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CAPÍTULO 1

NO PRINCÍPIO

A Potestade e Majestade de Deus na Obra da Criação

Existe qualquer coisa particularmente notável na maneira como o Espírito Santo


abre este livro sublime. Ele apresentados, imediatamente, a Deus, na plenitude
essencial do Seu ser e no isolamento da Sua atuação. Toda a matéria preliminar é
dispensada. E a Deus que somos trazidos. Ouvimo-Lo, de fato, quebrando o
silêncio e brilhando sobre as trevas da terra com o propósito de fomentar um globo
no qual pudesse mostrar o Seu poder eterno e a Sua Divindade.
Não há nada aqui em que a vã curiosidade possa alimentar-se — nada em que a
pobre mente humana possa fazer especulação. Existe a perfeição e realidade da
VERDADE DIVINA no seu poder moral para atuar sobre o coração e o
entendimento. Nunca poderia estar dentro do alcance do Espírito de Deus
satisfazer a vã curiosidade apresentando teorias curiosas.
Os geólogos podem explorar as entranhas da terra e extrair delas materiais donde
podem tirar conclusões para ajuntar e, nalguns casos, contradizer o relato divino.
Podem especular com os restos de fósseis; porém, o discípulo do Senhor agarra-se,
com santo prazer, às páginas inspiradas: lê, crê e adora a Deus. Possamos nós, neste
espírito, prosseguir o estudo do livro profundo que temos agora aberto. Possamos
nós saber o que é "aprender no templo". Oxalá que a nossa investigação do
conteúdo da Escritura Sagrada seja sempre feita no verdadeiro espírito de
adoração.
"No princípio, criou Deus os céus e a terra". A primeira frase no cânon divino
coloca-nos na presença d Aquele que é a origem infinita de toda a verdadeira
bem-aventurança. Não há argumento elaborado em prova da existência de Deus. O
Espírito Santo não trata de nada dessa espécie. Deus revela-Se a Si. Faz-Se
conhecer pelas Suas obras: "Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento
anuncia a obra das Suas mãos" (SI 19:1). "Todas as tuas obras te louvarão, ó Senhor"
(SI 145:10). "Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor, Deus
Todo-poderoso!" (Ap 15:3).
Ninguém, a não ser um infiel ou um ateu, procuraria um argumento para provar a
existência de Um que, pela palavra da Sua boca, chamou os mundos à existência e
Se revelou a Si Mesmo como o Deus Todo-poderoso e eterno. Quem, senão Deus,
podia criar alguma coisa? "Levantai ao alto os olhos e vede quem criou estas coisas,
quem produz por conta o seu exército, quem a todas chama pelo seu nome; por
causa da grandeza das suas forças e pela fortaleza do seu poder, nenhuma faltará"
(Is 40:26)."... os deuses das nações são vaidades; porém o SENHOR fez os céus" (1
Cr 16:26).
No livro de Jó, capítulos 38 a 41, temos um apelo feito do modo mais sublime, da
parte do Senhor, à obra da criação, como um argumento incontestável da Sua
superioridade infinita; e este apelo, ao mesmo tempo que põe perante a
compreensão a prova mais ardente e convincente da onipotência de Deus, toca o
coração, também, pela sua assombrosa condescendência. A majestade, o amor, o
poder e a ternura são divinos.

As Trevas e a luz

"E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo". Aqui
estava, em boa verdade, uma esfera na qual só Deus podia operar. O homem, na
vaidade do seu coração, tem sempre mostrado estar pronto a interferir com Deus
noutras e mais elevadas esferas de atuação, porém, na cena que temos perante nós
o homem não teve lugar, até que, com efeito, se tornou, como tudo mais, o objeto
do poder criador.
Deus esteve só na criação. Ele olhou desde a Sua habitação eterna de luz para a
imensidade assolada e viu nela a esfera na qual os Seus planos e desígnios
maravilhosos haviam ainda de ser realizados e manifestados — onde o Filho eterno
havia ainda de viver, trabalhar, testificar, sofrer e morrer, a fim de mostrar, à vista
de mundos maravilhados, as perfeições gloriosas da Divindade. Tudo era trevas e
caos; Deus é o Deus de luze ordem. "Deus é luz, e não há nele treva nenhuma" (1 Jo
1:5). As trevas e a confusão não podem viver na Sua presença, quer encaremos o
fato sob o ponto de vista físico, moral, intelectual ou espiritual.
"E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas". Pôs- -se a ponderar sobre o
teatro das Suas futuras operações. Isto era um panorama verdadeiramente sombrio:
uma vista em que havia amplo lugar para o Deus de luz e vida operar. Somente Ele
podia iluminar as trevas, fazer brotar vida, substituir o caos por ordem e fazer
separação entre as águas, onde a vida pudesse manifestar-se sem medo da morte.
Eram operações dignas de Deus.
"E disse Deus: Haja luz. E houve luz". Quão simples! E, contudo, como é próprio de
Deus! "Ele falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu" (SI 33:9).
A infidelidade pode perguntar: Como? Onde? Quando? A resposta é: "Pela fé,
entendemos que os mundos, pela palavra de Deus, foram criados; de maneira que
aquilo que se vê não foi feito do que é aparente" (Hb 11:3). Isto satisfaz o espírito
dócil. A filosofia pode rir-se desdenhosamente por isto, e declará-lo ignorância
rude ou credulidade cega, própria de um século de semi-barbarismo, mas
completamente imprópria de homens que vivem num século iluminado da história
do mundo, quando o museu e o telescópio nos têm posto de posse de fatos dos quais
os escritores sagrados nada sabiam. Que sabedoria! Que conhecimento! Ou antes,
que loucura! Que falta de senso! Que inaptidão para compreender o fim e o
desígnio da Sagrada Escritura!
Certamente, não é o objetivo de Deus fazer de nós astrônomos ou geólogos, ou
ocupar-nos com pormenores que o microscópio ou o telescópio põem diante de
cada rapaz da escola. O Seu objetivo é conduzir-nos à Sua presença como
adoradores, com corações e a razão ensinados e devidamente governados pela Sua
Palavra. Contudo, isto nunca satisfaria o chamado filósofo, que, desprezando o que
ele chama preconceitos de mentes vulgares e tacanhas dos discípulos sinceros da
Palavra de Deus, pega ousadamente no seu telescópio, e com ele examina os céus
distantes, ou desce aos profundos recessos da terra em busca de stratum, formações
geológicas e fósseis — todos os quais, segundo os seus cálculos, aperfeiçoam
grandemente, se é que não contradizem absolutamente, o relato inspirado.
Com tais "oposições da falsamente chamada ciência" (1 Tm 6:20) nada temos que
ver. Acreditamos que todas as verdadeiras descobertas, quer em cima nos céus,
quer em baixo na terra, ou nas águas debaixo da terra, concordarão com o que está
escrito na Palavra de Deus; e se não estiverem assim da harmonia são
perfeitamente desprezíveis, segundo o parecer de todo verdadeiro amante da
Escritura Sagrada. Isto dá grande tranquilidade ao coração em dias como estes, tão
férteis em especulações de saber e teorias estrondosas; que, afinal, em muitos casos,
cheiram a racionalismo e infidelidade positiva. É indispensável ter o coração
inteiramente fundado quanto à plenitude, a autoridade, perfeição, majestade e
inspiração plenária das Sagradas Escrituras. Ver-se-á como isto é a única
salvaguarda eficaz contra o racionalismo da Alemanha e a superstição de Roma. O
conhecimento perfeito e a sujeição profunda à Palavra de Deus são as grandes
aspirações do momento presente. Que o Senhor, na Sua muita graça, aumente
abundantemente tanto uma como outra destas aspirações.
"E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus
chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite". Temos aqui os dois grandes símbolos
tão largamente empregados em toda a Palavra de Deus. A presença da luz faz o dia;
a falta dela faz a noite. O mesmo se dá com a história das almas. Há os "filhos da
luz" e os "filhos das trevas". E uma diferença muito clara e solene. Todos aqueles
em quem resplandeceu a luz da vida — todos ,os que foram eficientemente
visitados com "o Oriente do alto" (Lc 1:78); todos os que receberam a luz do
conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo —, quem quer que sejam e
onde quer que se encontrem, pertencem à primeira classe, são "filhos da luz, e
filhos do dia".
Por outro lado, todos os que ainda estão nas trevas da natureza, na cegueira da
natureza e na incredulidade da natureza — todos os que não receberam ainda em
seus corações, pela fé, os raios resplandecentes do Sol da justiça — estão ainda
envoltos nas trevas da noite espiritual: são "filhos das trevas, filhos da noite".
Que o leitor pergunte a si mesmo, na presença d'Aquele que esquadrinha os
corações, a qual destas duas classes de pessoas pertence, neste momento. Que
pertence a uma ou outra, é fora de dúvida. Pode ser pobre, desprezado e iletrado;
mas se, pela graça de Deus, há um laço que o liga ao Filho de Deus, "a luz do
mundo", então é, na realidade, um filho do dia, e está destinado a brilhar, dentro
em pouco, nessa esfera celestial, aquela região de glória, da qual o "Cordeiro que foi
morto" será o Sol central, para todo o sempre.
Nada disto é obra nossa. E o resultado do desígnio e operação do Próprio Deus, que
nos deu luz e vida, gozo e paz, em Jesus, e no Seu sacrifício consumado na cruz.
Porém, se o leitor é totalmente estranho à ação santa e à influência da luz divina; se
os seus olhos não foram abertos para ver alguma beleza no Filho de Deus, então,
ainda que tivesse toda a ciência de Newton, ainda que tivesse sido enriquecido com
todos os tesouros da filosofia, ainda que tivesse bebido com avidez em todos os
cursos da ciência humana, ainda que o seu nome fosse adornado com todos os
títulos que as Escolas e Universidades do mundo lhe pudessem dar, continuaria a
ser um "filho da noite", um "filho das trevas"; e se morrer na sua presente condição
ficará na escuridão e horror de uma noite eterna. Não leia, portanto, nem mais
uma página sem ter ficado inteiramente certo se pertence ao "dia" ou à "noite".
O ponto sobre o qual desejo agora falar é a criação das luzes. "E disse Deus: Haja
luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam
eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos. E sejam para
luminares na expansão dos céus, para alumiar a terra. E assim foi. E fez Deus os
dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor
para governar a noite; e fez as estrelas".
O sol é o grande centro de luz, o centro do nosso sistema. Em redor dele giram os
astros menores. Dele recebem, também, a sua luz. Por isso, o sol pode,
legitimamente, ser visto como um símbolo próprio d'Aquele que em breve há-de
levantar-Se, trazendo cura nas Suas asas, para alegrar os corações daqueles que
temem o Senhor. A aptidão e beleza do símbolo é inteiramente clara para quem,
tendo passado a noite em vigília, presencia o nascer do sol dourando com os seus
raios o céu oriental. As neblinas e as sombras da noite são dispersas, e toda a
criação parece aclamar o regresso do astro de luz. Assim será, em breve, quando
aparecer o Sol da Justiça. As sombras da noite fugirão, e toda a criação
regozijar-se-á com o raiar de uma "manhã sem nuvens" — o alvorecer de um dia
brilhante e interminável de glória.

A Lua
A lua, sendo por si mesma opaca, recebe toda a sua luz do sol. A lua reflete sempre
a luz do sol, salvo quando a terra e as suas influências intervém (1). Tão depressa o
sol se põe no nosso horizonte, a lua apresenta-se para receber os seus raios de luz e
refleti-los outra vez sobre o mundo na escuridão; ou no caso de ser visível durante
o dia exibe sempre uma luz pálida, como resultado inevitável de aparecer na
presença de maior claridade. E verdade, como tem sido observado, que o mundo às
vezes interpõe-se: nuvens escuras, neblinas cerradas, e vapores gelados, também,
levantam-se da superfície da terra e ocultam da nossa vista a luz prateada da lua.
__________
(1) É um fato interessante que a lua, quando vista através de um poderoso
telescópio, apresenta o aspecto de uma vasta ruína da natureza.

Contudo, assim como o sol é o símbolo lindo e próprio de Cristo, do mesmo modo a
lua nos lembra admiravelmente a Igreja. A origem da sua luz está oculta para a
vista. O mundo não O vê, mas ela vê-O; e é responsável por refletir os Seus raios de
luz sobre o mundo de trevas. O mundo não tem meio de conhecer coisa alguma de
Cristo senão por meio da Igreja. "Vós", diz o apóstolo Paulo, "sois a nossa carta,...
conhecida e lida por todos os homens". E acrescenta: "Porque já é manifesto que
vós sois a carta de Cristo" (2 Co 3:2).
Que lugar de responsabilidade! Quão sinceramente deve ele vigiar contra tudo que
impede o reflexo da luz celestial de Cristo em todos os seus caminhos! Porém,
como deve a Igreja refletir esta luz?- Permitindo que a luz brilhe sobre ela em todo
o seu brilho límpido. Se a Igreja tão-somente andar na luz de Cristo, há-de,
certamente, refletir a Sua luz; e isto mantê-la-á sempre na sua própria posição.
A luz da lua não é sua. Do mesmo modo acontece com a Igreja. Ela não é chamada
para se mostrar a si mesma ao mundo. Deve, simplesmente, refletir a luz que
recebe. E obrigada a estudar, com santa devoção, o caminho que o Senhor trilhou
aqui no mundo; e mediante a energia do Espírito Santo, que habita nela, seguir
nesse caminho. Mas, ah! O mundo com as suas neblinas, nuvens, e os seus vapores,
intervém e oculta a luz e mancha a epístola. O mundo não pode ver muito dos
traços do caráter de Cristo naqueles que se chamam pelo Seu nome; na verdade,
em muitos casos, eles apresentam um contraste humilhante, em vez de uma
semelhança. Possamos nós estudar Cristo devotamente, de modo a podermos
imitá-Lo mais fielmente.

As Estrelas

As estrelas são luminares distantes. Brilham noutras esferas, e têm pouca ligação
com este sistema, a não ser que pode ver-se a sua cintilação. "Uma estrela difere em
glória de outra estrela". Assim será no reino futuro do Filho de Deus. Ele
resplandecerá com brilho vivo e eterno, o Seu Corpo, a Igreja, refletirá, fielmente,
o Seu brilho sobretudo à sua volta; enquanto que os santos, individualmente,
brilharão nessas esferas que o Justo Juiz lhes distribuir, como galardão do serviço
fiel prestado durante a noite da Sua ausência.
Este pensamento deve animar-nos a uma mais ardente e vigorosa diligência por
conformidade com o nosso Senhor ausente (veja-se Lc 19:12-19).
Em seguida são introduzidas as ordens inferiores da criação. O mar e a terra são
criados para transbordar com vida. Alguns podem sentir-se autorizados a
considerar as operações de cada novo dia como simbolizando as várias
dispensações e os seus grandes princípios característicos de ação. Quero apenas
dizer, a este respeito, que existe uma grande necessidade, quando a Palavra de
Deus é tratada deste modo, de vigiar, com todo o zelo, a operação da imaginação; e
também de prestar a maior atenção à analogia da Escritura, de contrário corremos
o risco de fazer erros graves. Não me sinto disposto a entrar numa tal linha de
interpretação; portanto, limitar-me-ei àquilo que julgo ser o sentido claro do texto
sagrado.

A Criação do Homem à Imagem de Deus

Vamos considerar agora o lugar do homem, colocado sobre as obras de Deus.


Depois de tudo haver sido posto em ordem, era preciso alguém para tomar a
direção. "E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme à nossa
semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o
gado, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se move sobre a terra. E criou
Deus o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a
terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e
sobre todo o animal que se move sobre a terra".
O leitor notará a alteração de ele para eles. Não nos é apresentado o fato atual da
formação da mulher até o capítulo subsequente; não obstante, encontramos aqui
Deus abençoando-os e dando-lhes conjuntamente o lugar do governo universal.
Todas as ordens inferiores da criação foram postas sob o seu domínio comum. Eva
recebeu todas as suas bênçãos em Adão. Nele recebeu, também, a sua dignidade. Se
bem que ainda não tivesse sido chamada à existência, ela era, no desígnio de Deus,
vista como parte do homem. "No Teu livro todas estas coisas foram escritas; as
quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia" (SI
139:16).

A Posição de Eva com Respeito a Adão


Assim é com a Igreja — a noiva do Segundo Homem. Ela era vista desde toda a
eternidade em Cristo, a sua Cabeça; como lemos no primeiro capítulo de Efésios:
"Como também nos elegeu n'Ele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante d'Ele em amor". Antes que um só membro da Igreja
tivesse respirado o fôlego da vida, todos eram, na mente eterna de Deus,
predestinados para serem conformes à imagem de Seu Filho. Os desígnios de Deus
tornam a Igreja necessária para completar o homem místico. Por isso a Igreja é
chamada "a plenitude dAquele que cumpre tudo em todos" (Ef 1:23). Trata-se dum
título espantoso, que explica muito da dignidade, importância e glória da Igreja.
Em geral considera-se a redenção como dizendo respeito apenas à
bem-aventurança e segurança das almas, individualmente. Isto, porém, é uma
opinião muito fraca sobre o assunto. Que tudo que pertence, de algum modo, ao
indivíduo está absolutamente seguro, é — bendito seja Deus — um fato
verdadeiro. Mas esta é a parte menos importante da redenção. Porém, que a glória
de Cristo está incluída na, e ligada com, a existência da Igreja é uma verdade
profunda e poderosamente mais importante. Se eu tenho o direito, com base na
autoridade das Escrituras Sagradas, de me julgar como uma parte essencial do que é
na realidade necessário para Cristo já não posso ter dúvida alguma se há
abundância de provisões para as minhas necessidades. E não é a Igreja do mesmo
modo necessária para Cristo? E, sem dúvida. "Não é bom que o homem esteja só:
far-lhe-ei uma adutora" (Gn 2:18). "Porque o varão não provém da mulher, mas a
mulher do varão. Porque também o varão não foi criado por causa da mulher, mas
a mulher por causa do varão... Todavia, nem o varão é sem a mulher, nem a
mulher, sem o varão, no Senhor. Porque, como a mulher provém do varão, assim
também o varão provém da mulher, mas tudo vem de Deus" (1 Co 11:8-12). Por
isso, já não é apenas a questão de saber se Deus pode salvar um pobre pecador
perdido, e recebê-lo no poder da justiça divina. Deus disse: "Não é bom que o
homem esteja só". Não deixou "o primeiro homem" sem "uma adutora", nem
tão-pouco deixará o "Segundo". Assim como no caso do primeiro haveria um vazio
na criação sem Eva, do mesmo modo — que pensamento estupendo! — no caso do
último haveria uma falta na nova criação sem a Noiva, a Igreja.

Adão e Eva, Figuras de Cristo e da Igreja


Vejamos agora a maneira como Eva foi trazida à existência, se bem que, fazendo-o,
tenhamos que antecipar parte do capítulo subsequente. De entre todas as ordens da
criação não foi encontrada uma adutora para Adão. "Um sono pesado" tinha que
cair sobre ele, e uma adutora devia ser formada de si mesmo, para partilhar do seu
domínio e da sua bem-aventurança: "Então o SENHOR Deus fez cair um sono
pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a
carne em seu lugar; e da costela que o SENHOR Deus tomou do homem formou (1)
uma mulher: e trouxe-a a Adão: E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e
carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada"
(Gn 2:21-23).
__________
(1) Uma consulta em Efésios 2:20.22 mostrará ao leitor que as palavras traduzidas
por "edificados" e "juntamente edificados" e a palavra hebraica aqui traduzida por
"formou" são inflexões do mesmo verbo.

Contemplando Adão como um símbolo de Cristo, e Eva como figura de Igreja,


como a Sagrada Escritura inteiramente nos autoriza, vemos como a morte de
Cristo necessitava ser um fato consumado, antes que a Igreja pudesse ser
estabelecida, embora, nos desígnios de Deus, ela fosse vista, e escolhida em Cristo,
antes da fundação do mundo.
Há, no entanto, uma grande diferença entre o secreto propósito de Deus e a
revelação e seu cumprimento. Antes que o propósito divino pudesse ser atualizado
a respeito das partes constituintes da Igreja, era preciso que o Filho de Deus fosse
rejeitado e crucificado — que Ele tomasse o Seu lugar nas alturas —, que mandasse
o Espírito Santo para batizar os crentes num corpo. Não é que almas não fossem
vivificadas e salvas antes da morte de Cristo. De certo que o foram. Adão foi salvo,
e milhares de outros, em todos os séculos, em virtude do sacrifício de Cristo;
embora esse sacrifício não tivesse sido ainda consumado.
Porém, a salvação individual de almas é uma coisa; e a formação da Igreja, como
uma coisa distinta, pelo Espírito Santo, outra completamente diferente.
Esta distinção não é suficientemente compreendida; e, mesmo onde é mantida na
teoria, é acompanhada de poucos dos resultados práticos que podem naturalmente
ser esperados de uma verdade tão estupenda. O lugar único da Igreja — o seu
parentesco especial com "o Segundo Homem, o Senhor do céu" —, os seus
privilégios distintos e dignidades, todas estas coisas produziriam, se fossem
compreendidas no poder do Espírito Santo, os mais ricos, mais raros e mais
fragrantes frutos (veja-se Ef 5:23-32).
Quando contemplamos o símbolo que temos perante nós, podemos fazer alguma
ideia dos resultados que deveriam seguir-se à compreensão da posição da Igreja e
seu parentesco. Quanto amor não devia Eva a Adão! Que intimidade ela
desfrutava! Que intimidade de comunhão! Que parte em todos os seus
pensamentos! Em toda a sua dignidade, e em toda a sua glória, ela tinha
inteiramente parte. Ele não dominava sobre ela, mas com ela. Ele era senhor de
toda a criação, e ela tinha parte com ele. Sim, como já foi observado, ela era olhada
e abençoada nele. "O homem" era o objeto; e quanto "à mulher", ela era necessária
para ele; e, portanto, foi trazida à existência.
Nada pode ser tão interessante como um símbolo. Primeiro o homem é criado, e a
mulher vista nele, e então formada dele — tudo isso forma um símbolo do caráter
mais notável e instrutivo. Não é que uma doutrina jamais possa ser fundada sobre
um símbolo; mas quando achamos a doutrina plena e claramente estabelecida
noutras partes da Palavra de Deus, podemos compreender, apreciar e admirar o
símbolo.
O Salmo 8 dá-nos uma ideia admirável do homem colocado sobre as obras de Deus.
"Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste;
que é o homem mortal para que te lembres dele?- E o filho do homem, para que o
visites? Contudo, pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o
coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo
puseste debaixo de seus pés: todas as ovelhas e bois, assim como os animais do
campo; as aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos
mares". Aqui o homem é tido em conta, sem qualquer menção da mulher; e isto
está perfeitamente de conformidade com o seu caráter, porque a mulher é
considerada como fazendo parte do homem.

A Igreja não Está Revelada no Antigo Testamento


Não há revelação direta do mistério da Igreja em parte alguma do Velho
Testamento. O apóstolo Paulo diz claramente, "o qual, noutros séculos, não foi
manifestado aos filhos dos homens, como, agora, tem sido revelado pelo Espírito
aos seus santos apóstolos e profetas (do Novo Testamento)" (Ef 3:1 a 11). Deste
modo, no Salmo que acabamos de reproduzir, somente nos é apresentado "o
homem"; porém sabemos que o homem e a mulher são encarados debaixo de uma
cabeça.
Tudo isto terá o seu cumprimento nos séculos vindouros. Então o Verdadeiro
Homem, o Senhor do céu, tomará o Seu lugar no trono, e, na companhia da Sua
noiva, a Igreja, dominará sobre a criação restaurada. Esta Igreja é vivificada da
sepultura de Cristo, é parte "do seu corpo, da sua carne, e dos seus ossos". Ele é a
Cabeça e ela o corpo, formando um Homem, como lemos no capítulo quatro de
Efésios: "Até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de
Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo".
A Igreja, sendo assim parte de Cristo, ocupará um lugar na glória completamente
único. Não havia criatura alguma que estivesse tão perto de Adão como Eva,
porque nenhuma outra criatura era parte dele. Do mesmo modo, com respeito à
Igreja, ela terá o lugar mais próximo de Cristo, na Sua glória futura.
Nem tão-pouco é apenas o que a Igreja será que desperta a nossa admiração, mas o
que a Igreja é. Ela é, agora, o Corpo do qual Cristo é a cabeça; é agora o templo do
qual Deus é o Habitante.
Oh! que espécie de pessoas nós devíamos ser! Se este é o presente, e tal será a
dignidade futura daquilo que nós, pela graça de Deus, fazemos parte, sem dúvida
que nos convém uma conduta santa, consagrada, em separação, e elevada.
Que o Espírito Santo possa mostrar estas coisas mais clara e poderosamente aos
nossos corações, para que assim possamos ter uma compreensão mais profunda da
conduta e do caráter de que é digna a santa devoção com que somos chamados.
"Tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a
esperança da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos e
qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a
operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos
mortos e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo principado, e poder, e
potestade, e domínio, e de todo nome que se nomeia, não só neste século, mas
também no vindouro. E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o
constituiu como cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
cumpre tudo em todos" (Ef 1:18-23).

CAPÍTULO 2

O SÉTIMO DIA E O RIO

O Sétimo Dia: O Descanso de Deus


Este capítulo chama a nossa atenção para dois fatos distintos, a saber, "o dia sétimo"
e o "rio do Éden". O primeiro requer atenção especial.
Existem poucos assuntos sobre os quais prevalece tanta incompreensão e
contradição como a doutrina do "Sábado". Não é que haja o mínimo fundamento,
quer para uma, quer para outra; porque todo o assunto está apresentado na Palavra
de Deus da maneira mais simples possível. O mandamento claro para santificar o
dia de sábado será apresentado, se o Senhor permitir, nas nossas considerações
sobre o livro do Êxodo.
No capítulo 2 de Gênesis não há qualquer mandamento dado ao homem, mas
apenas o relato de que Deus "descansou no sétimo dia de toda a sua obra. Assim, os
céus, e a terra, e todo o seu exército foram acabados. E, havendo Deus acabado no
dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra,
que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele
descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera" (versículos 1 -3). Não há
aqui mandamento algum dado ao homem. Diz-se simplesmente que Deus teve o
Seu descanso, porque tudo estava feito, tanto quanto se referia à criação. Nada mais
havia a fazer, e, portanto, Aquele que, durante seis dias, tinha estado trabalhando,
terminou o trabalho e gozou o Seu descanso. Tudo estava completo; tudo era muito
bom; tudo era precisamente como Ele o tinha feito; e Ele descansou nisso. "As
estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus
rejubilavam" (Jó 38:7). A obra da criação estava terminada, e Deus celebrava um
sábado.
E note-se que este é o verdadeiro caráter do sábado. Este é o único sábado que Deus
jamais guardou, tanto quanto as Escrituras Sagradas nos informam. Depois disto,
lemos que Deus ordenou ao homem que guardasse o sábado, e que o homem falhou
completamente em o fazer; mas nunca mais lemos as palavras, "Deus descansou";
pelo contrário, o Senhor Jesus disse: "... Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho
também" (Jo 5:17).
O sábado, no sentido próprio e exato do termo, só podia ser celebrado quando não
havia realmente nada a fazer. Só podia ser celebrado no meio de uma criação
imaculada — uma criação na qual não podia ser discernida nódoa de pecado. Deus
não pode ter descanso onde há pecado; necessitamos apenas de olhar em nossa
volta para podermos compreendera impossibilidade absoluta de Deus ter um
descanso na criação agora.
Os espinhos e cardos, juntamente com milhares de outros frutos tristes e
humilhantes de uma criação de gemidos, levantam-se perante nós e declaram que
Deus deve estar a trabalhar e não a descansar. Poderia Deus descansar no meio de
espinhos e cardos? Poderia Ele ter descanso no meio dos suspiros, das lágrimas, dos
gemidos e das dores, as enfermidades, a morte, degradação e culpa de um mundo
arruinado? Poderia Deus assentar-Se, na realidade, e celebrar um sábado no meio
de tais circunstâncias?
Seja qual for a resposta dada a estas interrogações, a verdade é que a Palavra de
Deus ensina-nos que Deus não teve ainda sábado, a não ser aquele de que fala o
segundo capítulo do Gênesis. "O dia sétimo", e não outro, era o sábado. Mostrava a
perfeição da obra da criação; porém, a obra da criação foi manchada, e o descanso
do sétimo dia interrompido; e assim, desde a queda até à encarnação, Deus não
deixou de trabalhar; desde a encarnação até à cruz, Deus o Filho trabalhou; e desde
o Pentecostes até esta data, Deus o Espírito Santo tem estado trabalhando.
Certamente, Cristo não teve descanso quando esteve no mundo. E verdade que Ele
acabou a Sua obra — bem-aventurada e gloriosamente a acabou —, porém, onde
passou Ele o dia de sábado?- No sepulcro! Sim, prezado leitor: Cristo, o Senhor,
Deus manifestado em carne, o Senhor do sábado, o Criador e Mantenedor do céu e
da terra, passou o sétimo dia no silêncio sombrio do túmulo. Não há nisto uma voz
para nós? Não há nisto ensino? Poderia o Filho de Deus passar o sétimo dia na
sepultura se esse dia fosse para ser passado em paz e descanso, e de sentir que nada
mais restava fazer? Impossível!
Não precisamos de mais provas da impossibilidade de guardar o sábado do que
aquela que nos é dada com a sepultura do Senhor Jesus. Podemos ficar ao lado
dessa sepultura admirados de a achar ocupada por uma tal Pessoa no dia de sábado;
mas, oh! a razão é óbvia. O homem é uma criatura caída, arruinada e culpada. A
sua longa carreira de culpa terminou com a crucificação do Senhor da glória; e não
só com a Sua crucificação mas colocando uma grande pedra sobre a porta do
sepulcro, para evitar, se fosse possível, a Sua saída dali.
E o que fazia o homem enquanto o Filho de Deus estava na sepultura? Guardava o
sábado! Que pensamento! Cristo na sepultura para reparar um sábado quebrado, e
no entretanto o homem procurando guardar o sábado como se ele não tivesse sido
quebrado. Era o sábado do homem, e não de Deus. Era um sábado sem Cristo —
uma formalidade vazia, ineficaz, sem valor, porque era uma formalidade sem
Cristo e sem Deus.

O Sétimo Dia não se Tornou no Primeiro (O Domingo)


Mas dirá alguém: — o dia foi mudado, enquanto que todos os princípios
continuam a ser os mesmos. Não creio que a Sagrada Escritura dê base alguma para
uma tal ideia. Onde é que se encontra a permissão divina para uma tal afirmação? E
claro que se existe fundamento bíblico nada pode ser mais fácil do que
apresentá-lo. Porém, o fato é que não existe nenhum; pelo contrário, a distinção é
claramente apresentada no Novo Testamento. Vejamos uma passagem notável
como prova: "no fim do sábado, quando já despontava o primeiro dia da semana"
(Mt 28:1). Não há aqui menção alguma de mudança do dia de sábado para o
primeiro dia; nem tão-pouco de qualquer transferência do sábado de um dia para
outro. O primeiro dia da semana não é o sábado mudado, mas um dia inteiramente
novo. É o primeiro dia de um novo período e não o último dia de um velho
período. O sétimo dia está ligado com a terra e o descanso terrestre; o primeiro dia
da semana, pelo contrário, introduz-nos no céu e no descanso celestial.
Há nisto uma grande diferença de princípios; e quando encaramos o assunto de um
modo prático, a diferença é muito material. Se guardarmos o sábado, tornamo-nos
desse modo criaturas terrestres, tanto mais que esse dia é, claramente, o descanso
da terra — descanso da criação; porém, se eu sou ensinado pela Palavra e o Espírito
de Deus a compreender a significação do primeiro dia da semana, compreenderei
imediatamente a sua ligação íntima com a nova e celestial ordem de coisas, das
quais a morte e ressurreição de Cristo formam o fundamento eterno.
O sétimo dia pertencia a Israel e à terra. O primeiro dia da semana pertence à
Igreja e ao céu. Além disso, a Israel foi mandado guardar o dia de sábado: a Igreja
tem o privilégio de desfrutar o primeiro dia da semana. O primeiro era o ensaio da
condição moral de Israel; o último é aprova significativa da eterna aceitação da
Igreja. Aquele manifestou o que Israel podia fazer por Deus; esta declara
perfeitamente o que Deus fez por nós.
É inteiramente impossível calcular o valor e a importância do dia do Senhor; quer
dizer, o primeiro dia da semana, como o temos no primeiro capítulo de Apocalipse.
Sendo o dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, mostra, não o acabamento da
criação, mas o triunfo perfeito e glorioso da redenção. Nem tão- pouco devemos
considerar a guarda do primeiro dia da semana como um caso de escravidão, ou
como um jugo posto sobre o cristão. É seu deleite guardar esse dia feliz. Por isso
vemos que o primeiro dia da semana era proeminentemente o dia em que os
primitivos cristãos se reuniam para partir o pão; e nesse período da história da
Igreja, a distinção entre o sábado e o primeiro dia da semana era plenamente
mantida.
Os judeus guardavam o sábado, reunindo-se nas suas sinagogas para ler "a lei e os
profetas"; os cristãos guardavam o primeiro dia da semana, reunindo-se para partir
o pão. Não há nem sequer uma passagem da Escritura na qual o primeiro dia da
semana seja chamado o sábado; enquanto que há abundantes provas da sua inteira
distinção.
Portanto, porque contender por aquilo que não tem fundamento na Palavra de
Deus? Amai, honrai e guardai o dia do Senhor tanto quanto possível; procurai,
como o apóstolo João, estar "em espírito" nesse dia; que o vosso retraimento das
coisas seculares seja tão profundo quanto o possais fazer; porém, enquanto fazeis
tudo isto, chamai-o pelo seu próprio nome; dai- lhe o seu próprio lugar;
compreendei os seus próprios princípios; ligai com ele os seus característicos; e,
acima de tudo, não obrigueis o cristão, como com uma barra de ferro, a guardar o
sétimo dia, quando é seu alto e santo privilégio guardar o primeiro. Não o façais
descer do céu, onde ele pode descansar, à terra amaldiçoada e manchada de
sangue, onde ele não pode ter descanso. Não o obrigueis a guardar um dia que o seu
Senhor passou no túmulo, em vez desse dia bendito em que Ele o deixou (veja-se,
com muita atenção, Mt 28:1-6; Mc 16:1-2; Lc 24:1; Jo 20:1.19.26; At 20:7; 1 Co
16:2; Ap 1:10; At 13:14; 17:2; Cl 2:16).

Um Descanso Verdadeiro
No entanto não deve supor-se que nós perdemos de vista o fato importante que o
dia de sábado será guardado outra vez na terra de Israel e sobre toda a criação: será
incontestavelmente: "... resta ainda um repouso para o povo de Deus" (Hb 4:9).
Quando o Filho de Abraão, Filho de Davi, e Filho do homem, assumir a Sua
posição de governo sobre toda a terra, haverá um sábado glorioso — um descanso
que o pecado nunca mais interromperá. Porém, agora Ele é rejeitado, e todos os
que O conhecem e O amam são chamados a tomar o seu lugar com Ele na Sua
rejeição; são chamados para "sair fora do arraial, levando o Seu vitupério" (Hb
13:13).
Se a terra pudesse guardar um sábado, não haveria vitupério; porém, o próprio fato
de a igreja professa procurar fazer do primeiro dia da semana o sábado revela um
princípio profundo. E apenas o esforço de voltar a uma posição terrestre, e a um
código terrestre de moral.
Muitos podem não ver isto. Muitos verdadeiros cristãos podem,
conscienciosamente, guardar o dia de sábado, como tal; e nós temos o dever de
respeitar as suas consciências, posto que nos seja perfeitamente lícito pedir-lhes
para apresentarem a base bíblica das suas convicções. Não devemos pôr um
tropeço ou ferir as suas consciências, mas devemos procurar instruí-los. Todavia,
não estamos por agora ocupados com a consciência ou as suas convicções, mas
somente com o princípio que se encontra à raiz daquilo que pode ser chamado a
questão do sábado; e apenas apresento a questão ao leitor, o que é mais conforme
com o fim e o espírito do Novo Testamento, a guarda do sétimo dia ou o sábado, ou
a guarda do primeiro dia da semana ou o dia do Senhor?(1).

__________
(1) Este assunto será tratado outra vez, se o Senhor permitir, no capítulo vinte do
Êxodo; quero, todavia, acentuar aqui, que muita da incompreensão quanto ao
assunto importante do sábado pode ser justamente atribuída à conduta impensada
e injusta de alguns, que, no seu zelo pelo que chamam liberdade cristã, a respeito
do sábado, esquecem as pretensões de consciências honestas, e, também, o lugar
que o dia do Senhor ocupa no Novo Testamento.
E sabido que alguns tomam as suas vocações semanais simplesmente para
mostrarem a sua liberdade, e deste modo causam escândalo desnecessário. Uma tal
conduta nunca poderia ser ditada pelo Espírito de Cristo. Se eu for livre e claro de
mente, deverei respeitar as consciências de meus irmãos; e, além disso, não creio
que aqueles que assim se conduzem compreendam realmente os privilégios
verdadeiros e preciosos ligados com o dia do Senhor. Devemos ser agradecidos por
estarmos livres de toda a ocupação e distração secular, para podermos pensar em
recorrer a essas coisas, com o fim de mostrar a nossa liberdade.
A boa providência de Deus preparou as coisas de tal modo, para o Seu povo, em
todo o Império Britânico, que todos podem, sem prejuízo pecuniário, gozar o resto
do dia do Senhor, visto que toda a gente é obrigada a abster-se de fazer negócio
nesse dia. Isto deve ser considerado, por toda a mente normal, como uma
misericórdia de Deus; porque, se assim não fosse, o coração ambicioso do homem
roubaria, possivelmente, o crente do doce privilégio de frequentar a Assembleia de
Deus no dia do Senhor. E quem poderá dizer o que seria o efeito de ocupação
ininterrupta com as coisas deste mundo? Aqueles que, desde domingo de manhã
até sábado à tarde, respiram a atmosfera densa do mercado, do estabelecimento ou
da fábrica, podem fazer uma ideia do que isso seria. O ato de alguns introduzirem
medidas para a profanação pública do dia do Senhor não pode ser tomado como
bom sinal. Tais medidas marcam, certamente, o progresso da infidelidade. Mas há
alguns que ensinam que a expressão "o dia do Senhor" se refere ao "dia do juízo", e
que o apóstolo exilado se achou, de fato, arrebatado pelo Espírito ao dia do Senhor
anunciado no Velho Testamento. Não creio que o original possa dar uma tal
interpretação; e, além disso, temos em 1 Tessalonicenses 5:2 e 2 Pedro 3:10, as
palavras exatas, "o dia do Senhor", cujo original é inteiramente diferente da
expressão acima mencionada. Isto esclarece o assunto plenamente, tanto quanto se
refere à crítica; e quanto à interpretação é bem claro que a maior parte do
Apocalipse está ocupada, não com "o dia do Senhor", mas com acontecimentos
antecedentes a esse dia.

O Rio do Éden, Imagem do Rio da Graça


Consideremos agora a ligação entre o sábado e o rio que saía do Éden. Há nisto
grande interesse. E a primeira vez que vemos o rio de Deus em ligação com o
descanso de Deus. Quando Deus descansou das Suas obras, todo o mundo sentiu a
bênção e o refrigério disso. Era impossível que Deus guardasse um sábado sem que
a terra sentisse a sua sagrada influência. Porém, infelizmente, as correntes que
corriam do Éden — a cena do descanso terrestre — foram em breve interrompidas,
porque o resto da criação foi manchada pelo pecado.
E contudo, bendito seja Deus, o pecado não pôs termo às Suas atividades, mas
apenas lhes deu uma nova esfera; e onde quer que Ele é visto atuando vê-se o rio
correndo. Assim, quando O encontramos, com mão forte e braço estendido,
conduzindo as Suas hostes remidas através das areias estéreis do deserto, vemos o
rio saindo, não do Éden, mas da Rocha ferida — uma expressão própria e linda do
fundamento sobre o qual a graça soberana supre as necessidades dos pecadores!
Isto era redenção e não simples criação. "A rocha era Cristo", Cristo ferido para
suprir as necessidades do Seu povo. A Rocha batida estava ligada com o lugar do
Senhor no Tabernáculo; e efetivamente havia beleza moral nessa ligação. Deus
habitando atrás de cortinas, e Israel bebendo de uma rocha que havia sido ferida,
tinham uma voz para todo o ouvido atento, e uma lição profunda para todo o
coração circuncidado (Êx 17:6).
Avançando na história dos caminhos de Deus, encontramos o rio correndo noutro
canal: "... no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé, e clamou,
dizendo: Se alguém tem sede, que venha a mim e beba. Quem crê em mim, como
diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre" Jo 7:37-38). Aqui, pois,
encontramos o rio emanando de outra origem, e correndo sobre outro leito; se bem
que, em certo sentido, a origem do rio fosse sempre a mesma: o Próprio Deus.
Porém, então, não era Deus conhecido num novo parentesco e sobre um novo
princípio. Assim, na passagem que acabamos de reproduzir, o Senhor Jesus tomava
o Seu lugar, em espírito, fora de toda a ordem existente de coisas, e apresentava-Se
como a origem do rio da água da vida, do qual rio a pessoa do crente tinha que ser o
leito. O Éden da antiguidade foi constituído devedor a toda a terra, para estender
os seus afluentes fertilizantes. E no deserto, a rocha, depois de ferida, tornou-se
devedora às hostes sedentas de Israel. Do mesmo modo, agora, todo aquele que crê
em Jesus é devedor para com a cena em derredor de si de permitir que os cursos de
refrigério corram dele.
O cristão deve considerar-se como o leito através do qual possa correr a
multiforme graça de Cristo para um mundo necessitado; e quanto mais graça ele
transmitir, mais receberá, porque "alguns há que espalham, e ainda se lhes
acrescenta mais; e outros que retêm mais do que é justo, mas é para a sua perda"
(Pv 11:24) .Isto põe o crente num lugar do mais doce privilégio, e, ao mesmo
tempo, da mais solene responsabilidade: é chamado para ser o expoente e a
testemunha da graça d Aquele em Quem crê.
Ora quanto mais ele compreender o seu privilégio, tanto melhor corresponderá à
sua responsabilidade: se é habitualmente alimentado por Cristo, não pode evitar O
manifestar.
Quanto mais o Espírito Santo conservar o olhar do cristão fixo em Jesus, tanto mais
o seu coração estará ocupado com a Sua adorável Pessoa, e a sua vida e o seu caráter
darão testemunho inequívoco da Sua graça. A fé é, imediatamente, o poder de
ministério, de testemunho e de adoração. Se não estivermos vivendo "pela fé no
Filho de Deus, o qual nos amou e se entregou a si mesmo por nós", não seremos
servos eficientes, nem testemunhas fiéis, nem verdadeiros adoradores. Poderemos
fazer muita coisa; mas não será serviço para Cristo. Poderemos dizer muita coisa,
mas não será testemunho de Cristo. Poderemos exibir muita piedade e devoção,
mas nada disto será espiritual nem verdadeira adoração.

O Rio de Deus
Finalmente, é-nos apresentado o rio de Deus no último capítulo do Livro do
Apocalipse (1). "E mostrou-se o rio puro da água da vida, claro como cristal, que
procedia do trono de Deus e do Cordeiro". "Há um rio cujas correntes alegram a
cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo" (Salmo 46:4). É este o
último lugar em que achamos o rio. A sua origem nunca poderá ser tocada — o seu
curso nunca mais interrompido. "O trono de Deus" é expressivo de estabilidade
eterna; e a presença do Cordeiro é a evidência de estar fundado sobre o
fundamento da redenção efetuada. Não se trata do trono de Deus na criação, nem
em providência, mas em redenção. Quando contemplo o Cordeiro, vejo a sua
relação comigo como pecador. "O trono de Deus", como tal, apenas me deteria;
porém, quando Deus Se revela na Pessoa do Cordeiro, o coração é atraído, e a
consciência tranquilizada.
___________
(1) Comparem-se também Ezequiel 47:1-12; e Zacarias 14:8.

O sangue do Cordeiro purifica a consciência de toda a nódoa e mácula de pecado, e


põe-na, em perfeita liberdade, na presença da santidade que não pode tolerar o
pecado. Na cruz, todas as exigências da santidade divina foram perfeitamente
satisfeitas; de modo que, quanto mais compreendo a santidade, mais
aprecio a cruz. Quanto maior for a nossa apreciação da santidade, tanto maior será
a nossa apreciação da obra da cruz. "A graça reina em justiça, para a vida eterna,
por Jesus Cristo, nosso Senhor". Por isso, o Salmista convida os santos a renderem
graças com a lembrança da santidade de Deus. Isto é um fruto precioso de uma
perfeita redenção. Antes de o pecador poder dar graças com a lembrança da
santidade de Deus, deve encará-la pela fé do outro lado da cruz — a ressurreição.

A Responsabilidade de Adão: Obedecer


Havendo seguido o rio de Deus desde Gênesis ao Apocalipse, pensemos,
rapidamente, na posição de Adão no Éden. Já o vimos como um símbolo de Cristo;
contudo, ele não deve ser visto apenas tipicamente, mas pessoalmente; não apenas
simbolizando "o segundo Homem, o Senhor do céu", mas também como ocupando
o lugar de responsabilidade. No meio da encantadora cena da criação, o Senhor
Deus pôs um testemunho, e este testemunho era também uma prova para a
criatura. Falava de morte no meio da vida:"... no dia em que dela comeres,
certamente morrerás". Estranho e solene aviso! E todavia, era um aviso necessário.
A vida de Adão estava pendente da sua obediência. O elo que o ligava ao Senhor
Deus(1) era obediência, baseada em confiança implícita n'Aquele que o tinha
colocado na sua posição de dignidade — confiança na Sua verdade, confiança no
Seu amor. Ele só podia obedecer enquanto confiasse. Veremos a verdade e o poder
disto mais claramente quando tivermos ocasião de examinar o capítulo seguinte.
___________
(1) 0 leitor há-de notar a mudança, neste capítulo, da expressão "Deus" para
"Senhor Deus". Existe grande importância nesta distinção. Quando Deus atua em
relação com o homem toma o título de "Senhor Deus" — Jeová Elohim — , mas até
o homem aparecer em cena a palavra "Senhor" não é empregada. Quero apresentar
apenas duas ou três passagens em que esta distinção é admiravelmente
apresentada. "E os que entraram, macho e fêmea de toda a carne entraram, como
Deus — Elohim — lhe tinha ordenado: e o Senhor — Jeová — o fechou por fora"
(Gn 7:16). Elohim ia destruir o mundo que criara; mas Jeová teve cuidado do
homem com quem estava em relações "e toda a terra saberá que há Deus (Elohim)
em Israel: e saberá toda esta congregação que o Senhor (Jeová) salva" (1 Sm
17:46-47). Toda a terra devia reconhecer a presença de Elohim; porém Israel era
chamado a reconhecer os feitos de Jeová, com Quem estava relacionado. Por
último: "... Josafá clamou e o Senhor (Jeová) o ajudou. E Deus (Elohim) os desviou
dele" (2 Cr 18:31). Jeová teve cuidado do Seu pobre servo errado; mas Elohim,
embora desconhecido, atuou sobre os corações dos incircuncisos Sírios.

Quero, de passagem, chamar a atenção do leitor para o contraste notável entre o


testemunho levantado no Éden, e o que agora se encontra posto. Então, quando
tudo em redor era vida, Deus falou de morte-, agora, pelo contrário, quando tudo
em volta de nós é morte, Deus fala de vida: então a Sua Palavra era: "... no dia em
que dela comeres, certamente morrerás"; agora a Palavra é "crê e viverás". E, assim
como no Éden o inimigo procurou tornar nulo o testemunho de Deus, como
resultado de comerem do fruto, do mesmo modo agora, ele procura anular o
testemunho do Senhor como resultado de crer o evangelho. Deus havia dito: "... no
dia em que dela comeres, certamente morrerás". Porém, a serpente disse:
"Certamente não morrereis". E agora, em que a Palavra de Deus declara
perfeitamente que "aquele que crê no Filho tem a vida eterna" (Jo 3:36), a mesma
serpente procura persuadir as pessoas de que não têm a vida eterna, e que nem
tão-pouco devem presumir pensar em tal coisa, até terem, primeiro, feito, sentido,
e experimentado toda a sorte de coisas.
Prezado leitor, se ainda não crês de todo o teu coração no que Deus diz na Sua
Palavra, quero pedir-te que deixes "a voz do Senhor" prevalecer acima do silvo da
serpente. "Quem ouve a minha palavra e crê n'Aquele que me enviou tem a vida
eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida" (Jo 5:24).

CAPÍTULO 3

A QUEDA

Esta parte do livro apresenta-nos o colapso de toda a cena que temos estado a
comentar. Abunda em princípios muito importantes; e tem sido, muito
justamente, em todos os tempos, recurso como um tema frutífero para os que
desejam apresentar a verdade quanto à ruína do homem e o remédio de Deus.
A serpente apresenta-se com uma pergunta atrevida quanto à revelação divina —
um modelo terrível e precursor de todas as perguntas infiéis levantadas desde
então por aqueles que, infelizmente, têm servido fielmente a causa da serpente no
mundo; perguntas que só podem ser atendidas pela autoridade suprema e a
majestade da Escritura Sagrada.

A Serpente Introduz a Dúvida acerca daquilo que Deus Havia Dito


"E assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?"
Esta foi a pergunta astuta de Satanás; e se a Palavra de Deus estivesse escondida no
coração de Eva, a sua resposta podia ter sido direta, simples, e concludente. O
verdadeiro meio de enfrentar as perguntas e insinuações de Satanás é tratá-las
como suas e repeli-las com a Palavra de Deus. Admiti-las junto do coração, ainda
que seja só por um momento, é perder o único poder mediante o qual devem ter
resposta.
O Diabo não se apresentou abertamente, dizendo: "eu sou o diabo, o inimigo de
Deus, e venho para O caluniar e arruinar-te". Isto não seria conforme com a
serpente; e contudo ela fez realmente tudo isto, levantando dúvidas na mente da
criatura. Admitir a pergunta, "é assim que Deus disse?", quando sei que Deus falou,
é infidelidade positiva; e o próprio fato de eu a admitir mostra a minha
incapacidade absoluta para poder dar-lhe resposta. Por isso, no caso de Eva, a
maneira da sua resposta evidenciou o fato que ela tinha admitido em seu coração a
pergunta astuta da serpente.
Em vez de se agarrar unicamente às palavras exatas de Deus, ela, na sua resposta,
acrescenta-lhes, com efeito, alguma coisa.
Ora, se eu acrescentar, ou tirar, alguma coisa à Palavra de Deus, isso mostra
claramente que a Sua Palavra não está em meu coração, nem governando a minha
consciência. Se alguém está achando gozo na obediência, se ela é a sua comida e a
sua bebida, se vive de toda Palavra que sai da boca de Deus, estará,
indubitavelmente, familiarizado e inteiramente atento à Sua Palavra. Não se pode
ser indiferente à Palavra de Deus.
O Senhor Jesus, no Seu conflito com Satanás, empregou corretamente a Palavra,
porque Ele vivia dela, e apreciava-a mais do que o Seu próprio alimento. Não podia
citá-la mal ou torcê-la na sua aplicação, nem tão-pouco podia ficar indiferente a
seu respeito.
Não foi assim com Eva. Ela acrescentou alguma coisa ao que Deus havia dito. O Seu
mandamento era simples e suficiente: "dela não comerás". A isto Eva acrescenta as
suas próprias palavras, "nem nele tocareis". Estas eram palavras de Eva, e não de
Deus. Deus não tinha dito nada acerca de tocar no fruto; de modo que, quer a sua
má citação fosse o efeito da ignorância, ou indiferença, ou o desejo de representar
Deus de um modo arbitrário, ou devido às três coisas, é evidente que ela estava fora
do verdadeiro terreno de confiança simples em e sujeição à Palavra de Deus. "...
pela Palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor" (SI 17:4).
O Valor da Palavra de Deus
Nada pode ter mais poder de interesse do que o modo como a Palavra é posta em
evidência através de todo o cânon sagrado, juntamente com a grande importância
de obediência rigorosa. Devemos obediência à Palavra de Deus, simplesmente
porque é a Sua Palavra. Levantar uma dúvida, quando Ele tem falado, é blasfêmia.
Nós encontramo-nos no lugar de criaturas. Ele é o Criador; e pode, portanto, exigir
justamente a nossa obediência. Os infiéis podem chamar a isto "obediência cega";
mas o cristão chama-lhe obediência inteligente, tanto mais que é baseada sobre o
conhecimento de que é à Palavra de Deus que ele obedece. Se o homem não tivesse
a Palavra de Deus, podia muito bem dizer-se que estava em escuridão e trevas,
porque não há tanto como um simples raio de luz divina em nós ou à nossa volta,
mas só aquilo que procede da Palavra de Deus pura e eterna. Tudo que precisamos
saber é que Deus falou, e então a obediência torna-se a ordem mais elevada de ação
inteligente. Quando a alma se levanta para Deus chega à origem mais elevada de
poder. Nenhum homem, ou agrupamento de homens, pode exigir obediência à sua
palavra por ser sua palavra. Quando Deus fala, o homem deve obedecer. Feliz dele
se o fizer. Ai dele se não o fizer! A infidelidade pode pôr em dúvida se Deus tem
falado; a superstição pode pôr a autoridade humana entre a consciência e aquilo
que Deus tem dito: ambas procuram roubar a Palavra de Deus, e, por
consequência, a bem-aventurança da obediência.
Há bênção em cada ato de obediência, mas no momento em que a alma hesita, o
inimigo tem a vantagem; e há-de, indubitavelmente, empregá-la para afastar a
alma mais e mais de Deus. Assim, neste capítulo, a pergunta, "E assim que Deus
disse?" foi seguida por "certamente não morrereis". Quer dizer, primeiro
levantou-se a questão se Deus tinha falado, e então seguiu-se abertamente a
contradição do que Deus havia dito.
Este fato solene é suficiente para mostrar como é perigoso admitir uma
interrogação quanto à revelação divina na sua plenitude e integridade. Um
racionalismo polido está muito próximo de infidelidade atrevida; e a infidelidade
que se atreve a julgar a Palavra de Deus não está longe do ateísmo que nega a Sua
existência. Eva nunca teria ficado a ouvir desmentir Deus se não tivesse
previamente caído em relaxamento e indiferença quanto à Sua Palavra. Ela
também teve as suas "Fases de Fé", ou, para falar mais corretamente, as suas fases
de infidelidade: ela permitiu que Deus fosse desmentido por uma criatura,
simplesmente porque a Sua Palavra tinha perdido o seu próprio poder sobre o seu
coração, a sua consciência, e o seu entendimento.

A Plena Inspiração das Escrituras


Isto oferece um aviso muito solene a todos os que estão em perigo de serem
enredados pelo racionalismo profano. Não existe verdadeira segurança, salvo
numa fé profunda na inspiração plenária e autoridade suprema de "TODA A
ESCRITURA". A alma que é dotada com isto tem uma resposta vitoriosa para todo
o impugnador, quer ele venha de Roma ou da Alemanha. "Não há nada novo
abaixo do sol". O mesmíssimo mal que está corrompendo as próprias fontes do
pensamento religioso, através da parte mais bela do Continente da Europa, foi o
mesmo que lançou o coração de Eva na ruína, no jardim do Éden. O primeiro passo
no seu rumo descendente foi atender a pergunta: "E assim que Deus disse?" E
então, foi para diante, de cena em cena, até que, por fim, curvou-se perante a
serpente, e reconheceu-a como deus e a origem da verdade.
Sim, prezado leitor, a serpente desalojou Deus, e a sua mentira suplantou a verdade
divina.
Assim aconteceu com o homem caído; e assim acontece com a posteridade do
homem caído. A Palavra de Deus não tem lugar no coração do homem natural,
mas a mentira da serpente tem. Examinai o coração do homem, e ver-se-á que
existe nele um lugar para a mentira de Satanás, mas nenhum absolutamente para a
verdade de Deus. Daí a ênfase da palavra a Nicodemos: "Necessário vos é nascer de
novo" (Jo 3:7).
No entanto, é importante vermos a maneira como a serpente procurou abalar a
confiança de Eva na verdade de Deus, e deste modo trazê-la para baixo do poder da
"razão" infiel. Isto foi feito abalando a sua confiança no amor de Deus. Satanás
procurou abalar a confiança de Eva no que Deus havia dito, fazendo-lhe crer que
Ele não agia por amor. "Porque", disse ele, "Deus sabe que no dia em que dele
comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal"
(versículo 5). Isto queria dizer, por outras palavras: "Há vantagem verdadeira em
comer do fruto do qual Deus vos está privando: portanto, por que acreditar no
testemunho de Deus< Não podeis confiar em quem, claramente, não vos ama,
porque se Ele vos amasse havia de proibir-vos de gozardes um privilégio seguro«?-"
A segurança de Eva contra a influência de todo este raciocínio teria sido o descanso
simples na infinita bondade de Deus. Podia ter dito à serpente: "Tenho a maior
confiança na bondade de Deus, e, portanto, considero uma coisa impossível Ele
negar-me algum bem. Se o fruto fosse bom para mim eu tê-lo-ia, certamente;
porém, o fato de me ser proibido por Deus é prova de que eu não estaria melhor
mas muito pior comendo-o. Estou certa do amor de Deus e persuadida da verdade
de Deus, e creio, também, que tu és um ser perverso que procuras afastar o meu
coração da fonte da bondade e verdade. Retira-te de mim, Satanás".
Isto teria sido uma resposta nobre. Mas não foi dada. A sua confiança na verdade e
no amor cedeu, e tudo foi perdido; e assim vemos que existe tão pouco lugar no
coração do pecador para o amor de Deus como para a verdade de Deus. O coração
humano é um estranho tanto para uma coisa como para a outra, até ser renovado
pelo poder do Espírito Santo.
Conhecer a Deus
É de grande interesse deixar a maneira de Satanás quanto à verdade e ao amor de
Deus, para podermos considerar a missão do Senhor Jesus Cristo, que veio do seio
do Pai para revelar o que Ele realmente é. "A graça e a verdade" — as mesmíssimas
coisas que o homem perdeu com a sua queda — "vieram por Jesus Cristo" (Jo 1:17).
Ele foi "a testemunha fiel" do que Deus era (Ap 1:5). A verdade revela Deus como
Ele é; porém, esta verdade está ligada à revelação de perfeita graça; assim o pecador
descobre, para seu gozo inefável, que a revelação do que Deus é, em vez de ser a
sua destruição, torna-se a base da sua salvação eterna. "A vida eterna é esta: que
conheçam a ti só, por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo
17:3). Eu não posso conhecer a Deus e não ter vida.
A falta do conhecimento de Deus era morte, porém o conhecimento de Deus é
vida. Isto, necessariamente, toma a vida uma coisa inteiramente fora de nós
próprios e dependente do que Deus é. Seja qual for a medida de conhecimento que
eu consiga alcançar, não está escrito que seja "vida eterna conhecerem-se a si
mesmos", embora, sem dúvida, o conhecimento de Deus e o conhecimento próprio
andem intimamente ligados. Contudo, "a vida eterna" está ligada com o
conhecimento de Deus, e não com o conhecimento natural. Conhecer a Deus
como Ele é, é vida, e todos "os que não conhecem a Deus" serão punidos com "a
eterna perdição ante a face do Senhor e a glória do Seu poder".
E da maior importância ver que o que realmente distingue o caráter e a condição
do homem é a sua ignorância ou o conhecimento que tem de Deus. Isto é o que
marca o seu caráter no mundo e determina o seu destino futuro. E mau nos seus
pensamentos, nas suas palavras e nas suas ações?- É tudo consequência da sua
ignorância de Deus. Por outro lado, ele é puro em pensamento, santo na sua
conversação e gracioso nas suas ações? É tudo apenas o resultado prático do seu
conhecimento de Deus. E assim também quanto ao futuro. Conhecer a Deus é o
fundamento eterno de bem-aventurança — glória eterna. Não O conhecer é
"eterna perdição". Deste modo, o conhecimento de Deus é tudo: vivifica a alma,
purifica o coração, tranquiliza a consciência, eleva as afeições, e santifica todo o
caráter e a conduta.
Devemos então estranhar que o grande interesse de Satanás fosse roubar a criatura
do conhecimento do Deus verdadeiro?
Ele deturpou o bendito Deus, pois disse que Ele não era bondoso. Foi esta a origem
secreta de toda a ofensa. Não importa qual a forma que o pecado tem tomado desde
então — não interessa saber qual o curso que tenha corrido, sob que chefia tenha
andado, ou com que vestuário se tenha vestido: deve ser sempre visto como tendo
a sua origem no desconhecimento de Deus. O moralista mais culto, o mais devoto
religioso, o maior filantropo, se desconhecer a Deus está tão longe da vida e da
verdadeira santidade como o publicano e a meretriz. O filho pródigo era tão
pecador, e estava tão longe de seu pai, quando cruzava a porta da casa, como
quando apascentava porcos num país distante (Lc 15:13-15). Assim aconteceu no
caso de Eva. Desde o momento em que ela se despegou das mãos de Deus, e deixou
a Sua posição de absoluta dependência e de sujeição à Sua Palavra, entregou-se ao
domínio dos sentidos usados por Satanás, para sua queda.

Os Desejos da carne, dos olhos e a vanglória da vida


O versículo seis apresenta três coisas; a saber, "a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba da vida"; as quais, como declara o apóstolo
João, incluem "tudo que há no mundo" (1 Jo 2:16). Estas coisas tomaram
necessariamente a direção logo que Deus foi deixado de fora. Se eu não
permanecer na segurança feliz do amor e da verdade de Deus, da Sua graça e
fidelidade, entregar-me-ei ao governo de algum, ou talvez de todos os princípios
acima descritos; e isto é apenas outro nome para o domínio de Satanás. Não existe,
rigorosamente falando, qualquer coisa como a vontade livre do homem. Se o
homem se governar a si próprio, é realmente governado por Satanás! E se assim
não for é governado por Deus.
Bom. Os três grandes meios mediante os quais Satanás opera são "a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida". Estas coisas foram
apresentadas por Satanás ao Senhor Jesus, na tentação. Ele começou por tentar o
Segundo Homem para o desviar da posição de absoluta dependência de Deus.
"Manda que estas pedras se tornem em pães". Pediu-Lhe para fazer isto, não, como
no caso do primeiro homem, para se tornar naquilo que não era, mas para mostrar
o que era. Depois seguiu-se a oferta dos reinos do mundo, com a sua glória. E
finalmente, conduzindo-O a um pináculo do templo, tentou-O para Se lançar dali
abaixo repentina e milagrosamente ante a admiração do povo reunido (compare-se
Mt 4:1-11 com Lc 4:1-13).

O fim claro de cada tentação era convencer o Bendito Senhor a deixar a posição de
inteira dependência de Deus e perfeita sujeição à Sua vontade. Mas foi tudo em
vão. "Está escrito", foi a resposta invariável do único homem dependente,
abnegado e perfeito. Outros podiam pensar em agir por si próprios; mas Ele
preferia que Deus, o Pai, agisse por Si.
Que exemplo para os fiéis em todas as suas circunstâncias! Jesus agarrou-Se às
Escrituras, e assim venceu. Sem qualquer outra arma, salvo a espada do Espírito,
manteve-se no conflito e ganhou um triunfo glorioso. Que contraste com o
primeiro Adão! Um usou tudo para advogar por Deus; o outro teve tudo para lutar
contra Ele. O jardim, como todas as suas delícias, num caso; o deserto, com todas as
suas privações, no outro; confiança em Satanás, num caso; confiança em Deus, no
outro; completa derrota num caso; vitória completa no outro. Bendito seja para
sempre o Deus de toda a graça, por ter confiado todo o nosso socorro a um Senhor
tão poderoso para vencer — poderoso para salvar!
A Consciência
Vejamos agora até que ponto Adão e Eva beneficiaram com a vantagem da
promessa da serpente. Isto levar-nos-á a um ponto profundamente importante em
relação com a queda do homem. O Senhor Deus tinha ordenado isto de tal
maneira, que, com e por meio da queda, o homem havia de alcançar aquilo que
antes não possuía, e isso era a consciência, um conhecimento tanto do bem como
do mal. Isto não podia o homem ter tido, evidentemente, antes. Não podia ter
conhecimento coisa alguma do mal, tanto mais que não havia mal para ser
conhecido. Ele estava num estado de inocência, o qual é um estado de ignorância
do mal. O homem recebeu uma consciência com e por meio da queda; e vemos que
o primeiro efeito da consciência foi fazer dele um covarde. Satanás tinha enganado
completamente a mulher; havia-lhe dito, "os vossos olhos se abrirão, e sereis como
Deus, sabendo o bem e o mal". Mas tinha deixado de fora uma parte importante da
verdade, a saber, que conheceriam o bem sem o poder para o fazer; e que
conheceriam o mal sem o poder de o evitar. O seu próprio esforço para se elevarem
à escala da existência moral incluía a perda da verdadeira exaltação. Tornaram-se
aviltados, impotentes, escravos de Satanás, com uma consciência culpada: criaturas
horrorizadas. "Os olhos de ambos foram abertos", sem dúvida, mas, ah! para que
espetáculo! Foi só para descobrirem a sua nudez. Abriram os seus olhos para a sua
própria condição, que era "desgraçada, e miserável, e pobre, e cega, e nua".
"Conheceram que estavam nus", — triste fruto da árvore do conhecimento!
Não foi nenhum novo conhecimento da excelência divina que alcançaram —
nenhum raio novo de luz divina da sua pura e eterna fonte —, ah! não! o primeiro
resultado do seu esforço desobediente pelo conhecimento foi a descoberta de que
estavam nus.
Bem, é bom compreendermos isto; bom, também, sabermos como a consciência
opera — para vermos que apenas pode fazer de nós cobardes, como sendo o
conhecimento íntimo daquilo que somos. Muitos perdem-se quanto a isto; julgam
que a consciência nos trará a Deus. Foi assim no caso de Adão e Eva? Certamente
que não. Nem tampouco será no caso de qualquer pecador. Como poderia ser?-
Como poderia a compreensão do que eu sou trazer-me jamais a Deus, se não for
acompanhada pela fé do que Deus é? Impossível; produzirá em mim vergonha,
censura e remorso. Pode também ocasionar certos esforços da minha parte, para
remediar a condição que mostra; mas estes próprios esforços, longe de nos
aproximarem de Deus, atuam, pelo contrário, como um véu para O ocultar da
nossa vista. Assim, no caso de Adão e Eva, a descoberta da sua nudez foi seguida
por um esforço próprio para a ocultar: "... e coseram folhas de figueira, e fizeram
para si aventais." E este o primeiro relato que temos do esforço do homem para
remediar, por seu próprio expediente, a sua condição; e a sua consideração
atenciosa dar-nos-á não pouca instrução quanto ao verdadeiro caráter da
religiosidade humana em todas as épocas. Em primeiro lugar, vemos, não só no
caso de Adão, mas em todos os casos, que os esforços do homem para remediar a
sua situação são baseados sobre o sentido da sua nudez. Ele está, claramente, nu, e
todas as suas obras são o resultado de ser assim. Um tal esforço nunca poderá
valer-nos. Devemos saber que estamos vestidos, antes de podermos fazer qualquer
coisa agradável aos olhos de Deus.
E esta, note-se, é a diferença entre a verdadeira Cristandade e a religião humana.
Aquela é baseada sobre o fato do homem estar vestido; esta, sobre o fato de estar
nu. A primeira tem como seu ponto de partida aquilo que a última tem como seu
alvo. Tudo quanto um verdadeiro cristão faz é porque está vestido —
perfeitamente vestido; tudo quanto o mero religioso faz é com o fim de se vestir.
Nisto está a grande diferença. Quanto mais examinarmos o engenho da religião do
homem, em todas as suas fases, tanto mais veremos a sua inteira insuficiência para
remediar o seu estado, ou mesmo para satisfazer a sua compreensão desse estado.
Pode ser muito bom por algum tempo. Pode servir enquanto a morte, o juízo, e a
ira de Deus são vistos à distância, se é que são vistos de fato; mas quando um
homem é chamado a enfrentar estas realidades, descobrirá em boa verdade, que a
sua religião é uma cama muito curta para ele se poder estender e uma coberta
muito estreita para se embrulhar.

A Nudez do Homem perante Deus


No momento em que Adão ouviu a voz do Senhor Deus, no jardim, "temeu",
porque, como ele próprio confessou, "estava nu". Sim, nu embora tivesse sobre si o
seu vestido. Portanto, é evidente que esse vestido nem sequer satisfazia a sua
consciência. Tivesse a sua consciência sido divinamente satisfeita e ele não teria
ficado assustado. "Se o nosso coração nos não condena, temos confiança para com
Deus" (1 Jo 3:21). Porém se até mesmo a consciência humana não pode achar
repouso nos esforços religiosos do homem, quanto menos a santidade de Deus. O
vestido de Adão não podia ocultá-lo dos olhos de Deus; e ele não podia estar na Sua
presença nu; portanto fugiu para se esconder. É isto que a consciência fará sempre:
obrigará o homem a esconder-se de Deus; e, além disso, tudo quanto a sua religião
lhe pode oferecer é um esconderijo de Deus. E um recurso miserável, tanto mais
quanto é certo que tem de encontrar-se com Deus, mais cedo ou mais tarde; e se
não tiver nada mais salvo a consciência triste do que é, deve sentir-se assustado —
sim, deve sentir-se miserável. Na verdade, nada é preciso, salvo o próprio inferno,
para completar a miséria de todo aquele que sente que tem de se encontrar com
Deus, e só conhece a sua própria incapacidade para comparecer perante Ele.
Se Adão tivesse conhecido o amor perfeito de Deus não teria ficado assustado. "Na
caridade não há temor, antes a perfeita caridade lança fora o temor; porque o
temor tem consigo a pena, e o que teme não é perfeito em caridade" (1 Jo 4:18).
Porém Adão não conhecia isto, porque tinha acreditado na mentira da serpente.
Ele pensou que Deus era tudo menos amor; e portanto o último pensamento do seu
coração teria sido arriscar-se a comparecer na Sua presença. Não podia fazer isso. O
pecado estava ali, e Deus e o pecado nunca podem encontrar-se; enquanto houver
pecado na consciência deve haver o sentimento de distância de Deus. Ele é "tão
puro de olhos, que não pode ver o mal e a vexação não pode contemplar" (Hc 1:13).
A santidade e o pecado não podem habitar juntos. O pecado, onde quer que for
chamado, só pode ser enfrentado pela ira de Deus.
Mas, bendito seja Deus, existe alguma coisa ao lado da consciência do que eu sou.
Existe a revelação do que Deus é. E esta foi a queda do homem que a ocasionou.
Deus não Se havia revelado plenamente na criação: tinha mostrado "tanto o seu
eterno poder, como a sua divindade"(1), mas não tinha contado todos os segredos
profundos da Sua natureza e do Seu caráter. Pelo que, Satanás cometeu um grande
erro em se intrometer na criação de Deus. Mostrou apenas ser o instrumento da
sua eterna derrota e confusão, e "a sua violência descerá" para sempre "sobre a sua
mioleira". A sua mentira deu apenas ocasião para a revelação da plena verdade
acerca de Deus.
__________
(1)Existe um pensamento profundamente interessante na comparação da palavra
divindade em Romanos 1:20 e Colossenses 2:9: estas duas passagens apresentam
um pensamento muito diferente. Os pagãos podiam ver que havia alguma coisa
super-humana, alguma coisa divina, na criação; porém divindade pura, essencial e
incompreensível, habitou na Pessoa adorável do Filho de Deus.

Deus Busca o Homem


A criação nunca poderia revelar o que Deus era. Havia infinitamente mais n'Ele do
que poder e sabedoria. Havia amor, misericórdia, santidade, justiça, bondade,
ternura, e longanimidade. Onde poderiam todos estes atributos de Deus ser
manifestados senão num mundo de pecadores? Deus, no princípio, desceu para
criar; e, depois, quando a serpente ousou imiscuir-se na criação, Deus desceu para
salvar. Isto é revelado nas primeiras palavras proferidas pelo SENHOR Deus,
depois da queda do homem. "E chamou o SENHOR Deus a Adão, e disse-lhe: Onde
estás?" Esta pergunta prova duas coisas: prova que o homem estava perdido, e que
Deus havia descido para o buscar. Provou o pecado do homem e a graça de Deus.
"Onde estás?" Fidelidade assombrosa! Graça maravilhosa! Fidelidade para mostrar,
na própria pergunta, a verdade quanto à condição do homem; graça para revelar,
no próprio fato de Deus fazer uma tal pergunta, a verdade quanto ao Seu caráter e
atitude, a respeito do homem caído. O homem estava perdido; mas Deus havia
descido para o procurar— para o trazer do seu esconderijo, atrás das árvores do
jardim, a fim de que, na confiança feliz da fé, ele pudesse achar um lugar de refúgio
em Si Mesmo. Isto era graça. Criar o homem do pó da terra foi poder -, mas buscar
o homem no seu estado de perdição foi graça. Mas quem poderá contar tudo que se
acha encerrado com a ideia de Deus ser Aquele que procura ? Deus buscando um
pecador? Que teria visto o Bendito Senhor no homem que O levasse a procurá-lo?
A mesma coisa que o pastor viu na ovelha perdida; ou o que a mulher viu na moeda
de prata perdida; ou o que o pai viu no filho pródigo. O pecador é valioso para
Deus; mas a razão disso só a eternidade o dirá.
Como respondeu, então, o pecador à chamada fiel e graciosa do bendito Deus? Ah!
a resposta revela apenas a terrível profundidade do pecado em que ele havia caído.
"E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim e temi, porque estava nu e escondi- me.
E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te
ordenei que não comesses?- Então disse Adão: A mulher que me deste por
companheira, ela me deu da árvore, e comi". Aqui encontro-o, com efeito,
atribuindo a culpa a sua vergonhosa queda às circunstâncias em que Deus o havia
posto, e deste modo, indiretamente, ao próprio Deus. Este tem sido sempre o
método do pecador. Toda a gente e todas as coisas são criticadas, exceto o eu. No
caso de verdadeira convicção, dá-se precisamente o contrário. "Não fui eu que
pequei?" é a pergunta de uma alma verdadeiramente humilhada. Se Adão se tivesse
conhecido a si próprio, quão diferente teria sido a sua linguagem! Mas ele nem se
conhecia a si nem a Deus; e portanto em vez de lançar a culpa inteiramente sobre
si próprio, atribuiu-a a Deus.
Aqui, pois, estava a posição terrível do homem. Tinha perdido tudo. O seu
domínio, a sua dignidade, a sua felicidade, a sua inocência, a sua pureza, a sua paz
— tudo tinha desaparecido dele; e, o que era mais grave ainda, ele acusou Deus de
ser a causa de tudo isso(1). Ali estava, pecador perdido, arruinado, culpado, e
todavia, vingativo e acusador de Deus.
__________
(1) O homem não somente acusa Deus de ser o autor da sua queda, mas culpa- - O
da sua nudez. Quantas vezes ouvimos nós pessoas dizerem que não podem crer a
não ser que Deus lhes dê o poder para crerem; e, além disso, que a não ser que
sejam os objetos do decreto eterno de Deus não poderão ser salvas.
Ora é perfeitamente verdade que ninguém pode crer no evangelho, salvo pelo
poder do Espírito Santo; e é também verdade que todos os que creem o evangelho
são os felizes objetos dos desígnios eternos de Deus. Mas poderá tudo isto pôr de
parte a responsabilidade do homem crer o testemunho claro que lhe é apresentado
pela Palavra de Deus? Certamente que não. Mas revela o triste mal do coração do
homem, o qual o leva a rejeitar o testemunho de Deus plenamente revelado, e a
dar como razão para assim fazer o deserto de Deus, que é profundamente secreto,
conhecido somente d'Ele. Contudo, isto de nada valerá, porque lemos em 2
Tessalonicenses 1:8-9 que aqueles "que não obedecem ao evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo, por castigo, padecerão eterna perdição".
Os homens são responsáveis por crer o evangelho, e serão condenados por não
crerem. Não são responsáveis por saber alguma coisa dos desígnios de Deus, visto
que estes não são revelados, e, portanto, não pode haver pena imputada à
ignorância deles. O apóstolo Paulo podia dizer aos tessalonicenses, "Sabendo,
amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus". Como o sabia ele? Era por ter acesso
às páginas dos decretos eternos e secretos de Deus? De modo nenhum. Então
como? "Porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também
em poder" (I Ts 1:4-5). Este é o meio de conhecer a eleição de alguém. Quando o
evangelho vem em poder é uma prova clara da eleição de Deus.
Mas não há dúvida, que aqueles que argumentam com os desígnios divinos para
rejeitar o testemunho divino, apenas procuram uma desculpa inconsciente para
continuar no pecado. Na realidade, não querem Deus; e seria muito mais honesto
se dissessem isso, claramente, do que apresentarem uma desculpa que não somente
é inconsistente, mas, positivamente blasfema. Um tal argumento não lhes valerá
muito no meio dos terrores do dia do juízo, agora mais perto do que nunca.

No entanto, precisamente neste ponto, Deus começou a revelar-Se e os Seus


desígnios de amor redentor: e nisto está a verdadeira base da paz e
bem-aventurança do homem. Quando o homem chega ao fim de si mesmo, Deus
pode revelar-Se o que é; mas não antes. A cena tem que ser inteiramente limpa do
homem e de todas as suas vãs pretensões — jactância e argumentos blasfemos —
antes que Deus possa revelar-Se. Deste modo, foi quando o homem estava
escondido atrás das árvores do jardim que Deus revelou o Seu maravilhoso plano
de redenção pelos ferimentos da semente da mulher. Aqui é-nos ensinado um
princípio valioso da verdade quanto aquilo que somente trará o homem,
calmamente e confiadamente, à presença de Deus.
Já foi acentuado que a consciência nunca conseguirá este fim. A consciência
afugentou Adão para trás das árvores do jardim; a revelação trouxe-o dali para a
presença de Deus. O conhecimento do que ele era aterrorizava-o; a revelação do
que Deus era tranquilizava-o. Isto é verdadeiramente consolador para o coração
oprimido com o fardo do pecado. A realidade do que eu sou é satisfeita pela
realidade do que Deus é; e isto é salvação.
A Revelação da Graça de Deus
Existe um ponto onde Deus e o homem têm de encontrar-se, quer seja em graça ou
em juízo, e esse ponto é onde ambos são revelados como são. Feliz daqueles que
alcançarem esse ponto em graça. Ai daqueles que tiverem de o fazer em juízo! É
com aquilo que somos que Deus trata; e é como Ele é que trata conosco. Na cruz
vejo Deus descendo em graça às profundidades, não apenas da minha situação
negativa, mas também da positiva como pecador. Isto dá paz perfeita. Se Deus me
encontrou, na minha condição de pecador, e fez provisão de um remédio
apropriado, tudo está eternamente liquidado. Porém, todos quantos não veem
deste modo, pela fé, Deus, na cruz, terão de encontrá-LO, mais tarde, em juízo,
quando Ele tiver de tratar, de conformidade com o que Ele é, do que eles são.
Logo que o homem chega ao conhecimento do seu verdadeiro estado não pode
encontrar descanso até achar Deus, na cruz, e então descansa no Próprio Deus. Ele
é, bendito seja o Seu nome, o repouso e esconderijo da alma crente. Isto põe as
obras e a justiça humanas, imediatamente, no seu próprio lugar. Podemos dizer,
em verdade, que aqueles que descansam em tais coisas não podem possivelmente
ter chegado ao verdadeiro conhecimento de si próprios. E inteiramente impossível
que uma consciência divinamente vivificada possa descansar em coisa alguma
salvo no sacrifício perfeito do Filho de Deus. Todos os esforços para confirmar a
justiça própria devem proceder do desconhecimento da justiça de Deus. Adão
podia compreender, à luz do testemunho divino, no tocante "à semente da
mulher", a inutilidade do seu avental de folhas de figueira. A magnitude daquilo
que tinha de ser feito provou a impossibilidade absoluta do pecador para o fazer. O
pecado tinha que ser tirado. Podia o homem fazer isso? Não, foi por ele que o
pecado entrou no mundo. A cabeça da serpente tinha de ser esmagada. O homem
podia fazer isso? Não, ele tinha-se tornado escravo da serpente. As reivindicações
de Deus tinham de ser satisfeitas. Podia o homem fazê-lo? Não, ele tinha-as já
calcado aos pés. A morte tinha que ser abolida. Podia o homem fazer isso? Não, ele
tinha- a introduzido, com o pecado, e dera-lhe o seu terrível aguilhão.
Assim, seja qual for o modo de encarar o assunto, vemos a importância completa
do pecador e, como uma consequência, a loucura insolente de todos os que
procuram ajudar Deus na obra estupenda da redenção, como certamente fazem
todos os que pensam que podem ser salvos de qualquer outro modo que não seja
"pela graça, mediante a fé".

Cristo, a Semente da Mulher


Contudo, embora Adão pudesse ver e sentir que nunca poderia cumprir tudo
quanto tinha que ser feito, Deus mostrou que estava prestes a efetuar até um jota e
um til de tudo isso por meio da semente da mulher. Em resumo, vemos que Ele
tomou graciosamente o assunto nas Suas mãos. Tratou dele como se fosse um caso
inteiramente entre Si e a serpente; pois embora o homem e a mulher tivessem sido
chamados, individualmente, para colher, de vários modos, os frutos amargos do
seu pecado, ainda assim, foi à serpente que o SENHOR Deus disse, "Porquanto
fizeste isto". A serpente foi a origem da ruína; e a semente da mulher devia ser a
fonte da redenção. Adão ouviu tudo isto, e creu; e, no poder dessa fé, "chamou o
nome de sua mulher, Eva, porquanto ela era a mãe de todos os viventes". Isto
representava um fruto precioso de fé na revelação de Deus. Encarando o assunto
debaixo do ponto de vista da natureza, Eva podia ser chamada "a mãe de todos os
moribundos" mas no exercício da fé ela era a mãe de todos os viventes. Raquel teve
um filho, e aconteceu que, "chamou o seu nome Benoni (filho da minha dor), mas
seu pai o chamou Benjamim (filho da minha destra)" (Gn. 35).
Foi por meio da energia da fé que Adão pôde sofrer os resultados terríveis do que
havia feito. Foi a misericórdia admirável de Deus que lhe permitiu ouvir o que Ele
disse à serpente, antes de ser chamado para ouvir o que Deus tinha a dizer-lhe a ele
próprio. Se assim não tivesse sido, ele teria caído no desespero. E desespero ter que
olhar para mim próprio sem poder olhar para Deus, tal como foi revelado na cruz,
para minha salvação. Não há filho algum de Adão que possa consentir ter os seus
olhos abertos para a realidade do que é e o que tem feito, sem cair em desespero, a
não ser que possa refugiar-se na cruz. Por isso, naquele lugar para onde todos os
que rejeitam Cristo terão finalmente de ser lançados não pode haver esperança.
Nesse lugar, os olhos dos homens serão abertos para a realidade do que são, e o que
têm feito; mas não poderão achar alívio e refúgio em Deus. O que Deus é incluirá,
então, perdição sem esperança; tão certo como o que Deus é inclui, agora, salvação
eterna. A santidade de Deus será, então, eternamente contra eles; assim como
agora é aquilo em que todos os que creem são chamado para se regozijarem.
Quanto mais compreendo a santidade de Deus, agora, mais conheço a minha
segurança; porém, no caso dos perdidos, a santidade será apenas a retificação da sua
perdição eterna. Solene — inefavelmente solene — meditação!
Túnicas de Peles
Passemos agora rapidamente uma vista de olhos à verdade que nos é apresentada
na provisão de túnicas que Deus fez para Adão e Eva. "E fez o SENHOR Deus a
Adão e a sua mulher túnicas de peles e os vestiu". Aqui temos apresentada, em
figura, a grande doutrina da justiça divina. A túnica que Deus fez era uma veste
eficaz, porque era dada por Ele; do mesmo modo que o avental era uma veste
ineficaz, porque era obra do homem.
Além disso, a túnica de Deus era baseada no derramamento de sangue. O avental
de Adão não o era. Assim também agora a justiça de Deus é revelada na cruz; a
justiça do homem é mostrada nas obras, as obras manchadas de sangue, das suas
próprias mãos. Quando Adão estava vestido com a túnica de peles não podia dizer
que "estava nu", nem tão-pouco tinha motivo algum para se esconder. O pecador
pode sentir-se perfeitamente em segurança, quando, pela fé, sabe que Deus o
vestiu; mas achar descanso até então, só pode ser o resultado de presunção ou
ignorância. Saber que a veste que uso, e na qual compareço na presença de Deus, é
feita por Ele Próprio, deve dar perfeito descanso ao meu coração. Não pode haver
descanso verdadeiro, perfeito, em coisa alguma mais.
A Árvore da Vida: Fora do Alcance!
Os últimos versículos deste capítulo são cheios de instrução. O homem, no seu
estado decaído, não pode ser autorizado a comer o fruto da árvore da vida, porque
isso lhe acarretaria interminável miséria neste mundo. Tomar do fruto da árvore, e
comer, e viver para sempre, na nossa condição presente, seria pura miséria. A
árvore da vida só pode ser apreciada na ressurreição. Viver para sempre num
tabernáculo frágil, num corpo de pecado e morte, seria insuportável. Pelo que, "o
SENHOR Deus, pois o lançou fora". Lançou-o num mundo que, em toda a parte,
apresentava os resultados lamentáveis da sua queda. Os querubins e a espada
inflamada, também, impediam o homem de apanhar o fruto da árvore da vida;
enquanto que a revelação de Deus lhe indicava a morte e ressurreição da semente
da mulher, como aquilo em que devia achar-se a vida além do poder da morte.
Deste modo, Adão era um homem mais feliz e estava mais seguro fora dos limites
do Paraíso do que havia sido dentro dele; por esta razão: dentro, a sua vida
dependia de si mesmo, ao passo que fora dependia de outrem, a saber, a promessa
de Cristo. E quando levantava os olhos e via os "querubins e a espada inflamada",
podia bendizer a mão que os havia ali posto "para guardar o caminho da árvore da
vida", visto que essa mesma não tinha aberto um caminho melhor, mais seguro e
mais feliz para essa árvore. Se os querubins e a espada inflamada guardavam o
caminho para o Paraíso, o Senhor Jesus Cristo abriu um caminho novo e vivo para
o Santuário (Hb 10:20). "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao
Pai, senão por mim" (Jo 14:6). Com o conhecimento disto, o crente avança através
de um mundo que está debaixo da maldição — onde os vestígios do pecado são
visíveis por toda a parte: achou o seu caminho, pela fé, para o seio do Pai; e
enquanto pode descansar sossegadamente ali, é animado pela bendita segurança
que Aquele que ali o conduziu foi preparar-lhe um lugar nas muitas moradas da
casa do Pai, e que em breve virá e levá-lo-á para Si, no meio da glória do reino do
Pai. Assim, no seio, na casa, e no reino do Pai, o crente acha a sua presente porção,
o seu lar futuro e galardão.

CAPÍTULOS 4 E 5
CAIM E ABEL: DIFERENTES ATITUDES DE DOIS PECADORES PERANTE
DEUS

Um Homem Mundano e um Homem de Fé


A medida que cada parte do livro do Gênesis abre perante nós é-nos apresentada
nova evidência do fato que estamos andando, como muito bem disse um autor,
recentemente, sobre "o projeto de toda a Bíblia"; e não somente isso, mas sobre o
plano da história completa do homem.
Desta maneira, temos, no capítulo quatro, nas pessoas de Caim e Abel, os primeiros
exemplos dum homem do mundo religioso e dum genuíno homem de fé. Nascidos,
como na realidade foram, fora do Éden, e sendo os filhos de Adão, depois da
Queda, nada podiam ter de natural que os distinguisse um do outro. Eram ambos
pecadores, tinham ambos uma natureza decaída. Nenhum deles era inocente. É
bom estarmos certos disto, a fim de que a realidade da graça divina e a integridade
da fé possam ser distintamente vistas.
Se a distinção entre Caim e Abel fosse fundada na sua natureza, então teríamos que
aceitar, como conclusão inevitável, que eles não participavam da natureza decaída
de seu pai nem das consequências da sua Queda; e, portanto, não podia haver lugar
para a manifestação da graça e a experiência da fé.
Alguns pretendem dizer-nos que o homem é nascido com qualidades que, se forem
perfeitamente aproveitadas, o habilitarão a encontrar o caminho do regresso a
Deus. Isto é uma negação declarada do fato, tão claramente visto na história, e que
agora temos perante nós.
Caim e Abel nasceram, não dentro, mas fora do Éden. Eram filhos, não do Adão
inocente, mas, sim, do Adão culpado. Entraram no mundo como participantes da
natureza de seu pai; e não importa saber em que fase possa ter sido manifestada
essa natureza, era ainda natureza — caída, arruinada, irremediavelmente natureza.
"O que é nascido da carne é (— não apenas carnal, mas —) carne, e o que é nascido
do Espírito é (— não apenas espiritual, mas —) espírito" (Jo 3:6).
Se alguma vez houve uma melhor oportunidade para as qualidades distintas,
capacidades, tendências e os recursos da natureza se manifestarem por si próprios,
a vida de Caim e Abel deu-a. Se houvesse alguma coisa na natureza com que ela
pudesse recuperar a sua inocência e estabelecer-se novamente dentro dos limites
do Éden, este foi o momento para a sua manifestação. Porém nada disto se deu.
Estavam ambos perdidos. Eram "carne". Não eram inocentes. Adão perdeu a sua
inocência e nunca mais a reaveu. Apenas pode ser visto como a cabeça de uma raça
caída, que, pela sua "desobediência", foi feita de "pecadores" (Rm 5:19). Ele
tornou-se, tanto quanto lhe dizia respeito pessoalmente, a origem corrupta de
onde brotaram os braços corruptos de uma humanidade arruinada e culpada — o
tronco morto de onde emanaram as varas de uma humanidade morta, moral e
espiritualmente morta.
E verdade que, como já tivemos ocasião de observar, ele foi feito um objeto da
graça e o possuidor e expositor de uma fé viva num Salvador prometido; porém,
nada disto era natural, mas alguma coisa inteiramente divina. E visto que não era
natural, tão-pouco estava dentro da capacidade humana transmiti-la. Não era, de
modo nenhum, hereditária. Adão não podia legar nem transmitir a sua fé a Caim
ou Abel. A sua possessão da fé era simplesmente fruto do amor divino. Havia sido
implantada na sua alma por poder divino; e ele não possuía poder divino para a
comunicar a outrem. Tudo que era natural, Adão podia, segundo os meios da
natureza, comunicar; mas nada mais. E visto que ele, como pai, se achava em
estado de ruína, os seus filhos apenas podiam achar-se no mesmo estado. Tal qual é
o gerador, tal é aquele que dele é gerado. Tem, necessariamente, de participar da
natureza daquele de quem deriva. "Qual o terreno, tais são também os terrenos" (1
Co 15:48).

As Duas Naturezas
Nada pode haver de mais importante, em si, do que uma compreensão correta da
doutrina da chefia federal. Se o leitor abrir a sua Bíblia em Romanos 5:12-21, verá
que o apóstolo inspirado contempla toda a raça humana como sendo
compreendida debaixo de duas cabeças. Não pretendo demorar-me em
considerações acerca dessa passagem, mas apenas referir-me a ela, em ligação com
o assunto de que estou tratando.
O capítulo 15 de 1 Coríntios dará também instrução de um caráter semelhante. No
primeiro homem, temos pecado, desobediência, e morte. No Segundo Homem,
temos justiça, obediência, e vida. Assim como trazemos a natureza do primeiro, do
mesmo modo temos a do segundo. Sem dúvida, cada natureza mostrará, em cada
caso específico, as suas próprias energias peculiares; mostrará em cada indivíduo
que as possui os seus próprios poderes peculiares. Contudo, existe a possessão
absoluta de uma natureza real, abstrata, e positiva.
Ora assim como a maneira de recebermos a natureza do primeiro homem é por
meio do nascimento, assim também o modo de recebermos a natureza do Segundo
homem é por meio do novo nascimento. Tendo nascido, participamos da natureza
do primeiro; sendo "nascidos de novo", participamos da natureza do último.
Um recém-nascido, embora inteiramente incapaz de representar o ato que reduziu
Adão à condição de um ser decaído, é, todavia, participante da sua natureza; assim,
também, um recém-nascido de Deus, uma alma regenerada, embora nada tenha
que ver com a obediência perfeita do "homem Cristo Jesus", é, contudo,
participante da Sua natureza. Verdade é que, ligado com a velha natureza, há
pecado; e ligado com a nova, há justiça — o pecado do homem no primeiro caso; a
justiça de Deus no último: todavia, em todo o tempo, existe a participação de uma
natureza verdadeira em boa fé, seja qual for o seu complemento.
Os filhos de Adão participam da natureza humana e suas consequências; os filhos
de Deus participam da natureza divina e seus resultados. A velha natureza é
segundo "a vontade do varão" (Jo 1:13); a segunda é segundo "a vontade de Deus";
como Tiago, pelo Espírito Santo, nos diz, "Segundo a sua vontade, ele nos gerou
pela palavra da verdade" (Tg 1:18).
De tudo quanto se tem dito, segue-se que Abel não fazia distinção alguma natural
de seu irmão Caim. A distinção entre eles não era baseada em coisa alguma da sua
natureza ou das circunstâncias, porque, quanto a estas, "não há diferença". Em que
consistiu, portanto, a grande diferença? A resposta é tão simples quanto o
evangelho da graça de Deus a pode fazer. A diferença não consistiu neles, na sua
natureza ou nas suas circunstâncias, mas inteiramente nos seus sacrifícios. Isto
torna o assunto muito simples para qualquer pecador verdadeiramente convicto —
para alguém que sinta verdadeiramente que não só participa de uma natureza
pecaminosa, mas que é, em si próprio, também, pecador.
A história de Abel apresenta a uma tal pessoa o único fundamento verdadeiro da
sua aproximação e relação com Deus. Mostra-lhe, distintamente, que não pode
chegar a Deus sobre a base de coisa alguma que pertença ou seja da natureza; e tem
de procurar fora de si mesmo, e na pessoa e obra de outrem, a base verdadeira e
eterna da sua ligação com o Deus santo, Verdadeiro e Justo.
O capítulo onze de Hebreus apresenta-nos o assunto do modo mais distinto e
compreensível. "Pela fé, Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim, pelo
qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons,
e por ela, depois de morto, ainda fala". Aqui é-nos dito que não foi de modo
nenhum uma questão quanto a homens, mas quanto aos seus sacrifícios — não foi
uma questão quanto ao ofertante, mas acerca da sua oferta. Aqui está a grande
diferença entre
Caim e Abel. O leitor não pode ficar indiferente quanto à compreensão deste fato,
pois que nele está envolvida a verdade quanto à posição de qualquer pecador
perante Deus.

A Oferta de Caim: o Fruto da Terra


E agora vejamos o que eram os sacrifícios. "E aconteceu, ao cabo de dias, que Caim
trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel também trouxe dos
primogênitos das suas ovelhas e da sua gordura; e atentou o SENHOR para Abel e
para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta não atentou" (Gn 4:3-5).
Esta passagem apresenta-nos claramente a diferença: Caim ofereceu ao Senhor o
fruto da terra amaldiçoada, e isso também sem sangue para remover a maldição:
apresentou um sacrifico incruento simplesmente porque não tinha fé. Tivesse ele
possuído esse princípio divino, e teria compreendido, mesma nessa época primeva,
que "sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22).
Esta é uma grande verdade. A pena do pecado é a morte.
Caim era pecador e, como tal, a morte estava entre si e o Senhor. Porém, na sua
oferta não havia reconhecimento algum deste fato. Não havia a apresentação de
uma vida sacrificada para cumprir as reivindicações da santidade divina ou
corresponder à sua verdadeira condição como pecador. Caim tratou o Senhor
como se Ele fosse inteiramente igual a si, que pudesse aceitar o fruto manchado de
pecado da terra amaldiçoada.
Tudo isto e muito mais se acha incluído no sacrifício incruento de Caim. Mostrou
absoluta ignorância com referência às exigências divinas, no tocante ao seu próprio
caráter e condição como pecador perdido e culpado e quanto ao estado verdadeiro
do terreno cujo fruto presumiu oferecer. Sem dúvida, a razão podia dizer, "que
sacrifício mais aceitável podia um homem oferecer do que aquele que ele tinha
produzido pelo labor das suas mãos e o suor do seu rosto?" A razão e a mente do
homem podem pensar dessa maneira; mas Deus pensa de uma maneira diferente; e
a fé pode estar sempre certa de concordar com os pensamentos de Deus. Deus
ensina, e a fé crê, que deve haver vida sacrificada, de contrário não pode haver
aproximação de Deus.
Desta forma, quando encaramos o ministério do Senhor Jesus, vemos,
imediatamente, que, se Ele não tivesse morrido na cruz, todo o Seu trabalho teria
sido inteiramente inútil quanto ao estabelecimento do nosso parentesco com Deus.
Na verdade, "Ele andou fazendo bem" toda a Sua vida; mas foi a Sua morte que
rasgou o véu (Mt 27:51). Nada senão a Sua morte o podia fazer. Se Ele tivesse
continuado, até este momento, "fazendo bem" o véu teria permanecido inteiro,
para impedir a aproximação de adoradores do "lugar santíssimo"?
Por isso podemos ver o terreno falso em que Caim se encontrava como ofertante e
adorador. Um pecador imperdoado vindo à presença do Senhor, para apresentar
um sacrifício incruento, só podia ser tido como culpado do maior grau de
presunção. E verdade que ele tinha trabalhado para produzir a sua oferta; mas que
quer isso dizer? i
Poderia o esforço de um pecador remover a mancha e maldição do pecado?
Poderia satisfazer as exigências de um Deus infinitamente santo?- Poderia
preparar um lugar adequado de aceitação do pecador? Poderia pôr de lado a pena
que era devida ao pecado? Poderia tirar o aguilhão da morte ou a sua vitória?
Poderia conseguir alguma ou todas estas coisas? Impossível. "Sem derramamento
de sangue não há remissão".
O sacrifício incruento de Caim, à semelhança de todo o sacrifício incruento, não só
era inútil como abominável, na apreciação divina. Não só mostrou completa
ignorância da sua condição, como também do caráter divino. "Deus não é servido
por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa". E todavia Caim
pensou que podia aproximar-se de Deus desta forma. E todo o mero religioso pensa
o mesmo. Caim tem tido muitos milhões de seguidores através dos séculos. O culto
de
Caim tem abundado em todo o mundo. É o culto de toda a alma inconvertida, e é
mantido por todo o sistema falso de religião abaixo do céu.
O homem faria de bom grado de Deus o recebedor em vez de dador; mas isto não
pode ser; porque "mais bem-aventurada coisa é dar do que receber" (At 20:35); e,
certamente, Deus deve ter o lugar mais bem-aventurado. "Ora, sem contradição
alguma, o menor é abençoado pelo maior" (Hb 7:7). "Quem lhe deu primeiro a
Ele?" (Rm 11:35). Deus pode aceitar a oferta mais simples dum coração que tenha
aprendido a verdade profunda que estas palavras encerram: da tua mão to damos"
(1 Cr 29:14). Contudo logo que o homem presume tomar o lugar do "primeiro"
dador, a resposta de Deus é, "se Eu tivesse fome, não to diria" (SI 50:12); porque
"Ele não é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa;
pois Ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas" (At 17:25).
O grande dador de "todas as coisas" não pode possivelmente necessitar de coisa
alguma. Louvor é tudo que podemos oferecer a Deus; mas isto só pode ser feito
com a compreensão plena e clara de que os nossos pecados estão todos tirados; o
que aliás só pode ser conhecido pela fé em virtude de uma expiação consumada.
O leitor pode fazer agora uma pausa e ler no espírito de oração as seguintes
passagens das Escrituras: Salmo 1, Isaías 1:11-18; e Atos 17:22-34; em todas as quais
encontrará distintamente estabelecida a verdade quanto à verdadeira posição do
homem perante Deus, bem como também à própria base de adoração.

O Sacrifício de Abel: os Primogênitos de Suas Ovelhas


Consideremos agora o sacrifício de Abel. "E Abel também trouxe dos primogênitos
das suas ovelhas e da sua gordura" (versículo 4). Por outras palavras, ele
compreendeu, pela fé, a gloriosa verdade que Deus podia ser aproximado por meio
de sacrifício; que havia a possibilidade de um pecador pôr a morte de outrem entre
si mesmo e as consequências do seu pecado, para que as exigências da natureza de
Deus e os tributos do Seu caráter pudessem ser satisfeitos pelo sangue de uma
vítima imaculada — uma vítima oferecida para cumprir as exigências de Deus, e as
profundas necessidades do pecador. Esta é, em breves palavras, a doutrina da cruz,
unicamente na qual a consciência do pecador pode encontrar descanso, porque
nela Deus é plenamente glorificado.
Todo o pecador divinamente convencido deve sentir que a morte e o julgamento
estão na sua frente, como "o justo galardão dos seus feitos"; nem tão-pouco pode,
por coisa alguma que possa cumprir, alterar esse destino. Pode afadigar-se e
trabalhar; pode, com o suor do seu rosto, produzir uma oferta; pode fazer votos e
tomar resoluções; pode alterar o seu modo de vida; pode reformar o seu caráter;
pode ser moderado, moral, reto, e, na aceitação humana da palavra, religioso; pode,
embora inteiramente destituído de fé, ler, orar, e ouvir sermões. Enfim, pode fazer
qualquer coisa, ou tudo que está dentro do alcance da competência humana;
porém, não obstante tudo isso, "a morte e o juízo" estão na sua frente. Não pode
dispersar essas duas nuvens carregadas que se formaram no horizonte.
Permanecem ali; e, longe de poder removê-las, ou tirá-las, por meio de todos os
seus esforços, só pode viver na antecipação do momento sombrio em que elas se
precipitarão sobre a sua cabeça culpada. E impossível ao pecador, por suas próprias
obras, colocar-se a si próprio na vida e triunfo, do outro lado da "morte e juízo" —
de fato, as suas próprias obras são realizadas apenas com o propósito de o preparar,
se for possível, para essas realidades temidas.
Aqui, contudo, é precisamente onde a cruz entra. Nessa cruz o pecador convicto
pode ver a provisão divina para toda a sua culpa e necessidades. Ali, também, pode
ver a morte e o julgamento retirados inteiramente da cena, e a vida e glória
estabelecidas em seu lugar. Cristo tirou as perspectivas da morte e do julgamento,
tanto quanto diz respeito ao verdadeiro crente, e enche-o de vida, dá-lhe justiça e
glória. Ele "aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho" (2
Tm 1:10); glorificou a Deus tirando aquilo que nos conservaria separados para
sempre da Sua santa e bem-aventurada presença, e aniquilou o pecado; por isso o
pecado foi tirado (Hb 9:26). Tudo isto é apresentado, em figura, no sacrifício de
Abel. Não houve intenção da parte de Abel em pôr de lado a verdade quanto à sua
própria condição e lugar como pecador culpado — não tentou afastar a espada
inflamada e forçar o seu caminho de regresso à árvore da vida; nem fez a oferta
insolente dum "sacrifício incruento", nem ofereceu ao Senhor os frutos duma terra
amaldiçoada: ele tomou a verdadeira posição de pecador, e, como tal, pôs a morte
de uma vítima entre si e os seus pecados, e entre estes e a santidade de um Deus
santo. Tudo isto era muito simples. Abel merecia a morte e juízo, porém achou um
substituto.
Assim é com todo o pecador contrito, perdido, e cônscio da sua culpa. Cristo é o
seu substituto, o seu maior sacrifício: TUDO. Ele descobrirá, à semelhança de Abel,
que o fruto da terra nunca lhe poderá valer; que ainda que pudesse oferecer a Deus
os mais deliciosos frutos da terra, ficaria com a consciência manchada de pecado.
Visto que "sem derramamento de sangue não há remissão". Os frutos mais
deliciosos, e as flores mais fragrantes, na maior das profusões, não podiam tirar
uma simples nódoa da consciência. Nada senão o sacrifício perfeito do Filho de
Deus pode dar sossego ao coração e à consciência. Todo aquele que pela fé se
assegura dessa realidade divina gozará daquela paz que o mundo não pode dar nem
tirar. E a paz que põe a alma de posse desta paz. "Sendo, pois, justificados pela fé,
temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5:1). "Pela fé, Abel
ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim" (Hb 11:4).
Não se trata de uma questão de sentimentos, como muitos pensam. E inteiramente
uma questão de fé num fato consumado — fé dada à alma de um pecador por meio
do poder do Espírito Santo. Esta fé é alguma coisa completamente diferente do
mero sentimento do coração, ou do assentimento do intelecto. O sentimento não é
fé. O assentimento intelectual não é fé. Alguns fazem da fé o mero assentimento do
intelecto. Mas isto é terrivelmente falso. Faz da fé uma questão humana, ao passo
que é realmente divina. Põe-na ao nível do homem, ao passo que ela vem de Deus.
A fé não é uma coisa de hoje nem de amanhã. E um princípio imperecível,
emanando de uma origem eterna, a saber, do Próprio Deus; apossa-se da verdade
de Deus, e põe a alma na Sua presença.
O mero sentimento nunca poderá elevar-se acima da origem de onde emana; e essa
origem é a personalidade; porém, a fé trata com Deus e a Sua Palavra eterna, e é um
elo vivo ligando o coração que o possui com Deus que a dá. Os sentimentos e os
afetos humanos, por muito intensos que sejam, não podem ligar a alma com Deus.
Não são nem divinos nem eternos, mas humanos e evanescentes. São como a
aboboreira de Jonas: nascem numa noite e perecem durante ela. Não é assim a fé.
Esse princípio precioso participa de todo o valor, todo o poder, e toda a realidade
da origem de onde emana, e do objetivo com que tem de tratar. Justifica a alma
(Rm 5:l); purifica o coração (At 15:9); opera por amor (Gl 5:6); e vence o mundo (1
Jo 5:4). O sentimento e o afeto nunca poderiam conseguir tais resultados:
pertencem à natureza e à terra; a fé pertence a Deus e ao céu. O sentimento e o
afeto estão ocupados com a personalidade, a fé está ocupada com Cristo; aqueles
olham para baixo e no íntimo, a fé olha para fora e para cima; aqueles deixam a
alma em trevas e dúvidas, a fé leva-a para a luz e paz; ambos têm que tratar com a
própria condição incerta da pessoa, a fé tem que tratar com a verdade imutável de
Deus, e o sacrifício eterno de Cristo.
Sem dúvida, a fé produzirá sentimentos e afeição — sentimentos espirituais e
afetos verdadeiros—, todavia, os frutos da fé não devem ser confundidos com a
própria fé. Não somos justificados por sentimentos, nem tão-pouco pela fé e por
sentimentos, mas simplesmente pela fé. E por quê? Porque a fé crê no que Deus
diz; acredita na Sua Palavra; compreende-O tal qual Ele Se revelou na Pessoa e
Obra do Senhor Jesus Cristo. Isto é vida, justiça e paz. Conhecer a Deus como Ele é,
é a súmula de toda a bênção presente e eterna. Quando a alma encontra Deus,
encontra tudo que possivelmente necessita nesta vida ou na vida futura; contudo
Deus só pode ser conhecido por meio da Sua própria revelação, e pela fé que Ele
Próprio dá, e que, além disso, procura sempre a revelação divina como seu próprio
objetivo.
Um Sacrifício mais Excelente
Assim, podemos, pois, em certa medida, compreender o significado e poder do
relato, "pela fé, Abel ofereceu a Deus maior sacrifício do que Caim". Caim não
tinha fé, e, portanto, ofereceu um sacrifício incruento. Abel tinha fé, e, portanto,
ofereceu "o sangue e a gordura", os quais, em figura, mostram a apresentação da
vida, e também a excelência inerente da Pessoa de Cristo. "O sangue" manifesta a
primeira; enquanto que "a gordura" expõe a segunda. Tanto o sangue como a
gordura eram proibidos como alimento pela economia Mosaica. O sangue é a vida;
e o homem, debaixo da lei, não tinha direito à vida. Contudo, em João 6, somos
informados que, a não ser que comamos o sangue, não temos vida em nós mesmos.
Cristo é a vida. Não há uma centelha de vida fora d'Ele. Fora de Cristo é tudo
morte. "Nele estava a vida", e em nenhum outro (Jo 1:4).
Mas Ele deu a Sua vida na cruz; e a essa vida o pecado foi, por imputação, ligado,
quando o bendito Senhor foi pregado na cruz de maldição. Deste modo, dando a
Sua vida, Ele entregou, também, o pecado com ela ligado, de maneira que, o
pecado foi, eficientemente, tirado, tendo sido deixado na sepultura, donde o
Senhor ressuscitou triunfante, no poder de uma nova vida, à qual a justiça é tão
claramente ligada como o pecado o foi a essa vida que Ele deu na cruz. Isto
ajudar-nos-á a compreender uma expressão empregada pelo bendito Senhor
depois da Sua ressurreição, "um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que
eu tenho" (Lc 24:39). Ele não disse "carne e sangue"; porque na ressurreição Ele
não tomou, na Sua bendita Pessoa, o sangue que tinha derramado na cruz para
expiação pelo pecado. "A alma da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado
sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma: porquanto é o sangue que fará
expiação pela alma". (Lv 17:11). A atenção a este ponto terá o efeito de aprofundar
nas nossas almas a compreensão de como o pecado foi plenamente tirado pela
morte de Cristo; e sabemos que o que quer que for que contribua para aumentar a
nossa compreensão dessa realidade gloriosa deve, necessariamente, contribuir para
o estabelecimento da nossa paz, e para a mais eficiente elevação da glória de Cristo,
no que se refere à sua ligação com o nosso testemunho e serviço.
Já nos referimos a um ponto de muito interesse e valor na história de Caim e Abel,
a saber, a inteira identificação de cada um com o sacrifício que ofereceu. O leitor
não poderá certamente prestar atenção demasiada a esta verdade. A questão, em
cada caso, não era acerca da pessoa do ofertante; mas, inteiramente, quanto ao
caráter da sua oferta. Por isso, de Abel lemos que "Deus dá testemunho dos seus
dons". Deus não deu testemunho de Abel, mas sim do seu sacrifício; e isto
estabelece, claramente, o próprio fundamento da paz do crente e sua aceitação
perante Deus.
Existe uma tendência constante no coração para basear a nossa paz e aceitação
sobre alguma coisa em ou acerca de nós mesmos, até mesmo se admitimos que
alguma coisa é operação do Espírito Santo. Por isso levanta-se constantemente a
ideia de olharmos para o íntimo, ao passo que o Espírito Santo quer que olhemos
para fora. A questão para o crente não é, "o que sou eu? mas antes, "o que é
Cristo?". Havendo chegado a Deus "em nome de Jesus", está inteiramente
identificado com Ele, e aceite no Seu nome, e, além disso, não pode ser mais
rejeitado, assim como não o pode ser Aquele em cujo nome ele vem. Antes de se
poder levantar uma dúvida acerca do crente mais humilde tem que ser levantada
quanto a Cristo. O segundo caso é claramente impossível, e a segurança do crente
está estabelecida sobre um fundamento que nada pode abalar. Sendo por si mesmo
pobre, pecador indigno, ele veio em nome de Cristo, está identificado com Cristo,
aceito em e com Cristo — incluído no mesmo volume de vida com Cristo. Deus dá
testemunho, não dele, mas do seu dom, e o seu dom é Cristo. Tudo isto é
sumamente tranquilizador e consolador. É nosso privilégio podermos, na
confiança da fé, reportar a Cristo, e ao Seu sacrifício consumado, todas as objeções
e os opositores. Todas as nossas fontes estão n'Ele. N'Ele nos gloriamos todo o dia.
A nossa confiança não está em nós, mas n'Aquele que fez tudo por nós.
Dependemos do Seu nome, confiamos na Sua obra, temos os olhos fixos na Sua
Pessoa, e esperamos a Sua vinda.

A Irritação de Caim e o Homicídio de Abel


Porém, a mente carnal manifesta logo a sua inimizade contra toda esta verdade,
que tanto alegra e satisfaz o coração do crente. Foi assim com Caim: "E irou-se
Caim fortemente, e descaiu-lhe o seu semblante" (versículo 5). A mesma coisa que
enchia Abel de paz, encheu Caim de ira. Caim, na sua incredulidade, desprezou o
único meio pelo qual um pecador pode vir a Deus. Recusou oferecer sangue, sem o
qual não pode haver remissão; e, então, porque não foi recebido nos seus pecados,
e porque Abel foi aceito na sua oferta, ele "irou-se" e descaiu-lhe o seu semblante.
E todavia como poderia ser de outra maneirai Ele tinha que ser recebido com os
seus pecados ou sem eles; mas Deus não pôde recebê-lo com eles, e ele recusou
trazer o sangue que somente faz expiação: e, portanto, foi rejeitado, e, sendo
rejeitado, manifesta nos seus atos os frutos da religião corrompida.
Perseguiu e assassinou a verdadeira testemunha — o homem aceito e justificado
—, o homem de fé; e, fazendo-o, ele encontra- -se como modelo e precursor de
todos os falsos religiosos, em todos os tempos. Em todas as épocas, e em toda a
parte, os homens têm-se mostrado mais prontos à perseguição sob o fundamento
da religião do que sobre qualquer outro. São como Caim. Justificação— plena,
perfeita, justificação inqualificada, somente pela fé, faz de Deus tudo, e do homem
nada: e o homem não gosta disto: faz com que o seu semblante descaia, e provoca a
sua ira. Não é que ele possa apresentar alguma razão para a sua ira; porque não é,
como temos visto, uma questão do homem, mas somente do fundamento em que
ele se aproxima de Deus. Se Abel tivesse sido recebido sobre o fundamento de
alguma qualidade que houvesse em si, então, na verdade, a ira de Caim, com o seu
semblante descaído, teria algum fundamento justo; porém, visto que foi recebido,
inteiramente, sobre o fundamento da sua oferta, e visto que não foi dele, mas da
sua oferta que o Senhor deu testemunho, a sua ira não tinha justificação possível.
Isto é revelado nas palavras do Senhor a Caim: "Se bem fizeres" (ou como a versão
dos LXX diz, se fizerdes uma oferta corretamente) "não haverá aceitação para ti"?
Fazer o bem dizia respeito à oferta. Abel andou bem escondendo-se atrás de um
sacrifício aceitável. Caim portou-se mal trazendo uma oferta em que não havia
derramamento de sangue; e todo o seu procedimento ulterior não foi senão o
resultado autêntico da sua falsa adoração.
__________
(1)A versão grega do Antigo Testamento (N. do T)

"E falou Caim com seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se
levantou Caim contra o seu irmão Abel e o matou". Assim tem sido sempre: os
Cains têm perseguido e matado os Abéis. Em todos os tempos, o homem e a sua
religião são os mesmos; a fé e a sua religião são as mesmas: e onde quer que se têm
encontrado, tem havido conflito.
Contudo, é bom notar que o ato de assassínio praticado por Caim foi a verdadeira
consequência — o próprio fruto — da sua falsa religião. Os seus fundamentos eram
maus, e a superestrutura edificada sobre eles era também má. Nem tão-pouco ficou
satisfeito com o ato de assassínio; mas tendo ouvido a sentença de Deus,
desesperado sem o perdão, por sua ignorância de Deus, saiu da Sua presença
bendita, e edificou uma cidade e teve na sua família os inventores e apreciadores
das ciências úteis e ornamentais — agrônomos, músicos e mestres de toda a obra de
metais.
Por ignorar o caráter divino, ele disse que o seu pecado era grande demais para ser
perdoado. Não era que reconhecesse realmente o seu pecado, mas que não
conhecia a Deus. Mostrou inteiramente o fruto terrível da queda no próprio
pensamento que proferiu acerca de Deus. Não queria o perdão, porque não queria
Deus. Não tinha o verdadeiro sentido da sua própria condição; nem desejo de
Deus; nem entendimento do terreno de aproximação do pecador de Deus. Era
radicalmente corrupto — fundamentalmente mau; e tudo que desejava era fugir da
presença de Deus e perder-se no mundo com as suas ocupações. Pensou que podia
viver muito bem sem Deus, e portanto dispôs- se a aformosear o mundo, tanto
quanto pôde, com o fim de o tornar um lugar aprazível, e ele próprio um homem
digno de respeito nele; embora aos olhos de Deus o mundo estivesse debaixo da
maldição, e ele fosse um fugitivo e vagabundo.
O Caminho de Caim
Tal era "o caminho de Caim", caminho no qual milhões estão correndo, neste
momento. Tais pessoas não são, de modo nenhum, destituídas do elemento
religioso no seu caráter. Gostariam de oferecer alguma coisa a Deus e de fazer
alguma coisa para Ele. Julgam que é próprio apresentar-Lhe os resultados do seu
labor. Desconhecem-se a si próprios, e vivem na ignorância do caráter de Deus.
Porém a par de tudo isto existe o esforço diligente de melhorar o mundo; de tornar
a vida agradável em vários modos; de adornar a cena com as cores mais belas. O
remédio de Deus para purificação do pecado é rejeitado, e os esforços do homem
para melhorar a sua condição são postos em seu lugar. Este é "o caminho de Caim"
(Judas 11).
O leitor tem apenas que olhar em redor de si para ver como este "caminho"
prevalece na atualidade. Embora o mundo esteja manchado com o sangue de "um
maior do que Abel", o próprio sangue de Cristo, vede como o homem procura
torná-lo um lugar agradável! Como aconteceu nos dias de Caim, em que os sons
agradáveis da "harpa e do órgão", sem dúvida, abafavam, aos ouvidos do homem,
completamente o clamor do sangue de Abel. Assim também agora o ouvido do
homem é enchido com outros sons, em vez daqueles que emanam do Calvário; e os
seus olhos são atraídos por outro objeto que não um Cristo crucificado. Os recursos
do seu gênio são também empregados para fazer deste mundo uma estufa na qual
são produzidos, na sua forma mais rara, todos os frutos que a natureza tanto deseja.
E não somente são as necessidades reais do homem, como criatura, supridas, como
o gênio inventivo da mente humana é posto a trabalhar com o fim de descobrir
coisas que, logo que os olhos as veem, o coração deseja-as, e não somente as deseja,
mas julga que a vida seria insuportável sem elas.
Assim, por exemplo, há alguns anos, as pessoas sentiam-se satisfeitas por gastar
dois ou três dias numa viagem de cem milhas; ao passo que agora podem fazê-la em
três ou quatro horas,(1) e não somente isso, mas lamentar-se-ão tristemente se
tiverem de chegar cinco ou dez minutos atrasados. Com efeito, o homem tem que
evitar o incômodo da vida. Deve viajar sem fadiga, e ouvir notícias sem ter de
dispender paciência com elas. Colocará linhas férreas através da terra, e linhas
telefônicas abaixo do mar, como se quisesse antecipar, do seu próprio modo, esse
bendito e glorioso século em que "não haverá mais mar"(2).

(1) O autor escreveu a sua obra no século XVIII, quando muitas das invenções que
são do nosso conhecimento não passavam sequer pela mente do homem (N. do T.).
(2) Na verdade, Deus usa todas essas coisas para o progresso dos Seus próprios
desígnios; e o servo do Senhor pode usá-las também livremente; porém isto não
nos impede de ver o espírito que as caracteriza
Em complemento de tudo isto, existe muita religião, assim chamada; mas, ah! a
própria caridade é obrigada a alimentar a apreensão de que muito daquilo que
passa por ser religião é apenas um parafusinho na grande máquina que foi
construída para conveniência do homem e sua exaltação. O homem não pode viver
sem religião. Não seria respeitável sem ela: e, portanto, fica contente em consagrar
um sétimo do seu tempo à religião; ou, como ele pensa e professa, aos seus
interesses eternos; e então tem seis-sétimos para consagrar aos seus interesses
temporais; mas quer trabalhe para o tempo, quer para a eternidade, é realmente
para si próprio que trabalha. Tal é, pois, "o caminho de Caim". Que o leitor não
deixe de meditar bem no assunto. Veja onde este caminho começa, para onde
conduz, e onde acaba.
Como é diferente o caminho do homem da fé! Abel sentiu e reconheceu a
maldição; viu a nódoa do pecado, e, na energia santa da fé, ofereceu aquilo que
podia enfrentá-lo, e enfrentá-lo perfeitamente — do modo divino. Buscou e achou
um refúgio em Deus; e em vez de edificar uma cidade na terra, ele achou apenas
uma sepultura nas suas entranhas. A terra, em cuja superfície se manifestaram as
energias e o gênio de Caim e sua família, estava manchada com o sangue de um
justo. Que o homem do mundo se não esqueça disto; lembre-se disto o homem de
Deus; que o crente mundano se recorde deste fato. A terra que trilhamos está
manchada com o sangue do filho de Deus. O mesmo sangue que justifica a Igreja
condena o mundo. A sombra carregada da cruz de Jesus pode ser vista pelo olhar
da fé, pairando sobre todo o brilho e resplendor deste mundo evanescente. "O
mundo passa". Em breve terá tudo acabado, tanto quanto diz respeito ao estado
atual de coisas. Ao "caminho de Caim" seguir-se-á "o engano de Balaão", na sua
forma consumada; e então virá "a contradição de Coré". E depois? "O abismo"
abrirá a sua boca para receber os ímpios, e fechá-la-á outra vez, para os encerrar na
"negrura das trevas" (Judas 13).

CAPÍTULO 5

O REINADO DA MORTE

Em confirmação do que atrás fica dito podemos passar uma vista de olhos ao
capítulo 5 e encontrarmos nele o relato humilhante da fraqueza do homem e sua
sujeição ao domínio da morte. Ele podia viver centenas de anos e gerar "filhos e
filhas"; mas, por fim, tinha que ser escrito que "morreu". "A morte reinou desde
Adão até Moisés". E, mais, "aos homens está ordenado morrerem uma vez". O
homem não pode vencer esta lei. Não pode, por meio do vapor, da eletricidade ou
coisa alguma mais ao alcance do seu gênio, desarmar a morte do seu aguilhão
terrível. Não pode, por sua energia, pôr de lado a sentença de morte, embora possa
produzir os confortos e prazeres da vida.
Mas donde veio esta coisa estranha e temível, a morte? Paulo dá-nos a resposta a
esta pergunta: "... por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte" (Rm 5:12). Aqui temos a origem da morte. Veio pelo pecado. O pecado
quebrou em dois o elo que ligava a criatura ao Deus vivo; e, isto feito, ela foi
entregue ao domínio da morte, do qual domínio não tinha poder algum para se
libertar. E isto, note-se, é uma das muitas provas do fato da impossibilidade do
homem para se encontrar com Deus. Não pode comunhão entre Deus e o homem,
salvo no poder da vida; mas o homem está debaixo do poder da morte; por isso, não
pode haver comunhão com base em meios naturais.
A vida não pode ter comunhão com a morte, assim como não há comunhão entre a
luz e as trevas, a santidade e o pecado. O homem tem que se encontrar com Deus
num terreno absolutamente novo, e sobre um novo princípio, a saber, a fé; e esta fé
habilita-o a reconhecer a sua própria posição de "vendido ao pecado", e, portanto,
sujeito à morte; enquanto que, ao mesmo tempo, habilita-o a compreender o
caráter de Deus, como o dador de uma nova vida—vida para além do poder da
morte—uma vida que nunca pode ser tocada pelo inimigo, nem perdida por nós.
E isto o que caracteriza a segurança da vida do crente. Cristo é a sua vida — um
Cristo ressuscitado e glorificado —, um Cristo vitorioso sobre todas as coisas que
podiam ser contra nós. A vida de Adão era fundada sobre a sua própria obediência;
e, portanto, quando desobedeceu perdeu o direito à vida. Porém, Cristo, tendo vida
em Si Mesmo, veio ao mundo, e satisfez inteiramente todas as circunstâncias do
pecado do homem, de todos os modos possíveis; e, submetendo-Se à morte,
destruiu aquele que tinha o seu império, e, na ressurreição, torna-se a vida e justiça
de todos os que creem no Seu excelente nome.
Ora, é impossível que Satanás possa tocar nesta vida, quer seja na sua origem, no
seu meio, o seu poder, a sua espera, ou a sua duração. Deus é a sua origem; Cristo
ressuscitado é o seu meio; o Espírito Santo, o seu poder; o céu é a sua esfera; e a
eternidade a sua duração. Por isso, como podia esperar-se, para aquele que possui
esta maravilhosa vida toda a cena é alterada; e, enquanto, em certo sentido, tem
que ser dito, "no meio da vida estamos na morte", todavia, noutro sentido, pode
dizer-se, "no meio da morte estamos na vida". Não há morte na esfera em que o
Cristo ressuscitado introduz o Seu povo. Como podia haver? Não a aboliu Ele? Não
pode ser uma coisa abolida e existente ao mesmo tempo, e para as mesmas pessoas;
a Palavra de Deus diz- nos que foi abolida. Cristo esgotou a cena da morte, e
encheu-a de vida; e, portanto, não é a morte, mas a glória que está em frente do
crente. A morte está atrás dele, e atrás dele para sempre. Quanto ao futuro, é todo
de glória—glória sem nuvens. É verdade que pode muito bem ser que ele tenha de
adormecer — "dormir em Jesus" — mas isso não é morte, mas "vida em atividade".
O próprio fato de partir para estar com Cristo não pode alterar a esperança
específica do crente, a qual é encontrar Cristo nos ares, para estar com Ele, e ser
semelhante a Ele, para sempre.

Enoque não Passou pela Morte


Em Enoque temos uma exemplificação perfeita de tudo isto; o qual é a única
exceção à regra do capítulo 5. A regra é, "morreu"; a exceção é, "para não ver a
morte". "Pela fé, Enoque foi trasladado para não ver a morte e não foi achado,
porque Deus o trasladara; visto como, antes da sua trasladação, alcançou
testemunho de que agradara a Deus" (Hb 11:5). Enoque foi "o sétimo desde Adão";
e é profundamente interessante vermos que à morte não foi permitido triunfar
sobre "o sétimo"; mas que, no seu caso, Deus interveio e fez dele um troféu da Sua
própria vitória gloriosa sobre todo o poder da morte. O coração exulta, depois de
ter lido, seis vezes, o triste relato "e morreu", por descobrir que o sétimo não
morreu; e quando perguntamos, como se fez isto, a resposta é, "pela fé". Enoque
viveu na fé da sua trasladação, e andou com Deus trezentos anos. Isto separava-o,
praticamente, de tudo à sua volta. Andar com Deus deve, necessariamente, pôr
uma pessoa fora da esfera dos pensamentos deste mundo. Enoque cumpriu isto;
porque, nos seus dias, o espírito do mundo era manifesto; e era, também como
agora, oposto a tudo que era de Deus. O homem de fé sentia que nada tinha a fazer
com o mundo, salvo ser uma testemunha paciente nele da graça de Deus, e do juízo
vindouro. Os filhos de Caim podiam gastar as suas energias num esforço vão de
melhorar o mundo amaldiçoado, mas Enoque achou um mundo melhor, e viveu
no poder dele(1). A sua fé não lhe foi dada para melhorar o mundo, mas para andar
com Deus.

(1) É evidente que Enoque não sabia nada quanto ao modo de "fazer o melhor dos
dois mundos". Para ele havia apenas um mundo. Assim devia ser conosco.
Oh! quanta coisa se acha compreendida nestas três palavras, "andou com Deus"!
Que separação e renúncia própria! Que santidade e beleza moral! Que graça e
afabilidade! Que humildade e ternura! E, todavia, que zelo e energia! Que
paciência e longanimidade! E, contudo, que fidelidade e decisão firme! Andar com
Deus abrange tudo que está dentro dos limites da vida divina, quer seja ativa ou
passiva. Compreende o conhecimento do caráter de Deus tal qual Ele o revelou.
Implica também a compreensão do parentesco que temos com Ele. Não se trata da
mera maneira de viver de regras e regulamentos; nem de elaborar planos de ação;
nem tão-pouco de resoluções de andar cá e lá, fazer isto ou aquilo. Andar com
Deus é muito mais do que qualquer ou todas estas coisas. Além disso, pode por
vezes levar- -nos contrariamente aos pensamentos dos homens, e até mesmo dos
nossos irmãos, se eles próprios não estiverem andando com Deus. Pode, por vezes,
acarretar-nos a acusação de trabalharmos demais; por outras vezes, de fazermos
muito pouco. Porém, a fé que nos habilita a andar "com Deus" habilita-nos
também a ligar o valor próprio aos pensamentos do homem.

A Esperança da Igreja
Assim, temos em Abel e Enoque instrução valiosa quanto ao sacrifício sobre o qual
descansa a fé; e quanto às perspectivas que a fé agora antevê; ao passo que, ao
mesmo tempo, andar "com Deus", abrange todos os pormenores da vida atual que
se acham entre estes dois pontos. "O SENHOR dará graça e glória"; e entre a graça
que se revelou e a glória que há-de ser revelada existe a certeza feliz de que "o
SENHOR não negará bem algum aos que andam na retidão" (SI 84:11).
Tem sido dito que "a cruz e a vinda do Senhor no términus da existência da Igreja
na terra", e este términus, são prefigurados no sacrifício de Abel e na trasladação de
Enoque. A Igreja conhece a sua justificação perfeita pela morte e ressurreição de
Cristo, e espera pelo dia em que Ele há-de vir para a levar para Si mesmo. Ela, "pelo
Espírito da fé", aguarda a esperança da justiça (G1 5:5). Não espera por justiça,
tanto mais que ela, pela graça, já a tem; mas aguarda a esperança que pertence
propriamente à condição em que ela foi introduzida.
O leitor deve procurar estar ciente quanto a isto. Alguns expositores da verdade
profética, não vendo o lugar específico da Igreja, a sua porção e esperança,
cometem erros tristes. Com efeito, lançam nuvens tão carregadas e neblina tão
densa em volta da "estrela resplandecente da manhã", que é a própria esperança da
Igreja, que muitos santos, no presente, parecem não poder chegar acima da
esperança do remanescente de Israel, a qual consiste em ver nascer "o Sol da
Justiça" trazendo salvação debaixo das suas asas (Ml 4:2). Nem tão-pouco isto é
tudo. Muitíssimas pessoas têm sido privadas do poder moral da esperança do
aparecimento de Cristo por meio do ensinamento que têm recebido para
esperarem vários acontecimentos e circunstâncias antes da Sua manifestação à
Igreja. A restauração dos Judeus, o progresso da imagem de Nabucodonosor, a
revelação do homem do pecado — todas estas coisas, argumenta-se, devem ter
lugar antes de Cristo vir. Que isto não é verdade pode ser comprovado por muitas
passagens do Novo Testamento, se fosse este o lugar próprio para as apresentar.
A Igreja, à semelhança de Enoque, será tirada do meio do mal que a rodeia, e do
mal que há-de vir. Enoque não foi deixado para ver o mal do mundo elevar-se ao
máximo, e o juízo de Deus desencadeado sobre ele. Não viu como "se romperam
todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram". Foi levado antes
de ter ocorrido qualquer destas coisas; e apresenta- se perante o olhar da fé como
um símbolo encantador daqueles que não dormirão, mas que serão transformados,
"num momento, num abrir e fechar de olhos" (1 Co 15:51-52). Trasladação, e não
morte, era a esperança de Enoque; e, quanto à esperança da Igreja, é expressa,
rapidamente, pelo apóstolo do seguinte modo: "Esperar dos céus a Seu Filho" (1 Ts
1:10). O crente mais simples e menos letrado pode compreender e gozar esta
esperança. Pode também, em certa medida, experimentar e manifestar o seu poder.
Pode não poder estudar profecia, mas pode, bendito seja Deus, provar a
bem-aventurança, a realidade, o conforto, o poder, e virtude elevada e separada
dessa esperança celestial que propriamente lhe pertence, como membro desse
corpo celestial, a Igreja; cuja esperança não é apenas ver o "Sol da Justiça", por mais
bem-aventurada que possa ser no seu próprio lugar, mas ver "a estrela da manhã"
(Ap 2:28). E assim como no mundo a estrela da manhã é vista por aqueles que a
esperam, antes do sol nascer, do mesmo modo Cristo, como a Estrela da manhã,
será visto pela Igreja, antes que o remanescente de Israel possa ver os raios do "Sol
da Justiça".

CAPÍTULOS 6 A 9

O DILÚVIO E NOÉ

A Condição do Homem perante Deus


Chegamos agora a uma parte profundamente importante e fortemente acentuada
deste livro. Enoque tinha desaparecido da cena. A sua carreira, como estrangeiro
na terra, tinha terminado com a trasladação para o céu. Ele fora levado antes que a
maldade humana tivesse atingido o seu máximo, e, portanto, antes do julgamento
divino ter sido desencadeado. A pouca influência que a sua carreira e trasladação
tiveram sobre o mundo é evidente pelos primeiros dois versículos do capítulo 6: "E
aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra,
e lhes nasceram filhas; viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram
formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram".
A mistura daquilo que é de Deus com o que é do homem é uma forma especial do
mal, e um instrumento eficiente nas mãos de Satanás para manchar o testemunho
de Cristo na terra. Este amálgama pode frequentemente ter a aparência de alguma
coisa muito agradável; pode muitas vezes parecer uma promulgação mais ampla
daquilo que é de Deus — uma saída plena e vigorosa de influência divina —,
alguma coisa em que nos devemos regozijar em vez de nos lamentarmos: todavia, o
nosso juízo quanto a isto dependerá inteiramente do ponto de vista em que
encararmos o assunto. Se o considerarmos à luz da presença de Deus, não podemos
possivelmente imaginar que se ganha vantagem quando o povo de Deus se mistura
com os filhos do mundo; ou quando a verdade de Deus é corrompida pela mistura
humana. Este não é o método divino de proclamar a verdade, ou de promover os
interesses daqueles que deveriam ocupar o lugar de Suas testemunhas na terra.
Separação de todo o mal é o princípio de Deus; e este princípio nunca pode ser
violado sem grave prejuízo para a verdade.
Na narrativa que agora temos presente, vemos que a união dos filhos de Deus com
as filhas dos homens levou às mais desastrosas consequências. É verdade que o
fruto dessa união parecia muitíssimo lícito, segundo o critério do homem, como
lemos, "estes eram os valentes que houve na antiguidade, os varões de fama";
todavia, o parecer de Deus era completamente diferente. Ele vê não como o
homem vê. Os Seus pensamentos não são os nossos pensamentos.
"E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que
toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente". Tal
era a condição do homem perante Deus — só má —, "má continuamente". Isto
quanto à mistura do que era puro com o que era profano. Assim terá de ser sempre.
Se a semente santa não mantiver a sua pureza, tudo será perdido, no que diz
respeito ao testemunho na terra. O primeiro esforço de Satanás foi frustrar o
propósito de Deus matando a semente santa; e quando falhou nesse intuito
procurou alcançar os seus fins corrompendo-a.
Ora, é do maior interesse que o leitor compreenda inteiramente o alvo, o caráter e
o resultado desta união entre "os filhos de Deus" e "as filhas dos homens". Existe
grande perigo, nos nossos dias, de se comprometer a verdade por amor da união.
Devemos estar precavidos contra isto. Não pode conseguir-se verdadeira união à
custa da verdade. O verdadeiro lema do Cristão deve ser sempre manter a verdade
a todo o custo; se a união puder ser conseguida deste modo, tanto melhor, mas
deve manter-se a verdade. O princípio da conveniência, pelo contrário, deve ser
assim denunciado: promover a união a todo o preço; se a verdade puder ser
também mantida, tanto melhor, mas promova-se a união. Este último princípio só
poderá ser conseguido à custa de tudo quanto é divino no caminho do
testemunho(1). Não pode haver, evidentemente, verdadeiro testemunho onde a
verdade é perdida; e por isso, no caso do mundo pré-diluviano, vemos a união
ilícita entre o que é santo e o que é profano — entre o que era divino e o que era
humano, e que apenas teve o efeito de elevar o mal ao máximo, e então seguiu- se o
juízo de Deus.
__________
(1) Devemos ter sempre em vista que "a sabedoria que do alto vem é,
primeiramente, pura, depois pacífica". (Tg. 3:17). A sabedoria que é de baixo põe
primeiramente pacífica, e, portanto, nunca pode ser pura.

"E disse o SENHOR: Destruirei". Nada menos do que isto produziria efeito. Tinha
de haver inteira destruição daquilo que havia corrompido o caminho de Deus na
terra. "Os valentes, os varões de fama", tinham de ser varridos da terra, sem
distinção, "...toda a carne" tinha de ser posta de lado, como imprópria para Deus.
"O fim de toda a carne é vindo perante a minha face". Não era apenas o fim de
alguma carne; não, toda estava corrompida, à vista do Senhor — toda era
irremediavelmente má. Havia sido experimentada, e fora achada em falta; e o
Senhor anuncia o Seu remédio a Noé nestas palavras: "Faze para ti uma arca de
madeira de Gofer."

A Fé de Noé
Noé foi assim posto ao corrente dos pensamentos de Deus quanto a tudo à sua
volta. O efeito da Palavra de Deus foi pôr a descoberto as raízes de tudo aquilo em
que o olhar do homem podia descansar com complacência e vaidade.
O coração humano podia inchar-se de orgulho, e o seio suspirar com emoção, à
medida que os olhos contemplavam a classe brilhante dos homens de arte, homens
de talento, "os valentes", e "varões de fama". O som da harpa e do órgão pedia
comoção à alma, enquanto que, ao mesmo tempo, a terra era cultivada e as
necessidades do homem eram supridas de forma a contradizer todo o pensamento
acerca do juízo que se aproximava. Mas, oh! aquelas palavras, "destruirei"! Que
obscuridade sombria lançavam sobre aquela cena fulgurante! Não poderia o gênio
do homem inventar um meio de salvação? Não podiam "os valentes" libertar-se
pela sua muita forçai Ah! não! Havia um meio de escapar, porém tinha sido
revelado à fé, não à vista—não à razão, nem à imaginação.
"Pela fé, Noé, divinamente avisado das coisas que ainda não se viam, temeu, e, para
salvação da sua família, preparou a arca, pela qual condenou o mundo, e foi feito
herdeiro da justiça que é segundo a fé" (Hb 11:7).
A Palavra de Deus faz com que a Sua luz brilhe sobre tudo aquilo por que o coração
humano é enganado. Remove, completamente, o brilho com que a serpente cobre
um mundo frívolo, enganador e passageiro, sobre o qual pende a espada do juízo
divino. Porém, é somente a "fé" que pode ser "avisada" por Deus, quando as coisas
de que Ele fala ainda se não veem. A natureza é governada por aquilo que vê — é
governada pelos seus sentidos. A fé é governada pela Palavra pura de Deus —
inestimável tesouro neste mundo sombrio! —; isto dá estabilidade, sejam quais
forem as aparências exteriores. Quando Deus falou a Noé do julgamento pendente
não havia sintoma dele. Fazia parte das coisas que se não viam. Contudo, a Palavra
de Deus tornou-o uma realidade presente para o coração que era capaz de juntar
essa palavra com a fé. A fé não precisa ver uma coisa, antes de crer, porque "a fé é
pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus" (Rm 10:17).
Tudo que o homem de fé precisa saber é que Deus tem falado; isto dá perfeita
certeza à sua alma. "Assim diz o Senhor" resolve tudo. Uma simples linha da
Sagrada Escritura é resposta abundante para toda a argumentação e todas as
fantasias da mente humana; e quando se tem a Palavra de Deus como base das
convicções pode-se aguentar calmamente a maré cheia de opinião e dos
preconceitos humanos. Foi a Palavra de Deus que fortaleceu o coração de Noé
durante a sua longa carreira de serviço; e essa mesma Palavra tem fortalecido
milhões de santos, desde esse dia até ao presente, em face das contradições do
mundo.
Por isso, nunca poderemos dar valor demasiado à Palavra de Deus. Sem ela, tudo é
incerteza; com ela tudo é luz e paz. Onde ela brilha, marca para o homem de Deus
um trilho seguro e abençoado; onde ela não brilha, fica-se atônito no meio da
confusão da perplexidade da tradição. Como poderia Noé ter pregado a justiça,
durante 120 anos, se não tivesse tido a Palavra de Deus como o fundamento da sua
pregação?- Como poderia ele ter resistido ao escárnio e ao sarcasmo do mundo
infiel? Como podia ele ter perseverado em testificar do "juízo futuro", quando nem
sequer uma nuvem tinha aparecido no horizonte do mundo? Impossível. A Palavra
de Deus era o fundamento em que ele se apoiava, e "o Espírito de Cristo"
habilitava-o a ocupar, com santa decisão, esse terreno elevado e inabalável.

A Arca, Imagem da Cruz de Cristo


E agora, prezado leitor, que temos nós mais com que permanecer, no serviço de
Cristo, em tempos trabalhosos como os atuais? Nada, certamente; nem nós
necessitamos de alguma coisa mais. A Palavra de Deus e o Espírito Santo, por
intermédio de Quem a Palavra pode somente ser compreendida, empregados ou
usados são tudo que precisamos para estarmos perfeitamente equipados —
preparados para "toda a boa obra", seja qual for a classificação dessas obras (2 Tm
3:16-17). Que descanso para o coração! Que alívio para todas as fantasias de
Satanás e as quimeras humanas! A Palavra de Deus, pura, incorruptível e eterna!
Que os nossos corações O adorem pelo tesouro inestimável! Toda a imaginação dos
pensamentos do coração do homem era só má continuamente; porém, a Palavra de
Deus era o lugar simples de descanso para o coração de Noé. "Então, disse Deus a
Noé: O fim de toda carne é vindo perante a minha face... faze para ti uma arca de
madeira de Gofer". Aqui estava a ruína do homem, e o remédio de Deus. O homem
tinha sido autorizado a prosseguir na sua carreira até ao máximo limite, até que os
seus princípios e caminhos atingiram a maturidade. O fermento tinha levedado a
massa. O mal havia atingido o seu auge. "Toda a carne" se tinha tornado tão má que
já não podia ser pior; pelo que nada restava senão Deus destruí-lo totalmente; e, ao
mesmo tempo, salvar aqueles que foram achados segundo os Seus desígnios
eternos, ligados com "o oitavo" homem — o único justo que então existia.

As Águas do Juízo
Isto mostra-nos a doutrina da cruz de um modo intenso. Vemos ali,
imediatamente, o juízo de Deus abrangendo na Sua sentença a natureza e o seu
pecado; e, ao mesmo tempo, a revelação da Sua graça salvadora, em toda a sua
amplitude e adaptação perfeita àqueles que, segundo o juízo de Deus, têm chegado
ao ponto mais baixo da sua condição moral. "Com que o Oriente do alto nos
visitou" (Lc 1:78). Onde? Precisamente onde estamos, como pecadores. Deus
desceu até às profundezas da nossa ruína. Não existe um ponto em todo o estado do
pecador onde a luz desse bendito sol do Oriente do alto não tenha penetrado;
porém, se assim tem penetrado, deve, em virtude do que é, revelar o nosso
verdadeiro caráter. A luz deve julgar todas as coisas que lhe são postas; contudo, ao
mesmo tempo que o faz, dá também "conhecimento da salvação na remissão dos
pecados". A cruz, ao mesmo tempo que revela o juízo de Deus contra "toda a
carne", mostra a Sua salvação para o pecador perdido e culpado. O pecado é
perfeitamente julgado — o pecador perfeitamente salvo —, e Deus perfeitamente
revelado e inteiramente glorificado na cruz.
Se o leitor consultar, por um momento, a 1 Epístola de Pedro, encontrará muita luz
lançada sobre este assunto. No terceiro capítulo, versículos 18-22, lemos: "Porque
também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para
levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito;
no qual (Espírito) também foi e pregou (— por Noé —) aos espíritos (— agora —)
em prisão; os quais em outro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de
Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto
é, oito) almas se salvaram pela água, que também, como uma verdadeira figura,
agora vos salva, batismo, não do despojamento(1), da imundícia da carne, mas da
indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus
Cristo; o qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado
os anjos e as autoridades e as potências".
__________
(1) E impossível sobreestimar a sabedoria do Espírito Santo, como é vista na
maneira como trata da ordenação do batismo, na passagem acima. Conhecemos o
mau uso que se tem feito do batismo; conhecemos o lugar falso que tem obtido nos
corações de muitos; conhecemos como a eficácia que somente pertence ao sangue
de Cristo tem sido atribuída ao batismo da água; sabemos como a graça
regeneradora do Espírito Santo tem sido transferida para o batismo da água; e, com
o conhecimento de tudo isto, não podemos senão ser despertados com o modo com
que o Espírito de Deus guarda o assunto, frisando que não é a mera lavagem da
impureza da carne com água, mas a resposta de uma boa consciência para com
Deus, cuja resposta temos, não por meio do batismo, por muito importante que
possa ser, como uma ordenação do reino, mas pela ressurreição de Jesus Cristo, o
qual foi entregue por nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação.
O batismo, escusado será dizer, como uma ordenação de instituição divina, e no
seu lugar divinamente apontado, é muito importante e profundamente
significativo; porém, quando encontramos homens, de um modo ou de outro,
pondo a figura no lugar da substância, somos obrigados a expor a obra de Satanás à
luz da Palavra de Deus.
Esta passagem é muito importante. Coloca a doutrina da arca e a sua ligação com a
morte de Cristo claramente perante nós. Como no dilúvio, também na morte de
Cristo todas as vagas e ondas do julgamento divino passaram por cima daquilo que,
em si, era sem pecado. A criação foi sepultada debaixo do dilúvio da justa ira do
Senhor; e o Espírito de Cristo exclama: "... todas as tuas ondas e vagas têm passado
sobre mim" (SI 42:7). Aqui está uma verdade profunda para o coração e
consciência do crente. "Todas as ondas e vagas" de Deus passaram sobre a
imaculada Pessoa do Senhor Jesus, quando Ele foi crucificado na cruz; e como
bendita consequência nenhuma delas ficou para passar sobre a pessoa do crente.
No Calvário vemos, em boa verdade, romperem-se todas as fontes do grande
abismo, e as janelas do céu abrirem-se. "Um abismo chama outro abismo, ao ruído
das tuas catadupas" (SI 42:7). Cristo bebeu o cálix, e suportou a ira. Pôs-se a Si
Próprio, judicialmente, sob o peso de todas as responsabilidades do Seu povo, e
rasgou-os gloriosamente. O conhecimento deste fato dá paz duradoura à alma. Se o
Senhor Jesus enfrentou tudo que era contra nós, se tirou do caminho todo o
obstáculo, se tirou o pecado, se Ele esgotou o cálix da ira e julgamento por nós, se
afastou toda a possibilidade de nuvens, não devemos nós gozar de paz duradoura?
Indubitavelmente. Paz é a nossa porção inalienável. A nós pertence-nos a
bem-aventurança santa e incontável que o amor pode dar-nos sobre a base da obra
de Cristo consumada.

O Senhor Tranca a Porta da Arca: Perfeita Segurança para Noé


Noé sentiu alguma ansiedade quanto às ondas do julgamento divino? Nenhuma
absolutamente. Como poderia ele tê-la? Sabia que "tudo" tinha sido desencadeado,
enquanto ele próprio havia sido levantado, por essas mesmíssimas catadupas, a
uma região de paz sem nuvens: flutuou em paz sobre a própria água mediante a
qual "toda a carne" foi julgada: foi posto em lugar fora do alcance do julgamento; e
posto ali, também, pelo Próprio Deus. Podia ter dito, na linguagem vitoriosa de
Romanos 8, "Se Deus é por nós, quem será contra nós?-" tinha sido convidado pelo
próprio Senhor, como lemos em capítulo 7:1, "Entra tu e toda a tua casa na arca"; e
depois de ter tomado o seu lugar nela, lemos, "e o SENHOR a fechou por fora".
Aqui estava, sem dúvida, segurança perfeita para todos os que estavam dentro da
arca. O Senhor guardava a porta e ninguém podia entrar na arca nem sair dela sem
Sua permissão. Havia uma porta e uma janela na arca. O Senhor fechou a porta
com a Sua mão onipotente, e deixou a janela aberta para que Noé pudesse olhar
para o lugar de onde tinha emanado todo o julgamento, e ver que não restava
julgamento para si. A família salva só podia olhar para cima, porque a janela era
"em cima" (capítulo 6:16). Nenhum deles podia ver as águas do julgamento, nem a
morte e desolação que essas águas haviam causado. A salvação de Deus — a
"madeira de Gofer" — estava entre eles e todas estas coisas. Por isso só tinham que
contemplar um céu sem nuvens, o lugar eterno de habitação d'Aquele que tinha
condenado o mundo, e os tinha salvo.
Nada pode ilustrar melhor a segurança perfeita do crente em Cristo do que essas
palavras, "e o Senhor o fechou por fora". Quem pode abrir o que Deus fechai
Ninguém. A família de Noé estava tão segura quanto Deus podia torná-la. Não
havia poder, angélico, humano, ou diabólico, que pudesse abrir de par em par a
porta da arca e deixar entrar a água. Essa porta tinha sido fechada pela mesmíssima
mão que tinha aberto as janelas do céu, e rompido as fontes do abismo. Assim
fala-se de Cristo como Aquele que "tem a chave de Davi; o que abre e ninguém
fecha; e fecha e ninguém abre" (Ap 3:7). Ele tem em Sua mão "as chaves da morte e
do inferno" (Ap 1:18). Ninguém pode entrar os portais da sepultura, nem sair dali,
sem contar com Ele. Ele tem "todo o poder no céu e na terra" (Mt 28:18). Foi
constituído "sobre todas as coisas como cabeça da igreja" (Ef 1:22) e n'Ele o crente
está perfeitamente seguro.
Quem poderia tocar em Noé? Que onda poderia penetrar nessa arca que era
betumada "por dentro e por fora" com betumei Do mesmo modo, agora, quem
poderá tocar naqueles que têm, pela fé, achado refúgio à sombra da cruz? Todo o
inimigo foi enfrentado e reduzido ao silêncio — sim, reduzido ao silêncio para
sempre. A morte de Cristo respondeu vitoriosamente a toda a objeção; enquanto
que a Sua ressurreição é a declaração satisfatória da complacência infinita de Deus
nessa obra, que é a base da Sua justiça recebendo-nos, e da nossa confiança,
aproximando-nos d'Ele.
Por isso, a porta da nossa arca estando segura pela mão do Próprio Deus, nada nos
resta senão usufruir a janela; ou, por outras palavras, andar em feliz e santa
comunhão com Aquele que nos salvou da ira futura e fez de nós herdeiros da glória
vindoura. Pedro fala daqueles que são cegos, "nada vendo ao longe, havendo-se
esquecido da purificação dos seus antigos pecados" (2 Pe 1:9). É uma condição
lamentável para todo aquele que nela se encontrar, e é o resultado de não se
cultivar comunhão diligente, intercessória, com Aquele que nos fechou
eternamente em Cristo.

Noé, Pregador da Justiça


Deitemos agora, antes de prosseguir com a história de Noé, um olhar à condição
daqueles aos quais ele pregou por tanto tempo a justiça. Temos estado a pensar nos
salvos, deitemos agora um olhar aos perdidos: temos pensado naqueles que
estavam dentro da arca, pensemos agora nos que estavam fora. Sem dúvida, muitos
teriam deitado um olhar de ansiedade ao vaso de misericórdia, à medida que ele se
elevava com a água; mas, ah! "a porta havia sido fechada" — o dia da graça tinha
terminado —, a época do testemunho acabara, e para sempre, tanto quanto lhes
dizia respeito. A mesma mão que havia fechado Noé na arca, tinha-os deixado fora,
e era tão impossível para os que estavam fora entrarem nela, como para os que
estavam dentro sair. Aqueles estavam irremediavelmente perdidos; estes estavam
eficientemente salvos. A longanimidade de Deus e o testemunho do Seu servo
tinham sido desprezados. As coisas temporais tinham-no absorvido. "Comiam,
bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca,
e veio o dilúvio e consumiu a todos" (Lc 17:27). Não havia nada de mal nestas
coisas, vistas abstratamente. O mal não estava nas coisas que se faziam, mas nos
que as praticavam. Todas essas coisas podiam ser feitas no temor do Senhor e para
glória do Seu santo nome, se tão somente fossem feitas pela fé. Porém, não
acontecia assim. A Palavra de Deus era rejeitada. Ele falou de juízo, mas eles não
acreditaram; falou de pecado e ruína; porém não foram convencidos; falou dum
remédio, mas não quiseram dar atenção. Continuaram com os seus próprios planos
e especulações, e não tiveram lugar para Deus. Agiram como se a terra lhes
pertencesse por direito de posse, para sempre. Esqueceram que existia uma
cláusula de rendição. Não pensaram naquela palavra solene "até". Deus foi deixado
de fora: "... toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má
continuamente"; e por isso não podiam fazer nada justo. Pensavam, falavam e
atuavam por si mesmos. Fizeram a sua própria vontade e esqueceram Deus.

Aplicação do Dilúvio ao Dia da Vinda do Senhor


E, prezado leitor, lembremos as palavras do Senhor Jesus Cristo, que disse: "E como
foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem" (Mt 24:37).
Alguns gostariam que acreditássemos, que antes do Filho do homem vir nas
nuvens do céu a terra será coberta, de um polo ao outro, com um lindo manto de
justiça. Dizem-nos que devemos esperar um reino de justiça e paz, como resultado
de atividades postas agora em ação; porém a passagem que acabamos de reproduzir
corta pela raiz, num momento, todas essas especulações vãs e ilusórias. Como era
nos dias de Noé? A justiça cobria a terra, como as águas cobrem o mar? A verdade
de Deus dominava? A terra estava cheia do conhecimento do Senhor?- A Sagrada
Escritura responde: "A terra... encheu-se de violência; toda carne havia
corrompido o seu caminho sobre a terra; a terra... estava corrompida diante da face
de Deus". Pois bem, "assim será também nos dias do Filho do homem". Isto é bem
claro. "A justiça" e a "violência" não são muito parecidas uma com a outra. Nem
tão-pouco existe semelhança alguma entre a maldade universal e a paz. Apenas é
preciso um coração obediente à Palavra de Deus e livre da influência de opiniões
preconcebidas para se compreender o verdadeiro caráter dos dias que precederão
imediatamente "a vinda do Filho do homem". Que o leitor não se deixe extraviar.
Curve-se reverentemente perante a Escritura Sagrada. Olhe para o estado do
mundo "nos dias anteriores ao dilúvio" (Mt 24:38); e não se esqueça, que assim
como era então, "assim" será no fim desta época. Isto é muito simples —
conclusivo. Não havia então nada como um estado de justiça e paz universal, nem
tão-pouco haverá coisa alguma que se pareça com um tal estado no fim.
Sem dúvida, o homem mostrava bastante energia com o fim de tornar o mundo um
lugar agradável; porém isso era uma coisa muito diferente a torná-lo um lugar
conveniente para Deus. Assim é também neste tempo presente: o homem está tão
ocupado quanto pode em remover as pedras do caminho da vida humana, e
torná-lo o mais liso possível; mas isto não é "endireitar no ermo vereda a nosso
Deus" (Is 40:3); nem tão-pouco é aplainar o que é áspero para que toda a carne veja
a salvação do Senhor. A civilização prevalece; porém civilização não é justiça. A
varredura e o embelezamento continuam; mas não é com o fim de preparar a casa
para Cristo, mas sim para o anti-cristo. A sabedoria do homem é empregada com o
fim de cobrir, com as dobras da sua própria roupagem, os defeitos e manchas da
humanidade; contudo, embora cobertas, não são tiradas! Encontram-se tapadas, e
em breve aparecerão com deformidade mais repugnante do que nunca. A pintura
de verniz será em breve riscada, e a madeira lavrada de cedro destruída. As
represas, por meio das quais o homem procura cuidadosamente deter a torrente da
vileza humana, terão em breve de ceder caminho à força esmagadora que dela
resulta. Todos os esforços para limitar a degradação física, mental e moral da
posteridade de Adão dentro dos limites, que a benevolência humana tem
inventado, não darão, como sequência, resultado. O testemunho havia sido dado:
"O fim de toda a carne é vindo perante a minha face."
Não era vindo perante a face do homem; mas era vindo perante a face de Deus; e,
embora a voz dos escarnecedores possa ainda dizer, "Onde está a promessa da sua
vinda? Porque desde que os pais dormiram todas as coisas permanecem como
desde o princípio da criação" (2 Pe 3:4), o momento aproxima-se rapidamente em
que receberão a resposta. "... o dia do Senhor virá como ladrão de noite; no qual os
céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra
e as obras que nela há se queimarão" (2 Pe 3:4-10). Esta, prezado leitor, é a resposta
ao escárnio intelectual dos filhos deste mundo, mas não às afeições espirituais e à
expectativa dos filhos de Deus. Estes, graças a Deus, têm uma perspectiva
completamente diferente, a de encontrarem o Noivo nos ares, antes do mal ter
atingido o seu ponto culminante, e, portanto, antes de começar o julgamento
divino.

A Esperança da Igreja
A Igreja de Deus não espera a ocasião do mundo arder em brasas, mas o
aparecimento da "resplandecente estrela da manhã" (Ap 22:16).
Porém, seja qual for o modo como contemplem o futuro, qualquer que seja o ponto
de vista de onde o contemplemos, quer o assunto que preocupa a visão da alma seja
a Igreja na glória, quer o mundo em chamas, a vinda do Noivo ou o ladrão de noite,
a Estrela da Manhã ou o Sol da justiça, a trasladação ou o dilúvio, devemos sentir a
importância inefável de contar com o testemunho de Deus em graça para com os
pecadores perdidos. "Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui agora o dia da
salvação" (2 Co 6:2). "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não
lhes imputando os seus pecados" (2 Co 5:19). Ele está procedendo agora à
reconciliação; julgará no fim; agora é tudo graça; então será só ira; agora Deus
perdoa o pecado por meio da cruz; então puni-lo-á, no inferno, e isso para sempre.
Agora Ele está dando uma mensagem da graça mais pura, mais rica, mais liberal:
fala aos pecadores de uma redenção efetuada por meio do precioso sacrifício de
Cristo. Declara que a questão do pecado foi liquidada. Espera a oportunidade de
poder ser gracioso. "A longanimidade de nosso Senhor é a salvação" (2 Pe 3:15). "O
Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; mas é
longânimo para convosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos
venham a arrepender-se" (2 Pe 3:9). Tudo isto torna o momento presente de
solenidade peculiar. Pura graça proclamada! — pura ira pendente! Como tudo isto
é solene! Profundamente solene!
E com que profundo interesse devemos nós prosseguir o desenrolar dos desígnios
divinos! A Bíblia lança a sua luz sobre estas coisas, e luz tal, também, que não
precisamos, como alguém disse, "de ficar a olhar ociosamente para os
acontecimentos, como aqueles que não sabem de onde são nem para onde vão".
Devemos conhecer corretamente o nosso rumo. Devemos compreender
completamente a tendência de todos os princípios que agora operam. Devemos
conhecer o turbilhão para o qual todas as correntes tributárias estão correndo
rapidamente. Os homens sonham com um século áureo; prometem a si um milênio
das artes e ciências; alimentam-se com o pensamento de que "amanhã será como
hoje e mais abundante". Contudo, oh! como são inteiramente vãos estes
pensamentos, sonhos e promessas! A fé pode ver as nuvens ajuntando-se
carregadas em volta do horizonte do mundo. O juízo aproxima-se. O dia da ira está
perto. A porta da salvação será em breve fechada. A "grande desilusão" em breve se
verificará com intensidade terrível. Como é necessário, portanto, levantar a voz do
aviso — procurar, por meio de um testemunho fiel, contrariar a complacência
lamentável do homem. Verdade é que, fazendo-o, ficaremos sujeitos à acusação
que Acabe fez contra Mica de sempre profetizar o mal; mas isso não deve dar-nos
cuidado. Profetizemos o que a Palavra de Deus profetiza, e façamo-lo
simplesmente com o propósito de "persuadir os homens". A Palavra de Deus só
remove de debaixo dos nossos pés uma concavidade com o fim de pôr em seu lugar
um fundamento que nunca pode ser abalado. Tira-nos apenas uma esperança
ilusória para nos dar em seu lugar "uma esperança que não se envergonha". Tira
"uma cana quebrada" para nos dar "a rocha dos séculos". Acaba com uma "cisterna
rota, que não retém a água", para abrir em seu lugar "o manancial de águas vivas"
(Jr 2:13). Isto é amor verdadeiro. É o amor de Deus. Ele não clamará "paz, paz,
quando não há paz"; nem "fará reboco de cal não adubada" (Ez 22:28). Anela ter o
coração do pecador descansado sossegadamente na Sua Arca eterna de segurança,
gozando comunhão com Ele, e acalentando a esperança de que, quando toda a
ruína, desolação, e o juízo tiverem passado, descansará Consigo na criação
restaurada.
Voltemos agora para Noé e vejamo-lo numa nova posição. Vimo-lo ocupado na
construção da arca, depois em segurança na arca, e vamos vê-lo sair agora dela e
tomar o seu lugar na nova terra. "E lembrou-se Deus de Noé." Tendo sido
consumada a obra do juízo, a família salva e tudo que lhe dizia respeito foi
lembrado: "... e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas.
Cerraram-se também as fontes do abismo e as janelas dos céus, e a chuva dos céus
deteve-se" (cap. 8:1). Os raios de sol começaram agora a incidir sobre a terra que
havia sido batizada com o batismo de juízo. O juízo é "obra estranha de Deus". Ele
não tem prazer nela, embora seja por meio dele glorificado. Bendito seja o Seu
nome, Ele está sempre pronto a abandonar o lugar do juízo e entrar no lugar de
misericórdia, porque Se compraz nela (').

(1) Quero mencionar aqui, para meditação do leitor, um pensamento muito vulgar
com aqueles que se entregam especialmente ao estudo do que é chamado "a
verdade dispensacional". Diz respeito a Enoque e Noé. O primeiro foi levado,
como vimos, antes de vir o juízo; ao passo que o último foi conduzido através do
julgamento. Ora, é vulgar pensar-se que Enoque é figura da Igreja, que será levada
antes do pecado atingir o auge, e antes que o julgamento divino caia sobre ele. Por
outro lado, Noé é uma figura do remanescente de Israel, que será conduzido
através das águas profundas da aflição, e do fogo do julgamento, e levado ao pleno
gozo da bem-aventurança milenial em virtude do concerto eterno de Deus. Posso
acrescentar que aceito inteiramente este pensamento quanto aos pais do Velho
Testamento. Entendo que tem o apoio do assunto geral e da analogia da Escritura
Sagrada.

O Corvo e a Pomba
"E aconteceu que, ao cabo de quarenta dias abriu Noé a janela da arca que tinha
feito: e soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de
sobre a terra." A ave imunda escapou-se, e achou, sem dúvida, um lugar de repouso
em qualquer carcaça flutuante. Não voltou a procurar a arca. Não aconteceu assim
com a pomba. "A pomba porém não achou repouso para a planta do seu pé e voltou
a ele para a arca... e tornou a enviar a pomba fora da arca. E a pomba voltou a ele
sobre a tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico." Agradável
símbolo da mente regenerada, que no meio de toda a desolação busca e acha o seu
repouso e a sua porção em Cristo; e não somente isso, mas que também lança mão
do título da herança, e mostra a prova bendita que o julgamento é passado e uma
nova terra se apresenta inteiramente à vista. A mente carnal, pelo contrário, pode
descansar em qualquer coisa menos em Cristo. Pode alimentar-se de toda a
imundície. "A folha de oliveira" não tem encanto para ela. Pode achar tudo que
precisa numa cena de morte, e por isso não está ocupada com o pensamento de um
novo mundo e as suas glórias; porém, o coração que é ensinado e exercitado pelo
Espírito de Deus só pode descansar e regozijar-se naquilo em que Ele descansa e Se
regozija. Descansa na Arca da Sua salvação "até aos tempos da restauração de tudo"
(At. 3:21). Que assim seja com o leitor e comigo; que Jesus seja o lugar de repouso e
a porção dos nossos corações, para que não tenhamos que buscá-los num mundo
que jaz sob o juízo de Deus. A pomba voltou para Noé, e esperou pelo seu tempo de
repouso: e nós devemos encontrar sempre o nosso lugar com Cristo, até ao tempo
da Sua exaltação e glória, nos séculos vindouros. Aquele que há-de vir,
"certamente virá, não tardará" (Hc 2:3). Tudo quanto precisamos, a este respeito, é
de um pouco de paciência. Que Deus dirija os nossos corações no Seu amor, e "na
paciência de Cristo".

Noé Sai da Arca e Adora ao SENHOR


"Então falou Deus a Noé, dizendo: sai da arca." O Mesmo Deus que tinha dito "faze
para ti uma arca", e "entra na arca" agora diz: "sai da arca". "Então saiu Noé..., e
edificou um altar ao Senhor." Tudo é obediência simples. Há a obediência da fé e a
adoração da fé: aqui andam juntas. O altar é edificado onde antes tudo havia sido
uma cena de morte e juízo. A arca tinha conduzido Noé e sua família em segurança
por cima das águas do julgamento. Tinha-o conduzido do velho para o novo
mundo, onde ele agora toma o seu lugar como adorador(1). E, notemos, foi "ao
Senhor" que ele edificou o seu altar. A superstição teria adorado a arca, como
havendo sido o meio da salvação. A tendência do coração é sempre para substituir
Deus pelas Suas ordenações. Ora, a arca era uma ordenação muito clara e notória;
porém a fé de Noé passou além da arca para o Deus da arca; e, por isso, quando saiu
dela, em vez de lhe lançar um derradeiro olhar ou considerá-la como um objeto de
veneração ou culto, edificou um altar ao Senhor e adorou-O: e da arca nunca mais
se ouve falar.
(1) E interessante vermos este assunto da arca e do dilúvio em ligação com a
questão importante e profundamente significativa da ordenação do batismo. Uma
pessoa verdadeiramente batizada, isto é, aquele que, como o apóstolo diz, "obedece
de coração à forma de doutrina a que fostes entregues" (Rm 6:17), passou do
mundo antigo para o novo em espírito e princípio e pela fé. A água corre sobre a
sua pessoa, significando que o seu homem velho está sepultado, que o seu lugar na
natureza é ignorado — que a sua velha natureza é posta inteiramente de parte; em
suma, que é um homem morto. Quando é metido debaixo da água, é dada
expressão ao fato, que o seu nome, lugar e existência, na natureza, são postos fora
da vista; que a carne, com tudo que lhe pertence, os seus pecados, as suas
iniquidades e responsabilidades, é sepultada na sepultura de Cristo, e nunca mais
pode aparecer à vista de Deus.
Do mesmo modo, quando sai da água, é dada expressão à verdade, que sai como
possuidor de uma nova vida, a saber, a vida de ressurreição de Cristo. Se Cristo não
tivesse ressuscitado dos mortos, o crente não podia sair da água, mas teria que ficar
sepultado nela, como simples expressão do lugar que pertence justamente à
natureza. Porém, visto que Cristo ressuscitou dos mortos, no poder de uma nova
vida, tendo tirado inteiramente os nossos pecados, nós também saíamos da água; e,
fazendo-o, mostramos o fato, que estamos, pela graça de Deus, e mediante a morte
de Cristo, de posse absoluta de uma nova vida, à qual se liga inseparavelmente a
justiça divina. "De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para
que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim andemos nós
também em novidade de vida" (Rm 6:4; Cl 2:12; compare-se também 1 Pe 3:18-22).
Tudo torna a instituição do batismo de imensa importância e cheia de significação.

Isto ensina-nos uma lição muito simples, mas ao mesmo tempo muito oportuna.
No momento em que o coração deixa escapar a realidade do próprio Deus, não há
possibilidade de pôr limite à sua decadência; encontra-se de caminho para as
piores formas de idolatria. No parecer da fé, uma ordenação é somente válida à
medida que transmite Deus, em poder vivo, à alma; isto é, enquanto a fé pode fruir
Cristo por meio dela, segundo a Sua própria determinação. Além disso, não vale
nada; e se ela, ainda que seja na mínima escala, se interpõe entre o coração e o Seu
trabalho precioso e a Sua gloriosa Pessoa deixa de ser uma ordenação de Deus, para
se tornar num instrumento do diabo. Segundo o juízo da superstição a ordenação é
tudo, e Deus é deixado de fora; e o nome de Deus é somente usado para a enaltecer
e dar-lhe uma melhor posse do coração humano e uma influência poderosa sobre a
mente. Foi assim que os israelitas adoraram a serpente de metal. Aquilo que havia
sido um meio de bênção para eles, por ter sido usado por Deus, tornou-se, quando
os seus corações deixaram o Senhor, um objeto de veneração supersticiosa; e
Ezequias teve que quebrá-la em pedaços. Em si mesmo era apenas um "Nehustan",
mas quando usado por Deus era um meio da mais rica bênção. Ora a fé reconheceu
que ela era aquilo que a revelação divina havia dito que era; porém a superstição,
arremessando, como sempre faz, com a revelação divina ao largo, perdeu o
verdadeiro propósito de Deus com o objeto, e com efeito, fez do próprio objeto um
deus (2 Reis 18:4).

E, prezado leitor, não existe nisto uma lição profunda para os nossos dias? Creio
que sim. Vivemos numa época de ordenações. A atmosfera, que envolve a igreja
professa, está cheia de elementos duma religião tradicional, a qual rouba à alma
Cristo e a Sua plena salvação. Não é que as tradições humanas neguem
abertamente que existe a pessoa de Cristo ou a cruz de Cristo: se o fizessem os
olhos de muitos podiam ser abertos. Mas, não é assim. O mal é de um caráter muito
mais ímpio e perigoso. As ordenações são ajuntadas a Cristo e à Sua obra. E assim o
pecador não é salvo somente por Cristo, mas por Cristo e as ordenações. Desta
maneira ele é defraudado de Cristo completamente; porque, sem dúvida, ver-se-á
que Cristo e as ordenações provarão, como consequência, ser ordenações e não
Cristo. E um pensamento muito sério para todos os que professam uma religião de
ordenações. "Se vos deixardes circuncidar Cristo de nada vos aproveitará" (G1 5:2).
Tem que ser Cristo unicamente, ou nada. O diabo convence os homens de que
honram Cristo sempre que se preocupam muito com as Suas ordenações; enquanto
que, ao mesmo tempo, ele sabe muito bem que eles estão, na realidade, pondo
Cristo inteiramente de parte, e divinizando as ordenações. Desejo repetir aqui uma
observação que já fiz algures, a saber, que a superstição faz tudo da ordenação; a
infidelidade, a profanidade e o misticismo, nada fazem dela; a fé usa-a segundo
instruções divinas.

O Arco nas Nuvens


Mas alonguei-me com esta divisão do assunto muito mais do que eu tinha previsto.
Terminá-la-ei, portanto, com um rápido olhar ao conteúdo do capítulo 9. Nele
encontramos o novo concerto, sob o qual foi posta a criação, depois do dilúvio,
juntamente com o sinal desse concerto. "E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e
disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra." Notemos que o
mandamento de Deus, dado ao homem, à sua entrada na terra restaurada, era para
repovoar a terra; não apenas partes da terra, mas a terra. Ele desejava que os
homens se dispersassem sobre a face da terra, e não que confiassem nas suas
energias concentradas. Veremos no capítulo 11 como o homem descuidou isto.
O temor do homem encontra-se agora gravado no coração de todas as demais
criaturas. De aqui em diante o serviço prestado ao homem pelas ordens inferiores
da criação deve ser o resultado constrangido de "temor e receio". Na vida, e na
morte, os animais inferiores tinham de estar ao serviço do homem. Toda a criação
é libertada, por meio do concerto eterno de Deus, do temor de um segundo
dilúvio. O juízo nunca mais tomará esse aspecto. "Pelas quais coisas pereceu o
mundo de então, coberto com as águas do dilúvio. Mas os céus e a terra, que agora
existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro e se guardam para o fogo,
até o dia do juízo e da perdição dos homens ímpios" (2 Pe 3:6-7). A terra foi uma
vez purificada com água, e será mais uma vez purificada pelo fogo; e desta segunda
purificação ninguém escapará, salvo aqueles que se tiverem refugiado nAquele que
passou pelas águas profundas da morte e enfrentou o fogo do juízo divino.
"E disso Deus: Este é o sinal do concerto..., o meu arco tenho posto na nuvem;... e
me lembrarei do meu concerto." Toda a criação descansa, quanto à sua isenção de
um segundo dilúvio, na estabilidade eterna do concerto de Deus, do qual o
arco-íris é o testemunho; e é uma coisa feliz lembrarmo-nos que, quando aparece o
arco, os olhos de Deus descansam sobre ele; e o homem é lançado, não na sua
memória incerta e imperfeita, mas na de Deus. "Então", diz Deus, "me lembrarei".
Como é bom pensar naquilo que Deus lembrará e naquilo que não lembrará! Ele
lembrar-Se-á do Seu concerto, mas não Se lembrará dos pecados do Seu povo. A
cruz, que retifica o primeiro, tira os últimos. A crença nisto dá paz ao coração aflito
e à consciência preocupada.
"E acontecerá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, aparecerá o arco nas
nuvens." Belo e expressivo símbolo! Os raios de sol, refletidos por aquilo que
ameaça juízo, tranquilizam o coração, falando do concerto de Deus, a salvação de
Deus, e a recordação de Deus. Preciosos, preciosismos raios de sol, que recebem
mais beleza das próprias nuvens que os refletem! Como este arco nos lembra,
forçosamente, o Calvário! Ali vemos, na verdade, uma nuvem — uma nuvem
negra, carregada, carregada com o juízo de Deus, despejando-se sobre a cabeça
santa do Cordeiro de Deus —, uma nuvem tão negra, que até mesmo ao meio dia
"houve trevas em toda a terra" (Lc 23:44). Mas, bendito seja Deus, a fé descobre na
nuvem mais carregada que jamais houve o arco mais brilhante e belo que jamais
apareceu, porque vê os raios brilhantes do amor eterno de Deus penetrando
através da terrível obscuridade e refletidos na nuvem. Também ouve as palavras,
"está consumado", vindo de entre as trevas, e nessas palavras reconhece a
retificação dos desígnios eternos de Deus, não somente quanto à criação, mas
acerca das tribos de Israel e a Igreja de Deus.

A Embriaguez de Noé
O último parágrafo deste capítulo apresenta-nos um espetáculo humilhante. O
senhor da criação falhou em se governar a si próprio: "E começou Noé a ser
lavrador da terra e plantou uma vinha. E bebeu do vinho e embebedou -se; e
descobriu-se no meio de sua tenda." Que estado para Noé, o único homem justo, o
pregador da justiça! Ah! o que é o homem?-! Vejamo-lo onde quer que for, e
veremos só fracasso. No Éden, falhou; na terra restaurada, falhou; em Canaã,
falhou; na Igreja, ele falha e na presença da bem-aventurança do milênio, falhará:
O homem falha em toda a parte, e em todas as coisas: nada há de bom nele. Quer as
suas vantagens sejam grandes, os seus privilégios vastos, a sua posição agradável,
ele só pode mostrar falha e pecado.
Devemos, contudo, pensarem Noé sob dois aspectos, a saber, como uma figura, e
um homem e enquanto o símbolo é cheio de beleza e significado, o homem é cheio
de pecado e loucura. Todavia, o Espírito Santo escreveu estas palavras: "Noé era
varão justo e reto em suas gerações; Noé andava com Deus" (Gn 6:9). A graça
divina tinha coberto todos os seus pecados, e vestido a sua pessoa com um manto
imaculado de justiça. Apesar de Noé ter mostrado a sua nudez, Deus não a viu,
porque não olhava para ele na fraqueza da sua própria condição, mas no pleno
poder da justiça divina. Por isso podemos ver quão perdido se encontrava —
totalmente alienado de Deus e dos Seus pensamentos — Cam, na carreira que
adotou; evidentemente não conheceu nada da bem-aventurança do homem cuja
iniquidade é perdoada e cujos pecados são cobertos; pelo contrário, Sem e Jafé
mostram, com o seu procedimento, um exemplo perfeito do método divino de
tratar com a nudez humana; pelo que herdam uma bênção, enquanto que Cam
herda uma maldição.

CAPÍTULO 10

OS TRÊS FILHOS DE NOÉ E SUA DESCENDÊNCIA

Ninrode e Babilônia
Esta parte do livro menciona as gerações dos três filhos de Noé, notando,
especialmente, Ninrode, o fundador do reino de Babel, ou Babilônia, um nome que
ocupa um lugar proeminente nas páginas inspiradas. Babilônia é um nome muito
conhecido — uma influência bem conhecida. Desde o capítulo dez do Gênesis ao
capítulo dezoito do Apocalipse, Babilônia aparece perante nós repetidas vezes e
sempre como alguma decididamente hostil àqueles que ocupam, presentemente, a
posição de testemunho público de Deus. Não é que devamos pensar na Babilônia
do Velho Testamento como sendo idêntica com a Babilônia do Apocalipse. De
modo nenhum. Creio que a primeira é uma cidade; a última, um sistema; porém
tanto a cidade como o sistema exercem uma grande influência sobre o povo de
Deus. Mal Israel tinha começado as guerras de conquista da terra de Canaã, quando
"uma capa babilônica" lançou profanação e dor, derrota e confusão, nas suas
hostes. É o primeiro relato que temos da influência perniciosa de Babilônia sobre o
povo de Deus; contudo qualquer estudante das Escrituras conhece o lugar que
Babilônia ocupa através de toda a história de Israel.
Não é este o lugar para notar, em pormenor, as várias passagens nas quais a cidade é
apresentada. Quero apenas frisar que, sempre que Deus tem um testemunho
corporativo na terra, Satanás tem uma Babilônia para manchar e corromper esse
testemunho. Quando Deus liga o Seu nome com uma cidade na terra, então
Babilônica toma a forma de uma cidade; e quando Deus liga o Seu nome com a
Igreja, então Babilônica toma a forma dum sistema religioso corrompido, chamado
"a grande prostituta", "a mãe das abominações", etc. Em resumo, a Babilônica de
Satanás é sempre vista como o instrumento moldado e talhado pela sua mão, com o
propósito de impedir a operação divina, quer seja com o antigo Israel, quer com a
Igreja agora.
Através de todo o Velho Testamento Israel e Babilônia são vistos, com efeito, em
lugares opostos: quando Israel se encontra poderoso, Babilônia está em decadência;
e quando Babilônia prospera, Israel está em declínio. Deste modo, quando Israel
falhou inteiramente como testemunho do Senhor, "o rei de Babilônia lhe quebrou
os ossos" (Jr 50:17), e anexou-o. Os vasos da casa de Deus, que deviam permanecer
na cidade de Jerusalém, foram levados para a cidade de Babilônia. No entanto,
Isaías, na sua profecia sublime, conduz-nos ao oposto de tudo isto: mostra-nos, em
magnificentes tons, um quadro em que a estrela de Israel se vê em ascendência, e
Babilônia inteiramente submersa. "E acontecerá que, no dia em que o SENHOR
vier a dar-te descanso do teu trabalho, e do teu tremor, e da dura servidão com que
te fizeram servir, então, proferirás este dito contra o rei da Babilônia e dirás: Como
cessou o opressor! A cidade dourada acabou!... Desde que tu caíste, ninguém sobe
contra nós para nos cortar" (Is 14:3-8).
Isto quanto à Babilônia do Velho Testamento. Porém, quanto à Babilônia do
Apocalipse, o leitor só tem que abrir os capítulos 17 e 18 desse livro para ver o seu
caráter e fim. Ela é apresentada em contraste com a noiva, a esposa do Cordeiro; e
quanto ao seu fim, é lançada como uma grande mó ao mar (18:21); depois do que
temos as bodas do Cordeiro, com toda a sua bem-aventurança e glória.
Contudo, não pretendo prosseguir este assunto tão interessante aqui: apenas quis
deitar-lhe uma vista de olhos em ligação com Ninrode. Estou certo de que o leitor
se julgará plenamente recompensado, por qualquer incômodo que tiver em
examinar, atenciosamente, todas as passagens, nas quais o nome de
Babilônia é mencionado. Voltemos agora para o nosso capítulo.
"E Cuxe gerou a Ninrode; este começou a ser poderoso na terra. E este foi poderoso
caçador diante da face do SENHOR; pelo que se diz: Como Ninrode, poderoso
caçador diante do SENHOR. E O princípio do seu reino foi Babel, e Ereque, e
Acade, e Calné, na terra de Sinar." Aqui temos, pois, o caráter do fundador de
Babilônia: foi "poderoso na terra", — "poderoso caçador diante da face do
SENHOR". Tal foi a origem de Babilônia; e o seu caráter, através de todo o Livro de
Deus, corresponde a isso admiravelmente. E sempre apresentado como uma
influência poderosa na terra, agindo em antagonismo positivo a tudo que deve a
sua origem ao céu; e não é antes desta Babilônia ter sido inteiramente abolida que
se ouve o grito, entre as hostes celestes, "Aleluia! Pois já o Senhor, Deus
Todo-Poderoso reina" (Ap 19:6). Então toda a caçada poderosa de Babilônia terá
acabado para sempre, quer seja a sua caça às feras, para as dominar; ou a sua caça às
almas, para as destruir. Todo o seu poder, e toda a sua glória, toda a sua pompa e o
seu orgulho, a sua riqueza e luxúria, a sua luz e alegria, e o seu brilho e resplendor,
terão passado para sempre. Ela terá sido varrida com o espanador da destruição, e
lançada nas trevas, no horror e desolação de uma noite eterna. "Até quando,
Senhor?"

CAPÍTULO 11

A CONSTRUÇÃO DE BABEL

O Homem se Estabelece na Terra


Este capítulo é de profundo interesse para a mente espiritual. Registra dois grandes
fatos, a saber, a edificação de Babel, e a chamada de Abraão, ou, por outras
palavras, o esforço do homem para suprir as suas necessidades, e a provisão de
Deus dada a conhecer à fé — a diligência do homem para se estabelecer na terra, e
Deus chamando um homem dela, para ter a sua porção e o seu lar no céu.
"E era toda a terra de uma mesma língua, e de uma mesma fala. E aconteceu que,
partindo eles do oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e habitaram ali... E
disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus,
e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a
terra."
O coração humano procura sempre um nome, uma parte, e um centro na terra.
Nada sabe dos desejos quanto ao céu, do Deus do céu ou da glória do céu. Deixado
entregue a si, encontrará sempre os seus fins neste mundo; edificará sempre
"abaixo dos céus". São precisos a chamada de Deus, a revelação de Deus e o poder
de Deus, para elevar o coração do homem acima deste mundo, pois o homem é
uma criatura rasteira — alienado do céu, e ligado à terra. No quadro que agora
temos perante nós não há reconhecimento de Deus, nem um olhar para cima nem
esperança n'Ele; nem tão-pouco se tratou de pensamento do coração humano para
fazer um lugar no qual Deus pudesse habitar — juntar materiais para a construção
de um lugar para Ele. O Seu nome nunca é mencionado. Fazer um nome para si
próprio, foi o objetivo do homem na planície de Sinar; e tal tem sido o seu objetivo
desde então.
Quer contemplemos o homem na planície de Sinar ou nos bancos do Tigre, vemos
que ele é sempre na mesma criatura, independente, orgulhoso, e sem Deus. Existe
uma consistência melancólica em todos os seus propósitos, nos seus princípios e
caminhos; procura sempre pôr Deus de parte e exaltar-se a si próprio.
A verdade é que, seja qual for a luz a que olharmos para esta confederação
Babilônica, é do maior interesse vê-la na primitiva manifestação do gênio e
energias do homem, sem contar com Deus. Se olharmos para o decorrer da história
humana, poderemos facilmente perceber uma tendência acentuada para
confederação ou associação. O homem busca, a maior parte das vezes, alcançar os
seus fins deste modo. Quer seja por meio da Filantropia, da Religião, ou da Política,
nada pode ser feito sem uma associação de indivíduos regularmente bem
organizados. E conveniente notarmos este princípio — bom frisarmos o começo da
sua operação —, para vermos o modelo primitivo, que as páginas inspiradas nos
dão duma associação humana, como a vemos na planície de Sinar, no seu plano,
objetivo, intento, e malogro. Se olharmos em volta de nós, na atualidade, veremos
o mundo cheio de associações. E inútil descrevê-las, visto que são tão numerosas
como os propósitos do coração humano. Todavia é importante notar que a
primeira de todas foi a associação de Sinar, organizada com o fim de promover os
interesses humanos e exaltar o nome humano — propósitos estes que podem
muito bem ser postos em competição com qualquer outro que chame a atenção
deste século iluminado e civilizado. Porém, no parecer da fé, há nisso um grande
defeito, a saber, Deus é deixado de fora; e procurar exaltar o homem, sem Deus, é
exaltá-lo a um ponto estouvado, apenas para que possa ser lançado dali em
confusão desesperada, e irreparável ruína. O cristão deve apenas conhecer uma
associação, e esta é a Igreja do Deus vivo, unida pelo Espírito Santo, que veio do
céu como testemunha da glorificação de
Cristo, para batizar os crentes num corpo, e constituí-los em lugar de habitação de
Deus. Babilônia é o próprio oposto disto, em todo o sentido; e torna-se no fim,
como sabemos, "morada de demônios" (Ap 18).

A Confusão das Línguas e a Intervenção da Graça


Então o Senhor disse: "Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é
o que começam a fazer; e, agora, não haverá restrição para tudo o que eles
intentarem fazer. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não
entenda um a língua do outro. Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda
a terra; e cessaram de edificar a cidade." Tal foi o fim da primeira tentativa do
homem para se associar. Assim será até ao fim. "Alvoroçai-vos, ó povos, e sereis
quebrantados; dai ouvidos, todos os que sois de longes terras: cingi-vos e sereis
feitos em pedaços." (Is 8:9).
Quão diferente é quando Deus ajunta os homens! No capítulo 2 de Atos dos
Apóstolos vemos o bendito Senhor vindo, em graça infinda, para encontrar o
homem, nas próprias circunstâncias em que o pecado o havia posto. O Espírito
Santo habilitou os mensageiros da graça a darem a sua mensagem na própria língua
em que cada um havia nascido. Preciosa verdade esta, que Deus desejou alcançar o
coração do homem com a doce história da graça! A lei dada do monte em fogo não
foi assim promulgada. Quando Deus dizia o que o homem devia ser, falou só numa
língua; mas quando dizia o que Ele Próprio era, falou em muitas línguas. A graça
passou sobre a barreira que a vaidade e loucura do homem tinham dado causa a
que fosse erguida, a fim de que cada homem pudesse ouvir e compreender as boas
novas de salvação — "as obras maravilhosas de Deus". E com que fim?
Precisamente para associar os homens sobre o terreno de Deus, em volta do centro
de Deus e segundo os princípios de Deus. Era para lhes dar, na realidade, uma
língua, um centro, um objetivo, uma esperança, uma vida. Era para os ajuntar de
tal maneira que nunca mais fossem espalhados ou confundidos; para lhes dar um
nome e um lugar que deveriam perdurar para sempre; para lhes edificar uma
cidade e uma torre cujo topo não só chegaria ao céu, mas cujos fundamentos
inabaláveis, lançados pela mão onipotente do próprio Deus, estariam no céu. Era
para os ajuntar em volta da Pessoa gloriosa de um Cristo ressuscitado e exaltado, e
uni-los a todos num grande desígnio de louvor e adoração.
Se o leitor abrir o Apocalipse, no capítulo 7, encontrará "todas as nações, e tribos, e
povos e línguas", perante o Cordeiro, tributando-Lhe como uma mesma voz todo o
louvor. Desta maneira as três Escrituras podem ser lidas com interessante e
proveitosa ligação: em Gênesis 11 Deus dá várias línguas como uma expressão do
Seu julgamento; em Atos 2 Ele dá várias línguas como expressão de graça; e em
Apocalipse 7 vemos todas essas línguas reunidas em volta do Cordeiro, na glória.
Quão melhor é, portanto, encontrarmos o nosso lugar na associação de Deus do
que na do homem! A primeira acaba na glória, a última na confusão; aquela é
conduzida pela energia do Espírito Santo, esta pela energia profana do homem
pecador; uma tem como seu objetivo a exaltação de Cristo, a outra tem como seu
alvo a exaltação do homem, de um ou de outro modo.
Por fim, direi que todos aqueles que, sinceramente, desejarem conhecer o
verdadeiro caráter, objetivo, e fim das associações humanas, devem ler os
primeiros versículos de Gênesis 11 ; e, por outro lado, todos quantos desejarem
conhecer a excelência, a beleza, o poder e caráter duradouro da associação divina,
devem olhar para essa corporação santa, viva e celestial, que é chamada, no Novo
Testamento, a Igreja do Deus vivo, o Corpo de Cristo, a Noiva do Cordeiro.
Que o Senhor nos ajude a meditar e a compreender estas coisas no poder da fé;
porque só deste modo poderão beneficiar as nossas almas. Os pontos de verdade,
por muito interessantes que sejam; o conhecimento bíblico, por muito profundo e
extensivo que seja; a crítica bíblica, por muito rigorosa e valiosa que possa ser,
deixam o coração vazio e as afeições frias. Precisamos de achar Cristo nas
Escrituras; e, tendo-O achado, devemo-nos alimentar d'Ele pela fé. Isto dará
frescura, unção, poder, vitalidade, energia, e intensidade, coisas das quais
necessitamos profundamente, nestes dias de frio formalismo. Qual é o valor duma
ortodoxia fria sem um Cristo vivo, conhecido em todas as Suas atrações poderosas e
pessoais? Sem dúvida, a sã doutrina é imensamente importante. Todo o servo fiel
de Cristo sentir-se- á terminantemente chamado para guardar e conservar "o
modelo das sãs palavras" (2 Tm 1:13). Mas, afinal, Cristo vivo é a própria alma, e
vida, as juntas e medula, as capilares e artérias, a essência e substância da sã
doutrina.
Possamos nós, pelo poder do Espírito Santo, ver mais beleza e preciosidade em
Cristo, e assim sermos afastados do espírito e princípios de Babilônia.
Consideraremos, se o Senhor permitir, o resto do capítulo no capítulo
subsequente.

CAPÍTULO 12

ABRAÃO E A TERRA DE CANAÃ

O livro de Gênesis ocupa-se, na sua maior parte, com a história de sete homens, a
saber: Abel, Enoque, Noé, Abraão, Isaque, Jacó e José. Existe, não duvido, uma
linha específica de verdade apresentada em ligação com cada um destes homens.
Assim por exemplo, em Abel temos a grande verdade fundamental da aproximação
de Deus por meio da expiação — expiação compreendida pela fé. Em Enoque
temos a própria porção e esperança da família celestial; enquanto que Noé nos
mostra o destino da família terrestre. Enoque foi levado para o céu antes do
julgamento; Noé foi conduzido através do julgamento para uma terra restaurada.
Desta maneira, temos em cada um o caráter distinto da verdade, e, como
consequência, uma fase clara de fé. O leitor poderá prosseguir o assunto
inteiramente em ligação com o capítulo 11 de Hebreus; e eu estou certo que
encontrará muito interesse e proveito fazendo-o. Vamos prosseguir com a
dissertação seguinte, a saber, a chamada de Abraão.

O Chamado de Abraão
Comparando os capítulos 12:1 e 11:31 com Atos 7:2-4, vemos uma verdade de
valor prático para a alma. "O Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, e da tua
parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei." Tal foi a
comunicação feita a Abraão — uma comunicação do mais definido caráter,
destinada por Deus a atuar sobre o coração e a consciência de Abraão. "O Deus da
glória apareceu a Abraão, nosso pai, estando na Mesopotâmia, antes de habitar em
Harã, e disse-lhe: Sai da tua terra e dentre a tua parentela e dirige-te à terra que eu
te mostrar.
Então saiu da terra dos caldeus, e habitou em Harã. E dali, depois que seu pai
faleceu, Deus o trouxe para esta terra em que habitais agora" (At 7:2-4). O
resultado desta comunicação é apresentado no capítulo 11:31: "E tomou Tera a
Abrão, seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora, mulher
de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos Caldeus, para ir à terra de Canaã; e
vieram até Harã, e habitaram ali... e morreu Tera em Harã."
De todas estas passagens concluímos que os laços da natureza impediram a resposta
plena da alma de Abraão à chamada de Deus. Embora chamado para Canaã,
contudo, demora-se em Harã, até que os laços da natureza sejam quebrados pela
morte, e então, com passo decidido, toma o seu caminho para o lugar que "o Deus
da glória" o havia chamado. Isto é cheio de significação. As influências da natureza
são sempre hostis à plena realização e poder prático da "chamada de Deus". Somos
tristemente propensos a tomar caminho mais baixo do que aquele que a chamada
divina põe diante de nós. E necessária muita simplicidade e integridade de fé para
habilitar a alma a elevar-se à altura dos pensamentos de Deus, e fazer nosso aquilo
que Ele revela.
A oração do apóstolo Paulo (Ef 1:15-22) demonstra inteiramente como ele, por
intermédio do Espírito Santo, teve a noção da dificuldade que a Igreja havia
sempre de ter que lutar, para compreender "a esperança da sua vocação e quais as
riquezas da glória da sua herança nos santos"; porque, evidentemente, se falharmos
em compreender a chamada, não poderemos "andar como é digno" dela. Eu devo
saber para onde sou chamado, antes de poder ir para lá. Tivesse a alma de Abraão
estado inteiramente sob o poder da verdade que "a chamada de Deus" era para
Canaã, e que ali, também, estava a "sua herança", e ele não poderia ter ficado em
Harã. E assim é conosco. Se formos conduzidos pelo Espírito Santo à compreensão
da verdade que somos chamados com uma chamada celestial; que o nosso lar, a
nossa porção, a nossa esperança e a nossa herança são de cima, "onde Cristo está à
destra de Deus", nunca poderemos ficar satisfeitos por manter uma posição, buscar
um nome, ou ter uma herança na terra. As duas coisas são incompatíveis; é este o
verdadeiro modo de encarar o assunto. A chamada celestial não é um dogma vazio,
uma teoria ineficaz, nem uma especulação tosca. Ou é uma realidade divina, ou
não é absolutamente nada. A chamada de Abraão para Canaã era uma especulação?
Era uma simples teoria a respeito da qual ele podia falar ou argumentar, ao mesmo
tempo que continuava em Harã? Não, seguramente. Era uma verdade, uma
verdade divina, prática e poderosa. Ele fora chamado para Canaã, e Deus não
podia, possivelmente, aprovar a sua demora noutro lugar. Foi assim com Abraão, e
assim é conosco. Se quisermos ter a aprovação divina, e a presença divina, devemos
procurar, pela fé, agir segundo a chamada divina. Quer dizer, devemos procurar
atingir em experiência, na prática, e no caráter moral, o ponto para o qual Deus nos
chamou, e esse ponto é a plena comunhão com Seu Filho — comunhão com Ele na
Sua rejeição neste mundo, e na Sua aceitação no céu.
Porém, assim como no caso de Abraão foi a morte que quebrou o laço pelo qual a
natureza o prendia a Harã, do mesmo modo, no nosso caso, é a morte que quebra o
laço pelo qual a natureza nos liga a este mundo. Devemos compreender a verdade
que morremos em Cristo, a nossa Cabeça e nosso Representante — que o nosso
lugar na natureza, e no mundo, se encontra entre as coisas que eram —, e que a
cruz de Cristo é para nós o que o Mar Vermelho foi para Israel, a saber, aquilo que
nos separa, para sempre, da terra, da morte e julgamento. Só assim poderemos
andar "como é digno da vocação com que fomos chamados" — a nossa chamada,
santa, elevada e celestial —, a nossa "chamada de Deus em Cristo Jesus".

Os Dois Aspectos Essenciais da Cruz


Aqui, desejo falar, um pouco, da cruz de Cristo, nas suas duas grandes fases
fundamentais, ou por outras palavras, a cruz como base da nossa adoração e do
nosso discipulado, a nossa paz e o nosso testemunho, a nossa afinidade com Deus, e
a nossa relação com o Mundo. Se, como pecador convicto, olho para a cruz do
Senhor Jesus Cristo, vejo nela o fundamento eterno da minha paz. Vejo o meu
"pecado" tirado, quanto ao seu princípio ou raiz, e vejo que os meus "pecados"
foram lavados. Vejo como Deus é, na verdade, "por mim", e isso também, na
própria condição em que a minha consciência me diz que estou. A cruz revela
Deus como o Amigo do pecador. Revela-O nesse maravilhoso caráter de
Justificador do mais ímpio pecador. A criação nunca poderia fazer isto. A
providência nunca poderia consegui-lo. Nelas posso ver o poder de Deus, a Sua
majestade e a Sua sabedoria: mas e se todas estas cosias fossem dispostas contra
mim?- Vistas em si mesmas abstratamente teriam de sê-lo, porque eu sou pecador;
e o poder, a majestade, e a sabedoria não podem tirar o meu pecado, nem justificar
Deus por me receber.
A introdução da cruz, no entanto, altera o aspecto das coisas inteiramente. Nela
vejo Deus tratando com o pecado de tal maneira que se glorifica a Si Próprio
infinitamente. Ali vejo a manifestação magnificente e a harmonia perfeita de todos
os atributos divinos. Vejo amor, amor tal que cativa e anima o meu coração, e
afasta-o, na proporção em que o realizo, de qualquer outro objetivo. Vejo
sabedoria, e sabedoria tal que confunde os demônios e surpreende os anjos. Vejo
poder, e poder tal que derruba toda a oposição. Vejo santidade, e santidade tal que
repudia o pecado para o ponto mais distante do universo moral, e dá a expressão
mais intensa de como Deus o detesta que jamais podia ter sido dada. Vejo graça, e
graça tal que põe o pecador na própria presença de Deus — sim, põe-no no Seu
seio. Onde poderia eu ver estas coisas senão na cruz? Em mais parte nenhuma. Para
onde quer que olhemos não podemos encontrar nada que tão ditosamente
combine esses dois pontos essenciais, a saber, "glória a Deus nas alturas", e "paz na
terra".
Quão preciosa, portanto, é a cruz, nesta sua primeira fase como o fundamento da
paz do pecador, a base da sua adoração, e do seu eterno parentesco com Deus, que é
nela tão ditosa e gloriosamente revelado! Quão preciosa é para Deus, como um
fundamento justo em que pode continuar com a manifestação das Suas perfeições
imaculadas, e os Seus desígnios preciosos com o pecador! E tão preciosa para Deus
que, como bem disse um autor recentemente, "Tudo quanto Ele tem dito — tudo
que tem feito, desde o princípio, indica que ela sempre predominou em Seu
coração. E não admira! O Seu Filho amado havia de ser suspenso ali, entre o céu e a
terra, feito objeto de toda a vergonha e sofrimento que o homem e os demônios
acumularam sobre Si, porque Ele amava fazer a vontade de Seu Pai, e redimir os
filhos da Sua graça. Ela será o grande centro de atração, como a plena expressão do
Seu amor, por toda a eternidade".
Por outro lado, como base do nosso discipulado prático e testemunho, a cruz
requer a nossa mais profunda consideração. Neste aspecto, não preciso dizer, é tão
perfeita como no primeiro. A mesma cruz que me liga com Deus separou-me do
mundo. Um homem morto, acabou, evidentemente, para o mundo; e por isso o
crente, tendo morrido com Cristo, acabou para o mundo; e tendo ressuscitado com
Cristo, está ligado com Deus no poder de uma nova vida, uma nova natureza.
Estando assim inseparavelmente unido com Cristo, ele participa da Sua aceitação
com Deus, e na Sua rejeição pelo mundo. As duas coisas andam juntas. A primeira
faz dele um adorador e cidadão do céu; a segunda torna-o uma testemunha e um
estrangeiro na terra. Aquela leva-o a entrar dentro do santuário; esta lança-o fora
do arraial. Uma é tão perfeita como a outra. Se a cruz se interpôs entre mim e os
meus pecados, interpôs-se realmente do mesmo modo entre mim e o mundo. No
primeiro caso, põe-me no lugar de paz com Deus; no segundo, coloca-me no lugar
de hostilidade com o mundo, isto é, sob o ponto de vista moral; embora, noutro
sentido, faça de mim a testemunha paciente, humilde, dessa graça eterna, preciosa,
e insondável, que é revelada na cruz.
Todavia, o crente deve compreender, claramente, e fazer distinção entre estes dois
aspectos da cruz de Cristo. Não deve professar gozar de um, enquanto recusar
entrar no outro. Se os seus ouvidos estiverem atentos à voz de Cristo para além do
véu, devem estar prontos a ouvir também a Sua voz fora do arraial. Se tem a noção
da expiação que a cruz consumou, deve também compreender a rejeição que,
necessariamente, ela inclui. A expiação resulta da parte- que Deus teve na cruz; a
rejeição da parte que o homem teve. É nosso privilégio não somente termos
acabado com os nossos pecados, mas com o mundo também. Tudo isto se acha
incluído na doutrina da cruz. Por isso o apóstolo podia dizer: "Longe esteja de mim
gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está
crucificado para mim e eu, para o mundo" (G1 6:14). Paulo via o mundo como uma
coisa que devia ser pregada na cruz; e o mundo, tendo crucificado Cristo,
crucificou tudo que Lhe pertencia. Por isso existe uma crucificação dupla, quanto
ao crente a ao mundo; e se isto fosse bem compreendido mostraria a
impossibilidade absoluta de jamais se misturarem as duas. Prezado leitor,
ponderemos estas coisas honestamente e com oração; e que o Espírito Santo nos
conceda capacidade para compreender o poder prático destes dois aspectos da cruz
de Cristo.

Harã e os Impedimentos Familiares


Voltemos agora ao nosso assunto.
Não sabemos por quanto tempo Abraão se demorou em Haran; todavia Deus
esperou graciosamente pelo Seu servo, até que, livre do obstáculo da natureza, ele
pôde obedecer absolutamente à Sua ordem. Contudo, não houve adaptação dessa
ordem às circunstâncias da natureza. Isto nunca dará resultado. Deus ama os Seus
servos bem demais para os privar da bênção de completa obediência. Não houve
novas revelações a Abraão durante o tempo da sua permanência em Haran. É bom
notarmos este fato. Devemos agir segundo a luz comunicada, e então Deus
dar-nos-á mais luz. "Aquele que tem se dará" (Mt 13:12). Este é o princípio de
Deus. Ainda assim, devemos lembrar que Deus nunca nos arrastará ao longo do
caminho do verdadeiro discipulado. Isto não estaria de conformidade com a
excelência moral que caracteriza todos os caminhos de Deus. Ele não nos arrasta,
mas atrai-nos ao longo do caminho que conduz à bem- -aventurança inefável n'Ele
Próprio; e se nós não vemos que é para nossa verdadeira vantagem quebrar todas as
barreiras da natureza, a fim de respondermos à chamada de Deus, desprezamos as
nossas próprias misericórdias. Mas, ah!, os nossos corações compreendem pouco
disto! Começamos a calcular os sacrifícios, impedimentos, e as dificuldades, em vez
de corrermos ao longo do caminho, em vivacidade de alma, como aqueles que
conhecem e amam Aquele cuja chamada soou aos seus ouvidos.
Existe verdadeira bênção, para a alma em cada ato de obediência, pois a obediência
é o fruto da fé; e a fé liga-nos a Deus e leva-nos a uma comunhão viva com Ele.
Considerando a obediência à luz deste conhecimento, podemos ver sim
dificuldade como é diferente, em todos os seus traços, do legalismo, O legalismo
põe o homem, com o fardo dos seus pecados, ao serviço de Deus, guardando a lei;
por isso a alma é mantida em constante tortura, e, longe de correr no caminho da
obediência, não dá sequer o primeiro passo. Pelo contrário, a verdadeira
obediência é simplesmente a manifestação ou o fluxo de uma nova natureza
comunicada em graça. A esta nova natureza Deus dá graciosamente preceitos para
sua direção; e é certo que a natureza divina, guiada por preceitos divinos, nunca
pode transformar-se em legalidade. O que constitui a legalidade é o ato da velha
natureza tomar os preceitos de Deus e procurar praticá-los. Tentar regular a
natureza humana caída, por meio da lei pura e santa de Deus, é tão inútil e absurdo
quanto o pode ser qualquer coisa. Como poderia a natureza pecaminosa respirar
uma atmosfera tão pura? Impossível. Tanto a atmosfera como a natureza devem
ambas ser divinas.
A Fé, a Força Motriz da Alma
No entanto, o bendito Deus não somente transmite uma natureza divina ao crente,
e guia essa natureza pelos Seus preceitos celestiais, como põe perante ela
esperanças e expectativas apropriadas. Assim, no caso de Abraão, "O Deus da
glória" apareceu-lhe. E com que fim? Para pôr diante da visão da sua alma um
objetivo atraente — "uma terra que eu te mostrarei". Isto não era coação, mas
atração. A terra de Deus era, no parecer da nova natureza — o juízo da fé —, muito
melhor que Ur ou Harã; e embora ele nunca a tivesse visto a fé julgava valer a pena
possuí-la, visto que era a terra de Deus; e, que era não apenas digna de ser possuída,
mas também que valia a pena deixar todas as coisas presentes por ela. Por isso
lemos, "Pela fé, Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia
de receber por herança; e saiu sem saber para onde ia" (Hb 11:8). Quer dizer,
"andou por fé e não por vista". Embora não tivesse visto com os seus olhos, creu
com o coração, e a fé tornou-se a grande mola real da sua alma. A fé descansa num
terreno muito mais sólido do que a evidência dos nossos sentidos, isto é, a Palavra
de Deus. Os nossos sentidos poderão enganar-nos, mas a Palavra de Deus nunca.
Ora a verdade completa da natureza divina, juntamente com os preceitos que a
orientam e as esperanças que a animam — o todo da doutrina divina respeitamente
a estas coisas — é completamente lançada fora pelo sistema do legalismo. O
legalista ensina que devemos renunciar ao mundo a fim de ganharmos o céu. Mas
como pode a natureza decaída renunciar àquilo com que está aliada? Como poderá
ser atraída por aquilo em que não vê encanto?- O céu não tem encantos para a
natureza; na verdade é o último lugar onde ela gostaria de ser encontrada. A
natureza não tem gosto pelo céu, pelas suas ocupações ou pelos seus habitantes. Se
fosse possível ao homem natural encontrar-se ali, sentir-se-ia miserável. Por isso, a
natureza não tem poder para renunciar ao mundo, nem desejo de ir para o céu. E
verdade que teria muito gosto em escapar ao inferno e ao seu inexprimível
tormento, à sua tristeza e miséria. Porém o desejo de escapar ao inferno, e o desejo
de chegar ao céu, partem de duas origens muito diferentes. Aquele pode existir na
velha natureza;
este só pode ser encontrado na nova natureza. Se não houvesse "lago de fogo", nem
"bicho" no inferno, a natureza não sentiria o seu terror. O mesmo princípio
aplica-se a todos os desejos e ambições da natureza. O legalista ensina que devemos
deixar o pecado antes de podermos obter justiça. Mas a natureza não pode largar o
pecado; e quanto à justiça, odeia-a absolutamente. Verdade é que gosta de um
pouco de religião; mas é apenas com a ideia de que a religião a guardará do fogo do
inferno. Não ama a religião por ela introduzir a alma no gozo atual de Deus e dos
Seus caminhos.

"O Evangelho da Glória do Deus Bendito"


Quão diferente e de todo este sistema miserável de legalismo, em cada uma das
suas fases, "o evangelho da glória de Deus"! (1 Tm 1:11). Este evangelho revela-nos
o Próprio Deus vindo ao mundo em graça perfeita e tirando o pecado pelo
sacrifício da cruz; tirando-o, da maneira mais absoluta, sob a base da justiça eterna,
porquanto Cristo sofreu por ele, tendo sido feito pecado por nós. E não somente
Deus é visto tirando o pecado do mundo mas dando também uma nova vida — a
própria vida de ressurreição de Seu Filho, exaltado, e glorificado —, vida que todo
o verdadeiro crente tem, em virtude de estar ligado, nos desígnios eternos de Deus,
com Aquele que foi pregado na cruz, mas está agora no trono da Majestade nas
alturas. Esta natureza, como já acentuamos, é guiada graciosamente pelos preceitos
da Palavra de Deus, aplicada com poder pelo Espírito Santo. Ele anima-a também
apresentando-lhe esperanças indestrutíveis: revela, à distância, "a esperança da
glória" — "uma cidade que tem fundamentos" —, "uma pátria melhor, isto é, a
celestial" — as muitas moradas da casa do Pai, harpas e salvas de ouro —, e vestidos
brancos, um reino que não pode falhar — ligação eterna com Ele próprio, nessas
regiões de glória e luz, onde a dor e as trevas nunca poderão entrar — o inefável
privilégio de ser conduzido, através dos séculos incontáveis da eternidade, "águas
tranquilas, e verdes pastos" de amor redentor. Como tudo isto é diferente do
conceito do legalista! Em vez de me mandar educar e dominar, por meio de
dogmas de religião sistemática, uma natureza irremediavelmente corrompida, de
maneira a que eu possa desse modo renunciar o mundo que amo, e alcançar um
céu que detesto, Deus, em graça infinita, e com base no sacrifício de Cristo,
concede-me uma natureza que pode gozar o céu, e o céu para essa natureza gozar;
e, não somente o céu, mas Ele Próprio, a fonte infalível de toda a alegria do céu.
Tal é o caminho excelente de Deus. Assim Ele tratou com Abraão. Assim tratou
com Saulo de Tarso. Assim trata conosco. O Deus da glória mostrou a Abraão um
melhor país do que Ur ou Harã: mostrou a Saulo de Tarso uma glória tão brilhante,
que fechou os seus olhos para as glórias mais refulgentes da terra, e originou que
ele as considerasse todas "como esterco", para poder ganhar Aquele bendito
Senhor que lhe havia aparecido, e Cuja voz tinha falado ao mais íntimo da sua
alma. Ele viu um Cristo celestial na glória; e, durante o resto da sua carreira, não
obstante a fraqueza do vaso terrestre, Aquele Cristo celestial e essa glória celestial
absorveram toda a sua alma.

Deus Responde à Fé de Abraão, porém Põe o Seu Servo à Prova


"E passou Abrão por aquela terra até ao lugar de Siquém, até ao Carvalho de Moré;
e estavam, então, os Cananeus na terra". A presença dos Cananeus na terra de Deus
havia necessariamente de ser uma prova para Abraão. Seria uma exigência para a
sua fé e esperança, um exercício do coração e uma prova de paciência: tinha
deixado Ur e Harã para trás e entrado no país do qual "o Deus da glória" lhe havia
falado, e encontrou lá "os Cananeus". Porém encontrou lá também o Senhor. "E
apareceu o Senhor a Abrão, e disse: A tua semente darei esta terra". A ligação entre
os dois relatos é bela e tocante. "Os Cananeus estavam na terra", e para que os olhos
de Abraão não fossem atraídos pelos Cananeus, os possuidores da terra, o Senhor
aparece-lhe como Aquele que ia dar-lhe a terra e à sua semente para sempre.
Assim Abraão toma o seu lugar elevado com Deus e não com os Cananeus. Isto é
cheio de instrução para nós. Os Cananeus na terra são a expressão do poder de
Satanás; porém, em vez de estarmos ocupados com o poder de Satanás para nos
afastar da herança, nós somos chamados para compreender o poder de Cristo para
nos introduzir na posse da herança. "Não temos que lutar contra carne e sangue,..
.mas sim contra as hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais" (Ef 6:12). A
própria esfera para onde somos chamados é a esfera do nosso conflito. Deve isto
aterrorizar-nos? De modo nenhum. Temos Cristo nela: um Cristo vitorioso, em
Quem "somos mais do que vencedores". Por isso em vez de acedermos ao "espírito
de temor", nós cultivamos o espírito de adoração. "E edificou ali um altar ao
SENHOR, que lhe aparecera. E moveu-se dali para a montanha à banda do oriente
de Betel e armou a sua tenda". O altar e a tenda dão-nos os dois grandes traços do
caráter de Abraão: adorador de Deus e estrangeiro na terra — bem-aventurados
característicos! Nada tendo no mundo, temos, todavia, tudo em Deus. Abraão não
tinha "sequer onde pôr a planta do seu pé"; mas tinha Deus e isso era bastante.
Contudo, a fé tem as suas provas, bem como as suas respostas. Não deve pensar-se
que o homem de fé, tendo sido empurrado para fora das circunstâncias, ache tudo
simples e fácil. De modo nenhum. De vez em quando tem que enfrentar mar
encapelado e céu carregado; todavia é tudo graciosamente destinado a levá-lo a
uma experiência mais profunda do que Deus é para o coração que confia n'Ele. Se
os céus nunca tivessem nuvens, e o oceano nunca se agitasse, o crente não
conheceria tão bem o Deus com Quem tem de tratar; porque, enfim!, nós sabemos
como o coração é propenso a confundir a paz das circunstâncias com a paz de
Deus. Quando todas as coisas correm agradavelmente — os nossos bens seguros, os
negócios prósperos, os filhos e os servos conduzindo-se corretamente, a nossa casa
confortável, e gozarmos de boa saúde, em suma, tudo à medida dos nossos desejos
—, como somos propensos a confundir a paz que repousa sobre tais circunstâncias
com aquela paz que o emana do conhecimento da presença de Cristo. O Senhor
conhece isto, e portanto vem, de um ou outro modo, e sacode o apoio; isto é, se
estivermos descansando nas circunstâncias, em vez de esperarmos n'Ele.
Por outro lado, somos frequentemente levados a julgar a retidão de uma carreira
pela sua exceção às provações ou vice- -versa. Isto é um grande erro. A carreira de
obediência pode ser por vezes muito difícil para a carne e o sangue. Assim, no caso
de Abraão, ele não foi apenas chamado para encontrar os Cananeus, no lugar para
onde Deus o havia chamado, mas havia também "fome na terra". Devia ele
portanto concluir que não estava no seu próprio lugar?- Certamente que não. Isso
seria julgar segundo as aparências, a própria coisa que a fé nunca faz. Sem dúvida,
era uma grande prova para o coração, um enigma inexplicável para a natureza: mas
para a fé era tudo claro e fácil. Quando Paulo foi chamado para a Macedônia, a
primeira coisa que encontrou, por assim dizer, foi a prisão de Filipos. Isto para um
coração que não estivesse em comunhão com Deus teria parecido um golpe mortal
na sua missão. Porém, Paulo nunca pôs em dúvida a retidão da sua posição. Ele
pôde cantar hinos a Deus no meio de tudo, certo de que tudo era precisamente
como devia ser: e assim era; pois que nas prisões de Filipos estava um dos vasos da
misericórdia de Deus, que não podia, humanamente falando, ter ouvido o
evangelho se os seus pregadores não tivessem sido lançados no próprio lugar onde
ele estava. O diabo foi, apesar do que é, o instrumento para mandar o evangelho
aos ouvidos de um dos eleitos de Deus.

A Fome e o Egito
Ora, Abraão podia ter raciocinado da mesma maneira, com respeito à fome. Ele
estava no próprio lugar onde Deus o tinha posto; e, evidentemente, não recebeu
instruções para o deixar. Na verdade, a fome estava ali; e, além disso, o Egito ficava
perto, oferecendo alívio da pressão; ainda assim o dever do servo de Deus era claro.
E melhor morrer-se de fome em Canaã, se assim tiver de ser, do que viver na
luxúria no Egito.
É muito melhor sofrer no caminho de Deus do que estar à vontade no de Satanás. E
melhor ser-se pobre com Cristo do que rico sem Ele. Abraão teve "ovelhas, e vacas,
e jumentos, e servos, e servas, e jumentas e camelos". Prova real, diria o coração
natural, indubitavelmente, da retidão do passo que havia dado, descendo ao Egito.
Mas, oh! ele não tinha altar — não havia comunhão com Deus. O Egito não era o
lugar da presença de Deus. Abraão perdeu mais do que ganhou indo para lá. Este é
sempre o caso. Nada pode compensar a perda da nossa comunhão com Deus.
A falta de opressão temporária, e o acesso às maiores riquezas, são apenas pobres
equivalências daquilo que se perde por nos afastarmos, ainda que seja só a ponta
dum cabelo, do caminho reto da obediência. Como temos que acrescentar o nosso
amém a isto! Quantos, com o fim de evitarem a provação e o exercício espiritual
ligados com o caminho de Deus, se têm desviado para a corrente do presente
século mau, e acarretado desse modo pobreza, tristeza e mágoa sobre as suas almas!
Pode muito bem ser que tenham, para usar a frase que é muito vulgar, "feito
dinheiro", aumentado os seus bens, conseguido os favores do mundo e que sejam
"muito estimados" pelos seus Faraós, alcançando um nome e uma boa posição entre
os homens. Porém, estas coisas são uma equivalência própria para a alegria em
Deus, comunhão e liberdade de coração, uma consciência pura e tranquila, um
espírito de louvor, um testemunho vigoroso e serviço eficaz? Ai daquele que pensa
que sim! E contudo estas bênçãos incomparáveis têm sido, por vezes, vendidas por
um pouco de bem-estar, alguma influência e dinheiro.
Prezado leitor, devemos vigiar contra a tendência de nos afastarmos do caminho
estreito, todavia seguro, por vezes áspero e contudo sempre agradável, mas simples
e sempre de obediência. Vigiemos com zelo e rigor pela "fé e a boa consciência" (1
Tm 1:19), a qual não pode ser compensada por nada. Se vier a provação, devemos
esperar em Deus, em vez de descermos ao Egito; e assim a provação, em vez de ser
uma ocasião de tropeço, será uma oportunidade de obediência. Quando, somos
tentados a seguir o curso do mundo, lembremo-nos d'Aquele "que se deu a si
mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a
vontade de Deus, nosso Pai" (G1 1:4). Se tal foi o Seu amor por nós, e era tal o Seu
sentido do verdadeiro caráter deste presente século mau, que Se deu a Si Mesmo a
fim de nos libertar dele, negá-Lo-emos lançando-nos outra vez naquilo de que a
Sua cruz nos libertou«?- Permita Deus que não! Que Deus nos guarde em Sua mão
e à sombra das Suas asas, até vermos Jesus como Ele é, sermos semelhantes a Ele,
andarmos e estarmos com Ele para sempre.

CAPÍTULO 13

A RESTAURAÇÃO DE ABRAÃO E SUA SEPARAÇÃO DE LÓ

Abraão Volta até o Lugar onde antes Estava a Sua Tenda


A abertura deste capítulo apresenta-nos um assunto do maior interesse para o
coração, a saber, o verdadeiro caráter da restauração divina. Quando um filho de
Deus tem, de qualquer modo, declinado no seu estado espiritual e perdido a sua
comunhão corre o perigo, quando a consciência começa a trabalhar, de não
compreender a graça e ficar muito aquém da nossa própria marca da restauração
divina. Ora nós sabemos que Deus faz todas as coisas de uma maneira inteiramente
digna de Si. Quer seja na criação, redenção, conversão, restauração ou suprimento
de necessidades, Ele só pode atuar como é digno do Seu caráter. O que é digno
d'Ele é sempre e tão somente o Seu padrão de ação. Isto é uma verdade
inefavelmente ditosa para nós, porquanto procuramos sempre "limitar o Santo de
Israel"; e em nada somos tão propensos em O restringir como na Sua graça
restauradora.
No caso que temos perante nós, vemos que Abraão não foi apenas libertado do
Egito, mas trazido "ao lugar onde, ao princípio, estivera a sua tenda... até ao lugar
do altar que, dantes, ali tinha feito; e Abrão invocou ali o nome do SENHOR".
Nada pode satisfazer Deus, com respeito a um extraviado ou apóstata, senão a sua
inteira restauração. Nós, na justiça própria dos nossos corações, podíamos pensar
que uma tal pessoa devia ocupar um lugar mais baixo do que aquele que havia
ocupado antes; e assim teria de ser, se fosse uma questão do seu mérito ou caráter;
mas visto que é inteiramente uma questão de graça é prerrogativa de Deus
estabelecer a regra da restauração; e a Sua regra é estabelecida na passagem
seguinte: "Se voltares, ó Israel, diz o SENHOR, para mim voltarás" (Jr 4:1). É assim
que Deus restaura e seria impróprio de Si fazê-lo de modo diferente. Ele ou não
procederá à restauração, ou então restaurará de maneira a engrandecer e glorificar
as riquezas da Sua graça. Assim o leproso depois de sarado era conduzido "à porta
da tenda da congregação" (Lv 14:11). Quando o filho pródigo regressou ao lar
paterno, assentou-se à mesa com o pai. Quando Pedro foi restaurado, pôde
enfrentar os varões de Israel e dizer-lhes "...vós negastes o Santo e o Justo" (At
3:14) — a mesmíssima coisa que ele próprio tinha feito nas piores circunstâncias.
Em todos estes casos, e em muitos outros mais que podíamos acrescentar, vemos a
perfeição da restauração levada a efeito por Deus. Ele traz sempre a alma outra vez
a Si, no pleno poder da graça e a plena confiança da fé. "Se voltares, ...para mim
voltarás". Abraão veio "ao lugar onde, ao princípio, estivera a sua tenda".
Quanto ao efeito moral da restauração divina é profundamente prático. Se o
legalismo consegue a sua resposta no caráter da restauração, o antinomianismo
tira-a do seu efeito. A alma restaurada terá uma compreensão profunda e viva do
mal de que foi libertada, e isto será evidenciado por meio de um espírito cioso, de
oração, santo e prudente. Não somos restaurados para voltarmos a pecar mais
levianamente, mas antes para "não pecarmos mais". Quanto maior for a minha
compreensão da graça da restauração divina, tanto mais intensa será também a
minha apreciação da sua santidade. Este princípio é estabelecido e ensinado em
toda a Escritura; mas principalmente em duas passagens muito conhecidas, a saber,
Salmo 23:3, onde lemos: "Restaura(1) a minha alma; guia-me pelas veredas da
justiça, por amor do seu nome"-, e em 1 João 1:9: "Se confessarmos os nossos
pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a
injustiça." O caminho próprio para a alma divinamente restaurada é o das "veredas
da justiça". Por outras palavras, tendo provado a graça divina, nós andamos em
justiça. Falar de graça, enquanto se anda na injustiça é, como diz o apóstolo,
"converter em dissolução a graça de Deus" (Jd 4). Se a graça reina pela justiça para a
vida eterna (Rm 5:21), também se manifesta em justiça, no fluxo dessa vida. A
graça que perdoa os nossos pecados purifica-nos de toda a injustiça. Estas coisas
nunca devem ser separadas. Quando tomadas juntas dão-nos uma resposta
vitoriosa para o legalismo e o antinomianismo do coração humano.
__________
(') Versão inglesa "King James Version" e " Darby Translation" (N. do T.)


Contudo, houve uma prova mais profunda para Abraão do que a própria fome, isto
é, a resultante da companhia de um que, evidentemente, não andava na energia da
fé nem na compreensão de responsabilidade pessoal. Parece claro que Ló foi desde
o princípio levado mais pela influência e exemplo de Abraão do que pela sua
própria fé em Deus. Isto é um caso muito vulgar. Se olharmos para a história do
povo de Deus, podemos ver facilmente como em todos os grandes movimentos
produzidos pelo Espírito Santo determinados indivíduos se ligaram com eles sem
que fossem pessoalmente participantes do poder que havia promovido o
movimento. Tais pessoas podem continuar por algum tempo, quer seja como um
peso morto sobre o testemunho, quer como um impedimento ativo sobre ele.
Assim, no caso de Abrão, Deus chamou-o para deixar a sua parentela; mas ele
levou a sua parentela consigo. Tera fê-lo demorar na sua viagem, até que a morte o
tirou do caminho. Ló seguiu-o mais longe, até que "as ambições de outras coisas"
(Mc 4:19) o venceram, e falhou inteiramente.
A mesma coisa vê-se no grande movimento da saída de Israel do Egito. "O vulgo,
que estava no meio deles" causou muita profanação, fraqueza e dor: é o que lemos
em Números 11:4: "o vulgo, que estava no meio deles, veio a ter grande desejo;
pelo que os filhos de Israel tornaram a chorar e disseram: Quem nos dará carne a
comerá" Da mesma maneira aconteceu também nos primeiros dias da Igreja; e não
só então mas em todos os avivamentos que têm tido lugar até ao presente muitos
têm sido induzidos por influências, que, não sendo divinas, mostraram ser
evanescentes; e as pessoas assim induzidas cedem, mais tarde ou mais cedo, e
encontram o seu próprio nível. Nada que não seja de Deus perdurará.
Precisamos de compreender o elo entre Deus e nós. Eu devo conhecer-me como
um que foi chamado por Ele para a posição que ocupo, de contrário não terei
estabilidade e não poderei mostrar consistência nela. De nada serve seguirmos no
rasto de outros apenas porque é o seu trilho. Deus dará graciosamente a cada um o
trilho para seguir, uma esfera onde se mover, e uma responsabilidade a cumprir; e
nós somos obrigados a conhecer a nossa chamada e o cargo dela, para que, pela Sua
graça, ministrada diariamente às nossas almas, possamos trabalhar eficazmente
para Sua glória. Não importa qual possa ser a nossa medida, desde que seja o que
Deus nos tem dado. Podemos ter "cinco talentos" ou apenas "um"; contudo, se
usarmos esse "um" com os olhos postos no Mestre, poderemos estar certos de ouvir
dos Seus benditos lábios as palavras "bem está", como se tivéssemos usado os
"cinco". Isto é animador. Paulo, Pedro, Tiago e João tinham cada um a sua aptidão
peculiar: o seu ministério específico; e assim é com todos; ninguém precisa de
interferir com outrem. Um carpinteiro tem a serra e a plaina, um martelo e um
formão, e faz uso deles como necessita. Nada pode ser mais inútil do que a
imitação. Se olharmos para as várias ordens da criação no mundo natural, não
vemos imitação. Todas têm a sua própria esfera, a sua própria função. E se é assim
no mundo natural, quanto mais no espiritual. O campo é bastante largo para todos.
Em cada casa há vasos de vários tamanhos e feitios. O dono precisa deles todos.
Devemos, portanto, prezado leitor, procurar ver se estamos andando segundo uma
influência divina ou humana; se a nossa fé está posta na sabedoria do homem ou no
poder de Deus; se estamos fazendo as coisas porque os outros as fazem, ou porque o
Senhor nos chamou para as fazermos; se somos meramente fortalecidos pelo
exemplo e influência do nosso semelhante ou sustentados pela fé em Deus. São
interrogações sérias. É, sem dúvida, um privilégio desfrutarmos a comunhão dos
nossos irmãos; porém se formos amparados por eles em breve fracassaremos. Do
mesmo modo, se nos afastamos da nossa aptidão a nossa ação será forçada,
desagradável, enfadonha e fora do natural. É muito fácil ver quando um homem
está trabalhando no seu lugar e segundo a sua capacidade. A afetação, o disfarce e a
imitação são desprezíveis em absoluto.
Por isso se não podemos ser grandes, sejamos honestos; e embora não possamos ser
brilhantes, sejamos verdadeiros. Se uma pessoa vai além da sua altura sem saber
nadar terá muito que estrebuchar. Se um barco se fizer ao mar sem lastro e em
condições de navegar, será certamente arrojado para o porto ou perdido. Ló saiu de
"Ur dos Caldeus", mas caiu nas planícies de Sodoma. A chamada de Deus não tinha
tocado o seu coração, nem a herança de Deus enchido a sua visão.
Que pensamento solene! Ponderemo-lo seriamente! Bendito seja Deus, há um
caminho para cada um dos Seus servos, ao longo do qual brilha a luz do Seu
semblante, e andar nele deve ser o nosso principal gozo. A sua aprovação é
bastante para o coração que O conhece. É verdade que nem sempre podemos
inspirar a aprovação, e o assentimento dos nossos irmãos: podemos
frequentemente ser mal compreendidos; porém não podemos evitar estas coisas.
"O dia" aclarará todas estas coisas (1 Co 3:13) e o coração fiel pode alegremente
esperar por esse dia, sabendo que então "cada um receberá de Deus o louvor" (1 Co
4:5).

O Contraste entre a Fé de Abraão e a Conformidade com o Mundo de Ló


Contudo, será bom vermos, especialmente, o que foi que deu lugar a que Ló se
afastasse do caminho do testemunho público. Existe uma crise na história de cada
homem em que será, indubitavelmente, revelado o fundamento em que ele
descansa, quais os motivos por que é instigado, e quais os fins que o animam. Assim
foi com Ló. Não morreu em Harã; mas caiu em Sodoma. A causa aparente da sua
queda foi a contenda entre os seus pastores e os pastores de Abraão; porém o fato é
que quando alguém não anda realmente com um motivo verdadeiro e afeições
puras facilmente encontrará uma pedra para tropeçar. Se não a encontra numa
ocasião, encontrá-la-á noutra. Se não a encontra aqui, achá-la-á acolá. Em certo
sentido, pouco importa o que seja a causa aparente de se afastar; a verdadeira causa
encontra-se oculta, longe da observação normal, nas câmaras íntimas dos afetos e
desejos do coração, onde o mundo, de qualquer forma ou feitio, tem sido
procurado.
A contenda entre os pastores podia facilmente ter sido resolvida sem prejuízo
espiritual para Abraão ou Ló. Para aquele, na verdade, foi apenas uma ocasião para
mostrar o poder formoso da fé e a elevação moral — o terreno celestial vantajoso,
em que a fé sempre põe o seu possuidor. Mas para este foi uma ocasião de mostrar o
mundanismo completo do seu coração. A contenda não produziu o mundanismo
em Ló, do mesmo modo que não produziu a fé em Abraão: apenas mostrou, no caso
de cada um, o que estava realmente nele.
Assim é sempre: controvérsias e divisões levantam-se na Igreja de Deus, e muitos
tropeçam com isso, e são arrastados outra vez para o mundo, de um ou de outro
modo. Então atribuem a culpa às controvérsias e divisões, ao passo que, a verdade é
que estas coisas eram apenas os meios de revelar o verdadeiro estado da alma e a
inclinação do coração. O mundo estava no coração e tinha de ser alcançado de uma
ou de outra maneira; nem tão-pouco há muito de moral revelada em criticar os
outros e as coisas, quando a raiz do mal se encontra no coração. Não é que a
controvérsia e as divisões não sejam de lamentar profundamente;
indubitavelmente que são. Ver irmãos envolvidos em contendas na presença dos
Cananeus e dos Pereseus é, verdadeiramente, humilhante e lamentável. A nossa
linguagem deve ser sempre, "Ora, não haja contenda entre mim e ti... porque
irmãos somos". Todavia, porque não escolheu Abraão Sodoma?- Por que razão a
contenda não o arrastou para o mundo?- Porque não foi uma ocasião de tropeço
para ele«?- Porque encarou o caso debaixo do ponto de vista de Deus. Sem dúvida,
ele tinha um coração que podia ser atraído por "campinas bem regadas" tão forte
como o de Ló; mas a verdade é que ele não permitiu que o seu coração escolhesse.
Primeiramente deixou que Ló fizesse a sua escolha, e então deixou que Deus
escolhesse por ele. Isto era sabedoria celestial. É o que a fé sempre faz: permite que
Deus determine a sua herança, assim como consente que Ele a faça boa. Satisfaz-se
sempre com aquilo que Deus lhe dá. Pode dizer, "As linhas caem-me em lugares
deliciosos: sim, coube-me uma formosa herança" (SI 16:6). Não importa onde "as
linhas" caiam; porque, no parecer da fé, elas sempre caem "em lugares deliciosos",
porque Deus deita-as para ali.
O homem de fé pode facilmente proporcionar ao homem que anda por vista que
faça a sua escolha. Ele pode dizer, "...se escolheres a esquerda, irei para a direita; e,
se a direita escolheres, eu irei para a esquerda". Que belo desinteresse e elevação
moral temos aqui! E todavia que segurança! E certo que, estenda-se a natureza até
onde quer que for, torne o seu alcance mais compreensível, a sua velocidade mais
ousada, não existe nunca o mínimo perigo de deitar mão ao tesouro da fé.
Procurará a sua parte por caminhos opostos. A fé deixa a sua herança num lugar
que a natureza nunca pensaria verificar; e quanto à sua aproximação dela não
poderia lá chegar, ainda que quisesse; e não quereria fazê-lo se pudesse. Por isso, a
fé está perfeitamente segura, bem como maravilhosamente desinteressada,
podendo permitir que a natureza faça a sua escolha.

Ló Escolhe a Campina
Que escolheu, então, Ló, quando lhe foi dada preferência?- Escolheu Sodoma. O
próprio lugar que estava prestes a ser julgado. Mas como foi isto?- Porque escolher
um tal lugar?- Porque olhou para as aparências e não para o caráter intrínseco e
destino futuro. O caráter intrínseco era "ímpio". O seu destino era o julgamento"
para ser destruída por "fogo e enxofre do céu". Porém, pode dizer-se, "Ló não sabia
nada disto". Talvez não, nem tão-pouco Abraão; mas Deus sabia; e se Ló tivesse
permitido que Deus escolhesse a sua herança por ele, Ele certamente não teria
escolhido um lugar que estava prestes a destruir. Mas ele não o fez. Fez juízo por si
mesmo. Sodoma agradava-lhe, embora não agradasse a Deus. Os seus olhos
cobiçaram "a campina, que era toda bem regada", e o seu coração foi atraído por
ela.
"Armou as suas tendas até Sodoma".
Tal é a escolha da natureza! "Demas me desamparou, amando o presente século" (2
Tm 4:10). Ló desamparou Abraão pelo mesmo motivo. Deixou o lugar do
testemunho e pôs-se no lugar do Juízo.

A Parte de Abraão
"E disse o SENHOR a Abrão, depois que Ló se apartou dele: Levanta, agora, os teus
olhos e olha desde o lugar onde estás, para a banda do norte, e do sul, e do oriente,
e do ocidente; porque toda esta terra que vês te hei-de dar a ti e à tua semente, para
sempre". A "contenda" e a separação, longe de prejudicarem o estado espiritual de
Abraão, revelaram, em compensação, os seus princípios celestiais e fortaleceram,
na sua alma, a vida da fé. Além disso esclareceram as suas perspectivas e
libertaram-no da companhia de um que só podia ser um peso morto para si. Assim
tudo contribuiu para bem e produziu abundantes bênçãos. É, ao mesmo tempo,
muito solene e animador notar que, afinal, os homens encontram sempre o seu
próprio meio. Os que correm sem ser enviados caem, de um modo ou de outro, e
regressam àquilo que professavam ter abandonado. Por outro lado, aqueles que são
chamados por Deus e se apoiam n'Ele são, pela Sua graça, mantidos. A sua vereda
"é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito" (Pv
4:18). Este pensamento deve manter-nos humildes, vigilantes e em oração.
"Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia" (1 Co 10:12), porque "muitos
primeiros serão derradeiros, e muitos derradeiros serão primeiros" (Mt 19:30).
"Aquele que perseverar até o fim será salvo" (Mt 10:22), é um princípio que, seja
qual for a sua aplicação, implica um amplo comportamento moral. Muitos barcos
têm partido do porto com pompa e todas as velas alçadas, por entre aclamações,
vivas, e perspectivas agradáveis de uma viagem feliz; mas, infelizmente,
tempestades, ondas, escolhos, rochedos e bancos de areia, mudaram o aspecto das
coisas; e a viagem, que começara com esperança, acabou em desastre. Refiro-me
aqui apenas ao caminho do serviço e testemunho, e, de modo nenhum, à questão
da aceitação eterna do crente em Cristo. Esta, bendito seja Deus, não descansa, de
modo nenhum, em nós, mas n'Aquele que disse "...dou-lhes a vida eterna, e nunca
hão-de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão". No entanto, não sabemos
nós todos que muitos encetam algum serviço especial ou testemunho debaixo da
impressão que são chamados por Deus para o fazer, e, depois de algum tempo,
desistem"?- Indubitavelmente. E, além disso, muitíssimos empreendem a profissão
de algum princípio especial de atividade, acerca da qual não foram divinamente
ensinados ou cujas consequências tão-pouco consideraram na presença de Deus, e,
como resultado inevitável, foram achados, depois de algum tempo, em
transgressão aberta desses mesmos princípios. Tudo isto é lamentável e deve ser
cuidadosamente evitado. Tende a enfraquecer a fé dos eleitos de Deus, e dá lugar a
que os inimigos da verdade falem injuriosamente. Cada um deve receber a sua
chamada e a sua comissão diretamente do Próprio Mestre. Todos os que Cristo
chama para qualquer serviço especial mantê-los-á, infalivelmente, porque Ele
nunca chamou ninguém para militar à sua própria custa. Porém se quisermos
militar sem sermos enviados, não somente teremos que aprender a custa da nossa
parvoíca, mas também de mostrá-la.
Todavia, isto não quer dizer que alguém possa apresentar-se como se fosse a
personificação de qualquer princípio, ou um exemplo de algum caráter especial de
serviço ou testemunho. Deus nos livre! Isto seria a maior tolice, e um conceito
vazio. É obrigação do ensinador mostrar a Palavra de Deus; e é dever do servo
manifestar a vontade do Senhor; porém, enquanto isto é inteiramente
compreendido e admitido, devemos sempre lembrar a necessidade profunda que
há de contar-se com o custo, antes de decidirmos edificar uma torre, ou entrar a
militar. Se isto fosse seriamente ponderado, haveria muito menos confusão e falha
no nosso meio. Abraão foi chamado por Deus de Ur para Canaã, e por isso Deus
conduziu-o pelo caminho. Quando Abraão se demorou em Harã, Deus esperou por
ele; quando desceu ao Egito, Deus restaurou-o; quando precisou de orientação,
Deus guiou-o; quando houve contenda e separação, Deus tomou conta dele; de
maneira que Abraão somente tinha que dizer, "Oh! Quão grande é a tua bondade,
que guardaste para os que te temem, e que tu mostraste àqueles que em ti confiam
na presença dos filhos dos homens!" (SI 31:19). Abraão nada perdeu com o litígio.
Ele tinha a sua tenda e o seu altar antes; e teve a sua tenda e o seu altar depois. "E
Abrão armou as suas tendas, e veio, e habitou nos carvalhais de Manre, que estão
junto a Hebrom; e edificou ali um altar ao SENHOR". LÓ podia escolher Sodoma;
mas quanto a Abraão, ele buscou e achou tudo em Deus. Não havia altar em
Sodoma. Enfim, todos quantos viajam nessa direção andam em busca de alguma
coisa completamente diferente disso. Nunca é a adoração a Deus, mas o amor do
mundo, que os leva ali, E ainda que consigam o seu objetivo, que é isso? Como
acabai Deste modo: "E ele satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar a sua alma"(Sl
106:15).

CAPÍTULO 14

LÓ É LIBERTADO POR ABRAÃO

A Manifestação de Amor Fraternal


Aqui é-nos feito o relato histórico da revolta de cinco reis contra Quedorlaomer e
da batalha que se seguiu. O Espírito de Deus pode ocupar-Se dos movimentos de
"reis e seus exércitos", quando tais movimentos são de qualquer maneira ligados
com o povo de Deus. No caso presente, Abraão, pessoalmente, nada tinha a ver em
absoluto com a revolta ou as suas consequências. A sua "tenda e o altar" não eram
um motivo crível para uma declaração de guerra, nem tão-pouco para serem
afetados pela luta ou seus resultados. A parte que pertence a um homem celestial
nunca pode, de qualquer modo, tentar a cobiça nem excitar ambição de reis e
conquistadores deste mundo.
Mas embora Abraão não fosse prejudicado pela luta de "quatro reis contra cinco",
todavia Ló era. A sua posição era tal que o comprometia com todo o
acontecimento. Enquanto pudermos, pela graça, seguir no caminho da fé seremos
afastados inteiramente do curso das circunstâncias deste mundo; porém se
abandonarmos a nossa elevada e santa posição como aqueles cuja "cidade está nos
céus", e buscarmos um nome, um lugar e um quinhão na terra, devemos esperar
sofrer as consequências das convulsões e vicissitudes do mundo. Ló estabelecera a
sua morada na campina de Sodoma, e foi, portanto, profundamente atingido pelas
guerras de Sodoma. Sempre assim será. E uma coisa amarga e dolorosa para um
filho de Deus imiscuir-se com os filhos deste mundo. Nunca poderá fazê-lo sem
grave prejuízo para a sua própria alma, bem como para o testemunho que lhe está
confiado.
Que testemunho deu Ló em Sodoma? Um testemunho muito fraco, na verdade, se
é que deu algum testemunho. O próprio fato de se ter estabelecido ali foi o golpe
mortal no seu testemunho. Ter dito uma palavra contra Sodoma e os seus
caminhos teria sido condenar-se a si próprio, pois, por que razão estava ele ali?
Mas, na verdade, não parece, de modo nenhum, que testemunhar de Deus fizesse
parte do seu objetivo armando as suas tendas até Sodoma. Os interesses pessoais e
familiares parecem ter sido o seu motivo principal de ação; e, embora, como Pedro
nos diz, a sua alma justa fosse todos os dias afligida (2 Pe 2:8) pelo que via e ouvia
sobre as suas obras injustas, ele tinha pouco poder para atuar contra o mal, na
hipótese de estar disposto a fazê-lo.
É importante notarmos, debaixo do ponto de vista prático, que não podemos ser
regidos por dois objetivos ao mesmo tempo. Por exemplo, eu não posso ter perante
mim, como objetivos, os meus interesses mundanos e os interesses do evangelho de
Cristo. Se me dirijo a uma cidade com o fim de tratar dos meus negócios, então,
claramente, o negócio é o meu objetivo, e não o evangelho. Posso, sem dúvida,
tencionar fazer as duas coisas, os negócios e pregar o evangelho também; mas
durante todo o tempo, um ou o outro deve ser o meu objetivo. Não é que um servo
de Cristo não possa eficazmente pregar o evangelho e tratar dos negócios também;
claro que pode; mas, nesse caso, o evangelho será o seu objetivo, e não o negócio.
Paulo pregava o evangelho e fazia tendas; mas o evangelho era o seu objetivo, e
não a fabricação de tendas. Se eu fizer dos meus negócios o meu objetivo, a
pregação do evangelho será em breve um trabalho formal e improdutivo; na
verdade, será bom se não for usado para santificar a minha ambição. O coração é
traiçoeiro! E é, muitas vezes, verdadeiramente, espantoso ver como ele nos engana
quando desejamos alcançar alguma coisa. Dará, em abundância, as razões mais
plausíveis; enquanto que os olhos do nosso entendimento estão tão cegos por
interesses próprios, ou obstinação, que são incapazes de detectar a sua
plausibilidade. Quantas vezes ouvimos pessoas defendendo a permanência numa
posição, que admitem ser má, sob o argumento que desse modo desfrutam uma
melhor esfera de utilidade. A uma tal argumentação, Samuel dá uma resposta
poderosa e direta: "obedecer é melhor do que sacrificar; e o atender melhor é do
que a gordura de carneiros" (1 Sm 15:22).
Qual dos dois pôde fazer mais bem, Abraão ou Ló? Não é a história destes dois
homens uma prova indiscutível de que o meio mais eficaz de servir o mundo é
ser-se fiel para com ele por meio da separação, e testificar contra ele?

Separação e Comunhão
Mas recorde-se que separação genuína do mundo só pode ser o resultado de
comunhão com Deus. Eu posso excluir-me do mundo e constituir-me o centro do
meu ser, à semelhança dum monge ou dum cínico; contudo, separação para Deus é
uma coisa muito diferente. Uma esfria e contrai-se, a outra aquece e expande.
Aquela lança-nos sobre nós próprios; esta faz-nos sair em atividade e amor pelos
outros. A primeira faz da personalidade e dos seus interesses o nosso centro; a
última faz de Deus e a Sua glória o nosso centro. Assim, no caso de Abraão, vemos
que o próprio fato da sua separação habilitou-o a prestar um serviço eficaz àquele
que se havia metido em dificuldades pelos seus caminhos mundanos. "Ouvindo,
pois, Abrão que o seu irmão estava preso, armou os seus criados, nascidos em sua
casa, trezentos e dezoito, e os perseguiu até Dã... e tornou a trazer toda a fazenda e
tornou a trazer também a Ló, seu irmão, e a sua fazenda, e também as mulheres, e o
povo". Ló era, afinal, irmão de Abraão; e o amor fraterno deve atuar. "Na angústia
nasce o irmão" (Pv 17:17); e acontece muitas vezes que uma época de adversidade
suaviza o coração, e torna-o susceptível de amabilidade, até mesmo para com
aqueles de quem nos tenhamos separado; e é notável que, enquanto lemos no
versículo 12 que "tomaram a Ló, filho do irmão de Abrão", no versículo 14 lemos,
"ouvindo, pois, Abrão que o seu irmão estava preso". As exigências da aflição de
um irmão são atendidas pela afeição do coração dum irmão. Isto é divino. A fé
verdadeira, ao mesmo tempo que nos torna sempre independentes, nunca nos
torna indiferentes. Nunca se agasalha no seu manto, enquanto um irmão sente
arrepios de frio. Existem três coisas que a fé faz: "purifica o coração", "age por
amor" e "vence o mundo"; e todos estes resultados da fé são admiravelmente
apresentados em Abraão, nesta ocasião. O seu coração estava purificado das
abominações de Sodoma; ele mostrou amor verdadeiro por seu irmão Ló; e,
finalmente, ficou completamente vitorioso sobre os reis. Tais são os frutos
preciosos da fé, esse princípio celestial, honroso para Cristo.

O Rei de Sodoma e Melquisedeque


Todavia, o homem de fé não está livre dos assaltos do inimigo; e acontece com
frequência que imediatamente após uma vitória encontra-se uma nova tentação.
Assim aconteceu com Abraão. "O rei de Sodoma saiu-lhes ao encontro, (depois que
voltou de ferir a Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele)". Havia,
evidentemente, um intento insidioso do inimigo nesta atitude. "O rei de Sodoma"
apresenta um pensamento muito diferente e mostra uma fase muito diversa do
poder do inimigo daquela que temos em Quedorlaomer e os reis que estavam com
ele. No primeiro caso vemos o silvo da serpente; no segundo o rugido do leão; mas
quer fosse a serpente ou o leão, a graça de Deus era amplamente bastante; e esta
graça era o mais apropriada possível para o seu servo no momento exato de
necessidade. "E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho e era este
sacerdote do Deus Altíssimo. E abençoou-o, e disse: Bendito seja Abrão do Deus
altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o Deus altíssimo, que
entregou os teus inimigos nas tuas mãos." Aqui, vemos em primeiro lugar o ponto
especial em que Melquisedeque entra em cena; e, em segundo lugar, o efeito duplo
do seu ministério. Ele não apareceu quando Abraão foi em perseguição de
Quedorlaomer, mas quando o rei de Sodoma foi atrás de Abraão. Isto faz uma
grande diferença moral. Um caráter mais profundo de comunhão era necessário
para enfrentar o maior aspecto do conflito.
E, depois, “quanto ao ministério, o "pão e o vinho" animaram o espírito de Abraão,
depois do seu conflito com Quedorlaomer; ao passo que a bênção preparou o seu
coração para o conflito com o rei de Sodoma. Abraão era um vencedor, e todavia
estava prestes a ser um contendor, e o sacerdote real animou o espírito do
vencedor e fortificou o coração do combatente.
E particularmente agradável observar a maneira como Melquisedeque apresenta
Deus aos pensamentos de Abraão. Fala d'Ele como "O Deus Altíssimo, o Possuidor
dos céus e da terra"; e, não somente isto, mas declara Abraão "bendito" do mesmo
Deus. Isto era efetivamente prepará-lo para o encontro com o rei de Sodoma. Um
homem que era "bendito" de Deus não precisava de tomar coisa alguma do
inimigo; e se "O Possuidor dos céus e da terra" enchia a sua visão, "os bens" de
Sodoma podiam ter apenas pouca sedução. Por isso, como podia esperar- se,
quando o rei de Sodoma faz a sua proposta: "Dá-me a mim as almas e a fazenda
toma para ti", Abraão responde: "Levantei minha mão ao SENHOR, O Deus
Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra, e juro que desde um fio até à correia
dum sapato, não tomarei coisa alguma de tudo o que é teu; para que não digas: Eu
enriqueci a Abrão". Abraão recusa ser enriquecido pelo rei de Sodoma. Como
poderia ele pensar em libertar Ló do poder do mundo, se ele próprio fosse
governado por ele? O único meio de libertar outro é eu próprio estar inteiramente
libertado. Enquanto eu permanecer no fogo é-me de todo impossível tirar alguém
dele. O caminho de separação é o caminho de poder, assim como e o caminho da
paz e bem-aventurança.
O mundo, nas suas várias fases, é o grande instrumento que Satanás usa, com o fim
de enfraquecer as mãos, e alienar o afeto dos servos de Cristo. Porém, bendito seja
Deus, quando o coração Lhe é fiel, Ele vem sempre para animar, fortalecer e
fortificar, no momento oportuno. "Quanto ao SENHOR, seus olhos passam por
toda a terra, para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é perfeito para
com ele" (2 Cr 16:9). Isto é uma verdade animadora para os nossos corações
tímidos, duvidosos e vacilantes. Cristo será a nossa força e escudo. Ele cobrirá a
nossa cabeça no dia da batalha (SI 140:7); "adestra as nossas mãos para a peleja e os
nossos dedos para a guerra" (SI 144:1); e por fim... esmagará em breve Satanás
"debaixo dos nossos pés" (Rm 16:20). Tudo isto é consolador para o coração ansioso
por fazer guerra ao "mundo, a carne e o diabo". Que o Senhor guarde os nossos
corações fiéis a Si no meio da cena ardilosa que nos rodeia.

CAPÍTULO 15

O SENHOR FAZ UM PACTO COM ABRAÃO

"Eu Sou o Teu Escudo, o Teu Galardão"


"Depois destas coisas veio a Palavra do SENHOR a Abrão em visão, dizendo: Não
temas, Abrão, eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão." O Senhor não quis
que o Seu servo fosse prejudicado rejeitando as ofertas deste mundo. Foi
infinitamente melhor para Abraão encontrar-se abrigado atrás do escudo do
Senhor do que tomar refúgio sob a proteção do rei de Sodoma e ter antecipado "o
seu grandíssimo galardão", em vez de aceitar "a fazenda" de Sodoma. A posição que
Abraão ocupa no primeiro versículo deste capítulo é admiravelmente expressiva
da posição na qual a alma é introduzida pela fé de Cristo. O Senhor era o seu
"escudo", para que ele pudesse descansar n'Ele, e o seu "galardão" para que pudesse
esperar n'Ele. Assim é agora com o crente: ele acha a sua paz, o seu descanso e a sua
segurança em Cristo. Nenhuma flecha do inimigo pode penetrar o escudo que
protege o crente mais fraco em Jesus.
E quanto ao futuro, Cristo preenche-o. Precioso quinhão! Preciosa esperança! Uma
parte que nunca poderá ser esgotada: uma esperança que nunca nos envergonhará.
Estão ambas infalivelmente seguras pelos desígnios de Deus e a expiação de Cristo.
A sua posse presente é por meio do Espírito Santo que habita em nós. Sendo este o
caso, é evidente que se o crente seguir uma carreira mundana, ou se entregar a
desejos mundanos ou carnais, não pode possuir o "escudo" nem o "galardão". Se o
Espírito Santo for entristecido não dará o gozo daquilo que é a nossa porção — a
nossa própria esperança. Por isso mesmo, nesta parte da história de Abraão, vemos
que quando ele voltou da matança dos reis, e rejeitou a oferta do rei de Sodoma, o
Senhor revelou-Se à sua alma no caráter duplo como o seu "escudo e o seu
grandíssimo galardão". Que o coração pondere isto, pois que encerra um volume
de verdade prática. Examinemos agora o resto do capítulo.

Filho e Herdeiro
Nele vemos o desenrolar dos dois grandes princípios de filiação e direito de
sucessão. "Então disse Abraão: Senhor Jeová, que me hás de dar, pois ando sem
filhos, e o mordomo da minha casa é o Damasceno Eliézer?- Disse mais Abrão: Eis
que me não tens dado semente, e eis que um nascido na minha casa será o meu
herdeiro." Abraão desejava um filho, pois sabia, de fonte divina, que a sua
"semente" herdaria a terra (capítulo 13:15). A filiação e sucessão acham-se
inseparavelmente ligadas nos pensamentos de Deus: "...aquele que de ti será
gerado, esse será o teu herdeiro." A filiação é a base de todas as coisas; e, além disso,
é o resultado do desígnio soberano e da operação de Deus, como lemos em Tiago
1:18, "segundo a sua vontade, ele nos gerou". Em conclusão, é baseada no princípio
eterno de ressurreição. Como poderia ser de outra formai O corpo de Abraão
estava "morto"; pelo que, no caso, como em qualquer outro, a filiação tem que ser
no poder da ressurreição. A natureza está morta e não pode conceber nem gerar
nada para Deus. Ali estava a herança estendendo-se perante os olhos do patriarca,
em todas as suas magnificentes dimensões, mas onde estava o herdeiro? O corpo de
Abraão e o ventre de Sara respondiam ambos "morte". Mas Jeová é o Deus da
ressurreição, e, portanto, um "corpo morto" era a coisa mais apropriada para agir.
Não estivesse a natureza morta e Deus tê-la-ia dado à morte antes de poder
revelar-Se inteiramente. A cena mais agradável para o Deus vivo é aquela da qual a
natureza, com todos os seus poderes de ostentação e pretensões vazias, foi
inteiramente expulsa pela sentença da morte. Portanto, a Palavra de Deus a Abrão
foi: "Olha, agora, para os céus, e conta as estrelas, se as podes contar. E disse-lhe:
Assim será a tua semente". Quando o Deus da ressurreição enche a visão não há
limite para a bênção da alma, porque Aquele que pode vivificar os mortos, pode
fazer tudo.

A Fé de Abraão
"E creu ele no Senhor, e foi-lhe imputado isto por justiça." A atribuição da justiça a
Abraão é, aqui, fundada sobre a sua crença no Senhor como Aquele que vivifica os
mortos. É neste caráter que Ele Se revela no mundo onde reina a morte; e quando a
alma crê n'Ele, como tal, isso é-lhe contado por justiça à Sua vista. Isto
necessariamente põe o homem de lado, no tocante à sua cooperação, pois que
poderá ele fazer no meio de uma cena de morte*?- Acaso pode ele ressuscitar os
mortos«?- Pode abrir as portas da sepultura?- Pode libertar-se a si próprio do poder
da morte e sair em vida e liberdade para além dos limites do seu império funesto?-
Indubitavelmente que não. Pois bem, se não pode fazer nada disto, não pode
conseguir a justiça, nem tão-pouco dar-se a si próprio o lugar de filho. "Deus não é
Deus dos mortos, mas dos vivos" (Mt 22:32), e, portanto, visto que o homem se
encontra debaixo do poder da morte e sob o domínio do pecado não pode conhecer
a posição de filho —nem a condição de justiça. Assim, só Deus pode conceder a
adoção de filhos, e somente Ele pode imputar a justiça, e tanto uma coisa como a
outra estão ligadas com a fé n'Ele como Aquele que ressuscitou Cristo de entre os
mortos.
E desta maneira que o apóstolo trata da questão da fé de Abraão, em Romanos
4:23-24, onde, diz ele: "Ora, não só por causa dele está escrito que lhe fosse tomado
em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos
naquele que dos mortos ressuscitou a Jesus, nosso Senhor". Aqui o Deus da
ressurreição é-nos apresentado como o objeto da fé, e a nossa fé n'Ele é vista como
o único fundamento da nossa justiça. Se Abraão tivesse olhado para o firmamento,
ornado de inumeráveis estrelas, e então atentasse "para o seu próprio corpo já
amortecido" (Rm 4:19), como poderia compreender a ideia de uma semente tão
numerosa como essas estrelas«? Impossível. Porém, ele não atentou para o seu
próprio corpo, mas para o poder do Deus de ressurreição, e, visto que esse era o
poder que havia de produzir a semente, podemos ver facilmente que as estrelas do
céu e a areia na praia do mar são, na verdade, apenas figuras fracas; pois que objeto
natural poderia, possivelmente, exemplificar o efeito desse poder que ressuscita os
mortos«?
Assim também, quando um pecador ouve as boas novas do evangelho, se olhasse
para a luz imaculada da presença divina, e então atentasse para as profundezas
desconhecidas da sua natureza pecaminosa, bem poderia exclamar, como poderei
jamais chegar ali?- Como poderei jamais ser digno de habitar nessa luz<? Onde está
a resposta?- Nele mesmo? Não, graças a Deus, mas n'Aquele bendito Senhor que
foi do seio do Pai até à cruz e à sepultura, e dali para o trono, enchendo assim, na
Sua Pessoa e obra, o espaço compreendido entre esses dois extremos. Não pode
haver nada mais elevado do que o seio de Deus — o lugar eterno de habitação do
Filho; e nada mais baixo do que a cruz e a sepultura; mas — verdade espantosa! —
encontramos Cristo em todos esses lugares. Eu encontro-O no Seio do Pai, e
encontro-0 na sepultura. Ele entrou na morte a fim de poder deixar atrás de Si, no
pó dela, o peso completo dos pecados e das iniquidades do Seu povo. Cristo, na
Sepultura, mostra o fim de tudo que é humano — o fim do pecado — o limite
máximo do poder de Satanás. A Sepultura de Jesus é o termo de tudo. Porém, a
ressurreição conduz-nos para além desse fim e constitui a base eterna na qual a
glória de Deus e a bênção do homem repousam para sempre. No momento em que
o olhar da fé repousa num Cristo ressuscitado, há uma resposta triunfal a todas as
interrogações quanto ao pecado, o juízo, a morte e a sepultura. Aquele que
enfrentou, divinamente, tudo isto está vivo de entre os mortos; e tomou o Seu
lugar nos céus à destra da Majestade; e, não somente isto, mas o Espírito desse
Senhor ressuscitado e glorificado constitui o crente num filho. O crente é
vivificado por meio da sepultura de Cristo; como lemos, "...quando vós estáveis
mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente
com ele, perdoando-vos todas as ofensas (Cl 2:13).

Filhos e Filhas pela Graça


Portanto, a filiação, sendo fundada na ressurreição, acha-se ligada com a
justificação — perfeita justiça —, perfeita liberdade de tudo que podia, de qualquer
modo, ser contra nós. Deus não podia ter-nos na Sua presença com o nosso pecado
sobre nós. Ele não poderia permitir uma simples mancha ou nódoa de pecado sobre
os Seus filhos e filhas. O pai não pôde ter o pródigo à sua mesa com os andrajos do
país distante sobre ele. Podia sair de casa para o encontrar andrajoso. Podia
lançar-se-lhe ao pescoço e beijá-lo, estando ele ainda com esses andrajos. Era digno
e admiravelmente típico da sua graça fazer assim; mas assentá-lo à sua mesa com os
seus andrajos nunca poderia ser. A graça que fez sair o pai para se encontrar com o
pródigo reina por meio da justiça que trouxe o pródigo ao pai. Não teria sido graça
se o pai tivesse esperado que o filho se ataviasse com as vestes da sua própria
aquisição; e não teria sido justo trazê-lo para casa nos seus andrajos; porém a graça
e a justiça brilharam em todo o seu respectivo esplendor e beleza quando o pai saiu
e se lançou ao pescoço do pródigo; contudo, isso não lhe deu um lugar à mesa até
ele estar vestido e ataviado duma maneira apropriada a essa alta e feliz posição.
Deus, em Cristo, desceu ao grau mais baixo da condição moral do homem, para
que, inclinando-se, pudesse elevar o homem ao grau mais elevado de
bem-aventurança, em comunhão Consigo. De tudo isto deduz-se que a nossa
filiação, com todos os seus consequentes privilégios e dignidade, não depende
absolutamente de nós. Temos precisamente tanto que fazer nesse sentido como o
corpo amortecido de Abraão e o ventre amortecido de Sara tinham que ver com
uma semente tão numerosa como as estrelas que ornamentam os céus, ou como a
areia na praia. É tudo obra de Deus. Deus o Pai delineou o plano; Deus o Filho
lançou o fundamento; e Deus o Espírito Santo levantou a superestrutura; e sobre
esta superestrutura lê-se a inscrição, "PELA GRAÇA, PELA FÉ, SEM AS OBRAS
DA LEI".

Herança e sofrimentos
Mas em seguida o capítulo apresenta-nos outro assunto muito importante, a saber,
o direito de sucessão. Havendo sido estabelecida a questão de filiação e justificação
— e incondicionalmente estabelecida —, o Senhor disse a Abraão: "Eu sou o
SENHOR, que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te a ti esta terra, para a
herdares". Aqui temos a grande questão do direito de sucessão e do caminho
peculiar que os herdeiros escolhidos devem trilhar antes de alcançarem a herança
prometida. "E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de
Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também
com ele sejamos glorificados." O nosso caminho para o reino encontra-se através
do sofrimento, aflições e tribulações; mas, graças a Deus, nós podemos dizer pela
fé: "...as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em
nós há de ser revelada" (Rm 8:17-18). Mais ainda, sabemos que "a nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória muito
excelente" (2 Co 4:17).E finalmente "também nos gloriamos nas tribulações,
sabendo que a tribulação produz a paciência; e a paciência, a experiência, e a
experiência, a esperança" (Rm 5:3-4). E uma grande honra e um privilégio
verdadeiro sermos autorizados a beber do cálix do nosso bendito Mestre, e sermos
batizados com o Seu batismo; para viajarmos em bem-aventurada companhia com
Ele ao longo da estrela que conduz diretamente à gloriosa herança. O Herdeiro e os
co-herdeiros alcançam a herança pelo caminho do sofrimento.

Cristo Sofreu por nós


Mas não se esqueça que o sofrimento de que os co-herdeiros participam não tem
elemento penal em si. Não é o sofrimento às mãos da justiça infinita, por causa do
pecado; tudo isso foi plenamente julgado na cruz, quando a vítima divina curvou a
Sua sagrada cabeça debaixo do golpe. "Porque também Cristo padeceu uma vez
pelos pecados" (IPe 3:18), e essa "vez" foi na cruz e em nenhuma outra parte. Ele
nunca sofreu pelos pecados antes, e nunca mais poderá sofrer pelos pecados,
"...mas, agora, na consumação dos séculos (o fim de toda a carne) uma vez se
manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo" (Hb 9:26). "Cristo
ofereceu-se uma vez" (Hb 9:28).
Há dois modos de encarar os sofrimentos de Cristo: primeiro, como moído por
Jeová; segundo, como rejeitado pelos homens. No primeiro caso, Ele esteve só; no
último, nós temos a honra de estar associados com Ele. No primeiro caso, repito,
Ele estava só, pois quem poderia estar com Ele? Ele suportou a ira de Deus,
sozinho; desceu em solidão ao "vale áspero que nunca foi lavrado nem semeado"
(Dt 21:4), e onde liquidou, para sempre, a questão dos nossos pecados. Com isto
nada tivemos a fazer, embora sejamos devedores a isso eternamente de tudo. Ele
combateu o combate e ganhou a vitória, sozinho; mas divide os despojos conosco.
Ele esteve em solidão no "lago horrível, um charco de lodo" (SI 40:2), mas
diretamente pôs os Seus pés na "rocha" eterna da ressurreição, e associa-nos com
Ele. Ele soltou o brado, sozinho; mas canta o novo cântico rodeado de companhia
(SI 40:2-3).

Sofrer com Cristo


Ora a questão é esta: recusaremos nós sofrer às mãos do homem com Aquele que
sofreu às mãos de Deus por nós? Que é, em certo sentido, uma interrogação, é
evidente, devido ao uso constante que o Espírito faz da palavra "se", em ligação
com ela. "Se é certo que com Ele padecemos" (Rm 8:17). "Se sofrermos, também
com Ele reinaremos" (2 Tm 2:12). Não existem tais condições quanto à filiação.
Nós não alcançamos a alta dignidade de filhos por meio do sofrimento, mas
somente pelo poder vivificador do Espírito Santo, baseado na obra consumada de
Cristo, segundo o conselho eterno de Deus, o qual nunca poderá ser alterado. Não
entramos na família pelo sofrimento; isto se aplica somente ao reino, e Paulo diz
aos tessalonicenses: "para que sejais havidos por dignos do Reino de Deus, pelo
qual também sofreis" (2 Ts 1:5). Os tessalonicenses já faziam parte da família;
porém tinham por destino o reino, e o caminho que conduz ao mesmo passa
através dos sofrimentos. E mais, a medida de seu sofrimento pelo reino iria
corresponder ao nível de sua devoção e de sua conformidade com o Rei. Quanto
mais nos assemelharmos a Ele, tanto mais sofreremos com Ele; e quanto mais
profunda for a nossa comunhão com Ele no sofrimento, tanto maior será a nossa
comunhão em glória. Existe uma diferença entre a casa do Pai e o reino do Filho: a
primeira é uma questão de capacidade como filhos; esta última é questão de uma
posição conferida. Todos os meus filhos podem sentar-se ao redor da minha mesa,
porém o seu gozo da minha companhia e conversação dependerá inteiramente da
sua medida de capacidade. Um pode estar sentado nos meus joelhos, no pleno gozo
da sua relação comigo, qual criança, sem que seja capaz de compreender uma
palavra que eu diga; outro pode mostrar inteligência singular na conversação, e
contudo não ser um fio mais feliz na sua comunhão do que o menino nos meus
joelhos. No entanto quando se trata do serviço que os filhos sejam capazes de fazer,
ou de sua identificação pública, é, evidentemente, outra coisa muito diferente. Esta
comparação dá apenas uma fraca ideia de capacidade na casa do Pai e da posição
que nos é conferida no reino do Filho.
Porém não se esqueça que o nosso sofrimento com Cristo não é um jugo de
escravidão, mas um assunto de privilégio; não é uma regra de ferro, mas um dom
gracioso; não é servidão constrangida, mas devoção voluntária. "Porque a vós vos
foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer
por ele" (Fp 1:29). Além disso, não resta dúvida de que o segredo verdadeiro do
sofrimento por Cristo é ter as afeições do coração centralizadas n'Ele. Quanto mais
eu amar Jesus, mais perto estarei d'Ele, e quanto mais perto eu andar com Ele, mais
fielmente o imitarei, e quanto mais fielmente eu o imitar, mais sofrerei com Ele.
Assim tudo resulta do amor por Cristo; e daí é uma verdade fundamental que "nós
o amamos porque ele nos amou primeiro". Nisto, como em tudo mais, tenhamos
cuidado com o espírito do legalismo; pois não deve pensar-se que um homem,
como jugo do legalismo no pescoço, está sofrendo por Cristo; enfim, é muito para
recear que uma tal pessoa não conhece Cristo; não conhece a bem-aventurança da
filiação; não foi ainda estabelecida em graça; está, pelo contrário, procurando
alcançar a família por meio das obras da lei, em vez de chegar ao reino pelo
caminho do sofrimento.
Por outro lado, certifiquemo-nos de que não estamos com medo do cálice e
batismo do Senhor. Não devemos professar possuir os benefícios que a Sua cruz
nos garante, enquanto recusamos a rejeição que essa cruz inclui. Podemos ter a
certeza que o caminho para o reino não é alumiado pelo brilho do sol do favor
deste mundo, nem coberto com as rosas da sua prosperidade. Se um cristão
progride no mundo tem motivos para compreender que não está andando em
companhia de Cristo. "Se alguém me serve, siga-me; e onde eu estiver, ali estará
também o meu servo" (Jo 12:26). Qual foi o fim da carreira terrestre de Cristo? Foi
uma posição elevada e de influência neste mundo? De modo nenhum. Então?- Ele
encontrou o Seu lugar na cruz, entre dois malfeitores condenados. "Mas", dir-se-á,
"Deus estava em tudo isto." Certamente; porém o homem estava nisto igualmente;
e esta última verdade é o que deve assegurar, inevitavelmente, a nossa rejeição
pelo mundo, se tão somente andarmos em companhia de Cristo. A companhia de
Cristo, que nos leva ao céu, lança-nos fora da terra; e falar daquela verdade
enquanto se desconhece esta é prova de que há alguma coisa que está mal. Se
Cristo estivesse agora no mundo qual seria a Sua conduta? Qual seria o fim dela?
Onde acabaria? Gostaríamos nós de andar com Ele? Devemos responder a estas
interrogações debaixo do gume da Palavra de Deus e perante o olhar do
Todo-Poderoso; e que o Espírito Santo nos faça fiéis a um Senhor ausente — um
Senhor que é rejeitado e foi crucificado. Aquele que anda em Espírito será cheio de
Cristo; e, sendo cheio d'Ele, não se preocupará com o sofrimento, mas sim com
Aquele por Quem sofre. Se o nosso olhar estiver fixado em Cristo, o sofrimento
será como nada em comparação com o gozo presente e a glória futura.
O assunto do direito de sucessão levou-me mais longe que eu esperava; todavia não
me arrependo disso, visto ser de importância considerável.

A Visão Profética de Abraão


Vejamos agora rapidamente a visão de profundo significado que Abraão teve, tal
como nos é apresentada nos últimos versículos deste capítulo. "E, pondo-se o sol,
um profundo sono caiu sobre Abraão; e eis que grande espanto e grande escuridão
caíram sobre ele. Então, disse a Abrão: Saibas, de certo, que peregrina será a tua
semente em terra que não é sua; e servi-los- -á; e afligi-la-ão quatrocentos anos.
Mas também eu julgarei a gente à qual servirão, e depois sairão com grande
fazenda... E sucedeu que, posto o sol, houve escuridão; e eis um forno de fumaça, e
uma tocha de fogo que passou por aquelas metades."
A história de Israel é toda resumida nestas duas figuras, o "forno" e a "tocha de
fogo". Aquele mostra-nos os períodos da sua história nos quais foram levados a
sofrimento e provações; como, por exemplo, o longo período da escravidão do
Egito, a sua sujeição aos reis de Canaã, o cativeiro babilônico e a sua dispersão
presente e condição de exilados. Durante todos estes períodos da sua história, eles
podem ser tidos como passando pelo forno de fumaça (Dt 4:20; 1 Rs 8:51; Is 48:10).
Em seguida, na tocha de fogo, temos aquelas fases na história de Israel cheia dos
acontecimentos em que o Senhor veio em seu socorro, tais como a sua libertação
do Egito, por mão de Moisés; a sua libertação do poder dos reis de Canaã, por meio
do ministério dos juízes; o regresso da Babilônia, por meio do decreto de Ciro; e a
sua libertação final quando Cristo aparecer em glória. A herança tem de ser
alcançada através do forno; e quanto mais negro for o fumo do forno, tanto mais
brilhante e alegre será a tocha da salvação de Deus.
Nem este princípio é apenas limitado ao povo de Deus, como um todo; aplica-se,
precisamente da mesma maneira, aos indivíduos. Todos quantos jamais alcançaram
um lugar de eminência como servos têm passado pelo forno, antes de terem o
prazer da tocha. "Grande espanto e grande escuridão" passaram sobre o espírito de
Abraão. Jacó teve que passar vinte anos de trabalho penoso na casa de Labão. José
achou o seu forno de aflição nas prisões do Egito. Moisés passou quarenta anos no
deserto. Assim tem que ser com todos os servos de Deus. Primeiro têm que ser
"experimentados", para que, sendo tidos por "fiéis", possam ser "postos no
ministério". O princípio de Deus, com respeito àqueles que O servem, é revelado
nas palavras de Paulo, "não neófito, para que, ensoberbecendo-se, não caia na
condenação do diabo" (1 Tm 3:6).
Uma coisa é ser um filho de Deus, e outra completamente diferente ser um servo
de Cristo. Eu posso amar muito o meu filho, contudo, se o ponho a trabalhar no
meu jardim, ele pode fazer mais mal do que bem. Por quê? É porque não é um filho
querido?- Não, mas porque não é um servo experimentado. Isto faz toda a
diferença. Parentesco e trabalho são coisas distintas. Nenhum dos filhos da
Rainha(1) é, presentemente, capaz de ser o seu primeiro-ministro. Não é que os
filhos de Deus não tenham todos alguma coisa que fazer, alguma coisa que sofrer,
alguma coisa que aprender. Têm, inegavelmente. Todavia, é fato que o serviço
público e a disciplina privada acham-se intimamente ligados nos caminhos de
Deus. Aquele que mais se apresenta em público necessitará daquele espírito
moderado, juízo prudente, mente dominada e mortificada, vontade vencida e tom
maduro, que são o resultado belo e seguro da disciplina secreta de Deus; e ver-se-á;
geralmente, que aqueles que tomam um lugar proeminente sem mais ou menos
possuírem os qualificativos morais acima mencionados cairão, mais cedo ou mais
tarde.
Senhor Jesus, guarda os teus servos fracos muito perto da tua Bendita Pessoa e na
concavidade da tua mão!
__________
(1) O leitor deve lembrar-se que o original desta obra foi escrita em Inglaterra.

CAPÍTULO 16

A INCREDULIDADE E AS SUAS CONSEQÜÊNCIAS DESASTROSAS

A Impaciência de Sarai
Aqui vemos a incredulidade lançando as suas sombras escuras sobre o espírito de
Abraão, e então afastando-o outra vez, por um pouco de tempo, do caminho da
confiança simples e feliz em Deus. "E disse Sarai a Abrão: Eis que o SENHOR me
tem impedido de gerar." Estas palavras indicam a impaciência usual da
incredulidade; e Abrão devia tê-las considerado desse modo e esperar
pacientemente no Senhor o cumprimento da Sua promessa graciosa. O coração
naturalmente prefere tudo a ter que esperar. Lançará mão de qualquer expediente
— qualquer plano —, qualquer recurso, em vez de se conservar nessa posição.
Uma coisa é crer numa promessa, ao princípio, e outra muito diferente esperar,
pacientemente, o seu comprimento. Podemos ver esta diferença constantemente
exemplificada numa criança. Se eu prometer a meu filho alguma coisa, ele não
pensa em duvidar da minha palavra; contudo, eu posso ver como ele anda muito
agitado e impaciente a respeito de como e quando cumprirei a minha promessa. E
não pode o maior sábio ver um verdadeiro espelho, no qual se pode ver a si
próprio, na conduta de uma criança?- Certamente. Abrão mostra fé, no capítulo
15, e todavia falha em paciência, no capítulo 16. Daí a beleza e força das palavras
do apóstolo em Hebreus 6, "para que... sejais imitadores dos que pela fé e paciência
herdam as promessas." Deus faz uma promessa, a fé crê nela; a esperança
antecipa-a; a paciência espera resignadamente por ela.
Existe no mundo comercial alguma coisa como "o valor atual" de uma letra ou nota
promissória, porque se os homens têm que esperar pelo seu dinheiro, devem ser
pagos por terem de esperar. Ora no mundo da fé existe alguma coisa como o valor
presente das promessas de Deus; e a balança que acerca esse valor é o
conhecimento experiente que o coração tem de Deus; porque da minha apreciação
de Deus dependerá a minha apreciação da promessa de Deus; e, além disso, o
espírito paciente e subjugado encontra o seu pleno galardão em esperar em Deus o
cumprimento de tudo que Ele prometeu.
No entanto, quanto a Sara o valor real das suas palavras a Abraão, é este, "o Senhor
faltou-me; talvez que a minha criada egípcia possa servir de meu recurso." Tudo
serve, menos Deus, para um coração que está debaixo da influência da
incredulidade. É verdadeiramente admirável observarmos as ninharias a que
recorremos quando perdemos a noção da presença de Deus, da Sua fidelidade
infalível e suficiência indubitável. Perdemos aquela condição calma e equilibrada
da alma tão necessária ao próprio testemunho do homem de fé; e, à semelhança
dos outros, entregamo-nos a qualquer ou todos os expedientes, de maneira a
atingirmos o fim desejado, e chamamos a isso "o uso dos meios".
Porém, é uma coisa amarga afastarmo-nos do lugar de absoluta dependência de
Deus. As consequências devem ser desastrosas. Se Sara tivesse dito, "a Natureza
faltou-me, mas Deus é o meu recurso", como teria sido tudo tão diferente! Este
teria sido o seu próprio lugar, porque a natureza estava, de fato, em falta para com
ela. Mas era a natureza numa forma, e, portanto, ela quis experimentá-la doutra
maneira. Não tinha aprendido a desviar a vista inteiramente da natureza. No juízo
de Deus, e da fé, a natureza em Agar não era melhor do que a natureza em Sara. A
Natureza, quer velha quer jovem, é a mesma para Deus; e portanto a mesma para a
fé; porém, ah! nós só nos achamos no poder desta verdade quando encontramos
por experiência o nosso centro vivo no Próprio Deus! Quando a nossa atenção é
desviada desse Ente Glorioso, estamos preparados para o expediente mais indigno
de incredulidade. E só quando nos achamos encostados ao único Deus vivo e
verdadeiro que podemos deixar de olhar para qualquer meio natural. Não se trata
de desprezarmos os instrumentos de que Deus Se serve. De modo nenhum. Fazê-lo
seria ousadia e não fé. A fé aprecia o instrumento, não por si mesmo, mas por causa
d'Aquele que o usa. A incredulidade vê apenas o instrumento, e julga o sucesso
dum caso pela eficiência aparente dele, em vez da suficiência d'Aquele que, em
graça, o usa — à semelhança de Saul, que, quando olhou para Davi e em seguida
para o filisteu, disse: "Contra este filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois
tu ainda és moço" (1 Sm 17:33). Todavia, a questão no coração de Davi não era se
ele era capaz ou não, mas se o Senhor o era.
O caminho da fé é um caminho muito simples e muito estreito. Por um lado, não
exalta os meios; por outro, não os despreza. Aprecia-os simplesmente por serem os
meios que Deus usa. Existe uma grande diferença entre o emprego que Deus faz da
criatura para me servir, e o emprego que eu faço dela para excluir Deus. Esta
diferença não é suficiente tomada em conta. Deus usou os corvos para suprir as
necessidades de Elias, mas Elias não os empregou para excluir Deus. Se o coração
confiar verdadeiramente em Deus não se incomodará quanto aos Seus meios.
Esperará n'Ele, na doce certeza de que, por quaisquer meios que lhe agradem, Ele
abençoará, proverá, suprirá todas as coisas.
Agar
Ora no caso que temos perante nós, neste capítulo, é evidente que Agar não era o
instrumento de Deus para o cumprimento da Sua promessa a Abrão. Deus
tinha-lhe prometido um filho, sem dúvida, mas não havia dito que este seria filho
de Agar; e, de fato, vemos pela narrativa que tanto Abrão como Sara
"multiplicaram a sua dor" lançado mão do recurso de Agar: porque, "vendo ela que
concebera, foi sua senhora desprezada aos seus olhos". Isto era apenas o princípio
das múltiplas dores que resultaram da pressa que houve em aproveitar os recursos
da natureza. A dignidade de Sara foi pisoteada por uma serva egípcia, e ela
achou-se no lugar de fraqueza e desprezo. O verdadeiro lugar de dignidade e poder
é o lugar de admissão de fraqueza e dependência. Não há ninguém tão
independente de tudo como o homem que anda realmente por fé, e que espera só
em Deus; porém, logo que um filho de Deus se torna devedor à natureza ou ao
mundo perde a sua dignidade e terá que sentir, rapidamente, a sua perda. Não é
uma coisa fácil avaliar o prejuízo sofrido com o desvio, na mais pequena medida,
do caminho da fé. Não há dúvida que todos os que andam nesse caminho
encontrarão sofrimento e tentações; porém uma coisa é certa, que as bênçãos e a
alegria que peculiarmente lhes pertencem são infinitamente maiores do que um
contrapeso; ao passo que, quando se afastam, têm que enfrentar maiores provações,
e nada mais.
"Então disse Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti." Quando não temos razão,
estamos, a maior parte das vezes, prontos a lançar a culpa sobre outrem. Sarai
colhia apenas o fruto da sua proposta, e todavia diz a Abrão, "Meu agravo seja sobre
ti", e então, com autorização de Abraão, ela procura desembaraçar-se da provação
que a sua própria impaciência havia trazido sobre si. "E disse Abrão a Sarai: Eis que
tua serva está na tua mão, faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e
ela fugiu de sua face." Isto não pode ser. "A serva" não pode ser despedida com
tratamento duro. Quando cometemos erros, e somos chamados a enfrentar os seus
resultados, não podemos contrariar esses resultados conduzindo-nos a nós próprios
com mão dura. Experimentamos constantemente este método, mas podemos ter a
certeza que com isso agravamos as coisas. Se temos feito mal, devemos
humilhar-nos e confessar o mal e esperar em Deus por libertação. Mas não houve
nada disto no caso de Sarai. Mas o contrário. Não há o sentido de haver feito mal; e
assim, longe de esperar em Deus por livramento, ela procura libertar-se a seu
modo. Contudo ver-se-á sempre que todos os esforços que fazemos para emendar
os nossos erros, antes de haver inteira confissão deles, só conseguem tornar o nosso
caminho mais difícil. Assim Agar teve que regressar e dar à luz a seu filho, cujo
filho mostrou não ser o filho da promessa, mas uma grande provação para Abrão e
a sua casa, como teremos ocasião de ver na sequência.
O Retorno de Agar
Bom, devemos ver tudo isto sob um duplo aspecto: primeiro, como um princípio
prático de muito valor; e depois debaixo do ponto de vista doutrinário. E, quanto
ao ensino prático, podemos ver que, quando, devido à incredulidade de nossos
corações, cometemos erros, não é num momento nem tão-pouco por nosso próprio
expediente que podemos remediá-los. As coisas devem seguir o seu curso. "Tudo o
que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne da
carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito do Espírito ceifará a vida
eterna" (G1 6:7-8). Este é um princípio inalterável, que encontramos
constantemente nas páginas Sagradas, e também nas páginas da nossa história
pessoal. A graça perdoa o pecado e restaura a alma, mas aquilo que é semeado tem
que ser colhido. Abrão e Sarai tiveram de suportar a presença da escrava e de seu
filho durante alguns anos, e então libertaram-se deles segundo o método de Deus.
Existe bem-aventurança peculiar em nos entregarmos nas mãos de Deus. Se Abrão
e Sarai tivessem feito assim, nesta ocasião, nunca teriam sido incomodados com a
presença da escrava e seu filho; porém, tendo-se feito devedores à natureza,
tiveram de sofrer as consequências. Todavia, enfim!, nós somos, por vezes, "como o
novilho ainda não domado" (Jr 31:18), quando seria o nosso gozo inexcedível
comportarmo-nos como a "criança desmamada para com sua mãe" (SI 131:2). Nada
pode ser mais oposto do que um novilho teimoso e uma criança desmamada.
Aquele simboliza uma pessoa lutando insensatamente debaixo do jugo das
circunstâncias, e tornando o seu jugo mais doloroso por meio dos seus esforços
para se libertar dele; esta mostra alguém curvando humildemente a sua cabeça a
tudo e tornando a sua porção mais agradável mediante completa sujeição de
espírito.

A Lei e a Graça
E agora quanto à parte doutrinária deste capítulo. Podemos pensar em Agar o seu
filho como figuras do concerto das obras e de todos os que são desse modo trazidos
à escravidão (veja-se G1 4:22-25). "A carne" é, nesta passagem importante, posta
em contraste com "a promessa"; e deste modo não temos apenas a ideia divina do
que significa o termo "carne", mas também quanto aos esforços de Abraão para
obter a semente por meio de Agar, em vez de descansar na "promessa" de Deus. Os
dois concertos são simbolizados por Agar e Sara, e são diametralmente opostos um
ao outro: um engendra a escravidão, tanto mais que levantou a questão quanto à
competência do homem para "fazer" e "não fazer", e fez a vida inteiramente
dependente dessa competência. "O homem que fizer estas coisas por elas viverá"
(G1 3:12). Este era o concerto de Agar. Porém o concerto de Sara revela Deus como
o Deus da promessa, a qual promessa é inteiramente independente do homem e
baseada na boa vontade e aptidão de Deus para a cumprir.
Quando Deus faz uma promessa não há "se" ligado com ela. Ele fá-la
incondicionalmente, e está decidido a cumpri-la; e a fé descansa n'Ele, em perfeita
liberdade de coração. Não é preciso esforço da natureza para conseguir o
cumprimento de uma promessa divina. Foi aqui, precisamente, que Abraão e Sara
falharam. Eles fizeram um esforço da natureza para conseguir um determinado
fim, o qual estava absolutamente assegurado por uma promessa de Deus. Este é o
grande erro da incredulidade. Por meio da sua atividade impaciente levanta uma
neblina obscura em volta da alma, que impede os raios da glória divina de a
alcançarem. "Não fez ali muitas maravilhas por causa da incredulidade deles" (Mt
13:58). Uma característica eficaz da fé é que sempre deixa o campo livre para Deus
Se revelar; e, verdadeiramente, quando Ele Se revela, o homem deve tomar o lugar
de um feliz adorador.
O erro pelo qual os Gálatas se deixaram arrastar foi o acréscimo de alguma coisa da
natureza àquilo que Cristo já tinha realizado por eles na cruz. O evangelho que
lhes havia sido pregado, e que eles tinham recebido, era a apresentação simples da
graça de Deus, perfeita e incondicional. Jesus Cristo havia, evidentemente, sido
representado perante eles como crucificado (G1 3:1). Isto não era apenas uma
promessa divina, mas sim uma promessa divina e gloriosamente consumada. Cristo
crucificado correspondia perfeitamente tanto às exigências de Deus como às
necessidades do homem. Porém os falsos ensinadores transtornavam tudo isto, ou
procuravam transtorná-lo, dizendo: "...Se vos não circuncidardes, conforme o uso
de Moisés, não podeis salvar-vos" (At 15:1). Isto, como Paulo lhes disse, era, na
realidade, tornar Cristo de nenhum efeito.

Cristo, um Salvador Perfeito


Cristo deve ser o único Salvador, ou não é Salvador em absoluto. Logo que alguém
diz, "se não fizerdes isto ou aquilo não podeis salvar-vos" subverte totalmente o
evangelho; porque no evangelho vejo Deus descendo para me encontrar tal qual eu
sou — pecador perdido e culpado —, e vindo, além disso, com plena remissão de
todos os meus pecados, e salvação completa do meu estado de perdição — tudo
consumado perfeitamente por Ele na cruz.
Por isso, se alguém me diz, você deve ser assim e assim, para ser salvo, rouba à cruz
toda a sua glória e tira-me a minha paz. Se a salvação depender de sermos ou de
fazermos alguma coisa, estaremos, inevitavelmente, perdidos. Graças a Deus, não é
assim, porque o grande princípio fundamental do evangelho é que Deus é TUDO
— o homem NADA é. Não é mistura de Deus e homem. É tudo de Deus. A paz do
evangelho não assenta em parte na obra de Cristo e em parte na obra do homem;
descansa inteiramente na obra de Cristo, porque essa obra é perfeita — perfeita
para sempre; e torna todo aquele que põe a sua confiança nela tão perfeito como
ela.
Debaixo da Lei, Deus, de fato, ficou quieto para ver o que o homem podia fazer;
porém, no evangelho, Deus atua, e quanto ao homem, ele tem de estar quieto e ver
o livramento do Senhor (Ex 14:13). Sendo isto assim, o apóstolo não hesita em
dizer aos Gálatas: "Cristo de nada vos aproveitará ... vós, os que vos justificais pela
lei: da graça tendes caído" (G1 5:2 e 4). Se o homem tiver alguma coisa a ver com o
assunto, Deus é posto de lado; e se Deus é posto de parte, não pode haver salvação,
pois é impossível que o homem possa operar a sua salvação por meio daquilo que
prova ser ele uma criatura perdida; e, por outro lado, ser for uma questão de graça,
deve ser tudo graça. Não pode ser metade graça e metade lei. Os dois concertos são
perfeitamente distintos. Não pode ser Agar e Sara. Tem de ser uma ou outra. Se for
Agar, Deus nada tem que ver com isso; e se for Sara o homem nada tem que ver
com isso. É assim inteiramente. A lei fala ao homem, prova-o, vê o que ele vale
realmente, declara-o em ruína, e deixa-o debaixo da maldição; e não somente o
coloca debaixo da maldição, mas conserva-o ali, por todo o tempo que estiver
ocupado com ela — enquanto vive. "A lei tem domínio sobre o homem por todo o
tempo que vive" (Rm 7:1); porém, morto o homem o seu domínio cessa,
necessariamente, tanto quanto lhe diz respeito, não obstante estar em vigor para
amaldiçoar todo o homem que vive.
O evangelho, pelo contrário, considerando o homem como perdido, morto, revela
Deus como Ele é — o Salvador dos perdidos; Perdoador dos culpados; Vivificador
dos mortos. Revela-O, não exigindo nada do homem (porque o que poderia
esperar-se de um que sucumbiu em falência?), mas mostrando a Sua graça em
redenção. Isto faz toda a diferença e é a razão do poder de linguagem empregada na
epístola aos Gálatas: "Maravilho-me..., Quem vos fascinou?- ...Receio de vós... eu
quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando" (G1 1:6; 3:1;
4:11; 5:12). Esta é a linguagem do Espírito Santo, que conhece o valor de Cristo e
da salvação completa; e que sabe também quão essencial é o valor de ambos para o
pecador. Não encontramos uma tal linguagem em qualquer outra epístola; nem
mesmo na que é endereçada aos Coríntios, embora houvesse entre eles algumas das
coisas mais grosseiras para serem corrigidas. O fracasso e o erro podem ser
corrigidos cedendo à graça de Deus; contudo, os Gálatas, à semelhança de Abraão
neste capítulo, estavam-se afastando de Deus, e voltando para a carne. Qual é o
remédio para isto? Como corrigir um erro que consiste em deixar aquilo que
somente pode corrigir alguma coisas Cair da graça é voltar para debaixo da lei, da
qual nada se pode obter senão "A MALDIÇÃO". Que o Senhor confirme as nossas
almas na Sua graça mui excelente!
CAPÍTULO 17

ANDAR PELA FÉ - A CIRCUNCISÃO

o Deus Todo-poderoso
Aqui é-nos apresentado o remédio de Deus para o fracasso de Abraão. "Sendo, pois,
Abrão da idade de noventa e nove anos, apareceu o SENHOR a Abrão e disse-lhe:
Eu sou o Deus Todo- Poderoso; anda em minha presença e sê perfeito"(1). Este
versículo é muito compreensivo. É evidente que Abraão não havia andado na
presença do Deus Todo-Poderoso quando aceitou o recurso de Sara acerca de Agar.
E somente a fé que pode habilitar alguém a andar na presença do Deus
Todo-Poderoso. A incredulidade introduzirá sempre alguma coisa da
personalidade — as circunstâncias, casos secundários e coisas semelhantes —, e
deste modo a alma é privada do gozo e da paz, elevação calma e santa
independência, que resultam de se descansar nos braços d'Aquele que pode fazer
todas as coisas. Creio que necessitamos de ponderar isto profundamente. Deus não
é uma realidade presente para as nossas vidas como devia ser, ou seria, se nós
andássemos em simplicidade de fé e dependência d'Ele.
__________
(1) Desejo fazer aqui uma observação quanto à palavra "perfeito". Quando Abraão
foi convidado a ser "perfeito" isso não queria dizer perfeito em si mesmo; porque
ele nunca o foi, e nunca poderia sê-lo. Queria dizer simplesmente que ele devia ser
perfeito quanto ao objetivo posto perante o seu coração — que a sua esperança e
expectativa deviam ser inteiramente centralizadas no "Todo- Poderoso".
Examinando o Novo Testamento, vemos que a palavra "perfeito" é usada, pelo
menos, em quatro sentidos distintos. Em Mateus 5:48 lemos, "Sede vós, pois,
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus". Aqui compreendemos
Pelo contexto que a palavra "perfeito" diz respeito à nossa conduta. Nos versículos
44 e 45 lemos, "Amai a vossos inimigos ..., para que sejais filhos do Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre
justos e injustos". Por isso, ser "perfeito" no sentido do versículo 48 é agir segundo
um princípio de graça para com todos, até mesmo para com os que são injustos e
hostis. Um cristão fazendo valer a lei, ou defendendo e contendendo pelos seus
direitos, não é perfeito como o Seu Pai; porque o seu Pai está agindo em graça,
enquanto que ele recorre à justiça.
A questão aqui não é de saber se é bom ou mal recorrer à lei (quanto aos irmãos
Coríntios 6 é conclusivo). O que digo é que um cristão que assim procede está
agindo num caráter que é diretamente oposto ao do seu Pai; porque, certamente,
Ele não vai para o tribunal com o mundo. Ele não está agora no tribunal, mas no
lugar de misericórdia — no trono de graça. Manda as Suas bênçãos sobre aqueles
que, se fosse para a justiça com eles, deviam estar no inferno. Pelo que é claro que
um cristão, quando leva alguém ao tribunal, não é "perfeito" como é perfeito seu
Pai que está nos céus.
No fim do capítulo 18 de Mateus temos uma parábola que nos ensina que todo
aquele que defende os seus direitos é ignorante do verdadeiro caráter e efeito
próprio da graça. O servo não era injusto em exigir o que lhe era devido, mas não
tinha graça. Era inteiramente diferente do seu Mestre. Tinham-lhe sido perdoados
dez mil talentos, e todavia pôde agarrar um dos seus conservos pela garganta por
uma importância mesquinha de cem dinheiros. Qual foi o resultado? Foi entregue
aos atormentadores. Perdeu-se o feliz sentido da graça e foi deixado para ceifar os
frutos amargos de ter defendido os seus direitos, enquanto que ele mesmo era um
objeto de graça. E note-se, além disso, que foi chamado "servo malvado" não por
ter uma dívida de "dez mil talentos", mas por não ter perdoado os "cem dinheiros".
O Senhor teve muita graça para lhe perdoar a sua dívida, mas ele não teve graça
para arrumar o assunto com o seu conservo. Esta parábola fala numa voz solene a
todos os cristãos que estão prontos a entrar em demanda; pois embora na sua
aplicação seja dito "assim vos fará também meu Pai celestial se do coração não
perdoardes cada um a seu irmão as suas ofensas , contudo o princípio de aplicação
geral é que um homem agindo em justiça perderá o sentido da graça.
Em Hebreus 9 temos outro sentido do termo "perfeito". Aqui também o contexto
arruma a importância da palavra. E "perfeito" a respeito da consciência. E um
emprego importante do termo. O adorador sob a lei nunca poderia ter uma
consciência perfeita, pela simples razão que nunca teve um sacrifício perfeito. O
sangue de novilhos e cordeiros era suficiente para a ocasião, mas não podia servir
para sempre e, portanto, não podia dar uma boa consciência. Agora, porém, até o
crente mais fraco em Jesus tem o privilégio de ter uma consciência perfeita. Por
quê? É por ser melhor do que o adorador debaixo da lei Não, mas porque tem um
melhor sacrifício. Se o sacrifício de Cristo é perfeito para sempre, a consciência do
crente é perfeita para sempre. As duas coisas andam necessariamente juntas. Para
um cristão não ter uma consciência perfeita é uma desonra para o sacrifício de
Cristo. E o mesmo que dizer que o Seu sacrifício é apenas temporário e não eterno
nos seus efeitos; e o que vem a ser isto senão baixá-lo ao nível dos sacrifícios sob a
dispensação Moisaica?
É preciso distinguir entre a perfeição na carne e perfeição quanto à consciência. A
pretensão da primeira equivale a exaltar o eu; recusar a segunda é desonrar Cristo.
O crente mais simples em Cristo deve ter uma consciência perfeita; ao passo que
Paulo não tinha, não podia ter, perfeita carne. A carne não é apresenta na Palavra
de Deus como uma coisa que pode ser melhorada, mas sim como uma coisa que foi
crucificada. Isto faz uma grande diferença. O cristão tem o pecado em si, mas não
sobre si. Por quê? Porque Cristo, O Qual não tinha pecado em Si, teve o pecado
sobre Si, quando foi pregado na cruz.
Finalmente, em Filipenses 3 temos outros dois sentidos da palavra "perfeito". u
apóstolo diz, "Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito"; mas um pouco
depois diz, "Pelo que todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo '. A
primeira passagem diz respeito à conformidade eterna e plena do apostolo com
Cristo em glória. Enquanto que a segunda refere-se à nossa possessão de Cristo
como o objeto das afeições do coração.

Somente Deus
"Anda em minha presença." Isto é verdadeiro poder. Andar assim implica não
termos nada perante os nossos corações salvo Deus. Se a minha expectativa for
baseada nos homens e nas coisas não estarei andando perante Deus, mas antes
perante os homens e as coisas. É da máxima importância saber quem ou o que
tenho perante mim como objetivo. Em quem confio?- Em quem ou no que
descanso, neste momento«? Deus enche inteiramente o meu futuro? Os homens e
as circunstâncias têm alguma coisa a ver com isso? Há algum lugar para a criatura?
O único meio de nos elevarmos acima do mundo é andarmos por fé, porque a fé
enche o ambiente de tal modo com Deus, que não há lugar para a criatura — nem
para o mundo. Se Deus enche o meu raio de visão, eu nada mais posso ver; e então
posso dizer com o salmista: "Ó minha alma, espera somente em Deus, porque d'Ele
vem a minha esperança. Só Ele é minha rocha e a minha salvação; é a minha
defesa; não serei abalado"(Sl 62:5-6). Esta palavra "só" é profundamente
penetrante. A natureza não pode dizer isto. Não é que ela, sob a influência do
cepticismo atrevido e blasfemo, ponha Deus completamente de lado; mas,
indubitavelmente, não pode dizer, "só Ele".
É bom vermos que, como no caso da salvação, e em todos os pormenores da vida
presente, dia a dia, Deus não compartilhará a Sua glória com a criatura. Desde o
princípio até ao fim tem de ser "só Ele"; e isto, também, em realidade. De nada
servirá termos a palavra dependência de Deus nos nossos lábios, enquanto os
nossos corações estão realmente confiando em qualquer recurso da criatura. Deus
mostrará isto plenamente; Ele examinará o coração; passará a fé pelo fogo. "Anda
em minha presença e sê perfeito." Chegamos assim ao ponto principal. Quando a
alma pode, por graça, libertar-se de todas as expectativas queridas da natureza,
então, e só então, está preparada para deixar Deus agir; e quando Ele atua tudo
deve estar bem. Deus não deixará nada por fazer. Ele fará tudo em favor daqueles
que põem simplesmente a sua confiança n'Ele. Quando a sabedoria infalível, o
poder onipotente, e o amor infinito se combinam, o coração confiado pode gozar
de descanso calmo. A não ser que achemos qualquer circunstância grande ou
pequena demais para "o Deus Todo-Poderoso" não temos fundamento próprio para
um pensamento ansioso sequer. Isto é uma verdade maravilhosa, eminentemente
calculada para pôr todos aqueles que acreditam nela na mesma presença bendita
em que encontramos Abraão neste capítulo. Quando Deus lhe havia dito, com
efeito, "deixa tudo Comigo, e Eu arrumarei tudo por ti, muito para além dos teus
desejos e da tua esperança — a semente e a herança, e tudo que lhes pertence de
direito, serão eternamente estabelecidas, segundo o concerto com o Deus
Altíssimo —, "Então caiu Abraão sobre o seu rosto". Na verdade, bem-aventurada
atitude! A única própria para um pecador inteiramente vazio, fraco e inútil, poder
ocupar na presença do Deus vivo, o Criador dos céus e da terra, Possuidor de todas
as coisas — "o Deus Onipotente".
"E falou Deus com ele." E quando o homem está por terra que Deus pode falar com
ele em graça. A atitude de Abraão aqui é a expressão bela de inteira prostração na
presença de Deus, no sentido de inteira fraqueza e nulidade. E tal humilhação,
note- -se, é segura precursora da revelação do Próprio Deus. E quando a criatura se
humilha que Deus pode mostrar-Se no esplendor puro do que Ele é. Ele não dará a
Sua glória a outrem: pode manifestar-Se e permitir que o homem adore em face
dessa revelação; porém, até que o pecador tome o seu próprio lugar não pode haver
revelação do caráter divino. Como é diferente a atitude de Abraão neste capítulo
daquela que tomou no capítulo precedente! Ali ele tinha a natureza perante si;
aqui tem o Deus Todo-Poderoso. Naquele ele era um ator; neste é adorador. Antes
ele deixara-se levar pelo plano de Sara; agora entrega-se a si, e as suas
circunstâncias, o seu presente e o seu futuro, nas mãos de Deus, e deixa que Deus
atue nele, por ele, e por seu intermédio. Por isso, Deus pode dizer, "farei...",
"estabelecerei...", "darei". Numa palavra, é tudo Deus e os Seus desígnios; e isto é
descanso verdadeiro para o coração que conhece alguma coisa de si próprio.

A Circuncisão
O concerto da circuncisão é agora introduzido. Os membros da família da fé
devem trazer em seu corpo o selo desse pacto. Não pode haver exceção: "...será
circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por dinheiro; e estará o meu
concerto na vossa carne por concerto perpétuo. E o macho com prepúcio, cuja
carne do prepúcio não estiver circuncidada, aquela alma será extirpada dos seus
povos; quebrantou o meu concerto" (versículos 13 e 14). Em Romanos 4:3 é-nos
dito que a circuncisão é um selo de justiça: "Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi
imputado como justiça." Sendo assim considerado justo, Deus pôs o Seu "selo"
sobre ele.

Selados com o Espírito Santo


O selo com que o crente está agora selado não é uma mera marca na carne, mas "o
Espírito Santo de Deus, no qual estais selados para o dia da redenção" (Ef 4:30). Isto
é baseado na sua ligação eterna com Cristo e a sua perfeita identificação com Ele,
na morte e ressurreição; como lemos em Colossenses 2:10-13, "E estais perfeitos
n'Ele, que é a cabeça de todo principado e potestade; no qual também estais
circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a
circuncisão de Cristo. Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes
pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. E, quando vós estáveis
mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente
com Ele, perdoando-vos todas as ofensas." E uma passagem gloriosa, mostrando a
verdadeira ideia daquilo que a circuncisão devia simbolizar.
Todo o crente pertence à "circuncisão" em virtude da sua ligação viva com Aquele
que, por meio da cruz, aboliu para sempre tudo que existia no caminho da
justificação perfeita da Sua Igreja. Não houve um ponto de pecado na consciência,
nem um princípio de pecado na natureza do Seu povo, cujo julgamento Cristo não
tivesse sofrido na cruz; e agora eles são considerados como tendo morrido com
Cristo, sido sepultados com Cristo e ressuscitado com Cristo, perfeitamente aceitos
n'Ele — os seus pecados, as suas iniquidades e transgressões, a sua inimizade e a
incircuncisão havendo sido afastados, inteiramente, por meio da cruz. A sentença
de morte foi escrita na carne; porém o crente está de posse de uma nova vida, em
união com a sua Cabeça ressuscitada na glória.

O apóstolo, na passagem acima reproduzida, ensina-nos que a Igreja foi vivificada


da sepultura de Cristo; e, além disso, que o perdão de todas as suas ofensas é tão
completo, e inteiramente obra de Deus, como foi a ressurreição de Cristo de entre
os mortos; e este último ato, como sabemos, foi o resultado da "sobreexcelente
grandeza do seu poder", ou, como podemos melhor dizer, "segundo a operação da
força do seu poder" (Ef 1:19) — uma expressão verdadeiramente maravilhosa,
calculada para mostrar a magnitude e glória da redenção, bem como a base sólida
em que ela se fundamenta.
Que descanso (— descanso perfeito —) para o coração e a consciência se encontrar
aqui! Que alívio para o espírito oprimido! Todos os nossos pecados sepultados na
sepultura de Cristo, sem um sequer—até mesmo o mais pequeno — ter sido
deixado de fora! Deus fez isto por nós! Tudo quanto os Seus olhos perscrutadores
podiam detectar em nós colocou sobre Cristo quando Ele foi pendurado na cruz!
Ele julgou-O ali então, em vez de nos julgar a nós no inferno, para sempre! Que
precioso fruto este do amor admirável, profundo e eterno dos desígnios de
redenção! E estamos "selados", não com determinada marca feita na carne, mas
com o Espírito Santo. Toda a família da fé está selada desta maneira. Tal é a
dignidade, o valor e a eficácia imutável do sangue de Cristo, que o Espírito Santo
pode habitar em todos aqueles que têm posto a sua confiança nele.
E, agora, que resta para aqueles que conhecem estas coisas senão serem "firmes e
constantes, sempre abundantes na obra do Senhor" (1 Co 15:58). Que assim seja, ó
Senhor, pela graça do Teu Santo Espírito!

CAPÍTULO 18

A COMUNHÃO DE ABRAÃO COM O SENHOR

Abraão, o Amigo de Deus


Este capítulo dá-nos um belo exemplo dos resultados de uma conduta obediente de
separação. "Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a
porta, entrarei em sua casa e com ele cearei, e ele comigo" (Ap 3:20). Em João 14:23
lemos também, "Jesus respondeu e disse-lhe: Se alguém me ama, guardará a minha
palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada". Destas
passagens, tomadas em ligação com o nosso capítulo, concluímos que a alma
obediente goza de um caráter de comunhão inteiramente desconhecido daquele
que vive numa atmosfera mundana.
Isto, porém, não toca, nem ao de leve, na questão do perdão ou justificação. Os
crentes são todos vestidos com o mesmo manto imaculado de justiça — todos estão
na mesma justificação comum perante Deus. A mesma vida descendo da Cabeça no
céu corre em todos os membros na terra. Isto é bem claro. A doutrina quanto a
estes pontos importantes é estabelecida plenamente na Palavra de Deus; e já foi,
repetidas vezes, mostrada nas páginas antecedentes deste livro. Contudo, devemos
lembrar que justificação é uma coisa, e o seu fruto outra diferente. Ser filho é uma
coisa, ser filho obediente é outra muito diferente. Ora, um pai ama um filho
obediente, e fará com que um tal filho esteja no segredo dos seus pensamentos e
planos. E não é isto verdadeiro quanto ao nosso Pai celestial? Sem dúvida. Em João
14:23 isto é incontestavelmente claro; e, além disso, é prova de que falar-se de
amar a Cristo e não guardar a Sua palavra é hipocrisia. "Se alguém me ama,
guardará a minha palavra."
Por isso se não guardarmos a palavra de Cristo, é prova clara que não estamos
andando no amor do Seu nome. O amor por Cristo é provado em fazer as coisas
que Ele manda, e não meramente dizendo, "Senhor, Senhor". De nada vale dizer,
"eu vou, senhor' enquanto que o coração não tem a mínima ideia de ir.

Uma Vida com Deus


Contudo, em Abraão vemos um que, por muito que tivesse falhado, era, não
obstante, caracterizado por uma conduta íntima, simples e elevada com Deus; e
nesta parte interessante da sua história vemo-lo no gozo de três privilégios
especiais, a saber: proporcionando repouso para o Senhor, gozando de plena
comunhão com o Senhor, e intercedendo por outros perante o Senhor. São
distinções elevadas; e contudo são-no somente como resultado de uma conduta de
separação obediente e santa. A obediência agrada a Deus, por ser fruto da Sua graça
em nossos corações. Vemos no único Homem perfeito que jamais viveu no mundo
como Ele agradou constantemente e deleitou o Pai. Deus deu testemunho d'Ele,
repetidas vezes, desde o céu, como "Seu Filho amado, em Quem Ele Se tinha
comprazido". A conduta de Cristo era motivo de festa constante no céu. Os Seus
caminhos enviavam sempre incenso fragrante para o trono de Deus. Desde a
manjedoura até à cruz, Ele fez sempre as coisas que agradavam ao Pai.
Não houve interrupção, nem variação ou ponto saliente. Ele era o único perfeito.
Somente n'Ele pôde o Espírito traçar uma vida perfeita na terra. Aqui e ali, á
medida que vemos a corrente de inspiração, encontramos um ou outro que,
ocasionalmente, deu agrado à mente do Céu. Desde modo, no capítulo que temos
perante nós, encontramos a tenda do estrangeiro em Manre proporcionando
refrigério ao Senhor — refrigério ternamente oferecido e gostosamente aceite
(versículos 1-8).
Em seguida vemos Abraão desfrutando de comunhão com o Senhor,
primeiramente quanto aos seus interesses pessoais (versículos 9 a 15), e depois a
respeito dos destinos de Sodoma (versículos 16 a 21). Que conformidade com o
coração de Abraão na promessa firme de "Sara terá um filho"! E todavia esta
promessa apenas provocou o riso de Sara, da mesma maneira que havia provocado
o riso a Abraão no capítulo antecedente. Nas Escrituras há duas espécies de riso.
Existe primeiramente o riso com que o Senhor enche a nossa boca quando, em
qualquer crise de provação, Ele intervém de uma maneira notável para nosso
alívio. "Quando o SENHOR trouxe do cativeiro os que voltaram a Sião, estávamos
como os que sonham. Então, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua, de
cânticos; então, se dizia entre as nações: ...grandes coisas fez o SENHOR por nós, e,
por isso, estamos alegres" (SI 126:1-2).
Outro tanto, existe o riso com que a incredulidade enche as nossas bocas quando as
promessas de Deus são magnificentes para os nossos corações poderem
compreendê-las ou o meio visível é pequeno demais, no nosso entender, para o
cumprimento dos Seus desígnios.
O primeiro destes risos nunca teremos vergonha ou receio de o manter: os filhos
de Sião não se envergonham de dizer, "...a nossa boca se encheu de riso" (SI 126:2).
Quando o Senhor nos faz rir podemos rir alegremente: "E Sara negou, dizendo:
Não me ri, porquanto temeu" (versículo 15). A incredulidade faz de nós cobardes e
mentirosos; a fé torna-nos ousados e verdadeiros. Torna-nos idôneos de chegar
"com confiança ao trono da graça" e entrar no santuário "com verdadeiro coração,
em inteira certeza de fé" (Hb 4:16; 10:22).

Deus Comunica os Seus Pensamentos a Abraão


Mas, além disso, Abraão fica conhecendo os pensamentos e desígnios de Deus
quanto a Sodoma. Embora nada tivesse que ver com isso, estava tão perto do
Senhor que foi levado a conhecer o Seu intento a esse respeito. A maneira de
conhecermos os propósitos divinos quanto a este mundo de pecado, é não estarmos
embaraçados com ele nos seus planos e especulações, mas estarmos inteiramente
separados dele. Quanto mais unidos andarmos com Deus, e quanto mais
obedientes formos à Sua Palavra, tanto mais conheceremos os Seus pensamentos
acerca de tudo. Não precisamos de ler os jornais para sabermos o que vai acontecer
no mundo. A Palavra de Deus revela-nos tudo que precisamos saber. Nas suas
páginas puras e santificadoras aprendemos tudo quanto ao caráter, o curso, e o
destino do mundo; ao passo que se procurarmos notícias junto dos homens do
mundo podemos esperar que o diabo as use para lançar poeira nos nossos olhos.
Se Abraão tivesse ido a Sodoma a fim de obter informações quanto aos fatos ali
passados, se tivesse recorrido a alguns dos seus homens mais inteligentes, para
saber o que eles pensavam das condições e do futuro de Sodoma, qual teria sido a
resposta deles? Indubitavelmente, teriam chamado a sua atenção para os seus
sistemas de agricultura e arquitetura e os vastos recursos do país; teriam posto
diante dos seus olhos um cenário vasto de compras e vendas, construções,
plantações, de alimentação, casamento e contratos de casamento. Sem dúvida,
nunca teriam pensado, também, no juízo de Deus, e se alguém tivesse falado nele
teriam dado largas ao seu riso infiel. Por isso, é claro que Sodoma não era o lugar
próprio para se tomar conhecimento do fim de Sodoma. Não; "o lugar onde Abraão
estava diante do Senhor" representava o único lugar próprio donde se podia
contemplar toda a perspectiva. Ali ele podia estar acima das neblinas e névoas que
se haviam formado sobre o horizonte de Sodoma. Ali, na tranquilidade e claridade
da presença divina, ele podia compreender tudo. E que emprego fez ele do seu
conhecimento e da sua elevada posição? Como se ocupou ele na presença do
Senhor?- A resposta a estas interrogações leva-nos ao terceiro privilégio desfrutado
pelo nosso patriarca neste capítulo, a saber: Intercessão pelos outros perante o
Senhor.

A Intercessão de Abraão em Favor de Sodoma


Ele pôde interceder por aqueles que estavam embaraçados com a contaminação de
Sodoma, e em perigo de serem envolvidos no julgamento de Sodoma. Foi um
emprego feliz e santo do seu lugar de aproximação de Deus. Assim é sempre. A
alma que pode aproximar-se de Deus, na certeza da fé, tendo o coração e a
consciência perfeitamente em descanso, e podendo descansar em Deus quanto ao
passado, o presente e o futuro, poderá e quererá interceder pelos outros. O homem
que tem "toda a armadura de Deus" poderá orar por todos os santos. E, oh! que
visão isto nos dá da intercessão do nosso Sumo-Sacerdote, que penetrou nos céus!
Que repouso infindo Ele tem nos desígnios divinos! Com que compreensão de
acolhimento Ele está assentado no esplendor da Majestade nos céus! E com que
eficácia Ele intercede perante a Majestade por aqueles que estão lutando nesta
esfera contaminada! Felizes, inefavelmente felizes, aqueles que são os objetos de
tal intercessão eficaz — feliz e certa, ao mesmo tempo. Oxalá nós tivéssemos
corações para compreenderem tudo isto — corações dilatados pela comunhão
pessoal com Deus, para receberem mais da plenitude infinita da Sua graça e
compreenderem a vantagem de Ele prover todas as suas necessidades.
Vemos, nesta Escritura, que, por muito abençoada que pudesse ser a intercessão de
Abraão, todavia, era limitada, porque o intercessor era apenas homem. Não
alcançava a necessidade. "Ainda só mais esta vez falo", disse ele, e acabou, como se
tivesse medo de apresentar um saque grande demais na tesouraria da graça infinita,
ou se esquecesse que o cheque da fé nunca havia sido recusado no banco de Deus.
Não era que ele estivesse restringido com Deus. De modo nenhum. Havia graça
bastante e paciência n'Ele para ter atendido o Seu servo querido, se ele tivesse
mesmo continuado até três ou um só. Mas o servo era restrito. Tinha medo de
esgotar a sua conta. Deixou de pedir, e Deus deixou de dar. Não é assim com o
nosso bendito Intercessor: d'Ele está escrito: "...pode salvai perfeitamente...,
vivendo sempre para interceder" (Hb 7:25). Possam os nossos corações agarrar- se a
Ele, em todas as nossas necessidades, nas nossas fraquezas e no nosso conflito.

As Profecias e a Esperança
Antes de terminar este capítulo quero fazer uma observação, a qual, quer seja
considerada como resultado da verdade nele contida, quer não, é, contudo, digna
de consideração. É da máxima importância, no estudo das Escrituras, fazer-se
distinção entre o governo moral de Deus sobre o mundo e a esperança específica da
Igreja. Todo o corpo da profecia do Velho Testamento, e uma grande parte do
Novo, tratam do governo moral de Deus sobre o mundo, e oferecem, assim, um
assunto de interesse palpitante para cada cristão. E interessante saber o que Deus
está fazendo, e fará, com todas as nações da terra. E de interesse ler os pensamentos
de Deus quanto a Tiro, Babilônia, Nínive e Jerusalém; acerca do Egito, da Assíria, e
a terra de Israel. Numa palavra, o curso da profecia do Velho Testamento requer a
atenção reverente de todo o verdadeiro crente. Mas não se esqueça que não
encontramos nele a própria esperança da Igreja. Como seria possível? Se não temos
nele a existência da Igreja diretamente revelada, como poderíamos ter aí a
esperança da Igreja?- Impossível! Não é que a Igreja não possa encontrar ali uma
seara rica de princípios morais, os quais ela pode usar com o maior proveito. Pode,
incontestavelmente; mas isto é muito diferente de querer encontrar nestas
profecias a revelação da existência e da esperança específica da Igreja. E, contudo,
uma grande parte da profecia do Velho Testamento tem sido aplicada à Igreja! e
esta aplicação tem embrulhado todo o assunto em tal confusão que as mentes
simples são afastadas do estudo, e, retraindo-se estudo da profecia, têm também
descuidado outro estudo que é inteiramente distinto da profecia, que é o da
esperança da Igreja. Não necessitamos repetir que esta esperança não tem relação
alguma com o que Deus vai fazer com as nações da terra, mas consiste em ir ao
encontro do Senhor Jesus nas nuvens dos céus, para estar com Ele para sempre, e
ser para sempre semelhante a Ele.
Muitos podem dizer — não temos cabeça para a profecia. Talvez não, mas tendes
um coração para Cristo? Certamente, se amardes Cristo, ansiareis pelo Seu
aparecimento, embora vos falte capacidade para o estudo profético. Uma esposa
terna poderá não ter cabeça para compreender os negócios de seu marido; mas tem
lugar no seu coração para o seu regresso a casa. Pode não compreender a escritura
dele ou a sua disposição; mas conhece os seus passos e reconhece a sua voz. O mais
iletrado santo, se tão-somente tiver afeição ao Senhor Jesus, pode sentir o mais
intenso desejo de O ver; e esta é a esperança da Igreja. O apóstolo Paulo podia dizer
aos tessalonicenses,".. .dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir ao Deus vivo
e verdadeiro e esperar dos céus a Seu Filho... Jesus, que nos livra da ira futura" (1 Ts
1:10). Ora, os santos tessalonicenses podiam, evidentemente, no momento da sua
conversão, saber pouco, se é que sabiam alguma coisa, da profecia ou do assunto
especial de que ela trata; e contudo eles ficaram nesse próprio momento de posse e
no poder da esperança da Igreja — a vinda do Filho de Deus. Assim é em todo o
Novo Testamento. Nele, sem dúvida, temos profecia — e nele temos, também, o
governo moral de Deus; mas, ao mesmo tempo, inúmeras passagens que podem ser
acrescentadas como prova do fato que a esperança dos cristãos, nos tempos
apostólicos, a esperança simples, sem impedimento, desembaraçada, era A VINDA
DO NOIVO. Possa o Espírito Santo avivar essa bem-aventurada esperança na
Igreja, reunindo os eleitos e preparando um povo pronto para o Senhor.

CAPÍTULO 19

LÓ E O JUÍZO SOBRE SODOMA

O Crente e o Mundo
Existem dois métodos que são usados graciosamente pelo Senhor de maneira a
afastar o coração deste século mau. O primeiro consiste em pôr diante dele o
atrativo e a estabilidade das "coisas que são de cima". O segundo consiste em
declarar fielmente a natureza efêmera e instável das "coisas que são da terra."
O capítulo 12 de Hebreus fecha com um lindo exemplo de cada um destes
métodos. Depois de expor a verdade que somos chegados ao monte de Sião, com
todos os seus gozos dependentes e privilégios, o apóstolo continua, dizendo: "vede
que não rejeiteis ao que fala; porque se não escaparam aqueles que rejeitaram o que
na terra os advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus, a
voz do qual moveu, então, a terra, mas, agora, anunciou, dizendo: Ainda uma vez
comoverei, não só a terra, senão também o céu. E esta palavra: Ainda uma vez,
mostra mudança das coisas móveis, como coisas feitas, para que as imóveis
permaneçam". Ora, é muito melhor ser-se atraído pelos gozos do céu do que
impelido pelas dores da terra. O crente não deve esperar até ser afastado das coisas
temporais. Não deve esperar que o mundo o rejeite antes de ele próprio desprezar o
mundo. Ele deve abandonar o mundo no poder da comunhão com as coisas
celestiais. Não há dificuldade em deixar o mundo quando nós, pela fé, nos
apegamos a Cristo; a dificuldade está então em conservar o mundo. Se a um
varredor fosse deixado um legado de dez mil libras anuais, ele não continuaria a
varrer as ruas. Do mesmo modo se nós compreendermos o valor da nossa porção
entre as realidades imutáveis do céu teremos muito pouca dificuldade em
abandonar as alegrias ilusórias da terra.

Ló Sentado à Porta
Vejamos agora a parte solene da história inspirada que temos perante nós.
Vemos nela "Ló assentado à porta de Sodoma", o lugar de autoridade. É evidente
que tem feito progresso. Tem "triunfado no mundo". Debaixo do ponto de vista
mundano, a sua carreira havia sido feliz. A princípio ele "armou as suas tendas até
Sodoma". Depois, sem dúvida, encontrou o caminho para ali; e agora
encontramo-lo assentado à porta — um lugar proeminente e de influência. Como
tudo isto é tão diferente da cena com que abre o capítulo precedente! Mas, ah! a
razão é óbvia. "Pela fé Abraão habitou na terra da promessa, como em terra alheia,
morando em cabanas" (Hb 11:9). Não encontramos um tal relato quanto a Ló(1)
Nunca poderia dizer-se: "pela fé Ló assentou-se à porta de Sodoma". Ah! não, ele
não tem lugar no nobre exército dos homens de fé — a grande nuvem de
testemunhas do poder da fé. O mundo era a sua armadilha, as coisas temporais a
sua ruína. Ele não "ficou firme como vendo o invisível". Atentou para "as coisas
que se veem e são temporais"; ao passo que Abraão atentou para "as coisas que se
não veem e são eternas". Havia uma diferença material entre estes dois homens, os
quais, embora tivessem partido juntos do princípio, atingiram um fim muito
diferente, tanto quanto se refere ao seu testemunho público. Sem dúvida Ló foi
salvo, todavia foi "como que pelo fogo", porque, verdadeiramente, "a sua obra foi
queimada". Pelo contrário, Abraão teve uma entrada abundante no "reino eterno
de nosso Senhor Jesus Cristo".
__________
(') Seria uma pergunta sondável para o coração se disséssemos, "estou fazendo isto
por Tudo o que não é de fé é pecado; e "Sem fé é impossível agradar a Deus",
(compare Rm 14:23 e Hb 11:6).

Além disso, não vemos que a Ló tivesse sido permitido gozar qualquer dos altos
privilégios e distinções com que Abraão foi favorecido. Em vez de receber a visita
do Senhor, Ló afligia a sua alma justa; em vez de gozar de comunhão com o Senhor,
está a uma distância lamentável do Senhor; e, por último, em vez de interceder
pelos outros, ele tem muito que pedir por si próprio. O Senhor ficou para
conversar com Abraão e limitou-Se a mandar os Seus anjos a Sodoma; e estes anjos
puderam com dificuldade ser persuadidos a entrar em casa de Ló ou aceitar a sua
hospitalidade: "E eles disseram: não, antes na rua passaremos a noite." Que
repreensão! Que diferença na prontidão com que foi aceite o convite de Abraão,
como se depreende das palavras, "Assim faze como tens dito".
A Eleição de Ló
Existe muita coisa no ato de alguém participar da hospitalidade de outrem. Quer
dizer, quando encarado inteligentemente, plena comunhão com ele: "...entrarei
em sua casa e com ele cearei, e ele comigo" (Ap 3:20); "...se haveis julgado que eu
seja fiel ao Senhor, entrai em minha casa, e ficai ali" (At 16:15). Se Paulo e Silas não
tivessem julgado Lídia fiel não teriam aceitado o seu convite.
Por isso as palavras dos anjos a Ló encerram uma condenação da sua posição em
Sodoma. Preferiam ficar toda a noite na rua a entrar debaixo do telhado de um que
estava numa posição má. De fato, o seu único objetivo indo a Sodoma parece ter
sido o de libertar Ló, e isto, também, por causa de Abraão; pois que lemos: "E
aconteceu que, destruindo Deus as cidades da campina, Deus se lembrou de
Abraão e tirou a Ló do meio da destruição, derribando aquelas cidades em que Ló
habitava".
Isto é fortemente acentuado. Foi simplesmente por amor de Abraão que se
permitiu a Ló escapar: o Senhor não simpatiza com uma mente mundana; e foi
uma mente assim que levou Ló a estabelecer-se entre a corrupção dessa cidade
culpada. A fé nunca o levou para ali; nenhuma mente espiritual lhe indicou o
caminho para lá; "a sua alma justa" nunca o deixou lá. Foi precisamente o amor por
este século mau que o levou em primeiro lugar a "escolher", depois a "armar as tuas
tendas", e por fim a "assentar-se à porta de Sodoma". Mas oh! que parte ele
escolheu! Era verdadeiramente uma cisterna rota que não podia reter água; uma
cana quebrada que feriu a sua mão. E uma coisa amarga, de qualquer modo,
orientarmo-nos por nós próprios; podemos estar certos de fazer os erros mais
graves. E infinitamente melhor deixar que Deus nos guie em todos os nossos
caminhos e entregá-los, no espírito de uma criança, ao Senhor, que quer e pode
fazer tudo por nós; pôr a pena, com efeito, na Sua bendita mão, e deixá-Lo delinear
toda a nossa carreira, segundo a Sua sabedoria infalível e o Seu amor infinito.
Sem dúvida, Ló pensou que estava fazendo bem para si e sua família, quando se
mudou para Sodoma; porém, o resultado mostrou como ele estava equivocado, e
ressoa também aos nossos ouvidos uma voz de profunda solenidade — uma voz
que nos diz para termos cuidado no modo como cedemos ao desejos de um espírito
mundano. "Contentai-vos com o que tendes." Por quê? E porque temos uma boa
situação no mundo? Por que temos tudo que os nossos corações enganadores
procuram? Por que não há nem sequer uma simples fenda nas nossas
circunstâncias por meio da qual um desejo vão possa escapar-se? Deve ser este o
fundamento do nosso bem estará De modo nenhum. Então? "Porque Ele disse: não
te deixarei nem te desampararei" (Hb 13:5). Bendito quinhão! Se Ló estivesse
contente com o que tinha nunca teria procurado as planícies bem regadas de
Sodoma.

Consequências da Associação com o Mundo


Além disso, se precisarmos de mais algum estímulo para o exercício de um espírito
satisfeito temo-lo verdadeiramente neste capítulo. O que ganhou Ló no caminho
da felicidade e satisfação? Muito pouco, na verdade. Os habitantes de Sodoma
rodearam a sua casa e ameaçaram invadi-la; ele procura acalmá-los por meio de
uma proposta deveras humilhante, mas tudo em vão. Se alguém se mistura com o
mundo, com o propósito de engrandecimento, deve dispor-se a aguentar as tristes
consequências. Não podemos lucrar com o mundo, e, ao mesmo tempo, dar
testemunho eficaz da sua impiedade. "...Como estrangeiro, este indivíduo veio aqui
habitar e quereria ser juiz em tudo!" (versículo 9). Isto nunca dará resultado. O
verdadeiro modo de julgar é permanecer à parte, no poder moral da graça, não no
espírito soberbo do Farisaismo. O esforço para reprovar os caminhos do mundo, ao
mesmo tempo que aproveitamos com a nossa companhia com ele, é vaidade; o
mundo prestará pouca atenção a uma tal reprovação e um tal testemunho.
Aconteceu assim, também, com o testemunho de Ló perante os seus genros; "foi
tido por zombador" aos olhos deles. É inútil falar de juízo vindouro ao mesmo
tempo que temos o nosso lugar, a nossa parte, e os nossos prazeres, na própria cena
que vai ser julgada.
Abraão estava numa situação muito melhor para falar de juízo, tanto mais que
estava inteiramente fora dessa cena. A tenda do peregrino em Manre não corria
perigo, embora Sodoma estivesse em chamas! Oh! se os nossos corações desejassem
mais os frutos preciosos da nossa situação de estrangeiros, de modo que, em vez de
termos de ser tirados, por força, à semelhança do pobre Ló, do mundo, em vez de
lançarmos atrás um olhar hesitante, pudéssemos, com santa alegria, correr como
bons corredores, para o alvo!

Ló Salvo como que através de Fogo


Evidentemente, Ló suspirava pela cena que foi forçado, por poder angélico, a
abandonar; porque não somente os anjos tiveram que pegar nele, e tirá-lo à pressa
do juízo iminente, mas até mesmo quando exortado a escapar por sua vida (aliás
tudo que ele podia salvar da catástrofe), e fugir para as montanhas, ele responde:
"Assim, não, Senhor! Eis que, agora, o teu servo tem achado graça aos teus olhos, e
engrandeceste a tua misericórdia que a mim me fizeste, para guardar a minha alma
em vida; mas não posso escapar no monte, pois que tenho medo que me apanhe
este mal, e eu morra. Eis, agora, aquela cidade está perto, para fugir para lá, e é
pequena; ora, para ali me escaparei (não é pequena?-), para que minha alma viva".
Que quadro! Parece-se com um homem a afundar-se, pronto a agarrar-se até
mesmo a uma pena flutuante. Apesar de o anjo o mandar fugir para o monte, ele
recusa, e agarra-se apaixonadamente à ideia de uma pequena cidade — um
pequeno bocado do mundo. Temia a morte no lugar para onde Deus
misericordiosamente o mandava — sim, temia todo o mal e só podia esperar
segurança em qualquer pequena cidade, qualquer lugar de sua própria invenção.
"Ora, para ali me escaparei, para que minha alma viva." Como é triste! não se
lançou inteiramente em Deus. Oh! Ele tinha andado tanto tempo longe d'Ele!
Havia respirado tanto tempo a atmosfera densa duma "cidade" que não podia
apreciar o ar puro da presença divina, ou encostar-se ao braço do Todo-Poderoso.
A sua alma parecia completamente transtornada; o seu ninho terrestre havia sido
repentinamente despedaçado, e ele não se sentia capaz de se refugiar, pela fé, no
seio de Deus. Não havia cultivado a comunhão com o mundo invisível; e agora o
visível desaparecia debaixo dos seus pés com rapidez tremenda. "Enxofre e fogo,
desde os céus" estavam prestes a cair sobre aquilo em que estava posta toda a sua
esperança e afeto. O ladrão o havia surpreendido, e ele parece ter perdido toda
energia espiritual e todo domínio de si mesmo. Ele chegou ao extremo de seus
recursos: está esgotado; mas o elemento mundano, sendo forte demais em seu
coração, prevalece, e o força a buscar refúgio numa "pequena cidade". Contudo não
se sente tranquilo até mesmo ali, pois deixa-a e dirige-se ao monte. Faz, com medo,
o que não quis fazer por ordem do mensageiro de Deus.
E, então, vede o seu fim! As suas próprias filhas embriagam-no, e na sua
embriaguez ele torna-se o instrumento de trazer à existência os amonitas e os
moabitas — os inimigos declarados do povo de Deus.
Que sudário de instrução existe em tudo isto! Que o leitor veja nisto o que é o
mundo! Veja que fatal coisa é deixar que o coração o siga! Que comentário não é a
história de Ló daquela breve mas compreensível admoestação, "não ameis o
mundo"! As Sodomas do mundo e as suas Zoares são todas as mesmas. Não existe
nelas segurança, nem paz, nem descanso, nem satisfação durável para o coração. O
juízo de Deus permanece sobre toda a cena; e Ele apenas susta a espada em
paciente misericórdia, não querendo que ninguém se perca, senão que todos
venham a arrepender-se.

Solenes Advertências para Nós


Sigamos, pois, uma conduta de santa separação do mundo. Tenhamos a esperança,
enquanto nos mantemos fora de todo o seu curso, da vinda do Mestre. Que as suas
campinas bem regadas não tenham encantos para os nossos corações. Que as suas
honras, as suas distinções e as suas riquezas, sejam vistas por nós à luz da glória
vindoura de Cristo. Que, à semelhança do patriarca Abraão, possamos estar na
presença do Senhor, e, desse terreno elevado, olhemos para a extensa cena de ruína
e desolação — para a vermos no seu todo, por meio do olhar antecipado da fé,
como ruínas fumegantes. Assim ela será. "Os céus e a terra que agora existem, pela
mesma palavra se reservam como tesouro e se guardam para o fogo" (2 Pe 3:7).
Tudo aquilo por que os filhos deste mundo andam tão ansiosos—que procuram tão
avidamente — por que lutam tão ferozmente — será queimado. E quem pode
prever se não será em breve? Onde está Sodoma? Onde está Gomorra?- Onde estão
as cidades da campina — essas cidades que uma vez eram tudo vida e movimento e
azáfama?- Onde estão elas agora? Desapareceram! Foram varridas pelo julgamento
de Deus! Consumidas pelo Seu fogo e enxofre! Bom. O Seu julgamento permanece
agora sobre este mundo culpado. O dia está próximo; e, enquanto o juízo está
iminente, a doce história da graça é contada a quantos a queiram ouvir. Felizes
daqueles que ouvirem e crerem essa história! Felizes daqueles que fugirem para o
monte da salvação de Deus! Aqueles que se refugiarem atrás da cruz do Filho de
Deus, e ali encontrarem perdão e paz!
Deus permita que o leitor destas páginas possa saber o que é, com uma consciência
purificada do pecado, e as afeições do seu coração purificadas da contaminação da
influência deste mundo, esperar dos céus o Filho de Deus.

CAPÍTULO 20

ABRAÃO EM GERAR
O Homem de Deus Exposto à Reprovação do Mundo
Neste capítulo temos duas coisas distintas: a primeira é a degradação moral a que
um filho de Deus por vezes se expõe à vista do mundo; a segunda a dignidade
moral que sempre lhe pertence à vista de Deus. Abraão mostra outra vez receio das
circunstâncias que o coração pode facilmente compreender. Ele vai peregrinar a
Gerar e teme os homens dessa cidade. Compreendendo que Deus não estava ali,
esquece-se que Ele está sempre consigo. Parece estar mais ocupado com os homens
de Gerar do que com Aquele que é mais forte do que eles. Esquecendo a aptidão de
Deus para proteger sua mulher, ele recorre ao mesmo estratagema que, anos antes,
adotara no Egito. Isto é muito censurável. O pai dos fiéis perdeu-se por desviar os
olhos de Deus. Perdeu, por um pouco de tempo, a sua concentração em Deus e por
isso cedeu. Quão verdade é que somos fortes somente na medida em que nos
apegamos a Deus na nossa inteira fraqueza. Enquanto nos mantivermos no
caminho por Ele indicado nada nos poderá prejudicar. Se Abraão tivesse sabido
apoiar-se em Deus, os homens de Gerar não se teriam intrometido com ele; e foi
seu privilégio vindicar a fidelidade de Deus no meio das dificuldades mais
espantosas. E assim teria também conservado a sua própria dignidade, como
homem de fé.
E sempre motivo de dor para o coração ver como os filhos de Deus O desonram, e,
como consequência, se rebaixam diante do mundo, perdendo o sentido da Sua
suficiência para todas as emergências. Enquanto vivermos na compreensão da
verdade que todas as nossas fontes estão em Deus, estaremos acima do mundo, em
forma e feitio. Nada há de mais nobre para o ente moral como a fé: conduz
inteiramente para além do alcance dos pensamentos do mundo; pois como podem
os homens do mundo, até mesmo os crentes mundanos, compreender a vida da fé?
Impossível: a fonte de onde ela emana está muito além da sua compreensão: eles
vivem à superfície das coisas presentes. Desde que possam ver o que lhes parece
um fundamento próprio para a esperança e a confiança, são esperançosos e
confiantes; porém a ideia de descansarem unicamente nas promessas do Deus
invisível não a compreendem. No entanto, o homem da fé mantém-se calmo no
meio de cenas nas quais a natureza nada pode ver. Por isso é que a fé parece
sempre, no parecer da natureza, uma coisa imprevidente, temerária e visionária.
Ninguém senão os que conhecem a Deus pode jamais aprovar as ações da fé,
porque ninguém senão eles podem realmente compreender o terreno sólido e
verdadeiramente razoável de tais ações.
O Temor de Abraão
Neste capítulo vemos o homem de Deus expondo-se à censura e exprobração dos
homens do mundo, por motivo das suas ações, debaixo do poder da incredulidade.
Assim terá de ser sempre. Nada senão a fé pode dar ao caráter e à carreira de um
homem verdadeira elevação. Podemos, na verdade, ver alguns que são
naturalmente retos e honrados nos seus caminhos; contudo, não podemos confiar
na retidão e honra da natureza: apoiam-se num mau fundamento, e estão sujeitas a
ceder a todo o momento. É só a fé que pode dar um tom moral verdadeiramente
elevado, porque liga a alma em poder vivo com Deus, a única origem de verdadeira
moralidade. E um fato notável que, no caso de todos aqueles que Deus tem
graciosamente recebido, vemos que, quando se afastam da carreira da fé, eles
descem ainda mais do que os seus semelhantes. Isto explica a conduta de Abraão,
nesta parte da sua história.
Mas há outro fato de muito interesse e valor a notar aqui. vemos que Abraão tinha
alimentado alguma coisa má durante anos: havia começado, parece, a sua carreira
com certa reserva na sua alma, a qual reserva era o resultado da sua falta de plena
confiança em Deus. Se ele tivesse podido confiar inteiramente em Deus quanto a
Sara, não teria havido necessidade de qualquer reserva ou subterfúgio. Deus
tê-la-ia resguardado de todo o mal; e quem pode fazer mal àqueles que são os
felizes objetos da Sua proteção? Todavia, Abraão pôde, em misericórdia, arrancar a
raiz de todo o mal — confessá-lo, julgá-lo, inteiramente, e deixá-lo. Este é o
verdadeiro modo de agir. Não pode haver verdadeira bênção e poder enquanto não
for trazida à luz cada partícula de fermento e calcada aos pés. A paciência de Deus
é ilimitada. Ele pode esperar. Pode aturar-nos; mas nunca guiará uma alma ao
ponto culminante de bênção e poder enquanto o fermento conhecido continuar
por julgar. Mas basta quanto a Abimeleque e Abraão. Vejamos agora a dignidade
moral deste, à vista de Deus.

Dois Pontos de Vista muito Distintos


Na história do povo de Deus, quer o consideremos como um todo ou como
indivíduos, somos muitas vezes despertados por diferenças espantosas entre o que
são à vista de Deus e o que são aos olhos do mundo. Deus contempla-os em Cristo.
Olha para eles através de Cristo, e por isso vê-os "sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante" (Ef. 5:27). Eles são o que Cristo é perante Deus. São perfeitos para
sempre, quanto à sua posição em Cristo. "Não estão na carne, mas no Espírito".
Mas em si próprios eles são pobres, fracos, imperfeitos, e inconstantes; e, visto que
é o que são em si próprios, e nada mais, e é somente desse fato que o mundo toma
conhecimento, a diferença parece tão grande entre a avaliação divina e a humana.
Contudo, é prerrogativa de Deus mostrar a beleza, a dignidade e a perfeição do Seu
povo. É Seu privilégio exclusivo, visto ser Ele Próprio Quem outorga essas coisas.
Eles têm somente a formosura que Ele lhes tem dado e é, portanto, Seu direito
declarar o que essa formosura é; e Ele fá-lo de uma maneira verdadeiramente digna
de Si, e nunca é tão abençoada como quando o inimigo se dispõe a ferir, a
amaldiçoar, ou acusar. Desta maneira, quando Balaque procura amaldiçoar a
semente de Abraão, a Palavra do Senhor é: "Não vi iniquidade em Israel, nem
contemplei maldade em Jacó". "Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! As tuas
moradas, ó Israel!" (Nm 23:21;24:5). Outro tanto, quando Satanás se apresenta para
resistir a Josué, a palavra é: "O Senhor te repreenda, ó Satanás,... não é este um
tição tirado do fogo?" (Zc 3:1). Assim o Senhor Se interpõe sempre entre o Seu
povo e toda a língua que procura acusá-los. Ele não responde à acusação
referindo-Se ao que o Seu povo é em si, ou o que são aos olhos dos homens deste
mundo, mas o que Ele Próprio tem feito deles, e onde os tem colocado.
Assim no caso de Abraão, ele podia rebaixar-se à vista de Abimeleque, rei de
Gerar; e Abimeleque podia ter de o repreender, porém, quando Deus trata do caso,
Ele diz a Abimeleque: "Eis que morto és"; e de Abraão diz: "profeta é, e rogará por
ti", sim, com toda "a sinceridade do seu coração e em pureza das suas mãos", o rei
de Gerar era apenas "um homem morto"; e, além disso, ele tem de ser devedor das
orações do estrangeiro inconsistente pela restauração da saúde da sua casa. Tal é,
pois o método de Deus: Ele pode ter controvérsia secreta com os Seus, com base
nos seus caminhos; mas logo que o inimigo intenta acusação contra eles, o Senhor
defende sempre a causa dos Seus servos. "Não toqueis os meus ungidos, e aos meus
profetas não façais mal" (1 Cr 16:22). "Aquele que tocar em vós toca na menina do
seu olho" (Zc 2;8). "E Deus quem os justifica, quem os condenará"?-" (Rm 8:33,34).
Nenhum dardo do inimigo poderá penetrar a couraça, atrás da qual o Senhor tem
escondido a ovelha mais fraca do Seu rebanho, adquirida à custa do sangue de Seu
Filho. Ele esconde o Seu povo no Seu pavilhão, põe os seus pés sobre a rocha dos
séculos, levanta as suas cabeças acima dos seus inimigos, e enche os seus corações
da alegria eterna da Sua salvação!
Bendito seja eternamente o Seu nome!

CAPÍTULO 21

ISAQUE E ISMAEL

O Nascimento de Isaque — o Filho da Promessa


"E o SENHOR visitou a Sara, como tinha dito; e fez o SENHOR a Sara como tinha
falado." Aqui temos o cumprimento da promessa — o fruto bendito da esperança
paciente em Deus. Ninguém jamais esperou em vão. A alma que se agarra às
promessas de Deus, pela fé, tem uma realidade estável que nunca lhe faltará. Assim
aconteceu com Abraão; assim aconteceu com todos os fiéis através dos séculos; e
assim será com todos aqueles que podem, em alguma medida, confiar no Deus
vivo. Oh! é uma bênção maravilhosa termos o Próprio Deus como a nossa parte e
lugar de descanso no meio das sombras insuficientes desta cena através da qual
estamos de passagem: termos a nossa âncora lançada dentro do véu; termos a
palavra e o juramento de Deus, as duas coisas imutáveis, para nos apoiarmos, para
conforto e tranquilidade das nossas almas.
Quando a promessa de Deus se apresentou perante a alma de Abraão como um fato
realizado, ele podia muito bem compreender a futilidade dos seus esforços para
alcançar essa realização. Ismael não servia, de modo nenhum, tanto quanto dizia
respeito à promessa de Deus. Ele podia proporcionar alguma coisa para as afeições
da natureza, de modo a enlaçá-las, tornando assim mais difícil a tarefa que Abraão
teria depois que cumprir; mas não era de modo nenhum vantajoso para o
cumprimento dos propósitos de Deus, ou para a confirmação da fé de Abraão —
era antes o contrário. A natureza nunca poderá fazer alguma coisa para Deus. O
Senhor tem de "visitar", o Senhor tem de "fazer", e a fé deve esperar, e a natureza
deve estar tranquila; sim, deve ser inteiramente posta de parte como morta, uma
coisa inútil, e então a glória divina pode brilhar, e a fé acha nesse brilho o seu rico
galardão.
"E concebeu Sara e deu a Abraão um filho na sua velhice, ao tempo determinado,
que Deus lhe tinha dito." Existe alguma coisa como "o tempo determinado" por
Deus, o Seu "tempo próprio", e por ele os fiéis devem estar contentes em esperar.
Pode parecer um tempo longo, e a demora no cumprimento da esperança pode
tornar o coração fatigado; porém a mente espiritual achará sempre o seu alívio na
certeza de que tudo concorre para a manifestação ulterior da glória de Deus.
"Porque a visão é ainda para o tempo determinado, e até ao fim falará, e não
mentirá; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará... o justo, pela sua
fé, viverá" (Hc 2:3-4).
Fé maravilhosa! Mostra-nos no presente todo o poder do futuro de Deus, e
alimenta-se da promessa de Deus como de uma realidade presente. Por seu poder a
alma permanece em Deus, quando tudo parece ser contra ela; e, "ao tempo
determinado" a boca é cheia de riso.
"E era Abraão da idade de cem anos, quando lhe nasceu Isaac seu filho." Assim a
natureza nada teve de que se gloriar. O infortúnio do homem foi a oportunidade
de Deus; "e disse Sara: Deus me tem feito riso." Tudo é vitória quando Deus pode
manifestar-Se.

