foi rei em
Jesurum, quando se congregaram os cabeças do povo com as tribos de Israel. Viva
Rúben, e não morra; e que os seus homens sejam numerosos."
Nada é dito aqui da inconstância de Ruben, nada sobre o seu pecado. A graça
predomina; as bênçãos fluem em rica abundância do amoroso coração d'Aquele
que Se deleita em abençoar e de Se rodear de corações trasbordantes do sentimento
da Sua bondade.
"E isto é o que disse de Judá: Ouve, ó SENHOR, a voz de Judá, e introduze-o no
seu povo; as suas mãos lhe bastem, e tu lhe sejas em ajuda contra os seus inimigos."
Judá é a linha real. "Visto ser manifesto que nosso Senhor procedeu de Judá" (Hb.
7:14), ilustrando assim, de uma maneira realmente maravilhosa, como a graça
divina se eleva, em sua majestade, sobre o pecado humano, e triunfa gloriosamente
sobre as circunstâncias que revelam a completa fraqueza humana. "Judá gerou de
Tamar a Perez e a Zerá!" Quem senão o Espírito Santo poderia ter escrito estas
palavras? Quão claramente demonstram que os pensamentos de Deus não são os
nossos pensamentos! Que mão humana teria introduzido Tamar na linha
genealógica do nosso adorado Senhor e Salvador Jesus Cristo? Nenhuma. O selo da
divindade está impresso de um modo notável sobre Mateus 1:3, assim como está
posto sobre cada cláusula do Sagrado Volume dede o princípio ao fim. Bendito seja
o Senhor, porque á assim!
"Judá, a ti te louvarão os teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de seus
inimigos; os filhos de teu pai a ti se inclinarão. Judá é um leãozinho; da presa
subiste, filho meu. Encurva-se e deita-se como um leão e como um leão velho;
quem o despertará? O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador de entre os
seus pés, até que venha Siló; e a ele se congregarão os povos. Ele amarrará o seu
jumentinho à vide e o filho da sua jumenta, à cepa mais excelente; ele lavará o seu
vestido no vinho e a sua capa, em sangue de uvas. Os olhos serão vermelhos de
vinho, e os dentes, brancos de leite" (Gn 49:8-12).
"E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por
dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte, bradando com grande
voz: Quem é digno de abrir o livro e de desatar os seus selos? E ninguém no céu,
nem na terra, nem debaixo da terra, podia abrir o livro, nem olhar para ele. E eu
chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler,
nem de olhar para ele. E disse-me um dos anciãos: Não chores; eis aqui o Leão da
tribo de Judá, a Raiz de Davi, que venceu para abrir o livro e desatar os seus sete
selos. E olhei, e eis que estava no meio do trono e dos quatro animais viventes, e
entre os anciãos um Cordeiro, como havendo sido morto, e tinha sete pontas e sete
olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados a toda a terra" (Ap 5:1-6).
Quão altamente favorecida é a tribo de Judá! Certamente, figurar na linha
genealógica da qual veio nosso Senhor é uma grande honra; e, contudo,
sabemos—porque nosso Senhor mesmo no-lo tem dito—que mais
bem-aventurada coisa é ouvir a Palavra de Deus e guardá-la. Fazer a vontade de
Deus, guardar em nossos corações os Seus preciosos mandamentos leva-nos
moralmente mais perto de Cristo do que o próprio fato de pertencer à Sua
parentela segundo a carne (Mt 12:46-50).
Benjamim
"E de Benjamim" — o filho da sua destra — "disse: O amado do SENHOR
habitará seguro com ele; todo o dia o Senhor o protegerá, e morará entre os seus
ombros."
Lugar bendito para Benjamim! Lugar bendito para todo o amado filho de
Deus! Quão precioso é o pensamento de habitar em segurança na presença divina,
em consciente proximidade do verdadeiro fiel Pastor e Bispo das nossas almas
permanecendo dia e noite sob o abrigo das Suas asas protetoras.
Prezado leitor, procura conhecer mais e mais a realidade e bem- aventurança
do lugar e porção de Benjamim. Não te contentes com nada menos que o gozo da
presença de Cristo, com o sentimento permanente do parentesco com Ele e da Sua
presença. Certifica-te disso, pois é teu privilégio. Que nada te prive disto.
Mantém-te sempre ao lado do Pastor, descansando no Seu amor, deitado em
verdes pastos e guiado a águas tranqüilas. Permita o Senhor que tanto o autor como
o leitor destas linhas possam conhecer a profunda bem-aventurança desta verdade,
nestes dias de vazia profissão e vão palavreado! Possamos nós conhecer a
preciosidade inefável de profunda intimidade com Ele mesmo! Esta é a grande
necessidade nos dias em que caiu a nossa sorte—dias de tanta intriga intelectual
com a verdade mas de tão pouco conhecimento e verdadeira apreciação de Cristo.