Contraste entre Duas Naturezas


Ao mesmo tempo que o nascimento de Isaque enchia Sara de riso, introduzia um
elemento inteiramente novo na casa de Abraão. O filho da livre precipitou o
desenrolar do caráter do filho da escrava. Na verdade, Isaque provou, em
princípio, ser para a família de Abraão aquilo que a nova natureza é na alma dum
pecador. Não se tratava de Ismael modificado, mas de Isaque nascido. O filho da
escrava nunca podia ser nada mais senão isso. Podia vir a ser uma grande nação,
podia habitar no deserto e tornar-se num frecheiro; podia vir a ser o pai de doze
príncipes, mas era sempre o filho da escrava. Pelo contrário, por muito fraco e
desprezado que Isaque fosse, ele era o filho da livre. A sua posição e o seu caráter, a
sua situação e perspectiva, eram do senhor. "O que é nascido da carne é carne, e o
que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3:6).
A regeneração não é mudança da velha natureza, mas a introdução de uma nova; é
a implantação da natureza ou vida do último Adão por operação do Espírito Santo,
com fundamento na redenção consumada por Cristo, e em perfeito cumprimento
com a vontade soberana ou desígnio de Deus. No momento em que o pecador crê
em seu coração, e confessa com a sua boca o Senhor Jesus, torna-o possuidor de
uma nova vida, e essa vida é Cristo. É nascido de Deus, é um filho de Deus, é um
filho da livre (vede Rm 10:9; Cl 3:4, 1 Jo 3:12; G1 3:26; 4:31).

A Velha Natureza não Pode ser Modificada


Nem tão-pouco a introdução desta nova natureza altera, no mínimo, o caráter
verdadeiro e essencial da velha natureza. Esta continua a ser o que era; e não é, de
modo nenhum, melhorada; pelo contrário, dá-se a plena manifestação do seu
caráter pecaminoso em oposição ao novo elemento;"... a carne cobiça contra o
Espírito e o Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro" (G1 5:17). Aqui
vemo-los em toda a sua distinção, e um só pode ter alívio se for deixado em paz
pelo outro.
Creio que esta doutrina das duas naturezas do crente não é geralmente conhecida;
e todavia enquanto houver ignorância a seu respeito o espírito será inteiramente
alheio à verdadeira posição e aos privilégios de um filho de Deus. Há quem pense
que a regeneração é uma determinada mudança porque passa a velha natureza; e
além disso, que esta mudança é progressiva na sua operação, até que, por fim, o
homem é inteiramente transformado.
Que esta ideia é errônea pode provar-se por várias passagens do Novo Testamento.
Esta por exemplo: "... a inclinação da carne é inimizade contra Deus" (Rm 8:7).
Como pode aquilo de que assim se fala jamais passar por qualquer melhoramento?-
O apóstolo continua dizendo, "pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o
pode ser". Se não pode ser sujeita à lei de Deus, como pode ser melhorada? Como
poderá sofrer alguma alteração? Outro tanto, "o que é nascido da carne é carne" (Jo
3:6). Faça-se o que se fizer com a carne, e será sempre carne. Como diz Salomão:
"Ainda que pisasses o tolo com uma mão de gral, entre grãos de cevada pilada, não
se iria dele a sua estultícia" (Pv 27:22). Não vale a pena procurar fazer a loucura
sábia: é preciso introduzir sabedoria celestial no coração que apenas tem sido
governado pela loucura. Também em Colossenses 3:9,"... já vos despistes do velho
homem". O apóstolo não diz, melhorastes, ou procurais melhorar o "velho
homem"; mas já vos despistes dele. Isto dá-nos uma ideia inteiramente diferente.
Existe uma grande diferença entre procurar remendar um vestido velho e pô-lo
inteiramente de lado para usar um novo. Esta é a ideia da última passagem
reproduzida. E pôr de lado o velho e vestir o novo. Nada pode ser mais claro e
simples.
Podíamos multiplicar facilmente as passagens para provar o erro da teoria
respeitante ao aperfeiçoamento da velha natureza — para provar que a velha
natureza está morta em pecados, e é inteiramente incapaz de ser renovada ou
melhorada; e que, além disso, a única coisa que podemos fazer com ela é
conservá-la debaixo dos pés no poder daquela nova vida que temos em união com a
nossa Cabeça glorificada nos céus.
O nascimento de Isaque não melhorou Ismael, mas apenas ocasionou a verdadeira
oposição deste ao filho da promessa. Pôde ter uma conduta pacífica e
irrepreensível até Isaque ter feito a sua aparição; mas então mostrou o que era
perseguindo e ridicularizando o filho da ressurreição. Qual era logo o remédio?
Melhorar Ismael? De modo nenhum; mas, "Deita fora esta serva e o seu filho;
porque o filho desta serva não herdará como meu filho, com Isaque" (versículos
8-10). Aqui estava o único remédio. "Aquilo que é torto não se pode endireitar" (Ec
1:15); portanto, é preciso livrarmo-nos inteiramente do que é torto e
ocuparmo-nos com aquilo que é divinamente reto. É tempo perdido procurar
endireitar uma coisa torta. Por isso todos os esforços tendentes a melhorar a
natureza são completamente fúteis, tanto quanto diz respeito a Deus. Pode ser
muito bom para os homens melhorarem aquilo que é útil para si próprios, mas
Deus deu a fazer aos Seus filhos alguma coisa infinitamente melhor — cultivar
aquilo que é Sua própria criação, e cujos frutos, apesar de não servirem, de nenhum
modo, para exaltar a natureza, são inteiramente para Seu louvor e glória.
Ora o erro em que caíram as igrejas da Galácia foi a aceitação daquilo que apelava
para a natureza."... Se vos não circuncidardes, conforme o uso de Moisés, não
podeis salvar-vos" (At 15:1). aqui vemos como a salvação se tornava dependente de
alguma coisa que o homem podia ser, fazer, ou guardar. Isto importava em deitar
por terra toda a obra gloriosa da redenção, a qual, como o crente sabe, assenta
exclusivamente sobre o que Cristo é e o que Ele fez. Tornar a salvação dependente,
de qualquer maneira, de alguma coisa inerente ao homem, ou a fazer pelo homem,
é pô-la inteiramente de lado. Por outras palavras, Ismael tem que ser posto fora, e
todas as esperanças de Abraão devem depender daquilo que Deus fez, e deu, na
pessoa de Isaque. Escusado será dizer que isto não deixa nada em que o homem
possa gloriar-se. Se a bem-aventurança presente ou futura dependesse até mesmo
de uma alteração divina na natureza, a carne podia gloriar-se. Embora a minha
natureza fosse melhorada, seria alguma coisa de mim, e deste modo Deus não teria
toda a glória. Porém, quando sou introduzido numa nova criação, vejo que é tudo
de Deus, planeado, fomentado e acabado somente por Ele Próprio. Deus e o
realizador, e eu sou um adorador; Ele é o abençoador, e eu sou o abençoado; Ele é
"o maior", e eu sou "o menor" (Hb 7:7); Ele é o Dador, e eu sou o que recebe. É isto
que faz da Cristandade o que ela é; e, além disso, a distingue de qualquer sistema de
religião abaixo do Sol.
A religião humana dá mais ou menos sempre lugar à criatura; fica com a escrava e o
seu filho em casa; dá ao homem alguma coisa em que se gloriar. Pelo contrário, a
Cristandade exclui a criatura de toda a interferência na obra da salvação; deita fora
a escrava e seu filho, e dá toda a glória Aquele a Quem somente pertence.

A Escravidão da Lei em Oposição com a Liberdade Cristã


Mas vejamos o que são realmente esta escrava e seu filho, e o que simbolizam para
nós. O capítulo 4 de Gálatas dá-nos amplo ensino a este respeito. Em resumo, pois,
a escrava representa o concerto da lei; e o seu filho representa todos os que são das
"obras da lei", ou se fundamentam nesse princípio. Isto é muito claro. A escrava só
gera para a escravidão, e nunca pode dar à luz um homem livre. Como poderia?- A
lei nunca podia dar liberdade, visto que enquanto o homem vivesse ela dominava
sobre ele (Rm 7:1). Eu nunca poderei ser livre enquanto estiver sob o domínio de
alguém. Assim, enquanto vivo debaixo da lei esta tem domínio sobre mim; e nada
senão a morte pode libertar- me do seu domínio.
Esta é a doutrina bendita de Romanos 7. "Assim, meus irmãos, também vós estais
mortos para a lei, pelo corpo de Cristo, para que sejais doutro, daquele que
ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus." (Rm 7:4) Isto
é liberdade, porque, "Se pois o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres" (Jo
8:36). "De maneira que, irmãos, somos filhos não da escrava, mas da livre" (G1
4:31).
Ora é no poder desta liberdade que podemos obedecer ao preceito, "Deita fora esta
serva e o seu filho". Se eu não estou conscientemente livre, estarei procurando
alcançar a liberdade do modo mais estranho possível, até mesmo conservando a
escrava em casa: por outras palavras, procurarei conseguir a vida guardando a lei;
estarei, então, procurando estabelecer a minha própria justiça. Sem dúvida, haverá
nisto tudo um esforço para deitar fora este elemento de escravatura, porque o
legalismo é próprio dos nossos corações. "E pareceu esta palavra mui má aos olhos
de Abraão, por causa de seu filho." Contudo, por muito má que seja, é conforme
com a mente divina que permaneçamos firmes na liberdade com que Cristo nos
libertou, e não tornemos a metermo-nos debaixo do jugo da servidão (G1 5:1).
Possamos nós, prezado leitor, compreender tão inteira e praticamente a
bem-aventurança da provisão de Deus por nós em Cristo, que acabemos com todos
os pensamentos acerca da carne, e tudo que ela pode ser, fazer ou produzir. Existe
tal plenitude em Cristo que torna todo o apelo à natureza supérfluo e vão.
CAPÍTULO 22

MORIÁ

Deus Prova o Seu Servo Abraão


Abraão encontra-se agora num estado próprio para que o seu coração seja posto à
prova. Depois de ter confessado o segredo do seu coração, em capítulo 20, e
havendo saído de sua casa a escrava e seu filho, no capítulo 21, ele está agora na
posição mais honrosa que qualquer alma pode ter, e esta é uma posição de prova da
mão do Próprio Deus.
Existem várias formas de provação — provação às mãos de Satanás; provação
devido às circunstâncias; porém o caráter mais elevado de provação é aquele que
vem diretamente das mãos de Deus, quando Ele põe o ente querido na fornalha do
fogo para provar a realidade da sua fé.
Deus faz isto. Ele tem que ter a realidade. De nada servirá dizer: "Senhor, Senhor",
ou "eu vou, Senhor". O coração tem que ser provado até ao máximo, de modo que
nenhum elemento de hipocrisia, ou falsa profissão, possa ser permitido nele.
"Dá-me, filho meu, o teu coração" (Pv 23:26). O Senhor não diz, "dá-me a tua
cabeça, ou o teu intelecto, ou os teus talentos, ou a tua língua, ou o dinheiro"; mas,
sim, "dá-me o teu coração". E a fim de provar a sinceridade da nossa resposta a este
convite gracioso, Ele deitará a mão a qualquer coisa muito querida dos nossos
corações. Deste modo Ele diz a Abraão: "Toma agora o teu filho, o teu único filho,
Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre
uma das montanhas, que eu te direi". Isto importava tocar muito de perto o
coração de Abraão. Era passá-lo na verdade rigorosamente por um cadinho.
Deus requer "a verdade no íntimo". Pode haver muito de verdade nos lábios, e no
intelecto, mas Deus procura-a no coração. As provas vulgares do amor de nossos
corações não satisfarão Deus. Ele Próprio não ficou satisfeito em dar uma prova
vulgar: deu o Seu Filho, e nós deveríamos aspirar dar provas extraordinárias do
nosso amor Aquele que nos amou, até mesmo quando estávamos mortos em delitos
e pecados.
Contudo, é bom notarmos que Deus dá-nos uma honra notável quando prova os
nossos corações. Nunca lemos que Deus tivesse tentado(1) Ló. Não, Sodoma tentou
Ló. Ele nunca alcançou um engrandecimento suficiente para ser provado pela mão
do Senhor. Era evidente que havia muita coisa entre o seu coração e o Senhor, e
isso não necessitava, portanto, da fornalha para o provar. Sodoma nunca tentou
Abraão. Isto ficou claro na sua entrevista com o rei de Sodoma, no capítulo 14.
Deus sabia bem que Abraão O amava muito mais do que a Sodoma; porém tinha de
ficar bem claro que Ele o amava mais do que toda outra coisa pondo a Sua mão
sobre o objeto mais querido do seu coração. "Toma agora o teu filho, o teu único
filho, Isaque." Sim, Isaque, o filho da promessa; Isaque, o filho da esperança
paciente, o objeto do amor paternal, e aquele em quem todas as nações da terra
deviam ser abençoadas. Este Isaque tinha que ser oferecido em holocausto. Isto,
certamente, era pôr a fé à prova, a fim de que, sendo mais preciosa do que o ouro
que perece, embora fosse provada pelo fogo, pudesse ser achada para louvor, honra
e glória de Deus. Se a alma de Abraão não tivesse permanecido simplesmente em
Deus ele nunca poderia ter rendido obediência resoluta a um tal mandamento.
Mas Deus era o suporte vivo e permanente de seu coração, e por isso ele estava
pronto a dar tudo por Ele.
__________
(1) O significado do Capítulo 22:1 é que Deus pôs Abraão à prova (N. do T.).

A alma que tem achado todas as suas fontes em Deus pode, sem hesitação,
afastar-se de todas as correntes da natureza. Podemos prescindir da criatura, na
proporção em que nos tivermos familiarizado com o Criador, e nada mais. Tentar
deixar as coisas visíveis de qualquer outro modo, que não seja a energia da fé que
lança mão do invisível, é o esforço mais inútil que se pode imaginar. Não pode ser
conseguido. Enquanto não achar tudo em Deus, eu conservarei o meu Isaque. E
quando podemos dizer pela fé, "Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem
presente na angústia", que podemos também acrescentar, "pelo que não
temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se transportem para o
meio dos mares" (SI 46:1-2).

Abraão Obedece em Seguida


"Então, se levantou Abraão pela manhã, de madrugada". É obediência imediata.
"Apressei-me e não me detive a observar os teus mandamentos" (SI 119:60). A fé
nunca olha para as circunstâncias, nem considera os resultados; espera só em Deus;
exprime-se deste modo: "Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de
minha mãe me separou e me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim,
para que o pregasse entre os gentios, não consultei carne nem sangue" (Gl 1:15-16).
Logo que consultamos carne e sangue o nosso testemunho e serviço são
manchados, porque carne e sangue não podem obedecer. Devemos madrugar e
levar, pela graça, o preceito divino. Deste modo somos abençoados e Deus é
glorificado. Se a palavra de Deus é a base da nossa atividade, ela dar-nos-á sempre
força e estabilidade de operação. Se atuarmos apenas por impulso logo que o
impulso acaba, a ação acaba também.
Existem duas coisas necessárias a uma carreira contínua e consciente de ação, a
saber, o Espírito Santo, como o poder de ação, e a Palavra para nos dar direção
apropriada.

Para ilustrar:
O vapor de uma máquina de caminho de ferro seria de pouca utilidade sem os
carris firmemente estendidos; o vapor é o poder por meio do qual somos
transportados; e as linhas representam a direção. Escusado será dizer que as linhas
seriam de pouca utilidade sem o vapor. Bom. Abraão foi abençoado com as duas
coisas. Ele tinha o poder de ação conferido por Deus e a ordem de atuar dada
também por Deus. A sua dedicação era de caráter definido; e isto é profundamente
importante. Vemos por vezes muitas coisas que se parecem com dedicação, mas
que, na realidade, são apenas a atividade irregular de uma vontade que não está sob
a ação poderosa da Palavra de Deus. Essa dedicação aparente é inútil, e o espírito
donde ela emana desaparecerá rapidamente.
Podemos estabelecer este princípio: sempre que a dedicação ultrapasse os limites
divinamente marcados é duvidosa. Se não chegar a atingir estes limites é
defeituosa; se correr sem eles é desordenada. Concordo em absoluto que há
operações extraordinárias do Espírito de Deus nas quais Ele mantém a Sua própria
soberania e Se eleva acima dos limites normais; mas, em tais casos, a evidência da
atividade divina será suficientemente forte para incutir convicção em toda a mente
espiritual; nem tão- pouco estas operações interferirão, de nenhum modo, com a
verdade do princípio que a verdadeira dedicação será sempre fundamentada e
governada por princípio divino. Sacrificar um filho poderia parecer um ato de
extraordinária dedicação; mas não se esqueça que o que deu valor a esse ato, à vista
de Deus, foi o fato simples de ser baseado no mandamento de Deus.

A Adoração
Temos, ainda, outra coisa ligada com o verdadeiro afeto, e isto é o espírito de
adoração: "... eu e o moço iremos até ali... e havendo adorado". O servo
verdadeiramente consagrado terá em vista, não o seu serviço, por muito grande
que seja, mas o Senhor, e isto produzirá o espírito de adoração. Se eu amar o meu
mestre, segundo a carne, pouco se me dará se limpo os seus sapatos ou se guio a sua
carruagem; porém se eu pensar mais em mim do que nele, preferirei ser cocheiro
do que engraxador. E assim precisamente no serviço do Mestre celestial: se eu
pensar só n'Ele, estabelecer igrejas e fazer tendas será o mesmo para mim.
Podemos ver a mesma coisa no ministério angélico. A um anjo não interessa se é
mandado destruir um exército ou proteger a pessoa de qualquer herdeiro da
salvação. E o Mestre Quem enche inteiramente a sua visão. Como alguém
observou, "se dois anjos fossem enviados do céu, um para governar um império e o
outro para varrer as ruas, eles não discutiriam quanto ao seu trabalho". Isto é
verdadeiro, e devia ser assim conosco. O servo deveria estar sempre ligado com o
adorador, e o trabalho das nossas mãos perfumado com a respiração ardente dos
nossos espíritos. Em suma, devíamos partir sempre para o nosso trabalho no
espírito daquelas palavras memoráveis, "eu e o moço iremos até ali, e havendo
adorado tornaremos a vós". Isto guardar-nos-ia efetivamente daquele serviço
meramente maquinal no qual estamos tão prontos a cair: fazer as coisas por amor
de as fazer, e estando mais ocupados com o nosso trabalho do que com o Senhor.
Tudo deve partir da simples fé em Deus e obediência à Sua Palavra.

O Sacrifício de Isaque: Imagem do Sacrifício de Cristo


"Pela fé, ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que recebera as
promessas ofereceu o seu unigênito" (Hb 11:17). É só na medida em que andamos
pela fé que podemos começar, continuar, e acabar a nossa obra para Deus. Abraão
não só partiu para oferecer o seu filho, como continuou o seu caminho, e chegou
ao lugar que Deus havia escolhido.
"E tomou Abraão a lenha do holocausto e pô-la sobre Isaque seu filho; e ele tomou
o fogo e o cutelo na sua mão. E foram ambos juntos." E mais adiante lemos: "... e
edificou Abraão ali um altar, e pôs em ordem a lenha, e amarrou a Isaque, seu filho,
e deitou-o sobre o altar em cima da lenha. E estendeu Abraão a sua mão e tomou o
cutelo para imolar o seu filho." Isto era realmente obra de fé e trabalho de amor (1
Ts 1:3) no sentido mais elevado. Não era simples mistificação — não era
aproximação de lábios, enquanto que o coração está longe —, não era dizer, sim,
Senhor, "eu vou", e não ir. Era tudo profunda realidade, como a fé sempre se
deleita em produzir, e Deus Se deleita em receber. E fácil fazer uma demonstração
de afeto quando não há necessidade dele. É fácil dizer, "Ainda que todos se
escandalizem em ti, eu nunca me escandalizarei... ainda que me seja necessário
morrer contigo, não te negarei" (Mt 26:33-35); mas o ponto é suportar a provação.
Quando Pedro foi submetido à prova, ele falhou completamente. A fé nunca fala
do que fará, mas faz o que pode, no poder do Senhor. Nada pode ser mais indigno
do que um espírito de pretensão. E tão desprezível como o fundamento em que se
baseia. Porém, a fé atua "quando é provada", e até então está contente por ser
invisível e silenciosa.
Ora, não é necessário acentuar o fato que Deus é glorificado nestas santas
atividades da fé. Ele é o seu objeto imediato, assim como a origem de onde elas
emanam. Não houve acontecimento na história de Abraão em que Deus fosse tão
glorificado como no Monte Moriá. Foi ali que ele pôde ficar habilitado a dar
testemunho do fato que todas as suas fontes estavam em Deus — achara- -as não só
antes, mas depois do nascimento de Isaque. É um ponto tocante, este. Uma coisa é
descansar nas bênçãos de Deus e outra coisa descansar n'Ele Próprio.
Uma coisa é confiar em Deus quando temos perante os nossos olhos o meio pelo
qual a bênção deve vir; mas outra muito diferente quando esse meio não existe. Foi
isto que provou a excelência da fé de Abraão. Ele mostrou que podia confiar em
Deus por uma descendência inumerável não apenas enquanto Isaque estava diante
dele em vigor e saúde mas da mesmíssima maneira se ele fosse a vítima sobre o
fogo do altar. Era uma ordem mais elevada de confiança em Deus; era confiança
pura; não era uma confiança apoiada em parte por Deus e em parte pela criatura.
Não, baseava-se num pedestal sólido, a saber, Deus. Ele considerou que Deus era
Poderoso: nunca considerou Isaque poderoso. Isaque, sem Deus, nada era; Deus,
sem Isaque, era tudo.
Isto é um princípio de importância incalculável; calculado evidentemente para
experimentar o coração de um modo penetrante. Faz-me alguma diferença ver o
meio aparente da minha bênção esgotar-se? Encontro-me suficientemente perto
da fonte essencial para poder, com espírito de adoração, ver todos os regatos da
criatura secarem-se? É uma pergunta penetrante.
Compreendo eu a suficiência de Deus para poder, com efeito, estender a minha
mão e tomar o cutelo para imolar o meu filho? Abraão pôde fazer isto, porque a sua
fé estava posta no Deus da ressurreição. "Ele considerou que Deus era poderoso
para até dos mortos o ressuscitar" (Hb 11:18).
Numa palavra, era com Deus que ele tinha de tratar, e isso era o bastante, mas não
lhe foi consentido descarregar o golpe. Havia chegado ao extremo: tinha chegado
ao limite para além do qual Deus não podia permitir que ele fosse. O bendito
Senhor poupou o coração do pai à dor que Ele não poupou o Seu próprio coração
— a dor de ferir o Seu Filho. Deus, bendito seja o Seu nome, foi além do limite,
pois "nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes, o entregou por todos nós"
(Rm 8:32): "...ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar" (Is 53:10). Não se
ouviu nenhuma voz do céu quando, no Calvário, o Pai ofereceu o Seu Filho
unigênito. Não; foi um sacrifício inteiramente consumado; e, na sua consecução,
foi selada a nossa paz eterna.

Abraão Demonstra Sua Fé mediante Suas Obras


Contudo, o afeto de Abraão foi plenamente provado, e aceito. "Porquanto agora sei
que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único". Notemos a frase,
"agora sei". A prova nunca havia sido feita antes. Existia, sem dúvida, e Deus sabia
isto. Porém, o ponto importante aqui é que Deus acha o Seu conhecimento do fato
sobre a evidência tirada do altar do Monte Moriá. A fé é sempre comprovada pela
ação, e o temor de Deus por meio dos frutos que resultam dela. "Porventura
Abraão, o nosso pai, não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o
seu filho Isaque?" (Tg 2:21). Quem poderia pensar pôr em dúvida a sua fé? Tirai a
fé, e Abraão aparecerá no Monte Moriá como um assassino e um doido. Tomai a fé
em conta, e ele aparece ali como um adorador consagrado — um homem temente
a Deus e justificado.
Porém a fé tem que ser provada. "Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que
tem fé, e não tiver as obras?" (Tg 2:14).
Deus ou o homem ficarão satisfeitos com uma profissão infrutuosa e ineficaz?
Certamente que não. Deus busca a realidade e honra-a onde a vê; e quanto ao
homem, ele nada pode compreender, salvo a expressão viva e inteligível da fé que
se manifesta em ações. Estamos rodeados da profissão religiosa: a fraseologia da fé
anda em todos os lábios; porém, a fé em si é uma joia tão rara como sempre — essa
fé que torna o homem capaz de sair da costa das circunstâncias e enfrentar as ondas
e os ventos, e não só enfrentá-los, mas suportá-los, até mesmo se o Mestre estiver
aparentemente dormindo sobre uma almofada.

O Ensino do Espírito por meio de Tiago e Paulo


E aqui quero referir a harmonia perfeita que existe entre Tiago e Paulo sobre o
assunto da justificação. O leitor inteligente e espiritual, que se curva perante a
verdade importante da inspiração plenária da Escritura Sagrada, sabe muito bem
que, sobre esta questão não é com Paulo ou Tiago que temos de tratar, mas com o
Espírito Santo, que graciosamente usou estes dois venerandos homens como a pena
para escrever os Seus pensamentos, precisamente como eu poderia pegar numa
pena de penas ou de aço para escrever os meus pensamentos, em cujo caso seria
inteiramente absurdo falar de discordância entre as duas penas, uma vez que o
escritor era o mesmo. Por isso é impossível que dois escritores inspirados pudessem
chocar-se, como corpos celestiais, à medida que se moviam na órbita divinamente
indicada, e entrar em colisão.
Na realidade, existe, como podia esperar-se, a maior e mais perfeita harmonia
entre estes dois apóstolos sobre o assunto da justificação; com efeito, um é a
contra-parte ou o expoente do outro. Paulo dá-nos o princípio íntimo, e Tiago a
revelação desse princípio; aquele apresenta a vida oculta, este a vida manifestada; o
primeiro vê o homem na sua relação com Deus, o último encarara-o na sua relação
com o seu semelhante. Bom. Nós precisamos de ambos: o íntimo não serviria sem o
exterior; e o exterior seria inútil e impotente sem o íntimo. "Abraão foi justificado"
quando "creu em Deus"; e "Abraão foi justificado" quando "ofereceu Isaque, seu
filho". No primeiro caso temos o segredo de Abraão, e no último o seu
reconhecimento público pelo céu e pela terra. E conveniente notarmos esta
distinção. Não se ouviu nenhuma voz do céu quando "Abraão creu em Deus",
embora no parecer de Deus ele fosse ali, então, "considerado justo"; mas quando ele
ofereceu o seu filho sobre o altar, Deus pôde dizer, "agora sei"; e todo o mundo teve
uma prova poderosa e incontestável do fato de que Abraão era um homem
justificado.
Assim será sempre. Onde quer que existir o princípio íntimo haverá a atuação
exterior; porém todo o valor desta resulta da sua ligação com aquele. Desligai, por
um momento, a atuação de Abraão, conforme é estabelecida por Tiago, da fé de
Abraão, como é estabelecida por Paulo, e que virtude justificadora terá ela?
Nenhuma absolutamente. Todo o seu valor, a sua eficácia, a sua virtude emanam
do fato que era uma manifestação exterior daquela fé, por virtude da qual ele havia
sido contado justo perante Deus. Mas temos dito o bastante quanto à harmonia
admirável entre Paulo e Tiago, ou antes, quanto à unidade da voz do Espírito
Santo, quer essa voz seja proferida por Paulo ou por Tiago.
Voltemos agora para o nosso capítulo. E interessante vermos aqui como a alma de
Abraão é levada a uma nova descoberta do caráter de Deus por meio da prova da
sua fé. Quando podemos suportar a provação da própria mão de Deus, é certo
levar-nos a alguma nova experiência com respeito ao Seu caráter, a qual nos faz
conhecer quão valiosa é a provação. Se Abraão não tivesse estendido a sua mão
para imolar o seu filho, ele nunca teria conhecido as ricas e excelentes
profundidades desse título que ele aqui dá a Deus, a saber: "O Senhor proverá". É só
quando somos realmente postos à prova que descobrimos o que Deus é. Sem
provação podemos ser apenas teóricos, e Deus não nos quer assim: Ele quer que
entremos nas profundidades vivas que há n Ele Próprio — as realidades divinas de
comunhão pessoal com Ele. Com que sentimentos e convicções diferentes deve
Abraão ter retrocedido do Monte Moriá para Berseba! Do monte do Senhor ao
poço do juramento! Quão diferentes eram agora os seus pensamentos acerca de
Deus! Que pensamentos diferentes acerca de Isaque! Como eram diferentes os seus
pensamentos quanto a tudo!
Na verdade, nós podemos dizer: "Bem-aventurado o varão que sofre a tentação"
(Tg 1:12). É uma honra dada pelo próprio Senhor e a bem-aventurança da
experiência a que ela conduz não pode ser facilmente calculada. É quando aos
homens, para empregarmos a linguagem do Salmo 107:27, se "esvai toda a
sabedoria" que eles podem descobrir o que Deus é. Oh! que Deus nos dê graça para
podermos sofrer a provação, e a obra de Deus poder ser vista e o Seu nome
glorificado em nós!

A Promessa e o Juramento de Deus


Há um ponto que, antes de terminar os meus comentários sobre este capítulo,
desejo frisar, a saber, o modo gracioso como Deus dá a Abraão crédito por ter
praticado o ato para o qual se mostrou tão disposto. "Por mim mesmo, jurei, diz o
SENHOR; porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único,
que deveras te abençoarei e grandissimamente multiplicarei a tua semente como as
estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua semente possuirá
a porta dos seus inimigos. E em tua semente serão benditas todas as nações da terra;
porquanto obedeceste à minha voz". Isto corresponde lindamente com a
observação do Espírito quanto ao feito de Abraão, conforme nos é apresentado em
Hebreus 11, e também em Tiago 2. Em ambas as Escrituras ele é considerado como
tendo oferecido o seu filho Isaque sobre o altar.
O grande princípio transmitido por todo o acontecimento é este: Abraão mostrou
que estava preparado para perder tudo menos Deus; e, além disso, foi este mesmo
princípio que o constituiu e declarou um homem justificado. A fé pode agir sem
alguém ou sem coisa alguma, mas não sem Deus: tem o pleno sentimento da Sua
suficiência e pode, portanto, deixar tudo mais. Por isso Abraão podia apreciar
devidamente as palavras "Por mim mesmo, jurei". Sim, estas palavras maravilhosas
"por mim mesmo", eram tudo para o homem da fé. "Porque, quando Deus fez a
promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si
mesmo..., porque os homens certamente juram por alguém superior a eles, e o
juramento para confirmação é, para eles, o fim de toda contenda. Pelo que,
querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos
herdeiros da promessa, se interpôs com juramento". (Hb 6:13, 16-17). A Palavra e o
juramento do Deus vivo devem pôr fim a todas as contendas e esforços da vontade
humana, e formar a âncora irremovível da alma por entre toda a agitação e
tumultos deste agitado mundo.
Temos de nos condenar a nós próprios constantemente pelo pouco poder que as
promessas de Deus têm em nossos corações. Professamos crer nelas, mas,
infelizmente, não são aquela realidade profunda, permanente, influente que devia
ser sempre! Não tiramos delas aquela "consolação" que está calculado elas
concederem. Quão pouco preparados estamos, no poder da fé e na promessa de
Deus, para imolar o nosso Isaque! Devemos clamar a Deus para que seja do Seu
agrado dotar-nos de discernimento quanto à realidade bendita duma vida de fé
n'Ele Mesmo, para que assim possamos compreender melhor a importância
daquela palavra de João: "esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé" (1 Jo 5:4).
Só poderemos vencer o mundo pela fé. A incredulidade põe-nos debaixo das coisas
presentes, ou, por outras palavras, dá ao mundo a vitória sobre nós. A alma que
tem compreendido, por meio do ensino do Espírito Santo, o significado da
suficiência de Deus, é inteiramente independente das coisas da terra.
Prezado leitor, oxalá nós compreendamos isto, para nossa paz e alegria em Deus e a
Sua glória em nós.

CAPÍTULO 23
A CAVERNA DE MACPELA

A Morte de Sara
Esta pequena parte inspirada dá instrução proveitosa e agradável à alma. Nela o
Espírito apresenta-nos um exemplo magnífico do modo como o homem da fé deve
comportar-se para com aqueles que estão de fora. Ao mesmo tempo que é verdade,
verdade divina, que a fé torna o crente independente do homem do mundo, não é
menos verdade que a fé mostrar-lhe-á sempre como andar honestamente com ele.
Somos exortados a andar "honestamente para com os que estão de fora" (1 Ts 4:12),
a zelarmos "o que é honesto, não só diante do Senhor, mas também diante dos
homens" (2 Co 8:21) e a não devermos coisa alguma a ninguém (Rm 13:8). São
preceitos importantes — preceitos que, até mesmo antes da sua enunciação, eram
devidamente observados em todos os tempos pelos servos fiéis de Cristo, mas que,
nos tempos modernos, não têm, infelizmente, sido suficientemente cumpridos.
O capítulo 23 do Gênesis é, portanto, digno de especial atenção. Abre com a morte
de Sara, e apresenta Abraão num novo estado, a chorar por ela: "veio Abraão
lamentar a Sara e chorar por ela." Um filho de Deus tem de enfrentar estas coisas;
mas não deve encará-las como os demais. O grande fato da ressurreição vem em
seu alívio, e dá uma característica peculiar à sua dor (1 Ts 4:13-14). O homem de fé
pode estar à beira da sepultura de um irmão ou de uma irmã na feliz compreensão
de que ela não guardará por muito tempo o seu cativo. "Porque, se cremos que
Jesus morreu e ressuscitou, assim também aos que em Jesus dormem Deus os
tornará a trazer com ele" (1 Ts 4:14).
A redenção da alma assegura a redenção do corpo; a primeira já a temos, a última
esperamo-la (Rm 8:23).

A Fé na Ressurreição
Ora eu creio que comprando Macpela para cemitério Abraão manifestou a sua fé
na ressurreição. "Levantou-se de diante do seu morto". A fé não pode contemplar a
morte por muito tempo; tem um objeto mais elevado, bendito seja "o Deus vivo",
que o deu. A ressurreição enche para sempre o olhar da fé; e, no seu poder, pode
levantar-se de diante dos mortos. Há muita coisa a tirar desta ação de Abraão.
Precisamos de compreender o seu significado mais claramente, porque somos
propensos a estar ocupados com a morte e suas consequências. A morte é o limite
do poder de Satanás; porém onde Satanás termina, Deus começa a atuar. Abraão
compreendeu isto quando se levantou e comprou a cova de Macpela como lugar de
repouso para Sara. Isto foi a expressão do pensamento de Abraão quanto ao futuro.
Ele sabia que nos séculos vindouros a promessa de Deus quanto à terra de Canaã
será cumprida, e pôde depositar o corpo de Sara na sepultura "na esperança
gloriosa da ressurreição".
Os filhos de Hete nada sabiam a este respeito. Os pensamentos que ocupavam a
alma do patriarca eram inteiramente desconhecidos dos filhos incircuncisos de
Hete. Para eles era uma coisa de pouca importância onde ele sepultava os seus
mortos, mas não era de modo nenhum um caso sem importância para ele.
"Estrangeiro e peregrino sou entre vós; dai-me possessão de sepultura convosco
para que eu sepulte o meu morto de diante da minha face." Podia parecer-lhes
muito estranho que ele fizesse tanta questão quanto ao lugar duma sepultura; mas,
amados, "o mundo não nos conhecer; porque o não conhece a ele" (1 Jo 3:1). Os
melhores característicos da fé são aqueles que são incompreensíveis para o homem
natural. Os Cananeus não faziam ideia das expectativas que caracterizavam os atos
de Abraão. Não formavam ideia que ele esperava a posse da terra, enquanto
procurava apenas um bocado onde, como homem morto, pudesse esperar pelo
tempo de Deus e o método de Deus, isto é, A MANHÃ DA RESSURREIÇÃO.
Sentia que não tinha contendas com os filhos de Hete, e por isso estava preparado
para descansar a sua cabeça na sepultura e permitir que Deus agisse por ele, e com
ele, e por seu intermédio.
"Todos estes morreram na (ou segundo) a fé, sem terem recebido as promessas,
mas, vendo-as de longe e crendo nelas e abraçando-as, confessaram que eram
estrangeiros e peregrinos na terra" (Hb 11:13). Isto é na verdade uma feição
excelente da vida divina. Essas "testemunhas", das quais o apóstolo fala em
Hebreus 11, viveram não apenas pela fé, mas, mesmo quando chegaram ao fim da
sua carreira, conheceram que as promessas de Deus eram tão reais e satisfatórias
para as suas almas como quando no princípio da sua carreira. Ora, eu creio que esta
compra de um lugar para sepultura na terra era uma prova do poder da fé, não
somente para a vida mas para a morte. Por que estava Abraão tão interessado nesta
comprai Por que mostrou tanto interesse em legalizar os seus direitos ao campo e à
cova de Efrom sob os princípios do direito? Por que essa determinação em pesar o
preço como "correntes entre mercadores? FÉ, é a resposta. Ele fez tudo por fé. Ele
sabia que a terra era sua por promessa, e que em glória a sua descendência havia
ainda de possuí-la, e até então ele não seria devedor àqueles que ainda haviam de
ser desapossados.

A Conduta e a Esperança do Cristão


Desta maneira podemos encarar este capítulo encantador sob um duplo aspecto:
primeiro, apresentando-nos um princípio claro, prático, das nossas relações com os
homens do mundo; segundo, mostrando-nos a bem-aventurada esperança que
deve caracterizar o homem da fé.
Juntando estes dois pontos temos um exemplo daquilo que um filho de Deus deve
sempre ser. A esperança que é posta perante nós no evangelho é uma gloriosa
imortalidade; e isto, ao mesmo tempo que eleva o coração acima de todas as
influências da natureza do mundo, dá-nos um princípio elevado e santo para
governo da nossa convivência com os que estão de fora: "... sabemos que, quando
ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos" (1 Jo
3:2). Esta é a nossa esperança. Qual é o seu efeito moral? "E qualquer que nele tem
esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro" (1 Jo 3:3). Se em
breve vou ser semelhante a Cristo, procurarei ser tão semelhante a Ele tanto
quanto posso agora. Por isso, o cristão deve procurar sempre andar em pureza,
integridade e graça moral à vista de todos os que o rodeiam.
Foi assim com Abraão, a respeito dos filhos de Hete. Todo o seu comportamento e
a sua conduta, como vemos neste capítulo, parecem ter sido assinalados por
verdadeira elevação e desinteresse. Ele foi "príncipe de Deus" entre eles, e eles
desejavam fazer-lhe um favor; mas Abraão havia aprendido a receber favores
somente do Deus da Ressurreição, e ao mesmo tempo que lhes pagava o preço de
Macpela ele esperava d'Ele a terra de Canaã. Os filhos de Hete conheciam bem o
valor do dinheiro "corrente entre mercadores", e Abraão conhecia o valor da cova
de Macpela. Era muito mais valiosa para ele do que era para eles. O valor da terra
era de "quatro centos siclos de prata", para eles, mas para ele era inestimável, como
título de uma herança eterna, a qual, por ser eterna, só podia ser possuída no poder
da ressurreição. A fé conduz a alma ao futuro de Deus; tem os olhos postos nas
coisas como Ele as vê, e avalia-as conforme o valor do Santuário. Portanto, na
compreensão da fé Abraão levantou-se de diante do seu morto e comprou o lugar
de sepultura, o qual mostra significativamente a esperança da ressurreição e uma
herança fundada nela.

CAPÍTULO 24

REBECA, FIGURA DA IGREJA

O Servo (imagem do Espírito Santo) Busca uma Esposa para Isaque


A ligação deste capítulo com os dois que o precedem é digna de nota. No capítulo
22 Isaque é oferecido; no capítulo 23 Sara é posto ao lado; e no capítulo 24 o servo é
enviado em procura de uma noiva para aquele que foi, com efeito, em figura,
recobrado dos mortos. Esta ligação coincide de uma maneira notável com a ordem
dos acontecimentos referentes à chamada da Igreja. A questão de esta coincidência
ser de origem divina pode talvez levantar-se na mente de alguns; mas deve, pelo
menos, ser considerada como digna de observação.

O Chamado da Igreja
Quando nos voltamos para o Novo Testamento os grandes acontecimentos que
chamam a nossa atenção são, em primeiro lugar, a rejeição e morte de Cristo; em
segundo lugar, Israel é posto de parte; e, por último, dá-se a chamada da Igreja para
ocupar a elevada posição de noiva do Cordeiro.
Ora tudo isto corresponde exatamente com este e os dois capítulos precedentes. A
morte de Cristo necessitava ser um fato consumado, antes que a Igreja,
propriamente dita, pudesse ser chamada. "A parede de separação" que estava no
meio tinha que ser derrubada (Ef 2:14) antes que "o novo homem" pudesse ser
criado. E bom compreendermos isto para podermos conhecer o lugar que a Igreja
ocupa nos caminhos de Deus. Enquanto a dispensação judaica durasse havia a mais
estrita separação entre judeus e gentios, e por isso a ideia de ambos serem unidos
num novo homem estava longe da ideia de um judeu. Os judeus consideravam-se a
si próprios numa posição de inteira superioridade à que tinham os gentios, e
consideravam-nos completamente impuros, e com os quais não era lícito
juntarem-se (At 10:28).
Se Israel tivesse andado com Deus segundo a verdade do parentesco para o qual Ele
graciosamente os havia trazido, teriam continuado no seu lugar peculiar de
separação e superioridade; mas eles não fizeram isto; e, portanto, quando tinham
enchido a medida da sua iniquidade, crucificando o Senhor da vida e glória, e
rejeitando o testemunho do Espírito Santo, vemos como Paulo foi levantado para
ser ministro de uma nova coisa, a qual era retida nos desígnios de Deus, ao mesmo
tempo que o testemunho a Israel continuava. "Por esta causa, eu, Paulo, sou o
prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios; se é que tendes ouvido a dispensação
da graça de Deus, que para convosco me foi dada: como me foi este mistério
manifestado..., o qual, noutros séculos, não foi manifestado aos filhos dos homens,
como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas"
(profetas de Novo Testamento); "a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um
mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo evangelho" (Ef 3:1-6).
Isto é conclusivo. O mistério da Igreja, composta de judeus e gentios, batizada pelo
Espírito para um corpo, unida à Cabeça gloriosa no céu, nunca havia sido revelado
até aos dias de Paulo. O apóstolo continua a dizer acerca deste mistério, "do qual
fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado segundo a operação
do seu poder" (versículo 7). Os apóstolos e profetas do Novo Testamento
formaram, com efeito, o primeiro lanço deste edifício glorioso (vede Ef 2:20).
Sendo isto assim, segue-se, como consequência, que o edifício não podia ter sido
começado antes. Se o edifício tivesse existido desde os dias de Abel, o apóstolo teria
dito, "revelado aos santos do Velho Testamento". Porém ele não disse isso, e
portanto nós concluímos que, seja qual for a posição atribuída aos santos do Velho
Testamento, eles não podem possivelmente pertencer ao corpo que não tinha
existência, salvo nos propósitos de Deus, até à morte e ressurreição de Cristo, e a
descida subsequente do Espírito Santo. Salvos eles estavam, bendito seja Deus —
salvos pelo sangue de Cristo e destinados a gozar a glória celestial com a Igreja;
porém eles não podiam fazer parte daquilo que não existiu até séculos depois do
seu tempo.
Era fácil entrarmos numa maior discussão acerca desta verdade importante, se
fosse este o lugar para o fazer; porém, quero continuar com o estudo do nosso
capítulo, depois de ter apenas tocado numa questão de grande interesse, por ser
sugerida pela posição que ocupa o capítulo 24 de Gênesis.
Pode perguntar-se se devemos encarar esta parte interessante da Escritura Sagrada
como figura da chamada da Igreja pelo Espírito Santo. Quanto a mim, sinto-me
feliz por a tratar apenas como, uma ilustração dessa gloriosa obra. Não podemos
supor que o Espírito de Deus ocupasse um capítulo todo simplesmente com os
pormenores de uma família, se essa família não fosse uma exemplificação de
alguma grande verdade.
"Porque tudo o que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito, para que, pela
paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança" (Rm 15:4). Isto é
enfático. Portanto, o que devemos aprender com este capítulo? Creio que nos dá
uma linda ilustração ou símbolo do grande mistério da Igreja. E importante vermos
que, ao mesmo tempo que não há revelação direta deste mistério no Velho
Testamento, há, todavia, cenas e circunstâncias as quais o manifestam de uma
maneira notável. Como, por exemplo, este capítulo. Como já foi observado, tendo
o filho sido oferecido, em figura, e recobrado de entre os mortos, e o tronco do qual
havia saído este filho paternal posto de parte, Sara, o mensageiro é enviado pelo pai
para procurar uma noiva para o filho.
Uma Esposa para o Filho
Para a boa compreensão de todo o capítulo, devemos considerar os seguintes
pontos: 1. —o pacto,- 2. —o testemunho; 3-—os resultados. É encantador
notarmos como a chamada e exaltação de Rebeca foram fundadas sobre o pacto
entre Abraão e o seu servo. Ela não sabia nada a esse respeito, embora fosse, nos
desígnios de Deus, o objetivo de tudo isso. Assim é com a Igreja de Deus como um
todo, e cada parte constituinte: "... no teu livro todas estas coisas foram escritas, as
quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia" (SI
139:16). "Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou
com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, como também
nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em caridade" (Ef 1:3, 4). "Porque os que dantes
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que Ele seja o primogênito de entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a
esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou, e aos que
justificou, a esses também glorificou" (Rm 8:29-30).
Estas passagens estão todas de harmonia com o assunto que passamos
imediatamente a considerar. A chamada, a justificação, e a glória da Igreja são
fundadas no propósito eterno de Deus — a Sua Palavra e juramento retificados
pela morte, ressurreição e exaltação de Seu Filho. Muito antes, antes do raiar do
tempo, nos profundos recessos da mente eterna de Deus, acha-se este maravilhoso
propósito a respeito da Igreja, o qual não pode, de nenhum modo, ser separado do
pensamento divino quanto à glória do Filho. O juramento entre Abraão e o servo
tinha como seu objetivo a procura de uma noiva para o filho. Foi o desejo do pai
acerca do filho que levou a toda a dignidade posterior de Rebeca.
E agradável vermos isto. Agradável ver como a segurança e bênção da Igreja estão
inseparavelmente ligadas com Cristo e a Sua glória: "Porque o varão não provém da
mulher, mas a mulher, do varão. Porque também o varão não foi criado por causa
da mulher, mas a mulher, por causa do varão" (1 Co 11:8-9). O mesmo acontece
com a parábola da ceia: "O reino dos céus é semelhante a um certo rei que celebrou
as bodas de seu filho" (Mt 22:2). O FILHO é o grande objeto de todos os desígnios
de Deus: e se alguém é trazido para a bênção, ou glória, ou dignidade, só o pode ser
por ligação com Ele. O direito a estas coisas, e até mesmo à própria vida, foi
perdido pelo pecado; porém Cristo cumpriu a pena do pecado; Ele
responsabilizou-Se por tudo a favor do Seu corpo, a Igreja: foi pregado na cruz
como seu substituto, levou os seus pecados no Seu corpo sobre a cruz, e baixou à
sepultura sob o peso deles. Por isso nada pode ser mais completo do que a
libertação da Igreja de tudo que era contra ela. Ela é vivificada da sepultura de
Cristo, onde todos os seus pecados foram deixados. A vida que ela tem é uma vida
tomada do outro lado da morte, depois de todas as exigências possíveis terem sido
satisfeitas. Por isso, esta vida é ligada e fundada sobre a justiça divina, tanto mais
que o direito de Cristo à vida é baseado sobre o fato de ter esgotado inteiramente o
poder da morte; e Ele é a vida da Igreja. Desta maneira a Igreja goza de vida divina;
ela encontra-se em justiça divina; e a esperança que a anima é a esperança de
justiça (vede, entre outras, as passagens seguintes, Jo 3:16,36; 5:39,40;
6:27,40,47,68; 11:25;17:2; Rm 5:21;6:23; 1 Tm 1:16; 1 Jo 2:25; 5:20; Judas 21; Ef 2:1
a 6,14,15; Cl 1:12-22;2:10-15; Rm l:17;3:21-26;4:5,23-25; 2 Co 5:21; Gl 5:5).

A Igreja, o Complemento de Cristo


Estas passagens estabelecem plenamente os três pontos seguintes: a vida, a justiça e
a esperança da Igreja, todos os quais emanam do fato de ela ser um com Aquele que
ressuscitou de entre os mortos. Ora nada pode dar tanta segurança ao coração
como a convicção que a existência da Igreja é essencial para a glória de Cristo: "... a
mulher é a glória do varão (1 Co 11:7). Outro tanto, a Igreja é chamada "a plenitude
daquele que cumpre tudo em todos" (Ef 1:23). Esta última expressão é notável. A
palavra traduzida "plenitude" quer dizer o complemento, aquilo que, sendo
acrescentado a alguma coisa mais, faz um todo. E assim que Cristo, a Cabeça, e a
Igreja, o corpo, formam "um novo homem" (Ef 2:15). Encarando o assunto sob este
ponto de vista não é de admirar que a Igreja tivesse sido o objeto dos pensamentos
eternos de Deus. Quando a contemplamos como o corpo, a noiva, a companheira, a
outra metade do Seu Filho unigênito, vemos que houve, pela graça, uma razão
maravilhosa para Deus ter assim pensado nela antes da fundação do mundo.
Rebeca era necessária para Isaque, e, portanto, ela era o assunto de conselho
secreto, enquanto estava ainda em absoluta ignorância quanto ao seu destino. Todo
o pensamento de Abraão era acerca de Isaque. "Põe agora a tua mão debaixo da
minha coxa para que eu te faça jurar pelo SENHOR, Deus dos céus e Deus da terra,
que não tomarás para meu filho mulher das filhas dos cananeus, no meio dos quais
habito." Aqui vemos que o ponto importante era: mulher para meu filho. "Não é
bom que o homem esteja só." Isto descobre uma profunda e bem-aventurada vista
da Igreja. Nos desígnios de Deus ela é necessária para Cristo; e na obra consumada
de Cristo foi feita provisão divina para a sua chamada à existência. A ocupação com
esta verdade de lado a questão de saber se Deus pode salvar pobres pecadores; Deus
quer "fazer as bodas de Seu Filho", e a Igreja é a noiva escolhida — ela é o objeto do
propósito do Pai, o objeto do amor do Filho e do testemunho do Espírito Santo. Ela
vai ser participante de toda a dignidade e glória do Filho, assim como é
participante de todo esse amor de que Ele tem sido o objeto eterno. Escutai as Suas
Palavras: "E Eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós
somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para
que o mundo conheça que tu me enviaste a mim e que tens amado a eles como me
tens amado a mim" (Jo 17:22-23).
Isto resolve toda a questão. As palavras que acabo de reproduzir dão-nos os
pensamentos do coração de Cristo a respeito da Igreja. Ela está destinada a ser
como Ele é, e não somente isto, mas ela é-o agora; como o apóstolo João nos diz:
"Nisto é perfeita a caridade para conosco, para que no dia do juízo tenhamos
confiança; porque, qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo 4:17). Isto dá
plena confiança à alma. "... no que é verdadeiro estamos, isto é, em seu filho Jesus
Cristo" (1 Jo 5:20). Não existe aqui fundamento para a incerteza. Tudo está seguro
para a noiva no Noivo. Tudo que pertencia a Isaque ficou sendo de Rebeca, porque
Isaque era dela; e do mesmo modo tudo que é de Cristo é facultado à Igreja: "...
tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a
morte, seja o presente, seja o futuro, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e Cristo, de
Deus" (1 Co 3:21-23).
Cristo é Cabeça da Igreja sobre todas as coisas (Ef 1:22). Será Seu gozo, em toda a
eternidade, exibir a Igreja na glória e beleza com que Ele a dotou, pois a sua glória e
beleza serão apenas o Seu reflexo. Os anjos e os principados verão na Igreja a
manifestação maravilhosa da sabedoria, do poder, e da graça de Deus em Cristo.

O Testemunho do Espírito Santo


Mas consideremos agora o segundo ponto, a saber, o testemunho. O servo de
Abraão levou consigo um grande testemunho: "Então, disse: Eu sou o servo de
Abraão. O SENHOR abençoou muito o meu senhor, de maneira que foi
engrandecido, e deu-lhe ovelhas e vacas, e prata e ouro, e servos e servas, e
camelos e jumentos. E Sara, a mulher do meu senhor, gerou um filho a meu senhor
depois da sua velhice; e ele deu-lhe tudo quanto tem" (versículos 34 a 36). O servo
revela o pai e o filho. Tal é o seu testemunho: fala da abundância de meios do pai, e
de o filho ter sido dotado com todos estes bens em virtude de ser "o unigênito" e
objeto do amor do pai. Com este testemunho ele procura conseguir uma noiva para
o filho.
Tudo isto, desnecessário se torna acentuá-lo, é elucidativo do testemunho com que
o Espírito Santo foi enviado do céu no dia de Pentecostes. "Mas, quando vier o
Consolador, que Eu da parte do Pai vos hei-de enviar, aquele Espírito da verdade,
que procede do Pai, testificará de mim" (Jo 15:26). E "Mas, quando vier aquele
Espírito da verdade, ele vos guiará em toda a verdade, porque não falará de si
mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que há-de vir. Ele me
glorificará, porque há-de receber do que é meu, e vo-lo há-de anunciar. Tudo
quanto o Pai tem é meu; por isso, vos disse que há-de receber do que é meu e vo-lo
há-de anunciar" (Jo 16:13-15). A coincidência destas palavras com o testemunho
do servo de Abraão é instrutiva e interessante. Foi falando de Isaque que o servo
procurou atrair o coração de Rebeca, e é, como sabemos, falando de Jesus que o
Espírito Santo procura afastar os pobres pecadores do mundo de pecado e loucura
para a bem-aventurada e santa unidade do corpo de Cristo.
"Ele... há-de receber do que é meu, e vo-lo há-de anunciar." O Espírito de Deus
nunca guiará alguém a olhar para si ou para o seu trabalho, mas só e sempre para
Cristo. Por isso, quanto mais espiritual se é, mais se estará ocupado com Cristo.
Alguns consideram uma prova de espiritualidade estarem sempre ocupados com os
seus corações, e ocupando-se com o que neles encontram, embora isso seja a obra
do Espírito. Mas isto é um grande erro. Longe de ser uma prova de espiritualidade,
é uma prova do contrário, pois está dito expressamente do Espírito Santo que "Ele
há-de receber do que é meu, e vo-lo há-de anunciar". Portanto, sempre que
alguém está olhando no íntimo e edificando sobre a evidência da operação do
Espírito nele, pode estar certo de que não é guiado pelo Espírito de Deus nisso. E
apegando-se a Cristo que o Espírito atrai almas a Deus. Isto é muito importante. O
conhecimento de Cristo é vida eterna; e é a revelação que o Pai faz de Cristo, por
intermédio do Espírito Santo, que constitui a base da Igreja. Quando Pedro
confessou Cristo como o Filho do Deus vivo, a resposta de Cristo foi: "Bem-
-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou,
mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre
esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra
ela" (Mt 16:17-18).
Que pedra? Pedro? Longe disso. "Esta pedra" quer dizer simplesmente a revelação
do Pai acerca de Cristo, como o Filho do Deus vivo — o único meio mediante o
qual alguém é agregado à Assembleia de Cristo. Ora isto abre-nos o verdadeiro
caráter do evangelho. E uma revelação por excelência — uma revelação não
apenas de uma doutrina, mas de uma Pessoa — a Pessoa do Filho. Esta revelação,
sendo recebida pela fé, atrai o coração para Cristo, e torna-se a origem de vida e
poder — o terreno de confraternidade; o poder de comunhão. "Quando aprouve a
Deus... revelar seu Filho em mim" (G1 1:15-16). Aqui temos o verdadeiro princípio
da "pedra", a saber, Deus revelando o Seu Filho. É desta maneira que a
superestrutura é levantada; e repousa sobre este fundamento sólido, segundo o
propósito eterno de Deus.

O Servo Fala de Isaque


É portanto especialmente instrutivo encontrar neste capítulo 24 de Gênesis uma
tão notável e encantadora figura da missão e do testemunho especial do Espírito
Santo. O servo de Abraão, buscando uma noiva para Isaque, mostra toda a
dignidade e riqueza com que o pai o havia dotado; o amor de que ele era alvo; e, em
suma, tudo que era calculado para enternecer o coração e afastá-lo das coisas
temporais. Ele mostrou a Rebeca um objetivo à distância, e pôs diante dela a
bem-aventurança de ser tornada em um com aquele ente amado e altamente
favorecido. Tudo que pertencia a Isaque viria a pertencer também a Rebeca,
quando ela se tornasse parte dele. Este foi o seu testemunho. Este é, também, o
testemunho do Espírito Santo. Ele fala de Cristo, da glória de Cristo, da beleza de
Cristo, da plenitude de Cristo, da graça de Cristo, das "riquezas incompreensíveis
de Cristo", da dignidade da Sua Pessoa e da perfeição da Sua obra.
Além disso Ele foca a bem-aventurança espantosa de sermos um com Cristo,
"membros do Seu corpo, da Sua carne, e dos Seus ossos". Tal é o testemunho do
Espírito; e nele temos a pedra de toque por meio da qual podemos provar todas as
espécies de ensino e pregação.
O ensino mais espiritual será sempre caracterizado por completa e constante
apresentação de Cristo: Ele será sempre o motivo de tal ensino. O Espírito não
pode fixar a atenção em coisa alguma senão Jesus. Deleita-Se em falar d'Ele.
Compraz-Se em mostrar os Seus atrativos e as Suas perfeições. Por isso, quando
alguém fala do poder do Espírito de Deus haverá sempre mais de Cristo do que
qualquer outra coisa no seu ministério. Numa tal pregação haverá pouco lugar para
a lógica e a razão. Estas coisas podem ser muito boas quando alguém deseja
mostrar-se, porém o único objetivo do Espírito — notem bem todos os que
exercem o ministério — será sempre o de revelar Cristo.

Rebeca Vai ao Encontro do Esposo


Pensemos, agora, por último, nos resultados de tudo isto. A verdade e a aplicação
prática da verdade são duas coisas muito diferentes. Uma coisa é falar das glórias da
Igreja, e outra inteiramente diferente ser-se praticamente influenciado por essas
glórias. No caso de Rebeca o efeito foi notável e decisivo. O testemunho do servo
de Abraão ecoou aos seus ouvidos e penetrou fundo no seu coração e desligou
inteiramente as afeições de seu coração das coisas que a rodeavam. Estava pronta a
deixar tudo e abalar, a fim de conhecer tudo que lhe havia sido contado. Era
normalmente impossível que ela pudesse ser o alvo de um tão elevado destino e
continuasse todavia no meio das circunstâncias da natureza. Se aquilo que lhe era
dito quanto ao futuro era verdadeiro, prender-se com o presente seria a pior de
todas as loucuras. Se a esperança de ser a esposa de Isaque, co-herdeira com ele de
toda a sua dignidade e glória, era uma realidade, continuar a apascentar as ovelhas
de Labão equivaleria a desprezar tudo quanto Deus, em graça, havia posto diante
de si.
Mas não, as perspectivas eram brilhantes demais para serem desprezadas. Verdade
é que ela não havia ainda visto Isaque, nem a herança, mas acreditou no
testemunho dado a seu respeito, e recebeu, com efeito, o penhor desse
testemunho; e estas duas coisas eram suficientes para o seu coração; e por isso ela
levantou-se sem hesitação e mostrou o seu desembaraço em partir na sua decisão
memorável: “irei”. Ela estava inteiramente pronta a fazer uma jornada
desconhecida na companhia de um que lhe havia falado de um objetivo distante e
de glória ligada com ele, à qual ela estava prestes a ser elevada. "Irei", disse ela, e,
esquecendo as coisas que atrás ficavam, e avançando para as que estavam diante
dela, prosseguiu... pelo prêmio da vocação de Deus (Fp 3:13-14). Exemplificação
bela e tocante esta da Igreja sob a condução do Espírito Santo de viagem para ir ao
encontro do Noivo celestial. Isto é o que a Igreja deveria ser; mas, infelizmente,
existe nisto fracasso triste. Há muito pouco daquela alegria santa em pôr de lado
todo o peso e embaraço no poder da comunhão com o Guia Santo e Companheiro
do nosso caminho, cuja missão e deleite é receber do que é de trazer-nos saber,
precisamente como o servo de Abraão recebeu as coisas de Isaque e deu-as a
Rebeca. Sem dúvida, ele achou gozo em lhe dar mais pormenores acerca do filho
de seu senhor, à medida que avançavam para o cumprimento de toda a sua alegria
e glória. E assim, pelo menos, com o nosso guia e companheiro celestial. Ele
deleita-Se em falar de Jesus, "Ele... há de receber do que é meu, e vo-lo há de
anunciar" e, "vos anunciará o que há de vir" (Jo 16:13-14).
E é isto precisamente que nós necessitamos, este ministério do Espírito de Deus,
mostrando Cristo às nossas almas, produzindo em nós desejo ardente de O ver
como Ele é, e sermos semelhantes a Ele para sempre. Nada senão isto jamais
desligará os nossos corações da terra e da natureza. O quê, a não ser a esperança de
se ligar a Isaque, poderia ter levado Rebeca a dizer "irei", quando o seu irmão e sua
mãe disseram "fique a donzela conosco alguns dias, ou pelo menos dez dias?" Assim
é conosco: nada, senão a esperança de vermos Jesus como Ele é, e de sermos
semelhante a Ele, nos poderá habilitar ou levar a purificarmo-nos a nós próprios,
assim como Ele é puro (1 Jo 3:3).

CAPÍTULO 25

O FIM DA VIDA DE ABRAÃO JACÓ E ESAÚ

O Segundo Casamento de Abraão


Este capítulo abre com o segundo casamento de Abraão; um acontecimento de
interesse para a mente espiritual, quando visto em ligação com o que temos
considerado no capítulo precedente. A luz das Escrituras proféticas do Novo
Testamento compreendemos que, depois da consumação e do arrebatamento da
noiva eleita de Cristo, a semente de Abraão será outra vez posta em destaque.
Deste modo, depois do casamento de Isaque, o Espírito Santo continua a história da
posteridade de Abraão, do seu novo casamento, juntamente com outros pontos da
sua história, e o da sua posteridade, segundo a carne. Não faço nenhuma
interpretação especial de tudo isto; digo apenas que não deixa de ter o seu
interesse.
Já fizemos referência à observação de outrem quanto ao livro do Gênesis, isto é,
que está "cheio do germe de coisas"; à medida que vamos folheando as suas páginas
vemos como abundam em princípios fundamentais da verdade, os quais são
primorosamente realizados no Novo Testamento. Verdade é que no Gênesis estes
princípios são apresentados figurativamente e no Novo Testamento didaticamente;
todavia, a ilustração é profundamente interessante, e eminentemente calculada
para apresentar a verdade com poder para a alma.

Esaú Menospreza o Direito da Primogenitura


No fim deste capítulo são-nos apresentados princípios de natureza muito solene e
prática. O caráter e as ações de Jacó aparecerão, se o Senhor permitir, de uma
maneira mais clara perante nós; contudo, desejo apenas focar, de passagem, a
conduta de Esaú, quanto ao direito de primogenitura e tudo que com ele se acha
ligado. O coração natural não dá valor às coisas de Deus. Para ele as promessas de
Deus são coisas vagas, sem valor e impotentes, simplesmente porque não conhece
Deus. E por isso que as coisas temporais exercem tanto peso e influência na opinião
do homem. O homem dá apreço a tudo que pode ver, porque é governado por
vista, e não por fé: o presente é tudo para si; o futuro apenas uma coisa sem
influência — um caso da mais simples incerteza.
Assim aconteceu com Esaú. Escutai o seu argumento falaz: "Eis que estou a ponto
de morrer, e para que me servirá logo a primogenitura?". Que maneira estranha de
raciocinar! O presente está escorregando debaixo dos meus pés, portanto eu
desprezo e prescindo inteiramente do futuro! O tempo está-se desvanecendo da
minha vista; portanto abandono todo o interesse pela eternidade! Assim Esaú
desprezou "o seu direito de primogenitura" (Hb 12:16). Assim Israel desprezou "a
terra aprazível" (SI 106:24); assim eles desprezaram Cristo (Zc 11:13). E foi assim
que os que foram convidados para as bodas desprezam o convite (Mt 22:5). O
homem não tem lugar no seu coração para as coisas de Deus. O presente é tudo
para ele. Um prato de caldo é melhor do que o direito a Canaã. Por isso, a
mesmíssima razão que levou Esaú a menosprezar a primogenitura era a mesma
porque ele deveria tê-la agarrado com mais força. Quanto mais vejo a vaidade
temporária do presente, tanto mais me agarrarei ao futuro de Deus. E assim
segundo o juízo da fé. "Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que pessoas vos
convém ser em santo trato e piedade, aguardando a apressando- vos para a vinda
do Dia de Deus, em que os céus, em fogo, se desfarão, e os elementos, ardendo, se
fundirão? Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra,
em que habita a justiça" (2 Pe 3:11-13).
Estes são os pensamentos de Deus, e, portanto, os pensamentos da fé. As coisas que
se veem perecerão. Devemos nós, então, desprezar as invisíveis? De modo
nenhum. O presente passa rapidamente. Qual é logo o nosso recurso? "Aguardando
e apressando-vos para a vinda do Dia de Deus". Este é o juízo da mente restaurada;
e todo e qualquer outro juízo é apenas "profano, como Esaú, que por um manjar
vendeu o seu direito de primogenitura" (Hb 12:16). Que o Senhor nos mantenha
julgando as coisas como Ele as julga. Isto só pode ser feito pela fé.

CAPÍTULO 26

ISAQUE EM GERAR E EM BERSEBA


A Fome e as Suas Consequências
O primeiro versículo deste capítulo está ligado ao capítulo 12. "E havia fome na
terra, além da primeira fome, que foi nos dias de Abraão." As provações que o povo
de Deus encontra na sua carreira são muito semelhantes; e têm sempre por fim
mostrar até que ponto o coração tem achado o seu tudo em Deus. É uma coisa
difícil — uma coisa rara — andar em tão doce comunhão com Deus que, como
consequência, se seja de todo independente das coisas e pessoas. Os egípcios e os
homens de Gerar que habitam à nossa direita e à nossa esquerda representam
grandes tentações, quer seja para nos afastarem do caminho reto, quer para nos
fazerem paralisar na nossa verdadeira posição de servos do Deus vivo e verdadeiro.
"Por isso foi-se Isaque a Abimeleque, rei dos filisteus, em Gerar".
Existe uma diferença notável entre o Egito e Gerar. O Egito é a expressão do
mundo nos seus recursos naturais, e sua independência de Deus. "O meu rio é
meu" (Ez 29:3), é a linguagem de um egípcio que não conhecia a Deus, e não
pensou em esperar n'Ele em coisa alguma. O Egito era, geograficamente, muito
mais longe de Canaã do que Gerar; e, moralmente, fala da condição da alma longe
de Deus. Gerar é mencionada no capítulo 10 da seguinte maneira: "E foi o termo
dos cananeus desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza; indo para Sodoma, e
Gomorra, e Afama, e Zeboim, até Lasa" (versículo 19). Sabemos que "desde Gerar a
Jerusalém era caminho de três dias". Gerar era, portanto, comparada com o Egito,
uma posição avançada; ainda assim, estava ao alcance de influências perigosas.
Abraão encontrou lá dificuldades, e do mesmo modo Isaque, como vemos neste
capítulo, e, também, da mesma forma. Abraão negou a sua mulher, e o mesmo faz
Isaque. Isto é muito grave. Ver o pai e o filho caírem no mesmo pecado, no mesmo
lugar, mostra-nos, claramente, que a influência desse lugar não era boa.
Não tivesse Isaque ido a Abimeleque, rei de Gerar, e não teria tido necessidade de
negar sua mulher; mas a verdade é que o mais leve descuido quanto à verdadeira
norma de comportamento aumenta a fraqueza espiritual. Foi quando Pedro se
aquecia à fogueira do sumo-sacerdote que negou o seu Mestre. E evidente que
Isaque não se sentia feliz em Gerar. E verdade que o Senhor diz-lhe: "Peregrina
nesta terra"; mas quantas vezes o Senhor dá instruções ao Seu povo moralmente
convenientes para as condições em que Ele sabe que eles se encontram, e que são
calculadas também para os despertar a um verdadeiro sentido das condições? Ele
deu indicações a Moisés em Números 13 para mandar homens espiarem a terra de
Canaã; mas se eles não se encontrassem numa situação moral baixa tal passo nunca
teria sido necessário.
Sabemos bem que a fé não necessita de "espiar" aquilo que as promessas de Deus
nos asseguram. Além disso, Deus deu instruções a Moisés para escolher setenta
anciãos, para o ajudarem no trabalho; todavia, se Moisés tivesse entendido
plenamente a dignidade e bem-aventurança da sua posição, nunca teria
necessitado dessas instruções. Do mesmo modo aconteceu com a eleição de um rei
em 1 Samuel, capítulo 8. Os israelitas não precisavam de um rei. Por isso, devemos
ter sempre em consideração as condições de um indivíduo ou de um povo a quem
são dadas instruções antes de podermos formar um juízo correto quanto a essas
instruções.

Em Gerar: uma Posição Errada


Mas poderá dizer-se, se a posição de Isaque em Gerar era má, como é que nós
lemos: "E semeou Isaque naquela mesma terra e colheu, naquele mesmo ano, cem
medidas, porque o SENHOR O abençoava"?- A minha resposta é que nunca
podemos julgar a situação de uma pessoa como própria pelas suas circunstâncias
prósperas. Já tivemos ocasião de acentuar que há uma grande diferença entre a
presença do Senhor e a Sua bênção. Muitos têm a bênção do Senhor sem a Sua
presença; e além disso, o coração é propenso a confundir uma coisa com a outra —
propenso a confundir a bênção com a presença, ou, pelo menos, a argumentar que
uma coisa deve acompanhar a outra. Mas isto é um grande erro. Quantas vezes não
vemos nós pessoas rodeadas de bênçãos de Deus que nem têm nem desejam a Sua
presença? É muito importante vermos isto. Um homem pode engrandecer- se até
se tornar mui grande, e ter possessão de ovelhas, e possessão de vacas e muita gente
de serviço (versículo 14), e ao mesmo tempo não ter o gozo pleno e livre da
presença do Senhor consigo. Rebanhos e manadas não são do Senhor. São coisas
devido às quais os filisteus podiam invejar Isaque, ao passo que eles nunca o teriam
invejado por causa da presença do Senhor. Ele poderia gozar a mais doce e mais
rica comunhão com Deus, e os filisteus nada entenderem a esse respeito,
simplesmente porque não tinham coração para compreender ou apreciar uma tal
realidade. Eles podiam apreciar ovelhas, vacas, servos, e poços de água; porém não
podiam apreciar a presença divina.

Em Berseba: a Restauração
Todavia, Isaque, por fim, deixa os filisteus e dirige-se a Berseba. "E apareceu-lhe o
SENHOR naquela mesma noite e disse: Eu sou o Deus de Abraão, teu pai. Não
temas, porque eu sou contigo, e abençoar-te-ei" (versículo 24). Note-se que não se
trata apenas da bênção de Deus, mas do Próprio Senhor. Por quê? Porque Isaque
havia deixado os filisteus com toda a sua inveja, contenda e disputas e ido para
Berseba. Aqui o Senhor pôde mostrar-Se ao Seu servo. A bênção da Sua mão liberal
podia segui-lo durante a sua peregrinação em Gerar; mas a Sua presença não podia
ser gozada ali. Para podermos gozar da presença de Deus devemos estar onde Ele
está, e certamente o Senhor não pode ser encontrado entre as contendas e disputas
de um mundo ímpio; por isso, quanto mais cedo um filho de Deus sair de um tal
estado de coisas, tanto melhor. Isaque assim o verificou. No seu espírito não havia
paz; e incontestavelmente ele não servia, de modo nenhum, aos filisteus
peregrinando entre eles. É um erro muito vulgar supor-se que servimos os homens
do mundo misturando-nos com eles nos seus caminhos e andando na sua
companhia. O único meio de os servirmos é permanecermos à parte deles no poder
da comunhão com Deus, e assim mostrar- lhes o padrão de um caminho mais
excelente.
Note-se o progresso da alma de Isaque e o efeito moral da sua carreira: "... subiu
dali..., e apareceu-lhe o SENHOR..., e edificou ali um altar, e invocou o nome do
SENHOR, e armou ali a sua tenda; e os servos de Isaque cavaram ali um poço".
Aqui temos progresso muito abençoado. Desde o momento em que deu um passo
no caminho próprio, ele foi de força em força. Entrou no gozo da presença do
Senhor — provou a doçura da verdadeira adoração e mostrou o caráter de um
estrangeiro e peregrino e achou refrigério — um poço que não lhe foi disputado,
porque os filisteus não estavam ali.

Um Resultado Feliz para Outros


Estas coisas representavam resultados abençoados quanto ao próprio Isaque.
Vejamos agora o efeito produzido noutros. "E Abimeleque veio a ele de Gerar, com
Ausate seu amigo, e Ficol, príncipe do seu exército. E disse-lhes Isaque: Por que
viestes a mim, pois que vós me aborreceis e me enviastes de vós? E eles disseram:
Havemos visto, na verdade, que o SENHOR é contigo, pelo que dissemos: Haja,
agora, juramento entre nós", etc. O verdadeiro modo de atuar nos corações e nas
consciências dos homens do mundo é permanecer em separação decidida deles,
tratando com eles, ao mesmo tempo, em perfeita graça. Enquanto Isaque
continuou em Gerar não houve nada senão contendas e disputas. Ceifou dores, e
não produziu efeito algum sobre aqueles que o rodeavam. Em contrapartida, logo
que os deixou os seus corações foram despertados e seguiram-no e desejaram fazer
um conserto com ele. Tudo isto é muito instrutivo. O princípio aqui apresentado
pode ser exemplificado constantemente na história do povo de Deus. O primeiro
ponto com o coração deve ser sempre ver que na nossa posição estamos bem com
Deus, não apenas bem em posição, mas na condição moral da alma. Quando
estamos bem com Deus, podemos esperar atuar eficazmente com os homens. Logo
que Isaque foi para Berseba, e tomou o seu lugar de adorador, a sua própria alma foi
aliviada e ele foi usado por Deus para atuar sobre outros. Enquanto nos
mantivermos numa posição errada, estamo-nos defraudando a nós próprios de
bênção, e fracassando totalmente no nosso testemunho e serviço.

Nem tão-pouco devemos nós, quando estamos numa posição errada, perguntar,
como tantas vezes se pergunta: "Onde se pode encontrar alguma coisa melhor? A
ordem de Deus é, "Cessai de fazer mal!" e quando agimos sobre este santo preceito
é-nos dado outro, a saber: "aprendei a fazer o bem". Se esperarmos aprender a fazer
o bem, antes de deixarmos de fazer o mal, estamos completamente enganados.
"Desperta tu que dormes e levanta-te de entre os mortos, e Cristo te esclarecerá"
(Ef 5:14).
Prezado leitor, se estás fazendo alguma coisa que sabes ser má, ou se estás
identificado, de qualquer modo, com aquilo que entendes ser contrário à Bíblia,
escuta a Palavra do Senhor: "Cessai de fazer mal" (Is 1:16). Podes estar certo que se
obedeceres a esta palavra não mais terás dúvidas quanto à carreira que deves
seguir. E a incredulidade que nos leva a dizer, "não posso deixar o mal antes de
encontrar alguma coisa melhor". Que o Senhor nos dê fé simples e um espírito
dócil.

CAPÍTULOS 27 A 35

PRINCIPAIS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA DE JACÓ

Os capítulos 27 a 35 apresentam-nos a história de Jacó — pelo menos os


acontecimentos principais dessa história. O Espírito de Deus põe aqui diante de
nós, em primeiro lugar, a instrução mais profunda quanto ao propósito de Deus de
graça infinita; e, em segundo lugar, mostra-nos a completa nulidade da depravação
da natureza humana.
Passei por alto, de propósito, uma passagem no capítulo 25 com o fim de a tomar
aqui, de maneira que pudéssemos ter a verdade a respeito de Jacó perante nós.
"E Isaque orou instantemente ao SENHOR por sua mulher, porquanto era estéril; e
o SENHOR ouviu as suas orações, e Rebeca sua mulher concebeu. E os filhos
lutavam dentro dela; então disse: Se assim é, por que sou eu assim«?- E foi-se a
perguntar ao SENHOR. E O SENHOR lhe disse: Duas nações há no teu ventre, e
dois povos se dividirão das tuas entranhas: um povo será mais forte do que o outro
povo, e o maior servirá ao menor". Em Malaquias 1:2-3 faz-se referência a esta
passagem, pois lemos: "Eu vos amei, diz o SENHOR; mas vós dizeis: Em que nos
amaste?- Não foi Esaú irmão de Jacó? — disse o SENHOR; todavia amei a Jacó e
aborreci a Esaú". Em Romanos 9:11 a 13 faz-se também referência a esta mesma
passagem: "Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal
(para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das
obras, mas por aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O maior servirá o menor.
Como está escrito: Amei Jacó e aborreci Esaú."
Temos assim claramente diante de nós o propósito eterno de Deus segundos
eleição da graça. Esta expressão quer dizer muito.
Afasta todas as pretensões humanas e defende o direito de Deus atuar como quer. E
isto é de grande importância. A criatura humana não pode gozar felicidade até
curvar a sua cabeça perante a graça soberana. E seu dever fazê-lo, porquanto é
pecador, e, como tal, sem direito a atuar ou ditar. O grande valor de posição sobre
este terreno está em que não é mais uma questão do que nós merecemos, mas
simplesmente daquilo que Deus tem prazer em nos dar. O filho pródigo podia falar
em ser servo, mas na realidade ele não merecia o lugar de servo, se tivesse de ser
tomada em conta a questão de mérito; e, portanto, ele teve apenas que aceitar
aquilo que o pai quis dar-lhe — e isso foi o lugar mais elevado, o próprio lugar de
comunhão consigo.
Assim terá de ser sempre. "A graça será eternamente a coroa de toda a obra de
Deus." Felizmente assim é para nós. A medida que avançamos dia a dia, fazendo
novas descobertas de nós próprios, necessitamos de ter os pés sobre o fundamento
sólido da graça de Deus: nada mais nos poderá suster no crescimento do nosso
conhecimento. A ruína é irremediável, e portanto a graça tem de ser infinita; e
infinita ela é, tendo a sua origem em Deus Mesmo, o seu curso em Cristo, e o poder
de aplicação e gozo no Espírito Santo. A Trindade divina é revelada em ligação
com a graça que salva o pobre pecador. A graça reina pela justiça para a vida
eterna, por Jesus Cristo (Rm 5:21). E só na redenção que pode ver-se este reino da
graça. Na criação podemos ver o reino da sabedoria e poder; podemos ver na
providência o reino da bondade e longanimidade de Deus; mas só na redenção
vemos o reino da graça, e isso, também, sobre o princípio da justiça.
Ora, em Jacó temos uma exibição notável do poder da graça divina; pela simples
razão de que vemos um exemplo notável do poder da natureza humana. Vemos
nele a natureza em toda a sua irregularidade e, portanto, vemos a graça em toda a
sua beleza moral e poder. Dos fatos da sua extraordinária história parece que, antes
do seu nascimento, quando do seu nascimento e depois do seu nascimento, a
energia extraordinária da natureza foi notada. Antes do seu nascimento lemos: "Os
filhos lutavam dentro dela." Quando do seu nascimento: "agarrada a sua mão ao
calcanhar de Esaú." E depois do seu nascimento — na verdade, até o ponto
culminante da sua história, no capítulo 32, sem exceção — a sua carreira nada mais
mostra senão os amáveis característicos da natureza; porém, tudo isto serve apenas,
à semelhança de um fundo negro, para dar maior relevo à graça d'Aquele que
condescendeu em chamar-Se a Si Próprio pelo nome particularmente
enternecedor de "Deus de Jacó" — um nome agradavelmente expressivo da graça.

CAPÍTULO 27
ISAQUE AS PORTAS DA ETERNIDADE

O Homem Natural e os Planos de Deus


O capítulo 27 mostra-nos uma figura humilhante de voluptuosidade, engano e
astúcia; e quando se pensa em tais coisas em ligação com o povo de Deus é triste e
doloroso até ao máximo. E contudo quão verdadeiro e fiel é o Espírito Santo! Ele
tem de referir tudo. Não pode apresentar um quadro parcial. Se nos dá uma
história do homem, tem que descrever o homem tal qual ele é, e não como ele não
é.
Assim, se nos apresenta o caráter e os caminhos de Deus, revela-nos Deus como
Ele é. E isto, desnecessário se torna notá-lo, é precisamente o que nós
necessitamos. Nós necessitamos da revelação d'Aquele que é perfeito em
santidade, e não obstante perfeito em graça e misericórdia, que pôde descer à
profundidade da miséria e degradação do homem, tratar com ele nesse estado e
erguê-lo dali à comunhão livre Consigo em toda a realidade do que Ele é. E isto o
que a Escritura nos mostra. Deus sabia o que nós necessitávamos e deu-no-lo,
Bendito seja o Seu nome!
E não se esqueça que, pondo diante de nós, em amor verdadeiro, todos os
característicos do caráter do homem, é simplesmente com o fim de engrandecer as
riquezas da graça divina, e advertir as nossas almas. Não é, de modo nenhum, com
o fim de perpetuar a recordação dos pecados, para sempre, apagados da Sua vista.
Os defeitos, os erros e as falhas de Abraão, Isaque e Jacó, foram perfeitamente
lavados, e eles tomaram o seu lugar entre "os espíritos dos justos aperfeiçoados"
(Hb 12:23). Porém, a sua história permanece nas páginas inspiradas para
demonstração da graça de Deus e aviso do povo de Deus, em todos os tempos; e,
além disso, para podermos ver claramente que não foi com homens perfeitos que
Deus teve de tratar, mas sim com aqueles que eram como nós "sujeitos às mesmas
paixões" (At 14:15); e que Ele suportou neles as mesmas fraquezas, as mesmas
falhas e os mesmos erros que nos afligem cada dia.
Isto é particularmente animador para o coração; e pode pôr- se em contraste com a
maneira como a grande maioria das biografias humanas são escritas; pois que, na
maioria dos casos, encontramos, não a história dos homens, mas a história de seres
isentos de erros e defeitos. Tais histórias têm o efeito de desanimar, em vez de
edificarem aqueles que as leem. São mais propriamente histórias daquilo que os
homens deviam ser do que realmente eles são, e são portanto inúteis para nós —
sim, não apenas inúteis mas nocivas.
Nada pode edificar senão a apresentação de Deus tratando com o homem como
realmente ele é; é isto o que a Palavra de Deus nos mostra. Este capítulo
exemplifica isto claramente. Aqui encontramos o idoso patriarca Isaque às portas
da eternidade, com a terra e a natureza afastando-se rapidamente da sua vista, e no
entanto ocupado com "um guisado saboroso", e prestes a agir em oposição direta ao
desígnio divino abençoando o mais velho em vez do mais novo. Na verdade isto
era a natureza, e a natureza com os seus olhos obscurecidos. Se Esaú havia vendido
o direito da sua primogenitura por um guisado de lentilhas, Isaque estava prestes a
dar a bênção em troca de caça.
Como isto é humilhante!
Porém o conselho de Deus tem que subsistir, e Ele fará tudo o que Lhe apraz. A fé
sabe isto, e, no poder desse conhecimento, pode esperar o tempo de Deus. E isto
que a natureza não pode fazer, mas procura alcançar os seus próprios fins por sua
invenção. Estes são os dois grandes pontos destacados na história de Jacó — o
propósito de Deus, da graça por um lado; e, por outro, a natureza maquinando e
planeando alcançar aquilo que esse propósito teria infalivelmente realizado sem
qualquer conspiração ou plano. Isto simplifica a história de Jacó assombrosamente,
e não só a simplifica como realça também os interesses da alma por ela. Nada há
talvez em que somos lamentavelmente tão deficientes como na graça de
dependência desinteressada e paciente em Deus. De qualquer forma a natureza
estará sempre ativa, e assim, tanto quanto está em si, impedirá o brilho da graça e
do poder divinos. Deus não precisava do auxílio de elementos como a esperteza de
Rebeca e a impostura grosseira de Jacó para conseguir os Seus propósitos. Ele havia
dito: "o maior servirá ao menor". Isto era bastante para a fé, mas não bastante para
a natureza, a qual tem sempre de adotar os seus próprios meios e nada sabe do que
é esperar em Deus.

O Exemplo do Modelo Perfeito


Nada pode ser mais abençoado do que uma posição de dependência própria de
crianças em Deus, e esperar com verdadeiro contentamento pelo Seu tempo. E
verdade que isso inclui provação; porém a mente renovada aprende algumas das
suas lições mais profundas e goza de algumas das suas experiências mais preciosas,
enquanto espera no Senhor; e quanto mais dura for a tentação para nos arrancar
das Suas mãos, tanto maior será a bênção de nos deixarmos ali ficar. E muitíssimo
agradável estarmos inteiramente dependentes d'Aquele que encontra gozo infinito
em nos abençoar. São apenas aqueles que têm experimentado, em alguma medida,
a realidade desta maravilhosa posição que podem apreciá-la. O único que a ocupou
perfeita e continuamente foi o Senhor Jesus Mesmo. Ele esteve sempre dependente
de Deus, e rejeitou inteiramente qualquer proposta do inimigo para ser alguma
coisa mais. A Sua linguagem era: "Em ti confio" (SI 141:8), e outra vez: : "Sobre ti
fui lançado desde a madre"(Sl 22:10).
Por isso, quando foi tentado pelo diabo a fazer um esforço para satisfazer a Sua
fome, a Sua resposta foi: "Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda
a palavra que sai da boca de Deus". Quando tentado para se lançar do pináculo do
templo, a Sua resposta foi: "... está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus".
Quando tentado para tomar posse dos reinos do mundo da mão de outro que não
Deus, e prestar homenagem a outro que não Deus, a Sua resposta foi: "Ao Senhor,
teu Deus, adorarás e só a Ele servirás" (Mt 4:4,7,10). Numa palavra, nada pôde
seduzir o homem perfeito a abandonar o lugar de absoluta dependência de Deus. É
verdade que era propósito de Deus apoiar o Seu Filho; era Seu propósito que Ele
viesse subitamente ao Seu templo; era Seu propósito dar-Lhe os reinos deste
mundo; porém esta era a verdadeira razão por que o Senhor Jesus esperaria
simplesmente e ininterruptamente em Deus o cumprimento dos Seus desígnios, a
Seu próprio tempo e segundo o Seu próprio modo. Ele não tentou realizar os Seus
próprios fins. Entregou-Se inteiramente à disposição de Deus. Só comeria quando
Deus Lhe desse pão; somente entraria no templo quando fosse mandado por Deus;
subiria ao trono quando Deus determinasse. "Assenta-te à minha mão direita, até
que ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés" (SI 110:1).
Esta profunda sujeição do Filho ao Pai é admirável além de toda a expressão.
Embora igual a Deus, Ele tomou, como homem, o lugar de dependência,
deleitando-se sempre na vontade do Pai; dando graças até mesmo quando as coisas
pareciam ser contra Si; fazendo sempre as coisas que agradavam ao Pai; tendo
como principal e invariável fim glorificar o Pai; e por fim, quando tudo estava
cumprido, quando havia consumado perfeitamente a obra que o Pai Lhe havia
dado a fazer, Ele rendeu o Seu espírito nas mãos do Pai, e a Sua carne descansou na
esperança da glória prometida. Por isso o apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo,
pôde dizer: "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em
Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a
Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e achado na forma de homem humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou
soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de
Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e
toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai" (Fp
2:5-11).

Rebeca e Jacó: Falta de Dependência e de Confiança em Deus


Como Jacó conhecia tão pouco, no princípio da sua história, deste bendito
sentimento! Como estava tão pouco preparado para esperar pelo tempo de Deus e o
caminho de Deus! Preferiu antes o seu tempo e o seu método. Considerou que era
muito melhor alcançar a bênção e entrar na posse da herança por meio de toda a
espécie de esperteza e engano em vez de simples dependência e sujeição a Deus,
que por Sua graça o havia eleito para ser o herdeiro das promessas, e que, por Sua
sabedoria e poder onipotente, cumpriria tudo que lhe havia prometido.
Mas, ah! como é bem conhecida a oposição do coração humano a tudo isto! Prefere
tudo a este estado de esperança paciente em Deus. Basta deixar a natureza entregue
ao passatempo para a ver privada de tudo, salvo Deus. Isto fala-nos, numa
linguagem que não deve ser mal interpretada, do verdadeiro caráter da natureza
humana. Não é preciso considerar as cenas de vício e crime, que ferem todo o
sentido moral, para podermos saber o que é a natureza humana.
Não, tudo que é preciso é apenas experimentá-la por um momento no lugar de
dependência e ver como ela se comporta. Nada sabe realmente de Deus, e portanto
não pode confiar n'Ele; e nisto está realmente o segredo de toda a sua miséria e
degradação moral. Desconhece inteiramente o Deus verdadeiro, e por conseguinte
não pode ser nada mais que uma coisa arruinada e inútil. O conhecimento de Deus
é a origem da vida — sim, é em si mesmo vida; e até que o homem tenha vida, o
que é ele? Ou o que pode ele ser?
Ora, em Rebeca e Jacó vemos como a natureza humana toma vantagem da
natureza de Isaque e Esaú. Foi isto efetivamente. Não se contou em absoluto com
Deus. Os olhos de Isaque estavam escurecidos, portanto ele podia ser enganado, e
eles dispuseram-se a fazê-lo, em vez de confiarem em Deus, que teria frustrado o
intento de Jacó abençoar aquele que Deus não abençoaria — um propósito baseado
na natureza, e natureza desagradável, pois Isaque amava a Esaú, não porque era o
seu primogênito, mas porque comia os seus guisados. Como isto é humilhante!

Tremendas Consequências
Podemos estar certos de só acumular dores e aflições sempre que tiramos as nossas
circunstâncias, o nosso destino e a nós próprios das mãos de Deus(1). Aconteceu
assim com Jacó, como teremos ocasião de ver no prosseguimento do estudo.
Alguém disse que "quem considerar a vida de Jacó, depois de ele fraudulentamente
ter obtido a bênção de seu pai, verá que ele gozou de muito pouca felicidade neste
mundo. Seu irmão decidiu matá-lo, para o evitar ele foi obrigado a fugir da casa de
seu pai; seu tio Labão enganou-o, assim como ele havia enganado seu pai, e
tratou-o com grande dureza; depois de vinte e um anos de servidão, ele foi
obrigado a deixá-lo ocultamente, não sem correr o risco de ser reconduzido ao
ponto de partida, ou assassinado por seu irmão irritado; apenas se tinham passado
os seus temores teve que sofrer a baixeza de seu filho Ruben, em profanar a sua
cama; em seguida teve que deplorar a traição e crueldade de Simeão e Levi para
com os Siquémitas; depois teve que sentir a perda da esposa amada; foi depois
enganado por seus filhos e teve que lamentar o suposto fim prematuro de José; e,
para completar tudo, foi obrigado pela fome a ir para o Egito, e ali morreu em terra
estranha. Assim os caminhos da providência são justos, maravilhosos e
instrutivos".
__________
(') Nunca devemos esquecer, em ocasiões de provação, que o que nós precisamos
não é de mudança de circunstâncias, mas de vitória sobre o Eu.

Esta descrição é verdadeira; todavia mostra-nos apenas um lado da vida de Jacó, e


esse é o lado sombrio. Bendito seja Deus, há um lado claro, do mesmo modo, para
Deus tratar com Jacó; e em todos os acontecimentos da sua vida, quando Jacó foi
obrigado a colher os frutos da sua maquinação e perversidade, o Deus de Jacó tirou
bem do mal e fez com que a Sua graça abundasse sobre todo o pecado e loucura do
Seu pobre servo. Veremos isto à medida que vamos procedendo com a sua história.
Quero fazer aqui uma observação acerca de Isaque, Rebeca e Esaú. É interessante
notar, não obstante a demonstração da fraqueza excessiva de Isaque, no princípio
deste capítulo, como ele mantém, pela fé, a dignidade que Deus lhe conferiu.
Abençoa com todo o sentimento de ter sido dotado com o poder de abençoar. Ele
diz,"... abençoei-o: também será bendito... Eis que o tenho posto por senhor sobre
ti, e todos os teus irmãos lhe tenho dado por servos; e de trigo e de mosto o tenho
fortalecido; que te farei, pois, agora a ti, meu filho?" (Cap. 27:33-37)
Isaque fala como quem, pela fé, tem à sua disposição todas as riquezas da terra. Não
se nota falsa humildade, nem desce da posição elevada que ocupa por causa da
manifestação da natureza. E verdade que estava a ponto de cometer um grave erro
— a fazer o que era contrário ao desígnio de Deus; no entanto, ele conhecia Deus, e
tomou o seu lugar de acordo com esse conhecimento dando bênçãos com toda a
dignidade e poder da fé: "... abençoei-o: também será bendito... De trigo e de mosto
o tenho fortalecido."
E atribuição da fé elevar-se acima de todas as nossas falhas e suas consequências
para o lugar onde Deus nos tem colocado.
Quanto a Rebeca, ela teve de sentir todos os tristes resultados da sua astúcia. Sem
dúvida, ela pensava que dirigia as coisas habilmente; mas, oh! nunca mais viu Jacó,
por causa da sua manobra! Quão diferente teria sido se ela tivesse deixado o caso
inteiramente nas mãos de Deus. Esta é a maneira da fé agir e é sempre vencedora.
"E qual de vós, sendo solícito, pode acrescentar um côvado à sua estatura*?-" (Lc
12:25). Nada ganhamos com a nossa ansiedade e os nossos projetos: apenas
excluímos Deus, e isso não é ganho. É um justo castigo da mão de Deus sermos
obrigados a colher os frutos dos nossos planos; e não há nada mais triste do que ver
um filho de Deus esquecer-se da sua condição e privilégios para tomar a direção
dos seus interesses em suas próprias mãos. As aves dos céus, e os lírios do campo,
podem muito bem ser nossos mestres quando esquecemos assim a nossa posição de
dependência em Deus.
Finalmente, quanto a Esaú, o apóstolo trata-o por "profano, que por um manjar
vendeu o seu direito de primogenitura": e "querendo ele ainda depois herdar a
bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que, com
lágrimas, o buscou" (Hb 12:16-17). Ficamos sabendo assim que um profano é
alguém que gostaria de possuir o céu e a terra e desfrutar o presente sem perder o
seu direito ao futuro. Isto não é, de modo nenhum, um caso invulgar. Mostra-nos
todo o mundano que professa ser cristão, mas cuja consciência nunca
experimentou os efeitos da verdade divina, e cujo coração nunca sentiu a
influência da graça de Deus.

CAPÍTULO 28

JACÓ FOGE PARA HARÃ

Frutos Amargos
Vamos seguir agora Jacó nos seus passos depois de ter deixado a casa de seu pai,
para o vermos como vagabundo solitário na terra. E aqui que os principais
desígnios de Deus a seu respeito começam a manifestar-se. Jacó começa agora a
compreender, em certa medida, os frutos amargos do seu procedimento para com
Esaú. Enquanto que, ao mesmo tempo, Deus é visto elevando-Se acima de toda a
fraqueza e loucura do Seu servo e manifestando a Sua graça soberana e profunda
sabedoria na forma como trata com ele.
Deus cumprirá o Seu propósito, não importa quais sejam os instrumentos usados
para esse fim, mas se um filho Seu, em impaciência de espírito, e incredulidade de
coração, se desliga das Suas mãos, deve esperar muito exercício doloroso e
disciplina aflitiva. Foi assim com Jacó: não teria que fugir para Harã se tivesse
permitido que Deus atuasse por ele. Deus teria certamente tratado com Esaú, e
feito com que ele encontrasse o seu lugar e a sua parte; e Jacó poderia ter gozado
aquela doce paz que nada pode conceder salvo inteira sujeição em todas as coisas
aos desígnios de Deus.
E aqui está onde a fraqueza dos nossos corações é constantemente manifestada.
Não permanecemos inativos nas mãos de Deus; queremos atuar e, por meio da
nossa atuação, impedimos a manifestação da graça e poder de Deus em nosso favor.
"Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (SI 46:10), é um preceito ao qual nada senão
o poder da graça divina pode habilitar alguém a obedecer. "Seja a vossa equidade
notória a todos os homens.
Perto está o Senhor. Não estejais inquietos por coisa alguma; antes, as vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com ação
de graças" (Fp 4:5-6).
Qual será logo o resultado de atuar assim? "E a paz de Deus, que excede todo o
entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo
Jesus" (Fp 4:7).
Contudo, Deus domina graciosamente a nossa loucura e fraqueza, não obstante
termos de colher os frutos dos nossos métodos impacientes, Ele serve-Se deles para
nos ensinar ainda maiores lições da Sua graça e perfeita sabedoria. Isto, ao mesmo
tempo que não justifica a incredulidade e a impaciência, mostra,
maravilhosamente, a bondade do nosso Deus, e conforta o coração até mesmo
quando passamos por circunstâncias dolorosas por causa das nossas faltas. Deus
está acima de tudo; e, além disso, é Sua prerrogativa tirar bem do mal; dar comida
do comedor é doçura do forte; e por isso, embora seja verdade que Jacó foi
obrigado a exilar-se da casa de seu pai em consequência do seu próprio ato
impaciente e enganoso, é igualmente verdade que ele nunca poderia ter aprendido
o significado de "Betel" se tivesse ficado em casa. Deste modo os dois lados do
quadro são fortemente marcados em cada acontecimento da história de Jacó. Foi
quando ele foi expulso, pela sua própria loucura, da casa de Isaque, que foi levado a
provar, em certa medida, a bem- aventurança e solenidade da "casa de Deus".

Betel
"Partiu, pois, Jacó de Berseba, e foi-se a Harã; e chegou a um lugar onde passou a
noite, porque já o sol era posto; e tomou uma das pedras daquele lugar, e a pôs por
sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar".
Aqui encontramos o vagabundo na própria situação onde Deus podia encontrá-lo,
e na qual podia revelar o Seu propósito de graça e glória.
Nada podia ser mais expressivo do desamparo e da necessidade do que a condição
de Jacó posta aqui perante nós. Abaixo a abóbada do céu, com uma pedra por
almofada, na situação desamparada do sono. Foi assim que o Deus de Betel
manifestou a Jacó os Seus propósitos a seu respeito e quanto à sua descendência. "E
sonhou: e eis era posta na terra uma escada, cujo topo tocava nos céus; e eis que os
anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que o SENHOR estava em cima dela
e disse: Eu sou o SENHOR, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaque. Esta
terra em que estás deitado ta darei a ti e à tua semente. E a tua semente será como o
pó da terra; e estender-se-á ao ocidente, e ao oriente, e ao norte, e ao sul; e em ti e
na tua semente serão benditas todas as famílias da terra. E eis que eu estou contigo,
e te guardarei por onde quer que fores, e te farei tornar a esta terra, porque te não
deixarei, até que te haja feito o que te tenho dito".
Aqui temos, na verdade, "graça e glória" (SI 84:11). A escada posta na terra leva
naturalmente o coração a meditar na revelação da graça de Deus na Pessoa e na
obra de Seu bendito Filho. Foi na terra que essa obra maravilhosa foi consumada, a
qual forma a base eterna e sólida de todos os desígnios divinos acerca de Israel, a
Igreja, e o mundo em geral. Foi na terra que Jesus viveu, trabalhou e morreu, para
que, por meio da Sua morte, pudesse tirar do caminho todos os obstáculos ao
cumprimento do propósito divino de abençoar o homem.
Porém, o topo da escada tocava nos céus. Formava o meio de comunicação entre o
céu e a terra; e "eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela"—figura notável
e bela d Aquele por quem Deus veio até ao mais profundo da necessidade do
homem, e por quem também levantou o homem e o assentou na Sua presença para
sempre, no poder da justiça divina! Deus supriu as necessidades do cumprimento
de todos os Seus planos, apesar da loucura e pecado do homem; e é motivo de gozo
eterno de qualquer alma encontrar-se por meio do ensino do Espírito Santo,
dentro dos limites do propósito gracioso de Deus.
O profeta Oséias leva-nos ao tempo quando aquilo que foi prefigurado pela escada
de Jacó terá o seu pleno cumprimento. "E, naquele dia, farei por eles aliança com as
bestas-feras do campo, e com as aves do céu, e com os répteis da terra; e da terra
tirarei o arco, e a espada, e a guerra, e os farei deitar em segurança. E desposar-te-ei
comigo para sempre; desposar-te-ei comigo em justiça, e em juízo, e em
benignidade, e em misericórdias. E desposar-te-ei comigo em fidelidade, e
conhecerás o SENHOR. E acontecerá, naquele dia, que eu responderei, diz o
SENHOR, eu responderei aos céus, e estes responderão à terra. E a terra
responderá ao trigo, e ao mosto, e ao óleo; e estes responderão a Jezreel. E
semeá-la-ei para mim na terra e compadecer-me-ei de Lo-Rufama; e a Lo-Ami
direi: Tu és o meu povo!; e ele dirá: Tu és o meu Deus!" (Os 2:18-23). Há também
uma expressão acerca da visão de Jacó no Evangelho de João, capítulo 1:51: "Na
verdade, na verdade vos digo que, daqui em diante, vereis o céu aberto e os anjos
de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem".

Manifestação da Graça de Deus para com Israel


Ora esta visão de Jacó é uma revelação bendita de graça divina para Israel. Já
tivemos ocasião de ver alguma coisa do verdadeiro caráter de Jacó, alguma coisa,
também, da sua verdadeira situação; ambas as coisas eram evidentemente tais que
mostravam ser ou graça divina para ele ou nada. Por nascimento ele não tinha
direitos; nem tão-pouco por caráter. Esaú podia mover uma pretensão com base
nestes dois fundamentos, desde que as prerrogativas de Deus fossem postas de
parte; porém Jacó não tinha nenhum direito; e por isso, ao passo que Esaú podia só
permanecer sobre a exclusão das prerrogativas de Deus, Jacó só podia estar sobre a
introdução e o estabelecimento delas. Jacó era um tal pecador e de tal modo
privado de toda a pretensão, tanto por nascimento como por prática, que nada
tinha absolutamente em que estribar-se, salvo no propósito de Deus de graça pura,
livre e soberana. Por isso, a revelação que o Senhor faz ao Seu servo eleito, na
passagem que acabo de reproduzir, é um simples relato ou profecia daquilo que Ele
Próprio havia ainda de fazer. "Eu sou..., darei..., guardarei..., farei tornar..., não te
deixarei até que te haja feito o que te tenho dito". Tudo vem de Deus sem condição
alguma. Não existem ses e mas-, porque quando a graça atua não pode haver tais
coisas. Onde há um se não pode ser graça. Não é que Deus não possa colocar o
homem numa posição de responsabilidade na qual tenha que se lhe dirigir com um
se. Sabemos que pode; porém Jacó a dormir com uma pedra por almofada não
estava em condições de responsabilidade, mas no mais profundo desamparo e
necessidade; e portanto ele estava numa boa situação para receber uma revelação
de plena graça, rica e incondicional.
Não podemos deixar de reconhecer a bem-aventurança de uma tal situação, em
que nada temos para nos apoiarmos senão Deus; e, além disso, que é no caráter
perfeito de Deus e Suas prerrogativas que obtemos o verdadeiro gozo e a nossa
bem- aventurança. Segundo este princípio, seria para nós uma perda irreparável
ter qualquer fundamento próprio para nos apoiarmos, porque, nesse caso, Deus
trataria conosco com base na responsabilidade, e o fracasso seria então inevitável.
Jacó era tão mau que ninguém, senão Deus, bastava para tudo que o seu estado
exigia.

O Temor e o Voto de Jacó


E note-se que foi a sua falta em reconhecer isto que o levou a tanta dor e
necessidade. A revelação de Deus Mesmo é uma coisa, e a nossa confiança nessa
revelação é outra muito diferente. Deus revela-se a Jacó em graça infinita; contudo
tão depressa Jacó acorda do sono, vemo-lo mostrando o seu verdadeiro caráter, e
dando provas de quão pouco conhecia, praticamente, d'Aquele bendito Senhor
que acabava de Se revelar dum modo tão maravilhoso ao seu coração: "...temeu e
disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a Casa de Deus; e esta
é a porta dos céus".
O seu coração não estava tranquilo na presença de Deus; nem tão-pouco o pode
estar qualquer coração até ser inteiramente esvaziado e quebrantado. Deus
agrada-Se, bendito seja o Seu nome, dum coração quebrantado e um coração
quebrantado sente-se ditoso na Sua presença. Porém o coração de Jacó ainda não
estava nestas condições; nem tão-pouco tinha ele ainda aprendido a descansar,
como uma criança, no amor perfeito d'Aquele que podia dizer: "Amei a Jacó".
"O perfeito amor lança fora o temor"; porém onde esse amor não é conhecido e
inteiramente posto em prática, haverá sempre uma medida de ansiedade e
perturbação. A casa de Deus e a presença de Deus não são terríveis para a alma que
conhece o amor de Deus manifestado no sacrifício de Cristo.
Uma tal alma é antes levada a dizer: "SENHOR, eu tenho amado a habitação da tua
casa e o lugar onde permanece a tua glória" (SI 26:8). E, também, "Uma coisa pedi
ao SENHOR e a buscarei: que possa morar na Casa do SENHOR todos os dias da
minha vida, para contemplar a formosura do SENHOR e aprender no seu templo"
(SI 27:4). "Quão amáveis são os teus tabernáculos, SENHOR dos Exércitos! A
minha alma está anelante e desfalece pelos átrios do SENHOR" (SI 84:1-2).
Quando o coração está firmado no conhecimento de Deus, amará certamente a Sua
casa, qualquer que possa ser o caráter dessa casa, quer seja Betel, ou o templo de
Jerusalém, ou a Igreja agora composta de todos os verdadeiros crentes, "edificados
juntamente para morada de Deus em Espírito" (Ef 2:22). Todavia, o conhecimento
de Jacó, tanto de Deus como da Sua casa, era muito superficial, neste ponto da sua
história.
Teremos outra vez ocasião de tratar de alguns princípios ligados com Betel; e
concluiremos agora a nossa meditação deste capítulo com uma breve observação
do contrato de Jacó com Deus, tão próprio dele, e tão comprovativo da verdade da
afirmação do seu pouco conhecimento do caráter divino. "E Jacó fez um voto,
dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta viagem que faço, e me der pão
para comer e vestes para vestir, e eu em paz tornar à casa de meu pai, o SENHOR
será o meu Deus; e esta pedra, que tenho posto por coluna, será Casa de Deus; e, de
tudo quanto me deres, certamente te darei o dízimo" (versículos 20 e 22).
Observe-se "se Deus for comigo". Ora, o Senhor havia acabado de dizer,
enfaticamente: "...estou contigo, e te guardarei por onde quer que fores, e te farei
tornar a esta terra". E contudo o pobre coração de Jacó não pode ir além de um "se",
nem tão-pouco nos seus pensamentos de Deus pode elevar-se acima de "pão para
comer, e vestidos para vestir". Tais eram os pensamentos do homem que acabava
de ter a visão magnificente da escada cujo topo tocava nos céus, com o Senhor em
cima dela, e prometendo-lhe uma semente inumerável e uma possessão eterna.
Jacó era evidentemente incapaz de entender a realidade e plenitude dos
pensamentos de Deus. Julgou Deus por si próprio, e deste modo falhou
completamente em compreendê-Lo. Numa palavra, Jacó não havia ainda chegado
ao fim de si próprio; e por isso não havia começado realmente com Deus.

CAPÍTULOS 29 A 31

DEUS SE SERVE DAS CIRCUNSTÂNCIAS PARA DISCIPLINAR JACÓ

Jacó não Entende o Ensino de Betel


"Então pôs-se Jacó a pé e foi-se à terra dos filhos do Oriente." Como acabávamos de
ver, no capítulo 28, Jacó falhou inteiramente na compreensão do verdadeiro
caráter de Deus e aceitou toda a rica graça de Betel com um "se", e o acordo infeliz
de comer e vestidos para vestir. Vamos vê-lo agora ocupado em fazer contratos.
"Tudo o que o homem semear, isso também ceifará" (Gl. 6:7). Não há possibilidade
de escapar a esta sentença. Jacó não se havia humilhado verdadeiramente na
presença de Deus; portanto, Deus serviu-Se das circunstâncias para o castigar e
humilhar.
Este é o verdadeiro segredo de muitas, muitíssimas, das nossas dores e provações
neste mundo. Os nossos corações nunca foram realmente quebrantados perante o
Senhor: nunca nos julgamos nem nos despojamos de nós próprios; e por isso,
repetidas vezes, nós, com efeito, batemos com a cabeça contra a parede. Ninguém
pode realmente alegrar-se em Deus até ter chegado ao fim do eu e isto pela simples
razão que Deus começa a manifestar-Se no próprio ponto onde é visto o fim da
carne. Se, portanto, eu não tiver atingido o fim da minha carne, na experiência
profunda e positiva da minha alma, é moralmente impossível que eu possa ter
alguma coisa semelhante a uma compreensão exata do caráter de Deus. Mas eu
devo, de uma maneira ou de outra, ser levado a conhecer o que vale a minha
natureza. Para conseguir este fim, o Senhor faz uso de vários meios, os quais, não
importa quais sejam, são somente eficazes quando usados por Ele com o propósito
de revelar à nossa vista o verdadeiro caráter de tudo que há nos nossos corações.
Quantas vezes acontece que, como no caso de Jacó, ainda mesmo que o Senhor
venha até junto de nós, e fale aos nossos ouvidos, contudo não compreendemos a
Sua voz nem tomamos o nosso verdadeiro lugar na Sua presença: "... o Senhor está
neste lugar; e eu não o sabia...".
"Quão terrível é este lugar!" Jacó nada aprendeu com tudo isto, e foram precisos,
portanto, vinte anos de terrível instrução, e isso, também, numa escola
maravilhosamente adequada à sua carne; e até isto mesmo, como veremos, não foi
suficiente para o dominar.

Dois Negociantes
Contudo, é admirável ver como ele ingressa numa atmosfera tão adequada à sua
condição moral. O pechincheiro Jacó encontra-se com o explorador Labão, e
vê-los, de fato, ambos esticando os nervos para se excederem um ao outro em
astúcia. Não devemos estranhar o caso em Labão, pois ele nunca havia estado em
Betel: nunca vira o céu aberto e uma escada posta na terra cujo topo tocava nos
céus; nem tinha ouvido promessas grandiosas dos lábios do Senhor, garantindo-lhe
toda a terra de Canaã, com uma posteridade inumerável. Não é de admirar, pois,
que ele mostrasse um espírito avaro e abjeto; não tinha outro recurso. E escusado
esperar do homem do mundo outra coisa que não seja um espírito mundano, e
princípios e métodos mundanos; não tem nada superior; e não podemos tirar uma
coisa limpa duma imunda. Porém, encontrar Jacó, depois de tudo que havia visto e
ouvido em Betel, a lutar com um homem do mundo, e procurando, por tais meios,
acumular riquezas, é notavelmente humilhante.
E todavia, enfim, não é um caso raro encontrar os filhos de Deus esquecendo assim
os seus altos destinos, e a herança celestial, para descerem à arena com os filhos
deste mundo, a fim de ali lutarem pelas riquezas e honras de uma terra ferida de
pecado e perdida. Na verdade, isto é de tal forma verdadeiro que, em muitos casos,
é difícil descortinar uma simples evidência daquele princípio que o apóstolo João
nos diz "que vence o mundo" (Jo 5:4). Olhando para Jacó e Labão, e
considerando-os segundo princípios naturais, será difícil notar neles qualquer
diferença. E preciso ficar-se atrás das cenas e compreender os pensamentos de
Deus quanto a ambos para ver como diferem um do outro. Todavia foi Deus Quem
os fez diferir, e não Jacó; e assim é agora. Por muito difícil que possa ser descortinar
alguma diferença entre os filhos da luz e os filhos das trevas, há, todavia, uma
grande desigualdade—uma diferença baseada no fato solene que os primeiros são
"vasos" de misericórdia, que "para glória já dantes preparou", enquanto que os
últimos são "os vasos da ira(1), preparados (não por Deus, mas pelo pecado) para a
perdição (Rm 9:22-23). Isto faz uma diferença muito séria. Os Jacós e os Labães são
diferentes materialmente, e serão para sempre diferentes, embora os primeiros
possam falhar tristemente na realização e manifestação prática do seu verdadeiro
caráter e dignidade.
__________
(1) É muito interessante notar como o Espírito de Deus, em Romanos 9, e, na
verdade, através de toda a Escritura, nos precaver contra as conclusões horrendas
que a mente humana tira da doutrina da eleição de Deus. O que Ele diz dos "vasos
da ira" é que eles são simplesmente para "destruição". Não diz que Deus os
"preparou".
Ao passo que, por outro lado, quando se refere aos vasos de misericórdia, diz que
Deus "para glória já dantes os preparou". Isto é notável.
Se o leitor consultar por um momento Mateus 25:34 a 41 há-de encontrar outro
caso notável e belo da mesma coisa.
Quando o rei se dirige aos que estão à Sua direita, diz-lhes; "Vinde, benditos de
meu Pai, possuí por herança o Reino que vos está preparado, desde a fundação do
mundo" (versículo 34).
Porém quando fala aos que estão à Sua esquerda, diz: "Apartai-vos de mim,
malditos." Não diz, "malditos de meu Pai". E, além disso, acrescenta, "para o fogo
eterno" preparado, não para vós, mas "para o diabo e seus anjos" (versículo 41).
Em suma, é, portanto, claro que Deus "preparou" um reino de glória e "vasos de
misericórdia" para herdarem esse reino; mas não preparou "o fogo eterno" para os
humanos, mas sim para "o diabo e seus anjos"; nem tão-pouco preparou os "vasos
para ira", mas eles mesmos se prepararam para isso.
A Palavra de Deus estabelece tão claramente a "eleição" como nos avisa contra "a
condenação". Todos os que se encontrarem no céu terão de dar graças a Deus por
isso, e todo aquele que se achar no inferno terá de agradecer a si próprio por isso.

Em Harã se Manifesta o Coração do Homem


Ora, no caso de Jacó, como nos é apresentado nos três capítulos que temos perante
nós, toda a sua labuta e trabalho, à semelhança do contrato infeliz que fez, é o
resultado do seu desconhecimento da graça de Deus, e a sua incapacidade para ter
confiança implícita nas Suas promessas. O homem que podia dizer, depois de uma
promessa de Deus de lhe dar toda a terra de Canaã, "SE Deus me der pão para
comer e vestes para vestir", podia apenas ter uma pálida compreensão de Quem
Deus era, ou o que era a Sua promessa; e por esta razão vemo-lo fazer tudo que
pode por si mesmo. Este é sempre o método adotado quando a graça não é
compreendida: os princípios da graça podem ser professados, mas a verdadeira
medida da nossa experiência do poder da graça é outra coisa muito diferente.
Poderia supor-se que a visão de Jacó lhe tivesse falado de graça; contudo a
revelação de Deus em Betel, e o procedimento de Jacó em Harã são duas coisas
muito diferentes; todavia, este mostra-nos o que fora a compreensão de Jacó
daquela. O caráter e o comportamento são prova real da medida da experiência e
convicção da alma, seja qual for a profissão. Porém Jacó não se conhecia ainda tal
qual era perante Deus, e portanto desconhecia a graça, e mostrou a sua ignorância
medindo-se com Labão e adotando as suas máximas e métodos.

O Conhecimento de si Mesmo
Não pode deixar de notar-se o fato que visto Jacó ter falhado em entender e julgar
o caráter natural da sua carne perante Deus, foi, na providência de Deus, levado
para a própria esfera na qual esse caráter foi inteiramente revelado nos seus traços
mais largos. Foi conduzido a Harã, o país de Labão e Rebeca, a própria escola
donde esses princípios, de que ele era um adepto notável, tinham emanado, e onde
eram ensinados, mostrados e mantidos. Se alguém quisesse aprender o que Deus
era tinha de ir a Betel; se desejasse conhecer o que o homem era devia ir a Harã.
Mas Jacó havia falhado em receber a revelação que Deus lhe dera de Si Próprio em
Betel, e portanto foi para Harã, e ali mostrou o que era — e, oh! que contendas e
que mesquinhez! Que subterfúgios e que astúcia! Não mostra confiança santa em
Deus, nem fé e esperança n'EIe.
É verdade que Deus estava com Jacó — porque nada pode impedir o brilho da
graça divina. Além disso, ele reconhece a presença e fidelidade de Deus, em certa
medida. Todavia, nada pode fazer sem um projeto e um plano: não deixa que Deus
trate da questão das suas mulheres e do seu salário, mas procura arranjar tudo por
meio da sua habilidade e procedimento. Numa palavra, é o "suplantador" em tudo.
Veja o leitor, por exemplo, o capítulo 30:37 a 42, e diga se é possível encontrar uma
melhor obra-prima de esperteza. É verdadeiramente um retrato perfeito de Jacó.
Em vez de permitir que Deus multiplicasse "todos os salpicados e malhados, e todos
os morenos entre os cordeiros", como evidentemente o Senhor teria feito, se Jacó
tivesse confiado n'Ele, ele dispôs-se a conseguir a sua multiplicação por meio de
um plano que só podia ter achado a sua origem na mente de um Jacó. O mesmo
aconteceu com todos os seus atos, durante os vinte anos em que morou com Labão;
e finalmente, ele, muito caracteristicamente "raspa-se", mantendo deste modo, em
tudo, conformidade consigo próprio.
O Conhecimento do Deus da Graça
Ora, é segundo o verdadeiro caráter de Jacó, de lugar em lugar da sua
extraordinária história, que se obtém uma maravilhosa vista da graça divina.
Ninguém senão Deus poderia suportar uma pessoa como Jacó assim como ninguém
senão Deus teria tratado com uma pessoa assim. Graça começa pelo ponto mais
baixo. Recebe o homem como ele é, e trata com ele no pleno conhecimento do que
ele é. É de grande importância compreender este aspecto da graça no ponto de
decisão de alguém; habilita-nos a levar, com firmeza de coração, as descobertas
posteriores de vileza pessoal, que tão frequentemente abalam a confiança e
perturbam a paz dos filhos de Deus.
Muitos não compreendem desde o princípio a ruína completa da sua natureza, tal
qual se manifesta na presença de Deus, embora os seus corações hajam sido
atraídos pela graça, e as suas consciências tranquilizadas, de algum modo, pela
aplicação do sangue de Cristo. Por isso, à medida que vão avançando na sua
carreira, começam a fazer descobertas mais profundas do mal em seus corações, e,
sendo deficientes na sua compreensão da graça de Deus, e da eficácia e extensão do
sacrifício de Cristo, levantam imediatamente a questão acerca de serem filhos de
Deus. Deste modo são tirados a Cristo e atirados para cima de si próprios, e então
ou se entregam às ordenações, de modo a manterem o seu tom de devoção, ou
caem outra vez inteiramente no mundanismo e na carnalidade. Estas
consequências são desastrosas, e o resultado de não se ter o coração estabelecido na
graça.
E isto que torna o estudo da história de Jacó tão interessante e útil. Ninguém pode
ler estes três capítulos sem ser despertado pela graça maravilhosa que pôde cuidar
de um como Jacó, e não apenas cuidar dele, mas dizer, depois da descoberta plena
de tudo que havia nele, que não "viu iniquidade em Israel, nem contemplou
maldade em Jacó" (Nm 23:21). Deus não diz que não havia perversidade e
iniquidade em Jacó. Uma tal afirmação não daria confiança ao coração — a própria
coisa, sobre todas as coisas, que Deus quer dar. Nunca daria ânimo ao coração de
um pobre pecador dizer-lhe que nele não havia pecado — porque, enfim, ele sabe
muito bem que há —, porém, se Deus diz, com base no sacrifício perfeito de Cristo,
que não vê pecado sobre si, isso dá, infalivelmente, paz ao seu coração e à
consciência. Se Deus tivesse escolhido Esaú, não teríamos tido, de modo nenhum,
uma tal demonstração da graça; é por esta razão, que ele não aparece perante nós
na luz amável em que vemos Jacó. Quanto mais o homem se afunda, mais a graça
de Deus se eleva. À medida que o meu débito aumenta, nos meus cálculos, de
cinquenta para quinhentos talentos, do mesmo modo, a minha apreciação da
graça, e a experiência do amor que, não tendo nós nada com que pagar, pôde
liberalmente perdoar-nos tudo (Lc. 7:42), se elevam.
Bem podia o apóstolo dizer, "... bom é que o coração se fortifique com graça e não
com manjares, que de nada aproveitaram aos que a eles se entregaram" (Hb 13:9).

CAPÍTULO 32

OS PLANOS DE JACÓ ANTES DO ENCONTRO COM ESAÚ

A consciência má de Jacó
"E foi também Jacó o seu caminho, e encontraram-no os anjos de Deus". Apesar de
tudo, a graça de Deus ainda segue Jacó. Nada pode alterar o amor de Deus. Quem
Ele ama, e como ama, ama- -o até ao fim. O Seu amor é como Ele Próprio, "o
mesmo ontem, e hoje, e eternamente" (Hb. 13:8). Contudo, o pouco efeito que "o
exército de Deus" produziu em Jacó pode ser visto pelos seus atos descritos neste
capítulo. "E enviou Jacó mensageiros diante da sua face a Esaú, seu irmão, à terra
de Seir, território de Edom." Jacó sente-se evidentemente inquieto a respeito de
Esaú, e com razão: havia-o tratado mal, e a sua consciência não estava tranquila.
Contudo em vez de confiar em Deus sem reservas, ele entrega-se outra vez aos seus
planos, de modo a impedir a ira de Esaú. Procura entender-se com Esaú, em vez de
apoiar-se em Deus.
"E ordenou-lhes, dizendo: Assim direis a meu senhor Esaú: Assim diz Jacó, teu
servo-. Como peregrino morei com Labão e me detive lá até agora." Tudo isto
indica uma alma muito afastada do seu centro em Deus. "Meu senhor", e "teu
servo", não é a linguagem própria de um irmão ou de alguém cônscio da dignidade
da presença de Deus; mas era a linguagem de Jacó, e de Jacó, também, com uma má
consciência.
"E os mensageiros tornaram a Jacó, dizendo: Fomos a teu irmão Esaú; e também ele
vem a encontrar-te, e quatrocentos varões com ele. Então, Jacó temeu muito e
angustiou-se." Mas o que faz ele primeiramente?- Confia em Deus? Não, começa a
atuar:
"... repartiu em dois bandos o povo que com ele estava, e as ovelhas, e as vacas, e os
camelos. Porque dizia: Se Esaú vier a um bando, e o ferir, o outro bando escapará."
O primeiro pensamento de Jacó era sempre um plano, e ele não é mais que um
verdadeiro exemplo do pobre coração humano. Verdade é que depois de ter feito o
seu plano ele volta-se para Deus, e pede-Lhe libertação; mas tão depressa acaba de
orar, recomeça os seus planos. Bom, orar e fazer planos nunca dará resultado. Se eu
fizer planos, estou confiando, mais ou menos, nos meus planos; mas quando oro,
devo descansar unicamente em Deus. Por isso, as duas coisas são inteiramente
incompatíveis: destroem-se virtualmente uma à outra. Quando a minha vista está
ocupada com a minha própria administração das coisas não estou preparado para
ver Deus atuar por mim; e nesse caso, a oração não é a expressão da minha
necessidade, mas apenas o cumprimento supersticioso de alguma coisa que julgo
deve ser feita, ou pode ser o pedido a Deus para santificar os meus planos. Isto
nunca dará resultado. O princípio não é pedir a Deus para santificar e abençoar os
meus planos, mas pedir-Lhe para o fazer Ele Próprio (1).
__________
(1) Sem dúvida, quando a fé deixa Deus atuar, Ele empregará os Seus meios; porém
isto é uma coisa totalmente diferente de Ele aceitar e abençoar os planos e
preparativos da incredulidade e impaciência. Esta distinção não é suficientemente
compreendida.

Um Plano Humano para Apaziguar Esaú


Embora Jacó pedisse a Deus para o livrar de seu irmão Esaú, não estava,
evidentemente, satisfeito com isso, e portanto procurou apaziguá-lo com "um
presente". Deste modo a sua confiança estava no "presente", e não inteiramente em
Deus. "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso" (Jr. 17:9). E
muitas vezes difícil descobrir o que é o verdadeiro terreno da confiança do
coração. Persuadimo-nos, ou somos forçados a convencermo-nos, que nos
apoiamos em Deus, quando, na realidade, confiamos em algum plano de nossa
invenção. Quem, depois de escutar a oração de Jacó, em que ele diz: "Livra- me,
peço-te, da mão de meu irmão, da mão de Esaú: porque o temo, que porventura
não venha e me fira e a mãe com os filhos", poderia supor que ele dissesse: "eu o
aplacarei com o presente?" Tinha esquecido a sua oração?- Estava fazendo um deus
do seu presente?
Confiava mais nalguns animais que no Senhor, a Quem acabava de se entregará
Estas perguntas resultam naturalmente da atitude de Jacó com referência a Esaú, e
nós podemos prontamente dar-lhes a resposta através do espelho dos nossos
próprios corações. Neles aprendemos tão bem como nas páginas da história de Jacó
quão prontos estamos a confiar mais nos nossos próprios planos do que em Deus;
mas isto não dará resultado; temos de ser levados a ver o fim dos nossos planos, que
são tolice, e que o verdadeiro passo de sabedoria é descansar com absoluta
confiança em Deus.
Nem tão-pouco de nada servirá fazer das nossas orações parte dos nossos planos.
Muitas vezes sentimo-nos satisfeitos quando acrescentamos oração aos nossos
planos, ou depois de termos empregado todos os meios lícitos, e pedido a Deus para
os abençoar. Quando é este o caso, as nossas orações são quase de tanto valor como
os nossos planos, visto que confiamos nelas em vez de dependermos de Deus.
Devemos ser levados realmente ao fim de tudo com que o eu tem alguma coisa que
fazer; porque antes disso Deus não pode manifestar-Se. Todavia, nós nunca
podemos chegar ao fim dos nossos planos até sermos levados ao fim de nós
próprios. Devemos ver que "Toda carne é erva, e toda a sua beleza, como as flores
do campo" (Is 40:6).

Jacó a Sós com Deus


Assim é neste interessante capítulo. Quando Jacó acabou de pôr em ordem todos os
seus preparativos, lemos: "Jacó, porém, ficou só; e lutou com ele um varão, até que
a alva subia." E um ponto decisivo na história deste homem notável. Ficar a sós
com Deus é o único meio verdadeiro de se chegar a um conhecimento justo de nós
próprios e dos nossos caminhos. Nunca poderemos receber um verdadeiro
conhecimento da natureza e todos os seus atos, até os termos pesado na balança do
santuário, e ali, então, verificarmos o seu valor verdadeiro. Seja o que for que
pensarmos de nós próprios, e o que o homem possa pensar de nós, a grande questão
é saber o que Deus pensa de nós. E a resposta a esta pergunta só pode ser ouvida
quando ficamos sós. Longe do mundo; longe do eu; longe de todos os pensamentos,
argumentos, cálculos, e emoções da natureza, e "só" com Deus— deste modo, e só
assim, podemos obter um juízo correto de nós próprios.

Deus Luta com Jacó


"Jacó porém ficou só; e lutou com ele um varão." Notemos que não foi Jacó quem
lutou com um varão; mas um varão que lutou com Jacó. Esta cena é vulgarmente
mencionada como um exemplo do poder de Jacó na oração. Que não é assim é
evidente pela simples redação da passagem. O eu lutar com um homem, e um
homem lutar comigo são duas ideias totalmente diferentes para a mente. Se sou eu
quem luta com outro é porque pretendo dele alguma coisa; se, pelo contrário, é
outro que luta comigo é porque deseja conseguir alguma coisa de mim. Ora, no
caso de Jacó, o objetivo divino era levá-lo a ver que criatura pobre, fraca, inútil, ele
era, e quando Jacó resistiu tenazmente ao tratamento divino, o varão "tocou a
juntura de sua coxa; e se deslocou a juntura da coxa de Jacó, lutando com ele". A
sentença de morte tem que ser lavrada sobre a carne — o poder da cruz tem que
ser compreendido antes de podermos andar firmemente com Deus.
Até aqui temos seguido Jacó por entre todos os meandros e expedientes do seu
extraordinário caráter — vimo-lo fazendo planos e pondo-os em prática durante a
sua estadia de vinte anos com Labão; mas não foi antes de ter ficado só que teve
uma verdadeira ideia da sua inutilidade. Então, havendo sido tocado o centro da
sua força, ele pôde dizer, "não te deixarei ir". Como disse o poeta:

Nenhum outro refúgio tenho;


Minha alma desamparada apega-se a Ti."

Isto foi uma nova era na história do suplantador e engenhoso Jacó. Até aqui ele
havia-se agarrado aos seus meios e caminhos; mas agora é levado a dizer "não te
deixarei ir". Bom, o leitor dirá que Jacó não se exprimiu assim até que "a juntura da
sua coxa foi tocada". Este simples fato é suficiente para concretizar a verdadeira
interpretação de toda a cena. Deus lutava com Jacó para o levar a este ponto. Já
vimos que, quanto ao poder de Jacó na oração, tão depressa pronunciava algumas
palavras a Deus mostrava logo o verdadeiro segredo da independência da sua alma,
dizendo: "Eu o aplacarei (a Esaú) com o presente." Teria dito isto se tivesse
realmente compreendido o significado do oração ou da verdadeira dependência
em Deus? Certamente que não. Se tivesse esperado só em Deus, para aplacar Esaú,
poderia ter dito: "eu o aplacarei com o presente?" Decerto que não! E preciso que
Deus e a criatura conservem o seu lugar distinto, e sempre assim será com toda a
alma que conhece a santa realidade de uma vida de fé.
Mas, oh! aqui está onde nós falhamos, se podemos falar uns pelos outros! Sob a
fórmula plausível e aparentemente piedosa de usarmos meios, nós realmente
encobrimos a infidelidade dos nossos pobres corações enganosos; pensamos que
estamos esperando em Deus para abençoar os nossos meios, ao passo que, na
realidade, O afastamos confiando nos meios, em vez de dependermos d'Ele, Oh!
que os nossos corações possam compreender o mal deste procedimento! Possamos
nós aprender a confiar mais simplesmente em Deus somente, para que assim a
nossa história possa ser mais caracterizada por aquela santa elevação acima das
circunstâncias através das quais estamos passando. Não é uma coisa fácil chegar a
conhecer-se a nulidade da criatura até ao ponto de poder dizer-se: "não te deixarei
ir se me não abençoares". Dizer isto do coração e permanecer no seu poder é o
segredo de todo o verdadeiro poder. Jacó disse-o quando a juntura da sua coxa foi
tocada; mas não antes. Lutou muito, até ceder, porque a sua confiança na carne era
grande. Porém, Deus pode deprimir até ao pó o caráter mais ativo. Ele sabe como
tocar a mola do poder da natureza, e escrever a sentença de morte inteiramente
sobre ela; e até que isto não for feito não pode haver verdadeiro poder com Deus
ou o homem. Temos de ser "fracos" para podermos ser "fortes". "O poder de Cristo"
só pode "repousar sobre nós" em ligação com o conhecimento das nossas fraquezas.
Cristo não pode pôr o selo da Sua aprovação sobre o poder da natureza, a sua
sabedoria ou a sua glória: todas estas coisas têm de submergir-se para que Ele possa
levantar-Se. A natureza humana nunca poderá constituir, de modo nenhum, uma
base para manifestar a graça ou o poder de Cristo; pois se pudesse sê-lo então a
carne podia gloriar- se na Sua presença; mas isto, como sabemos, nunca poderá ser.
E assim como a manifestação da glória de Deus, e o nome ou caráter de Deus, estão
ligados com o afastamento completo da natureza, do mesmo modo a alma nunca
poderá gozar a revelação daquela enquanto esta não for posta de parte. Por isso,
embora Jacó fosse intimado a dizer o seu nome, ou seja "Jacó é um suplantador",
todavia não recebe revelação do nome d'Aquele que havia lutado com ele até o
deixar por terra. Jacó recebeu para si o nome de "Israel, ou príncipe", o que
representava um grande passo andado; mas quando diz: "Dá-me, peço-te, a saber o
teu nome", recebe a resposta: "Porque perguntas pelo meu nome?" O Senhor
recusa dizer o Seu nome, embora tivesse levado Jacó ao ponto de dizer a verdade
quanto a si mesmo e o abençoasse de acordo com ela.

Jacó, o Suplantador, se Torna Israel, Príncipe de Deus


Quantas vezes não é este o caso na história da família de Deus! Dá-se a
manifestação do eu em toda a sua deformidade moral; contudo, falhamos em
compreender o que Deus é, apesar de Ele ter vindo até tão perto de nós, e nos ter
abençoado, também, em ligação com a descoberta do que somos. Jacó recebeu o
novo nome de Israel quando a juntura da sua coxa foi tocada. Tornou-se num
príncipe poderoso quando foi levado a conhecer-se como homem fraco; mas ainda
assim o Senhor teve que dizer: "Porque perguntas pelo meu nome?" Não é feita
revelação do nome d'Aquele que, todavia, havia posto a descoberto o verdadeiro
nome e a condição de Jacó.
De tudo isto entendemos que é uma coisa sermos abençoados pelo Senhor e outra
inteiramente diferente termos a revelação do Seu caráter, por meio do Espírito, aos
nossos corações. "E abençoou-o ali"; mas não lhe disse o Seu nome. Há bênção em
sermos levados a conhecermo-nos a nós próprios, porque desse modo somos
levados a um caminho no qual podemos mais claramente discernir o que Deus é
para nós em pormenor. Foi assim com Jacó. Quando a juntura da sua coxa foi
tocada ele encontrou-se numa condição na qual tinha de ser ou Deus ou nada. Um
pobre coxo pouco podia fazer, portanto teve que se agarrar a Um que era Poderoso.
Desejo frisar, antes de deixar este capítulo, que o livro de Jó é, em certo sentido,
um comentário pormenorizado desta cena na história de Jacó. Através dos
primeiros trinta e um capítulos Jó prende-se com os seus amigos, e mantém o seu
ponto de vista contra todos os seus argumentos. Porém, no capítulo 32, Deus, por
intermédio de Elihu, começa a lutar com ele; e, no capítulo 38 vem diretamente
sobre ele com toda a majestade do Seu poder, subjuga-o pela manifestação da Sua
grandeza e glória, e arranca-lhe as palavras bem conhecidas, "Com o ouvir dos
meus ouvidos ouvi, mas agora te veem os meus olhos. Por isso, me abomino e me
arrependo no pó e na cinza" (Jó 42:5-6). Isto era realmente tocar a juntura da sua
coxa. E notemos esta expressão, "agora te veem os meus olhos".
Ele não diz, "veem-me os meus olhos"; não, mas "veem-te". Nada senão uma visão
do que Deus é pode realmente levar ao arrependimento e à própria abominação.
Assim acontecerá com o povo de Israel, cuja história é análoga à de Jó. Quando eles
contemplarem Aquele que feriram, lamentar-se-ão, e então haverá plena
restauração e bênção. O seu fim, à semelhança de Jó, será melhor do que o
princípio. Apreenderão o pleno significado dessa frase, "Para tua perda, ó Israel, te
rebelaste contra mim, contra o teu ajudador" (Os 13:9).

CAPÍTULOS 33 E 34

A PARADA DE JACÓ EM SIQUÉM E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

O Encontro de Jacó com Esaú


Podemos ver nestes dois capítulos como os temores de Jacó eram infundados, e
quão inúteis eram os seus planos. Não obstante a luta, o toque da juntura da sua
coxa, e o coxear, vemos Jacó ainda ocupado com planos. "E levantou Jacó os seus
olhos e olhou, e eis que vinha Esaú, e quatrocentos homens com ele. Então,
repartiu os filhos entre Léia e Raquel, e as duas servas. E pôs as servas e seus filhos
na frente e a Léia e a seus filhos, atrás; porém a Raquel e José, os derradeiros". Estes
preparativos são prova da continuação dos seus temores. Previa ainda a vingança
de Esaú, e expôs aqueles que menos lhe interessavam ao primeiro golpe dessa
vingança.
Como as profundezas do coração humano são assombrosas! Como é tardo em
confiar em Deus! Se Jacó tivesse confiado realmente em Deus nunca teria receado
a destruição de sua família; mas, enfim, o coração sabe alguma coisa da dificuldade
de descansar simplesmente em confiança calma num Deus infinitamente gracioso,
Todo-Poderoso e Onipresente.
Mas, note-se, agora, como a ansiedade do coração era desnecessária. "Então, Esaú
correu-lhe ao encontro e abraçou-o; e lançou-se sobre o seu pescoço e beijou-o; e
choraram". O presente era inteiramente desnecessário; o plano inútil. Deus
"aplacou" Esaú, como já havia acalmado Labão. E assim que Ele Se deleita em
repreender os nossos pobres corações, cobardes e incrédulos, e afugentar todos os
nossos temores. Em vez da temida espada de Esaú, Jacó encontra o abraço e beijos
de seu irmão; em vez de luta, eles misturam as suas lágrimas. Tais são os caminhos
de
Deus. Quem não confiará n'Ele? Quem não O honrará com a plena confiança do
coração? Porque é que, não obstante toda a evidência agradável da Sua fidelidade
para com aqueles que põem a sua confiança n'Ele, estamos tão prontos, em todas as
ocasiões, a duvidar e hesitará A resposta é simples: não estamos suficientemente
unidos a Deus. "Une-te pois a Ele, e tem paz, e assim te sobrevirá o bem" (Jó.
22:21). Isto é verdadeiro, quer seja acerca do pecador inconvertido, ou de um filho
de Deus. Conhecer verdadeiramente a Deus (verdadeira intimidade com Ele) é
vida e paz. "E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3). Quanto mais perfeito for o
nosso conhecimento de Deus, tanto mais sólida será a nossa paz, e mais elevadas
serão as nossas almas acima de toda a dependência da criatura. "Deus é uma rocha",
e nós precisamos apenas de alijar todo o nosso peso sobre Ele, para sabermos quão
poderoso é para nos suster.
Sucote
Depois de toda esta manifestação da bondade de Deus, encontramos Jacó
fixando-se em Sucote, e, contra o espírito e os princípios da vida de um peregrino,
edificando uma casa, como se estivesse na sua pátria. Ora, Sucote não era,
evidentemente, o lugar que lhe fora destinado por Deus. O Senhor não lhe havia
dito: "Eu sou o Deus de Sucote", mas sim: "Eu sou o Deus de Betel". Portanto, Betel,
e não Sucote, devia ter sido o grande objetivo de Jacó. Mas, oh! o coração é sempre
propenso a estar satisfeito com uma posição inferior àquela que Deus,
graciosamente, lhe destina!

Siquém
Então Jacó muda-se para Siquém, e compra terreno, faltando deste modo ainda à
medida divina, e o nome pelo qual chama o seu altar é indicativo do estado moral
da sua alma. Chama-o "El-elohe-Israel" ou "Deus, o Deus de Israel". Isto era fazer
uma ideia muito contratual de Deus. Verdade seja que é nosso privilégio conhecer
Deus como nosso Deus; porém é muito melhor conhecê-Lo como Deus da Sua
própria casa, e contemplarmo-nos a nós próprios como partes dessa casa. É
privilégio do crente conhecer Cristo como sua Cabeça; contudo é maior privilégio
conhecê-Lo como a Cabeça do Seu corpo, a Igreja, e conhecermo-nos como
membros desse corpo.
Teremos ocasião de ver, quando chegarmos ao capítulo 35, como Jacó é levado a
formar uma ideia de Deus mais elevada; em Siquém ele estava numa condição
espiritual baixa, e foi obrigado a sentir as suas consequências; como sucede sempre
que não alcançarmos a posição que nos é destinada. As duas tribos e meia que
ficaram do lado de cá do Jordão foram as primeiras a cair nas mãos do inimigo.
Assim aconteceu com Jacó. Vemos, no capítulo 34, os frutos amargos da sua
peregrinação em Siquém. É lançada uma mancha sobre a sua família, a qual Simeão
e Levi procuram limpar, na energia e violência da natureza, e que levou ainda a
uma mais profunda dor; e foi isso, também, que tocou Jacó ainda mais vivamente
do que o insulto feito a sua filha: "Então disse Jacó a Simeão e a Levi: Tendes-me
turbado, fazendo-me cheirar mal entre os moradores desta terra, entre os cananeus
e fereseus, sendo eu pouco povo em número, ajuntar-se-ão, e ficarei destruído, eu
e minha casa" (capítulo 34:30). Deste modo, foram as consequências quanto a si
próprio que mais afligiram Jacó. Parece que viveu sempre em constante perigo
para si e sua família, mostrando em toda a parte um espírito ansioso, cauteloso,
tímido e calculista, inteiramente incompatível com uma vida de genuína fé em
Deus.

Etapas com Consequências Dolorosas


Não é que Jacó não fosse, em geral, um homem de fé; era, certamente, e como tal,
tem um lugar entre "uma tão grande nuvem de testemunhas" de Hebreus 11.
Porém mostrou um triste fracasso em não andar no exercício habitual desse
princípio divino. Poderia a fé levá-lo a dizer, "ficarei destruído, eu e minha casa?"
Não, evidentemente. A promessa de Deus no capítulo 28:14-15 devia ter banido
qualquer temor do seu espírito. "...te guardarei... não te deixarei." Isto devia ter
tranquilizado o seu coração. Porém, o fato é que a sua mente estava mais ocupada
com o perigo que corria entre os homens de Siquém do que com a sua segurança
nas mãos de Deus. Devia ter sabido que nem um só cabelo da sua cabeça poderia
ser tocado, e, portanto, em vez de se preocupar com Simeão e Levi, ou as
consequências do seu ato precipitado, devia julgar-se a si próprio naquela posição.
Se não se tivesse fixado em Siquém, Diná não teria sido desonrada, e a violência de
seus filhos não teria sido manifestada. Vemos constantemente crentes passando
por profunda dor e dificuldades por causa da sua própria infidelidade; e então, em
vez de se julgarem a si próprios, começam a ponderar as circunstâncias e lançam
sobre elas a culpa.
Quantas vezes vemos pais crentes, por exemplo, em aflição de alma quanto à
travessura, rebeldia e mundanidade dos seus filhos; e, ao mesmo tempo, eles são os
próprios culpados por não andarem em fidelidade perante Deus quanto às suas
famílias. Foi assim com Jacó. Estava em terreno moral baixo, em Siquém; e, visto
que lhe faltava aquela sensibilidade refinada que o teria levado a detectar o baixo
terreno, Deus, em verdadeira fidelidade, usou as suas circunstâncias para o
castigar. "Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso
também ceifará" (Gl. 6:7). E um princípio do governo moral de Deus—um
princípio de cuja aplicação ninguém pode escapar; e é uma misericórdia para os
filhos de Deus serem obrigados a ceifar os frutos dos seus erros. E uma misericórdia
ser-se ensinado, de qualquer modo, da amargura de deixar ou não de contar com o
Deus vivo. Temos de aprender que este não é o nosso repouso; porque, bendito seja
Deus, Ele não nos daria um repouso manchado. Ele quer que descansemos em e
com Ele Próprio. Tal é a Sua graça; e quando os nossos corações duvidam, ou
fracassam, a Sua palavra é "Se voltares..., diz o Senhor, para mim voltarás" (Jr. 4:1).
A humildade falsa, a qual é apenas o fruto da incredulidade, leva o extraviado ou
apóstata a tomar uma posição inferior, desconhecendo o princípio ou medida da
restauração de Deus. O filho pródigo procurava ser tomado como um servo,
desconhecendo que, tanto quanto lhe dizia respeito, ele não tinha mais direito ao
título de servo que ao de filho; e, além disso, seria inteiramente indigno do caráter
do pai colocá-lo numa tal posição. Devemos vir a Deus no princípio e segundo a
maneira digna d'Ele Mesmo, ou então não vir.

CAPÍTULO 35

O RETORNO DE JACÓ A BETEL

"Levanta-te, sobe a Betel"


"Depois, disse Deus a Jacó: Levanta-te, sobe a Betel, e habita ali." Isto confirma o
princípio em que temos insistido. Quando há fracasso ou decadência o Senhor
chama outra vez a alma a Si. "Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te, e
pratica as primeiras obras" (Ap 2:5). Este é o princípio de restauração. A alma tem
que ser reconduzida ao ponto mais elevado; deve ser restaurada ao padrão divino.
O Senhor não diz, "lembra-te de onde estás"; não, mas "lembra-te da posição
elevada de onde caíste". Só assim se pode aprender até que ponto tem chegado a
decadência, e como se devem retroceder os passos.
Ora, é quando somos assim restaurados ao padrão elevado e santo de Deus que
podemos compreender a gravidade do mal do nosso estado de decadência. Que
tremendo pecado moral tinha caído sobre a família de Jacó, sem ser julgado por ele,
até que a sua alma foi despertada pela chamada para subir a Betel. Siquém não era o
lugar para detectar todo este mal. A atmosfera desse lugar estava impregnada
demais com elementos impuros para permitir à alma discernir com algum grau de
precisão e clareza o verdadeiro caráter do mal. Porém, logo que a chamada para
Betel foi ouvida por Jacó, "Então, disse Jacó à sua família e a todos os que com ele
estavam: Tirai os deuses estranhos, que há no meio de vós, e purificai-vos, e mudai
as vossas vestes. E levantemo-nos e subamos a Betel; e ali farei um altar ao Deus
que me respondeu no dia da minha angústia e que foi comigo no caminho que
tenho andado". A própria alusão à "Casa de Deus" tocou uma corda na alma do
patriarca, e levou-o, num abrir e fechar de olhos, por sobre a história de vinte anos
cheios de acontecimentos. Havia sido em Betel que ele aprendera o que Deus era, e
não em Siquém; por isso ele tem que ir outra vez a Betel, e fazer ali um altar sobre
uma base inteiramente diferente, e debaixo de um nome totalmente diferente, do
seu altar em Siquém. Este estava ligado com muita impureza e idolatria.
Jacó podia falar de "Deus, o Deus de Israel", ao mesmo tempo que estava rodeado
por muitas coisas inteiramente incompatíveis com a santidade da casa de Deus. É
importante estarmos certos quanto a este ponto. Nada nos pode manter num
estado de separação do mal, firme e inteligente, senão o reconhecimento do que é
"a casa de Deus", e o que se torna essa casa. Se eu confiarem Deus somente no
tocante ao que me diz respeito, não terei um conhecimento claro, pleno, divino, e
de tudo quanto resulta do reconhecimento devido à relação de Deus com a Sua
casa. Alguns consideram um caso sem importância misturarem- se com coisas
impuras no culto de Deus, desde que eles próprios sejam sinceros e verdadeiros de
coração. Por outras palavras, pensam que podem adorar a Deus em Siquém; e que
um altar chamado "Deus, o Deus de Israel", é tão elevado, tanto quanto segundo
Deus, como um altar com o nome de "Betel". Isto é evidentemente um erro. O
crente espiritual detectará imediatamente a grande diferença moral entre a
condição de Jacó em Siquém e a sua condição em Betel, e a mesma diferença existe
entre os dois altares. As nossas ideias quanto à adoração a Deus devem
necessariamente ser afetadas pela nossa condição espiritual; e a nossa adoração será
baixa e formal ou elevada e compreensível justamente na proporção do
conhecimento que tivermos do Seu caráter e parentesco.
Ora o nome do nosso altar e o caráter da nossa adoração expressam a mesma ideia.
O culto em "Betel" é mais elevado do que o culto a "Deus, o Deus de Israel". Por
esta simples razão, que dá uma ideia mais elevada de Deus—dá uma ideia mais
elevada falar d'Ele como o Deus da Sua casa, do que como o Deus de um indivíduo
solitário. De certo que há graça na expressão do título "Deus, o Deus de Israel"; e a
alma não pode deixar de sentir-se feliz por considerar o caráter de Deus, ligando
graciosamente a Si cada pedra da Sua casa, e cada membro do corpo
individualmente. Cada pedra no edifício de Deus é "uma pedra viva", está ligada
com "a pedra viva", e tem comunhão com "o Deus vivo", pelo poder do "Espírito de
vida". Porém, embora tudo isto seja verdadeiro, Deus é o Deus de Sua casa; e
quando podemos, por meio de uma inteligência espiritual engrandecida,
considerá-Lo como tal, o nosso culto toma um caráter mais elevado do que aquele
que resulta meramente de conhecermos o que Ele é para nós, individualmente.

O Altar de Betel
Contudo, há outra coisa a notar no regresso de Jacó a Betel. Ele é convidado a
edificar um altar ao Deus que lhe apareceu, quando fugia diante da face de seu
irmão. E assim lembrado do dia da sua "angústia". É bom, por vezes, que as nossas
mentes sejam levadas desta maneira ao ponto em que na nossa história nos
achamos lançados ao degrau mais baixo da escala. Deste modo Saul foi
reconduzido ao tempo em que era pequeno aos seus olhos. É este o ponto de
partida para todos nós. "...Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos..." (1 Sm
15:17), é um ponto de que necessitamos de ser lembrados muitas vezes. E então
que o coração descansa realmente em Deus. Depois começamos a sentir que somos
alguma coisa, e o Senhor é obrigado a ensinar- nos outra vez a nossa própria
inutilidade.
Quando se entra no princípio ao serviço ou se é chamado a dar testemunho, que
sensação se tem então de fraqueza pessoal e incapacidade! E, como consequência,
que dependência de Deus, que apelos sinceros e fervorosos Lhe são então feitos por
auxílio e poder! Mais tarde começamos a pensar que, por termos estado tanto
tempo ao serviço, podemos desempenhar bem o nosso cargo sós, pelo menos já não
existe a mesma sensação de fraqueza, ou a mesma dependência simples em Deus; e
então o nosso ministério torna-se pobre, fraco, petulante, uma coisa faladora, sem
unção ou poder—uma coisa que resulta não da operação exaustiva do Espírito mas
das nossas próprias mentes desgraçadas.
Desde os versículos 9 a 15 Deus renova as Suas promessas a Jacó e confirma o seu
novo nome de "príncipe", em vez de "suplantador"; e Jacó chama outra vez o nome
daquele lugar "Betel".

O Nascimento de Benjamim e a Morte de Raquel


No versículo 18 temos um exemplo interessante da diferença entre o juízo da fé e o
juízo da natureza. Esta olha para as coisas através das névoas escuras que a
rodeiam; aquela olha para elas à luz da presença e dos desígnios de Deus. "E
aconteceu que, saindo-se-lhe a alma (porque morreu), chamou o seu nome Benoni;
mas seu pai o chamou Benjamim". A natureza chamou-o "filho da minha dor", mas
a fé chamou-o "filho da minha destra"; assim é sempre. A diferença entre os
pensamentos da natureza e os da fé deve ser sempre grande, na verdade; e devemos
desejar sempre que as nossas almas sejam governadas somente por esta, e não por
aquela.

CAPÍTULO 36

A GENEALOGIA DOS FILHOS DE ESAÚ


Este capítulo contém uma lista dos descendentes de Esaú, com os seus vários
títulos e lugares de habitação. Não vamos alargar-nos em considerações a este
respeito, mas passar imediatamente a uma das mais frutíferas e interessantes
porções de todo o cânone de inspiração.

CAPÍTULO 37

JOSÉ - BELO TIPO DE CRISTO


Não há nas Escrituras Sagradas um símbolo mais perfeito e belo de Cristo do que
José. Quer encaremos Cristo como o objeto do amor do Pai ou da inveja dos
"seus"—na Sua humilhação, sofrimentos, morte, exaltação e glória —, vemo-Lo
maravilhosamente simbolizado em José.

José É Odiado por Seus Irmãos


No capítulo 37 temos os sonhos de José, cujo relato desperta a inimizade de seus
irmãos. Ele era o objeto do amor de seu pai, e assunto de altos destinos, e, visto que
os corações de seus irmãos não estavam em comunhão com estas coisas, eles
odiaram-no. Não tinham parte no amor do pai, e não queriam aceder ao
pensamento de exaltação de José. Em tudo isto, eles são uma figura dos Judeus nos
dias de Cristo. "Veio para o que era seu, e os seus não o receberam" (Jo 1:11). Ele
"não tinha parecer nem formosura" a seus olhos (Is 53:2). Não o reconheceram
como o Filho de Deus nem como Rei de Israel. Os seus olhos não estavam abertos
para verem "a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade" (Jo 1:14). Não o queriam, e, pelo contrário, odiaram-No.
Ora, no caso de José, vemos que ele não enfraqueceu, de modo nenhum, o seu
testemunho em virtude da recusa de seus irmãos em aceitarem o seu primeiro
sonho.
"Sonhou também José um sonho, que contou a seus irmãos; por isso o aborreciam
ainda mais... E sonhou ainda outro sonho e o contou a seus irmãos." Isto era
testemunho simples baseado na revelação divina; mas era testemunho que havia
de levar José à cova. Se ele tivesse guardado o seu testemunho, ou tirado alguma
coisa do seu poder e ofensa, ter-se-ia salvo a si próprio; mas não: ele contou-lhes a
verdade, e portanto eles aborreceram-no.

Cristo — Antítipo de José


Aconteceu assim com o grande Antítipo de José. Ele deu testemunho da verdade
— fez boa confissão —, nada ocultou; só podia dizer a verdade porque Ele era a
verdade, e o Seu testemunho da verdade teve a resposta, por parte do homem, por
meio da cruz, o vinagre, e a espada do soldado que feriu o Seu lado. O testemunho
de Cristo foi também acompanhado da graça mais profunda, plena e rica. Ele não
veio apenas como a "verdade", mas também como a perfeita expressão de todo o
amor do coração do Pai: "a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo 1:17). Ele
foi a plena manifestação aos homens do que Deus era. Por isso o homem foi
deixado inteiramente sem desculpa. Ele veio e mostrou Deus aos homens, e os
homens odiaram a Deus completamente. A manifestação do amor divino produziu
ódio cruel. É isto que vemos na cruz; e temo-lo prefigurado duma maneira tocante
na cova onde José foi lançado por seus irmãos.
"E viram-no de longe, e, antes que chegasse a eles, conspiraram contra ele, para o
matarem. E disseram uns aos outros: Eis, lá vem o sonhador-mor! Vinde, pois,
agora, e mantemo-lo, e lancemo-lo numa destas covas, e diremos: Uma besta-fera o
comeu; e veremos que será dos seus sonhos."
Estas palavras fazem-nos lembrar a parábola de Mateus 21: "E, por último,
enviou-lhes seu filho, dizendo: Terão respeito a meu filho. Mas os lavradores,
vendo o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; vinde, matemo-lo, e
apoderemo-nos da sua herança. E, lançando mão dele, o arrastaram para fora da
vinha e o mataram" (versículos 37 a 39). Deus enviou o Seu Filho ao mundo com
este pensamento: "Terão respeito a meu filho"; mas, ah! o coração do homem não
tinha temor pelo "bem amado" do Pai! Lançaram-No fora. A terra e o céu estavam
em discórdia a respeito de Cristo; e ainda o estão. O homem crucificou-O, mas
Deus ressuscitou-O dos mortos. O homem pô-lo na cruz entre dois malfeitores;
Deus colocou-O à Sua destra nas alturas. O homem deu-Lhe o lugar mais baixo na
terra; Deus deu- Lhe o lugar mais elevado nos céus, em majestade sem igual.

José — um Ramo Frutífero


Tudo isto é prefigurado na história de José. "José é um ramo frutífero, ramo
frutífero junto à fonte; seus ramos correm sobre o muro. Os flecheiros lhe deram
amargura, e o flecharam e o aborreceram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e
os braços de suas mãos foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó (donde é o
Pastor e a Pedra de Israel), pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo
Todo-Poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos céus de cima, com bênçãos
do abismo que está debaixo, com bênçãos dos peitos e da madre. As bênçãos de teu
pai excederão as bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos; elas
estarão sobre a cabeça de José e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus
irmãos" (Capítulo 49:22-26).
Estes versículos mostram-nos "os sofrimentos de Cristo e a glória que se lhes havia
de seguir" (1 Pe 1:11). "Os flecheiros" fizeram o seu trabalho; mas Deus era mais
poderoso do que eles. O verdadeiro José foi flechado e gravemente ferido na casa
de seus amigos; porém, "os braços de suas mãos foram fortalecidos" no poder da
ressurreição, e a fé conhece-O agora como o fundamento de todos os propósitos de
Deus de bênção e glória a respeito da Igreja, Israel e toda a criação. Quando
pensamos em José na cova, e na prisão, e mais tarde como governador de toda a
terra do Egito, vemos a diferença que existe entre os pensamentos de Deus e os
pensamentos dos homens; e assim quando olhamos para a cruz e para o trono da
Majestade nos céus, vemos a mesma coisa.
Nunca houve nada que revelasse o verdadeiro estado do coração do homem para
com Deus como a vinda de Cristo. "Se eu não viera, nem lhes houvera falado, não
teriam pecado" (Jo 15:22). Não é que eles não fossem pecadores. Não, mas "não
teriam pecado". Do mesmo modo, Ele diz noutro lugar: "Se fôsseis cegos não teríeis
pecado" (Jo 9:41). Deus aproximou- Se do homem na Pessoa de Seu Filho, e o
homem pôde dizer: "este é o herdeiro", e todavia disse: "Vinde, matemo-Lo". Por
isso, "mas agora não têm desculpa do seu pecado". Aqueles que dizem ver, não têm
desculpa. A cegueira professa não é a dificuldade, mas sim a profissão de vista. É
um princípio solene para uma época de crença professa, como esta. A continuidade
do pecado está ligada com a profissão de ver. Um homem que é cego, e sabe que o
é, pode esperar que os seus olhos sejam abertos, mas que poderá fazer-se por aquele
que pensa ver, quando realmente não vê?

CAPÍTULO 38

JUDÁ E TAMAR

O Triunfo da Graça de Deus sobre o Pecado


Este capítulo apresenta-nos uma dessas circunstâncias notáveis em que a graça de
Deus triunfa gloriosamente sobre o pecado do homem, "Visto ser manifesto que
nosso Senhor procedeu de Judá" (Hb 7:14). Mas como? "Judá gerou de Tamar a
Perez e a Zerá" (Mt 1:3). Isto é peculiarmente notável. Vemos como Deus, na Sua
muita graça, Se eleva acima do pecado e da loucura do homem, com o fim de
cumprir os Seus propósitos de amor e misericórdia. Assim um pouco mais adiante,
no versículo 6, lemos, "e o rei Davi gerou a Salomão da que foi mulher de Urias". É
digno de Deus atuar desta maneira. O Espírito de Deus conduz-nos através da
linha por meio da qual, segundo a carne, veio Cristo; e, fazendo-o, dá-nos, como
elos na cadeia genealógica, Tamar e Bate-Seba! Como é evidente que nada há do
homem em tudo isto! Como é claro, quando chegamos ao fim do primeiro capítulo
de Mateus, que é "Deus manifestado em carne" que encontramos, e isto, também,
da pena do Espírito Santo. O homem nunca poderia ter inventado uma tal
genealogia. E inteiramente divina, e ninguém espiritual poderá lê-la sem ver nela
uma bendita demonstração de graça divina, em primeiro lugar; e em segundo lugar
da inspiração de todo o evangelho de Mateus. Creio que um confronto de 2 Samuel
11 Gênesis 38 com Mateus 1 dará ao cristão concentrado assunto para meditação
muito agradável e edificante.

CAPÍTULOS 39 A 45

A ELEVAÇÃO DEPOIS DA PROVA

Deus Sempre Cumpre Seus Desígnios


Lendo atentamente estas porções interessantes de inspiração percebemos uma
cadeia notável de atos providenciais, convergindo todos para um ponto, a saber, a
exaltação do homem que havia estado na cova-, e ao mesmo tempo trazendo à luz,
gradualmente, um número de objetos secundários. "Os pensamentos de muitos
corações" estavam para ser "revelados"; mas José estava para ser exaltado. "Chamou
a fome sobre a terra; fez mirrar toda a planta do pão. Mandou adiante deles um
varão, que foi vendido por escravo: José, cujos pés apertaram com grilhões e a
quem puseram em ferros, até ao tempo em que chegou a sua palavra: a palavra do
SENHOR O provou. Mandou o rei, e o fez soltar; o dominador dos povos o soltou.
Fê-lo Senhor de sua casa, e governador de toda a sua fazenda para, a seu gosto,
sujeitar os seus príncipes e instruir os seus anciãos" (SI 105:16-22).
É bom ver que o fim era exaltar aquele que os homens haviam rejeitado; e então
produzir nesses mesmos homens a mágoa do seu pecado na rejeição. E como tudo
isto é admiravelmente conseguido! Circunstâncias triviais e importantes,
prováveis e improváveis, são usadas no desenrolar dos propósitos de Deus. No
capítulo 39 Satanás emprega a mulher de Potifar, e no capítulo 40 serve-se do
copeiro-mor do Faraó. Aquela foi usada para meter José no cárcere; e este para o
conservar lá, por causa do seu esquecimento ingrato; mas foi tudo em vão. Deus
estava atrás dos bastidores dirigindo com a Sua mão as molas do encadeamento das
circunstâncias, e a seu tempo tirou dali o homem do Seu desígnio e encaminhou os
seus pés para um lugar espaçoso. Ora isto é sempre prerrogativa de Deus. Ele está
acima de tudo e pode usar tudo para cumprimento dos Seus inescrutáveis
desígnios. É agradável podermos seguir assim a mão do nosso Pai em todas as
coisas. Agradável saber que toda a sorte de agentes está ao Seu soberano dispor:
anjos, homens, e demônios—todos estão debaixo da Sua mão onipotente, e todos
são criados para cumprir os Seus propósitos.
Neste capítulo tudo isto se nos apresenta de um modo notável. Deus visita o lar de
um capitão gentio, o palácio de um rei pagão, sim, e o seu quarto, e faz com que as
próprias visões que ele tem em seu leito contribuam para cumprimento dos Seus
desígnios. Nem tão-pouco são só indivíduos e as suas circunstâncias que são usados
para o progresso dos propósitos de Deus; mas o próprio Egito e todos os países
circunvizinhos são postos em cena; em suma, toda a terra foi preparada pela mão
de Deus para ser o teatro no qual pudesse ser mostrada a glória e grandeza de um
que "fora separado de seus irmãos". Tais são os caminhos de Deus; e é um dos mais
felizes e altos privilégios de exercício da alma de um santo seguir assim os atos
admiráveis de seu Pai Celestial. Como a providência de Deus é forçosamente
trazida à luz nesta história profundamente interessante de José! Olhai, por um
momento, para o cárcere do capitão da guarda. Vede ali um homem "em ferros",
acusado de um crime abominável—proscrito e escória da sociedade; e todavia
vede-o, quase num momento, elevado à mais alta distinção; e quem poderá negar
que Deus está em tudo isto?

A Elevação de José sobre toda a Terra do Egito


"Depois, disse Faraó a José: Pois que Deus te fez saber tudo isto, ninguém há tão
inteligente e sábio como tu. Tu estarás sobre a minha casa, e por tua boca se
governará todo o meu povo; somente no trono eu serei maior que tu. Disse mais
Faraó a José: Vês aqui te tenho posto sobre toda a terra do Egito. E tirou Faraó o
anel da sua mão, e o pôs na mão de José, e o fez vestir de vestes de linho fino, e pôs
um colar de ouro no seu pescoço, e o fez subir no segundo carro que tinha, e
clamavam diante dele: Ajoelhai.
Assim, o pôs sobre toda a terra do Egito. E disse Faraó a José: Eu sou Faraó; porém
sem ti ninguém levantará a sua mão ou o seu pé em toda a terra do Egito" (capítulo
41:39-44).
Aqui, pois, estava exaltação invulgar. Compare-se isto com a cova e o cárcere; e
note-se a cadeia de acontecimentos que ocasionaram isto, e ter-se-á,
imediatamente, uma prova da manifestação da mão de Deus, e uma figura notável
dos sofrimentos e da glória do Senhor Jesus Cristo. José foi tirado da cova e do
cárcere, nos quais havia sido lançado por causa da inveja de seus irmãos, e do falso
juízo de um gentio, para ser dominador de toda a terra do Egito; e não somente
isto, mas para ser o meio de bênção, e o mantenedor da vida, para Israel e toda a
terra. Tudo isto é ilustrativo de Cristo. De fato, um símbolo não podia ser mais
perfeito. Vemos um homem posto, para todos os efeitos, no lugar da morte pelos
homens, e então levantado pela mão de Deus e colocado em lugar de dignidade e
glória. "Varões israelitas, escutai estas palavras: A Jesus Nazareno, varão aprovado
por Deus entre vós com maravilhas, prodígios e sinais, que Deus por ele fez no
meio de vós, como vós mesmos bem sabeis; a este que vos foi entregue pelo
determinado conselho e presciência de Deus, tomando-0 vós, O crucificastes e
matastes pelas mãos de injustos; ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte,
pois não era possível que fosse retido por ela" (At 2:22-24).
Porém, há dois pontos na história de José, que, com o que já foi dito, tornam o
símbolo notavelmente perfeito: refiro-me ao seu casamento com uma mulher
estrangeira no capítulo 41, e a entrevista que tem com seus irmãos, em capítulo 45.
A ordem dos acontecimentos é a seguinte: José apresenta-se aos seus irmãos como
um que é enviado do pai; eles rejeitam-no, e, tanto quanto está neles, põem-no no
lugar da morte; Deus tira-o dali, e exalta-o a uma posição da mais alta dignidade:
assim exaltado, ele arranja uma noiva; e quando seus irmãos, segundo a carne, se
prostram perante ele completamente humilhados, ele dá-se-lhes a conhecer,
tranquiliza os seus corações e leva-os à bênção; então torna-se o meio de bênção
para eles e todo o mundo.

Asenate, Esposa de José: Imagem da Igreja Unida a Cristo


Desejo apenas fazer alguns comentários acerca do casamento de José e da
restauração de seus irmãos. A noiva estrangeira ilustra a Igreja. Cristo
apresentou-Se aos judeus, e, sendo rejeitado por eles, tomou o Seu lugar nas alturas
e enviou o Espírito Santo para formar a Igreja, que é composta de judeus e gentios,
para ser unida com Ele na glória celestial. A doutrina da Igreja já foi tratada
quando dos nossos comentários sobre o capítulo 24, mas restam ainda dois ou três
pontos a notar aqui. A esposa egípcia de José teve parte íntima com ele na sua
glória(1). Sendo parte de si próprio, ela compartilhou de tudo que era seu. Além
disso, ela ocupava um lugar de intimidade e aproximação dele somente conhecido
dela. Assim é com a Igreja, a esposa do Cordeiro: ela está unida com Cristo para ser
participante, ao mesmo tempo, da Sua rejeição e glória. E a posição de Cristo que
dá caráter à posição da Igreja, e a sua posição deveria caracterizar sempre a sua
conduta. Se somos reunidos para Cristo, é conforme Ele está exaltado em glória, e
não humilhado aqui. "Assim que, daqui por diante, a ninguém conhecemos
segundo a carne; e, ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a
carne, contudo, agora, já não o conhecemos desse modo" (2 Co 5:16). O centro de
reunião da Igreja é Cristo na glória. "E eu quando for levantado da terra todos
atrairei a mim" (Jo 12:32).
__________
(1) A esposa de José apresenta à nossa vista a Igreja unida a Cristo na Sua glória;
enquanto que a mulher de Moisés é uma figura da Igreja unida a Cristo na Sua
rejeição.

Existe muito mais de valor prático na compreensão deste princípio do que pode
parecer à primeira vista. O intuito de Satanás, bem como a tendência de nossos
corações é sempre levar-nos a ficar aquém do objetivo de Deus em todas as coisas, e
sobre tudo no que diz respeito ao centro da nossa união como cristãos. E um
sentimento vulgar que "o sangue do Cordeiro é a união dos santos", isto é, que é o
sangue que forma o seu centro de união. Ora que é o sangue infinitamente precioso
de Cristo que nos põe individualmente como adoradores na presença de Deus, é
bem-aventuradamente verdadeiro. O sangue, portanto, forma a base divina da
nossa comunhão com Deus. Porém tratando-se do centro da nossa união como
Igreja, devemos ter em vista o fato que o Espírito Santo nos reúne para a Pessoa de
um Cristo ressuscitado e glorificado; e esta grande verdade dá o caráter—caráter
elevado e santo—à nossa união como cristãos. Se tomarmos outra posição, que não
esta, então, formamos inevitavelmente uma seita ou ismo. Se nos reunirmos em
volta de uma ordenação, por muito importante que seja, ou em torno de uma
verdade, por mais indiscutível, fazemos de alguma coisa o nosso centro, que não
Cristo.
Por isso é muito importante ponderar as consequências práticas que resultam da
verdade de sermos reunidos para um Cristo ressuscitado e glorificado no céu. Se
Cristo estivesse na terra, seríamos reunidos para Ele aqui; mas, visto que está
oculto nos céus, a Igreja toma o seu caráter da posição que Ele tem ali. Por isso,
Cristo podia dizer: "Não são do mundo, como eu do mundo não sou", e também, "e
por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na
verdade". (Jo 17:16-19). Assim também em 1 Pedro 2:4-5: "Chegando-vos para ele,
a pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens, mas para com Deus eleita e
preciosa, vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e
sacerdócio santo, para oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo". Se somos reunidos para Cristo, temos de ser reunidos para Ele como
Ele é, e onde Ele está; e quanto mais o Espírito de Deus conduzir as nossas almas à
compreensão disto, tanto mais veremos o caráter da conduta que nos convém. A
noiva de José foi unida a si, não na cova nem no cárcere, mas na dignidade e glória
da sua posição no Egito; e, no seu caso, não podemos ter dificuldade em perceber a
grande diferença entre as duas posições.
Além disso, lemos, "e nasceram a José dois filhos (antes que viesse o ano da fome)"
(capítulo 41:50). Aproximava-se uma época de tribulações; mas antes disso veio o
fruto da sua união. Os filhos que Deus lhe deu foram chamados à existência antes
deste tempo de provação. Assim será com respeito à Igreja. Todos os seus membros
serão chamados, o corpo será acabado e ligado à Cabeça no céu, antes da "grande
tribulação" que há-de vir sobre toda a terra.

O Encontro de José com Seus Irmãos


Consideremos agora, por uns momentos, a entrevista de José com seus irmãos, na
qual encontraremos alguns pontos de semelhança com a história de Israel nos
últimos dias. Durante o tempo em que José esteve oculto da vista de seus irmãos
eles tiveram que passar por profunda e aguda provação, por meio de exercícios
penosos e intensos da consciência. Um destes exercícios é concebido nestes
termos: "Então, disseram uns aos outros: Na verdade, somos culpados acerca de
nosso irmão, pois vimos a angústia de sua alma, quando nos rogava; nós, porém,
não ouvimos; por isso vem sobre nós esta angústia. E Rúben respondeu-lhes,
dizendo: Não vo-lo dizia eu, dizendo: Não pequeis contra o moço? Mas não
ouvistes; e, vedes aqui, o seu sangue é requerido" (capítulo 42:21-22).
Entretanto no capítulo 44:16 lemos: "Então, disse Judá: Que diremos a meu
senhor? Que falaremos? E como nos justificaremos? Achou Deus a iniquidade de
teus servos". Ninguém pode ensinar como Deus. Somente Ele pode produzir na
consciência a verdadeira compreensão do pecado, e levar a alma aos profundos
recessos da sua própria condição na Sua presença. Isto é tudo trabalho Seu. Os
homens correm na sua carreira de culpa, descuidados de tudo, até que a flecha do
Todo-Poderoso fere a sua consciência, e então são levados àquelas pesquisas do
coração e intensos exercícios de alma, de que só podem achar alívio nos recursos
do amor redentor. Os irmãos de José não tinham ideia de tudo que havia de
resultar para eles devido aos seus atos para com ele: "... tomaram-no e lançaram-no
na cova...; depois assentaram-se a comer pão" (capítulo 37:24-25). Ai dos "que
bebeis vinho em taças e vos ungis com o mais excelente óleo, mas não vos afligis
pela quebra de José!" (Amós 6:6).
Todavia, Deus promoveu dor de coração e exercícios de consciência dum modo
maravilhoso. Passaram-se anos e estes irmãos poderiam ter pensado inutilmente
que tudo estava bem; mas, "então, acabaram-se os sete anos de fartura que havia...
e começaram a vir os sete anos de fome!" (capítulo 41:53-54). Que importavam ele
si Quem os mandou e com que fim? Providência admirável! Sabedoria
inescrutável! A fome chega a Canaã, e as necessidades da fome trazem agora os
irmãos culpados aos pés do ofendido José! Como é notável a manifestação da mão
de Deus em tudo isto! Ali estão eles, com a seta da convicção atravessada nas suas
consciências, na presença do homem a quem haviam, com "mãos ímpias", lançado
na cova. Certamente, o pecado tinha-os achado; mas era na presença de José.
Bendito lugar!

A Restauração do Povo Judaico


"Então, José não se podia conter diante de todos os que estavam com ele; e clamou:
Fazei sair daqui a todo o varão; e ninguém ficou com ele quando José se deu a
conhecer a seus irmãos" (capítulo 45:1). Nenhum estranho foi autorizado a
presenciar esta cena sagrada. Qual o estranho que poderia compreendê-la ou
apreciá-la?- Somos convidados aqui a testemunhar, de fato, convicção por
operação divina na presença de graça divina; e nós podemos dizer, que quando
estas se encontram há um acordo fácil de todas as questões.
"E disse José a seus irmãos: Peço-vos, chegai-vos a mim. E chegaram-se. Então,
disse ele: Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Agora, pois, não
vos entristeçais nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá;
porque, para conservação da vida, Deus me enviou diante da vossa face. ...para
conservar vossa sucessão na terra e para guardar-vos em vida por um grande
livramento. Assim, não fostes vós que me enviaste para cá, senão Deus" (capítulo
45:4-8). Isto é graça de verdade, e põe a consciência perfeitamente em paz. Os
irmãos já se haviam condenado a si próprios inteiramente, e por isso José só teve
que deitar o bálsamo bendito em seus corações. Tudo isto é agradavelmente
figurativo dos desígnios de Deus com Israel, nos últimos dias, quando olharem para
"Aquele a quem traspassaram, e O prantearão". Então experimentarão a realidade
da graça divina e a eficácia purificadora daquela "fonte aberta para a casa de Davi e
para os habitantes de Jerusalém, contra o pecado e contra a impureza" (Zc 12:10;
13:1).
No capítulo 3 de Atos vemos o Espírito de Deus procurando por meio de Pedro
produzir esta convicção divina nas consciências dos Judeus. "O Deus de Abraão, e
de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a seu Filho Jesus, a quem vós
entregastes e perante a face de Pilatos negastes, tendo ele determinado que fosse
solto. Mas vós negastes o Santo e o Justo e pedistes que se vos desse um homem
homicida. E matastes o Príncipe da vida, ao qual Deus ressuscitou dos mortos, do
que nós somos testemunhas" (At 3:13-15). Estas palavras eram destinadas a
arrancar dos corações e lábios dos ouvintes a confissão feita pelos irmãos de
José—"somos culpados." Então segue-se a graça: "E agora, irmãos, eu sei que o
fizestes por ignorância, como também os vossos príncipes. Mas Deus assim
cumpriu o que já dantes pela boca de todos os seus profetas havia anunciado: que o
Cristo havia de padecer. Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam
apagados os vossos pecados, e venham, assim, os tempos do refrigério, pela
presença do Senhor" (At 3:17-19). Vemos aqui que, embora os Judeus tenham
realmente manifestado a inimizade de seus corações na morte de Cristo, assim
como os irmãos de José fizeram no seu tratamento para com ele, a graça de Deus
para com cada um é vista nisto, que tudo é apresentado como tendo sido previsto e
decretado por Deus para sua bênção. Isto é graça perfeita, que excede todo o nosso
entendimento; e tudo que é necessário a fim de poder gozar-se a sua alegria é uma
consciência verdadeiramente convicta pela verdade de Deus. Aqueles que podiam
dizer: "somos culpados", podiam compreender igualmente as palavras preciosas da
graça: "não fostes vós, mas Deus". Assim tem que ser sempre. A alma que tiver
pronunciado a sua própria condenação, está preparada para compreender e
apreciar o perdão de Deus.
CAPÍTULOS 46 A 50

OS ÚLTIMOS DIAS DE JACÓ

A Descida para Egito e a Morte de Jacó


Os últimos capítulos do livro de Gênesis tratam da mudança de Jacó e sua família
para o Egito, e o seu estabelecimento ali; os atos de José durante os restantes anos
de fome; Jacó abençoando os doze patriarcas; e a sua morte e enterramento. Não
vamos entrar em pormenores sobre estas coisas, embora a mente espiritual possa
encontrar nelas muito com que se alimentar (1). Os temores infundados de Jacó
dissipados pela presença de seu filho vivo, e exaltado—a graça de Deus
manifestada no seu poder ativo e contudo acompanhada de juízo, visto que os
filhos de Jacó têm que descer ao mesmo lugar para onde haviam mandado o seu
irmão.
__________
(1) O fim da carreira de Jacó encontra-se em agradável contraste com todas as
cenas da sua história. Faz-nos lembrar uma tarde serena, depois de um dia
tempestuoso: o sol, que durante o dia esteve oculto da vista por neblinas, nuvens, e
nevoeiros, põem-se em majestade e brilho, dourando com os seus raios o céu
ocidental, e mostrando a perspectiva agradável de uma manhã clara. Assim
acontece com o nosso velho patriarca. A superioridade, a avidez, a astúcia, a
atividade, os expedientes, a chicana, os temores egoístas — todas essas nuvens
carregadas da natureza e da terra parece terem passado, e ele manifesta-se em toda
a calma elevada da fé, para dar bênçãos e transmitir dignidades, naquela santa
habilidade que só a comunhão com Deus pode conceder.
No capítulo 48:11 temos um lindo exemplo do modo como o nosso Deus sempre Se
eleva acima de todos os nossos pensamentos, e Se mostra melhor do que todos os
nossos temores. "E Israel disse a José: Eu não cuidara ver o teu rosto; e eis que Deus
me fez ver a tua semente também".
À vista da natureza José estava morto; enquanto que para Deus ele estava vivo e
sentado no lugar de mais elevada autoridade, a seguir ao trono. "As coisas que o
olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as
que Deus preparou para os que o amam" (1 Co 2:9). Permita Deus que as nossas
almas possam elevar-se na compreensão de Deus e dos Seus caminhos.
É interessante notar o modo como os títulos "Jacó" e "Israel" são introduzidos no
fim do livro do Gênesis; como por exemplo, "E um deu parte a Jacó e disse: Eis que
José, teu filho, vem a ti. E esforçou-se Israel e assentou-se sobre a cama" (capítulo
48:2). Então acrescenta-se imediatamente: "E Jacó disse a José: O Deus
Todo-Poderoso me apareceu em Luz". Ora nós sabemos que nada há na Sagrada
Escritura sem o seu significado específico, e por isso esta troca de nomes encerra
alguma instrução. Em geral, pode observar-se que "Jacó" mostra a profundidade até
onde Deus desceu; e "Israel" a altura a que Jacó foi elevado.

Embora os olhos estejam obscurecidos, a visão da fé é penetrante. Ele não vai ser
enganado quanto à posição destinada a Efraim e Manassés nos desígnios de Deus.
Não tem que estremecer, como seu pai Isaque, em capítulo 27:33, "estremeceu de
um estremecimento muito grande", em face de um erro quase fatal. Antes pelo
contrário. A sua resposta ao filho menos instruído é, "eu sei meu filho, eu sei". O
poder de senso não tem, como no caso de Isaque, obscurecido a sua visão espiritual.
Aprendera na escola da experiência a importância de se manter agarrado aos
propósitos divinos, e a influência da natureza não pode afastá-lo deles.
No capítulo 48:11 temos um lindo exemplo do modo como o nosso Deus sempre se
eleva acima de todos os nossos pensamentos, e Se mostra melhor do

Aspectos Proféticos
E também a graça admirável de José em tudo: embora exaltado por Faraó, ele
oculta-se, com efeito, e conserva o povo em permanente obediência ao rei. Faraó
diz: "Ide a José" (capítulo 41:55), e José, com efeito, diz: "tudo o que tendes e sois
deveis a Faraó". Tudo isto é muito interessante e conduz a alma a esse tempo
glorioso em que o Filho do homem tomará as rédeas do governo nas Suas mãos, por
decreto divino, e dominará sobre toda a criação redimida; a Sua Igreja—a noiva do
Cordeiro— ocupando o lugar mais próximo e de maior intimidade, segundo os
desígnios eternos. A casa de Israel, plenamente restaurada, será alimentada e
mantida pela Sua mão graciosa; e, toda a terra conhecerá a profunda
bem-aventurança de estar sob o Seu cetro. Finalmente, tendo posto todas as coisas
em sujeição, Ele entregará outra vez as rédeas do governo nas mãos de Deus, para
que "Ele seja tudo em todos". De tudo isto podemos fazer alguma ideia da riqueza e
abundância da história de José. Em suma, ela põe perante nós, distintamente, em
figura, a missão do Filho à casa de Israel — a Sua humilhação e rejeição — os
profundos exercícios, arrependimento e restauração final de Israel —, a união da
Igreja com Cristo, a Sua exaltação e o governo universal, e, por fim, aponta-nos o
tempo em que "Deus será tudo em todos". É escusado frisar que todas estas coisas
são largamente ensinadas, e plenamente estabelecidas, através de todo o cânon
inspirado; não estabelecemos, portanto, a sua verdade sobre a história de José;
contudo é consolador encontrarmos aqui tais símbolos destas verdades preciosas;
provam-nos a unidade divina que atravessa toda a Escritura. Quer nos voltemos
para o Gênesis ou Efésios — os profetas do Velho ou do Novo Testamento —
aprendemos as mesmas verdades: "TODA A ESCRITURA É DIVINAMENTE
INSPIRADA."
FIM
— CAPÍTULO 1 —

A REDENÇÃO

Os Caminhos de Deus para com Israel


Pela graça de Deus, vamos agora encetar o estudo do Livro do Êxodo, cujo assunto
principal é a REDENÇÃO. Os primeiros cinco versículos relembram as cenas finais do
livro precedente. Os objetivos favorecidos do amor de Deus são postos perante nós, e
depressa nos vemos conduzidos pelo autor inspirado à ação do livro.
No nosso estudo sobre o Livro do Gênesis, vimos que o que levou os irmãos de José a
descerem ao Egito foi o seu procedimento para com ele. Este fato deve ser considerado
sob dois aspectos distintos. Em primeiro lugar podemos ver nele uma lição solene com o
procedimento de Israel para com Deus; e em segundo lugar, temos nele uma lição cheia
de estímulo no desenrolar dos planos de Deus a favor de Israel.
E, no tocante ao procedimento de Israel para com Deus, poderá haver coisa mais solene
do que seguir até ao fim os resultados da maldade que cometeram contra aquele em
quem a mente espiritual discerne um símbolo admirável do Senhor Jesus Cristo?
Totalmente indiferentes à angústia da sua alma, os filhos de Jacó entregaram José nas
mãos dos incircuncisos, e qual foi o resultado? Desceram ao Egito para aí passarem por
aquelas profundas e dolorosas experiências de coração tão gráfica e comovedoramente
descritas nos capítulos finais do Gênesis. E isto não foi tudo: uma época longa de
provação estava reservada aos seus descendentes, no próprio país onde José encontrara
um cárcere.
Porém, Deus intervinha em tudo isto, assim como o homem, e dispunha-Se a usar das
Suas prerrogativas, que consiste em fazer com que do mal saia bem. Os irmãos de José
puderam vendê-lo aos ismaelitas; os ismaelitas, por sua vez, venderam-no a Potifar; e
este lançou-o na prisão, mas o Senhor estava, acima de tudo, cumprindo os Seus
poderosos desígnios. A cólera do homem redundará em Seu louvor (Sl 76:10). Ainda não
tinha chegado a altura em que os herdeiros estariam preparados para a herança, nem a
herança estava preparada para os herdeiros. Os fornos de tijolo iriam constituir uma
escola severa para os descendentes de Abraão; enquanto que nos montes e vales da
terra prometida (Dt 11:11) se acumulava a iniquidade dos amorreus.

Como Deus Cumpre seus Desígnios


Tudo isto é profundamente interessante e instrutivo. Há rodas que giram dentro de outras
rodas no mecanismo do governo de Deus (Ez 1:16). O Senhor serve-Se duma variedade
infinda de agentes para realizar os Seus propósitos inescrutáveis. A mulher de Potifar, o
copeiro do rei, os sonhos do Faraó, o cárcere, o trono, as cadeias, o sinete real, a fome—
tudo está ao Seu soberano dispor, e tudo serve de instrumento no desenrolar dos Seus
prodigiosos desígnios. A mente espiritual deleita-se em meditar nestas coisas ao
percorrer o vasto domínio da criação e da providência e ao reconhecer, em tudo, o
mecanismo que o Deus Onisciente e Onipotente utiliza para executar os Seus propósitos
de amor redentor.
É verdade que podemos ver muitos sinais da serpente, pegadas bem definidas do inimigo
de Deus e do homem; coisas que não podemos explicar nem compreender; a inocência
que sofre e a maldade que prospera podem dar certa aparência de verdade ao raciocínio
dos incrédulos e cépticos; porém o verdadeiro crente descansa na certeza de que "O Juiz
de toda a terra" fará justiça (Gn 18:25).
Bendito seja Deus pela consolação e encorajamento que nos dão estas reflexões!
Precisamos delas a cada instante, ao atravessarmos este mundo de pecado, onde o
inimigo tem feito mal aterrador, no qual os vícios e paixões dos homens produzem frutos
tão amargos e onde o caminho do verdadeiro discípulo apresenta escabrosidades tais
que a simples natureza jamais poderia suportar. A fé sabe, de certeza, que existe Alguém
atrás dos bastidores a Quem o mundo não vê nem respeita, e, sabendo-o, pode dizer com
serenidade: "tudo vai bem".
Estes pensamentos são-nos sugeridos pelas palavras no começo deste livro. "O meu
conselho será firme, e farei toda a minha vontade" (Is 46:10), diz o Senhor.
O inimigo pode opor-se; mas Deus há-de estar sempre acima dele; e tudo que
precisamos é de um espírito simples e pueril de confiança e descanso nos propósitos
divinos. A incredulidade prefere olhar para os esforços que o inimigo faz para neutralizar
os planos de Deus, sem ter em conta o poder de Deus para lhes dar cumprimento. E para
este poder que a fé volve os olhos, e assim obtém vitória e goza de paz constante. E com
Deus que a fé tem que ver e a Sua infalível fidelidade. Não se apoia sobre as areias
movediças das coisas humanas e das influências terrenas, mas sim na rocha inabalável
da eterna Palavra de Deus. E esta a base sólida e santa da fé. Venha o que vier,
permanece nesse santuário de força.
"Sendo, pois, José falecido, e todos os seus irmãos, e toda aquela geração." E depois? A
morte poderia porventura prejudicar os desígnios do Deus vivo? Certamente que não.
Deus aguardava apenas o momento destinado, o momento oportuno, e então as
influências mais hostis serviram de instrumento no desenrolar dos Seus planos.

Um Rei que não conhecia a Deus


"Depois, levantou-se um novo rei sobre o Egito, que não conhecera a José, o qual disse
ao seu povo: Eis que o povo dos filhos de Israel é muito e mais poderoso do que nós. Eia,
usemos sabiamente para com ele, para que não se multiplique, e aconteça que, vindo
guerra, ele também se ajunte com os nossos inimigos, e peleje contra nós, e suba da
terra" (versículos 8-10). Vemos aqui o raciocínio de um coração que nunca aprendera a
contar com Deus nos seus cálculos. O coração não-regenerado nunca o pode fazer, e por
isso, quando Deus se revela, todos os seus argumentos caem por terra. Fora de Deus, ou
independentemente d'Ele, podem parecer muito prudentes, mas logo que Deus aparece
em cena, vê-se que são perfeita loucura.
Mas porque havemos nós de permitir que as nossas mentes sejam, de qualquer modo,
influenciadas por argumentos e cálculos que dependem, para a sua verdade aparente, da
exclusão total de Deus? Fazê-lo é, em princípio, e de acordo com a sua extensão,
praticamente, ateísmo. No caso de Faraó verificamos que ele podia julgar corretamente
as várias eventualidades dos negócios do seu reino: a multiplicação do povo, as
possibilidades de guerra e de os israelitas fazerem causa comum com o inimigo e
abandonarem o país. Ele podia pesar todas estas circunstâncias na balança com invulgar
sagacidade; mas nunca lhe ocorreu que Deus pudesse ter alguma coisa a ver com o
assunto. Este simples pensamento, se alguma vez tivesse ocorrido a Faraó, bastaria para
lançar a confusão em todos os seus planos classificando-os como loucura.
Ora é conveniente refletirmos que sucede sempre assim com o raciocínio da mente
céptica do homem. Deus é inteiramente excluído; sim, a sua pretendida verdade e solidez
dependem dessa exclusão. O aparecimento de Deus em cena dá o golpe mortal em todo
o cepticismo e infidelidade. Até ao momento em que o Senhor aparece, podem pavonear-
se no palco com maravilhosa demonstração de sabedoria e destreza; porém, assim que o
olhar distingue o mais fraco vislumbre do bendito Senhor, são despojados do manto da
sua ostentação e revelados em toda a sua nudez e deformidade.
Com referência ao rei do Egito, pode dizer-se, com segurança, que errou grandemente,
não conhecendo a Deus nem os Seus desígnios imutáveis. Faraó ignorava que, muitos
séculos antes, ainda ele estava longe de respirar o fôlego desta vida mortal, a palavra e o
juramento de Deus—"duas coisas imutáveis"—haviam assegurado infalivelmente a
libertação completa e gloriosa daquele mesmo povo que ele, na sua sabedoria, propunha
esmagar. Tudo isto ele desconhecia; e, portanto, todos os seus pensamentos e todos os
seus planos baseavam-se sobre a ignorância dessa grande verdade, fundamento de
todas as verdades, que DEUS, É. Imaginava, loucamente, que, com a sua sabedoria e
poder, poderia impedir o crescimento daqueles acerca dos quais Deus havia dito: "serão
como as estrelas dos céus e como a areia que está na praia do mar" (Gn 22:17).
Portanto, o seu procedimento não passava de loucura e insensatez.
O pior erro que alguém pode cometer é agir sem contar com Deus. Mais cedo ou mais
tarde o pensamento de Deus impor-se-á ao seu espírito e então dá-se a destruição
terrível de todos os seus planos e cálculos. Quando muito, tudo quanto é empreendido
sem contar com Deus só pode durar o tempo presente. Mas não pode de modo algum
alongar-se para a eternidade. Tudo quanto é apenas humano, por muito sólido, brilhante e
atraente que possa ser, está destinado a cair nas garras da morte e a abolorecer no
silêncio do túmulo. A leiva do vale há-de cobrir as maiores honras e as glórias mais
brilhantes do homem (Jó 21:33); a mortalidade está esculpida na sua fronte, e todos os
seus projetos são evanescentes.
Pelo contrário, tudo aquilo que está ligado e fundado em Deus permanecerá para sempre.
"O seu nome permanecerá eternamente; o seu nome se irá propagando de pais a filhos"
(SI 72:17).

A Segurança proporcionada pela Fé


Quão grande é portanto a estultícia do débil mortal que se levanta contra o Deus eterno
arremetendo "com os pontos grossos dos seus escudos" (Jó 15:26). Era como se o
monarca do Egito tivesse procurado deter com a sua fraca mão a maré do oceano,
impedir a multiplicação daqueles que eram objetos dos propósitos eternos do Senhor. Por
isso, embora pusessem "sobre eles maiorais de tributos, para os afligirem com as suas
cargas... quanto mais os afligiam, tanto mais se multiplicavam e tanto mais cresciam". E
assim há-de ser sempre. "Aquele que habita nos céus se rirá: o Senhor zombará deles"
(SI 2:4). Sobre a oposição dos homens e dos demônios cairá eterna confusão. Isto dá
doce descanso ao coração, num ambiente onde tudo é, aparentemente, tão hostil a Deus
e tão contrário à fé. Se não tivéssemos a certeza de que "a cólera do homem louvará" o
Senhor (SI 76:10) sentir-nos-íamos abatidos frequentemente em face das circunstâncias e
das influências que nos rodeiam neste mundo. Mas graças a Deus não atentamos "nas
coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e
as que se não veem são eternas" (2 Co 4:18) .Com esta certeza bem podemos dizer:
"Descansa no SENHOR e espera nele; não te indignes por causa daquele que prospera
em seu caminho, por causa do homem que executa astutos intentos" (SI 37:7). Como a
verdade destas palavras é claramente discernida neste capítulo, tanto no caso dos
oprimidos como no que se refere ao opressor! Se Israel tivesse atentado nas coisas que
se viam, que eram elas? A ira do Faraó, a severidade dos exatores, as aflições, um
serviço rigoroso, a amarga escravatura, barro e tijolos. Porém, as coisas que se não viam
o que eram?- Os propósitos eternos de Deus, as Suas promessas infalíveis, o dealbar de
um dia de salvação e a "toda de fogo" da redenção de Jeová. Que maravilhoso contraste!
Só a fé podia compreender tudo isto, assim como nada senão a fé podia habilitar qualquer
pobre israelita oprimido a lançar uma vista de olhos desde os fornos de tijolo do Egito
para os campos verdejantes e os ricos vinhedos da terra de Canaã. Só a fé podia
reconhecer nesses escravos oprimidos, que labutavam nos fornos de tijolo do Egito, os
herdeiros da salvação e os objetos do interesse e do favor celestiais.
Assim era então e assim é agora. "Andamos por fé e não por vista" (2 Co 5:7). "Ainda não
é manifesto o que havemos de ser" (1 Jo 3:2). "Enquanto estamos no corpo, vivemos
ausentes do Senhor" (2 Co 5:6). Como fato estamos no Egito, no entanto, em espírito,
estamos em Canaã celestial. A fé põe o coração sobre o poder das coisas divinas e
invisíveis e deste modo habilita-o a elevar-se acima de tudo o que existe aqui, onde
reinam "a morte e as trevas". Ah! Se tivéssemos esta fé infantil que se senta junto à fonte
pura e eterna da verdade para beber da sua água, a qual reanima o espírito prestes a
desfalecer e comunica energia ao novo homem em marcha para a casa do Pai!

As Parteiras Hebreias
Os versículos finais deste capítulo oferecem-nos uma lição edificante com a conduta
dessas mulheres tementes a Deus, Sifrá e Puá. Arrostando com a ira do rei não
executaram o seu plano cruel e por isso Deus lhes fez casas."...aos que me honram,
honrarei" (1 Sm 2:30). Recordemos sempre esta lição e atuemos de acordo com ela.

— CAPÍTULO 2 —

O NASCIMENTO DE MOISÉS

O Fracasso de Satanás
Esta parte do Livro do Êxodo abunda em princípios profundos de verdade divina—
princípios que podemos subdividir da seguinte forma: o poder de Satanás, o poder de
Deus e o poder da fé.
No último versículo do primeiro capítulo lemos: "Então, ordenou Faraó a todo o seu povo,
dizendo: A todos os filhos que nascerem lançareis no rio". Este era o poder de Satanás. O
rio era o lugar da morte; e, por meio da morte, o inimigo procurou frustrar os propósitos de
Deus. Tem sido sempre assim. A serpente sempre tem vigiado com olhar maligno os
instrumentos que Deus está prestes a usar para realizar os Seus desígnios. Vejamos o
caso de Abel, em Gênesis, capítulo 4. A serpente não estava espreitando aquele vaso de
Deus para o pôr de parte por meio da morte? Vejamos o caso de José, em Gênesis,
capítulo 37. Aí o inimigo procura pôr o homem escolhido por Deus num lugar de morte.
Vejamos o caso da "semente real", em 2 Crônicas, capítulo 22; a matança promovida por
Herodes, em Mateus 2; e a morte de Cristo, em Mateus 27. Em todos estes casos vemos
o inimigo procurando, com a morte, interromper a corrente de atuação divina.
Mas, bendito seja Deus, há qualquer coisa depois da morte. Toda a esfera de ação divina,
pelo que respeita à redenção, está para além dos limites do domínio da morte. Quando o
poder de Satanás se esgota é que o de Deus começa a mostrar-se. A sepultura é o limite
da atividade de Satanás; mas é aí que começa também a atividade divina. Isto é uma
verdade gloriosa. Satanás tem o poder da morte; porém, Deus é o Deus dos vivos e dá a
vida que está fora do alcance e poder da morte—uma vida na qual Satanás não pode
tocar. O coração encontra doce refrigério nesta verdade, num mundo onde reina a morte.
A fé pode contemplar calmamente Satanás empregando a plenitude do seu poder; ela
pode apoiar-se sobre a potente intervenção de Deus na ressurreição. Pode postar-se
junto da sepultura que acabou de fechar-se sobre um ente amado e beber dos lábios
d'Aquele que é "a ressurreição e a vida" a elevada garantia de uma imortalidade gloriosa.
Ela sabe que Deus é mais forte que Satanás e pode portanto esperar, serenamente, a
manifestação desse poder superior, e enquanto assim espera encontra a sua vitória e a
sua paz. Temos um nobre exemplo deste poder da fé nos primeiros versículos do capítulo
que estamos considerando.

Os Pais de Moisés
"E foi-se um varão da casa de Levi e casou com uma filha de Levi. E a mulher concebeu,
e teve um filho, e, vendo que ele era formoso, escondeu-o três meses. Não podendo,
porém, mais escondê-lo, tomou uma arca de juncos e a betumou com betume e pez; e,
pondo nela o menino, a pôs nos juncos à borda do rio. E a irmã do menino postou-se de
longe, para saber o que lhe havia de acontecer" (versículos l a 4).
Aqui temos uma cena de tocante interesse, qualquer que seja o ponto de vista por que a
encaramos. Na realidade, era simplesmente o triunfo da fé sobre as influências da
natureza e da morte, deixando lugar para que o Deus da ressurreição agisse na Sua
esfera e no caráter que Lhe é próprio. É certo que o poder do inimigo está patente, visto a
criança ter de ser colocada em tal posição — em princípio, uma posição de morte. E, além
disso, era como se uma espada atravessasse o coração da mãe ao ver o seu filho
precioso exposto à morte. Satanás podia agir e a natureza podia chorar; contudo, o
Vivificador dos mortos estava detrás daquela nuvem sombria e a fé via-O ali iluminando o
cume dessa nuvem com os Seus raios brilhantes e vivificadores. "Pela fé, Moisés, já
nascido, foi escondido três meses por seus pais, porque viram que era um menino
formoso; e não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:23).

A Arca de Junco
Assim, esta digna filha de Levi ensina-nos uma santa lição. A sua arca de juncos
betumada com betume e pez proclama a confiança que ela tinha na verdade que havia
qualquer coisa que, como no caso de Noé, "pregoeiro da justiça", podia defender aquele
"menino formoso" das águas da morte. Devemos nós supor que esta "arca" fosse apenas
uma invenção humana? Foi inventada por previsão e habilidade do homem'?- Foi a
criança colocada na arca por inspiração do coração da mãe, que alimentava a doce mas
ilusória esperança de salvar, por esse meio, o seu ente querido da morte? Se a nossa
resposta a estas interrogações fosse afirmativa perderíamos, quanto a mim, o ensino
precioso de todo o assunto. Como admitir a suposição que a "arca" fosse inventada por
quem não via outro destino para o seu filho senão afogando-o? Não há outra maneira de
encarar essa significante estrutura senão como um saque da fé apresentado na tesouraria
do Deus da ressurreição. Aquela arca foi inventada pela fé, como vaso de misericórdia,
para conduzir o "menino formoso" através das águas da morte ao lugar que lhe era
designado pelos propósitos imutáveis do Deus vivo. Quando contemplamos esta filha de
Levi curvada sobre aquela "arca" de juncos, que a sua fé havia construído, despedindo-se
do seu filho, concluímos que ela segue as mesmas pisadas que seu pai Abraão deu
quando se levantou de diante do seu morto para comprar a cova de Macpela aos filhos de
Hete (Gênesis, capítulo 23). Não vemos nela apenas a energia da natureza que se
debruça sobre o objeto das suas afeições prestes a cair nas garras do rei dos terrores.
Não, mas reconhecemos nela a energia da fé que a habilitou a postar-se, como
vencedora, junto da margem do caudal frio da morte, observando o vaso escolhido de
Jeová até que passe em segurança para a outra margem.
Sim, prezado leitor, a fé pode voar ousadamente a essas regiões que estão muito
afastadas deste mundo de morte e vasta desolação; e com o seu olhar de águia
atravessar essas nuvens que se acumulam sobre a sepultura e ver como o Deus da
ressurreição cumpre os Seus desígnios eternos numa esfera onde os dardos da morte
não podem jamais chegar. Ela pode postar-se sobre a Rocha dos Séculos e esperar em
atitude de triunfo enquanto as vagas da morte bramam e se desfazem a seus pés.
Deixai-me perguntar: que valor tinha o mandamento do rei para alguém que possuía estes
princípios celestiais?
Que importância tinha esse mandamento para uma mulher que podia permanecer
calmamente ao lado da sua "arca de juncos" e encarar impavidamente a morte? O
Espírito Santo responde: "não temeram o mandamento do rei" (Hb 11:26). O espírito que
sabe um pouco o que é ter comunhão com Aquele que ressuscita os mortos nada receia e
pode fazer coro triunfante com 1 Coríntios 15: "Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde
está, ó inferno, a tua vitoriai Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a
lei. Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo". Pode
pronunciar estas palavras de triunfo sobre Abel martirizado, sobre José no fundo da cova,
sobre Moisés na arca de juncos, sobre "a semente real" exterminada por mão de Atália e
sobre os inocentes de Belém, assassinados por ordem do cruel Herodes; e, acima de
tudo, no túmulo do Capitão da nossa salvação.
Contudo, é possível que alguns não possam distinguir a obra da fé na arca de juncos.
Alguns talvez não possam ultrapassar a compreensão da irmã de Moisés, a qual se
"postou de longe, para saber o que lhe havia de acontecer". É que a "sua irmã" não
estava à altura da mãe pelo que respeitava à fé. Sem dúvida, havia nela esse profundo
interesse, essa verdadeira afeição, que vemos em "Maria Madalena e a outra Maria,
assentadas defronte do sepulcro" (Mt 27:61). Porém, naquela que fez a arca de juncos
havia alguma coisa muito superior ao interesse ou afeto. E certo que a mãe do menino
não se postou de longe para ver o que havia de acontecer ao seu filho; e, por isso, à
semelhança do que acontece frequentemente, a dignidade da fé poderia parecer, no seu
caso, indiferença. Porém, não era indiferença, mas, sim, verdadeiro engrandecimento da
fé. Se o afeto natural não a obrigava a ficar junto daquele ambiente de morte era apenas
porque o poder da fé lhe havia confiado uma obra mais nobre na presença do Deus da
ressurreição. A fé dela havia aberto lugar para Deus naquele ambiente, e Ele manifesta-
Se logo duma maneira gloriosa.

A Filha de Faraó
"E a filha de Faraó desceu a lavar-se no rio, e as suas donzelas passeavam pela borda do
rio; e ela viu a arca no meio dos juncos e enviou a sua criada, e a tomou. E, abrindo-a, viu
o menino, e eis que o menino chorava; e moveu-se de compaixão dele e disse: Dos
meninos dos hebreus é este" (versículo 5-6). Aqui, pois, começa a soar a resposta divina
em doce murmúrio aos ouvidos da fé. Deus intervinha em tudo isto. O racionalismo, o
cepticismo, a infidelidade, e o ateísmo, podem rir-se desta ideia. E a fé também; mas são
risos diferentes. Os primeiros riem com desprezo da ideia da intervenção divina num
banal passeio duma princesa real pela margem do rio. A segunda ri de cordial
contentamento ao pensar que Deus está em tudo. E, de fato, se alguma vez Deus
interveio em qualquer coisa foi neste passeio da filha do Faraó, embora ela o não
soubesse.
Uma das mais ditosas ocupações da alma regenerada é seguir as pegadas divinas em
circunstâncias e acontecimentos que a mente irrefletida atribui ao acaso ou à fatalidade.
Por vezes a coisa mais banal pode ser um importantíssimo elo numa cadeia de
acontecimentos de que Deus Se está servindo para levar avante os Seus grandiosos
desígnios. Vejamos, por exemplo, Ester 6:1; que encontramos? Um monarca pagão que
passa uma noite inquieta. Nada há de extraordinário nisso, podemos supor; e, no entanto,
esta circunstância constitui um elo numa grande cadeia de acontecimentos providenciais,
ao fim da qual surge a maravilhosa libertação dos descendentes oprimidos de Israel.
Assim sucedeu com a filha do Faraó e o seu passeio pela margem do rio. Mas ela não
pensava que estava ajudando os intentos do "Senhor Deus dos hebreus"! Mal ela sabia
que o bebê que chorava na arca de juncos viria ainda a ser o instrumento do Senhor para
abalar a terra do Egito até aos seus alicerces! E contudo era assim. O Senhor pode fazer
com que a cólera do homem redunde em Seu louvor (SI 76:10) e restringir o restante
dessa cólera. Como a verdade deste fato transparece claramente nas palavras que se
seguem!
"Então, disse sua irmã à filha de Faraó: Irei eu a chamar uma ama das hebreias, que crie
este menino para ti? E a filha de Faraó disse-lhe: Vai. E foi-se a moça e chamou a mãe do
menino. Então, lhe disse a filha de Faraó: Leva este menino e cria-mo; eu te darei teu
salário. E a mulher tomou o menino e criou-o. E, sendo o menino já grande, ela o trouxe à
filha de Faraó, a qual o adotou; e chamou o seu nome Moisés e disse: Porque das águas
o tenho tirado" versículos (7 a 10).
A fé da mãe de Moisés encontra aqui a sua inteira recompensa; Satanás fica embaraçado
e a sabedoria maravilhosa de Deus é revelada. Quem poderia supor que aquele que
havia dito às parteiras das hebreias "se for filho, matai-o", acrescentando, "a todos os
filhos que nascerem lançareis no rio", havia de ter na sua própria corte um desses
próprios filhos? O diabo foi vencido com as suas próprias armas, porque Faraó, de quem
queria servir-se para frustrar os propósitos de Deus, foi usado por Deus para alimentar e
educar esse Moisés, que havia de ser o Seu instrumento para confundir o poder de
Satanás. Providência notável! Maravilhosa sabedoria! Certamente, "até isto procede do
Senhor" (Is 28:29). Possamos nós confiar n'Ele com mais simplicidade, e então a nossa
carreira será mais brilhante e o nosso testemunho mais eficaz.

A Sua Educação
Meditando sobre a história de Moisés é necessário considerar este grande servo de Deus
debaixo do ponto de vista duplo do seu caráter pessoal e o seu caráter figurativo.
No caráter pessoal de Moisés há muito, muitíssimo, que aprender. Deus teve não só de o
elevar como de o treinar, dum e doutro modo, durante o longo espaço de oitenta anos:
primeiro na casa da filha do Faraó e depois "atrás do deserto". À nossa fraca mentalidade
oitenta anos parecem muito tempo para a preparação dum ministro de Deus. Mas os
pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos. O Senhor sabia que eram
necessários esses dois períodos de quarenta anos para preparar o Seu vaso eleito.
Quando Deus educa alguém, fá-lo duma maneira digna de Si e do Seu Santo serviço. O
seu trabalho não o confia a noviços. O servo de Cristo tem muitas lições que aprender,
deve passar por vários exercícios e padecer muitos conflitos em segredo antes de estar
realmente apto a agirem público. A natureza humana não gosta deste método — prefere
evidenciar-se em público a aprender em particular. Gosta mais de ser contemplada e
admirada pelos homens do que de ser disciplinada pela mão de Deus. Porém isto não
serve. Nós temos que seguir o caminho traçado pelo Senhor.
A natureza pode precipitar-se no campo das operações, mas Deus não a quer ali. É
necessário que aquilo que é humano seja quebrantado, consumido e posto de lado: o
lugar que lhe compete é o da morte. Se a natureza teima em entrar em atividade, Deus,
na Sua fidelidade infalível e na Sua perfeita sabedoria, ordena as coisas de tal maneira
que o resultado dessa atividade se transforma em fracasso e confusão. Ele sabe o que
há-de fazer com a nossa natureza, onde deve ser colocada e como guardá-la. Oh! que
todos possamos estar mais íntima comunhão com Deus no que diz respeito aos Seus
pensamentos quanto ao "eu" e tudo que com ele se relaciona. Assim cairemos menos em
erro, a nossa vida será mais fiel e moralmente elevada, o nosso espírito estará tranquilo e
o nosso serviço será, então, mais eficiente.

O Primeiro Contato com seus Irmãos


"E aconteceu naqueles dias que, sendo Moisés já grande, saiu a seus irmãos e atentou
nas suas cargas; e viu que um varão egípcio feria a um varão hebreu, de seus irmãos. E
olhou a uma e a outra banda, e, vendo que ninguém ali havia, feriu ao egípcio e
escondeu-o na areia" versículos (11-12). Moisés mostra aqui zelo por seus irmãos "mas
não com entendimento" (Rm 10:2). Ainda não chegara o tempo determinado por Deus
para julgar o Egito e libertar Israel, e o servo inteligente deve aguardar sempre o tempo de
Deus. Moisés era "já grande" e "instruído em toda a ciência dos egípcios"; e, além disso,
"cuidava que seus irmãos entenderiam que Deus lhes havia de dar liberdade pela sua
mão" (At 7:25). Tudo isto era verdade, todavia, ele correu, evidentemente, antes de
tempo, e quando alguém procede assim o resultado é o fracasso (1).
E não só o fracasso como também manifesta incerteza, falta de serena devoção e santa
independência no progresso de um trabalho começado antes do tempo determinado por
Deus. ―Moisés olhou a uma e outra banda.‖ Não há necessidade disto quando se age com
e para Deus e na plena compreensão dos Seus pensamentos quanto aos pormenores da
Sua obra. Se o tempo determinado por Deus tivesse realmente chegado, e se Moisés
sentisse que havia sido incumbido de executar a sentença de Deus sobre o egípcio, se
sentisse ainda a presença divina consigo, não teria olhado "a uma e outra banda."
_____________________________
(1) No discurso de Estêvão, perante o conselho, em Jerusalém, há uma referência à ação
de Moisés, que é conveniente considerar. "E, quando completou a idade de quarenta
anos, veio-lhe ao coração ir visitar seus irmãos, os filhos de Israel. E, vendo maltratado
um deles, o defendeu e vingou o ofendido matando o egípcio. E ele cuidava que os seus
irmãos entenderiam que Deus lhes havia de dar liberdade pela sua mão; mas eles não
entenderam" (At 7:23-25). É evidente que o fim de Estêvão, com todo o seu discurso, era
fazer com que a história da nação produzisse efeito sobre as consciências daqueles que
estavam perante ele; e seria contrário a este objetivo e contra a regra do Espírito no Novo
Testamento levantar aqui a questão se Moisés não havia atuado antes do tempo
determinado por Deus.
Além disso, Estêvão limita-se a dizer que lhe veio ao coração ir visitar seus irmãos. Não
diz que Deus o enviou por essa época. Tão-pouco toca de nenhuma maneira na questão
do estado moral daqueles que o rejeitaram: "...eles não entenderam". Quanto a eles, isto
um fato, quaisquer que fossem as lições que Moisés pudesse ter de aprender com o
assunto. O homem espiritual não tem dificuldade em compreender isto.
Considerando Moisés como uma figura, podemos ver neste acontecimento da sua vida a
missão de Cristo a Israel e a forma como eles o rejeitaram e a recusa em que Ele
reinasse sobre eles. Em contrapartida, se considerarmos Moisés pessoalmente, vemos
que ele, à semelhança de outros, cometeu erros e mostrou fraquezas: em algumas
ocasiões andou depressa, noutras devagar. Tudo isto é fácil de compreender e só
contribui para engrandecer a graça infinda e a paciência inexaurível de Deus.

A Morte do Egípcio, um Ato Impensado e Prematuro


Este ato de Moisés encerra uma lição profundamente prática para todos os servos de
Deus. Duas circunstâncias se ligam com ela, a saber: o receio da ira do homem e a
esperança do favor humano. O servo do Deus vivo não deve atentar numa nem outra.
Que importa a ira ou o favoritismo dum pobre mortal àquele que está investido da
incumbência divina e que goza da presença de Deus?-Para um tal servo estas coisas têm
menos importância que o pó dos pratos duma balança. "Não o mandei eu? Esforça-te e
tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes, porque o SENHOR, teu Deus, é contigo,
por onde quer que andares" (Js 1:9). "Tu, pois, cinge os teus lombos, e levanta-te, e dize-
lhes tudo quanto eu te mandar-, não desanimes diante deles, porque eu farei com que
não temas na sua presença. Porque eis que te ponho hoje por cidade forte, e por coluna
de ferro, e por muros de bronze, contra toda a terra; e contra os reis de Judá, e contra os
seus príncipes, e contra os seus sacerdotes, e contra o povo da terra. E pelejarão contra
ti, mas não prevalecerão contra ti; porque eu sou contigo, diz o SENHOR, para te livrar"
(Jr 1:17-19).
Colocado assim sobre este terreno elevado, o servo de Cristo não olha a uma e outra
banda, mas atua de acordo com o conselho da sabedoria celestial: "Os teus olhos olhem
direitos e as tuas pálpebras olhem diretamente diante de ti" (Pv 4:25). A sabedoria divina
faz-nos sempre olhar para cima e para a frente. Sempre que olhamos em redor para
evitar o olhar desdenhoso de um mortal ou para merecer o seu sorriso, podemos estar
certos que há qualquer coisa que está mal; estamos fora do terreno próprio de serviço
divino. Falta-nos a certeza de termos a incumbência divina e de sentirmos a presença do
Senhor, ambas as coisas tão essenciais.
É verdade que há muitos que, por ignorância profunda ou excessiva confiança em si
próprios, entram para uma esfera de serviço para a qual Deus nunca os destinou e para a
qual, portanto, os não preparou. E não só o fazem como aparentam uma frieza de ânimo
e uma confiança em si próprios perfeitamente espantosas para aqueles que podem
formar um conceito imparcial dos seus dons e dos seus méritos. Contudo essas
aparências depressa cedem à realidade, e não podem modificar em nada o princípio que
nada pode impedir realmente o homem de olhar "a uma e outra banda" senão a convicção
íntima de ter recebido uma missão de Deus e de desfrutar a Sua presença. Quando
possuímos estas coisas somos inteiramente livres das influências humanas e estamos
independentes dos homens. Ninguém está em tão boas condições de servir os homens
como aquele que é independente deles; contudo, aquele que conhece o seu verdadeiro
lugar pode baixar-se e lavar os pés dos seus irmãos. Quando desviamos o olhar do
homem e o fixamos sobre o único Servo verdadeiro e perfeito, não o encontramos
"olhando a uma e outra banda", pelo simples motivo que nunca procurou agradar aos
homens mas a Deus. Não temia a ira do homem nem cortejava o seu favor. Os Seus
lábios nunca se abriram para provocar os aplausos dos homens, nem jamais os fechou
para evitar as suas críticas. Por isso, o que dizia e fazia tinha uma santa estabilidade e
elevação. Jesus é o único de quem se pôde dizer com verdade, "cujas folhas não caem e
tudo quando fizer prosperará" (Sl 1:3). Em tudo que fazia prosperava, porque fazia todas
as coisas para Deus. Cada ação, cada palavra, cada movimento, cada olhar, cada
pensamento era como um belo cacho de frutos enviados ao alto para refrescar o coração
de Deus. Jamais receou pelos resultados da Sua obra, porquanto sempre trabalhou com
e para Deus na compreensão plena da sua vontade. A Sua própria vontade, posto que
fosse divinamente perfeita, nunca se confundiu com o que, como homem, fazia sobre a
terra, e assim podia dizer: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas
a vontade daquele que me enviou" (Jo 6:38). Por isso, deu "o seu fruto na estação
própria" (Sl 1:3), e fez sempre o que agradava ao Pai (Jo 8:29), e, portanto, nada teve que
temer, nem necessidade de arrependimento nem de "olhar a uma e a outra banda".

A Graça de Deus Lembra-se Somente dos Atos da Fé (Hebreus 11)


Nisto, como em tudo mais, o Mestre bendito forma um contraste notável com os Seus
servos mais honrados e destacados. O próprio Moisés "temeu" (versículo 14), e Paulo
teve de se arrepender (2 Co 7:8); porém, o Senhor Jesus nunca fez uma coisa nem outra.
Jamais se viu forçado a recuar um passo, a arrepender-se duma palavra ou a corrigir um
pensamento.
Tudo quanto fez foi absolutamente perfeito. Era tudo fruto dado na estação própria. O
curso da Sua vida santa e celestial deslizava adiante sem obstáculos nem deslizes. A sua
vontade estava perfeitamente submissa ao Pai. Os melhores homens, e até mesmo os
mais dedicados, cometem erros; mas é perfeitamente exato que quando mais, pela graça,
nos é dado mortificarmos a nossa vontade, menos erramos. E uma feliz circunstância
quando, dum modo geral, a nossa vida é de fé e de dedicação exclusiva a Cristo.
Assim sucedeu com Moisés. Era um homem de fé, um homem que absorveu em alto grau
o espírito do seu Mestre e que seguiu com maravilhosa firmeza os Seus passos. É certo
que antecipou, como notamos, em quarenta anos o período que Deus destinara para
julgar o Egito e libertar Israel; todavia, quando lemos o comentário inspirado do Capítulo
11 de Hebreus nenhuma menção encontramos deste fato. Encontramos somente o
princípio divino que, dum modo geral, orientou a sua vida: "Pela fé, Moisés, sendo já
grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, escolhendo, antes, ser maltratado
com o povo de Deus do que por, um pouco de tempo, ter o gozo do pecado; tendo, por
maiores riquezas, o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito; porque tinha em vista
a recompensa. Pela fé, deixou o Egito, não temendo a ira do rei; porque ficou firme, como
vendo o invisível" (Hb 11:24-27).
Esta passagem apresenta-nos os atos de Moisés de uma maneira cheia de graça.
É assim que o Espírito Santo sempre conta a história dos santos do Velho Testamento.
Quando descreve a vida dum homem, apresenta-o como ele é, com todas as suas falhas
e imperfeições. Mas quando, no Novo Testamento, comenta essa biografia limita-se a dar
o princípio que o orientou e o resultado da sua atividade. Por isso, não obstante lermos
em Êxodo que Moisés "olhou a uma e a outra banda", e disse; "certamente este negócio
foi descoberto", e por fim que "fugiu de diante da face de Faraó", lemos também na
epístola aos Hebreus que o que ele fez, fê-lo "pela fé"— não temeu a ira do rei — e ficou
firme como vendo o invisível.
Assim acontecerá em breve quando vier o Senhor, "o qual também trará à luz as coisas
ocultas das trevas e manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de
Deus o louvor" (1 Co 4:5). Eis aqui uma verdade consoladora e preciosa para toda a alma
reta e o coração fiel. O coração pode formar muitos projetos que, por diversas razões, a
mão não pode realizar. Todos esses intentos serão manifestados quando o Senhor vier.
Bendita seja a graça divina por nos haver dado uma tal certeza! As devoções do coração
são muito mais preciosas para Cristo do que as obras mais espaventosas que as mãos
possam executar. Estas podem dar algum brilho aos olhos do homem; mas aquelas são
devidamente apreciadas pelo coração de Jesus. As obras podem ser assunto de
conversação dos homens, mas as afeições são manifestadas diante de Deus e dos Seus
anjos. Que todos os servos de Cristo saibam ter os seus corações somente ocupados
com Ele e os seus olhos postos na Sua vinda.

Aquilo que a Fé Compreende


Estudando a vida de Moisés, vemos que a fé o fez seguir um caminho completamente
diferente do curso normal da natureza humana, levando-o a desprezar não apenas todos
os prazeres e atrações e honras da corte de Faraó, mas a abandonar uma larga esfera de
atividade. A razão teria feito com que ele seguisse um caminho completamente oposto,
aconselhando-o a usar a sua influência a favor do povo de Deus em vez de sofrer com
ele. Segundo o parecer do homem, parecia que a Providência havia aberto um campo de
trabalho extenso e importante para Moisés; e de fato se alguma vez a mão de Deus se
manifestou pondo um homem numa posição especial foi decerto o caso de Moisés.
Devido a uma intervenção maravilhosa e por uma série incompreensível de
circunstâncias, em que era revelada em cada uma delas a mão do Todo-Poderoso, e que
nenhuma provisão humana jamais poderia combinar, a filha do Faraó veio a ser o
instrumento usado para tirar Moisés das águas, criá-lo e educá-lo até que "completou a
idade de quarenta anos" (At 7:23). Em tais circunstâncias o abandono da sua alta posição
e da influência que esta lhe dava não podia ser considerado senão como consequência
de um zelo mal entendido.
A pobre razão podia assim discorrer. Porém a fé pensa de uma maneira diferente, porque
a natureza e a fé estão sempre em oposição uma à outra. E embora não possam estar de
acordo em um só ponto, é possível que não haja nada em que se acham tão distanciadas
como sobre aquilo que se chama geralmente "indicações providenciais". A natureza
considerará sempre essas indicações como autorizações de complacência; ao passo que
a fé encontrará nelas a oportunidade de renúncia própria. Jonas podia ter imaginado que
era um caso extraordinário da Providência o fato de encontrar um navio que ia partir para
Tarsis; mas o fato é que isso foi apenas uma porta pela qual ele fugiu do caminho da
obediência.
Sem dúvida alguma, é privilégio do crente ver a mão de seu Pai celestial e ouvira Sua voz
em todas as coisas; mas não deve ser guiado pelas circunstâncias. Um crente que é
assim guiado é como um barco no mar alto sem leme nem bússola, à mercê das ondas e
do vento. A promessa de Deus aos Seus filhos é esta: "Guiar-te-ei com os meus olhos"
(SI 32:8); e a Sua palavra de admoestação é: "Não sejas como o cavalo, nem como a
mula, que não têm entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio, para que se não
atirem a ti" (SI 32:9). E muito melhor sermos guiados pelos olhos do nosso Pai Celestial
do que pelo cabresto e freio das circunstâncias; e nós sabemos que, na acepção normal
da palavra, "Providência" é apenas outro termo para o impulso das circunstâncias.
Ora, a energia da fé mostra-se recusando e desprezando constantemente essas
pretendidas manifestações providenciais. "Pela fé Moisés... recusou ser chamado filho da
filha de Faraó", e "pela fé deixou o Egito" (Hb 11:24 e 27). Tivesse ele formado o seu juízo
pela luz dos seus olhos, e teria agarrado a dignidade proposta como dádiva evidente da
Providência, e teria continuado na corte do Faraó como sendo uma esfera de utilidade
aberta plenamente para si pela mão de Deus. Porém, ele andou por fé e não por vista: e,
por isso, desprezou tudo. Que nobre exemplo! Que Deus nos dê graça para podermos
imitá-lo!
E note-se o que foi "o vitupério de Cristo" que Moisés "teve por maiores riquezas do que
os tesouros do Egito" (Hb 11.26). Não foi apenas o opróbrio por Cristo: "...as afrontas dos
que te afrontaram caíram sobre mim" (Sl 69:8). O Senhor identificou-Se em graça perfeita
com o Seu povo. Veio do céu, e, deixando o seio do Pai, pondo de parte a Sua glória,
tomou o lugar do Seu povo, confessou o pecado dos Seus e sofreu o seu castigo no
madeiro de maldição. Tal foi o Seu sacrifício voluntário; não somente agiu por nós, como
Se fez um conosco, libertando-nos desta forma perfeitamente de tudo que era ou poderia
ser contra nós.
Vemos, pois, como Moisés estava em harmonia com o espírito e a mente de Cristo, pelo
que respeitava ao povo de Deus. Vivera rodeado de todo o conforto, pompa e dignidade
da casa do Faraó, onde "o gozo do pecado" e "os tesouros do Egito" o cercavam
profusamente. Tudo isto ele podia ter gozado se quisesse. Podia ter vivido e morrido no
meio da riqueza e do esplendor. Toda a sua vida, desde o começo até ao fim, podia, se
ele tivesse preferido, ter sido iluminada pelo sol do favor real; mas isso não teria sido "fé";
nem tão-pouco conforme com Cristo. Da sua elevada posição, ele viu os seus irmãos
vergados sob o peso do seu fardo, e a f é levou-o a ver que o seu lugar era estar com
eles. Sim, com eles em toda a sua ignomínia, escravidão e sofrimento. Fosse ele movido
apenas pela benevolência, pela filantropia ou o patriotismo e podia ter usado a sua
influência pessoal a favor de seus irmãos; talvez conseguisse induzir Faraó a aliviar o seu
fardo e tornar a sua vida um pouco mais fácil por meio de concessões reais a seu favor;
porém um tal procedimento nunca satisfazia um coração que pulsava em comum com o
coração de Cristo. Era um coração assim que Moisés, pela graça de Deus, trazia em seu
seio; e, portanto, com todas as forças e todo o afeto desse mesmo coração, lançou-se de
alma, corpo e espírito no próprio meio dos seus irmãos oprimidos. ―Escolheu antes ser
maltratado com o povo de Deus", e, além disso, fê-lo por fé.
Que o leitor pondere estes fatos. Não nos devemos contentar com desejar apenas bem
ao povo de Deus, em servi-lo ou em falar benevolamente em seu favor. Devemos estar
inteiramente identificados com ele, por desprezado ou injuriado que possa ser. Até certo
ponto, é uma coisa agradável para um espírito benévolo e generoso favorecer o
Cristianismo; mas é uma coisa muito diferente e se identificar com os cristãos ou sofrer
com Cristo. Um defensor é uma coisa, um mártir é outra totalmente diferente. Esta
distinção é clara em todo o Livro de Deus. Obadias teve cuidado das testemunhas de
Deus, mas Elias foi uma testemunha para Deus (1 Rs 18:3- 4). Dário era tão dedicado a
Daniel que perdeu o repouso de uma noite por causa dele; porém Daniel passou essa
mesma noite na cova dos leões, como testemunha da verdade de Deus (Dn 6:18).
Nicodemos aventurou-se a falar uma palavra a favor de Cristo, porém um discipulado
mais completo tê-lo-ia levado a identificar-se com Cristo.

José e Moisés, Figuras de Cristo


Estas considerações são eminentemente práticas. O Senhor Jesus não quer proteção,
mas sim comunhão. A verdade a Seu respeito é-nos revelada, não para advogarmos a
Sua causa na terra, mas para termos comunhão com a Sua Pessoa no céu. Ele
identificou-Se a Si Próprio conosco ao preço enormíssimo de tudo que o amor podia dar.
Nada o obrigava a isso; podia ter continuado a gozar o Seu lugar "no seio do Pai" por toda
a eternidade. Mas, então, como poderia essa onda poderosa de amor, que estava retida
em Seu coração, avançar até nós, pecadores culpados e merecedores do infernou Então
entre Ele e nós não podia existir nenhuma unidade senão sob condições que exigiam de
Sua parte o abandono de todas as coisas. Contudo, bendito seja o Seu nome adorável
por todos os séculos eternos, esse abandono foi feito voluntariamente. "O qual se deu a si
mesmo por nós, para nos remir de toda a iniquidade e purificar fará si um povo seu
especial, zeloso de boas obras" (Tt 2.14). Não quis gozar sozinho a Sua glória. O Seu
coração amantíssimo deleita-se em associar "muitos filhos" Consigo nessa glória. "Pai",
diz Ele, "aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo,
para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me hás amado antes da criação
do mundo" (Jo 17:24). Tais eram os pensamentos de Cristo com respeito ao Seu povo; e
podemos ver facilmente como Moisés simpatizou com estes preciosos pensamentos.
Indubitavelmente, participou em alto grau do espírito do Seu Mestre, e mostrou esse
espírito excelente sacrificando de sua própria vontade todas as considerações pessoais e
associando-se sem reservas ao povo de Deus.
O caráter pessoal e os atos deste honrado servo de Deus serão considerados no estudo
subsequente deste livro, limitamo-nos aqui a considerá-lo como uma figura do Senhor
Jesus Cristo. Que Moisés é uma figura do Senhor é evidente pela leitura da passagem
seguinte: "O SENHOR, teu Deus, te despertará um profeta do meio de ti, de teus irmãos,
como eu; a ele ouvireis" (Dt 18:15). Não estamos, portanto, fantasiando em imaginação
humana quando consideramos Moisés como uma figura, pois que é este o ensino claro
das Escrituras, e nos versículos finais deste capítulo de Êxodo vemos este símbolo sob
dois aspectos: primeiro, sendo rejeitado por Israel; e, segundo, na sua união com uma
mulher estrangeira do país de Midiã.
Estes dois pontos já foram considerados, até certo ponto, na história de José, o qual,
sendo rejeitado por seus irmãos segundo a carne, se uniu a uma noiva egípcia. Neste
caso, como no caso de Moisés, vemos simbolizados a rejeição de Cristo por Israel e a
Sua união com a Igreja, mas num aspecto diferente. No caso de José temos a
demonstração de inimizade positiva contra a sua pessoa. Em Moisés é a rejeição da sua
missão, que vemos. No caso de José lemos, "...seus irmãos... aborreceram-no e não
podiam falar com ele pacificamente" (Gn 37:4). Mas no caso de Moisés, foi-lhe dito:
"Quem te tem posto a ti por maioral e juiz sobre nós?" (Êx 2:14). Em suma, aquele foi
pessoalmente odiado; este oficialmente rejeitado.
O mesmo acontece na forma como o grande mistério da Igreja é exemplificado na história
desses dois santos do Velho Testamento. "Asenate" representa uma fase da Igreja de
todo diferente daquela que temos na pessoa de "Zípora" (Gn 41:45, Êx. 2:21). Asenate foi
unida a José no tempo da sua exaltação; Zípora foi a companheira de Moisés durante o
tempo da sua vida obscura no deserto (comparem-se Gn 41:41-45 com Êx. 2:15; 3:1).É
verdade que José e Moisés foram, ao tempo da sua união com mulheres estrangeiras,
rejeitados por seus irmãos; todavia, o primeiro era governador sobre toda a terra do Egito,
ao passo que o último apascentava as ovelhas "atrás do deserto".
Portanto, quer contemplemos Cristo em glória ou oculto para a visão do mundo, a Igreja
está intimamente unida com Ele. E agora, visto que o mundo não O vê, tão-pouco pode
tomar conhecimento desse corpo que é inteiramente um com Ele. "Por isso o mundo nos
não conhece, porque o não conhece a ele" (1 Jo 3:1). Muito em breve, Cristo aparecerá
em Sua glória, e a Igreja com Ele. "Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar,
então, também vós vos manifestareis com ele em glória" (Cl 3:4).
E em João 17:22 e 23, lemos, também: "E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para
que sejam um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam
perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim e que tens
amado a eles como me tens amado a mim" (¹).
Tal é, pois, a posição santa e gloriosa da Igreja. Ela é uma com Aquele que é rejeitado
pelo mundo, mas que ocupa o trono da Majestade nos céus. O Senhor Jesus Cristo
tornou-Se responsável por ela na cruz, a fim de que ela pudesse compartilhar com Ele da
Sua rejeição agora e da sua glória no futuro. Que todos os que fazem parte de um corpo
assim altamente privilegiado sejam mais compenetrados do sentimento que lhes convém
seguir e do caráter de que devem estar revestidos! Então haveria uma resposta clara e
plena por parte dos filhos de Deus a esse amor com que Ele nos amou e à dignidade com
que Ele os investiu. A vida do cristão deveria ser sempre o resultado natural de um
privilégio realizado e não o resultado constrangido de votos e resoluções legais, o fruto
próprio de uma posição conhecida e gozada pela fé e não o fruto dos esforços próprios
para se chegara uma posição "pelas obras da lei". Todos os verdadeiros crentes são uma
parte da noiva de Cristo. Por isso devem a Cristo os afetos que correspondem a essa
relação. É uma relação que não se obtém devido ao afeto, mas o afeto emana dessa
comunhão. Que assim seja, ó Senhor, com todo o povo amado que tu adquiriste à custa
do teu sangue!

____________________
(1) Em João 17:21- 23 fala-se da unidade que a Igreja tinha a responsabilidade de
manter, mas em que falhou completamente, e da unidade que Deus realizará
infalivelmente e que manifestará em glória.

— CAPÍTULO 3 —

DEUS CHAMA A MOISÉS

A Escola de Deus
Vamos agora retomar a história pessoal de Moisés e considerar este grande servo de
Deus durante o período tão interessante da sua vida de solidão, período este que não vai
além de quarenta dos seus melhores anos, se assim podemos dizer. O Senhor, na Sua
bondade, Sua sabedoria e Sua fidelidade, põe o Seu servo à parte, livre das vistas e dos
pensamentos dos homens, para o poder educar debaixo da Sua imediata direção. Moisés
tinha necessidade disso. Havia passado quarenta anos na casa do Faraó; e, conquanto a
sua estadia ali não deixasse de ser proveitosa, todavia, tudo que tinha aprendido ali não
era nada em comparação com o que aprendeu no deserto. O tempo passado na corte
pode ter sido valioso, mas a sua estadia no deserto era indispensável.
Nada há que possa substituir a comunhão secreta com Deus ou a educação que se
recebe debaixo da Sua disciplina. "Toda a ciência dos egípcios" não havia habilitado
Moisés para o serviço a que devia ser chamado. Havia podido seguir uma carreira
brilhante nas escolas do Egito, e deixara-as coberto de honras literárias, com uma
inteligência enriquecida por vastos conhecimentos e o coração cheio de orgulho e
vaidade. Havia podido tomar os seus títulos nas escolas dos homens, mas tinha ainda de
aprender o alfabeto na escola de Deus. Porque a sabedoria e a ciência humanas, por
muito valor que tenham em si mesmas, não podem fazer de ninguém um servo de Deus
nem qualificar alguém para desempenhar qualquer cargo no serviço divino. Tais
conhecimentos podem qualificar o homem natural para desempenhar um papel
importante diante do mundo: porém é necessário que todo aquele que Deus quer
empregar ao Seu serviço seja dotado de qualidades bem diferentes, qualidades aliás que
só se adquirem no santo retiro da presença de Deus.
Todos os servos de Deus têm aprendido por experiência a verdade do que acabamos de
dizer: Moisés em Horeb, Elias no ribeiro de Kerith, Ezequiel junto ao rio Chebar, Paulo na
Arábia, e João em Patmos, são todos exemplos da grande importância de estarmos a sós
com Deus. E se considerarmos o Servo Divino, vemos que o tempo que Ele passou em
retiro foi dez vezes aquele que gastou no Seu ministério público. Ainda que perfeito em
inteligência e vontade, passou trinta anos na casa humilde de um carpinteiro de Nazareth,
antes de se manifestar em público. E, mesmo depois de ter entrado na Sua carreira
pública, quantas vezes o vemos afastar-Se das vistas dos homens, para gozar a solidão
santa da presença do Pai!
Pode perguntar-se, como poderá a falta de obreiros, que tanto se faz sentir, ser suprida
se é necessário que todos passem por uma educação secreta tão prolongada antes de
tomarem o seu trabalhou Mas isto é um assunto do Mestre, e não nosso. É Ele Quem
sabe chamar os obreiros, e Quem sabe também prepará-los. Não é obra do homem. Só
Deus pode chamar e preparar um verdadeiro obreiros, e se Ele toma muito tempo para
educar um tal homem, é porque assim o julga bom; sabemos que, se outra fosse a Sua
vontade, Ele podia realizar esta obra num instante. Uma coisa é evidente: Deus tem tido
todos os Seus servos muito tempo a sós Consigo, tanto antes como depois da sua
entrada no ministério público; ninguém poderá dispensar este treino, e sem esta
disciplina, sem este exercício privativo, nunca seremos mais que teóricos superficiais e
inúteis. Todo aquele que se aventura numa carreira pública sem se haver pesado na
balança do santuário, e medido na presença de Deus, parece-se com um navio saindo à
vela sem lastro próprio, que terá fatalmente de soçobrar ao primeiro embate do vento.
Pelo contrário, existe para todo aquele que tem passado pelas diferentes classes da
escola de Deus uma profundidade, uma solidez, e uma constância que são os elementos
essenciais na formação do caráter de um verdadeiro e eficiente servo de Deus.
Por isso, quando vemos Moisés, à idade de quarenta anos, afastado de todas as honras e
magnificência de uma corte, para passar quarenta anos na solidão do deserto, podemos
esperar vê-lo empreender uma carreira de serviço notável; no que aliás não ficamos
desapontados. Ninguém é verdadeiramente educado senão aquele a quem Deus educa.
Não está dentro das possibilidades do homem preparar um instrumento para serviço do
Senhor. A mão do homem é incapaz de moldar um "vaso idôneo para uso do Senhor" (2
Tm 2:21). Somente Aquele que quer usá-lo pode prepará-lo; e no caso presente temos
um exemplo singularmente belo do Seu modo de o fazer.

No Deserto
"E APASCENTAVA Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midiã; e levou o
rebanho atrás do deserto e veio ao monte de Deus, a Horebe" (versículo 1). Aqui temos,
pois, uma mudança admirável na vida de Moisés. Lemos em Gênesis, capítulo 46:34, que
"todo o pastor de ovelhas é abominação para os egípcios" e no entanto, Moisés, que era
"instruído em toda a ciência dos egípcios", é transferido da corte do Egito para trás do
deserto para apascentar um rebanho de ovelhas e preparar-se para o serviço de Deus.
Seguramente isto não "é o costume dos homens" (2 Sm 7:19) nem o curso natural das
coisas: é um caminho incompreensível para a carne e o sangue. Nós havíamos de pensar
que a educação de Moisés estava terminada logo que se tornou mestre de toda a
sabedoria do Egito, gozando ao mesmo tempo das vantagens que oferece a este respeito
a vida de uma corte. Poderíamos supor que um homem tão privilegiado havia de ter não
apenas uma instrução sólida e extensa mas também uma distinção tal em suas ações que
o tornariam apto para cumprir toda a espécie de serviço. Porém, ver um tal homem, tão
bem dotado e instruído, ser chamado a abandonar a sua elevada posição para ir
apascentar ovelhas atrás do deserto, e qualquer coisa incompreensível para o homem,
qualquer coisa que humilha até ao pó o seu orgulho e a sua glória, mostrando que as
vantagens humanas são de pouco valor diante de Deus; mais ainda, que são "como
esterco", não somente aos olhos do Senhor, mas aos olhos de todos aqueles que têm
sido ensinados na Sua escola (Fp. 3:8).
Existe uma diferença enorme entre o ensino humano e o divino. Aquele tem por fim
cultivar e exaltar a natureza; este começa por a "secar" e a pôr de lado. "Ora, o homem
natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e
não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2:14). Podeis
esforçar-vos por educar o homem natural tanto quanto puderdes, sem que jamais
consigais fazer dele um homem espiritual. "O que é nascido da carne é carne, e o que é
nascido do Espírito é espírito" (Jo 3:6). Se alguma vez um "homem natural" educado pôde
esperar ter êxito no serviço de Deus, esse tal foi Moisés: ele era "instruído... e poderoso
em suas palavras e obras" (At 7:22); e todavia teve que aprender alguma coisa "atrás do
deserto" que as escolas do Egito nunca lhe haviam ensinado. Paulo aprendeu muito mais
na Arábia do que jamais havia aprendido aos pés de Gamaliel (¹). Ninguém pode ensinar
como Deus; e é necessário que todos aqueles que querem aprender d'Ele estejam a sós
com Ele. Foi no deserto que Moisés aprendeu as lições mais preciosas, mais profundas,
mais poderosas e mais duráveis; e é ali que devem encontrar-se todos os que queiram
ser formados para o ministério.
______________________
(1) O leitor não deve supor, nem por um momento, que pretendemos com estes
comentários depreciar o valor de uma instrução realmente proveitosa ou a cultura das
faculdades intelectuais. De modo nenhum. Se, por exemplo, o leitor é pai deve adornar a
mente de seu filho com conhecimentos úteis: deve ensinar-lhe tudo que poderá ser
utilizado mais tarde no serviço do Mestre: não deve embaraçá-lo com aquilo que ele terá
de pôr de parte seguindo a carreira cristã, nem deve conduzi-lo, com o fim de lhe dar uma
educação brilhante, por uma região da qual é quase impossível sair com uma inteligência
imaculada. Seria tão lógico encerrá-lo numa mina de carvão durante dez anos, com o fim
de o pôr em condições de discutir as propriedades da luz e da sombra, como fazê-lo
caminhar sobre o lodaçal da mitologia pagã com o fim de o preparar para a interpretação
dos oráculos de Deus ou de o fazer capaz de pastorear o rebanho de Cristo.

Ali onde só Deus é Exaltado


Possa o leitor conhecer por sua própria experiência o que significa estar "atrás do
deserto", esse lugar sagrado onde a natureza é deitada ao pó e só Deus é exaltado. Ali,
os homens e as coisas, o mundo e o ego, as circunstâncias presentes e a sua influência
são estimados pelo seu justo valor. Ali, e somente ali, encontrará uma balança
divinamente afinada para pesar tudo que há no Seu íntimo e à Sua volta.
Ali não há falsas cores, nem falsos penachos, nem vãs pretensões! O inimigo das almas
não tem o poder de dourar a areia desse lugar. Tudo ali é realidade. O coração que tem
estado na presença de Deus, "atrás do deserto", tem pensamentos justos sobre todas as
coisas; e eleva-se muito acima da influência excitante dos negócios deste mundo. O
clamor e ruído, a agitação e confusão do Egito não penetram nesse lugar retirado; não se
ouve o ruído do mundo comercial e financeiro; a ambição não se faz sentir ali; a ambição
da glória do mundo desaparece e a sede de ouro não se sente ali. Os olhos não são
obscurecidos pela concupiscência, nem o coração é ocupado pelo orgulho; a adulação
dos homens não interessa, e a sua censura não desanima. Em suma: tudo é posto de
parte exceto a calma e luz da presença divina; só se ouve a voz de Deus; a Sua luz
ilumina; os Seus pensamentos são aceitos pelo coração. Tal é o lugar onde têm de ir
todos aqueles que quiserem ser aptos para o ministério.
Prouvera a Deus que todos aqueles que aparecem em cena para servir em público
conhecessem melhor o que é respirar a atmosfera desse lugar. Haveria, então, menos
tentativas infrutíferas no exercício do ministério, mas haveria um serviço bem mais eficaz
para glória de Cristo.
O que Vemos e Ouvimos
Examinemos agora o que Moisés viu e ouviu, atrás do deserto. Teremos ocasião de ver
como ele aprende ali lições que estão muito acima da inteligência dos mais eminentes
sábios do Egito. Poderia parecer à razão humana uma estranha perda de tempo um
homem como Moisés ter de passar quarenta anos sem fazer nada senão guardar ovelhas
no deserto. Porém, ele estava ali com Deus, e o tempo assim passado nunca é perdido. É
conveniente recordar que há para o verdadeiro servo de Cristo alguma coisa mais do que
mera atividade. Todo aquele que está sempre em atividade corre o risco de trabalhar
demais. Um tal homem deveria meditar cuidadosamente nas palavras profundamente
práticas do Servo perfeito: "Ele desperta-me todas as manhãs, desperta-me o ouvido para
que ouça, como aqueles que aprendem" (Isaías 50:4). O servo deve estar frequentemente
na presença do seu mestre, a fim de poder saber o que deve fazer. O "ouvido" e a
"língua" estão intimamente unidos, em vários aspectos; porém, debaixo do ponto de vista
espiritual, ou moral, se o ouvido está fechado e a língua desatada, não restam dúvidas
que se dirão muitas coisas bem tolas. Por isso, "amados irmãos... todo o homem seja
pronto para ouvir; tardio para falar" (Tiago 1:19). Esta exortação oportuna baseia-se em
dois fatos: a saber, que tudo o que é bom vem do alto, e que o coração está repleto de
maldade, pronto a transbordar. Daí, a necessidade de ter o ouvido aberto e a língua
refreada: rara e admirável ciência!—ciência na qual Moisés fez grande progresso "atrás
do deserto", e que todos podem adquirir, desde que estejam dispostos a aprender nessa
escola.

A Sarça
"E apareceu-lhe o Anjo do SENHOR em uma, chama de fogo no meio de uma sarça; e
olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: agora
me virarei para lá e verei esta grande visão, porque a sarça se não queima" (versículos 2-
3). Era efetivamente uma grande visão, porque uma sarça ardia e não se consumia. A
corte do Faraó nunca poderia oferecer nada de semelhante. Porém, era uma visão
graciosa porque nela era simbolizada de um modo notável a situação dos eleitos de Deus.
Eles encontravam-se no meio do forno do Egito; e o Senhor revelava-se no meio de uma
sarça ardente. Porém, assim como a sarça se não consumia, tão-pouco eram eles
consumidos, porque Deus estava com eles. "O SENHOR dos Exércitos está conosco: o
Deus de Jacó é o nosso refúgio" (SI 46:7). Aqui temos força e segurança, vitória e paz.
Deus conosco, Deus em nós, e Deus por nós. Isto é provisão abundante para todas as
necessidades.
Não há nada mais interessante e mais instrutivo do que a maneira como aprouve ao
Senhor revelar-Se a Moisés na passagem que estamos considerando. Ele ia confiar-lhe o
encargo de tirar o Seu povo do Egito, para que eles fossem a Sua Assembleia, para
habitar no meio deles tanto no deserto como na terra de Canaã; e é do meio de uma
sarça que lhe fala. Símbolo belo, solene e próprio do Senhor habitando no meio do Seu
povo eleito e resgatado; "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29)-não para MOS
consumir, mas para consumir em nós e à nossa volta tudo que é contra a Sua santidade,
e que é, portanto, um perigo para a nossa verdadeira e eterna felicidade. "Mui fiéis são os
teus testemunhos; a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (Salmo 93:5).
O Velho e o Novo Testamento encerram vários casos em que Deus Se manifesta como
"um fogo consumidor": como por exemplo o caso de Nadabe e Abiú, em Levítico 10.
Tratava-se de uma ocasião solene. Deus habitava no meio do Seu povo, e queria manter
este numa posição digna de Si Próprio. Não podia ter feito outra coisa. Não seria para
Sua glória nem para proveito dos Seus se Ele tolerasse qualquer coisa, neles
incompatível com a pureza da Sua presença. O lugar de habitação de Deus tem que ser
santo.
Do mesmo modo, em Josué, capítulo 7, temos outra prova notável, no caso de Acã, de
que o Senhor não pode sancionar o mal com a Sua presença, qualquer que seja a forma
que o mal possa revestir ou por muito oculto que possa estar. O Senhor é "um fogo
consumidor", e, como tal, tinha de agir a respeito de tudo que pudesse manchar a
Assembleia no meio da qual habitava. Procurar unir a presença de Deus com o pecado
não julgado é o indício da impiedade.
Ananias e Safira (Atos, 5) dão-nos a mesma lição. Deus o Espírito Santo habitava na
Igreja, não somente como uma influência, mas, sim, como uma pessoa divina, de tal
maneira que ninguém podia mentir na Sua presença. A Igreja era, e é ainda agora,
morada de Deus; e é Ele Quem deve governar e julgar no meio dela. Os homens podem
reviver em união a concupiscência, a impostura e a hipocrisia; mas Deus não pode fazê-
lo. Se quisermos que Deus ande conosco, devemos julgar os nossos caminhos, ou então
Ele os julgará por nós (veja 1 Co 11:29-32).
Em todos estes casos e em muitos mais que podíamos aduzir, vemos a força destas
palavras solenes, "a santidade convém à tua casa, SENHOR, para sempre" (SI 93:5).
Para aquele que a tiver compreendido, esta verdade produzirá sempre sobre ele um efeito
moral idêntico àquele que exerceu sobre Moisés: "Não te chegues para cá; tira os teus
sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa" (versículo 5). O lugar
da presença de Deus é santo, e só se pode caminhar por ele com os pés descalços.
Deus, habitando no meio do Seu povo, comunica à Assembleia desse povo um caráter de
santidade que é a base de todo o santo afeto e de toda a santa atividade. O caráter da
habitação deriva do caráter d'Aquele que a habita.
A aplicação deste princípio à Igreja, que é agora a habitação de Deus, em Espírito, é da
maior importância prática. Assim como é bem-aventuradamente verdade que Deus habita,
pelo Seu Espírito, em cada membro da Igreja, dando deste modo um caráter de santidade
ao indivíduo, é igualmente certo que Ele habita na Assembleia; e, por isso, a Assembleia
deve ser santa. O centro em volta do qual os membros se reúnem é nada menos do que a
Pessoa de um Cristo vivo, vitorioso e glorificado. O poder que os une é nada menos do
que o Espírito Santo; e o Senhor Deus Todo-Poderoso habita neles e entre eles (vede Mt
18:20; 1 Co 6:19; 3:16-17; Ef 2:21-22). Se tais são a santidade e dignidade que
pertencem à morada de Deus, é evidente que nada impuro, quer seja em princípio, quer
na prática, deve ser tolerado. Todos os que estão relacionados com esta habitação
deviam sentir a importância e solenidade destas palavras, "o lugar em que tu estás é terra
santa." "Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá" (1 Co 3:17). Estas
palavras são dignas de toda a aceitação da parte de todos os membros da Assembleia —
de cada pedra viva no Seu santo templo! Possamos nós todos aprender a pisar os átrios
do Senhor com os pés descalços!

O Monte Horebe: Santidade e Graça


Debaixo de todos os aspectos, as visões de Horebe rendem testemunho, ao mesmo
tempo, da graça e da santidade do Deus de Israel. Se a graça de Deus é infinita, a Sua
santidade também o é; e, assim como a maneira em que Ele se revelou a Moisés nos faz
conhecer a primeira, o próprio fato de Se revelar atesta a última. O Senhor desceu porque
era misericordioso; mas, depois de haver descido, é dito que Se revelou como sendo
santo: "Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o
Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu olhar para Deus" (versículo
6). A natureza humana esconder-se-á sempre como resultado da presença divina; quando
estamos na presença de Deus, com os pés descalços e o rosto coberto, quer dizer,
naquela disposição de alma que esses atos exprimem de um modo tão admirável,
estamos em condições vantajosas para ouvir os doces acentos da graça. Quando o
homem ocupa o lugar que lhe compete, Deus pode falar-lhe em linguagem de pura
misericórdia.
"E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e
tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores.
Portanto, desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma
terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel; ...E agora, eis que o clamor dos filhos
de Israel chegou a mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os
oprimem" (versículos 7 a 9). Neste trecho, a graça absoluta, livre e incondicional do Deus
de Abraão brilha em todo o seu esplendor, livre dos "ses" e dos "mas", dos votos, das
resoluções e das condições impostas pelo espírito legalista do homem. Deus havia para
Se manifestar em Sua graça soberana, para realizar a obra de salvação, para cumprir a
Sua promessa a Abraão, promessa repetida a Isaque e a Jacó. Não havia descido para
ver se, na realidade, os herdeiros da promessa estariam em condições de merecer a
salvação. Bastava-Lhe que Necessitassem dela. Ponderarão seu estado oprimido, as
suas aflições, as suas lágrimas, os seus suspiros, e a sua pesada servidão; pois, bendito
seja o Seu nome, Ele conta os "ais" do Seu povo e põe as suas lágrimas no Seu odre (Sl
56:8). Não foi por coisa alguma de bom que houvesse visto neles que os visitou, porque
Ele sabia o que havia neles. Numa palavra, o verdadeiro fundamento da intervenção
misericordiosa do Senhor a favor do Seu povo é revelado nestas palavras: "Eu sou o
Deus de Abraão" e "Tenho visto a aflição do meu povo."
Estas palavras revelam um princípio fundamental nos caminhos de Deus. É com base
naquilo que Ele é que atua sempre. "EU SOU" assegura todas as cosias para "O MEU
POVO". Certamente, Deus não ia deixar o Seu povo no meio dos fornos de tijolo do Egito,
e debaixo do azorrague dos exatores do Faraó. Era o Seu povo, e, portanto, queria agir,
com respeito a esse povo, de uma maneira digna de Si Próprio. O fato de ser o Seu povo,
o objeto favorecido do Seu amor de eleição e possuidor da Sua promessa incondicional,
era suficiente. Nada podia impedir a manifestação pública da relação que existia entre o
Senhor e aqueles a quem, segundo os Seus desígnios eternos, havia sido assegurada a
posse da terra de Canaã. Havia descido para os libertar, e os poderes da terra e do
inferno reunidos não poderiam retê-los nem uma hora além do tempo determinado por
Ele. Podia servir-Se, e de fato serviu-Se, do Egito como escola, na qual estava o Faraó
como um mestre; porém, uma vez cumprida a sua missão, o mestre e a escola são postos
de parte, e o Seu povo é libertado com mão forte e braço estendido.

Horebe: A Revelação daquilo que deve Caracterizar todo Servo de Deus


Tal foi, pois, o caráter duplo da revelação feita a Moisés no Monte Horebe. A santidade e
a graça estão reunidas naquilo que ele viu e ouviu. E estes dois elementos acham-se
sempre, como sabemos, em todas as obras e revelações de Deus, caracterizando-a de
um modo notável; e deveriam também caracterizar a vida de todos aqueles que, de uma
maneira ou de outra, trabalham para o Senhor ou têm comunhão com ele. Todo o
verdadeiro servo é enviado da presença imediata de Deus com toda a sua santidade e
toda a sua graça; e é chamado para ser santo e gracioso — para ser o reflexo da graça e
santidade do caráter divino; e para alcançar este estado, não só tem de sair da presença
imediata de Deus como também permanecer nela, habitualmente, em espírito. Este é o
segredo do serviço eficaz para o Senhor.
Ninguém senão o homem espiritual pode compreender estas duas coisas, "sai e
trabalha", "mas não te afastes". Para poder agir por Deus em público, eu preciso de estar
com Ele no santuário. Se eu não estiver com Ele no santuário da Sua presença serei
completamente malsucedido.
Muitos fracassam particularmente nisto. Existe a possibilidade do perigo de se sair da
solenidade e calma da presença divina para o ruído da convivência com os homens e a
agitação do serviço ativo. Devemos vigiar contra este perigo.
Se perdermos esta disposição santa de espírito, a qual é representada aqui nos pés
descalços, o nosso serviço será bem depressa insípido e sem proveito. Se consentirmos
que o nosso trabalho se interponha entre o nosso coração e o Mestre, será de pouco
valor. Só podemos servir a Cristo de um modo eficaz na medida em que desfrutamos
d'Ele. É quando o coração se ocupa das Suas perfeições que as mãos executam o
serviço que Lhe é aceitável; e ninguém pode servir a Cristo com fervor, vigor, e poder
para os seus semelhantes se não estiver sendo alimentado de Cristo, no secreto da sua
alma. Poderá, certamente, pregar um sermão, orar, fazer um discurso, escrever uma
obra, e cumprir toda a rotina de serviço público, sem contudo servir a Cristo. Aquele que
pretender apresentar Cristo aos outros deve ele próprio estar ocupado com Cristo.
Feliz de todo aquele que assim exercer ministério, seja qual for o sucesso ou a aceitação
do seu trabalho. Porque ainda que esse ministério não desperte atenção, não exerça
influência, ou não produza resultados aparentes, ele tem em Cristo o seu doce retiro e
uma parte certa que nada jamais lhe poderá tirar. Ao passo que aquele que se alimenta
com os frutos do seu ministério, que sente prazer nos gozos que daí advêm, ou com a
atenção que inspira e o interesse que desperta, é semelhante a uma simples mangueira
que fornece água e fica só com ferrugem para si. É deplorável encontrar-se alguém em
condições idênticas; e todavia é esta a situação em que se encontra todo aquele que se
preocupa mais com a obra e seus resultados do que com o Mestre e a Sua glória.
Este assunto exige o juízo mais severo. O coração é enganoso, e o inimigo é astuto; daí,
a grande necessidade de prestarmos atenção à exortação, "Sede sóbrios; vigiai." E
quando a alma é levada ao convencimento dos numerosos perigos que rodeiam o servo
de Cristo que pode compreender a necessidade que tem de estar muito tempo a sós com
Deus: é ali que se está seguro e feliz. É quando começamos, continuamos e acabamos a
nossa obra aos pés do Mestre que o nosso serviço se torna verdadeiro.

Horebe: O Exame Depois de Quarenta Anos de Escola no Deserto


Depois de tudo que acabamos de dizer, é evidente para o leitor que o ar que se respira
"atrás do deserto" é um ar muito saudável para todo o servo de Cristo. Horebe é o
verdadeiro ponto de partida para todos aqueles a quem Deus envia para trabalharem para
Si. Foi em Horebe que Moisés aprendeu a descalçar os seus pés e a cobrir o seu rosto.
Quarenta anos antes ele quisera encetar a sua obra; porém a sua atividade era
prematura. Foi na solidão do monte de Deus, e do meio da sarça ardente, que a
mensagem divina ressoou aos ouvidos do servo de Deus. "Vem agora, pois, e eu te
enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito" (versículo 10).
Nestas palavras havia verdadeira autoridade. Existe uma grande diferença entre ser-se
enviado de Deus e correr sem ser enviado. Ora, é evidente que Moisés não estava apto
para o serviço quando ao princípio se dispôs a atuar. Se nada menos que quarenta anos
de disciplina secreta eram precisos, como poderia ter feito a sua obra de outra maneira ?
Era impossível. Tinha de ser ensinado por Deus e enviado por Ele; e o mesmo deve ser
com todos aqueles que tomam a carreira de serviço e testemunho por Cristo. Oh! se estas
lições fossem profundamente gravadas em nossos corações, de modo que todas as
nossas obras pudessem ter o selo da autoridade do Mestre e a Sua aprovação!
Mas temos alguma coisa mais que aprender aos pés do Monte Horebe. A alma encontra
prazer detendo-se neste lugar. "É bom que estejamos aqui" (Mt 17:4). A presença de
Deus é sempre um lugar de profundo exercício; onde o coração pode estar certo de ser
descoberto. A luz que resplandece nesse lugar santo manifesta todas as coisas; e esta é
a nossa grande necessidade no meio das vãs pretensões que nos rodeiam e do orgulho e
da própria satisfação que estão em nós.
Poderíamos pensar que, ao receber a incumbência divina, a resposta de Moisés fosse:
"eis-me aqui", ou, "que queres que eu f aça<?" Mas não; ainda não estava preparado para
isto. Sem dúvida, era a lembrança do seu primeiro fracasso que o impedia de responder
assim. Quando se age sem Deus em qualquer coisa é certo ficar-se desanimado, mesmo
quando Deus nos manda. "Então, Moisés disse a Deus: Quem sou eu, que vá a Faraó e
tire do Egito os filhos de Israel?-" (versículo 11). Este procedimento em nada se
assemelha ao homem que, quarenta anos antes, cuidava que os seus irmãos
entenderiam que Deus lhes havia de dar liberdade pela sua mão (At 7:25). Tal é o
homem! Precipitado umas vezes, vagaroso outras. Moisés aprendera muito desde o dia
em que matara o egípcio. Crescera no conhecimento de si próprio, e este conhecimento
produzira modéstia e timidez. Contudo não tinha, evidentemente, confiança em Deus. Se
eu olhar para mim próprio, "nada" farei; mas se olhar para Cristo, "posso fazer todas as
coisas". Assim, quando a modéstia e a timidez levaram Moisés a dizer: "Quem sou<?", a
resposta de Deus foi esta: "Certamente Eu serei contigo" (versículo 12), o que era mais
do que suficiente. Se Deus estiver comigo, pouco importa quem sou ou o que sou.
Quando Deus diz: "Eu te enviarei" e "serei contigo", o servo está amplamente revestido de
autoridade divina e de poder, e, portanto, deve estar perfeitamente satisfeito de ir aonde
Deus o envia.
Mas Moisés faz ainda outra pergunta, porque o coração humano está cheio de pontos de
interrogação. "E Moisés disse a Deus: Eis que, quando vier aos filhos de Israel e lhes
disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome?
Que direi-Ihes?" É maravilhoso ver como o coração humano argumenta e interroga
quando deve a Deus obediência implícita; e ainda mais maravilhosa é a graça que
suporta esses argumentos e responde a todas as interrogações. Cada pergunta parece
realçar apenas qualquer novo aspecto da graça divina.

" EU SOU O QUE SOU"


"E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de
Israel: EU SOU me enviou a vós" (versículo 14). O título que Deus dá a Si próprio é
maravilhosamente significativo. Ao estudarmos nas Escrituras os vários nomes com que
Deus se revela, vemos que se encontram intimamente ligados com as necessidades
variáveis daqueles com os quais Ele está em relação: Jeová-Jiré (o Senhor proverá);
Jeová Nissi (o Senhor minha bandeira); Jeová Chalom (o Senhor envia a paz);
JeováTsidkeno (o Senhor justiça nossa). Todos estes Seus títulos graciosos vão surgindo
para ocorrer às necessidades do Seu povo; e quando se intitula "EU SOU", abrange todas
elas. Ao assumir este título, o Senhor dava ao Seu povo um cheque em branco, que podia
comportar qualquer quantia. Ele chama-Se "EU SOU", e a fé tem somente que pedir,
valendo-se deste nome inefavelmente precioso, tudo aquilo que precisa. Deus é o único
algarismo a que a necessidade humana só tem que acrescentar os zeros. Se queremos
vida, Cristo diz: "EU SOU a vida". Se é justiça que necessitamos Ele é "o SENHOR
JUSTIÇA NOSSA". Se queremos paz, Ele é "a nossa paz". Se ansiamos por "sabedoria e
santificação e redenção", Ele foi para nós feito por Deus todas estas coisas. Numa
palavra, temos de percorrera vasta extensão das necessidades humanas para formar um
conceito justo da espantosa profundidade e âmbito deste nome adorável: "EU SOU".
Que graça não é sermos chamados a andar na companhia d'Aquele que tem um nome
assim! Estamos no deserto, onde temos de lutar com a provação, o sofrimento e
dificuldades; mas, enquanto tivermos o feliz privilégio de podermos recorrer em todo o
tempo, e em todas as circunstâncias, Aquele que se revela em tantos aspectos da graça,
correspondendo a todas as nossas necessidades e fraquezas, nada temos a recear. Foi
quando Deus se dispunha a fazer atravessar o deserto ao seu povo que revelou a Moisés
este precioso e compreensivo nome; e, embora o crente possa, agora, dizer "Aba Pai",
por meio do Espírito de adoção, nem por isso perde o privilégio de poder gozar comunhão
com Deus em todas as diversas formas em que Lhe aprouve revelar-Se.
Por exemplo, o nome de "Deus", revela-O agindo na unidade da Sua própria essência,
manifestando o seu eterno poder e a Sua divindade nas obras da criação. "Senhor Deus"
é o nome que toma em ligação com o homem. Depois, com o "Deus Todo-Poderoso"
aparece ao Seu servo Abraão para lhe dar a certeza de que cumprirá a Sua promessa a
respeito da sua semente. Como Jeová dá-se a conhecer a Israel, na libertação do Egito e
conduzindo-o ao país de Canaã.
Foi assim que Deus falou antigamente muitas vezes e de muitas maneiras aos país pelos
profetas (Hb 1:1); e o crente, debaixo de atual dispensação, possuindo o Espírito de
adoção, pode dizer: Aquele que assim se revelou, que assim falou, que assim agiu, é meu
Pai.
Não há nada mais interessante ou praticamente mais importante no seu gênero do que o
estudo destes grandes nomes que Deus toma nas diferentes dispensações. Estes nomes
são sempre empregados com conformidade moral com as circunstâncias em que são
revelados; porém, com o nome "EU SOU" existe uma tal altura, uma largura, profundidade
e comprimento que excedem todo o entendimento humano.
E não se esqueça que é somente em ligação com o Seu povo que Deus toma este título.
Não foi com esse nome que Se dirigiu a Faraó. Quando fala com ele, toma o título
importante e majestoso de "O Senhor, o Deus dos hebreus", que quer dizer, Deus em
relação com esse mesmo povo que Faraó procurava esmagar. Isto deveria ter sido o
bastante para que o Faraó compreendesse a sua terrível posição diante de Deus. "EU
SOU" não produzira ao ouvido incircunciso mais que um som ininteligível e não
comunicara realidade divina ao coração incrédulo. Quando Deus manifestado em carne
fez ouvir aos judeus infiéis do Seu tempo essas palavras, "antes que Abraão fosse, Eu
sou", eles pegaram em pedras para o apedrejar. Só o verdadeiro crente pode, em alguma
medida, experimentar e gozar o valor desse nome inefável, "EU SOU". Um tal crente pode
regozijar-se por ouvir dos lábios do bendito Senhor Jesus afirmações como estas: "Eu sou
o pão da vida"; "Eu sou a luz do mundo"; "Eu sou o bom pastor"; "Eu sou a ressurreição e
a vida"; "Eu sou o caminho, a verdade e a vida"; "Eu sou a videira verdadeira"; "Eu sou o
Alfa e o Ômega"; "Eu sou a resplandecente estrela da manhã". Numa palavra, o Senhor
pode tomar qualquer título de excelência e beleza divinas, e, tendo-o posto depois de "EU
SOU", encontrai nele JESUS, admirai-0 e adorai-O.
Assim, há doçura, bem como compreensão, no nome "EU SOU" muito para além do
poder de expressão. Todo o crente pode encontrar nele exatamente aquilo que convém à
sua necessidade espiritual, qualquer que ela seja. Não há um só atalho tortuoso na
jornada do cristão, nem uma simples fase da experiência da sua alma, nem um ponto
sequer na sua situação que não seja divinamente satisfeito por este título, pela razão
simples que só tem que colocar qualquer coisa que ele necessite, pela fé, ao lado desse
título "EU SOU" para encontrar tudo em Jesus. Para o crente, portanto, por muito fraco e
vacilante que seja, esse nome encerra uma pura bem-aventurança.
Mas embora fosse ao Seu povo eleito que Deus mandou Moisés dizer "EU SOU me
enviou a vós", este nome, considerado em relação com os descrentes, encerra um
sentido profundamente solene e uma grande realidade. Se alguém que está ainda em
seus pecados contempla, por um momento, este título maravilhoso, não pode deixar de
interrogar-se: "Qual é o meu estado em relação com este Ser que se chama a Si Mesmo
"EU SOU O QUE SOU"? Se, de fato, é verdade que ELE É, então o que é Ele para mim?
Que devo eu escrever defronte deste nome solene "EU SOU" ? Não quero despojar esta
pergunta da sua solenidade típica e poder com as minhas próprias palavras; mas oro para
que O Espírito de Deus a faça penetrar na consciência de todo o leitor que realmente
necessite de ser esquadrinhado por ela.

"Este é meu Nome Eternamente"


Não posso terminar os meus comentários sobre este capítulo sem chamar a atenção do
leitor crente, para a declaração profundamente interessante contida no versículo 15: "E
disse Deus mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR, O DEUS de
vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque; e o Deus de Jacó, me enviou a vós:
este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração." Esta
declaração encerra uma verdade muito importante—uma verdade que muitos crentes
professos parece esqueceram, a saber: que a relação de Deus com Israel é eterna. Ele é
tanto o Deus de Israel agora como o era quando os visitou na terra do Egito. Além disso,
Ele ocupa-Se com Israel agora tanto como então, se bem que de um modo diferente. A
Sua Palavra é clara e explícita: "este é meu nome eternamente". Não diz "este é meu
nome por um tempo, tanto tempo quanto eles continuarem a ser o que devem ser". Não;
mas "este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração".
Que o leitor pondere isto. "Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu" (Rm 11:2).
Obedientes ou desobedientes, unidos ou dispersos, manifestos perante as nações ou
escondidos da sua vista, são ainda o Seu povo. São o Seu povo e o Senhor é o seu
Deus. A declaração do versículo 15 do capítulo 3 de Êxodo é irrefutável. A igreja professa
não pode justificar-se de ignorar uma relação que Deus diz deve durar eternamente.
Tenhamos cuidado como empregamos a palavra "eternamente". Se dissermos que não
significa eternamente, quando aplicada a respeito de Israel, que provas temos de que
quer dizer eternamente quando aplicada a nosso respeitou Deus quer dizer aquilo que
diz; e em breve mostrará aos olhos de toda a terra que a Sua relação com Israel sobrevirá
todas as resoluções do tempo. "Porque os dons e avocação de Deus são sem
arrependimento" (Rm 11:29). Quando o Senhor disse "este é meu nome eternamente"
falou em sentido absoluto. "EU SOU" declarou que é o Deus de Israel para sempre, e os
gentios serão obrigados a compreender esta verdade e a inclinarem-se perante ela, assim
como a reconhecer que todos os desígnios providenciais de Deus a seu respeito bem
como o seu próprio destino estão ligados de um modo ou de outro com esse povo
favorecido e honrado, ainda que julgado e disperso agora. "Quando o Altíssimo distribuía
as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos
dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do SENHOR é o seu
povo; Jacó é a parte da sua herança" (Dt 32:8-9). Isto deixou de ser verdade?- O Senhor
perdeu a Sua "porção" e largou "a parte da sua herança"?- A Sua vista de terno amor já
não está fixada sobre as tribos dispersas de Israel, há muito tempo perdidas para a visão
humana? Os muros de Jerusalém já não estão perante Ele? Ou deixou o seu pó de ser
precioso aos Seus olhos? Para responder a estas interrogações seria preciso citar uma
grande parte do Velho Testemunho e uma parte não menor do Novo, mas este não é o
lugar para examinar pormenorizadamente um tal assunto. Quero apenas dizer, em
conclusão deste capítulo, que a Cristandade não deve ser ignorante "Certo sim! este
segredo... que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos
gentios haja entrado. E, assim, todo o Israel será salvo" (Rm 11:25-26).

— CAPÍTULO 4 —

A PREPARAÇÃO DO SERVO

As Objeções de Moisés e os Meios de Deus


De novo devemos deter-nos por uns momentos ao pé do monte Horebe, "detrás do
deserto" (um lugar sadio para a mente espiritual) para vermos manifestar-se de uma
maneira extraordinária a incredulidade do homem e a graça ilimitada de Deus.
"Então, respondeu Moisés e disse: Mas eis que me não crerão, nem ouvirão a minha voz,
porque dirão: SENHOR não te apareceu" (versículo 1). Como é difícil vencer a
incredulidade do coração do homem, e quão penoso é para ele confiar em Deus! Como o
ser humano é vagaroso em confiar em Deus! Como é tardo em se aventurar em qualquer
empresa confiando somente nas promessas de Deus! Tudo é bom para a natureza,
menos isto. A cana mais fraca para os olhos humanos é considerada pela natureza como
infinitamente mais sólida, como base da sua confiança, do que a rocha invisível dos
séculos (Is 26:4). A natureza precipitar-se-á sem hesitação para qualquer auxílio humano
ou cisterna rota, em vez de se alimentar da fonte das águas vivas (Jr 2:13,17:13).
Nós havíamos de pensar que Moisés tinha ouvido e visto o bastante para pôr fim aos
seus receios. O fogo consumidor na sarça que se não consumia; a graça de Deus, com
toda a sua condescendência; os títulos preciosos de Deus; a missão divina; a certeza da
presença de Deus; todas estas coisas deveriam ter afugentado todo o pensamento de
temor e comunicado ao coração uma segurança firme. Contudo, Moisés continua a fazer
perguntas, a que Deus continua a responder; e, como já frisámos, cada nova pergunta
põe em evidência nova graça. "E o SENHOR disse-lhe: Que é isso na tua mão? E ele
disse: Uma vara" (versículo 2).
O Senhor estava disposto a aceitar Moisés tal qual ele era e a servir-se do que ele tinha
na mão. A vara, com a qual ele havia conduzido as ovelhas de seu sogro, ia ser usada
para libertar o Israel de Deus, para castigar o Egito, para abrir através do mar um caminho
do povo remido do Senhor, e para fazer brotar água da rocha a fim de refrescar as hostes
sedentas de Israel no deserto. Deus serve-se dos instrumentos mais fracos para realizar
os Seus planos mais gloriosos. "Uma vara"; um corno de carneiro (Js 6:5); "um pão de
cevada" (Jz 7:13); "uma botija de água" (l Rs 19:6); "uma funda de pastor" (1 Sm 17:50);
tudo, em suma, pode servir nas mãos de Deus para cumprir a obra que Ele tem projetado.
Os homens imaginam que não se pode chegar a grandes resultados senão por grandes
meios; porém não é assim o método de Deus. Ele tanto pode servir-se de "um bicho"
como do sol abrasador; de "uma aboboreira" como de um vento calmoso (veja-se Jonas
4).

A Vara
Porém Moisés tinha de aprender uma lição muito importante, tanto a respeito da vara
como da mão que devia usá-la. Ele tinha que aprender, e o povo tinha de ser convencido.
"E Ele disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e tornou-se em cobra; e Moisés fugia
dela. Então disse o Senhor a Moisés: Estende a tua mão e pega-lhe pela cauda.(E
estendeu a sua mão e pegou-lhe pela cauda, e tornou-se em vara na sua mão). Para que
creiam que te apareceu o SENHOR; Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque e o Deus de Jacó" (versículo 5). Trata-se de um sinal profundamente significante.
A vara tornou-se serpente e Moisés fugia dela assustado; mas, segundo ordem do
Senhor, pegou-lhe pela cauda e tornou-se numa vara. Não há nada mais próprio do que
esta figura para expressar a ideia do poder de Satanás voltado contra si mesmo, e deste
fato encontramos numerosos exemplos nos meios que Deus usa; o próprio Moisés foi um
exemplo notável. A serpente está inteiramente debaixo do poder de Cristo, e logo que
chegar ao fim da sua insensata carreira, será lançada no lago de fogo, para ali receber os
frutos da sua obra por toda a eternidade:"... a antiga serpente, "o acusador" e adversário
(Ap 12:9-10) será eternamente aterrado com a vara do ungido de Deus.

A Mão Leprosa
"E disse-lhe mais o SENHOR: Mete agora a mão no teu peito; E, tirando-a, eis que a sua
mão estava leprosa, branca como a neve. E disse: Torna a meter a tua mão no teu peito.
E tornou a meter a sua mão no peito; depois tirou-a do peito; e eis que se tornara como a
sua outra carne" (versículos 6 a 7). A mão leprosa e a sua purificação representam o
efeito moral do pecado e a maneira como o pecado foi tirado pela obra perfeita de Cristo.
Posta no peito, a mão limpa tornou-se leprosa; e a mão leprosa, posta no peito, ficou
limpa. A lepra é uma figura bem conhecida do pecado; e assim como o pecado entrou no
mundo pelo primeiro homem do mesmo modo foi tirado pelo segundo. "Porque, assim
como a morte veio por um homem, também a ressurreição dos mortos veio por um
homem" (I Co 15:21).
A degradação veio por um homem, e pelo homem a redenção; pelo homem veio a ofensa
e pelo homem o perdão; pelo homem veio o pecado e pelo homem a justiça; a morte veio
ao mundo por um homem; por um homem, a morte foi abolida, e a vida, a justiça e a
glória foram introduzidas na terra. Assim, a serpente será não só eternamente vencida e
confundida, como todos os vestígios da sua obra abominável serão apagados e
destruídos e destruídos por meio do sacrifício expiatório d Aquele que Se "manifestou
para desfazer as obras do diabo" (1 Jo 3:8).

As Águas Transformadas em Sangue


"E acontecerá que, se eles te não crerem, nem ouvirem a voz do primeiro sinal, crerão a
voz do derradeiro sinal; e, se acontecer que ainda não creiam a estes dois sinais, nem
ouçam a tua voz, tomarás das águas do rio e as derramarás na terra seca; e as águas,
que tomarás do rio, tornar-se-ão em sangue sobre a terra seca" (versículos 8 a 9).
Esta é uma figura solene e mui expressiva da consequência de uma recusa em submeter-
se ao testemunho divino. Este sinal só devia ser executado caso eles recusassem os
outros dois. Em primeiro plano, se tratava de um sinal para Israel, e depois de uma praga
para o Egito.

A Falta de Eloquência
Com tudo isto o coração de Moisés não se deu por satisfeito.
"Então, disse Moisés ao SENHOR.- Ah! Senhor! Eu não sou homem eloquente, nem de
ontem, nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou
pesado de boca e pesado de língua" (versículo 10). Que terrível lentidão! Nada senão a
paciência infinita do Senhor poderia suportá-la. Evidentemente, quando Deus lhe disse,
"certamente eu serei contigo" dava-lhe a garantia infalível de que nada lhe faltaria de tudo
que fosse necessário. Se fosse necessário uma língua eloquente, que devia Moisés fazer
senão entregar o caso Aquele que lhe havia dito "EU SOU" 4 Eloquência, sabedoria,
poder, energia, estavam encerrados nesse tesouro inesgotável.
"E disse-lhe o SENHOR: Quem fez boca do homem"?- Ou quem fez o mudo, ou o surdo,
ou o que vê, ou o cego?- Não sou eu, o SENHOR ?-Vai, pois, agora, e eu serei com a tua
boca e te ensinarei o que hás de falar" (versículos 11 a 12). Graça profunda, adorável e
incomparável! Como é própria de Deus! Não há ninguém que seja como o Senhor, nosso
Deus, cuja graça paciente supera todas as nossas dificuldades e é suficientemente
abundante para todas as nossas necessidades e fraquezas. "EU O SENHOR" deveria
fazer cessar para sempre todos os argumentos dos nossos corações carnais. Mas, ah! o
raciocínio é difícil de derribar, e levanta-se de novo perturbando a nossa paz e
desonrando Aquele bendito Senhor que Se apresenta às nossas almas em toda a
plenitude da Sua graça, a fim de que sejamos cheios dela, segundo as nossas
necessidades.
É bom recordarmo-nos que, quando temos o Senhor conosco, as nossas deficiências e
fraquezas são uma ocasião para que Ele manifeste a Sua graça e infinita paciência. Se
Moisés tivesse recordado isto, a sua falta de eloquência não o teria perturbado. O
apóstolo Paulo aprendeu a dizer: "De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas
fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas
fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de
Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte" (2 Co 12:9-10). Esta é, sem dúvida,
a linguagem de um que chegou a um alto grau na escola de Cristo. É a experiência de um
homem que não se havia afligido por não possuir eloquência, por quanto havia
encontrado, na graça preciosa do Senhor Jesus Cristo, uma resposta a todas as suas
necessidades, quaisquer que fossem.
O conhecimento desta verdade deveria ter livrado Moisés da sua excessiva desconfiança
e da timidez que o dominava. Depois de o Senhor, em Sua misericórdia, lhe haver
assegurado que estaria com a sua boca, ele deveria ficar tranquilo quanto à questão da
eloquência. Aquele que fez a boca do homem podia, se houvesse necessidade disso,
enchê-la da mais poderosa eloquência. Para a fé, isto é bem simples; porém o pobre
coração incrédulo confia infinitamente mais numa língua eloquente do que n'Aquele que a
criou. Este fato seria inexplicável se não conhecêssemos de que elementos se compõe o
coração natural. O coração natural não pode confiar em Deus; e esta é a causa do defeito
humilhante de desconfiança no Deus vivo, que se manifesta até mesmo entre os filhos de
Deus, quando eles se deixarem dominar, de algum modo, pela natureza humana. Por
isso, no caso presente, Moisés hesita ainda: "Ah, Senhor! Envia por mão daquele a quem
tu hás de enviar" (versículo 13). Esta exclamação equivalia, com efeito, recusar o
privilégio glorioso de ser o único mensageiro do Senhor ao Egito e a Israel.

A Falsa Humildade
Todos nós sabemos como a humildade que Deus promove é uma graça inestimável.
"Revesti-vos de humildade" é um preceito divino; e a humildade é, incontestavelmente, o
adorno mais próprio para um pecador. Porém se recusarmos tomar o lugar que Deus nos
designa ou seguir o caminho que a Sua mão nos traça, não somos humildes.
No caso de Moisés é evidente que não tinha verdadeira humildade, visto que a irado
Senhor se acendeu contra ele (versículo 14). Longe de ser humildade, o seu sentimento
havia ultrapassado os limites de simples fraqueza. Enquanto se revestiu da aparência
excessiva de timidez, embora repreensível, a graça de Deus suportou-o e respondeu-lhe
com reiteradas promessas; porém, logo que esse sentimento tomou caráter de
incredulidade e lentidão de coração, a justa ira do Senhor acendeu-se contra Moisés; e
em lugar de ser ele o único instrumento na obra de testemunho e libertação de Israel, teve
de repartir com outro este honroso privilégio.
Nada há que seja mais desonroso para Deus ou mais perigoso para nós do que uma
humildade fingida. Quando, com o pretexto de não reunirmos certas virtudes e condições,
recusamos tomar o lugar que Deus nos dá, não mostramos humildade, visto que se
pudéssemos convencermo-nos de que possuíamos essas virtudes e essas condições
imaginaríamos que tínhamos direito a esse lugar. Por exemplo, se Moisés possuísse uma
medida de eloquência como ele julgava necessária, temos motivos para crer que estaria
pronto a partir. Ora a questão é de saber qual o grau de eloquência que ele necessitava
para poder cumprir a sua missão, enquanto que a resposta é que sem Deus nenhum grau
de eloquência humana é suficiente; ao passo que com Deus o mais simples gago pode
ser um ministro eficiente.
Eis aqui uma grande verdade prática. A incredulidade não é humildade, mas orgulho.
Recusa crer em Deus porque não encontra no ego uma razão para crer. Este é o cúmulo
da presunção. Se quando Deus fala me recuso a acreditar, com base nalguma coisa que
há em mim, faço de Deus mentiroso (l Jo 5:10). Se quando Deus declara o Seu amor, eu
não me julgo digno dele, faço de Deus mentiroso e manifesto o orgulho inerente de meu
coração. O simples pensamento de que posso merecer outra coisa que não seja o
inferno, só pode ser considerado como a mais completa ignorância da minha condição
perante Deus e do que Deus requer de mim. Enquanto que recusar o lugar que o amor
redentor de Deus me indica, com base na expiação efetuada por Cristo, é fazer de Deus
mentiroso e aviltar o sacrifício de Cristo na cruz.
O amor de Deus é derramado espontaneamente; não é atraído pelos meus méritos, mas,
sim, pela minha necessidade. Tão-Pouco se trata do lugar que mereço, mas do lugar que
Cristo merece. Cristo tomou o lugar do pecador na cruz, para que o pecador pudesse
tomar lugar com Ele na glória. Cristo tomou o lugar que o pecador merecia, para que o
pecador pudesse participar daquilo que Cristo merece. Deste modo, o ego é
completamente posto de parte: esta é a verdadeira humildade. Ninguém pode ser
verdadeiramente humilde antes de ter chegado ao lado celestial da cruz; porém ali
encontra vida divina, justiça divina e a misericórdia de Deus. Então acaba para sempre o
ego, quanto às pretensões de justiça própria, e é-se nutrido com a abundância de outrem.
Então está-se preparado, moralmente, para tomar parte no brado que há de ressoar
através da abóbada incomensurável dos céus por todos os séculos eternos, "Não a nós,
SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória" (SI 115:1).
Certamente nos ficaria mal se nos detivéssemos sobre os erros e fraquezas de um servo
tão honrado como foi Moisés, de quem está escrito que foi "fiel em toda a sua casa, como
servo, para testemunho das coisas que se haviam de anunciar" (Hb 3:5). Porém, se não
nos devemos deter sobre elas, num espírito de própria satisfação, como se em
circunstâncias semelhantes nós pudéssemos proceder de uma maneira diferente,
devemos, sem dúvida, aprender as santas lições que elas têm por fim ensinar-nos.
Devemos aprender a julgarmo-nos a nós próprios, e a pormos confiança implícita em
Deus—a pormos de lado o ego de modo que Deus possa atuar em nós, por nosso
intermédio e por nós. Este é o verdadeiro segredo do poder.

Arão Falará por Ti


Vimos como Moisés perdeu o privilégio de ser o único instrumento de Deus na obra
gloriosa que ia ser realizada. Porém isto não é tudo. "Então, se acendeu a ira do
SENHOR, contra Moisés, e disse: Não é Arão, o levita, teu irmão<? Eu sei que ele falará
muito bem: e eis que ele também sai ao teu encontro; e, vendo-te, se alegrará em seu
coração. E tu lhe falarás e porás as palavras na sua boca; e eu serei com a tua boca e
com a sua boca, ensinando-vos o que havereis de fazer. E ele falará por ti ao povo; e
acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus. Toma, pois, esta vara na tua
mão, com que farás os sinais" (versículos 14 a 17). Esta passagem é um manancial de
instruções práticas muito preciosas. Vimos a timidez e hesitação de Moisés, apesar das
várias promessas e todas as garantias que a graça divina lhe dava. E, agora, embora
nada tivesse ganhado quanto ao poder verdadeiro, apesar de não haver mais virtude ou
eficácia numa boca do que na outra, e posto que Moisés, afinal, tivesse que pôr as
palavras na boca de Arão, todavia vemo-lo pronto a partir no próprio momento em que
pode contar com a presença e cooperação de um mortal como ele; embora não tivesse
obedecido quando o Senhor lhe assegurou, repetidas vezes, que estaria com ele.
Prezado leitor, não será isto um espelho fiel no qual se refletem os nossos corações?
Sem dúvida que é. Estamos sempre prontos a confiar em qualquer coisa menos no Deus
vivo. Apoiados e protegidos por um mortal como nós avançamos resolutamente; pelo
contrário, hesitamos, titubeamos e vacilamos quando só temos a luz da presença do
Mestre para nos animar, e a força do Seu braço onipotente para nos suster. Isto deveria
humilhar-nos profundamente diante do Senhor, e levar-nos a uma maior familiaridade com
Ele, de modo a podermos confiar implicitamente n'Ele, e a avançarmos com passo firme,
porque O temos como o nosso único recurso e porção.
Não restam dúvidas que a companhia de um irmão é preciosa— "Melhor é serem dois do
que um" (Ec 4:9)— quer seja no trabalho, no repouso ou no combate. O Senhor Jesus
enviou os Seus discípulos "a dois a dois" (Mc 6:7), porque a união é sempre melhor que o
isolamento; contudo, se a nossa familiaridade pessoal com Deus, e a nossa experiência
da Sua presença, não nos proporcionarem, se for necessário, andar sozinhos, a presença
de um irmão será de pouca utilidade. É bom notar que Arão, cuja companhia parece ter
satisfeito Moisés, foi quem mais tarde fez o bezerro de ouro (Êx 32:21). Vemos com
frequência que a mesma pessoa cuja companhia nos parecia necessária para o nosso
êxito e progresso, vem a ser mais tarde um motivo de grande desgosto para os nossos
corações. Devemos relembrar isto sempre!

A Ordem na Casa do Servo, no Caminho, na Pousada


De qualquer maneira, Moisés consente por fim em obedecer; porém antes de estar
completamente preparado para a obra a quem fora chamado é preciso que passe por
outra experiência dolorosa; é necessário que Deus grave com Sua mão a sentença de
morte sobre a sua carne. "Atrás do deserto" ele havia aprendido importantes lições; mas
agora é chamado para aprender uma lição ainda mais importante "no caminho, numa
estalagem" (versículo 24). Ser-se servo do senhor é uma coisa muito séria, e a educação
ordinária não é suficiente para qualificar alguém para essa posição. É indispensável que a
natureza seja mortificada, e mantida nessa posição de morte. "Mas já em nós mesmos
tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em Deus, que
ressuscita os mortos" (2 Co 1:9).
Todo servo, para que seja bem sucedido no seu serviço, deve necessariamente saber o
que significa esta sentença de morte. Moisés teve de compenetrar-se dela, por
experiência própria, antes de ser moralmente qualificado para a sua missão. Dispunha-se
a fazer ouvir a Faraó esta solene mensagem:" ...Assim diz o Senhor: Israel é meu filho,
meu primogênito. E eu te tenho dito: Deixa ir o meu filho, para que me sirva; mas tu
recusaste deixá-lo ir; eis que eu matarei a teu filho, o teu primogênito" (versículos 22-23).
Esta era a mensagem que Moisés devia levar a Faraó — mensagem de juízo e de morte;
e, ao mesmo tempo, a sua mensagem para Israel era de vida e salvação. Lembremos que
aquele que há de falar, da parte de Deus, de morte e juízo, de vida e salvação, tem de,
antes de o fazer, realizar o poder prático destas coisas na sua alma. Sucedeu assim com
Moisés. No princípio do livro vêmo-lo no lugar da morte, figurativamente; contudo isto era
uma coisa diferente de realizar pessoalmente a experiência da morte. Por isso lemos: "E
aconteceu no caminho, numa estalagem, que o SENHOR o encontrou, e o quis matar.
Então, Zípora tomou uma pedra aguda, e circuncidou o prepúcio de seu filho, e o lançou a
seus pés, e disse: Certamente me és um esposo sanguinário. E desviou-se dele. Então,
ela disse: Esposo sanguinário, por causa da circuncisão" (versículos 24 a 26). Esta
passagem revela-nos um profundo segredo da história doméstica e pessoal de Moisés. É
evidente que, até este momento, o coração de Zípora havia fugido à ideia de empregara
faca àquilo com que o afeto da natureza estava ligado: tinha evitado a marca que devia
ser impressa sobre a carne de todos os membros do Israel de Deus, ignorando que a sua
união com Moisés implicava necessariamente a morte da natureza; e ela vacilava ante a
cruz. Isto era natural. Porém Moisés havia cedido neste assunto; e isto explica a cena
misteriosa na "estalagem". Se Zípora recusa circuncidar seu filho, o Senhor lançará mão
do seu marido; e se Moisés cede aos pensamentos de sua esposa, o Senhor procurará
matá-lo (versículo 24). A sentença de morte tem de ser escrita sobre a natureza; e se nós
procurarmos evitá-la de um modo, encontrá-la-emos de outra forma.

Zípora, Uma Figura da Igreja


Como já acentuamos, Zípora representa um símbolo interessante e instrutivo da Igreja.
Ela uniu-se a Moisés durante a época da sua rejeição; e a passagem que acabamos de
reproduzir ensina-nos que a igreja é chamada para conhecer Cristo, como Aquele a
Quem está unida, "pelo sangue", sendo seu privilégio beber o Seu cálice e ser batizada
com o Seu batismo. Estando crucificada com Ele, ela deve assemelhar-se à Sua morte,
mortificar os seus membros que estão sobre a terra, tomar a sua cruz cada dia e segui-
Lo. A sua união com Cristo é baseada no sangue, e a manifestação do poder dessa união
implica, necessariamente, a morte da natureza. "E estais perfeitos nele, que é a cabeça
de todo principado e potestade; no qual também estais circuncidados com a circuncisão
não feita por mão no despojo do corpo da carne, a circuncisão de Cristo. Sepultados com
Ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou
dos mortos" (Cl 2:10 -12).
Tal é a doutrina referente à posição da Igreja com Cristo, doutrina cheia dos mais
gloriosos privilégios para a Igreja e para cada um dos seus membros: perfeita remissão
dos pecados, justificação, completa aceitação, segurança eterna, comunhão perfeita com
Cristo em toda a Sua glória. "Estais perfeitos n'Ele". Isto, seguramente, diz tudo. Que se
poderia acrescentar àquele que está "perfeito?-" A filosofia, as tradições dos homens, os
rudimentos do mundo, a comida ou a bebida, dias santos, a lua nova ou o sábado*? "Não
toques" nisto, "não proves" aquilo, "não manuseeis", "os preceitos e doutrinas dos
homens", dias e meses e tempos e anos, poderia alguma ou todas estas coisas
acrescentar um jota ou um til àquele que Deus declarou "perfeito"1?- Seria o mesmo se
perguntássemos se, depois dos seis dias de trabalho empregados por Deus na obra da
criação, não teria sido necessário o homem dar uma última demão naquilo que Deus
havia declarado ser muito bom.
Nem tão-pouco esta perfeição deve ser considerada, de modo nenhum, como um caso de
mérito, alguma coisa a que devemos ainda chegar, e pela qual devemos lutar
diligentemente, e de cuja possessão não podemos ter a certeza até nos encontrarmos no
leito de morte, ou perante o trono do juízo. Este estado de perfeição é a parte do mais
fraco, do mais inexperiente, do menos instruído filho de Deus. O mais fraco dos santos
está incluído no vocábulo apostólico: "vós". Todos os filhos de Deus são "perfeitos em
Cristo". O apóstolo não diz "sereis perfeitos" ou "podeis ser perfeitos", "podeis esperar ser
perfeitos", ou "orai para que sejais perfeitos": não, ele, por intermédio do Espírito Santo,
declara da maneira mais absoluta, "estais perfeitos". Este é o verdadeiro ponto de partida
para o cristão, e se se toma como fim aquilo que Deus assinalou como ponto de partida, é
transtornar tudo.
Mas pode perguntar-se: não temos pecado, nem defeitos, nem imperfeições? Certamente
que sim. "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há
verdade em nós" (1 Jo 1:8). Temos pecado em nós, mas não sobre nós. Demais, diante
de Deus não estamos no nosso eu, mas sim em Cristo. É "n'Ele" que estamos "perfeitos".
Deus vê o crente em Cristo, com Cristo, e como Cristo. Esta é a sua condição imutável e
posição eterna. "O despojo do corpo da carne" é efetuado pela "circuncisão de Cristo" (Cl
2:11). O crente não está na carne, posto que a carne esteja nele; acha-se unido a Cristo
no poder de uma vida nova e sem fim, e essa vida está inseparavelmente ligada à justiça
divina, na qual o crente está perante
Deus. O Senhor Jesus tirou tudo que era contra o crente e trouxe-o para perto de Deus,
no mesmo favor que Ele Próprio goza. Em resumo: Cristo é a sua justiça. Isto põe fim a
todas as questões, responde a todas as objeções, e impõe silêncio a todas as dúvidas.
"Porque, assim o que santifica, como os que são santificados, são todos de um" (Hb
2:11).
Esta série de verdades é devida ao símbolo profundamente interessante que nos é
apresentado na união entre Moisés e Zípora. Devemos agora terminar esta parte do livro
e sair, por um momento, de "detrás do deserto", sem esquecermos as lições profundas e
as santas impressões, tão essenciais para todos os servos de Cristo e para todo o
mensageiro do Deus vivo, que ali aprendemos.
Todos os que quiserem servir eficientemente, quer seja na obra importante de
evangelização, quer nos vários ministérios da casa de Deus, que é a Igreja, terão a
necessidade de receber as instruções preciosas que Moisés recebeu ao pé do Monte
Horebe e "no caminho da estalagem".
Se se desse mais atenção às coisas que acabamos de meditar, não se veria tantos que
correm sem ser enviados, nem tantos lançarem-se num ministério para o qual nunca
foram destinados. Que todo aquele que se levanta para pregar, ou exortar, ou servir de
qualquer forma, pondere, seriamente, se, na verdade, está preparado e se foi ensinado e
enviado por Deus. No caso negativo o seu trabalho não será reconhecido por Deus nem
usado para bênção dos homens, e quanto mais cedo desistir tanto melhor será para si
próprio e para aqueles a quem tem procurado impor o pesado fardo de lhe prestarem
atenção. Jamais um ministério humanamente ordenado, ou ordenado por vontade própria,
será próprio do recinto sagrado da Igreja de Deus. Todo o servo de Deus deve ser dotado
de Deus, ensinado por Deus e enviado por Deus.

Arão vai ao Encontro de Moisés


"Disse também o SENHOR a Arão: Vai ao encontro de Moisés, ao deserto. E ele foi,
encontrou-o no monte de Deus e o beijou. E anunciou Moisés a Arão todas as palavras do
SENHOR, que o enviara, e todos os sinais que lhe mandara" (versículos 27 -28). Esta
formosa cena de união e terno amor fraternal forma um flagrante contraste com outras
que tiveram lugar mais tarde na carreira destes dois homens através do deserto.
Quarenta anos de vida no deserto devem fazer certamente grandes alterações nos
homens e nas coisas. Contudo, é agradável prestar atenção aos primeiros dias de vida
cristã, antes das duras realidades da vida do deserto terem impedido, de qualquer modo,
o impulso de afeto amoroso: antes de o engano, a corrupção, e a hipocrisia terem
praticamente destruído a confiança do coração pondo o ente moral sob a fria influência de
uma disposição duvidosa.
Que um tal resultado tem sido produzido, em muitos casos, através dos anos de
experiência, é, infelizmente, bem verdade. Feliz aquele que, posto que os seus olhos
hajam sido abertos para verem a natureza humana através de uma luz mais clara do que
aquela que o mundo dá, sabe todavia servira sua geração na energia daquela graça que
emana do seio de Deus. Quem conheceu jamais a profundidade e sinuosidade do
coração humano como o Senhor Jesus as conheceu"?- O Senhor Jesus "a todos
conhecia; e não necessitava que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o
que havia no homem" (Jo 2.-24-25); conhecia os homens tão bem que não podia confiar
neles; não podia dar crédito ao que eles professavam, ou sancionar as suas pretensões.
E contudo, quem foi jamais tão cheio de graça como Ele?- Quem como Ele foi tão
amoroso, tão terno, tão compassivo e tão condoído?- Quem tinha um coração que
compreendia todos i Ele podia sentir por todos. O perfeito conhecimento que tinha da
vileza humana não o levou a afastar-se das suas misérias. "Andou fazendo bem". Por
quê? Era acaso porque imaginava que todos aqueles que se agrupavam em torno de Si
eram sinceros? Não; mas "porque Deus era com Ele" (At 10:38). Eis o exemplo que
devemos imitar. Sigamo-lo, ainda que, fazendo-o, tenhamos que pisar o nosso eu e todos
os seus interesses, a cada passo da senda.
Quem desejará possuir essa sabedoria, esse conhecimento da natureza humana, e essa
experiência, que somente podem levar o homem a encerrar-se num círculo de coração
duro de egoísmo e a olhar com desconfiança sinistra para todos?- Um tal resultado
nunca poderá ser o efeito de uma natureza celestial ou excelente. Deus dá sabedoria,
mas não é uma sabedoria que encerre o coração a todos os rogos de necessidade e
infortúnio humanos; dá-nos um certo conhecimento da natureza; porém não é um
conhecimento que nos leve a agarrarmos com avidez egoísta àquilo que chamamos
erradamente "nosso"; dá-nos experiência; mas não é uma experiência que nos leva a
suspeitarmos de toda a gente, menos de nós próprios. Se seguimos as pisadas do
Senhor Jesus, se nos absorvermos do Seu excelente espírito, e por consequência o
manifestarmos, se, em resumo, pudermos dizer: "para mim o viver é Cristo", então, à
medida que andamos pelo mundo, com o conhecimento daquilo que o mundo é, e
contatando com os homens, com o conhecimento daquilo que podemos esperar deles,
podemos pela graça manifestar Cristo no meio de tudo.
Os motivos que nos levam a atuar e os fins que temos em vista estão todos em cima,
onde está Aquele que "é o mesmo ontem, e hoje e eternamente" (Hb 13:8). Foi isto que
fortaleceu o coração daquele amado e venerado servo de Deus, cuja história, pelo menos
até aqui, nos tem dado tantas profundas e sólidas lições, e o habilitou a vencer as várias
cenas penosas da sua vida através do deserto. E nós podemos afirmar, sem receio de
nos equivocarmos, que no fim de tudo, não obstante os quarenta anos de lutas e
provações, Moisés pôde beijar outa vez seu irmão, quando subiu ao Monte de Hor, com o
mesmo afeto com que o fez quando o encontrou no "Monte de Deus". Por certo, os dois
encontros tiveram lugar em circunstâncias bem diferentes. No "Monte de Deus", eles
encontraram-se, abraçaram-se, e partiram em cumprimento da sua missão divina. No
"Monte de Hor" eles encontram-se por mandado do Senhor (Nm 20:25) para que Moisés
fizesse despir a seu irmão as vestes sacerdotais e o visse morrer, em virtude de uma falta
em que ele mesmo havia incorrido. Como tudo isto é solene e tocante! As circunstâncias
mudam: os homens separam-se uns dos outros; mas em Deus "não há mudança nem
sombra de variação" (Tg 1:17).
"Então, foram Moisés e Arão e ajuntaram todos os anciãos dos filhos de Israel. E Arão
falou todas as palavras que o SENHOR falara a Moisés e fez os sinais perante os olhos
do povo" (versículos 29 a 31). Quando Deus intervém, necessariamente, cai todo o
obstáculo. Moisés havia dito: "...eis que me não crerão". Porém não era questão de saber
se eles creriam nele ou não, mas se creriam em Deus. Quando um homem pode
considerar-se simplesmente como enviado de Deus, pode estar completamente tranquilo
quanto à aceitação da sua mensagem, e esta perfeita tranquilidade não o desvia, de
nenhum modo, da sua terna e afetuosa solicitude para com aqueles a quem se dirige.
Pelo contrário, guarda-o daquela ansiedade desordenada de espírito que apenas pode
contribuir para o impedir de dar um testemunho firme, elevado e perseverante.
O servo de Deus deve recordar-se sempre que a mensagem que leva é a mensagem de
Deus. Quando Zacarias disse ao anjo, "Como saberei isto?-" Acaso se sentiu perturbado
este último com essa perguntai Certamente que não. A sua resposta calma, nobre, foi
esta: "Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas
alegres novas" (Lucas 1:18-19). As dúvidas do mortal não perturbam o sentimento de
dignidade que o anjo tem da sua mensagem. É como se dissesse: "Como podes tu
duvidar, quando do trono da Majestade nos céus um mensageiro te foi enviado?" Assim
deveria ir todo o mensageiro de Deus, e entregar a sua mensagem neste espírito.

— CAPÍTULOS 5 e 6 —

ISRAEL OPRIMIDO
E OS RECURSOS DIVINOS

A Escravidão
O resultado da primeira visita a Faraó parece ter sido bem pouco animador. O
pensamento de perder os israelitas levou-o a tratá-los com maior crueldade e a sujeitá-los
a redobrada vigilância. Sempre que o poder de Satanás é restringido a um ponto o seu
furor aumenta. Assim aconteceu neste caso. A fornalha ia ser apagada pela mão do amor
libertador; porém, antes de o ser, ela arde com mais intensidade e ferocidade. O diabo
não gosta de soltar nenhum daqueles que tem tido debaixo da sua garra terrível. Ele é "o
valente", e quando "guarda, armado, a sua casa, em segurança está tudo quanto tem" (Lc
11:21). Porém, bendito seja Deus, há "outro mais valente do que ele", que lhe tirou "a sua
armadura em que confiava", e repartiu os seus despojos pelos objetos favorecidos do Seu
amor eterno.
"E depois, foram Moisés e Aarão e disseram a Faraó: Assim diz o SENHOR, Deus de
Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto" (capítulo 5:1). Tal
era a mensagem do Senhor a Faraó. Deus reivindicava inteira libertação para o povo, sob
o fundamento de ser o Seu povo e a fim de que pudessem celebrar-Lhe uma festa no
deserto. Nada pode jamais satisfazer Deus acerca dos Seus eleitos senão a sua inteira
libertação do jugo da servidão. "Desligai-o e deixa-o ir", é, realmente, o grande lema dos
desígnios de Deus acerca daqueles que, embora retidos em servidão por Satanás, são,
todavia, os herdeiros da Sua vida eterna.
Quando contemplamos os filhos de Israel no meio dos fornos de tijolo do Egito, temos
perante nós uma figura exata da condição de todo o filho de Adão segundo a carne. Ei-los
ali, esmagados sob o jugo mortífero do inimigo, sem poder para se libertarem. A simples
menção da palavra liberdade não fez mais que aumentar o rigor do opressor para reforçar
as cadeias dos seus cativos e carregá-los com um fardo ainda mais opressivo. Era, pois,
absolutamente necessário que a salvação viesse de fora. Mas de onde havia de vir?-
Onde estavam os recursos para pagar o seu resgate?- Ou onde estava a força para
quebrar as cadeias? E, admitindo que ambas as coisas existiam, onde estava a vontade
para o conseguira Quem estaria disposto a libertá-los?- Ah! Não havia esperança nem de
dentro nem de fora. Apenas podiam olhar para cima. O seu refúgio era Deus: Ele tinha
tanto o poder como o querer; e podia efetuar a redenção por poder e por preço. No
Senhor, e somente n'Ele estava a salvação do povo de Israel oprimido e arruinado.
É sempre assim em todos os casos. "E em nenhum outro há salvação, porque certo sim!
debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser
salvos" (At 4:12). O pecador está debaixo do poder daquele que o domina com um poder
despótico. Está "vendido sob o pecado" (Rm 7:14); está preso à vontade do diabo (2 Tm
2:26) — preso com as cadeias da concupiscência, da ira e da cólera, fraco (Rm 5:6), "sem
esperança e sem Deus" (Ef 2:12). Tale a condição do pecador. Como poderia, pois,
libertar-se? Que poderia fazer?- Sendo escravo de outrem tudo que faz, fá-lo na
qualidade de escravo. Os seus pensamentos, as suas palavras, os seus atos são os
pensamentos, as palavras e os atos de um escravo. Sim, ainda mesmo quando chora e
suspira por liberdade, as suas próprias lágrimas e suspiros são provas melancólicas da
sua escravatura. Pode lutar por liberdade; mas a sua própria luta, embora evidencie um
desejo de liberdade, é a declaração positiva da sua escravatura.

A Velha Natureza
Tão-pouco se trata de uma questão da condição do pecador: a sua própria natureza está
radicalmente corrompida—inteiramente debaixo do poder de Satanás. Por isso, não só
necessita de ser introduzido numa nova posição, mas também de ser dotado de uma
nova natureza. A natureza e a condição andam sempre unidas. Se fosse possível o
pecador melhorar a sua condição, de que lhe serviria isso enquanto a sua natureza
continuasse a ser irremediavelmente má? Um nobre poderia recolher e adotar um
mendigo e outorgar-Ihe a fortuna e a posição de nobre, mas nunca poderia transmitir-lhe
nobreza; e assim a natureza do mendigo nunca poderia achar satisfação ocupando a
posição de um nobre. É necessário possuir-se uma natureza que corresponda à posição,
e uma posição que corresponda aos desejos, aos afetos, e às tendências dessa natureza.
Por isso, o evangelho da graça de Deus ensina-nos que o crente é introduzido numa
posição inteiramente nova e que já não é considerado como estando no seu anterior
estado de culpa e condenação, mais sim num estado de eterna e perfeita justificação. A
condição em que Deus o vê agora não é apenas de pleno perdão, mas um estado de
perfeição tal que a santidade infinita não pode achar nele tanto como uma simples nódoa
de pecado. Foi tirado da sua condição de culpa e colocado para sempre numa nova
condição de justiça imaculada. Não é que, de modo nenhum, a sua antiga condição haja
sido melhorada. Isto seria inteiramente impossível, "Aquilo que é torto não se pode
endireitar" (Ec 1:15). "Pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?-"
(Jr 13:23). Nada há mais oposto à verdade fundamental do evangelho que a teoria do
melhoramento gradual da condição do pecador. O pecador é nascido numa má condição,
e enquanto não "nascer de novo" não pode estar em qualquer outra. Poderá procurar
melhorar-se. Pode tomar a resolução de ser melhor no futuro — de "voltar uma nova
página" da sua existência —, de alterar o seu modo de vida; porém, com tudo isto não
consegue sair de sua condição de pecador. Poderá fazer-se religioso, como se ousa
dizer, poderá tentar orar, poderá observar diligentemente as ordenações, e revestir as
aparências de uma reforma moral; contudo nenhuma destas coisas poderá, no mínimo,
alterar a sua posição perante Deus.

A Nova Natureza
A questão é semelhante à questão da natureza. Como poderá o homem alterar a sua
natureza? Poderá submetê-la a uma série de operações, poderá dominá-la e discipliná-la;
porém continuará a ser natureza. "Aquele que é nascido da carne é carne" (Jo 3:6). E
necessário que haja uma nova natureza, assim como uma nova disposição. Mas como
poderá o pecador adquiri-las? - Crendo o testemunho que Deus de Seu Filho deu. "A
todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que
creem no seu nome" (Jo 1:12). Aqui aprendemos, que todos os que creem no nome do
unigênito Filho de Deus, têm o direito ou o privilégio de serem feitos filhos de Deus. São
feitos participantes de uma nova natureza e têm a vida eterna. "Aquele que crê no Filho
tem a vida eterna" (Jo 3:36). "Na verdade, na verdade vos digo que, quem ouve a minha
palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, e não entrará em condenação,
mas passou da morte para a vida" (Jo 5:24). "E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti
só por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (Jo 17:3). "E o
testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem
tem o Filho tem a vida"(1 Jo 5:11,12).

O Fundamento da Justificação
Tal é a doutrina das Sagradas Escrituras quanto à questão importante da condição da
natureza. Porém, como é que o crente é feito participante da natureza divina?- Essa
mudança admirável depende inteiramente da grande verdade que "JESUS MORREU E
RESSUSCITOU" (1 Ts 4:14). Este bendito Senhor deixou o seio do amor eterno, o trono
da glória, as mansões de luz imarcescível, veio a este mundo de dores e pecado, tomou
sobre Si a forma da carne do pecado, e, depois de haver manifestado e glorificado
perfeitamente Deus em todos os atos da Sua vida bendita no mundo, morreu na cruz sob
peso de todas as transgressões do Seu povo. E deste modo satisfez tudo que era ou
podia ser contra nós. Ele engrandeceu e honrou a lei (Is 42:21); e, fazendo-o, tornou-Se
maldição sendo pendurado no madeiro. Todos os direitos divinos foram satisfeitos, todos
os inimigos reduzidos ao silêncio e os obstáculos foram todos derribados. "A misericórdia
e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram" (Sl 85:10). A justiça divina foi
satisfeita, e o amor infinito pode derramar-se, com todas as virtudes mitigantes e
refrigerantes, no coração quebrantado do pecador; enquanto que, ao mesmo tempo, o
caudal purificador e expiador, que brotou do lado ferido do Cristo crucificado, satisfaz
perfeitamente todos os desejos ardentes da consciência culpada e convencida de pecado.
O Senhor Jesus tomou o nosso lugar na cruz: foi o nosso substituto. Ele morreu, "o justo
pelos injustos" (I Pe 3:18); foi feito "pecado por nós" (2 Co 5:21); morreu em lugar do
pecador; foi sepultado e ressuscitou, havendo cumprido tudo. Por isso nada há
absolutamente contra o crente: ele está unido a Cristo e encontra-se na mesma condição
de justiça "porque, qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo 4:17).
Eis aqui o que dá paz inabalável à consciência. Seja não estamos numa condição de
culpa, mas de justificação; se Deus nos vê em Cristo e como a Cristo, então a nossa parte
é uma paz perfeita. "Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso
Senhor Jesus Cristo" (Rm 5:l).
O sangue do Cordeiro cancelou toda a culpa do crente, riscou o seu grande débito e deu-
lhe uma folha perfeitamente em branco, na presença daquela santidade que não pode ver
o mal (He 1:13).
Porém, o crente não só achou paz com Deus, como foi feito filho de Deus; e como tal
pode gozar a doçura da comunhão com o Pai e o Filho, no poder do Espírito Santo.
O Crente é Filho de Deus
A cruz deve ser encarada debaixo de dois modos diferentes: em primeiro lugar, satisfaz
os direitos de Deus; e em segundo lugar é a expressão do amor de Deus. Se
considerarmos os nossos pecados em ligação com os direitos de Deus como Juiz,
acharemos na cruz a plena liquidação desses direitos. Deus, como Juiz, ficou satisfeito e
glorificado na cruz. Porém há mais do que isto. Deus tem afetos bem como direitos; e na
cruz do Senhor Jesus Cristo todos esses afetos são, de um modo tocante e agradável,
anunciados aos ouvidos do pecador; enquanto que ao mesmo tempo, ele é feito
participante de uma nova natureza, a qual é capaz de gozar esses afetos e de ter
comunhão com o coração donde eles emanam. "Porque também
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1
Pe 3:18). Desta forma não somente somos introduzidos numa nova condição, como
trazidos a uma Pessoa, o Próprio Deu" e somos dotados de uma natureza que pode achar
as suas delícias n'Ele. "E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por
nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação" (Rm 5:11).

A Festa para o SENHOR


Que formosura e que força encontramos nestas palavras de liberdade: "Deixa ir o meu
povo, para que me celebre uma festa no deserto!" "O Espírito do Senhor é sobre mim,
pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados do
coração, a apregoar liberdade aos cativos, a dar vista aos cegos; a pôr em liberdade os
oprimidos" (Lc 4:18,19). As boas novas do evangelho anunciam liberdade de todo o jugo
de servidão. Paz e liberdade são os dons que o evangelho outorga a todos aqueles que
nele creem tal qual Deus o tem declarado.
E note-se, "para que me celebrem uma festa". Se deviam deixar de servir a Faraó, era
para entrarem ao serviço de Deus. Era uma grande mudança. Em vez de trabalho penoso
sob a direção dos oficiais de Faraó, eles iam fazer festa na companhia do Senhor; e,
embora tivessem de deixar o Egito e entrar no deserto, contudo a presença divina
acompanhá-los-ia; e se o deserto era escabroso e fatigante, era o caminho que conduzia
a Canaã. O propósito de Deus era que Israel celebrasse uma festa ao Senhor no deserto,
e para isto era preciso que Faraó deixasse ir o povo de Deus.

Faraó e os Grandes deste Mundo


Porém, Faraó não estava de modo nenhum disposto a obedecer a esta ordem divina.
"Quem é o SENHOR", disse ele, "cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel ? Não conheço
o SENHOR, nem tampouco deixarei ir Israel" (capítulo 5:2). Por estas palavras, Faraó
revela a sua verdadeira condição moral e esta era de ignorância e consequentemente de
desobediência. As duas coisas andam juntas. Se Deus não é conhecido, não pode se
obedecido; porque a obediência é sempre baseada sobre o conhecimento. Quando a
alma é abençoada com o conhecimento de Deus, descobre que este conhecimento é vida
(Jo 17:3), e vida é poder; e quando se tem poder pode-se agir. É óbvio que não se pode
agir sem vida; e portanto é uma grande falta de inteligência pretender-se que alguém faça
certas coisas com o fim de obter aquilo mediante o qual se pode fazer alguma coisa.
Além disso, Faraó desconhecia-se tanto a si como desconhecia o Senhor. Ele ignorava
que era um pobre verme da terra, e que havia sido levantado com o objetivo claro de
tornar conhecida a glória d'Aquele a quem disse não conhecer (Êx 9.16; Rm 9.17). "E eles
disseram: O Deus dos hebreus nos encontrou; portanto deixa-nos agora ir caminho de
três dias ao deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao SENHOR e ele não venha sobre
nós com pestilência ou com espada. Então, disse-lhes o rei do Egito: Moisés e Arão, por
que fazeis cessar o povo das suas obras? Ide a vossas cargas... Agrave-se o serviço
sobre estes homens, para que se ocupem nele, e não confiem em palavras de mentira"
(versículos 3 a 9).
Que desenrolar encontramos aqui dos secretos recursos do coração humano! Que falta
de competência para entrar nas coisas de Deus! Todos os títulos divinos e as revelações
divinas eram, segundo o parecer de Faraó, "palavras de mentira". Que sabia ele ou que
lhe importava o "caminho de três dias" no deserto ou a festa ao Senhora Como poderia
compreender a necessidade de uma tal viagem ou a natureza ou o fim de uma tal festão
Era impossível. Faraó podia compreender o que significava agravar a servidão e fazer
tijolos; estas coisas tinham para ele um certo sentido de realidade; porém quanto a Deus,
ao Seu serviço ou ao Seu culto, só podia vê-lo à luz de uma fútil quimera, inventada por
aqueles que buscavam uma desculpa para evitar as duras realidades da vida.
Assim tem acontecido, com frequência, com os sábios e grandes deste mundo. Eles têm
sido os primeiros a classificar de vaidade e loucura os testemunhos divinos. Escutai, por
exemplo, a opinião que o "nobre Festo" formou sobre a grande questão debatida entre
Paulo e os Judeus: "Tinham, porém, contra ele algumas questões acerca da sua
superstição e de um tal Jesus, defunto, que Paulo afirmava viver" (At 25:19). Enfim! Como
conhecia tão pouco o que dizia! Quão pouco compreendia da importância de saber se
Jesus estava morto ou vivo! Não pensou na relação que esta importante questão tinha
sobre si e os seus amigos, Agripa e Berenice; porém esta ignorância não alterou em nada
o assunto; ele e eles sabem agora alguma coisa mais sobre ele, apesar de nos dias
passageiros da sua glória terrestre o terem considerado apenas como uma questão
supersticiosa, imprópria da atenção de homens sensatos, e somente própria para ocupar
a mente desequilibrada de visionários e entusiastas. Sim, a questão importante que
decide o destino de todo o filho de Adão, a questão sobre a qual é baseada a condição
presente e eterna da Igreja e do mundo, e que está ligada a todos os desígnios divinos,
era, segundo o juízo de Festo, uma vã superstição.
O mesmo aconteceu no caso de Faraó. Ele nada sabia do Senhor "Deus dos hebreus", o
grande "EU SOU", e por isso considerava tudo que Moisés e Arão lhe haviam dito acerca
de sacrificar a Deus como "palavras de mentira". As coisas de Deus devem parecer
sempre para o espírito profano do homem como vãs, inúteis e desprovidas de sentido. O
nome de Deus pode ser usado como parte da fraseologia petulante de uma religião fria e
formal; porém Ele Próprio não é conhecido. O Seu nome precioso, o qual encerra para o
coração do crente tudo aquilo que ele pode, possivelmente, desejar ou necessitar, não
tem para o incrédulo nenhuma significação, nem poder, nem virtude. Portanto, tudo que
se relaciona com Deus, as Suas palavras, os Seus desígnios, os Seus pensamentos, os
Seus caminhos, tudo, em suma, que trata d'Ele, é considerado como "palavras de
mentira".
Mas o tempo aproxima-se rapidamente em que não será assim. O tribunal de Cristo, os
terrores do mundo vindouro, e as vagas do lago de fogo, não serão "palavras de mentira".
Seguramente que não; e todos aqueles que, pela graça creem que estas coisas são
realidades, devem esforçar-se por as impor à consciência daqueles que, como Faraó,
consideram a fabricação de tijolos como a única em que vale a pena pensar — a única
coisa que pode ser chamada verdadeira e sólida.
Ah! Quão frequentemente até os próprios cristãos vivem na região das coisas visíveis, na
região do mundo e da carne, de tal maneira que perdem o sentido profundo, imutável e
poderoso da realidade das coisas divinas e celestiais! Temos necessidade de viver mais
continuamente na região da fé, a região do céu, e na região da "nova criação". Então
veremos as coisas como Deus as vê, pensaremos a respeito delas como Ele pensa, e
toda a nossa vida será mais elevada, mais desinteressada, inteiramente separada do
mundo e das coisas terrenas.

Moisés Desanimado
Contudo, a prova mais dolorosa para Moisés não foi motivada pelo juízo que Faraó fez da
sua missão. O servo fiel e consagrado de Cristo deve esperar sempre ser considerado
pelos homens deste mundo como um simples entusiasta visionário. O ponto de vista
donde o contemplam é tal que não nos permite esperar deles outra coisa. Quanto mais
fiel for o servo ao seu Mestre divino, quanto mais seguir as Suas pisadas, quanto mais
conforme for à Sua imagem, tanto mais, possivelmente, será considerado, pelos filhos
deste mundo, como um que "está fora de si". Portanto, este juízo nem deve surpreendê-lo
nem desanimá-lo. Porém é uma coisa infinitamente mais penosa para ele quando o seu
serviço e o seu testemunho são mal interpretados, desprezados ou rejeitados por aqueles
que são os próprios objetos deste serviço e testemunho. Quando isto acontece ele tem
muita necessidade de estar com Deus, no segredo dos Seus pensamentos, no poder da
comunhão, para ter o seu espírito fortalecido na realidade imutável da sua carreira e
serviço. Em circunstâncias tão difíceis, se não se está plenamente persuadido da missão
divina, e consciente da presença divina, a queda será quase certa.
Se Moisés não tivesse sido amparado assim, o seu coração teria fraquejado inteiramente
quando o agravamento da opressão do poder de Faraó arrancou aos oficiais dos filhos de
Israel palavras de desalento e desânimo como estas: "O SENHOR atente sobre vós e
julgue isso, porquanto fizestes o nosso cheiro repelente diante de Faraó e diante de seus
servos, dando-lhes a espada nas mãos para nos matar" (versículo 21). Isto era muito
triste; e Moisés assim o sentiu, pois que "tornou ao SENHOR e disse: Senhor! Por que
fizeste mal a este povo? Por que me enviaste? Por que desde que entrei a Faraó para
falar em teu nome, ele maltratou a este povo; e, de nenhuma maneira livraste o teu povo"
(versículos 22 a 23). No próprio momento em que a libertação parecia estar perto, as
coisas tomaram um aspecto muito desanimador; assim como acontece com a natureza,
em que a hora mais escura da noite é com frequência aquela que precede imediatamente
o amanhecer. Assim será certamente nos últimos dias da história de Israel: a hora da
mais profunda obscuridade e da mais espantosa angústia, precederá a aparição repentina
do "Sol da Justiça" (Mt 4:1:2), emergindo detrás das nuvens, e trazendo salvação debaixo
das suas asas para curar eternamente a filha do Seu povo (Jr 6:14; 8:11).

A Resposta do SENHOR
Pode muito bem perguntar-se até que ponto o "por que " de Moisés foi ditado por uma
verdadeira fé ou uma vontade mortificada. Contudo, o Senhor não repreende Moisés por
esta objeção motivada pela grandeza da aflição do momento. "Agora verás o que hei de
fazer a Faraó; porque, por mão poderosa, os deixará ir, sim, por mão poderosa os lançará
de sua terra" (capítulo 6:1), foi a Sua bondosa resposta.
Esta resposta está cheia de graça peculiar. Em vez de censurar a insolência daquele que
se atreve a duvidar dos caminhos inescrutáveis do grande EU SOU, o misericordioso
Senhor procura aliviar o espírito cansado do Seu servo mostrando-lhe o que em breve ia
fazer. Esta maneira de agir é digna de Deus, de quem desce toda a boa dádiva e todo o
dom perfeito (Tg 1:5, 17), "Pois ele conhece a nossa estrutura; lembra-se de que somos
pó" (SI 103:14).
Nem tampouco é só em Seus atos, mas, sim, em Si Mesmo, em Seu próprio nome e
caráter, que Ele quer fazer conhecer ao coração o seu alívio: é nisso que está a bem-
aventurança plena, divina, e eterna. Quando o coração pode encontrar em Deus o seu
alívio, quando pode refugiar-se no lugar seguro que lhe oferece o Seu nome, quando
pode achar no Seu caráter a resposta a todas as suas necessidades, então está
verdadeiramente muito acima da região da criatura —pode abandonar as promessas
tentadoras do mundo é considerar as pretensões altivas do homem pelo seu justo valor. O
coração dotado com o conhecimento prático de Deus não só pode olhar para o mundo e
dizer "tudo é vaidade", mas pode também poros seus olhos em Deus e dizer; "todas as
minhas fontes estão em ti" (Sl 87:7).
O Nome do SENHOR
"Falou mais Deus a Moisés e disse: Eu sou o SENHOR. E eu apareci a Abraão, a Isaque,
e a Jacó, como o Deus Todo-poderoso; mas pelo meu nome, o SENHOR, não lhes fui
perfeitamente conhecido. E também estabeleci o meu concerto com eles, para dar-lhes a
terra de Canaã, a terra de suas peregrinações, na qual foram peregrinos. E também tenho
ouvido o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizam, e me lembrei do
meu concerto" (versículos 2 a 5). "O SENHOR" é o título que Deus toma como Libertador
do Seu povo, em virtude da Sua aliança de pura e soberana graça. Ele revela-se a Si
como a grande Origem natural do amor redentor, estabelecendo os Seus conselhos,
cumprindo as Suas promessas, e libertando o Seu povo eleito de todo o inimigo e de todo
o mal. Era privilégio de Israel permanecer para sempre sob a salvaguarda desse título
significativo, o qual nos revela Deus atuando para Sua própria glória, e levantando o Seu
povo oprimido a fim de mostrar nele essa glória.
"Portanto, dize aos filhos de Israel: Eu sou o SENHOR, e vos tirarei de debaixo das
cargas dos egípcios, vos livrarei da sua servidão e vos resgatarei com braço estendido e
com juízos grandes. E eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que
eu sou o SENHOR, VOSSO Deus, que vos tiro de debaixo das cargas dos egípcios; e eu
vos levarei à terra, acerca da qual levantei minha mão, que a daria a Abraão, e a Isaque,
e a Jacó, e vo-la darei por herança, eu o SENHOR" (versículos 6 a 8). Tudo isto proclama
a graça mais pura, mais livre, mais rica. O Senhor apresenta-Se ao coração do Seu povo
como Aquele que ia operar por eles, neles, e com eles para manifestação da Sua glória.
Por muito desamparados e arruinados que estivessem, Ele havia descido para fazer ver a
Sua glória e manifestar a Sua graça e mostrar um exemplo do Seu poder na sua plena
salvação. A sua glória e a salvação do Seu povo estavam inseparavelmente unidas. Mais
tarde todas estas coisas haviam de lhes ser recordadas, como lemos no Livro de
Deuteronômio, capítulo 7:7-8, "O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu,
porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis
menos em número do que todos os povos: mas porque o SENHOR VOS amava; e, para
guardar o juramento que jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos
resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito".
Nada há mais próprio para estabelecer e firmar o coração tremente e duvidoso do que o
conhecimento de que Deus nos tomou tais quais somos, que conhece perfeitamente o
que somos; e que, além disso, nunca poderá descobrir em nós alguma coisa que possa
alterar o caráter e a medida do Seu amor: "...como havia amado os Seus que estavam no
mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13:1). Aquele que Ele ama, ama-o até ao fim. Esta
verdade é motivo de gozo inexplicável. Deus sabia tudo a nosso respeito—conhecia o pior
que havia em nós, quando manifestou o Seu amor para conosco no dom de Seu Filho.
Sabia o que necessitávamos, e fez ampla provisão para tudo isso. Sabia qual era o
débito, e pagou-o. Sabia o que havia por fazer, e fez tudo. As Suas próprias exigências
tinham de ser cumpridas, e cumpriu-as. É tudo obra Sua. Por isso, vêmo-Lo dizer a Israel,
Eu "...vos tirarei...", "vos livrarei", "vos tomarei por meu povo", "vos levarei à terra..", "Eu
sou o Senhor". Isto era o que Ele queria fazer com base naquilo que Ele era. Enquanto
esta grande verdade não for inteiramente compreendida e não for recebida pela alma no
poder do Espírito Santo, não pode haver uma paz sólida. Não se pode ter o coração feliz
nem a consciência tranquila antes de se saber e crer que todos os direitos divinos já
foram divinamente satisfeitos.

Os Nomes dos que Pertencem ao SENHOR


Os restantes versículos deste capítulo tratam do relato dos "chefes das casas dos pais"
em Israel; é um registro muito interessante, visto que nos mostra como o Senhor desce
para numerar aqueles que Lhe pertencem, embora estejam ainda debaixo do poder do
inimigo. Israel era o povo de Deus, e aqui Ele conta aqueles sobre os quais tinha o direito
de soberania. Que graça admirável! Encontrar um objeto de interesse naqueles que se
encontravam no meio de toda a degradação da servidão do Egito! Era graça digna de
Deus. Aquele que criou os mundos e era rodeado por hostes de anjos, sempre prontos a
executar "a sua vontade" (SI 103:21), desceu ao mundo com o propósito de adotar alguns
escravos com cujo nome quis ligar o Seu para sempre. Desceu até junto dos fornos de
tijolos do Egito e ali viu um povo que gemia debaixo do chicote do opressor; e, então,
proferiu estas palavras memoráveis: "Deixa ir o meu povo"; e, havendo assim falado,
procedeu à sua contagem, como se quisesse dizer: "Estes são Meus; vou ver quantos
tenho, para que nenhum seja deixado para trás". "Levanta o pobre do pó... para o fazer
assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória" (1 Sm 2:8).

— CAPÍTULOS 7 a 11 —

"DEIXA IR O MEU POVO

Estes cinco capítulos formam uma parte distinta, cujo conteúdo pode ser dividido em três
pontos, a saber: os Dez Juízos do SENHOR, a resistência de "Janes e Jambres" e as
quatro objeções de Faraó.

Os Dez Juízos
Toda a terra do Egito tremeu debaixo dos golpes sucessivos da vara de Deus. Todos,
desde o monarca sentado no seu trono à criada moendo no moinho, tiveram de sentir o
peso terrível dessa vara. "Enviou Moisés, seu servo, e Arão, a quem escolhera. Fizeram
entre eles os seus sinais e prodígios, na terra de Cam. Mandou às trevas que a
escurecessem; e elas não foram rebeldes à sua palavra. Converteu as suas águas em
sangue, e assim fez morrer os peixes. A sua terra produziu rãs em abundância, até nas
câmaras dos seus reis. Falou ele, e vieram enxames de moscas e piolhos em todo o seu
território. Converteu as suas chuvas em saraiva e fogo abrasador, na sua terra. Feriu as
suas vinhas e os seus figueirais e quebrou as árvores dos seus termos. Falou ele, e
vieram gafanhotos e pulgão em quantidade inumerável, e comeram toda a erva da sua
terra e devoraram o fruto dos seus campos. Feriu também a todos os primogênitos da sua
terra, as primícias de todas as suas forças" (SI 105:26 -36).
Aqui, o Salmista dá-nos uma ideia resumida desses terríveis castigos que por dureza do
seu coração Faraó trouxe sobre a sua terra e o seu povo. Este soberbo monarca havia
empreendido a tarefa de resistir à vontade soberana e ao caminho do Deus Altíssimo; e,
como consequência justa desta atitude, foi entregue à cegueira judicial e dureza de
coração. "Porém o SENHOR endureceu o coração de Faraó, e não os ouviu, como o
SENHOR, tinha dito a Moisés. Então, disse o SENHOR a Moisés: Levanta-te, pela manhã
cedo, e põe-te diante de Faraó, e dize-lhe: Assim diz o SENHOR, o Deus dos hebreus:
Deixa ir o meu povo, para que me sirva. Porque esta vez enviarei todas as minhas pragas
sobre o teu coração, e sobre os teus servos, e sobre o teu povo, para que saibas que não
há outro como eu, em toda a terra. Porque agora tenho estendido a mão para te ferir a ti e
ao teu povo com pestilência e para que sejas destruído da terra; mas deveras para isto te
mantive, para mostrar o meu poder em ti e para que o meu nome seja anunciado em toda
a terra" (capítulo 9:12-16).

O Aspecto Profético da Rebelião contra o SENHOR


Considerando Faraó e os seus atos, a alma é transportada às cenas emocionantes do
Apocalipse, as quais nos mostram como o último opressor orgulhoso do povo de Deus faz
descer sobre si e o seu reino as sete taças da ira do Deus Todo-Poderoso. É propósito de
Deus que Israel tenha a proeminência na terra; e, portanto, todo aquele que tiver a
pretensão de se opor a esta proeminência terá de ser posto de parte. A graça divina deve
encontrar o seu objetivo; e todo aquele que intentar opor-se como um obstáculo a essa
graça terá de ser afastado do caminho; quer este seja o Egito, Babilônia, ou "a besta que
foi e já não é" (Ap 17:8), pouco importa. O poder divino abrirá o caminho para que a graça
divina possa derramar-se, e maldição eterna cairá sobre aqueles que se opuserem a ela.
Os obstinados saborearão durante toda a eternidade o fruto amargo da sua rebelião
contra "o SENHOR Deus dos hebreus". Ele disse ao Seu povo: "Toda a ferramenta
preparada contra ti não prosperará" (Is 54:17), e a Sua fidelidade imutável cumprirá
certamente aquilo que a Sua graça infinita prometeu.
Assim, no caso de Faraó, quando ele persistiu em reter, com mão de ferro, o Israel de
Deus, as taças da ira divina foram derramadas sobre ele; e a terra do Egito foi coberta,
em toda a sua extensão, de trevas, enfermidades e desolação. Assim será, em breve,
quando o grande último opressor emergir do abismo, armado com poder satânico para
esmagar debaixo dos seus pés soberbos (SI 36:11) aqueles que o Senhor escolheu como
objetos do Seu amor. O Seu trono será destruído, o seu reino devastado por meio das
sete últimas pragas, e, finalmente, ele próprio será lançado, não no Mar Vermelho, mas
"no lago de fogo e enxofre" (Ap 18:8; 20:10).
Nem um til nem um jota de tudo que Deus prometeu a Abraão, a Isaque e Jacó, deixará
de ser cumprido. Deus cumprirá tudo. Apesar de tudo que tem sido dito e feito em sentido
contrário, Deus recorda-Se das suas promessas e cumpri-las-á. "Porque todas quantas
promessas há de Deus são nele sim, e por ele o Amém" em Jesus Cristo (2 Co 1:20).
Muitas dinastias se têm levantado e atuado no palco deste mundo; muitos tronos se têm
erigido sobre as ruínas da antiga glória de Jerusalém; muitos impérios têm florescido por
algum tempo, para logo caírem; potentados ambiciosos têm combatido pela posse da
"terra prometida"; todas estas coisas têm tido lugar; porém o Senhor tem dito acerca da
Palestina: "...a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha" (Lv 25:23).
Portanto, ninguém possuirá para sempre esse país senão o Próprio Senhor, e Ele o
possuirá por meio da semente de Abraão. Uma simples passagem das Escrituras é
suficiente para fixar as nossas ideias sobre este assunto ou qualquer outro. A terra de
Canaã é para a posteridade de Abraão, e a posteridade de Abraão é para a terra de
Canaã, e nenhum poder humano ou infernal pode jamais inverter esta ordem divina. O
Deus eterno empenhou a Sua palavra, e o sangue do concerto eterno foi derramado para
a retificar. Quem, pois, poderá anulá-la?- "O céu e a terra passarão" mas essa palavra
não há-de passar (Mt 24:35). "Não há outro, ó Jesurum, semelhante a Deus, que cavalga
sobre os céus para a tua ajuda e, com a sua alteza, sobre as mais altas nuvens! O Deus
eterno te seja por habitação, e por baixo de ti estejam os braços eternos; e ele lance o
inimigo de diante de ti e diga: Destrói-o. Israel, pois, habitará só e seguro, na terra da
fonte de Jacó, na terra de cereal e de mosto; e os seus céus gotejarão orvalho. Bem-
aventurado és tu, ó Israel! Quem é como tu, um povo salvo pelo SENHOR, O escudo do
teu socorro, e a espada da tua alteza i Pelo que os teus inimigos te serão sujeitos, e tu
pisarás sobre as tuas alturas" (Dt 33:26-29).

Janes e Jambres
Vamos considerar agora, em segundo lugar, a oposição de "Janes e Jambres", magos do
Egito. Nunca teríamos conhecido os nomes desses dois inimigos da verdade se o Espírito
Santo os não houvesse mencionado em ligação com os "tempos perigosos" dos quais o
apóstolo Paulo avisa seu filho Timóteo. É da máxima importância que o leitor crente
compreenda claramente o verdadeiro caráter da resistência que esses dois encantadores
opuseram a Moisés, e para que ele faça uma ideia completa do assunto, citaremos toda a
passagem da epístola de Paulo a Timóteo, passagem aliás profundamente importante e
solene.
Nos Últimos Dias
"Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos; porque haverá
homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis,
caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados,
orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de
piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te. Porque deste número são os que
se introduzem pelas casas e levam cativas mulheres néscias carregadas de pecados,
levadas de várias concupiscências, que aprendem sempre, e nunca podem chegar ao
conhecimento da verdade. E, como Janes e Jambres resistiram a Moisés, assim também
estes resistem à verdade, sendo homens corruptos de entendimento e réprobos quanto à
fé. Não irão, porém, avante; porque a todos será manifesto o seu desvario, como também
o foi o daqueles" (2 Tm 3:1-9).
Ora, a natureza desta resistência à verdade é particularmente solene. A oposição que
Janes e Jambres fizeram a Moisés consistiu simplesmente em imitar, até onde lhes foi
possível, tudo aquilo que ele fazia. Não vemos que eles atribuíssem a um poder
enganador ou mau os sinais que ele fazia, mas antes que procuraram neutralizar os seus
efeitos sobre a consciência fazendo eles as mesmas coisas. O que Moisés fazia, também
eles o podiam fazer, de modo que, afinal não havia grande diferença. Um era tão bom
como os outros. Um milagre. Se Moisés fazia milagres para tirar o povo do Egito, eles
podiam fazer milagres para os obrigarem a ficar no país. Onde estava, pois, a diferença?
De tudo isto aprendemos a verdade solene que a resistência mais diabólica ao
testemunho de Deus, no mundo, vem daqueles que, embora imitem os efeitos da
verdade, têm apenas a "aparência de piedade" e "negam a eficácia dela" (2 Tm 3:5). As
pessoas desta condição podem fazer as mesmas coisas, adotar os mesmos costumes e o
mesmo ritual, empregar a mesma linguagem e professar as mesmas opiniões dos outros.
Se o cristão verdadeiro, constrangido pelo amor de Cristo, dá de comer aos que têm
fome, dá vestuário aos nus, visita os enfermos, espalha as Escrituras, distribui tratados,
contribui para a divulgação do evangelho, faz oração, canta hinos espirituais, prega o
evangelho, o formalista pode fazer todas estas coisas; e isto, note-se, é o caráter especial
da resistência oposta à verdade "nos últimos tempos" — é o espírito de Janes e Jambres.
Quão necessário é compreendermos esta verdade! Quão importante é recordar que,
assim "como Janes e Jambres resistiram a Moisés", assim também esses "amantes de si
mesmos", do mundo e dos prazeres "resistem à verdade"! Não querem viver sem
"aparência de piedade", mas, enquanto adotam a "forma", porque é hábito, detestam "a
eficácia" dela, porque essa significa a renúncia própria. "A eficácia da piedade" implica o
reconhecimento dos direitos de Deus, o estabelecimento do Seu reino no coração, e, por
consequência a Sua manifestação na vida e no caráter; porém o formalista nada sabe
disto. "A eficácia" da piedade nunca poderá estar de acordo com nenhum destes
caracteres horrendos descritos na passagem acima reproduzida; porém "a aparência",
encobrindo-os, permite-Ihes viverem sem terem de se submeter, e isto agrada ao
formalista. Ele não gosta de dominar as suas tentações, de interromper os seus prazeres,
de refrear as suas paixões, de pôr em regra os seus afetos, de que o seu coração seja
purificado. Somente precisa de bastante religião para poder tirar o melhor partido da vida
presente e do mundo futuro. Desconhece o que significa abandonar o mundo que passa,
por ter achado "o mundo vindouro".
Considerando as diversas formas de oposição de Satanás à verdade de Deus, vemos que
o seu método tem sido sempre, em primeiro lugar, opor a violência; e, depois, se este
método falha, corrompê-la por meio de imitação. Por isso, procurou em primeiro lugar
matar Moisés (capítulo 2:15), e tendo falhado em realizar o seu propósito, procurou imitar
as suas obras.
O mesmo aconteceu com a verdade confiada à Igreja de Deus. Os primeiros esforços de
Satanás manifestaram-se em ligação com a ira dos principais sacerdotes e anciãos do
povo por meio do tribunal, o cárcere e a espada. Porém, na passagem que reproduzimos
da 2a epístola a Timóteo não se faz menção de tais processos. A violência aberta foi
substituída por um meio mais astuto e perigoso de uma profissão vazia, ineficaz e a
imitação. O inimigo, em vez de se apresentar coma espada da perseguição na mão,
passeia com o manto da profissão sobre os ombros, professando e imitando aquilo que
em outro tempo combateu e perseguiu; e, por este meio consegue vantagens
assombrosas no tempo presente. As formas horríveis que o pecado moral tem revestido,
e que de século para século têm manchado as páginas da história da humanidade, longe
de se encontrarem apenas naqueles lugares onde naturalmente poderiam buscar-se, nos
antros e cavernas das trevas humanas, acham-se cuidadosamente ocultas debaixo das
pregas do manto de uma profissão fria, impotente e sem influência, e esta é uma das
obras-primas de Satanás.
É natural que o homem, como ser caído e corrompido, seja egoísta, cobiçoso, vaidoso,
altivo; mas que seja tudo isto sob a capa formosa da "aparência de piedade" denota a
energia especial de Satanás na sua resistência à verdade "nos últimos dias".
É natural que o homem manifeste abertamente esses vícios repugnantes — a
concupiscência e paixões—, que são o resultado forçoso do seu afastamento da origem
de santidade infinita e pureza, porque o homem será sempre o que ele é até o fim da sua
história. Por outra parte, quando se vê o nome santo do Senhor Jesus
Cristo associado com a perversidade e a maldade implacável do homem; quando se
veem os princípios santos ligados com práticas ímpias; quando se veem todos os
característicos da corrupção dos gentios, mencionados no primeiro capítulo da epístola
aos Romanos, ligados com a "aparência de piedade", então, de verdade, pode dizer-se,
eis aqui o caráter horrível dos "últimos dias", a resistência de "janes e jambres".

A Aparência de Piedade
Contudo, os magos do Egito só puderam imitar os servos do Deus vivo em três coisas, a
saber: tornaram as suas varas em serpentes (capítulo 7:12); transformaram a água em
sangue (capítulo 7:22), e fizeram subir as rãs sobre a terra (capítulo 8:7); porém, quanto
ao quarto sinal, que implicava a exibição da vida, em ligação com a manifestação da
humilhação da natureza, viram-se inteiramente confundidos e tiveram de reconhecer "isto
é o dedo de Deus" (capítulos 8:16 a 19). Assim sucede também com os que resistem nos
últimos dias. Tudo quanto fazem é segundo o poder direto de Satanás e dentro dos limites
do seu poder. Além disso, o seu fim específico é resistirem à verdade.
As três coisas que Janes e Jambres puderam executar foram caracterizadas por poder
satânico, morte e impureza; quer dizer, as serpentes, o sangue e as rãs. Foi assim que
"resistiram a Moisés" e, "assim também estes resistem à verdade", e impedem a sua ação
moral sobre a consciência. Nada há que tanto contribua para enfraquecer o poder da
verdade como ver pessoas que não se encontram sob a sua influência fazerem as
mesmas coisas que aqueles que estão debaixo dela fazem. Assim opera Satanás no
momento atual. Ele procura fazer com que todos os homens sejam considerados como
cristãos; quer fazer-nos crer que estamos rodeados de "um mundo cristão", porém esse
pretenso mundo cristão não passa de uma cristandade professa, a qual, longe de dar
testemunho da verdade é aqui destinada, segundo os propósitos do inimigo da verdade,
para se opor à influência purificadora da verdade.
Em resumo, o servo de Cristo, testemunha da verdade, está rodeado, de todos os lados,
pelo espírito de "Janes e Jambres"; e é conveniente que recorde este fato, que conheça
inteiramente o mal com que tem que lutar e não esqueça que se trata da imitação que o
diabo faz da realidade de Deus, produzida, não pela vara de um mago declaradamente
mau, mas, sim mediante os atos de falsos religiosos, que têm "aparência de piedade",
mas negam a eficácia dela"; pessoas que fazem coisas aparentemente boas e justas,
mas que não têm a vida de Cristo em suas almas, nem o amor de Deus em seus
corações, nem tampouco o poder da Palavra de Deus em suas consciências. "Não irão
porém avante", acrescenta o apóstolo, "porque a todos será manifesto o seu desvario,
como também o foi o daqueles". Com efeito a insensatez de Janes e Jambres foi
manifesta a todos, quando não somente se viram impotentes para continuar a imitar os
atos de Moisés e Arão, como foram envolvidos nos juízos de Deus. Isto é um ponto muito
importante. A insensatez de todos aqueles que não possuem mais do que a aparência
será manifestada. Não somente serão incapazes de imitar os efeitos plenos e próprios da
vida e poder divinos, como eles mesmos virão a ser os objetos dos juízos que resultaram
da rejeição da verdade que eles próprios rejeitaram.
Alguém dirá que tudo isto não encerra instrução para uma época, como a nossa, de
aparência sem eficácia'?- Certamente que tem; são exemplos que deveriam exercer
influência sobre toda a consciência em poder vivo e falar a todos os corações com
assentos solenes e penetrantes: deveriam levar-nos a examinarmo-nos seriamente para
sabermos se estamos dando testemunho da verdade e se andamos segundo a eficácia
da piedade ou se somos um obstáculo dela neutralizando os seus efeitos por só termos a
sua aparência. Os efeitos da eficácia da piedade serão manifestados se nós
permanecermos nas coisas que temos aprendido (2 Tm 3.14). Só aqueles que são
ensinados por Deus poderão permanecer nessas coisas—aqueles que, pelo poder do
Espírito de Deus, têm bebido da água da vida na fonte pura da inspiração divina.
Graças a Deus, em todas as frações da Igreja professa há muitas destas pessoas. Aqui e
ali, há muitos cujas consciências foram lavadas no sangue expiador do "Cordeiro de
Deus", e cujos corações batem com verdadeiro afeto pela Pessoa do Senhor Jesus, e
cujos espíritos são animados com "a bendita esperança" de O verem assim como Ele é e
de serem feitos eternamente semelhantes à Sua imagem. E animador podermos pensar
em tais pessoas. É uma misericórdia inefável podermos ter comunhão com aqueles que
podem dar a razão da sua esperança e da posição que ocupam como filhos de Deus. Que
o Senhor aumente o seu número dia a dia: e que a eficácia da piedade se espalhe mais e
mais nestes últimos dias, para que se levante um testemunho brilhante e bem mantido ao
nome d'Aquele que é digno de ser exaltado!

As Quatro Objeções de Faraó


Resta-nos considerar ainda o terceiro ponto desta parte do livro, a saber, as quatro
objeções ardilosas de Faraó à libertação completa e inteira separação do povo de Deus
do Egito.

A Primeira Objeção
A primeira destas objeções encontra-se no capítulo 8:25. "Então, chamou Faraó a Moisés
e a Arão e disse: Ide e sacrificai ao vosso Deus nesta terra". E desnecessário acentuar
aqui que, quer sejam os magos com a resistência que opõem ou Faraó com as suas
objeções, é realmente Satanás que está atrás de toda esta cena: e o seu objetivo, nesta
proposta de Faraó, consistia em impedir o testemunho do nome do Senhor—um
testemunho ligado com a separação completa entre o Seu povo e o Egito. É evidente que
um tal testemunho não podia ser dado se eles tivessem continuado no Egito, ainda
mesmo que tivessem oferecido sacrifícios ao Senhor. Os israelitas ter-se-iam então
colocado no mesmo terreno que os egípcios, e teriam posto o Senhor ao mesmo nível dos
deuses do Egito. Então os egípcios poderiam ter dito aos israelitas: "Não vemos nenhuma
diferença entre nós; vós tendes o vosso culto, e nós temos o nosso; é tudo a mesma
coisa".
Os homens consideram perfeitamente natural que cada qual tenha uma religião, seja qual
for. Contanto que sejamos sinceros e não haja interferência na crença do próximo, pouco
importa a forma da nossa religião. Tais são os pensamentos dos homens a respeito
daquilo que eles chamam religião; porém é bem claro que a glória do nome de Jesus não
é tida em conta em tudo isto. O inimigo opor-se-á sempre à ideia de separação, e o
coração do homem nunca poderá compreendê-la. O coração humano pode aspirar à
piedade, porque a consciência testifica que não está tudo em regra; mas ao mesmo
tempo anela seguir o mundo: gosta de sacrificar a Deus na terra; assim quando se aceita
uma religião mundana e se recusa sair ou fazer separação dela (2 Co 6), o fim de
Satanás é conseguido. O seu plano invariável, desde o princípio, consiste em impedir o
testemunho dado ao nome de Deus na terra. Tal era o fim escuro da proposta, "Ide e
sacrificai ao vosso Deus nesta terra". Que fim o do testemunho, se esta proposta tivesse
sido aceite! O povo de Deus no Egito e o Próprio Deus associado com os ídolos do Egito!
Que terrível blasfêmia!

A Religião
Prezado leitor, nós deveríamos ponderar estas coisas seriamente. Este esforço para
induzir o povo de Israel a sacrificar a Deus no Egito revela um princípio muito mais
importante do que poderíamos, à primeira vista, supor. O inimigo regozijar-se-ia se
conseguisse obter, de qualquer modo, e de uma vez para sempre, em quaisquer
circunstâncias, até mesmo a aparência de sanção divina para a religião do mundo. Ele
não põe dificuldades a uma religião desta espécie. O seu intento é alcançado tão
eficientemente por meio daquilo que é chamado "o mundo religioso" como de qualquer
outro modo; e, por isso, quando consegue que um verdadeiro cristão acredite na religião
do mundo, obtém um grande triunfo.
É um fato bem conhecido que nada há que provoque tanta indignação como este princípio
divino de separação deste presente século mau. Podemos ter as mesmas opiniões,
pregar as mesmas doutrinas e fazer o mesmo trabalho: porém, se procurarmos, ainda que
seja na mais pequena medida, agir segundo a ordem divina, que é: "Destes afasta-te" (2
Tm 3:5), "saído meio deles" (2 Co 6:17), podemos estar certos de encontrar a mais
violenta oposição. Como se explica isto? Principalmente devido ao fato que os cristãos,
estando separados da vã religião, rendem um testemunho a Cristo que nunca poderiam
dar enquanto estivessem ligados com ela.
Existe um grande diferença entre Cristo e a religião do mundo. Um pobre hindu, envolvido
em trevas, pode falar da sua religião, mas nada sabe de Cristo. O apóstolo, não diz, "se
há algum conforto na religião" (Fp 2:1); embora os devotos de uma religião qualquer
achem incontestavelmente nela aquilo que lhes parece ser consolação. Paulo, pelo
contrário, achou a sua consolação em Cristo, depois de haver experimentado plenamente
a inutilidade da religião, ainda que na sua forma mais bela e imponente (comparem-se Gl
l:13-14; Fp 3:3-ll).
É verdade que o Espírito Santo fala-nos da "religião pura e imaculada" (Tg 1:27); porém o
homem descrente não pode, de modo nenhum, participar dela; porque como poderá ter
parte naquilo que é " puro e imaculado" ? Esta religião é do céu, a fonte de tudo que é
puro e excelente; está exclusivamente diante de nosso "Deus e Pai"; serve para exercício
das funções da nova natureza, com a qual são dotados todos aqueles que creem no
nome do Filho de Deus (Jo l: 12 e 13; Tg 1:18; 1 Pe 1:23; l Jo 5:1). Finalmente, define-se
pelos dois principais aspectos da benevolência e santidade pessoal "visitar os órfãos e as
viúvas nas suas tribulações" (Tg 1:27).
Se examinarmos a lista dos verdadeiros frutos do Cristianismo, veremos que estão todos
classificados sob estes dois pontos principais; e é profundamente interessante notar que,
quer nos voltemos para o capítulo 8 do Êxodo ou o primeiro de Tiago, a separação do
mundo é apresentada como uma qualidade indispensável no verdadeiro serviço a Deus.
Nada que seja manchado com o contato "deste século mau" pode ser aceitável diante de
Deus, nem receber da Sua mão o selo" puro e imaculado". "Pelo que saí do meio deles, e
apartai-vos, diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para
vós Pai, e vós serreis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso" (2 Co 6:17-
18).
Não havia no Egito nenhum lugar de reunião para o Senhor e o Seu povo redimido; sim,
para eles, a redenção e a separação eram uma e a mesma coisa. Deus havia dito: "desci
para livrá-los", (Êx 3:8) e nada senão isto podia satisfazê-Lo ou glorificá-Lo. Uma salvação
que deixasse o povo no Egito não podia ser salvação de Deus. Além disso, devemos
recordar que o desígnio do Senhor, com a salvação de Israel, assim como na destruição
de Faraó, era para que o Seu nome fosse anunciado em toda a terra (capítulo 9:16); e
que declaração poderia haver desse nome ou caráter, se o Seu povo tivesse de Lhe
prestar culto no Egito? Ou não teria havido nenhum testemunho ou seria um testemunho
falso. Portanto, era necessário, para que o caráter de Deus fosse plena e fielmente
declarado, que o Seu povo fosse inteiramente libertado e completamente separado do
Egito; e é, essencialmente, necessário, agora, para que um testemunho claro e sem
equívoco seja dado ao Filho de Deus, que todos que são realmente Seus sejam
separados deste presente século mau. Tal é a vontade de Deus; e para este fim Cristo
entregou-Se a Si mesmo. "Graça e paz, da parte de Deus Pai e da de nosso Senhor
Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente
século mau, segundo a vontade de Deus nosso Pai, ao qual seja dada glória para todo o
sempre Amém!" (Gl 1:3-5).
Os Gálatas começavam a dar crédito a uma religião carnal e mundana — uma religião de
ordenações —, uma religião de "dias e meses, de tempos e de anos"; e o apóstolo
começa a sua epístola dizendo-lhes que o Senhor Jesus Cristo Se deu a Si mesmo com o
propósito de libertar o Seu povo todo desse sistema. O povo de Deus deve ser separado,
não com base na sua santidade mas porque é o Seu povo, e para que possa responder
inteligentemente ao fim que Deus propusera pondo-o em relação Consigo e associando-o
com o Seu nome. Um povo que continuasse a viver no meio das abominações e
contaminações do Egito não podia ser um testemunho do Deus santo; nem tampouco,
agora, todo aquele que se associa com as contaminações de uma religião mundana e
corrompida não pode ser uma testemunha fiel e poderosa de um Cristo crucificado e
ressuscitado.

O Caminho de Três Dias


A resposta que Moisés deu à primeira objeção de Faraó é realmente notável: "E Moisés
disse: Não convém que façamos assim, porque sacrificaríamos ao SENHOR, nosso Deus,
a abominação dos egípcios; eis que, se sacrificássemos a abominação dos egípcios
perante os seus, olhos, não nos apedrejariam eles?" (capítulo 8:26 - 27). O caminho de
"três dias" é verdadeira separação do Egito. Nada menos que isto podia satisfazer a fé. O
Israel de Deus tem que ser separado da terra e da morte e das trevas pelo poder da
ressurreição. As águas do Mar Vermelho têm de correr entre os remidos do Senhor e o
Egito, antes que eles possam oferecer sacrifícios ao Senhor. Se tivessem ficado no Egito,
teriam que sacrificar ao Senhor os mesmos objetos abomináveis do culto dos egípcios (¹).
Isto não pode ser. No Egito não podia haver tabernáculo, nem templo, nem altar. Em toda
a extensão do país não havia lugar para nenhuma destas coisas. De fato, como veremos
adiante, Israel não entoou um cântico sequer de louvor até que toda a congregação foi
reunida no pleno poder da redenção levada a cabo na costa Cananéia do Mar Vermelho.
O mesmo é exatamente agora. É preciso que o crente saiba onde foi colocado para
sempre pela morte e ressurreição do Senhor Jesus Cristo, antes de poder ser um
adorador inteligente, um servo aprovado, ou uma testemunha eficaz.
_________________
(¹) A palavra "abominação" diz respeito àquilo que os egípcios adoravam.
Não se trata aqui da questão se somos filhos de Deus, e, portanto, se somos salvos.
Muitos filhos de Deus estão muito longe de conhecer os resultados plenos, quanto a si
próprios, da morte e ressurreição de Cristo. Não compreendem esta verdade preciosa:
que a morte de Cristo tirou os seus pecados para sempre, e que eles são os felizes
participantes da Sua vida de ressurreição, com a qual o pecado nada mais tem que fazer.
Cristo foi feito maldição por nós, não por ter nascido sob a maldição de uma lei
quebrantada, mas sendo pendurado no madeiro (comparem-se atentamente Dt 21:23; Gl
3:13). Nós estávamos sob a maldição, porque não tínhamos guardado a lei; porém Cristo,
o Homem perfeito, havendo engrandecido a lei e tornando-a honrosa, devido ao fato de a
haver cumprido perfeitamente, foi feito maldição por nós sendo pendurado no madeiro.
Assim, na Sua vida Ele engrandeceu a lei de Deus; e na Sua morte levou a nossa
maldição. Portanto, agora não há para o crente maldição nem ira nem condenação: e
embora tenha de comparecer no tribunal de Cristo, este tribunal ser-lhe-á tão favorável
então como agora o é o trono da graça. O tribunal manifestará a sua verdadeira condição,
isto é, que nada existe contra ele: o que ele é, foi Deus quem o realizou. Ele é obra de
Deus. Deus tomou-o no estado de morte e condenação e fê-lo exatamente como queria
que ele fosse. O Próprio Juiz apagou os seus pecados e é a sua justiça, de forma que o
tribunal não deixará de lhe ser favorável; mais ainda, será a declaração pública,
autorizada e plena, feita ao céu, à terra e ao inferno, de que aquele que é lavado de seus
pecados no sangue do Cordeiro é tão limpo quanto Deus pode torná-lo (veja-se Jo 5:24;
Rm 8:1; 2 Co 5:5,10,11; Ef 2:10). Tudo que era preciso fazer, o Próprio Deus o fez, e
certamente Ele não condenará a Sua própria obra. A justiça que era pedida, Deus a
proveu; e, portanto, não achará nenhum defeito nesse suprimento. A luz do tribunal de
Cristo será bastante radiante para dissipar todas as neblinas e nuvens que pudessem
obscurecer as glórias imaculadas e as virtudes eternas que pertencem à cruz e para
mostrar que o crente está "todo limpo" (Jo 13:10; 15:3; Ef 5:27).

A Paz: Fora do Mundo


É por causa de não haverem apropriado estas verdades fundamentais, com simplicidade
de fé, que muitos filhos de Deus lamentam não possuir uma paz segura e passam por
contínuos altos e baixos na sua vida espiritual. Cada dúvida no coração de um crente é
uma desonra para a palavra de Deus e o sacrifício de Cristo. É porque não permanece,
desde já, naquela luz que brilhará no tribunal de Cristo, que anda sempre aflito com
dúvidas e temores. Contudo, estas dúvidas e incertezas, que muitos têm de deplorar, são
apenas consequências insignificantes comparativamente, tanto mais que apenas afetam a
sua experiência. Os efeitos que produzem sobre o seu culto, o seu serviço e o seu
testemunho são muito mais graves, visto que a glória do Senhor é afetada. Mas, ah! nesta
pouco se pensa, geralmente falando, simplesmente porque o objetivo principal, o fim e o
alvo, com a maioria dos cristãos, é a salvação pessoal. Todos somos inclinados a
considerar como essencial tudo que se relaciona conosco; enquanto que aquilo que diz
respeito à glória de Cristo em nós e por nosso intermédio é considerado como não
essencial.
Contudo, é bom compreendermos claramente que a mesma verdade que dá paz segura à
alma, põe-na também em estado de poder oferecer um culto inteligente, um serviço
aceitável, e um testemunho eficaz.
No capítulo quinze da primeira epístola aos Coríntios, o apóstolo apresenta a morte e a
ressurreição de Cristo como o grande fundamento de todas as coisas. "Também vos
notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado, o qual também recebestes e no
qual também permaneceis; pelo qual também sois salvos, se o retiverdes tal como vo-lo
tenho anunciado, se não é que crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o
que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que
foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras" (versículos 1 a 4).
Eis o evangelho, numa declaração rápida e compreensível. O fundamento da salvação é
um Cristo morto e ressuscitado. "O qual por nossos pecados foi entregue e ressuscitou
para nossa justificação" (Rm 4:25). Ver Jesus, com os olhos da fé, pregado na cruz e
assentado no trono, é uma visão que deve dar paz sólida à consciência e perfeita
liberdade ao coração. Nós podemos olhar para o sepulcro e vê-lo vazio; podemos olhar
par cima e ver o trono ocupado, e, assim, continuar o nosso caminho cheios de gozo. O
Senhor Jesus liquidou todas as coisas na cruz a favor do Seu povo; e a prova desta
liquidação é que está à destra de Deus. Um Cristo ressuscitado é a prova eterna de uma
redenção efetuada; e se a redenção é um fato consumado, então a paz do crente é uma
realidade estabelecida. Nós não fizemos a paz, nem nunca a poderíamos ter feito. De
fato, todos os nossos esforços nesse sentido só serviriam para manifestar com maior
evidência que éramos transgressores da faz. Porém, Cristo, havendo feito a paz pelo
sangue da Sua cruz, tomou o Seu lugar nas alturas, triunfando sobre todos os Seus
inimigos. Por Ele Deus anuncia a paz. A palavra do evangelho transmite esta paz: e a
alma que crê o evangelho tem a paz estabelecida diante de Deus, porque Cristo é a sua
paz (veja-se At 10:36; Rm 5:l, Ef 2:14; Co l:20). Desta maneira Deus satisfez não só as
Suas exigências, como abriu um caminho divinamente justo mediante o qual o Seu amor
infinito pode descer até ao mais culpado da geração culpada de Adão.
Quanto ao resultado prático, a cruz de Cristo não só tirou os pecados do crente como
quebrou para sempre os laços que o prendiam ao mundo, e, com base neste fato, ele tem
o privilégio de considerar o mundo como uma coisa crucificada, e de ser considerado pelo
mundo como um que foi crucificado. Tal é a posição do crente e do mundo — o mundo
está crucificado para o crente e o crente para o mundo. Esta é a verdadeira e elevada
posição do crente. O juízo que este mundo fez de Cristo foi expresso pela posição em que
o mundo deliberadamente o colocou. O mundo foi convidado a fazer a sua escolha entre
Cristo e um assassino. Pôs o assassino em liberdade, e pregou Cristo na cruz entre dois
malfeitores. Portanto, se o crente segue as pisadas de Cristo e se compenetra com o Seu
espírito, e o manifesta, ocupará o mesmíssimo lugar que Cristo tem na estima do mundo;
e desta forma não somente conhecerá que, quanto à sua posição diante de Deus, está
crucificado com Cristo, mas será levado também a realizar este fato na sua vida e na sua
experiência diária.
Contudo, posto que a cruz tem assim quebrado eficazmente a ligação entre o crente e o
mundo, a ressurreição introduziu-o debaixo do poder de novos laços e novas relações. Se
vemos na cruz o juízo do mundo, quanto a Cristo, na ressurreição vemos o juízo de Deus.
O mundo crucificou-O; porém, "Deus exaltou-o soberanamente" (Fp 2:9). O homem deu-
Lhe o lugar mais baixo, mas Deus deu-Lhe o lugar mais elevado; e embora o crente seja
chamado a gozar plena comunhão com Deus, em seus pensamentos a respeito de Cristo,
ele pode, por sua parte, considerar o mundo como uma coisa crucificada. Assim, pois, se
o crente está sobre uma cruz e o mundo noutra, a distância moral entre os dois é na
verdade considerável. E se a distância é considerável em princípio, também deveria sê-lo
na prática. O mundo e o cristão não deveriam ter nada absolutamente em comum; e nada
terão em comum, exceto quando o cristão nega o seu Senhor e Mestre. O crente mostra-
se infiel a Cristo na mesma proporção em que tem comunhão com o mundo.

O que é o Mundo
Tudo isto é bastante claro; porém, prezado leitor, aonde nos conduz quanto a este
mundo"?- Seguramente, fora dele, e isto de um modo completo. Estamos mortos para o
mundo e vivos para Cristo. Somos participantes ao mesmo tempo da Sua rejeição pelo
mundo e da Sua aceitação no céu; e o gozo desta faz-nos considerar como nada a
provação daquela. Ser lançado fora do mundo, sem saber que tenho um lugar e uma
parte no céu, seria insuportável para mim; porém, quando as glórias do céu enchem a
visão da alma, é necessário muito pouco da terra.
Mas, pode perguntar-se, "Que é o mundo?" Seria difícil encontrar um termo tão mal
definido como "o mundo" ou "a mundanidade"; pois em geral nós somos propensos a
fazer a mundanidade um ou dois pontos acima do lugar onde nos achamos situados
espiritualmente. A Palavra de Deus, porém, define com perfeita precisão o que significa o
termo "o mundo", quando o designa como aquilo que "não é do Pai" (l Jo 2:15 e 16). Por
isso, quanto mais profunda for a minha comunhão com o Pai, mais penetrante será a
minha compreensão daquilo que é mundano. É esta a forma divina de ensino. Quando
mais vos deleitardes no amor do Pai, tanto mais desprezareis o mundo. Mas quem é
aquele que revela o Pai<? É o filho. Como?- Pelo poder do Espírito Santo. Pelo que,
quanto mais habilitado eu estiver, no poder do Espírito, não contristado, a deleitar-me na
revelação que o Filho nos tem dado do Pai, tanto mais exato será o meu discernimento
quanto àquilo que é do mundo. É à medida que o reino de Deus ganha terreno no
coração, que o nosso juízo quanto à mundanidade se torna mais reto. Não é fácil definir o
que é mundanismo. É, como alguém disse, "sombreado gradualmente desde o branco ao
preto carregado". Isto é verdadeiro. Não se pode estabelecer um limite e dizer: "é aqui
que começa o mundanismo"; porém a sensibilidade viva e delicada da natureza divina
recua perante ele; e tudo que nós necessitamos é andar no poder dessa natureza, a fim
de nos mantermos alheados a toda a espécie de mundanismo. "Andai em Espírito e não
cumprireis a concupiscência da carne" (Gl 5:16). Andai com Deus, e não andareis com o
mundo. As distinções frias e as regras rígidas para nada servem. É o poder da vida divina
que nós precisamos. Precisamos de compreender a significação espiritual do "caminho de
três dias no deserto", o qual nos separa para sempre não apenas dos fornos de tijolo e
dos exatores do Egito, mas também dos seus templos e altares.

A Segunda Objeção
A segunda objeção do Faraó participava muitíssimo do caráter e tendência da primeira.
"Então, disse Faraó: Deixar-vos-ei ir, para que sacrifiqueis ao SENHOR vosso Deus no
deserto; somente que, indo, não vades longe" (capítulo 8:28). Não podendo retê-los no
Egito, procurava ao menos retê-los perto das fronteiras, para poder agir contra eles por
meio das diversas influências do país. Desta forma o povo podia ser reconduzido e o
testemunho mais facilmente aniquilado que se eles nunca tivessem saído do Egito.
Aqueles que tornam para o mundo, depois de aparentemente o terem deixado, causam
muito mais dano à causa de Cristo do que se nunca se houvessem afastado dele; porque
virtualmente confessam que, tendo provado as coisas divinas, descobriram que as coisas
terrenas são melhores e satisfazem mais.
E isto ainda não é tudo. O efeito moral da verdade sobre as consciências dos incrédulos e
tristemente embaraçado pelo exemplo dos professos que regressam às coisas que
aparentemente haviam deixado. Não é que tais casos concedam autorização a ninguém
para rejeitar a verdade de Deus, tanto mais que cada um é responsável por si mesmo e
terá de prestar contas dos seus atos a Deus. Contudo, o efeito produzido é, como em
tudo mais, mau. "Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo,
pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e
vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora
não conhecerem o caminho da justiça do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo
mandamento que lhes fora dado" (2 Pe 2:20-21).
Por esse motivo, se as pessoas não estão dispostas a ir longe, é melhor não partirem. O
inimigo sabia isto bem; daí a sua segunda objeção. Uma posição de proximidade satisfaz
admiravelmente os seus propósitos. Aqueles que ocupam esta posição não são nem uma
coisa nem outra; com efeito, qualquer que seja a sua influência, conduz, infalivelmente,
para o lado mau.
É muito importante ver claramente que o fim de Satanás em todas estas objeções era pôr
obstáculos ao testemunho que só podia ser rendido ao nome do Deus de Israel por meio
de uma peregrinação de três dias através do deserto. Isto era, em boa verdade, ir muito
longe —ir muito mais longe do que Faraó podia imaginar, ou até onde lhe era possível
seguir Israel. Que grande bênção seria se todos os que fazem profissão de sair do Egito
se separassem dele pelo espírito do seu entendimento e pela elevação do seu caráter; se
conhecessem a cruz e a sepultura de Cristo como os limites estabelecidos entre eles e o
mundo! Ninguém pode colocar-se nesse terreno na energia da sua natureza. O Salmista
pôde dizer:
"E não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não se achará justo nenhum
vivente" (Sl 143:2). O mesmo acontece a respeito da separação verdadeira e efetiva do
mundo. "Nenhum vivente" pode realizá-la. E somente como "morto com Cristo", e
ressuscitado também nele, pela fé, no poder de Deus(Cl 2:12),que o homem pode ser
justificado diante de Deus e separado do mundo. Eis o que podemos chamar "ir muito
longe". Permita Deus que todos os que fazem profissão de cristãos e se chamam por este
nome possam assim afastar-se! Então a sua lâmpada dará uma luz constante, a sua
trombeta dará um sonido inteligível e a sua conduta será elevada; a sua experiência será
rica e profunda; a sua paz correrá como um rio; os seus afetos serão celestiais e as suas
vestes imaculadas. E, acima de tudo, o nome do SENHOR Jesus será glorificado neles
pelo poder do Espírito Santo, segundo a vontade de Deus Pai.

A Terceira Objeção
A terceira objeção de Faraó requer atenção especial de nossa parte. "Então, Moisés e
Arão foram levados outra vez a Faraó, e ele disse-lhes: Ide, servi ao SENHOR, vosso
Deus. Quais são os que hão-de ir? E Moisés disse: Havemos de ir com os nossos
meninos e com os nossos velhos; com os nossos filhos, e com as nossas filhas, e com as
nossas ovelhas, e com os nossos bois havemos de ir; porque festa ao SENHOR temos.
Então ele lhes disse: Seja o SENHOR assim convosco, como eu vos deixarei ir a vós e a
vossos filhos; olhai que há mal diante da vossa face. Não será assim; andai agora vós,
varões, e servi ao SENHOR; pois isso é o que pedistes. E os lançaram da face de Faraó"
(capítulo 10:8 a 11).
De novo vemos como o inimigo procura dar um golpe de morte no testemunho dado ao
Deus de Israel. Os pais no deserto e os filhos no Egito! Que terrível anomalia! Isto teria
sido apenas libertação parcial, ao mesmo tempo inútil para Israel e desonrosa para o
Deus de Israel. Isto não era possível. Se os filhos fossem deixados no Egito, não se podia
dizer que os pais os tivessem deixado. Tudo quanto podia dizer-se, em tal caso, era que
em parte eles serviam ao Senhor e em parte a Faraó. Porém, o Senhor não podia ter
parte com Faraó. Era necessário que possuísse tudo ou nada. Eis aqui um princípio
importante para os pais cristãos. Possamos nós tê-lo no íntimo dos nossos corações! É
nosso privilégio contar com Deus quanto aos nossos filhos, e criá-los "na doutrina e
admoestação do Senhor" (Ef 6:4). Nenhuma outra parte deve satisfazer-nos quanto aos
nossos "pequeninos" senão aquela mesma que nós próprios desfrutamos.

A Quarta Objeção
A quarta e última objeção de Faraó relacionava-se com os rebanhos e as manadas.
"Então, Faraó chamou a Moisés e disse: Ide, servi ao SENHOR: somente fiquem vossas
ovelhas e vossas vacas; vão também convosco as vossas crianças (capítulo 10:24). Com
que perseverança disputou Satanás cada palmo do caminho de Israel para fora do Egito!
Em primeiro lugar procurou mantê-los no país; então diligenciou tê-los perto do país;
depois esforçou-se por reter parte do povo; e por fim, depois de haver falhado nestas três
tentativas, esforçou-se por fazê-los partir sem meios alguns para servir ao Senhor. Já que
não podia reter os servidores procurava ficar com os meios que eles tinham para servir,
pensando obter o mesmo resultado por um meio diferente. Já que não podia induzi-los a
oferecerem sacrifícios no país, queria enviá-los fora do país sem vítimas para os
sacrifícios.

A Resposta de Moisés
A resposta de Moisés a esta última objeção de Faraó dá-nos um relato dos direitos
soberanos do Senhor sobre o Seu povo e tudo que lhes pertence. "Moisés, porém, disse:
Tu também darás em nossos mãos sacrifícios e holocaustos, que ofereçamos ao
SENHOR nosso Deus. E também o nosso gado há de ir conosco, nem uma unha ficará;
porque daquele havemos de tomar para servirão SENHOR nosso Deus; porque não
sabemos com que havemos de servir ao Senhor, até que cheguemos lá" (versículos 25-
26). É somente quando o povo de Deus toma o seu lugar, com fé simples e infantil, sobre
o terreno elevado em que a morte e ressurreição os colocou, que podem ter um
conhecimento adequado dos seus direitos sobre eles: "...não sabemos com que havemos
de servir ao SENHOR, até que cheguemos lá". Quer dizer, não sabiam qual era a sua
responsabilidade, nem quais as exigências de Deus até que tivessem andado "três dias
de caminho" . Estas coisas não podiam ser conhecidas no meio da atmosfera corrompida
do Egito. É indispensável que a redenção seja conhecida como um fato consumado antes
que se possa ter uma percepção justa ou completa da responsabilidade. Tudo isto é
perfeito e belo.
"Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de
Deus" (Jo 7:17). É necessário que, por meio do poder da morte e ressurreição, estejamos
fora do Egito. É quando ocupamos o nosso lugar, pela fé, nesses átrios gloriosos em que
o sangue precioso de Cristo nos introduz; quando podemos olhar em redor de nós e
contemplar os resultados maravilhosos do amor que nos resgatou; quando contemplamos
atentamente Aquele que nos trouxe para este lugar e nos deu todas estas riquezas, que
somos constrangidos a exclamar, como um dos nossos poetas exclamou:

"Fora-me dado todo o domínio da natureza,


Seria uma oferta pequena demais; Amor tão sublime, tão divino,
Que pede o meu coração, a minha vida, todo o meu ser."

"Nem uma unha ficará". Que nobres palavras! O Egito não é o lugar próprio para guardar
coisa alguma que pertença aos remidos do SENHOR. Deus é digno de tudo: "alma, corpo
e espírito" — tudo que somos e tudo quanto temos pertencem-Lhe:"...não somos de nós
mesmos", porque "fomos comprados por bom preço" (I Co 6:19, 29) e é nosso grande
privilégio consagrarmo-nos com tudo quanto temos Àquele a Quem pertencemos e a cujo
serviço fomos chamados. Nada se vê aqui do espírito legalista. As palavras "até que
cheguemos lá" são a salvaguarda divina contra este mal horrível. Nós fizemos a
caminhada de "três dias" antes que pudesse ser ouvida ou compreendida uma só palavra
quanto ao sacrifício. Estamos de posse plena e indiscutível da vida de ressurreição e da
justiça eterna. Deixamos a terra da morte e das trevas; fomos trazidos a Deus Mesmo, de
forma que podemos possuí-Lo no poder dessa vida com que fomos dotados e nessa
esfera de justiça na qual fomos colocados: servir é, pois, todo o nosso gozo. Não existe
em nosso coração um só afeto do qual Ele não seja digno; não há em todo o Seu rebanho
uma vítima que seja preciosa demais para ser imolada no Seu altar. Quanto mais perto
andarmos d'Ele, tanto melhor compreenderemos que a nossa comida e a nossa bebida é
fazer a Sua santa vontade. O crente considera como seu maior privilégio o de servir ao
Senhor, e deleita-se em todo o exercício e em toda a manifestação da natureza divina.
Não caminha carregando com um peso insuportável às costas ou um jugo incômodo ao
pescoço. O jugo foi "despedaçado por causa da unção" (Is 10:27); o fardo foi tirado para
sempre pelo sangue da cruz, e ele avança "resgatado" "regenerador" e "desembaraçado"
em conformidade com estas palavras consoladoras: "DEIXA IR O MEU POVO".
A Ultima Praga
"E o SENHOR disse a Moisés: Ainda uma praga trarei sobre Faraó e sobre o Egito;
depois, vos deixará ir daqui; e quando vos deixar ir totalmente, a toda a pressa vos
lançará daqui"(capítulo 11:1). Ainda mais um golpe duro deve cair sobre este monarca de
coração endurecido e sobre o seu povo, antes de ser obrigado a deixar ir o povo
favorecido pela graça soberana de Deus.

O Coração Endurecido de Faraó


Quão inútil é que o homem se endureça e se exalte contra Deus; porque certamente Ele
pode reduzir a pó o coração mais endurecido e abater o espírito mais altivo. Deus "pode
humilhar aos que andam na soberba" (Dn 4:37). O homem pode presumir ser alguma
coisa: pode levantar ao alto a sua cabeça em pompa e vã glória como se fosse senhor de
si próprio. Homem vão! Quão pouco conhece o seu verdadeiro estado e o seu caráter!
Não é mais que um instrumento de Satanás, usado por ele nos seus esforços perversos
para impedir os propósitos de Deus. A inteligência mais brilhante, o gênio mais elevado, a
energia mais indomável, não são mais que outros tantos instrumentos nas mãos de
Satanás para executar os seus planos tenebrosos, a menos que estejam postos sob o
controle imediato do Espírito de Deus. Ninguém é senhor de si próprio: ou há-de ser
governado por Cristo ou por Satanás. O rei do Egito podia considerar-se um ente livre; e
contudo não era mais que um instrumento nas mãos de outrem. Satanás estava atrás do
trono; e, como resultado de Faraó se ter disposto a resistir aos propósitos de Deus, foi
entregue judicialmente à influência endurecedora e cega do senhor da sua escolha.
Isto explica uma expressão que lemos frequentemente nos primeiros capítulos deste livro:
"Porém, o SENHOR endureceu o coração de Faraó." Não seria proveitoso para ninguém
procurar esquivar-se ao sentido claro desta soleníssima declaração. Se o homem rejeita a
luz do testemunho divino, é entregue à cegueira judicial e ao endurecimento de coração.
Deus abandona-o a si próprio; e então Satanás, apoderando-se dele, precipita-o na
perdição. Houve bastante luz para mostrar a Faraó a sua loucura extravagante em
procurar reter aqueles que Deus lhe havia ordenado que deixasse ir. Porém a verdadeira
disposição do seu coração era de opor-se a Deus, e, portanto, Deus abandonou-o a si
mesmo, e fez dele um monumento para manifestação da sua glória "em toda a terra". Isto
não encerra nenhuma dificuldade, salvo para aqueles que desejam arguir com Deus —
que se ―embravecem contra o Todo-Poderoso" (Jó 15:25), para ruína das suas almas
imortais.
Deus dá às vezes aos homens aquilo que está de acordo com a verdadeira inclinação dos
seus corações:"...por isso, Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam na
mentira, para que sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes tiveram
prazer na iniquidade" (2 Ts 2:11-12). Se os homens rejeitam a verdade quando lhes é
apresentada, terão, certamente, a mentira; se não querem Cristo, terão Satanás; se
menosprezam o céu, terão o inferno (¹). O Espírito incrédulo terá alguma coisa que
responder a isto? Antes de o fazer deve certificar-se de que aqueles que são assim
tratados judicialmente obram inteiramente debaixo da sua responsabilidade.
Por exemplo, no caso de Faraó, ele agiu, até certo ponto, segundo a luz que possuía.
Acontece o mesmo em todos os demais casos. O dever de prova recai,
incontestavelmente, sobre aqueles que estão dispostos a argumentar com Deus acerca
dos Seus juízos contra os que desprezam a verdade. O mais simples filho de Deus
justificará a Deus em face das mais inescrutáveis dispensações; e, ainda que não possa
responder satisfatoriamente a todas as perguntas difíceis da incredulidade, acha
descanso perfeito nestas palavras: "Não faria justiça o Juiz de toda a terral" (Gn 18:25).
Existe muito mais sabedoria nesta forma de resolver uma dificuldade aparente do que nos
argumentos mais complicados; porque, certamente, um coração que está disposto a
"replicar" a Deus (Rm 9:20) não será convencido pelos argumentos do homem.
Contudo, é uma das prerrogativas de Deus responder a todos os argumentos orgulhosos
do homem e abater as ideias altivas do espírito humano. O Senhor pode imprimir a
sentença de morte sobre toda a natureza, até nas suas formas mais belas. "Aos homens
está ordenado morrerem uma vez" (Hb 9:27). Ninguém pode escapar a esta sentença.
O homem pode procurar encobrir a sua humilhação por vários meios e ocultar a sua
retirada através do vale da sombra da morte da maneira mais heroica; dando os títulos
mais honrosos que possa imaginar-se aos seus últimos dias; dourando com falsos
esplendores o seu leito de morte; decorando o préstito fúnebre e a sepultura com
aparência de pompa, de aparato e de glória; levantando sobre os restos corrompidos um
monumento esplêndido, sobre o qual são escritos os anais da vergonha humana; tudo isto
o homem pode fazer; mas a morte é morte, afinal, e ele não pode retardá-la nem um só
momento, nem tampouco transformá-la noutra coisa além do que ela realmente é, a
saber: "o salário do pecado" (Rm 6:23).

_______________________
(¹) Exige uma grande diferença entre o método divino de tratar com os gentios e os
rejeitadores do evangelho. Quanto aos primeiros, lemos: "E, como eles se não importaram
de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso" (Rm
1:28): mas acerca dos últimos, está escrito, "...porque não receberam o amor da verdade
para se salvarem... Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira,
para que sejam julgados todos..." (2 Ts 2:10-12). Os gentios rejeitaram o testemunho da
criação, e são, portanto, entregues a si próprios. Os rejeitadores do evangelho recusam o
brilho pleno da luz que refulge da cruz, e, portanto, Deus enviar-lhes-á em breve a
"operação do erro". Tudo isto é profundamente solene nestes dias em que há tanta luz e
tanta profissão religiosa.

Juízo dos Primogênitos do Egito


Estes pensamentos são-nos sugeridos pelos primeiros versículos do capítulo 11: "Ainda
uma praga trarei!" Palavras solenes! Estas põem o selo da sentença de morte
pronunciada contra os primogênitos do Egito: "as primícias de todas as suas forças"(Sl
105:36). "Disse mais Moisés: Assim o SENHOR tem dito: A meia-noite eu sairei pelo meio
do Egito; e todo primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito de Faraó, que
se assenta com ele sobre o seu trono, até ao primogênito da serva que está detrás da mó,
e todo o primogênito dos animais. E haverá grande clamor em toda a terra do Egito, qual
nunca houve semelhante e nunca haverá" (versículos 4 a 6). Esta devia ser a última
praga—morte em todas as casas. "Mas contra todos os filhos de Israel nem ainda um cão
moverá a sua língua, desde os homens até aos animais, para que saibais que o SENHOR
fez diferença entre os egípcios e os israelitas" (versículo 7). Só o Senhor pode fazer
diferença entre certo, sim!
Não nos compete a nós dizer a alguém: "Retira-te e não te chegues a mim, que sou mais
santo do que tu" (Is 65:5): esta é a linguagem própria de um fariseu. Porém, quando Deus
faz diferença, somos forçados a indagar em que consiste essa diferença, e, no caso
presente, vemos que se tratava de uma simples questão de vida ou morte. Eis aqui a
grande diferença que Deus faz. Ele traça uma linha de demarcação: de um dos lados
desta linha está "a vida", do outro "a morte". Muitos dos primogênitos do Egito podiam ser
tão formosos e ter os mesmos atrativos como os de Israel, e talvez mais: porém Israel
tinha vida e luz, com base nos desígnios do amor de um Deus redentor, e estabelecidos
firmemente, como veremos, pelo sangue do Cordeiro.
Esta era a posição ditosa de Israel; enquanto que, por outro lado, em toda a extensão do
país do Egito, desde o monarca assentado no trono à serva ocupada em moer, nada mais
se via senão morte; e só se ouvia o brado de angústia arrancado pelo golpe terrível da
vara de Deus. Deus pode abater o espírito altivo do homem. Ele pode fazer com que a
cólera do homem redunde em Seu louvor, e restringir o restante dessa cólera (SI 76:10).
"Então, todos estes teus servos descerão a mim e se inclinarão diante de mim, dizendo:
Sai tu e todo o povo que te segue as pisadas; e depois eu sairei" (capítulo 11:8). Deus
cumprirá os Seus propósitos. É mister que os Seus desígnios de misericórdia sejam
cumpridos a todo o custo; e a confusão de rosto será a parte de todos aqueles que se Lhe
opõem. "Louvai ao SENHOR, porque ele é bom; porque a sua benignidade é para
sempre... Que feriu o Egito nos seus primogênitos; porque a sua benignidade é para
sempre. Com mão forte, e com braço estendido; porque a sua benignidade é para
sempre" (Sl 136:1,10,12).

— CAPÍTULO 12 —

A PÁSCOA

O Princípio dos Meses


"E falou o SENHOR a Moisés e a Arão na terra do Egito, dizendo: Este mesmo mês vos
será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano" (capítulo 12:1-2).
Eis aqui uma alteração muito importante na ordem de contar o tempo. O ano comum ou
civil seguia o seu curso ordinário, quando o Senhor o interrompeu por causa do Seu povo,
e assim, em princípio, ensinou-lhes que deviam começar uma nova era em Sua
companhia. A história anterior de Israel não devia ser doravante tomada em conta. A
redenção tinha de constituir o primeiro passo na vida real.
Isto ensina-nos uma verdade bem simples. A vida do homem não é realmente de
interesse até que ele comece a andar com Deus no conhecimento de uma salvação
perfeita e de uma paz estável, pelo sangue precioso do Cordeiro de Deus. Antes disto,
segundo o juízo de Deus e a expressão das Escrituras, ele está "morto em ofensas e
pecados" e "alienado da vida de Deus" (Ef 2:1; 4:18). Toda a sua história não é mais que
um espaço vazio, ainda que, na opinião do homem, haja sido uma cena de ruidosa
atividade. Tudo aquilo que desperta a atenção do homem deste mundo, as honras, as
riquezas, os prazeres, os atrativos da vida, assim chamados, todas estas coisas, quando
examinadas à luz do juízo de Deus e pesadas na balança do santuário, não são mais que
um vazio horrível, um espaço inútil, indigno de ocupar um lugar nos registros do Espírito
Santo. "Aquele que não crê no Filho não verá a vida" (Jo 3:36). Os homens falam de
gozar a vida quando se lançam ao mundo, quando viajam de um lado para o outro, para
ver tudo que é digno de se ver; porém esquecem que o único meio verdadeiro, real e
divino de "ver a vida" é "crer no filho de Deus".
Como os homens pensam tão pouco nisto! Julgam que a verdadeira vida acaba quando
um homem se torna cristão, real e verdadeiro e não apenas de nome e profissão exterior;
ao passo que a palavra de Deus nos ensina que é então que podemos ver a vida e
experimentar verdadeira felicidade. "Quem tem o Filho tem a vida" (1 JO 5:12).E "Bem-
aventurado aquele cuja transgressão é perdoada e cujo pecado é coberto" (Sl 32:1).
Somente em Cristo podemos ter vida e felicidade. Fora d'Ele tudo é morte e miséria,
segundo o juízo do céu, sejam quais forem as aparências. É quando o véu espesso da
incredulidade é tirado do coração, e nos é dado ver, com os olhos da fé, o Cordeiro de
Deus carregando o nosso fardo pesado de culpa sobre a cruz, que entramos na senda da
vida e participamos do cálice da felicidade divina—vida que principia na cruz e corre para
uma eternidade de glória —, uma felicidade que, cada dia se torna mais profunda e mais
pura, mais relacionada com Deus e repousando melhor em Cristo, até chegarmos à sua
própria esfera, na presença de Deus e do Cordeiro. Buscar a vida e a felicidade por outros
meios é um trabalho muito mais penoso do que fazer tijolos sem palha.
Por certo, o inimigo das almas dá brilho a esta cena passageira, para fazer crer aos
homens que ela é toda de ouro.
Ele sabe como levantar mais de uma representação de fantoches com o fim de provocar o
riso falso de uma multidão descuidada, que não sabe que é Satanás quem move os
cordelinhos e que é seu objetivo conservar as almas afastadas de Cristo para as arrastar
para a perdição. Não existe nada verdadeiro, nada sólido, nada que satisfaça a alma,
senão em Cristo. Sem Ele "tudo é vaidade e aflição de espírito" (Ec 2:17). Só n'Ele se
encontram os gozos verdadeiros e ternos; e por isso é só quando começamos a viver
n'Ele, d'Ele, com Ele e para Ele que começamos verdadeiramente a viver: "Este mesmo
mês vos será o princípio dos meses; este vos será o primeiro dos meses do ano". O
tempo passado nos fornos de tijolo e junto das panelas de carne é como se não tivesse
existido. Deve, doravante, ser uma coisa sem importância, salvo que a sua recordação
deve, de vez em quando, servir para despertar o seu sentido daquilo que a graça divina
havia realizado em seu favor.

O Cordeiro Guardado
"Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, tome cada um para si
um cordeiro, segundo as casas dos pais, um cordeiro para cada casa... O cordeiro, ou
cabrito, será, sem mácula, um macho de um ano, o qual tomareis das ovelhas ou das
cabras, e o guardareis até ao décimo quarto dia deste mês, e todo o ajuntamento da
congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículos 3 a 6). Eis aqui a redenção do
povo de Israel baseada sobre o sangue do cordeiro segundo o desígnio eterno de Deus.
Isto dá à redenção toda a sua estabilidade divina.
A redenção não foi o resultado de um segundo pensamento de Deus. Antes que o mundo
existisse, ou Satanás, ou o pecado; antes que a voz de Deus houvesse interrompido o
silêncio de eternidade e chamado os mundos à existência, Ele tinha os seus grandes
desígnios de amor, e estes desígnios não podiam achar jamais um fundamento
suficientemente sólido na criação. Todos os privilégios, todas as bênçãos e as glórias da
criação repousavam sobre a obediência de uma criatura, e, no próprio momento em que
esta caiu, tudo foi perdido. Porém, a tentativa de Satanás de corromper a criação apenas
serviu para abrir o caminho à manifestação dos propósitos profundos de Deus quanto à
redenção.
Esta maravilhosa verdade é-nos apresentada em figura debaixo do fato que o cordeiro
devia ser guardado desde o dia dez "até ao décimo quarto dia". Este cordeiro era
indiscutivelmente uma figura de Cristo, como nos ensina, sem dúvida, a passagem da I
Coríntios 5:7: "Porque Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós". Na primeira epístola
de Pedro faz-se alusão à guarda do cordeiro durante estes quatro dias:
"Sabendo que não foi com cosias corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados
da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes do vossos pais, mas com o
precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual na
verdade, em outro tempo, foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas
manifestado nestes últimos tempos; por amor de vós" (versículos 18-20).
Todos os desígnios de Deus, desde toda a eternidade, tinham relação com Cristo; e
nenhum esforço de inimigo podia interferir com esses desígnios: antes pelo contrário,
esses esforços apenas contribuíram para a manifestação e a estabilidade inabalável da
sabedoria insondável de Deus. Se "o Cordeiro imaculado e incontaminado" foi "conhecido
antes da fundação do mundo", certamente que a redenção devia estar no pensamento de
Deus antes da fundação do mundo. O bendito Senhor não teve que improvisar um plano
para remediar o terrível mal que o inimigo havia introduzido na criação. Não, Ele apenas
teve que tirar do tesouro inexplorado dos Seus maravilhosos desígnios a verdade quanto
ao Cordeiro imaculado, conhecido desde a eternidade, e que devia ser "manifestado
nestes últimos tempos por amor de nós".
Quando a criação saiu das mãos do Criador, mostrando em cada fase e em cada parte a
obra admirável da Sua mão—provas infalíveis do seu eterno poder, e da sua divindade
veja (Rm 1:20) —, não houve necessidade do sangue do Cordeiro. Porém, quando "por
um homem entrou o pecado no mundo", foi revelado o pensamento mais alto, mais rico,
mais profundo, mais pleno da redenção pelo sangue do Cordeiro. Esta verdade gloriosa
apareceu primeiramente através da nuvem espessa que rodeava os nossos primeiros
pais, quando saíram do jardim do Éden; a sua luz começou a brilhar nas figuras e
sombras da dispensação moisaica; e, por fim, resplandeceu sobre o mundo com todo o
seu esplendor, quando "o Oriente do alto nos visitou" na Pessoa do Deus manifestado em
carne (1 Tm 3:16); e os seus ricos e gloriosos resultados serão realizados quando aquela
grande multidão vestida de branco, e tendo palmas em suas mãos, se reunir em torno do
trono de Deus e do Cordeiro, e toda a criação descansar sob o cetro de paz do Filho de
Davi.
Assim, o cordeiro tomado no dia dez e guardado até ao dia catorze mostra-nos Cristo
conhecido de Deus, desde a eternidade, porém manifestado na plenitude dos tempos por
amor de nós. O desígnio eterno de Deus em Cristo vem a ser o fundamento da paz do
crente. Nada menos do que isto seria suficiente. Somos reconduzidos muito para lá da
criação, para lá dos limites do tempo, além da entrada do pecado e de tudo que pudesse
possivelmente afetar o fundamento da nossa paz. A expressão "conhecido antes da
fundação do mundo" faz-nos retroceder às profundidades insondáveis da eternidade, e
mostra-nos Deus fazendo os Seus próprios planos de amor redentor e baseando-os sobre
o sangue expiador do Seu precioso Cordeiro imaculado.
Cristo foi sempre o pensamento primário de Deus, e por isso, logo que começa a falar ou
atuar, Ele aproveita a ocasião para manifestar Aquele que ocupava o lugar mais elevado
em Seus conselhos e afetos; e, seguindo a corrente de inspiração divina, descobrimos
que cada cerimônia, cada rito, cada ordenação, e cada sacrifício indicava "o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1:29); porém em nenhum de uma forma tão
evidente como a Páscoa. O cordeiro da páscoa, com tudo que com ele se ligava,
apresenta-nos uma das figuras mais interessantes e instrutivas das Escrituras.

O Cordeiro Imolado
Na interpretação deste capítulo 12 de Êxodo temos que tratar com unta assembleia e um
sacrifício é: "todo o ajuntamento da congregação de Israel o sacrificará à tarde" (versículo
6). Não se trata tanto de um número de famílias e alguns cordeiros (o que por certo é
muito verdade) como de uma assembleia e um cordeiro. Cada família era a expressão
local de toda a assembleia reunida em torno do cordeiro. O antítipo deste ato têmo-lo em
toda a Igreja de Deus reunida pelo Espírito Santo em nome do Senhor Jesus, da qual
cada assembleia em particular, onde quer que se reúna, deve ser a expressão local.

O Sangue sobre as Ombreiras e na Verga das Casas


"E tomarão do sangue e pô-lo-ão em ambas as ombreiras e na verga da porta, nas casas
em que o comerem. E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos;
com ervas amargosas a comerão.
Não comereis dele nada cru, nem cozido em água, senão assado ao fogo; a cabeça com
os pés e com a fressura" (versículos 7 -9).
O cordeiro da páscoa é-nos apresentado sob dois aspectos, a saber: como fundamento
da paz e como centro de unidade. O sangue na verga das portas assegurava a paz de
Israel: "...vendo eu sangue, passarei por cima de vós" (versículo 13). Nada mais era
necessário, senão a aspersão do sangue, para se desfrutar paz em relação com o anjo
destruidor. A morte devia fazer a sua obra em todas as casas do Egito. "Aos homens está
ordenado morrerem uma vez" (Hb 9:27). Porém, Deus, em Sua grande misericórdia,
encontrou um substituto imaculado para Israel, sobre o qual foi executada a sentença de
morte. Assim, as exigências de Deus e a necessidade de Israel foram cumpridas por uma
e mesma coisa, a saber: o sangue do cordeiro. O sangue fora das portas era prova de
que tudo estava perfeita e divinamente arrumado; e, portanto, dentro reinava perfeita paz.
Uma sombra de dúvida no coração dum israelita teria sido uma desonra para o
fundamento divino da paz—o sangue da expiação.
É verdade que cada um daqueles que se achavam dentro de casa, em cuja porta o
sangue havia sido posto, deveria sentir, necessariamente, que se tivesse de receber a
justa retribuição dos seus pecados, a espada do anjo destruidor cairia irremediavelmente
sobre si; porém o cordeiro havia sofrido em seu lugar. Este era o fundamento sólido da
sua paz. O juízo que lhe competia caíra sobre uma vítima designada por Deus e, crendo
isto, podia comer em paz dentro de casa. Uma dúvida sequer teria feito do Senhor
mentiroso; pois Ele havia dito: "vendo eu sangue, passarei por cima de vós". Isto era
suficiente. Não era uma questão de mérito pessoal. O ego nada tinha a ver com o
assunto. Todos os que se achavam protegidos pelo sangue estavam salvos. Não estavam
apenas num estado de salvos, mas salvos. Não esperavam nem oravam para ser salvos,
sabiam que isso era um fato assegurado, em virtude da autoridade daquela palavra que
permanecerá de geração em geração. Demais, não se achavam em parte salvos e em
parte expostos ao juízo: estavam completamente salvos. O sangue do cordeiro e a
palavra do senhor constituíam o fundamento da paz de Israel naquela noite terrível em
que os primogênitos do Egito foram abatidos. Se um simples cabelo da cabeça de um
israelita pudesse ser tocado, isso teria anulado a palavra do Senhor e declarado nulo o
sangue do cordeiro. É da máxima importância ter-se um conhecimento claro daquilo que
constitui o fundamento da paz do crente na presença de Deus. São associadas tantas
coisas à obra consumada de Cristo, que as almas se veem envolvidas na confusão e
incerteza quanto à sua aceitação. Não discernem o caráter absoluto da redenção pelo
sangue de Cristo na sua aplicação a si mesmas. Parece que ignoram que o perdão dos
seus pecados descansa sobre o simples fato de se ter efetuado perfeita expiação: um fato
comprovado, à vista de todos os entes inteligentes criados, pela ressurreição de entre os
mortos do Substituto do pecador. Sabem que não existe outro meio de salvação senão
pelo sangue da cruz, porém demônios sabem isto também, e de nada lhes aproveita. O
que necessitamos saber é que estamos salvos. O israelita sabia não somente que havia
segurança no sangue, mas que estava em segurança. E em segurança por quê ? Era
devido a alguma coisa que havia feito, ou sentido, ou pensado?-De modo nenhum; mas,
sim porque Deus havia dito: "vendo eu sangue passarei por cima de vós". O israelita
descansava sobre o testemunho de Deus; acreditava naquilo que Deus havia dito, porque
Deus o havia dito: "esse confirmou que Deus é verdadeiro."

"Vendo Eu Sangue..."
Note-se que o israelita não descansa sobre os seus próprios pensamentos, nos seus
sentimentos ou na sua experiência, a respeito do sangue. Isto teria sido descansar sobre
um fundamento fraco e movediço. Os seus pensamentos e os seus sentimentos podiam
ser profundos ou superficiais: mas, quer fossem profundos, quer superficiais, nada tinham
que ver com o fundamento da sua paz. Deus não havia dito: "vendo vós o sangue, e
avaliando-o como ele deve ser avaliado, eu passarei por cima de vós" .Isto teria bastado
para lançar um israelita em profundo desespero quanto a si próprio, visto que é
impossível para o espírito humano apreciar o valor do precioso sangue do Cordeiro de
Deus. O que dava paz era a certeza de que os olhos do Senhor estavam postos sobre o
sangue, e que Ele apreciava o seu valor. Isto tranquilizava o coração. O sangue estava de
fora da porta, e o israelita encontrava-se dentro de casa, de modo que não podia ver
aquele sangue; mas Deus o via, e isso era perfeitamente suficiente.
A aplicação deste fato à questão da paz do pecador é bem clara. O Senhor Jesus Cristo,
havendo derramado o Seu precioso sangue, em expiação perfeita pelo pecado, levou
esse sangue à presença de Deus, e fez ali aspersão dele; e o testemunho de Deus
assegura o crente de que as coisas estão liquidadas a seu favor—liquidadas, não pelo
apreço que ele dá ao sangue, mas, sim, pelo próprio sangue, que tem um tão grande
valor para Deus, que, por causa desse sangue, sem mais um jota ou um til, Ele pode
perdoar com justiça todo o pecado e aceitar o pecador como um ser perfeitamente justo
em Cristo. Como poderia alguém desfrutar paz segura se a sua paz dependesse da sua
apreciação do sangue?- Seria impossível! A melhor apreciação que o espírito humano
possa tomar do sangue estará sempre infinitamente abaixo do seu valor divino; e,
portanto, se a nossa paz dependesse da apreciação que lhe devíamos dar, nós jamais
poderíamos gozar de uma paz segura, e seria o mesmo que se a buscássemos pelas
obras da lei (Rm 9:32; Gl 2:16; 3:10). O fundamento de paz ou há de ser somente o
sangue, ou então nunca teremos paz. Juntar-lhe o valor que nós lhe damos, é derrubar
todo o edifício do cristianismo, precisamente como se conduzíssemos o pecador ao pé do
monte Sinai e o puséssemos debaixo do concerto da lei. Ou o sacrifício de Cristo é
suficiente ou não é. Se é suficiente, por que essas dúvidas e temores?- As palavras dos
nossos lábios confessam que a obra está cumprida, mas as dúvidas e temores do
coração declaram que não. Todo aquele que duvida do seu perdão perfeito e eterno,
nega, tanto quanto lhe diz respeito, o cumprimento do sacrifício de Cristo.
Há muitas pessoas que fogem da ideia de pôr em dúvida deliberada e abertamente a
eficácia do sangue de Cristo, mas que, todavia, não têm uma paz segura. Estas pessoas
dizem estar completamente convencidas da suficiência do sangue de Cristo, desde que
possam estar certas de ter parte nele — desde que possam ter a verdadeira fé. Há muitas
almas preciosas nesta infeliz condição. Ocupam-se mais da sua fé e dos seus interesses
do que com o sangue de Cristo e a palavra de Deus. Por outras palavras, olham para o
seu íntimo, em vez de olharem para Cristo. Isto não é o procedimento da fé, e, por
conseguinte, carecem de paz. O israelita protegido pela umbreira da porta manchada de
sangue podia dar a estas almas uma lição muito apropriada — não fora salvo pelo
interesse que tinha no sangue nem pelos seus pensamentos acerca dele, mas
simplesmente pelo próprio sangue. Sem dúvida, ele tinha uma parte bem-aventurada no
sangue; assim como os seus pensamentos também estavam postos nele; porém, Deus
não havia dito: "Vendo eu o vosso apreço pelo sangue passarei por cima de vós". Ah!
não; o SANGUE, com o seu mérito exclusivo e eficácia divina estava posto perante Israel;
e se eles tivessem tentado pôr só que fosse um bocado de pão asmo ao lado do sangue,
como base de segurança, teriam feito do Senhor mentiroso e negado a suficiência do Seu
remédio.

O Sangue de Cristo: o Fundamento da Paz do Crente


A nossa inclinação natural é buscarmos em nós ou nas coisas alguma coisa que possa
constituir, junto com o sangue de Cristo, o fundamento da nossa paz. Existe uma falta
lamentável de compreensão e clareza sobre este ponto vital, como se verifica pelas
dúvidas e receios com que muitos do povo de Deus são afligidos. Somos inclinados a
pensar nos frutos do Espírito em nós, em vez de pensarmos na obra de Cristo por nós,
como fundamento da nossa paz.
Vamos ver agora o lugar que ocupa a obra do Espírito Santo na cristandade; porém, esta
obra nunca é apresentada nas Escrituras como sendo a base em que assenta a nossa
paz. O Espírito Santo não fez a paz, mas Cristo. Não é dito que o Espírito seja a nossa
paz, mas sim Cristo. Deus não mandou anunciar a paz pelo Espírito Santo, mas por Jesus
Cristo (comparem-se At 10:36; Ef 2:14,17; Cl 1:20). Jamais poderemos compreender com
demasiada nitidez esta diferença importante. E só pelo sangue de Cristo que obtemos a
paz, justificação perfeita e justiça divina; ele purifica a nossa consciência, introduz-nos no
lugar santíssimo, faz com que Deus seja justificado recebendo o pecador contrito, e dá-
nos o direito a todos os gozos, todas as honras e todas as glórias do céu (veja-se Rm
3:24 -26; Ef 2:13-18; Cl l: 20 a 22; Hb 9:14; 10:19; I Pe 1:19; 2:24;1 Jo l:7; Ap 7:14-17).
Ao procurar pôr "o precioso sangue de Cristo" no seu lugar divinamente marcado, espero
sinceramente que ninguém suponha que pretendo escrever uma só palavra que possa
menosprezar a importância da obra do Espírito Santo. Deus me livre disso! O Espírito
Santo revela-nos Cristo, faz-nos conhecê-Lo, permite-nos alegrarmo-nos e alimentarmo-
nos d'Ele; é o Espírito Quem toma das decisões de Cristo e no-las mostra. O Espírito é o
poder de comunhão, o selo, a testemunha, a garantia, e a unção. Em resumo; todas as
benditas operações do Espírito são absolutamente essenciais. Sem Ele não podemos ver,
saber, nem ouvir, nem sentir, nem experimentar, nem gozar, nem manifestar nada de
Cristo. Tudo isto é bem claro. A doutrina das operações do Espírito é claramente exposta
nas Escrituras, e é recebida e compreendida por todo o crente fiel e bem esclarecido.
Todavia, não obstante tudo isto, a obra do Espírito não é o fundamento da paz; porque, se
o fosse, não poderíamos desfrutar de uma paz segura até à vinda de Cristo, visto que a
obra do Espírito, na Igreja, não terminará, propriamente falando, até então. O Espírito
prossegue a Sua obra no crente:"... O mesmo Espírito intercede por nós com gemidos
inexprimíveis" (Rm 8:26), e esforça-Se por nos fazer chegar àquela estatura para a qual
havemos sido chamados, a saber: uma perfeita semelhança, em todas as coisas, à
imagem do "Filho"; Ele é o único autor de todo o desejo bom, de toda a aspiração santa,
todo afeto puro, de toda a experiência divina, e de toda a convicção sã; porém, é evidente
que a sua obra em nós não estará completa antes de termos deixado a cena presente
deste mundo para tomarmos o nosso lugar com Cristo na glória. Assim como o servo de
Abraão não terminou a sua missão a respeito de Rebeca antes de a ter apresentado a
Isaque.
Não sucede assim com a obra de Cristo por nós. Essa obra está absoluta e eternamente
completa. O Senhor pôde dizer: "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que
me deste a fazer" (Jo 17:4). E logo depois: "Está consumado" (Jo 19:30). Contudo o
Espírito Santo não pode dizer que tem acabado a Sua obra. Como verdadeiro vigário de
Cristo na terra, continua trabalhando no meio das diversas influências adversas que
rodeiam a esfera da Sua atividade e no coração dos filhos de Deus para os fazer chegar
de uma maneira prática e experimental à altura do modelo divinamente eleito. Porém,
nunca ensina a alma a depender da Sua obra para ter paz na presença de Deus. A Sua
missão é falar de Jesus: não fala de Si Mesmo. "Ele", diz Cristo,"...há-de receber do que é
meu e vo-lo há de dar" (Jo 16:14). Se, portanto, é somente pelo ensino do Espírito que
alguém pode compreender o verdadeiro fundamento da paz, e se o Espírito nunca fala de
Si Mesmo, é evidente que só pode apresentar a obra de Cristo como o fundamento sobre
o qual a alma deve descansar para sempre; ainda assim, é em virtude dessa obra que o
Espírito faz a Sua morada e cumpre as Suas maravilhosas operações no coração do
crente. Ele nos revela Cristo e nos faz capazes de compreendê-lo e gozar dEle.
Por isso, o cordeiro da páscoa, como fundamento da paz de Israel, é um tipo admirável e
magnífico de Cristo, como fundamento da paz do crente. Nada havia a acrescentar ao
sangue posto sobre a ombreira da porta; tão-pouco nada mais há a acrescentar ao
sangue posto sobre o propiciatório. Os "pães asmos" e as "ervas amargosas" eram coisas
necessárias, mas não como formando, no todo ou em parte, o fundamento da paz.
Deviam ser usadas no interior da casa e constituíam os sinais característicos da
comunhão; porém, O FUNDAMENTO DE TUDO ERA O SANGUE DO CORDEIRO. Foi
ele que salvou os israelitas da morte e os introduziu numa nova cena de vida, de luz e de
paz, formando o laço de união entre Deus e o Seu povo redimido. Como povo ligado com
Deus sobre o fundamento da redenção cumprida, era seu alto privilégio serem colocados
debaixo de certas responsabilidades; mas essas responsabilidades não formavam o laço
de união, mas eram a consequência natural dele.

A Morte de Cristo na Cruz


Desejo recordar também ao leitor que a vida de obediência de Cristo não é apresentada
nas Escrituras como meio de alcançar o nosso perdão. Foi a Sua morte na cruz que abriu
as comportas eternas do amor, que, de outra maneira, ficariam fechadas para sempre. Se
o Senhor Jesus continuasse até este próprio momento percorrendo as cidades de Israel e
"fazendo bem" (At 10:38) o véu do templo continuaria inteiro, para impedir a entrada do
adorador na presença de Deus. Foi a Sua morte que rasgou essa misteriosa cortina "de
alto abaixo" (Mc 15:38). Foi pelas suas "pisaduras", e não pela Sua vida de obediência,
que nós "fomos sarados" (Is 53:5; 1 Pe 2:24); e foi na cruz que Ele suportou essas
"pisaduras", e não em nenhuma outra parte. As Suas próprias palavras, pronunciadas
durante o curso da Sua vida bendita, são mais que suficientes para tomar este ponto
claro. "Importa, porém, que eu seja batizado com um certo batismo, e como me angustio
até que venha a cumprir-se!" (Lc 12:50).
A que se refere esta declaração senão à Sua morte na cruz como cumprimento desse
batismo que abriu uma saída justa através da qual o Seu amor pudesse correr livremente
até aos culpados filhos de Adão?- De outra vez, o Senhor diz: "Se o grão de trigo, caindo
na terra, não morrer fica só" (Jo 12:24). Ele era esse precioso "grão de trigo"; e teria
ficado para sempre "só", se, apesar de haver encarnado, não tivesse, por meio da Sua
morte sobre o madeiro, tirado tudo aquilo que pudesse impedir a união do Seu povo
Consigo na ressurreição. "Mas se morrer, dá muito fruto."
O leitor nunca poderá considerar com demasiada atenção este assunto tão solene e tão
importante. Existem nele dois pontos relativos a esta questão, que convém recordar
sempre, a saber: que não podia haver união possível com Cristo senão na ressurreição; e
que Cristo sofreu somente na cruz pelos pecados. Não devemos imaginar, de modo
nenhum, que Cristo nos uniu a Si por meio da encarnação. Isto não era possível. Como
poderia a nossa carne pecaminosa unir-se assim com Ele? O corpo do pecado tinha de
ser desfeito pela morte.
O pecado tinha de ser tirado, exigia-o a glória de Deus; todo o poder do inimigo devia ser
abolido. Como poderia conseguir-se isto? Somente pela submissão do precioso,
imaculado Cordeiro de Deus na morte da cruz. "Porque convinha que aquele, para quem
são todas as coisas e mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória,
consagrasse feias aflições, o príncipe da salvação deles" (Hb 2:10). "...Eis que eu expulso
demônios, e efetuo curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado" (Lc 13:32).
As expressões "consagrasse", e "consumado" nas passagens acima mencionadas não se
relacionam com Cristo de uma maneira abstrata, porquanto, como Filho de Deus, Ele era
perfeito desde toda a eternidade, e no tocante à Sua humanidade foi de igual modo
absolutamente perfeito. Contudo, como príncipe da nossa salvação — como Aquele que
havia de trazer muitos filhos à glória, dando assim muito fruto —, e para associar Consigo
um povo redimido, Ele teve de chegar ao "terceiro dia" a fim de ser "consumado" ou
"consagrado"; desceu sozinho ao "lago horrível, um charco de lodo"; porém, pôs
imediatamente os Seus "pés sobre a rocha" da ressurreição, e associou "muitos filhos"
Consigo (SI 40:1-3); combateu sozinho na batalha; porém, como vencedor poderoso,
espalha à Sua roda, em rica profusão, os despojos da vitória, para que nós pudéssemos
ajuntá-los e desfrutar deles eternamente.
Além disso, não devemos considerar a cruz de Cristo como um simples incidente numa
vida de expiação pelo pecado. A cruz foi o grande e único ato de expiação pelo pecado:
"Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro" (I Pe 2:24). Não
os levou em parte alguma mais.
Não foi na manjedoura que os tomou sobre Si, nem no jardim do Getsemani, nem no
deserto, mas SOMENTE "SOBRE O MADEIRO". O Senhor nada teve a ver com o
pecado, salvo na cruz; e foi ali que Ele inclinou a Sua bendita cabeça e deu a Sua
preciosa vida sob o peso acumulado dos pecados do Seu povo. Nem tampouco jamais
sofreu às mãos de Deus, salvo na cruz; e ali o Senhor escondeu o Seu rosto d'Ele porque
O fez "pecado por nós" (2 Co 5-.21).
Esta série de pensamentos, e as várias passagens a que se faz referência, podem, talvez,
ajudar o leitor a compreender mais claramente o poder divino das palavras: "vendo eu
sangue passarei por cima de vós". Era absolutamente necessário que o cordeiro fosse
sem mácula, pois de contrário como poderia satisfazer o olhar santo do Senhor?- Porém,
se o sangue não tivesse sido derramado o Senhor não poderia ter passado por cima do
Seu povo, porque" sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Teremos
outra vez ocasião de meditar sobre este assunto, se o Senhor permitir, de uma maneira
mais clara e apropriada nas figuras de Levítico. É um assunto que requer a atenção
profunda de todos aqueles que amam o Senhor Jesus Cristo em sinceridade.

A Páscoa: o Centro de Comunhão


Consideremos agora o segundo aspecto da páscoa, como centro ao redor do qual a
assembleia estava reunida em tranquila, santa e feliz comunhão. Israel salvo pelo sangue,
era uma coisa; e Israel alimentando-se do cordeiro, era outra muito diferente. Estavam
salvos somente pelo sangue; porém o objeto em volta do qual estavam reunidos era,
evidentemente, o cordeiro assado. Esta distinção não é, de modo nenhum, absurda. O
sangue do Cordeiro constitui o fundamento tanto da nossa ligação com Deus como da
nossa conexão uns com os outros. É como aqueles que são lavados pelo sangue que
somos levados a Deus e ficamos em comunhão uns com os outros. Aparte a expiação
perfeita de Cristo não podia haver evidentemente comunhão nem com Deus nem com a
assembleia.
Contudo não devemos esquecer o fato que é para um Cristo vivo nos céus que os crentes
são reunidos pelo Espírito Santo. Estamos unidos a um Chefe vivo — fomos levados a
uma "pedra viva" (1 Pe 2:4). O Senhor é o nosso centro. Havendo achado paz pelo Seu
sangue, nós reconhecemos que Ele é o nosso grande centro de reunião e o laço que nos
une. "Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio
deles" (Mt 18:20). O Espírito Santo é o único que promove a reunião; Cristo é o único
objetivo em volta do qual nos reunimos; e a nossa assembleia, assim convocada, deve
ser caracterizada pela santidade, de maneira que o Senhor nosso Deus possa habitar
entre nós. O Espírito Santo só nos pode reunir para Cristo; não nos pode reunir em torno
de um sistema, um nome, uma doutrina ou uma ordenação. Ele reúne para uma Pessoa,
e essa Pessoa é Cristo glorificado no céu. É isto que deve dar um caráter peculiar à
assembleia de Deus. Os homens podem associar-se sobre qualquer base, em volta de
qualquer centro ou com qualquer fim que mais lhes agrade; porém, quando o Espírito
Santo promove a associação, fá-lo sobre o fundamento da redenção efetuada e em redor
da Pessoa de Cristo, com o fim de edificar um templo santo para Deus (1 Co 3:16-17;
6:19; Ef 2:21-22; 1 Pe 2.4-5).

Como a Páscoa Deveria Ser Comida


Veremos agora em pormenor os princípios que nos são apresentados na festa da páscoa.
A assembleia de Israel, sob o sangue, tinha de ser organizada pelo Senhor de uma
maneira digna de Si Próprio. Quanto à sua segurança contra o juízo, como vimos já, nada
era necessário senão o sangue; mas quanto à comunhão que resultava desta segurança
eram necessárias outras coisas, que não podiam ser descuradas com impunidade.
E, portanto, lemos, em primeiro lugar: "E naquela noite comerão a carne assada no fogo,
com pães asmos; com ervas amargosas a comerão. Não comereis dele nada cru, nem
cozido em água, senão assado ao fogo" (versículos 8 a 9). O cordeiro em torno do qual a
congregação estava reunida, e com o qual fazia festa, era um cordeiro assado — um
cordeiro que tinha sido submetido à ação do fogo. Vemos neste pormenor "Cristo a nossa
páscoa" expondo-Se a Si Mesmo à ação do fogo da santidade e da justiça de Deus, que
acharam n'Ele um objeto perfeito. Ele pôde dizer: "Provaste o meu coração; visitaste-me
de noite; examinaste-me e nada achaste; o que pensei, a minha boca não transgredirá"
(SI 17:3). Tudo n'Ele era perfeito. O fogo provou-O e não havia impureza. "A cabeça com
os pés e com a fressura". Quer dizer, o centro da Sua inteligência; a Sua vida exterior
com tudo quanto lhe pertencia — tudo foi submetido à ação do fogo, e tudo foi achado
perfeito.
A maneira como o cordeiro devia ser assado é profundamente significativa, como o são
em pormenor as ordenações de Deus. Nada deve ser passado por alto, porque está cheio
de significação — "não comereis dele nada cru, nem cozido em água". Se o cordeiro
tivesse sido comido assim não teria sido a expressão da grande verdade que prefigurava
segundo o propósito divino, isto é: que o nosso Cordeiro da páscoa deveria sofrer, na
cruz, o fogo da justa ira de Deus; uma verdade, aliás, preciosa para a alma. Não estamos
somente sob a proteção eterna do sangue do Cordeiro, como as nossas almas se
alimentam pela fé da pessoa do Cordeiro. Muitos de nós enganamo-nos a este respeito.
Estamos prontos a contentarmo-nos por estarmos salvos por meio da obra que Cristo
cumpriu a nosso favor sem mantermos uma santa comunhão com Ele Próprio. O Seu
coração amoroso nunca poderá contentar-se com isto. Ele trouxe-nos para perto de Si
para que pudéssemos apreciá-Lo, alimentarmo-nos d'Ele e regozijarmo-nos n'Ele. Cristo
apresenta-Se perante nós como Aquele que sofreu o fogo intenso da ira de Deus, a fim de
ser, neste caráter maravilhoso de Cordeiro, alimento para as nossas almas redimidas.

Os Pães Asmos
Mas como devia ser comido este cordeiro?- "...com pães asmos; com ervas amargosas a
comerão". O fermento é empregado, invariavelmente, através das Escrituras, como
símbolo do mal. Nunca é usado nem no Velho nem no Novo Testamento como
simbolizando alguma coisa pura, santa ou boa. Assim, neste capítulo, a celebração da
festa com "pães asmos" é figura da separação prática do mal como resultado próprio de
havermos sido lavados dos nossos pecados no sangue do Cordeiro e a própria
consequência da comunhão com os Seus sofrimentos. Nada senão pão perfeitamente
livre de fermento podia ser compatível com o cordeiro assado. Uma simples partícula
daquilo que era figura destacada do mal teria destruído o caráter moral de toda a
ordenação. Como poderíamos nós associar qualquer espécie de mal como a nossa
comunhão com Cristo nos Seus sofrimentos?- Seria impossível. Todos aqueles que, pelo
poder do Espírito Santo, têm compreendido a significação da cruz, não terão dificuldade,
pelo mesmo poder, de afastar entre eles o fermento. "Porque Cristo, nossa páscoa, foi
sacrificado por nós. Peio que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o
fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade" (1
Co 5:7-8). A festa de que se fala nesta passagem é a mesma que, na vida e conduta da
Igreja, corresponde à festa dos pães asmos. Esta durava "sete dias"; e a Igreja,
coletivamente, e o crente individualmente, são chamados para andar em santidade
prática, durante os sete dias, ou seja todo o tempo da sua carreira aqui na terra; e isto,
note-se, como resultado imediato de haverem sido lavados no sangue, e tendo comunhão
com os sofrimentos de Cristo.
O israelita não deitava fora o fermento a fim de ser salvo, mas, sim, porque estava salvo;
e se deixasse de o deitar fora, não comprometia com isso a sua segurança por meio do
sangue, mas simplesmente a comunhão com a assembleia. "Por sete dias não se ache
nenhum fermento nas vossas casas; porque qualquer que comer pão levedado, aquela
alma será cortada da congregação de Israel, assim o estrangeiro como o natural da terra"
(versículo 19). O corte de uma alma da congregação corresponde precisamente à
suspensão de um cristão da comunhão, quando acede àquilo que é contrário à santidade
da presença de Deus. Deus não pode tolerar o mal. Um simples pensamento impuro
interrompe a comunhão da alma; e enquanto a mancha produzida por este pensamento
não for tirada pela confissão, baseada na intercessão de Cristo, não é possível
restabelecer a comunhão (vide 1 Jo 1:5 -10). O cristão sincero regozija-se nisto; e dá
louvores em memória da santidade de Deus (SI 97:12). Ainda que pudesse, não
diminuiria, nem por um momento, o estalão: é seu gozo inexcedível andar na companhia
d Aquele que não andará nem por um momento com uma simples partícula de "fermento".
Graças a Deus, nós sabemos que nada poderá jamais partir em dois o laço que une o
verdadeiro crente com Ele. Somos salvos pelo Senhor, não com uma salvação temporária
ou condicional, mas "com uma eterna salvação" (Is 45:17). Porém, salvação e comunhão
não são a mesma coisa. Muitas pessoas estão salvas, e não o sabem; e muitas, também,
estão salvas sem terem o gozo da salvação. É impossível que eu sinta o gozo de estar
sob a verga da porta manchada de sangue, se houver fermento em minha casa. É um
axioma na vida divina. Oxalá fosse escrito em nossos corações! A santidade prática,
embora não seja a base da nossa salvação, está intimamente ligada com o gozo da
salvação. O israelita não era salvo pelos pães asmos, mas, sim, pelo sangue; e todavia o
fermento tê-lo-ia cortado da comunhão. E assim quanto ao cristão, ele não é salvo por
sua santidade prática, mas pelo sangue; porém se se entrega ao mal, em pensamento,
por palavras, ou ações, não terão verdadeiro gozo da salvação, nem verdadeira
comunhão com a pessoa do Cordeiro.
É nisto, sem dúvida, que está o segredo de uma boa parte da esterilidade espiritual e falta
de paz constante que se observa entre os filhos de Deus. Não praticam a santidade: não
guardam a festa dos "pães asmos" (Êx 23:15). O sangue acha-se sobre as ombreiras da
porta, porém o fermento dentro de suas casas impede-os de gozarem a segurança que o
sangue concede. A permissão do mal destrói a nossa comunhão, embora não quebre o
laço que nos une eternamente a Deus. Aqueles que pertencem à Assembleia de Deus
devem ser santos. Não somente foram libertados da culpa e das consequências do
pecado, como também da sua prática, do seu poder e do amor do pecado. O próprio fato
de haverem sido libertados pelo sangue do cordeiro da páscoa impunha aos israelitas a
obrigação de deitarem fora de suas casas o fermento. Não podiam dizer, segundo a
linguagem terrível do antinomianismo, "agora que estamos livres, podemos conduzir-nos
como nos aprouver". De modo nenhum! Se haviam sido salvos feia graça, era para
andarem em santidade. A alma que se aproveita da liberdade da graça divina e da
redenção que há em Cristo Jesus para "continuar no pecado" prova claramente que não
compreende nem a graça nem a redenção.
A graça não somente salva a alma com uma eterna salvação, como lhe dá uma natureza
que se deleita em tudo que pertence a Deus, porque é divina. Nós somos feitos
participantes da natureza divina, a qual não pode pecar, porque é nascida de Deus. Andar
na energia desta graça é, na realidade, "guardar" a festa dos pães asmos. Não existe
"fermento velho" nem "fermento da malícia" (1 Co 5:8) na nova natureza, porque é
nascida de Deus e Deus é santo e "Deus é amor". Por isso é evidente que não é com o
fim de melhorar a nossa velha natureza, que é irreparável, nem tampouco de obtermos a
nova natureza, que tiramos de nós o mal, mas, sim, porque temos o mal em nós. Nós
temos a vida e, no poder desta vida, tiramos o mal. É somente quando estamos libertados
da culpa do pecado que compreendemos ou exibimos o verdadeiro poder da santidade.
Tentar consegui-lo por qualquer outro meio é esforço inútil. A festa dos pães asmos só
pode ser guardada sob o abrigo perfeito do sangue.
____________________
1) antinomia: contradição entre duas leis ou princípios; oposição recíproca Nota do editor.
As Ervas Amargas
Vemos nas "ervas amargosas", que deviam acompanhar os pães asmos, a significação e
mesma utilidade moral. Não podemos desfrutar da participação dos sofrimentos de Cristo
sem recordarmos o que tornou necessários esses sofrimentos, e esta recordação deve,
necessariamente, produzir um espírito de mortificação e submissão, ilustrado, de um
modo apropriado, nas ervas amargosas da festa da páscoa. Se o cordeiro assado
representa Cristo sofrendo a ira de Deus em Sua Própria Pessoa na cruz, as ervas
amargosas mostram que o crente reconhece a verdade que Ele sofreu por nós. "O castigo
que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (Is 53:5).
Por causa da leviandade dos nossos corações é bom compreendermos a profunda
significação das ervas amargosas. Quem poderá ler os Salmos 6,22,38,69,88, e 109, sem
compreender, em alguma medida, o significado dos pães asmos com ervas amargosas?-
Uma vida praticamente santa, unida a uma profunda submissão de alma, deve ser o fruto
da comunhão verdadeira com os sofrimentos de Cristo, porque é de todo impossível que
o mal moral e a leviandade de espírito possam subsistir na presença desses sofrimentos.
Mas, pode perguntar-se não sente a alma um gozo profundo no conhecimento que Cristo
levou os nossos pecados, e que esgotou, inteiramente, por nós, o cálice da ira justa de
Deus? Por certo que é assim. E este o fundamento inabalável de todo o nosso gozo. Mas,
poderemos nós esquecer que foi" por nossos pecados" que Ele sofreu ? Poderemos
perder de vista a verdade, poderosa para subjugar a alma, que o bendito Cordeiro de
Deus inclinou a Sua cabeça sob o peso das nossas transgressões? Certamente que não.
Devemos comer o nosso cordeiro com ervas amargosas; as quais, não se esqueça, não
representam as lágrimas de um sentimentalismo desprezível e superficial, mas sim as
experiências profundas e verdadeiras de uma alma que compreende com inteligência
espiritual o significado e efeito prático da cruz.
Contemplando a cruz, descobrimos nela aquilo que elimina a nossa culpa e dá doce paz e
gozo. Porém, vemos que ela põe de lado, inteiramente, também, a natureza humana—
representa a crucificação da "carne" e a morte do "homem velho" (veja-se Romanos, 6:6;
Gl. 2-.20; 6:14; Cl. 2:11). Estas verdades, nos seus resultados práticos, implicam muitas
coisas "amargosas" para a nossa natureza: exigem a renúncia própria, a mortificação dos
nossos membros que estão sobre a terra (Cl 3:5), e a consideração do "homem velho"
como morto para o pecado (Rm 6). Todas estas coisas podem parecer terríveis de
encarar; porém, uma vez que se há entrado na casa cujas portas estão manchadas com o
sangue veem-se de uma maneira muito diferente. As mesmas ervas que, para o gosto de
um egípcio, eram, sem dúvida, tão amargosas, formavam uma parte integral da festa de
redenção de Israel. Aqueles que são remidos pelo sangue do Cordeiro, e conhecem o
gozo da comunhão com Ele, consideram como uma "festa" tirar o mal e ter a velha
natureza no lugar da morte.

A Comunhão e a Paz
"E nada dele deixareis até pela manhã; mas o que dele ficar até pela manhã, queimareis
no fogo" (versículo 10). Este mandamento ensina-nos que a comunhão da congregação
de Israel não devia ser, de modo nenhum, separada do sacrifício sobre o qual se baseava
essa comunhão. O coração deve guardar sempre a lembrança viva de que toda a
verdadeira comunhão está inseparavelmente ligada com a redenção efetuada. Crer que
se pode ter comunhão com Deus sobre qualquer outro fundamento é imaginar que Deus
pode ter comunhão com o pecado que há em nós; e pensar em comunhão com o homem,
com base em qualquer outro fundamento, é apenas formar uma união impura, da qual
nada pode resultar senão confusão e iniquidade. Em suma: é necessário que tudo esteja
fundamentado sobre o sangue e inseparavelmente ligado com ele. Este é o significado
simples da ordenação que mandava comer o cordeiro da páscoa na mesma noite em que
o sangue havia sido derramado. A comunhão não pode ser separada do seu fundamento.
Portanto, que belo quadro nos oferece a congregação de Israel protegida pelo sangue e
comendo em paz o cordeiro assado com pães asmos e ervas amargosas! Nenhum temor
de juízo, nenhum temor da ira do SENHOR, nenhum temor da tempestade terrível da
justa vingança, que, à meia-noite, ia varrer, veementemente, toda a terra do Egito! Tudo
estava em paz profunda atrás das portas manchadas de sangue. Nada tinham a temer de
fora; e nada dentro podia perturbá-los, salvo o fermento, que teria dado um golpe mortal
em toda a sua paz e bem-aventurança. Que exemplo para a Igreja! Que exemplo para o
cristão! Que Deus nos ajude a contemplarmo-lo com um olhar iluminado e um espírito
dócil!

O Vestido de Israel
Contudo, não esgotamos ainda o ensino desta tão instrutiva ordenação. Consideramos a
posição de Israel e a comida de Israel, vamos agora falar do estado de Israel.
"Assim, pois, o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos pés, e o
vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente; esta é a Páscoa do Senhor"
(versículo 11). Deviam comer a páscoa como um povo que estava preparado para deixar
atrás de si o país da morte e das trevas, da ira e do juízo, e marchar em demanda da terra
da promissão—a herança que lhes estava reservada. O sangue que os havia preservado
da sorte dos primogênitos do Egito era também o fundamento da sua libertação da
escravidão do Egito; e agora só lhes restava porem-se em marcha e andar com Deus
para a terra que manava leite e mel. É verdade que não haviam ainda atravessado o Mar
vermelho; tampouco haviam andado o "caminho de três dias". Contudo, eram já, em
princípio, um povo redimido, um povo separado, um povo de peregrinos, um povo
esperançoso, um povo que dependia de Deus; e era preciso que os seus trajos
estivessem de harmonia com a sua presente condição e o destino futuro. Os lombos
cingidos indicavam uma separação rigorosa de tudo aquilo que os rodeava e mostravam
que eles eram um povo preparado para servir. Os pés calçados mostravam que estavam
prontos a abandonar o seu estado presente; enquanto que o cajado era o emblema
significativo de um povo de peregrinos numa atitude de apoio em qualquer coisa que
estava fora de si mesmos. Que característicos preciosos! Prouvera a Deus que fossem
vistos em cada membro da família dos Seus remidos.
Prezado leitor, meditemos "estas coisas (l Tm 4:15). Pela graça de Deus, experimentamos
a eficácia purificadora do sangue de Jesus; neste estado é nosso privilégio alimentarmo-
nos da sua adorável Pessoa e deleitarmo-nos nas Suas "riquezas incompreensíveis" (Ef
3:8), tendo parte nos Seus sofrimentos e sendo feitos "conforme à sua morte" (Fp 3:10).
Mostremo-nos, pois, com pães asmos e ervas amargosas, os lombos cingidos, os sapatos
nos pés, e o cajado na mão. Numa palavra: que sejamos notados como um povo santo,
um povo crucificado, vigilante e diligente—um povo que mancha, claramente, ao encontro
de Deus no caminho para a glória—, "destinado para o reino". Que Deus nos conceda
penetrar na profundidade e no poder de todas estas coisas; de forma que não sejam
apenas teorias, ou princípios de conhecimento bíblico e simples interpretação; mas, sim,
realidades vivas, divinas, conhecidas por experiência e manifestadas na vida, para glória
de Deus.

Quem Podia Comer a Páscoa?


Terminaremos os nossos comentários sobre esta parte do capítulo passando por alto os
versículos 43 a 49. Estes versículos ensinam-nos que, embora fosse privilégio de todo o
verdadeiro israelita comer a páscoa, nenhum estrangeiro incircunciso podia participar
dela. "Nenhum filho de estrangeiro comerá dela... toda a congregação de Israel o fará". A
circuncisão era necessária antes que a páscoa pudesse ser comida. Por outras palavras:
é preciso que a sentença de morte seja lavrada sobre a natureza antes de nos podermos
nutrir de Cristo inteligentemente, quer seja como o fundamento de paz ou o centro de
união. A circuncisão tem o seu antítipo na cruz.
Só os varões eram circuncidados. A mulher era representada no varão. Assim, na cruz,
Cristo representou a Sua Igreja, e, por isso, a Igreja está crucificada com Cristo; contudo,
vive pela vida de Cristo, conhecida e manifestada na terra pelo poder do Espírito Santo.
"Porém, se algum estrangeiro se hospedar contigo e quiser celebrar a Páscoa ao
SENHOR, seja-lhe circuncidado todo o macho, e então, chegará a celebrá-la, e será
como o natural da terra; mas nenhum incircunciso comerá dela" (versículo 48). "Portanto,
os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8:8).
A ordenação da circuncisão formava a grande linha de demarcação entre o Israel de Deus
e todas as nações que havia à face da terra; e a cruz do Senhor Jesus Cristo forma a
linha da demarcação entre a Igreja e o mundo. Fosse qual fosse a posição que um
homem ocupava ou as vantagens que tivesse não podia ter parte em Israel até que se
submetesse à operação do corte da sua carne. Um mendigo circuncidado estava mais
perto de Deus que um rei incircunciso. Assim também agora não pode haver participação
nos gozos dos remidos de Deus, senão pela cruz de nosso Senhor Jesus Cristo; e essa
cruz abate todas as pretensões, derriba todas as distinções e une todos os remidos numa
congregação santa de adoradores lavados pelo sangue. A cruz forma uma barreira tão
elevada e uma defesa de tal modo impenetrável que nem um sequer átomo da terra ou da
velha natureza pode atravessá-la para se misturar com "a nova criação". "E tudo isso
provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo" (2 Co 5:18).
Porém, na instituição da páscoa não só foi sustentado o princípio de separação entre
Israel e os estranhos, como a unidade de Israel foi também claramente posta em vigor.
"Numa casa se comerá; não levarás daquela carne fora da casa, nem dela quebrareis
osso (versículo 46). Existe nesta passagem uma figura tão formosa quanto o podia ser de
"um corpo e um Espírito" (Ef 4:4). A Igreja de Deus é uma só. Deus contempla-a como tal,
sustém-na como tal, e manifestá-la-á como tal à vista de anjos, homens e demônios,
apesar de tudo quanto se tem feito para pôr obstáculos a essa unidade santa. Bendito
seja Deus, a unidade da Sua Igreja está tão bem guardada como o é a sua justificação,
aceitação e segurança eterna. "Ele guarda todos os seus ossos; nem sequer um deles se
quebra" (Sl 34:20). "Nenhum dos seus ossos será quebrado"(Jo 19:36). Apesar da rudeza
e zelo da soldadesca romana, e não obstante todas a influências hostis que têm estado
em operação, através dos séculos, o corpo de Cristo é um só e a sua unidade nunca
poderá ser quebrada. "HÁ UM SÓ CORPO E UM SÓ ESPÍRITO" (Ef 4:4); e isto, além
disso, aqui, no mundo. Feliz daqueles que têm recebido fé para reconhecer esta preciosa
verdade e fidelidade para a porem em prática, nestes últimos dias, não obstante as
dificuldades quase insuperáveis que acompanham a sua profissão e prática! Creio que
Deus reconhecerá e honrará os tais.
Que o Senhor nos guarde do espírito da incredulidade que nos induziria a julgar por vista,
em vez de julgarmos à luz da Sua Palavra imutável!

— CAPÍTULO 13 —

O RESGATE DOS PRIMOGÊNITOS

Santifica-me todo Primogênito


Os primeiros versículos deste capítulo ensinam-nos claramente que o afeto pessoal e a
santidade são frutos do amor divino produzidos naqueles que são os seus felizes objetos.
A consagração dos primogênitos e a festa dos pães asmos são apresentados aqui na sua
relação imediata com a libertação de Israel do país do Egito. "Santifica-me todo
primogênito, o que abrir toda madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais;
porque meu é. E Moisés disse ao povo-. Lembrai-vos deste mesmo dia, em que saístes
do Egito, da casa da servidão; pois, com mão forte o SENHOR ; vos tirou daqui; portanto,
não comereis pão levedado" (versículos 2-3). E logo em seguida: "Sete dias comerás
pães asmos; e ao sétimo dia haverá festa ao SENHOR. Sete dias se comerão pães
asmos, e o levedado não se verá contigo, nem ainda fermento será visto em todos os teus
termos" (versículos 6-7).

Farás saber a teu Filho


Depois é apresentada a razão por que estas duas cerimônias deviam ser praticadas. "E,
naquele mesmo dia, farás saber a teu filho, dizendo: Isto é pelo que o SENHOR me tem
feito, quando eu saí do Egito... Se acontecer que teu filho no tempo futuro te pergunte,
dizendo: Que é isto? Dir-lhe-ás: O SENHOR nos tirou com mão forte do Egito, da casa da
servidão. Porque sucedeu que, endurecendo-se Faraó, para não nos deixar ir, o SENHOR
matou todos os primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito do homem até ao
primogênito dos animais; por isso, eu sacrifico ao SENHOR OS machos de tudo o que
abre a madre; porém, a todo primogênito de meus filhos eu resgato".
Quanto mais compreendemos, pelo poder do Espírito Santo, a redenção que há em Cristo
Jesus, tanto mais decidida será a nossa separação, e real será a nossa consagração. O
esforço para alcançar uma ou outra destas coisas antes que a redenção seja conhecida é
o trabalho mais útil que pode imaginar-se. Todo o nosso trabalho deve ser feito "pelo que
o SENHOR tem feito", e não para obtermos d'Ele alguma coisa. Os esforços para se
conseguir a vida e a paz provam que ainda somos estranhos ao poder do sangue; ao
passo que os frutos de uma redenção experimentada são para louvor d'Aquele que nos
redimiu. "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de
Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie. Porque somos feitura sua, criados
em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos
nelas" (Ef 2:8-10). Deus preparou-nos um caminho de boas obras para que andássemos
nelas; e por meio da Sua graça prepara-nos para andarmos nesse caminho. É somente
como salvos que podemos andar num tal caminho. Fosse de outra maneira, poderíamo-
nos gloriar; mas visto que nós próprios somos tanto obra de Deus como o caminho no
qual andamos, não há lugar algum para jactância.

O Verdadeiro Cristianismo
O verdadeiro Cristianismo não é senão a manifestação da vida de Cristo implantada em
nós pela operação do Espírito Santo, segundo os desígnios eternos de Deus de graça
soberana; e todas as nossas obras antes desta implantação de nova vida não são mais
que "obras mortas" (Hb 6:1), das quais a nossa consciência deve ser purificada do
mesmo modo que das "más obras" (Hb 9:14).
A expressão "obras mortas" inclui todas as obras que os homens fazem com o fim de
obter a vida. Se alguém busca a vida, é evidente que ainda não a tem. É possível que
seja muito sincero em a buscar, mas a sua própria sinceridade forma evidente o fato que,
por enquanto, ainda não a alcançou. Assim, pois, todo o esforço feito com o fim de obter a
vida é obra morta, tanto mais que é feito sem a vida de Cristo, a única vida verdadeira, e a
única fonte de onde podem emanar as boas obras. E note-se que não é uma questão de
"obras más"; ninguém pensaria em obter a vida por tais meios. Não! Pelo contrário, ver-
se-á como as pessoas recorrem constantemente às "obras mortas" a fim de aliviarem a
Sua consciência sob a sensação das "obras más", ao passo que a revelação divina nos
ensina que a consciência necessita de ser purificada tanto de umas como das outras.
Além disso, quanto à justiça, lemos que "todas as nossas justiças são como o trapo da
imundícia" (Is 64:6). Não é dito aqui apenas que "todas as nossas iniquidades são como
trapo da imundícia". Quem ousaria dizer o contrário? Porém o fato é que os melhores
frutos que podemos produzir, sob a forma de piedade e da justiça, são representados nas
páginas da verdade eterna como "obras mortas" e "trapo da imundícia". Os mesmos
esforços que fazemos para conseguir a vida provam que estamos mortos; e os nossos
esforços para alcançarmos a justiça provam apenas que estamos vestidos com trapos de
imundícia. É só como possuidores da vida eterna e da justiça divina de podemos andar no
caminho das boas obras que Deus nos preparou. As obras mortas e os trapos imundos
não podem ser permitidos nesse caminho. Ninguém senão "os resgatados do Senhor" (Is
51:11) pode passar por ele. Era na qualidade do povo remido que Israel guardava a festa
dos pães asmos e santificava os primogênitos ao Senhor., Já consideramos a primeira
destas ordenações; quanto a esta última é rica em instruções.

Resgatados pelo Sangue de Cristo


O anjo destruidor passou pela terra do Egito para destruir todos os primogênitos; porém
os primogênitos de Israel escaparam por meio da morte de um substituto enviado por
Deus. Por consequência, estes aparecem perante nós, neste capítulo, como um povo
vivo, consagrado a Deus. Salvos por meio do sangue do cordeiro, eles têm o privilégio de
consagrar as suas vidas Aquele que as redimiu. Assim, era só como redimidos que
possuíam vida. Foi somente a graça de Deus que fez com que houvesse diferença a favor
deles, e dera-lhes o lugar de homens vivos na Sua presença. No seu caso, certamente,
não havia lugar para jactância; porque, quanto aos seus méritos ou dignidade pessoal,
aprendemos neste capítulo que foram postos ao mesmo nível das coisas impuras e
inúteis. "Porém tudo que abrir a madre da jumenta resgatarás com cordeiro; e, se o não
resgatares cortar-lhe-ás a cabeça; mas todo o primogênito do homem entre teus filhos
resgatarás" (versículo 13). Havia duas classes de animais, a saber: os limpos e os
imundos; e o homem é contado aqui com os últimos. O cordeiro tinha de responder pelos
imundos; e se o jumento não fosse resgatado, a sua cabeça tinha de ser cortada; de
forma que o homem não redimido era posto ao mesmo nível do animal imundo, e isto,
também, numa condição que não podia ser mais insignificante e obscura. Que quadro
humilhante do homem na sua condição natural!
Oh! se os nossos pobres e orgulhosos corações pudessem compreender melhor esta
verdade! Então regozijar-nos-íamos sinceramente com o privilégio glorioso de sermos
lavados da nossa culpa no sangue do Cordeiro de Deus e de termos deixado para sempre
a nossa vileza pessoal na sepultura, onde foi posto o nosso Substituto.
Cristo era o Cordeiro limpo, sem mácula. Nós éramos imundos. Mas, adorado seja para
todo o sempre o Seu nome incomparável, Ele tomou o nosso lugar; e foi feito pecado na
cruz e tratado como tal. Aquilo que nós devíamos sofrer por todos os séculos incontáveis
da eternidade, sofreu-o Ele por nós na cruz. Ali, e então, Ele sofreu tudo que nós
merecíamos, para que nós pudéssemos gozar para sempre aquilo que Lhe é devido. Ele
recebeu o que nós merecíamos, para que nós pudéssemos receber os Seus méritos.
Aquele que era puro tomou, por um pouco de tempo, o lugar dos imundos, a fim de que
os imundos pudessem tomar para todo o sempre o lugar dos puros. Assim, embora
quanto à natureza sejamos representados pela figura repugnante de um jumento com a
cabeça partida, pela graça somos representados por um Cristo ressuscitado e glorificado
no céu. Que contraste maravilhoso! Deita por terra a glória do homem e glorifica as
riquezas do amor de redenção. Reduz ao silêncio a jactância vazia do homem e põe na
sua boca um cântico de louvor a Deus e ao Cordeiro, que ressoará nas cortes do céu
através dos séculos eternos (¹).
É forçoso recordar aqui as palavras do apóstolo Paulo aos Romanos: "Ora, se já
morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos; sabendo que, havendo
Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá domínio sobre ele.
Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive
para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo
mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências. Nem tampouco apresenteis os
vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus;
como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.
Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo
da graça" (Rm 6:8 -14). Não só estamos resgatados do poder da morte e da sepultura,
mas unidos Aquele que nos resgatou pelo preço enormíssimo da Sua própria vida, para
que pudéssemos, na energia do Espírito Santo, consagrar a nossa nova vida, com todas
as suas faculdades, ao Seu serviço, de forma a que o Seu nome precioso seja glorificado
em nós, segundo a vontade de Deus, nosso Pai.
___________________________
(¹) É interessante notarmos que por natureza temos o grau de um animal imundo; pela
graça estamos ligados com Cristo, o Cordeiro imaculado. Não pode haver mais baixo que
o lugar que nos pertence por natureza e nada mais elevado que o lugar que nos pertence
por graça. Pensai, por exemplo, num jumento com a cabeça decepada- eis o que vale um
homem sem Deus. Pensai no "precioso sangue de Cristo": eis o que vale um homem
redimido. "Para vós, os que credes, é precioso" (I Pe 2:7). Quer dizer, todos quantos são
lavados no sangue participam da preciosidade de Cristo. Assim como Ele é "a pedra
viva", eles são "pedras vivas"; do mesmo modo que Ele é "a pedra preciosa", eles são
"pedras preciosas". Os remidos recebem vida e dignidade d'Ele e n'Ele. São como Ele é.
Cada pedra do edifício é preciosa, porque é comprada nada menos nada mais que com "o
sangue do Cordeiro". Deus permita que o Seu povo conheça melhor o seu lugar e os seus
privilégios em Cristo!

O Caminho do Deserto Próximo ao Mar Vermelho


Os últimos versículos deste capítulo dão-nos um exemplo formoso e tocante do cuidado
terno do Senhor pelas necessidades do Seu povo. "Pois Ele conhece a nossa estrutura,
lembra-se de que somos pó" (Sl 103:14).
Quando redimiu Israel e os pôs em relação com Ele, o Senhor, na Sua graça insondável e
infinita, tomou a Seu cargo todas as suas necessidades e fraquezas. Pouco importava o
que eles eram ou o que necessitavam, visto que Aquele que se chama "EU SOU" estava
com eles em toda a riqueza inexaurível desse nome: estava com eles para os conduzir do
Egito à terra de Canaã, e aqui vêmo-Lo escolher o melhor caminho para eles. "E
aconteceu que, quando Faraó deixou ir o povo, Deus não os levou pelo caminho da terra
dos filisteus, que estava mais perto; porque Deus disse: Para que, porventura, o povo não
se arrependa, vendo a guerra, e tornem ao Egito. Mas Deus fez rodear o povo pelo
caminho do deserto perto do Mar Vermelho" (versículos 17-18).
O Senhor, em Sua graça e condescendência, ordenou as coisas de tal maneira para o
Seu povo que eles não encontraram, ao princípio, provas demasiadamente difíceis que
podiam ter o efeito de desanimar os corações e fazê-los retroceder. "O caminho do
deserto" era uma rota muito mais demorada; mas Deus tinha várias lições importantes
para ensinar ao Seu povo, as quais só podiam ser aprendidas no deserto. Mais tarde,
este fato é recordado nas seguintes palavras: "E te lembrarás de todo o caminho, pelo
qual o SENHOR, teu Deus, te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar,
para te tentar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias os seus
mandamentos ou não. E te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná,
que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram; para te dar a entender que o
homem não viverá só de pão, mas que tudo o que sai da boca do SENHOR viverá o
homem. Nunca se envelheceu a tua veste sobre ti, nem se inchou o teu pé nestes
quarenta anos" (Dt 8:2-4). Tão preciosas lições nunca poderiam ser aprendidas no
"caminho da terra dos filisteus". Nesse caminho, eles podiam ter aprendido o que era a
guerra, logo no princípio da sua carreira; porém no "caminho do deserto" aprenderam o
que era a carne, com toda a sua perversidade, sua incredulidade e rebelião. Mas Aquele
que se chama EU SOU estava com eles em toda a Sua paciência, sabedoria perfeita, e
poder infinito. Ninguém senão Ele podia ter suprido as necessidades da situação.
Ninguém senão Ele podia suportar a vista das profundezas do coração humano. Abrir o
meu coração em qualquer parte, salvo na presença da graça infinita, equivaleria lançar-
me em desespero. O coração humano é apenas um inferno em miniatura. Que graça
inflável, pois, ser libertado da sua terrível profundidade!

O Senhor ia Adiante Deles


"Assim, partiram de Sucote, e acamparam em Etã, à entrada do deserto. E o SENHOR ia
adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para os guiar pelo caminho, e de noite
numa coluna de fogo, para os alumiar, para que caminhassem de dia e de noite. Nunca
tirou de diante da face do povo a coluna de nuvem, de dia, nem a coluna de fogo, de
noite" (versículos 20 a 22). O Senhor não só escolheu o caminho para o Seu povo, como
desceu para os acompanhar e tornar-Se conhecido deles segundo as suas necessidades.
Não somente os conduziu a salvo fora do Egito, como desceu, com efeito, no Seu carro
de viagens, para ser seu companheiro através das vicissitudes da sua jornada através do
deserto. Isto era graça divina. Os israelitas não foram apenas libertados da fornalha do
Egito e então deixados para que fizessem o melhor que pudessem a sua jornada para
Canaã; esse não era o método de Deus para com eles. Ele sabia que eles tinham diante
de si uma jornada perigosa e árdua, com serpentes e escorpiões, ciladas e dificuldades,
no deserto árido e estéril; e, bendito seja o Seu nome para sempre, não quis que eles
fossem sozinhos. Quis ser seu companheiro e participar de todos os seus perigos e
dores; sim, "Ele foi adiante deles"; foi "guia, defesa, e glória, para os libertar de todo o
temor". Mas, ah! como eles afligiram Aquele bendito Senhor com a sua dureza de
coração! Tivessem ele caminhado humildemente, confiantes e alegres, com Ele, e a sua
marcha teria sido vitoriosa desde o princípio ao fim. Com o Senhor adiante deles, nenhum
poder podia ter interrompido a sua marcha triunfante desde o Egito a Canaã. O Senhor tê-
los-ia levado e colocado de posse da Sua herança, segundo as Suas promessas, e pelo
poder da Sua destra; nem um só cananeu teria sido deixado para ser um espinho para
Israel. E assim acontecerá quando o Senhor estender a Sua mão, pela segunda vez, para
libertar o Seu povo do poder de todos os seus opressores. Que o Senhor apresse esse
tempo!

— CAPÍTULO 14 —

O MAR VERMELHO

Uma Situação sem Saída


"Os que descem ao mar em navios, mercando nas grandes águas, esses veem as obras
do SENHOR e as suas maravilhas no profundo" (SI 107:23-24).
Quão verdadeiras são estas palavras! E contudo como os nossos corações covardes têm
horror a essas "grandes águas"! Preferimos os fundos baixos, e, por consequência,
deixamos de ver "as obras" e "as maravilhas" do nosso Deus; pois estas só podem ser
vistas e conhecidas "no profundo".
É nos dias de provação e dificuldades que a alma experimenta alguma coisa da bem-
aventurança profunda e incontável de poder confiar em Deus. Se tudo fosse sempre fácil
nunca se poderia fazer esta experiência. Não é quando o barco desliza suavemente à
superfície do lago tranquilo que a realidade da presença do Mestre é sentida; mas sim,
quando ruge o temporal e as ondas varrem a embarcação. O Senhor não nos oferece a
perspectiva de isenção de provações e tribulações; pelo contrário, diz-nos que teremos
tanto umas como as outras; porém, promete estar conosco sempre; e isto é muito melhor
que vermo-nos livres de todo o perigo. A compaixão do Seu coração conosco é muito
mais agradável do que o poder da Sua mão por nós. A presença do Senhor com os Seus
servos fiéis, enquanto passavam pelo forno de fogo ardente, foi muito melhor do que a
manifestação do Seu poder para os preservar dele (Dn 3). Desejamos com frequência ser
autorizados a avançar na nossa carreira sem provações, mas isto acarretaria grave
prejuízo. A presença do Senhor nunca é tão agradável como nos momentos de maior
dificuldade.
Assim aconteceu no caso de Israel, como vemos neste capítulo. Encontram-se numa
dificuldade esmagadora—foram chamados a mercadejar "mas grandes águas"; veem
esvair-se-lhes "toda a sua sabedoria" (Sl 107:27). Faraó, arrependido de os haver deixado
sair do seu país, decide fazer um esforço desesperado para os trazer de novo. "E
aprontou o seu carro e tomou consigo o seu povo; e tomou seiscentos carros escolhidos,
e todos os carros do Egito, e os capitães sobre eles todos... E, chegando Faraó, os filhos
de Israel levantaram seus olhos, e eis que os egípcios vinham atrás deles, e temeram
muito; então, os filhos de Israel chamaram ao SENHOR" (versículos 6-10). Aqui estava
uma cena no meio da qual o esforço humano era inútil. Tentar livrarem-se por qualquer
coisa que pudessem fazer, era a mesma coisa que se tentassem fazer retroceder as
ondas alterosas do oceano com uma palha. O mar estava diante deles, o exército de
Faraó por detrás, e de ambos os lados estavam as montanhas; e tudo isto, note-se, havia
sido permitido e ordenado por Deus. O Senhor havia escolhido o terreno para acamparem
"diante de Pi-Hairote, entre Migdol e o mar, diante de Baal -Zefom". Depois, permitiu que
faraó os alcançasse. E por quê?- Precisamente para Se manifestar na salvação do Seu
povo e na completa destruição dos seus inimigos. "Aquele que dividiu o Mar Vermelho em
duas partes; porque a sua benignidade é para sempre. E fez passar Israel pelo meio dele;
porque a sua benignidade é para sempre. Mas derribou a Faraó com o seu exército no
Mar Vermelho, porque a sua benignidade é para sempre" (SI 136:13-15).

O Propósito de Deus
Não existe sequer uma posição em toda a peregrinação dos remidos de Deus cujos
limites não hajam sido cuidadosamente traçados pela mão da sabedoria infalível e o amor
infinito. O alcance e a influência peculiar de cada posição são calculados com cuidado. Os
Pi-Hairotes e os Migdoles estão dispostos de maneira a estarem em relação com a
condição moral daqueles que Deus está conduzindo através dos caminhos sinuosos e
dos labirintos do deserto, e também para que manifestem o Seu próprio caráter. A
incredulidade sugere com frequência esta pergunta: "Porque é isto assim ? Deus sabe; e,
sem dúvida, revelará a razão, sempre que essa revelação promova a Sua glória e o bem
do Seu povo. Quantas vezes somos tentados a perguntar por que e com que fim nos
achamos nesta ou naquela circunstância! Quantas vezes ficamos perplexos quanto à
razão de nos vermos expostos a esta ou àquela prova! Quão melhor seria curvarmos as
nossas cabeças em humilde submissão, dizendo, "está bem", e ―tudo acabará bem"!
Quanto à Deus Quem determina a nossa posição, podemos estar certos que é uma
posição sensata e salutar; e até mesmo quando nós, louca e obstinadamente,
escolhemos uma posição, o Senhor, em Sua misericórdia, domina a nossa loucura e faz
com que as influências das circunstâncias da nossa própria escolha operem para nosso
bem espiritual.
É quando os filhos de Deus se encontram nos maiores apertos e dificuldades que têm o
privilégio de ver as mais preciosas manifestações do caráter e da atividade de Deus; e é
por esta razão que Ele os coloca frequentemente numa situação de prova, a fim de poder
mostrar-Se de um modo mais notável. O Senhor podia ter conduzido Israel através do
Mar Vermelho para muito além do alcance das hostes de Faraó, muito antes que este
houvesse saído do Egito, porém isto não teria glorificado inteiramente o Seu nome, nem
teria confundido de uma maneira tão completa o inimigo, sobre o qual queria ser
"glorificado" (versículo 17). Também nós perdemos muitas vezes de vista esta preciosa
verdade, e o resultado é que os nossos corações fraquejam na horta da provação. Se tão
somente pudéssemos encarar as crises graves como uma oportunidade de Deus pode
mostrar, em nosso favor, a suficiência da graça divina, as nossas almas conservariam o
seu equilíbrio, e Deus seria glorificado, até mesmo no profundo das águas.

A Incredulidade dos Israelitas e a Nossa


Talvez nos sintamos admirados com a linguagem de Israel na ocasião que estamos a
considerar. Podemos ter dificuldade em a compreender; porém quanto mais conhecemos
os nossos corações incrédulos, tanto mais compreendemos como somos
maravilhosamente semelhantes a eles. Parece que haviam esquecido a recente
manifestação do poder de Deus em seu favor. Haviam presenciado o julgamento dos
deuses do Egito e visto o poder desse país abatido com o golpe da mão onipotente do
Senhor. Haviam visto a mesma mão despedaçar as cadeias da escravidão do Egito e
apagar os fornos de tijolo. Haviam visto todas estas coisas, e logo que aparece uma
nuvem escura no horizonte a sua confiança é perdida e os seus corações fraquejam: e
então pronunciam a sua incredulidade nestas palavras: "Não havia sepulcros no Egito,
para nos tirares de lá... melhor nos fora servir aos egípcios do que morrermos neste
deserto" (versículos 11 -12). É assim que a cega incredulidade erra sempre e esquadrinha
em vão os caminhos de Deus. A incredulidade é a mesma em todos os tempos; é a
mesma que levou David a dizer, um dia mau: "Ora, ainda algum dia perecerei pela mão
de Saul; não há coisa melhor para mim do que escapar apressadamente para a terra dos
filisteus" (1 Sm 27:1). E qual foi o resultado?- Saul caiu na montanha de Gilboa; e o trono
de David foi estabelecido para sempre. A incredulidade levou Elias, o tesbita, num
momento de profundo abatimento, a fugir para salvar a sua vida das ameaças coléricas
de Jezabel. E qual foi o resultado"? Jezabel morreu estatelada no solo, e Elias foi levado
para o céu num carro de fogo.
O mesmo aconteceu com Israel no seu primeiro momento de provação. Pensaram
verdadeiramente que o Senhor havia tanto trabalho para os libertar do Egito apenas para
os deixar morrer no deserto.
Imaginavam que, se haviam sido preservados pelo sangue do cordeiro da páscoa, era
apenas para que pudessem ser sepultados no deserto. Assim raciocina sempre a
incredulidade; induz-nos a interpretar Deus em presença da dificuldade, em vez de
interpretar a dificuldade na presença de Deus. A fé coloca-se através da dificuldade e
encontra Deus ali, em toda a Sua fidelidade, amor e poder. O crente tem o privilégio de
estar sempre na presença de Deus: foi introduzido ali pelo sangue do Senhor Jesus
Cristo, e nada que possa tirá-lo dali deve ser permitido.
Nunca poderá perder aquele próprio lugar, porquanto o seu chefe e representante, Cristo,
o ocupa em seu nome. Porém, embora não possa perder esse lugar, pode perder, com
muita facilidade, o gozo do lugar, a experiência e o poder de o possuir. Sempre que as
dificuldades se interpõem entre o seu coração e o Senhor, não está, evidentemente,
gozando a presença do Senhor, mas sofrendo em presença das suas dificuldades. O
mesmo sucede quando uma nuvem se interpõe entre nós e o sol, privando-nos, por um
pouco de tempo, da alegria dos seus raios de luz. A nuvem não impede que o sol brilhe,
apenas impede gozarmos dele. Acontece precisamente assim sempre que permitimos
que as provações e dores, as dificuldades e perplexidades, ocultem das nossas almas os
raios resplandecentes do semblante do nosso Pai celestial, os quais brilham com fulgor
invariável na face de Jesus Cristo.
Não existe dificuldade grande demais para o nosso Deus; pelo contrário, quanto maior é a
dificuldade, tanto mais lugar há para Ele agir no Seu caráter de Deus de toda a graça e
poder. Sem dúvida, a posição de Israel tal como se acha descrita nos primeiros versículos
deste capítulo, era de grande provação—esmagadora para a carne e o sangue. Porém, a
verdade é que o Criador dos céus e da terra estava ali, e eles apenas tinham que recorrer
a Ele.
Contudo, prezado leitor, quão depressa falhamos quando chega a provação! Estes
sentimentos soam agradavelmente aos ouvidos, e têm uma aparência agradável sobre o
papel; e, graças a Deus, são divinamente verdadeiros; porém, a questão mais importante
é praticá-los quando chega a oportunidade. E quando são postos em prática que se pode
experimentar o seu poder e a sua bem-aventurança. "Se alguém quiser fazer a vontade
dele, pela mesma doutrina, conhecerá se ela é de Deus" (Jo 7:17).

A Salvação do SENHOR
"Moisés, porém, disse ao povo: Não temais; estai quietos, e vede o livramento do
SENHOR, que hoje vos fará: porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais vereis
para sempre. O SENHOR pelejará por vós e vós calareis" (versículos 13 -14). Eis aqui a
atitude que a fé toma em face da provação: "estai quietos". Para a carne e o sangue isto é
impossível. Todos os que conhecem, em alguma medida, a impaciência do coração
humano, ante a perspectiva de provações e aflições, poderão fazer uma ideia do que
significa estar quieto. A nossa natureza quer fazer alguma coisa. E por isso correrá de um
lado para o outro: quer ter parte na obra; e embora possa pretender justificar os seus atos
desprezíveis, fazendo-os acompanhar do título pomposo e vulgar de emprego legítimo de
meios, na realidade eles são apenas os frutos claros e positivos da incredulidade que
sempre põe Deus de parte, e nada vê senão as nuvens escuras da sua própria criação. A
incredulidade cria e aumenta as dificuldades, e, então, leva-nos a procurarmos vencê-las
por meio das nossas atividades inúteis e precipitadas, as quais, na realidade, apenas
lançam poeira em redor de nós, e assim nos impede de vermos a salvação de Deus. Pelo
contrário, a fé eleva a alma acima das dificuldades até Deus, e habilita-nos a estarmos
"quietos". Nada ganhamos com os nossos esforços impacientes e inquietos. "Não
podemos fazer um cabelo branco ou preto, tão-pouco podemos juntar um côvado à nossa
estatura" (Mt 5:36,6:27). Que poderia Israel fazer junto do Mar Vermelhou Podia secá-lo?
Podia aplanar as montanhas?- Podia aniquilar as hostes do Egito?- Impossível.
Encontravam-se encerrados dentro de um muro impenetrável de dificuldades, à vista do
qual a natureza não podia fazer mais que tremer e sentir a sua completa impotência.
Porém, para Deus era precisamente o momento de atuar. Quando a incredulidade é
afastada da cena, Deus pode intervir; e, para podermos ver os Seus atos, nós temos de
estar "quietos". Cada movimento da natureza é, com efeito, um impedimento para a nossa
percepção e gozo da intervenção divina a nosso favor.

Permanecer Quietos e Ver a Salvação do SENHOR


Isto é verdadeiro a nosso respeito em cada fase da nossa história. E verdadeiro quando,
como pecadores, sob o sentimento desconcertante que o pecado produz na consciência,
somos tentados a recorrer aos nossos próprios feitos, com o fim de conseguirmos alívio.
E então que, verdadeiramente, devemos estar "quietos" de forma a podermos ver "a
salvação de Deus". Pois que poderíamos nós fazer no caso da expiação pelo pecado?
Poderíamos nós ter estado com o Filho de Deus na cruz?- Poderíamos nós ter descido
com Ele ao lago horrível e charco de lodo? (SI 40:2). Teríamos nós podido abrir caminho
até essa rocha eterna sobre a qual, na ressurreição, Ele firmou os Seus pés? Todo o
espírito reto reconhecerá imediatamente que um tal pensamento seria uma atrevida
blasfêmia. Deus está só na redenção; e quanto a nós, só temos que "estar quietos e ver a
salvação de Deus". O próprio fato de ser a salvação de Deus prova que o homem nada
tem a fazer nela.
O preceito é verdadeiro a nosso respeito, uma vez que temos entrado na carreira cristã.
Em cada nova dificuldade, quer seja pequena ou grande, a nossa sabedoria consiste que
estamos quietos —renunciar às nossas próprias obras e achar o nosso doce repouso na
salvação de Deus. Tampouco podemos estabelecer categorias entre as dificuldades. Não
podemos dizer que há dificuldades tão insignificantes que podem ser evitadas por nós; ao
passo que noutras nada senão a mão de Deus nos pode valer. Não, todas estão de igual
modo fora do nosso alcance.
Somos tão incapazes de mudar a cor de um cabelo como de remover uma montanha, de
formar uma folha de erva como de criar um mundo. Todas estas coisas são igualmente
impossíveis para nós, e todas são igualmente possíveis para Deus. Portanto, devemo-nos
abandonar, com fé sincera, Aquele "que se curva para ver o que está nos céus" (SI
113:6). Às vezes sentimo-nos transportados de uma maneira triunfante através das
maiores provações, enquanto que noutras ocasiões desanimamos, trememos, e
sucumbimos sob as circunstâncias normais da vida. E por quê? Porque no primeiro caso
somos constrangidos a alijar o nosso fardo sobre o Senhor; enquanto que no último caso
intentamos, loucamente, levá-lo nós próprios. O cristão é, em si próprio, se ele apenas o
compreender, como um receptor esgotado, no qual uma moeda e uma pena têm o
mesmo ímpeto.

O SENHOR é Quem Peleja


"O SENHOR pelejará por vós, e vos calareis".
Que bendita segurança! Quão própria para tranquilizar o espírito em face das dificuldades
mais aterradoras e dos maiores perigos! O Senhor não só se coloca entre nós e os
nossos pecados, como também entre nós e as nossas circunstâncias. No primeiro caso
dá-nos paz de consciência; enquanto que no segundo dá paz aos nossos corações. Estas
duas coisas são perfeitamente distintas, como muito bem sabe todo o cristão
experimentado. Muitos têm paz de consciência, sem terem paz de coração. Acharam,
pela graça e mediante a fé, Cristo, na eficácia divina do Seu sangue, entre eles e todos os
seus pecados; mas não podem, do mesmo modo simples, vê-Lo na Sua sabedoria, amor
e poder, entre eles e as suas circunstâncias. Disto resulta uma diferença essencial na
condição prática das suas almas, bem como no caráter do seu testemunho. Nada pode
contribuir tanto para glorificar o nome de Deus como aquele repouso tranquilo de espírito
que dimana do fato de O termos entre nós e tudo que pode ser causa de ansiedade para
os nossos corações. "Tu conservarás em paz aquele cuja mente está firme em ti; porque
ele confia em ti" (Is 26:3).
Mas, pode perguntar-se, não devemos fazer nada? A resposta pode ser dada com outra
pergunta, a saber: que podemos nós fazer?-Todos os que realmente se conhecem têm de
responder: Nada. Se, portanto, nada podemos fazer, não será melhor que permaneçamos
"quietos?" Se o Senhor está atuando por nós não será melhor ficarmos detrás d'Ele?
Correremos adiante d'Ele? Devemos importunar com a nossa atividade a Sua esfera de
ação e intrometermo-nos no Seu caminhou É inútil que dois trabalhem quando um só é
competente para fazer tudo. Ninguém pensaria em trazer uma vela acesa par acrescentar
brilho ao sol do meio-dia: e todavia o homem que tal fizesse podia ser tido na conta de
sábio em comparação com aquele que pretende ajudar Deus com a sua atividade
precipitada.

A Ordem de Deus para Marchar


Contudo, quando Deus, na Sua muita misericórdia, abre o caminho, a fé pode andar nele;
então deixa o caminho do homem, para nadar no caminho de Deus.
"Então, disse o SENHOR a Moisés-. Por que clamas a mim? Dize aos filhos de Israel que
marchem" (versículo 15). É quando aprendemos a estar "quietos" que podemos,
efetivamente, ir para diante. Tentar ir para diante sem termos aprendido a estar "quietos"
é ter a certeza de cairmos no ridículo da nossa loucura e fraqueza. E, portanto, verdadeira
sabedoria, em todas as ocasiões de dificuldade e perplexidade, permanecermos
tranquilos—esperando unicamente em Deus, que certamente nos abrirá um caminho; e
então poderemos "marchar" em paz e tranquilidade. Não existe a incerteza quando é
Deus quem nos abre o caminho; pelo contrário, todo o caminho de nossa própria
invenção será um caminho de dúvida e hesitação. O homem natural pode avançar, com
certa aparência de firmeza e decisão, no seu próprio caminho; porém, um dos elementos
da nova natureza é a desconfiança em si própria, em contraste com a confiança em Deus
como seu próprio elemento. É quando os nossos olhos têm visto a salvação de Deus que
podemos seguir este caminho; contudo não poderemos vê-lo claramente antes de sermos
convencidos da inutilidade dos nossos próprios e fracos esforços.
A expressão "verei a salvação de Deus" encerra beleza e força peculiar. O próprio fato de
sermos chamados para ver a salvação de Deus é prova de que a salvação está completa.
Ensina-nos que a salvação é uma obra realizada e revelada por Deus, para ser vista e
gozada por nós. Não é uma obra em parte de Deus e em parte do homem. Se fosse
assim, não poderia ser chamada a salvação de Deus. Para poder ser chamada a
salvação de Deus é preciso que seja desprovida de tudo que pertence ao homem. O
único efeito possível dos esforços humanos será obscurecer aos nossos olhos a salvação
de Deus.
"Dize aos filhos de Israel que marchem".
O próprio Moisés parece ter ficado perplexo, como se depreende da interrogação "Por
que clamas a mim?" Moisés podia dizer ao povo "estai quietos e vede o livramento do
SENHOR", enquanto o seu próprio espírito clamava a Deus angustiado. Todavia, de nada
vale clamar quando devemos atuar; do mesmo modo que de nada servirá atuar quando
devemos estar em expectativa. E contudo tal é sempre o nosso método. Intentamos
avançar quando devemos estar quietos, e ficamos quietos quando devemos avançar. No
caso de Israel, podia perguntar-se: "Para onde devemos ir?" Segundo as aparências,
havia uma barreira instransponível no caminho a qualquer movimento. Como poderiam
eles atravessar o mar?- Esta era a dificuldade que a natureza jamais poderia resolver.
Contudo, podemos estar certos que Deus nunca dá um mandamento sem, ao mesmo
tempo, comunicar o poder para lhe obedecermos. O verdadeiro estado do coração pode
ser posto à prova pelo mandamento; porém a alma que, pela graça, estiver disposta a
obedecer receberá poder do alto para o fazer. Quando Cristo mandou ao homem com a
mão mirrada que a estendesse, ele poderia naturalmente ter dito: "Como posso eu
estender um braço que está morto para mim?" Contudo, ele não levantou nenhuma
objeção, porque com o mandamento, e da mesma origem, veio o poder para obediência.

Deus Abre o Caminho para a Fé


Assim, também, no caso de Israel, vemos que com o mandamento para marcharem veio
o suprimento da graça. "E tu, levanta a vara, e estende a tua mão sobre o mar, e fende-o,
para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco" (versículo 16). Eis aqui a
senda da fé. A mão de Deus abre o caminho para podermos dar o primeiro passo, e isto é
tudo que a fé sempre precisa. Deus não dá nunca direção para dois passos ao mesmo
tempo. Devemos da um passo, e então recebemos luz para o segundo. Deste modo o
coração é mantido em permanente dependência de Deus. "Pela fé, passaram o Mar
Vermelho, como por terra seca" (Hb 11:29). E evidente que o Mar não foi dividido em toda
a sua extensão de uma só vez. Se assim tivesse sido, eles teriam sido conduzidos "por
vista" e não "por f é". Não é preciso fé para se empreender uma viagem quando se vê o
caminho em toda a sua extensão; mas é necessária fé para alguém se pôr ao caminho
quando não vê mais do que o primeiro passo. O Mar divida-se à medida que Israel
avançava, de forma que, para cada novo passo, eles dependiam de Deus. Tal era o
caminho por onde marchavam os remidos do Senhor, guiados pela Sua mão. Passaram
pelas grandes águas da morte e descobriram que estas águas "foram-lhes como muro à
sua direita e à sua esquerda" (versículo 22).
Os egípcios não puderam avançar num caminho como este. Entraram nele porque o
viram aberto — para com eles era uma questão de vista e não de fé — "...o que
intentando os egípcios se afogaram" (Hb ll:29). Quando as pessoas tentam fazer aquilo
que só a fé pode conseguir, encontram a derrota e a confusão. O caminho pelo qual Deus
faz marchar o Seu povo é um caminho que nunca pode ser trilhado pela natureza — "...
carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus" (1 Co 15:50); tampouco podem
caminhar pelo caminho de Deus. A fé é a grande regra característica do reino de Deus, e
é só pela fé que podemos andar nos caminhos de Deus. "Sem fé é impossível agradar a
Deus" (Hb 11:6). Deus é grandemente glorificado quando avançamos com Ele com os
olhos vendados, por assim dizer, porque esta é a prova de que temos mais confiança na
Sua vista do que na nossa. Se sei que Deus vela por mim, posso muito bem cerrar os
olhos e avançar em santa calma e segurança. Nas ocupações humanas sabemos que
quando a sentinela está no seu posto, os outros podem dormir tranquilos. Quanto melhor
podemos nós descansar em perfeita segurança quando sabemos que Aquele que não
tosqueneja nem dorme tem o Seu olhar fixo em nós (SI 121:4) e os Seus braços eternos
em volta de nós!

O Anjo de Deus e a Coluna de Nuvem


"E o Anjo de Deus, que ia diante do exército de Israel, se retirou, e ia atrás deles; também
a coluna de nuvem se retirou diante deles e se pôs atrás deles. E ia entre o campo dos
egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era escuridade para aqueles e para estes
esclarecia a noite; de maneira que em toda a norte não chegou um ao outro" (versículos
19- 20). O Senhor colocou-Se exatamente entre Israel e o inimigo—isto era verdadeira
proteção. Antes que Faraó pudesse tocar num cabelo da cabeça de Israel, teria que
atravessar o pavilhão do Todo-Poderoso —, sim, o Próprio Todo-Poderoso. É assim que
Deus sempre Se interpõe entre o Seu povo e todo o inimigo, de forma que "toda a
ferramenta preparada contra" eles "não prosperará" (Is 54:17). Ele pôs-Se entre nós e os
nossos pecados, e é nosso privilégio encontrá-Lo entre nós e todo aquele ou coisa que
possa ser contra nós. Este é o único meio de encontrarmos tanto a paz de coração como
a paz de consciência. O crente pode buscar os seus pecados com ansiedade e diligência
sem conseguir encontrá-los. Por quê? Porque Deus está entre ele e os seus pecados. O
Senhor lançou para trás das Suas costas todos os nossos pecados; enquanto que, ao
mesmo tempo, faz brilhar sobre nós a luz do Seu semblante.
Da mesma maneira, o crente pode buscar as suas dificuldades, e não as encontrar,
porque Deus está entre ele e as dificuldades. Se, portanto, em vez de nos determos com
os nossos pecados e as nossas dores, nos apoiássemos somente em Cristo, o cálice
amargoso seria adoçado e muitas horas negras seriam iluminadas. A verdade é que
muitas vezes descobrimos que nove décimos das nossas dores e provações se compõem
de males antecipados ou imaginários, que só existem no nosso espírito desordenado,
porque é incrédulo. Deus permita que o leitor conheça a paz inabalável tanto do coração
como da consciência, que resulta de ter a Cristo, em toda a Sua plenitude, entre si e
todos os seus pecados e todas as suas dores.
É, ao mesmo tempo, solene e interessante notar o aspecto duplo da "coluna de nuvem",
neste capítulo. E a nuvem era escuridão para os egípcios, mas para Israel "esclarecia a
noite". Que semelhança com a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo! Verdadeiramente,
essa cruz tem, do mesmo modo, um duplo aspecto. Constitui a base da paz do crente; e,
ao mesmo tempo, sela a condenação de um mundo culpado. O mesmíssimo sangue que
purifica a consciência do crente e lhe dá paz mancha este mundo e consuma o seu
pecado. A mesmíssima missão do Filho de Deus, que despojou o mundo da sua capa e o
deixa inteiramente sem desculpa, veste a Igreja de um manto formoso de justiça e enche
a sua boca de louvor incessante. O próprio Cordeiro de Deus que encherá de terror, com
a grandeza da Sua ira, todas as tribos e povos da terra, conduzirá pela Sua mão bondosa
o rebanho que comprou com o Seu precioso sangue através de verdes pastos e a águas
tranquilas (comparem-se Ap 6:15 -17 com 7:17).

Israel Vitorioso e o Exército de Faraó Destruído


O fim do nosso capítulo mostra-nos Israel vitorioso nas praias do Mar Vermelho e o
exército do Faraó submergido nas suas águas. Os temores dos israelitas e a jactância
dos egípcios eram igualmente desprovidos de fundamento. A obra gloriosa do Senhor
havia destruído tanto uns como os outros. As mesmas águas que serviram de muro aos
remidos de Deus, serviram de sepultura para Faraó. É sempre assim: aqueles que andam
por fé acham um caminho por onde transitar, ao passo que todos aqueles que tentam
imitá-los encontram uma sepultura. Trata-se de uma verdade solene, que não é, de modo
nenhum, diminuída pelo fato que Faraó atuava em hostilidade declarada e positiva contra
Deus quando intentou atravessar o Mar Vermelho. Descobrir-se-á sempre a verdade que
todos aqueles que intentam imitar as obras da fé serão confundidos. Felizes daqueles
que, embora fracos, podem andar por fé. Seguem por um caminho de bem-aventurança
inflável—um caminho que, embora possa ser marcado por falhas e fraquezas, é, todavia,
começado, prosseguido e acabado com Deus. Possamos nós entrar mais e mais na
realidade divina, calma elevação e santa independência desta senda.
Não devemos deixar esta parte do Livro do Êxodo sem nos referirmos à passagem da 1
Epístola aos Coríntios 10:1-2, em que se faz referência à nuvem e ao mar.
"Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem;
e todos passaram pelo mar; e todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar".
Esta passagem encerra a instrução preciosa e profunda para o cristão, pois que o
apóstolo continua, dizendo: "E essas coisas foram-nos feitas em figura" (versículo 6),
dando-nos assim autorização divina para interpretarmos o batismo de Israel "na nuvem e
no mar" de uma maneira simbólica; e nada, seguramente, pode ter uma significação mais
profunda e prática. Foi como povo batizado desta maneira que os israelitas
empreenderam a sua peregrinação através do deserto, para qual foi feita provisão de "um
manjar espiritual" e "uma mesma bebida espiritual" pela mão d'Aquele que é amor. Em
suma: era simbolicamente um povo morto para o Egito e tudo que lhe dizia respeito. A
nuvem e o mar foram para eles aquilo que a cruz e a sepultura de Cristo são para nós. A
nuvem punha-os ao abrigo dos seus inimigos e o mar separava-os do Egito—da mesma
maneira, a cruz protege-nos de tudo que podia ser contra nós, e nós achamo-nos do lado
celestial da sepultura de Jesus. É aqui que começa a nossa peregrinação através do
deserto. E aqui que começamos a saborear o maná celestial e a beber das correntes que
brotam da "rocha espiritual", enquanto que, como povo de peregrinos, caminhamos para a
terra do repouso da qual Deus nos tem falado.
Desejo aqui chamar a atenção do leitor para a importância de compreender a diferença
entre o Mar Vermelho e o Jordão. Os dois acontecimentos têm o seu antítipo na morte de
Cristo. Porém, no primeiro vemos separação do Egito; no último vemos introdução na
terra de Canaã. O crente não somente está separado deste presente século mau, por
meio da cruz de Cristo, como foi vivificado da sepultura de Cristo, ressuscitado
juntamente com Ele e assentado nos lugares celestiais, em Cristo (Ef 2:5-6). Por isso,
ainda que esteja rodeado pelas coisas do Egito, ele encontra-se, quanto à sua
experiência atual, no deserto; enquanto que, ao mesmo tempo, é levado pela energia da
fé àquele lugar onde Jesus está sentado à destra de Deus. Assim, o crente não só é
perdoado de todos os seus pecados, como está associado com Cristo ressuscitado nos
céus: não só é salvo por Cristo, como está unido a Ele para sempre. Nada menos do que
isto podia satisfazer o amor de Deus ou realizar os Seus propósitos a respeito da Igreja.
Prezado leitor, compreendemos nós estas coisas? Acreditamo-las? Manifestamos o poder
delas?- Bendita a graça que as tornou invariavelmente certas para cada membro do corpo
de Cristo, quer seja só um olho, uma pálpebra, uma mão ou um pé. A verdade destas
coisas não depende, portanto, da sua manifestação por nós, nem de as realizarmos ou
compreendermos, mas, sim, do "PRECIOSO SANGUE DE CRISTO", que cancelou toda a
nossa culpa e lançou o fundamento de todos os desígnios de Deus a nosso respeito. Eis
descanso verdadeiro para todo o coração quebrantado e toda a consciência
sobrecarregada.

— CAPÍTULO 15 —

UM CÂNTICO DE VITÓRIA

O Louvor que Segue a Libertação


Este capítulo abre com o cântico magnífico de vitória de Israel nos bancos do Mar
Vermelho, quando viu "a grande mão que o SENHOR mostrara aos egípcios" (capítulo
14:31). Haviam visto a salvação de Deus e, portanto, entoaram os Seus louvores e
narraram as Suas obras maravilhosas. "Então, cantou Moisés e os filhos de Israel este
cântico ao SENHOR" . Até este momento não temos ouvido nem sequer uma só nota de
louvor. Ouvimos o seu clamor angustioso, enquanto labutavam nos fornos de tijolo do
Egito, escutamos o seu brado de incredulidade, quando se viram rodeados por aquilo que
lhes parecia serem dificuldades insuperáveis; mas, até agora, não ouvimos nenhum
cântico de louvor. Foi só quando, como um povo salvo, se acharam rodeados pelos frutos
da salvação de Deus que o hino triunfal irrompeu de toda a congregação redimida. Foi
quando saíram do seu batismo "na nuvem e no mar", e puderam contemplar os ricos
despojos da vitória, que se achavam espalhados à sua volta, que milhares de vozes se
ouviram entoando o cântico da vitória. As águas do Mar Vermelho corriam entre eles e o
Egito, e eles achavam-se na costa como povo inteiramente libertado; e, portanto,
puderam louvar o Senhor.

A Redenção e o Culto
Nisto, como em tudo o mais, eles foram figuras de todos nós. Nós precisamos de saber
que estamos salvos, no poder da morte e ressurreição, antes de podermos prestar a Deus
culto claro e inteligente. Haverá sempre na alma reserva e hesitação, provenientes, sem
dúvida, da sua incapacidade em compreender a redenção que há em Cristo Jesus. Pode
haver o reconhecimento do fato que há salvação em Cristo Jesus, e em nenhum outro;
porém compreender, pela fé, o verdadeiro caráter e fundamento dessa salvação,
realizando-a como nossa, é coisa muito diferente. O Espírito de Deus revela, com clareza
inconfundível, na Palavra de Deus, que a Igreja está unida a Cristo na morte e
ressurreição; e, demais, que Cristo ressuscitado e assentado à destra de Deus é a
medida e o penhor da aceitação da Igreja. Quando se crê isto, a alma é transportada para
lá das regiões da dúvida e incerteza. Como pode o crente duvidar quando sabe que é
representado continuamente diante do trono de Deus por um advogado, Jesus Cristo, o
Justo?- É privilégio até do mais fraco dos membros da Igreja de Deus saber que foi
representado por Cristo na cruz, e que todos os seus pecados foram confessados,
levados, julgados e expiados ali. É uma realidade divina, que, quando aceite pela fé, dá a
paz. Mas nada menos que isto pode jamais dar paz. Pode existir o desejo mais sincero,
ardente, ansioso e verdadeiro de Deus; poderão observar-se pia e devotadamente todas
as ordenações, deveres e práticas da religião, mas o único meio de libertar a consciência
do sentido do pecado é vê-lo julgado na pessoa de Cristo, oferecendo-Se uma vez como
sacrifício pelo pecado na cruz de maldição. Se o pecado foi ali julgado uma vez para
sempre, o crente deve, portanto, considerá-lo, agora, como uma questão divinamente e
eternamente arrumada. E que a questão do pecado foi assim julgada está provado pela
ressurreição do nosso Substituto. "Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente;
nada se lhe deve acrescentar, e nada se lhe deve tirar. E isso faz Deus para que haja
temor diante dele" (Ec 3:14).
Contudo, enquanto é admitido em geral que tudo isto é verdadeiro quanto à Igreja
coletivamente, muitos têm grande dificuldade em fazer a sua aplicação pessoal. Estão
prontos a dizer com o Salmista: "Verdadeiramente bom é Deus para com Israel, para com
os limpos de coração. Quanto a mim..." (SI 73:1- 2). Olham para si, em vez de olharem
para Cristo na morte e Cristo na ressurreição. Estão mais ocupados com a apropriação de
Cristo do que com Cristo Mesmo. Pensam na sua capacidade em vez de pensarem nos
seus privilégios. São retidos num estado de incerteza inquietante; e, por conseguinte,
nunca podem tomar o lugar de adoradores ditosos e inteligentes. Oram por salvação em
vez de se regozijarem na possessão consciente dela. Olham para os seus frutos
imperfeitos em vez de contemplarem a perfeita expiação de Cristo.
Bom, examinando as várias notas deste cântico, no capítulo 15 de Êxodo, não
encontramos uma nota sequer acerca do ego nem dos seus feitos: tudo se refere ao
Senhor desde o princípio ao fim. Começa assim: "Cantarei ao SENHOR, porque
sumamente se exaltou; lançou no mar o cavalo e o seu cavaleiro". Isto é uma amostra de
todo o cântico. É um simples relato dos atributos e obras do Senhor. No capítulo 14 os
corações dos israelitas haviam sido, com efeito, encurralados sob a pressão excessiva
das circunstâncias; porém no capítulo 15 essa pressão é tirada, e os seus corações
encontram plena saída num suave cântico de louvor. O ego é esquecido; as
circunstâncias são perdidas de vista, e um só objeto enche a sua visão, e esse é o
Próprio Senhor no Seu caráter e em Suas obras. Assim eles puderam dizer: "Pois tu,
SENHOR, me alegraste com os teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos" (SI 92:4).
Isto é culto verdadeiro. É quando o pobre ego, com tudo quanto lhe pertence, é perdido
de vista e somente Cristo enche os nossos corações, que podemos oferecer a Deus culto
verdadeiro. Os esforços de uma piedade carnal não são precisos para despertar na alma
sentimentos de devoção. Não temos necessidade nenhuma de recorrer à pretendida
ajuda da religião, assim chamada, para inflamar na alma a chama do culto aceitável a
Deus. Ah! Não; deixai que o coração esteja ocupado somente com a Pessoa de Cristo, e
os "cânticos de louvor" serão a consequência natural. É impossível que o olhar esteja
fixado n'Ele sem que o espírito se curve em santa adoração. Se contemplarmos o culto
dos exércitos celestiais, que rodeiam o trono de Deus e do Cordeiro, veremos que é
sempre acompanhado da apresentação de algum traço especial das perfeições ou obras
divinas. Assim deveria ser com a Igreja na terra; e quando é de outra maneira, é porque
nos deixamos vencer por coisas que não têm lugar nas regiões da clara luz e da pura
bem-aventurança.

Deus: o Único Propósito do Louvor


Em todo o culto verdadeiro, Deus é ao mesmo tempo o objeto do culto, o assunto do
culto, e o poder do culto.
Por isso neste capítulo de Êxodo encontra-se um belo exemplo de um cântico de louvor.
É a linguagem de um povo redimido celebrando os louvores dignos d'Aquele que os
redimiu.
"O SENHOR é a minha força e o meu cântico; ele me foi por salvação; este é o meu
Deus; portanto, lhe farei uma habitação; ele é o Deus de meu pai; por isso o exaltarei. O
SENHOR É varão de guerra; SENHOR é o seu nome... A tua destra, ó SENHOR, se tem
glorificado em potência; a tua destra, ó SENHOR, tem despedaçado o inimigo... O
SENHOR, quem é como tu entre os deuses?- Quem é como tu glorificado em santidade,
terrível em louvores, operando maravilhas?-... Tu, com a tua beneficência, guiaste este
povo, que salvaste; coma tua força o levaste à habitação da tua santidade... O SENHOR
reinará eterna e perpetuamente".
Quão compreensiva é a extensão deste cântico! Começa com a redenção e termina com
a glória'. Principia com a cruz, e termina com o reino. É parecido com um belo arco-íris, do
qual uma extremidade mergulha nos "sofrimentos" e a outra na "glória que se lhes seguiu"
(1 Pe 1:11). Tudo se refere ao Senhor. É o derramamento da alma produzido pela
contemplação de Deus e das suas obras maravilhosas.
Além disso, o cântico não para com o cumprimento dos desígnios de Deus, visto que
lemos: "Com a tua beneficência guiaste este povo..., com a tua força o levaste à
habitação da tua santidade". O povo podia dizer isto, embora acabasse apenas de pôr os
seus pés nas margens do deserto. Não era uma expressão de uma vaga esperança.
Tampouco era aproveitar uma escura oportunidade. Ah! não; quando a alma está
inteiramente ocupada com Deus pode espraiar-se na plenitude da Sua graça, gozar da
proteção da luz do Seu rosto, e deleitar-se na rica abundância das Suas misericórdias e
da Sua bondade. As perspectivas que se abrem ante a alma estão livres de nuvens,
quando ela, tomando o seu lugar sobre a rocha eterna em que o amor redentor se
associou com um Cristo ressuscitado, contempla a abóbada espaçosa dos planos e
propósitos infinitos de Deus e fixa o olhar no esplendor dessa glória que Deus preparou
para todos aqueles que lavaram e branquearam os seus vestidos no sangue do Cordeiro.
Isto explica-nos o caráter peculiarmente brilhante e elevado desses rasgos de louvor que
encontramos através das páginas da Sagrada Escritura. A criatura é posta de parte; Deus
é o único objeto e enche toda a esfera da visão da alma. Nada há ali que pertença ao
homem, nem aos seus pensamentos ou às suas experiências; e, portanto, a corrente de
louvor corre copiosa e ininterruptamente. Quão diferente é tudo isto dos hinos que
frequentemente ouvimos cantar nas reuniões cristãs, tão repletos das nossas faltas, das
nossas fraquezas e das nossas deficiências! O fato é que nunca poderemos cantar com
verdadeira inteligência espiritual e poder enquanto nos contemplarmos a nós próprios.
Descobriremos sempre qualquer coisa em nós que será um obstáculo para o nosso culto.
De fato, muitos parecem crer que estar num estado de dúvida e hesitação é uma graça
cristã; e, como resultado, os seus hinos são do mesmo caráter da sua condição espiritual.
Estas pessoas, por muito sinceras e piedosas que possam ser, nunca, na verdadeira
experiência das suas almas, compreenderam o próprio fundamento do culto. Ainda não
puseram de parte o ego; não atravessaram ainda o mar; e, não tomaram ainda o seu
lugar, como um povo espiritualmente batizado, na outra margem, no poder da
ressurreição. Estão ainda, de um modo ou de outro, ocupadas consigo: não consideram o
ego como uma coisa crucificada, com a qual Deus acabou para sempre.
Que o Espírito Santo leve o povo de Deus a uma compreensão mais clara, plena, e digna
do seu lugar e privilégios, como aqueles que, havendo sido lavados dos seus pecados no
sangue de Cristo, são apresentados diante de Deus naquela aceitação infinita e pura em
que Ele está, como Chefe ressuscitado e glorificado da Sua Igreja. As dúvidas e os
temores não são próprios dos filhos de Deus, porque o seu divino penhor não deixou
sombra de dúvidas, para que haja suspeita de temor. O seu lugar é no santuário. Têm
"ousadia para entrar no santuário, pelo sangue de Jesus" (Hb 10:19). Acaso podem existir
dúvidas ou temores no santuário"? Não é evidente que aquele que duvida põe a perfeição
da obra de Cristo — obra que foi confirmada, à vista da inteligência, pela ressurreição de
Cristo de entre os mortos'?- O bendito Senhor não podia ter deixado a sepultura sem que
todo o motivo de dúvida e de temor para o Seu povo tivesse sido inteiramente removido.
Por esse motivo, é doce privilégio do cristão exultar na salvação completa. O próprio
Senhor é a sua salvação, e ele tem apenas que gozar os frutos da obra que Deus fez por
ele, e andar para Seu louvor enquanto espera pelo tempo em que "O SENHOR reinará
eterna e perpetuamente".
Existe uma nota neste cântico para a qual desejo chamar a atenção do leitor: "...este é o
meu Deus; portanto, lhe farei uma habitação" (versículo 2). É um fato digno de notar que
quando o coração transborda da alegria da redenção, então expressa o propósito de se
consagrar referente à habitação fará Deus.
Que o cristão pondere isto. O pensamento de Deus habitar com os homens acha-se nas
Escrituras desde Êxodo, capítulo 15, ao Apocalipse. Escutemos a linguagem de um
coração consagrado: "Certamente, que não entrarei na tenda em que habito, nem subirei
ao leito em que durmo, não darei sono aos meus olhos, nem repouso às minhas
pálpebras, enquanto não achar lugar para o SENHOR, uma morada para o Poderoso de
Jacó" (SI 132:3 - 5). "Pois o zelo da tua cada me devorou, e as afrontas dos que te
afrontam caíram sobre mim" (SI 69:9; Jo 2:17). Não pretendo tratar deste assunto aqui;
porém, gostaria de despertar interesse por ele no coração do leitor, para que o estudasse,
por si mesmo, com oração, desde a primeira vez que o encontramos nas Escrituras até
chegar àquela consoladora declaração: "Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens,
pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será
o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima"(Ap 21:3-4).

A Partida para o Deserto


"Depois, fez Moisés partir os israelitas do Mar Vermelho, e saíram ao deserto de Sur, e
andaram três dias no deserto; e não acharam águas" (versículo 22). E quando entramos
na experiência do deserto que somos postos à prova, a fim de que se manifeste até que
ponto conhecemos Deus e o nosso próprio coração. O princípio da nossa vida cristã é
acompanhado por uma vivacidade e de um gozo exuberantes, que logo as rajadas de
vento do deserto procuram deter; e então, a não ser que haja um profundo sentimento
daquilo que Deus é para nós, acima e além de tudo mais, sentimo-nos desfalecer, e em
nossos corações tornamos ao Egito (At 7:39). A disciplina do deserto é necessária, não
para nos dar o direito a Canaã, mas para nos tornar familiarizados com Deus e os nossos
próprios corações, para nos habilitar a compreendermos o poder do nosso parentesco e
para nos dar capacidade para gozarmos da terra de Canaã, quando lá chegarmos (veja-
se Dt 8:2 - 5).
A verdura, a frescura e a exuberância da primavera têm atrativos peculiares, os quais
desaparecem perante o calor abrasador do verão; porém, com os devidos cuidados, este
mesmo calor que destrói os traços esplêndidos da primavera, produz os frutos maduros e
sazonados do outono. O mesmo acontece na vida cristã; pois existe, como sabemos, uma
analogia notável e profundamente instrutiva entre os princípios que regem o reino da
natureza e aqueles que caracterizam o reino da graça, sendo uns e outros obra do
mesmo Deus.
Podemos contemplar Israel sob três posições distintas, a saber: no Egito, no deserto, e na
terra de Canaã. Em todas estas posições, eles são "nossas figuras"; enquanto que nós
nos achamos nas três ao mesmo tempo. De fato, nós encontramo-nos, por assim dizer,
no Egito, rodeados de coisas da natureza, que se adaptam perfeitamente ao coração
natural. Todavia, porquanto fomos chamados pela graça de Deus à comunhão de Seu
Filho Jesus Cristo, nós, segundo os afetos e desejos da nova natureza, encontramos,
necessariamente, o nosso lugar fora de tudo que pertence ao Egito (*) (o mundo no seu
estado natural), e isto faz-nos passar pelas experiências do deserto, ou, por outras
palavras, põe-nos, quanto à experiências, no deserto.
A natureza divina suspira ardentemente por uma ordem de coisas diferentes — por uma
atmosfera mais pura do que aquela que nos rodeia, e desta forma faz-nos sentir que o
Egito é como um deserto moral. Porém, visto que estamos, aos olhos de Deus,
eternamente ligados Aquele que penetrou nos céus, e se assentou à destra da Majestade,
é nosso privilégio saber, pela fé, que estamos assentados com Ele ali (Ef 2:6). De forma
que, apesar de estarmos, quanto aos nossos corpos, no Egito, quanto à nossa
experiência estamos no deserto, enquanto que, ao mesmo tempo, a fé nos conduz a
Canaã e habilita-nos a alimentarmo-nos "do trigo da terra do ano antecedente" Os 5:11),
isto é, de Cristo, como Aquele que não somente veio à terra, mas que voltou para o céu e
Se assentou ali em glória.

Mara: as Águas Amargas


Os versículos finais deste capítulo mostram-nos Israel no deserto. Até aqui parece que
tudo lhes havia corrido bem. Terríveis juízos haviam caído sobre o Egito, mas Israel fora
perfeitamente excluído; o exército do Egito jazia morto nas praias do mar, mas Israel
estava em triunfo. Tudo isto era bastante; mas, enfim, o aspecto das coisas depressa
mudou! Os hinos de louvor foram depressa substituídos pelas palavras de
descontentamento. "Então, chegaram a Mara; mas não puderam beber as águas de Mara,
porque eram amargas: por isso, chamou-se o seu nome Mara. E o povo murmurou contra
Moisés, dizendo: Que havemos de bebera (versículos 23 a 24).
"E toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão no
deserto. E os filos de Israel disseram-lhes:
Quem dera que nós morrêssemos pela mão do SENHOR na terra do Egito, quando
estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar! Porque
nos tendes tirado para este deserto, para matardes de fome a toda esta multidão (capítulo
16:2-3).
_____________________
(¹) Existe uma grande diferença moral entre o Egito e Babilônia, que é importante
conhecer. O Egito foi o país de onde veio o povo de Israel; Babilônia foi a terra para onde
eles foram deportados mais tarde (comparem-se Am 5:25- 27 com At 7:42-43). O Egito
significa aquilo que o homem fez do mundo; Babilônia expressa o que Satanás tem feito,
faz ou fará da Igreja professa. Por isso, não estamos apenas rodeados das circunstâncias
do Egito, como também pelos princípios morais de Babilônia.
Isto faz dos nossos "tempos" o que o Espírito Santo considera "trabalhosos"—difíceis.
São necessárias a energia do Espírito de Deus e uma sujeição completa à autoridade da
Palavra de Deus para se poder enfrentar a influência combinada das realidades do Egito
e o espírito e os princípios de Babilônia. Aquelas satisfazem os desejos naturais do
coração; enquanto que estes se ligam e dirigem à religiosidade da natureza, que lhes dá
um acolhimento peculiar no coração. O homem é um ente religioso e peculiarmente
susceptível das influências da música, da escultura, da pintura, ritos pomposos e
cerimônias. Quando estas coisas se acham ligadas com o suprimento das necessidades
naturais—sim, com a facilidade e a luxúria da vida, nada senão o poder da Palavra de
Deus e do Espírito pode manter alguém fiel a Cristo.
Devemos notar também que existe uma grande diferença entre os destinos do Egito e os
de Babilônia. O capítulo 19 de Isaías apresenta-nos as bênçãos que estão guardadas
para o Egito. Esta é a conclusão: "E ferirá o SENHOR aos egípcios e os curará; e
converter-se-ão ao SENHOR, e mover-se-á às suas orações, e os curará: ...Naquele dia,
Israel será o terceiro com os egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra. Porque
o SENHOR dos Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a
Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, minha herança" (versículos 22-25).
O fim da história da Babilônia é muito diferente quer o encaremos como uma cidade literal
ou um sistema espiritual. "E reduzi-la-ei a possessão de corujas e a lagoas de águas; e
varrê-la-ei com vassoura de perdição, diz o SENHOR dos Exércitos" (Is 14:23). "Nunca
mais será habitada, nem reedificada de geração em geração" (Is 13:20). Isto quando a
Babilônia, literalmente; sob o ponto de vista místico ou espiritual vemos o seu destino em
Apocalipse, capítulo 18. Esse capítulo é uma descrição de Babilônia, e termina com estas
palavras: "E um forte anjo levantou uma pedra como uma grande mó e lançou-a no mar,
dizendo: Com igual ímpeto será lançada Babilônia, aquela grande cidade, e não será
jamais achada" (versículo 21).
Com que imensa solenidade deveriam essas palavras soar aos ouvidos de todos aqueles
que estão ligados, de qualquer modo, com Babilônia—isto é, com a Igreja professa. "Sai
dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados e para que não
incorras nas suas pragas" (Ap 18:4). O "poder" do Espírito Santo operará
necessariamente ou expressar-se-á numa certa "forma" de piedade, e o alvo do inimigo
tem sido sempre defraudar a Igreja professa do poder, ao mesmo tempo que a induz a
apoiar-se na forma e a perpetuá-la—a imprimir a forma depois de todo o espírito e a vida
haverem desaparecido. É assim que ele edifica a Babilônia espiritual. As pedras com que
esta cidade é edificada são os professos sem vida espiritual; e o martelo com que ele liga
essas pedras é "a forma de piedade sem poder".
Oh! prezado leitor, certifiquemo-nos de que compreendemos estas coisas plena e
claramente.

Eis aqui as provações do deserto. "Que havemos de comera" e "que havemos de bebera"
As águas de Mara puseram à prova o coração de Israel e mostraram o seu espírito
murmurador; mas o Senhor mostrou-lhes que não havia amargura que Ele não pudesse
dulcificar com a provisão da Sua graça: "...e o SENHOR mostrou-lhe um lenho que lançou
nas águas, e as águas se tornaram doces: ali lhes deu estatutos e uma ordenação, e ali
os provou". Que formosa figura d'Aquele que foi, em graça infinita, lançado às águas da
morte, para que essas águas nada mais nos pudessem dar senão doçura, para todo o
sempre. Verdadeiramente, podemos dizer: "Na verdade já passou a amargura da morte",
e nada mais nos resta senão as doçuras eternas da ressurreição.
O versículo 26 põe diante de nós o caráter importante desta primeira etapa dos remidos
de Deus no deserto. Encontramo-nos em grande perigo, nesta hora, de cair num espírito
mal disposto, impaciente de murmuração. O único remédio contra este mal é
conservarmos os olhos postos em Jesus —"olhando para Jesus" (Hb 12:2). Bendito seja o
Seu nome, Ele sempre Se mostra à altura das necessidades do Seu povo; e eles, em vez
de se queixarem das suas circunstâncias, deviam fazer delas o motivo de se aproximarem
mais d'Ele. É assim que o deserto se torna útil para nos ensinar o que Deus é. É uma
escola na qual aprendemos a conhecer a Sua graça constante e os Seus amplos
recursos. "E suportou os seus costumes no deserto por espaço de quase quarenta anos"
(At 13:18).
O homem espiritual reconhecerá sempre que vale a pena ter águas amargas para Deus
as dulcificar:".. .também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a
paciência; e a paciência, a experiência, e a experiência, a esperança" (Rm 5:3 -5).

Elim: Doze Fontes e Setenta Palmeiras


Todavia, o deserto tem os seus Elins bem como os seus Maras; as suas fontes e
palmeiras, bem como as suas águas amargas. "Então, vieram a Elim, e havia ali doze
fontes de água e setenta palmeiras; e ali se acamparam junto das águas (versículo 27).
O Senhor graciosa e ternamente prepara verdes lugares no deserto para o Seu povo; e
embora sejam, quanto muito, oásis, refrescam, todavia, o espírito e animam o coração. A
permanência temporária em Elim era evidentemente calculada para tranquilizar os
corações do povo e fazer cessar as suas murmurações. A sombra agradável das suas
palmeiras e as águas refrescantes das suas fontes vieram muito a propósito, depois da
provação de Mara, e realçam à nossa vista as virtudes preciosas daquele ministério
espiritual que Deus provê para o Seu povo no mundo. Os números "doze" e "setenta"
estão intimamente ligados com o ministério.
Mas Elim não era Canaã As fontes e as palmeiras eram apenas um antegozo desse país
ditoso que estava situado para lá dos limites do deserto estéril, no qual os remidos
acabavam de entrar. Davam refrigério, sem dúvida, mas era refrigério do deserto: era
apenas momentâneo, destinado em graça, a animar os espíritos deprimidos e a dar-lhes
vigor para a sua marcha para Canaã. Assim é, como sabemos, com o ministério na Igreja;
é um suprimento gracioso para as nossas necessidades, destinado a refrescar, fortalecer
e encorajar os nossos corações "até que todos cheguemos à medida da estatura
completa de Cristo" (Ef 4:13).

— CAPITULO 16 —

O MANÁ: O PÃO DO CÉU

As Murmurações do Povo
"E PARTIDOS de Elim, toda a congregação dos filhos de Israel veio ao deserto de Sim,
que está entre Elim e Sinai, aos quinze dias do mês segundo, depois que saíram da terra
do Egito". Vemos aqui Israel numa posição notável e muito interessante. É ainda o
deserto, sem dúvida, mas é um lugar de paragem muito importante e significativo, a
saber, "entre Elim e Sinai". Aquele era o lugar onde haviam recentemente provado as
águas refrescantes do ministério divino; este era o lugar onde eles deixaram o terreno da
graça soberana e se colocaram debaixo do concerto das obras. Estes fatos tornam "o
deserto de Sinai" uma parte particularmente interessante da jornada de Israel. O Seu
aspecto e influência são acentuados grandemente como qualquer outro ponto em toda a
sua história. Vêmo-los aqui como os objetos da mesma graça que os havia tirado da terra
do Egito, e, portanto, todas as suas murmurações são imediatamente atendidas por
suprimento divino. Quando Deus opera na manifestação da Sua graça não há
impedimento. As bênçãos que Ele derrama correm sem interrupção. E só quando o
homem se coloca debaixo da lei que perde tudo; porque então Deus tem de permitir que
ele se certifique de quanto pode exigir com base nas suas próprias obras.
Quando Deus visitou e redimiu o Seu povo e os tirou da terra do Egito, não foi,
certamente, com o propósito de os deixar morrer de fome e de sede no deserto. Eles
deviam saber isto. Deviam ter confiado n'Ele e andado na confiança daquele amor que os
havia libertado gloriosamente dos horrores da escravidão do Egito.
Deviam ter recordado que era infinitamente melhor estar com Deus no deserto do que nos
fornos de tijolo com Faraó. Mas não; o coração humano acha uma coisa muito difícil dar
crédito a Deus pelo seu amor puro e perfeito: tem muito mais confiança em Satanás do
que em Deus. Vede, por um momento, toda a dor e sofrimento, a miséria e degradação
que o homem tem sofrido por causa de ter dado ouvidos à voz de Satanás, e contudo
nunca tem uma palavra de queixa quanto ao seu serviço ou desejo de se libertar das suas
mãos. Não está descontente com Satanás nem cansado de o servir. Colhe repetidas
vezes os frutos amargos nesses campos que Satanás tem aberto de si; e, todavia, pode
ser visto repetidas vezes a semear a mesmíssima semente e a passar pelos mesmos
trabalhos.

Mas como é diferente quando se trata de Deus! Quando nos dispomos a andar nos Seus
caminhos, estamos prontos, à primeira aparência de dificuldades ou provações, a
murmurar e a rebelarmo-nos. Na verdade, não há nada em que tanto falhamos como no
desenvolvimento de um espírito confiante e agradecido. Esquecemos facilmente dez mil
bênçãos na presença de uma simples privação. Os nossos pecados foram todos
perdoados, "fomos aceites no amado"(Ef 1:6) efeitos herdeiros e co-herdeiros com
Cristo—esperamos a glória eterna; e além de tudo mais, o nosso caminho através do
deserto está coberto de misericórdias inumeráveis; e todavia deixai que uma nuvem,
apenas como palma da mão de um homem, apareça no horizonte, e as ricas
misericórdias do passado são por nós prontamente esquecidas à vista desta pequena
nuvem, que, afinal, pode muito vem desfazer-se em bênçãos sobre a nossa cabeça.
Este pensamento deveria humilhar-nos profundamente diante de Deus. Como somos
diferentes nisto, e em tudo mais, do nosso bendito Modelo! Vede-O—o verdadeiro Israel
no deserto—rodeado de feras e jejuando durante quarenta dias. Como Se conduziu Ele?
Murmurou?- Queixou-Se da Sua sorte?- Desejou achar-Se noutras circunstâncias? Ah!
não. Deus era a porção do Seu cálice e a parte da Sua herança (SI 16). E, portanto,
quando o tentador se aproximou de Lhe oferecer o necessário, glórias, distinções, e as
honras desta vida, Ele recusou-os e manteve firmemente a posição de absoluta
dependência de Deus e implícita obediência à Sua palavra. Só aceitaria do mesmo modo
o pão e a glória das mãos de Deus.
Como foi tão diferente com Israel segundo a carne! Tão depressa sentiu o sofrimento da
fome "Murmurou contra Moisés e contra Arão, no deserto" (versículo 2). Parece que
haviam perdido a compreensão de haverem sido libertados pela mão do Senhor, porque
disseram:"... porque nos tendes tirado para este desertou" E também no capítulo 17:3,
lemos: "...o povo murmurou contra Moisés, e disse: porque nos fizeste subir do Egito, para
nos matares de sede, a nós, e aos nossos filhos, e ao nosso gado?" Assim, eles
manifestaram em todas as ocasiões um espírito irritado e de queixume, e mostraram quão
pouco realizavam a presença do seu Poderoso e infinitamente gracioso Libertador.
Ora, não há nada que tanto desonre a Deus como um espírito murmurador por parte
daqueles dos que Lhe pertencem. O apóstolo apresenta como característico especial da
corrupção dos gentios que, "...tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus,
nem lhe deram graças" (Rm 1:21). E então segue-se o resultado prático deste espírito
ingrato, "antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se
obscureceu". Aquele que deixa de reter um sentido grato da bondade de Deus tornar-se-á
rapidamente "entenebrecido". Assim Israel perdeu o sentido de estar nas mãos de Deus;
e isto levou-os, como podia esperar-se, a trevas mais espessas, visto que os
encontramos, mais tarde na sua história, dizendo: "Porque nos traz o SENHOR a esta
terra, para cairmos a espada e para que nossas mulheres e nossas crianças sejam por
presa"?-" (Nm 14:3). Tal é a atitude que a alma que não está em comunhão toma.
Começa por perder a noção de estar nas mãos de Deus para seu bem, e, termina por se
julgar nas Suas mãos para seu mal. Que triste progresso!

O Maná
Contudo, como Israel estava debaixo da graça, as suas necessidades são supridas de
uma maneira maravilhosa, como lemos no versículo 4, deste capítulo: "Então, disse o
SENHOR, a Moisés: Eis que vos farei chover pão dos céus". Quando se achavam
envolvidos pela nuvem fria da incredulidade, eles haviam dito: "Quem dera que nós
morrêssemos por mão do SENHOR, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto
às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar!" Porém, agora Deus diz que lhes
dará "pão dos céus". Abençoado contraste! Que diferença espantosa entre as panelas de
carne, os alhos porros e as cebolas do Egito e este maná celestial— "o pão dos
poderosos"! (SI 78:25). Aquelas coisas pertenciam aterra, este pão era do céu.
Mas este alimento celestial era necessariamente, uma experiência da condição de Israel,
como está escrito, "...para que eu seja se anda em minha lei ou não". Era preciso ter-se
um coração separado das influências do Egito para se dar por satisfeito, ou apreciar "o
pão dos céus". Com efeito, sabemos que o povo não se contentou com este pão, antes o
desprezou, declarou-o "pão vil" e desejou carne.
Desta forma os israelitas mostraram quão pouco separados estavam os seus corações do
Egito e como não estavam dispostos a andar na lei de Deus: "..em Seu coração se
tornaram ao Egito" (At 7:39).
Porém, longe de serem reconduzidos para ali, foram transportados, por fim, para além de
Babilônia (At 7:43). Eis uma lição solene e salutar para os cristãos. Se aqueles que foram
libertados deste presente século mau não andam com Deus com corações agradecidos,
satisfeitos com a provisão que Ele fez para os remidos no deserto, estão em perigo de
cair nos laços da influência de Babilônia. É uma reflexão muito séria, que requer gosto
celestial para se poder alimentar do Pão do céu. A natureza não pode saborear um tal
alimento; suspira sempre pelo Egito, e, portanto, deve ser sempre dominada. É nosso
privilégio, como aqueles que foram batizados na morte de Cristo e ressuscitados "pela fé
no poder de Deus" (Cl 2:12), alimentarmo-nos de Cristo como "o pão da vida que desceu
do céu" (Jo 6:51).

Cristo: O Pão Vivo que Desceu do Céu


Este é o nosso alimento nesta peregrinação—Cristo apresentado pelo ministério do
Espírito Santo através das Escrituras; enquanto que, para nosso refrigério espiritual, o
Espírito Santo veio, como o fruto precioso da Rocha ferida — Cristo, que foi ferido por
nós. Tal é a nossa parte neste mundo.
Ora, é evidente que, a fim de podermos desfrutar uma parte como esta, os nossos
corações devem estar separados de tudo neste presente século mau— de tudo aquilo
que poderia despertar a nossa cobiça como aqueles que vivem na carne. Um coração
mundano e carnal não encontra Cristo nas Escrituras nem poderá apreciá-Lo, se o
encontrar. O maná era tão puro e mimoso que não podia suportar contato com a terra.
Por isso, descia sobre o orvalho (veja-se Nm 11:9) e tinha de ser recolhido antes de o sol
se elevar. Cada um, portanto, devia levantar-se cedo e recolher a sua parte. O mesmo
acontece com o povo de Deus agora: o maná celestial tem de ser colhido todas as
manhãs. O maná de ontem não serve para hoje nem o de hoje para amanhã. Devemo-
nos alimentar de Cristo cada dia que passa, com novas energias do Espírito, de contrário
deixaremos de crescer. Ademais, devemos fazer de Cristo o nosso primeiro objetivo.
Devemos buscá-lo "cedo", antes de "outras coisas" terem tempo de se ponderar dos
nossos pobres corações. E nisto que muitos de nós, enfim, falhamos! Damos um segundo
lugar a Cristo, e como consequência ficamos fracos e estéreis. O inimigo, sempre
vigilante, aproveita-se da nossa indolência espiritual para nos roubar a bem-aventurança
e as forças que recebemos nutrindo-nos de Cristo. A nova vida no crente só pode ser
alimentada e mantida por Cristo. "Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo
Pai, assim quem de mim se alimenta também viverá por mim" (Jo 6:57).
A graça do Senhor Jesus Cristo, como Aquele que desceu do céu, para ser o alimento do
Seu povo, é inefavelmente preciosa para a alma renovada; porém, a fim de poder apreciá-
Lo desta forma, devemos compreender que estamos no deserto, separados para Deus,
no poder de uma redenção efetuada. Se ando com Deus através do deserto, estarei
satisfeito com o alimento que Ele me dá, e este é Cristo, como Aquele que desceu do céu.
"O trigo da terra" de Canaã, "do ano antecedente" (Js 5:11) tem o seu antítipo em Cristo
elevado às alturas e assentado na glória. Como tal, Ele é o próprio alimento daqueles
que, pela fé, sabem que estão ressuscitados e assentados juntamente com Ele nos
lugares celestiais. Porém,
o maná, isto é, Cristo como Aquele que desce do céu, é o sustento para o povo de Deus,
na sua vida e experiências do deserto. Como um povo estrangeiro no mundo,
necessitamos de um Cristo que também aqui viveu como estrangeiro; como povo
assentado nos lugares celestiais, temos um Cristo que também ali está assentado. Isto
poderá explicar a diferença que existe entre o maná e o trigo da terra do ano antecedente.
Não se trata da redenção, pois que esta já a temos no sangue da cruz, e ali somente; mas
simplesmente da provisão que Deus fez para o Seu povo em face das variadas condições
em que este se encontra, quer seja lutando no deserto ou tomando posse em espírito da
herança celestial.

A Glória do Senhor na Nuvem


Que quadro admirável nos oferece Israel no deserto! Detrás de si ficava o Egito, na sua
frente estava a terra de Canaã, e à sua volta a areia do deserto; enquanto que eles
mesmos estavam reduzidos a esperar do céu o seu sustento diário! O deserto não
produziu uma folha de erva nem deu uma gota de água para o Israel de Deus. A sua
porção estava só em Deus. Nada têm aqui. A sua vida, sendo celestial, só pode ser
mantida por coisas celestiais. Embora estejam no mundo, não são do mundo, porque
Cristo os escolheu dele. Como povo celestial por nascimento, acham-se de caminho para
a sua pátria; e são mantidos por alimento que lhes é enviado dali. A sua marcha é para
diante e para cima. A glória só assim os dirige. É inteiramente inútil volver os olhos para
trás na direção do Egito, porque nem um só raio de glória se pode distinguir ali; "...e eles
viraram para o deserto, eis que a glória do SENHOR apareceu na nuvem". O carro de
fogo do Senhor estava no deserto, e todos os que desejam ter comunhão com Ele tinham
de estar ali também, e, estando ali, o maná do céu seria o seu alimento, e somente esse.

Cristo: O Alimento do Cristão


Verdade seja que este maná era um sustento estranho, tal como um egípcio nunca
poderia compreender, apreciar ou viver dele; porém aqueles que haviam sido "batizados...
na nuvem e no mar" (1 Co 10:2) podiam apreciá-lo e ser nutridos por ele, se tão-somente
andassem em conformidade com esse batismo. Assim é agora no caso de todo o
verdadeiro crente. O homem do mundo não pode compreender como é que o crente vive.
Tanto a sua vida como aquilo que o mantém estão inteiramente fora do alcance da visão
humana. Cristo é a sua vida, e de Cristo ele vive. Nutre-se, pela fé, com os atrativos
poderosos d'Aquele que, sendo "Deus, bendito eternamente" (Rm 9:15), "tomou sobre si a
forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens" (Fl 2-.7). Segue-O desde o seio do
Pai até à cruz e desde a cruz ao trono, e encontra n'Ele, em todas as fases da Sua
carreira e em cada atitude da Sua vida, um alimento precioso para o homem novo em si.
Tudo em volta, embora de fato seja o Egito, é moralmente um deserto árido e lúgubre,
que nada produz para o espírito renovado; e precisamente na proporção em que o crente
encontrar alguma coisa com que se nutrir, o seu homem espiritual será impedido no seu
progresso. A única provisão que Deus tem feito é o maná do céu, e o verdadeiro crente
deverá alimentar-se sempre dele.
É verdadeiramente lamentável ver como tantos cristãos buscam as coisas deste mundo.
Isto prova claramente que estão com "tédio" do maná celestial e que o consideram como
"pão vil". Servem aquilo que deveriam mortificar. As atividades da nova vida estarão
sempre em relação com a subjugação "do velho homem com seus feitos" (Cl 3:9); e
quanto mais isto for conseguido, tanto mais se desejará o nutrimento "do pão que
fortalece o... coração" (SI 104:15). Assim como acontece com o físico, em que quanto
maior é o exercício maior é o apetite, assim também acontece com a graça: quanto mais
exercitadas forem as nossas faculdades renovadas, tanto mais sentiremos a necessidade
de nos alimentarmos diariamente de Cristo. Uma coisa é sabermos que temos vida em
Cristo juntamente com pleno perdão e aceitação diante de Deus, e outra muito diferente
termos habitualmente comunhão com Ele — nutrindo-nos d'Ele, pela fé e fazendo d'Ele o
único alimento das nossas almas. Muitos professam ter achado perdão e paz em Jesus,
mas, na realidade, alimentam-se de uma variedade de coisas que não têm relação com
Ele. Alimentam os seus espíritos com a leitura dos periódicos e uma variedade de
literatura frívola e insípida. Poderão encontrar Cristo nela? Acaso é por tais meios que o
Espírito Santo fala de Cristo à alma? São estas as gotas de orvalho puro sobre as quais o
maná desce do céu para sustento dos remidos de Deus no Deserto? Ah! não; são
produtos grosseiros sobre os quais se deleita o espírito carnal. Como poderia, pois, o
verdadeiro cristão alimentar-se com tais coisas? Sabemos, mediante o ensino da Palavra
de Deus, que ele tem duas naturezas: e pode perguntar-se qual das duas se alimenta
com o noticiário do mundo e a literatura mundana. É a velha natureza ou a nova? Só pode
haver uma resposta. Pois bem, qual das duas estamos ansiosos por alimentara A nossa
conduta dará, incontestavelmente, a verdadeira resposta a esta interrogação. Se eu
desejar sinceramente crescer na vida divina, se o meu grande objetivo for o de ser
semelhante e consagrado a Cristo, se suspiro sinceramente pela extensão do reino de
Deus no meu coração, então, sem dúvida, buscarei continuamente essa qualidade de
alimento que está destinado por Deus a promover o meu crescimento espiritual. Tudo isto
é claro. Os atos de um homem são sempre o verdadeiro indício dos seus desejos e
propósitos . Por isso, se vejo um crente descurar a sua Bíblia, e, contudo, dispor de tempo
— sim, parte do seu melhor tempo — para ler o jornal, não me será difícil ver qual é o
verdadeiro estado da sua alma. Estou certo que não pode ser um crente espiritual: não se
alimenta de Cristo, não vive para Cristo nem dá testemunho d'Ele.
Se um israelita deixasse de apanhar, durante a frescura da manhã, a sua porção do
alimento que a graça de Deus havia preparado, em breve sentiria a falta de forças para a
sua jornada. Assim é conosco. Devemos fazer de Cristo o objeto supremo na ocupação
das nossas almas, de outro modo a nossa vida espiritual declinará inevitavelmente. Nem
tampouco podemos alimentar as nossas almas com os sentimentos e as experiências
relacionados com Cristo porque, sendo incertos, não podem representar o nosso alimento
espiritual. Vivemos ontem de Cristo, temos de viver hoje de Cristo e de Cristo para
sempre. Além disso de nada vale alimentarmo-nos em parte de Cristo e em parte de
outras coisas. Assim como no caso da vida é somente Cristo, da mesma forma o viver
deve ser Cristo somente. Assim como não podemos misturar nada com aquilo que
transmite a vida, tampouco podemos misturar alguma coisa com aquilo que a mantém.

O Vaso de Maná na Arca da Aliança


É bem verdade que, em espírito e pela fé, nós podemo-nos alimentar, até mesmo agora,
de um Cristo ressuscitado e glorificado, elevado às alturas, em virtude da redenção
efetuada, conforme era ilustrado no "trigo da terra do ano antecedente" (Josué 5). E não
somente isto, sabemos que quando os remidos de Deus tiverem entrado nessas regiões
de glória, descanso e imortalidade, que se acham além do Jordão, terão acabado, de fato,
com o alimento do deserto; mas não terão terminado com Cristo nem com a recordação
daquilo que constitui o alimento específico da sua vida no deserto.
Os israelitas nunca haviam de esquecer, no meio do leite e mel da terra de Canaã, aquilo
que os havia sustentado durante os quarenta anos da sua peregrinação no deserto:"..
.Esta é a palavra que o SENHOR tem mandado: Encherás um gômer dele e o guardarás
para as vossas gerações, para que vejam o pão que vos tenho dado a comer neste
deserto, quando eu vos tirei da terra do Egito... .Como o SENHOR tinha ordenado a
Moisés, assim Aarão o pôs diante do Testemunho em guarda" (versículos 32 - 34).
Que precioso memorial da fidelidade de Deus! Não os deixou morrer de fome, como os
seus corações insensatos e incrédulos haviam temido. O Senhor fez chover pão do céu,
alimentou-os com "pão de poderosos", velou sobre eles com toda a ternura de uma ama,
suportou-os, levou-os sobre asas de águias, e, tivessem eles continuado no próprio
terreno da graça, ter-lhes-ia dado posse de todas as promessas feitas aos seus pais. O
vaso de maná, portanto, contendo, com efeito, a ração diária de um homem, e posto
diante do Senhor, é cheio de instrução. Não houve nele vermes nem vestígios de
corrupção. Era o memorial da fidelidade do Senhor provendo as necessidades daqueles
que havia remido da mão do inimigo.

Não Fazer Provisão de Maná para o Dia de Amanhã


Não acontecia assim quando o homem o acumulava para si. Então os sintomas de
corrupção depressa se manifestavam. Não podemos fazer provisões, se
compreendermos a verdade e realidade da nossa posição. É nosso privilégio
apropriarmo-nos, dia a dia, da preciosidade de Cristo, como Aquele que desceu do céu
para dar vida ao mundo. Porém, se alguém, esquecendo-se disto, entesoura para o dia de
amanhã, isto é, se reserva verdade além das suas necessidades, em vez de a converter
em proveito da renovação das suas forças, a verdade certamente corromper-se-á. Eis
uma lição salutar para nós. É uma cosia muito séria aprender a verdade; porque não
existe um princípio que professamos ter aprendido que não teremos que provar na
prática. Deus não nos quer teóricos. Trememos muitas vezes ao ouvir como algumas
pessoas, quando oram, fazem ardentes votos de consagração, temendo que, quando
chegar a hora da provação, não tenham o poder espiritual necessário para executar o que
os seus lábios têm pronunciado.
Existe o grande perigo do intelecto ultrapassar a consciência e os afetos do coração. É
por isso que muitos parece fazerem, logo ao princípio, um rápido progresso, até um certo
ponto; mas então param de repente e parece retrocederem. Como um israelita que
apanhasse mais maná do que precisava para o sustento do dia. Podia parecer muito mais
diligente que os outros, fazendo reserva do alimento celestial; contudo cada partícula a
mais das necessidades do dia não só era inútil, mas muito pior do que inútil, visto que
"criava bichos". É assim com o cristão: deve usar o que tem—deve alimentar-se de Cristo
como necessidade premente e essa necessidade manifesta-se no seu serviço. O caráter
e os caminhos de Deus e a preciosidade e beleza de Cristo, assim como as vivas
profundidades das Escrituras são somente reveladas à fé e às necessidades presentes da
alma. É na medida em que usamos o que recebemos que mais nos será dado. Ávida do
crente tem de ser prática; e é nisto que muitos de nós fracassamos. Acontece
frequentemente que aqueles que progrediam mais depressa em teoria são os mais
vagarosos nos elementos práticos e experimentais, porque se trata mais de um trabalho
intelectual que do coração e da consciência. Nunca devemos esquecer que o Cristianismo
não é um conjunto de opiniões, um sistema de dogmas ou um determinado número de
pontos de vista. É uma realidade viva por excelência—uma coisa pessoal, prática,
poderosa, anunciando-se a si própria em todas as circunstâncias e cenas da vida diária,
espalhando a sua influência santa sobre o caráter e a vida do indivíduo e transmitindo as
suas disposições celestiais a todas as relações a que o cristão possa ser chamado por
Deus a cumprir.
Em resumo, é o resultado de se estar associado e ocupado com Cristo. Tal é o
cristianismo. Pode haver ideias corretas e princípios sãos e pontos de vista claros sem se
ter a menor comunhão com Jesus; porém um credo ortodoxo sem Cristo não é mais que
uma coisa fria, estéril e morta.
Que o leitor cristão se certifique de que não só está salvo por Cristo como vive, também,
d'Ele. De fazer d'Ele a sua porção diária, buscá-Lo "de manhã" e a "Ele só". Quando
qualquer coisa despertar a sua atenção, durante o dia, deve fazer esta interrogação:
"Contribuirá isto para que Cristo venha ao meu coração? Será isto um meio de aumentar
o meu afeto por Ele ou de me aproximar mais da Sua Pessoal Se a resposta for negativa
deve rejeitar o que quer que for imediatamente: sim, rejeitar, ainda mesmo que o objetivo
que chama a sua atenção seja o mais agradável à vista e se presente com o mais
respeitável aspecto. Se o seu propósito for avançar e fazer progresso na vida divina,
então deve cultivar a sua familiaridade pessoal com Cristo; só então poderá reclamar do
seu coração o cumprimento fiel desta lealdade. Deve fazer de Cristo o seu alimento diário.
Deve juntar o maná que desce sobre o orvalho e alimentar-se dele com o apetite
provocado pela companhia diligente com Deus através do deserto. Que a graça de Deus
o fortifique abundantemente, por meio do Espírito Santo (¹).
____________________
(¹) O leitor tirará muito proveito com a meditação do capítulo 6 do Evangelho de João, em
relação com o assunto do maná. Estando perto a páscoa, Jesus alimenta a multidão, e
depois retira-se para um monte, para estar só. Dali vem em auxílio dos Seus, que se
acham aflitos sobre as águas do lago. Depois disto revela a doutrina da Sua Pessoa e da
sua Obra, e declara que dará a Sua carne pela vida do mundo e que ninguém pode ter
vida se não comer a Sua carne e beber o Seu sangue. Finalmente fala de Si Mesmo
como subindo para onde estava primeiro e do poder vivificador do Espírito Santo. É, na
verdade rico e abundante em verdade espiritual para conforto e edificação da alma. revela
a doutrina da Sua Pessoa e da sua Obra, e declara que dará a Sua carne pela vida do
mundo e que ninguém pode ter vida se não comer a Sua carne e beber o Seu sangue.
Finalmente fala de Si Mesmo como subindo para onde estava primeiro e do poder
vivificador do Espírito Santo. É, na verdade rico e abundante em verdade espiritual para
conforto e edificação da alma.

O Dia de Repouso: o Sábado


Existe mais um ponto neste capítulo que desejo mencionar, isto é, a instituição do sábado
relacionada com o maná e a posição de Israel tal qual nos é apresentada aqui. Depois do
capítulo 2 de Gênesis até ao capítulo que temos perante nós, não se faz menção desta
instituição. Isto é singular. O sacrifício de Abel, a carreira de Enoc com Deus, a pregação
de Noé, a chamada de Abraão, juntamente com a história pormenorizada de Isaque Jacó
e José, são todas representadas; mas não se faz alusão ao sábado até ao momento em
que encontramos Israel reconhecido como um povo em relação com o Senhor, e
consequentemente debaixo da responsabilidade que essa relação implica.
O sábado foi interrompido no Éden; e é aqui instituído outra vez para Israel no deserto.
Mas, ah, o homem não ama o repouso de Deus! "E aconteceu, ao sétimo dia, que alguns
do povo saíram para colher, mas não o acharam. Então, disse o SENHOR a Moisés: Até
quando recusareis guardar os meus mandamentos e as minhas leis? Vede, visto que o
SENHOR vos deu o sábado, por isso ele, no sexto dia, vos dá pão para dois dias; cada
um fique no seu lugar, que ninguém saia do seu lugar no sétimo dia" (versículos 27 -29).
Deus queria que o Seu povo gozasse de um doce repouso com Ele Mesmo: queria dar-
lhes repouso, alimento, e refrigério no deserto. Porém o coração humano não está
disposto a repousar com Deus. O povo podia recordar e falar dos tempos em que
"estavam sentados junto às panelas de carne" no Egito; mas não podiam apreciar a bem-
aventurança de se sentarem nas suas tendas, gozando com Deus "o descanso do
sábado" e alimentando-se com o maná celestial.
E não se esqueça que o sábado é apresentado aqui como um caso de dádiva: "...o
SENHOR vos deu o sábado" (versículo 29). Mais adiante, neste mesmo livro,
encontramo-lo outra vez mencionado debaixo da forma de lei e acompanhado de
maldição e juízo, no caso de desobediência; porém, quer o homem caído receba um
privilégio ou uma lei, é-lhe indiferente. A sua natureza é má. Não pode descansar em
Deus nem trabalhar para Deus. Se Deus trabalha e lhe faz um repouso, ele não quer
guardá-lo; e se Deus o manda trabalhar, não o faz. Tal é o homem. Não tem lugar em seu
coração para Deus. Pode usar o nome do sábado como um meio de se exaltar a si
próprio ou como insígnia da sua própria religiosidade; mas quando volvemos os olhos
para o capítulo 16 do Êxodo descobrimos que não pode celebrar o sábado de Deus como
uma dádiva; e quando abrimos o capítulo 15 de Números, versículos 32 a 36,
descobrimos que não pode guardá-lo como uma lei.
Ora, nós sabemos que o sábado, assim como o maná, era uma figura. Em si mesmo, era
uma bênção — uma agradável mercê da parte de um Deus de amor e graça, que queria
suavizar o trabalho e a labuta de um mundo pecaminoso mediante o refrigério de um dia
de descanso em cada sete. Qualquer que seja a forma de encararmos a instituição do
sábado, vê-la-emos sempre fecunda da mais rica graça, quer a encaremos a respeito do
homem ou acerca da criação animal. E embora os cristãos guardem o primeiro dia da
semana — o dia do Senhor— e liguem com ele as regras que lhe são próprias, todavia
observa-se a mesma providência graciosa; nem a mente governada por sentimentos
próprios procuraria, por um momento sequer, interferir com uma tal demonstração de
misericórdia:".. .o sábado foi feito por causa do homem" (Mc 2:27); e embora o homem
nunca o houvesse guardado, segundo o pensamento divino, isso não diminuiu a graça
que resplandece na sua instituição, nem o priva da sua profunda significação como figura
do repouso eterno que resta para o povo de Deus, ou sombra dessa substância a qual a
fé goza agora na Pessoa e Obra de um Cristo ressuscitado.
O leitor não deve supor, portanto, que o que tem sido dito, ou possa ser acentuado, nesta
linhas, tem por fim menosprezar, no mínimo, a provisão misericordiosa de um dia de
repouso para o homem e para a criação animal ou interferir com o lugar distinto que o Dia
do Senhor ocupa no Novo Testamento. Muito longe disso! Como homem, aprecio o
primeiro destes dias, e como cristão regozijo-me no último o bastante para não escrever
ou articular uma sílaba sequer em desabono quer de um quer do outro. Gostaria apenas
de pedir ao leitor para pesar, com imparcialidade, na balança das Escrituras, tudo que tem
sido afirmado, e não formar um juízo precipitadamente antecipado.
Este assunto será tratado outra vez, mais adiante, se o Senhor permitir. Entretanto,
procuraremos aprender a apreciar melhor o valor do repouso que o nosso Deus nos
preparou em Cristo, e gozar d'Ele como o nosso repouso, alimentando-nos d'Ele como "o
maná escondido" (Ap 2:17) e posto, no poder da ressurreição, no lugar santíssimo — o
memorial do que Deus fez por nós, vindo a este mundo, em Sua graça infinita, a fim de
que pudéssemos estar perante Ele, segundo as perfeições de Cristo, e nos alimentarmos
com as Suas riquezas inexauríveis para sempre.

— CAPITULO 17 —

REFIDIM

A Contenda do Povo com Moisés


"Depois, toda a congregação dos filhos de Israel partiu do deserto de Sim pelas suas
jornadas, segundo o mandamento do SENHOR, e acamparam em Refidim; e não havia ali
água para o povo beber. Então, contendeu o povo com Moisés, e disseram: Dá-nos água
para beber. E Moisés lhes disse: Por que contendeis comigo? Por que tentais ao
SENHORA"
Não conhecêssemos nós alguma coisa do mal humilhante de nossos corações e
ficaríamos embaraçados quanto à razão da insensibilidade espantosa de Israel para com
a bondade, a fidelidade e os atos poderosos do Senhor. Acabavam de ver cair pão do céu
para alimentar seiscentas mil pessoas no deserto, e ei-los agora, prontos a "apedrejar"
Moisés por os ter trazido para esse mesmo deserto, para os matar de sede. Nada pode
exceder a incredulidade terrível e maldade do coração humano senão a graça
superabundante de Deus. É só nessa graça que alguém pode encontrar alívio sob a
sensação, sempre crescente, da sua natureza perversa, que as circunstâncias tendem a
manifestar. Houvesse Israel sido transportado diretamente do Egito a Canaã, e não teria
sido feita uma tão triste exibição do que é o coração humano; e, como consequência, eles
não teriam sido exemplos ou figuras tão admiráveis para nós. De fato, os quarenta anos
de peregrinação no deserto oferecem-nos um volume de avisos, admoestações e
instruções úteis além de toda a concepção. Aprendemos, entre outras coisas, a
propensão constante do coração para suspeitar de Deus. Confia em tudo, menos em
Deus. Prefere apoiar-se numa teia de aranha em vez do braço do Deus onipotente, sábio
e generoso; e a mais pequena nuvem é mais que suficiente para ocultar da sua vista a luz
do Seu bendito rosto. É pois com razão que as Escrituras falam dele como sendo "mau e
infiel", sempre pronto para" se apartar do Deus vivo" (Hb 3:12).
É interessante notar as duas interrogações feitas pela incredulidade, neste capítulo e no
precedente. São precisamente idênticas àquelas que se levantam em nós e à nossa volta,
diariamente: "Que comeremos'?- E que beberemos?" (Mt 6:31). Não vemos que o povo
fizesse a terceira pergunta desta categoria, "com que nos vestiremos?" Porém, estas são
as interrogações do deserto: "O quê?" "Onde?" "Como?". A fé tem apenas uma resposta
compreensível para todas as três, a saber: DEUS! Que resposta perfeita e preciosa! Ah,
se o autor e o leitor destas linhas conhecessem perfeitamente o seu poder e a sua
plenitude! Necessariamente precisamos recordar, quando passamos pela provação, que
não vem sobre nós tentação senão humana, "mas, fiel é Deus, que vos não deixará tentar
acima do que podeis; antes, com a tentação dará também o escape, para que a possais
suportar" (1 Co 10:13). Sempre que somos postos à prova, podemos estar certos que,
com a prova, há também uma saída, e tudo que precisamos é uma vontade submissa ao
Senhor e um olhar simples para vermos a saída.

A Rocha Ferida
"E clamou Moisés ao SENHOR, dizendo: Que farei a este povo? Daqui a pouco me
apedrejarão. Então, disse o SENHOR a Moisés: Passa diante do povo e toma contigo
alguns dos anciãos de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com que feriste o rio, e vai.
Eis que eu estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horebe, e tu ferirás a rocha, e dela
sairão águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos anciãos de
Israel" (versículos 4 a 6). Assim tudo é suprido pela graça mais perfeita. Cada
murmuração ocasiona uma nova manifestação da graça. Aqui vemos como as águas
refrescantes jorraram da rocha ferida—uma ilustração formosa do Espírito dado como
fruto do sacrifício efetuado por Cristo. No capítulo 16 temos uma figura de Cristo
descendo do céu para dar vida ao mundo. O capítulo 17 mostra-nos uma figura do
Espírito Santo "derramado" em virtude da obra consumada de Cristo. "Porque bebiam da
pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" (1 Co 10:4). Mas quem poderia beber
antes da pedra ser ferida? Israel poderia ter contemplado essa rocha e morrer de sede ao
mesmo tempo que a contemplava, porque antes que fosse ferida pela vara de Deus não
podia dar refrigério. Isto é bem claro. O Senhor Jesus Cristo era o centro e base de todos
os desígnios de amor e misericórdia de Deus. Por Seu intermédio deveria correr toda a
bênção para o homem. As correntes da graça deviam emanar do "Cordeiro de Deus";
porém era necessário que o Cordeiro fosse morto—que a obra da cruz fosse um fato
consumado, antes que muitas destas coisas fossem realizadas. Foi quando a Rocha dos
séculos foi ferida pela mão de Jeová, que as comportas do amor eterno foram abertas de
par em par e os pecadores perdidos convidados pelo Espírito Santo a beber
abundantemente e livremente: "...O dom do Espírito Santo" é o resultado da obra
consumada pelo Filho de Deus sobre a cruz. "A promessa do Pai..." (Lc 24:49) não podia
ser cumprida antes que Cristo se assentasse à destra da Majestade nos céus, depois de
ha ver cumprido toda a justiça, respondido a todas as exigências da santidade,
engrandecido a lei tornando-a justa, suportado a ira de Deus contra o pecado, destruído o
poder da morte, e tirado à sepultura a sua vitória. Havendo feito todas estas coisas, subiu
ao alto, "levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens. Ora isto—ele subiu—que é,
senão que também, antes, tinha descido às partes mais baixas da terral Aquele que
desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as
coisas" (Ef 4:8-10).
Este é o verdadeiro fundamento da paz e da bem-aventurança e glória da Igreja, para
todo o sempre.

A Água da Rocha
Antes de a rocha ser ferida a corrente de bênção estava retida e o homem nada podia
fazer. Que poder humano poderia fazer brotar água da pederneira? E do mesmo modo,
podemos perguntar, que justiça humana poderia conseguir autorização para abrir as
comportas do amor divino?- Este é o verdadeiro modo de pôr à prova a competência do
homem. Não podia, por seus feitos, suas palavras ou sentimentos, prover um fundamento
para a missão do Espírito Santo.
Seja o que for ou faça o que puder, ele não pode fazer isto. Mas, graças a Deus, tudo
está consumado; Cristo terminou a obra; a verdadeira Rocha foi ferida, e as águas
refrescantes brotaram, de forma que as almas sedentas podem beber. "A água que eu lhe
der", diz Cristo, "se fará nele uma fonte de água que salte para ávida eterna" (Jo 4:14). E
mais adiante, lemos: "E, no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé, e
clamou, dizendo: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz
a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isto disse ele do Espírito, que
haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por
ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 7:37 - 39).
Assim como temos no maná uma figura de Cristo, de igual modo temos uma figura do
Espírito Santo na água brotando da rocha." Se tu conheceras o dom de Deus (Cristo)... tu
lhe pedirias, e ele te daria água viva" — quer dizer, o Espírito.
Tal é, portanto, o ensino ministrado à mente espiritual com a rocha ferida; todavia, o nome
do lugar no qual esta figura foi apresentada é um memorial perpétuo da incredulidade do
homem. "E chamou o nome daquele lugar Massa" (que quer dizer tentação) "e Meribá"
(que quer dizer murmurar) "por causa da contenda dos filhos de Israel, e porque tentaram
ao SENHOR, dizendo: Está o SENHOR no meio de nós, ou não?" (versículo 7). Levantar
uma tal interrogação, depois de tantas e repetidas garantias evidentes da presença de
Jeová, prova a incredulidade profundamente arraigada no coração humano. Era, de fato,
tentar o Senhor.
Foi assim também que os judeus, tendo a presença de Cristo com eles, pediram um sinal
do céu, tentando-o.
A fé nunca atua assim; crê na presença divina e goza dela, não por meio de um sinal,
mas pelo conhecimento que tem do próprio Deus. Conhece que Deus está presente para
gozar d'Ele. Que o Senhor nos conceda um espírito de verdadeira confiança n'Ele!

Amaleque
O ponto sugerido a seguir por este capítulo é de particular interesse para nós. "Então,
veio Amaleque e pelejou contra Israel em Refidim. Pelo que disse Moisés a Josué:
Escolhe-nos homens, e sai, peleja contra Amaleque: amanhã, eu estarei sobre o cume do
outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão" (versículos 8 e 9). O dom do Espírito
Santo conduz à luta. A luz reprime e luta com as trevas. Onde tudo é obscuridade não há
luta; porém a mais pequena luta indica a presença da luz: "...a carne cobiça contra o
Espírito, e o Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais
o que quereis" (Gl 5:17). Assim acontece com este capítulo: a rocha é ferida e as águas
brotam dela, e lemos imediatamente, "então veio Amaleque e pelejou contra Israel".
Esta é a primeira vez que Israel se vê em luta com um inimigo exterior. Até este momento
o SENHOR havia pelejado por eles, conforme lemos em capítulo 14: "O SENHOR
pelejará por vós e vos calareis". Porém, agora é dito: "Escolhe-nos homens". Em boa
verdade, Deus tem agora que lutar em Israel, assim como havia lutado por eles. E nisto
que está a diferença, quanto ao símbolo; e quanto ao antítipo, sabemos que existe uma
grande diferença entre os combates de Cristo por nós e a luta do Espírito Santo em nós.
Aqueles acabaram, bendito seja Deus, a vitória foi ganha, e uma paz gloriosa e eterna foi
alcançada. Esta, pelo contrário, continua ainda.
Faraó e Amaleque representam dois poderes ou influências diferentes: Faraó representa
o impedimento à libertação de Israel do Egito; Amaleque representa o estorvo á sua
caminhada com Deus pelo deserto. Faraó serviu-se das coisas do Egito para impedir
Israel de servir ao Senhor; por isso prefigura Satanás, que se serve "deste presente
século mau" (Gl 1:4) contra o povo de Deus. Amaleque, pelo contrário, é-nos apresentado
como o protótipo da carne. Era neto de Esaú, o qual preferiu um prato de lentilhas ao
direito de primogenitura (veja-se Gn 36:12), e foi o primeiro que se opôs ao avanço de
Israel depois do seu batismo "na nuvem e no mar" (1 Co 10:2). Estes fatos servem para
definir o seu caráter com grande distinção; e, além disso, sabemos que Saul foi deposto
do trono do reino de Israel em consequência de ter falhado em destruir Amaleque (1 Sm
15). E, mais descobrimos que Hamã é o último dos amalequitas de quem se fala nas
Escrituras. Foi enforcado, em consequência do seu pecaminoso atentado contra a
semente de Israel (veja-se Es 3:1). Nenhum amalequita podia entrar na congregação do
Senhor. E, finalmente, no capítulo que temos perante nós, o Senhor declara guerra
perpétua a Amaleque.
Todas estas circunstâncias podem ser consideradas como dando evidência concludente
do fato que Amaleque é uma figura da carne. A ligação entre o seu conflito com Israel e a
água correndo da rocha é a mais notável e instrutiva e está de perfeita harmonia com o
conflito do crente com a sua natureza pecaminosa; conflito este, que, como sabemos, é a
consequência de ele ter a nova natureza e o Espírito Santo habitar em si. A luta de Israel
começou logo que se acharam de posse da redenção e depois de haverem provado o
"manjar espiritual" e bebido "da pedra espiritual" (I Co 10:3-4). Antes de encontrarem
Amaleque nada tinham que fazer. Não contenderam com Faraó; não destruíram o poder
do Egito nem despedaçaram as cadeias da servidão; não dividiram o mar nem
submergiram as hostes de Faraó nas suas águas; não fizeram descer pão do céu, nem
tiraram água da pederneira. Não fizeram nem poderiam fazer nenhuma destas coisas;
porém agora são chamados para lutar com Amaleque. O conflito anterior tinha sido todo
entre Jeová e o inimigo. Eles apenas tiveram que estar "quietos" e contemplar os triunfos
poderosos do braço estendido do Senhor e gozar os frutos da vitória. O Senhor havia
lutado por eles; porém agora luta neles e por meio deles.

O Combate Contra Amaleque


Assim é também com a Igreja de Deus. As vitórias sobre as quais se baseiam a sua paz
eterna e bem-aventurança foram ganhas para ela por Cristo combatendo sozinho. Ele
esteve sozinho na cruz e só na sepultura. A Igreja teve de ficar de parte, pois como
poderia ela estar ali? Como poderia ela vencer Satanás, suportar a ira de Deus ou tirar à
morte o seu aguilhão? Era impossível. Estas coisas estavam fora do alcance dos
pecadores, mas não fora do alcance d'Aquele que veio para os salvar e que era o único
que podia levar sobre Seus ombros o peso poderoso de todos os seus pecados e tirar o
fardo para sempre por meio do Seu sacrifício, de forma que Deus o Espírito Santo,
emanando de Deus o Pai, em virtude da expiação efetuada pelo Deus Filho, pode fazer
morada na Igreja coletivamente e em cada um dos seus membros individualmente.
Ora é quando o Espírito Santo faz assim morada em nós, em consequência da morte e
ressurreição de Cristo, que começa o nosso conflito. Cristo combateu por nós; o Espírito
Santo luta em nós. O próprio fato de desfrutarmos este primeiro rico despojo da vitória
coloca-nos em conflito direto com o inimigo. Mas a nossa consolação é sabermos que
somos feitos vencedores mesmo antes de entrarmos no campo da luta. O crente entra na
peleja cantando "Graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo" (1
Co 15:57). Portanto, não combatemos como coisa incerta, batendo no ar, enquanto
procuramos subjugar o nosso corpo e reduzi-lo à servidão (1 Co 9:26-27)."... Somos mais
do que vencedores por Aquele que nos amou" (Rm 8:37). A graça em que nos apoiamos
toma a carne inteiramente desprovida de poder para dominar sobre ela em nós (veja
Romanos 6). Se a lei é "a força do pecado", a graça é a fraqueza da lei. A lei concede
poder ao pecado sobre nós; a graça dá-nos poder sobre o pecado.
"Pelo que disse Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai e peleja contra Amaleque;
amanhã, eu estarei sobre o cume do outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão. E
fez Josué como Moisés lhe dissera, pelejando contra Amaleque; mas Moisés, Arão e Hur
subiram ao cume do outeiro. E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão Israel
prevalecia; mas quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia. Porém as mãos
de Moisés eram pesadas; por isso, tomaram uma pedra, e a puseram debaixo dele, para
assentar-se sobre ela; e Arão e Hur sustentaram as suas mãos, um de um lado e o outro,
do outro; assim ficaram as suas mãos firmes até que o sol se pôs. E, assim Josué desfez
a Amaleque e ao seu povo ao fio de espada" (versículos 9 a 13).
Aqui temos duas coisas distintas, a saber: o combate e a intercessão. Cristo está nas
alturas por nós, enquanto o Espírito Santo conduza luta terrível em nós. Estas duas
coisas andam juntas. É na medida que compreendemos, pela fé, a eficácia da intercessão
de Cristo em nosso favor que fazemos frente (ou nos opomos) à nossa natureza
pecaminosa.

A Luta do Cristão Contra a Carne


Algumas pessoas procuram olvidar o fato do combate do cristão com a carne. Encaram a
regeneração como uma transformação completa ou renovação da velha natureza.
Segundo este princípio segue-se, necessariamente, que o crente não tem nada com que
lutar. Se a minha natureza é renovada, contra o que tenho de lutara Não há nada com
que lutar no íntimo, visto que a minha velha natureza está renovada, e nenhum poder
exterior pode prejudicar-me, porquanto não há nada que lhe corresponda no meu íntimo.
O mundo não possui atrativos para aquele cuja carne foi inteiramente transformada, e
Satanás não tem com que ou sobre que possa atuar. Pode dizer-se a todos aqueles que
sustém esta teoria que parece esquecerem o lugar que Amaleque ocupa na história do
povo de Deus. Tivesse Israel concebido a ideia que, uma vez destruídas as hostes do
Faraó, o seu conflito havia acabado, e teriam sido tristemente confundidos quando
Amaleque veio sobre eles. O fato é que o conflito deles começou só então. Assim é para
o crente, porque "... tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso
nosso" (1 Co 10:11). Porém não poderia haver nenhuma "figura" nem "aviso" em "tudo
isto" para aquele cuja velha natureza fosse feita de novo. Com efeito, uma tal pessoa teria
muito pouca necessidade de qualquer dessas provisões graciosas que Deus preparou no
Seu reino para aqueles que são os seus súbditos.
Somos ensinados claramente na Palavra de Deus que o crente traz consigo aquilo que
corresponde a Amaleque, a saber "a carne" — "o homem velho", a mente carnal (Rm 6:6;
8:7; Gl 5:17). Ora, se o cristão, sentindo os movimentos da sua velha natureza, começa
por pôr em dúvida se é cristão, não somente se torna a si próprio extremamente infeliz
como se priva das vantagens da sua posição diante do inimigo. A carne existe no crente e
estará nele até ao fim da sua carreira. O Espírito Santo reconhece inteiramente a sua
existência, como podemos ver em várias passagens do Novo Testamento. Em Romanos,
capítulo 6:12, lemos: "Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe
obedecerdes em suas concupiscências". Um tal preceito seria de todo descabido se a
carne não existisse no crente. Seria inoportuno dizer-nos para não deixarmos que o
pecado reinasse sobre nós, se o pecado não habitasse de fato em nós. Existe uma
grande diferença entre habitar e reinar. O pecado habita no crente, porém reina no
descrente.
Contudo, embora habite em nós, temos, graças a Deus, um princípio de poder sobre ele.
"Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas
debaixo da graça" (Rm 6:14). A mesma graça que, mediante o sangue da cruz, tirou o
pecado, garante-nos a vitória e dá-nos poder sobre o seu princípio de ação em nós.
Morremos para o pecado, e por isso o pecado não tem reivindicações sobre nós. "Aquele
que está morto está justificado do pecado". "Sabendo isto: que o nosso velho homem foi
com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos
mais ao pecado" (Rm 6:6-7). "E, assim, Josué desfez a Amaleque e a seu povo ao fio de
espada". Tudo foi vitória, e a bandeira de Jeová flutuou sobre as hostes triunfantes, tendo
a formosa e acalentadora inscrição "Jeová-nissi" — "o SENHOR é minha bandeira". A
certeza da vitória deve ser tão completa como a compreensão do perdão, visto que as
duas cosias são baseadas igualmente sobre o fato que Jesus morreu e ressuscitou. É no
poder deste fato que o crente goza de uma consciência purificada e subjuga o pecado em
si. A morte de Cristo havendo satisfeito todas as exigências de Deus quanto ao nosso
pecado, a Sua ressurreição torna-se a origem de poder em todos os pormenores da luta.
O Senhor morreu por nós e agora vive em nós. A sua morte dá-nos paz e a Sua
ressurreição dá-nos poder.

Cristo: o nosso Grande Intercessor


É edificante notar o contraste entre Moisés no cume do outeiro e Cristo no trono. As mãos
do nosso grande Intercessor nunca poderão estar pesadas. A Sua intercessão nunca
poderá vacilar. Ele vive sempre para interceder por nós (Hb 7:25). A sua intercessão é
incessante e eficaz. Havendo tomado o Seu lugar nas alturas, no poder da justiça divina,
o Senhor atua por nós, segundo o que Ele é e conforme a perfeição infinita do que fez. As
Suas mãos nunca poderão abaixar, nem pode ter necessidade de alguém para as suster.
A perfeição da Sua advocacia está baseada sobre o Seu perfeito sacrifício. Apresenta-nos
perante Deus, vestidos das Suas próprias perfeições, de forma que, embora tenhamos
que cobrir sempre o nosso rosto com o pó, com o sentimento daquilo que somos, o
Espírito só pode testemunhar perante nós daquilo que o Senhor é perante Deus e daquilo
que nós somos n'Ele. Não estamos na carne, mas no Espírito (Rm 8:9). Estamos no
corpo, quanto ao fato da nossa condição; mas não estamos na carne, quanto ao princípio
da nossa posição. Além disso, a carne está em nós, apesar de estarmos mortos para ela;
mas não estamos na carne, porque estamos vivos com Cristo.
Notemos também que Moisés tinha a vara de Deus com ele no outeiro — a vara com que
havia ferido a rocha. Esta vara era a expressão ou símbolo do poder de Deus, o qual é
visto igualmente na expiação e na intercessão. Quando a obra de expiação foi cumprida,
Cristo tomou o Seu lugar no céu e enviou o Espírito Santo para fazer a Sua morada na
Igreja; de forma que existe uma ligação inseparável entre a obra de Cristo e a obra do
Espírito. Em cada uma delas é feita a aplicação do poder de Deus.

— CAPÍTULO 18 —

O JUDEU, O GENTIO
E A IGREJA DE DEUS

Chegamos agora ao fim de uma parte verdadeiramente notável do Livro de Êxodo. Vimos
como Deus, no exercício da Sua perfeita graça, visitou e redimiu o Seu povo, tirando-o da
terra do Egito e livrando-o primeiro da mão do Faraó e depois da mão de Amaleque.
Demais, vimos no maná um símbolo de Cristo descendo do céu; e na rocha uma figura de
Cristo ferido pelo Seu povo; e na água que brotava da rocha um símbolo do Espírito
Santo. Então segue-se, em ordem notável e formosa, uma figura da glória vindoura,
dividida nas suas três partes principais, a saber: Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus.
Durante a época de rejeição de Moisés pelos seus irmãos, ele foi posto de parte e
favorecido com uma noiva — a companheira da sua rejeição. No princípio deste livro
fomos levados a ver o caráter da relação de Moisés com esta esposa. Foi para ela
"esposo sanguinário" . Isto é precisamente o que Cristo é para a Igreja. A sua união com
Ele é baseada na morte e ressurreição; e ela é chamada à comunhão dos Seus
sofrimentos. É, como sabemos, durante a época da incredulidade de Israel, e da rejeição
de Cristo, que a Igreja é formada; e quando estiver completa, segundo os desígnios de
Deus e houver entrado nela a plenitude dos gentios (Rm 11:25), Israel entrará outra vez
em cena.
Assim foi com Zípora e o antigo Israel. Moisés enviara-a para junto de seu sogro durante
o perigo da sua missão junto de Israel; e logo que este saiu como povo inteiramente livre,
lemos que "Jetro, sogro de Moisés, tomou a Zípora, a mulher de Moisés, depois que ele
lha enviara, com seus dois filhos, dos quais um se chamava Gérson; porque disse: Eu fui
peregrino em terra estranha; e o outro se chamava Eliezer, porque disse: O Deus de meu
pai foi minha ajuda e me livrou da espada de Faraó. Vindo, pois, Jetro, o sogro de Moisés,
com seus filhos e com sua mulher a Moisés no deserto ao monte de Deus, onde se tinha
acampado, disse a Moisés: Eu, teu sogro Jetro, venho a ti, com tua mulher e seus dois
filhos com ela. Então, saiu Moisés ao encontro de seu sogro, e inclinou-se, e beijou-o, e
perguntaram um ao outro como estavam, e entraram na tenda. E Moisés contou a seu
sogro todas as coisas que o SENHOR tinha feito a Faraó e aos egípcios por amor de
Israel, e todo o trabalho que passaram no caminho, e como o SENHOR os livrara. E
alegrou-se Jetro de todo o bem que o SENHOR tinha feito a Israel, livrando-o da mão dos
egípcios. E Jetro disse: Bendito seja o SENHOR, que vos livrou das mãos dos egípcios e
da mão de Faraó; que livrou a este povo de debaixo da mão dos egípcios. Agora sei que
o SENHOR é maior que todos os deuses: porque na coisa em que se ensoberbeceram,
os sobrepujou. Então, tomou Jetro, o sogro de Moisés, holocaustos e sacrifícios para
Deus; e veio Arão, e todos os anciãos de Israel, para comerem pão com o sogro de
Moisés diante de Deus" (versículos 2 a 12).
Esta cena é profundamente interessante. Toda a congregação se reuniu, em triunfo,
perante o Senhor: o gentio apresentou sacrifícios, e, para completar o quadro, a esposa
do libertador juntamente com os filhos que Deus lhe havia dado, são introduzidos. É, em
resumo, uma ilustração particularmente admirável do reino vindouro.
"O Senhor dará graça a glória" (SI 84:11). Vimos nas páginas anteriores deste livro muito
da operação da "graça"; e aqui temos um quadro formoso de "glória" da autoria do
Espírito Santo—um quadro que deve ser considerado particularmente importante por nos
mostrar as várias esferas em que será manifestada essa glória.
"Os judeus, os gentios e a Igreja de Deus" são termos bíblicos que nunca poderão ser
esquecidos sem transtornar o curso perfeito da verdade que Deus revelou na Sua
Palavra. Existiram sempre desde que o mistério da Igreja foi inteiramente desenrolado
pelo ministério do apóstolo Paulo e existirão através do milênio. Por isso, devem ter lugar
na mente de todo o estudante espiritual da Escritura Sagrada.
O apóstolo ensina-nos, claramente, na sua Epístola aos Efésios, que o mistério da Igreja
não foi dado a conhecer noutros séculos aos filhos dos homens como lhe fora revelado a
ele. Mas, embora não houvesse sido diretamente revelado, acha-se representado em
figura de uma maneira ou de outra; como, por exemplo, no casamento de José com uma
mulher egípcia e no casamento de Moisés com uma mulher da Etiópia (uma mulher
cusita; Nm 12:1) O tipo ou sombra de uma verdade é uma coisa muito diferente de uma
revelação direta e positiva da mesma verdade. O grande mistério da Igreja não foi
revelado até que Cristo, em glória celestial, o revelou a Saulo de Tarso. Por isso, todos
aqueles que procuram o desenrolar deste mistério na lei, nos profetas ou nos Salmos,
achar-se-ão ocupados em labor ininteligente. Quando, contudo, o encontram revelado
claramente na Epístola aos Efésios, podem, com interesse e proveito, traçar os seus
símbolos nas Escrituras do Velho Testamento.
Deste modo, temos nos primeiros versículos deste capítulo uma cena milenial. Todas as
esferas de glória se abrem em visão perante nós. "Os judeus" estão aqui como as
grandes testemunhas na terra da fidelidade, da misericórdia e do poder de Jeová. E isto
precisamente que os judeus foram em séculos passados, é o que são atualmente e o que
serão para sempre. "O gentio" lê no livro dos desígnios de Deus quanto aos judeus as
suas mais profundas lições. Segue a história maravilhosa desse povo peculiar e eleito —
"um povo terrível desde o seu princípio" (Is 18:2). Vê tronos e impérios derrubados e
nações destruídas até os seus fundamentos, todo o homem e todas as coisas são
compelidas a abrir caminho para que seja estabelecida a supremacia desse povo sobre o
qual Deus pôs o Seu afeto. "Agora sei que o SENHOR é maior que todos os deuses;
porque na coisa em que se ensoberbeceram, os sobrepujou" (versículo 11); é o
testemunho de um gentio quando a página da história judaica está aberta perante si.
Por fim, "a Igreja de Deus" coletivamente, como é ilustrada por Zípora, e os seus
membros individualmente, conforme os vemos em figura nos filhos de Zípora, são
apresentados como ocupando a mais íntima ligação com o libertador. Tudo isto é perfeito
na sua ordem. Se nos pedirem provas, responderemos: "Falo como a entendidos, julgai
vós mesmos o que digo" (1 Co 10:15).
Não pode fundar-se uma doutrina sobre um símbolo; porém, quando uma doutrina é
revelada, pode discernir-se o símbolo dela com exatidão e estudá-la com proveito. Em
todos os casos o discernimento espiritual é essencialmente necessário, quer seja para
compreender a doutrina quer para discernir o símbolo: "...o homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (I Co 2:14).

Chefes para a Administração


Desde o versículo 13 até ao fim do capítulo fala-se da nomeação de chefes para
ajudarem Moisés na administração dos negócios da congregação. Isto foi feito por
sugestão de Jetro, que temia que Moisés desfalecesse totalmente em consequência do
seu trabalho. Em relação com este fato, pode ser útil considerar a nomeação dos setenta
anciãos em Números, Capítulo 11. Vemos ali o espírito de Moisés esmagado sob o peso
da responsabilidade que pesava sobre si, e dá lugar à angústia do seu coração nas
seguintes palavras: "Por que fizeste mal a teu servo, e por que não achei graça aos teus
olhos, que pusesses sobre mim a carga de todo este povo*?- Concebi eu, porventura,
todo este povo?- Gerei-o eu, para que me dissesses que o levasse ao colo, como o aio
leva o que cria, à terra que juraste a seus pais?.. .Eu sozinho não posso levar a todo este
povo, por que muito pesado é para mim. E, se assim fazes comigo, mata-me, eu te peço,
se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes ver o meu mal" (Nm 11:11-15).
Em todo este caso vemos como Moisés se retira de um lugar de honra. Se aprouve a
Deus fazer dele o único instrumento da administração da Assembleia, isso foi para ele
uma maior honra e um alto privilégio. É verdade que era uma grande responsabilidade;
porém a fé teria reconhecido que Deus era amplamente suficiente para tudo. Todavia,
Moisés perde o ânimo (servo abençoado como era) e diz, "eu sozinho não posso levar
todo este povo, porque muito pesado é para mim. Mas ele não fora incumbido de levar
todo o povo sozinho, porque Deus estava consigo. O povo não era demasiado pesado
para Deus; era Ele que os suportava. Moisés era apenas o instrumento. Da mesma forma
poderia ter dito que a sua vara levava o povo, porque o que era ele senão um simples
instrumento nas mãos de Deus, da mesma forma que a vara o era nas suas? E neste
ponto que os servos de Cristo falham constantemente; e a sua falta é tanto mais perigosa
quanto é certo que se reveste da aparência de humildade. Fugir de uma grande
responsabilidade dá a impressão de falta de confiança pessoal e de uma profunda
humildade de espírito; porém, tudo que nos interessa saber é se Deus tem imposto essa
responsabilidade. Sendo assim, Ele estará incontestavelmente conosco no seu
desempenho; e, com a Sua companhia, podemos suportar todas as coisas. Com o
Senhor o peso de uma montanha não é nada; sem Ele o peso de uma simples pena é
esmagador. É uma coisa muito diferente se um homem, na vaidade do seu espírito, se
apressa em tomar um fardo sobre os seus ombros, um fardo que Deus nunca teve
intenção de ele levar, e, portanto, nunca o dotara para o conduzir; podemos, portanto,
esperar vê-lo esmagado sob o peso. Porém, se é Deus que põe sobre ele esse fardo, Ele
torna-o não só apto a conduzi-lo como lhe dá as forças necessárias.
O Ensinamento para o Servo de Cristo
O abandono de um posto divinamente indicado nunca é o fruto de humildade. Pelo
contrário, a mais profunda humildade manifestar-se-á na permanência nesse posto em
simples dependência de Deus. Quando recuamos ante algum serviço sob o fundamento
de inaptidão é uma prova segura de estarmos ocupados com o ego — com nós próprios.
Deus não nos chama para o serviço com base na nossa capacidade, mas, sim, na Sua;
por isso, a menos que esteja ocupado com pensamentos a meu respeito ou com
desconfiança n'Ele, não preciso abandonar qualquer posição de serviço ou testemunho
por causa das muitas dificuldades relacionadas com ela. Todo o poder pertence a Deus, e
é o mesmo quer esse poder atue por meio de um só instrumento ou mediante setenta; o
poder é ainda o mesmo: contudo, se um instrumento recusa o cargo, tanto pior é para ele.
Deus não obrigará ninguém a ocupar um lugar de honra, se não confiar em Si para o
manter nele. O caminho está sempre aberto para poder descer do seu cargo e lançar-se
no lugar onde a vil incredulidade quer colocar-nos.
Aconteceu assim com Moisés: queixou-se do fardo que devia levar, e o fardo foi
imediatamente removido; porém com ele foi tirada também a grande honra de poder levá-
lo. "E disse o SENHOR a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, de
quem sabes que são anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da
congregação, e ali se porão contigo. Então, eu descerei, e ali falarei contigo, e tirarei do
Espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão o cargo do povo, para
que tudo sozinho o não leves" (Nm 11:16-17). Nenhum novo poder foi introduzido. Era o
mesmo Espírito, que fosse num ou em setenta. Não havia mais valor ou virtude na
natureza de setenta homens do que na de um só homem. "O Espírito é o que vivifica; a
carne para nada aproveita" (Jo 6:63). Nada se ganhou, quanto ao poder, mas Moisés
perdeu muito da sua dignidade.
Na segunda parte do capítulo onze de Números vemos como Moisés profere palavras de
incredulidade, as quais lhe valeram uma severa reprimenda da parte do Senhor. "Seria
pois encurtada a mão do SENHORA Agora verás se a minha palavra te acontecerá ou
não" (versículo 23). Se o leitor comparar os versículos 11 a 15 com os versículos 21 e 22,
verá que existe uma relação solene e clara. O homem que recua perante a
responsabilidade, com fundamento na sua própria fraqueza, corre grande perigo de pôr
em dúvida a suficiência e plenitude dos recursos de Deus.
Esta cena ensina uma lição muito preciosa para todo o servo de Cristo que possa ser
tentado a sentir-se só ou sobrecarregado com o seu trabalho. Convém que um tal servo
se lembre que, onde o Espírito Santo está operando um só instrumento é tão bom e eficaz
como setenta instrumentos; e onde Ele não opera, setenta não têm mais valor do que um
só. Tudo depende da energia do Espírito Santo. Com Ele um só homem pode fazer tudo,
sofrer tudo e suportar tudo.
Sem Ele setenta homens nada podem fazer. Que o servo solitário se recorde, para
conforto e ânimo do seu coração fatigado, que, contanto que tenha consigo a presença e
poder do Espírito Santo, não tem motivo para queixar-se da sua carga nem de suspirar
por diminuição do seu trabalho. Se Deus honra um homem dando-lhe muito trabalho a
fazer, regozije-se o tal no seu trabalho e não murmure; porque se murmurar pode perder
rapidamente a sua honra. Deus não tropeça com dificuldades quando se trata de achar
instrumentos. Até das pedras podia levantar filhos a Abrão, e pode suscitar de essas
mesmas pedras os instrumentos necessários para o cumprimento da sua obra gloriosa.
Ah! quem tivera um coração mais disposto a servi-Lo! Um coração paciente, humilde,
consagrado e despido de si mesmo! Um coração pronto a servir com outros e disposto a
servir só; um coração cheio de tal maneira de amor por Cristo, que encontra o seu gozo
—o seu maior gozo—em servi-Lo, seja em que esfera for e qualquer que seja o caráter do
serviço. Esta é certamente a necessidade especial dos dias em que nos caiu a nossa
sorte. Que o Espírito Santo desperte em nossos corações um sentimento mais profundo
da preciosidade excelente do nome de Jesus e nos habilite a dar uma resposta mais
clara, completa e inequívoca ao amor imutável de Seu coração!

— CAPITULO 19 —

ISRAEL
AO PÉ DO MONTE SINAI

O Pacto da Graça
Eis-nos agora chegados a um ponto muito importante na história de Israel. O povo fora
conduzido ao pé do "monte palpável, acesso em fogo" (Hb 12:18). A cena de glória
milenial, que nos apresenta o capítulo anterior, desaparecera. Fora apenas um momento
breve de sol durante o qual fora proporcionada uma viva imagem do reino; porém o sol
desvaneceu-se rapidamente e grossas nuvens amontoaram-se sobre esse "monte
palpável", onde Israel, num espírito funesto e insensível de legalismo, abandonou o pacto
de graça de Jeová pela aliança das obras do homem. Impulso fatal! Que foi seguido dos
resultados mais funestos. Até aqui, como temos visto, nenhum inimigo pôde subsistir
diante de Israel — nenhum obstáculo pôde deter a sua marcha vitoriosa. Os exércitos de
Faraó haviam sido destruídos; Amaleque e o seu povo haviam sido passados a fio de
espada: tudo fora vitória, porque Deus interviera a favor do Seu povo, em conformidade
com as promessas que fizera a Abraão, Isaque e Jacó.
Nos primeiros versículos do capítulo que temos perante nós, o Senhor resume de uma
maneira tocante aquilo que tem feito por Israel: "Assim falarás à casa de Jacó e
anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei
sobre asas de águias, e vos trouxe a mim; agora, pois, se diligentemente ouvirdes a
minha voz, e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar de
entre todos os povos; porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e
o povo santo" (versículos 3 a 6). Note-se que o Senhor disse: "a minha voz" e "o meu
concerto". Que dizia essa "voz" e que implicava esse "concerto"? A voz de Jeová tinha-se
feito ou vir para impor as leis e as ordenações de um legislador severo e inflexível? De
modo nenhum. Falou para dar liberdade aos cativos—para prover um refúgio da espada
do destruidor—,para preparar um caminho para que os remidos pudessem passar, para
fazer descer pão do céu, para fazer brotar água da rocha. Tais foram as expressões
graciosas e inteligíveis da "voz" do Senhor até ao momento em que Israel acampou
defronte do monte.
Quanto ao Seu "concerto" era um concerto de pura graça. Não impunha condições, não
podia nada, não punha nenhum fardo sobre os ombros nem jugo no pescoço. Quando "o
Deus da glória apareceu" a Abrão em Ur dos caldeus (At 7:2), de certo que não lhe disse
"farás isto" e "não farás aquilo". Oh! não; uma tal linguagem não seria segundo o coração
de Deus. Ele prefere muito mais pôr uma mitra limpa sobre a cabeça do pecador do que
pôr um jugo de ferro sobre o seu pescoço (Zc 3:5; Dt 28:48). A Sua palavra a Abraão foi:
"DAR-TE-EI". A terra de Canaã não podia ser adquirida pelas obras do homem, mas
devia ser dada pela graça de Deus. Assim era; e, no princípio do livro do Êxodo vemos
Deus descendo em graça para cumprir a Sua promessa aos descendentes de Abrão. O
estado em que encontrou essa posteridade não importava, tanto mais que o sangue do
cordeiro Lhe dava um fundamento perfeitamente justo para realizar a Sua promessa.
Evidentemente não havia prometido a terra de Canaã à posteridade de Abrão com base
em qualquer coisa que houvesse antevisto neles, porque isto teria destruído a verdadeira
natureza de uma promessa. Em tal caso teria sido um pacto e não uma promessa: "ora as
promessas foram feitas a Abraão", não por um pacto (veja-se Gálatas 3).
Por isso, no princípio desse capítulo 19, faz-se lembrar ao povo a graça com que o
Senhor havia tratado com eles até ali, e recebem também a garantia daquilo que ainda
hão-de ser, contanto que continuem a atender a "voz" celestial de misericórdia e a
permanecer no "pacto" de graça. "Sereis a minha propriedade peculiar de entre todos os
povos". Como podiam eles conseguir isto? Podiam consegui-lo aos tropeções pela
escada da própria justiça e do legalismo? Seriam uma "propriedade peculiar" quando
amaldiçoados pelas maldições de uma lei transgredida—violada antes mesmo de a
haverem recebido? Seguramente que não. Logo, como ia ser esta "propriedade peculiar"?
Permanecendo naquela posição em que o Senhor os viu quando obrigou o profeta
ambicioso a exclamar: "Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas as tuas moradas,
ó Israel! Como ribeiros se estendem, como jardins ao pé dos rios; como árvores de
sândalo o SENHOR a plantou, como cedros junto às águas. De seus baldes manarão
águas, e a sua semente estará em muitas águas; e o seu rei se exalçará mais do que
Agague, e o seu reino será levantado. Deus o tirou do Egito; as suas forças são como as
do unicórnio; consumirá as gentes, seus inimigos, e quebrará seus ossos, e com as suas
setas os atravessará" (Nm 24:5 - 8).

Um Compromisso Presunçoso
Contudo, Israel não estava disposto a ocupar esta posição. Em vez de se regozijarem
com "a santa promessa" de Deus, aventuraram-se a tomar o voto mais presunçoso que
lábios humanos podiam pronunciar. "Então, todo o povo respondeu a uma voz e disse:
Tudo o que o SENHOR tem falado faremos" (versículo 8). Esta linguagem era ousada.
Não disseram, "esperamos fazer" ou "procuraremos fazer" o que o Senhor disser; o que
teria mostrado certo grau de desconfiança em si mesmos. Mas não: pronunciaram-se da
maneira mais absoluta: "Faremos". Nem tampouco isto era a linguagem de alguns
espíritos presunçosos, cheios de confiança em si mesmos que presumiam representar
toda a congregação. Não; "Todo o povo respondeu a uma voz". Abandonaram unânimes
a "santa promessa" —o "concerto santo."
E agora, veja-se o resultado. Logo que Israel pronunciou o seu "voto" singular, assim que
decidiu "fazer" tudo o que o Senhor mandasse, deu-se uma mudança no aspecto das
coisas. "E disse o SENHOR a Moisés: Eis que eu virei a ti numa nuvem espessa... e
marcarás limites ao povo em redor, dizendo: Guardai-vos, que não subais o monte, nem
toqueis o seu termo; todo aquele que tocar o monte certamente morrerá". Vemos nesta
passagem uma mudança notável: Aquele que acabava de dizer,"... vos levei sobre asas
de águias e vos trouxe a mim", agora oculta-Se "numa nuvem espessa" e diz: "Marcarás
limites ao povo em redor". Os acentos agradáveis de graça são trocados pelos "trovões e
relâmpagos" do monte fumegante. O homem havia ousado falar das suas miseráveis
obras na presença da magnificente graça de Deus. Israel dissera: "Faremos", e portanto é
preciso que sejam postos à distância de forma a poder verse claramente o que é que
podem fazer. Deus toma o lugar de distância moral; e o povo não pensa de modo nenhum
em encurtá-la, porque todos estão cheios de temor e tremendo; e não era de admirar,
porque a visão era; "terrível" — tão terrível que "Moisés disse: Estou todo assombrado e
tremendo (Hb 12:25). Quem poderia suportar a vista desse "fogo consumidor", que era a
justa expressão da santidade divinal "...O SENHOR veio de Sinai, e lhes subiu de Seir;
resplandeceu desde o monte Para, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia
para eles o fogo da lei" (Dt 33:2). O termo "fogo", aplicado à lei, mostra a sua santidade.
"O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29) — que não transige com o mal em
pensamento, palavras ou ações.
Desta forma, pois, Israel cometeu um erro fatal em dizer, "faremos". Isto era fazer um voto
que não podiam, ainda mesmo que quisessem, cumprir; e nós conhecemos aquele que
disse "melhor é que não votes do que votes e não pagues" (Ec 5:5). O próprio caráter do
voto implica a competência de o cumprir; e onde está a competência do homem?- Para
um pecador desamparado fazer um voto, seria o mesmo que um homem falido passar um
cheque sobre um banco. Aquele que faz um voto nega a verdade quanto à sua própria
condição e natureza. Está arruinado, que poderá fazer?-Encontra-se inteiramente sem
forças, e não pode querer nem fazer nada bom. Israel cumpriu o seu voto?- Fizeram tudo
que o Senhor lhes havia mandado? O bezerro de outro, as tábuas feitas em pedaços, o
sábado profanado, as ordenações menosprezadas e abandonadas, os mensageiros de
Deus apedrejados, o Cristo rejeitado e crucificado, e a resistência ao Espírito, são provas
esmagadoras de como o homem violou os seus votos. Acontecerá assim sempre que a
humanidade caída fizer votos.
Não se regozija o leitor cristão no fato de que a sua salvação eterna não descansa sobre
os seus miseráveis votos e resoluções, mas sim sobre a "oblação do corpo de Jesus
Cristo, feita uma vez"? (Hb 10:10). Oh, sim, é sobre este fato que está fundado o nosso
gozo, que nunca pode falhar. Cristo tomou todos os nossos votos sobre Si Mesmo e
cumpriu-os gloriosamente para todo o sempre. A Sua vida de ressurreição corre nos Seus
membros e produz neles resultados que os votos e as exigências da lei não podiam
produzir. Ele é a nossa vida e a nossa justiça. Que o Seu nome seja precioso para os
nossos corações e que a Sua causa domine sempre a nossa vida. Que a nossa comida e
a nossa bebida seja gastar e gastarmo-nos no Seu glorioso serviço.
Não posso terminar este capítulo sem mencionar uma passagem do Livro de
Deuteronômio, que pode oferecer alguma dificuldade para certos espíritos e que se
relaciona com o assunto que acabamos de tratar. "Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das
vossas palavras, quando me faláveis a mim, o SENHOR me disse-. Eu ouvi a voz das
palavras deste povo, que te disseram; em tudo falaram eles bem" (Dt 5:28). Poderia
parecer, segundo estas palavras, que o Senhor aprovava que eles tivessem feito um voto;
porém, se o leitor se der ao trabalho de ler todo o contexto, desde o versículo 24 ao
versículo 27, verá imediatamente que não se trata de um voto, mas da expressão do seu
terror por causa das consequências do seu voto. Não podiam suportar aquilo que lhes era
ordenado. "Se ainda mais ouvíssemos a voz do SENHOR, nosso Deus, morreríamos.
Porque, quem há, de toda a carne, que ouviu a voz do Deus vivente falando do meio do
fogo, como nós, e ficou vivo? Chega-te tu, e ouve tudo o que disser o SENHOR nosso
Deus; e tu nos dirás tudo o que te disser o SENHOR nosso Deus, e o ouviremos, e o
faremos". Era esta a confissão da sua incapacidade para se encontrarem com o Senhor
sob o aspecto terrível a que o seu legalismo orgulhoso os havia levado. É impossível que
o Senhor possa aprovar o abandono de graça imutável por um fundamento movediço de
"obras da lei".

— CAPÍTULO 20 —

A LEI

A Lei e a Graça
É da maior importância compreender o verdadeiro caráter e o objeto da lei moral, como
nos é apresentada neste capítulo. Existe uma tendência no homem para confundir os
princípios da lei com graça, de sorte que nem a lei nem a graça podem ser perfeitamente
compreendidas. Alei é despojada da sua austera e inflexível majestade, e a graça é
privada de todos os seus atrativos divinos. As santas exigências de Deus ficam sem
resposta, e as profundas e múltiplas necessidades do pecador permanecem insolúveis
pelo sistema anômalo criado por aqueles que tentam confundir a lei com a graça. Com
efeito, nunca podem confundir-se, visto que são tão distintas quanto o podem ser duas
coisas. Alei mostra-nos o que o homem deveria ser; enquanto que a graça demonstra o
que Deus é. Como poderão, pois, ser unidas num mesmo sistema?- Como poderia o
pecador ser salvo por meio de um sistema formado em parte pela lei e em parte pela
graça? Impossível: ele tem de ser salvo por uma ou por outra.
A lei tem sido às vezes chamada "a expressão do pensamento de Deus". Mas esta
definição é inteiramente inexata.. Se a considerássemos como a expressão daquilo que o
homem deveria ser, estaríamos mais perto da verdade. Se eu considerar os dez
mandamentos como a expressão do pensamento de Deus, então, pergunto, não há nada
mais no pensamento de Deus senão "farás" isto e "não farás" aquilo? Não há graça, nem
misericórdia nem bondade? Deus não manifestará aquilo que é, nem revelará os
segredos profundos desse amor que enche o Seu coração? Não existe nada mais no
coração de Deus senão exigências e proibições severas"? Se fosse assim, teríamos de
dizer que "Deus é lei" em vez de dizermos que" Deus é amor". Porém, bendito seja o Seu
nome, existe muito mais em Seu coração do que jamais poderão expressar os "dez
mandamentos" pronunciados no monte fumegante. Se quero saber o que Deus é, devo
olhar para Cristo; "porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl
2:9). "Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo" (Jo
1:17). Certamente, na lei achava-se uma certa medida de verdade; continha a verdade
quanto àquilo que o homem deveria ser. Como tudo que emana de Deus, a lei era perfeita
— perfeita para alcançar o fim a que era destinada; porém esse fim não era, de modo
nenhum, revelar, perante pecadores culpados, a natureza e o caráter de Deus. Não havia
graça nem misericórdia. "Quebrantando alguém a lei de Moisés, morre sem misericórdia"
(Hb 10.28). "O homem que fizer estas coisas viverá por elas" (Lv 18:5; Rm 10:5). "Maldito
todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei,
para fazê-las" (Dt 27:26; Gl 3:10). Nada disto era graça. Com efeito, o monte Sinai não
era o lugar para se procurar tal coisa. Jeová revelou-Se ali em majestade terrível, no meio
da obscuridade, trevas, tempestade, trovões e relâmpagos. Estas circunstâncias não são
aquelas que acompanham uma dispensação de graça e misericórdia; mas eram próprias
de uma dispensação de verdade e justiça: e a lei não era mais que isso.
Na lei Deus declara o que o homem deveria ser, e pronuncia a maldição sobre ele se o
não for. Ora quando o homem se examine à luz da lei descobre que é precisamente
aquilo que a lei condena. Como poderá ele, portanto, obter a vida por meio da lei? A lei
propõe a vida e a justiça como os fins a alcançar, guardando-a; mas mostra-nos, desde o
primeiro momento, que nos encontramos num estado de morte e iniquidade. Precisamos
desde o primeiro momento das mesmíssimas coisas que a lei propõe alcançar-nos no fim.
Como vamos nós, portanto, obtê-las? Para cumprir aquilo que a lei requer é preciso que
eu tenha vida; e para ser o que a lei exige devo possuir a justiça; e se eu não tiver vida e
justiça sou "maldito". Porém, o fato é que eu não tenho uma nem a outra. Que devo então
fazer? Eis a questão. Que respondam aqueles que querem ser "doutores da lei" (1 Tm
1.7): que deem uma resposta própria para uma consciência reta, curvada sob o sentido
duplo da espiritualidade e inflexibilidade da lei e a sua carnalidade desesperada.

O Propósito da Lei
A verdade é que, como nos ensina o apóstolo, a lei veio para que a ofensa abundasse
(Rm 5:20). Isto mostra-nos claramente o verdadeiro objetivo da lei: veio a propósito para
que o pecado se fizesse excessivamente maligno (Rm 7:13). Era, em certo sentido, como
um espelho perfeito enviado para revelar ao homem o seu desarranjo moral. Se eu me
puser diante de um espelho com o meu vestuário desarranjado, o espelho mostra-me o
desarranjo, mas não o põe em ordem. Se eu fizer descer sobre um muro tortuoso um
prumo, o prumo mostra a tortuosidade, mas não a altera. Se eu sair numa noite escura
com uma luz, esta revela-me todos os obstáculos e dificuldades que se acham no
caminho, mas não os remove. Além disso, o espelho, o prumo, e a luz não criam os males
que revelam distintamente: nem os criam nem os afastam, apenas os revelam. O mesmo
acontece com a lei: não cria o mal no coração do homem nem tampouco o tira; mas
revela-o com infalível exatidão.
"Que diremos pois? É a lei pecado?- De modo nenhum; mas eu não conheci o pecado
senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: Não
cobiçarás" (Rm 7:7). O apóstolo não diz que não teria tido "concupiscência". Não, mas
apenas que não a teria conhecido. A "concupiscência" existia; mas ele estava às escuras
quanto ao fato, até que a lei, como a luz do Deus Onipotente, brilhou nos recessos
tenebrosos do seu coração e revelou o mal que nele havia Assim como um homem numa
câmara escura pode estar rodeado de poeira e confusão sem contudo poder ver nada por
causa da escuridão. Mas deixai que os raios de sol penetrem ali e ele distinguirá
imediatamente tudo. São os raios de sol que formam o pó? Certamente que não. O pó
encontra-se ali, e os raios de sol apenas o detectam e revelam. Isto é apenas uma
simples ilustração dos efeitos da lei: julga o caráter e a condição do homem. Julga o
pecador e encerra-o debaixo da maldição: vem para julgar o que ele é e amaldiçoa-o se
ele não é o que ela lhe diz que deve ser.

A Lei Condena o Pecador


É, portanto, claramente impossível que alguém possa obter a vida e a justificação por
meio daquilo que só pode amaldiçoá-lo; e a menos que a condição do pecador e o caráter
da lei sejam inteiramente alterados, a lei não pode fazer mais que amaldiçoá-lo. A lei não
é indulgente com as fraquezas, e não reconhece a obediência sincera, embora imperfeita.
Se fosse este o caso, não seria aquilo que é, "santa, justa e boa" (Rm 7:12). É justo que o
pecador não possa obter vida pela lei porque a lei é aquilo que é. Se o pecador pudesse
obter vida pela lei, a lei não seria perfeita, ou então ele não seria pecador. É impossível
que o pecador possa obter vida por meio de uma lei perfeita, porque, embora seja
perfeita, tem de condená-lo: a sua perfeição absoluta manifesta e sela a ruína e
condenação do homem. "Por isso, nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras
da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado" (Rm 3:20). O apóstolo não diz que
o pecado é pela lei, mas somente que por ela vem o conhecimento do pecado. "Porque
até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado não havendo lei" (Rm
5:13). O pecado existia, e precisava apenas da lei para o manifestar na forma de
"transgressão". É como se eu dissesse a meu filho: "não deves tocar nessa faca". A
minha proibição revela a tendência do seu coração para fazer a sua própria vontade.
O apóstolo João diz que o "o pecado é iniquidade" (1 Jo 3:4). A palavra "transgressão"
não traduz o verdadeiro pensamento do Espírito Santo nesta passagem (1). Para que
haja transgressão é necessário que seja estabelecida uma regra ou linha de conduta
definida; porque transgressão quer dizer cruzar uma linha proibida; essa linha temo-la na
lei. Tomemos por exemplo algumas das suas proibições: "Não matarás", "Não cometerás
adultério", "Não furtarás". Aqui tenho, pois, uma regra ou linha posta diante de mim;
porém descubro que tenho em mim mesmo os próprios princípios contra os quais estas
proibições são expressamente dirigidas. Ainda mais, o próprio fato de me ser proibido
matar mostra que o homicídio está em minha natureza. Não havia necessidade de me ser
proibido fazer uma coisa que eu não tinha inclinação para fazer; porém, a revelação da
vontade de Deus, quanto ao que eu deveria ser, mostra a tendência da minha vontade
para ser aquilo que não devo. Isto é bem claro, e está perfeitamente de acordo com todo
o ensino apostólico sobre este assunto.
_____________________
(¹) Ao contrário da King James Version (inglês), que emprega a palavra transgressão, as
traduções em português de João Ferreira de Almeida e de António Pereira de Figueiredo
empregam o vocábulo iniquidade, o qual nos parece estar mais conforme com o original
(N. do T.).

Não somos Justificados pela Lei


Muitos, contudo, admitem que não podemos obter vida pela lei, mas sustentam, ao
mesmo tempo, que a lei é a nossa regra de vida. Ora, o apóstolo declara que "Todos
aqueles... que são das obras da lei, estão debaixo da maldição" (Gl 3:10). Pouco importa
a sua condição individual, se estão sobre o terreno da lei, acham-se, necessariamente,
sob a maldição. Pode ser que alguém diga: "Eu estou regenerado, e, portanto, não estou
exposto à maldição." Porém, se a regeneração não retira o homem do terreno da lei, não
pode pô-lo para lá dos limites da maldição da lei. Se o cristão estiver debaixo da lei, está
exposto, necessariamente, à maldição da lei. Mas, que tem que ver a lei com a
regeneração?- Onde é que vemos que se trate da regeneração no capítulo 20 de Êxodos
A lei tem apenas uma pergunta a fazer ao homem—uma pergunta curta, solene e direta
—, a saber: "És tu o que deverias ser?" Se a resposta é negativa, a lei não pode senão
lançar os seus terríveis anátemas sobre o homem e matá-lo. E quem reconhecerá mais
prontamente e mais profundamente que, em si mesmo, não é aquilo que deveria ser
senão o homem verdadeiramente regenerado?- Portanto, se está debaixo da lei, está,
inevitavelmente, debaixo da maldição. Não é possível que a lei diminua as suas
exigências ou se misture com a graça. Os homens procuram sempre baixar o seu padrão;
sentem que não podem elevar-se à medida da lei, e, então, procurar rebaixá-la até si;
porém este esforço é vão: a lei permanece em toda a sua pureza, majestade e
inflexibilidade austera, e não aceitará nada menos que uma obediência perfeita; qual é o
homem, regenerado ou não, que pode intentar obedecer assim?- Dir-se-á: "Nós temos a
perfeição em Cristo". Sem dúvida, mas não é pela lei, mas, sim, pela graça; e não
podemos, de nenhum modo, confundir as duas dispensações. As Escrituras ensinam-nos
claramente que não somos justificados pela lei; nem a lei é a nossa regra de vida. Aquilo
que só pode amaldiçoar nunca poderá justificar, e aquilo que só pode matar nunca poderá
ser uma regra de fé. Seria como se um homem tentasse fazer fortuna valendo-se de uma
ação de falência movida contra si.

Um Jugo Impossível de Levar


O capítulo 15 do livro de Atos mostra-nos como o Espírito Santo respondeu à tentativa
que se pretendera fazer para pôr os crentes sob a lei, como regra de vida. "Alguns,
porém, da seita dos fariseus, que tinham crido, se levantaram, dizendo que era mister
circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés" (versículo 5). Isto não era
mais do que o silvo da antiga serpente fazendo-se ouvir nas sugestões sinistras e
desanimadoras desses primitivos legalistas. Mas vejamos como o assunto foi resolvido
pela poderosa energia do Espírito Santo e a voz unânime dos doze apóstolos e de toda a
Igreja. "E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes: Varões irmãos, bem
sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu, dentre vós, para que os gentios ouvissem
da minha boca a palavra do evangelho e cressem". — O quê? As exigências e as
maldições da lei de Moisés? Não; bendito seja Deus, esta não era a mensagem que Deus
queria fazer chegar aos ouvidos de pecadores perdidos. Ouvissem, então, o quê"?
"OUVISSEM DA MINHA BOCA A PALAVRA DO EVANGELHO E CRESSEM". Aqui
estava a mensagem que correspondia ao caráter e natureza de Deus. Ele nunca teria
perturbado os homens com uma linguagem triste de exigências e proibições. Esses
fariseus não eram Seus mensageiros — muito pelo contrário. Não eram portadores de
boas novas, nem anunciadores da paz, e portanto os seus pés eram tudo menos
"formosos" aos olhos d'Aquele que Se deleita em misericórdia.
"Agora, pois", continua o apóstolo, "porque tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos
discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos suportara" Esta linguagem
era grave e forte. Deus não queria pôr "um jugo sobre a cerviz" daqueles cujos corações
haviam sido libertados pelo evangelho da paz. Antes pelo contrário, desejava exortá-los a
permanecerem na liberdade de Cristo e a não se meterem "outra vez debaixo do jugo da
servidão" (Gl. 5:1). Não enviaria aqueles a quem havia recebido em Seu seio de amor "ao
monte palpável" para os aterrorizar com a "escuridão", "trevas", e "tempestade" (Hb
12:18). Isso seria impossível. "Mas cremos", diz Pedro, "que seremos salvos PELA
GRAÇA DO SE-NHOR JESUS CRISTO, como eles também" (At 15:11). Tanto os judeus,
que tinham recebido a lei como os gentios, que nunca a receberam, deviam agora ser
"salvos" pela "graça". E não somente deviam ser "salvos pela graça", mas estar "firmes"
na graça (Rm 5:2) e crescer na graça (2 Pe 3:18). Ensinar outra coisa era tentar a Deus.
Esses fariseus subvertiam os próprios fundamentos da fé cristã; e o mesmo fazem todos
aqueles que procuram pôr os crentes debaixo da lei. Não existe mal ou erro mais
abominável aos olhos de Deus do que o legalismo. Escutai a linguagem enérgica — os
acentos de justa indignação—de que se serve o Espírito Santo, a respeito desses
doutores da lei: "Eu quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando"
(Gl 5:12).
Mas, deixai-me perguntar, os pensamentos do Espírito Santo mudaram a este respeitou
Já deixou de ser tentar a Deus pôr um jugo sobre a cerviz do pecadora E segundo a Sua
vontade graciosa que a lei seja lida aos ouvidos dos pecadores? Responda o leitor a
estas interrogações à luz do capítulo 15 de Atos e da Epístola aos Gálatas. Estas
Escrituras, ainda mesmo que não houvesse outras, são suficientes para provar que a
intenção de Deus nunca foi que os Gentios "ouvissem a palavra" da lei. Se fosse essa a
Sua intenção, o Senhor teria, certamente, escolhido alguém para a proclamar aos seus
ouvidos. Mas não; quando proclamou a Sua "lei terrível", Ele falou numa só língua; porém
quando proclamou as boas novas de salvação, pelo sangue do Cordeiro, falou na língua
"de todas as nações que estão debaixo do céu". Falou de tal modo que cada um, na sua
própria língua em que havia nascido, pudesse ouvir a doce história da graça (At 2:1 -11).

A Mensagem da Graça
Além disso, quando Deus deu, no monte Sinai, as exigências severas do concerto das
obras, dirigiu-Se exclusivamente a um povo. A sua voz foi ouvida unicamente dentro dos
estreitos limites da nação judaica; porém, quando, nas planícies de Belém, "o anjo do
Senhor" proclamou "novas de grande alegria", acrescentou estas palavras características,
"que será para todo o povo" (Lc 2:10). Quando o Cristo ressuscitado enviou os Seus
arautos de salvação, a Sua mensagem era redigida assim: "Ide por todo o mundo, pregai
o evangelho a toda a criatura" (Mc 16:15). A onda poderosa da graça, que tinha a sua
origem no seio de Deus e o seu leito no sangue do Cordeiro, estava destinada a elevar-
se, na energia irresistível do Espírito Santo, muito acima dos estreitos limites de Israel e
rolar através do comprimento e largura de um mundo manchado de pecado. "Toda a
criatura" devia ouvir "na sua própria língua" a mensagem da paz, a palavra do evangelho,
o relato da salvação pelo sangue da cruz.
Finalmente, para que nada pudesse faltar para dar a prova aos nossos corações
legalistas que o monte Sinai não era, de modo nenhum, o lugar onde os segredos
profundos do coração de Deus foram revelados, o Espírito Santo disse, tanto por boca de
um profeta como de um apóstolo: "Quão formosos os pés dos que anunciam a paz, dos
que anunciam coisas boas!" (Is 52:7; Rm 10:15). Porém, daqueles que queriam ser
doutores da mesma lei o Espírito Santo disse: "Eu quereria que fossem cortados aqueles
que vos andam inquietando" (Gl 5:12).

A Lei e o Evangelho
Desta forma, é evidente que a lei não é nem o fundamento de vida para o pecador nem a
regra de vida para o cristão. Cristo é tanto uma coisa como a outra. Ele é a nossa vida e a
nossa regra de vida. Alei só pode amaldiçoar e matar. Cristo é a nossa vida e justiça. Ele
fez-Se maldição por nós sendo pregado no madeiro. O Senhor desceu ao lugar onde
estava o pecador—ao lugar da morte e do juízo —, e, havendo, pela Sua morte, cumprido
inteiramente tudo que era ou poderia ser contra nós, tornou-Se, na ressurreição, a origem
de vida e o fundamento de justiça para todos os que creem no Seu nome. Possuindo
assim a vida e a justiça n'Ele, somos chamados para andar, não apenas como a lei
ordena, mas "como ele andou" (1 Jo 2:6). Será desnecessário afirmar que matar, cometer
adultério ou roubar, são atos diretamente opostos à moral cristã. Mas se um cristão
regulasse a sua vida segundo esses mandamentos ou de acordo com o decálogo
produziria esses frutos raros e delicados de que fala a epístola aos Efésios?- Poderiam os
dez mandamentos fazer com que um ladrão não roubasse mais e trabalhasse a fim de
poder ter que dar? Transformariam jamais um ladrão num homem laborioso e liberais
Não, por certo. A lei diz: "Não furtarás"; mas acaso diz, "dá àquele que está em
necessidade" — vai, dá de comer ao teu inimigo, veste-o e abençoa-o —, vai e alegra por
teus sentimentos benevolentes e teus atos beneficentes o coração daquele que procura
sempre prejudicar-te? De modo nenhum; e, contudo, se eu estivesse sob a lei, como
regra, ela só podia amaldiçoar-me e matar-me. Como pode ser isto, sendo o padrão do
Novo Testamento muito mais elevado"? É porque sou fraco e a lei não me dá forças nem
me mostra misericórdia. A lei exige força daquele que não tem nenhuma e amaldiçoa-o se
ele não pode mostrá-la. Mas o evangelho dá forças àquele que não tem nenhuma, e
abençoa-o na manifestação dessa força. A lei propõe a vida como o fim da obediência; o
evangelho dá vida como o próprio e único fundamento de obediência.
Mas, para não fatigar o leitor à força de argumentos, pergunto, se a lei é, realmente, a
regra de vida do crente, em que parte do Novo Testamento se apresenta ela assim a
Evidentemente o apóstolo não tinha tal pensamento quando disse. "Porque, em Cristo
Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas sim o ser um nova
criatura. E, a todos quantos andarem conforme esta regra, paz e misericórdia sobre eles e
sobre o Israel de Deus" (Gl 6:15-16). Qual regra? A lei?- Não, mas sim a "nova criatura".
Em capítulo 20 de Êxodo não encontramos uma só palavra quanto à "nova criação". Pelo
contrário, este capítulo é dirigido ao homem tal qual ele é, no seu estado natural da velha
criação, e põe-no à prova para saber o que ele pode realmente fazer. Ora se a lei era a
regra pela qual os crentes deviam andar, por que pronuncia o apóstolo a sua bênção
sobre os que andam segundo uma regra totalmente diferente? Por que não diz ele, "a
todos quantos andarem conforme a regra dos dez mandamentos"1? Não é evidente,
segundo esta passagem, que a Igreja de Deus tem uma regra mais elevada segundo a
qual deve andara É, indiscutivelmente. Os dez mandamentos, embora façam parte, como
todos os verdadeiros crentes admitem, do cânon de inspiração, nunca poderiam ser a
regra de fé para todo aquele que tenha, pela graça infinita, sido introduzido na nova
criação—todo aquele que tem recebido nova vida em Cristo.

A Lei é Perfeita
Mas, pode perguntar-se, "a lei não é perfeita? E se é perfeita que mais pode desejar-se?-
A lei é divinamente perfeita. Na verdade, a própria perfeição da lei é a razão de
amaldiçoar e matar aqueles que não são perfeitos e pretendem subsistir perante ela. "A
lei é espiritual, mas eu sou carnal" (Rm 7:14). É inteiramente impossível fazer-se uma
ideia justada perfeição e espiritualidade da lei. Porém, esta lei perfeita estando em contato
com a humanidade caída—esta lei espiritual entrando em contato com a mente carnal—
só podia produzir a "ira" e a "inimizade" (Rm 4:15; 8:7). Por quê?- É porque a lei não é
perfeita?- Ao contrário, é porque ela o é e o homem é pecador. Se o homem fosse
perfeito cumpriria a lei em toda a sua perfeição espiritual; e até mesmo no caso de
crentes verdadeiros, embora tragam ainda consigo uma natureza corrompida, o apóstolo
ensina-nos: "Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a
carne, mas segundo o espírito" (Rm 8:4): ".. .porque quem ama aos outros cumpriu a lei...
O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor" (Rm 13:8 e
10). Se eu amar o próximo não furtarei aquilo que lhe pertence; pelo contrário, procurarei
fazer-lhe todo o bem que puder. Tudo isto é claro e fácil de compreender por uma alma
espiritual; mas não toca na questão da lei, quer seja como fundamento de vida do
pecador ou de regra de vida para o crente.

Os dois grandes Mandamentos


Se considerarmos a lei sob as suas duas partes importantes, vemos que ordena ao
homem amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas
forças, e amarão próximo como a si mesmo. Tal é o resumo da lei. Eis o que a lei exige, e
nada menos. Mas qual é o filho caído de Adão que jamais pôde responder a esta dupla
exigência da lei? Qual é o homem que pode dizer que ama Deus desta maneirai "...a
inclinação da carne" (quer dizer, a inclinação que temos por natureza) "é inimizade contra
Deus" (Rm 8:7). O homem aborrece a Deus e os Seus caminhos. Deus veio na Pessoa de
Cristo e manifestou-Se aos homens, não na magnificência esmagadora da Sua
majestade, mas com todo o encanto e a doçura de graça perfeita e condescendência.
Qual foi o resultado? O homem aborreceu a Deus: "...me aborreceram a mime a meu Pai"
(Jo 15:24). Mas dirá alguém, "o homem devia amar a Deus". Sem dúvida, e merece a
morte e a perdição eterna se o não fizer. Mas poderá a lei produzir este amor no coração
do homem? Era esse o seu fim? De maneira nenhuma, "porque a lei opera a ira". A lei
encontra o homem num estado de inimizade contra Deus; e, sem alterar nada desse
estado — porque esse não era o seu objetivo — manda que ele ame a Deus de todo o
seu coração, e amaldiçoa-o se o não fizer. Não pertencia ao domínio da lei alterar ou
melhorar a natureza do homem; nem tampouco podia dar-lhe o poder de cumprir as suas
justas exigências. Dizia: "Faze isto é viverás". Mandava que o homem amasse a Deus.
Não revelava aquilo que Deus era para o homem, mesmo na sua culpa e ruína; mas dizia
ao homem aquilo que ele deveria ser para Deus.
Era uma obra triste. Não se via em tudo isto o desenrolar dos atrativos poderosos do
caráter divino, produzindo no homem verdadeiro arrependimento para com Deus,
fundindo o seu coração de gelo e elevando a sua alma em verdadeiro afeto e adoração
sincera. Não; era um mandamento inflexível para amar a Deus; e, em vez de produzir
amor, opera "a ira"—não porque não devesse ser amado, mas porque o homem era
pecador.
Depois, lemos; "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo". Como pode "o homem natural"
fazer isto? Ama ao seu próximo como a si mesmo?- É este o princípio que se observa nas
câmaras de comércio, na bolsa, nos bancos, nos negócios, nas feiras e nos mercados
deste mundo"?- Ah, não! O homem não ama o seu próximo como a si mesmo. Sem
sombras de dúvida, deveria fazê-lo, e se a sua condição fosse boa, ele o faria. Mas é mau
— inteiramente mau—e a menos que nasça de novo da Palavra e do Espírito Santo, não
pode ver nem entrar no reino de Deus (Jo 3:3-5). Alei não pode produzir este novo
nascimento. Mata "o homem velho", mas não cria, nem pode criar "o homem novo". Com
efeito, sabemos que o Senhor Jesus reuniu na Sua gloriosa Pessoa tanto Deus como o
nosso próximo, visto que era, segundo a verdade fundamental da doutrina cristã, "Deus
manifestado em carne" (1 Tm 3:16). Como foi Ele tratado pelo homem'? Amou-0 de todo o
seu coração ou como a si mesmo*?- Ao contrário: crucificou-0 entre dois salteadores
depois de haver, antecipadamente, preferido um ladrão e malfeitor a este bendito Senhor
que andara fazendo bem — que tinha vindo da eterna morada de luz e amor, sendo Ele
Próprio a personificação viva dessa luz e desse amor — Cujo coração tinha sempre
palpitado com a mais simpatia pela necessidade humana e Cuja mão estivera sempre
disposta a enxugar as lágrimas do pecador e a aliviar os seus sofrimentos. Assim,
contemplando a cruz de Cristo, vemos nela uma demonstração irrefutável do fato que não
está ao alcance da natureza ou capacidade do homem guardar a lei.
A Adoração
Depois de tudo que temos visto, há um interesse particular para o homem espiritual
observar a posição relativa de Deus e o pecador no Hm deste memorável capítulo.
"Então, disse o SENHOR a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:... Um altar de terra
me farás e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as tuas ofertas pacíficas e as tuas
ovelhas, e as tuas vacas; em todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome,
VIREI A TI E TE ABENÇOAREI. E, se me fizeres um altar de pedras, não o farás de
pedras lavradas; se sobre ele levantares o teu buril, profaná-lo-ás. Não subirás também
por degraus ao meu altar, para que a tua nudez não seja descoberta diante deles"
(versículos 22 á 26).
Não vemos nesta passagem o homem na posição de fazer obras, mas na de um
adorador: e isto no fim do capítulo 20 do Êxodo. Este fato ensina-nos claramente que o
ambiente de Sinai não é aquele que Deus quer que o pecador respire—o monte de Sinai
não é o lugar próprio para o encontro de Deus com o homem:".. .em todo o lugar onde eu
fizer celebrar a memória do meu nome virei a ti e te abençoarei". Como esse lugar onde
Jeová faz celebrar a memória do Seu nome, e onde vem para abençoar o Seu povo em
adoração, é diferente dos terrores do monte fumegante!
Mas, além disso, pode encontrar-Se com o pecador num altar sem pedras lavradas ou
degraus—um lugar de culto cuja construção não necessita da arte do homem ou esforço
humano para dele se aproximar. As pedras lavradas por mão do homem só podiam
manchar o altar e os degraus só podiam descobrir a "nudez" humana. Que símbolo
admirável do lugar onde Deus encontra agora o pecador, a própria Pessoa e obra de Seu
Filho, Jesus Cristo, em Quem todas as exigências da lei e da justiça e da consciência são
perfeitamente cumpridas! Em todos os tempos e em todos os lugares, o homem tem
estado sempre pronto, de um modo ou de outro, a levantar os seus instrumentos na
construção do seu altar ou para se aproximar dele pelos degraus de sua própria invenção.
Porém, o resultado dessas tentativas tem sido a contaminação e a nudez... "todos nós
somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e todos nós
caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam" (Is 64:6).
Quem se atreveria a aproximar-se de Deus com um vestuário de "trapo da imundície?" Ou
quem poderá adorá-Lo na sua "nudeza" Que maior absurdo poderia haver do que pensar
em chegar à presença de Deus de um modo que necessariamente inclui contaminação ou
nudeza E contudo sucede assim sempre que o esforço humano é empregado para abrir o
caminho para Deus. Não somente esse esforço é desnecessário como está marcado com
a contaminação e a nudez. Deus veio tão perto do pecador, até mesmo à profundidade da
sua ruína, que não há necessidade de ele levantar o instrumento da legalidade ou de
subir os degraus da justiça própria — fazê-lo é apenas expor a sua imundícia e a sua
nudez.
São estes os princípios com que o Espírito Santo termina esta parte notável deste livro
inspirado. Que Deus os inscreva em nossos corações de forma a podermos compreender
claramente a diferença essencial entre a LEI e a GRAÇA.

— CAPITULO 21 a 23 —

AS ORDENANÇAS
E AS PENALIDADES

A Infinita Condescendência de Deus para com o Homem


O estudo desta parte do Livro do Êxodo está calculado para compenetrar o coração do
significado da sabedoria inescrutável e infinita bondade de Deus. Com este estudo
podemos formar uma ideia de um reino governado por leis estabelecidas por Deus.
Podemos ver nele também a maravilhosa condescendência d'Aquele que, não obstante
ser o grande Deus do céu e da terra pode, todavia, curvar-Se para julgar entre os homens
a morte de um boi, o empréstimo de um vestido ou a perda do dente de um servo. "Quem
é como o SENHOR nosso Deus, que habita nas alturas; que se curva para ver o que está
nos céus e na terra?" (Sl 113:5-6). Governa o universo e, todavia, pode ocupar-Se com o
suprimento de vestuário para uma das Suas criaturas. Dirige o voo dos anjos e toma nota
do rastejar de um verme. Humilha-Se a Si Próprio para regular o movimento dos
inumeráveis astros que se movem no espaço infinito e para registrar a queda de um
pardal.
Quando ao caráter das leis apresentadas no primeiro destes capítulos, podemos aprender
nele uma lição dupla. Essas leis e ordenações dão um testemunho duplo: trazem-nos
uma mensagem e põem perante os nossos olhos dois lados de um quadro. Falam de
Deus e do homem.
Em primeiro lugar, quando a Deus, vêmo-Lo decretar leis que mostram justiça perfeita,
estrita e imparcial. "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura
por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe". Tal era o caráter das leis, dos
estatutos e dos juízos por meio dos quais Deus governava o Seu reino terrestre de Israel.
Previu-se tudo, defenderam-se todos os interesses, e atenderam-se todas as
reclamações. Não houve parcialidade, não se fez diferença entre ricos e pobres. A
balança em que se pesaram as reivindicações de cada homem foi afinada com precisão
divina, de forma que ninguém pudesse justamente apelar de uma decisão. A toga pura da
justiça não podia ser manchada com as nódoas imundas dos suborno, da corrupção ou
da parcialidade. Os olhos e as mãos de um Legislador divino precaveram tudo; e o
Executivo divino tratou inflexivelmente com todo o delinquente. O golpe da justiça caiu
somente sobre a cabeça do culpado, enquanto que toda a alma obediente foi protegida no
gozo de todo os seus direitos e privilégios.
Em segundo lugar, quanto ao homem, é impossível ler todas estas leis sem se ficar
impressionado com a declaração que, indireta, mas realmente, fazem da sua depravação.
O fato de o Senhor ter de promulgar leis contra certos crimes prova que o homem era
capaz de os cometer. Se essa capacidade ou tendência não existisse no homem, não
haveria necessidade da promulgação das leis. Ora, há muitas pessoas que, se as
abominações grosseiras proibidas por este capítulo lhes fossem relatadas podiam sentir-
se tentadas a adotar a linguagem de Hazael e dizerem: "Pois que é teu servo, que não é
mais que um cão, para fazer tal coisa?" (2 Rs 8:13). Estas pessoas não desceram ainda
ao profundo abismo do seu próprio coração. Porque embora alguns dos crimes aqui
proibidos pareçam colocar o homem, quanto a seus hábitos e inclinações, abaixo do nível
de um cão, estes mesmíssimos estatutos provam, além de toda a controvérsia, que o
membro mais polido e cultivado da família humana traz em seu coração as sementes das
abominações mais tenebrosas, horríveis e abomináveis. Para quem foram esses
estatutos promulgados?- Para o homem. Eram necessários? Sem nenhuma dúvida. Mas
teriam sido inteiramente desnecessários se o homem fosse incapaz de cometer os
pecados referidos. Porém o homem era capaz de os cometer; e por isso vemos que caiu
o mais baixo possível—que a sua natureza está completamente corrompida —, que,
desde a cabeça à planta do seu pé, não existe nem sequer um átomo de perfeição moral.
Como poderá um tal ente estar jamais, sem uma sensação de temor, perante o brilho do
trono de Deus? Como poderá permanecer dentro do lugar santíssimo? Como poderá
estar de pé sobre o mar de cristal?- Como poderá entrar pelas portas de pérolas e trilhar
as ruas de ouro da cidade santa? A resposta a estas interrogações mostra-nos as
profundidades assombrosas do amor redentor e da eficácia eterna do sangue do Cordeiro
de Deus. Por muito profunda que seja a ruína do homem, o amor de Deus é ainda mais
profundo. Por muito negra que seja a sua culpa, o sangue de Jesus pode lavá-la. Por
mais largo que seja o abismo que separa o homem de Deus, a cruz tem-no atravessado.
Deus desceu ao ponto mais baixo da condição do pecador, de modo a poder elevá-lo a
uma posição de infinito favor, em ligação eterna com Seu Filho. Bem podemos exclamar:
"Vede quão grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de
Deus" (1 Jo 3:1). Nada podia sondar a ruína do homem senão o amor de Deus, e nada
podia sobrepujara culpa do homem senão o sangue de Cristo. Mas agora a própria
profundidade da ruína só engrandece o amor que a sondou, e a intensidade da culpa
apenas exalta a eficácia do sangue que a purifica. O mais vil pecador que crê em Jesus
pode regozijar-se na certeza de que Deus o vê e declara que ele "está todo limpo" (Jo
13:10).

O Servo Hebreu
Tal é, pois, o caráter duplo da instrução que pode coligir-se das leis e ordenações
consideradas em conjunto; e quanto mais as examinamos em pormenor, mais
impressionados ficamos com o sentido da sua plenitude e beleza. Tomemos, por
exemplo, a primeira ordenação que nos é apresentada, a saber, a que se refere ao servo
hebraico. "Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro,
de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era homem
casado, sairá sua mulher com ele. Se seu senhor lhe houver dado uma mulher, e ela lhe
houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele saíra só
com seu corpo. Mas, se aquele servo expressamente disser.- Eu amo a meu senhor, e a
minha mulher e a meus filhos, não quero sair forro, então, seu senhor o levará aos juízes,
e o fará chegar à porta, ou ao postigo, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e
o servirá para sempre" (capítulo 21:2 a 6). O servo era inteiramente livre quanto a tudo
que lhe dizia respeito. Havia cumprido todas as exigências da lei e poderia portanto partir
com absoluta liberdade; mas, por causa do amor à sua mulher, ao seu amo e aos seus
filhos submetia-se à servidão perpétua; e não somente isto, queria levar também no seu
corpo as marcas dessa servidão.

O Verdadeiro Servo
O leitor inteligente reconhecerá facilmente como tudo isto tem aplicação ao Senhor Jesus
Cristo. N'Ele vemos Aquele que estava no seio do Pai antes que existissem todos os
mundos—o objeto das Suas delícias eternas — e que podia ter ocupado este lugar por
toda a eternidade, sendo o Seu lugar pessoal e inteiramente peculiar, tanto mais que
nada o obrigava a abandoná-lo, salvo esta obrigação que o amor inefável criara e
inspirara. Mas era tal o Seu amor para com o Pai, Cujos desígnios estavam incluídos e
para com a Igreja coletivamente e cada membro dela individualmente, cuja salvação
estava em causa, que veio ao mundo, voluntariamente, humilhando-Se a Si Mesmo,
tomando a forma de servo e as marcas de serviço perpétuo sobre Si. No Salmo 40 faz-se
provavelmente uma alusão a estas marcas: "...as minhas orelhas furaste". Este Salmo é a
expressão do afeto de Cristo por Deus. "Então disse: Eis aqui venho; no rolo do livro está
escrito de mim: Deleito-me em fazer a tua vontade, ó meus Deus; sim a tua lei está dentro
do meu coração" (versículos 7 e 8). Veio para fazer a vontade de Deus, qualquer que
pudesse ser essa vontade. Jamais fez a Sua vontade, nem mesmo na aceitação e
salvação de pecadores, ainda que certamente o Seu coração amantíssimo, com todas as
suas afeições, estivesse posto inteiramente nessa obra gloriosa. Sem dúvida, não recebe
nem salva senão como servo dos desígnios do Pai. "Tudo que o Pai me dá virá a mim; e o
que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. Porque eu desci do céu não para
fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai, que
me enviou, é esta: que nenhum de todos aqueles que me deu se perca, mas que o
ressuscite no último dia" (Jo 6:37 -39).
Nesta passagem, temos um dos mais interessantes aspectos do caráter de servo do
Senhor Jesus Cristo. Em graça perfeita, Ele considera-Se responsável por receber todos
os que estão incluídos nos desígnios divinos; e não só de recebê-los, mas de os guardar
em todas as dificuldades e provações da sua carreira de desvios na terra, sim, até mesmo
no caso da própria morte, no caso de ela vir, e de os ressuscitar no último dia. Oh, quão
seguro está até o membro mais fraco da Igreja de Deus! É objeto dos desígnios eternos
de Deus, de cujo cumprimento o Senhor Jesus Cristo é o fiador. Jesus ama o Pai, e a
segurança de cada membro da família redimida está em proporção com a intensidade
desse amor. A salvação do pecador que crê no Filho de Deus não é, em certo aspecto,
senão a expressão do amor de Cristo pelo Pai. Se um dos que creem n'Ele pudesse
perder-se por qualquer causa, o fato indicaria que o Senhor Jesus Cristo era incapaz de
dar cumprimento à vontade de Deus, o que seria uma blasfêmia contra o Seu santo
nome, ao qual seja dada a honra e majestade pelos séculos eternos!
Desta forma temos no servo hebraico uma figura de Cristo em Seu afeto ao Pai. Porém
há alguma coisa mais do que isto: "Eu amo a minha mulher e a meus filhos. ""Cristo amou
a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com lavagem da
água, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível" (Ef 5:25 -27). Existem outras passagens das
Escrituras que nos apresentam Cristo como antítipo do servo hebraico, tanto no Seu amor
pela Igreja, como corpo, como para com todos os crentes, individualmente. O leitor
encontrará ensino sobre este ponto nos capítulos 13 de Mateus, 10 e 13 de João e 2 de
Hebreus.

O Amor de Cristo excede todo Entendimento


A compreensão deste amor do coração de Jesus não pode deixar de produzir um espírito
de afeto fervoroso Aquele que pôde manifestar um amor tão puro, perfeito e
desinteressado. Como poderiam a esposa e os filhos do servo hebraico deixar de amar
aquele que havia renunciado voluntariamente à sua liberdade a fim de que ele e eles
pudessem estar juntos? E que é o amor apresentado no tipo quando comparado com
aquele que brilha no antítipo? É como nada. "O amor de Cristo excede todo o
entendimento" (Ef 3:19). Foi esse amor que o levou a pensar em nós antes que os
mundos existissem, a visitar-nos na plenitude dos tempos, a caminhar deliberadamente
para a umbreira da porta, sofrer por nós na cruz, a fim de nos poder elevar à posição de
Seus companheiros no Seu reino eterno e Sua glória.
Se eu pretendesse fazer uma exposição completa dos restantes estatutos e juízos desta
parte do Livro do Êxodo, isso levantar-me-ia muito mais longe do que pretendo ir,
presentemente (¹). Quero apenas acentuar que é impossível ler esta parte do Livro e não
sentir o coração cheio de adoração perante esta profunda sabedoria e justiça perfeita, e
todavia consideração terna, que permeia todo o assunto.
Terminemos o seu estudo com esta convecção profundamente enraizada na alma, que
Aquele que fala aqui é "o único Deus verdadeiro", "sábio" e infinitamente gracioso.
Que as nossas meditações sobre a Sua Palavra eterna produzam o efeito de prostrarmos
as nossas almas em adoração perante Aquele Cujos caminhos perfeitos e atributos
gloriosos brilham em todo o seu esplendor nesta Palavra, para o gozo e edificação do Seu
povo adquirido à custa do sangue de Seu Filho.
_______________
(¹) Devo frisar que as festas mencionadas no capítulo 23:14-19, e os sacrifícios do
capítulo 29, visto serem apresentados plena e pormenorizadamente no livro de Levítico,
serão tratados quando dos nossos comentários sobre esse livro singularmente
interessante.
— CAPÍTULO 24 —

O PODER DO SANGUE

"De Longe"
Este capítulo abre com uma expressão notavelmente característica de toda a
dispensação moisaica. "Depois, disse a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu e Arão, Nadabe e
Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e inclinai-vos de longe... eles não se cheguem nem
o povo suba com ele." Podemos buscar de um ao outro extremo da lei sem encontramos
estas palavras: "Aproximai-vos". Ah, não; essas palavras nunca poderiam ser ouvidas do
cume do Sinai, nem do meio das sombras da lei. Só podiam ser pronunciadas do lado
celestial da sepultura vazia de Jesus, onde o sangue da cruz abriu uma perspectiva
perfeitamente clara para a visão da fé. As palavras "de longe" são tão características da
lei como as palavras "vinde" o são do evangelho. Sob a lei, a obra que podia dar direito ao
pecador a aproximar-se não se realizava jamais. O homem não cumpriu a sua promessa
de obediência, e o "sangue de bodes e bezerros" (Hb 9:12) não podia expiar o pecado
nem dar paz à sua consciência perturbada. Por isso, ele tinha de permanecer "longe". Os
votos do homem haviam sido violados e o seu pecado estava por purificar; como, pois,
podia aproximar-se ? O sangue de dez mil bezerros não podia limpar nem uma só das
manchas da consciência ou dar-lhe o sentimento pacífico da intimidade com um Deus
reconciliado.
Contudo, "o primeiro" concerto está aqui consagrado com sangue. Um altar é edificado ao
pé do monte com doze pedras, segundo as doze tribos de Israel. ―E enviou certos jovens
dos filhos de Israel, os quais ofereceram holocaustos, e sacrificaram ao SENHOR
sacrifícios pacíficos de bezerros. E Moisés tomou a metade do sangue e a pôs em bacias;
e a outra metade do sangue espargiu sobre o altar... então, tomou Moisés aquele sangue,
e o espargiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue do concerto que o SENHOR tem
feito convosco sobre todas estas palavras" (versículos 5,6 e 8). Embora fosse impossível,
como nos diz o apóstolo, que o sangue dos touros e dos bodes tirasse os pecados,
contudo santificava quanto à purificação da carne (Hb 10:4; 9.13), e como "sombra dos
bens futuros" servia para manter o povo em relação com Deus (Hb 10:1).

A Manifestação de Deus
"E subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú e setenta dos anciãos de Israel, e viram o Deus
de Israel e debaixo de seus pés havia como uma obra de pedra de safira e como o
parecer do céu na sua claridade. Porém ele não estendeu a sua mão sobre os escolhidos
dos filhos de Israel; mas viram a Deus, e comeram e beberam" (versículos 9 a 11). Assim
se manifestava "o Deus de Israel" em luz e pureza, majestade e santidade. Nada disto era
o desenrolar dos afetos do coração do Pai ou os doces acentos da voz do Pai
derramando paz e inspirando confiança no coração. Não; a "obra de pedra de safira"
falava daquela pureza e luz inacessíveis que obrigavam o pecador a manter-se "longe".
Contudo, eles "viram a Deus e comeram e beberam". Prova tocante da tolerância e da
misericórdia divina bem como do poder do sangue!
Encarando o conjunto desta cena como uma simples ilustração, existe nela muito para
interessar o coração. O campo demarcado está em baixo, tem cima o pavimento de
safira; mas o altar, ao pé do monte, fala-nos desse caminho pelo qual o pecador pode
subtrair-se à corrupção da sua própria condição e elevar-se à presença de Deus, para aí
fazer festa e adorar em perfeita paz. O sangue que corria em redor do altar era o único
direito que o homem tinha para subsistir na presença dessa glória cujo parecer "era como
um fogo consumidor no cume do monte aos olhos dos filhos de Israel".
"E Moisés entrou no meio da nuvem, depois que subiu ao monte; e Moisés esteve no
monte quarenta dias e quarenta noites." Para Moisés isto significava uma posição
verdadeiramente elevada e santa. Foi chamado aparte da terra e das coisas terrenas.
Alheado das influências naturais, é encerrado com Deus para ouvir da Sua boca os
profundos mistérios da Pessoa e obra de Cristo; porque é isso, com efeito, que nos é
representado no tabernáculo, cheio de significação em todos os seus acessórios—"figuras
das coisas que estão nos céus" (Hb 9:23).
O bendito Senhor sabia bem qual ia ser o fim do concerto das obras do homem; todavia,
mostra a Moisés, em figuras e sombras, os Seus preciosos pensamentos de amor e
desígnios eternos de graça, manifestados e garantidos por Cristo.
Bendita seja para sempre a graça que não nos deixou sob um concerto de obras. Bendito
seja Aquele que aquietou os trovões da lei e apagou as chamas do monte Sinai pelo
sangue do concerto eterno (Hb 13:20) e que nos deu uma paz que nenhum poder da terra
ou do inferno pode abalar. "Aquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos
pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai, a ele glória e poder para todo o
sempre. Amém (Ap 1:5-6).

— CAPÍTULO 25 —

O TABERNÁCULO

A Ordem Divina
Este capítulo é o começo de um dos mais ricos filões da mina inesgotável de inspiração—
um veio no qual cada pancada do alvião descobre riquezas incontáveis. Sabemos qual é
o único alvião com o qual podemos trabalhar numa tal mina, a saber, o ministério distinto
do Espírito Santo. A natureza humana nada pode fazer aqui. A razão é cega e a
imaginação completamente inútil; a inteligência mais elevada, em vez de estar em estado
de interpretar os símbolos sagrados, parece-se mais a um morcego ante o resplendor do
sol, chocando-se contra os objetos que é inteiramente incapaz de discernir. Devemos
obrigar a razão e a imaginação a ficarem a parte, enquanto, com um coração puro, um
olhar sensato e pensamentos reverentes entramos nos recintos santos e contemplamos
fixamente o mobiliário cheio de significado. Deus o Espírito Santo é o único que nos pode
guiar através dos recintos da casa do Senhor e de interpretar para as nossas almas o
verdadeiro significado de tudo que se apresenta à nossa vista. Querer dar a sua
explicação com o auxílio de faculdades não santificadas seria mais absurdo do que tentar
reparar um relógio com as tenazes e o martelo de um ferreiro. "As figuras das coisas que
estão no céu" (Hb 9:23) não podem ser interpretadas pela mente natural, ainda mesmo a
mais cultivada. Devem ser lidas à luz do céu. O mundo não tem nenhuma luz que possa
revelaras suas belezas. Aquele que produziu as figuras é o único que pode explicar o que
elas significam. E Aquele que deu os símbolos é quem pode interpretá-los.
Para a vista do homem parecerá que há irregularidade na maneira como o Espírito
apresenta o mobiliário do tabernáculo; mas, na realidade, como poderia esperar-se, existe
a mais perfeita ordem, a precisão mais notável e a exatidão mais minuciosa. Desde o
capítulo 25 ao capítulo 30, inclusive, temos uma parte distinta do Livro do Êxodo. Esta
parte subdivide-se em duas partes, das quais a primeira termina no versículo 19 do
capítulo 27, e a segunda no fim do capítulo 30. A primeira começa com a descrição da
arca do concerto, dentro do véu, e termina com o altar de bronze e o átrio no qual o altar
devia ser posto. Quer dizer, dá-nos, em primeiro lugar, o trono do juízo do Senhor, sobre
o qual Ele se assentava como Senhor de toda a terra; e este trono conduz-nos àquele
lugar onde o Senhor encontra o pecador em virtude e com base na obra de uma expiação
consumada. Depois, na segunda parte temos a maneira de o homem se aproximar de
Deus—os privilégios, as honras, e as responsabilidades daqueles que, como sacerdotes,
podem aproximar-se da presença Divina para prestarem culto e gozarem da Sua
comunhão. Deste modo a ordem é perfeita e bela. Como poderia ser de outro modo, visto
que é divinal A arca e o altar de bronze apresentam, em certo sentido, dois extremos. A
primeira era o trono de Deus estabelecido em "justiça e juízo" (SI 89:14). A última era o
lugar onde o pecador podia aproximar-se, porque "a misericórdia e a verdade" iam
adiante do rosto de Jeová. O homem, por si mesmo, não ousava aproximar-se da arca
para se encontrar com Deus, porque o caminho do santuário não estava ainda descoberto
(Hb 9:8). Porém, Deus podia vir ao altar de bronze para encontrar o pecador. "A justiça e
o juízo" não podiam admitir o pecador no santuário; mas a misericórdia e a verdade
podiam fazer sair Deus—não envolto naquele resplendor irresistível e majestade com que
costumava brilhar do meio das colunas místicas do Seu trono—"os querubins de glória"—,
mas rodeado daquele ministério gracioso que nos é apresentado, simbolicamente, no
mobiliário e nas ordenações do tabernáculo.
Tudo isto nos pode muito bem recordar o caminho que percorreu Aquele bendito Senhor
que é o antítipo de todos estes símbolos —a substância destas sombras. Ele desceu do
trono eterno de Deus no céu até à profundidade da cruz no Calvário. Deixou toda a glória
do céu pela vergonha da cruz, a fim de poder conduzir o Seu povo remido, perdoado e
aceite por Si Mesmo, e apresentá-lo inculpável diante daquele próprio trono que Ele havia
abandonado por amor deles. O Senhor Jesus preenche, em Sua própria Pessoa e obra,
todo o espaço entre o trono de Deus e o pó da morte, assim como a distância entre o pó
da morte e o trono de Deus. N'Ele Deus desceu, em perfeita graça, até ao pecador, e
n'Ele o pecador é conduzido, em perfeita justiça, até Deus. Todo o caminho, desde a arca
ao altar, está marcado com as pegadas do amor; e todo o caminho desde o altar de
bronze até a arca de Deus estava salpicado com sangue da expiação; e todo adorador ao
passar por esse caminho maravilhoso vê o nome de Jesus impresso em tudo que se
oferece à sua vista. Que este nome venha a ser o mais precioso de nossos corações!
Vamos proceder agora ao exame dos capítulos que se seguem.
E interessante notar que a primeira coisa que o Senhor revela a Moisés é o Seu propósito
gracioso de ter um santuário ou santa habitação no meio do Seu povo — um santuário
formado de materiais que indicavam Cristo, a Sua Pessoa, a Sua obra, e o fruto precioso
dessa obra, como os vemos à luz, no poder e diversas mercês do Espírito Santo. Além
disso, estes materiais eram o fruto fragrante da graça de Deus — as ofertas voluntárias
de corações consagrados. Jeová, cuja Majestade o céu dos céus não poderia conter (l Rs
8:27), achava o Seu agrado em habitar numa tenda erigida para Si por aqueles que
nutriam o desejo ardente de saudar a Sua presença no meio deles. Este tabernáculo pode
ser considerado de duas maneiras; primeira, como uma "figura das coisas celestiais"; e,
segunda, como uma figura profundamente significativa do corpo de Cristo. Os vários
materiais de que se compunha este tabernáculo serão apresentados à nossa
consideração à medida que formos desenrolando o assunto. Portanto, vamos considerar
os três assuntos mais importantes que este capítulo põe diante de nós, a saber: a arca, a
mesa e o castiçal.

A Arca e seu Conteúdo


A arca do concerto ocupa o primeiro lugar nas comunicações divinas feitas a Moisés. A
sua posição no tabernáculo era, também, notável. Encerrada dentro do véu, no lugar
santíssimo, formava a base do trono de Jeová. O seu próprio nome apresentava à alma a
sua importância. Uma arca, tanto quanto podemos compreender o significado da palavra,
é destinada a guardar intacto o que é posto dentro dela. Foi numa arca que Noé e sua
família, com todas as espécies de animais da criação, foram transportados com
segurança sobre as ondas do juízo que cobriu a terra. Uma arca, como lemos no princípio
deste livro, foi o vaso da fé para preservar um menino formoso das águas da morte.
Quando, portanto, lemos da "arca do concerto" somos levados a crer que era destinada
por Deus aguardar intacto o Seu concerto, no meio de um povo dado ao erro. Nesta arca,
como sabemos, foram depositadas as segundas tábuas da lei. Quanto às primeiras foram
quebradas ao pé do monte, mostrando que o concerto do homem era de todo abolido—
que o seu trabalho nunca poderia, de qualquer modo, formar a base do trono de governo
de Jeová. "A justiça e o juízo são a habitação desse trono", quer seja no seu aspecto
terrestre, quer no celestial. A arca não podia conter as tábuas quebradas dentro do seu
interior sagrado. O homem podia falhar no cumprimento dos votos que havia feito
voluntariamente; porém a lei de Deus tem de ser conservada em toda a sua integridade
divina e perfeição. Se Deus estabelecia o Seu trono no meio do Seu povo, só o podia
fazer de uma maneira digna de Si. O princípio do Seu juízo e governo deve ser perfeito.
"E farás varas de madeira de cetim, e as cobrirás com ouro. E meterás as varas nas
argolas, aos lados da arca, para se levar com elas a arca" (versículos 13 e 14). A arca do
concerto devia acompanhar o povo em todas as suas peregrinações. Nunca se deteve
enquanto eles se mantiveram como um exército em viagem ou no conflito: foi adiante
deles até ao meio do Jordão; foi o seu ponto de reunião em todas as guerras de Canaã;
era a garantia segura e certa do poder para onde quer que ia. Nenhum poder do inimigo
podia subsistir diante daquilo que era a expressão bem conhecida da presença e poder
de Deus. A arca devia ser a companheira inseparável de Israel no deserto; e as "varas" e
as "argolas" eram a expressão exata do seu caráter ambulante.

A Arca no Templo
Contudo, a arca não deveria viajar sempre. As "aflições" de Davi(Sl 132:1) bem como as
guerras de Israel deviam ter um fim. A oração, "Levanta-te, Senhor, no teu repouso, tu e a
arca da tua força" (SI 132:8) devia ainda de ser feita e atendida. Esta petição sublime teve
o seu cumprimento parcial nos dias auspiciosos de Salomão, quando "os sacerdotes
trouxeram a arca do concerto do SENHOR ao seu lugar, ao oráculo da casa, ao lugar
santíssimo, até debaixo das asas dos querubins. Porque os querubins estendiam ambas
as asas sobre o lugar da arca e cobriam a arca e os seus varais por cima. E os varais
sobressaíram tanto que as pontas dos varais se viam desde o santuário diante do oráculo,
porém de fora não se viam; e ficaram ali até ao dia de hoje' (1 Rs 8:6 - 8). A areia do
deserto devia ser trocada pelo piso de ouro do templo (1 Rs 6:30). As peregrinações da
arca haviam chegado ao seu termo: "adversário não havia, nem algum mau encontro", e,
portanto, fizeram sobressair os varais.
Esta não era a única diferença entre a arca no tabernáculo e no templo. O apóstolo,
falando da arca na sua habitação do deserto, descreve-a como "a arca do concerto,
coberta de ouro toda em redor, em que estava um vaso de ouro, que continha o maná, e
a vara de Arão, que tinha florescido, e as tábuas do concerto" (Hb 9:4). Estes eram os
objetos que a arca continha durante as suas jornadas no deserto—o vaso de maná era o
memorial da fidelidade do Senhor em prover a todas as necessidades dos Seus remidos
através do deserto, e a vara de Aarão era "um sinal para os filhos rebeldes" para acabar
com "as suas murmurações" (Compare-se Ex 16:32 - 34 e Nm 17:10). Porém, quando
chegou o momento em que "os varais" deviam ser retirados, logo que as peregrinações e
as guerras de Israel terminaram, quando "a casa magnífica em excelência" (1 Cr 22:5) foi
terminada, quando o sol da glória de Israel havia chegado, em figura, ao zênite com o
esplendor e a magnificência do reino de Salomão, então os memoriais das necessidades
e faltas do deserto desapareceram, e nada ficou senão aquilo que constituía o
fundamento eterno do trono do Deus de Israel e de toda a terra. "Aia arca, nada havia,
senão só as duas tábuas de pedra que Moisés ali pusera junto a Horebe" (I Rs 8:9).
Mas toda esta glória devia ser obscurecida pelas nuvens carregadas do fracasso humano
e o descontentamento de Deus. Os pés devastadores dos incircuncisos haviam ainda de
atravessar as ruínas dessa magnífica casa, e o desaparecimento do seu brilho e da sua
glória devia provocar o assobio dos estranhos (1 Reis 9:8). Este não é o momento de
continuar em pormenor este assunto; limitar-me-ei a referir ao leitor a última menção que
a Palavra de Deus faz da " arca do concerto" —uma passagem que nos transporta a uma
época em que a loucura humana e o pecado não perturbarão mais o lugar de repouso da
arca, e em que a arca não será guardada num tabernáculo de cortinas nem tampouco
num templo feito por mãos. "E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu
grandes vozes, que diziam-. Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do Seu
Cristo, e ele reinará para todo o sempre. E os vinte e quatro anciãos, que estão
assentados em seus tronos diante de Deus, prostraram-se sobre seu rosto e adoraram a
Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor, Deus Todo-Poderoso, que és, e que eras, e
que hás de vir, que tomaste o teu grande poder e reinaste. E iraram-se as nações, e veio
a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de dares o galardão
aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu nome, a pequenos e a
grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra. E abriu-se no céu o templo de
Deus, e a arca do seu concerto foi vista no seu templo; e houve relâmpagos, e vozes, e
trovões, e terremotos, e grande saraiva" (Ap 11.15 -19).

O Propiciatório
Segue-se por sua ordem o propiciatório. "Também farás um propiciatório de ouro puro; o
seu cumprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura, de um côvado e meio.
Farás também dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do
propiciatório. Farás um querubim na extremidade de uma parte e o outro querubim na
extremidade da outra parte; de uma só peça com o propiciatório farás os querubins nas
duas extremidades dele. Os querubins estenderão as suas asas por cima, cobrindo com
as suas asas o propiciatório; as faces deles, uma defronte da outra; as faces dos
querubins estarão voltadas para o propiciatório. E porás o propiciatório em cima da arca,
depois que houveres posto na arca o Testemunho, que eu te darei. E ali virei a ti e falarei
contigo de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins (que estão sobre a arca do
Testemunho), tudo que eu te ordenar para os filhos de Israel" (versículos 17 a 22).
Jeová declara aqui o Seu desígnio misericordioso de descer do monte ardente para tomar
o Seu lugar sobre o propiciatório. Podia fazer isto, visto que a tábuas da lei estavam
guardadas intactas na arca, e os símbolos do Seu poder, tanto na criação como na
providência, se elevavam à direita e à esquerda como acessórios inseparáveis deste
trono em que o Senhor Se havia assentado — um trono de graça fundado na justiça e
sustido pela justiça e o juízo. Ali brilha a glória do Deus de Israel. Dali emanavam os Seus
mandamentos suavizados e tornados agradáveis pela origem graciosa de onde saíam— à
semelhança do sol do meio-dia, cujos raios ao passarem através de uma nuvem vivificam
e fecundam sem que o seu resplendor nos cegue.
"Os seus mandamentos não são pesados" quando recebidos do propiciatório, porque
estão ligados com a graça que dá ouvidos para ouvir e o poder para obedecer.

O Único Lugar de Encontro


A arca e o propiciatório, considerados em conjunto como um todo, são para nós uma
figura admirável de Cristo, em Sua Pessoa e Sua obra. Havendo engrandecido a lei, na
Sua vida, e tornando-a honrosa, veio a ser, por meio da morte, a propiciação ou
propiciatório para todo aquele que crê. A misericórdia de Deus só podia repousar numa
base de perfeita justiça:".. .a graça reina pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo,
nosso Senhor" (Rm 5:21). O único lugar próprio para o encontro entre Deus e o homem é
aquele onde a graça e a justiça se encontram e se harmonizam perfeitamente. Nada
senão a justiça perfeita podia agradar a Deus; e nada senão a graça perfeita pode convir
ao pecador. Mas onde poderiam estes atributos encontrar-se? Somente na cruz. E ali que
a misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram (SI 85:10). E
assim que a alma do pecador crente encontra paz. Vê que a justiça de Deus e a sua
justificação repousam sobre o mesmo fundamento, isto é: a obra consumada por Cristo.
Quando o homem, sob a influência poderosa da verdade de Deus, toma o seu lugar como
pecador, Deus pode, no exercício da graça, tomar o Seu como Salvador, e então toda a
questão se acha solucionada, porque havendo a cruz respondido a todas as exigências
da justiça divina, os rios da graça podem correr sem impedimento. Quando o Deus justo e
o pecador se encontram sobre uma plataforma salpicada de sangue tudo está
solucionado para sempre — solucionado de maneira a glorificar Deus perfeitamente e
salvar o pecador para toda a eternidade. Seja Deus verdadeiro, ainda que todo o homem
seja mentiroso; e quando o homem é levado inteiramente ao ponto mais baixo da sua
condição moral diante de Deus e está pronto a aceitar o lugar que a verdade de Deus lhe
designa, então reconhece que Deus Se revelou como o Justo justificador. Isto deve dar
paz à consciência; e não apenas paz, mas concede a capacidade de comungar com Deus
e de ouvir os Seus santos preceitos no conhecimento daquela relação em que a graça
divina nos introduziu.
Por isso, "o lugar santíssimo" oferece-nos uma cena verdadeiramente admirável. A arca,
o propiciatório, os querubins, a glória! Que espetáculo para o sumo sacerdote de Israel
quando entrava dentro do véu! Que o Espírito de Deus abra os olhos do nosso
entendimento de modo a podermos compreender melhor o profundo significado destes
símbolos preciosos.

A Mesa do Pão da Proposição


Moisés recebe em seguida instruções quanto "à mesa dos pães da proposição", ou pães
de apresentação. Sobre esta mesa estava disposto o alimento dos sacerdotes de Deus.
Durante sete dias os doze pães de "flor de farinha com incenso" estavam dispostos na
presença do Senhor, depois do que, sendo substituídos por outros, eram o alimento dos
sacerdotes, que comiam deles no lugar santo (veja-se Lv 24:5-9).
Escusado será dizer que esses doze pães simbolizam "o homem Cristo Jesus". A "fiorde
farinha" da qual eram compostos, mostra a Sua perfeita humanidade, enquanto que "o
incenso" indica a inteira consagração dessa humanidade a Deus. Se Deus tem os Seus
sacerdotes ministrando no lugar santo, terá certamente uma mesa para eles, e uma mesa
bem fornecida também. Cristo é a mesa e o pão sobre ela. A mesa pura e os doze pães
mostram Cristo, presente incessantemente diante de Deus em toda a excelência da Sua
imaculada humanidade e como alimento para a família sacerdotal. Os "sete dias"
mostram a perfeição do gozo divino em Cristo; e os "doze pães" exprimem este gozo no
homem e pelo homem. É possível que exista também a ideia de ligação de Cristo com as
doze tribos de Israel e os doze apóstolos do Cordeiro.

O Candelabro
O castiçal de ouro puro vem a seguir, porque os sacerdotes de Deus têm necessidade de
Luz bem como de alimento: e têm tanto uma coisa como a outra em Cristo. Neste castiçal
não se faz menção de outra coisa que não seja ouro. "Tudo será de uma só peça, obra
batida de ouro puro" (versículo 36). "As sete lâmpadas", as quais se "acenderão para
alumiar defronte dele", exprimem a perfeição da luz e energia do Espírito, baseadas e
ligadas com a eficácia perfeita da obra de Cristo. A obra do Espírito Santo nunca poderá
ser separada da obra de Cristo. Isto é indicado, de um modo duplo, nesta magnífica
imagem do castiçal de ouro. As sete lâmpadas estando ligadas à cana de ouro batido
indicam-nos a obra cumprida por
Cristo como a única base da manifestação do Espírito na Igreja. O Espírito Santo não foi
dado antes de Jesus ter sido glorificado (comparem-se João 7:39 com Atos 19:2 a 6). Em
Apocalipse, capítulo 3, Cristo é apresentado à igreja de Sardes como Aquele que tem "os
sete espíritos". Quando o Senhor Jesus foi exaltado à destra de Deus, então derramou o
Espírito Santo sobre a Sua Igreja, a fim de que ela pudesse brilhar segundo o poder e a
perfeição da sua posição no lugar santo, a sua própria esfera de ser, de ação e de culto.
Vemos, também, que uma das funções particulares de Arão consistia em acender e
espevitar essas sete lâmpadas. "E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos
de Israel que te tragam azeite de oliveira puro, batido, para a luminária, para acender as
lâmpadas continuamente. Arão as porá em ordem perante o SENHOR continuamente,
desde a tarde até à manhã, fora do véu do Testemunho, na tenda da congregação;
estatuto perpétuo é pelas vossas gerações. Sobre o castiçal puro porá em ordem as
lâmpadas, perante o SENHOR, continuamente" (Lv 24:1-4). Desta maneira, podemos ver
como a obra do Espírito Santo na Igreja está ligada com a obra de Cristo na terra e a Sua
obra no céu. "As sete lâmpadas" estavam no tabernáculo, evidentemente, mas a atividade
e diligência do sacerdote eram necessárias para as manter acesas e espevitadas. O
sacerdote necessitava continuamente dos "espevitadores" e dos "apagadores" para
remover tudo que pudesse impedir o livre curso do "azeite batido". Esses espevitadores e
apagadores eram igualmente feitos de "ouro batido" porque todas essas coisas eram o
resultado imediato da operação divina. Se a Igreja brilha, é unicamente pela energia do
Espírito, e esta energia está fundada em Cristo, que, em virtude do desígnio eterno de
Deus, veio a ser, em Seu sacrifício e sacerdócio, o manancial e poder de todas as coisas
para a Sua Igreja. Tudo é de Deus. Quer olhemos para dentro desse véu misterioso e
contemplemos a arca com a sua coberta e as duas figuras significativas, ou admiremos o
que está da parte de fora desse véu, a mesa pura e o castiçal puro, com os seus vasos e
respectivos utensílios — tudo nos fala de Deus, quer seja revelando-Se em ligação com o
Filho ou o Espírito Santo.
A chamada celestial coloca o leitor cristão no próprio centro de todas estas preciosas
realidades. O seu lugar não está apenas no meio das" figuras das coisas que estão no
céu", mas no meio das "próprias coisas celestiais". Tem "ousadia para entrar no santuário
pelo sangue de Jesus". É sacerdote para Deus. O pão da proposição lhe pertence. O seu
lugar é à mesa pura, para comer o pão sacerdotal, na luz. do Espírito Santo. Nada o
poderá privar desses privilégios divinos. São seus para sempre. Esteja em guarda contra
tudo que possa privá-lo do gozo deles. Guarde-se contra toda a irritabilidade, a cobiça, de
todo o sentimento e imaginações. Domine a sua natureza, lance o mundo fora de seu
coração, afugente Satanás. Que o Espírito Santo encha inteiramente a sua alma de
Cristo. Então será praticamente santo e sempre ditoso. Dará fruto, e o Pai celestial será
glorificado, e o seu gozo será completo.

— CAPÍTULO 26 —

A ESTRUTURA DO
TABERNÁCULO

Os Materiais
Esta parte do livro do Êxodo inclui a descrição das cortinas e da cobertura do tabernáculo,
nas quais a mente espiritual discerne as sombras das várias fases e traços do caráter de
Cristo. "E o tabernáculo farás de dez cortinas de linho fino torcido, e pano azul, e púrpura,
e carmesim; com querubins as farás, de obra esmerada". Aqui temos os diferentes
aspectos do "homem Jesus Cristo" (1 Tm 2:5). O "linho fino torcido" representa a pureza
imaculada da Sua vida e do Seu caráter; enquanto que o "azul, púrpura e carmesim" no-
Lo apresentam como "o Senhor do céu", que deve reinar segundo os desígnios divinos,
mas Cuja realeza deve ser o resultado dos Seus sofrimentos. Desta forma, temos n'Ele
um homem puro, homem celestial, régio e sofredor. Os diferentes materiais mencionados
aqui não eram apenas limitados às "cortinas" do tabernáculo, como deviam ser também
usados para o "véu" (versículo 31), a "coberta" da porta da tenda" (versículo 36), a
coberta da "porta do pátio" (capítulo 27:16), e "os vestidos do ministério" e "os vestidos
santos para Arão" (capítulo 39:1). Em suma, era Cristo em todo as partes, Cristo em tudo,
somente Cristo (¹).
__________________
(¹) A expressão "puro e resplandecente" (Ap 19:8) dá força e formosura peculiar ao
símbolo que o Espírito Santo nos apresenta no "linho fino torcido". Com efeito, não é
possível encontrar-se um emblema mais exato de natureza imaculada.

O Linho Torcido
O "linho fino torcido", como figura da humanidade imaculada de Cristo, abre um
manancial precioso e abundante de pensamento para a inteligência espiritual: dá-nos um
tema sobre o qual nunca é demais meditar. A verdade quanto à humanidade de Cristo
deve ser recebida com toda a exatidão escriturai, mantida com energia espiritual,
guardada com santo zelo e confessada com poder celestial. Se estivermos enganados
quanto a este ponto de capital importância não podemos estar dentro da verdade sobre
coisa alguma. É uma verdade essencial e fundamental, e se não for recebida, defendida e
confessada tal qual Deus a revelou na Sua santa Palavra, todo o edifício não terá solidez.
Nada pode ser mais deplorável que o relaxamento que parece prevalecer e predominar
nos pensamentos e expressões de alguns sobre esta doutrina tão importante. Se
houvesse mais reverência pela palavra de Deus, haveria um conhecimento dela mais
perfeito; e, deste modo, evitar-se-iam essas declarações errôneas e irrefletidas que
certamente devem entristecer o Espírito de Deus, Cuja incumbência é testemunhar de
Jesus. Quando o anjo anunciou a Maria as boas novas do nascimento do Salvador, ela
disse-lhe: "Como se fará isto, visto que não conheço varão"?- "A sua fraca inteligência era
incapaz de compreender, muito menos profundar, o estupendo mistério de "Deus
manifestado em carne" (l Tm 3:16). Mas note-se com atenção a resposta do anjo—
resposta dada não a um espírito céptico, mas a um coração piedoso, embora ignorante.
"Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra;
pelo que também o Santo que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus" (Lc 1:34-
35). Maria imaginava, sem dúvida que este nascimento deveria ter lugar segundo os
princípios ordinários da geração. Mas o anjo corrige o seu equívoco, e, corrigindo-o,
anuncia uma das maiores verdades da revelação. Declara que o poder divino estava
prestes a formar UM HOMEM VERDADEIRO—" o segundo homem, o Senhor do céu" (1
Co 15:47): um homem cuja natureza seria divinamente pura, inteiramente incapaz de
receber ou de comunicar a mais pequena mancha. Este Ser santo foi formado, à
"semelhança da carne do pecado", sem pecado na carne. Participou inteiramente da
carne e do sangue sem uma partícula ou sombra de mal ligado com eles.
Esta verdade é de primacial importância, nunca será retida com fidelidade e firmeza
excessiva. A encarnação do Filho, a segunda Pessoa da Trindade eterna, a Sua entrada
misteriosa em carne pura e sem mácula, formada pelo poder do Altíssimo, no ventre da
virgem, é o fundamento do "mistério da piedade" (I Tm 3:16), do qual a cimalha é o Deus-
homem glorificado no céu, a Cabeça, Representante e Modelo da Igreja remida de Deus.
A pureza essencial da Sua humanidade satisfez perfeitamente as exigências de Deus;
enquanto que a sua realidade correspondia às necessidades do homem. Era homem,
porque só um homem podia responder pela ruína do homem. Porém, era homem tal que
podia dar satisfação a todas as exigências do trono de Deus. Era um homem imaculado,
verdadeiro homem, em quem Deus podia achar o Seu agrado, e em quem o homem
podia apoiar-se sem reservas.
Não é preciso recordar ao leitor esclarecido que tudo isto, separado da morte e
ressurreição, é perfeitamente inútil para nós. Nós tínhamos necessidade não somente de
um Cristo encarnado, mas de um Cristo crucificado e ressuscitado. Na verdade, Ele fez-
se carne para ser crucificado; mas é por Sua morte e ressurreição que a Sua encarnação
veio a ser eficaz para nós. É um erro moral crer que Cristo tomou o homem em união
consigo na encarnação. Isto era impossível. Ele Próprio ensina expressamente o
contrário. "Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não
morrer, fica ele só; mas se morrer dá muito fruto" (Jo 12:24). Não podia haver nenhuma
união entre carne santa e pecaminosa, pura e impura, corruptível e incorruptível, mortal e
imortal. A morte é a única base de união entre Cristo e os Seus membros eleitos. É em
ligação com as palavras "levantai-vos, vamos" (Mc 14:42) que o Senhor diz: "Eu sou a
videira, vós as varas" (Jo 15:5). Porque "se fomos plantados juntamente com ele na
semelhança da sua morte... o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja desfeito" (Rm 6:5-6). "No qual também estais circuncidados, com a
circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a circuncisão de Cristo.
Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus,
que o ressuscitou dos mortos" (Cl 2:11-12).
Os capítulos 6 de Romanos e 2 de Colossenses nos dão um relato pormenorizado da
verdade sobre este importante assunto. Foi unicamente como morto e ressuscitado que
Cristo e o Seu povo puderam tornar-se em um. O verdadeiro grão de trigo tinha de cair na
terra e morrer antes que a espiga pudesse ser formada e recolhida no celeiro celestial.
Porém, embora isto seja uma verdade claramente revelada nas Escrituras, é igualmente
claro que a encarnação formava, por assim dizer, os alicerces do glorioso edifício; e as
cortinas de "linho fino" apresentam-nos, em figura, a beleza moral do "Homem Jesus
Cristo". Já vimos a maneira como Ele foi concebido; e, ao longo do curso da Sua vida aqui
na terra, encontramos exemplos e mais exemplos da mesma imaculada pureza. Passou
quarenta dias no deserto, sendo tentado pelo diabo, mas nada em Sua natureza
respondeu às vis sugestões do tentador. Podia tocar os leprosos sem ser contaminado.
Podia tocar o esquife de um defunto sem contrair o fedor da morte. Podia passar incólume
pela atmosfera mais contaminada. Era, quanto à Sua humanidade, como um raio de sol
que vinha da fonte de luz, o qual pode passar, sem ser atingido, pelo ambiente de maior
contaminação. Foi perfeitamente único em natureza, caráter e constituição.
Só Ele podia dizer: "Não permitirás que o teu santo veja corrupção" (Sl 16:10). Isto estava
em relação com a Sua humanidade, que, sendo perfeitamente santa e pura, podia levar o
pecado. "Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro" (1 Pe
2:24). Não no madeiro, como alguns querem ensinar-nos, mas "sobre o madeiro". Foi na
cruz que Cristo levou os nossos pecados, e somente ali. "Aquele que não conheceu
pecado, o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5:21).

O Azul
"Azul" é a cor etérea e indica o caráter celestial de Cristo, o Qual, a despeito de ter
entrado em todas as circunstâncias de verdadeira e autêntica humanidade—exceto o
pecado—era "o Senhor do céu"
(1 Co 15:47). Sendo homem verdadeiro, andou sempre com o sentimento da Sua própria
dignidade, como estrangeiro celestial: jamais olvidou donde tinha vindo, onde estava ou
para onde ia. A fonte de todo o Seu gozo estava nas alturas. A terra não podia fazê-lo
mais rico nem mais pobre. Achou que este mundo era "uma terra seca e cansada, onde
não havia água" (Sl 63:1); e, por isso, o Seu espírito só podia dessedentar-se nas alturas.
Era inteiramente celestial: "...ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho
do Homem, que está no céu" (Jo 3:16).

A Púrpura
"Púrpura" indica realeza, e mostra-nos Aquele que havia "nascido rei dos judeus", que Se
apresentou como tal à nação judaica e foi rejeitado; que fez uma boa confissão perante
Pôncio Pilatos, declarando-Se rei, quando, para a visão humana, não havia um simples
traço de realeza. "Tu dizes que eu sou rei" (Jo 18:37). E ".. .vereis em breve o Filho do
homem assentado à direita do poder e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26:64). E, por
fim, a inscrição sobre a Sua cruz, em hebraico, grego e latim—a linguagem da religião, da
ciência e do governo—declara, perante todo o mundo, que Ele era "Jesus Nazareno, Rei
dos Judeus". A terra negou-Lhe os Seus direitos — desgraçadamente para ela—mas não
aconteceu o mesmo com o céu: ali os Seus direitos foram plenamente reconhecidas. Foi
recebido como um vencedor nas moradas eternas da luz, coroado de glória e honra, e
assentou-Se, por entre aclamações dos exércitos celestiais, no trono da majestade nas
alturas, até que Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés. "Por que se
amotinam as nações e os povos imaginam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os
príncipes juntos se mancomunam contra o SENHOR e contra o seu ungido, dizendo:
Rompamos as suas ataduras e sacudamos de nós as suas cordas. Aquele que habita nos
céus se rirá; o Senhor zombará deles. Então, lhes falará na sua ira, e no seu furor o
confundirá. Eu, porém, ungi o meu Rei sobre o meu santo monte Sião. Recitarei o
decreto: O SENHOR me disse: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei
as nações por herança e os confins da terra por tua possessão.
Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os despedaçarás como a um vaso de
oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao
SENHOR com temor e alegrai-vos com tremor. Beijai o Filho, para que se não ire, e
pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira. BEM-AVENTURADOS
TODOS AQUELES QUE NELE CONFIAM" (Salmo 2).

O Carmesim
O "carmesim", quando genuíno, é produzido pela morte e f ala-nos dos sofrimentos de
Cristo:".. .Cristo padeceu por nós na carne" (1 Pe 4:1). Sem morte, tudo teria sido inútil.
Podemos admirar "o azul" e a "púrpura", mas sem o "carmesim" o tabernáculo teria
perdido um aspecto importante. Foi por meio da morte que Cristo destruiu aquele que
tinha o império da morte. O Espírito Santo, pondo diante de nós uma figura admirável de
Cristo — o verdadeiro tabernáculo —, não podia omitir aquela fase do Seu caráter que
constitui o fundamento da Sua união com o Seu corpo, a Igreja, o Seu direito ao trono de
Davi e o senhorio de toda a criação. Em suma, o Espírito não somente nos mostra o
Senhor Jesus, nestas cortinas simbólicas, como homem imaculado, homem real, mas
também como homem sofredor; aquele que, por meio da morte, adquiriu o direito àquilo
que, como homem, tinha direito nos desígnios divinos.

A Primeira Cortina
Contudo, as cortinas do tabernáculo não são apenas a expressão dos diferentes aspectos
do caráter de Cristo, como põem também em evidência a unidade e firmeza desse
caráter. Cada um desses aspectos está exposto na sua própria perfeição; e nunca
interfere com ou prejudica a beleza de outro. Tudo era harmonia perfeita aos olhos de
Deus e foi assim apresentado no "modelo que no monte se mostrou" a Moisés e na sua
reprodução no meio do povo. "Cinco cortinas se enlaçarão à outra; e as outras cinco
cortinas se enlaçarão uma com a outra" (versículo 3). Tal era a proporção e firmeza em
todos os caminhos de Cristo, como homem perfeito, andando pelo mundo, em qualquer
situação ou relação que O considerarmos. Quando atua segundo um desses caracteres,
não encontramos absolutamente nada que seja incompatível com a integridade divina de
outro. Ele foi, em todo o tempo, em todo o lugar e em todas as circunstâncias, o homem
perfeito. Nada n'Ele faltava a essa encantadora e bela proporção que Lhe era própria, em
todos os Seus atos. "Todas estas cortinas serão de uma medida"(versículo 2).
Um par de cinco cortinas pode muito bem simbolizar os dois aspectos principais do
caráter de Cristo atuando a favor de Deus e do homem. Vemos os mesmos dois aspectos
na lei, a saber, o que era devido a Deus e o que era devido ao homem; de forma que,
quanto a Cristo, se olharmos de passagem, vemos que Ele podia dizer, "a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40); e se pensarmos na Sua conduta, vemos esses dois
elementos ordenados com perfeita precisão, e não só ordenados, mas inseparavelmente
unidos pela graça celestial e a energia divina que habitaram na Sua gloriosa Pessoa.
"E farás laçadas de pano azul na ponta de uma cortina, na extremidade, na juntura; assim
também farás na ponta da extremidade da outra cortina, na segunda juntura... Farás
também cinquenta colchetes de ouro, e ajuntarás com estes colchetes as cortinas, uma
com a outra e será um tabernáculo" (versículos 4 e 6). Nas "laçadas" de azul e nos
"colchetes de ouro" temos a manifestação daquela graça celestial e energia divina em
Cristo que Lhe proporcionou ligar e harmonizar perfeitamente as reivindicações de Deus e
as pretensões do homem; de forma que, satisfazendo tanto umas como outras, Ele
nunca, nem por um momento, perturbou o Seu caráter. Quando os homens astutos e
hipócritas o tentaram com a pergunta: "É lícito pagar o tributo a César, ou não?" a Sua
resposta foi, "Dai... a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22:17-21).
Nem foi apenas César, mas o homem em todas as suas relações que recebeu a resposta
a todas as suas pretensões em Cristo. Da mesma maneira que reuniu na Sua Pessoa a
natureza de Deus e humana, satisfez em Seus passos de perfeição as exigências de
Deus e as pretensões do homem. Seria muito interessante seguir, através da narrativa do
evangelho, a exemplificação do princípio sugerido pelas "laçadas de azul" e os "colchetes
de ouro"; devo, porém, deixar que o leitor prossiga este estudo sob a direção do Espírito
Santo, o Qual deseja alargar-Se sobre cada aspecto d 'Aquele bendito Senhor que é Seu
propósito exaltar.

A Cortina de Pelos de Cabras


A primeira cortina (na verdade, um par de cinco cortinas) era encoberta por outras de
"pelos de cabras" (versículos 7 a 13). Sua beleza estava escondida para os de fora por
aquilo que indicava aspereza e severidade. Para aqueles que tinham o privilégio de entrar
no recinto sagrado nada era visível senão o "azul", a púrpura", o "carmesim" e o "linho fino
torcido"—a exposição combinada das virtudes e excelência desse tabernáculo divino no
qual Deus habitou atrás do véu: isto é, Cristo, por Cuja carne, o antítipo de todas estas
coisas, os raios dourados da natureza divina brilharam tão delicadamente que o pecador
podia vê-los acabrunhado pelo seu brilho deslumbrante.
Quando o Senhor Jesus passou por este mundo, quão poucos foram aqueles que
realmente o conheceram! Quão poucos tiveram os olhos ungidos com colírio celestial
para penetrarem e apreciarem o profundo mistério do Seu caráter! Quão poucos viram o
"azul", a "púrpura", o "carmesim" e o "linho fino torcido"! Foi só quando a fé trouxe o
homem à sua presença que Ele pôde consentir que o esplendor daquilo que Ele era
brilhasse — deixou que a glória atravessasse a nuvem. Para a visão natural era como se
houvesse uma reserva e severidade à Sua volta, que era justamente simbolizada pelas
"cortinas de pelos de cabras". Tudo isto era o resultado da Sua profunda separação e
apartamento, não dos pecadores pessoalmente, mas dos pensamentos e máximas dos
homens. Nada tinha em comum com o homem, nem estava dentro do âmbito da natureza
humana compreendê-Lo. "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não
trouxer"; e quando um daqueles que haviam sido trazidos confessou o Seu nome, disse-
lhe que não fora a carne que lho revelara, "mas meu Pai que está nos céus" (compare Jo
6:44 e Mt 16:17). Ele era "como raiz de uma terra seca", sem "parecer" nem "formosura"
para atrair a vista ou satisfazer o coração do homem. A corrente da opinião pública nunca
poderia correr na direção d'Aquele que, passando rapidamente pelo palco deste mundo,
ia envolto numa "cortina de pelos de cabras". Jesus não foi popular. A multidão pôde
segui-Lo por um momento, porque, para ela, o Seu ministério estava ligado com "os pães
e os peixes", que respondiam à sua necessidade; mas estava igualmente tão pronta a
clamar: "Tira, tira, crucifica-o" como a exclamar "Hosana ao Filho de Davi!"(Mt 21:9). Que
os cristãos, os servos de Cristo, os pregadores do evangelho se lembrem disto! Que
todos nós e cada um em particular se lembre sempre das "cobertas de pelos de cabras".

A Cortina de Peles de Carneiros Tintas de Vermelho


Porém se as peles de cabras representavam o rigor da separação de Cristo do mundo, as
"peles de carneiro, tintas de vermelho, representam a Sua consagração e afeto a Deus,
mantidos mesmo até à morte. Ele foi o único servo perfeito que trabalhou na vinha de
Deus. Teve um só fim, que prosseguiu com firme propósito desde a manjedoura até à
cruz, e este foi glorificar o Pai e consumar a Sua obra. "Não sabeis que me convém tratar
dos negócios de meu Pai?-" Era a linguagem da Sua mocidade e o cumprimento desses
"negócios" era o fim da Sua vida. A Sua comida era fazer a vontade d'Aquele que o tinha
enviado e cumprir a Sua obra (Jo 4:34). As "peles de carneiro tintas de vermelho" formam
uma parte tão distinta do Seu hábito normal como os "pelos de cabras". A sua devoção
por Deus separava-O dos hábitos dos homens.

A Cortina de Peles de Texugo


"As peles de texugo" parece indicarem a santa vigilância com que o Senhor Jesus estava
em guarda contra a aproximação de tudo que era hostil ao fim que absorvia toda a Sua
alma. Ele tomou a Sua posição ao lado de Deus e manteve-a com uma persistência que
nenhuma influência dos homens ou demônios, da terra ou do inferno, pôde jamais vencer.
A coberta de peles de texugo estava por "cima" (versículo 14), ensinando-nos que o
aspecto proeminente do caráter do "Homem Cristo Jesus" era a determinação de ser uma
testemunha de Deus na terra. Foi o verdadeiro Nabote, que preferiu dar a Sua vida a
renunciar à verdade de Deus, ou abandonar aquilo para que havia tomado o Seu lugar
neste mundo.
A cabra, o carneiro e o texugo devem ser considerados como representando certos
aspectos naturais e simbolizando também certas qualidades morais, e devem tomar-se
em conta na sua aplicação ao caráter de Cristo. A vista humana só podia distinguir o
aspecto natural, porém não podia ver nada da graça moral, beleza e dignidade que se
ocultavam debaixo da forma exterior do desprezado e humilde Jesus de Nazaré. Quando
os tesouros de sabedoria divina fluíam dos Seus lábios, a interrogação daqueles que O
ouviam era esta: "Não é este o carpinteiro?" (Mc 6:3). "Como sabe este letras, não as
tendo aprendido"?-" (Jo 7:15). Quando declarava que era o Filho de Deus e afirmava a
Sua divindade eterna, respondiam-lhe: "Ainda não tens cinquenta anos", ou pegavam "em
pedras para lhe atirar" (Jo 8:57- 59). Em suma, a confissão dos fariseus, "este não
sabemos donde é" (Jo 9:29) era verdadeira.
Seria completamente impossível, num volume como este, seguir o desenrolar dos
aspectos preciosos do caráter de Cristo, que nos mostra o relato do evangelho. Dissemos
o bastante para abrir ao leitor um manancial de meditação espiritual e dar uma ideia dos
tesouros preciosos que estão envolto nas cortinas e cobertas do tabernáculo. O mistério
de Cristo, motivos secretos de ação e suas perfeições inerentes — a Sua aparência
exterior desprovida de atrativos —, aquilo que Ele era em Si Mesmo, o que era para
Deus, e o que era para os homens, o que era segundo o juízo da fé e no parecer da
natureza, tudo isto estava agradavelmente relatado aos ouvidos circuncidados pelas
cortinas de azul, púrpura, carmesim e linho fino torcido, bem como na cobertura de peles.

As Tábuas e suas Bases de Prata


"As tábuas para o tabernáculo" (versículo 15) eram feitas da mesma madeira que era
usada na "arca do concerto". Demais, debaixo das tábuas havia bases de prata
proveniente do resgate—os "colchetes" e as "molduras" eram igualmente de prata
(compare-se atentamente o capítulo 30:11 a l6 com o capítulo 38:25 a 28). O vigamento
da tenda do tabernáculo descansava todo sobre bases daquilo que indicava a expiação
ou o resgate da alma; enquanto que os "colchetes" e as "molduras" da parte superior
reproduziam o mesmo pensamento. As bases de prata estavam metidas na areia e os
colchetes e as molduras estavam em cima. Qualquer que seja a profundidade a que
penetrarmos ou a altura que alcançarmos acharemos esta verdade gloriosa e eterna
brasonada: "JÁ ACHEI RESGATE" (Jó 33:24). Bendito seja Deus, não somos resgatados
"com coisas corruptíveis, como prata ou ouro,.. .mas com o precioso sangue de Cristo,
como de um cordeiro imaculado e incontaminado" (I Pe 1:19).

Os Véus que Fecharam as Entradas


O tabernáculo estava dividido em três partes distintas: "O lugar santíssimo", "o santuário"
e "o pátio do tabernáculo". A entrada para cada uma destas partes era feita dos mesmos
materiais, "azul, púrpura, carmesim e linho fino torcido" (compare-se o capítulo 26:31 e 36
com 27:16). A sua interpretação é simples: Cristo é a única porta de entrada aos vários
campos de glória que hão de ser ainda revelados, quer seja na terra, no céu ou no céu
dos céus.
"Toda a família nos céus e na terra" (Ef 3:15) será posta sob a Sua autoridade e
introduzida na felicidade e glória eternas, em virtude da expiação que Ele fez. Isto é bem
claro e não exige esforço de imaginação para ser compreendido. Sabemos que é
verdadeiro, e quando conhecemos a verdade que é simbolizada, o símbolo é facilmente
compreendido. Se os nossos corações estivessem cheios de Cristo, não nos perderemos
na nossa interpretação do tabernáculo e seus acessórios. Não é de um intelecto cheio de
criticismo que precisamos neste estudo, mas de um coração cheio de amor por Jesus e
uma consciência em paz pelo sangue da cruz.
Que o Espírito Santo nos prepare para o estudo destas coisas com um maior interesse e
inteligência! Que Ele abra os nossos olhos para que contemplemos as maravilhas da lei.

— CAPÍTULO 27 —

O ALTAR DE COBRE
E O ÁTRIO

O Altar de Incenso não Mencionado


Deparamos agora com o altar de cobre que estava à porta do tabernáculo, e quero
chamar a atenção do leitor para a ordem seguida pelo Espírito Santo nesta parte do livro.
Já fizemos notar que a passagem compreendida entre o capítulo 25 e o versículo 19 do
capítulo 27 forma uma parte distinta, que nos dá uma descrição da arca e do propiciatório,
da mesa e do castiçal, das cortinas e do véu, e, por fim, do altar de cobre e do pátio em
que estava esse altar colocado. Lendo os versículos 15 do capítulo 35, 25 do capítulo 37
e 26 do capítulo 40, vemos que o altar do incenso está mencionado entre o castiçal e o
altar de cobre. Ao passo que, quando o Senhor dá instruções a Moisés, o altar de cobre é
introduzido imediatamente depois do castiçal e das cortinas do tabernáculo. Ora, visto que
deve haver uma razão divina para esta diferença, é privilégio de todo o estudioso
inteligente e aplicado da Palavra de Deus indagar qual era essa razão.
Qual é a razão, portanto, por que o Senhor, quando dá instrução quanto aos adornos do
"santuário", omite o altar de incenso e passa ao altar de cobre que estava à porta do
tabernáculo*?- A razão, presumo, é simplesmente esta: descreve primeiro a maneira em
que há de manifestar-Se ao homem, e depois indica a forma de o homem se aproximar de
Si. Tomou o Seu lugar no trono; como o "Senhor de toda a terra" (Js 3:11 e 13): os raios
da Sua glória estavam ocultos atrás do véu—figura da carne de Cristo (Hb 10:20); porém,
fora do véu, estava a manifestação de Si Mesmo, em ligação com o homem, na "mesa
pura", e, pela luz e poder do Espírito Santo, representados no castiçal. Depois vem o
caráter de Cristo como homem aqui na terra, representado nas cortinas e nas cobertas do
tabernáculo. E finalmente temos o altar de cobre como a grande exibição do lugar de
encontro entre o Deus santo e o pecador. Isto leva-nos, com efeito, à extremidade, de
onde voltamos, na companhia de Arão e seus filhos, ao santuário, o lugar normal dos
sacerdotes, onde estava o altar do incenso. Desta forma a ordem é notavelmente
formosa. Do altar de ouro, não se faz menção antes que haja sacerdote para queimar
incenso sobre ele, porque o Senhor mostrou a Moisés o modelo das coisas nos céus
segundo a ordem em que estas coisas devem ser atendidas pela fé. Por outra parte,
quando Moisés dá instruções às consagrações (capítulo 35), quando dá conta dos
trabalhos de Bezaleel e Aoliabe (capítulos 37 e 38), e quando levanta o tabernáculo
(capítulo 40), segue simplesmente a ordem em que os utensílios estavam colocados.

O Altar de Cobre
O prosseguimento deste estudo tão interessante, e o confronto das passagens acima
mencionadas, recompensarão amplamente o leitor. Passemos agora ao altar de cobre.
Este altar era o lugar onde o pecador se aproximava de Deus, pelo poder e em virtude do
sangue da expiação. Estava colocado à porta do tabernáculo da "tenda da congregação",
e sobre ele era derramado todo o sangue dos sacrifícios. Era construído de "madeira de
cetim e cobre". A madeira era a mesma do altar de ouro do incenso, mas o metal era
diferente, e a razão desta diferença é obvia. O altar de bronze era o lugar onde o pecado
era tratado segundo o juízo divino. O altar de ouro era o lugar onde o perfume precioso da
aceitabilidade de Cristo subia para o trono de Deus. A "madeira de cetim", como figura da
humanidade de Cristo, era a mesma num caso e no outro; porém no altar de cobre vemos
Cristo sob o fogo da justiça divina; no altar de ouro vemos como Ele satisfaz os afetos
divinos. No primeiro, o fogo da ira divina foi apagado, no último, o fogo do culto sacerdotal
é aceso. A alma deleita-se de encontrar Cristo tanto num como no outro; porém o altar de
cobre é o único que responde às necessidades de uma consciência culpada, como a
primeira coisa para um pobre pecador desamparado, necessitado e convicto. Não é
possível haver paz sólida, quanto à questão do pecado, enquanto o olhar da fé não
descansar em Cristo como o antítipo do altar de cobre. É necessário que eu veja o meu
pecado reduzido a cinzas na fornalha desse altar, antes de poder gozar de paz de
consciência na presença de Deus. É quando sei, pela fé no testemunho de Deus, que Ele
Próprio tratou do meu pecado na Pessoa de Cristo, no altar de cobre—que deu satisfação
a todas as Suas justas exigências —, que tirou o meu pecado da Sua santa presença, de
modo que nunca mais pode voltar, que posso gozar paz divina e eterna — e não antes.

O Ouro e o Cobre
Quero fazer aqui uma observação sobre o significado do "ouro" e do "cobre" nos
utensílios do tabernáculo. O "ouro" é símbolo da justiça divina, ou da natureza divina no
"Homem Jesus Cristo". "Cobre" é o símbolo da justiça, pedindo o julgamento do pecado,
como no altar de cobre; ou o julgamento da impureza, como na pia de cobre. Isto explica
a razão por que dentro da tenda do tabernáculo tudo era ouro — a arca, o propiciatório, a
mesa, o castiçal e o altar do incenso. Todas estas coisas eram os símbolos da natureza
divina e da excelência pessoal inerente do Senhor Jesus Cristo. Por outro lado, fora da
tenda do tabernáculo tudo era cobre—o altar de cobre e os seus utensílios, a pia e a sua
base.
É preciso que as exigências da justiça, quanto ao pecado e à impureza, sejam
divinamente satisfeitas antes que possa haver alguma alegria pelos preciosos mistérios
da Pessoa de Cristo, tais como nos são revelados no interior do santuário de Deus. É
quando posso ver todo o pecado e impureza perfeitamente julgados e lavados que posso,
como sacerdote, aproximar-me e adorar no santuário, e gozar a plena manifestação da
formosura e perfeição do Deus Homem, Cristo Jesus.
O leitor poderá, com muito proveito, prosseguir com a aplicação deste pensamento em
pormenor, não apenas no estudo do tabernáculo e o templo, mas também em várias
passagens da Palavra de Deus; por exemplo, no capítulo 1 de Apocalipse Cristo aparece
"cingido pelos peitos com um cinto de ouro" e tendo os Seus "pés semelhantes a latão
reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha". O "cinto de ouro" é o símbolo
da Sua justiça intrínseca. Os pés semelhantes a latão reluzente" são a expressão do juízo
inflexível sobre o mal- o Senhor não pode tolerar o mal, antes pelo contrário, tem de
esmagá-lo debaixo dos Seus pés.
Tal é o Cristo com Quem temos de tratar. Julga o pecado, mas salva o pecador. A fé vê o
pecado reduzido a cinzas no altar de cobre; vê toda a impureza lavada na pia de cobre; e,
finalmente, goza de Cristo, tal como é revelado, no secreto da presença divina, pela luz e
poder do Espírito Santo. A fé acha-O no altar de ouro, em todo o valor da Sua
intercessão. Alimenta-se d'Ele à mesa pura. Reconhece-O na arca e no propiciatório
como Aquele que responde a todas as exigências da justiça divina, e, ao mesmo tempo,
satisfaz todas as necessidades humanas. Contempla-O no véu, como todas as figuras
místicas. Vê escrito o Seu nome precioso em todas as coisas. Oh, que os nossos
corações estejam sempre prontos a apreciar e louvar este Cristo incomparável e glorioso!

Nada pode ser de tanta importância como o conhecimento claro da doutrina do altar de
cobre; quero dizer, como é ensinada por meio dele. E devido à falta de clareza sobre este
ponto que muitas almas se lamentam toda a vida. A questão da sua culpa nunca foi clara
e completamente liquidada no altar de cobre. Nunca chegaram a realizar pela fé que o
Próprio Deus liquidou para sempre, na cruz, a questão dos seus pecados. Buscam paz
para as suas consciências atribuladas na regeneração e a sua evidência—os frutos do
Espírito, a sua disposição, sentimentos e experiência —, coisas muito boas e valiosas em
si, mas que não formam o fundamento da paz. E o conhecimento daquilo que Deus tem
feito no altar de cobre que enche a alma de paz. As cinzas no altar contam-me a história
que TUDO ESTÁ CUMPRIDO. Os pecados do crente foram todos tirados pela própria
mão do amor redentor. "Aquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós, para
que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5:21). Todo o pecado deve ser julgado,
porém os pecados do crente já foram julgados na cruz; por isso ele está perfeitamente
justificado. Supor que pode existir qualquer coisa contra o crente, mesmo o mais fraco, é
negar toda a obra da cruz. Os pecados e as iniquidades do crente foram todos tirados
pelo Próprio Deus, e portanto foram perfeitamente quitados. Desapareceram com a vida
que o Cordeiro de Deus derramou na morte.
Certifique-se o leitor de que o seu coração está inteiramente fundado na paz que Jesus
fez pelo sangue da sua cruz.

— CAPÍTULO 28 —

AS VESTES
DOS SACERDOTES

Estes capítulos mostram-nos o Sacerdócio em todo o seu valor e eficácia, e estão cheios
de interesse. A própria palavra "sacerdócio" desperta no coração um sentimento da mais
profunda gratidão pela graça que não só nos abriu um caminho para entrarmos na
presença de Deus, como nos deu o necessário para ali nos mantermos, segundo o
caráter e as exigências dessa posição elevada e santa.

O Sacerdócio de Arão
O sacerdócio de Arão era um dom de Deus por um povo que, por natureza própria, estava
distante e necessitava de alguém que aparecesse em seu nome continuamente na Sua
presença. O capítulo 7 da epístola aos Hebreus ensina-nos que a ordem do sacerdócio
estava ligada com a lei, que fora estabelecida segundo "a lei do mandamento carnal"
(versículo 16) e que fora impedida de permanecer pela morte (versículo 23) e que os
sacerdotes dessa ordem estavam sujeitos às fraquezas humanas. Portanto, esta ordem
não podia dar perfeição, e por isso devemos bendizer a Deus por não ter sido instituída
com "juramento". O juramento de Deus só podia fazer-se em ligação com aquilo que
devia durar eternamente, e isto era o sacerdócio perfeito, imortal, e intransmissível do
nosso grande e glorioso Melquizedeque, que dá ao Seu sacrifício e ao Seu sacerdócio
todo o valor, e a dignidade e glória da Sua incomparável Pessoa. O simples pensamento
de que temos um tal sacrifício e um tal Sacerdote faz com que o coração palpite com as
mais vivas emoções de gratidão.

O Éfode e as Pedras Preciosas


Mas devemos prosseguir com o exame dos capítulos que ainda temos à nossa frente. Em
capítulo 28 temos as vestes sacerdotais, e em capítulo 29 trata-se dos sacrifícios.
Aquelas estão mais em ligação com as necessidades do povo, enquanto que estes se
relacionam com os direitos de Deus. As vestes representam as diversas funções e
atributos do cargo sacerdotal. O "éfode" era o manto sacerdotal, e estando
inseparavelmente ligado às umbreiras e ao peitoral, ensina-nos, claramente, que a força
dos ombros do sacerdote e o afeto do seu coração estavam inteiramente consagrados
aos interesses daqueles que representava, e a favor dos quais levava o éfode. Estas
coisas, que eram simbolizadas em Arão, são realizadas em Cristo. O Seu poder
onipotente e amor infinito pertencem-nos eternamente e incontestavelmente. Os ombros
que sustém o universo protegem até o mais fraco e obscuro membro da congregação
redimida a preço de sangue. O coração de Jesus bate com afeto imorredouro até mesmo
pelo membro menos considerado da assembleia redimida.
Os nomes das doze tribos, gravados sobre pedras preciosas, eram levados tanto sobre os
ombros como sobre o peito do sumo sacerdote (vide versículos 9 a 12, 15 a 29).A
excelência peculiar de uma pedra preciosa consiste no fato que quanto mais intensa é a
luz que sobre ela incide, tanto maior é o seu brilho esplendente. A luz nunca pode
obscurecer uma pedra preciosa; apenas aumenta e desenvolve o seu brilho. As doze
tribos, tanto uma como outra, a maior como a menor, eram levadas continuamente à
presença do Senhor sobre o peito e os ombros de Arão. Eram todas, e cada uma em
particular, mantidas na presença divina em todo este resplendor perfeito da formosura
inalterável que era próprio da posição em que a graça perfeita do Deus de Israel as havia
colocado. O povo era representado diante de Deus pelo sumo sacerdote. Quaisquer que
fossem as suas fraquezas, os seus erros, ou faltas, os seus nomes resplandeciam sobre
o "peitoral" com imarcescível esplendor. O Senhor havia-lhes dado esse lugar, e quem
poderia arrancá-los dali?- Jeová tinha-os posto assim, e quem podia pô-los de outra
formai Quem teria podido penetrar no santuário para arrebatar de sobre o coração de
Arão o nome de uma das tribos de Israel? Quem teria podido manchar o brilho que
rodeava esses nomes no lugar onde Deus os havia colocado? Ninguém. Estavam fora do
alcance de todo o inimigo — longe da influência de todo o mal.
Quão animador é para os filhos de Deus, que são provados, tentados, zurzidos e
humilhados, pensar que Deus os vê sobre o coração de Jesus! Perante os Seus olhos,
eles brilham sempre em todo o fulgor de Cristo, revestidos de toda a graça divina. O
mundo não pode vê-los assim; mas Deus vê-os desta maneira, e nisto está toda a
diferença. Os homens, ao considerarem os filhos de Deus, veem apenas as suas
imperfeições e defeitos, porque são incapazes de ver qualquer coisa mais; de sorte que o
seu juízo é sempre falso e parcial. Não podem ver as joias brilhantes com os nomes dos
remidos gravados pela mão do amor imutável de Deus. É certo que os cristãos deveriam
ser cuidadosos em não dar ocasião a que os homens do mundo falem injuriosamente;
deviam procurar, fazendo bem, tapar a boca à ignorância dos homens maus (l Pe 2:15).
Se ao menos compreendessem, pelo poder do Espírito Santo, a graça em que brilham
sem cessar, aos olhos de Deus, realizariam certamente as características de uma vida de
santidade prática, pureza moral e engrandecimento perante os olhos dos homens. Quanto
mais compreendermos, pela fé, a verdade objetiva, ou tudo o que somos em Cristo, tanto
mais profunda, prática e real será a obra subjetiva em nós, e maior será a manifestação
do efeito moral na nossa vida e caráter.
Mas, graças a Deus, não temos que ser julgados pelos homens, mas por Ele Próprio: e
misericordiosamente mostra-nos o nosso sumo sacerdote levando o nosso juízo sobre o
seu coração diante do Senhor continuamente (versículo 30). Esta segurança dá paz
profunda e sólida ao coração—uma paz que nada pode abalar. Podemos ter de confessar
e lamentar as nossas faltas e defeitos constantes; a nossa vista pode estar, por vezes,
obscurecida de tal maneira por lágrimas de um verdadeiro arrependimento que não possa
ver o brilho das pedras preciosas com os nossos nomes gravados, e todavia eles estão
nelas. Deus os vê, e isto é suficiente. É glorificado pelo seu brilho; brilho que não é
conseguido por nós, mas com que Ele nos dotou. Nada tínhamos senão trevas, tristeza, e
deformidades; mas Deus deu-nos brilho, pureza e beleza. A Ele seja dado o louvor pelos
séculos dos séculos!

O Cinto
O "cinto" é o símbolo bem conhecido do serviço; e Cristo é o Servo perfeito—o Servo dos
desígnios divinos e das necessidades profundas e variadas do Seu povo. Com espírito de
sincera dedicação, que nada podia impedir, Ele cingiu-se para a Sua obra; e quando a fé
vê assim o Filho de Deus cingido julga, certamente, que nenhuma dificuldade é grande
demais para Si. No símbolo que temos perante nós vemos que todas as virtudes, méritos,
e glórias de Cristo, na Sua natureza divina e humana, entram plenamente no Seu caráter
de servo. "E o cinto de obra esmerada, do seu éfode, que estará sobre ele, será da
mesma obra, da mesma obra de ouro, e de pano azul e de púrpura, e de carmesim e de
linho fino torcido" (versículo 8). A fé disto deve satisfazer todas as necessidades da alma
e os mais ardentes desejos do coração. Não vemos Cristo apenas como a vítima imolada
no altar, mas também como o cingido Sumo Sacerdote sobre a casa de Deus. Bem pode,
pois, o apóstolo inspirado dizer, "cheguemo-nos,... retenhamos... consideremo-nos uns
aos outros" (Hb 10:19-24).