José
"E de José disse: Bendita do SENHOR seja a sua terra, com o que há de mais
excelente nos céus, com o orvalho e com o que há no abismo, que jaz abaixo, e com
as mais excelentes novidades do sol, e com as mais excelentes produções da lua, e
com o mais excelente dos montes antigos, e com o mais excelente dos outeiros
eternos, e com o mais excelente da terra, e com a sua plenitude, e com a
benevolência daquele que habitava na sarça, a bênção venha sobre a cabeça de José
e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos. Ele tem a glória do
primogênito do seu boi, e as suas pontas são pontas de unicórnio; com elas ferirá os
povos juntamente até às extremidades da terra; estes, pois, são os dez milhares de
Efraim, e estes são os milhares de Manassés" (versículos 13 a 17).
No primeiro volume desta série, Estudos sobre o Livro de Gênesis, tivemos
ocasião de tratar pormenorizadamente da história de José. Não vamos, portanto,
entrar nela aqui. Diremos, contudo, que José é um tipo notável de Cristo. O leitor
notará o modo positivo como Moisés fala do fato de ele haver sido separado de seus
irmãos. José foi rejeitado e lançado numa cisterna. Passou, em figura, pelas águas
profundas da morte, e desta forma alcançou o lugar de dignidade e glória. Foi
tirado do cárcere para ser governador da terra do Egito e mantenedor de seus
irmãos. O ferro penetrou na sua lama, e ele foi obrigado a provar a amargura do
lugar da morte antes de entrar na esfera da glória. Notável tipo d'Aquele que foi
pregado na cruz, posto no sepulcro, e está agora no trono da Majestade do céu.
Não podemos deixar de ficar admirados com a plenitude da bênção
pronunciada sobre José, tanto por Moisés, em Deuteronômio 33, como por Jacó em
Gênesis 49. As expressões de Jacó são extraordinariamente belas: "José é um ramo
frutífero, ramo frutífero junto à fonte" — excelente e bela figura! — "seus ramos
correm sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o flecharam, e o
aborreceram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os braços de suas mãos
foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó (donde é o Pastor e a Pedra de
Israel), pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-poderoso, o qual te
abençoará com bênçãos dos céus de cima, com bênçãos do abismo que está
debaixo, com bênçãos dos peitos e da madre. As bênçãos de teu pai excederão as
bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos; elas estarão sobre a
cabeça de José e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos"
(versículos 22 a 26).
Magnífico curso de bênção! E tudo isto fluindo dos seus sofrimentos e com base
neles! Desnecessário é dizer que todas estas bênçãos terão a sua realização na
experiência de Israel dentro em pouco. Os sofrimentos do verdadeiro José
formarão o fundamento imperecível da bem-aventurança futura dos seus irmãos
na terra de Canaã; e não só isto mas a onda de bênção, profunda e plena, se
estenderá dessa terra altamente favorecida, embora presentemente desolada, em
potência refrigerante para toda a terra. "Naquela dia, também acontecerá que
correrão de Jerusalém águas vivas, metade delas para o mar oriental e metade delas
até ao mar ocidental; no estio e no inverno sucederá isto" (Zc. 14:8). Brilhante e
bem- aventurada perspectiva para Jerusalém, para a terra de Israel, e para toda a
terra! Que lamentável erro aplicar tais passagens da Escritura à dispensação do
evangelho ou à Igreja de Deus! Como tudo isto é contrário ao testemunho da
Sagrada Escritura, ao coração de Deus e ao pensamento de Cristo.
Zebulom e Issacar
"E de Zebulom disse: Zebulom, alegra-te nas tuas saídas; e tu, Issacar, nas tuas
tendas. Eles chamarão os povos ao monte; ali oferecerão ofertas de justiça, porque
chuparão a abundância dos mares e os tesouros escondidos na areia."
Zebulom deve alegrar-se na sua saída e Issacar na habitação das suas tendas.
Será gozo em casa e fora dela; e haverá poder para agir também sobre os outros —
para chamar o povo ao monte a fim de oferecer os sacrifícios de justiça. Tudo isto
baseado no fato de que eles próprios chuparão a abundância dos mares e os
tesouros escondidos na areia. Assim é sempre em princípio. É nosso privilégio
regozijarmo-nos no Senhor, venha o que vier, e extrair dessas eternas origens e
tesouros escondidos que se encontram n'Ele. Então estaremos em estado de alma
próprio para chamar outros a provarem que o Senhor é bom; e não só isto, mas para
apresentarmos a Deus aqueles sacrifícios de justiça que Lhe são tão agradáveis.
A MORTE DE MOISÉS
C.H.M.