O Peitoral de Juízo. O Urim e o Tumim


"Também porás no peitoral do juízo Urim e Tumim", (luzes e perfeições) "para que
estejam sobre o coração de Arão, quando entrar diante do SENHOR; assim, Arão levará o
juízo dos filhos de Israel sobre o seu coração, diante do SENHOR, continuamente"
(versículo 30). Aprendemos em várias passagens da Escritura que o Urim estava
relacionado com a comunicação da mente de Deus, quanto às diferentes questões que se
levantavam nos pormenores da história de Israel. Assim, por exemplo, na nomeação de
Josué, lemos; "E se porá perante Eleazar, o sacerdote, o qual por ele consultará, segundo
o juízo de Urim, perante o SENHOR" (Num. 27:21). "E de Levi disse: Teu Tumim e teu
Urim (as tuas perfeições e luzes) são para o teu amado... ensinaram os teus juízos a Jacó
e a tua lei a Israel" (Dt 33:8 -10). "E perguntou Saul ao SENHOR, porém o SENHOR lhe
não respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas" (1 Sm 28:6). "E o
tirsata lhes disse que não comessem das coisas sagradas, até que houvesse sacerdote
com
Urim e com Tumim"(Ed 2:63). Vemos assim que o sumo sacerdote não só levava o juízo
da congregação perante o Senhor, como comunicava também o juízo do Senhor à
congregação—solenes, importantes, e preciosas funções! É o que temos, com perfeição
divina, no nosso "grande sumo sacerdote, ...que penetrou nos céus" (Hb 4:14). Leva
continuamente o juízo do Seu povo sobre o coração, e, por intermédio do Espírito Santo,
comunica-nos o conselho de Deus a respeito dos pormenores mais insignificantes da
nossa vida diária. Não temos necessidade de sonhos ou visões: se andarmos em Espírito,
desfrutaremos toda a certeza que pode conceder o perfeito "Urim" sobre o coração do
nosso Sumo Sacerdote.

O Manto do Éfode
"Também farás o manto do éfode todo de pano azul... e nas suas bordas farás romãs de
pano azul, de púrpura e de carmesim, ao redor das suas bordas; e campainhas de ouro
no meio delas, ao redor. Uma campainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouro e
outra romã haverá nas bordas do manto ao redor, e estará sobre Arão, quando ministrar,
para que se ouça o seu sonido, quando entrar no santuário diante do SENHORA quando
sair, para que não morra" (versículos 31 a 35).
O manto azul do "éfode" exprime o caráter celestial do nosso Sumo Sacerdote, que
penetrou nos céus, para além do alcance da visão humana; porém, pelo poder do Espírito
Santo, há um testemunho da verdade de estar vivo na presença de Deus; e não apenas
um testemunho, mas fruto também. "Uma campainha de ouro e uma romã, outra
campainha de ouro e outra romã". Tal é a ordem cheia de beleza. O verdadeiro
testemunho da grande verdade que Jesus vive sempre para interceder por nós estará
sempre ligado com fertilidade no Seu serviço. Oh, se ao menos pudéssemos
compreender mais profundamente estes mistérios preciosos e santos! (¹).
__________________
(¹) É desnecessário advertir que existe uma propriedade divina e significativa em todas as
figuras que nos são apresentadas na Palavra de Deus. Assim, por exemplo, a "romã",
quando aberta verifica-se que consiste de um número de sementes contidas num líquido
vermelho. Certamente, isto fala por si. Que a espiritualidade, e não a imaginação, faça o
seu juízo.

A Lâmina de Ouro
"Também farás uma lâmina de ouro puro e nela gravarás, à maneira de gravuras de
selos.- SANTIDADE AO SENHOR. E atá-la-ás comum cordão de fio azul, de maneira que
esteja na mitra; sobre a frente da mitra estará. E estará sobre a testa de Arão, para que
Arão leve a iniquidade das coisas santas, que os filhos de Israel santificarem em todas as
ofertas de suas coisas santas; e estará continuamente na sua testa, para que tenham
aceitação perante o SENHOR" (versículos 36 a 38). Eis aqui uma verdade importante
para a alma. A lâmina de ouro sobre a testa de Arão era figura da santidade do Senhor
Jesus Cristo: "e estará CONTINUAMENTE NA SUA testa, para que TENHAM aceitação
perante o SENHOR". Que descanso para o coração por entre as flutuações da nossa
experiência! O nosso Sumo Sacerdote está sempre na presença de Deus por nós. Somos
representados por e aceites n'Ele. A Sua santidade pertence-nos. Quanto mais
profundamente conhecermos a nossa própria vileza e fraquezas, tanto mais
experimentaremos a verdade humilhante que em nós não habita bem algum, e mais
fervorosamente bendiremos o Deus de toda a graça por esta verdade consoladora:
"estará continuamente na sua testa, para que tenham aceitação perante o SENHOR".
Se o leitor for um daqueles que são frequentemente tentados e sobrecarregados com
dúvidas e temores, com altos e baixos no seu estado espiritual, com tendências a
contemplar o seu pobre coração, frio, inconstante e rebelde—se for tentado com incerteza
excessiva e falta de santidade —, deve apoiar-se de todo o coração sobre esta verdade
preciosa: que o seu Sumo Sacerdote representa-o diante do trono de Deus. Deve fixar os
seus olhos na lâmina de ouro e ler, na inscrição gravada nela, a medida da sua aceitação
eterna perante Deus. Que o Espírito Santo o ajude a provar a doçura peculiar e o poder
mantenedor desta doutrina divina e celestial!

As Vestes dos Filhos de Arão


"Também farás túnicas aos filhos de Arão, e far-Ihes-ás cintos; também lhes farás tiaras,
para glória e ornamento... faze-lhes também calções de linho, para cobrirem a carne
nua... e estarão sobre Arão e sobre seus filhos, quando entrarem na tenda da
congregação ou quando chegarem ao altar para ministrar no santuário, para que não
levem iniquidade e morram." Aqui, Arão e seus filhos representam em figura Cristo e a
Igreja—são a expressão das qualidades intrínsecas, essenciais, pessoais e ternas de
Cristo; enquanto que as "túnicas" e "tiaras" dos filhos de Arão representam aquelas
graças de que está revestida a Igreja, em virtude da sua ligação com a Cabeça da família
sacerdotal.
Podemos ver assim em tudo que acaba de passar perante os nossos olhos, neste
capítulo, o cuidado misericordioso com que Jeová fez provisão para as necessidades do
Seu povo, permitindo que eles vissem aquele que estava prestes a atuar a seu favor e a
representá-los na Sua presença vestido como os vestidos que correspondiam diretamente
à condição do povo, tal qual Ele os conhecia. Nada que o coração pudesse desejar ou de
pudesse ter necessidade foi esquecido. Podiam contemplar Arão dos pés à cabeça e ver
que tudo estava completo. Desde a mitra santa na cabeça de Arão às companhias de
ouro e romãs que bordavam o seu manto, tudo era como devia estar, porque tudo estava
conforme o modelo que fora mostrado no monte —tudo era segundo o cálculo que o
Senhor fazia das necessidades do Seu povo e das Suas próprias exigências.

Fios de Ouro Entretecidos


Mas existe ainda um ponto relacionado com as vestes de Arão que requer a atenção do
leitor: e este é a forma como o ouro é introduzido na sua confecção. Este assunto acha-se
no capítulo 39; contudo a sua interpretação cabe muito bem aqui. "E estenderam as
lâminas de ouro, e as cortaram em fios, para entretecer entre o pano azul, e entre a
púrpura, e entre o carmesim, e entre o linho fino da obra mais esmerada" (capítulo 39:3).
Já fizemos notar que o "azul, a púrpura, o carmesim e o linho fino torcido" apresentam as
várias fazes da humanidade de Cristo, e que o ouro representa a Sua natureza divina. Os
fios de ouro estavam curiosamente introduzidos nos demais materiais, de modo a estarem
inseparavelmente unidos, e todavia perfeitamente distintas deles. A aplicação desta
admirável imagem ao caráter do Senhor Jesus é cheia de interesse. Em diferentes cenas
apresentadas nos relatos dos evangelhos, podemos discernir facilmente esta rara e
formosa união da humanidade e divindade, e, ao mesmo tempo, a distinção misteriosa.
Por exemplo, considerai Cristo no mar da Galileia, no meio da tempestade. Ele "estava
dormindo sobre uma almofada" (Mc 4:38). Que preciosa demonstração da sua
humanidade! Porém, num momento eleva-Se da atitude de verdadeira humanidade à
dignidade completa e majestade da divindade, e, como supremo Governador do universo,
acalma a tempestade e impõe silêncio ao mar. Não se nota aqui nenhum esforço,
nenhuma precipitação, nem preparação prévia para este momento. Com perfeita
naturalidade, Ele passa da condição de humanidade positiva à esfera essencial da
divindade. O repouso daquela não é mais natural que a atividade desta. Ele está
perfeitamente no Seu elemento tanto numa como na outra.
Vede-O ainda no caso dos cobradores do tributo, segundo Mateus, 17. Como "Deus
Altíssimo, possuidor dos céus e da terra", estende a Sua mão sobre os tesouros do
oceano, e diz, "são meus"; e, havendo declarado que o oceano é Seu, "pois Ele o fez" (SI
95:5), volta-Se e, numa demonstração de perfeita humanidade, associa-Se ao seu pobre
servo, por meio dessas palavras tocantes, "toma-o e dá-o por mim e por ti". Palavras
cheias de graça! Sobretudo quando as consideramos em ligação com o milagre tão
expressivo da divindade d'Aquele que assim se ligava, em infinita condescendência, com
um pobre verme.
Mas vede-O, mais uma vez, junto da sepultura de Lázaro (Jo 11). Comove-Se e chora, e
essa emoção e essas lágrimas provêm das profundidades de uma humanidade perfeita—
desse coração perfeitamente humano, que sentia, como nenhum outro coração podia
sentir, o que era achar-se no meio da cena em que o pecado havia produzido tão terríveis
frutos. Mas logo, como a Ressurreição e a Vida, como Aquele que segura em Suas mãos
as chaves do inferno e da morte (Ap 1:18) clama: "Lázaro, sai para fora"; e à voz de poder
de Jesus a morte e a sepultura abrem as suas portas e deixam sair o seu cativo.
O espírito do leitor poderá facilmente recordar outras cenas dos evangelhos que ilustram
esta união dos fios de ouro com o "azul, a púrpura, o carmesim e o linho fino torcido";
quer dizer, da união da deidade com a humanidade, na Pessoa misteriosa do Filho de
Deus. Não há nada de novo neste pensamento, frequentemente assinalado por aqueles
que têm estudado com algum cuidado as Escrituras do Velho Testamento.
Porém, é sempre proveitoso pensar no bendito Senhor Jesus como Aquele que é
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. O Espírito Santo uniu estas duas
naturezas por meio de uma obra delicada e apresenta-as ao espírito regenerado do
crente para serem admiradas e desfrutadas por ele.
Consideremos, agora, antes de terminarmos esta parte do Livro do Êxodo, o capítulo 29.

— CAPÍTULO 29 —

A CONSAGRAÇÃO
DO SACERDOTE

A Lavagem com Água


Já frisámos que Arão e seus filhos representam Cristo e a Igreja, porém nos primeiros
versículos deste capítulo é dado o primeiro lugar a Arão. "Então, farás chegar Arão e seus
filhos à porta da tenda da congregação e os lavarás com água" (versículo 4). A lavagem
da água tornava Arão simbolicamente aquilo que Cristo é intrinsecamente, isto é: santo. A
Igreja é santa em virtude de estar ligada a Cristo na vida de ressurreição. Ele é a
definição perfeita daquilo que ela é perante Deus. O ato cerimonial da lavagem da água
representa a ação da palavra de Deus (veja-se Ef 5:26).
"E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na
verdade" (Jo 17:19), disse o Senhor Jesus. Separou-Se para Deus no poder de uma
perfeita obediência, orientando-Se em todas as coisas, como homem, pela Palavra,
mediante o Espírito eterno, a fim de que todos aqueles que são d'Ele pudessem ser
inteiramente separados pelo poder moral da verdade.

A Unção
"E tomarás o azeite da unção e o derramarás sobre a sua cabeça " (versículo 7). Nestas
palavras temos o Espírito, mas é preciso notar que Arão foi ungido antes de o sangue ser
derramado, porque nos é apresentado como figura de Cristo, que, em virtude daquilo que
era em Sua Própria Pessoa, foi ungido com o Espírito Santo muito antes que fosse
cumprida a obra da cruz. Em contrapartida, os filhos de Arão não foram ungidos senão
depois de ser espargido o sangue, "degolarás o carneiro, e tomarás do seu sangue, e o
porás sobre a ponta da orelha direita de Arão, e sobre a ponta da orelha direita de seus
filhos, como também sobre o dedo polegar da sua mão direita, e sobre o dedo polegar do
seu pé direito: e o resto do sangue espalharás sobre o altar ao redor" (¹). "Então, tomarás
do sangue que estará sobre os altar e do azeite da unção e o espargirás sobre Arão e
sobre as suas vestes e sobre seus filhos, e sobre os as vestes de seus filhos com ele"
(versículos 20 e 21). No que diz respeito à Igreja, o sangue da cruz é o fundamento de
tudo. Ela não podia ser ungida com o Espírito Santo até que a sua Cabeça ressuscitada
tivesse subido ao céu e depositado sobre o trono da Majestade divina o relato do
sacrifício que havia oferecido. "Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos
testemunhas. De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai e
promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis" (At 2:32-33);
comparem-se também Jo 7:39; At 19:1 - 6). Desde os dias de Abel que haviam sido
regeneradas almas pelo Espírito Santo e experimentado a Sua influência, sobre as quais
operou e a quem qualificou para o serviço; porém a Igreja não podia ser ungida com o
Espírito Santo até que o Seu Senhor tivesse entrado vitorioso no céu e recebesse para
ela a promessa do Pai. A verdade desta doutrina é ensinada, da forma mais direta e
completa, em todo o Novo Testamento; e a sua integridade estreita é mantida, em figura,
no símbolo que temos perante nós, pelo fato claro que, embora Arão fosse ungido antes
de o sangue haver sido derramado (versículo 7), contudo os seus filhos não o foram, e
não podiam ser ungidos senão depois (versículo 21).
____________________
(¹) O ouvido, as mãos e os pés são consagrados a Deus no poder da expiação efetuada e
mediante a energia do Espírito Santo.

A Preeminência de Cristo
Porém, aprendemos alguma coisa mais com a ordem da unção neste capítulo, além da
verdade importante acerca da obra do Espírito, e a posição que a Igreja ocupa. A
preeminência do Filho é-nos também apresentada. "Amaste a justiça e aborreceste a
iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus
companheiros" (SI 45:7; Hb 1:9). É preciso que o povo de Deus mantenha sempre esta
verdade nas suas convicções e experiências. Por certo, a graça infinita de Deus é
manifestada no fato maravilhoso que pecadores culpados e dignos do inferno sejam
chamados companheiros do Filho de Deus; mas nunca devemos esquecer, nem por um
momento, o vocábulo "mais". Por mais íntima que seja a união—e é tão íntima quanto os
desígnios eternos do amor divino a podiam fazer—, é, contudo, necessário que Cristo
tenha em tudo a preeminência" (Cl 1:18). Não podia ser de outra maneira. Ele é Cabeça
sobre todas as coisas — Cabeça da Igreja, Cabeça sobre a criação, Cabeça sobre os
anjos, o Senhor do universo. Não existe um só astro de todos os que se movem no
espaço que não Lhe pertença e não se mova sob a Sua orientação. Não existe um verme
sequer que se arrasta sobre a terra, que não esteja sob os Seus olhos incansáveis. Ele
está acima de todas as coisas; é toda a criatura "o primogênito de entre os mortos" "o
princípio da criação de Deus" (Cl l:15-18;Ap 1:5). "Toda a família nos céus e na terra" (Ef
3:15) deve alinhar, na classe divina, sob Cristo. Tudo isto será reconhecido com gratidão
por todo o crente espiritual; sim, a sua própria articulação produz um estremecimento no
coração do crente. Todos os que são guiados pelo Espírito regozijar-se-ão com cada nova
manifestação das glórias pessoais do Filho; da mesma maneira que não poderão tolerar
qualquer coisa que se levante contra elas. Que a Igreja se eleve às mais altas regiões e
glória, será seu gozo ajoelhar aos pés d'Aquele que se baixou para a elevar, em virtude
do Seu sacrifício, à união Consigo; o qual havendo plenamente correspondido a todas as
exigências da justiça divina, pode satisfazer todos os afetos divinos, unindo-a em um
Consigo Mesmo, em toda a aceitação infinita com o Pai, na Sua glória eterna: "Não se
envergonha de lhes chamar irmãos" (Hb 2:11).
___________________
Nota: Evitei propositadamente tocar no assunto das ofertas em capítulo 29 visto que
teremos ocasião de considerar as diferentes classes de sacrifícios, por sua ordem, nos
nossos estudos sobre o Livro de Levítico, se o Senhor permitir.

— CAPÍTULO 30 —

O CULTO, A COMUNHÃO
E A ADORAÇÃO

O Altar de Cobre e o Altar de Ouro


Instituído o sacerdócio, como vimos nos dois capítulos precedentes, somos introduzidos
aqui na posição do verdadeiro culto e comunhão sacerdotal. A ordem é notável e
instrutiva; e, além disso, corresponde exatamente com a ordem da experiência do crente.
No altar de bronze, o crente vê as cinzas dos seus pecados; e vê-se imediatamente unido
com Aquele que, embora pessoalmente puro e incontaminado, de forma que podia ser
ungido sem sangue, tem-nos, contudo, associado Consigo na vida, em justiça e favor; e,
por fim, o crente vê no altar de ouro a preciosidade de Cristo, como sendo a substância
com a qual é alimentado o amor divino.
É sempre assim: é necessário que haja um altar de cobre e um sacerdote antes que
possa haver um altar de ouro e incenso. Muitíssimos filhos de Deus nunca passaram do
altar de cobre; nunca entraram, em espírito, no poder e realidade do verdadeiro culto
sacerdotal. Não se regozijam no pleno e perfeito sentimento divino de perdão e justiça;
nunca conseguiram chegar ao altar de ouro. Esperam alcançá-lo quando morrerem; ao
passo que já têm o privilégio de estar ali agora. A obra da cruz tirou do caminho tudo que
podia representar um obstáculo a um culto livre e inteligente. A posição atual de todos os
crentes verdadeiros é junto do altar de ouro do incenso.
Este altar é figura de uma posição de maravilhosa bem-aventurança. Ê ali que
desfrutamos a realidade e eficácia da intercessão de Cristo. Havendo acabado com o ego
e tudo quanto lhe diz respeito, ainda que esperássemos algum bem dele, temos de estar
ocupados com aquilo que Cristo é perante Deus. Nada encontraremos no ego senão
corrupção; todas as suas manifestações são corrompidas; já foi condenado e posto de
parte pelo juízo de Deus, e nem só um fio ou partícula dele se pode encontrar no incenso
ou no fogo do altar de ouro puro. Isso seria impossível. Fomos introduzidos no santuário
"pelo sangue de Jesus", santuário de serviço e culto sacerdotal, no qual não existe nem
sequer um vestígio de pecado. Vemos a mesa pura, o castiçal puro e o altar puro; mas
não existe nada que nos recorde o ego e a sua miséria. Se fosse possível que alguma
coisa do ego se apresentasse à nossa vista, isso só serviria para destruir o nosso culto,
contaminar o nosso alimento sacerdotal e ofuscara nossa luz. A natureza não pode ter
lugar no santuário de Deus: foi consumida e reduzida a cinzas com tudo quanto lhe
pertence; e agora as nossas almas são chamadas para gozar o bom cheiro de Cristo,
subindo como perfume agradável a Deus: é nisto que Deus Se deleita. Tudo o que
apresenta Cristo na Sua própria excelência é agradável a Deus. Até a mais débil
expressão ou manifestação de Cristo, na vida ou adoração de um dos Seus santos, é
cheiro agradável, no qual Deus acha o Seu prazer.
Enfim, temos muitíssimas vezes de estar ocupados com as nossas faltas e fraquezas. Se
os efeitos do pecado, que habita em nós, se manifestam, temos de tratar com Deus
acerca deles, pois o Senhor não pode concordar com o pecado. Pode perdoar o pecado e
purificar-nos; pode restaurar as nossas almas pelo ministério precioso do nosso grande
Sumo Sacerdote; porém não pode associar-se a um simples pensamento pecaminoso.
Um pensamento ligeiro ou louco bem como uma ideia impura ou cobiçosa, são o bastante
para perturbar a comunhão do crente e interromper o seu culto. Se um tal pensamento se
levanta, deve ser confessado e julgado antes de podermos desfrutar outra vez os gozos
sublimes do santuário. Um coração em que opera a concupiscência não tem parte nas
ocupações do santuário. Quando nos encontramos na nossa própria condição sacerdotal,
a natureza é como se não tivesse existência; é então que nos podemos alimentar de
Cristo. Podemos provar o prazer divino de estarmos inteiramente livres de nós próprios e
completamente absorvidos por Cristo.
Mas tudo isto só pode ser produzido pelo poder do Espírito. É inútil procurar excitar os
sentimentos naturais de devoção pelos diferentes instrumentos da religião sistemática. É
necessário que haja fogo puro e incenso puro (comparem-se Lv 10:1 com 16:12). Todos
os esforços para adorar a Deus por meio das faculdades profanas da natureza estão
incluídos na categoria de "fogo estranho". Deus é o verdadeiro objeto de adoração; Cristo
é o fundamento e a substância de adoração; e o Espírito Santo é o seu poder.

Propriamente falando, portanto, assim o altar de cobre nos apresenta Cristo no valor do
Seu sacrifício, o altar de ouro mostra-nos Cristo no valor da Sua intercessão. Este fato
dará ao leitor uma melhor compreensão do motivo por que a ocupação sacerdotal é
introduzida entre os dois altares. Existe, como podia esperar-se, uma relação íntima entre
os dois altares, pois que a intercessão de Cristo está fundada sobre o Seu sacrifício.
"E uma vez no ano Arão fará expiação sobre as pontas do altar, com o sangue do
sacrifício das expiações; uma vez no ano fará expiação sobre ele, pelas vossas gerações;
santíssimo é ao SENHOR" (versículo 10). Tudo repousa sobre o fundamento inabalável
do SANGUE ESPARGIDO. "Quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com
sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão. De sorte que era bem
necessário que as figuras das coisas que estão no céu assim se purificassem; mas, as
próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes. Porque Cristo não
entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém, no mesmo céu, para
agora comparecer, por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:22-24).

O Meio Siclo de Resgate


Os versículos 11 a 16, inclusive, tratam do dinheiro das expiações para a congregação.
Todos tinham de pagar da mesma maneira. "O rico não aumentará, e o pobre não
diminuirá da metade do siclo, quando derem a oferta ao SENHOR, para fazer expiação
por vossas almas". Na questão do resgate todos são postos ao mesmo nível. Pode haver
uma grande diferença em conhecimento, de experiência, de aptidão, de progresso, de
zelo e de dedicação, porém o fundamento de expiação é igual para todos. O grande
apóstolo dos gentios e o mais débil cordeiro do rebanho de Cristo estão no mesmo nível
no que se refere à expiação. É uma verdade muito simples e feliz ao mesmo tempo. Nem
todos podem ser igualmente fervorosos e abundar em frutos; porém o fundamento sólido
e eterno do repouso do crente é "o precioso sangue de Cristo" (1 Pe 1:19), e não a
dedicação ou abundância de frutos. Quanto mais compenetrados estivermos da verdade
e poder destas coisas tanto mais frutos daremos.
Bendito seja Deus, sabemos que todos os Seus direitos foram cumpridos e os nossos
votos satisfeitos por Aquele que era ao mesmo tempo o representante dos Seus direitos e
o Expoente da Sua graça, o mesmo que consumou a obra de expiação sobre a cruz e
está agora à destra de Deus. Nisto existe doce descanso para o coração e a consciência.
A expiação é a primeira coisa que alcançamos, e nunca mais a perdemos de vista. Por
muito extenso que seja o curso da nossa inteligência, por muito rica que seja a nossa
experiência, por muito elevado que seja o dom da nossa piedade, teremos sempre de nos
retirar para a doutrina simples, divina, inalterável e fortalecedora doutrina do O SANGUE.
Assim tem sido sempre na história do povo de Deus o assim é e assim será em todos os
tempos. Os mais dotados e instruídos servos de Cristo têm regressado sempre com
regozijo a "esta única fonte de delícias", na qual os seus espíritos sequiosos beberam
quando conheceram o Senhor; e o cântico eterno da Igreja, na glória, será: "Aquele que
nos ama e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados" (Ap 1:5). As cortes do céu
ressoarão para sempre com a doutrina gloriosa do sangue.

A Pia de Cobre
Nos versículos 17 a 21 temos a "pia de cobre com a sua base" — o vaso da purificação e
a sua base. Estas duas coisas são sempre mencionadas conjuntamente (veja-se
capítulos 30:28; 38:8; 40:11). Era nesta pia que os sacerdotes lavavam as mãos e os pés,
e desta forma mantinham aquela pureza que era essencial ao cumprimento das suas
funções sacerdotais. Não significava, de modo nenhum, uma nova questão do sangue;
mas simplesmente um ato mediante o qual se mantinham em aptidão para o serviço
sacerdotal e o culto.
"E Arão e seus filhos nela lavarão as suas mãos e os seus pés. Quando entrarem na
tenda da congregação, lavar-se-ão com água, para que não morram, ou quando se
chegarem ao altar para ministrar, para acender a oferta queimada ao SENHOR" (versículo
20). Não pode haver verdadeira comunhão com Deus se a santidade pessoal não for
diligentemente mantida. "Se dissermos que temos comunhão com ele e andarmos em
trevas, mentimos e não praticamos a verdade" (1 Jo 1:6). Esta santidade pessoal só pode
proceder da ação da Palavra de Deus nas nossas obras e nos nossos caminhos:"... pela
palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor" (Sl 17:4). O nosso
enfraquecimento constante no ministério sacerdotal pode ser causa de negligenciarmos o
uso conveniente da pia de cobre. Se os nossos caminhos não são submetidos à noção
purificadora da Palavra de Deus — se continuarmos em busca ou na prática de alguma
coisa que, segundo o testemunho da nossa própria consciência, é claramente condenada
pela Palavra de Deus, o nosso caráter sacerdotal carecerá certamente de poder. A
perseverança deliberada no mal e o verdadeiro culto sacerdotal são de todo
incompatíveis. "Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade" (Jo 17:17). Se houver
em nós impureza, não podemos gozar a presença de Deus. O efeito da Sua presença
será então convencer-nos do mal pela luz santa da Sua Palavra. Porém, quando,
mediante a graça, sabemos purificar os nossos caminhos, acautelando-nos segundo a
Palavra de Deus, então estamos moralmente em estado de gozar a Sua presença.
O leitor perceberá imediatamente que se abre aqui um vasto campo de verdade prática e
como a doutrina da pia de cobre é largamente apresentada no Novo Testamento. Oh! que
todos aqueles que têm o privilégio de pôr os pés nos átrios do santuário com vestidos
sacerdotais e de se aproximarem do altar de Deus, par exercer o sacerdócio, mantenham
as mãos e os pés limpos pelo uso da verdadeira pia de cobre!
Talvez seja interessante notar que a pia de cobre com a Sua base era feita "dos espelhos
das mulheres que se ajuntaram, ajuntando-se à porta da tenda da congregação" (capítulo
38:8). Este fato é cheio de significado. Estamos sempre prontos a ser como o homem que
"contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e foi-se, e
logo se esqueceu de como era" (Tg 1:28). O espelho da natureza nunca poderá dar-nos
uma vista clara e permanente da nossa verdadeira condição. "Aquele, porém, que atenta
bem para a lei perfeita da liberdade e nisso persevera, não sendo ouvinte esquecido, mas
fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito" (Tg 1:25). Aquele que recorre
continuamente à Palavra de Deus e a deixa falar ao seu coração e à sua consciência será
mantido na atividade santa da vida divina.

Um Grande Sumo Sacerdote


A eficácia do ministério sacerdotal de Cristo está intimamente ligada com a ação
penetrante e purificadora da Palavra de Deus. "Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz,
e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da
alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e
intenções do coração. E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as
coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar." E o apóstolo
inspirado acrescenta imediatamente; "Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus,
Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. Porque
não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas;
porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com
confiança, ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a
fim de sermos ajudados em tempo oportuno" (Hb 4:12-16).
Quanto mais vivamente sentirmos o fio da palavra de Deus, tanto mais apreciaremos o
ministério misericordioso e gracioso do nosso Sumo Sacerdote. Estas duas coisas andam
juntas. São os companheiros inseparáveis da senda do cristão. O Sumo Sacerdote
simpatiza com as fraquezas que a Palavra de Deus descobre e expõe: Ele é um Sumo
Sacerdote "fiel" e "misericordioso". Por isso, só nos podemos aproximar do altar na
medida em que fazemos uso da pia de cobre. O culto deve ser sempre oferecido no poder
da santidade. E necessário perdermos de vista a natureza, tal qual é refletida num
espelho, e estarmos ocupados inteiramente com Cristo, conforme no-Lo apresenta a
Palavra de Deus. É só desta forma que "as mãos e os pés", as obras e os nossos
caminhos são purificados, segundo a purificação do santuário.

A Santa Unção
Os versículos 22 e 23 tratam "do azeite da santa unção", com a qual eram ungidos os
sacerdotes com todos os utensílios do santuário.
Nesta unção discernimos uma figura das várias graças do Espírito Santo, as quais se
acharam em Cristo em toda a sua plenitude divina. "Todos os teus vestidos cheiram a
mira, a aloés e a cássia, desde os palácios de marfim de onde te alegram" (SI 45:8).
"Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude" (At 10:38).
Todas as graças do Espírito Santo, em sua perfeita fragrância, se concentraram em
Cristo; e é somente d'Ele que podem emanar. Quanto à Sua humanidade, foi concebido
do Espírito Santo; e, antes de entrar no Seu ministério público, foi ungido com o Espírito
Santo; e, finalmente, havendo tomado o Seu lugar nas alturas, derramou sobre o Seu
corpo, a Igreja, os dons preciosos do Espírito, em testemunho da redenção efetuada
(veja-se Mt 1.20; 3:16-17; Lc 4:18-19; At 2:33; 10:45-46; Ef 4:8-13).
É como aqueles que estão associados com este bendito e eternamente glorificado Senhor
que os crentes são feitos participantes dos dons e graças do Espírito Santo; e, além
disso, é na medida em que andam em intimidade com Ele que gozam ou emitem a Sua
fragrância.
O homem não regenerado não conhece estas coisas. "Não se ungirá com ele a carne do
homem" (versículo 32). As graças do Espírito nunca poderão ser ligadas com a carne,
porque o Espírito Santo não pode reconhecer a natureza. Nem um só dos frutos do
Espírito foi jamais produzido no solo estéril da natureza. E necessário nascer de novo (Jo
3:7). E só como unidos com o novo homem, como sendo parte da nova criação, que
podemos conhecer alguma coisa dos frutos do Espírito Santo.
É inútil procurar imitar esses frutos e virtudes. Os mais belos frutos que jamais cresceram
no campo da natureza, no seu mais alto grau de cultivo — os traços mais amáveis que a
natureza pode apresentar— devem ser inteiramente rejeitados no santuário de Deus.
"Não se ungirá com ele a carne do homem, nem fareis outro semelhante conforme a sua
composição: santo é, e será santo para vós. O homem que compuser tal perfume como
este, ou que dele puser sobre um estranho, será extirpado dos seus povos". Não deve
haver imitação da obra do Espírito: tudo tem que ser do Espírito: inteiramente e realmente
do Espírito. Demais, aquilo que é do Espírito não deve ser atribuído ao homem:"... o
homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2:14).
Num dos cânticos dos degraus há uma alusão magnífica a este azeite da unção. "Oh!
quão bom e quão suave é", diz o salmista, "que os irmãos vivam em união! É como o óleo
precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla
das suas vestes" (Sl 133:1- 2). Os próprios vestidos do chefe da casa sacerdotal, depois
de ele haver sido ungido com o azeite da santa unção, devem mostrar os seus preciosos
efeitos. Que o leitor possa experimentar o poder desta unção, e conhecer o que é ter "a
unção do Santo" e ser selado com o Espírito Santo da promessa! (l Jo 2:20; Ef 1:13).
Nada tem valor, segundo a apreciação de Deus, salvo aquilo que está ligado com Cristo,
e tudo aquilo que estiver assim ligado com Ele pode receber a santa unção.

O Perfume bem Temperado, Puro e Santo


No último parágrafo deste capítulo, tão rico em ensinos, temos o "perfume temperado,
santo e puro". Este perfume precioso apresenta-nos as perfeições incomensuráveis e
ilimitadas de Cristo. Não é prescrita a quantidade de cada ingrediente, porque as virtudes
de Cristo, as belezas e perfeições que se acham concentradas na Sua adorável Pessoa,
são ilimitadas. Só a mente infinita de Deus pode medir as perfeições infindas d'Aquele em
quem habita a plenitude da Divindade; e durante o curso de toda a eternidade essas
gloriosas perfeições continuarão a desenrolar-se à vista dos santos e anjos prostrados em
adoração. De vez em quando, à medida que novos raios de luz emanam desse Sol de
glória divina, os átrios do céu, nas alturas, e os vastos campos da criação abaixo dos
céus, ressoarão com vibrantes Aleluias Aquele que era, e que é e que sempre será o
objeto de louvor de todas as classes de entes criados com inteligência.
Porém não só não era prescrita a quantidade dos ingredientes que entravam na
composição do incenso, como é dito que de cada um será igual o peso. Cada aspecto de
beleza moral achou em Jesus o seu lugar e a sua justa proporção. Nenhuma quantidade
se interpunha ou se chocava com a outra; tudo era "temperado, puro e santo" e exalava
um odor tão fragrante que ninguém senão Deus podia apreciá-lo.
"E dele, moendo, o pisarás, e dele porás diante do Testemunho, na tenda da
congregação, onde eu virei a ti; coisa santíssima vos será". Existe um significado
profundo e extraordinário na expressão "o pisarás". Ensina-nos que cada simples
movimento na vida de Cristo, cada uma das mais pequenas circunstâncias, cada ação,
cada palavra, cada olhar, cada gesto, cada rasgo, cada feição do Seu rosto, esparge um
odor produzido por proporção igual—o peso de todas as virtudes que compunham o Seu
caráter era igual. Quanto mais pisado era o perfume, tanto mais se manifestava a sua rara
e esquisita composição.
"...O incenso que farás conforme a composição deste, não o fareis para vós mesmos;
santo será para o SENHOR. O homem que fizer tal como este para cheirar será extirpado
do seu povo". Este perfume fragrante estava destinado exclusivamente para o Senhor. O
seu lugar estava "diante do testemunho". Existe em Jesus alguma coisa que só Deus
pode apreciar. De certo, todo o coração crente pode aproximar-se da Sua incomparável
Pessoa e achar inteira satisfação para os seus mais ardentes e profundos desejos;
contudo, depois de todos os remidos terem esgotado a medida da sua compreensão,
depois de os anjos terem contemplado em êxtase as glórias imaculadas do homem Cristo
Jesus, tão ardentemente quanto a sua visão lhes permite, existe n'Ele qualquer coisa que
só Deus pode profundar e apreciar. Nenhuma visão humana ou angélica poderia jamais
discernir devidamente cada partícula desse perfume primorosamente " pisados". A terra
tampouco podia oferecer uma esfera própria à manifestação do seu divino e celestial
poder.

Resumo
Assim, pois, chegamos, no nosso rápido estudo, ao fim de uma parte distinta do livro do
Êxodo. Começamos pela "arca do concerto" até que chegamos ao "altar do cobre";
retrocedemos do altar de cobre e chegamos à "santa unção"; e oh! que divagação esta,
se tão somente for feita à luz infalível do Espírito Santo, em vez da companhia vacilante
da luz da imaginação humana!
Que divagação, contanto que seja feita não por entre as sombras de uma dispensação
que acabou, mas no meio das glórias e das poderosas atrações do Filho de Deus,
representadas por estas coisas! Se o leitor ainda não fez esta divagação, verá mais do
que nunca o seu afeto atraído para Cristo se a fizer; terá uma maior concepção da Sua
glória, da Sua beleza, da Sua excelência e do Seu poder para sanar a consciência e
satisfazer o coração sedento; os seus olhos estarão fechados para as atrações do mundo
e os ouvidos não prestarão atenção às pretensões e promessas da terra. Em suma,
estará pronto a pronunciar o amém fervoroso às palavras do apóstolo (1 Co 16:22),
quando disse: "SE ALGUÉM NÃO AMA AO SENHOR JESUS CRISTO SEJA ANÁTEMA;
MARANATA" (¹).
__________________
(¹) É interessante notar o lugar que ocupa este anátema aterrador. Acha-se no final de
uma longa epístola, no decorrer da qual o apóstolo teve de reprimir alguns pecados dos
mais grosseiros e vários erros de doutrina. Quão solene e significativo é, portanto, o fato
de que quando anuncia o seu anátema não o lança contra aqueles que haviam
introduzido esses erros e pecados, mas sim contra todo aquele que não ama ao Senhor
Jesus Cristo. Por que é isto assim' É acaso porque o Espírito de Deus faz pouco caso dos
erros ou pecados' Seguramente que não; toda a epístola nos revela os Seus
pensamentos quanto a estes males. A verdade é que quando o coração está cheio de
amor para com o Senhor Jesus Cristo, existe uma salvaguarda positiva contra toda a
espécie de falsa doutrina e má conduta. Se alguém não ama a Cristo não se pode
calcular quais as ideias que possa adotar ou o caminho que possa seguir. Logo, a forma
do anátema e o lugar que ocupa na epístola.

— CAPÍTULO 31 —

O SERVIÇO

Bezalel e Aoliabe
Os primeiros versículos deste breve capítulo recordam a chamada divina e os
qualificativos de "Bezalel" e ―Aoliabe" para fazerem o trabalho da congregação. "Depois,
falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Eis que eu tenho chamado por nome a Bezalel, o
filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. E o enchi do Espírito de Deus, de sabedoria, e
de entendimento, e de ciência em todo o artifício... e eis que eu tenho posto com ele a
Aoliabe, o filho de Aisamaque, da tribo de Dã, e tenho dado sabedoria ao coração de todo
aquele que é sábio de coração, para que façam tudo que eu tenho ordenado". Quer seja
para a obra do tabernáculo, na antiguidade, ou para "a obra do ministério", agora, é
necessário que aqueles que são empregados nela sejam divinamente escolhidos,
divinamente chamados, divinamente qualificados e divinamente nomeados; e tudo deve
ser feito segundo o mandamento de Deus. Não estava dentro das atribuições do homem
selecionar, chamar, qualificar ou nomear os obreiros para a obra do tabernáculo; nem
tampouco o pode fazer para a obra do ministério. Demais, ninguém podia presumir de se
nomear a si próprio para a obra do tabernáculo; nem tampouco ninguém pode agora
nomear-se a si próprio para a obra do ministério. Era tudo, é e deve ser absolutamente da
competência divina. Pode haver quem corra por seu próprio impulso ou quem seja
enviado por colegas; mas não se esqueça que todos aqueles que correm sem serem
enviados por Deus serão mais cedo ou mais tarde cobertos de vergonha e confusão. Tal
é a sã doutrina que nos é sugerida pelas palavras "eu tenho chamado", "eu tenho posto",
"eu tenho dado", "eu tenho ordenado". As palavras de João Batista, "o homem não pode
receber coisa alguma senão lhe for dada do céu", serão sempre verdadeiras. O homem
tem, pois, muito pouco em que se vangloriar, menos ainda de que invejar ao seu próximo.
Existe uma lição útil a tirar da comparação deste capítulo com o capítulo 4 de Gênesis:
"Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e de ferro" (versículo 22). Os descendentes
de Caim eram dotados de talento profano para fazer de uma terra maldita e cheia de
gemidos um lugar agradável sem a presença de Deus. "Bezalel" e "Aoliabe" pelo contrário
foram dotados com perícia divina para embelezar um santuário que devia ser santificado
e abençoado pela presença divina e a glória do Deus de Israel.
Gostaria de pedir ao leitor que fizesse à sua própria consciência a seguinte pergunta:
Consagro eu o que quer que possuo de perícia ou energia aos interesses da Igreja, que é
o lugar de habitação de Deus, ou ao embelezamento de um mundo ímpio e sem Cristo?
Não diga em seu coração "não sou divinamente chamado ou dotado para a obra do
ministério". Note-se que embora todos os israelitas não fossem Bezaleles ou Aoliabes
todos podiam servir os interesses do santuário. Existia uma porta aberta para todos
poderem comunicar. E assim é agora. Cada um tem um lugar para ocupar, um ministério
a cumprir, uma responsabilidade a desempenhar; e tanto o leitor como eu estamos, neste
próprio momento, promovendo os interesses da Casa de Deus — O Corpo de Cristo, a
Igreja — ou cooperando nos planos ímpios de um mundo que ainda está manchado com
o sangue de Cristo e o sangue de todos os santos mártires. Oh! ponderemos
profundamente estas coisas, na presença d'Aquele que esquadrinha os corações, a
Quem ninguém pode enganar e de Quem todos são conhecidos.

O Sábado é o Dia do Senhor


Este capítulo termina com uma alusão à instituição do sábado. Em capítulo 16 fez-se
referência ao sábado em relação com o maná; foi expressamente ordenado em capítulo
20, quando o povo foi formalmente posto sob a lei; e aqui encontramo-lo outra vez em
relação com o estabelecimento do tabernáculo. Sempre que a nação de Israel é
apresentada em qualquer posição especial ou reconhecida como povo colocado sob uma
responsabilidade especial, então o sábado é introduzido. Consideremos atentamente o
dia e o modo em que o sábado devia ser observado, assim como o fim com que foi
instituído em Israel. "Portanto, guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que
o profanar certamente morrerá; porque qualquer que nele fizer alguma obra, aquela alma
será extirpada do meio do seu povo. Seis dias se fará obra, porém o sétimo dia é o
sábado do descanso, santo ao SENHOR; qualquer que no dia do sábado fizer obra,
certamente morrerá". Isto é claro e categórico, quanto o pode ser qualquer coisa, e
estabelece "o sétimo dia" e nenhum outro; proíbe positivamente, sob pena de morte, toda
a espécie de trabalho neste dia. É impossível iludir o sentido claro destas palavras. E
recorde-se que não existe sequer uma linha da Escritura Sagrada que prove que o
sábado foi alterado ou que os princípios estritos da sua guarda hajam sido, no mínimo,
moderados. Se existe alguma prova nas Escrituras em contrário, será bom que o leitor se
certifique que ela existe de fato.
Mas, vejamos agora se os cristãos professos guardam de fato o sábado no dia e segundo
a maneira que Deus ordenou. Seria perder tempo em provar que não o fazem. Bom, quais
são as consequências de uma simples quebra do sábado? "Aquele que o fizer certamente
morrerá; será extirpado".
Mas, dir-se-á, não estamos debaixo da lei, mas, sim, debaixo da graça. Bendito seja Deus
por essa doce segurança! Estivéssemos nós debaixo da lei e não haveria ninguém em
toda a Cristandade que não tivesse caído, desde longo tempo, sob o juízo, até mesmo só
por causa da quebra do sábado. Porém, se estamos debaixo da graça, qual é o dia que
nos pertencei E seguramente o primeiro dia da semana, "o dia do Senhor". Este dia é o
dia da Igreja, o dia da ressurreição de Jesus, que, havendo passado o sábado na
sepultura, ressuscitou vitorioso sobre todos os poderes das trevas, conduzindo assim o
Seu povo da antiga criação e de tudo quanto lhe pertence para a nova geração, da qual
Ele é a Cabeça, e da qual o primeiro dia da semana é a justa expressão.
Esta distinção merece ser examinada com oração à luz das Escrituras. Um simples nome
pode ter um grande significado e pode também não significar nada. No caso que estamos
tratando existe muito mais significado entre "o sábado" e "dia do Senhor" que muitos
cristãos parece compreenderem. É evidente que o primeiro dia da semana tem um lugar
na Palavra de Deus que não é dado a nenhum outro dia. Nenhum outro dia é designado
por este majestoso título, "o dia do Senhor". Bem sei que há pessoas que negam que em
Apocalipse 1:10 se faz alusão ao primeiro dia da semana; porém, por minha parte estou
completamente convencido de que a critica sã e sã exagesis garantem, e, ainda mais,
exigem a aplicação dessa passagem não ao dia do advento de Cristo em glória, mas ao
dia da Sua ressurreição de entre os mortos.
Mas, certamente, o dia do Senhor nunca é chamado o sábado. Muito longe disso, f ala-se
destes dois dias, repetidas vezes, na sua própria clareza. Por isso, o leitor deve evitar os
dois extremos. Em primeiro lugar deverá evitar o legalismo, que com tanta frequência se
acha associado com o termo "sábado"; e, em segundo lugar, deverá testificar contra toda
a tentativa que tenha por fim desonrar o dia do Senhor ou rebaixá-lo ao nível de um dia
ordinário. O crente está livre da maneira mais completa da observância de "dias e meses,
e tempos e anos" (Gl 4:10). A sua união com Cristo ressuscitado libertou-o
completamente de todas estas superstições e observâncias. Mas, por muito verdadeiro
que seja tudo isto, "o primeiro dia da semana" ocupa um lugar especial no Novo
Testamento. Que o cristão lhe dê esse lugar! É um doce e feliz privilégio e não um jugo
penoso.
O espaço não me permite entrar em mais pormenores sobre este assunto tão
interessante. Aliás, já foi tratado nas páginas precedentes deste volume. Quero terminar
os meus comentários frisando um ou dois pontos particulares acerca do contraste entre "o
sábado" e o "dia do Senhor".
1) O sábado era "o sétimo dia": o dia do Senhor é o primeiro.
2) O sábado era uma experiência da condição de Israel; o dia do Senhor é aprova da
aceitação da Igreja inteiramente numa base incondicional.
3) O sábado pertencia à antiga criação; o dia do Senhor pertence à nova criação.
4) O sábado era um dia de repouso corporal para o judeu; o dia do Senhor é um dia de
repouso espiritual para o cristão.
5) Se um judeu trabalhasse no sábado devia ser condenado à morte; se o cristão não
trabalhar no dia do Senhor dá uma fraca prova de vida. Quer dizer, se não trabalhar em
proveito das almas, para a extensão da glória de Cristo e a disseminação da verdade. De
fato, o cristão consagrado, que possui algum dom, encontra-se geralmente mais fatigado
ao fim do dia do Senhor do que em qualquer outro dia da semana; pois como poderá ele
descansar enquanto as almas perecem ao seu redor?
6) O judeu devia ficar, segundo a lei, na sua tenda no dia de sábado; o cristão é levado
pelo espírito do evangelho a sair para assistir à assembleia pública ou para anunciar o
evangelho aos pecadores perdidos.
Que o Senhor nos conceda podermos descansar com mais naturalidade no nome do
Senhor Jesus Cristo e trabalhar mais vigorosamente por Ele! Deveríamos confiar com o
Espírito de uma criança e trabalhar com a energia de um homem.

— CAPÍTULO 32 —
APOSTASIA

Vamos agora contemplar alguma coisa diferente daquilo que tem até aqui ocupado a
nossa atenção. "As figuras das coisas que estão no céu" (Heb. 9:23) passaram perante os
nossos olhos — Cristo em Sua gloriosa Pessoa, em Seus deveres de misericórdia e em
Sua obra perfeita, tal como são representados no tabernáculo e nos seus utensílios
místicos. Havemos estado em espírito no monte e ouvido as próprias palavras de Deus,
as doces declarações dos pensamentos celestiais, afeição e propósitos, dos quais Jesus
é "o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o último".

"Faze-nos Deuses"
Mas agora somos convidados a descer outra vez à terra para contemplar a ruína que o
homem faz de tudo em que põe a sua mão.
"Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, ajuntou-se o povo a Arão, e
disseram-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; porque enquanto a
este Moisés, a este homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe
sucedeu" (versículo 1). Que degradação se manifesta aqui! Faze-nos deuses!
Abandonavam Jeová para se porem debaixo da tutela de deuses feitos por mãos de
homens. Nuvens escuras e névoas espessas cobriam o monte; eles estavam fartos de
esperar por aquele que se havia ausentado e de se apoiarem num braço invisível, embora
real. Imaginaram que um deus feito com "um buril" valia mais que o Senhor; preferiam um
bezerro que podiam ver em vez do Deus invisível mas presente em toda a parte — uma
falsificação visível à realidade invisível!
Desgraçadamente, sempre, assim tem sucedido na história do homem. O coração
humano deseja alguma coisa que se possa ver— aquilo que responda e satisfaça os
sentidos. Só a fé pode ficar firme "como vendo o invisível" (Hb 11:27). Assim, em todos os
tempos, os homens têm tido a tendência para levantar imitações das realidades divinas e
de se apoiarem nelas. Vemos assim como as falsificações da religião se têm multiplicado
ante os nossos olhos. Aquelas coisas que sabemos, por meio da autoridade da Palavra
de Deus, serem realidades divinas e celestiais têm sido transformadas em imitações
humanas e terrenas pela Igreja professa. Cansada de se apoiar sobre um braço invisível,
de confiar num sacrifício invisível, de recorrer a um sacerdote invisível, de esperar a
direção de um chefe invisível, tem-se ocupado em "fazer" estas coisas; e, desta forma,
através dos séculos, tem estado ocupada, de "buril" na mão, talhando e gravando uma
coisa após outra, de sorte que agora já não achamos mais analogia entre muita coisa que
vemos em torno de nós e o que lemos na Palavra de Deus do que aquela que existe entre
um bezerro "fundido" e o Deus de Israel.
"Faze-nos deuses! Que pensamento! O homem convidado a fazer deuses e o povo
disposto a pôr a sua confiança neles! Prezado leitor, olhemos no íntimo e em torno de nós
e vejamos senão descobrimos algo de semelhante. Lemos a respeito da história de Israel
que todas estas coisas lhes sobrevieram como figuras, "e estão escritas para aviso nosso,
para quem já são chegados os fins dos séculos" (I Co 10:11). Procuremos, pois,
aproveitar o "aviso". Acordemos que ainda que não façamos precisamente "um bezerro
de fundição" nos prostramos diante dele. O pecado de Israel é, sem dúvida, um "tipo" de
alguma coisa em que corremos o risco de cair. Sempre que, em nosso coração, deixamos
de nos apoiar exclusivamente em Deus, quer seja no que se refere ao assunto da
salvação, quer no tocante às necessidades da nossa vida, estamos dizendo, em princípio,
"faze-nos deuses". É desnecessário dizer que, em nós mesmos, não somos de nenhuma
maneira melhores que Arão ou os filhos de Israel; e se eles honraram um bezerro em
lugar do Senhor, nós corremos o risco de atuar segundo o mesmo princípio e de
manifestar o mesmo espírito. A nossa única salvaguarda é estarmos muito tempo na
presença de Deus. Moisés sabia que "o bezerro de fundição" não era Jeová, e portanto
não o reconheceu. Porém, quando nos afastamos da presença divina é impossível prever
os erros crassos em que podemos cair e todo o mal em que podemos ser arrastados.

As Realidades da Fé
Nós somos chamados a viver pela fé; nada podemos ver pela vista dos sentidos. Jesus
subiu às alturas e é-nos dito para esperarmos pacientemente pelo Seu aparecimento. A
Palavra de Deus, aplicada ao coração na energia do Espírito Santo, é o fundamento de
confiança em todas as coisas, temporais e espirituais, presentes e futuras. Deus fala-nos
do sacrifício cumprido por Cristo; nós cremos pela graça e pomos as nossas almas sob a
eficácia deste sacrifício, e sabemos que nunca seremos confundidos.
Fala-nos de um sumo sacerdote, que penetrou nos céus, Jesus, o Filho de Deus, cuja
intercessão é toda poderosa; nós, pela graça, cremos e apoiamo-nos confiadamente
sobre o Seu poder e sabemos que seremos salvos para todo o sempre. Fala-nos do
Chefe vivo com Quem estamos unidos no poder da vida de ressurreição, e de Quem
nenhuma influência angélica, humana ou diabólica nos poderá separar e, pela graça,
cremos e apoiamo-nos a esse Chefe bendito com fé simples e sabemos que nunca
havemos de perecer. Fala-nos do aparecimento glorioso do Filho, vindo dos céus; nós,
pela graça, cremos e procuramos experimentar o poder purificador desta "esperança
bendita" (Tt 2:13); e sabemos que não sofreremos nenhum desengano. Fala-nos de uma
herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus
para nós, e que estamos guardados na virtude de Deus (1 Pe 1:4-5); de posse da qual
herança entraremos a seu devido tempo; e, pela graça, cremos e sabemos que não
seremos confundidos. Diz-nos que os cabelos da nossa cabeça estão todos contados e
que nada nos faltará; e mediante a graça cremos e gozamos uma doce tranquilidade de
coração.
E assim é, ou, pelo menos, assim quisera Deus que fosse. Porém o inimigo está sempre
ativo, buscando fazer com que estas realidades divinas sejam desprezadas por nós —
Procura induzir-nos a pegar no "buril" da incredulidade e fazermos os nossos próprios
deuses. Vigiemos contra ele; oremos para sermos guardados dele; testifiquemos contra
ele; atuemos contra ele; e desta forma ele será confundido, Deus será glorificado e nós
próprios seremos abundantemente abençoados.

O Bezerro de Fundição
Quanto a Israel, neste capítulo, a sua rejeição de Deus foi a mais completa. "E Arão lhes
disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de
vossos filhos, e de vossas filhas e trazei-mos... e ele os tomou das suas mãos, e formou o
ouro comum buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então, disseram: Estes são teus
deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito. E Arão, vendo isto, edificou um altar
diante dele; e Arão apregoou, e disse: Amanhã será festa ao SENHOR" (versículos 2 a 5).
Isto era pôr Deus de parte e substituí-Lo por um bezerro. Quando puderam proclamar que
um bezerro os tinha tirado do Egito, abandonaram, evidentemente, toda a ideia da
presença e do caráter do verdadeiro Deus. "Depressa" se desviaram do caminho que
Deus lhes tinha ordenado, para cometerem um erro tão grosseiro e espantoso! E Arão, o
irmão e companheiro de Moisés no seu cargo, conduziu-os neste extravio; e pôde dizer
diante de um bezerro: "Amanhã será festa ao SENHOR"! Como isto é triste! Quão
humilhante! Deus destituído por um ídolo! Um objeto "esculpido por artifício e imaginação
dos homens" foi posto em lugar do "Senhor de toda a terra"!

A Ira do SENHOR e a Intercessão de Moisés


Tudo isto implicava renúncia deliberada, da parte de Israel, à sua relação com o Senhor.
Haviam abandonado o Senhor; e, por consequência, vemos que Ele os considerou no
terreno que escolheram. "Então, disse o SENHOR a Moisés: Vai, desce; porque o teu
povo, que fizeste subir do Egito, se tem corrompido. E depressa se tem desviado do
caminho que eu lhes tinha ordenado... Tenho visto a este povo, e eis que é povo
obstinado. Agora, pois, deixa-me, que o meu furor se acenda contra eles, e os consuma:
e eu farei de ti uma grande nação" (versículos 7 a 10). Aqui estava uma porta aberta para
Moisés; e aqui ele manifesta uma virtude pouco vulgar e semelhança de espírito com
aquele Profeta semelhante a si que o Senhor devia suscitar. Moisés recusa ser ou ter
qualquer coisa sem o povo. Argumenta com Deus com fundamento na Sua própria glória,
e repõe o povo sobre Ele com estas palavras tocantes: "O SENHOR, porque se acende o
teu furor contra o teu povo, que tu tiraste da terra do Egito com grande força e com forte
mão?-Por que hão de falar os egípcios, dizendo: Para mal os tirou, para matá-los nos
montes e para destruí-los da face da terral Torna-te da ira do teu furor, e arrepende-te
deste mal contra o teu povo. Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, teus servos,
aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa semente como
as estrelas do céus e darei à vossa semente toda esta terra, de que tenho dito, para que a
possuam por herança eternamente" (versículos 11 a 13).
Isto era uma defesa poderosa. A glória de Deus, a justificação do Seu santo nome, o
cumprimento do Seu juramento: tais são os argumentos em que Moisés se firma para
rogar ao Senhor para aplacar a Sua ira. Não podia achar na conduta ou caráter de Israel
argumento de defesa; mas achou-o no Próprio Deus.

As Tábuas da Lei Quebradas


O Senhor havia dito a Moisés: "O teu povo, que fizeste subir; porém Moisés responde ao
Senhor, "o teu povo, que tu tiraste...". Era o povo do Senhor, apesar de tudo; e o Seu
nome, a Sua glória, e o Seu juramento estavam ligados com o seu destino. Logo que o
Senhor Se liga com um povo, o Seu caráter é emprenhado e a fé esperará sempre n'Ele
sobre este sólido fundamento. Moisés esquece-se completamente de si. A sua alma está
inteiramente ocupada com pensamentos acerca da glória do Senhor e do Seu povo.
Ditoso servo!
Como há tão poucos como ele! E quando o contemplamos nesta cena, percebemos que
está infinitamente abaixo do bendito Mestre. A diferença entre eles é infinita! Moisés
desceu do monte. "E vendo o bezerro e as danças, acendeu-se o furor de Moisés e
arremessou as tábuas das suas mãos e quebrou-as ao pé do monte" (versículo 19). O
concerto fora violado e os seus acordos foram feitos em bocados; e, então, havendo, em
justa indignação, executado o juízo, "disse ao povo: Vós pecastes grande pecado; agora,
porém, subirei ao SENHOR; porventura, farei propiciação por vosso pecado".

Cristo, nosso Mediador


Quão diferente é tudo isto do que vemos em Cristo! Veio do seio do Pai não com as
tábuas da lei em Suas mãos, mas com a lei em Seu coração: não veio para conhecer a
condição do povo, mas com perfeito conhecimento do que essa condição era. Demais,
em vez destruir os acordos do concerto e executar o juízo, engrandeceu a lei e honrou-a e
levou sobre a Sua adorável Pessoa, na cruz, o juízo do Seu povo; e, havendo cumprido
tudo, voltou para o céu, não com um "porventura farei propiciação por vossos pecados",
mas para depositar sobre o trono da Majestade nas alturas os acordos imperecíveis de
uma expiação realizada. Isto constitui uma diferença imensa e verdadeiramente gloriosa.
Graças a Deus, não temos necessidade de seguir com ansiedade o nosso Mediador para
saber se cumprirá a nossa redenção e se apaziguará a justiça ofendida. Não, Ele já fez
tudo. A Sua presença nas alturas declara que toda a obra foi consumada. Nos limites
deste mundo, prestes a partir, e com toda a calma de um vencedor consciente da vitória—
embora tivesse ainda que atravessar a cena mais sombria — ,pôde dizer "Eu glorifiquei-te
na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer" (Jo 17:4). Bendito Salvador! Bem
podemos adorar-Te triunfar com o lugar de glória e honra com que a justiça eterna Te
coroou. O lugar mais elevado no céu pertence-Te, e os Teus santos esperam apenas o
tempo em que "ao nome de Jesus se dobre todo o joelho.. .e toda a língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai" (Fl 2:10-11). Deus e o Governo Moral

Deus e o Governo Moral


No fim deste capítulo o Senhor proclama os Seus direitos no governo moral nas seguintes
palavras: "Aquele que pecar contra mim, a este riscarei eu do meu livro. Vai, pois, agora,
conduze este povo para onde te tenho dito; eis que o meu anjo irá adiante de ti; porém, no
dia da minha visitação, visitarei, neles, o seu pecado". Eis aqui Deus no governo, não
Deus no evangelho. Aqui Deus fala de riscar o pecador; no evangelho vê-Se tirando o
pecado. A diferença é grande!
O povo deve ser conduzido, por intermédio de Moisés, pela mão de um anjo. Este estado
de coisas era bem diferente daquele que havia existido desde o Egito ao Sinai. Israel
perdera todo o direito baseado na lei, e por isso só restava a Deus retroceder à Sua
soberania e dizer: "... terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia."

- CAPÍTULO 33 –

MEDIAÇÃO
E RESTAURAÇÃO

A Tenda da Congregação
O Senhor recusa acompanhar o seu povo à terra prometida: ".. .eu não subirei no meio de
ti, porquanto és povo obstinado, para que não te consuma eu no caminho" (versículo 3).
No princípio deste livro, o Senhor pôde dizer: "Tenho visto atentamente a aflição do meu
povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores,
porque conheci as suas dores". Porém, agora tem que dizer: "Tenho visto a este povo, e
eis que é povo obstinado". Um povo afligido é objetivo da graça, mas um povo obstinado
é necessário que seja humilhado. O clamor de Israel oprimido havia obtido resposta por
meio da manifestação da graça; mas o cântico idólatra de Israel deve ser atendido pela
voz de severa admoestação.
"Povo obstinado és; se um momento subir no meio de ti, de consumirei; porém agora tira
de ti os teus atavios, para que eu saiba o que te hei-de fazer"(versículo 5). É só quando
somos despojados dos atavios da nossa natureza que Deus pode tratar conosco. Um
pecador despido pode ser revestido; porém um pecador coberto de ornamentos deve ser
despido. É necessário que sejamos despojados de tudo que pertence ao ego, antes de
podermos ser revestidos daquilo que pertence a Deus.
"Então, os filhos de Israel se despojaram dos seus atavios, ao pé do monte Horebe". Ali
estavam, ao pé deste memorável monte, a sua festa e os seus cânticos haviam sido
trocados por amargas lamentações, os seus atavios postos de parte, as tábuas da lei em
pedaços. Tal era a sua condição quando Moisés se dispôs a agir imediatamente de
acordo com o seu estado. Agora já não podia reconhecer o povo no seu caráter corpóreo.
A assembleia havia-se contaminado inteiramente levantando um ídolo de sua própria
fabricação em lugar de Deus — um bezerro em lugar do Senhor.
"E tomou Moisés a tenda, e a estendeu para si fora do arraial, desviada longe do arraial, e
chamou-lhe a tenda da congregação." Assim o campo foi rejeitado como o lugar da
presença divina. Deus já não estava ali, nem podia estar por mais tempo, porque havia
sido deposto por uma invenção humana. Um novo centro de reunião foi, pois,
estabelecido. "E aconteceu que todo aquele que buscava o SENHOR, saiu à tenda da
congregação que estava fora do arraial ".
Eis aqui um princípio precioso da verdade que a mente espiritual facilmente
compreenderá. O lugar que Cristo ocupa agora é "fora do arraial" (Hb 13:13), e nós
somos convidados a ir ao Seu encontro, "fora do arraial". É necessária muita sujeição à
Palavra de Deus para se poder saber exatamente o que significa realmente o arraial, e
muito poder espiritual para se poder sair dele; e muito mais ainda para se poder, quando
se está "longe", atuar a favor dos que estão dentro do arraial no poder combinado da
santidade e da graça — a santidade que nos separa da contaminação do arraial e a graça
que nos habita a atuar a favor daqueles que estão dentro dele.
"E falava o SENHOR a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo; depois,
tornava ao arraial, mas o moço Josué, filho de Num, seu servidor, nunca se apartava do
meio da tenda". Moisés manifesta maior energia espiritual que o seu servo Josué. E muito
mais fácil tomar uma posição de separação do campo do que proceder acertadamente
par com aqueles que estão dentro dele.

O Senhor Diz: Irá a Minha Presença...


"E disse Moisés ao SENHOR: Eis que tu me dizes: Faze subir a este povo, porém não me
fazes saber a quem hás de enviar comigo; e tu disseste: Conheço-te por teu nome;
também achaste graça aos meus olhos". Moisés solicita a companhia do Senhor como
prova de o povo haver achado graça aos Seus olhos. Se fosse apenas uma questão de
justiça, o Senhor só podia consumir o povo, estando no seu meio, porque era um "povo
obstinado". Porém, fala de graça em relação com o Mediador e a própria obstinação do
povo torna-se um argumento para pedir a Sua presença: "Senhor, se agora tenho achado
graça aos teus olhos, vá agora o Senhor no meio de nós, porque este povo é obstinado;
porém, perdoa a nossa iniquidade e o nosso pecado, e toma-nos pela tua herança"
(capítulo 34:9). Eis uma oração não apenas bela mas tocante. O "povo obstinado" pedia a
graça ilimitada e a paciência inexaurível de Deus. Só Ele podia suportá-lo.
"Disse, pois: Irá a minha presença contigo para te fazer descansar". Parte preciosa!
Bendita esperança! A presença de Deus conosco durante a travessia do deserto e no fim
descanso eterno! Graça para suprir as nossas necessidades presentes e a glória como a
nossa sorte vindoura! Os nossos corações podem bem exclamar: "É bastante, Senhor!"

— CAPÍTULO 34 —

O MONTE HOREBE
E O EVANGELHO

Em capítulo 34 Deus dá as segundas tábuas da lei, não para serem quebradas, mas para
serem guardadas na arca, em cima da qual, como já fizemos notar, Jeová ia tomar o Seu
lugar como Senhor de toda a terra no governo moral. "Então, ele lavrou duas tábuas de
pedra, como as primeiras; e levantou-se Moisés pela manhã de madrugada, e subiu ao
monte Sinai, como o SENHOR lhe tinha ordenado; e tomou as duas tábuas de pedra na
sua mão. E o SENHOR desceu numa nuvem e se pôs junto a ele; e ele apregoou o nome
do SENHOR. Passando, pois, o SENHOR perante a sua face, clamou: JEOVÁ, o
SENHOR, Deus misericordioso e piedoso, tardio em iras e grande em beneficência e
verdade; que guarda a beneficência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a
transgressão, e o pecado; que ao culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade
dos pais sobre os filhos e sobre os filhos até à terceira e quarta geração" (versículos 4 a
7). Lembremo-nos que Deus é visto aqui no Seu governo moral do mundo e não como é
visto na cruz — não como brilha na face de Jesus Cristo —, não como é proclamado no
evangelho da Sua graça. Eis uma exibição de Deus no evangelho: "E tudo isso provém de
Deus, que nos reconciliou consigo mesmo, por Jesus Cristo e nos deu o ministério da
reconciliação, isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, NÃO LHES
IMPUTANDO os seus pecados e pôs em nós a palavra da reconciliação" (2 Co 5:18-19).
Não ter "ao culpado por inocente" e não "imputar o pecado" são termos que nos
apresentam duas ideias de Deus totalmente diferentes. Visitar "a iniquidade" e tirá-la não
é certamente a mesma coisa. A primeira é Deus agindo em Seu governo; a segunda é
Deus no evangelho. Em capítulo 3 da 2a epístola aos Coríntios, o apóstolo põe em
contraste o "ministério" mencionado em Êxodo, capítulo 34, como "o ministério" do
evangelho. O leitor fará bem em estudar esse capítulo com atenção. Aprenderá com essa
lição que todo aquele que considera o ponto de vista do caráter de Deus dado a Moisés,
no Monte Horebe, como explicando o evangelho, deve ter realmente uma compreensão
muito imperfeita do que é o evangelho. Eu não posso descobrir os segredos profundos do
coração do Pai nem na criação, nem mesmo no governo moral. O filho pródigo poderia ter
achado o seu lugar nos braços d'Aquele que Se revelou no Monte Sinais João poderia ter
inclinado a sua cabaça no coração desse Senhora Seguramente que não. Porém, Deus
revelou-Se na face de Jesus Cristo; Ele nos revelou, com harmonia divina, todos os Seus
atributos na obra da cruz. Foi ali que "a misericórdia e a verdade se encontraram, a justiça
e a paz se beijaram" (SI 85:10). O pecado é completamente tirado e o pecador que crê
perfeitamente justificado "PELO SANGUE DA CRUZ".
Quando vemos Deus assim revelado, temos apenas, à semelhança de Moisés, de inclinar
a cabeça à terra e adorar — atitude que convém a um pecador perdoado e recebido na
presença de Deus!

— CAPÍTULOS 35 a 40 —

A CONSTRUÇÃO
DO TABERNÁCULO

O Desprendimento Voluntário
Estes capítulos contêm uma recapitulação de diversas partes do tabernáculo e seu
mobiliário; e visto que já expliquei o que creio ser o significado das partes mais
proeminentes, é desnecessário acrescentar mais.
Existem, contudo, duas coisas nesta parte do livro das quais podemos tirar instruções
muitos úteis, a saber, em primeiro lugar os sacrifícios voluntários do povo; e, em segundo,
a obediência implícita do povo a respeito da obra do tabernáculo do testemunho.
"Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu de diante de Moisés, e veio todo
homem, a quem o seu coração moveu, e todo aquele cujo espírito voluntariamente o
impeliu, e trouxeram a oferta alçada ao SENHOR, para a obra da tenda da congregação,
e para todo o seu serviço, e para as vestes santas. E, assim, vieram homens e mulheres,
todos dispostos de coração; trouxeram fivelas, e pendentes, e anéis, e braceletes, e todo
vaso de ouro; e todo homem oferecia oferta de ouro ao SENHOR, e todo homem que se
achou com pano azul, e púrpura, e carmesim, e linho fino, e pelos de cabras, e peles de
carneiro tintas de vermelho, e peles de texugos, os trazia; todo aquele que oferecia oferta
alçada de prata ou de metal, a trazia; por oferta alçada ao SENHOR; e todo aquele que se
achava com madeira de cetim, a trazia para toda a obra do serviço. E todas a mulheres
sábias de coração fiavam com as mãos, e traziam o fiado, o pano azul, a púrpura, o
carmesim e o linho fino. E todas as mulheres, cujo coração se moveu em sabedoria,
fiavam os pelos das cabras. E os príncipes traziam pedras sardônicas, e pedras de
engaste para o éfode e para o peitoral, e especiarias, e azeite para a luminária, e para o
óleo da unção, e para o incenso aromático. Todo homem e mulher, cujo coração
voluntariamente se moveu a trazer alguma coisa para toda a obra que o SENHOR
ordenara se fizesse pela mão de Moisés" (capítulo 35:20 a 29). E mais adiante lemos: "E
vieram todos os sábios que faziam toda a obra do santuário, cada um da obra que fazia, e
falaram a Moisés, dizendo: O povo traz muito mais do que basta para o serviço da obra
que o SENHOR ordenou se fizesse... porque tinham material bastante para toda a obra
que havia de fazer-se" (capítulo 36:4 a 7).
Que quadro encantador da dedicação à obra do santuário! Não foram precisos esforços,
apelos ou argumentos solenes par constranger os corações do povo a darem. Oh! não: os
corações foram voluntariamente movidos. Este era o próprio princípio. A corrente de
sacrifícios voluntários vinha dos corações: "Príncipes", "homens", "mulheres", todos
sentiam que era para eles um doce privilégio darem ao Senhor, não com um coração
estreito ou mão mesquinha, mas de um modo principesco trouxeram "muito mais do que
bastava."

A Obediência Implícita
Em segundo lugar, quanto à obediência do povo está escrito: "Conforme tudo o que o
SENHOR ordenara a Moisés, assim fizeram os filhos de Israel toda a obra. Viu, pois,
Moisés toda a obra, e eis que a tinham feito; como o SENHOR ordenara, assim a fizeram;
então, Moisés os abençoou" (capítulo 39:42 a 43). O Senhor havia dado instruções
minuciosas relativas a toda a obra do tabernáculo. Cada estaca, cada base, cada
colchete, cada cordão estavam exatamente nos seus lugares. Não houve lugar disponível
para os recursos, a razão ou o sentido comum do homem. O Senhor não delineou um
plano deixando ao homem a tarefa de o completar; nem deixou nenhuma margem para o
homem fazer introduzir as usas combinações. De modo nenhum. "Atenta, pois, que o
faças conforme ao modelo que te foi mostrado no monte (Êx 25:40, 26:30; Hb 8:5).
Este mandato não deixava lugar para invenções humanas. Se fosse permitido ao homem
fazer uma simples estaca, essa estaca estaria, seguramente, fora de lugar, no parecer de
Deus. Podemos ver em capítulo 32 o que "o buril" do homem produz. Graças a Deus, o
buril não teve lugar no tabernáculo. Neste caso eles fizeram precisamente o que lhes fora
dito—nada mais, nada menos. Eis aqui uma lição proveitosa para a igreja professa!
Existem muitas coisas na história de Israel que devemos procurar seriamente evitar: as
suas murmurações de impaciência, os seus votos de legalismo, e a sua idolatria; porém
na sua devoção e na sua obediência podemos imitá-los. Que a nossa devoção seja mais
sincera e a nossa obediência mais implícita. Podemos afirmar com toda a segurança que
se tudo não tivesse sido feito conforme ao modelo mostrado "no monte" não poderíamos
ler, no final do livro, que "então, a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do
SENHOR encheu o tabernáculo, de maneira que Moisés não podia entrar na tenda da
congregação, porquanto a nuvem ficava sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o
tabernáculo" (capítulo 40:34-35). O tabernáculo era, para todos os efeitos, conforme ao
modelo divino, e, portanto, podia ser cheio da glória divina.
Existem tomos de instruções nesta verdade. Estamos sempre prontos a considerar a
Palavra de Deus insuficiente até para os mínimos pormenores ao culto e serviço de Deus.
Mas isto é um grande erro, erro que tem sido a origem de abundantes males e erros na
igreja professa. A Palavra de Deus é suficiente para todas as coisas, quer seja no que se
refere à salvação e conduta pessoal, quer no tocante à ordem e governo da Assembleia.
"Toda Escritura, divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para
corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente
instruído para toda boa obra" (2 Tm 3:16-17). Estas palavras resolvem toda a questão. Se
a Palavra de Deus prepara um homem perfeitamente para toda boa obra", segue-se,
necessariamente, que tudo o que não se acha nas suas páginas não pode ser uma boa
obra. Demais, recordemos que a glória divina não pode ligar-se com aquilo que não for
conforme ao modelo divino.

CONCLUSÃO

Prezado leitor, acabamos de percorrer juntos as páginas deste livro precioso. Tenho a
confiança que temos recolhido algum fruto do nosso estudo. Confio que temos recolhido
alguns pensamentos edificantes acerca de Jesus e do Seu sacrifício, à medida que
avançamos. É verdade que os nossos pensamentos mais elevados não podem ser mais
que mesquinhos, e que o que percebemos de mais profundo é muito superficial
comparado com a intenção de Deus em todo este livro. É agradável recordarmos que,
pela graça, estamos no caminho que conduz àquela glória em que conheceremos como
somos conhecidos; e onde os nossos corações se deleitarão com o resplendor do
semblante d'Aquele que é o princípio e o fim de todos os caminhos de Deus, quer seja na
criação, na providência ou na redenção. Encomendo-o, pois, ao Senhor em corpo, alma e
espírito, orando para que possa compreendera profunda bem-aventurança de ter a sua
parte em Cristo, e para que seja guardado na esperança da Sua vinda gloriosa. Amém.

FIM
— CAPÍTULO 1 —

O HOLOCAUSTO

Antes de entrarmos em pormenores sobre este capítulo, há


duas coisas que requerem toda a nossa atenção, a saber:
primeiro a posição de Jeová e segundo a ordem por que são
apresentados os sacrifícios.
"E chamou o SENHOR a Moisés e falou com ele da tenda da
congregação." Tal foi a posição de onde o Senhor fez as
comunicações narradas neste livro. Havia falado do Monte
Sinai, e a Sua posição ali imprimiu um caráter particular à
comunicação. Do monte ardente saiu "o fogo da lei" (Dt
33:2). Porém, aqui o Senhor fala "da tenda da congregação".
Era uma posição muito diferente.
Vimos este tabernáculo concluído no final do livro
precedente. "Levantou também o pátio ao redor do
tabernáculo e do altar e pendurou a coberta da porta do
pátio. Assim, Moisés acabou a obra. Então a nuvem cobriu a
tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o
tabernáculo,... porquanto a nuvem do SENHOR estava de dia
sobre o tabernáculo, e o fogo estava de noite sobre ele,
perante os olhos de toda a casa de Israel, em todas as suas
jornadas". (Êx 40:33-38).
Ora, o tabernáculo era o lugar onde Deus habitava em graça.
Podia estabelecer ali a Sua habitação, porque estava
rodeado de todos os lados por aquilo que representava
brilhantemente o fundamento das Suas relações com o povo.
Se tivesse vindo ao meio deles na plena manifestação do
caráter revelado no Monte Sinai só podia ser para os
"consumir num momento", como "povo obstinado" (Êx 33:5).
Porém, retirou-se para dentro do véu — figura da carne de
Cristo (Hb 10:20) e tomou o Seu lugar sobre o
propiciatório, onde o sangue da expiação, e não "o povo
obstinado" de Israel, se apresentava à Sua vista e
satisfazia as exigências da Sua natureza. O sangue que era
levado ao santuário pelo sumo sacerdote era figura do
sangue precioso que purifica de todo o pecado; e, embora
Israel, segundo a carne, não discernisse nada disto, esse
sangue, contudo, justificava o fato de Deus habitar no meio
deles; "santificava-os quanto à purificação da carne" (Hb
9:13).
Tal é, pois, a posição do Senhor no Livro de Levítico,
posição esta que deve ser tida em consideração, se se
quiser ter um conhecimento exato das revelações que este
livro encerra. Nessas revelações encontramos inflexível
santidade unida à mais pura graça. Deus é santo, seja qual
for o lugar de onde fala. É santo no monte Sinai e santo no
propiciatório; porém, no primeiro caso a Sua santidade
estava ligada a "um fogo consumidor", enquanto que no
segundo estava ligada com paciente graça.
Ora, a união da perfeita santidade com a graça perfeita é o
que caracteriza a redenção que há em Cristo Jesus, redenção
que é, de diversas maneiras, tipificada no livro de
Levítico. É preciso que Deus seja santo, ainda que seja na
condenação eterna dos pecadores impenitentes; porém a
revelação plena da Sua santidade na salvação dos pecadores
faz ressoar no céu um coro de louvor. "Glória a Deus nas
alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens" (Lc
2:14). Esta doxologia não podia ter sido entoada em relação
com "o fogo da lei". Sem dúvida, havia "glória nas
alturas", mas não havia "paz na terra" nem "boa vontade
para com os homens", porquanto a lei era a declaração do
que os homens deviam ser, antes que Deus pudesse ter prazer
neles. Mas quando "o Filho" ocupou o Seu lugar como homem
na terra, o céu pôde exprimir todo o Seu prazer n'Aquele
cuja Pessoa e obra podiam ligar, da maneira mais perfeita,
a glória divina com a bem-aventurança humana.

A Ordem dos Sacrifícios


E agora algumas palavras sobre a ordem dos sacrifícios, nos
primeiros capítulos do livro de Levítico. O Senhor começa
com o holocausto e termina com a expiação da culpa. Quer
dizer, termina onde nós começamos. Esta ordem é notável e
muito instrutiva. Quando pela primeira vez a seta da
convicção penetra na alma dá-se um profundo exame de
consciência quanto aos pecados cometidos. A memória volve a
sua vista iluminada para as páginas da vida passada e vê-as
manchadas com inumeráveis transgressões contra Deus e
contra o homem. Neste momento da história da alma, ela não
se ocupa tanto com a raiz de onde brotaram essas
transgressões como com o fato palpável que este e aquele
ato foram cometidos por ela; e, por isso, tem necessidade
de saber que Deus proveu um sacrifício por cuja virtude
"todas as ofensas" podem ser perdoadas livremente. E este
sacrifício é-nos apresentado no sacrifício da expiação da
culpa.
Mas à medida que a alma progride na vida divina torna-se
consciente do fato que esses pecados que cometeu não são
mais que rebentos de uma raiz, correntes de uma mesma
fonte; e, além disso, que o pecado na sua natureza — ou
seja: na carne — é essa fonte, essa raiz. Isto conduz-nos a
um exercício íntimo ainda mais profundo, que nada pode
tranquilizar senão um conhecimento mais profundo da obra da
cruz. Em suma, a cruz deve ser compreendida como o lugar
onde Deus Mesmo "condenou o pecado na carne" (Rm 8:3).

O leitor há - de notar que esta passagem não diz "pecados


na vida", mas a raiz de onde os pecados provêm, a saber, o
"pecado na carne".
E uma verdade de grande importância. Cristo não somente
morreu por nossos pecados, "segundo as Escrituras" (1 Co
15:3), como foi feito pecado por nós (1 Co 5:21). Esta é a
doutrina do sacrifício da expiação do pecado.
E quando o coração e a consciência encontram descanso
mediante o conhecimento da obra de Cristo, que nos podemos
alimentar d'Ele como o fundamento da nossa paz e do nosso
gozo, na presença de Deus. Não pode haver paz ou gozo antes
de sabermos que todas as nossas transgressões foram
perdoadas e o nosso pecado julgado. A expiação da culpa e a
expiação do pecado têm de ser conhecidas antes que os
sacrifícios pacíficos, de manjares ou de ações de graças
possam ser convenientemente apreciados. Por isso, a ordem
em que está o sacrifício pacífico corresponde à ordem da
nossa apreciação espiritual de Cristo.
Nota-se a mesma perfeita ordem em referência à oferta de
manjares. Quando a alma é levada a apreciar a doçura da
comunhão espiritual com Cristo — a alimentar-se d'Ele em
paz e gratidão na presença divina — sente um desejo
arrebatador de conhecer melhor os mistérios gloriosos da
Sua pessoa; e este desejo é ditosamente satisfeito na
oferta de manjares, que é o tipo da perfeita humanidade de
Cristo.
Em seguida, no holocausto, somos conduzidos a um ponto para
além do qual é impossível ir, e esse ponto é a obra da
cruz, realizada sob as vistas de Deus como expressão do
afeto inquebrantável do coração de Cristo. Todas estas
coisas nos serão apresentadas em belos pormenores, à medida
que as examinarmos; aqui consideramos apenas a ordem dos
sacrifícios, a qual é verdadeiramente maravilhosa, seja
qual for o sentido em que caminharmos, seja exteriormente
de Deus para nós, ou intimamente de nós até Deus. Em
qualquer dos casos começamos e terminamos com a cruz. Se
começamos com o holocausto, vemos Cristo na cruz fazendo a
vontade de Deus — fazendo expiação, segundo a medida da Sua
perfeita rendição a Deus. Se começamos com a expiação da
culpa, vemos Cristo na cruz levando os nossos pecados e
tirando-os, segundo a perfeição do Seu sacrifício
expiatório; enquanto que em cada um e em todos eles vemos a
excelência, a beleza e a perfeição da Sua divina e adorável
pessoa.
Certamente, tudo isto é suficiente para despertar em nossos
corações o mais profundo interesse pelo estudo desses
símbolos preciosos que passaremos a analisar
pormenorizadamente. E que Deus Espírito Santo, que inspirou
o livro de Levítico, dê a sua explicação, em poder vivo,
aos nossos corações, para que, quando chegarmos ao fim,
possamos ter motivo de sobra para bendizer ao Senhor por
tantas e tão admiráveis imagens da pessoa e obra de nosso
bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo, a quem seja dada
glória, agora e para todo o sempre. Amém.
No holocausto, com o qual abre o livro de Levítico, temos
uma figura de Cristo, que "se ofereceu a si mesmo imaculado
a Deus" (Hb 9:14). Daí a posição que o Espírito Santo lhe
dá. Se o Senhor Jesus Cristo Se manifestou para realizar a
obra gloriosa da expiação, o Seu mais desejável e supremo
objetivo, na sua consecução estava a glória de Deus.
"Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hb
10:9), era o grande lema em todas as cenas e circunstâncias
da Sua vida, e em nenhuma tão completamente como na obra da
cruz. Fosse qual fosse a vontade de Deus, Ele veio para a
fazer. Bendito seja Deus, nós conhecemos qual é a nossa
parte na realização dessa "vontade"; pois por ela "temos
sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo,
feita uma vez" (Hb 10:10).
Contudo, o aspecto primário da obra de Cristo era Deus. Era
Seu prazer inefável cumprir a vontade de Deus na terra.
Ninguém a tinha feito. Alguns, pela graça, haviam feito o
que era reto aos olhos do Senhor; porém ninguém jamais
tinha, perfeita e invariavelmente, desde o princípio ao
fim, sem hesitação e sem divergência, feito a vontade de
Deus. Mas foi isto exatamente que o Senhor Jesus fez. Ele
foi "obediente até à morte e morte de cruz" (Fp 2:8):
"...manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém" (Lc
9:51). E quando se dirigia do jardim de Getsêmane ao
Calvário, o afeto intenso de Seu coração foi expresso
nestas palavras: "Não beberei eu o cálice que o Pai me
deu?" (Jo 18:11).
Certamente, havia um perfume de cheiro suave nesta absoluta
devoção a Deus. Um Homem perfeito na terra, cumprindo a
vontade de Deus, até mesmo na morte, era assunto de
profundo interesse para o céu. Quem poderia sondar as
profundezas desse coração dedicado, que se manifestou aos
olhos de Deus, na cruz? Seguramente, ninguém senão Deus;
porque nisto, como em tudo mais, certo é que "ninguém
conhece o Filho senão o Pai"; e ninguém pode conhecer nada,
até certo ponto, a Seu respeito se o Pai o não revelar. A
mente humana pode compreender, até certo ponto, qualquer
coisa do que se passa "abaixo do sol". A ciência humana
pode ser compreendida pelo intelecto humano; mas nenhum
homem conhece o Filho de Deus, se o Pai não lho revelar
pelo poder do Espírito e por meio da Palavra escrita. O
Espírito Santo deleita-se em revelar o Filho — em tomar das
coisas de Jesus e revelar-no-las. Estas coisas temo-las, em
toda a sua beleza e plenitude, nas Escrituras. Não pode
haver novas revelações, pois o Espírito trouxe "todas as
coisas" à memória dos apóstolos e conduziu-os a "toda a
verdade" (Jo 14:26; 16:13). Não pode haver nada mais além
de "toda a verdade"; e, por isso, as pretensões de novas
revelações e do descobrimento da verdade — quer dizer,
verdade não mencionada no cânone sagrado de inspiração —
representam apenas os esforços do homem para acrescentar
alguma coisa àquilo que Deus designa por "toda a verdade".
O Espírito pode, certamente, mostrar e aplicar, com nova e
extraordinária energia, a verdade contida na Escritura;
porém, isto é claramente uma coisa muito diferente da ímpia
presunção que abandona o campo da revelação divina com o
propósito de encontrar princípios, ideias e dogmas que
tenham autoridade sobre a consciência.
Na narrativa do evangelho Cristo é-nos apresentado nos
vários aspectos do Seu caráter, Sua Pessoa e obra. Em todas
as épocas o povo de Deus tem achado alegria em recorrer a
essas preciosas Escrituras, sedentando-se nas revelações
celestiais do objeto do seu amor e confiança—Aquele a quem
tudo devem, quer no tempo presente, quer no tocante à
eternidade. Contudo, muito poucos comparativamente têm sido
induzidos a considerar os ritos e cerimônias da dispensação
levítica como cheios das mais minuciosas instruções
referentes ao mesmo assunto dominante. Os sacrifícios de
Levítico, por exemplo, têm sido considerados frequentemente
como registros de antigos costumes judaicos, sem nenhum
outro significado para nós nem nenhuma luz espiritual para
iluminar os nossos entendimentos. Mas tem de admitir-se que
as páginas aparentemente obscuras de Levítico, assim como
as expressões sublimes de Isaías, têm o seu lugar entre
"tudo que dantes foi escrito" (Rm 15:4), e são, portanto,
"para nosso ensino". Certamente, precisamos de estudar
estes registros, assim como também toda a Escritura, com
espírito humilde e despretensioso, em reverente dependência
do ensino d'Aquele que graciosamente os inspirou para nosso
ensino, e com atenção diligente pelo grande objetivo, alvo
e analogia geral de todo o corpo da revelação divina;
dominando a nossa imaginação, para que se não extravie com
entusiasmo profano; mas se assim, mediante a graça,
entrarmos no estudo dos símbolos de Levítico, encontraremos
um filão do mais rico e precioso minério.

A Vítima
Vamos prosseguir agora com o exame do holocausto, que, como
havemos acentuado, representa Cristo oferecendo-se a Si
mesmo incontaminado a Deus.
"Se a sua oferta for holocausto de gado, oferecerá macho
sem mancha." A glória essencial e dignidade da pessoa de
Cristo formam a base do cristianismo. Ele transmite esta
dignidade e essa glória a tudo que faz e a cada uma das
funções que assume. Nenhuma função podia de algum modo
acrescentar glória Aquele que é sobre todos, "Deus bendito
eternamente" (Rm9:5) — "Deus manifestado em carne" (1 Tm
3:16) —, o glorioso "Emanuel"—Deus conosco —, o Verbo
eterno, o Criador e Mantenedor do universo. Que função
poderia acrescentar dignidade a uma tal Pessoal De fato,
sabemos que todas as Suas funções estão relacionadas com a
Sua humanidade; e assumindo essa humanidade, Ele desceu da
glória que tinha com o Pai antes da criação do mundo.
Desceu, deste modo, a fim de glorificar Deus perfeitamente
no próprio meio de uma cena onde tudo Lhe era hostil. Veio
para ser "devorado" por santo e inextinguível zelo (SI
69:9) pela glória de Deus e a realização eficiente dos Seus
desígnios eternos.

Cristo Oferecendo-se a Si Mesmo a Deus


O macho sem mancha de um ano era uma figura do Senhor Jesus
Cristo oferecendo-se a Si mesmo para o cumprimento perfeito
da vontade de Deus. Não deveria haver nada que detonasse
fraqueza ou imperfeição. Devia ser "um macho de um ano".
Teremos ocasião de ver, quando tivermos ocasião de examinar
os outros sacrifícios, que era permitido oferecer, nalguns
casos, uma "fêmea"; mas essa era apenas a forma de mostrar
a imperfeição inerente à compreensão do adorador, e de modo
nenhum um defeito da oferenda, porquanto esta era "sem
mancha" tanto num caso como no outro.
Contudo, o holocausto era um sacrifício da mais elevada
ordem, porque representava Cristo oferecendo-se a Si mesmo
a Deus — Cristo no holocausto exclusivamente para a vista e
o coração de Deus. Eis um ponto que deve ser claramente
compreendido. Só Deus podia apreciar devidamente a Pessoa e
obra de Cristo. Só Ele podia apreciar plenamente a cruz
como a expressão do perfeito afeto de Cristo. A cruz tal
qual é simbolizada no holocausto, encerra qualquer coisa
que só a mente divina pode compreender. Tinha profundidades
tais que nem o mortal nem os anjos podiam sondar. Nela
havia uma voz que se dirigia exclusiva e diretamente aos
ouvidos do Pai. Entre o Calvário e o trono de Deus houve
comunicações que excedem em muito as mais altas capacidades
dos entes criados.
"A porta da tenda da congregação a oferecerá, de sua
própria vontade, perante o SENHOR." O emprego do vocábulo
"vontade", nesta passagem, revela claramente o grande
propósito no holocausto. Leva-nos a contemplar a cruz sob
um aspecto que não é suficientemente compreendido. Estamos
sempre prontos a contemplar a cruz simplesmente como o
lugar onde a grande questão do pecado foi tratada e
liquidada entre a justiça eterna e a vítima incontaminada —
o lugar onde a nossa culpa foi expiada e onde Satanás foi
gloriosamente vencido. Louvor universal seja dado
eternamente ao amor redentor! A cruz foi tudo isto. E mais
do que isto. Foi o lugar onde o amor de Cristo pelo Pai se
expressou em linguagem tal que só o Pai podia ouvir e
compreender. E sob este último aspecto que a vemos
simbolizada no holocausto e é, portanto, por isso que a
palavra "vontade" ocorre. Se fosse apenas uma questão de
imputação do pecado e de sofrer a ira de Deus por causa do
pecado, essa expressão não estaria dentro da ordem moral. O
bendito Senhor Jesus não podia, com estrita propriedade,
ser apresentado como aquele que desejava ser feito pecado —
desejar sofrer a ira de Deus e ser privado da vista do Seu
rosto; e, neste fato, por si só, aprendemos da maneira mais
evidente, que o holocausto não representa Cristo sobre a
cruz levando o pecado, mas, sim, Cristo sobre a cruz
cumprindo a vontade de Deus. Que Cristo mesmo contemplava a
cruz nestes dois aspectos é evidente pelas Suas próprias
palavras. Quando contemplou a cruz como o lugar onde foi
feito pecado — quando previu os horrores que, sob este
ponto de vista, ela encerrava, exclamou: "Pai, se queres,
passa de mim este cálice" (Lc 22:42). Fugia daquilo que a
Sua obra, por ter de levar sobre Si o pecado, comportava. A
Sua mente santa e pura fugia ao pensamento de contato com o
pecado; e o Seu terno coração fugia da ideia de perder, por
um momento, a luz do semblante de Deus.

O Amor de Cristo pelo Pai


Porém, a cruz tinha outro aspecto. Aparecia à vista de
Cristo como uma cena em que Ele podia revelar plenamente os
segredos profundos do Seu amor ao Pai — um lugar onde
podia, "de Sua própria vontade", tomar o cálice que o Pai
lhe havia dado e esgotá-lo até às fezes. É verdade que toda
a vida de Cristo emitiu um fragrante odor, que subia sem
cessar até ao trono do Pai — Ele fazia sempre as coisas que
agradavam ao Pai —, fez sempre a vontade de Deus; mas o
holocausto não O representa na Sua vida — precioso além de
todo o pensamento como foi cada ato dessa vida —, mas na
Sua morte, e não como Aquele que foi feito "maldição por
nós", mas como Aquele que apresenta ao coração do Pai um
perfume de incomparável fragrância.
Esta verdade envolve a cruz de atrativos particulares para
a mente espiritual. Dá aos sofrimentos do nosso bendito
Senhor um interesse do caráter mais intenso. O pecador
culpado encontra, incontestavelmente, na cruz uma resposta
divina aos mais profundos e ardentes desejos do coração. O
verdadeiro crente encontra na cruz aquilo que cativa todas
as afeições do seu coração e deixa aturdido todo o seu ser
moral. Os anjos encontram na cruz um tema para contínua
admiração. Tudo isto é verdade; mas há alguma coisa na cruz
que ultrapassa as mais elevadas concepções dos santos ou
dos anjos; isto é, a profunda devoção do coração do Filho
para com o Pai e como Este a apreciou. Este é o assunto
elevado da cruz, que é manifestado de um modo tão notável
no holocausto.
E deixai-me observar que a beleza própria do holocausto
deve ser inteiramente sacrificada se admitirmos a ideia de
que Cristo carregou com o pecado toda a Sua vida. Deixa de
haver então força, valor e significado nas palavras "sua
própria vontade". Não poderá haver lugar para ação
voluntária no caso de uma pessoa que era compelida, pela
própria necessidade da sua posição, a morrer. Se Cristo
tivesse carregado com o nosso pecado na Sua vida, então
segue-se que a Sua morte seria obrigatória e não um ato
voluntário.
De fato, pode afirmar-se com segurança que não há uma
oferta sequer entre todas cuja beleza não fosse manchada e
a sua integridade sacrificada pela teoria de uma vida
carregando com o pecado. Este é especialmente o caso no
holocausto, porquanto não é uma questão de carregar com o
pecado ou de sofrer a ira de Deus, mas inteiramente de
dedicação voluntária, manifestada na morte da cruz. No
holocausto reconhecemos uma figura de Deus o Filho,
cumprindo, por intermédio de Deus Espírito, a vontade de
Deus Pai. Isto fez Ele de "sua própria vontade". "Por isso,
o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-
la" (Jo 10:17). Temos aqui o aspecto da morte de Cristo no
holocausto. Por outro lado, o profeta contemplando-O como
oferta pelo pecado, diz: "... a sua vida é tirada da terra"
(At 8:33 —versão LXX(,) de Isaías 53:8). Outro tanto,
Cristo diz, — Ninguém ma tira, mas eu de mim mesmo a dou".
Estaria Ele levando o nosso pecado sobre Si quando disse
isto? Note-se que Ele diz "ninguém" — homens, anjos,
demônios ou qualquer outra criatura. Foi um ato voluntário
da Sua própria parte: deu a Sua vida para tornar a tomá-la.
"Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu" (SI 40:8).
Tal era a linguagem do holocausto divino — de Aquele que
achou gozo inexprimível em Se oferecer incontaminado a
Deus.
É, pois, da máxima importância aprender com distinção o
primário objetivo de Cristo na obra de redenção. Contribui
para consolidar a paz do crente. O cumprimento da vontade
de Deus, estabelecer os Seus desígnios e parentear a glória
de Deus, era o que preocupava esse coração dedicado, que
via e avaliava todas as coisas em relação com Deus.
_________________
(1) LXX - "Septuaginta" - versão grega do Velho Testamento.

O Senhor Jesus nunca se deteve para averiguar até que ponto


qualquer ato ou circunstância O afetaria. "O Aniquilou-se a
si mesmo" (Fp 2:7-8). Renunciou a tudo. E, por isso, quando
chegou ao fim da Sua carreira, pôde refletir sobre o
passado, olhar para trás e, com os olhos levantados ao céu,
dizer, "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra
que me deste a fazer" (Jo 17:4).
É impossível contemplar a obra de Cristo sob este aspecto
sem que o coração se sinta cheio das mais gratas afeições
para com a Sua Pessoa. O conhecimento de que o Seu primeiro
objetivo na obra da cruz era Deus não diminui em nada o
sentimento que temos do Seu amor por nós. Pelo contrário, o
Seu amor por nós, e a nossa salvação n'EIe só podiam ser
fundamentados no estabelecimento da glória de Deus. Essa
glória deve formar a base sólida de todas as coisas.
"Porém, tão certamente como eu vivo e como a glória do
SENHOR encherá toda a terra" (Nm 14:21). Mas nós sabemos
que a glória eterna de Deus e a bem-aventurança eterna da
criatura estão inseparavelmente ligadas nos desígnios
divinos, de sorte que se a primeira está assegurada, a
segunda tem de sê-lo também.

A Identificação do Adorador com o Holocausto


"E porá a sua mão sobre a cabeça do holocausto, para que
seja aceito por ele, para a sua expiação." O ato da
imposição das mãos exprimia completa identificação. Por
este ato significativo o oferente e a oferta tornavam-se
um; e esta unidade, no caso do holocausto, assegurava ao
oferente que a sua oferta era aceite. A aplicação deste
fato a Cristo e ao crente realça uma verdade das mais
preciosas, uma das mais largamente desenroladas no Novo
Testamento, a saber: a identificação eterna do crente com
Cristo e a sua aceitação em Cristo:"... qual ele é, somos
nós também neste mundo... No que é verdadeiro estamos."(l
Jo 4:17;5:20).
Nada menos do que isto nos podia aproveitar. O homem que
não está em Cristo está nos seus pecados. Não há terreno
neutro. Ou havemos de estar em Cristo ou fora d'Ele. Não se
pode estar parcialmente em Cristo. Ainda que seja apenas a
espessura de um cabelo que se interponha entre vós e
Cristo, estais num estado positivo de ira e condenação.
Pelo contrário, se estais n'Ele, então sois "qual ele é"
perante Deus, e assim considerados na presença da santidade
infinita.
Tal é o ensino claro da Palavra de Deus. "Estais perfeitos
nele", sois "membros do seu corpo", da Sua carne e dos Seus
ossos, "agradáveis" a Deus "no amado", porque "o que se
ajunta com o Senhor é um mesmo espírito" (1 Co 6:17; Ef
1:6; 5:20, C12:20). Ora, não é possível que a Cabeça esteja
num grau de aceitação e os membros noutro. Não; a Cabeça e
os membros são um. Deus considera-os um; e, portanto, são
um. Esta verdade é, ao mesmo tempo, o fundamento da mais
elevada confiança e da mais profunda humildade. Dá-nos a
mais completa segurança "para que no dia do juízo tenhamos
confiança" (1 Jo 4:17), visto que não é possível haver
qualquer acusação contra Aquele com quem estamos unidos.
Dá-nos uma profunda impressão da nossa própria nulidade,
visto que a nossa união com Cristo é baseada na morte da
velha natureza e na abolição total de todos os seus
direitos e pretensões.
Visto que, portanto, a Cabeça e os membros são considerados
na mesma posição de infinito favor e aceitação perante
Deus, é evidente que todos os membros têm uma mesma
aceitação, uma mesma salvação, a mesma vida e uma mesma
justiça. Não há graus diferentes na justificação. O recém-
nascido em Cristo e o crente de cinquenta anos estão no
mesmo plano de justificação. Um está em Cristo, e o outro
também; e assim como estar em Cristo é a única base de
vida, também o é de justificação. Não há duas espécies de
vida nem duas espécies de justificação. Não há dúvida que
existem diversos graus de gozo desta justificação — vários
graus no conhecimento da sua plenitude e extensão — vários
graus na capacidade de mostrar o seu poder sobre o coração
e a vida; e estas coisas são frequentemente confundidas com
a própria justificação, a qual, sendo divina, é,
necessariamente, eterna, absoluta, invariável, e não pode
ser afetada pela flutuação dos sentimentos ou experiências
humanas.
Mas, além disso, não há progresso na justificação. O crente
não está mais justificado hoje do que estava ontem; nem
estará mais justificado amanhã do que está hoje. Sim, a
alma que "está em Cristo Jesus" está tão completamente
justificada como se estivesse diante do trono de Deus. O
crente é "perfeito em Cristo". É "como" Cristo. Está, sobre
a própria autoridade de Cristo, "todo limpo" (Jo 13:10).
Que mais poderia esperar ser deste lado da glória ? Pode
fazer e fará — se andar em Espírito — progresso no gozo
desta gloriosa realidade; mas, quanto à própria
justificação, no momento em que, pelo poder do Espírito
Santo, creu o evangelho, passou de um estado positivo de
injustiça e condenação para um estado positivo de justiça e
aceitação. Tudo isto se baseia na perfeição divina da obra
de Cristo; precisamente como no caso do holocausto, em que
a aceitação do adorador era baseada na aceitação da oferta.
Não era uma questão de saber o que ele era, mas
simplesmente do que era o sacrifício. "Para que seja aceito
por ele, para a sua expiação."

O Sacrifício
"Depois, degolará o bezerro perante o SENHOR; e os filhos
de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue e espargirão o
sangue à roda sobre o altar que está diante da porta da
tenda da congregação." No estudo da doutrina do holocausto
é absolutamente indispensável não esquecer que o ponto
principal que ressalta dele não é ir ao encontro da
necessidade do pecador, mas apresentar a Deus aquilo que
Lhe é infinitamente agradável. Cristo, como é prefigurado
no holocausto, não é para a consciência do pecador, mas
para o coração de Deus.
Além disso, no holocausto a cruz não é demonstração da
abominação do pecado, mas a devoção inabalável de Cristo ao
Pai. Nem tampouco é a cena de Deus descarregar a Sua ira
sobre Cristo por Ele levar sobre Si o pecado, mas sim a
sublime complacência do Pai em Cristo, o sacrifício
voluntário e cheio de fragrância. Finalmente a "expiação",
como a vemos no holocausto, não é apenas proporcionada às
exigências da consciência do homem, mas o desejo intenso do
coração de Cristo em fazer a vontade de Deus e estabelecer
os propósitos divinos — um desejo que não O impediu de
entregar a Sua vida imaculada e preciosa como "oferta
voluntária" "de cheiro" suave a Deus.
Nenhum poder da terra ou do inferno, homens ou demônios,
pôde demovê-Lo de cumprir este desejo. Quando Pedro,
ignorantemente, e com palavras de falsa ternura, procurou
dissuadi-lo a não ir ao encontro da vergonha e degradação
da cruz, "dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo
nenhum te acontecerá isso", qual foi a Sua resposta? "Para
trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque
não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que
são dos homens" (Mt 16:22-23). De igual modo, noutra
ocasião, disse aos Seus discípulos, "Já não falarei muito
convosco, porque se aproxima o príncipe deste mundo e nada
tem em mim mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai e
que faço como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos
daqui" (Jo 14:30-31). Estas e muitas outras passagens
correlativas das Escrituras mostram-nos a fase da obra de
Cristo no holocausto em que o primeiro pensamento é
evidentemente "oferecer-se a Si mesmo imaculado a Deus".

Os Sacerdotes
Em perfeita harmonia com tudo quanto tem sido exposto a
respeito deste ponto especial no holocausto está o lugar
que ocupam os filhos de Arão e as funções que lhes são
assinaladas nele. Eles "espargirão o sangue... porão fogo
sobre o altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo", também
"porão em ordem os pedaços, a cabeça e o redenho, sobre a
lenha que está no fogo em cima do altar". Estas coisas
estavam bem em evidência e formam um aspecto notável do
holocausto, em contraste com a expiação do pecado, na qual
os filhos de Arão não são mencionados. "Os filhos de Aarão"
representam a Igreja, não como "um corpo", mas como casa
sacerdotal. Isto compreende-se facilmente. Se Arão era uma
figura de Cristo, a casa de Arão era uma figura da casa de
Cristo, como lemos na Epístola aos Hebreus, capítulo 3
versículo 6: "Mas Cristo, como Filho, sobre a sua própria
casa; a qual casa somos nós". E, "Eis-me aqui a mim e aos
filhos que Deus me deu" (Hb 2:13). Agora é privilégio da
Igreja, na medida em que é dirigida e ensinada pelo
Espírito Santo, fixar os olhos e deleitar-se nesse aspecto
de Cristo que nos é apresentado no símbolo com que abre o
livro de Levítico. "A nossa comunhão é com o Pai", que,
graciosamente, nos convida a ter parte com Ele nos Seus
pensamentos acerca de Cristo. É verdade que nunca podemos
elevar-nos à altura desses pensamentos; mas podemos ter
participação neles pelo Espírito Santo que habita em nós.
Não se trata aqui de uma questão de se ter a consciência
tranquilizada pelo sangue de Cristo, como o que levou sobre
Si o pecado, mas de comunhão com Deus na rendição perfeita
de Cristo na cruz.
"... e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o
sangue e espargirão o sangue à roda sobre o altar que está
diante da porta da tenda da congregação." Aqui temos uma
figura da Igreja trazendo o memorial de um sacrifício
consumado e oferecendo-o no lugar de aproximação individual
de Deus. Mas devemos lembrar que é o sangue do holocausto e
não o da expiação do pecado. É a Igreja penetrando, no
poder do Espírito Santo, no pensamento admirável da
comprovada devoção de Cristo a Deus, e não o pecador
convicto valendo-se do valor do sangue de quem carregou com
o pecado. Desnecessário é dizer que a Igreja é composta de
pecadores arrependidos; mas "os filhos de Arão" não
representam os pecadores arrependidos, mas, sim, os santos
em adoração. É na qualidade de "sacerdotes" que têm de
intervir no holocausto. Muitos erram quanto a isto.
Imaginam que, pelo fato de se tomar o lugar de adorador —
para que se é convidado pela graça de Deus e tornado idôneo
para o fazer pelo sangue de Cristo — não tem que se
considerar como pecador indigno. Isto é um grande erro. O
crente, em si mesmo, nada é absolutamente. Mas em Cristo é
um adorador purificado. Não está no santuário como pecador
culpado, mas como sacerdote em adoração, vestido com os
vestidos de glória e ornamento. Ocupar-me da minha culpa na
presença de Deus, não é, pelo que me diz respeito,
humildade mas sim incredulidade, pelo que respeita ao
sacrifício.
Todavia, é bem evidente que a ideia de levar o pecado — a
imputação do pecado—, ou da ira de Deus, não aparece no
holocausto. È certo que lemos: "... para que seja aceito
por ele, para a sua expiação"; mas é "expiação" não segundo
a profunda enorme culpa humana, mas segundo a perfeita
rendição de Cristo a Deus e a intensidade do prazer de Deus
em Cristo. Isto dá-nos a mais elevada ideia da expiação. Se
contemplamos a Cristo como o sacrifício pelo pecado, vemos
expiação efetuada segundo as exigências da justiça divina
em relação ao pecado. Mas quando vemos a expiação no
holocausto, é segundo a medida da boa vontade e capacidade
de Cristo para cumprir a vontade de Deus, segundo a medida
de complacência de Deus em Cristo e na Sua obra. Quão
perfeita deve ser a expiação que é o fruto da devoção de
Cristo a Deus! Poderia haver alguma coisa além distou
Certamente que não. O aspecto da expiação que o holocausto
dá é o que deve ocupar a família sacerdotal nos átrios da
casa do Senhor, para sempre.

A Preparação do Sacrifício
"Então, esfolará o holocausto, e o partirá nos seus
pedaços. O ato cerimonial de "esfolar" era particularmente
expressivo. Era simplesmente remover a cobertura exterior,
a fim de se patentear completamente o que havia no
interior. Não era suficiente a oferta ser exteriormente
"sem mancha", "as entranhas" deviam ser postas a descoberto
para que cada músculo e cada juntura pudessem ser vistas.
Era só no caso do holocausto que se mencionava
especialmente este ato. Isto está perfeitamente de acordo
com o conjunto do tipo, e tende a fazer realçar a profunda
devoção de Cristo ao Pai.
Não se limitava a cumprir uma missão. Quanto mais se
revelavam os segredos da Sua vida íntima e as profundidades
do Seu coração eram exploradas, tanto mais manifesta se
tornava essa pura devoção à vontade do Pai, e o desejo
ardente pela Sua glória. Estas eram as fontes de ação do
grande Antítipo do holocausto. Ele foi seguramente o
perfeito holocausto.
"E o partirá nos seus pedaços". Este ato apresenta uma
verdade um tanto semelhante à que é ensinada no "incenso
aromático moído‖ (Lv 16:12).
O Espírito Santo deleita-se em se deter sobre a doçura e
fragrância do sacrifício de Cristo, não só como um todo,
como também em todos os seus mínimos pormenores. Considerai
o Holocausto como um todo e vê-lo-eis sem mancha.
Considerai-o em todas as suas partes e vereis como é o
mesmo. Assim era Cristo; e como tal é prefigurado neste
importante tipo.
"E os filhos de Arão, os sacerdotes, porão fogo sobre o
altar, pondo em ordem a lenha sobre o fogo. Também os
filhos de Arão, os sacerdotes, porão em ordem os pedaços, a
cabeça e o redenho, sobre a lenha que está no fogo em cima
do altar". Isto era uma posição elevada para a família
sacerdotal. O holocausto era totalmente oferecido a Deus.
Era tudo queimado sobre o altar (!); o homem não
participava dele; mas os filhos do sacerdote Arão, sendo
também sacerdotes, mantinham-se em redor do altar de Deus
contemplando a chama que se erguia do sacrifício aceitável
em aroma suave. Era uma posição elevada — uma elevada
comunhão — uma elevada ordem no serviço sacerdotal —, uma
figura notável da Igreja em comunhão com Deus relacionada
no perfeito cumprimento da Sua vontade na morte de Cristo.
Como pecadores convictos, contemplamos a cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, e vemos nela aquilo que satisfaz todas
as nossas necessidades. A cruz, neste aspecto, dá perfeita
paz à consciência. Por isso, como sacerdotes, como
adoradores purificados, como membros da família sacerdotal,
nós podemos olhar para a cruz sob outra luz diferente, ou
seja a completa consumação do santo propósito de Cristo de
cumprir, até mesmo na morte, a vontade do Pai. Como
pecadores convictos, permanecemos junto do altar de cobre,
e encontramos paz por meio do sangue da expiação; mas, como
sacerdotes, permanecemos ali para observar e admirar a
perfeição daquele holocausto — a perfeita rendição e
apresentação a Deus d'Aquele que era incontaminado.

____________________
(1) E talvez conveniente, em ligação com este ponto,
informar o leitor que o vocábulo hebraico traduzido por
"queimado" no caso do holocausto é inteiramente diferente
daquele que é empregado na expiação do pecado. Vou referir,
devido ao interesse peculiar do assunto, algumas passagens
em que ocorre esta palavra. A palavra usada no holocausto
significa "incenso" ou "queimar incenso", e ocorre nas
seguintes passagens numa ou noutra das suas diferentes
inflexões: Levítico 6:15, "... e todo o incenso... e o
acenderá sobre o altar". Deuteronômio 33:1. "E farás um
altar para queimar incenso". Salmo 66:15, "... odorante
fumo de carneiros"; "... o incenso que queimaste nas
cidades de Judá"; Cantares 3:6, "... colunas de fumo,
perfumada de mirra, de incenso". As passagens podiam
multiplicar-se, porém estas bastam para mostrar o uso da
palavra que ocorre no holocausto.
A palavra hebraica traduzida por "queimar", em ligação com
a expiação do pecado, significa queimar, em geral, e
aparece nas seguintes passagens: Gênesis 11:3, "... façamos
tijolos, e queimemo-los bem"; Levítico 10:16, "E Moisés
diligentemente buscou o bode da expiação e eis que já era
queimado"; 2 Crônicas 16-14, "... e fizeram-lhe queima mui
grande".
Assim, a oferta por expiação do pecado não só era queimada
num lugar diferente, como é adotada uma palavra diferente
pelo Espírito Santo para expressar o ato pelo qual era
consumida. Ora nós não podemos imaginar, nem por um
momento, que esta distinção seja apenas uma troca de
palavras, cujo emprego é indiferente. Creio que a sabedoria
do Espírito Santo é tão manifestada no emprego das duas
palavras como em qualquer outro ponto de diferença entre as
duas ofertas. O leitor espiritual não deixará de dar o
próprio valor a esta interessante distinção.

Teríamos uma ideia muito imperfeita do mistério da cruz, se


nela víssemos somente aquilo que satisfaz as necessidades
do homem como pecador. Havia profundidades nesse mistério
que só a mente de Deus podia aprofundar.
E, por isso, importante ver que, quando o Espírito Santo
nos apresenta figuras da cruz, dá-nos, em primeiro lugar,
aquela que no-lo mostra em relação com Deus. Isto seria
suficiente para nos ensinar que há altos e baixos na
doutrina da cruz que o homem nunca pode atingir. Pode
aproximar-se da fonte de alegria e beber para sempre — pode
satisfazer as mais veementes aspirações do seu espírito —
pode explorá-la com todos os recursos da sua nova natureza,
mas, depois de tudo, existe na cruz aquilo que só Deus pode
apreciar. E por isso que o holocausto ocupa o primeiro
lugar. Tipifica a morte de Cristo vista e apreciada somente
por Deus. E certamente, podemos dizer que não poderíamos
passar sem uma tal figura; porque não só nos dá o aspecto
mais elevado da morte de Cristo, como também um pensamento
precioso referente ao interesse particular que Deus tinha
nessa morte. O próprio fato de Deus ter instituído um tipo
da morte de Cristo, o qual devia ser exclusivamente para
Si, contém um volume de instrução para a mente espiritual.
Mas apesar de nem os anjos nem os homens puderem jamais
sondar perfeitamente as profundezas espantosas do mistério
da morte de Cristo, nós podemos, pelo menos, discernir
algumas das suas características, que a fazem mais do que
preciosa para o coração de Deus. E da cruz que Ele recolhe
a mais rica glória. De nenhuma outra maneira teria sido tão
glorificado como pela morte de Cristo. É na entrega
voluntária que Cristo fez de Si mesmo à morte que a glória
divina resplandece em todo o seu fulgor. Sobre ela foi
posto também o fundamento sólido de todos os desígnios
divinos.
Isto é uma verdade muito consoladora. A criação nunca
poderia ter oferecido um tal fundamento. Além disso, a cruz
oferece um justo canal através do qual o amor divino pode
fluir. E, finalmente, pela cruz, Satanás é confundido para
sempre, e "os principados e potestades" foram publicamente
expostos (Cl 2:15). Estes são os gloriosos frutos
resultantes da cruz; e, quando pensamos neles, podemos ver
a razão por que era preciso que houvesse um tipo da cruz
exclusivamente para Deus, e também a razão por que esse
tipo devia ocupar uma posição eminente devia estar à cabeça
da lista das ofertas. E deixai-me dizer que teria havido
uma falta grave entre os símbolos se faltasse o holocausto;
e haveria também uma omissão lamentável nas páginas
inspiradas se tivesse sido omitido o registro desse
símbolo.

Uma Oferta Queimada de Cheiro Suave ao SENHOR


"Porém a sua fressura e as suas pernas lavar-se-ão com
água; e o sacerdote tudo isto queimará sobre o altar;
holocausto é, oferta queimada, de cheiro suave ao SENHOR."
Este ato tornava o sacrifício simbolicamente no que Cristo
foi essencialmente—puro tanto no íntimo como exteriormente.
Havia a mais perfeita ligação entre os motivos íntimos de
Cristo e a Sua conduta exterior. Esta era a expressão
daqueles. Tudo tinha o mesmo fim — a glória de Deus. Os
membros do Seu corpo obedeciam perfeitamente e executavam
os desígnios do Seu consagrado coração—esse coração que
pulsava só por Deus e a Sua glória na salvação dos homens.
Bem podia, portanto, o sacerdote "queimar tudo isto sobre o
altar". Tudo era tipicamente puro e destinado para ser como
alimento para o altar de Deus. De alguns sacrifícios
participava o sacerdote; de outros o oferente; mas o
holocausto era "todo" consumido no altar. Era
exclusivamente para Deus. Os sacerdotes podiam preparar a
lenha e o fogo, e ver subir a chama; e isto era um grande e
santo privilégio. Mas não comiam do sacrifício. Deus era o
único objetivo de Cristo no aspecto em que o holocausto
tipificava a Sua morte. Não devemos ser demasiadamente
simples na nossa compreensão de tudo isto. Desde o momento
em que o macho sem mancha era voluntariamente apresentado à
porta da lenha da congregação até ser reduzido a cinzas por
ação do fogo, discernimos nele Cristo oferecendo-se a Si
mesmo a Deus incontaminado pelo Espírito Eterno.
Isto torna o holocausto inefavelmente precioso para a alma.
Dá-nos a visão sublime da obra de Cristo. Nessa obra Deus
teve particular prazer — um gozo em que nenhuma
inteligência criada podia penetrar. Isto deve ter-se sempre
em vista. É desenrolado no holocausto e confirmado "pela
lei do holocausto", a que nos vamos referir imediatamente.

A Lei do Holocausto
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Dá ordem a Arão e a
seus filhos, dizendo: Esta é a lei do holocausto: o
holocausto será queimado sobre o altar toda a noite até
pela manhã, e o fogo do altar arderá nele. E o sacerdote
vestirá a sua veste de Unho, e vestirá as calças de Unho
sobre a sua carne, e levantará a cinza, quando o fogo
houver consumido o holocausto sobre o altar, e a porá junto
ao altar. Depois, despirá as suas vestes, e vestirá outras
vestes, e levará a cinza fora do arraial para um lugar
limpo. O fogo, pois, sobre o altar arderá nele, não se
apagará; mas o sacerdote acenderá lenha nele cada manhã, e
sobre ele porá em ordem o holocausto, e sobre ele queimará
a gordura das ofertas pacíficas. O fogo arderá
continuamente sobre o altar; não se apagará" (Lv 6:8 -13).
O fogo no altar consumia o holocausto e a gordura da oferta
pacífica. Era a própria expressão da santidade divina que
encontrou em Cristo e no Seu perfeito sacrifício um
elemento próprio para se alimentar. Esse fogo não devia
nunca extinguir-se. Tinha de haver manutenção perpétua
daquilo que representava a ação da santidade divina. No
meio das trevas e vigílias silenciosas da noite o fogo
ardia sobre o altar de Deus.
"E o sacerdote vestirá a sua veste de linho". Aqui, o
sacerdote toma, em figura, o lugar de Cristo, cuja justiça
pessoal é representada pela veste de linho. Havendo-se
entregado a Si mesmo à morte de cruz, a fim de cumprir a
vontade de Deus, entrou no céu com a Sua própria justiça,
levando consigo os sinais de ter completado a Sua obra. As
cinzas atestavam que o sacrifício estava consumado e que
havia sido aceito por Deus. Essas cinzas, postas ao lado do
altar, indicavam que o fogo tinha consumido o sacrifício —
que era um sacrifício não apenas consumado, mas aceito. As
cinzas do holocausto declaravam a aceitação do sacrifício.
As cinzas da expiação do pecado declaravam que o pecado
fora julgado.
Muitos dos pontos que temos estado a considerar
reaparecerão perante nós no decorrer do estudo dos
sacrifícios com mais clareza, precisão e poder. Postas cm
contraste umas com as outras, as ofertas adquirem mais
relevo. Consideradas em conjunto dão-nos uma visão completa
de Cristo. São como espelhos dispostos de tal maneira que
refletem, sob diferentes aspectos, a imagem do verdadeiro e
único sacrifício perfeito. Nenhuma figura por si só pode
representá-Lo em toda a sua plenitude. E necessário
contemplarmo-Lo na vida e na morte como Homem e como Vítima
em relação com Deus e conosco; e é assim que no-Lo
apresentam os sacrifícios de Levítico.
Deus, que satisfez misericordiosamente as necessidades das
nossas almas, permita que a nossa inteligência seja também
iluminada para compreendermos e desfrutarmos aquilo que nos
preparou.

— CAPÍTULO 2 —

A OFERTA DE MANJARES: CRISTO NA SUA HUMANIDADE

Vamos considerar agora a oferta de manjares, que, de uma


maneira muito clara, apresenta Cristo Jesus como Homem.
Assim como o holocausto simboliza Cristo na morte, a oferta
de manjares representa-O na vida. Nem num nem no outro se
trata da questão de levar o pecado. No holocausto vemos
expiação, mas não é uma questão de levar o pecado (1) — não
é imputação do pecado — nem manifestação da ira por causa
do pecado. Como podemos saber isto? Porque tudo era
consumido sobre o altar. Se houvesse nele alguma coisa
referente à remoção do pecado teria sido consumado fora do
arraial (veja Lv 4:1,12 com Hb 13:11).
Porém, na oferta de manjares nem sequer havia derramamento
de sangue. Encontramos nela uma formosa figura de Cristo,
como viveu, andou e serviu na terra. Este fato, em si, é
suficiente para persuadir a mente espiritual a considerar
esta oferta atentamente e com oração. A humanidade pura e
perfeita de nosso bendito Senhor é um tema que requer a
atenção de todo o verdadeiro crente. É de recear que
prevaleça muita liberdade de pensamento sobre este santo
mistério. As expressões que às vezes se ouvem e se leem
bastam para provar que a doutrina fundamental da encarnação
não é compreendida como a Palavra de Deus no-la apresenta.
Tais expressões podem, muito provavelmente, proceder de uma
má compreensão da natureza verdadeira das Suas relações e
do verdadeiro caráter dos Seus sofrimentos; mas seja qual
for a causa que lhes dá origem, devem ser julgadas à luz
das Sagradas Escrituras e rejeitadas. Infalivelmente,
muitos dos que fazem uso dessas expressões recuariam como
horror e justa indignação ante a verdadeira doutrina que
elas encerram, se esta fosse exposta perante eles no seu
verdadeiro e extenso caráter; e, por esta razão, deve haver
o cuidado de não atribuir erro à verdade fundamental,
quando pode muito bem ser apenas incorreção de linguagem.

____________
(1) Não se salienta a ideia de levar o pecado. Mas, claro,
quando há expiação existe a questão de pecado.

Existe, contudo, uma consideração que deve pesar


grandemente nas apreciações de todo o cristão, a saber: a
natureza vital da doutrina da humanidade de Cristo.
Encontra-se no próprio fundamento do cristianismo; e, por
esta razão, Satanás tem procurado diligentemente, desde o
princípio, induzir as pessoas em erro a este respeito.
Quase todos os erros principais que se têm introduzido na
igreja professa revelam o propósito satânico de minar a
verdade quanto à pessoa de Cristo. E até homens piedosos ao
pretenderem combater esses erros caem, em muitos casos, em
erros do lado oposto. Daí a necessidade de prestarmos
atenção às próprias palavras de que o Espírito Santo fez
uso para revelar este sagrado e profundo mistério.
Na realidade, eu creio que, em todos os casos, a submissão
à autoridade das Sagradas Escrituras e a energia da vida
divina na alma são os melhores meios de proteção contra
toda a espécie de erro. Não são precisos grandes
conhecimentos teológicos para preparar uma alma de modo a
evitar erros a respeito da doutrina de Cristo. Se a palavra
de Cristo habitar abundantemente na alma e "o Espírito de
Cristo" estiver nela em poder, não haveria lugar para
Satanás introduzir as suas sombrias e horríveis sugestões.
Se o coração se compraz no Cristo das Escrituras, fugirá
seguramente dos falsos Cristos que Satanás lhe apresenta.
Se nos alimentarmos da realidade de Deus, rejeitaremos sem
hesitação as limitações de Satanás. Este é o melhor meio de
escapar aos enredos do erro, qualquer que seja a sua forma
e caráter. "As ovelhas ouvem a sua voz[...] e o seguem,
porque conhecem a sua voz. Mas, de modo nenhum, seguirão o
estranho, antes fugirão dele; porque não conhecem a voz dos
estranhos" (Jo 10:3-5). Não é necessário, de modo algum,
estar-se habituado à voz de um estranho para se fugir dele;
tudo que precisamos é conhecer a voz do "Bom Pastor". Este
conhecimento nos guarda da influência ardilosa de todos os
estranhos. Portanto, embora me sinta chamado para prevenir
o leitor contra sons estranhos, a respeito do mistério
divino da humanidade de Cristo, não me parece necessário
discutir tais sons, mas procurarei antes, pela graça,
avisá-lo contra erros, apresentando a doutrina das
Escrituras sobre o assunto.
Poucas coisas há em que revelamos maior fraqueza do que em
mantermos uma comunhão vigorosa com a perfeita humanidade
de nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso sofremos tanto com a
falta de frutos, inquietação, divagações e erro. Se
estivéssemos compenetrados, mercê de uma fé simples, da
verdade que à direita da Majestade nos céus está um Homem
real — Um cuja simpatia é perfeita, cujo amor é insondável,
cujo poder é onipotente, cuja sabedoria é infinita, cujos
recursos são inesgotáveis, cujas riquezas são inexauríveis,
cujo ouvido está sempre atento às nossas petições, cuja mão
está aberta a todas as nossas necessidades, cujo coração
está cheio de ternura e amor inefável por nós — quanto mais
felizes e elevados seríamos e quanto mais independentes dos
meios correntes da criatura estaríamos, fosse qual fosse o
canal por onde viessem"? Não há nada que o coração possa
desejar que não tenhamos em Jesus. Suspira por verdadeira
simpatia"? Onde poderá encontrá-la senão n'Aquele que pôde
juntar as Suas lágrimas às das desoladas irmãs de
Betânia1?- Anela o gozo de uma sincera afeição"? Só pode
encontrá-la no coração que manifestou o seu amor em gotas
de sangue. Procura a proteção de um poder eficaz"? Nada
mais tem a fazer senão olhar para Aquele que criou o mundo.
Sente necessidade de uma sabedoria infalível para o guiara
Entregue-se Aquele que é a sabedoria; "o qual por nossos
pecados foi feito por Deus sabedoria". Em resumo, temos
tudo em Cristo.
A mente divina e as afeições divinas encontraram um
objetivo perfeito em "Jesus Cristo, homem"; e, seguramente,
se existe na pessoa de Cristo o que pode satisfazer Deus
perfeitamente, há também o que nos deveria satisfazer, e
nos satisfará, na proporção em que, pela graça do Espírito
Santo, andarmos em comunhão com Deus.

Cristo, o Homem Perfeito


O Senhor Jesus Cristo foi o único homem perfeito que jamais
pisou esta terra. Era todo perfeito — perfeito em
pensamento, palavras e ação. N'Ele todas as qualidades
morais se encontravam em divina e, portanto, perfeita
proporção. Nenhuma qualidade preponderava. N'Ele
entrelaçavam-se singularmente a majestade que amedrontava e
a delicadeza que dava um perfeito à vontade na Sua
presença. Os escribas e fariseus eram severamente
censurados por Ele, enquanto que a samaritana e a mulher
que era "pecadora" eram inexplicável e irresistivelmente
atraídas para Ele. Nenhuma qualidade deslocava outra,
porque tudo estava em bela e airosa proporção. Isto pode
verificar-se em todas as cenas da Sua perfeita vida. Podia
dizer a respeito de cinco mil pessoas famintas: "Dai-lhes
vós de comer"; e, depois de estarem satisfeitas podia
acrescentar, "Recolhei os pedaços que sobejaram, para que
nada se perca".
A benevolência e a economia são ambas perfeitas. Uma não
interfere com a outra. Cada uma brilha na sua própria
esfera. Não podia despedir a multidão faminta; tampouco
podia permitir que um simples fragmento do que Deus criara
fosse desperdiçado. Supria com mão-cheia e liberal as
necessidades da família humana, e, quando isso fora feito,
guardava cuidadosamente cada átomo deixado. A mesma mão que
estava sempre aberta a toda a forma de necessidade humana
estava firmemente fechada contra toda a prodigalidade. Nada
havia de mesquinho nem tampouco de extravagante no caráter
do Homem perfeito, o Homem do céu.
Que lição para nós! Quantas vezes acontece conosco que a
benevolência degenera em injustificável prodigalidade! E,
por outro lado, quantas vezes a nossa economia é manchada
pela exibição de um espírito avaro!
Por vezes os nossos corações mesquinhos recusam abrir-se às
necessidades que se nos apresentam; enquanto que noutras
ocasiões dissipamos por frívola extravagância o que poderia
satisfazer muitos dos nossos semelhantes necessitados. Oh!
prezado leitor, estudemos atentamente o quadro divino que
nos é apresentado na vida de "Jesus Cristo, homem". Quão
confortante e edificante é para "o homem interior" estar
ocupado com Aquele que foi perfeito em todos os Seus
caminhos e que em tudo deve ter a "preeminência"!
Vede-O no jardim do Getsêmane. Ali, Ele ajoelha-Se no
recôndito profundo de uma humildade que ninguém senão Ele
podia mostrar; mas, todavia, adiante do bando do traidor
mostra uma presença de espírito e majestade que nos faz
retroceder e cair por terra. O seu comportamento diante de
Deus é de prostração; mas perante os Seus juízes e
acusadores de dignidade inflexível. Tudo é perfeito. O
desapego, a humildade, a prostração e a dignidade são
divinos.
Assim também quando contemplamos a combinação formosa das
Suas relações divinas e humanas observa-se a mesma
perfeição. Ele podia dizer, "Porque é que me procuráveis?
Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?"
E, ao mesmo tempo, podia descer a Nazaré e dar ali um
exemplo de perfeita sujeição à autoridade paternal (veja Lc
2:49-51). Podia dizer a Sua mãe: "Mulher, que tenho eu
contigo?" E contudo ao passar pela agonia indizível da cruz
podia confiar ternamente aquela mãe ao cuidado do discípulo
amado. No primeiro caso, Ele separou-se no espírito de
perfeito nazireu, deu expressão aos ternos sentimentos do
perfeito coração humano. A devoção do Nazireu e a afeição
do homem eram igualmente perfeitas. Não houve interferência
nem num caso nem no outro. Cada uma brilhava com brilho
límpido na sua própria esfera.
Agora, a sombra deste Homem perfeito passa perante nós na
"flor de farinha" que formava a base da oferta de manjares.
Não havia nela um grão mal moído. Nada desigual, nada
desproporcional, nada revelava aspereza. Não importava qual
fosse a pressão vinda do exterior, a superfície era sempre
uniforme. O Senhor nunca foi perturbado por quaisquer
circunstâncias. Nunca teve de retroceder um passo ou
retirar uma palavra. Viesse o que viesse enfrentava sempre
as circunstâncias com aquela uniformidade admiravelmente
simbolizada na "flor de farinha".
Em todas estas coisas desnecessário é dizer que Ele está em
flagrante contraste com os Seus mais honrados e consagrados
servos. Por exemplo, Moisés, embora fosse "muito mais manso
do que todos os homens que havia sobre a terra" (Nm 12:3)
"falou imprudentemente com seus lábios" (SI 106:33). Em
Pedro vemos um zelo e uma energia que, por vezes, eram
excessivos; e, também noutras ocasiões, uma covardia que o
levava a fugir do lugar de testemunho e vitupério. Fazia
afirmações de uma devoção que, quando chegava a altura de
agir, não se via. João, que respirava tanto da atmosfera da
presença imediata de Cristo, manifestou, por vezes, um
espírito sectário e intolerante. Em Paulo, o mais
consagrado dos servos, descobrimos considerável
desigualdade: dirigiu palavras ao sumo sacerdote que teve
de retirar (At 23). Escreveu uma carta aos Coríntios, de
que logo se arrependeu, para mais tarde não se arrepender
(2 Co 7:8). Encontramos em todos qualquer falha, menos
n'Aquele que "é cândido e totalmente desejável entre dez
mil".
No estudo da oferta de manjares, para mais clareza e
simplicidade dos nossos pensamentos, convém considerar
primeiro os materiais de que era composta; depois as
diversas formas em que era apresentada; e, por último, as
pessoas que participavam dela.

Os Ingredientes da Oferta de Manjares


a) A Flor de Farinha Amassada com Azeite
Quanto aos materiais, a "flor de farinha" pode ser
considerada como a base da oferta; nela temos uma figura da
humanidade de Cristo, na qual se encontram todas as
perfeições. Nela se encontram também todas as virtudes
prontas para ação eficiente, a seu tempo. O Espírito Santo
deleita-se em mostrar a glória de Cristo, em O apresentar
em toda a Sua excelência incomparável — em O apresentar
diante de nós em contraste com tudo mais. Põe-no em
contraste com Adão, até mesmo no seu melhor e mais elevado
estado, como lemos: "O primeiro homem, da terra, é terreno;
o segundo homem, o Senhor, é do céu" (1 Co 15:47). O
primeiro Adão, até mesmo no seu estado de inocência, era
"da terra"; mas o segundo Homem era "o Senhor do céu".
O "azeite", na oferta de manjares, é um símbolo do Espírito
Santo. Mas assim como o azeite é aplicado de um modo duplo,
o Espírito Santo é apresentado num duplo aspecto, em
relação com a encarnação do Filho. A flor de farinha era
"amassada" com azeite; e sobre ela era deitado azeite
(versículos 5,6). Tal era o tipo; e no Antítipo vemos o
bendito Senhor Jesus Cristo, primeiro "concebido" e então
"ungido" pelo Espírito Santo (compare Mt 1:18,23 com
capítulo 3:16). Isto é divino! A exatidão é tão clara que
provoca a admiração da alma. O mesmo Espírito que dita os
ingredientes do tipo dá-nos os fatos ocorridos com o
Antítipo. O mesmo que referiu com assombrosa precisão as
figuras e sombras do Livro de Levítico deu-nos também o seu
glorioso objetivo nas páginas do evangelho. O mesmo
Espírito sopra através das páginas do Velho e do Novo
Testamento e permite-nos ver como um corresponde exatamente
ao outro.
A concepção da humanidade de Cristo, pelo Espírito Santo,
no ventre da virgem descobre um dos mais profundos
mistérios que pode prender a atenção da mente renovada. E
plenamente revelado no Evangelho de Lucas; e isto é
inteiramente característico, visto que, através de todo
esse evangelho, parece ser objetivo especial do Espírito
Santo revelar, na Sua maneira terna e divina, "o Homem
Cristo Jesus". Em Mateus temos "O Filho de Abraão" — "Filho
de Davi". Em Marcos temos o Servo Divino — o Obreiro
Celestial. Em João temos "o Filho de Deus"—o Verbo Eterno —
a Vida, Luz, por Quem todas as coisas foram feitas. Porém,
o grande tema do Espírito Santo no Evangelho de Lucas é "o
Filho do homem".
Quando o anjo Gabriel anunciou a Maria a honra que lhe ia
ser conferida em relação com a grande obra da encarnação,
ela, não com espírito de cepticismo, mas de honesta
ignorância, perguntou: "Como se fará isto, visto que não
conheço varão?" Claramente, imaginava que o nascimento
desta gloriosa Pessoa que estava prestes a aparecer devia
ser segundo os princípios normais da geração; e este seu
pensamento torna-se, na infinita bondade de Deus, a ocasião
de derramar luz sobre a verdade fundamental da encarnação.
A resposta do anjo à pergunta da virgem é muito
interessante e merece ser considerada a fundo. "E
respondendo o anjo disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito
Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua
sombra; pelo que também o Santo, que de ti há de nascer,
será chamado Filho de Deus" (Lc 1:35).
Desta magnífica passagem aprendemos que o corpo humano que
o Filho eterno de Deus tomou foi formado pela "virtude do
Altíssimo". Um "corpo me preparaste" (compare-se SI 40:6
com Hb 10:5). Foi um verdadeiro corpo humano—
verdadeiramente "carne e sangue". Não há aqui fundamento
possível para as teorias inúteis e inconsistentes do
agnosticismo ou misticismo; nenhuma justificação para as
frias abstrações do primeiro ou a fantasia obscura do
último. Tudo é profunda, sólida e divina realidade. O que
os nossos corações necessitam é precisamente o que Deus nos
deu. A primitiva promessa havia declarado que "a semente da
mulher havia de ferir a cabeça da serpente", e ninguém, a
não ser um verdadeiro homem, podia cumprir esta predição—
alguém cuja natureza humana fosse tão real quanto era pura
e incorruptível. "Eis que em teu ventre conceberás", disse
o mensageiro angélico, "e darás à luz filho ('). E, então,
para que não houvesse lugar para qualquer erro quanto ao
modo desta concepção, ele acrescenta palavras que provam
indubitavelmente que "a carne e o sangue" de que o Filho
eterno "participou", ao mesmo tempo que era absolutamente
real, era absolutamente incapaz de receber, reter ou
comunicar uma simples mancha. A humanidade do Senhor Jesus
era, enfaticamente, "O Santo".
E, visto que era inteiramente sem mancha, não havia nela o
princípio mortalidade. Não podemos pensar na mortalidade
sem a relacionar com o pecado; e a humanidade de Cristo não
tinha nada a ver com o pecado, quer pessoal quer
relativamente. O pecado foi-Lhe imputado na cruz, onde "ele
foi feito pecado por nós". Mas a oferta de manjares não é
uma figura de Cristo tomando sobre Si o pecado. Prefigura-O
na Sua vida perfeita aqui na terra — uma vida em que
sofreu, sem dúvida, mas não como Aquele que leva sobre si o
pecado, não como substituto nem como sofrendo às mãos de
Deus. Convém distinguir isto claramente. Nem no holocausto
nem na oferta de manjares se prefigura Cristo levando sobre
Si o pecado. Nesta vêmo-Lo vivendo, e naquele vêmo-Lo
morrendo na cruz; mas em nenhuma destas ofertas existe a
questão de imputar o pecado nem de suportar a ira de Deus
por causa do pecado. Em resumo, apresentar Cristo como o
substituto do pecador em qualquer lugar a não ser na cruz é
privar a Sua vida de toda a sua beleza divina e excelência,
e deslocar inteiramente a cruz. Além disso, isto envolveria
em confusão irremediável as figuras do livro de Levítico.

_______________
(1) "Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Gl 4:4). Esta
passagem é muito importante, visto que apresenta o bendito
Senhor como Filho de Deus e Filho do homem. "Deus enviou o
seu Filho, nascido de mulher". Que precioso testemunho!

Quero advertir o leitor que nunca poderá ser escrupuloso


demais em referência à verdade essencial da Pessoa do
Senhor Jesus Cristo e Suas relações. Tudo que não tiver
esta verdade por base não pode receber a sanção de Deus. A
Pessoa de Cristo é o centro vivo e divino ao redor do qual
o Espírito Santo exerce toda a Sua atividade. Deixar
escapar a verdade a este respeito e, à semelhança de um
barco que parte as amarras e é levado sem leme ou bússola
sobre a turbulenta imensidade líquida, vós correreis o
perigo iminente de vos despedaçardes contra as rochas do
arianismo, da infidelidade ou do ateísmo. Duvidai da eterna
Filiação de Cristo; duvidai da Sua divindade ou da Sua
humanidade incontaminada, e tereis aberto as comportas à
corrente do erro mortal. Ninguém julgue, nem por um
momento, que isto é apenas um assunto para ser discutido
entre teólogos — uma questão curiosa, um mistério abstrato
ou um ponto sobre o qual podemos legalmente discordar. Não;
é uma verdade essencial e basilar, para ser retida na
energia do Espírito Santo e mantida a todo o custo — na
verdade, para ser confessada em todas as circunstâncias,
sejam quais forem as consequências.
O que nós precisamos é receber simplesmente em nossos
corações, pela graça do Espírito Santo, a revelação que o
Pai faz do Filho, e, então, as nossas almas serão
eficazmente preservadas das ciladas do inimigo, seja qual
for a forma que elas tomarem. O inimigo pode cobrir
plausivelmente as armadilhas do arianismo ou socinianismo
com a erva e as folhas de um atrativo e plausível sistema
de interpretação; mas o coração piedoso descobre
imediatamente o que este sistema pretende fazer de Aquele
bendito Senhor a quem tudo deve e onde ele pretende colocá-
lo, e, não encontra dificuldade em o remeter ao lugar de
onde veio. Podemos muito bem dispensar as teorias humanas;
mas não podemos prescindir de Cristo — o Cristo de Deus; o
Cristo das afeições de Deus; o Cristo dos desígnios de
Deus; o Cristo da Palavra de Deus.
O Senhor Jesus Cristo, o Filho eterno de Deus, uma Pessoa
distinta da Trindade gloriosa, Deus manifestado em carne,
Deus sobre todas as coisas, bendito eternamente, tomou um
corpo que era inerente e divinamente puro, santo e sem
possibilidade de contrair mancha—absolutamente isento de
toda a semente ou princípio de pecado e mortalidade. A
humanidade de Cristo era tal que Ele podia a todo o
momento, tanto quanto Lhe dizia pessoalmente respeito,
voltar para o céu, de onde tinha vindo, e ao qual
pertencia. Dizendo isto, não me refiro aos desígnios
eternos do amor redentor ou do amor inalterável do coração
de Jesus—o Seu amor por Deus, o Seu amor pelos eleitos de
Deus ou da obra que era necessária para ratificar o
concerto eterno de Deus com a semente de Abraão e toda a
criação. As próprias palavras de Cristo ensinam-nos que
"convinha que padecesse e ressuscitasse ao terceiro dia" (L
c 24:46). Era necessário que sofresse para perfeita
manifestação e pleno cumprimento do grande mistério da
redenção. Era Seu clemente propósito "trazer muitos filhos
à glória". Não queria "ficar só", e, portanto, Ele, como "o
grão de trigo", devia "cair na terra e morrer". Quanto
melhor compreendermos a verdade da Sua Pessoa, tanto melhor
compreenderemos a graça da Sua obra.
Quando o apóstolo fala de Cristo como havendo sido
consagrado pelas aflições considera-O como "o príncipe da
nossa salvação" (Hb 2:10); e não como o Filho eterno, que,
pelo que diz respeito à Sua própria pessoa e natureza, era
divinamente perfeito sem que fosse possível acrescentar
alguma coisa ao que Ele era. Assim, também, quando o
próprio Senhor diz: "Eis que eu expulso demônios, e efetuo
curas hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado" (Lc
13:22) refere-Se ao fato de ser consumado no poder da
ressurreição como o Consumador de toda a obra da redenção.
Tanto quanto Lhe dizia respeito, Ele podia dizer, até mesmo
ao sair do Jardim do Getsêmane: "Ou pensas tu que eu não
poderia, agora, orar a meu Pai e que ele não me daria mais
de doze legiões de anjos? Como, pois se cumpririam as
Escrituras, que dizem que assim convém que aconteça"? (Mt
26:53,54).
É bom que a alma seja esclarecida acerca disto — é bom ter
uma compreensão divina da harmonia que existe entre aquelas
passagens das Escrituras que apresentam Cristo na dignidade
essencial da Sua pessoa e pureza da Sua natureza e aquelas
que O apresentam em relação com o Seu povo e cumprindo a
grande obra da redenção. Por vezes encontramos estes dois
aspectos ligados na mesma passagem, como em Hebreus 5:8 a
9, "Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo
que padeceu. E, sendo ele consumado, veio a ser a causa de
eterna salvação para todos os que lhe obedecem". Devemos
contudo lembrar que nenhuma destas relações em que Cristo
entrou voluntariamente, quer como expressão do amor divino
para com o mundo perdido, quer como o Servo dos desígnios
divinos, podia de modo algum interferir com a pureza
essencial, a excelência e a glória da Sua Pessoa. "O
Espírito Santo desceu sobre a virgem", e a virtude do
Altíssimo "cobriu-a com a Sua sombra; pelo que também o
santo que dela nasceu foi chamado Filho de Deus". Magnífica
revelação do mistério da humanidade pura e perfeita de
Cristo, o grande Antítipo da "flor de farinha amassada com
azeite"!
Deixai-me observar que entre a humanidade como se vê no
Senhor Jesus Cristo e a humanidade em nós não pode haver
união. Aquilo que é puro nunca pode ligar-se àquilo que é
impuro. Aquilo que é incorruptível nunca pode unir-se ao
que é corruptível. O espiritual e o carnal — o celestial e
o terrestre — nunca podem combinar-se. Portanto, segue-se
que a encarnação não foi, como alguns têm tentado ensinar-
nos, Cristo tomando a nossa natureza decaída em união
consigo Mesmo. Se tivesse feito isto, a morte da cruz não
teria sido necessária. Ele não necessitava, nesse caso,
"angustiar-se" até que se cumprisse o batismo—não havia
necessidade de o grão de trigo "cair na terra e morrer".
Isto é um ponto de grande importância.
A mente espiritual deve ponderar atentamente este fato.
Cristo não podia, de modo algum, tomar a natureza humana
pecaminosa em união consigo. Ouvi o que o anjo disse a José
no primeiro capítulo do evangelho de Mateus. "José, filho
de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o
que nela está gerado é do Espírito Santo". Veja-se como a
sensibilidade natural de José, assim como a piedosa
ignorância de Maria, dão ocasião a uma revelação mais
completa do santo mistério da humanidade de Cristo e como
contribuem também para proteger essa humanidade contra
todos os ataques blasfemos do inimigo!
Como é então que os crentes são unidos a Cristo1? É na
encarnação ou na ressurreição? Na ressurreição certamente.
Como é que isto se provai "Se o grão de trigo, caindo na
terra, não morrer fica ele só" (Jo 12:24). Deste lado da
morte não podia haver união entre Cristo e o Seu povo. É no
poder de uma nova vida que os crentes são unidos a Cristo.
Eles estavam mortos em pecado, e Ele, em perfeita graça,
desceu e, apesar de puro e imaculado em Si próprio, "foi
feito pecado"—"morreu para o pecado"—, tirou-o, ressuscitou
triunfante sobre ele e na ressurreição tornou-Se a Cabeça
de uma nova raça. Adão era a cabeça da velha criação, que
caiu com ele. Cristo, pela Sua morte, pôs-se a Si próprio
sob todo o peso da condição do Seu povo, e havendo
satisfeito tudo que era contra eles, ressuscitou vitorioso
sobre tudo e levou-os consigo para a nova criação, da qual
Ele é o centro e Chefe glorioso. Por isso lemos: "O que se
ajunta com o Senhor é um mesmo espírito" (1 Co 6:17).
"Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito
amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas
ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça
sois salvos) e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus" (Ef
2:4-6). "Porque somos membros do seu corpo", da Sua carne e
dos seus ossos (Ef 5:30). "E, quando vós estáveis mortos
nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos
vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as
ofensas" (Cl 2:13).
Poderíamos multiplicar as passagens, porém as que
reproduzimos são amplamente suficientes para provar que não
foi na encarnação mas na morte que Cristo tomou uma posição
na qual o Seu povo pôde ser "vivificado com ele". Isto
parece insignificante ao leitora Examine-o à luz da
Escritura. Pese todas as consequências. Considere-o em
relação com a pessoa de Cristo, com a Sua vida e com a Sua
morte, com a nossa condição, por natureza, na velha
criação, e o nosso lugar, por misericórdia, na nova.
Considere-o assim, e estou persuadido que não voltará a
considerá-lo como um assunto de pouca importância. De uma
coisa, pelo menos, pode o leitor estar certo, que o autor
destas páginas não escreveria uma simples linha para provar
este ponto, se não o considerasse pleno dos mais
importantes resultados. O conjunto da revelação divina está
unido de tal maneira e tão bem ajustado pela mão do
Espírito Santo — é tão consistente em todas as suas partes
— que se uma verdade é alterada todo o seu arco é
prejudicado. Esta consideração deveria bastar para produzir
na mente de todo o cristão uma santa atitude de precaução,
a fim de evitar que, por qualquer golpe rude, ele possa
prejudicar a beleza da superestrutura. Cada pedra deve ser
deixada no seu lugar divinamente marcado; e a verdade
acerca da Pessoa de Cristo é incontestavelmente a pedra
principal da abóbada.

b) A Flor de Farinha sobre a qual "deitarás azeite"


Havendo procurado assim descrever a verdade simbolizada
pela "flor de farinha amassada com azeite", podemos
considerar outro ponto de grande interesse na expressão "e
sobre ela deitarás azeite". Nisto temos uma figura da unção
do Senhor Jesus Cristo pelo Espírito Santo. O corpo do
Senhor Jesus não foi apenas preparado misteriosamente pelo
Espírito Santo, como foi ungido, como vaso santo e puro,
para o serviço pelo mesmo poder. "E aconteceu que, como
todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus,
orando ele, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre
ele, em forma corpórea, como uma pomba; e ouviu-se uma voz
do céu que dizia: Tu és o meu Filho amado; em ti me tenho
comprazido" (1x2:21-22).
O fato de o Senhor Jesus ter sido ungido pelo Espírito
Santo antes da Sua entrada no ministério público é,
praticamente, da máxima importância para todo aquele que
deseja realmente ser verdadeiro e eficiente servo de Deus.
Embora concebido quanto à Sua humanidade pelo Espírito
Santo; posto que na Sua Própria Pessoa fosse "Deus
manifestado em carne"; se bem que a plenitude da Divindade
habitasse corporalmente n'Ele; contudo, é bom notar que,
quando se manifesta como homem, para fazer a vontade de
Deus na terra, qualquer que fosse essa vontade, quer
pregando o evangelho, ou ensinando nas sinagogas, quer
curando os enfermos ou purificando os leprosos, quer
expulsando os demônios, alimentando os famintos ou
ressuscitando os mortos, fez tudo pelo Espírito Santo. O
vaso santo e celestial em que aprouve ao Deus Filho
aparecer no mundo foi formado, ungido e dirigido pelo
Espírito Santo.
Que profunda e santa lição para nós! Uma lição tão
necessária como salutar! Quão propensos somos a correr sem
sermos enviados! Quão propensos a atuar na energia da
carne! Quanto daquilo que se parece com ministério não é
somente atividade inquieta e profana de uma natureza que
nunca foi medida nem julgada na presença divina! Na
realidade, nós precisamos de contemplar atentamente a nossa
divina "oferta de manjares" para compreendermos melhor o
significado da "flor de farinha amassada com azeite".
Precisamos de meditar profundamente sobre o próprio Cristo,
que, apesar de possuir, na Sua própria pessoa, poder
divino, contudo, fez toda a Sua obra, operou todos os Seus
milagres, e, finalmente, "ofereceu-se a si mesmo imaculado
a Deus pelo Espírito eterno" (Hb 9:14). Ele podia dizer "eu
expulso os demônios pelo Espírito de Deus" (Mt 12:28).
Nada tem qualquer valor senão aquilo que é realizado pelo
poder do Espírito Santo. Um homem pode escrever; porém se a
sua pena não for guiada e usada pelo Espírito Santo, as
suas linhas não produzirão resultados permanentes. Um homem
pode falar; mas se os lábios não forem ungidos pelo
Espírito Santo, as suas palavras não criarão raízes. Isto
merece a nossa solene consideração, e, se for devidamente
ponderado, levar-nos-á a muita vigilância sobre nós
próprios e a uma dependência fervorosa do Espírito Santo. O
que precisamos é despojarmo-nos inteiramente do ego, a fim
de haver lugar para o Espírito agir por nosso intermédio. E
impossível que um homem cheio de si mesmo possa ser o vaso
do Espírito Santo. Um tal homem deve primeiro despojar-se
de si mesmo, e então o Espírito Santo pode usá-lo. Quando
contemplamos a Pessoa e o ministério do Senhor Jesus, vemos
como em todas as cenas e circunstâncias, atua pelo poder
direto do Espírito Santo. Havendo tomado o Seu lugar, como
homem, no mundo, mostrou que o homem deve viver não somente
da Palavra mas atuar pelo Espírito de Deus. Ainda que, como
homem, a Sua vontade era perfeita — os Seus pensamentos, as
Suas palavras e as Suas obras eram em tudo perfeitas —,
contudo não atuava senão pela direta autoridade da Palavra
e pelo poder do Espírito Santo. Oh! se nisto, como em tudo
mais, nós pudéssemos seguir mais de perto e fielmente nas
Suas pisadas! Então o nosso ministério seria
verdadeiramente eficaz, o nosso testemunho mais fecundo e
toda a nossa vida para glória de Deus.

c) O Incenso
Outro ingrediente da oferta de manjares, que requer a nossa
atenção, é "o incenso". Como tivemos ocasião de verificar,
a oferta de manjares era à base de "flor de farinha". O
"azeite" e "o incenso" eram os dois principais ingredientes
acrescentados; e, na realidade, a relação entre estes dois
é muito instrutiva. O "azeite" simboliza o poder do
ministério de Cristo; "o incenso" simboliza o seu objetivo.
O primeiro ensina-nos que Ele fez tudo pelo Espírito de
Deus; o último que fez tudo para glória de Deus.
O incenso representa aquilo que na vida de Cristo era
exclusivamente para Deus. Isto é evidente pelo segundo
versículo: "E a trará (a oferta de manjares) aos filhos de
Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um punhado da
flor de farinha e do seu azeite com todo o seu incenso; e o
sacerdote queimará este memorial sobre o altar; oferta
queimada é; de cheiro suave ao SENHOR". Assim era a
verdadeira oferta de manjares — o Homem Cristo Jesus. Em
Sua vida bendita havia o que era exclusivamente para Deus.
Cada pensamento, cada palavra, cada olhar, cada ato Seu
exalava um perfume que subia diretamente para Deus. E assim
como o símbolo era "o fogo do altar" que fazia sair o
cheiro suave do incenso, assim no Antítipo quanto mais
"provado" era, em todas as cenas e circunstâncias da Sua
bendita vida, tanto mais manifesto se tornava que, na Sua
humanidade, não havia nada que não pudesse subir, como
cheiro suave, ao trono de Deus. Se no holocausto vemos
Cristo "oferecendo-se a si mesmo imaculado a Deus", na
oferta de manjares vêmo-Lo apresentar a Deus toda a
excelência intrínseca da Sua natureza humana e perfeita
atividade. Um homem perfeito, vazio de si, obediente, na
terra, fazendo a vontade de Deus, agindo pela autoridade da
Palavra e mediante o poder do Espírito, exalava um perfume
suave que só podia ter aceitação divina. O fato de todo "o
incenso" ser consumido sobre o altar revela a sua
importância da maneira mais simples.

d) O Sal
Agora só nos falta considerar um ingrediente que fazia
parte da oferta de manjares, a saber, "o sal". "E toda a
oferta dos teus manjares salgarás com sal; e não deixarás
faltar à tua oferta de manjares o sal do concerto do teu
Deus; em toda a tua oferta oferecerás sal". A expressão "o
sal do concerto" revela o caráter permanente desse
concerto. Deus Mesmo tem ordenado assim o seu emprego em
todas as coisas para que nunca haja alteração —nenhuma
influência poderá corrompê-lo. Sob o ponto de vista
espiritual e prático, é impossível dar demasiado apreço a
um tal ingrediente. "A vossa palavra seja sempre agradável,
temperada com sal" (Cl 4:6). Em todas as conversas, o Homem
perfeito mostrava sempre o poder deste princípio. As Suas
palavras não eram simplesmente palavras de graça, mas
palavras de penetrante poder—palavras divinamente adaptadas
para preservar de toda a mancha e influência corrupta.
Nunca pronunciou uma palavra que não fosse perfumada com
"incenso" e "temperada com sal". O primeiro era de todo
agradável a Deus; o último, o mais proveitoso para o homem.
Às vezes, infelizmente, o coração corrompido do homem e o
seu gosto viciado não podiam tolerar a acidez da oferta de
manjares salgada por determinação divina. Observemos, por
exemplo, a cena na sinagoga de Nazaré (Lc 4:16-29). O povo
podia dar-lhe testemunho e "todos... se maravilham das
palavras de graça que saíam da sua boca"; mas logo que
passou a temperar essas palavras com sal, que tão
necessário era a fim de os preservar da influência
corruptível do seu orgulho nacional, eles de boa vontade O
teriam precipitado do cume do monte em que a sua cidade
estava edificada.
Assim também em Lucas 14, logo que as Suas palavras de
"graça" atraíram "grandes multidões", Ele deitou-lhes
imediatamente o "sal" ao anunciar em palavras de santa
fidelidade os resultados seguros de O seguirem. "Vinde, que
já tudo está preparado". Aqui estava a "graça". Mas logo em
seguida diz: Qualquer de vós que não renunciar a tudo
quanto tem não poder ser meu discípulo. Aqui estava o
"sal". A graça é atrativa; mas "o sal é bom". Um discurso
agradável pode ser popular; mas um discurso temperado com
sal nunca o será. A multidão pode, em certas ocasiões e sob
determinadas circunstâncias, seguir por um pouco de tempo o
puro evangelho da graça de Deus; mas logo que o "sal" de
uma aplicação fervorosa e fiel é introduzido, o auditório é
reduzido ao número daqueles que foram trazidos sob o poder
da Palavra.

Os Ingredientes Excluídos da Oferta de Manjares


a) O Fermento
Havendo assim considerado os ingredientes que compunham a
oferta de manjares, referiremos agora os que eram excluídos
dela.
Destes, o primeiro era "o fermento". "Nenhuma oferta de
manjares, que oferecerdes ao SENHOR, se fará com fermento".
Por todo o volume inspirado, sem uma única exceção, o
fermento é o símbolo do mal. Em capítulo 23 de Levítico,
que examinaremos na devida altura, vemos que o fermento era
permitido nos dois pães que eram oferecidos no dia de
Pentecostes (versículo 17); porém, da oferta de manjares, o
fermento era cuidadosamente excluído. Não devia haver nada
que azedasse, nada que fizesse levantar a massa, nada
expressivo do mal naquilo que simbolizava "o Homem Cristo
Jesus". N'Ele não podia haver nada com gosto ao azedume da
natureza, nada turvo, nada susceptível de fazer inchar.
Tudo era puro, sólido e genuíno. A Sua palavra podia, por
vezes, ferir até ao vivo; mas nunca era áspera. O Seu
estilo nunca se elevou acima das ocasiões. O Seu
comportamento mostrou sempre a profunda realidade de quem
andava na presença imediata de Deus.
Nós que professamos o nome de Jesus, sabemos muito bem
como, infelizmente, o fermento se mostra em todas as suas
propriedades e efeitos. Só houve uma gabela pura de fruto
humano — uma única oferta de manjares perfeitamente sem
levedura; e, bendito seja Deus, essa é a nossa — para nos
alimentarmos dela no santuário da presença divina, em
comunhão com Deus. Nenhum exercício espiritual pode
realmente edificar melhor e dar maior refrigério à mente
renovada do que firmarmo-nos sobre a perfeição
incontaminável da humanidade de Cristo — para contemplar a
vida e o mistério d'Aquele que foi absoluta e
essencialmente sem levedura. Em toda a origem dos Seus
pensamentos, afeições, desejos e imaginação não havia a
mínima partícula de fermento. Ele foi o Homem perfeito, sem
pecado e imaculado. E quanto mais, no poder do Espírito,
aprofundarmos tudo isto, tanto mais profunda será a nossa
experiência da graça que levou este perfeito Senhor a tomar
sobre Si todas as consequências dos pecados do Seu povo,
como fez quando foi pendurado na cruz. Porém, este
pensamento pertence inteiramente ao sacrifício de nosso
bendito Senhor, simbolizado na expiação do pecado. Na
oferta de manjares, o pecado não está em questão. Não é uma
figura da expiação do pecado por um substituto, mas de um
Homem real, perfeito, imaculado, concebido e ungido pelo
Espírito Santo, possuindo uma natureza sem fermento e
vivendo uma vida isenta de levedura no mundo; exalando
sempre perante Deus a fragrância da Sua excelência pessoal
e mantendo entre os homens um comportamento caracterizado
pela "graça temperada com sal".

b) O Mel
Porém, havia outro ingrediente tão claramente excluído da
oferta de manjares quanto o "fermento", e este era o "mel".
"Porque de nenhum fermento, nem de mel algum oferecereis
oferta queimada ao SENHOR" (versículo 11). Portanto, assim
como o "fermento" é a expressão daquilo que é positiva e
manifestamente mau na natureza, podemos considerar o "mel"
como o símbolo expressivo do que é aparentemente doce e
atrativo. Ambos são proibidos por Deus — ambos eram
cuidadosamente excluídos da oferta de manjares —, ambos
impróprios para o altar. Os homens podem aventurar-se, como
Saul, a distinguir entre o que é "vil e desprezível" (1 Sm
15:9) e o que não é: porém o juízo de Deus conta o polido
Agaque com o mais vil dos filhos de Amaleque. Não há dúvida
que existem boas qualidades morais no homem, que devem ser
consideradas pelo seu valor. "Achaste mel come o que te
basta". Mas recorde-se que não era admitido na oferta de
manjares nem no seu Antítipo. Havia a plenitude do Espírito
Santo; havia o fragrante odor do incenso; havia a virtude
preservativa do "sal do concerto". Todas estas coisas
acompanhavam a "flor de farinha" na Pessoa da verdadeira
"oferta de manjares"; mas nenhum mel.
Que lição se encontra aqui para os nossos corações! Sim,
que volume de sã instrução! O bendito Senhor Jesus sabia
como dar à natureza e às suas relações o lugar próprio.
Sabia a quantidade de "mel" que era conveniente; podia
dizer a Sua mãe: "Não sabeis que me convém tratar dos
negócios de meu Pai" E todavia podia dizer também ao
discípulo amado: "Eis aí tua mãe". Por outras palavras,
nunca permitiu que as pretensões da natureza interferissem
com a apresentação a Deus de todas as energias da perfeita
humanidade de Cristo. Maria e outros também podiam ter
pensado que as suas relações humanas com o bendito Senhor
lhes dava algum direito ou influência peculiar com base em
motivos puramente naturais.
"Chegaram, então, seus irmãos e sua mãe; e, estando de
fora, mandaram-no chamar. E a multidão estava assentada ao
redor dele, e disseram-lhe: Eis que tua mãe e teus irmãos
(segundo a carne) te procuram e estão lá fora" (Mc 3:31-
32).
Qual foi a resposta de Aquele que a oferta de manjares
simbolizava em Sua perfeição? Abandonou Ele imediatamente a
Sua missão a fim de atender a chamada da natureza? De modo
nenhum. Se o tivesse feito, teria sido a mesma coisa que
misturar "mel" com a oferta de manjares, o que não podia
ser permitido. O mel foi fielmente excluído nesta ocasião,
assim como em todas as ocasiões em que os direitos de Deus
deviam ser atendidos, e, em seu lugar, o poder do Espírito,
o odor do "incenso" e as virtudes do "sal" foram
ditosamente patenteados. "E ele lhes respondeu, dizendo:
Quem é minha mãe e meus irmãos? E, olhando em redor para os
que estavam assentados junto dele disse: Eis aqui minha mãe
e meus irmãos. Porquanto qualquer que fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe" (') (Mc
3:33-35).
Há poucas coisas que o servo de Cristo encontra mais
difíceis do que harmonizar, com precisão espiritual, as
pretensões das relações naturais, de forma a não as deixar
interferir com os direitos do Mestre. No caso do nosso
bendito Senhor, como bem sabemos, este ajustamento era
divino. No nosso caso, acontece frequentemente que os
deveres divinamente reconhecidos são abertamente
negligenciados para dar lugar àquilo que imaginamos ser o
serviço de Cristo. A doutrina de Deus é constantemente
sacrificada à obra aparente do evangelho. Porquanto é bom
lembrar que a verdadeira dedicação parte sempre de um ponto
em volta do qual estão inteiramente asseguradas todas as
reivindicações de Deus. Se eu tenho uma colocação que
requer os meus serviços desde as dez às dezesseis horas
todos os dias, não tenho o direito de sair para fazer
visitas ou pregar durante aquelas horas. Se estou
estabelecido, sou forçado a manter a integridade desse
negócio de uma maneira cristã. Não tenho o direito de
correr para lá e para cá para pregar, enquanto o meu
negócio fica abandonado e em desordem, trazendo vergonha
sobre a santa doutrina de Deus. Um homem pode dizer: "eu
sinto-me chamado para pregar o evangelho e acho que o meu
emprego ou negócio é um embaraço". Bem, se es divinamente
chamado e apto para a obra do evangelho e não podes
conciliar as duas coisas, então renuncia à tua colocação ou
liquida o teu negócio de uma maneira cristã e parte em nome
do Senhor. Mas, claro, enquanto eu continuar no meu emprego
ou mantiver o meu negócio, o meu trabalho no evangelho deve
partir de um ponto no qual os meus deveres nessa ocupação
ou nesse negócio são inteiramente cumpridos. Isto é
consagração. Tudo o mais é confusão, por mais bem
intencionado. Bendito seja Deus, temos um exemplo perfeito
perante nós na vida do Senhor Jesus e ampla direção para o
novo homem, na Palavra de Deus; de forma que não há razão
para cometermos erros nas diversas responsabilidades que
formos chamados, na providência de Deus, a desempenhar ou
quanto aos vários deveres que o governo moral de Deus tem
estabelecido em relação com tais responsabilidades.

____________________
(1) Quão importante é vermos nesta magnífica passagem que
fazer a vontade de Deus põe a alma num parentesco com
Cristo do qual os Seus irmãos segundo a carne nada sabiam,
pois não se baseia em laços naturais. Era tão verdadeiro a
respeito daqueles irmãos como a respeito de outra qualquer
pessoa, que "aquele que não nascer de novo não pode ver o
reino de Deus". Maria não podia ter sido salva pelo simples
fato de ser a mãe de Jesus. Ela precisa ter fé pessoal em
Cristo como qualquer outro membro da família decaída de
Adão. Precisa de passar por meio do novo nascimento da
velha criação para a nova. Foi por ter entesourado as
palavras de Cristo em seu coração que esta bem-aventurada
mulher foi salva. Não há dúvida que ela foi especialmente
agraciada por ter sido escolhida como um vaso para tão
santa missão, mas, como qualquer pecador, ela precisava de
"alegrar-se em Deus, seu Salvador". Ela permanece no mesmo
plano, está lavada no mesmo sangue, vestida com as mesmas
vestes de justiça e entoará o mesmo cântico como todos os
remidos de Deus.
Este simples fato dará força adicional e clareza a um ponto
que foi já frisado, a saber: que a encarnação não
significou Cristo tomar a nossa natureza em união consigo.
Esta verdade deve ser escrupulosamente ponderada. E
inteiramente apresentada em 2 Coríntios 5: "Porque o amor
de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um
morreu, logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para
que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele
que por eles morreu e ressuscitou. Assim que, daqui por
diante, a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que
também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo,
agora; já não o conhecemos desse modo. Assim que, se alguém
está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já
passaram, eis que tudo se fez novo" (versículos 14-17).

A Oferta de Manjares em suas diversas Formas


O segundo ponto do nosso assunto é a forma como era
preparada a oferta de manjares. Isto era feito, como lemos,
pela ação do fogo. Era "cozida no forno", "cozida na
caçoula" ou frita numa "sertã". O processo de cozedura
sugere a ideia de sofrimento. Mas visto que a oferta de
manjares é chamada de "cheiro suave" — um termo que nunca é
aplicado à expiação do pecado ou expiação da culpa — é
evidente que há qualquer relação com o sofrimento do pecado
— não sugere o sofrimento sob a ira de Deus devido ao
pecado, nem o sofrimento às mãos da Justiça infinita com
substituto do pecador. As duas ideias de "cheiro suave" e
sofrimento pelo pecado são inteiramente incompatíveis,
segundo a ordem da dispensação levítica. Se introduzíssemos
a ideia do sofrimento pelo pecado na oferta de manjares,
destruiríamos totalmente o seu símbolo.
Ao contemplarmos a vida do Senhor Jesus, que, como já
frisamos, é o principal assunto prefigurado na oferta de
manjares, podemos notar três espécies distintas de
sofrimento, a saber: sofrimento por amor da justiça,
sofrimento em virtude da simpatia, e o sofrimento por
antecipação.

a) Sofrimento por Amor da Justiça


Como Servo justo de Deus, Ele sofreu no meio de uma cena em
que tudo Lhe era adverso; contudo isto era justamente o
oposto do sofrimento pelo pecado. É da máxima importância
distinguir entre estas duas espécies de sofrimento.
Confundi-las conduzir-nos-ia a erros graves. Sofrer com um
justo e manter uma atitude firme entre os homens a favor de
Deus é uma coisa; sofrer em lugar do homem sob a mão de
Deus é outra muito diferente. O Senhor Jesus sofreu por
amor da justiça, durante a Sua vida. Sofreu pelo pecado, na
Sua morte. Durante a Sua vida os homens e Satanás sempre se
Lhe opuseram; e até mesmo na cruz empregaram todo o poder
de que dispunham; mas depois de ter sido feito tudo que
podiam fazer— depois de haverem chegado, no seu ódio
mortal, ao limite da oposição humana e diabólica — restava
ainda uma região afastada de sombras impenetráveis e horror
que tinha de ser percorrida por Aquele que levava sobre Si
o pecado, no cumprimento da Sua obra. Durante a Sua vida,
Ele sempre andou na luz límpida do semblante divino! Porém,
sobre a cruz de maldição a sombra negra do pecado interveio
e ocultou essa luz e provocou esse brado misterioso:
"Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?" Foi um
momento absolutamente único nos anais da eternidade. De vez
em quando, durante a vida de Cristo na terra, o céu abriu-
se para dar expressão à complacência divina n'Ele; mas na
cruz Deus desamparou-O, porque Ele estava oferecendo a Sua
alma em sacrifício pelo pecado. Se Cristo tivesse carregado
com o pecado em toda a Sua vida, então qual seria a
diferença entre a cruz e qualquer outro período1? Por que
razão não foi Ele desamparado por Deus durante toda a Sua
vida? Qual foi a diferença entre Cristo na cruz e Cristo no
monte da transfiguração? Foi desamparado de Deus nesse
monte1?- Estaria Ele ali carregando com o pecado"? Estas
interrogações são muito simples, mas que deem a resposta
aqueles que alimentam a ideia de uma vida com o peso do
pecado.
O fato simples é este, não houve nada quer na humanidade de
Cristo, quer na natureza das Suas relações, que pudesse, de
modo algum, relacioná-Lo com o pecado ou a ira ou a morte.
Ele "foi feito pecado" na cruz; e ali suportou a ira de
Deus e deu a Sua vida, como perfeita expiação pelo pecado.
Porém, nada disto encontra lugar na oferta de manjares. Na
realidade, temos o processo de cozedura — a ação do fogo —;
mas isto não é a ira de Deus. A oferta de manjares não era
uma oferta pelo pecado, mas uma oferta de "cheiro suave".
Assim, a sua importância está definitivamente estabelecida;
e, além disso, a sua inteligente interpretação deve sempre
preservar, com santo zelo, a verdade preciosa da humanidade
imaculada de Cristo e verdadeira natureza das Suas
relações. Dizer que Ele, por necessidade do Seu nascimento,
teve de carregar com o pecado, ou colocá-Lo, por esse
motivo, debaixo da maldição da lei e da ira de Deus, é
contradizer toda a verdade de Deus respeitante à encarnação
— verdade anunciada pelo anjo e repetida diversas vezes
pelo apóstolo inspirado. Além disso, tal afirmação destrói
todo o caráter e objetivo da vida de Cristo e rouba à cruz
a sua glória característica. Diminui a significação do
pecado e da expiação. Numa palavra, remove a pedra
principal do arco da revelação e põe tudo em irremediável
ruína e confusão em redor de nós.

b) Sofrimento em Virtude da Simpatia


O Senhor Jesus também sofreu em virtude da simpatia — da
compaixão —; e este gênero de sofrimento nos faz penetrar
nos segredos profundos do Seu terno coração. A dor humana e
a miséria sempre impressionaram esse coração de amor. Era
impossível que esse perfeito coração humano não sentisse
com a sua sensibilidade divina as misérias que o pecado
havia transmitido à família humana. Embora livre,
pessoalmente, tanto da causa como do efeito— pertencendo,
embora ao céu, e vivendo uma perfeita vida celestial na
terra, contudo, desceu no poder de uma imensa compaixão aos
mais profundos recessos da dor humana. Assim, Ele sentiu a
dor mais vivamente do que aqueles que eram vítimas dela,
porquanto a Sua humanidade era perfeita. E, além disso,
pôde contemplar tanto a dor como a sua causa, segundo a sua
própria medida e caráter perante Deus. Sentia como ninguém
jamais pôde sentir. Os Seus sentimentos — as Suas afeições,
a Sua sensibilidade e simpatia— toda a Sua constituição
moral e mental eram perfeitos; e, por isso, ninguém pode
dizer quanto sofreu ao passar por um mundo como este. Viu
lutar a família humana sob o peso grave da culpa e miséria;
observou como toda a criação gemia debaixo do jugo; o
clamor dos cativos chegava aos Seus ouvidos; as lágrimas
das viúvas saltavam aos Seus olhos; as privações e a
pobreza comoviam o Seu coração sensível; perante a doença e
a morte "moveu-se muito em espírito; os Seus sofrimentos em
virtude de simpatia excediam todo o entendimento humano.
Transcrevo a seguir uma passagem ilustrativa do caráter do
sofrimento a que nos referimos. "E, chegada a tarde,
trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele, com a sua
palavra, expulsou deles os espíritos e curou todos os que
estavam enfermos, para que se cumprisse o que fora dito
pelo profeta Isaías, que diz: "Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e levou as nossas doenças" (Mt 8:16-17). Isto
era verdadeira compaixão — o poder de interesse comum, que
n'Ele era perfeito. Não havia n'Ele enfermidades ou
fraquezas. Essas coisas de que, por vezes, se fala como de
"fraquezas inocentes", no Seu caso, eram apenas provas de
uma real, verdadeira e perfeita humanidade. Porém, por
compaixão — por um perfeito interesse comum — "Ele tomou
sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças"
(Mt 8:17). Só um homem absolutamente perfeito podia ter
feito isto. Nós podemos simpatizar com os outros: mas só
Jesus podia tornar Suas as enfermidades e fraquezas
humanas.
Logo, houvesse Ele tomado todas estas dores em virtude do
Seu nascimento ou das Suas relações com Israel, e a família
humana, nós teríamos perdido toda a beleza e preciosidade
da Sua voluntária simpatia. Não podia haver lugar para ação
voluntária se a necessidade absoluta lhe tivesse sido
imposta. Mas, por outro lado, quando vemos a Sua inteira
liberdade, tanto pessoal como relativamente, da miséria
humana e daquilo que a produz, podemos compreender aquela
perfeita graça e compaixão que O levou a "tomar sobre si as
nossas enfermidades e levar as nossas doenças" no poder de
verdadeira simpatia. Existe, portanto, uma manifesta
diferença entre os sofrimentos de Cristo por voluntária
simpatia com as misérias humanas e os Seus sofrimentos como
substituto do pecador. Os primeiros são manifestos ao longo
de toda a Sua vida; os últimos são restringidos à Sua
morte.

c) Sofrimento por Antecipação


Finalmente, temos de considerar os sofrimentos de Cristo
por antecipação. Vemos a sombra tétrica da cruz projetar-se
sobre o Seu caminho e produzir uma ordem aguda de
sofrimento, que, não obstante, deve distinguir-se com tanta
precisão do Seu sofrimento expiatório como o Seu sofrimento
por amor da justiça se distingue do Seu sofrimento por
simpatia. Tomemos como exemplo de prova uma ou duas
passagens.
"E, saindo, foi, como costumava, para o monte das
Oliveiras; e também os seus discípulos o seguiram. E,
quando chegou àquele lugar, disse-lhes: Orai, para que não
entreis em tentação. E apartou-se deles cerca de um tiro de
pedra; e, pondo-se de joelhos, orava, dizendo: Pai, se
queres, passa de mim este cálice, todavia não se faça a
minha vontade, mas a tua. E apareceu-lhe um anjo do céu,
que o confortava. E, posto em agonia, orava mais
intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de
sangue que corriam até ao chão" (Lc 22:39-44). "E, levando
Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se
e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está
cheia de tristeza até à morte; ficai aqui e velai comigo...
E; indo segunda vez, orou, dizendo: Meu pai, se este cálice
não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua
vontade" (Mt 26:37-42).
Da leitura destes versículos é evidente que havia qualquer
coisa em perspectiva que o bendito Senhor nunca havia
encontrado antes. Estava sendo cheio um "cálice" para Si do
qual nunca tinha bebido. Se tivesse carregado com o pecado
durante toda a Sua vida, qual a razão dessa intensa agonia
ante o pensamento de entrar em contato com o pecado e ter
de suportar a ira de Deus devido ao pecado? Que diferença
havia entre Cristo no Getsêmani e Cristo no Calvário, se
Ele carregou com o pecado toda a Sua vida? Existiu uma
diferença essencial! Mas foi porque Ele não carregou com o
pecado durante toda a Sua vida. Qual é, logo, a diferença?
No Gêtsemani Ele estava antecipando a cruz! No Calvário,
suportava-a. No Gêtsemani "Apareceu-lhe um anjo do céu que
o confortava"; no Calvário foi desamparado por todos. Não
houve ali ministério dos anjos. No Gêtsemani dirigiu-se a
Deus como "Pai", gozando assim a comunhão desse inefável
parentesco; mas no Calvário clama: "Deus meu, Deus meu,
porque me desamparaste?" Aqui Aquele que leva sobre Si o
pecado olha para cima e vê o trono da Justiça eterna
envolvo em nuvens carregadas e o semblante da santidade
inflexível desviado d'Ele porque estava sendo "feito pecado
por nós".
O leitor não terá dificuldade em prosseguir este assunto
por si mesmo. Poderá traçar pormenorizadamente as três
espécies de sofrimento da vida de nosso bendito Senhor e
fazer distinção entre eles e os sofrimentos da Sua morte —
os Seus sofrimentos pelo pecado. Verá como, depois de os
homens e Satanás terem feito o pior que podiam restava
ainda uma espécie do sofrimento que era perfeitamente único
no seu gênero, ou seja, às mãos de Deus, por causa do
pecado — o sofrimento como substituto do pecador. Antes de
chegar à cruz, Ele podia olhar para cima e alegrar-se na
luz clara do rosto de Seu Pai. Nas horas mais sombrias
sempre encontrara um auxílio certo nas alturas. O caminho
que trilhava na terra era escabroso. Como poderia ser de
outra maneira num mundo onde tudo estava em oposição direta
à Sua natureza santa e pura? Ele teve de suportar a
"contradição dos pecadores contra Si mesmo". Teve de
suportar a afronta dos que se opunham a Deus. O que não
teve Ele de suportara Foi mal compreendido, mal
interpretado, injuriado, difamado, acusado de estar fora de
Si e de ter demônio. Foi traído, negado, abandonado,
escarnecido, esbofeteado, cuspido, coroado de espinhos,
expulso, condenado e cravado entre dois malfeitores. Todas
estas coisas Ele sofreu às mãos dos homens juntamente com
os terrores indizíveis com que Satanás atormentou o Seu
espírito; mas, deixai-me repetir mais uma vez e com ênfase,
depois de os homens e Satanás terem esgotado o seu poder e
inimizade o nosso bendito Senhor e Salvador tinha de
suportar alguma coisa comparada com a qual tudo o mais era
como nada, e isto era a ocultação da face de Deus — as três
horas de trevas e terrível escuridão, durante as quais
sofreu aquilo que ninguém senão Deus pode conhecer.
Ora, quando a Escritura fala de termos comunhão com os
sofrimentos de Cristo, refere-se, simplesmente, aos Seus
sofrimentos por amor da justiça — aos Seus sofrimentos às
mãos dos homens. Cristo sofreu pelo pecado, para que nós
não tivéssemos de sofrer por ele. Sofreu a ira de Deus,
para que nós não tivéssemos de sofrê-la. Este é o
fundamento da nossa paz. Mas pelo que respeita aos
sofrimentos infligidos pelos homens, descobrimos sempre que
quanto mais fielmente seguirmos as pisadas de Cristo, mais
sofreremos nesse sentido; porém, isto é um assunto de
privilégio, uma mercê, uma honra (veja-se Fp 1:29-30).
Andar nos passos de Cristo — gozar da Sua companhia, ter
parte na Sua simpatia, são privilégios dos mais elevados.
Quão bom seria que todos nós os aproveitássemos melhor!
Mas, infelizmente, contentamo-nos em passar sem eles —
contentamo-nos, à semelhança de Pedro, em "seguir de longe"
— de nos mantermos à distância do Cristo desprezado e
sofredor. Tudo isto é, indubitavelmente, um grande
privilégio. Tivéssemos nós apenas um pouco mais de comunhão
com os Seus sofrimentos, e a nossa coroa resplandeceria com
maior brilho na visão da nossa alma. Quando fugimos aos
sofrimentos de Cristo privamo-nos da profunda alegria da
Sua companhia e também do poder moral da esperança da Sua
glória futura.

A Parte dos Sacerdotes


Havendo examinado os ingredientes que compunham a oferta de
manjares e as diversas formas em que era oferecida, só nos
resta aludir às pessoas que participam dela. Estas eram o
chefe e os membros da família sacerdotal. "E o que sobejar
da oferta de manjares será de Arão e de seus filhos; coisa
santíssima é, de ofertas queimadas ao SENHOR" (versículos3e
10). Assim como o holocausto, como já frisamos, os filhos
de Arão são apresentados como figuras de todos os
verdadeiros crentes, não como pecadores convictos, mas como
sacerdotes em adoração, assim na oferta de manjares
encontramo-los alimentando-se do que sobejava daquilo que
havia sido posto, por assim dizer, sobre a mesa do Deus de
Israel. Isto era um elevado e santo privilégio. Ninguém
senão os sacerdotes podia usufruí-lo. E o que está
estabelecido, com grande clareza, na "Lei da oferta de
manjares", que passamos a reproduzir por completo. "E esta
é a lei da oferta de manjares: um dos filhos de Arão a
oferecerá perante o SENHOR diante do altar. E tomará o seu
punho cheio da flor de farinha da oferta e do seu azeite e
todo o incenso que estiver sobre a oferta de manjares;
então, o queimará sobre o altar; cheiro suave é isso, por
ser memorial ao SENHOR. E O restante, dela comerão Arão e
seus filhos: asmo se comerá no lugar santo; no pátio da
tenda da congregação o comerão. Levedado não se cozerá; sua
porção é que lhes dei das minhas ofertas queimadas; coisa
santíssima é, como a expiação do pecado e como a expiação
da culpa. Todo o varão entre os filhos de Arão comerá dela
estatuto perpétuo será para as vossas gerações das ofertas
queimadas do SENHOR; tudo o que tocar nelas será santo"
(Lv6:14-18).
Aqui, pois, é-nos dada uma bela figura da Igreja
alimentando-se no "lugar santo", no poder da santidade
prática, das perfeições do "Homem Cristo Jesus". Esta é a
nossa porção por meio da graça de Deus; mas temos de
lembrar que é para ser comida com pão "asmo". Não podemos
alimentar-nos de Cristo se estamos condescendendo com o
mal. "Tudo que tocar nela será santo". Além disso, deve
comer-se "no lugar santo". A nossa posição, os nossos
costumes, as nossas pessoas, as nossas relações, devem ser
santos, antes de podermos alimentar-nos da oferta de
manjares. Finalmente, lemos que "todo o varão entre os
filhos de Arão comerá dela". Quer dizer, é necessário
verdadeira energia sacerdotal, segundo o pensamento divino
a seu respeito, para se apreciar esta santa porção "Os
filhos de Arão" realçam a ideia de energia na ação
sacerdotal. As suas "filhas" representam debilidade nessa
mesma ação (veja Nm 18:8-13). Havia algumas coisas que os
filhos podiam comer e que as filhas não podiam. Os nossos
corações deveriam desejar ardentemente a medida mais
elevada de energia sacerdotal, a fim de podermos
desempenhar as mais elevadas funções sacerdotais e
participar da ordem mais elevada do alimento sacerdotal.
Em conclusão, devo acrescentar que, visto que somos feitos,
mediante a graça, "participantes da natureza divina",
podemos, se vivermos na energia dessa natureza, seguir as
pisadas d Aquele que é prefigurado na oferta de manjares.
Se nos despojarmos do ego, cada um dos nossos atos poderá
emitir um cheiro suave para Deus. Os mais insignificantes
assim como os mais importantes serviços podem, pelo poder
do Espírito Santo, representar o bom perfume de Cristo.
Fazer uma visita, escrever uma carta, exercer o ministério
público da Palavra, dar um copo de água fria a um discípulo
do Senhor ou uma moeda a um pobre, sim, até os atos
vulgares de comer e beber, podem todos exalar o perfume
suave do nome e graça de Jesus.
Assim também se tão-somente a natureza for mantida no lugar
da morte, poderá manifestar-se em nós o que não é
corruptível, até a própria conversação temperada com o
"sal" da permanente comunhão com Deus. Porém, falhamos e
faltamos em todas estas coisas. Entristecemos o Espírito de
Deus na nossa linha de conduta. Somos propensos a ser
egoístas ou a procurar os louvores dos homens nos nossos
melhores serviços, e assim deixamos de "temperar" a nossa
conversação. Daí, a nossa deficiência em "azeite",
"incenso" e o "sal"; enquanto que, ao mesmo tempo, existe a
tendência para alterar o "fermento" e permitir que se
manifeste "o mel" da natureza. Só houve uma "oferta de
manjares" perfeita; e, bendito seja Deus, estamos aceites
n'Ele. Somos filhos do verdadeiro Arão; o nosso lugar é no
santuário, onde podemos alimentar-nos com a santa porção.
Lugar ditoso! Ditosa porção! Possamos nós apreciá-la mais
do que o temos feito! Que os nossos corações estejam mais
desinteressados pelo mundo e aprofundados em Cristo. Que os
nossos olhos estejam tão fixos n'Ele, que não haja lugar em
nós para os atrativos da cena que nos rodeia nem tão-pouco
para as mil e uma circunstâncias mesquinhas da nossa vida,
que perturbam o coração e embaraçam a mente.
Regozijemo-nos em Cristo, tanto à luz brilhante do sol como
nas trevas; quando a brisa suave do verão se faz sentir à
nossa volta, e quando rugem as tempestades do inverno ao
longe; quando vagamos sobre a superfície de um tranquilo
lago, ou somos sacudidos sobre o mar encapelado. Graças a
Deus! "Achamos aquele" que será para sempre a nossa porção
abundante. Passaremos a eternidade contemplando as
perfeições divinas do Senhor Jesus. Os nossos olhos nunca
mais serão desviados d'Ele, uma vez que o tivermos visto
tal qual Ele é.
Que o Espírito Santo possa operar poderosamente em nós para
nos fortalecer "no homem interior". Que Ele nos habilite a
alimentarmo-nos com a perfeita oferta de manjares, com cujo
memorial o próprio Deus se tem alimentado! Este é o nosso
santo e feliz privilégio. Que o possamos realizar ainda
mais amplamente!

— CAPITULO 3 —

O SACRIFÍCIO PACÍFICO: A COMUNHÃO

Quanto mais atentamente consideramos as ofertas, mais


amplamente vemos que nenhum sacrifício apresenta um tipo
completo de Cristo. É só comparando-as em conjunto que se
pode obter uma ideia algo tanto exata. Cada oferta, como
era de esperar, tem as suas próprias características. O
sacrifício pacífico difere do Holocausto em muitos pontos;
e uma compreensão clara dos pontos em que qualquer figura
difere das outras ajudar-nos-á a compreender o seu
significado especial.

A Diferença entre o Holocausto e o Sacrifício de Pacífico


Assim, quando comparamos o sacrifício pacífico com o
holocausto, descobrimos que o tríplice ato de "esfolar",
"partir em pedaços" e "lavar a fressura e as pernas" é
inteiramente omitido. Mas isto é natural. No holocausto,
como temos notado, encontramos Cristo oferecendo-se a Si
mesmo a Deus e sendo aceito. Por isso tinha de ser
simbolizada não só a Sua inteira rendição como também o
processo de perscrutação a que Ele se submeteu. Na oferta
pacífica o pensamento principal é a comunhão do adorador.
Não é Cristo como objeto exclusivamente deleitável para
Deus, mas de gozo para o adorador, em comunhão com Deus.
Por isso a ação é menos intensa, em toda a linha.
Nenhum coração, por muito elevado que seja o seu amor,
pode, de modo algum, elevar-se à altura da dedicação de
Cristo a Deus ou da aceitação de Cristo por Deus. Ninguém
senão o próprio Deus podia anotar devidamente as pulsações
do coração que batia no seio de Jesus; e, portanto, era
necessário um símbolo para mostrar este aspecto da morte de
Cristo, a saber, a Sua perfeita dedicação a Deus na morte.
Este símbolo temo-lo no holocausto, a única oferta em que
observamos a ação tríplice a que acima nos referimos.
Assim também em referência ao caráter do sacrifício. No
holocausto, a vítima devia ser "macho sem mancha"; ao passo
que no sacrifício pacífico podia ser "macho ou fêmea",
contanto que não houvesse neles qualquer mancha. A natureza
de Cristo, quer O consideremos como sendo apreciado
exclusivamente por Deus ou pelo adorador em comunhão com
Deus, deve ser sempre a mesma. Não pode haver alteração
nela. A única razão por que era consentido oferecer uma
fêmea no sacrifício pacífico era para se avaliar a
capacidade do adorador quanto à apresentação do bendito Ser
que, em Si mesmo, "é o mesmo ontem, hoje e para sempre" (Hb
13).
Além disso, no holocausto lemos, "o sacerdote tudo
queimará"; ao passo que no sacrifício pacífico só uma parte
era queimada, isto é, "a gordura, os rins e o redenho".
Isto torna o caso muito simples. A porção mais excelente do
sacrifício era posto sobre o altar de Deus. As entranhas —
as ternas sensibilidades do bendito Jesus eram dedicadas a
Deus como o único que podia perfeitamente apreciá-las.
Aarão e seus filhos alimentavam-se do "peito" e da "espádua
direita" (') (Veja-se atentamente Lv 7:28-36). Todos os
membros da família sacerdotal, em comunhão com o seu chefe,
tinham a sua própria porção da oferta pacífica. E agora
todos os verdadeiros crentes, constituídos pela graça
sacerdotes para Deus, podem alimentar-se das afeições e da
força da verdadeira oferta pacífica — podem f ruir a feliz
certeza de terem o seu coração amantíssimo e o Seu ombro
poderoso para os confortar e suster continuamente (2)."
Esta é a porção de Arão e a porção de seus filho, das
ofertas queimadas do SENHOR, no dia em que os apresentou
para administrar o sacerdócio ao SENHOR. O que o SENHOR
ordenou que se lhes desse dentre os filhos de Israel no dia
em que os ungiu estatuto perpétuo é pelas suas gerações"
(Lv 7:35-36).

__________________
(1) "O peito" e "a espádua" são emblemáticos de amor e
poder — força e afeição.
(2) Há força e beleza no versículo 31: "... o peito será de
Aarão e de seus filhos". É privilégio de todos os
verdadeiros crentes alimentarem-se das afeições de Cristo —
do amor imutável desse coração que bate com amor imortal e
imutável por eles.

Uma Porção Comum entre Deus e os Sacerdotes


São importantes todos estes pontos de diferença entre o
holocausto e o sacrifício pacífico; e quando considerados
em conjunto, mostram com grande clareza as duas ofertas
perante a mente. No sacrifício pacífico há mais alguma
coisa do que a dedicação abstrata de Cristo à vontade de
Deus. O adorador é apresentado, não simplesmente como
espectador, mas como participante não apenas para observar
mas para se alimentar. Isto dá um caráter notável a esta
oferta. Quando observo o Senhor Jesus no holocausto, vejo-o
como Aquele cujo coração foi consagrado ao objetivo de
glorificar Deus e cumprir a Sua vontade. Mas quando O vejo
no sacrifício pacífico, descubro Aquele que tem um lugar no
Seu coração amantíssimo e sobre os Seus ombros poderosos
para um pecador indigno e desamparado. No holocausto, o
peito, as pernas e as entranhas, a cabeça e a gordura, tudo
era queimado em cima do altar — tudo subia como cheiro
suave a Deus. Porém no sacrifício pacífico a própria porção
que me convém é reservada para mim. E não tenho de
alimentar-me daquilo que satisfaz a minha própria
necessidade na solidão. De modo nenhum. Alimento-me em
comunhão com Deus e em comunhão com os meus companheiros no
sacerdócio. Alimento-me com o perfeito e feliz conhecimento
que o mesmíssimo sacrifício que nutre a minha alma tem já
satisfeito o coração de Deus; e, além disso, de que a mesma
porção que me alimenta também alimenta todos os meus
companheiros em adoração. A ordem da comunhão encontra-se
aqui — comunhão com Deus e comunhão com os santos. Não
havia nada que se parecesse com isolamento na oferta
pacífica. Deus tinha a Sua porção e a família sacerdotal
tinha a sua.
Assim é com o Antítipo do sacrifício pacífico. O mesmo
Jesus que é o objeto das delícias do céu é a fonte de gozo,
de força e de conforto para todo o coração crente; e não só
para cada coração, em particular, mas também para toda a
Igreja de Deus, em comunhão. Deus, em Sua infinita graça
tem dado ao Seu povo o mesmo objetivo que Ele tem. "A nossa
comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo" (1 Jo
1:3). É verdade que os nossos pensamentos acerca de Jesus
nunca poderão chegará altura dos pensamentos de Deus. A
nossa apreciação de um tal objeto deve ficar sempre muito
aquém da Sua; e, por isso, no símbolo, a casa de Arão não
podia participar da gordura.
Mas, apesar de nunca podermos atingir o padrão de apreço
divino da Pessoa de Cristo e do Seu sacrifício, estamos
todavia ocupados com o mesmo objeto e portanto a casa de
Arão tinha "o peito e a espádua direita". Tudo isto está
repleto de conforto e alegria para o coração. O Senhor
Jesus Cristo—Aquele que "foi morto, mas vive para todo o
sempre", é agora o objeto exclusivo ante os olhos e
pensamentos de Deus; e, em graça perfeita, Deus deu-nos uma
parte nesta mesma bendita e gloriosa Pessoa. Cristo é
também o nosso objetivo — o objetivo dos nossos corações e
tema do nosso cântico. "Havendo feito a paz, pelo sangue da
sua cruz", subiu ao céu e enviou o Espírito Santo, o "outro
Consolador", por cujo ministério poderoso nos alimentamos
do "peito e da espádua direita" do divino "Sacrifício
Pacífico". Ele é, na verdade, a nossa paz; e temos o gozo
inexcedível de saber que o agrado de Deus na obra da nossa
paz é tal que o cheiro suave da nossa oferta pacífica deu
alegria ao Seu coração. Este fato dá um encanto peculiar a
este símbolo. Cristo, como holocausto, desperta a admiração
dos nossos corações; Cristo, como sacrifício pacífico,
estabelece a paz da consciência e satisfaz as múltiplas e
profundas necessidades da alma. Os filhos de Arão podiam
prostrar-se em redor do altar do holocausto: podiam
observar como a chama desse sacrifício subia para o Deus de
Israel; podiam ver o sacrifício reduzido a cinzas; podiam,
à vista de tudo isto, curvar as suas cabeças e adorar; mas
ao retirarem-se nada levavam para si mesmos. Não sucedia o
mesmo com o sacrifício pacífico. Neste eles viam não só o
que podia emitir um cheiro suave para Deus, mas também
render uma porção substancial para si mesmos, da qual
podiam alimentar-se em feliz e santa comunhão.

O Gozo da Comunhão
E, certamente, é motivo de grande alegria para todo o
verdadeiro sacerdote saber (para empregar a linguagem do
nosso símbolo) que
Deus teve a Sua parte, antes de ele receber o peito e a
espádua. Este pensamento dá força e fervor, engrandecimento
e alegria ao culto e à comunhão. Revela a graça maravilhosa
d'Aquele que nos deu o mesmo objetivo, o mesmo tema, e a
mesma alegria que Ele tem. Nada inferior—nada menos do que
isto podia satisfazê-Lo. O Pai quer que o pródigo se
alimente do bezerro cevado, em comunhão consigo. Não lhe dá
um lugar inferior à Sua própria mesa, nem qualquer outra
porção senão aquela de que Ele Próprio se alimenta. A
linguagem do sacrifício é esta: "era justo alegrarmo-nos e
folgarmos" — "comamos e alegremo-nos". Tal é a preciosa
graça de Deus! Sem dúvida, temos motivos para nos
alegrarmos, pois participamos de uma tal graça. Porém,
quando podemos ouvir o bendito Deus dizer "comamos e
alegremo-nos", dos nossos corações devia brotar uma
corrente contínua de louvores e ações de graças. O gozo de
Deus na salvação de pecadores e o Seu gozo na comunhão dos
santos podem muito bem despertar a admiração dos homens e
dos anjos por toda a eternidade.

A Diferença entre a Oferta de Manjares e o Sacrifício


Pacífico
Havendo assim comparado o sacrifício pacífico com o
holocausto, podemos, agora, observar rapidamente a sua
relação com a oferta de manjares. Aqui o ponto principal de
diferença é este: no sacrifício pacífico havia derramamento
de sangue; na oferta de manjares não. Ambos eram ofertas de
"cheiro suave"; e, como aprendemos no capítulo 7:12, as
duas ofertas estavam intimamente ligadas entre si. Ora,
tanto a relação como o contraste são cheios de significado
e instrução.
É só em comunhão com Deus que a alma pode deleitar-se na
contemplação da humanidade perfeita do Senhor Jesus Cristo.
Deus o Espírito Santo deve dar assim como deve dirigir,
pela Palavra, a visão mediante a qual podemos contemplar o
"Homem Cristo Jesus". Ele podia ter sido revelado "em
semelhança da carne do pecado"; podia ter vivido e laborado
na terra; podia ter brilhado entre as trevas deste mundo,
em todo o fulgor celestial e beleza inerente à Sua Pessoa;
podia ter passado rapidamente, como astro brilhante,
através do horizonte deste mundo; e durante todo o tempo
ter permanecido fora do alcance da visão do pecador.
O homem não podia sentir o gozo profundo de comunhão com
tudo isto, simplesmente porque não havia base para esta
comunhão. No sacrifício pacífico, a base indispensável está
inteira e claramente estabelecida. "E porá a sua mão sobre
a sua cabeça, e a degolará diante da tenda da congregação:
e os filhos de Aarão espargirão o sangue sobre o altar em
redor" (versículo 2). Temos aqui o que a oferta de manjares
não proporciona, quer dizer, um fundamento sólido para a
comunhão do adorador com toda a plenitude, preciosidade e
beleza de Cristo, tanto quanto ele, pela energia do
Espírito Santo, é capaz de penetrar.
Para ter comunhão com Deus devemos estar "na luz". E como
podemos estar nela? Só com base nesta preciosa declaração.
"O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo
o pecado" (l Jo 1:7). Quanto mais permanecermos na luz,
mais profunda será a nossa compreensão de tudo que seja
contrário a essa luz, e mais profundo também será o
sentimento do valor desse sangue que nos dá o direito de
estarmos na luz. Quanto mais perto andarmos de Deus, mais
conheceremos "as riquezas incontáveis de Cristo".

O Precioso Exemplo do Filho Pródigo (ou: Perdido)


É absolutamente necessário conhecer a verdade de que
estamos na presença de Deus somente como participantes da
vida divina e beneficiando da justiça divina. O Pai só
podia ter o pródigo à sua mesa vestido com "o melhor
vestido" e em toda a integridade daquele parentesco em que
o via. Tivesse o pródigo conservado os seus andrajos ou
sido admitido "como um dos servos da casa, e nós nunca
teríamos ouvido essas gloriosas palavras, "comamos e
alegremo-nos; porque este meu filho estava morto, e
reviveu, tinha-se perdido, e foi achado". Assim acontece
com todos os verdadeiros crentes. A sua velha natureza não
é reconhecida como existente diante de Deus. Ele considera-
a morta, e assim eles a deviam considerar. Esta morta para
Deus — morta para a fé. Deve ser mantida no lugar da morte.
Não é melhorando a nossa velha natureza que chegamos à
presença divina; mas como possuidores de uma nova natureza.
Não foi remendando os trapos da sua condição anterior que o
pródigo obteve um lugar à mesa do Pai, mas por ter sido
vestido com um vestido que nunca havia visto ou pensado.
Não trouxe esse vestido da "terra longínqua", nem o obteve
de caminho; mas o pai tinha-o para ele em casa. O pródigo
não o fez nem ajudou a fazê-lo; mas o pai adquiriu-o para
ele e alegrou-se por o ver vestido com ele. Foi assim que
se assentaram à mesa para se alimentarem em feliz comunhão
"do bezerro cevado".

A Lei do Sacrifício Pacífico


Prosseguirei agora citando na íntegra a lei do Sacrifício
Pacífico, na qual encontramos alguns pontos adicionais de
grande interesse — pontos que lhe são peculiares.
"E esta é a lei do sacrifício pacífico que se oferecerá ao
SENHOR: Se o oferecer por oferta de louvores, com o
sacrifício de louvores, oferecerá bolos asmos amassados com
azeite e coscorões asmos amassados com azeite; e os bolos
amassados com azeite serão fritos, de flor de farinha. Com
os bolos oferecerá pão levedado como sua oferta, com o
sacrifício de louvores da sua oferta pacífica. E de toda
oferta oferecerá um deles por oferta alçada ao SENHOR, que
será do sacerdote que espargir o sangue da oferta pacífica.
Mas a carne do sacrifício de louvores da sua oferta
pacífica se comerá no dia do seu oferecimento; nada se
deixará dela até à amanhã. E, se o sacrifício da sua oferta
for voto ou oferta voluntária, no dia em que oferecer o seu
sacrifício se comerá; e o que dele ficar também se comerá
no dia seguinte. E o que ainda ficar da carne do sacrifício
ao terceiro dia será queimado no fogo. Porque, se da carne
do seu sacrifício pacífico se comer ao terceiro dia, aquele
que a ofereceu não será aceito, nem lhe será imputado;
coisa abominável será, e a pessoa que comer dela levará a
sua iniquidade. E a carne que tocar alguma coisa imunda não
se comerá; com fogo será queimada; mas da outra carne
qualquer que estiver limpo comerá dela. Porém, se alguma
pessoa comer a carne do sacrifício pacífico, que é do
SENHOR, tendo ela sobre si a sua imundícia, aquela pessoa
será extirpada dos seus povos.
E, se uma pessoa tocar alguma coisa imunda, como imundície
de homem, ou gado imundo, ou qualquer abominação imunda, e
comer da carne do sacrifício pacífico, que é do SENHOR,
aquela pessoa será extirpada dos seus povos" (Lv 7:11-21).

Distinção entre "pecado na carne" e "pecado na consciência"


É da máxima importância fazer distinção entre pecado na
carne e pecado na consciência. Se confundirmos os dois, as
nossas almas serão necessariamente transtornadas e o nosso
culto será manchado. Um exame atento de 1 Jo 1:8-10 lançará
muita luz sobre este assunto, cuja compreensão é tão
essencial para a devida apreciação de toda a doutrina do
sacrifício pacífico e principalmente do ponto nele a que
chegamos agora. Ninguém terá uma noção tão exata do pecado
no íntimo como o homem que anda na luz. "Se dissermos que
não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há
verdade em nós". No versículo precedente lemos que "... o
sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o
pecado". Aqui a distinção entre o pecado em nós e o pecado
sobre nós está claramente estabelecida. Dizer que o crente
tem pecado sobre si, na presença de Deus, é pôr em dúvida a
eficácia purificadora do sangue de Jesus e negar a verdade
divina a esse respeito. Se o sangue de Jesus pode purificar
perfeitamente, então a consciência do crente está
perfeitamente purificada. É assim que a Palavra de Deus põe
a questão; e nós devemos sempre recordar que é de Deus
mesmo que temos de aprender qual é, aos seus olhos, a
verdadeira condição do crente.
Estamos mais dispostos a dizer a Deus o que somos em nós
mesmos do que permitir que Deus nos diga o que somos em
Cristo. Por outras palavras, estamos mais ocupados com a
faculdade de perceber do que coma revelação que Deus nos dá
de Si mesmo. Deus fala-nos baseado no que Ele é em Si mesmo
e no que cumpriu em Cristo. Tal é a natureza e o caráter da
Sua revelação, da qual a fé toma posse e assim enche a alma
de perfeita paz. A revelação de Deus é uma coisa; a minha
percepção é outra muito diferente.
Porém a mesma palavra que nos diz que não temos pecado
sobre nós, diz-nos, com igual clareza e poder, que temos
pecado em nós. "Se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós". Todo
aquele que tem a "verdade" em si também saberá que tem
pecado "em si"; pois a verdade revela todas as coisas como
são. Que devemos, então, fazer? É nosso privilégio andar de
tal maneira no poder da nova natureza, que o "pecado", que
habita em nós, não possa manifestar-se na forma de
"pecados". A posição do cristão é de vitória e liberdade.
Ele é libertado não só da pena do pecado, mas também do
pecado como princípio dominante na sua vida. "Sabendo isto:
que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja desfeito, afim de que não sirvamos
mais ao pecado. Porque aquele que está morto, está
justificado do pecado... não reine, portanto, o pecado em
vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas
concupiscências... porque o pecado não terá domínio sobre
vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça"
(Rm 6:6-14). O pecado está ali em todo o seu aviltamento;
porém o crente está "morto para ele". Como? Morreu em
Cristo. Por natureza estava morto em pecado. Pela graça
está morto para o pecado. Que direito pode alguém ter sobre
um morto? Nenhum. Cristo "morreu de uma vez para o pecado",
e o crente morreu n'Ele. "Ora, se já morremos com Cristo,
cremos que também com ele viveremos; sabendo que havendo,
Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não
mais terá domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de
uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive
para Deus". Qual é o resultado disto, em relação aos
crentes? "Assim também vós considerai-vos como mortos para
o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, nosso
Senhor" (Rm 6:8-11). Tal é a posição inalterável do crente
diante de Deus! Por isso é seu alto privilégio gozar
liberdade do domínio do pecado sobre si, embora o pecado
habite em si.

A Confissão dos Pecados


Mas, "se alguém pecar", que deve fazer? O apóstolo
inspirado dá uma resposta clara e bendita: "Se confessarmos
os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os
pecados e nos purificar de toda injustiça" (1 Jo 1:9).
Confissão é a maneira de manter a consciência livre. O
apóstolo não diz, "se orarmos por perdão, ele é benigno e
misericordioso para nos perdoar" .Sem dúvida, é sempre um
alívio para qualquer filho fazer chegar aos ouvidos do pai
as suas necessidades — contar-lhe as suas fraquezas,
confessar-lhe a sua loucura, defeitos e faltas. Tudo isto é
muito verdade; e além disso é igualmente verdade que o
nosso Pai é terno e misericordioso para atender os Seus
filhos em todas as suas fraquezas e ignorância; porém,
apesar de tudo isto ser verdade, o Espírito Santo declara,
por intermédio do apóstolo, que, "se confessarmos os nossos
pecados", Deus é fiel e justo para nos perdoar. Portanto, a
confissão é o método divino. Um cristão que tenha errado em
pensamento, palavras ou ação, pode orar, pedindo perdão,
durante dias e meses e não ter a certeza, segundo 1 João
1:9, de ter sido perdoado; ao passo que no momento em que
verdadeiramente confessar o seu pecado, diante de Deus, é
simplesmente uma questão de fé saber que está perdoado e
perfeitamente purificado.

A Diferença entre Pedir Perdão e Confessar os Pecados


Existe uma grande diferença moral entre orar pedindo perdão
e confessar os nossos pecados, quer encaremos o problema em
relação ao caráter de Deus, quer em relação ao sacrifício
de Cristo ou ainda à condição da alma. É muito possível que
a oração de uma pessoa envolva a confissão do pecado,
qualquer que seja a sua natureza, e assim chegar ao mesmo
resultado. Porém, é sempre bom não nos afastarmos da
Escritura no que pensamos, dizemos e fazemos. É evidente
que quando o Espírito Santo fala de confissão, não quer
dizer oração. E é também evidente que Ele sabe que existem
elementos morais na confissão e que dela resultam efeitos
práticos que não pertencem à oração. De fato, descobrimos
amiúde que o hábito de importunar Deus com o pedido do
perdão dos pecados revela ignorância a respeito da forma
como Deus se revelou na Pessoa e obra de Cristo; acerca da
relação em que o sacrifício de Cristo colocou o crente e
quanto ao modo divino de alijar a consciência do fardo do
pecado e de a purificar da mancha do pecado.
Deus ficou perfeitamente satisfeito, quanto aos pecados do
crente, na cruz de Cristo. Na cruz foi feita completa
expiação por todo o pecado na natureza do crente e na sua
consciência. Por isso, Deus não necessita ainda de mais
propiciação. Não precisa de qualquer coisa mais para
despertar o Seu coração pelo crente. Não precisamos de Lhe
suplicar que seja "fiel e justo", pois a Sua fidelidade e
justiça foram gloriosamente patenteadas, justificadas e
satisfeitas na morte de Cristo. Os nossos pecados nunca
poderão vir à presença de Deus, visto que Cristo, que os
levou todos e os tirou, está ali. Contudo, se pecamos, a
consciência sente—deve senti-lo; sim, o Espírito Santo far-
nos-á senti-lo. Não pode deixar passar um simples
pensamento vão sem ser julgado. Então4 O nosso pecado abriu
caminho para a presença de Deus? Terá encontrado lugar na
luz pura do santuário? Deus nos livre! O "Advogado" está
ali—"Jesus Cristo o Justo", para manter, em integridade
inquebrantável, o parentesco em que nos encontramos.
Todavia, embora o pecado não possa afetar os pensamentos de
Deus a nosso respeito, pode afetar e afeta os nossos
pensamentos em referência a Ele ('). Embora não tenha
acesso à Sua presença, pode chegar à nossa, da maneira mais
triste. Embora não possa ocultar o Advogado dos olhos de
Deus, pode encobri-Lo dos nossos. Amontoa-se, como uma
nuvem sombria e espessa, sobre o nosso horizonte
espiritual, de sorte que as nossas almas não podem
desfrutar a claridade bendita da face do Pai. Não pode
afetar o nosso parentesco com Deus, mas pode afetar
seriamente o dele. Que devemos, pois fazer? A Palavra de
Deus responde: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é
fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de
toda a injustiça".
Por meio da confissão desembaraçamos a nossa consciência; o
sentimento agradável da nossa posição de filhos é
restaurado; a nuvem sombria dissipa-se; a influência
desanimadora desaparece; os nossos pensamentos em relação a
Deus são corrigidos. Tal é o método divino; e podemos dizer
que, na realidade, o coração que sabe o que é ter estado no
lugar da confissão sentirá o poder divino das palavras do
apóstolo: "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo PARA
QUE NÃO PEQUEIS" (l Jo 2:l).

__________________
(1) O leitor deve lembrar-se que o assunto tratado no texto
deixa inteiramente por considerar uma verdade muito
importante e prática ensinada em João 14:21-28, a saber, o
amor particular do Pai para com o filho obediente e a
comunhão especial de tal filho com o Pai e o Filho. Que
esta verdade seja gravada em nossos corações pela pena do
Deus Espírito Santo.

Em contrapartida, há um meio de orar pedindo perdão em que


se perde de vista o fundamento perfeito do perdão, o qual
foi lançado no sacrifício da cruz. Se Deus perdoa pecados,
tem de ser "fiel e justo" ao perdoar. Mas é evidente que as
nossas orações, por mais sinceras e fervorosas que sejam,
nunca poderiam constituir a base da fidelidade e justiça de
Deus para perdoar os nossos pecados. Nada, salvo a obra da
cruz podia conseguir isto. Ali a fidelidade e a justiça de
Deus foram plenamente estabelecidas, e isso também com
relação imediata aos nossos pecados atuais e a sua raiz na
nossa natureza. Deus já julgou os nossos pecados na Pessoa
do nosso substituto "no madeiro"; e, no ato da confissão,
nós julgamo-nos a nós próprios. Isto é essencial para se
alcançar o perdão divino e restauração. O menor pecado por
confessar e por julgar, na consciência, manchará
inteiramente a nossa comunhão com Deus. O pecado em nós não
requer este efeito; porém se permitirmos que o pecado
permaneça sobre nós não podemos ter comunhão com Deus. Ele
tirou os nossos pecados de tal maneira, que pode ter-nos na
Sua presença; e enquanto estivermos na Sua presença o
pecado não poderá perturbar-nos. Porém se saímos da Sua
presença e cometemos pecado, ainda que seja só em
pensamento, a nossa comunhão deve, por necessidade, ser
suspensa, até que, pela confissão, nos libertemos do
pecado. Tudo isto está fundado exclusivamente sobre o
sacrifício perfeito e a justa advocacia do Senhor Jesus
Cristo.

O Julgamento Pessoal
Finalmente, a diferença entre a oração e a confissão, pelo
que diz respeito ao estado do coração perante Deus, e o seu
sentimento moral de aversão ao pecado, não pode ser, de
modo algum considerada demais.
É muito mais fácil pedir, de uma maneira geral, o perdão
dos nossos pecados do que confessar esses pecados. A
confissão implica o julgamento pessoal; pedir o perdão pode
não envolver e, em si, não envolve esse juízo. Isto, só por
si, seria o suficiente para salientara diferença. O juízo
próprio é um dos mais valiosos e saudáveis exercícios da
vida cristã. Portanto, tudo que tende a produzi-lo deve ser
altamente apreciado por todo o cristão sincero.
A diferença entre pedir perdão e confessar o pecado é
continuamente exemplificada no nosso tratamento com as
crianças. Se uma criança tem feito alguma maldade, acha
menos dificuldade em pedir ao pai que a perdoe do que em
confessar abertamente e sem reservas a maldade. Ao pedir
perdão, a criança pode ter em seu pensamento um determinado
número de coisas que tendam a diminuir o sentimento do mal,
pode pensar que, afinal, não havia muita razão para a
censurarem, embora seja conveniente pedir perdão ao pai;
enquanto que, ao confessar a maldade, faz o seu próprio
julgamento.
Além disso, ao pedir perdão a criança pode ser influenciada
principalmente pelo desejo de escapar às consequências da
sua maldade; enquanto que um pai sensato procurará
despertar no filho exatamente a convicção do mal, e essa
convicção só pode conseguir-se em relação com franca
confissão da falta relacionada com o julgamento de si
próprio.
Assim é também na maneira de Deus proceder para com os Seus
filhos, quando eles procedem mal. Tudo tem de ser exposto
completamente e julgado pela pessoa. Ele quer fazer-nos
recear não só as consequências do pecado — que são
inexprimíveis — mas detestar também o próprio mal, por
causa da sua hediondez aos Seus olhos. Se fosse possível,
quando cometemos pecado, sermos perdoados simplesmente,
porque pedimos perdão, a nossa compreensão do pecado e
atitude perante ele não seriam tão intensas; e, como
consequência, a nossa apreciação da comunhão com que somos
abençoados não seria tão elevada. O efeito moral de tudo
isto sobre o caráter da nossa constituição espiritual e a
natureza da vida prática deve ser claro para todo o crente
experimentado (1).

________________
(1) O caso de Simão, o mago, em Atos 8, pode apresentar uma
dificuldade para o leitor. Mas basta dizer dele que uma
pessoa que está "em fel de amargura e laço de iniquidade"
nunca podia ser apresentada como modelo para os filhos de
Deus. O seu caso não interfere, de modo algum, com a
doutrina de 1 João 1:9. Ele não tinha o parentesco de filho
e, consequentemente, não beneficiava da advocacia do nosso
Advogado junto do Pai. Devo acrescentar ainda que o assunto
da oração do Senhor não está de modo algum envolvido neste
caso. Desejo limitar-me à passagem que se segue. Devemos
evitar sempre a adoção de regras rígidas. Uma alma pode
clamar a Deus em quaisquer circunstâncias e pedir o que
carece. Ele está sempre pronto a ouvir e a responder.

O "Pecado" e os "Pecados"
Esta série de pensamentos está intimamente relacionada e
plenamente confirmada por dois princípios estabelecidos na
"Lei do sacrifício pacífico".
No versículo 13 do capítulo 7 de Levítico lemos: "Com os
bolos oferecerá pão levedado". E ainda no versículo 20
lemos: "Porém, se alguma pessoa comer a carne do sacrifício
pacífico, que é do SENHOR, tendo ela sobre si a sua
imundícia, aquela pessoa será extirpada dos seus povos".
Aqui temos as duas coisas claramente postas diante de nós,
a saber; o pecado em nós e o pecado sobre nós. O "fermento"
era permitido porque havia pecado na natureza do adorador.
A "imundícia" não era permitida porque não devia haver
pecado na consciência do adorador. Onde há pecado não pode
haver comunhão. Deus tem provido expiação pelo sangue para
o pecado que Ele sabe existir em nós. Por isso lemos acerca
do pão levedado no sacrifício pacífico "E de toda oferta
oferecerá um deles por oferta alçada ao SENHOR, que será do
sacerdote que espargir o sangue da oferta pacífica"
(versículo 14). Por outras palavras, o "fermento" (2) na
natureza do adorador estava perfeitamente expiado pelo
"sangue" do sacrifício. O sacerdote que recebe o pão
levedado é quem deve espargir o sangue. Deus afastou da Sua
vista o nosso pecado para sempre. Apesar do pecado estar em
nós, não é objeto para fixar os Seus olhos. Ele vê só o
sangue; e portanto pode andar conosco e consentir
ininterrupta comunhão consigo. Porém, se permitirmos que "o
pecado" que está em nós se desenvolva na forma de
"pecados", então, tem de haver confissão, perdão e
purificação, antes de podermos comer outra vez da carne da
oferta pacífica. A exclusão do adorador, por causa de
impureza mencionada no cerimonial, corresponde à suspensão
de um crente da comunhão, por causa de pecado por
confessar. Intentar ter comunhão com Deus em nossos pecados
implicaria a blasfema insinuação de que Ele podia andar em
companhia do pecado. "Se dissermos que temos comunhão com
ele, e andarmos em trevas, mentimos e não praticamos a
verdade" (1 Jo 1:6).

______________
(2) O leitor não deve esquecer que o fermento é sempre um
símbolo do mal (N. do T.).

A luz da precedente linha de verdade, podemos finalmente


ver quanto erramos, quando supomos ser um sinal de
espiritualidade estarmos ocupados com os nossos pecados.
Poderia o pecado ou os pecados jamais serem o fundamento ou
alimentar a nossa comunhão com Deus? Não, certamente. Já
vimos que, enquanto o pecado é o objetivo que temos perante
nós, a comunhão tem de ser interrompida. A comunhão só pode
ser "na luz"; é indubitável que não há pecado na luz. Na
luz só se pode ver o sangue que tirou os nossos pecados e
nos trouxe para perto, e o Advogado que nos mantém perto de
Si. O pecado foi esquecido para sempre naquele lugar onde
Deus e o adorador se encontram em santa comunhão. O que é
que constituiu o elemento de comunhão entre o Pai e o
pródigo? Foram os trapos deste? Foram as bolotas da "terra
longínqua"1?- De modo nenhum. Não foi nada que o pródigo
trouxe consigo. Foi a rica provisão do amor do Pai—"o
bezerro cevado". Assim é com Deus e o verdadeiro adorador.
Alimentam-se em conjunto e elevada comunhão d'Aquele cujo
precioso sangue os associou para sempre nessa luz da qual
nenhum pecado pode jamais acercar-se.
Nem por um instante precisamos de supor que a verdadeira
humildade se mostre ou se promova recordando os nossos
pecados ou lamentando-nos sobre eles. Uma tristeza impura e
dolorosa pode assim ser aumentada; mas a verdadeira
humildade salta sempre de uma origem totalmente diferente.
Quando é que o pródigo mais se humilhou? Quando "caiu em
si", na terra longínqua, ou quando chegou a casa do Pai e
se reclinou no seu seio? Não é evidente que a graça que nos
eleva às mais elevadas alturas de comunhão com Deus, é a
única que nos conduz às maiores profundidades de uma
genuína humildade? Sem dúvida. A humildade que tem a sua
origem na remoção dos nossos pecados deve ser sempre mais
profunda do que aquela que resulta de os descobrirmos. A
primeira liga-nos com Deus; a última relaciona-nos com o
ego. O meio de se ser verdadeiramente humilde é andar com
Deus no conhecimento e poder do parentesco em que Ele nos
colocou. Ele fez-nos Seus filhos; e se andarmos como tais
seremos humildes.
A Ceia do Senhor
Antes de deixarmos esta parte do assunto, quero fazer uma
observação sobre a ceia do Senhor, que, sendo um ato
proeminente da comunhão da Igreja, pode, com estrita
propriedade, ser considerada em ligação com a doutrina do
sacrifício pacífico. A celebração inteligente da ceia do
Senhor deve depender sempre do reconhecimento do Seu
caráter puramente eucarístico ou de ações de graças. É
especialmente uma festa de ação de graças — ação de graças
por uma redenção cumprida. "Porventura, o cálice de bênção
que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão
que partimos não é, porventura, a comunhão do corpo de
Cristo?" (1 Co 10:16). Por isso, uma alma curvada sob o
peso do fardo do pecado não pode comer a ceia do Senhor com
inteligência espiritual, visto que essa festa é expressiva
da completa remoção do pecado pela morte de Cristo:"...
anunciais a morte do Senhor, até que venha" (1 Co 11:26).
Na morte de Cristo, a fé vê o fim de tudo que pertencia ao
nosso lugar na velha criação; e, visto que a ceia do Senhor
anuncia essa morte, deve ser considerada como a recordação
do fato glorioso que o fardo do pecado do crente foi levado
por Aquele que o tirou para sempre.
Declara que a cadeia dos nossos pecados, com que estávamos
presos e amarrados, foi partida para sempre pela morte de
Cristo e não pode jamais prender-nos ou amarrar-nos de
novo. Nós reunimo-nos ao redor da mesa do Senhor com toda a
alegria de vencedores. Volvemos os olhos para a cruz onde
se travou e ganhou a batalha; e antevemos a glória em que
entraremos nos resultados plenos e eternos da vitória.
Decerto, temos "fermento" em nós; mas não temos nenhuma
"imundície" sobre nós. Não temos que fixar os olhos nos
nossos pecados; mas, sim, n Aquele que os levou sobre a
cruz e os tirou para sempre. Não temos de nos enganar a nós
mesmos com a ideia presunçosa de que "não temos pecado" em
nós; nem vamos negar a verdade da Palavra de Deus e a
eficácia do sangue de Cristo recusando alegrarmo-nos com a
verdade preciosa que não temos pecado sobre nós, porque "o
sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo
pecado". É verdadeiramente deplorável ver a nuvem carregada
que se forma sobre a ceia do Senhor, com o parecer de
tantos cristãos professos. Este fato contribui, tanto como
tudo o mais, para revelar a enorme falta de compreensão a
que se pode chegar com respeito às verdades mais
elementares do evangelho. De fato, sabemos que quando a
ceia do Senhor é tomada por uma razão qualquer que não seja
o conhecimento da salvação — o gozo do perdão —,
consciência da libertação, a alma é envolvida em maior
obscuridade do que nunca.
Aquilo que é apenas um memorial de Cristo é usado para O
deslocar. Aquilo que celebra uma redenção efetuada é
empregado como um degrau para ela. É assim que se abusa das
ordenações, as almas são submergidas nas trevas e cai-se na
confusão e no erro.

O Valor do Sangue de Cristo


Quão diferente de tudo isto é a bela ordenação do
sacrifício pacífico! Neste, considerado sob a sua
importância simbólica, vemos que, logo que o sangue era
derramado, Deus e o adorador podiam alimentar-se em feliz e
pacífica comunhão. Nada mais era necessário. A paz estava
estabelecida pelo sangue; e, sobre essa base, prosseguia a
comunhão. Uma simples dúvida quanto ao estabelecimento da
paz é fatalmente o golpe mortal na comunhão. Se estamos
ocupados com esforços inúteis para conseguir a paz com
Deus, então desconhecemos totalmente o que é a comunhão e o
culto. Se o sangue do sacrifício pacífico não foi
derramado, é impossível alimentarmo-nos com "o peito" ou a
"espádua". Mas, por outro lado, se o sangue foi derramado,
então a paz já está feita. Deus mesmo fez a paz e isto é
bastante para a fé; e, portanto, pela fé temos comunhão com
Deus, no conhecimento e gozo da redenção efetuada. Provamos
a frescura do próprio gozo de Deus naquilo que Ele fez.
Alimentamo-nos de Cristo em toda a plenitude e bem-
aventurança da presença de Deus.

O Culto
Este último ponto está relacionado e baseado sobre outra
verdade fundamental da "lei do sacrifício pacífico". "Mas a
carne do sacrifício de louvores da sua oferta pacífica se
comerá no dia do seu oferecimento; nada se deixará dela até
amanhã." Quer dizer, a comunhão do adorador nunca deve
separar-se do sacrifício sobre o qual a comunhão está
baseada. Desde que se tenha energia espiritual para manter
a conexão, o culto e a comunhão subsistirão em frescura e
aceitação, mas só assim. Devemos estar perto do sacrifício,
no espírito do nosso entendimento, as afeições do nosso
coração e a experiência das nossas almas. É isto que dará
poder e duração ao nosso culto. Pode dar-se o caso de
começarmos qualquer ato ou expressão de culto com os nossos
corações ocupados imediatamente com Cristo; e, antes de
chegarmos ao fim, estarmos ocupados com o que estamos
fazendo ou dizendo ou com as pessoas que nos escutam; e,
desta forma, caímos naquilo que pode chamar-se "iniquidade
nas nossas coisas santas". Isto é profundamente solene e
deveria tornar-nos vigilantes. Começamos o culto no
Espírito e acabamos na carne. Devemos ter sempre o cuidado
de não nos afoitarmos a proceder, nem por um momento, para
lá da energia do Espírito, porque o Espírito manter-nos-á
sempre ocupados com Cristo. Se o Espírito Santo nos inspira
"cinco palavras" de adoração ou de ações de graças,
pronunciemos as cinco e calemo-nos. Se continuarmos a
falar, estamos comendo a carne do nosso sacrifício depois
do tempo fixado; e, longe de ser "aceitável", é, na
realidade, "uma abominação". Lembremo-nos disto e vigiemos.
Não há necessidade para alarme. Deus quer que sejamos
guiados pelo Espírito e assim cheios de Cristo em todo o
nosso culto. Ele só pode aceitar aquilo que é divino; e,
portanto, não quer que seja apresentado senão o que é
divino.
"E, se o sacrifício da sua oferta for voto ou oferta
voluntária, no dia em que oferecer o seu sacrifício se
comerá; e o que dele ficar também se comerá no dia
seguinte" (Lv 7:16). Quando a alma se eleva a Deus em um
ato voluntário de adoração, tal adoração provêm de uma
maior medida de energia espiritual do que quando procede
simplesmente de alguma graça particular do próprio momento.
Se se há recebido uma favor especial da mão do Senhor, a
alma eleva-se imediatamente em ação de graças. Neste caso,
o culto é suscitado por e ligado com esta mercê de graça,
qualquer que possa ser, e acaba aí. Porém quando o coração
é levado pelo Espírito Santo a qualquer expressão
voluntária ou deliberada de louvor, o culto terá um caráter
mais duradouro. Todavia, o culto espiritual ligar-se-á
sempre com o precioso sacrifício de Cristo.
"E o que ainda ficar da carne do sacrifício ao terceiro dia
será queimado no fogo. Porque, se da carne do seu
sacrifício pacífico se comer ao terceiro dia, aquele que a
ofereceu não será aceito, nem lhe será imputado; coisa
abominável será, e a pessoa que comer dela levará a sua
iniquidade". Nada tem qualquer valor, segundo o juízo de
Deus, senão aquilo que está intimamente ligado com Cristo.
Pode existir muita aparência de culto, e ser, afinal, a
mera excitação e expressão de sentimentos naturais. Pode
haver uma grande aparente devoção, que é, simplesmente,
devoção carnal.
A natureza pode excitar-se, no campo religioso, de diversas
maneiras, tais como pompa, cerimônias, procissões,
atitudes, ricas vestimentas, uma liturgia eloquente e todos
os atrativos de um esplêndido ritualismo; e, contudo, pode
haver uma absoluta ausência de culto espiritual. Sim,
acontece frequentemente que os mesmos gostos e inclinações,
que são excitados e satisfeitos por formas pomposas de um
culto chamado religioso, encontrariam um alimento mais
apropriado na ópera ou nos concertos.
Aqueles que sabem que "Deus é espírito e aqueles que o
adoram devem adorá-Lo em espírito e em verdade" (João 4) e
que desejam rememorá-Lo devem pôr-se em guarda contra tudo
isto. A religião, assim chamada, reveste-se, em nossos
dias, dos mais poderosos atrativos. Abandonando a grosseria
da idade média, ela chama em seu auxílio todos os recursos
de gosto requintado de um século iluminado e culto. A
escultura, a música, e a pintura, vazam os seus ricos
tesouros no seu seio, a fim de que ela possa, com isso,
preparar um poderoso narcótico para embalar as multidões
irrefletidas numa sonolência, que só será interrompida
pelos indescritíveis horrores da morte, do juízo e do lago
de fogo. Ela pode também dizer: "Sacrifícios pacíficos
tenho comigo; hoje paguei os meus votos... Já cobri a minha
cama com cobertas de tapeçaria, com obras lavradas com Unho
fino do Egito; já perfumei o meu leito com mirra, aloés e
canela" (Pv 7:14-17). Assim a religião corrompida seduz,
por sua poderosa influência, aqueles que não querem escutar
a voz celestial da sabedoria.
Guarde-se o leitor de tudo isto. Certifique-se de que o seu
culto está inseparavelmente ligado com a obra da cruz. Veja
se Cristo é o fundamento, Cristo o elemento e o Espírito
Santo o poder do seu culto. Guarde-se de que o ato exterior
do seu culto não se alongue para lá deste poder íntimo. É
necessária muita vigilância para se evitar este mal. Os
seus manejos secretos são dos mais difíceis de detectar e
impedir. Podemos começar um hino no verdadeiro espírito de
culto, e, por falta de poder espiritual, podemos, antes de
chegar ao fim, cair no mal que corresponde ao ato do
cerimonial de comer a carne do sacrifício pacífico ao
terceiro dia. A nossa única salvaguarda consiste em
estarmos perto de Jesus. Se elevarmos os nossos corações em
"ações de graças" por qualquer mercê especial, façamo-lo no
poder do nome e do sacrifício de Cristo. Se as nossas almas
se elevam em adoração "voluntária", que seja na energia do
Espírito Santo. Deste modo o nosso culto terá aquela
frescura, essa fragrância e profundidade de tom, essa
elevação moral, que devem resultar do fato de se ter o Pai
por objeto, o Filho por fundamento e o Espírito Santo com o
poder do culto.

_________________
NOTA: É interessante observar que, embora o sacrifício
pacífico seja o terceiro na ordem dos sacrifícios, contudo
"a Lei" dele é dada depois de todos. Esta circunstância não
deixa de ter a sua importância. Em nenhum dos sacrifícios a
comunhão do adorador é tão claramente revelada como no
sacrifício pacífico. No holocausto vemos Cristo oferecendo-
se a Si mesmo a Deus. Na oferta de manjares, temos a
perfeita humanidade de Cristo. Depois, passando ao
sacrifício pelo pecado, aprendemos que o pecado em sua raiz
é inteiramente expiado. No sacrifício pelo sacrilégio, há
plena provisão para os pecados na vida presente. Mas em
nenhum é revelada a comunhão do adorador. A comunhão
pertence ao "sacrifício pacífico"; e, daí, creio, a posição
que ocupa a ''lei deste sacrifício". Aparece no fim de
todas, ensinando-nos com isso que, quando se trata de uma
questão de a alma se alimentar de Cristo, tem de ser um
Cristo completo, considerado sob todas as fases possíveis
da Sua vida — o Seu caráter, a Sua Pessoa, Sua Obra, e Seu
cargo. E, além disso, que, quando tivermos acabado para
sempre com o pecado e os pecados, deleitar-nos-emos em
Cristo e nos alimentaremos d'Ele por todos os séculos
eternos. Seria, creio, uma falta grave no nosso estudo dos
sacrifícios se deixássemos de considerar uma circunstância
tão digna de ser notada como a que acabamos de frisar. Se a
"lei do sacrifício pacífico" fosse dada pela ordem em que
ocorre o próprio sacrifício viria imediatamente depois da
lei da oferta de manjares; porém em vez disso, são dadas "A
lei da expiação do pecado" e "a lei da expiação da culpa"
e, então, em conclusão, segue-se a "lei do sacrifício
pacífico".

Que assim seja, ó Senhor, com todos os que te adoram, até


nos encontrarmos em corpo, alma e espírito na segurança da
tua presença eterna, fora do alcance de toda a influência
perniciosa do falso culto e da religião corrompida, e
também fora do alcance dos diferentes impedimentos que
provêm destes corpos de pecado e morte que trazemos em nós!

— CAPÍTULOS 4 a 5:13 —

OS SACRIFÍCIOS QUE
NÃO SÃO DE CHEIRO SUAVE

Os Sacrifícios pelo Pecado


Tendo considerado as ofertas de "cheiro suave", chegamos
agora aos "sacrifícios pelo pecado". Estes eram divididos
em duas classes, a saber, sacrifícios pelo pecado e
expiação do pecado. Na primeira havia três categorias;
primeiro, o sacrifício pelo "sacerdote ungido" e por "toda
a congregação". Estes dois tinham os mesmos ritos e
cerimônias (compare-se os versículos 3 a 12 com os
versículos 13a 23). Era o mesmo, quer tivesse sido o
representante da assembleia ou a própria assembleia que
tivesse pecado. Em qualquer dos casos três coisas estavam
envolvidas: a habitação de Deus na assembleia, a adoração
da assembleia e a consciência individual. Ora, visto que as
três coisas dependiam do sangue, verificamos que, na
primeira categoria do sacrifício pelo pecado, três coisas
eram feitas com o sangue. Era espargido "sete vezes perante
o SENHOR, diante do véu do santuário". Isto assegurava as
relações de Jeová com o povo e a Sua habitação no meio
deles.

O Sangue da Vítima
Depois lemos: "Também porá o sacerdote daquele sangue sobre
as pontas do altar do incenso aromático, perante o SENHOR,
altar que está na tenda da congregação". Isto assegurava a
adoração da assembleia. Pondo o sangue sobre "o altar de
ouro", a verdadeira base de adoração era mantida; de forma
que a chama do incenso e a sua fragrância podiam subir
continuamente. Finalmente, "todo o resto do sangue do
novilho derramará à base do altar do holocausto, que está à
porta da tenda da congregação". Aqui temos o que satisfaz
plenamente as exigência da consciência de cada indivíduo;
pois o altar de cobre era o lugar de acesso individual. Era
onde Deus encontrava o pecador.
Nas outras duas categorias, "um príncipe" ou "qualquer
outra pessoa do povo da terra", era apenas uma questão de
consciência individual; e portanto uma única coisa era
feita com o sangue. Era todo derramado "à base do altar do
holocausto" (compare-se verso 7 com os versos 25,30).
Existe em tudo isto uma precisão divina que requer toda a
atenção do leitor, se deseja compreender os pormenores
maravilhosos deste símbolo (').
O efeito do pecado individual não podia prolongar-se para
além dos limites da consciência do indivíduo. O pecado de
"um príncipe" ou de "qualquer outra pessoa do povo", não
podia, em sua influência, atingir "o altar do incenso" — o
lugar da adoração sacerdotal. Não podia tão-pouco chegar ao
"véu do santuário" — o limite sagrado da habitação de Deus
no meio do Seu povo. É bom ponderar isto. Nunca devemos
levantar uma questão de pecado pessoal ou falta no lugar de
culto sacerdotal ou na assembleia. Deve ser tratada no
lugar de aproximação pessoal. Muitos erram sobre este
ponto. Vêm à assembleia ou lugar público de culto com a sua
consciência manchada, e desta forma arrastam toda a
assembleia e contaminam o seu culto. Deveria examinar-se
rigorosamente este mal e haver cuidadosa vigilância contra
ele. Precisamos de andar com maior vigilância para que a
nossa consciência possa estar sempre na luz. E quando
falhamos, como, infelizmente, acontece em tantas coisas,
devemos tratar com Deus sobre a nossa falta em oculto, para
que a nossa verdadeira adoração e a posição da assembleia
possam ser mantidas sempre plenamente com clareza diante da
alma.

(1) Entre a oferta por "um príncipe" e a oferta por


"qualquer outra pessoa" há esta diferença: na primeira era
um "macho sem mancha"; na última "uma fêmea sem mancha". O
pecado de um príncipe exercia necessariamente maior
influência do que o de uma pessoa comum; e, portanto, era
necessária uma aplicação mais poderosa do valor do sangue.
Em capítulo 5:13 encontramos casos que requerem uma
aplicação ainda mais inferior à da oferta de expiação pelo
pecado — casos de juramento e de contato com formas de
impureza, em que "a décima parte de um efa de flor de
farinha" era admitido como oferta de expiação pelo pecado
(Veja-se capítulo 5:11-13). Que contraste entre o aspecto
de expiação apresentado por um bode de um príncipe e a mão-
cheia de flor de farinha de um pobre homem! E, todavia, no
último, tão certo como no primeiro, lemos, "e ser-lhe-á
perdoado".
O leitor há de notar que o capítulo 5:1-13 forma uma parte
do capítulo 4. Ambos estão compreendidos sob o mesmo
título, e apresentam a doutrina da oferta de expiação do
pecado, em todas as suas aplicações, desde um bode a uma
mão-cheia de flor de farinha. Cada classe de oferta é
anunciada pelas palavras. "Falou mais o SENHOR a Moisés".
Assim, por exemplo, com as ofertas de "cheiro suave"
(Capítulos 1-3) são introduzidas pelas palavras: "E chamou
o SENHOR a Moisés". Estas palavras não são repetidas até ao
capítulo 4:1, onde introduzem o sacrifício de expiação do
pecado. Ocorrem outra vez no capítulo 5:14, onde é
introduzida a Oferta de transgressão por pecados cometidos
"nas coisas sagradas do SENHOR"; e outra vez em capítulo
6:1, onde introduzem a oferta de transgressão por pecados
cometidos contra o Senhor no tocante ao seu próximo.
É uma classificação bela e simples, e pode auxiliar o
leitor a compreender as diversas classes de ofertas. Quanto
às diversas categorias em cada classe, "um bode", "um
carneiro", "uma fêmea", "uma pomba", "uma mão-cheia de flor
de farinha", parece serem outras tantas aplicações diversas
da mesma grande verdade.

O Pecado por Erro (ou Ignorância)


Havendo assim dito o bastante quanto às três categorias de
sacrifício pelo pecado, vamos proceder ao exame,
pormenorizado dos princípios desenvolvidos na primeira
classe. Fazendo-o, poderemos formar, até certo ponto, uma
ideia exata dos princípios de todos. Desejo contudo, ao
entrar na comparação imediata atrás referida, chamar a
atenção do leitor para um ponto notável que é revelado no
segundo verso deste capítulo. "Quando uma alma pecar por
erro". Isto apresenta uma verdade de profunda bem-
aventurança, em relação com a expiação do Senhor Jesus
Cristo. Ao contemplarmos essa expiação, vemos infinitamente
mais do que a simples satisfação das exigências da
consciência, ainda que essa consciência tivesse atingido o
ponto mais alto de polida sensibilidade. Temos o privilégio
de ver nela o que satisfaz plenamente todas as exigências
da santidade divina, a justiça divina e a majestade divina.
A santidade da habitação de Deus e o fundamento da Sua
união com o Seu povo nunca poderiam ser regulamentadas pelo
padrão da consciência do homem, por muito elevado que esse
padrão pudesse ser. Há muitas coisas que a consciência do
homem omitiria — muitas coisas que poderiam escapar à
percepção do homem —, muitas coisas que o seu coração
poderia considerar lícitas, mas que Deus não podia tolerar;
e que, como consequência, haviam de interferir com a
aproximação do homem de Deus e impedi-lo de render adoração
e prejudicar as suas relações. Pelo que, se a expiação de
Cristo fizesse apenas provisão para os pecados que estão ao
alcance da compreensão do homem, nós estaríamos muito aquém
do verdadeiro fundamento da paz. Precisamos de compreender
que o pecado foi expiado segundo a avaliação que Deus fez
dele — que as exigências do Seu trono foram perfeitamente
cumpridas —, o pecado, tal qual é visto à luz da Sua
inflexível santidade, foi divinamente julgado. É isto que
dá paz segura à alma. Fez-se perfeita expiação tanto pelos
pecados de ignorância do crente como pelos seus pecados
conhecidos. O sacrifício de Cristo é o fundamento das suas
relações e comunhão com Deus, segundo a apreciação divina
das suas exigências.
Um conhecimento claro deste fato é de incalculável valor. A
não ser que se lance mão deste aspecto da expiação, não
pode haver paz firme, nem poderá haver compreensão moral da
extensão e plenitude da obra de Cristo ou da verdadeira
natureza do parentesco baseado nela. Deus sabia o que era
necessário para que o homem pudesse estar na Sua presença
sem o mais simples temor; e fez para isso ampla provisão na
cruz. A comunhão entre Deus e o homem era inteiramente
impossível se o pecado não tivesse sido liquidado segundo
os pensamentos de Deus sobre ele; porque, embora a
consciência do homem estivesse satisfeita, a pergunta
levantar-se-ia sempre, Deus ficou satisfeito? Se esta
pergunta não pudesse ser respondida afirmativamente, a
comunhão nunca poderia subsistir ('). O pensamento de que
nos pormenores da vida se manifestavam coisas que a
santidade divina não podia tolerar intrometer-se-ia
continuamente com o coração. Decerto, podíamos fazer essas
coisas "por ignorância"; porém isto não podia alterar o
assunto perante Deus, visto que tudo é do Seu conhecimento.
Por isso, haveria constante receio, dúvida e temor. Todas
estas coisas são divinamente atendidas pelo fato de que o
pecado foi expiado, não segundo a nossa "ignorância", mas
conforme o conhecimento de Deus. Esta certeza dá grande
descanso ao coração e à consciência. Todas as exigências de
Deus foram satisfeitas pela Sua própria obra. Ele Próprio
fez a provisão; e, portanto, quanto mais requintada se
torna a consciência do crente, sob a ação combinada da
Palavra e do Espírito de Deus — quanto mais ele cresce no
conhecimento divinamente adaptado a que tudo moralmente
convém ao santuário —, tanto mais sensível ele se torna a
tudo que é incompatível com a presença divina, e mais
vigorosa, clara e profunda será a sua compreensão do valor
infinito daquele sacrifício pelo pecado que não só
ultrapassa os limites da consciência humana, mas satisfaz
também, em perfeição absoluta, todas as exigências da
santidade divina.
_____________________
(1) Desejo lembrar que o ponto saliente no texto é
simplesmente expiação. O leitor cristão sabe muito bem, sem
dúvida, que a possessão da "natureza divina" é essencial à
comunhão com Deus. Eu preciso não só de uma direito para me
acercar de Deus, mas de um natureza para gozar d'Ele. A
alma que "crê no Filho unigênito de Deus" tem tanto um como
outro (veja-se Jo 1:12-13; 3:36; 5:24; 20:31; 1 Jo 5:11-
13).

A Exigência da Santidade Divina ante a Ignorância do Crente


Nada pode demonstrar claramente a incapacidade do homem
para tratar do pecado como o fato de existir aquilo que é
descrito como "pecado de ignorância". Como poderia ele
tratar daquilo que não conhecei Como poderia ele dispor
daquilo que nunca entrou nos limites da sua consciência?
Era impossível. A ignorância em que o homem está acerca do
pecado é prova da sua absoluta incapacidade para o tirar.
Se não o conhece, que pode fazer acerca dele? Nada. É tão
impotente como ignorante. Nem isto é tudo. O fato de haver
"pecado de ignorância" demonstra claramente a incerteza que
deve acompanhar toda a solução da questão do pecado, a qual
não pode aplicar-se a noções mais elevadas do que aquelas
que podem resultar da consciência humana mais delicada.
Nunca poderá haver paz duradoura sobre este fundamento.
Existirá sempre a compreensão dolorosa de que há qualquer
coisa que está mal.
Se o coração não é conduzido a um estado de repouso
permanente pelo testemunho da Escritura de que os direitos
inflexíveis da justiça divina foram satisfeitos, haverá,
necessariamente, uma sensação de mal-estar, e uma tal
sensação representa um obstáculo à nossa adoração, à nossa
comunhão e ao nosso testemunho. Se eu me sentir inquieto a
respeito da solução da questão do pecado, não posso adorar;
não posso gozar de comunhão com Deus nem com o Seu povo;
nem tão-pouco posso ser uma testemunha inteligente ou apta
de Cristo. O coração tem de estar tranquilo, perante Deus,
quanto à perfeita remissão do pecado, antes de podermos
"adorar em espírito e verdade". Se houver culpa sobre a
consciência, deve haver terror no coração; e, seguramente,
um coração cheio de terror não pode ser um coração feliz e
adorador. É somente de um coração cheio desse doce e santo
repouso que proporcionou o sangue de Cristo que pode subir
adoração verdadeira e aceitável ao Pai.
O mesmo princípio é verdadeiro a respeito da nossa comunhão
com o povo de Deus, e o nosso serviço e testemunho entre os
homens. Tudo deve descansar sobre o fundamento de paz
estabelecida; e esta paz descansa sobre o fundamento de uma
consciência perfeitamente purificada; e esta consciência
purificada descansa sobre o fundamento da perfeita remissão
de todos os nossos pecados, quer sejam pecados do nosso
conhecimento ou pecados de ignorância.

Comparação do Holocausto com o Sacrifício pelo Pecado


Vamos prosseguir agora com a comparação entre o sacrifício
pelo pecado e o holocausto, em cujo confronto encontraremos
dois aspectos de Cristo muito diferentes. Porém, embora os
aspectos sejam diferentes, é um só e o mesmo Cristo; e, por
isso, em ambos os casos, o sacrifício era "sem mancha".
Isto é fácil de compreender. Não importa sob que aspecto
contemplarmos o Senhor Jesus Cristo, Ele é sempre o mesmo
Ser perfeito, imaculado e santo. É verdade que, em Sua
abundante graça, teve de curvar-Se para tomar sobre Si o
pecado do Seu povo; mas foi como um Cristo perfeito, puro,
que o fez; e seria nada menos do que perversidade diabólica
alguém valer-se da profundidade da Sua humilhação para
manchar a glória pessoal d'Aquele que assim se humilhou. A
excelência intrínseca, a pureza inalterável e a glória
divina do nosso bendito
Senhor aparecem no sacrifício pelo pecado tão claramente
como no holocausto. Seja em que relação for que Ele se
apresente, em qualquer ocupação ou obra que execute, ou
posição que ocupe, a Sua glória pessoal brilha em todo o
esplendor divino.
Esta verdade de um só e mesmo Cristo, quer seja no
Holocausto ou no sacrifício pelo pecado vê-se não apenas no
fato que, em ambos os casos, a oferta era "sem mancha",
como também na "lei da expiação do pecado", na qual lemos:
"Esta é a lei da expiação do pecado no lugar onde se degola
o holocausto, se degolará a oferta pela expiação do pecado
perante o SENHOR; coisa santíssima é" (Lv 6:25). Os dois
tipos indicam um e mesmo grande Antítipo, embora o
apresentem sob aspectos diferentes da Sua obra. No
holocausto vemos Cristo correspondendo aos afetos divinos;
na expiação do pecado vêmo-Lo satisfazendo as profundidades
da necessidade humana. Aquele apresenta-O como Aquele que
cumpre a vontade de Deus; este como Aquele que levou o
pecado do homem. No primeiro aprendemos qual é o elevado
preço do sacrifício; no último o que é a aversão do pecado.
Isto basta quanto às duas ofertas, em geral. Um exame
minucioso dos pormenores não fará mais que confirmar a
mente na verdade desta asserção.
Quando consideramos, em primeiro lugar, o holocausto,
notamos que era uma oferta voluntária. "... a oferecerá de
sua própria vontade perante o SENHOR" ('). Ora, o vocábulo
"própria" não é mencionado na expiação pelo pecado. E
precisamente o que poderíamos esperar. A omissão está de
perfeito acordo com o alvo específico do Espírito Santo no
holocausto, que é apresentá-lo como uma oferta voluntária.
Era a comida e bebida de Cristo fazer a vontade de Deus,
qualquer que pudesse ser essa vontade. Nunca pensou em
inquirir quais eram os ingredientes do cálice que Seu Pai
ia pôr em Suas mãos. Bastava-Lhe saber que o Pai o havia
preparado. Assim acontecia com o Senhor Jesus simbolizado
no holocausto.

____________________
(1) Alguns podem encontrar dificuldade no fato de a palavra
"própria" se referir ao adorador e não ao sacrifício; mas
isto não pode de modo algum afetar a doutrina exposta no
texto, que é fundada no fato de que uma palavra empregada
no holocausto é omitida na oferta de expiação pelo pecado.
O contraste subsiste, quer pensemos no ofertante ou na
oferta.

Porém, na oferta de expiação do pecado temos uma linha de


verdade completamente diferente. Este símbolo apresenta
Cristo aos nossos pensamentos, não como Aquele que realiza
voluntariamente a vontade de Deus, mas como Aquele que
levou sobre Si essa coisa terrível chamada "pecado", e o
Sofredor de todas as suas consequências aterradoras, das
quais a mais aterradora, para Si, consistiu em que Deus
ocultasse d'Ele o Seu rosto. Por isso, a palavra "própria"
não estaria de acordo com o objetivo do Espírito na oferta
de expiação pelo pecado. Esta expressão estaria tão
deslocada neste símbolo como está divinamente em seu lugar
no holocausto. O seu emprego e a sua omissão são igualmente
divinos; e mostram tanto uma como a outra a precisão
perfeita e divina dos tipos de Levítico.
Ora, o ponto de contraste que temos estado a considerar
explica, ou, antes, harmoniza duas expressões empregadas
por nosso Senhor. Em uma ocasião diz:"... não beberei eu o
cálice que o Pai me deu?-" E, todavia, diz também: "Meu
Pai, se é possível passe de mim este cálice."
A primeira destas expressões era o perfeito cumprimento das
palavras com que havia começado a Sua carreira, a saber:
"Eis aqui venho para fazer, ó Deus, a tua vontade"; e é,
além disso, a elocução de Cristo como o holocausto. A
última, por outro lado, é a exclamação de Cristo quando
contemplava o lugar que estava prestar a ocupar como
sacrifício pelo pecado. O que esse lugar era e o que estava
envolvido n'ele, tomando-o, é o que veremos no
prosseguimento do nosso estudo; é contudo interessante e
instrutivo encontrar toda a doutrina dos dois sacrifícios
encerrada, com efeito, no fato de uma simples palavra ser
introduzida num e omitida no outro. Se encontramos no
holocausto a prontidão com que Cristo Se ofereceu a Si
mesmo para o cumprimento da vontade de Deus, na expiação do
pecado vemos com que profunda abnegação tomou todas as
consequências do pecado do homem e como chegou à distância
longínqua da posição do homem no que se referia a Deus.
Deleitava-se em fazer a vontade de Deus; estremecia ante a
ideia de perder, por um momento, a luz do Seu bendito
rosto.
Nenhum sacrifício podia tê-lo simbolizado debaixo destes
dois aspectos. Precisávamos de uma figura que no-Lo
apresentasse como Aquele que se comprazia em fazer a
vontade de Deus; e necessitávamos de uma figura que no-Lo
mostrasse como Aquele cuja natureza santa retrocedia ante
as consequências do pecado imputado. Bendito seja Deus,
temos tanto uma como a outra. O holocausto mostra-nos uma,
a oferta de expiação dá-nos a outra. Pelo que quanto mais
aprofundamos o afeto do coração de Cristo a Deus, mais
compreendemos o Seu horror ao pecado; e vice-versa. Cada um
destes símbolos põe em relevo o outro; e o emprego da
palavra "própria" em um e não no outro fixa a importância
especial de cada um.
Mas, pode perguntar-se, não era da vontade de Deus que
Cristo Se oferecesse em sacrifício de expiação pelo pecado?
E, se assim é, como podia hesitar em cumprir essa vontade?
Seguramente o conselho de Deus tinha determinado que Cristo
sofresse. Além disso era o prazer de Cristo fazer a vontade
de Deus. Porém, como devemos compreender a expressão," Se é
possível passe de mim este cálice"? Não é a exclamação de
Cristo1? E não existe nela um símbolo especial d'Aquele que
a proferiu? Certamente. Haveria uma lacuna grave entre os
símbolos da economia Moisaica se não houvesse um para
refletir o Senhor Jesus na atitude exata em que esta
expressão O apresenta.
Contudo, o holocausto não O apresenta assim. Não há uma só
circunstância em relação com essa oferta que corresponda a
uma tal linguagem. Só a oferta de expiação do pecado
oferece a figura apropriada ao Senhor Jesus como Aquele que
exalou esses acentos de intensa agonia, porque só nela
encontramos as circunstâncias que evocaram tais acentos das
profundezas da Sua alma imaculada.
A sombra terrível da cruz, com a sua ignomínia, a sua
maldição e a sua exclusão da luz da face de Deus, passava
pelo Seu espírito e Ele não podia sequer contemplá-la sem
exclamar: "Se é possível passe de mim este cálice". Porém,
apenas havia pronunciado estas palavras, quando a Sua
profunda submissão se mostra nestas palavras: "faça-se a
tua vontade". Que "cálice" amargoso deve ter sido para
arrancar de um coração perfeitamente submisso as palavras
"passe de mim"! Que perfeita submissão deve ter havido
para, em presença do cálice amargoso, o coração ter
exclamado "faça-se a tua vontade"!

A Imposição das Mãos: Identificação com a Vítima


Vamos considerar agora o ato típico da imposição das mãos.
Este ato era comum tanto ao holocausto como à oferta de
expiação do pecado; porém, no caso do primeiro identificava
o oferente com a oferta sem mancha; no caso do segundo
implicava a transferência do pecado do ofertante para a
cabeça da oferenda. Era assim no tipo; e, quando
consideramos o Antítipo, aprendemos uma lição da natureza
mais consoladora e edificante — uma verdade que, se fosse
mais bem compreendida e plenamente realizada,
proporcionaria uma paz muito mais constante do que aquela
que geralmente se goza.
Qual é, pois, a doutrina exposta no ato da imposição das
mãos? É esta: Cristo foi feito pecado por nós para que nós
fôssemos feitos justiça de Deus (2 Co 5:21). Ele tomou a
nossa posição com todas as suas consequências para que nós
pudéssemos ter a Sua com todas as suas consequências. Foi
tratado como pecado sobre a cruz para que nós pudéssemos
ser tratados como justiça na presença da santidade
infinita. Foi retirado da presença de Deus porque tinha
pecado sobre Si, por imputação, para que nós pudéssemos ser
recebidos na casa de Deus e em Seu seio, porque, por
imputação, temos uma perfeita justiça. Teve de suportar a
invisibilidade do semblante de Deus para que nós pudéssemos
gozar da luz desse semblante. Teve de passar três horas de
trevas para que nós pudéssemos andar na luz eterna. Foi
desamparado por Deus por um tempo, para que nós pudéssemos
gozar a Sua presença para sempre. Tudo que nos era imposto,
como pecadores arruinados, foi posto sobre Si para que tudo
que Lhe era devido, como Realizador da redenção, pudesse
ser nosso. Tudo foi contra Si quando foi pendurado no
madeiro de maldição para que nada pudesse haver contra nós.
Identificou-se conosco, na realidade da morte e do juízo,
para que nós pudéssemos ser identificados consigo, na
realidade da vida e justiça. Bebeu o cálice da ira — o
cálice do terror— para que nós pudéssemos beber o cálice da
salvação — o cálice do favor infinito. Foi tratado conforme
os nossos méritos para que nós pudéssemos ser tratados
segundo os Seus.
Tal é a maravilhosa verdade ilustrada pelo ato cerimonial
da imposição das mãos. Depois de o adorador ter posto a sua
mão sobre a cabeça do holocausto, já não se tratava da
questão do que ele era ou do que merecia e tornava-se
inteiramente uma questão do que a oferta era segundo o
juízo do Senhor. Se a oferta era sem mancha, o oferente
era-o também; se a oferta era aceite também o era o
oferente. Estavam perfeitamente identificados. O ato de
impor as mãos constituía-os em um aos olhos de Deus. Ele
via o oferente por meio da oferta. Era assim no caso do
holocausto.
Mas na oferta de expiação do pecado, quando o oferente
tinha posto a sua mão sobre a cabeça da oferta, tornava-se
uma questão de saber o que o oferente era e o que ele
merecia. A oferta era tratada segundo os méritos do
ofertante. Eram perfeitamente identificados. O ato de impor
as mãos constituía-os em um, no parecer de Deus. O pecado
do ofertante era tratado na oferta de expiação do pecado; a
pessoa do oferente era aceite no holocausto. Isto fazia uma
grande diferença. Por isso, embora o ato de impor as mãos
fosse comum às duas figuras, e, além disso, fosse
expressivo, em ambos os casos de identificação, todavia as
consequências eram tão diferentes quanto o podiam ser. O
justo tratado como injusto; o injusto aceito no justo."...
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos
injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pe 3:18). Esta é a
doutrina.
Os nossos pecados levaram Cristo à cruz; mas Ele leva-nos a
Deus. E se Ele nos leva a Deus é por Sua própria
aceitabilidade como ressuscitado de entre os mortos,
havendo tirado os nossos pecados, segundo a perfeição da
Sua obra. Ele levou os nossos pecados para longe do
santuário de Deus a fim de nos poder trazer perto, até
mesmo ao lugar santíssimo, em inteira confiança de coração,
tendo a consciência purificada de toda a mancha de pecado
pelo Seu precioso sangue.
Bem, quanto mais compararmos todos os pormenores do
holocausto e da oferta de expiação do pecado, tanto mais
claramente compreenderemos a verdade do que tem sido
acentuado a respeito do ato de impor as mãos e dos seus
resultados, em ambos os casos.
No capítulo primeiro deste volume notamos o fato que "os
filhos de Arão" são introduzidos no holocausto, mas não na
oferta de expiação do pecado. Como sacerdotes tinham o
privilégio de permanecer em redor do altar e de contemplar
a chama de um sacrifício aceitável subindo para o Senhor.
Porém na oferta de expiação do pecado, em seu aspecto
primário, tratava-se de uma questão de julgamento solene do
pecado, e não de adoração ou admiração sacerdotal; e,
portanto, os filhos de Arão não aparecem. É como pecadores
convictos que temos de tratar em relação a Cristo como o
Antítipo da oferta de expiação do pecado. É como sacerdotes
em adoração, vestidos com as vestes da salvação, que
contemplamos Cristo como o Antítipo do holocausto.
Demais, o leitor poderá notar que o holocausto era
"esfolado", enquanto que a oferta de expiação do pecado não
o era. O holocausto era "partido em pedaços", mas a oferta
de expiação do pecado não o era. A "fressura e as pernas"
no holocausto eram "lavadas com água", cujo ato era
inteiramente omitido na oferta de expiação do pecado.
Finalmente, o holocausto era queimado, em cima do altar; a
oferta de expiação do pecado era queimada fora do arraial.
São pontos de grande diferença provenientes do caráter
distinto das oferendas. Sabemos que não há nada na Palavra
de Deus sem o seu significado específico; e todo o
estudioso inteligente e atento das Escrituras notará estes
pontos de diferença; e, notando-os, procurará,
naturalmente, determinara sua verdadeira importância. Pode
haver ignorância do seu valor; mão não deveria haver
indiferença, a seu respeito. Em qualquer parte das páginas
inspiradas, sobretudo uma tão rica como aquela que temos
perante nós, omitir um simples ponto seria desonrar o Autor
Divino e privar as nossas próprias almas de muito proveito.
Deveríamo-nos debruçar sobre o mais simples pormenor, já
para louvar a Deus pela sabedoria nelas revelada, por Ele,
já para confessar a nossa própria ignorância deles.
Desprezá-los, com espírito de indiferença, é supor que o
Espírito Santo tomou o incômodo de escrever coisas que não
julgamos dignas de intentar compreender. Nenhum cristão
reto deveria supor tal coisa. Se o Espírito, escrevendo
sobre a ordenação da oferta de expiação do pecado, omitiu
os diversos ritos a que nos referimos — ritos que ocupam um
lugar proeminente na ordenação do holocausto — deve haver
seguramente alguma razão para isso e qualquer propósito
importante em o fazer. Devemos procurar compreender estes
pontos; e, sem dúvida, eles resultam do propósito especial
da mente divina em cada oferta. A oferta de expiação do
pecado mostra aquele aspecto da obra de Cristo em que O
vemos tomando judicialmente o lugar que nos pertencia
moralmente. Por esta razão não podemos procurar essa
expressão intensa daquilo que Ele era em todos os motivos
secretos de ação, patenteados no ato simbólico de "esfolar"
o holocausto. Tampouco podia existir essa ampla exibição do
que Ele era, não apenas como um todo, mas nos mais
minuciosos traços do Seu caráter, conforme se vê no ato de
partir o holocausto "em pedaços". Nem, ainda, podia haver
aquela manifestação do que Ele era pessoal, prática e
intrinsecamente, como se mostra no ato significativo de
lavar a fressura e as pernas do holocausto com água.
Todas estas coisas pertenciam à fase de nosso bendito
Senhor no holocausto, e só a essa, porque nela vêmo-Lo
oferecendo-Se à vista, ao coração, e ao altar de Jeová, sem
imputação de pecado, de ira ou de juízo. Na oferta de
expiação do pecado, pelo contrário, em vez da ideia
proeminente daquilo que Cristo é, temos o que é o pecado.
Em vez do alto apreço de Jesus, encontramos o ódio do
pecado. No holocausto, visto que é Cristo oferecendo-se a
Si mesmo a Deus e sendo aceito por Ele, vemos que se faz
tudo para mostrar o que Ele era em todos os aspectos. Na
oferta de expiação do pecado, visto tratar-se do pecado
julgado por Deus, dá-se um caso precisamente oposto. Tudo
isto é tão claro que não exige esforço da mente para o
compreender. Deriva naturalmente do caráter distinto do
símbolo.

A Gordura da Vítima:
Imagem da Excelência de Cristo em sua Morte pelo Pecado
Contudo, embora o objetivo principal na oferta de expiação
do pecado seja mostrar o que Cristo se fez por nós, e não o
que Ele era em Si mesmo, há um rito em relação a este
símbolo que revela claramente a Sua aceitabilidade pessoal
por Jeová. Este rito é estabelecido nas seguintes palavras:
"E toda a gordura do novilho da expiação tirará dele: a
gordura que cobre a fressura, e toda a gordura que está
sobre a fressura, e os dois rins, e a gordura que está
sobre eles, que está sobre as tripas, e o redenho de sobre
o fígado, com os rins, tirará, como se tira do boi do
sacrifício pacífico; e o sacerdote a queimará sobre o altar
do holocausto" (versículos 8-10). Assim, a excelência
intrínseca de Cristo não é omitida, nem mesmo na oferta de
expiação do pecado. A gordura queimada sobre o altar é a
expressão adequada da apreciação divina do valor da pessoa
de Cristo, qualquer que fosse o lugar que, em perfeita
graça, tomasse, em nosso favor ou em nosso lugar; foi feito
pecado por nós, e a oferta de expiação é a sombra que O
apresenta sobre este aspecto. Porém, visto que era o Senhor
Jesus Cristo, o eleito de Deus, o Santo, o Seu Filho puro,
imaculado e eterno que foi feito pecado, a gordura da
oferta de expiação era portanto queimada sobre o altar,
como material próprio para o fogo que era a exibição da
santidade divina.
Mas até mesmo neste ponto vemos o contraste entre a oferta
de expiação e o holocausto. No caso do último, não era
apenas a gordura, mas toda a oferta que era queimada sobre
o altar, porque representava Cristo sem relação alguma com
o pecado. No caso da primeira, não havia nada a queimar
sobre o altar senão a gordura, porque se tratava de uma
questão de levar o pecado, embora Cristo fosse o portador.
A glória divina da pessoa de Cristo brilha até mesmo por
entre as trevas espessas desse madeiro de maldição a que
consentiu que O pregassem como maldição por nós. A aversão
daquilo com que, no exercício do amor divino, Ele ligou a
Sua bendita pessoa, na cruz, não podia evitar que o cheiro
suave do Seu valor subisse até ao trono de Deus.
Vemos assim a revelação do profundo mistério da face de
Deus se ter ocultado daquilo que Cristo se fez, e o modo
como o coração de Deus se deleitou no que Cristo era. É
isto que dá um encanto peculiar à oferta de expiação. Os
raios brilhantes da glória pessoal de Cristo resplandecendo
por entre a terrível escuridão do Calvário, o Seu valor
pessoal destacando-se nas próprias profundidades da Sua
humilhação, o deleite de Deus n'Aquele de quem havia
ocultado a Sua face, em justificação da Sua justiça
inflexível, tudo isto é mostrado no fato de a gordura da
oferta de expiação do pecado ser queimada sobre o altar.

O Corpo da Vítima é Queimado fora do Arraial


Havendo assim procurado indicar, em primeiro lugar, o que
se fazia com "o sangue", e, em segundo lugar, o que se
fazia da "gordura", temos agora de considerar o que se
fazia da "carne". "Mas o couro do novilho e toda a sua
carne..., todo aquele novilho, levará fora do arraial a um
lugar limpo, onde se lança a cinza e o queimará com fogo
sobre a lenha; onde se lança a cinza se queimará"
(versículos 11,12). Neste fato temos a principal fase da
oferta de expiação — aquela que a distingue tanto do
holocausto como do sacrifício pacífico. A sua carne não era
queimada sobre o altar, como no holocausto; nem tampouco
era comida pelo sacerdote ou o adorador, como no sacrifício
pacífico. Era queimada inteiramente fora do arraial (1).
"Porém nenhuma oferta pela expiação de pecado, cujo sangue
se traz à tenda da congregação, para expiar no santuário,
se comerá; no fogo será queimada" (Lv 6:30). "E, por isso,
também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio
sangue, padeceu fora da porta"(Hbl3:12).

Uma Aplicação Prática para o Culto


Comparando o que se fazia do "sangue" com o que se fazia da
"carne" ou do corpo do sacrifício, duas ordens de verdade
se apresentam aos nossos olhos, isto é, o culto e o
discipulado. O sangue que era levado ao santuário é o
fundamento da primeira. O corpo queimado fora do arraial é
a base da segunda. Antes que possamos adorar, em paz de
consciência e tranquilidade de coração, temos de saber, com
base na autoridade da Palavra e pelo poder do Espírito, que
a questão do pecado foi inteiramente resolvida para sempre
pelo sangue da oferta divina de expiação que o Seu sangue
foi espargido com perfeição perante o Senhor — que todas as
exigências de Deus e todas as nossas necessidades, como
pecadores culpados e arruinados, foram satisfeitas para
sempre. Este conhecimento dá perfeita paz; e, no gozo desta
paz, adoramos a Deus. Quando um Israelita da antiguidade
havia oferecido a sua oferta de expiação, a sua consciência
ficava em paz, tanto quanto esse sacrifício era capaz de
dar paz. E verdade que era uma paz temporária, sendo o
fruto de um sacrifício temporário. Porém, é claro que
qualquer que fosse o gênero de paz que o sacrifício podia
proporcionar, o oferente podia desfrutá-la.

________________
(1) O texto diz respeito unicamente à expiação de pecados
em que o sangue era trazido para dentro do santuário. Havia
ofertas pelo pecado das quais Arão e seus filhos
participavam (veja-se Lv 6:26, 29; Nm 18:9-10).

Portanto, sendo o nosso sacrifício divino e eterno, a nossa


paz é também divina e eterna. Assim como é o sacrifício tal
é o descanso baseado nele. Um judeu nunca poderia ter uma
consciência eternamente purificada, simplesmente porque não
tinha um sacrifício eternamente eficaz. Podia, de certo
modo, ter a sua consciência purificada por um dia, um mês
ou um ano; mas não podia tê-la purificada para sempre.
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por
um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos,
isto é, não desta criação, nem por sangue de bodes e
bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado uma eterna redenção. Porque se
o sangue dos touros e bodes e a cinza de uma novilha,
esparzida sobre os imundos, os santificam, quanto à
purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que,
pelo Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo imaculado a
Deus, purificará a vossa consciência das obras mortas, para
servirdes ao Deus vivo?"(Hb 9:11-14).
Temos aqui a exposição plena e explícita da doutrina. O
sangue de bodes e bezerros proporcionava uma redenção
temporária; o sangue de Cristo proporciona eterna redenção.
A primeira purificava a carne exteriormente; a última
purificava intimamente. Aquela purificava a carne por algum
tempo; esta purificava a consciência para sempre. A questão
anda toda à roda, não do caráter ou condição do ofertante,
mas, do valor do sacrifício. A questão não é, de modo
algum, se um cristão é melhor do que um judeu, mas se o
sangue de Cristo é melhor do que o sangue de um novilho.
Seguramente, é melhor. Melhor, até que ponto? Infinitamente
melhor. O Filho de Deus comunica toda a dignidade da Sua
pessoa divina ao sacrifício que ofereceu; e, se o sangue de
um novilho purificava a carne por um ano, "quanto mais o
sangue" do Filho de Deus purificará a consciência para
sempre"? Se aquele tirava algum pecado, quanto mais este
tirará o pecado1?
Bem, por que razão sentia a alma de um judeu descanso, por
algum tempo, depois de haver oferecido o seu sacrifício?
Como sabia ele que o pecado especial pelo qual havia
trazido o seu sacrifício estava perdoado1? Porque Deus
havia dito "E ser-lhe-á perdoado". A sua paz de coração, a
respeito desse pecado particular, repousava sobre o
testemunho do Deus de Israel e o sangue da vítima. Assim
agora a paz do crente a respeito de "TODO O PECADO" baseia-
se sobre a autoridade da Palavra de Deus e "o precioso
sangue de Cristo". Se um judeu havia pecado, e descuidava
fazer a sua oferta de expiação tinha de ser "cortado de
entre o seu povo"; porém quando tomava o seu lugar como
pecador—quando punha as suas mãos sobre a cabeça da oferta
de expiação, então a oferta era "cortada em pedaços" em vez
dele, e ele era livre. A oferta era tratada como merecia o
oferente; e, por isso, não saber que o seu pecado era
perdoado, seria fazer de Deus mentiroso e tratar o sangue
da oferta de expiação divinamente indicada como nula.
E se isto era verdadeiro quanto àquele que só podia
descansar sobre o sangue de um bode, "quanto mais" se
aplica àquele que tem o precioso sangue de Cristo para
descansara O crente vê em Cristo Aquele que foi julgado por
todo o seu pecado—Aquele que, quando foi pendurado na cruz,
suportou todo o fardo do seu pecado — Aquele que, havendo-
Se tornado responsável por esse pecado, não podia estar
onde agora está, se toda a questão do pecado não tivesse
sido liquidada segundo todas as exigências da justiça
divina. Cristo tomou de tal forma o lugar do crente na cruz
— de tal maneira o crente se identificou com Ele — de tal
forma Lhe foi imputado todo o pecado do crente, ali e
então, que toda a questão da culpabilidade do crente — todo
o pensamento da sua culpa —, toda a ideia de exposição à
ira ou ao juízo está eternamente posta de parte ('). Tudo
foi resolvido na cruz entre a Justiça Divina e a Vítima
Imaculada. E agora o crente está tão intimamente
identificado com Cristo no trono, como Cristo Se
identificou com ele na cruz.
A justiça não tem nenhuma acusação a fazer ao crente,
porque não tem acusação alguma a fazer contra Cristo. A
questão está assim liquidada, para sempre. Se pudesse
apresentar-se uma acusação contra o crente, seria pôr em
dúvida a realidade da identificação de Cristo com ele na
cruz e a perfeição da obra de Cristo a seu favor. Se quando
o adorador da antiguidade regressava a sua casa, depois de
haver oferecido a sua expiação, alguém o tivesse acusado do
mesmo pecado pelo qual havia sido derramado o sangue da
vítima do seu sacrifício, qual teria sido a sua resposta?
Só poderia ser esta:

Cristo: O Antítipo
O pecado foi removido pelo sangue da vítima, e Jeová disse
estas palavras: "Ser-lhe-á perdoado". A vítima havia
morrido em lugar dele; e ele vivia em lugar da vítima.
Tal era o tipo. E, quanto ao antítipo, quando o olhar da fé
descansa sobre Cristo como o sacrifício de expiação, vê-O
como Aquele que, havendo tomado uma perfeita vida humana,
deu essa vida na cruz, porque o pecado foi ali e então
ligado por imputação com ela. Mas vê-O também como Aquele
que, tendo em Si mesmo o poder da vida divina e eterna,
saiu por meio dele do sepulcro e agora comunica esta Sua
vida de ressurreição—divina e eterna — a todos os que creem
no Seu nome. O pecado desapareceu, porque a vida a que foi
ligado desapareceu. E agora em lugar da vida a que fora
ligado o pecado, todos os verdadeiros crentes possuem a
vida a que está unida a Justiça.

_______________
(1) Temos um exemplo notavelmente belo na precisão divina
das Escrituras em 2 Coríntios 5:21: "Aquele que não
conheceu pecado, o fez pecado por nós para que nele
fôssemos feitos justiça de Deus". O significado do vocábulo
"fez" não é, como poderia supor-se, o mesmo em ambas as
cláusulas desta passagem.
A questão do pecado nunca poderá ser levantada quanto à
vida ressuscitada e vitoriosa de Cristo; mas é esta a vida
que os crentes possuem. Não há outra vida. Tudo fora dela é
morte, porque fora dela tudo está sob o poder do pecado.
"Aquele que tem o Filho tem a vida"; e aquele que tem a
vida tem a justiça também. As duas coisas são inseparáveis,
porque Cristo é tanto uma como a outra. Se o juízo e morte
de Cristo, na cruz, foram realidades, então a vida e a
justiça do crente são realidades. Se a imputação do pecado
foi uma realidade para Cristo, a imputação da justiça ao
crente é uma realidade. São tão reais uma como a outra,
porque se não fosse assim Cristo teria morrido em vão. O
verdadeiro e incontestável fundamento de paz é este: que as
exigências da natureza de Deus, quanto ao pecado, foram
perfeitamente satisfeitas. A morte de Jesus satisfê-las
todas e satisfê-las para sempre. Qual é a prova disto para
a consciência despertada"?- O grande fato da ressurreição.
Um Cristo ressuscitado proclama plena libertação do crente
—a sua perfeita absolvição de toda a demanda possível. "O
qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para
nossa justificação" (Rm 4:25). Para um crente não saber que
o seu pecado foi tirado, e tirado para sempre, é fazer
pouco caso do sangue da sua divina oferta de expiação. É
negar que se fez perfeita apresentação— a aspersão do
sangue sete vezes perante o Senhor.

A nossa Posição é Resultado da Obra na Cruz


E agora, antes de deixar este ponto fundamental que nos tem
ocupado, desejo fazer um apelo sincero e solene ao coração
e à consciência do leitor. Permita que lhe pergunte,
prezado amigo, haveis sido induzido a descansar sobre este
santo e feliz fundamentou Sabeis que a questão do vosso
pecado foi para sempre arrumada"? Haveis posto, mediante a
fé, a vossa mão sobre a cabeça da vítima do sacrifício de
expiação1? Haveis visto o sangue expiatório de Jesus tirar
toda a vossa culpa e arrojá-la às águas do esquecimento de
Deus?
A justiça Divina tem ainda alguma coisa contra vós? Estais
livre do pavor inexprimível de uma consciência culpada ?
Não vos entregueis ao repouso, rogo-vos, antes de poderdes
dar uma resposta feliz a estas interrogações. Ficai certo
de que é privilégio ditoso até do mais fraco crente em
Cristo regozijar-se na plena e eterna remissão dos seus
pecados, com base numa expiação efetuada. Por isso, se
alguém ensina outra coisa, rebaixa o sacrifício de Cristo
ao nível de "bodes e bezerros". Se não podemos saber que os
nossos pecados estão perdoados, então onde estão as boas
novas do evangelho? Um cristão não está em melhores
circunstâncias, quanto ao sacrifício de expiação, do que um
judeu? Este tinha o privilégio de saber que os seus
interesses estavam assegurados por um ano por meio do
sangue de um sacrifício anual. Aquele não pode ter nenhuma
certeza? Decerto que pode. Pois bem, se há alguma certeza
tem de ser eterna, visto que descansa sobre um sacrifício
eterno.
Isto e isto somente é o fundamento de adoração. A segurança
perfeita do perdão do pecado produz não um espírito de
confiança própria, mas um espírito de louvor, gratidão e
adoração. Produz, não um espírito de complacência própria,
mas de gratidão pela complacência de Cristo, que, bendito
seja Deus, é o espírito que há - de caracterizar os remidos
por toda a eternidade. Não nos induz alguém a fazer pouco
caso do pecado, mas a pensar na graça que o perdoou
perfeitamente, do sangue que o cancelou inteiramente. É
impossível que alguém possa contemplar a cruz — possa ver o
lugar que Cristo tomou e meditar nos sofrimentos —, e
ponderar sobre essas três horas terríveis de trevas e, ao
mesmo tempo, olhar o pecado como coisa sem importância.
Quando todas estas coisas são compreendidas, no poder do
Espírito Santo, devem seguir-se dois resultados, a saber,
horror do pecado, sob todas as suas formas, e amor
verdadeiro por Cristo, o Seu povo e a Sua causa.

Saiamos a Ele fora do Arraial


Consideremos agora o que era feito da "carne" ou "corpo" do
sacrifício, no qual, como já foi acentuado, encontramos o
verdadeiro fundamento de discipulado. "Todo aquele novilho,
levará fora do arraial, a um lugar limpo, onde se lança a
cinza, e o queimará com fogo" (Lv 4:12). Este ato deve ser
encarado sob um duplo aspecto: primeiro, como expressão do
lugar que o Senhor Jesus tomou por nós, levando o pecado;
depois, como expressão do lugar para onde foi lançado por
um mundo que O havia rejeitado.
E para este último ponto que pretendo chamar a atenção do
leitor.
O uso que o apóstolo faz em Hebreus 13:13 do fato de Cristo
haver padecido "fora da porta" é profundamente prático.
"Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu
vitupério". Se os sofrimentos de Cristo nos têm assegurado
uma entrada no céu, o lugar onde Ele sofreu representa a
nossa rejeição pela terra. A sua morte tem-nos
proporcionado uma cidade nas alturas; o lugar onde Ele
morreu priva-nos de uma cidade aqui ('). Ele "padeceu fora
da porta", e, fazendo-o, pôs de lado Jerusalém como centro
das operações divinas. Não existe aquilo que poderíamos
chamar um lugar consagrado na Terra. Cristo tomou o Seu
lugar, como o Sofredor, fora dos limites da religião deste
mundo — da sua política e tudo que lhe pertence. O mundo
aborreceu-O e lançou-O fora. Portanto, a Escritura diz
"Saiamos". Este é o lema quanto a tudo que os homens
levantem como "arraial" não obstante o que esse arraial
possa ser. Se os homens levantarem uma "cidade santa"
devemos procurar um Cristo rejeitado" fora da porta". Se os
homens levantarem um arraial religioso, qualquer que seja o
nome que se lhe queira dar, "saiamos" dele a fim de
encontrarmos o Cristo rejeitado. Não é que a cega
superstição não possa escavar as ruínas de Jerusalém para
nelas encontrar as relíquias de Cristo. Certamente que o
fará e já o tem feito. Fingirá ter encontrado e honrado o
sítio da Sua cruz e do Seu sepulcro. A cobiça da natureza,
aproveitando-se da superstição da natureza, também tem
levado a efeito durante séculos um tráfego lucrativo, com o
astuto pretexto de prestar honra aos chamados lugares
sagrados da antiguidade. Porém um simples raio de luz da
lâmpada da Revelação celestial é suficiente para nos
autorizar a dizer que é preciso sair de todas estas coisas
a fim de encontrar e gozar comunhão com um Cristo
rejeitado.

_________________
(1) A Epístola aos Efésios apresenta um aspecto muito
elevado da Igreja nas alturas, não meramente como uma
prerrogativa, mas também quanto ao método. O direito é
certamente o sangue; mas o método é assim estabelecido: "
Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito
amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas
ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça
sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos
fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo" (Ef 2:4-6).

Todavia, o leitor precisa recordar que o convite


impressionante de "sair" implica muito mais do que o
alijamento dos absurdos crassos de uma superstição
ignorante ou as intenções de uma astuta cobiça. Há muitos
que podem falar poderosa e eloquentemente em desabono
destas coisas, e que estão muito longe, na verdade, de
obedecer à notificação apostólica. Quando os homens
levantam um ―arraial" e se reúnem em redor de um pendão
embelezado com qualquer dogma importante de verdade ou
alguma instituição valiosa — quando podem recorrer a um
credo ortodoxo, a um plano de doutrina avançado e iluminado
ou a um esplêndido ritual capaz de satisfazer as mais
ardentes aspirações da natureza devocional do homem —
quando alguma ou todas estas coisas existem é necessária
muita inteligência espiritual para se discernir a força
real e própria aplicação da palavra " Saiamos" e muita
energia espiritual e decisão para se atuar de conformidade
com ela.
Contudo, deve atuar-se de conformidade com ela, porque é
absolutamente certo que a atmosfera de um arraial, se já
qual for o seu fundamento ou padrão, é destrutivo da
comunhão pessoal com Cristo rejeitado; e nenhuma vantagem
da chamada religião poderá jamais substituir a perda dessa
comunhão. É propensão dos nossos corações caírem em formas
fixadas. Este tem sido sempre o caso com a igreja professa.
Estas formas podem ter sido produzidas por verdadeiro
poder. Podem ter resultado de graça positiva do Espírito de
Deus. Há a tentação de fixar formas logo que o espírito e
poder deixam de existir. Isto é, em princípio, estabelecer
um arraial.
O sistema judeu podia vangloriar-se da sua origem divina.
Um judeu podia apontar vitoriosamente para o templo, com o
seu sistema esplêndido de culto, o seu sacerdócio, os seus
sacrifícios, todo o seu equipamento, e mostrar que tudo
havia sido dado pelo
Deus de Israel. Podia citar o capítulo e o verso, como nós
diríamos, de tudo que se relacionava com o sistema com que
ele estava ligado. Onde está o sistema, antigo, medieval ou
moderno, que possa apresentar tão elevadas e poderosas
pretensões ou descer até ao coração com tal peso de
autoridade? E contudo a ordem era "SAIAMOS".
Este assunto é profundamente solene, e diz-nos respeito a
todos, porque somos todos propensos e esquivarmo-nos da
comunhão com Cristo para cairmos na rotina morta. Daí o
poder prático das palavras, "saiamos", pois a ele.
Não é SAIR de um sistema para outro — de uma ordem de
opiniões para outra ou de um grupo de pessoas para outro.
Não! Mas sair de tudo que merece a designação de um arraial
para Aquele que "padeceu fora do arraial".
O Senhor Jesus está tão fora da porta agora como quando
padeceu ali há dezoito séculos. O que foi que o pôs fora da
portai "O mundo religioso" desse tempo: e o mundo religioso
desse tempo é, em espírito e princípio, o mundo religioso
deste tempo. O mundo é ainda o mundo. "Não há nada novo
debaixo do sol". Cristo e o mundo não são um. O mundo
cobriu-se com a capa do cristianismo; porém fê-lo para que
o seu ódio contra Cristo possa desenvolver-se em formas
implacáveis. Não nos enganemos. Se andarmos com um Cristo
rejeitado, teremos de ser um povo rejeitado. Se o nosso
Mestre" padeceu fora do arraial", nós não podemos esperar
reinar dentro do arraial. Se andarmos nas Suas pisadas,
aonde nos conduzirão elas? Não, seguramente, às altas
posições deste mundo sem Deus e sem Cristo.
Ele é um Cristo desprezado, um Cristo rejeitado, um Cristo
fora do arraial. Oh, saiamos, pois, a Ele, levando o Seu
vitupério. Não nos deixemos envolver com a luz do favor
deste mundo, visto que crucificou e ainda aborrece com ódio
implacável o Ente amado a quem devemos tudo quanto
possuímos no presente e na eternidade, e que nos ama com um
amor que as muitas águas não poderiam apagar. Não
aceitemos, quer direta quer indiretamente, aquilo que se
cobre com o Seu nome sagrado, mas que, na realidade, odeia
os
Seus caminhos, odeia a Sua verdade e odeia a simples menção
do Seu advento. Sejamos fiéis ao nosso Senhor ausente.
Vivamos para Aquele que morreu por nós.
Enquanto as nossas consciências repousam sobre o Seu
sangue, que os afetos dos nossos corações se enlacem em
redor da Sua pessoa; de sorte que a nossa separação "deste
presente século mau" não seja meramente um coro de
princípios frios, mas uma separação afetuosa porque o
objeto das nossas afeições não se encontra aqui. Que o
Senhor nos liberte da influência desse egoísmo consagrado e
prudente, tão comum no tempo presente, que não pode estar
sem religião, mas que é inimigo da cruz de Cristo. O que
nós necessitamos, para podermos resistir com êxito a essa
forma terrível de mal, não são formas de ver peculiares, ou
princípios especiais ou teorias singulares ou uma fria
exatidão intelectual. Necessitamos de uma profunda devoção
pela pessoa do Filho de Deus; uma inteira consagração de
nós próprios, de alma, corpo e espírito ao Seu serviço; e
de um ardente desejo do Seu glorioso advento. Estas são,
prezado leitor, as necessidades especiais dos tempos em que
vivemos. Não quererá, portanto, unir-se, do profundo do seu
coração, ao grito: Oh Senhor, vivifica a tua obra! Completa
o número dos teus eleitos! Apressa o teu reino, "Vem,
Senhor Jesus"!

— CAPÍTULOS 5:14 - 7:38 —

OS SACRIFÍCIOS PELA CULPA

a) A Transgressão contra Deus por Ignorância


Estes versículos contêm a doutrina da Expiação da Culpa, da
qual havia duas classes distintas, isto é, transgressões
contra Deus e transgressões contra o homem. "Quando alguma
pessoa cometer uma transgressão e pecar por ignorância nas
coisas sagradas do SENHOR, então trará ao SENHOR por
expiação um carneiro sem mancha do rebanho, conforme à tua
estimação em ciclos de prata, segundo o ciclo do santuário,
para expiação da culpa". Temos aqui um caso em que foi
cometida uma falta positiva nas coisas santas pertencentes
ao Senhor; e, embora isto fosse feito "por ignorância", não
podia contudo passar em silêncio. Deus pode perdoar toda a
espécie de pecado, mas não pode deixar passar um simples
jota ou til. A sua graça é perfeita, e pode perdoar tudo. A
Sua santidade é perfeita e portanto não pode deixar passar
nada. Não pode sancionar a iniquidade, mas pode apagá-la, e
isso também segundo a perfeição da Sua graça e de acordo
com as exigências justas da Sua santidade.
É um erro muito grave supor-se que contanto que um homem
siga os ditames da sua consciência tem razão em tudo e está
seguro. A paz que repousa sobre um tal fundamento será
eternamente destruída quando a luz do tribunal de Cristo
brilhar sobre a consciência. Deus nunca poderia baixar os
Seus direitos a um tal nível. As balanças do santuário são
afinadas por uma escala muito diferente daquela que pode
proporcionar a consciência mais sensível. Já tivemos
ocasião de insistir sobre este ponto, nos comentários sobre
a expiação do pecado. Mas nunca é demais insistir sobre
este ponto. Duas coisas principais se acham envolvidas
nele. A primeira é uma justa percepção do que é realmente a
santidade de Deus: a segunda é a compreensão clara do
fundamento da paz do crente na presença divina.
Quer se trate do meu estado ou da minha conduta, da minha
natureza ou dos meus atos, só Deus pode ser o Juiz daquilo
que Lhe convém e daquilo que é próprio da Sua santa
presença. A ignorância humana pode apresentar uma alegação
quando se trata dos requisitos divinos1?- Não permita Deus!
Cometeu-se uma transgressão "nas coisas sagradas do SENHOR"
sem que a consciência do homem haja tido conhecimento
disso. E então"? Nada mais há a fazer"? Os requisitos de
Deus podem ser arrumados assim tão facilmente? Decerto que
não. Isto seria subversivo de tudo que diz respeito ao
parentesco divino.
Os justos são convidados a dar graças em memória da
santidade de Deus (Sl 97:12). Como podem eles fazer isto?
Porque a sua paz foi conseguida sobre o fundamento pleno da
justificação e do estabelecimento perfeito dessa santidade.
Por isso, quanto mais elevado for o seu sentimento do que é
essa santidade, tanto mais profunda e segura deve ser a sua
paz. Eis uma verdade das mais preciosas. O homem não
regenerado nunca poderá regozijar-se com a santidade
divina. O seu intento será sempre rebaixar essa santidade,
se não poder ignorá-la completamente. Um tal homem
consolar-se-á com o pensamento de que Deus é bom, que Deus
é misericordioso e que Deus é clemente, mas nunca se
regozijará com o pensamento de que Deus é santo.
Os seus pensamentos a respeito da bondade de Deus, da Sua
graça e misericórdia são profanos. Faria de boa vontade
desses atributos benditos uma desculpa para continuar no
pecado.
Pelo contrário, o homem regenerado exulta com a santidade
de Deus. Vê a sua plena expressão na cruz do Senhor Jesus
Cristo. Essa santidade é a mesma que lançou o fundamento da
sua paz; e, não somente isto, ele próprio foi feito seu
participante e deleita-se nela, aborrecendo o pecado com
verdadeiro ódio. Os instintos da natureza divina repugnam-
no e aspira à santidade. Seria impossível gozar de
verdadeira paz e liberdade de coração se não soubéssemos
que todos os requisitos ligados com "as coisas sagradas do
SENHOR" foram perfeitamente cumpridos pelo nosso divino
Sacrifício da
Culpa do pecado. Levantar-se-ia sempre ao coração o
sentimento penoso de que esses requisitos haviam sido
desprezados devido às nossas múltiplas faltas e ofensas. O
nosso melhor serviço, os nossos momentos mais santos, os
nossos exercícios mais piedosos, podem muito bem
representar alguma coisa parecida com transgressão "nas
coisas sagradas do SENHOR"—"qualquer coisa que não deveria
ter sido feita". Quantas vezes não são as nossas horas de
serviço público e devoção particular perturbadas e
manchadas por distração! Por isso necessitamos da certeza
de que todas as nossas transgressões foram divinamente
apagadas pelo precioso sangue de Cristo.
Desta forma encontramos no bendito Senhor Jesus Aquele que
desceu até à medida das nossas necessidades como pecadores
por natureza e transgressores por atos. Encontramos n'Ele a
resposta perfeita a todos os anseios de uma consciência
culpada e a todas as exigências da infinita santidade a
respeito de todos os nossos pecados e todas as nossas
transgressões; de modo que o crente pode estar com uma
consciência tranquila e coração libertado na luz plena
daquela santidade que é demasiado pura para contemplar a
iniquidade ou ver o pecado.
"Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e
ainda de mais acrescentará o seu quinto, e o dará ao
sacerdote; assim o sacerdote, com o carneiro da expiação,
fará expiação por ela e ser-lhe-á perdoado o pecado"
(versículo 16).
No acréscimo de um quinto, como é estipulado aqui, temos um
aspecto do verdadeiro sacrifício da culpa, que é para
recear seja pouco apreciada. Quando pensamos em todo o mal
e todas as ofensas que temos cometido contra o Senhor, e,
mais, quando recordamos quão prejudicado Deus tem sido nos
Seus direitos neste mundo iníquo, com que interesse devemos
contemplar a obra da cruz como aquilo em que Deus reaveu
não só o que havia perdido como é por esse meio
beneficiário. Ganhou mais pela redenção do que perdeu pela
queda. Recolhe uma mais rica seara de glória, honra e
louvor, nos campos da redenção do que jamais poderia ter
recolhido com os campos da criação. "Os filhos de Deus"
podem entoar um cântico de louvor muito mais magnífico em
redor do sepulcro vazio de Jesus do que jamais puderam
entoar em vista da obra do Criador. O mal não só foi
expiado perfeitamente como se ganhou uma vantagem eterna
por meio da obra da cruz. Esta é uma verdade admirável.
Deus tira proveito com a obra do Calvário. Quem poderia ter
imaginado isto? Quando contemplamos o homem e a criação, da
qual era senhor, jazendo em ruínas aos pés do inimigo, como
poderíamos conceber que, do meio dessas ruínas, Deus
pudesse recolher despojos mais ricos e nobres do que
quaisquer que este mundo pudesse oferecer antes da quedai
Bendito seja o nome de Jesus por tudo isto! É a Ele que
tudo devemos. E por meio da Sua preciosa cruz que pode
anunciar-se uma verdade divina tão assombrosa. Seguramente,
essa cruz encerra sabedoria misteriosa. "A qual nenhum dos
príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem,
nunca crucificariam ao Senhor da glória" (1 Co 2:8). Não é
de admirar portanto que em volta dessa cruz e ao redor
d'Aquele que foi crucificado nela estivessem sempre
entrelaçados os afetos de patriarcas, profetas, apóstolos,
mártires e santos. Não é de admirar que o Espírito Santo
haja pronunciado esse solene e justo decreto: "Se alguém
não ama o Senhor Jesus Cristo, seja anátema; maranata" (1
Co 16:22). O céu e a terra farão eco com um grande e eterno
amem a este anátema. Não é de admirar que fosse propósito
estável e imutável da mente divina que "ao nome de Jesus se
dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e
debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é
o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Fp2:10-11).

b) A Transgressão Contra os Homens


A mesma lei referente a "um quinto" aplica-se ao caso de
transgressão contra um homem, pois que lemos: "Quando
alguma pessoa pecar e transgredir contra o SENHOR (') e
negar ao seu próximo o que se lhe deu em guarda, ou o que
se depôs na sua mão, ou o roubo ou o que retém
violentamente ao seu próximo; ou que achou o perdido, e o
negar com falso juramento, ou fizer alguma outra coisa de
todas em que o homem costuma pecar, será, pois, que,
porquanto pecou e ficou culpada, restituirá o roubo que
roubou, ou o retido que retém violentamente, ou o depósito
que lhe foi dado em guarda, ou o perdido que achou, ou tudo
aquilo sobre que jurou falsamente; e o restituirá no seu
cabedal e ainda sobre isso acrescentará o quinto; àquele de
quem é o dará no dia de sua expiação" (capítulo 6:2 a 5).

________________
(1) Existe um princípio precioso ligado com a expressão
"contra o Senhor". Embora o caso em questão fosse de dano
causado a um próximo, o Senhor vê-o como uma transgressão
contra Si. Tudo deve ser encarado em relação com o Senhor.
Pouco importa a quem concerne diretamente, Jeová deve ter o
primeiro lugar. Assim, quando a consciência de Davi foi
traspassada pela frecha da convicção, a respeito do seu
procedimento para com Urias, ele exclama, "Pequei contra o
Senhor" (2 Sm 12:13). Este princípio não prejudica em nada
os direitos do homem ofendido.

Assim como Deus, também o homem ganha com a cruz do


Calvário. Contemplando essa cruz, o crente pode dizer:
"Pouco importa o muito que tenho sido prejudicado, as
faltas que têm sido cometidas contra mim, até que ponto
tenho sido enganado e o mal que me tem sido feito, ganho
muito mais com a cruz. Não só me foi restituído tudo que
havia perdido, mas muito mais".
Assim, quer pensemos no ofendido ou no ofensor, em cada
caso somos igualmente surpreendidos com os triunfos
gloriosos da redenção e os resultados práticos e poderosos
daquele evangelho que enche a alma com a ditosa certeza de
que todas as transgressões "são perdoadas" e que a raiz de
onde brotaram essas transgressões foi julgada. "O evangelho
da glória de Deus bendito" é unicamente o que pode enviar
um homem ao meio de uma cena que tem sido testemunha dos
seus pecados, suas transgressões e de suas injustiças —
pode fazê-lo voltar para junto daqueles que, de qualquer
modo, têm sido as vítimas dos seus maus atos, investido da
graça, não apenas para reparar o mal feito, mas, muito
mais, para permitir que a onda prática de benevolência
inunde todos os seus caminhos; sim, para amar os seus
inimigos, fazer bem aos que o odeiam, e orar por aqueles
que o maldizem e perseguem.
Tal é a graça preciosa de Deus, que atua em relação com o
nosso grande Sacrifício da Expiação da Culpa e tais são os
seus ricos e preciosos frutos!
Que resposta vitoriosa a dar àquele realista que podia
dizer "Permaneceremos no pecado para que a graça abundei" A
graça não somente corta o pecado pela raiz, como transforma
o pecador do estado de maldição numa bênção; de uma praga
moral numa conduta de misericórdia divina; de um emissário
de Satanás num mensageiro de Deus; de um filho das trevas
num filho da luz; de um pesquisador de prazeres num ser que
renuncia a si próprio e ama a Deus; de um escravo objeto
dos prazeres num servo consagrado de Deus; de um escravo da
vil cobiça num servo dedicado de Cristo, de um avarento
insensível num benéfico provedor das necessidades dos seus
semelhantes.
Desprezemos, pois, as expressões jocosas frequentemente
repetidas: "Não temos nada que fazer? É uma maneira
maravilhosamente fácil de se ser salvo". Que todos os que
empregam uma tal linguagem considerem aquele que furtava
transformado num liberal da dor e fiquem para sempre
silenciosos (veja-seEf4:28).Não sabem o que quer dizer o
vocábulo graça. Nunca sentiram as suas influências elevadas
e santificadoras. Esquecem que, ao passo que o sangue do
sacrifício da culpa do pecado purifica a consciência, a lei
desse sacrifício manda o culpado àquele a quem tem
prejudicado com o principal e o quinto em suas mãos. Nobre
testemunho este, tanto para a graça como para a justiça do
Deus de Israel! Bela manifestação dos resultados desse
maravilhoso plano de redenção pelo qual o prejudicado se
torna beneficiário! Se a consciência ficou tranquila pelo
sangue da cruz, quanto aos direitos de Deus, a conduta deve
também estar de acordo com a santidade da cruz quanto aos
direitos da justiça prática. Estas coisas nunca devem ser
separadas. Deus juntou-as, e o homem não deve separá-las.
Esta santa união nunca será dissolvida por qualquer coração
governado pela pura moral evangélica. Infelizmente, é fácil
fazer profissão dos princípios da graça, enquanto que a sua
prática e o seu poder são completamente renegados. É fácil
falar do descanso do sangue do Sacrifício da Culpa do
pecado enquanto que "o principal" e "o quinto" são retidos.
Mas isto é vão, e pior do que vão. "Qualquer que não
pratica a justiça... não é de Deus" (1 Jo3:10).
Nada pode desonrar tanto a pura graça do evangelho como a
suposição que um homem pode pertencer a Deus enquanto que a
sua conduta e caráter não mostram os traços formosos da
santidade prática. Todas as suas obras são conhecidas de
Deus (At 15:18), sem dúvida, porém deu-nos na Sua Santa
Palavra as provas pelas quais podemos discernir aqueles que
Lhe pertencem. "O fundamento de Deus fica firme, tendo este
selo: O Senhor conhece os que são seus e qualquer que
profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade" (2 Tm
2:19). Não temos o direito de imaginar que um malfeitor
pertence a Deus. Os santos instintos da natureza divina
revoltam-se ante tal suposição. As pessoas têm, por vezes,
grande dificuldade em explicar certas obras más por parte
daqueles que não podem deixar de considerar como cristãos.
A Palavra de Deus resolve o assunto de uma forma tão clara
e com tal autoridade que não deixa lugar para tais
dificuldades.
"Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do
diabo. Qualquer que não pratica a justiça e não ama a seu
irmão não é de Deus" (1 Jo 3:10). É bom recordar isto
nestes dias de relaxamento e condescendência. Existe muita
profissão superficial e sem influência contra a qual o
cristão verdadeiro é convidado a resistir a dar testemunho
severo — um testemunho resultante da contínua exibição dos
"frutos de justiça, que são por Jesus Cristo, para glória e
louvor de Deus" (Fp 1:11). É deplorável ver como tantos
seguem o caminho trilhado— o caminho largo da profissão
religiosa sem contudo manifestarem sinais de amor ou de
santidade na sua conduta. Leitor crente, sejamos fiéis.
Censuremos, por meio de uma vida de renúncia e genuína
benevolência, o egoísmo e inatividade culpável de uma
profissão evangélica e contudo mundana. Que o Senhor
conceda a todo o Seu verdadeiro povo graça abundante para
estas coisas!

As Duas Classes de Sacrifícios pela Culpa


Prossigamos agora à comparação das duas classes de
sacrifícios de expiação, a saber, o sacrifício da culpa
"nas coisas sagradas ao SENHOR" e aquele que dizia respeito
à transgressão cometida nas relações e transações normais
da vida humana. Fazendo-o, depararemos com um ou dois
pontos que requerem a nossa reflexão cuidadosa.
Primeiro, notemos que a expressão "Quando alguma pessoa
pecar por ignorância" mencionada no primeiro é omitida no
último. A razão é óbvia. Os direitos que estão ligados com
as coisas sagradas do Senhor devem ultrapassar
infinitamente o alcance da mais refinada sensibilidade
humana.
Pode haver intervenção contínua nestes direitos —
transgressão continuamente sem o transgressor se aperceber
do fato. A percepção íntima do homem nunca poderá ser o
regulador no santuário de Deus. Isto é uma graça inefável.
Somente a santidade de Deus pode determinar o padrão quando
os direitos de Deus estão em causa.
Por outro lado, a consciência humana pode compreender
facilmente todo o valor de um direito humano e pode tomar
conhecimento de qualquer interferência nesse direito.
Quantas vezes não teremos nós lesado a Deus nas coisas
sagradas sem o havermos notado em nossa consciência — sim,
sem ter capacidade para nos apercebermos do fato! (veja-se
Ml 3:8). Contudo, isso não acontece quando estão em causa
os direitos do homem. A consciência humana pode tomar
conhecimento do agravo que o olho humano pode ver e o
coração sentir. Um homem, por "ignorância" das leis que
regiam o santuário da antiguidade, podia cometer uma
transgressão dessas leis sem se aperceber disso até que uma
maior luz brilhasse sobre a sua consciência. Porém, um
homem não podia "por ignorância" dizer uma mentira, jurar
falsamente, cometer um ato de violência, enganar o seu
próximo, ou achar um objeto perdido e negá-lo. Todos estes
atos eram evidentes e palpáveis e estavam ao alcance da
mais apática sensibilidade. É por isso que a expressão "por
ignorância" é introduzida a respeito "das coisas sagradas
do SENHOR" e é omitida quanto aos interesses comuns dos
homens. Quão bem-aventurada coisa é saber que o precioso
sangue de Cristo resolveu todas as questões, quer seja em
relação a Deus, quer seja a respeito do homem — os nossos
pecados por ignorância, e os nossos pecados conhecidos! Eis
aqui o fundamento profundo e seguro da paz do crente. A
cruz respondeu divinamente a TUDO.
Demais quando se tratava de uma transgressão "nas coisas
sagradas ao SENHOR" O "sacrifício sem mancha" aparece em
primeiro lugar de depois o principal e o seu quinto. Esta
ordem inverte-se quando é questão de interesses normais da
vida (compare-se Lv 5:15-16 com Lv 6:4-7). A razão neste
caso é igualmente clara. Quando os direitos divinos eram
infringidos o sangue de expiação tornava-se o ponto
principal. Ao passo que quando havia interferência nos
direitos humanos a restituição ocupava naturalmente o lugar
proeminente no espírito. Porém, como este último caso
implicava tanto como o primeiro as relações da alma com
Deus, o sacrifício é apresentado, embora em último lugar.
Se eu ofender o meu semelhante, essa ofensa interpor-se-á
incontestavelmente com a minha comunhão com Deus; e essa
comunhão só poderá ser restabelecida sobre o fundamento da
expiação. A restituição só não bastaria. Podia satisfazer o
ofendido, mas não podia constituir a base do
restabelecimento da comunhão com Deus. Eu podia restituir
"o principal" e acrescentar-lhe "o quinto" dez mil vezes
sem contudo me livrar do meu pecado, porque "sem
derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Contudo,
se for uma questão de ofensa feita ao meu próximo, então
deve haver primeiramente restituição. "Portanto, se
trouxeres a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que
teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do
altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu
irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta" (Mt 5:23-
24) (').
A ordem divina dada para o Sacrifício da Expiação da Culpa
tem muito mais importância do que parece à primeira vista.
Os deveres que resultam das nossas relações humanas não
devem ser descurados. Devem ter o seu próprio lugar no
coração. Isto é o que nos ensina claramente o sacrifício da
expiação da culpa. Quando um israelita impedia por qualquer
ato de transgressão as suas relações com o Senhor, a ordem
que devia observar-se era sacrifício e restituição. Quando
por um ato de transgressão perturbava as suas relações com
o seu próximo, a ordem era restituição e sacrifício.

_________________
(1) Da comparação de Mateus 5:23-24 com Mateus 18:21-22,
aprendemos um princípio admirável acerca do modo de
resolver agravos e ofensas entre dois irmãos.
O ofensor é obrigado a retroceder do altar para ir arrumar
o assunto com aquele a quem ofendeu; pois não pode haver
comunhão com o Pai enquanto um irmão tem "alguma coisa
contra mim". Mas, então, note-se a bela maneira em que o
ofendido é ensinado para receber o ofensor. "Senhor, até
quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe
perdoarei?- Até sete?- Jesus lhe disse: Não te digo que até
sete, mas até setenta vezes sete". Tal é o método divino de
arrumar todas as questões entre irmãos. "Suportando-vos uns
aos outros, e perdoando-vos, uns aos outros, se algum tiver
queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim
fazei vós também" (Cl 3:13).

Quem ousará dizer que isto é uma distinção sem importância?


A inversão da lei não dá a sua própria lição, que por ser
divina, é essencial? Sem dúvida. Cada ponto é abundante em
significado, se permitirmos que o Espírito Santo o
transmita aos nossos corações e não pretendermos tirar o
sentido por meio do auxílio da nossa pobre e vã fantasia.
Cada sacrifício apresenta o seu próprio aspecto
característico do Senhor Jesus e da Sua obra; e cada um
destes aspectos é apresentado por sua própria ordem
característica; e podemos dizer afoitamente que é ao mesmo
tempo dever e satisfação de um crente espiritual
compreender tanto um como outro destes característicos. O
próprio caráter da mente que se desinteressasse pela ordem
peculiar de cada sacrifício punha de lado também a ideia de
uma fase peculiar de Cristo em cada um. Negaria deste modo
a existência de qualquer diferença entre o holocausto e a
oferta de expiação do pecado; e entre a expiação do pecado
e a expiação da culpa; e entre qualquer destes e a oferta
pacífica ou a oferta de manjares.
Demais, concluir-se-ia que os sete primeiros capítulos do
Livro de Levítico não eram mais que uma vã repetição,
repetindo cada capítulo sucessivamente a mesma coisa. Quem
poderia ceder a qualquer coisa tão monstruosa como isto?
Qual o espírito cristão que poderia aceitar um tal insulto
às páginas sagradas? Um racionalista ou um neólogo podem
expor ideias tão frívolas e detestáveis; mas aqueles que
têm sido divinamente ensinados que "toda a Escritura é
divinamente inspirada" serão levados a considerar os
diversos símbolos na sua ordem específica como outros
tantos cofres nos quais o Espírito Santo tem entesourado
"as riquezas incompreensíveis de Cristo" para o povo de
Deus. Não existe nenhuma repetição fastidiosa nem nenhuma
redundância. Tudo é de uma variedade divina, rica e
celestial e tudo quanto precisamos é de estar pessoalmente
familiarizados com o grande Antítipo para compreendermos as
belezas e nos apoderarmos dos toques delicados de cada
figura. Desde o momento que o coração pode compreender que
é Cristo que temos em cada figura, pode deter-se com
interesse espiritual sobre os pormenores mais minuciosos.
Vê significado e beleza em tudo — encontra Cristo em todas.
Assim como no reino da natureza, o telescópio e o
microscópio apresentam à vista as suas próprias maravilhas,
do mesmo modo acontece com a Palavra de Deus. Quer a
consideremos como um todo, ou examinemos cada cláusula,
encontramos aquilo que provoca o louvor e ação de graças
dos nossos corações.
Prezado leitor, que o nome do Senhor Jesus seja sempre mais
precioso dos nossos corações! Então daremos valor a tudo
que fala d'Ele — tudo que O representa — tudo o que lança
nova claridade sobre a sua excelência singular e
incomparável beleza!

_____________________
NOTA: Os versículos finais do capítulo VI juntamente com
todo o capítulo VII tratam da lei dos vários sacrifícios a
que já nos referimos. Existem, todavia, alguns pontos na
lei da Expiação do Pecado e da Expiação da Culpa que
merecem a nossa atenção antes de deixarmos esta importante
parte do nosso livro.
A santidade pessoal de Cristo não é apresentada em nenhum
dos sacrifícios de um modo tão notável como na Expiação do
Pecado. "Fala a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a lei
da expiação do pecado: no lugar onde se degola o holocausto
se degolará a expiação do pecado perante o SENHOR; coisa
santíssima é... Tudo o que tocar a sua carne será santo...
Todo varão entre os sacerdotes a comerá; coisa santíssima
é" (Lv 6:25-29). Assim também falando na oferta de
manjares, coisa santíssima é, como santos são a oferta da
expiação da culpa e a expiação do pecado. Isto é notável e
surpreendente. O Espírito Santo não tinha necessidade de
guardar com tanto zelo a santidade de Cristo no holocausto;
mas a fim de que a alma não perdesse de vista esta
santidade, ao contemplar o lugar que o bendito Senhor tomou
na oferta da expiação do pecado, somos repetidas vezes
alertados do fato pelas palavras "coisa santíssima é". E
verdadeiramente edificante e consolador ver a santidade
essencial e divina da pessoa de Cristo brilhar com intensa
claridade no meio da escuridão terrível do Calvário. A
mesma ideia é observável na "lei da expiação da culpa"
(veja-se Lv 7:1-6). Nunca a expressão "o Santo de Deus", a
respeito do Senhor, foi tão clara como quando Ele "foi
feito pecado" na cruz de maldição. A vileza e negrura
daquilo com que Ele se identificou na cruz serviu apenas
para ressaltar claramente que Ele era "santíssimo". Embora
tivesse tomado sobre Si o pecado. Ele era isento de pecado.
Embora sofrendo a ira de Deus, era as delícias do Pai.
Embora privado da luz do semblante de Deus. Ele habitava no
seio do Pai. Que precioso mistério! Quem poderá sondar a
sua profundidade? Como é maravilhoso encontrarmos o seu
símbolo de um modo notável na "lei da expiação do pecado".
Demais, o leitor deveria procurar compreender o significado
da expressão "Todo o varão entre os sacerdotes a comerá". O
ato cerimonial de comer a oferta da expiação do pecado ou
da expiação da expiação da culpa era expressivo de completa
identificação. Porém, para comer a expiação do pecado —
fazer dos pecados de outrem os seus próprios — requeria um
maior grau de energia sacerdotal, como é expresso nos
varões "entre os sacerdotes". "Disse mais o SENHOR a Arão:
E eu, eis que tenho dado a guarda das minhas ofertas
alçadas, com todas as coisas santas dos filhos de Israel;
por causa da unção as tenho dado a ti e a teus filhos por
estatuto perpétuo. Isto terás das coisas santíssimas do
fogo: todas as suas ofertas, com todas as suas ofertas de
manjares e com todas as suas expiações do pecado, e com
todas as suas expiações da culpa, que me restituírem, serão
coisas santíssimas para ti e para teus filhos. No lugar
santíssimo o comerás; todo o varão o comerá; santidade será
para ti. Também isto será teu: a oferta alçada dos seus
dons com todas as ofertas movidas dos filhos de Israel; a
ti, a teus filhos, e a tuas filhas contigo, as tenho dado
por estatuto perpétuo; todo o que estiver limpo na tua casa
as comerá" (Nm 18:8-11).
Era necessária uma maior energia sacerdotal, para se comer
da oferta da expiação do pecado ou da expiação da culpa do
que para participar simplesmente das ofertas movidas e da
oferta alçada com seus dons. As "filhas" de Arão podiam
comer das últimas. Ninguém senão os filhos de Arão podia
comer das primeiras. Em geral, a frase "o varão" exprime
alguma coisa em relação com a ideia divina: a palavra
"fêmea" com o desenvolvimento humano. A primeira frase
apresenta alguma coisa em força, a segunda mostra a sua
imperfeição. Como são tão poucos entre nós os que têm
energia sacerdotal suficiente para os tornar capazes de
fazerem seus os pecados e culpas de outrem! O bendito
Senhor Jesus fez isto perfeitamente. Aproximou-Se dos
pecados do Seu povo e sofreu a pena deles na cruz.
Identificou-Se inteiramente conosco de forma que podemos
saber, com plena e ditosa certeza, que toda a questão de
pecado e culpa foi divinamente resolvida. Se a
identificação de Cristo foi perfeita, então a liquidação
foi igualmente perfeita; e que foi perfeita declara-o a
cena passada no Calvário. Tudo está cumprido. O pecado, as
transgressões, as exigências de Deus; as exigências do
homem, tudo foi eternamente liquidado; e, agora, paz
perfeita é a parte de todos aqueles que aceitam, pela
graça, como verdadeiro o testemunho de Deus. Isto é tão
simples quanto Deus o pode fazer, e a alma que o crê é
feliz. A paz e felicidade do crente dependem inteiramente
da perfeição do sacrifício de Cristo. Não é uma questão do
seu modo de o receber ou dos seus pensamentos ou
sentimentos a respeito dele. É simplesmente uma questão de
dar crédito, pela fé, ao testemunho de Deus quanto ao valor
do sacrifício. O Senhor seja louvado pelo Seu próprio meio
simples e perfeito de paz! Que muitas almas atribuladas
sejam induzidas pelo Espírito Santo a compreendê-lo!
Terminaremos aqui as nossas considerações sobre uma das
mais ricas passagens de todo o cânone de inspiração. É
muito pouco o que temos podido coligir dela. Temos apenas
penetrado abaixo da superfície de uma mina inesgotável. Se
temos contudo conseguido que o leitor se sentisse
inclinado, pela primeira vez, a considerar as ofertas como
outras tantas representações variadas do grande Sacrifício,
e se ele se sentiu impulsionado a rojar-se aos pés do
grande Mestre para aprender mais das profundidades vivas
destas coisas, não posso deixar de pensar que foi alcançado
um fim pelo qual, devo sentir-me profundamente grato.

— CAPÍTULOS 8 e 9 —
O SACERDÓCIO

Considerações Gerais
Havendo considerado a doutrina do sacrifício, tal qual se
desenrola nos primeiros sete capítulos deste livro,
chegamos agora ao assunto do sacerdócio. Os dois assuntos
estão intimamente ligados. O pecador necessita de um
sacrifício, o crente necessita de um sacerdote. Nós temos
tanto um como outro em Cristo, que, havendo-se oferecido a
Si mesmo a Deus sem mácula, entrou na esfera do Seu
ministério sacerdotal, no santuário celeste. Não precisamos
de outro sacrifício nem de nenhum outro sacerdote, Jesus é
divinamente suficiente. Comunica o valor e a dignidade da
Sua própria pessoa a todos os cargos que desempenha e a
todas as obras que realiza. Quando o vemos como sacrifício,
sabemos que temos n'Ele tudo que um sacrifício perfeito
podia ser; e, quando o vemos como sacerdote, sabemos que
todas as funções do sacerdócio são perfeitamente cumpridas
por Ele. Como sacrifício, Ele põe o Seu povo em permanente
relação com Deus; e, como sacerdote, mantém-nos nela,
segundo a perfeição do que Ele é. O sacerdócio é destinado
àqueles que estão já em certo parentesco com Deus; como
pecadores por natureza e na prática, já pelo sangue de
Cristo chegamos perto de Deus (Ef 2:13). Somos postos em
parentesco permanente com Ele: estamos perante Ele como o
fruto da Sua obra. Ele tirou os nossos pecados de uma
maneira digna de Si para que pudéssemos estar na Sua
presença para louvor do Seu nome, como demonstração daquilo
que Ele pode realizar pelo poder da morte e ressurreição.
Mas, embora libertos de tudo que podia ser contra nós,
apesar de estarmos perfeitamente aceitos no Amado, não
obstante sermos perfeitos em Cristo, ainda que
soberanamente exaltados, somos, ainda assim, em nós
próprios, enquanto aqui andamos, pobres e fracas criaturas,
sempre prontos a extraviarem-se, prestes a tropeçar,
expostos a múltiplas tentações, provas e ardis. Como tais,
nós necessitamos do ministério incessante do nosso "Sumo
Sacerdote", cuja presença no santuário das alturas nos
mantém na plena integridade desse parentesco em que, pela
graça, estamos colocados. "Vive sempre para interceder por
eles" (Hb. 7:25). Não seria possível mantermo-nos aqui, nem
por um momento, se Ele não vivesse por nós nas alturas.
"...Porque eu vivo, e vós vivereis" (Jo 14:19). "Porque, se
nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela
morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados,
seremos salvos pela sua vida" (Rm. 5:10). A "vida" e a
"morte" estão inseparavelmente ligadas na economia da
graça. Porém, note-se que a vida vem depois da morte. É à
vida de Cristo ressuscitado de entre os mortos, e não à Sua
vida aqui na terra, que o apóstolo se refere na última
passagem reproduzida. Esta distinção é eminentemente digna
da atenção do leitor. A vida do nosso bendito Senhor Jesus,
enquanto aqui andou, era, desnecessário é dizer,
infinitamente preciosa; porém não entrou na esfera do Seu
serviço sacerdotal antes de haver realizado a obra de
redenção. Nem podia ter feito isso, "visto ser manifesto
que nosso Senhor procedeu de Judá, e, concernente a essa
tribo, nunca Moisés falou de sacerdócio" (Hb 7:14). "Porque
todo sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e
sacrifícios; pelo que era necessário que este também
tivesse alguma coisa que oferecer. Ora, se ele estivesse na
terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda
sacerdotes que oferecem dons segundo a lei" (Hb 8:3 - 4).
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por
um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos,
isto é, não desta criação, nem por sangue de bodes e
bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado uma eterna redenção[...].
Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos,
figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora
comparecer por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:11-12 e
24).
O céu, e não a terra, é a esfera do ministério sacerdotal
de Cristo;
e nessa esfera Ele entrou quando se ofereceu a Si mesmo sem
mácula a Deus. Nunca entrou no templo terrestre como
sacerdote. Subia frequentemente ao templo para ensinar, mas
nunca para sacrificar ou queimar incenso. Ninguém jamais
foi ordenado de Deus para desempenhar as funções do
ministério sacerdotal na terra, salvo Aarão e seus filhos.
"Se ele estivesse na terra nem tão-pouco sacerdote seria."
É um ponto de grande interesse e valor, em relação com a
doutrina do sacerdócio. O céu é a esfera do sacerdócio de
Cristo e a redenção efetuada a sua base. Excluindo o
sentido em que todos os crentes são sacerdotes (1 Pe 2:5),
não existe tal coisa como sacerdote na terra. A não ser que
um homem possa provar a sua descendência de Aarão, a menos
que possa provar a sua genealogia até essa origem antiga,
não tem direito de exercer o ministério sacerdotal. A
própria sucessão apostólica, admitindo que pudesse ser
provada, não teria valor algum neste caso, tanto mais que
os próprios apóstolos não eram sacerdotes, salvo no sentido
acima referido.
O membro mais fraco da família da fé é tanto sacerdote como
o próprio apóstolo Pedro. É um sacerdote espiritual; adora
num templo espiritual; serve a um altar espiritual; oferece
um sacrifício espiritual; está vestido com vestes
espirituais. "Vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para
oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo" (1 Pe2:5). "Portanto, ofereçamos sempre, por
ele, a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos
lábios que confessam o seu nome. E não vos esqueçais da
beneficência e comunicação, porque, com tais sacrifícios,
Deus se agrada" (Hb 13:15-16).
Se um dos descendentes diretos da casa de Arão se
convertesse a Cristo entraria num gênero inteiramente novo
de serviço sacerdotal. E note-se que a passagem que
acabamos de reproduzir apresenta as duas grandes classes de
sacrifício espiritual que o sacerdote espiritual temo
privilégio de oferecer. Existe o sacrifício de louvor a
Deus e o sacrifício de benevolência aos homens. Uma
corrente de grato louvor que sobe até ao trono de Deus e
uma corrente de benevolência ativa correndo para um mundo
necessitado. O sacerdote espiritual mantém-se com uma mão
levantada para Deus, apresentando o incenso de grato louvor
e a outra para ministrar, em verdadeira benevolência, todas
as formas de necessidade humana. Se estas coisas fossem
mais bem compreendidas, que santa elevação, e que graça
moral, não comunicariam ao caráter cristão! Elevação, visto
que o coração estaria sempre levantado para a Origem
infinita de tudo que pode elevar-se, graça moral, uma vez
que o coração estaria sempre aberto a tudo aquilo que
necessitasse da sua simpatia. As duas coisas são
inseparáveis. A ocupação imediata do coração com Deus deve,
necessariamente, elevá-lo e alargá-lo. Por outro lado, se
se anda à distância de Deus, o coração se comprimirá e
aviltará. Intimidade de comunhão com Deus—realização
habitual da nossa dignidade sacerdotal —, é o único remédio
eficaz para as tendências de decadência e egoístas da velha
natureza.

A Consagração de Arão na Presença da Congregação


Depois destas considerações gerais sobre o sacerdócio,
quanto aos seus dois aspectos primário e secundário, vamos
prosseguir com o exame do conteúdo dos capítulos oito e
nove do Livro de Levítico.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Toma a Arão, e a
seus filhos com ele, e as vestes e o azeite da unção, como
também o novilho da expiação do pecado, e os dois
carneiros, e o cesto dos pães asmos e ajunta toda a
congregação à porta da tenda da congregação. Fez, pois,
Moisés como o SENHOR lhe ordenara, e a congregação ajuntou-
se à porta da tenda da congregação." Uma graça especial
revela-se aqui. Toda a assembleia se reunia à porta da
tenda da congregação, a fim de que todos pudessem ter o
privilégio de ver aquele que estava prestes a ser investido
do cargo dos seus interesses mais importantes. Em 28 e 29
de Êxodo ensina-se a mesma verdade com respeito às vestes e
sacrifícios relacionados com o cargo sacerdotal; porém, em
Levítico, a congregação é introduzida e autorizada a seguir
com seus próprios olhos todos os movimentos do serviço
solene e imponente da consagração. Até o membro mais
humilde da assembleia tinha o seu próprio lugar. Desde o
mais humilde ao mais eminente, todos podiam admirar a
pessoa do sumo sacerdote, o sacrifício que oferecia e as
vestes que envergava. Cada um tinha as suas necessidades
peculiares e o Deus de Israel queria que todos vissem e
soubessem como as suas necessidades estavam plenamente
previstas por meio dos diversos qualificativos do sumo
sacerdote que estava diante deles. As vestes sacerdotais
eram a própria expressão apropriada destes qualificativos.
Cada parte do vestuário era destinada e apropriada a
mostrar alguma qualidade especial em que a assembleia como
um todo e cada membro individualmente estaria interessado.
A túnica, o cinto, o manto, o éfode, o peitoral, o urim e o
Tumim, a mitra, a coroa santa — tudo fala das diferentes
virtudes, qualificativos e funções daquele que devia
representar a congregação e os seus interesses na presença
divina.

Cristo, o nosso Sumo Sacerdote


É assim que o crente pode, com o olhar da fé, contemplar o
seu grande Sumo Sacerdote, nos céus, e ver n'Ele as
realidades divinas das quais as vestes de Aarão eram apenas
sombras. O Senhor Jesus Cristo é o Santo, o ungido, Aquele
que leva a mitra e está cingido. Ele é tudo isto, não em
virtude de vestuário exterior que se pode envergar ou
despojar, mas devido às graças eternas e divinas da Sua
pessoa, à eficácia imutável da Sua obra e à virtude
imperecível das Suas sagradas funções. É isto que torna
precioso o estudo das figuras da dispensação mosaica. A
alma iluminada vê Cristo em tudo: o sangue do sacrifício e
a túnica do sumo sacerdote indicam-No — foram ambos
destinados por Deus para O revelar. Se surge uma questão de
consciência, o sangue do sacrifício responde segundo as
justas exigências do santuário. A graça satisfez as
exigências de santidade. E se for uma questão de
necessidade em relação com a sua vida na terra, pode vê-las
todas divinamente supridas nas vestes oficiais do sumo
sacerdote.
E, deixai-me dizer, existem duas maneiras de encarar a
posição do crente — duas maneiras nas quais essa posição é
apresentada na Palavra de Deus e que devem ser tomadas em
conta antes de que a verdadeira ideia do sacerdócio possa
ser percebida. O crente é apresentado como fazendo parte de
um corpo do qual Cristo é a
Cabeça. Este corpo, com Cristo, sua Cabeça, é mencionado
como formando um homem completo, em todo o sentido. O
crente foi vivificado com Cristo, ressuscitado com Cristo e
assentado com Cristo nos céus. É um com Ele, perfeito
n'Ele, aceite n'Ele, possui a Sua vida e está em Seu favor
diante de Deus. Todas as suas ofensas foram apagadas. Não
resta sequer uma mancha. Tudo nele é formoso e amável à
vista de Deus (veja-se 1 Co 12:12-13; Ef 2:5-10; Q2:6-15; l
Jo 4:17).
Por outro lado, o crente é contemplado como estando no
lugar de necessidade, fraqueza, e dependência no mundo.
Está sempre exposto à tentação, é inclinado a extraviar-se,
e está sujeito a tropeçar e cair. Como tal, tem necessidade
constante de perfeita simpatia e do poderoso ministério do
Sumo Sacerdote, que comparece sempre na presença de Deus ao
pleno valor da Sua pessoa, e que representa o crente e
defende a sua causa diante do trono.
E conveniente ponderar estes dois aspectos do crente, para
poder ver-se não apenas o lugar sumamente elevado que o
crente ocupa com Cristo nas alturas, mas também a abundante
provisão que existe para si quanto a todas as suas
necessidades e fraquezas aqui na terra. Esta distinção
podia ser também formulada da seguinte maneira: O crente
está representado como sendo da Igreja e estando no reino.
Quanto ao primeiro estado, o céu é o seu lugar, o seu lar,
a sua parte, o centro dos seus afetos. Quanto ao último,
ele está na terra, no lugar de prova, responsabilidade e
conflito. Por isso, o sacerdócio é um recurso divino para
aqueles que, sendo da Igreja e pertencendo ao céu, estão,
todavia, no reino e andam sobre a terra. Esta distinção é
muito simples, e, quando compreendida, explica muitas
passagens da Escritura em que muitos encontram dificuldades
consideráveis (1).
Examinando estes capítulos podemos notar três coisas que se
destacam de modo proeminente, a saber: a autoridade da
Palavra, o valor do sangue, o poder do Espírito. São
assuntos importantes — assuntos de uma importância inefável
—, cada um dos quais deve ser considerados por todo o
cristão de vital interesse.

________________
(1) Uma comparação da epístola aos Efésios com a primeira
epístola de Pedro dará ao leitor instrução proveitosa a
respeito do aspecto duplo da posição do crente.
A primeira apresenta-o assentado no céu; a última como
peregrino e sofredor na terra.

"Isto é o que SENHOR Ordenou que se Fizesse"


Quanto à autoridade da Palavra, é do maior interesse ver
que, na consagração dos sacerdotes bem como em toda a série
de sacrifícios, dependemos diretamente da autoridade da
Palavra de Deus. "Então, disse Moisés à congregação: Isto i
o que o SENHOR ordenou que se fizesse" (Lv 8:5). "E disse
Moisés: Esta coisa que o SENHOR ordenou fareis: e a glória
do SENHOR VOS aparecerá " (Lv 9:6). Prestemos ouvidos a
estas palavras. Ponderemo-las atentamente e com oração. São
palavras inestimáveis. ―Isto é o que o Senhor ordenou''.
Moisés não disse, "Isto é o que é agradável, conveniente".
Tampouco disse, "isto é o que foi ordenado pela voz de
nossos pais, por decreto dos anciãos ou a opinião dos
doutores". Moisés nada sabia de tais fontes de autoridades.
Para ele havia só uma origem de autoridade santa, elevada e
soberana, e essa era a Palavra de Jeová, e ele queria que
cada membro de assembleia estivesse em contato direto com
essa origem bendita. Isto dava segurança ao coração e
estabilidade a todos os pensamentos. Não havia nenhum lugar
para a tradição, com o seu som incerto, ou para o homem,
com as suas disputas duvidosas. Tudo era claro, concludente
e peremptório. O Senhor havia falado, e tudo que era
preciso era ouvir o que Ele havia dito e obedecer. Nem a
tradição nem a conveniência têm lugar no coração que tem
aprendido a apreciar, a reverenciar e obedecer à Palavra de
Deus.
E qual devia ser o resultado desta rigorosa adesão à
Palavra de Deus"?- Um resultado verdadeiramente bendito. "A
glória do SENHOR vos aparecerá." Houvesse a Palavra sido
negligenciada e a glória não teria aparecido. As duas
coisas estavam intimamente ligadas. O mais ligeiro desvio
da expressão "assim diz o SENHOR" teria impedido os raios
da glória divina de aparecerem à congregação de Israel.
Tivesse sido acrescentado um só rito ou cerimônia não
ordenados pela Palavra, ou tivesse havido omissão de alguma
coisa que a
Palavra ordenava, e o Senhor não teria manifestado a Sua
glória. Não podia sancionar por meio da glória da Sua
presença o descuido ou a rejeição da Sua Palavra. Pode
suportar a ignorância ou a fraqueza, mas não pode sancionar
a negligência ou a desobediência.
Oh, se tudo isto fosse mais seriamente considerado neste
século de tradições e conveniências! Gostaria com todo o
afeto e vivo sentimento de responsabilidade pelo leitor de
o exortar a prestar sincera atenção à importância de uma
estrita — diria mesmo severa —adesão e sujeição reverente à
Palavra de Deus. Que prove todas as coisas por esta regra e
rejeite tudo que não se ajusta com ela; que pese tudo com
esta balança e ponha de parte tudo que não tem o seu peso;
que meça tudo por essa regra e recuse todos os desvios. Se
pudéssemos ao menos ser o meio de despertar uma alma ao
próprio sentido do lugar que pertence à Palavra de Deus,
não teríamos escrito o nosso livro em vão.
Que o leitor se detenha por um momento na presença d'Aquele
que esquadrinha os corações e faça a si próprio esta
pergunta simples: "Estou eu sancionando com a minha
presença ou adotando na minha conduta algum desvio ou
negligência da Palavra de Deus?" Fazei deste assunto um
caso pessoal perante o Senhor. Estai seguros que é um
assunto da atualidade e da maior importância. Se achais que
tendes estado, de qualquer maneira, ligados ou envolvidos
em qualquer coisa que não tem o selo distinto da sanção
divina, rejeitai-a de uma vez para sempre. Sim, rejeitai-a,
ainda que ela se apresente adornada com as vestes
imponentes da antiguidade, acreditada pela voz da tradição
e apresentando a alegação quase irresistível de expediente.
Se não podeis dizer de tudo aquilo com que estais ligados
"isto é o que o SENHOR ordenou", então renunciai-o sem
hesitação, para sempre. Recordai estas palavras: "Como se
fez neste dia, assim o SENHOR ordenou se fizesse" (Lv
8:34). Sim, recordai as palavras "como" e "assim"; vede se
estão ligadas nos vossos caminhos e ligações e não
permitais que elas jamais se separem.

O Oitavo Dia
"E Arão e seus filhos fizeram todas as coisas que o SENHOR
ordenou pela mão de Moisés" (Lv8:36). "Então, entraram
Moisés e Arão na tenda da congregação; depois; saíram e
abençoaram o povo; e a glória do SENHOR apareceu a todo o
povo. Porque o fogo saiu de diante do SENHOR e consumiu o
holocausto e a gordura sobre o altar; o que vendo todo o
povo, jubilou e caiu sobre as suas faces" (Lv 9:23,24).
Temos aqui uma cena do "oitavo dia" uma cena da glória da
ressurreição. Arão, havendo oferecido o sacrifício,
levantou as suas mãos em atitude de bênção sacerdotal sobre
o povo; e então Moisés e Arão retiraram-se para dentro do
tabernáculo, e desapareceram, enquanto que toda a
assembleia esperava da parte de fora. Finalmente, Moisés e
Arão, representando Cristo no Seu caráter duplo de
Sacerdote e Rei, saem e abençoam o povo; a glória aparece
em todo o seu esplendor, o fogo consome o sacrifício e toda
a congregação se prostra em adoração na presença do Senhor
de toda a terra.
Ora, tudo isto era literalmente feito na consagração de
Aarão e seus filhos. E, além disso, tudo isto era o
resultado de estrita adesão à Palavra do Senhor. Porém,
antes de deixar esta parte do assunto, quero recordar ao
leitor que todos estes capítulos são apenas "uma sombra dos
bens vindouros". Isto, na verdade, pode dizer-se a respeito
de toda a economia Moisaica (Hb 10:1). Arão e seus filhos
conjuntamente representam Cristo e a Sua casa sacerdotal.
Arão só representa a Cristo nas Suas funções vicárias e
intercessórias.
Moisés e Arão juntos representam Cristo como Rei e
Sacerdote. "O oitavo dia" representa o dia da glória da
ressurreição, em que a congregação de Israel verá o Messias
assentado no Seu trono como Sacerdote Real, e em que a
glória do Senhor há de encher toda a terra como as águas
cobrem o mar. Estas verdades sublimes são largamente
desenroladas na Palavra de Deus e brilham como pedras
preciosas de esplendor celestial através das páginas
inspiradas: mas, não seja o caso de terem para o leitor o
aspecto de novidade suspeita, envio-o às seguintes provas
escriturais: Números 14:21; Isaías 9:6-7; 11; 25:6 a
12:32:1; 2; 35; 37:31,32; 40:1 a5; 54,59:16a21;60a66;
Jeremias 23:5a8; 30:10a24; 33:6a22; Ezequiel48:35;
Daniel7:13,14; Oséas 14:4 a 9; Sofonias 3:14 a 20; Zacarias
3:8 a 10; 6:12,13; 14.

O Sangue da Vítima
Consideremos agora o segundo ponto desta parte do Livro, a
saber, a eficácia do sangue. É um ponto amplamente
desenrolado e que ocupa um lugar proeminente. Quer
contemplemos a doutrina do sacrifício ou a doutrina do
sacerdócio, vemos que o derramamento do sangue ocupa o
mesmo lugar importante. "Então, fez chegar o novilho da
expiação do pecado: e Arão e seus filhos puseram as suas
mãos sobre a cabeça do novilho da expiação do pecado: e o
degolou; e Moisés tomou o sangue, e pôs dele com o seu dedo
sobre as pontas do altar em redor, e expiou o altar depois;
derramou o resto do sangue à base do altar, e o santificou,
para fazer expiação por ele" (8:14-15).
"Depois, fez chegar o carneiro do holocausto; e Arão e seus
filhos puseram as mãos sobre a cabeça do carneiro; e o
degolou; e Moisés espargiu o sangue sobre o altar, em
redor" (versículos 18 e 19). "Depois, fez chegar o outro
carneiro, o carneiro da consagração; e Arão com seus filhos
puseram as suas mãos sobre a cabeça do carneiro; e o
degolou; e Moisés tomou do seu sangue e o pôs sobre a ponta
da orelha direita de Arão, e sobre o polegar da sua mão
direita e sobre o polegar do seu pé direito. Também fez
chegar os filhos de Arão; e Moisés pôs daquele sangue sobre
a ponta da orelha direita deles, e sobre o polegar da sua
mão direita, e sobre o polegar do seu pé direito; e Moisés
espargiu o resto do sangue sobre o altar, em redor"
(versículos 22 a 24).
O significado dos vários sacrifícios já foi explicado, até
certo ponto, nos primeiros capítulos deste volume; porém
das passagens que acabamos de citar ressalta o lugar
importante que o sangue ocupava na consagração dos
sacerdotes. Era preciso um ouvido manchado de sangue para
escutar as comunicações divinas; a mão espargida com sangue
era necessária para executar os serviços do santuário; e
era preciso que o pé estivesse manchado com sangue para
trilhar os átrios da casa do Senhor. Tudo isto é perfeito
em sua própria ordem. O derramamento de sangue era o
fundamento de todo o sacrifício pelo pecado, e estava
ligado com todos os vasos do ministério e com todas as
funções do sacerdócio. Em todo o conjunto do serviço
Levítico notamos o valor, a eficácia, o poder e a ampla
aplicação do sangue. "E quase todas as coisas, segundo a
lei, se purificam com sangue" (Hb 9:22). Cristo entrou, por
Seu próprio sangue, no mesmo céu.
Aparece no trono da majestade nos céus em virtude de tudo
que cumpriu na cruz. A sua presença no trono atesta o valor
e a aceitação do Seu sangue expiatório. Está ali por nós.
Bendita segurança! Vive sempre. Nunca muda; e nós estamos
n'Ele e como Ele é, Ele apresenta-nos ao Pai em Sua própria
perfeição eterna, e o Pai acha prazer em nós, assim
apresentados, do mesmo modo que Se compraz n'Aquele que nos
apresenta. Esta identificação é tipicamente representada em
"Arão e seus filhos" pondo as suas mãos sobre a cabeça dos
sacrifícios. Estavam todos diante de Deus no valor do mesmo
sacrifício. Quer fosse "o novilho da expiação", "o carneiro
do holocausto" ou "o carneiro da consagração", eles punham
conjuntamente as suas mãos sobre todos. E verdade que só
Arão fora ungido antes de o sangue haver sido derramado.
Estava vestido com as vestes do seu ofício e ungido com o
azeite da santa unção antes que seus filhos fossem vestidos
ou ungidos. A razão é óbvia, Arão simboliza Cristo em Sua
excelência incomparável e dignidade própria; e, como
sabemos, Cristo apareceu em todo o Seu valor pessoal e foi
ungido pelo Espírito Santo antes da realização da Sua obra
expiatória. Em todas as coisas Ele tem a preeminência (Cl
1).
Contudo, existe a mais completa identificação, depois,
entre Aarão e seus filhos; como há a mais completa
identificação entre Cristo e o Seu povo. "O que santifica,
como os que são santificados, são todos de um" (Hb 2:11). A
distinção pessoal realça o valor da unidade mística.

O Poder do Espírito
Esta verdade de distinção e unidade da Cabeça e dos membros
conduz-nos naturalmente ao nosso terceiro e último ponto,
isto é, o poder do Espírito. Podemos notar tudo que se
verifica entre a unção de Aarão e de seus filhos com ele. O
sangue é derramado, a gordura é queimada sobre o altar, e o
peito era movido por oferta de movimento perante o Senhor.
Por outras palavras, o sacrifício é consumado, o seu cheiro
suave sobe até Deus e Aquele que o ofereceu sobe no poder
da ressurreição e toma o Seu lugar nas alturas. Tudo isto
se realiza entre a unção da Cabeça e a unção dos membros.
Lemos e comparemos as passagens. Primeiramente, quanto a
Aarão só, lemos: "E lhe vestiu a túnica, e cingiu-o como
cinto, e pôs sobre ele o manto; também pôs sobre ele o
éfode cingiu-o com o cinto lavrado do éfode o apertou com
ele. Depois, de pôs-lhe o peitoral, pondo no peitoral o
Urim e o Tumim; e pôs a mitra sobre a sua cabeça, e na
mitra, diante do seu rosto, pôs a lâmina de ouro, a coroa
da santidade, como o SENHOR ordenara a Moisés. Então,
Moisés tomou o azeite da unção, e ungiu o tabernáculo e
tudo o que havia nele, e o santificou; e dele espargiu sete
vezes sobre o altar e ungiu o altar e todos os seus vasos,
como também a pia e a sua base, para santificá-los. Depois,
derramou do azeite da unção sobre a cabeça de Arão e ungiu-
o, para santificá-lo" (versículos 7 a 12).
Aqui só Arão é apresentado. O azeite da unção é derramado
sobre a sua cabeça, e isso, também, em ligação imediata com
a unção de todos os vasos do tabernáculo. Toda a assembleia
era autorizada a presenciar como o sumo sacerdote punha as
suas vestes oficiais, a mitra, e depois recebia a unção; e
não somente isto, mas como, à medida que se lhe punha cada
peça do vestuário, que se realizava cada ato, que se
celebrava cada cerimônia, podia ver-se como tudo estava
baseado sobre a autoridade da Palavra. Não havia em tudo
nada vago, nada arbitrário, nada imaginativo. Tudo era
divinamente estável. As necessidades da congregação eram
inteiramente providas e providas de tal maneira que podia
dizer-se, "...assim o SENHOR ordenou se fizesse".
Na unção só de Arão, antes do derramamento de sangue, temos
uma figura de Cristo, que, antes de se oferecer a Si mesmo
sobre a cruz, estava inteiramente só. Não podia haver união
entre Ele e o Seu povo, salvo sobre o fundamento da morte e
ressurreição. Esta verdade tão importante já foi mencionada
e tratada, até certo ponto, em conexão com o assunto do
sacrifício; porém aumenta o seu poder e interesse vê-la tão
intimamente ligada com a questão do sacerdócio. Sem
derramamento de sangue não há remissão — o sacrifício não
estava completo. Assim, também, sem derramamento de sangue
Arão e seus filhos não podiam ser ungidos juntos. Que o
leitor tome nota deste fato. Certifique-se dele, porque é
digno da sua mais profunda atenção.
Guardemo-nos sempre de passar ligeiramente qualquer
circunstância na economia Levítica. Cada coisa tem a sua
voz específica e próprio significado; e Aquele que delineou
e desenvolveu esta ordem pode explicar ao coração e
entendimento o que essa ordem significa.
"Tomou Moisés também do azeite da unção e do sangue que
estava sobre o altar e o espargiu sobre Arão e sobre as
suas vestes, sobre os seus filhos e sobre as vestes de seus
filhos com ele. E santificou a Arão e as suas vestes e seus
filhos, e as vestes de seus filhos com ele" (Lv8:30).
Porque não foram os filhos de Arão ungidos com ele na
ocasião citada no versículo 12? Simplesmente porque o
sangue não havia sido derramado. Quando "o sangue" e "o
azeite" puderam ser ligados, então Arão e seus filhos
puderam ser "ungidos" e "santificados" juntos; mas não
antes. "E por eles me santifico a mim mesmo, para que
também eles sejam santificados na verdade" (Jo 17:19). O
leitor que pudesse passar ao de leve uma circunstância tão
notável, ou dizer que ela nada significa, tem ainda que
aprender a avaliar devidamente as figuras do Velho
Testamento — "as sombras dos bens futuros". E, por outro
lado, aquele que admite que significa alguma coisa, mas
que, não obstante, recusa inquirir e compreender o que é
esse alguma coisa, está causando sério prejuízo à sua
própria alma e manifestando pouco interesse pelos preciosos
oráculos de Deus.
"E Moisés disse a Arão e a seus filhos: Cozei a carne
diante da porta da tenda da congregação e ali a comei com o
pão que está no cesto da consagração, como tenho ordenado,
dizendo: Arão e seus filhos a comerão. Mas o que sobejar da
carne e do pão queimareis com fogo. Também da porta da
tenda da congregação não saireis por sete dias, até ao dia
em que se cumprirem os dias da vossa consagração; porquanto
por sete dias o SENHOR vos consagrará. Como se fez neste
dia, assim o SENHOR ordenou se fizesse, para fazer expiação
por vós. Ficareis, pois, à porta da tenda da congregação
dia e noite, por sete dias, e fareis a guarda do SENHOR,
para que não morrais: porque assim me foi ordenado"
(versículos 31 a 35). Estes versículos oferecem um belo
símbolo de Cristo e o Seu povo alimentando-se juntos dos
resultados da expiação efetuada. Arão e seus filhos,
havendo sido ungidos em conjunto, em virtude do
derramamento de sangue, são apresentados aqui à nossa vista
fechados no recinto do tabernáculo por "sete dias". Uma
figura notável da atual posição de Cristo e Seus membros
durante esta dispensação, encerrados com Deus e aguardando
a manifestação da glória. Bem-aventurada posição! Bem-
aventurada parte! Bem-aventurada esperança! Estar-se
associado com Cristo, encerrado com Deus, esperando o dia
da glória, e, esperando a glória, nutrir-se das riquezas da
graça divina no poder da santidade, são bênçãos da mais
preciosa natureza, privilégios da mais elevada ordem. Oh,
se fôssemos capazes de os compreender bem, se tivéssemos
corações para os gozar e possuíssemos um sentimento
profundo da sua magnitude! Que os nossos corações estejam
separados de tudo que pertence a este presente século mau,
de forma a podermos alimentar-nos do conteúdo do "cesto das
consagrações", que é nosso próprio alimento como sacerdotes
no santuário de Deus.

A Glória do Reino Milenar


"E aconteceu, ao dia oitavo que Moisés chamou Arão, e a
seus filhos, e aos anciãos de Israel e disse a Arão: Toma
um bezerro, para expiação do pecado, e um carneiro; para
holocausto, sem mancha, e traze-os perante o SENHOR.
Depois, falarás aos filhos de Israel, dizendo: Tomai um
bode para expiação do pecado, e um bezerro e um cordeiro de
um ano, sem mancha, para holocausto também um boi e um
carneiro, para sacrifício pacífico, por sacrificar perante
o SENHOR, e oferta de manjares, amassada com azeite;
porquanto HOJE O SENHOR VOS APARECERÁ" (Lv 9:1 -4).
Havendo terminado os "sete dias" durante os quais Arão e
seus filhos estavam retidos no recinto do tabernáculo, toda
a congregação é introduzida e a glória de Jeová manifesta-
se. Isto completa toda a cena. As sombras dos bens
vindouros passam aqui diante de nós por sua ordem divina. O
"oitavo dia" é uma figura dessa manhã milenial que está,
prestes a raiar sobre a terra, quando a congregação de
Israel verá sair o Verdadeiro Sacerdote do santuário, onde
está agora, oculto para os olhos dos homens, acompanhado de
um grupo de sacerdotes, companheiros da Sua reclusão, e
participantes felizes da Sua glória manifestada. Numa
palavra, como sombra ou figura, nada podia ser mais
completo. Em primeiro lugar Arão e seus filhos lavados com
água — uma figura de Cristo e o Seu povo, considerados no
decreto eterno de Deus, santificados juntamente em
propósito (Lv8:6). Depois, temos o modo e a ordem em que
este propósito deveria proceder. Arão, em solidão é vestido
e ungido — uma figura de Cristo santificado e enviado ao
mundo e ungido pelo Espírito Santo (versículos 7 a 12;
compare-se Lc 3:2-22; com Jo 10:36; 12:24). Em seguida
temos a apresentação e aceitação do sacrifício, em virtude
do qual Arão e seus filhos eram ungidos e santificados em
conjunto (versículos 14 a 29), uma figura da cruz em sua
aplicação àqueles que agora constituem a casa sacerdotal de
Cristo, que estão unidos com Ele, ungidos com Ele,
escondidos com Ele e esperando por Ele" ao oitavo dia",
quando Ele Se manifestar com eles em todo o resplendor
daquela glória que Lhe pertence no propósito eterno de Deus
(Jo 14:19; At 2:33; 19:1 - 7; C13:l -4). Finalmente, temos
Israel conduzido ao pleno gozo dos resultados da expiação
efetuada. São reunidos perante o Senhor. "Depois Arão
levantou as mãos ao povo e o abençoou; e desceu, havendo
feito a expiação do pecado, e o holocausto, e a oferta
pacífica" (veja-se Lv 9:1 a 22).
Agora, pode perguntar-se, que resta ainda fazer?
Simplesmente que a pedra do topo seja posta com aclamações
de vitória e hinos de louvor. "Então, entraram Moisés e
Arão na tenda da congregação; depois, saíram e abençoaram o
povo; e a glória do SENHOR apareceu a todo o povo. Porque o
fogo saiu de diante do SENHOR e consumiu o holocausto e a
gordura sobre o altar; o que vendo todo o povo; JUBILOU e
CAIU SOBRE AS SUAS FACES" (versículos 23 e 24).
Este era o grito de vitória — a atitude de adoração. Tudo
era completo. O sacrifício, o sacerdote com suas vestes e
mitra, a família sacerdotal associada com o seu Chefe, a
bênção sacerdotal, o aparecimento do Rei e Sacerdote — em
suma, nada faltava e portanto a glória divina apareceu e
toda a congregação se prostrou em adoração.
E, em tudo, uma cena magnífica — uma sombra maravilhosa e
bela dos bens que hão-de vir. E, recorde-se, tudo que aqui
é simbolizado será, dentro de pouco tempo, plenamente
realizado. O nosso grande Sumo Sacerdote penetrou nos céus
no pleno valor e poder da expiação realizada. Está ali
oculto, agora, e, com Ele, todos os membros da Sua família
sacerdotal; mas quando tiverem passado os "sete dias" e os
raios do "oitavo dia" brilharam sobre a terra, então todo o
remanescente de Israel — um povo arrependido e expectante —
aclamará com um grito de vitória a presença visível do
Sacerdote Real; e, em íntima associação com Ele, será vista
uma multidão de adoradores ocupando a mais elevada posição.
Estas são "as boas coisas que hão - de vir" — coisas por
que, certamente, vale a pena esperar—coisas dignas de Deus,
coisas em que há - de ser eternamente glorificado e o Seu
povo eternamente abençoado.

- CAPÍTULO 10 —

O HOMEM CORROMPE
AS INSTITUIÇÕES DIVINAS

As páginas da história humana têm estado sempre


deploravelmente manchadas. São, do princípio ao fim, uma
história de fracasso. No meio das delícias do Éden, o homem
prestou atenção às mentiras do tentador (Gn 3). Preservado
do julgamento, pela mão do amor de eleição, e introduzido
na terra restaurada, tornou-se culpado do pecado de
intemperança (Gn 9). Depois de conduzido, pelo braço
estendido de Jeová, ao país de Canaã, "deixaram ao SENHOR:
e serviram a Baal e a Astarote" (Jz 2:13). Colocado sobre o
pináculo do poder e glória terrestre, com riquezas
incontáveis a seus pés e todos os recursos da natureza à
sua disposição, deu seu coração a mulheres estranhas
incircuncisas (1 Rs 11). Apenas foram promulgadas as
bênçãos do evangelho logo se tornou necessária a profecia
do Espírito Santo quanto aos "lobos cruéis", "apostasia" e
toda a sorte de fracasso (At 20:29; 1 Tm 4:1-3; 2 Tm 3:1 -
5; 2 Pe 2; 2 Jd 4). E como corolário de tudo, temos o
testemunho profético da apostasia humana em pleno esplendor
da glória do milênio (Ap 20:7-10).
É assim que o homem perverte tudo. Elevai-o a uma posição
de mais alta dignidade, e ele se aviltará. Dotado dos mais
amplos privilégios, ele abusará deles. No meio de uma
profusão de riquezas, ele mostrar-se-á ingrato. Colocado no
meio das instituições mais imponentes, ele corrompê-las-á.
Tal é o homem! Tal é a natureza, nas suas mais belas formas
e sob as circunstâncias mais favoráveis!

Nadabe e Abiú
Estamos, pois, preparados, de certo modo, para ouvir as
palavras com que abre o nosso capítulo. "E os filhos de
Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário, e
puseram neles fogo, e puseram incenso sobre ele, e
trouxeram fogo estranho perante a face do SENHOR, o que
lhes não ordenara". Que contraste com a cena da última
parte do nosso estudo! Ali tudo foi feito "como o SENHOR
ordenou", e o resultado foi a manifestação da glória. Aqui
é feita qualquer coisa que o Senhor não ordenam, e o
resultado é o juízo. Apenas cessou o eco do grito de
vitória e já os elementos de um culto corrompido estavam
preparados. Apenas a posição divina lhes havia sido
atribuída e já era deliberadamente abandonada por
negligência do mandamento divino. Apenas estes sacerdotes
acabavam de ser instalados quando falham gravemente no
cumprimento das suas funções sacerdotais.
E em que consistiu a sua faltai Eram falsos sacerdotes?
Eram apenas pretendentes a este oficiou De modo nenhum.
Eram filhos legítimos de Arão — verdadeiros membros da
família sacerdotal—, sacerdotes devidamente ordenados. Os
vasos do seu ministério e as suas vestes sacerdotais também
estavam em ordem. Em que consistiu, pois, o seu pecado?
Mancharam as cortinas do tabernáculo com sangue humano, ou
profanaram o recinto sagrado com algum crime que ofendesse
a moral? Não existem provas de que tivessem feito tais
coisas. Este foi o seu pecado: "...trouxeram fogo estranho
perante a face do SENHOR, O que lhes não ordenara". Aqui
estava o seu pecado. Afastaram-se na sua adoração da
Palavra de Jeová que os havia claramente instruído acerca
do modo do seu culto.
Já aqui aludimos à plenitude divina e suficiência da
Palavra do Senhor quanto a todos os pormenores do serviço
sacerdotal. Não havia sido deixada nenhuma lacuna para o
homem introduzir aquilo que lhe parecesse conveniente ou
desejável. "Isto é o que o SENHOR ordenou" era suficiente.
Esta ordem tornava tudo muito simples e claro. Nada se
exigia do homem senão um espírito de implícita obediência à
ordem divina. Mas falhou nisto.
O homem tem mostrado sempre má disposição em seguir o
caminho de estrita adesão à Palavra de Deus. Os atalhos
parece terem sempre apresentado encantos irresistíveis para
o pobre coração humano. "As águas roubadas são doces, e o
pão comido a ocultas é suave" (Pv 9:17). É a linguagem do
inimigo; porém o coração humilde e obediente sabe muito bem
que o caminho da submissão à Palavra de Deus é o único que
conduz a "águas" que são realmente "doces" ou o "pão" que
pode verdadeiramente ser chamado "suave". Nadabe e Abiú
podiam pensar que uma espécie de "fogo" era tão boa como a
outra; porém não era da sua competência decidir nesse
sentido. Deveriam ter atuado segundo a Palavra do Senhor;
mas, em lugar disso, agiram segundo a sua própria vontade,
e colheram os seus terríveis frutos. "Mas não sabe que ali
estão os mortos; que os seus convidados estão nas
profundezas do inferno" (Pv 9:18).

O JUÍZO de Deus sobre a Sua Casa


"Então, saiu fogo de diante do SENHOR, e os consumiu; e
morreram perante o SENHOR". Como isto é profundamente
solene! Jeová habitava no meio do Seu povo, para governar,
julgar e atuar, segundo os direitos da Sua natureza, nos
versículos finais do capítulo 9 lemos: "...o fogo saiu de
diante do Senhor e consumiu o holocausto e a gordura sobre
o altar". O SENHOR mostrava assim que aceitava um
sacrifício verdadeiro. Porém em capítulo 10 vemos o Seu
juízo sobre os sacerdotes desviados. É uma dupla ação do
mesmo fogo. O holocausto subia como cheiro suave! Ao passo
que o "fogo estranho" foi rejeitado como uma abominação. O
Senhor foi glorificado no primeiro; mas teria sido uma
desonra aceitar o segundo. A graça divina aceitava e
deleitava-se naquilo que era uma figura do precioso
sacrifício de cristo; a santidade divina rejeitava que era
fruto da vontade corrompida do homem-vontade que nunca é
mais horrenda e abominável como quando se imiscui nas
coisas de Deus.
"E disse Moisés a Arão: Isto é o que o SENHOR falou,
dizendo: Serei santificado naqueles que se cheguem a mim, e
serei glorificado diante de todo o povo". A dignidade e
glória de toda a economia dependiam da estrita manutenção
dos justos direitos de Jeová. Se estes direitos fossem
menosprezados, estaria tudo perdido. Se fosse permitido ao
homem profanar o santuário da presença divina por meio do
"fogo estranho", era o fim de tudo. Não se podia permitir
que subisse do incensário do sacerdote alguma coisa que não
fosse fogo puro, ateado do altar de Deus, e alimentado com
"o incenso puro moído". Bela ilustração da verdadeira e
santa adoração, da qual o Pai é o objetivo, Cristo o
assunto e o Espírito Santo o poder.
Não se pode permitir que o homem introduza as suas ideias
ou invenções no culto a Deus. Todos os seus esforços só
podem ter como resultado a apresentação de "fogo estranho"
— incenso impuro — ou seja um culto falso. As suas melhores
tentativas não passam de uma abominação aos olhos de Deus.
Não me refiro aqui aos esforços honestos de espíritos
sinceros que buscam paz com Deus — esforços sinceros de
consciências retas, ainda que não iluminadas, para chegarem
ao conhecimento do perdão dos pecados, pelas obras da lei
ou pelas ordenações de um sistema religioso. Sem dúvida,
tais pessoas acabarão, em virtude da infinita bondade de
Deus, por entrar na luz clara do gozo e conhecimento da
salvação Esses esforços provam claramente que se busca
diligentemente a paz; embora, ao mesmo tempo, provem
claramente que a paz ainda não foi alcançada.
Nunca ninguém seguiu sinceramente a luz tênue que houvesse
incidido sobre a sua consciência sem haver recebido, a seu
tempo, mais. "Ao que tem ser-lhe-á dado"." A vereda dos
justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e
mais, até ser dia perfeito" (Pv 4:18).
Tudo isto é tão claro como é animador; mas não deixa
inteiramente de parte a questão da vontade humana e as
invenções ímpias em relação com o serviço e culto de Deus.
Tais invenções provocarão, inevitavelmente, mais cedo ou
mais tarde, o juízo solene de um Deus santo e justo que não
pode permitir que se escarneça dos Seus direitos. "Serei
santificado naqueles que se cheguem a mim, e serei
glorificado diante de todo o povo."
Os homens serão tratados segundo a sua profissão. Se buscam
com sinceridade, certamente, encontrarão; porém quando se
aproximam como adoradores já não são considerados como
aqueles que buscam, mas, sim, como aqueles que professam
ter achado o que procuravam; e, então, se o seu incensário
sacerdotal fumega com fogo impuro, se oferecem a Deus os
elementos de um culto corrompido, se professam trilhar os
Seus átrios sem haverem sido lavados, nem santificados nem
humilhados, se põem sobre o Seu altar as invenções da sua
própria vontade corrompida, qual será o resultado? O
julgamento! Sim, cedo ou tarde, o juízo virá. Pode demorar;
mas certamente virá. Não poderia ser de outro modo.
E não só o julgamento há - de vir, por fim, como se
verifica, em cada caso, a rejeição, por parte do céu, de
todo o culto que não tem o Pai por seu objetivo. Cristo por
seu assunto e o Espírito Santo como poder.
A santidade de Deus está tão pronta a rejeitar todo o "fogo
estranho" como a Sua graça está pronta a aceitar os mais
fracos suspiros de um coração sincero. Deus tem de derramar
o Seu justo juízo sobre todo o culto falso, não obstante,
"não esmagará a cana quebrada, e não apagará o morrão que
fumega" (Mt 12:20). Este pensamento é muito solene quando
recordamos os milhares de incensários deitando fumo com
fogo estranho nos vastos domínios da cristandade. Que o
Senhor, em Sua rica graça, aumente o número dos verdadeiros
adoradores, que adoram o Pai em espírito e em verdade (João
4). É infinitamente melhor pensar na verdadeira adoração
ascendendo de corações honestos até ao trono de Deus, do
que contemplar, ainda que por um momento, o culto
corrompido sobre o qual o juízo divino será dentro em pouco
derramado.
Todo aquele que conhece, por graça, o perdão dos seus
pecados pelo sangue expiador de Jesus pode adorar o Pai em
espírito e em verdade; pois conhece o justo fundamento, o
próprio objetivo, o verdadeiro assunto e o poder real do
culto. Estas coisas só podem ser conhecidas de um modo
divino. Não pertencem à natureza ou à terra. São
espirituais e celestiais. Uma grande parte do que entre os
homens passa por ser culto a Deus é, afinal, apenas "fogo
estranho".
Não há fogo puro nem incenso puro, e, portanto, o Céu não o
aceita; e, embora não se veja cair o julgamento divino
sobre aqueles que oferecem tal culto, como caiu sobre
Nadabe e Abiú, é somente porque "Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus
pecados" (2 Co 5:19). Não é porque o culto seja aceitável a
Deus, mas porque Deus é misericordioso.
Contudo, aproxima-se rapidamente o tempo em que o fogo
estranho será apagado para sempre, quando o trono de Deus
não será mais insultado pelas nuvens do incenso impuro
ascendendo de adoradores impuros; quando tudo que é
adulterado será abolido e todo o universo será como um
vasto e magnificente templo, no qual o verdadeiro Deus,
Pai, Filho, e Espírito Santo, será adorado pelos séculos
dos séculos.
É isto o que os remidos esperam; e, bendito seja Deus,
dentro de pouco tempo os seus ardentes desejos serão
plenamente satisfeitos, e satisfeitos para sempre — sim,
satisfeitos de tal maneira que cada um deles confessará
comovedoramente como a rainha de Sabá: "Eis que me não
disseram metade" (1 Rs 10:7). Que o Senhor apresse esse
tempo feliz!
Voltemos agora ao nosso solene capítulo, e, demorando-nos
um pouco mais com ele, procuremos reunir e levar conosco
algumas das suas salutares instruções, porque são
verdadeiramente benéficas numa época como esta, em que há
tanto "fogo estranho".

"Porém Arão Calou-se"


Existe qualquer coisa extraordinariamente admirável e
tocante na maneira como Aarão recebeu o duro golpe da
justiça divina. "Aarão calou-se". Era uma cena solene. Os
seus dois filhos mortos a seu lado— mortos pelo fogo do
juízo divino ('). Acabava de os ver revestidos com as suas
vestes de glória e beleza — lavados, paramentados e
ungidos. Tinham estado com ele perante o Senhor, para serem
consagrados ao ministério sacerdotal. Tinham oferecido, em
companhia dele, os sacrifícios determinados. Tinham visto
os raios da glória divina irradiando da coluna de nuvem (—
sinal da presença de Deus —); tinham visto cair o fogo do
Senhor sobre o sacrifício e consumi-lo. Tinham ouvido
irromper da assembleia prostrada em adoração as exclamações
de júbilo. Tudo isto acabava de passar ante seus olhos; mas
agora, enfim, os seus dois filhos jaziam a seu lado nas
garras da morte. O fogo do Senhor, que pouco antes fora
alimentado por um sacrifício aceitável, tinha, agora, caído
em juízo sobre eles, e que podia ele dizer? "Arão calou-
se".

______________
(1) Para que o leitor se não sinta perturbado com a
dificuldade a respeito das almas de Nadabe e Abiú, devo
dizer que uma tal questão nunca deve ser levantada. Em
casos como o de Nadabe e Abiú, em Levítico 10; Core e a sua
companhia, em Números 16; toda a congregação, exceto Josué
e Calebe, cujas ossadas ficaram no deserto, segundo Números
14 e Hebreus 3; Acã e sua família, Josué 7; Ananias e
Safira, em Atos 5; os que foram julgados por abusos à mesa
do Senhor, I Coríntios 11, a questão da salvação da alma
nunca é levantada. Devemos ver neles simplesmente os atos
solenes da administração de Deus no meio do Seu povo. Este
conhecimento alivia a alma de todas as dúvidas.
O Senhor habitava entre os Querubins para julgar o Seu povo
em todas as coisas; e Deus Espírito Santo habita na Igreja
para ordenar e governar, segundo a perfeição da Sua
presença. A Sua presença era tão real e pessoal que Ananias
e Safira puderam mentir-Lhe e Ele pôde executar o juízo
sobre eles. Foi uma exibição tão real e imediata dos Seus
atos administrativos como temos no caso de Nadabe e Abiú ou
Acã ou qualquer outro.
É uma grande verdade de que se deve tomar nota. Deus não só
é a favor do Seu povo como está com ele e neles. Deve
contar-se com Ele em todas as coisas, quer grandes, quer
pequenas. Ele está sempre presente para dar consolação e
auxílio. Está ali para castigar e julgar. Está presente
para as necessidades de cada momento. Ele é suficiente. Que
a fé espere n'Ele. "Onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mt 18:20). E,
certamente, onde Ele está nada mais precisamos.

"Emudeci; não abro a minha boca, porquanto tu o fizeste"


(S139:9). Era a mão de Deus; e ainda que pudesse parecer
muito pesada, no juízo da carne e do sangue, ele só tinha
que curvar a cabeça, em temor silencioso e reverente
aquiescência. "Emudeci... tu o fizeste" Era a atitude mais
adequada em presença do juízo divino. Aarão, sem dúvida,
sentiu que as próprias colunas da sua casa eram sacudidas
pelo trovão do juízo divino; e portanto só podia permanecer
em silencioso assombro diante daquela cena aterradora. Para
um pai privado dos seus dois filhos, daquela maneira e em
tais circunstâncias, não era um acontecimento vulgar.
Isto constituiu um comentário profundamente solene às
palavras do Salmista: "Deus deve ser um extremo tremendo na
assembleia dos santos, e grandemente reverenciado por todos
os que o cercam" (SI 89:7). "Quem te não temerá, ó SENHOR,
quem não glorificará o teu nome?" Possamos nós aprender a
andar suavemente na presença divina e a pisar os átrios do
Senhor com os pés descalços e espírito reverente. Que o
nosso incensário de sacerdotes contenha sempre como único
combustível o incenso batido das múltiplas perfeições de
Cristo e que a santa chama seja sempre ateada pelo poder do
Espírito. Tudo o mais não é somente inútil como vil. Tudo o
que proceda da energia da natureza, tudo que é resultado da
ação da vontade humana, o mais fragrante incenso da
imaginação do homem, o mais intenso ardor da devoção
natural, tudo isso redundará em "fogo estranho" e atrairá o
juízo solene do Deus Todo-Poderoso. Oh, quem nos dera um
coração inteiramente fiel e um espírito de adoração
continuamente na presença de nosso Deus e Pai!
Mas não desanime nem se assuste qualquer coração sincero,
embora tímido. Sucede com frequência que aqueles que
deveriam alarmar-se manifestam indiferença; enquanto que
outros, para quem o Espírito de graça só destina palavras
de conforto e estímulo, aplicam a si próprios, erradamente,
as advertências assustadoras das Sagradas Escrituras. Sem
dúvida, o coração humilde e contrito, que treme perante a
Palavra do Senhor, está em bom estado; porém devemos
recordar que um pai adverte o filho, não porque deixa de o
considerar seu filho, mas porque é seu filho; e uma das
melhores provas deste parentesco é a disposição de receber
a advertência e aproveitá-la. A voz paterna, ainda mesmo
que o seu tom seja de grave admoestação, penetrará no
coração do filho, mas nunca para despertar dúvidas quanto
ao seu parentesco com aquele que fala. Se um filho
duvidasse da sua filiação todas as vezes que fosse
repreendido pelo pai, seria digno de lástima. O julgamento
que acabara de cair sobre a casa de Aarão não o fez duvidar
que fosse realmente sacerdote. Teve apenas o efeito de
ensinar-lhe como devia conduzir-se nessa elevada e santa
posição.

Nem o Juízo de Deus Deve Abalar a Atividade Sacerdotal


"E Moisés disse a Arão e a seus filhos Eleazar e Itamar:
Não descobrireis as vossas cabeças, nem rasgareis os vossos
vestes, para que não morrais, nem venha grande indignação
sobre toda a congregação; mas os vossos irmãos, toda a casa
de Israel, lamentem este incêndio que o SENHOR acendeu. Nem
saireis da porta da tenda da congregação, para que não
morrais; porque está sobre vós o azeite da unção do SENHOR.
E fizeram conforme à palavra de Moisés" (Lv 10:6 - 7).
Arão, Eleazar e Itamar deviam permanecer impassíveis na sua
elevada posição — na sua santa dignidade — na sua posição
de santidade sacerdotal. Nem a falta, nem o seu consequente
julgamento deviam interferir com os que usavam as vestes
sacerdotais e eram ungidos com "o azeite da unção do
SENHOR". Esse azeite havia-os colocado num sagrado recinto
onde as influências do pecado, da morte e do juízo não
podiam atingi-los. Os que estavam fora, que estavam a uma
distância do santuário, que não estavam na posição de
sacerdotes, podiam "lamentar o incêndio"; mas quanto a Arão
e seus filhos deviam continuar no desempenho das suas
santas funções, como se nada tivesse acontecido. Sacerdotes
no santuário não deviam lamentar-se, mas adorar. Não deviam
chorar, como na presença da morte, mas curvar as cabeças
ungidas na presença da visitação divina. "O fogo do SENHOR"
podia agir, e fazer a sua obra de juízo; mas, a um
verdadeiro sacerdote, não interessava o que esse "fogo"
tinha vindo fazer, se vinha para expressar aprovação divina
consumindo o sacrifício, ou o desagrado divino consumindo
os que ofereciam "fogo estranho", ele só tinha que adorar.
Aquele "fogo" era uma manifestação bem conhecida da
presença divina em Israel, e que atuasse em "misericórdia
ou julgamento" a obrigação de todo o verdadeiro sacerdote
era adorar. "Cantarei a misericórdia e o juízo: a ti,
SENHOR, cantarei."
Há em tudo isto uma profunda e santa lição para a alma. Os
que são conduzidos para perto de Deus no poder do sangue e
pela unção do Espírito Santo devem mover-se numa esfera
fora do alcance das influências naturais. A proximidade de
Deus dá à alma um tal conhecimento dos Seus caminhos, uma
tal compreensão da justiça de todas as Suas dispensações
que nos habilita a adorar na Sua presença, ainda mesmo que
o golpe da Sua mão nos tenha tirado o objeto das maiores
afeições. Pode perguntar-se, teremos de ser estoicos? E eu
pergunto, Arão e seus filhos eram estoicos? Não; eles eram
sacerdotes. Não sentiam como os outros homens1? Sim, mas
adoravam como sacerdotes. Isto é profundo, e abre-nos um
horizonte de pensamentos, de sentimentos e de experiências,
no qual a natureza humana nunca poderá mover-se — uma
região da qual nada conhece, apesar de toda a sua orgulhosa
cultura e sentimentalismo. Devemos andar no santuário de
Deus na verdadeira energia sacerdotal, a fim de podermos
compreender a profundidade, o significado e o poder de tais
santos mistérios.
O profeta Ezequiel foi chamado, nos seus dias, para
aprender esta lição: "veio a mim a palavra do SENHOR,
dizendo: Filho do homem, eis que tirarei de ti o desejo dos
teus olhos de um golpe, mas não lamentarás, nem chorarás,
nem te correrão as lágrimas. Refreia o teu gemido; não
tomaras luto por mortos; ata o teu turbante, e coloca nos
pés os teus sapatos; e não te rebuçarás e o pão dos homens
não comerás... e fiz pela manhã como se me deu ordem" (E
24:15-18). Dir-se-á que tudo isto era um "sinal" para
Israel. É verdade, mas prova que tanto o testemunho
profético como o culto sacerdotal devem elevar-nos acima de
todas as exigências e influências da natureza e da terra.
Os filhos de Arão e a mulher de Ezequiel foram justificados
de um só golpe; e contudo, nem o sacerdote nem o profeta
deviam descobrir a sua cabeça nem verter uma lágrima.
Oh, prezado leitor, que progresso tem feito cada um de nós
nesta profunda lição? Não há dúvida que tanto o leitor como
o autor têm de fazer a mesma confissão humilhante. Muitas
vezes andamos como "homens do mundo" e "comemos o pão dos
homens". Outras vezes somos privados dos nossos altos
privilégios sacerdotais pelos manejos da natureza e as
influências da terra. Devemos vigiar contra estas coisas.
Nada pode preservar o coração do poder do mal ou manter a
sua espiritualidade senão a consciência da proximidade de
Deus como sacerdotes. Todos os crentes são sacerdotes e
nada pode privá-los dessa posição. Mas ainda que não possam
perder a sua posição, podem cometer faltas graves no
cumprimento das suas funções. Estas duas coisas não se
distinguem muito bem. Há alguns que, ocupados com a
preciosa verdade da segurança do crente, esquecem a
possibilidade de falharem nas suas funções sacerdotais.
Outros, pelo contrário, absortos com as falhas, ousam pôr
em dúvida a segurança.
Desejamos que o leitor se guarde destes erros. É preciso
estar-se bem fundado na doutrina divina da eterna segurança
de todos os membros da verdadeira casa sacerdotal; mas deve
recordar-se também que existe a possibilidade de falha, daí
a necessidade constante de oração, para não cairmos.
Oxalá que todos aqueles que têm sido levados ao
conhecimento da elevada posição de sacerdotes de Deus sejam
preservados, por Sua graça celestial, de toda a sorte de
faltas, seja contaminação pessoal, seja a apresentação de
qualquer das muitas formas de "fogo estranho" que tanto
abundam na igreja professa.

A Abstinência de tudo que Ativa a Ação da Carne


"E falou o SENHOR a Arão, dizendo: Vinho ou bebida forte tu
e teus filhos contigo não bebereis, quando entrardes na
tenda da congregação, para que não morrais; estatuto
perpétuo será isso, entre as vossas gerações, para fazer
diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o
limpo e para ensinar aos filhos de Israel todos os
estatutos que o SENHOR lhes tem falado pela mão de Moisés"
(versículos8all).
O efeito do vinho é excitar a natureza humana, e todo o
sentimento natural prejudica aquela condição tranquila e
equilibrada da alma que é essencial ao desempenho das
funções sacerdotais. Em vez de utilizar meios para excitar
a natureza, devemos tratá-la como uma coisa que não tem
existência. Só assim estaremos em condição moral para
servir no santuário e para formar um juízo imparcial entre
o que é imundo e o que é puro, e para explicar e transmitir
o pensamento de Deus. Compete a cada um julgar, por si
mesmo, o que, no seu caso particular, atuaria como "vinho
ou bebida forte" (1).

___________________
(1) Alguns têm pensado que, devido ao lugar especial que
esta recomendação a respeito do vinho ocupa, Nadabe e Abiú
teriam estado debaixo da influência de bebida forte, quando
ofereceram o ''fogo estranho". Mas, seja como for, devemos
estar agradecidos por este princípio tão valioso referente
à nossa conduta, como sacerdotes espirituais. Temos de
evitar tudo que produz os mesmos efeitos sobre o homem
espiritual que a bebida forte produz sobre o homem físico.
Desnecessário é dizer que o crente deve ser propriamente
zeloso quanto ao uso do vinho ou bebida forte. Timóteo,
como sabemos, precisou de uma recomendação apostólica para
se convencer até mesmo a tocar-lhe, por amor da sua saúde
(1 Tm 5). Uma agradável prova da abstinência habitual de
Timóteo e do amor solícito do Espírito por intermédio do
apóstolo. Devo dizer que o nosso sentido moral sente--se
ofendido por ver crentes fazendo uso de bebida forte em
casos que, seguramente, não necessitam dela como remédio.
Trememos ao ver um crente tornar-se um simples escravo de
um hábito, seja o que for esse hábito. É uma prova de que
não mantém o seu corpo em sujeição e corre o perigo de ser
"reprovado" (1 Co 9:27).

As coisas que excitam a natureza humana são na verdade


múltiplas — a riqueza, a ambição, a política e uma
diversidade de coisas de competição de que estamos
rodeados. Todas estas coisas atuam como poderosos
excitantes sobre a natureza humana, e tornam-nos
inteiramente incapazes de todo o serviço sacerdotal. Se o
coração está cheio do sentimento de orgulho, de cobiça ou
de rivalidade, é absolutamente impossível gozar o ar puro
do santuário ou cumprir as sagradas funções do ministério
sacerdotal. Os homens falam da versatilidade do gênio
humano, ou da facilidade com que se passa rapidamente de
uma coisa a outra. Mas por muito versátil que seja o gênio
do homem não consegue fazê-lo passar de um círculo profano
de assuntos literários, comerciais ou políticos, para o
santo retiro do santuário da presença divina; nem esse
gênio poderá jamais habilitar os olhos ofuscados pelas
influências de tais cenas a discernir, com precisão
sacerdotal, a diferença entre o que é "santo" e "profano",
e entre o "imundo" e o "puro". Não, prezado leitor; os
sacerdotes de Deus têm de manter-se separados do "vinho e
bebida forte". O seu caminho é um caminho de santa
separação e abstração. Têm de elevar-se muito acima das
influências dos gozos terreais assim como das dores do
mundo. Se alguma coisa têm a fazer com "bebida forte" é
oferecê-la no santuário como libação ao Senhor (Nm 28:7).
Por outras palavras, a alegria dos sacerdotes de Deus não é
a alegria da terra, mas a do céu, a do santuário. "A
alegria do SENHOR é a vossa força."
Oh, se ponderássemos profundamente estas santas instruções!
Sem dúvida necessitamos muito de o fazer. Se menosprezarmos
as nossas responsabilidades sacerdotais, tudo estará em
desordem. Quando contemplamos o acampamento de Israel,
podemos observar três círculos, e a forma como o círculo
mais interior tinha o seu centro no santuário. Havia
primeiro o círculo dos guerreiros (Nm l e 2). A seguir o
círculo dos levítas em volta do tabernáculo (Nm 3 e 4). E,
finalmente, o círculo mais interior dos sacerdotes que
ministravam no lugar santo. Ora, lembremo-nos de que o
crente é chamado para se mover em todos estes círculos.
Entra na luta como guerreiro (Ef 6:11-17; 1 Tm 1:18; 6:12;
2 Tm4-7). Serve como um levita no meio dos seus irmãos,
segundo a sua capacidade e esfera (Mt 25:14-15; Lc 19:12-
13). Finalmente, sacrifica e adora, como sacerdote, no
lugar santo (Hb 13:15 -16; 1 Pd 2:5 - 9). Este último
ofício durará para sempre. E, além disso, é segundo a
maneira acertada como nos movemos nesse santo círculo que
todas as outras relações e responsabilidades são retamente
desempenhadas.
Por isso, tudo que nos incapacita para as nossas funções
sacerdotais — tudo que nos afasta do centro desse círculo
mais interior em que é nosso privilégio mover-nos — tudo,
em suma, que tende a desorganizar a nossa condição de
sacerdotes ou a obscurecer a nossa visão sacerdotal deve
forçosamente contribuir para nos tornar inaptos para o
serviço que somos chamados a prestar e para a guerra que
somos chamados a sustentar.
São de peso estas considerações. Fixemo-nos nelas. O
coração tem de ser reto, a consciência pura, o olhar
simples, e a visão espiritual límpida. Os interesses da
alma no lugar santo devem ser fiel e diligentemente
servidos, de outro modo tudo irá mal. A comunhão particular
com Deus deve ser mantida, de contrário seremos inúteis,
como servos, e como guerreiros, seremos vencidos. E inútil
apresarmo-nos e correr cá e lá, naquilo que chamamos
serviço ou entregarmo-nos a palavras ocas sobre a armadura
e a luta do cristão.
Se não conservamos as nossas vestes sacerdotais e se não
nos guardamos de tudo quanto possa excitar a nossa natureza
certamente cairemos. O sacerdote deve guardar
cuidadosamente o seu coração, de contrário como levita
falhará, e como guerreiro será derrotado.
É, repito, dever de cada um dar-se conta do que, para ele,
constitui o "vinho e a bebida forte", o que é que o excita,
e o que afeta a sua percepção espiritual ou ofusca a sua
visão sacerdotal. Pode ser um leilão, uma feira de gado, um
periódico, ou uma ninharia. Não importa o que seja, se
contribui para nos excitar, seremos desclassificados para o
ministério sacerdotal; e se somos desclassificados como
sacerdotes, somos inúteis para tudo. Porque o nosso êxito,
por todos os lados em todos os pormenores do ministério,
depende da medida em que cultivarmos um espírito de
adoração.
Portanto, exercitemo-nos num espírito de autocrítica, e
redobremos de vigilância sobre os nossos hábitos, a nossa
conduta e a escolha das nossas companhias; e quando, pela
graça, descobrimos qualquer coisa que, de algum modo,
contribui para nos tornar inaptos para os santos exercícios
do santuário, deixemo-la, custe o que custar. Não nos
deixemos escravizar por qualquer hábito. A comunhão com
Deus deve ser mais querida dos nossos corações do que
qualquer coisa mais; e na medida em que apreciarmos essa
comunhão vigiaremos e oraremos e estaremos em guarda contra
tudo que pode privar-nos dela — tudo quanto possa excitar,
turbar ou prejudicar (1).

Como Permanecer na Presença Divina quando a Carne Acabou se


Manifestando?
"E disse Moisés a Arão, e a Eleazar, e a Itamar, seus
filhos, que lhe ficaram: Tomai a oferta de manjares,
restante das ofertas queimadas ao SENHOR, e comei-a sem
levedura junto ao altar, porquanto uma coisa santíssima é.
Portanto, o comereis no lugar santo; porque isto é a tua
porção e a porção de teus filhos, das ofertas queimadas do
Senhor: porque assim me foi ordenado" (versículos 12 e 13).
Poucas coisas há em que somos tão propensos a cair como no
cumprimento do padrão divino, quando a fraqueza humana
prevalece. Somos como Davi, quando o Senhor feriu a Uza,
por causa do seu pecado estendendo a mão sobre a arca. "E
naquele dia temeu Davi ao SENHOR, dizendo: Como trarei a
mim a arca de Deus?"

______________
(1) Alguns poderão pensar talvez que a linguagem de
Levítico 10:9 lhes proporciona ocasional condescendência
nas coisas que contribuem para excitar a mente, visto que
se diz "vinho nem bebida forte... bebereis, quando
entrardes na tenda da congregação". A isto podemos
retorquir que o santuário não é um lugar para o crente
visitar ocasionalmente, mas sim, um lugar em que ele
habitualmente vai servir e adorar. É a esfera em que ele
deve viver e mover-se, e existir. Quanto mais perto de Deus
vivemos, menos podemos passar sem a Sua presença; e ninguém
que conheça o gozo profundo de ali estar poderá
condescender a qualquer coisa que o prive desse lugar. Não
existe dentro dos limites da terra coisa alguma que possa
constituir um substituto para a mente espiritual, para uma
hora de comunhão com Deus.

(1 Cr 13:12). E imensamente difícil alguém curvar-se ante o


juízo divino, e, ao mesmo tempo, manter-se bem sobre o
fundamento divino. A tentação está em baixar o padrão do
seu alto nível para se tomar o terreno humano. Devemos
precaver-nos cuidadosamente contra este mal, tanto mais
perigoso quanto é certo que se reveste de uma aparência de
modéstia, desconfiança e humildade.
Aarão e seus filhos, apesar de tudo que tinha acontecido,
deviam comer a oferta de manjares no lugar santo. Deviam
comê-la, não porque tudo tinha corrido bem, mas porque "é a
tua porção", e "assim me foi ordenado". Ainda que tivesse
havido pecado, contudo, o lugar deles era no tabernáculo; e
os que ali permaneciam tinham certos "deveres" baseados
sobre o mandamento divino. Ainda que o homem tivesse
falhado dez mil vezes, a Palavra do Senhor não podia
falhar; e essa Palavra assegurava certos privilégios para
todos os verdadeiros sacerdotes, que eles podiam usufruir.
Os sacerdotes de Deus não deviam ter nada de comer, nenhum
alimento sacerdotal, porque se havia cometido uma faltai
Devia consentir-se que os que haviam ficado morressem de
fome porque Nadabe e Abiú tinham oferecido "fogo estranho"?
Não, de modo nenhum, Deus é fiel, e nunca poderá consentir
que alguém esteja faminto na sua bendita presença. O filho
pródigo pode vaguear, dissipar toda a sua fazenda e chegará
indigência; mas a verdade permanece que "na casa de meu Pai
há abundância de pão".
"Também o peito da oferta do movimento e a espádua da
oferta alçada comereis em lugar limpo, t u, e teus filhos,
e tuas filhas contigo; porque foram dados por tua porção, e
por porção de teus filhos, dos sacrifícios pacíficos dos
filhos de Israel... o que será por estatuto perpétuo...
como o SENHOR tem ordenado" (versículos 14 e 15). Que força
e que estabilidade temos aqui! Todos os membros da família
sacerdotal, "filhos" e "filhas", todos, qualquer que fosse
a medida da sua energia ou capacidade, deviam alimentar-se
do "peito" e da "espádua", figuras do afeto e poder d
'Aquele que é a verdadeira oferta de manjares, ressuscitado
de entre os mortos e apresentado diante de Deus. Este
precioso privilégio pertencia-lhes "por estatuto perpétuo,
como o Senhor tinha ordenado". Isto torna tudo "seguro e
firme", haja o que houver. Muitos podem faltar e pecar;
podem chegar a oferecer fogo estranho, porém a família
sacerdotal de Deus não pode ser privada da rica e graciosa
porção que o amor divino instituiu e a fidelidade divina
lhe assegura "por estatuto perpétuo".
Contudo, devemos distinguir entre os privilégios que
pertenciam a todos os membros da família de Aarão, tanto a
"filhos" como a "filhas", e aqueles que só podiam ser
desfrutados pelos varões dessa família. Já fizemos alusão a
isto no estudo sobre as ofertas. Há certas bênçãos que são
comuns a todos os crentes, simplesmente por serem crentes;
mas há outras que requerem uma maior medida de conhecimento
espiritual e energia sacerdotal para serem aprendidas e
gozadas. Ora, é pior do que presunção, sim, é irreverente,
pretender gozar esta mais alta medida de bênção, quando, na
realidade, não a possuímos. Uma coisa é reter com firmeza
os privilégios que nos são "dados" por Deus, e nunca nos
podem ser tirados, e outra assumir uma capacidade
espiritual que nunca chegamos a obter. Sem dúvida, devíamos
desejar ardentemente a mais alta medida de comunhão
sacerdotal, a mais elevada ordem de privilégios
sacerdotais, mas desejar uma coisa não é o mesmo que
permitir tê-la.

Uma Omissão no Serviço


Este pensamento lança luz sobre o último parágrafo do nosso
capítulo. "E Moisés diligentemente buscou o bode da
expiação, e eis que já era queimado; portanto, indignou-se
grandemente contra Eleazar e contra Itamar, os filhos que
de Arão ficaram, dizendo: Por que não comestes a oferta
pela expiação do pecado no lugar santo? Pois uma coisa
santíssima é e o SENHOR a deu a vós, para que levásseis a
iniquidade da congregação, para fazer expiação por eles
diante do SENHOR. Eis que não se trouxe o seu sangue para
dentro do santuário; certamente havíeis de comê-la no
santuário, como eu tinha ordenado. Então, disse Arão a
Moisés: Eis que hoje meus filhos ofereceram a sua oferta
pela expiação de pecado e o seu holocausto perante o
SENHOR, e tais coisas me sucederam; se eu hoje tivesse
comido a oferta pela expiação do pecado, seria, pois,
aceito aos olhos do SENHORA E Moisés ouvindo isto, Arão foi
aceito aos seus olhos".
Ás filhas de Arão não era permitido comer da "oferta pelo
pecado". Este alto privilégio pertencia só aos "filhos" e
era uma figura da forma mais elevada de serviço sacerdotal.
Comer da oferta pelo pecado era expressão de plena
identificação como o ofertante, e isto requeria capacidade
espiritual e energia de que "os filhos de Arão" eram
figuras. Nesta ocasião, porém, é evidente que Arão e seus
filhos não estavam na condição espiritual de se elevarem a
tão alto e santo princípio. Deviam estar nessa posição, mas
não estavam. "Tais coisas me sucederam", disse Arão. Era
sem dúvida uma falta deplorável; mas, ainda assim, "Moisés,
ouvindo isto, Arão foi aceito aos seus olhos". Vale muito
mais sermos sinceros na confissão das nossas faltas e
negligência do que pretendermos ter uma força espiritual
que de fato não possuímos.
Assim, pois, o capítulo décimo do Livro de Levítico começa
com um pecado positivo e termina com um pecado de omissão.
Nadabe e Abiú ofereceram "fogo estranho" e Eleazar e Itamar
mostraram-se incapazes de comer da "oferta da expiação".
Para o pecado dos primeiros houve o juízo divino; para a
omissão dos últimos houve indulgência divina. Não podia
haver tolerância para o "fogo estranho". Equivalia a
menosprezar abertamente o mandamento expresso de Deus.
Evidentemente, há uma grande diferença entre a transgressão
deliberada de um mandamento positivo e a simples
incapacidade de se elevar à altura de um privilégio divino.
O primeiro caso é afrontar abertamente a Deus; o último
caso é a perda de uma bênção que está ao seu dispor. Não
deveria ter ocorrido nem uma falta nem a outra, mas a
diferença entre uma e a outra é fácil de compreender.
Que o Senhor, em Sua graça infinita, nos guarde para que
sempre possamos habitar no retiro da Sua santa presença,
permanecendo em Seu amor e alimentando-nos da Sua verdade.
Assim seremos preservados do "fogo estranho" e da "bebida
forte", quer dizer, de um culto falso, seja de que espécie
for, e da excitação carnal sob todas as suas formas. Assim
também seremos capazes de nos conduzir dignamente em todo o
sentido na administração sacerdotal e de gozar todos os
privilégios da nossa posição de sacerdotes. A comunhão de
um crente é como uma planta mimosa; a qual é facilmente
magoada pelas bruscas influências de um mundo mau.
Desenvolver-se-á sob a ação propícia do ar do céu; mas
contrai-se ao primeiro sopro glacial. Recordemos estas
coisas e procuremos estar sempre no recinto sagrado da
presença divina. Ali tudo é puro, seguro e feliz.

— CAPITULO 11 —

ANIMAIS PUROS E ANIMAIS IMPUROS

Introdução
O Livro de Levítico pode ser considerado "o guia do
sacerdote", porque é esta a sua característica. Está cheio
de princípios para orientação dos que desejam gozar de
intimidade com Deus no serviço sacerdotal. Tivesse Israel
continuado a andar com o Senhor segundo a graça pela qual
Ele os havia acabado de tirar da terra do Egito, e eles
teriam sido, para Si, "um reino sacerdotal e povo santo"
(Ex 19:6). Foi isto porém que deixaram de fazer. Afastaram-
se, colocaram-se debaixo da lei e não puderam cumpri-la.
Por isso, o Senhor teve de eleger determinada tribo, e
dessa tribo uma certa família, e dessa família determinado
homem, e a esse homem e seus filhos foi dado o elevado
privilégio de se aproximarem de Deus como sacerdotes.
Ora os privilégios de uma tal posição eram imensos; mas ela
tinha também as suas grandes responsabilidades. Requeria o
exercício constante de um espírito de discernimento. "Os
lábios do sacerdote guardarão a ciência, e da sua boca
buscarão a lei, porque ele é o anjo do SENHOR dos
Exércitos" (Mq 2:7). O sacerdote não só devia levar o juízo
da congregação perante o Senhor, como também expor as
ordenações do Senhor à congregação. Devia ser o instrumento
sempre pronto de comunicação entre o Senhor e a assembleia.
Não só devia conhecer, pessoalmente, os pensamentos de
Deus, como interpretá-los para o povo.
Tudo isto requeria naturalmente uma vigilância contínua,
uma atenção permanente e um estudo constante das páginas
inspiradas, a fim de assimilar, até ao íntimo da sua alma,
todos os preceitos, juízos, estatutos, leis, mandamentos e
ordenações do Senhor Deus de Israel, de forma a poder
instruir a congregação nas "coisas que deviam ser feitas".
Não havia lugar para caprichos ou invenções, nem para as
interferências plausíveis do homem ou invenções astutas de
conveniência humana. Tudo fora prescrito com precisão
divina e a peremptória autoridade da expressão "assim diz o
SENHOR". Minuciosos como eram os pormenores dos
sacrifícios, ritos e cerimônias, não foi deixado lugar para
a imaginação do homem. Nem sequer lhe era permitido decidir
qual a espécie de sacrifício que se devia oferecer em
qualquer ocasião, nem de que maneira devia apresentar-se
esse sacrifício. O Senhor havia previsto tudo. Nem o
sacerdote nem a congregação tinham qualquer autoridade para
decretar, estabelecer ou sugerir tanto como um simples
pormenor na larga série das ordenações da dispensação
mosaica. Tudo era ordenado pela Palavra do Senhor; o homem
só tinha de obedecer.
Para o coração obediente isto constituía uma misericórdia
indizível. É absolutamente impossível dar o valor devido ao
privilégio de podermos recorrer à Palavra de Deus e
encontrar nela, dia a dia, instruções completas sobre todos
os pormenores respeitantes à fé e ao nosso serviço.
Tudo que necessitamos é uma vontade submissa, um espírito
humilde, e um coração sincero. O livro que Deus deu para
nos guiarmos é tão completo como podíamos desejar. Nada
mais precisamos. Imaginar, ainda que seja por momentos, que
alguma coisa pode ser acrescentada pela sabedoria humana
constitui um insulto feito ao cânone sagrado. Ninguém pode
ler o Livro de Levítico sem admirar o extremo cuidado do
Deus de Israel em proporcionar ao Seu povo instruções tão
pormenorizadas quanto a tudo que se refere ao Seu serviço e
culto. O leitor mais superficial poderá, ao menos, aprender
esta interessante e proveitosa lição.
Atualmente, mais do que em qualquer outra época, é
necessário fazer chegar esta lição aos ouvidos da Igreja
professa. De toda a parte surgem dúvidas sobre a
suficiência divina das Sagradas Escrituras. Nalguns casos
estas dúvidas são expressas abertamente e com
propósito deliberado; noutros, com menos frequência, são
insinuadas encobertamente por meio de alusões ou
inferências. Dizem ao navegante cristão, direta ou
indiretamente, que a carta divina não basta para os
múltiplos e complicados pormenores da viagem—que tem havido
tantas alterações no oceano da vida, desde que essa carta
foi feita, que, em muitos casos, é inteiramente deficiente
para os propósitos da moderna navegação.
Dizem-lhes que as correntes, marés, costas, canais e praias
desse oceano são totalmente diferentes agora do que eram há
alguns séculos, e que, por conseguinte, temos de recorrer
ao auxílio, que a moderna navegação dispensa, a fim de
suprir as deficiências da velha carta, a qual, admitem, de
fato, ter sido perfeita para a época em que foi escrita.
O nosso veemente desejo é que o leitor cristão possa, com
clareza e decisão, opor-se a este grave insulto feito ao
Livro inspirado, do qual cada linha procede do coração do
Pai, e foi escrita por homens inspirados por Deus Espírito
Santo. Desejamos que possa contestar esse insulto, quer ele
se apresente sob a forma de uma audaz blasfêmia ou sob uma
astuciosa e plausível inferência. Seja qual for o disfarce
com que se apresente, deve a sua origem ao inimigo de
Cristo, que é o inimigo da Bíblia e inimigo da alma.
Se, na verdade, a Palavra de Deus não fosse suficiente,
então, em que situação ficaríamos? Para onde nos
voltaríamos? A quem nos dirigíamos pedindo socorro se o
Livro do nosso Pai fosse, de algum modo, defeituoso? Deus
diz que o Seu livro "pode instruir-nos perfeitamente para
toda boa obra" (2 Tm 3:17). O homem diz: não; há muitas
coisas sobre as quais a Bíblia não se pronuncia, e que,
todavia, precisamos de saber. Em quem devemos crer? Em Deus
ou nos homens? A nossa resposta aos que põem em dúvida a
divina suficiência da Escritura é simplesmente esta: Ou não
és homem de Deus, ou aquilo para que buscas encontrar
aprovação não é "uma boa obra". Isto é bem claro e ninguém
poderá vê-lo de outro modo se considerar cuidadosamente a
passagem de 2 Timóteo 3:17.
Oh, se tivéssemos um sentimento mais profundo da plenitude,
da majestade e da autoridade da Palavra de Deus! Temos
absoluta necessidade de ser fortificados neste ponto.
Precisamos de um sentimento profundo, vigoroso e constante
da autoridade suprema do cânone sagrado e da sua completa
suficiência para todos os tempos, climas e posições, para
todos os estados pessoais, sociais, e eclesiásticos, de
modo a podermos resistir a todos os esforços que o inimigo
faz para depreciar este inestimável tesouro. Que os nossos
corações compreendam mais do espírito destas palavras do
Salmista: "A tua palavra é a verdade desde o princípio, e
cada um dos teus juízos dura para sempre " (SI 119:160).
Esta série de pensamentos foi-nos sugerida no decorrer da
análise ao capítulo onze do Livro de Levítico. Nele vemos
como o Senhor faz uma descrição admirável em pormenores dos
animais, aves, peixes e répteis, dando ao Seu povo os
sinais para poderem conhecer os que eram limpos e os que
eram imundos. A súmula de todo este notável capítulo
encontra-se nos últimos dois versículos: "Esta é a lei dos
animais, e das aves, e de toda alma vivente que se move nas
águas, e de toda alma que se arrasta sobre a terra, para
fazer diferença entre o imundo e o limpo, e entre os
animais que se podem comer e os animais que não se devem
comer."

Animais que Remoem e Têm Unhas Fendidas


No que dizia respeito aos animais, duas coisas eram
essenciais para se poderem considerar limpos, era preciso
que remoessem e tivessem as unhas fendidas. "Tudo o que tem
unhas fendidas, e a fenda das unhas se divide em duas, e
remói, entre os animais, aquilo comereis." Um só destes
sinais seria insuficiente para determinar a pureza segundo
a lei cerimonial. Exigia-se a existência dos dois. Ora se
estes dois sinais bastavam para o israelita se orientar
quanto à pureza ou impureza dos animais, sem qualquer
explicação acerca dos motivos ou significado das
características, o cristão, contudo, tem liberdade de
inquirir sobre as verdades espirituais contidas nessas leis
cerimoniais.
Que nos ensinam, portanto, os dois sinais num animal limpou
A ação de ruminar exprime o processo natural de "digerir
interiormente" os alimentos que se comem; enquanto que a
unha fendida representa o caráter da nossa conduta. Existe,
como sabemos, uma íntima relação entre estas duas coisas na
vida cristã. O que se alimenta dos verdes pastos da Palavra
de Deus, e assimila no íntimo o que tomou — o que é capaz
de combinar a meditação calma com o estudo acompanhado de
oração, manifestará, sem dúvida, na sua conduta um caráter
capaz de glorificar Aquele que graciosamente nos deu a Sua
Palavra para formar os nossos hábitos e dirigir os nossos
caminhos.

Digerir a Palavra
É de recear que muitos dos que leem a Bíblia não assimilem
a Palavra. Estas duas coisas são completamente diferentes.
Uma pessoa pode ler capítulo após capítulo, livro após
livro, e não assimilar uma só linha. Podemos lera Bíblia
como se cumpríssemos uma rotina monótona; porém, por falta
de faculdades assimiladoras — de órgãos digestivos — não
tiramos nenhum proveito com a leitura. Devemos ter isto bem
presente em nosso pensamento. O gado que pasta na erva
verde pode ensinar-nos uma salutar lição. Primeiro,
alimenta-se diligentemente do refrescante pasto, depois
repousa tranquilo a remoê-lo. Belo e admirável quadro do
cristão alimentando-se do conteúdo precioso do volume
inspirado, para depois o digerir intimamente. Que esta
experiência se generalize mais e mais entre nós! Se
estivéssemos mais habituados a fazer da Palavra de Deus o
alimento necessário às nossas almas, o nosso estado seria
certamente mais vigoroso e salutar. Guardemo-nos de fazer
da leitura da Bíblia uma forma morta, um dever frio, um
trabalho de rotina religiosa.
O mesmo cuidado é necessário quanto à exposição pública da
Palavra de Deus. Que os que expõem as Escrituras aos seus
semelhantes se alimentem previamente delas e as digiram por
si mesmos. Que leiam e assimilem, em particular, não apenas
para os outros, mas para si mesmos. É triste ver um homem
ocupado continuamente em procurar alimento para outros,
enquanto que ele próprio morre de fome. Por outro lado os
que assistem ao ministério público da Palavra não devem
fazê-lo maquinalmente e por força de hábito religioso, mas,
sim, com o sincero desejo de "ler", tomar nota, aprender e
assimilar intimamente o que ouvem. Assim os que ensinam e
os que são ensinados gozarão de uma vida espiritual sã e
bem provida e manifestar-se-á o caráter próprio da vida
cristã.

A Vida Interior e a Conduta Exterior Vão Juntas


Mas é preciso recordar que, além de remoer, o animal
deveria ter as unhas fendidas. Quem não conhecesse bem o
guia do sacerdote e não tivesse experiência do cerimonial
divino, poderia declarar limpo qualquer animal só porque o
via a remoer. Isto teria sido um erro sério. Uma mais
cuidadosa atenção ao guia divino mostraria imediatamente
que devia observar também o andar do animal— devia observar
as marcas deixadas por cada movimento —, devia olhar para o
resultado de ter as unhas fendidas. "Destes, porém, não
comereis: dos que remoem ou dos que têm unhas fendidas: o
camelo, que remói, mas não tem unhas fendidas; este vos
será imundo" (versículo 4).
Igualmente, as unhas fendidas não eram característica
suficiente se não fossem acompanhadas pela faculdade de
remoer. "O porco, porque tem unhas fendidas, e a fenda das
unhas divide em duas, mas não remói; este vos será imundo"
(versículo 7). Em suma, as duas coisas eram inseparáveis no
caso de cada animal limpo; quanto à aplicação espiritual é
da máxima importância sob o ponto de vista prático. A vida
íntima e a conduta devem harmonizar-se. Um homem pode
professar amar a Palavra de Deus — alimentar-se dos verdes
pastos da alma — de a estudar e assimilar; mas se as suas
pisadas na senda da vida não correspondem ao ensino da
Palavra de Deus esse homem não está limpo.
E, por outro lado, poderá andar aparentemente com rigor
farisaico; mas se o seu caminhar não é o resultado da vida
íntima nada vale. É preciso que haja no íntimo o princípio
divino que toma e digere o rico pasto da Palavra de Deus;
de outro modo a marca dos seus passos de nada servirá. O
valor de cada característica depende da sua inseparável
relação com a outra.
Isto traz-nos forçosamente à memória uma solene passagem da
Primeira Epístola de João, na qual o apóstolo nos apresenta
as duas características pelas quais podemos conhecer os que
são de Deus: "Nisto são manifestos os filhos de Deus, e os
filhos do diabo: qualquer que não pratica a justiça e não
ama a seu irmão não é de Deus" (1 Jo 3:10). Aqui temos as
duas grandes características da vida eterna e que todos os
verdadeiros crentes possuem, a saber, "justiça" e "amor". O
sinal exterior e o interior. Ambos devem coexistir.
Alguns cristãos professos argumentam só com o amor, assim
chamado; outros com a justiça. Segundo Deus, não pode
existir um sem o outro. Se aquilo a que chamam amor existe
sem a justiça prática, não será, na realidade, mais que uma
disposição de espírito débil e condescendente, que tolera
toda a espécie de erro e de mal. E se o que chamam justiça
sem o amor, isso pode, quando muito, revelar a disposição
de uma alma severa, orgulhosa, farisaica e egoísta, assente
na miserável base de reputação pessoal. Porém, sempre que a
vida divina está em vigor haverá caridade interior aliada a
uma sincera justiça prática. Estes dois elementos são
essenciais para a formação do verdadeiro caráter cristão. E
preciso que haja o amor que se manifesta pelas mais
insignificantes coisas de Deus, e, ao mesmo tempo, a
santidade que retrocede com horror ante tudo que é de
Satanás.

Animais Aquáticos
Vejamos agora o que o cerimonial levítico nos ensina acerca
de "tudo o que há nas águas". Aqui também encontramos a
dupla marca. "Isto comereis de tudo o que há nas águas:
tudo o que tem barbatanas e escamas nas águas, nos mares e
nos rios; aquilo comereis. Mas tudo o que não tem
barbatanas nem escamas, nos mares e nos rios, todo réptil
das águas, e toda alma vivente que há nas águas, estes
serão para vós abominação" (versículos 9 e 10). Duas coisas
eram necessárias para que um peixe fosse considerado limpo,
no sentido cerimonial, "barbatanas e escamas", que,
evidentemente, representavam certa aptidão para o elemento
e o meio em que deviam mover-se.
Porém, havia mais do que isso. Creio que temos o privilégio
de poder discernir nas propriedades naturais com que Deus
dotou as criaturas que vivem nas águas certas qualidades
espirituais que pertencem à vida cristã. Se o peixe precisa
de "barbatanas" para se mover na água e de "escamas" para
resistir à ação desse elemento, também o crente precisa de
força espiritual para poder avançar através da cena que o
rodeia e, ao mesmo tempo, resistir à sua influência,
impedindo que ela penetre em si, mantendo-a no exterior.
Estas qualidades são preciosas. As barbatanas e as escamas
têm muita significação e oferecem muita instrução para o
crente. Sob o aspecto cerimonial, elas falam-nos de duas
coisas que nos são particularmente necessárias, a saber:
energia espiritual para avançarmos através do elemento que
nos rodeia e força para nos preservar da sua ação. De nada
nos servirá uma sem a outra. É inútil possuir a força
necessária para avançar através do mundo, se não podemos
resistir à influência do mundo; e ainda que pareça sermos
capazes de resistir à influência mundana, contudo, se nos
falta a força somos defeituosos. As "barbatanas" sem as
"escamas" não serviriam, nem tampouco as "escamas", sem as
"barbatanas". Ambas eram requeridas para se considerar o
peixe limpo, segundo o cerimonial; e nós, para sermos
adequadamente equipados, precisamos de estar protegidos
contra a influência penetrante de um mundo que jaz no
maligno, e, ao mesmo tempo, dispor de capacidade para
prosseguir rapidamente.
A conduta de um cristão deve mostrar que ele é estrangeiro
e peregrino na terra. A sua divisa deve ser "avançar";
sempre e unicamente avançar. Sejam quais forem as suas
circunstâncias, ele deve ter os seu s olhos postos no lar
que está para além deste mundo passageiro. Está dotado,
pela graça, de capacidade espiritual para ir avante — para
vencer energicamente todos os obstáculos e realizar as
ardentes aspirações do seu espírito nascido do céu. E,
enquanto prossegue assim vigorosamente, "forçando a sua
passagem para os céus", ele tem de guardar e proteger o seu
homem interior contra todas as influências exteriores.
Oh, se fôssemos mais inclinados a avançar! Se tivéssemos
mais apego às coisas que são de cima e mais desprendimento
às coisas deste mundo! Se, devido a estas considerações
sobre as sombras cerimoniais do Livro de Levítico,
chegarmos a desejar mais ardentemente esses dons, que,
embora tão obscuramente representados, nos são, contudo,
tão necessários, teremos motivos para bendizer ao Senhor.

As Aves
Nos versículos 13 a 24 do nosso capítulo temos a lei
respeitante às aves. Todas as que eram da espécie
carnívora, isto é, todas as que se alimentavam de carne,
eram imundas. As onívoras, ou as que comiam de tudo, eram
imundas. Todas as que, embora dotadas da faculdade de se
elevarem aos céus, se arrastavam na terra, eram imundas.
Quanto a esta última classe havia exceções (versículos 21 e
22); mas a regra geral, o princípio determinado, a
ordenação em vigor, eram tão distintos quanto possível:
"todo réptil que voa, que anda sobre quatro pés, será para
vós uma abominação" (versículo 20). Tudo isto é muito
simples como meio de instrução para nós. As aves que se
alimentavam de carne; as que ingeriam tudo; e todos os
répteis que voavam, deviam ser considerados imundos para o
Israel de Deus, pois assim o determinara o Deus de Israel.
O homem espiritual não terá dificuldade em reconhecer a
conveniência de semelhante ordenação. Nos hábitos das três
classes de aves citadas aqui podemos ver não só o motivo
lógico por que eram declaradas imundas, mas também a
admirável representação daquilo que existe na natureza
humana, e de que todo o verdadeiro cristão deve guardar-se.
Deve recusar tudo quanto seja de natureza carnal. Além
disso não deve alimentar-se indistintamente de tudo que lhe
é apresentado. Deve provar se "as coisas em que se
discorda" são puras. Deve ter cautela com tudo que ouve.
Deve exercer juízo espiritual sobre todas as coisas,
discernindo-as segundo o discernimento divino. Finalmente,
deve usar, por assim dizer, as suas asas — deve elevar-se
por meio das asas da fé ao seu lugar na esfera celeste a
que pertence. Em resumo, não deve haver nada vil, nada
confuso, nada imundo na vida do cristão.

Os Répteis
Quanto aos répteis a regra era a seguinte: "Todo réptil que
se arrasta sobre a terra será abominação; não se comerá"
(versículo 41).
Quão admirável é a graça condescendente do Senhor! Pode
curvar-Se para dar instruções acerca de um réptil! Não
queria deixar o Seu povo embaraçado acerca das coisas mais
vulgares. O guia do sacerdote continha as mais
pormenorizadas instruções sobre todas as coisas. Deus não
queria que o Seu povo fosse contaminado por causa do
contato com o que era imundo, nem que provasse o que era
imundo. Eles não pertenciam a si próprios, e, portanto, não
deviam proceder como bem lhes parecesse. Pertenciam ao
Senhor, invocavam o Seu nome; estavam identificados com
Ele.
A Sua Palavra devia ser a sua regra de conduta em todas as
coisas. Por ela deviam aprender o estatuto cerimonial
relativo aos animais, às aves, aos peixes e répteis. Não
deviam apoiar-se nos seus próprios pensamentos, seguir o
seu raciocínio ou deixarem-se guiar pelas suas próprias
imaginações, em assuntos desta natureza. A Palavra de Deus
devia ser o seu único guia. As outras nações podiam comer o
que entendessem; mas Israel gozava o grande privilégio de
só comer o que era do agrado do Senhor.

A Santidade de Deus e a Santidade do Crente


O povo de Deus devia não só guardar-se ciosamente de comer
o que era imundo, como até o simples contato estava
proibido (veja-se os versículos 8,24,26 a 28,31 a 41). Era
impossível que qualquer membro do Israel de Deus tocasse no
que era imundo sem se tornar impuro. Este princípio é
amplamente desenvolvido tanto na lei como nos profetas.
"Assim diz o SENHOR dos exércitos: Pergunta, agora, aos
sacerdotes, acerca da lei, dizendo: Se alguém leva carne,
santa na aba da sua veste, e com a aba tocar no pão, ou no
guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em qualquer outro
mantimento, ficará este santificado? E os sacerdotes,
respondendo, diziam: Não. E disse Ageu: Se alguém, que se
tinha tornado impuro pelo contato com um corpo morto, tocar
nalguma destas coisas, ficará isso imundo? E os sacerdotes,
respondendo, diziam: Ficará imunda." (Ag 2:11 -13). O
Senhor queria que o Seu povo fosse santo em todas as
coisas. Não deviam comer nem tocar em qualquer coisa que
fosse imunda. "Não façais as vossas almas abomináveis por
nenhum réptil que se arrasta, nem neles vos contamineis,
para não serdes imundos por eles". Depois vem a razão
poderosa desta separação. "Porque eu sou o SENHOR VOSSO
Deus; portanto, vós vos santificareis, sereis e santos,
porque eu sou santo; e não contaminareis a vossa alma por
nenhum réptil que se arrasta sobre a terra. Porque eu sou o
SENHOR, que vos faço subir da terra do Egito, para que eu
seja vosso Deus, e para que sejais santos porque eu sou
santo"; (versículos 43-45). É conveniente notar que a
santidade pessoal do povo de Deus— a sua inteira separação
de toda a espécie de imundície, provém das suas relações
com Ele. Não se baseia sobre o princípio de "Afasta-te de
mim, porque sou mais santo do que tu"; mas simplesmente
sobre isto: "Deus é santo", e portanto todos os que estão
em relação com Ele devem ser santos também. A dignidade de
Deus requer, em todo o sentido, que o Seu povo seja santo.
"Mui fiéis são os teus testemunhos: a santidade convém à
tua casa, Senhor, para sempre". Que poderia convir à casa
de Jeová senão a santidade? Se se perguntasse a um
israelita: "Porque recuas assim desse réptil que rasteja
pelo caminhou" Ele responderia: Jeová é santo e eu
pertenço-Lhe. Ele disse: "Não lhe tocarás". Assim também
agora se alguém pergunta a um cristão porque é que ele se
mantém separado de mil e uma coisas em que os homens do
mundo tomam parte, a sua resposta deve ser simplesmente
esta: "O meu Pai é santo." Este é o verdadeiro fundamento
da santidade pessoal. Quanto mais contemplarmos o caráter
divino e compreendermos a importância das nossas relações
com Deus, em Cristo, pela energia do Espírito Santo, tanto
mais santos seremos na prática. Não pode haver progresso no
estado de santidade em que o crente é introduzido; mas há,
e deveria haver, progresso na apreciação, experiência e
manifestação prática desta santidade. Estas coisas nunca
devem confundir-se. Todos os crentes estão na mesma
condição de santidade ou de santificação; mas a sua medida
prática pode variar até ao infinito. Isto é fácil de
compreender. A condição resulta de havermos sido trazidos
perto de Deus pelo sangue da cruz; a medida prática depende
de nos mantermos perto pelo poder do Espírito. Não é que
alguém possa arrogar-se de possuir alguma coisa superior —
um grau de santidade mais elevado do que geralmente se
possui — para de algum modo ser melhor do que o seu
próximo. Tais pretensões são inteiramente condenáveis aos
olhos de qualquer pessoa inteligente.
Mas se Deus, em Sua graça infinita, desce até o estado
baixo em que nos encontramos para nos elevar à altura da
Sua bendita presença, identificados com Cristo, não terá
então o direito de determinar qual deve ser o nosso
caráter, visto havermos sido trazidos perto? Quem ousaria
pôr em dúvida uma verdade tão evidente? Ainda mais, não
devemos nós procurar manter este caráter que Ele nos
atribuiu Devemos ser acusados de presunção se o fizermos?
Era presunção para um israelita recusar tocar um réptil?
Não, mas seria atrevida e perigosa presunção fazê-lo. É
possível que não conseguisse fazer com que um estrangeiro
incircunciso compreendesse ou apreciasse o motivo da sua
conduta, mas isso não era da sua competência. Se o Senhor
havia dito "Não lhe toques" não era porque um israelita, em
si mesmo, fosse mais santo que um estrangeiro, mas porque o
Senhor é santo, e Israel pertencia-Lhe. O discípulo
circuncidado da lei de Deus tinha de aplicar os olhos e o
coração para discernir o que era limpo e o que não era. Um
estrangeiro não via diferença. Assim deve ser sempre. Só os
filhos da Sabedoria podem justificá-la e aprovar os seus
celestiais ensinos.

A Experiência de Pedro em Atos 10


Antes de deixar o capítulo décimo primeiro de Levítico, o
leitor pode, com muito proveito espiritual, compará-lo com
o capítulo décimo de Atos dos Apóstolos versículos 11 a 16.
Quão estranho devia ter parecido àquele que havia sido
educado desde a infância nos princípios do ritual Moisaico,
ver descer do céu um vaso "no qual havia de todos os
animais, quadrúpedes e répteis da terra e aves do céu"; e
não só ver um tal vaso, tão repleto, como ouvir uma voz que
dizia: "Levanta-te, Pedro, mata e come".
Coisa maravilhosa! Não examinar as unhas dos animais ou
verificar os seus hábitos! Não havia necessidade disso. O
vaso e o seu conteúdo tinham descido do céu. Isto bastava.
O Judeu podia entrincheirar-se atrás das estreitas
barreiras do ritual Judaico e exclamar: "De modo nenhum,
Senhor, porque nunca comi coisa alguma comum ou imunda";
mas a maré da graça divina elevava-se majestosamente por
cima dessas barreiras a fim de abranger no seu vasto
contorno "toda a sorte de objetos", e de elevá-los na
direção do céu, no poder e na autoridade daquelas preciosas
palavras: "Não faças tu comum ao que Deus purificou." Pouco
importava o que havia no vaso se Deus o havia purificado. O
Autor do Livro de Levítico ia elevar os pensamentos do Seu
servo por cima das barreiras que esse livro tinha erigido a
toda a magnificência da graça celestial. Queria ensinar-lhe
que a verdadeira pureza — a pureza que o céu exigia — já
não consistia no fato de um animal remoer, ter as unhas
fendidas, ou de qualquer marca cerimonial semelhante, mas,
sim, em se ter sido lavado no sangue do Cordeiro, que
purifica de todo o pecado e torna o crente bastante limpo
para trilhar o pavimento de safira dos átrios celestiais.
Era uma notável lição para um judeu aprender. Era uma lição
divina à luz da qual deviam desvanecer-se as sombras da
antiga economia. A mão da graça soberana abriu de par em
par a porta do reino, mas não para admitir qualquer coisa
que seja imunda. Isto nunca poderia ser. No céu não pode
entrar coisa alguma impura. Portanto, o critério já não
podia ser feito por uma unha fendida, mas sim por aquilo
"que Deus purificou".
Quando Deus purifica um homem é indubitável que está limpo.
Pedro ia ser enviado para abrir o reino aos Gentios, assim
como já o tinha aberto aos Judeus; e era preciso que o seu
coração judaico se dilatasse. Precisava de se elevar acima
das escuras sombras de uma época que passara à luz
esplendorosa que irradiava de um céu aberto em virtude de
um sacrifício consumado. Precisava de sair da corrente
estreita dos preconceitos judaicos e de se deixar levar por
essa poderosa maré de graça que ia espraiar-se sobre todo o
mundo perdido. Tinha também de aprender que o padrão que
devia determinar a verdadeira pureza já não era carnal,
cerimonial e terrestre, mas, sim, espiritual, moral, e
celestial.
Seguramente, podemos dizer que estas lições, que o apóstolo
aprendeu no terraço da casa de Simão, o curtidor, eram
preciosas. Eram as mais próprias para dulcificar, dilatar e
elevar um espírito que havia sido formado no meio de
deprimentes influências do sistema judaico. Demos graças ao
Senhor por estas preciosas lições. Louvemo-Lo pela rica
posição em que nos colocou pelo sangue da cruz. Demos-Lhe
graças por já não estarmos sujeitos às restrições "Não
toques nisto", "não comas isso", "não toques naquilo"
porque a Palavra de Deus declara que "toda a criatura de
Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebido com
ações de graças, porque pela Palavra de Deus e pela oração
é santificada" (1 Tm 4:4 - 5).

— CAPITULO 12 —

A PURIFICAÇÃO DA MULHER
QUE DÁ À LUZ

O Homem Concebido e Nascido em Pecado


Esta pequena parte do Livro de Levítico dá-nos, segundo a
sua forma peculiar, a dupla lição de "A ruína do homem e o
remédio de Deus". Mas ainda que a forma seja peculiar, a
lição é distinta e impressionante — é, ao mesmo tempo,
humilhante e consoladora. O efeito de toda a Escritura,
quando diretamente explicada à nossa alma pelo poder do
Espírito Santo, é produzir em nós o abandono próprio do ego
para nos entregarmos a Cristo. Onde quer que observamos a
nossa velha natureza — seja qual for a fase da sua história
em que a contemplarmos, quer na sua concepção quer no seu
nascimento, ou em qualquer ponto ao longo da sua carreira,
desde o berço ao túmulo — descobrimos o duplo selo da
debilidade e contaminação. E isto que muitas vezes se
esquece no meio da ostentação e pompa, das riquezas e
esplendores da vida humana.
A imaginação do homem é fértil em expedientes para encobrir
a sua humilhação. Procura de diversas maneiras adornara sua
nudez e revestir-se da aparência de força e glória. Mas é
tudo inútil. Basta pensar na sua entrada neste mundo, pobre
e débil criatura: ou quando sai dele para tomar o seu lugar
entre a leiva do vale a fim de terá convincente prova de
que nada valem o seu orgulho e a vaidade de toda a sua
glória. Aqueles cuja passagem por este mundo tem sido
iluminada por aquilo a que o homem chama glória entraram
nele na nudez e debilidade e retiram-se dele pela
enfermidade e morte.
Mas isto não é tudo. Não é só a fraqueza própria do homem
que o distingue ao entrar nesta vida. Existe também o
pecado. "Eis que", diz o Salmista, "em iniquidade fui
formado, e em pecado me concebeu minha mãe" (SI 51:5).
"Como seria puro aquele que nasce da mulher"?-" (Jó 25:4).
No capítulo que estamos analisando vemos que a concepção e
o nascimento de um "varão" implicava "sete dias" de
contaminação cerimonial para a mãe, com trinta e três dias
de separação do santuário, e que estes períodos eram
duplicados no caso do nascimento de uma fêmea. Não haverá
nisto nenhum ensinou Podemos ler isto sem aprender uma
lição humilhante? Não nos ensina, em linguagem
compreensível, que o homem é "impuro" e para ser purificado
carece do sangue da expiação?
O homem pode persuadir-se que tem capacidade para efetuar a
sua própria justiça. Pode alardear inutilmente a dignidade
da natureza humana. Pode dar-se ares de altivez e assumir
arrogância à medida que passa pelo palco da vida; mas se
quiser meditar sobre o curto capítulo que nos ocupa, o seu
orgulho, a sua vaidade, dignidade e própria justiça se
desvanecerão prontamente; e, em seu lugar, poderá encontrar
a base sólida de toda a verdadeira dignidade, assim como o
fundamento da justiça divina, na cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo.

A Mancha Perfeitamente Lavada


A sombra da cruz passa por nós neste capítulo sob um duplo
aspecto. Primeiro, na circuncisão do "menino", pela qual
ele se tornava membro do Israel de Deus; segundo, no
Holocausto e na Oferta de Expiação do pecado, pelos quais a
mãe era restabelecida de todas as influências de
contaminação, e ficava apta outra vez para se aproximar do
santuário e ter contato com as coisas santas. "E, quando
forem cumpridos os dias da sua purificação por filho ou por
filha, trará um cordeiro de um ano por holocausto e um
pombinho ou uma rola para expiação do pecado, diante da
porta da tenda da congregação, ao sacerdote; o qual o
oferecerá perante o SENHOR, e por ela fará propiciação; e
será limpa do fluxo do seu sangue; esta é a lei da que der
à luz varão ou fêmea" (versículos 6-7). A morte de Cristo,
nos seus dois aspectos, surge aqui diante dos nossos
pensamentos, como a única coisa que podia satisfazer a
necessidade de remover perfeitamente a mancha relacionada
com o nascimento natural do homem. O Holocausto representa
a morte de Cristo segundo a apreciação divina; e a Oferta
de Expiação do pecado, por outro lado, representa a morte
de Cristo em relação com as necessidades do pecador.

O Sangue Expiatório de Cristo está à Disposição do Mais


Humilde
"Mas, se a sua mão não alcançar assaz para um cordeiro,
então, tomará duas rolas ou dois pombinhos, um para o
holocausto e outro para a expiação do pecado; assim, o
sacerdote por ela fará propiciação, e será limpa."
Só o derramamento dar sangue podia da purificação. A cruz é
o único remédio para a enfermidade e impureza do homem.
Onde quer que essa obra gloriosa é compreendida, pela fé,
há perfeita purificação. Esta percepção pode ser débil — a
fé pode ser vacilante —, as experiências podem ser
superficiais, mas o leitor deve lembrar-se, para gozo e
conforto da sua alma, que não é a grandeza das suas
experiências, e estabilidade da sua fé, ou o poder da sua
compreensão que podem purificar, mas o valor divino, a
eficácia imutável do sangue de Jesus. Isto proporciona
muito descanso ao coração. O sacrifício da cruz é o mesmo
para cada membro do Israel de Deus, qualquer que seja a sua
categoria na Assembleia. As ternas considerações do Deus de
misericórdia veem-se no fato que o sangue de uma rola era
tão eficaz para o pobre como o sangue de um novilho para o
rico. O pleno valor da obra expiatória era igualmente
demonstrado e mantido nas duas ofertas. Se não fosse assim
um israelita pobre, encontrando-se em qualquer dos casos em
que a lei cerimonial o considerava imundo, e contemplando
os grande rebanhos de algum vizinho rico, poderia exclamar:
"Ai de mim! Que fareis Como poderei purificar-me? Como
poderei reocupar o meu lugar e readquirir os meus
privilégios na Assembleia? Não tenho rebanhos nem manadas.
Sou pobre e necessitado." Porém, bendito seja Deus, este
caso fora previsto. Um pombinho ou uma rola eram
suficientes. A mesma graça perfeita e admirável mostra-se
com esplendor no caso do leproso, no capítulo 14 do nosso
livro:
"Porém, se for pobre, e a sua mão não alcançar tanto,
tomará... uma das rolas ou um dos pombinhos, conforme
alcançar a sua mão. Do que alcançara sua mão... Esta é a
lei daquele em quem estiver a praga da lepra, cuja mão não
pode alcançar o preciso para a sua purificação" (versículos
21 e 30-32).
A graça vai ao encontro do necessitado onde quer que ele
esteja e na condição em que o encontre. O sangue expiatório
está ao alcance do mais humilde, pobre e débil. Todos os
que precisam da graça podem tê-la. "Porém, se for pobre" —
que há - de fazer? Será posto de lado? Oh, não! O Deus de
Israel nunca trataria assim com os pobres e indigentes. Há
ampla provisão para estes nas bondosas expressões:
"Conforme alcançar a sua mão. Do que alcançar a sua mão".
Graça admirável! "Aos pobres é anunciado o evangelho".
Ninguém pode dizer, o sangue de Cristo não está ao meu
alcance.
A todos se pode perguntar: Querias que estivesse ainda mais
ao teu alcancei "Faço chegar a minha justiça", diz o Senhor
(Is 46:13). Até que ponto a faz chegar? Tão perto que é
para "aquele que não pratica, mas crê naquele que justifica
o ímpio" (Rm 4:5). "A palavra está junto de ti". A que
distância? Tão perto que" se com a tua boca confessares ao
Senhor Jesus e, em teu coração, creres que Deus o
ressuscitou dos mortos, serás salvo" (Rm 10:9). O mesmo se
verifica neste tocante e belo convite: "O vós, todos os que
tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro"
(Is 55:1).
Que graça incomparável brilha nestas expressões: "O que não
atua" e "os que não têm dinheiro"! São tão conformes à
natureza de Deus como opostos à do homem. A salvação é tão
livre como o ar que respiramos. Fomos nós que criamos o ar?
- Fomos nós quem combinou os elementos que o compõem? Não;
mas desfrutamo-lo e, usando-o, podemos viver e atuar para
Aquele que o criou. O mesmo sucede no caso da salvação.
Recebemo-la sem nada termos feito. Dispomos das riquezas de
outrem; descansamos na obra consumada por outrem; e, além
disso, é desta maneira que podemos trabalhar para Aquele
cujas riquezas gozamos e em cuja obra descansamos. E um
paradoxo do Evangelho inexplicável para o legalismo, mas
admiravelmente claro para a fé. A graça divina deleita-se
em prover as necessidades dos que não têm meios para as
suprir.

José e Maria eram Pobres


Porém, encontramos ainda outra preciosa lição neste décimo
segundo capítulo de Levítico. Aqui, não só lemos da graça
de Deus para com os pobres, mas, comparando os últimos
versículos com Lucas 2:24, descobrimos a assombrosa
profundidade a que Deus baixou a fim de manifestar essa
graça. Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus manifestado em
carne, o puro e imaculado Cordeiro, o Santo, que não
conheceu pecado, foi "nascido de mulher", e essa mulher—
mistério admirável! —tendo conduzido em seu ventre e dado à
luz esse corpo puro, perfeito, santo e imaculado, teve de
sujeitar-se ao cerimonial e cumprir os dias da sua
purificação, segundo a lei de Moisés. E não só vemos a
graça divina no fato de ela ter assim de purificar-se, mas
também a maneira em que isto se cumpriu: "E para darem a
oferta segundo o disposto na lei do Senhor: um par de rolas
ou dois pombinhos." Esta simples circunstância ensina-nos
que os supostos pais de nosso Senhor Jesus eram tão pobres
que foram forçados a usar a vantagem de graciosa provisão
para os que não podiam dispor de "um cordeiro para o
holocausto".
Que maravilha! O Senhor da glória, o Deus Altíssimo,
Possuidor do céu e da terra. Aquele a quem pertencem "as
alimárias sobre milhares de montanhas" (Sl 50:10 — sim, a
riqueza do universo — surgiu no mundo, que as Suas mãos
haviam criado, nas limitadas circunstâncias de uma vida
humilde. Na economia Levítica havia provisão para os pobres
e a mãe do Senhor Jesus aproveitou dela. Na realidade, há
nisto uma profunda lição para o coração humano. O Senhor
Jesus não entrou neste mundo no meio dos grandes ou nobres.
Foi essencialmente um homem pobre. Tomou o Seu lugar no
meio dos pobres. "Porque já sabeis a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vós se fez
pobre, para que, pela sua pobreza, enriquecêsseis" (2 Co
8:9).
Que o nosso gozo seja sempre alimentarmo-nos desta preciosa
graça de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual temos sido
enriquecidos para o tempo presente e a eternidade. Ele Se
despojou de tudo que o amor pode dar para que nós fôssemos
cheios. Desnudou-Se para que nós fôssemos vestidos. Morreu
para que nós pudéssemos viver. Na grandeza da Sua graça
desceu do alto da riqueza divina até à profundidade da
pobreza humana a fim de que pudéssemos ser elevados da
baixeza da nossa arruinada natureza para ocuparmos o nosso
lugar entre os príncipes do Seu povo, para sempre. Oh, que
o sentimento desta graça, operando em nossos corações pelo
poder do Espírito Santo, possa constranger-nos a uma
rendição incondicional mais efetiva Aquele a quem devemos a
nossa presente e eterna felicidade, a vida, os nossos bens
e tudo!

— CAPÍTULOS 13 e 14 —

A LEI DO LEPROSO

Introdução
Entre todas as funções que, segundo o ritual moisaico, eram
desempenhadas pelo sacerdote, nenhuma requeria atenção mais
paciente ou adesão mais rigorosa às instruções divinas
contidas no guia do sacerdote, do que o discernimento da
lepra e seu tratamento conveniente. Este fato deve ser
evidente a todos os que estudam com alguma atenção a parte
importante e muito extensa do Levítico a que acabamos de
chegar.
Duas coisas requeriam a solicitude e vigilância do
sacerdote, a saber: a pureza da congregação e a graça que
não podia admitir a exclusão de qualquer membro, salvo por
motivos claramente determinados. A santidade não podia
permitir que continuasse dentro da assembleia qualquer
pessoa que devesse ser excluída; e, por outra parte, a
graça não podia permitir que estivesse fora quem devia
estar dentro dela. Por isso, o sacerdote tinha a mais
instante necessidade de ser vigilante, calmo, sensato,
paciente, terno e muito experiente. Certos sintomas podiam
parecer de pouca importância, quando, na realidade, eram
muito graves; outros podiam parecer lepra, sem o ser. Eram
precisos a maior atenção e sangue-frio. Um juízo
precipitado ou uma conclusão demasiado apressada podiam
conduzir a sérias consequências, quer para a congregação
quer para qualquer dos seus membros.
Isto explica a repetição frequente de frases como estas: "O
sacerdote examinará" — "O sacerdote encerrará o que tem a
praga por sete dias" — "O sacerdote ao sétimo dia o
examinará" — "O sacerdote o encerrará segunda vez por sete
dias" — "O sacerdote «o sétimo dia, o examinará outra vez"
— "E o sacerdote o examinará" —
"Então o sacerdote o declarará por limpo". Nenhum caso
devia ser julgado ou decidido precipitadamente. Não se
devia formar uma opinião por ouvir dizer. O exame pessoal,
discernimento sacerdotal, tranquila reflexão, estrita
adesão à Palavra escrita—o guia santo e infalível —, todas
estas coisas eram formalmente requeridas do sacerdote, se
queria fazer um juízo reto de cada caso. Em todas as coisas
ele não devia deixar-se guiar pelos seus próprios
pensamentos, sentimentos ou sabedoria. A Palavra de Deus
continha instruções minuciosas, estabelecidas para se
submeter a elas. Cada pormenor, cada característica, cada
movimento, cada variação, cada sombra e caráter, cada
sintoma particular e cada afeição — tudo estava ampla e
divinamente previsto; de sorte que bastava que o sacerdote
conhecesse bem a Palavra de Deus e se conformasse com ela
em todas as coisas para evitar erros.
Já dissemos o bastante quanto ao sacerdote e suas santas
responsabilidades.

A Lepra
Consideremos agora a praga da lepra e o seu desenvolvimento
numa pessoa, no vestuário ou na habitação.
Considerando esta doença sob o ponto de vista físico, nada
pode ser mais asqueroso; e, sendo inteiramente incurável,
oferece-nos um quadro vivo e aterrador do pecado — o pecado
na natureza humana —, o pecado nas nossas circunstâncias, o
pecado na assembleia.
Que lição para a alma no fato que uma enfermidade tão
horrorosa e humilhante seja empregada como figura do mal
moral, quer seja num membro da assembleia de Deus, quer nas
circunstâncias de qualquer membro ou na própria assembleia.

1. A Lepra num Homem


Primeiramente, quanto à lepra num indivíduo; ou, por outras
palavras, quanto à ação do mal moral ou do que poderia
parecer mal em qualquer membro da assembleia. Isto é um
assunto grave e de séria importância — um assunto que
requer a máxima vigilância e solicitude por parte dos que
desejam o bem das almas e a glória de Deus, relacionada com
o bem-estar e a pureza da Assembleia como corpo e de cada
membro em particular.
Convém observar que, embora os princípios gerais da lepra e
a sua purificação se apliquem, em sentido secundário, a
todo o pecador; todavia, nas passagens da Escritura, que
estamos analisando, o assunto é apresentado em relação com
aqueles que eram reconhecidos como povo de Deus. A pessoa
que aqui vemos sujeitar-se ao exame do sacerdote é um
membro da assembleia de Deus. E conveniente compreender
isto. A assembleia de Deus deve manter-se pura porque é Sua
habitação. Nenhum leproso podia ser autorizado a permanecer
no recinto sagrado de habitação do Senhor.

A Responsabilidade do Sacerdote
Mas observe-se o cuidado, a vigilância, a perfeita
paciência recomendados ao sacerdote para evitar que se
considerasse como lepra o que não o era ou que aquilo que
na realidade era lepra pudesse escapar à sua atenção.
Muitas afecções podiam aparecer "na pele" — o lugar para
manifestações da lepra — "semelhantes à praga da lepra", as
quais, depois de uma paciente investigação do sacerdote, se
verificava serem apenas superficiais. Isto requeria muita
atenção. Qualquer mancha podia aparecer na superfície da
pele, a qual, ainda que requeresse ser examinada por aquele
que atuava por Deus, não era, na realidade, mancha. E
contudo, o que parecia ser apenas uma mancha superficial
podia ser alguma coisa mais profunda do que a pele, alguma
coisa interna, que afetasse os elementos ocultos do
organismo. Tudo isto requeria a maior atenção por parte do
sacerdote (veja-se os versículos 2-11). Uma simples
negligência, um ligeiro descuido, podiam ter graves
consequências. Podiam ocasionar a contaminação da
assembleia devia à presença da pessoa declarada leprosa ou
a expulsão, por qualquer mancha apenas superficial, de um
verdadeiro membro do Israel de Deus.
Ora, em tudo isto há um fundamento precioso de instrução
para o povo de Deus. Existe uma diferença entre a
enfermidade pessoal e a energia positiva do mal — entre
meros defeitos e imperfeições da consulta e a atividade do
pecado nos membros. Sem dúvida, importa velar sobre as
nossas fraquezas; pois se não vigiarmos, se não as
julgarmos e não nos guardarmos delas podem tornar-se na
fonte de um mal positivo (veja-se versículos 14 a 28). Tudo
que procede da nossa natureza deve ser julgado e
mortificado. Não devemos ser indulgentes para com as
fraquezas pessoais em nós próprios, ainda que devamos ser
indulgentes para com as dos nossos semelhantes. Tomemos por
exemplo o caso de um temperamento irascível. É um caso que
devemos condenar em nós próprios, embora devamos tolerá-lo
nos nossos semelhantes. A semelhança da "inchação do
apostema", no caso de um israelita (versículos 19-20), pode
chegar a ser causa de verdadeiro contágio — motivo para
exclusão da assembleia. Toda a forma de fraqueza deve ser
vigiada, não seja o caso de se tornar ocasião de pecado.
Uma "cabeça calva" não era lepra, mas era onde a lepra
podia declarar-se, e, pois isso, tinha de ser vigiada. Há
mil e uma coisas que, em si mesmas, não são pecaminosas,
mas que podem chegar a ser ocasião de pecado ser não se
exercer sobre elas vigilância. E não se trata somente do
que, no nosso parecer, pode ser designado por defeitos ou
fraquezas pessoais, mas até de coisas em que os nossos
corações estão dispostos a gloriar-se. A agudez do gênio, o
bom humor e a vivacidade de espírito, podem chegar a ser
fonte e centro de contaminação.
Cada pessoa tem uma ou outra tendência de que deve guardar-
se — alguma coisa que o obriga a estar sempre em guarda.
Quão ditosos somos nós, pois temos um Pai carinhoso a quem
podemos expor todas estas coisas! Confiados no amor
indulgente e infatigável, temos o precioso privilégio de
poder entrar sempre na Sua presença para Lhe contar tudo
que pesa sobre o coração e obter graça para sermos ajudados
em todas as nossas necessidades e obter vitória sobre todo
o mal.
Não há motivos para desanimar enquanto vemos sobre a porta
da tesouraria de nosso Pai esta inscrição: "Ele dá maior
graça". Preciosa inscrição! O seu valor não tem limites: é
incalculável, é infinito.

A Praga da Lepra
Vejamos agora como se procedia em cada caso em que a praga
da lepra era indiscutível e claramente determinada. O Deus
de Israel podia tolerar as enfermidades e os defeitos, mas
a partir do momento em que a enfermidade se tornava um caso
de corrupção, ou fosse na cabeça, na barba, na testa ou em
qualquer outra parte do corpo, não podia ser tolerada na
santa congregação. "Também as vestes do leproso, em quem
está a praga, serão rasgados, e a sua cabeça será
descoberta, e cobrirá o beiço superior e clamará: Imundo,
imundo! Todos os dias em que a praga estiver nele, será
imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora
do arraial" (versículos 45 - 46). Descreve-se aqui a
condição, ocupação e o lugar do leproso. Os vestidos
rasgados, a cabeça descoberta, o lábio superior coberto e
gritando: Imundo, imundo! E tendo de morar fora do arraial
na solidão do deserto vasto e terrível! Que podia haver de
mais humilhante e deprimente do que isto? "Habitará só" Era
impróprio estar em comunhão ou ter a companhia do seu povo.
Era excluído do único lugar, em todo o mundo, onde se
conhecia e gozava a presença do Senhor.
Prezado leitor, contempla neste pobre e solitário leproso o
tipo expressivo da pessoa em quem o pecado opera. E este
realmente o seu significado. Não é, como veremos
imediatamente, um pecador perdido, arruinado, culpado e
convicto, cuja culpa e miséria são manifestos, e, portanto,
objetivo próprio para o amor de Deus e o sangue de Cristo.
Não; no leproso excluído vemos uma pessoa em que o pecado
está atuando — uma pessoa em quem está a energia do mal. E
isto que mancha, exclui e priva do gozo da presença divina
e da comunhão dos santos. Enquanto o pecado operar não pode
haver comunhão com Deus ou com o Seu povo. "Habitará só; a
sua habitação será fora do arraial". Até quando? "Todos os
dias em que a praga estiver nele". Há aqui uma grande
verdade prática. A atividade do mal é o golpe de morte da
comunhão. Pode haver aparências exteriores, puro
formalismo, fria profissão, mas não pode haver nenhuma
comunhão enquanto o mal continuar a atuar. Não importa qual
seja o caráter do mal ou a sua importância, ainda que seja
insignificante ou apenas um mau pensamento, enquanto
continuar a atuar impedirá ou causará a suspensão da
comunhão. E quando se forma a empola, quando surge à
superfície, quando se descobre inteiramente, que pode
combater-se e tirá-lo pela graça de Deus e pelo sangue do
Cordeiro.

Completamente Coberto de Lepra


Isto leva-nos a um ponto muito interessante em relação com
o leproso — um ponto que parecerá um paradoxo para todos os
que não compreendem a maneira como Deus opera para com os
pecadores. "E, se a lepra florescer de todo na pele e a
lepra cobrir toda a pele do que tem a praga, desde a sua
cabeça até aos seus pés, quanto podem ver os olhos do
sacerdote, então, o sacerdote examinará, e eis que, se a
lepra tem coberto toda a sua carne, então, declarará limpo
o que tem a mancha: todo se tornou branco; limpo está"
(capítulo 13:12 - 13). Desde o momento em que o pecador
ocupa o seu verdadeiro lugar perante Deus, todo o problema
do seu pecado é resolvido. Desde que manifeste o seu
verdadeiro caráter, desaparecem todas as dificuldades.
Talvez tenha de passar por experiências difíceis antes de
chegar a este ponto — experiências resultantes de se
recusar a ocupar o seu verdadeiro lugar, ou seja, confessar
"toda a verdade" sobre a sua pessoa. Porém desde o momento
em que ele se decide a dizer, de todo o seu coração, "tal
como sou" a graça de Deus se derrama sobre ele. "Enquanto
eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu bramido em
todo o dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre
mim; o meu humor se tornou em sequidão de estio"(Sl 32:3-
4).
Quanto tempo durou esta penosa experiência? Até que toda a
verdade se descobriu. "Confessei-te o meu pecado e a minha
maldade não encobri; dizia eu: Confessarei ao SENHOR as
minhas transgressões; e tu perdoaste a maldade do meu
pecado" (versículo 5). É interessantíssimo reparar na
maneira como Deus trata progressivamente com o leproso,
desde o momento em que os primeiros sintomas fazem surgir a
suspeita de enfermidade até que esta se estende a todo o
corpo, "desde o alto da cabeça à planta do pé". Não havia
pressa nem indiferença. Deus entra sempre no lugar do
julgamento com passo lento e bem calculado; mas depois de
haver entrado tem de agir segundo os direitos da Sua
natureza. Pode examinar com paciência; pode esperar "sete
dias"; e se há a mínima mudança nos sintomas pode esperar
outros "sete dias"; mas desde o momento em que se verifica
positivamente a ação da lepra, não pode haver mais
tolerância. "Fora do arraial será a sua habitação". Até
quando? Até que a enfermidade se haja manifestado
inteiramente à superfície. "Se a lepra tem coberto toda a
sua carne, então será declarado limpo". É um ponto precioso
e muito interessante. A mais pequena mancha de lepra era
intolerável aos olhos de Deus; e contudo quando o homem
estava completamente atacado por ela, desde a cabeça aos
pés, então, era declarado limpo — quer dizer, era assunto
apropriado para a graça de Deus e o sangue da expiação.

Cristo Consumou Tudo


Assim sucede, em todos os casos, com o pecador. "Deus é tão
puro de olhos, que não pode ver o mal, e a vexação não pode
contemplar" (He 1:13); e contudo, desde o momento em que um
pecador toma o seu verdadeiro lugar, como aquele que está
completamente perdido, culpado e arruinado—não tendo um
único ponto em que o olhar da Santidade Divina possa fixar-
se com complacência — como um ser tão mau que não pode
possivelmente ser pior, toda a questão é pronta e
divinamente solucionada.
A graça de Deus é para os pecadores; se eu reconheço que
sou pecador, sei que sou um daqueles que Cristo veio
salvar. Quanto mais claramente alguém me demonstra que sou
um pecador, mais claramente me prova o meu direito ao amor
de Deus e à obra de Cristo. "Porque também Cristo padeceu
uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-
nos a Deus" (1 Pe 3:18). Logo, se eu sou "injusto", sou um
daqueles por quem Cristo morreu e tenho direito a todos os
benefícios resultantes da Sua morte. "Na verdade não há
homem justo sobre a terra", e, visto que eu estou "sobre a
terra" é evidente que sou "injusto"; é também evidente que
Cristo morreu por mim — que sofreu pelos meus pecados.
Portanto, visto que Cristo morreu por mim, possuo o feliz
privilégio de entrar no gozo imediato dos frutos do Seu
sacrifício.
Isto é tão claro quanto o pode ser. Não requer esforço
algum para ser compreendido. Não se me exige que seja senão
o que sou. Não sou chamado para sentir, experimentar ou
realizar qualquer coisa por mim mesmo. A Palavra de Deus
assegura-me que Cristo morreu por mim tal como sou, e se
Ele morreu por mim eu estou tão seguro como Ele Próprio
está. Não existe nada contra mim. Cristo satisfez toda a
justiça divina. Não só sofreu por causa dos meus "pecados",
mas para tirar o pecado. Aboliu todo o sistema em que, na
qualidade de filho de Adão, eu me encontrava, e colocou-me
numa nova posição, associado com Ele Próprio, e ali estou,
diante de Deus, livre de toda a imputação de culpa e do
temor do juízo divino.
Como posso saber que o Seu sangue foi derramado por mim?
Pelas Escrituras. Fonte bendita, segura e eterna de
conhecimento! Cristo sofreu por causa dos pecados. Eu tenho
pecados. Cristo morreu, "o justo pelos injustos". Eu sou
injusto. Portanto, a morte de Cristo diz-me respeito tão
clara e completamente como seu eu fosse o único pecador da
terra. Não é uma questão de eu me apropriar da morte de
Cristo ou da minha experiência. Muitas almas atormentam-se
com estas ideias. Quantas vezes ouvimos expressões como
estas: "Oh! eu creio que Cristo morreu pelos pecadores, mas
não situo que os meus pecados estão perdoados. Não posso
aplicar o perdão a mim próprio, não posso apropriar-me dele
nem experimentar os benefícios da morte de Cristo".
Tudo isto vem do ego e não de Cristo. E sentimento e não
conhecimento da Escritura. Se examinarmos o santo volume do
princípio ao fim não encontraremos uma só palavra que nos
fale em sermos salvos por compreensão, experiência ou
apropriação. O evangelho adapta-se por si a todos os que
reconhecem estar perdidos. Cristo morreu pelos pecadores.
Isto é precisamente o que eu sou. Portanto, Ele morreu por
mim. Como sei isso? Será porque o sinto? De modo nenhum. De
que modo, pois? Pela Palavra de Deus. "Cristo morreu por
nossos pecados, segundo as Escrituras... foi sepultado e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras"
(1 Co 15:3 - 4). Assim tudo se cumpre "segundo as
Escrituras". Se fosse segundo os nossos sentimentos,
seríamos muito infelizes, porque os nossos sentimentos não
duram um dia; mas as Escrituras são sempre as mesmas. "Para
sempre, ó Senhor, a tua palavra permanece no céu."
"Engrandeceste a tua palavra acima de todo o teu nome."
Sem dúvida, a experiência, o sentimento e o poder de
compreensão são coisas muito agradáveis, mas se as
colocarmos no lugar de Cristo, não as teremos, nem Cristo,
que no-las dá. Se estou ocupado com Cristo, verei
resultados; mas se ponho esses resultados em lugar de
Cristo não aproveitarei com os resultados e não terei a
aprovação de Cristo. Esta é a triste condição de milhares
de pessoas. Em vez de descansarem sobre a autoridade
imutável das "Escrituras", contemplam-se a si próprios, e,
por isso, andam sempre indecisos e por consequência são
infelizes. Um estado de dúvida é um estado de tortura.
Mas como poderei libertar-me de dúvidas? Crendo
simplesmente na autoridade divina das "Escrituras". De quem
dão testemunho as Escrituras? De Cristo (Jo 5). Declaram
que Cristo morreu por nossos pecados, e que ressuscitou
para nossa justificação (Rm. 4). Isto resolve tudo. A
mesmíssima autoridade que me diz que sou injusto, também me
diz que Cristo morreu por mim. Não há nada mais claro do
que isto. Se eu não fosse injusto a morte de Cristo de nada
me aproveitaria, mas visto que sou injusto é divinamente
apropriada e destinada à minha alma. Se eu estiver ocupado
comigo próprio ou com alguma coisa a meu respeito é
evidente que não tenho feito inteira aplicação espiritual
de Levítico 13:12 -13. É porque não tenho recorrido ao
Cordeiro de Deus tal como sou. Quando a lepra cobria o
leproso desde a cabeça aos pés, então, e só então, ele
estava em verdadeira posição para a graça. "Então o
sacerdote examinará, e eis que, se a lepra tem coberto toda
a sua carne, então declarará limpo o que tem a mancha: todo
se tornou branco: limpo está". Preciosa verdade! "Onde o
pecado abundou, superabundou a graça". Enquanto nos parecer
que há em nós alguma coisa que não está afetada pela
terrível enfermidade, não deixamos de nos atribuir algum
mérito. É só quando a nossa verdadeira condição se nos
torna evidente que realmente compreendemos o que significa
salvação pela graça.
Compreenderemos melhor a força de tudo isto quando
chegarmos a considerar as ordenações relativas à
purificação do leproso, em capítulo 14 do nosso livro.
Diremos agora algumas palavras sobre a lepra nos vestidos,
conforme vem mencionado em capítulo 13:47-59.

2. A Lepra em Alguma Veste


O vestuário ou a pele sugerem a ideia das circunstâncias do
homem ou dos seus hábitos. Este ponto é muito importante
para a vida prática. Devemos vigiar contra a operação do
mal em nossos caminhos com o mesmo zelo com que nos devemos
precaver contra o mal em nós mesmos. Nota-se o mesmo exame
cuidadoso do vestuário que se observa no caso de uma
pessoa. Não há precipitação nem indiferença. "E o sacerdote
examinará a praga e encerrará a coisa que tem a praga por
sete dias". Não deve haver apatia nem negligência.
O mal pode introduzir-se de inúmeras maneiras nos nossos
hábitos e circunstâncias; portanto, no momento em que
percebemos algo de suspeito, devemos submetê-lo a um
processo de investigação sacerdotal, calma e paciente. E
preciso que esteja "encerrado durante sete dias", a fim de
dar tempo a que se manifeste completamente.
"Então, examinará a praga ao sétimo dia; se a praga se
houver estendido na veste, ou no fio urdido, ou no fio
tecido, ou na pele, para qualquer obra que for feita da
pele, lepra roedora é; imunda está. Pelo que se queimará
aquela veste". Os mais hábitos devem ser abandonados, logo
que são descobertos. Se nos encontramos numa posição
inteiramente má, devemos abandoná-la. A ação de queimar o
vestido expressa o juízo sobre o mal, seja nos hábitos ou
nas circunstâncias do homem. Não se deve gracejar com o
mal.
Em certos casos o vestido devia ser "lavado", o que
expressa a ação da Palavra de Deus sobre os hábitos do
homem. "Então, o sacerdote ordenará que se lave aquilo no
qual havia a praga, e o encerrará, segunda vez, por sete
dias." E indispensável uma paciente atenção para nos
assegurarmos dos efeitos da Palavra. "E o sacerdote,
examinando a praga, depois que for lavada, e eis que se a
praga não mudou... o queimarás". Quando há qualquer coisa
absoluta e irremediavelmente má a posição ou nos hábitos de
uma pessoa, importa abandoná-la. "Mas se o sacerdote vir
que a praga se tem recolhido, depois que for lavada, então
rasgará o vestido". A Palavra pode produzir bastante efeito
para que um homem abandone o que há de mau na sua conduta
ou na sua posição, fazendo que o mal desapareça; porém, se,
apesar de tudo, o mal continua, deve ser condenado
juntamente com tudo o que com ele se relaciona.
Existe em tudo isto uma fonte preciosa de conhecimento.
Devemos atentar bem para a posição que ocupamos, as
circunstância em que nos encontramos, os hábitos que
adotamos e o caráter que assumimos. Há uma necessidade
especial de vigilância. Todo o sintoma suspeito deve ser
cuidadosamente vigiado, para que se não converta em "lepra
roedora" ou "eruptiva", pela qual não só nós mas muitos
outros seriam contaminados.
Podemos estar numa posição à qual estejam ligadas algumas
coisas más que podem ser abandonadas em renunciarmos
inteiramente à posição: e, em contrapartida, é possível
encontrarmo-nos numa situação em que seja impossível ser
"fiel a Deus". Sempre que há sinceridade, o caminho a
seguir torna-se claro. Sempre que o desejo do coração for
desfrutar a presença divina, descobrir-se-á facilmente
quais são as coisas que tendem a privar-nos desta graça
inefável.
Que os nossos corações sejam sempre ternos e sensíveis.
Procuremos cultivar uma mais íntima comunhão com Deus, e
guardemo-nos cuidadosamente de toda a forma de
contaminação, quer em nossas pessoas, quer em nossos
hábitos ou nas nossas relações!

A PURIFICAÇÃO DO LEPROSO

O Ofício do Sacerdote
Vamos proceder agora ao exame atento das belas e
significativas ordenações relativas à purificação do
leproso, nas quais encontraremos algumas das mais preciosas
verdades do evangelho.
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Esta será a lei
do leproso no dia da sua purificação: será levado ao
sacerdote; e o sacerdote sairá fora do arraial" (capítulo
14:1-3). Já vimos qual era o lugar que o leproso ocupava:
estava fora do arraial, num lugar moralmente distante de
Deus, do Seu santuário e da Sua congregação. Demais, morava
em triste solidão e numa condição de impureza. Estava fora
do alcance de socorros humanos; e, ele próprio, nada podia
fazer senão contaminar as pessoas e as coisas em que
tocasse. Era, pois, claramente impossível que pudesse fazer
qualquer coisa para se purificar. Se, realmente, só podia
poluir com o seu próprio contato, como poderia ele
purificar-se a si mesmo? Como poderia ele contribuir para a
sua purificação ou cooperar nesse sentido? Era impossível.
Como leproso imundo, nada podia fazer por si mesmo; tudo
tinha de ser feito para ele. Não podia abrir caminho para
Deus, mas Deus podia abrir caminho até ele. Estava separado
de Deus. Não havia para ele auxílio, quer em si quer nos
seus semelhantes. É evidente que um leproso não podia
purificar outro; e é igualmente claro que se um leproso
tocasse numa pessoa limpa, esta ficava imunda. O seu único
recurso estava em Deus. Tinha de ficar a dever tudo à graça
de Deus.
Por isso lemos: "O sacerdote sairá fora do arraial". Não se
diz: "O leproso ira ao arraial". Isto estava inteiramente
fora de discussão. Era inútil falar ao leproso em ir a
qualquer lugar ou fazer qualquer coisa. Estava condenado à
triste solidão; para onde poderia ele ir? Coberto de
manchas incuráveis, que podia ele fazer? Podia suspirar por
convívio com alguém e desejar ser limpo, mas os seus
suspiros eram os de um leproso solitário e desvalido. Podia
fazer esforços para se purificar, mas os seus esforços só
podiam provar que ele estava imundo e contribuírem para
propagar o mal. Antes que pudesse ser declarado "limpo" era
necessário que se realizasse uma obra a seu favor—obra que
ele não podia fazer nem ajudar a fazer —, obra que tinha de
ser totalmente efetuada por outrem. O leproso devia manter-
se "tranquilo" e ver o sacerdote fazer uma obra em virtude
da qual a lepra podia ser perfeitamente curada. O sacerdote
fazia tudo. O leproso nada fazia.

O Sacerdote Perfeito
"Então, o sacerdote ordenará que, por aquele que se houver
de purificar, se tomem duas aves vivas e limpas, e pau de
cedro, e carmesim, e hissopo. Mandará também o sacerdote
que se degole uma ave num vaso de barro sobre águas vivas".
Na saída do sacerdote fora do arraial — a sua saída do
lugar onde Deus habitava—vemos o bendito Senhor Jesus
descendo do seio do Pai, Sua morada eterna, para vir a este
nosso mundo corrompido, onde nos via afundados na lepra
corruptora do pecado. A semelhança do bom Samaritano chegou
ao pé de nós. Não se limitou a vir até meio caminho, ou até
perto do fim — percorreu todo o caminho. Isto era
indispensável. Segundo as santas exigências do trono de
Deus, não teria podido purificar-nos da nossa lepra se
tivesse permanecido no seio do Pai. Podia chamar mundos à
existência pela palavra da Sua boca; mas para purificar os
homens da lepra do pecado era preciso alguma coisa mais.
"Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho
unigênito". Quando se tratou de criar o mundo, Deus só teve
que falar. Quando se tratou de salvar pecadores, teve de
dar o Seu Filho. "Nisto se manifesta o amor de Deus para
conosco: que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para
que por ele vivamos. Nisto está o amor, não em que nós
tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e
enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados" (1
Jo4:9-10 – ECRF da SBTB).
Mas a vinda e a missão do Filho estavam longe de realizar
tudo que fazia falta. Pouco aproveitaria ao leproso, na
realidade, se o sacerdote se limitasse a sair fora do
arraial para observar a sua desesperada situação. O
derramamento de sangue era absolutamente necessário antes
que a lepra pudesse ser tirada. Era necessária a morte de
uma vítima sem mancha. "Sem derramamento de sangue não há
remissão" (Hb 9:22). E note-se que o derramamento de sangue
era a verdadeira base da purificação do leproso. Isto não
era apenas uma circunstância que, em ligação com outras,
contribuía para a purificação do leproso. De nenhum modo. O
sacrifício da vida era o fato principal e de maior
importância. Isto feito, o caminho estava aberto e todas as
barreiras eram removidas: Deus podia tratar em graça
perfeita com o leproso. Devemos fixar bem este ponto, se
queremos compreender plenamente a gloriosa doutrina do
sangue.

A Ave degolada: Cristo em sua Morte


"Mandará também o sacerdote que se degole uma ave num vaso
de barro sobre águas vivas". Aqui deparamos com um
reconhecido tipo da morte de Cristo, "que pelo Espírito
eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus". Ele "foi
crucificado por fraqueza" (Hb 9;2 Col 3).A maior obra, a
mais importante, a mais gloriosa que jamais se efetuou no
vasto universo de Deus, foi realizada "por fraqueza". Oh,
prezado leitor, que coisa terrível deve ser o pecado,
segundo o juízo de Deus, para que o Seu Filho amado tivesse
que descer do céu e ser pregado no madeiro de maldição,
feito espetáculo para os homens, anjos e demônios, para que
nós pudéssemos ser salvos! E que figura do pecado temos na
lepra! Quem poderia pensar que aquela pequena "mancha
clara" que aparecia na pessoa de qualquer membro da
congregação tivesse tão graves consequências? Mas, ah! Essa
pequena "mancha branca" não era nada menos que o gérmen do
mal, no lugar onde se manifestava. Era o indício da
terrível atividade do pecado na natureza; e antes que essa
pessoa pudesse estar apta para ocupar um lugar na
assembleia ou gozar comunhão com Deus, o Filho de Deus teve
de deixar os céus e descer às partes mais baixas da terra,
a fim de fazer completa expiação por aquilo que não se
mostrava senão como uma pequena "mancha branca".
Lembremos isto: o pecado é uma coisa terrível, segundo o
parecer de Deus. Ele não pode tolerar um simples pensamento
pecaminoso. Antes que um tal pensamento pudesse ser
perdoado, Cristo teve que morrer na cruz. O mais
insignificante pecado, se algum pecado pode chamar-se
insignificante, requeria nada menos do que a morte do Filho
eterno de Deus. Mas, graças sejam dadas a Deus para todo o
sempre, o que o pecado requeria, o amor redentor deu
livremente; e, agora, Deus é infinitamente mais glorificado
no perdão dos pecados do que teria sido se Adão tivesse
conservado a sua inocência original. Deus é mais
glorificado na salvação, no perdão, na justificação,
preservação e glorificação final do pecador do que poderia
ser por uma humanidade inocente no gozo das bênçãos da
criação. Tal é o mistério da redenção. Que os nossos
corações, pelo poder do Espírito Santo, compreendam o
alcance deste maravilhoso mistério!

A Ave Viva Molhada no Sangue: Cristo Ressuscitado no Céu


"E tomará a ave viva, e o pau de cedro, e o carmesim, e o
hissopo e os molhará com a ave viva no sangue da ave que
foi degolada sobre as águas vivas. E sobre aquele que há -
de purificar-se da lepra espargirá sete vezes; então, o
declarará por limpo e soltará a ave viva sobre a face do
campo". Logo que o sangue é derramado, o sacerdote pode
entregar-se inteiramente à sua obra. Até aqui, lemos que "O
sacerdote ordenará"; porém, agora, ele próprio atua
prontamente. A morte de Cristo é a base do Seu ministério
sacerdotal. Havendo entrado por Seu próprio sangue no
santuário, atua como o nosso grande Sumo Sacerdote,
aplicando às nossas almas os preciosos resultados da Sua
obra expiatória, e mantendo-nos na plena e divina
integridade da posição em que o Seu sacrifício nos
introduziu. "Porque todo sumo sacerdote é constituído para
oferecer dons e sacrifícios; pelo que era necessário que
este também tivesse alguma coisa que oferecer. Ora, se ele
estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria" (Hb 8:3 -
4).
Não poderíamos encontrar uma figura mais perfeita da
ressurreição de Cristo do que aquela que nos oferece a "ave
viva" solta sobre a face do campo. Só era solta depois da
morte da sua companheira, porque as duas aves representam
um só Cristo em duas fases da Sua bendita obra, a saber: a
morte e a ressurreição. Dez mil aves soltas de nada
aproveitariam ao leproso. Essa ave viva, elevando-se ao
céu, levava nas suas asas o sinal que representava a
expiação consumada — era isso que proclamava o grande fato
de que a obra estava feita e o fundamento posto. O mesmo
sucede em relação ao bendito Senhor Jesus Cristo. A Sua
ressurreição declara o glorioso triunfo da redenção.
"Ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras".
"Ressuscitou para nossa justificação". É isto que põe o
coração oprimido em liberdade e alivia a consciência
atormentada. As Escrituras asseguram-nos que Jesus foi
cravado na cruz sob o peso dos nossos pecados; porém as
mesmas Escrituras garantem que ressuscitou de entre os
mortos sem ter já nenhum desses pecados sobre Si. E isto
não é tudo: as mesmas Escrituras asseguram que todos os que
põem a sua confiança em Jesus estão tão isentos de culpa
como Ele próprio, e tão livres da ira ou da condenação como
Ele está; que são um com Ele, estão unidos a Ele e aceitos
n'Ele, vivificados, ressuscitados e assentados com Ele. Tal
é o testemunho confortante da Palavra da verdade—testemunho
de Deus, que não pode mentir (veja-se Rm 6:6-11; 8:l-4; 2
Co 5:21; Ef 2:5-6; Cl 2:10-15; l Jo 4:17).

Uma Libertação Completa


Porém, outra verdade das mais importantes se nos apresenta
no versículo 6 deste capítulo. Não só vemos a nossa
completa libertação da culpa e da condenação,
admiravelmente representada pela ave viva e solta, como
vemos também a nossa completa libertação de todos os
atrativos da terra e de todas as influências da natureza.
"O carmesim" é a expressão adequada daqueles atrativos,
enquanto que "o pau de cedro e o hissopo" representam bem
as influências. A cruz é o fim de toda a glória deste
mundo. Deus apresenta-a como tale como tal a reconhece o
crente. "Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está
crucificado para mim, e eu para o mundo" (Gl 6:14).
Quanto ao "pau de cedro e o hissopo", oferecem-nos, por
assim dizer, os dois extremos do vasto domínio da natureza.
Salomão "falou das árvores, desde o cedro que está no
Líbano até ao hissopo que nasce na parede" (1 Rs 4:33).
Desde o cedro majestoso que coroa as colinas do Líbano até
ao humilde hissopo — os dois extremos e tudo que está entre
eles — a natureza em toda a sua variedade, tudo se coloca
debaixo da cruz; de sorte que o crente vê na morte de
Cristo o fim da sua culpa, o fim de toda a glória terrestre
e o fim de todo o sistema da natureza — o fim da velha
criação. E de que deve ocupar-se?. De Aquele que é o
Antítipo dessa ave viva, com as penas manchadas de sangue,
elevando-se aos céus.
Precioso e glorioso assunto que satisfaz todas as
aspirações da alma! Um Cristo ressuscitado, que, triunfante
e glorioso, subiu ao céu, levando na Sua sagrada Pessoa os
sinais da expiação consumada. É com Ele que devemos tratar.
Estamos aparte com Ele. Ele é o objeto exclusivo de Deus, o
centro da alegria do céu e o tema do cântico dos anjos. Não
temos necessidade de nenhuma das glórias da terra nem de
nenhuma das atrações da natureza. Podemos vê-las postas de
lado para sempre, com o nosso pecado e a nossa culpa, pela
morte de Cristo. Podemos passar bem sem a terra e a
natureza, porquanto nos foram dadas em vez delas "as
riquezas incompreensíveis de Cristo".

O Sangue Espargido
"E sobre aquele que há - de purificar-se da lepra espargirá
sete vezes; então, o declarará por limpo e soltará a ave
viva sobre a face do campo". Quanto mais refletimos sobre o
capítulo 13 tanto mais claramente vemos como era
absolutamente impossível o leproso fazer qualquer coisa
para sua própria purificação. Tudo que ele podia fazer era
"cobrir o beiço superior"; e tudo que podia dizer era:
"Imundo, imundo!" Competia a Deus, e a Deus somente, buscar
o meio e realizar a obra pela qual o leproso pudesse ser
perfeitamente purificado; e, demais, pertencia a Deus, e só
a Ele, declarar "limpo" o leproso. Por isso está escrito,
"o sacerdote espargirá" e "ele o declarará limpo". Não é
dito "o leproso espargirá e declarar-se-á ou considerar-se-
á limpo". Isto de nada serviria. Deus era o Juiz—Deus era o
único que podia curar; Deus, e só Deus podia purificar. Só
Ele sabia o que era a lepra, como podia ser removida e
quando se devia declarar limpo o leproso.
O leproso podia continuar toda a sua vida coberto de lepra
e todavia ignorar por completo qual era o seu mal. Era a
Palavra de Deus — A Palavra da Verdade —, o testemunho
divino, que declarava toda a verdade quanto à lepra; e nada
menos que essa mesmíssima autoridade podia declarar o
leproso limpo, e isto somente sobre o fundamento sólido e
indiscutível da morte e ressurreição. Existe uma conexão
preciosa entre os três pontos mencionados no versículo 7: o
sangue é espargido, o leproso declarando limpo e a ave viva
solta. Não há uma simples palavra sobre o que o leproso
devia fazer, dizer, pensar ou sentir. Bastava saber que era
leproso: um leproso declarado, julgado, coberto de lepra da
cabeça aos pés. Para ele isto era bastante; tudo o mais
pertencia a Deus.

A Morte e a Ressurreição de Cristo são Suficientes


E da máxima importância, para quem busca ansiosamente a
paz, compreender a verdade revelada nesta parte do nosso
assunto. Quantas almas se inquietam imaginando que se trata
de sentir, realizar e apropriar, em vez de verem, como no
caso do leproso, em que a aspersão do sangue era tão
independente dele e tão divina como o seu derramamento. Não
se diz que o leproso tinha de aplicar, realizar ou
apropriar e então seria purificado. De modo algum. O plano
de libertação era divino; a provisão do sacrifício era
divina; o derramamento do sangue era divino; a aspersão do
sangue era divina; o veredito quanto ao resultado era
divino; numa palavra: tudo era divino.
Isto não quer dizer que devemos desprezar a compreensão, ou
para falar mais corretamente, a comunhão, por intermédio do
Espírito Santo, com todos os preciosos resultados da obra
de Cristo por nós. Pelo contrário, veremos mais adiante o
lugar que lhe está destinado na economia divina. Porém,
assim como o leproso não era limpo pela compreensão do
valor do sangue, tampouco nós somos salvos por ela. O
evangelho, mediante o qual nós somos salvos, é "que Cristo
morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; e que foi
sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras". Nada se diz aqui sobre realização por nossa
parte. Sem dúvida é bom termos essa compreensão. Aquele que
esteve a ponto de se afogar deve estar muito feliz por
sentir que se encontra num barco salva-vidas; mas,
evidentemente, está salvo pelo barco e não pelo que sente.
Assim é com o pecador que crê no Senhor Jesus Cristo. É
salvo pela morte e ressurreição. E porque ele o
experimentai E "segundo as Escrituras". Cristo morreu e
ressuscitou; e sobre este fundamento Deus declara-o limpo.
É isto que proporciona imensa paz à alma. Temos de confiar
no pleno testemunho de Deus, que nada pode mover. Este
testemunho refere-se à própria obra de Deus. Ele Próprio
fez tudo que era necessário a fim de que fôssemos
declarados limpos a Seus olhos. O nosso perdão não depende
da nossa compreensão, nem de nenhuma obra "de justiça que
houvéssemos feito"; porque as nossas obras de justiça não
valem mais do que os nossos delitos. Em suma, depende,
exclusivamente, da morte e ressurreição de Cristo. Como
sabemos isto"?- Deus no-lo diz: "É segundo as Escrituras".
Poucas coisas poderão revelar o apego dos nossos corações à
legalidade tão flagrantemente como esta estafada ideia de
necessidade da nossa experiência para podermos alcançar a
salvação. Queremos ter alguma coisa do ego neste assunto, e
assim perturbamos, deploravelmente, a nossa paz e liberdade
em Cristo. E por esta razão que eu me detenho mais
demoradamente sobre a formosa ordenação da purificação do
leproso e de um modo especial sobre a verdade revelada em
capítulo 14:7. Era o sacerdote quem espargia o sangue; e
era o sacerdote quem declarava o leproso limpo. O mesmo
ocorre no caso do pecador: no instante em que ele se coloca
no seu verdadeiro lugar, o sangue de Cristo e a Palavra de
Deus são aplicados sem qualquer obstáculo ou dificuldade.
Mas logo que este estafado assunto de realização é
ventilado, a paz é perturbada, o coração sente-se deprimido
e o espírito confuso. Quanto mais completo é o abandono do
ego e a ocupação com Cristo, tal como no-lo apresentam "as
Escrituras", tanto maior será a nossa paz. Se o leproso
tivesse olhado para si próprio, depois de o sacerdote o ter
declarado limpo, teria encontrado algum motivo para essa
declaração1?- Seguramente que não. A aspersão do sangue era
a base do testemunho divino, e nada do que havia no leproso
ou relacionado com ele. Não se perguntava ao leproso como
se sentia ou o que pensava. Não era interrogado acerca do
sentimento profundo que pudesse ter da fealdade da sua
doença. Era manifestamente leproso, e isto bastava. Aquele
sangue havia sido derramado por ele, e esse sangue tornava-
o o limpo. Como sabia isso? - Era porque o sentia*? Não;
mas porque o sacerdote assim o declarava, da parte de Deus
e com a Sua autoridade. O leproso era declarado limpo sob o
mesmíssimo princípio com que a ave era solta. O mesmo
sangue que manchara as penas da ave era espargido sobre o
leproso.
Desta forma a questão era perfeitamente solucionada, sem
intervenção do leproso, dos sentimentos do leproso,
pensamentos e experiências. Tal é o tipo. E quando passamos
do tipo ao Antítipo vemos que o bendito Senhor Jesus Cristo
entrou no céu e pôs sobre o trono de Deus a eterna memória
de uma obra consumada, em virtude da qual o crente entra
também ali. É uma verdade gloriosa, divinamente calculada
para dissipar todas as dúvidas dos corações inquietos, todo
o temor, todos os pensamentos angustiosos e incertezas que
neles possam levantar-se. Cristo ressuscitado é objetivo
exclusivo de Deus, e n'Ele Deus vê todo o crente. Que toda
a alma despertada possa encontrar descanso permanente nesta
verdade libertadora.

A Lavagem Por Meio da Palavra


"E aquele que tem de purificar-se lavará as suas vestes, e
rapará todo o seu pelo, e se lavará com água; assim, será
limpo; e, depois, entrará no arraial, porém ficará fora da
sua tenda por sete dias" (versículo 8). Havendo sido
declarado limpo, o leproso pode começar a fazer o que antes
não podia sequer intentar, quer dizer, lavar-se, lavar os
seus vestidos e rapar todo o seu pelo; e, havendo feito
isto, ele tem o privilégio de ocupar o seu lugar no arraial
— o lugar publicamente reconhecido para comunhão com o Deus
de Israel, cuja presença no arraial tornara necessária a
expulsão do leproso. Uma vez que havia sido aplicado o
sangue na sua virtude expiatória, impunha-se a lavagem da
água, que expressa a ação da Palavra sobre o caráter, os
hábitos e a conduta, para tornar o indivíduo moral e
praticamente limpo, não só aos olhos de Deus como também
perante a congregação, para assim ocupar o seu lugar na
Assembleia.
Mas é preciso notar que o homem, espargido com sangue e
lavado com água, tendo assim direito a um lugar na
assembleia, não era autorizado a entrar na sua própria
tenda. Não podia entrar no pleno gozo dos privilégios
particulares e pessoais que pertenciam à sua posição
peculiar no arraial. Por outras palavras, embora conhecendo
a redenção pelo derramamento do sangue, e sabendo que a
Palavra de Deus era a regra segundo a qual tanto a sua
pessoa como os seus hábitos deviam ser limpos e regulados,
tinha ainda de chegar, no poder do Espírito Santo, a um
conhecimento pleno do seu lugar especial, da sua parte e
privilégios em Cristo.
Falamos segundo a doutrina dos símbolos, e sentimos quão
importante é compreender a verdade que ela encerra. É
frequente descurá-la. Há muitas almas que reconhecem o
sangue de Cristo como a única base de perdão e a Palavra de
Deus como o único meio de purificar e regular as suas
relações e hábitos, e que, não obstante, estão longe de
conhecer, pelo poder do Espírito Santo, o valor e a
excelência de Aquele cujo sangue tirou os seus pecados e
cuja Palavra deve purificar a sua vida prática. Estão no
lugar em que as suas relações são visíveis e notórias; mas
não no poder de comunhão pessoal. É absolutamente certo que
todos os crentes estão em Cristo, e, como tais, têm direito
a participar das mais excelentes verdades. Além disso têm o
Espírito Santo como o poder de comunhão. Tudo isto é
divinamente verdadeiro; mas não existe aquela renúncia
completa de tudo que pertence à natureza e que é realmente
essencial ao poder de comunhão com Cristo, sob todos os
aspectos do Seu caráter e da Sua obra. De fato, esta
comunhão não será plenamente gozada até que venha o "oitavo
dia" — o dia glorioso da ressurreição, em que conheceremos
assim como somos conhecidos. Então, na verdade, cada um por
si e todos em conjunto entrarão no pleno gozo irresistível
da comunhão com Cristo, em todos os preciosos aspectos da
Sua Pessoa e as perfeições do Seu caráter, conforme são
revelados nos versículos 10 a 20 do nosso capítulo. Tal é a
esperança posta diante de nós; mas, presentemente, na
medida em que realizamos, pela fé, a poderosa energia do
Espírito, que habita em nós, a mortificação da carne e de
tudo que a atrai, podemo-nos alimentar de Cristo e
regozijarmo-nos n'Ele como a parte das nossas almas na
comunhão individual.
O Fim do Velho Homem
"E será que, ao sétimo dia, rapará todo o seu pelo, e a
cabeça e a barba, e as sobrancelhas dos seus olhos; e
rapará todo o outro pelo, e lavará as suas vestes, e lavará
a sua carne com água, e será limpo" (versículo 9). Agora
torna-se evidente que, à vista de Deus, o leproso estava
tão limpo, no primeiro dia, quando o sangue foi espargido
sobre ele, na sua séptula ou perfeita eficiência, como no
sétimo dia. Em que consistia, pois, a diferençai Não estava
na sua atual condição e posição, mas na sua compreensão
pessoal e comunhão. No sétimo dia, ele era convidado a
aprofundar a completa abolição de tudo quanto pertencia à
natureza. Era chamado para aprender que era necessário
tirar a lepra da natureza e remover também os adornos da
natureza — sim, tudo que pertencia à sua velha condição.
Uma coisa é saber que Deus vê a minha natureza como morta e
outra muito diferente é eu "considerar-me" como morto —
despojar-me, praticamente, do velho homem e dos seus feitos
— mortificar os meus membros que estão sobre a terra. Isto
é o que, provavelmente, entendem muitas pessoas piedosas
quando falam de santificação progressiva. A ideia é boa em
si, mas não a apresentam exatamente como as Escrituras.
O leproso era declarado limpo no momento em que o sangue
era espargido sobre ele; e não obstante ele tinha de se
lavar. Como se explica isto? No primeiro caso, ele estava
limpo segundo o juízo divino; no segundo, ele tinha de
estar limpo segundo o seu conceito pessoal e no seu caráter
público. O mesmo acontece com o crente. É "um com Cristo";
está "lavado, santificado e justificado" — "aceito" —
"perfeito" (l Co 6:11; Ef 1:6; Cl 2:10).Tal é o seu estado
inalterável e a sua condição invariável perante Deus. Está
tão perfeitamente santificado como justificado, pois Cristo
é a medida tanto da santificação como da justificação,
segundo o juízo de Deus sobre o caso.
Porém a compreensão que o crente tem de tudo isto, em sua
alma, e a maneira como o demonstra nos seus hábitos e
conduta, abrem outro horizonte diante deste pensamento. Por
isso se lê: "Ora Amados, pois que temos tais promessas,
purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito,
aperfeiçoando a santificação no temor de Deus" (2 Co 7:1).
E devido a Cristo nos ter purificado pelo Seu precioso
sangue que somos chamados a "purificarmo-nos" pela
aplicação da Palavra de Deus, por meio do Espírito. "Este é
aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo;
não só por água, mas por água e por sangue. E o Espírito é
o que testifica, porque o Espírito é a verdade. Porque três
são os que testificam: o Espírito, a água, e o sangue; e
estes três concordam num" (1 Jo 5:6-8). Aqui temos a
expiação pelo sangue, a purificação pela Palavra de Deus e
poder pelo Espírito com base na morte de Cristo e
distintamente prefigurados nas ordenações relacionadas com
a purificação do leproso.

O Oitavo Dia
a) O Sacrifício pela Culpa
"E, ao oitavo dia, tomará dois cordeiros sem mancha, uma
cordeira sem mancha, de um ano, e três dízimas de flor de
farinha para oferta de manjares amassada com azeite, e um
logue, de azeite. E o sacerdote que faz a purificação
apresentará o homem que houver de purificar-se com aquelas
coisas perante o SENHOR, à porta da tenda da congregação. E
o sacerdote tomará um dos cordeiros e o oferecerá por
expiação da culpa e o loque de azeite; e os moverá por
oferta movida perante o SENHOR" (versículos 10-12).
Aqui é introduzida toda a série de oferendas; mas é a
Expiação da Culpa que se oferece primeiro, visto que o
leproso é considerado como um verdadeiro transgressor. Isto
é verdadeiro em todos os casos. Como aqueles que pecaram
contra Deus, temos todos necessidade de Cristo, pois foi
Ele quem fez expiação pelos nossos pecados na cruz. "Ele
mesmo levou, em seu corpo, os nossos pecados sobre o
madeiro". O primeiro aspecto em que Cristo se apresenta ao
pecador é o do antítipo da Expiação da Culpa.

O Sangue sobre a Orelha Direita, a Mão Direita e o Pé


Direito
"E o sacerdote tomará do sangue da oferta pela expiação da
culpa e o sacerdote o porá sobre a ponta da orelha direita
daquele que tem de purificar-se, e sobre o dedo polegar da
sua mão direita, e no dedo polegar do seu pé direito".
A "orelha" — esse membro culpado, que tão frequentemente
tinha servido de meio de comunicação para a vaidade, as
loucuras e até a impureza — devia ser purificada pelo
sangue da Expiação da Culpa. Assim toda a culpa que
tenhamos contraído por meio desse órgão é perdoada segundo
o valor que Deus dá ao sangue de Cristo.
A "mão direita", que tão frequentemente se havia estendido
na execução de atos de vaidade, tolices e até de impureza,
devia ser purificada pelo sangue da Expiação da Culpa.
Assim, toda a culpa, que contraímos por intermédio desse
membro, é perdoada, segundo o valor em que Deus tem o
sangue de Cristo.
O "pé", que tantas vezes havia corrido no caminho da
vaidade, das loucuras e até da impureza, devia ser
purificado pelo sangue da Expiação da Culpa. Da mesma
forma, toda a culpa que temos contraído por meio desse
membro é perdoada, segundo o valor que Deus dá ao sangue de
Cristo. Sim, tudo, tudo, tudo é perdoado — tudo é anulado,
tudo é esquecido, tudo afundado como chumbo nas profundezas
das águas do eterno esquecimento. Quem o fará surgir de
novo? Os anjos, os homens ou os demônios poderão mergulhar
nessas profundezas insondáveis e impenetráveis para trazer
à superfície as transgressões do "pé", da "mão" ou da
"orelha" que o amor redentor ali lançou ? Oh, não! Louvado
seja Deus, as nossas culpas foram removidas para sempre.
Estamos em melhores circunstâncias do que estaríamos se
Adão nunca tivesse pecado. Preciosa verdade! Ser lavado no
sangue de Cristo é muito melhor do que estar revestido de
inocência.

O Logue de Azeite
Contudo, Deus não se limita a apagar os nossos pecados pelo
sangue expiador de Jesus. Isto, em si, é uma grande obra;
mas há alguma coisa ainda mais importante: "Também o
sacerdote tomará do logue de azeite e o derramará na palma
da sua própria mão esquerda. Então, o sacerdote molhará o
seu dedo direito no azeite que está na sua mão esquerda e
daquele azeite, com o seu dedo, espargirá sete vezes
perante o SENHOR; e o restante do azeite, que está na sua
mão, o sacerdote porá sobre a ponta da orelha direita
daquele que tem de purificar-se, e sobre o dedo polegar da
sua mão direita, e sobre o dedo polegar do seu pé direito,
em cima do sangue da oferta pela expiação da culpa; e o
restante do azeite que está na mão do sacerdote, o porá
sobre a cabeça daquele que tem de purificar-se; assim, o
sacerdote fará expiação por ele perante o SENHOR"
(versículos 15 a 18).
Assim, os nossos membros não só são purificados pelo sangue
de Cristo, mas também consagrados a Deus no poder do
Espírito. A obra de Deus não é somente negativa mas também
positiva. O ouvido já não deve ser o meio de comunicar o
que é imundo, antes deve estar pronto a escutar" a voz do
Bom Pastor". A mão já não deve usar-se como instrumento de
injustiça, mas deve estender-se para atos de justiça, graça
e verdadeira santidade. O pé não deve pisar mais os
caminhos da tolice, mas percorrer o caminho dos santos
mandamentos de Deus. E, finalmente, o homem deve consagrar-
se a Deus na energia do Espírito Santo.
É interessantíssimo observar que o "azeite" era posto sobre
"o sangue" da "expiação da culpa". O sangue de Cristo é a
base divina das atividades do Espírito Santo. O sangue e o
azeite vão juntos. Como pecadores nada poderíamos saber do
azeite salvo sobre o fundamento do sangue. O azeite não
podia ser posto sobre o leproso enquanto não lhe tivesse
sido aplicado o sangue da expiação da culpa. "Em quem
também, depois que crestes, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa". A exatidão divina do símbolo desperta a
admiração da mente regenerada. Quanto mais atentamente a
examinamos — quanto mais nos concentramos nela à luz das
Escrituras — mais percebemos e apreciamos a sua beleza,
força e precisão. Tudo está, como podia justamente esperar-
se, em perfeita harmonia com as analogias da Palavra de
Deus. Não é necessário nenhum esforço para compreender
isto. Tomemos Cristo como a chave que abre o rico tesouro
das figuras; exploremos o precioso conteúdo à luz da
lâmpada de inspiração divina; deixemos que o Espírito Santo
seja o intérprete; e assim seremos infalivelmente
edificados, iluminados e abençoados.

b) O Sacrifício pelo Pecado


"Também o sacerdote fará a oferta pela expiação do pecado e
fará expiação por aquele que tem de purificar-se da sua
imundícia". Temos aqui uma figura de Cristo, não somente
como Aquele que levou os nossos pecados, mas também como O
que aniquilou o pecado, tanto na sua raiz como nos seus
ramos; Aquele que destruiu todo o sistema do pecado — "o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo". "A
propiciação por todo o mundo". Como expiação da culpa,
Cristo removeu todas as nossas ofensas. Como expiação do
pecado destruiu a grande raiz donde procediam essas
ofensas. Tudo satisfez; mas é como Expiação da Culpa que
começamos por conhecê-Lo, porque é como tal que
primeiramente necessitamos d'Ele. É a convicção dos nossos
pecados que primeiramente nos perturba; perturbação esta
que é desfeita divinamente pela preciosa oferta da expiação
da culpa. Depois, à medida que prosseguimos, descobrimos
que todos estes pecados tinham uma raiz ou tronco, e que
essa mesma raiz ou tronco existe em cada um. Mas também
isto é divinamente remediado pela nossa preciosa expiação
do pecado. A ordem, como nos é apresentada no caso do
leproso, é perfeita. É precisamente a mesmo ordem que
voltamos a encontrar na experiência de todas as almas
salvas. A expiação da culpa vem primeiro, e em seguida a
expiação do pecado.

c) O Holocausto
"E depois degolará o holocausto". Esta oferta apresenta-nos
o aspecto mais elevado da morte de Cristo. É Cristo
oferecendo-Se a Deus sem mancha, sem qualquer relação quer
com a culpa, quer com o pecado. É Cristo caminhando para a
cruz, numa consagração voluntária, e oferecendo-se ali em
sacrifício de cheiro suave a Deus.

d) A Oferta de Manjares
"E o sacerdote oferecerá o holocausto e a oferta de
manjares sobre o altar; assim, o sacerdote fará expiação
por ele, e será limpo (versículo 20). A oferta de manjares
simboliza "o homem Cristo Jesus" na Sua perfeita vida
humana. Está intimamente ligada, no caso do leproso, com o
holocausto; e o mesmo sucede na experiência diária de cada
pecador salvo. Quando sabemos que as nossas transgressões
estão perdoadas e que a raiz ou princípio do pecado está
julgado, então podemos, pelo poder do Espírito Santo e
segundo a nossa capacidade, gozar comunhão com Deus em
relação Aquele Ser bendito que viveu uma vida humana
perfeita, aqui, na terra, e que Se ofereceu sem mancha a
Deus, na cruz. Assim, as quatro classes de oferendas se nos
apresentam por sua ordem divina, na purificação do leproso
— a saber, a expiação da culpa, a expiação do pecado, o
holocausto e a oferta de manjares, mostrando cada uma um
aspecto particular de nosso bendito Senhor Jesus Cristo.

Da Perdição à Glória
Aqui termina o relato das disposições do Senhor sobre o
leproso; e oh, que maravilhoso relato! Que exposição da
hediondez do pecado, da graça e santidade de Deus, da
preciosidade da Pessoa de Cristo e a eficácia da Sua obra!
Nada pode ser mais interessante do que observar os rasgos
da graça divina saindo do recinto sagrado do santuário para
ir ao lugar imundo, onde, de cabeça descoberta, embuçado e
com as vestes rasgadas, se encontrava o leproso. Deus
procurava o leproso onde ele estava; mas não o deixava ali.
Manifestava-se pronto a cumprir uma obra em virtude da qual
podia conduzir o leproso a um lugar mais elevado e a uma
comunhão mais íntima do que ele jamais havia conhecido. Em
virtude desta obra, o leproso era conduzido do seu lugar de
imundície e solidão para a própria porta do tabernáculo da
congregação, o lugar dos sacerdotes, para ali gozar dos
privilégios sacerdotais (compare-se Êxodo 29:20, 21, 32).
Como poderia elevar-se a tal posição? Por si mesmo era
impossível. Por muito que pudesse fazer, teria definhado e
morrido na sua lepra, se a graça soberana do Deus de Israel
não tivesse descido sobre ele para o elevar do lugar imundo
até o colocar entre os príncipes do Seu povo.
Se alguma vez existiu um caso em que a questão dos esforços
humanos, dos méritos humanos e da justiça humana, pôde ser
plenamente provada e arrumada para sempre, é
incontestavelmente o caso do leproso. Seria uma lamentável
perda de tempo discutir tal questão em presença de um caso
semelhante. Deve ser evidente, até mesmo para o leitor mais
superficial, que nada senão a graça divina, reinando pela
justiça, podia ir ao encontro das condições e necessidades
do leproso. E de que maneira gloriosa e triunfante opera a
graça de Deus! Desce às maiores profundidades a fim de
elevar o leproso às maiores alturas. Vede o que o leproso
perdeu e o que ganhou! Perdeu tudo o que pertencia à
natureza e ganhou o sangue da expiação e a graça do
Espírito—simbolicamente falando. Em boa verdade, os seus
ganhos eram incalculáveis. Se nunca tivesse sido posto fora
do arraial, nunca teria alcançado tão infinita riqueza. Tal
é a graça de Deus! Tal é o poder e o valor, a virtude e a
eficácia do sangue do Senhor Jesus!
Como tudo isto nos recorda forçosamente o filho pródigo, em
Lucas 15! Nele a lepra havia também alastrado e surgido à
superfície. Havia estado longe num lugar imundo, onde os
seus próprios pecados e o intenso egoísmo dos habitantes da
terra longínqua tinham criado uma situação de solidão em
redor de si. Mas, bendito seja para sempre o profundo e
terno amor do Pai, sabemos como tudo acabou: o pródigo
encontrou uma nova posição mais elevada e entrou numa
comunhão mais íntima do que antes conhecera. Nunca antes se
tinha morto um "bezerro cevado" para ele. Nunca se lhe
havia vestido "o melhor vestido". E a que devia tal
distinção? Seria devido aos méritos do pródigo? Oh, não;
era simplesmente devido ao amor do Pai.
Prezado leitor, permita que lhe faça esta pergunta: pode
debruçar-se sobre o relato do procedimento de Deus para com
o leproso, em Levítico 14, ou da conduta do Pai para com o
pródigo, em Lucas 15, sem sentir intensamente o amor que
existe em Deus? Esse amor que se manifesta na Pessoa e obra
de Cristo, que é relatado nas Escrituras Sagradas e
derramado sobre o coração do crente pelo Espírito Santo?
Que o Senhor nos dê uma comunhão mais íntima e constante
consigo mesmo!

Diante de Deus Todos São Iguais


Entre os versículos 21 e 32 temos "a lei daquele em quem
estiver a praga da lepra, cuja mão não pode alcançar o
preciso para sua purificação". Esta lei refere-se aos
sacrifícios do "oitavo dia", e não às "duas aves vivas e
limpas". Estas últimas não se podiam dispensar em nenhum
caso, porque representam a morte e ressurreição de Cristo
como a única base sobre a qual Deus pode receber o pecador
que torna para Si. Por outro lado, os sacrifícios do
"oitavo dia", estando relacionados com a comunhão da alma,
devem ser influenciados, até certo ponto, pela medida de
apreensão da alma. Mas, seja qual for essa medida, a graça
de Deus pode satisfazê-la com estas palavras
particularmente tocantes: "Conforme alcançar a sua mão". E,
além disso, "as duas rolas" conferiam ao "pobre" os mesmos
privilégios que os dois cordeiros conferiam ao "rico",
posto que tanto as rolas como os cordeiros representassem
"o precioso sangue de Cristo", que é de uma infinita,
imutável e eterna eficácia aos olhos de Deus.
Todos estão diante de Deus sobre a base da morte e
ressurreição. Todos são trazidos igualmente perto, mas nem
todos gozam da mesma medida de comunhão — nem todos
alcançam o mesmo grau de compreensão da preciosidade de
Cristo em todos os aspectos da Sua obra. Poderiam, se
quisessem, mais deixam-se embaraçar de uma maneira ou de
outra. O mundo e a carne com as suas respectivas
influências atuam duma maneira prejudicial. O Espírito é
entristecido e Cristo não é usufruído como podia ser. É
absolutamente inútil supor que nos podemos alimentar,
espiritualmente, de Cristo se vivemos segundo os nossos
desejos carnais. Não; se queremos nutrir-nos de Cristo é
preciso que renunciemos a nós mesmos, que nos despojemos do
ego, que nos julguemos a nós próprios. Não é uma questão de
salvação. Não se trata da introdução do leproso no arraial
— o lugar destinado às relações entre Deus e o Seu povo. De
modo nenhum. Trata-se somente da comunhão da alma, do seu
gozo em Cristo.
A este respeito, a plenitude desse gozo está ao nosso
alcance. Podemos ter participação nas verdade mais
elevadas; porém se a nossa medida for pequena, a graça
abundante do coração de nosso Pai sussurra estas doces
palavras: "Conforme alcançara tua mão." Todos temos os
mesmos direitos, contudo a nossa capacidade pode variar; e,
bendito seja Deus, quando entramos na Sua presença, todos
os desejos da nova natureza, na sua maior intensidade, são
satisfeitos; e todos os poderes da nova natureza, em pleno
curso, estão ocupados. Que seja esta a experiência das
nossas almas, dia a dia. Encerraremos esta parte com uma
breve referência ao assunto da lepra numa casa.

3. A Lepra numa Casa


O leitor observará que os casos de lepra numa pessoa ou no
vestuário podiam ocorrer no deserto; porém, no caso de uma
casa, era forçoso que aparecesse em Cana. "Quando tiverdes
entrado na terra de Cana, que vos hei - de dar por
possessão, e eu enviar a praga da lepra a alguma casa da
terra da vossa possessão... então, o sacerdote ordenará que
despejem a casa, antes que venha o sacerdote para examinar
a praga, para que tudo o que está na casa não seja
contaminado; e, depois, virá o sacerdote, para examinar a
casa; e, vendo a praga, e eis que, se a praga nas paredes
da casa tem covinhas verdes ou vermelhas, e parecem mais
fundas do que a parede, então o sacerdote sairá daquela
casa para fora da porta da casa e cerrará a casa por sete
dias."
Considerando a casa como figura de uma assembleia,
encontramos nesta passagem alguns princípios importantes do
método divino de tratar o mal moral, ou os sintomas de mal,
numa congregação. Observamos a mesma santa calma e perfeita
paciência a respeito da casa que já tínhamos observado em
referência à pessoa ou ao vestuário. Não havia pressa nem
indiferença, quer se tratasse de uma casa, de um vestido ou
de um indivíduo. Quem observasse algo de anormal na sua
casa não devia ficar indiferente a qualquer sintoma
suspeito que aparecesse nas paredes; nem devia ele próprio
pronunciar-se sobre esses sintomas. Examinar e julgar era
trabalho do sacerdote. A partir do momento em que qualquer
coisa de suspeito aparecesse, o sacerdote assumia uma
atitude judicial a respeito dessa casa. A casa ficava
submetida a juízo, ainda que não condenada. Antes de se
poder chegar a uma decisão, tinha de decorrer o período
legal. Podia ocorrer que os sintomas fossem meramente
superficiais, e nesse caso nenhuma ação seria tomada.
"Depois, tornará o sacerdote ao sétimo dia e examinará; e,
se vir que a praga nas paredes da casa se tem estendido,
então, o sacerdote ordenará que arranquem as pedras em que
estiver a praga e que as lancem fora da cidade num lugar
imundo". Antes de se condenar toda a casa, devia fazer-se a
prova arrancando somente as pedras que tinham lepra.
"Porém, se a praga tornar e brotar na casa, depois de se
arrancarem as pedras, e depois da casa ser raspada, e
depois de ser rebocada, então, o sacerdote entrará, e,
examinando, eis que, se a praga na casa se tem estendido,
lepra roedora há na casa; imunda está. Portanto, se
derribará a casa, as suas pedras e a sua madeira, como
também todo o barro da casa; e se levará tudo para fora da
cidade, a um lugar imundo". O caso era irremediável, o mal
incurável: todo o edifício tinha de ser demolido.
"E o que entrar naquela casa, em qualquer dia em que
estiver fechada, será imundo até à tarde. Também o que se
deitar a dormir em tal casa lavará as suas vestes; e o que
comer em tal casa lavará as suas vestes". É uma verdade
muito solene. O contato polui! Recordemos isto. Era um
princípio amplamente recomendado na economia Levítica; e,
seguramente, não é menos aplicável nos dias de hoje.
"Porém, tornando o sacerdote a entrar, e, examinando, eis
que, se a praga na casa se não tem estendido, depois que a
casa foi rebocada, o sacerdote declarará a casa por limpa,
porque a praga está curada". A remoção das pedras
manchadas, etc., tinha sustado o desenvolvimento do mal e
tornado desnecessário qualquer juízo ulterior. A casa
deixava de estar sob ação judicial; e, sendo purificada
pela aplicação do sangue, estava de novo em condições de
ser habitada.

O Juízo do Mal numa Assembleia


E, agora, quanto à moral de tudo isto: é, ao mesmo tempo,
interessante, solene e prática. Consideremos, por exemplo,
a igreja em Corinto. Era uma casa espiritual composta de
pedras espirituais; mas o olhar perspicaz do apóstolo
descobriu nas suas paredes certos sintomas de natureza
muito duvidosa. Ficou ele indiferente? Não, por certo. Ele
estava tão possuído do espírito do Dono da casa que não
podia admitir, nem por um momento, tal coisa. Mas se não
ficou indiferente também não se mostrou precipitado. Mandou
tirar a pedra leprosa e deu à casa uma raspagem completa.
Havendo atuado assim, esperou pacientemente o resultado. E
qual foi esse resultado? Aquele que o coração mais podia
desejar. "Mas Deus, que consola os abatidos, nos consolou
com a vinda de Tito; e não somente com a sua vinda, mas
também pela consolação com que foi consolado de vós,
contando-nos as vossas saudades, o vosso choro, o vosso
zelo por mim, de maneira que muito me regozijei... em tudo
mostrastes estar furos neste negócio" (compare-se 1 Co 5
com 2 Co 7:6-11-11). É um agradável exemplo. O cuidado e
zelo do apóstolo foram amplamente recompensados; a praga
foi retida e a assembleia liberta da influência corruptora
do mal moral que não havia sido julgado.
Tomemos outro exemplo. "E ao anjo da igreja que está em
Pérgamo escreve: Isto diz aquele que tem a espada aguda de
dois fios: Eu sei as tuas obras, e onde habitas, que é onde
está o trono de Satanás; e reténs o meu nome e não negaste
a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha fiel
testemunha, o qual foi morto entre vós, onde Satanás
habita. Mas umas poucas coisas tenho contra ti, porque tens
lá os que seguem a doutrina de Balaão, o qual ensinava
Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel para
que comessem dos sacrifícios da idolatria e se
prostituíssem. Assim, tens também os que seguem a doutrina
dos nicolaítas; o que eu aborreço. Arrepende-te, pois;
quando não, em breve virei a ti e contra eles batalharei
com a espada da minha boca" (Ap 2:12-16). O sacerdote
divino mantém aqui uma atitude judicial em relação à sua
casa em Pérgamo. Não podia ficar indiferente à vista de
sintomas tão alarmantes; mas graciosa e pacientemente dá
tempo a que se arrependam. Se as advertências, as
repreensões e a disciplina não produzirem efeito, então, o
juízo deverá seguir o seu curso.
Estas coisas estão repletas de ensino prático no que
respeita à doutrina da Assembleia. As sete igrejas da Ásia
oferecem-nos diversas e admiráveis ilustrações da casa
submetida a juízo sacerdotal. Deveríamos estudá-las
cuidadosamente e com oração, pois são de imenso valor. Não
devemos olhar para as nossas conveniências, quando algo de
natureza suspeita surge na assembleia. Podemos ser tentados
a desculparmo-nos, dizendo: Isto não me diz respeito; porém
é dever de todos os que amam ao Senhor da casa cuidar com
zelo da pureza dessa casa; e se hesitarmos ante o
cumprimento deste dever não será para nossa honra nem
proveito no dia do Senhor.
Não prosseguiremos com este assunto, mas, antes de encerrar
esta parte, desejamos declarar que cremos firmemente que
todo este assunto da lepra tem lições de grande alcance,
não só em relação à casa de Israel, mas também aplicáveis à
igreja professa.

— CAPITULO 15 —

A IMPUREZA INERENTE À
NATUREZA HUMANA

Este capítulo trata de um certo número de coisas de


impureza cerimonial menos graves que a lepra. Esta
apresenta-se como a expressão da firme energia do mal na
natureza humana; enquanto que o capítulo 15 relata um
número de coisas que são apenas fraquezas inevitáveis, mas
que, como provinham, até certo ponto, da natureza,
contaminavam e precisavam do remédio da graça divina. A
presença de Deus na assembleia reporta um alto grau de
santidade e pureza moral. Os movimentos da natureza tinham
de ser neutralizados. Até mesmo coisas que ao homem podiam
parecer fraquezas inevitáveis tinham uma influência
contagiosa e precisavam de ser purificadas, porque o Senhor
estava no arraial. Nada nocivo, nada inconveniente ou
desagradável podia ser permitido dentro dos recintos puros
e sagrados da presença do Deus de Israel. As nações
incircuncisas em redor nada tinham compreendido de tão
santas ordenações: mas o Senhor queria que Israel fosse
santo, porque Ele era o Deus de Israel. Se eles eram
privilegiados e distinguidos ao ponto de gozarem da
presença de um Deus santo, era necessário que fossem um
povo santo.
Nada pode causar tanta admiração à alma como o cuidado
zeloso do Senhor quanto aos hábitos e práticas do Seu povo.
Na tenda ou fora dela, adormecidos ou acordados, Ele
guardava-os. Tratava do seu alimento, cuidava do seu
vestuário e ocupava-se dos menores interesses.
Se aparecia alguma mancha insignificante numa pessoa, era
necessário examiná-la instantânea e cuidadosamente. Numa
palavra: nada que pudesse, de qualquer modo, afetar o bem-
estar ou a pureza daqueles com quem o Senhor se havia
ligado e em meio dos quais habitava fora olvidado. Ele
interessava-se pelos assuntos mais vulgares; tratava
cuidadosamente de tudo que lhes dizia respeito na vida
pública, social ou particular.
Para uma pessoa incircuncidada, isto seria um fardo
insuportável. Ter um Deus de infinita santidade no seu
caminho, durante o dia, e junto do seu leito, de noite,
seria para uma tal pessoa um constrangimento intolerável;
mas para aquele que amava verdadeiramente a santidade — que
amava a Deus — nada podia ser mais agradável. Uma tal
pessoa regozija-se com a doce certeza de que Deus está
sempre perto, e deleita-se na santidade que é, ao mesmo
tempo, requerida e garantida pela presença de Deus.
Acontece assim com o leitora Ama a presença divina e a
santidade que essa presença requer o Condescende com
qualquer coisa que seja incompatível com a santidade da
presença de Deus? Os seus pensamentos habituais,
sentimentos e ações estão de harmonia com a pureza e
elevação do santuário?
Lendo este capítulo quinze de Levítico, recordemos que foi
escrito para nosso ensino. Devemos lê-lo no Espírito,
porque tem uma aplicação espiritual para nós. Lê-lo de
qualquer outra maneira é torcer o sentido para própria
destruição ou, para usar frase cerimonial: "cozer um
cabrito no leite de sua mãe".

"Toda Escritura... é Proveitosa" (2 Tm 3:16)


Talvez o leitor pergunte: — Que posso eu aprender com esta
parte da Escriturai Que aplicação tem ela para mim? Em
primeiro lugar, deixai-me perguntar, não admite que foi
escrita para seu ensinou Quanto a isto, suponho que não
discordará, visto que o apóstolo inspirado declara
expressamente que "tudo que dantes foi escrito para nosso
ensino foi escrito" (Rm 15:4). Muitos parece que esquecem
esta importante declaração, pelo menos no que se refere ao
Livro de Levítico. Não podem compreender que seja possível
aprender alguma coisa com os ritos e cerimônias de séculos
passados e especialmente de ritos e cerimônias como aqueles
de que fala o capítulo quinze de Levítico.
Porém, quando nos lembramos que foi o Espírito Santo quem
mandou escrever este capítulo, que cada parágrafo, cada
versículo e cada linha "é divinamente inspirado e útil",
não se deve hesitar em buscar qual é o seu sentido. Sem
dúvida, aquele que é filho de Deus deve ler o que seu Pai
escreveu. É certo que necessita de poder espiritual para
saber como e sabedoria para saber quando deve ler um
capítulo como este; mas o mesmo pode dizer-se também de
qualquer capítulo. Uma coisa é certa: se fôssemos
suficientemente espirituais e mais celestiais, separados da
natureza e vivêssemos acima das coisas da terra, não
deduziríamos nada mais senão princípios e ideias puramente
espirituais deste capítulo e outros semelhantes. Se um anjo
do céu tivesse de ler estas porções das Sagradas
Escrituras, como as consideraria ele? Somente à luz
espiritual e celeste — contendo a mais pura e elevada
moralidade. E porque não havemos nós de fazer o mesmo?
Creio que não fazemos ideia do desprezo que mostramos pelo
Sagrado Volume consentindo que uma parte dele seja tão
grosseiramente negligenciada como o tem sido o Livro de
Levítico. Se este livro não devia ser lido, não devia,
evidentemente, ter sido escrito. Se não é um livro "útil",
não devia ter certamente um lugar próprio no cânone de
inspiração divina; mas, visto que aprouve ao "único Deus
sábio" ditar este livro, os Seus filhos deveriam certamente
sentir prazer em lê-lo.
Sem dúvida é necessária sabedoria espiritual, um santo
discernimento e apurado sentido moral que só a comunhão com
Deus pode dar a fim de se poder julgar quando deve ler-se
um tal capítulo. Nós teríamos fatalmente de pôr em dúvida o
bom critério e gosto apurado do homem que se levantasse
para ler o capítulo quinze de Levítico numa reunião
ordinária da congregação. Mas, por quê? É porque este
capítulo não é "divinamente inspirado", e, como tal, "útil"
? De modo nenhum; mas porque em geral as pessoas não são
suficientemente espirituais para compreender as suas puras
e santas lições.
Que devemos, então, aprender neste capítulo? Em primeiro
lugar, ele ensina-nos a vigiar, com santo zelo, sobre tudo
que provém da natureza humana. Todo o impulso e tudo que
emana da natureza mancha. A natureza humana caída é uma
fonte impura, e as suas correntes são impuras. Dela nada
pode brotar que seja puro, santo ou bom. É uma lição
frequentemente repetida no Livro de Levítico e
particularmente ensinada neste capítulo.

A Água e o Sangue
Porém, bendita seja a graça que proveu um tão eficaz
remédio para a contaminação da carne! Esta provisão é
apresentada sob duas formas distintas em todo o Livro de
Deus e particularmente na parte que estamos examinando, a
saber: "água" e "sangue". Estão ambas baseadas sobre a
morte de Cristo. O sangue que expia e a água que limpa
saíram do lado ferido de Cristo crucificado (compare-se ]o
19:34 com 1 }o 5:6). "O sangue de Jesus Cristo, seu Filho,
nos purifica de todo pecado" (1 Jo 1:7). E a Palavra de
Deus limpa os nossos hábitos e a nossa conduta (SI 119:9;
Ef 5:26). Assim, somos mantidos em estado próprio à
comunhão e ao culto, embora passando por uma cena onde tudo
está poluído e trazendo conosco uma natureza cujos impulsos
deixam uma mancha.
Já foi notado que este capítulo trata de uma classe de
impurezas menos graves do que a lepra. Isto explica o fato
de a expiação o não ser aqui prefigurada por um bezerro ou
um cordeiro, mas, sim, pela menor ordem dos sacrifícios, a
saber: "duas rolas". Mas, por outro lado, a virtude
purificadora da Palavra é recordada constantemente nos atos
cerimoniais de "lavar", "banhar", e "enxugar". "Como
purificará o jovem o seu caminhou Observando-o conforme a
tua palavra" (SI 119:9). "Vós, maridos, amai vossa mulher,
como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou
por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da
água, pela palavra." (Ef 5:25-26). A água ocupava um lugar
muito importante no sistema levítico de purificação, e,
como uma figura da Palavra, nada pode ser mais interessante
ou instrutivo.
Desta forma, podemos resumir os pontos mais importantes
deste capítulo quinze de Levítico. Aprendemos de uma
maneira admirável a intensidade da santidade da presença
divina. Nem uma mancha, nem uma nódoa pode tolerar-se um só
instante nessa região santa. "Assim, separareis os filhos
de Israel das suas imundícias, para que não morram nas suas
imundícias, contaminando o meu tabernáculo, que está no
meio deles" (versículo 31).
Aprendemos outra vez que a natureza humana é uma fonte
permanente de impureza. Está irremediavelmente corrompida,
e não só está corrompida como é contagiosa. Acordada ou a
dormir, ereta ou deitada, a nossa natureza está corrompida
e contamina. O seu próprio contato transmite corrupção. É
uma lição profundamente humilhante para a orgulhosa
humanidade; mas assim é. O Livro de Levítico põe um espelho
fiel diante da nossa natureza. Não deixa à "carne" nada em
que possa gloriar-se. Os homens podem orgulhar-se da sua
civilização, do seu sentido moral e da sua dignidade. Que
estudem o terceiro Livro de Moisés, e nele verão o que tudo
isto vale realmente aos olhos de Deus.
Finalmente, temos outra vez o ensino do valor expiatório do
sangue de Cristo e a virtude purificadora e santificadora
da preciosa Palavra de Deus. Quando pensamos na pureza
irrepreensível do santuário e refletimos sobre a impureza
irremediável da nossa natureza, temos que perguntar: "Como
poderemos entrar e permanecer ali"? A resposta encontra-se
no "sangue e água" que saíram do lado de Cristo crucificado
— Cristo que entregou a Sua vida à morte por nós, para que
pudéssemos viver por Ele. "Três são os que testificam na
terra: o Espírito e a água e o sangue; e", bendito seja
Deus, "estes três concordam num". O Espírito não nos dá uma
mensagem diferente daquela que encontramos na Palavra, e a
Palavra e o Espírito em conjunto declaram-nos a
preciosidade e eficácia do sangue.
Não podemos dizer, portanto, que o capítulo quinze de
Levítico foi escrito "para nosso ensino"? Não ocupa um
lugar definido no cânone divino? Certamente. Haveria uma
lacuna se fosse omitido. Ensina-nos, o que não podíamos
aprender da mesma maneira em nenhuma outra passagem da
Escritura. É certo que todas as Escrituras nos ensinam a
santidade de Deus, o aviltamento da natureza, a eficácia do
sangue e o valor da Palavra; porém o capítulo que acabamos
de estudar apresenta-nos essas grandes verdades e grava-as
sobre o nosso coração de um modo especial.
Que cada parte do Volume de nosso Pai seja mais preciosa
para os nossos corações. Que cada um dos Seus testemunhos
seja mais doce do que o mel e que cada um dos Seus "justos
juízos" ocupe o seu devido lugar em nossas almas.

— CAPITULO 16 —

O GRANDE DIA DA EXPIAÇÃO

Introdução
Este capítulo apresenta alguns dos princípios mais
importantes que, de algum modo, merecem a atenção da alma
regenerada. Apresenta a doutrina da expiação com um poder e
uma plenitude pouco vulgares. Em suma, devemos incluir o
capítulo décimo sexto de Levítico entre as porções mais
importantes e preciosas da Inspiração; se é que podemos
fazer comparações onde tudo é divino.
Considerando este capítulo sob o ponto de vista histórico,
vemos como ele nos dá um relato das cerimônias do grande
dia da expiação em Israel, mediante a qual eram
estabelecidas e mantidas as relações do Senhor com a
assembleia e eram expiados os pecados, faltas e fraquezas
do povo, de forma que o Senhor Deus pudesse habitar no meio
deles. O sangue que era derramado neste solene dia formava
a base do trono do Senhor no meio da congregação. Em
virtude deste sangue, o Deus santo podia fazer a Sua
habitação no meio do povo, apesar de todas as suas
impurezas. O dia dez do sétimo mês era.um dia único em
Israel. Não havia outro dia semelhante em todo o ano. Os
sacrifícios deste dia formavam o fundamento dos caminhos de
Deus em graça, misericórdia, paciência e longanimidade.
Além disso, aprendemos nesta parte da história inspirada
que "o caminho do santuário não estava ainda aberto". Deus
estava oculto atrás do véu e o homem tinha de manter-se à
distância. "E falou o SENHOR a Moisés, depois que morreram
os dois filhos de Arão, quando se chegaram diante do SENHOR
e morreram. Disse, pois, o SENHOR a Moisés: Dize a Arão,
teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para
dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a
arca, para que não morra; porque eu apareço na nuvem sobre
o propiciatório".
O caminho não estava aberto para que o homem pudesse
aproximar-se em todo o tempo da presença divina, nem
existia nenhum meio, em todo o cerimonial moisaico, que lhe
permitisse ficar ali continuamente. Deus estava encerrado
dentro, longe do homem; e o homem estava fora, separado de
Deus, e o "sangue de bodes e bezerros" não podia abrir o
caminho para um lugar de encontro permanente. Era
necessário "o sacrifício de um nome mais nobre e sangue
mais precioso".
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a
imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios
que continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os
que a eles se chegam. De outra maneira, teriam deixado de
se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes,
nunca mais teriam consciência de pecado. Nesses
sacrifícios, porém, cada ano se faz comemoração dos
pecados, porque é impossível que o sangue dos touros e dos
bodes tire pecados" (Hb. 10:1-4). Nem o sacerdócio levítico
nem os sacrifícios levíticos podiam conduzir à perfeição. A
insuficiência está gravado nos último, a debilidade sobre o
primeiro e a imperfeição sobre um e outros. Um homem
imperfeito não podia ser um sacerdote perfeito e um
sacrifício imperfeito não podia dar uma boa consciência.
Arão não era competente para se sentar dentro do véu e os
sacrifícios que ele oferecia não podiam rasgar esse véu.
Dissemos o bastante sob o ponto de vista histórico do
capítulo. Consideremo-lo agora sob o ponto de vista típico.

Arão - Tipo de Cristo


"Com isto Arão entrará no santuário: com um novilho para
expiação do pecado e um carneiro para holocausto"
(versículo 3). Aqui temos de novo os dois grandes aspectos
da obra expiatória de Cristo, por meio da qual é mantida
perfeitamente a glória divina e são supridas as maiores
necessidades do homem. Não se menciona em todos os serviços
deste dia único e solene nem a oferta de manjares nem o
sacrifício pacífico.
A vida humana perfeita de nosso bendito Senhor não se
encontra aqui simbolizada nem a comunhão da alma com Deus,
em consequência da Sua obra consumada, é desenrolada. Numa
palavra, o grande e único objetivo deste capítulo é a
"expiação", e esta sob um duplo aspecto, a saber: primeiro,
satisfazendo todos os direitos de Deus — os direitos da Sua
natureza, do Seu caráter e do Seu trono —; e, segundo,
expiando perfeitamente a culpa do homem e respondendo a
todas as suas necessidades.
Devemos ter estes dois pontos em vista, se quisermos ter
uma ideia clara da verdade apresentada neste capítulo ou da
doutrina do grande dia da expiação. "Com isto Arão entrará
no santuário" — com a expiação que correspondia à glória de
Deus, sob todos os conceitos seja a respeito dos Seus
planos de amor redentor para com a igreja, para com Israel
e para com toda a criação, seja quanto aos direitos do Seu
governo moral; e com a expiação que correspondia
inteiramente à culpa do homem e sua condição de
necessitado. Estes dois aspectos da expiação apresentam-se
constantemente perante nós à medida que refletimos sobre o
precioso conteúdo deste espírito. De modo que por muita
importância que lhe dermos nunca será demasiada.
"Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de
linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de
linho, e se cobrirá com uma mitra de linho: estas são
vestes santas; por isso banhará a sua carne na água, e as
vestirá" (versículo 4). A pessoa de Arão lavada em água
pura, e revestido dos vestidos brancos de linho, oferece-
nos um tipo formoso e tocante de Cristo empreendendo a obra
de expiação, sendo pessoal e caracteristicamente puro e
imaculado. "E por eles me santifico a mim mesmo, para que
também eles sejam santificados na verdade" (Jo 17:19). E um
privilégio precioso podermos, por assim dizer, contemplar
fixamente a pessoa do nosso divino Sacerdote em toda a Sua
santidade essencial. O Espírito Santo compraz-se em tudo
que apresenta Cristo aos olhos do Seu povo; e sob qualquer
aspecto que o contemplarmos vemo-Lo o mesmo imaculado,
perfeito, glorioso, precioso e incomparável Jesus, "cândido
entre dez mil" e "totalmente desejável". Ele não necessitou
fazer ou usar coisa alguma a fim de ser puro e imaculado;
não precisou de água pura ou de Unho fino. Era intrínseca e
praticamente "o Santo de Deus". O que Arão fazia e o que
usava — a lavagem da água e a investidura dos seus hábitos
— são apenas fracas sombras do que Cristo é. A lei tinha
apenas uma "sombra" e "não a imagem exata das coisas".
Bendito seja Deus, nós não temos apenas a sombra mas também
a realidade divina e eterna — Cristo mesmo.

Arão e Sua Casa - Imagem da Igreja


"E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes
para expiação do pecado e um carneiro para holocausto.
Depois, Arão oferecerá o novilho da expiação, que será para
ele; e fará expiação por si e pela sua casa" (versículos 5-
6). Arão e a sua casa representam a Igreja, não como "um
corpo", mas como casa sacerdotal. Não é a Igreja como a
vemos representada em Efésios e Colossenses, mas antes como
a encontramos representada na Ia Epístola de Pedro, na
passagem bem conhecida de capítulo 2:5: "Vós também, como
pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio
santo, para oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis
a Deus, por Jesus Cristo". E também em Hebreus 3:6: "Mas
Cristo, como Filho, sobre a sua própria casa; a qual casa
somos nós, se tão-somente conservarmos firme a confiança e
a glória da esperança até ao fim". Devemos recordar sempre
que não existe revelação do mistério da Igreja no Velho
Testamento. Há tipos e figuras, mas não revelação. Este
maravilhoso mistério de "um só corpo", formado de judeus e
gentios, "um novo homem", unido a Cristo glorificado no
céu, não podia, como é óbvio, ser revelado até que Cristo
tivesse tomado o Seu lugar nas alturas. Paulo foi feito por
excelência despenseiro e ministro deste mistério, como ele
próprio nos diz em Efésios 3:1 -12, uma passagem que
recomendamos à atenção e oração do leitor crente.

Os dois Bodes
"Também tomará ambos os bodes e os porá perante o SENHOR, à
porta da tenda da congregação. E Arão lançará sortes sobre
os dois bodes: uma sorte pelo Senhor e a outra sorte pelo
bode emissário. Então, Arão fará chegar o bode sobre o qual
cair a sorte pelo SENHOR e o oferecerá para expiação do
pecado. Mas o bode sobre que cair a sorte para ser bode
emissário apresentar-se-á vivo perante o Senhor, para fazer
expiação com ele, para enviá-lo ao deserto como bode
emissário" (versículos 7 a 20). Nestes dois bodes temos os
dois aspectos da expiação já referidos. "A sorte pelo
SENHOR" caía sobre um, e a sorte pelo povo caía sobre o
outro. No caso do primeiro não se tratava das pessoas ou
dos pecados que deviam ser perdoados, nem dos desígnios de
Deus de graça para com os Seus eleitos. Estas coisas,
desnecessário é dizer, são de uma importância infinita; mas
não estão compreendidas no caso do "bode sobre o qual caía
a sorte pelo SENHOR" . Este bode simbolizava a morte de
Cristo, mediante a qual Deus foi perfeitamente glorificado,
com respeito ao pecado em geral. Esta grande verdade está
plenamente exposta na expressão notável "Uma sorte pelo
SENHOR". Deus tem uma parte especial na morte de Cristo —
uma parte distinta —, uma parte que não deixaria de ser
eterna ainda que nenhum pecador fosse salvo. A fim de se
compreender a força desta asserção é preciso recordar como
Deus tem sido desonrado neste mundo. A Sua verdade tem sido
desprezada; a Sua autoridade tem sido desdenhada; a Sua
majestade tem sido desconsiderada; a Sua lei tem sido
desobedecida; os Seus direitos têm sido esquecidos; o Seu
nome tem sido blasfemado e o Seu caráter difamado.

O Bode sobre o qual Recai a Sorte pelo SENHOR


Ora a morte de Cristo vindicou todos estes direitos.
Glorificou perfeitamente Deus no próprio lugar onde todas
estas coisas foram feitas. Vindicou perfeitamente a
majestade, a verdade, a santidade e o caráter de Deus;
satisfez divinamente as exigências do Seu trono; expiou o
pecado; administrou o remédio divino para todo o mal que o
pecado introduziu no universo; é a base sobre a qual o
bendito Deus pode agir em graça, misericórdia e paciência
para com todos; dá a ordem para a eterna expulsão e
perdição do príncipe deste mundo; forma o fundamento
imperecível do governo moral de
Deus. Em virtude da cruz, Deus pode atuar segundo a Sua
própria soberania. Pode expor as glórias incomparáveis do
Seu caráter e os adoráveis atributos da Sua natureza. No
exercício da Sua inflexível justiça podia ter destinado a
família humana ao lago de fogo juntamente com o diabo e
seus anjos. Mas, nesse caso, onde estariam o Seu amor, a
Sua graça, a Sua misericórdia, Sua benevolência,
longanimidade, compaixão, paciência e perfeita bondade?
E, por outro lado, tivessem estes preciosos atributos sido
exercidos sem que se efetuasse a expiação, onde estariam a
justiça, a verdade, a majestade, a santidade, os direitos
de governo, ou, numa palavra, toda a glória moral de Deus?
Como poderiam encontrar-se "a graça e a verdade"? Ou "a paz
e a justiça" beijarem-se? Como poderia a "verdade brotar da
terra"? Ou "a justiça olhar desde os céus"? Tudo isto era
impossível. Nada senão a expiação efetuada por nosso Senhor
Jesus Cristo podia ter glorificado plenamente Deus; mas na
cruz Ele foi glorificado. A cruz refletiu toda a glória do
caráter divino como nunca poderia ter sido refletida por
entre os esplendores de uma criação inocente. Na
perspectiva e recordação deste sacrifício, Deus tem sido
paciente com este mundo cerca de seis mil anos. Em virtude
deste sacrifício, os mais ímpios, atrevidos e blasfemos dos
filhos dos homens "vivem, movem-se e existem", comem, bebem
e dormem. O próprio bocado que o infiel blasfemo leva à
boca deve-o ao sacrifício que não conhece, mas que
impiamente ridiculariza. O sol e as chuvas que fecundam os
campos do ateu chegam até si em virtude do sacrifício de
Cristo. Sim, o próprio fôlego que o infiel e o ateu gastam
a blasfemar da revelação de Deus ou a negar a Sua
existência devem-no ao sacrifício de Cristo. Se não fosse
essa preciosa expiação, em vez de blasfemarem sobre a
terra, estariam a chafurdar no inferno.
Devo advertir que não falo aqui do perdão ou salvação de
pessoas. Isto é outra coisa muito diferente, e relaciona-
se, como todo o verdadeiro cristão sabe, com a confissão do
nome de Jesus e a firme crença que Deus o ressuscitou dos
mortos (Rm 10). Isto é evidente e plenamente compreensível;
mas não tem nenhuma relação com o aspecto da expiação que
estamos considerando, e que é tão admiravelmente
prefigurado pelo bode sobre o qual caía "a sorte pelo
SENHOR". Estas duas coisas são distintas: o perdão e a
salvação que Deus dá ao pecador, por um lado, e, por outro,
a paciência que tem com ele e as bênçãos temporais que lhe
outorga. As duas coisas são outorgadas em virtude da cruz,
porém cada uma sob um aspecto diferente em sua aplicação.

As Consequências da Expiação para toda a Humanidade


Esta diferença não é, de modo nenhum, insignificante. Pelo
contrário, é tão importante que quando é vista com
indiferença é impossível compreender bem a doutrina
completa da expiação. Mas isto não é tudo. A compreensão
clara dos métodos do governo de Deus, quer no passado, no
presente ou no futuro está incluída neste ponto
profundamente interessante. E, finalmente, nela está a
chave de passagens em que muitos cristãos encontram
dificuldades consideráveis. Quero apresentar duas ou três
destas passagens como exemplos.
"Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (Jo
1:29), à qual podemos ligar uma passagem análoga na
primeira Epístola de João (capítulo 2:2) em que se fala do
Senhor Jesus Cristo como "a propiciação pelos pecados de
todo o mundo". Nestas duas passagens o Senhor Jesus é
apresentado como Aquele que glorificou Deus perfeitamente
em relação ao "pecado" e "o mundo", na acepção mais ampla
destas palavras. É visto aqui como o grande Antítipo do
"bode em que caía a sorte pelo SENHOR". Isto revela-nos um
aspecto dos mais preciosos da expiação consumada por
Cristo, que é descurado e mal compreendido. Sempre que se
levanta a questão de pessoas e o perdão dos pecados em
relação com estas passagens da Escritura e outras análogas
é certo o espírito envolver-se em insuperáveis
dificuldades.
O mesmo ocorre também com todas as passagens nas quais a
graça de Deus para com o mundo em geral é apresentada.
Estão fundadas sobre aquele aspecto da expiação com que
estamos em geral mais diretamente ocupados. "Ide por todo o
mundo, pregai o evangelho a toda a criatura" (Mc 16). "Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito,
para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não
para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse
salvo por ele" (Jo 3:16 -17). "Admoesto-te, pois, antes de
tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e
ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos
os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida
quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade. Porque
isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, que
quer que todos os homens se salvem e venham ao conhecimento
da verdade. Porque há um só Deus e um só mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo, homem, o qual se deu a si
mesmo em preço de redenção por todos, para servir de
testemunho a seu tempo" (1 Tm 2:1-6). "Porque a graça de
Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os
homens" (Tt 2:11). "Vemos, porém, coroado de glória e de
honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os
anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça
de Deus, provasse a morte por todos" (Hb2:9). "O Senhor não
retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia;
mas é longânimo para convosco, não querendo que alguns se
percam, senão que todos venham a arrepender-se" (2 Pe3:9).

Deus é Glorificado e Pode Outorgar Graça


Não há nenhuma necessidade de procurar evitar o pleno
sentido destas passagens e outras semelhantes. Dão
testemunho claro e inequívoco da graça divina para com
todos, sem a menor alusão à responsabilidade do homem, por
um lado, ou, por outro, aos desígnios eternos de Deus.
Estas coisas são clara, plena e inequivocamente ensinadas
na Palavra de Deus. O homem é responsável, e Deus é
soberano. Todos os que se submetem às Escrituras admitem
estas coisas. Porém, ao mesmo tempo, é da maior importância
reconhecer toda a extensão da graça de Deus e da cruz de
Cristo. Isto glorifica a Deus e deixa o homem sem nenhuma
desculpa.
Os homens argumentam com os decretos de Deus e a
impossibilidade em que está o homem de crer sem a
influência divina. Os seus argumentos provam que não querem
Deus; porque se tão-somente quisessem conhecer Deus, Ele
está bastante perto para ser encontrado dos que o buscam. A
graça de Deus e a expiação são tão compreensivas quanto se
pode desejar, "alguém", "todo", "aquele que" e "todos" são
as próprias palavras de Deus; e eu gostaria de conhecer
quem é que está excluído delas. Se Deus manda uma mensagem
de salvação ao homem é porque seguramente lhe a destina; e
o que poderá haver mais perverso e ímpio do que rejeitar a
graça de Deus, fazer d'Ele mentiroso, e então apresentar os
Seus misteriosos desígnios como razão para esse
procedimento? Seria, em certo sentido, honesto dizer
abertamente: "O fato é que não creio na Palavra de Deus e
não quero a Sua graça nem a Sua salvação". Isto podia
compreender-se; mas encobrir o seu ódio a Deus e a verdade
com a roupagem de uma teologia falsa por ser de duas caras
é o grau mais elevado de perversidade. Chega ao ponto de
nos fazer sentir que o diabo nunca é mais diabólico do que
quando aparece com a Bíblia na mão.
Se é verdade que os homens são impedidos pelos secretos
desígnios e propósitos de Deus de receber o evangelho que
Ele nos mandou pregar, então sob que princípio de justiça
"padecerão" eles "eterna perdição" por não obedecerem ao
evangelho? (2 Ts 1:6 -10). Haverá uma só alma em todas as
regiões tristes dos perdidos que possa atribuir aos
desígnios de Deus a sua estada ali? Não, nem uma.
Oh, não! Deus provou um tão amplo remédio no sacrifício de
Cristo, não só para salvação dos que creem como também para
a apresentação da Sua graça àqueles que rejeitam o
evangelho, que não há desculpa. Não é porque o homem não
pode, mas sim porque não quer crer que "por castigo
padecerá eterna perdição". Não há erro mais funesto do que
aquele que comete o homem quando, sob o pretexto dos
decretos de Deus, recusa deliberadamente a graça de Deus; e
é tanto mais arriscado quanto é certo que se apoia sobre
dogmas de uma teologia unilateral. A graça de Deus é livre
para todos; e se perguntamos "Como pode ser isto" ? A
resposta é esta: "a sorte pelo SENHOR" caiu sobre a
verdadeira vítima, a fim de que Ele pudesse ser
perfeitamente glorificado quanto ao pecado no seu aspecto
mais amplo e ser livre de atuar em graça para com todos e
de fazer anunciar o evangelho "a toda a criatura". A graça
e a pregação devem ter uma base sólida, e essa base
encontra-se na expiação; e ainda que o homem a rejeite,
Deus é glorificado no exercício da graça e na oferta de
salvação, devido à base em que repousam tanto a graça como
a salvação. Deus é glorificado e será glorificado por toda
a eternidade. "Agora, a minha alma está perturbada; e que
direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isto vim a
esta hora. Pai, glorifica o teu nome. Então, veio uma voz
do céu que dizia: Já o tenho glorificado e outra vez o
glorificarei... Agora, é o juízo deste mundo; agora, será
expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado
da terra, todos atrairei a mim" (Jo 12:27-32).
Até aqui temos estado ocupados somente com um ponto
especial, a saber: "o bode sobre o qual caía a sorte pelo
SENHOR", e um leitor apressado poderia supor que o ponto a
seguir seria o bode-expiatório, que nos mostra o outro
grande aspecto da morte de Cristo ou a sua aplicação aos
pecados do povo. Porém, antes de passarmos a esse assunto
encontramos a confirmação plena dessa preciosa verdade de
que nos acabamos de ocupar no fato de que o sangue do bode
morto, juntamente com o sangue do novilho, era espargido
sobre e em frente do trono do Senhor, a fim de mostrar que
todas as exigências deste trono haviam sido satisfeitas
pelo sangue da expiação e que esta respondia a todas as
exigências da administração moral de Deus.

O Sangue da Expiação é Levado para dentro do Véu


"E Arão fará chegar o novilho da oferta pela expiação, que
será para ele, e fará expiação por si e pela sua casa; e
degolará o novilho expiação, que é para ele. Tomará também
o incensário cheio de brasas de fogo do altar, de diante do
SENHOR, e os seus punhos cheios de incenso aromático moído
e o meterá dentro do véu. E porá o incenso sobre o fogo
perante o SENHOR, e a nuvem do incenso cobrirá o
propiciatório, que está sobre o Testemunho, para que não
morra".
Na verdade, aqui temos uma exibição admirável. O sangue da
expiação é levado para dentro do véu, ao lugar santíssimo,
e espargido sobre o trono do Deus de Israel. A nuvem da
presença divina estava ali; e a fim de que Aarão pudesse
comparecer na presença imediata da glória e não morrer "a
nuvem do incenso" elevava-se e cobria o propiciatório,
sobre o qual o sangue da expiação devia ser espargido "sete
vezes". O "incenso aromático moído" representa o bom odor
da Pessoa de Cristo — o odor suave do Seu precioso
sacrifício.
"E tomará do sangue do novilho, e, com o seu dedo,
espargirá sobre a face do propiciatório, para a banda do
oriente; e perante o propiciatório espargirá sete vezes do
sangue com o seu dedo. Depois degolará o bode da oferta
pela expiação, que será para o povo, e trará o seu sangue
para dentro do véu; e fará com o seu sangue como fez com o
sangue do novilho, e o espargirá sobre o propiciatório e
perante a face do propiciatório" (versículos 14 e 15).
"Sete" é o número perfeito, e a aspersão de sangue sete
vezes diante do propiciatório ensina-nos que qualquer que
seja a aplicação do sangue de Cristo, seja a coisas, a
lugares ou a pessoas, é perfeitamente apreciada na presença
divina.
O sangue que assegura a salvação da Igreja — a "casa" do
verdadeiro Arão —; o sangue que assegura a salvação da
"congregação" de Israel; o sangue que garante a restauração
final e a bem-aventurança de toda a criação foi oferecido
perante Deus, espargido e aceito segundo toda a perfeição,
fragrância e preciosidade de Cristo. No poder desse sangue
Deus pode cumprir todos os desígnios eternos de graça: Pode
salvar a Igreja e elevá-la às alturas de glória e
dignidade, a despeito de todo o poder do pecado e de
Satanás; pode restaurar as tribos dispersas de Israel —
pode unir Judá e Efraim —; pode cumprir todas as promessas
feitas a Abraão, a Isaac e a Jacó; pode salvar e abençoar
incontáveis milhões de Gentios; pode restaurar e abençoar a
vasta criação; pode permitir que os raios da Sua glória
iluminem o universo para sempre; pode mostrar, à vista dos
anjos, dos homens e dos demônios, a Sua glória eterna — a
glória do Seu caráter, a glória da Sua natureza, a glória
das Suas obras, a glória do Seu governo. Tudo isto Ele pode
fazer, e fará; mas o único pedestal em que assenta para
sempre este admirável edifício de glória é o sangue da cruz
— esse sangue precioso, prezado leitor, que fala de paz,
paz divina e eterna, à consciência e ao coração, na
presença da Santidade Infinitiva. O sangue que é espargido
sobre a consciência do crente foi espargido "sete vezes"
perante o trono de Deus.
Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais valor e
importância descobrimos no sangue de Jesus. Se olhamos para
o altar de bronze, encontramos ali o sangue; se olhamos
para a pia de cobre, ali encontramos sangue; se olhamos
para o altar de ouro, lá encontramos o sangue; se olhamos
para o véu do tabernáculo, encontramos o sangue ali; mas em
nenhum outro sítio encontramos tão preciosas lições sobre o
sangue como dentro do véu, perante o trono do Senhor, na
imediata presença da glória divina.
"Assim, fará expiação pelo santuário por causa das
imundícias dos filhos de Israel e das suas transgressões,
segundo todos os seus pecados; e, assim, fará para a tenda
da congregação, que mora com eles no meio das suas
imundícias".
Encontramos sempre a mesma verdade. E preciso atender aos
direitos do santuário. E preciso que os á trios de Jeová,
bem como o Seu trono, deem testemunho do valor do sangue. O
tabernáculo, no meio das imundícias de Israel, tem de estar
protegido por todos os lados pelos recursos divinos da
expiação. Em todas as coisas o Senhor cuidada Sua própria
glória. Os sacerdotes e o seu serviço, o lugar de culto e
tudo que nele havia, subsistem pelo poder do sangue. O
Santo de Israel não podia ficar nem por um momento no meio
da congregação se não fosse o poder do sangue. Era isto que
Lhe permitia habitar, atuar e reinar no meio de um povo que
sempre errava.
"E nenhum homem estará na tenda da congregação, quando ele
entrar a fazer propiciação no santuário, até que ele saia;
assim, fará expiação por si mesmo, e pela sua casa, e por
toda a congregação de Israel" (versículo 17).
Arão tinha de oferecer um sacrifício por seus próprios
pecados, bem como pelos pecados do povo. Só podia entrar no
santuário no poder do sangue. No versículo 17 temos um
símbolo da expiação de Cristo em sua aplicação à Igreja e à
Congregação de Israel. A Igreja entra agora "no santuário
pelo sangue de Jesus" (Hb 10.19). Quanto a Israel, o véu
está ainda posto sobre os seus corações (2 Co. 3). Eles
estão ainda à distância, ainda que mediante a cruz podem
obter o perdão e ser restabelecidos quando se voltarem para
o Senhor. Propriamente falando, todo o período atual é para
eles o dia da expiação. O verdadeiro Arão entrou no céu com
seu próprio sangue, para agora comparecer na presença de
Deus por nós. Dentro em pouco sairá dali para fazer com que
a congregação de Israel entre no pleno gozo dos resultados
da Sua obra consumada. Entretanto, a Sua casa, quer dizer,
todos os verdadeiros crentes, estão ligados consigo, tendo
ousadia para entrar no santuário, havendo sido trazidos
para perto pelo sangue de Jesus.
"Então, sairá ao altar, que está perante o SENHOR, e fará
expiação por ele; e tomará do sangue do novilho e do sangue
do bode e o porá sobre as pontas do altar ao redor. E
daquele sangue espargirá sobre ele com o seu dedo sete
vezes, e o purificará das imundícias dos filhos de Israel,
e o santificará" (versículos 18 -19). Assim o sangue da
expiação era espargido por toda a parte, desde o trono de
Deus, dentro do véu, até ao altar que estava no átrio da
congregação.

O Caminho ao Lugar Santíssimo está aberto por meio do


Sangue de Cristo
"De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas
que estão no céu assim se purificassem; mas as próprias
coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes.
Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos,
figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora
comparecer, por nós, perante a face de Deus; nem também
para a si mesmo se oferecer muitas vezes, como o sumo
sacerdote cada ano entra no Santuário com sangue alheio.
Doutra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes
desde a fundação do mundo; mas, agora, na consumação dos
séculos, uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado
pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos homens está
ordenando morrerem uma vez, vindo, depois disso, o juízo,
assim também Cristo, oferecendo-se uma vez, para tirar os
pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos
que o esperam para salvação" (Hb 9:23-28).
Só há um caminho para o lugar santíssimo, e é um caminho
espargido com sangue. E inútil tentar entrar por qualquer
outro. Os homens podem esforçar-se por entrar nele, por
meio da oração ou por direito de aquisição — entrar por
atalho de ordenações ou por uma vereda formada em parte por
ordenações e em parte por Cristo; mas é inútil. Deus fala
de um caminho, e um só, e esse caminho foi aberto de par em
par pelo véu rasgado do corpo do Salvador. Por esse caminho
têm passado os milhões de salvos de século para século.
Patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, santos em todos
os séculos, desde Abel, têm trilhado esse bendito caminho e
encontrado por ele acesso seguro e indisputável.
O único sacrifício da cruz é divinamente suficiente para
todos. Deus não pede mais nem aceita menos. Acrescentar-lhe
algo é lançar desonra sobre aquilo em que Deus declara
achar agrado, sim, em que Ele é infinitamente glorificado.
Reduzi-lo seja no que for é negar a culpa e ruína do homem
e ultrajar a justiça e majestade da eterna Trindade.

O Bode "Azazel"
"Havendo, pois, acabado de expiar o santuário, e a tenda da
congregação, e o altar, então, fará chegar o bode vivo. E
Arão porá ambas as suas mãos sobre a cabeça do bode vivo e
sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de
Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus
pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao
deserto, pela mão de um homem designado para isso. Assim,
aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à
terra solitária; e o homem enviará o bode ao deserto".
Aqui temos, pois, a segunda ideia ligada com a morte de
Cristo, a saber: o perdão completo e final do povo. Se a
morte de Cristo constitui o fundamento da glória de Deus,
constitui também a base do perfeito perdão dos pecados dos
que põem nela a sua confiança. Este segundo objetivo é,
bendito seja Deus, apenas uma aplicação secundária é, e
inferior de expiação, embora os nossos corações néscios
sejam propensos a considerá-la como o aspecto mais elevado
da cruz. Isto é um erro. A glória de Deus está em primeiro
lugar; a nossa salvação em segundo. Manter a glória de Deus
era o objetivo principal e querido do coração de Cristo.
Ele seguiu este objetivo desde o princípio ao fim com
propósito definido e resoluta fidelidade. "Por isso o Pai
me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la" (Jo
10:17). "Agora, é glorificado o Filho do homem, e Deus é
glorificado nele. Se Deus é glorificado nele, também Deus o
glorificará em si mesmo, e logo o há de glorificar" (Jo
13:31 - 32), "Ouvi-me, ilhas, e escutai, vós, povos de
longe! O SENHOR me chamou desde o ventre, desde as
entranhas de minha mãe, fez menção do meu nome. E fez a
minha boca como uma espada aguda, e, com a sombra da sua
mão, me cobriu, e me pôs como uma flecha limpa, e me
escondeu na sua aljava. E me disse: Tu és meu servo, e
Israel, aquele por quem hei de ser glorificado" (Is49:l-3).
A glória de Deus era, pois, o objetivo supremo do Senhor
Jesus Cristo na vida e na morte. Viveu e morreu para
glorificar o nome de Seu Pai. A Igreja perde alguma coisa
com isto? De modo nenhum. E Israel? Tampouco. Mas, e os
gentios? Também não. A sua salvação e bem-aventurança não
podiam estar melhor asseguradas do que sendo parte da
glória de Deus. Escutai a resposta divina dada a Cristo, o
verdadeiro Israel, na passagem sublime que acabamos de
citar. "Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as
tribos de Jacó, e tomares a trazer os guardados de Israel;
também te dei para luz dos gentios, para seres a minha
salvação até à extremidade da terra".
E não é preciso sabermos que Deus é glorificado pela
abolição dos nossos pecados? Podemos perguntar, onde estão
os nossos pecados? Foram tirados. Como? Pelo sacrifício de
Cristo na cruz, pelo qual Deus foi glorificado para toda a
eternidade. Assim é. Os dois bodes, do dia da expiação,
dão-nos o duplo aspecto de um único ato. Num vemos como é
mantida a glória de Deus; no outro, como são tirados os
pecados. Um é tão perfeito como o outro. Pela morte de
Cristo nós somos inteiramente perdoados e Deus é
perfeitamente glorificado.
Existe um só ponto pelo qual Deus não haja sido glorificado
na cruz? Nem sequer um. Tampouco há um ponto sequer em que
não estamos perfeitamente perdoados. Digo "nós", porque
ainda que a congregação de Israel seja o objetivo primário
contemplado na formosa e admirável ordenação do bode
expiatório, todavia pode dizer-se sem reserva que toda a
alma que crê no Senhor Jesus Cristo está tão perfeitamente
perdoada como Deus é perfeitamente glorificado pelo
sacrifício da cruz. Quantos pecados de Israel levava o bode
expiatório? "Todos". Palavra preciosa! Não ficava nenhum. E
para onde os levava ele? "A uma terra solitária"—uma terra
onde nunca se poderiam encontrar, porque não havia ninguém
para os procurar. Seria possível que um sacrifício fosse
mais perfeito? Seria possível obter um quadro mais real do
sacrifício consumado de Cristo sob o seu primário e
secundário aspecto? Era impossível. Podemos contemplar um
tal quadro com intensa admiração, e, contemplando-o,
exclamar: "Em verdade, aqui andou o pincel do Mestre!"

Todos os nossos Pecados estão Perdoados


O leitor sabe que todos os seus pecados estão perdoados
segundo a perfeição do sacrifício de Cristo? Se
simplesmente crê no Seu nome estão perdoados. Estão tirados
para sempre. Não diga, como dizem tantas almas ansiosas:
"Temo não experimentar o perdão"! Em todo o evangelho não
existe uma palavra como "experimentar". Não somos salvos
por nossas experiências, mas por Cristo; e para ter a
Cristo em toda a Sua plenitude e preciosidade é preciso
crer—crer somente! E qual será o resultado? "...
purificados uma vez os ministrantes nunca mais teriam
consciência de pecado" (Hb 10:2). Note-se esta expressão:
"Nunca mais teriam consciência de pecados". Este deve ser o
resultado, visto que o sacrifício de Cristo é perfeito —
tão perfeito que Deus é glorificado nele.
É, pois, evidente que a obra de Cristo não necessita que se
lhe acrescente a experiência para ser perfeita. Podíamos da
mesma maneira dizer que a obra da criação não era completa
antes de Adão a ter realizado no jardim do Éden. É verdade
que ele a realizou; mas o que foi que ele realizou? Uma
obra perfeita. Desejamos que esta seja desde agora a
experiência do leitor, se é que não o foi antes. Que possa
agora e sempre descansar com toda a simplicidade n'Aquele
que com um só sacrifício "aperfeiçoou para sempre os que
são santificados!" E como são eles santificados? É por
realização? De modo nenhum. Então? É pela obra perfeita de
Cristo.

A Consumação disto com Respeito a Israel


Havendo diligenciado—infelizmente com tanta fraqueza! —
desenrolar a doutrina exposta neste maravilhoso capítulo,
até onde
Deus me tem dado luz para o fazer, quero apenas chamar a
atenção do leitor para mais um ponto, antes de concluir.
Encontra-se na seguinte passagem: "E isto vos será por
estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês,
afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis, nem o
natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. Porque,
naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos;
e sereis purificados de todos os vossos pecados, perante o
SENHOR. E um sábado de descanso para vós, e afligireis a
vossa alma; isto é estatuto perpétuo" (versículos29a31).
Isto terá o seu pleno cumprimento dentro em pouco no
remanescente salvo de Israel, como foi predito pelo profeta
Zacarias: "E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de
Jerusalém derramarei o Espírito de graça e de súplicas; e
olharão para mim, a quem traspassaram; e o prantearão como
quem pranteia por um unigênito; e chorarão amargamente por
ele, como se chora amargamente pelo primogênito. Naquele
dia, será grande o pranto em Jerusalém, como o pranto de
Hadade-Rimon no vale de Megido... Naquele dia haverá uma
fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de
Jerusalém, contra o pecado, e contra a impureza... e
acontecerá naquele dia, que não haverá preciosa luz" (num
lugar) "nem espessa escuridão" (noutro). "Mas será um dia"
(o sábado verdadeiro e ansiosamente esperado) "conhecido do
SENHOR; nem dia nem noite será; e acontecerá que, no tempo
da tarde, haverá luz. Naquele dia, também acontecerá que
correrão de Jerusalém águas vivas, metade delas para o mar
oriental, e metade delas até o mar ocidental; no estio e no
inverno, sucederá isto. E O SENHOR SERÁ REI SOBRE TODA A
TERRA; naquele dia, um será o SENHOR, e um será o seu
nome... naquele dia, se gravará sobre as campainhas dos
cavalos: SANTIDADE AO SENHOR... "e não haverá mais cananeu
na casa do SENHOR dos exércitos" (Zc 12 a 14).
Que dia aquele será! Não admira que se mencione com tanta
frequência na passagem acima citada. Será um brilhante
sábado de repouso, quando o remanescente em pranto se
reunir, no espírito de verdadeira penitência, em redor da
fonte aberta e entrar no gozo dos resultados finais do
grande dia da expiação. Eles "afligirão as suas almas", sem
dúvida; porque como poderão proceder de outro modo, quando
fixarem o olhar contrito "naquele a quem traspassaram?"
Mas, oh, que sábado eles terão! Jerusalém terá uma época
trasbordante de salvação, depois da sua longa e triste
noite de dor. As suas desolações serão esquecidas e seus
filhos, restabelecidos nas suas antigas moradas, tirarão as
suas harpas dos salgueiros e cantarão outra vez os suaves
salmos de Sião à sombra aprazível das suas vinhas e
figueiras.
Bendito seja Deus, o tempo está próximo. Cada pôr do sol
nos aproxima mais desse feliz sábado. A palavra é: "Eis que
presto venho"; e em redor de nós tudo parece dizer-nos
"chegaram os dias e a palavra de toda a visão" (E 12:23).
Sejamos vigilantes, vigiemos e oremos! Conservemo-nos puros
da contaminação do mundo; e assim o espírito do nosso
entendimento, os afetos dos nossos corações e a experiência
das nossas almas estarão prontos para receber o Noivo
celestial! O nosso lugar no tempo presente é fora do
arraial. Graças a Deus por ser assim. Seria uma perda
indizível estar dentro dele. A mesma cruz que nos trouxe
para dentro do véu lançou-nos fora do arraial. Cristo
também foi lançado dele, e nós temos a mesma posição; porém
Ele foi recebido acima no céu, e nós estamos ali com Ele.
Não será uma bênção estarmos fora de tudo que rejeitou o
nosso bendito Senhor e Mestre? Certamente que é; e quanto
mais conhecermos este presente século mau tanto mais
agradecidos seremos por termos o nosso lugar fora do mundo
com Jesus.

— CAPITULO 17 —

A VIDA PERTENCE AO SENHOR

Neste capítulo o leitor encontrará dois pontos especiais, a


saber: primeiro, que a vida pertence ao Senhor, e, segundo,
que o poder de expiação está no sangue. O Senhor dava uma
importância especial a estas duas coisas. Queria que fossem
gravadas em cada membro da congregação.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala a Arão, e aos
seus filho, e a todos os filhos de Israel e dize-lhes: Esta
é a palavra que o SENHOR ordenou, dizendo: Qualquer homem
da casa de Israel que degolar boi, ou cordeiro, ou cabra,
no arraial ou quem os degolar fora do arraial, e os não
trouxer à porta da tenda da congregação, para oferecer
oferta ao SENHOR diante do tabernáculo do SENHOR, a tal
homem será imputando o sangue; derramou sangue; pelo que
tal homem será extirpado do seu povo".
Isto era um assunto solene; e nós podemos perguntar, que
importância tinha oferecer um sacrifício de uma maneira
diferente daquela que é aqui descrita? Era nada menos que
privar o Senhor dos Seus direitos e oferecer a Satanás o
que se devia a Deus. Alguém podia dizer: Não se pode
oferecer o sacrifício num lugar ou noutro1? A resposta é: A
vida pertence a Deus, e os Seus direitos sobre ela devem
ser reconhecidos no lugar que Ele designou — diante do
tabernáculo do Senhor. Este era o único lugar de encontro
entre Deus e o homem. Oferecer o sacrifício em qualquer
outra parte demonstrava que o coração não queria Deus.
A moral de tudo isto é clara. Há um lugar onde Deus tem
destinado encontrar o pecador, e este é a cruz—antítipo do
altar de bronze. Ali e somente ali foram devidamente
reconhecidos os direitos de Deus. Rejeitar este lugar de
encontro é atrair o juízo de
Deus sobre si mesmo. É espezinhar os direitos de Deus e
arrogar-se o direito de vida, que todos perderam. Isto é o
que importa conhecer. "E o sacerdote espargirá o sangue
sobre o altar do Senhor, à porta da tenda da congregação, e
queimará a gordura por cheiro suave ao Senhor". O sangue e
a gordura pertenciam ao Senhor. O bendito Senhor Jesus
reconheceu isto plenamente. Entregou a Sua vida a Deus, a
quem todas as Suas forças ocultas estavam igualmente
consagradas. Dirigiu-se voluntariamente ao altar e ali deu
a Sua preciosa vida; e o cheiro suave da Sua excelência
intrínseca subiu ao trono de Deus. Bendito Jesus! Como é
agradável recordarmo-nos de Ti a cada passo do nosso
caminho!

É o Sangue que Faz Expiação pela Alma


O segundo ponto a que nos referimos está claramente
indicado no versículo 11: "Porque a alma da carne está no
sangue pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer
expiação pela vossa alma: PORQUANTO É O SANGUE QUE FARÁ
EXPIAÇÃO PELA ALMA". A relação entre estes dois pontos é
das mais interessantes. Quando o homem ocupa o seu lugar
como aquele que não tem nenhum direito à vida—quando
reconhece plenamente os direitos divinos sobre si —, então
o relato divino é: "Tenho-vos dado a vida para fazer
expiação pelas vossas almas". Sim, a expiação é dom de Deus
ao homem; e note-se que esta expiação está no sangue e só
no sangue, "é o sangue que fará expiação pela alma". Não é
o sangue e alguma coisa mais. A palavra não pode ser mais
explícita. Atribui a expiação exclusivamente ao sangue.
"Sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9:22). Foi
a morte de Cristo que rasgou o véu. É "feio sangue de
Jesus" que temos "ousadia para entrar no santuário". "Em
quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das
ofensas" (Ef 1:7; Cl 1:14):"...vós, que dantes estáveis
longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto" (Ef 2:13).
"...o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de
todo o pecado" (1 Jo 1:7). "Estes... lavaram os seus
vestidos e os branquearam no sangue do Cordeiro" (Ap 7). "E
eles o venceram pelo sangue do Cordeiro" (Ap 12:11).
Quero chamar a atenção do leitor para a doutrina preciosa e
essencial do sangue. Esperamos que lhe conceda a atenção
que ela merece. O sangue de Cristo é a base de tudo. É a
base em que Deus justifica o pecador ímpio que crê no nome
do Filho de Deus; e é a base em que descansa a confiança do
pecador para se aproximar do Deus Santo, cujos olhos são
tão puros que não podem contemplar o mal. Deus seria justo
se condenasse o pecador; porém, pela morte de Cristo, pode
ser justo e justificar aquele que crê — Deus justo e ao
mesmo tempo Salvador. A justiça de Deus está em
conformidade Consigo Próprio — a Sua atuação de harmonia
com o Seu caráter revelado. De sorte que se não tivesse
havido a cruz este Seu atributo teria necessariamente
exigido a morte e juízo do pecador; porém, na cruz esta
morte e juízo foram suportados pelo Substituto do pecador,
e portanto mantém-se o atributo perfeitamente enquanto
Deus, santo e justo, justifica o pecador pela fé. E tudo
pelo sangue de Jesus, nada mais, nada menos. "É o sangue
que fará expiação pela alma". Isto é conclusivo. É o plano
simples de Deus para justificação. O plano do homem é muito
mais complicado e vago. E não somente é complicado como
atribui a justificação a alguma coisa diferente do que
encontramos na Palavra de Deus. Se procurarmos desde o
capítulo três de Gênesis ao fim do Apocalipse, encontramos
o sangue de Cristo como o único fundamento da justificação.
Pelo sangue, e só pelo sangue, obtemos o perdão, a paz,
vida e justiça. Todo o Livro de Levítico e particularmente
o capítulo que temos estado a considerar é um comentário
sobre a doutrina do sangue. Parece estranho ter que
insistir sobre um fato tão evidente para todo o leitor
imparcial das Sagradas Escrituras. E contudo assim é. Os
nossos corações são inclinados a extraviarem-se do simples
testemunhos da Palavra de Deus. Estamos sempre prontos a
adotar opiniões sem as investigarmos com calma à luz dos
testemunhos divinos. Desta forma caímos em confusão, nas
trevas e no erro.
Aprendamos a dar o sangue de Cristo o seu devido valor! É
tão precioso à vista de Deus que Ele não permitirá que se
lhe acrescente ou junte alguma coisa mais. "A alma da carne
está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar,
para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o
sangue que fará expiação pela alma ".

— CAPÍTULOS 18 - 20 —
UM POVO SANTO, COMO O
SENHOR É SANTO

Esta parte do Livro de Levítico apresenta-nos, de um modo


notável, a santidade pessoal, a pureza moral que o Senhor
requeria daqueles que havia graciosamente posto em relação
Consigo mesmo e, ao mesmo tempo, apresenta-nos um quadro
dos mais humilhantes das iniquidades de que a natureza
humana é capaz.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de
Israel, e dize-lhes: Eu sou o Senhor vosso Deus". Aqui
temos a base de todo o edifício de conduta moral que estes
capítulos apresentam. Os atos dos israelitas deviam tomar o
seu caráter do fato que o Senhor era o seu Deus. Eram
chamados para se comportarem de uma maneira digna de uma
posição tão elevada e santa. Era uma das prerrogativas de
Deus estabelecer o caráter especial e a linha de conduta
que convinham a um povo com o qual se havia dignado
relacionar o Seu nome. Daí a frequência da expressão: "Eu
sou o SENHOR"; "EU SOU O SENHOR VOSSO, Deus"; "Eu, o SENHOR
VOSSO Deus, sou Santo". O Senhor era o seu Deus, e Ele era
santo; portanto, eles eram chamados para serem santos. O
seu nome estava relacionado com o seu caráter e a sua
conduta.

O que Deve Distinguir Israel dos Egípcios e Cananeus


Este é o verdadeiro princípio de santidade para o povo de
Deus em todos os tempos. Devem reger-se e caracterizar-se
pela revelação que o Senhor fez de Si Próprio. A sua
conduta deve basear-se no que Ele é, e não no que eles são
por si mesmos. Isto anula inteiramente o princípio expresso
por estas palavras: "Levanta-te, eu sou mais santo do que
tu". Princípio justamente repudiado por todo o espírito
sensível. Não se trata de uma comparação de um indivíduo
com outro; mas de uma simples linha de conduta que Deus
espera daqueles que Lhe pertencem.
"Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que
habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Cana,
para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos‖.
Os egípcios e os cananeus estavam todos submersos no mal.
Como podiam os israelitas saber isto? Quem lhes disse? Que
aconteceu para que eles estivessem bem e todos os outros
mal? Estas interrogações são interessantes e as respostas
tão simples quanto as perguntas são interessantes.
A Palavra do Senhor era a regra pela qual deviam resolver-
se todas as questões do bem e do mal, no parecer de todo o
membro do Israel de Deus. Não era, de modo nenhum, o juízo
de um israelita em oposição ao juízo de um egípcio ou de um
cananeu; mas era, acima de tudo, o juízo de Deus. O Egito
podia ter as suas práticas e as suas opiniões, assim como
Canaã podia ter as suas, mas Israel tinha de ter as
opiniões e práticas estabelecidas na Palavra de Deus.
"Fareis conforme os meus juízos e os meus estatutos
guardareis para andardes neles. Eu sou o SENHOR, VOSSO
Deus".
Será proveitoso para o leitor se tiver um conceito claro,
profundo e prático desta verdade. A Palavra de Deus deve
decidir toda a questão e governar as consciências. As suas
decisões solenes devem ser recebidas sem apelo. Quando Deus
fala, todo o coração se deve submeter. Os homens podem
formar e sustentar opiniões, podem adotar e defender as
suas práticas; mas um dos traços mais formosos do caráter
do "Israel de Deus" é um profundo respeito e implícita
sujeição a "toda a palavra que sai da boca do Senhor". A
manifestação deste rasgo precioso pode expô-los talvez à
acusação de dogmatismo, presunção e vaidade por parte
daqueles que nunca ponderaram seriamente este assunto; mas,
em boa verdade, nada se pode parecer menos como dogmatismo
do que a simples sujeição à verdade clara de Deus; nada se
parece menos com a presunção como o respeito pelo relato de
inspiração; nada se parece menos com a vaidade que a
submissão à autoridade divina das Sagradas Escrituras.
É verdade que sempre haverá a necessidade de ter cuidado
quanto à maneira como manifestamos a base das nossas
convicções e da nossa conduta. Devemos mostrar que somos
dirigidos, tanto quanto puder ser, não pelas nossas
próprias opiniões, mas, sim, pela Palavra de Deus. Existe o
perigo de darmos importância a uma opinião meramente porque
a temos adotado. Devemos ter o cuidado de evitar isso. O
ego pode intrometer-se e mostrar a sua deformidade na
defesa das nossas opiniões da mesma forma com que o faz em
qualquer outra coisa; porém devemos reprová-lo em todos os
seus feitos e formas e reger-nos, em todas as coisas, pela
expressão "Assim diz o SENHOR".
Por outra parte não podemos esperar que todos estejam
prontos a admitir a plena autoridade dos estatutos e juízos
divinos. É na medida em que uma pessoa anda na integridade
e energia da natureza divina que reconhece, aprecia e
reverencia a Palavra de Deus. Um egípcio ou um cananeu não
teria sido capaz de compreender o sentido ou de apreciar o
valor dos estatutos e juízos que deviam reger a conduta do
povo circuncidado de Deus; porém isto não afetava, de modo
algum, a questão da obediência de Israel. Tinham um
parentesco legal com o Senhor, e esse parentesco tinha os
seus privilégios característicos e responsabilidades
distintas. "Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus". Esta devia ser a
base da sua conduta. Deviam agir de uma maneira digna
d'Aquele que se tinha tornado o seu Deus e feito deles o
Seu povo. Não quer isto dizer que fossem em nada melhores
que os outros povos. De modo nenhum. Os egípcios ou os
cananeus podiam ter pensado que os israelitas se
consideravam superiores recusando adotar os costumes de uma
ou de outra nação. Mas, não; a razão da sua conduta
peculiar e o tom da sua moralidade estavam nestas palavras:
"Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus".
Neste grande e praticamente importante fato, o Senhor punha
diante do Seu povo uma base sólida de conduta e um padrão
de moralidade que era elevado e duradouro como o próprio
trono eterno. Desde o momento em que entrava em relações
com um povo, era preciso que a ética deste assumisse um
caráter digno d'Ele. Já não se tratava de uma questão do
que eles eram, quer fosse em si próprios quer em relação
com outros; mas do que Deus era em comparação com todos.
Isto estabelece uma diferença essencial. Fazer do ego o
princípio de ação ou padrão de ética é não só uma louca
presunção como optar por uma escada descendente de ação. Se
o ego for o meu objetivo, tenho fatalmente de descer mais e
mais cada dia; mas, por outra parte, se eu puser o Senhor
ante a minha vista, elevar-me-ei mais e mais, à medida que,
pelo poder do Espírito Santo, crescer em conformidade com
esse modelo perfeito que é apresentado aos olhos da fé nas
páginas sagradas de inspiração. Terei então,
indubitavelmente, de me prostrar no pó sob o sentimento de
quão longe estou do modelo que me é apresentado; mas,
então, nunca deverei contentar-me com um padrão menos
elevado, nem tão-pouco estarei jamais satisfeito até que me
torne conforme em todas as coisas Aquele que foi o meu
Substituto na cruz e é o meu Modelo na glória.

O que o Homem é Capaz de Praticar


Tendo dito o bastante sobre o princípio essencial do
capítulo que temos perante nós — um princípio de
importância indizível para os cristãos sob o ponto de vista
prático —, sinto que é desnecessário entrar em qualquer
coisa que se parece com uma exposição em pormenor dos
estatutos que falam por si mesmos e em termos muito claros.
Quero apenas fazer notar que esses estatutos se colocam
debaixo de dois pontos distintos, isto é: primeiro, aqueles
que demonstram as iniquidades vergonhosas que o coração
humano é capaz de maquinar; e, segundo, aqueles que mostram
a ternura delicada e o cuidado indulgente do Deus de
Israel.
Quanto ao primeiro ponto é evidente que o Espírito de Deus
nunca poderia decretar leis com o propósito de evitar males
que não tivessem existência. Não se constrói uma represa
onde não há inundação a temer ou combater. O espírito não
se ocupa de ideias abstratas, mas, sim, com realidades
positivas. O homem é, com efeito, capaz de perpetrar cada
um e todos os crimes vergonhosos referidos nesta parte
fidelíssima do Livro de Levítico. Se não fosse, porque
havia de dizer-lhe que não o fizesse"?- Um tal código seria
inteiramente impróprio para os anjos, visto eles serem
incapazes de cometer os pecados referidos; mas convém ao
homem, porque ele tem em sua natureza o gérmen desses
pecados. Isto é profundamente humilhante. É uma nova
declaração da verdade que o homem está em completa ruína.
Desde o alto da cabeça à planta dos seus pés não existe
tanto como um átomo de sanidade moral, quando é visto à luz
da presença divina. O ente para quem o Senhor julgou
necessário escrever os capítulos 18 a 20 de Levítico deve
ser um pecador vil; porém esse ente é o homem — o autor e o
leitor destas linhas. Como é evidente, portanto, "que os
que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8:8).
Graças a Deus, o crente "não está na carne, mas no
Espírito". Foi separado inteiramente da sua posição na
velha criação e introduzido na nova, na qual os pecados
morais de que se fala nestes capítulos não podem existir. É
verdade que tem a velha natureza, mas é seu privilégio
"considerá-la" como uma coisa morta, e andar no poder
permanente da nova natureza, em que "todas as coisas são de
Deus". Isto é liberdade cristã — até mesmo liberdade de
andar, em todos os sentidos, nesta bela criação onde não se
pode encontrar nenhum traço de mal: sagrada liberdade para
andar em santidade e pureza perante Deus e os homens;
liberdade para pisar os elevados caminhos de santidade
pessoal sobre os quais os raios de luz da face divina se
refletem em brilho vivo. Prezado leitor, isto é liberdade
cristã. É liberdade, não para cometer pecado, mas para se
apreciarem as doçuras celestiais de uma vida de verdadeira
santidade e elevação moral. Apreciemos mais do que jamais o
fizemos esta preciosa graça do céu — liberdade cristã!

A Consideração para com o Pobre e o Estrangeiro


E agora uma palavra quanto à segunda classe de estatutos
contidos nesta parte, a saber: aqueles que testificam de um
modo tão comovente a ternura e solicitude de Deus. Pensemos
nesta passagem: "Quando também segardes a sega da vossa
terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as
espigas caídas colherás da tua sega. Semelhantemente não
rabiscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua
vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o
SENHOR vosso Deus" (Lv 19:9-10). Encontramos outra vez esta
ordenação em capítulo 23, porém ali vemo-la sob o ponto de
vista da dispensação. Aqui contemplamo-la no seu aspecto
moral, manifestando a graça preciosa do Deus de Israel, que
pensa no "pobre e o estrangeiro" e, quer que o Seu povo
pense deles do mesmo modo. Quando eram ceifadas as espigar
douradas e os cachos maduros colhidos, devia pensar-se no
"pobre e no estrangeiro" por ordem do Deus de Israel,
porque o Senhor era o Deus de Israel. O segador e o
vindimador não deviam deixar-se dominar por um espírito de
avareza, que teria varrido os cantos do campo e limpado as
varas da videira, mas antes por um espírito de generosidade
e verdadeira benevolência, que deixaria uma espiga e um
cacho de uvas para "o pobre e o estrangeiro", para que eles
pudessem também regozijar-se na bondade ilimitada d'Aquele
Cujos passos deixam fartura e em Cuja mão aberta todos os
filhos da necessidade podem confiadamente esperar.
O Livro de Rute oferece-nos um excelente exemplo de alguém
que atuava inteiramente sobre este benevolente estatuto.
"E... disse-lhe Boaz: Achega-te aqui, e come do pão, e
molha o teu bocado no vinagre. E ela (Rute) se assentou ao
lado dos segadores, e ele lhe deu do trigo tostado, e comeu
e se fartou, e ainda lhe sobejou. E, levantando-se ela a
colher, Boaz deu ordem aos seus moços, dizendo: Até entre
as gavelas deixai-a colher, e não lho embaraceis. ? deixai
cair alguns punhados e deixai-os ficar, para que os colha,
e não a repreendais" (Rt 2:14-16).
Graça tocante e admirável! Bom é, na verdade, para os
nossos corações egoístas estarem em contato com tais
princípios e tais práticas. Nada pode exceder a excelente
cortesia das palavras: "deixai cair alguns punhados e
deixai-os ficar, para que os colha". Evidentemente, era
desejo deste nobre israelita que "a estrangeira" pudesse
ter abundância e a tivesse também como fruto do seu
trabalho de sega e não como ato de sua benevolência. Isto
era gentileza. Era pô-la em relação imediata como Deus de
Israel e fazê-la depender de Aquele que havia reconhecido
inteiramente e provido as necessidades do "rebuscador".
Boaz cumpria simplesmente essa graciosa ordenação da qual
Ruth colhia os frutos. A mesma graça que havia dado a Boaz
o campo dava a Ruth o resto das espigas.
Eram ambos devedores à graça de Deus. Ela era o feliz
objeto da bondade do Senhor. Ele o honrado administrador
das graciosas instituições do Senhor. Tudo estava na ordem
moral mais admirável. A criatura era abençoada e Deus
glorificado. Quem não reconhecerá que é bom podermos
respirar uma tal atmosfera?

O Justo Salário do Obreiro


Prestemos agora atenção a outra ordenação desta parte do
Livro de Levítico.
"Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga do
jornaleiro não ficará contigo até à manhã" (Lv 19:13).
Que terna solicitude! O Altíssimo e Todo-Poderoso, que
habita na eternidade, pode tomar conhecimento dos
pensamentos e sentimentos que se levantam no coração de um
pobre trabalhador! Conhece e tem em conta as suas
expectativas quanto ao fruto do seu labor diário.
Naturalmente, um obreiro espera o seu salário; conta com
ele; o alimento da família depende dele. Oh, não o
retenhais! Não mandeis o obreiro para sua casa com o
coração oprimido para entristecer também o coração de sua
mulher e família. Sem dúvida, deveis dar-lhe aquilo por que
ele trabalhou, a que tem direito e em que está posto o seu
coração. É marido, pai; e suportou o fardo e o calor do dia
para que a mulher e os filhos não tenham que ir para a cama
com fome. Não o deixeis desapontado. Dai-lhe o que se lhe
deve. Assim o nosso Deus toma nota dos próprios suspiros do
trabalhador, e prove as suas expectativas.
Graça preciosa! Deferência terna, cuidadosa, tocante! A
simples meditação de tais leis basta para nos lançar numa
corrente de atenções. Poderia alguém ler estas passagens
sem se sentir comovido? Poderia alguém lê-las e
descuidadamente despedir um pobre trabalhador sem saber se
ele e sua família tinham com que satisfazer os desejos da
fome?
Nada pode ser mais doloroso para um coração terno do que a
falta de consideração afetuosa pelos pobres, tão vulgar
entre os ricos. Estes podem sentar-se para tomar as
refeições opíparas depois de terem despedido da sua porta
algum pobre jornaleiro que havia ido pedir a justa
recompensa do seu honesto trabalho. Não pensam na tristeza
com que aquele homem regressa ao seio da família para lhe
contar o seu desapontamento. Isto é terrível. É injurioso
para Deus e todos aqueles que, de algum modo, participam do
Seu caráter. Se quisermos saber o que Deus pensa de uma tal
conduta, não temos mais que prestar ouvidos a estes acentos
de santa indignação: "Eis que o jornal dos trabalhadores,
que ceifaram as vossas terras e que por vós foi diminuído
clama; e os clamores dos que ceifaram entraram nos ouvidos
do Senhor dos Exércitos" (Tg5:4). "O Senhor dos exércitos"
ouve o clamor do jornaleiro afligido e desapontado. O Seu
terno amor manifesta-se nas instituições do Seu governo
moral; e ainda que o coração humano se não comova com a
graça destas instituições, a conduta deve, ao menos, ser
orientada pela sua justiça. Deus não consentirá que os
direitos dos pobres sejam desumanamente postos de lado por
aqueles que, endurecidos pela influência das riquezas e
estando livres da preocupação de necessidades pessoais, são
insensíveis aos apelos de compaixão e incapazes de
simpatizar com aqueles que têm de passar os dias em
trabalho exaustivo ou tormentos de pobreza. Os pobres são
objeto especial da solicitude de Deus. Ocupa-se deles
repetidas vezes nos estatutos da Sua administração moral; e
aqui é dito expressamente d'Aquele que cedo tomará as
rédeas do governo, em glória: "Porque ele livrará ao
necessitado quando clamar, como também ao aflito e ao que
não tem quem o ajude. Compadecer-se-á do pobre e do aflito
e salvará a alma dos necessitados. Libertará a sua alma do
engano e da violência, e precioso será o sangue aos olhos
dele" (SI 72:12-14).
Possamos nós tirar proveito com o estudo destas verdades
preciosas e profundamente práticas! Que os nossos corações
sejam impressionados e a nossa conduta influenciada por
elas. Vivemos num mundo cruel; e existe muito egoísmo em
nossos corações. Não nos comovemos com o pensamento da
necessidade dos outros. Somos propensos a esquecer os
pobres no meio da nossa abundância. Esquecemos
frequentemente que as próprias pessoas cujo labor contribui
para o nosso conforto pessoal vivem, talvez, na maior
pobreza. Pensemos nestas coisas. Guardemo-nos de "moer as
faces do pobre" (Is 3:15). Se os judeus dos tempos antigos
foram ensinados pelos estatutos e ordenações da economia
moisaica a acolher os pobres com sentimentos afetuosos e a
tratar os filhos do trabalho com afeto e benevolência,
quanto mais a ética mais elevada e espiritual da
dispensação do Evangelho deveria produzir no coração e na
vida do cristão sentimentos de benevolência para com todas
as formas de necessidade humana!
É verdade que há instante necessidade de prudência e
precauções, não seja o caso de tirarmos um homem da posição
honrosa para a qual foi destinado e preparado — isto é, uma
posição de dependência dos frutos preciosos e fragrantes de
uma profissão honesta. Isto seria um grave erro em vez de
um benefício. O exemplo de Boaz deveria servir de exemplo
quanto a este assunto. Deixou que Rute fosse respigar para
o seu campo, e teve o cuidado de ver que o seu trabalho
fosse produtivo. É um princípio seguro e muito simples.
Deus quer que o homem trabalhe numa coisa ou noutra, e nós
procedemos contra a Sua vontade quando tiramos o nosso
semelhante do lugar de dependência dos resultados de
atividade paciente para o lugar de dependência da falsa
benevolência. O primeiro gênero de vida é tão honrado e
elevado como desprezível e imoral é o segundo. Não há pão
de gosto tão agradável como aquele que é ganho nobremente;
porém é preciso que os que ganham o seu pão ganhem
bastante. Se um homem cuida e alimenta os seus cavalos, com
quanto mais razão deverá fazer o mesmo com aquele que
presta o trabalho das suas mãos desde segunda-feira de
manhã até sábado à noite.
Mas, dirá alguém, há dois lados desta questão. Há,
certamente; e, sem dúvida, entre os pobres encontra-se
muita coisa que esgota os sentimentos de benevolência e
verdadeira simpatia. Há muitas coisas que tendem a
endurecer o coração e cerrar a mão; porém uma coisa é
certa: vale mais ser-se enganado em noventa e nove casos
por cento do que fechar as entranhas de compaixão a um só
objeto digno dela. O nosso Pai celestial faz com que o sol
brilhe sobre os maus e os bons, e manda a chuva sobre os
justos e os injustos. Os mesmos raios de sol que alegram o
coração de algum consagrado servo de Cristo espraiaram
também sobre o caminho de algum ímpio pecador, e o mesmo
aguaceiro que cai sobre a lavoura de um verdadeiro crente
enriquece também as leivas de algum infiel blasfemo. Eis o
que deve ser o nosso modelo: "Sede vós, pois, perfeitos,
como é perfeito o vosso Pai que está nos céus" (Mt 5:48). É
só contemplando o Senhor e andando na força da Sua graça
que podemos ir, dia a dia ao encontro de todas as formas
possíveis de miséria humana com coração compassivo e mão
aberta. É só bebendo nós próprios da fonte inexaurível do
amor e bondade divinos que podemos continuar aliviando as
necessidades dos nossos semelhantes sem fazermos caso das
frequentes manifestações de depravação humana. As nossas
tênues fontes depressa se esgotariam se não fossem mantidas
em ligação ininterrupta com essa origem inesgotável.

A Atitude para com o Surdo e o Cego


O estatuto que a seguir se apresenta para nossa
consideração exemplifica também, de modo tocante, o cuidado
terno do Deus de Israel. "Não amaldiçoarás ao surdo, nem
porás tropeço diante do cego; mas terás temor do teu Deus:
Eu sou o SENHOR" (versículo 14). Aqui é posto um freio aos
impulsos de impaciência que a natureza desorientada não
deixaria de manifestar para com a enfermidade pessoal de
surdez. Como compreendemos isto tão bem! O homem natural
não gosta de repetir as suas palavras, como exige a
enfermidade do surdo. O Senhor pensou nisto e proporcionou
o remédio. E qual é este remédio1? "Terás temor do teu
Deus". Quando a nossa paciência for posta à prova por uma
pessoa surda, recordemos o Senhor, e esperemos d'Ele graça
para podermos dominar o nosso temperamento.
A segunda parte deste estatuto revela um grau humilhante de
maldade na natureza humana. A ideia de pôr uma pedra de
tropeço no caminho do cego é praticamente a crueldade mais
maliciosa que pode imaginar-se; e contudo o homem é capaz
de o fazer, se não o fosse não seria admoestado contra
isso. Sem dúvida, este, assim como muitos outros estatutos,
presta-se a uma aplicação espiritual; mas isso não
interfere em nada com o princípio exposto. O homem é capaz
de pôr um tropeço no caminho de um dos seus semelhantes
aflito de cegueira. Assim é o homem! Seguramente o Senhor
sabia o que havia no homem quando escreveu os estatutos e
juízos do Livro de Levítico.
Deixo agora o leitor entregue à meditação do final deste
capítulo. Descobrirá como cada estatuto ensina uma lição
dupla—lição sobre a tendência da natureza para o mal e
também uma lição sobre o cuidado terno do Senhor (1).

_______________
(1) Os versículos 16 e 17 do capítulo 19 requerem atenção
especial. "Não andarás como mexeriqueiro entre o teu povo".
Esta recomendação é conveniente ao povo de Deus de todos os
tempos. Um mexeriqueiro faz mal incalculável. Diz-se com
razão que um mexeriqueiro faz mal a três pessoas; a si
próprio, àquele que o escuta e à pessoa de quem fala. Faz
tudo isto de uma maneira direta, e quanto às consequências
indiretas quem pode descrevê-las? Guardemo-nos
cuidadosamente deste horrível mal. Não permitamos que um
mexerico saia jamais dos nossos lábios; e recusemos sempre
dar ouvidos aos mexeriqueiros. Saibamos sempre como afastar
uma língua difamadora com um olhar severo, do mesmo modo
que o vento norte leva a chuva.
No versículo 17 vemos o que deve ocupar o lugar da
bisbilhotice. "Não deixarás de repreender o teu próximo e
nele não sofrerás pecado". Em lugar de difamar junto de
outro o nosso semelhante, somos chamados a ir com ele e
repreendê-lo, no caso de haver mal. Este é o método divino.
O método de Satanás é usar o mexeriqueiro.

— CAPÍTULOS 21 e 22 —

O QUE DEVE CARACTERIZAR


OS SACERDOTES

Estes capítulos mostram pormenorizadamente quais eram as


exigências divinas em relação àqueles que tinham o
privilégio de se aproximar como sacerdotes para "oferecer o
pão do seu Deus". Nesta, como na parte precedente, vemos a
conduta como resultado das suas relações com Deus e não
como a causa. Convém ter isto bem presente.
Todos os filhos de Arão eram sacerdotes de Deus, em virtude
do seu nascimento. Gozavam todos este privilégio. Não era
uma questão de mérito, de progresso ou qualquer coisa que
uns tivessem e outros não. Eram sacerdotes por nascimento.
A sua capacidade para compreenderem esta posição e gozar os
privilégios inerentes a ela era, evidentemente, uma coisa
muito diferente. Um podia ser menino; e outro podia ter
chegado à idade viril. Aquele era naturalmente incapaz de
comer do alimento sacerdotal, sendo menino necessitava de
"leite" e não de "sólido mantimento"; mas era tão
verdadeiro membro da família sacerdotal como o homem que
pisava com pé firme os átrios da casa do Senhor e se
alimentava do "peito" e da "espádua direita" dos
sacrifícios.
Esta distinção é fácil de compreender no caso dos filhos de
Arão, e, por isso, servirá para ilustrar, de um modo muito
simples, a verdade relativa aos membros da verdadeira
família sacerdotal a que preside o nosso Grande Sumo
Sacerdote, e à qual pertencem todos os verdadeiros crentes
(Hb 3:6). Todo o filho de Deus é sacerdote. E alistado como
membro da casa sacerdotal de Cristo. Pode ser ignorante,
porém a sua posição, como sacerdote, não é baseada sobre o
conhecimento, mas sobre a vida. Podia ter muito pouca
experiência, mas o seu lugar como sacerdote não depende das
suas aptidões, mas sim de que tenha vida. Foi nascido na
posição e com as relações de sacerdote. Não se impôs por
si; nem foi por seus próprios esforços que chegou a ser
sacerdote. Tornou-se sacerdote por nascimento. O sacerdócio
espiritual, juntamente com todas as suas funções
espirituais, é o adjunto necessário ao nascimento
espiritual. A capacidade para gozar os privilégios e
cumprir as funções de uma posição não deve ser confundida
com a própria posição. A distinção entre as duas coisas tem
de ser bem clara. Uma coisa é o parentesco que se tem;
outra muito diferente o grau de capacidade que se possuir.
Demais, considerando a família de Arão, vemos que nada
podia romper o parentesco entre ele e o seus filhos. Havia
muitas coisas que podiam interferir com o pleno gozo dos
privilégios ligados com esse parentesco. Um filho de Arão
podia "contaminar-se por um morto". Podia contaminar-se por
meio de uma ligação impura. Podia ter qualquer "defeito"
corporal; podia ser "cego", "coxo" ou "anão". Qualquer
destas coisas afetaria incontestavelmente o gozo dos seus
privilégios e o cumprimento das funções que pertenciam a
esta relação de parentesco, visto que lemos: "Nenhum homem
da semente de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma
deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas
do SENHOR; falta nele há; não se chegará para oferecer o
pão do seu Deus. O pão do seu Deus, das santidades de
santidades e das coisas santas, poderá comer. Porém até ao
véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto falta
há nele, para que não profane os meus santuários; porque eu
sou o SENHOR que os santifico" (Lv 21:21-23).

Porém, nenhuma destas coisas podia alterar as relações


baseadas sobre os princípios da natureza humana. Ainda que
um filho de Aarão fosse anão, esse anão era filho de Aarão.
É verdade que, como anão, estava privado de muitos dos
preciosos privilégios e altas dignidades do sacerdócio; mas
ainda que assim fosse era filho de Aarão. Não podia gozar o
mesmo grau de comunhão nem desempenhar as mesmas funções
elevadas do serviço sacerdotal, como aquele que havia
chegado à perfeita estatura do homem feito; mas era membro
da casa sacerdotal, e, portanto, era autorizado a comer "o
pão do seu Deus". O parentesco era verdadeiro, embora o
desenrolar fosse defeituoso.
A aplicação espiritual de tudo isto é tão simples quanto
prática. Uma coisa é ser filho de Deus, e outra muito
diferente estar no pleno gozo de comunhão e culto
sacerdotais. O culto é, infelizmente, perturbado por muitas
coisas. As circunstâncias e as nossas relações exercem
sobre nós a sua contagiosa influência. Não devemos esperar
que todos os cristãos conheçam pela prática a mesma elevada
conduta, a mesma intimidade de comunhão e que estejam na
mesma proximidade de Cristo. Não têm, infelizmente! Temos
que lamentar os nossos defeitos espirituais. Há os que
coxeiam, os que têm o sentido de vista defeituosa, os
enfezados. Por vezes, deixamo-nos contaminar pelo contato
com o mal e somos enfraquecidos e embaraçados por relações
impuras. Numa palavra, assim como os filhos de Aarão, ainda
que sacerdotes por nascimento, estavam, não obstante,
privados de muitos privilégios pelas impurezas legais e
defeitos físicos, também nós, embora sendo sacerdotes de
Deus, por meio do nascimento espiritual, estamos privados
de muitos dos elevados e santos privilégios da nossa
posição pelas impurezas e defeitos espirituais. Somos
privados da nossa dignidade por crescimento espiritual
defeituoso. Falta-nos singela de fé, vigor espiritual, e
inteira consagração. Salvos estamos pela graça de Deus, com
base no perfeito sacrifício de Cristo. "Somos filhos de
Deus, pela fé em Jesus Cristo". Porém a salvação é uma
coisa, comunhão outra muito diferente. Filiação é uma
coisa; comunhão outra muito diferente.
Convém distinguir estas coisas cuidadosamente. Os capítulos
que formam esta parte do Livro de Levítico ilustram
claramente esta distinção. Se acontecesse um dos filhos de
Arão ter um "pé quebrado, ou quebrada a mão" tinha de ficar
privado da sua relação de filhou Não, certamente. Era
privado da sua posição sacerdotais De modo nenhum. Estava
claramente estabelecido que "O pão do seu Deus, das
santidades de santidades e das coisas santas poderá comer".
Que era, pois, o que perdia por causa da sua deformidade
física? Não lhe era permitido desempenhar alguma das
funções mais elevadas do serviço sacerdotal. "Porém, até ao
véu não entrará, nem se chegará ao altar". Estas proibições
eram graves; e embora possa argumentar-se que um homem não
podia evitar muitos destes defeitos físicos, nem por isso a
questão era alterada. O Senhor não podia ter um sacerdote
defeituoso ante o Seu altar nem um sacrifício defeituoso
sobre ele. Era necessário que tanto o sacerdote como o
sacrifício fossem perfeitos. "Nenhum homem da semente de
Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se
chegará para oferecer as ofertas queimadas do SENHOR" (LV
21:21). "Nenhuma coisa em que haja defeito oferecereis,
porque não seria aceita a vosso favor" (Lv 22:20).

Aplicação Prática
Ora, nós temos ao mesmo tempo o sacerdote perfeito e o
perfeito sacrifício na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo.
O qual "havendo-se oferecido a si mesmo a Deus sem pecado"
penetrou nos céus como nosso grande Sumo Sacerdote, vivendo
sempre para interceder por nós. A Epístola aos Hebreus
trata pormenorizadamente destes dois pontos. Põe em
contraste admirável o sacrifício e o sacerdócio do sistema
Moisaico com o sacrifício e o sacerdócio de Cristo. N'Ele
temos a perfeição divina, quer O consideremos como a vítima
quer como o Sacerdote. Temos tudo que Deus podia exigir e
tudo que o homem podia necessitar. O Seu precioso sangue
tirou todos os nossos pecados; e a Sua poderosa intercessão
mantém-nos em toda a perfeição do lugar em que fomos
introduzidos pelo Seu sangue. "Nele estamos perfeitos" (Cl
2:10); e contudo somos tão fracos em nós mesmos, temos
tantas faltas e fraquezas, somos tão inclinados a errar e
tropeçar no nosso caminho, que não poderíamos estar de pé
um só instante se não fosse porque "Ele vive sempre para
interceder por nós".
Já nos ocupamos destas coisas nos primeiros capítulos deste
livro, e portanto não julgamos ser necessário insistir
nelas aqui. Os que compreendem alguma coisa das grandes
verdades fundamentais do Cristianismo e têm alguma
experiência da vida cristã poderão compreender como é que,
estando "perfeitos nele, que é a cabeça de todo o
principado e potestade" (Cl 2:10), necessitam, todavia,
enquanto estão neste mundo, no meio de fraquezas, conflitos
e lutas da terra, da advocacia do seu adorável e divino
Sumo Sacerdote. O crente está "lavado, santificado e
justificado" (1 Co 6); está "aceito no Amado" (Ef 1:6).
Quanto à sua pessoa nunca poderá ir a juízo (veja-se
Jo5:24, onde a palavra é krisin, e não katakrisin). A morte
e o juízo estão atrás dele, porque está ligado a
Cristo, que passou por essas coisas em seu lugar. Todas
estas coisas são verdades divinas a respeito mesmo do
membro mais fraco, ignorante e imperfeito da família de
Deus; mas visto que traz consigo uma natureza má, que está
irremediavelmente arruinada e que não pode ser disciplinada
por ser incorrigível, por habitar um corpo de pecado e
morte, está rodeado por todos os lados de influências
hostis e é chamado a lutar continuamente com as forças
combinadas do mundo, da carne e do mal — não poderia
manter--se, e muito menos fazer progresso, se não estivesse
protegido pela poderosa intercessão do seu Sumo Sacerdote,
que leva os nomes do Seu povo sobre o Seu peito e os Seus
ombros.
Sabemos que muitas pessoas têm encontrado grande
dificuldade em conciliar a ideia da perfeita posição do
crente em Cristo com a necessidade do sacerdócio. "Se",
argumentam, "está perfeito, que necessidade tem de um
sacerdote»?-" As duas coisas são tão claramente ensinadas
na Palavra de Deus como são compatíveis uma com a outra e
compreendidas na experiência de todo o cristão devidamente
instruído. É da maior importância compreender com clareza e
exatidão a harmonia perfeita destes dois pontos.
O crente é perfeito em Cristo; mas, em si mesmo, é uma
pobre e débil criatura, exposta sempre a cair. Por isso, a
inefável bem-aventurança de ter à destra da Majestade nos
céus Um que pode tratar de todos os seus interesses — Um
que o sustem continuamente pela destra da Sua justiça, que
nunca o abandonará; que é poderoso para o salvar até ao
fim; que "é o mesmo ontem, hoje e para sempre"; que o fará
passar em triunfo através de todas as dificuldades e
perigos que o rodeiam; e, que, por fim, o apresentará
inculpável perante a Sua excelsa glória, com gozo
inexcedível.
Bendita seja para sempre a graça que tão abundantemente fez
provisão para todas as nossas necessidades pelo sangue de
uma Vítima Incontaminada e pelo divino Sumo Sacerdote!
Prezado leitor, esforcemo-nos por andar de tal maneira que
nos guardemos "da corrupção do mundo" (Tg 1:27), e a
mantermo-nos separados de todas as relações impuras, a fim
de podermos gozar os mais elevados privilégios e
desempenhar as funções mais altas da nossa posição como
membros da casa sacerdotal de que Cristo é o Chefe. Temos
"ousadia para entrar no santuário pelo sangue de Jesus";
"temos um grande sumo sacerdote sobre a casa de Deus" (Hb
10). Nada jamais nos poderá roubar estes privilégios.
Contudo, a nossa comunhão pode ser perturbada, o nosso
culto pode ser impedido, as nossas santas funções podem
serdes curadas. Estas questões cerimoniais, contra as quais
os filhos de Aarão eram advertidos, nesta parte do Livro,
têm o seu antítipo na economia cristã. Eram exortados
contra contatos impuros? Também nós o somos. Tiveram de ser
exortados contra ligações impuras? Também nós fomos
exortados a esse respeito. Tiveram de ser exortados contra
toda a sorte de impureza cerimonial? Também nós somos
exortados a purificarmo-nos de "toda a imundícia da carne e
do espírito" (2 Co 7:1). Foram privados de muitos dos mais
elevados privilégios sacerdotais devido a deformações
físicas e enfermidades corporais1? Acontece o mesmo conosco
devido às imperfeições morais e a um crescimento espiritual
imperfeito.
Quererá alguém pôr em dúvida a importância prática destes
princípios? Não é evidente que quanto mais apreciarmos as
bênçãos ligadas a esta casa sacerdotal de que fomos feitos
membros, em virtude do nosso novo nascimento, tanto mais
guardaremos de tudo que, de alguma maneira, tende a tirar-
nos o gozo delas? Sem dúvida. É isto o que torna o estudo
desta parte tão importante para a nossa vida. Oxalá
sintamos o seu poder por meio da aplicação do Espírito
Santo! Então gozaremos o nosso lugar de sacerdotes. Então
desempenharemos fielmente as nossas funções sacerdotais.
Seremos capazes de "apresentar os nossos corpos em
sacrifício vivo a Deus"(Rm 12:1). Seremos capazes de
"oferecer sacrifícios de louvor continuamente a Deus, como
o fruto de nossos lábios, dando graças em seu nome" (Hb
13:15). Como membros da "casa sacerdotal" e do "sacerdócio
santo" seremos capazes de "oferecer sacrifícios agradáveis
a Deus, por Jesus Cristo" (1 Pe 2:5). Seremos capazes de
antecipar, até certo ponto, o tempo feliz em que as
aleluias de louvor inteligente e fervoroso de uma criação
redimida subirão ao trono de Deus e do Cordeiro durante
toda a eternidade.

— CAPITULO 23 —

AS SETE FESTAS DO SENHOR

Chegamos a um dos capítulos mais profundos e compreensivos


do volume inspirado que temos perante nós, e que requer
estudo atento e oração. Contém a descrição das sete grandes
festas ou solenidades periódicas em que se dividia o ano de
Israel. Por outras palavras, oferece-nos um quadro perfeito
do trato de Deus para com Israel durante todo o período
mais agitado da sua história.
Tomando as festas por separado, temos o Sábado, a Páscoa, a
festa dos Asmos, a festa das Primícias, o Pentecostes, as
Trombetas, o dia da Expiação e a festa dos Tabernáculos.

O Dia do Descanso
Ao todo são oito; mas é evidente que o Sábado ocupa um
lugar único e independente. É mencionado primeiro e as
características e circunstâncias que o acompanham são
plenamente expostas; e então, lemos: "Estas são as
solenidades do SENHOR, as santas convocações, que
convocareis no seu tempo determinado" (versículo 4). De
sorte que, propriamente falando, como o leitor atento
poderá observar, a primeira grande solenidade de Israel era
a Páscoa e a sétima era a festa dos Tabernáculos. Quer
dizer, tirando-lhe a sua forma típica, temos primeiro a
redenção; e depois, na última de todas, a glória do
milênio. O cordeiro da Páscoa prefigurava a morte de Cristo
(l Co5:7); e a festa dos Tabernáculos simbolizava "os
tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela
boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio"
(At3:21).
Tais eram as festas que abriam e fechavam o ano judaico. A
expiação é a base, a glória a pedra cimeira do edifício;
enquanto que entre os dois pontos temos a ressurreição de
Cristo (versículos 10 a 14), o ajuntamento da Igreja
(versículos 15 a 21), o despertar de Israel ao sentimento
da sua glória há muito perdida (versículos 24 - 25), o seu
arrependimento e a cordial recepção do Messias (versículos
27e 32). E para que não faltasse um só traço a esta grande
representação típica, temos ainda o remédio para os gentios
poderem entrar no fim da colheita e respigar os campos de
Israel (versículo 22). Tudo isto torna o quadro divinamente
perfeito e desperta no coração de todos aqueles que amam as
Escrituras uma profunda admiração. Poderá haver alguma
coisa mais completai O sangue do Cordeiro e a santidade
prática baseados nela; a ressurreição de Cristo de entre os
mortos e Sua assunção ao céu; a descida do Espírito Santo,
em todo o poder do Pentecostes, para formara Igreja; o
despertar do remanescente, seu arrependimento e
restauração; a bênção do "pobre e do estrangeiro"; a
manifestação da glória; e o descanso e a bem-aventurança do
reino. Estas são as coisas que este maravilhoso capítulo
contém, e a cujo exame pormenorizado vamos agora proceder.
Que Deus Espírito Santo seja o nosso Mestre!
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos
de Israel e dize-lhes: As solenidades do SENHOR, que
convocareis, serão santas convocações; estas são as minhas
solenidades. Seis dias obra se fará, mas ao sétimo dia será
o sábado do descanso, santa convocação; nenhuma obra
fareis; sábado do SENHOR é, em todas as vossas habitações".
O lugar dado aqui ao sábado é cheio de interesses. O Senhor
ia dar uma figura de todas as Suas ações em graça com o Seu
povo; e, antes de o fazer, apresenta o sábado como a
expressão significativa do descanso que resta para o povo
de Deus. Era uma festa que devia ser observada por Israel,
mas era também uma figura do que ainda há - de vir, quando
toda essa obra grande e gloriosa prefigurada neste capítulo
há - de ser cumprida. E o descanso de Deus, no qual podem
entrar agora, em espírito, todos os que creem; mas cujo
pleno cumprimento ainda não chegou (Hb 4). Agora
trabalhamos. Descansaremos dentro em pouco. Em certo
sentido o crente entra no descanso; noutro, trabalha para
entrar nele. Encontrou o seu descanso em Cristo; esforça-se
por entrar no seu repouso em glória. Encontrou o seu pleno
repouso mental em tudo que Cristo fez por ele, e o seu
olhar repousa sobre esse sábado eterno em que entrará
quando todos os seus trabalhos e conflitos do deserto
tiverem acabado. Não pode descansar no meio de uma cena de
pecado e miséria. Descansa em Cristo, o Filho de Deus, que
"tomou a forma de servo". E, enquanto assim descansa, é
chamado para trabalhar como obreiro com Deus, na plena
certeza de que, quando o seu labor tiver terminado, gozará
de repouso eterno e permanente nessas mansões de luz
inalterável e de pura felicidade em que o labor e a
tristeza não entrarão.
Bendita perspectiva! Que possa bilhar mais e mais cada hora
que passa ante a visão da fé! Possamos nós trabalhar,
trabalhar para entrar nele. Encontrou o seu descanso final!
E verdade que há gozo antecipado deste sábado eterno; porém
apenas nos faz desejar com mais ardor a bendita realidade,
essa "santa convocação", que não se dissolverá nunca.
Já temos observado que o sábado ocupava um lugar aparte e
independente neste capítulo. Isto é evidente pelas palavras
do versículo quatro, onde o Senhor parece começar de novo
com a expressão: "Estas são as solenidades do SENHOR", como
para distinguir o sábado das sete festas que se seguem,
ainda que é, em realidade, o tipo do repouso a que essas
festas introduzem a alma.

A Páscoa
"Estas são as solenidades do SENHOR, as santas convocações,
que convocareis no seu tempo determinado: no mês primeiro,
aos catorze do mês, pela tarde, é a Páscoa do SENHOR"
(versículos 4 e 5). Aqui temos, pois, a primeira das sete
solenidades periódicas — a oferta do cordeiro da páscoa
cujo sangue havia ocultado o Israel de Deus da espada do
anjo destruidor na terrível noite em que os primogênitos do
Egito foram abatidos. E o reconhecido tipo da morte de
Cristo; e, por isso, o seu lugar neste capítulo é próprio.
É a base de tudo. Nada podemos saber de repouso, santidade,
comunhão, salvo sobre a base da morte de Cristo.
É interessante e admirável observar que logo que se fala do
repouso de Deus o assunto de que se trata imediatamente é o
sangue do cordeiro da páscoa. Era como se dissesse: "Existe
repouso, mas aqui está o vosso direito a ele". Sem dúvida,
o labor faz-nos-á capazes de gozar o repouso, mas é o
sangue que nos dá direito a gozar do repouso.

A Festa dos Pães Asmos


"E aos quinze dias deste mês é a festa dos Asmos do SENHOR:
sete dias comereis asmos; no primeiro dia, tereis santa
convocação; nenhuma obra servil fareis; mas sete dias
oferecereis oferta queimada ao SENHOR; ao sétimo dia haverá
santa convocação; nenhuma obra servil fareis" (versículos 6
a 8). O povo está reunido aqui na presença do Senhor
naquela santidade prática que é baseada na redenção
efetuada; e, enquanto estão assim reunidos, o odor
fragrante do sacrifício sobe do altar de Israel ao trono do
seu Deus. Isto oferece-nos uma bela representação da
santidade que Deus procura na vida dos Seus remidos. E
baseada no sacrifício e sobe intimamente ligada com a
aceitação da fragrância da Pessoa de Cristo. "Nenhuma obra
servil fareis. Mas... oferecereis oferta queimada ao
SENHOR". Que contraste! A obra servil das mãos do homem e o
bom odor do sacrifício de Cristo! A santidade prática do
povo de Deus não é labor servil. É a viva manifestação de
Cristo neles por intermédio do Espírito Santo.
"Para mim o viver é Cristo". Esta é a verdadeira ideia.
Cristo é a nossa vida; e toda a manifestação dessa vida
está, no juízo divino, impregnada da fragrância de Cristo.
Isto pode parecer um assunto insignificante ao homem, mas
visto ser um reflexo da vida de Cristo é infinitamente
precioso para Deus. Sobe para Ele e não pode ser esquecido.
"Os frutos de justiça, que são por Jesus Cristo", são
produzidos na vida do crente, e nenhum poder da terra ou do
inferno pode impedir que a sua fragrância suba ao trono de
Deus.
E necessário ponderar seriamente o contraste entre "obra
servil" e a manifestação da vida de Cristo. O tipo é
admirável. Cessava todo o trabalho manual na assembleia;
mas o odor suave da oferta queimada subia para Deus. Estas
eram as duas grandes características da festa dos asmos.
Cessava o labor do homem, e o perfume do sacrifício subia
como tipo de santidade prática da vida do crente. Que
resposta convincente temos aqui para o legalista, por um
lado, e para o antinomianista, por outro! O primeiro é
reduzido ao silêncio pelas palavras "nenhuma obra servil
fareis"; e o último é confundido pela expressão
"oferecereis oferta queimada ao Senhor". As obras esmeradas
do Homem são "servis", mas o menor racimo de "frutos de
justiça" é glória e honra de Deus. Durante todo o período
da vida do crente não deve haver nenhuma obra servil; nada
que tenha os elementos odiosos e degradantes do legalismo.
Deve haver somente a apresentação contínua da vida de
Cristo, operada e desenvolvida pelo poder do Espírito
Santo. Durante os "sete dias" da segunda solenidade de
Israel não devia haver "fermento", porém, em vez disso, o
cheiro suave da "oferta queimada" devia ser apresentado ao
Senhor. Possamos nós compreender inteiramente esta
admirável e instrutiva figura!

A Festa das Primícias


"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de
Israel e dize-lhes: Quando houverdes entrado na terra, que
vos hei de dar, e segardes a sua sega, então, trareis um
molho das primícias da vossa sega ao sacerdote; e ele
moverá o molho perante o SENHOR, para que sejais aceitos;
ao seguinte dia do sábado, o moverá o sacerdote. E, no dia
em que moverdes o molho, preparareis um cordeiro sem
mancha, de um ano, em holocausto ao SENHOR. E sua oferta de
manjares serão duas dízimas de flor de farinha, amassada
com azeite, para oferta queimada em cheiro suave ao SENHOR,
e a sua libação de vinho, o quarto de um him. E não
comereis pão, nem trigo tostado, nem espigas verdes, até
àquele mesmo dia em que trouxerdes a oferta do vosso Deus;
estatuto perpétuo é por vossas gerações, em todas as vossas
habitações" (versículos 9 a 14).
"Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos, e foi feito as
primícias dos que dormem" (1 Co 15-20). A formosa ordenação
da apresentação do molho das primícias tipificava a
ressurreição de Cristo, que, "No fim do sábado, quando já
despontava o primeiro dia da semana", saiu triunfante do
túmulo, tendo cumprido a obra gloriosa da redenção. A Sua
ressurreição foi "de entre os mortos"; e nela temos a
garantia e o tipo da ressurreição do Seu povo. "Cristo as
primícias, depois os que são de Cristo, na sua vinda".
Quando Cristo vier o Seu povo será "ressuscitado de entre
os mortos" (eknekron), quer dizer, aqueles de entre eles
que dormem em Jesus. "Mas os outros mortos não reviveram
até que os mil anos se acabaram" (Ap 20:5). Quando
imediatamente depois da transfiguração nosso bendito Senhor
falou da Sua ressurreição "de entre os mortos", os
discípulos interrogaram-se sobre o que isso queria dizer
(veja-se Mc 9). Todo o judeu ortodoxo acreditava na
doutrina da "ressurreição dos mortos" (anastasis nekron).
Mas a ideia de uma "ressurreição de entre os mortos"
(anastasis eknekron) não podia ser compreendida pelos
discípulos; e, sem dúvida, muitos discípulos desde então
têm tido grade dificuldade a respeito de um ministério tão
profundo.
Contudo, se o leitor estudar devotamente e comparar 1
Coríntios 15 e 1 Tessalonicenses 4:13-18, encontrará
preciosas instruções sobre esta verdade tão interessante
como prática. Pode também ler Romanos 8:11 em relação com
aquelas passagens. "E, se o Espírito daquele que dos mortos
ressuscitou a Jesus, habita em vós, aquele que dos mortos
ressuscitou a Cristo, também viverá os vossos corpos
mortais pelo seu Espírito que em vós habita". Segundo estas
passagens vê-se que a ressurreição da Igreja verificar-se-á
segundo o mesmo princípio da ressurreição de Cristo. Ambos,
a Cabeça e o corpo, são ressuscitados "dos mortos". O
primeiro molho e as gabelas que seguem depois são
moralmente juntos.
Deve ser evidente para qualquer pessoa que ponderar
cuidadosamente o assunto, à luz das Escrituras, que existe
uma diferença essencial entre a ressurreição do crente e a
ressurreição dos incrédulos. Uns e outros ressuscitarão;
porém Apocalipse 20:5 demonstra que haverá um período de
mil anos entre as duas ressurreições, de forma que elas
diferem tanto em princípio como quanto à época. Alguns têm
achado dificuldade com referência a este assunto, devido ao
fato de que, em João 5:28, o Senhor fala da "hora em que
todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz".
"Como", pode perguntar-se, "pode haver um intervalo de mil
anos entre as duas ressurreições quando é dito que as duas
ocorrem numa hora?" A resposta é muito simples. Em
versículo28, fala-se da vivificação das almas mortas como
tendo lugar numa "hora"; e esta obra tem continuado por
mais de mil e oitocentos anos. Ora, se um período de cerca
de dois mil anos pode ser representado pela palavra "hora",
que objeção pode fazer-se à ideia de mil anos estarem
representados do mesmo modo? Nenhuma, seguramente,
sobretudo quando está expressamente declarado que "Os
outros mortos não reviveram, até que os mil anos se
acabaram".
Além disso, quando vemos que se menciona uma "primeira
ressurreição", não é evidente que nem todos serão
ressuscitados ao mesmo tempo? Porque falar de uma
"primeira" ressurreição se há só uma? Poderá dizer-se que
"a primeira ressurreição" se refere à alma; mas onde se
encontra na Escritura a base para esta afirmação? O fato
solene é este: quando a "voz de arcanjo" e a "trombeta de
Deus" se fizerem ouvir, os remidos que dormem em Jesus
serão ressuscitados para o encontrarem em glória. Os
pecadores mortos, quem quer que sejam, desde os dias de
Caim, permanecerão nas suas sepulturas durante os mil anos
de bem-aventurança milenial; e no fim desse brilhante e
feliz período sairão para comparecer diante do "grande
trono branco" para ali serem "julgados segundo as suas
obras" e para passarem do trono do juízo ao lago de fogo.
Que terrível pensamento!
Oh, prezado leitor, em que estado se encontra a sua alma
preciosa1?! Tem visto, pela fé, o sangue do Cordeiro da
páscoa derramado para sua proteção nessa hora terrível? Tem
visto o precioso molho de primícias colhido e recolhido no
celeiro celestial, como penhor de que também a sua recolha
será feita em devido tempo ? Estas interrogações são
profundamente solenes. Não devem ser postas de parte.
Certifique-se agora de que está sob o abrigo do sangue de
Jesus. Lembre-se de que não pode rebuscar tanto como uma
simples espiga nos campos da redenção antes de ver a
verdadeira gabela movida perante o Senhor.
"E não comereis pão, nem trigo tostado, nem espigas verdes,
até àquele mesmo dia em que trouxerdes a oferta do vosso
Deus". A colheita não podia ser tocada antes de terem sido
oferecidas as primícias e com elas um holocausto e uma
oferta de manjares.

A Festa de Pentecostes (ou: das Semanas)


"Depois, para vós contareis desde o dia seguinte ao sábado,
desde o dia em que trouxerdes o molho da oferta movida;
sete semanas inteiras serão. Até ao dia seguinte ao sétimo
sábado, contareis cinquenta dias; então, oferecereis nova
oferta de manjares ao SENHOR. Das vossas habitações trareis
dois pães de movimento; de duas dízimas de farinha serão,
levedados se cozerão; primícias são ao SENHOR" (versículos
15a 17). Esta é a festa do pentecostes—figura do povo de
Deus reunido pelo Espírito Santo e apresentado perante Ele,
em conexão com toda a preciosidade de Cristo. Na páscoa
temos representada a morte de Cristo; no molho das
primícias vemos a ressurreição de Cristo; e na festa do
pentecostes temos a descida do Espírito Santo para formar a
Igreja. Tudo isto é divinamente perfeito. A morte e
ressurreição de Cristo tinham de ser cumpridas, antes que a
Igreja pudesse ser formada.
E note-se a expressão "levedados se cozerão". Porque deviam
os dois pães ser cozidos com fermentou Porque tipificavam
os que, embora cheios do Espírito Santo e dotados com os
Seus dons e graça, tinham, todavia, mal em si mesmos. A
assembleia, no dia de pentecostes, desfrutava por completo
os benefícios do sangue de Cristo, e estava adornada com os
dons do Espírito Santo; mas havia também nela mal. O poder
do Espírito Santo não podia evitar que o mal estivesse
entre o povo de Deus. O mal podia ser combatido e ocultado;
mas ainda assim estava ali. Este fato é representado em
figuras pelo fermento nos dois pães; e é encontrada a sua
expressão na história da Igreja; porque, apesar de Deus o
Espírito Santo estar presente na Assembleia, a carne
manifesta-se também mentindo-lhe. A carne é carne, e dela
não poderá jamais fazer-se outra coisa. O Espírito Santo
não desceu, no dia de pentecostes, para melhorara natureza
humana ou acabar com a realidade do mal nela, mas, sim,
para batizar os crentes em um corpo e ligá-los com a Cabeça
que vive no céu.
Já fizemos alusão, no capítulo que trata do sacrifício
pacífico, ao fato que o fermento era permitido em relação
com esse sacrifício. Por este meio Deus reconhecia a
existência de mal no adorador. Assim é também na ordenação
dos "dois pães de movimento"; deviam ser cozidos com
fermento, devido ao mal no antítipo.
Mas, bendito seja Deus, se a existência do mal era
divinamente reconhecida, também era feita provisão do
remédio. Isto dá paz e consolação à alma. E consolador
saber que Deus conhece o pior que há em nós; e, além disso,
que deu o remédio, segundo o Seu conhecimento, e não apenas
segundo o nosso.
"Também com o pão oferecereis sete cordeiros sem mancha, de
um ano, e um novilho, e dois carneiros; holocausto serão ao
SENHOR, com a sua oferta de manjares e as suas libações,
por oferta queimada de cheiro suave ao SENHOR" (versículo
18).
Portanto, temos aqui, em imediata ligação com os pães
levedados, a oferta de um sacrifício sem mancha,
tipificando a verdade muito importante de que é a perfeição
de Cristo e não a nossa iniquidade que está sempre perante
os olhos de Deus. Observe-se especialmente as palavras
"também com o pão oferecereis sete cordeiros sem mancha".
Que preciosa verdade! Eminentemente preciosa, ainda que
revestida de formas típicas. Possa o leitor compreendê-la,
apropriar-se dela, fazer dela o apoio da sua consciência, o
alimento e refrigério de seu coração, e as delícias da sua
alma; e dizer: Não eu, mas Cristo.
Dir-se-á que o fato de Cristo ser o Cordeiro imaculado não
basta para tirar o peso de culpa de uma consciência
manchada—que uma oferta de cheiro suave não aproveitaria,
em si, ao pecador culpado. Pode apresentar-se esta objeção;
porém ela é não só contestada como desfeita pelo símbolo
que estamos a analisar. Em boa verdade, que um Holocausto
não teria bastado havendo "fermento"; e por isso lemos:
"Também oferecereis um bode para expiação do pecado e dois
cordeiros de um ano por sacrifício pacífico" (versículo
19). A "expiação do pecado" era a resposta ao "fermento"
nos pães — firmava-se "a paz" de forma que podia gozar-se
de comunhão, e subia em imediata conexão com o "cheiro
suave" do "holocausto" para o Senhor.
Assim, no dia de pentecostes a Igreja foi apresentada em
todo o valor e excelência de Cristo pelo poder do Espírito
Santo. Embora tendo em si mesma o fermento da velha
natureza, esse fermento não era tido em conta, porque a
divina expiação do pecado tinha respondido por ele. O poder
do Espírito Santo não tirava o fermento, mas o sangue do
Cordeiro de Deus tinha feito expiação pelo mal nele
representado. É uma distinção das mais importantes e ao
mesmo tempo interessantes. A obra do Espírito no crente não
tira o mal que nele habita. Torna-o capaz de detectar, de
julgar e de dominar o mal, mas não há poder espiritual que
possa anular o fato de que o mal existe nele — embora,
bendito seja Deus, a consciência esteja perfeitamente em
paz, visto que o sangue da expiação do pecado resolveu para
sempre toda a questão; e, portanto, Deus, em vez de ter
presente o nosso mal, afastou-o da vista para sempre, e nós
somos aceitos em Cristo, que se ofereceu a Si mesmo a Deus
em sacrifício de cheiro suave, para poder glorificá-Lo
perfeitamente em todas as coisas e ser para sempre o
alimento do Seu povo.
Dissemos o bastante sobre o pentecostes — depois do qual
desliza um longo período sem que haja qualquer movimento
entre o povo. Há contudo uma alusão ao "pobre e
estrangeiro" nesta bela ordenação que temos considerado em
seu aspecto moral. Aqui podemos considerá-la sob o ponto de
vista dispensacional. "E, quando segardes a sega da vossa
terra, não acabarás de segar os cantos do teu campo, nem
colherás as espigas caídas da tua sega; para o pobre e para
o estrangeiro as deixarás. Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus"
(versículo 22). Aqui é determinado que todo o estrangeiro
possa respigar nos campos de Israel. Os gentios são
introduzidos para participar da bondade superabundante de
Deus. Quando os celeiros e lagares de Israel estiverem
cheios, haverá preciosas gabelas e ricos cachos para que os
gentios os possam colher.
Não devemos contudo supor que as bênçãos espirituais com
que a Igreja é dotada nos lugares celestiais com Cristo são
representadas pela figura de um estrangeiro rebuscando
espigas nos campos de Israel. Estas bênçãos são tão novas
para os descendentes de Abraão como para os gentios. Não
são as espigas de Canaã, mas as glórias do céu — as glórias
de Cristo. A Igreja não é apenas abençoada por Cristo, mas
com Cristo e em Cristo. A noiva de Cristo não terá que ir,
como um estrangeiro, rebuscar as espigas e os cachos nos
campos e vinhedos de Israel. Não; ela tem maiores bênçãos,
mais rico gozo, dignidades mais elevadas do que Israel
jamais conheceu. Não tem de rebuscar como um estrangeiro na
terra, mas sim de gozar a sua riqueza e feliz morada no céu
a que pertence. Estas são "as melhores coisas" que Deus
tem, em Sua graça e sabedoria, "preparado" para ela. Sem
dúvida, será um feliz privilégio para "o estrangeiro" poder
respigar depois de terminada a ceifa de Israel; porém a
parte da Igreja é incomparavelmente melhor, como é ser a
noiva do Rei de Israel, que compartilha do Seu trono, tem
parte nas Suas honras e glória; ser semelhante a Ele e
estar com Ele para sempre. As moradas eternas da casa do
Pai nas alturas, e não os rincões sem espigas dos campos de
Israel, são a porção da Igreja. Conservemos isto sempre em
nosso espírito para podermos viver de uma maneira digna de
tão nobre e santo destino!

A Festa das Trombetas (Números 29:1)


"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de
Israel, dizendo: No mês sétimo, ao primeiro do mês, tereis
descanso, memória de jubilação, santa convocação. Nenhuma
obra servil fareis, mas ofereceis oferta queimada ao
SENHOR" (versículos 23-25).
As palavras "E falou o SENHOR a Moisés" servem de
introdução a outro assunto, que, diga-se de passagem, é de
grande utilidade na classificação dos assuntos de todo o
capítulo. Assim, o sábado, a páscoa, e a festa dos asmos
são dados na primeira comunicação. O molho das primícias da
sega, os dois pães de movimento, os cantos do campo por
segar são mencionados na segunda parte; depois segue-se um
longo intervalo durante o qual nada se diz, e então vem a
comovedora festa das trombetas, no primeiro dia do sétimo
mês. Esta ordenação conduz-nos ao tempo que rapidamente se
acerca de nós, em que o remanescente de Israel "tocar a
trombeta" para memorial, recordando a sua glória desde há
longo tempo perdida, e despertando em busca do Senhor.

O Dia da Expiação
A festa das trombetas está intimamente ligada com outra
solenidade, isto é, "o dia da expiação". "Mas, aos dez
deste mês sétimo será o Dia da Expiação; tereis santa
convocação, e afligireis a vossa almas; e oferecereis
oferta queimada ao Senhor. E, naquele mesmo dia, nenhuma
obra fareis, porque é o Dia da Expiação, para fazer
expiação por vós, perante o SENHOR, vosso Deus... sábado de
descanso vos será; então, afligireis a vossa alma; aos nove
do mês, à tarde, de uma tarde a outra tarde, celebrareis o
vosso sábado" (versículos 27-32). Assim, depois do toque
das trombetas segue-se um intervalo de oito dias, e então
temos o dia da expiação, com o qual estas coisas estão
relacionadas, isto é, aflição da alma, expiação do pecado,
e descanso do labor. Todas estas coisas encontrarão em
breve o seu próprio lugar na experiência do remanescente
judeu. "Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos
salvos" (Jr 8:20). Tal será a comovedora lamentação do
remanescente quando o Espírito de Deus tiver tocado os seus
corações e consciências:"... e olharão para mim, a quem
traspassaram; e o prantearão como quem pranteia por um
unigênito; e chorarão amargamente por ele, como se chora
amargamente pelo primogênito. Naquele dia, será grande o
pranto em Jerusalém, como o pranto de Hadade-Rimmon no vale
de Megido. E a terra pranteará, cada linhagem à parte" (Zc
12:10-14).
Que profundo pranto, que intensa aflição, que verdadeira
penitência haverá quando, sob a poderosa ação do Espírito
Santo, a consciência do remanescente relembrar os pecados
do passado, a indiferença pelo sábado, a transgressão da
lei, o apedrejamento dos profetas, a crucifixão do Filho e
a resistência ao Espírito! Todas estas coisas se
apresentarão ante a consciência iluminada e exercitada e
produzirão uma profunda aflição da alma.
Mas o sangue de expiação responderá por tudo." Naquele dia
haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os
habitantes de Jerusalém contra o pecado e contra a
impureza" (Zc 13:1). Ser-lhes-á concedido sentir a sua
culpa e serem afligidos e serão também levados a ver a
eficácia do sangue e a achar paz perfeita — um sábado de
descanso para as suas almas.
Ora, quando tais resultados tiverem sido verificados na
história de Israel, dos últimos dias, o que devemos nós
esperara Certamente, A GLÓRIA. Quando tiver sido removida
"a cegueira" e "o véu" for tirado, quando o coração do
remanescente se voltar para o Senhor, então os brilhantes
raios do "Sol da Justiça" incidirão, trazendo saúde,
restauração e poder libertador, sobre um pobre povo,
verdadeiramente arrependido e aflito.
Seria necessário todo um volume para tratar este assunto
com todos os pormenores. As experiências, lutas, provações
e dificuldades e por fim as bênçãos do remanescente estão
amplamente descritas nos Salmos e nos Profetas. A
existência de um tal corpo deve ser claramente reconhecida
antes de se poder estudar os Salmos e os Profetas
inteligentemente e com proveito. Não quer dizer que não
possamos aprender muito com essas porções de inspiração,
porque "toda a Escritura é proveitosa". Mas a maneira mais
segura de fazer um bom uso de qualquer porção da Palavra de
Deus é compreender bem a sua aplicação primária. Se,
portanto, aplicarmos à Igreja ou corpo celestial as
passagens que se referem, rigorosamente falando, ao
remanescente judeu ou corpo terrestre, seremos envolvidos
em graves erros tanto a respeito de um como do outro. De
fato, acontece em muitos casos, que a existência de um tal
corpo como o remanescente é completamente ignorada, e a
verdadeira posição e esperança da Igreja são inteiramente
perdidas de vista. Estes erros são graves e o leitor deve
evitá-los. Não suponha, nem por um momento, que são meras
especulações próprias para ocupar a atenção dos curiosos,
sem qualquer poder prático. Não pode haver suposição mais
falsa. O quê? Não tem importância sabermos se pertencemos
ao céu ou à terra ? Não importa saber se estaremos em
descanso nas mansões celestiais ou passando pelos juízos do
Apocalipse na terra? Quem pode admitir uma ideia tão
extravagante? A verdade é que não é fácil encontrar
verdades mais práticas do que a que descreve os destinos do
remanescente terrestre e da Igreja celestial. Não
prosseguirei com o assunto; mas o leitor o encontrará
merecedor de estudo atento e profundo. Terminaremos esta
parte com uma vista de olhos à festa dos tabernáculos — a
última das solenidades do ano judeu.

A Festa dos Tabernáculos


"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo-. Fala aos filhos de
Israel, dizendo: Aos quinze dias deste mês sétimo, será a
festa dos tabernáculos ao SENHOR, por sete dias... Porém,
aos quinze dias do mês sétimo, quando tiverdes recolhido a
novidade da terra, celebrareis a festa do SENHOR, por sete
dias; ao dia primeiro haverá descanso, e ao dia oitavo
haverá descanso. E, ao dia primeiro, tomareis para vós
ramos de formosas árvores, ramos de palmas, ramos de
árvores espessas e salgueiros de ribeiras; e vos alegrareis
perante o SENHOR vosso Deus, por sete dias. E celebrareis
esta festa ao SENHOR, por sete dias cada ano; estatuto
perpétuo é pelas vossas gerações; no mês sétimo, a
celebrareis. Sete dias habitareis debaixo de tendas; todos
os naturais em Israel habitarão em tendas; para que saibam
as vossas gerações que eu fiz habitar os filhos de Israel
em tendas, quando os tirei da terra do Egito. Eu sou o
SENHOR vosso Deus" (versículos 33-43).
Esta festa nos mostra a glória de Israel nos últimos dias,
e portanto forma o mais belo e apropriado remate na série
de festas. A ceifa estava feita, tudo estava feito, os
celeiros estavam amplamente fornecidos, e o Senhor queria
que o Seu povo desse expressão à sua alegria. Mas,
infelizmente, parecem ter tido pouca vontade de compreender
os pensamentos divinos a respeito desta deliciosa
ordenação. Esqueceram o fato que haviam sido estrangeiros e
peregrinos em terra estranha, e daí o longo olvido desta
festa. Desde os dias de Josué ao tempo de Neemias, a festa
dos tabernáculos não havia sido celebrada uma só vez.
Estava reservado ao remanescente que veio do cativeiro de
Babilônia fazer o que nem sequer nos dias brilhantes de
Salomão havia sido feito. "E toda a congregação dos que
voltaram do cativeiro fizeram cabanas e habitaram nas
cabanas; porque nunca fizeram os filhos de Israel, desde os
dias de Josué, filho de Num, até àquele dia; e houve muita
alegria" (Ne 8:17). Quão consoladora deveria ter sido para
aqueles que tinham pendurado as suas harpas nos salgueiros
da Babilônia encontrarem-se à sombra dos salgueiros de
Canaã! Era uma agradável antecipação daquele tempo de que a
festa dos tabernáculos era um tipo, quando as tribos
restauradas de Israel repousarão nas cabanas mileniais que
a mão fiel do Senhor levantará para eles na terra que jurou
havia de dar a Abraão e aos seus descendentes para sempre!
Feliz momento quando os celestiais e os terrestres se
encontrarem, como dá a entender "o primeiro dia" e "o
oitavo dia" da festa dos tabernáculos! "E acontecerá
naquele dia que eu responderei, diz o SENHOR, eu
responderei aos céus, e estes responderão à terra. E a
terra responderá ao trigo e ao mosto e ao óleo; e estes
responderão a Jezreel" (Os2:21-22).
Existe no último capítulo de Zacarias uma formosa passagem
que prova claramente que a verdadeira celebração da festa
dos tabernáculos pertence à glória dos últimos dias. "E
acontecerá que, todos os que restarem de todas as nações
que vieram contra Jerusalém, subirão de ano em ano para
adorarem o Rei, o SENHOR dos Exércitos, e celebrarem a
festa das cabanas" (Zc 14:16). Que cena! Quem ousará tirar-
lhe a sua beleza característica por um vago sistema de
interpretação chamado espiritual? Seguramente, Jerusalém
quer dizer Jerusalém, nações quer dizer nações; e a festa
dos tabernáculos significa festa dos tabernáculos. Há nisto
alguma coisa incrível l Nada, seguramente, salvo para a
razão humana que rejeita tudo que está fora do seu limitado
alcance. A festa dos tabernáculos será ainda celebrada na
terra de Canaã e as nações dos salvos subirão ali para
tomar parte nas suas santas e gloriosas solenidades. As
guerras de Jerusalém terão então terminado, e será posto
fim ao estrondo das batalhas. A espada e a lança serão
transformadas em instrumentos de agricultura; Israel
repousará à sombra refrescante dos seus vinhedos e
figueirais; e toda a terra regozijar-se-á no governo do
"Príncipe da Paz". Tal é a perspectiva que nos oferecem as
inerrantes páginas de inspiração. É prefigurada nos
símbolos; os profetas profetizaram-na; a fé crê nela; e a
esperança antecipa-a.

_________________
NOTA — No final do capítulo lemos. "Assim, pronunciou
Moisés as solenidades do SENHOR aos filhos de Israel". Este
era o seu verdadeiro caráter, o seu título original; mas no
Evangelho de João são chamadas "festas dos judeus". Durante
longo tempo tinham deixado de ser as festas do Senhor. Ele
estava excluído delas. Eles não O queriam; e, por isso, em
João 7, quando Jesus foi convidado a subir a Jerusalém à
"festa dos judeus", "a dos tabernáculos", Ele respondeu,
dizendo: "Ainda não é chegado o meu tempo"; e quando subiu
foi "como em oculto" para tomar o Seu lugar fora de todas
as cerimônias oficiais, e convidar toda a alma sedenta a
vir a Si e beber. Há nisto uma lição solene. As
instituições divinas degeneram rapidamente nas mãos dos
homens; mas, quão bem-aventurada coisa é saber que a alma
sequiosa que sente a secura e aridez relacionadas com um
sistema de vazia religiosidade e formalidade só tem que
refugiar-se em Jesus e beber de graça da Sua fonte
inesgotável e desta forma tornar-se um meio de bênção para
outros.

— CAPÍTULO 24 —

ISRAEL É CONSERVADO PARA


O PAÍS DE CANAÃ

Há neste breve capítulo muitas coisas que devem interessar


a mente espiritual. No capítulo 23 temos visto a história
do procedimento de Deus para com Israel, desde a oferta do
verdadeiro Cordeiro pascal até ao repouso e glória do reino
milenial. No capítulo que temos agora perante nós temos
duas grandes ideias: primeiro, o testemunho e o memorial
das doze tribos (mantidos continuamente diante de Deus pelo
poder do Espírito Santo e pela eficácia do sacerdócio de
Cristo); e, segundo, a apostasia de Israel segundo a carne
e o consequente juízo divino. E preciso compreender bem a
primeira para poder compreender a segunda.

O Azeite para a Luminária, para Acender as Lâmpadas


Continuamente
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos de
Israel que te tragam azeite de oliveira, puro, batido, para
a luminária, para acender as lâmpadas continuamente. Arão
as porá em ordem perante o SENHOR, continuamente, desde a
tarde até à manhã, fora do véu do testemunho, na tenda da
congregação; estatuto perpétuo é, pelas vossas gerações.
Sobre o castiçal puro porá em ordem as lâmpadas, perante o
SENHOR continuamente" (versículos 1-4).
O "azeite puro" representa a graça do Espírito Santo,
baseada na obra de Cristo, representada por sua vez pelo
castiçal de "ouro batido". A "azeitona" era moída para dar
o "azeite", e o outro era "batido" para formar o castiçal.
Por outras palavras, a graça e luz do Espírito estão
baseadas na morte de Cristo e mantidas, com clareza e
poder, pelo sacerdócio de Cristo. A lâmpada de ouro
espalhava a sua luz em todo o recinto do santuário, durante
as tristes horas da noite, quando as trevas cobriam toda a
nação e todos estavam envolvidos no sono. Em tudo isto
temos uma intensa representação da fidelidade de Deus para
com o Seu povo, qualquer que pudesse ser a sua condição
exterior. As trevas e a sonolência podiam estender-se sobre
eles, mas a lâmpada devia arder "continuamente". O sumo
sacerdote tinha a responsabilidade de velar para que a luz
do testemunho ardesse durante as horas enfadonhas da noite,
―Aarão as porá em ordem, perante o Senhor, continuamente,
desde a tarde até à manhã, fora do véu do testemunho, na
tenda da congregação". A conservação desta luz não dependia
de Israel. Deus havia ordenado alguém cujo dever era velar
por ela e pô-la em ordem continuamente.

A Unidade do Povo de Israel


Mais adiante lemos: "Também tomaras da flor de farinha e
dela cozerás doze bolos; cada bolo será de duas dízimas. E
os porás em duas fileiras, seis em cada fileira, sobre a
mesa pura, perante o SENHOR. E sobre cada fileira porás
incenso puro, que será, para o pão, por oferta memorial;
oferta queimada é, ao SENHOR. Em cada dia de sábado, isto
se porá em ordem perante o SENHOR, continuamente, pelos
filhos de Israel, por concerto perpétuo. E será de Arão e
de seus filhos, os quais o comerão no lugar santo, porque
uma coisa santíssima é para eles, das ofertas queimadas ao
SENHOR, por estatuto perpétuo" (versículos 5-9).
Não se menciona o fermento nestes pães. Não tenho dúvidas
que representam Cristo em imediata relação com "as doze
tribos de Israel". Estavam expostos no santuário perante o
Senhor, sobre a mesa pura, durante sete dias, depois dos
quais eram alimento para Arão e seus filhos, oferecendo
outra figura notável da condição de Israel aos olhos do
Senhor, qualquer que fosse o seu aspecto exterior. As doze
tribos estão continuamente diante d'Ele. O memorial jamais
pode perecer. Estão colocadas em ordem divina no santuário,
cobertas com o incenso fragrante de Cristo, e refletem
desde a mesa pura os raios resplandecentes da lâmpada de
ouro, que brilha, com inalterável brilho, durante as horas
mais sombrias da noite moral da nação.
Convém certificarmo-nos de que não sacrificamos um juízo
são ou verdade divina no altar da fantasia, quando ousamos
interpretar deste modo os utensílios místicos do santuário.
Em Hebreus 9 temos o ensino de que todas estas coisas eram
"figuras das coisas que estão no céu"; e em Hebreus 10:1
que são "a sombra dos bens futuros". Estamos, pois,
autorizados para crer que há "coisas que estão no céu" que
correspondem às "figuras" — que existe uma substância que
corresponde à "sombra". Numa palavra, estamos autorizados
para crer que há "nos céus" alguma coisa que corresponde às
"sete lâmpadas", "a mesa pura" e os "doze pães". Isto não é
imaginação humana, mas, sim, verdade divina de que a alma
se alimenta, em todos os tempos.
Que significava o altar de Elias formado por "doze pedras",
no monte Carmelo? Não era nada menos que a expressão da sua
fé na verdade que os "doze pães" eram "figuras" ou
―sombras". Elias cria na unidade indissolúvel da nação
mantida perante Deus na estabilidade eterna da promessa
feita a Abraão, Isaque e Jacó, qualquer que fosse a
condição externa da nação. O homem podia procurar em vão a
unidade visível das doze tribos; mas a fé podia sempre ver
no recinto sagrado do santuário os doze pães cobertos com o
incenso puro e exposto em ordem perfeita sobre a mesa pura;
e ainda que tudo fora estivesse envolto em densas trevas, a
fé discernia, à luz das sete lâmpadas de ouro, a mesma
verdade fundamental prefigurada; isto é, a unidade
indissolúvel das doze tribos de Israel.
Assim era, então; e assim é agora. A noite é escura e
triste. Não há, em todo este mundo, um só raio de luz pelo
qual a mente humana possa distinguir a unidade das tribos
de Israel. Estão dispersas entre as nações e perdidas para
a visão do homem. Porém o seu memorial está perante o
Senhor. A fé reconhece isto porque sabe que "todas as
promessas de Deus são sim e amém em Cristo Jesus". Vê no
santuário do alto, à luz perfeita do Espírito, as doze
tribos fielmente rememoradas. Escute-se estes nobres
acentos da fé: "E agora pela esperança da promessa, que por
Deus foi feita a nossos pais, estou aqui e sou julgado. A
qual as nossas doze tribos esperam e desviará de Jacó as
impiedades. E este será o meu concerto com eles, quando eu
tirar os seus pecados. Assim que, quanto ao evangelho, são
inimigos por causa de vós; mas, quanto à eleição amados por
causa dos pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem
arrependimento. Porque assim como vós também, antigamente
fostes desobedientes a Deus, mas, agora, alcançastes
misericórdia pela desobediência deles, assim também estes,
agora, foram desobedientes para também alcançarem
misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada. Porque
Deus encerrou a todos debaixo da desobediência para com
todos usar de misericórdia. O profundidade das riquezas,
tanto da sabedoria, cômoda ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os
seus caminhos! Porque quem compreendeu o intento do Senhora
Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a
ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele, e por
ele, e para ele são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém" (Rm 11:25-36).
Poderia multiplicar-se as passagens para provar que ainda
que Israel esteja sob o juízo de Deus por causa do pecado,
"os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento", e que
embora o blasfemo seja apedrejado fora do arraial, os doze
pães permanecem intactos dentro do santuário. "As vozes dos
profetas" declaram e as vozes dos apóstolos repetem a
gloriosa verdade que "todo o Israel será salvo"; não porque
não hajam pecado, mas porque "os dons e a vocação de Deus
são sem arrependimento". Que os cristãos tenham cuidado com
a forma como tratam "as promessas feitas aos pais". Se
estas promessas forem mal aplicadas ou mal expostas, o
nosso sentimento moral da integridade divina e exatidão das
Escrituras como um todo será infalivelmente enfraquecido.
Se uma parte for menosprezada, também o será outra. Se uma
passagem for vagamente interpretada, também o será outra; e
assim acontecerá que perdemos a certeza bendita que
constitui o fundamento do nosso repouso quanto a tudo que o
Senhor tem declarado. Mas diremos mais alguma coisa a este
respeito quando analisarmos os últimos capítulo deste
livro.

— CAPÍTULO 25 —

CANAÃ É CONSERVADA PARA


A CASA DE ISRAEL

"Quando tiverdes entrado na terra"


O leitor encontrará uma íntima relação entre este capítulo
e o anterior. Segundo o capítulo 24 sabemos que a casa de
Israel é preservada para a terra de Cana. Em capítulo 25
aprendemos que a terra de Cana é preservada para a casa de
Israel. Conjuntamente dão-nos o relato de uma verdade que
nenhuma potência da terra ou do inferno pode destruir.
"Todo o Israel será salvo", e "a terra não será vendida
para sempre". A primeira destas declarações expõe um
princípio que tem resistido como uma rocha no meio do
oceano de interpretações contraditórias: enquanto que a
última declara um fato que muitas nações incircuncisas têm
tentado, ainda que em vão, ignorar.
O leitor observará, sem dúvida, o modo peculiar como abre
este capítulo. "Falou mais o SENHOR a Moisés no monte de
Sinai". A maior parte das comunicações contidas no Livro de
Levítico é caracterizada pelo fato de emanar "do
tabernáculo da congregação". Isto se explica facilmente.
Essas comunicações tinham uma relação especial com o
serviço, comunhão e adoração dos sacerdotes ou com o estado
moral do povo, e por isso se faziam, como podia esperar-se,
"do tabernáculo da congregação"; esse centro de tudo que
dizia respeito, de algum modo, ao serviço sacerdotal.
Porém, aqui a comunicação é feita de um ponto muito
diferente. "O SENHOR falou a Moisés no monte de Sinai1'.
Ora nós sabemos que cada expressão nas Escrituras tem o seu
próprio sentido especial, portanto temos motivo para
esperar do "Monte de Sinai" um gênero diferente de
comunicações daquele que nos chega "do tabernáculo da
congregação" . E assim é. O capítulo a que temos agora
chegado trata dos direitos de Jeová como Senhor de toda a
terra. Já não é o culto e a comunhão de uma casa sacerdotal
ou a organização interna de uma nação; mas os direitos de
Deus em Seu governo, o direito que tem de dar a determinado
povo uma certa parte da terra que devem ocupar como Seus
usufrutuários. Numa palavra, não é o Senhor "no
tabernáculo" — o lugar de culto; mas, sim, o Senhor no
"Monte de Sinai" — o lugar de governo.

O Ano de Descanso
"Falou mais o SENHOR a Moisés no monte de Sinai, dizendo:
Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando tiverdes
entrado na terra, que eu vos dou, então, a terra guardará
um sábado ao SENHOR. Seis anos semearás a tua terra, seis
anos podarás a tua vinha, e colherás a sua novidade. Porém,
ao sétimo ano, haverá sábado de descanso para a terra, um
sábado ao SENHOR; não semearás o teu campo, nem podarás a
tua vinha. O que nascer de si mesmo da tua sega não segarás
e as uvas da tua vide não tratada, não vindimarás; ano de
descanso será para a terra. Mas a novidade do sábado da
terra vos será por alimento, a ti, e ao teu servo, e à tua
serva, e ao teu jornaleiro, e ao estrangeiro que peregrina
contigo; e ao teu gado, e aos teus animais que estão na tua
terra, toda a sua novidade será por mantimento" (versículos
1 -7).
Aqui temos, pois, a característica especial da terra do
Senhor. Queria que ela gozasse um ano sabático e nesse ano
devia haver uma prova da rica profusão com que abençoaria
os que a ocupavam como seus rendeiros. Felizes esses
privilegiados vassalos! Que honra dependerem imediatamente
do Senhor! Livres de impostos, encargos ou renda! Deles bem
podia dizer-se: "Bem-aventurado o povo a quem assim sucede!
Bem-aventurado é o povo cujo Deus é o SENHOR!" (SI 144:15).
Sabemos, infelizmente, que Israel falhou em tomar plena
possessão dessa rica terra que o Senhor lhe dava. Ele dera-
a toda; dera-a para sempre. Eles tomaram apenas uma parte,
e esta por algum tempo. Contudo, a propriedade está ali,
embora os rendeiros hajam sido expulsos dela:"... a terra
não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha:
pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo".
Que quer isto dizer senão que Cana pertence especialmente
ao Senhor e que Ele quer conservá-la por meio das tribos de
Israel? Em boa verdade, "a terra é do SENHOR", mas isso é
outra coisa muito diferente. É evidente que Lhe aprouve, em
Seus propósitos inescrutáveis, tomar posse especialmente do
país de Canaã. e submeter este país a um tratamento
especial, a fim de o distinguir de todos os outros países,
chamando-o propriamente Seu e distinguindo-o com juízos,
ordenações e solenidades periódicas, cuja simples
contemplação ilumina a inteligência e comove o coração.
Onde lemos que haja em toda a terra um país que goze de um
ano de ininterrupto repouso — um ano da mais rica
abundância? O racionalista pode perguntar: "Como se podem
fazer estas coisas?" O céptico pode duvidar que fossem
possíveis; mas a fé recebe uma resposta satisfatória dos
lábios do Senhor: "Se disserdes: Que comeremos no ano
sétimo, visto que não havemos de semear nem colher a nossa
novidade? Então, eu mandarei a minha bênção sobre vós no
sexto ano, para que dê fruto por três anos. E, no oitavo
ano, semeareis, e comereis da colheita velha até ao ano
nono; até que venha a sua novidade, comereis a velha"
(versículos 20-22). O homem natural podia dizer: "Que
faremos das nossas semeaduras?" A resposta de Deus é: "Eu
mandarei a minha bênção". A benção de Deus é muito melhor
do que a "semeadura" do homem. Não ia deixá-los passar fome
no ano sabático. Deviam alimentar-se dos frutos da Sua
bênção, enquanto celebravam o Seu ano de repouso — um ano
que indicava o sábado eterno que resta para o povo de Deus.

O Ano do Jubileu
"Também contarás sete semanas de anos, sete vezes sete
anos, de maneira que os dias das sete semanas de anos te
serão quarenta e nove anos. Então, no mês sétimo, aos dez
do mês, farás passar a trombeta do jubileu; no Dia da
Expiação fareis passara trombeta por toda a vossa terra"
(versículos 8 - 9). E muito interessante notar as diversas
maneiras em que estava prefigurado na economia Judaica o
repouso milenial. Cada sétimo dia era um dia sabático; cada
sétimo ano era um ano sabático; e ao cabo de sete vezes
sete anos havia um jubileu. Cada uma destas solenidades
típicas apresenta à vista da fé a perspectiva bendita do
tempo em que o labor e a pena cessariam; quando "o suor do
rosto" não será mais necessário para satisfazer as
necessidades da fome; quando uma terra milenária,
enriquecida por abundantes chuvas de graça divina, e
fertilizada pelos brilhantes raios do Sol da justiça,
verterá a sua abundância nos celeiros e lares do povo de
Deus. Ditoso tempo! Feliz povo! Quão bem-aventurada coisa é
estar seguro de que estas coisas não são quadros da
fantasia ou rasgos da imaginação, mas, sim, verdades
substanciais de revelação divina para serem desfrutadas
pela fé, que é "O firme fundamento das coisas que se
esperam, e a prova das coisas que se não veem". De entre
todas as solenidades judaicas o jubileu parece ter sido a
mais comovedora e alegre. Estava intimamente ligada ao
grande dia da expiação. Era quando o sangue da vítima era
derramado que o som libertador da trombeta do jubileu se
fazia ouvir através dos montes e vales da terra de Canaã.
Esse sonido tão desejado tinha o objetivo de despertar a
nação do próprio centro do seu ser moral, agitar as maiores
profundidades da alma e fazer correr um rio de alegria
divina e inefável por toda a largura e comprimento do país.
"No dia da expiação fareis soar a trombeta por toda a vossa
terra". Nem um irmão devia ficar sem ser despertado pelo
"som alegre" da trombeta. O aspecto do jubileu era tão
vasto como o aspecto da expiação sobre a qual se baseava o
jubileu. "E santificareis o ano quinquagésimo e apregoareis
liberdade na terra a todos os seus moradores; Ano de
Jubileu vos será, e tomareis, cada um à sua possessão, e
tomareis cada um, à sua família. O ano quinquagésimo vos
será jubileu; não semeareis, nem segareis o que nele nascer
de si mesmo, nem nele vindimareis as uvas das vides não
tratadas. Porque jubileu é, santo será para vós; a novidade
do campo comereis. Neste ano do jubileu tomareis cada um à
sua possessão" (versículos 10-13).
Todo o povo, em todo o país, quaisquer que fossem as suas
condições, podia sentir a santa consoladora influência
desta nobre instituição. O exilado regressava ao país; o
cativo era libertado; o devedor perdoado; as famílias
abriam os seus braços para receber em seu seio os membros
há muito tempo afastados; cada herança passava para a posse
do seu antigo possuidor. O som da trombeta era o sinal bem-
vindo e comovedor para todo o cativo escapar do cativeiro —
para o escravo pôr de lado as cadeias da escravidão, para o
homicida voltar para casa, e os pobres e arruinados tomarem
posse da herança perdida.
Apenas acabava de ecoar pela terceira vez o som alegre da
trombeta e já a onda poderosa da bênção se levantava
majestosamente para atingir com a sua ondulação os rincões
mais afastados da terra favorecida do Senhor.

A Terra (Canaã) é Minha


"E, quando venderdes alguma coisa ao vosso próximo ou a
comprardes da mão do vosso próximo, ninguém oprima a seu
irmão. Conforme o número dos anos desde o jubileu,
comprarás ao teu próximo; e, conforme o número dos anos das
novidades, ele venderá a ti. Conforme à multidão dos anos,
aumentarás o seu preço; e, conforme à diminuição dos anos,
abaixarás o seu preço; porque, conforme o número das
novidades, é que ele te vende. Ninguém, pois, oprima ao seu
próximo; mas terás temor do teu Deus; porque eu sou o
SENHOR VOSSO Deus" (versículos 14-17). O ano do jubileu
recordava tanto ao comprador como ao vendedor que a terra
pertencia ao Senhor, e não era para ser vendida. "Os
frutos" podiam ser vendidos, mas nada mais — o Senhor não
podia ceder o país a ninguém. É importante ter isto fixado
na mente; porque pode dar-nos uma extensa linha da verdade.
Se a terra de Canaã não é para ser vendida, se o Senhor
declara que ela Lhe pertence para sempre, então para quem
quer Ele que ela seja? Quem deve possuí-la? Aqueles a quem
Ele a deu por pacto eterno, para que eles a possuíssem
enquanto durar a luta — em todas as gerações.
Não há em toda a terra lugar semelhante a Canaã, segundo o
parecer divino. Ali estabeleceu o Senhor o Seu trono e o
Seu santuário; ali os Seus sacerdotes oficiavam
continuamente perante Ele; ali eram ouvidas as vozes dos
Seus profetas denunciando a ruína atual e vaticinando a
restauração e glória futuras. Ali João Batista começou,
continuou e acabou a sua carreira como precursor do
Messias; ali o bendito Senhor foi "nascido de mulher"; ali
foi batizado; ali pregou e ensinou; ali trabalhou e morreu;
dali subiu em triunfo para a destra de Deus; para ali
desceu Deus o Espírito Santo, em poder, no dia de
Pentecostes; dali procedeu a onda superabundante do
testemunho de Deus para os confins da terra; para ali
descerá, dentro em pouco, o Senhor da glória, e porá os
Seus pés sobre "o Monte das Oliveiras"; ali será
restabelecido e restaurado o Seu culto. Numa palavra, os
Seus olhos e o Seu coração estão continuamente postos ali;
o Seu pó é precioso à Sua vista; é o centro de todos os
Seus pensamentos e ações respeitantes a este mundo; e é Seu
propósito fazer dela a joia de muitas gerações e torná-la
eternamente excelente.
É, pois, repito, imensamente importante ter uma nítida
compreensão desta linha de verdade a respeito da terra de
Canaã. Acerca dessa terra o Senhor tem dito: "E MINHA."
Quem Lhe a tomará i Onde está o rei ou imperador, poder
humano ou diabólico, que possa arrancar "a terra agradável"
à posse do Senhor Onipotente? E verdade que tem sido um
pomo de discórdia, um motivo de discussões para todas as
nações. Tem sido, e será ainda, teatro e centro de cruéis
guerras e efusão de sangue. Mas muito acima do estrépito da
batalha e das contendas das nações estas palavras soam ao
ouvido da fé com clareza e poder divinos, "a terra é
minha!" O Senhor nunca poderá renunciar a esse país nem a
essas "doze tribos" mediante as quais deve possuí-lo para
sempre. Medite o leitor nisto. Pondere o assunto. Guardemo-
nos de todo o vago raciocínio e interpretação duvidosa
sobre este assunto. Deus não desprezou o Seu povo nem a
terra que jurou lhe daria por possessão eterna. Os "doze
pães" de Levítico são um testemunho daquela afirmação, e o
jubileu de Levítico 25 dá testemunho da verdade acerca
desta. O memorial das "doze tribos de Israel" está sempre
perante o Senhor; e o momento aproxima-se rapidamente em
que a trombeta do jubileu soará sobre as montanhas da
Palestina. Então, na realidade o cativo largará as cadeias
afrontosas com que, durante séculos, tem estado preso.
Então os desterrados regressarão à terra feliz da qual têm
sido por tanto tempo exilados. Então será cancelada toda a
dívida, desaparecerá todo o jugo e será enxugada toda a
lágrima. "Porque assim diz o SENHOR: Eis que estenderei
sobre ela (Jerusalém) a paz, como um rio, e a glória das
nações, como um ribeiro que transborda; então, mamareis, ao
colo vos trarão e sobre os joelhos vos afagarão. Como
alguém sua mãe consola a quem, assim eu vos consolarei; e
em que Jerusalém vós sereis consolados. Isso vereis, e
alegrar-se-á o vosso coração, e os vossos ossos
reverdecerão como a erva tenra; então, a mão do SENHOR será
notória aos seus servos, e ele se indignará contra os seus
inimigos. Porque eis que o SENHOR virá em fogo; e os seus
carros, como um torvelinho, para tornar a sua ira em furor
e a sua repreensão, em chamas de fogo. Porque, com fogo e
com a sua espada, entrará o SENHOR em juízo com toda a
carne; e os mortos do SENHOR serão multiplicados.... porque
conheço as suas obras e os seus pensamentos! O tempo vem,
em que ajuntarei todas as nações e línguas; e virão e verão
a minha glória. E porei entre eles um sinal e os que deles
escaparem enviarei às nações, a Társis, Pul e Lude,
flecheiros, a Tubal e Javã, até às ilhas de mais longe que
não ouviram a minha fama, nem viram a minha glória; e
anunciarão a minha glória entre as nações. E trarão todos
os vossos irmãos, dentre todas as nações, por presente ao
SENHOR, sobre cavalos, e em carros, e em liteiras, e sobre
mulas, e sobre dromedários, ao meu santo monte, a
Jerusalém, diz o SENHOR, como quando os filhos de Israel
trazem as suas ofertas em vasos limpos à Casa do SENHOR. E
também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para
levitas, diz o SENHOR. Porque, como os céus novos e a terra
nova que hei de fazer estarão diante da minha face, diz o
SENHOR, assim há de estar a vossa posteridade e o vosso
nome. E será que, desde uma Festa da Lua Nova até à outra e
desde um sábado até ao outro, virá toda a carne a adorar
perante mim, diz o SENHOR" (Is 66:12-23).
E agora consideremos por um momento o efeito prático do
jubileu. "E, quando venderdes alguma coisa ao vosso próximo
ou a comprardes da mão do vosso próximo, ninguém oprima a
seu irmão. Conforme o número dos anos desde o jubileu,
compraras ao teu próximo; e, conforme o número dos anos das
novidades, ele venderá a ti". A escala de preços devia ser
regulada pelo jubileu. Se esse glorioso acontecimento
estava perto, o preço era baixo; se estava longe, o preço
era elevado. Todos os contratos humanos quanto à terra eram
anulados no momento em que se ouvia a trombeta do jubileu,
porque a terra do Senhor; e o jubileu repunha tudo na sua
condição normal.
Isto nos ensina uma admirável lição. Se os nossos corações
acalentam continuamente a esperança da vinda do Senhor,
consideraremos como fúteis todas as coisas terrestres. É
moralmente impossível estarmos à espera do Filho de Deus
dos céus sem sermos desligados das coisas deste mundo.
"Seja a vossa equidade notória a todos os homens. Perto
está o Senhor" (Fp 4:5). Uma pessoa pode aceitar "a
doutrina do milênio", como é chamada, ou a doutrina da
"segunda vinda" e continuar a ser mundana; porém aquele que
vive na expectativa do aparecimento de Cristo deve separar-
se do que será julgado e destruído quando Ele vier. Não se
trata da brevidade e incerteza da vida humana, tão certas;
nem do caráter passageiro e insatisfatório das coisas
temporais, infelizmente certos. Mas de alguma coisa mais
poderosa e de maior influência do que qualquer ou todas
essas coisas. E simplesmente isto: "O Senhor está perto.
Que os nossos corações sejam impulsionados e a nossa
conduta influenciada por esta preciosa e santificadora
verdade!

— CAPÍTULO 26 —

O GOVERNO DE DEUS SOBRE ISRAEL

Este capítulo requer algumas breves explicações. Contém uma


narração solene e tocante de bênçãos ligado à obediência,
por um lado, e das consequências terríveis da
desobediência, por outro. Tivesse Israel andado em
obediência e teria sido invencível. "Também darei paz na
terra; e dormireis seguros, e não haverá quem vos espante;
e farei cessar os animais nocivos da terra, e pela vossa
terra não passará espada. E perseguireis os vossos
inimigos, e cairão à espada diante de vós. Cinco de vós
perseguirão um cento, e cem de vós perseguirão dez mil; e
os vossos inimigos cairão à espada diante de vós. E para
vós olharei, e vos farei frutificar, e vos multiplicarei, e
confirmarei o meu concerto convosco. E comereis o depósito
velho, depois de envelhecido; e tirareis fora o velho, por
causa do novo. E porei o meu tabernáculo no meio de vós e a
minha alma de vós não se enfadará. E andarei no meio de
vós, e eu vos serei por Deus, e vós me sereis por povo. Eu
sou o SENHOR vosso Deus, que vos tirei da terra dos
egípcios, para que não fósseis seus escravos; e quebrei os
timões do vosso jugo e vos fiz andar direitos" (versículos
6-13).
A presença de Deus deveria ser sempre o seu escudo e
broquel. Nenhuma arma forjada contra eles poderia
prosperar. Mas a presença divina só podia ser desfrutada
por um povo obediente. O Senhor não podia sancionar com a
Sua presença a desobediência ou a iniquidade. As nações
incircuncisas em redor deles podiam contar com a sua
valentia e recursos militares. Israel só tinha que contar
com o braço do Senhor, e esse braço nunca poderia ser
estendido para proteger a impiedade ou desobediência. A sua
força estava em andar com Deus no espírito de dependência e
obediência. Desde que assim andassem havia uma muralha de
fogo em redor deles para os proteger contra todo o inimigo
e todo o perigo.
Mas, infelizmente, Israel falhou completamente. Não
obstante o quadro solene e espantoso posto diante dos seus
olhos, em versículos 14 a 33 deste capítulo, eles deixaram
o Senhor e serviam outros deuses, e assim trouxeram sobre
si mesmos os dolorosos juízos com que haviam sido ameaçados
neste capítulo, cuja simples memória é bastante para fazer
um zunido nos ouvidos. Estão sofrendo neste próprio momento
sob o peso destes juízos. Dispersos e espoliados,
arruinados e proscritos, são monumentos da justiça
infalível e verdadeira do Senhor. Dão a todas as nações da
terra uma lição tocante sobre o assunto do governo moral de
Deus—uma lição que estas nações fariam bem em estudar
atentamente, e que os nossos próprios corações deveriam
ponderar também.
Estamos sempre prontos a confundir duas coisas que estão
claramente assinaladas na Palavra de Deus, a saber: O
governo de Deus e a graça de Deus. Esta confusão conduz a
maus resultados. Enfraquece o sentimento da dignidade e
solenidade do governo e da pureza, plenitude e elevação da
graça. E muito verdade que Deus reserva no Seu governo o
direito soberano de agir em paciência, longanimidade e
misericórdia; mas o exercício destes atributos, em relação
com o Seu trono de governo, nunca deve ser confundido com
os atos incondicionais de pura e absoluta graça.
O capítulo que temos perante nós é uma exposição do governo
divino e contudo encontramos cláusulas como as seguintes:
"Então, confessarão a sua iniquidade, e a iniquidade de
seus pais, com as suas transgressões, com que transgrediram
contra mim; como também confessarão que, por terem
contrariamente para comigo, eu também andei com eles
contrariamente e os fiz entrar na terra dos seus inimigos;
se, então, o seu coração incircunciso se humilhar, e então
tomarem por bem o castigo da sua iniquidade, também eu me
lembrarei do meu concerto com Jacó, e também do meu
concerto com Isaque, e também do meu concerto com Abraão me
lembrarei. E da terra me lembrarei; e a terra será
desamparada por eles e folgará nos seus sábados, sendo
assolada por causa deles; e tomarão por bem o castigo da
sua iniquidade, em razão mesmo de que rejeitaram os meus
juízos e a sua alma se enfastiou dos meus estatutos. E,
demais disto também, estando eles na terra dos seus
inimigos, não os rejeitarei, nem me enfadarei deles, para
consumi-los e invalidar o meu concerto com eles, porque eu
sou o SENHOR, seu Deus. Antes, por amor deles, me lembrarei
do concerto com os seus antepassados, que tirei da terra do
Egito perante os olhos das nações, para lhes ser por Deus.
Eu sou o SENHOR" (versículos 40-45).
Esta passagem apresenta-nos Deus governando e respondendo
em paciente misericórdia aos mais fracos suspiros de um
coração quebrantado e penitente. A história dos juízes e
reis oferece numerosos exemplos do exercício deste bendito
atributo do governo divino. Repetidas vezes, a alma do
Senhor foi afligida por Israel (Jz 10:16) e lhes enviou
libertador após libertador, até que, por fim, não havia
mais esperança, e os justos direitos do Seu trono exigiram
a sua expulsão da terra que eram totalmente incapazes de
possuir.

A Graça de Deus para com Israel


Tudo isto é governo. Porém, dentro em pouco, Israel entrará
de posse da terra de Canaã em virtude da graça imutável —
graça exercida em justiça divina pelo sangue da cruz. Não
será pelas obras da lei; nem tão-pouco pelas instituições
de uma economia evanescente, mas por aquela graça que
"reina pela justiça em nosso Senhor Jesus Cristo". Pelo que
nunca mais serão lançados fora da sua possessão. Nenhum
inimigo jamais os molestará. Gozarão tranquilo repouso
protegidos pelo escudo do favor do Senhor. O seu título de
posse será de conformidade com a estabilidade eterna da
graça divina e a eficácia do sangue do concerto eterno.
Serão salvos com uma "eterna salvação" (Is 45-17).
Que o Espírito de Deus nos conduza a uma compreensão mais
profunda da verdade divina e nos conceda uma maior
capacidade para julgar as coisas que diferem, e manejar bem
a Palavra da Verdade! (2Tm2:15).

— CAPÍTULO 27 —

A EXPIAÇÃO:
A MESMA MEDIDA PARA TODOS

A parte final do nosso livro trata do "voto particular" ou


ato voluntário mediante o qual uma pessoa se consagrava a
si própria ou a sua propriedade a Deus.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de
Israel, e dize-lhes: Quando alguém fizer particular voto,
segundo a tua avaliação serão as pessoas ao SENHOR. Será a
tua avaliação... segundo o ciclo do santuário".
Ora, no caso de uma pessoa que se consagrava a si própria
ou o seu animal, a sua casa ou o seu campo ao Senhor, era
evidentemente uma questão de capacidade ou valor; e, por
isso, havia um certo sistema de avaliação, segundo a idade.
Moisés, como representante dos direitos de Deus, era
convidado a avaliar, em cada caso, segundo o padrão do
santuário. Se um homem decide fazer um voto tem de ser
avaliado pelo padrão da justiça; e, além disso, em todos os
casos, nós temos de reconhecer a diferença entre capacidade
e o título. Em Êxodo 30:15 lemos: "O rico não aumentará, e
o pobre não diminuirá da metade do ciclo, quando derem
oferta ao SENHOR, para fazer expiação por vossas almas". No
caso da expiação todos estão no mesmo nível. Assim terá de
ser sempre. Ricos e pobres, cultos e ignorantes, velhos e
novos, todos têm a mesma designação. "Não há diferença".
Todos subsistem igualmente sobre o valor ilimitado do
sangue de Cristo. Pode haver uma grande diferença quanto à
capacidade, mas quanto ao título não há nenhuma. Pode haver
diferença enquanto ao conhecimento, dons e frutos, mas
quanto ao título não existe nenhuma. O renovo e a árvore, o
bebê e o pai, o convertido de ontem e o crente maduro,
estão todos sobre o mesmo terreno. "O rico não aumentará, e
o pobre não diminuirá". Não se podia dar mais e não podia
aceitar-se menos. "Temos ousadia para entrar no santuário
pelo sangue de Jesus". Este é o título que nos dá entrada
ali. Uma vez dentro, a nossa capacidade para adorar
dependerá da nossa energia espiritual. Cristo é o nosso
título: O Espírito Santo a nossa capacidade. O ego nada tem
que ver com um ou com o outro. Que graça perfeita! Entramos
pelo sangue de Jesus, e gozamos pelo Espírito Santo do que
ali encontramos. O sangue de Jesus abre a porta; o Espírito
Santo guia-nos pela casa. O sangue de Jesus abre o cofre; o
Espírito Santo mostra-nos o seu precioso conteúdo. O sangue
de Jesus dá-nos o cofre; o Espírito Santo torna-nos capazes
de apreciar as suas raras e valiosas joias.

O Serviço: A Medida é segundo a Capacidade de Cada Um


Mas em Levítico 27 trata-se inteiramente de uma questão de
habilidade, capacidade ou valor. Moisés dispunha de um
certo padrão abaixo do qual não era possível descer. Tinha
uma certa regra da qual não lhe era possível afastar-se. Se
alguém podia alcançá-la, muito bem; caso contrário ele
tinha de deliberar segundo o resultado.
Que era, pois, necessário fazer a respeito da pessoa que
não podia elevar-se à altura dos direitos apresentados pelo
representante da justiça divina? Escutai a consoladora
resposta. "Mas, se for mais pobre do que a tua avaliação,
então, apresentar-se-á diante do sacerdote, para que o
sacerdote o avalie; conforme o que alcançar a mão do que
fez o voto, o avaliará o sacerdote" (versículo 8). Por
outras palavras, se se trata dos esforços do homem para
satisfazer as exigências da justiça, então tem de
satisfazê-las. Mas, por outra parte, se sente é
inteiramente incapaz de satisfazer essas exigências, só tem
de recorrer à graça, que o receberá tal qual ele é. Moisés
é o representante dos direitos da justiça divina. O
sacerdote é o expoente dos recursos da graça divina. O
pobre que era incapaz de permanecer diante de Moisés caía
nos braços do sacerdote. Assim é sempre. Se não podemos
"cavar", podemos "pedir"; e pomo-nos diretamente no lugar
de um mendigo; já não se trata de uma questão do que somos
capazes de alcançar, mas do que Deus tem prazer em nos dar.
"A graça será a coroa de toda a obra de Deus pelos séculos
dos séculos". Quão bem-aventurado é ser-se devedor à graça!
Que dita receber quando Deus é glorificado em dar! Quando
se trata do homem, é infinitamente melhor cavar do que
pedir ; mas quando se trata de Deus é precisamente o
contrário.

A Conclusão Concernente a Israel


Devo acrescentar que este capítulo se refere, segundo o
nosso parecer, de um modo especial à nação de Israel. Está
intimamente ligado com os dois capítulos precedentes.
Israel fez "um voto singular" ao pé do monte Horebe; porém
foi de todo incapaz de cumprir as exigências da lei — eram
muito mais pobres do que "a avaliação de Moisés". Mas,
bendito seja Deus, serão introduzidos sob os ricos recursos
da graça divina. Tendo reconhecido a sua total incapacidade
para "cavar" a terra, não terão vergonha de "pedir"; e, por
isso, experimentarão a imensa graça de depender da
misericórdia soberana do Senhor, que se estende, como uma
cadeia de ouro, "desde eternidade a eternidade". E bom ser
pobre, quando o conhecimento da nossa pobreza serve para
desenrolar à nossa vista as riquezas inexauríveis da graça
divina. Essa graça não se nega nunca a favorecer o
desvalido. Nunca declara ninguém pobre demais. Pode
satisfazer as maiores necessidades humanas; e ser
glorificada em as satisfazer. Isto é verdade em todos os
casos. É verdade a respeito de todo o pecador
individualmente; e é verdade a respeito de Israel, que,
tendo sido avaliado pelo legislador, foi encontrado "mais
pobre do que a sua avaliação". A graça é o único recurso
para todos. E a base da nossa salvação; a base de uma vida
de piedade prática; e a base da nossa esperança imorredoura
que nos anima no meio das provas e lutas deste mundo de
pecado. Que tenhamos um sentimento mais profundo da graça e
um desejo mais ardente da glória!
Terminamos aqui as nossas meditações sobre este Livro tão
profundo e precioso. Se Deus se servir das páginas
precedentes para despertar interesse por esta parte
inspirada da Escritura que tem sido tão negligenciada pela
Igreja, em todos os tempos, não terão sido escritas em vão.
CAPÍTULOS 1 e 2

INTRODUÇÃO

Iniciamos agora o estudo da quarta divisão do Pentateuco, ou os cinco livros de


Moisés; e teremos ocasião de ver como a característica essencial deste livro é
tão distinta como a de cada um dos três livros que já ocuparam a nossa
atenção.
No livro de Gênesis, depois do relato da criação, do dilúvio e da dispersão de
Babel, vemos como Deus elege a semente de Abraão.
No livro de Êxodo temos a redenção.
O livro de Levítico fala-nos do culto sacerdotal e da comunhão.
Em Números temos a marcha e a luta do deserto. Tais são os temas principais
destas porções preciosas de inspiração, enquanto que, como podia supor-se,
são introduzidos colateralmente muitos outros pontos do maior interesse. O
Senhor, em sua grande misericórdia, guiou-nos no estudo de Gênesis, Êxodo e
Levítico; e podemos contar com Ele para nos guiar no exame do livro de
Números. Que o Espírito Santo dirija os pensamentos e a pena a fim de que
nenhum conceito seja posto por escrito que não esteja em rigoroso acordo com
a Sua santa mente! Que cada página e cada parágrafo leve o selo da Sua
aprovação e seja ao mesmo tempo conducente à Sua glória e de proveito
duradouro do leitor!
"Falou mais o SENHOR a Moisés, no deserto do Sinai, na tenda da
congregação, no primeiro dia do segundo mês, no segundo ano da sua saída da
terra do Egito, dizendo: Tomai a soma de toda a congregação dos filhos de
Israel, segundo as suas gerações, segundo a casa de seus pais, conforme o
número de todo varão, cabeça por cabeça; da idade de vinte anos e para cima,
todos os que saem à guerra em Israel, a estes contareis... tu e Arão" (capítulo
1:1-3).
Aqui nos encontramos imediatamente "no deserto", onde só devem ser tomados
em conta os que podem sair "à guerra". Isto é expressamente declarado. No
livro de Gênesis os descendentes de Israel estavam ainda em seu pai Abraão.
No livro de Êxodo estavam junto aos fornos de tijolo do Egito. No Levítico
estavam reunidos em redor do tabernáculo da congregação. Em Números são
vistos no deserto. Ou, também, em pleno acordo com o que acabamos de
expor, e em sua confirmação, em Gênesis ouvimos a chamada de Deus em
eleição; em Êxodo contemplamos o sangue do Cordeiro derramado para
redenção; em Levítico estamos prática e exclusivamente ocupados com o culto
e serviço do santuário. Porém, apenas acabamos de abrir o livro de Números,
lemos de homens de guerra, exércitos, bandeiras, acampamentos e toques de
trombetas em som de alarme.
Tudo isto é muito significativo e nos mostra a importância e o interesse especial
para o cristão do livro que vamos estudar. Cada livro da Bíblia, e cada parte do
cânone inspirado tem o seu próprio lugar e determinado objetivo. Cada livro
tem, por assim dizer, na estante o lugar que lhe assinalou o seu divino Autor.
Não devemos alimentar, nem por um momento, a ideia de estabelecer
comparação entre o seu valor intrínseco e sua importância. Tudo é divino e,
portanto, perfeito. O leitor cristão assim crê plenamente e de todo o coração.
Põe reverentemente o seu selo sobre a verdade da inspiração plenária da
Sagrada Escritura — de toda a Escritura, e do Pentateuco entre todas; e de
nenhum modo se deixa influenciar sobre este ponto pelos ataques ousados e
ímpios dos infiéis da antiguidade, da idade média ou dos tempos modernos. Os
infiéis e racionalistas podem intrigar com os seus argumentos profanos. Podem
mostrar a sua inimizade contra o Livro e o seu Autor; mas o cristão piedoso
descansa, apesar de tudo, na simples e feliz crença de que "toda Escritura é
divinamente inspirada" (2 Tm 3:16).
Porém, apesar de rejeitarmos inteiramente a ideia de qualquer comparação
entre a autoridade e o valor dos preciosos livros da Bíblia, podemos comparar,
com grande proveito, o seu conteúdo, o objetivo e intento. E quanto mais
profundamente meditamos sobre estes pontos, tanto mais surpreendidos
ficamos com a perfeita beleza, sabedoria infinita e maravilhosa precisão do livro
como um todo e de cada uma das suas diferentes partes.
O autor inspirado nunca se afasta do objetivo direto do livro, qualquer que possa
ser esse objetivo. Nunca se encontrará em qualquer livro da Bíblia coisa alguma
que não esteja na mais perfeita harmonia com a intenção principal daquele livro.
Se quisermos provar e exemplificar esta afirmação teremos de recorrer a todo o
cânone das Sagradas Escrituras, e por isso não o intentaremos. O cristão
inteligente não precisa dessa prova, por mais interessado que esteja na
ilustração. Basta-lhe o fato importante que o Livro, no seu conjunto, e cada uma
das suas partes, é de Deus; e o seu coração descansa na conclusão de que
nesse conjunto e em cada uma dessas partes não há nem um jota nem um til
que não seja digno do Autor divino.

A Divina Inspiração das Escrituras


Ouçamos as palavras de alguém que diz estar "profundamente convencido da
inspiração divina das Escrituras" que Deus nos deu e certificado desta
convicção por meio de descobertas diárias e crescentes da sua plenitude,
profundidade e perfeição e cada vez mais certo, pela graça, da admirável
perfeição de cada parte e da maravilhosa conexão do conjunto. "As Escrituras",
diz esse autor, "têm uma origem divina, e um poder divino presidiu à sua
composição; daí o seu alcance infinito e a impossibilidade de separar qualquer
parte da sua relação com o conjunto, porque Deus é o centro vivo de onde tudo
emana; um só Cristo é o centro vivo em redor do qual se agrupam todas as suas
verdades e ao qual todas se referem, ainda que em várias fases de glória; um
só Espírito é a seiva divina que leva o seu poder da sua origem em Deus até às
mais pequenas ramificações da verdade que tudo une, testificando da glória,
graça e verdade d Aquele que Deus apresenta como objeto e centro, Cabeça de
tudo que está em relação com Ele próprio, Aquele que é, ao mesmo tempo,
Deus sobre todos, bendito eternamente.
Quanto mais seguimos essa seiva na direção do seu centro — a partir das mais
afastadas ramificações desta revelação na mente de Deus, mediante as quais
fomos alcançados quando estávamos longe de onde volvemos a vista para a
extensão e diversidade, tanto mais descobrimos da sua infinidade e nossa
própria debilidade de compreensão. Havemos aprendido, bendito seja Deus,
que o amor, que é a sua origem, se encontra em pura perfeição e plena
revelação nessas manifestações mediante as quais nos alcançou no nosso
estado de ruína. O mesmo Deus, que é perfeito em amor, está em tudo isto.
Mas as revelações de sabedoria divina nos desígnios em que Deus Se revelou
a Si mesmo permanecem a nossos olhos como um assunto de investigação, no
qual cada nova descoberta, ao passo que aumenta a nossa inteligência
espiritual, faz com que a infinidade do conjunto e o modo como excede todos os
nossos pensamentos sejam mais e mais evidentes."
É verdadeiramente consolador transcrever tais linhas da pena de um que, por
espaço de quarenta anos, tem estudado profundamente a Escritura. São
palavras de um valor inefável, numa época em que tantos estão dispostos a
tratar com desdém o sagrado volume. Não é que nós tenhamos, de modo
algum, de fazer depender do testemunho humano as nossas conclusões acerca
da origem divina da Bíblia, visto que estas conclusões descansam sobre um
fundamento que a própria Bíblia nos oferece.
A palavra de Deus, assim como a Sua obra, fala por si mesma; recomenda-se
por si mesma; fala ao coração; alcança as raízes morais do nosso ser, penetra
as mais íntimas profundidades da alma; mostra-nos o que somos; fala-nos
como nenhum outro livro seria capaz de o fazer; e assim como a mulher de
Sicar tirou a conclusão de que seguramente Jesus era o Cristo porque ele lhe
havia dito tudo que ela havia feito, assim nós podemos dizer a respeito da
Bíblia: Ela diz-nos tudo que temos feito, não é esta a Palavra de Deus? Sem
dúvida, é só pelo ensino do Espírito que podemos discernir e apreciar a
evidência e as credenciais com que a própria Escritura Sagrada se apresenta
perante nós; contudo, ela fala por si, e não necessita de testemunho humano
para a tornar preciosa à alma. Não devemos basear a nossa fé na Bíblia sobre o
testemunho favorável do homem, assim como não devemos pensar que ela é
abalada pelo testemunho contrário que ele possa dar dela.
Tem sido em todos os tempos da maior importância, e especialmente nos
nossos dias, ter o coração e o espírito firmados na grande verdade da
autoridade divina da Sagrada Escritura—a sua inspiração plenária -, na sua
completa suficiência para todos os fins e todas as pessoas, em todas as
épocas. Existem em toda a parte duas influências hostis: por um lado a
infidelidade e por outro a superstição. A primeira nega que Deus nos haja falado
pela Sua Palavra; a última admite que Ele tem falado, mas nega que podemos
compreender o que Ele diz, a não ser por interpretação da Igreja.
Ora, muitos, ao mesmo tempo que recuam com horror ante a impiedade e a
audácia da infidelidade, não veem que a superstição os priva também
completamente das Escrituras. Porque, perguntamos, em que consiste a
diferença em negar que Deus tem falado e negar que podemos compreender o
que Ele diz? Em qualquer dos casos, não somos privados da Palavra de Deus?-
Sem dúvida alguma. Se Deus não pode fazer-me compreender o que Ele
diz—se não pode dar-me a certeza de que é Ele Próprio Quem fala, não estou
em melhores circunstâncias do que se Ele não tivesse falado. Se a Palavra de
Deus não é suficiente sem a interpretação humana, então não pode ser de
modo algum a Palavra de Deus. Temos de admitir uma coisa ou outra, isto é,
que Deus não tem de modo nenhum falado, ou então, se tem falado, que a Sua
Palavra é perfeita. Não há lugar para indiferença. Deus deu-nos uma
revelação? A incredulidade diz "Não". A superstição diz "Sim, mas não é
possível compreendê-la sem autoridade humana." Assim somos, tanto num
caso como no outro, privados do tesouro inestimável da Palavra de Deus; e
deste modo, também, a infidelidade e a superstição, tão diferentes na
aparência, convergem no ponto de nos privarem da revelação divina.
Mas graças a Deus que nos deu uma revelação. Deus falou e a Sua Palavra
pode chegar ao coração e também ao entendimento. Deus pode dar a certeza
de ser Ele quem fala, e nós não precisamos de nenhuma autoridade de
intervenção humana. Não necessitamos de nenhum pavio para nos ajudar a ver
que o sol resplandece. Os raios desse glorioso astro são suficientes sem um tal
miserável complemento. Tudo que precisamos é estar ao sol para sermos
convencidos de que o sol brilha. Se nos retiramos para debaixo de uma
abóbada ou dentro de um túnel, não sentiremos a sua influencia; assim
acontece precisamente com respeito à Escritura: se nos colocarmos sob as
influências glaciais e tenebrosas da superstição ou da infidelidade, não
experimentaremos o poder fecundante e esclarecedor desta revelação divina.

A Genealogia
Depois destas breves considerações sobre o conjunto do volume divino, vamos
prosseguir agora com os nossos comentários sobre a parte que temos perante
nós.
Em capítulo 1 temos a declaração da genealogia; e em capítulo 2 o
reconhecimento da bandeira. "Então, tomaram Moisés e Arão a estes homens,
que foram declarados pelos seus nomes, e ajuntaram toda a congregação no
primeiro dia do segundo mês, e declararam a sua descendência segundo as
suas famílias, segundo a casa de seus pais, pelo número dos nomes dos de
vinte anos para cima, cabeça por cabeça; como o SENHOR ordenara a Moisés,
assim os contou, no deserto de Sinai" (Nm 1:17-19).
Há nisto alguma palavra para nós? Apresenta alguma lição espiritual para a
nossa inteligência? Certamente. Em primeiro lugar, esta passagem sugere ao
leitor esta importante pergunta: Posso eu declarar a minha descendência? Há
grandes motivos para recear que existem centenas, senão milhares, de cristãos
professos que não são capazes de fazer esta declaração. Não podem dizer
clara e decididamente, "agora somos filhos de Deus" (1 Jo 3:2). "Porque todos
sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus". "E, se sois de Cristo, então, sois
descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa" (Gl 3:26,29).
"Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de
Deus... O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus" (Rm 8:14-16).
Esta é a genealogia do cristão e é seu privilégio poder declará-la. E nascido de
cima, nascido de novo, nascido da água e do Espírito, quer dizer, pela Palavra e
pelo Espírito Santo, (Compare Jo 3;5; Tg 1:18; 1 Pe 1:23; Ef 5:26). O crente faz
remontar a sua descendência a um Cristo ressuscitado na glória. Esta é a
descendência do cristão. Tanto quanto interessa à nossa descendência natural,
se nos remontamos à sua origem, e então a declaramos lealmente, temos de
ver e admitir que procedemos de uma linhagem arruinada. A nossa família está
decaída. Os nossos bens estão perdidos; o nosso próprio sangue está
manchado; estamos irremediavelmente arruinados; jamais poderemos
recuperar a nossa posição original; o nosso primeiro estado e a herança que lhe
pertencia estão irreparavelmente perdidos. Um homem poderá traçar a sua
linha genealógica através de uma raça de nobres, de príncipes ou de reis; mas
se quiser declarar francamente a sua descendência não poderá deter-se sem
chegar a um chefe decaído, arruinado, proscrito.
Devemos chegar à origem de uma coisa para sabermos o que ela realmente é.
É assim que Deus vê as coisas e as julga, e nós devemos pensar como Ele, se
queremos pensar retamente. O Seu juízo dos homens e das coisas tem de
predominar para sempre. O juízo do homem é apenas efêmero, dura apenas
um dia; e por isso, segundo a apreciação da fé e do bom senso, pouco importa
ser-se julgado por algum juízo humano (1 Co 4:3). Oh, quão pouco! Prouvera a
Deus que pudéssemos sentir mais profundamente quão pouca importância tem
sermos julgados pelo juízo humano! Possamos nós andar diariamente na
verdadeira compreensão da sua insignificância! Isso nos daria um
engrandecimento calmo e uma santa dignidade tais que nos colocariam acima
da influência da cena através da qual estamos passando. O que é a posição
nesta vida? Que importância pode ligar-se a uma genealogia que,
honestamente traçada e fielmente declarada, deriva de um tronco arruinado?
Um homem só pode orgulhar-se do seu nascimento se não tem em contra a sua
verdadeira origem: é "nascido em pecado e concebido em iniquidade". Tal é a
origem do homem — tal é o seu nascimento. Quem poderá vangloriar-se de um
tal nascimento, de semelhante origem? Quem, senão aquele cujo entendimento
o deus deste século cegou?
Mas quão diferente é com o cristão! A sua linguagem é celestial. A sua árvore
genealógica tem as suas raízes no solo da nova criação. A morte jamais poderá
partir a linha, visto que é formada na ressurreição. Quanto a isto é conveniente
estar-se inteirado. É da maior importância que o leitor esteja completamente
inteirado sobre este ponto fundamental. Pode ver facilmente por este capítulo
primeiro de Números quão essencial era que cada membro da congregação de
Israel pudesse declarar a sua descendência. A incerteza quanto a este ponto
teria sido funesta; teria produzido irremediável confusão. Dificilmente podemos
imaginar um israelita que, chamado a declarar a sua genealogia, se
expressasse da maneira duvidosa adotada por muitos cristãos nestes dias. Não
podemos imaginar que ele dissesse: "Bem, não tenho a certeza. As vezes
alimento a esperança que pertenço ao tronco de Israel; porém em certas
ocasiões receio muito não pertencer à congregação do SENHOR. Estou em
absoluta incerteza e em trevas." Podemos conceber uma tal linguagem?-
Decerto que não. Muito menos podemos imaginar que alguém mantivesse a
ideia monstruosa de que ninguém podia, de modo algum, estar certo de ser ou
não um verdadeiro israelita antes do dia do juízo.
Podemos estar certos de que todas essas ideias e argumentos— esses
temores, dúvidas e interrogações — eram desconhecidos de todo israelita.
Cada membro da congregação era convidado a declarar a sua descendência
antes de ocupar o seu posto nas fileiras como homem de guerra. Cada um
podia dizer como Saulo de Tarso, "circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de
Israel" (F1 3:5). Tudo estava determinado e claro para a marcha e o combate do
deserto.
Ora, não será lícito perguntar: "Se um judeu podia estar seguro da sua
genealogia, porque não poderá um cristão estar certo da sua?-" O leitor deve
examinar esta questão, e se faz parte dessa numerosa classe de pessoas que
nunca podem chegar à bendita segurança da sua linguagem celestial, do seu
nascimento espiritual, rogamos-lhe que se detenha, e nos deixe debater este
importante ponto. Talvez esteja disposto a perguntar:" Como posso estar certo
de que sou real e verdadeiramente um filho de Deus, membro de Cristo,
nascido da Palavra e do Espírito de Deus? Fosse o mundo meu, e eu o daria
para ter a certeza desta importante questão."
Bem, desejamos sinceramente auxiliar o leitor neste assunto. De fato um dos
objetivos que nos propusemos em redigir estes "Comentários" é o de auxiliar as
almas ansiosas, respondendo às suas perguntas, na medida em que o Senhor
nos dá capacidade para o fazer, resolvendo as suas dificuldades e tirando do
seu caminho as pedras de tropeço.
Antes do mais, vamos apontar uma característica especial que pertence a todos
os filhos de Deus, sem exceção. E um traço muito simples, mas muito precioso.
Se não o possuímos, em maior ou menor grau, é prova que não somos da raça
celestial; mas se o possuímos, é evidente que somos dessa raça, e podemos,
portanto, sem nenhuma dificuldade ou reserva, "declarar a nossa
descendência". Que característica é essa? Uma grande característica de família
Nosso Senhor Jesus Cristo dá-nos a resposta. Diz-nos que "A sabedoria é
justificada por todos os seus filhos" (Lc 7:35; Mt 11:19). Todos os filhos da
sabedoria, desde os dias de Abel até ao momento atual, têm sido distinguidos
por esta grande característica de família, sem uma única exceção. Todos os
filhos de Deus — todos os filhos da Sabedoria—têm sempre exibido, de certo
modo, este traço moral—têm justificado a Deus.
Justificar a Deus
Que o leitor pese esta declaração. Pode ser que ache que é difícil compreender
o que significa justificar a Deus; mas uma ou duas passagens da Escritura
tornarão, esperamos, isto muito claro.
Em Lucas 7 lemos que "todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido
batizados com o batismo de João, justificaram a Deus. Mas os fariseus e os
doutores da lei rejeitaram o conselho de Deus contra si mesmos, não tendo sido
batizados por ele" (Lc 7:29-30). Aqui temos as duas gerações colocadas, por
assim dizer, face a face. Os publicanos justificavam a Deus e condenavam-se a
si próprios. Os fariseus justificavam-se a si mesmos e julgavam a Deus. Os
primeiros submetiam-se ao batismo de João — o batismo do arrependimento.
Os últimos recusavam esse batismo — recusavam arrepender-se, humilhar-se e
condenarem-se a si mesmos.
Aqui temos, pois, as duas grandes classes em que se tem dividido toda a família
humana, desde os dias de Abel e Caim até aos nossos dias; e aqui temos
também o modo mais simples de provar a nossa linhagem". Já tomamos o lugar
de condenação própria? Já nos curvamos com verdadeiro arrependimento
perante Deus?- Isto é o que justifica a Deus. As duas coisas andam
juntas—sim, são uma e a mesma coisa. O homem que se condena a si mesmo
justifica a Deus, e o homem que justifica a Deus condena-se a si próprio. Por
outro lado, o homem que se justifica a si mesmo julga a Deus; e o que julga a
Deus justifica-se a si mesmo.
Assim acontece em todos os casos. E note-se que no próprio momento em que
nos colocamos no terreno de arrependimento e própria condenação, Deus toma
o lugar de Justificador. Deus justifica sempre aqueles que se condenam a si
mesmos. Todos os Seus filhos O justificam, e Ele justifica a todos os Seus
filhos. No momento em que Davi disse: "Pequei contra o SENHOR", foi-lhe
respondido, "também o SENHOR traspassou o teu pecado" (2 Sm 12:13).0
perdão divino segue com a mais intensa rapidez a confissão humana.
Por isso segue-se que nada pode ser mais insensato do que alguém
justificar-se a si mesmo, visto que é necessário que Deus seja justificado em
Suas palavras e ganhe a contenda quando é julgado (compare SI 51:4; Rm 3:4).
Deus tem de ter a vantagem no fim e então se verá em sua verdadeira luz o que
vale toda a justificação pessoal. Portanto, o mais sensato é condenarmo-nos a
nós próprios. Isto é o que todos os filhos da sabedoria fazem. Nada assinala
melhor o caráter dos verdadeiros membros da família da sabedoria como o
hábito e o espírito de se julgarem a si mesmos. Ao passo que, por outro lado,
nada distingue tanto os que não são desta família como o espírito de própria
justificação.
Estas coisas são dignas da mais séria reflexão. O homem natural culpa tudo e
todas as coisas—qualquer e todos exceto a si mesmo. Porém, quando a graça
opera, existe prontidão em julgar o ego, e em tomar um lugar humilde. Este é o
verdadeiro segredo de bênção e paz. Todos os filhos de Deus se têm mantido
sobre esse terreno bendito; têm manifestado essa bela característica e
alcançado esse importante resultado. Não encontramos tanto como uma
simples exceção em toda a história da ditosa família da sabedoria; e podemos
dizer com toda a segurança que se o leitor tem sido levado verdadeira e
realmente a reconhecer-se como perdido — a condenar-se a si próprio—e a
ocupar o lugar do verdadeiro arrependimento, então é, verdadeiramente, um
dos filhos da sabedoria, e pode, portanto, com ousadia e decisão, "declarar a
sua descendência".
Queremos insistir neste ponto desde o princípio: é impossível qualquer pessoa
reconhecer a própria "bandeira" e tomar o seu partido a não ser que possa
"declarar a sua descendência". Em suma, é impossível tomar uma verdadeira
posição no deserto enquanto houver alguma dúvida quanto a esta grande
questão. Como poderia um israelita desse tempo ocupar o seu lugar na
assembleia—como poderia ele estar nas fileiras—e avançar pelo deserto se
não pudesse declarar distintamente a sua descendência? Teria sido impossível.
Outro tanto sucede com o cristão no tempo presente. O progresso na vida do
deserto — sucesso na luta espiritual — está fora de questão se houver qualquer
dúvida quanto à descendência espiritual. Temos de poder dizer: "Sabemos que
passamos da morte para a vida" — "Sabemos que somos de Deus." "... temos
crido e conhecido" (1 Jo 3:14; 5:19; Jo 6:69), antes que seja possível haver
verdadeiro progresso na vida e na carreira cristã.
Prezado leitor, pode declarar a tua descendência ? Isto é para você um ponto
perfeitamente estabelecido?- Está esclarecido a este respeito até ao mais
profundo da sua alma? Quando está a sós com Deus, é uma questão
perfeitamente resolvida entre Ele e você? Indague e veja. Certifica-se da
verdade. Não se apoia na mera profissão. Não diga, "sou membro desta ou
daquela igreja; tomo a ceia do Senhor; professo esta ou aquela doutrina; fui
educado na religião; levo uma vida moral; não faço mal a ninguém; leio a Bíblia
e faço as minhas orações; tenho culto doméstico; contribuo liberalmente para
obras filantrópicas e religiosas". Tudo isto pode ser inteiramente certo a respeito
do leitor, sem contudo ter uma só pulsação de vida divina, nem um só raio de
luz celestial.
Nenhuma destas coisas, nem todas juntas, podiam ser aceites como uma
declaração de descendência espiritual. É preciso o testemunho do Espírito de
que é um filho de Deus, e este testemunho acompanha sempre a fé simples do
Senhor Jesus Cristo. "Quem crê no Filho de Deus, em si mesmo tem o
testemunho" (1 Jo 5:10). Não e uma questão, de modo algum, de buscar a
evidência em seu próprio coração. Não se trata de um conhecimento baseado
em formas, sentimentos e experiências. Nada disso. Mas de uma fé verdadeira
em Cristo. É ter a vida eterna no Filho de Deus. É testemunho imperecível do
Espírito Santo. É crer em Deus segundo a Sua Palavra. "Na verdade, na
verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou
tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a
vida" (Jo 5:24).

O Combate do Cristão
Esta é a verdadeira forma de declarar a sua descendência; e pode estar certo
disto, tem que poder declará-la antes de poder sair à guerra". Não queremos
dizer que não pode ser salvo sem esta declaração. Deus nos guarde de dizer tal
coisa.
Cremos que há centenas de membros do verdadeiro Israel espiritual que não
são capazes de declarar a sua descendência. Mas perguntamos, estão acaso
em estado de ir à guerra ? São vigorosos soldados? Longe disso. Eles nem
sequer sabem o que é verdadeiro conflito; pelo contrário, as pessoas desta
classe confundem as suas dúvidas e temores, os seus momentos tristes e
incertos por verdadeiro conflito cristão. Isto é um erro muito grave; mas
infelizmente é também dos mais frequentes. E frequente justificar-se um estado
de alma baixo, triste e legalista com o argumento de conflito cristão, ao passo
que, segundo o Novo Testamento, o verdadeiro conflito cristão ou luta é travado
numa região onde as dúvidas e temores são desconhecidos.
E quando nos mantemos na luz pura da plena salvação de Deus — salvação
num Cristo ressuscitado — que podemos realmente entrar na luta que nos é
própria como cristãos. Devemos supor que as nossas lutas legítimas, a nossa
culpável incredulidade, a nossa recusa em nos submetermos à justiça de Deus,
as nossas dúvidas e argumentos, podem ser considerados como uma luta
cristã? De modo nenhum. Todas estas coisas devem ser consideradas como
um conflito com Deus; ao passo que o conflito cristão se trava contra Satanás.
"Porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais" (Ef 6:12).
Este é conflito cristão. Mas pode um tal conflito ser sustentado por aqueles que
continuamente duvidam se são cristãos ou não? Não creio. Poderíamos
imaginar um israelita em luta contra Amaleque no deserto ou com um cananeu
na terra prometida enquanto fosse incapaz de "declarar a sua descendência ou
reconhecer a sua bandeira" ? Isto seria inconcebível. Não, não; todo membro da
congregação, que podia sair à guerra, estava perfeitamente certo e seguro
desses dois pontos. Na verdade, não teria podido sair se o não estivesse.
E, enquanto tratamos do importante assunto do combate do cristão, será
conveniente chamar a atenção do leitor para três passagens das Escrituras do
Novo Testamento nas quais o conflito é apresentado sob três diferentes
aspectos, isto é, em Romanos 7:7-24; Gálatas 5:17; Efésios 6:10-17. Se o leitor
prestar atenção por um momento a estas passagens, procuraremos indicar o
caráter de cada uma.

A Nova Natureza sem o Poder do Espírito Santo (Romanos 7)


Em Romanos 7:7-24 temos o conflito de uma alma vivificada, mas não
emancipada—uma alma regenerada sob a lei. A prova de que temos perante
nós, aqui, uma alma vivificada encontra-se em expressões como estas: "...o que
faço, não o aprovo"; "...o querer está em mim"; "...segundo o homem interior,
tenho prazer na lei de Deus." Só uma alma regenerada podia falar assim. A
desaprovação do mal, a vontade de fazer, o prazer interior na lei de Deus, todas
estas coisas são sinais distintos da nova vida—os frutos preciosos da
regeneração. Nenhuma pessoa inconvertida usa verdadeiramente tal
linguagem.
Mas, por outro lado, a prova que temos perante nós nesta Escritura uma alma
que não está plenamente libertada, que não está no gozo de libertação
conhecida, nem no pleno conhecimento intimo de vitória e na possessão certa
de poder espiritual, a prova evidente de tudo isto, repetimos, temo-la em
expressões como as seguintes: "...eu sou carnal, vendido sob o pecado"; "pois o
que quero, isso não faço; mas o que aborreço, isso faço" "Miserável homem que
eu sou! Quem me livrará do corpo desta mortes" Ora, nós sabemos que o
cristão não é carnal, mas espiritual; não está "vendido sob o pecado", mas
redimido do seu poder; não é um "homem miserável" suspirando por libertação,
mas um homem feliz que sabe que está livre. Não é um escravo impotente,
incapaz de fazer o bem e sempre compelido a fazer o mal; é um homem livre,
está dotado de poder pelo Espírito Santo e pode dizer, "posso todas as coisas
naquele que me fortalece" (Fl 4:13).
Não podemos, no espaço de que dispomos, entrar numa plena exposição desta
importantíssima Escritura; limitamo-nos apenas a oferecer uma ou duas
sugestões que podem auxiliar o leitor a compreender o seu objetivo e a sua
importância.
Sabemos perfeitamente que muitos cristãos diferem bastante de opinião quanto
à interpretação deste capítulo. Alguns negam que representa o exercício de
uma alma vivificada; outros sustentam que ele demonstra as experiências
próprias de um cristão. Nós não podemos aceitar nenhuma destas conclusões.
Cremos que este capítulo mostra à nossa vista os exercícios de uma alma
verdadeiramente regenerada, mas que não tem alcançado a liberdade pelo
conhecimento da sua união com um Cristo ressuscitado e o poder do Espírito
Santo.
Centenas de cristãos encontram-se, com efeito, na situação de Romanos 7;
mas o seu próprio lugar está em Romanos 8. Quanto à sua experiência estão
debaixo da lei. Não sabem que estão selados com o Espírito Santo. Não têm
plena vitória num Cristo ressuscitado e glorificado. Têm dúvidas e temores, e
estão sempre prontos a exclamar: "Miserável homem que eu sou!" Mas um
cristão não está acaso libertado? Não está salvo? Não foi aceito no Amado?
Não foi selado com o Espírito Santo da promessa? Não está unido a Cristo?
Não deveria saber tudo isto, proclamá-lo e regozijar-se nele?
Incontestavelmente. Portanto já não está, quanto à sua posição, no capítulo
sétimo de Romanos. E seu privilégio entoar o cântico de vitória do lado celestial
do sepulcro vazio de Jesus e andar na santa liberdade com que Cristo torna o
Seu povo livre. O capítulo sétimo de Romanos não representa, de modo algum,
liberdade, mas escravidão, com exceção, em boa verdade, do próprio fim, onde
a alma pode dizer: "Dou graças a Deus". Sem dúvida, pode ser um exercício
salutar passar por tudo que é aqui pormenorizado com vivacidade e poder
maravilhoso; e, além disso, devemos confessar que preferíamos muito mais
estar honestamente em Romanos sete do que estarmos falsamente colocados
em oito. Porém tudo isto deixa inteiramente intacta a questão da própria
aplicação desta profunda e interessantíssima passagem da Escritura.

A Nova Natureza com o Poder do Espírito (Gálatas 5)


Vamos aludir, agora, por um momento, ao conflito descrito em Gálatas 5:17.
Reproduzamos a passagem. "Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o
Espírito, contra a carne; e estes opõem-se um ao outro; para que não façais o
que quereis". Esta passagem é frequentemente citada como razão da contínua
derrota, ao passo que ela contém realmente o segredo da perpétua vitória. Em
versículo 16 lemos: "Digo, porém: Andai em Espírito e não cumprireis a
concupiscência da carne". Isto torna tudo bem claro. A presença do Espírito
Santo assegura poder. Estamos certos de que Deus é mais forte do que "a
carne", e portanto onde Ele está em conflito o triunfo é seguro. E note-se
atentamente que Gálatas 5:17 não fala do conflito entre as duas naturezas, a
velha e a nova, mas sim entre o Espírito Santo e a carne. Esta é a razão por que
se acrescenta, "para que não façais o que quereis". Se o Espírito Santo não
habitasse em nós, podíamos estar certos de cumprir a concupiscência da carne;
mas, visto que Ele está em nós para conduzir a luta, não somos mais obrigados
a praticar o mal, mas estamos ditosamente aptos a fazer o bem.
Ora, é isto precisamente que marca o ponto de diferença entre Romanos
7:14-15 e Gálatas 5:17. Na primeira passagem temos a nova natureza, mas
sem o poder do Espírito habitando em nós. Na última temos não só a nova
natureza, mas também o poder do Espírito Santo. Devemos lembrar sempre
que a nova natureza no crente é dependente. Dependente do Espírito quanto ao
poder e da Palavra quanto à direção. Mas, evidentemente, onde Deus, o
Espírito Santo, está, aí deve haver poder. Ele pode ser entristecido e impedido
de manifestar-Se; mas Gálatas 5:16 ensina claramente que se andarmos em
Espírito obteremos vitória certa e constante sobre a carne. Por isso, seria um
erro muito grave citar Gálatas 5:17 como razão de uma conduta baixa e carnal.
O seu ensino tem por fim produzir o efeito contrário.

O Cristão e as Hostes Espirituais da Maldade (Efésios 6)


E agora algumas palavras sobre Efésios 6:10-17. Aqui temos o conflito entre o
cristão e as hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais. A Igreja
pertence ao céu, e deveria manter sempre uma conduta celestial e santa
conversação. Deveria ser o nosso alvo constante manter a nossa posição
celestial—pôr os pés firmemente sobre a nossa herança celestial e mantê-lo ali.
E isto que o diabo procura impedir por todos os meios possíveis, e daí o conflito
e a razão também porque temos de tomar "toda a armadura de Deus" com a
qual somente podemos resistir ao nosso poderoso inimigo espiritual.
Não é nosso propósito determo-nos em considerações sobre a armadura de
Deus, visto que temos apenas chamado a atenção do leitor para as três
passagens das Escrituras acima reproduzidas a fim de que possa ter o assunto
do conflito, em todas as suas fazes, perante a sua mente, em relação com as
primeiras linhas com que abre o livro de Números. Nada pode ser mais
interessante, nem podemos, de modo algum, apreciar bastante a importância
de estarmos elucidados quanto à verdadeira natureza e fundamento do conflito
cristão. Se saímos para a guerra sem saber por que há guerra, e num estado de
incerteza acerca da nossa "descendência", pouco progresso faremos contra o
inimigo.

A Bandeira
Porém, como tem sido acentuado, havia outra coisa tão necessária para o
homem de guerra como a declaração inequívoca da sua descendência, e essa
era o reconhecimento distinto da sua bandeira. As duas coisas eram essenciais
para a marcha e luta do deserto. Além disso, eram inseparáveis. Se um homem
não soubesse a sua descendência, não podia reconhecer a sua bandeira e
assim era lançado em desesperada confusão. Em vez de se conservarem sob a
sua bandeira e marcharem em ordem, teriam seguido pelo caminho uns dos
outros e sido atropelados mutuamente. Cada um devia conhecer o seu posto e
ocupá-lo—conhecer a sua bandeira e manter-se sob ela. Assim avançavam
juntos; progrediam, faziam o trabalho e faziam a guerra. O benjamita tinha o seu
posto, e o efraimita o seu, e nenhum devia interferir com o caminho do outro
nem cruzar-se com ele.
Era assim com todas as tribos, em todo o campo do Israel de Deus. Cada uma
tinha a sua descendência e o seu posto; e nenhuma delas dependia dos seus
próprios pensamentos: tudo era disposto por Deus. Ele deu a descendência, e
indicou a bandeira; nem tampouco havia necessidade de comparar, uns com
outros ou qualquer fundamento para inveja; cada um tinha o seu posto para
ocupar, o seu trabalho para fazer, e havia espaço bastante para todos. Havia a
maior variedade e contudo a mais perfeita unidade. "Os filhos de Israel
assentarão as suas tendas, cada um debaixo da sua bandeira, segundo as
insígnias da casa de seus pais. —E os filhos de Israel fizeram conforme tudo o
que o SENHOR ordenara a Moisés; assim, assentaram o arraial segundo as
suas bandeiras; e assim marcharam, cada qual segundo as suas gerações,
segundo a casa de seus pais" (Nm 2:2,34).
Assim, no acampamento da antiguidade, bem como agora na Igreja,
aprendemos que "Deus não é o autor de confusão".
Nada podia ser tão primorosamente disposto como os quatro acampamentos
compostos cada um de três tribos, formando um perfeito quadrado, cada lado
do qual ostentava a sua bandeira específica. "Os filhos de Israel assentarão as
suas tendas, cada um debaixo da sua bandeira, segundo as insígnias da casa
de seus pais; ao redor, defronte da tenda da congregação, assentarão as suas
tendas O Deus dos exércitos de Israel sabia como dispor as suas hostes. Seria
um grande erro supor que os guerreiros de Deus não estavam organizados
segundo o mais perfeito sistema de tática militar.
Nós podemos gloriar-nos do nosso progresso nas artes e ciências, e podemos
imaginar que o exército de Israel, comparado com o que vemos nos "tempos
modernos", apresentava um espetáculo de grosseira desordem e rústica
confusão. Mas isto é um conceito vago. Podemos estar certos que o
acampamento de Israel estava disposto e provido da maneira mais perfeita,
pela mais simples e concludente de todas as razões, a saber, que estava
disposto e abastecido pela mão de Deus. Seja-nos concedido isto, que Deus
tem feito tudo, e nós diremos, com absoluta confiança, que tudo foi feito com
perfeição.
Isto é um princípio muito simples, mas muito feliz. Naturalmente não poderá
satisfazer um céptico ou um infiel: e o que os satisfaria?
O papel de um céptico é duvidar de tudo e é sua prerrogativa não crer nada.
Mede tudo segundo a sua própria medida, e rejeita tudo aquilo que não pode
harmonizar com as suas próprias ideias. Estabelece as suas premissas com
assombroso sangue-frio, e deduz ato contínuo as conclusões. Mas se as
premissas são falsas, as conclusões também devem ser falsas. A característica
que invariavelmente acompanha as premissas de todos os cépticos,
racionalistas e infiéis, consiste sempre em excluir Deus; de onde se segue que
as suas conclusões têm que ser fatalmente falsas. Em contrapartida, o crente
humilde toma como ponto de partida o grande princípio que Deus é; e não
apenas que Deus é, mas que Se ocupa das Suas criaturas, que Se interessa
nos negócios dos homens e Se ocupa deles.
Que consolação para o crente! Porém, a incredulidade não aceita de modo
algum isto. Introduzir Deus é transtornar todos os argumentos dos cépticos,
porque todos eles se baseiam na completa exclusão de Deus.
Contudo, não escrevemos agora para combater infiéis, mas para a edificação
dos crentes, e todavia convém às vezes chamar a atenção sobre o estado de
completa corrupção de todo o sistema de infidelidade; e isto não pode ser
mostrado tão clara e forçosamente como pelo fato que todo esse sistema
descansa inteiramente sobre a exclusão de Deus. Compreendamos isto bem, e
todo o sistema desmoronar-se-á aos nossos pés. Se cremos que Deus é, então
seguramente todas as coisas devem ser encaradas em relação com Ele.
Devemos ser todas as coisas segundo o Seu ponto de vista.
Mas isto não é tudo. Se cremos que Deus é, então temos de ver que o homem
não pode julgá-Lo. Deus deve ser o Juiz do bem e do mal do que é digno de Si e
que não o é. E o mesmo acontece também a respeito da Palavra de Deus. Se é
verdade que Deus é, e que nos tem falado e dado uma revelação, então,
seguramente, essa revelação não pode ser julgada pela razão humana. Está
acima e além de tal tribunal. Imagine-se a pretensão de medir a Palavra de
Deus pelas regras dos cálculos humanos! E todavia é isto precisamente que
tem sido feito em nossos dias com o precioso livro de Números, com o qual
estamos agora ocupados e com o estudo do qual prosseguiremos, pondo de
lado a infidelidade e a sua aritmética.

O Livro e a Alma
Sentimos que é muito necessário, nos nossos comentários e reflexões sobre
este livro, bem como sobre todos os outros, lembrar duas coisas, a saber:
primeiro, o livro; e, depois, a alma: o livro e o seu conteúdo; a alma e as suas
necessidades. Existe o perigo de esquecermos a alma e as suas necessidades
por estarmos muito ocupados com o livro. E, por outro lado, há o perigo de
esquecermos o livro por estarmos absorvidos com a alma. Devemos atender às
duas coisas. E podemos dizer que o que constitui um ministério eficiente, quer
escrito quer oral, é o próprio ajustamento destas duas coisas.
Há ministros que estudam a Palavra diligentemente, e, pode ser,
profundamente. São versados em conhecimento bíblico; beberam amplamente
na fonte da inspiração. Tudo isto é da maior importância e de grande valor. Um
ministério sem isto será de fato estéril. Se um homem não estuda a sua Bíblia
com cuidado e com oração, terá pouco para dar aos seus leitores ou aos seus
ouvintes; pelo menos que valha a pena eles terem. Aqueles que trabalham na
Palavra devem cavar para si próprios, e “cavar fundo".
Mas é preciso pensar na alma—antecipar a sua condição e suprir as suas
necessidades. Se isto é perdido de vista, o ministério carecerá e fim, efeito e
poder. Será ineficiente e infrutífero. Em suma, as duas coisas devem ser
combinadas e convenientemente proporcionadas. Um homem que meramente
estuda o livro será inábil. Um homem que apenas estuda a alma será deficiente.
Um homem que estuda devidamente ambas as coisas será um bom ministro de
Jesus Cristo.
Ora nós desejamos, segundo a nossa capacidade, ser isto para o leitor; e por
isso, ao avançar, na sua companhia, através do livro maravilhoso que está
aberto perante nós, queremos não só indicar as suas belezas morais e
desenrolar as suas santas lições, mas sentimos também ser nosso dever
imperioso fazer casualmente uma ou outra pergunta ao leitor, a fim de o induzir
a ver até que ponto essas lições estão sendo aprendidas e essas belezas
apreciadas.
Creio que o leitor não se oporá a isto, e por isso, antes de terminar esta primeira
parte, quero fazer uma ou duas perguntas sobre ela.

Algumas Considerações Práticas


E, antes do mais, prezado amigo, estás bem inteirado e seguro quanto à tua
"descendência"? E um caso arrumado que estás ao lado do Senhor? Não
deixes, rogo-te, de decidir esta grande questão. Fizemos esta pergunta antes e
fazemo-la outra vez. Conheces a tua descendência espiritual e podes
declará-la? É a primeira condição para se ser um guerreiro de Deus. É inútil
pensar em entrar para a hoste militante enquanto não se está certo sobre este
ponto. Não dizemos que um homem não pode estar salvo sem isto. Longe de
nós tal ideia. Mas não pode entrar nas fileiras como homem de guerra. Não
pode combater contra o mundo, contra a carne e o diabo, enquanto estiver
cheio de dúvidas e temores sobre à linguagem espiritual. Para que haja algum
progresso, para que haja essa decisão, tão essencial a um guerreiro espiritual,
temos de poder dizer — "Sabemos que passamos da morte para a vida eterna"
— "Sabemos que somos de Deus".
Esta é a própria linguagem de um homem de guerra. Nenhum homem desse
poderoso exército que se agrupava "ao redor, defronte da tenda da
congregação", teria compreendido alguma coisa parecida com uma dúvida ou
sombra de dúvida quanto à sua própria descendência. Seguramente, ele teria
rido se alguém levantasse uma dúvida sobre o assunto. Cada um daqueles
seiscentos mil sabia bem de onde procedia; e, portanto, onde ocupar o seu
lugar. E assim acontece hoje com a hoste militante de Deus. Cada membro dela
necessita de possuir a mais límpida confiança acerca do seu parentesco, de
contrário não poderá manter-se no combate.
E agora quanto à "bandeira". O que é? É uma doutrinai Não. É um sistema
teológico?- Não. É uma organização eclesiástica? Não. É um sistema de
ordenações, ritos ou cerimônias?- Nada disso. Os guerreiros de Deus não lutam
sob tais bandeiras. Qual é a bandeira da hoste militante de Deus? Escutemos e
recordemos: E Cristo!
Este é o único estandarte de Deus e o único pendão deste bando guerreiro que
acampa no deserto deste mundo para sustentar a luta com as hostes do mal, e
batalhar as batalhas do Senhor. Cristo é o estandarte para todas as coisas. Se
tivéssemos qualquer outro, seríamos por isso incapacitados para esse conflito
espiritual a que somos chamados. Que temos nós, como cristãos, que batalhar
por qualquer sistema de teologia ou organização eclesiástica? Que importância
têm, no nosso parecer, as ordenações, cerimônias ou observâncias ritualistas?
Vamos combater debaixo de estandartes como estes?- Não permita Deus! A
nossa teologia é a Bíblia. A nossa organização eclesiástica é o Corpo de Cristo,
formado pela presença do Espírito Santo e unido à Cabeça viva e exaltada nos
céus. Lutar por qualquer coisa que não seja isto é absolutamente indigno de um
verdadeiro guerreiro espiritual.
Ah! Infelizmente são tantos os que professam pertencerá Igreja de Deus e
esquecem o seu próprio estandarte para lutarem sob outro pendão! Podemos
estar certos que isto aumenta a fraqueza, corrompe o testemunho e impede o
progresso. Se queremos ficar firmes no dia da batalha, não devemos
reconhecer seja que estandarte for senão Cristo e a Sua Palavra — a Palavra
viva e a Palavra escrita. É nisto que consiste a nossa segurança em face dos
nossos inimigos espirituais.
Quanto mais estreitamente aderimos a Cristo, e somente a Cristo, tanto mais
fortes seremos e seguros estaremos. Ter a Cristo como perfeita venda para os
nossos olhos — mantermo-nos perto d Ele, seguros a Seu lado—eis a nossa
salvaguarda moral.
E os filhos de Israel assentarão as suas tendas, cada um no seu esquadrão e
cada um junto à sua bandeira, segundo os seus exércitos (Nm 1:52). Oh! Que
seja assim também em toda a hoste da Igreja de Deus! Que tudo seja posto de
parte por Cristo! Que Ele seja suficiente para os nossos corações. Ao traçarmos
a nossa descendência até Ele, que o Seu nome seja inscrito sobre o
"estandarte" ao redor do qual nos acampamos neste deserto, através do qual
estamos passando para o nosso descanso eterno no céu! Prezado leitor, faz
com que não haja, nós te rogamos, nem um jota nem um til inscrito na tua
bandeira, salvo o nome de Jesus Cristo — esse nome que é acima de todo
nome, e que será exaltado para sempre através do vasto universo de Deus.

CAPÍTULOS 3 e 4

DEUS ESTA NO MEIO DO SEU POVO

Que maravilhoso espetáculo apresentava o acampamento de Israel nesse


deserto ermo e árido! Que espetáculo para os anjos, para os homens e para os
demônios! Os olhos de Deus estavam sempre postos nele. A Sua presença
estava ali. Ele habita no meio de Seu povo militante. Era ali que havia
encontrado a Sua habitação. Não encontrou nem podia encontrar a sua
habitação entre os esplendores do Egito, da Assíria ou de Babilônia. Sem
dúvida, esses países apresentavam muitos atrativos para os olhos da carne. As
artes e as ciências floresciam entre eles. A civilização tinha alcançado um ponto
muito mais elevado entre essas nações antigas do que os modernos estão
dispostos a admitir. O refinamento e o luxo eram provavelmente tão importantes
como entre aqueles que têm as maiores pretensões.
Mas, recorde-se, o Senhor não era conhecido entre esses povos. O Seu nome
nunca lhes havia sido revelado. Não habitava no meio deles. Decerto, havia
inumeráveis testemunhos do Seu poder criador. E, além disso, a Sua
providência estava sobre eles. Deu-lhes chuva e estações frutíferas, enchendo
os seus corações de alegria e mantimentos. As bênçãos e os benefícios da Sua
mão liberal eram derramados sobre eles, dia após dia, e ano após ano. As
chuvas fertilizavam os seus campos e os raios de sol alegravam os seus
corações. Mas não O conheciam nem o buscavam. A Sua habitação não era ali.
Nenhuma dessas nações podia dizer: "O SENHOR é a minha força e o meu
cântico; ele me foi por salvação; este é o meu ' portanto lhe farei uma habitação;
ele é o Deus de meu pai; por isso, o exaltarei" (Êx 15:2).
O Senhor havia fixado a Sua habitação no seio do Seu povo resgatado e em
nenhum outro sítio. A redenção era a base indispensável da habitação de Deus
no meio dos homens. Fora da redenção a presença divina só podia ocasionar a
destruição do homem; porém, conhecida a redenção, essa presença segura o
mais elevado privilégio e a mais brilhante glória.
Deus habitava no meio do Seu povo Israel. Desceu do céu não só para o
resgatar da terra do Egito, mas para ser o seu companheiro de viagem através
do deserto. Que pensamento! O Deus altíssimo tendo a Sua habitação nas
areias do deserto e no próprio seio da congregação dos Seus resgatados! Na
verdade, não havia nada semelhante em todo o vasto mundo. Ali estava esse
exército de seiscentos mil homens, além das mulheres e crianças, num deserto
estéril, onde não crescia uma só folha de erva, e não havia uma gota de
água—nenhum sinal de subsistência. Como iam ser alimentados? Deus estava
ali! Como iam manter-se em ordem? Deus estava ali! Como iam abrir caminho
através daquele deserto medonho onde não havia nenhum caminho? Deus
estava ali!
Em suma, a presença de Deus assegurava todas as coisas. A incredulidade
poderia dizer: "O quê?- Três milhões de pessoas vão ser alimentadas e vão
viver do ar? Quem é o responsável pelos abastecimentos?- Onde estão os
depósitos militares?- Onde está a bagagem?- Quem é o responsável pelo
vestuário?" Só a fé poderia responder e a sua resposta é simples, breve e
conclusiva: "Deus estava ali!" E isso era bastante. Tudo está compreendido
nessa frase. Na aritmética da fé, Deus é o algarismo essencial, e, tendo-O,
pode adicionar-se tantas cifras quantas se quer. Se os nossos recursos estão
no Deus vivo, deixa de existir a questão das nossas necessidades, para se
tornar numa questão da Sua suficiência.
O que eram seiscentos mil homens de pé para o Deus Poderoso? Que
importância tinham as várias necessidades das suas mulheres e crianças? Na
opinião dos homens, estas coisas podiam parecer esmagadoras. A Inglaterra
acaba precisamente de mandar dez mil homens para a Abissínia; mas pense-se
nas enormes despesas e trabalho necessários para essa expedição;
considere-se nos meios de transporte necessários para a condução das
provisões e outros meios de subsistência deste pequeno exército. Contudo,
imagine-se um exército que, sem contar as mulheres e as crianças, fosse
sessenta vezes maior.
Suponha-se este grande exército começando uma marcha que deveria
prolongar-se por espaço de quarenta anos, por um "grande e terrível deserto",
em que não havia cereais nem erva nem fontes de água. Como haviam de ser
abastecidos? Não tinham víveres consigo, nem contratos com nações aliadas
para os fornecerem nos diversos pontos do caminho — não existia um único
meio visível de suprimento, nada que a natureza pudesse considerar ao seu
dispor.
Vale a pena ponderar sobre tudo isto. Mas devemos fazê-lo na presença divina.
De nada aproveitaria à razão humana assentar-se e tentar resolver por cálculo
tamanho problema. Não leitor; só a fé pode resolvê-lo, e isso também só pela
Palavra de Deus. Aqui se encontra a verdadeira solução. Conte-se só com Deus
para a solução do problema, e não haverá necessidade de nenhum outro fator
para dar a resposta. Deixai-O de parte, e quanto mais forte for a razão e
profunda a aritmética, mais desesperada será a vossa perplexidade.
Assim a fé resolve a questão. Deus estava no meio do Seu povo. Estava ali em
toda a plenitude da Sua graça e misericórdia—estava ali com o perfeito
conhecimento das necessidades do Seu povo e das dificuldades do seu
caminho — com o Seu poder onipotente e recursos ilimitados para fazer frente a
essas dificuldades e suprir essas necessidades. E penetrou tão completamente
nestas coisas, que, ao cabo de suas longas peregrinações no deserto, pôde
apelar para os seus corações com palavras tão comovedoras como estas: "Pois
o Senhor teu Deus te abençoou, em toda a obra das tuas mãos; ele sabe que
andas por este grande deserto; estes quarenta anos o Senhor Teu Deus esteve
contigo, coisa nenhuma te faltou". E também, "Nunca se envelheceu a tua veste
sobre ti, nem se inchou o teu pé estes quarenta anos" (Dt 2:7; 8:4).

Israel é uma Figura da Igreja


Ora, em todas estas coisas, o acampamento de Israel era uma figura — uma
figura intensa e notável. Uma figura de que?- Uma figura da Igreja de Deus
passando por este mundo. O testemunho a Escritura é tão claro sobre este
ponto, que não deixa lugar para o curso da imaginação. "Ora tudo isto lhes
sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são
chegados os fins dos séculos" (1 Co 10:11).
Podemos, pois, acercar-nos e contemplar com vivo interesse esse maravilhoso
espetáculo e procurar tirar dele as preciosas lições que tão apropriada e
eminentemente ele nos ensina. E, oh, que lições! Quem poderá apreciá-las
devidamente? Pensai nesse acampamento misterioso no deserto composto,
como havemos dito, de guerreiros, trabalhadores e adoradores! Que separação
de todas as nações do mundo! Que falta absoluta de recursos! Que exposição
ao inimigo! Que dependência absoluta de Deus! Não tinham nada; nada podiam
fazer; nada podiam saber. Não tinham nada que comer, nem uma gota de água
mais do que recebiam, dia a dia, diretamente da mão de Deus. Quando à noite
se retiravam para descansar, não tinham nem um simples átomo de provisões
para o dia seguinte. Não havia armazéns, nem despensa nem fontes visíveis de
suprimento, nada com que pudessem contar.
Mas Deus estava ali, e isso, no parecer da fé, era bastante. Estavam
resguardados com Deus. Esta é a única grande realidade. A fé não reconhece
nada real, nada sólido, nada verdadeiro senão o Deus vivo, verdadeiro e eterno.
A natureza podia volver os olhos cobiçosos para os celeiros do Egito e ver neles
alguma coisa substancial. Mas a fé olha para o céu e encontra ali todos os seus
recursos.
Assim era no acampamento do deserto; e assim é com a Igreja no mundo. Não
havia uma só exigência, uma só contingência, uma só necessidade fosse de
que natureza fosse que a presença divina não fosse uma resposta inteiramente
suficiente. As nações dos incircuncisos podiam ver e maravilhar-se. Podiam, na
confusão da cega incredulidade, levantar questões e procurar saber como podia
alimentar-se um tal exército, vestir-se e manter-se em ordem. Certamente eles
não tinham olhos para ver como isto podia ser feito. Não conheciam o
SENHOR—o SENHOR Deus dos Hebreus; e portanto dizer-lhes que Ele se
havia encarregado daquela vasta assembleia ter-lhes-ia parecido um conto fútil.
E assim é agora a respeito da Igreja de Deus neste mundo, que pode muito bem
ser chamado um deserto moral. Considerada do ponto de vista de Deus, essa
assembleia não é do mundo; está completamente separada dele. Está tão fora
do mundo como o acampamento de Israel estava fora do Egito. As águas do
Mar Vermelho corriam entre o acampamento e o Egito; e as águas mais
profundas e mais sombrias da morte de Cristo correm entre a Igreja de Deus e
este presente século mau. É impossível conceber uma separação mais
completa. "Não são do mundo", diz o Senhor Jesus Cristo, "como eu do mundo
não sou" (João 17:16).
E, agora, quanto à completa dependência: o que poderá haver de mais
dependente do que a Igreja de Deus neste mundo?- Ela não tem nada em si ou
de si mesma. Está colocada no meio de um deserto, uma triste assolação, um
vasto deserto, no qual não há literalmente nada com que ela possa viver. Não
há uma só gota de água, nem uma simples porção de alimento próprio para a
Igreja de Deus em toda a circunferência deste mundo.
O mesmo sucede quanto à maneira como ela está exposta a toda a sorte de
influências hostis. Nada pode exceder essa sua posição. Nada há uma simples
influência amigável. Tudo é contra ela. Está no meio deste mundo como uma
planta exótica—uma planta que pertence a um clima estrangeiro e colocada
uma esfera onde o solo e a atmosfera são igualmente incompatíveis com ela.

A Igreja no Mundo
Tal é a Igreja de Deus no mundo—uma coisa separada, dependente, indefesa,
dependendo em tudo do Deus vivo. Está calculada para dar vivacidade, força e
clareza aos nossos pensamentos a respeito da Igreja de forma a encararmo-la
como o antítipo do acampamento no deserto; e não é de modo nenhum um
capricho ou precipitação considerá-la assim, visto que 1 Coríntios 10-11
claramente o mostra. Temos plena liberdade para dizer que o acampamento de
Israel era literalmente o que a Igreja é moralmente. E, ainda mais, que o deserto
era literalmente para Israel o que o mundo e moral e espiritualmente para a
Igreja de Deus. O deserto era a esfera e ação e perigo para Israel—não era a
origem dos seus suprimentos ou contentamentos e o mundo é a esfera da lida
da Igreja e do perigo que ela corre, e não a origem dos seus suprimentos e
gozo.
É conveniente compreender este fato em todo o seu poder moral. A assembleia
de Deus no mundo, à semelhança da "congregação no deserto", está
inteiramente na dependência de Deus. Falamos, note- se, do ponto de vista
divino—do que a Igreja é à vista de Deus. Vista do ponto de vista humano —
contemplada como ela é, no seu próprio estado prático atual, é, infelizmente,
outra coisa. Ocupamo-nos apenas por agora com a ideia verdadeira e normal
que Deus tem da Igreja no mundo.
E não se esqueça, nem por um momento, que, tão certo como havia um
acampamento no deserto—uma congregação no deserto - assim há agora a
Igreja de Deus, o corpo de Cristo no mundo.
Indubitavelmente, as nações do mundo conheciam pouco dessa congregação
da antiguidade, e preocupavam-se menos com ela; mas isso não enfraquecia
nem afetava o grande fato da sua existência. Do mesmo modo, os homens do
mundo conhecem pouco da Igreja de Deus—o corpo de Cristo—e menos se
preocupam com ela; mas isso não afeta, de modo nenhum, a grande verdade
que existe realmente tal coisa neste mundo, e que tem existido sempre desde
que o Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes.
Decerto, a congregação da antiguidade teve as suas provações, os seus
conflitos, as suas dores, as suas tentações, as suas lutas, as suas
controvérsias—as suas excitações internas—as suas inumeráveis dificuldades,
que exigiam os variados recursos que havia em Deus - o ministério precioso do
profeta, sacerdote e rei que Deus lhe havia dado; já que, como sabemos,
Moisés estava ali como "rei em Jesurun", e como o profeta levantado por Deus;
e Arão estava ali também para exercer todas as funções sacerdotais.
Mas apesar de todas estas coisas que havemos enumerado — apesar da
fraqueza, o fracasso, o pecado, a rebelião, contendas, a verdade é que havia ali
um fato notável para ser conhecido dos homens, dos demônios e dos anjos, a
saber: uma grande congregação, que se elevava a qualquer coisa como três
milhões de almas (— segundo o uso habitual de cálculo—) viajando pelo
deserto, dependendo inteiramente de um braço invisível, guiada e tratada pelo
Deus eterno, cujos olhos não se afastavam um só momento desse misterioso e
simbólico exército; sim, Deus habitava no meio dela, do Seu povo, e nunca o
abandonou, apesar da sua incredulidade, do seu esquecimento, da sua
ingratidão e rebelião. Deus estava ali para o manter e guiar, para o guardar e
conservá-lo, dia a dia; e deu-lhes água da rocha.
Isto era seguramente um fato admirável—um profundo mistério. Deus tinha uma
congregação no deserto—mantida à parte de todas as nações circunvizinhas,
separada para Si. É possível que as nações do mundo nada conhecessem,
nada se preocupassem, não pensassem nada desta assembleia. Certo é que o
deserto nada produzia para sustento ou refrigério. Havia nele serpentes e
escorpiões—havia perigos e ciladas— seca, aridez e desolação. Porém havia
também aquela maravilhosa assembleia mantida de tal maneira que confundia
a razão humana.
E, prezado leitor, recordemos que isto era uma figura. Uma figura de quê? Uma
figura de alguma coisa que tem estado em existência durante dezenove
séculos; existe ainda; e existirá até ao momento em que o Senhor Jesus Cristo
se levantar da Sua atual posição o descer aos ares. Numa palavra, é uma figura
da Igreja de Deus neste mundo. Quão importante é reconhecer este fato! Que
pena ter sido perdido de vista! E como é tão pouco compreendido até mesmo
nos nossos dias! E todavia todo o cristão é responsável por reconhecê-lo e de o
confessar na prática. Não pode ser evitado. E verdade que existe atualmente no
mundo alguma coisa que corresponde ao acampamento no deserto?
Certamente; existe a Igreja no deserto. Há uma assembleia que passa por este
mundo como Israel passava pelo deserto.
E, além disso, o mundo é, moral e espiritualmente, para a Igreja o que o deserto
era, literal e praticamente, para Israel. Israel não encontrou fontes do deserto; e
a Igreja de Deus não encontra fontes no mundo. Se as encontra, traio seu
Senhor. Israel não era do deserto, mas passava por ele; e a Igreja de Deus não
é do mundo, mas está de passagem pelo mundo.
Se o leitor se compenetrar inteiramente disto, verá o lugar de completa
separação que pertence à Igreja de Deus no seu conjunto e a cada um dos seus
membros individualmente.
A Igreja, do ponto de vista de Deus a seu respeito, está tão completamente
separada deste mundo como separado estava o acampamento de Israel no
meio do deserto que o rodeava. Existe tão pouco de comum entre a igreja e o
mundo, como havia entre Israel e a areia do deserto. As mais brilhantes
atrações e as mais sedutoras fascinações do mundo são para a Igreja de Deus
o que eram para Israel as serpentes, os escorpiões e os mil outros perigos do
deserto.

A Igreja, o Corpo de Cristo na Terra


Tal é a ideia divina da Igreja; e é com esta ideia que nos ocupamos agora. Ah!
Quão diferente é com a que se chama igreja! Mas desejamos, contudo, que o
leitor fixe a sua atenção, por agora, sobre o que é verdadeiro. Queremos que se
coloque, pela fé, do lado do ponto de vista de Deus e considere a Igreja desde
ali. E só fazendo assim que pode formar uma verdadeira ideia do que é a Igreja,
ou da sua própria responsabilidade a respeito dela. Deus tem uma Igreja no
mundo. Há atualmente na terra um corpo em que habita o Espírito e unido a
Cristo, a Cabeça. Esta Igreja — este corpo — é composta de todos aqueles que
verdadeiramente creem no Filho de Deus, e que estão unidos pelo grande fato
da presença do Espírito Santo.
Note-se que não se trata de uma opinião ou de certa ideia que pode aceitar-se
ou não ao gosto de cada qual. É um fato divino. É uma grande verdade, quer lhe
demos ouvidos ou não. A existência da Igreja como um corpo é um fato, e nós,
como crentes, somos membros dele. Não podemos evitar isso. Não podemos
tampouco ignorá-lo. Estamos com efeito nesta relação — fomos batizados em
um corpo pelo Espírito Santo. E uma coisa tão real e positiva como o
nascimento de um menino numa família. Ocorreu o nascimento, o parentesco
está formado, e nós só temos que reconhecê-lo e andarmos, dia a dia, com a
compreensão desse fato.
No próprio momento em que uma alma é nascida de novo — nascida de cima e
selada pelo Espírito Santo—é incorporada no corpo de Cristo. Já não pode
considerar-se como um indivíduo solitário, uma pessoa independente, um
átomo isolado; é membro de um corpo, precisamente como a mão ou o pé é um
membro do corpo humano. E um membro da Igreja de Deus, e não pode,
propriamente ou verdadeiramente, ser membro de alguma coisa mais. Como
poderia o meu braço ser membro de qualquer outro corpo? E, segundo este
mesmo critério, podemos perguntar: como poderia um membro do corpo de
Cristo ser membro de qualquer outro corpo?
Que verdade gloriosa é esta quanto à Igreja de Deus, a qual é o antítipo do
acampamento do deserto, "a congregação no deserto"!
Um fato a que nos devemos submeter. A Igreja de Deus existe no meio de toda
a ruína e do naufrágio, da luta e da discórdia, da confusão e das divisões, das
seitas e dos partidos. Isto é certamente uma verdade das mais preciosas. E não
somente é preciosa, mas é também prática e constitutiva. Nós somos obrigados
a reconhecer, pela fé, esta Igreja no mundo, como os israelitas eram obrigados
a reconhecer, por vista, o acampamento no deserto. Havia um acampamento,
uma congregação, a que pertencia todo o verdadeiro israelita; existe uma Igreja
— um corpo — a que pertence o verdadeiro cristão.
Porém, como é organizado este corpo? Pelo Espírito Santo, como está escrito:
"Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo" (1 Co
12:13). Como é mantida?- Pela sua Cabeça vivente, através do Espírito e pela
Palavra, como está escrito: "Porque nunca ninguém aborreceu a sua própria
carne; antes, a alimenta e sustenta, como também o Senhor à Igreja" (Ef 5:29).
Isto não é bastante? Cristo não é suficiente"? O Espírito Santo não bastai
Precisamos de alguma coisa mais que as diversas virtudes que se encontram
no nome de Jesus<? Os dons do Espírito Santo não são acaso suficientes para
o crescimento e manutenção da Igreja de Deus<? O fato da presença divina na
igreja não assegura tudo que a Igreja possa por acaso necessitará Não é
suficiente para as exigências de cada hora*?- A fé diz "Sim", e di-lo com ênfase
e decisão! A incredulidade—a razão humana—diz, "Não, precisamos também
de muitas outras coisas". Qual é a nossa resposta?- Simplesmente esta: "Se
Deus não é suficiente, não sabemos para onde nos havemos de voltar. Se o
nome de Jesus não basta, não sabemos que fazer. Se o Espírito Santo não
pode suprir todas as necessidades da comunhão, do ministério e do culto,
então, não sabemos que dizer."
Pode, todavia, dizer-se que "as coisas não são como eram nos tempos
apostólicos. A Igreja professa falhou; os dons do Pentecostes cessaram; os dias
gloriosos do primeiro amor da Igreja desapareceram e portanto temos de adotar
os melhores meios que estão ao nosso alcance para a organização e
manutenção das nossas igrejas". A tudo isto nós respondemos: "Deus não tem
falhado, Cristo, o Cabeça da Igreja, não tem faltado. O Espírito Santo não tem
faltado. Nem um jota nem um til da Palavra de Deus tem falhado. Este é o
verdadeiro fundamento da fé. "Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e
eternamente" (Hb 13:8) Ele disse: "Eis que estou convosco." Quanto tempo?-
Durante os dias do primeiro amor?- Durante os tempos apostólicos? Enquanto a
Igreja continuar fie? Não; "eu estou convosco todos os dias, até à consumação
dos séculos" (Mt 28:20).
Assim também, antes, quando, pela primeira vez em todo o cânone da escritura,
a Igreja, propriamente dita, é mencionada, temos essas palavras memoráveis,
"sobre esta pedra (ou: rocha — Filho do Deus vivo) edificarei a minha igreja, e
as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16:18).
Ora, a questão é esta: Essa Igreja está atualmente na terral Com certeza. E tão
verdade que existe uma Igreja agora na terra como em outro tempo houve um
acampamento no deserto. E assim como Deus estava nesse acampamento
para suprir todas as necessidades do povo, do mesmo modo está agora
verdadeiramente na Igreja para ordenar e dirigir em todas as coisas, como está
escrito; "No qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus
no Espírito" (Ef 2:22).
Isto é suficiente. Só nos falta agarrarmos, pela simples fé, esta grande
realidade. O nome de Jesus é suficiente para todas as necessidades da Igreja
de Deus assim como o é para a salvação da alma. Uma coisa é tão verdadeira
como a outra. "Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí
estou eu no meio deles" (Mt 18:20). Isto deixou de ser verdadeiro?- Se não
deixou de ser verdadeiro não será a presença de Cristo suficiente para a Sua
Igreja? Necessitamos de fazer planos ou de atuarmos por nossa iniciativa em
assuntos de igreja? Não necessitamos de fazer mais do que com o assunto da
salvação da alma. Que dizemos nós ao pecador? Confia em Cristo. Que
dizemos ao crente? Confia em Cristo. Que dizemos a uma assembleia de
santos, seja pequena ou grande?- Confia em Cristo. Há alguma coisa que Ele
não possa fazer? "Haveria alguma coisa difícil ao Senhor?" Já se esgotou o
tesouro dos Seus dons e graças? Não pode proporcionar dons ou ministério?
Não pode levantar evangelistas, pastores e doutores?- Não pode fazer frente a
todas as variadas necessidades da Sua Igreja no deserto?- Se Ele não pode,
onde estamos nós? Que faremos?- Para onde nos voltaremos? Que tinha que
fazer a congregação de outro tempo? Olhar para o Senhor. Em todas as
coisas?- Sim, em todas as coisas; por alimento, por água, por vestuário, por
orientação, por proteção, por tudo. Todos os seus recursos estavam n'Ele.
Devemos nós recorrer a alguém mais? Nunca. Cristo, nosso Senhor, é
amplamente bastante, apesar de todo o nosso fracasso e ruína, pecado e
infidelidade. Ele enviou o Espírito Santo, o outro Consolador, para habitar com e
no Seu povo — para formar com eles um só corpo e uni-los à Cabeça vivente no
céu. O Espírito é o poder de unidade, de comunhão, de ministério e de culto.
Não nos tem abandonado, e não nos abandonará; demos-Lhe lugar para atuar.
Guardemo-nos escrupulosamente de tudo que possa contribuir para O
extinguir, impedir de atuar ou entristecê-Lo. Reconheçamos o Seu próprio lugar
na igreja e sujeitemo-nos em tudo à Sua direção e autoridade.
Estamos convencidos de que aqui está o verdadeiro segredo de poder e
bênção. Negamos a ruína? Como poderíamos negá-la? Infelizmente
apresenta-se como um fato demasiado palpável e notório para ser negado.
Procuramos negar a nossa parte da ruína —a nossa loucura e o nosso pecado?
Provera a Deus que a sentíssemos mais intensamente! Mas acrescentaremos
ao nosso pecado a negação da graça e do poder de nosso Senhor para nos
valerem na nossa loucura e ruína? Desprezaremos o Senhor, a fonte de águas
vivas, para cavarmos para nós próprios cisternas rotas que não podem reter
água? Deixaremos a Rocha dos séculos para nos apoiarmos às canas
quebradas da nossa imaginação? Deus nos livre! Antes seja a linguagem dos
nossos corações, ao pensarmos no nome de Jesus, de louvores e gratidão.
Mas não suponha o leitor que pretendemos conceder a mínima aprovação às
pretensões eclesiásticas. Aborrecemo-las completamente; consideramo-las
inteiramente desprezíveis. Cremos que nunca será possível ocuparmos um
lugar demasiadamente humilde. Um lugar modesto e um espírito humilde são o
que mais nos convém em vista do nosso pecado comum e da nossa vileza.
Tudo que procuramos sustentar é isto, a suficiência do nome de Jesus para
todas as necessidades da Igreja de Deus, em todos os tempos e em todas as
circunstâncias. Havia todo o poder nesse nome nos tempos apostólicos; e
porque não o terá agora ? Esse nome glorioso sofreu alguma alteração?- Não,
bendito seja Deus! Bem, então é suficiente para nós neste momento, e tudo que
precisamos é confiar nele inteiramente e mostrarmos que confiamos desta
maneira recusando completamente qualquer outro fundamento de confiança, e
saindo, com ousada decisão, para esse precioso e incomparável nome. Bendito
seja o Seu nome, ele tem descido até à mais baixa congregação, ao plural mais
reduzido, visto que tem dito: "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, aí estou eu no meio deles". Isto ainda tem algum valor? Ou já perdeu o
seu poderá Já não tem aplicação?- Quando foi revogado?-
Prezado leitor cristão, conjuramos-te por meio de todos os argumentos que
deveriam influir sobre o teu coração a que dês o teu cordial assentimento a esta
verdade eterna, a saber: A plena suficiência do nome do Senhor Jesus Cristo
para a Igreja de Deus, em qualquer condição que fossa ser achada, durante
todo o curso da sua história (1). Exortamos-te não apenas que consideres isto
como uma verdadeira teoria, mas que a confesses na prática, e então
seguramente provarás a profunda bem-aventurança da presença de Jesus no
lugar de separações — uma bem — aventurança que tem de ser posta em
prática para poder ser conhecida; mas, uma vez experimentada, não pode
jamais ser esquecida ou abandonada por coisa alguma.
__________
(1) Usando a expressão, "A plena suficiência do nome do Senhor Jesus Cristo .
queremos dizer tudo que está assegurado para o Seu povo nesse nome — vida;
justiça; aceitação; a presença do Espírito Santo com todos os diferentes dons:
um centro divino ou ponto de reunião. Numa palavra, cremos que tudo quanto a
Igreja possa possivelmente necessitar para o tempo presente ou a eternidade
está compreendido nesse glorioso nome — o Senhor Jesus Cristo.
Mas não tínhamos a intenção de prosseguir até tão longe com esta linha de
pensamentos ou de redigir um introdução tão extensa à parte do livro que temos
perante nós, e para a qual desejamos agora chamar a atenção do leitor.
Ao considerar atentamente "a congregação no deserto" (At 7:38), descobrimos
que é composta de três elementos distintos, a saber, guerreiros, obreiros e
adoradores. Havia uma nação de guerreiros, uma tribo de obreiros, uma família
de adoradores ou sacerdotes. Já aludimos aos primeiros e vimos como cada
um, segundo a sua "linhagem", tomou o seu lugar segundo a sua "bandeira" e
conforme a ordem do Senhor; vamo-nos deter por uns momentos com os
segundos e ver cada um entregue à sua obra e serviço, segundo a mesma
ordenação. Já consideramos os guerreiros, meditemos sobre os obreiros.
Os Levitas
Os Levitas estavam claramente assinalados de entre as outras tribos e eram
chamados a ocupar um posto muito especial e para um serviço particular.
Assim, lemos a seu respeito: "Mas os levitas, segundo a tribo de seus pais, não
foram contados entre eles, porquanto o SENHOR tinha falado a Moisés,
dizendo: Somente não contarás a tribo de Levi, nem tomarás a soma deles
entre os filhos de Israel; mas, tu, põe os levitas sobre o tabernáculo do
Testemunho, e sobre todos os seus utensílios e sobre tudo o que lhe pertence;
eles levarão o tabernáculo e todos os seus utensílios; e eles o administrarão e
assentarão o seu arraial ao redor do tabernáculo. E, quando o tabernáculo
partir, os levitas o desarmarão; e, quando o tabernáculo assentar arraial, os
levitas o armarão; e o estranho que se chegar morrerá. E os filhos de Israel
assentarão as suas tendas, cada um no seu esquadrão e cada um junto à sua
bandeira, segundo os seus exércitos. Mas os levitas assentarão as suas tendas
ao redor do tabernáculo do Testemunho, para que não haja indignação sobre a
congregação dos filhos de Israel; pelo que os levitas terão o cuidado da guarda
do tabernáculo do Testemunho" (Nm 1:47-53). Lemos também em capítulo
2:33: "Mas os levitas não foram contados entre os filhos de Israel, como o
SENHOR ordenara a Moisés".
Mas por que os levitas?- Porque foi essa tribo especialmente designada entre
todas as outras e separada para um serviço tão santo e tão elevado. Havia
neles alguma santidade ou algum bem particular que motivasse uma tal
distinção? Não, decerto, nem por ,natureza nem por sua conduta, como
podemos ver pelas seguintes palavras: "Simeão e Levi são irmãos; as suas
espadas são instrumentos de violência. No seu secreto conselho, não entre
minha alma; com a sua congregação, minha glória não se a junte; porque, no
seu furor mataram varões e, na sua teima, arrebataram bois. Maldito seja o seu
furor, pois era forte, e a sua ira, pois era dura; eu os dividirei em Jacó e os
espalharei em Israel" (Gn 49:5-7).
Tal era Levi por natureza e pela prática, voluntarioso, violento e cruel.
Como é notável que um tal homem fosse escolhido e elevado a um posto tão
alto e de tão santo privilégio! Seguramente podemos dizer que era graça desde
o começo ao fim. É desígnio da graça cuidar dos piores casos. Debruça-se
sobre as maiores profundidades e ajunta de ali os seus mais brilhantes troféus.
"Esta é uma palavra fiel e digna de toda a aceitação: que Cristo Jesus veio ao
mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal" (1 Tm 1:15)." A
mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar entre os
gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo" (Ef
3:8).
Mas como é surpreendente a linguagem, "No seu secreto conselho, não entre
minha alma com a sua congregação, minha glória não se ajunte"! Deus é
demasiado puro de olhos para ver o mal e não pode contemplar a iniquidade.
Deus não podia entrar no secreto conselho de Levi nem ajuntar-Se com a sua
congregação. Isso era impossível. Deus não podia ter alguma coisa que ver
com a obstinação, ferocidade e crueldade. Mas podia contudo introduzir Levi no
Seu secreto conselho e juntá-lo à Sua assembleia. Podia tirá-lo da sua
habitação, onde havia instrumentos de crueldade, e trazê-lo para o tabernáculo
para estar ocupado com os instrumentos sagrados e vasos que ali havia. Isto
era graça — livre, soberana graça; e nisto deve buscar-se a base de todo o alto
e abençoado serviço de Levi. Tanto quanto lhe dizia respeito pessoalmente
existia uma distância imensurável entre si e o Deus santo — um abismo que
nenhum poder humano podia transpor. O Deus santo não podia ter nada de
comum com a obstinação, a ferocidade e a crueldade; mas o Deus de graça
podia ocupar-Se de Levi. Em Sua soberana misericórdia, podia visitar um tal e
levantá-lo das profundidades da sua degradação moral e trazê-lo para um lugar
de aproximação de Si Mesmo.
E, oh, que contraste maravilhoso entre a posição de Levi por natureza e a sua
posição pela graça! Entre os instrumentos de crueldade e os vasos do
santuário! Entre Levi em Gênesis 34 e Levi em Números 3 e 4!
Mas consideremos a forma como Deus trata com Levi — o fundamento sobre o
qual foi levado a um tal lugar de bênção. Para isso será necessário referir o
capítulo 8 do nosso livro, e ali seremos levados a penetrar no segredo de todo o
assunto. Veremos que nada que pertencia a Levi foi, e não podia ser, permitido;
nenhum dos seus caminhos foi aprovado; e todavia deu-se a mais perfeita
manifestação da graça—a graça reinando por meio da justiça. Falamos do
símbolo e do seu significado, segundo a narração já referida: "Todas estas
coisas lhes aconteceram como figuras." Não se trata da questão de saber até
que ponto os levitas viam por meio destas coisas. O ponto em questão não é
este. Não temos de perguntar, o que os levitas viam nos desígnios de Deus a
seu respeito, mas, o que aprendemos com eles?

A Purificação dos Levitas


"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Toma os levitas do meio dos filhos de
Israel e purifica-os; e assim lhes farás, para os purificar: Esparge sobre eles a
água da expiação; e sobre toda a sua carne farão passar a navalha, e lavarão
os seus vestidos, e se purificarão" (Nm 8:5-7).
Aqui temos, em figura, o único princípio divino de purificação. E a aplicação da
morte à natureza e todos os seus hábitos. É a palavra de Deus aplicada ao
coração e à consciência de uma forma viva. Nada pode ser mais expressivo que
a dupla ação apresentada nesta passagem. Moisés devia espargir a água da
expiação sobre eles; e ato continuo eles deviam cortar todo o seu pelo e lavar
todo o seu vestuário. Há nisto grande beleza e precisão. Moisés, representando
os direitos de Deus, purifica os levitas em conformidade com esses direitos; e
eles, estando purificados, são capazes de fazer passar a navalha sobre tudo
que era apenas o crescimento da natureza e de lavar o seu vestuário, que
representa, de uma forma simbólica, a purificação dos seus hábitos de
conformidade com a Palavra de Deus.
Este era o modo de Deus satisfazer tudo que dizia respeito ao estado natural de
Levi — à obstinação, ferocidade e crueldade. A água pura e a navalha afiada
entravam em ação—a lavagem e o corte do pelo deviam continuar até que Levi
estivesse apto a ter acesso aos vasos do santuário.
Assim é em todos os casos. Não há, não pode haver, tolerância para a natureza
entre os obreiros de Deus. Nunca houve erro mais falaz do que procurar alistar
a natureza no serviço de Deus. Não importa qual o meio por que se procure
melhorá-la ou regulá-la. Não é o melhoramento que servirá, mas, sim, a morte.
É da maior importância para o leitor compreender claramente esta grande
verdade prática. O homem tem sido pesado na balança e foi achado em falta. O
prumo foi-lhe aplicado e ele foi achado torto. E de todo impossível tentar
reformá-lo. Nada resultará senão a água e a navalha. Deus fechou a história do
homem. Pôs-lhe fim na morte de Cristo. O primeiro grande fato em que o
Espírito Santo insiste sobre a consciência humana é que Deus pronunciou o
Seu solene veredicto sobre a natureza humana e que é necessário que esse
veredicto seja aceito por cada um contra si mesmo. Não é uma questão de
opinião ou de sentimento. Alguém poderá dizer: "Não vejo ou não sinto que sou
tão mau como parece querer dar a entender". A nossa resposta é que isso em
nada afeta a questão. Deus pronunciou a Sua sentença sobre todos, e o
primeiro dever do homem é inclinar-se a essa sentença e aceitá-la.
De que teria servido a Levi dizer que não concordava com o que a palavra de
Deus dizia a respeito dele. Isso teria ou poderia alterar a questão a seu
respeito?- De modo nenhum. A declaração divina era a mesma quer Levi a
sentisse quer não; mas é evidente que o primeiro passo no caminho da
sabedoria era submeter-se a essa declaração.
Tudo isto está expresso, em figura, na "água" e "a navalha" — no ato de "lavar"
e de "passar a navalha por todo o corpo". Nada poderia ser mais significativo ou
expressivo. Estes atos mostram a verdade solene da sentença de morte sobre a
natureza e a execução do juízo contra tudo que a natureza produz.
E o que é, queremos perguntar, o significado do ato iniciativo do cristianismo, o
batismo?- Não representa o fato bendito de que "o nosso homem velho" — a
nossa natureza caída — está completamente posto de parte e que nós somos
introduzidos numa posição inteiramente nova? Com certeza. E como usamos a
navalhai Mediante uma própria e severa condenação, dia a dia, e a austera
negação de tudo que precede da natureza. Este é o verdadeiro caminho que
devem seguir todos os obreiros de Deus no deserto.
Quando consideramos a conduta de Levi em Siquém, Gêneses 34, e a narração
que é feita a seu respeito em Gêneses 49, podemos perguntar, como pode
permitir-se a uma pessoa assim levar os vasos do santuário? A resposta é que
a graça de Deus brilha na chamada de Levi, e a santidade em sua purificação.
Foi chamado para a obra, segundo as riquezas da graça divina; mas foi tornado
apto para a obra segundo os direitos da santidade divina.
Assim deve ser com todos os obreiros de Deus. Estamos absolutamente
convencidos que estamos aptos para a obra de Deus na medida em que a
natureza é posta sob o poder da cruz e da navalha afiada da própria
reprovação. A vontade própria nunca pode ser útil no serviço de Deus; pelo
contrário, tem de ser posta de lado, se queremos saber o que é o verdadeiro
serviço. Existe, infelizmente, muita coisa que passa por ser serviço e que,
julgada à luz da presença divina, seria reconhecida apenas como o fruto de uma
vontade inquieta.
Isto é muito solene, e exige a nossa mais séria atenção. Não podemos ser
severos demais na censura que exercemos sobre nós próprios a este respeito.
O coração é tão enganoso que podemos ser levados a imaginar que estamos
fazendo a obra do Senhor, quando, na realidade, estamos apenas buscando a
nossa própria complacência.
Porém, se queremos trilhar o caminho do verdadeiro serviço temos de procurar
estar cada vez mais separados da natureza. O voluntarioso Levi tem de passar
pelo processo simbólico da lavagem e do barbear antes de poder estar ocupado
nesse elevado serviço que é designado por nomeação direta do Deus de Israel.

QUEM É DO Senhor?
Mas, antes de prosseguirmos propriamente com o exame da obra e serviço dos
Levitas, devemos contemplar por um momento a cena em Êxodo 32, na qual
desempenham uma parte muito importante e notável. Referimo-nos, como o
leitor compreenderá imediatamente, ao bezerro de ouro. Durante a ausência de
Moisés, o povo perdeu tão completamente de vista Deus e os Seus direitos que
levantou um bezerro de fundição e se prostrou diante dele. Este terrível ato
exigia um juízo sumário.
"E, vendo Moisés que o povo estava despido, porque Arão o havia despido para
vergonha entre os seus inimigos, pôs-se em pé Moisés, na porta do arraial e
disse: Quem é do SENHOR, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os
filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Cada um
ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial, de porta
em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo e cada um a seu
próximo. E os filhos de Levi fizeram conforme a palavra de Moisés; e caíram do
povo, aquele dia, uns três mil homens. Porquanto Moisés tinha dito: Consagrai
hoje as vossas mãos ao SENHOR porquanto cada um será contra o seu filho e
contra o seu irmão; e isto para ele vos dar hoje bênção" (Êx 32:25-29).
Foi um momento de prova. Não podia ser de outra maneira, visto que se dirigia
ao coração e à consciência a grande questão, "Quem é do Senhor?- Nada
podia ser mais penetrante. A pergunta não era "Quem quer trabalhar" Não; era
uma pergunta muito mais profunda e premente. Não se tratava de saber quem
iria aqui ou ali fazer isto ou aquilo. Podia haver muita ação e movimento, e, ao
mesmo tempo, ser apenas o impulso de uma vontade indomável, que, agindo
segundo a natureza religiosa, dava uma aparência de devoção e piedade
eminentemente calculada para se enganar e enganar outros.
Mas estar do lado do Senhor envolve a renúncia da vontade própria — sim, a
própria rendição, e isto é essencial ao servo verdadeiro ou ao verdadeiro
obreiro. Saulo de Tarso encontrava- -se neste terreno quando exclamou:
"Senhor, que queres que eu faça?-" Que palavras, do obstinado, cruel e feroz
perseguidor da Igreja de Deus!
"Quem é do Senhor"? É o leitor? Examine-se e veja. Examine-se atentamente.
Lembre-se que a questão não é de modo algum, "Que estás fazendo?-" Não; é
mais profunda.
Se estais do lado do Senhor, estais pronto para qualquer coisa e todas as
coisas—pronto para estar quieto e pronto para ir avante; pronto para ir para a
direita ou para a esquerda; pronto a ser ativo ou estar sossegado; pronto a
manter-se de pé ou estar deitado. O ponto importante é este: o abandono
próprio aos direitos de outrem, e esse é Cristo, o Senhor.
Isto é um assunto de grande alcance. De fato, não conhecemos nada mais
importante, neste momento, que esta importante pergunta: "Quem é do
Senhor?" Vivemos em dias de muita obstinação. O homem exulta com a sua
liberdade. E isto dá-se, de modo proeminente, em assuntos religiosos.
Precisamente como acontecia no acampamento de Israel, nos dias do capítulo
trinta e dois de Êxodo—os dias do bezerro de ouro. Moisés estava ausente e a
vontade humana estava operando; o buril foi posto em ação. E qual foi o
resultado"?- O bezerro de fundição; e no seu regresso Moisés encontrou o povo
nu e na idolatria. E então fez-se a pergunta solene e indagadora: "Quem é do
Senhor?” Isto obrigava a uma decisão, ou, melhor, punha o povo à prova.
Tampouco é diferente agora. A vontade do homem domina sobretudo em
assuntos de religião.
O homem gloria-se dos seus direitos, da liberdade da sua vontade e livre
arbítrio. E a negação do senhorio de Cristo; e portanto convém mantermo-nos
em guarda e certificarmo-nos de que tomamos realmente partido com o Senhor
contra nós mesmos; que tomamos a atitude de simples sujeição à Sua
autoridade. Então não estaremos ocupados com o volume ou caráter do nosso
serviço; será nosso único objetivo fazer a vontade de nosso Senhor.
Ora, atuar assim debaixo da direção do Senhor pode muitas vezes dar a
impressão de estreiteza na nossa esfera de ação; mas com isto não temos
absolutamente nada que ver. Se um amo diz ao seu criado para permanecer na
sala e não se mover enquanto ele não tocar a campainha, qual é a obrigação
daquele servos Evidentemente estar quieto e não abandonar esta posição ou
atitude, ainda que os seus conservos considerem uma falta a sua aparente
inatividade e ociosidade; pode estar certo de que o seu amo aprovará e
justificará a sua conduta. Isto é bastante para todo o servo consagrado, cujo
único desejo for não tanto fazer muita coisa, mas sim fazer a vontade do seu
Senhor.
Em suma, a questão para o acampamento de Israel, nos dias do bezerro de
ouro, a questão para a Igreja, nestes dias de vontade humana, é esta, "Quem é
do Senhor? Que momentosa questão! Não consiste em perguntar quem está do
lado da religião, da filantropia, ou da reforma morais Pode praticar-se
largamente uma ou todas estas coisas e contudo ter uma vontade inteiramente
indomável. Não esqueçamos isto; pelo contrário, diremos antes que devemos
ter isto continuamente em vista. Podemos ser muito zelosos em promover todos
os diversos sistemas de filantropia, religião e reformas morais, e, durante todo o
tempo, estarmos a servir o ego e a vontade própria. E uma consideração
ponderosa e solene; e é conveniente prestarmos-lhe a mais sincera atenção.
Atravessamos uma época em que a vontade do homem é constantemente
lisonjeada. Cremos, sem sombra de dúvidas, que o verdadeiro remédio para
este mal se encontra envolvido nesta interrogação: "Quem é do Senhor?-"
Existe um imenso poder prático nesta pergunta. Estar realmente do lado do
Senhor é estar pronto para qualquer coisa que Ele possa julgar própria para nos
chamar, não importa o que for. Se a alma está disposta a dizer verdadeiramente
"Senhor, que queres que eu faça?- Fala, Senhor, for que o teu servo ouve",
então estamos prontos para todas as coisas. Por isso no caso dos Levitas, eles
foram chamados para matar "cada um o seu irmão, cada um o seu
companheiro, cada um o seu vizinho". Era uma tarefa terrível para a carne e o
sangue. Porém as circunstâncias requeriam-no.
Os direitos de Deus haviam sido desonrados aberta e descaradamente. A
invenção humana havia entrado em ação com o cinzel e um bezerro havia sido
levantado. A glória de Deus havia sido convertida em semelhança de um boi
que come erva; e portanto todos os que estavam do lado do Senhor foram
convidados a cingir a espada. A natureza podia dizer: "Não; sejamos
indulgentes, compassivos e misericordiosos. Conseguiremos mais por
benevolência do que por severidade. Nenhum bem pode haver em ferir as
pessoas. Existe muito mais poder em amor do que no rigor. Amemo-nos uns
aos outros. Assim poderia a natureza humana ter feito as suas
sugestões—podia argumentar e racionar desta forma. Porém, a ordem era clara
e terminante, "Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa". A espada era a
única coisa que era de utilidade enquanto estivesse ali o bezerro de ouro.
Falar de amor em semelhante momento seria escarnecer dos direitos do Deus
de Israel. Compete ao verdadeiro espírito de obediência prestar o próprio
serviço que convém às circunstâncias.
Um servo não tem que raciocinar, deve, simplesmente, fazer o que se lhe
manda. Fazer uma pergunta ou expor uma objeção é abandonar o nosso lugar
de servo. Poderia parecer uma tarefa terrível matar um irmão, um companheiro
ou um vizinho. Porém a Palavra do Senhor era imperativa. Não deixava lugar
para pretextos; e os levitas, por graça, mostraram uma pronta e completa
obediência. "E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés".

A Fidelidade dos Levitas


Este é o único e verdadeiro caminho para todos os que quiserem ser obreiros
de Deus e servos de Cristo neste mundo onde predomina a vontade própria. É
da maior importância ter a verdade do senhorio de Cristo gravada no coração. E
o único regulador da carreira e da conduta. Resolve uma infinidade de
questões. Se o coração estiver realmente submetido à autoridade de Cristo
está-se pronto para tudo que Ele mandar, seja estar quieto ou avançar, fazer
pouco ou muito, ser ativo ou passivo. Para um coração verdadeiramente
obediente, a questão não é, "Que faço?-" ou "Onde vou?" mas, sim, "Faço a
vontade do meu Senhor?-"
Tal era o terreno ocupado por Levi. E observe-se o comentário divino que se
nos dá sobre isto em Malaquias 2:4-6 "Então, sabereis que eu vos enviei este
mandamento, para que o meu concerto seja com Levi, diz o SENHOR dos
Exércitos. Meu concerto com ele foi de vida e de paz, e eu lhas dei par que me
temesse, e me temeu e assombrou-se por causa do meu nome.
"A lei da verdade esteve na sua boca, e a iniquidade não se achou nos seus
lábios; andou comigo em paz, e em retidão e apartou a muitos da iniquidade".
Observe-se também a bênção pronunciada pelo lábios de Moisés em
Deuteronômio 33:8-11. "E de Levi disse: Teu Tumim e teu Urim são para o teu
amado, que tu provaste, em Massá, com quem contendeste nas águas de
Meribá. Aquele que disse a seu pai e a sua mãe: Nunca o vi. E não conheceu a
seus irmãos, e não estimou a seus filhos, pois guardaram a tua palavra e
observaram o teu concerto. Ensinaram os teus juízos a Jacó e a tua lei a Israel;
levaram incenso ao teu nariz e o holocausto sobre o teu altar. Abençoa o seu
poder, ó SENHOR, e a obra das suas mãos te agrade; fere os lombos dos que
se levantavam contra ele e o aborrecem, que nunca mais se levantem."
Poderia ter parecido severidade indesculpável que Levi não tivesse visto os
seus pais nem conhecido ou reconhecido seus irmãos. Porém os direitos de
Deus são soberanos; e Cristo, nosso Senhor, declarou estas solenes palavras:
"Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e
irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu
discípulo" (Lc 14:26).
Estas palavras são claras; e nos fazem penetrar no segredo do que está no
fundo de todo o verdadeiro serviço.
Ninguém pense que não devemos ter afetos naturais. Longe de nós tal
pensamento. Isso seria aderirmos moralmente à apostasia dos últimos dias
(veja-se 2 Timóteo 3:3). Porém, quando se deixa intervir as instâncias dos
afetos naturais como obstáculo no dever do nosso consagrado serviço a Cristo,
e quando ao amor, assim chamado, dos nossos irmãos é dado um lugar mais
elevado que a fidelidade a Cristo, então somos incompetentes para o Seu
serviço e indignos do nome de Seus servos. Note-se atentamente que o que
constituía o fundamento moral do título de Levi para ser empregado no serviço
do Senhor era o fato que ele não via os seus pais nem reconhecia seus irmãos
nem conhecia os seus filhos. Numa palavra, pôde pôr inteiramente de parte as
exigências da natureza e dar aos direitos do Senhor o lugar principal em seu
coração. Esta é, repito, a única base verdadeira do caráter de servo.
Isto é um assunto de muita importância, que requer a mais séria atenção do
leitor cristão. Pode haver muitas coisas que se assemelham a serviço — muita
atividade de idas e vindas, de atos e palavras — e, ao mesmo tempo, pode não
haver um simples átomo de verdadeiro serviço de Levita; sim, pode, segundo
apreciação de Deus, se apenas a atividade agitada da vontade. — O quê —dirá
alguém—a vontade pode manifestar-se no serviço de Deus ou matéria
religiosa?-! Ah! Pode manifestar-se e infelizmente manifesta-se.
Frequentemente a energia aparente e a infecundidade no trabalho e serviço
estão em proporção equitativa com a energia da vontade. Isto é particularmente
solene. Exige o mais severo auto-juízo à luz da presença divina.
O verdadeiro serviço não consiste em grande atividade, mas em profunda
sujeição à vontade do nosso Senhor; e sempre que esta sujeição existe haverá
boa disposição de ânimo para suprimir os direitos de pais, irmãos, e filhos, de
forma a cumprir a vontade dAquele que reconhecemos como nosso Senhor.
Decerto, devemos amar os nossos pais, os nossos irmãos e os nossos filhos.
Não se trata de os amarmos menos, mas, sim de amar mais a Cristo. E preciso
que o Senhor e os Seus direitos ocupem sempre o primeiro lugar em nosso
coração, se queremos ser verdadeiros servos de Deus, verdadeiros servos de
Cristo, verdadeiros levitas no deserto. Era isto que caracterizava os atos de Levi
na ocasião a que nos referimos. Os direitos de Deus estavam em causa, e por
isso os direitos da natureza não eram tomados em consideração. Os pais, os
irmãos e os filhos, por mais queridos que pudessem ser, não podiam ser um
obstáculo quando a glória do Deus de Israel tinha sido mudada em semelhança
de um boi que come erva.
A questão apresenta-se aqui em toda a sua importância e magnitude. Os laços
de parentesco natural, com todos os direitos, deveres e responsabilidades
inerentes a tais laços, terão sempre o seu próprio lugar e legítima atenção
daqueles cujos corações, espíritos e consciências têm sido colocados sob a
influência reguladora da verdade de Deus. Nada senão o que é realmente
devido a Deus deve ser permitido que infrinja aqueles direitos que são fundados
sobre o parentesco natural. É uma consideração necessária e das mais
salutares e sobre a qual desejo particularmente insistir perante o leitor jovem.
Temos de nos guardar sempre do espírito de obstinação e egoísmo, que nunca
é tão perigoso como quando se reveste de aparência de serviço religioso e do
trabalho assim chamado.
É conveniente estarmos seguros de que somos direta e simplesmente dirigidos
em obediência aos direitos de Deus quando negligenciamos os direitos do
parentesco natural. No caso de Levi, o assunto era tão claro como o sol, e por
isso a "espada” do juízo e não o beijo de afeição era o que convinha nesse
momento crítico. Assim também na nossa história, há momentos em que seria
manifesta deslealdade a Cristo nosso Senhor atender, por um momento, a voz
do parentesco natural.
As observações precedentes podem ajudar o leitor a compreender os atos dos
Levitas em Êxodo 32 e as palavras do Senhor em Lucas 14:26. Que o Espírito
de Deus nos habilite a realizar e mostrar o poder apropriado da verdade!
A Consagração dos Levitas
Fixemos agora a nossa atenção, por um momento, sobre a consagração dos
Levitas em Números 8, a fim de podermos ter todo o assunto ante as nossas
mentes. É um tema verdadeiramente cheio de instrução para todos os que
desejam ser servos de Deus.
Depois dos atos cerimoniais de "lavar" e "barbear" já referidos, lemos: "Então,
tomarão (quer dizer, os levitas) um novilho, com a sua oferta de manjares de flor
de farinha amassada com azeite; e tomarás outro novilho, para expiação do
pecado. E farás chegar os levitas perante a tenda da congregação; e farás
ajuntar toda a congregação dos filhos de Israel. E Arão moverá os levitas por
oferta de movimento perante o SENHOR pelos filhos de Israel; e serão para
servirem no ministério do SENHOR. E OS levitas porão as suas mãos sobre a
cabeça dos novilhos; então, sacrifica tu um para expiação do pecado e o outro
para holocausto ao SENHOR, para fazer expiação pelos levitas."
Aqui se nos apresentam, em figura, os dois grandes aspectos da morte de
Cristo. A expiação do pecado dá-nos um; o holocausto mostra-nos o outro. Não
entramos em pormenores sobre essas ofertas, o que já tentamos fazer nos
primeiros capítulos dos nossos "Estudos sobre o Livro de Levítico". Queremos
observar apenas aqui que, na expiação do pecado vemos Cristo levando o
pecado em Seu corpo sobre o madeiro e sofrendo a ira de Deus contra o
pecado. No holocausto vemos Cristo glorificando a Deus até mesmo no próprio
ato de fazer expiação pelo pecado. Em ambos os casos faz expiação pelo
pecado; porém, no primeiro é expiação segundo a profundidade das
necessidades do pecador; no último é expiação na medida do afeto de Cristo a
Deus. Naquele vemos a aversão do pecado; neste a preciosidade de Cristo.
Desnecessário é dizer, é a mesma morte expiatória de Cristo, mas apresentada
em dois aspectos distintos(1)
__________
Para mais instrução sobre a doutrina da expiação do pecado e o holocausto
retemos o feitor para "Estudos sobre o Livro de Levítico" — capítulos 1 a 4.

Ora, os Levitas punham as suas mãos sobre a expiação do pecado e o


holocausto; e este ato de imposição das mãos representava simplesmente o
fato da identificação. Porém quão diferente era o resultado em cada caso!
Quando Levi punha as suas mãos sobre a cabeça da expiação do pecado, isso
envolvia a transferência de todos os seus pecados, de toda a sua culpa, de toda
a sua violência, crueldade e obstinação para a vítima. E por outro lado, quando
punha as suas mãos sobre a cabeça do holocausto, isso implicava a
transferência de toda a aceitabilidade e de toda a perfeição do sacrifício para
Levi. Evidentemente, falamos do que o símbolo expressa. Não procuramos
averiguar até que ponto a inteligência de Levi compreendia estas coisas;
procuramos apenas desenrolar o significado do símbolo cerimonial; e,
seguramente, nenhuma figura poderia ser mais expressiva do que a imposição
das mãos, quer a contemplemos no caso da expiação do pecado ou no caso do
holocausto. A doutrina de tudo isto está englobada na passagem muito
importante do versículo final de 2 Coríntios 5: "Àquele que não conheceu
pecado, o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus."
"E porás os levitas perante Arão e perante os seus filhos, e os moverás por
oferta de movimento ao SENHOR. E separarás os levitas do meio dos filhos de
Israel, para que os levitas meus sejam. E, depois, os levitas entrarão para
fazerem o serviço da tenda da congregação; e tu os purificarás e, por oferta de
movimento, os moverás. Por quanto eles, do meio dos filhos de Israel, me são
dados; em lugar de todo aquele que abre a madre, do primogênito de cada um
dos filhos de Israel, para mim os tenho tomado. Porque meu é todo primogênito
entre os filhos de Israel, entre os homens e entre os animais; no dia em que, na
terra do Egito, feri a todo primogênito, os santifiquei para mim. E tomei os levitas
em lugar de todo primogênito entre os filhos de Israel. E os levitas, dados a Arão
e seus filhos, do meio dos filhos de Israel, tenho dado para exercerem o
ministério dos filhos de Israel na tenda da congregação e para fazerem
expiação pelos filhos de Israel, para que não haja praga entre os filhos de Israel,
chegando-se os filhos de Israel ao santuário. E assim fez Moisés, e Arão, e toda
a congregação dos filhos de Israel com os levitas; conforme tudo o que o
SENHOR ordenara a Moisés acerca dos levitas, assim os filhos de Israel lhes
fizeram" (Nm 8:13-20).
Quão forçosamente estas passagens nos recordam as palavras de nosso
Senhor em João 17: "Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me
deste; eram teus, e tu mos deste, e guardaram a tua palavra... Eu rogo por eles;
não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus. E todas
as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso sou glorificado"
(versículos 6-10).
Os levitas eram um povo separado — a possessão especial de Deus. Tomavam
o lugar de todos os primogênitos em Israel — daqueles que haviam sido salvos
da espada do destruidor pelo sangue do cordeiro. Eram, simbolicamente, um
povo morto e ressuscitado, posto de parte para Deus, e que Ele oferecia como
um dom a Arão, o sumo sacerdote, para o serviço do tabernáculo.
Que lugar para o obstinado, violento e cruel Levi! Que triunfo da graça! Que
ilustração do sangue da expiação e da água da purificação! Estavam, por
natureza e por suas obras, longe de Deus; mas o "sangue" da expiação e a
"água" da purificação e a "navalha" do juízo próprio tinham feito a sua bendita
obra, e por isso os levitas estavam em condições de serem apresentados como
tais como um dom a Arão e seus filhos para serem associados com eles nos
serviços sagrados do tabernáculo da congregação.
Em tudo isto, os levitas eram um símbolo notável do povo de Deus agora. Os
que formam este povo têm sido levantados das profundidades da sua
degradação e ruína como pecadores. Estão lavados no precioso sangue de
Cristo, purificados pela aplicação da palavra e chamados ao exercício de
habitual e severa condenação de si mesmos. Assim estão aptos para o serviço
santo a que são chamados. Deus deu-os a Seu Filho para que pudessem ser os
Seus servos neste mundo. "Eram teus e tu mos deste."
Que pensamento maravilhoso! E pensarmos que se pode falar assim de nós!
Pensar que somos propriedade de Deus e dom de Deus a Seu Filho! Bem
podemos dizer que isto ultrapassa a imaginação humana. Não só estamos
salvos do inferno, o que é verdade; não só estamos perdoados, justificados e
aceitos, o que é tudo verdade; mas somos chamados para o elevado e supremo
cargo de levar por este mundo o nome, o testemunho e a glória de nosso
Senhor Jesus Cristo. Esta é a nossa obra como verdadeiros levitas. Como
homens de guerra, somos chamados para lutar; como sacerdotes, temos o
privilégio de adorar; mas como levitas, temos a responsabilidade de servir, e o
nosso serviço consiste em levar através deste árido deserto o antítipo do
tabernáculo e esse tabernáculo era o símbolo de Cristo. Esta é claramente a
nossa linha de serviço. E para isto que somos chamados — para isto que
somos postos de parte.
O leitor notará, sem dúvida, com interesse, o fato que é neste livro de Números,
e somente nele, que nos são dados todos os pormenores precisos e
profundamente instrutivos a respeito dos levitas. Neste fato temos uma nova
ilustração do caráter do nosso livro. E do ponto de vista de um deserto que
obtemos uma vista própria e completa tanto dos obreiros como dos guerreiros
de Deus.

O Serviço dos Levitas


E agora, examinemos por alguns momentos o serviço dos levitas descrito em
Números 3 e 4.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Faze chegar a tribo de Levi e põe-na
diante de Arão, o sacerdote, para que o sirvam, e tenham cuidado da sua
guarda e da guarda de toda a congregação, diante da tenda da congregação,
para administrar o ministério do tabernáculo, e tenham cuidado de todos os
utensílios da tenda da congregação e da guarda dos filhos de Israel, para
administrar o ministério do tabernáculo. Darás, pois, os levitas a Arão e a seus
filhos: dentre os filhos de Israel lhes são dados em dádiva" (Nm 3:5-9).
Os levitas representavam toda a congregação de Israel e atuavam em seu
favor. Isto depreende-se do fato que os filhos de Israel punham as suas mãos
sobre as cabeças dos levitas, assim como os levitas punham as suas mãos
sobre as cabeças dos sacrifícios (veja-se capítulo 8:10).
A imposição das mãos era um ato expressivo de identificação; de forma que,
segundo este significado, os levitas oferecem um aspecto muito especial do
povo de Deus no deserto. Apresentam-no como uma companhia de zelosos
obreiros, e isso, também, note-se, não como simples obreiros inconstantes,
correndo de um lado para o outro, e fazendo cada qual o que parecia bem aos
seus olhos. Nada disso. Se os homens de guerra tinham que mostrar a sua
linhagem e permanecer fiéis à sua bandeira, os levitas tinham também o seu
centro de reunião e a sua tarefa a cumprir. Tudo era claro, distinto e definido
tanto quanto Deus o podia fazer; e, além disso, tudo estava sob a direção
imediata e da autoridade do sumo sacerdote.
É necessário que todos os que querem ser verdadeiros levitas, verdadeiros
obreiros, servos inteligentes, ponderem com toda a seriedade este assunto. O
serviço dos levitas devia ser regulado por nomeação do sacerdote. Não havia
mais lugar para o exercício da vontade própria no serviço dos levitas, como
tampouco havia na posição dos homens de guerra. Tudo está divinamente
estabelecido, e isto era uma graça particular para todos aqueles que tinham os
seus corações numa condição justa. Para aquele cuja vontade era inflexível
poderia parecer uma injustiça e a mais enfadonha tarefa ser- se obrigado a
ocupar a mesma posição ou ter que desempenhar invariavelmente a mesma
linha de serviço.
Uma tal pessoa podia suspirar por alguma coisa nova — por alguma variedade
no seu trabalho. Pelo contrário, sempre que a vontade era submissa e o
coração estava em paz, cada um podia dizer: O meu caminho é perfeitamente
claro; eu só tenho que obedecer.
Este é sempre o dever do verdadeiro servo. Foi assim de um modo preeminente
com Aquele que foi o único servo perfeito que passou pelo mundo. Ele pôde
dizer, "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade
daquele que me enviou" (Jo 6:38). E também, "A minha comida é fazer a
vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra" (Jo 4:34).
Porém, há outro fato a respeito dos levitas que merece a nossa atenção, e este
é que o seu serviço dizia respeito exclusivamente ao tabernáculo e o que lhe
pertencia. Nada mais tinham que fazer. Pensar que podiam meter mão em
qualquer outra coisa seria para um levita renegar a sua chamada, abandonar a
sua obra divinamente determinada e apartar-se dos mandamentos de Deus.
O mesmo acontece com o cristão agora. A sua tarefa exclusiva — a sua única e
grande obra — o seu serviço essencial é Cristo e os Seus interesses. Nada
mais tem que fazer. Para um cristão pensar em lançar a sua mão a qualquer
outra coisa é renegar a sua chamada, abandonar a sua obra divinamente
estabelecida e furtar-se aos mandamentos divinos. Um verdadeiro levita da
antiguidade podia dizer: "Para mim o viver é o tabernáculo"; e um verdadeiro
cristão pode dizer; "Para mim viver é Cristo". A grande questão em tudo quanto
pode apresentar-se a um cristão é esta: "Posso associar Cristo com isto? Se
não posso, nada tenho absolutamente que ver com o assunto."
Esta é a verdadeira forma de encarar as coisas. Não se trata da questão quanto
ao que há de bom ou mau nisto ou naquilo. Não; é apenas uma questão de
saber até que ponto interessa ao nome e à gloria de Cristo. Isto simplifica
maravilhosamente todas as coisas, resolve mil dificuldades , responde a
múltiplas interrogações e torna o caminho do cristão verdadeiro e fiel tão claro
como os raios do sol.
Um levita não tinha dificuldade quanto ao seu trabalho. Estava tudo
estabelecido com precisão divina. O fardo que cada um tinha que levar e o
trabalho que cada um tinha que fazer estavam estabelecidos com uma precisão
tal que não deixava lugar para as dúvidas do coração. Cada um conhecia o seu
trabalho e fazia-o; e podemos dizer que o trabalho era feito por cada um no
cumprimento das suas funções específicas. Não era correndo de cá para lá e
fazendo isto ou aquilo que se cumpria plenamente o serviço do tabernáculo,
mas do modo como cada um ocupava assiduamente da sua tarefa especial.
Convém não esquecer isto. Somos, como cristãos, bastante propensos a
rivalizar uns com os outros; e podemos estar certos de atuar assim se cada um
de nós não segue a linha de trabalho divinamente estabelecida. Dizemos
divinamente estabelecida e desejamos acentuar esta expressão. Não temos o
direito de escolher a nossa própria obra. Se o Senhor fez a um homem
evangelista, a outro doutor (ou: mestre), a outro pastor e a outro dotou para
exortação, como deve fazer-se o trabalho?
Não é certamente tratando o evangelista de ensinar e procurando o doutor
exortar, ou por aquele que, não estando qualificado nem para um nem para o
outro, trata de exercer ambos os dons. Não; é exercendo cada um o dom que
lhe foi divinamente dado. Sem dúvida, o Senhor pode comprazer-Se em dotar
um homem com uma diversidade de dons; mas isto não afeta em nada o
princípio de que tratamos, o qual é simplesmente este: cada um de nós é
responsável por conhecer o seu próprio serviço e cumpri-lo. Se perdermos isto
de vista perder-nos-emos em desesperada confusão. Deus tem os Seus
cabouqueiros, e canteiros e pedreiros.
A obra progride à medida que cada um faz diligentemente o seu trabalho. Se
todos fossem cabouqueiros, onde estariam os canteiros? E se todos fossem
canteiros, onde estariam os pedreiros ? O que aspira ao trabalho de outro, ou
procura imitar o dom de outro, causa o maior prejuízo que pode imaginar-se à
causa de Cristo e à obra de Deus no mundo. É um erro grave, contra o qual
queremos advertir solenemente o leitor. Nada pode ser mais absurdo. Deus
nunca faz duas coisas iguais. Não há dois rostos humanos iguais, nem existem
na floresta duas folhas iguais, nem duas hastes de erva semelhantes.
Porque há-de, pois, alguém aspirar ao trabalho de outro ou imitar o dom de
outrem? Contente-se cada um em ser precisamente o que o seu Senhor fez
dele. Este é o segredo de uma verdadeira paz e do progresso.
Tudo isto encontra uma brilhante ilustração na narrativa inspirada acerca do
serviço das três classes distintas de levitas, a cuja reprodução vamos, agora,
proceder integralmente para proveito o leitor. No fim de contas, nada há que
possa comparar-se com a verdadeira linguagem das Sagradas Escrituras.

O Serviço dos Filhos de Gérson


"E falou o SENHOR a Moisés no deserto do Sinai, dizendo: Conta os filhos de
Levi, segundo a casa de seus pais, pelas suas gerações; contarás a todo varão
da idade de um mês e para cima. E Moisés os contou conforme ao mandado do
SENHOR, como lhe foi ordenado. Estes, pois, foram os filhos de Levi, pelos
seus nomes: Gérson, e Coate, e Merari. E estes são os nomes dos filhos de
Gérson pelas suas gerações: Libni e Simei. E os filhos de Coate pelas suas
gerações: Anrão, e Izar, e Hebrom, e Uziel. E os filhos de Merari pelas suas
gerações: Mali e Musi: estas são as gerações dos levitas, segundo a casa de
seus pais. De Gérson é a geração dos libnitas e a geração dos simeitas; estas
são as gerações dos gersonitas. Os que deles foram contados pelo número de
todo varão da idade de um mês para cima, os que deles foram contados foram
sete mil e quinhentos. As gerações dos gersonitas assentarão as suas tendas
atrás do tabernáculo, ao ocidente. E o príncipe da casa paterna dos gersonitas
será Eliasafe, filho de Lael. E a guarda dos filhos de Gérson, na tenda da
congregação será o tabernáculo, e a tenda, a sua coberta, e o véu da porta da
tenda da congregação, e as cortinas do pátio, e o pavilhão da porta do pátio,
que estão junto ao tabernáculo e junto ao altar, em redor; como também as suas
cordas para todo o seu serviço" (Nm 3:14-26).
E lemos também em capítulo 4:21-28: "Falou mais o SENHOR a Moisés,
dizendo: Toma também a soma dos filhos de Gérson, segundo a casa de seus
pais, segundo as suas gerações; da idade de trinta anos para cima, até aos
cinquenta, contarás a todo aquele que entrar a servir no seu serviço, para
exercer o ministério na tenda da congregação. Este será o ministério das
gerações dos gersonitas, no serviço e na carga: levarão, pois, as cortinas do
tabernáculo, e a tenda da congregação, e a sua coberta, e a coberta de peles
de texugos que está em cima, sobre ele, e o véu da porta da tenda da
congregação, e as cortinas do pátio e o véu da porta do pátio, que está junto ao
tabernáculo e junto ao altar em redor, e as suas cordas e todos os instrumentos
do seu ministério, como tudo que se adereçar para eles, para que ministrem.
Todo o ministério dos filhos dos gersonitas, em todo o seu cargo e em todo o
seu ministério, será segundo o mandado de Arão e de seus filhos; e lhes
encomendareis em guarda todo o seu cargo. Este é o ministério das gerações
dos filhos dos gersonitas na tenda da congregação; e a sua guarda será
debaixo da mão de Itamar, filho de Arão, o sacerdote."
Isto é tudo que diz respeito a Gérson e sua obra. Ele e seu irmão Merari tinham
de levar "o tabernáculo"; enquanto que Coate estava destinado a levar "o
santuário", como lemos em capítulo 10:17,21. "Então, desarmaram o
tabernáculo, e os filhos de Gérson e os filhos de Merari partiram, levando o
tabernáculo... então, partiram os coatitas, levando o santuário-, e os outros (isto
é, os gersonitas e meraritas) levantaram o tabernáculo, enquanto estes
vinham."
Havia um forte laço moral que unia Gérson e Merari no seu serviço, embora a
sua obra fosse perfeitamente distinta, como veremos pela passagem seguinte.

O Serviço dos Filhos de Merari


"Quanto aos filhos de Merari, segundo as suas gerações e segundo a casa de
seus pais os contarás; da idade de trinta anos para cima, até aos cinquenta,
contarás a todo aquele que entrar neste serviço, para exercer o ministério da
tenda da congregação. Esta, pois, será a guarda do seu cargo, segundo todo o
seu ministério, na tenda da congregação: as tábuas do tabernáculo, e os seus
varais, e as suas colunas, e as suas bases como também as colunas do pátio
em redor, e as suas bases, e as suas estacas, e as suas cordas, com todos os
seus instrumentos, com todo o seu ministério; e contareis os utensílios da
guarda do seu cargo, nome por nome. Este é o ministério das gerações dos
filhos de Merari, segundo todo o seu ministério, na tenda da congregação,
debaixo da mão de Itamar, filho de Arão, o sacerdote" (Nm 4:29-33).
Tudo isto era claro e bem distinto. Gérson nada tinha que ver com as tábuas e
as estacas; e Merari nada tinha que ver com as cortinas ou cobertas. E contudo
estavam intimamente unidos, assim como estavam mutuamente dependentes.
"As tábuas e as bases" de nada serviam sem "as cortinas"; e as cortinas não
teriam sido úteis sem as tábuas e as bases. E quanto às "estacas", ainda que
parecessem insignificantes, quem poderia apreciar a sua importância unindo os
objetos entre si e mantendo a unidade visível do conjunto? Assim todos
trabalhavam em conjunto para um fim, e este era alcançado ocupando-se cada
um na sua especialidade. Se um gersonita tivesse a ideia de abandonar "as
cortinas" para se ocupar das "estacas" teria deixado o seu próprio trabalho
inacabado e interferido com o trabalho de um merarita. Isto de nada serviria.
Tudo teria caído em desesperada confusão: enquanto que atendendo-se a
regra divina tudo era mantido na mais perfeita ordem.
Deve ter sido perfeitamente belo observar os obreiros de Deus no deserto.
Cada um estava no seu posto e atuava dentro da esfera que lhe havia sido
divinamente designada. Por isso, logo que a nuvem se levantava e a ordem de
partir era dada, cada um sabia o que tinha a fazer, e dirigia-se para isso e nada
mais. Ninguém tinha o direito de seguir os seus próprios pensamentos. O
Senhor pensava por todos. Os levitas haviam-se declarado "do lado do
SENHOR"; tinham-se submetido à Sua autoridade; e este fato estava na própria
origem de toda a sua obra e serviço no deserto. Encaradas as coisas à luz
deste princípio era indiferente que um homem tivesse de levar uma estaca ou
uma cortina ou um castiçal de ouro. A grande questão para todos e cada um era
simplesmente esta: É este o meu trabalho? E isto que o Senhor me tem dado a
fazer?
Isto resolvia tudo. Tivesse o assunto sido deixado ao critério ou escolha
humana, e um teria preferido isto, outro poderia gostar mais daquilo, e um
terceiro poderia gostar de qualquer coisa mais. Como poderia, pois, o
tabernáculo ser transportado através do deserto ou montado no seu lugar<? Era
impossível! Só podia haver uma autoridade suprema, a saber, o Próprio Senhor.
Ele havia disposto tudo e todos tinham de submeter-se-Lhe. Não havia nenhum
lugar para a manifestação da vontade humana. Isto era um sinal de
misericórdia. Evitava todo um mundo de lutas e confusão. Tem de haver
sujeição — é necessário que haja uma vontade quebrantada—e uma cordial
adesão à autoridade divina, de outra forma seria como nos dias do Livro de
Juízes. "Porém, cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos" (Jz 21:25).
Um merarita podia dizer ou pensar, se não o dizia: "O quê? Tenho de gastar a
melhor parte da minha vida na terra — a flor da minha vida—a cuidar de
algumas estacas?- Foi para este fim que eu nascia Não haverá nada mais
elevado perante mim como objetivo da minha vida? Tem de ser esta a minha
ocupação desde a idade dos trinta aos cinquenta anos?
Para tais interrogações havia uma resposta dupla. Em primeiro lugar, a um
merarita bastava saber que o Senhor lhe havia destinado a sua obra. Isto
bastava para comunicar dignidade ao que a natureza podia considerar a
ocupação mais ínfima e obscura.
Pouco importa o que estamos fazendo, contanto que cumpramos a tarefa que
nos foi divinamente destinada. Um homem pode seguir uma carreira que aos
seus semelhantes pareça brilhante; pode empregar a sua energia, o seu tempo,
o seu talento em busca do que os homens deste mundo consideram grande e
glorioso; e, ao mesmo tempo, a sua vida pode ser apenas uma brilhante ilusão.
Por outro lado, o homem que faz simplesmente a vontade de Deus, seja qual
for, o homem que cumpre os mandamentos do seu Senhor, seja o que for que
esses mandamentos imponham — esse é o homem cujo caminho é iluminado
pelo raios da aprovação divina e cuja obra será recordada quando os mais
esplêndidos projetos dos filhos deste mundo tiverem caído em eterno
esquecimento.
Mas, além do valor moral que sempre acompanhava o ato de fazer o que lhe
era ordenado, havia também uma dignidade particular envolta na obra de um
merarita, ainda mesmo quando essa obra consistia apenas em cuidar de
algumas "estacas" ou de "bases".
Tudo que se relacionava com o tabernáculo era do maior interesse e elevado
valor. Não havia em todo o mundo coisa alguma que pudesse ser comparada
com esse tabernáculo coberto de tábuas com todas as suas místicas
dependências. Era uma dignidade santa e um sagrado privilégio ser-se
autorizado a tocar na mais pequena estaca que formava parte desse
maravilhoso tabernáculo no deserto. Era infinitamente mais glorioso ser um
merarita, cuidando das estacas do tabernáculo, do que manejar o cetro do Egito
ou da Assíria. E verdade que esse merarita, segundo o significado do seu
nome, podia parecer um pobre homem "amargurado"; mas, o seu trabalho
estava relacionado com a habitação do Deus Altíssimo, Possuidor dos céus e
da terra. As suas mãos pousavam sobre objetos que eram figuras de coisas que
estavam nos céus. Cada estaca, cada base, cada cortina e cada cobertura era
uma sombra das grandes coisas que haviam de vir — uma figura de Cristo.
Não pretendemos afirmar que o humilde servo merarita ou gersonita
compreendia estas coisas. A questão não é, de modo algum, esta. Nós
compreendemo-las. É nosso privilégio colocar todas estas coisas, o tabernáculo
e o seu equipamento místico, sob a luz brilhante do Novo Testamento, e
descobrir Cristo em todas.
Apesar de não basearmos nada sobre a medida de inteligência que possuíam
os levitas sobre o seu respectivo trabalho, podemos, contudo, dizer com
confiança que era um precioso privilégio serem autorizados a tocar e manejar e
transportar através do deserto as sombras terrestres de realidades celestiais.
Além disso, era uma graça especial ter a autoridade de um "Assim diz o
SENHOR" para tudo em que punham as mãos. Quem pode apreciar uma tal
graça e um tal privilégio? Cada membro dessa maravilhosa tribo de obreiros
tinha o seu limite especial de coisas marcado pela mão de Deus, e sob a
direção do sacerdote de Deus. Não era questão de cada um fazer 0 que mais
lhe agradava seguir de outrem, mas de todos se submeterem à autoridade de
Deus, e de fazerem precisamente o que lhes era ordenado.
Este era o segredo da ordem entre os oito mil quinhentos e oitenta obreiros (Nm
4:48). E podemos dizer, com toda a confiança, que e ainda o único e verdadeiro
segredo de ordem. Por que é que nós temos tanta confusão na igreja
professante? Por que tantos conflitos de pensamentos, de sentimentos e
opiniões? Por que tanta colisão de uns contra outros? Por que se atravessam
uns no caminho dos outros?- Simplesmente por falta de submissão completa e
absoluta à Palavra de Deus. A nossa vontade trabalha. Escolhemos os nossos
próprios caminhos em vez de deixarmos que Deus escolha por nós. Falta-nos
aquela atitude e estado de alma em que todos os pensamentos humanos,
incluindo os nossos próprios, são considerados pelo que realmente valem, e em
que os pensamentos de Deus se elevam a uma absoluta soberania.

A Completa Submissão a Deus


Estamos convencidos de que esta é a grande aspiração — a necessidade
premente dos dias em que vivemos. A vontade do homem está ganhando por
toda a parte domínio. Levanta-se como uma poderosa onda e arrasta as antigas
barreiras que, em certa medida, a têm detido. Muitas das antigas e veneráveis
instituições estão, neste momento, sendo arrastadas pela corrente esmagadora.
Muitos edifícios cujos fundamentos, segundo supúnhamos, estavam
profundamente lançados nas afeições reverentes e afetuosas do povo, estão
sendo demolidos pelo ariete do sentimento popular. "Rompamos as suas
ataduras e sacudamos de nós as suas cordas" (SI 2:3).
Tal é, de modo proeminente, o espírito do século. Qual é o antídoto?
Submissão! Submissão a quê? E submissão ao que se chama a autoridade da
Igreja? A voz da tradição? Aos mandamentos e doutrinas dos homens? Não;
bendito seja Deus, não é a qualquer destas coisas nem a todas elas juntas.
Então, a quê? A voz do Deus vivo — à voz da Sagrada Escritura. Este é o
grande remédio para a vontade própria, por um lado, e a submissão à
autoridade humana, por outro. "Devemos obedecer". Esta é a resposta à
vontade própria. "Devemos obedecer a Deus". E a resposta à sujeição à
autoridade humana em matéria de fé. Vemos estes dois elementos sempre em
redor de nós. O primeiro, a vontade própria, gira em infidelidade. O Segundo, a
submissão ao homem, resolve-se em superstição. Estas duas tendências
exercem a sua influência sobre todo o mundo civilizado. Arrastarão todos salvo
aqueles que são divinamente ensinados a dizer e sentir e atuar segundo a
máxima imortal: "Mais importa obedecer a Deus do que aos homens".
Era isto que habilitava o gersonita, no deserto, a cuidar dessas "peles" pouco
atraentes e ásperas "de texugo"; e habilitava também o merarita a cuidar das
"estacas" aparentemente insignificantes. Sim, e é isto que habilitará o cristão,
nos nossos dias, a aplicar-se àquela linha especial de serviço para que o seu
Senhor achar conveniente chamá-lo. Ainda que à vista humana tal serviço
pareça humilde e insignificante, deve bastar-nos que o nosso Senhor nos tenha
determinado o nosso lugar e dado o nosso trabalho, e que este trabalho tenha
uma relação imediata com a pessoa e glória d Aquele que traz a bandeira entre
dez mil e é totalmente desejável.
Nós poderemos ter também que nos limitarmos ao antítipo das peles ásperas
de texugo ou às insignificantes estacas. Porém, lembremo-nos de que tudo que
se relaciona com Cristo—com o Seu nome, com a Sua Pessoa e Sua causa —
no mundo é inefavelmente precioso para Deus. Pode ser muito pequeno no
parecer humano; mas que importai Devemos ver as coisas do ponto de vista de
Deus, e devemos medi-las, pela Sua medida, e esta é Cristo. Deus mede tudo
por Cristo. Tudo aquilo que tem até mesmo a mais pequena relação com Cristo
é interessante e importante no parecer de Deus. Ao passo que os mais
excelentes empreendimentos, os projetos mais gigantescos, as empresas mais
admiráveis dos homens deste mundo, todos se desvanecem como a nuvem e o
orvalho da manhã.
O homem faz do ego o seu centro, o seu objetivo e o seu padrão. Avalia as
coisas segundo a medida em que elas o exaltam e favorecemos seus
interesses. Apropria religião, assim chamada, é abraçada do mesmo modo, e
convertida num pedestal para ele se salvar. Em resumo, todas as coisas servem
como um capital para o ego e são usadas como refletor para projetar luz sobre
esse único objeto e chamar para ele a atenção. Assim há um imenso abismo
entre os pensamentos de Deus e os pensamentos dos homens; e as margens
esse abismo estão tão separadas como Cristo e o ego. Tudo que pertence a
Cristo é de importância e interesse eterno. Tudo que Pertence ao ego passará e
será esquecido.
Por isso, o mais fatal erro em que pode cair qualquer pessoa é fazer do ego o
seu objetivo. O resultado será um eterno desapontamento. Mas, por outro lado,
a coisa mais sensata, mais segura e melhor que qualquer pessoa pode fazer é
ter a Cristo por seu único e absorvente objetivo. Isto redundará infalivelmente
em bênção e glória eternas.
Prezado leitor, detém-te por um momento e consulta o teu coração e a tua
consciência. Parece-nos, neste ponto, que tens uma sagrada responsabilidade
a cumprir com respeito à tua alma. Estamos redigindo estas linhas na solidão do
nosso quarto em Bristol, e talvez tu as leias na solidão do teu na Nova Zelândia,
Austrália ou em algum outro lugar distante.
Queremos portanto lembrar que o nosso objetivo não é escrever um livro, nem
tampouco comentar apenas a Escritura. Desejamos ser usados por Deus na
obra bendita de tratar com o profundo da tua alma. Permite, pois, que te faça
esta pergunta solene e premente: Qual é o teu objetivo? E Cristo ou o ego? Sê
sincero ante o Todo-Poderoso, Absoluto esquadrinhador dos corações. Julga-te
a ti próprio como estando na própria luz da presença divina. Não te deixes
enganar por qualquer brilho ou falsa cor. Deus vê o que está abaixo da
superfície das coisas e quer que procedas do mesmo modo. Ele apresenta-te
Cristo em contraste com tudo o mais. Já O aceitaste? E Ele a tua sabedoria, a
tua justiça, tua santificação e redenção? Podes dizer, sem hesitação, "O meu
amado é meu e eu sou d'Ele"? Examina e vê. E este um ponto para ti
completamente arrumado nas profundidades da tua alma?- Se assim é, fazes
de Cristo o teu único objetivo? Medes todas as coisas por Ele?-
Oh, prezado amigo, estas são perguntas penetrantes! Está certo de que não as
fazemos sem sentir o seu poder penetrante. Deus é testemunha de que
sentimos, muito embora em que pequena medida, a sua importância e
gravidade. Estamos profunda e inteiramente convencidos de que nada
permanecerá senão o que está relacionado com Cristo; e, além disso, que a
questão mais ínfima que levemente Lhe diga respeito é de supremo interesse
no juízo do céu. Se nos for dado despertar em algum coração o sentimento
destas verdades ou de aprofundar este sentimento onde não haja sido
despertado, não teremos redigido esta obra em vão.
O Serviço dos Filhos de Coate
Devemos, agora, antes de fechar esta extensa parte, dar uma vista de olhos,
por alguns momentos, aos filhos de Coate e a sua obra.
"E falou o SENHOR a Moisés e a Arão, dizendo: Toma a soma dos filhos de
Coate, do meio dos filhos de Levi, pelas suas gerações, segundo a casa de
seus pais; da idade de trinta anos para cima até aos cinquenta anos será todo
aquele que entrar neste exército para fazer obra na tenda da congregação. Este
será o ministério dos filhos de Coate, na tenda da congregação, nas coisas
santíssimas. Quando partir o arraial, Arão e seus filhos virão e tirarão o véu da
coberta e com ele cobrirão a arca do Testemunho; e pôr-lhe-ão por cima uma
coberta de peles de texugos, e sobre ela estenderão um pano, todo azul, e lhe
meterão os varais. Também sobre a mesa da proposição estenderão um pano
azul e; sobre ela, porão os pratos, e os seus incensários, e as taças, e
escudelas; também o pão contínuo estará sobre ela. Depois, estenderão, em
cima deles um pano de carmesim, e, com a coberta de peles de texugos, o
cobrirão, e lhe porão os seus varais. Então, tomarão um pano de azul e cobrirão
o castiçal da luminária, e as suas lâmpadas, e os seus espevitadores, e os seus
apagadores, e todos os seus utensílios de azeite, com que o servem. E
meterão, a ele e a todos os seus utensílios, na coberta de peles de texugos e o
porão sobre os varais. E, sobre o altar de ouro, estenderão um pano azul, e com
a coberta de peles de texugos o cobrirão, e lhe porão os seus varais. Também
tomarão todos os utensílios do ministério, com que servem no santuário; e os
porão num pano azul, e os cobrirão com uma coberta de peles de texugos, e os
porão sobre os varais. E tirarão as cinzas do altar e por cima dele estenderão
um pano de púrpura. E sobre eles porão todos os seus instrumentos com que o
servem: e os seus braseiros, e os garfos, e as pás, e as bacias, todos os
utensílios do altar; e por cima dele estenderão uma coberta de peles de texugos
e lhe porão os seus varais. Havendo, pois, Arão e seus filhos, ao partir do
arraial, acabado de cobrir o santuário e todos os instrumentos do santuário,
então, os filhos de Coate virão para levá-lo; mas, no santuário não tocarão, para
que não morram; este é o cargo dos filhos de Coate na tenda da congregação"
(Nm 4:1-15).
Aqui vemos os preciosos mistérios confiados à guarda do filhos de Coate. A
arca, a mesa de outro, o castiçal de ouro, o altar de ouro, e o altar do holocausto
— todos eles sombras de bens futuros — figuras de coisas nos céus, figuras de
cosias verdadeiras; símbolos de Cristo, em Sua Pessoa, Sua obra, e Seu ofício,
como já procuramos demonstrar nos nossos Estudos sobre o Livro do Êxodo 29
e 30.
Estas coisas nos são apresentadas no deserto, e, se nos é permitida a
expressão, no seu trajo de viagem. Com exceção da arca do concerto, todas
estas coisas tinham a aparência inalterável para os olhos humanos, a saber, a
áspera cobertura de peles de texugos. Com a arca havia esta diferença, que
sobre as peles de texugos havia "um pano todo azul" mostrando
indubitavelmente o caráter do Senhor Jesus Cristo em Sua Própria Pessoa
divina. O que n'Ele era essencialmente celestial manifestava-se sobre a própria
superfície da Sua bendita vida aqui na terra. Foi sempre o homem celestial —
"O Senhor do céu". Sob esta coberta de azul estavam as peles de texugos, que
podem ser consideradas como a expressão do que protege o mal. A arca era o
único objeto que era coberto desta maneira peculiar.
Quanto à mesa dos "pães da proposição", que era uma figura de nosso Senhor
Jesus Cristo em Sua relação com as doze tribos de Israel, havia primeiramente
"um pano azul", depois "um pano de carmesim", e sobre tudo as peles de
texugos. Por outras palavras, havia o que era essencialmente celestial; em
seguida o que representa o esplendor humano; e por cima de tudo o que
protege do mal. E propósito de Deus que as doze tribos de Israel tenham a
supremacia na terra — que nelas se veja o tipo mais elevado de esplendor
humano. Daí a aptidão da coberta de "carmesim" sobre a mesa da proposição.
Os doze pães representam evidentemente as doze tribos; e quanto à cor
escarlate, o leitor só tem que recorrer à Escritura para ver que representa o que
o homem considera esplêndido.
As cobertas do castiçal de ouro e do altar de ouro eram idênticas, isto é,
primeiro e cobertura celeste, e exteriormente as peles de texugos. No castiçal
vemos Cristo, o Senhor, em relação com a obra do Espírito Santo em luz e
testemunho. O altar de ouro mostra-nos Cristo e o valor precioso da Sua
intercessão—a fragrância e o valor do que Ele é diante de Deus. Estes dois
objetos, ao passarem pelas areias do deserto, iam embrulhados no que era
celeste e protegidos por cima pelas peles de texugos.
Por fim, quanto ao altar de cobre observamos uma diferença notável. Era
coberto com "púrpura" em vez de "azul" ou de "carmesim" . Porque se fazia esta
diferençai Sem dúvida, porque o altar de cobre prefigurava Cristo como aquele
que "sofreu pelos pecados", e que deve, portanto, manejar o cetro da realeza. A
"púrpura" é a cor real. O mesmo que sofreu neste mundo reinará. Aquele sobre
Cuja cabeça puseram uma coroa de espinhos usará a coroa de glória. Daí a
razão por que convinha cobrir o altar de cobre com "púrpura", pois sobre esse
altar era oferecida a vítima.
Sabemos que nada existe na Escritura sem o seu próprio significado divino, e é
nosso privilégio bem como o nosso dever procurar conhecer o significado de
tudo que Deus tem misericordiosamente escrito para nosso ensino. Isto,
cremos, só pode conseguir-se esperando em Deus com humildade, paciência e
oração. O mesmo que inspirou o Livro conhece perfeitamente o fim e o assunto
do Livro no seu conjunto e cada uma das suas partes em que ele se divide. O
conhecimento deste fato terá o efeito de reprimir os caprichos da imaginação.
Só o Espírito de Deus pode abrir as Escrituras às nossas almas. Deus é o seu
próprio intérprete tanto em revelação como em providência, e quanto mais nos
apoiarmos n'Ele com o sentimento verdadeiro da nossa nulidade tanto mais
profundo será o conhecimento que adquiriremos tanto da Sua palavra como dos
Seus caminhos.

Uma Meditação na Presença de Deus sobre Tudo o que nos é Apresentado


Figuradamente
Queremos portanto convidar o leitor cristão a ler os primeiros quinze versículos
de Números 4 na presença de Deus, e a perdir-Lhe que lhe explique o
significado de cada cláusula—o significado da arca e a razão por que só ela era
coberta com um "pano todo azul"; e assim todo o resto. Temo-nos aventurado,
com espírito humilde, sugerir o significado, mas desejamos ardentemente que o
leitor o receba diretamente de Deus, por si mesmo, e não apenas do homem.
Confessamos que tememos muito a imaginação, e cremos poder dizer que
jamais nos havemos sentado para escrever sobre as Sagradas Escrituras sem
estarmos profundamente convencidos de que ninguém senão o Espírito Santo
pode realmente explicá-las.
Dirás, portanto, por que escreves, então? Bem, é com a viva esperança de me
ser permitido, ainda que de um modo fraco, ajudar o que estuda seriamente a
Escritura a alcançar com a vista as raras e excelentes pedras preciosas que
estão espalhadas ao longo das páginas inspiradas, de forma que ele próprio
possa apanhá-las. Milhares de leitores poderiam ler repetidas vezes o capítulo
quatro de Números e não perceberem sequer o fato que a arca era a única peça
mística do mobiliário do tabernáculo que não ostentava a pele de texugo. E se o
simples fato não for compreendido em si, como poderá ver-se a sua
importância? Assim também quanto ao altar de cobre, quantos têm deixado de
observar que só ele era coberto com a "púrpura"?
Ora, nós podemos estar certos que estes dois fatos são plenos de significado
espiritual. A arca era a mais elevada manifestação de Deus, e portanto
podemos compreender o motivo por que ela mostrava, à primeira vista, o que
era puramente divino. O altar de cobre era o lugar onde o pecado era julgado —
simbolizava Cristo em Sua obra como Aquele que leva o pecado—mostrava
esse lugar afastadíssimo a que Ele teve de ir por nós; e ainda assim esse altar
de cobre era a única coisa que era embrulhada numa coberta real. Pode existir
alguma coisa mais excelente que temos aqui? Que sabedoria infinita há em
todas estas distinções! A arca conduz-nos ao mais alto ponto no céu. O altar de
cobre conduz-nos ao ponto mais baixo da terra. Estavam em pontos extremos
do tabernáculo. Naquela vemos Aquele que engrandeceu a lei; neste vemos
Aquele que foi feito pecado. Na arca via-se ao primeiro golpe de vista o que era
celestial; e era só quando se procurava mais abaixo que se via a pele de
texugo; e profundando mais via-se esse misterioso véu, figura da carne de
Cristo. Mas no altar de cobre a primeira coisa que se via era a pele de texugo e
por baixo dela a coberta real.
Vemos Cristo em cada um destes objetos, embora em dois aspectos diferentes.
Na arca temos Cristo mantendo a glória de Deus. No altar de cobre temos Cristo
respondendo às necessidades do pecador. Bendita combinação para nós!
Porém, o leitor já notou, além do mais, que em toda esta maravilhosa passagem
para a qual temos chamado a sua atenção, não se faz menção de uma certa
peça de mobiliário que, segundo Êxodo 30 e outras passagens das Escrituras,
ocupava um lugar muito importante no tabernáculo?- Referimo-nos à pia de
cobre. Porque é esta omitida em Números 4? É mais que provável que alguns
dos nossos clarividentes racionalistas encontrem aqui o que eles chamam um
erro, um defeito, uma discordância. Mas será assim? Não, graças a Deus! O
cristão estudioso sabe muito bem que tais coisas são inteiramente
incompatíveis com o Livro de Deus. Sabe e confessa isto, até mesmo se não
puder ser capaz de justificar a falta ou a inclusão deste ou daquele pormenor
em uma dada passagem. Mas precisamente na medida em que podemos, pela
misericórdia de Deus, ver a razão espiritual das coisas, descobrimos sempre
que onde o racionalista vê, ou aparenta ver, falhas, o crente estudioso e
piedoso vê pedras preciosas.
Acontece assim, não duvidamos, a respeito da omissão da bacia de cobre da
relação de Números 4. E apenas uma de dez mil ilustrações da beleza e
perfeição do volume inspirado.
Mas o leitor pode perguntar, por que é omitida a pia? A razão pode ser
encontrada no duplo fato do que era feita a pia e para o fim que era feita. Este
duplo fato já foi apresentado em Êxodo. A pia foi feita dos espelhos das
mulheres que se ajuntavam, ajuntando-se à porta da tenda da congregação (Êx
38:8). Este era o seu material. E quanto ao seu fim, foi dada como um meio de
purificação para o homem. Ora, em todas estas coisas que formavam a tarefa
especial e obrigatória dos filhos de Coate, nós vemos as diversas
manifestações de Deus em Cristo, desde a arca no lugar santíssimo até o altar
de cobre no pátio do tabernáculo; e, visto que a pia não era uma manifestação
de Deus, mas do homem, não é portanto confiada à guarda e responsabilidade
dos coatitas.
Mas devemos agora deixar que o leitor medite sobre esta Profunda parte do
nosso livro (Nm 3 e 4). Podíamos continuar a desenvolver o assunto
longamente até termos enchido volumes em vez de páginas, e, afinal de contas,
sentimo-nos como quem tem apenas penetrado a superfície de uma mina cuja
profundidade nunca poderá ser sondada — cujos tesouros jamais podem ser
esgotados. Qual a pena que pode descrever a instrução maravilhosa que
contém a relação inspirada da tribo de Levi? Quem pode tentar desenvolver a
graça soberana que brilha no fato que o obstinado Levi fosse o primeiro a
responder à pergunta comovente "Quem é do Senhor"? Quem pode falar
acertadamente dessa rica, abundante e distinta graça exemplificada no fato que
aqueles cujas mãos tinham sido usadas para derramar sangue fossem as
primeiras a ser permitidas a tocar nos vasos do santuário, e que aqueles em
cuja assembleia o Espírito de Deus não podia deixar entrar, fossem trazidos ao
próprio seio da congregação de Deus, para ali estarem ocupados com o que era
tão precioso para Si?
E depois essas três divisões de obreiros, meraritas, gersonitas e coatitas!
Quanta instrução temos aqui! Que símbolo dos diversos membros da Igreja de
Deus, nos seus vários serviços! Que profundidade de misteriosa sabedoria em
tudo isto! Será falar forte demais dizermos, neste momento, que nada nos
impressiona mais profundamente que o sentimento de completa fraqueza e
pobreza de tudo que temos exposto sobre uma das mais ricas partes do volume
inspirado?- Ainda assim, temos conduzido o leitor a uma mina de infinita
profundidade e inesgotáveis riquezas, e devemos deixá-lo para penetrar nela
com o auxílio de Aquele a quem pertence a mina e que é o único capaz de
descobrir a sua riqueza. Tudo quanto o homem pode escrever ou dizer sobre
qualquer porção da Palavra de Deus, pode, quando muito, ser sugestivo; falar
dela como de um assunto exaustivo seria lançar desprezo sobre o cânone
sagrado. Possamos nós trilhar o lugar santo com os pés descalços, e ser como
aqueles que indagam no templo, e cujos estudos são perfumados pelo espírito
de adoração (1).
__________
(1) Para mais sugestões sobre os assuntos abordados na parte precedente do
nosso Livro, recomendamos ao leitor "Estudos sobre o Livro de Êxodo',
capítulos 24 a 30.
CAPÍTULO 5

A PRESENÇA DE DEUS NO MEIO DO SEU POVO PRESSUPÕE DISCIPLINA

"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos de Israel que lancem
fora do arraial a todo leproso, e a todo o que padece fluxo, e a todos os imundos
por causa de contato com algum morto. Desde o homem até à mulher os
lançareis; fora do arraial os lançareis, para que não contaminem os seus
arraiais, no meio dos quais eu habito. E os filhos de Israel fizeram assim, e os
lançaram fora do arraial; como o SENHOR; falara a Moisés, assim fizeram os
filhos de Israel" (versículos 1-4).
Aqui temos desenrolado perante nós, em poucas palavras, o grande princípio
fundamental em que é baseada a disciplina da assembleia—um princípio,
podemos dizer, da maior importância, embora, infelizmente, tão pouco
compreendido ou observado! Era a presença de Deus no meio do Seu povo
Israel que exigia santidade da parte deles. "Para que não contaminem os seus
arraiais, no meio dos quais eu habito." O lugar em que habita o Santo Senhor
deve ser santo. É uma verdade clara e necessária.
Já observamos que a redenção era a base da habitação de Deus no meio do
Seu povo. Mas devemos recordar que a disciplina era essencial à Sua
permanência entre eles. Deus não podia habitar onde o pecado era deliberada e
declaradamente aprovado. Bendito seja o Seu nome, Ele pode suportar e
suporta a fraqueza e a ignorância; mas os Seus olhos são puros demais para
contemplarem o mal, e não podem ver a iniquidade. O mal não pode habitar
com Deus, e Deus não pode ter comunhão com o mal. Isto envolveria a
negação da Sua natureza; e Ele não pode negar-Se a Si Mesmo.
Pode, todavia, fazer-se a seguinte objeção: Deus o Espírito Santo não habita
individualmente no crente, e todavia há nele muito mate É verdade que o
Espírito Santo habita no crente com base na redenção efetuada. Está ali não
para sancionar o que é da natureza, mas como o selo do que é de Cristo; e nós
gozamos da Sua presença e da Sua comunhão precisamente na medida em
que o mal em nós é habitualmente julgado. Quererá alguém sustentar que
podemos realizar a presença do Espírito em nós e deleitarmo-nos nela e ao
mesmo tempo permitir a nossa depravação natural e dar satisfação aos desejos
da carne e da mente?- Não; é preciso julgarmo-nos, afastar de nós tudo o que é
inconsistente com a santidade de dAquele que habita em nós. O nosso "homem
velho" não é reconhecido de modo algum. Não tem existência diante de Deus.
Foi condenado inteiramente na cruz de Cristo. Sentimos, enfim, a sua
influência, lamentamo-nos e julgamo-nos por causa dela; mas Deus vê-nos em
Cristo—em Espírito—na nova criação. E, além disso, o Espírito Santo habita no
corpo do crente com base no sangue de Cristo; e esta habitação exige o
julgamento do mal em todas as formas e feitios.
O Julgamento do Mal na Igreja
Assim é também a respeito da assembleia. Sem dúvida há mal nela — mal em
cada membro individualmente e, portanto, mal no corpo coletivo. Mas o mal tem
que ser julgado; e se é julgado não é permitido que atue, é anulado. Porém
dizer-se que uma assembleia não tem que julgar o mal não é nada mais nada
menos que estabelecer o antinomianismo. Que diríamos nós de um cristão
professo que asseverasse que não era solenemente responsável por julgar o
mal em si mesmo e nos seus caminhos?
Podíamos, com absoluta decisão, declará-lo antinomianista. E se é mau para
um só indivíduo tomar uma tal posição, não será proporcionalmente para uma
assembleia? Não vemos como é que isto possa ser posto em dúvida.
Qual teria sido o resultado se Israel tivesse recusado obedecer ao
"mandamento" peremptório dado no começo do capítulo que temos perante
nós?- Suponhamos que diziam: "Não somos responsáveis de julgar o mal, nem
cremos que é próprio de pobres mortais como nós, fracos e falíveis, julgar seja
quem for. Estas pessoas com lepra, e outros males são Israelitas como nós e
têm tanto direito a todas as bênçãos e privilégios do acampamento como nós;
não cremos portanto que seja justo pô-los fora."
Ora, qual seria, perguntamos, a réplica de Deus a tais objeções?- Se o leitor
quiser abrir apenas um instante o capítulo 7 de Josué encontrará uma resposta
tão solene quanto podia dar-se. Acerque- se e examine atentamente esse
"grande monte de pedras" no vale de Acor. Leia a inscrição que está sobre ele.
Qual é<?- "Deus deve ser em extremo tremendo na assembleia dos santos e
grandemente reverenciado por todos os que o cercam." (SI 89:7). "Porque o
nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12:29). Qual é o significado de tudo
isto? Escutemo-lo e ponderemo-lo! A concupiscência havia concebido no
coração de um membro da congregação e deu à luz o pecado. Então?- Isto
envolvia toda a congregação?- Sim, realmente, esta é a verdade solene. "Israel
(não apenas Acã) pecou, e até transgrediram o meu concerto que lhes tinha
ordenado, e até tomaram do anátema, e também furtaram, e também mentiram,
e até debaixo da sua bagagem o puseram. Pelo que os filhos de Israel não
puderam subsistir perante os seus inimigos; viraram as costas diante dos seus
inimigos, porquanto estão amaldiçoados; não serei mais convosco, se não
desarraigardes o anátema do meio de vós" (Js 7:11-12).
Isto é particularmente solene e tocante. Faz seguramente repercutir aos nossos
ouvidos uma alta voz e transmite uma solene lição aos nossos corações. Havia,
até onde a narrativa nos informa, muitas centenas de milhares em todo o
acampamento de Israel tão ignorantes do fato do pecado de Acã como o próprio
Josué parece ter sido; e todavia foi dito "Israel pecou... transgrediram...,
tomaram do anátema, furtaram e mentiram".
Como era isto?- A assembleia era uma. A presença de Deus no meio da
congregação constituía-a em uma unidade, unidade tal que o pecado de cada
um era o pecado de todos "Um pouco de fermento leveda toda a massa." A
razão humana pode pôr dúvidas sobre isto, como certamente duvida de tudo
que está para além do seu limitado alcance. Mas Deus vê, e isto é bastante
para o espírito crente. Não nos compete perguntar, por quê? Como?- Ou por
que motivo?- O testemunho de Deus regula todas as coisas, e nós só temos
que crer e obedecer. Basta-nos saber que o fato da presença de Deus exige
santidade, pureza, e o julgamento do mal. Lembremos que isto não se requer
com base no princípio justamente repudiado por todo o espírito humilde, "...não
te chegues a mim, porque sou mais santo do que tu" (Is 65:5). Não, não; é
inteiramente sobre o fundamento do que Deus é: "Sede santos, porque eu sou
santo."
Deus não pode dar a sanção da Sua santa presença ao mal por julgar.
O quê?- Dar a vitória em Ai com Acã no acampamento? Impossível! A vitória em
tais circunstâncias teria sido uma desonra para Deus, e a coisa pior que poderia
acontecer a Israel. Isto não podia ser. Israel devia ser castigado. Deviam ser
humilhados e quebrantados. Devem descer ao vale de Acor—o lugar de
perturbação — por que só ali pode ser aberta "uma porta de esperança" quando
o mal tem entrado (Os2:15).
O leitor não deve compreender mal este grande princípio prático. Tem sido,
receamos, muito mal compreendido, por muitos do povo do Senhor. Muitos há
que parece pensarem que nunca poderá ser correto para aqueles que estão
salvos pela graça, e que são eles próprios monumentos assinalados de
misericórdia, exercerem disciplina de qualquer forma ou sobre seja o que for.
No parecer de tais pessoas Mateus 7:1 parece condenar completamente o
pensamento do nosso empenho em julgar. Não é dito, argumentam,
expressamente por nosso Senhor para não julgarmos?- Não são estas as Suas
próprias palavras: "Não julgueis, para que não sejais julgados"1?- Sem dúvida.
Mas que significam estas palavras?-
Querem dizer que não devemos julgar a doutrina e maneira de vida dos que se
apresentam para a comunhão cristã?- Prestam algum apoio à ideia de que, seja
qual for a crença de um homem, ou o que ele ensina ou faz, devemos recebê-lo
de igual modo? Pode ser esta a força e o significado das palavras do Senhor?
Quem poderia ceder, ainda que por um momento, a uma coisa tão monstruosa,
como esta?- Nosso Senhor não nos diz, neste mesmíssimo capítulo, que nos
devemos acautelar "dos falsos profetas"? Mas como podemos acautelar-nos de
alguém, se não devemos julgará Se o juízo não deve exercer-se em nenhum
caso, porque dizer-nos para nos acautelarmos?
Leitor cristão, a verdade é tão simples quanto possível. A assembleia de Deus é
responsável por julgar a doutrina e a moral de todos os que pedem para
ingressar nela. Não temos que julgar as razões, mas sim os atos. O apóstolo
inspirado ensina-nos diretamente no capítulo quinto de 1 Coríntios que somos
obrigados a julgar todos os que tomam lugar na assembleia. "Porque, que tenho
eu em julgar também os que estão de fora?- Não julgais vós os que estão
dentro? ...Tirai pois de entre vós a esse iníquo" (versículos 12-13).
Isto é muito claro. Nós não temos de julgar os que estão de "fora"; mas temos
de julgar os que estão "dentro". Isto é, os que ocupam o lugar de cristãos — que
são membros da assembleia — esses estão todos ao alcance do julgamento.
No próprio momento em que um homem é admitido na assembleia, toma o seu
lugar nessa esfera onde a disciplina se exerce sobre tudo que é contrário à
santidade de Aquele que habita ali.

A Relação que Há entre a Unidade da Igreja, o Corpo de Cristo, e a Disciplina


Não julgue o leitor, nem por um momento, que a unidade do corpo é afetada
quando a disciplina da casa é mantida. Isto seria um erro muito grave; e contudo
é, infelizmente, muito vulgar. Ouvimos dizer frequentemente dos que buscam
justamente manter a disciplina da casa de Deus, que despedaçam o corpo de
Cristo. Não pode haver erro maior. O fato é que manter a disciplina é nosso
estrito dever, enquanto que despedaçar o corpo é uma completa
impossibilidade. A disciplina da casa de Deus tem de ser exercida, mas a
unidade do corpo nunca poderá ser desfeita.
Por outro lado, ouvimos às vezes pessoas falarem de separar membros do
corpo de Cristo. Isto também é um erro. Nenhum membro do corpo de Cristo
pode ser separado. Cada membro foi incorporado no seu lugar pelo Espírito
Santo em cumprimento do eterno propósito de Deus e sobre o fundamento da
expiação efetua da por Cristo; nenhum poder humano nem diabólico poderá
jamais separar um só membro do corpo. Todos estão unidos indissoluvelmente
em uma perfeita unidade, e são mantidos nela por poder divino. A unidade da
Igreja de Deus pode ser comparada a uma cadeia estendida através de um rio:
veem-se os extremos de cada lado, mas o meio está submergido, e se
fôssemos julgar por vista poderíamos supor que a cadeia estava partida no
centro. Assim é com a Igreja de Deus; foi vista no princípio como sendo uma;
será vista como uma dentro em pouco; e é, à vista de Deus, uma agora embora
a unidade não seja visível a olhos mortais.
É da maior importância que o leitor cristão esteja perfeitamente informado sobre
esta grande questão da Igreja. O inimigo tem procurado por todos os meios ao
seu dispor deitar poeira aos olhos do povo de Deus, a fim de que não possam
ver a verdade sobre este assunto. Temos, por um lado, a alardeada unidade do
catolicismo romano-, e, por outro lado, as lamentáveis divisões do
protestantismo. Roma alega com ar de triunfo as numerosas seitas dos
protestantes; e os protestantes apontam de igual modo para os erros e abusos
do romanismo. Assim o que busca sinceramente a verdade dificilmente sabe
para onde se voltar ou o que pensar; enquanto que, por outra parte, os
negligentes, os indiferentes, os acomodados e os mundanos estão sempre
prontos a tirar argumentos de tudo que veem em redor deles para pôr de parte
todos os pensamentos sinceros e interesses sobre as coisas divinas; e até
mesmo se, como Pilatos, ás vezes perguntam loquazmente: "Que é a
verdade?", eles, como ele, voltam as costas sem aguardar a resposta.
Ora, nós estamos firmemente convencidos que o verdadeiro segredo de todo o
assunto — a grande solução da dificuldade —, o verdadeiro alívio para o
coração dos bem amados santos de Deus, se encontrará na verdade da
indivisível unidade da Igreja de Deus, o corpo de Cristo na terra. Esta verdade
não é apenas para ser mantida como uma doutrina, mas para ser confessada,
mantida, e praticada a todo o custo. É uma grande verdade formativa para a
alma, e contém em si a resposta à apregoada unidade de Roma, por um lado, e
às divisões protestantes, por outro. Tornar-nos-á capazes de testificar perante o
protestantismo que temos achado a unidade, e ao catolicismo romano que
temos achado a unidade do Espírito.
Pode argumentar-se contudo que é a maior utopia querer realizar semelhante
ideia no estado atual de coisas. Tudo está em tal ruína e confusão que nos
encontramos como um grupo de crianças que tivessem perdido o seu caminho
na floresta e procurassem encaminhar-se o melhor que soubessem para casa,
alguns em grupos grandes, outros em grupos de dois ou três e outros ainda
sozinhos.
Ora, isto pode parecer muito plausível; e nós não duvidamos, de modo nenhum,
que tem grande importância para um grande número do povo do Senhor na
atualidade. Porém, no juízo da fé, essa maneira de pôr a questão não tem
qualquer importância, pela simples razão que a única questão importante para a
fé é esta: A unidade da Igreja é uma teoria humana ou uma realidade divinal
Uma realidade divina, seguramente, como está escrito: "Há um só corpo e um
só espírito" (Ef 4:4). Se negamos que existe "um só corpo" podemos negar de
igual modo que há "um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai
de todos", visto que tudo está lado a lado nas páginas inspiradas, e se
estorvamos uma então todas são perturbadas.
Além disso não estamos limitados só a uma passagem das Escrituras sobre
este assunto; ainda que se houvesse mais que suficiente. Mas temos mais do
que uma. Ouvi a seguinte: "Porventura, o cálice de bênção que abençoamos
não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é, porventura,
a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e
um só corpo; porque todos participamos do mesmo pão" (1 Co 10:16-17). Lê-se
também 1 Coríntios 12:12-27, onde este mesmo assunto é desenvolvido e
encontra a sua aplicação.
Em suma, a palavra de Deus estabelece clara e inteiramente a verdade da
unidade indissolúvel do corpo de Cristo; e, além disso, estabelece, de um modo
tão claro e completo, a verdade da disciplina da casa de Deus. Mas, note-se, a
conveniente aplicação da última nunca poderá interferir com a primeira. As duas
coisas são perfeitamente incompatíveis. Havemos de supor que quando o
apóstolo recomendou à Igreja de Corinto "tirai pois de entre vós a esse iníquo" a
unidade do corpo foi afetada? Claro que não. E contudo, esse homem não era
membro do Corpo de Cristo?- Era, decerto, porque o encontramos restaurado
na segunda epístola. A disciplina da casa de Deus fez a sua obra com um
membro do corpo de Cristo, e aquele que havia pecado foi restaurado. Esse era
o objetivo do ato da Igreja.
Tudo isto pode esclarecer a mente do leitor acerca do assunto profundamente
interessante da recepção à mesa do Senhor e da exclusão dela. Parece haver
muita confusão sobre estas coisas na mente de muitos cristãos. Há alguns que
parece crerem que contanto que uma pessoa seja cristã não deve por motivo
algum recusar-se lhe um lugar à mesa do Senhor. O caso de 1 Coríntios 5 é
suficiente para decidir a questão. Evidentemente, esse homem não foi separado
por não ser cristão. Era, como sabemos, apesar da sua queda e do seu pecado,
um filho de Deus; e todavia a assembleia de Corinto foi convidada a excluí-lo; e
se os coríntios não tivessem feito assim, teriam atraído o juízo de Deus sobre
toda a assembleia. A presença de Deus está na assembleia, e portanto o mal
tem que ser julgado.
Assim, quer seja no capítulo quinto de Números, que no capítulo quinto de
Coríntios, aprendemos a mesma verdade solene do Salmo 93:5: "A santidade
convém à tua casa, Senhor, para sempre." E além disso aprendemos que a
disciplina deve ser mantida entre o povo de Deus e não entre os de fora. Pois
que lemos nas primeiras linhas de Números Ordenou-se aos filhos de Israel que
lançassem fora do acampamento todos os que não fossem Israelitas, todos os
que não estivessem circuncidados, todos os que não pudessem estabelecer a
sua linhagem em linha reta até Abraão?- Eram estes os motivos de exclusão do
acampamento? De modo nenhum. Quem devia então ser posto fora? "Todo
leproso", quer dizer, todo aquele em quem se reconhece que o pecado opera.
"Todo o que padece fluxo —isto é, "todo aquele de quem emana uma influência
corruptora; e, todos os imundos por causa de contaminação com algum morto
Estas eram as pessoas que deviam ser separadas do acampamento no
deserto, e os seus antítipos devem ser separados da assembleia nos
nossos dias.

A Relação que Há entre o Julgamento do Mal e a Santidade de Deus


E porque, podemos perguntar, se exigia esta separação? Era para conservar a
reputação e respeitabilidade do povo? Nada disso. Então? "Para que não
contaminem os seus arraiais, no meio dos quais eu habito." E assim é agora.
Não julgamos nem reprovamos uma má doutrina a fim de mantermos a nossa
ortodoxia; nem tampouco julgamos e lançamos fora o mal para mantermos a
nossa reputação e respeitabilidade. O único fundamento de juízo e exclusão é
este: "A santidade convém À tua casa, SENHOR, para sempre" (Sl 93:5). Deus
habita no meio do Seu povo. "Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em
meu nome, aí estou eu no meio deles." "Não sabeis vós que sois o templo de
Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?" (1 Co 3:18). "Assim que já não
sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da família de
Deus; edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que
Jesus Cristo é a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício, bem
ajustado, cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente
sois edificados para morada de Deus no Espírito" (Ef 2:19-22).
Pode ser que o leitor se sinta disposto a fazer perguntas como estas: Como
seria possível encontrar uma igreja pura, perfeita?- Não há, não haverá, não
deve haver algum mal em cada assembleia, apesar da mais intensa vigilância
pastoral e fidelidade coletiva? Como, pois, poderá manter-se este elevado
padrão de pureza? Não há dúvida que há mal na assembleia, visto que habita
pecado em cada membro da assembleia. Mas esse mal não deve ser permitido;
não deve ser sancionado; deve ser julgado e refreado. Não é a presença do mal
julgado que contamina, mas a tolerância e a sanção do mal.
O princípio é o mesmo tanto a respeito da Igreja, no seu caráter coletivo, como
dos membros em seu caráter individual: "Porque se nós nos julgássemos a nós
mesmos não seríamos julgados" (1 Co 11:31).
Aqui, pois, vemos que o pecado, por grande que seja, não deve levar ninguém a
separar-se da Igreja de Deus; mas se uma assembleia nega a sua solene
responsabilidade de julgar o mal, tanto em doutrina como em moral, já não está
no terreno da Igreja de Deus, e torna-se um dever sagrado separarmo-nos dela.
Enquanto uma assembleia se mantiver no terreno da igreja de Deus, por muito
fraca que possa ser e por mais pequena que seja em número, separar-se
alguém dela é cisma. Porém se uma assembleia não estiver no terreno de
Deus—e indubitavelmente não está, se nega o seu dever de julgar o
mal—então é cisma continuar em comunhão com ela.
Mas isto não tem por fim multiplicar e perpetuar as divisões? Não, seguramente.
Pode resultar na quebra de meras relações humanas; porém isto não é cisma,
mas o contrário, visto que tais associações, por muito grandes, poderosas e
aparentemente úteis, são positivamente antagônicas à unidade do corpo de
Cristo—a Igreja de Deus.
O leitor atento não deixará de notar que o Espírito de Deus desperta a atenção
em todas as partes para a grande questão da Igreja. Os homens começam a ver
que existe muito mais sobre este assunto do que a simples opinião individual ou
o dogma de um partido. A pergunta, "Que é a Igreja?", impõe-se por si a muitos
corações e exige uma resposta. E que graça ter uma resposta para dar? Uma
resposta tão clara, tão distinta, e tão cheia de autoridade como a voz de Deus, a
voz da Sagrada Escritura, a pode dar. Não é um inefável privilégio, quando
assaltados por todos os lados pelas pretensões de igrejas—a "Alta Igreja", a
"Igreja Humilde", a "Igreja Liberal", a "Igreja do Estado", a "Igreja
Livre"—poder-se recorrer à única Igreja verdadeira do Deus vivo, o corpo de
Cristo? Nós certamente consideramo-la como tal, e estamos firmemente
convencidos que aqui somente está a solução divina para as dificuldades de
milhares do povo de Deus.
Porém, onde se encontra esta Igreja?- Não é um empreendimento inútil
procurá-la entre a ruína e confusão que nos cercam? Não, bendito seja Deus!
Porque não obstante não podemos ver todos os membros da Igreja reunidos, é
nosso privilégio e santo dever conhecer e ocupar o terreno da Igreja de Deus, e
não outro. E como deve discernir-se este terreno? Cremos que o primeiro passo
para o discernimento do verdadeiro terreno da igreja de Deus é mantermo-nos
de lado de tudo que lhe é contrário. Não devemos esperar descobrir o que é
verdadeiro enquanto as nossas mentes estão obscurecidas pelo que é falso. A
ordem divina é, "Cessai de fazer mal; aprendei a fazer o bem". Deus só nos dá
luz para praticarmos o bem depois de termos deixado de fazer o mal. Por isso
logo que descobrimos que estamos sobre terreno mau é nosso dever
abandoná-lo, e esperar em Deus por mais luz, que Ele, certamente, nos dará.
Confissão e Restituição
Mas devemos prosseguir com o estudo do nosso capítulo. "Falou mais o
SENHOR a Moisés, dizendo: Dize aos filhos de Israel: Quando homem ou
mulher fizer algum de todos os pecados humanos transgredindo contra o
SENHOR, tal alma culpada é. E confessará o pecado que fez; então restituirá
pela sua culpa, segundo a soma total, e lhe acrescentará o seu quinto, e o dará
àquele contra quem se fez culpado. Mas, se aquele homem não tiver
resgatador, a quem se restitua pela culpa, então, a culpa que se restituir ao
SENHOR será do sacerdote, além do carneiro da expiação com que por ele
fizer expiação" (versículos 5-8).
A doutrina da expiação do pecado já foi considerada nos nossos Estudos sobre
o livro de Levítico, capítulo 5, que recomendamos ao leitor, visto não querermos
perder o seu e o nosso tempo entrando em pormenores sobre assuntos já
tratados. Só faremos notar aqui a importante questão de confissão e restituição.
A passagem reproduzida não somente nos ensina que Deus e o homem
ganham com a grande expiação do pecado oferecida na cruz do Calvário, mas
que Deus exigia a confissão e a restituição quando havia sido cometido algum
pecado. A sinceridade da confissão era demonstrada pela restituição. Não era
bastante que judeu, que tivesse pecado contra seu irmão, dissesse, "Sinto
muito”. Tinha de restituir o que havia tomado e acrescentar-lhe um quinto do
seu valor.

Ora, apesar de não estarmos debaixo de lei, podemos, ainda assim, tirar muita
instrução das suas instituições; ainda que não estamos sujeitos ao aio,
podemos aprender com ele boas lições. Se, pois, temos transgredido contra
alguém, não basta confessar o nosso pecado a Deus e ao nosso irmão; temos
de fazer restituição: somos convidados a dar uma prova prática de que nos
julgamos quanto ao ato sobre que havemos transgredido.
Duvidamos que este dever seja compreendido como deveria ser. Cremos que
há um meio de agir superficial, petulante e pachorrento, a respeito do pecado e
das faltas, que são verdadeiramente dolorosas para o Espírito Santo. Ficamos
contentes com a simples confissão de lábios sem o sentimento profundo e
sincero do mal do pecado à vista de Deus. O próprio mal não é julgado na sua
origem moral, e, como consequência desta brincadeira com o pecado, o
coração torna-se duro e a consciência perde a sua sensibilidade. Isto é muito
sério. Conhecemos poucas coisas mais preciosas do que uma consciência
sensível. Não queremos dizer uma consciência escrupulosa, que é dominada
pelas suas próprias excentricidades; ou uma consciência mórbida, que é
dirigida pelos seus próprios temores. Estes dois gêneros de consciência são
dois hóspedes importunos e difíceis de manter.
Mas referimo-nos a uma consciência terna, que é governada em tudo pela
Palavra de Deus e que se submete, em todos os casos, à Sua autoridade.
Consideramos esta descrição da consciência como um tesouro inestimável. Ela
regula todas as coisas, toma conhecimento das coisas vulgares relacionadas
com os nossos hábitos diários—o nosso modo de vestir, a nossa casa, os
nossos móveis, a nossa mesa e todo o nosso modo de viver, em espírito e estilo
— o modo de conduzir os nossos negócios, ou, se a nossa tarefa for servir os
outros, a forma como nos desempenhamos do serviço, seja o que for. Em suma,
tudo está sujeito à influência moral de uma consciência sensível. "E por isso",
diz o bem-aventurado apóstolo, "procuro sempre ter uma consciência sem
ofensa, tanto para com Deus como para com os homens" (At 24:16).
E isto que bem podemos ambicionar. Existe qualquer coisa moralmente bela e
atrativa no exercício do maior e mais dotado servo de Cristo. Com todos os seus
excelentes dons, com todos os seus poderes maravilhosos, e um profundo
conhecimento dos caminhos e desígnios de Deus, com tudo que tinha para falar
e gloriar-se, com todas as revelações que lhe haviam sido feitas no terceiro céu,
em suma, ele, o mais venerado e privilegiado dos santos, fazia uma santa
diligência para manter uma consciência livre de ofensa tanto para com Deus
como para com os homens; e se, num momento de descuido, pronunciava uma
palavra precipitada, como fez dirigindo-se a Ananias, o sumo sacerdote, estava
pronto, imediatamente, a confessar e fazer restituição, de forma que a
expressão precipitada, "Deus te ferirá, parede branqueada", foi retirada e
substituída por esta palavra de Deus: "Não dirás mal do príncipe do teu povo".
Ora nós não cremos que Paulo tivesse podido retirar-se para descansar nessa
noite com uma consciência livre de ofensa se não tivesse retirado as suas
palavras. Deve haver confissão quando fazemos ou dizermos alguma coisa má;
e se não houver confissão, a nossa comunhão será certamente interrompida.
Comunhão com pecado por confessar sobre a consciência é uma
impossibilidade moral. Podemos falar dela, mas é apenas uma ilusão. Devemos
manter uma consciência limpa se queremos andar com Deus. Nada há tanto
para temer como a insensibilidade moral, uma consciência impura, um sentido
moral surdo que podem permitir que passe toda a sorte de coisas sem serem
julgadas; com essa insensibilidade pode cometer- se o pecado, passar por cima
dele, e dizer friamente: "Que mal fiz eu?"
Prezado leitor, vigiemos com santo cuidado contra estes males. Procuremos
cultivar uma consciência delicada. Isto requererá de nos o que foi exigido a
Paulo, a saber, exercício. Contudo, é um exercício bendito, e que produzirá os
mais preciosos frutos. Não devemos supor que há alguma coisa parecida com o
legalismo neste exercício; não; é inteiramente cristão. Com efeito,
consideramos essas nobres palavras de Paulo como a própria personificação,
em forma resumida, de toda a prática do cristão. Andar sempre com uma
consciência sem ofensa , tanto para com Deus como para com homens .
compreende todas as coisas.
Mas, ah, em quão pouca conta temos habitualmente os direitos de Deus ou os
direitos do nosso próximo! Quão longe está a nossa consciência do que deveria
ser! Descuidamos direitos de toda a sorte, contudo não sentimos isso. Não há
abatimento nem contrição perante o Senhor. Cometemos transgressões em mil
e uma coisas, e contudo não há confissão nem restituição. Deixam-se passar
coisas que deviam ser julgadas, confessadas e afastadas. Há pecado em
nossos atos sagrados; há irreflexão e indiferença de espírito na assembleia e à
mesa do Senhor; roubamos a Deus de diversas maneiras; pensamos segundo
os nossos próprios pensamentos, falamos as nossas próprias palavras;
fazemos o que é do nosso próprio agrado; e o que é tudo isto senão roubar a
Deus, visto que não somos de nós mesmos, mas fomos comprados por bom
preço?
Ora, nós não podemos deixar de pensar que tudo isto deve infelizmente impedir
o nosso crescimento espiritual. Entristece o Espírito de Deus e põe obstáculos
ao Seu glorioso ministério de Cristo às nossas almas, sem o qual não podemos
crescer na vida espiritual. Sabemos, por diversas passagens da Palavra de
Deus, quanto Ele aprecia um espírito terno e um coração contrito, "...mas eis
para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha
palavra" (Is 66:2). Deus pode habitar com uma tal pessoa; mas com o
endurecimento e a insensibilidade, com a frieza e a indiferença, Ele não pode
ter comunhão. Oh! exercitemo-nos, pois, para termos sempre uma consciência
pura e lícita, tanto para com Deus como para com os nossos semelhantes.

A Prova dos Ciúmes


A terceira e última parte do nosso capítulo, que não há necessidade de citar na
íntegra, ensina-nos uma lição profundamente solene, quer a consideremos sob
o ponto de vista das dispensações quer do ponto de vista moral. Contém o texto
da grande ordenação destinada ao julgamento do ciúme. O lugar que ocupa
aqui é notável. Na primeira parte temos o julgamento coletivo do mal; na
segunda temos o julgamento individual de cada um, a confissão e a restituição;
e na terceira ensina-se que Deus não pode suportar ate mesmo a simples
suspeita de mal.
Bem, nós cremos plenamente que esta tocante ordenação tem um alcance
dispensacional sobre as relações entre o Senhor e Israel. Os profetas tratam
largamente da conduta de Israel, considerado como uma esposa, e dos ciúmes
de Javé a respeito.
Não é nosso propósito citar as passagens, mas o leitor poderá encontra-las
através das páginas de Jeremias e Ezequiel. Israel não pôde resistir perante a
prova investigadora da água amargosa. A sua infidelidade foi manifesta. A
nação quebrou os seus votos. Desviou-se do seu Marido, o Santo de Israel,
cujos zelos ardentes têm sido derramados sobre a nação infiel. Deus é um Deus
ciumento, e não pode tolerar o pensamento de que o coração que Ele reclama
como Seu, seja dado a outro.
Vemos assim que esta ordenação para julgamento do ciúme leva consigo
claramente o cunho do caráter divino. Por este meio Deus entra plenamente nos
pensamentos e sentimentos de um marido ultrajado ou até mesmo de um que
suspeita de infidelidade.
A simples suspeita é de todo intolerável, e quando ela se apodera do coração, o
assunto tem de ser examinado a fundo. O suspeito deve ser submetido a um
processo de natureza tão rigorosa que só um inocente pode suportar. Se
houvesse um traço de culpa as águas amargas seriam empregadas para
investigar mesmo até às profundidades da alma e pô-la a descoberto. Não havia
modo de escapar para o culpado; e podemos dizer que o próprio fato de não
haver possibilidade de o culpado escapar contribuía para o triunfo da defesa do
inocente. O mesmíssimo processo que declarava a culpa do culpado, tornava
manifesto a inocência do fiel. Para aquele que esta inteiramente cônscio de
integridade, quanto mais rigorosa é a investigação tanto mais bem recebida é.
Se houvesse possibilidade de o culpado escapar devido a qualquer defeito na
maneira de fazer a prova, só serviria para prejudicar o inocente. Mas o processo
era divino e portanto perfeito; por isso quando a esposa inculpada saía em
Uberdade, a sua fidelidade era perfeitamente manifesta e a plena confiança era
restaurada.
Que mercê, pois, ter um modo tão perfeito de resolver todos os casos
duvidosos! A suspeita é o golpe mortal de toda a intimidade afetuosa, e Deus
não queria que ela existisse no meio da Sua congregação. Não só queria que o
Seu povo julgasse o mal coletivamente e que se julgassem a si mesmos
individualmente, mas até mesmo onde havia a suspeita de mal, sem que a
evidência aparecesse, havia um meio imaginado por Ele de prova que punha a
verdade perfeitamente a descoberto. O culpado tinha de beber a morte e
encontrava nela o juízo (1). O que era fiel bebia a morte e achava nela a vitória.
__________
(') O "pó" tomado do chão do tabernáculo pode ser considerado como figura da
morte: "... me puseste no pó da morte" (SI 22:15). A "água" simboliza a Palavra,
que, sendo empregada para atuar sobre a consciência pelo poder do Espírito
Santo, manifesta todas as coisas. Se tiver havido qualquer infidelidade a Cristo,
verdadeiro Esposo do Seu povo, tem de ser inteiramente julgada. Isto é
aplicável à nação de Israel, à Igreja de Deus e ao crente individualmente. Se o
coração não for fiel a Cristo, não poderá resistir ao poder penetrante da Palavra.
Mas se existir verdade no íntimo, quanto mais se é examinado e provado, tanto
melhor. Quão bem-aventurada coisa é podermos dizer, verdadeiramente:
"Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus
pensamentos. E vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho
eterno" (SI 139: 23-24).
CAPÍTULO 6
O VOTO DO NAZIREU

"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes:
Quando um homem ou mulher se tiver separado, fazendo voto de nazireu, para
se separar para o SENHOR, de vinho e de bebida forte se apartará; vinagre de
vinho ou vinagre de bebida forte não beberá; nem beberá alguma beberagem
de uvas; nem uvas frescas nem secas comerá. Todos os dias do seu nazireado,
não comerá coisa alguma que se faz da vinha, desde os caroços até às cascas.
Todos os dias do voto do seu nazireado sobre a sua cabeça não passará
navalha; até que se cumpram os dias, que se separou para o SENHOR, santo
será, deixando crescer as guedelhas do cabelo da sua cabeça. Todos os dias
que se separar para o SENHOR, não se chegará a corpo de um morto. Por seu
pai, ou por sua mãe, por seu irmão, ou por sua irmã, por eles se não
contaminará, quando forem mortos; porquanto o nazireado do seu Deus está
sobre a sua cabeça. Todos os dias do seu nazireado, santo será ao SENHOR"
(versículos 1 -8).
A ordenação do nazireado está cheia de interesse e instrução pratica. Vemos
nela o caso de um que se põe de parte, de uma forma muito especial, de coisas
que, embora não sejam absolutamente pecaminosas em si, são, todavia,
prejudiciais à inteira consagração de coração que se manifesta no nazireado.
Em primeiro lugar, o Nazireu não devia beber vinho. O fruto a videira, sob
qualquer forma que fosse, estava-lhe proibido. Ora o vinho, como sabemos, é o
símbolo natural de alegria terrestre — expressão daquele gozo social a que o
coração humano é inteiramente capaz de se entregar. O nazireu devia
abster-se cuidadosamente no deserto. Para ele era uma ordenação. Não devia
excitar sua natureza com o uso de bebida forte. Durante todos os dias da sua
separação era chamado a observar a mais rigorosa abstinência do vinho.
Tal era o símbolo, e está escrito para nossa instrução—e escrito também neste
maravilhoso livro de Números tão rico em suas lições do deserto. Isto é o que
podíamos esperar. A instituição solene do nazireado encontra o seu lugar
apropriado no livro de Números. Está em perfeita harmonia com o caráter do
livro, o qual, como já foi acentuado, contém tudo que pertence especialmente à
vida do deserto.
Indaguemos pois qual é a natureza da lição que se nos ensina na abstinência
do nazireu de tudo que pertencia à videira, desde os caroços até às cascas.

Jesus, o Perfeito Nazireu


Neste mundo não houve senão um verdadeiro e perfeito nazireu —mas um que
manteve, desde o princípio ao fim, a mais completa separação de todo o gozo
meramente terrestre. Desde o momento em que entrou no Seu ministério
público, Ele manteve-se a parte de tudo que era deste mundo. O Seu coração
estava posto em Deus e na Sua obra com uma dedicação que nada podia
alterar. Jamais permitiu, nem por um instante, que as pretensões da terra ou da
natureza sem interpusessem entre o Seu coração essa obra que Ele tinha vindo
fazer. "Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?-" "Mulher,
que tenho eu contigo?" Com tais palavras o verdadeiro nazireu buscava ajustar
as exigências da natureza. Tinha uma obra a fazer, e para isso separava-Se
perfeitamente. Os Seus olhos estavam postos num alvo e o Seu coração não
estava dividido. Isto é evidente desde o princípio ao fim da Sua vida na terra.
Podia dizer aos Seus discípulos: "Uma comida tenho para comer, que vós não
conheceis", e quando eles, não compreendendo o profundo significado das
Suas palavras, disseram: "Trouxe-lhe porventura alguém de comerá", Ele
respondeu: "A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou a
realizar a sua obra" (Jo 4:32-34). Assim, também, no fim da Sua carreira na
terra, ouvimo-Lo pronunciar palavras tais como estas, tomando o cálice da
páscoa: "Tomai-o e reparti-o entre vós, porque vos digo que já não beberei do
fruto da vide, até que venha o reino de Deus" (Lc 22:17-18).
Vemos assim como o perfeito nazireu se conduziu em tudo. Não podia ter gozo
na terra, nenhum gozo na nação de Israel. Não era tempo ainda para isso, e
portanto Ele desprendia-Se de tudo que o mero afeto humano podia achar nas
relações com os seus, de forma a dedicar-Se ao único e grande objeto que
sempre esteve perante a Sua mente. O dia virá em que, como Messias, Ele Se
regozijará com o Seu povo na terra; mas antes que chegue esse momento
ditoso, Ele está à parte como o verdadeiro nazireu, e o Seu povo está unido
com Ele. "Não são do mundo, como eu do mundo não sou. Santifica-os na
verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste a mim, também
eu os enviei ao mundo. E por eles me santifico a mim mesmo, para que também
eles sejam santificados na verdade" (Jo 17:16-19).
Leitor cristão, poderemos seriamente este grande aspecto do caráter do
nazireu. E importante examinarmo-nos fielmente à luz que dele irradia. E uma
questão muito séria, decerto, saber até que ponto nós, como cristãos,
compreendemos realmente o significado e poder desta extrema separação de
toda a excitação da natureza e da alegria puramente terrena. Pode dizer-se,
talvez: "Que mal há em se ter um pouco de divertimento ou recreio? Com
certeza que não somos chamados para sermos monges. Não nos tem dado
Deus todas as coisas liberalmente para as desfrutarmos? E enquanto estamos
no mundo, não é justo divertirmo-nos nele?
A toda esta argumentação respondemos dizendo que não é uma questão do
mal que há nisto, naquilo ou naquele outro. Não havia mal, em regra geral, no
vinho nem nada de mal na videira. Mas o ponto é este, se alguém aspirava ser
nazireu, se ambicionava essa santa separação para o Senhor, tinha de
abster-se completamente do uso do vinho e de bebidas fortes. Outros podiam
beber vinho, mas o Nazireu não podia tocar nele.

Como se Pode Ter Hoje o Caráter de Nazireu?


Ora, a questão para nós é esta, desejamos ser nazireus? Anelamos separação
completa e a consagração de nós mesmos, de corpo, alma e espírito a Deus?
Se é assim, temos de estar separados de todas estas coisas em que a natureza
acha a sua satisfação. É sobre esta verdade que gira toda a questão.
Mas, "queremos ser nazireus? É desejo de nosso coração sermos separados
com o Senhor da alegria puramente terrena — sermos separados para Deus
daquelas coisas que, apesar de não serem absolutamente pecaminosas em si
mesmas, tendem, contudo, a dificultar essa inteira consagração de alma que é o
verdadeiro segredo de todo o nazireado espiritual? Ignora o leitor cristão que
existem, com efeito, tais coisas? Não sente que há inúmeras coisas cuja
influência distrai e enfraquece o seu espírito, e que, se fossem julgadas pelo
padrão normal de moralidade, podiam passar por inocentes?
Porém, devemos recordar que os nazireus de Deus não medem as coisas por
tal regra. A sua moral não é de modo algum vulgar. Eles veem as coisas do
ponto de vista divino e celestial, e por isso não podem deixar passar coisa
alguma que possa interferir, de qualquer modo, com esse tom elevado de
consagração a Deus que as suas almas fervorosamente anseiam.
Que Deus nos dê graça para ponderarmos estas coisas e vigiarmos contra toda
a influência corruptora. Cada qual deve saber, no seu caso, o que se ao poderia
equiparar ao vinho e bebida forte. Pode parecer uma insignificância; mas
podemos estar certos que nada do que interrompe o curso da comunhão das
nossas almas com Deus e nos priva desta santa intimidade que é nosso
privilégio desfrutar, é insignificante.
Mas havia outra coisa que caracteriza o nazireu. Não devia tosquiar a sua
cabeça. ''Todos os dias do voto do seu nazireado sobre a sua cabeça não
passará navalha; até que se cumpram os dias que se separou para o SENHOR,
santo será, deixando crescer as guedelhas do cabelo da sua cabeça" (versículo
5).
Em 1 Coríntios 11:14 aprendemos que uma cabeleira crescida é considerada
como falta de dignidade no homem. "Ou não vos ensina a mesma natureza que
é desonra para o varão ter cabelo crescido?" Isto demonstra-nos que, se
queremos realmente viver uma vida de separação para Deus, temos de estar
dispostos a abandonar e renunciar à nossa dignidade na natureza.
Foi isto que o Senhor Jesus Cristo fez de um modo perfeito. Humilhou-Se a Si
mesmo. Renunciou aos Seus direitos em tudo. Podia dizer: "Mas eu sou verme
e não homem" (S1 22:6). Despojou- Se inteiramente de tudo e tomou o lugar
mais humilde. Esqueceu- Se de Si enquanto cuidava dos outros. Em suma, o
Seu nazireado foi perfeito nisto como em tudo mais.
Ora isto é precisamente o que nós gostamos muito pouco de fazer. Defendemos
naturalmente a nossa dignidade e procuramos manter os nossos direitos. E
simplesmente de supor que o homem o faça com brio. Mas o Homem Perfeito
nunca o fez; e se nós desejarmos ser nazireus também o não faremos.
Devemos abandonar as dignidades da natureza e renunciar aos gozos da terra,
se quisermos trilhar o caminho de inteira separação para Deus neste mundo.
Ambas as coisas estarão em breve no seu próprio lugar, mas enquanto não
chega esse dia temos de as renunciar.
Aqui note-se mais uma vez a questão não é de saber se o caso em pleito é justo
ou não. Como regra geral, era próprio o homem cortar o cabelo; mas não era
conveniente para um nazireu, antes pelo contrário, era um ato completamente
mau fazê-lo. A diferença estava nisto. Era perfeitamente justo um homem cortar
o cabelo e beber vinho, mas o nazireu não era um homem vulgar; estava
separado de tudo que era normal para seguir um caminho próprio, e tê-lo-ia
abandonado por completo se tivesse usado a navalha ou provado vinho. Por
isso, se alguém pergunta: Não é justo desfrutar os prazeres da terra e manter a
dignidade da natureza? Nós respondemos: E perfeitamente justo, se nos
propomos andar como homens; mas é inteiramente mau, ou é absolutamente
funesto, se desejamos andar como nazireus.
Isto simplifica admiravelmente o assunto; responde a múltiplas interrogações e
resolve inúmeras dificuldades. E inútil alguém prender-se com pormenores
sobre o mal que pode haver neste ou naquele caso especial. A questão é esta:
Qual é o nosso verdadeiro Propósito e qual o nosso objetivo? Queremos
comportar-nos apenas como homens ou desejamos ardentemente viver como
verdadeiros nazireus? Segundo a linguagem de 1 Coríntios 3:3 as expressões
carnais e "andar segundo os homens" são sinônimas.
Somos orientados por esta linguagem?- Compreendemos o espírito e
respiramos a atmosfera desta Escriturai Ou somos dirigidos pelo espírito e os
princípios deste mundo sem Deus e sem Cristo?
E inútil empregarmos o tempo discutindo pontos que nunca seriam levantados
se as nossas almas estivessem na sua disposição natural e mantivessem uma
atitude espiritual. Sem dúvida, é perfeitamente legítimo, perfeitamente natural e
consequente para os homens deste mundo gozarem tudo que o mundo tem
para lhes oferecer e manterem enquanto podem os seus direitos e a sua
dignidade. Seria pueril discutir isto.
Mas, por outro lado, o que é legítimo, natural e consequente para os homens
deste mundo é mau, anormal e inconsequente para os nazireus de Deus. A
questão está neste pé, se formos governados pela simples verdade de Deus.
Sabemos pelo capítulo sexto de Números que se uma nazireu bebida vinho ou
tosquiava o seu cabelo contaminava a cabeça da sua consagração. Isto não
nos diz nada, nem tem um lição para nós? E evidente que tem. Ensina-nos que,
se as nossas almas desejam prosseguir no caminho de inteira consagração a
Deus, devemos abster-nos dos gozos da terra e renunciar à dignidade e aos
direitos da natureza. Tem de ser assim, visto que Deus e o mundo, a carne e o
espírito, não podem ligar-se. Tempo virá em que será diferente; mas, no tempo
presente, todos os que quiserem viver para Deus e andar no Espírito, têm de
viver separados do mundo e mortificar a carne. Que Deus, em Sua grande
misericórdia, nos ajude a fazer assim!
Resta-nos considerar uma outra característica do Nazireu. Não devia tocar um
corpo morto. "Todos os dias que se separar para o SENHOR não se chegará a
corpo de um morto. Por seu pai, ou por sua mãe, por seu irmão, ou por sua
irmã, por eles não se contaminará, quando forem mortos, porquanto o
nazireado do seu Deus está sobre a sua cabeça" (versículos 6-7).
Vemos assim que, quer fosse beber vinho quer tosquiar o seu cabelo, ou tocar
um corpo morto, o efeito era o mesmo; qualquer das três coisas implicava a
contaminação da cabeça da consagração do nazireu. Portanto, é evidente que
era tão contagioso para o nazireu beber vinho ou tosquiar a cabeça como tocar
um corpo. E conveniente compreendermos isto. Estamos sempre a fazer
distinções que não resistem um instante à luz da presença divina. Uma vez que
o nazireado do seu Deus estava sobre a cabeça da qualquer pessoa, esse
importante fato tornava-se a regra e pedra de toque de toda a moralidade. O
indivíduo era, desse modo, colocado sobre um terreno inteiramente novo e
especial e impunha-lhe o dever de ver todas as coisas de um ponto de vista
novo e também especial. Já não devia perguntar o que lhe interessava como
homem, mas sim o que lhe interessava como nazireu. Por isso, se o seu mais
querido amigo jazia morto a seu lado, ele não devia tocar-lhe. havia sido
chamado para se manter à parte da influência contagiosa da morte, e tudo
porque o "nazireado do seu Deus estava sobre a sua cabeça".
Ora, em todo este assunto do nazireado, é necessário que o leitor compreenda
claramente que não se trata, de modo nenhum, da questão da salvação da
alma, da vida eterna ou da segurança perfeita do crente em Cristo. Se isto não
for claramente compreendido o espírito pode ver-se envolvido em trevas e
perplexidade. Existem dois grandes vínculos no Cristianismo, que, ainda que
intimamente unidos, são inteiramente distintos, a saber, o vínculo da vida
eterna, e o elo de comunhão pessoal. O primeiro nunca poderá ser quebrado
por coisa alguma; o último pode ser interrompido num momento pelo peso de
uma pena. E ao segundo destes laços que pertence a doutrina do nazireado.
Vemos na pessoa do nazireu um símbolo de alguém que entra numa situação
especial de dedicação e consagração a Cristo. O poder de prosseguir neste
caminho consiste numa secreta comunhão com Deus; de forma que se a
comunhão é interrompida o poder desaparece e torna o assunto peculiarmente
solene. Existe a possibilidade do grande perigo de se tentar seguir o caminho
na falta do que constitui a fonte do seu poder. Isto é desastroso e exige o maior
cuidado.
Temos examinado rapidamente as diversas coisas que contribuem para
interromper a comunhão do nazireu; mas seria completamente impossível
descrever o efeito moral de qualquer tentativa para guardar a aparência de
nazireado quando a realidade íntima pareceu. E em extremo perigoso. E
infinitamente melhor confessarmos a nossa falta, tomarmos o nosso verdadeiro
lugar, do que mantermos uma falsa aparência. Deus quer a realidade, e nós
podemos ficar certos de que, mais cedo ou mais tarde, a nossa fraqueza e a
nossa loucura, serão manifestadas a todos. É lamentável e humilhante quando
"Os nazireus mais alvos do que a neve" se tornam mais pretos "do que o
negrume" (Ml 4:6-8); mas é muito pior quando aqueles que se tornaram assim
negros tomam a pretensão de estar brancos.
Sansão
Consideremos o caso solene de Sansão, que se nos apresenta no capítulo
dezesseis de Juízes. Numa hora má, ele traiu o seu segredo e perdeu o seu
poder— perdeu-o embora o não soubesse. Mas o inimigo depressa o soube.
Cedo foi manifesto a todos que o nazireu tinha contaminado a cabeça do seu
nazireado. "E sucedeu que, importunando-o ela todos os dias com as suas
palavras e molestando-o, a sua alma se angustiou até à morte. E descobriu-lhe
todo o seu coração, e disse-lhe: Nunca subiu navalha à minha cabeça, porque
sou nazireu de Deus, desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapada
ir-se-ia de mim a minha força e me enfraqueceria e seria como todos os mais
homens" (Jz 16:16-17).
Ah! Aqui estava a denúncia do profundo e sagrado segredo de todo o seu
poder! Até aqui o seu caminho havia sido uma vida de força e vitória,
simplesmente porque havia sido uma vida de santo nazireado. Mas o regaço de
Dalila era muito para o coração de Sansão, o que mil filisteus não puderam
fazer foi feito pela influência ardilosa de uma simples mulher. Sansão saiu da
elevada posição de nazireu ao nível de um homem vulgar.
"Vendo, pois, Dalila que já lhe descobrira todo o seu coração, enviou e chamou
os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi esta vez, porque, agora, me descobriu
ele todo o seu coração. E os príncipes dos filisteus subiram a ela e trouxeram o
dinheiro na sua mão. Então, ela o fez dormir sobre os seus joelhos" (—Ah! que
sono fatal para um nazireu de Deus! —) "e chamou a um homem, e rapou-lhe as
sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a
sua força. E disse ela: Os filisteus vem sobre ti, Sansão. E despertou do seu
sono, e disse: Sairei ainda esta vez como dantes e me livrarei. Porque ele não
sabia que já o SENHOR se tinha retirado dele. Então, os filisteus pegaram nele
e lhe arrancaram os olhos, e fizeram-no descer a Gaza, e amarraram-no com
duas cadeias de bronze, e andava ele moendo no cárcere" (Jz 16:18-21).
Oh!, prezado leitor, que quadro! Quão solene! E que advertência! Que triste
espetáculo era Sansão levantando-se para se livrar "como dantes"! Ah, o
"como" estava fora do lugar! Podia levantar-se, mas já não era "como dantes",
porque o poder havia desaparecido; o Senhor tinha- Se retirado dele; e o
nazireu, ainda há pouco poderoso, tornou-se em prisioneiro cego; e, em vez de
triunfar sobre os filisteus, teve de moer no cárcere. E tudo por ter cedido
simplesmente à natureza. Sansão nunca recuperou a sua liberdade. Foi-lhe
permitido pela graça de Deus ganhar um vitória sobre os incircuncisos, mas
essa vitória custou-lhe a vida. Os nazireus de Deus têm de manter-se puros ou
perder o seu poder. No seu caso, o poder e a pureza são inseparáveis. Não
podem avançar sem santidade; e daí a necessidade urgente de estarem
sempre vigilantes contra diversas coisas que contribuem para afastar o coração,
distrair o espírito e rebaixar o grau de espiritualidade. Conservemos sempre
perante as nossas almas essas palavras do nosso capítulo: "Todos os dias do
seu nazireado será santo a SENHOR." A santidade é a grande e indispensável
característica de todos os dias do nazireado; de maneira que uma vez perdida a
santidade o nazireado está terminado.
Então, pode perguntar-se, que deve fazer-se? A Escritura que temos diante de
nós dá a resposta. "E se alguém vier a morrer junto a ele por acaso,
subitamente, e contaminar a cabeça do seu nazireado, então, no dia da sua
purificação, rapará a sua cabeça, e, ao sétimo dia, a rapará. E, ao oitavo dia,
trará duas rolas ou dois pombinhos, ao sacerdote, a porta da tenda da
congregação; e o sacerdote oferecerá um para expiação o pecado e o outro
para holocausto; e fará propiciação por esse que pecou no corpo; assim,
naquele mesmo dia, santificará a sua cabeça. Então, separará os dias do seu
nazireado ao SENHOR e, para expiação da culpa um cordeiro de um ano: e os
dias antecedentes serão perdidos, Porquanto o seu nazireado foi contaminado"
(versículos 9-12).
Aqui encontramos expiação nos seus dois grandes aspectos como o único
fundamento em que o nazireu podia ser restaurado à comunhão. Havia
contraído contaminação e essa contaminação só podia ser removida pelo
sangue do sacrifício. Nós podíamos julgar que tocar um corpo morto era um
caso insignificante, especialmente em tais circunstâncias. Como poderia ele
evitar o contato de um corpo morto se este havia caído a seu lado? A resposta é
ao mesmo tempo simples e solene. Os nazireus de Deus devem manter a
pureza pessoal; e, além disso, o padrão mediante o qual a pureza deve ser
regulada não é humano mas divino. O simples toque da morte era suficiente
para quebrar o elo de comunhão; e se o nazireu tivesse julgado que podia
continuar como se nada tivesse acontecido, teria fugido ao cumprimento dos
mandamentos de Deus atraindo sobre si um terrível juízo.
Os Primeiros Dias São Anulados
Mas, bendito seja Deus, a graça havia previsto a contingência. Havia o
holocausto, figura da morte de Cristo em relação com Deus. Havia a expiação
do pecado, símbolo dessa morte em relação conosco. E havia a expiação da
culpa, símbolo da morte de Cristo não apenas na sua aplicação à raiz ou
princípio de pecado na natureza, mas também ao pecado cometido. Em suma,
era necessária a plena eficácia da morte de Cristo para remover a
contaminação causada pelo simples contato com um corpo morto. Isto é
especialmente solene. O pecado é uma coisa terrível à vista de Deus — a mais
terrível. Um simples pensamento, um olhar pecaminoso, uma palavra
pecaminosa, bastam para trazer sobre a alma uma nuvem escura e carregada,
que ocultará à nossa vista a luz do semblante de Deus e nos submergirá em
profunda tristeza e miséria.
Guardemo-nos, pois, de tratar o pecado com leviandade. Lembremo-nos de que
antes que uma só mancha de pecado — até a mais pequena — pudesse ser
removida, o bendito Senhor Jesus Cristo teve de passar pelos horrores
indizíveis do Calvário. O brado intensamente doloroso do Calvário, "Deus meu,
Deus meu, porque me desamparaste?", é a única coisa que pode dar-nos uma
ideia do que é o pecado; e nenhum mortal ou anjo algum poderá jamais
penetrar nas profundidades imensas desse brado.
Mas embora não possamos jamais sondar as profundidades misteriosas dos
sofrimentos de Cristo, devemo-nos, ao menos, dedicar à meditação na Sua cruz
e paixão e procurar conseguir desta forma uma compreensão mais profunda do
caráter odioso do pecado à vista de Deus. Se, na verdade, o pecado é tão
horrendo e de tal modo abominável à vista do Deus santo que foi constrangido a
desviar a luz do Seu semblante d'Aquele bendito Senhor que havia habitado no
Seu seio desde toda eternidade, se teve de O abandonar porque Ele levava o
pecado sobre o Seu corpo sobre o madeiro, então que será o pecado?
Prezado leitor, consideremos atentamente estas coisas. Que elas possam ter
sempre um lugar profundo em nossos corações, que tão facilmente são
arrastados a pecar! Quão superficialmente pensamos, às vezes, que o pecado
custou ao Senhor Jesus não somente a vida, mas o que é melhor e mais
precioso do que a vida, a luz do semblante de Deus!
Que Deus nos dê uma maior compreensão de aversão ao pecado! Vigiemos
cuidadosamente contra o simples movimento dos olhos em má direção, porque
podemos estar certos de que o coração seguirá os olhos, e os pés seguirão o
coração, e assim nos afastamos do Senhor, perdemos o sentimento da Sua
presença e do Seu amor, tornamo-nos infelizes ou, o que é muito pior, mortos,
frios, e endurecidos — endurecidos "pelo engano do pecado" (Hb 3:13).
Que Deus, em Sua graça infinita, nos guarde de cairmos! Que nos conceda a
graça de vigiarmos com mais zelo contra tudo que possa manchar a cabeça do
nosso nazireado! Perder a comunhão é uma coisa muito grave; e é um caso
muito perigoso intentar prosseguir no Serviço do Senhor com uma consciência
contamina. Decerto, a graça perdoa e restaura, mas nunca mais recuperamos
que temos perdido; isto é o que se ensina com solene ênfase na passagem que
temos diante de nós: "Então, separará os dias do seu nazireado ao SENHOR, e
para expiação da culpa, trará um cordeiro de uma ano; e os dias antecedente
serão perdidos, porquanto o seu areado foi contaminado" (versículo 12).
Este ponto do nosso assunto é cheio de instrução e de advertência para as
nossas almas. Quando o nazireu se contaminava, de qualquer modo, até
mesmo pelo contato com um corpo morto, tinha de começar de novo. Não eram
só os dias da sua contaminação que estavam perdidos, mas sim todos os dias
do seu antecedente nazireado. Tudo havia sido em vão, e tudo por haver tocado
um corpo morto!
Que nos ensina isto? Ensina-nos, pelo menos, que quando nos desviamos,
ainda que seja a espessura de um cabelo, do caminho estreito da comunhão, e
nos afastamos do Senhor, temos de regressar ao próprio ponto de onde
partimos e começar outra vez. Temos muitos exemplos disto nas Escrituras; e
seria prudente considerá-los e também ponderar a verdade que eles ilustram.
Tomemos o caso de Abrão, na sua descida ao Egito, segundo descrição em
Gênesis 12. Isto era, evidentemente, afastar-se do seu próprio caminho. E qual
foi o resultado? Os dias passados ali foram perdidos ou desperdiçados, e ele
teve de voltar ao ponto de onde tinha partido e começar de novo. Assim, em
Gênesis 12:8, lemos: "E moveu-se de ali par a montanha à banda do oriente de
Betel e armou a sua tenda, tendo Betel ao ocidente e Ai ao oriente; e edificou ali
um altar ao SENHOR, e invocou o nome do SENHOR". Logo depois da sua
volta da terra do Egito, lemos: "E fez as suas jornadas do Sul até Betel, até ao
lugar onde, ao princípio, estivera a sua tenda, entre Betel e Ai; até ao lugar que,
dantes, ali tinha feito; e Abrão invocou ali o nome do SENHOR" (Gn 13:3-4).
Todo o tempo passado no Egito foi inútil. Não havia ali nenhum altar, nenhuma
comunhão nem culto; e Abraão teve de regressar ao mesmíssimo lugar de onde
se havia afastado e começar de novo.
Assim é em todos os casos; e só assim se explica o progresso miseravelmente
lento que alguns de entre nós fazem na sua carreira prática. Falhamos,
desviamo-nos, e afastamo-nos do Senhor e caímos em trevas espirituais; e
então a Sua voz de amor chega até nós e nos reconduz ao ponto de onde nos
tínhamos desviado; as nossas almas são restauradas, mas nós perdemos
tempo e sofremos. Isto é muito grave e deveria induzir-nos a andar com santa
vigilância e circunspeção, a fim de não termos de ser obrigados a retroceder o
nosso caminho e perder o que nunca mais podemos recuperar. Decerto, os
nossos desvios, e os nossos tropeços e as nossas fraquezas dão-nos um
profundo conhecimento dos nossos próprios corações, ensinam-nos a não
confiarmos em nós mesmos e ilustram a graça ilimitada e imutável de Deus.
Tudo isto é muito verdade, todavia há um meio muito mais elevado de nos
conhecermos a nós próprios e a Deus do que os desvios, as nossas quedas e
fraquezas. O ego, em todas as profundidades terríveis dessa palavra, deve ser
julgado à luz santa da presença divina; e ali as nossas almas devem também
crescer no conhecimento de Deus, na medida em que Ele é revelado pelo
Espírito Santo na face de Jesus Cristo e nas preciosas páginas das Escrituras.
Este é seguramente o meio mais excelente de nos conhecermos a nós próprios
e a Deus; e é também o poder de separação de todo o verdadeiro nazireu. A
alma que vive habitualmente no santuário de Deus, ou, por outras palavras, que
anda em comunhão contínua com Deus, é a que terá um sentimento verdadeiro
do que é a natureza em todas as suas fazes, embora não tenha aprendido por
amarga experiência. E, além disso, terá um sentimento mais profundo e mais
exato do que Deus é em Si Mesmo e para todos os que põem n'Ele a sua
confiança. Coisa triste é aprender por experiência própria. Podemos estar
certos de que o verdadeiro meio de aprender está na comunhão; e quando
assim aprendemos não temos de estar continuamente ocupados com a nossa
vileza; pelo contrário, estaremos ocupados com o que está fora e inteiramente
acima do ego, isto é, a excelência do conhecimento de Jesus Cristo nosso
Senhor.

A Lei do Nazireu e o seu Ensino Prático


Em conclusão desta parte, citaremos por extenso a exposição da lei do nazireu.
E esta é a lei do nazireu; no dia em que se cumprirem os dias do seu nazireado,
trá-lo-ão à porta da tenda da congregação; e ele oferecerá a sua oferta ao
SENHOR, um cordeiro sem mancha de um ano, em holocausto, e uma cordeira
sem mancha, de um ano, para expiação da culpa, e um carneiro sem mancha
por oferta pacífica; e um cesto de bolos asmos, bolos de flor de farinha com
azeite, amassados, e coscorões asmos untados com azeite, como também a
sua oferta de manjares e as suas libações. E o sacerdote os trará perante o
SENHOR e sacrificará a sua expiação do pecado e o seu holocausto; também
sacrificará o carneiro em sacrifício pacífico ao SENHOR, com o cesto dos bolos
asmos; e o sacerdote oferecerá a sua oferta de manjares e a sua libação.
Então, o nazireu, à porta da tenda da congregação, rapará a cabeça do seu
nazireado, e tomará o cabelo da cabeça do seu nazireado, e o porá sobre o
fogo que está debaixo do sacrifício pacífico. Depois, o sacerdote tomará a
espádua cozida do carneiro, e um bolo asmo do cesto, e um coscorão asmo e
os porá nas mãos do nazireu, depois de haver rapado a cabeça do seu
nazireado. E o sacerdote os moverá, em oferta de movimento, perante o
SENHOR; isto é santo para o sacerdote, juntamente com o peito da oferta de
movimento, e com a espádua da oferta alçada; e depois, o nazireu pode beber
vinho. Esta é a lei do nazireu que fizer voto da sua oferta ao SENHOR pelo seu
nazireado, além do que alcançar a sua mão; segundo o seu voto, que fizer,
assim fará, conforme à lei do seu nazireado" (versículos 13-21).
Esta maravilhosa "lei" conduz-nos a alguma coisa futura, quando aparecer o
pleno resultado da obra perfeita de Cristo; e quando Ele, como o Messias de
Israel, provar, no fim da Sua separação de nazireu, o verdadeiro gozo com o
Seu povo amado, neste mundo. Será então o tempo de o nazireu beber vinho.
Ele separou-Se de tudo isto, a fim de dar cumprimento a essa grande obra tão
completamente exposta em todos os seus aspectos e em todo o seu alcance na
"lei" precedente. Está separado da nação, separado deste mundo, no poder do
verdadeiro nazireado, como disse aos Seus discípulos nessa noite
memorável,"... desde agora não beberei deste fruto da vide até àquele dia em
que o beba, novo, convosco no reino de meu Pai" (Mt 26:29).
Virá, pois, um dia resplandecente em que Javé, o Messias, se regozijará em
Jerusalém e no Seu povo. Os profetas, desde Isaías a Malaquias, estão cheios
das mais gloriosas e emocionantes alusões a esse ditoso e resplandecente dia.
A reprodução das passagens que com ele se relacionam encheria literalmente
um livro. Mas se o leitor abrir a parte final da profecia de Isaías, encontrará um
exemplo do que queremos dizer; e encontrara também muitas passagens
semelhantes através do diversos livros dos profetas.
Não tentaremos mencionar passagens; mas queremos advertir o leitor contra o
perigo de ser induzido em erro pelos cabeçalhos não inspirados desses
magníficos capítulos que se referem ao fundo de Israel, tais como, por exemplo,
"As bênçãos do evangelho" — "O engrandecimento da Igreja". Estas
expressões são próprias para induzir em erro muitos leitores piedosos
demasiado dispostos a crer que esses cabeçalhos são tão inspirados como o
texto; ou, se não são inspirados, que contêm pelo menos, uma exposição
correta daquilo que o texto apresenta. O fato é que não existe uma sílaba
acerca da Igreja desde o princípio ao fim dos profetas. Que a Igreja pode
encontrar a mais preciosa instrução, luz, conforto e edificação nesta grande
parte do volume inspirado, é felizmente verdade; mas conseguirá tudo isto só na
proporção em que é habilitada pelo ensino do Espírito a discernir o verdadeiro
intento e objetivo desta parte do livro de Deus.
Supor que podemos tirar proveito e conforto somente do que se refere exclusiva
ou primeiramente a nós próprios, seria ter um conceito muito estreito, para não
dizer egoísta, das coisas. Não podemos aprender com o livro de Levítico? E
todavia quem ousaria afirmar que se refere à Igreja?
Não, leitor, pode estar certo de que um estudo feito com calma, sem ideia
preconcebida e com oração, da "lei e dos profetas" convencê-lo-á de que o
grande tema tanto de uma como dos outros e o governo de Deus deste mundo
em relação imediata com Israel. Verdade é que, através de "Moisés e os
Profetas" há coisas que dizem respeito ao Senhor Mesmo. Isto é claro segundo
Lucas 24-27. Mas e a 'Ele Próprio" em Sua administração deste mundo, e
principalmente de Israel. Se este fato não for claramente compreendido, o
nosso estudo do Velho Testamento será pouco inteligente ou de nenhum
proveito.
Poderá parecer a alguns dos nossos leitores uma afirmação exagerada afirmar
que nada há acerca da Igreja propriamente dita em todos os profetas ou com
efeito em todo o Velho Testamento; Porem uma passagem ou duas da pena
inspirada do apóstolo Paulo resolverá toda a questão para quem quer
submeter-se realmente à autoridade das Sagradas Escrituras.
Assim em Romanos 16, lemos: "Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar
segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação
do mistério que desde tempos eternos esteve oculto, mas que se manifestou
agora e se notificou pelas Escrituras dos profetas (evidentemente do Novo
Testamento) segundo o mandamento do Deus eterno, a todas as nações para
obediência da fé" (versículos 25-26).
Assim também em Efésios 3 lemos: "Por esta causa, eu, Paulo, sou o
prisioneiro de Jesus Cristo por vós, os gentios, se é que tendes ouvido a
dispensação da graça de Deus, que para convosco me foi dada; como me foi
este mistério manifestado pela revelação como acima, em pouco, vos escrevi;
pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de
Cristo, o qual, noutros séculos, não foi manifestado aos filhos dos homens,
como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e
profetas (1), a saber, que os gentios são co-herdeiros, e de um mesmo corpo, e
participantes da promessa em Cristo pelo evangelho... e demonstrar a todos
qual seja a dispensação do mistério, que, desde os séculos esteve OCULTO
EM DEUS, que tudo criou; para que, agora, pela igreja, a multiforme sabedoria
de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus" (versículos
1-10).
__________
(1) Os "profetas", na passagem acima reproduzida, são os do Novo
Testamento, como é evidente pela forma de expressão. Se o apóstolo se
referisse aos profetas do Velho Testamento, teria dito, "Os seus santos profetas
e apóstolos". Mas o ponto em que ele insiste é que o mistério nunca havia sido
revelado até aos seus dias — que não havia sido dado a conhecer aos filhos
dos homens noutros séculos — que estava oculto em Deus; não estava oculto
nas Escrituras, mas na mente infinita de Deus.

Mas não devemos prosseguir este interessantíssimo assunto da Igreja; temos


apenas referido as passagens precedentes das Escrituras a fim de
esclarecermos o espírito do leitor quanto ao fato de que a doutrina da Igreja, tal
como a ensina Paulo, não se encontra nas páginas do Velho Testamento; e,
portanto, quando ler os profetas e encontrar as palavras "Israel", "Jerusalém",
"Sião" não deve aplicá-las à Igreja de Deus, visto que se referem ao próprio
povo de Israel, a semente de Abraão, a terra de Canaã e a cidade de Jerusalém
(1).

__________
(1) Estes termos referem-se evidentemente às profecias do Velho Testamento.
Ha passagens nas Epístolas aos Romanos e aos Gálatas em que todos os
crentes são considerados como a semente de Abraão (Veja-se Rm 4:8-17; G1
3:7, 9, 21; 6:16); mas isto é sem dúvida uma coisa muito diferente. Não temos
revelação da "Igreja", assim propriamente chamada, nas Escrituras do Velho
Testamento.

Deus sabe o que diz; e portanto não devemos favorecer nada que se pareça
com uma maneira ligeira e irreverente de manejar a Palavra de Deus. Quando o
Espírito fala de Jerusalém, quer dizer Jerusalém; se quisesse referir-Se à Igreja
tê-lo-ia dito. Não nos ocorreria tratar um documento humano respeitável como
tratamos o volume inspirado. Aceitamos como certo que um homem sabe não
somente o que quer dizer, como diz o que quer dizer; e se é assim a respeito de
um pobre falível mortal, quanto mais a respeito do Deus vivo e único sábio, que
não pode mentirá?
Mas devemos pôr fim ao estudo desta parte do capítulo e deixar que o leitor
medite sozinho sobre a ordenação do nazireu, tão cheia de sagrado ensino para
o coração. Desejamos que considere, de um modo especial, o fato de o Espírito
Santo nos ter dado a exposição completa da lei do nazireado no livro de
Números — o livro do deserto. E não somente isto, mas que considere
atentamente a própria instituição. Quer procure compreender a razão por que o
nazireu não devia beber vinho; por que não devia cortar as suas tranças; e por
que não devia tocar um corpo morto. Que medite sobre estas três coisas, e
procure recolher a instrução abrangida por elas. Que se interrogue. "Desejo
realmente ser um nazireu?- — andar no caminho estreito de separação para
Deus? E, se é assim, estou pronto a abandonar todas as coisas que tendem a
contaminar, a distrair e impedir os nazireus de Deus? E, por fim, lembre-se de
que virá tempo em que "o nazireu pode beber vinho", ou, por outras palavras,
em que não haverá necessidade de vigiar contra as diversas formas do mal
íntimo ou exterior; tudo será puro; os afetos poderão ter livre curso; as vestes
poderão ser envergadas sem cinto ao nosso redor; não haverá mal para termos
de nos separar, e portanto não haverá necessidade de separação. Em suma,
haverá "novos céus e nova terra, em que habita a justiça". Que Deus, em Sua
infinita misericórdia, nos guarde até que venha esse bendito tempo em
verdadeira consagração de coração para Si.

A Bênção Divina Depende da Ordem no Acampamento


O leitor notará que chegamos aqui ao fim de uma parte muito clara do nosso
livro. O acampamento está devidamente arranjado; cada guerreiro ocupa o seu
próprio posto (capítulos 1 e 2); cada obreiro está ocupado com o seu próprio
trabalho (capítulos 3 e 4); a congregação é purificada da sua contaminação
(capítulo 5). Faz- se provisão para o mais elevado caráter de separação para
Deus (capítulo 6). Tudo isto está bem especificado. A ordem é notavelmente
bela. Temos perante nós não somente um acampamento limpo e bem
ordenado, mas também um caráter de consagração a Deus além do qual é
impossível chegar, visto que só foi visto em toda a sua integridade na vida de
nosso Senhor Jesus Cristo. Chegados, pois, a este ponto culminante, nada
restava para o Senhor senão pronunciar a Sua bênção sobre toda a
congregação e por consequência encontramos essa bênção no fim do capítulo
6; e, sem dúvida, podemos dizer que é inteiramente real. Leiamos e
consideremos.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala a Arão e a seus filhos, dizendo:
Assim abençoareis os filhos de Israel, dizendo- -lhes: O SENHOR te abençoe e
te guarde; o SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha
misericórdia de ti; o SENHOR sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz. Assim,
porão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei".
Esta abundante bênção corre através do sacerdócio. Arão e seus filhos são
encarregados de pronunciar esta maravilhosa bênção. A assembleia de Deus
tem de ser abençoada e guardada por Ele continuamente; deve ser sempre
protegida à luz do Seu misericordioso semblante; a sua paz deve correr como
um rio; o nome do Senhor deve ser invocado sobre ela; Ele está sempre ali para
abençoar.
Que provisão! Oh! se Israel a tivesse usado e vivido no poder dela! Mas não o
fizeram. Depressa se desviaram, como veremos. Trocaram a luz do semblante
de Deus pelas trevas do Monte Sinai. Abandonaram o terreno da graça e
colocaram-se sob a lei. Em vez de estarem satisfeitos com a sua parte no Deus
de seus pais, cobiçaram outras coisas (compare-se os Salmos 105 e 106). Em
vez da ordem, da pureza e da separação para Deus com que abre o nosso livro,
temos a desordem, contaminação e a idolatria.
Mas, bendito seja Deus, aproxima-se o momento em que a magnificente
bênção de números 6 terá a sua plena aplicação; quando as doze tribos de
Israel forem alinhadas em redor dessa imperecível bandeira, "Javé Samá" — "O
Senhor está ali" (Ez 48:35): quando forem purificadas de toda a sua
contaminação e consagradas a Deus no poder do verdadeiro nazireado. Estas
coisas são apresentadas da maneira mais clara e plena através das páginas
dos profetas. Todos estes inspirados testemunhos, sem uma única voz
discordante, anunciam o glorioso porvir reservado a Israel; todos assinalam o
tempo em que as nuvens carregadas que se têm acumulado e ainda pairam
sobre o horizonte da nação serão afugentadas ante os brilhantes raios do "Sol
da Justiça"; em que Israel gozará de um dia sem nuvens de bênção e glória,
debaixo das videiras e das figueiras dessa mesmíssima terra que Deus deu em
possessão eterna a Abraão, Isaque e Jacó.
Se negamos o que antecede poderemos muito bem cercear uma grande parte
do Velho Testamento e uma parte não menor do Novo, visto que tanto em um
como no outro o Espírito Santo dá claramente e sem equívoco testemunho
deste precioso fato, a saber, misericórdia, salvação e bênção para a semente
de Jacó. Não hesitamos em declarar a nossa convicção de que ninguém pode
na verdade compreender os profetas se não faz caso desta verdade. Existe um
brilhante porvir reservado aos amados de Deus, ainda que sejam na atualidade
desprezados. Tenhamos cuidado do modo como tratamos deste fato. E uma
coisa grave tentar interferir, de qualquer modo que seja, com a verdade e
própria aplicação da Palavra de Deus. Se Ele Próprio Se comprometeu a
abençoar a nação de Israel, guardemo-nos cuidadosamente de forçar a
corrente de bênção a correr noutra direção. A ingerência nos propósitos de
Deus é uma coisa muita séria. Ele tem declarado que é Seu firme propósito dar
a terra de Canaã em possessão eterna à semente de Jacó; e se isto for posto
em dúvida não vemos como podemos manter a integridade de qualquer parte
da Palavra de Deus.
Se nos permitimos proceder levianamente com uma grande parte do cânone
inspirado — e certamente é leviandade querer desviá-la do seu verdadeiro
objetivo — que segurança temos a respeito da aplicação da Escritura em geral?
Se Deus não quer dizer exatamente o que diz quando fala de Israel e da Terra
de Canaã, como sabemos que Ele quer dizer precisamente o que diz quando
fala da Igreja e da sua parte celestial em Cristo?- Se o Judeu for defraudado da
usa glória futura, que segurança poderá ter a Igreja da sua?
Prezado leitor, recordemos que "TODAS" (não apenas algumas) "as promessas
de Deus são sim e amém em Cristo Jesus". E enquanto nos regozijamos com a
aplicação que nos é feita desta preciosa afirmação, não procuremos negar a
sua aplicação aos outros. Cremos firmemente que os filhos de Israel gozarão
ainda a plenitude de bênção apresentada no parágrafo final de Números 6; e
até então a Igreja de Deus é chamada para participar da bênçãos que são
especialmente para ela. Ela tem o privilégio de saber que a presença de Deus
está continuamente com ela e no meio dela—de habitar na luz do Seu
rosto—de beber do rio da paz, de ser abençoada e guardada dia após dias por
Aquele que nunca pestaneja nem dorme. Mas não olvidemos, ou, antes,
recordemos seriamente e de contínuo que o sentimento prático e o gozo
experimental destas imensas bênçãos e privilégios estarão em proporção exata
com a medida com que a Igreja procurar manter a ordem, a pureza e a
separação do nazireado a que é chamada como habitação de Deus — o corpo
de Cristo — a habitação do Espírito Santo.
Que esta coisas penetrem em nossos corações e exerçam a sua influência
santificadora sobre toda a nossa vida e o nosso caráter!
CAPÍTULO 7

O TABERNÁCULO ESTÁ LEVANTADO

As Ofertas dos Príncipes


Esta é a divisão mais extensa de todo o livro de Números. Contém um
exposição pormenorizada dos nomes dos príncipes da congregação e de suas
respectivas oferendas na ocasião da construção do tabernáculo.
"E aconteceu, no dia em que Moisés acabou de levantar o tabernáculo, e o
ungiu, e o santificou, e todos os seus utensílios; e também o altar e todos os
seus utensílios, e os ungiu, e os santificou, que os príncipes de Israel, os
cabeças da casa de seus pais, os que foram príncipes das tribos, que estavam
sobre os que foram contados, ofereceram e trouxeram a sua oferta perante o
SENHOR, seis carros cobertos e doze bois; por dois príncipes um carro, e, por
cada um, um boi; e os trouxeram diante do tabernáculo.
E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Toma-os deles, e serão para servir no
ministério da tenda da congregação; e os darás aos levitas, a cada qual
segundo o seu ministério. Assim Moisés tomou os carros e os bois e os deu aos
levitas. Dois carros e quatro bois deu aos filhos de Gérson, segundo o seu
ministério; e quatro carros e oito bois deu aos filhos de Merari, segundo o seu
ministério, debaixo da mão de Itamar, filho de Arão, o sacerdote. Mas aos filhos
de Coate nada deu, porquanto a seu cargo estava o santuário, e o levavam aos
ombros. E ofereceram os príncipes para a consagração do altar, no dia em que
foi ungido; ofereceram, pois, os príncipes a sua oferta perante o altar"
(versículos 1-10).
Observamos, no nosso estudo sobre os capítulos 3 e 4, que os filhos de Coate
tinham o privilégio de levar tudo que era mais precioso entre os instrumentos e
mobiliário do santuário. Por isso não receberam nenhuma das oferendas dos
príncipes. O seu serviço elevado e santo consistia em carregar aos ombros e
não usar carros ou bois. Quanto mais atentamente examinamos as coisas que
estavam confiadas à guarda e encargo dos coatitas, tanto mais veremos que
apresentam, em figura, as manifestações mais profundas e plenas de Deus em
Cristo. Os gersonitas e os meraritas, pelo contrário, tinham que atender às
coisas que eram mais exteriores. O seu trabalho era mais duro e arriscado, e
portanto estavam providos dos recursos que a liberalidade dos príncipes pôs à
sua disposição. O coatita não tinha necessidade de um carro ou de um boi no
seu elevado serviço. Devia transportar sobre os ombros a sua preciosa carga
mística.

A Consagração do Altar: A Oferta de cada Príncipe em seu Dia


"E ofereceram os príncipes para a consagração do altar, no dia em que foi
ungido; ofereceram, pois, os príncipes a sua oferta perante o altar. E disse o
SENHOR a Moisés: Cada príncipe oferecerá a sua oferta (cada qual em seu
dia) para a consagração do altar" (versículos 10-11).
O leitor pouco espiritual, percorrendo com os seus olhos este longo capítulo,
podia sentir-se disposto a perguntar por que, num documento inspirado, o que
podia dizer-se em meia dúzia de linhas ocupa tanto espaço. Se um homem
tivesse de dar a conta dos negócios desses doze dias, tê-la-ia, muito
provavelmente, resumido em uma só declaração, dizendo-nos que os doze
príncipes ofereceram cada um tais e quais coisas.
Mas isso não teria de modo algum agrado à mente divina. Os pensamentos de
Deus não são os nossos pensamentos, nem os Seus caminhos os nossos
caminhos.
O Senhor não podia dar-Se por satisfeito senão com a informação mais
completa e pormenorizada do nome de cada príncipe, da tribo que representava
e da oferta que fazia ao santuário de Deus. Daí este longo capítulo de oitenta e
nove versículos.
Cada nome brilha com a sua própria distinção. Cada oferta é descrita
minuciosamente e devidamente apreciada. Os nomes e as ofertas não são
confusamente misturados. Isto não corresponderia ao caráter do nosso Deus; e
Ele só pode atuar e falar segundo o que e, em tudo que faz e tudo que diz. O
homem pode passar rapidamente e com descuido sobre os dons e as
oferendas, mas Deus não pode assim fazer e nunca o faz, e não o quer nunca.
Deleita-Se em inscrever todo o pequeno serviço e todo o pequeno dom. Nunca
esquece a mais pequena coisa; e não só não as esquece como toma o cuidado
especial em que o seu registro seja lido por um número infinito de indivíduos.
Quão longe estavam esses doze príncipes de imaginar que os seus nomes e as
suas ofertas seriam transmitidos de século para século para serem lidos por
incontáveis gerações! E contudo assim sucedeu, porque Deus assim o quis.
Preocupa-Se com o que poderia parecer à nossa vista fastidioso pormenor; sim,
se quiserem, preocupa-se com o que o homem podia julgar repetição
enfadonha da mesma coisa, a omitir o nome de um só dos Seus ou uma
simples particularidade do seu trabalho.

Um Ensinamento Prático (semelhante ao de 2 Sm 23 e Rm 16)


Assim, no capítulo que temos diante de nós, "cada príncipe" tinha "o seu dia"
determinado para fazer a sua oferta, e o seu próprio espaço nas páginas
eternas de inspiração em que o mais completo registro dos seus dons é feito por
Deus o Espírito Santo.
Isto é divino. E não podemos dizer que este sétimo capítulo de Números é um
espécime dessas páginas do livro da eternidade em que o dedo de Deus tem
gravado os nomes dos Seus servos e feito o registro da sua obrai Cremos que
é, e se o leitor se voltar para o capítulo vigésimo - terceiro do segundo livro de
Samuel e o décimo sexto da epístola aos Romanos, encontrará duas páginas
semelhantes a esta. Na primeira, temos os nomes e os feitos dos dignitários de
Davi; na última os nomes e os feitos dos amigos de Paulo em Roma. Em ambas
vemos uma ilustração daquilo que, estamos persuadidos, é verdadeiro a
respeito de todos os santos de Deus e dos servos de Cristo desde o princípio ao
fim.
Cada um tem o seu lugar especial na lista, e cada um ocupa o seu lugar no
coração do Mestre; e todos serão em breve manifestados. Entre os valentes de
Davi, temos "os três primeiros", "os três" e "os trinta". Nenhum dos "trinta"
obteve jamais um lugar entre "os três"; nem tampouco um dos "três" conseguiu
chegar aos "três primeiros".
Mas isto não é tudo. Cada ato é fielmente descrito; e o feito e a maneira como
foi levado a cabo é esmeradamente posto diante de nós. Temos o nome do
homem, o que ele fez e como o fez. Tudo está registrado cuidadosa e
minuciosamente pela pena imparcial e infalível do Espírito Santo.
Assim também quando nos voltamos para o exemplo notável que nos é
apresentado em Romanos 16, temos tudo que diz respeito a Febe, o que ela era
e o que fez, e que sólido fundamento ela tinha para firmar os seus direitos à
simpatia e socorro da assembleia em Roma. Depois temos Priscila e Áquila — a
mulher é mencionada primeiro—e como eles tinham expostos as suas cabeças
pela vida do apóstolo, merecendo o seu agradecimento e de todas as igrejas
dos gentios. Em seguida temos o "amado Epêneto"; e "Maria" que prestou não
apenas trabalho mas "trabalhou muito" pelo apóstolo. Não teria sido falar
segundo o pensamento do Espírito ou o coração de Cristo dizer apenas que
Epêneto era "amado" ou que Maria havia rendido "trabalho". Não; os dois
vocábulos "bem" e "muito" eram necessários a fim de mostrar o estado exato de
cada um.
Mas não nos devemos alargar mais sobre este assunto, e somente
chamaremos a atenção do leitor para o versículo 12. Por que razão não coloca
o escritor inspirado "Trifena e Trifosa" e "a amada Pérside" sob o mesmo título?-
Por que não os qualifica na mesma posição? A razão é extremamente bela;
porque ele não só podia dizer das duas primeiras que trabalhavam no Senhor,
enquanto que era preciso acrescentar à última que "trabalhou muito no Senhor".
Pode haver alguma coisa mais clara?- São "os três" — "os primeiros três" — e
os "trinta" ainda uma vez. Não há jogo confuso de nomes e serviços; nenhuma
precipitação; nenhum engano. Diz-se o que cada um era e o que fez. Cada qual
ocupa o seu lugar e recebe a sua recompensa em louvores.
E isto, note-se, é uma página exemplar do livro da eternidade. Quão solene é
tudo! E contudo quão animador! Não existe um só ato de serviço que fazemos
ao Senhor que não seja escrito no Seu livro; e não apenas a substância do ato,
mas também a maneira como é feito, porque Deus aprecia a execução tão bem
como nós. Ama ao que dá com alegria e um obreiro jubiloso, porque isso é
precisamente o que Ele próprio é. Era agradável para o Seu coração ver a onda
de liberalidade dos representantes das doze tribos correndo em relação com o
Seu santuário. Era grato ao Seu coração anotar os feitos dos dignitários de
David nos dias da Sua rejeição. Era agradável ao Seu coração seguir o caminho
de devoção das Príscilas, as Aquilas e as Febes dos últimos dias. E podemos
acrescentar que é grato ao Seu coração, nestes dias de tanta indiferença e
insípida profissão, ver, por aqui e por ali, um coração que ama verdadeiramente
e Cristo a um obreiro consagrado na Sua vinha.
Que o Espírito de Deus excite os nossos corações a uma dedicação mais
completa! Que o amor de Cristo nos constranja, mais e mais, a viver, não para
nós próprios, mas para Aquele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados
escarlates em Seu precioso sangue e fez de nós tudo que somos ou que
esperamos vir a ser.
CAPÍTULO 8

AS SETE LÂMPADAS ALUMIARÃO O ESPAÇO EM FRENTE DO CANDEEIRO

"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala a Arão e dize-lhe: Quando


acenderes as lâmpadas, defronte do candeeiro alumiarão as sete lâmpadas. E
Arão fez assim; defronte da face do candeeiro acendeu as suas lâmpadas,
como o SENHOR ordenara a Moisés. E era esta obra do candeeiro de ouro
batido; desde o pé até às suas flores era batido; conforme o modelo que o
SENHOR mostrara a Moisés, assim ele fez o candeeiro" (versículos 1-4).
Lendo este parágrafo, duas coisas chamam a atenção do leitor, a saber,
primeiro, a posição que ocupa o símbolo do candeeiro, segundo, a instrução
que o símbolo nos dá.
É notável que o candeeiro seja a única parte do mobiliário do tabernáculo aqui
mencionado. Nada é dito sobre o altar de ouro, nada acerca da mesa de ouro.
Só o candeeiro está diante de nós, não com a sua coberta de azul e peles de
texugos, como em capítulo 4, onde, como tudo mais, é visto como a sua
cobertura de transporte. Aqui vêmo-lo aceso, e não coberto. Menciona-se entre
as ofertas dos príncipes e a consagração dos levitas e esparge a sua luz mística
conforme o mandamento do Senhor.
A luz não pode dispensar-se no deserto e portanto o candeeiro de ouro tende
ser despojado da sua cobertura para brilhar em testemunho de Deus, o qual,
recorde-se, é o grande objeto de tudo, quer seja na oferta da nossa substância,
como no caso dos príncipes, quer na dedicação das nossas pessoas, como no
caso dos levitas. É só à luz do santuário que o verdadeiro valor de qualquer
coisa ou de alguém pode ser visto.
Por isso a ordem moral de toda esta parte do livro é notável e bela; em boa
verdade e divinamente perfeita. Havendo lido, em capítulo 7, a narração
completa da liberalidade dos príncipes, nós, em nossa sabedoria, poderíamos
supor que se seguiria por ordem a consagração dos levitas, mostrando assim,
em relação ininterrupta, "as nossas pessoas e ofertas", mas não. O Espírito de
Deus faz intervir a luz do santuário a fim de podermos discernir nela o
verdadeiro objetivo de toda a liberalidade e de todo o serviço no deserto.
Não há nisto uma utilidade moralmente bela?- Poderá algum leitor espiritual
deixar de vê-la? Por que motivo não está aqui o altar de ouro com a sua nuvem
de incenso? Porque não vemos aqui a mesa pura com os seus doze pães?-
Porque nem o altar nem a mesa teria a menor relação moral com os
acontecimentos antecedentes ou que se seguem; contudo o candeeiro de ouro
está relacionado com todos, visto que nos ensina que toda a liberalidade e todo
o trabalho têm de ser considerados à luz do santuário, a fim de se lhes poder
atribuir o seu valor real. Isto é uma grande lição para o deserto, e é ensinada
aqui de uma forma tão perfeita quanto um símbolo nos pode ensinar.
Nas nossas considerações sobre o livro de Números, acabamos de ler a
descrição da liberalidade devocional dos principais chefes da congregação por
ocasião da dedicação do altar; e estamos prestes a ler a narração da
consagração dos levitas; mas o escritor inspirado detém-se, entre estes dois
relatos, a fim de permitir que a luz do santuário brilhe sobre eles.
Isto é ordem divina. E, tomamos a liberdade de dizer, uma das inúmeras
ilustrações que se acham espalhadas à superfície da Escritura, e tem por fim
demonstrar a perfeição divina do volume, no seu conjunto, e de cada livro, cada
parte e cada um dos seus parágrafos. Sentimos prazer, muitíssimo prazer, em
poder indicar estas preciosas ilustrações ao leitor à medida que passamos por
elas em sua companhia. Julgamos prestar-lhe com isto um bom serviço; e, ao
mesmo tempo, pagamos o nosso humilde tributo de louvor a este precioso livro
que o nosso Pai graciosamente escreveu par nós. Bem sabemos que esse livro
não necessita do nosso pobre testemunho nem do testemunho de nenhuma
pena ou língua mortal.
Contudo, é com alegria que rendemos o nosso testemunho ante ataques
inúmeros mas inúteis do inimigo contra a sua inspiração. A verdadeira origem e
o caráter de tais ataques tornar-se-ão mais claros à medida que adquirimos um
conhecimento mais profundo, mais vivo e mais experimental das infinitas
profundidades e das divinas perfeições do volume. E por isso a evidência
interna da Sagrada Escritura—o seu efeito poderoso sobre nós próprios, nada
menos que as suas glórias morais intrínsecas — a sua faculdade de julgar as
próprias raízes do caráter e da conduta, e a sua admirável estrutura, em todas
as suas partes, são os mais poderosos argumentos em defesa da sua
divindade. Um livro que me mostra o que eu sou — que me diz tudo que há em
meu coração — que põe a descoberto as origens morais ocultas da minha
natureza—que me julga completamente, e ao mesmo tempo me revela Aquele
que supre todas as minhas necessidades—um tal livro leva consigo as suas
próprias credenciais. Não pede e não precisa de cartas de recomendação do
homem. Não tem necessidade do seu favor, nem teme a sua ira.
Lembro-me muitas vezes de que se tivéssemos de arguir acerca da Bíblia como
a mulher de Sicar discorreu acerca do Senhor, chegaríamos a uma conclusão
tão correta a seu respeito como aquela que ela tirou a respeito d'Ele: "Vinde",
disse essa simples e feliz mulher, "vede um homem que me disse tudo quanto
tenho feito: porventura não é este o Cristo?" Não poderemos nós dizer, como
igual força: "Vinde, vede um livro que me disse tudo quanto tenho feito:
porventura não é este a Palavra de Deus?" Sim, na verdade; e não somente
isto, mas podemos argumentar, à fortiori, porquanto o livro de Deus não
somente nos diz tudo quanto temos feito mas tudo que pensamos, e tudo que
dizemos e tudo que somos. Veja-se Romanos 3:10-18; Mateus 15:19.
Mas será que desprezamos as provas externas?- Longe disso. Alegramo-nos
nelas. Apreciamos todo o argumento e toda a prova que têm por fim fortalecer a
base da confiança do coração na inspiração divina da Escritura Sagrada; e,
decerto, temos abundância de tais argumentos e provas. A história do próprio
livro, com todos os seus fatos surpreendentes, dá-nos abundância de evidência.
A história da sua composição; a história da sua preservação; a história da sua
tradução de língua para língua; a história da sua circulação por toda a superfície
da terra — em suma, toda a sua história "superior à fábula e todavia verdadeira"
forma um poderoso argumento em defesa da sua origem divina. Pensemos, por
exemplo, nesse fato de grande interesse, isto é: a sua conservação durante
mais de mil anos nas mãos daqueles que de boa vontade a teriam deitado, se
pudessem, ao eterno esquecimento. Isto não é um fato eloquente? Com
certeza; e há muitos fatos destes na história maravilhosa deste incomparável e
inestimável Livro.
Porém, depois de termos marcado uma margem bastante extensa para nela
incluirmos o valor das provas externas, voltamos com decisão inabalável à
nossa afirmação de que as provas internas—as provas que devem ser tiradas
do próprio livro—constituem uma defesa tão poderosa quanto é possível erigir
para reter a onda da oposição infiel e céptica.
Contudo, não prosseguiremos esta linha de pensamento a que fomos levados
ao contemplar a notável posição assinalada ao candeeiro de ouro no livro de
Números. Fomos constrangidos a dar o nosso depoimento da nossa preciosa
Bíblia, e depois disso voltamos ao nosso capítulo para tirar o ensino que
encerra o primeiro parágrafo.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala a Arão e dize-lhe: Quando
acenderes as lâmpadas, defronte do candeeiro alumiarão as sete lâmpadas."
Estas sete lâmpadas representam a luz do Espírito em testemunho. Estavam
ligadas com a barra de ouro batido do castiçal, a qual simboliza Cristo, que, em
Sua própria pessoa e obra, é o fundamento da obra do Espírito na Igreja. Tudo
depende de Cristo. Cada raio de luz na Igreja, no crente, individualmente, ou,
dentro em pouco, em Israel, emana de Cristo.
Mas isto não é tudo que o símbolo nos ensina. "Defronte do candeeiro
alumiarão as sete lâmpadas." Se quiséssemos revestir esta figura em
linguagem do Novo Testamento, citaríamos as palavras do Senhor quando nos
diz: "Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as
vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus" (Mt 5:16).
Onde quer que a luz do Espírito resplandece dará sempre um testemunho claro
a Cristo. Não chamará a atenção para si mesma, mas sim para Ele; e este é o
meio de glorificar a Deus. "Defronte do candeeiro alumiarão as sete lâmpadas."

A Luz de Cristo Brilha por Intermédio dos Seus


Isto é uma grande verdade prática para todos os cristãos. A mais bela prova que
pode dar-se de um verdadeiro trabalho espiritual é que ele tem por fim exaltar
Cristo. Caso se procure chamar a atenção para o trabalho ou para o obreiro, a
luz tem-se, então, tornado pálida, e o Ministro do santuário tem de usar os
espevitadores. Era encargo de Arão acender as lâmpadas; e era ele também
quem as espevitava. Por outras palavras, a luz que, como cristãos, temos a
responsabilidade de dar não só está fundada em Cristo como é mantida por Ele,
de momento a momento durante toda a noite. Sem Ele nada podemos fazer. A
barra de ouro sustinha as lâmpadas; a mão sacerdotal fornecia o azeite e
aplicava os espevitadores. É tudo em Cristo, de Cristo e por Cristo. E mais, é
tudo para Cristo. Onde quer que a luz do Espírito — a verdadeira luz do
santuário — tem brilhado, no deserto deste mundo, o objetivo dessa luz tem
sido exaltar o nome de Jesus.
Tudo aquilo que tem sido feito pelo Espírito Santo, tudo aquilo que tem sido dito,
qualquer coisa que tem sido escrita, tem tido por fim a glória deste bendito
Senhor. E podemos dizer com confiança que tudo aquilo que não tem essa
tendência—esse alvo—não é do Espírito Santo. Pode haver muito trabalho
feito, muitos resultados aparentemente alcançados, uma boa quantidade de
coisas próprias para atrair a atenção humana, e provocar os aplausos do
homem, e contudo não haver um simples raio de luz do candeeiro de ouro. E
por quê? Porque a atenção é chamada para o trabalho ou para os que estão
ocupados nele. O homem e os seus feitos são exaltados em vez de Cristo. A luz
não tem sido produzida pelo azeite provido pela mão do grande Sumo
Sacerdote; e, como consequência, é uma luz falsa. E uma luz que não brilha
defronte do candeeiro, mas defronte do nome e dos atos de qualquer pobre
mortal.
Tudo isto é muito solene e requer a nossa maior atenção. Existe sempre o maior
perigo quando um homem ou o seu trabalho se torna notável. Pode estar certo
de que Satanás está alcançando o seu objetivo quando a atenção é atraída
para qualquer coisa ou alguém que não seja o Senhor Jesus Mesmo.
Uma obra de ser começada com a maior simplicidade possível, mas por falta de
santa vigilância e espiritualidade por parte do obreiro a atenção geral pode ser
atraída sobre ele próprio ou sobre os resultados da sua obra, e cair nas ciladas
do diabo. O grande e incessante objetivo de Satanás é desonrar o Senhor
Jesus, e se pode conseguir isto por meio do que tem a aparência de um serviço
cristão, obtém de momento uma grande vitória. Satanás não tem objeção a
fazer a uma tal obra, desde que possa desligá-la do nome de Jesus. Unir-se-á,
se puder, com o trabalho; apresentar-se-á entre os servos de Cristo, assim
como uma vez se apresentou entre os filhos de Deus; porém o seu objetivo é
sempre o mesmo, a saber, desonrar o Senhor. Permitiu à donzela de Atos 16
dar testemunho dos servos de Cristo, dizendo: "Estes homens, que nos
anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo". Mas isto era
feito só com vista a seduzir esses servos e manchar o seu trabalho. Foi
derrotado, contudo, porque a luz que emanava de Paulo e Silas era a luz
genuína do santuário e brilhava somente para Cristo. Eles não buscavam um
nome para si próprios; e, visto que era deles e não do seu Mestre que a donzela
dava testemunho, eles rejeitaram o testemunho e preferiram sofrer por amor do
Seu Mestre a ser exaltados à Sua custa.
Isto é um bom exemplo para todos os obreiros do Senhor. E se voltarmos, por
um instante, para Atos 3, encontraremos outra ilustração muito notável. Ali a luz
do santuário brilhou na cura do homem coxo, e quando a atenção foi atraída
para os obreiros, apesar de eles não a terem procurado, vemos que Pedro e
João se retiram imediatamente para trás do seu glorioso Mestre com santo
ciúme por Ele e atribuem-Lhe toda a glória.
"E, apegando-se ele a Pedro e a João, todo o povo correu atônito para junto
deles no alpendre chamado de Salomão. E, quando Pedro viu isto, disse ao
povo: Varões israelitas, por que vos maravilhais disto?-Ou, por que olhais tanto
para nós, como se por nossa própria virtude ou santidade fizéssemos andar o
este homem? O Deus de Abraão, e de Isaque, e de Jacó, o Deus de nossos
pais, glorificou a seu Filho JESUS" (versículos 11-13).
Aqui temos, em boa verdade, "As sete lâmpadas alumiando defronte do
candeeiro"; ou, por outras palavras, a sétupla ou perfeita manifestação da luz do
Espírito em claro testemunho ao nome de Jesus. "Porque", disseram estes fiéis
portadores da luz do Espírito, "olhais tanto para nós?" Não houve necessidade
dos espevitadores aqui! A luz era clara. Era, sem dúvida, uma ocasião de que
os apóstolos podiam ter-se aproveitado, se estivessem dispostos para isso. Era
uma ocasião em que podiam rodear os seus nomes com uma auréola de glória.
Podiam ter-se elevado ao pináculo da fama e atraído sobre si o respeito e a
veneração de milhares de pessoas maravilhadas ou em própria adoração.
Mas se assim tivessem feito, teriam defraudado o seu Mestre, corrompido o
testemunho, contristado o Espírito Santo e atraído sobre si juízo d'Aquele que
não dará a Sua glória a outro.
Mas não; as sete lâmpadas brilhavam vivamente em Jerusalém neste
interessante momento. O verdadeiro castiçal estava no alpendre de Salomão e
não no templo. Pelo menos as sete lâmpadas estavam ali e cumpriam
ditosamente a sua obra. Esses honrados servos não buscavam glória para si;
pelo contrário, empregavam imediatamente toda a sua energia para desviar de
si os olhares de assombro da multidão e os fixarem n Aquele que só é digno
deles e que, embora tivesse penetrado nos céus, estava, todavia, trabalhando
na terra por intermédio do Seu Espírito.
Muitos outros exemplos podiam tirar-se das páginas dos Atos dos Apóstolos;
mas os que acabamos de ver bastarão para gravar em nossos corações a
grande lição prática que nos ensina o candeeiro de ouro com as suas sete
lâmpadas. Sentimos profundamente a necessidade desta lição neste próprio
momento. Existe sempre o perigo de o trabalho e o obreiro se tornarem o
objetivo em vez do Mestre. Estejamos de prevenção contra isto. É um grande
mal, que contrista o Espírito Santo, cujo labor tem sempre por fim exaltar o
nome de Jesus: é ofensivo para o Pai, que quer sempre fazer soar aos nossos
ouvidos e chegar ao mais profundo dos nossos corações estas palavras
procedentes do céu aberto e ouvidas no monte da transfiguração: "Este é o meu
amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o" (Mt 17:5). Está em direta e
positiva oposição com o pensamento do céu, onde todos os olhos estão postos
em Jesus, cada coração ocupado com Jesus, e onde o único brado eterno,
universal e unânime será "Digno és".
Pensemos em tudo isto—pensemos profunda e habitualmente — a fim de os
abstermos de tudo quanto se aproxima ou se parece com a exaltação do
homem — do ego — das nossas palavras e dos nossos pensamentos.
Busquemos com mais ardor a senda tranquila, sombria e discreta em que o
Espírito do manso e humilde Jesus nos guiará sempre na conduta e no serviço.
Numa palavra, que possamos estar de tal forma em Cristo, receber d'Ele, dia a
dia e momento após momento, o azeite puro, que os nossos corações brilhem,
sem pensarmos nisso, para louvor d'Aquele em quem somente temos TUDO e
sem o qual NADA absolutamente podemos fazer.
Os versículos finais do oitavo capítulo de Números contêm a descrição do
cerimonial em conexão com a consagração dos levitas, a que já nos referimos
nas nossas notas sobre os capítulos 3 e 4.

CAPÍTULO 9

A PÁSCOA CELEBRADA NO DESERTO

"E falou o SENHOR a Moisés, no deserto de Sinai, no ano segundo da sua


saída da terra do Egito, no primeiro mês, dizendo: Que os filhos de Israel
celebrem a Páscoa a seu tempo determinado. No dia catorze deste mês, pela
tarde, a seu tempo determinado a celebrareis; segundo todos os seus estatutos
e segundo os seus ritos, a celebrareis. Disse, pois, Moisés aos filhos de Israel
que celebrassem a Páscoa. Então, celebraram a Páscoa no dia catorze do
primeiro mês, pela tarde, no deserto de Sinai; conforme tudo o que o SENHOR
ordenara a Moisés, assim fizeram os filhos de Israel" (versículos 1-5).
Existem três posições distintas em que vemos celebrada esta grande festa de
redenção, a saber, no Egito (Êxodo 12); no deserto (Números 9); na terra de
Canaã (Josué 5). A redenção encontra- -se à base de tudo que se relaciona
com a história do povo de Deus. Devem ser libertados da escravidão, da morte
e das trevas do Egito? É por meio da redenção. Devem ser suportados através
de todas as dificuldades e perigos do deserto? E sobre a base da redenção.
Devem marchar através das ruínas dos muros ameaçadores de Jericó e pôr os
pés sobre o pescoço dos reis de Canaã?- É em virtude da redenção.
Assim o sangue do cordeiro da páscoa encontrou o Israel de Deus no meio da
profunda degradação da terra do Egito, e libertou-os dela. Encontrou-os no
deserto fatigante e levou-os através dele. Encontrou-os à sua entrada da terra
de Canaã e estabeleceu-os nela.
Em suma, o sangue do cordeiro encontrou o povo no Egito; acompanhou-o pelo
deserto; e estabeleceu-os em Canaã. Era a base bendita de todos os atos
divinos neles, com eles e por eles. Era uma questão de juízo de Deus sobre o
Egito? O sangue do cordeiro punha-os a coberto desse juízo. Tratava-se das
inúmeras e indescritíveis necessidades do deserto? O sangue do cordeiro
garantia-lhes provisões abundantes. Tratava-se da questão do poder terrível de
sete nações de Canaã? O sangue do cordeiro era a garantia de uma vitória
completa e gloriosa. Desde o momento em que vemos o Senhor sair para atuar
a favor do Seu povo com base no sangue do cordeiro tudo está infalivelmente
garantido desde princípio ao fim. Toda essa misteriosa e maravilhosa jorrnada,
desde os fornos de tijolo às colinas cobertas de vinhedos e planícies melífluas
da Palestina, serviu apenas para ilustrar e mostrar as diversas virtudes do
sangue do cordeiro.

Casos Particulares
Contudo, o capítulo que agora temos aberto diante de nós apresenta-nos a
páscoa inteiramente do ponto de vista do deserto; e explicará ao leitor porque
se faz menção da seguinte circunstância: "E houve alguns que estavam
imundos pelo corpo de um homem morto; e no mesmo dia não podiam celebrar
a Páscoa; pelo que se chegaram perante Moisés e perante Arão aquele mesmo
dia."
Aqui estava uma dificuldade prática — algo anormal, como diríamos —, alguma
coisa imprevista e portanto a questão foi submetida a Moisés e Arão.
"Chegaram-se perante Moisés" — o expoente dos direitos de Deus —; e "se
chegaram perante Arão" — o expoente dos recursos da graça de Deus. Parece
haver algo de distinto e enfático na maneira como se faz alusão a estes dois
funcionários. Os dois elementos dos quais eles são a expressão parecem ser
essenciais para a solução de um dificuldade como aquela que se apresenta
aqui.
"E aqueles homens disseram-lhe: Imundos estamos nós pelo corpo de um
homem morto; por que seríamos privados de oferecer a oferta do SENHOR a
seu tempo determinado no meio dos filhos de Israel?" Fez-se sinceramente
confissão da contaminação, e a questão que se apresentava era esta: deviam
ser privados do santo privilégio de comparecer ante o Senhor como Ele
ordenara ? Não havia recurso para tal caso?-
Uma questão extremamente interessante, sem duvida, mas para a qual não
havia ainda sido encontrada resposta. Não temos um tal caso previsto na
instituição em Êxodo 12, apesar de encontrarmos nela uma exposição completa
de todos os ritos e cerimônias da testa. Estava reservado ao deserto
desenvolver este novo ponto. Era da marcha atual do povo — nos pormenores
verdadeiros na vida do deserto — que se apresentava a dificuldade para a qual
tinha de se encontrar uma solução. Por isso, o relato de toda a questão é feito
muito a propósito no livro de Números, o livro do deserto.
"E disse-lhes Moisés: Esperai, e ouvirei o que o SENHOR VOS ordenará." Bela
atitude! Moisés não tinha resposta para dar; mas sabia quem a tinha e dirigiu-se
a Ele. Isto era a coisa melhor e mais prudente que Moisés podia fazer. Não teve
a pretensão de poder dar uma resposta. Não se envergonhou de dizer, "não
sei".
Com toda a sua sabedoria e conhecimentos, não hesitou em mostrar a sua
ignorância. Isto é verdadeira sabedoria—verdadeiro conhecimento. Poderia
parecer humilhante para um homem na posição de Moisés parecer ignorante
aos olhos da congregação ou qualquer dos seus membros, sobre qualquer
assunto. Aquele que tinha tirado o povo do Egito, que o havia conduzido através
do Mar Vermelho, que havia conversado com o Senhor e recebido a sua missão
do grande "Eu sou", seria possível que fosse incapaz de responder a uma
dificuldade originada por um caso tão simples como aquele que estava agora
perante si?- Era realmente verdade que uma pessoa como Moisés ignorava o
justo caminho a seguir a respeito de homens que estavam contaminados por
um corpo mortos?
Quão poucos há que, apesar de não ocuparem uma posição tão elevada como
Moisés, não teriam procurado dar uma resposta qualquer a uma tal questão!
Mas Moisés era o homem mais manso de toda a terra. Não podia ter a
presunção de falar quando nada tinha para dizer. Oh! se nós seguíssemos mais
fielmente o seu exemplo neste assunto! Evitaríamos muitas tristes figuras,
muitos disparates, e esforços inúteis. Além disso isto far-nos-ia mais
verdadeiros, mais simples e mais naturais. Somos por vezes bastante
insensatos Para termos vergonha de parecer ignorantes. Levianamente
imaginamos que a nossa reputação de sabedoria e inteligência é afetada
quando pronunciamos essas palavras tão expressivas de uma verdadeira
grandeza moral, "Não sei".
É um grande erro. Damos sempre muito mais importância às palavras de um
homem que não tem pretensões a um conhecimento que não possui. Mas não
estamos dispostos a escutar um homem que está sempre pronto a falar com
frívola confiança de si mesmo. Oh! Andemos sempre no espírito destas palavras
agradáveis: "Esperai, e ouvirei o que o SENHOR vos ordenará."
"Então falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel, dizendo:
Quando alguém entre vós ou entre as vossas gerações for imundo por corpo
morto, ou se achar em jornada longe de vós, contudo, ainda celebrará a Páscoa
ao SENHOR. No segundo mês, no dia catorze, de tarde, a celebrarão: Com
pães asmos e ervas amargas a comerão."
Na páscoa são apresentadas duas grandes verdades fundamentais, a saber: a
redenção e a unidade do povo de Deus. Estas verdades são imutáveis. Nada
poderá destruí-las. Pode haver fraquezas e infidelidade de diversas formas,
mas essas gloriosas verdades de eterna redenção e perfeita unidade do povo
de Deus permanecem em toda a sua força e poder. Por isso essa ordenação,
que tão vivamente simboliza essas verdades, era de obrigação perpétua. As
circunstâncias não deviam impedir o seu cumprimento. A morte ou a distância
não deviam interrompê-la. "Quando alguém entre vós ou entre as vossa
gerações for imundo por corpo morto, ou se achar em jornada longe de vós,
contudo, ainda celebrará e páscoa ao SENHOR."
Celebrar a festa era tão impressivo para cada membro da congregação que em
Números 9 se toma uma medida especial para aqueles que não estavam em
condições de a celebrar segundo a ordem prescrita. Essas pessoas deviam
celebrá-la no "dia catorze do segundo mês". A graça provia a todos os casos de
contaminação evitável ou de ausência.
Se o leitor se voltar par o segundo livro de Crônicas 30, verá que Ezequias e a
congregação em seus dias se aproveitaram deste gracioso recurso. "E
ajuntou-se em Jerusalém muito povo para celebrar a Festa dos Pães Asmos, no
segundo mês; uma mui grande congregação... então, sacrificaram a Páscoa no
dia décimo-quarto do
segundo mês" (versículos 13-15).
A graça de Deus pode valer-nos na nossa maior fraqueza, contanto que a
sintamos e confessemos (1). Mas que esta verdade tão preciosa não nos leve a
tratar levianamente o pecado ou contaminação. Embora a graça permitisse o
segundo mês em vez do primeiro não permitia, por esse motivo, o menor
relaxamento quanto aos ritos e cerimônias da festa. Os "pães asmos e ervas
amargas" deviam ter sempre o seu lugar; nada do sacrifício devia guardar-se
até o dia seguinte, e nenhum osso devia ser quebrado. Deus não pode
consentir que o padrão da verdade ou santidade seja rebaixado. O homem por
causa de fraqueza, faltas ou o poder das circunstâncias, podia estar atrasado,
mas não podia faltar ao padrão. A graça permitia aquela falta; a santidade
proibia esta; e se alguém tivesse suposto que, devido à graça, podia passar
sem a santidade, teria sido cortado da congregação.
__________
(1) O leitor notará com muito interesse e proveito o contraste entre o ato de
Ezequias em 2 Crônicas 30 e o ato de Jeroboão em 1 Reis 12:32. O primeiro
aproveitou-se da provisão da graça divina, o último seguiu o seu próprio
estratagema. O segundo mês era permitido por Deus: o oitavo mês foi
inventado pelo homem. A provisão divina suprindo as necessidades do homem
e as invenções do homem opondo-se à Palavra de Deus, são coisas totalmente
diferentes.

Isto não nos diz nada? Certamente que sim. Ao passarmos as páginas destes
maravilhoso livro de Números, devemos lembrar sempre que as coisas que
aconteceram a Israel são figuras para nós, e que é, ao mesmo tempo, o nosso
dever e privilégio estudar estas figuras e procurar compreender as santas lições
que estão destinadas por Deus a proporcionar-nos.
Que devemos então aprender com os regulamentos relativos à páscoa no
segundo mês?- Por que se ordenava especialmente a Israel não omitir nenhum
rito ou cerimônia nessa ocasião especial? Por que é que neste capítulo nono de
Números as instruções para o segundo mês são muito mais pormenorizadas do
que as que correspondem ao primeiro? Não é porque a ordenação fosse mais
importante num caso do que no outro, porque a sua importância, no juízo de
Deus, era sempre a mesma. Não é tampouco porque houvesse uma sombra de
diferença na ordem, em ambos os casos, porque essa era também a mesma.
Contudo, o leitor que medita sobre este capítulo fica surpreendido com o fato de
lermos simplesmente, quando se menciona a celebração da páscoa no primeiro
mês, "segundo todos os seus estatutos e segundo todos os seus ritos a
celebrareis". Mas, por outro lado, quando se trata do segundo mês, temos uma
relação pormenorizada do que eram esses ritos e estatutos. "Com pães asmos
e ervas amargas a comerão. Dela nada deixarão até à manhã, e dela não
quebrarão osso algum; segundo todo o estatuto da páscoa a celebrarão"
(compare-se versículo 3 com os versículos 11-12).
Ensinamentos Práticos
O que é, perguntamos, que este simples fato nos ensinai Cremos que nos
ensina claramente que não devemos nunca rebaixar o padrão nas coisas de
Deus por causa das faltas e fraquezas do povo de Deus; mas, pelo contrário, ter
cuidado especial em manter o padrão em toda a sua integridade divina. Sem
dúvida, deve haver o sentimento profundo do fracasso—quanto mais profundo
tanto melhor; mas a verdade de Deus não pode ser sacrificada. Podemos contar
sempre, com confiança, com os recursos da graça divina, enquanto procuramos
manter, com decisão inquebrantável, o padrão da verdade divina.
Procuremos reter sempre isto nos pensamentos dos nossos corações.
Corremos o perigo, por um lado, de esquecer que o fracasso é um fato—sim,
grande fracasso, infidelidade e pecado. E, por outro lado, corremos o risco de
esquecer, em vista desse fracasso, a fidelidade infalível de Deus, apesar de
tudo. A Igreja professante tem falhado, e tornou-se uma autêntica ruína; e não
só isso, mas nós próprios falhamos individualmente e temos contribuído para a
ruína. Devemos sentir tudo isto — senti-lo profunda e constantemente.
Devemos ter sempre presente em nossos espíritos perante Deus o sentimento
íntimo e humilhante da maneira triste e vergonhosa como nos temos conduzido
na casa de Deus. Olvidar o fato que temos falhado seria aumentar grandemente
as nossas faltas O que nos convém é profunda humildade e um espírito deveras
quebrantado ao recordar tudo isto; e estes sentimentos e exercícios se
revelarão necessariamente por uma conduta humilde no meio da cena em
vivemos.
"Todavia, o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece
os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da
iniquidade" (2 Tm 2:19). Aqui está o recurso dos fiéis, em face da ruína da
cristandade. Deus nunca falta, nunca muda, e nós apenas temos de nos
separar da iniquidade e apoiarmo-nos n'Ele. Devemos fazer o que é reto, e
segui-lo diligentemente, e deixar as consequências ao Seu cuidado.
Pedimos sinceramente ao leitor que preste toda a sua atenção aos
pensamentos precedentes. Desejamos que se detenha uns momentos e que,
no espírito de oração, considere todo este assunto. Estamos convencidos de
que a questão propriamente considerada, dos dois lados, ajudar-nos-á a
encontrar o nosso caminho por entre as ruínas que nos cercam. A recordação
da condição da Igreja e da nossa própria infidelidade nos manterá humildes;
enquanto que, ao mesmo tempo, a compreensão da regra invariável de Deus
nos separará do mal que nos rodeia e nos guardará firmes no caminho da
separação. As duas coisas juntas nos preservarão eficazmente de uma vã
pretensão, por um lado, e do relaxamento e indiferença, por outro. Devemos ter
sempre ante as nossas almas o fato humilhante de que temos fracassado,
falhado, e contudo manter a grande verdade que Deus é fiel.
Estas são por excelência as lições do deserto—lições para os dias atuais —
lições para nós. São sugeridas forçosamente pelo relato inspirado da páscoa no
mês segundo — um relato particular do livro de Números — o grande livro do
deserto. É no deserto que o fracasso humano claramente se manifesta; e no
deserto são manifestados os infinitos recursos da graça divina. Mas repetimos
mais urna vez a afirmação — e que ela seja profunda e largamente gravada em
nossos corações — as mais ricas provisões da graça e da misericórdia divina
não dão o menor motivo para baixar o padrão da verdade divina.
Se alguém tivesse alegado contaminação ou distância como desculpa para não
celebrar a páscoa ou para a celebrar de modo diferente do ordenado por Deus,
teria sido seguramente expulso da congregação. E assim é conosco, se
consentimos em abandonar qualquer verdade de Deus por se haver verificado o
fracasso—se por incredulidade de coração abandonamos o padrão de Deus e
deixamos o fundamento de Deus—se tiramos um argumento do estado de
coisas em redor de nós para nos desembaraçarmos da autoridade da verdade
de Deus sobre a consciência ou influência formativa sobre a nossa conduta e
caráter—é bem claro que a nossa comunhão está suspensa (1).
__________
(1) Note-se, de uma vez para sempre, que a exclusão de um membro da
congregação de Israel corresponde à exclusão de um crente da comunhão por
causa de pecado não julgado.

Prosseguiríamos de bom grado esta corrente de verdade prática um pouco


mais, mas devemos deixar de o fazer e encerrar esta parte do nosso assunto
citando para o leitor o restante dessa exposição do deserto sobre a páscoa.
"Porém, quando um homem for limpo, e não estiver de caminho, e deixar de
celebrar a Páscoa, tal alma do seu povo será extirpada; porquanto não ofereceu
a oferta do SENHOR a seu tempo determinado; tal homem levará o seu pecado.
E, quando um estrangeiro peregrinar entre vós e também celebrar a Páscoa ao
SENHOR, segundo o estatuto da Páscoa e segundo o seu rito, assim a
celebrará; um mesmo estatuto haverá para vós, assim para o estrangeiro como
para o natural de terra" (versículos 13-14).
A negligência voluntária da páscoa denotava, por parte de um israelita, uma
falta total de apreciação dos benefícios e bênçãos que procediam da sua
redenção e libertação da terra do Egito. Quanto mais uma pessoa se
compenetrava da realidade divina do que havia sido realizado nessa memorável
noite, em que a congregação de Israel encontrara refúgio e descanso ao abrigo
do sangue, tanto mais sinceramente suspirava pela chegada do "dia catorze do
primeiro mês", a fim de que pudesse ter uma oportunidade de comemorar essa
gloriosa ocasião; e se houvesse alguma coisa que o impedia de gozar a
ordenação no "primeiro mês", com mais alegria e agradecimento ele teria
aproveitado o "segundo mês".
Porém o homem que se houvesse contentado em continuar anos após ano sem
guardar a páscoa mostrava que o seu coração estava muito longe do Deus de
Israel. Teria sido inútil alguém dizer que amava o Deus de seus pais e gozava
as bênçãos da redenção quando a própria ordenação que Deus havia
estabelecido para representar essa redenção era menosprezada ano após ano.

A Relação com a Ceia


E não podemos aplicar, até certo ponto, tudo isto a nós próprios, em relação
com o assunto da ceia do Senhor? Podemos, sem dúvida, e com muito proveito
para as nossas almas. Existe esta relação entre a páscoa e a ceia do Senhor,
isto é, a primeira era o símbolo, a segunda é o memorial da morte de Cristo.
Assim, lemos em 1 Coríntios 5:7: "Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós".
Esta frase estabelece a relação. A páscoa era o memorial da redenção de Israel
da escravidão do Egito; e a ceia do Senhor é o memorial da redenção da Igreja
da escravidão mais pesada e mais tenebrosa do pecado e de Satanás.
Por isso, assim como todo o verdadeiro israelita fiel sentia alegria em celebrar a
páscoa, no tempo determinado, de acordo com todos os ritos e estatutos, assim
todo o crente verdadeiro e fiel se regozijará em celebrar a ceia do Senhor, no
dia determinado, segundo todos os princípios estabelecidos a respeito dela no
Novo Testamento. Se um israelita não fazia caso da páscoa, até mesmo uma só
vez, teria sido excluído da congregação. Uma tal negligência não era para ser
tolerada na assembleia de Israel. Teria atraído imediatamente o juízo divino.
E, podemos perguntar em face deste solene fato, isto não significa nada
atualmente — é um assunto de pouca importância para os cristãos descuidarem
de semana em semana e de mês em mês a ceia do Senhor? Devemos supor
que Aquele que, em Números 9, declarou que todo aquele que não fazia caso
da páscoa devia ser excluído, não tem em conta o que despreza a mesa do
Senhor? Não podemos acreditar. Porque embora se não trate de uma questão
de ser separado da Igreja de Deus, o corpo de Cristo, devemos, por isso, ser
descuidados? Longe de nós tal pensamento. Antes pelo contrário, este fato
deveria ter o efeito feliz de nos despertar para uma maior assiduidade na
celebração desta preciosa festa em que "anunciamos a morte do Senhor até
que venha" (1 Cr 11:26).
Para um israelita piedoso nada havia como a páscoa, porque era o memorial da
sua redenção. E para um crente piedoso nada há como a ceia do Senhor,
porque é o memorial da sua redenção e da morte do seu Senhor. De todos os
serviços em que um cristão pode ocupar-se não há nada que ponha Cristo de
um modo mais terno ou solene perante o seu coração como a ceia do Senhor.
Pode cantar sobre a morte do Senhor, pode orar a esse respeito, pode ler o
relato dela, pode ouvir falar dela, mas é só na ceia que a anuncia. "E, tomando o
pão e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo,
que por vós é dado; fazei isso em memória de mim. Semelhantemente, tomou o
cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no meu
sangue, que é derramado por vós" (Lc 22:19-20).
Aqui temos a instituição da festa; e, quando nos voltamos para os Atos dos
Apóstolos, lemos: "E, no primeiro dia da semana, a juntando-se os discípulos
para partir o pão" (At 20:7).
Aqui temos a celebração da festa; e, por fim, quando abrirmos as Epístolas,
lemos: "Porventura, o cálice de bênção que abençoamos não é a comunhão do
sangue de Cristo? O pão que partimos não é, porventura, a comunhão do corpo
de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo; porque
todos participamos do mesmo pão" (1 Cr 10:16,17). E em seguida lemos
também: "Porque eu recebido Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor
Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e
disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em
memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice,
dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as
vezes que beberdes, em memória de mim. Porque, todas as vezes que
comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que
venha (1 Cor 11:23-26). .
Aqui temos a festa explicada. E não podemos dizer que na instituição, na
celebração e na explicação temos um cordão triplo, que dificilmente pode
partir-se, para ligar as nossas almas a esta preciosa festa?
Como é possível, pois, que em face de toda esta santa autoridade se encontre
alguém do povo de Deus que despreze a mesa do Senhor?
Ou, considerando o assunto de outro ponto de vista, como se explica que
alguns membros de Cristo possam passar semanas e meses, e alguns toda a
sua vida, sem nunca se lembrarem do seu Senhor no modo direta e
positivamente ordenado por Ele? Sabemos que alguns cristãos professos
consideram o assunto à luz de um regresso aos ritos judaicos, e como um
abandono da posição elevada da Igreja. Encaram a ceia do Senhor e o batismo
como mistérios espirituais; e consideram que nos afastamos da verdadeira
espiritualidade insistindo na observância literal destes ritos.
A tudo isto respondemos simplesmente que Deus é mais sábio do que nós. Se
Cristo instituiu a ceia; se o Espírito Santo levou a Igreja primitiva a celebrá-la; e
se Ele nos a tem explicado também, quem somos nós para emitir as nossas
ideias em oposição a Deus? Sem dúvida, a ceia do Senhor deveria ser um
mistério espiritual íntimo para todos os que participam dela; mas é também uma
coisa exterior, literal, palpável. Há nela literalmente pão e vinho, comida e
bebida literal. Se alguém nega isto, pode, de igual modo, negar que há
literalmente pessoas reunidas. Não temos o direito de explicar a Escritura dessa
forma. E para nós um dever santo e feliz submetermo-nos à Escritura e
inclinarmo-nos absoluta e implicitamente ante a sua autoridade divina.
Nem se trata meramente de uma questão de sujeição à autoridade da Escritura.
É isso, sem dúvida, como temos provado amplamente por citações e mais
citações da Palavra divina; e isso só em si e amplamente bastante para todo o
espírito piedoso. Mas há mais que isto. Há alguma coisa como a resposta de
amor do coração o crente correspondendo ao amor do coração de Cristo. Isto
não é nada? Não devemos nós buscar, em alguma medida, corresponder ao
amor de um tal coração? Se o nosso bendito e adorável Senhor tem realmente
concedido o pão e o vinho, na ceia, como emblemas do Seu corpo ferido e
sangue derramado, se tem determinado que comamos desse pão e bebamos
desse cálice em Sua memória, não devemos nós, no poder do afeto
correspondente, cumprir o desejo do Seu coração afetuoso? Seguramente
nenhum cristão sincero porá isto em dúvida.
Deveria ser sempre uma alegria para os nossos corações reunirmo-nos em
redor da mesa do Senhor e de nos recordarmos d'Ele segundo a forma por ele
ordenada—para anunciarmos a Sua morte até que venha. É admirável pensar
que Ele haja querido ocupar um lugar de recordação em corações como os
nossos; mas assim é; e seria muito triste, na verdade, se, por qualquer motivo, e
por qualquer razão que seja, negligenciássemos a própria festa à qual tem
ligado o Seu nome precioso.
Este não é evidentemente o lugar para entrar numa exposição pormenorizada
da ordenação da ceia do Senhor. Temos procurado fazer isto em outra parte
(1).

(1) A Ceia do Senhor; publicado pelo Depósito de Literatura Cristã.

O que desejamos especialmente aqui é insistir com o leitor cristão sobre a


enorme importância e profundo interesse da ordenança vista sob o duplo
fundamento de sujeição à autoridade da escritura e amor recíproco a Cristo
mesmo. E, além disso, queremos fazer sentir vivamente a todos que possam ler
estas linhas o sentimento de gravidade em deixar de tomar a ceia do Senhor
segundo as Escrituras. Podemos estar certos de que é uma atitude perigosa
tentar pôr de parte esta instituição positiva de nosso Senhor e Mestre. Isto
denota um mau estado da alma. Prova que a consciência não está submetida à
autoridade da Palavra e que o coração não se encontra em verdadeira simpatia
com as afeições de Cristo. Cuidemos, pois, de ver que estamos procurando
honestamente cumprir a nossa responsabilidade quanto à mesa do Senhor
—que não nos abstemos de a celebrar —, que a celebramos segundo a ordem
estabelecida por Deus o Espírito Santo.
Dissemos o bastante a respeito da páscoa no deserto e sobre as lições tocantes
que ela proporciona às nossas almas.

O Tabernáculo e a Nuvem: A Direção Divina


Vamos agora falar por alguns momentos sobre o parágrafo final do nosso
capítulo, que tem um caráter tão característico como qualquer parte do livro.
Nele somos chamados a contemplar uma hoste numerosa de homens,
mulheres e crianças, viajando através de um tremendo deserto "onde não havia
caminho" — um ermo fatigante, um imenso deserto arenoso sem bússola ou
guia humano.
Que ideia! Que espetáculo! Ali estavam esses milhões de seres humanos
avançando sem qualquer conhecimento da rota que deviam seguir tão
dependentes de Deus quanto à orientação, ao alimento e tudo mais; um
exército de peregrinos inteiramente desprovido de recursos. Não podiam fazer
planos para o dia seguinte. Quando acampavam não sabiam quando deviam
pôr-se em marcha; e quando estavam em marcha não sabiam quando ou onde
deviam fazer alto. A sua vida era uma vida de dependência diária e
momentânea. Tinham de olhar para cima a fim de receberem a orientação. Os
seus movimentos eram dirigidos pelas rodas do carro do Senhor.
Era de verdade um maravilhoso espetáculo. Leiamos o seu relato e retenhamos
em nossas almas o seu ensino celestial.
"E, no dia de levantar o tabernáculo, a nuvem cobriu o tabernáculo sobre a
tenda do Testemunho; e, à tarde estava sobre o tabernáculo como uma
aparência de fogo até à manhã. Assim era de contínuo: a nuvem o cobria, e, de
noite, havia aparência de fogo. Mas, sempre que a nuvem se alçava sobre a
tenda, os filhos de Israel após ela partiam; e, no lugar onde a nuvem parava, ali
os filhos de Israel assentavam o seu arraial. Segundo o dito do SENHOR, OS
filhos de Israel partiam e segundo o dito do SENHOR assentavam o arraial;
todos os dias em que a nuvem parava sobre o tabernáculo, assentavam o
arraial. E, quando a nuvem se detinha muitos dias sobre o tabernáculo, então os
filhos de Israel tinham cuidado da guarda do Senhor e não partiam. E era que,
quando a nuvem poucos dias estava sobre o tabernáculo, segundo o dito do
SENHOR, se alojavam, e, segundo o dito do SENHOR, partiam. Porém era que,
quando a nuvem desde a tarde até à manhã ficava ali e a nuvem se alçava pela
manhã, então, partiam; quer de dia quer de noite, alçando-se a nuvem, partiam.
Ou, quando a nuvem sobre o tabernáculo se detinha dois dias, ou um mês, ou
um ano, ficando sobre ele, então, os filhos de Israel se alojavam e não partiam;
e, alçando-se ela, partiam. Segundo o dito do SENHOR, se alojavam e,
segundo o dito do SENHOR, partiam; da guarda do SENHOR tinham cuidado,
segundo o dito do SENHOR, pela mão de Moisés" (versículos 15-23).
Seria impossível conceber um quadro mais admirável de dependência e
sujeição absoluta à direção divina do que aquele que é apresentado no
parágrafo antecedente. Não havia uma marca de pé humano nem um marco em
todo "esse terrível deserto". Era portanto inútil procurar qualquer direção junto
dos que tinham passado antes. Dependiam inteiramente de Deus para cada
passo do dia. Estavam numa posição em que tinham de esperar
constantemente n'Ele. Isto seria intolerável para um espírito insubmisso ou uma
vontade inquebrantável; mas para uma alma que conhece e ama a Deus, que
confia e se compraz n'Ele, nada podia ser mais profundamente bendito.
Aqui está o ponto principal de toda a questão. Deus é conhecido, amado e
confia-se n'Ele se assim for o coração regozijar-se-á na mais absoluta
dependência d'Ele. De contrário, uma tal dependência seria de todo
insuportável. O homem não regenerado gosta de pensar que é
independente—gosta de ter a ilusão de que é livre—gosta de julgar que pode
fazer o que quer, ir onde quer, dizer o que quer.
Mas, ah! é tudo mera ilusão! O homem não é livre. E escravo de Satanás. São
passados cerca de seis mil anos desde que ele se vendeu a esse grande
proprietário de escravos, que desde então o tem tido em seu poder e o tem
ainda hoje. Sim, Satanás mantém o homem natural — o homem não convertido
e impenitente — em terrível escravidão. Mantém-no atado de pés e mãos com
cadeias e grilhões que se não veem no seu verdadeiro caráter por causa do
brilho dourado com que astutamente as cobriu. Satanás domina o homem por
meio da sua concupiscência, de suas paixões e de seus prazeres. Levanta
desejos no coração que satisfaz em seguida com as coisas que há no mundo, e
o homem imagina inutilmente que e livre porque pode satisfazer os seus
desejos. Mas e uma triste ilusão; e, mais tarde ou mais cedo, será reconhecido
como tal.
Não há liberdade senão a que Cristo dá ao Seu povo. E Ele quem diz
"Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" e também "Se pois o Filho
vos libertar, verdadeiramente sereis livres" (Jo 8:36).
Aqui está verdadeira liberdade. E a liberdade que a nova natureza encontra
andando no Espírito e fazendo as coisas que são agradáveis à vista de Deus.
"O serviço do Senhor é liberdade perfeita." Mas este serviço, em todos os seus
pormenores, implica a mais simples dependência do Deus vivo. Assim foi
sempre com o único verdadeiro e perfeito Servo que jamais pisou esta terra. Foi
dependente em tudo. Cada movimento, cada ato, cada palavra—tudo quanto
fazia e tudo quanto deixava de fazer, — era fruto da mais absoluta dependência
e sujeição a Deus. Andava quando Deus queria que Ele andasse, e estava
sossegado quando Deus assim queria. Falava quando Deus queria que falasse,
e ficava em silêncio quando Deus queria que guardasse silêncio.
Jesus, o Caminho
Tal foi Jesus quando viveu neste mundo; e nós, como participantes da Sua
natureza—da Sua vida—e tendo o Seu Espírito, que habita em nós, somos
chamados para andar em suas pisadas e viver uma vida de simples
dependência de Deus, dia após dia. Temos no final deste capítulo uma formosa
figura desta vida de dependência, em uma das suas fases especiais. O Israel de
Deus—o acampamento no deserto —esse exército de peregrinos seguia o
movimento da nuvem. Tinham de olhar para cima para sua orientação. Esta é a
própria obra do homem. Foi criado para levantar o seu rosto ao alto, em
contraste com as bestas, que foram criadas para olhar para baixo.
Israel não podia fazer planos. Não podiam jamais dizer: "Amanha iremos a tal
lugar." Dependiam inteiramente do movimento da nuvem.
Assim era com Israel e assim deveria ser conosco. Estamos passando por um
deserto desconhecido—um deserto moral. Não há absolutamente caminho. Não
saberíamos como andar, ou aonde ir, se não fosse esta expressão das mais
preciosas, profundas e compreensivas saídas dos lábios de nosso bendito
Senhor, "Eu sou o caminho". Eis aqui infalível direção divina. Devemos
segui-Lo. "Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas
terá a luz da vida" (Jo 8:12). Isto é direção vivente. Não se trata de atuar
segundo a letra de certos estatutos e regras; é seguir o Cristo vivo; andar como
Ele andou; atuar como Ele atuou; imitar o Seu exemplo em todas as coisas. Isto
é movimento cristão—atuação cristã. Trata- -se de ter os olhos fixos em Jesus e
de ter os característicos traços e as feições do Seu caráter impressos na nossa
nova natureza e refletidos ou reproduzidos na nossa vida e conduta diárias.

O Crente Andando nesse Caminho


Mas isto implica certamente a renúncia da nossa própria vontade, dos nossos
planos, da administração de nós próprios. Devemos seguir a nuvem; devemos
esperar sempre — esperar somente em Deus. Não podemos dizer "Iremos aqui
ou ali, faremos isto ou aquilo, amanhã ou na próxima semana." Todos os
nossos movimentos devem ser colocados sob o poder regulador dessa
expressão dominante — tantas vezes infelizmente escrita ou proferida
levianamente por nós! — "Se o Senhor quiser."
Oh, se pudéssemos compreender melhor tudo isto! Se conhecêssemos melhor
o significado da direção divina! Quantas vezes imaginamos inutilmente e
afirmamos afoitamente que a nuvem se movimenta na própria direção que se
adapta à tendência das nossas inclinações! Queremos fazer determinada coisa
ou um certo movimento, e procuramos convencer-nos e de que a nossa vontade
é a vontade de Deus.
Desta forma, em vez de sermos guiados por Deus, enganamo-nos a nós
próprios. A nossa vontade é inflexível e por isso não podemos ser propriamente
guiados, porque o verdadeiro segredo para se ser retamente guiado—guiado
por Deus—é termos a nossa própria vontade completamente submetida .
"Guiará os mansos retamente; e aos mansos ensinará o seu caminho (Sl 25:9).
"Guiar-te-ei com os meus olhos." Mas ponderemos esta admoestação: Não
sejais como o cavalo, nem como a mula, que não tem entendimento, cuja boca
precisa de cabresto e freio, para que se não atirem a ti" (SI 32:8- 9). Se o
semblante estiver levantado ao alto de modo a contemplar o movimento dos
"olhos" divinos, não teremos necessidade de "cabresto" e de "freio".
Mas é neste ponto precisamente que falhamos. Não vivemos suficientemente
perto de Deus para discernir o movimento dos Seus olhos. A vontade está em
ação. Queremos seguir o nosso próprio caminho, e por isso temos de colher os
seus frutos amargos. Assim aconteceu com Jonas. Fora-lhe dito para ir a
Ninive; mas ele quis ir para Tarsis; e as circunstâncias pareciam ser favoráveis;
a providência parecia apontar na direção da sua vontade. Mas, oh! Teve de
encontrar o seu lugar no ventre da baleia, sim, "no ventre do inferno", onde "as
ondas e as vagas passaram por cima da sua cabeça". Foi ali que aprendeu a
amargura de seguir a sua própria vontade. Teve de ser instruído, nas
profundezas do oceano, acerca do verdadeiro significado do "cabresto" e "freio",
por não haver querido seguir a direção benévola dos "olhos" divinos.
Mas Deus é tão misericordioso, tão terno, tão paciente! Quer ensinar e guiar os
Seus pobres e débeis filhos extraviados. Não Se poupa a esforços quando se
trata de agir a nosso favor. Ocupa-Se continuamente de nós a fim de podermos
ser guardados dos nossos próprios caminhos, os quais estão cheios de
espinhos e sarças, e andar nos Seus caminhos, que são agradáveis e
tranquilos.
Nada há no mundo mais intensamente abençoado do que levar uma vida de
dependência habitual de Deus; depender d'Ele a cada momento, esperar d'Ele
e contar com Ele em todas as coisas. Ter n'Ele todos os recursos, tal é o
verdadeiro segredo da paz, e de santa independência da criatura. A alma que
pode verdadeiramente dizer todas as minhas fontes estão em ti" está elevada
acima de toda a confiança na criatura, das esperanças humanas, e expectativas
terrestres. Não é que Deus se não sirva da criatura de mil e uma maneiras para
prover às nossas necessidades. Não queremos, de modo nenhum, dizer tal
coisa. Ele emprega a criatura: mas se nos apoiarmos na criatura em vez de
dependermos d'Ele, depressa teremos a pobreza e esterilidade em nossas
almas. Existe uma grande diferença entre Deus empregar a criatura para nos
abençoar e nós nos apoiarmos sobre a criatura par excluir Deus. Num caso
somos abençoados e Ele é glorificado; no outro ficamos desapontados e Ele é
desonrado.
E conveniente que a alma considere seriamente esta distinção. Cremos que é
constantemente descuidada. Julgamos frequentemente que nos apoiamos em
Deus e que esperamos n'Ele, quando, na realidade, se quisermos
honestamente penetrar no fundo das cosias e julgar-nos na presença de Deus,
encontraremos uma espantosa quantidade de fermento de confiança na
criatura. Quantas vezes falamos de viver pela fé e de confiar só em Deus,
quando, ao mesmo tempo, se sondássemos as profundidades dos nossos
corações, encontraríamos ali uma grande medida de dependência nas
circunstâncias, alusão a causas secundárias e coisas semelhantes.
Leitor cristão, pensemos atentamente nisto. Vigiemos para que os nossos olhos
estejam somente postos no Deus vivo e não sobre o homem, cujo fôlego está
nos seus narizes. Esperemos em Deus — esperemos paciente e
constantemente. Se estamos embaraçados por qualquer coisa, façamos
menção disso direta e simplesmente ao Senhor. Não sabemos o que havemos
de fazer ou para que lado nos havemos de voltar ou que passo devemos dar?
Lembremos que Ele disse: "Eu sou o caminho"; sigamo-lo. Ele tornará tudo
claro, luminoso e certo. Não pode haver trevas, nem perplexidade ou incerteza
se O seguimos; porque Ele disse, e nós temos obrigação de crer: "Quem me
segue não andará em trevas." Por isso, se andarmos em trevas, é certo que não
O estamos seguindo. Nenhumas trevas poderão jamais fixar-se sobre o
caminho bendito pelo qual Deus conduz aqueles que, com fé simples, procuram
seguir a Jesus.
Mas alguém que esquadrinha estas linhas pode dizer—ou pelo menos sentir-se
disposto a dizer:—apesar de tudo estou embaraçado quanto ao meu caminho.
Não sei realmente para que lado me hei de voltar e que passo devo dar. Se for
esta a linguagem do leitor, quero apenas fazer-lhe esta pergunta:—Esta
seguindo a Jesus? Se assim é, não pode estar embaraçado. Segue a nuvem"?-
Nesse caso, o caminho é tão claro quanto Deus o pode fazer. E aqui que esta a
raiz de toda a questão. A indecisão ou a incerteza é muitas vezes o fruto da
atuação da vontade. Somos levados a fazer o que Deus não quer que façamos
ou a ir aonde Deus não quer que vamos. Oramos sobre o assunto e não
recebemos resposta. Como é isto*?- Pelo simples fato que Deus quer que
permaneçamos tranquilos: que nos quedemos precisamente no lugar em que
estamos. Portanto, em vez de torturar o juízo e de cansar as nossas almas a
respeito do que devíamos fazer, nada façamos e esperemos simplesmente em
Deus.
Este é o segredo da paz e calma elevação. Se um israelita, no deserto,
pensasse em fazer algum movimento independentemente de Javé; se lhe
tivesse ocorrido marchar quando a nuvem estava parada, ou parar enquanto a
nuvem continuava em movimento, podemos facilmente ver qual teria sido o
resultado. E outro tanto sucederá sempre conosco. Se nos movemos quando
devíamos estar tranquilos, ouse ficamos sossegados quando devíamos
avançar, não teremos a presença divina conosco. "Segundo o dito do SENHOR
se alojavam, e segundo o dito do Senhor partiam." Mantinham-se em constante
atenção a Deus, a situação mais bem-aventurada que alguém pode ocupar;
mas que deve ser ocupada antes de saborear a bem-aventurança. É uma
realidade para ser conhecida e não uma mera teoria para conversação. Que
nos seja dado prová-la ao longo da nossa jornada!

CAPÍTULO 10

AS TROMBETAS DE PRATA

"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Faze duas trombetas de prata; de


obra batida as farás; e te serão para a convocação da congregação e para a
partida dos arraiais. E; quando as tocarem ambas, então, toda a congregação
se congregará a ti à porta da tenda da congregação. Mas, quando tocar uma só,
então, a ti se congregarão os príncipes, os cabeças dos milhares de Israel.
Quando, retinindo, as tocardes, então, partirão os arraiais que alojados estão da
banda do oriente. Mas, quando a segunda vez, retinindo, as tocardes, então,
partirão os arraiais que se alojam da banda do sul; retinindo, as tocarão para as
suas partidas. Porém, ajuntando a congregação, as tocareis, mas sem retinir. E
os filhos de Arão, sacerdotes, tocarão as trombetas; e a vós serão por estatuto
perpétuo nas vossas gerações. E, quando na vossa terra sairdes a pelejar
contra o inimigo, que vos aperta, também tocareis as trombetas retinindo, e
perante o SENHOR, VOSSO Deus, haverá lembrança de vós, e sereis salvos
de vossos inimigos. Semelhantemente, no dia da vossa alegria, e nas vossas
solenidades, e nos princípios dos vossos meses, também tocareis as trombetas
sobre os vossos holocaustos, sobre os vossos sacrifícios pacíficos, e vos serão
por lembrança perante vosso Deus. Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus"
(versículos 1-10).
Havemos reproduzido toda esta interessante passagem a fim de que o leitor
possa ter diante de si, na própria linguagem de inspiração, a encantadora
instituição das "trombetas de prata". Vem com notável conveniência logo após
as instituições acerca do movimento da nuvem e está ligada, de uma maneira
bem marcada, com toda a história de Israel, não só no passado mas também no
futuro.
O sonido da trombeta era familiar aos ouvidos dos circuncisos. Era a
comunicação dos pensamentos de Deus de uma forma distinta e bastante
simples para ser compreendida por todo o membro da congregação por mais
distante que estivesse do lugar de onde emanava o testemunho. Deus havia
disposto tudo de maneira que cada um naquela vasta assembleia, por muito
afastado, pudesse ouvir os sonidos prateados da trombeta do testemunho.
Cada trombeta devia ser feita de uma só peça e servia um duplo propósito. Por
outras palavras, a origem do testemunho era só uma, ainda que o objeto e
resultado prático fossem variados. Todo o movimento no acampamento tinha de
ser o resultado do sonido da trombeta. A congregação devia reunir-se em festa
de regozijo e adoração?- Era por meio de certo som da trombeta. As tribos
tinham de juntar-se em ordem de batalhai Era ao som da trombeta. Em suma, a
assembleia solene e a hoste guerreira; os instrumentos de música e as armas
de guerra — tudo — tudo estava regulado pela trombeta de prata. Qualquer
movimento, quer fosse festivo, quer religioso, ou hostil que não fosse resultado
desse familiar sonido, só podia ser fruto de uma vontade inquieta e insubmissa,
que o Senhor não podia, de modo algum, sancionar. O exército de peregrinos
no deserto era tão dependente do som da trombeta como dos movimentos da
nuvem. O testemunho de Deus, transmitido daquela maneira especial, devia
dirigir todo o movimento dos muitos milhares de Israel.
Além disso, competia aos filhos de Arão, os sacerdotes, tocar as trombetas, já
que o pensamento de Deus não podia ser conhecido e comunhão senão pela
proximidade e comunhão sacerdotal. Era privilégio elevado e santo da família
sacerdotal reunir-se em redor do santuário de Deus para ver o primeiro
movimento da nuvem e comunicá-lo até aos confins do acampamento. Deviam
dar um certo sonido e cada membro da hoste militante era igualmente
responsável por prestar imediata e implícita obediência. Teria sido ao mesmo
tempo positiva rebelião alguém intentar pôr-se em marcha sem a palavra de
comando ou recusar avançar uma vez dada essa palavra de ordem. Todos
tinham de esperar pelo testemunho divino, e avançar à sua luz logo que era
dado. Avançar sem o testemunho teria sido andar em trevas; opor-se a
marchar, quando o testemunho era dado, teria sido ficamos trevas.
Isto É muito simples e profundamente pratico. Não podemos ter dificuldade em
ver o seu alcance e aplicação no caso da congregação no deserto Mas
recordemos que tudo isto era um símbolo; e, além disso, que está escrito para
nosso ensino. Somos, portanto, obrigados seriamente a contemplá-lo de perto;
somos chamados terminantemente para procurar recolher e entesourar a lição
prática contida na ordenação especialmente bela da trombeta de prata. Nada
poderia ser mais conveniente para o momento atual. Encerra uma lição a que o
leitor deveria dar a sua maior atenção. Mostra da maneira mais clara possível
que o povo de Deus deve depender completamente do testemunho divino e
submeter-se a ele inteiramente em todos os seus movimentos. Uma criança
pode ver isto no símbolo que temos perante nós.
A congregação no deserto não se atrevia a reunir-se para qualquer fim festivo
religioso antes de ter ouvido o som da trombeta; nem os homens de guerra
podiam pôr a sua armadura antes de serem chamados pelo sinal de alarme
para enfrentar o inimigo incircunciso. Adoravam e combatiam, viajavam e
faziam alto, em obediência simples à chamada da trombeta. Não se tratava, de
modo algum, de uma questão dos seus gostos ou da sua aversão, dos seus
pensamentos, das suas opiniões ou do seu parecer. Era pura e simplesmente
uma questão de obediência implícita. Cada um dos seus movimentos estava
dependente do testemunho de Deus, segundo era dado pelos sacerdotes desde
o santuário. O cântico do adorador e o grito do guerreiro eram igualmente o
simples fruto do testemunho de Deus.

O Que Significa a Trombeta de Prata para nós?


Como isto é belo! Como é admirável! Como é instrutivo! E, podemos
acrescentar, quão prático! Porque insistimos nisto? Porque cremos firmemente
que contém uma lição necessária para os dias cm que vivemos. Se na hora
atual há um rasgo mais característico que outro qualquer, é a insubmissão à
autoridade divina—resistência positiva à verdade quando ela exige obediência
absoluta e renúncia própria. Está tudo muito bem desde que se trate da verdade
que expõe, com plenitude e clareza divina, o nosso perdão, a nossa aceitação a
nossa vida, a nossa justiça, a nossa segurança eterna em Cristo. Tudo isto se
ouvirá com alegria. Mas logo que se torna uma questão dos direitos e
autoridade da pessoa bendita que deu a Sua vida para nos salvar das chamas
do inferno e nos introduzir nos gozos eternos do céu, surge toda a sorte de
dificuldades; toda a sorte de argumentos e questões; nuvens de preconceitos
amontoam-se sobre a alma e obscurecem o entendimento. O gume afiado da
verdade é voltado ou desviado de mil maneiras. Não se espera o som da
trombeta. E quando ela ressoa, com um som tão claro quanto só Deus pode
dar, não há resposta à chamada. Movemo-nos quando devíamos estar
tranquilos; e fazemos alto quando devíamos andar.
Leitor, qual há-de ser o resultado disto? Ou falta absoluta de progresso, ou
progresso numa direção errada, o que é pior do que nenhuma. E inteiramente
impossível que se possa avançar na vida divina, a menos que nos
abandonemos a nós próprios, sem reserva, à Palavra do Senhor. Podemos
estar salvos pela rica abundância da misericórdia divina e por meio das virtudes
expiatórias do sangue do Salvador, mas contentar-nos-emos em ser salvos por
Cristo, sem buscar, de algum modo, andar com Ele e viver para Ele?
Aceitaremos a salvação por meio da obra que Ele cumpriu, sem suspirar por
uma mais profunda intimidade de comunhão com Ele próprio e uma mais
completa submissão à Sua autoridade em todas as coisas? Que teria
acontecido a Israel no deserto se tivesse recusado estar atento ao som da
trombeta? Podemos compreender facilmente a resposta. Se, por exemplo,
tivessem tomado a liberdade de se reunir, em qualquer momento, com um fim
festivo ou religioso sem a chamada divinamente estabelecida, qual teria sido o
resultado? Ou, ainda mais, se tivessem decidido por si mesmos continuar a sua
jornada ou sair para a guerra, antes de a trombeta ter dado alarme, que teria
acontecido? Ou, finalmente, se tivessem recusado obedecer quando eram
chamados pelo som da trombeta para uma reunião solene ou para avançar ou
para a peleja, que lhes teria acontecido?
A resposta é tão clara como a luz do sol. Ponderemo-la. Tem uma lição para
nós. Apliquemo-la aos nossos corações. A trombeta de prata determinava e
ordenava todo o movimento do antigo Israel. O testemunho de Deus deveria
determinar e ordenar todas as coisas na Igreja de Deus, agora. Os antigos
sacerdotes tocavam a trombeta de prata. O testemunho de Deus e conhecido
agora em comunhão sacerdotal. O cristão não tem o direito de avançar ou agir à
parte do testemunho de Deus. Deve aguardar a palavra do seu Senhor. Antes
de a conhecer deve permanecer tranquilo. Logo que a recebe deve avançar.
Deus pode comunicar e comunica o Seu pensamento ao Seu povo militante tão
claramente agora como o fez ao Seu antigo povo. Não é, decerto, mediante o
som de uma trombeta ou o movimento de uma nuvem; mas pela Sua Palavra e
pelo Seu Espírito. Não é por qualquer coisa que impressiona os sentidos que o
nosso Pai nos guia; mas por aquilo que atua sobre o coração, sobre a
consciência e o entendimento. Não é por aquilo que é natural, mas pelo que é
espiritual que nos comunica o Seu pensamento.
Mas estejamos bem seguros disto, que o nosso Deus pode dar e dá aos nossos
corações plena certeza quanto ao que devemos e não devemos fazer; quanto
aonde devemos e aonde não devemos ir. Parece estranho que sejamos
obrigados a insistir sobre isto — estranho que algum cristão duvide disto ou
ainda mais estranho que o negue. E todavia assim é. Ficamos por vezes
mergulhados na dúvida e perplexidade; e há alguns que estão prontos a negar
que possa haver alguma coisa que se pareça com a certeza quanto aos
pormenores da vida e das ações diárias. Isto é seguramente um erro. Não pode
um pai comunicar o seu pensamento ao filho quanto aos mínimos pormenores
da sua conduta?- Quem ousará negar isto<? E não pode o nosso Pai celestial
comunicar-nos o Seu pensamento quanto aos incidentes da vida diária? É
indiscutível que pode; e que o leitor cristão se não prive do santo privilégio de
conhecer os pensamentos de seu Pai a respeito de todas as circunstâncias da
sua vida diária.
Devemos supor, ainda que só por um momento, que a Igreja e Deus está em
piores condições, quanto à questão de orientação, o que o acampamento no
deserto? Impossível. Como se explica, pois, que amiudadas vezes se veem
cristãos perplexos quanto aos seus movimentos? Isto deve ser devido ao fato
que não têm os ouvidos atentos ao som da trombeta de prata e uma vontade
submissa para responderão som. Pode, todavia, dizer-se que não vamos
esperar ouvir uma voz do céu dizer-nos para fazermos isto ou aquilo ou para ir
aqui ou ali; nem tampouco encontrar um versículo formal na Escritura para nos
guiar nas coisas mais simples da nossa vida diária. Como poderá uma pessoa
saber, por exemplo, se deve visitar uma cidade determinada e permanecer nela
um determinado tempo? A nossa resposta é que se o ouvido está atento,
ouvir-se-á seguramente soar a trombeta de prata. Antes que ela haja soado,
nunca se mova: logo que ela haja soado, não se demore.
Isto torna tudo tão claro, tão simples, tão certo e seguro! É o grande remédio
para a dúvida, a indecisão e a vacilação. Isto nos salvará da necessidade de
andar de um lado par o outro em busca de conselhos quanto a isto e quanto
àquilo, de como devemos agir ou aonde devemos ir. E, além disso, isto nos
ensinará que não é da nossa responsabilidade procurar dirigir as ações ou os
movimentos dos outros. Tenha cada qual o seu ouvido atento e o seu coração
submisso, e então terá toda a certeza que Deus pode dar-lhe quanto aos seus
atos e movimentos do dia a dia. O nosso Deus pode em Sua graça
esclarecer-nos em todas as decisões. Se não o fizer, ninguém poderá fazê-lo.
Se o faz, não temos necessidade de coisa alguma mais.
Isto basta quanto à instituição das trombetas de prata, cujo tema não
prosseguiremos, ainda que a sua aplicação se não limite, como já dissemos, a
Israel no deserto, mas esteja ligada com toda a sua história até ao fim. Assim,
temos a festa das trombetas; a trombeta do jubileu; o som das trombetas sobre
os sacrifícios, sobre os quais não nos deteremos agora, visto que o nosso
objetivo imediato é chamar a atenção do leitor para o grande pensamento
apresentado no parágrafo inicial do nosso capítulo. Que o Espírito Santo grave
em nossos corações a lição importante das "Trombetas de Prata".

A Partida Consoante o Mandamento do SENHOR


Chegamos agora sobre no nosso estudo sobre este livro precioso, ao momento
em que o acampamento e chamado a pôr-se em marcha. Tudo está
devidamente organizado segundo essa grande regra - "O mandamento do
SENHOR” . Cada homem segundo a sua linhagem e cada tribo segundo a sua
bandeira estão no seu lugar que Deus lhes tem assinalado. Os levitas estão no
seu posto, cada qual com o seu trabalho particular para fazer. Estão preparados
os meios para limpeza do acampamento de toda a classe de impurezas; e não
só isso, mas a bandeira da santidade pessoal é desfraldada e os frutos de uma
ativa benevolência são oferecidos. Em seguida temos o candeeiro de ouro e as
suas sete lâmpadas dando a sua luz pura e preciosa. Temos a coluna de nuvem
e fogo; e, finalmente, o duplo testemunho da trombeta de prata. Em suma, nada
falta ao povo peregrino. Olhos vigilantes, mão poderosa e um coração de amor
previram todas as eventualidades possíveis a fim de que toda a congregação no
deserto, e cada membro em particular, pudessem ser "abundantemente
providos".
Isto é o que podíamos esperar. Se Deus toma a Seu cargo prover as
necessidades de qualquer pessoa, ou de qualquer povo, a provisão deve
necessariamente ser perfeita. E impossível que Deus possa descurar qualquer
coisa necessária. Ele sabe todas as coisas, e pode fazer todas as coisas. Nada
pode escapar aos Seus olhos vigilantes; nada é impossível para a Sua mão
poderosa. Portanto, todos aqueles que verdadeiramente podem dizer: "O
SENHOR é o meu pastor", podem acrescentar, sem hesitação ou reserva,
"nada me faltará". À alma que se apoia realmente no braço do Deus vivo nunca
poderá faltar coisa alguma boa. O pobre e insensato coração pode
preocupar-se com mil necessidades imaginárias; mas Deus sabe o que
realmente precisamos e proverá TUDO.
Assim, pois, o acampamento está pronto para partir; mas, coisa estranha, há
uma diferença na ordem estabelecida no princípio do livro. A arca do concerto,
em vez de estar no meio do acampamento, vai na própria frente. Por outras
palavras, em vez de permanecer no centro da congregação para ser servido ali,
Javé condescende realmente em Sua graça maravilhosa e ilimitada em
desempenhar a obra de mensageiro do dia para o Seu povo.

Hobabe
Mas vejamos a que foi devido essa tocante manifestação de graça. "Disse,
então, Moisés a Hobabe, filho de Reuel, o midianita, sogro de Moisés: Nós
caminhamos para aquele lugar de que o SENHOR disse; Vo-lo darei: vai
conosco, e te faremos bem; porque o SENHOR falou bem sobre Israel. Porém
ele lhe disse: Não irei; antes, irei à minha terra e à minha parentela. E ele disse:
Ora, não nos deixes; porque tu sabes que nós nos alojamos no deserto; de
olhos nos servirás" (versículos 29-31).
Ora, se não conhecêssemos alguma coisa dos nossos próprios corações e a
sua inclinação para se apoiarem na criatura em vez do Deus vivo, podíamos
muito bem ficar admirados com esta passagem. Podíamo-nos sentir tentados a
perguntar: O que esperava Moisés dos olhos de Hobabe? O Senhor não era
suficiente?- Não conhecia Ele o deserto? Permitiria Ele que eles se
extraviassem? De que serviam a nuvem e a trombeta? Não valiam mais que os
olhos de Hobabe? Logo, por que buscou Moisés o auxílio humano?
Ah! Infelizmente podemos compreender muito bem a razão! Todos
conhecemos, para nossa tristeza e prejuízo do coração, a inclinação para se
apoiar em alguma coisa que os nossos olhos podem ver. Não nos agrada
mantermo-nos no terreno de absoluta dependência de Deus para cada passo
da jornada. Encontramos dificuldade em nos apoiarmos a um braço invisível.
Um Hobabe a quem podemos ver inspira-nos mais confiança que o Deus vivo a
Quem não podemos ver. Avançamos com confiança e satisfação quando
contamos com o apoio e a presença de algum pobre mortal como nós; mas
hesitamos, trememos e desanimamos quando somos chamados para avançar
em simples fé em Deus.
Estas afirmações podem parecer fortes; mas a questão é esta: são
verdadeiras? Haverá algum cristão que, ao ler estas linhas, não reconheça
francamente que é mesmo assim? Temos todos a propensão para nos
apoiarmos num braço de carne, e isto apesar de mil e um exemplos da loucura
de atuar deste modo. Temos comprovado, vezes sem conta, a vaidade de toda
a confiança da criatura, e todavia queremos confiar na criatura. Por um lado,
temos comprovado repetidas vezes a realidade do apoio que se encontra na
Palavra e no braço do Deus vivo. Temos visto que nunca nos faltou, que nunca
nos desapontou, antes, que sempre tem feito tudo mais abundantemente do
que temos pedido ou pensado; e contudo estamos sempre prontos a descrer
n'Ele, prontos a apoiarmo-nos numa cana rachada e a recorrermos a cisternas
rotas.

Pela Graça do SENHOR a Marcha Prossegue


Assim é conosco; mas bendito seja Deus, a Sua graça abunda par conosco,
assim como abundou para com Israel na ocasião a que nos referimos. Se
Moisés procura ser guiado por Hobabe, o Senhor ensinará o Seu servo que Ele
Próprio é todo suficiente como guia. "Assim, partiram do monte do SENHOR
caminho de três dias; e a arca do concerto do SENHOR caminhou diante deles
caminho de três dias, para lhes buscar lugar de descanso."
Que rica preciosa graça! Em vez de eles buscarem um lugar de descanso para
o Senhor, Ele busca um lugar de descanso para eles. Que pensamento!
O Deus Onipotente, Criador dos confins da terra, indo através do deserto em
procura de um lugar para acampar convenientemente um povo que estava
sempre pronto, a cada passo da sua jornada, a murmurar e revoltar-se contra
Ele!
Tal é o nosso Deus, sempre "paciente, misericordioso, poderoso, santo" —
elevando-Se sempre, na magnificência da Sua graça, acima de toda a nossa
incredulidade e faltas, e mostrando-Se superior, em Seu grande amor, a todas
as barreiras que a nossa infidelidade gostaria de levantar, demonstrou
seguramente a Moisés e a Israel que era, como guia, muito melhor do que dez
mil Hobabe. Não se nos diz nesta passagem se Hobabe os acompanhou ou
não.
Recusou certamente o primeiro apelo e talvez também o segundo. Porém,
é-nos dito que o Senhor foi com eles. "E a nuvem do SENHOR ia sobre eles de
dia, quando partiam do arraial." Bendito abrigo no deserto! Feliz e infalível
recurso em todas as coisas! Ia adiante do Seu povo para buscar um lugar de
repouso, e quando ia encontrado um próprio para as suas necessidades, fazia
alto com eles e estendia sobre eles a Sua asa protetora para os guardar de
todos os inimigos. "Achou-o na terra do deserto e num ermo solitário cheio de
uivos; trouxe-o ao redor, instruiu-o, guardou-o como à menina do seu olho.
Como a águia desperta o seu ninho, se move sobre os seus filhos, estende as
suas asas, toma-os, e os leva sobre as suas asas, assim, só o SENHOR O
guiou, e não havia com ele deus estranho" (Dt 32:10-12). "Estendeu uma nuvem
por coberta, um fogo para os alumiar de noite" (SI 105:39).
Assim, pois, tudo foi provido segundo a sabedoria, o poder e a bondade de
Deus. Nada faltou, nem podia faltar, visto que Deus mesmo estava ali. "Era,
pois, que, partindo a arca, Moisés dizia: Levanta-te, SENHOR, e dissipados
sejam os teus inimigos, e fujam diante de ti os aborrecedores. E, pousando ela,
dizia: Volta, ó SENHOR, para os muitos milhares de Israel."
CAPITULO 11

AS MURMURAÇÕES, O DESEJO, A REPUGNÂNCIA AO ALIMENTO


CELESTIAL

Até agora temos estado ocupados, no estudo deste livro, com a maneira de
Deus dirigir o Seu povo no deserto e prover as suas necessidades. Temos
percorrido os dez primeiros capítulos e visto neles um exemplo da sabedoria,
bondade e previsão do Deus de Israel.
Mas agora chegamos a um ponto em que nuvens sombrias se amontoam em
redor de nós. Até este ponto, Deus e os Seus atos têm estado diante de nós;
mas agora somos chamados para contemplar o homem e os seus miseráveis
caminhos. Isto é sempre triste e humilhante. O homem é o mesmo em toda a
parte. No Éden, na terra restaurada, no deserto, na terra de Canaã, na Igreja, no
Milênio, está provado que o homem é um fracasso. No próprio momento em que
parte, ele falha.
Assim, nos dois primeiros capítulos de Gênesis vemos Deus atuando como
Criador; tudo está feito e ordenado com perfeição divina, e o homem é posto
nesta cena para gozar os frutos da sabedoria, bondade e poder divino. Porém
no capítulo 3 tudo é alterado. Logo que o homem atua é para desobedecer e
introduzir a ruína e desolação. Assim também depois do dilúvio, em que a terra
passou por aquele profundo e terrível batismo, e em que o homem toma outra
vez o seu posto, mostra se tal qual é, dá provas de que, longe de poder dominar
e governar a terra, não pode sequer governar-se a si próprio (Gn 9). Apenas
Israel havia sido tirado do Egito, quando fizeram um bezerro de ouro. O
sacerdócio acabava apenas de ser estabelecido, e já os filhos de Arão
ofereciam fogo estranho. Saul é eleito rei, e logo se mostra voluntarioso e
desobediente.
Assim também quando nos voltamos para o Novo Testamento, encontramos a
mesma coisa. Apenas é fundada a Igreja e dotada com os dons do Pentecostes,
ouvimos tristes murmurações e descontentamento. Em suma, a história do
homem, desde o princípio ao fim, aqui, ali, e em toda a parte, está marcada com
o fracasso. Não existe tanto como uma simples exceção desde o Éden ao fim
do milênio.
E conveniente considerar este fato solene e grave, e dar-lhe um lugar no
recôndito do coração. Está iminentemente calculado para corrigir todas as
falsas ideias sobre o verdadeiro caráter e condição do homem. É conveniente
recordar que a terrível sentença que encheu de terror o coração do voluptuoso
rei de Babilônia foi pronunciada, com efeito, sobre toda a raça humana e contra
todo o indivíduo filho ou filha de Adão caído, isto é: "Pesado foste na balança, e
foste achado em falta."
O leitor já aceitou plenamente esta sentença contra si próprio? E uma pergunta
muito séria. Sentimo-nos constrangidos a insistir nela. O leitor é um dos filhos
da sabedoria?- Justifica Deus e condena-se a si mesmos Já tomou o seu lugar
como pecador culpado e digno do inferno'? Se assim é, Cristo é para si. Ele
morreu para tirar o pecado e levar os seus muitos pecados. Confie n'Ele e tudo
que Ele é e tudo quando possui é seu. Ele é a sua sabedoria, a sua justiça, a
sua santificação e redenção, Todos os que creem simplesmente e de coração
em Jesus deixaram completamente o antigo terreno de culpa e condenação e
são vistos por Deus sobre o novo terreno de vida eterna e justiça divina. Estão
aceites no Cristo ressuscitado e vitorioso. "Qual ele é, somos nós também neste
mundo" (I Jo 4:17).
Pedimos sinceramente ao leitor que se não entregue ao repouso até que esta
questão importante seja clara e inteiramente resolvida à luz da Palavra de Deus
e na Sua presença. Desejamos que Deus, o Espírito Santo, atue sobre coração
e a consciência do leitor inconvertido e indeciso e o conduza aos pés do
Salvador.
Vamos proceder agora com os nossos comentários sobre o capítulo.
"E aconteceu que, queixando-se o povo, era mal aos ouvidos do Senhor;
porque o Senhor ouviu-o, e a sua iras se acendeu, e o fogo do SENHOR ardeu
entre eles e consumiu os que estavam na ultima parte do arraial. Então, o povo
clamou a Moises, e Moises orou ao SENHOR, e o fogo se apagou. Pelo que
chamou aquele lugar Tabera, porquanto o fogo do SENHOR se acendera entre
eles. E o vulgo, que estava no meio deles, veio a ter grande desejo; pelo que os
filhos de Israel tornaram a chorar, e disseram: Quem nos dará carne a comerá
Lembramo-nos dos peixes que no Egito comíamos de graça; e dos pepinos, e
dos melões, e dos porros, e das cebolas, e dos alhos. Mas agora a nossa alma
se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos."
Aqui o pobre coração humano descobre-se inteiramente. Os seus gostos e as
suas inclinações são manifestos. O povo suspira pela terra do Egito e volve os
olhos ávidos para os seus frutos e panelas de carne. Não dizem nada sobre as
chicotadas dos exatores, nem do labor dos fomos de tijolo. Há um completo
silêncio sobre estas coisas. De nada se lembram agora, salvo os recursos
mediante os quais o Egito tinha satisfeito a cobiça da natureza.
Quantas vezes sucede o mesmo conosco! Uma vez que o coração perde o
vigor da vida divina quando as coisas divinas começam a perder o seu sabor,
quando o primeiro amor declina, quando Cristo deixa de ser uma porção
preciosa e absolutamente suficiente para a alma, quando a Palavra de Deus e a
oração perdem o seu encanto e se tomam enfadonhos, insípidos e maquinais,
então os olhos volvem-se para o mundo, o coração segue os olhos, e os pés
seguem o coração. Esquecemos, em tais momentos, o que o mundo era para
nós quando estávamos nele e éramos dele. Esquecemos o labor da escravidão,
a miséria e a degradação que encontramos ao serviço do pecado e de Satanás,
e só pensamos nos prazeres e comodidade e de nos vermos livres dos penosos
exercícios, conflitos e ansiedades que se acham no caminho do povo de Deus
no deserto.
Tudo isto é muito triste e deveria conduzir a alma ao mais profundo juízo
próprio. É terrível quando aqueles que decidiram seguir o Senhor começam a
cansar se do caminho e das provisões de Deus. Quão terrivelmente devem ter
soado estas palavras aos ouvidos do Senhor: "Mas agora a nossa alma se
seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos"!
Ah! Israel, que te faltava mais? Esse alimento celestial não era suficiente para
ti? Não podias viver daquilo que a mão do teu Deus te proporcionava?

O Maná
E nos permitimo-nos fazer perguntas semelhantes? Encontramos sempre o
nosso maná celestial suficiente para as nossas necessidades? Que significa a
pergunta frequentemente levantada por cristãos professos sobre o bem ou mal
que há neste ou naquele prazer mundano? Não temos nós ouvido dos próprios
lábios de pessoas que fazem profissão destacada palavras como estas: "Como
devemos então passar o tempo? Não podemos estar sempre a pensar em
Cristo e nas coisas celestiais. Devemos ter um pouco de recreio." Isto não é um
pouco semelhante à linguagem de Israel em Números 1? Sim, é, realmente; e
assim como é a linguagem, assim é a conduta. O próprio fato de nos
entregarmos a outras coisas demonstra infelizmente que Cristo não é suficiente
para os nossos corações. Quantas vezes, por exemplo, não descuramos a
Bíblia para ler avidamente uma literatura mundana. Que significam os
periódicos abertos e a Bíblia quase sempre fechada e coberta de pó? Estas
coisas não falam claro? Não será isto desprezar o maná e suspirar ou, antes,
comer os alhos e as cebolas?
Chamamos especialmente a atenção dos jovens cristãos para o fato que está
agora diante de nós. Estamos profundamente impressionados com o
sentimento do perigo em que eles estão de cair no mesmo pecado de Israel,
segundo o relato neste capitulo. Não resta dúvida de que estamos todos em
perigo, mas especialmente os jovens entre nós. Aqueles de entre nós que são
avançados em idade não estão tão sujeitos a serem arrastados pelas frívolas
pretensões do mundo -os seus concertos, as suas diversões, os seus prazeres,
os seus cânticos inúteis e a sua literatura supérflua. Mas os jovens querem ter
um pouco do mundo. Anseiam prová-lo por si mesmos. Não acham que Cristo
seja suficiente para o coração. Querem algum recreio.
Mas há! Que pensamento! Como é triste ouvir um cristão dizer- -Quero algum
recreio. Em que vou passar o dia? Não posso estar sempre a pensar em Jesus.
Gostaríamos de perguntar a todos aqueles que assim falam: em que
empregarás a eternidade? Cristo não será suficiente para os séculos
incontáveis?- Precisarás de recreio lá d Suspirarás por literatura inútil, canções
frívolas e prazeres levianos ?
Dir-se-á, talvez: seremos diferentes então. Em que sentido? Temos a natureza
divina - temos o Espírito Santo; temos Cristo por nossa porção; pertencemos ao
céu; fomos trazidos a Deus. Mas temos uma natureza má-replicará alguém.
Bem, devemos cuidar dela? É por isso que suspiramos por recreio? Devemos
esforçar-nos por ajudar a nossa miserável carne a nossa natureza corrupta a
passar o dia? Não, somos convidados a negá-la, a mortificá-la, a considerá-la
como morta. Isto é o recreio cristão. E este o modo de o cristão empregar o dia.
Como podemos nós crescer na vida divina se nos preocupamos apenas em
fazer provisões para a carne? O alimento do Egito não pode alimentar a nova
natureza; e a grande questão para nós é esta: qual queremos realmente
alimentar e fomentar: a nova ou a velha natureza ? E óbvio que a natureza
divina não pode de modo algum alimentar-se com os periódicos, canções fúteis,
e literatura insubstancial; por isso, se nos entregamos, em qualquer medida, a
estas coisas, as nossas almas murcharão e desfalecerão.
Que Deus nos dê graça para pensar nestas coisas atentamente. Andemos em
Espírito para que Cristo possa ser sempre a porção suficiente dos nossos
corações. Tivesse Israel, no deserto, andado com Deus, e nunca teria dito: "Mas
agora a nossa alma se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos
nossos olhos"! Esse maná teria sido amplamente suficiente para eles. E assim é
conosco. Se realmente andamos com Deus, neste deserto, as nossas almas se
contentarão com a parte que Ele nos dá, e essa parte é um Cristo celestial.
Poderá Ele jamais deixar de satisfazer-nos? Não satisfaz Ele o coração de
Deus? Não enche Ele todo o céu com a Sua glória? Não é Ele o tema do cântico
dos anos e o objeto supremo da sua homenagem e adoração? Não é Ele o
assunto dos desígnios e propósitos eternos?- A história dos Seus caminhos não
envolve a eternidade?
Que resposta temos nós para dar a todas estas interrogações? Que outra
resposta poderíamos dar senão um sim sincero sem reserva nem hesitação?
Pois bem, não é este bendito Senhor, no profundo mistério da Sua Pessoa e
glória moral dos Seus caminhos e segundo o brilho e bem-aventurança do Seu
caráter, suficiente para os nossos corações? Carecemos de alguma coisa
mais? Necessitamos dos jornais e de alguma vulgar revista par encher o vazio
nas nossas almas? Devemos deixar Cristo por uma diversão ou por um
concerto?
Oh! Como é triste termos de escrever assim! E mesmo muito triste, mas é muito
necessário; e aqui fazemos formalmente esta pergunta ao leitor: Achas
realmente que Cristo e insuficiente para satisfazer? Se assim é, estás num
estado alarmante de alma, e cumpre te examinar este assunto e examiná-lo
atentamente. Inclina o teu rosto perante Deus, e julga-te honestamente.
Abre-Lhe tudo. Confessa-Lhe até que ponto tens caído e te extraviaste pois
certamente assim tens feito sempre que o Cristo de Deus não tem sido bastante
para ti. Confessa tudo no secreto do teu coração a Deus e não descanses até
estares plena e ditosamente restaurado à comunhão Consigo comunhão de
coração no tocante ao Filho do Seu amor.

As Pessoas Estrangeiras
Mas devemos voltar ao nosso capítulo, e fazendo o chamamos a atenção do
leitor para uma expressão cheia de importantes avisos para nós: "E o vulgo, que
estava no meio deles, veio a ter grande desejo; pelo que os filhos de Israel
tornaram a chorar." Não há nada mais prejudicial para a causa de Cristo ou
almas do Seu povo do que a união com pessoas de princípios diferentes. E
muito mais perigoso do que ter de tratar com inimigos declarados e conhecidos,
Satanás sabe isto bem, e por isso faz constantes esforços para levar o povo de
Deus a ligar-se com aqueles que têm princípios ambíguos; ou, por outro lado
para introduzir falsos elementos, falsos professos, no meio dos que procuram,
de qualquer modo, seguir um caminho de separação do mundo.
No Novo Testamento encontramos repetidas referencias a este caráter especial
do mal. Encontramo-las profeticamente nos evangelhos e historicamente nos
Atos e nas epístolas. Assim, temos o joio e o fermento em Mateus 13. Então, em
Atos, encontramos pessoas aderindo à assembleia que eram como "o vulgo" de
Números 11. E, finalmente, temos as referências apostólicas a elementos
adulterados que o inimigo havia introduzido com o fim de corromper o
testemunho e subverteras almas do povo de Deus. Assim o apóstolo fala de
"falsos irmãos que se tinham entremetido" (Gl 2:4). Judas fala também de
"alguns que se introduziram" (versículo 4).
De tudo isto aprendemos a necessidade urgente de vigilância por parte do povo
de Deus; e não só de vigilância, mas também de absoluta dependência do
Senhor, o único que pode preservar o Seu povo da introdução de falsos
elementos, e guardá-lo de todo o contato com homens de princípios mistos e
caráter duvidoso. "O vulgo" terá certamente "grande desejo", e o povo de Deus
corre o perigo iminente de ser desviado da sua própria simplicidade e de se
sentir enfastiado do maná celestial, o seu próprio alimento. O que é necessário
é absoluta decisão por Cristo por meio de devoção por Ele e a Sua causa. Onde
um grupo de crentes pode andar em verdadeira devoção a Cristo e notória
separação do mundo, não há perigo de pessoas de caráter ambíguo
procurarem um lugar entre eles, ainda que Satanás procure, sem dúvida,
sempre manchar o testemunho introduzindo hipócritas. Tais pessoas
conseguem entrar, e por seus maus caminhos trazem opróbrio sobre o nome do
Senhor. Satanás sabia muito bem o que estava a fazer, quando induziu o vulgo
a unir-se à congregação de Israel. Não foi imediatamente que se manifestaram
os efeitos dessa mistura. O povo havia saído com mão forte; tinham passado o
Mar Vermelho e entoado o cântico da vitória nas suas margens. Tudo parecia
brilhante e prometedor; mas, não obstante, "o vulgo" estava ali, e o efeito da sua
presença bem depressa se manifestou.
Assim é sempre na história do povo de Deus. Podemos distinguir nos grandes
movimentos espirituais que têm tido lugar de século em século certos
elementos de decadência que, ocultos da vista, ao princípio, pela grande
corrente de graça e energia, se mostraram logo que essa corrente começou a
baixar.
Isto é muito grave e exige uma santa vigilância. Diz respeito tanto aos
indivíduos como forçosamente à assembleia do povo de Deus coletivamente.
Nos primeiros dias da nossa juventude, quando o zelo e o fervor nos
caracterizavam, a corrente da graça deslizava tão ditosamente que muitas
coisas podiam passar sem ser julgadas, as quais eram, na realidade, sementes
atiradas ao solo pela mão do inimigo, e que, a seu tempo, é certo germinarem e
frutificarem. Por isso segue se que tanto as assembleias dos cristãos como os
próprios cristãos individualmente devem estar sempre de atalaia - mantendo
sempre ciosamente guarda para que o inimigo não ganhe vantagem neste caso.
Onde o coração é leal a Cristo, é certo que tudo acabará bem. O nosso Deus é
tão misericordioso, que toma cuidado de nós e nos preserva de mil e uma
ciladas. Possamos nós confiar n'Ele e louvá-Lo.

Moisés Fraquejando sob o Peso da Responsabilidade


Mas temos outras lições a tirar do importante capítulo que está aberto diante de
nós. Não só temos de contemplar faltas por parte da congregação de Israel,
como vemos o próprio Moisés fraquejar e quase sucumbir sob o peso da sua
responsabilidade.
"E disse Moisés ao SENHOR: Porque fizeste mal a teu servo, e por que não
achei graça aos teus olhos, que pusesses sobre mim a carga de todo este
povo?- Concebi, eu porventura, todo este povo?- Gerei-o eu para que me
dissesses que o levasse ao colo, como o aio leva o que cria, à terra que juraste
a seus pais*?- Donde teria eu carne para dar a todo este povo? Porquanto
contra mim choram, dizendo: Dá-nos carne a comer; eu só não posso levar a
todo este povo, porque muito pesado é para mim. E, se assim fazes comigo,
mata-me, eu to peço, se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes
ver o meu mal" (versículos 11-15).
Isto é verdadeiramente linguagem espantosa. Não pensamos nem por um
momento explorar os defeitos e fraquezas de um servo tão querido e
consagrado como Moisés. Longe de nós tal pensamento. Ficaria mal comentar
os atos e as palavras de um que o Espírito Santo declarou que "foi fiel em toda a
sua casa" (Hb 12). Moises, a semelhança de todos santos do Velho
Testamento, tomou o seu lugar entre, "os espíritos dos justos aperfeiçoados", e
todas as referências que lhe são feitas no Novo Testamento têm por fim
honrá-lo e apresentá-lo como um vaso precioso.
Contudo, somos obrigados a considerar a história inspirada que temos diante
de nós, história escrita pelo próprio Moisés. É verdade, ditosamente verdade,
que os defeitos e as faltas do povo de Deus de que se fala no Velho Testamento
não se comentam no Novo Testamento; e contudo estão registrados no Velho
Testamento, por quê? Não será isto para nosso ensino? Sem duvida: "Porque
tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito, para que pela
paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança" (Rm 15:4).
Que devemos então aprender com essa notável explosão de abatimento
descrita em Números 11:11-15? Pelo menos, aprendemos isto: que é o deserto
que realmente revela o que há no melhor de nós. É ali que se prova o que há
em nossos corações. E como o Livro de Números é enfaticamente o livro do
deserto, é nele que podíamos esperar ver toda a sorte de falhas e fraquezas
inteiramente descobertas. O Espírito de Deus registra fielmente todas as coisas.
Apresenta os homens como são; e até mesmo se é Moisés quem "fala
imprudentemente com seus lábios" (SI 106:33), essa linguagem imprudente
está registrada par nossa admoestação e instrução. Moisés era "sujeito às
mesmas paixões" a que nós estamos sujeitos; e é evidente que nesta parte da
sua história o seu coração sente se sucumbir sob o peso espantoso das suas
responsabilidades.
Dir-se-á talvez- não admira que o seu coração sucumbisse. Não e caso para
admirar, certamente, porque o seu fardo era pesado demais para ombros
humanos. Mas a questão é esta: Era pesado e mais para os ombros divinos?
Moisés havia sido chamado realmente para levar sozinho o fardo? O Deus vivo
não estava com ele? Deus não era suficiente? Que importava que Deus atuasse
por intermédio de um homem ou de dez mil? Todo o poder, toda a sabedoria,
toda a graça estão com Ele. Ele é a fonte de toda a bem-aventurança, e,
segundo o juízo da fé, não tem nenhuma importância que haja só um canal ou
que haja mil e um.
Isto é um bom princípio moral para todos os servos de Cristo. E muito
necessário que os tais se lembrem de que sempre que Deus coloca um homem
numa posição de responsabilidade, pode tanto habilitá-lo par a ocupar como
mantê-lo nela. E uma coisa diferente se a vontade dum homem o precipita, sem
ser enviado, em qualquer campo de trabalho ou posto de dificuldade e perigo.
Em tal caso podemos seguramente esperar um completo abatimento mais cedo
ou mais tarde. Mas quando Deus chama um homem para uma determinada
posição, não deixa de o dotar com a necessária graça para a ocupar. Ele nunca
manda ninguém lutar à sua custa; e portanto tudo que temos a fazer é depender
d'Ele para tudo que necessitamos. Isto diz respeito a todos os casos. Não
podemos nunca falhar se nos apoiarmos no Deus vivo. Não nos atormentará a
sede de bebermos da fonte. Os pequenos mananciais bem cedo secarão; mas
nosso Senhor Jesus Cristo declara: "Quem crê em mim, como diz a Escritura,
rios de água viva correrão do seu ventre" (Jo 7:38).
E uma grande lição para o deserto. Sem ela não podemos avançar um passo.
Se Moisés a tivesse plenamente compreendido, nunca teria proferido tais
palavras como estas; "Donde teria eu carne para dar a todo este povo? Ele teria
fixado os seus olhos só em Deus. Teria sabido que era apenas um instrumento
nas mãos de Deus, cujos recursos eram ilimitados. Seguramente Moisés não
podia proporcionar alimento àquela vasta assembleia nem um só dia; mas o
Senhor podia suprir as necessidades de tudo quanto vive, e supri-las para
sempre.
Cremos realmente isto? Não parece às vezes que duvidamos disso? Não
sentimos às vezes como se nos competisse a nós e não a Deus proverás
nossas necessidades?- E então é caso para admirar se desanimamos e
trememos e sucumbimos*?- Na verdade Moisés tinha razão para dizer: "Eu só
não posso levar a todo este povo, porque muito pesado é para mim". Havia só
um coração que podia suportar uma tal companhia, a saber: o coração dAquele
bendito Senhor que, quando eles sucumbiam de cansaço junto dos fornos de
tijolo do Egito, tinha descido para os libertar, e que tendo os redimido da terra do
inimigo, havia estabelecido a sua morada no meio deles. Ele podia sustentá-lo e
somente Ele. O Seu coração amantíssimo e a Sua mão poderosa eram por si só
suficientes para essa tarefa; e se Moisés estivesse no pleno poder desta grande
verdade não teria e não poderia ter dito: "E, se assim fazes comigo, mata-me,
eu to peço, se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes ver o meu
mal."
Isto foi certamente um momento sombrio na história deste ilustre servo de Deus.
Faz-nos lembrar alguma coisa do profeta Elias, quando se assentou debaixo de
um zimbro e pediu ao Senhor para tomar a sua vida (1 Rs 19:4). Como é
maravilhoso ver estes dois homens no monte da transfiguração?- Isto prova de
uma maneira notável que os pensamentos de Deus não são os nossos
pensamentos, nem os Seus caminhos são os nossos caminhos. Tinha alguma
coisa melhor guardada para Moisés e Elias do que o que eles contemplavam.
Bendito seja o Seu nome, Ele repreende os nossos temores pelas riquezas da
Sua graça, e quando os nossos pobres corações querem antecipar a morte e a
desgraça, Ele dá vida, vitória e glória.

A Resposta de Deus e a Suficiência do Espírito Santo


Sem dúvida, não podemos deixar de ver que Moisés, fugindo a um lugar de
tanta responsabilidade, renunciou realmente a um lugar de alta dignidade e a
um santo privilégio. Isto parece muito evidente pela seguinte passagem: "É
disse o SENHOR a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel,
de quem são anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da
congregação, e ali se porão contigo. Então, eu descerei, e ali falarei contigo, e
tirarei do Espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão a
carga do povo, para que tu sozinho o não leves" (versículos 16-17).
Ganhou-se algum poder adicional com a introdução de setenta homens? Não
poder espiritual, certamente, visto que, depois de u o, era só o espírito que
estava sobre Moisés. Decerto, eram setenta homens em vez de um; mas a
multiplicação de homens não era um aumento de poder espiritual. Evitou muitos
cuidados a Moisés, mas perdeu dignidade. Desde então ele ia ser um
instrumento em vez de ser o único.
Pode dizer-se que Moisés, abençoado servo como era, não desejava dignidade
para si, mas que buscava antes um senda sombria, humilde e secreta. Sem
dúvida; mas isto não afeta a questão que estamos considerando. Moisés, como
veremos imediatamente, era o homem mais manso de toda a terra; nem nós
queremos sugerir sequer a ideia de que qualquer simples homem teria feito
melhor nas suas circunstâncias.
Mas devemos procurar reter a grande lição prática que este capítulo encerra de
uma maneira tão admirável. O melhor dos homens falha; e parece muito claro
que Moisés, no capítulo décimo primeiro de Números, não estava na calma
elevada da fé. Parece ter perdido, de momento, aquele equilíbrio de alma que é
o resultado a que chegam com certeza aqueles que só têm o Deus vivo como
centro dos seus pensamentos. Chegamos a esta conclusão não só com o fato
de ele haver vacilado sob o peso da sua responsabilidade, mas do estudo do
seguinte parágrafo:
"E dirás ao povo: Santificai vos para amanhã e comereis carne; porquanto
chorastes aos ouvidos do SENHOR, dizendo: Quem nos dará carne a comer,
pois bem nos ia no Egito? Pelo que o SENHOR vos dará carne, e comereis; não
comereis um dia, nem dois dias, nem cinco dias, nem dez dias, nem vinte dias;
mas um mês inteiro, até vos sair pelos narizes, até que vos enfastieis dela,
porquanto rejeitastes ao SENHOR, que esta no meio de vós, e chorastes diante
dele, dizendo: Porque saímos do Egito?- E disse Moisés: Seiscentos mil
homens de pé é este povo, no meio do qual estou; e tu tens dito: Dar-lhe-ei
carne, e comerão um mês inteiro. Degolar-se-ão para eles ovelhas e vacas, que
lhes bastem? Ou ajuntar-se-ão para eles todos os peixes do mar que lhes
bastem? Porém o SENHOR disse a Moisés: Seria, pois, encurtada a mão do
SENHOR? Agora verás se a minha palavra te acontecerá ou não" (versículo
18-23).
Em tudo isto vemos a operação daquele espírito de incredulidade que tende
sempre a limitar o Santo de Israel. Não podia o Deus, o Possuidor dos céus e
da terra, prover de carne seiscentos mil homens de pé? Ah! É precisamente
aqui que todos nós tão tristemente falhamos. Não compreendemos, como
deveríamos, a realidade que temos de tratar com o Deus vivo. A fé introduz
Deus na cena e portanto não conhece nada acerca de dificuldades; pelo
contrario, ri das impossibilidades. Segundo o juízo da fé, Deus é a grande
resposta para toda a questão a grande solução de todas as dificuldades.
Submete tudo a Deus; e por isso para a fé não importa que sejam seiscentos mil
ou seiscentos milhões; sabe que Deus é todo suficiente. Encontra todos os seus
recursos n'Ele. A incredulidade diz: "Como podem ser tais e tais coisas?-" Está
cheia de interrogações; mas a fé tem uma só e grande resposta para dez mil
interrogações, e esta resposta é DEUS.
"E saiu Moisés, e falou as palavras do SENHOR ao povo, e ajuntou setenta
homens dos anciãos do povo e os pôs em roda da tenda. Então, o SENHOR
desceu na nuvem e lhe falou; e, tirando do Espírito que estava sobre ele, o pôs
sobre aqueles setenta anciãos; e aconteceu que, quando o Espírito repousou
sobre eles, profetizaram; mas, depois, nunca mais" (versículos 24-25).
O verdadeiro segredo de todo o ministério é o poder espiritual. Não é o talento
ou o intelecto ou a energia do homem; mas simplesmente o poder do Espírito de
Deus. Isto era verdadeiro nos dias de Moisés e é verdadeiro agora. "Não por
força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos"
(Zc 4:6). E conveniente que todos os ministros se lembrem sempre disto. Isto
fortalecerá o seu coração e dará ao seu ministério uma constante vivacidade.
Um ministério que emana de uma dependência permanente do Espírito Santo
nunca pode tornar se estéril. Se um homem está confiado nos seus próprios
recursos, depressa estará desprovido deles. Pouco importa o que os seus
talentos possam ser ou que tenha vastos conhecimentos ou amplos meios de
informação; se o Espírito Santo não for a fonte e poder do seu ministério, ele
perderá mais cedo ou mais tarde a sua vivacidade e a sua eficácia.

Ensinamentos Práticos para Nós


Quão importante é pois que todos os que servem, quer seja no evangelho ou na
Igreja de Deus, dependam contínua e exclusivamente do poder do Espírito
Santo. Ele sabe o que as almas necessitam e pode suprir essas necessidades.
Mas tem de confiar se n'Ele. De nada servirá confiar em parte no ego e em parte
no Espírito de Deus. Se houver algo de confiança própria, depressa se tornará
evidente. Devemos realmente renunciar a tudo que pertence ao ego, se
queremos ser vasos do Espírito Santo.
Não quer dizer que não deva haver uma santa diligência e fervor no estudo da
Palavra de Deus e no estudo também dos exercícios, provações, conflitos, e as
diversas dificuldades das almas. Pelo contrário, estamos convencidos de que
quanto mais absolutamente nos apoiarmos no grande poder do Espírito Santo,
com o sentimento da nossa nulidade, tanto mais estudaremos sincera e
diligentemente tanto o Livro como a alma. Seria um erro fatal usar a profissão
de dependência do Espírito Santo, como pretexto para descuidar o estudo feito
com oração e meditação. "Medita estas coisas; ocupa-te nelas, para que o teu
aproveitamento seja manifesto a todos" (1 Tm 4:15).
Mas, depois de tudo, recorde se que o Espírito Santo é a fonte inesgotável e
vivente do ministério. É Ele só que pode descobrir em vivacidade e plenitude
divina os tesouros da Palavra de Deus e aplicá-los, em poder celestial, às
necessidades atuais da alma. Não se trata de revelar nova verdade, mas
simplesmente de patentear a própria Palavra de maneira que opere sobre o
estado espiritual e moral do povo de Deus. Isso é verdadeiro ministério. Um
homem pode falar cem vezes sobre a mesma porção da Escritura, às mesmas
pessoas, e, em cada uma delas, pode anunciar Cristo em vivacidade espiritual
às suas almas. E, por outro lado, um homem pode atormentar o seu cérebro
para descobrir novos temas e novas maneiras de tratar velhos textos, e, ao
mesmo tempo, pode não haver um átomo de Cristo ou de poder espiritual no
seu ministério.
Tudo isto é certo para o evangelista bem como para o ensinador ou pastor. Um
homem pode ser chamado para pregar o evangelho no mesmo lugar durante
anos, e pode, por vezes, sentir-se deprimido elo pensamento de ter de dirigir se
ao mesmo auditório sobre o mesmo tema semana após semana, mês após
mês, ano após ano. Pode sentir dificuldade em encontrar alguma coisa nova e
variada. Pode sentir o desejo de se deslocar a qualquer outra esfera, onde os
temas que lhe são familiares serão novos para os ouvintes. Será muito útil aos
tais lembrar-lhes que o grande tema do evangelista é Cristo.
O Espírito Santo é o poder para desenrolar este tema; e aquele perante o qual
este tema deve ser desenrolado é o pobre pecador perdido. Ora, Cristo é
sempre novo; o poder do Espírito é sempre novo; a condição e o destino do
pecador são sempre interessantíssimos. Além disso, é conveniente para o
evangelista recordar, cada vez que prega, que aqueles a quem prega ignoram
realmente o evangelho, e por isso deve falar-lhe como se fosse a primeira vez
que o seu auditório ouvisse a mensagem e a primeira vez que ele a entregava.
Porque, recorde-se, a pregação do evangelho, na aceitação divina da frase, não
é uma exposição estéril de simples doutrina evangélica, uma certa forma de
palavras expostas sem cessar com a mesma rotina fastidiosa. Muito longe
disso. Pregar o evangelho é realmente patentear o coração de Deus, a pessoa
e a obra de Cristo; e tudo isto pela presente energia do Espírito Santo dos
inesgotáveis tesouros da Sagrada Escritura.
Que todos os pregadores tenham sempre estas coisas perante o seu
pensamento, e então pouco importará que haja um só pregador ou setenta, um
homem no mesmo lugar durante cinquenta anos ou o mesmo homem em
cinquenta lugares diferentes num ano. A questão não é de modo algum de
homens novos ou novos lugares, mas simples e inteiramente quanto ao poder
do Espírito Santo revelando Cristo à alma.
Assim, no caso de Moisés, segundo o relato do nosso capítulo, não houve
aumento de poder. Do espírito que estava sobre ele foi dado aos setenta
anciãos. Deus pode atuar no intermédio de um homem tão bem como por
setenta; e se não atua, setenta não são mais que um. E da máxima importância
ter Deus sempre diante da alma. Este é o verdadeiro segredo de poder e
vivacidade quer para o evangelista, quer para o ensinador ou qualquer outro
servo.
Quando um homem pode dizer: "Todas as minhas fontes estão em Deus" (SI
87:7) não necessita de perturbar-se quanto à esfera do seu trabalho ou
competência para o fazer. Mas quando assim não é, podemos compreender
muito bem a razão por que um homem deseja ardentemente compartilhar com
outros o seu trabalho e responsabilidade.
Podemos recordar como, no começo do livro de Êxodo, Moisés não queria ir
para o Egito em simples dependência de Deus, e como foi prontamente em
companhia de Arão. Assim sucede sempre. Gostamos de alguma coisa
palpável, alguma coisa que os olhos possam ver e as mãos tocar. Achamos que
é duro termos que ficar firmes como vendo Aquele que é invisível. E todavia os
próprios esteios a que nos encostamos acabam por ser muitas vezes canas
rachadas que ferem as mãos. Arão veio a ser uma origem abundante de dores
para Moisés; e aqueles que nós, na nossa estultícia, imaginamos serem
indispensáveis coadjutores, vêm a ser, frequentemente, o contrário. Oh, que
possamos todos aprender a inclinarmo-nos de todo o coração e inquebrantável
confiança sobre o Deus vivo!

Eldade e Medade
Mas devemos terminar esta parte do livro, e, antes de o fazer, queremos aludir
por um momento ao espírito verdadeiramente excelente com que Moisés
enfrenta as novas circunstâncias em que ele próprio se havia colocado. Uma
coisa é retroceder ante o peso da responsabilidade e cuidado e outra muito
diferente comportarmo-nos com graça e verdadeira humildade para com
aqueles que são chamados para compartilhar esse peso conosco. As duas
coisas são totalmente diferentes, e podemos muitas vezes ver a diferença
ilustrada de uma maneira notável. Na cena que temos diante de nós, Moisés
manifesta aquela delicada humildade que o caracterizava de um modo tão
especial.
"Porém no arraial ficaram dois homens [dos setenta]; o nome de um era Eldade,
e o nome do outro era Medade; e repousou sobre eles o Espírito (porquanto
estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizaram no
arraial. Então, correu um moço, o anunciou a Moisés, e disse: Eldade e Medade
profetizam no arraial. E Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus
jovens escolhidos, respondeu e disse: Senhor meu, Moisés, proíbe-lho. Porém
Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Tomara que todo o povo do
SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!" (versículos
26-29).
Isto é lindo. Moisés estava muito longe desse espírito miserável de inveja que
não deixa falar ninguém senão ele próprio. Estava preparado pela graça para se
alegrar com todas as manifestações de verdadeiro poder espiritual, não
importava onde nem por quem. Sabia muito bem que não podia haver
verdadeira profecia senão pelo poder do Espírito de Deus; e onde quer que
esse poder fosse exibido, quem era ele para procurar extingui-lo ou impedi-lo?
Oxalá que houvesse mais deste excelente espírito! Que cada um de nós o
busque! Que tenhamos graça para nos regozijarmos sinceramente com o
testemunho e serviço de todo o povo do Senhor, ainda que não nos seja
possível ver todas as coisas do mesmo ponto de vista e ainda que o nosso
método e a nossa medida não sejam diferentes! Nada pode ser mais
desprezível que aquele espírito de inveja e ciúme que não permitirá que um
homem tome interesse em qualquer trabalho senão o seu. Podemos estar
certos de que de quer que o Espírito de Cristo está atuando nos corações, aí
haverá a compreensão para abraçar o vasto campo da obra do nosso bendito
Senhor e todos os Seus amados obreiros têm regozijo sincero pelo trabalho ser
feito, seja quem for o obreiro que o faz. Um homem cujo coração está cheio de
Cristo, poderá dizer e dizê-lo sem afetação - contanto que a obra se faça
contanto que Cristo seja glorificado, contanto que as almas sejam salvas,
contanto que o rebanho do Senhor seja alimentado e cuidado, não me interessa
saber quem faz o trabalho.
Este é o espírito justo que devemos cultivar e está em flagrante contraste com a
ocupação mesquinha e egoísta que só se regozija no trabalho em que o próprio
eu tem um lugar proeminente. Que o Senhor nos liberte de tudo isto e nos dê
aquele estado de alma que Moisés expressou quando disse: "Tens tu ciúmes
por mim? Tomara que todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR
lhes desse do seu Espírito!

O Juízo da Cobiça
O parágrafo final do nosso capítulo mostra-nos o povo entregue ao miserável e
fatal gozo daquilo por que os seus corações tinham cobiçado. "E ele
satisfez-lhes o desejo, mas fez definhar as suas almas" (SI 106-15). Obtiveram
aquilo por que suspiravam e encontraram nele a morte. Queriam carne; e com a
carne veio o juízo de Deus. Isto é muito solene. Tenhamos em conta a
advertência! O pobre coração está cheio de desejos e de odiosa cobiça. O
maná celestial deixa de o satisfazer. Necessita de alguma coisa mais. Deus
permite que o tenhamos. Mas, então? Fraqueza, esterilidade, juízo! Oh, Senhor,
guarda os nossos corações unidos sempre só a ti! Sê Tu sempre a porção
suficiente das nossas almas, enquanto atravessamos este deserto, e até
vermos a Tua face em glória!

CAPÍTULO 12
MIRIÃ, ARÃO E A MULHER CUSITA DE MOISÉS

Aparte resumida do nosso livro de que nos acercamos agora pode ser
considerada sob dois aspectos distintos: em primeiro lugar, é simbólica; e em
segundo, é moral ou prática.
Na união de Moisés com "a mulher cusita" temos uma figura do grande e
maravilhoso mistério da união da Igreja com Cristo, sua Cabeça. Este assunto
já foi tratado no nosso estudo sobre o livro do Êxodo; porém vêmo-lo aqui,
através de um prisma particular, como aquilo que provoca a inimizade de Arão o
e Miriã. Os atos soberanos da graça encontram oposição daqueles que se
mantêm sobre o terreno das relações naturais e privilégios carnais. Sabemos,
segundo o ensino do Novo Testamento, que a extensão da graça aos gentios foi
o que provocou o ódio mais cruel e terrível dos judeus. Não a queriam; não
acreditavam nela ou, antes, não queriam sequer ouvir falar dela. Em Romanos,
capítulo 11, faz se uma alusão notável a isto, quando o apóstolo, referindo se
aos gentios, diz: "Porque assim como vós também, antigamente, fostes
desobedientes a Deus, mas agora alcançastes misericórdia pela desobediência
deles, assim também estes (judeus), agora, foram desobedientes, para também
alcançarem misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada" (Rm 11:30-31).
Isto é precisamente o que temos simbolizado na história de Moisés. Antes de
tudo, ele apresentou se a Israel, seus irmãos segundo a carne, mas eles, em
sua incredulidade, o aborreceram.
Lançaram no fora e nada queriam com ele. Isto tornou-se, na sabedoria de
Deus a ocasião de misericórdia para a estrangeira, pois, oi durante o período de
rejeição de Moisés por Israel que ele formou a união mística com uma noiva
gentílica. Contra esta união Miriã e Arão falam neste capítulo 12: e a sua
oposição desencadeia o juízo de Deus. Miriã fica leprosa, uma pobre pessoa
contaminada, objeto próprio de misericórdia que ali aflui sobre ela pela
intercessão do próprio contra quem ela havia falado.
O símbolo é completo e o mais notável. Os judeus não têm crido na gloriosa
verdade de misericórdia para os gentios e portanto a ira tem caído sobre eles o
mais possível. Mas serão trazidos a Deus dentro em pouco com base na
simples misericórdia, assim como tem acontecido com os gentios. Isto é
deveras humilhante para aqueles que procuravam permanecer sobre o princípio
da promessa e privilégio nacional; mas assim é na sabedoria da dispensação de
Deus, sabedoria cujo pensamento arranca ao apóstolo inspirado esta
magnificente doxologia: "O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria,
como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Porque quem compreendeu o intento do
Senhor? Ou quem foi seu conselheiro?- Ou quem lhe deu primeiro a ele, para
que lhe seja recompensado? Porque dele, e por ele, e para ele são todas as
coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!" (Rm 11:33-36).
Isto basta quanto ao sentido típico do nosso capítulo. Vejamos agora o seu lado
prático e moral,
"E falaram Miriã e Arão contra Moisés, por causa da mulher cusita, que tomara;
porquanto tinha tomado a mulher cusita. E disseram: Porventura, falou o
SENHOR somente por Moisés? Não falou também por nós? E o SENHOR O
ouviu. E era o varão Moisés muito manso, mais do que todos os homens que
havia sobre a terra. E logo o SENHOR disse a Moisés, e a Arão e a Miriã: Vós
três saí à tenda da congregação. E saíram eles três. Então, o SENHOR desceu
na coluna da nuvem e se pôs à porta da tenda: depois, chamou Arão e a Miriã, e
eles saíram ambos. E disse: Ouvi agora as minhas palavras; se entre vós
houver profeta, eu, o SENHOR, em visão a ele me farei conhecer ou em sonhos
falarei com ele. Não é assim com o meu servo Moisés, que é fiel em toda a
minha casa. Boca a boca falo com ele, e de vista, e não por figuras; pois ele vê
a semelhança do SENHOR; por que, pois, não tivestes temor de falar contra o
meu servo, contra Moisés? Assim, a ira do SENHOR contra eles se acendeu; e
foi-se. E a nuvem se desviou de sobre a tenda; e eis que Miriã era leprosa como
a neve; olhou Arão para Miriã, e eis que era leprosa" (versículos 1-10).
É uma coisa muito grave falar-se contra o servo do Senhor. Podemos estar
certos de que, mais cedo ou mais tarde, Deus tratará do caso. No caso de Miriã,
o juízo divino caiu imediatamente e de um modo solene. Era uma falta grave,
sim, positiva rebelião falar contra um a quem Deus, havia elevado de uma
maneira tão notável e que havia sido incumbido de uma missão divina; e que,
além disso, no próprio assunto de que eles se queixavam, tinha agido em
perfeita harmonia com os desígnios de Deus e proporcionava um tipo desse
glorioso mistério que esteve oculto em Seus pensamentos eternos: a união de
Cristo e a igreja.
Mas, em todo o caso, é um erro fatal ainda que seja contra o mais fraco e mais
humilde dos servos de Deus. Se o servo faz mal, se está em erro ou tem falhado
em qualquer coisa, o próprio Senhor tratará com ele; mas que os seus
conservos tenham em conta como procuram tomar conta do assunto, para não
serem achados, à semelhança de Miriã, entremetendo-se para seu próprio
dano.

A Honra que se Deve ao Servo de Deus


E terrível ouvir, por vezes, a maneira como as pessoas se permitem falar e
escrever sobre os servos de Cristo. Eles podem, na verdade, dar motivo para
isso; podem ter cometido erros e manifestado um espírito mau e falta de
domínio próprio; mas temos de confessar que é, no nosso parecer, um pecado
terrível contra Cristo falar mal dos Seus amados servos. Seguramente,
devíamos sentir a importância e solenidade destas palavras: "Por que, pois, não
tivestes temor de falar contra o meu servo?
Possa Deus dar-nos graça para nos guardarmos deste grande mal! Vigiemos
para não sermos achados fazendo aquilo que tanto O ofende, ou seja falar
contra aqueles que Lhe são queridos. Não existe um só membro do povo de
Deus em quem não se possa achar alguma coisa boa, se a buscarmos de um
modo próprio. Ocupemo-nos só do em; fixemo-nos nele, e procuremos
fortalecê-lo e desenvolvê-lo por todos os modos possíveis. E, por outro lado, se
não temos podido descobrir coisas boas no nosso irmão e conservo; se os
nossos olhos têm descoberto coisas perversas; se não temos conseguido
descobrir a faísca vital no meio das cinzas a preciosa gema no meio do lixo; se
apenas temos visto o que era simplesmente da natureza, então lancemos com
mão delicada e carinhosa o véu do silêncio sobre o nosso irmão ou falemos dele
somente no trono da graça.
Assim também quando acontece estarmos na companhia daqueles que se
entregam à pecaminosa prática de falar contra o povo do Senhor, se não
podemos conseguir mudar o curso o da conversação, levantemo-nos e
abandonemos o lugar, dando deste modo testemunho contra aquilo que é tão
detestável para Cristo. Não nos sentemos jamais com o detrator para o escutar.
Podemos estar certos de que ele está fazendo a obra do diabo e infligindo
positivamente dano a três pessoas, a saber: a si próprio, àquele que o escuta e
a quem é alvo das suas observações de crítica.
Existe qualquer coisa perfeitamente bela na maneira como Moisés se conduziu
na cena que temos diante de nós. Mostra se verdadeiramente um homem
manso não só no caso de Eldade e Medade, mas também no assunto mais
delicado de Miriã e Arão. Quanto ao primeiro, em vez de ter ciúmes daqueles
que eram chamados para compartilhar da sua dignidade e responsabilidade,
regozijou-se no seu trabalho, e desejou que todo o povo de Deus pudesse ter o
mesmo sagrado privilégio. E, quanto ao segundo, em vez de alimentar qualquer
ressentimento contra seu irmão e irmã, estava pronto para, imediatamente,
tomar o lugar de intercessão. "Pelo que Arão disse a Moisés: Ah! senhor meu,
ora não ponhas sobre nós este pecado, que fizemos loucamente, e com que
havemos pecado! Ora, não seja ela como um morto, que, saindo do ventre de
sua mãe, tenha metade da sua carne já consumida.
Clamou, pois, Moisés ao SENHOR, dizendo: O Deus, rogo-te que acures"
(versículos 11-13).

A Intercessão de Moisés
Aqui Moisés manifesta o Espírito do seu Mestre e ora por aqueles que tão
severamente tinham falado contra ele. Isto era vitória, vitória - de um homem
manso - vitória da graça. Um homem que conhece o seu próprio lugar na
presença de Deus é capaz de se elevar acima de toda a maledicência. Não se
deixa perturbar por ela, a não ser por causa daqueles que a praticam. Pode bem
perdoá-la. Não é atingível, pertinaz, nem se ocupa consigo mesmo. Sabe que
ninguém o pode pôr mais baixo do que ele merece estar; e, por isso, se alguém
fala contra, ele pode humildemente curvar a cabeça e passar em frente,
entregando se a si próprio e deixando a sua causa nas mãos d'Aquele que julga
justamente e que seguramente retribuirá a cada um segundo as suas obras.
Isto é verdadeira dignidade. Possamos nós compreendê-la um pouco melhor, e,
então, não estaremos tão dispostos a cederá cólera se alguém julga que é
oportuno falar afrontosamente de nós ou do nosso trabalho; pelo contrário,
seremos capazes de levantar os nossos corações em ardente oração por eles,
e assim fazer descer bênção sobre eles e as nossas almas.
As linhas finais do nosso capitulo confirmam o ponto de vista típico ou de
dispensação que nos arriscamos a sugerir. "E disse o SENHOR a Moisés: Se
seu pai cuspira em seu rosto, não seria envergonhada sete dias? Esteja
fechada sete dias fora do arraial; e, depois, a recolham. Assim, Miriã esteve
fechada fora do arraial sete dias, e o povo não partiu, até que recolheram a
Miriã. Porém, depois, o povo partiu de Hazerote; e assentaram o arraial no
deserto de, Parã" (versículos 14-16). Podemos considerar Miriã, assim fechada
fora do acampamento, como uma figura da condição presente da nação de
Israel, a qual, em consequência da sua implacável oposição ao pensamento
divino de misericórdia para com os gentios, está posta de parte.
Mas quando tiverem decorrido os " sete dias", Israel será restaura do com base
na graça soberana exercida para com eles por meio da intercessão de Cristo.

CAPÍTULO 13

OS DOZE ESPIAS NA TERRA DE CANAÃ


"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Envia homens que espiem a terra de
Canaã, que eu hei de dar aos filhos de Israel; de cada tribo de seus pais
enviareis um homem, sendo cada qual maioral entre eles. E enviou-os Moisés,
do deserto de Parã, segundo o dito do SENHOR" (versículos 1-3).
Para compreender perfeitamente este mandamento devemos confrontá-lo com
uma passagem no livro de Deuteronômio, na qual Moisés, repassando os fatos
da história maravilhosa de Israel no deserto, recorda-lhes esta circunstância
importante e cheia de interesse: "Então, partimos de Horebe e caminhamos por
todo aquele grande e tremendo deserto que vistes, pelo caminho das
montanhas dos amorreus, como o SENHOR, nosso Deus, nos ordenara; e
chegamos a Cades-Barnéia. Então, eu vos disse: Chegados sois às montanhas
dos amorreus, que o SENHOR, nosso Deus, nos dará. Eis aqui o SENHOR, teu
Deus, te deu esta terra diante de ti; sobe, possui- a, como te falou o SENHOR,
Deus de teus pais; não temas e não te assustes. Então, todos vós vos
chegastes a mim e dissestes: Mandemos homens adiante de nós, para que nos
espiem a terra e nos deem resposta por que caminho devemos subir a ela e a
que cidades devemos ir" (Dt 1:19-22).
Aqui temos portanto a origem moral do fato exposto em Números 13:2. E
evidente que o Senhor deu o mandamento a respeito dos espias por causa de
condição moral do povo. Tivessem eles sido guiados por simples fé, e teriam
atuado de acordo com essas palavras tocantes de Moisés: "Eis aqui o
SENHOR, teu Deus, te deu esta terra diante de ti; sobe, possui-a, como te falou
o SENHOR, Deus de teus Pais; não temas e não te assustes."
Não há nenhuma referência nesta esplêndida passagem a respeito dos espias.
Que necessidade tem a fé de espias quando tem a palavra e a presença do
Deus vivo? Se Javé lhes havia dado uma terra, devia valer a pena possuí-la. E
não lhes a havia Ele dado? Sim, certamente; e não somente isso, mas tinha
dado também testemunho da natureza e caráter dessa terra nas seguintes
palavras: "Porque o SENHOR, teu Deus, te mete numa boa terra, terra de
ribeiros de águas, de fontes e de abismos, que saem dos vales e das
montanhas; terra de trigo e cevada, de vides, figueiras e romeiras; terra de
oliveiras, abundante de azeite e mel; terra em que comerás o pão sem
escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro, e de cujos montes
tu cavarás o cobre" (Dt 8:7-9).
Isto tudo não teria sido suficiente para Israel? Não deveriam ter estado
satisfeitos com o testemunho de Deus? Não havia ele examinado a terra por
eles e não lhes havia dito tudo acerca dela? E isto não era bastante? Que
necessidade havia de enviar homens para espiara terral Deus não sabia tudo a
respeito dela? Acaso havia um só lugar "desde Dã a Berseba" do qual Ele não
tinha perfeito conhecimento? Não havia Ele escolhido e destinado esta terra,
em Seus conselhos eternos, para a semente de Abrão, o Seu amigo? Não
conhecia Ele todas as dificuldades? E não podia vencê-las? Então, por que se
chegaram todos a Moisés e disseram: "Mandemos homens adiante de nós, para
que nos espiem a terra e nos deem resposta?
Ah, prezado leitor, estas interrogações tocam de perto os nossos corações!
Descobrem-nos e mostram claramente o estado em que estamos. Não nos
pertence criticar friamente os caminhos de Israel no deserto e apontar um erro
aqui e uma falta ali. Devemos considerar todas estas coisas como tipos postos
diante de nós para nossa admoestação. São sinais erigidos por uma mão fiel e
amiga a fim de nos avisar e desviar-nos dos escolhos perigosos, areias
movediças e rochas que se encontram ao longo do nosso caminho e ameaçam
a nossa segurança. Podemos estar certos de que isto é o verdadeiro modo de
ler cada página da história de Israel, se quisermos colher o fruto que o nosso
Deus nos tem destinado ao fazer uma tal narração.
Mas pode acontecer que o leitor esteja disposto a perguntar: "O Senhor não
ordenou expressamente a Moisés que mandasse os espias? E se assim foi,
porque foi mal Israel mandá-los?-" É verdade que em Números 13 o Senhor
ordenou a Moisés que enviasse os espias, mais isto era uma consequência da
condição moral do povo, como se demonstra em Deuteronômio 1. Não
compreenderemos a primeira passagem se não a lermos à luz da última.
Aprendemos claramente de Deuteronômio 1:22 que a ideia de enviar os espias
teve a sua origem no coração de Israel. Deus viu a sua condição moral e deu
um mandamento em perfeito acordo com essa situação.
Se o leitor consultar as primeiras páginas do Primeiro Livro de Samuel,
encontrará qualquer coisa semelhante no caso da eleição de um rei. O Senhor
deu ordem a Samuel para dar ouvidos à voz do povo e constituir-lhes um rei.
Era porque aprovava esse plano? Seguramente que não; pelo contrário, declara
abertamente que isso equivalia positivamente a rejeitá-lo. E porque ordena
então a Samuel que lhes constitua um rei? A ordem foi dada em consequência
da condição de Israel. Começavam a estar cansados da posição de inteira
dependência sobre um braço invisível; e aspiravam a um braço de carne.
Desejavam ser como as nações à roda deles e ter um rei para sair adiante deles
e fazer as suas guerras.
Bem, Deus deu-lhes o que pediam, e eles depressa foram convidados a
comprovar a inutilidade do seu plano. O seu rei comportou-se como um falhado,
e eles tiveram de aprender que era uma coisa amarga e má abandonar o Deus
vivo para se apoiarem a uma cana quebrada de sua própria eleição.
Pois bem, vemos a mesma coisa no caso dos espias. Não pode haver dúvidas
na mente de qualquer pessoa espiritual que estuda todo assunto, quanto ao fato
de que o plano de enviar os espias foi fruto da incredulidade. Um coração
simples que confiasse em Deus nunca teria pensado em tal coisa. O quê!
Devemos enviar pobres mortais para espiarem um país que Deus por Sua muita
graça nos tem dado e que Ele próprio tem plena e fielmente descrito? Longe de
nós tal pensamento; não, digamos, pelo contrário: "É bastante; a terra é dádiva
de Deus, e como tal tem que ser boa. Temos a palavra do Deus vivo."
Mas infelizmente Israel não estava em condições de adotar uma tal linguagem.
Queriam enviar os espias. Sentiam necessidade deles, os seus corações
aspiravam por eles: o desejo deles, estava nas próprias profundidades da alma;
o Senhor sabia isto, e por isso deu uma ordem em relação direta com o estado
moral do povo.
O leitor fará bem em considerar este assunto à luz da Escritura. Terá
necessidade de comparar Deuteronômio 1 com Números 13. É possível que
encontre dificuldade em julgar a verdadeira natureza e origem moral do ato de
enviar os espias devido ao fato de que o acontecimento teve lugar por fim em
conformidade com "o dito do SENHOR". Porém, devemos recordar sempre que
o fato de o Senhor mandar que isso fosse feito não prova, de modo algum, que
o povo tivesse razão em a pedir. A concessão da lei no Monte Sinai; o envio dos
espias; e a eleição de um rei, são provas disto.
Sem duvida Deus dominava todas estas coisas para Sua própria glória e para a
bênção final do homem; porém mesmo assim a lei não podia ser encarada
como a expressão do coração de Deus; a eleição de um rei era um rejeição
absoluta d'Ele mesmo; e podemos dizer que o envio dos espias à terra da
promissão provou claramente que o coração de Israel não estava inteiramente
satisfeito com o Senhor. Toda a questão era o fruto da sua fraqueza e
incredulidade, embora consentido por Deus por causa da sua condição, e
dominado por Ele, em Sua infinita bondade e sabedoria infalível, para o
desenvolvimento dos Seus caminhos e manifestação da Sua glória. Tudo isto é
demonstrado plenamente no prosseguimento da sua história.
"Enviou-os (os espias), pois, Moisés a espiar a terra de Canaã e disse-lhes:
Subi por aqui para a banda do sul e subi à montanha; e vede que terra é, e o
povo que nela habita; se é forte ou fraco; se pouco ou muito; e qual é a terra em
que habita, se boa ou má; e quais são as cidades em que habita, se em arraiais,
se em fortalezas. Também qual é a terra, se grossa ou magra; se nela há
árvores ou não; e esforçai-vos e tomai do fruto da terra. E eram aqueles dias os
dias das primícias das uvas. Assim, subiram e espiaram a terra desde o deserto
de Zim até Reobe, à entrada de Hamate... depois, vieram até ao vale de Escol e
dali cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas, o qual trouxeram dois
homens sobre uma verga, como também romãs e figos. Chamaram àquele
lugar o vale de Escol, por causa do cacho que dali cortaram os filhos de Israel.
Depois, voltaram de espiar a terra, ao fim de quarenta dias. E caminharam, e
vieram a Moisés, e a Arão e a toda a congregação dos filhos de Israel no
deserto de Parã, a Cades, e, tomando, deram-lhe conta a eles e a toda a
congregação; e mostraram-lhes o fruto da terra. E contaram-lhe e disseram:
Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel, e este
é o fruto" (versículos 17-27).
Aqui, pois, estava a mais plena confirmação de tudo quanto o Senhor havia dito
acerca da terra: o testemunho de doze homens quanto ao fato de que a terra
manava leite e mel, testemunho dos seus próprios sentidos quanto ao caráter
do fruto da terra. Além disso, havia o fato eloquente de que doze homens
tinham estado realmente na terra, que tinham gastado quarenta dias a
percorrê-la em todas as direções, haviam bebido das suas fontes e comido dos
seus frutos. E qual teria sido, segundo o juízo da fé, a conclusão evidente a tirar
de um tal fato? Simplesmente esta, que a mesma mão que havia conduzido
doze homens dentro da terra podia conduzir toda a congregação.

A Dúvida quanto às Promessas Divinas


Mas, ah, o povo não era governado pela fé, mas por funesta e desanimadora
incredulidade; e até os próprios espias—os próprios homens que haviam sido
enviados com o propósito de incutir confiança na congregação e de a
confirmar—com duas brilhantes exceções estavam sob o poder do mesmo
espírito desonroso para Deus! Em suma, todo o plano resultou num fracasso. O
resultado apenas tomou evidente a verdadeira condição dos corações do povo.
A incredulidade dominava. O testemunho era bastante claro; "Fomos à terra a
que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel, e este é o fruto." Nada
faltava ao lado em que Deus havia posto a questão. A terra era tudo que Ele
havia dito, os próprios espias eram testemunhas; mas escutemos o que se
segue.
"O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades, fortes e mui
grandes; e também ali vimos os filhos de Anaque" (versículo 28).
E certo haver sempre um "porém" onde o homem entra em jogo e quando a
incredulidade está em ação. Os espias incrédulos viram as
dificuldades—grandes cidades, muralhas altas, gigantes. Viram todas estas
coisas; mas não viram o Senhor. Olharam para as coisas que se viam em vez
das coisa que se não viam. Os seus olhos não estavam postos n'Aquele que é
invisível. Decerto, as cidades eram indubitavelmente grandes; mas Deus era
maior. As muralhas eram altas; mas Deus estava mais alto. Os gigantes eram
fortes; mas Deus era mais forte.
E assim que a fé sempre raciocina. A fé parte no seu raciocínio de Deus para as
dificuldades: Começa com Deus. A incredulidade, pelo contrário, raciocina
desde as dificuldades para Deus: começa com elas. Nisto consiste toda a
diferença. Não quero dizer que temos de ser insensíveis às dificuldades; nem
temos de ser indiferentes. Nem a insensibilidade nem a indiferença é fé.
Há pessoas despreocupadas que parecem avançar através da vida sobre o
princípio de tomar as coisas pelo seu lado bom. Isso não é fé. A fé encara as
dificuldades de frente; está perfeitamente alerta contra o lado escabroso, Não é
ignorante nem indiferente nem descuidada; mas—o quê?—INTRODUZ O
DEUS VIVO em todo o assunto. Olha para Ele, apoia-se n'Ele e recebe d'Ele.
Eis aqui o grande segredo do seu poder. Acalenta a convicção profunda de que
nunca houve para o Deus Todo-Poderoso uma muralha demasiado alta, uma
cidade demasiado grande uma gigante demasiado forte. Em suma, a fé é a
única coisa que dá Deus o Seu próprio lugar; e, como consequência, é a única
coisa que eleva a alma inteiramente acima da influência das circunstâncias que
nos rodeiam, sejam quais forem. Calebe foi o expoente desta preciosa fé,
quando disse: "Subamos animosamente e possuamo-la em herança; porque,
certamente, prevaleceremos contra ela." Este é o tom de voz dessa fé viva que
glorifica Deus e não se preocupa com as circunstâncias.
Mas infelizmente a maioria dos espias não estava mais compenetrada desta fé
viva do que os homens que os enviaram; e por isso o único crente foi reduzido
ao silêncio pelos dez infiéis. "Porém, os homens que com ele subiram disseram:
Não poderemos subir contra aquele povo." A linguagem da infidelidade estava
absolutamente oposta à linguagem da fé. Esta, olhando para Deus, disse:
"Podemos muito bem subir." Aquela, olhando para as dificuldades, disse: "Não
podemos." Assim foi e assim é. Os olhos da fé estão sempre vendados pelo
Deus vivo, e portanto as dificuldades não são vistas. Os olhos da incredulidade
estão vendados comas circunstâncias, e portanto Deus não é visto. A fé
introduz Deus, e portanto tudo é resplandecente e fácil. A incredulidade exclui
sempre Deus, e portanto tudo é escuro e difícil.
"E infamaram a terra, que tinham espiado, perante os filhos de Israel, dizendo: A
terra, pelo meio da qual passamos a espiar, é terra que consome os seus
moradores; e todo o povo que vimos no meio dela são homens de grande
estatura. Também vimos ali gigantes, filhos de Anaque, descendentes dos
gigantes; e éramos aos nossos olhos como gafanhotos e assim também éramos
aos seus olhos." Nem uma palavra sobre Deus. Deus é inteiramente deixado de
fora. Se tivessem pensado n'Ele, se tivessem comparado os gigantes com Ele,
então nenhuma diferença haveria, quer eles fossem como gafanhotos, quer
fossem como homens. Mas, de fato, eles, por meio da sua vergonhosa
incredulidade, reduziram o Deus de Israel ao nível de um gafanhoto!
É notável que onde quer que a infidelidade atuar, ver como é sempre
caracterizada pelo fato de excluir a Deus. Ver como isto é verdadeiro em todas
as épocas, em todos os lugares e sob todas as circunstâncias. Não há exceção.
A infidelidade toma em conta os feitos humanos, pode discorrer sobre eles, e
tirar deles conclusões; porém todas as suas deduções e conclusões são
baseadas sobre a exclusão de Deus. A força dos seus argumentos depende da
exclusão e separação d'Ele. Introduza-se Deus, e toda a argumentação da
infidelidade se desfaz em pó aos nossos pés. Assim, na cena que temos
perante nós: Qual é a resposta da fé a todas as objeções apresentadas por
esses dez incrédulos?- A sua resposta simples, satisfatória, para a qual não
pode haver réplica é—DEUS!
Prezado leitor, conheces alguma coisa do valor e força desta bem-aventurada
resposta? Conheces Deus? Ele enche inteiramente o curso da visão da tua
alma? Ele é a resposta para todas as tuas interrogações? A solução de todas
tuas dificuldades? Conheces a realidade de andar, dia a dia, com o Deus vivo?
Conheces o poder tranquilizador de se estar apoiado n'Ele "através de todas as
mutações e contingências desta vida mortal? Se assim não é, permite que te
rogue que não continues uma hora mais no teu estado presente. O caminho
está aberto. Deus revelou-Se na face de Jesus Cristo como o socorro e refúgio
de toda a alma necessitada. Olha para Ele agora mesmo, "enquanto Ele pode
ser achado; invoca O enquanto está perto". "Todo aquele que invocar o nome
do Senhor será salvo"; e "todo aquele que crê não será confundido".
Mas se, pelo contrário, conheces Deus, pela graça, como teu Deus e
Salvador—teu Pai—então busca glorificá-Lo em todos os teus caminhos por
meio de uma confiança pueril e indiscutível em todas as coisas. Que Ela encha
perfeitamente os teus olhos, em todas as circunstâncias, e assim, apesar de
todas as dificuldades, a tua alma será mantida em perfeita paz.
CAPITULO 14

A INCREDULIDADE

"Então, levantou-se toda a congregação, e alçaram a sua voz; e o povo chorou


naquela mesma noite." Admiramo-nos? Que mais podia esperar-se de um povo
que nada tinha diante dos seus olhos senão gigantes poderosos, altas muralhas
e grandes cidades? Que mais podia esperar-se senão lágrimas e suspiros de
uma congregação que se via a si própria como gafanhotos na presença de tão
insuperáveis dificuldades e sem ter o sentido do poder divino que podia
conduzi-los vitoriosamente através de tudo? Toda a assembleia estava
entregue ao domínio absoluto da infidelidade. Estavam rodeados pelas nuvens
escuras e glaciais da incredulidade. Deus estava excluído. Não havia um só raio
de luz para iluminar nas trevas em que se haviam envolvido a si próprios.
Estavam ocupados consigo mesmos e as suas dificuldades em vez de Deus e
os Seus recursos. Que mais podiam portanto fazer senão levantar as suas
vozes de choro e lamentações?
Que contraste entre isto e o começo do Êxodo 15! Ali os seus olhos estavam só
fixados em Javé, e portanto podiam cantar o cântico da vitória. "Tu, com a tua
beneficência, guiaste a este povo, que salvaste; com a tua força o levaste à
habitação da tua santidade. Os povos o ouvirão, eles estremecerão:
apoderar-se-á uma dor dos habitantes da Filístia" (versículos 13-14). Em vez
disto era Israel que estava em temor, e a dor apoderou-se deles.
"Então, os príncipes de Edom se pasmarão, dos poderosos dos moabitas
apoderar-se-á um tremor, derreter-se-ão todos os habitantes de Canaã.
Espanto e pavor cairá sobre eles" (versículos 15-16). Em suma, é o lado
contrário do quadro. O tremor, o espanto e o pavor se apoderaram de Israel em
vez de seus inimigos. E por quê? Por que Aquele que enche a sua visão em
Êxodo 15 é completamente excluído em Números 14. Nisto está toda a
diferença. Num caso a fé leva a vantagem; no outro é a infidelidade. "Pela
grandeza do teu braço emudecerão como pedra; até que o teu povo haja
passado, ó SENHOR, até que passe este povo que adquiriste. Tu os
introduzirás e os plantarás no monte da tua herança, no lugar que tu, ó
SENHOR, aparelhaste para a tua habitação; no santuário, ó Senhor, que a tuas
mãos estabeleceram. O SENHOR reinará eterna e perpetuamente."
Oh, que contraste entre estes acentos de triunfo e os gritos infiéis e
lamentações de Números 14! Em Êxodo 15 nem uma palavra sobre os filhos de
Enaque, muralhas altas e gafanhotos. Não, não; O Senhor é tudo. É a Sua
destra, o Seu braço poderoso, o Seu poder, a Sua herança, a Sua habitação, os
Seus atos a favor do Seu povo resgatado. E por outro lado se é feita preferência
aos habitantes de Canaã é só pensando neles como apoderados de tremor,
espantos e perturbados.
Mas, por outro lado, quando nos voltamos para Números 14 tudo é
lamentavelmente invertido. Os filhos de Enaque são postos em eminência. As
altas muralhas, as cidades enormes com as suas temíveis fortificações, enchem
a visão do povo, e não ouvimos uma só palavra sobre o Todo-Poderoso
Libertador. De um lado estão as dificuldades e do outro os gafanhotos; e se
constrangido a exclamar: "Será possível que os que entoaram o cântico de
triunfo junto ao Mar Vermelho se hajam convertido nos chorosos incrédulos de
Cades?
Ah! Assim é, e aqui aprendemos uma profunda e santa lição. Temos de recorrer
continuamente, ao passar por estas cenas do deserto, a essas palavras que nos
dizem que " ... tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso
nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos" (1 Co 10:11). Não
somos nós, à semelhança de Israel, mais propensos a olhar para as
dificuldades que nos rodeiam do que para o bendito Senhor que se tem
encarregado de nos conduzir através delas todas e nos introduzir em segurança
no Seu reino eterno? Porque estamos às vezes abatidos"? Por que nos
lamentamos? Por que motivo se ouvem mais as palavras de descontentamento
e impaciência no meio de nós do que os cânticos de louvor e ações de graças?
Simplesmente porque permitimos que as circunstâncias nos ocultem Deus, em
vez de termos Deus como um perfeito véu para os nossos olhos e objeto dos
nossos corações.
E demais, perguntamos, por que razão é que nós menosprezamos a nossa
posição de homens celestiais?- - por que deixamos de tomar posse do que nos
pertence como cristãos? - de pôr pé sobre essa herança espiritual e celestial
que Cristo tem adquirido para nós e na posse da qual entrou como nosso
precursor? Qual a resposta a dar a estas interrogações? Apenas uma palavra:
incredulidade!
A Palavra inspirada declara a propósito de Israel que eles "não puderam entrar
por causa da sua incredulidade" (Hb 3:19). Assim acontece conosco. Deixamos
de entrar na nossa herança celestial, deixamos de tomar posse praticamente da
nossa verdadeira e própria parte, deixamos de andar, dia a dia, como povo
celestial, sem ter lugar, nome ou porção na terra, sem nada termos que ver com
este mundo senão passar dele como peregrinos e estrangeiros, através que
seguem as pisadas d Aquele que nos precedeu e tomou o Seu lugar nos céus.
E por que fracassamos? Por causa da incredulidade. A fé não está na energia, e
portanto as cosias que se veem têm mais poder sobre os nossos corações do
que as coisas que se não veem.
Oh, que o Espírito Santo fortaleça a nossa fé e dê energia às nossas almas e
nos conduza em tudo de forma que possamos não só ser achados falando da
vida celestial mas vivendo-a para louvor d'Aquele que nos chamou em Sua
infinita graça para ali!
"E todos os filhos de Israel murmuraram contra Moisés e contra Arão; e toda a
congregação lhe disse: Ah! Se morrêramos na terra do Egito! Ou, ah! Se
morrêramos neste deserto! E por que nos traz o SENHOR a esta terra para
cairmos à espada e para que nossas mulheres e nossas crianças sejam por
presa? Não nos seria melhor voltarmos ao Egito? E diziam uns aos outros:
Levantemos um capitão e voltemos ao Egito" (versículos 2-4).
Existem duas tristes fases de incredulidade que se mostram na historia de Israel
no deserto: uma em Horebe, a outra em Cades. Em Horebe fizeram um bezerro
de ouro, e disseram: "Estes são teus deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do
Egito." Em Cades sugeriram levantar um capitão para os reconduzir ao Egito. O
primeiro caso é a superstição da incredulidade; o segundo a independência
voluntária da incredulidade; e, certamente, não temos motivo para espanto se
aqueles que pensavam que um bezerro os tinha tirado do Egito agora queriam
levantar um capitão para os conduzir de novo ali. A pobre inteligência humana é
jogada como uma bola de um para outro desses males dolorosos. Não existe
recurso senão aquele que a fé encontra no Deus vivo. No caso de Israel Deus
foi perdido de vista. Não viam outro recurso senão um bezerro ou um capitão;
morte no deserto ou regresso ao Egito. Calebe forma um brilhante contraste
com tudo isto, Para ele não havia morte no deserto nem regresso ao Egito, mas
uma ampla entrada na terra prometida ao abrigo do impenetrável escudo de
Javé.

Josué e Calebe
"E Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, dos que espiaram a terra,
rasgaram as suas vestes. E falaram a toda a congregação dos filhos de Israel,
dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar é terra muito boa. Se o
SENHOR se agradar de nós, então, nos porá nesta terra, e no-la dará, terra que
mana leite e mel. Tão-somente na sejais rebeldes contra o SENHOR e não
temais o povo desta terra, porquanto são eles nosso pão; retirou-se deles o seu
amparo, e o SENHOR é conosco; não os temais. Então, disse toda a
congregação que os apedrejassem."
E porque deviam ser apedrejados? Era por terem mentido? Era por haverem
proferido blasfêmias ou feito algum mal? Não; era por causa do seu ousado e
sincero testemunho da verdade. Haviam sido enviados a espiar a terra e fazer
um relato exato a respeito dela.
Fizeram isto; e por isso "disse toda a congregação que os apedrejassem com
pedras". O povo não gostava então mais da verdade do que agora. A verdade
nunca é popular. Não há lugar para ela neste mundo ou no coração humano. A
mentira e o erro, em todas as suas formas, será aceite, mas a verdade nunca.
Josué e Calebe tiveram que afrontar, no seu tempo, o que todas as verdadeiras
testemunhas do Senhor, em todos os tempos, têm experimentado e terão de
experimentar, isto é, a oposição e o aborrecimento da massa dos seus
semelhantes. Seiscentas mil vozes levantaram se contra dois homens que
simplesmente disseram a verdade e confiaram em Deus. Assim tem sido; assim
é; e assim será até esse glorioso momento em que "a terra se encherá do
conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" (Is 11: 9).
Mas, oh! Quão importante é estar-se habilitado, à semelhança de Josué e
Calebe, a dar um testemunho claro, firme e completo da verdade de Deus!
Quão importante é manter a verdade quanto à própria parte e herança santos!
Existe uma grande tendência para corromper a verdade - para a desperdiçar e
abandonar e rebaixar o seu padrão. Daí a necessidade urgente de possuirá
verdade em poder divino na alma e podermos dizer, ainda que na nossa
pequena medida, "nós dizemos o que sabemos e testificamos o que vimos" (Jo
3:11). Calebe e Josué não só haviam estado na terra, mas haviam estado com
Deus por causa da terra. Tinham olhado para ela do ponto de vista da fé.
Sabiam que a terra era deles no propósito de Deus; que, como dom de Deus,
era digna de ser possuída; e que, pelo poder de Deus, ainda haviam de a
possuir. Eram homens cheios de fé, de coragem e poder.
Bem-aventurados homens! Viviam na luz da presença divina, enquanto toda a
congregação estava envolta nas sombras escuras da sua incredulidade. Que
contraste! E isto que sempre marca a diferença até mesmo entre o povo de
Deus. Encontramos constantemente pessoas de quem não podemos ter
duvidas de que são filhos de Deus; mas que, não obstante, parecem nunca
chegar à altura da revelação divina quanto à sua posição e parte que têm como
santos de Deus. Estão sempre cheios de dúvidas e temores; sempre rodeados
de nuvens; sempre do lado escuro das coisas. Olham para si mesmos ou para
as suas circunstâncias ou dificuldades. Nunca são alegres e felizes; nunca
podem mostrar essa alegre confiança e coragem que convém a um cristão e
que glorifica a Deus.
Tudo isto é verdadeiramente deplorável, e não deveria ser; podemos estar
seguros de que aqui há algum grave defeito, qualquer coisa radicalmente má. O
cristão deveria estar sempre tranquilo e feliz; sempre disposto, haja o que
houver, a louvar a Deus. A sua alegria não provém de si mesmo ou da cena
através da qual passa, mas do Deus vivo e está fora do alcance de toda a
influência terrestre. Ele pode dizer: "Deus meu, fonte de todas as minhas
alegrias." Este é o doce privilégio do mais fraco filho de Deus. Mas é aqui
justamente que falhamos de um modo tão triste. Desviamos os nossos olhos de
Deus para os fixarmos em nós próprios ou nas circunstâncias, nos agravos ou
nas dificuldades; por isso tudo é trevas e descontentamento, murmurações e
lamentações. Isto não é, de modo nenhum, cristianismo. E
incredulidade—incredulidade sombria, mortal, que desonra a Deus e deprime o
coração."... Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza e de amor e
de moderação" (2 Tm 1:7).
Tal é a linguagem de um Calebe verdadeiramente espiritual, linguagem dirigida
àquele cujo coração sentia o peso das dificuldades e perigos que o rodeavam.
O Espírito de Deus enche a alma do verdadeiro crente de uma santa ousadia.
Dá elevação moral acima da atmosfera fria e tenebrosa que o rodeia e leva a
alma à claridade deslumbradora daquela região "onde os vendavais e as
tempestades jamais se desencadeiam".

Moisés e a Glória do SENHOR


"Porém a glória do SENHOR apareceu na tenda da congregação a todos os
filhos de Israel. E disse o SENHOR a Moisés: Até quando me provocará este
povo?- E até quando me não crerão por todos os sinais que fiz no meio deles?-
Com pestilência o ferirei, e o rejeitarei, e farei de ti povo maior e mais forte do
que este" (versículos 10-12).
Que momento este na história de Moisés! Aqui estava o que a natureza podia
considerar como uma oportunidade única para ele.
Nunca antes e nunca depois houve qualquer ocasião de um simples homem ter
assim uma porta aberta diante dele. O inimigo e o seu próprio coração podiam
dizer: "Este é o momento favorável para ti. Tens aqui a oferta de vires a ser o
chefe e fundador de uma grande e poderosa nação — uma oferta feita pelo
próprio Senhor.
Tu não a procuraste. E posta diante de ti pelo Deus vivo, e seria o cúmulo da
loucura da tua parte rejeitá-la."
Porém, leitor, Moisés não era egoísta. Estava embebido demasiadamente do
Espírito de Cristo para buscar ser alguma coisa. Não tinha ambições profanas
nem aspirações egoístas. Só desejava a glória de Deus e o bem do Seu povo; e
a fim de alcançar esse fim, estavam, por graça, a sacrificar-se a si próprio e aos
seus interesses sobre o altar.
Ouvi a sua admirável resposta. Em vez de agarrar a oferta contida nas palavras
"farei de ti povo maior e mais forte do que este" — em vez de aproveitar
avidamente a ocasião única de lançar os fundamentos da sua fama e fortuna
pessoal se coloca a si próprio completamente de lado e responde no tom de
mais nobre desinteresse: — "E disse Moisés ao SENHOR: Assim, os egípcios o
ouvirão; porquanto com a tua força fizeste subir este povo do meio deles. E o
dirão aos moradores desta terra, que ouviram que tu, ó SENHOR, estás no
meio deste ovo, que de face a face, ó SENHOR, lhes apareces, que tua nuvem
está sobre eles, e que vais adiante deles numa coluna de nuvem de dia e numa
coluna de fogo de noite. E, se matares este povo como a um só homem, as
nações, pois, que ouviram a tua fama, falarão, dizendo: Porquanto o SENHOR
não podia pôr este povo na terra que lhes tinha jurado; por isso, os matou no
deserto" (versículos 13-16).
Moisés toma aqui posição mais elevada. Está exclusivamente ocupado com a
glória do Senhor. Não pode suportar a ideia de que o brilho dessa glória seja
deslustrado à vista das nações dos incircuncisos. Que importava que ele se
tornasse em um chefe e fundador?- Que importava que no futuro milhões de
homens o considerassem como ilustre progenitor, se toda esta glória e esta
grandeza pessoal só devia ser adquirida por um sacrifício de um raio de glória
divinal O quê? Fora com tal pensamento. Que o nome Moisés seja riscado para
sempre! Assim o havia dito nos dias do bezerro de ouro, e estava pronto a
repeti-lo nos dias do capitão. Ante a superstição e independência de uma nação
incrédula, o coração de Moisés batia só pela glória de Deus. Essa glória deve
ser mantida a todo o custo. Venha o que vier, custe o que custar, a glória de
Deus deve ser mantida.
Moisés sentiu que era impossível qualquer coisa estar bem se o mandamento
não fosse posto na rigorosa manutenção da glória do Deus de Israel, O
pensamento de se engrandecer a expensas do Senhor era totalmente
insuportável para o coração deste abençoado homem de Deus. Não podia
suportar a ideia de que o nome que ele tanto amava fosse blasfemado entre as
nações, ou que jamais fosse dito, por alguém que o Senhor não havia podido.
Mas havia outra coisa que estava junto do coração desinteressado de Moisés:
pensou no povo. Amava-os e interessava-se por eles. A glória do Senhor sem
dúvida, estava em primeiro lugar, mas a bênção de Israel vinha logo depois.
"Agora, pois, rogo-te que a força do meu SENHOR se engrandeça; como tens
falado, dizendo: O SENHOR é longânimo, e grande em beneficência, que
perdoa a iniquidade e a transgressão, que o culpado não tem por inocente e
visita a iniquidade dos pais sobre os filhos até à terceira e quarta geração.
Perdoa, pois, a iniquidade deste povo, segundo a grandeza da tua benignidade
e como também perdoaste a este povo desde a terra do Egito até aqui"
(versículos 17-19).
Isto é extraordinariamente belo. A ordem, o tom e o espírito desta petição são
dos mais primorosos. Há, primeiro e acima de tudo, uma grande solicitude pela
glória do Senhor. Esta glória deve ser protegida por todos os lados. Mas então é
precisamente sobre este princípio, isto é, a manutenção da glória, que ele busca
o perdão para o povo. As duas coisas estão ligadas entre si da maneira mais
bendita nesta intercessão: "Que a força do meu SENHOR se engrandeça." Com
que fim? De julgamento e destruição? Não; "O SENHOR É longânimo."
Que pensamento! O poder de Deus em longanimidade e perdão! Como é
indizivelmente precioso! Quão familiarizado estava Moisés com o próprio
coração e pensamento de Deus para poder falar neste tom! E como ele está em
contraste com Elias quando no monte Horebe intercedia contra Israel! Não
temos muita dificuldade em ver qual destes dois homens honrados estava mais
de harmonia com o Espírito de Cristo. "Perdoa pois a iniquidade deste povo,
segundo a grandeza da sua benignidade". Estas palavras eram agradáveis aos
ouvidos do Senhor, pois Ele deleita-Se em dar perdão. "E disse o SENHOR:
Conforme à tua palavra, lhe perdoei". E então acrescenta: "Porem, tão
certamente como eu vivo e como a glória do SENHOR encherá toda a terra"
(versículos 19-21).
Observe o leitor atentamente estas duas expressões. São absolutas e sem
restrição. "Lhe perdoei". E "a glória do Senhor encherá toda aterra". Nada
poderia, de maneira alguma, tocar estes grandes fatos. O perdão está
assegurado; e a glória resplandecerá ainda sobre toda a terra. Nenhum poder
do mundo ou do inferno, dos homens ou demônios, poderá jamais interferir com
a integridade divina destas duas preciosas expressões. Israel se regozijará no
perdão pleno do seu Deus; e toda a terra se alegrará ainda com o brilho puro da
Sua glória.

O Juízo contra a Incredulidade e as suas Consequências


Mas, por consequência, há tanto a disciplina como a graça. Isto nunca deve ser
esquecido; nem estas coisas devem ser confundidas. Todo o livro de Deus
ilustra a distinção entre a graça e o regime de governo; e em nenhuma parte tão
eficazmente como na passagem que temos diante de nós. A graça perdoará; e
a graça encherá a terra com os raios benditos da gloria divina; mas note-se a
linguagem espantosa das rodas do governo manifestada nestas temíveis
palavras: "E que todos os homens que viram a minha glória e os meus sinais
que fiz no Egito e no deserto, e me tentaram estas dez (vezes, e não
obedeceram à minha voz, não verão a terra de que a seus pais jurei, e até
nenhum daqueles que me provocaram a verá. Porém o meu servo Calebe,
porquanto nele houve outro espírito e perseverou em seguir-me, eu o levarei à
terra em que entrou, e a sua semente a possuirá em herança. Ora, os
amalequitas e os cananeus habitam no vale; tornai-vos, amanhã, e caminhai
para o deserto pelo caminho do mar Vermelho" (versículos 22-25).
Isto é muito solene. Em vez de confiarem em Deus e avançarem ousadamente
para a terra da promessa em simples dependência do Seu braço onipotente,
eles provocaram-no por sua incredulidade, menosprezaram a terra agradável, e
foram compelidos a retroceder aquele grande e terrível deserto.
Depois, falou o SENHOR a Moisés e a Arão dizendo: Até quando sofrerei esta
má congregação, que murmura contra mim? Tenho ouvido as murmurações dos
filhos de Israel, com que murmuram contra mim. Dize-lhes: Assim eu vivo, diz o
SENHOR, que, como falastes aos meus ouvidos, assim farei a vós outros.
Neste deserto cairá o vosso cadáver, como também todos os que de vós foram
contados segundo toda a vossa conta, de vinte anos para cima, os que dentre
vós contra mim murmurastes; não entrareis na terra pela qual levantei a minha
mão que vos faria habitar nela, salvo Calebe, filho de Jefoné, e Josué, filho de
Num. Mas os vossos filhos, de que dizeis: Por presa serão, meterei nela; e eles
saberão da terra que vós desprezastes. Porém, quanto a vós, o vosso cadáver
cairá neste deserto. E vossos filhos pastorearão neste deserto quarenta anos, e
levarão sobre si as vossas infidelidades, até que o vosso cadáver se consuma
neste deserto. Segundo o número dos dias em que espiastes esta terra,
quarenta dias, o cada dia representado um ano, levareis sobre vós as vossas
iniquidades quarenta anos e conhecereis o meu afastamento. Eu, o SENHOR,
falei. E assim farei a toda esta má congregação, que se levantou contra mim;
neste deserto se consumirão e aí falecerão" (versículos 26-35).
Tal foi, pois, o fruto da incredulidade, e tal foi a conduta governamental de Deus
com um povo que O havia provocado com as suas murmurações e dureza de
coração.
É da máxima importância observar aqui que foi a incredulidade que manteve
Israel fora de Canaã na ocasião que estamos considerando. O comentário
inspirado de Hebreus 3 põe esta questão fora de toda a dúvida. "E vemos que
não puderam entrar por causa da sua incredulidade". Poderia talvez dizer-se
que não havia chegado o tempo de Israel entrar na terra de Canaã. A iniquidade
dos amorreus não tinha ainda atingido o seu ponto culminante. Mas esta não é
a razão porque Israel recusou atravessar o Jordão. Não sabiam nada da
iniquidade dos amorreus nem pensaram nela. A Escritura é tão clara quanto
possível: "Não puderam entrar" — não por causa da iniquidade dos amorreus;
não porque o tempo não era ainda chegado—mas simplesmente "por causa da
sua incredulidade". Deveriam ter entrado. Era seu dever fazê-lo; e foram
julgados por não o haverem feito. O caminho estava aberto. O juízo da fé, como
fora pronunciado por Calebe, era claro e firme: "Subamos animosamente e
possuamo-la em herança; porque certamente prevaleceremos contra ela". Eram
capazes nesse momento como podiam ser em qualquer outro, visto que Aquele
que lhes havia dado a terra era o mesmo que podia torná-los capazes de entrar
nela e a possuírem.
É conveniente notar isto e ponderá-lo cuidadosamente. Existe um certo modo
de falar dos conselhos, propósitos e decretos de Deus das suas ordenanças de
governo moral; e dos tempos e estações que Ele estabeleceu pelo Seu próprio
poder que tem um alcance tal que chega a varrer os próprios fundamentos da
responsabilidade humana. Devemo-nos guardar cuidadosamente desta ideia.
Devemos lembrar sempre que a responsabilidade do homem assenta sobre o
que é revelado e não sobre o que é secreto. Era dever de Israel subir
imediatamente e tomar posse da terra; e foram julgados por não haverem feito.
Os seus cadáveres caíram no deserto, porque não tiveram fé para entrar na
terra.

Como Combater?
Não nos oferece isto uma solene lição? Certamente. Como é que, nós, como
cristãos, falhamos assim em fazer valer praticamente a nossa posição celestial?
Somos libertados do juízo pelo sangue do Cordeiro; somos libertados deste
presente século pela morte de Cristo; mas não atravessamos o Jordão, em
espírito e fé, para tomar posse da nossa herança celestial. Crê-se geralmente
que o Jordão é um tipo da morte como fim da nossa vida natural neste mundo.
Isto, em um sentido, é verdade. Porém, como se explica que, quando Israel, por
fim, atravessou o Jordão tiveram de começar a combaterá Seguramente nós
não teremos de combater quando chegarmos ao céu. Os espíritos dos que têm
partido na fé em Cristo não estão a combater no céu. Não estão em conflito de
qualquer forma. Estão em repouso. Estão à espera da manhã da ressurreição;
mas esperam no repouso, não em conflito.
Por isso, há alguma coisa mais simbolizada no Jordão do que o fim da vida do
indivíduo neste mundo. Devemos encará-lo como a figura da morte de Cristo
sob um grande aspecto; assim como o ar Vermelho é uma figura da morte de
Cristo sob outro aspecto; e o sangue do cordeiro da páscoa de outro. O Sangue
do cordeiro havia posto Israel ao abrigo do juízo de Deus sobre o Egito. As
águas do Mar Vermelho haviam libertado Israel do próprio Egito e de todo o seu
poder. Mas eles tinham de atravessar o Jordão, tinham de pôr a planta do pé
sobre a terra da promissão e manter o seu lugar ali a despeito de todos os
inimigos, Tinham de lutar por cada polegada de Canaã.
E qual é o significado deste último episódio? Nós temos de combater pelo céu?
Quando um cristão adormece e o seu espírito parte para estar com Cristo no
paraíso, é ainda uma questão de combaterá Claro que não. Que devemos então
aprender com a travessia do Jordão e as guerras de Canaã? Simplesmente isto:
Jesus foi morto; deixou este mundo; não só morreu por nossos pecados, mas
quebrou todos os elos que nos ligavam a este mundo; de forma que nós
estamos mortos para o mundo, mortos para o pecado e mortos para a lei. A
vista de Deus e no juízo da fé temos tanto que ver com este mundo como um
morto tem que ver com o mundo. Somos chamados para nos considerarmos
como mortos para o mundo e vivos para Deus por Jesus Cristo nosso Senhor:
para vivermos no vigor da nova vida que possuímos em união com Cristo
ressuscitado. Pertencemos ao céu; e é mantendo a nossa posição como
homens celestiais que temos de combater com os espíritos perversos nos
lugares celestiais na própria esfera que nos pertence e da qual eles não foram
ainda expulsos.
Se nos contentarmos em "andar à maneira dos homens" em viver como aqueles
que pertencem a este mundo em parar junto ao Jordão, se nos contentarmos
em viver como "habitantes da terra", se não aspiramos à nossa própria parte e
posição celestial, então não conhecemos nada do conflito de Efésios 6:12. E
procurando viver como homens celestiais, no tempo presente na terra, que
compreenderemos o significado do conflito que é o antítipo das guerras de
Israel em Canaã. Não teremos de combater quando chegarmos ao céu; mas se
desejamos viver uma vida celestial na terra; se procuramos comportar nos como
aqueles que estão mortos para o mundo e vivos n Aquele que desceu por nós
às águas frias do Jordão, então, certamente, temos de combater.
Satanás não se poupara a esforços para nos impedir de viver no vigor da nossa
vida celestial; e daí o conflito. Procurará fazer nos andar como aqueles que têm
um posição terrestre, para sermos cidadãos deste mundo, para contendermos
pelos nossos direitos, para mantermos a nossa distinção e dignidade, par
desdizer praticamente essa grande verdade cristã fundamental que estamos
mortos com Cristo e ressuscitados com Ele.
Se o leitor se voltar por um momento para Efésios 6, verá como o autor
inspirado apresenta este interessante assunto. "No demais, irmãos meus,
fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a
armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do
diabo. Porque não temos que lutar contra carne e sangue (como Israel teve de
fazer em Canaã), mas sim contra os principados, contra as potestades, contra
os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade
nos lugares celestiais. Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que
possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes" (versículos
10-13).
Aqui temos o próprio conflito cristão. Não se trata aqui de uma questão de
concupiscência da carne ou da fascinação do mundo ainda que, seguramente,
temos de vigiar contra essas coisas más das "ciladas do diabo". Não do seu
poder, que está para sempre destruído, mas daqueles meios ardilosos e ciladas
por meio dos quais procura impedir que os cristãos deem cumprimento à sua
posição e herança celestial.
Ora, é na condução deste conflito que nós falhamos tão assinaladamente. Não
aspiramos a tomar aquilo para que temos sido chamados. Muitos de nós
estamos satisfeitos por saber que estamos ao abrigo do juízo pelo sangue do
Cordeiro. Não compreendemos o profundo significado do Mar Vermelho e do rio
Jordão: não nos apoderamos praticamente da sua importância espiritual.
Andamos como os demais homens, a própria coisa pela qual o apóstolo
censurou os Coríntios. Vivemos e atuamos como se pertencêssemos a este
mundo, ao passo que a Escritura ensina e o nosso batismo expressa que
estamos mortos para o mundo, assim como Jesus está morto para ele, e que
n'Ele também ressuscitamos Pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos
mortos (Cl 2:12).
Que o Espírito Santo conduza as nossas almas à realidade destas coisas.
Possa Ele apresentar-nos os preciosos frutos desse país celestial que é nosso
em Cristo e nos fortaleça no Seu próprio poder no homem interior, que
possamos ousadamente atravessar o Jordão e pôr os pés na Canaã espiritual.
Vivemos, como cristãos, muito abaixo dos nossos privilégios, Consentimos que
as coisas que se veem nos roubem o gozo das coisas que se não veem. Oh,
que possamos ter uma fé mais forte para tomar posse de tudo que Deus nos
tem dado livremente em Cristo!
Devemos prosseguir agora com a nossa história.
"E os homens que Moisés mandara a espiar a terra e que, voltando, fizeram
murmurar toda a congregação contra ele, infamando a terra, aqueles mesmos
homens, que infamaram a terra, morreram de praga perante o SENHOR. Mas
Josué, filho de Num, e Calebe, filho de Jefoné, que eram dos homens que foram
espiar a terra, ficaram com vida" (versículos 3 6 a 3 8).
E espantoso pensar que entre aquela vasta assembleia de seiscentos mil
homens, além das mulheres e crianças, só houve dois que tiveram fé no Deus
vivo. Não falamos certamente de Moisés, mas simplesmente da congregação.
Toda a assembleia, salvo duas exceções brilhantes, estava dominada por um
espírito de incredulidade. Não podiam confiar em Deus para os introduzir na
terra; não, pensaram que Ele os tinha trazido ao deserto para ali morrerem; e
certamente podemos dizer que eles colheram os frutos da sua incredulidade. As
dez testemunhas falsas morreram da praga; e os muitos milhares que aceitaram
o seu falso testemunho foram obrigados a regressar ao deserto para ali
vaguearem para cima e para baixo durante quarenta anos e morrerem então e
ali serem sepultados.
Mas Josué e Calebe permaneceram sobre o bendito terreno de fé no Deus vivo,
essa fé que enche a alma de coragem e da mais alegre confiança. E deles
podemos dizer que colheram segundo a sua fé. Deus há de honrar sempre a fé
que ele tem infundido na alma. E Seu próprio dom, e Ele não pode, podemos
dizer com reverência, senão reconhecê-lo onde quer que ele existir. Josué e
Calebe puderam, no simples poder da fé, resistir a uma tremenda corrente de
infidelidade . Mantiveram a sua confiança em Deus em face de todas as
dificuldades; e Ele honrou a sua fé de uma maneira assinalada no fim pois
enquanto os cadáveres dos seus irmãos se reduziam a pó nas areias do
deserto, os seus pés pisavam as colinas cobertas de vinhedos e os vales férteis
da terra de Canaã. Aqueles declararam que Deus os havia tirado do Egito para
morrerem no deserto; e o seu fim foi segundo a sua palavra. Estes declaram
que Deus podia introduzi-los na terra, e foram tratados segundo a sua palavra.
Isto é um princípio muito importante, "Seja-vos feito segundo a vossa fé" (Mt
9:29). Lembremo-nos disto. Deus deleita-Se na fé Gosta de ser crido; e
conferirá sempre honra àqueles que n'Ele confiam. Pelo contrário, a
incredulidade é dolorosa para Si. Desonra-O e provoca-O e traz trevas e a
morte sobre a alma. E o mais terrível pecado duvidar do Deu s vivo que não
pode mentir e abrigar dúvidas quando Ele tem falado. O diabo é o autor de
todas as interrogações duvidosas. Compraz-se em fazer vacilar a confiança da
alma; mas não tem qualquer poder sobre a alma que confia simplesmente em
Deus. Os seus dardos inflamados não podem atingir aquele que está escondido
atrás do escudo da fé. E, oh! Quão precioso é viver uma vida de pueril confiança
em Deus! E isto que faz o coração tão feliz e enche a boca de louvor e ações de
graças. Desvanece todas as nuvens e neblinas, e faz resplandecer o nosso
caminho com os raios benditos do semblante do nosso Pai. Por outro lado, a
incredulidade enche o coração de toda a sorte de interrogações, lança-nos
sobre nós próprios, escurece a nossa senda e faz-nos verdadeiramente
miseráveis.
O coração de Calebe estava cheio de alegre confiança, enquanto que os
corações dos seus irmãos estavam cheios de murmurações e queixas. Assim
será sempre. Se queremos ser felizes, devemos estar ocupados com Deus e o
que O rodeia. Se queremos ser infelizes, temos de estar só ocupados com o
ego e o que o rodeia. Vejamos por um momento o capítulo primeiro de Lucas. O
que foi que encerrou Zacarias em mudo silêncio?- Foi a incredulidade. O que
era que enchia coração e abria os lábios de Maria e Isabel? A fé. Aqui está a
herança. Zacarias teria podido juntar-se a essas duas mulheres Piedosas em
seus cânticos de louvor, se a sombria incredulidade não tivesse selado os seus
lábios em melancólico silêncio. Que quadro! Que lição! Ah, possamos nós
aprender a confiar com mais simplicidade em Deus! Que o espírito da dúvida
esteja longe de nós! Que sejamos, no meio de uma cena infiel, fortes na fé que
glorifica Deus.

Uma Atitude Insensata e Israel é Vencido pelos Inimigos


O parágrafo final do nosso capítulo ensina-nos outra santa lição. "E falou
Moisés estas palavras a todos os filhos de Israel; então, o povo se contristou
muito. E levantaram-se pela manhã de madrugada, e subiram ao cume do
monte, dizendo: Eis nos aqui, e subiremos ao lugar que o SENHOR tem dito;
porquanto havemos pecado. Mas Moisés disse: Por que quebrantais o
mandado do SENHOR? Pois isso não prosperará. Não subais, pois o SENHOR
não estará no meio de vós, para que não sejais feridos diante dos nossos
inimigos. Porque os amalequitas e os cananeus estão ali diante da vossa face,
e caireis à espada; pois, porquanto vos desviastes do SENHOR, O SENHOR
não será convosco, Contudo, temerariamente, tentaram subir ao cume do
monte; mas a arca do concerto do Senhor e Moisés não se apartaram do meio
do arraial. Então, desceram os amalequitas e os cananeus, que habitavam na
montanha, e os feriram, derrotando os até Horma" (versículos 39-45).
Que conjunto de contradição é o coração humano! Quando exortados a subir
imediatamente na energia da fé e tomar posse da terra, eles recuaram e
recusaram ir. Caíram e choraram quando deviam ter subido e conquistar a terra.
Em vão, o fiel Calebe lhes garante que o Senhor os introduziria no monte da
Sua herança que Ele podia fazê-lo. Não quiseram subir porque não podiam
confiar em Deus. Mas agora, em vez de curvarem as cabeças e aceitarem os
ditames do governo de Deus, eles querem subir presumidamente, confiando em
si mesmos.
Mas, ah! Como era inútil marchar sem o Deus vivo no meio deles. Sem Ele nada
podiam fazer. E todavia, quando podiam tê-Lo, tiveram receio dos amalequitas;
mas agora, ousam enfrentar esse mesmo povo sem Ele. "Eis nos aqui, e
subiremos ao lugar que o SENHOR tem dito." Isto era mais fácil de dizer do que
fazer. Um Israelita sem Deus não podia medir-se com um amalequita; e é digno
de nota que, quando Israel recusou agir na energia da fé, quando caíram sob o
poder da incredulidade que desonra a Deus, Moisés mostra-lhes as próprias
dificuldades a que eles se haviam referido. Disse-lhes: "Os amalequitas e os
cananeus estão ali."
Isto é pleno de instrução. Por sua incredulidade, eles haviam excluído a Deus; e
portanto era obviamente uma questão entre Israel e os cananeus. A fé teria
considerado a questão como uma questão entre Deus e os cananeus. Este era
precisamente o modo como Josué e Calebe viam o assunto quando disseram:
"Se o SENHOR se agradar de nós, então nos porá nesta terra, e no-la dar; terra
que mana leite e mel. Tão-somente não sejais rebeldes contra o SENHOR, e
não temais porquanto são eles nosso pão; retirou-se deles o seu amparo, e o
SENHOR é conosco; não os temais."
Aqui está o grande segredo. A presença do Senhor com o Seu povo garante
vitória sobre todos os inimigos, Mas se Ele não estiver com eles, eles são como
água derramada no chão. Os dez espias incrédulos haviam declarado que eles
eram como gafanhotos na presença dos gigantes; e Moisés, pegando na sua
palavra, declara-lhes, por assim dizer, que os gafanhotos não podem medir-se
com os gigantes. Se, por um lado é verdade que "vos será feito segundo a
vossa fé", por outro lado é também verdade que vos será feito segundo a vossa
incredulidade.
Mas o povo conjeturava. Presumiam ser alguma coisa quando não eram nada.
E oh, que desgraça presumirmos que podemos avançar na nossa própria força!
Que derrota e que confusão! Que situação e que contumácia! Que humilhação e
que derrota! Tinha de ser assim por força. Abandonaram a Deus na sua
incredulidade; e Ele abandonou-os à sua vã conjetura. Não quiseram subir com
Ele em fé; e Ele não quis ir com eles na sua incredulidade. "Mas a arca do
concerto do SENHOR e Moisés não se apartaram do meio do arraial."
Assim terá de ser sempre. De nada vale aparentar força, mostrar e evadas
pretensões, presumir ser alguma coisa. As pretensões e as aparências são
piores do que inúteis. Se Deus não for conosco, somos como o vapor da
manhã. Contudo, devemos aprender isto pratica mente. Devemos descer ao
próprio fundo de tudo que existe no ego, para provar a sua completa nulidade. E
efetivamente é o deserto, com todas as suas variadas cenas e mil experiências,
que conduz a este resultado prático. Ali aprendemos o que é carne. Ali a
natureza mostra-se inteiramente em todas as suas, fases; algumas vezes cheia
de uma covarde incredulidade; outras, cheia de uma falsa confiança. Em Cades
recusa subir quando lhe é dito para avançar; em Horma persiste em subir
quando se lhe diz que não suba. Assim é como os extremos se tocam nessa
natureza pecaminosa que o autor e o leitor destas páginas trazem em si de dia
em dia.
Porém, há uma lição especial, prezado leitor, que devemos procurar aprender a
fundo, antes de começar a nossa partida de Horma; e é esta: Existe uma
imensa dificuldade em andar humilde e pacientemente no caminho que o nosso
fracasso tornou necessário para nós. A incredulidade de Israel, recusando subir
à terra de Canaã, tomou necessário que, nos atos do governo de Deus, eles
voltassem para trás e errassem no deserto durante quarenta anos. A isto eles
não queriam submeter-se. Recalcitraram contra isso. Não podiam dobrar a
cerviz ao jugo que lhes era necessário.
Quantas vezes é este o nosso caso! Falhamos; damos qualquer passo em
falso; caímos nas consequentes circunstâncias de provação; e, então, em vez
nos inclinarmos humildemente debaixo da mão de Deus e buscarmos andar
com Ele, em humildade e espírito contrito, tornamo-nos obstinados e rebeldes;
queixamo-nos das circunstâncias em vez de nos julgarmos a nós próprios, e
procuramos obstinadamente escapar às circunstâncias, em vez de as
aceitarmos como as consequências justas e necessárias da nossa conduta.
Pode suceder também que por fraqueza ou fracasso, de uma ou outra forma,
recusamos entrar numa posição ou senda de privilégio espiritual, e, em
consequência disso, somos empurrados para trás na nossa carreira, e
colocados num banco mais baixo da escola. Então, em vez de nos conduzirmos
humildemente e de nos submetermos com humildade e contradição às mãos de
Deus, tomamos a liberdade de forçar a posição, e aparentamos gozar o
privilégio e alegamos pretensões de poder, e tudo resulta na mais humilhante
derrota e confusão.
Estas coisas requerem a nossa mais profunda consideração. É uma grande
coisa cultivar um espírito humilde, um coração consente com um lugar de
fraqueza e menosprezo. Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos
humildes. Um espírito pretensioso tem de ser mais cedo ou mais tarde,
humilhado; e toda a pretensão de poder tem de ser revelada. Se não houver fé
para tomar posse da terra prometida, então não haverá outra coisa a fazer
senão trilhar o deserto em humildade e simplicidade.
E, bendito seja Deus, Ele estará conosco nesta viagem do deserto, ainda que
não possa estar e não estará conosco no caminho do orgulho e pretensão. O
Senhor recusou acompanhar Israel à montanha dos amorreus; mas estava
pronto a voltar para trás, e, em graça paciente, a acompanhá-los em todos os
seus desvios através do deserto. Se Israel não quer entrar em Canaã com o
Senhor, Ele está disposto a voltar ao deserto com Israel. Nada pode exceder a
graça que brilha nisto. Tivessem eles sido tratados segundo os seus
merecimentos, e podiam, pelo menos, ter sido deixados para vaguear sozinhos
através do deserto. Mas, bendito seja para sempre o Seu grande nome, Ele não
nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui segundo as nossas
iniquidades. Os Seus pensamentos não são os nossos pensamentos, nem os
Seus caminhos os nossos caminhos. Não obstante toda a incredulidade, a
ingratidão e a provocação que o povo mostrou; apesar do seu regresso ao
deserto ser o fruto da sua própria conduta, o Senhor, em condescendente graça
e paciente amor, volta com eles para ser um companheiro de viagem no deserto
durante quarenta longos e tristes anos.
Assim, se o deserto demonstra o que o homem é, mostra também o que Deus é;
e, além disso, mostra o que é a fé, pois Josué e Calebe tiveram de voltar com
toda a congregação dos seus irmãos incrédulos e permanecer durante quarenta
anos privados da sua herança, embora eles próprios estivessem prontos, pela
graça, a subir à terra. Isto podia parecer uma grande injustiça. A natureza Podia
julgar que era pouco razoável que dois homens de fé tivessem de sofrer por
causa de incredulidade de outros. Mas a fé pode esperar com paciência. E
demais, como poderiam Josué e Calebe queixar-se da marcha prolongada,
quando viam o Senhor disposto a compartilhar dela com eles? Era impossível.
Estavam dispostos a aguardar o momento determinado por Deus; pois a fé
nunca tem pressa. A fé dos servos podia bem ser mantida pela graça do Mestre.
CAPÍTULO 15

O DESÍGNIO E AS PROMESSAS DE DEUS SÃO IMUTÁVEIS

As palavras com que começa este capítulo são particularmente notáveis,


quando comparadas com o conteúdo do capítulo 14. Naquele tudo parecia
escuro e sem esperança. Moisés teve que dizer ao povo: "Não subais, pois o
SENHOR não estará no meio de vós, para que não sejais feridos diante dos
vossos inimigos." E, além disso, o Senhor havia lhes dito: "Assim como eu vivo,
diz o SENHOR, que, como falastes aos meus ouvidos, assim farei a vós outros.
Neste deserto cairá o vosso cadáver... não entrareis na terra, feia qual levantei
a minha mão que vos faria habitar nela... quanto a vós, o vosso cadáver cairá
neste deserto."
Isto quanto ao capítulo 14. Mas apenas abrimos o capítulo que está diante de
nos, lemos, como se nada tivesse acontecido, e como se tudo estivesse tão
calmo, certo e brilhante quanto só Deus o podia fazer, palavras como estas:
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e
dize-hes: Quando entrardes na terra das vossas habitações, que eu vos hei de
dar", etc. Esta é uma das passagens mais notáveis deste livro admirável. Na
realidade, não há em todo este livro uma passagem tão característica não só de
Números, mas do conjunto do volume de Deus.
Quando lemos a sentença solene: "Não entrareis na terra", qual é a lição que
ela nos dá?- A lição, que somos tão tardios em aprender, da completa
indignidade do homem. "Toda a carne é como a erva."
E, por outro lado, quando lemos palavras tais como estas: Quando entrardes na
terra das vossas habitações, que eu vos hei- de dar", qual é a lição preciosa que
elas nos dão? Seguramente esta, que a salvação é do Senhor. Numa
aprendemos o fracasso do homem; na outra a fidelidade de Deus. Se
encararmos o assunto do ponto de vista humano, a sentença é: "Não entrareis
na terra." Mas se encararmos a questão do ponto de vista de Deus, podemos
inventar a frase e dizer; "Indubitavelmente, entrareis."
Assim é na cena que se desenvolve agora ante os nossos olhos; e assim é em
todo o volume de inspiração, do princípio ao fim. O homem fracassa; mas Deus
é fiel. O homem deita tudo a perder; mas Deus restaura tudo. "As coisas que
são impossíveis aos homens são possíveis a Deus." Necessitaremos de
percorrer todo o cânone inspirado a fim de ilustrarmos isto? Deveremos remeter
o leitor para a história de Adão no paraíso? Ou a história de Noé, depois do
dilúvio? Ou a história de Israel no deserto? Israel na terra de Canaã? Israel
debaixo lei? Israel sob o cerimonial levítico? Deter-nos-emos na exposição do
fracasso do homem no serviço profético, sacerdotal ou real? Exporemos o
fracasso da Igreja professante como vaso responsável na terral Não faltou o
homem sempre e em tudo? Ah, assim é!
Este é um dos lados do quadro—o lado sombrio e humilhante. Porém, bendito
seja Deus, há também o lado animador e brilhante, Se há o "Não entrareis", há
também o "indubitavelmente entrareis". E por quê? Porque Cristo entrou em
cena, e n'Ele tudo está infalivelmente assegurado para glória de Deus e bênção
eterna do homem. E o propósito de Deus "constituir Cristo como cabeça sobre
todas as coisas."
Não há coisa alguma em que o primeiro homem tenha faltado que o segundo
Homem não restaure. Tudo está estabelecido sobre uma nova base em Cristo.
Ele é a Cabeça da nova criação; o Herdeiro de todas as promessas feitas a
Abraão, a Isaque, e a Jacó, a respeito da terra; Herdeiro de todas as promessas
feitas a Davi a respeito do trono. O governo estará sobre os Seus ombros. Ele
levará a glória. E o Profeta, Sacerdote e Rei. Numa palavra, Cristo restaura tudo
que Adão perdeu, e traz ainda muito mais além do que Adão teve. Por isso,
quando olhamos para o primeiro Adão e as suas obras, onde quer que seja, a
sentença é "Não entrareis", Não permanecereis no Paraíso —não retereis o
governo—não herdareis as promessas; não entrareis na terra; não ocupareis o
trono; não entrareis no reino.
Mas por outro lado, quando consideramos o último Adão e os Seus atos onde
quer que seja, tudo é gloriosamente invertido: o "não" tem ser para sempre
suprimido da expressão, porque em Cristo Jesus "quantas promessas há de
Deus são nele sim; e por ele o Amém, para glória de Deus" (2 Co 1:20), Não
existe não quando se trata de Cristo. Tudo é "sim" — tudo está divinamente
estabelecido e arrumado; e porque é assim, Deus pôs o Seu selo, o selo do Seu
Espírito, que todos os crentes agora possuem. "Porque o Filho de Deus, Jesus
Cristo, que entre vós foi pregado por nós, isto é, por mim, e Silvano, e Timóteo,
não foi sim e não; mas nele houve sim. Porque todas quantas promessas há de
Deus são nele sim; e por ele o Amém, para glória de Deus, por nós. Mas o que
nos confirma convosco em Cristo e o que nos ungiu é Deus, o qual também nos
selou e deu o penhor do Espírito em nossos corações" (2 Co 1:19-22).
Assim, pois, as primeiras linhas do capítulo 15 de Números devem ser lidas à
luz de todo o livro de Deus .Faz parte de toda a história dos caminhos de Deus
com o homem neste mundo. Israel tinha perdido todo o direito à terra. Nada
merecia melhor do que caíssem os seus cadáveres no deserto. E todavia tal é a
grande e preciosa graça de Deus que Ele pôde falar-lhes da sua entrada na
terra e dar-lhes instrução quanto aos seus caminhos e obras nela.
Nada pode ser mais abençoado e mais certo do que tudo isto. Deus
sobrepõe-Se a todas as faltas e pecado do homem. E inteiramente impossível
que uma simples promessa de Deus não seja cumprida. Seria possível que a
conduta dos descendentes de Abraão no deserto frustrasse os propósitos
eternos de Deus ou impedisse o cumprimento das promessas absolutas e
incondicionais feitas aos pais? Impossível; e, portanto, se a geração que saiu do
Egito recusou entrar em Canaã, o Senhor podia suscitar até das próprias pedras
uma descendência àquele em favor do qual a Sua promessa deveria ter o seu
cumprimento. Isto facilita a explicação da expressão com que abre o nosso
capítulo, que, com beleza e força notáveis, segue as cenas humilhantes do
capítulo 14.
Neste último, o sol de Israel parece pôr-se no meio de nuvens sombrias e
ameaçadoras; mas naquele levanta-se com sereno esplendor, revelando e
confirmando essa grande verdade que "os dons e a vocação de Deus são sem
arrependimento" (Rm 11:29). Deus nunca Se arrepende dos Seus dons ou da
Sua vocação; e, por isso ainda que uma geração incrédula pudesse murmurar e
rebelar-se milhares de vezes, Ele cumprirá o que tem prometido.
Eis aqui o lugar divino de repouso da fé em todo o tempo e o porto de abrigo
certo e seguro para a alma no meio do naufrágio de todos os projetos e de todas
as empresas humanas. Tudo se desfaz em pedaços nas mãos do homem; mas
Deus permanece em Cristo. Coloque-se o homem uma e outra vez nas
circunstâncias mais favoráveis e é certo cair em falência; mas Deus levantou
Cristo em ressurreição e todos os que creem n'Ele são colocados sobre uma
base inteiramente nova—são associados com o Chefe ressuscitado e
glorificado e assim permanecem para sempre. Esta maravilhosa associação
nunca poderá ser dissolvida. Tudo está posto sobre uma base que nenhum
poder da terra ou do inferno poderá jamais tocar.
Leitor, compreendes tu a aplicação de tudo isto a ti próprio? Tens descoberto, à
luz da presença de Deus, que és na realidade um fracassado; que naufragaste
em tudo; que não tens nem uma escusai Tens sido induzido a fazer a aplicação
pessoal dessas duas frases sobre as quais nos havemos detido, a saber: "Não
entrareis", e "Certamente entrareis? Tens aprendido a força destas palavras
"Para tua perda... te rebelaste contra mim, contra o teu ajudador?" Em suma, já
vieste a Jesus como um pecador perdido, culpado, rebelde, e já encontraste a
redenção, o perdão e a paz n'Ele?
Detém-te, prezado amigo, e considera seriamente estas coisas. Não podemos
olvidar o fato importante que temos mais alguma coisa a fazer do que escrever
"Estudos sobre o Livro de Números".
Temos de pensar na alma do leitor. Temos um dos mais solenes deveres a
cumprir diante dele, e por isso é que, de vez em quando, nos sentimos
constrangidos a abandonar, por um momento, as páginas sobre as quais
meditamos para fazer um apelo ao coração e à consciência do leitor, e para lhe
rogar, encarecidamente, que, se ainda não está convertido, e está indeciso,
ponha de parte o livro e considere a grande questão do seu estado presente e
do seu destino eterno. Em comparação com ele, todas as outras questões
resultam insignificantes.
Que são todos os planos e empresas que começam, continuam e acabam no
tempo, quando comparados com a eternidade e a salvação da sua alma
imortal? São como o pó de uma balança. "Pois que aproveitaria ao homem
ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Se tivésseis a fortuna de um
Rothschild, o rei do dinheiro, se ocupásseis o pináculo da fama literária ou da
ambição política, se o vosso nome fosse adornado com as honras que as
universidades deste mundo podem outorgar, se a vossa testa estivesse coroada
com os louros e o vosso peito coberto com as medalhas de cem vitórias, que
vos aproveitaria tudo isso? Tereis de deixar tudo, tereis de passar através do
arco estreito do tempo para o oceano incomensurável da eternidade. Homens
de riqueza principesca, homens de fama literária, homens que têm por seu
poder intelectual ascendido à mais alta administração, homens que têm tido
milhares suspensos das palavras dos seus lábios, que têm escalado o ponto
mais elevado da esfera naval, militar e distinção forense, tem passado para a
eternidade; e a pavorosa pergunta quanto aos tais é: "Onde está a alma?
Prezado leitor, rogamos-te, com os mais ponderados argumentos que podem,
de algum modo, ser apresentados à alma do homem, que não deixes este
assunto sem ter chegado a uma justa conclusão. Pelo grande amor de
Deus—pela cruz e paixão de Cristo, pelo poderoso testemunho do Espírito
Santo, solenidade terrível de uma eternidade ilimitada, pelo valor inefável da tua
alma imortal, por todos os gozos do céu e os horrores do inferno, por estes sete
poderosos argumentos, te rogamos que, neste momento, venhas a Jesus. Não
demores! Não raciocines! Não argumentes! Mas vem agora, tal como estás,
com todos os teus pecados, com toda a tua miséria, com a tua dissipada vida,
com o teu relato terrível de misericórdias desprezadas, vantagens de que tens
abusado, oportunidades perdidas, a Jesus, que está, de braços abertos e
coração cheio de amor pronto a receber-te, e quer te mostrar as Suas feridas
que atestam a realidade da Sua morte expiatória sobre a cruz e te convida a
pores n'Ele toda a tua confiança e garante que, se o fizeres, nunca serás
confundido.
Que o Espírito de Deus abra o teu coração neste momento para compreenderes
este apelo e te não dê repouso até estares verdadeiramente convertido a Cristo,
reconciliado com Deus e selado com o Espírito Santo da promessa!

A Graça para Israel e para o Estrangeiro


Voltemos agora, por um momento, ao nosso capítulo.
Nada pode ser tão agradável como o quadro aqui apresentado. Nele temos
votos, ofertas voluntárias, sacrifícios pacíficos, e o vinho do reinado, tudo
baseado sobre a graça soberana que brilha no próprio primeiro versículo. É um
belo espécime, um formoso símbolo do futuro e da condição de Israel.
Lembra-nos as visões maravilhosas com que termina o livro do profeta
Ezequiel. A incredulidade, as murmurações, as rebeliões, são todas passadas e
esquecidas. Deus retira-Se aos Seus eternos conselhos, e desde ali olha para o
tempo em que o Seu povo trará uma oferta de justiça e Lhe pagará os seus
votos e do modo como o gozo do Seu reino encherá os seus corações para
sempre (versículos 3-13).
Mas há um traço notável neste capítulo, e esse é o lugar que ocupa "o
estrangeiro". E o mais completamente característico. "Quando também
peregrinar convosco algum estrangeiro ou que estiver no meio de vós nas vossa
gerações, e ele oferecer uma oferta queimada de cheiro suave ao SENHOR,
como vós fizerdes, assim fará ele. Um mesmo estatuto haja para vós, ó
congregação, e para o estrangeiro que entre vós peregrina, por estatuto
perpétuo nas vossas gerações; como vós, assim será o peregrino perante o
SENHOR. Uma mesma lei e um mesmo direito haverá para vós e para o
estrangeiro que peregrina convosco" (versículos 14-16).
Que lugar para o estrangeiro! Que lição para Israel! Que permanente
testemunho nas páginas do seu tão alardeado Moisés! O estrangeiro é posto ao
mesmo nível de Israel! "Como vós, assim será o peregrino perante o SENHOR."
Em Êxodo 12:48 lemos: "Porém, se algum estrangeiro se hospedar contigo e
quiser celebrar a Páscoa ao SENHOR, seja-lhe circuncidado todo macho, e,
então, chegara a celebrá-la." Mas em Números 15, não se faz nenhuma alusão
a circuncisão. E por quê? E porque um tal ponto pode jamais ser posto de
parte? Não; porém, nós cremos que a omissão aqui está cheia de significado.
Israel tinha perdido o direito a tudo. A geração rebelde tinha de ser posta de
parte e cerceada; mas o propósito eterno da graça de Deus tem de permanecer,
e todas as Suas promessas hão de realizar-se. Todo o Israel será salvo;
possuirá a terra; oferecerão ofertas puras, pagarão votos, e saborearão o gozo
do reino. Sobre que princípio?
Sobre o principio da graça soberana. Pois bem, é sobre o mesmíssimo princípio
que "o estrangeiro" é introduzido; e não apenas introduzido, mas "Como vós,
assim será o peregrino perante o Senhor."
Quero judeu contender por isto? Que estude Números 13 e 14. E depois de ter
recebido no recôndito da sua alma a salutar a lição que medite o capítulo 15; e
estamos certos de que não procurará expulsar "o estrangeiro" do mesmo nível,
pois estará pronto a confessar que ele mesmo é devedor à graça e a
reconhecer que a mesma misericórdia que o alcançou pode também alcançar o
estrangeiro, e então se regozijará de ir em companhia do estrangeiro para beber
na fonte da salvação aberta pela graça soberana do Deus de Jacó.
Não nos faz lembrar forçosamente o ensino desta parte do nosso livro aquela
parte admirável da verdade dispensacional de Romanos 9 a 11, especialmente
a sua magnífica conclusão?
"Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. Porque assim
como vós (estrangeiros) também, antigamente, fostes desobedientes a Deus,
mas, agora, alcançastes misericórdia pela desobediência deles, assim também
estes, agora, foram desobedientes, para também alcançarem misericórdia pela
misericórdia a vós demonstrada {alcançarem misericórdia como o estrangeiro).
Porque Deus encerrou todos debaixo da desobediência, para com todos usar
de misericórdia (judeus e gentios—Israel e o estrangeiro). Ó profundidade das
riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são
os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Porque quem
compreendeu o intento do Senhor? Ou Ruem foi seu conselheiro? Ou quem lhe
deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele, e por ele, e
para ele são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!" (Rm
11:29-36).
Nos versículos 22-31 do nosso capítulo temos instruções acerca dos pecados
de ignorância e pecados de insolência—uma distinção muito séria e importante.
Para os primeiros é feita ampla provisão na bondade e misericórdia de Deus. A
morte de Cristo é apresentada nesta parte do capitulo nos seus dois grandes
aspectos, isto é, o holocausto e a expiação do pecado: isto é, o seu aspecto
quanto a Deus e o seu aspecto quanto a nós; e temos também o grande valor, a
fragrância, e o gozo da Sua perfeita vida e serviço, como homem neste mundo,
simbolizados pelo sacrifício pacífico e a oferta de manjares. No holocausto
vemos a expiação cumprida segundo a medida da consagração de Cristo a
Deus e do deleite de Deus n'Ele. Na expiação do pecado vemos a expiação
efetuada segundo a medida das necessidades do pecador e a aversão que
Deus tem ao pecado. As duas ofertas, tomadas em conjunto, apresentam a
morte expiatória de Cristo em toda a sua plenitude. Então, na oferta de
manjares, temos a vida perfeita de Cristo e a realidade da Sua natureza
humana manifestadas em todos os pormenores da Sua carreira e serviço neste
mundo. Enquanto que a oferta de libação simboliza o completo abandono e de
Si Mesmo a Deus.

O Pecado por Erro ou por Ignorância


Não trataremos por agora aqui da instrução maravilhosa contida nas diferentes
classes de sacrifícios apresentados nesta passagem. Remetemos o leitor que
quiser estudar o assunto mais a fundo para "Estudos sobre o Livro de Levítico".
Expomos aqui apenas, da maneira mais sucinta, o que cremos ser o principal
significado de cada oferta; pois entrar em pormenores seria apenas repetir o
que já temos escrito.
Acrescentaremos apenas que os direitos de Deus exigem que se tome
conhecimento dos pecados por ignorância. Podíamos estar dispostos a dizer ou
ao menos pensar que tais pecados deviam ser passados por alto. Mas Deus
não pensa assim. A Sua santidade não pode ser reduzida à medida da nossa
inteligência. A graça fez provisão para os pecados de ignorância; mas a
santidade exige que tais pecados sejam julgados e confessados. Todo o
coração sincero bendirá a Deus por isto. Porque o que seria de nós se a
provisão da aça divina não fosse adequada para satisfazer os direitos da
santidade divinal E adequada não seria seguramente se não fosse muito além
do alcance da nossa inteligência.
E não obstante, ainda que tudo isto seja geralmente admitido, é muito triste
ouvir por vezes cristãos professantes desculparem-se com a ignorância e
servirem-se dela para justificar a infidelidade e o erro. Porém, em tais casos,
pode se, muitas vezes, fazer formalmente a pergunta, por que somos
ignorantes a respeito de qualquer ponto de conduta ou dos direitos que Cristo
tem sobre nós? Suponhamos que se apresenta um caso que requer um juízo
positivo e exige uma certa linha de ação; alegamos ignorância. Está isto certo?
Servirá de alguma coisa? Atenuará a nossa responsabilidade? Deus consentirá
que nos descarreguemos assim da nossa responsabilidade? Não, leitor,
podemos estar certos de que isto de nada servirá. Porque somos ignorantes?
Temos empregado todas as nossas energias, todos os meios possíveis, e
temos feito todos os esforços possíveis, para chegar da questão e tirar uma
conclusão justa?
Recordemos que os direitos da verdade e da santidade exigem tudo isto de nós;
não podemos estar satisfeitos com nada menos. Não podemos deixar de admitir
que, se fosse uma questão em que estivessem envolvidos, fosse em que
medida fosse, os nossos interesses, o nosso monte, a nossa reputação, a
nossa propriedade, não deixaríamos de remover todas as dificuldades para
entrarmos na posse de todos os fatos sobre o caso. Não alegraríamos
ignorância em tais casos. Se fosse necessário ter informações, nós as teríamos.
Faríamos todo o possível para conhecer todo os pormenores, os prós e os
contras da questão, a fim de podermos formar um juízo seguro sobre ela.
Não é assim, prezado leitor? Pois bem, por que alegramos então ignorância
quando os direitos de Cristo estão em causai Não será isto uma prova de que,
enquanto somos ligeiros, zelosos, enérgicos e ativos, quando se trata dos
interesses do ego, somos indiferentes, indolentes, negligentes, quando se trata
de Cristo?
Ah! Infelizmente esta é a verdade clara e humilhante. Possamos nós sentir
humilhação com o seu conhecimento! Que o Espírito Santo nos faça mais
zelosos nas coisas que dizem respeito ao Senhor Jesus Cristo. Que o ego e os
seus interesses diminuam e que Cristo e os Seus interesses aumentem dia a
dia na nossa apreciação! E possamos nós ao menos reconhecer cordialmente a
nossa santa responsabilidade de entrarmos diretamente em toda a questão em
que a glória de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo estiver, envolvida ainda
que seja no mínimo, embora possamos falhar praticamente nas nossas próprias
diligências.
Não nos arrisquemos nunca a falar, a pensar, ou a atuar, como se
pensássemos que qualquer coisa que Lhe diz respeito fosse um assunto
indiferente para nós. Que Deus, em Sua misericórdia, nos guarde de tal!
Consideremos tudo que meramente nos diz respeito como se não fosse
comparativamente essencial, mas o interesse de Cristo como sendo da máxima
autoridade.
Dissemos assim o bastante quanto ao assunto de ignorância, no sentido da
nossa responsabilidade ante a verdade de Deus e a alma do leitor. Sentimos a
sua imensa importância. Cremos que alegamos muitas vezes ignorância,
quando o verdadeiro termo a usar seria indiferença. Isto é muito triste. Com
certeza, se o nosso Deus, em Sua infinita bondade, tem feito ampla provisão até
para os pecados de ignorância, isso não é uma razão para nos abrigarmos
friamente atrás da desculpa de ignorância, quando existe ao nosso alcance a
mais abundante informação, se tivermos somente a energia de nos servirmos
dela.
Não nos teríamos alargado talvez tão extensivamente sobre este ponto, se não
fosse a convicção de que, cada dia, se torna mais forte na alma, de que temos
chegado a um momento grave da nossa história como cristãos. Não somos
dados a murmurações. Não temos nenhuma simpatia por elas. Cremos que é
nosso privilégio estarmos cheios da mais alegre confiança e termos os nossos
corações e espíritos protegidos pela paz de Deus, que excede todo o
entendimento. "Porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza
e de amor e de moderação (2 Tm 1:7).

O pecado Voluntarioso
Mas é impossível fecharmos os olhos ao fato aterrador que os direitos de
Cristo—o valor da verdade, a autoridade da Escritura Sagrada, estão sendo
postos de lado cada vez mais, cada dia, cada semana e cada ano. Cremos que
nos aproximamos de um momento em que haverá tolerância para tudo exceto
para a verdade de Deus. Convém, portanto, velar cuidadosamente para que a
Palavra de Deus tenha o seu próprio lugar no coração; e para que a consciência
seja governada em tudo pela sua santa autoridade. Uma consciência sensível é
um tesouro preciosíssimo para trazermos conosco, dia a dia uma consciência
que sempre dá uma verdadeira resposta à ação da Palavra de Deus, que se
curva, sem hesitação, às suas simples indicações. Quando a consciência está
em bom estado, há sempre um poder regulador com que atuar sobre o curso
prático e o nosso caráter.
A consciência pode ser comparada ao regulador de um relógio. Pode acontecer
que os ponteiros do relógio estejam errados, mas enquanto o regulador tiver
poder sobre a mola, haverá sempre meio de corrigir os ponteiros. Se esse poder
deixa de existir, todo o relógio se torna inútil. Assim é com a consciência.
Enquanto permanece fiel ao contato da Escritura, aplicado pelo Espírito Santo,
há sempre um poder regulador, seguro e certo; porém se ela se torna apática,
dura ou viciada, se recusa uma resposta verdadeira às palavras "Assim diz o
SENHOR", há pouca ou nenhuma esperança. Então torna-se um caso
semelhante àquele referido no nosso capítulo. "Mas a alma que fizer alguma
coisa à mão levantada, quer seja dos naturais quer dos estrangeiros, injuria ao
SENHOR-, e tal alma será extirpada do meio do seu povo, pois desprezou a
palavra do SENHOR e anulou o seu mandamento; totalmente será extirpada
aquela alma, e a sua iniquidade será sobre ela" (versículos 30-31).
Isto não é pecado de ignorância, mas um pecado insolente voluntarioso, para o
qual nada resta senão o juízo implacável de Deus: “... a rebelião é como o
pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniquidade e idolatria" (1 SI 15:23). São
palavras solenes num momento como o presente, em que a vontade do homem
se desenvolve com força extraordinária. Está calculada para sustentar a nossa
vontade; mas a Escritura ensina o contrário. Os grandes elementos da perfeição
humana — da perfeita virilidade — são estes: a dependência e a obediência. Na
proporção em que alguém se afasta destes elementos, afasta-se do verdadeiro
espírito e atitude que convém a um homem. Por isso, quando volvemos os
nossos olhos para Aquele que foi o Homem perfeito — o Homem Cristo Jesus,
vemos estes dois grandes traços perfeitamente ordenados e plenamente
revelados desde o princípio ao fim. Esse Santo bendito nunca Se afastou, nem
por um momento, da atitude de perfeita dependência e absoluta obediência.
Para ilustrar e comprovar este fato, levar-nos-ia a toda a narrativa do evangelho.
Mas tomemos a cena da tentação, e aí encontraremos um exemplo do conjunto
dessa vida bendita. A resposta que invariavelmente dava ao tentador era: "Está
escrito". Nenhum argumento, nenhuma contestação, nenhuma pergunta. Vivia
da Palavra de Deus. Venceu Satanás retendo firmemente a única verdadeira
posição de um homem — dependência e obediência Podia depender de Deus;
e queria obedecer-Lhe. Que podia Satanás fazer num caso como aquele?
Absolutamente nada.
Pois bem, este é o nosso modelo. Nós, tendo a vida de Cristo, somos chamados
para viver em dependência e obediência habitual. Isto é andar em Espírito. Este
é o caminho seguro e feliz do cristão. A independência e a desobediência
andam juntas. São inteiramente anticristãs e indignas.
Encontramos estas duas coisas no primeiro homem, assim como encontramos
as duas contrárias no Segundo homem. Adão no Éden procurou ser
independente; não estava contente em ser homem e permanecer no único
verdadeiro lugar e espírito de um homem, e tornou-se desobediente. Aqui está o
segredo da queda da humanidade; estes são os dois elementos que formam a
virilidade decaída. Siga- se ato onde se quiser antes do dilúvio, depois do
dilúvio; sem a lei, sob a lei: gentio, pagão, judeu, turco ou cristão nominal —
analise-se minuciosamente, e ver-se-á que ela resume nestas duas partes
componentes: independência e desobediência. E quando chegamos ao fim da
história do homem neste mundo, quando o contemplamos essa última triste
cena na qual ele tem de figurar, como o vemos? Em que caráter aparece ele?
Como "O rei perverso" e o "iníquo".
Que Deus nos dê graça para ponderar bem estas coisas. Cultivemos um
espírito humilde e obediente, Deus tem dito: "Eis para quem olharei: para o
pobre e abatido de espírito, e que treme da minha palavra" (Is 66:2). Que estas
palavras penetrem bem nos nossos ouvidos e nos nossos corações; e que a
constante aspiração das nossas almas seja:"... da soberba guarda o teu servo,
para que se não assenhoreie de mim" (1).
__________
(1) Desejamos lembrar especialmente aos leitores jovens que a verdadeira
salvaguarda contra os pecados de ignorância é o estudo da Palavra de Deus; e
a verdadeira proteção contra os pecados arrogantes é a sujeição à Palavra de
Deus. Precisamos de ter sempre estas coisas em vista. Existe uma forte
tendência entre os crentes jovens para se introduzirem na corrente deste século
e se deixarem imbuir do seu espírito. Daí a independência, a vontade própria e
a autoconfiança, a presunção, e a pretensão a serem mais sábios do que os
anciãos — todas estas coisas são detestáveis à vista de Deus, e inteiramente
opostas ao espírito do Cristianismo.
Queremos sincera e amavelmente insistir com os nossos jovens para que se
guardem contra estas coisas e cultivem um espírito humilde. Lembrem-se de
que Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes.
Apenas nos falta, antes de terminar os nossos comentários sobre esta parte,
notar o caso do profanador do sábado e a instituição do "cordão de azul".

A Profanação do Dia do Repouso


"Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando
lenha no dia de sábado. E os que o acharam apanhando lenha o trouxeram a
Moisés e a Arão, e a toda a congregação. E o puseram em guarda; porquanto
ainda não estava declarado o que se lhe devia fazer. Disse, pois, o SENHOR a
Moisés: Certamente morrerá o tal homem; toda a congregação com pedras o
apedrejará para fora do arraial. Então, toda a congregação o tirou para fora do
arraial, e com pedras o apedrejaram, e morreu, como o SENHOR ordenara a
Moisés" (versículos 32-36).
Isto era certamente um pecado de soberba — era desobedecer resolutamente a
um mandamento claro e positivo de Deus. É isto que caracteriza especialmente
um pecado arrogante e o faz absolutamente indesculpável. Não pode alegra-se
ignorância ante um mandamento divino.
Mas por que motivo, pode perguntar-se, tinham de pôr o homem em guardai
Porque ainda que o mandamento era explícito, todavia a sua quebra não havia
sido prevista, nem tinha sido estabelecida nenhuma pena. Para falar segundo a
maneira dos homens, o Senhor não tinha contemplado uma tal loucura no
homem como profanação do dia de repouso por parte do homem, e não havia,
portanto, provido formalmente a uma tal ocorrência. Não temos necessidade de
recordar que Deus conhece o fim desde o princípio; porem neste assunto
deixou propositalmente o caso despercebido até que chegasse a ocasião
necessária. Mas, infelizmente, essa ocasião chegou, porque o homem é capaz
de tudo! O repouso de Deus não está em seu coração.
Acender o lume no dia de sábado não era uma infração positiva da lei, mas
evidenciava o mais completo alheamento do pensamento do Legislador, visto
que introduzia no dia de repouso o que era símbolo apropriado do juízo. O fogo
é emblemático do juízo, e como tal não podia estar, de modo nenhum, em
relação com o repouso do sábado. Nada, portanto, restava senão fazer cair o
juízo sobre o transgressor, porque "o que o homem semear isso também
ceifará."

O Cordão Azul
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize- lhes que
nas bordas das suas vestes façam franjas, pelas suas gerações; e nas franjas
das bordas porão um cordão azul. E nas franjas vos estará, para que o vejais, e
vos lembreis de todos os mandamentos do SENHOR, e os façais; e não
seguireis após o vosso coração, nem após os vossos olhos, após os quais
andais adulterando. Para que vos lembreis de todos os meus mandamentos e
os façais, e santos sejais a vosso Deus. Eu sou o SENHOR, VOSSO Deus, que
vos tirei da terra do Egito, para vos ser por Deus; eu sou o SENHOR VOSSO
Deus" (versículos 37-41).
O Deus de Israel queria manter o Seu povo em uma contínua recordação dos
Seus santos mandamentos. Daí a magnífica instituição do "cordão de azul" que
era destinado a ser um memorial celestial ligado às bordas dos seus vestidos,
de forma que a Palavra de Deus, pudesse ser sempre trazida à memória nos
pensamentos de seus corações. Sempre que um Israelita punha os seus olhos
sobre o cordão azul devia pensar no Senhor, e mostrar uma sincera obediência
aos Seus estatutos.
Tal era a grande intenção prática do "cordão azul". Mas quando nos voltamos
para Mateus 23:5, vemos o triste uso que o homem tinha feito da instituição
divina. "E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens; pois
trazem largos filactérios e alargam as franjas dos seus vestidos." Assim a
própria coisa que havia sido instituída com o propósito de os levar a recordarem
o Senhor, e a prestarem obediência humilde à Sua preciosa Palavra, fora
convertida em ocasião de própria exaltação e orgulho religioso. Em vez de
pensarem em Deus e na Sua Palavra, pensaram em si próprios e no lugar que
ocupavam no conceito dos homens. "E fazem todas as suas obras a fim de
serem vistos pelos homens." Nem um pensamento de Deus. O espírito original
da instituição foi completamente perdido, enquanto que a forma exterior era
guardada para fins egoístas.
Não podemos ver alguma coisa semelhante a isto em redor de nos e entre nós
mesmos? Pensemos nisto séria e profundamente. Consideremo-lo a fim de não
convertermos o memorial celestial numa divisa terrestre, e o que deveria
levar-nos a uma humilde obediência em ocasião de exaltação própria.

Capítulo 16

O SACERDÓCIO

A Rebelião de Corá
O capítulo que acabamos de considerar é o que podemos chamar uma
digressão da história da vida de Israel no deserto, exceto, com efeito, o curto
parágrafo acerca do que havia profanado o sábado. Prevê o futuro, quando,
apesar de todo o seu pecado e loucura, das suas murmurações e rebelião,
Israel possuirá a terra de Canaã e oferecerá sacrifícios de justiça e cânticos de
louvor ao Deus da sua salvação. Nele temos visto como o Senhor Se eleva
muito acima de toda a incredulidade e desobediência, da vaidade e
voluntariosidade demonstradas nos capítulos 13 e 14, olhando para a plena e
final realização do Seu próprio desígnio eterno e o cumprimento da Sua
promessa a Abraão, Isaque e Jacó.
"E Corá, filho de Jizar, filho de Coate, filho de Levi, tomou consigo a Dã e a
Abirão, filhos de Eliabe, e a Om, filho de Pelete, filhos de Ruben. E
levantaram-se perante Moisés com duzentos e cinquenta homens dos filhos de
Israel, maiorais da congregação, chamados ao ajuntamento, varões de nome. E
se congregaram contra Moisés e contra Arão e lhes disseram: Demais é já; pois
que toda a congregação é santa, todos eles são santos, e o SENHOR está no
meio deles; por que, pois, vos elevais sobre a congregação do SENHOR?"
(versículos l a 3).
Aqui penetramos, pois, na solene história do que o Espírito Santo, por
intermédio de Judas, chama "A contradição de Corá". A rebelião é atribuída a
Corá, porque ele foi o chefe religioso dela. Parece ter possuído influência
suficiente para juntar em volta de si um grande número de homens influentes —
"maiorais chamados 30 ajuntamento, varões de nome". Em suma, era uma
rebelião formidável e muito séria: e nós faremos bem em examinar atentamente
a sua origem e características morais.
É sempre um momento muito crítico na história de uma assembleia quando o
espírito de deslealdade se manifesta; porque, se não for reprimido de um modo
justo, é certo seguirem-se as mais desastrosas consequências. Em todas as
assembleias há elementos capazes de serem seduzidos, e basta que se levante
um espírito rebelde e dominador para os por em movimento e atear em chama
devoradora o fogo que tem estado latente em oculto. Há centenas e milhares
prontos sempre a agruparem-se em redor do estandarte da revolta, logo que
este tiver sido alçado, mas que não têm nem a coragem nem o vigor para o
erguer. Satanás não pegará em qualquer como instrumento de tal obra.
Necessita para ela de um homem manhoso, hábil e enérgico — um homem de
força moral — que tenha influência sobre o ânimo dos seus semelhantes e uma
vontade de ferro para prosseguir com os seus projetos. Sem dúvida, Satanás
incute muito de tudo isto naqueles que usa nos empreendimentos diabólicos.
Em todo o caso, sabemos, com efeito, que os grandes chefes de todos os
movimentos rebeldes são geralmente homens de um espírito superior, capazes
de manejar, segundo a sua própria vontade, a multidão inconstante, que, à
semelhança do oceano, se presta a ser levada por todos os ventos de
tempestade. Tais homens sabem, em primeiro lugar, como excitar as paixões
dos povos; e, em segundo lugar, como as manejar, depois de agitadas. O seu
meio mais poderoso — a alavanca com que podem eficientemente levantar as
massas—é a questão dos seus direitos e da sua liberdade. Se podem ser bem
sucedidos em persuadir o povo de que é privado da sua liberdade, e que os
seus direitos são infringidos, estão seguros de reunir ao redor deles um número
de espíritos inquietos, e de causar dano grave.

A Acusação contra Moisés e Arão


Assim foi no caso de Corá e seus colaboradores. Procuraram dar a entender
que Moisés e Arão agiam como senhores sobre os seus irmãos opondo-se aos
seus direitos e privilégios como membros de
a santa congregação, na qual, segundo o seu parecer, todos estavam a um
mesmo nível e tinham, tanto uns como os outros, o mesmo direito de estar
ativos.
"Demais é já". Tal era a sua acusação contra "o homem mais manso de toda a
terra". Mas que havia Moisés tomado sobre si? O mais rápido relance à história
desse querido e honrado servo teria sido suficiente para convencer qualquer
pessoa imparcial que, longe de tomar dignidade e responsabilidade sobre si, ele
tinha-se mostrado disposto a recusá-las quando lhe foram oferecidas, a
desfalecer debaixo delas quando lhe foram impostas.
Por isso, qualquer que podia pensar em acusar Moisés de querer abarcar muito,
provava apenas que era completamente ignorante do verdadeiro espírito e
caráter desse homem. Seguramente aquele que podia dizer a Josué: "Tens tu
ciúmes por mim? Tomara que todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o
SENHOR lhes desse o seu Espírito!" (Nm 11:29) não pretendia, de modo algum,
tomar muito sobre si.
Mas, por outro lado, se Deus põe um homem em eminência se o qualifica para a
obra—se enche e adapta um vaso para um serviço especial, se designa a um
homem a sua posição, então de que serve qualquer contender com o dom
divino e com a nomeação divinal Na verdade, nada pode ser mais absurdo, "O
homem não pode receber coisa alguma se lhe não for dada do céu". E portanto
é mais do que inútil alguém pretender ser ou ter alguma coisa, porque tal
pretensão deve necessariamente por fim revelar-se falsa. O homem encontrará
mais cedo ou mais tarde o lugar que ele corresponde, e nada subsistirá senão o
que é de Deus.
Portanto, Corá e a sua companhia estavam em desavença com Deus e não
com Moisés e Arão. Estes haviam sido chamados por Deus para ocupar uma
certa posição e cumprir uma determinada obra, e desgraçados deles se
tivessem recusado! Não foram eles que tinham aspirado a essa posição ou
atribuído a obra; haviam sido ordenados por Deus. Isto devia ter resolvido a
questão; e devia resolvê-la para todos salvo para os rebeldes, turbulentos e
ocupados consigo mesmos, que procuravam arruinar os verdadeiros servos de
Deus para se exaltarem a si próprios.
Este é sempre o caso com os promotores de sedição ou descontentamento. O
seu verdadeiro objetivo é tornarem-se ele próprios alguém. Falam ruidosa e
plausivamente dos privilégios e direitos comuns do povo de Deus, mas, na
realidade, aspiram a uma posição para a qual não estão, de modo algum,
qualificados, e a desfrutar de privilégios a que não têm direito.
De fato, o assunto é tão simples quanto possível. Deus tem conferido a alguém
a sua posição e a sua obra a fazer?- Quem o duvidará ? Pois bem, que cada
qual reconheça o seu lugar e o ocupe que saiba qual é a sua obra e a faça. É a
coisa mais absurda que há no mundo alguém tentar ocupar a posição ou fazer a
obra de outrem. Vimos isto claramente ao meditar sobre os capítulos 3 e 4 deste
livro. Corá tinha a sua obra; Moisés tinha a sua também. Por que havia um de
invejar o outro? Tão razoável seria acusar o sol, a lua e as estrelas de se darem
demasiada importância ao brilharem nas suas determinadas esferas, como
acusar qualquer dotado servo de Cristo quando procura desempenhar as
responsabilidades que o seu dom, certamente, lhe impõe. Estes luminares
servem no lugar que lhes foi indicado pela mão do Criador Onipotente; e, desde
que os servos de Cristo façam o mesmo, é acusá-los falsamente dizer que é
demais o lugar que ocupam.

A Função de Cada Um no Corpo de Cristo


Ora este princípio é de imensa importância em qualquer assembleia, grande ou
pequena — em todas as circunstâncias onde os cristãos são chamados para
trabalhar juntos. É um erro supor-se que todos os membros do corpo de Cristo
são chamados para ocupar um lugar de proeminência ou que qualquer membro
pode escolher o seu lugar no corpo. Isto é inteira e absolutamente um caso de
nomeação divina.
Este é o ensino claro de 1 Coríntios 12. "Porque também o corpo não é um só
membro, mas muitos. Se o pé disser: Porque não sou mão, não sou do corpo;
não será por isso do corpo? E se a orelha disser: Porque não sou olho, não sou
do corpo; não será por isso do corpo? Se todo o corpo fosse olho, onde estaria
o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? Mas, agora, Deus
colocou os membros no corpo, cada um deles como quis" (versículos 14-18).
Aqui encontra-se a verdadeira, a única verdadeira origem do ministério na igreja
de Deus—o corpo de Cristo. "Deus colocou os membros". Não é um homem
que nomeia outro, menos ainda um homem que se nomeia a si próprio. É
nomeação divina ou nada, sim, pior do que nada, uma atrevida usurpação dos
direitos divinos.
Ora, examinado o assunto à luz dessa maravilhosa ilustração de 1 Coríntios 12,
que sentido faria o fato de os pés acusarem as mãos ou de os ouvidos
acusarem os olhos de se darem excessiva importância? Esta noção não seria
ridícula em último grau? E verdade que estes membros ocupam um lugar
proeminente no corpo; mas por quê?- Porque "Deus os colocou nele como
quis". E o que fazem eles nesse lugar proeminente? Fazem o trabalho que Deus
lhes deu a fazer. E para que fim? Para o bem de todo o corpo. Não há um só
membro, por mais obscuro que seja, que não colha positivas vantagens das
funções devidamente cumpridas de um membro proeminente. E, por outro lado,
o membro proeminente é devedor às funções devidamente cumpridas do
membro obscuro. Deixai que os olhos percam o seu poder de visão, e todos os
membros se ressentirão. Deixai que haja uma perturbação funcional no membro
mais insignificante, e o membro mais honrado sofrerá com isso.
Por isso, não se trata de uma questão de abarcarmos pouco ou muito, mas de
fazermos a obra que nos é determinada e de ocuparmos o nosso lugar. E pela
operação eficaz de todos os membros, segundo a medida de cada parte, que é
fomentado o crescimento de todo o corpo. Se esta grande verdade não for
compreendida e posta em prática, o crescimento, longe de ser fomentado, é
positivamente impedido; o Espírito Santo será entristecido e extinguido; os
direitos soberanos de Cristo são negados; e Deus é desonrado. Todo cristão é
responsável por atuar segundo este principio divino e testificar contra tudo que
praticamente o nega.
O fato da ruína da Igreja professante não é razão para se abandonar a verdade
de Deus ou sancionar qualquer negação dela. O cristão está sempre e
solenemente obrigado a submeter-se à revelação dos pensamentos de Deus.
Alegar as circunstâncias como uma desculpa para fazer o mal, ou para
descuidar alguma verdade de Deus, é simplesmente fugir à autoridade divina e
fazer de Deus o Autor da nossa desobediência.
Mas não podemos prosseguir com este assunto. Apenas nos referimos a ele
aqui em relação com o nosso capítulo, com o qual devemos agora prosseguir. É
indubitavelmente uma das páginas mais solenes da história de Israel no
deserto.

A Atitude Humilde de Moisés


Corá e a sua companhia aprenderam bem depressa a loucura e pecado do seu
movimento rebelde. Estavam terrivelmente enganados quando se atreveram a
levantar-se contra os verdadeiros servos do Deus vivo. Quanto a Moisés, o
homem contra quem se juntaram, quando ouviu as suas palavras sediciosas
"caiu sobre o seu rosto". Era uma boa maneira de enfrentar os rebeldes.
Havemos visto este amado servo de Deus prostrado, quando devia estar de pé
(Êxodo 14). Mas neste caso era a coisa melhor e mais segura que podia fazer.
Nunca vale a pena contender com pessoas turbulentas e descontentes; é muito
melhor deixá-las nas mãos do Senhor; porque a sua controvérsia é na realidade
com Ele. Se Deus coloca um homem em determinada posição e lhe dá um
determinado trabalho a fazer, e os seus semelhantes pensam que é próprio
contender com ele por causa de ele fazer a sua obra, e de ocupar essa posição,
então a sua dissensão é com Deus, que sabe como resolvê-la, e segundo o Seu
próprio modo.
A certeza dá uma santa calma e elevação moral ao servo do Senhor, sempre
que almas invejosas e turbulentas se levantam contra ele. E quase impossível
alguém ocupar um lugar proeminente de serviço ou ser usado de um modo
proeminente por Deus sem, por vezes, ter de enfrentar os ataques de certos
homens radicais e descontentes, que não podem suportar que alguém seja
mais honrado do que eles. Porém, o verdadeiro modo de os enfrentar é tomar o
lugar de inteira prostração e humildade e permitir que a onda de
descontentamento ruja sobre si.
"Como Moisés isto ouviu, caiu sobre o seu rosto e falou a Corá toda a sua
congregação, dizendo: Amanhã pela manhã o SENHOR fará saber (e não
Moisés mostrará) quem é seu e quem o santo que ele fará chegar a si; e aquele
a quem escolher fará chegar a si. Fazei isto- tomai vós incensários, Corá e toda
a sua congregação; e, pondo fogo neles amanhã, sobre eles deitai incenso
perante o SENHOR: e será que o homem a quem o SENHOR escolher, este
será o santo; baste vos, filhos de Levi" (versículos 4-7).
Isto era pôr o assunto em boas mãos. Moisés dá grande importância aos
direitos soberanos do Senhor. "O SENHOR fará saber" e "o SENHOR
escolherá". Não diz nenhuma palavra a seu respeito ou de Arão. A questão
anda toda à roda da escolha do Senhor e da Sua nomeação. Os duzentos e
cinquenta revoltosos são postos face a face com o Deus vivo. São intimados a
comparecer na Sua presença com os seus incensários nas mãos, a fim de que
todo o assunto possa ser inteiramente examinado e definitivamente resolvido
diante desse grande tribunal em que não pode haver recurso. Evidentemente,
teria sido inútil Moisés e Arão tentarem julgar, visto que eles eram os réus no
caso. Mas Moisés estava felizmente disposto a que todas as partes fossem
chamadas para a presença divina, para ali serem julgadas e determinadas as
suas diferenças.
Isto era verdadeiramente humilde e sabedoria real. É sempre bom, quando as
pessoas buscam um lugar, conceder-lhos, para satisfação dos seus corações;
porque seguramente o próprio lugar a que, loucamente, aspiram, será a cena da
sua assinalada derrota e deplorável confusão. Podemos ver às vezes homens
arrastados pela inveja de outros em certa esfera de serviço, ansiosos por
ocuparem essa esfera eles próprios. Que experimentem; e é certo, por fim,
caírem e retirarem-se cobertos de vergonha e confusão.
O Senhor confundirá incontestavelmente os tais. De nada serve o homem
procurar fazê-lo; e por isso é sempre melhor para os que pode acontecer serem
os objetos de ataque de inveja caírem sobre os seus rostos diante de Deus e
deixar que Ele resolva a questão com os descontentes. É muito triste quando
tais cenas ocorrem na história do povo de Deus; porém elas têm ocorrido,
ocorrem e podem ocorrer repetidas vezes; e nós estamos certos de que o
melhor P ano é deixar que os homens inquietos, ambiciosos e de espírito
indisposto corram toda a extensão da peia em que se envolveram, e então é
certo serem puxados por ela. É de fato, deixá-los nas mãos de Deus, que
certamente tratará com eles segundo o Seu perfeito caminho.
"Disse mais Moisés a Corá: Ouvi, agora, filhos de Levi: Porventura, pouco para
vós é que o Deus de Israel vos separou da congregação de Israel para vos fazer
chegar a si, a administrar o ministério do tabernáculo do SENHOR e estar
perante a congregação para ministrar-lhe; e te fez chegar e todos os teus
irmãos, os filhos de Levi, contigo; ainda também procurais o sacerdócio? Pelo
que tu e toda a tua congregação congregados estais contra o SENHOR; e Arão,
que é ele, que murmurais contra ele? (versículos 8 a 11).
Aqui somos levados à verdadeira causa desta terrível conspiração. Vemos o
homem que engendrou e o objeto a que aspirava. Moisés dirige-se a Corá e
acusa-o de aspirar ao sacerdócio. Observe o leitor isto atentamente. E
importante que tenha este ponto claramente diante do seu espírito, segundo o
ensino da Escritura. Deve ver o que Corá era - o que era a sua obra - e qual o
objetivo da sua agitada ambição. Precisa ver todas estas coisas se quer
compreender a força e o verdadeiro significado da expressão de Judas: "A
contradição de Corá".

A que Corá Aspirava e que Ensino Devemos Tirar disso?


Que era, pois, Corá?- Era um levita, e, como tal, tinha direito a ministrar e
ensinar: "Ensinaram os teus juízos a Jacó e a tua lei a Israel" (Dt 33:10). "O
Deus de Israel vos separou... para vos fazer chegar a si, a administrar o
ministério do tabernáculo do SENHOR e estar perante a congregação para
ministrar-lhe." Tal era Corá e tal a sua esfera de atividade. A que aspirava ele?
Ao sacerdócio. Também procurais o sacerdócio?
Ora, a um observador precipitado podia ter parecido que Corá não buscava
alguma coisa para si. Parecia contender pelos direitos de toda a assembleia.
Mas Moisés, pelo Espírito de Deus, tira a máscara a este homem, e mostra que,
com um pretexto plausível de se levantar para defender os direitos comuns de
toda a congregação, ele procurava, audaciosamente, o sacerdócio para si. É
conveniente notar isto. Vê-se geralmente que os que falam alto sobre as
liberdades e os direitos e privilégios do povo de Deus buscam um lugar que não
lhes é próprio. Isto nem sempre é aparente; mas é certo que mais cedo ou mais
tarde, Deus tudo descobrirá, pois que "por Ele são pesadas as ações". Nada
pode ser mais indigno como buscar uma posição. E certo acabar em
desapontamento e vergonha. O melhor para cada um é ser achado no seu
posto e fazendo a sua obra; e quanto mais humilde, sossegado e
despretensioso for tanto melhor.
Porém, Corá não tinha aprendido este princípio simples e salutar. Não estava
contente com o seu lugar e serviço divinamente assinalado, antes aspirava a
alguma coisa que, de modo nenhum, lhe pertencia. Aspirava ser sacerdote. O
seu pecado era o pecado de rebelião contra o sumo sacerdote de Deus. Esta
era "a contradição de Corá".
E conveniente compreender este fato na história de Corá. Não é geralmente
compreendido; e por isso tem sido causa de que seja acusado, hoje em dia, do
mesmo mal todo aquele que busca exercer qualquer dom que lhe haja sido
concedido pela Cabeça da Igreja. Porém um momento de calma reflexão sobre
o assunto à luz das Escrituras será suficiente para mostrar como é destituída de
fundamento tal acusação. Tome-se por exemplo um homem a quem Cristo tem
dado, de uma maneira clara, o dom de um evangelista. Devemos considerá-lo
culpado do pecado de Corá por que, em prosseguimento da missão e do dom
divino, ele vai pregar o evangelho? O dom divino e a chamada divina não são
suficientes? Atua como rebelde quando prega o evangelho?
Assim é também quanto a um pastor ou doutor. E culpado do pecado de Corá
por que exerce o dom especial que lhe foi dado pela Cabeça da Igreja? O dom
de Cristo não faz de um homem um ministro? E necessário mais alguma coisa?
Não é claro para qualquer espírito imparcial, para todo o que deseja ser
ensinado pela Escritura que a possessão de um dom divinamente transmitido
faz de um homem um ministro sem necessitar de qualquer coisa mais? E não é
igualmente claro que ainda que um homem tivesse tudo que pudesse possuir e
não tivesse um dom outorgado pela Cabeça da Igreja não era de modo algum
ministro? Confessamos que não vemos como podem suscitar-se dúvidas sobre
estas teses.
Falamos, note-se, de dons especiais de ministério na Igreja. Não há dúvida de
que todo o membro do corpo de Cristo tem algum ministério a desempenhar,
algum trabalho a fazer. Isto é compreendido por todo o cristão inteligente; e,
além disso, é evidente que a edificação do corpo é conseguida não meramente
por meio de alguns dons eminentes, mas pela operação eficiente de todos os
membros nos seus respectivos lugares, como lemos na Epístola aos Efésios
4:15,16: "Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que
é a cabeça, Cristo. Do qual todo o corpo bem ajustado e ligado pelo auxílio de
todas as juntas, segundo ajusta operação de cada parte, faz o aumento do
corpo para sua edificação em amor."
Tudo isto é tão claro quanto a Escritura o pode fazer. Mas quanto aos dons
especiais, tais como o de evangelista, de pastor, de profeta ou ensinador, é
Cristo somente Quem os dá; e a sua possessão faz de um homem um ministro
sem qualquer adição. E, por outro lado, toda a instrução e toda a autoridade
humana abaixo do sol não podem fazer de um homem um evangelista, um
pastor ou ensinador, a menos que ele tenha recebido um dom da Cabeça da
Igreja.
Mas dissemos o bastante quanto ao ministério da Igreja de Deus. Cremos ter
dito o bastante para provar ao leitor que é um erro grave acusar os servos de
Deus do pecado horrível de Corá porque exercem esses dons que lhe têm sido
conferidos pela Cabeça da Igreja. Com efeito, seria pecado não os exercerem.
Mas há uma diferença capital entre ministério e sacerdócio. Corá não aspirava a
ser ministro, porque já o era. Aspirava a ser sacerdote, o que ele não podia ser.
O sacerdócio pertencia a Arão e a sua família; e era uma atrevida usurpação
alguém, não importava quem era, tentar oferecer sacrifícios ou desempenhar
qualquer outra função sacerdotal.
Pois bem, Arão era um tipo do nosso Grande Sumo Sacerdote que penetrou
nos céus Jesus, Filho de Deus. O céu é a esfera do Seu ministério, "Ora, se ele
estivesse na terra nem tampouco sacerdote seria" (Hb 8:4). "Visto ser manifesto
que nosso Senhor procedeu de dá e concernente a essa tribo nunca Moisés
falou de sacerdócio" (Hb 7-14) Não há tal coisa como um sacerdote na terra
agora, salvo no sentido em que todos os crentes são sacerdotes. Assim, lemos
em Pedro: "Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real" (1 Pe 2:9). Todo o
cristão é sacerdote segundo o sentido deste termo. O mais fraco crente na
Igreja de Deus é sacerdote tanto como Paulo foi. Não é uma questão da
capacidade ou poder espiritual, mas simplesmente de posição. Todos os
crentes são sacerdotes e são chamados para oferecer sacrifícios espirituais,
segundo Hebreus 13:15-16: "Portanto, ofereçamos sempre, por ele, a Deus
sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome. E não
vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque, com tais sacrifícios,
Deus se agrada."
Este é o sacerdócio cristão. E note o leitor atentamente que aspirar a qualquer
outra forma de sacerdócio, que não seja esta — assumir qualquer outra função
sacerdotal — estabelecer uma determinada classe sacerdotal—uma casta
sacerdotal—um número de homens para atuarem a favor dos seus
semelhantes, ou desempenhar serviço sacerdotal em seu lugar diante de Deus,
isto é em princípio o pecado de Corá. Falamos apenas do princípio e não de
pessoas. O gérmen do pecado é tão distinto quanto possível. O fruto não faltará
ao chegar a sua maturação.
O leitor não será de modo algum indiferente ao conhecimento deste assunto. E,
podemos dizer, de grande importância na atualidade, e deve ser examinado
somente à luz das Escrituras Sagradas. A tradição e a história eclesiástica de
nada servirão neste caso. Tem de ser só a Palavra de Deus. A questão deve ser
posta e tratada à luz dessa palavra: Quem são os verdadeiros culpados do
pecado de Corá nestes dias?- São aqueles que procuram exercer os dons,
sejam quais forem, que a Cabeça da Igreja lhes tem conferido ou os que
exercem um ministério ou se atribuem um ofício sacerdotal que somente
corresponde a Cristo mesmo? É uma questão profunda e solene, possamos nós
ponderá-la calmamente na presença divina e permanecer fiéis Aquele que não
somente é o nosso Salvador bondoso mas nosso soberano Senhor!

O Juízo de Deus sobre Corá e os Seus


A parte final do nosso capitulo apresenta um quadro emocionante do juízo
divino executado sobre Corá e o seu grupo. O Senhor resolveu rapidamente a
questão suscitada por esses rebeldes. O seu próprio relato é extremamente
horroroso. O que não terá sido o próprio fato! A terra abriu a sua boca e tragou
os três principais promotores de rebelião, e o fogo do Senhor desceu e
consumiu os duzentos e cinquenta homens que empreenderam a obra de
oferecer incenso.
"Então, disse Moisés: Nisto conhecereis que o SENHOR me enviou a fazer
todos estes feitos, que de meu coração não procedem. Se estes morrerem
como morrem todos os homens e se forem visitados como se visitam todos os
homens, então, o SENHOR me não enviou. Mas, se o SENHOR criar alguma
coisa nova, e a terra abrir a sua boca e os tragar com tudo o que é seu, e vivos
descerem ao sepulcro, então conhecereis que estes homens irritaram ao
SENHOR" (versículos 28-30).
Moisés coloca deste modo a questão simplesmente entre o Senhor e os
rebeldes. Pode apelar para Deus e deixar tudo nas Suas mãos. Este é o
verdadeiro segredo do poder moral. Um homem que não procura nada para si
mesmo, que não tem outro fim ou objetivo senão a glória divina, pode esperar
confiadamente o desfecho de todas as coisas. Mas para isto os seus olhos
devem ser simples, o seu coração íntegro e o propósito puro. De nada servirá
aparentar ou assumir qualquer coisa. Se Deus vai julgar, descobrirá certamente
todas as pretensões e simulações. Estas coisas deixam deter lugar quando a
terra abre a sua boca e o fogo do Senhor está devorando tudo em redor. E
muito fácil fanfarronar, fazer alarde e empregar palavras empolgantes, quando
tudo está em calma, mas quando Deus entra em cena com juízo terrível, o
aspecto das coisas muda depressa.
"E aconteceu que, acabando ele de falar todas estas palavras, a terra que
estava debaixo deles se fendeu. E a terra abriu a sua boca e os tragou com as
suas casas, como também a todos os homens que pertenciam a Corá e a toda a
sua fazenda. E eles e tudo o que era seu desceram vivos ao sepulcro, e a terra
os cobriu, e pereceram do meio da congregação. E todo o Israel, que estava ao
redor deles, fugiu do CLAMOR deles; porque diziam: Para que, porventura,
também nos não trague a terra a nós" (versículos 31 -34).
Na verdade, "coisa terrível é cair nas mãos do Deus vivo". "Deus deve ser em
extremo tremendo na assembleia dos santos, e grandemente reverenciado por
todos os que o cercam" (SI 89:7). "Porque o nosso Deus é um fogo consumidor"
(Hb 12:29). Quanto melhor teria sido para Corá ter-se contentado com o seu
serviço levítico, que era da mais elevada ordem. O seu trabalho, como coatita,
era levar alguns dos vasos mais preciosos do santuário. Mas ele aspirava ao
sacerdócio e caiu do abismo.
Porém isto não foi tudo. Apenas o solo se havia fechado sobre os rebeldes,
quando "saiu fogo do SENHOR e consumiu os duzentos e cinquenta homens
que ofereciam o incenso". Foi uma cena pavorosa - um sinal e uma
manifestação assombrosa do juízo divino sobre a pretensão e o orgulho
humano. E inútil de todo o homem exaltar-se contra Deus, porque Ele resiste
aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Que perfeita loucura para vermes do
pó se levantarem contra o Deus Todo-Poderoso! Pobre homem! E muito mais
tolo do que o verme que se precipita contra a chama que o devora.
Oh, andar em humildade com Deus! Estar contente com a Sua vontade;
satisfeito em ocupar um humilde nicho e fazer a obra mais simples! Isto é
dignidade e verdadeira felicidade. Se Deus nos der o serviço de varredor,
façamo-lo sob os Seus olhos e para Seu louvor. O ponto importante e essencial
é sermos achados fazendo o próprio trabalho que Ele nos dá a fazer, e
estarmos ocupados no próprio lugar que Ele nos indica. Tivesse Corá e os seus
companheiros aprendido isto, e o seu grito comovente nunca teria aterrorizado
os corações de seus irmãos. Mas não; eles queriam ser alguma coisa quando
nada eram, e por isso desceram ao abismo.
O orgulho e a destruição estão inseparavelmente ligados no governo moral de
Deus. Este princípio permanece inalterável, embora a medida empregada
possa variar. Lembremos isto. Procuremos deixar o estudo de Números com o
profundo reconhecimento do valor de espírito humilde e contrito. Vivemos numa
época em que o homem tende a elevar-se mais e mais. "Excelsior" é divisa
popular hoje em dia. Guardemo-nos de interpretá-la e de a aplicar a nosso
modo. "Aquele que se humilha será exaltado." Se devemos ser regidos do reino
de Deus pela regra veremos, que o único modo de nos levantarmos é
descermos. Aquele que ocupava agora o lugar mais elevado no céu é O mesmo
que voluntariamente tomou o lugar mais baixo na terra (veja-se Filipenses
2:5-11).
Ele é o nosso exemplo, como cristãos; e aqui está também o antídoto divino
contra o orgulho e a ambição impaciente dos homens deste mundo. Nada é
mais triste do que ver um espírito presunçoso, inquieto, vão e impaciente nos
que fazem profissão de seguir Aquele que era manso e humilde de coração. É
uma contradição flagrante do espírito e preceitos do cristianismo, e uma
confirmação inequívoca da condição insubmissa da alma. É inteiramente
impossível que alguém se entregue a um espírito vaidoso, altivo, confiante em si
mesmo, se alguma vez se mediu a si próprio na presença de Deus. O remédio
eficaz para a vaidade e confiança própria consiste em estar o mais tempo
possível com Deus. Possamos nós conhecer a realidade disto no secreto das
nossas próprias almas! Que o Senhor nos faça realmente humildes em todos os
nossos caminhos, apoiando nos simplesmente n'Ele e considerando-nos muito
pouco aos nossos próprios olhos.

O Povo Murmura — A Glória do Senhor Aparece — A Intercessão de Moisés e


Arão
O parágrafo final do nosso capítulo ilustra de um modo notável o mal incorrigível
do coração natural. Podia esperar-se que, depois das cenas emocionantes
executadas na presença da congregação, fossem aprendidas lições profundas
e duradouras. Havendo visto a terra abrir a sua boca, tendo ouvido o grito
dilacerante dos rebeldes que desapareciam no abismo - havendo visto o fogo
do Senhor descer e consumir num momento duzentos e cinquenta príncipes da
congregação - tendo presenciado tais provas do juízo divino, uma tal
manifestação da majestade e poder divino, podia supor-se que o povo andaria
desde então mansa e humildemente, e que os acentos de descontentamento e
rebelião não seriam mais ouvidos nas suas tendas.
Mas, ah, o homem não pode ser assim ensinado! A carne é inteiramente
incurável! Esta verdade é ensinada em cada página do volume de Deus. É
ilustrada nas linhas finais de Números 16. "Mas, no dia seguinte." Pense nisto!
Não um ano, um mês ou mesmo uma semana depois das cenas aterradoras
sobre as quais nos temos detido; não: "Mas, no dia seguinte, toda a
congregação" (já não eram apenas alguns espíritos atrevidos) "dos filhos de
Israel murmurou contra Moisés e contra Arão, dizendo: Vós matastes o povo do
SENHOR. E aconteceu que, ajuntando-se a congregação contra Moisés e Arão
e virando-se para a tenda da congregação, eis que a nuvem a cobriu, e a glória
do SENHOR apareceu. Vieram, pois, Moisés e Arão perante a tenda da
congregação. Então; falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Levantai-vos do meio
desta congregação, e a consumirei como num momento" (versículos 41 a 45).
Aqui está outra oportunidade para Moisés. A congregação inteira está outra vez
ameaçada de imediata destruição. Tudo parece irremediável. A longanimidade
divina parece ter-se esgotado, e a espada do juízo está a ponto de cair sobre
toda a assembleia. E agora parece que no próprio sacerdócio que os rebeldes
haviam desprezado está a única esperança para o povo; e que os mesmos
homens que haviam sido acusados de matar o povo do Senhor eram os
instrumentos de Deus para salvar as suas vidas.
Moisés e Arão "então, se prostraram sobre os seu rosto, e disse Moisés e Arão:
Toma o teu incensário, e põe nele fogo do altar, e deita incenso sobre ele, e vai
depressa à congregação, e faze expiação por eles; porque grande indignação
saiu de diante do SENHOR; já começou a praga. E tomou-o Arão, como Moisés
tinha falado, e correu ao meio da congregação; e eis que já a praga havia
começado entre o povo; e deitou incenso nele e fez expiação pelo povo. E
estava em pé entre os mortos e os vivos; e cessou a praga" (versículos 45 a 48).
Aqui torna-se bem claro que nada senão o sacerdócio mesmo, esse sacerdócio
que havia sido desprezado podia valer a um povo rebelde e de dura cerviz.
Existe qualquer coisa inefavelmente bendita neste parágrafo final. Arão, o sumo
sacerdote de Deus, mantém-se entre os mortos e os vivos, e do seu necessário
uma nuvem de incenso se eleva para a presença de Deus, figura tocante de Um
maior do que Arão, que havendo efetuado um pleno e perfeito sacrifício pelos
pecados do Seu povo, está sempre diante de Deus em toda a fragrância da Sua
Pessoa e obra. Só o sacerdócio podia conduzir o povo através do deserto. Era
um recurso rico e adequado da graça divina. O povo era devedor à intercessão
de haver sido preservado das justas consequências das rebeldes
murmurações. Se tivessem sido tratados meramente com base na justiça, tudo
que podia ser dito era "Levantai-vos do meio desta congregação, e a consumirei
num momento."
Esta é a linguagem da pura e inflexível justiça. Destruição imediata é a obra da
justiça. Preservação completa e final é a obra gloriosa e característica da graça
divina, graça que reina pela justiça. Se Deus tivesse atuado em simples justiça
com o povo, o Seu nome não teria sido declarado, visto que há muito mais no
Seu nome do que justiça. Há nele amor, misericórdia, bondade, longanimidade,
profunda e infalível compaixão. Mas nenhuma destas coisas poderia ser vista
se o povo tivesse sido consumido num momento, e por isso o nome do Senhor
não teria sido declarado ou glorificado. "Por amor do meu nome, retardarei a
minha ira e, por amor do meu louvor, me conterei para contigo, para que te não
venha a cortar... Por amor de mim, por amor de mim o farei, porque como seria
profanado o meu nome?- E a minha glória não a darei a outrem" (Is 48:9-11).
Quão precioso é sabermos que Deus atua para nos, por nós e em nós, para
glória do Seu nome! Como é maravilhoso também que a Sua glória plenamente
só possa vista nesse vasto plano, Seu próprio coração imaginou e no qual é
revelado como "Deus Justo e Salvador". Precioso título para um pecador
perdido! Nele está contido tudo quando o pecador pode necessitar no tempo e
na eternidade. Encontra-o na profundidade da sua necessidade, como culpado
e digno do inferno, leva-o através das diversas necessidades, provações e
aflições do deserto; e, por fim, o conduz a esse mundo brilhante e bendito nas
alturas, onde o pecador e a dor nunca poderão penetrar.

CAPÍTULOS 17 e 18

ARÃO É CONFIRMADO COMO SACERDOTE

As Varas dos Príncipes e a Vara de Arão


Estes dois capítulos formam uma parte distinta na qual se nos apresentam a
origem, as responsabilidades e os privilégios do sacerdócio. O sacerdócio é
uma instituição divina. "E ninguém toma para si esta honra, senão o que é
chamado por Deus, como Arão" (Hb 5:4). Isto é tornado claro de uma maneira
notável no capítulo 17.
"Então, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e toma
deles uma vara para cada casa paterna de todos os seus príncipes, segundo as
casas de seus pais, doze varas, e escreverás o nome de cada um sobre a sua
vara. Porém o nome de Arão escreverás sobre a vara de Levi; porque cada
cabeça da casa de seus pais terá uma vara. E as porás na tenda da
congregação, perante o Testemunho, onde eu virei a vós. E será que a vara do
homem que eu tiver escolhido florescerá; assim, farei cessar as murmurações
dos filhos de Israel contra mim, com que murmuram contra vós. Falou, pois,
Moisés aos filhos de Israel; e todos os maiorias deram-lhe, cada um, uma vara,
para cada maioral uma vara, segundo as casas de seus pais, doze varas; e a
vara de Arão estava entre as suas varas" (versículos 1-6),
Que incomparável sabedoria brilha nesta disposição! Como o assunto é
completamente tirado das mãos do homem e posto onde somente devia estar,
isto é, nas mãos do Deus vivo! Não era para um homem se nomear a si mesmo
ou um homem nomear o seu semelhante; mas Deus que nomeava o homem da
Sua própria escolha. Numa palavra, a questão devia ser definitivamente
resolvida por Deus mesmo, afim de que todas as murmurações pudessem ser
reduzidas ao silêncio para sempre e ninguém fosse capaz de acusar outra vez o
sumo sacerdote de Deus de arrogar-se poderes excessivos. A vontade humana
nada tinha que ver com esta solene questão. Doze varas, todas elas em um
mesmo estado, foram colocadas perante o Senhor; o homem retirou-se e
deixou Deus para resolver. Não houve lugar nem oportunidade, porque não
houve ocasião, para intervenção humana. Na solidão profunda do santuário,
longe dos pensamentos do homem, foi resolvida a grande questão do
sacerdócio por decisão divina; e, sendo assim decidida, nunca mais poderia ser
levantada.
"E Moisés pôs estas varas perante o SENHOR, na tenda do Testemunho.
Sucedeu, pois, que no dia seguinte Moisés entrou na tenda do Testemunho, e
eis que a vara de Arão, pela casa de Levi, florescia; porque produzira flores, e
brotara renovos e dera amêndoas" (versículos 6-8).
Figura admirável dAquele que foi "Declarado Filho de Deus em poder, pela
ressurreição dos mortos" (Rm 1:4). As doze varas estavam igualmente sem
vida; porém Deus, o Deus vivente, entrou em cena, e, por esse poder que lhe é
peculiar, introduziu vida na vara de Arão, e trouxe-a à vista, dando os frutos
fragrantes da ressurreição.

"Escrito está"
Quem poderá contradizer isto? O racionalista pode escarnecer disto e formular
mil perguntas. A fé contempla essa vara carregada de frutos e vê nela uma
encantadora figura da nova criação em que todas as coisas são de Deus. A
infidelidade pode argumentar com fundamento na impossibilidade aparente de
uma vara seca florescer e dar frutos no decurso de uma noite. Mas a quem
parece isso impossíveis Aos infiéis, aos racionalistas, aos cépticos. E por quê?
Porque eles excluem sempre a Deus. Lembremos isto. A infidelidade exclui
invariavelmente a Deus, tira os seus argumentos e chega às suas conclusões
nas trevas da meia-noite. Não há tanto como um simples raio de verdadeira luz
no conjunto dessa esfera em que a infidelidade opera. Exclui a única origem de
luz e deixa a alma envolta nas sombras e na mais profunda tristeza das trevas
que pode sentir-se.
Convém que o leitor se detenha aqui e pondere atentamente este solene fato.
Medite calma e seriamente este aspecto especial da fidelidade, do racionalismo
ou do cepticismo. Começa, prossegue e acaba excluindo a Deus. Aborda o
mistério da germinação, florescimento e fruto da vara de Arão com um infiel e
audacioso " Como?." Este é o grande argumento de todo o infiel. Pode formular
dez mil perguntas mas não pode resolver uma. Ensinará a duvidar de tudo, mas
não dará nada em que crer.
Tal é, prezado leitor, a infidelidade. E de Satanás, que sempre tem sido, é e
será o grande inquiridor. Onde quer que se seguir o rasto de Satanás, encontrar
sempre formulando perguntas. Enche o coração de toda a sorte de "se" e
"como", e assim submerge a alma em densas trevas. Se tão-somente pode
lograr fazer uma pergunta, já tem conseguido o seu fim. Contudo é
perfeitamente importante com uma simples alma que crê que Deus é e Deus
tem falado.
Eis aqui a nobre resposta da fé às interrogações da infidelidade, a solução
divina a todas as dificuldades do incrédulo. A fé introduz sempre Aquele que é
sempre excluído pela infidelidade. Pensa com Deus; a infidelidade pensa sem
Ele.
Por isso, nós dizemos ao leitor e, particularmente, aos cristãos que nunca
devem admitir nenhuma interrogação quando Deus tem falado. Se o fizerem,
Satanás os terá imediatamente debaixo de seus pés. A sua única segurança
contra Satanás encontra-se nessa resposta inexpugnável e imortal: "Está
escrito". De nada aproveitará argumentar com ele com fundamento na
experiência, nos sentimentos ou observação; tem de ser absoluta e
exclusivamente sobre o fundamento de que Deus é e de que Deus tem falado.
Satanás não pode de modo algum lançar mão deste argumento de peso. E um
mento invencível. Pode reduzir tudo o mais a simples fragmento, mas isto
confunde-o e afugenta-o logo.
Vemos isto ilustrado de um modo notável na tentação do Senhor. O inimigo,
segundo o seu método habitual, acercou-se do bendito Senhor para insinuar
uma dúvida—com uma pergunta "Se tu és o Filho de Deus" Como lhe
respondeu o Senhor? Disse-lhe: “Bem sei que sou o Filho de Deus - recebi esse
testemunho dos céus abertos e do Espírito de unção, que desceu e sinto e creio
que tenho experimentado que sou o Filho de Deus? Não; essa não era a
maneira de responder ao tentador. Então, como? "Está escrito".
Tal foi a resposta repetida pela terceira vez do Homem obediente e submisso; e
tal deve ser a resposta de todo o que quiser vencer o tentador.
Assim, quanto à vara florescente de Arão, se alguém pergunta: "Como pode ser
tal coisa? É contrário às leis da natureza; e como podia Deus atravessar-Se
sobre os princípios estabelecidos da filosofia natural?-" A resposta da fé é
sublime em sua simplicidade. Deus pode atuar como Lhe agrada. Aquele que
chamou os mundos à existência pode fazer brotar, florescer e frutificar uma vara
num momento. Tudo se torna simples e tão claro quando Deus é introduzido.
Tudo é lançado em desesperada confusão quando Deus é posto de parte.
Intentar limitar Deus—falamos com reverência— o Criador Onipotente do vasto
universo por certas leis na natureza ou certos princípios da filosofia natural é
nada menos do que ímpia blasfêmia. E quase pior do que negar a Sua
existência. É difícil dizer qual é pior, se o ateu que diz que não há Deus ou o
racionalista que mantém que Deus não pode fazer o que Lhe apraz.
Sentimos a enorme importância de poder examinar-se as verdadeiras origens
das teorias plausíveis que estão mais em voga no tempo presente. O espírito
humano está ocupado em formar sistemas, tirar conclusões e raciocinar em
termos que excluem completamente o testemunho das Escrituras Sagradas e
afastam Deus da Sua própria criação. É preciso ensinar aos jovens a imensa
diferença entre os fatos de ciência e as conclusões dos cientistas.
Um fato é um fato onde quer que se encontre, quer seja na geologia, quer na
astronomia ou qualquer outro ramo da ciência; mas os argumentos, as
conclusões e os sistemas dos homens são outra coisa muito diferente. Ora a
Escritura nunca toca em fatos de ciência; mas o raciocínio dos homens de
ciência encontra-se constantemente em colisão com a Escritura. Infelizmente, é
assim com tais homens! E quando é esse o caso devemos, com inteira decisão,
denunciar esse raciocínio exclamando como o apóstolo:
"Seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso."
De bom grado prosseguiríamos com as nossas considerações sobre este ponto,
apesar de uma divagação, pois sentimos a sua gravidade. Porém, temos de nos
contentar em insistir sinceramente
m O leitor a que dê à Sagrada Escritura o supremo lugar em seu coração e no
seu espírito. Devemo-nos curvar, com absoluta - submissão, não à autoridade
de "Assim diz a Igreja", ou "assim dizem os pais", ou "assim dizem os doutores",
mas ante a expressão "Assim diz o Senhor" - "Assim está escrito". Esta é a
nossa única segurança contra a corrente invasora de incredulidade que ameaça
varrer os fundamentos do pensamento religioso em toda a extensão da
cristandade. Ninguém escapará, salvo os que são ensinados e governados pela
Palavra do Senhor. Que o Senhor aumente o seu número!

A Vara de Arão e a de Moisés


Vamos prosseguir agora com o estudo do nosso capítulo.
"Então, Moisés trouxe todas as varas de diante do SENHORA todos os filhos de
Israel; e eles o viram e tomaram cada um a sua vara. Então, o SENHOR disse a
Moisés: Torna a pôr a vara de Arão perante o Testemunho, para que se guarde
por sinal para os filhos rebeldes; assim, farás acabar as suas murmurações
contra mim, e não morrerão. E Moisés fez assim; como lhe ordenara o
SENHOR, assim fez" (versículos 9 a 11).
Assim a questão foi divinamente resolvida. O sacerdócio é baseado sobre a
preciosa graça de Deus, que tira vida da morte. Esta é a origem do sacerdócio.
De nada teria valido a um homem tomar qualquer das onze varas e fazer dela o
distintivo do ofício sacerdotal. Toda a autoridade humana abaixo do sol não
poderia infundir vida numa vara seca ou fazer dessa vara um canal de bênção
para as almas. E assim do conjunto de todas as onze varas reunidas não havia
tanto como um simples botão ou flor. Mas onde havia a evidência preciosa de
poder vivificador - rasgos refrescantes devida divina e bênção - frutos odoríferos
de graça eficiente, ali, e ali somente, devia ser encontrada a origem desse
mini-rio sacerdotal que podia conduzir através do deserto um povo não apenas
necessitado, mas também murmurador e rebelde.
E aqui podemos naturalmente perguntar: Que foi feito da vara e Moisés?
Porque não estava ela entre as doze?- A razão é ditosa mente simples. A vara
de Moisés era o símbolo de poder e autoridade, A vara de Arão era a
encantadora figura da graça que vivifica os mortos e chama as coisas que não
são como as que são. Ora, simples poder e autoridade não podiam conduzir a
congregação através do deserto. O poder podia esmagar os rebeldes; a
autoridade podia castigar os pecadores; mas só a misericórdia e a graça
podiam valer a uma assembleia de homens, mulheres e crianças necessitados,
fracos e pecadores. A graça que podia fazer brotar amêndoas de um pau seco,
podia também conduzir Israel através do deserto. Foi só em relação com a vara
florescente de Arão que o Senhor pode dizer: "Assim, farás acabar as
murmurações contra mim, e não morrerão." A vara da autoridade podia acabar
com os murmuradores; mas a vara da graça podia acabar as murmurações.
O leitor pode consultar com interesse e proveito uma passagem no começo de
Hebreus 9 em relação com o assunto da vara de Arão. O apóstolo, falando da
arca do concerto, diz: "Em que estava um vaso de ouro, que continha o maná, e
a vara de Arão, que tinha florescido, e as tábuas do concerto." Isto era no
deserto. A vara e o maná eram as provisões da graça divina para as
necessidades dos israelitas durante as suas peregrinações no deserto.
Mas quando nos voltamos para 1 Reis 8:9, lemos: "Na arca, nada havia, senão
só as duas tábuas de pedra, que Moisés ali pusera junto a Horebe, quando o
SENHOR fez aliança com os filhos de Israel, saindo eles da terra do Egito." As
peregrinações pelo deserto haviam acabado, a glória dos dias de Salomão
espalhava os seus raios sobre a terra, e por isso a vara florescida e o vaso de
maná são omitidos, e nada resta salvo a lei de Deus, que era a base do Seu
justo governo no meio do Seu povo.
Pois bem, nisto temos uma ilustração não só da exatidão divina da Escritura, no
seu conjunto, mas também do caráter e objetivo especial do livro de Números. A
vara de Arão estava na arca durante as peregrinações do deserto.
Que o leitor procure alcançar o significado profundo e bendito deste precioso
fato! Que pondere a diferença entre a vara de Moisés e a vara de Arão.
Havemos visto a primeira fazendo a sua obra característica noutros tempos e no
meio de outras cenas. Temos visto aterra do Egito tremendo sob os golpes
pesados dessa vara. Praga após praga caiu sobre essa cena condenada em
resposta a essa vara estendida. Vimos dividirem-se as águas do mar em
resposta a essa vara. Em suma a vara de Moisés era uma vara de poder e
autoridade. Mas não podia apaziguar as murmurações dos filhos de Israel, nem
tampouco conduzir o povo através do deserto. Só a graça podia fazer isso;
graça pura, livre e soberana prefigurada na germinação da vara de Arão.
Nada pode ser mais convincente e mais formoso do que isto. Essa vara seca,
morta, era a verdadeira imagem do estado natural de Israel e na verdade do
estado de cada um de nós por natureza. Não havia seiva, nem vida nem poder.
Podia muito bem dizer-se: Que pode sair dele que tenha algum valor?- Nada
absolutamente, se a graça não houvesse sobrevindo e manifestado o seu poder
vivificador.
Assim foi com Israel no deserto; assim é conosco no tempo presente. Como
deviam eles ser guiados dia a dia? Como deviam ser suportados em todas as
suas fraquezas e necessidades? Como podiam ser suportados em todo o seu
pecado e loucura? A resposta encontra-se na florescência da vara de Arão. Se
a vara seca, morta, era a expressão do estado infrutífero e desprezível da
natureza, os rebentos, as flores e o fruto mostravam a graça vivente e
vivificamente e o poder de Deus, em que estava baseado o ministério
sacerdotal que somente podia manter a congregação através do deserto. Só a
graça podia satisfazer as mil e uma necessidades daquela hoste militante. O
poder não podia ser suficiente. A autoridade de nada serviria. Somente o
sacerdócio podia suprir o que era necessário; e este sacerdócio fora instituído
sobre o fundamento dessa graça eficaz que podia tirar fruto de uma vara seca.

Os Ministérios na Igreja
Assim era quanto ao sacerdócio antigo; e assim é quanto ao ministério no
tempo presente. Todo o ministério na Igreja de Deus e o fruto da graça divina e
dom de Cristo, Cabeça da Igreja. Não existe qualquer outra origem de
ministério. Desde apóstolos aos dons mais humildes todos procedem de Cristo.
O grande princípio básico de todo o ministério está englobado nestas palavras
de Paulo aos Gálatas, nas quais fala de si mesmo como "apóstolo (não da parte
dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que
o ressuscitou dos mortos") (Gl 1:1).
Aqui está, note-se bem, a origem sublime de onde emana todo o ministério. Não
é do homem, ou pelo homem, de nenhuma maneira e de nenhuma forma. O
homem pode pegar em varas secas e moldá-las ou trabalhá-las a seu gosto; e
pode consagrá-las e ordená-las, dando-lhes certos títulos oficiais retumbantes.
Mas de que serve isso? São apenas varas secas, mortas. Podemos dizer com
razão: Onde é que se vê nelas um simples ramo de frutos? Onde se vê nelas
uma simples flor?- Ou antes, onde se vê um só rebento?-Até mesmo um só
botão basta para que exista alguma coisa divina. Mas à parte tudo isto não pode
haver ministério vivificante na Igreja de Deus. É o dom de Cristo e somente o
dom que faz de um homem um ministro. Sem isso é uma pretensão vazia
alguém nomear-se ou ser nomeado por outros para ser ministro.
O leitor aceita completamente este princípio? É tão claro para a sua alma como
um raio de sol?- Tem alguma dificuldade a seu respeito? Se assim é,
rogamos-lhe que procure libertar o seu espírito de todos os pensamentos e
preconceitos, seja qual for a sua origem, que se eleve acima das neblinas
obscuras da tradição: Tome o Novo Testamento e estude, como se estivesse na
presença de Deus, o décimo segundo e o décimo quarto capítulos de 1
Coríntios; assim como Efésios 4:7-12.
Nestas passagens encontrará todo o assunto do ministério desenvolvido, e verá
que todo o ministério, quer seja apóstolos, profetas, doutores, pastores ou
evangelistas é de Deus - tudo dimana de Cristo, a Cabeça exaltada da Igreja.
Se um homem não for possuidor de um dom de Cristo não é um ministro. Todo
o membro do corpo tem uma obra a cumprir. A edificação do corpo é promovida
pela própria ação de todos os membros, quer sejam proeminentes, quer
obscuros, "airosos" ou "desairosos". Em suma, todo o ministério é de Deus, e
não do homem; é por Deus, e não pelo homem. Não existe coisa alguma na
Escritura como um ministro humanamente ordenado. Tudo é de Deus.
Não devemos confundir dons ministeriais com um cargo local. Vemos os
apóstolos ou seus delegados ordenando anciãos e nomeando diáconos; mas
isto era uma coisa inteiramente distinta de dons ministeriais. Esses anciãos e
diáconos podiam possuir e exercer - dons especiais no corpo; os apóstolos não
os ordenaram para exercer tais dons, mas somente para desempenharem o
cargo local. O dom espiritual era dado pela Cabeça da Igreja, e era
completamente independente do cargo local.
É necessário compreender a distinção entre dom e cargo local. Reina a maior
confusão entre as duas coisas em toda a igreja professante, e o resultado é que
o ministério não é compreendido. Os membros do corpo de Cristo não
entendem o seu lugar ou a sua função. A eleição humana, ou a autoridade
humana, de uma forma ou de outra, é considerada essencial para o exercício do
ministério na Igreja. Mas na realidade não existe tal coisa na Escritura. Se há,
nada mais fácil do que apresentá-la. Convidamos o leitor a mencionar uma só
linha, de uma capa à outra, no Novo Testamento em que uma chamada
humana, uma nomeação humana ou a autoridade humana, tenham alguma
coisa que ver com o exercício do ministério (1).
__________
(1) Até mesmo no caso da nomeação de diáconos em Atos 6 vemos que era um
ato apostólico. "Escolhei, pois, irmãos, de entre vós, sete varões, de boa
reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos
sobre este importante negócio". Aos irmãos foi permitido escolherem os
homens, visto que se tratava de administrar o seu dinheiro. Mas a nomeação,
era divina. E isto, recorde-se, referia-se apenas ao assunto dos diáconos, que
deviam administrar os interesses práticos da Igreja. Mas quanto à obra de
evangelistas, pastores e ensinadores, é um assunto independente da escolha
humana e da autoridade humana - depende simplesmente do dom de Cristo (Ef
4:11).

Ah, não! Bendito seja Deus, o ministério na Sua Igreja não é dos homens, nem
pelos homens, "mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai, que o ressuscitou dos
mortos." "Deus colocou os membros nos corpo, cada um deles como quis" (1
Co 12:18), "Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom
de Cristo. Pelo que diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos
homens... deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento
dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo, até
que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a
varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4:7-13).
Aqui todos os graus de dons ministeriais são colocados sobre um e mesmo
terreno, de apóstolos e evangelistas e doutores. São todos conferidos pela
Cabeça da Igreja; e, uma vez conferidos, tornam os seus possuidores
imediatamente responsáveis ante a Cabeça no céu e os membros na terra. A
ideia de qualquer possuidor de um dom positivo de Deus se fazer consagrar por
autoridade humana é um insulto tão grande à Majestade Divina como se Arão
tivesse ido com a sua vara florida na mão para ser ordenado para o sacerdócio
por algum dos seus semelhantes. Arão foi chamado por Deus, e isso era
bastante para si. E assim hoje todos os que possuem um dom divino são
chamados por Deus para o ministério e não necessitam nada mais, salvo
desempenhar o seu ministério exercendo o dom.
Será precioso acrescentar que é inútil os homens decidirem ser ministros a não
ser que realmente possuam o dom?- Um homem pode presumir ter um dom,
mas isso pode ser apenas um conceito inútil da sua própria mente. É tão mau,
senão pior, alguém agir segundo a força da sua própria imaginação tola como
se propor atuar sobre o poder de autoridade injustificável dos seus
semelhantes. O que nós defendemos é o seguinte: o ministério é de Deus
quanto à sua origem, poder e responsabilidade. Não cremos que esta afirmação
seja posta em dúvida pelos que estão dispostos a serem ensinados
exclusivamente pela Escritura. Todo o ministro, seja qual for o seu dom, deve
poder dizer, segundo a sua medida: "Deus pôs-me no ministério". Mas se um
homem se serve desta linguagem sem possuir qualquer dom, é, para não dizer
mais, pior do que indigno. O povo de Deus pode realmente ver onde existe
verdadeiro dom espiritual. E mais que certo haver poder. Mas se os homens
fingem ter o dom ou poder sem a realidade, a sua loucura será prontamente
manifesta a todos. Os pretendentes podem estar certos de mais cedo ou mais
tarde se acharem no seu próprio terreno.
Dissemos o bastante quanto ao ministério e sacerdócio. A origem de cada um é
divina. O verdadeiro fundamento de cada um consiste na vara florida. Que isto
esteja sempre presente em nossas mentes. Arão podia dizer: "Deus pôs-me no
sacerdócio"; e se fosse convidado a apresentar a prova, podia referir a vara
frutífera. Paulo dia dizer: "Deus pôs-me no ministério"; e quando foi convidado a
apresentar as provas, pôde apontar os milhares de selos da sua obra. Assim
deve ser sempre em princípio, qualquer que seja a medida. O ministério não
deve ser meramente em palavras ou língua, mas em verdade. Deus não
reconhecerá um discurso, mas sim o poder.
Porém antes de deixarmos este assunto, cremos ser absolutamente necessário
fazer sentir ao leitor a importância de distinção entre ministério e sacerdócio. O
pecado de Corá consistiu nisto: não contente em ser ministro, ambicionou ser
sacerdote; e o pecado da cristandade é do mesmo caráter. Em vez de deixar
que o ministério descanse sobre a própria base do Novo Testamento, exibindo
os seus próprios característicos, e desempenhando as suas próprias funções, é
exaltada ao sacerdócio uma casta sacerdotal, cujos membros devem
distinguir-se de seus irmãos pela sua maneira de vestir e certos títulos. Não
existe qualquer base para estas coisas no Novo Testamento.

Todos os Crentes São Sacerdotes


Segundo o ensino claro desse bendito Livro, todos os crentes são sacerdotes.
Assim, lemos em Pedro: "Mas vós (não meramente os apóstolos, mas todos os
crentes) sois a geração eleita, o sacerdócio real" (l Pe 2:9). Assim também em
Apocalipse 1:5-6: "Àquele que nos ama, e em seu sangue nos lavou dos nossos
pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai." Em conformidade
com a verdade exposta nas precedentes passagens, vemos como o apóstolo
Paulo, guiado pelo Espírito Santo, exorta os crentes hebreus a entrarem com
ousadia no próprio santuário (Hb 10: 19-22). E acrescenta: "Portanto,
ofereçamos sempre, por ele (isto é Jesus), a Deus sacrifício de louvor, isto é, o
fruto dos lábios que confessam o seu nome. E não vos esqueçais da
beneficência e comunicação, Porque, com tais sacrifícios, Deus se agrada" (Hb
13:15,16).
Quão maravilhoso deve ter sido para os santos judaicos esses que haviam sido
treinados nas instituições da economia mosaica serem exortados a entrar num
lugar do qual o mais elevado funcionário somente podia aproximar-se uma vez
por ano, e ainda assim só por um momento! E depois ser-lhes dito que deviam
oferecer sacrifícios, que deviam desempenhar as funções peculiares do
sacerdócio! Tudo isto é maravilhoso. Mas assim é, se queremos ser ensinados
pela Escritura, e não pelos mandamentos, doutrinas ou tradições dos homens.
Todos os cristãos são sacerdotes. Não são todos apóstolos, profetas, doutores,
pastores ou evangelistas; mas são todos sacerdotes. O próprio membro mais
humilde da Igreja era tanto sacerdote como Pedro, Paulo, Tiago ou João.
Não falamos de capacidade ou de poder espiritual, mas da posição que todos
ocupam em virtude do sangue de Cristo. No Novo Testamento não existe tal
coisa como uma certa classe de homens, uma casta privilegiada, posta numa
posição mais elevada ou mais próxima do santuário do que os seus irmãos,
Tudo isto é oposto ao cristianismo - uma arrojada contradição de todos os
preceitos da Palavra de Deus e dos ensinos especiais de nosso bendito Senhor
e Mestre.
Que ninguém suponha que estas coisas são insignificantes. Muito longe disso.
Pelo contrário, afetam os próprios fundamentos do cristianismo. Apenas
precisamos de abrir os olhos e olhar em volta de nós para ver os resultados
práticos de se confundir o ministério com o sacerdócio. E podemos estar certos
de que se aproxima rapidamente o momento em que estes resultados
assumirão um caráter mais espantoso desencadeando contra si os mais duros
juízos do Deus vivo.
Não temos visto ainda o verdadeiro antítipo do "engano de Corá"; mas em breve
será manifestado; e avisamos solenemente o leitor a ter cautela como dá a sua
aprovação ao grave erro de misturar as duas coisas tão distintas como são o
ministério e o sacerdócio. Queremos exortá-lo a considerar este assunto à luz
da Escritura. Aconselhamo-lo a submeter-se a autoridade da Palavra de Deus e
a deixar tudo que não estiver baseado nela. Não importa o que é; pode ser uma
veneranda instituição; uma ordem vantajosa, uma cerimônia apoiada pela
tradição e aprovada por milhares dos melhores homens. Nada disso importa. Se
não tiver base na Escritura, é um erro. e um mal, e uma cilada do inimigo para
apanhar as nossas almas e nos afastar da simplicidade que há em Cristo Jesus.
Se, por exemplo, nos é ensinado que existe na Igreja de Deus uma casta
sacerdotal, uma classe de homens mais santos, mas elevados, que estão mais
perto de Deus do que os seus irmãos - do que os cristãos vulgares o que é isto
senão judaísmo revestido de formas cristãs? E qual deve ser o efeito disto
senão roubar os filhos de Deus dos seus privilégios como tais e pô-los a
distância d'Ele e submetê-los à escravidão?
Não vamos prosseguir por agora este assunto. Sugerimos o bastante para que
o leitor ponderado o continue por si mesmo. Apenas queremos acrescentar, e
isto com ênfase especial, que deve segui-lo somente à luz das Escrituras. Que
decida pela graça de Deus pôr de lado tudo que não descansa sobre a base
sólida e sagrada da Palavra escrita. Assim, e assim somente, poderá
preservar-se a si mesmo de todas as formas de erro e ser levado a uma
conclusão correta sobre esta importante quão interessante questão.
As linhas finais do capitulo 17 proporcionam um exemplo notável da rapidez
com que o espírito humano passa de um extremo a outro, "Então, falaram os
filhos de Israel a Moisés, dizendo: Eis aqui, nós expiramos, perecemos, nós
perecemos todos. Todo aquele que se aproximar do tabernáculo do SENHOR
morrerá; seremos, pois, todos consumidos?-" No capítulo precedente vimos
atrevida arrogância na própria presença da majestade do Senhor, quando
deveria ter havido uma profunda humildade. Aqui, na presença da graça divina
e de suas provisões, observamos temor e desconfiança legais. Assim é sempre.
A simples natureza não compreende nem a santidade nem a graça. Num
momento ouvimos palavras como estas: "... toda a congregação é santa"; e no
momento seguinte a palavra é: ...nós expiramos, perecemos, perecemos
todos". O espírito carnal toma a liberdade de escolher o lugar que devia ocupar;
desconfia quando deveria confiar.
Todavia, tudo se torna, pela bondade de Deus, numa ocasião para nos revelar,
de uma maneira perfeita e bendita, as santas responsabilidades como também
os preciosos privilégios do sacerdócio. Quão gracioso, quão próprio do nosso
Deus converter os erros do Seu povo numa ocasião de nos dar mais profunda
instrução dos seus caminhos! É Sua prerrogativa, bendito seja o Seu nome,
fazer com que do mal saia bem, fazer sair do comedor comida e doçura do forte
(Jz 14:14). Assim "a contradição de Corá" dá ocasião a um volume grande de
instrução, que oferece a vara de Arão; e os versículos finais do capítulo 17
provocam um relato das funções do sacerdócio de Arão. Sobre este último
ponto vamos dirigir a atenção do leitor.
"Então, disse o SENHOR a Arão: Tu, e teus filhos, e a casa de teu pai contigo,
levareis sobre vós a iniquidade do santuário; e tu e teus filhos contigo levareis
sobre vós a iniquidade do vosso sacerdócio. E também farás chegar contigo a
teus irmãos, a tribo de Levi, tribo de teu pai, para que se ajuntem a ti, e te
sirvam; mas tu e teus filhos contigo estareis perante a tenda do testemunho. E
eles farão a sua guarda, a guarda de toda a tenda: Mas não se chegarão aos
vasos do santuário, e ao altar, para que não morram, tanto eles como vós. Mas
se ajuntarão a ti e farão a guarda da tenda da congregação em todo o ministério
da tenda; e o estranho o não se chegará avós. Vós, pois, fareis o a guarda do
santuário e a guarda do altar, para que não haja outra vez furor sobre os filhos
de Israel. E eu, eis que tenho tomado vossos irmãos, os levitas, do meio dos
filhos de Israel; a vós são dados em dádiva pelo SENHOR, para administrar o
ministério da tenda da congregação. Mas tu e teus filhos contigo guardareis o
vosso sacerdócio em todo o negócio do altar, e no que estiver dentro do véu,
isto administrareis; eu vos tenho dado o vosso sacerdócio em dádiva ministerial,
e o estranho que se chegar morrerá" (Nm 18:1-7).
Aqui temos uma resposta divina a questão suscitada pelos filhos de Israel:
"Seremos consumidos com a morte? "Não", diz o Deus de toda a graça e
misericórdia E por que não? Porque "Arão e seus filhos com ele farão a guarda
do altar; para que não haja outra vez furor sobre os filhos de Israel." Desta
forma o povo é advertido de que no próprio sacerdócio, que tinha sido tão
desprezado e contra o qual tanto haviam falado, deviam encontrar segurança.

Os Levitas sob as Ordens de Arão


Mas temos de notar especialmente que os filhos de Arão e a casa de seu pai
estão associados com ele nos seus elevados e santos privilégios e
responsabilidade. Os levitas foram dados como um dom a Arão para fazerem o
serviço do tabernáculo da congregação. Deviam servir sob as ordens de Arão, o
chefe da casa sacerdotal. Isto nos dá uma boa lição, e uma lição muito
necessária para os cristãos no tempo presente. Precisamos de ter sempre em
vista que o serviço, para ser inteligente e aceitável, tem de ser feito em sujeição
à autoridade e direção do sacerdote. "E também farás chegar contigo a teus
irmãos, a tribo de Levi, a tribo de teu pai, para que se ajuntem a ti e te sirvam."
Isto imprime um caráter distinto sobre todos os pormenores do serviço levítico.
Toda a tribo dos obreiros estava associada com o sumo sacerdote e era-lhe
sujeita. Tudo estava sob a sua direção e imediata orientação. Assim deve ser
agora a respeito de todos os servos de Deus. Todo o serviço cristão deve ser
prestado em comunhão com o nosso Sumo Sacerdote e em santa sujeição à
Sua autoridade; de contrário não terá valor algum. Pode fazer-se muito trabalho,
pode haver muita atividade; mas se Cristo não for o objetivo imediato perante o
coração, se a Sua direção e autoridade não forem plenamente reconhecidas, a
obra não servirá de nada.
Por outro lado, o menor ato de serviço, a obra mais insignificante feita debaixo
do olhar de Cristo e em relação direta com Ele, tem o seu valor segundo a
apreciação de Deus, e receberá certamente o seu próprio galardão. Isto é
verdadeiramente animador e consolador para o coração de todo o obreiro
sincero. Os Levitas tinham de trabalhar sob a direção de Arão. Os cristãos têm
de trabalhar sob Cristo. Somos responsáveis para com Ele. É muito bom e
agradável andar de acordo com os nossos companheiros e sujeitarmo-nos uns
aos outros, no temor do Senhor. Nada está mais longe dos nossos
pensamentos do que alimentar ou favorecer um espírito de orgulhosa
independência ou aquele estado de alma que impediria a nossa alegre e cordial
cooperação com os nossos irmãos em toda a boa obra.
Todos os levitas estavam "juntos a Arão" na sua obra e portanto, estavam juntos
uns aos outros. Por isso, trabalhavam juntos. Se um levita tivesse voltado as
costas a seus irmãos, tê-las-ia voltado também a Arão. Podemos imaginar um
levita ofendido de uma coisa ou outra na conduta dos seus companheiros e
dizendo para si mesmo: "Não posso continuar com os meus irmãos. Tenho de
trabalhar só. Posso servir a Deus e trabalhar sob Arão; mas devo manter-me
afastado dos meus irmãos visto que me é impossível concordar com eles
acerca da maneira de trabalhar". Mas podemos ver facilmente a falsidade de
tudo isto. Adotando uma tal linha de atividade, o levita teria produzido confusão.
Todos eram chamados a trabalhar juntos, por mais diverso que pusesse ser o
seu trabalho.
Contudo, recorde-se sempre que a sua tarefa variava; e, não obstante, cada um
era chamado para trabalhar sob as ordens de Arão. Havia responsabilidade
individual com a mais harmoniosa ação coletiva. Desejamos certamente
fomentar, de todos os modos possíveis, a unidade na ação; mas não se deve
permitir que isto ataque o domínio do serviço pessoal, ou interfira com a relação
direta do obreiro a seu Senhor.
A Igreja de Deus oferece um extenso campo de trabalho aos obreiros do
Senhor. Existe nela amplo espaço para toda a sorte de trabalhadores. Não
devemos tentar reduzi-los todos a um nível morto ou estreitar as diversas
energias dos servos de Cristo restringindo-as a certos velhos costumes de
nossa própria organização. Isto nunca dará resultado. Devemos, todos nós,
procurar diligentemente combinar a mais cordial unanimidade com a maior
variedade possível de ação. As duas coisas serão fielmente promovidas por
cada ume todos se recordarmos que somos chamados para servir juntos sob
Cristo.
Eis aqui o grande segredo: Juntos sob Cristo! Tenhamos isto sempre presente.
Isto nos ajudará a reconhecer e a apreciar o trabalho de outro, por muito
diferente que possa ser do nosso; e, por outro lado, nos guardará do sentimento
presunçoso do nosso próprio serviço, visto que teremos ocasião de ver que não
somos mais que cooperadores num mesmo vasto campo; e que o grande
objetivo que se propõe ao coração do Mestre só pode ser conseguido
prosseguindo cada obreiro com o seu trabalho especial e continuando-o em
feliz acordo com todos.
Existe uma perniciosa tendência em alguns espíritos para depreciar toda a
atividade que não seja a sua própria. Guardemo-nos cuidadosamente de tal
coisa. Se todos seguissem o mesmo ramo de atividade, onde estaria essa
preciosa variedade que caracteriza a obra e os obreiros do senhor no mundo?
Não se trata apenas de uma questão de gênero de trabalho, mas, com efeito, do
tipo peculiar de cada obreiro. Pode deparar-se com dois evangelistas ambos
distinguidos por um ardente desejo pela salvação das almas, pregando cada um
deles substancialmente a mesma verdade; e, contudo, pode haver a maior
diferença na maneira em que cada um deles procura alcançar o mesmo fim.
Devemos atentar para isso. De fato, isto é de esperar. Aplica-se igualmente a
todos os ramos do serviço cristão. Devemos suspeitar energicamente do
terreno ocupado por uma assembleia cristã se não há amplo lugar para todos os
ramos e formas de serviço cristão para cada gênero de trabalho susceptível de
ser tomado em responsabilidade individual para com o grande Chefe da casa
sacerdotal. Não deveríamos fazer coisa alguma que não pudesse ser feita sob
Cristo e em comunhão com Ele. E tudo que pode ser feito em comunhão com
Cristo pode certamente ser feito em comunhão com aqueles que andam com
Ele.
Mas dissemos o bastante acerca da maneira especial em que os levitas são
introduzidos neste capítulo em relação com Arão e seus filhos. Voltemo-nos
agora, por um momento, para estes e meditemos na rica provisão que é feita
para eles pela bondade de Deus e sobre as solenes funções que lhes são
confiadas no seu lugar sacerdotal.
"Disse mais o SENHOR a Arão: E eu, eis que te tenho dado a guarda das
minhas ofertas alçadas, com todas as coisas santas dos filhos de Israel; por
causa da unção as tenho dado a ti e a teus filhos, por estatuto perpétuo. Isto
terás das coisas santíssimas, do fogo: todas as suas ofertas, com todas as suas
ofertas de manjares, com todas as suas expiações do pecado, e com todas as
suas expiações da culpa, que me restituírem, serão coisas santíssimas ,para ti e
para teus filhos. No lugar santíssimo o comerás; todo o varão o comerá;
santidade será para ti" (versículos 8 a 10).
Vós Sois o Sacerdócio Real, a Nação Santa (1 Pedro 2:9)
Aqui temos um tipo do povo de Deus visto sob outro aspecto. São apresentados
aqui, não como obreiros, mas como adoradores; não como levitas, mas como
sacerdotes. Todos os crentes - todos os cristãos - todos os filhos de Deus são
sacerdotes. Não há, segundo o ensino do Novo Testamento, tal coisa como um
sacerdote na terra, salvo no sentido em que todos os crentes são sacerdotes.
Uma classe especial de sacerdotes - uma certa classe de homens posta de lado
como sacerdotes -é uma coisa não apenas desconhecida na cristandade, mas
positivamente hostil ao seu espírito e seus princípios. Já nos referimos a este
assunto e citamos as diversas passagens das Escrituras sobre ele. Temos um
grande Sumo sacerdote que penetrou nos céus, "porque se estivesse na terra
nem tão pouco sacerdote seria" (compare-se Hebreus 4:14 e 8:4). "Nosso
Senhor procedeu de Judá, e sobre essa tribo Moises não falou de sacerdócio".
Por isso, um sacerdote oficiando na terra é uma negação direta da verdade da
Escritura e uma anulação do fato glorioso sobre o qual está baseado o
cristianismo, isto é: uma redenção cumprida. Se há qualquer necessidade hoje
de um sacerdote para oferecer sacrifício pelos pecados, então a redenção não é
certamente um fato cumprido, Mas a Escritura declara em centenas de
passagens que é um fato, e portanto não necessitamos de mais ofertas pelo
pecado.
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por
sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado uma eterna redenção" (Hb 9:11, 12). Assim
também em capítulo 10:14: "Porque, com uma só oblação, aperfeiçoou para
sempre os que são santificados". "E jamais me lembrarei de seus pecados e de
suas, iniquidades. Ora onde há emissão destes não há mais oblação pelo
pecado" (versículo 17),
Isto resolve a grande questão do sacerdócio e do sacrifício pelo pecado. Consta
do próprio fundamento do cristianismo e requer profunda e séria atenção de
todos os que desejam nadar na luz límpida da plena salvação e ocupar a
verdadeira posição cristã. Existe uma forte inclinação para o judaísmo - um
esforço vigoroso para injetar formas cristãs no velho tronco judaico. Nada disto
é novo; mas presentemente, o inimigo parece especialmente ocupado.
Podemos perceber uma inclinação para o romanismo em toda a extensão da
cristandade; e em nada e observa tanto esta notável inclinação como nas
instituições de uma ordem especial de sacerdócio na Igreja de Deus. Cremos
que é uma instituição inteiramente anticristã. É a negação do sacerdócio
comum de todos os crentes. Se uma determinada ordem de homens é
ordenada para ocupar um lugar de especial proximidade e santidade, então
onde deve estar a grande massa dos cristãos?
Esta é a questão. É precisamente nisto que a grande importância e gravidade
de todo o assunto são aparentes. Não suponha o leitor que estamos
defendendo alguma teoria peculiar de alguma classe especial ou seita do
cristianismo. Nada está mais longe dos nossos pensamentos. É porque
estamos convencidos de que os próprios fundamentos da fé cristã estão
envolvidos nesta questão do sacerdócio que instamos pela sua consideração
com todos aqueles com quem entramos em contato.
Cremos que na medida em que os cristãos veem claro e estão estabelecidos no
terreno divino de uma redenção cumprida, mais e mais se afastam do
romanismo e do judaísmo ou de uma ordem de sacerdotes na Igreja de Deus.
E, por outro lado, quando as almas não estão iluminadas e seguras, quando
não são espirituais, quando há apego ao legalismo, à carnalidade e ao
mundanismo, encontrar-se-á propensão para um sacerdócio humanamente
estabelecido, Não é muito difícil ver a razão disso. Se um homem não esta em
estado conveniente para se aproximar de Deus, será um alívio para si empregar
outro para que se aproxime de Deus em seu lugar. E certamente ninguém está
em estado conveniente para se aproximar do Deus santo, se não sabe que os
seus pecados estão perdoados - se não tem a sua consciência perfeitamente
purificada - se está num estado de ânimo inseguro, sombrio e legalista.
Para entrar com ousadia no santuário, temos de saber o que o sangue de Cristo
fez de nós; temos de saber que nós mesmos fomos feitos sacerdotes para
Deus; e que, em virtude da morte expiatória de Cristo, temos sido trazidos para
tão perto de Deus que é impossível a qualquer ordem dos homens interpor-se
entre nós e Deus. "Àquele que nos ama e em seu sangue nos lavou dos nossos
pecados, e nos fez reis a sacerdotes para Deus e seu Pai" (Ap 1:5-6). "Mas vós
sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para
que anunciei as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz" (1 Pe 2:9).
"Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual, e sacerdócio
santo para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo"
(1 Pe 2:5).
"Portanto ofereçamos sempre por ele a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto
dos lábios que confessam o seu nome. E não vos esqueçais da beneficência e
comunicação, porque com tais sacrifícios Deus se agrada" (Hb 13:15-16).
Aqui temos os dois grandes ramos de sacrifício espiritual que, como sacerdotes,
temos o privilégio de oferecer, a saber: louvor a Deus e beneficência aos
homens. O crente mais jovem, mais inexperiente e menos ilustrado é capaz de
entender estas coisas. Quem haverá em toda a família de Deus - em toda a
casa sacerdotal do nosso divino Sumo Sacerdote - que não o possa dizer de
coração, "Louvado seja o Senhor"? E quem não pode fazer com as suas mãos
algum bem ao seu próximo?- E isto é culto sacerdotal e serviço sacerdotal - o
culto e serviço comum a todos os verdadeiros cristãos. E certo que a medida de
poder espiritual pode variar; mas todos os filhos de Deus são constituídos
sacerdotes.

“Levai as Cargas Uns dos Outros" (Gálatas 6:2)


Ora, o capítulo dezoito de Números apresenta-nos um relato completo das
provisões feitas para Arão e a sua casa; e, nessas provisões, uma figura da
porção espiritual do sacerdócio cristão. E certamente não podemos ler esse
relato sem ver qual é a porção magnânima que nos pertence. "Todas as suas
ofertas, com todas as suas ofertas de manjares, e com todas as suas expiações
do pecado, e com todas as suas expiações da culpa, que me restituírem; elas
serão coisas santíssimas para ti e para teus filhos. No lugar santíssimo o
comerás; todo varão o comera; santidade será para ti" (versículos 9-10).
É necessária uma grande medida de capacidade espiritual para compreender a
profundidade e o significado desta maravilhosa passagem. Comer as expiações
do pecado ou as expiações da culpa é, em figura, identificar-se com o pecado
ou culpa de outrem. Isto é trabalho santo. Não é qualquer que pode, em espírito,
identificar-se com o pecado do seu irmão. Fazê-lo, no sentido de expiação, está,
desnecessário é dizer, fora de toda a discussão. Houve apenas um que pôde
fazer isto; e Esse-bendito seja para sempre o Seu nome! - fê-lo perfeitamente.
Porém uma coisa é possível e essa é tomar o pecado do meu irmão como meu
e levá-lo em espírito perante Deus, como se fosse o meu próprio. Isto é
prefigurado pela ação dos filhos de Arão comendo a expiação do pecado no
lugar santíssimo. Eram só os filhos quem fazia isto. "Todo varão comerá dela"
(1). Era a ordem mais elevada de serviço sacerdotal. "No lugar santíssimo o
comerás."
__________
(1) Em regra geral, o "filho" apresenta a ideia divina; "a filha" a compreensão
humana dessa ideia; "o macho" apresenta a coisa como Deus a dá; a "fêmea" a
coisa tal qual nós a realizamos e mostramos.

Necessitamos estar muito perto de Cristo para podermos compreender o


significado e a aplicação espiritual de tudo isto. E um exercício
maravilhosamente abençoado e santo, e só pode ser conhecido na presença
imediata de Deus. O coração pode dar testemunho do pouco que realmente
conhecemos disto. A nossa inclinação, quando um irmão peca, é julgá-lo -
tomarmos o lugar de um censor rígido e considerar o seu pecado como alguma
coisa com que nada temos a ver. E assim falhamos tristemente nas nossas
funções sacerdotais. Recusamos comer a expiação da culpa no lugar
santíssimo. E um fruto da graça identificarmo-nos com um irmão extraviado até
podermos considerar o seu pecado como propriamente nosso - levá-lo em
espírito perante Deus.
Isto é uma ordem verdadeiramente elevada de serviço sacerdotal, e requer uma
grande medida do espírito e mente de Cristo. Só uma alma espiritual poderá
realmente compreender isto. Mas, ah! Quão poucos de nós somos realmente
espirituais! "Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma
ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espírito de mansidão,
olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado. Levai-as cargas uns
dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo" (Gl 6:1-2). Que o Senhor os
conceda a graça de cumprirmos esta bendita "lei"! Quão pouco se parece com o
que se encontra em nós! Como isto condena a nossa dureza e o nosso
egoísmo! Oh! Sejamos mais semelhantes a Cristo nisto como em tudo o mais!
A Porção dos Filhos e das Filhas de Arão
Mas havia outra ordem de privilégio sacerdotal menos elevada do que a que
temos estado a considerar. "Também isto será teu: a oferta alçada dos seus
dons com todas as ofertas movidas dos filhos de Israel; a ti, a teus filhos, e a
tuas filhas contigo, as tenho dado por estatuto perpétuo; todo o que estiver
limpo na tua casa as comerá" (versículo 11).
As filhas de Arão não deviam comer as expiações do pecado nem as expiações
da culpa. Estavam providas segundo o limite da sua capacidade; mas havia
certas funções que elas não podiam cumprir, certos privilégios que estavam fora
do seu alcance, certas responsabilidades pesadas demais para elas poderem
cumpri-las. É muito mais fácil termos comunhão com alguém nas ações de
graças do que fazermos nosso o seu pecado. Este último ato exige uma medida
de energia sacerdotal que encontra o seu tipo nos "filhos" de Arão, e não nas
"filhas". Devemos estar preparados para as diversas capacidades entre os
membros da casa sacerdotal. Todos estamos, bendito seja Deus, sobre o
mesmo terreno; todos temos o mesmo título; todos estamos no mesmo grau de
parentesco; mas as nossas capacidades variam; e embora todos possamos
aspirar ao mais elevado grau de serviço sacerdotal e a mais elevada medida de
capacidade sacerdotal, é inútil pretender o que não possuímos.
Uma coisa contudo é ensinada claramente em versículo 11, isto é, devemos
estar "limpos" para desfrutar o privilégio sacerdotal ou comer qualquer alimento
sacerdotal - limpos pela aplicação do precioso sangue de Cristo a nossa
consciência - limpos pela aplicação da Palavra por intermédio do Espírito aos
nossos hábitos, às nossas relações e aos nossos caminhos. Quando estamos
assim limpos, seja qual for a nossa capacidade, a mais rica provisão e garantida
às nossas almas pela preciosa graça de Deus. Escutemos as seguintes
palavras; " Todo o melhor do azeite e todo o melhor do mosto e do grão, as suas
primícias que derem ao SENHOR, as tenho dado a ti. Os primeiros frutos de
tudo que houver na terra, que trouxerem ao SENHOR, serão teus; todo o que
estiver limpo na tua casa os comerá" (versículos 12-13) (1).
__________
(1) Considere o leitor qual deve ser o efeito moral de se tomar à letra a
precedente passagem e de a aplicar a certa classe sacerdotal na Igreja de Deus
considere-a simbólica e espiritualmente, e terá uma bela e notável figura do
alimento espiritual proporcionado a todos os membros da família sacerdotal, o
qual e, em suma, Cristo e todo o Seu valor e plenitude.
Aqui temos seguramente uma porção principesca assinalada àqueles que são
feitos sacerdotes para Deus. Deviam ter o melhor e os primeiros frutos de tudo
que a terra de Deus produzia. Havia "o vinho que alegra o coração do homem e
faz reluzir o seu rosto como o azeite, e o pão que fortalece o seu coração" (SI
104:15).
Que imagem temos em tudo isto da nossa parte em Cristo! A azeitona e a uva
eram prensadas e o melhor do trigo era moído a fim de alimentar e alegrar os
sacerdotes de Deus; e o Antítipo bendito de tudo isto foi, em graça infinita,
moído e esmagado na morte a fim de que por meio da Sua carne e do Seu
sangue pudesse ministrar à Sua casa vida, força e alegria. O precioso grão de
trigo caiu na terra e morreu, para que nós pudéssemos viver; e a videira viva foi
prensada para encher o cálice de que bebemos agora e beberemos para
sempre na presença do nosso Deus.
Portanto, que resta? Que precisamos nós, salvo uma maior capacidade para
gozar a plenitude e bem-aventurança da nossa porção do Salvador crucificado,
ressuscitado e glorificado?- Bem podemos dizer: "temos de tudo com
abundância." Deus tem-nos dado tudo que podia dar-nos - o que tinha de
melhor. Deu-nos Sua própria porção. Chamou-nos para nos sentarmos Consigo
em santa e feliz comunhão e fazermos festa com o bezerro cevado. Fez ressoar
aos nossos ouvidos e penetrar nos nossos corações, em certa medida, estas
maravilhosas palavras: "Comamos e alegremo-nos."
Como é maravilhoso pensar que nada pode satisfazer o coração e a mente de
Deus senão reunir o Seu povo ao redor de Si mesmo para o alimentar com o
que Ele próprio acha as Suas delícias! "A nossa comunhão é como Pai e com
seu Filho Jesus Cristo" (1 Jo 1:3).
Que mais poderia o amor de Deus fazer por nós do que isto? E para quem fez
tudo isto? Para aqueles que estavam mortos em delitos e pecados-para os
estranhos, inimigos rebeldes, culpados - para os cães dos gentios - para
aqueles que estavam longe d'Ele sem esperança e sem Deus no mundo - para
aqueles que não mereciam nada mais que as chamas eternas do lago de fogo.
Oh! Que graça maravilhosa! Que insondável profundidade de soberana
misericórdia! E, podemos acrescentar, que divino e precioso sacrifício
expiatório, que introduz pobres e culpados pecadores, que merecem o inferno,
numa tão inefável bênção! Tirar-nos, por assim dizer, como tições do fogo
eterno para nos fazer sacerdotes para Deus! Lançar fora os nossos "trapos da
imundícia" e lavar-nos, vestir-nos e coroar-nos na Sua própria presença e para
Seu louvor! Louvemo-Lo, pois! Que os nossos corações e as nossas vidas O
louvem! Possamos nós saber como desfrutar a nossa posição e a nossa porção
sacerdotal e usar convenientemente a nossa mitra! Não podemos fazer nada
melhor do que louvar a Deus - nada mais elevado do que apresentar-Lhe por
Jesus Cristo o fruto dos nossos lábios dando graças ao Seu nome. Esta será a
nossa eterna ocupação nesse mundo bendito e brilhante para o qual nos
estamos apressando e onde em breve estaremos para viver sempre com
Aquele que nos amou e a Si mesmo Se entregou por nós - nosso bendito
Salvador e nosso Deus, para nunca mais nos separarmos.
Nos versículos 14 a 19 do nosso capitulo temos as instruções acerca dos
"primogênitos dos homens e dos animais", Podemos observar que o homem
está colocado ao mesmo nível dos animais imundos. Ambos têm de ser
remidos.
O animal imundo era impróprio para Deus, e o homem também, a menos que
fossem remidos pelo sangue. O animal limpo não tinha que ser resgatado. Era
próprio para uso de Deus e foi dado como alimento a toda a casa sacerdotal -
tanto filhos como filhas. Nisto temos um tipo de Cristo em quem Deus pode
encontrar o Seu perfeito deleite - o pleno gozo do Seu coração - o único
objetivo, em todo o vasto universo, no qual pode encontrar perfeito descanso e
satisfação. E - pensamento maravilhoso! - este mesmo objeto foi-nos dado por
Ele - a nós, Sua casa sacerdotal- para ser o nosso alimento, luz, gozo, tudo em
todos para sempre (1).
__________
(1) Para mais amplos pormenores sobre o assunto apresentado em Números
18:14-19, remetemos o leitor aos "Estudos sobre o livro de Êxodo", capítulo 13.
Queremos evitar, tanto quanto possível, repetições do que havemos dito em
volumes antecedentes.

Para os Sacerdotes e Levitas não Havia Herança Terrena


O leitor notará neste capítulo, assim como em todos os demais, que cada novo
assunto é introduzido com as palavras, "Então, falou o SENHOR a Moisés", ou
"a Arão". Assim, nos versículos 20 a 32, somos ensinados que os sacerdotes e
os levitas—os adoradores e os obreiros de Deus—não deviam ter herança entre
os filhos de Israel, mas deviam depender absolutamente de Deus para o
suprimento de todas as suas necessidades.
Que posição abençoada! Nada pode ser mais agradável do que o quadro que
aqui é apresentado. Os filhos de Israel deviam trazer as suas ofertas e pô-las
aos pés do Senhor, e ele, em Sua infinita graça, mandava aos seus obreiros
que recolhessem essas preciosas ofertas -o fruto da abnegação do Seu Povo -
e alimentavam-se delas na sua bendita presença com corações agradecidos.
Tal era o círculo de bênção. Deus supria todas as necessidades do Seu povo; o
Seu povo tinha o privilégio de repartir os ricos frutos da Sua liberalidade com os
sacerdotes e levitas; e estes eram autorizados a experimentar o raro e delicado
prazer de dar outra vez a Deus daquilo que d'Ele havia emanado até eles.
Tudo isto é divino. E uma figura notável daquilo que todos deveríamos procurar
hoje na Igreja de Deus. Como já temos notado, o povo de Deus é apresentado
neste livro sob três aspectos distintos, a saber: guerreiros, obreiros, e
adoradores; e nos três aspectos vemo-los em atitude de mais absoluta
dependência do Deus vivo. Na nossa luta, no nosso trabalho, e no nosso culto,
dependemos de Deus. Fato precioso! "Todas as nossas fontes estão em ti."
Que mais necessitamos?- Devemos volver os olhos para os homens ou para o
mundo para termos auxílio ou recursos?- Deus nos livre de tal coisa! Seja antes
o nosso grande objetivo, em toda a nossa história e em cada aspecto do nosso
caráter bem como em cada uma das nossas atribuições, provar que Deus é
bastante para os nossos corações.
É verdadeiramente deplorável ver o povo de Deus e os servos de Cristo
esperarem do mundo os meios de subsistência e tremendo ante o pensamento
desses meios lhes poderem faltar. Imaginemos a Igreja de Deus dependendo,
nos dias de Paulo, do governo romano para a manutenção dos seus bispos,
doutores e evangelistas. Ah, não, prezado leitor, a Igreja contava com a sua
Cabeça nos céus e o divino Espírito na terra para todas as suas necessidades!
Por que há-de ser de outra maneira agora?- O mundo é ainda o mundo; e a
Igreja não é o mundo e não deve buscar o ouro a prata do mundo. Deus tomará
cuidado do Seu povo e dos Seus servos, se eles tão-somente cofiarem n'Ele.
Podemos estar certos de que o divinum domum (o dom de Deus) é muito
melhor para a Igreja do que o regium domum (o dom do governo) - não há
comparação possível aos olhos de um cristão espiritual.
Que todos os santos de Deus e todos os servos de Cristo, em todo o lugar,
apliquem os seus corações sinceramente à consideração destas coisas! E
possamos nós ter graça para confessar praticamente perante um mundo ímpio,
infiel e sem Cristo, que o Deus vivo é amplamente suficiente para todas as
nossas necessidades, não apenas durante a nossa passagem pelo tempo, mas
também para o oceano ilimitado da eternidade ! Que Deus no-lo conceda por
amor de Cristo!
CAPÍTULO 19

A BEZERRA RUIVA: UM TIPO QUE DIZ RESPEITO AO DESERTO

Uma das partes mais importantes do livro de Números está agora aberta ante
os nossos olhos, apresentando para nossa consideração o rito altamente
interessante e instrutivo da "Bezerra Ruiva". Um estudante atencioso das
Escrituras poderia naturalmente sentir-se disposto a inquirir a razão por que
temos esta figura em Números e não em Levítico. Nos sete primeiros capítulos
desse livro temos um relato pormenorizado da doutrina do sacrifício, e todavia
não temos alusão nenhuma à bezerra ruiva. Por quê? Que devemos apreender
com o fato desta formosa ordenação ser apresentada no livro de Números e em
nenhum outros Cremos que nos oferece outra ilustração notável do caráter
distinto do nosso livro.
A bezerra ruiva é eminentemente um tipo do deserto. Era uma provisão feita por
Deus para a profanação do caminho e prefigura a morte de Cristo como
purificação do pecado e resposta às nossas necessidades durante a nossa
peregrinação pelo mundo corrompido para o nosso descanso eterno na mansão
celestial. É uma figura muito instrutiva, que nos descobre uma verdade preciosa
e necessária. Que o Espírito, que inspirou o seu relato, se compraza em no-la
explicar e aplicar às nossas almas!
"Falou mais o SENHOR a Moisés e a Arão, dizendo: Este é o estatuto da lei,
que o SENHOR ordenou, dizendo: Dize aos filhos de Israel que te tragam uma
bezerra ruiva sem defeito, que não tenha mancha, e sobre que não subiu jugo"
(versículos 1-2).

Cristo: A Vítima sem Mancha, e que Nunca Carregou o Jugo do Pecado


Se contemplamos o Senhor Jesus com os olhos da fé, vêmo-Lo não só como
Aquele que era sem mancha em Sua santa Pessoa, mas também Aquele que
jamais levou o jugo do pecado. O Espírito Santo é sempre o zeloso Guardião da
pessoa de Cristo, e deleita-Se em o apresentá-Lo à alma em toda a Sua
excelência e supremo valor. Por isso cada tipo e cada sombra destinada a
apresentá-Lo exibe a mesma defesa. Assim, no caso da bezerra ruiva, sabemos
que o nosso bendito Salvador não só era, quanto à Sua natureza humana,
intrínseca e inerente e inerentemente puro e imaculado, mas que, quanto ao
Seu nascimento e às suas relações, se manteve perfeitamente isento de todo a
mancha e aparência de pecado. O jugo do pecado jamais pesou sobre o seu
pescoço. Quando falou do Seu jugo (Mt 11:29), referia-Se ao jugo da Sua
submissão implícita à vontade do Pai em todas as coisas. Este foi o único jugo
que levou, e que não deixou um só instante durante toda a Sua perfeita e
imaculada carreira - desde a manjedoura, onde repousou como débil menino,
até à cruz, onde expirou como vítima.
Mas não levou o jugo do pecado. Compreenda-se isto bem. Foi à cruz para
expiar os nossos pecados, para lançar os fundamentos da nossa perfeita
purificação de todo o pecado; mas fez isto como Aquele que nunca tinha, em
qualquer altura durante a Sua bendita vida, levado o jugo do pecado. Era "sem
pecado"; e, como tal, era perfeitamente capaz de fazer a grande e gloriosa obra
da expiação. Pensar que tomou o jugo do pecado na Sua vida, seria pensar
d'Ele como Aquele que era incapaz de fazer expiação do pecado na Sua morte.

O Sangue
"Que não tenha mancha, e sobre que não subiu jugo." E necessário lembrar e
pensar tanto uma como outra destas expressões. O Espírito Santo destinou-as
para mostrar a perfeição de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que era
puro intimamente, mas também livre exteriormente de todo o rasgo de pecado.
Nem na Sua Pessoa, nem ainda nas Suas relações não esteve, de modo
algum, sujeito às exigências do pecado ou da morte. Entrou, louvado seja para
sempre o Seu nome, em toda a realidade das nossas circunstâncias e
condições; mas em Si não havia pecado, e sobre Si não subiu jugo de pecado.
E a dareis a Eleazar, o sacerdote; e a tirará fora do arraial, e se degolará diante
dele" (versículo 3).
°0 leitor atencioso da Escritura não passará por alto qualquer expressão, por
mais vulgar que lhe possa parecer que ela seja.
Antes terá sempre presente que o livro que tem aberto diante de si é de Deus e
portanto perfeito - perfeito no seu conjunto - perfeito em todas as suas partes.
Cada palavra está cheia de significado. Cada ponto por menor que seja, cada
característica e circunstância contém algum ensino espiritual para a alma. Sem
dúvida, os infiéis e os racionalistas falham redondamente na compreensão
deste poderoso fato, e, como consequência, quando se acercam do volume
divino, cometem o mais triste dano. Veem defeitos onde o estudioso espiritual
vê pedras preciosas. Veem incongruências onde o discípulo consagrado,
ensinado pelo Espírito, vê harmonia divina e glória moral.
Isto é o que poderíamos esperar; e é bom recordá-lo nestes dias. "Deus é o Seu
próprio intérprete", tanto da Escritura como da providência; e se nós
esperarmos n'Ele, há-de certamente torná-las claras. Mas, assim como com a
providência, "A cega incredulidade é mais do que certo errar e esquadrinhar os
caminhos de Deus em vão", do mesmo modo é certo errar com as Escrituras e
investigar a Sua Palavra inutilmente. E o fervoroso poeta poderia continuar;
porque, certamente, a incredulidade não investigará apenas os caminhos de
Deus e a Palavra de Deus em vão, mas converterá uma e outra numa ocasião
de ataque blasfemo contra o Próprio Deus, contra a Sua natureza, contra o Seu
caráter e também contra revelação que Lhe aprouve dar-nos. Os infiéis
quebrariam bruscamente a lâmpada da inspiração, apagariam a sua luz
celestial e envolver-nos-iam a todos naquela profunda melancolia de trevas
morais que envolvem a sua mente desencaminhada.
Fomos levados a entrar na precedente linha de pensamento enquanto
meditávamos sobre o versículo terceiro do nosso capítulo. Estamos ansiosos
por cultivar o hábito de estudo profundo e atento da Escritura Sagrada. É da
máxima importância. Dizer ou pensar que existe tanto como uma simples
cláusula, uma simples expressão, desde uma à outra capa do volume inspirado,
que não mereça a nossa meditação na dependência divina, é insinuar que
Deus, o Espírito Santo, pensou que valia a pena escrever o que nós pensamos
e não valer a pena estudar.
"Toda a Escritura divinamente inspirada é" (2 Tm 3:16). Isto requer reverência
da nossa parte. "Porque tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi
escrito" (Rm 15:4). Isto deve despertar o nosso interesse. A primeira destas
passagens prova que a Escritura vem de Deus; a última prova que vem para
nós. Aquela e esta juntas ligam-nos a Deus pelo elo divino da Sagrada Escritura
- um elo que o diabo procura, nestes dias, quebrar; e isso por meio de agentes
de reconhecido valor moral e poder intelectual. O diabo não escolhe um homem
ignorante ou imoral para lançar os seus ataques especiais sobre a Bíblia,
porque sabe muito bem que um ignorante não poderia falar e um homem imoral
não seria escutado. Mas escolhe astuciosamente uma pessoa amável,
benevolente e popular - alguém moralmente irrepreensível - um estudioso
diligente, um profundo escolar, um grande e original pensador. Desta forma
atira poeira aos olhos dos simples, dos ignorantes, e dos incautos.
Leitor cristão, lembra-te disto: se pudermos profundar em tua alma o sentimento
inefável do valor da tua Bíblia; se pudermos desviar-te das rochas e areias
movediças do racionalismo e da infidelidade; se formos usados como meios de
estabelecer e fortalecer a tua alma na certeza de que quando estás debruçado
sobre as páginas sagradas das Escrituras, estás bebendo da fonte cuja água
correu gota a gota para ela do próprio seio de Deus; se pudermos alcançar
algum ou todos estes resultados, não teremos de lamentar a digressão que
fizermos do nosso capítulo, ao qual regressamos agora.
"E a dareis a Eleazar, o sacerdote; e a tirará fora do arraial, e se degolará diante
dele."
No sacerdote e na vítima temos uma figura da pessoa de Cristo. Ele foi, ao
mesmo tempo, a Vítima e o Sacerdote. Mas não tomou as Suas funções
sacerdotais até que a Sua obra como vítima foi cumprida. Isto explica a
expressão na terceira cláusula do versículo terceiro, "e se degolará diante dele".
A morte de Cristo foi cumprida na terra, e não podia, portanto, ser apresentada
como o ato de sacerdócio. O céu e não a terra é a esfera do Seu serviço
sacerdotal.
O apóstolo, na epístola aos Hebreus, declara expressamente como súmula de
uma esmerada e maravilhosa peça de argumento, que "temos um sumo
sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da Majestade,
ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e
não o homem. Porque todo sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e
sacrifícios; pelo que era necessário que este também tivesse alguma coisa que
oferecer. Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria,
havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei" (Hb 8:1-4). "Mas,
vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito
tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por sangue de
bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário,
havendo efetuado uma eterna redenção. Porque Cristo não entrou num
santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para
agora comparecer, por nós, perante a face de Deus" (Hb 9:11-12,24. "Mas este,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra
de Deus" (Hb 10:12).
De todas estas passagens tomadas em ligação com Números 19:3 aprendemos
duas coisas, a saber: que a morte de Cristo não é apresentada como o ato
próprio e normal do sacerdócio; e, além disso, que o céu, não a terra, é a esfera
do Seu serviço sacerdotal. Não há nada novo nestas afirmações; têm sido
apresentadas repetidas vezes por outras e é importante notar tudo que tende a
ilustrar a perfeição e precisão da Sagrada Escritura. E interessantíssimo
encontrar uma verdade, que brilha nos páginas do Novo Testamento, incluída
em qualquer ordenação ou cerimônia dos tempos do Velho Testamento. Estas
descobertas são sempre bem recebidas pelo leitor inteligente da Palavra de
Deus. A verdade é, sem dúvida, a mesma onde quer que for achada; mas
quando se oferece subitamente aos nossos olhos com brilho invulgar no Novo
Testamento e é divinamente prefigurada no Velho, não temos apenas a verdade
estabelecida, mas a unidade do volume ilustrada e reforçada.
Não podemos deixar despercebido o lugar onde a vítima era morta. "E a tirará
fora do arraial." Como já foi acentuado, o sacerdote e a vítima estão
identificados e formam conjuntamente um tipo de Cristo; mas acrescenta-se, "e
se degolará diante dele", simplesmente, porque a morte de Cristo não podia ser
apresentada como um do sacerdócio. Que maravilhosa precisão! E todavia não
é maravilhosa, pois que mais podíamos esperar de um livro do qual cada linha
vem diretamente de Deus?- Se tivesse sido dito "e ele a degolará", Números 19
estaria em desacordo com a epístola aos Hebreus. Mas não; a harmonia do
volume mostra refulgentes glórias. Que Deus nos dê graça para podermos
discerni-las e apreciá-las.
Por isso, Jesus sofreu fora da porta. "E por isso também Jesus, para santificar o
povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta" (Hb 13:12). Tomou lugar
de fora e a Sua voz faz-se ouvir desde ali. Ouvimo-la?- Compreendemo-la? Não
devemos nós considerar mais atentamente o lugar onde Jesus morreu?
Devemos ficar satisfeitos com recolha dos benefícios da morte de Cristo sem
buscarmos a comunhão com Ele na Sua rejeição?- Deus nos livre de tal!
"Saiamos pois a ele fora do arraial, levando o seu vitupério" (Hb 13:13) (1).
__________
(1) O arraial, na passagem citada, refere-se em princípio ao judaísmo; mas tem
uma notável aplicação moral a todo o sistema religioso estabelecido pelo
homem e governado pelo espírito e princípios deste século mau.

Existe um imenso poder nestas palavras. Deveriam excitar todo o nosso ser
moral a buscar s completa identificação com o Salvador que foi rejeitado.
Devemos vê-lo morrer fora da porta, enquanto colhemos os benefícios da sua
morte permanecendo dentro do arraial?- Buscaremos uma morada, e um lugar,
e um nome, e uma porção nesse mundo, do qual o nosso Senhor e Mestre é
expulso?- Aspiraremos a um lugar no mundo que não pode tolerar esse bendito
Senhor a quem devemos a nossa felicidade presente e eterna?-Aspiraremos ali
honra, posição, e riqueza, onde o nosso Senhor encontrou apenas uma
manjedoura, uma cruz e uma sepultura emprestadas?- Que a linguagem dos
nossos corações seja: "Longe de nós tal pensamento". E que a linguagem das
nossas vidas seja: "Longe de nós tal coisa!" Possamos nós pela graça de Deus,
e em resposta sincera à chamada do Espírito, dizer "Saiamos!"
Leitor cristão, não esqueçamos nunca que, quando encaramos a morte de
Cristo, vemos duas coisas, a saber: a morte de uma vítima e a morte de um
mártir - uma vítima pelo pecado, um mártir pela justiça - uma vítima sob a mão
de Deus, um mártir às mãos do homem. Ele sofreu pelo pecado para que nós
nunca tivéssemos que sofrer. Bendito seja o Seu nome para sempre! Porém os
Seus sofrimentos de mártir, os Seus sofrimentos pela justiça das mãos do
homem, são sofrimentos que conhecemos. "Porque a vós vos foi concedido, em
relação a Cristo, não somente crer nele, como também padecer por ele" (Fp
1:29). É positivamente um dom ser permitido sofrer com Cristo. Apreciamos
isso?
Contemplando a morte de Cristo, como é simbolizada na ordenação da bezerra
ruiva, vemos nela não apenas como o pecado é completamente tirado, mas
também o juízo deste presente século mau." O qual se deu a si mesmo por
nossos pecados, para nos livrar do presente século mau, segundo a vontade de
Deus Pai" (Gl 1:4). As duas coisas são juntas aqui por Deus; e nós não
devemos evidentemente nunca separá-las. Temos o juízo do pecado, em sua
raiz e suas ramificações; e o juízo deste mundo. O primeiro dá perfeito
descanso à consciência exercitada; enquanto que o último liberta o coração da
influência intrigante do mundo, em suas múltiplas formas. Aquele purifica a
consciência de todo o sentimento de culpa; este rompe o laço que liga o
coração e o mundo.
E absolutamente necessário que o leitor compreenda e experimente
praticamente a conexão que existe entre estas duas coisas. E muito possível
perder de vista esta grande conexão, até mesmo contendendo e mantendo
muitas verdades evangélicas; e pode afirmar-se afoitamente que sempre que
esta ligação não existe, deve haver um grave defeito no caráter cristão.
Encontramos frequentemente almas sinceras que têm sido despertadas pelo
poder convincente do Espírito Santo, mas que ainda não têm conhecido, para
tranquilidade das suas consciências perturbadas, o pleno valor da morte
expiatória de Cristo, tirando, para sempre, todos os seus pecados e trazendo-as
para perto de Deus, sem uma mancha sobre a alma ou tormento na
consciência.
Se este for o estado atual do leitor, deve considerar a primeira cláusula do
versículo que acabamos de citar: "O qual se deu a si mesmo por nossos
pecados." E uma afirmação bendita para uma alma atribulada. Resolve toda a
questão do pecado. Se é verdade que Cristo se deu a Si Mesmo por meus
pecados, nada mais resta senão alegrar-me com o fato precioso de que os
meus pecados foram tirados! Aquele que tomou o meu lugar, que carregou os
pecados, que sofreu por mim e em meu lugar, está agora à destra de Deus
coroado de honra e glória. Isto me basta. Todos os meus pecados foram tirados
para sempre. Se não tivessem sido tirados, Ele não estaria onde agora está. A
coroa de glória que cinge a Sua bendita cabeça é a prova de que os meus
pecados foram perfeitamente expiados, e portanto paz perfeita é a minha
porção - uma paz tão perfeita quanto a obra de Cristo a pode fazer.
Mas não esqueçamos nunca que a mesmíssima obra que tirou para sempre os
nossos pecados, nos livrou deste presente século mau. As duas coisas vão
juntas. Cristo não somente me libertou das consequências dos meus pecados,
como também do poder atual do pecado, e das exigências e influências que a
Escritura chama "o mundo". Tudo isto, contudo, se tornará mais claro à medida
que prosseguimos com o estudo do nosso capítulo.
"E Eleazar, o sacerdote, tomará do seu sangue com o seu dedo e dele espargirá
para a frente da tenda da congregação sete vezes". Aqui temos o sólido
fundamento de toda a verdadeira purificação. Sabemos que, no símbolo que
temos diante de nós, se trata apenas, como o apóstolo inspirado nos diz, de
uma questão da "purificação da carne" (Hb 9:13). Porém, devemos ver o tipo
mais além do antítipo - além da sombra a substância. Na sétupla aspersão do
sangue da bezerra ruiva para a frente da tenda da congregação temos uma
figura da apresentação perfeita do sangue de Cristo a Deus, como o único lugar
de encontro entre Deus e a consciência. O número "sete", como tem sido
frequentemente observado, é expressivo de perfeição; e, na figura que temos
perante nós, vemos a perfeição ligada à morte de Cristo, como expiação pelo
pecado apresentada a Deus e aceitada por Ele. Tudo descansa sobre terreno
divino.
O sangue foi derramado e apresentado ao Deus santo como perfeita expiação
pelo pecado. Isto, quando é simplesmente aceito pela fé, deve aliviar a
consciência de todo o sentimento de culpa e todo o temor de condenação. Nada
há diante de Deus senão a perfeição da obra expiatória de Cristo. O pecado foi
julgado e os nossos pecados foram tirados. Foram completamente apagados
pelo precioso sangue de Cristo. Crer nisto é entrar no perfeito repouso da
consciência.
E aqui note-se que não há mais alusão à aspersão do pecado em todo este
singularmente interessante capítulo. Isto precisamente de harmonia com a
doutrina de Hebreus 9 e 10. É outra ilustração da harmonia divina do Volume
Sagrado. O sacrifício de Cristo, sendo divinamente perfeito, não necessita de
ser repetido. A sua eficácia é divina e terna.
"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por
sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no
santuário, havendo efetuado um eterna redenção. Porque, se o sangue dos
touros e bodes e a cinza de uma novilha, esparzida sobre os imundos, os
santificam, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que,
pelo Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo imaculado e Deus, purificará a
vossa consciência das obras mortas para servirdes ao Deus vivo?-" (Hb
9:11-14).
Note-se a força destas palavras "uma vez" e "terna redenção". Veja-se como
mostram a perfeição e a eficácia divina do sacrifício de Cristo. O sangue foi
derramado uma vez para sempre. Pensar na repetição dessa grande obra seria
negar seu valor eterno e todo suficiente, e rebaixá-lo ao nível do sangue dos
touros e bodes.
Mas continuemos. "De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas
que estão no céu assim se purificassem; mas as próprias coisas celestiais, com
sacrifícios melhores do que estes. Porque Cristo não entrou num santuário feito
por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer,
por nós, perante a face de Deus; nem também para a si mesmo se oferecer
muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santuário com sangue
alheio. Doutra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a
fundação do mundo; mas agora na consumação dos séculos uma vez se
manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo" (Hb 9:23-26).
O pecado foi, portanto, tirado. Não pode ter sido aniquilado e ao mesmo tempo
estar sobre a consciência do crente. Isto é claro. Tem de admitir-se que os
pecados do crente foram apagados e a sua consciência perfeitamente
purificada ou que Cristo tem que morrer outra vez. Porém, este último caso não
só está fora de discussão como seria desnecessário, pois como diz o apóstolo
assim "como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso
o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma vez para tirar os pecados de
muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para
salvação."
Existe algo de maravilhoso no paciente esmero com que o Espírito Santo
debate todo este assunto. Expõe, exemplifica e fortalece a grande doutrina da
perfeição do sacrifício de modo a dar convicção à alma e libertar a consciência
do seu pesado fardo. Tal é a superabundante graça de Deus que Ele não só
cumpriu a obra da nossa eterna redenção, como maneira mais paciente e
esmerada, tem debatido, arguido e provado o ponto em questão, de forma a
não deixar o mínimo fundamento para objeção.
Escutemos os Seus poderosos argumentos, e que o Espírito possa aplicá-los
em poder ao coração do leitor!
"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das
coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada
ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam. Doutra maneira, teriam deixado
de se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam
consciência de pecado. Nesses sacrifícios, porém, cada ano, se faz
comemoração dos pecados porque é impossível que o sangue dos touros e dos
bodes tire pecados" (Hb 10:1-4).
Mas o que o sangue dos touros nunca poderia fazer, o sangue de Jesus fê-lo
para sempre. Isto faz toda a diferença. Todo o sangue que até hoje correu em
redor dos altares de Israel—os milhões de sacrifícios oferecidos segundo as
exigências do ritual mosaico não podia apagar uma nódoa da consciência ou
dar ao Deus que detesta o pecado o direito de receber o pecador. "Porque é
impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados." "Pelo que,
entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me
preparaste; holocaustos e oblações pelo pecado não te agradaram. Então,
disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de mim), para fazer, ó
Deus, a tua vontade... Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do
corpo de Jesus Cristo, feita uma vez" (Hb 10:4-10).
Note-se o contraste. Deus não Se agradou na série interminável de sacrifícios
sob a lei. Não Lhe agradavam. Deixavam inteiramente incompleto o que Ele
tinha em Seu coração amantíssimo proposto fazer pelo Seu povo, a saber:
libertá-los completamente do pesado fardo do pecado e trazê-los a Si em
perfeita paz de consciência e liberdade de coração. Isto Jesus fez pelo sacrifício
do Seu bendito corpo. Fez a vontade de Deus; e, bendito seja para sempre o
Seu nome, não tem que fazer outra vez a Sua obra. Podemos recusar crer que
a obra está feita -recusar entregar as nossas almas à sua eficácia - entrar no
repouso que ela tem a propriedade de comunicar - recusar gozar a santa
liberdade de espírito que é capaz de nos dar; porém, a obra permanece na sua
imperecível virtude; e os argumentos do Espírito a respeito dessa obra
subsistem também em sua força e clareza sombrias as sugestões de Satanás,
nem os nossos próprios argumentos incrédulos podem jamais tocar alguma
destas verdades. Podem interferir, e, infelizmente, interferem com o gozo que
as nossas almas têm da verdade; mas a verdade em si permanece a mesma.
"E assim todo o sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas
vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados; mas este,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para
sempre à destra de Deus, daqui em diante esperando ate que os seus inimigos
sejam postos por escabelo de seus pés. Porque, com uma só oblação,
aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (Hb 10:11 -14). E em virtude
do sangue de Cristo que nos e conferida uma eterna perfeição; e, podemos
certamente acrescentar, é devido também a esse sangue que as nossas almas
podem essa perfeição. Ninguém imagine que está prestando honra à obra de
Cristo ou ao testemunho do Espírito a respeito dessa obra quando recusa
aceitar aquela perfeita remissão de pecados que lhe é anunciada pelo sangue
da cruz. Não é um sinal de verdadeira piedade ou de pura religião o que a graça
Deus tem feito por nós em Cristo e o que o relato do espírito eterno tem
apresentado às nossas almas nas páginas inspiradas.
Leitor cristão, não parece estranho que, apresentando a Palavra de Deus à
nossa vista Cristo assentado à destra de Deus, em virtude da redenção
cumprida, nós não estamos virtualmente em melhores circunstâncias do que
aqueles que tinham um sacerdote humano de pé ministrando cada dia e
oferecendo os mesmos sacrifícios? Nós temos um sacerdote divino que se
assentou para sempre. Eles tinham simplesmente um sacerdote humano, que
nunca podia, de modo algum, no desempenho das suas funções oficiais,
sentar-se; e todavia nós não estamos no estado de espírito, na compreensão da
alma, na condição presente da consciência, em melhores circunstâncias do que
eles?- Será possível que, com uma obra perfeita em que podemos descansar,
as nossas almas nunca conheçam perfeito descanso?
O Espírito Santo, como temos visto nas diversas passagens citadas da epístola
aos Hebreus, nada omitiu para satisfazer as nossas almas quanto à questão da
completa remoção do pecado pelo precioso sangue de Cristo. Por que, pois,
não há de o leitor gozar, neste próprio momento, paz de consciência perfeita e
certa<? O Sangue de Jesus nada mais fez por si do que o sangue de um touro
podia fazer por um adorador judeu
Pode ser contudo que o leitor esteja pronto a dizer em resposta a tudo quanto
temos procurado indicar-lhe: "Não duvido em absoluto da eficácia do sangue de
Jesus. Creio que purifica de todo o pecado. Creio formalmente que todos os que
põem simplesmente a sua confiança nesse sangue estão perfeitamente salvos,
e serão eternamente felizes. A minha dificuldade não está de modo algum
nisso. O que me atormenta não é a eficácia do sangue, na qual eu creio
plenamente, mas o meu interesse pessoal nesse sangue, do qual não tenho
prova aceitável. Esse é o segredo de todas as minhas dificuldades. A doutrina
do sangue é tão clara como os raios solares; mas a questão do meu interesse
nela está envolvido em desesperada
escuridão.
Ora se esta é a expressão dos sentimentos do leitor sobre este tão importante
assunto, isso apenas prova a sua necessidade de ponderar atentamente o
capítulo décimo nono de Números. Verá ali como a verdadeira base de toda a
purificação se encontra nisto: que o sangue da expiação tem sido apresentado a
Deus e aceito por Ele. É uma verdade preciosa, mas muito pouco
compreendida. É de toda a importância que a alma realmente ansiosa tenha
uma visão clara do assunto da expiação.
É tão natural para todos nós estarmos ocupados com os nossos pensamentos e
sentimentos sobre o sangue de Cristo, e pouco com o próprio sangue e os
pensamentos de Deus seu respeito. Se o sangue foi perfeitamente apresentado
a Deus, se Ele o aceitou e se glorificou a Si mesmo tirando o pecado, então que
resta para a consciência divinamente exercitada senão encontrar perfeito
descanso no que tem satisfeito todos os direitos de Deus, conciliado os Seus
atributos, e lançado os fundamentos dessa base maravilhosa sobre a qual
podem encontrar-se o Deus aborrecedor do pecado e o pecador arruinado?
Por que introduzir a questão do meu interesse no sangue de Cristo, como se a
obra não estivesse completa sem alguma coisa da minha parte, chama-se-lhe o
que se quiser, o meu interesse, os meus sentimentos, a minha experiência, a
minha aplicação, ou qualquer outra coisa? Por que não descansar somente em
Cristo? Isto seria realmente ter interesse n'Ele. Mas logo que o coração começa
estar ocupado com a questão do seu próprio interesse - logo que a vista é
desviada do objetivo divino que a Palavra de Deus e o Espírito Santo
apresentam-então seguem-se trevas espirituais e perplexidade; e a alma, em
vez de se regozijar na perfeição da obra de Cristo, é atormentada pelos seus
pobres e imperfeitos sentimentos.
Bendito seja Deus, o fundamento da obra de "purificação do pecado é estável e
paz perfeita para a consciência.
A obra da expiação fez-se. Tudo está consumado. O grande Antítipo da bezerra
ruiva foi morto. Entregou-Se a Si mesmo à morte sob a ira e o juízo de um Deus
santo, para que todos os que põem a sua confiança n'Ele pudessem conhecer,
no profundo secreto das suas almas, purificação divina e perfeita paz. Estamos
purificados quanto à consciência, não pelos nossos pensamentos quanto ao
sangue, mas pelo próprio sangue. Devemos insistir nisto. Deus mesmo tem feito
valer o nosso título, e esse título encontra- se somente no sangue. Oh! Esse
precioso sangue de Jesus que fala de profunda paz para toda a alma atribulada
que repousa simplesmente sobre a sua eterna eficácia! Por que é, podemos
perguntar, que a bendita doutrina do sangue é tão pouco compreendida e
apreciada ? Por que persistem as pessoas em confiar em alguma coisa mais ou
em misturar com ela outras coisas? Que o Espírito Santo guie o leitor, enquanto
lê estas linhas, a concentrar e fixar o seu coração e a sua consciência no
sacrifício expiatório do Cordeiro de Deus.
As Cinzas
Havendo procurado desta maneira apresentar ao leitor a verdade preciosa
revelada na morte da bezerra ruiva, pedimos-lhe agora para meditar, por alguns
momentos, na forma como a bezerra ruiva era queimada. Temos visto o
sangue, contemplemos agora as cinzas. Naquele temos a morte sacrificial de
Cristo, como o único meio de purificação o pecado. Nestas temos o memorial
dessa morte aplicado ao coração pelo Espírito mediante a Palavra, de forma a
remover qualquer manha contraída na nossa conduta do dia a dia.
Isto dá uma grande perfeição e beleza a este interessantíssimo tipo. Deus não
tem feito apenas provisão para os pecados passados, mas também para a
contaminação no presente, de forma a podermos estar sempre diante de Si em
todo o valor da obra perfeita de Cristo. Ele quer que, estando inteiramente
limpos, pisemos os átrios do Seu santuário, os sagrados recintos da Sua
presença. E não somente nos vê assim como, bendito seja o Seu nome para
sempre, deseja que façamos outro tanto no íntimo da nossa consciência. Quer
dar-nos, pelo Espírito, mediante a Palavra, o profundo sentimento de pureza à
sua vista, de forma que a corrente de comunhão Consigo possa ocorrer sem
agitação e sem obstáculos.
"Mas se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os
outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (Jo
1:7). Porém, se deixarmos de andar na luz - se esquecermos e, no nosso
esquecimento, tocarmos qualquer coisa imunda, como é restaurada a nossa
comunhão?
Apenas pela remoção da contaminação. E como pode ser isto efetuado?
Mediante a aplicação aos nossos corações e às nossas consciências da
verdade preciosa da morte de Cristo. O Espírito Santo produz o juízo próprio e
traz a nossa memória a verdade preciosa de que Cristo sofreu a morte por essa
contaminação que nós tão fácil e indiferentemente contraímos. Não se trata de
uma nova aspersão do sangue de Cristo - uma coisa desconhecida na
Escritura; mas da lembrança da Sua morte trazida ao coração contrito, em novo
poder, pelo ministério do Espírito Santo.
"Então, queimará a bezerra perante os seus olhos... e o sacerdote tomará um
pedaço de madeira de cedro, e hissopo, e carmesim, e os lançará no meio do
incêndio da bezerra... E um homem limpo a juntará a cinza da bezerra e a porá
fora do arraial, num lugar limpo, e estará ela em guarda para a congregação dos
filhos de Israel, para a água da separação; expiação é" (Nm 19:5-9).
E o propósito de Deus que os Seus filhos sejam purificados de toda a
iniquidade, e que andem em separação deste presente século mau onde tudo é
morte e corrupção. Esta separação é efetuada pela ação da Palavra no coração
e o poder do Espírito Santo. "Graça e paz da parte de Deus Pai e da de nosso
Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos
livrar do presente século mau, segundo a vontade de Deus, nosso Pai" (Gl
1:3,4). "Aguardando a bem-aventurada esperança e o aparecimento da glória
do grande Deus e nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por
nós, para nos remir de toda iniquidade e purificar para si um povo seu especial,
zeloso de boas obras" (Tt 2:13-14).
E notável o modo como o Espírito de Deus apresenta constantemente, em
ligação íntima, o perfeito alívio da consciência de todo o sentimento de culpa e a
libertação do coração da influência moral deste presente século mau. Portanto,
prezado leitor, devemos ter o cuidado de manter a integridade desta conexão.
E, evidentemente, é só pela energia graciosa do Espírito Santo que podemos
fazer assim; mas deveríamos procurar, sinceramente, compreender e mostrar
na prática o laço bendito que existe entre a morte de Cristo considerada como
expiação do pecado e como poder moral de separação deste mundo. Muitos do
povo de Deus nunca vão mais além da primeira verdade, se é que chegam a
alcançá-la. Muitos parece estarem muito satisfeitos com o conhecimento do
perdão dos pecados pela obra expiatória de Cristo, enquanto que, ao mesmo
tempo, não chegam a compreender o estado de morte quanto ao mundo em
virtude da morte de Cristo e da sua identificação com Ele nessa morte.

O que Significam as Cinzas?


Ora, quando contemplamos a queima da bezerra ruiva em Números
19—quando examinamos esse montão de cinzas—que descobrimos? Podemos
dizer em resposta: "Encontramos ali os nossos pecados." Na verdade, graças
sejam dadas a Deus e ao Filho do Seu amor, encontramos com efeito ali os
nossos pecados, as nossas iniquidades, as nossas transgressões, a nossa
culpa como o carmesim, tudo reduzido a cinzas. Mas não há nada mais?- Não
podemos por meio de uma cuidadosa análise descobrir nada mais?-
Descobrimos, incontestavelmente. Encontramos ali a natureza em cada fase da
sua existência — desde o ponto mais alto ao mais baixo da sua história. Além
disso, encontramos ali toda a glória deste mundo. O cedro e o hissopo
representam a natureza nos seus mais afastados extremos; e, rendendo os
seus extremos, eles tomam tudo que se encontra entre si. Salomão "falou
também das árvores, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que
nasce na parede" (Rs 4:33).
O carmesim é encarada por todos aqueles que têm examinado atentamente as
Escrituras neste ponto como figura ou expressão do esplendor humano,
grandeza mundana, da glória do homem. Por isso, vemos na queima da bezerra
ruiva o fim de toda a grandeza humana, da glória humana e a forma como a
carne é posta completamente de lado com tudo quanto lhe pertence. Isto faz
com que o ato de queimar a bezerra ruiva seja profundamente significativo,
verdade muito pouco conhecida e, quando conhecida, facilmente esquecida -
uma verdade incluída nestas memoráveis palavras do apóstolo: "Mas longe
esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela
qual o mundo está crucificado para mime eu para o mundo" (Gl 6:14).
Somos todos inclinados a aceitar a cruz como a base de libertação de todas as
consequências dos nossos pecados e de plena aceitação por Deus, e, ao
mesmo tempo, recusamo-la como a base da nossa completa separação do
mundo. Decerto, é, graças e louvores sejam dados a Deus, o fundamento sólido
da nossa libertação da culpa e sua consequente condenação; mas é mais do
que isto: separou-nos para sempre de tudo que pertence a este mundo, através
do qual estamos passando. Os meus pecados estão tirados? Sim; bendito seja
o Deus de toda a graça! Em virtude de quê?- Em virtude da perfeição do
sacrifício expiatório de Cristo na apreciação do próprio Deus.
Pois bem, tal é precisamente a medida da nossa libertação deste presente
século mau - dos seus costumes, das suas máximas, dos seus hábitos, dos
seus princípios. O crente nada tem absolutamente de comum com este mundo,
na proporção em que entra no espírito e poder da cruz do Senhor Jesus Cristo.
Essa cruz desalojou-o de tudo no mundo e fez dele um estrangeiro e peregrino
na terra. O coração verdadeiramente consagrado vê as sombras carregadas da
cruz pairando sobre todo o brilho e esplendor, a pompa e a forma deste mundo.
Paulo viu isto e a sua visão levou-o a considerar o mundo, em todos os seus
mais elevados aspectos, nas suas formas mais atrativas, nas suas mais
brilhantes glórias, como esterco.
Tal era o apreço formado acerca deste mundo por um que havia sido educado
aos pés de Gamaliel. "O mundo está crucificado para mim", disse ele, "e eu para
o mundo." Tal era Paulo, e assim deveria ser todo o cristão - um estrangeiro na
terra, um cidadão do céu, e isto não meramente em sentimento ou teoria, mas
em fato e realidade; porque, tão certo como a nossa libertação do inferno é mais
do que um mero sentimento ou uma teoria, assim é seguramente a nossa
separação deste presente século mau. Uma coisa é tão positiva e verdadeira
como a outra.
Mas, queremos perguntar, por que não é esta grande verdade prática mais
compreendida pelos cristãos renascidos no momento presente? Por que somos
tão vagarosos em insistir uns com os outros por uma separação no poder da
cruz de Cristo? Se o meu coração ama Jesus, não buscarei um lugar, uma
porção, ou um nome onde Ele encontrou apenas a cruz de um malfeitor. Isto,
prezado leitor, é o modo mais simples de encarar o assunto. Ama realmente a
Cristo?- O seu coração foi tocado atraído pelo Seu maravilhoso amor por si? Se
é assim, lembre-se de que Ele foi rejeitado por este mundo. Sim, Jesus foi e
ainda é rejeitado por este mundo. Nada mudou. O mundo é ainda o mundo; e
note-se que uma das invenções de Satanás é induzir as pessoas que aceitam a
salvação de Cristo a recusarem ser identificadas com Ele na Sua rejeição - a
aproveitarem-se da obra expiatória da cruz enquanto se estabelecem
comodamente no mundo, que está manchado com a culpa de haver pregado
Cristo nessa cruz. Por outras palavras, induz as pessoas a pensarem e a
dizerem que a afronta da cruz acabou; a que o mundo do século dezenove é
totalmente diferente do mundo do primeiro; que se o Senhor Jesus estivesse
agora na terra, seria tratado de um modo muito diferente de aquele que então
recebeu; que não se trata agora de um mundo pagão, mas de um mundo
cristão, e que isto faz uma diferença fundamental; que hoje é completamente
justo um cristão aceitar cidadania neste mundo, ter um nome, um lugar, uma
porção, visto que não é absolutamente o mesmo mundo que pregou na cruz do
Calvário o Filho de Deus.
Ora nós sentimos que é do nosso dever instar com todos os que leem estas
linhas que isto é, na verdade, uma mentira do principal inimigo das almas. O
mundo não mudou, Pode ter mudado na aparência, mas não mudou a sua
natureza, o seu espírito, os seus princípios. Aborrece Jesus tão cordialmente
como quando se ouviu o grito "Fora com Ele! Crucifica-O!" Não existe realmente
mudança. Se apenas experimentarmos o mundo pelo mesmo grande teste,
descobriremos que é o mesmo mundo mau, que aborrece Deus e rejeita a
Cristo como sempre. E qual é o teste? Cristo crucificado.
Que esta verdade solene seja gravada em nossos corações! Possamos nós
realizar e manifestar o seu poder formativo! Que esse poder nos separe
completamente de tudo que pertence ao mundo! Possamos nós compreender
mais claramente a verdade apresentada nas cinzas da bezerra ruiva! Então a
nossa separação do mundo e a nossa consagração a Cristo serão reais e
intensas. Que o Senhor, em Sua inexcedível bondade, permita que assim possa
ser com todo o Seu povo, neste dias de profissão falsa, parcial e mundana!

As Manchas e as Cinzas
Consideremos agora, por um momento, a forma como as cinzas deviam ser
aplicadas.
"Aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem, imundo será sete
dias. Ao terceiro dia, se purificará com água e, ao sétimo dia, será limpo; mas,
se ao terceiro dia se não purificar, não será limpo ao sétimo dia. Todo aquele
que tocar a algum morto, cadáver de algum homem que estiver morto, e não se
purificar, contamina o tabernáculo do SENHOR; e aquela alma será extirpada
de Israel; porque a água da separação não foi espargida sobre ele, imundo
será; está nele ainda a sua imundícia" (versículos 11-13).
E uma coisa solene ter que tratar com Deus - andar com Ele, dia a dia, no meio
de uma cena contaminada e contagiosa. Deus não pode tolerar qualquer
impureza naqueles com os quais condescende andar e nos quais habita. Pode
perdoar e apagar os pecados; pode curar, limpar e restaurar; mas não pode
aprovar no Seu povo o mal que não seja julgado, nem pode permiti-lo. Seria
uma negação do Seu próprio nome e da Sua natureza se o fizesse. Isto é ao
mesmo tempo solene e muito animador. E nosso gozo termos de tratar com
Aquele Cuja presença requer e garante a santidade. Estamos de passagem por
um mundo em que estamos rodeados de influências corruptoras. Verdade é que
a contaminação não é agora contraída por tocar "um corpo morto, ou os ossos
de algum homem ou a uma sepultura." Estas coisas eram, como sabemos,
figuras de coisas morais e espirituais com as quais estamos em perigo de entrar
em contato diariamente e a toda a hora. Não duvidamos que aqueles que têm
muito que fazer com as coisas deste mundo, sentem de uma maneira penosa a
imensa dificuldade de sair delas com as mãos limpas. Daí a necessidade de
uma santa vigilância em todos os nossos hábitos e relações, não seja o caso de
contrairmos contaminação e interromper a comunhão com Deus. Ele quer
ter-nos em estado digno de Si Mesmo. "Sede santos, porque eu sou santo."
Mas o leitor sincero, cuja alma aspira à santidade, pode avidamente perguntar:
"Que devemos, então, fazer, se é verdade que estamos rodeados por todos os
lados de influências corruptoras, se somos tão inclinados a contrair essa
contaminação? Além disso, se é impossível ter comunhão com Deus com mãos
manchadas e uma consciência acusadora, que devemos fazer?-" Antes de tudo,
pois, devemos dizer, sede vigilantes. Contai sinceramente com Deus. Ele é fiel
e misericordioso - um Deus que ouve e responde à oração - um Dador liberal e
que não dirige reprovações. "Ele dá mais graça." Isto é positivamente um
cheque em branco que pode ser preenchido pela fé em qualquer momento. E o
propósito real da tua alma prosseguir ou avançar na vida divina e crescer em
santidade?- Então tenha cuidado na maneira como continuas, porque uma
simples hora de contato com o que mancha as tuas mãos e fere a tua
consciência entristece e também mancha a tua comunhão. Sê decidido. Não
sejas de coração dobre. Larga imediatamente a impureza, seja qual for, os
hábitos, relações ou qualquer outra coisa. Custe o que custar, renuncia a todas
elas. Seja qual for o prejuízo, renuncia a tudo. Nenhum interesse mundano, ou
vantagem terrestre pode compensar a perda de uma consciência pura e um
coração sossegado e a luz do semblante do Pai celestial. Não estás convencido
disto? Se estás, busca graça para pores em prática a tua convicção.
Mas, pode perguntar-se: "Que deve fazer-se quando se contrai contaminação?
Como deve remover-se a corrupção?" Escutemos a resposta em linguagem
figurativa de Números 19: "Para um imundo, pois, tomarão do pó da queima da
expiação e sobre ele porão água viva num vaso. E um homem limpo tomará
hissopo, e o molhará naquela água, e a espargirá sobre aquela tenda, e sobre
todo o fato, e sobre as almas que ali estiverem, como também sobre aquele que
tocar os ossos, ou a algum que foi morto, ou que faleceu, ou uma sepultura. E o
limpo, ao terceiro e sétimo dias, espargirá sobre o imundo; e, ao sétimo dia, o
purificará; e lavará as suas vestes, e se banhará na água, e à tarde será limpo"
(versículos 17-19).
O leitor dirá que, nos versículos doze e dezoito, é mostrada uma dupla ação. Há
a ação do terceiro dia e a ação do sétimo. Eram ambas essencialmente
necessárias para remover a contaminação cerimonial causada pelo contato
com as diversas formas de morte acima especificadas. Ora, o que era
simbolizado por este duplo ato? O que é que, na nossa história espiritual,
corresponde a esse ato? Cremos que é isto: Se, por falta de vigilância e energia
espiritual, tocamos alguma coisa impura e ficamos contaminados, podemos
desconhecer esse fato, mas Deus sabe tudo sobre o assunto. Ele tem cuidado
de nós e vela por nós; não como juiz indignado, bendito seja o Seu nome, ou um
austero crítico, mas como um Pai amantíssimo, que nunca nos imputará coisa
alguma, porque tudo foi, há longo temo, imputado Aquele que morreu em nosso
lugar.
Contudo, embora nada nos seja imputado por Ele, não deixará de nos fazer
sentir o mal profunda e vivamente. Será um fiel repreensor do que é impuro, e
pode reprovar tudo tanto mais energicamente quanto é certo que nunca o
considera contra nós. O Espírito Santo traz o nosso pecado à memória e isto
causa ao coração inexprimível angústia. Esta angústia pode continuar por
algum tempo. Pode dar instantes, dias, meses ou anos. Encontramos uma vez
um jovem cristão que se havia considerado infeliz durante três anos por ter ido
numa excursão com alguns amigos mundanos. Cremos que esta convicção do
Espírito Santo está simbolizada pela ação do terceiro dia. Ele recorda-nos o
nosso pecado, e então traz à nossa memória e aplica às nossas almas, por
meio da Palavra escrita, o valor da morte de Cristo como o que já tirou a
contaminação que tão facilmente contraímos. Isto corresponde à ação do
sétimo dia — tira a contaminação e restaura a comunhão.
E recorde-se atentamente que nunca podemos ser libertados da contaminação
de qualquer outro modo. Podemos procurar esquecer, curar ou passar
ligeiramente sobre a ferida, fazer pouco caso do assunto ou deixar ao tempo o
cuidado de o apagar da nossa memória. Mas isto de nada valerá; ou antes, é
trabalho perigoso. Não há nada mais desastroso do que gracejar com a
consciência ou os direitos da santidade. E é tão insensato como perigoso;
porque Deus tem, em Sua graça, preparado o meio de remover impureza que
Sua santidade detecta e condena. Mas a impureza tem de ser removida, de
contrário a comunhão é impossível. "Se eu te não lavar, não tens parte comigo"
(Jo 13:8).
A suspensão da comunhão do crente corresponde a extirpação de um membro
da congregação de Israel. O cristão não pode jamais ser separado de Cristo;
mas a sua comunhão pode ser interrompida por um simples pensamento
pecaminoso, e esse pensamento pecaminoso tem de ser julgado e confessado
e a sua mancha tirada, antes que a comunhão seja restaurada. É bom lembrar
isso. É uma coisa grave gracejar com o pecado. Podemos estar certos de que
não é possível comunhão com Deus e andar em contaminação. Pensar isso é
blasfemar o próprio nome, a própria natureza e o trono da majestade de Deus.
Não, prezado leitor, devemos conservar uma consciência limpa, e manter a
santidade de Deus, de contrário em breve faremos naufrágio da fé e cairemos
de todo.
Que o Senhor nos mantenha andando suave e ternamente, vigiando e orando
até que temos posto de lado os nossos corpos do pecado e morte e entrado
nesse bendito e resplandecente mundo celestial, onde o pecado, a morte e a
contaminação são desconhecidos.
No estudo das ordenações e cerimônias da dispensação levítica, nada é tão
notável como o cuidado cioso com que o Deus de Israel velava sobre o Seu
povo a fim de que ele pudesse ser preservado de toda a influência de
contaminação. De dia e de noite, acordados ou a dormir, em casa ou fora de
casa, no seio da família e no caminho solitário, os Seus olhos estavam postos
neles. Cuidava do seu alimento, do seu vestuário, dos seus hábitos e utensílios
domésticos. Instruiu-os cuidadosamente quanto ao que podiam e não podiam
comer, acerca do que podiam e do que não podiam vestir. Manifestou-lhes
também claramente os Seus pensamentos acerca do contato e manejo das
coisas. Em suma, rodeou-os de barreiras amplamente suficientes, se tão
somente lhes tivessem prestado atenção, para resistirem à corrente de
contaminação a que estavam expostos de todos os lados.
Em tudo isto, lemos em caracteres inconfundíveis, a santidade de Deus; mas
lemos claramente também a graça de Deus. Se a santidade divina não podia
consentir contaminação sobre o povo, a graça divina proveu amplamente à sua
remoção. Esta provisão é manifestada no nosso capítulo sob dois modos, a
saber: o Sangue da expiação e a água da separação.
Que preciosa provisão! Uma provisão que ilustra, ao mesmo tempo, a santidade
e a graça de Deus. Não conhecêssemos nós a ampla provisão da graça divina,
então os direitos elevados da santidade divina seriam inteiramente
esmagadores; mas estando seguros da primeira, podemos regozijar-nos de
todo o coração na última. Poderíamos nós desejar ver o padrão da santidade
divina rebaixado no mínimo? Longe de nós tal pensamento. Como poderíamos
sentir tal desejo, visto que a graça divina proveu amplamente o que a santidade
divina requeria?- Um israelita podia se estremecerão ouvir palavras como estas:
"Aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem, imundo será sete
dias." E, também: "aquele que tocar a algum morto, cadáver de algum homem
que estiver morto, e não se purificar contamina o tabernáculo do SENHOR; e
aquela alma será extirpada de Israel." Tais palavras podiam, na verdade,
apavorar o seu coração. Podia sentir-se levado a exclamar: "Como poderia eu
jamais escapar à contaminação?
Mas, então, e as cinzas da bezerra queimada?- E a água da separação"? O que
significavam? Mostram o memorial do sacrifício da morte de Cristo, aplicada ao
coração pelo poder do Espírito de Deus. "Ao terceiro dia se purificará com ela, e
ao sétimo dia será limpo; mas, se ao terceiro dia se não purificar, não será limpo
ao sétimo dia." Se contraímos contaminação, ainda que seja por negligência,
essa contaminação deve ser removida, antes da nossa comunhão pode ser
restaurada. Contudo, não podemos libertar-nos da mancha por qualquer
esforço da nossa parte. A contaminação só pode ser removida pelo uso da
provisão graciosa de Deus, a água da purificação. Um israelita não podia
remover por seus próprios esforços a contaminação causada pelo contato de
um corpo morto, do mesmo modo que não tinha podido partir de Faraó ou
libertar-se do azorrague dos exatores de Faraó.

Cristo: O Sacerdote e o Advogado


E note o leitor que não era uma questão de oferecer um novo sacrifício nem de
nova aplicação do sangue. É da máxima importância que isto seja claramente
compreendido. A morte de Cristo não pode ser repetida. "Sabendo que,
havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte não mais terá
domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o
pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus" (Rm 6:9-10). Estamos, pela graça
de Deus, sobre o pleno valor da morte de Cristo; mas visto que estamos
rodeados por todos os lados por tentações e ciladas; e visto que temos em nós
tais aptidões e tendências; e, além disso, visto que temos um adversário
poderoso que está sempre alerta para nos enredar e nos arrastar do caminho
da verdade e pureza, não poderíamos avançar um só momento se não fosse a
forma graciosa com que o nosso Deus tem providenciado para todas as nossas
necessidades pela preciosa morte e prevalecente advocacia de nosso Senhor
Jesus Cristo. Não só fomos lavados de todos os nossos pecados e
reconciliados com um Deus santo pelo sangue de Jesus Cristo, como "temos
um advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo". "Ele vive sempre para
interceder por nós", e "é poderoso para salvar até ao fim os que por ele se
chegam a Deus". Está sempre na presença de Deus por nós. Representa-nos
ali e mantém-nos na integridade divina do lugar de parentesco em que a Sua
morte expiatória nos tem colocado. O nosso caso nunca poderá, de modo
algum, ser perdido estando nas mãos de um tal Advogado. Ele terá de deixar de
viver, antes que o mais fraco dos Seus santos possa perder-se. Estamos
identificados com Ele e Ele está identificado conosco.
Ora bem, prezado leitor, qual deve ser o efeito prático de toda esta graça sobre
os nossos corações e as nossas vidas? Quando pensamos na morte, e na
queima - no sangue e nas cinzas - do sacrifício expiatório e na intercessão do
Sacerdote e Advogado, que influência deve isso exercer sobre as nossas
almas? Como deve atuar sobre as nossas consciências? Deve levar-nos a
menos prezar o pecado? Deve induzir-nos a andar descuidada e
indiferentemente? Deve ter efeito de nos tornar frívolos e descuidados nos
nossos caminhos? Ai coração que assim possa pensar! Podemos estar seguros
disto: o homem capaz de tirar um pretexto dos ricos recursos da graça divina
por ligeireza de conduta ou frivolidade de espírito conhece pouco, se é, na
verdade, que conhece alguma coisa, da verdadeira natureza ou própria
influência da graça e dos seus recursos.
Poderíamos nós imaginar, por um só momento, que as cinzas a água da
separação pudessem ter o efeito de tornar um Israelita descuidado quanto à sua
conduta? Não, certamente.
Pelo contrário, o próprio fato de haver sido preparado um tal recurso, pela
bondade de Deus, contra tal contaminação, devia fazer-lhe sentir quão grave
era contraí-la. Tal seria, pelo menos, o efeito próprio dos recursos da graça
divina. O montão de cinzas depositado num sítio limpo oferecia um duplo
testemunho: dava testemunho da bondade de Deus e proclamava a natureza
odiosa do pecado. Declarava que Deus não podia consentir impureza sobre o
Seu povo; mas declarava também que Ele tinha provido os meios de a remover.
É inteiramente impossível que a bendita doutrina da aspersão do sangue, das
cinzas e da água da separação seja compreendida sem produzir um santo
horror do pecado em todas as suas formas de contaminação. E, demais,
podemos asseverar que aquele que alguma vez sentiu a angústia de uma
consciência manchada não pode contrair frivolamente contaminação. Uma
consciência pura é um tesouro precioso demais para ser levianamente
abandonado; e uma consciência manchada é um fardo demasiado pesado para
se tomar com ligeireza.
Mas bendito seja o Deus de toda a graça. Ele tem providenciado para todas as
nossas necessidades de uma maneira perfeita; e, providenciou desta maneira,
não para nos tornarmos negligentes, mas para nos tornar vigilantes, "Meus
filhinhos, estas coisas vos escrevo para que não pequeis." Mas logo em seguida
acrescenta, "e, se alguém pecar, temos um advogado para com o Pai, Jesus
Cristo, o justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo" (1 Jo 2:1-2).
Mas devemos dar por terminados os nossos comentários sobre esta parte do
livro; queremos apenas acrescentar uma palavra sobre os versículos finais do
nosso capítulo.
"Isto lhes será por estatuto perpétuo; e o que espargir a água da separação
lavará as suas vestes; e o que tocar a água da separação será imundo até à
tarde. E tudo o que o imundo tocar também será imundo; e a alma que o tocar
será imunda até à tarde" (versículos 21 e 22). No versículo 18 aprendemos que
era necessária uma pessoa limpa para espargir a imunda; e no versículo 21 é
dito que o ato de espargir outro contaminava o que fazia aspersão.
Juntando estes dois fatos, nós aprendemos, como alguém disse: "Que aquele
que tem de tratar do pecado de outro, ainda que seja por dever, para o limpar, é
ele mesmo contaminado; não como uma pessoa culpada, verdade seja, mas
não pode tocar o pecado sem ser contaminado." E aprendemos também que, a
fim de guiar outro ao gozo da virtude purificadora da obra de Cristo, nós próprios
temos de estar no pleno gozo dessa obra purificadora. E bom recordarmos isto.
Aqueles que aplicavam a água de separação aos outros tinham que usar essa
água para si próprios. Que as nossas almas compreendam bem isto! Possamos
nós permanecer sempre no sentimento da perfeita pureza em que a morte de
Cristo nos introduz e na qual a Sua obra sacerdotal nos mantém! E, oh!
esqueçamos nunca que o contato com o mal contamina! Era assim sob a
dispensação moisaica, e é assim agora.
CAPÍTULO 20

A MORTE DE MIRIÃ E DE ARÃO

A Voz da Profetiza se Cala


"Chegando os filhos de Israel, toda a congregação, ao deserto de Zim, no mês
primeiro, o povo ficou em Cades; e Miriã morreu ali e ali foi sepultada" (versículo
1).
O capítulo que agora se abre diante de nós oferece um relato notável da vida e
das experiências do deserto. Nele vemos Moisés, o servo de Deus, atravessar
algumas das cenas mais penosas da sua vida tão cheia de acontecimentos. Em
primeiro lugar, Miriã morre. Aquela cuja voz fora ouvida no meio das cenas
brilhantes de Êxodo 15, entoando um hino de vitória, expira e o seu corpo é
depositado no deserto de Cades. O tamboril é posto de lado.
A voz do cântico extingue-se no silêncio da morte. Miriã já não pode guiar nas
danças. Em seu tempo, havia cantado melodiosamente; tinha agarrado a nota
tônica desse cântico magnífico de louvor entoado do lado da ressurreição do
Mar Vermelho. O seu coro englobava a verdade central da redenção: "Cantai ao
SENHOR, porque sumamente se exaltou, e lançou no mar o cavalo com o seu
cavaleiro." Isto era, na verdade, uma estrofe sublime. Era a linguagem
conveniente para aquela alegre ocasião.

O Cansaço do Deserto
Mas agora a profetisa sai da cena e a voz da melodia é trocada pela voz de
murmúrio. A vida do deserto está a tornar-se penosa. As experiências do
deserto põem à prova a natureza humana; mostram o que está no coração.
Quarenta anos de fadiga e aflições produzem uma grande mudança no povo. E
raro, na verdade, encontrar exemplos de casos em que o vigor e a frescura da
vida espiritual se têm mantido e muito menos aumentado através de todos os
períodos da vida cristã e sua luta.
Este fato não deveria ser tão raro. Deveria ser justamente o contrário, visto que
é nos pormenores do tempo presente, nas duras realidades do nosso caminho
por este mundo, que experimentamos o que Deus é. Bendito seja o Seu nome,
Ele serve-Se de cada dificuldade do nosso caminho, para Se dar a conhecer
aos nossos corações em toda a doçura e ternura do amor que não conhece
alteração. A Sua bondade e tenra misericórdia nunca falha. Nada pode esgotar
essas fontes que estão no Deus vivo. Ele sempre será o que é, apesar de toda a
nossa maldade. Deus será sempre Deus, ainda que o homem se mostre infiel e
incrédulo.
Este é o nosso conforto, o nosso gozo e a origem da nossa força. Temos de
tratar com o Deus vivo. Que realidade! Venha o que vier, Ele Se mostrará à
altura de todos os acontecimentos - amplamente suficiente "para as
necessidades de cada momento". A Sua paciente graça pode suportar as
nossas múltiplas fraquezas, faltas e deficiências; e a Sua força se aperfeiçoa na
nossa fraqueza. A Sua fidelidade nunca falha, A Sua misericórdia é de
eternidade a eternidade. Os amigos falham ou desaparecem. Os laços mais
afetuosos de amizade partem-se neste mundo frio e sem coração. Os
companheiros de trabalho separam-se. As Miriãs e os Arãos morrem; mas Deus
permanece. Aqui está o grande segredo de toda a verdadeira e sólida
bem-aventurança. Se temos a mão e o coração do Deus vivo conosco, nada
temos que temer. Se podemos dizer: "O SENHOR é o meu Pastor", podemos
seguramente acrescentar: "nada me faltará".
Contudo, há as cenas de dor e provação no deserto; e nós temos de passar por
elas. Foi assim com Israel, no capítulo que temos perante nós. Foram
chamados para encontrar as penetrantes rajadas do vento do deserto, e
encontraram-nas com expressões de impaciência e descontentamento.
"E não havia água para a congregação; então, se congregaram contra Moisés e
contra Arão. E o povo contendeu com Moisés, e falaram, dizendo. Antes
tivéssemos expirado quando expiraram nossos irmãos perante o SENHOR! E
por que trouxestes a congregação do SENHOR a este deserto, para que
morramos ali, nós e os nossos animais? E por que nos fizestes subir do Egito,
para nos trazer a este lugar mau ? Lugar não de semente, nem de figos, nem de
vides, nem de romãs, nem de água para beber" (versículos 2 a 5).
Foi este um momento difícil para o espírito de Moisés. Não podemos fazer ideia
do que terá sido enfrentar seiscentos mil descontentes e ser obrigado a ouvir as
suas amargas invectivas e verse acusado de todas as calamidades que a sua
própria incredulidade havia levantado diante deles. Isto não era uma prova
normal de paciência e, indubitavelmente, nós não devemos estranhar que esse
querido e honrado servo achasse a ocasião demasiado difícil.

A Glória do SENHOR Aparece


"Então, Moisés e Arão se foram de diante da congregação, à porta da tenda da
congregação e se lançaram sobre o seu rosto; e a glória do SENHOR lhes
apareceu" (versículo 6). Parece não terem, nesta ocasião, tentado dar qualquer
resposta ao povo, "Foram-se de diante da congregação" e prostraram-se
perante o Deus vivo. Não podiam, de modo algum, ter feito melhor. Quem
senão o Deus de toda a graça podia satisfazer as mil necessidades da vida do
deserto'?- Moisés bem tinha dito, no principio: "Se a tua presença não for
conosco, não nos faças subir daqui." Seguramente tinha razão e foi prudente
em se expressar assim. A presença divina era a única resposta para as
exigências de uma tal congregação; e era uma resposta inteiramente suficiente.
Os tesouros de Deus são absolutamente inesgotáveis. Ele nunca pode faltar a
um coração confiado. Lembremos isto. Deus deleita-Se em nos valer. Nunca Se
cansa de suprir as necessidades do Seu povo. Se isto estivesse sempre
presente na memória dos pensamentos dos nossos corações, ouviríamos
menos acentos de impaciência e descontentamento e mais da doce linguagem
de gratidão e louvor. Mas, como temos tido ocasião de dizer com frequência, a
vida do deserto é o teste que manifesta o que há em nós; e, graças sejam dadas
a Deus, descobre o que há n'Ele para nós.
"E o SENHOR falou a Moisés, dizendo: Toma a vara e ajunta a congregação, tu
e Arão, teu irmão, e falai à rocha perante os seus olhos, e dará a sua água;
assim, lhes tirarás água da rocha e darás a beber à congregação e aos seus
animais. Então, Moisés tomou a vara de diante do SENHOR, como lhe tinha
ordenado. E Moisés e Arão reuniram a congregação diante da rocha, e Moisés
disse-lhes: Ouvi agora, rebeldes: porventura, tiraremos água desta rocha para
vós? Então, Moisés levantou a sua mão e feriu a rocha duas vezes com a sua
vara, e saíram muitas águas; e bebeu a congregação e os seus animais"
(versículos 7 a 11).

A Rocha e a Vara
Nesta passagem, dois objetos requerem a atenção do leitor, a saber: "a rocha" e
"a vara". Os dois apresentam Cristo à alma de uma maneira bendita; mas em
dois aspectos distintos. Em 1 Coríntios 10:4, lemos: "E beberam todos de uma
mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a
pedra era Cristo." Isto é claro e positivo. Não deixa lugar nenhum para exercício
da imaginação. "A pedra era Cristo", - Cristo ferido por nós.
Depois, no que respeita "à vara", devemos recordar que não era a vara de
Moisés - a vara de autoridade - a vara de poder. Isto não seria próprio da
ocasião. Essa vara tinha feito a sua obra. Tinha ferido a rocha uma vez, e isso
era bastante. E o que aprendemos de Êxodo 17:5-6, onde lemos: "Então, disse
o SENHOR a Moisés: Passa diante do povo e toma contigo alguns dos anciãos
de Israel; e toma na tua mão a tua vara, com que feriste o rio", e vai. Eis que eu
estarei ali diante de ti sobre a rocha, em Horeb, e tu ferirás a rocha, e dela
sairão águas, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, diante dos olhos dos
anciãos de Israel."
Aqui temos um tipo de Cristo ferido por nós pela mão de Deus em juízo. O leitor
notará a expressão, "a tua vara, com que feriste o rio". Por que o rio? Porque
deveria ser referido este golpe particular da vara? Êxodo 7:20 dá a resposta. "E
levantou (Moisés) a vara e feriu as águas que estavam no rio, diante dos olhos
de Faraó e diante dos olhos de seus servos; e todas as águas do rio se
tomaram em sangue." Era a vara que tornara a água em sangue que devia ferir
a rocha que "era Cristo" para que rios de vida e refrigério pudessem correr para
nós.

A Falta de Moisés e a Graça de Deus


Ora, esta ação de ferir só podia ter lugar uma vez. Numa pode ser repetida.
"Sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre; a morte
não mais terá domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu
para o pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus" (Rm 6:9-10). "Mas agora,
na consumação dos séculos, uma vez se manifestou para aniquilar o pecado
pelo sacrifício de si mesmo... assim também Cristo oferecendo-se uma vez para
tirar os pecados de muitos" (Hb 9:26-27). "Porque também Cristo padeceu uma
vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pe 3:18).
Não pode haver repetição da morte de Cristo; e por isso Moisés estava
equivocado em ferir a rocha duas vezes com a sua vara - equivocado de fato foi
ordenado para tomar "a vara "- a vara de Arão - a vara sacerdotal e falar à
rocha.
A obra expiatória está feita, e agora o nosso Sumo Sacerdote penetrou nos
céus, para comparecer na presença de Deus por nós, e as correntes de
refrigério espiritual correm até nós, com a base na redenção cumprida e em
relação com o ministério sacerdotal de Cristo, da qual a vara reverdecida de
Arão é a figura admirável.
Por isso, foi um erro grave que Moisés cometeu em ferir a rocha segunda vez-
um erro usar a sua vara. Ter ferido a rocha com a vara de Arão teria destruído
as suas belas flores, como é fácil de compreender. Uma palavra teria sido
suficiente, em relação com a vara do sacerdócio - a vara da graça. Moisés não
viu isto - não glorificou a Deus imprudentemente com os seus lábios; e como
consequência proibido de ir além do Jordão. A sua vara não podia fazer passar
o povo - pois o que podia a mera autoridade fazer com uma hoste murmuradora
- e ele próprio não foi autorizado a passar, porque falhara em santificar o Senhor
aos olhos da congregação.
Mas o Senhor cuidou da Sua própria glória. Santificou-Se a Si Mesmo perante a
congregação; e, não obstante as suas rebeldes murmurações e o erro e
fracasso de Moisés, a congregação do Senhor recebeu uma corrente caudalosa
da rocha ferida.

CAPÍTULO 21

A SERPENTE DE BRONZE

Mais Murmuração, e o Maná é Considerado Pão Miserável


Este capítulo põe diante de nós de um modo proeminente a formosa e
conhecida instituição da serpente de metal - esse grande tipo evangélico.
"Então, partiram do monte Hor, pelo caminho do mar Vermelho, a rodear a terra
de Edom; porém a alma do povo angustiou-se neste caminho. E o povo falou
contra Deus e contra Moisés: Porque nos fizestes subir do Egito, par que
morrêssemos neste deserto?- Pois, aqui, nem pão nem água há; e a nossa
alma tem fastio deste pão tão vil" (versículo 4-5).
Ah! E sempre a mesma triste história: "As murmurações do deserto". Era muito
bom fugir da terra do Egito quando os terríveis juízos de Deus caíam rápida e
sucessivamente sobre aquele país. Nessa altura havia pouco atrativo nas
panelas de carne, nos pepinos, porros, e nas cebolas, quando estavam em
relação com as terríveis pragas mandadas pela mão do Deus ofendido. Mas
agora as pragas estão esquecidas, e só são lembradas as panelas de carne.
"Quem dera que nós morrêssemos por mão do SENHOR na terra do Egito,
quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão
até fartar!" (Êx 16:3).
Que linguagem! O homem preferiria sentar-se junto às panelas de carne numa
terra de morte e trevas, a andar com Deus no deserto e comer pão do céu! O
Senhor mesmo havia feito descer a Sua glória sobre as próprias areias do
deserto, porque os Seus remidos estavam ali. Havia descido para suportar toda
a Sua provocação "para sofreras suas murmurações no deserto". Tanta graça e
excessiva condescendência podiam muito bem ter despertado neles espírito de
grata e humilde sujeição. Mas não; a primeira aparência de provação basta para
despertar neles o grito de "Quem nos dera que nós morrêssemos pela mão do
Senhor na terra do Egito!"

As Serpentes Ardentes: A Morte


Porém, depressa tiveram de provar os frutos amargos do seu espírito de
murmuração. "Então, o SENHOR mandou entre o povo serpentes ardentes, que
morderam o povo; e morreu muito povo de Israel" (versículo 6). A serpente era a
origem do seu descontentamento; e o seu estado, depois de mordidos pelas
serpentes, estava bem calculado para lhes revelar o verdadeiro caráter desse
descontentamento. Se o povo do Senhor não quer andar alegre e contente com
Ele, terá de provar o poder da serpente - ah! que poder terrível, seja qual for o
modo em que seja experimentado!
A mordedura da serpente despertou em Israel o sentimento do seu pecado.
"Pelo que o povo veio a Moisés e disse: Havemos pecado, porquanto temos
falado contra o SENHOR e contra ti; ora ao SENHOR que tire de nós estas
serpentes" (versículos 7).
Aqui, pois, estava o momento para a graça desse se manifestar. A necessidade
do homem tem sido sempre a ocasião para a manifestação da graça e
misericórdia de Deus. No momento em que Israel pôde dizer: "Havemos
pecado" Não houve mais impedimento. Deus podia atuar, e isto era suficiente.
Quando Israel murmurou, teve por resposta a mordedura das serpentes.
Quando Israel fez confissão, a graça de Deus foi a resposta. No primeiro caso, a
serpente foi o instrumento da sua miséria; no segundo, era o meio da sua
restauração e benção.

A Serpente de Bronze - A Vida


(Posta sobre uma Haste: Um Tipo de Cristo na Cruz)
"E disse o SENHOR a Moisés: Faze uma serpente ardente e põe-na sobre uma
haste; e será que viverá todo mordido que olhar para ela" (versículo 8). A
própria imagem do que havia feito o mal foi levantada para ser a conduta pela
qual a graça divina podia correr, em rica abundância, para os pobres pecadores
mordidos. Admirável tipo de Cristo sobre a cruz!
É um erro muito frequente considerar o Senhor Jesus antes como Aquele que
impede a ira de Deus e não como o meio do Seu amor. Que suportou a ira de
Deus contra o pecado é uma verdade. Porém, há mais do que isto. Ele veio a
este miserável mundo para morrer sobre a cruz maldita, a fim de que, por meio
da morte pudesse abrir os mananciais eternos do amor de Deus ao coração o
pecador rebelde. Isto constitui uma grande diferença na manifestação da
natureza e caráter de Deus ao pecador. Nada poderá reconduzir um pecador a
um estado de verdadeira felicidade e santidade senão a sua confirmação na fé
e gozo do amor de Deus.
O primeiro esforço da serpente, quando, no jardim do Éden, atacou a criatura,
foi abalar a sua confiança na bondade e no amor de Deus, e assim suscitou
descontentamento com o lugar em que Deus o havia posto. A queda do homem
foi o resultado - o imediato resultado - de duvidar do amor de Deus. A
restauração do homem tem de resultar da sua crença nesse amor; e é o Próprio
Filho de Deus quem diz: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o
seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna." (Jo 3:16).
Ora é em relação imediata com o precedente relato que o Senhor
expressamente nos ensina que Ele era o antítipo da serpente de metal. Como o
Filho de Deus enviado do Pai, era seguramente o dom e a expressão do amor
de Deus por um mundo perdido, mas tinha também de ser levantado na cruz em
propiciação pelo pecado, porque só assim podia o amor divino satisfazer as
exigências do pecado moribundo. "E como Moisés levantou a serpente no
deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna."
Toda a família humana tem sentido a mordedura mortal da serpente; mas o
Deus de toda a graça encontrou um remédio n Aquele que foi levantado na cruz
de maldição; e agora chama pelo Espírito Santo, enviado do céu, a todos os que
se sentem mordidos para olharem para Jesus a fim de terem vida e paz. Cristo é
a grande ordenação de Deus, e por Ele é proclamada salvação de graça, livre,
atual e eterna a todo o pecador—uma salvação tão completa, de tal modo
fundada e tão compatível com todos os atributos do caráter divino e todas as
exigências do trono de Deus, que Satanás não pode levantar uma simples
objeção a seu respeito. A ressurreição é a justificação divina da obra da cruz e
da glória d'Aquele que nela morreu de modo que o crente pode gozar o mais
profundo descanso quanto ao pecado. Deus tem todo o Seu prazer em Jesus;
e, visto que contempla todos os crentes n'Ele, acha também o Seu prazer neles.
E note-se, a fé é o instrumento mediante o qual o pecado lança mão da
salvação Cristo. O Israelita ferido tinha apenas de olhar e viver — olhar não
para si nem para as suas feridas ou para os que o rodeavam, mas direta e
unicamente para o remédio de Deus. Se recusava ou descurava olhar para esse
remédio, nada mais havia para si senão a morte. Era chamado para fixar
atentamente o seu olhar no remédio de Deus, que estava levantado de tal forma
que todos podiam vê-lo. Não havia vantagem alguma em olhar para qualquer
outro lado, porque a palavra era "será que viverá todo mordido que olhar para
ela". O israelita mordido só tinha a serpente de metal; porque a serpente
ardente era o único remédio de Deus para o israelita mordido. Olhar para
qualquer outro lado equivalia a nada receber; olhar para o remédio de Deus era
receber a vida.
Assim é também agora. O pecador é chamado para olhar simplesmente para
Jesus. Não se lhe diz para olhar para as ordenações - para olhar para igrejas -
para os homens ou anjos. Não há socorro em qualquer destas coisas, e
portanto ele não é chamado para olhar para elas, mas exclusivamente para
Jesus, cuja morte e ressurreição constituem a base eterna da paz e esperança
do crente. Deus assegura-lhe que "Todo aquele que nele crê tem a vida eterna,
e não se perde". Isto deve satisfazer inteiramente o coração e a consciência.
Deus está satisfeito e nós devemos estar também satisfeitos. Suscitar dúvidas é
negar o relato de Deus. Se um israelita tivesse dito: "Como sei eu que olhando
para a serpente de metal me restaurei?" Ou se começasse a estar preocupado
com a grandeza e natureza irremediável da sua doença, e argumentasse com a
aparente inutilidade de olhar para a ordenação de Deus - em suma, se qualquer
coisa, não importava o que fosse o tivesse impedido de olhar para a serpente
ardente, seria uma positiva rejeição de Deus, e a morte teria sido o resultado
inevitável.
Assim, no caso do pecador, no momento em que ele está habilitado a deitar um
olhar de fé a Jesus, o seu pecado desaparece. O sangue de Jesus, à
semelhança de uma poderosa corrente de limpeza corre sobre a sua
consciência, tira todas as manchas e deixa-o sem mácula nem ruga nem coisa
semelhante; e tudo isto, também, à própria luz da santidade de Deus, em que
nem um átomo de pecado pode ser permitido.
Mas, antes de terminarmos as nossas meditações sobre a serpente de metal,
será bom notarmos o que podemos chamar a intensa individualidade que
caracterizava o olhar do israelita mordido para a serpente. Cada qual tinha de
olhar por si. Ninguém podia olhar por outrem. Era uma questão pessoal.
Ninguém podia ser salvo por procuração. Havia vida num olhar; mas era preciso
deitar esse olhar. Era preciso haver um elo pessoal - contato direto e pessoal
com o remédio de Deus.
Assim era então, e assim é agora. Temos nós próprios de tratar com Jesus. A
Igreja não nos pode salvar - nenhuma ordem de sacerdotes ou de ministros
pode salvar-nos. Tem que haver o laço pessoal com o Salvador; de contrária
não há vida: "E era que, mordendo alguma serpente a alguém, olhava para a
serpente de metal e ficava vivo". Esta era então a ordem de Deus; e é esta a
ordem de Deus agora, porque "Como Moisés levantou a serpente no deserto,
assim importa que o Filho do homem seja levantado", Recordemos as duas
palavras "como" e "assim", porque elas se aplicam a cada pormenor no tipo e
no antítipo. A fé é uma coisa individual; o arrependimento é uma coisa
individual; a salvação é uma coisa individual. Nunca esqueçamos isto. Decerto,
há no cristianismo união e comunhão; mas nós temos de tratar com Cristo por
nós mesmos, e devemos andar com Deus nós mesmos. Não podemos nem
obter vida nem viver pela fé de outro. Existe, repetimos com ênfase, uma
individualidade intensa em cada fase da vida do cristão e na sua carreira
prática.
Não continuaremos com os nossos comentários sobre a figura familiar da
"serpente de metal"; mas rogamos a Deus que habilite o leitor a meditar sobre
ela por si mesmo, e a fazer uma aplicação pessoal e direta da verdade preciosa
contida numa das mais notáveis figuras dos tempos do Velho Testamento. Que
o Senhor o leve a contemplar com mais profunda e humilde fé a cruz e a
embeber a sua alma no precioso ministério ali apresentado. Que não se dê por
satisfeito apenas em receber vida por um olhar à cruz, mas procure entrar mais
no seu profundo e maravilhoso significado, e estar mais devotadamente ligado
Aquele que, quando não havia nenhum outro meio de libertação, Se entregou a
Si Mesmo voluntariamente para ser moído nessa cruz de maldição por nós e
para nossa salvação.
A Graça de Deus Faz Provisão: Sobe um Cântico de Louvor
Terminaremos os nossos comentários sobre Números 21 chamando a atenção
do leitor para os versículos 16 a 18. "E dali, partiram para Beer; este é o poço do
qual o SENHOR disse a Moisés: Ajunta o povo e lhe darei água. (Então, Israel
cantou este cântico: Sobe, poço, e vós cantai dele: Tu, poço, que cavaram os
príncipes, que escavaram os nobres do povo, e o legislador com os seus
bordões)".
Esta passagem, vindo num momento como aquele e relacionada com o que a
precede, é notável. As murmurações já não se ouvem - o povo está a
aproximar-se das fronteiras da terra prometida - os efeitos das mordeduras das
serpentes desapareceram, e agora, sem qualquer vara, sem qualquer pancada,
o povo é provido de refrigério. Que importa que os amoritas, os moabitas e os
amonitas estejam em redor deles; ainda que o poder de Seon se oponha no
caminho, Deus pode abrir um poço para seu povo e dar-lhes, apesar de tudo,
um cântico. Oh! Deus é o nosso Deus! Quão bom é seguir os Seus atos e
caminhos com o Seu povo em todas estas cenas do deserto! Possamos nós
aprender a confiar n'Ele implicitamente e a andar com Ele, dia a dia, em santa e
feliz sujeição! Esta é a verdadeira senda de paz e bênção.

CAPÍTULOS 22 a 24

BALAÃO: UMA VISÃO DE ISRAEL DO "CUME DAS PENHAS" (Nm 23:9)

O Salário da Iniquidade
Estes três capítulos formam uma parte distinta do nosso livro - uma porção
verdadeiramente maravilhosa, abundante em instruções ricas e variadas. Nela
apresenta-se-nos, primeiro, o profeta cobiçoso e, em seguida, as suas sublimes
profecias. Existe qualquer coisa especialmente terrível no caso de Balaão.
Evidentemente, ele amava o dinheiro - um amor que não é invulgar,
infelizmente, nos nossos próprios dias! O ouro e a prata de Balaque foram para
este miserável um tentador engodo - um engodo demasiado atraente para ser
repelido. Satanás conhecia bem o seu homem e o preço por que podia ser
comprado.
Se o coração de Balaão fosse reto para com Deus, teria dado pouca atenção à
mensagem de Balaque; com efeito, não teria perdido um momento de reflexão
com a mensagem a enviar-lhe. Mas o coração de Balaão era mau, e por isso
vemo-lo no capítulo 22 na triste condição de um homem que atua por
sentimentos opostos. O seu coração estava inclinado a ir, porque estava
decidido quanto à prata e ao ouro; mas, ao mesmo tempo, havia uma espécie
de alusão a Deus - uma aparência de religiosidade usada como capa para
cobrir as suas práticas ambiciosas. Desejava muito o dinheiro; e de boa vontade
o receberia, mas só de uma forma religiosa. Miserável! O mais miserável! O seu
nome permanece nas páginas inspiradas como a expressão de uma fase tétrica
e terrível da história decadente do homem.
"Ai deles!", diz Judas, "porque entraram pelo caminho de Caim, e foram levados
pelo engano do prêmio de Balaão, e pereceram na contradição de Coré." Pedro
também apresenta Balaão como uma figura proeminente num dos quadros mais
sinistros da humanidade caída - um modelo sobre o qual são formados alguns
dos caracteres mais perversos. Fala daqueles que "tendo os olhos cheios de
adultério e não cessando de pecar, engodando as almas inconstantes, tendo o
coração exercitado na avareza, filhos de maldição- os quais, deixando o
caminho direito, erraram seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que
amou o prêmio da injustiça. Mas teve a repreensão da sua transgressão; o
mudo jumento, falando com voz humana, impediu a loucura do profeta" (2 Pe
2:14-16).
Estas passagens são solenemente conclusivas quanto ao verdadeiro caráter e
espírito de Balaão. O Seu coração estava posto no dinheiro - "amou o prêmio da
injustiça" - e a sua história tem sido escrita com a pena do Espírito Santo como
um aviso terrível a todos os professos para que se guardem da avareza, que é
idolatria. Não ponderaremos mais a triste história. O leitor pode meditar por
alguns momentos sobre o quadro apresentado em Números 22. Pode estudar
as duas figuras proeminentes: o astuto rei e o ambicioso e obstinado profeta; e
nós não duvidamos de que deixará o estudo com o sentimento profundo do mal
da avareza, o grande perigo moral de ter as afeições do coração postas nas
riquezas deste mundo e a grande bem-aventurança de ter o temor de Deus
perante os seus olhos.
O SENHOR Está a Favor do seu Povo
Vamos prosseguir agora com o exame dessas maravilhosas profecias
pronunciadas por Balaão em audiência com Balaque, rei dos moabitas.
E profundamente interessante assistir à cena que se desenrola nos lugares
altos de Baal, notar a grande questão em jogo, ouvir os oradores, ser admitido
atrás das cenas numa ocasião tão importante. Quão longe estava Israel de
suspeitar o que se passava entre o Senhor e o inimigo. Murmuravam talvez em
suas tendas no próprio momento em que Deus anunciava a sua perfeição pela
boca do profeta ambicioso. Balaque teria de boa vontade visto Israel
amaldiçoado; mas, bendito seja Deus, Ele não permitirá que alguém amaldiçoe
o Seu povo. Poderá ter de tratar com eles, Ele próprio, em segredo, acerca de
muitas coisas; mas não consentirá que alguém fale contra eles. Poderá ter de
os descobrir a si mesmos; mas não consentirá que um estranho os denuncie.
Isto é um ponto de grande interesse. A grande questão é não tanto o que o
inimigo possa pensar do povo de Deus ou o que eles próprios possam pensar
de si ou uns dos outros. A verdadeira questão - a questão de máxima
importância - é, o que pensa Deus deles? Ele conhece exatamente tudo que
lhes diz respeito: tudo que são; tudo que têm feito; tudo que há neles. Tudo é
claramente revelado aos Seus olhos perscrutadores. Os segredos mais íntimos
do coração, da carne, e da vida, são todos conhecidos por Ele. Nem os anjos,
nem os homens, nem os demônios nos conhecem como Deus nos conhece.
Deus conhece-nos perfeitamente; e é com Ele que temos de tratar, e podemos
dizer, na linguagem exultante do apóstolo: "Se Deus é por nós, quem será
contra nós? (Rm 8:31). Deus nos vê, pensa em nós, fala a nosso respeito, atua
por nós, segundo o que Ele mesmo tem feito de nós e por nós - segundo a
perfeição da Sua obra. "Os espectadores podem ver muitas faltas", mas, quanto
à nossa posição, o nosso Deus vê-nos só na perfeição de Cristo; somos
perfeitos n'Ele. Quando Deus contempla o Seu povo, vê nele a Sua própria
obra; é para glória do Seu santo nome e louvor da Sua salvação que nem uma
mancha se vê naqueles que são Seus — aqueles que, em graça soberana, fez
Seus. O Seu caráter, o Seu nome, a Sua glória e a perfeição da Sua obra estão
envolvidos na posição daqueles com os quais se relacionou.
Por isso, no momento em que qualquer inimigo ou acusador entra em cena, o
Senhor sempre coloca-Se na sua frente para receber e responder as
acusações; e a Sua resposta é sempre baseada, não sobre o que os Seus são
em si mesmos, mas sobre o que Ele tem feito deles por meio da perfeição da
Sua própria obra. A Sua glória está ligada com eles, e, justificando-os, Ele
mantém a Sua própria glória. Coloca-se entre eles e as línguas acusadoras. A
sua glória exige que eles sejam apresentados em toda a beleza com que os tem
revestido. Se o inimigo vem para amaldiçoar e acusar, Javé responde dando
livre curso à Sua eterna complacência naqueles que escolheu para Si Mesmo, e
os quais tornou idôneos de estar na Sua presença para sempre.
Tudo está exemplificado de uma forma notável no terceiro capítulo do profeta
Zacarias. Ali também o inimigo se apresenta para se opor ao representante do
povo de Deus. Como lhe responde Deus? Simplesmente purificando, vestindo e
coroando aquele que Satanás desejava amaldiçoar e acusar, de forma que
Satanás não teve nada para dizer. É reduzido ao silêncio para sempre. Os
vestidos sujos são tirados e aquele que era apenas um tição tirado do fogo é
feito um sacerdote com uma mitra - o que era apenas útil para as chamas do
inferno é agora idôneo de andar nos átrios do Senhor.
Assim também quando nos voltamos para o livro de Cantares, vemos a mesma
coisa. O Noivo, contemplando a noiva, diz-lhe: "Tu és toda formosa, amiga
minha, e em ti não há mancha" (Ct 4:7). Ela, falando de si, só pode, exclamar:
"Eu sou morena (Ct 1:5- 6). Assim também em João 13 o Senhor Jesus olha
para os discípulos e diz-lhes: "Vós estais limpos"; ainda que dentro, de algumas
horas um deles houvesse de negar e jurar que não O conhecia. E tão grande a
diferença entre o que somos em nós próprios e o que somos em Cristo - entre o
nosso estado positivo e o nosso estado possível.
Esta verdade gloriosa quanto à perfeição do nosso estado deve fazer-nos
descuidados quanto ao nosso estado prático? Longe de nós tal pensamento!
Pelo contrário, o conhecimento da nossa posição em Cristo, absolutamente
estabelecida e perfeita, é o próprio instrumento de que o Espírito Santo Se
serve para nos excitar à perfeição prática. Executemos essas palavras
poderosas da pena do apóstolo inspirado: "Portanto, se já ressuscitastes com
Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra
de Deus. Pensai nas coisas que são de cima e não nas que são da terra; porque
já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando
Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, então, também vós vos manifestareis
com ele em glória. Mortificai, pois, os vossos membros" (Cl 3:1-3). Não
devemos nunca medir a nossa posição pelo nosso estado, mas julgar sempre o
estado pela posição. Rebaixar a posição por causa do estado é dar o golpe de
misericórdia a todo o progresso e cristianismo prático.
Alinha de pensamento precedente está eficazmente ilustrada nas quatro
parábolas de Balaão. Para falar segundo a maneira dos homens nós nunca
teríamos tido um aspecto tão glorioso de Israel, como é visto na "visão do
Todo-poderoso" - do alto das rochas - por um que teve "os olhos abertos", se
Balaque não tivesse procurado amaldiçoá-los. O Senhor, bendito seja o Seu
nome, pode abrir rapidamente os olhos de um homem para o verdadeiro estado
do caso a respeito da posição do Seu povo e quanto ao juízo que faz deles.
Reivindica o privilégio de expor os Seus pensamentos a respeito deles. Balaque
e Balaão com "todos os príncipes de Moabe" podem reunir-se para ouvir
amaldiçoar e afrontar Israel; podem "edificar sete altares", e oferecer "um
bezerro e um carneiro sobre cada altar"; a prata e o ouro de Balaque podem
brilhar aos olhos do ambicioso profeta; mas todos os poderes da terra e o
inferno, dos homens e dos demônios combinados, na sua terrível e sombria
ordem de batalha, não podem evocar o menor alento de maldição ou de
acusação contra o Israel de Deus. Teria sido tão inútil o inimigo procurar um
defeito na formosa criação que Deus tinha declarado "muito boa" como lançar
uma acusação contra os remidos do Senhor.
Oh, não! Eles brilham em toda a beleza com que Ele os tem revestido, e tudo
que é preciso para os ver assim é subir ao "alto das rochas" - para termos "os
olhos abertos" e vê-los segundo o Seu ponto de vista - na "visão do
Todo-poderoso".
Havendo dado assim uma vista geral ao conteúdo destes notáveis capítulos,
vamos aludir rapidamente a cada uma das quatro parábolas em particular.
Descobriremos um ponto distinto em cada uma - uma característica no caráter e
condição do povo, visto na "visão do Todo-poderoso".

O Primeiro Oráculo de Balaão


Na primeira das parábolas maravilhosas de Balaão, temos, claramente,
apresentada a separação do povo de Deus de todas as nações.
"Como amaldiçoarei o que Deus não amaldiçoa? E como detestarei, quando o
SENHOR não detestai Porque do cume das penhas o vejo e dos outeiros o
contemplo: eis que este povo habitará só e entre as gentes não será contado.
Quem contará o pó de Jacó e o número da quarta parte de Israel? A minha alma
morra da morte dos justos, e seja o meu fim como o seu" (1).
__________
(1) Pobre, desgraçado Balaão! Miserável homem! Gostaria de morrer a morte
dos justos. Muitos há que dizem o mesmo, mas esquecem que o caminho para
a morte dos justos é possuir e viver a vida dos justos. Muitos - ah, quantos! -
gostariam de morrer a morte dos justos sem viverem a vida dos justos. Muitos
gostariam de possuir a prata e o ouro de Balaque e contudo serem contatos
entre o Israel de Deus. Pensamento vão! Ilusão fatal! Não podemos servir a
Deus e a Mamom!

Aqui temos Israel escolhido e separado para ser um povo à parte e particular -
um povo que, segundo o pensamento divino a seu respeito, devia jamais, em
tempo algum, ou sob qualquer pretexto por qualquer razão, misturar-se com as
nações ou ser contado com elas. "Este povo habitará só". Isto é claro e enfático.
É verdadeiro quanto à semente literal de Abraão, e verdadeiro a respeito de
todos os crentes hoje em dia. Deste princípio desprendem-se imensos
resultados práticos. O povo de Deus deve estar separado para Si, não porque
seja melhor do que os outros, mas simplesmente em virtude do que Ele quer
que o Seu povo seja. Não prosseguiremos por agora este ponto; mas o leitor
fará bem examinando-o à luz da palavra divina. "Este povo habitará só, e entre
as nações não será contado".
Mas ao Senhor agrada, em Sua graça soberana unir-Se com o Seu povo; se os
chama para serem um povo separado no mundo - para habitar "só" e brilhar por
Ele no meio dos que ainda estão "nas travas e sombra da morte", só pode tê-los
numa condição que Lhe covinha. Tem de torná-los como desejaria tê-los - tais
como convém para louvor do Seu grande e glorioso nome. Por isso, na segunda
parábola, o profeta é obrigado a declarar não apenas o estado negativo, mas
também o estado positivo do povo.

O Segundo Oráculo de Balaão


"Então, alçou a sua parábola, e disse: Levanta-te, Balaque, e ouve; inclina os
teus ouvidos a mim, filho de Zipor. Deus não é homem, para que minta nem filho
de homem, para que se arrependa; porventura diria ele e não o faria? Ou falaria
e não o confirmaria? Eis que recebi mandado de abençoar; pois ele tem
abençoado, e eu não o posso revogar. Não viu iniquidade em Israel, nem
contemplou maldade em Jacó; o SENHOR, seu Deus, é com ele e nele, e entre
eles se ouve o alarido de um rei. Deus os tirou do Egito; as suas forças são
como as do unicórnio. Pois contra Jacó não vale encantamento, nem
adivinhação contra Israel; neste tempo se dirá de Jacó e de Israel: Que coisas
Deus tem feito! Eis que o povo se levantará como leoa, e se exalçará como
leão; não se deitará até que coma a presa e beba o sangue de mortos" (Nm
23:18-24).
Aqui achamo-nos em terreno verdadeiramente elevado, e tão elevado quanto é
sólido. Este é na verdade "o cume das penhas - o ar puro e a vasta extensão
das colinas", de onde o povo de Deus é visto somente na "visão do
Todo-poderoso"; visto como Ele os vê, sem mácula, sem ruga nem coisa
semelhante, com todas as suas deformidades ocultas da vista, e toda a Sua
beleza vista sobre eles.
Nesta sublime parábola, a bem-aventurança e segurança de Israel tornam-se
dependentes, não deles, mas da verdade e fidelidade do Senhor. "Deus não é
homem, para que minta, nem filho do homem, para que se arrependa". Isto põe
Israel sobre um terreno firme. Deus tem de agir segundo a Sua natureza, Existe
qualquer poder que pode de algum modo impedi-Lo de cumprira Sua palavra e
o Seu juramento? Decerto que não. Ele "tem abençoado; e eu não o posso
revogar". Deus não quer, e Satanás não poderá inverter a bênção.
Desta forma tudo é resolvido. Tudo está em ordem e assegurado. Na parábola
antecedente a expressão era "Deus não amaldiçoa". Aqui é: Ele "tem
abençoado". Há um progresso evidente. Enquanto Balaque conduz o profeta
ambicioso de lugar em lugar, o Senhor aproveita a ocasião para descobrir novos
rasgos de beleza no Seu povo e novos pontos de segurança na sua posição.
Assim não é meramente o caso de serem um povo separado que habita só, mas
são um povo justificado que tem o Senhor seu Deus com eles, e, assim, no
meio deles ouve-se o alarido de um rei. "Não viu iniquidade em Israel, nem
contemplou maldade em Jacó". O inimigo pode dizer: "Tem havido iniquidade e
maldade em todo o tempo". Sim, mas quem pode obrigar o Senhor a vê-la,
quando Ele próprio Lhe aprouve afastá-la como a uma nuvem espessa por amor
do Seu nome Se Ele a lançou para trás das Suas costas, quem pode trazê-la
perante Seu rosto? E Deus quem os justifica; quem os condenará? Deus vê o
Seu povo de tal modo libertado de tudo que podia ser contra eles, que pode
fazer a Sua habitação no seu meio e fazer ouvir a Sua voz entre eles.
Bem podemos portanto exclamar: "Que coisas Deus tem feito!" Não é "Que
coisas Israel tem feito!" Balaque e Balaão teriam encontrado bastantes motivos
de maldição se fosse uma questão da conduta de Israel. Bendito seja o Senhor,
é sobre o que Ele tem feito que o Seu povo permanece, e este fundamento é tão
estável como o trono de Deus. "Se Deus é por nós, quem será contra nós?" Se
o Senhor Se mantém precisamente entre nós e todo o inimigo, que temos nós
de temerá Se Ele Se encarrega de responder por nós a todo acusador, então a
nossa parte deve ser, com toda a segurança, uma paz perfeita.

O Terceiro Oráculo de Balaão


Contudo, o rei de Moabe esperava ainda e procurava cuidadosamente alcançar
o seu objetivo. E, sem dúvida, Balaão fazia o mesmo, pois que se haviam aliado
contra o Israel de Deus, recordando-nos, forçosamente, a besta e o falso
profeta que devem ainda levantar-se e desempenhar uma parte terrivelmente
solene em conexão com o futuro Israel, como se vê nas páginas do Apocalipse.
"Vendo Balaão que bem parecia aos olhos do SENHOR que abençoasse a
Israel, não foi esta vez como dantes, ao encontro dos encantamentos, mas pôs
o seu rosto para o deserto. E, levantando Balaão os seus olhos e vendo a Israel
que habitava segundo as suas tribos, veio sobre ele o Espírito de Deus. E alçou
a sua parábola e disse: Fala Balaão, filho de Beor, e fala o homem de olhos
abertos; fala aquele que ouviu os ditos de Deus, o que vê a visão do
Todo-poderoso, caindo em êxtase e de olhos abertos: Que boas são as tuas
tendas, ó Jacó! As tuas moradas, ó Israel! Como ribeiros se estendem, como
jardins ao pé dos rios; como árvores de sândalo o SENHOR OS plantou, como
cedros junto às águas. De seus baldes manarão águas, e a sua semente estará
em muitas águas; e o seu rei se exalçará mais do que Agague, e o seu reino
será levantado. Deus o tirou do Egito; as suas forças são como as do unicórnio;
consumirá as nações, seus inimigos (que terrível aviso para Balaque!), e
quebrará seus ossos, e com as suas setas os atravessará. Encurvou-se, deitou-
se como leão e como leoa; quem o despertará? Benditos os que te
abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem" (Nm 24:l-9).
Alto, ainda mais alto é o tema aqui. Bem podemos exclamar à medida que
subimos em direção ao "cume das penhas": Mais alto", e escutar essas
brilhantes expressões que o falso profeta foi obrigado a proferir. Era cada vez
melhor para Israel e cada vez pior para Balaque. Tinha de postar-se de lado e
ouvir não apenas como Israel era "abençoado", mas ele próprio era
"amaldiçoado" por ter procurado amaldiçoá-los.
Mas notemos especialmente a rica graça que brilha nesta parábola: "Que boas
são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas as tuas moradas, ó Israel!" Se alguém
tivesse ido examinar essas tendas e tabernáculos na "visão" do homem, elas
podiam ter parecido tão "negras como as tendas de Quedar". Mas, vistas na
"visão do Todo-poderoso", eram "boas" e todo aquele que as não via assim e
necessitava de ter os seus "olhos abertos". Se eu contemplar o povo de Deus
do "cume das penhas", vê-lo-ei como Deus o vê, e isto é vestido com toda a
beleza de Cristo - completos n'Ele - aceitos no Amado. E isto que me habilita
com eles, a avançar com eles, a ter comunhão com eles, a elevar-me acima dos
seus pontos de vista, defeitos, fraquezas e enfermidades (1). Se eu os não
contemplar deste ponto alto - deste terreno divino - poderei estar certo de deitar
os olhos a qualquer pequeno defeito que manchará completamente a minha
comunhão e transtornará os meus afetos.
__________
(1) A declaração no texto não aborda, de modo nenhum, a questão de disciplina
na casa de Deus. Nós somos obrigados a julgar o pecado moral e os erros
doutrinários (1 Co 5:12-13).

No caso de Israel, veremos, no capítulo seguinte, em que terrível pecado eles


caíram. Isto alterou o juízo do Senhor? Decerto que não. '' O SENHOR não é
homem, para que se arrependa". Ele não é filho do homem, para que se
arrependa. Julgou-os e castigou-os pelo seu mal, porque Ele, o SENHOR, é
santo, e nunca pode sancionar no seu povo qualquer coisa que seja contrária à
Sua natureza. Mas nunca poderia anular o Seu critério a respeito deles.
Conhecia tudo acerca deles. Sabia o que eram e o que fariam; mas ainda assim
disse: "Não vi iniquidade em Israel, nem conte maldade em Jacó. Que boas são
as tuas tendas, ó Jacó! As tuas moradas, ó Israel!" Isto era fazer pouco caso do
seu mal"?- Um tal pensamento seria blasfêmia. Podia castigá-los pelos seus
pecados; mas no momento em que o inimigo aparece para amaldiçoar ou
acusar, o Senhor põe-Se defronte do Seu povo e diz: "Não vejo iniquidade"-
"Que boas são as tuas tendas!".
Leitor, crês que tais maneiras de ver da graça divina justificam o espírito do
antinomianismo? Longe de nós tal pensamento! Podemos estar certos de que
nunca estaremos mais longe desse terrível mal do que quando respiramos a
pura e santa atmosfera do "cume das penhas" - esse terreno elevado de onde o
povo de Deus é visto, não como é em si mesmo, mas como é em Cristo - não
segundo os pensamentos do homem, mas segundo os pensamentos de Deus.
E, demais, podemos dizer que a única maneira verdadeira e eficaz de levantar o
padrão da conduta moral consiste em permanecer na fé desta preciosa e
tranquilizadora verdade de que Deus nos vê perfeitos em Cristo.
Mas devemos deitar mais uma vista de olhos à terceira parábola. Não somente
as tendas de Israel são boas aos olhos do Senhor como o povo mesmo se nos
apresenta como permanecendo nas antigas fontes da graça e ministério vivo
que se encontram em Deus. "Como ribeiros se estendem, como jardins ao pé
dos rios; como árvores de sândalo o SENHOR OS plantou, como cedros junto
às águas". Como isto é perfeitamente belo! E pensar que somos devedores
dessas sublimes expressões à ímpia associação de Balaque e Balaão!
Mas há mais do que isto. Não somente se vê Israel bebendo dessas fontes
eternas da graça e salvação, mas, como há de ser sempre o caso, como um
meio de bênção para outros. "De seus baldes manarão águas". E o firme
propósito de Deus que as doze tribos de Israel sejam ainda um rico meio de
bênção para todos os confins da terra.
Aprendemos isto de passagens como Ezequiel 47 e Zacarias 14, sobre as quais
não nos determos por agora; referimo-nos apenas a elas, porque mostram a
maravilhosa plenitude e beleza destas gloriosas parábolas. O leitor pode
meditar com muito proveito espiritual sobre estas passagens e outras análogas;
mas guarde-se cuidadosamente do sistema fatal falsamente chamado de
espiritualizar, o qual, de fato, consiste principalmente em aplicar à igreja
professante todas as bênçãos especiais da casa de Israel, enquanto que deixa
para esta apenas maldições da lei quebrantada. Podemos estar certos de que
Deus não sancionará um tal sistema como este. Israel é amado por amor dos
pais; e "os dons e a chamada de Deus são sem arrependimento" (Rm 11:29).

O Quarto e Último Oráculo de Balaão


Terminaremos este capítulo com uma rápida referência à última parábola de
Balaão. Balaque, havendo escutado um tal brilhante testemunho quanto ao
futuro de Israel, e a destruição dos seus inimigos, não só ficou profundamente
desapontado, mas grandemente enraivecido. "Então a ira de Balaque se
acendeu contra Balaão, e bateu ele as suas palmas; e Balaque disse a Balaão:
Para amaldiçoar os meus inimigos te tenho chamado; porém agora já três vezes
os abençoaste inteiramente. Agora, pois, foge para o seu lugar; eu tinha dito
que te honraria grandemente; mas eis que o SENHOR te privou desta honra.
Então, Balaão disse a Balaque: Não falei eu também aos teus mensageiros, que
me enviaste, dizendo: Ainda que Balaque me desse a sua casa cheia de prata e
ouro (o que o seu pobre coração desejava ardentemente), não fosso traspassar
o mandato do SENHOR, fazendo bem ou mal de meu próprio coração; o que o
SENHOR falar, isso falarei eu. Agora, pois, eis que me vou ao meu povo; vem,
avisar-te-ei do que este povo fará ao teu povo nos últimos dias (isto era tocar o
fundo da questão). Então, alçou a sua parábola e disse: Fala Balaão, filho de
Beor, e fala o homem de olhos abertos; fala aquele que ouviu os ditos de Deus e
o que sabe a ciência do Altíssimo; o que viu a visão do Todo-poderoso, caído
em êxtase e de olhos abertos: Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas
não de perto (que fato tremendo para Balaão!); uma estrela procederá de Jacó,
e um cetro subirá de Israel, que ferirá os termos dos moabitas, e destruirá todos
os filhos de Sete"(versículos 10 a 17).
Isto completa perfeitamente o assunto destas parábolas. A pedra cimeira é
colocada aqui na magnificente superestrutura. É, em boa verdade, graça e
glória. Na primeira parábola vemos a separação absoluta do povo; na segunda,
a sua perfeita justificação; na terceira a sua beleza moral e sua fecundidade; e,
agora, na quarta, estamos postados no próprio cume das montanhas - no "cume
das penhas" - e contemplamos as extensas planícies de glória em todo o seu
comprimento e largura, estendendo-se num futuro ilimitado. Vemos o Leão da
tribo de Judá acocorado; e ouvimos o seu rugido; vêmo-lo agarrar todos os seus
inimigos e reduzi-los a átomos. A Estrela de Jacó levanta-se para não mais se
pôr. O verdadeiro Davi ascende ao trono de Seu pai; Israel é preeminente na
terra e todos os seus inimigos são cobertos de vergonha e eterno desprezo.
É impossível conceber alguma coisa mais magnificente do que estas parábolas;
e são tanto mais notáveis quanto é certo que se pronunciam no próprio término
do curso de Israel pelo deserto, durante o qual haviam dado amplas provas do
que eram - de que materiais eram feitos - e quais eram as suas inclinações e
faculdades. Mas Deus estava acima de tudo, e nada alterou a Sua afeição.
Quando Ele ama, Ele ama até ao fim; e por isso a aliança entre os que são tipos
da "besta e do falso profeta" fracassou. Israel foi abençoado de Deus e não
pôde ser amaldiçoado por ninguém. "Então Balaão levantou-se e foi-se, e voltou
ao seu lugar, e também Balaque se foi pelo seu caminho."
CAPÍTULO 25

FINÉIAS: UMA VISÃO DE ISRAEL NAS PLANÍCIES DE MOABE

Aqui abre-se perante nós uma nova cena. Temos estado no cume de Pisga
ouvindo o testemunho de Deus a respeito de Israel, e ali tudo era brilhante e
belo, sem uma nuvem e sem mancha. Mas agora achamo-nos nas planícies de
Moabe, e tudo é mudado. Ali estivemos ocupados com Deus e os Seus
pensamentos. Aqui temos de tratar com o povoe os seus caminhos. Que
contraste! Isto faz-nos lembrar o começo e o fim de 2 Coríntios 12. Nos
primeiros versículos temos a posição absoluta do cristão; nos versículos finais o
possível estado em que ele pode cair se não vigiar. Aquela posição mostra-nos
"um homem em Cristo" capaz de ser arrebatado ao paraíso, a todo o momento.
Esta possibilidade mostra-nos santos de Deus capazes de se entregarem a
toda a sorte de pecado e loucura.
Assim sucede com Israel visto do "cume das penhas" na "visão do
Todo-poderoso", e Israel visto nas planícies de Moabe. No primeiro caso, temos
a sua perfeita posição, no segundo o seu estado imperfeito. As parábolas de
Balaão dão-nos o conceito de Deus sobre o primeiro caso; a lança de Finéias o
seu juízo sobre o segundo. Deus nunca revogará o Seu decreto quanto à
posição em que tem colocado o Seu povo; mas tem de os julgar e castigar
quando os seus caminhos não são compatíveis com essa posição. É Sua santa
vontade que o estado deles corresponda à sua posição. Porém, foi aqui,
infelizmente, que o seu fracasso se manifestou. A natureza humana permite-se
atuar de diversas maneiras, e o nosso Deus é constrangido a empregar a vara
da disciplina, a fim de que o mal, que nós temos consentido se manifeste, possa
ser esmagado e submetido.
Assim sucede em Números 25. Balaão, depois de haver falhado na sua
tentativa de maldiçoar Israel, consegue induzi-los por meio dos seus ardis a
cometerem o pecado, esperando desta forma alcançar o seu fim. "Juntando-se
pois Israel a Baal-Peor, a ira do SENHOR se acendeu contra Israel. Disse o
SENHOR a Moisés: Toma todos os cabeças do povo e enforca-os ao SENHOR
diante do sol, e o ardor da ira do SENHOR se retirará de Israel" (versículos 3-4).
Depois temos o relato notável do zelo e da fidelidade de Finéias. "Então, o
SENHOR falou a Moisés, dizendo: Finéias, filho de Eleazar, o filho de Arão, o
sacerdote, desviou a minha ira de sobre os filhos de Israel, pois zelou o meu
zelo no meio deles; de modo que no meu zelo não consumi os filhos de Israel.
Portanto, dize: Eis que lhe dou o meu concerto de paz, e ele e a sua semente
depois dele terão o concerto do sacerdócio perpétuo; porquanto teve zelo pelo
seu Deus e fez propiciação pelos filhos de Israel" (versículos 10 a 13)
A glória de Deus e o bem de Israel eram os motivos que moviam a conduta do
fiel Finéias nesta ocasião. Era um momento crítico. Sentia que havia
necessidade de ação severa. Não era ocasião para mostrar uma falsa ternura.
Há momentos na história o povo de Deus em que o afeto pelo homem se
transforma em infidelidade para com Deus; e é da maior importância poder-se
discernir tais momentos. A pronta ação de Finéias salvou toda a congregação,
glorificou o Senhor no meio do Seu povo e frustrou completamente os planos do
inimigo. Balaão caiu no meio dos midianitas; mas Finéias tornou-se o possuidor
de um sacerdócio eterno. Isto basta quanto à instrução solene contida nesta
breve parte do nosso livro. Possamos nós aproveitar com ela. Que o Espírito de
Deus nos dê um sentimento tal da nossa perfeita posição em Cristo que a nossa
conduta espiritual possa estar mais de acordo com ela!
CAPÍTULO 26

O SEGUNDO CENSO ANTES DA ENTRADA NO PAÍS

Este capítulo, embora seja um dos mais extensos do nosso livro, não requer
muitos comentários ou exposição. Nele temos o relato da segunda numeração
do povo, quando estava a ponto de entrar na terra prometida. Como é triste
pensar que dos seiscentos mil homens de guerra, que foram contados no
princípio, só restam dois -Josué e Calebe! Todos os demais estão reduzidos a
pó, sepultados na areia do deserto - desapareceram todos. Os dois homens de
fé simples ficaram para receber o galardão da sua fé. Quanto aos incrédulos, o
apóstolo inspirado diz-nos que "os seus cadáveres caíram no deserto".
Como isto é solene e cheio de instrução para nós! A incredulidade impediu a
primeira geração de entrar na terra de Canaã, e ocasionou a sua morte no
deserto. Este é o fato em que o Espírito Santo baseia um dos avisos mais
penetrantes encontrado em todo o volume inspirado. Escutemo-lo.
"Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel,
para se apartar do Deus vivo. Antes exortai-vos uns aos outros, todos os dias,
durante o tempo que se chama HOJE, para que nenhum de vós se endureça
pelo engano do pecado. Porque nos tornamos participantes de Cristo, se
retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim. Enquanto se
diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração, como na
provocação. Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não todos
os que saíram do Egito por meio de Moisés. Mas, com quem se indignou por
quarenta anos? Não foi, porventura, com os que pecaram, cujos corpos caíram
no deserto? E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão aos que
foram desobedientes? E vemos que não puderam entrar por causa da sua
incredulidade. Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar
no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás. Porque também a nós
foram pregadas as boas novas, como a eles, mas a palavra da pregação nada
lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a fé naqueles que a
ouviram" (Hb 3:12-19; 4:1-2).
Aqui está o grande segredo prático. A Palavra de Deus misturada com a fé.
Preciosa mistura! A única coisa que pode realmente aproveitar a cada um.
Podemos ouvir muito, falar muito, professar muito, mas podemos ficar certos de
que a medida do verdadeiro poder espiritual - poder para superar as
dificuldades, poder para vencer o mundo, poder para avançar, poder para nos
apropriarmos do que Deus nos tem concedido - a medida deste poder é
simplesmente a de misturar a Palavra de Deus com a fé. A Sua palavra está
estabelecida para sempre no céu; e se está fixada em nossos corações pela fé,
há um laço divino que nos liga com o céu e tudo que lhe pertence; e, na
proporção em que os nossos corações estão assim ligados com o céu e com
Cristo que ali está, estaremos praticamente separados deste presente século e
elevados acima das suas influências. A fé toma possessão de tudo que Deus
tem dado. Penetra dentro do véu; mantém-se como vendo Aquele que é
invisível; ocupa-se com o que é invisível e eterno e não com o que é temporário.
Os homens pensam que as possessões terrenas estão seguras; a fé nada
conhece seguro senão Deus e a Sua Palavra. A fé aceita a Palavra de Deus e
guarda-a no recôndito da alma como um tesouro escondido - a única coisa que
merece ser chamada tesouro. O feliz possuidor deste tesouro torna-se
independente de todo o mundo. Pode ser pobre quanto às riquezas desta cena
passageira; mas se é rico na fé, é o possuidor de riqueza incontável - "riquezas
duradouras e justiça" - "as riquezas incompreensíveis de Cristo".
Prezado leitor, estes não são traços de fantasia - meras visões da imaginação.
Não; são verdades substanciais, realidades divinas, que hoje podes gozar em
toda a sua preciosidade. Se confias em Deus, segundo a Sua Palavra - se crês
o que Ele diz, porque é Ele Quem o diz - pois isto é fé - então, verdadeiramente
tens este tesouro que torna o seu possuidor independente de todo esta cena
onde os homens vivem só por vista. Os homens deste mundo falam do que é
positivo e real, querendo dizer com isso o que podem ver e experimentar; por
outras palavras, as coisas do tempo e dos sentidos -o que é tangível, palpável.
A fé não conhece nada positivo, nada real, senão a Palavra de Deus.
Ora foi a falta desta fé bendita que impediu Israel de entrar na terra de Canaã e
ocasionou a queda de seiscentos mil cadáveres no deserto. E é a falta desta fé
que mantém milhares do povo de Deus na escravidão e nas trevas, quando
deveriam andar em liberdade e na luz - essa falta de fé mantém-nos deprimidos
e tristes, quando deveriam andar no gozo e poder da plena salvação de Deus;
essa falta de fé mantém-nos no temor do juízo, quando deveriam andar na
esperança da glória; mantém-nos na dúvida se escaparão à espada do
destruidor no Egito, quando deveriam fazer festa com o trigo do ano precedente
na terra de Canaã.
Oh, se o povo de Deus considerasse estas coisas no secreto da Sua presença e
à luz da Sua Palavra! Então, verdadeiramente conheceriam melhor e
apreciariam plenamente a rica herança que a fé encontra na Palavra eterna de
Deus - compreenderiam claramente quais são as coisas que nos são dadas
livremente por Deus no Filho do Seu amor.
Que o Senhor envie a Sua luz e a Sua verdade e conduza o Seu povo à
plenitude da Sua possessão em Cristo, a fim de que eles possam tomar o seu
verdadeiro lugar e render um fiel testemunho d'Ele enquanto esperam o Seu
glorioso aparecimento.

CAPÍTULO 27 e 36

AS FILHAS DE ZELOFEADE

A conduta das filhas de Zelofeade, segundo o relato da parte com que abre este
capitulo, apresenta um notável e belo contraste com a incredulidade de que
acabamos de falar. Não pertenciam, certamente, à geração daqueles que estão
sempre prontos a abandonar o terreno divino, a rebaixar o padrão divino e a
renunciar aos privilégios conferidos pela graça divina, Não; essas cinco
mulheres não tinham simpatia por tais pessoas. Estavam decididas, pela graça,
a pôr o pé da fé no terreno mais elevado, e, com decisão santa e firme, fazer
seu o que Deus lhes havia dado. Leiamos o relato animador.
"E chegaram as filhas de Zelofeade, filho de Héfer, filho de Gileade, filho de
Maquir, filho de Manassés, entre as famílias de Manassés, filho de José (e
estes são os nomes de suas filhas: Macia, Noa, Hogla, Milca e Tirsa); e
puseram-se diante de Moisés e diante de Eleazar, o sacerdote, e diante dos
príncipes e de toda a congregação, à porta da tenda da congregação, dizendo:
Nosso pai morreu no deserto e não estava entre a congregação dos que se
congregaram contra o SENHOR na congregação de Corá; mas morreu no seu
próprio pecado e não teve filhos. Por que se tiraria o nome de nosso pai do meio
da sua família, porquanto não teve filhos? Dá-nos possessão entre os irmãos de
nosso pai" (versículos 1 a 4).
Isto é extraordinariamente belo. Faz bem ao coração ler palavras como estas
numa época como a presente, em que tão pouco caso se faz da posição e parte
que tem o povo de Deus e em que tantos se contentam em viver dia após dia,
ano após ano, sem sequer se preocuparem com as coisas que são dadas
gratuitamente por Deus. Nada é tão triste como ver o descuido e a completa
indiferença com que muitos cristãos professantes tratam questões tão
importantes como são a posição, a conduta e a esperança do crente e da Igreja
de Deus. Não é, de modo nenhum, nosso propósito entrar aqui nestas
questões. Temos feito isso repetidamente nos outros volumes dos "Estudos".
Desejamos meramente chamar a atenção do leitor para o fato que é ao mesmo
tempo pecar contra as nossas ricas misericórdias, e desonrar o Senhor,
evidenciar um espírito de indiferença a respeito de qualquer ponto de revelação
acerca da posição e parte da Igreja ou do crente individualmente.
Se Deus, na abundância da Sua graça, Se dignou conceder-nos privilégios
preciosos, não deveríamos nós buscar ardentemente saber o que são estes
privilégios? Não deveríamos procurar fazer nossos esses privilégios na
simplicidade da fé? É tratar o nosso Deus e a Sua revelação dignamente ser
indiferentes quanto a saber se somos servos ou filhos—se o Espírito Santo
habita em nós ou não - se estamos debaixo da lei ou debaixo da graça, se a
nossa vocação é celestial ou terrestre?
Decerto que não. Se há uma coisa mais clara na Escritura que outra, é isto: que
Deus Se compraz naqueles que apreciam e desfrutam a provisão do Seu
amor-aqueles que encontram a sua alegria n'Ele mesmo. O volume inspirado
abunda em evidência sobre este ponto. Vejamos o caso que temos diante de
nós no nosso capítulo. Aqui estavam essas filhas de José - porque assim as
devemos chamar-privadas do seu pai, desamparadas e desoladas, vistas
segundo o ponto de vista humano. A morte havia quebrado o laço que
aparentemente as ligava à própria herança do povo de Deus. E então"?-
Resignaram-se a renunciar a ela? Cruzaram os braços em fria indiferença?
Era-lhes indiferente se iam ter ou não um lugar e uma parte com o Israel de
Deus? Ah! Não prezado leitor, estas ilustres mulheres apresentam alguma coisa
que bem faremos em estudar e procurar imitar - qualquer coisa que, nos
atrevemos a dizer, regozijava o coração de Deus. Estavam certas de que havia
uma parte para elas na terra da promissão, da qual nem a morte nem qualquer
coisa que acontecesse no deserto podia jamais privá-las: "Porque se tiraria o
nome de nosso pai do meio da sua família, porquanto não teve filhos?" Podia a
morte, podia a falta de linhagem masculina - podia qualquer coisa frustrar a
bondade de Deus? Era impossível, "Dá-nos possessão entre os irmãos de
nosso pai."
Nobres palavras! Palavras que subiram diretamente ao trono e ao coração do
Deus de Israel. Era um testemunho dos mais poderosos dado aos ouvidos de
toda a congregação. Moisés foi colhido de surpresa. Aqui estava qualquer coisa
fora do alcance do legislador. Moisés era um servo, e um servo abençoado e
honrado. Mas, repetidas vezes, no curso deste maravilhoso livro de Números,
deste volume do deserto, levantam-se questões que ele é incapaz de resolver,
como por exemplo o caso dos homens imundos do capítulo 9 e as filhas de
Zelofeade nesta parte do livro.
"E Moisés levou a sua causa perante o SENHOR. E falou o SENHOR a Moisés,
dizendo: As filhas de Zelofeade falam retamente; certamente lhes darás
possessão de herança entre os irmãos de seu pai; e a herança de seu pai farás
passar a elas" (versículos 5 -7).

Aqui estava um glorioso triunfo, em presença de toda a assembleia. Uma fé


simples e ousada está sempre segura de ser recompensada. Glorifica a Deus, e
Deus honra-a. Será preciso recorrermos às páginas do sagrado volume para
provar isto? Será preciso mencionarmos Abraão, Ana, Débora, Raabe e Rute
dos tempos do Velho Testamento? Ou Maria, Isabel, o centurião e a siro-fenícia
dos tempos do Novo Testamento? Para onde quer que nos voltamos,
aprendemos a mesma grande verdade prática, que Deus Se deleita numa fé
ousada e simples, uma fé que aceita simplesmente e retém com firmeza tudo
que Ele tem dado - que recusa positivamente, até mesmo perante a fraqueza da
natureza e a morte, ceder a menor partícula da herança divinamente outorgada.
Que importava que os ossos de Zelofeade estivessem a desfazer-se no pó do
deserto?- Que importava que não tivesse linhagem para manter o seu nome? A
fé podia elevar-se acima de todas estas coisas e contar com a fidelidade de
Deus para cumprir tudo que a Sua palavra havia prometido.
"As filhas de Zelofeade falam retamente." Elas o fazem sempre. As suas
palavras são palavras de fé, e, como tais, são sempre retas no juízo de Deus. E
uma coisa terrível limitar "o Santo de Israel". Ele deleita-se em ser crido, e em
que recorram a Si. E inteiramente impossível a fé esgotar a sua conta no Banco
de Deus. Deus não pode desapontar a fé do mesmo modo que não pode
negar-Se a Si mesmo. Nunca pode dizer à fé: "Calculaste mal; tomas altivez -
uma posição ousada demais; tem menos pretensões e refreia as tuas
expectativas." Ah, não realmente apraz e alegra o coração de Deus é
simplesmente confiar em Si; e nós podemos estar certos disto, que a fé que
pode confiar n'Ele é também a fé que pode amá-lo, servi-lo e louvá-lo.

O Valor da Herança
Por isso, pois, nós estamos muito gratos às filhas de Zelofeade. Elas dão-nos
uma lição de inestimável valor. E mais do que isto. O seu ato deu ocasião à
revelação duma nova verdade, que devia ser a base de uma regra divina para
todas as gerações futuras. O Senhor ordenou a Moisés, dizendo: "Quando
alguém morrer, e não tiver filho, então, fareis passar a herança a sua filha."
Aqui temos o estabelecimento de um grande princípio, com respeito à questão
da herança, do qual, humanamente falando, não teríamos ouvido nada se não
fosse a fé e a conduta fiel destas notáveis mulheres. Se tivessem dado ouvidos
à voz da timidez e incredulidade - se tivessem recusado vir à frente de toda a
congregação em defesa dos direitos da fé, então, não só teria perdido a sua
própria herança e bênção, mas todas as futuras filhas de Israel, em semelhança
posição, teriam sido privadas de igual modo da sua parte. Ao passo que, pelo
contrário, agindo na preciosa energia da fé elas preservaram a sua herança;
alcançaram a bênção; receberam testemunho de Deus; os seus nomes brilham
nas páginas inspiradas e a sua conduta estabelece, por autoridade divina, um
precedente para todas as gerações futuras.
Mas isto basta quanto aos maravilhosos resultados da fé. Devemos, todavia,
lembrar que existe um perigo moral resultante da própria dignidade e elevação
que a fé confere àqueles que, pela graça, podem exercê-la. Devemos
guardar-nos cuidadosamente deste perigo. Isto é notavelmente ilustrado no
prosseguimento da história das filhas de Zelofeade, segundo o relato do último
capítulo do nosso livro.
"E chegaram os cabeças dos pais da geração dos filhos de Gileade, filho de
Maquir, filho de Manassés, das famílias dos filhos de José, e falaram diante de
Moisés e diante dos maiorais, cabeças dos pais dos filhos de Israel. E disseram:
O SENHOR mandou dar esta terra a meu senhor por sorte em herança aos
filhos de Israel; e a meu senhor foi ordenado pelo SENHOR, que a herança do
nosso irmão Zelofeade se desse a suas filhas. E, casando-se elas com algum
dos filhos das outras tribos dos filhos de Israel, então, a sua herança seria
diminuída da herança de nossos pais e acrescentada à herança da tribo de
quem forem; assim, se tiraria da sorte da nossa herança. Vindo também o ano
do jubileu dos filhos de Israel, a sua herança se acrescentaria à herança da tribo
daqueles com quem se casarem; assim, a sua herança será tirada da herança
da tribo de nossos pais. Então, Moisés deu ordem aos filhos de Israel, segundo
o mandamento do SENHOR, dizendo: A tribo dos filhos de José fala bem" (Nm
36:1-5).
"Os pais" da casa de José têm de ser ouvidos assim como as "filhas". A fé
destas era bela; mas havia o perigo de, no lugar distinto a que a fé as havia
elevado, poderem esquecer os direitos dos outros, e removerem os marcos que
assinalavam a herança de seus pais. Tinha de pensar-se nisto e providenciar
para o caso de vir a dar-se. Era natural supor que as filhas de Selofad casariam;
e além disso era possível que elas fizessem uma aliança fora dos limites da sua
tribo: e assim no ano do jubileu - essa grande instituição reguladora - em vez de
ajustamento, haveria confusão e quebra permanente na herança de Manassés.
Isto não podia ser; e portanto a sabedoria desses antigos pais é evidente.
Necessitamos de ser guardados de todos os lados a fim de que a integridade da
fé e o testemunho sejam devidamente mantidos. Não temos de resolver as
coisas com mão forte e vontade enérgica, ainda que tenhamos sempre uma fé
vigorosa, mas de estar sempre prontos a cedermos ao poder de ajustamento de
toda a verdade de Deus.
"Esta é a palavra que o SENHOR mandou acerca das filhas de Zelofeade,
dizendo: Sejam por mulheres a quem bem parecer aos seus olhos, contanto
que se casem na família da tribo de seu pai. Assim, a herança dos filhos de
Israel não passará de tribo em tribo; pois os filhos de Israel se chegarão cada
um à herança da tribo de seus pais. E qualquer filha que herdar alguma herança
das tribos dos filhos de Israel se casará com alguém da geração da tribo de seu
pai; para que os filhos de Israel possuam cada um a herança de seus pais.
Assim, a herança não passará de uma tribo a outra; pois as tribos dos filhos de
Israel se chegarão cada um à sua herança. Como o SENHOR ordenara a
Moisés, assim fizeram as filhas de Zelofeade. Pois (as cinco filhas) se casaram
com os filhos de seus tios. Das famílias dos filhos de Manassés, filho de José,
elas foram mulheres; assim, a sua herança ficou na tribo da família de seu pai"
(Nm 36:6-12).
Desta forma tudo é arrumado. As atividades da fé são regidas pela verdade de
Deus, e os direitos individuais são regulados de harmonia com os verdadeiros
interesses de todos; enquanto, ao mesmo tempo, a glória de Deus é
plenamente mantida, para que no tempo do jubileu, em vez de qualquer
confusão nas extremas da terra de Israel, a integridade de herança seja
garantida por concessão divina.
Nada pode ser mais instrutivo do que toda esta história das filhas de Zelofeade.
Possamos nós, realmente, aproveitar com ela!

Moisés Não Passará o Jordão


O parágrafo final do nosso capítulo é pleno de grande solenidade. Os
procedimentos do governo de Deus são desenvolvidos ante os nossos olhos
duma maneira eminentemente calculada para impressionar o coração. "Depois,
disse o SENHOR a Moisés: Sobe este monte Abarim e vê a terra que tenho
dado aos filhos de Israel. E, havendo-a visto, então, serás recolhido ao teu
povo, assim como foi recolhido teu irmão Arão; porquanto rebeldes fostes no
deserto de Zim, na contenda da congregação, ao meu mandato de me
santificardes nas águas diante dos seus olhos (estas são as águas de Meribá
de Cades, no deserto de Zim)" (versículos 12 a 14).
Moises não deve passar o Jordão. Não só não pode oficialmente fazer passar o
povo, como ele próprio não pode atravessá-lo. Tal era a ordem do governo de
Deus. Mas, por outro lado, vemos brilhar a graça, com fulgor pouco vulgar, no
fato de que Moisés é conduzido pela própria mão de Deus ao cume de Pisga, e
dali vê a terra da promissão, em toda a sua magnificência, não meramente
como Israel
mais tarde a possuiu, mas como Deus originariamente a havia dado.
Ora, isto era o fruto da graça, a qual se mostra mais claramente no final de
Deuteronômio, onde nos é dito que Deus sepultou o Seu querido servo. Isto é
maravilhoso. Na verdade nada há parecido com isto na história dos santos de
Deus. Não nos detemos sobre este assunto, visto que já tratamos dele noutra
obra; mas é cheio de grande interesse. Moisés falou inconvenientemente com
os seus lábios, e por causa disso foi-lhe proibido atravessar o Jordão. Isto foi
um ato do governo de Deus. Mas Moisés foi levado ao cume de Pisga para ali,
na companhia do Senhor, ter uma vista completa da herança; e então Javé fez
uma sepultura para o Seu servo e sepultou-o nela. Isto era Deus atuando em
graça—graça maravilhosa, incomparável! - graça que tem feito sempre com que
do comedor saia comida e do forte doçura. Quão precioso é sermos objetos de
tal graça! Que as nossas almas se regozijem mais e mais nela, junto da fonte
eterna de onde ela emana e no meio pelo qual ela corre!
Terminaremos esta parte com uma rápida referência ao encantador
desinteresse de Moisés no caso de nomeação de um sucessor. Esse santo
homem de Deus distinguiu-se sempre por um espírito eminentemente
desinteressado- uma graça rara e admirável. Nunca o vemos buscar os seus
próprios interesses; pelo contrário, repetidas vezes, quando a oportunidade se
apresentava para estabelecer a sua própria fama e fortuna, ele mostrou, muito
claramente, que a glória de Deus e o bem do Seu povo ocupavam e enchiam de
tal modo o seu coração que não havia lugar para uma simples reflexão egoísta.
Assim sucede na cena final do nosso capítulo. Quando Moisés ouve que não
deve passar o Jordão, em vez de estar ocupado com lamentações a seu
respeito, pensa só nos interesses da congregação.
"Então, falou Moisés ao SENHOR, dizendo: O SENHOR, Deus dos espíritos de
toda carne, ponha um homem sobre esta congregação, que saia diante deles, e
que entre diante deles, e que os faça sair, e que os faça entrar; para que a
congregação do SENHOR não seja como ovelhas que não têm pastor"
(versículos 15 a 17).
Que acentos desinteressados se veem aqui?- Quão gratos devem ter parecido
ao coração dAquele que tanto amava e cuidava do seu povo! Desde que as
necessidades de Israel fossem satisfeitos, Moisés estava contente. Desde que
o trabalho fosse feito, pouco lhe importava quem o fazia. Quanto a si, aos seus
interesses, ao seu destino, podia tranquilamente deixar tudo nas mãos de Deus.
Ele teria cuidado dele, mas, oh! O seu eterno coração suspirava pelo amado
povo de Deus; e no próprio momento em que vê Josué ordenado como seu
líder, ele está pronto para partir e entrar no repouso eterno.
Abençoado servo! Feliz homem! Oxalá houvesse ao menos alguns entre nós
caracterizados, em pequena medida, pelo excelente espírito de abnegação e
zeloso cuidado da glória de Deus e do bem do Seu povo. Mas, ah, infelizmente,
temos de repetir, com maior ênfase, as palavras do apóstolo: "Todos buscam o
que é seu, e não o que é de Cristo!"
Oh, Senhor, desperta os nossos corações para desejarem ardentemente a
consagração de nós próprios, em espírito, alma e corpo, ao teu abençoado
serviço! Possamos nós, em boa verdade, aprender a viver não para nós
mesmos, mas para Aquele que morreu por nós —que veio do céu a terra por
causa dos nossos pecados; e voltou da terra para o céu para cuidar das nossas
enfermidades; e que vem outra vez para nossa salvação e glória eterna!

CAPÍTULOS 28 E 29
A COMPLACÊNCIA DE DEUS EM CRISTO

Estes dois capítulos devem ser lidos em conjunto: formam uma parte distinta do
livro - uma parte cheia de interesse e instrução. O Segundo versículo do
capítulo 28 dá-nos uma exposição resumida do conteúdo de toda esta parte.
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Dá ordem aos filhos de Israel e
dize-lhes: Da minha oferta, do meu manjar para as minhas ofertas queimadas,
do meu cheiro suave, tereis cuidado, para mas oferecer a seu tempo
determinado" (Nm 28:12).
Estas palavras dão ao leitor a chave para abrir toda esta parte do livro de
Números. É tão claro e simples quanto possível. "Minha oferta"; "Meu manjar";
"Minhas ofertas"; "... do meu cheiro suave." Tudo isto é fortemente acentuado.
Podemos aprender aqui que o grande e principal pensamento é Cristo em
relação a Deus. Não se trata tanto de Cristo suprindo as nossas necessidades -
ainda que certamente Ele as supre da maneira mais bendita, mas de Cristo
como alimentando e regozijando o coração de Deus. E o manjar de Deus— uma
expressão verdadeiramente assombrosa, e da qual pouco se discorre ou se
compreende. Somos todos tristemente propensos a olhar para Cristo como o
autor da nossa salvação - Aquele mediante quem somos perdoados e salvos do
inferno, o meio pelo qual toda a bênção corre até nós. Ele é tudo isto, bendito
seja o Seu nome. E o Autor da eterna salvação para todos os que Lhe
obedecem. Levou os nossos pecados em Seu próprio corpo sobre o madeiro;
morreu o Justo pelos injustos, para nos levar a Deus. Salva-nos dos nossos
pecados, do seu poder no tempo presente, e das suas consequências futuras.
Tudo isto é verdadeiro; e, consequentemente, de uma extremidade à outra dos
dois capítulos que temos perante nós, assim como em cada parágrafo, é
introduzida a expiação do pecado (veja-se cap 28:15,22,30;
29:3,11,16,19,22,25,28,31,34 e 3 8). Treze vezes se faz menção da oferta de
expiação pelo pecado; e, todavia, apesar disso, permanece o fato verdadeiro e
claro que o pecado ou a expiação do pecado não é, de modo nenhum, o
assunto principal destes capítulos. Não se faz referência ao pecado no versículo
que temos citado, embora esse versículo dê claramente um sumário do
conteúdo dos dois capítulos; nem há alusão alguma ao pecado até que
chegamos ao versículo quinze.
Será preciso dizer que a expiação do pecado é essencial visto se tratar do
homem e o homem ser pecador?- Seria impossível tratar do assunto de
aproximação do homem de Deus, do seu culto, ou da sua comunhão, sem
introduzir a morte expiatória de Cristo como o fundamento necessário. Isto é o
que o coração reconhece com grande alegria. O mistério do precioso sacrifício
de Cristo será, nos séculos eternos, a fonte de refrigério para as nossas almas.
Mas seremos acusados de socinianismo em nossos pensamentos se
afirmarmos que há qualquer coisa em Cristo e na Sua preciosa morte para além
do assunto dos nossos pecados e do suprimento das nossas necessidades?
Cremos que não. Pode alguém ler Números 28 e 29 e não ver isto? Vejamos
um fato simples que poderia despertar a atenção até de uma criança. Há
setenta e um versículos em toda esta parte e destes, treze fazem referência à
expiação do pecado, e os restantes cinquenta e oito estão ocupados com as
ofertas de cheiro suave.
Em suma, o tema especial aqui é o prazer de Deus em Cristo. De manhã e à
noite, dia a dia, semana após semana, de uma lua nova a outra, desde o
começo ao fim do ano, é Cristo na Sua fragrância e preciosidade para Deus. É
verdade - graças sejam dadas a Deus e a Jesus Cristo Seu Filho - o nosso
pecado expiado, julgado e tirado para sempre; as nossas transgressões são
perdoadas e a nossa culpa anulada. Porém, sobretudo isto, o coração de Deus
satisfaz-se, regozija-se e deleita-se em Cristo.
O que era o cordeiro da manhã e o da tardei Era uma expiação da culpa ou um
holocausto?- Escutemos a resposta nas próprias palavras de Deus: "E
dir-lhes-ás: Esta é a oferta queimada que oferecereis ao SENHOR: dois
cordeiros de um ano, sem mancha, cada dia, era contínuo holocausto. Um
cordeiro sacrificarás pela manhã e o outro cordeiro sacrificarás de tarde; e a
décima parte de um efa de fiorde farinha em oferta de manjares, misturada com
a quarta parte de um him de azeite moído. Este é o holocausto continuo,
instituído no monte Sinai, em cheiro suave, oferta queimada ao SENHOR"
(versículos 3 a 6).
E o que eram também os dois cordeiros do sábado? Uma expiação do pecado
ou um holocausto?- "Holocausto é do sábado, em cada sábado" (versículo 10).
Devia ser duplo, porque o sábado era uma figura do repouso que resta ainda
para o povo de Deus, quando haverá uma dupla apreciação de Cristo. Porém o
caráter da oferta é tão claro quanto possível. É Cristo em relação com Deus.
Este é o ponto especial do holocausto. A expiação pelo pecado é Cristo em
relação conosco. Nesta trata-se da questão da hediondez do pecado; naquele é
uma questão da preciosidade e excelência de Cristo.
Assim sucedia também no começo dos seus meses (versículo 11), na festa da
páscoa e dos pães asmos (versículos 16 a 25), na festa das primícias
(versículos 26 a 3 1), na festa das trombetas (cap. 29:1 -6), e na festa dos
tabernáculos (versículos 7 a 3 8). Em suma, em toda a série de festas a ideia
dominante é Cristo como odor agradável. A expiação do pecado não falta
nunca, mas as ofertas de cheiro suave ocupam o lugar de relevo, como é
evidente para todo o simples leitor. Julgamos que não é possível alguém ler
esta porção notável da Escritura sem notar o contraste entre o lugar da
expiação pelo pecado e o holocausto. Da primeira fala-se apenas como de "um
bode", enquanto que a segunda se nos apresenta na forma de "catorze
cordeiros", "treze bezerros", etc. Tal é o lugar destacado que as ofertas de
cheiro suave ocupam nesta Escritura

O Caráter do Culto que Deus Busca


Mas por que nos detemos sobre isto? Por que insistimos neste pormenor?
Simplesmente para mostrar ao leitor cristão o verdadeiro caráter do culto que
Deus busca, e no qual Se deleita. Deus acha o Seu prazer em Cristo; e deveria
ser o nosso alvo constante apresentar a Deus aquilo em que Ele Se deleita.
Cristo deve ser sempre o objeto do nosso culto; e sê-lo-á na proporção em que
formos guiados pelo Espírito de Deus.
Quantas vezes, infelizmente, sucede o contrário conosco! Quantas vezes, tanto
na assembleia como no secreto, o tom é baixo e o espírito triste e pesado.
Estamos ocupados com o ego em vez de Cristo; e o Espírito Santo, em vez de
poder fazer a Sua obra, que consiste em tomar das coisas de Cristo e no-las
mostrar, Se vê obrigado a dirigir a nossa atenção para nós próprios, em
auto-juízo, porque os nossos caminhos não têm sido retos.
Tudo isto deve ser vivamente deplorado. Exige a nossa sincera atenção tanto
como assembleia como individualmente - nas nossas reuniões e nas nossas
devoções privadas. Por que é o tom das nossas reuniões públicas
frequentemente tão baixo? Por que há tanta fraqueza, tanta improdutividade,
tanta distração?- Por que estão os hinos e as orações tão fora do assunto í Por
que há tampouco do que realmente merece o nome de adoração? Por que há
tanta impaciência e incerta atividade? Por que há tão pouco entre nós para
alegrar o coração de Deus?- Tão pouco de que Ele possa falar como sendo "o
Seu manjar para as Suas ofertas queimadas, do Seu cheiro suave?-" Estamos
ocupados com o ego e o seu ambiente—as nossas necessidades, fraquezas,
provações e dificuldades, e deixamos Deus sem o manjar da Sua oferta. Na
realidade, nós roubamo-Lo do que Lhe é devido e do que o seu coração
amantíssimo deseja.
E porque podemos ignorar as nossas provações, as nossas dificuldades e
necessidades? Não; mas podemos deixá-las ao Seu cuidado. Ele diz-nos para
lançarmos sobre Si toda a nossa solicitude, na doce e tranquila certeza de que
Ele tem cuidado de nós. Convida-nos a deitar sobre Si as nossas cargas, na
certeza de que nos susterá. Ele tem cuidado de nós. Isto não é bastante?- Não
deveríamos nós estar suficientemente despreocupados de nós próprios, quando
nos reunimos na Sua presença, para podermos apresentar-Lhe alguma coisa
mais do que as nossas próprias coisas? Ele tem feito provisão para nós. Fez
tudo bem por nós. Os nossos pecados e as nossas dores foram todos
divinamente resolvidos. E, certamente, nós não podemos supor que essas
coisas sejam o alimento do sacrifício de Deus. Ele fez delas o objeto da Sua
solicitude, bendito seja o Seu nome; mas não pode dizer que sejam o Seu
alimento.
Prezado leitor, não deveríamos nós pensar nestas coisas? Pensar delas tanto a
respeito da assembleia como do nosso lugar no secreto? Porque a mesma
observação aplica-se, igualmente, tanto a um caso como ao outro. Não
deveríamos cultivar um tal estado de alma que nos habilitasse a apresentar a
Deus o que Ele Se compraz em chamar "o Seu manjar? A verdade é que
precisamos de uma habitual e inteira ocupação de alma com Cristo como um
cheiro suave a Deus.
Isto não quer dizer que apreciamos menos a expiação do pecado; longe de nós
tal pensamento! Mas recordemos de que em Jesus Cristo, nosso precioso
Senhor, há alguma coisa mais do que o perdão dos nossos pecados e a
salvação das nossas almas. O que representam o holocausto, a oferta de
manjares e de libação?- Cristo como cheiro suave - Cristo como o alimento da
oferta de Deus - as delícias de Seu coração. Será preciso dizer que é o mesmo
Cristo" Será preciso insistir no fato de que Aquele que é um perfume agradável
a Deus é o mesmo que foi feito maldição por nós"? Certamente todo o Cristão
reconhece isto. Mas não estamos nós sempre dispostos a limitar os nossos
pensamentos sobre Cristo àquilo que Ele fez por nós, excluindo, virtualmente, o
que Ele é para Deus í É disto que nos temos de lamentar e também julgar; é isto
que devemos procurar corrigir; e não podemos deixar de pensar que um estudo
minucioso de Números 28 e 29 será um excelente corretivo. Queira Deus, por
intermédio do Seu Espírito, usá-lo para este fim!
Havendo apresentado ao leitor nos nossos "Estudos sobre o Livro de Levítico" o
que Deus nos deu como luz sobre os sacrifícios e as festas, não nos sentimos
induzidos a considerá-los aqui. O leitor encontrará nos capítulos 1 a 8 e 33 o
que poderá auxiliá-lo sobre os temas tratados nos dois capítulos de que temos
estado ocupados.
Capítulo 30

O VOTO AO SENHOR

Esta pequena parte do livro tem o que podemos chamar um caráter


dispensacional. Aplica-se especialmente a Israel e trata da questão dos votos e
juramentos. O homem e a mulher estão em flagrante contraste com este objeto:
" Quando um homem fizer voto ao SENHOR, OU fizer juramento, ligando a sua
alma com obrigação, não violará a sua palavra; segundo tudo o que saiu da sua
boca, fará" (versículo 2).
A respeito da mulher, o caso era diferente. "Também quando uma mulher fizer
voto ao SENHOR, e com obrigação se ligar em casa de seu pai na sua
mocidade; e seu pai ouvir o seu voto e a sua obrigação, com que ligou a sua
alma, e seu pai se calar para com ela, todos os seus votos serão válidos, e toda
a obrigação, com que ligou a sua alma, será válida. Mas, se seu pai se opuser
no dia em que tal ouvir, todos os seus votos e as suas obrigações, com que tiver
ligado a sua alma, não serão válidos; mas o SENHOR lhe perdoará, porquanto
seu pai lhos vedou" (versículos 3 a 5). Acontecia a mesma coisa no caso de
uma esposa: o seu marido tanto podia confirmar como anular os seus votos e
juramentos. Tal era a lei acerca dos votos. Não havia recurso para o homem.
Era obrigado a cumprir tudo que havia dito. O que quer que empreendesse
fazer, era solene e irrevogavelmente obrigado a fazê-lo. Não havia porta por
onde escapar, como nós diríamos - e nenhum meio de se livrar do
compromisso.
Pois bem, nós sabemos quem, em graça perfeita, tomou esta posição e Se
comprometeu, voluntariamente, a cumprir a vontade de Deus, fosse qual fosse
essa vontade. Sabemos quem é que diz: "Pagarei os meus votos ao SENHOR,
agora, na presença de todo o seu povo" (SI 116:14). "O homem Cristo Jesus",
que, havendo tomado sobre Si os votos, os cumpriu perfeitamente para glória
de Deus e bênção eterna do Seu povo. Não podia fugir a esse cumprimento.
Ouvimo-Lo exclamar, na profunda angústia da alma, no jardim do Getsêmani:"
Se é possível, passe de mim este cálice". Mas não era possível. Ele havia
empreendido a obra a salvação do homem, e tinha de atravessar as profundas
e escuras águas da morte, do juízo e da ira, e enfrentar todas as consequências
da condição do homem. Tinha um batismo com que havia de ser batizado, e
angustiava-se até que se cumprisse. Por outras palavras, tinha de morrer a fim
de que, por meio da morte, pudesse abrir as comportas que deviam dar
passagem para o Seu povo a corrente do amor divino e eterno. Que todo o
louvor e adoração sejam tributado para sempre ao Seu precioso nome!
Dissemos o bastante quanto ao homem e os seus votos. No caso da mulher,
quer da filha ou da esposa, temos a nação de Israel, e isto de dois modos, a
saber: sob o governo e debaixo da graça. Considerada segundo o ponto de
vista do governo, o Senhor, que é ao mesmo tempo o Pai e o Marido, tem
estado calado a seu respeito, de forma que os seus votos e juramentos são
válidos; e ela sofre, até hoje, as consequências e é obrigada a conhecer a força
destas palavras: "Melhor é que não votes do que votes e não pagues" (Ec 5: 5).
Mas, por outro lado, vista do ponto bendito da graça, o Pai e Marido tem tomado
tudo sobre Si Mesmo, para que ela seja perdoada, e introduzida mais tarde na
plenitude da bênção, não com base no cumprimento dos votos e dos
juramentos ratificados, mas sobre o fundamento da graça e misericórdia
soberana e mediante o sangue do concerto eterno.
Quão precioso é ver Cristo em tudo! Ele é o centro e a base, o principio e o fim
de todos os caminhos de Deus. Que os nossos corações estejam sempre
cheios d'Ele! Que os nossos lábios e as nossos vidas entoem os Seus louvores!
Que nós, constrangidos pelo Seu amor, vivamos para Sua glória todos os
nossos dias sobre a terra, e então vamos para casa para estarmos com ele para
sempre, para não mais sairmos!
Temos exposto aqui o que cremos ser a ideia principal deste capítulo. Que pode
ser aplicado de uma maneira secundária a indivíduos, não o pomos, de modo
algum, em dúvida; e, além disso, que, à semelhança de toda a Escritura, foi
escrito para nosso ensino, reconhecemos-lo com imensa gratidão. Deve ser
sempre o prazer de todo o cristão sincero estudar todos os caminhos de Deus,
quer sejam em graça, quer em governo - os Seus caminhos com Israel; os Seus
caminhos com a Igreja, os Seus caminhos com todos e cada um. Oh, que este
estudo seja prosseguido com coração aberto e entendimento iluminado!

CAPÍTULO 31

A SEPARAÇÃO DO MUNDO E DE SUAS TENTAÇÕES

Temos neste capítulo a última cena da vida oficial de Moisés; assim como em
Deuteronômio 34 temos a última cena da sua história pessoal.
"E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Vinga os filhos de Israel dos midianitas;
depois, recolhido serás ao teu povo. Falou, pois, Moisés ao povo, dizendo:
Armem-se alguns de vós para a guerra, e saiam contra os midianitas, para
fazerem a vingança do SENHOR nos midianitas. Mil de cada tribo entre todas
as tribos de Israel enviareis à guerra. Assim, foram dados dos milhares de Israel
mil de cada tribo: doze mil armados para a peleja. E Moisés os mandou à
guerra, de cada tribo mil, a eles e a Finéias, filho de Eleazar, o sacerdote, à
guerra com os utensílios santos e com as trombetas do alarido na mão. E
pelejaram contra os midianitas, como o Senhor ordenara a Moisés... e mataram
a todo varão" (versículos 3 a 7).
E uma passagem muito notável. O Senhor diz a Moisés: "Vinga os filhos de
Israel dos midianitas". E Moisés diz a Israel: "Façam a vingança do SENHOR
nos midianitas". O povo tinha sido seduzido pela astúcia das filhas de Midiã, por
causa da influência pecaminosa de Balaão, filho de Beor; e agora é-lhes pedido
para se limparem inteiramente de toda a contaminação que, por falta de
vigilância, eles haviam contraído. A espada tinha de ser desembainhada contra
os midianitas; e todos os despojos devem passar ou pelo fogo do juízo ou pela
água da purificação. Não pode permitir-se que fique por julgar a mais
insignificante parte do mal.
Ora esta guerra era o que nós podemos chamar anormal. Por direito, o povo
não devia ter nenhuma ocasião de a fazer. Não era uma das guerras de Canaã.
Era simplesmente o resultado da sua própria infidelidade—o fruto do seu
comércio ímpio com os incircuncisos. Por isso, ainda que Josué, filho de Num,
tinha sido devidamente nomeado para suceder a Moisés, como condutor da
congregação, não encontramos qualquer menção dele em relação com esta
guerra. Pelo contrário, é a Finéias, filho de Eleazar o sacerdote, que a condução
desta expedição é confiada; a qual ele empreende "com os utensílios santos e
com as trombetas do alarido."
Tudo isto é profundamente notável. O sacerdote é a pessoa proeminente; e os
instrumentos santos são as armas principais. É uma questão de limpar a
mancha causada pela sua associação impura com o inimigo; e portanto, em vez
de um general com espada e lança, é um sacerdote com instrumentos sagrados
que aparece em primeiro plano. É verdade que a espada está lá; mas não é a
coisa principal, mas sim o sacerdote com os vasos do santuário; e esse
sacerdote é o mesmíssimo que primeiro executa o juízo sobre o próprio mal que
tem aqui de ser vingado.
A moral de tudo isto é, ao mesmo tempo, clara e prática. Os midianitas
oferecem um tipo daquela espécie peculiar de influência que o mundo exerce
sobre os corações do povo de Deus—o poder fascinador e sedutor do mundo
empregado por Satanás para impedir a nossa entrada na posse da nossa parte
celestial. Israel não deveria ter tido nada que fazer com estes midianitas, mas
havendo, numa má hora — um momento sem vigilância — sido arrastado
àquela associação com eles, nada mais resta senão a guerra e completa
destruição.
Assim sucede conosco, como cristãos. O nosso próprio dever é atravessar este
mundo como peregrinos e estrangeiros; não tendo nada que fazer com ele,
senão sermos testemunhas pacientes da graça de Cristo e assim brilharmos
como luzes no meio das trevas morais que nos cercam. Mas infelizmente
deixamos de manter esta rígida separação; comprometemo-nos com alianças
com o mundo, e, por consequência, envolvemo-nos em dificuldades e conflitos
que de nenhum modo nos pertencem.
A guerra com Midiã não fazia parte da própria obra de Israel. Acarretaram-na
sobre si mesmos. Mas Deus é cheio de graça; e, por meio de uma aplicação
especial de ministério sacerdotal, eles puderam não só vencer os midianitas,
mas levar muitos despojos. Deus, em bondade infinita, tira bem do mal. Fará
com que do comedor saia comida e do forte doçura. A Sua graça brilha com
brilho excessivo nesta cena, visto que Ele consente de fato em aceitar uma
parte dos despojos tomados aos midianitas.
Mas o mal tem que ser completamente julgado. "Todo varão" tinha que ser
morto — todos em quem havia a energia do mal tinham que ser completamente
exterminados; finalmente o fogo do juízo e a água da purificação tinham que
fazer a sua obra sobre os despojos, antes que Deus ou o Seu povo pudessem
tocar num átomo deles.
Que lições santas temos aqui! Possamos nós aplicá-las aos nossos corações!
Possamos nós prosseguir um caminho de mais intensa separação e avançar na
nossa senda celestial como aqueles cuja porção e lar estão nas alturas! Que
Deus, em Sua misericórdia, nos conceda isso!
CAPÍTULO 32

O CASO DE RÚBEN, GADE E DA MEIA TRIBO DE MANASSÉS

O fato relatado neste capítulo tem dado lugar a grandes discussões. Tem-se
emitido diversas opiniões sobre a conduta das duas e meia tribos. Tinham razão
ou não em escolher a sua herança na margem do Jordão confinante com o
deserto"?- Esta é a questão. A sua conduta, sobre este assunto, era a
expressão de poder ou de fraqueza"? Como vamos formar um juízo reto neste
caso?
Em primeiro lugar, onde estava a porção propriamente dita de Israel—a herança
que lhe era divinamente destinada? Com toda a certeza, do outro lado do
Jordão, na terra de Canaã. Pois bem, este fato não deveria ter bastado?
Poderia ou teria um coração realmente verdadeiro — um coração que pensasse
e julgasse de acordo com Deus—ter alimentado a ideia de escolher outra parte
que não fosse aquela que Deus havia assinalado e destinado? Impossível.
Por isso, não temos necessidade de ir mais longe para ter um juízo divino sobre
este assunto. Era um erro e prova de pouca fé por parte de Rúben, Gade e a
meia tribo de Manassés buscar um limite do lado de cá do rio Jordão.
Regeram-se, na sua conduta, por considerações egoístas e mundanas — pela
vista dos seus olhos — por motivos carnais. Contemplaram "a terra de Jazer e a
terra de Gileade" e avaliaram-na inteiramente segundo os seus próprios
interesses, e sem nenhuma consideração pelo juízo e vontade de Deus. Se
tivessem simplesmente esperado em Deus, a questão de se estabelecerem do
lado de cá do Jordão nunca teria sido levantada.
Mas quando as pessoas não são simples e sinceras metem-se em
circunstâncias que dão lugar a toda a sorte de problemas. E muito importante
estarmos habilitados, pela graça divina, a seguir uma linha de conduta e a trilhar
um caminho tão inequívoco que não possam ser levantadas dificuldades. É
nosso santo e feliz privilégio comportarmo-nos de forma que não possa surgir
nenhuma complicação. O segredo de assim agir é andar com Deus e ter desta
forma a nossa conduta regulada pela Sua Palavra.
Mas Rúben e Gade não se guiavam assim, e isto é óbvio por toda a história.
Eram homens de coração dobre; homens de princípios mistos; meros
interesseiros; homens que buscavam os seus próprios interesses, e não as
coisas de Deus. Se estes últimos tivessem enchido os seus corações nada os
teria induzido a tomar a sua posição fora dos verdadeiros limites.
É muito claro que Moisés não tinha simpatia pela sua proposta. O juízo do
Senhor sobre a sua conduta não lhe consentia atravessar o Jordão. O seu
coração estava na terra prometida; e ele desejava ir para ali em pessoa. Como,
pois, podia ele aprovar a conduta de homens que não só estavam dispostos
como desejosos de se estabelecerem fora dela?-A fé nunca poderá estar
satisfeita com coisa alguma que não seja a verdadeira posição e porção do
povo de Deus. O olhar simples só pode ver, e um coração fiel só pode desejar a
herança dada por Deus.
Por isso, Moisés condenou imediatamente a proposta de Rúben e Gade. É
verdade que mais tarde ele moderou o seu juízo e deu o seu consentimento. A
sua promessa de atravessarem o Jordão armados diante dos seus irmãos
obteve de Moisés uma espécie de assentimento. Parecia uma extraordinária
manifestação de desinteresse e energia deixar atrás todos os seus e atravessar
o Jordão só para combater por seus irmãos. Mas onde haviam eles deixado os
seus? Tinham-nos deixado fora dos limites assinalados por Deus. Tinham-nos
privado de um lugar e de uma parte na verdadeira terra da promessa—essa
herança da qual Deus tinha falado a Abraão, a Isaque e a Jacó. E para quê?- Só
para terem boas pastagens para os seus gados. Com um objetivo como este as
duas e meia tribos abandonaram o seu lugar dentro dos limites do Israel de
Deus.

As Consequências do Estabelecimento das Duas Tribos e Meia ao Oriente do


Jordão
E agora vejamos as consequências desta linha de conduta. Veja
O leitor Josué 22. Aqui temos o primeiro lamentável efeito da conduta equívoca
de Rúben e Gade. Veem-se na necessidade de edificar "um altar de grande
aparência", com receio de que no futuro os seus irmãos os repudiassem. Que
prova tudo isto? Prova que estavam completamente enganados quando se
estabeleceram deste lado do Jordão. E note-se o efeito produzido em toda a
assembleia — o efeito alarmante e perturbador deste altar. À primeira vista,
apresentava o aspecto de uma rebelião.
"Ouvindo isto os filhos de Israel, ajuntou-se toda a congregação dos filhos de
Israel em Siló, para saírem contra eles em exército. E enviaram os filhos de
Israel aos filhos de Rúben e aos filhos de Gade, e à meia tribo de Manassés (1),
para a terra de Gileade, Finéias, filho de Eleazar, o sacerdote, e dez príncipes
com ele, de cada casa paterna um príncipe, de todas as tribos de Israel; e cada
um era cabeça da casa de seus pais nos milhares de Israel. E, vindo eles, aos
filhos de Rúben, e aos filhos de Gade, e à meia tribo da Manassés, à terra de
Gileade, falaram com eles, dizendo: Assim diz toda a congregação do SENHOR
(AS duas e meia tribos não pertenciam à congregação?): Que transgressão é
esta, com que transgredistes contra o Deus de Israel, deixando hoje de seguir
ao SENHOR, edificando-vos um altar, para vos rebelardes contra o SENHOR?-
Foi-nos pouco a iniquidade de Peor, de que ainda até ao dia de hoje não
estamos purificados, ainda que houve castigo na congregação do SENHOR
para que, hoje, abandonais ao SENHOR?- Será que, rebelando-vos hoje contra
o SENHOR, amanhã se irará contra toda a congregação de Israel. Se é, porém,
que a terra da vossa possessão é imunda, passai-vos para a terra da
possessão do SENHOR, onde habita o tabernáculo do SENHOR, e tomai
possessão entre nós; mas não vos rebeleis contra o SENHOR, nem tampouco
vos rebeleis contra nós, edificando-vos um altar, afora o altar do SENHOR,
nosso Deus" (Js 22:12-19).
__________
(1) Ainda que as duas e meia tribos estavam de fato separadas da nação de
Israel.

Pois bem, toda esta grave desinteligência, toda esta inquietação e este alarme,
era o resultado da falta cometida por Rúben e Gade. Decerto, podem
explicar-se e dar satisfação aos seus irmãos no tocante ao altar. Mas não teria
havido necessidade de explicações nem causa para alarme se eles não
tivessem tomado uma posição equívoca.
Aqui estava a origem de todo este mal, e é importante para o leitor entender
este ponto com clareza e deduzir dele a grande lição prática que está destinado
a ensinar-nos.
Toda a pessoa cuidadosa que pondere atentamente toda a evidência no caso
não pode duvidar, de modo algum, que as duas e meia tribos fizeram mal em se
deter junto ao Jordão e de estabelecer ali a sua habitação. Isto parece-nos
indiscutível até mesmo com base no que já havemos visto, e se mais provas
fossem necessárias, proporcionava-as o fato de que elas foram as primeiras a
cair em poder do inimigo (Veja 1 Rs 22:3).
Mas, o leitor poderá perguntar: Que importância tem tudo isto para nós? Este
pormenor da história tem algum significado ou instrução para nós? Sem dúvida.
Segreda aos nossos ouvidos com profunda solenidade: Não menosprezeis a
vossa posição—a vossa própria parte — dando-vos por satisfeitos com as
coisas deste mundo e tomando qualquer outra posição que não seja a morte e
ressurreição — o verdadeiro Jordão espiritual (1).
__________
(1) Sem dúvida, há muitos crentes sinceros que não veem a chamada celestial
e posição da Igreja — que não compreendem o caráter especial da verdade
ensinada na epístola aos Efésios — que são, contudo, segundo a luz que têm,
zelos consagrados, e de coração reto; mas estamos persuadidos de que tais
pessoas perdem bênção incalculável para as suas próprias almas, e ficam
muito aquém do verdadeiro testemunho.

Tal é, segundo cremos, o ensino desta parte do livro. É um ponto muito


importante não ter o coração dividido e tomar uma decisão inequívoca por
Cristo. Aqueles que professam ser cristãos, que renegam a sua vocação e
caráter celestial e atuam como se fossem cidadãos deste mundo causam grave
prejuízo à causa de Deus e ao testemunho de Cristo. Convertem-se em
instrumentos dos quais Satanás sabe tirar excelente partido. Um cristão
indeciso, de dobre coração, é mais inconsistente que um mundano declarado
ou infiel. A falta de realidade dos professos é muito mais prejudicial à causa de
Deus do que todas as formas juntas da depravação moral. Isto pode parecer
uma afirmação forte; mas é verdadeira.
Cristãos professos, ou apenas de nome—homens de diversos
princípios—pessoas de procedimento duvidoso—são os que fazem maior
agravo à causa, e que mais favorecem os desígnios do inimigo de Cristo.
Homens de coração íntegro, sinceros e valorosos testemunhos de Jesus Cristo
— homens que claramente mostram que buscam uma pátria melhor—sinceros
e estranhos para o mundo, eis o que exige a crise em que nos encontramos.
Que pode haver mais deplorável, mais triste e desanimador do que encontrar
aqueles que fazem um alarde da profissão, que falam abertamente da morte e
ressurreição, que se vangloriam das suas elevadas doutrinas e privilégios
celestiais, mas cuja conduta e caminhos desmentem as suas palavras? Amam o
mundo e as cosias que há no mundo. Amam o dinheiro e estão desejosos de
conseguir e entesourar o mais possível.
Prezado leitor, ponderemos estas coisas. Julguemo-nos sinceramente na
presença de Deus, e tiremos de nós, não importa o que seja, o que tende a
impedir a nossa completa dedicação de alma, corpo e coração Aquele que nos
amou e Se entregou a Si mesmo por nós. Possamos nós conduzir-nos de
maneira, para usar a linguagem de Josué 22, a não precisarmos de um altar ou
qualquer coisa para declarar onde adoramos, a que pertencemos, onde
estamos e a quem servimos.
Desta forma tudo a nosso respeito será, indubitavelmente, claro, o nosso
testemunho será distinto e o som da nossa trombeta certo. A nossa paz também
correrá como um rio tranquilo, toda a inclinação da nossa carreira e caráter será
para louvor d'Aquele Cujo nome invocamos. Que o bendito Senhor desperte os
corações do Seu povo nestes dias de detestável indiferença, de tibieza e
cômoda profissão, a uma genuína rendição, verdadeira consagração à causa de
Cristo e fé firme no Deus vivo! Quer o leitor juntar os seus rogos aos nossos
neste sentido?
CAPÍTULOS 33 e 34

AS JORNADAS DO DESERTO E OS LIMITES DE CANAÃ

O primeiro destes capítulos dá-nos uma descrição admiravelmente minuciosa


das jornadas do povo de Deus no deserto. E impossível vê-lo sem ser
profundamente impressionado pelo amor terno e cuidado de Deus tão
assinaladamente manifestados em todo ele. Pensar que Ele Se dignou
conservar um tal relato das jornadas do Seu povo desde o momento em que
eles saíram do Egito até que tivessem atravessado o Jordão—da terra da morte
e trevas à terra que manava leite mel.
"Pois o SENHOR, teu Deus... sabe que andas por este grande deserto; estes
quarenta anos o SENHOR, teu Deus, esteve contigo, coisa nenhuma te faltou"
(Dt 2:7). Andou adiante deles cada passo do caminho; andou com eles em cada
jornada do deserto; em todas as suas aflições, Ele foi afligido. Teve cuidado
deles como uma terna ama. Não permitiu que os seus vestidos envelhecessem
ou que os seus pés inchassem durante estes quarenta anos; e aqui traz à
memória todo o caminho pelo qual a Sua mão os tinha conduzido tomando
cuidadosamente nota de cada fase sucessiva dessa maravilhosa peregrinação
e de cada sítio em que haviam feito alto no deserto. Que jornada! Que
companheiro de viagem!
É consolador para o coração do pobre peregrino fatigado estar seguro de que
cada etapa da sua viagem através do deserto está marcada pelo amor infinito e
a sabedoria infalível de Deus. Ele está guiando o Seu povo por um caminho reto
à Sua própria morada; e não existe uma só circunstância na sua vida ou um só
ingrediente no seu cálice que não seja minuciosamente ordenado por Ele
mesmo em relação direta com o seu bem atual e sua felicidade eterna. Que o
nosso único cuidado seja falar com Ele, dia a dia, em simples confiança,
lançando sobre Ele toda a nossa solicitude e colocando-nos inteiramente em
Suas mãos com tudo que nos pertence. Esta é a verdadeira origem de paz e
bem-aventurança durante toda a viagem. E então, quando as nossas jornadas
no deserto forem terminadas—quando a última etapa do deserto tiver sido
percorrida — Ele levar-nos-á para casa a fim de estarmos Consigo para
sempre.
O capítulo 34 dá os limites da herança como são traçados pela mão do Senhor.
A mesma mão que havia dirigido as suas jornadas fixa aqui os limites da sua
habitação. Ah, mas eles nunca tomaram possessão da terra como Deus a havia
dado! Ele deu-lhes toda a terra, e deu-lha para sempre. Eles tomaram apenas
uma parte, e essa só por algum tempo. Mas, bendito seja Deus, o momento
aproxima-se em que a semente de Abraão entrará na posse plena e eterna
daquela formosa herança da qual estão no presente excluídos. O Senhor
cumprirá certamente todas as Suas promessas e guiará o Seu povo a todas as
bênçãos que lhes estão asseguradas no concerto eterno— esse concerto que
tem sido retificado com o sangue do Cordeiro. Nem um jota nem um til faltará a
tudo que tem sido dito. As suas promessas são todas Sim e Amém em Cristo
Jesus, o qual é o mesmo ontem e hoje e para sempre. Todo louvor seja dado ao
Pai e ao Filho e ao Espírito Santo!
CAPÍTULO 35

AS CIDADES DOS LEVITAS


As primeiras linhas deste interessantíssimo capítulo põem diante de nós a
misericordiosa disposição que o Senhor fez a favor dos levitas, Seus servos.
Cada uma das tribos de Israel tinha o privilégio — para não dizer que estavam
obrigadas — de proporcionar aos levitas, segundo a sua capacidade, certo
número de cidades com os seus arrabaldes.
"Todas as cidades que dareis aos levitas serão quarenta e oito cidades,
juntamente com os seus arrabaldes. E as cidades que derdes da herança dos
filhos de Israel, do que tiver muito, tomareis muito; e, do que tiver pouco,
tomareis pouco; cada um dará das suas cidades aos levitas, segundo a sua
herança que herdar."
Os servos do Senhor dependiam inteiramente d'Ele para a sua porção. Não
tinham herança ou possessão senão em Deus. Bendita herança! Precioso lote!
Não há nenhum outro semelhante, segundo o juízo da fé. Bem-aventurados
todos os que podem realmente dizer: "O Senhor é a porção da minha herança e
do meu cálice" (SI 16:5). Deus tinha cuidado dos Seus servos e permitia a toda
a congregação de Israel compartilhar do sagrado privilégio—porque tal
certamente o era—de cooperar com Ele em fazer provisões para aqueles que
se haviam dedicado voluntariamente à Sua obra, abandonando tudo o mais.
Assim, pois, se nos diz que das doze tribos de Israel deviam ser dadas aos
levitas quarenta e oito cidades com os seus arrabaldes; e destas os levitas
tinham o privilégio de fornecer seis cidades para servirem de refúgio a todo o
desgraçado homicida. Provisão encantadora! Encantadora na origem!
Encantadora no seu objetivo!

As Cidades de Refúgio
As cidades de refúgio estavam situadas, três a oriente e três a ocidente do lado
do Jordão. Quer Rúben e Gade houvessem feito bem ou mal em se
estabelecerem a oriente deste limite divisório, Deus em Sua misericórdia não
quis deixar o homicida sem um refúgio contra o vingador do sangue. Pelo
contrário, segundo o Seu amor, determinou que essas cidades, que eram
designadas como provisão misericordiosa para o homicida, estivessem situadas
de forma a que sempre que houvesse necessidade de refúgio pudessem estar à
mão. Havia sempre uma cidade ao alcance de qualquer que pudesse estar
exposto à espada do vingador. Isto era digno do nosso Deus. Se acontecia
algum homicida cair nas mãos do vingador do sangue não era por falta de um
refúgio, mas porque tinha deixado de se aproveitar dele. Estavam tomadas
todas as precauções necessárias: as cidades estavam nomeadas e bem
definidas e eram publicamente conhecidas. Tudo fora disposto tão simples e tão
claro quanto possível.
Sem dúvida, era dever do homicida empregar toda a sua energia para alcançar
os recintos sagrados; e, claro, ele o faria. Não é provável que alguém fosse tão
cego, tão louco para cruzar os braços em fria indiferença e dizer: "Se estou
destinado a escapar, escaparei; os meus esforços não são necessários. Se não
estou destinado a escapar, decerto não escaparei, os meus esforços são
inúteis."
Não podemos imaginar que um homicida empregasse tal linguagem ou fosse
culpado de uma tolice como esta. Sabia muito bem que, se o vingador do
sangue conseguisse pôr mão nele, tais ideias de nada serviriam. Não havia
senão uma coisa a fazer e essa era escapar-se por sua vida — fugir do castigo
iminente — encontrar um abrigo seguro dentro das portas da cidade do refúgio.
Uma vez ali, podia respirar livremente. Nenhum mal o podia alcançar. No
instante em que cruzava a soleira da porta, estava tão seguro quanto a provisão
de Deus o podia tornar. Se um cabelo da sua cabeça pudesse ser tocado,
dentro dos limites da cidade, isso teria sido uma desonra e um opróbrio
infligidos à ordenação de Deus. Verdade é que devia ter cuidado. Não devia
atrever-se a sair fora da porta. Dentro, ele estava perfeitamente seguro. Fora
estava inteiramente exposto.
Nem sequer podia visitar os seus amigos. Era um desterrado da casa de seu
pai; era um prisioneiro da esperança. Ausente da casa do afeto do seu coração,
esperava pela morte do sumo sacerdote, que devia restituí-lo à liberdade
completa e restaurá-lo à sua herança e ao seu povo. Ora, nós cremos que esta
bendita instituição se referia especialmente a Israel. Eles mataram o Príncipe da
vida; porém, a questão é: como são considerados por Deus, como no caso do
assassino ou do homicida 4- No caso daquele, não há refúgio nem esperança.
Nenhum assassino podia acolher-se a uma cidade de refúgio.
Eis a lei do caso, segundo relato de Josué 20: "Falou mais o SENHOR a Josué,
dizendo: Fala aos filhos de Israel, dizendo: Apartai para vós as cidades de
refúgio, de que vos falei pelo ministério de Moisés; para que fuja para ali o
homicida que matar alguma pessoa por erro e não com intento; para que vos
sejam refúgio do vingador do sangue. E, fugindo para alguma daquelas cidades,
pôr-se-á à porta da cidade e proporá as suas palavras perante os ouvidos dos
anciãos da tal cidade; então, tomarão consigo na cidade: e lhe darão lugar, para
que habite com eles. E, se o vingador do sangue o seguir, não entregarão na
sua mão o homicida; porquanto não feriu a seu próximo com intento, e o não
aborrecia dantes. E habitará na mesma cidade até que se ponha a juízo perante
a congregação, até que morra o sumo sacerdote que houver naqueles dias;
então o homicida voltará e virá à sua cidade e à sua casa, à cidade de onde
fugiu" (Js 20:1-6).
Mas a respeito do assassino a lei era rigorosa e inflexível. "Ou, se a ferir com
instrumento de madeira que tiver na mão, de que possa morrer, e ela morrer,
homicida é; certamente morrerá o homicida. O vingador do sangue matará o
homicida; encontrando-o, matá-lo-á" (Nm 35:18-19).
O Homicida Involuntário: Israel Sob a Graça
Israel, pois, pela graça maravilhosa de Deus, será tratado como um homicida e
não como um assassino. "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem."
Estas poderosas palavras subiram aos ouvidos e ao coração do Deus de Israel.
Foram ouvidas e atendidas; nem nós devemos supor que a resposta foi
esgotada na sua aplicação no dia de Pentecostes. Não; é ainda válida e a sua
eficácia será ilustrada na história futura da casa de Israel.
Esse povo está atualmente debaixo da custódia de Deus. Estão desterrados do
país e da casa de seus pais. Mas o tempo vem em que serão restaurados à sua
própria terra, não pela morte do sumo sacerdote—bendito seja o Seu nome
imortal! Ele não pode jamais morrer—mas deixará o posto que agora ocupa e
apresentar-Se-á com um novo caráter, como Sacerdote Real, para Se assentar
sobre o Seu trono. Então, o exilado voltará à sua casa há longo tempo perdida e
à sua herdade abandonada. Mas não antes, de contrário seria ignorar que
tinham matado o Príncipe da Vida, o que seria impossível.
O homicida tem que permanecer fora da sua possessão até ao tempo
determinado; mas não é para ser tratado como assassino, porque o seu ato foi
involuntário. "Alcancei misericórdia"—diz o apóstolo Paulo, falando como um
exemplo para Israel — "Porque o fiz ignorantemente, na incredulidade" (1 Tm
1:13). "E agora, irmãos", diz Pedro, "eu sei que o fizestes por ignorância, como
também os vossos príncipes" (At 1:17).
Estas passagens unidas à intercessão preciosa d Aquele que foi morto,
colocam a Israel, da maneira mais distinta, no terreno do homicida e não no
terreno do assassino. Deus deu um refúgio e abrigo para o Seu povo muito
amado, e a seu devido tempo eles regressarão às suas habitações desde tanto
tempo, perdidas, na terra que o Senhor deu como um dom a Abraão, Seu amigo
para sempre.
Cremos que tal é a verdadeira interpretação da cidade de refúgio. Se
devêssemos considerá-la como susceptível de ser aplicada a um pecador que
se refugia em Cristo, só podia ser de uma maneira muito excepcional, visto que
nos encontraríamos rodeados por todos os lados por pontos de contraste em
vez de pontos de semelhança. Pois, em primeiro lugar, o homicida, na cidade
de refúgio, não estava isento de juízo, como lemos em Josué 20:6. Mas para o
crente em Jesus não existe e não pode haver juízo, pela razão mais simples de
todas as razões, que Cristo sofreu o juízo em seu lugar. Por outro lado, havia
também a possibilidade de o homicida cair nas mãos do vingador caso se
aventurar sair fora das portas da cidade. O crente em Jesus não pode perecer
jamais: está tão seguro como o Próprio Salvador.

O Homicida por Ignorância


Por fim, quanto ao homicida, era uma questão de segurança temporária e de
vida neste mundo. Quanto ao crente em Jesus, é uma questão de eterna
salvação e vida eterna no mundo vindouro. De fato, em quase todos os
pormenores, é mais um notável contraste e não uma semelhança.
Um só ponto importante é comum a ambos os casos, e este é a exposição de
perigo iminente e a urgente necessidade de fugir para o refúgio. Se teria sido
para loucura por parte do homicida deter-se ou hesitar por um momento antes
de se encontrar seguramente abrigado na cidade de refúgio, é certamente
maior loucura, sim, o cúmulo da demência por parte do pecador, tardar ou
hesitar em se dirigir a Cristo. O vingador do sangue podia talvez lograr deitar
mão ao homicida até mesmo se ele não tivesse na cidade; mas o juízo deve
alcançar o pecador sem Cristo. Não existe possibilidade de escapar, se existe
apenas a espessura de uma folha de ouro entre a alma e Cristo. Que
pensamento solene! Possa ele ter a sua própria importância para o coração do
leitor que estiver ainda em seus pecados! Que não encontre um só momento de
descanso enquanto não tiver buscado refúgio pela esperança que lhe é
apresentada no evangelho! O juízo está iminente, juízo seguro, certo, solene.
Não é apenas que o vingador pode vir, mas que o juízo há de cair sobre todos
os que não têm Cristo.
Oh, leitor inconvertido, descuidado e frívolo! Se este volume for parar às tuas
mãos, escuta a voz de advertência! Escapa por tua vida! Não te detenhas, nós
te rogamos! Demorar é demência. Cada momento é precioso. Não sabes a hora
em que podes ser cortado pela morte e levado àquele lugar em que não há
nenhum raio de esperança, nem sequer o mais tênue pode visitar-te — o lugar
de noite eterna, eterna desgraça, eterno tormento; o lugar onde o bicho não
morre e a chama nunca se extingue. Prezado amigo, permite que te
supliquemos nestas linhas finais do nosso volume, vem, agora, tal como estás,
a Jesus, que está de braços abertos e coração amoroso pronto para te receber,
para te dar refúgio e te abençoar, com todo o amor de Seu coração e a perfeita
eficácia do Seu nome e do Seu sacrifício. Que Deus o Espírito Santo, por meio
da sua irresistível energia, te leve, mesmo agora, a vir a Jesus! "Vinde a mim",
diz o amantíssimo Senhor e Salvador, "e eu vos darei descanso". Palavras
preciosas! Possam elas cair, com poder divino, sobre muitos corações
cansados!
Terminamos aqui as nossas meditações sobre esta maravilhosa porção do Livro
de Deus (referimos já o capítulo 36 nos nossos comentários sobre o capítulo
27); e, fazendo-o, sentimo-nos vivamente impressionados com o sentimento da
profundidade e riqueza do tesouro a que havemos procurado conduzir o leitor e
também da excessa debilidade e pobreza das sugestões que temos podido
oferecer. Contudo, confiamos em que o Deus vivo guiará por Seu Espírito o
coração e o espírito do leitor cristão ao gozo da Sua preciosa verdade, de forma
a habilitá-lo mais e mais para o Seu serviço nestes últimos dias, para que o
nome do Senhor Jesus Cristo, possa ser engrandecido e a Sua verdade
mantida em poder vivo. Que Deus, em Sua abundante misericórdia, nos
conceda isto, por amor de Cristo!
INTRODUÇÃO

O livro de Deuteronômio tem um caráter tão próprio como qualquer outro das
quatro divisões precedentes do Pentateuco. Se tivéssemos de formar a nossa
opinião segundo o título do livro, poderíamos supor que era uma simples repetição
do que havemos encontrado nos livros anteriores. Isso seria um grave erro. Não há
meras repetições na palavra de Deus. Na verdade, Deus nunca usa repetições, nem
na Sua Palavra nem nas Suas obras. Onde quer que sigamos o nosso Deus, quer seja
nas páginas da Sagrada Escritura, quer nos vastos domínios da criação, vemos
divina plenitude, variedade infinita, plano definido; e na proporção da
espiritualidade da nossa mente estará precisamente a nossa capacidade para
discernir e apreciar estas coisas. Nisto, como em tudo mais, nós precisamos ter os
olhos ungidos com colírio celestial.
Que infeliz conceito faz da inspiração o homem que pode pensar por um momento
que o quinto livro de Moisés é uma estéril repetição do que pode encontrar-se em
Êxodo, Levítico e Números! Até mesmo numa composição humana, nós não
esperamos encontrar uma tão flagrante imperfeição, muito menos na revelação
perfeita que Deus tão misericordiosamente nos tem dado na Sua santa Palavra. O
fato é que não existe, em todo o volume inspirado, uma simples frase supérflua,
nem uma cláusula excessiva, nem um relato sem o seu significado próprio ou a sua
aplicação direta. Se não compreendemos isto, temos ainda de aprender a
profundidade, a força e o significado das palavras "toda a Escritura divinamente
inspirada é" (2 Tm 3:16).
Palavras preciosas! Ah, se fossem entendidas de um modo mais completo nestes
nossos dias! E da maior importância que o povo do Senhor esteja arraigado,
fundado e estabelecido na grande verdade da inspiração plenária da Sagrada
Escritura. É de recear que a lassidão quanto a este importante assunto se vá
estendendo na igreja professa a uma aterradora proporção. Em muitos setores tem
chegado a ser moda tratar com desdém a ideia da inspiração plenária. E
considerada como verdadeira criancice e sinal de ignorância. E admitido por
muitos que é indício de uma profunda educação literária, de ideias liberais e de
originalidade intelectual, ser-se capaz, por livre crítica, de achar defeitos no
precioso livro de Deus. O homem toma a liberdade de julgar a Bíblia como se ela
fosse uma mera composição humana. Aventura-se a pronunciar-se sobre o que é e
o que não é digno de Deus. De fato, isto equivale efetivamente a julgar Deus. O
resultado imediato é, como podia esperar-se, profundas trevas e confusão tanto
para esses mesmos eruditos doutores como para todos os que são tão néscios que os
escutam. E quanto ao futuro, quem pode conceber o destino eterno de todos os que
terão de responder ante o tribunal de Cristo pelo pecado de blasfêmia contra a
Palavra de Deus e por desviarem centenas de almas com o seu ensino infiel?
Não ocuparemos, contudo, o tempo detendo-nos sobre a estultícia dos infiéis e
cépticos — embora chamados cristãos — ou os seus mesquinhos esforços de
desacreditar o incomparável volume que o nosso benigno Deus mandou escrever
para nosso ensino. Um dia eles reconhecerão o seu erro fatal. Deus queira que não
seja demasiado tarde! E, quanto a nós, que seja o nosso maior gozo e consolação
meditar sobre a Palavra de Deus, a fim de podermos descobrir sempre novos
tesouros nessa mina inesgotável — quaisquer novas glórias nessa revelação
celestial!
O livro de Deuteronômio ocupa um lugar muito distinto no cânone inspirado. As
linhas com que principia bastam para provar isto. "Estas são as palavras que Moisés
falou a todo o Israel, dalém do Jordão, no deserto, na planície defronte do Mar de
Sufe, entre Parã, e Tofel, e Labã, e Hazerote, e Di-Zaabe."
Isto basta quanto ao lugar no qual o legislador entregou o conteúdo deste
maravilhoso livro. O povo havia chegado ao lado oriental do Jordão e estava
prestes a entrar na terra da promissão. As suas peregrinações pelo deserto estavam
quase a findar, segundo compreendemos pelo terceiro versículo, no qual o ponto
do tempo está distintamente assinalado, assim como a posição geográfica no
versículo 1. "E sucedeu que, no ano quadragésimo, no mês undécimo, no primeiro
dia do mês, Moisés falou aos filhos de Israel, conforme a tudo o que o SENHOR lhe
mandara acerca deles."
Assim, não só temos o tempo e o lugar mencionados com divina precisão e
minuciosidade, mas aprendemos também das palavras citadas que as palavras ditas
ao povo, na planície de Moabe, estavam por certo longe de ser uma repetição do
que temos tido perante nós nos nossos estudos sobre os livros de Êxodo, Levítico e
Números. Disto temos uma nova e mais clara prova numa passagem do capítulo 29
do livro cujo estudo vamos encetar. "Estas são as palavras do concerto que o
SENHOR ordenou a Moisés, na terra de Moabe, que fizesse com os filhos de Israel,
além do concerto que fizera com eles em Horebe."
Repare o leitor especialmente nestas palavras. Falam de dois pactos, um em
Horebe e outro em Moabe; e o último, longe de ser uma simples repetição do
primeiro, é tão diferente quanto dois objetos podem ser diferentes um do outro.
Disto obteremos a mais clara e completa evidência com o estudo do profundo livro
que está agora aberto diante de nós.
Decerto, o título grego do livro, que significa segunda promulgação da lei, parece
suscitar a ideia de que pode ser uma simples recapitulação dos livros anteriores;
mas podemos estar certos de que não é assim. Com efeito, seria um erro grave
pensar assim. O livro tem o seu lugar próprio e específico. O seu assunto e objetivo
são tão claros quanto possível. A lição principal que nos é revelada é a obediência,
e isto não apenas na letra mas no espírito de amor e temor — uma obediência
baseada sobre um relação conhecida e desfrutada — uma obediência vivificada
pelo sentimento de obrigações morais do maior peso e do caráter mais influente.
O ancião legislador, o fiel, amado e honrado servo do Senhor estava prestes a
despedir-se da congregação. Ia para o céu e eles estavam prestes a atravessar o
Jordão; e por isso as suas dissertações finais são solenes e comovedoras no mais alto
grau. Passa em revista toda a sua história no deserto, e isto da maneira mais
comovente e impressionante. Relata as cenas e circunstâncias dos quarenta anos da
sua vida no deserto em estilo eminentemente calculado para tocar as mais íntimas
cordas morais do coração. Inclinamo-nos suspensos de admiração e deleite ante
estes preciosíssimos discursos. Possuem um encanto incomparável que procede das
circunstâncias em que foram expostos, bem como do poder divino do seu
conteúdo. Falam-nos com não menos eficiência do que àqueles a quem foram
especialmente dirigidos. Muitos dos seus apelos e exortações são-nos apresentados
com um poder de aplicação como se tivessem sido proferidos apenas ontem.

Um Livro Atual, Embora Escrito há Três Mil Anos


E não é assim com toda a Escritura? Não ficamos nós constantemente
surpreendidos com o seu maravilhoso poder de adaptação ao nosso próprio estado
e aos dias em que caiu a nossa sorte? Fala-nos com elevação e frescura como se
fosse escrita expressamente para nós — escrita neste mesmo dia. Nada há como a
Escritura. Tome-se qualquer escrito humano da mesma época do livro de
Deuteronômio, e, se puderdes lançar mão de algum livro de há três mil anos, que
encontrareis? Uma curiosa relíquia da antiguidade, alguma coisa para ser colocada
num museu lado a lado com alguma múmia egípcia sem ter qualquer aplicação a
nós ou aos nossos tempos, um documento cediço, uma peça de escrita obsoleta,
praticamente inútil para nós, referente a um estado de sociedade e a uma condição
de coisas passadas e enterradas no esquecimento.
Pelo contrário, a Bíblia é o livro para estes dias. E o Livro de Deus, a Sua perfeita
revelação. E a Sua própria voz falando a cada um de nós. É um livro para todas as
épocas, para todos os climas, para todas as classes, para todos os estados, elevado ou
baixo, rico ou pobre, culto ou ignorante, velho ou novo. Fala uma linguagem tão
simples que uma criança pode entendê-la; e, no entanto, tão profunda que o mais
gigantesco intelecto não pode esgotá-la. Além disso, fala diretamente ao íntimo do
coração; toca as fontes mais profundas do nosso ser moral; penetra no recôndito
das raízes do pensamento e sentimento da alma; julga- nos completamente. Em
suma, é, como nos diz o apóstolo inspirado: "viva e eficaz, e mais penetrante do que
espada alguma de dois gumes, e penetra até à divisão da alma e do espírito e das
juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração"
(Hb 4:12).
E, além disso, note-se o seu maravilhoso alcance. Trata com tanta precisão e
energia dos hábitos e costumes, maneiras e máximas do décimo nono século da era
cristã como dos próprios séculos da existência humana. Mostra um perfeito
conhecimento do homem em qualquer época da sua história. Londres dos nossos
dias e Tiro de há três mil anos estão retratadas com igual precisão e fidelidade nas
páginas sagradas. A vida humana, em qualquer grau do seu desenvolvimento, está
descrita por mão de mestre nesse volume maravilhoso que o nosso Deus tem
graciosamente escrito para o nosso ensino.
Que privilégio possuir tal Livro! Podermos ter em nossas mãos uma revelação
divina! Ter acesso a um Livro no qual cada linha é dada por inspiração de Deus! Ter
uma história divinamente concedida do passado, do presente e do futuro! Quem
pode apreciar devidamente um tal privilégio como este?

O Homem Natural é Inimigo de Cristo e da Palavra


Demais, este Livro julga o homem — julga os seus caminhos - julga o seu coração.
Conta-lhe a verdade a seu próprio respeito. Por isso o homem não gosta do Livro
de Deus. Um homem inconvertido prefere antes um periódico ou uma novela
sensacional em vez da Bíblia . Lerá antes o relato de um julgamento num dos
nossos tribunais em vez de um capítulo do Novo Testamento.
Daí o esforço constante para encontrar defeitos no bendito Livro de Deus. Os
infiéis, em todos os tempos e de todas as classes, têm laborado com afinco para
descobrir falhas e contradições na Sagrada Escritura. Os denodados inimigos da
Palavra de Deus não se encontram somente nas fileiras dos vulgares, dos rudes e
pervertidos, mas entre os educados, os polidos e civilizados. Assim como era nos
dias dos apóstolos, em que "alguns homens perversos dentre os vadios" e "algumas
mulheres religiosas e honestas" — duas classes tão afastadas uma da outra social e
moralmente — encontraram um ponto em que podiam cordialmente concordar,
isto é, a inteira rejeição da Palavra de Deus e daqueles que a pregavam (compare-se
Atos 13:50 com 17:5), assim nós encontramos sempre homens que, discordando
quase em tudo, concordam na sua decidida oposição à Bíblia. Outros livros são
deixados em paz. Os homens não se preocupam em achar defeitos em Virgílio,
Horácio, em Homero ou Herodoto; mas não podem suportar a Bíblia porque ela
lhes expõe e diz a verdade a respeito deles e do mundo a que pertencem.
E não sucedeu exatamente o mesmo com a Palavra vivente — o Filho de Deus, o
Senhor Jesus Cristo, quando aqui andou entre os homens? Os homens
aborreceram-No, porque Ele lhes disse a verdade, o Seu ministério, as Suas
palavras, a Sua conduta, toda a Sua vida era um perene testemunho contra o
mundo; daí a amarga e persistente oposição que Lhe moveram; outros homens
foram tolerados; mas Ele era vigiado e espiado em todos os Seus passos. Os grandes
chefes e guias do povo consultavam entre si como "o surpreenderiam nalguma
palavra"; buscando ocasião contra Ele a fim de que pudessem entregá-Lo à
autoridade e poder do governador. Assim foi durante a Sua maravilhosa vida; e, no
final, quando o bendito Senhor foi cravado na cruz entre dois malfeitores, estes
foram deixados em paz; não choveram insultos sobre eles, os principais dos
sacerdotes e os anciãos não meneavam as suas cabeças ante eles. Não; todos os
insultos, todo o escárnio, toda a grassaria e cruel vulgaridade — tudo foi lançado
sobre o divino Ocupante da cruz do centro.
Ora, é conveniente compreendermos a fundo a verdadeira origem de toda a
oposição à Palavra de Deus — quer seja à Palavra viva ou à Palavra escrita. Isto
habilitar-nos-á a apreciá-la no seu verdadeiro valor. O diabo aborrece a Palavra de
Deus — aborrece-a com verdadeiro ódio; e por isso serve-se de descrentes
instruídos para escreverem livros para provar que a Bíblia não é a Palavra de Deus,
que não pode ser a Palavra de Deus, visto que há nela erros e contradições; e não
apenas isto, mas que, no Velho Testamento, encontramos leis e instituições,
hábitos e práticas indignos de um Ser misericordioso e benévolo!
A todo este gênero de argumentos temos uma réplica breve e precisa; a respeito de
todos estes incrédulos eruditos dizemos simplesmente que eles não conhecem
absolutamente nada sobre a questão. Podem ser instruídos, hábeis, pensadores
originais e profundos, ilustres em literatura geral, muito competentes para darem
uma opinião sobre qualquer assunto nos domínios da filosofia natural e moral, e
muito capazes de discutir qualquer assunto científico. Além disso, podem ser
muito amáveis na vida privada, caracteres verdadeiramente estimáveis, amáveis,
bondosos, altruístas amados na sua vida privada e respeitáveis em público. Podem
ser tudo isso, mas, sendo inconvertidos, e não tendo o Espírito de Deus, são
completamente incapazes de fazer, muito menos de dar, um juízo sobre o assunto
da Sagrada Escritura. Se alguém totalmente ignorante em astronomia presumisse
entrar em discussão sobre os princípios do sistema de Copérnico, estes mesmos
homens de quem falamos o declarariam imediatamente incompetente para falar e
indigno de ser escutado sobre tal assunto. Em resumo, ninguém tem o direito de
dar uma opinião sobre um assunto que não conhece. Isto é um principio admitido
por todos; e portanto a sua aplicação ao caso presente não pode ser posta em
questão.
Ora, o apóstolo inspirado diz-nos, na sua primeira epístola aos Coríntios, que "o
homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente." Isto é
concludente. Fala do homem no seu estado natural, seja qual for a sua instrução ou
a sua cultura. Não fala de qualquer classe especial de homens; mas simplesmente
do homem no seu estado inconvertido, o homem destituído do Espírito de Deus.
Alguém pode imaginar que o apóstolo se refere ao homem num estado de barbárie
ou de selvagem ignorância. De modo nenhum; refere- se simplesmente ao homem
natural, seja um ilustrado filósofo ou um ignorante palhaço. "Não pode
compreender as coisas do Espírito de Deus." Como pode então ele formar um juízo
ou emitir um parecer quanto à Palavra de Deus? Como pode tomar sobre si a
responsabilidade de dizer o que é ou que não digno de Deus escreverá E se for
bastante audacioso para o fazer — e infelizmente é! — quem será tão néscio que
queira escutá-lo?- Os seus argumentos são infundados; as suas teorias desprezíveis;
os seus livros são apenas próprios para o cesto dos papéis. Tudo isto, note-se,
baseado no princípio universalmente admitido e acima acentuado de que ninguém
tem qualquer direito a ser ouvido sobre um assunto do qual é totalmente
ignorante.

Por que Deus não Poderia Revelar-nos Seus Pensamentos?


Desta forma livramo-nos de toda a classe de escritores infiéis. Quem pensaria em
escutar um cego sobre o assunto da luz e a sombra? E, todavia, um tal homem tem
mais direito a ser ouvido do que um inconvertido sobre a inspiração. Os
conhecimentos humanos, por mais extensos e variados que sejam; a sabedoria
humana, por muito profunda que seja, não podem qualificar um homem para
emitir um juízo sobre a Palavra de Deus. Sem dúvida, um erudito pode examinar e
comparar manuscritos simplesmente do ponto de vista crítico; pode ser capaz de
formar um juízo quanto à questão de autoridade da leitura de qualquer passagem
especial; mas isto é assunto muito diferente de um escritor incrédulo empreender a
tarefa de emitir parecer sobre a revelação que Deus, em Sua infinita bondade, nos
tem dado.
Mantemos a nossa afirmação de que nenhum homem pode fazer isto. É somente
por intermédio do Espírito, que inspirou as Sagradas Escrituras, que essas
Escrituras podem ser compreendidas e apreciadas. A Palavra de Deus deve ser
recebida sobre a sua própria autoridade. Se o homem pode julgá-la ou discutir
sobre ela, então não é a Palavra de Deus. Deus tem-nos dado uma revelação ou
não? Se tem, deve ser absolutamente perfeita a todos os respeitos; e, sendo assim,
deve estar inteiramente fora do alcance do juízo humano. O homem não é mais
competente para julgar a Escritura do que para julgar a Deus. A Escritura julga o
homem; não o homem a Escritura.
Nisto está toda a diferença. Nada pode haver mais miseravelmente vil do que os
livros que os infiéis escrevem contra a Bíblia. Cada página, cada parágrafo, cada
frase só consegue ilustrar a verdade da afirmação do apóstolo que, "O homem
natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente." A sua
crassa ignorância do assunto de que se arriscam a tratar é apenas igual à confiança
que têm em si mesmos. Da sua irreverência nada dizemos; pois quem pensaria
encontrar reverência nos escritos dos incrédulos? Poderíamos talvez esperar um
pouco de modéstia, se não fosse o caso de estarmos plenamente ao fato do ânimo
amargo que dá origem a tais escritos e os torna inteiramente indignos de um
momento de consideração. Outros livros podem ser submetidos a um exame
desapaixonado; mas o precioso Livro de Deus é abordado com a conclusão prévia
de que não é uma revelação divina, porque, na verdade, os incrédulos dizem-nos
que Deus não podia dar-nos uma revelação escrita dos Seus pensamentos.
Como é estranho! Os homens podem dar-nos uma revelação dos seus
pensamentos; e os infiéis têm-no feito claramente; mas Deus não pode. Que
loucura! Que arrogância! Por que razão, é lícito perguntar, não pode Deus revelar
os Seus pensamentos às suas criaturas? Porque há-de pensar-se que isso é uma cosia
incrível? Por nenhuma razão, mas simplesmente porque os infiéis assim querem. O
desejo é, neste caso, seguramente pai do pensamento. A pergunta formulada pela
antiga serpente, no jardim do Éden, há aproximadamente seis mil anos, tem sido
transmitida, de século para século, por toda classe de cépticos, racionalistas e
infiéis, isto é: "E assim que Deus disse?" Sim, respondemos nós, com muito prazer;
bendito seja o Seu santo Nome, Ele tem falado — tem-nos falado a nós. Tem
revelado o Seu pensamento; tem-nos dado as Escrituras Sagradas: "Toda Escritura
divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para
instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente
instruído par toda a boa obra"(2 Tm 3:16-17). "Porque tudo que dantes foi escrito
para nosso ensino foi escrito, para que, pela paciência e consolação das Escrituras,
tenhamos esperança" (Rm 15:4).
Louvado seja o Senhor por tais palavras! Elas asseguram-nos que toda a Escritura é
dada por Deus, e que toda a Escritura nos é dada a nós. Precioso vínculo entre a
alma e Deus! Quem poderá contar o valor de um tal vínculo? Deus tem falado —
tem-nos falado a nós. A sua Palavra é uma rocha contra a qual se desfazem todas as
ondas do pensamento infiel em desprezível impotência, deixando-a em sua força
divina e eterna estabilidade. Nada pode afetar a Palavra de Deus. Nem todos os
poderes da terra e do inferno, nem os homens nem os demônios juntos podem
jamais remover a Palavra de Deus. Ela permanece em sua própria glória moral, a
despeito de todos os assaltos do inimigo, de século para século. "Para sempre, ó
SENHOR, a tua palavra permanece no céu." "...Engrandeceste a tua palavra acima
de todo o teu nome." Que nos resta? Precisamente isto: "Escondi a tua palavra no
meu coração para eu não pecar contra ti." Nisto consiste o profundo segredo da
paz. O coração está unido ao trono, sim, ao próprio coração de Deus por meio da
Sua preciosíssima Palavra e está assim em possessão de uma paz que o mundo não
pode dar nem tampouco tirar. Que podem conseguir as teorias, os argumentos e o
raciocínio dos infiéis? Absolutamente nada. Têm tanto valor como o pó da eira no
verão. Para aquele que tem aprendido realmente, pela graça, a confiar na Palavra
de Deus — a descansar sobre a autoridade da Sagrada Escritura — as obras que os
infiéis têm escrito são inteiramente desprezíveis, abstrusas, ineficazes;
demonstram a ignorância e a terrível presunção dos seus autores; mas quanto à
Escritura, deixam-na precisamente onde sempre tem estado e estará, "permanece
no céu" tão firme como o trono de Deus(1). Os ataques dos infiéis não podem
atingir o trono de Deus, nem tampouco podem afetar a Sua Palavra; e, bendito seja
o Seu Nome, tampouco podem perturbar a paz que brota do coração que descansa
sobre esse fundamento imperecível: "Muita paz têm os que amam a tua lei, e para
eles não há tropeço" e "...a palavra do nosso Deus subsiste eternamente." "Porque
toda carne é como a erva, e toda a glória do homem, como a flor da erva. Secou-se a
erva, e caiu a sua flor; mas a Palavra do Senhor permanece para sempre" (1 Pe
1:24-25).
__________
(1) A respeito dos escritores infiéis, devemos recordar que os mais perigosos e
entre eles são aqueles que se intitulam "cristãos". Nos dias da nossa juventude
sempre que ouvíamos a palavra "infiel" pensávamos logo de Tom Paine ou de
Voltaire; agora, infelizmente, temos de pensar dos chamados bispos e doutores da
igreja professante. Que fato tremendo!

Aqui temos outra vez o mesmo precioso vínculo de ouro. A Palavra que chegou até
nós, na forma de boas novas, é a Palavra do Senhor que permanece para sempre; e
por isso a nossa salvação e a nossa paz são tão estáveis como a Palavra sobre a qual
estão fundadas. Se toda carne é como a erva, e toda a glória do homem como a flor
da erva, então que valor têm os argumentos dos infiéis? São tão desprezíveis como
erva seca ou como a flor murcha; e os homens que os expõem e os que são
influenciados por eles assim o compreenderão mais tarde ou mais cedo. Oh, a
pecaminosa loucura de argumentar contra a Palavra de Deus — argumentar contra
a única coisa neste mundo que pode proporcionar descanso e consolação ao pobre
e fatigado coração humano —, agir contra aquilo que traz as boas novas de salvação
a pobres pecadores —, que as traz diretamente do coração de Deus!

Toda a Escritura é Inspirada por Deus


Mas podemos deparar aqui talvez com a pergunta tão frequentemente suscitada, e
que tem perturbado tantos e os tem induzido a buscar refúgio no que é chamado
"A autoridade da Igreja". A pergunta é esta: "Como podemos nós saber que o Livro
que chamamos a Bíblia é a Palavra de Deus? A nossa resposta a esta pergunta é
muito simples, e é a seguinte: Aquele que nos tem dado graciosamente o bendito
Livro pode dar-nos também a certeza de que o Livro procede d'Ele. O mesmo
Espírito que inspirou os diversos autores das Sagradas Escrituras pode dar- nos a
conhecer que essas Escrituras são a própria voz de Deus falando-nos. E somente
pelo Espírito que alguém pode discernir isto. Como já temos visto, "O homem
natural não compreende as coisas do Espírito de Deus... e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente." Se o Espírito Santo não nos faz saber e
não nos dá a certeza de que Bíblia é a Palavra de Deus, nenhum homem ou
corporação humana poderá fazê-lo; e, por outro lado, se Ele nos dá essa bendita
certeza, não necessitamos do testemunho do homem.
Admitimos de bom grado que, nesta grande questão, uma sombra de incerteza
seria um positivo tormento e uma calamidade. Mas quem pode dar-nos essa
certeza? Somente Deus. Se todos os homens na terra estivessem de acordo no seu
testemunho sobre a autoridade da Sagrada Escritura; se todos os concílios que se
têm realizado, se todos os doutores que têm ensinado, todos os pais que escreveram
estivessem a favor do dogma da inspiração plenária; se a Igreja na sua totalidade, se
todas as denominações da cristandade dessem o seu assentimento à verdade que a
Bíblia é, realmente, a Palavra de Deus; numa palavra, se tivéssemos toda a
autoridade humana possível a respeito da integridade da Palavra de Deus, seria
insuficiente como fundamento da certeza; e se a nossa fé fosse baseada sobre essa
autoridade, seria inteiramente inútil. Só Deus pode dar-nos a certeza de que Ele
tem falado em Sua Palavra; e, bendito seja o Seu nome, quando Ele nos dá essa
certeza, todos os argumentos todos os subterfúgios, todos os sofismas, todas as
questões dos infiéis antigos e modernos, são como a espuma sobre as águas, o fumo
da chaminé ou o pó do soalho. O verdadeiro crente rejeita-as como sendo
desperdícios desprezíveis, e descansa em santa tranquilidade na incomparável
revelação que o nosso Deus graciosamente nos tem dado.
É da maior importância para o leitor estar absolutamente certo e bem seguro
quanto a esta grave questão, se quer elevar- se acima da influência da infidelidade
por um lado e da superstição por outro. A infidelidade procura convencer-nos de
que Deus não nos tem dado um livro de revelação dos Seus pensamentos — que
não poderia dá-lo. A superstição procura convencer-nos de que embora Deus nos
tenha dado uma revelação, nós não podemos todavia ter a certeza disso sem a
autoridade do homem, nem entendê-la sem a interpretação do homem. Ora, é
conveniente observar que, em ambos os casos, nós somos privados da preciosa
dádiva da Sagrada Escritura. E isto é precisamente o propósito do diabo. Quer
roubar-nos a Palavra de Deus; e pode fazer isto quase tão eficientemente por meio
da aparente desconfiança própria, que humilde e reverentemente confia na
autoridade dos homens sábios e instruídos, como por meio da audaciosa
infidelidade que atrevidamente rejeita toda a autoridade, seja humana seja divina.
Pensemos neste exemplo. Um pai escreve uma carta a um filho que reside em
Cantão — uma carta cheia do afeto e ternura do coração de um pai. Fala-lhe dos
seus planos e preparativos; expõe-lhe tudo quanto julga poder interessar o coração
de um filho — tudo quanto o amor do coração de um pai pode imaginar. O filho
vai à estação dos correios de Cantão a fim de averiguar se há alguma carta de seu
pai. Um funcionário dos correios diz- lhe que não há nenhuma carta, que seu pai
não escreveu e não Poderia escrever — que não poderia comunicar de modo algum
os seus pensamentos por um tal meio; que é apenas tolice pensar tal coisa. Outro
funcionário adianta-se e diz: "Sim; há aqui uma carta para você, mas
provavelmente o senhor não pode entendê-la; é completamente inútil para você,
na realidade só lhe pode causar dano visto que o senhor não é capaz de a ler
corretamente. Deve deixar a carta nas nossas mãos e nós explicar-lhe-emos as
passagens da mesma que julgarmos mais convenientes." O primeiro destes
funcionários representa a infidelidade; o último, a superstição. O filho seria
privado da carta desejada por ambos — da preciosa comunicação do coração de seu
pai. Mas, nós podemos perguntar, qual seria a resposta a estes indignos
funcionários? Podemos estar certos de que seria breve e pertinente. Diria ao
primeiro: "Sei que meu pai pode comunicar-me os seus pensamentos por carta, o
que ele já tem feito." E diria ao segundo: "Sei que meu pai pode dar-me a entender
os seus pensamentos melhor do que os senhores podem fazê-los." Diria a ambos, e
isto com ousada e firme decisão: "Deem-me imediatamente a carta de meu pai, é
dirigida para mim e ninguém tem o direito de a reter."
Assim também o crente de coração simples pode responder à insolência da
infidelidade e à ignorância da superstição—os dois meios da ação do diabo, em
nossos dias, para pôr de lado a preciosa Palavra de Deus. "Meu Pai me tem
comunicado o Seu pensamento e pode fazer-me compreender a comunicação."
"Toda a Escritura divinamente inspirada é." E "Porque tudo o que dantes foi
escrito, para nosso ensino foi escrito." Magnífica resposta para todos os inimigos da
preciosa e incomparável revelação de Deus, quer sejam racionalistas ou ritualistas!
Não tencionamos apresentar desculpas ao leitor por esta extensa introdução ao
livro de Deuteronômio. De fato, estamos muito gratos pela oportunidade de dar o
nosso fraco testemunho da grande verdade da inspiração divina das Escrituras
Sagradas. Sentimos ser nosso dever sagrado, tão certo como é ser nosso grande
privilégio, insistir com todos aqueles com quem entramos em contato sobre a
grande importância e absoluta necessidade da inequívoca decisão sobre este
assunto. Devemos manter fielmente, a todo o custo, a divina autoridade e portanto
a absoluta supremacia e completa suficiência da Palavra de Deus, em todos os
tempos, em todos os lugares e para todos os propósitos. Devemo-nos apegar ao fato
de que as Escrituras, tendo sido dadas por Deus, são completas no mais alto e pleno
sentido da palavra; que elas não necessitam de nenhuma autoridade humana para
as acreditar ou de nenhuma voz humana para as tornar proveitosas; elas falam por
si mesmas, e levam consigo as suas próprias credenciais. Tudo quanto há a fazer é
crer e obedecer, não raciocinar ou discutir. Deus tem falado; nós temos o dever de
ouvir e prestar obediência reverente e sem reservas.
Isto é um ponto de grande importância em todo o livro de Deuteronômio, como
veremos no decorrer das nossas meditações; e nunca houve uma época na história
da Igreja de Deus em que fosse mais necessário instar com a consciência humana
pela necessidade de obediência implícita à Palavra de Deus. Mas, ah, quão pouco se
sente esta necessidade! Os cristãos professos, na sua maioria, parece considerarem
que têm direito a pensar por si mesmos, seguir os seus próprios pensamentos, o seu
próprio juízo ou a sua própria consciência. Não creem que a Bíblia é um livro
divino é um guia universal. Pensam que há muitas coisas sobre as quais nos é
permitido escolher. Daí, as inumeráveis seitas, partidos, credos e escolas de
pensamento. Se a opinião humana for permitida, então, como consequência
natural, um homem tem tanto direito a pensar como outro; e assim tem acontecido
que a Igreja se tem tornado um provérbio e um rifão de divisões.

Obedeçamos a Escritura
E qual é o remédio soberano para este mal tão largamente espalhado? Ei-lo aqui,
absoluta e completa sujeição à autoridade da Sagrada Escritura. Não é que os
homens tenham de recorrer à escritura para obterem a confirmação das suas
opiniões e dos seus pontos de vista, mas de examinar as Escrituras a fim de saberem
quais são os pensamentos de Deus em todas as coisas e inclinarem todo o seu ser
moral à autoridade divina. Esta é a necessidade premente dos dias em que caiu a
nossa sorte — sujeição reverente, em todas as coisas, à autoridade suprema da
Palavra de Deus. Sem dúvida, haverá variedade na nossa medida de inteligência,
na nossa concepção e apreciação da Escritura; mas o ponto em que especialmente
insistimos com todos os cristãos é aquele estado de alma, aquela atitude de coração,
expresso nas preciosas palavras do salmista: "Escondi a tua palavra no meu coração
para eu não pecar contra ti." Isto, podemos estar certos, é agradável ao coração de
Deus. "Mas eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme
da minha palavra."
Nisto está o verdadeiro segredo da segurança moral. O nosso conhecimento da
Escritura pode ser muito limitado; mas se a nossa reverência por ela for profunda,
seremos preservados de mil e um erros e ciladas. E então haverá constante
crescimento. Cresceremos no conhecimento de Deus, de Cristo, e da Palavra
escrita. Deleitar-nos-emos em tirar dessas vivas e inesgotáveis profundidades das
Sagradas Escrituras e em vaguear através desses verdes pastos que a graça infinita
tem tão francamente aberto para o rebanho de Cristo. Assim a vida divina será
nutrida e fortalecida: a Palavra de Deus tomar-se-á mais e mais preciosa para as
nossas almas e nós seremos guiados pelo poderoso ministério do Espírito Santo à
plenitude, majestade e glória moral da Sagrada Escritura. Seremos libertados
completamente das influências destruidoras de todos os meros sistemas de
teologia, elevada, simples ou moderada. Que bendita libertação! Seremos
competentes para dizer aos defensores de todas as escolas de divindade abaixo do
sol que, sejam quais forem os elementos de verdade que possam ter nos seus
sistemas, temos nós em divina perfeição na Palavra de Deus; não torcidos ou
deformados para os amoldara uma sistema, mas, no seu próprio lugar, no amplo
círculo da revelação divina que tem o seu centro eterno na bendita Pessoa de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo.

CAPÍTULO 1

RETROSPECTIVA DO CAMINHO NO DESERTO

(O primeiro discurso de Moisés — capítulos 1 a 4)


"Estas são as palavras que Moisés falou a todo o Israel, dalém do Jordão, no deserto,
na planície defronte do mar de Sufe, entre Parã e Tofel, e Labã, Hazerote, e
Di-Zaabe. Onze jornadas há desde Horebe, caminho da montanha de Seir, até
Cades-Barnéia" (versículos 1 e 2).
O escritor inspirado é cuidadoso em nos dar, da maneira mais precisa, todos os
pormenores do lugar em que as palavras deste livro foram proferidas aos ouvidos
do povo. Israel não havia ainda atravessado o Jordão. Estavam junto dele; e em
frente do Mar Vermelho, onde o grande poder de Deus havia sido tão
gloriosamente manifestado quase quarenta anos antes. A situação é descrita com
tal minúcia que mostra como Deus Se ocupava de tudo que dizia respeito ao Seu
povo. Estava interessado em todos os movimentos que faziam e em todos os seus
caminhos. Guardava em registro exato de todos os seus acampamentos. Não havia
uma só particularidade, por mais insignificante, que escapasse à Sua atenção.
Atendia a tudo. O Seu olhar estava posto continuamente sobre o conjunto dessa
assembleia e sobre cada membro em especial. Dia e noite velava por eles. Cada
etapa da sua viagem estava debaixo da Sua imediata e bondosa superintendência.
Nada havia, por pequeno que fosse, que escapasse à Sua atenção; nem nada, por
grande que fosse, que não alcançasse o Seu poder.
Assim acontecia com o antigo Israel, no deserto; e assim sucede hoje com a Igreja
— a igreja no seu conjunto e cada membro em particular. Os olhos do Pai estão
continuamente fixados em nós, os Seus braços eternos ao redor e por baixo de nós,
dia e noite. "Não apartará os seus olhos do justo." Conta os cabelos da nossa cabeça
e entra, com infinita bondade, em tudo quanto nos diz respeito. Tem tomado a Seu
cuidado todas as necessidades e todos os nossos cuidados. Quer que lancemos sobre
Ele toda a nossa solicitude, na doce certeza de que Ele tem cuidado de nós.
Convida-nos graciosamente a deitarmos sobre Ele as nossas cargas, sejam pesadas
ou leves.
Tudo isto é verdadeiramente maravilhoso. E cheio da mais profunda consolação.
Está eminentemente calculado para tranquilizar o coração, venha o que vier. A
questão é, cremos isso<? Os nossos corações são governados por essa fé?- Cremos
realmente que o Criador Todo-Poderoso e Mantenedor de todas as coisas, que
sustém os pilares do universo, tem graciosamente tomado sobre Si a tarefa de estar
por nós durante toda a viagem? Cremos verdadeiramente que "o Possuidor dos
céus e da terra" é nosso Pai e que tem tomado a Seu cargo o suprimento das nossas
necessidades, desde a primeira à última? O nosso ser moral está inteiramente sob o
poder dominante dessas palavras do apóstolo inspirado: "Aquele que nem mesmo a
seu Filho poupou, como nos não dará com ele todas as coisas?" Ah, é para recear
que conhecemos muito pouco do poder destas magníficas ainda que simples
verdades! Falamos delas; discutimo-las; professamo-las; damos-lhes um
assentimento nominal; mas, com tudo isso, demonstramos na nossa vida diária, nos
pormenores da nossa conduta pessoal, quão pouco as compreendemos. Se cremos
verdadeiramente que o nosso Deus tem tomado à Sua conta todas as nossas
necessidades — se encontrássemos todos os nossos recursos n'Ele — se Ele fosse
uma perfeita defesa para os nossos olhos e lugar de descanso para os nossos
corações, seria possível dependermos dos pobres recursos de criatura, que tão
rapidamente se esgotam e desanimam os nossos corações? Não o cremos, não
podemos crê-lo. Uma coisa é manter a teoria da vida da fé e outra coisa
absolutamente diferente viver essa vida. Enganamo-nos constantemente a nós
próprios com a ideia de que estamos vivendo pela fé, quando na realidade
dependemos de qualquer apoio humano que, mais tarde ou mais cedo, é certo
ceder.
Não é assim, prezado leitor? Não estamos nós constantemente prontos a deixar a
fonte das águas vivas e a cavar cisternas rotas, que não podem reter água? E,
todavia, falamos de viver pela fé! Professamos depender somente do Deus vivo
para o suprimento das nossas necessidades, quaisquer que sejam essas necessidades,
quando, de fato, nos assentamos junto aos mananciais humanos, e buscamos deles
alguma coisa. É para admirar se ficamos desapontados? Como poderia ser de outro
modo? O nosso Deus não quer que dependamos de alguma coisa ou de alguém
senão d'Ele mesmo. Em múltiplas passagens da Sua Palavra tem-nos dado a
conhecer Seu pensamento quanto ao verdadeiro caráter e resultados certos de
confiar na criatura. Veja-se a seguinte passagem solene do profeta Jeremias:
"Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu
coração do SENHOR! Porque será como a tamargueira no deserto e não sentirá
quando vem o bem; antes, morará nos lugares secos do deserto, na terra salgada e
inabitável."
E então note-se o contraste: "Bendito o varão que confia no SENHOR, e cuja
esperança é o SENHOR. Porque ele será como a árvore plantada junto às águas,
que estende as suas raízes para o ribeiro e não receia quando vem o calor, mas a sua
folha fica verde; e, no ano de sequidão, não se afadiga, nem deixa de dar fruto" (Jr
17:5 a 8).
Aqui temos perante nós em linguagem divinamente enérgica, clara e formosa, os
dois lados desta importantíssima questão. A confiança na criatura traz uma certa
maldição, só pode resultar em esterilidade e desolação. Deus, em Sua fidelidade,
fará secar toda a corrente humana e afastar todo o apoio humano a fim de
podermos conhecer inteiramente a loucura de nos afastarmos d'Ele. Que figura
poderia ser mais impressionante ou notável que as empregadas na passagem
precedente? 'Tamargueira no deserto" — "Lugares secos no deserto" — ―Terra
salgada e inabitável". Tais são as figuras empregadas pelo espírito Santo para
ilustrar toda a mera dependência humana, toda a confiança no homem.
Mas, em contrapartida, que pode haver de mais belo ou mais animador do que as
figuras empregadas para mostrar a profunda bem-aventurança de simples
confiança no Senhor? "Arvore plantada junto às águas" — "Que estende as suas
raízes para o ribeiro" — "as suas folhas estarão sempre verdes; o fruto nunca
acabará. Quão formoso! Assim é com o homem que confia no Senhor, e cuja
esperança é o Senhor. É alimentado por aquelas eternas fontes que emanam do
coração de Deus. Bebe livremente da fonte vivificadora. Encontra todos os seus
recursos no Deus vivo. Pode haver "calor", mas ele não o sente. Poderá sobrevir "o
ano da seca", mas não lhe dará cuidado algum. Dez mil correntes da criatura
podem secar, mas ele não se aperceberá disso, porque não depende delas.
Mantém-se tenazmente junto à fonte de eterno caudal. Nada lhe faltará. Vive pela
fé.

O Justo Viverá por Sua Fé


E agora, enquanto falamos da vida da fé — essa vida bendita, entendamos bem o
que ela é e façamos cuidadosamente por vivê-la. Ouvimos às vezes falar desta vida
em termos que não são de modo nenhum inteligentes. E frequentemente aplicada
ao simples fato de se confiar em Deus quanto ao alimento e vestuário. Certas
pessoas que aparentemente não têm recursos naturais, um rendimento certo, nem
propriedades de qualquer espécie, são apontadas e contadas como "vivendo pela
fé", como se essa maravilhosa e gloriosa vida não tivesse uma esfera mais elevada
ou maior curso que as coisas temporárias, o simples suprimento das nossas
necessidades.
Ora, nós não podemos deixar de protestar energicamente contra este ponto de
vista altamente indigno da vida da fé. Limita a sua esfera e rebaixa o seu curso de
uma forma absolutamente intolerável para todo o que compreende alguma coisa
dos seus santos e preciosos mistérios. Podemos nós admitir, ainda que por um
momento, que um cristão que tenha um rendimento certo de qualquer espécie tem
de ser privado do privilégio de viver pela fé? Ou, além disso, podemos admitir que
essa vida seja limitada e rebaixada à simples condição de confiar em Deus para
suprimento das nossas necessidades corpóreas? Não nos parece mais elevada que o
alimento e o vestuário? Não nos dá uma ideia mais elevada de Deus do que aquela
que nos diz que Ele não nos deixará morrer de fome ou nus?
Longe, longe para sempre de nós tão vil ideia! A vida da fé não deve ser assim
tratada. Não podemos permitir que se lhe impute tão grosseira desonra ou faça tão
deplorável injúria aos que são chamados a vivê-la. Qual, perguntamos, é o
significado das breves embora importantes palavras, "O justo viverá da fé"1?
Encontramo-las primeiramente em Habacuque 2. São reproduzidas pelo apóstolo
em Romanos 1, onde ele lança, com mão de mestre, o sólido fundamento do
cristianismo. Cita-as outra vez em Gálatas 3, onde, com a mais viva ansiedade,
chama de novo essas seduzidas assembleias aos sólidos fundamentos que, em sua
loucura, estavam abandonando. Finalmente, cita-as de novo em capítulo 10 da sua
epístola aos Hebreus, onde adverte seus irmãos do perigo de abandonarem a sua
confiança e renunciarem a sua carreira.
De tudo isto podemos seguramente deduzir a imensa importância e valor prático
da breve mas transcendente frase: "O justo viverá da fé." Mas a quem é dirigida? Só
a alguns dos servos do Senhor, que, por aqui e por ali, não têm rendimentos certos?
Repudiamos inteiramente essa ideia. E dirigida a cada um dos do povo do Senhor.
É elevado e ditoso privilégio de todos os que estão compreendidos sob o título —
bendito, de certo — "o justo Cremos que é um grave erro limitá-la de qualquer
modo. O efeito moral de tal limitação é grandemente prejudicial. Dá importância
indevida a uma parte da vida da fé que — se for permitida qualquer distinção —
devemos considerar como a mais baixa. Mas, na realidade, não podemos fazer
distinções. A vida da fé é o grande princípio da vida divina desde o princípio ao
fim. Por fé somos justificados, e pela fé vivemos; pela fé estamos de pé e pela fé
andamos. Desde o ponto de partida até ao fim da carreira cristã, é tudo pela fé.
Por isso, é um grave erro designar certas pessoas que confiam no Senhor para o
suprimento das suas necessidades temporais e falar de elas viverem pela fé, como
se só elas o fizessem. E não só isto, tais pessoas são apresentadas à igreja de Deus
como alguma coisa maravilhosa; e a grande massa dos cristãos é induzida a pensar
que o privilégio de viver pela fé está inteiramente fora do seu alcance. Em suma,
são induzidos em erro quanto ao verdadeiro caráter e esfera da vida da fé, e desta
forma sofrem materialmente na vida interior.
Que o leitor cristão compreenda portanto que é seu privilégio, quem quer que ele
seja, ou qualquer que seja a sua posição, viver uma vida de fé em toda a intensidade
e plenitude dessa palavra. Pode, segundo a sua própria medida de capacidade,
apropriar-se da linguagem do bem-aventurado apóstolo e dizer: "A vida que agora
vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si
mesmo por mim" (Gl 2:20). Que nada lhe roube esse elevado e santo privilégio que
pertence a cada membro da família da fé. Mas, ah, nós falhamos! A nossa fé é fraca,
quanto deveria ser forte, intrépida e vigorosa. O nosso Deus deleita-Se numa fé
intrépida. Se estudarmos os evangelhos veremos que nada refrescava e deleitava
tanto o coração de Cristo como uma fé audaz — uma fé que O compreendia e se
apegava completamente a Ele. Veja-se, por exemplo, a mulher sirofenícia, em
Marcos 7, e o caso do centurião, em Lucas 7.
Verdade é que Ele pode ir ao encontro de uma fé fraca — a mais débil. Pode ir ao
encontro de "se quiseres" com um gracioso "quero"; de um "se tu podes" com um
"Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê". O mais fraco olhar, o mais ligeiro
contato obtinham uma segura e favorável reposta; mas o coração do Salvador
ficava satisfeito e o Seu espírito sentia-se animado quando Ele podia dizer: "Ó
mulher! grande é a tua fé. Seja isso feito para contigo, como tu desejas"; e noutra
ocasião: "Nem mesmo em Israel encontrei tanta fé."
Tenhamos isto presente: podemos estar certos de que sucede exatamente o mesmo
hoje como quando o nosso bendito Senhor estava aqui entre os homens. Gosta que
confiem n'Ele, que recorram a Si, que contem Consigo. Nunca nos poderemos
exceder em contar com o amor do Seu coração ou a força da Sua mão. Nada há
pequeno demais para Ele, nada grande demais. Ele tem todo o poder no céu e na
terra. É sobre todas as coisas como Cabeça da Igreja. Sustém em conjunto o
universo. Sustém todas as coisas pela palavra do Seu poder. Os filósofos falam das
forças e leis da natureza. O cristão pensa com deleite de Cristo, da Sua mão, da Sua
palavra, do Seu imenso poder. Por Ele foram criadas todas as coisas e por Ele todas
as coisas subsistem.
E depois o Seu amor! Que descanso, que consolação, que alegria sabermos e
recordarmos que o Criador, o Todo-poderoso, e Sustentador do universo
eternamente ama as nossas almas; que Ele nos ama perfeitamente; que os Seus
olhos estão sempre postos em nós; que o Seu coração está sempre inclinado para
nós; que tomou a responsabilidade de todas as nossas necessidades, quaisquer que
estas possam ser, quer físicas, quer mentais ou espirituais. Não existe uma única
coisa compreendida em toda a variedade das nossas necessidades que não esteja
guardada para nós em Cristo. Ele é o tesouro do céu, a provisão de Deus; e tudo isto
para nós.
Porque havemos então de recorrer a outrem? Porque havemos de, direta ou
indiretamente, tornar conhecidas as nossas necessidades de algum pobre mortal
como nós?- Por que não havemos de ir logo a Jesus<? Necessitamos de compaixão?-
Quem pode compadecer-se de nós como o nosso misericordioso Sumo Sacerdote
que Se comove com o sentimento das nossas fraquezas«? Necessitamos de auxílio
de qualquer espécie?- Quem pode auxiliar-nos como o nosso todo-poderoso
Amigo, o Possuidor de riquezas inescrutáveis? Necessitamos de conselho ou de
orientação? Quem pode dá-la como o bendito Senhor que é a própria sabedoria de
Deus, e que por Deus é feito sabedoria para nós?- Oh, não contristemos o Seu
amantíssimo coração, nem desonremos o Seu nome glorioso retirando-nos d'Ele!
Vigiemos ciosamente contra a tendência tão natural em nós de alimentar
esperanças humanas, e depositar confiança na criatura e ter expectativas terrenas.
Conservemo-nos junto à fonte e não teremos jamais de nos queixar das correntes.
Em suma, procuremos viver pela fé, e assim glorificar Deus nos nossos dias e na
nossa geração.

"Onze jornadas há desde Horebe até Cades-Barnéia"


Vamos prosseguir agora com o nosso capítulo; e, fazendo-o, queremos chamar a
atenção do leitor para o versículo 2. É com certeza um notável parêntesis. "Onze
jornadas há desde Horebe, caminho da montanha de Seir, até Cades-Barnéia."
Onze dias! E, todavia, levaram quarenta anos a fazer essas jornadas! Como foi isto!
Ah, não é necessário ir muito longe para dar com a resposta! A nós sucede-nos o
mesmo. Quão vagarosos andamos pelo caminho! Que voltas e reviravoltas damos!
Quantas vezes temos que voltar atrás e percorrer o mesmo caminho repetidas
vezes! Somos viajantes lentos, porque somos tardos em aprender. Podemos estar
talvez dispostos a estranhar que Israel pudesse levar quarenta anos para fazer uma
jornada que levaria apenas onze dias; mas podemos, com muito mais razão,
admirarmo-nos de nós mesmos. Nós, assim como eles, somos retardados pela nossa
incredulidade e indolência de coração; mas temos muito menos desculpa do que
eles, visto que os nossos privilégios são muitíssimo mais elevados.
Muitos de nós temos razão de sombra para nos envergonharmos do tempo que
gastamos com as nossas lições. As palavras do bendito apóstolo podem ser-nos
propriamente aplicadas: "Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda
necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das
palavras de Deus, e vos haveis feito tais que necessitais de leite e não de sólido
mantimento." O nosso Deus é um Mestre tão sábio como fiel e tão benévolo como
paciente. Não quer que passemos precipitadamente as nossas lições. Algumas das
vezes pensamos que temos dominado uma lição e procuramos passar para outra;
mas o nosso sábio Mestre sabe melhor e vê a necessidade de mais profunda
disciplina. Não permitirá que sejamos meramente teóricos ou superficiais em
conhecimento. Se for necessário, ter-nos- á, ano após ano, fazendo escala até
aprendermos a cantar.
Mas se é muito humilhante para nós sermos tão vagarosos em aprender, é uma
graça especial Ele ter tanta paciência para nos assegurar o ensino. Devemos
bendizê-Lo pela Sua maneira de ensinar, bem como por tudo mais; pela admirável
paciência com que Se assenta conosco para nos ensinar a mesma lição, repetidas
vezes, a fim de que a aprendamos completamente (1).
__________
(1) A jornada de Israel desde Horebe a Cades-Barnéia ilustra forçosamente a
história de muitas almas na questão de encontrarem paz. Muitos do povo do
Senhor continuam no temor e na dúvida durante anos sem nunca conhecerem a
bem-aventurança da liberdade com que Cristo torna livre o Seu povo. É muito
triste para todo aquele que realmente se preocupa com as almas ver a triste
condição em que alguns são mantidos todos os dias da sua vida pelo legalismo, mau
ensino, falsa devoção, e coisas semelhantes. E uma coisa rara nestes dias encontrar
na cristandade uma alma plenamente estabelecida na paz do evangelho.
Considera-se uma boa coisa, um sinal de humildade, estar sempre em dúvida. A
confiança é encarada como presunção. Em suma, as coisas são completamente
postas às avessas. O evangelho não é conhecido; as almas estão debaixo da lei, em
vez de estarem debaixo da graça; são mantidas à distância, em vez de serem
ensinadas a aproximarem-se. Muito da religião em voga é uma deplorável mistura
de Cristo e o ego, lei e graça, fé e obras. As almas são mantidas em perfeita
confusão, toda a sua vida.
Estas coisas requerem certamente a grave atenção de todos os que ocupam o lugar
responsável de ensinadores e pregadores na Igreja professante. Aproxima-se o dia
solene em que todos os tais serão convidados a prestar contas do seu ministério.

Demoramos para Apreender


"E sucedeu que, no ano quadragésimo, no mês undécimo, no primeiro dia do mês,
Moisés falou aos filhos de Israel, conforme a tudo o que o SENHOR lhe mandara
acerca deles" (versículo 3). Estas breves palavras contêm sólidas instruções para
todos os servos de Deus, todos os que são chamados ao ministério da Palavra e
doutrina. Moisés deu ao povo precisamente o que ele próprio havia recebido de
Deus, nada mais, nada menos. Pô-los em contato direto com a palavra viva de Javé
(ou: do SENHOR). Este é o grande princípio do ministério em todos os tempos.
Nada fora disto tem verdadeiro valor. A Palavra de Deus é a única coisa que
permanecerá. Nela há poder divino e autoridade. Todo o ensino meramente
humano, por muito interessante, por muito atraente que seja, passará e deixará a
alma sem qualquer fundamento em que possa descansar.
Por isso deveria ser cuidado sincero e zeloso de todos os que exercem o ministério
na assembleia de Deus pregar a Palavra em toda a sua pureza com toda a
simplicidade; transmitindo-a aos ouvintes como a receberam de Deus; pô-los face a
face com a verdadeira linguagem da Escritura Sagrada. Desta maneira o seu
ministério chegará com poder vivo aos corações e consciências dos seus ouvintes.
Unirá a alma com Deus mesmo por meio da Palavra, e transmitirá uma
profundidade e solidez que nenhum ensino humano poderá jamais produzir.
Vejamos o bem-aventurado apóstolo Paulo. Ouçamo-lo exprimir-se sobre este
importante assunto. "E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o
testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria. Porque
nada me propus saber entre vós senão a Jesus Cristo e este crucificado. E eu estive
convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor. A minha palavra e a
minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana,
mas em demonstração do Espírito e de poder." Qual era o objetivo de todo este
temor e tremor«?- "Para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens,
mas no poder de Deus" (I Co 2:1-5).
Este verdadeiro e fiel servo de Cristo buscava somente levar as almas dos seus
ouvintes a um contato direto e pessoal com Deus mesmo. Não buscava
relacioná-las com Paulo. "Pois quem é Paulo e quem é Apolo, senão ministros
pelos quais crestes? Todo o falso ministério tem por objetivo atrair as almas para si.
Assim o ministro é exaltado; Deus é excluído e a alma é deixada num estado em
que não encontra fundamento divino para descansar. O verdadeiro ministério,
pelo contrário, segundo o vemos em Paulo e Moisés, tem por objeto bendito unir
as almas a Deus. Desta forma o ministro ocupa o seu verdadeiro lugar —
simplesmente como um instrumento; Deus é exaltado e a alma estabelecida sobre
um sólido fundamento que jamais será abalado.
Mas ouçamos alguma coisa mais do que diz o nosso apóstolo sobre este importante
assunto: "Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado, o
qual também recebestes e no qual também permaneceis.; pelo qual também sois
salvos, se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado, se não é que crestes em vão.
Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi"; — nada mais, nada
menos nem nada diferente — "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras; e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as
Escrituras" (I Co 15:14).
Isto é extraordinariamente belo! Exige a maior atenção de todos os que querem ser
verdadeiros e eficientes servos de Cristo. O apóstolo foi cuidadoso em deixar que a
corrente pura fluísse desde a fonte viva do coração de Deus para as almas dos
Coríntios. Compreendia que nada mais podia ter algum valor. Se tivesse procurado
uni-los a si próprio, teria desonrado tristemente o seu Mestre, feito um grave dano
e ele mesmo sofreria certamente dano no dia de Cristo. Mas não; Paulo sabia o que
fazia. Por nada do mundo induziria alguém a basear-se sobre si. Ouvi o que ele diz
aos muito amados Tessalonicenses: "Pelo que também damos, sem cessar, graças a
Deus, pois, havendo recebido de nós a palavra da pregação de Deus, a recebestes,
não como palavra de homens, mas (segundo é, na verdade) como palavra de Deus,
a qual também opera em vós, os que crestes" (1 Ts 2:13).
Sentimos solenemente a responsabilidade de recomendar este grave e importante
assunto à mais atenta consideração da Igreja de Deus. Se todos os que professam ser
ministros de Cristo seguissem o exemplo de Moisés e Paulo, quanto a ponto de que
tratamos, veríamos um estado de coisas muito diferente na igreja professante.
Porém, o fato claro e triste é que a Igreja de Deus, como o antigo Israel, se apartou
inteiramente da autoridade da Sua Palavra. Ide onde quiserdes, e vereis que são
feitas e ensinadas coisas que não têm nenhum fundamento na Escritura. Coisas que
não somente são toleradas mas sancionadas e rigorosamente defendidas, que estão
em direta oposição à mente de Cristo. Se perguntardes qual a autoridade divina
para a instituição desta, essa ou aquela outra prática, dir-vos-ão que Cristo não nos
deu instruções quanto ao assunto do governo da igreja; que em todas as questões de
política eclesiástica, ordens clericais e serviços litúrgicos, Ele nos deixou livres
para atuarmos de acordo com as nossas consciências, critério ou sentimentos
religiosos; que é simplesmente um absurdo exigir "assim diz o SENHOR" para
todos os pormenores das nossas instituições religiosas; que há uma ampla margem
concedida para ser completada de acordo com os nossos costumes nacionais e os
nossos particulares hábitos de pensar. É geralmente reconhecido que os cristãos
professos gozam de perfeita liberdade para se constituírem a si próprios nas
chamadas igrejas, elegerem a sua própria forma de governo, estabelecerem as suas
próprias regras e nomearem os seus próprios ministrantes.
Porém, a questão que o leitor tem de resolver é esta: Estas coisas são realmente
assim? E possível que o nosso Senhor Jesus Cristo haja deixado a Sua igreja sem
orientação em matéria de tanto interesse e importância ? Será possível que a Igreja
de Deus esteja em piores condições, sobre o assunto de instrução e autoridade, que
Israel? Em nossos estudos sobre os livros de Êxodo, Levítico e Números, temos
visto — pois quem poderia deixar de ver«?- — os esforços maravilhosos que o
Senhor fez para instruir o Seu povo com respeito aos mais minuciosos pormenores
ligados com o seu culto público e vida privada. Quanto ao tabernáculo, o templo, o
sacerdócio, o ritual, as diversas festas e sacrifícios, as solenidades periódicas, os
meses, os dias, as próprias horas, tudo esta ordenado e disposto com divina
precisão. Nada foi deixado para a mera disposição humana. A sabedoria do homem,
o seu critério, o seu entendimento, a sua consciência, nada tiveram que ver com o
assunto. Tivesse isso sido deixado ao critério do homem, como seria possível que
tivéssemos tido esse sistema admirável, profundo e transcendente em símbolo que
a pena inspirada de Moisés pôs diante de nós? Se a Israel tivesse sido permitido
fazer o que — como muitos de boa vontade procuram persuadir-nos — é
consentido à igreja, que confusão, que contendas, que divisões, que interminável
número de seitas e partidos não teria havido como resultado inevitável!

Não Obstante, a Escritura é Clara


Mas não era assim. A Palavra de Deus estabelecia tudo. "Conforme a tudo o que o
SENHOR lhe mandara acerca deles." Esta magna e influente expressão estava
ligada a tudo que Israel tinha que fazer e também a tudo quanto não devia fazer. As
suas instituições nacionais e os seus costumes domésticos, a sua vida pública e
privada — tudo estava sob a autoridade imperativa da expressão "assim diz o
SENHOR". Não havia lugar para que qualquer membro da congregação pudesse
dizer: "Não me parece, ou não posso estar de acordo com isto ou com aquilo." Tal
linguagem só podia ser considerada como fruto da vontade própria. De igual modo
podia dizer: "Não posso concordar com o Senhor." E por quê? Simplesmente
porque a Palavra do Senhor havia falado sobre tudo, e isto também com tal clareza
e simplicidade que não deixava lugar para discussões humanas. Por todo o
conjunto da economia moisaica não havia tanto como a espessura de um cabelo de
margem livre para introduzir a opinião ou o parecer do homem. Não competia ao
homem acrescentar o peso de uma pena a esse vasto sistema de figuras e sombras
que haviam sido planejadas pela mente divina, e expostas em linguagem tão clara e
concisa, que tudo quanto Israel tinha a fazer era obedecer— não tinha que arguir,
raciocinar nem discutir, mas obedecer!
Mas, ah, eles caíram, como sabemos! Fizeram a sua própria vontade; seguiram o
seu próprio caminho, "cada qual fazia o que parecia reto aos seus olhos".
Desviaram-se da Palavra de Deus e seguiram as imaginações e projetos dos seus
corações pecaminosos, e atraíram sobre si mesmos a ira e indignação da Deidade
ofendida, sob a qual sofrem até este dia, e sofrerão ainda tribulação sem exemplo.
Porém, tudo isto deixa intato o ponto sobre o qual estamos falando. Israel tinha os
oráculos de Deus; e estes oráculos eram divinamente suficientes para sua
orientação em tudo. Não restava lugar para os mandamentos e doutrinas dos
homens. A Palavra dos Senhor provia a todas as exigências possíveis, e essa Palavra
era suficientemente clara para tornar desnecessário todo o comentário humano.
Está a Igreja de Deus em piores condições a respeito de orientações e autoridade
que o antigo Israel? Os cristãos têm de pensar e de se orientarem por si mesmos no
culto e serviço de Deus? Há algumas questões em aberto para discussão humana? A
Palavra de Deus é suficiente ou não? Deixou de prover alguma coisa? Atendamos
diligentemente ao seguinte poderoso testemunho: "Toda Escritura divinamente
inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em
justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para
toda boa obra" (2 Tm 3:16-17).
Isto é concludente. A Sagrada Escritura contém tudo que o homem de Deus pode
necessitar para o fazer perfeito, para o habilitar inteiramente para tudo que pode
ser chamado "uma boa obra". E se isto é verdadeiro quanto ao homem de Deus
individualmente, é igualmente verdadeiro quanto à Igreja de Deus coletivamente.
A Escritura é suficiente para cada um: para todos. Graças a Deus que é assim! Que
notável mercê ter um livro divino por guia! Se não fosse assim, que faríamos? Para
onde nos voltaríamos? Que seria de nós? Se fôssemos deixados às tradições
humanas e aos preparativos humanos nas coisas de Deus, que confusão
desesperada! Que opiniões discordantes! E tudo isto necessariamente porquanto
um homem teria tanto direito como outro a dar a sua opinião e propor o seu plano.
Dir-nos-ão talvez que, apesar de estarmos de posse da Escritura Sagrada, temos,
contudo, seitas, partidos, credos, e escolas de pensamento quase inumeráveis. Mas
por que é isto assim? Simplesmente porque recusamos submeter todo o nosso ser
moral à autoridade da Sagrada Escritura. Este é o verdadeiro segredo do assunto —
a verdadeira origem dessas seitas e partidos que são a vergonha e tristeza da Igreja
de Deus.
É inútil que os homens nos digam que estas coisas são boas em si mesmas; são o
legítimo fruto do livre exercício de pensamento e juízo privado que formam a
própria jactância e glória da cristandade protestante. Nós não cremos e não
podemos crer, nem por um momento, que um tal argumento seja admitido ante o
tribunal de Cristo. Pelo contrário, cremos que esta tão alardeada liberdade de
pensamento e independência de critério estão em direta oposição com aquele
espírito de profunda e reverente obediência que é devido ao nosso adorável Senhor
e Mestre. Que direito tem um servo de exercer o seu juízo particular ante a
vontade terminantemente expressa do seu Senhor«? Absolutamente nenhum. O
dever de um servo é simplesmente obedecer, não raciocinar ou discutir; mas fazer
o que se lhe manda. Cai em falta como servo precisamente na medida em que
exerce o seu próprio juízo particular. A característica mais agradável do caráter de
um servo é a obediência implícita e indiscutível. O grande dever de um servo é
fazer a vontade do seu senhor.
Tudo isto se admite inteiramente nos negócios humanos; mas, nas coisas de Deus,
os homens julgam-se autorizados a exercer o seu juízo particular. É um erro fatal.
Deus deu-nos a Sua Palavra; e essa Palavra é tão clara que os homens que passam,
embora loucos, não necessitam de errar nela. Por isso, se todos fôssemos guiados
por essa Palavra, se todos nos inclinássemos com espírito de absoluta obediência à
sua autoridade divina, não poderia haver opiniões contraditórias e seitas opostas. É
inteiramente impossível que a voz da Sagrada Escritura possa ensinar doutrinas
opostas. Ela não pode, de modo algum, ensinar a um homem a doutrina episcopal,
a outro a presbiteriana, e a independente. Não pode, de modo nenhum,
proporcionar uma base para escolas opostas de pensamento. Seria um insulto
positivo contra o volume divino pretender atribuir-lhe toda a triste confusão da
igreja professante. Toda a mente piedosa retrocederá com justificado horror ante
um tão ímpio pensamento. A Escritura não pode contradizer-se a si mesma, e
portanto se dois homens ou dez mil são exclusivamente ensinados pela Escritura
pensarão da mesma maneira.
Ouçamos o que o bendito apóstolo diz à igreja de Corinto — o que nos diz a nós:
"Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo — note-se a
poderosa força moral deste apelo — que digais todos uma mesma coisa e que não
haja entre vós dissensões; antes, sejais unidos, em um mesmo sentido e em um
mesmo parecer" (I Co 1:10).
Ora, a questão é: como deveria ser alcançado este bendito resultado? Era acaso
exercendo cada um o direito de juízo privado? Ah, foi precisamente isto que deu
origem a todas as divisões e contendas na assembleia de Corinto e motivou a forte
reprimenda do Espírito Santo! Aqueles infelizes Coríntios pensavam que tinham o
direito de pensar e julgar e escolher por si mesmos, e qual foi o resultado? "Porque
a respeito de vós, irmãos meus, me foi comunicado pelos da família de Cloe que há
contendas entre vós. Quero dizer, com isso, que cada um de vós diz: Eu sou de
Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo. Está Cristo dividido?-"
Aqui temos o juízo privado e o seu triste fruto — o seu fruto inevitável. Um
homem tem tanto direito a pensar por si mesmo como outro; e nenhum homem
tem direito algum de impor a sua opinião a outro. Onde está pois o remédio? Em
arrojar ao vento o nosso juízo privado e nos submetermos reverentemente à
autoridade suprema e absoluta da Sagrada Escritura. Se assim não fosse, como
podia o apóstolo rogar aos Coríntios "que digais todos uma mesma coisa ... antes,
sejais unidos em um mesmo sentido e em um mesmo parecer" Quem devia
prescrever "a mesma coisa" que todos deviam dizer? Em cujo "parecer" ou "sentido"
deviam estar "unidos"1? Tinha algum membro da assembleia, por mais dotado ou
inteligente, a mais pequena sombra de direito para apresentar o que os irmãos
deviam falar, pensar ou julgar? Certamente que não. Havia uma autoridade
absoluta, porque era divina, a que todos tinham de submeter-se, ou antes, à qual
todos tinham o privilégio de se submeterem. As opiniões humanas, o próprio
critério do homem, a sua consciência a sua razão, todas estas coisas devem
apreciar-se pelo que valem; e, com toda a certeza, são perfeitamente inúteis como
autoridade. A Palavra de Deus é a única autoridade, e se todos formos governados
por ela diremos todos a mesma coisa e não haverá entre nós divisões; mas "seremos
unidos em um mesmo sentido e em um mesmo parecer."
Formosa situação! Mas não é, infelizmente, a situação atual da Igreja de Deus; e
portanto é perfeitamente claro que não estamos todos governados pela única
suprema, absoluta e toda suficiente autoridade — a voz da Sagrada Escritura —
essa bendita voz que não pode nunca proferir uma nota discordante —, uma voz
sempre divinamente harmoniosa para todo o ouvido circuncidado.
Nisto está a raiz de toda a questão. A igreja tem-se separado da autoridade de
Cristo, como está exposta na Sua Palavra. Até que isto seja visto, é apenas perder
tempo discutir as pretensões dos sistemas eclesiásticos ou teológicos em conflito.
Se um homem não compreende que é seu dever sagrado comprovar pela Palavra de
Deus todo o sistema eclesiástico, todo o serviço litúrgico e todo o credo teológico, a
discussão é inteiramente inútil. Se é permitido resolver as coisas segundo a
conveniência, segundo o parecer do homem, a sua consciência ou a sua razão,
então podemos realmente abandonar o caso como irremediável. Se não é
estabelecida uma autoridade divina, uma norma perfeita, um guia infalível, não
podemos ver como seja possível alguém ter a certeza de que segue o verdadeiro
caminho. Se na realidade e verdade que podemos escolher por nós próprios, entre
as quase inumeráveis sendas que estão diante de nós, então podemos dizer adeus a
toda a certeza; dizer adeus à paz de espírito e repouso do coração; adeus a toda a
santa estabilidade de proposto e firmeza de alvo. Se não podemos dizer do terreno
que ocupamos, da senda que seguimos, e da obra em que estamos ocupados isto é o
que o Senhor ordenou, podemos estar certos de que estamos numa situação errada
e, quanto mais depressa a abandonarmos, tanto melhor.

A Voz de Cristo
Graças a Deus, não há nenhuma necessidade para os Seus filhos nem para os Seus
servos de continuarem, nem mais uma hora, em ligação com o que é mau.
"Qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade." Mas como
havemos de saber o que é iniquidade? Pela Palavra de Deus. Qualquer coisa que for
contrária à Escritura, em moral ou em doutrina, é iniquidade, e eu devo
separar-me dela, custe o que custar. É um assunto individual. "Todo aquele que".
"Quem tem ouvidos". "Ao que vencer". "Se alguém ouvir a minha voz".
Eis o ponto. Notemo-lo bem. E a voz de Cristo. Não é a voz deste ou daquele bom
homem; não é a voz da igreja, a voz dos pais, a voz dos concílios gerais, mas a voz
de nosso amado Senhor e Mestre. E a consciência individual em contato direto
com a voz de Cristo, a Palavra de Deus viva e eterna — as Sagradas Escrituras. Se
fosse meramente uma questão de consciência humana, ou de critério ou de
autoridade, seríamos imediatamente submergidos em desesperada incerteza, visto
que um homem poderia considerar ser iniquidade, outro poderia considerá-lo
perfeitamente reto. Deve haver um padrão fixo para se seguir, uma autoridade
suprema da qual não pode haver apelo; e, bendito seja Deus, este padrão existe.
Deus tem falado; tem-nos dado a Sua Palavra; e é ao mesmo tempo o nosso dever, o
nosso elevado privilégio, nossa segurança moral e nosso verdadeiro gozo obedecer
a essa Palavra.
Não quero dizer à interpretação humana da Palavra, mas à própria Palavra. Isto é
muito importante. Não devemos ter absolutamente nada entre a consciência
humana e a revelação divina. Os homens falam-nos sobre a autoridade da igreja.
Onde devemos encontrá-la? Suponhamos uma alma realmente ansiosa, honesta,
sincera, que deseja conhecer o verdadeiro caminho. É-lhe dito para escutar a voz
da igreja. Ele pergunta, que igreja? E a grega, a latina, a anglicana ou a igreja
escocesa?- Não consegue duas respostas concordes. Ainda mais; há partidos em
conflito, seitas em contenda, escolas de pensamento oposto em uma e mesma
denominação. Os concílios têm diferido uns dos outros; os pais não têm sido de
acordo; os papas têm-se excomungado uns aos outros. No sistema anglicano temos
a igreja alta, a igreja humilde e a igreja liberal, cada uma fazendo diferença das
outras. Na igreja escocesa ou presbiteriana, temos a igreja escocesa, a presbiteriana
unida e a igreja livre. E em seguida se o investigador ansioso deixa esses grandes
corpos denominacionais em desesperada perplexidade a fim de orientação nas
fileiras dos protestantes dissidentes, encontra porventura alguma coisa melhor?
Ah, prezado leitor, é completamente inútil! A igreja professante no seu conjunto
tem-se insurgido contra a autoridade de Cristo, e não pode de modo algum ser guia
ou autoridade para ninguém. No segundo e terceiro capítulos do livro de
Apocalipse, a igreja é encarada sob o juízo, e o apelo, repetido sete vezes, é: "Quem
tem ouvidos, ouça" — o quê?- A voz da igreja?- Impossível! O Senhor nunca nos
mandará ouvir a voz do que está sob o juízo. Então, ouvir o quê>? "Ouça o que o
Espírito diz às igrejas."
E onde pode ser ouvida esta voz"? Unicamente nas Sagradas Escrituras, dadas por
Deus, em Sua infinita bondade, para guiar as nossas almas no caminho da paz e
verdade, não obstante a ruína desesperada da igreja, e as trevas espessas e
turbulenta confusão da cristandade professante. Não cabe nos limites da
linguagem humana mostrar o valor e a importância de contar com um guia divino
e portanto infalível e suficiente para a nossa carreira individual.
Mas note-se que nós estamos solenemente obrigados a nos inclinarmos a essa
autoridade e a seguir esse guia. É inteiramente inútil e na verdade moralmente
perigoso professar que temos um guia e uma autoridade divinos e não lhes
estarmos inteiramente sujeitos. Era isto que caracterizava os judeus nos dias de
nosso Senhor. Tinham as Escrituras, mas não as obedeciam. E um dos
característicos mais tristes na atual situação da cristandade e vangloriar-se da
possessão da Bíblia, enquanto que a autoridade dessa Bíblia é descaradamente
posta de lado.
Sentimos profundamente a gravidade deste fato e desejamos sinceramente
gravá-lo na consciência do leitor cristão. A Palavra de Deus é virtualmente
ignorada entre nós. São praticadas e sancionadas coisas por toda a parte, que não
somente não têm fundamento algum na Escritura, mas estão diametralmente
opostas a ela. Não somos exclusivamente ensinados nem absolutamente
governados pela Escritura.
Tudo isto é muito grave e exige a atenção de todo o povo do Senhor, em toda a
parte. Sentimo-nos compelidos a formular uma advertência aos ouvidos de todos
os cristãos, a respeito desta grave questão. De fato, é o sentido da sua gravidade e a
sua vasta importância moral que nos levou a empreender a obra de escrever
"Estudos sobre o Livro de Deuteronômio". A nossa fervorosa oração é que o
Espírito Santo possa usar estas páginas para trazer de novo os corações do amado
povo do Senhor ao seu verdadeiro e próprio lugar, ou seja o lugar de reverente
fidelidade à Sua bendita Palavra. Estamos persuadidos de que o que caracterizará
todos os que quiserem andar piamente, nas horas finais da história terrestre da
Igreja, será uma piedosa reverência à Palavra de Deus e uma verdadeira adesão à
Pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. As duas coisas estão
inseparavelmente unidas por um elo sagrado e imperecível.

"Voltai-vos e parti"
"O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis
estado neste monte. Voltai-vos e parti; ide à montanha dos amorreus, e a todos os
seus vizinhos e à planície, e à montanha, e ao vale, e ao Sul, e à ribeira do mar; à
terra dos cananeus, e ao Líbano, até ao grande rio, o rio Eufrates" (versículos 6 e 7).
Através de todo o livro de Deuteronômio poderemos ver que o Senhor trata muito
mais direta e simplesmente com o povo do que em qualquer dos três livros
precedentes; tão longe está de ser verdade que o Deuteronômio é uma mera
repetição do que temos tido diante de nós nos quatro volumes precedentes. Por
exemplo, na passagem que acabamos de citar não é mencionado o movimento da
nuvem; não se refere o sonido da trombeta. "O SENHOR, nosso Deus, nos falou."
Sabemos, pelo livro de Números que os movimentos do acampamento estavam
condicionados pelos movimentos da nuvem, comunicados pelo sonido da
trombeta. Mas neste livro não se faz alusão nem à nuvem nem à trombeta. É muito
mais simples e familiar. "O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo:
Tempo bastante haveis estado neste monte."
Como tudo isto é formoso! Nos recorda um pouco da amável simplicidade dos
tempos patriarcais, quando o Senhor falava aos pais como um homem fala ao seu
amigo. Não era pelo sonido de uma trombeta ou pelo movimento de uma nuvem
que o Senhor comunicava os Seus pensamentos a Abraão, Isaque e Jacó. Estava tão
perto deles que não havia necessidade nem lugar para a intervenção de agentes
caracterizados por cerimônia e a distância. Visitava-os, sentava-Se com eles,
participava da sua hospitalidade em toda a intimidade da amizade pessoal.
Tal é a encantadora simplicidade da ordem de coisas nos tempos patriarcais; e é isto
que confere um encanto especial às narrativas do livro de Gênesis.
Mas em Êxodo, Levítico e Números temos uma coisa muito diferente. Neles
expõe-se perante nós um vasto sistema de símbolos e sombras, ritos, ordenações e
cerimônias impostas ao povo naquele tempo, cujo significado nos é apresentado na
epístola aos Hebreus. "Dando nisto a entender o Espírito Santo que ainda o
caminho do Santuário não estava descoberto, enquanto se conservava em pé o
primeiro tabernáculo, que é uma alegoria para o tempo presente, em que se
oferecem dons e sacrifícios que, quanto à consciência, não podem aperfeiçoar
aquele que faz o serviço, consistindo somente em manjares, e bebidas, e várias
abluções e justificações da carne, impostas até ao tempo da correção" (Hb 9:8 a 10).
Debaixo deste sistema, o povo estava a uma certa distância d Deus. Não acontecia
com eles o mesmo que havia sido com seus pais, no livro de Gênesis. Deus estava
recolhido para eles; e eles permaneciam fora. As principais características do
cerimonial levítico, no que dizia respeito ao povo, eram servidão, trevas e
afastamento. Mas, por outro lado, os seus tipos e sombras indicavam aquele grande
sacrifício que é o fundamento de todos os maravilhosos desígnios e propósitos de
Deus, e mediante o qual pode, com perfeita justiça, e de acordo com o amor do Seu
coração, ter um povo perto de Si, para louvor da glória da Sua graça, por todos os
séculos áureos da eternidade.
Já fizemos notar que encontramos comparativamente muito pouco acerca de ritos
e cerimônias no livro de Deuteronômio. O Senhor é visto mais em direta
comunicação com o povo; e até mesmo os sacerdotes, no seu cargo oficial, raras
vezes aparecem perante nós; e se são mencionados é mais propriamente de um
modo moral e não cerimonial. Teremos amplas provas disto no decorrer dos nossos
comentários: é uma característica notável deste formoso livro.
"O SENHOR, nosso Deus, nos falou em Horebe, dizendo: Tempo bastante haveis
estado neste monte. Voltai-vos e parti e ide à montanha os amorreus." Que raro
privilégio para qualquer povo, ter o Senhor tão perto de si e tão interessado em
todos os seus movimentos e em tudo quanto lhes interessa, seja pequeno ou
grande! O Senhor sabia quanto tempo eles deveriam permanecer em um lugar
determinado e para onde deveriam em seguida dirigir os seus passos. Não tinham
necessidade de se preocupar com as suas jornadas, ou de qualquer coisa mais.
Estavam sob o olhar e nas mãos d'Aquele cuja sabedoria era infalível, cujo poder
era onipotente, cujos recursos eram inesgotáveis, cujo amor era infinito, que havia
tomado a Seu cargo cuidar deles, que conhecia todas as suas necessidades e estava
pronto a satisfazê-las, segundo todo o amor do Seu coração e a força do Seu santo
braço.
O que restava, portanto, podemos perguntar, para eles fazerem? Qual era o seu
dever simples e claro?- Apenas obedecer. Era seu elevado e santo privilégio
descansar no amor e obedecer aos mandamentos do Senhor, seu Deus do concerto.
Nisto estava o segredo bendito da sua paz, a sua felicidade e a sua segurança moral.
Não tinham nenhuma necessidade para se preocuparem com os seus movimentos
nem de fazerem projetos ou arranjos. As suas jornadas eram todas ordenadas por
Um que conhecia cada passo do caminho desde Horebe a Cades-Barnéia; e eles
tinham apenas de viver dia a dia em feliz dependência d'Ele.
Ditosa posição! Senda privilegiada! Sorte feliz! Mas isto exigia uma vontade
quebrantada — um espírito obediente — um coração submisso. Se, quando o
Senhor havia dito: "Tempo bastante haveis estado neste monte", eles, pelo
contrário, tivessem formado o propósito de o percorrer algum tempo mais, teriam
de o percorrer sem Ele. Só podiam contar com a Sua companhia, o Seu conselho e o
Seu auxílio no caminho da obediência.
Assim acontecia com Israel nas suas peregrinações pelo deserto, e assim acontece
conosco. É nosso precioso privilégio deixar todos os nossos assuntos não
meramente nas mãos do Deus do concerto, mas nas mãos de um Pai amantíssimo.
Ele arranja os nossos movimentos; determina os limites da nossa habitação; diz-nos
quanto tempo devemos permanecer num lugar e aonde devemos ir em seguida.
Tem tomado à Sua conta tudo quanto nos diz respeito, todos os nossos movimentos
e todas as nossas necessidades. A Sua graciosa Palavra diz-nos: "Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes, as vossas petições sejam em tudo conhecidas
diante de Deus, pela oração e súplicas, com ações de graças." E depois«?- "E a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos
sentimentos em Cristo Jesus" (Fp 4:6-7).

De que Maneira Deus Hoje Guia o Seu Povo?


Mas talvez o leitor se sinta disposto a perguntar: De que maneira guia Deus agora o
Seu povo? Não podemos esperar ouvir a voz dizendo-nos quando nos devemos
movimentar ou aonde devemos ir. A isto respondemos prontamente dizendo que
não pode ser que os membros da Igreja de Deus, o corpo de Cristo, estejam em
piores condições, quanto ao assunto de direção divina, do que Israel no deserto.
Não pode Deus guiar os Seus filhos—não pode Cristo guiar os Seus servos em todos
os seus movimentos e em todo o seu serviço?- Quem poderá, ainda que por um só
momento, pôr em dúvida uma verdade tão clara e preciosa? Decerto, não
esperamos ouvir uma voz ou ver o movimento de uma nuvem; mas temos o que é
muito melhor, muito mais elevado, muito mais íntimo. Podemos estar certos de
que o nosso Deus tem feito ampla provisão a este respeito para nós, como em tudo
o mais, segundo o grande amor de Seu coração.
Pois bem, há três maneiras de sermos guiados: somos guiados pela Palavra de Deus;
somos guiados pelo Espírito Santo; e somos guiados pelos instintos da natureza
divina. E devemos recordar que os instintos da natureza divina, a direção do
Espírito Santo e o ensino da Sagrada Escritura estão sempre em harmonia. E da
maior importância termos isto sempre diante de nós. Uma pessoa podia imaginar
que era guiada pelos instintos da natureza divina ou pelo Espírito Santo ao
prosseguir certa linha de ação que envolve consequências em contradição com a
Palavra de Deus. Desta forma o seu equívoco torna-se aparente. E uma cosia muito
grave para qualquer pessoa atuar por simples impulso ou impressão. Atuando
assim, expõe-se a cair numa cilada do diabo e a causar sério prejuízo à causa de
Cristo. Devemos pesar com toda a calma as nossas impressões nas balanças do
santuário, e pô-las fielmente à prova pelo padrão da Palavra divina. Desta forma
seremos guardados do erro e do engano. E muito perigoso confiar nas impressões
ou agir por impulso. Havemos visto as mais desastrosas consequências produzidas
por assim se atuar. Os fatos podem ser dignos de confiança. A autoridade divina é
absolutamente infalível. As nossas impressões podem ser tão enganosas como um
fogo- fátuo ou a miragem do deserto. Os sentimentos humanos não são dignos de
confiança. Devemos submetê-los sempre ao mais rigoroso exame, a fim de que não
nos induzam a uma falsa linha de ação que nos seria fatal. Podemos confiar na
Escritura sem uma sombra de dúvida; e descobriremos que, sem exceção, o homem
que é guiado pelo Espírito Santo, ou guiado pelos instintos da natureza divina,
nunca atua em oposição à Palavra de Deus. Isto é o que podemos chamar um
axioma na vida divina uma regra estabelecida no cristianismo prático. Ah, se se
houvesse dado mais atenção a isto em todas as épocas da história da igreja! Oxalá
seja mais ponderado nos nossos dias!
Mas há outro ponto, nesta questão de direção divina, que reclama a mais séria
atenção. Ouvimos frequentemente pessoas que falam do "dedo da divina
providência" como de alguma coisa digna de confiança para serem guiadas. Isto
pode ser apenas outro modo de expressar a ideia de serem guiadas pelas
circunstâncias, que, não hesitamos em dizer, está muito longe, com efeito, de ser a
própria espécie de direção para um cristão.
Sem dúvida, nosso Senhor pode, e em certos casos o faz, dar- nos a entender o Seu
pensamento e indicar-nos a nossa senda em Sua providência; mas temos de estar
suficientemente perto d'Ele para podermos interpretar acertadamente essa
providência, de contrário, pode dar-se o caso de o que se chama "uma
oportunidade da providência" se converter em realidade numa abertura por onde
escapamos do caminho da obediência. Tanto as circunstâncias que nos rodeiam
como as nossas impressões íntimas devem ser ponderadas na presença de Deus e
avaliadas à luz da Sua Palavra, de contrário podem levar-nos a cometer os mais
graves erros. Jonas podia ter imaginado que era notável circunstancia da
providência encontrar um barco que ia para Társis, mas se tivesse estado em
comunhão com Deus, nunca teria necessidade de um barco. Em suma, a Palavra de
Deus é a grande regra e a perfeita pedra de toque para tudo — para as
circunstâncias externas e impressões íntimas — para os sentimentos, as
imaginações e tendências — tudo deve ser posto sob a luz esquadrinhadora da
Sagrada Escritura a ali julgado calma e seriamente. Esta é a verdadeira senda de
segurança, paz e bem- aventurança para todo o filho de Deus.
Pode, contudo, dizer-se, em resposta a tudo isto, que nós não podemos esperar
encontrar um texto da Escritura para nos guiar no assunto das nossas ações ou nos
mil pormenores da vida diária. Talvez não; mas há certos princípios importantes
expostos na Escritura que, se forem devidamente aplicados, nos proporcionarão
direção divina, até mesmo quando não podermos encontrar um texto aplicável a
cada caso particular. E não apenas isto, mas temos a mais completa certeza de que o
nosso Deus pode guiar e guia os Seus filhos em todas as coisas. "Os passos de um
homem bom são confirmados pelo SENHOR." Guiará os mansos retamente; e aos
mansos ensinará o seu caminho." "Guiar-te-ei com os meus olhos". Ele pode
dar-nos a conhecer os Seus pensamentos sobre este ou aquele ato particular ou
sobre a nossa conduta. Se não é assim, onde estamos? Como podemos continuará
Como vamos regular os nossos movimentos"? Vamos ser levados de cá para lá pela
onda das circunstâncias? Ficamos à mercê da cega casualidade ou ao simples
impulso da nossa própria vontade?
Graças a Deus, não é assim. Ele pode, em Sua perfeita maneira, dar-nos a certeza do
Seu pensamento sobre todo o caso que se apresenta; e sem certeza não devemos dar
um passo. Nosso Senhor Jesus Cristo — honra seja ao Seu nome incomparável para
todo o sempre! — pode indicar o Seu pensamento a um servo Seu para que vá
aonde Ele quer e faça o que Ele quer que ele faça; e nenhum verdadeiro servo
pensará jamais em agir ou atuar sem essa indicação. Se não estamos certos dessa
indicação, esperemos antes de agir. Acontece muitas vezes que nos cansamos e
impacientamos com tarefas que Deus de nenhum modo nos tem confiado. Alguém
disse certa ocasião a um amigo: "Estou completamente desorientado sobre o
caminho que devo tomar." "Então não tomes nenhum", foi a reposta sensata
daquele amigo.

Andemos na Direção Indicada


Porém, aqui apresenta-se um ponto moral de absoluta importância, isto é, o estado
da nossa alma. Isto, podemos ficar certos, tem muito que ver com a questão de
direção. E aos mansos que
Ele guiará retamente e ensinará o seu caminho. Não devemos nunca esquecer isto.
Se formos fiéis e não confiarmos em nós mesmos; se esperarmos em Deus, em
simplicidade de coração, retidão de pensamento e propósitos honestos, Ele nos
guiará, sem dúvida alguma. Mas de nada servirá pedir o conselho de Deus sobre
um assunto em que já estamos decididos ou a nossa vontade está em ação.
Isto é uma fatal ilusão. Vejamos o caso de Josafá em 1 Reis 22. "Porém, no terceiro
ano, sucedeu que Josafá, rei de Judá, desceu para o rei de Israel" — um triste erro,
para começar — "e o rei de Israel disse aos seus servos: Não sabeis vós que
Ramote-Gileade é nossa, e nós estamos quietos, sem a tomar da mão do rei da Síria?
Então disse a Josafá: Irás tu comigo à peleja a Ramote-Gileade? E disse Josafá ao rei
de Israel: Serei como tu és, e o meu povo, como o teu povo, e os meus cavalos,
como os teus cavalos" e, como vemos em 2 Crônicas 18:3, "seremos contigo nesta
guerra."
Aqui vemos que Josafá tinha já decidido o seu propósito antes de ter pensado pedir
o conselho de Deus sobre o assunto. Estava numa falsa posição e numa atmosfera
absolutamente má. Tinha caído nas ciladas do inimigo por falta de sinceridade, e
por isso não estava num estado próprio para receber ou aproveitar da direção
divina. Estava inclinado à sua própria vontade e o Senhor deixou que ele
recolhesse o fruto dela; e não fora a infinita e soberana misericórdia de Deus, e ele
teria caído à espada dos sírios e sido levado cadáver do campo de batalha.
E verdade que ele disse ao rei de Israel: "Consulta, porém, hoje a palavra do
SENHOR." Mas de que serviria isto, quando ele já se havia comprometido a atuar
de um modo determinado? Que loucura revela todo aquele que forma um
propósito definido e então vai pedir o conselho do Senhor! Tivesse Josafá estado
reto e alma, e nunca teria procurado conselho num tal caso. Mas o estado da sua
alma era mau, a sua posição falsa e o seu propósito estava em direta oposição com o
pensamento e a vontade de Deus. Por isso, embora ouvisse dos lábios do
mensageiro do Senhor o Seu solene juízo contra aquela expedição, seguiu o seu
próprio caminho e como consequência por pouco ia perdendo a vida.
Vemos a mesma coisa no capítulo 42 de Jeremias. O povo dirigiu-se ao profeta
pedindo conselho quanto à sua intenção de descerem ao Egito. Mas já haviam
resolvido o assunto. Estavam decididos a fazer a sua própria vontade. Miserável
estado! Tivessem eles sido mansos e humildes e não teriam necessidade de pedir
conselho sobre o assunto. Mas eles disseram ao profeta Jeremias: "Caia agora a
nossa súplica diante de ti, e roga por nós ao SENHOR, teu Deus" — porque não
dizer, o Senhor nosso Deus?- — "por todo este resto; porque de muitos restamos
uns poucos, como veem os teus olhos; para que o SENHOR, teu Deus, nos ensine o
caminho por onde havemos de andar e aquilo que havemos de fazer. E disse-lhes
Jeremias, o profeta: Eu vos ouvi; eis que orarei ao SENHOR, VOSSO Deus,
conforme as vossas palavras; e seja o que for que o SENHOR VOS responder, eu
vo-lo declararei; não vos ocultarei nada. Então, eles disseram a Jeremias: Seja o
SENHOR entre nós testemunha da verdade e fidelidade, se não fizermos conforme
toda a palavra com que te enviar a nós o SENHOR, teu Deus. Seja ela boa, ou seja
má" — como poderia a vontade de Deus ser alguma coisa que não fosse boa? — "à
voz do SENHOR nosso Deus, a quem te enviamos, obedeceremos, para que nos
suceda bem, obedecendo à voz do SENHOR, nosso Deus."
Ora tudo isto parecia muito piedoso e prometedor. Mas note- se a sequência.
Quando descobriram que o juízo e conselho de Deus não estavam de acordo com a
sua própria vontade, "Então, falou Azarias... e todos os homens soberbos, dizendo a
Jeremias: Tu dizes mentiras; o SENHOR, nosso Deus, não te enviou a dizer: Não
entreis no Egito, para lá peregrinardes."
Aqui o estado verdadeiro do caso vem claramente à luz. O orgulho e a obstinação
estavam em atividades. Os seus votos e promessas eram falsos. "...Enganastes a
vossa alma", diz Jeremias, "pois me enviastes ao SENHOR, VOSSO Deus, dizendo:
Ora por nós ao SENHOR, nosso Deus; e, conforme a tudo que disser o SENHOR,
Deus nosso, declara-no-lo assim, e o faremos." Tudo teria sido muito bem, se a
resposta divina tivesse correspondido à sua vontade sobre o assunto; mas, visto que
ia contra ela, rejeitaram-
na por completo.
Quantas vezes é este o caso! A Palavra de Deus não agrada aos pensamentos do
homem; julga-os; está em oposição direta à sua vontade; choca-se com os seus
planos e por isso ele rejeita-a. A vontade humana e a razão humana estão sempre
em direto antagonismo com a Palavra de Deus; e o cristão deve rejeitar tanto uma
como a outra, se deseja realmente ser divinamente guiado.
Uma vontade insubmissa e uma razão cega, se lhes prestamos atenção, só nos
podem conduzir às travas, miséria e desolação. Jonas queria ir para Társis, quando
deveria ter ido para Nínive; e a consequência foi que se encontrou "no ventre do
inferno", e "as algas se enrolaram na sua cabeça". Josafá quis ir a Ramote-Gileade
quando deveria ter estado em Jerusalém; e o resultado foi encontrar-se rodeado
pelas espadas dos sírios. O remanescente, nos dias de Jeremias, queria ir para o
Egito, quando deveria ter permanecido em Jerusalém, e o resultado foi eles
morrerem à espada, pela fome e pela peste na terra do Egito, onde desejavam
"entrar para lá peregrinar".
Assim terá de ser sempre. A vereda da obstinação há de ser forçosamente uma
senda de trevas e miséria. Não pode ser de outra maneira. Pelo contrário, a vereda
de obediência é uma senda de paz, de luz e de bênção, um caminho em que os raios
do favor divino são sempre projetados em vivo resplendor. Pode parecer à vista
humana estreito, áspero e solitário; mas a alma obediente acha que é o caminho da
vida, paz e segurança moral.
A vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia
perfeito." Bendita vereda! Que o autor e o leitor destas páginas sejam sempre
achados trilhando-a, com pé firme e propósito sincero!
Antes de deixar este grande tema prático de direção divina e obediência humana,
devemos rogar ao leitor para referir, por uns momentos, uma belíssima passagem
do capítulo 11 de Lucas.
"A candeia do corpo é o olho, sendo pois, o teu olho simples, também todo o teu
corpo será luminoso; mas, se for mau, também o teu corpo será tenebroso. Vê, pois,
que a luz que em ti há não sejam trevas. Se, pois, todo o teu corpo é luminoso, não
tendo em trevas parte alguma, todo será luminoso, como quando a candeia te
alumia com o seu resplandor" (versículos 34 a 36).
Nada pode exceder a força moral e a beleza desta passagem. Antes de tudo, temos o
"olho simples". Isto é essencial para gozar a direção divina. Indica uma vontade
quebrantada — um coração honestamente decidido a fazer a vontade de Deus. Não
interesses ocultos, motivos diversos, nem afins pessoais em vista. Existe o único e
simples desejo e sincero propósito de fazer a vontade e Deus, seja qual for essa
vontade.
Quando a alma está nesta atitude, a luz divina desce em caudal e enche
completamente o corpo. Por isso segue-se que se o corpo não está cheio da luz, o
olho não é simples; existem vários motivos; a obstinação ou o interesse próprio está
agindo; não somos retos perante Deus. Neste caso, qualquer luz que professamos é
trevas; e não há trevas mais densas ou terríveis como as trevas judiciais que se
apoderam do coração que é governado pela obstinação enquanto professa ter luz
de Deus. Isto será visto em breve na cristandade, quando "Então, será revelado o
iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca e aniquilará pelo
esplendor da sua vinda; a esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo
o poder, e sinais, e prodígios de mentira, e com todo engano da injustiça para os
que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem. E, por
isso, Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira, para que
sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes, tiveram prazer na
iniquidade" (2 Ts 2:8-12).
Como isto é terrível! Quão solenemente fala a toda a igreja professante! E quão
solenemente se dirige à consciência tanto do autor como do leitor destas linhas! A
luz que não produz efeito converte-se em trevas. "Se a luz que em ti há são trevas,
quão grandes serão tais trevas!" Mas por outro lado uma pequena luz seguida
honestamente é certo crescer; "porque ao que tem ser-lhe-á dado"; e "...a vereda
dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia
perfeito."
Este progresso moral é descrito com toda a sua beleza e força em Lucas 11:36: "Se,
pois, todo o teu corpo é luminoso, não tendo em trevas parte alguma" — nenhum
aposento fechado aos raios celestiais, nenhuma reserva desonrosa, todo o ser moral
amplamente aberto, em verdadeira simplicidade à ação da luz divina, então, "todo
será luminoso, como quando a candeia te alumia com o seu resplandor." Em suma,
a alma obediente não somente tem luz para a sua própria vereda, mas a luz
resplandece, de forma que os outros a veem, como o esplendor de uma candeia.
"Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus."
Temos um vivo contraste com tudo isto em capítulo 13 de Jeremias. "Dai glória ao
SENHOR, VOSSO Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos
pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de
morte e a reduza à escuridão." A maneira de dar glória ao Senhor, nosso Deus, é
obedecer à Sua Palavra. A vereda do dever é uma vereda brilhante e bendita; e
aquele que, pela graça, trilha essa vereda não tropeçará nunca nas escuras
montanhas. Aquele que é verdadeiramente humilde, submisso e que não confia em
si próprio, manter-se-á a distância dessas montanhas de obscuridade e andará
nessa bendita vereda que está sempre iluminada pelos resplandecentes e alegres
raios do semblante de Deus, em sinal de aprovação.
Esta é a vereda do justo, a vereda da sabedoria celestial, a vereda de paz perfeita.
Possamos nós, prezado leitor, trilhar sempre esta vereda; e não esqueçamos nunca,
nem por um momento, que é o nosso elevado privilégio ser divinamente guiados
nos mais minuciosos pormenores da vida diária. Ai daquele que não é assim
guiado! Era muitos tropeços, muitas quedas, muitas tristes experiências. Se não
somos guiados pela vista do nosso Pai, seremos como o cavalo ou a mula que não
têm entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio — como o cavalo que se
arroja impetuosamente onde não deveria ou a mula que recusa obstinadamente ir
aonde deve ir. Como é triste que um cristão seja como eles! Quão bem- aventurada
coisa é andar, dia a dia, na vereda marcada para nós pelo olhar de nosso Pai, uma
vereda que os olhos do abutre não têm visto nem o leão tem trilhado, a vereda de
santa obediência, na qual os mansos e humildes se encontrarão sempre para seu
profundo gozo e louvor e glória d'Aquele que a abriu para eles e lhes dá graça para
a trilharem.

A Nomeação dos Chefes ou Juízes (Ex 18; Nm 11)


No que resta do nosso capítulo, Moisés repete aos ouvidos do povo, em linguagem
de comovedora simplicidade, os fatos relacionados com a nomeação dos juízes e a
missão dos espias. A nomeação dos juízes, Moisés atribui-a aqui à sua própria
iniciativa. A missão dos espias foi dada por sugestão do povo. Esse querido e muito
honrado servo de Deus achava pesado demais o cargo da congregação; e
certamente era um cargo muito pesado; ainda que sabemos bem que a graça de
Deus era demais suficiente para as exigências; e, além disso, que essa graça podia
agir tão bem por intermédio de um homem como por setenta.
Contudo, podemos compreender muito bem a dificuldade que sentiu "o homem
mais manso do que todos os homens que havia sobre a terra" quanto à
responsabilidade de um cargo tão sério e importante; e, decerto, a linguagem em
que ele concretiza a sua dificuldade é comovedora em alto grau. Achamos que é
nosso dever reproduzi-la para benefício do leitor:
"E, no mesmo tempo, eu vos falei, dizendo: Eu sozinho não poderei
levar-vos"—decerto que não podia; qual o simples mortal que podia fazê-lo?- Mas
Deus estava ali e podia contar-se com Ele para as exigências de todo o momento —
"O SENHOR vosso Deus já vos tem multiplicado; e eis que já hoje em multidão sois
como as estrelas dos céus. O SENHOR, Deus de vossos pais, vos aumente, como
sois, ainda mil vezes mais: e vos abençoe, como vos tem falado"! Formoso
parêntese! Excelente inspiração de um coração grande e humilde! — "Como
suportaria eu sozinho as vossas moléstias, e as vossas cargas, e as vossas diferenças
Ah, aqui está o segredo de grande parte do "embaraço" e da "carga"! Não podiam
estar de acordo entre si; havia controvérsias, contendas e questões; e quem era
suficiente para todas estas coisas? Que ombro humano podia suster um tal fardo?
Quão diferente podia ter sido tudo com eles! Andassem eles amorosamente juntos,
e não teria havido casos para decidir, e portanto nenhuma necessidade de juízos
para os julgar. Se cada membro da congregação houvesse buscado a prosperidade, o
interesse e a felicidade dos seus irmãos, não teria havido "contendas", "moléstias"
nem "cargas". Se cada um tivesse feito tudo que estava em si para promover o bem
geral, quão formoso teria sido o resultado!
Mas infelizmente não sucedeu assim com Israel no deserto; e, o que é ainda mais
humilhante, não sucede assim na Igreja de Deus, apesar de os nossos privilégios
serem muito mais elevados. Apenas tinha sido formada a assembleia pela presença
do Espírito Santo, e já se faziam ouvir os acentos de murmuração e
descontentamento. E sobre o quê? Sobre "o menosprezo", suposto ou verdadeiro. O
que quer que foi, o ego está em ação. Se o menosprezo era puramente imaginário,
os gregos eram dignos de censura; e se era verdadeiro, a censura devia cair sobre os
hebreus. Sucede geralmente, em tais casos, que há culpas de ambos os lados; mas o
verdadeiro meio é evitar toda a disputa, contenda e murmuração; e colocar o ego
no pó e procurar sinceramente o bem dos outros. Tivesse este excelente meio sido
compreendido e adotado, desde o princípio, quão diferente tarefa teriam os
historiadores eclesiásticos que executar! Mas, ah, não foi adotado, e por isso a
história da igreja professante, desde o princípio, tem sido um deplorável e
humilhante registro de controvérsias, divisões e utas! Na própria presença do
Senhor, cuja vida foi toda de própria negação, os apóstolos disputavam acerca de
qual deles seria o maior. Uma tal disputa não poderia ter sido suscitada, se cada um
tivesse conhecido o excelente segredo de pôr o ego no pó, e buscar os outros.
Ninguém que conhece alguma coisa da verdadeira elevação moral da renúncia
própria pode de modo algum procurar um lugar bom ou elevado par si mesmo. A
intimidade com Cristo satisfaz de tal modo o coração humilde que as honras, as
distinções e as recompensas são tidas em pouca conta. Mas se o ego está em ação,
haverá inveja e ciúme, disputas e contendas, confusão e toda a obra má.
Veja-se a cena entre os dois filhos de Zebedeu e os seus dez irmãos, no capítulo 10
de Marcos. Qual era o seu fundamento? O ego. Os dois pensavam num bom lugar
para si próprios no reino; e os dez estavam irritados contra os dois por pensarem
em tal coisa. Se cada um houvesse posto de lado o ego e procurado o bem dos
outros, uma tal cena nunca teria sido representada. Os dois nunca teriam pensado
em si mesmos, e por isso nunca teria havido motivo para a "indignação" dos dez.
Mas é desnecessário multiplicar os exemplos. Cada século de história da igreja
ilustra e prova a verdade da nossa afirmação de que o ego e os seus atos odiosos são
sempre a causa de lutas, contendas e divisões. Para onde quer que nos voltarmos,
desde os dias dos apóstolos até aos nossos dias, veremos que o ego não mortificado
é a origem frutífera de contendas e cismas. E, por outro lado, veremos que a
submissão do ego e dos seus interesses é o verdadeiro segredo de paz, harmonia e
amor fraternal. Se tão- -somente soubermos pôr o ego de lado e buscar
sinceramente a glória de Cristo e a prosperidade do Seu amado povo, não teremos
muitos casos para "resolver".

Devemos prosseguir agora com o nosso capítulo.


"Como [suportaria eu sozinho as vossas moléstias, e as vossas cargas, e as vossas
diferenças?- Tomai-vos homens sábios, inteligentes e experimentados, entre as
vossas tribos, para que os ponha por vossas cabaças. Então, vós me respondestes e
dissestes: Bom é de fazer a palavra que tens falado. Tomei, pois, os cabeças de
vossas tribos, homens sábios e experimentados" — homens preparados por Deus e
possuindo, porque tinham direito a isso, a confiança da congregação — "e os tenho
posto por cabeças sobre vós, por capitães de milhares, e por capitães de cem, e por
capitães de cinquenta, e por capitães de dez, e por governadores das vossas tribos."
Que admirável ordem! Se realmente tinha de ser estabelecida, nada podia ser tão
bem adaptado à manutenção da ordem como a escala graduada de autoridade,
variando desde o capitão de dez ao capitão de mil; com o próprio legislador à frente
de todos, e em imediata comunicação com o Senhor, Deus de Israel. Não se faz
alusão aqui ao fato registrado em Êxodo 18, a saber: que a nomeação destes juízes
foi feita por sugestão de Jetro, sogro de Moisés. Nem tampouco se faz qualquer
referência à cena em Números 11. Chamamos para isto a atenção do leitor como
uma das muitas provas que se acham através das páginas do Deuteronômio, o qual
está muito longe na verdade de ser uma mera repetição dos volumes precedentes
do Pentateuco. Em suma, este precioso livro tem um caráter propriamente seu, e o
modo como os fatos são apresentados está em perfeita harmonia com esse caráter.
É muito claro que o objetivo do venerável legislador, ou antes do Espírito Santo,
por intermédio dele, era gravar todas as coisas, de um modo moral, nos corações do
povo, a fim de produzir o grande resultado que é o objetivo especial deste livro,
desde o princípio ao fim, isto é, uma amorável obediência a todos os estatutos e
juízos do Senhor, seu Deus.
Devemos ter isto em vista, se quisermos estudar corretamente o livro que temos
diante de nós. Os infiéis, os cépticos e racionalistas podem impiamente sugerir-nos
a ideia de discrepâncias nos diversos relatos feitos nos vários livros; mas o leitor
piedoso rejeitará, com santa indignação, tais sugestões, sabendo que procedem
diretamente do pai da mentira, o decidido e persistente inimigo da preciosa
revelação de Deus. Esta é, estamos disso convencidos, a verdadeira maneira de
tratar todos os ataques íeis contra a Bíblia. Os argumentos são inúteis, visto que os
íeis não estão em situação de compreender ou apreciar o seu valor. São
profundamente ignorantes da matéria; e não é somente uma questão de profunda
ignorância, mas de decidida hostilidade, de forma que, em todos os casos, o juízo
de todos os autores infiéis sobre o assunto da inspiração divina é inteiramente
destituído de mérito e perfeitamente desprezível. Devemos lamentar esses homens
e orar por eles, ao mesmo tempo que desprezamos inteiramente e rejeitamos com
indignação as suas opiniões. A Palavra de Deus está inteiramente acima delas e fora
do seu alcance. É tão perfeita como o seu Autor e imperecível como o Seu trono;
mas as suas glórias morais, as suas profundidades viventes, e as suas infinitas
perfeições são somente patenteadas à fé. "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da
terra, que ocultasse estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos
pequeninos."
Se nos contentarmos em ser tão simples como uma criancinha, gozaremos a
preciosa revelação do amor do Pai, dada pelo Seu Espírito, nas Sagradas Escrituras.
Mas, por outro lado, aqueles que se julgam sábios e prudentes, que edificam sobre
os seus conhecimentos, a sua filosofia e a sua razão, que se julgam competentes
para se constituírem juízes da Palavra de Deus, e portanto do próprio Deus, são
entregues às trevas judiciais, cegueira e dureza de coração. Assim acontece que a
mais insigne loucura e a mais baixa ignorância, que o homem pode manifestar, são
encontradas nas páginas desses autores cultos que têm tido a ousadia de escrever
contra a Bíblia. "Onde está o sábio«? Onde está o escriba«? Onde está o inquiridor
deste século«?- Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto
como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria,
aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação" (I Co 1:20,21).
"Se alguém... se tem por sábio,... faça-se louco" (I Co 3:18). Eis aqui o grande
segredo moral do assunto. O homem tem de chegar ao fim da sua própria
sabedoria, bem como da sua própria justiça. Tem de ser levado a declarar-se a si
mesmo louco, antes de poder provar a doçura da sabedoria divina. Não está ao
alcance do mais gigantesco ser humano, auxiliado por todas as aplicações da
sabedoria humana e da filosofia, entender os mais simples elementos de revelação
divina. E, portanto, quando homens inconvertidos, qualquer que possa ser a força
do seu gênio ou a extensão do seu saber, se arriscam a tratar de assuntos espirituais,
e especialmente do tema da inspiração divina das Sagradas Escrituras, é certo
mostrarem a sua profunda ignorância e completa incompetência para tratar do
assunto que está ante eles. Na verdade, sempre que examinamos um livro infiel,
somos surpreendidos com a fraqueza dos seus mais poderosos argumentos; e não
apenas isto, mas, em todos os casos em que procuram descobrir uma discrepância
na Bíblia, nós vemos apenas sabedoria divina, beleza e perfeição.
Fomos levados a entrar na precedente linha de pensamento em relação com a
questão da nomeação dos anciãos a qual nos é dada em cada livro, segundo a
sabedoria do Espírito Santo e em perfeita concordância com o tema e assunto do
livro.

Vamos prosseguir agora com a nossa citação.


"E, no mesmo tempo, mandei a vossos juízes, dizendo: Ouvi a causa entre vossos
irmãos e julgai justamente entre o homem e seu irmão e entre o estrangeiro que
está com ele. Não atentareis para pessoa alguma em juízo, ouvireis assim o pequeno
como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a
causa que vos for difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei."
Que celestial sabedoria se descobre aqui! Que equilibrada justiça! Que santa
imparcialidade! Em todos os casos de desavença, todos os fatos, de ambas as partes,
deviam ser completamente ouvidos e pacientemente considerados. A mente não
devia torcer-se por predileção ou sentimentos pessoais de qualquer espécie. O
juízo devia ser feito, não por impressões, mas por fatos — fatos claramente
comprovados, incontestáveis. A influencia pessoal não deveria ter-se em apreço
algum. A posição e as circunstâncias de qualquer das partes em questão não deviam
ser tidas em consideração. A causa devia ser decidida inteiramente sobre os seus
próprios méritos. "Ouvireis assim o pequeno como o grande." Ao pobre devia ser
dispensada a mesma imparcial justiça como ao rico; ao estrangeiro como ao nascido
no país. Não era admitida diferença alguma.
Quão importante é tudo isto! Quão digno da nossa mais atenta consideração! Quão
cheia de profunda e valiosa instrução para todos nós! Decerto, não somos todos
chamados para ser juízes ou anciãos ou chefes; mas os grandes princípios morais
estabelecidos na citação precedente são do mais alto valor para cada um de nós,
visto que ocorrem continuamente casos que requerem a sua direta aplicação. Onde
quer que tenha caído a nossa sorte, qualquer que seja a linha de vida ou esfera de
ação, estamos sujeitos infelizmente a enfrentar casos de dificuldade e
desinteligência entre os nossos irmãos; casos de agravo quer verdadeiros ou
imaginários; e, por isso, é muito necessário estarmos divinamente instruídos sobre
a maneira como nos devemos conduzir a respeito de tais casos.
Ora, em tais casos, jamais seremos exagerados em basear o nosso juízo em fatos —
todos, os fatos, de ambas as partes. Não devemos consentir em sermos guiados pelas
nossas próprias impressões, pois sabemos todos que as simples impressões não são
dignas de crédito. Podem ser corretas; e podem ser inteiramente falsas. Nada é
mais facilmente recebido e transmitido do que uma falsa impressão, e portanto
qualquer juízo baseado meramente em impressões é desprezível. Devemos possuir
fatos sólidos e claramente estabelecidos — fatos provados por duas ou três
testemunhas, como a Escritura tão claramente determina (Dt 17:6; Mt 18:16; 2 Co
13:1; l Tm 5:19).
Mas, além disso, nunca devemos ser guiados em juízo por o que expõe uma das
partes. Todos estamos sujeitos a dar um certo colorido à exposição do nosso caso,
até com a melhor das intenções. Não é que se queira intencionalmente fazer uma
declaração falsa, ou mentir deliberadamente; mas, por engano ou uma causa ou
outra, pode apresentar-se o caso como realmente não é. Pode omitir-se qualquer
fato; e esse fato pode afetar tanto os outros fatos que altere completamente a sua
significação. "Audi alteram fartem" (ouça-se a parte contrária), é um lema muito
salutar. E não só ouvir a parte contrária, mas ouvir todos os fatos de ambas as
partes, e assim sermos capazes de formular um são e reto juízo. Podemos
estabelecer como regra de qualquer juízo formado sem conhecimento preciso de
todos os fatos e inteiramente inútil. "Ouvi a causa entre vossos irmãos e julgai
justamente entre o homem e seu irmão e entre o estrangeiro que está com ele."
Oportunas e necessárias palavras, certamente, em todos os tempos, em todos os
lugares e em quaisquer circunstâncias. Possamos nós aplicá-las aos nossos
corações!
E quão importante é a admoestação do versículo 17! "Não atentareis para pessoa
alguma em juízo, ouvireis assim o pequeno como o grande; não temereis a face de
ninguém." Como estas palavras descobrem o pobre coração humano! Quão dados
somos a ter deferência pelas pessoas; a sermos dominados por influência pessoal; a
ligar importância à posição e riqueza; a ter receio ante a face do homem!
Qual é o divino antídoto contra todos estes males? Precisamente este: o temor de
Deus. Se pomos o Senhor perante nós, em todas as ocasiões, isso nos livrará
eficazmente da perniciosa influência de parcialidade, preconceitos e temor do
homem. Isso nos induzirá a esperar humilde e pacientemente que o Senhor nos
guie e aconselhe em tudo quanto possa apresentar-se à nossa consideração; e assim
seremos guardados de formular juízos precipitados e parciais sobre os homens e os
fatos — origem fecunda de agravos entre o povo do Senhor, em todos os tempos.
Consideremos agora por uns momentos a maneira verdadeiramente comovedora
em que Moisés apresenta ante a congregação todas as circunstâncias relacionadas
com a missão dos espias, que, à semelhança da nomeação dos juízes, está em
perfeita harmonia com o tema e objetivo do livro. Não podíamos esperar outra
coisa. Não há, não pode haver uma simples frase desnecessariamente repetida no
volume divino. Menos ainda Pode haver uma só discordância ou narração
contraditória. A palavra de Deus é absolutamente perfeita no seu conjunto,
perfeita em todas as suas partes componentes. Devemos manter isto com firmeza e
confessá-lo com toda a fidelidade perante este século de infidelidade.
Não falamos das traduções humanas da Palavra de Deus, nas quais deve haver mais
ou menos imperfeições; ainda que não temos senão motivo para estar "cheios de
admiração, amor e louvor", quando notamos a maneira como o nosso Deus
presidiu tão claramente à nossa excelente tradução inglesa, de forma que o mais
pobre serrano pode estar certo de possuir a revelação de Deus à sua alma na
corrente Bíblia inglesa. E, decerto, nós podemos dizer afoitamente que isto é o que
podíamos esperar das mãos do nosso Deus. É razoável esperar que aquele que
inspirou os homens santos que escrevera a Bíblia, tem também velado sobre a
tradução; visto que Ele a deu originariamente, em Sua graça, àqueles que podiam
ler hebreu e grego, não a daria, em graça, do mesmo modo, em todas as línguas
abaixo do céu? Bendito seja para sempre o Seu santo Nome, é Seu gracioso desejo
falar a todos os homens na própria língua em que foram nascidos; contar-nos a
doce história da Sua graça, as boas novas da salvação, no próprio tom em que
nossas mães murmuravam aos nossos ouvidos de infância essas palavras de amor
que penetravam fundo em nossos corações (veja At 2:5 a 8).
Oh! Se os homens fossem mais impressionados e afetados com a verdade e poder de
tudo isto; então não seríamos incomodados com tantas questões loucas e
ignorantes acerca da Bíblia.
Ouçamos agora a narração feita por Moisés da missão dos espias — a sua origem e
os seus resultados. Veremos como é cheia de instrução, contanto que os ouvidos
estejam abertos para ouvir e o coração devidamente preparado para ponderar.

Os Espias (Nm 13)


"Assim, naquele tempo, vos ordenei todas as coisas que havíeis de fazer." A senda
de simples obediência foi claramente exposta perante eles. Não tinham mais que
segui-la com coração obediente e passo firme. Não tinham que arguir quanto às
consequências ou pesar os resultados. Deviam deixar tudo isto precisamente nas
mãos de Deus, e prosseguir, com resoluto propósito, na bendita senda de
obediência.
"Então, partimos de Horebe, e caminhamos por todo aquele grande e tremendo
deserto que vistes, pelo caminho das montanhas dos amorreus, como o SENHOR,
nosso Deus nos ordenara; e chegamos a Cades-Barnéia. Então, eu vos disse:
Chegados sois às montanhas dos amorreus, que o SENHOR, nosso Deus, nos dará.
Eis que o SENHOR, teu Deus, te deu esta terra diante de ti, sobe, possui-a, como te
falou o SENHOR, Deus de teus pais; não temas, e não te assustes."
Aqui estava a sua garantia para entrarem imediatamente na posse da terra. O
Senhor, seu Deus, havia-lhes dado a terra, e havia-a posto diante deles. Era sua por
Sua livre dádiva — o dom da Sua soberana graça, de acordo com o concerto feito
com seus pais. Era Seu propósito eterno possuir a terra de Canaã por meio dos
descendentes de Abraão, Seu amigo. Isto deveria ter sido bastante para tranquilizar
completamente os seus corações, não só quanto às condições da terra, mas também
quanto à entrada nela. Não havia necessidade de espias. A fé nunca necessita de
espiar o que Deus tem dado. Sabe que o que Ele tem dado deve valer a pena
possuí-lo; e que Ele pode pôr-nos em plena possessão de tudo que a Sua graça nos
tem outorgado. Israel podia ter concluído que a mesma mão que os havia
conduzido através daquele "grande e tremendo deserto" podia também fazê-los
entrar e estabelecê-los na herança que lhes havia destinado.
Assim teria raciocinado a fé; porque ela sempre raciocina desde Deus às
circunstâncias; e nunca das circunstâncias para Deus. "Se Deus é por nós, quem
será contra nós? Este é o argumento da fé, grande na sua simplicidade, e simples
em sua grandeza moral. Quando Deus enche completamente a visão da alma, as
dificuldades são de pouca importância. Ou não são vistas, ou, se vistas, são
consideradas como ocasiões para a manifestação do poder divino. A fé exulta em
ver Deus triunfando sobre as dificuldades.
Mas, infelizmente, o povo não era regido por fé naquela ocasião; e, portanto,
tiveram de recorrer aos espias. Moisés relembra-lhes isto, e isto também em
linguagem ao mesmo tempo terna e fiel. "Então, todos vós vos chegastes a mim e
dissestes: Mandemos homens adiante de nós, para que nos espiem a terra e nos
deem resposta, por que caminho devemos subir a ela e a que cidades devemos ir."
Certamente, bem podiam ter confiado em Deus quanto a tudo isto. Aquele que os
havia tirado do Egito, que fizera um caminho para eles através do mar, os guiara
através do deserto sem trilho, era perfeitamente capaz de os introduzir na terra.
Mas não; eles quiseram enviar espias simplesmente porque os seus corações não
tinham fé simples no Deus vivo, verdadeiro e Todo-poderoso.
Nisto está a origem moral da questão; e é bom que o leitor compreenda claramente
este ponto. Verdade é que, na história dada em Números, o Senhor disse a Moisés
que mandasse os espias. Mas por quê? Por causa da condição moral do povo. E aqui
vemos a diferença característica e ao mesmo tempo a encantadora harmonia dos
dois livros. Números dá-nos a história pública, Deuteronômio a origem secreta da
missão dos espias; e assim como está em perfeita concordância com Números
dar-nos a primeira, assim também o está com o caráter de Deuteronômio dar-nos a
segunda. Uma é o complemento da outra. Não poderíamos compreender
plenamente o assunto, se não tivéssemos a história relatada em Números. E o
comentário tocante, feito em Deuteronômio, que completa o quadro. Quão
perfeita é a Escritura! Tudo quanto precisamos é dos olhos ungidos para ver e do
coração preparado para apreciar as suas glórias morais.
Pode ser que o leitor talvez encontre dificuldades enquanto à questão dos espias.
Pode sentir-se disposto a perguntar, como podia ser mau enviá-los, visto que o
Senhor lhes dissera para assim fazerem? A resposta é que o mal não estava de modo
algum no ato de os enviar quando lhes foi dito, mas no desejo de os enviarem a
todo o custo. O desejo era o fruto da incredulidade; e a ordem para os mandar foi
motivada pela incredulidade.
Podemos ver alguma coisa do mesmo caráter na questão do divórcio, em Mateus
19. "Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o e dizendo-lhe: E lícito ao
homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? Ele, porém, respondendo,
disse- lhes: Não tendes lido que, no princípio, o Criador os fez macho e fêmea e
disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe e se unira à sua mulher, e serão dois
numa só carne? Assim não são mais dois mas uma só carne. Portanto, o que Deus
ajuntou, não separe o homem. Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés
dar-lhe carta de divórcio e repudiá-la? Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza
do vosso coração, vos permitiu repudiar vossa mulher; mas, ao princípio, não foi
assim."
Não era segundo a instituição original de Deus, ou segundo a Sua vontade, que o
homem repudiasse sua mulher; mas por causa da dureza do coração humano, o
divórcio foi permitido pelo legislador. Existe alguma dificuldade em compreender
isto? Decerto que não, a menos que o coração esteja disposto a levantar alguma.
Nem tampouco existe qualquer dificuldade na questão dos espias. Israel não
deveria ter necessidade deles. A fé simples nunca teria pensado neles. Mas o
Senhor viu o verdadeiro estado de coisas, e deu um mandamento em conformidade
com ele; assim como, séculos mais tarde, viu o coração do povo inclinado a ter um
rei, e ordenou a Samuel que lhes desse um. "E disse o SENHOR a Samuel: Ouve a
voz do povo em tudo quanto te disser, pois não te tem rejeitado a ti; antes, a mim
me tem rejeitado, para eu não reinar sobre ele. Conforme todas as obras que fez,
desde o dia em que os tirei do Egito até ao dia de hoje, pois a mim me deixou, e
outros deuses serviu, assim também te fez a ti. Agora, pois, ouve a sua voz, porém
protesta-lhe solenemente, e declara-lhes qual será o costume do rei que houver de
reinar sobre ele" (I Sm 8:7-9).
Vemos assim que a simples concessão de um desejo não prova de modo algum que
tal desejo esteja de acordo com o pensamento de Deus. Israel não deveria ter
pedido um rei. Não era o Senhor suficiente? Não era Ele o seu Rei?- Não podia Ele,
como sempre havia feito, guiá-los à batalha e pelejar por eles? Porque buscar um
braço de carne? Porque deixar o Deus verdadeiro, vivo, o Todo-poderoso, para
confiar num pobre verme? Que poder poderia haver num rei senão aquele que
Deus podia ter achado próprio conferir-lhe? Absolutamente nenhum. Todo °
poder, toda a sabedoria, todo o verdadeiro bem estavam no Senhor, seu Deus; e
estavam ali em todo o tempo para suprir todas as suas necessidades. Eles só tinham
que apoiar-se em Seus braços onipotentes, saciarem-se nos Seus inesgotáveis
recursos e encontrar os seus mananciais n'Ele.
Logo que receberam um rei, segundo o desejo de seus corações, que fez ele por
eles? "Todo o povo veio atrás dele, tremendo." Quando mais atentamente
estudamos a história melancólica do reinado de Saul, tanto mais vemos que ele foi,
quase desde o começo, um estorvo em vez de um auxílio. Não temos mais que ler a
sua história, desde o princípio ao fim, para vermos a verdade disto. O seu reinado
foi um completo fracasso, exposto de uma maneira tão exata quanto enérgica em
duas brilhantes expressões do profeta Oséias: "Dei-te um rei na minha ira e to tirei
no meu furor." Em suma, ele foi a resposta à incredulidade e voluntariedade do
povo, e portanto todas as brilhantes esperanças e expectativas que despertara, foi o
lamentável desapontamento. Fracassou em corresponder ao pensamento de Deus;
e, como consequência inevitável, fracassou em suprir as necessidades do povo.
Mostrou que era completamente indigno da coroa e do cetro; e a queda
ignominiosa no monte Gilboa estava em triste concordância com toda a sua
carreira.
Ora, se considerarmos a missão dos espias, vemos também que, à semelhança da
nomeação de um rei, acabou em completo fracasso e desapontamento. Não podia
ser de outra maneira, visto que era o fruto da incredulidade. Decerto, Deus
deu-lhes os espias; e Moisés, com enternecedora graça, diz: "Pareceu-me, pois,
bem esse negócio; de sorte que de vós tomei doze homens, de cada tribo um
homem." Isto era graça descendo sobre o estado do povo, e consentindo num plano
que era adequado a esse estado. Mas isto não prova, de modo algum, que quer o
plano quer o estado do povo fosse segundo o pensamento de Deus. Bendito seja o
Seu nome, Ele pode valer-nos na nossa incredulidade, embora seja entristecido e
desonrado por ela. Deus compraz-Se numa fé ousada e simples. E a única coisa,
neste mundo, que Lhe dá o Seu próprio lugar. Por isso, quando Moisés disse ao
povo: "Eis que o SENHOR, teu Deus, te deu esta terra diante de ti; sobe, possui-a,
como te falou o SENHOR, Deus de teus pais; não temas, e não te assustes", qual
deveria ser a sua própria resposta? "Eis-nos aqui; guia-nos, SENHOR,
Todo-poderoso; guia-nos à vitória. Tu és suficiente para nós. Contigo como guia,
iremos para diante com alegre confiança. As dificuldades não existem para Ti, e
portanto nada significam para nós. A Tua Palavra e a Tua presença são tudo quanto
necessitamos. Nelas encontramos ao mesmo tempo a nossa autoridade e o nosso
poder. Não importa absolutamente quem ou o que possa estar diante de nós:
gigantes poderosos, altas muralhas, ameaçadores baluartes; que representam todos
eles diante do SENHOR, Deus de Israel, senão folhas secas levadas pelo vento«?-
Guia-nos, ó SENHOR."
Esta teria sido a linguagem da fé; mas, infelizmente, não foi a linguagem de Israel
nesta ocasião. Deus não lhes bastava. Não estavam preparados para subir,
apoiando-se somente no Seu braço. Não estavam satisfeitos com a descrição que
Ele havia feito da terra. Quiseram mandar espias. Qualquer coisa servia para o
pobre coração humano menos a simples dependência do Deus vivo e verdadeiro. O
homem natural não pode confiar em Deus, simplesmente porque não O conhece.
"E em ti confiarão os que conhecem o teu nome."
Deus tem de ser conhecido, para poder confiar-se n'Ele; e quanto mais se confia
n'Ele, tanto melhor Se torna conhecido. Nada existe em todo este mundo tão
verdadeiramente abençoado como uma vida de simples fé. Mas isto tem de ser uma
realidade e não uma simples profissão. É inteiramente inútil falar de fé viva,
enquanto o coração depende secretamente de qualquer amparo humano. O
verdadeiro crente tem de tratar exclusivamente com Deus. Encontra n'Ele todos os
seus recursos. Não é que ele menospreze os instrumentos ou os canais que Deus Se
compraz em usar; pelo contrário, aprecia-os muitíssimo; e não pode deixar de os
estimar como os meios que Deus usa para seu auxílio e benção. Mas não permite
que eles suplantem Deus. A linguagem do coração é: "A minha alma espera
somente em Deus; dele vem a minha salvação. Só ele é a minha rocha" (SI 62:1-2).
Existe força peculiar na palavra "só". Sonda completamente coração. Contar com a
criatura, direta ou indiretamente, para suprimento de qualquer necessidade, é em
princípio abandonar a vida de fé. E, oh, é uma obra miserável, esta confiança, de
qualquer modo, nos recursos da criatura! E tão degradante moralmente quanto
elevada é moralmente a vida de fé. E não só é degradante, mas motivo de
desapontamento. O apoio da criatura cede, e os mananciais da criatura secam; mas
os que confiam no Senhor nunca serão confundidos, e nunca lhes faltará bem
algum. Tivesse Israel confiado no Senhor em vez de mandar os espias, ele teria
uma história muito diferente para contar. Mas quiseram mandar os espias, e todo
aquele negócio resultou no mais humilhante fracasso.
"E foram-se, e subiram à montanha, e vieram até ao vale de Escol, e o espiaram. E
tomaram do fruto da terra nas suas mãos, e no-lo trouxeram, e nos tornaram a dar
resposta: Boa é a terra que nos dá o SENHOR, O nosso Deus." Como poderia ser de
outro modo, visto que era Deus quem lhes a dava? Necessitavam de espias para lhes
dizer que a dádiva de Deus era boa? Certamente não deveriam ter essa necessidade.
Uma fé simples teria assim argumentado: "Seja o que for que Deus nos dá, deve ser
digno de Si mesmo; não precisamos de espias para nos assegurarem isto." Mas
infelizmente esta fé simples é uma joia extraordinariamente rara neste mundo; e
até mesmo aqueles que a possuem conhecem pouco do seu valor ou como usá-la.
Uma coisa é falar da vida de fé, e outra completamente diferente vivê-la. A teoria é
uma coisa; a realidade viva outra muito diferente. Mas não esqueçamos nunca que
é privilégio de todos os filhos de Deus viver pela fé; e, além disso, que a vida de fé
inclui todas as coisas que possam, de qualquer modo, necessitar, desde o ponto de
partida até ao alvo da sua carreira terrestre. Já abordamos este importante ponto;
jamais insistiremos nele com demasiado ardor ou constância.
Com respeito à missão dos espias, o leitor notará com interesse o modo como
Moisés se refere a ele. Limita-se àquela parte do testemunho deles que está de
acordo com a verdade. Nada diz acerca dos dez espias infiéis. Isto está de perfeita
harmonia com o tema e objetivo do livro. Tudo está exposto para atuar por via
moral sobre a consciência da congregação. Recorda- lhes que foram eles próprios
quem propôs enviar os espias; e demais, que apesar de os espias terem posto diante
deles o fruto da terra, e dado testemunho da sua excelência, eles não quiseram
subir. "Porém vós não quisestes subir, mas fostes rebeldes ao mandado do
SENHOR, vosso Deus." Não havia qualquer desculpa. É evidente que os seus
corações estavam num estado de positiva incredulidade e de rebelião, e a missão
dos espias, desde o começo ao fim, apenas revelou isto plenamente.

A Incredulidade (Nm 14)


"E murmurastes nas vossas tendas e dissestes: Porquanto o SENHOR nos aborrece"
— uma terrível mentira, em si mesmo! — "e nos tirou da terra do Egito para nos
entregar nas mãos dos amorreus, para destruir-nos." Que estranha prova de
aborrecimento! Quão absurdos são os argumentos da incredulidade! Seguramente,
se os tivesse aborrecido, nada mais fácil do que deixá-los morrer entre os fornos de
tijolo do Egito, debaixo do cruel azorrague dos exatores de Faraó. Por que tomar
tanto trabalho com eles? Qual o motivo das dez pragas sobre a terra dos seus
opressores?- Se os detestava, porque não permitiu que as águas do Mar Vermelho
se precipitassem como se precipitaram sobre os seus inimigos? Por que motivo os
livrou da espada de Amaleque?- Em suma, qual a razão de todos estes maravilhosos
triunfos da graça em seu favor, se o Senhor os detestava? Ah! Se eles não tivessem
sido possuídos por um espírito de negra e insensata incredulidade, uma tal ordem
brilhante de evidência os levaria a uma conclusão oposta àquela que
pronunciaram! nada existe abaixo da abóbada celeste tão estupidamente irracional
como a incredulidade. E, por outro lado, não há nada tão perfeito, claro e lógico
como o argumento de uma fé simples. Que o leitor possa sempre experimentar a
verdade disto!
E murmurastes nas vossas tendas." A incredulidade não é somente um cego e
insensato raciocinador, mas um negro e tétrico murmurador. Nunca toma as coisas
pelo lado reto nem pelo lado claro. Está sempre no escuro, sempre em erro,
simplesmente porque exclui Deus, e só olha para as circunstâncias. Eles disseram:
"Para onde subiremos? Nossos irmãos fizeram com que se derretesse o nosso
coração, dizendo: Maior e mais alto é este povo do que nós." Mas não era maior do
que o Senhor. "As cidades são grandes e fortificadas até aos céus" — crasso exagero
de incredulidade! — "e também vimos ali filhos dos gigantes."
Ora a fé diria: "Bem, embora as cidades sejam fortificadas até aos céus, o nosso
Deus está acima delas, porque Ele está no céu. O que são grandes cidades ou altas
muralhas para Aquele que formou o universo e o sustém pela palavra do Seu
poderá Que são os gigantes, filhos de Anaque, na presença do Deus Todo-
poderoso? Se a terra estivesse coberta de cidades fortificadas desde Dã até Berseba,
e se os gigantes fossem tão numerosos como as folhas da floresta, seriam como a
pragana da eira ante Aquele que havia prometido dar a terra de Canaã aos
descendentes de Abraão, Seu amigo, por perpétua herança."
Mas Israel não tinha fé, como o apóstolo inspirado nos diz no terceiro capítulo de
Hebreus. "Não puderam entrar por causa da sua incredulidade." Aqui estava a
grande dificuldade. As cidades fortificadas e os terríveis Enaquins cedo teriam sido
afastados se Israel tivesse confiado em Deus. Depressa teria acabado com eles. Mas,
ah, essa deplorável incredulidade interpõe-se sempre no caminho da nossa bênção!
Impede o resplendor da glória de Deus; projeta uma sombra negra sobre as nossas
almas e rouba- nos o privilégio de apreciar a suficiência do nosso Deus para
satisfazer todas as nossas necessidades e remover todas as nossas dificuldades.
Bendito seja o Seu nome, Ele nunca falta a um coração que em Si confia. É seu
deleite honrar os maiores saques que a fé apresenta na Sua inesgotável tesouraria.
A palavra animadora que nos dirige é: "Não temas, crê somente." E, também: "Seja
isso feito segundo a tua fé." Palavras preciosas, que fazem vibrar a nossa alma!
Possamos nós todos compreender plenamente a sua doçura e vivo poder! Podemos
ficar certos de que nunca podemos ser exagerados em contar com Deus; seria uma
simples impossibilidade. O nosso grande erro é que não nos aproveitamos mais
abundantemente dos Seus infinitos recursos. "Não te hei dito que, se creres, verás a
glória de Deus?
Podemos compreender assim por que foi que Israel fracassou em ver a glória de
Deus naquela ocasião. Não criam. A missão dos espias foi um completo fracasso.
Assim como começou assim terminou, na mais deplorável incredulidade. Deus
fora excluído. As dificuldades enchiam por completo a visão dos israelitas.
"Não puderam entrar". Não puderam ver a glória de Deus. Escutai as palavras
profundamente tocantes de Moisés. Faz bem ao coração lê-las. Tocam o mais
íntimo do nosso ser renovado. "Então, eu vos disse: Não vos espanteis, nem os
temais. O SENHOR, vosso Deus, que vai adiante de vós, por vós pelejará" — pensai
em Deus pelejando pelo povo! Pensai em Javé como Varão de guerra! "Ele por vós
pelejará, conforme a tudo o que fez convosco, diante de vossos olhos, no Egito;
como também no deserto, onde viste que o SENHOR, teu Deus, nele te levou,
como um homem leva seu filho, por todo o caminho que andastes, até chegardes a
este lugar. Mas nem por isso crestes no SENHOR, vosso Deus, que foi adiante de
vós por todo o caminho, para vos achar o lugar onde vos deveríeis acampar; de
noite no fogo, para vos mostrar o caminho por onde havíeis de andar, e de dia na
nuvem."
Que força moral, que encantadora doçura se encontram neste apelo! Quão
claramente vemos aqui, como, na verdade, em todas as páginas do livro, que o
Deuteronômio não é uma repetição estéril de fatos, mas sim um comentário
poderosíssimo sobre esses fatos! É conveniente que o leitor se dê conta disto. Se o
legislador inspirado narra nos livros de Êxodo e de Números os atos passados na
vida de Israel no deserto, no livro de Deuteronômio comenta esses fatos com uma
comoção que comove o coração. E é aqui que o estilo delicado dos atos de Javé
assinalado e ponderado com incomparável perícia e ternura. Quem pode deixar
passar por alto a encantadora figura revelada nas palavras: ―como um homem leva
o seu filho"? Aqui temos o estilo da ação. Poderíamos entendê-lo sem isto?
Certamente que não. É o estilo de uma ação que toca o coração, porque é o estilo
que de um modo tão especial, expressa o sentimento do coração. Se o poder da mão
ou a sabedoria da mente é vista na substância de uma ação, o amor do coração
mostra-se no estilo. Até um menino pode compreender isto, embora não possa
explicá-lo.

Calebe: A Fé
Mas, infelizmente, Israel não pôde confiar em Deus para os introduzir na terra!
Apesar da maravilhosa manifestação do Seu poder, Sua fidelidade, bondade e
ternura, desde os fornos de tijolo do Egito às fronteiras da terra de Canaã, eles não
creram. Com uma exposição de evidência que deveria satisfazer qualquer coração,
eles ainda duvidaram. "Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das vossas palavras,
indignou-se e jurou, dizendo: Nenhum dos homens desta maligna geração verá
esta boa terra que jurei dar a vossos pais, salvo Calebe, filho de Jefoné; ele a verá, e
a terra que pisou darei a ele e a seus filhos; porquanto perseverou em seguir ao
SENHOR."
"Não te hei dito que se creres verás a glória de Deus?" Tal é a ordem divina. Os
homens nos dirão que ver é crer; mas, no reino de Deus, crer é ver. Por que foi que
a nenhum dos homens daquela má geração foi consentido ver a boa terral
Simplesmente por que não creram no Senhor seu Deus. Em contrapartida, porque
foi Calebe autorizado a vê-la e a tomar posse dela? Simplesmente porque creu. A
incredulidade é sempre o grande impedimento no caminho da nossa visão da
glória de Deus. "E não fez ali muitas maravilhas, por causa da incredulidade deles."
Se Israel tivesse apenas crido, apenas confiado no seu Deus, apenas confiado no
amor de Seu coração e no poder do Seu braço, Ele os teria introduzido e
estabelecido no monte da Sua herança.
E é precisamente assim hoje com o povo do Senhor. Não ha limite para as bênçãos
que podemos gozar, se confiarmos mais plenamente em Deus. "Tudo é possível ao
que crê." O nosso Deus nunca dirá: "Haveis obtido já abundantemente; quereis
receber demasiado." Impossível. É gozo de Seu terno coração responder às maiores
esperanças da fé.
Procuremos obter abundantemente. "Abre bem a tua boca e ta encherei" (SI
81:10). A inesgotável tesouraria do céu está aberta de par em par para a fé. "E tudo
o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis." "E, se algum de vós tem falta de
sabedoria, peça-a a Deus que a todos dá liberalmente e o não lança em rosto; e
ser-lhe- á dada. Peça-a, porém, com fé, não duvidando." A fé é o segredo divino de
toda a questão, a fonte principal da vida cristã, desde o princípio ao fim. A fé não
vacila e não oscila. A incredulidade está sempre a vacilar e a oscilar, e por isso
nunca vê a glória de Deus nem o Seu poder. É surda à Sua voz e cega aos Seus atos;
deprime o coração e enfraquece as mãos; escurece o caminho e estorva todo o
progresso. Foi a incredulidade que manteve Israel fora da terra de Canaã durante
quarenta anos; e nós não podemos fazer ideia das inúmeras bênçãos, privilégios,
poder e vantagens que perdemos constantemente por causa da sua terrível
influência. Se os nossos corações estivessem verdadeiramente exercitados na fé,
quão diferente seria o estado de coisas no nosso meio! Qual é o segredo do
deplorável entorpecimento e esterilidade no vasto campo da profissão cristã?- A
que devemos atribuir o nosso estado de ruína, a nossa falta de ânimo, o nosso
raquítico crescimento? Como é que vemos resultados tão fracos em todas as
atividades da obra cristã?- Por que motivo há tão poucas conversões verdadeiras?
Porque estão os nossos evangelistas tão frequentemente abatidos por causa da
escassez da sua ceifai como havemos de responder a todas estas interrogações?
Qual é a causa?- Quererá alguém dizer que não é a nossa incredulidade?
Sem dúvida, as nossas divisões têm muito que ver com ela; o nosso apego às coisas
mundanas, a nossa sensualidade, a nossa indulgência, a nossa ociosidade. Mas qual
é o remédio para todos estes males?- Como vão ser os nossos corações movidos por
verdadeiro amor para com todos os nossos irmãos?- Pela fé — esse princípio
precioso "que opera por caridade." Assim o bendigo apostolo diz aos queridos
recém-convertidos em Tessalônica: ―A vossa fé cresce muitíssimo‖ depois?- "E a
caridade de cada um de vós abunda nuns para com os outros." Assim será sempre.
A fé põe-nos em contato direto com a fonte eterna de amor em Deus mesmo; e a
consequência forçosa é que os nossos corações são impulsionados em amor por
todos os que Lhe pertencem — todos em quem podemos, por mais débil que seja,
descobrir a Sua imagem bendita. Não podemos, de modo algum, estar perto do
Senhor e não amarmos todos os que, em todo o lugar, invocam o Seu nome com
um coração puro. Quanto mais perto estamos de Cristo, tanto mais intensamente
devemos estar unidos, em verdadeiro amor fraternal, com todos os membros do
Seu corpo.
E quanto ao mundanismo, em todas as suas diversas formas, como deve ser
vencido?- Escutemos a resposta de outro apóstolo inspirado. "Porque todo o que é
nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé.
Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?-" O
homem novo, andando no poder da fé, vive acima do mundo, acima dos seus
motivos, acima dos seus objetivos, dos seus princípios, seus costumes, seus
modelos. Nada tem em comum com ele. Movimenta-se precisamente contra a sua
corrente. Obtém todos os seus recursos do céu. A sua vida, a sua esperança, tudo
está ali; e anela ardentemente estar ali quando a sua obra na terra estiver
terminada.
Vemos assim que princípio poderoso é a fé. A fé purifica o coração, opera por
amor, e vence o mudo. Em suma, liga o coração, em poder vivo, com Deus Mesmo;
e este é o segredo da verdadeira elevação, santa benevolência e pureza divina. Não
é de estranhar, portanto, que Pedro fale dela como da "preciosa fé", porque é
verdadeiramente preciosa além de todo o pensamento humano.
Veja-se como este poderoso princípio atuou em Calebe, e o resultado bendito que
produziu. Foi-lhe permitido constatar a verdade dessas palavras proferidas séculos
mais tarde: "Seja-vos feito segundo a vossa fé." Creu que Deus tinha poder para os
fazer entrar na terra, e que todas as dificuldades e obstáculos eram simplesmente
substância para a fé. E Deus, como sucede sempre; respondeu à sua fé. "Então os
filhos de Judá chegaram a Josué em Gilgal; e Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu,
lhe disse: Tu sabes a palavra que o SENHOR falou a Moisés, homem de Deus, em
Cades- Barnéia, por causa de mim e de ti. Da idade de quarenta anos era eu quando
Moisés, servo do SENHOR, me enviou de Cades-Barnéia a espiar a terra; e eu lhe
trouxe resposta, como sentia no meu coração" - testemunho simples de uma
brilhante e encantadora fé! – ―mas meus irmãos, que subiram comigo, fizeram
derreter o coração do povo: eu, porém, perseverei em seguir ao SENHOR, meu
Deus. Então, Moisés, naquele dia, jurou, dizendo: Certamente a terra que pisou o
teu pé será tua e de teus filhos, em herança perpetuamente; pois perseveraste em
seguir o SENHOR, meu Deus. E, agora, eis que o SENHOR me conservou em vida,
como disse; quarenta e cinco anos há agora, desde que o SENHOR falou esta
palavra a Moisés, andando ainda Israel no deserto; e, agora, eis que já hoje sou da
idade de oitenta e cinco anos. E, ainda hoje, estou tão forte como no dia em que
Moisés me enviou; qual a minha força então era, tal é agora a minha força, para a
guerra, e para sair, e para entrar. Agora, pois, dá-me este monte de que o SENHOR
falou naquele dia; pois naquele dia, tu ouviste que os anaquins estão ali, grandes e
fortes cidades há ali; porventura, o SENHOR será comigo para os expelir, como o
Senhor disse" (Js 14:6-12).
Quão refrescantes são as expressões de uma fé simples! Quão edificantes! Quão
verdadeiramente alentadoras! Que contraste com as expressões lúgubres,
desanimadoras, insolentes e desonrosas para Deus, da incredulidade! "E Josué o
abençoou, e deu a Calebe, filho de Jefoné, Hebrom em herança. Portanto, Hebrom
foi de Calebe, filho de Jefoné o quenezeu, em herança, ate ao dia de hoje,
porquanto perseverara em seguir o SENHOR, Deus de Israel" (Js 14:13-15). Calebe,
como seu pai Abraão, foi firme na fé, dando glória a Deus; e nós podemos dizer,
com a maior segurança, que, visto que a fé sempre honra a Deus, Ele Se compraz
sempre em honrar a fé; e estamos convencidos que se 0 povo do Senhor pudesse
apenas confiar mais n'Ele, se eles se aproveitassem mais abundantemente dos Seus
infinitos recursos, seriamos testemunhas de um estado de coisas totalmente
diferente do que vemos à nossa volta. "Não te hei dito que se creres verás a glória
de Deus? Oh, se tivéssemos uma fé mais viva em Deus — uma apropriação mais
ousada da Sua fidelidade da Sua bondade e poder! Então poderíamos esperar
resultados mais gloriosos no campo do evangelho; mais zelo, mais energia, mais
intensa devoção na Igreja de Deus; e mais dos frutos fragrantes da justiça na vida
dos crentes individualmente.
Moisés não Entraria no País
Vamos agora por um momento deitar um vista de olhos aos versículos finais do
nosso capítulo, nos quais encontraremos sólida instrução. E, antes do mais, vemos
os atos do governo divino manifestados da maneira mais solene e impressionante.
Moisés refere-se da maneira mais tocante ao fato da sua exclusão da terra
prometida. "Também o SENHOR se indignou contra mim por causa de vós,
dizendo: Também tu lá não entrarás."
Notemos as palavras "por causa de vós". Era muito necessário recordar à
congregação que era por sua causa que Moisés, esse amado e honrado servo do
Senhor, era impedido de atravessar o Jordão e pôr o seu pé na terra de Canaã. E
certo que "falou imprudentemente com seus lábios"; mas eles "irritaram o seu
espírito" para isso. Isto deveria tê-los comovido ao mais íntimo da alma. Não só
falharam, devido à incredulidade, em entrar na terra, mas foram a causa da sua
exclusão, embora ele muito desejasse ver "esta boa montanha e o Líbano!" (veja SI
106:32-33).
Mas o governo de Deus é uma magna e terrível realidade. Não esqueçamos isto
nunca, nem por um só momento. A razão humana pode estranhar que algumas
palavras inconsideradas, algumas precipitadas expressões fossem a causa de não
conceder a um tal servo de Deus amado e honrado o que ele tão ardentemente
desejava. Mas o nosso lugar é curvar a cabeça em humilde adoração e santa
reverência, e não discutir ou julgar. "Não faria justiça o Juiz de toda a terral"
Certamente, Ele não pode cometer erros. "O Senhor, Deus Todo-poderoso,
verdadeiros e justos são os teus juízos"(Ap 16:7). "Deus deve ser em extremo
tremendo na assembleia dos santos e grandemente reverenciado por todos os que o
cercam" (SI 89:7). "O nosso Deus é um fogo consumidor" (Hb 12 -29)' e "Horrenda
coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (Hb 10:31).
Acaso interfere com a ação e autoridade do governo divino o fato que nós, como
cristãos, estamos debaixo do reino da graça?- De modo nenhum. É tão certo hoje
como sempre foi que "o que o homem semear, isso também ceifará". Portanto, seria
um grave erro alegar a liberdade que há na graça divina para ter em pouca conta os
decretos do governo divino. As duas coisas são perfeitamente distintas e nunca
deverão ser confundidas. A graça pode perdoar — livre, plena e eternamente —
mas as rodas do carro do governo do Senhor rodam com poder esmagador e
aterradora solenidade. A graça perdoou o pecado de Adão; mas o governo de Deus
expulsou-o do Éden para ganhar a vida com o suor do seu rosto entre os espinhos e
cardos de uma terra amaldiçoada. A graça perdoou o pecado de Davi; mas a espada
do governo permaneceu sobre a sua casa até ao fim. Bate-Seba foi a mãe de
Salomão; mas Absalão levantou-se em rebelião.
E assim sucedeu com Moisés, a graça levou-o ao cume do Pisga e mostrou-lhe a
terra; mas o governo proibiu-o austera e absolutamente de entrar ali. Nem
tampouco afeta no mínimo este princípio capital a consideração de que Moisés, em
seu cargo oficial, como representante do sistema legalista, não podia introduzir o
povo na terra. Isto é verdade; mas deixa absolutamente intacta a solene verdade
que estamos considerando. Nem no capítulo 12 de Números, nem no primeiro
capítulo de Deuteronômio se diz qualquer coisa sobre Moisés, quanto ao seu cargo
oficial. É ele pessoalmente que temos perante nós, e é a ele que se proíbe entrar na
terra por ter falado inconsideradamente com os seus lábios.
Será conveniente para todos nós considerarmos, atentamente, na presença de
Deus, esta grande verdade prática. Podemos ficar certos de que quanto mais
profundamente entrarmos no conhecimento da graça, tanto mais sentiremos a
solenidade do governo de Deus, e acharemos inteiramente justificados os seus
decretos. Disto estamos perfeitamente convencidos. Mas existe Perigo iminente de
admitir, de uma forma ligeira e descuidada, as doutrinas da graça, enquanto que o
coração e a vida não se têm submetido à influência santificadora dessas doutrinas.
Ternos de vigiar com santo zelo contra este perigo. Nada há em todo este mundo
mais terrível do que a simples familiaridade carnal com a teoria da salvação pela
graça. Abre a porta a toda a forma de abusos. É por isso que sentimos a necessidade
de gravar na consciência do leitor a verdade prática do governo de Deus. Isto é
muito necessário em todos os tempos, mas especialmente nos nossos dias, em que
existe uma tendência terrível para converter a graça do nosso Deus em luxúria.
Descobriremos invariavelmente que aqueles que melhor sabem apreciar a
bem-aventurança de se estar debaixo do reino da graça também justificam
completamente as leis do governo de Deus.
Mas nós vemos, nas linhas finais do nosso capítulo, que o povo não estava de modo
algum preparado para se submeter à direção do governo de Deus. De fato, não
queriam a graça nem o governo. Quando convidados a subir imediatamente e
tomar posse da terra com a completa certeza de que a presença e o poder divino os
acompanhariam, hesitaram e recusaram ir. Entregaram-se completamente a um
espírito de negra incredulidade. Em vão Josué e Calebe fizeram chegar aos seus
ouvidos as mais animadoras palavras; em vão puseram diante dos seus olhos o rico
fruto da boa terra; em vão Moisés intentou demovê-los com palavras
enternecedoras; não quiseram subir, quando se lhes disse para subirem. E qual foi o
resultado? A sua decisão foi aceite. Segundo a sua incredulidade, assim lhes foi
feito. "E vossos meninos, de que dissestes: Por presa serão; e vossos filhos, que hoje
nem bem nem mal sabem, eles ali entrarão, e a eles a darei, e eles a possuirão.
Porém vós virai-vos e parti para o deserto pelo caminho do mar Vermelho."

Uma Confissão Superficial e Circunstancial


Como é triste! E, todavia, como podia ser de outra maneirai Se eles não queriam,
em simples fé, entrar na terra, nada mais restava para eles senão voltarem para o
deserto. Mas a isto eles não iam submeter-se. Não queriam aproveitar-se das
provisões T graça nem curvar-se à sentença do juízo. "Então, respondestes e me
dissestes: Pecamos contra o SENHOR; nós subiremos e pelejaremos conforme tudo
o que nos ordenou o SENHOR, nosso Deus, e armastes-vos, pois, vós, cada um dos
seus instrumentos de guerra, e estivestes prestes para subir à montanha."
Isto pareceria ser contrição e arrependimento; mas era oco e falso. É muito fácil
dizer "Pecamos". Saul disse o mesmo no seu tempo; disse isso sem sentido, sem o
verdadeiro sentimento do que estava dizendo. Podemos facilmente fazer um juízo
sobre o valor e força das palavras "pequei" pelo fato de que elas foram
imediatamente seguidas por estas outras: "Honra-me porém agora diante dos
anciãos do meu povo." Que estranha contradição! "Pequei; honra-me porém". Se
ele tivesse realmente sentido o seu pecado, quão diferente teria sido a sua
linguagem! Mas era tudo uma solene zombaria. Imagine-se um homem cheio de si
mesmo fazendo uso da forma de palavras sem a mínima partícula de sentimento do
coração; e então, a fim de conseguir honra para si mesmo, cumprindo a vazia
formalidade de adorar a Deus. Que quadro! Pode haver alguma coisa mais triste?-
Que terrível ultraje para Aquele que deseja a verdade no íntimo e que busca
adoradores que O adorem em espírito e verdade! Os mais fracos suspiros de um
coração quebrantado e contrito são preciosos para Deus; oh, quão insultuosas são
para ele as falsas formalidades da mera religiosidade, cujo objetivo é exaltar o
homem a seus próprios olhos e aos olhos dos demais! Quão inútil é a mera profissão
dos lábios quando o coração a não sente! Como um escritor muito bem observou
recentemente: "É uma coisa fácil dizer, temos pecado; mas quantas vezes
descobrimos que não é a confissão apressada do pecado que proporciona a
evidência de que o pecado e sentido! Pelo contrário, é uma prova de dureza do
coração. A consciência sente que é necessário um certo ato de confissão do pecado,
mas talvez não haja nada que mais endureça o coração que hábito de confessar o
pecado sem o sentir. Eu creio que uma das maiores ciladas na cristandade desde a
antiguidade até hoje consiste no conhecimento impresso do pecado, o mero hábito
de cumprir precipitadamente uma fórmula de confissão a Deus Atrevo-me a dizer
que quase todos nós temos feito isso, sem aludir a qualquer forma especial; porque
infelizmente existe bastante formalidade; e, sem ter escritas disposições, o coração
pode conceber as suas próprias práticas religiosas, como podemos ter observado, se
é que não conhecemos por experiência própria, sem necessidade de achar faltas nas
outras pessoas."
Assim aconteceu com Israel em Cades. A sua confissão de pecado era inteiramente
sem valor. Não havia verdade nela. Tivessem eles sentido o que diziam e
ter-se-iam submetido ao juízo de Deus e aceitado humildemente as consequências
do seu pecado. Não existe prova mais clara de verdadeira contrição que humilde
submissão aos desígnios do governo de Deus. Veja-se o caso de Moisés. Note-se
como ele baixou a sua cabeça à disciplina divina. "Também o SENHOR", diz
Moisés, "se indignou contra mim por causa de vós, dizendo: Também tu lá não
entrarás. Josué, filho de Num, que está em pé diante de ti, ele ali entrará; esforça-o,
porque ele a fará herdar a Israel."
Aqui Moisés mostra-lhes que eles eram a causa da sua exclusão da terra, e contudo
não pronuncia uma palavra sequer de queixume, antes se submete humildemente
ao juízo divino, não apenas contente por ser substituído por outro, mas em estar
pronto a apoiar e animar o seu sucessor. Não há indício de ciúme ou inveja nas suas
palavras. Era bastante para esse amado e honrado servo de Deus que Deus fosse
glorificado e a necessidade da congregação satisfeita. Não estava ocupado consigo
mesmo ou com os seus próprios interesses mas com a glória de Deus e a bênção do
Seu povo.
Porém, o povo manifestou um espírito muito diferente. "Nós subiremos e
pelejaremos." Que petulância! Que loucura! Quando mandados por Deus e
encorajados pelos Seus fiéis servos a subir e possuir a terra, responderam: "Para
onde subiremos?" E quando lhes é ordenado voltarem para o deserto respondem:
"Nós subiremos e pelejaremos."

Um Solene Ensino
"E disse-me o SENHOR; Dize-lhes: Não subais, nem pelejeis, pois não estou no
meio de vós, para que não sejais feridos diante de vossos inimigos. Porém,
falando-vos eu, não ouvistes; antes, fostes rebeldes ao mandado do SENHOR, e vos
ensoberbecestes, e subistes à montanha. E os amorreus, que habitavam naquela
montanha, vos saíram ao encontro; e perseguiram-vos, como fazem as abelhas, e
vos derrotaram desde Seir até Horma."
O Senhor não podia acompanhá-los no caminho da vontade própria e rebelião; e,
certamente, Israel, sem a presença divina, não podia medir-se com os amorreus. Se
Deus for por nós e conosco tudo deve ser vitória. Mas nós não podemos contar com
Deus se não andamos no caminho da obediência. E simplesmente o cúmulo da
loucura supor que podemos ter Deus conosco se os nossos caminhos não são retos.
"Torre forte é o nome do SENHOR; para ele correrá o justo e estará em alto retiro."
Mas se não andamos em justiça prática, é perversa vaidade falar de ter o Senhor por
nossa forte torre.
Bendito seja o Seu Nome, Ele pode valer-nos nas maiores profundidades da nossa
fraqueza e fracasso, contanto que haja verdadeira e sincera confissão do nosso
verdadeiro estado. Mas pretender que temos o Senhor conosco, enquanto estamos
fazendo a nossa própria vontade, e andando em evidente injustiça, não é outra
coisa senão maldade e dureza de coração. "Confia no SENHOR e faze o bem." Esta
é a ordem divina; mas falar de confiar no Senhor, enquanto se faz o mal, é
converter a graça de Deus em luxúria e pormo-nos completamente nas mãos do
diabo, que só busca a nossa ruma moral. "Porque, quanto ao SENHOR, seus olhos
passam por toda a terra para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é
Perfeito para com ele" (2 Cr 16:9). Quando temos uma boa consciência podemos
levantar a cabeça e avançar através de toda a sorte de dificuldades; porém intentar
andar na vereda da fé com uma má consciência é a coisa mais perigosa deste
mundo. Só podemos manter ao alto o escudo da fé quando os nossos lombos estão
com a É da máxima importância que os cristãos procurem manter a justiça prática
em todos os seus aspectos. Há um imenso valor e peso moral nestas palavras do
apóstolo Paulo: "E por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto
para com Deus como para com os homens." Procurava sempre usar a couraça da
justiça e estar vestido de linho branco, que é a justiça dos santos. E assim devemos
nós fazer. E nosso santo privilégio andar, dia a dia, com passo firme, na vereda do
dever, a senda de obediência, senda na qual resplandece sempre a luz do semblante
de Deus em aprovação. Então, seguramente, podemos contar com Deus,
apoiarmo-nos n'Ele, receber d'Ele, achar n'Ele todos os nossos recursos,
envolvermo-nos a nós próprios na Sua fidelidade, e assim avançar, em pacífica
comunhão e santa adoração para com o nosso lar celestial.
Não se trata, repetimos, de não podermos olhar para Deus na nossa fraqueza, no
nosso fracasso e até mesmo quando temos errado e pecado. Bendito seja o Seu
nome, podemos fazê-lo e os Seus ouvidos estão sempre atentos ao nosso clamor.
"Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça" (l Jo 1:9). "Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR!
Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas
súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? Mas
contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1-4). Não há limite para a
extensão da expiação, não ha limite para a virtude e eficácia do sangue de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, que purifica de todo o pecado; não há limite para a eficácia
da intercessão do nosso adorável Advogado, nosso Sumo Sacerdote, que pode
salvar até ao fim os que chegam a Deus por Ele.
Tudo isto é uma verdade bendita; verdade amplamente ensinada e ilustrada de
várias maneiras através do volume inspirado. Mas a confissão do pecado, e o
perdão do pecado não devem ser confundidos com a justiça prática. Existem duas
condições distintas em que podemos invocar a Deus: podemos invocá-Lo em
profunda contrição, e sermos ouvidos, ou podemos invocá-Lo com uma boa
consciência e um coração sincero, sermos ouvidos. Mas os dois casos são muito
distintos; e não só são distintos em si mesmos, como estão em acentuado contraste
com aquela indiferença e dureza de coração que presume contar com Deus apesar
de positiva desobediência e injustiça prática. É isto que é tão terrível aos olhos de
Deus e que deve motivar o Seu severo castigo. Ele reconhece e aprova a justiça
prática; pode perdoar livre e amplamente o pecado confessado; mas imaginar que
podemos pôr a nossa confiança em Deus, enquanto os nossos pés andarem pelo
caminho da iniquidade não é nada menos que a mais horrível impiedade. "Não vos
fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do SENHOR, templo do SENHOR,
templo do SENHOR é este. Mas, se deveras melhorardes os vossos caminhos e as
vossas obras, se deveras fizerdes juízo entre um homem e entre o seu companheiro,
se não oprimirdes o estrangeiro e o órfão e a viúva, nem derramardes sangue
inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal, eu
vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais, de século em século. Eis
que vós confiais em palavras falsas, que para nada são proveitosas. Furtareis vós, e
matareis, e cometereis adultério, e jurareis falsamente, e queimareis incenso a
Baal, e andareis após outros deuses que não conhecestes, e então vireis, e vos poreis
diante de mim nesta cada, que se chama pelo meu nome, e direis: Somos livres,
podemos fazer todas estas abominações? (Jr 7:4-10).
Deus trata em realidades morais; deseja a verdade no íntimo; e se os homens ousam
manter a verdade em injustiça, devem esperar o Seu justo castigo. É o pensamento
de tudo isto que nos az sentir o terrível estado da igreja professante. A passagem
solene que acabamos de citar do profeta Jeremias apesar de se referir,
primeiramente, aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém, tem uma
aplicação acentuada à cristandade. Vemos no terceiro capítulo da 2 epístola a
Timóteo que todas as abominações do paganismo, relatadas no final do primeiro de
Romanos, são reproduzidas nos últimas dias sob a verdade e vestida a couraça da
justiça.
É da máxima importância que os cristãos procurem manter a justiça prática em
todos os seus aspectos. Há um imenso valor e peso moral nestas palavras do
apóstolo Paulo: "E por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto
para com Deus como para com os homens." Procurava sempre usar a couraça da
justiça e estar vestido de linho branco, que é a justiça dos santos. E assim devemos
nós fazer. E nosso santo privilégio andar, dia a dia, com passo firme, na vereda do
dever, a senda de obediência, senda na qual resplandece sempre a luz do semblante
de Deus em aprovação. Então, seguramente, podemos contar com Deus,
apoiarmo-nos n'Ele, receber d'Ele, achar n'Ele todos os nossos recursos,
envolvermo-nos a nós próprios na Sua fidelidade, e assim avançar, em pacífica
comunhão e santa adoração para com o nosso lar celestial.
Não se trata, repetimos, de não podermos olhar para Deus na nossa fraqueza, no
nosso fracasso e até mesmo quando temos errado e pecado. Bendito seja o Seu
nome, podemos fazê-lo e os Seus ouvidos estão sempre atentos ao nosso clamor.
"Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e
nos purificar de toda injustiça" (l Jo 1:9). "Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR!
Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas
súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? Mas
contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1-4). Não há limite para a
extensão da expiação, não ha limite para a virtude e eficácia do sangue de Jesus
Cristo, o Filho de Deus, que purifica de todo o pecado; não há limite para a eficácia
da intercessão do nosso adorável Advogado, nosso Sumo Sacerdote, que pode
salvar até ao fim os que chegam a Deus por Ele.
Tudo isto é uma verdade bendita; verdade amplamente ensinada e ilustrada de
várias maneiras através do volume inspirado. Mas a confissão do pecado, e o
perdão do pecado não devem ser confundidos com a justiça prática. Existem duas
condições distintas em que podemos invocar a Deus: podemos invocá-Lo em
profunda contrição, e sermos ouvidos, ou pode- mos invocá-Lo com uma boa
consciência e um coração sincero, sermos ouvidos. Mas os dois casos são muito
distintos; e não só são distintos em si mesmos, como estão em acentuado contraste
com aquela indiferença e dureza de coração que presume contar com Deus apesar
de positiva desobediência e injustiça prática. É isto que é tão terrível aos olhos de
Deus e que deve motivar o Seu severo castigo. Ele reconhece e aprova a justiça
prática; pode perdoar livre e amplamente o pecado confessado; mas imaginar que
podemos pôr a nossa confiança em Deus, enquanto os nossos pés andarem pelo
caminho da iniquidade não é nada menos que a mais horrível impiedade. "Não vos
fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do SENHOR, templo do SENHOR,
templo do SENHOR é este. Mas, se deveras melhorardes os vossos caminhos e as
vossas obras, se deveras fizerdes juízo entre um homem e entre o seu companheiro,
se não oprimirdes o estrangeiro e o órfão e a viúva, nem derramardes sangue
inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal, eu
vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais, de século em século. Eis
que vós confiais em palavras falsas, que para nada são proveitosas. Furtareis vós, e
matareis, e cometereis adultério, e jurareis falsamente, e queimareis incenso a
Baal, e andareis após outros deuses que não conhecestes, e então vireis, e vos poreis
diante de mim nesta cada, que se chama pelo meu nome, e direis: Somos livres,
podemos fazer todas estas abominações?" (Jr 7:4-10).
Deus trata em realidades morais; deseja a verdade no íntimo; e se os homens ousam
manter a verdade em injustiça, devem esperar o Seu justo castigo. É o pensamento
de tudo isto que nos faz sentir o terrível estado da igreja professante. A passagem
solene que acabamos de citar do profeta Jeremias apesar de se referir,
primeiramente, aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém, tem uma
aplicação acentuada à cristandade. Vemos no terceiro capítulo da 2 epístola a
Timóteo que todas as abominações do paganismo, relatadas no final do primeiro
capítulo de Romanos, são reproduzidas nos últimas dias sob a capa da profissão
cristã e em relação imediata com "a forma de piedade". Qual há-de ser o fim de um
tal estado de coisas? Implacável ira. Os mais duros juízos de Deus estão reservados
para a grande massa de professos batizados que chamamos cristandade. O
momento aproxima-se rapidamente em que todo o amado povo de Deus adquirido
com Seu sangue será arrebatado deste mundo sombrio e pecaminoso ainda que
chamado "mundo cristão" para estar sempre com o Senhor, naquele doce lar de
amor preparado na casa do Pai. Então "a operação do erro" será enviada sobre a
cristandade — sobre as próprias nações onde a luz de um cristianismo para todo o
globo tem resplandecido; onde se tem pregado livre e plenamente o evangelho;
onde milhões de exemplares da Bíblia têm sido postos em circulação, e onde todos,
de um modo ou de outro, professam o nome de Cristo e se chamam a si próprios
cristãos.
E depois?- Que vai seguir-se a esta "operação do erro"? Algum novo testemunho?
Mais algumas oportunidades de misericórdia? Mais algum esforço da graça
longânima? Não para a cristandade! Não para os que rejeitam o evangelho de Deus.
Não para os professos de formas vazias e sem valor de cristianismo sem Deus e sem
Cristo! Os pagãos ouvirão "o evangelho eterno", "o evangelho do reino"; mas
quanto a essa coisa terrível, essa pavorosa anomalia chamada cristandade, "a vide
da terra", nada resta senão o lagar da ira do Deus Todo-poderoso, a escuridão das
trevas para sempre, o lago que arde com fogo e enxofre.
Leitor, estas são as verdadeiras palavras de Deus. Nada seria mais fácil que colocar
ante os teus olhos uma série incontestável de provas das Escrituras, mas isto seria
alheio ao nosso presente propósito. O Novo Testamento, do princípio ao fim,
revela a verdade solene acima exposta; e todo o sistema de teologia abaixo do sol
que ensina alguma coisa diferente mostrar-se-á, pelo menos sobre este ponto,
completamente falso.

CAPÍTULO 2

«VIRAI-VOS PARA O NORTE"

Incredulidade e Fé
As linhas finais do capítulo 1, mostram-nos o povo chorando diante do Senhor.
"Tornando, pois, vós e chorando perante o SENHOR, O SENHOR não ouviu a
vossa voz, nem voz escutou. Assim, em Cades estivestes muitos dias, segundo os
dias que ali estivestes."
Não havia mais sinceridade nas suas lágrimas do que nas suas palavras. O seu choro
não merecia mais crédito que a sua confissão. É possível que as pessoas confessem o
pecado e vertam lágrimas sem um verdadeiro sentimento de pecado na presença de
Deus. Isto é muito grave. É escarnecer de Deus. Sabemos, bendito seja para sempre
o Seu nome, que um coração verdadeiramente contrito é o Seu prazer. Com um tal,
Deus faz a Sua habitação. "Os sacrifícios para Deus são o espírito quebrantado; a
um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus" (SI 51:17). As
lágrimas que brotam de um coração arrependido são muito mais preciosas para
Deus do que as manadas de mil colinas, visto provarem que há um lugar nesse
coração para Ele; e isto é o que Ele busca, em Sua infinita graça. Quer habitar em
nossos corações e encher-nos do profundo, inefável gozo da sua própria presença.
Porém, a confissão e as lágrimas de Israel em Cades não eram sinceras; e, por isso, o
Senhor não pôde aceitá-las. O mais simples clamor de um coração quebrantado
sobe diretamente para o trono de Deus, e é imediatamente atendido pelo bálsamo
litigante do Seu amor perdoador; mas quando as lágrimas e a confissão vão juntas
com a vontade própria da rebelião, não são apenas desprezíveis, mas um
verdadeiro insulto à majestade divina.
Assim, pois, o povo teve de retroceder ao deserto e peregrinar ali durante quarenta
anos. Não havia outro recurso. Não quiseram subir àquela terra, em simples fé,
com Deus; e Ele não quis acompanhá-los quando quiseram subir por sua própria
vontade e própria confiança; e eles tiveram portanto de aceitar as consequências da
sua desobediência. Já que não querem entrar na terra, têm de cair no deserto.
Quão solene é tudo isto! E quão solene é o comentário do Espírito sobre o assunto
em capítulo 3 de Hebreus! E quão direta e eficazmente se aplica a nós próprios!
Vamos citar a passagem para proveito do leitor. "Portanto, como diz o Espírito
Santo, se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais o vosso coração, como na
provação, no dia da tentação no deserto, onde vossos pais me tentaram, me
provaram e viram, por quarenta anos, as minhas obras. Por isso, me indignei
contra esta geração e disse: Estes sempre erram em seu coração e não conheceram
os meus caminhos. Assim, jurei na minha ira que não entrarão no meu repouso.
Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se
apartar do Deus vivo. Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o
tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do
pecado. Porque nos tornamos principiantes de Cristo, se retivermos firmemente o
princípio da nossa confiança até ao fim. Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua
voz, não endureçais o vosso coração, como na provocação. Porque, havendo-a
alguns ouvido, o provocaram; mas não todos os que saíram do Egito por meio de
Moisés. Mas com quem se indignou por quarenta anos?- Não foi, porventura, com
os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto«? E a quem jurou que não
entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes?- E vemos que não
puderam entrar por causa da sua incredulidade. Temamos, pois, que, porventura,
deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para
trás. Porque também a nós foram pregadas as boas-novas, como a eles, mas a
palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não estava misturada com a
fé naqueles que a ouviram" (Hb 3:7 a 19; 4:1-2).
Aqui, como em todas as páginas do livro inspirado, aprendemos que a
incredulidade é a coisa que mais entristece o coração do Deus e desonra o Seu
nome. E não só isso, mas que nos priva das bênçãos, das dignidades e privilégios
que a graça infinita outorga. Temos uma escassa ideia de quanto perdemos, em
todos os sentidos, por causa da incredulidade dos nossos corações. Assim como no
caso de Israel a terra estava perante eles em toda a sua fecundidade e beleza, e se
lhes mandou que subissem e tomassem posse dela, mas "Não puderam entrar por
causa da incredulidade", assim também acontece conosco: deixamos de possuir a
plenitude das bênçãos que a graça soberana põe ao nosso alcance. A própria
tesouraria do céu está aberta de par em par para nós, mas nós deixamos de nos
apropriar dela. Somos pobres, fracos, desprovidos e estéreis, quando podíamos ser
ricos, vigorosos, satisfeitos e fecundos. Somos abençoados com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo; mas quão pouco nos apropriamos disso!
Quão fraca é a nossa capacidade de compreensão! Quão pobres os nossos
pensamentos!
Assim, quem pode calcular quanto perdemos por causa da nossa incredulidade
quanto à questão da obra do Senhor no nosso meio? Lemos no evangelho de que
em certa localidade nosso bendito Senhor não pôde fazer sinais por causa da
incredulidade deles. Não nos diz isto nada«?- Também nós O impedimos por causa
da incredulidade? Alguém dirá talvez que o Senhor levará a Sua obra avante
independentemente de nós ou da nossa fé; ajuntará os Seus e completará o número
dos Seus eleitos, apesar da nossa incredulidade; nem todo o poder da terra e do
inferno, dos homens e dos demônios juntos, pode impedir a realização dos Seus
desígnios e propósitos; e quanto à Sua obra, não e por força nem por poder, mas
pelo Seu Espírito. Os esforços humanos são inúteis; e a causa do Senhor jamais
poderá ser desenvolvida pela excitação da natureza humana.
Ora, tudo isto é perfeitamente verdadeiro; mas deixa completamente intacta a
expressão inspirada acima reproduzida. "E não fez ali muitas maravilhas por causa
da incredulidade deles" (Mt 13:58). Essas pessoas não perderam bênçãos por causa
da sua incredulidade? Não impediram que fosse feito muito bem? Devemos ter
cuidado na maneira como cedemos à influência destruidora de um fatalismo que,
com certas aparências de verdade, é inteiramente falso, visto que nega toda a
responsabilidade humana e paralisa toda a santa energia na causa de Cristo.
Devemos ter em vista o fato que Aquele que, em Seus eternos desígnios, decretou o
fim, designou também os meios; e se nós, na pecaminosa incredulidade de nossos
corações, e sob a influência parcial da verdade cruzamos os braços e desprezamos
os meios, Ele nos porá de lado e prosseguirá a Sua obra por meio de outras mãos.
Fará a obra, bendito seja o Seu santo nome, mas nós perderemos a dignidade, o
privilégio e a bênção de ser Seus instrumentos.
Veja-se a cena admirável em capítulo 2 de Marcos. Ilustra eficazmente o grande
princípio que desejamos fazer compreender a todos os que lerem estas linhas.
Demonstra o poder da fé em relação com o cumprimento da obra do Senhor. Se os
quatro homens, cuja conduta é posta aqui diante de nós, se tivessem deixado
influenciar por um falso fatalismo, teriam argumentado que não valia a pena fazer
coisa alguma — se o paralítico devia ser curado, deveria ser sem nenhum esforço
humano. Porque haviam de incomodar-se a subir ao telhado da casa, descobrir o
telhado e baixar o doente até junto de Jesus?- Ah! Foi conveniente para o enfermo
e bom para eles não terem atuado com um tal infeliz raciocínio! Veja-se como
atuou a sua encantadora fé! Alegrou o coração do Senhor Jesus; trouxe o enfermo
ao lugar de cura, de perdão e bênção; e deu ocasião à manifestação do poder divino
que chamou a atenção de todos os presentes e deu testemunho da grande verdade
que Deus estava na terra na pessoa de Jesus de Nazaré, curando enfermidades e
perdoando pecados.
Muitos outros exemplos podiam ser acrescentados, mas não há necessidade. Toda a
Escritura estabelece o fato de que a incredulidade impede a nossa bênção, dificulta
a nossa utilidade, priva-nos do privilégio raro de sermos instrumentos reputados
de Deus na realização da Sua obra gloriosa e de ver as operações do Seu poder e do
Seu Espírito entre nós; e, por outro lado, que essa fé atrai bênçãos e poder não só
para nós próprios mas também para outros; que glorifica e satisfaz Deus, afastando
a criatura da cena e abrindo lugar para a manifestação do poder divino. Em suma,
não há limites para a bênção que poderíamos receber das mãos de Deus, se os
nossos corações fossem dirigidos por aquela fé simples que conta sempre com Ele e
que Ele Se compraz sempre em honrar. "Seja-vos feito segundo a vossa fé."
Preciosas palavras para a alma! Que elas nos animem a obter e mais
abundantemente dos inesgotáveis recursos que temos em Deus! Ele deleita-Se em
nos servir, bendito seja para sempre o Seu santo nome! A Sua palavra diz-nos:
"Abre bem a tua boca, e ta encherei" (SI 81:10). Nunca será demais o que
esperamos do Deus de toda a graça, que nos deu o Seu unigênito Filho, e nos dará
com Ele livremente todas as coisas.
Mas Israel não pôde confiar em Deus para os introduzir na terra; presumiram
entrar nela na sua própria força, e, como consequência, tiveram de fugir diante dos
seus inimigos. Assim terá de ser sempre. A arrogância e a fé são duas coisas
totalmente diferentes; a primeira só pode resultar em derrota e desastre; a última
em vitória segura e certa.

Submissão à Vontade de Deus


"Depois, viramo-nos, e caminhamos ao deserto, caminho do mar Vermelho, como
o SENHOR me tinha dito, e muitos dias rodeamos a montanha de Seir." "Existe
uma grande beleza moral na maneira como Moisés se liga com o povo. Ele, Josué e
Calebe tiveram de voltar para o deserto na companhia da congregação incrédula.
Isto podia parecer, segundo o critério humano, duro; podemos estar certos de que
era bom e proveitoso. Há sempre uma grande benção em nos inclinarmos perante
a vontade de Deus, apesar de nem sempre podermos ver como e por que as coisas
se dão. Não lemos que esses honrados servos de Deus tivessem proferido uma
simples palavra de murmuração por terem de voltar para o deserto por quarenta
anos, embora estivessem dispostos a subir e entrar na terra. Não; limitaram- se
simplesmente a voltar atrás. E bem podiam fazê-lo, visto que o Senhor voltou
também atrás. Como poderiam eles lamentar- se, vendo o carro do Deus de Israel
dirigir-se para o deserto? Certamente a graça paciente e a misericórdia de Deus
podiam muito bem ensinar-lhes a maneira de aceitar de bom grado uma
prolongada permanência no deserto e esperar o bendito momento de entrar na
terra prometida.
É uma grande coisa submetermo-nos sempre humildemente à mão de Deus.
Podemos estar certos de fazer uma boa colheita de bênção com tal exercício. É
realmente tomar o jugo de Cristo, o qual, como Ele próprio nos ensina, é o
verdadeiro segredo do descanso. "Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim,
que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve."
O que era este jugo? Era absoluta e completa sujeição à vontade do Pai. E isto que
vemos, com toda a perfeição, em nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ele
podia dizer; "Sim, ó Pai, porque assim te aprouve." Era este o caso com Ele. "Assim
te aprouve." Isto dizia tudo. O Seu testemunho era rejeitado? Parecia que
trabalhava em vão, e gastar as Suas energias sem resultado e inutilmente? Isso que
importava?- "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra." Estava tudo bem. O
que agradava ao Pai, agradava-Lhe a Ele. Nunca teve um pensamento ou um desejo
que não estivesse em perfeita concordância com a vontade de Deus. Por isso, Ele,
como homem, gozava sempre de perfeito descanso. Descansava nos desígnios e
propósitos divinos. A corrente da Sua paz era tranquila desde o princípio ao fim.
Tal era o jugo de Cristo; e isto é o que Ele, em graça infinita, nos convida a tomar
sobre nós mesmos, para que nós também possamos achar descanso para as nossas
almas. Notemos e procuremos compreender as palavras. "Encontrareis descanso •
Não devemos confundir o "descanso" que Ele dá com o "descanso" que
encontramos. Quando a alma cansada, oprimida, e sobrecarregada, vem a Jesus
com simples fé, Ele dá descanso, descanso estável, descanso que emana da plena
segurança de que tudo está feito; os pecados tirados para sempre e; justiça
perfeitamente cumprida, revelada e possuída; todas as interrogações divina e
eternamente atendidas; a consciência tranquilizada.
Tal é o descanso que Jesus dá, quando vimos a Ele. Contudo, temos de andar por
entre as cenas e circunstâncias da nossa vida diária. Existem provações,
dificuldades, trabalhos, infortúnios, contrariedades e reveses de toda a espécie.
Nenhuma destas coisas pode, de modo algum, afetar o descanso que Jesus dá; mas
podem interferir seriamente com o descanso que devemos achar. Não incomodam
a consciência; mas podem perturbar grandemente o coração; podem tornar-nos
muito impacientes, irritados e aborrecidos. Por exemplo, devo pregar em Glasgow,
pois assim está anunciado; mas eis-me doente num quarto em Londres. Isto não
incomoda a minha consciência; mas pode perturbar grandemente o meu coração;
posso estar em perfeita febre de desassossego, a ponto de exclamar: "Que
aborrecimento! Que terrível contratempo! Que hei-de fazer? É uma fatalidade!"
E como há-de resolver-se este estado de coisa? Como há-de tranquilizar-se o
coração, e acalmar o desassossego do espírito? Que necessito eu<i Preciso de
descanso. Como vou encontrá-lo? Inclinando-me e tomando o precioso jugo de
Cristo sobre mim; o próprio jugo que Ele sempre levou nos dias da Sua carne; o
jugo de completa sujeição à vontade de Deus. Necessito de poder dizer, sem a
mínima reserva, do recôndito do meu coração: "Seja feita a Tua vontade, ó
Senhor." Necessito de um sentido tão profundo do Seu perfeito amor por mim e da
Sua infinita sabedoria em todas as Suas relações comigo que eu não quereria que as
coisas fossem de outra maneira, ainda que estivesse em meu poder alterá-las; sim,
que não quereria mover um dedo para alterar a minha situação ou as
circunstâncias, sentindo que era muito melhor para mim achar-me num leito de
dor em Londres do que num púlpito em Glasgow.
Nisto encontra-se o profundo e precioso segredo de descanso do coração em
oposição à intranquilidade. É simplesmente a possibilidade de dar graças a Deus
por tudo, por mais contrário que seja à nossa própria vontade e destrutivo dos
nossos planos. Não é simplesmente anuir à verdade de que "todas as coisas
contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados por seu decreto" (Rm 8:28). É o sentimento positivo, a realização atual
do fato divino que as coisas que Deus determina são as melhores para nós. É
descanso perfeito no amor, sabedoria, poder e fidelidade d'Aquele que
graciosamente tomou a Seu cargo todas as nossas coisas e Se tem encarregado de
tudo que nos diz respeito para o tempo presente e a eternidade. Sabemos que o
amor fará sempre o que é mais conveniente para o objeto amado. Que será ter Deus
ocupado com o que é melhor para nós? Onde está o coração que não ficará
satisfeito com o que Deus tem melhor, se tão somente conhecer alguma coisa
d'Ele?
Porém, antes que o coração possa estar satisfeito com a Sua vontade, Ele deve ser
conhecido. Eva, no jardim do Éden, enganada pela serpente, sentiu-se descontente
com a vontade de Deus. Desejou qualquer coisa que Ele havia proibido; e o diabo
encarregou-se de suprir o que ela desejava. Pensou que o diabo a podia servir
melhor do que Deus. Pensou melhorar as suas circunstâncias despegando-se das
mãos de Deus e colocando-se a si mesma nas mãos de Satanás. E por isso que
nenhum coração não regenerado pode jamais, de modo algum, descansar na
vontade de Deus. Se esquadrinharmos o coração humano até ao âmago, se o
submetermos a uma análise perfeita, não encontraremos tanto como um simples
pensamento em harmonia com a vontade de Deus — não, nem um só. E até mesmo
no caso de um verdadeiro cristão, filho de Deus, é somente quando, por graça de
Deus, pode mortificar a sua própria vontade, considerar-se a si mesmo morto, e
andar no Espírito, que pode deleitar-se na vontade de Deus e em tudo dar. É uma
das maiores provas de evidência do novo nascimento dizer, sem sombra de dúvida,
a respeito de todos os atos de Deus para conosco: "Seja feita a tua vontade." "Sim, ó
Pai, porque assim te aprouve." Quando o coração se encontra nesta disposição,
Satanás nada pode fazer dele. É grande ser-se capaz de dizer ao diabo e ao mundo
— dizer-lhes, não em palavras e de língua, mas de verdade e com fatos—"Estou
perfeitamente satisfeito com a vontade de Deus."
Este é o modo de encontrar descanso. Certifiquemo-nos de que compreendemos
isto. É o remédio divino para essa inquietação, esse descontentamento com a nossa
sorte e esfera de ação predominante infelizmente por toda a parte. É a perfeita cura
da ambição inquietante tão flagrantemente oposta à mente e ao Espírito de Cristo,
mas tão característica do homem deste mundo.
Prezado leitor, cultivemos com santa diligência, esse espírito manso e humilde que
é, aos olhos de Deus, de tanto valor, e que se inclina ante a Sua bendita vontade em
todas as coisas, e justifica os Seus atos, haja o que houver. Então a nossa paz correrá
como um rio, e o Nome de nosso Senhor Jesus Cristo será engrandecido na nossa
vida, no nosso caráter e conduta.
Antes de deixar o assunto profundamente interessante e prático que até agora tem
ocupado a nossa atenção, queremos frisar que existem três atitudes distintas em
que a alma pode achar-se a respeito dos desígnios de Deus, a saber: submissão,
anuência e regozijo. Quando a vontade está quebrantada, há submissão; quando o
entendimento está iluminado quanto ao propósito divino, há assentimento; e
quando os afetos estão ligados com Deus Mesmo há positivo regozijo. Por isso
lemos em capitulo 10 de Lucas: "Naquela mesma hora, se alegrou Jesus no espírito
Santo e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste
essas cosias aos sábios e inteligentes e as revelaste às criancinhas; assim é, ó Pai,
porque assim te aprouve‖. O bendito Senhor encontrou todo o Seu prazer nada e
bebida fazer essa vontade a todo o custo. No serviço ou no sofrimento, na vida ou
na morte, jamais teve qualquer outro motivo senão a vontade do Pai. Podia dizer:
"Porque eu faço sempre o que lhe agrada." Louvor eterno e universal ao Seu
incomparável nome!

Deus Conduz o Seu Povo


Vamos prosseguir agora com o nosso capítulo. Então, o SENHOR me falou,
dizendo: Tendes já rodeado bastante esta montanha; virai-vos para o norte."
A palavra do Senhor determinava tudo. Fixava o prazo que o povo devia
permanecer em qualquer sítio determinado, e indicava, com igual clareza, para
onde deviam dirigir em seguida os seus passos. Não tinham nenhuma necessidade
de calcular ou fazer planos sobre os seus movimentos. Era responsabilidade e
prerrogativa do Senhor preparar tudo para eles; a responsabilidade deles era
obedecer. Não se menciona aqui a nuvem nem a trombeta. E simplesmente a
Palavra de Deus e a obediência de Israel.
Nada pode haver mais precioso para um filho de Deus, se o estado do coração for
reto, do que ser guiado, em todos os seus movimentos, por ordem divina. Isto evita
imensa ansiedade e perplexidade. No caso de Israel, chamados como estavam para
viajar por um grande e terrível deserto, no qual não havia caminho, era uma
inefável misericórdia ter todos os seus movimentos, todos os seus passos, todos os
lugares para acampar, ordenados por um Guia infalível. Não havia necessidade de
se preocuparem com os seus movimentos, nem com o tempo que deviam
permanecer em um lugar determinado, ou onde deviam ir em seguida. O Senhor
cuidava de tudo por eles. Eles só tinham que esperar que Ele os guiasse, e fazer o
que se lhes mandasse.
Sim, prezado leitor, eis aqui o ponto importante — um espírito pronto e obediente.
Se este faltava, estavam sujeitos a toda a sorte de interrogações, discussões e
atividades rebeldes. Se quando Deus disse: "Tendes já rodeado bastante esta
montanha", Israel tivesse respondido: "Não; queremos rodeá-la um pouco
mais,-sentimo-nos aqui muito confortáveis e não desejamos fazer qualquer
mudança" ou, ainda, quando Deus disse: "Virai-vos para o norte", eles tivessem
respondido; "Não; preferimos muito mais ir para leste", qual teria sido o resultado?
Pois, teriam perdido a companhia divina; e quem poderia guiá-los, ou ajudá-los ou
alimentá-los? Só podiam contar com a presença divina com eles enquanto
trilhavam o caminho indicado por ordem divina. Se escolhessem tomar o seu
próprio caminho, nada mais havia para eles senão fome, desolação e trevas. A
corrente da rocha ferida e o maná celestial só podiam ser encontrados no caminho
da obediência.
Agora nós, os cristãos, temos de aprender a nossa lição de tudo isto — uma lição
salutar, necessária e valiosa. É nosso encantador privilégio ter o nosso caminho
assinalado, dia a dia, por autoridade divina. Devemos estar inteira e
completamente persuadidos disto. Não devemos permitir que nos seja extorquida
esta rica bênção pelo raciocínio plausível da incredulidade. Deus tem prometido
guiar-nos, e as Suas promessas são "sim" e "Amém". É nosso dever apropriarmo-nos
dessa promessa, na simplicidade da fé. É tão real, tão sólida e tão verdadeira como
Deus pode fazê-la. Não podemos admitir, nem por um momento, que Israel no
deserto estivesse em melhor situação, em matéria de direção, do que o povo
celestial de Deus está na sua passagem por este mundo. Como conhecia Israel a
duração das paragens ou linha de marchai Pela Palavra de Deus. Estamos nós em
pior estado«?- Longe de nós tal pensamento. Certamente, nós estamos em muito
melhor situação que eles. Temos a Palavra e o Espírito de Deus para nos guiarem.
A nós pertence-nos o elevado e santo privilégio de andar nas pisadas do Filho de
Deus.
Não é isto perfeita orientação? Sim, graças a Deus, é. Escutemos o que nos diz o
nosso adorável Senhor Jesus Cristo: "Eu sou a luz do mundo; quem me segue não
andará em trevas, mas terá a luz da vida." Notemos estas palavras: "Quem me
segue." Ele deixou-nos o exemplo para que seguirmos as suas pisadas (I Pe : 1). Isto
é um guia vivente. Como andou Jesus?- Sempre e tão-somente debaixo do
mandamento de Seu Pai. Segundo ele agia, segundo ele Se movia; sem ele jamais
atuou, andou ou falou.
Ora nós somos chamados para O seguir; e fazendo-o temos a segurança das Suas
próprias palavras de que não andaremos em trevas, mas teremos a luz da vida!
Palavras preciosas! "A luz da vida"\Quem pode sondaras suas vivas profundidades?
Quem pode avaliar devidamente o seu valor? As trevas são passadas e a verdadeira
luz alumia agora, e é nosso dever andar no pleno resplendor que brilha ao longo do
caminho do Filho de Deus. Existe aqui alguma incerteza, alguma perplexidade,
algum fundamento para hesitação"?- Não, evidentemente. Como poderia haver, se
nós O seguimos? É absolutamente impossível conciliar as duas ideias.
E note-se que de nenhum modo se trata aqui de ter um texto liberal da Escritura
para cada movimento ou cada ato. Por exemplo, eu não posso esperar que haja um
texto na Escritura ou que venha uma voz do céu para indicar-me que vá a Londres
ou a Edinburgo, ou quanto tempo devo ali permanecer no caso de ir. Como, pois,
pode perguntar-se, posso saber onde devo ir ou quanto tempo devo ficará A
resposta é simples: espera em Deus com sinceridade de coração, e Ele fará o teu
caminho tão claro como o raio de sol. Isto foi o que Jesus fez; e se nós O seguirmos,
não andaremos em trevas. "Guiar-te-ei com os meus olhos", é uma promessa
preciosa; mas a fim de podermos tirar proveito dela devemos estar bastante perto
d'Ele para discernir os movimentos dos Seus olhos, e ter bastante intimidade com
Ele para compreender o seu significado.
Assim é em todos os pormenores da vida diária. A resposta a mil e uma
dificuldades e a solução para inúmeros problemas está em esperarmos pela direção
divina e nunca tentarmos dar um passo sem ela. Se não temos luz para nos
movermos, é claro que o nosso dever é estarmos quietos. Nunca devemos dar um
passo na incerteza. Acontece por vezes que nos cansamos com os nossos
movimentos ou ação, quando Deus quer que estejamos quietos sem nada fazermos.
Oramos a Deus sobre o assunto, mas não obtemos resposta; recorremos ao
conselho dos nossos amigos, mas eles não podem ajudar-nos; pois é inteiramente
uma questão entre as nossas almas e o Senhor. Desta forma somos lançados na
dúvida e ansiedade. E por quê? Simplesmente porque não temos um só alvo: não
estamos seguindo Jesus, "a luz do mundo". Podemos estabelecer, como princípio
fixo, um precioso axioma da vida divina, que se seguirmos a Jesus, teremos a luz da
vida. Assim Ele o disse, e isso é bastante para a fé.
Por isso, julgamo-nos perfeitamente autorizados a concluir que Aquele que guiou
o Seu povo terrestre, em todas as suas peregrinações, pelo deserto, pode guiar e
guiará o Seu povo celestial hoje em todos os seus movimentos e caminhos. Mas,
por outro lado, certifiquemo-nos de que não estamos inclinados a fazer a nossa
própria vontade, seguindo o nosso próprio caminho ou cumprindo os nossos
próprios planos. "Não sejais como o cavalo, nem como a mula, que não têm
entendimento, cuja boca precisa de cabresto e freio, para que se não atirem a ti" (SI
32:9). Que o nosso maior desejo seja andar nas pisadas d'Aquele bendito Senhor
que não agradou a Si mesmo, mas sempre se moveu na corrente da vontade
divina—nunca atuou sem autoridade divina; que, ainda que era Deus bendito
sobre todos, havendo tomado o Seu lugar na terra como homem, pôs de parte
completamente a Sua vontade, e achou a Sua comida e a Sua bebida em fazer a
vontade de Seu Pai. Deste modo os nossos corações e as nossas inteligências serão
mantidos em perfeita paz; e nós poderemos avançar com passo decidido e firme,
dia após dia, ao longo do caminho que nos é indicado pelo nosso divino e sempre
presente Guia, o qual não só conhece, como Deus, cada passo do caminho, mas
que, como Homem, já o trilhou antes de nós, e nos deixou o exemplo para que
seguíssemos as Suas pisadas. Possamos nós segui-Lo com mais fidelidade, em todas
as coisas, através do ministério gracioso do Espírito Santo que habita em nós!

O Governo de Deus

(a) Edom, Moabe e os Filhos de Amom


Devemos agora chamar a atenção do leitor para um assunto do Velho Testamento,
o qual ocupa um grande lugar na Escritura do velho Testamento, e que está
ilustrado de um modo patente no capítulo aberto ante os nossos olhos, isto é: o
governo do mundo por Deus e a admirável ordem por Ele estabelecida das nações
da terra. E um fato grandioso e muito importante, digno de ser tido
constantemente em conta, que Aquele a Quem conhecemos como "o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo", e nosso Deus e Pai, toma um interesse real, vivo e
pessoal nos negócios das nações; que toma conhecimento dos seus movimentos e
das relações de umas com as outras.
E verdade que tudo isto está em imediata relação com Israel e a terra da Palestina,
como lemos em capítulo 32 do nosso livro, versículo 8 — uma passagem de
singular interesse e de grande poder sugestivo. "Quando o Altíssimo distribuía as
heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos
dos povos, conforme o número dos filhos de Israel." Israel era e será ainda para
Deus o centro da terra, e é um fato do maior interesse que, desde o princípio, como
vemos em Gênesis 10, o Criador e Governador do mundo formou as nações e fixou
os seus termos segundo a Sua própria vontade soberana e em relação direta com a
semente de Abraão, e essa estreita faixa de terra, que eles devem possuir em
virtude do concerto eterno feito com os seus antepassados.
Porém, em capítulo 2 de Deuteronômio, vemos o Senhor, em Sua fidelidade e
justiça intervindo para proteger três nações distintas no gozo dos seus direitos
nacionais, e isto, também, contra a invasão do Seu próprio povo escolhido. Assim
Ele diz a Moisés: "E dá ordem ao povo, dizendo: Passareis pelos termos de vossos
irmãos, os filhos de Esaú, que habitam em Seir; e eles terão medo de vós; porém,
guardai-vos bem. Não vos entremetais com eles, porque vos não darei da sua terra,
nem ainda a pisada da planta de um pé; porquanto a Esaú tenho dado a montanha
de Seir por herança. Comprareis deles, por dinheiro, comida para comerdes; e
também água para beber deles comprareis por dinheiro."
Israel podia imaginar que nada tinha a fazer senão apoderar-se das terras dos
edomitas; mas tiveram de aprender alguma coisa muito diferente; tiveram de
aprender que o Altíssimo é o Governador sobre as nações; que toda a terra Lhe
pertence, e que a distribui em porções a um e a outro, segundo a Sua própria
vontade.
E um fato magnífico para ter sempre em vista. A grande maioria dos homens
pensam pouco nele. Imperadores, reis, príncipes, governadores, homens de estado
tomam-no pouco em conta. Esquecem que Deus Se interessa pelos negócios da
nações; que concede reinos, províncias e terras como melhor Lhe parece. Atuam,
por vezes, como se fosse apenas uma questão de conquista militar e como se Deus
nada tivesse a ver com a questão de fronteiras nacionais e possessões territoriais.
Isto é um grande erro. Não compreendem o significado e força desta simples frase:
"A Esaú tenho dado a montanha de Seir por herança." Deus nunca abdicará dos
Seus direitos a este respeito. Não permitiu que Israel tocasse um simples átomo da
propriedade de Esaú. Deviam, para empregar uma frase moderna, pagar a pronto o
que necessitavam, e seguir pacificamente o seu caminho. O povo de Deus não
podia pensar no massacre indiscriminado e no saque.
E note-se a encantadora razão para tudo isto. "Pois o SENHOR, teu Deus, te
abençoou em toda a obra das tuas mãos; ele sabe que andas por este grande deserto;
estes quarenta anos o SENHOR, teu Deus, esteve contigo; coisa nenhuma te
faltou." Bem podiam pois deixar Esaú em paz e as suas possessões intactas. Eles
eram objeto dos ternos cuidados do Senhor. Conhecia cada passo que davam na sua
enfadonha viagem através do deserto. Havia, em Sua infinita bondade, tomado a
responsabilidade de todas as suas necessidades. Ia dar-lhes a terra de Canaã,
segundo a promessa feita a Abraão; mas a mesma mão que ia dar-lhes Canaã havia
dado a montanha de Seir a Esaú.
Vemos precisamente a mesma coisa com respeito a Moabe e Amom. "Então, o
SENHOR me disse: Não molestes a Moabe e não contendas com eles em peleja,
porque te não darei herança da sua terra; porquanto tenho dado Ar aos filhos de Ló
por herança." "E chegarás até defronte dos filhos de Amom; não os molestes e com
eles o contendas, porque da terra dos filhos de Amom te não darei herança,
porquanto aos filhos de Ló a tenho dado por herança."
As possessões aqui referidas tinham estado, na antiguidade, nas mãos dos gigantes;
mas era propósito de Deus dar os seus territórios aos filhos de Esaú e Ló, e portanto
destruiu estes gigantes; porque quem ou o que pode interpor-se nos caminhos dos
desígnios divinos?- "Também esta foi contada por terra de gigantes; dantes, nela
habitavam gigantes ... um povo grande, e numeroso, e alto, como os gigantes; e o
SENHOR OS destruiu de diante de si, e estes os lançaram fora e habitaram no seu
lugar;... também os caftorins, que saíram de Caftor, destruíram os aveus, que
habitavam em aldeias até Gaza, e habitaram no seu lugar" (versículos 20 a 23).

(b) Seom, o Rei de Hesbom, o Amorreu


Por isso, a Israel não foi permitido intrometer-se com as possessões de qualquer
destas três nações, os edomitas, amonitas e moabitas. Mas logo em seguida lemos:
"Levantai-vos, e parti, e passai o ribeiro de Arnom; eis aqui na tua mão tenho dado
a Seom, amorreu, rei de Hesbom, e a sua terra, começa a possuí-la, e contende com
eles em peleja."
O princípio importante, em todas estas diversas instruções, é que a Palavra de Deus
deve regular tudo para o Seu povo. Não competia a Israel perguntar por que
deviam deixar intactas as possessões de Esaú e Ló e apoderar-se das de Seom.
Deviam fazer simplesmente o que lhes era dito. Deus pode fazer o que Lhe apraz.
Os Seus olhos estão postos sobre toda a cena. Esquadrinha tudo. Os homens podem
pensar que Ele tem esquecido a terra; mas não a tem esquecido, bendito seja o Seu
nome. Ele é, como o apóstolo nos diz no seu discurso em Atenas: "Senhor do céu e
da terra"; e "de um só fez toda a geração dos homens para habitar sobre toda a face
da terra, determinando os tempos já dantes ordenados e os limites da sua
habitação". E, além disso, "tem determinado um dia em que com justiça há-de
julgar o mundo, por meio do varão que destinou; e disso deu certeza (prova) a
todos, ressuscitando-o dos mortos."
Aqui temos uma grande e grave verdade a que os homens fariam bem em prestar
atenção, os homens de todas as condições e categorias. Deus é o Soberano
Dominador do mundo. Não dá conta de nenhum dos Seus assuntos. Destitui uns e
nomeia outros. Reinos, tronos, governos estão todos à Sua disposição. Atua
segundo a Sua própria vontade na disposição e administração dos negócios
humanos. Mas, ao mesmo tempo, considera os homens responsáveis pelos seu atos,
nos diversos cargos em que a Sua providência os tem colocado. O governante e os
governados o rei, o governador, o magistrado, o juiz, todas as classes e graduações
de homens terão, mais cedo ou mais tarde, de prestar contas a Deus. Cada um,
como se fora o único existente, há-de comparecer diante do tribunal de Cristo, e ali
rever toda a sua vida, desde o princípio ao fim. Cada ato, cada palavra, cada
pensamento secreto se manifestará ali com terrível clareza. Ninguém poderá
escapar no meio da multidão. A Palavra declara que "cada um será julgado segundo
as suas obras". Será um juízo estritamente individual e claramente distinto. Em
suma, será um julgamento divino, e portanto absolutamente perfeito. Nada será
passado por alto. "De toda palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta
no dia do juízo"(Mt 12:36). Reis, governadores e magistrados terão de explicar a
razão da maneira como têm usado o poder que lhes foi confiado e as riquezas que
passaram pela suas mãos. O nobre e o rico, que têm gasto a sua fortuna e o seu
tempo em loucuras, vaidade, fausto e própria satisfação terão de responder por
tudo isso perante o trono do Filho do homem, Cujos olhos são como chama de fogo
para o íntimo dos homens; e os Seus pés semelhantes a latão reluzente para
esmagar, em inexorável juízo, tudo que é contra Deus.
A infidelidade pode desdenhosamente perguntar: "Como pode ser isso? Como
poderão os incontáveis milhões de seres da raça humana encontrar lugar ante o
tribunal de Cristo? Como Poderá haver tempo suficiente para entrar tão
minuciosamente nos pormenores de cada história pessoal" A fé responde: "Deus
diz que será assim; e isto é concludente; e quanto à interrogação ‗Como‘? a resposta
é: Deus! Infinidade! Eternidade!' Conte-se com Deus, e o silêncio é imposto a todas
as interrogações, e todas as dificuldades são solucionadas num momento." De fato,
a magna e triunfante réplica a todas as objeções dos descrentes dos cépticos, dos
racionalistas, dos materialistas, é precisamente essa majestosa palavra: "DEUS"!
Queremos deixar isto bem gravado no ânimo do leitor, não para o habilitar a
responder aos descrentes, mas para sossego e conforto do seu próprio coração.
Quanto aos descrentes, estamos cada vez mais convencidos que a nossa melhor
sabedoria consiste em agir de acordo com as palavras do Senhor em Mateus 15:
"Deixai-os." É absolutamente inútil disputar com homens que desprezam a Palavra
de Deus e não têm outro fundamento para edificar senão os seus próprios
argumentos. Mas, por outro lado, cremos ser da maior importância que o coração
possa sempre descansar, em toda a simplicidade natural de uma criança, na
verdade da Palavra de Deus. "Porventura diria ele e não o faria? Ou falaria e não o
confirmaria" (Nm 23:19).
Eis aqui o suave e santificado lugar de descanso da fé, o abrigo calmo onde a alma
pode encontrar refúgio contra todas as correntes contraditórias de pensamento e
sentimento humanos. "Mas a palavra do Senhor permanece para sempre. E esta é a
palavra que entre vós foi evangelizada" (I Pe 1:25). Nada pode afetar a Palavra de
Deus. Está para sempre estabelecida nos céus; e tudo que devemos fazer é
guardá-la em nossos corações como nossa verdadeira possessão; o tesouro que
temos recebido de Deus; a fonte viva da qual podemos sempre beber para
refrigério e consolação das nossas almas. Então a nossa paz correrá como um rio, e
o nosso caminho será como a luz que resplandece mais e mais até que seja dia
perfeito.
Que assim seja, ó Senhor, com todo o Teu povo amado, nestes dias de crescente
infidelidade! Que a Tua santa Palavra seja mais e mais preciosa aos nossos corações!
Que as nossas consciências experimentem o seu poder! Que as suas celestiais
doutrinas formem o nosso caráter e governem a nossa conduta em todas as relações
da vida, para que o Teu nome seja glorificado em tudo!

CAPÍTULO 3

OGUE, REI DE BASÃ

"Depois, nos viramos e subimos o caminho de Basã: e Ogue; rei de Basã, nos saiu ao
encontro, ele e todo o seu povo, à peleja em Edrei. Então, o SENHOR me disse:
Não o temas, porque a ele, e a todo o seu povo, e a sua terra tenho dado na tua mão;
e far-lhe-ás como fizeste a Seom, rei dos amorreus, que habitava em Hesbom. E
também o SENHOR, nosso Deus, nos deu na nossa mão a Ogue, rei de Basã, e a
todo o seu povo; de maneira que o ferimos, até que ninguém lhe ficou de restante.
E, naquele tempo, tomamos todas as suas cidades; nenhuma cidade houve que lhes
não tomássemos: sessenta cidades, toda a borda da terra de Argobe e o reino de
Ogue em Basã. Todas essas cidades eram fortificadas com altos muros, portas e
ferrolhos; além de outras muitas cidades sem muros. E destruímo-las, como
fizemos a Seom, rei de Hesbom, destruindo todas as cidades, homens, mulheres e
crianças. Porém todo o gado e o despojo das cidades, tomamos para nós por presa"
(versículos 1 a 7).
As instruções divinas quanto a Ogue, rei de Basã, eram precisamente idênticas às
que haviam sido dadas, no capítulo precedente, com respeito a Seom, amorreu; e
para compreender ambas, devemos considerá-las unicamente à luz do governo de
Deus - um assunto apenas pouco compreendido, ainda que de profundo interesse e
importância prática. Devemos distinguir corretamente entre a graça e o governo.
Quando contemplamos a Deus em ato de governo, vemo-Lo manifestando o Seu
poder em forma de justiça: punindo os malfeitores; derramando vingança sobre os
Seus inimigos; destruindo impérios; revolvendo tronos; destruindo cidades;
varrendo nações e tribos. Vemos-Lo ordenar ao Seu povo que mate homens,
mulheres e crianças a fio de espada; que incendeiem as suas habitações e
convertam as cidades em montões de escombros.
Esta passagem da Escritura é maravilhosa: põe diante de nós um tema que corre
através de todas as Escrituras do Velho Testamento — tema que requer a nossa
reverente e profunda atenção. Quer nos voltemos para os cinco livros de Moisés,
quer para os livros históricos, os Salmos ou os profetas, vemos como o Espírito
inspirador nos dá minuciosos pormenores dos atos de Deus em governo. Temos o
dilúvio nos dias de Noé, quando a terra, com todos os seus habitantes, com exceção
de oito pessoas, foi destruída por um ato de governo divino. Homens, mulheres,
crianças, gado, aves e répteis foram todos varridos e sepultados debaixo das ondas e
vagas do justo juízo de Deus.
Depois vemos nos dias de Ló como as cidades da planície, com todos os seus
habitantes, homens, mulheres e crianças foram, dentro de algumas horas,
entregues à completa destruição, destroçadas pela mão do Deus Todo-poderoso e
sepultadas sob as profundas e negras águas do Mar Morto — "Assim como Sodoma,
e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo- se corrompido como
aqueles e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo
eterno" (Judas 7).
Assim, também, conforme vamos passando as páginas da história inspirada, vemos
as sete nações de Canaã, homens, mulheres e crianças, entregues às mãos de Israel
para um juízo inexorável; do qual nada que respirava devia ser deixado vivo.
Porém, temos de dizer que, na verdade, o tempo nos faltaria até para referir todas
as passagens da Sagrada Escritura que põem diante de nós os atos solenes do
governo divino. Basta dizer-se que a linha de evidência se estende desde o Gênesis
ao Apocalipse, começando com o dilúvio e terminando com a destruição pelo fogo
do sistema atual de coisas.
Ora, a questão é esta: Somos competentes para compreender estes procedimentos
do governo de Deus? Compete-nos a nos julgá-los? Somos capazes de explicar os
profundos e terríveis mistérios da providência divinal Podemos nós explicar o fato
tremendo de crianças envolvidas no julgamento dos pais culpados ou somos
convidados a dar a sua razão?- A ímpia infidelidade pode escarnecer destas coisas;
o mórbido sentimentalismo pode escandalizar-se com elas; mas o verdadeiro
crente, o cristão piedoso, o estudante reverente da Sagrada Escritura, responderá a
todos com esta simples, mas certa, pergunta: "Não faria justiça o juiz de toda a
terral"
Prezado leitor, podemos estar certos de que esta é a única e verdadeira maneira de
resolver tais interrogações. Se o homem quer julgar as ações de Deus em Seu
governo; se pode tomar sobre si mesmo a responsabilidade de decidir sobre o que é
e o que não é digno de Deus fazer, então, na verdade, nós temos perdido
completamente o verdadeiro sentido de Deus. E isto é precisamente o que o diabo
procura conseguir. Quer afastar de Deus o coração; e para este fim, leva o homem a
raciocinar, a inquirir e a especular em regiões que estão tão longe do seu alcance
quanto o céu está acima da terra. Podemos compreender Deus? Se pudéssemos, nós
próprios seríamos Deus.
É, ao mesmo tempo, absurdo e ímpio, no mais alto grau, que fracos mortais se
atrevam a criticar os conselhos, decretos e desígnios do Criador todo-poderoso e
sábio Governador do universo. Seguramente, todos os que assim procedem se
darão conta mais cedo ou mais tarde, do seu terrível equívoco. Bom seria que todos
os inquiridores e chicaneiros prestassem atenção à pergunta penetrante do
apóstolo inspirado em Romanos 9: 'Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus
replicas? Porventura, a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste
assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um
vaso para honra e outro para desonra?
Quão simples! Quão convincente! E como é irrefutável! Este é o método divino de
ir ao encontro de todos os quês e porquês do raciocínio dos infiéis. Se o oleiro tem
poder sobre a massa que segura na mão — um fato que ninguém pensará contestar
— quanto mais o Criador de todas as coisas tem poder sobre as criaturas que as Suas
mãos têm formado! Os homens podem discorrer e argumentar interminavelmente
sobre o motivo por que Deus permitiu que o pecado entrasse no mundo; por que
não aniquilou imediatamente Satanás e os seus anjos; por que permitiu que a
serpente tentasse Eva; por que não evitou que ela comesse do fruto proibido. Em
suma, os porquês são intermináveis; mas a resposta é a mesma: "Mas, ó homem,
quem és tu, que a Deus replicas?" Como é monstruoso que um pobre verme da
terra se atreva a julgar os juízos inescrutáveis do Deus Eterno! Que cegueira e
arrogante loucura de uma criatura cujo entendimento está obscurecido pelo
pecado, e que, portanto, é absolutamente incapaz de formar um reto juízo sobre
qualquer coisa divina, celestial ou eterna, atrever-se a decidir como Deus deve agir
em um determinado caso! Ah, é de recear que milhares que hoje argumentam com
aparente destreza contra a verdade de Deus, descubram o seu erro fatal quando for
demasiado tarde para o corrigir!
E quanto a todos aqueles que, muito longe de ocuparem o terreno dos infiéis, estão
contudo perturbados com dúvidas e temores acerca de alguns dos atos do governo
de Deus, e sobre a terrível questão do castigo eterno (1), queremos sinceramente
recomendar-lhes que estudem e se encham do espírito desse pequeno e encantador
Salmo 131: "SENHOR, O meu coração não se elevou, nem os meus olhos se
levantaram; não me exercito em grandes assuntos, nem em coisas muito elevadas
para mim. Decerto, fiz calar e sossegar a minha alma; qual criança desmamada para
com sua mãe, tal é a minha alma para comigo."
__________
(]) Com respeito ao assunto solene do castigo eterno, queremos fazer algumas
observações, visto que muitos, tanto em Inglaterra como na América, estão
preocupados com as dificuldades a seu respeito.
Existem três coisas que, se forem bem ponderadas, estabelecerão, cremos, todo o
crente na doutrina, (continuação pg. seguinte).
I. A primeira é a seguinte: No Novo Testamento há setenta passagens em que a
palavra "eterna" ocorre. E aplicada à "vida" que os crentes possuem; à "glória" que
deverão gozar; é aplicada a Deus, Romanos 16:26; à "salvação" de que nosso Senhor
Jesus Cristo é o Autor; à "redenção" que Ele adquiriu para nós; e ao "Espírito".
De entre as setenta passagens referidas, que o leitor pode verificar imediatamente
se passar uma vista de olhos por uma concordância grega, há sete em que a mesma
palavra é aplicada ao "castigo" dos ímpios; ao "juízo" que os surpreenderá; ao "fogo"
que os há de consumir.
Ora, a questão é de saber sobre que princípio ou com que autoridade pode alguém
notar sete passagens e dizer que, nelas, a palavra não quer dizer "eterno", ao passo
que nas outras sessenta e três o significado é esse! Reputamos essa afirmação
absolutamente destituída de base e indignidade atenção de qualquer espírito
sensato. Admitimos plenamente que, se o Espírito Santo tivesse achado próprio,
quando falou do juízo dos ímpios, fazer uso de uma palavra diferente a que é usada
nas outras passagens, haveria razão para ponderar o fato. Mas não; o Espírito usa
invariavelmente a mesma palavra, de forma que se negarmos castigo eterno, temos
de negar também a vida eterna, a glória eterna, um Espírito eterno, um Deus
eterno, qualquer coisa eterna.
Em suma, se o castigo não é eterno nada é eterno tanto quanto se refere ao
argumento. Interferir com essa pedra da abóbada da revelação divina é reduzir o
conjunto de amontoado de ruínas em redor de nós. E é isto precisamente verdade.
E Ito é precisamente o que o diabo procura fazer. Estamos plenamente
convencidos que negar a verdade do castigo eterno é dar o primeiro passo nesse
plano inclinado que ao abismo sombrio do cepticismo universal.
II. A nossa segunda observação é tirada da grande verdade da imortalidade da
alma. Lemos no segundo capítulo de Gênesis, "E formou o SENHOR Deus o
homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi
feito alma vivente." Sobre esta passagem como sobre uma rocha irremovível,
mesmo se não tivéssemos outra base, nós baseamos a grande verdade da
imortalidade da alma humana. A queda do homem não fez diferença a este
respeito. Caído ou não, inocente ou culpado, convertido ou inconvertido, a alma
tem de viver para sempre.
A questão tremenda é esta: "Onde vai ela viver? Deus não pode permitir pecado na
Sua presença. "Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e a vexação não
podes contemplar" (Hc 1:13). Por isso, se o homem morre nos seus pecados, morre
impenitente, sem ter sido perdoado, impuro; então, seguramente, onde Deus está
ele nunca pode chegar; na verdade é o último lugar onde ele gostaria de ir. Nada há
para si senão uma eternidade infindável nesse lago que arde com fogo e enxofre.
II. E, por fim, cremos que a verdade do castigo eterno permanece
intimamente ligada com a natureza infinda da expiação efetuada por nosso Senhor
Jesus Cristo. Se nada menos que um sacrifício infinito pode libertar-nos das
consequências do pecado, essas consequências têm de ser eternas. Esta
consideração pode não ser talvez, na opinião de alguns, de muito peso, mas para
nós o s® poder é absolutamente irresistível. Devemos medir o pecado e suas
consequências, assim como medimos o amor divino e os seus resultados, não pelo
padrão do sentimento ou razão humanos, mas pelo padrão da cruz de Cristo.

Então quando o coração respira suavemente desta maneira, pode voltar-se, com
verdadeiro proveito, para as palavras do apóstolo inspirado, em 2 Coríntios 10.
"Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas, sim, poderosas em Deus,
para destruição das fortalezas; destruindo os conselhos e toda a altivez que se
levanta contra o conhecimento de Deus e levando cativo todo o entendimento à
obediência de Cristo."
Sem dúvida, o filósofo, o acadêmico, o pensador profundo sorriem
desdenhosamente ante um modo tão infantil de tratar questões tão importantes.
Porém, isto é um caso de pouca importância no parecer do discípulo piedoso de
Cristo. O mesmo inspirado apóstolo faz pouco caso de toda esta sabedoria e ciência
humanas. Diz ele: "Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem
por sábio neste mundo, faça-se louco para ser sábio. Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus; pois está escrito: Ele apanha os sábios na sua
própria astúcia. E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são
vãos" (1 Co 3:18-20). E outra vez: "Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos
sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o
escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a
sabedoria deste mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu
a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da
pregação"(1 Co 1:19-21).
Eis aqui o grande segredo moral de todo o assunto. O homem tem de reconhecer
que é simplesmente um néscio; e que toda a sabedoria do mundo é loucura.
Verdade humilhante, mas salutar! Humilhante, porque coloca o homem no seu
próprio lugar. Salutar, sim, preciosíssima, porque nos mostra a sabedoria de Deus.
Ouvimos, hoje em dia, falar muito da ciência, da filosofia e da cultura.
"Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?"
Compreendemos completamente o significado destas palavras?- Ah, é de recear
que são muito pouco compreendidas! Não falta quem de boa vontade procure
convencer-nos de que a ciência tem ido muito mais longe do que a Bíblia (1).
Infelizmente para a ciência e todos os que lhe prestam atenção! Se tem ido mais
longe do que a Bíblia, para onde tem ido? Na direção de Deus de Cristo, do céu, da
santidade, da paz? Não; mas inteiramente na direção oposta. E onde deve tudo
acabará Trememos ao pensar e sentimos relutância em formular a resposta.
Contudo devemos ser fiéis e declarar solenemente que o fim certo e seguro do
caminho ao longo do qual a ciência humana conduz os seus devotos é a negrura das
trevas para sempre.
__________
(1) Devemos fazer a distinção entre toda a ciência e a "falsamente chama ciência‖.
E além disso devemos fazer distinção entre os fatos da ciência e as conclusões dos
homens de ciência. Os fatos são o que Deus tem feito e está fazendo; mas quando os
homens dispõem a tirar as suas conclusões deste fatos, fazem os erros mais graves.
Todavia, é um verdadeiro alivio pensar que há muitos filósofos e homens de
ciência que dão a Deus o Seu devido lugar, e que amam a nosso Senhor Jesus Cristo
em sinceridade.

"O mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria." Que fez a filosofia da Grécia
pelos seus discípulos? Fez deles adoradores ignorantes de um "DEUS
DESCONHECIDO". A própria inscrição sobre o seu altar anunciava ao mundo a
sua ignorância e a sua vergonha.
E não podemos nós perguntar legalmente se a filosofia tem feito pelo cristianismo
mais do que fez pela Grécia ? Comunicou- nos o conhecimento do verdadeiro
Deus? Quem se atreverá a dizer que sim? Existem milhões de professos batizados
em toda a extensão da cristandade que não conhecem mais do verdadeiro Deus do
que esses filósofos que Paulo encontrou na cidade de Atenas.
O fato é este: todo aquele que conhece verdadeiramente Deus é o possuidor
privilegiado da vida eterna. Assim o declara o Senhor Jesus Cristo da maneira mais
clara no capítulo 17 de João. "E a vida eterna é esta: que conheçam a ti só por único
Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste." Isto é precioso para toda a alma
que, pela graça, tem obtido este conhecimento. Conhecer a Deus é ter vida — vida
eterna.

Mas como posso eu conhecer a Deus? Onde posso encontrá-Lo? A ciência e a


filosofia podem dizer-mo? Disseram-no alguma vez a alguém? Guiaram alguma
vez algum pobre extraviado a este caminho de vida e paz? Não; nunca. "O mundo
não conheceu a Deus pela sua sabedoria." As antigas escolas de filosofia, opostas
umas às outras, apenas conseguiram submergir a inteligência humana em
profundas trevas e em desesperada confusão; e as escolas modernas de filosofia,
igualmente opostas umas às outras, não são nada melhores. Não podem dar
nenhuma certeza, nenhum abrigo seguro, nenhum sólido fundamento de
confiança à pobre alma ignorante. Especulações estéreis, dúvidas torturantes,
teorias loucas e infundadas é tudo que a filosofia humana, em qualquer época ou de
qualquer nação, tem para oferecer ao sincero indagador da verdade.
Como vamos então conhecer a Deus? Se um tão grandioso resultado depende deste
conhecimento; se conhecer a Deus é vida eterna — e Jesus diz que é — então como
vai Ele ser conhecido? "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que
está no seio do Pai, este o fez conhecer" (Jo 1:18).
Aqui temos uma resposta divinamente simples, divinamente certa. Jesus revela
Deus à alma — revela o Pai ao coração. Fato precioso! Não se nos manda estudar a
criação para aprender o que Deus é — apesar de vermos nela o Seu poder,
sabedoria e bondade. Não somos enviados para a Lei — apesar de vermos nela a
Sua justiça. Não somos mandados à Sua providência, apesar de vermos nela os
profundos mistérios do Seu governo. Não; se queremos saber quem e o que Deus é,
devemos olhar na face de Jesus Cristo, o Filho unigênito de Deus, que habitava no
Seu seio antes que todos os mundos existissem, que era o Seu eterno, o objeto dos
Seus afetos, o centro dos Seus desígnios. E Ele quem revela Deus à alma. Não
podemos ter a mais pequena ideia do que Deus é à parte o Senhor Jesus Cristo.
"Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade." "Porque Deus, que
disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações,
para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo" (2 Co
4:6).
Nada pode exceder o poder e a bem-aventurança de tudo isto. Não há trevas aqui;
não existe incerteza. "Vão passando as trevas, e já a verdadeira luz alumia" (1 Jo
2:8). Sim; alumia na face de Jesus Cristo. Podemos contemplar pela fé o bendito
Senhor; podemos seguir a Sua maravilhosa carreira na terra; ver como andou
fazendo bem e curando todos os oprimidos do diabo; notar o Seu próprio olhar, as
Suas palavras, obras e caminhos; vê-Lo curar os enfermos purificar os leprosos,
abrir os olhos aos cegos, os ouvidos dos surdos, fazer andar os coxos, sarando os
mutilados, ressuscitando os mortos, enxaguando as lágrimas das viúvas,
alimentando os famintos, ligando os corações quebrantados, satisfazendo todas as
formas de necessidade humana, aliviando as dores humanas, acalmando temores
humanos, e fazendo tudo isto de um modo tal, com uma graça tão tocante e com tal
doçura, que fazia sentir a cada um, no recôndito da sua alma, que era o maior gozo
do Seu coração amante poder atender daquele modo as suas necessidades.
Ora, em tudo isto Ele revelou Deus ao homem; de modo que se queremos saber o
que Deus é, temos simplesmente de olhar para Jesus. Quando Filipe disse: "Senhor,
mostra-nos o Pai, o que nos basta", a resposta imediata foi: "Estou há tanto tempo
convosco, e não me tendes conhecido, Filipe«?- Quem me vê a mim vê o Pai; e
como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês tu que eu estou no Pai e que o Pai está
em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que
está em mim, é quem faz as obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim;
crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras" (Jo 14).
Aqui está verdadeiro descanso para o coração. Conhecemos o verdadeiro Deus e
Jesus Cristo a quem Ele enviou; e isto é vida eterna. Conhecemo-Lo como nosso
próprio Deus e Pai e a Cristo como nosso amoroso Salvador e Senhor; podemo-nos
regozijar n Ele, andar com Ele, apoiarmo-nos n'Ele, confiar n'Ele, unirmo-nos a
Ele, receber tudo d'Ele, encontrar n'Ele todas as nossas fontes de vida;
regozijarmo-nos n'Ele todo o dia; encontrar a nossa comida e a nossa bebida em
fazer a Sua santa vontade, estendendo a Sua causa e promovendo a Sua glória.
Prezado leitor, conheces tudo isto por experiência própria? E uma realidade viva,
divina, na tua própria vida? Isto é verdadeiro cristianismo; e não deves estar
satisfeito com nada menos. Dirás talvez que nos temos afastado muito do terceiro
capítulo de Deuteronômio. Mas para onde nos afastamos? Para o Filho de Deus e
para a alma do leitor. Se a isto se chama divagar, seja-o; não é, certamente, para nos
afastarmos do objetivo que somos induzidos a redigir estas "Nótulas", o qual é levar
Cristo e a alma a encontrarem-se ou uni-los, conforme o caso. Não queremos
nunca, nem por um momento, perder de vista o fato de que, tanto escrevendo
como falando, não devemos apenas expor a Escritura, mas buscar a salvação e a
bênção das almas. É por isso que nos sentimos constrangidos, de vez em quando, a
apelar para o coração e a consciência do leitor, quanto ao seu estado presente, e até
que ponto tem feito suas essas imperecíveis realidades que passam em revista
diante de nós. E rogamos sinceramente ao leitor, seja quem for, que busque um
conhecimento mais profundo de Deus em Cristo, e, como consequência, uma mais
íntima companhia com Ele e consagrar-se-Lhe de todo o coração.
Estamos convencidos de que isto é o que é necessário nestes dias de inquietação e
de falta de realidade no mundo, e de indiferença e falta de fervor na igreja
professante. Necessitamos de um padrão muito mais elevado de devoção pessoal,
de um propósito verdadeiro de coração para nos apegarmos ao Senhor e O
seguirmos. Existe muito, muitíssimo, no estado de coisas que nos cerca para nos
desanimar e nos embaraçar. A linguagem dos homens de Judá, nos dias de
Neemias, pode, com certa medida de aptidão e força, aplicar-se aos nossos dias:
"...Já desfaleceram as forças dos carregadores e o pó é muito." Mas, graças a Deus, o
remédio, hoje, como então, deve ser achado na comovedora expressão:
"Lembrai-vos do SENHOR."

Rubem, Gade e Manassés no Outro Lado do Jordão


Voltamos agora ao nosso capítulo, no fim do qual o legislador repete aos ouvidos da
congregação a história do seu procedimento para com os dois reis dos amorreus
juntamente com os fatos relacionados com a herança das duas e meia tribos dalém
do Jordão. E, quanto a este assunto, é interessante observar que ele não suscita
questão sobre o bem ou mal da sua escolha de posse fora da terra da promissão.
Com efeito, da narração que aqui é dada não poderia deduzir-se que as duas e meia
tribos haviam manifestado qualquer desejo sobre o assunto. De tal modo está o
nosso livro longe de ser uma mera repetição dos seus precedentes.
Eis aqui as palavras: "Tomamos, pois, esta terra em possessão, naquele tempo;
desde Aroer, que está junto ao ribeiro de Arnom, e a metade da montanha de
Gileade, com as suas cidades, tenho dado aos rubenitas e gaditas. E o resto de
Gileade, como também todo o Basã, o reino de Ogue, dei à meia tribo de Manasses.
(Toda aquela borda da terra de Argobe, por todo o Basã, se chamava a terra dos
gigantes)... E a Maquir dei Gileade. Mas aos rubenitas e gaditas dei desde Gileade
até ao ribeiro de Arnom, o meio do ribeiro e o termo; e até ao ribeiro de Jaboque, o
termo dos filhos de Amom. ...E vos mandei mais, no mesmo tempo, dizendo: O
SENHOR, vosso Deus, vos deu esta terra, para possuí-la"—nem uma palavra sobre
o fato de eles a haverem pedido — "passai, pois, armados vós, todos os homens
valentes, diante de vossos irmãos, os filhos de Israel. Tão-somente vossas
mulheres, e vossas crianças, e vosso gado (porque eu sei que tendes muito gado)
ficarão nas vossas cidades que já vos tenho dado, até que o SENHOR dê descanso a
vossos irmãos como a vós, para que eles herdem também a terra que o SENHOR,
vosso Deus, lhes há de dar dalém do Jordão; então voltareis cada qual à sua
herança, que já vos tenho dado" (versículos 12 a 20).
Nos nossos estudos sobre o livro de Números, ocupamo-nos de certos fatos
relacionados com o estabelecimento das duas e meia tribos, comprovando que elas
estavam muito abaixo do nível do Israel de Deus escolhendo a sua herança em
qualquer lugar que não fosse do outro lado do Jordão. Mas na passagem que temos
citado não há alusão a este lado da questão, porque o objetivo de Moisés é mostrar
perante toda a congregação a grande bondade, misericórdia e fidelidade de Deus,
não só guiando-os através de todas as dificuldades e perigos do deserto, mas
também dando- lhes, já, aquelas vitórias sobre os amorreus e pondo-os na posse de
regiões tão atrativas e próprias para eles. Em tudo isto ele estabelece a base sólida
dos direitos de Javé à obediência sincera aos Seus mandamentos; e nós podemos
ver imediatamente e apreciar a beleza moral de omitir inteiramente, num tal
relato, a questão acerca do erro de Rubem, Gade e a meia tribo de Manassés
querendo ficar fora da terra da promissão. E, para todo o crente sincero, uma prova
notável não só da excelente e tocante graça de Deus, mas também da divina
perfeição da Escritura.
Sem dúvida, todo o verdadeiro crente entra no estudo da Escritura com a completa
e profunda convicção da sua absoluta perfeição em cada parte. Crê reverentemente
que, desde o Gênesis ao final do Apocalipse, não há um simples defeito, um único
obstáculo, uma só discordância — não; nem sequer uma; tudo é tão perfeito como
o seu divino Autor.
Mas a crença sincera na perfeição divina do conjunto da Escritura nunca poderá
reduzir a nossa apreciação das provas que aparecem em pormenor; pelo contrário,
realçam-na excessivamente. Assim, por exemplo, na passagem que estamos
comentando não é perfeitamente belo observar a falta de qualquer referência à
falta das duas e meia tribos no caso da escolha da sua herança, visto que essa
referência seria inteiramente alheia ao objetivo do legislador e ao propósito do
livro<? Não é motivo de alegria para os nossos corações descobrirem essas infinitas
perfeições e perfeitos e inimitáveis traços?- E seguramente; e não somente isto,
mas estamos persuadidos que quanto mais as glórias morais do livro se impõem às
nossas almas e as suas vivas e insondáveis profundidades se revelam aos nossos
corações, tanto mais convencidos estamos da completa loucura dos assaltos dos
infiéis contra ele; e da fraqueza dos esforços injustificados de muitos bem
intencionados para provar que ele se não contradiz a si mesmo. Graças a
Deus, a Sua Palavra não necessita de apologistas humanos. Fala por si mesma, e
traz consigo as suas poderosas provas; de modo que nós podemos dizer dela o que o
apóstolo diz do seu evangelho: "Mas, se ainda o nosso evangelho está encoberto,
para os que se perdem está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os
entendimentos dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do evangelho
da glória de Cristo, que é a imagem de Deus" (2 Co 4:3-4). Cada vez estamos mais
convencidos de que o método mais eficaz de enfrentar todos os ataques infiéis
contra a Bíblia consiste em manter uma fé mais profunda na sua autoridade e
poder divino; e usá-la como os que estão inteiramente persuadidos da sua verdade
e preciosidade. Só o Espírito de Deus pode habitar qualquer para crer na inspiração
plenária das Sagradas Escrituras. Os argumentos humanos podem estimar-se pelo
que valem; podem, sem dúvida, impor silêncio aos antagonistas; mas não podem
alcançar o coração; não podem fazer com que os raios fecundantes de revelação
divina desçam sobre a alma com poder salvador; isto é obra divina; e enquanto não
for feita, todas as provas e argumentos no mundo devem deixar a alma nas trevas
morais da incredulidade; mas essa obra está feita, não há necessidade de
testemunho humano em defesa da Bíblia. As provas externas, por mais
interessantes e valiosas — e são uma e a outra coisa — não podem acrescentar um
simples jota ou um til à glória dessa revelação incomparável que se deixa em cada
página, cada parágrafo, cada expressão, a impressão clara do seu divino Autor.
Assim como acontece com o sol nos céus, em que cada um dos seus raios fala da
Mão que o fez, assim é com a Bíblia, cada uma das suas frases fala do Coração que a
inspirou. Mas assim como um cego não pode ver a luz do sol, assim tampouco pode
a alma inconvertida ver a força e beleza da Escritura Sagrada. Os olhos têm de ser
ungidos com colírio celestial antes que as perfeições infinitas do Livro divino
possam ser discernidas ou apreciadas.
E agora devemos confessar ao leitor que é a profunda e cada vez mais arraigada
convicção de tudo isto que nos tem induzido à determinação de não ocuparmos o
seu ou o nosso próprio tempo com os ataques que têm sido feitos por autores
racionalistas à porção da Palavra de Deus com que estamos agora ocupados.
Deixamos esta tarefa a outras mãos mais competentes que as nossas. O que mais
desejamos, tanto para os nossos leitores como para nós próprios, é que possamos
alimentar-nos em paz dos verdes pastos que o Pastor e Bispo das nossas almas abriu
amplamente para nós; que possamos auxiliar-nos uns aos outros, ao avançarmos,
para vermos mais e mais da glória moral do que está perante nós; e edificarmo-nos
uns aos outros na nossa santíssima fé. Isto será uma tarefa mais grata para nós, e
cremos que também para os nossos leitores, do que responder aos homens que, em
todos os seus mesquinhos esforços para encontrar defeitos no Sagrado Livro,
apenas mostram, àqueles que são capazes de julgar, que não entendem o que dizem
nem o que afirmam. Se os homens querem habitar nas cavernas e galerias de uma
terrível infidelidade, e ali achar faltas no sol e negar que ele brilha, banhemo-nos
nós à sua luz e procuremos auxiliar outros e procederem de igual modo.
"Não os Temais:
Porque o Senhor, Vosso Deus, é O que Peleja por Vós"
Consideremos agora por um momento os versículos finais do nosso capítulo, nos
quais encontraremos muito que nos interessará, nos instruirá e nos dará proveito.
E, primeiro, Moisés repete aos ouvidos do povo o seu encargo a Josué. "Também
dei ordem a Josué, no mesmo tempo, dizendo: Os teus olhos veem tudo o que o
SENHOR, vosso Deus, tem feito a estes dois reis; assim fará o SENHOR a todos os
reinos, a que tu passarás. Não os temais: porque o SENHOR, vosso Deus, é o que
peleja por vós" (versículos 21-22).
A recordação dos atos de Deus conosco no passado deve fortalecer a nossa
confiança no futuro. Aquele que havia destruído um inimigo tão formidável como
Ogue, rei de Basã, e dado em suas mãos toda a terra dos gigantes, o que não poderia
fazer por eles? Não podiam possivelmente esperar encontrar em toda a terra de
Canaã um inimigo poderoso como Ogue, cuja cama era de tão grandes dimensões
que mereceu ser citada por Moisés. Mas que era ele na presença do Criador
Onipotente? Anões e gigantes são todos a mesma coisa para Ele. O ponto principal
é ter o próprio Deus sempre ante os nossos olhos. Então as dificuldades se
desvanecem. Se Ele serve de cobertura aos nossos olhos, então não podemos ver
outra coisa senão Ele; e isto é o verdadeiro segredo de paz, de verdadeiro poder e
progresso. "Os teus olhos veem tudo o que o SENHOR, vosso Deus, tem feito." E
segundo o que Ele tem feito, assim fará. Tem libertado; e liberta; e libertará. O
passado, o presente e o futuro estão assinalados por divina libertação.
Prezado leitor, estás em qualquer dificuldade?- Estás sobrecarregado com alguma
coisa? Prevês, com apreensão nervosa, alguma formidável desgraçai O teu coração
treme com o simples pensamento disso?- Pode ser que sejas como alguém que
chegou ao último extremo, como o apóstolo Paulo na Ásia, "Sobremaneira
agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal que até da vida
desesperamos" (2 Co 1:8). Se é assim, prezado amigo, aceita uma palavra de
estímulo. E nosso sincero e profundo desejo fortalecer as tuas mãos em Deus, e
alentar o teu coração a confiar n'Ele em tudo que se apresente diante de ti. "Não
temas"; crê somente. Ele nunca desampara um coração confiante — não; nunca.
Aproveita os recursos que estão entesourados n'Ele. Entrega-te a ti próprio, e as
tuas circunstâncias, os teus temores e a tua inquietação, inteiramente nas Suas
mãos, e deixa-os todos com Ele.
Sim; deixa-os ali. E pouco útil pores as tuas dificuldades e as tuas necessidades nas
Suas mãos e logo, quase imediatamente, voltares a tomá-los na tuas. Fazemos isto
frequentemente. Quando sob qualquer pressão, em necessidade, ou em qualquer
grande provação, nos dirigimos a Deus em oração, lançamos sobre Ele os nossos
fardos e parece que ficamos aliviados. Mas, infelizmente, tão depressa deixamos de
estar de joelhos, começamos outra vez a pensar nas dificuldades, a refletir na
provação, a ocuparmo-nos de todas as tristes circunstâncias, até que não sabemos
que havemos de fazer.
Ora isto nunca dará resultado. Desonra tristemente a Deus e, evidentemente,
deixa-nos sobrecarregados e infelizes. Ele quer que os nossos espíritos estejam tão
livres de cuidados como a consciência está livre de culpa. A Sua palavra é: "Não
estejais inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em tudo
conhecidas diante de Deus, pela oração e súplicas, com ação de graças" (Fp 4:6). E
depois? "E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos
corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus."
Assim aconteceu com Moisés, esse amado homem de Deus e honrado servo de
Cristo, procurou animar o seu colaborador e sucessor Josué a respeito de tudo que
estava diante de si. "Não os temais, porque o SENHOR, VOSSO Deus, é o que
peleja por vós." Assim também o abençoado apóstolo Paulo animou o seu amado
filho e cooperador Timóteo a confiar no Deus vivo; a ser forte na graça que há em
Cristo Jesus; a apoiar-se, com inabalável confiança, no seguro fundamento de
Deus; a entregar-se, com indiscutível certeza, à autoridade, ensino, e direção das
Sagradas Escrituras; e assim armado e provido a entregar-se a si mesmo, com santa
assiduidade e verdadeira coragem espiritual, àquela obra a que fora chamado. E
assim também o autor e o leitor destas linhas podem animar-se um ao outro, nestes
dias de crescentes dificuldades, a pegar-se, com fé simples, àquela palavra que está
para sempre estabelecida no céu; a tê-la escondida no coração como um poder vivo
e uma autoridade para a alma, qualquer coisa que nos susterá ainda que o coração e
a carne desfaleçam, e ainda que não tenhamos a presença ou o apoio de um ser
humano. "Porque toda carne é como a erva, e toda a glória do homem, como a flor
da erva. Secou-se a erva e caiu a sua flor; mas a palavra do Senhor permanece para
sempre. E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada" (I Pe 1:24-25).
Quão preciso isto é! Que conforto e consolação! Que estabilidade e descanso! Que
poder, vitória e elevação moral! Não está dentro dos limites da linguagem humana
mostrar a preciosidade da palavra de Deus ou definir, em termos apropriados, o
conforto de se saber que a mesmíssima palavra que está para sempre estabelecida
no céu, e que perdurará através dos séculos incontáveis da eternidade, é a que tem
alcançado os nossos corações nas boas novas do Evangelho, comunicando-nos vida
eterna e dando-nos paz e descanso na obra realizada de Cristo e um objeto de
perfeita satisfação na sua adorável Pessoa. Na verdade, quando pensamos em tudo
isto, não podemos senão reconhecer que cada alento nosso deveria ser como que
um cântico de louvor. Assim será, dentro em pouco, e para sempre, bendito seja o
Seu santo Nome!

Moisés e o SENHOR
Os versículos finais do nosso capítulo apresentam um episódio especialmente
comovedor entre Moisés e o seu Senhor, cujo relato como nos é dado aqui está em
perfeita harmonia, como poderíamos esperar, com o caráter de todo o livro de
Deuteronômio.
"Também eu pedi graça ao SENHOR, no mesmo tempo, dizendo: Senhor JEOVÁ,
já começaste a mostrar ao teu servo a tua grandeza e a tua forte mão; porque, que
deus há nos céus e na terra, que possa fazer segundo as tuas obras e segundo a tua
fortaleza? Rogo-te que meu deixes passar, para que veja esta boa terra que está
dalém do Jordão, esta boa montanha e o Líbano! Porém o SENHOR indignou-se
muito contra mim, por causa de vós, e não me ouviu; antes, o SENHOR me disse:
Basta; não me fales mais neste negócio. Sobe ao cume de Pisga, e levanta os teus
olhos ao ocidente, e ao norte, e ao sul, e ao oriente, e vê com os teus olhos, porque
não passarás este Jordão. Manda, pois, a Josué e esforça-o e conforta-o; porque ele
passará adiante deste povo e o fará possuir a terra que apenas vires" (versículos 23 a
28).
E comovedor ver este eminente servo de Deus solicitar um pedido que não pôde
ser concedido. Anelava ver aquela boa terra dalém do Jordão. A porção escolhida
pelas duas e meia tribos não podia satisfazer o seu coração. Desejava pôr os seus pés
na própria herança do Israel de Deus. Mas não era possível. Havia falado
imprudentemente com os seus lábios junto das águas de Meribá; e, pelo solene e
irrevogável decreto do governo divino, foi proibido de atravessar o Jordão.
Tudo isto o amado servo de Cristo repete humildemente aos ouvidos do povo. Não
lhes oculta o fato que o Senhor havia recusado aceder ao seu pedido. É verdade que
teve de lhes recordar que fora por causa deles. Isso era moralmente necessário que
eles ouvissem. Todavia, diz-lhes, francamente, que o Senhor estava irritado com
ele, e que havia recusado ouvi-lo — recusara conceder-lhe que atravessasse o
Jordão e ordenara-lhe que resignasse o seu cargo e nomeasse o seu sucessor.
Ora, é altamente edificante ouvir tudo isto dos lábios do próprio Moisés.
Ensina-nos uma boa lição, se estamos dispostos a aprendê-la. Alguns de nós
achamos que é verdadeiramente duro confessar que temos feito ou dito qualquer
coisa má — duro reconhecer diante dos nossos irmãos que temos deixado de
compreender a mente do Senhor, em qualquer caso especial. Velamos pela nossa
reputação; somos sensíveis e obstinados. E contudo, por estranha contradição,
admitimos, ou parece que admitimos, em termos gerais, que somos criaturas
pobres, fracas e susceptíveis de errar; e que, abandonados a nós próprios, nada há,
por mais mau que seja, que não sejamos capazes de dizer ou fazer. Porém, uma
coisa é fazer uma humilhante confissão em termos gerais, e outra coisa muito
diferente reconhecer que, em qualquer caso especial, temos cometido um erro
crasso. Este último é uma confissão que muito poucos têm graça para fazer. Alguns
nunca podem admitir que hajam cometido uma falta.
Não foi assim com esse honrado servo cujas palavras acabamos de citar. Não
obstante a sua elevada posição como o chamado, fiel e amado servo do Senhor — o
chefe da congregação, cuja vara havia feito tremer a terra do Egito, não se
envergonhava de se apresentar perante toda a assembleia de seus irmãos e
confessar o seu erro, reconhecer que havia dito o que não devia, e que havia
sinceramente solicitado um pedido que o Senhor não podia conceder-lhe.
Acaso isto rebaixa Moisés no nosso conceito?- Pelo contrário; isto enaltece-o
imensamente. E moralmente encantador ouvir a sua confissão; ver como ele se
curva humildemente aos decretos do governo de Deus; notar a nobreza da sua
conduta para com o homem que ia suceder-lhe no seu ministério. Não havia
vestígio algum de ciúme ou inveja: nenhuma demonstração de orgulho ferido.
Com admirável resignação, ele renuncia ao seu elevado posto, coloca o seu manto
sobre os ombros do seu sucessor e anima-o a desempenhar com santa fidelidade os
deveres do alto cargo que ele próprio devia resignar.
"Aquele que se humilhar será exaltado." Como isto era verdadeiro no caso de
Moisés! Humilhou-se a si mesmo sob a poderosa mão de Deus. Aceitou a santa
disciplina que lhe era imposta pelo governo divino. Não proferiu uma única
palavra de murmuração ante a recusa do seu pedido. Curvou-se a tudo, e por isso
foi a seu próprio tempo exaltado. Se o governo de Deus o excluía de Canaã, a graça
conduzia-o ao cume de Pisga, de onde, na companhia do seu Senhor, lhe era
permitido ver aquela boa terra, em todas as suas belas proporções — vê-la, não
como herdada por Israel, mas como dada por Deus.

A Graça e o Governo
O leitor fará bem em ponderar seriamente sobre o assunto da graça e governo de
Deus. E um tema verdadeiramente importante e prático e encontra-se largamente
ilustrado na Escritura, embora apenas pouco compreendido por nós. Pode
parecer-nos maravilhoso e difícil de compreender que a um homem tão amado
como Moisés fosse recusada a entrada na terra da promissão. Mas vemos nisto uma
ação solene do governo divino, e temos de curvar as nossas cabeças e adorar. Não
se trata apenas do fato que Moisés, em sua capacidade oficial, como representante
do sistema legal, não podia introduzir Israel na terra prometida. Isto é verdade;
mas não é tudo. Moisés falara imprudentemente com os seus lábios. Ele e seu irmão
Arão não glorificaram a Deus na presença da congregação; e por esta razão "O
SENHOR disse a Moisés e a Arão: Porquanto não me crestes a mim, para me
santificar diante dos filhos de Israel, por isso não metereis esta congregação na
terra que lhes tenho dado."

Depois lemos: "E falou o SENHOR a Moisés e a Arão, no monte Hor, nos termos da
terra de Edom, dizendo: Arão recolhido será a seu povo, porque não entrará na
terra que tenho dado aos filhos de Israel, porquanto rebeldes fostes à minha
palavra, nas águas de Meribá. Toma a Arão e a Eleazar, seu filho, e faze-os subir ao
monte Hor. E despe a Arão as suas vestes e veste-as a Eleazar, seu filho, porque
Arão será recolhido e morrerá ali" (Nm 20:12, 23 a 25).
Tudo isto é muito solene. Aqui temos os dois condutores da congregação, os
próprios homens que Deus havia usado para tirar o Seu povo da terra do Egito com
poderosos sinais e prodígios — Moisés e Aarão —, homens altamente honrados
por Deus, e contudo proibidos de entrar em Canaã. E por quê? Notemos o motivo.
"Porquanto rebeldes fostes à minha palavra."
Que estas palavras penetrem bem fundo nos nossos corações. A rebelião contra a
Palavra de Deus é uma coisa terrível; e quanto mais elevada é a posição dos que
assim se revoltam, tanto mais grave é, em todo o sentido, e tanto mais solene e
rápido tem de ser o castigo divino. "A rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o
porfiar é como iniquidade e idolatria" (I Sm 15:23).
Estas palavras são graves e nós deveríamos meditar nelas seriamente. Foram
pronunciadas aos ouvidos de Saul, quando ele deixou de obedecer à Palavra de
Deus; e assim temos diante de nós os exemplos de um profeta, um sacerdote e um
rei, julgados todos pelo governo de Deus por atos de desobediência. O profeta e o
sacerdote foram proibidos de entrar na terra de Canaã, e o rei foi privado do seu
trono simplesmente porque desobedeceram à Palavra do Senhor.
Recordemos isto. A nós, na nossa imaginária sabedoria, podia parecer-nos que
tudo isto era muito severo. Mas somos nós juízes competentes? Esta é a questão
importante em tais assuntos. Tenhamos cuidado de como pretendemos julgar os
decretos do governo divino. Adão foi posto fora do paraíso; Arão foi despojado das
suas vestes sacerdotais; Moisés foi severamente proibido de entrar em Canaã; e
Saul foi exonerado do seu reino; e por quê?- Foi por causa daquilo que os homens
chamam um grave ofensa moral algum pecado escandaloso? Não; foi, em
todos os casos, por
negligenciarem à Palavra do Senhor. Este é o fato importante que devemos ter
sempre presente, nestes dias de obstinação humana em que os homens se
aventuram a impor as suas opiniões, a pensar por si mesmos, a julgar por si mesmos
e a atuarem por si próprios. Os homens perguntam orgulhosamente: "Acaso não
tem todo homem o direito de pensar por si próprio?" Nós respondemos, não,
certamente. Temos o dever de obedecer. Obedecer a quê? Não aos mandamentos
dos homens; não à assim chamada autoridade da igreja; não aos decretos dos
concílios; numa palavra, não a autoridade alguma meramente humana, diga-se o
que se quiser; mas simplesmente à Palavra do Deus vivo — o testemunho do
Espírito Santo—à voz da Escritura. E isto que reclama justamente a nossa
implícita, indiscutível obediência. Perante isso temos de curvar todo o nosso ser
moral. Não temos de raciocinar; não temos de especular; não temos de pesar as
consequências; nada temos que ver com os resultados; não temos de dizer: "Por
quê?" ou "Para quê?" E nosso dever obedecer e deixar tudo o mais nas mãos do
Mestre. O que tem que ver um servo com as consequências? Que tem ele que ver
com os resultados?- O dever essencial de um servo é fazer o que se lhe manda sem
atender a quaisquer outras considerações. Tivesse Adão pensado nisto e não teria
sido lançado fora do Éden. Tivessem Moisés e Arão recordado isto e teriam podido
atravessar o Jordão; tivesse Saul rememorado isto e não teria sido exonerado do seu
trono. E assim, à medida que vamos descendo na corrente da história humana,
vemos este princípio fundamental ilustrado, repetidas vezes; e podemos ficar
certos de que é um princípio de permanente e universal importância.
E recordemos que não devemos procurar enfraquecer este importante princípio
por quaisquer argumentos baseados na presciência de Deus sobre tudo que havia
de acontecer e tudo que o homem faria no decurso do tempo. Os homens
raciocinam desta maneira, mas é um erro fatal. Que tem que ver a presciência de
Deus com a responsabilidade do homem? O homem é responsável ou não? Esta é a
questão. Se é, como certamente cremos, então não pode permitir-se que coisa
alguma interfira com esta responsabilidade. O homem é convidado a obedecer
simplesmente à Palavra de Deus; não é, de modo algum responsável por conhecer
coisa alguma dos secretos desígnios e propósitos de Deus. A responsabilidade do
homem assenta sobre o que é revelado, não sobre o que é segredo. Que sabia, por
exemplo, Adão dos planos eternos de Deus quando foi colocado no jardim do Éden
e proibido de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal? A sua
transgressão foi acaso modificada pelo fato admirável de que Deus usou a ocasião,
dessa própria transgressão, para revelar à vista de todas as inteligências criadas o
Seu plano glorioso de redenção pelo sangue do Cordeiro? Claro que não. Recebeu
um mandamento claro; e a sua conduta deveria ter sido absolutamente governada
por esse mandamento. Desobedeceu, e foi lançado fora do Paraíso para um mundo
que tem, durante seis mil anos, exibido as terríveis consequências de um só ato de
desobediência — o ato de tomar do fruto proibido.
É verdade que, bendito seja Deus, a graça tem descido a este pobre mundo ferido
de pecado e aqui feito uma colheita como nunca poderia ter sido feita nos campos
de uma criação impecável. Mas o homem foi julgado pela sua transgressão. Foi
lançado fora pela mão de Deus em Seu governo; e, por um decreto desse governo,
tem sido obrigado a comer o pão no suor do seu rosto. "Tudo o que o homem
semear, isso também ceifará."
Aqui temos o relato resumido do princípio que se encontra através de toda a
Palavra, e é ilustrado em todas as páginas da história do governo de Deus. Merece a
nossa mais profunda atenção. É, infelizmente, muito pouco compreendido!
Deixamos cair as nossas almas debaixo da influência parcial e portanto das falsas
ideias sobre a graça, cujo efeito é o mais pernicioso. Graça é uma coisa, e governo é
outra. Nunca devem ser confundidos. Queremos sinceramente inculcar no coração
do leitor o fato importante que a gloriosa manifestação da graça soberana de Deus
nunca pode interferir com os decretos solenes do Seu governo.

CAPÍTULO 4

"AGORA, POIS, Ó ISRAEL, OUVE"

A Lei Mosaica e os Mandamentos de Jesus


"Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os
cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de
vossos pais, vos dá."
Aqui temos diante de nós, de um modo proeminente, a característica especial de
todo o livro de Deuteronômio. "Ouve", e "cumpre", para que "vivais" e "possuais".
Eis um princípio universal e permanente. Era verdadeiro para Israel, e é
verdadeiro para nós. A vereda da vida e o verdadeiro segredo de possessão é
obediência aos santos mandamentos de Deus. Vemos isto desde o princípio ao fim
do volume inspirado. Deus deu-nos a Sua Palavra, não para especular ou discutir
acerca dela, mas para nos submetermos a ela. E é segundo a obediência sincera e
venturosa que rendemos aos estatutos e juízos de nosso Pai que trilhamos a senda
brilhante da vida e entramos na realidade de tudo que Deus tem entesourado para
nós em Cristo. "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, este é o que me
ama; e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei
a ele" (Jo 14:21).
Como isto é precioso! E verdadeiramente indizível. E qualquer coisa muito
especial. Seria um erro muito grave supor que o privilégio de que aqui se fala é
desfrutado por todos os crentes. Não é. E desfrutado somente por aqueles que
obedecem amoravelmente aos mandamentos de nosso Senhor Jesus Cristo. Está ao
alcance de todos, mas nem todos o desfrutam, porque não são todos obedientes.
Uma coisa é ser filho, e outro muito diferente ser filho obediente. Uma coisa é ser
salvo, e outra muito diferente amar o Salvador e deleitar-se em todos os Seus
preciosos preceitos.
Podemos ver isto exemplificado continuamente nos nossos círculos familiares. Há,
por exemplo, dois filhos, e um deles só pensa em divertir-se, fazer a sua vontade e
satisfazer os seus próprios desejos. Não tem prazer na companhia de seu pai; não se
preocupa em cumprir os desejos do pai; conhece dificilmente qualquer coisa dos
seus pensamentos, e descuida ou despreza o que sabe deles. Está sempre disposto a
aceitar vestuário, livros, dinheiro — tudo, em suma, que o pai lhe dá; mas nunca
procura agradar ao coração do pai com uma atenção de carinho de sua própria
vontade, ainda que trivial. O outro filho é o contrário de tudo isto. O seu prazer é
estar com o pai; ama a sua companhia, ama os seus modos e as suas palavras;
procura constantemente levar a cabo os desejos de seu pai, proporcionar-lhe
alguma coisa que sabe lhe será agradável. Ama o pai, não pelo que ele lhe dá, mas
porque é seu pai; e acha a sua maior satisfação em estar na sua companhia e em
fazer sua vontade.
Ora, poderemos nós ter alguma dificuldade em compreender quão diferentes serão
os sentimentos do pai para com esses dois filhos? É verdade que são os dois seus
filhos, e ele ama-os com um amor baseado no parentesco que tem com eles. Mas,
além do amor de parentesco comum aos filhos e ao pai, existe o amor de especial
complacência para com o filho obediente. É impossível que um pai possa achar
satisfação na companhia de um filho obstinado, mau e negligente; um tal filho
pode ocupar os seus pensamentos; pode passar noites em claro a pensar nele e a
orar por ele; de bom grado se gastará e deixará gastar por ele; mas ele não lhe é
agradável; não tem a sua confiança; não pode ser o confidente dos seus
pensamentos.
Tudo isto requer a mais atenta consideração daqueles que realmente desejam ser
aceitáveis ou agradáveis ao coração de nosso Pai celestial e a nosso Senhor Jesus
Cristo. Podemos estar certos disto, a obediência é agradável a Deus; e "os seus
mandamentos não são pesados"; antes pelo contrário, são doces e preciosas
expressões do Seu amor, é o fruto e evidência do parentesco que Ele tem conosco.
E não só isto, mas galardoa graciosamente a nossa obediência com uma completa
manifestação de Si Mesmo às nossas almas e a Sua habitação conosco. Isto ressalta
com grande clareza e beleza na resposta do Senhor a Judas, não o Iscariotes, por
cuja pergunta podemos estar agradecidos: "Senhor, de onde vem que te hás de
manifestar a nós e não ao mundo? Jesus respondeu e disse-lhe: Se alguém me ama,
guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele
morada"(Jo 14:23).
Aqui aprendemos que não é uma questão da diferença que existe entre "o mundo"
e "nós", visto que o mundo nada sabe nem de parentesco nem de obediência; e não
é, de modo nenhum, incluído nas palavras do Senhor. O mundo aborrece Cristo,
porque o não conhece. A sua linguagem é: "Afasta-te de nós, porque nós não
queremos o conhecimento dos teus caminhos." "Não queremos que este reine
sobre nós" (Lc 19:14).
Tal é o mundo, até mesmo quando polido pela civilização, e dourado com a
profissão de cristandade. Existe, por baixo do dourado e todo o polimento, um
profundo rancor à pessoa e autoridade de Cristo. O Seu sagrado e incomparável
nome é ligado à religião do mundo, pelo menos em toda a cristandade batizada;
mas atrás da pintura da profissão religiosa oculta-se um coração em inimizade com
Deus e o Seu Cristo.
Mas o Senhor não fala do mundo em João 14. Está recolhido com "os Seus", e é
deles que está falando. Se tivesse de Se manifestar ao mundo, só poderia ser para
juízo e eterna destruição. Mas, bendito seja o Seu nome, Ele manifesta-Se aos Seus
filhos obedientes, àqueles que têm os Seus mandamentos e os guardam — aqueles
que O amam e guardam as Suas palavras.

O Cristão e a Lei
E note-se que quando o Senhor fala dos Seus mandamentos, das Suas palavras, dos
Seus ditos, não quer dizer os dez mandamentos ou lei de Moisés. Sem dúvida, esses
dez mandamentos formam uma parte de todo o cânone da Escritura, a Palavra
inspirada de Deus; mas confundir a lei de Moisés com os mandamentos de Cristo,
seria simplesmente voltar as coisas em completa confusão; seria confundir o
judaísmo com o cristianismo, a lei com a graça. As duas coisas são tão distintas
quanto o podem ser duas coisas; e devem ser assim mantidas por todos os que
devem ser achados na corrente dos pensamentos de Deus.
Por vezes somos desviados pelo simples som das palavras; e por isso, quando
encontramos o vocábulo "mandamentos", concluímos imediatamente que deve
referir-se incontestavelmente à lei de Moisés. Mas isto é um grande e perverso
erro. Se o leitor não está seguro e convencido disto, feche este volume e leia,
atentamente, e com oração, como se estivesse na presença de Deus, com o espírito
livre de todas as influências teológicas e de todos os preconceitos de ensino
religioso, os primeiros cinco capítulos da epístola aos Romanos e toda a epístola aos
Gálatas. Verificará, da maneira mais clara, que o cristão não está, de modo
nenhum, debaixo da lei, para qualquer objetivo, quer para a vida, quer para a
justiça, para santidade ou para a conduta diária ou qualquer coisa mais. Em suma, o
ensino de todo o Novo Testamento estabelece, fora de toda a dúvida, que o crente
não está debaixo da lei, que não é do mundo, que não está na carne nem sob o
domínio dos seus pecados. A base sólida de tudo isto é a redenção cumprida que
temos em Cristo Jesus, em virtude da qual estamos selados com o Espírito Santo, e
deste modo indissoluvelmente unidos e inseparavelmente identificados com Cristo
ressuscitado e glorificado; de forma que o apóstolo João pode dizer de todos os
crentes, todos os filhos de Deus: "Assim como ele (Cristo) é, assim somos nós neste
mundo." Isto resolve toda a questão, para todos os que estão satisfeitos por serem
governados pela Sagrada Escritura. E quanto a tudo mais, a discussão é pior do que
inútil.
Havemo-nos afastado do nosso assunto imediato, a fim de esclarecer qualquer
dificuldade motivada pela má compreensão da palavra "mandamentos". O leitor
não pode ser exagerado em se guardar contra a tendência de confundir os
mandamentos do Senhor em João 14 com os mandamentos de Moisés em Êxodo
20. E, contudo, nós cremos reverentemente que Êxodo 20 é tão inspirado como
João 14.
E agora antes de deixarmos o assunto que nos tem ocupado, queremos referir, por
uns momentos, um caso de história inspirada que ilustra, de um modo notável, a
diferença entre um filho de Deus obediente e um filho desobediente.
Encontramo-lo em Gênesis 18 e 19. E um estudo profundamente interessante,
apresentando um contraste instrutivo, sugestivo e profundamente prático. Não
vamos insistir nele, porquanto já o fizemos, em certa medida, nos nossos "Estudos
sobre o Livro de Gênesis"; mas queremos apenas lembrar ao leitor que tem diante
de si, nestes dois capítulos, a história de dois santos de Deus. Ló era filho de Deus
tanto como Abraão. Não temos dúvida de que Ló está entre "os espíritos dos justos
aperfeiçoados" assim como Abraão lá está. Isto, cremos, não pode ser posto em
dúvida, visto que o inspirado apóstolo Pedro nos diz que Ló era justo e afligia a sua
alma com a conversação dos ímpios.
Mas note-se a grande diferença entre os dois homens! O Senhor mesmo visitou
Abraão, sentou-Se com ele, e compartilhou prontamente da sua hospitalidade. Isto
era na verdade uma elevada honra, um raro privilégio — um privilégio que Ló
nunca conheceu, uma honra que nunca conseguiu. O Senhor nunca o visitou em
Sodoma. Mandou-lhe meramente os Seus anjos, os Seus ministros de poder, os
agentes do Seu governo. E até mesmo eles, ao princípio, recusaram austeramente
entrar em casa de Ló ou aceitar o seu oferecimento de hospitalidade. A sua resposta
seca foi: "Não, antes na rua passaremos a noite." E quando entraram em sua casa foi
só para o protegerem da violência desordenada com que ele estava rodeado e para o
arrebatarem das circunstâncias miseráveis em que ele, por amor do ganho
mundano e da posição, se havia lançado. Poderia o contraste ser mais real?
Mas, notemos, além disso, que o Senhor se comprazia em Abraão, Se manifestou a
ele, lhe revelava os Seus pensamentos, lhe falava dos Seus planos e propósitos, o
que intentava fazer com Sodoma. Disse Ele: "Ocultarei eu a Abraão o que faço,
visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão
benditas toas as nações da terral Porque eu o tenho conhecido, que ele há de
ordenara seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do
SENHOR, para agirem com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre
Abraão o que acerca dele tem falado"(Gn 18:17a 19).
Dificilmente poderíamos encontrar uma ilustração mais eloquente de João
14:21-23, ainda que a cena ocorreu dois mil anos antes de se pronunciarem as
palavras. Encontramos alguma coisa parecida com isto na história de Ló? Ah, não
era possível! Não tinha intimidade com Deus, nem conhecimento da Sua mente,
nem profundava os Seus planos e propósitos. Como poderia fazê-lo? Mergulhado
como estava nos baixos morais de Sodoma, como poderia ele conhecer a mente de
Deus? Cego pela escura atmosfera que envolvia as cidades culpáveis da planície,
como poderia olhar para o futuro? Era inteiramente impossível. Se um homem está
misturado com o mundo só pode ver as coisas do ponto de vista mundano; só pode
medir as coisas pelo padrão mundano e pensar nelas com os pensamentos do
mundo. E por isso que a Igreja, em seu estado de Sardo, é ameaçada com a vinda do
Senhor como um ladrão em vez de ser animada com a esperança da Sua vinda
como a brilhante estrela da manhã. Se a igreja professante tem descido ao nível do
mundo — como infelizmente tem sucedido — ela só pode contemplar o futuro do
ponto de vista do mundo. Isto explica o sentimento de temor com que a grande
maioria dos cristãos professos encaram o assunto da vinda do Senhor. Esperam-No
como a um ladrão, em vez de O aguardarem como o bendito Noivo dos seus
corações. Quão poucos, comparativamente, são os que amam a Sua vinda. A grande
maioria dos professos — sentimos muito ter que escrever estas palavras —
encontram o seu tipo em Ló, não em Abraão. A Igreja deixou o seu próprio
fundamento; deixou a sua verdadeira elevação moral e misturou-se com o mundo
que aborrece e despreza o seu Senhor ausente.
Contudo, graças a Deus, "Tens em Sardo algumas pessoas que não contaminaram as
suas vestes"— algumas pedras vivas entre cinzas ardentes da profissão inanimada
— algumas luzes cintilantes entre a obscuridade de uma cristandade fria, nominal,
desapiedada, e mundana. E não só isto, mas na fase da história da igreja, que
podemos chamar de Laodicéia a qual nos apresenta um estado de coisas ainda mais
baixo e desesperado, quando o conjunto do corpo professante está a ponto de ser
vomitado da boca da "Testemunha fiel e verdadeira" — até mesmo nesse estado
avançado de fracasso e deserção as palavras cheias de graça: "Eis que estou à porta e
bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa , e com ele
cearei, e ele, comigo"(1), soam com poder encorajador aos ouvidos atentos.
__________
(1) Aplicar a carta solene de Cristo à igreja de Laodicéia, como vemos que é feito na
pregação evangélica, ao caso do pecador, é um grande erro. Sem dúvida, o
pregador é bem intencionado; mas o evangelho não é apresentado aqui. Não é
Cristo quem bate à porta do coração do pecador, mas à porta da igreja professante.
Que tremendo fato! Como é cheio de profunda e terrível solenidade, quanto à
igreja! Que fim a que ela chegou! Cristo fora dela! Mas que graça, da parte de
Cristo, bater à porta! Quer entrar! Ainda espera, em paciente graça, e imutável
amor, entrar em qualquer coração fiel que, individualmente, se abra para Ele. Se
alguém abrir a porta" — ainda que seja só uma pessoa! Em Sardo Ele podia falar
positivamente de "algumas pessoas"; em Laodicéia só pode falar dubiamente de
um. Mas se houvesse apenas um, Ele entraria em casa com ele e com ele cearia.
Precioso Salvador! Fiel amante das nossas almas! "Jesus Cristo, o mesmo ontem,
hoje e para sempre!"
Leitor, é caso para admirar que o inimigo procure mutilar e deturpar a carta solene
à igreja de Laodicéia — o corpo professante no último período da sua história?!
Não temos hesitação em dizer que aplicá-la meramente ao caso de uma alma
inconvertida é privar a igreja professante de um dos mais pertinentes, poderosos e
penetrantes apelos do Novo Testamento.

Assim, tanto nos dias da cristandade professante como nos dias dos patriarcas, nos
dias do Novo Testamento como nos do Velho, vemos a mesma importância e igual
valor dado ao ouvido atento e ao coração obediente. Abraão na planície de Manre,
o peregrino e estrangeiro, o fiel e obediente filho de Deus, experimentou o raro
privilégio de hospedar o Senhor da glória — um privilégio que não podia ser
conhecido por aquele que havia escolhido o seu lugar e a sua parte numa esfera
condenada à destruição. Assim também nos dias da indiferença e jactanciosa
pretensão de Laodicéia, o coração verdadeiramente obediente é animado com as
doces promessas de se assentar para cear com aquele que é "O amém, a testemunha
fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus". Em suma, seja qual for o estado
de coisas, não há limite para a bênção de toda a alma que quer atender só à voz de
Cristo e guardar os Seus mandamentos.
Recordemos isto. Deixemos que penetre no mais profundo do nosso ser moral.
Nada pode despojar-nos das bênçãos e privilégios que derivam da obediência. A
verdade deste fato brilha perante os nossos olhos em todas as páginas do volume de
Deus.
Em todas as épocas, em todos os lugares, e em todas as circunstâncias, a alma
obediente sentiu-se ditosa em Deus, e Deus achou nela o Seu prazer. E sempre
verdadeiro, qualquer que seja o caráter da dispensação, "Mas eis para quem olharei,
para o pobre e abatido de espírito e que teme da minha palavra" (Is 66:2). Nada
poderá jamais alterar ou perturbar isto. E o que vemos em capítulo 4 do precioso
livro de Deuteronômio, nas palavras com que abre esta parte: "Agora, pois, ó Israel,
ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais,
e entreis, e possuais a terra que o SENHOR, Deus de vossos pais, vos dá." E o que
encontramos também nestas preciosas palavras do Senhor, em João 14, sobre as
quais já temos insistido: "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é
o que me ama." E, outra vez: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra" (1). A
mesma verdade resplandece com brilho peculiar nas palavras do inspirado
apóstolo João: "Amados, se o nosso coração nos não condena, temos confiança para
com Deus; e qualquer coisa que lhe pedirmos, dele a receberemos, porque
guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é agradável à sua vista. E o seu
mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo, e nos
amemos uns aos outros, segundo o seu mandamento. E aquele que guarda os seus
mandamentos nele está, e ele nele" (1 Jo 3:21-24).
__________
(1) Existe uma diferença interessante entre os "mandamentos" e os "ditos" do
Senhor. Aqueles mostram distinta e definitivamente o que deveríamos fazer; estes
são a expressão do Seu pensamento. Se dermos uma ordem ao nosso filho, isso
representa a declaração do seu dever e se ele me ama, sentirá prazer em cumpri-la.
Mas se ele me ouvir dizer que gostaria de ver tal coisa feita, embora não lhe tenha
dito para a fazer, tocará muito mais profundamente o meu coração vê-lo fazer isso
a fim de me agradar, do que se lhe tivesse dado uma ordem positiva. Ora, não
deveríamos nós procurar agradar a Cristo?' Ele tornou- nos aceitáveis, e
certamente nós deveríamos procurar, de todos os modos possíveis, ser aceitáveis
para Ele. Ele acha o Seu deleite numa obediência amorosa; foi o que Ele próprio fez
para com o Pai. "Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40:8). "Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os
mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor" (Jo 15:10).
Oh! Se pudéssemos beber mais profundamente do Espírito de Jesus, andar nos Seus
benditos passos e render-Lhe uma mais perfeita, consagrada e sincera obediência,
em todas as coisas! Procuremos sinceramente realizar estas coisas, prezado leitor
cristão, para que o Seu coração possa achar em nós prazer e o Seu nome ser
glorificado em nós e na nossa carreira, dia a dia.

Poderíamos multiplicar as passagens, mas não há necessidade. As que havemos


mencionado mostram-nos, do modo mais claro possível, o mais elevado motivo
para a obediência, isto é, agradar ao coração de nosso Senhor Jesus Cristo — ser-se
agradável a Deus. Decerto, devemos obediência sincera por todos os motivos. "Não
somos de nós mesmos; fomos comprados por bom preço" (1 Co 6:19- 20).
Devemos-Lhe a nossa vida, a nossa paz, a nossa salvação, a nossa felicidade e glória
eterna; de forma que nada pode exceder o peso moral dos Seus direitos sobre nós
quanto a uma vida de obediência de todo o nosso coração. Mas, além dos Seus
direitos morais, existe o fato maravilhoso de que o Seu coração sente-se alegre e o
Seu espírito animado quando guardamos os Seus mandamentos e fazemos as coisas
que são agradáveis à Sua vista.
Prezado leitor, pode haver alguma coisa que exceda o poder moral de um motivo
como este? Pensa por uns momentos no privilégio que temos de dar alegria ao
coração de nosso amado Senhor! Que doçura, que interesse, que preciosidade, que
santa dignidade isto comunica a cada simples ato de obediência, saber que é
agradável ao coração de nosso Pai! Como isto está além do sistema do legalismo! É
um perfeitíssimo contraste em todas as suas fases e aspectos. A diferença entre o
sistema legal e o cristianismo é a diferença entre a vida e a morte, a escravidão e a
liberdade, a condenação e a justificação, a distância e a aproximação, a dúvida e a
certeza. Quão monstruosa é a tentativa, de juntar estas duas coisas — de as juntar
num só sistema, como se fossem apenas duas hastes de um único tronco! Que
confusão desesperada deve resultar de um tal esforço! Quão terrível o efeito do
intento em procurar pôr as almas debaixo da influência das duas coisas! Bem
podíamos tentar combinar os raios meridionais do sol com as densas trevas da
meia-noite. Considerado do ponto de vista divino, e celestial, julgado à luz do
Novo Testamento, medido pelo padrão do coração de Deus, e a mente de Cristo,
não pode haver anomalia mais horrenda que aquela que se apresenta à nossa vista
nos esforços da cristandade para combinar a lei e a graça. E quanto à desonra feita a
Deus, a ferida infligida ao coração de Cristo, a mágoa e o desdém feitos ao Espírito
Santo, o dano causado à verdade de Deus, a grave injustiça cometida contra os
amados cordeiros e ovelhas do rebanho de Cristo, a terrível pedra de escândalo
arrojada ao caminho tanto de judeus como de gentios, e, em suma, a grave injúria
feita a todo o testemunho de Deus durante os últimos dezoito séculos, só o tribunal
de Cristo poderá declarar; e oh, que terrível declaração será! E demasiado terrível
para ser contemplada.
Mas há muitas almas piedosas, em toda a extensão da igreja professante, que
acreditam em consciência que o único caminho possível para se conseguir a
obediência, alcançar uma santidade prática, assegurar uma boa conduta e manter a
nossa natureza pecaminosa em ordem, é pôr o povo debaixo da lei. Parecem recear
que se as almas são tiradas ao mestre-escola, com a sua vara e os seus rudimentos, é
o fim de toda a ordem moral. Com a ausência da autoridade da lei, nada mais
esperam senão desesperada confusão. Deixar os dez mandamentos, como regra de
vida, é, no seu parecer, remover os grandes diques morais que a mão de Deus erigiu
para conter a onda de depravação humana.
Podemos compreender perfeitamente a sua dificuldade. Muitos de nós temos tido
de lutar com ela de uma forma ou de outra. Porém, devemos procurar resolvê-la
segundo o método de Deus. É inútil agarrarmo-nos com apaixonada obstinação às
nossas próprias ideias contrárias ao ensino claro e direto da Sagrada Escritura.
Seremos, mais tarde ou mais cedo, obrigados a abandonar todas essas opiniões.
Nada pode manter-se de pé senão a Palavra de Deus — a voz do Espírito Santo — a
autoridade da Escritura — os ensinos imperecíveis da incomparável revelação que
nosso Pai, em Sua infinita graça, tem posto nas nossas mãos. A qual devemos
escutar com profunda e reverente atenção; ante ela nos devemos inclinar com
indiscutível e absoluta obediência. Não devemos ousar manter uma simples
opinião. A opinião de Deus deve ser a nossa. Devemos afastar de nós todas as
futilidades que, por influência meramente do ensino humano se têm acumulado
nas nossas inteligências, e ter as nossas mentes completamente purificadas pela
ação da Palavra e do Espírito de Deus e perfeitamente ventiladas pelo ar puro da
nova criação.
Além disso, temos de aprender a confiar implicitamente em toda a palavra que sai
da boca de Deus. Não devemos argumentar; não devemos julgar; não devemos
discutir; devemos simplesmente crer. Se o homem fala, se é uma simples questão
de autoridade humana, então, com efeito, devemos julgar, porque o homem não
tem direito de mandar. Devemos julgar o que ele diz, não por meio das nossas
próprias opiniões, ou pelo padrão humano, credo ou confissão de fé, mas pela
Palavra de Deus. Mas quando a Escritura fala acaba toda a discussão.
Isto é uma consolação inefável. Não está dentro do âmbito da linguagem humana
mostrar de uma maneira adequada o valor ou a importância moral deste grande
fato. Liberta a alma completamente do poder da vontade própria por um lado, e,
por outro lado, da mera sujeição à autoridade humana. Leva-nos ao contato direto,
pessoal, e vivo com a autoridade de Deus, e isto é vida, paz, liberdade, poder moral,
verdadeira exaltação, certeza divina e santa estabilidade. Põe termo às dúvidas e
temores, a todas as flutuações da mera opinião humana que tanta perplexidade
causam à mente e tanto torturam o coração. Não somos mais agitados por todo o
vento de doutrina, por todas as ondas de pensamento humano. Deus tem falado.
Isto basta por completo. Aqui o coração encontra o seu profundo e estável repouso.
Conseguiu escapar do encapelado oceano da controvérsia teológica e tem lançado
âncora no bendito porto da revelação divina.
Por isso, queremos dizer ao leitor piedoso destas linhas que, se quer conhecer o
pensamento de Deus sobre este assunto — se quer conhecer o fundamento, o
caráter e o objetivo da obediência cristã, deve pura e simplesmente escutar a voz da
Sagrada Escritura. E que diz ela«? Envia-nos de novo a Moisés para ele nos ensinar
como havermos de viver?- Envia-nos outra vez ao "monte palpável" a fim de nos
assegurar uma vida santa? Coloca-nos debaixo da lei para refrear a nossa carne?
Escute o que ela diz. Sim; escute e medite. Vejamos as seguintes palavras de
Romanos 6 — palavras de santo poder de emancipação: "Porque o pecado não terá
domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça."
Agora, rogamos sinceramente ao leitor que permita que estas palavras penetrem
nas profundidades da sua alma. O Espírito Santo declara da maneira mais simples e
enfática que os cristãos não estão debaixo da lei. Se estivéssemos debaixo da lei, o
pecado teria domínio sobre nós. Na realidade, vemos invariavelmente na Escritura
que "o pecado", "a lei" e "a carne" estão unidos. Uma alma que está debaixo da lei
não pode, de modo algum, gozar de completa libertação do domínio do pecado; e
nisto podemos ver, num relance, a ilusão de todo o sistema legalista; e o engano
absoluto de se procurar a santidade de vida pondo as almas debaixo da lei. Equivale
simplesmente a colocá-las no próprio lugar onde o pecado pode assenhorear-se
delas e governar sobre elas com absoluto domínio. Como é, pois, possível produzir
a santidade pela lei? E absolutamente impossível.

Mortos para a Lei


Mas voltemos, por uns instantes, a Romanos 7. "Assim, meus irmãos, também vós"
— todos os verdadeiros crentes, o povo de Deus - "estais mortos para a lei pelo
corpo de Cristo, para que sejais doutro, daquele que ressuscitou de entre os mortos,
a fim de que demos fruto para Deus." Ora, é perfeitamente claro que não podemos
estar "mortos para a lei" e, ao mesmo tempo, debaixo da lei. Pode argumentar-se
talvez que a expressão "mortos para a lei" é meramente um figura. Bem,
suponhamos que é assim: perguntamos, uma figura de quê? Certamente, não pode
ser uma figura de pessoas debaixo da lei. Não; é precisamente uma figura do
oposto.
E notemos de um modo particular que o apóstolo não diz que a lei está morta. Nada
disso. A lei não está morta, mas nós estamos mortos para ela. Pela morte de Cristo
havemos passado da esfera a que a lei pertence. Cristo tomou o nosso lugar; foi
nascido segundo a lei; e, na cruz, foi feito pecado por nós. Mas morreu por nós, e
nós morremos com Ele; e deste modo tirou-nos limpos do estado em que
estávamos sob o domínio do pecado e debaixo da lei e introduziu-nos numa
posição inteiramente nova, em associação e união vivente com Ele mesmo; de
forma que pode dizer-se: "...Qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo
4:17). Ele está debaixo da lei? Certamente que não. Pois bem, nós também não
estamos debaixo dela. O pecado tem algum direito sobre Ele? Absolutamente
nenhum. Tampouco o tem sobre nós. Nós somos, quanto à nossa posição, como Ele
é na presença de Deus; e, portanto, colocar-nos debaixo da lei seria a mais
completa subversão da nossa posição e a mais positiva e flagrante contradição das
mais claras manifestações da Sagrada Escritura.
Ora nós queremos perguntar, com toda a simplicidade e santa sinceridade, como
pode promover-se a santidade de vida removendo os próprios fundamentos do
cristianismo? Como pode ser subjugado o pecado que habita em nós se nos pomos
debaixo do sistema que deu ao pecado poder sobre nós? Como pode a verdadeira
obediência cristã ser produzida se nos opomos à Sagrada Escriturai Confessamos
que não podemos conceber nada mais absurdo. Evidentemente um fim divino só
pode conseguir-se seguindo um caminho divino. Ora o meio de Deus nos dar
libertação do domínio do pecado consiste em nos libertar da lei; e por isso todos os
que ensinam que os cristãos estão sob a lei estão claramente em oposição a Deus.
Que tremenda reflexão para todos os que querem ser mestres da lei!
Mas ouçamos mais algumas palavras do capítulo 7 de Romanos. O apóstolo
continua dizendo: "Porque, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados,
que são pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a morte.
Mas, agora, estamos livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos
retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra"(1)
__________
(1) "A lei é boa se alguém usa dela legitimamente" (1 Tm 1:8). "A lei é santa" (Rm
7:12). A Escritura nunca ensina que a lei está morta, mas sim que o crente está
morto para a lei — uma coisa muito diferente

Aqui, também, tudo é tão claro como a luz do sol. Que significa a expressão:
"Quando estávamos na carne"? Significa — poderá significar que nós ainda
estamos nessa situação?- Não, evidentemente. Se eu disser: "Quando eu estava em
Londres", entenderá alguém que ainda estou em Londres?- A ideia é absurda. Mas
o que quer dizer o apóstolo com a expressão: "Quando estávamos na carne?-"
Refere-se simplesmente a uma coisa do passado, a um estado que já não existe.
Então, os crentes não estão na carne?- A Escritura assim o declara enfaticamente.
Mas quer isto dizer que não estão no corpo?- Decerto que não. Estão no corpo,
quanto ao fato da sua existência; mas não na carne, quanto ao terreno da sua
posição perante Deus.
Em capítulo 8 temos a mais clara declaração deste ponto. "Portanto, os que estão na
carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito,
se é que o Espírito de Deus habita em vós." Aqui temos a declaração de um fato
solene; e a publicação de um precioso e glorioso privilégio. "Os que estão na carne
não podem agradar a Deus." Podem ser irrepreensíveis, muito amáveis, muito
religiosos, muito benévolos, mas não podem agradar a Deus. A sua total posição é
falsa. A origem de onde emanam todas as correntes está corrompida; a raiz e tronco
de onde emanam todos os ramos estão podres — desesperadamente maus. Não
podem produzir um simples átomo de bom fruto — fruto que Deus possa aceitar.
"Não podem agradar a Deus." Devem colocar-se numa situação inteiramente nova;
devem ser uma nova vida, novos motivos, novos objetivos; numa palavra, devem
ser uma nova criação. Quão solene é tudo isto! Consideremo-lo a fundo, e vejamos
se compreendemos as palavras do apóstolo.
Mas, por outro lado, notemos os gloriosos privilégios de todos os verdadeiros
crentes. "Vós não estais na carne." Os crentes já não estão numa situação na qual
não podem agradar a Deus. Têm uma nova natureza, uma nova vida, cada
movimento da qual e quanto dela emana é agradável a Deus. O mais fraco alento
de vida divina é precioso para Deus. Desta vida o Espírito é o poder, Cristo o
objetivo, a glória a meta, o céu o lar. Tudo é divino, e portanto perfeito. Decerto, o
crente está sujeito a errar, inclinado por natureza a desviar-se, capaz de pecar.
Nele, isto é, na sua carne, não habita coisa alguma boa. Mas a sua posição está
fundada na eterna estabilidade da graça de Deus, e o seu estado é mantido pela
provisão divina que essa graça fez para si na preciosa expiação e prevalecente
advocacia do Senhor Jesus Cristo. Desta forma ele é para sempre libertado desse
terrível sistema em que as figuras proeminentes são: "A carne", "O pecado", "A
morte" — um triste grupo, sem dúvida! — e introduzido nessa cena gloriosa em
que as figuras proeminentes são "Vida", "Liberdade", "Graça", "Paz", "Justiça",
"Santidade", "Glória" e "Cristo".
"Porque não chegastes ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às trevas,
e à tempestade, e ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual os que a
ouviram pediram que se lhes não falasse mais; porque não podiam suportar o que
se lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado. E tão terrível
era a visão, que Moisés disse: Estou todo assombrado e tremendo. Mas chegastes ao
monte de Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares
de anjos, à universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos
céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados; e a Jesus, o
Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o
de Abel" (Hb 12:18-24).
Desta forma temos procurado resolver a dificuldade de qualquer leitor escrupuloso
que, até ao momento de abrir este livro, havia acalentado a convicção de que a
santidade prática e a verdadeira obediência só podem conseguir-se colocando os
crentes debaixo da lei. Esperamos que tenha seguido a evidência da Escritura que
temos posto diante de si. Se assim é, verá que colocar os crentes numa tal posição é
tirar os próprios fundamentos do cristianismo, abandonar a graça, deixar a Cristo,
voltar à carne, na qual não podemos agradar a Deus, e nos colocarmos debaixo da
maldição. Em suma, o sistema legal dos homens é diametralmente oposto ao
ensino de todo o Novo Testamento. Foi contra este sistema e os seus mantenedores
que o bem-aventurado apóstolo Paulo testificou durante toda a sua vida.
Detestou-o completamente e denunciou-o continuamente. Os mestres da lei
procuravam sempre minar e destruir os seus abençoados esforços e subverter as
almas dos seus amados filhos na fé. E impossível ler as suas fogosas expressões na
epístola aos Gálatas, as suas ardentes recomendações na sua epístola aos Efésios ou
os seus avisos solenes na epístola aos Hebreus e não ver quão intenso era o seu
aborrecimento a todo o sistema legalista dos mestres da lei, e quão amargamente
chorava sobre as ruínas do testemunho tão caro ao seu grande, amoroso e
consagrado coração.
Mas é possível que, depois de tudo quanto havemos escrito e a despeito de toda a
evidência da Escritura para a qual temos chamado a atenção do leitor, ele ainda se
sinta disposto a perguntar: "Não existe o perigo de ímpio relaxamento e leviandade
se o poder coercivo da lei é removido?" A isto respondemos simplesmente, dizendo
que Deus é mais sábio do que nós. Ele sabe melhor como curar o relaxamento e a
leviandade e como produzir a verdadeira espécie de obediência. Experimentou a
lei, e o que produziu ela? Produziu a ira. Deu lugar a que o pecado abundasse.
Desenvolveu "as paixões dos pecados". Introduziu a morte. Era a força do pecado.
Privou o pecador de todo o poder. Matou-o. Era a condenação. Amaldiçoava todos
que tinham de tratar com ela. "Todos aqueles pois que são das obras da lei estão
debaixo da maldição." E tudo isto, não por causa de algum defeito da lei, mas por
causa da absoluta impossibilidade de o homem a cumprir.
Não é evidente para o leitor de que nem a vida, nem a justiça, nem a santidade,
nem a verdadeira obediência cristã podiam jamais ser conseguidas debaixo da lei?
Será possível que, depois de tudo quanto tem passado em revista perante nós, possa
ter alguma simples objeção, uma simples dúvida, uma só dificuldade? Cremos que
não. Ninguém que esteja disposto a curvar-se perante o ensino e a autoridade do
Novo Testamento pode ser partidário, por um só momento, do sistema legalista.
Todavia antes de darmos por terminado este grave e importantíssimo assunto,
apresentaremos ao leitor uma ou duas passagens da Escritura nas quais as glórias
morais do cristianismo resplandecem com peculiar fulgor em vivo contraste com
toda a economia moisaica.
Antes de tudo, notemos a passagem tão conhecida com que abre o capítulo oitavo
de Romanos: "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em
Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei
do espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte.
Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus,
enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o
pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o espírito" (versículos 1 a 4).
Ora, nós devemos ter em conta que o versículo 1 mostra a posição de todo o
cristão, quer dizer, a sua posição perante Deus. Está "em Cristo Jesus". Isto é
conclusivo. Não está na carne; não está debaixo da lei; está absolutamente e
eternamente "em Cristo Jesus". Por isso não há, não pode haver condenação. O
apóstolo não fala nem se refere à nossa conduta ou ao nosso estado. Se assim fosse
não poderia, de modo algum, falar de "nenhuma condenação". A conduta cristã
mais perfeita que jamais se há observado, o estado mais perfeito que jamais se há
alcançado, dariam algum motivo para juízo e condenação. Não há um cristão na
face da terra que não tenha, diariamente, de julgar o seu estado e a sua conduta —
o seu estado cristão moral e a sua vida prática. Como poderia, pois, relacionar-se ou
basear-se a "não condenação" com a conduta cristã? Seria impossível. A fim de
estarmos livres de toda condenação, temos de possuir o que é divinamente
perfeito, e nenhuma conduta cristã o é ou jamais o foi. Até mesmo Paulo teve de
retirar as suas palavras (At 23:5). Arrependeu-se de haver escrito uma carta (2 Co
7:8). Um estado perfeito e uma perfeita conduta encontraram-se somente em Um
— Jesus. Em todos os demais, até nos mais santos e melhores se encontraram
defeitos.
Portanto, a segunda cláusula de Romanos 8 deve ser rejeitada como uma
intercalação. Não é Escritura. Isto, cremos, será compreendido por todo aquele que
é realmente ensinado por Deus, pondo de lado todas as questões de mera crítica.
Toda a mente espiritual descobrirá a incongruência entre as palavras "nenhuma
condenação" e "andam". As duas coisas não podem harmonizar-se. E aqui, sem
dúvida, é precisamente onde milhares de almas piedosas se têm visto envolvidas
em dificuldades quanto a esta passagem realmente magnífica e libertadora. O som
alegre, "Não há condenação", tem sido despojado do seu profundo, pleno e bendito
significado por uma cláusula introduzida por algum escriba ou copista cuja fraca
visão ficou deslumbrada, sem dúvida, pelo brilho dessa livre, absoluta, soberana
graça que resplandece na expressão com que abre o capítulo. Quantas vezes temos
nós ouvido palavras como estas: "Oh, sim, eu sei que não há condenação para os
que estão em Cristo Jesus! Mas isso é se eles não andam segundo a carne, mas
segundo o Espírito. Ora eu não posso dizer que ando assim,
Anelo fazê-lo; e deploro o meu fracasso. Daria todo o mundo para poder
conduzir-me com mais perfeição; mas, ah, tenho de julgar-me a mim mesmo — o
meu estado, a minha conduta, os meus caminhos, cada dia, cada hora! Sendo assim,
não me a atrevo aplicar a mim próprio as preciosas palavras, "não há condenação".
Espero poder fazê-lo, algum dia, quando tiver feito mais progresso em santidade
pessoal; mas, no meu estado atual, consideraria atrevida presunção apropriar a
mim próprio a preciosa verdade contida na primeira cláusula de Romanos 8."
Tais pensamentos têm passado pela mente de muitos de nós, se é que não têm sido
expressos por palavras. Mas a resposta mais simples e conclusiva para todos estes
argumentos encontra-se no fato de que a segunda cláusula de Romanos 8, 1, não é
de modo nenhum um texto da Escritura; mas uma enganadora interpolação,
estranha ao espírito do cristianismo; oposta a todo o conjunto de argumentação no
contexto em que ocorre; e totalmente destrutiva da sólida paz do cristão. E um fato
bem conhecido de todos os que estão ao corrente da crítica bíblica que todas as
autoridades de renome estão de acordo em rejeitar a segunda cláusula de Romanos
8:1 (1). Trata-se simplesmente de confirmar, como deve ser o caso de toda a boa
crítica, a conclusão a que a mente espiritual chega, sem nenhum conhecimento de
crítica.
__________
(1) Talvez que o leitor se sinta disposto, à semelhança de muitos outros, a dizer,
"Como pode um indivíduo inculto saber o que é a Escritura e o que não é? Deve ele
depender de mestres e críticos para lhe darem a certeza sobre um assunto tão grave
e importante? Se assim é, não será isso a velha história de procurar a autoridade
humana para confirmar a palavra de Deus?‖
De modo nenhum. E um caso muito diferente. Sabemos todos que todas as
traduções e os exemplares devem ser, em alguns pontos, imperfeitos, por serem
humanos; mas nós cremos que a mesma graça que deu a Palavra no original hebreu
e grego, tem, maravilhosamente, vigiado a nossa tradução, de forma que um pobre
homem, vivendo nas montanhas, pode ficar certo de possuir na sua Bíblia vulgar a
revelação da mente de Deus.
É maravilhoso, depois de todos os labores de mestres e críticos, como tão poucas
passagens tiveram de ser adaptadas; e sem nenhuma afetar qualquer doutrina
fundamental do Cristianismo. Deus que nos deu em Sua graça as Sagradas
Escrituras, no princípio, tem-nas guardado e preservado para a Sua igreja da
maneira mais maravilhosa. Além disso, aprouve-Lhe empregar os labores dos
sábios e críticos, através dos séculos, para limpar o texto de erros que, devido às
imperfeições humanas, haviam sido introduzidos. Estas correções devem
induzir-nos a duvidar que possuímos, de fato, a Palavra de Deus? Não; antes pelo
contrário levam-nos a bem-dizer a Deus pela Sua bondade em guardar a Sua
Palavra a fim de a preservar em sua integridade para a Sua igreja.
Mas, como aditamento a tudo quanto havemos dito a respeito desta questão, não
podemos deixar de pensar que a ocorrência da cláusula, "que não anda segundo a
carne, mas segundo o Espírito", em versículo 4, proporciona abundante evidência
da sua colocação imprópria no versículo 1. Não podemos admitir, nem por um
momento, o pensamento de redundância na Sagrada Escritura. Ora no versículo 4
é uma questão de conduta — uma questão do nosso cumprimento da "justiça da
lei", e por isso a cláusula encontra-se no seu próprio lugar, porque é divinamente
apropriada para ele. Uma pessoa que anda em Espírito — como todo o cristão deve
fazer — cumpre a justiça da lei. O amor é o cumprimento da lei; e o amor nos
levará a fazer o que os dez mandamentos não puderam conseguir, isto é, a amar os
nossos inimigos. Nenhum amante da santidade, nenhum defensor da justiça
prática, terá jamais de recear perder coisa alguma por abandonar o terreno legalista
e tomar o seu lugar na elevada plataforma do cristianismo — por abandonar o
monte do Sinai pelo monte de Sião — de passar de Moisés para Cristo. Não; apenas
alcança uma origem mais elevada, uma fonte mais profunda, uma esfera de
santidade mais ampla, justiça e obediência prática.
E então, se alguém se sentisse disposto a perguntar: "A linha de argumentação que
temos seguido não contribui para despojar a lei da sua glória característica"?-" A
nossa resposta é seguramente não. Longe disso, a lei nunca foi tão engrandecida,
tão justificada, tão confirmada, tão glorificada, como por essa preciosa obra que
forma o fundamento imperecível de todos os privilégios, bênçãos, dignidade e
glória do cristianismo. O bem- aventurado apóstolo antecipa e responde esta
própria interrogação na primeira parte da sua epístola aos Romanos. "Anulamos",
diz ele, "pois a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei" (Rm
3:31). De que modo poderia ser a lei mais gloriosamente justificada, honrada e
engrandecida que pela vida e morte do Senhor Jesus Cristo"?- Quererá alguém, por
um momento, manter a extravagante ideia que é engrandecer a lei pôr os crentes
debaixo dela? Cremos sinceramente que o leitor não é dessa opinião. Ah, não! Toda
essa série de coisas há de ser completamente abandonada por aqueles que têm o
privilégio de andar na luz da nova criação; que conhecem a Cristo como a sua vida,
e Cristo como a sua justiça — Cristo, sua santificação, Cristo, seu grande exemplo,
Cristo seu modelo, Cristo, tudo em todos; que acham o seu motivo para obediência
não no temor das maldições de uma lei quebrantada, mas no amor de Cristo,
segundo essas palavras perfeitamente belas: "O amor de Cristo" não a lei de Moisés
— "nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo, todos
morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si,
mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co 5:14-15).
Poderia a lei produzir alguma coisa semelhante a isto?- Impossível. Mas, bendito
seja para sempre o Deus de toda a graça, "O que era impossível à lei" — não porque
não era santa, justa e boa
— "visto como estava enferma pela carne" —o artífice era bom, mas o
material estava pobre e nada podia ser feito dele — "Deus, enviando o seu Filho em
semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para
que a justiça da lei se cumprisse em nós" — como ressuscitados com Cristo, unidos
a Ele pelo Espírito Santo no poder de uma nova e eterna vida — "que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8:3, 4).
Isto e somente isto é verdadeiro, prático cristianismo; e se o leitor voltar a sua
atenção para o segundo capítulo de Gálatas, descobrirá outra dessas excelentes e
brilhantes expressões do bendito apóstolo mostrando com divino poder e
plenitude a glória de vida e conduta cristãs. E em relação com a sua fiel repreensão
ao apóstolo Pedro, em Antioquia, quando este amado e honrado servo de Cristo,
por sua característica fraqueza, havia sido induzido a descer, por um momento, do
elevado terreno moral em que o evangelho da graça de Deus coloca a alma. Não
podemos fazer melhor do que reproduzir todo o parágrafo para proveito do leitor.
Cada frase está cheia de poder espiritual.
"E, chegando Pedro à Antioquia, lhe resisti na cara" — não procurou
desacreditá-lo e rebaixá-lo nas suas costas perante outros, ainda que "era
repreensível". "Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago,
comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando e se apartou
deles, temendo os que eram da circuncisão. E os outros judeus também
dissimulavam com ele, de maneira que até Barnabé se deixou levar pela sua
dissimulação. Mas, quando vi que não andavam bem e direitamente conforme a
verdade do evangelho, disse a Pedro na presença de todos: Se tu, sendo judeu, vives
como os gentios e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como
judeus«!- Nós somos judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios.
Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus
Cristo, temos também crido em Jesus Cristo para sermos justificados pela fé de
Cristo, e não pelas obras da lei, porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será
justificada. Pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo nós mesmos
também somos achados pecadores, é 'porventura' Cristo ministro do pecado«? De
maneira nenhuma (ou longe de nós tal pensamento). Porque, se torno a edificar
aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor" — pois se as coisas
eram boas, porque destruí-las«?- E se eram más, porque voltar a edificá-las«? —
"Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus. Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne vivo-a — não pela lei, como uma regra da vida, mas — na fé do
Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim. Não aniquilo a
graça de Deus; porque, se a justiça porém da lei, segue-se que Cristo morreu
debalde" (Gl 2:11-21).
Aqui temos, pois, uma das mais belas afirmações que poderíamos encontrar da
verdade quanto ao cristianismo prático. Mas o que chama imediatamente a nossa
atenção de um modo especial é a maneira bem precisa e formosa com que o
evangelho de Deus traça a senda do verdadeiro crente entre os dois erros fatais da
legalidade, por um lado, e da relaxação carnal, por outro. O versículo 19 da
passagem citada contém o remédio divino para esses dois perigos mortais. A todos,
quem quer que sejam e onde quer que estejam, que procuram pôr o cristianismo
debaixo da lei, de qualquer maneira, ou por qualquer motivo que seja, o nosso
apóstolo exclama: — aos ouvidos dos judeus dissimulados, com Pedro à sua cabeça,
e como resposta a todos os mestres da lei de todas as épocas — "Eu estou morto
para a lei."
Que tem a dizer a lei a um morto?- Nada. A lei aplica-se ao homem vivo, para o
amaldiçoar e matar, porque ele não a guardou. E um erro grave, com efeito,
ensinar que a lei está morta ou que foi abolida. Nada disso. Está viva em toda a sua
força e em todo o seu rigor, em toda a sua majestade, em toda a sua inflexível
dignidade. Seria um erro muito grave dizer que a lei de Inglaterra contra o
assassinato está morta. Mas se um homem está morto, a lei não se lhe aplica mais,
visto que está morto passou inteiramente para fora do seu alcance.
Porém, como está o crente morto para a lei<? O apóstolo responde: "Porque eu pela
lei estou morto para a lei." A lei havia ditado a sentença de morte em sua
consciência, segundo lemos em Romanos 7. "E eu, nalgum tempo, vivia sem lei,
mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri; e o mandamento que era
para vida, achei eu que era para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo
mandamento, me enganou e, por ele me matou."
Mas há mais do que isto. O apóstolo continua dizendo: "Já estou crucificado com
Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim." E aqui está a triunfante
resposta do cristão aos que dizem que, visto a lei moisaica estar anulada, não há
mais restrição legal sob a qual os judeus foram chamados a viver. A todos quantos
buscam liberdade para a indulgência própria, a resposta é: "Estou morto para a lei",
não para poder dar rédea solta à carne, mas "para poder viver para Deus."
Desta forma nada pode ser mais completo, nada mais moralmente belo que a
resposta do verdadeiro cristianismo à legalidade por um lado, e à libertinagem, por
outro. Autocrucificação; o pecado condenado; nova vida em Cristo; uma vida para
ser vivida para Deus; uma vida de fé no Filho de Deus; o amor de Cristo, que nos
constrange, como motivo originário dessa vida. O que pode exceder isto?- Quererá
alguém, em vista das glórias morais do cristianismo, lutar para pôr os crentes
debaixo da lei, para os pôr outra vez na carne, outra vez velha criação, novamente
sob a sentença de morte na consciência, novamente na escravidão, trevas, temor
da morte e condenação?-
Será possível que todo aquele que tem provado, até mesmo na mais fraca medida, a
doçura celestial do bendito evangelho de Deus, possa aceitar o desprezível sistema
mesclado de metade da lei e metade da graça que a cristandade oferece à alma?-
Quão terrível é encontrar os filhos de Deus, membros do corpo de Cristo, templos
do Espírito Santo, despojados dos seus gloriosos privilégios e carregados com um
pesado jugo que, como diz Pedro: "Nem nós nem nossos pais pudemos suportará"
(At 15:10). Rogamos sinceramente ao leitor crente que medite o que tem sido
exposto. Examine as Escrituras; e se achar que estas coisas são assim, então ponha
de lado para sempre a mortalha em que a cristandade envolve os seus iludidos
adeptos, e ande na liberdade com que Cristo libertou o Seu povo; arranque a venda
com que ela cobre os olhos dos homens e contemple as glórias morais que
resplandecem com fulgor celestial no evangelho da graça de Deus.
E então demonstremos por uma conduta santa, feliz, de graciosa conversação, que
a graça pode fazer o que a lei não pôde jamais conseguir. Que o nosso
comportamento dia a dia, no meio das cenas, circunstâncias, relações e associações
entre as quais havemos de viver, seja a resposta mais convincente a todos os que
contendem a favor da lei como regra de vida.
Finalmente, que o nosso desejo sincero e apaixonante aspiração seja procurar,
tanto quanto depende de nós, guiar todos os queridos filhos de Deus a um mais
claro conhecimento da sua posição e privilégios num Cristo ressuscitado e
glorificado. Possa o Senhor mandar a Sua luz e a Sua verdade no poder do Espírito
Santo, e juntar o Seu amado povo em redor de Si Mesmo para andar no gozo da Sua
Salvação, na pureza e luz da sua presença e para aguardar a Sua vinda!
Obedientes a Jesus Cristo
Não tentaremos fazer uma apologia pelo que talvez possa parecer a alguns dos
nossos leitores ser uma longa digressão do capítulo 4 de Deuteronômio. O fato é
que temos sido conduzidos ao que julgamos ser uma linha muito necessária de
verdade prática pelo primeiro versículo do capítulo, citado no começo desta parte.
Parece-nos absolutamente necessário, ao falar da importante questão da
obediência, procurar colocá-la na sua verdadeira base. Se Israel foi chamado a
"ouvi e a fazer", quanto mais o somos nós, que somos ricamente abençoados — sim,
"abençoados com todas as bênçãos espirituais" nos lugares celestiais em Cristo
Jesus. Somos chamados para a obediência, obediência de Jesus Cristo, como lemos
em 1 Pedro 1. "Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do
Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo." Somos chamados
para o mesmíssimo caráter de obediência que caracterizou a vida de nosso bendito
Senhor Jesus Cristo. Evidentemente, n'Ele não houve influência embaraçosa,
como infelizmente há em nós. Mas quanto ao caráter de obediência é o mesmo.
Isto é um imenso privilégio. Somos chamados para andar nas pisadas do Senhor
Jesus. "Aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou." Ora,
ponderando a senda de nosso Senhor, considerando a Sua maravilhosa vida, há um
ponto que requer a nossa profunda e reverente atenção — um ponto que se
relaciona de uma maneira muito especial com o livro de Deuteronômio, e que
consiste na maneira em que Ele sempre empregou a palavra de Deus—o lugar que
sempre deu às Sagradas Escrituras. Cremos ser um assunto da maior importância,
nestes dias. Ocupa um lugar proeminente através de todo o livro formoso com que
estamos presentemente ocupados. Com efeito, conforme temos já observado,
caracteriza o livro e é o que o distingue dos três livros precedentes no cânon
divino. Encontraremos provas e ilustrações disto em abundância à medida que o
vamos estudando. Por toda a parte a Palavra de Deus ocupa o seu lugar dominante
como a única regra, a única autoridade e o único padrão para o homem.
Apresenta-se em toda a situação e relação, em que se encontre e em toda a esfera
de ação durante toda a sua história moral e social. Diz-lhe o que deve fazer.
Proporciona-lhe amplo conselho em todas as dificuldades. Desce, como veremos,
aos mais minuciosos pormenores — tais que, na verdade, nos enche de admiração
pensar que o altíssimo e onipotente Senhor, que habita na eternidade, possa
ocupar-Se deles: ao pensar que o Criador onipotente e Mantenedor do vasto
universo pudesse deter-Se para legislar acerca do ninho de uma ave (cap. 22:6).
Tal é a palavra de Deus, a incomparável revelação, esse perfeito e inimitável
Volume que se mantém único na história da literatura. E podemos dizer que é um
dos encantos especiais do livro de Deuteronômio; e um dos seus especiais aspectos
mais interessantes é o modo como exalta a Palavra de Deus e reforça em nós o
santo, feliz dever de obediência inabalável.
Sim, repetimos, e queremos ardentemente acentuar as palavras — obediência
inabalável. Gostaríamos de fazer soar estas palavras salutares aos ouvidos dos
cristãos professos por toda a terra. Vivemos em dias especialmente caracterizados
pela glorificação da razão humana, do critério humano e da vontade humana. Em
suma, vivemos no que o apóstolo inspirado chama "o dia do homem". Por toda a
parte encontramos altivas, jactanciosas palavras sobre a razão humana e o direito
de cada homem julgar e pensar e raciocinar por si próprio. A ideia de sermos
absoluta e completamente governados pela autoridade da Sagrada Escritura é
tratada com soberano desdém por milhares de homens que são mestres e guias
religiosos da igreja professante. Se alguém afirma a sua crença reverente na
inspiração plenária, inteira suficiência e absoluta autoridade da Escritura, é logo
marcado como ignorante, de espírito apoucado, senão como de semilunático, na
opinião de alguns que ocupam as mais altas posições na igreja professante. Nas
nossas universidades, colégios e escolas, a glória moral do Volume Divino está
decaindo rapidamente, e, em vez dela, guia-se e ensina-se a nossa juventude a
andar na luz da ciência, na luz da razão humana. A própria Palavra de Deus é
impiamente colocada perante o juízo humano e reduzida ao nível da compreensão
humana. Tudo quanto se remonta mais além da fraca visão do homem é rejeitado.
Desta forma a Palavra de Deus é virtualmente posta de lado. Pois é evidente que se
a Escritura tem de ser submetida ao critério humano deixa de ser a Palavra de
Deus. E o cúmulo da loucura pensar em submeter uma revelação divina e portanto
perfeita a qualquer tribunal seja ele qual for. Ou Deus nos tem dado uma revelação,
ou não. Se o tem feito, essa revelação tem de ser soberana, suprema, acima e além
de toda a questão, absolutamente indiscutível, infalível, divina. Ante a sua
autoridade todos devem inclinar-se incondicionalmente. Supor, ainda que seja por
um momento, que o homem é competente para julgar a Palavra de Deus, capaz de
se pronunciar sobre o digno ou não digno de Deus dizer ou escrever, é
simplesmente pôr o homem no lugar de Deus. E isto é precisamente o que o diabo
aspira, embora muitos dos seus instrumentos não saibam que o estão ajudando nos
seus desígnios.

A Escritura: a Palavra Inspirada por Deus


Mas a pergunta reaparece constantemente perante nós: Como podemos nós estar
certos de que temos na nossa Bíblia a bona fide revelação de Deus? A isto
respondemos que Deus pode dar-nos a certeza disso. Se o não faz, ninguém poderá
fazê-lo. Se o faz, não necessitamos de ninguém. Este é o nosso fundamento e nós
reputamo-lo inatacável. Gostaríamos de perguntar a todos quantos suscitam essa
infiel pergunta — por que assim devemos honestamente chamá-la — supondo que
Deus não pode dar-nos a certeza absoluta que, na nosso Bíblia vulgar, temos com
efeito a Sua preciosa, inestimável revelação, então para onde devemos volver os
nossos olhos? É claro que, num assunto de tanta importância, do qual depende o
nosso estado temporal e eterno, uma simples dúvida é um suplico e uma desgraça.
Se eu não estou seguro de ter uma revelação de Deus, fico sem um só raio de luz
para o meu caminho. Sou submergido em trevas, tristeza e miséria mental. Que
devo fazer? O homem pode ajudar-me com a sua erudição, a sua sabedoria ou a sua
razão? Pode satisfazer a minha alma com as suas decisões? Pode resolver as minhas
dificuldades, responder às minhas perguntas, remover as minhas dúvidas, dissipar
os meus temores? O homem é melhor do que Deus para me dar a certeza de que
Deus tem falado?
A ideia é absolutamente monstruosa — monstruosa no mais alto grau. O fato
simples é este, prezado leitor, se Deus não pode dar-nos a certeza de que tem
falado, ficamos completamente sem a Sua palavra. Se nos temos de voltar para a
autoridade humana, chame-se o que se quiser, a fim de garantir às nossas almas a
Palavra de Deus, então a autoridade é mais elevada e maior, mais segura e mais
digna de crédito do que a Palavra que ela garante. Bendito seja Deus, não é assim.
Ele tem falado aos nossos corações: tem-nos dado a Sua Palavra, e esta Palavra leva
consigo as suas próprias credenciais. Não necessita de credenciais humanas da mão
humana. O quê! Voltarmo-nos para o homem para que ele acredite a Palavra de
Deus! Dirigirmo-nos a um verme para que nos dê a certeza de que o nosso Deus
nos tem falado na Sua Palavra! Fora para sempre com ideia tão blasfema, e que
todo o nosso ser moral — todas as nossas faculdades resgatadas adorem a
incomparável graça, a soberana misericórdia que não nos deixou para procurarmos
às apalpadelas nas trevas da nossa própria inteligência ou para nos desorientarmos
com as opiniões discordantes dos homens; mas nos deu a Sua própria revelação
perfeita e preciosíssima, a luz divina da Sua palavra para guiar os nossos passos na
senda da certeza e paz; para iluminar os nossos entendimentos e confortar os
nossos corações, para nos preservar de todo o erro doutrinário e depravação moral,
e, finalmente, nos conduzir ao descanso, bem-aventurança e glória do Seu próprio
reino celestial. Louvor ao Seu Nome por todos os séculos eternos!
Mas devemos ter em conta que o maravilhoso privilégio de que temos falado — e é
verdadeiramente maravilhoso — é o fundamento de uma solene responsabilidade.
Se é verdade que Deus, em Sua infinita bondade, nos tem dado uma perfeita
revelação da Sua mente, então qual deve ser a nossa atitude a respeito dela? Vamos
julgá-la?- Vamos discutir, argumentar, racionar sobre ela? Ai dos que tal fazem!
Achar-se-ão em terreno terrivelmente perigoso. A única coisa atitude verdadeira,
própria e segura para um homem perante a revelação de Deus é a obediência —
simples, implícita e cordial obediência. Esta é a única reta para nós; e é o que
agrada a Deus. A vereda da obediência é a vereda do mais doce privilégio, descanso
e bênção. Esta vereda pode ser trilhada pelo mais simples menino em Cristo, bem
como pelos "mancebos" e os "pais". E a única senda reta e bendita para todos. E
estreita, sem dúvida; mas, oh, é segura, brilhante e elevada! A luz do semblante de
nosso Pai, em sinal aprovação, resplandece sempre sobre ela; e nesta luz bendita a
alma obediente encontra a resposta mais triunfante para todas as censuras daqueles
que falam com palavras sonoras de amplitude de critério, liberdade de
pensamento, liberdade de opinião, progresso, evolução, e coisas do mesmo estilo.
O obediente filho de Deus pode bem dispensar tudo isto, porque sente e sabe, crê,
está seguro que segue um caminho que lhe foi indicado pela preciosa Palavra de
Deus. Não está interessado em explicá-lo ou justificar-se, estando certo de que
aqueles que fazem objeções, se opõem e censuram são inteiramente incapazes de
compreender ou apreciar a sua explicação. E, além disso, sente que não faz parte do
seu dever explicar ou defender a sua conduta. Ele tem só que obedecer; e quanto
aos que se opõem só tem que se referir a eles diretamente ao seu Mestre.
Isto torna tudo tão simples, tão claro, tão certo. Livra o coração de mil dificuldades
e perplexidades. Se tivéssemos de responder a todos que ousam suscitar questões e
opor dificuldades, toda a nossa vida seria gasta em tão inútil tarefa. Podemos estar
seguros de que a melhor resposta para todos os impugnadores é a carreira resoluta,
sincera e firme de indiscutível obediência. Deixemos os infiéis, cépticos e
racionalistas entregues às suas teorias desprezíveis, enquanto nós, com inalterável
propósito e passo firme, prosseguimos essa bendita senda de obediência pueril,
que, como a luz da alva, vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito. Desta forma
as nossas mentes serão mantidas tranquilas, porque a paz de Deus, que excede todo
o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes por Jesus Cristo.
Quando a Palavra de Deus, que para sempre permanece nos céus, está escondida
no íntimo dos nossos corações, haverá uma calma certeza, uma santa estabilidade e
um acentuado progresso na nossa carreira cristã que dará a melhor resposta
possível ao antagonista, o mais eficiente testemunho da verdade de Deus, e a mais
convincente evidência e sólida confirmação para todo o coração inconstante.
O capítulo que estamos considerando abunda em exortações solenes a Israel,
baseadas no fato de haverem ouvido a Palavra de Deus. Assim, no segundo
versículo temos uma ou duas frases que deveriam ser profundamente gravadas nas
tábuas do coração de todo o crente. "Nada acrescentareis à palavra que vos mando,
nem diminuireis dela."
Estas palavras envolvem dois fatos importantes com respeito à Palavra de Deus.
Nada pode ser acrescentado, pela razão mais simples de todas as razões: porque
nada lhe falta. Nada deve ser diminuído porque nada há nela supérfluo. Tudo
quanto precisamos se encontra ali; e de nada que há ali podemos prescindir. "Nada
acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso"
(Pv 30:6). Supor que alguma coisa pode ser acrescentada à Palavra de Deus é,
abertamente, negar que é a Palavra de Deus; e, por outro lado, se admitirmos que é
a Palavra de Deus, segue-se necessariamente que não podemos prescindir de uma
simples frase dela. Haveria um espaço em branco no Volume que nenhuma mão
humana poderia preencher, se uma simples cláusula fosse tirada do seu lugar no
cânone. Temos tudo que necessitamos; e, por isso, nada devemos acrescentar.
Precisamos de tudo; e, por isso, nada devemos diminuir.
Quão importante é tudo isto, nestes dias de maquinação humana com a Palavra de
Deus! Quão grato saber que temos em nosso poder um livro tão divinamente
perfeito que nem uma frase, nem uma cláusula, nem uma palavra lhe pode ser
acrescentada. Não falamos, evidentemente, de traduções ou versões, mas das
Escrituras como foram dadas, originalmente, por Deus — Sua própria e perfeita
revelação. Nem um retoque lhe pode ser dado. Tanto se podia atrever o homem a
aperfeiçoar a criação de Deus na manhã em que todos os filhos de Deus cantaram
juntos, como acrescentar um jota ou um til à Palavra inspirada de Deus. E, por
outro lado, tirar dela um jota ou um til, é dizer que o Espírito Santo escreveu o que
era desnecessário. Deste modo o Sagrado Volume está divinamente guardado por
ambos extremos. Está fortemente defendido em redor, de forma que nenhuma
mão rude possa tocar o seu sagrado conteúdo.
"O quê!" poderá dizer-se em resposta, "quer dizer que cada frase desde as primeiras
linhas de Gênesis às linhas finais do Apocalipse é divinamente inspirada
Sim; essa é, precisamente, a posição que nós tomamos. Reivindicamos para cada
linha entre as duas capas do volume uma origem divina. Pôr isto em dúvida é
atacar os próprios pilares da fé cristã. Uma só falha no cânone seria suficiente para
provar que não era de Deus. Tocar uma só pedra do arco é fazer cair em ruínas toda
a estrutura em redor de nós. "Toda a Escritura divinamente inspirada, proveitosa
para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o
homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda a boa obra" (2
Tm 3:16-17).
Este baluarte não deve, de modo algum, ser abandonado. Não; deve ser
tenazmente defendido de todo o infiel assalto. Se fosse abandonado, tudo seria
irremediavelmente perdido. Nada teríamos em que nos apoiar. Ou a Palavra de
Deus é perfeita, ou ficamos sem qualquer fundamento divino para a nossa fé. Se
houvesse uma palavra a mais ou uma palavra a menos na revelação que Deus nos
deu, então estaríamos verdadeiramente expostos, como um navio sem bússola,
leme ou carta, para sermos levados à mercê do embravecido, tumultuoso oceano de
pensamento infiel. Em suma, se não temos uma revelação absolutamente perfeita,
somos os mais miseráveis de todos os homens.
Mas, podemos ainda ser desafiados com perguntas como a seguinte: "Crê que a
longa linha de nomes nos primeiros capítulos de 1 Crônicas, essas tábuas
genealógicas, são divinamente inspiradas? Foram escritas para nosso ensino? E, se é
assim, que podemos aprender delas?" Declaramos sem hesitação a nossa reverente
crença na inspiração divina de todas elas; e não temos quaisquer dúvidas de que o
seu valor, interesse e importância serão plenamente provados, dentro em pouco,
na história desse povo a quem especialmente se referem.
E depois quanto ao que devemos aprender destes registros genealógicos, cremos
que nos ensinam uma lição preciosíssima acerca do cuidado fiel de Javé pelo Seu
povo Israel e do Seu amantíssimo interesse neles e em tudo que lhes diz respeito.
Está vigiando por eles, de geração em geração, embora estejam espalhados e
perdidos para a vista humana. Sabe tudo a respeito "das doze tribos" e a seu devido
tempo as manifestará e plantará na herança que lhes destinou, da terra de Canaã,
segundo a Sua promessa a Abraão, Isaque e Jacó.
Ora, não está tudo isto cheio de instrução bendita para nós? Não está cheio de
conforto para as nossas almas?- Não serve para confirmar a nossa fé, observar os
graciosos cuidados do nosso Deus, a Sua minuciosa vigilância, com respeito ao Seu
povo terrestre? Seguramente que sim. E não devem os nossos corações estar
interessados em tudo que interessa o coração de nosso Pai? Não devemos tomar
interesse em nada senão no que diretamente nos interessai Que o filho terno
haverá que não tomará interesse em tudo que diga respeito a seu pai e se não
deleite em ler cada linha que proceda da pena dele?
Não queremos ser mal compreendidos. Não queremos, de modo nenhum, insinuar
que todas as porções da Palavra de Deus são de igual interesse e importância para
nós. Não pretendemos afirmar que devemos ter igual interesse no capítulo 1 de 1
Crônicas e o capítulo 17 de João ou o capítulo 8 de Romanos. Parece desnecessário
fazer tal declaração visto que se não suscita tal pergunta. Mas o que nós
asseguramos é que cada uma dessas escrituras é divinamente inspirada, tanto uma
como as outras. E não só isto, mas asseguramos, além disso, que 1 Crônicas 1 e
outras passagens como esta preenchem um lugar que João 17 não podia preencher;
e fazem uma obra que Romanos 8 não podia realizar.
E, finalmente, sobretudo e mais que tudo, devemos recordar que não somos
competentes para julgar o que é o que não é digno de um lugar no cânone
inspirado. Somos ignorantes e curtos de vista; e a própria porção que poderia
parecer estar abaixo da dignidade de inspiração pode ter um alcance muito
importante na história dos caminhos de Deus com o mundo em geral e para com o
Seu povo em particular.
Em suma, tudo isto se resolve simplesmente em que, juntamente com toda a alma
verdadeiramente piedosa, toda a mente realmente espiritual, nós cremos
reverentemente na inspiração divina de todas as linhas que figuram na nossa
preciosa Bíblia, desde o princípio ao fim. E cremos isto não com base em qualquer
autoridade humana, seja ela qual for. Crer na Sagrada Escritura porque nos é
abonada por alguma autoridade na terra, seria colocar essa autoridade acima da
Sagrada Escritura, porquanto o que dá essa garantia tem mais peso, mais valor do
que a coisa garantida. Logo, buscar a autoridade humana para confirmar a Palavra
de Deus, seria como puxar de uma lâmpada para provar que o sol estava brilhando.
Não, leitor, temos de ser claros e decididos quanto a isto. Tem de ser, no juízo das
nossas almas, uma verdade fundamental que consideramos mais cara do que a
própria vida — a inspiração plenária da Sagrada Escritura. Assim teremos com que
responder à fria audácia da crítica moderna, racionalismo e infidelidade. Não
queremos dizer com isto que seremos capazes de convencer os infiéis. Deus tratará
com eles segundo o Seu próprio método, e os convencerá com os Seus irrefutáveis
argumentos, a Seu próprio tempo. Argumentar com tais homens é perder tempo e
trabalho. Mas estamos convencidos de que a resposta mais nobre e eficaz à
infidelidade, em todos os aspectos, será encontrada no calmo repouso do coração
que descansa na bendita segurança de que toda a Escritura é dada por inspiração de
Deus. E, também, "Porque tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito,
para que, pela paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança" (Rm
15:4). A primeira destas preciosas passagens prova que a Escritura procede de
Deus; a última, que nos foi dirigida a nós. Ambas juntas tendem a provar que não
devemos acrescentar nem tirar nada à Palavra de Deus. Nada falta e nada há nela
de supérfluo. Louvado seja o Senhor por esta sólida verdade fundamental e por
todo o conforto e consolação que dela emana para todo o verdadeiro crente!

O que Israel Devia Ser para as Outras Nações


Vamos proceder agora a uma citação de algumas passagens neste quarto capítulo
de Deuteronômio que tão enfaticamente mostram o valor, a importância e
autoridade da Palavra de Deus. Nelas, como em todo o conjunto do livro, vemos
que não é tanto uma questão de qualquer ordenança particular, rito ou cerimônia,
mas do peso, solenidade e dignidade da própria Palavra de Deus, seja qual for o
sentido em que essa Palavra possa ser posta diante de nós.
"Vedes aqui vos tenho ensinado estatutos e juízos, como me mandou o SENHOR,
meu Deus; para que assim façais no meio da terra a qual ides a herdar." — A sua
conduta devia ser orientada e formada, em todas as coisas, pelos mandamentos
divinos. Que imenso princípio para eles, para nós, para todos! — "Guardai-os, pois
e fazei-os, porque esta será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os
olhos dos povos que ouvirão todos estes estatutos e dirão: só este grande povo é
gente sábia e inteligente."
Ponderemos especialmente estas palavras. A sua sabedoria e o seu entendimento
deviam consistir simplesmente em guardar e cumprir os divinos estatutos e juízos.
Não era com discussões eruditas ou argumentos que a sua sabedoria devia ser
manifestada, mas por uma obediência indiscutível e pueril. Toda a sabedoria estava
nos estatutos e juízos, não nos seus pensamentos e argumentos a respeito deles. A
profunda e maravilhosa sabedoria de Deus era vista na Sua Palavra, e isto era o que
as nações haviam de ver e admirar. A luz dos juízos divinos brilhando na conduta e
caráter do povo de Deus, havia de produzir o testemunho de admiração das nações
em redor.
Ah, como tudo sucedeu de um modo tão diferente! Quão pouco aprenderam as
nações da terra com o procedimento de Israel para com Deus e a Sua Palavra! Sim,
o Seu nome foi continuamente blasfemado com o seu comportamento. Em vez de
ocuparem o terreno elevado, santo e feliz de amorável obediência aos juízos
divinos, desceram ao nível das nações em redor deles, adotaram os seus costumes,
adoraram os seus deuses e andaram nos seus caminhos; de forma que essas nações
em vez de verem sublime sabedoria, pureza e moral glória dos estatutos divinos,
viram apenas a fraqueza, a loucura e degradação moral de um povo que fazia alarde
de ser o depositário desses oráculos que os condenavam a si próprios (Rm 2 e 3).
Não obstante, bendito seja Deus, a Sua Palavra deve permanecer para sempre, por
muito que o Seu povo falhar em cumpri-la. A sua norma é perfeita, e portanto
nunca deve ser rebaixada; e se o poder da Sua palavra não for visto nos caminhos
do Seu povo, brilhará na condenação desses caminhos, e permanecerá sempre para
orientação, conforto, força e bênção de todo aquele que deseje, por mais fraco ou
hesitante, trilhar a vereda da obediência.
Contudo, no capítulo com que estamos presentemente ocupados, o legislador
procura pôr o padrão divino fielmente diante do povo em toda a sua dignidade e
glória moral. Não deixa de desenrolar ante eles o verdadeiro efeito da obediência;
ao mesmo tempo que os adverte solenemente do perigo de deixarem os santos
mandamentos de Deus. Escutai a sua poderosa alegação aos seus corações. "Porque,
que gente há tão grande" — diz ele —, "que tenha deuses tão chegados como o
SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o chamamos?- E que gente há tão grande,
que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que hoje dou perante
vós?" (versículos 7-8).
Aqui está verdadeira grandeza moral, em todos os tempos e em todos os lugares,
para uma nação, para um povo, para uma família, ou para um indivíduo: ter o Deus
vivo chegado a nós; ter o doce privilégio de o invocar em todas as coisas; ter o Seu
poder e a Sua misericórdia sempre em exercício na nossa direção; ter a luz do seu
bendito semblante brilhando com aprovação sobre nós, em todos os nossos
caminhos; ter o efeito moral dos Seus justos juízos e santos mandamentos visíveis
na nossa carreira prática, dia a dia; tê-Lo a Ele manifestando-Se a Si mesmo a nós e
fazendo em nós Sua morada.
Que linguagem humana pode adequadamente expressar a profunda
bem-aventurança de tais privilégios?- E, todavia, são postos por graça divina ao
alcance de todos os filhos de Deus sobre a face da terra. Não pretendemos afirmar
que todos os filhos de Deus os desfrutam. Longe disso. Estão guardados, como já
temos visto, para aqueles que, pela graça, estão habilitados a render uma amorosa,
cordial, reverente obediência à Palavra divina. Nisto está o precioso segredo de
toda a questão. Era verdadeiro para o Israel da antiguidade; e é verdadeiro para a
igreja no tempo presente; era verdadeiro para a alma individualmente então; é
verdadeiro no tempo presente para toda alma que tem a divina complacência como
recompensa preciosa da obediência humana. E, podemos acrescentar, que a
obediência é o imperioso dever e elevado privilégio de todo o povo de Deus e de
cada um em particular. Venha o que vier, implícita obediência é o nosso privilégio
e o nosso dever, a divina complacência a nossa presente e doce recompensa.

"Não esqueças"
Mas o pobre coração humano é propenso a afastar-se; e múltiplas influências estão
em operação ao redor de nós para nos desviarem do caminho estreito de
obediência. Não nos maravilhemos, pois, das solenes e tão repetidas admoestações
de Moisés aos corações e consciências dos seus ouvintes. Derrama o seu coração
amoroso na congregação tão querida para ele em brilhantes, sinceros e comoventes
acentos: "Tão-somente guarda-te a ti mesmo" — diz ele —, "e guarda bem a tua
alma, que te não esqueças daquelas coisas que os teus olhos têm visto, e se não
apartem do teu coração todos os dias da tua vida, e as farás saber a teus filhos e aos
filhos de teus filhos" (versículo 9).
São palavras graves para todos nós. Põem diante de nós duas coisas de inefável
importância a saber, responsabilidade individual e doméstica — testemunho
pessoal e familiar. O povo de Deus da antiguidade era responsável por guardar o
coração com toda a diligência, a fim de que não deixasse a preciosa Palavra de
Deus. E não somente isso, mas estavam solenemente obrigados a instruir os seus
filhos e os seus netos nela. Somos nós, com toda a nossa luz e privilégios, menos
responsáveis do que o antigo Israel*?- Claro que não. Somos imperativamente
chamados para nos entregarmos ao estudo diligente da Palavra de Deus, a aplicar
os nossos corações a ela. Não é bastante lermos à pressa alguns versículos ou um
capítulo, como diária rotina religiosa. Isto não satisfará em absoluto. Precisamos de
fazer da Bíblia o nosso supremo estudo absorvente; no qual nos deleitamos, em que
encontramos o nosso refrigério e recreio.
É de recear que muitos de nós lemos a Bíblia como um dever, enquanto que
encontramos o nosso deleite e recreio nos periódicos e literatura frívola. É de
admirar que o nosso conhecimento da Escritura seja superficial <?• Como podemos
conhecer alguma coisa das vivas profundidades e glórias morais de um Volume do
qual simplesmente pegamos como dever e lemos alguns versículos com sonolenta
indiferença, enquanto que, ao mesmo tempo, o jornal ou a novela romântica é
literalmente devorada?
Dir-se-á talvez em resposta: "Não podemos estar sempre lendo a Bíblia." Oxalá os
que assim falam pudessem dizer: "Não podemos estar sempre lendo o jornal ou
uma novela." E nós queremos também perguntar, qual deve ser o estado atual de
uma pessoa que pode dizer: "Não podemos estar sempre lendo a Bíblia"? Pode estar
em estado de saúde espiritual? Pode realmente amar a Palavra de Deus?- Pode ter
uma ideia exata da sua preciosidade, sua excelência e das suas glórias morais?- E
impossível.
Que significam as seguintes palavras a Israel: "Ponde, pois, estas minhas palavras
no vosso coração e na vossa alma, e atai-as por sinal na vossa mão, para que estejam
por testeiras entre os vossos olhos"<r (Dt 11:18). O "coração", a "alma", "a mão", os
"olhos" — tudo ocupado com a preciosa Palavra de Deus. Isto era verdadeira obra.
Não devia ser uma formalidade vazia, uma estéril rotina. O homem devia
entregar-se inteiramente com santa devoção aos estatutos e mandamentos de
Deus.

Que Lugar Ocupa a Palavra em nossos Corações, Casas e Hábitos?


"E ensinai-as a vossos filhos, falando delas assentado em tua casa, e andando pelo
caminho, e deitando-te, e levantando-te; e escreve-as nos umbrais de tua casa e nas
tuas portas." Nós, cristãos, compreendemos o alcance de tais palavras?- A palavra
de Deus tem um tal lugar em nossos corações, em nossa casa e nos nossos
costumes? Os que entram em nossas casas ou estão em contato conosco na vida
diária, veem que a Palavra de Deus é suprema para nos? Aqueles com quem
negociamos veem que somos governados pelos preceitos da Sagrada Escriturai Os
nossos criados e os nosso filhos veem que vivemos na verdadeira atmosfera da
Escritura e que o nossos caráter está inteiramente formado e a nossa conduta
governada por ela?
Estas interrogações são penetrantes para os nossos corações, prezado leitor cristão.
Não as deixemos de parte. Podemos estar seguros de que não há indicador mais fiel
do nosso estado moral e espiritual do que aquele que nos proporciona o tratamento
que damos à Palavra de Deus. Se não a amamos — se não amamos o estudo dela, se
não sentimos sede dela, nem deleite nela, anelo pela hora calma em que podemos
estar inclinados sobre as suas páginas sagradas, e beber o seu preciosíssimo ensino
— se não meditamos sobre ela no nosso quarto, no seio da família, na rua, em
suma: se não respiramos a sua santa atmosfera, se não podemos dar expressão a
outro sentimento superior àquele que já foi exposto, que "Não podemos estar
sempre lendo a Bíblia", então, verdadeiramente, temos urgente necessidade de
ponderar o nosso estado espiritual, porque estamos desgraçadamente mal de saúde.
A nova natureza ama a Palavra de Deus — deseja-a sinceramente; como lemos em
1 Pedro 2: "Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite
racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo."
Esta é a verdadeira ideia. Se não buscamos sinceramente o leite da palavra, para
diligentemente o usarmos e nos alimentarmos dele, devemos estar num baixo
estado de alma, doentio e perigoso. Pode não haver nada irregular na nossa
conduta exterior; pode ser que a nossa conduta não desonre o Senhor
publicamente; mas estamos entristecendo o Seu coração amantíssimo com a nossa
crassa indiferença pela Sua Palavra, que representa apenas outra forma de O
desprezarmos a Ele mesmo. E o cúmulo da loucura falar de amar a Cristo, se não
amamos a Sua Palavra e vivemos de acordo com ela. É uma ilusão imaginar que a
nova vida pode estar em estado são e próspero quando a Palavra de Deus é
habitualmente negligenciada na intimidade e na família.
Não queremos dizer, evidentemente, que não se deva ler qualquer outro livro
senão a Bíblia — se assim fosse não teríamos redigidos estas "Nótulas" — mas nada
requer maior vigilância que a questão do que lemos. Todas as coisas devem ser
feitas em Nome de Jesus e para glória de Deus; e a leitura está entre essas coisas.
Não devemos ler nenhum livro que não possa ser lido para glória de Deus, e sobre
o qual não possamos pedir a bênção de Deus.
Achamos que todo este assunto requer a mais séria consideração de todo o povo de
Deus; e esperamos que o Espírito Santo possa empregar a nossa meditação sobre o
capítulo que temos perante nós para despertar os nossos corações e consciência a
respeito do que é devido à Palavra de Deus, tanto em nossos corações como em
nossas casas.
Sem dúvida, se ela tiver o seu próprio lugar no coração, terá também o seu próprio
lugar em casa. Mas se não houver o reconhecimento da Palavra de Deus no seio da
família, é difícil compreender que ocupa o devido lugar no coração. Os chefes de
família devem ponderar seriamente este assunto. Estamos plenamente persuadidos
que deveria haver, em cada lar cristão, o reconhecimento diário de Deus e da Sua
Palavra. Alguns podem talvez considerar isto como uma escravidão, como um ato
legalista, uma rotina ter um culto em família com regularidade. Queremos
perguntar aos que fazem tal objeção se é um ato de escravidão a família reunir-se à
mesa?- As reuniões familiares em redor da mesa do salão já alguma vez foram
consideradas como um dever enfadonho — um ato de fastidiosa rotina? Decerto
que não, se a família for bem ordenada e feliz. Por que motivo há de então
considerar-se uma coisa fatigante para o chefe de uma casa cristã reunir os seus
filhos e os servos em redor dele para ler alguns versículos da preciosa Palavra de
Deus e pronunciar algumas palavras de oração ante o trono da graça<? Cremos que
isto é um costume que está perfeitamente de harmonia com o ensino tanto do
Velho Testamento como do Novo — um hábito grato ao coração de Deus—, um
hábito santo, bendito e edificante.
Que pensaríamos nós de um cristão professo que nunca orasse, nunca lesse a
Palavra de Deus, em particular«? Poderíamos considerá-lo como um cristão,
verdadeiro, feliz?- Não; certamente. De fato, poderíamos pôr em dúvida a
existência de vida divina numa tal alma. A oração e a Palavra de Deus são
absolutamente essenciais para uma sã e vigorosa vida cristã; de forma que o
homem que habitualmente as descura deve encontrar-se em um estado
completamente morto.
Ora se é assim tratando-se de um indivíduo, como pode uma família ser
considerada em devido estado se não há leitura em família, nem oração, nem
reconhecimento em família de Deus ou da Sua Palavra? Podemos conceber a ideia
de uma família temente a Deus vivendo desde o dia do Senhor ao sábado seguinte
sem qualquer reconhecimento coletivo d'Aquele a Quem deve tudo? Os dias vão
passando uns atrás dos outros — — os deveres domésticos são cumpridos — a
família reúne-se regularmente à mesa, mas sem nenhum pensamento de convocar
a todos os da casa e juntarem-se em redor da Palavra de Deus ou ao redor do trono
de misericórdia. Perguntamos, onde se encontra a diferença entre tal família e
qualquer pobre casa pagã? Não é muito triste, deplorável encontrar os que fazem a
profissão mais elevada, e tomam o seu lugar à Mesa do Senhor, vivendo no maior
descuido da leitura em família, do culto em ?

A Leitura em Família e o Testemunho Resultante disto


Prezado leitor, serás tu o chefe da casa? Se assim é, qual é o teu pensamento sobre
este assunto? E qual é a tua linha de conduta? Tens leitura em família e oração em
família, diariamente, em tua casa? Se não, permite que te pergunte, porque não?
Esquadrinha e vê qual é a verdadeira origem do mal. O teu coração tem-se
apartado de Deus, da Sua Palavra e dos Seus caminhos? Lês e oras em particular?
Amas a Palavra e a oração? Encontras prazer nelas. Se assim é, por que as descuras
em tua casa? Procuras talvez escusar-te por causa da tua timidez e nervosismo. Se
assim é, pede ao Senhor que te ajude a vencer a fraqueza. Descansa na Sua infalível
graça e reúne a tua família em redor de ti, cada dia, em determinada hora, para ler
alguns versículos da Escritura e balbucia algumas palavras de oração; ou, se não
podes fazer isto ao princípio, faz com que a família ajoelhe por alguns momentos,
em silêncio, perante o trono da graça.
Alguma coisa, em suma, que se pareça com um reconhecimento em família, um
testemunho familiar — qualquer coisa, menos uma vida sem Deus, descuidada e
sem oração em tua casa. Permite, querido amigo, estas palavras de exortação sobre
este ponto. Permite que insista contigo para que comeces imediatamente pedindo
a ajuda de Deus, que Ele certamente te concederá, porque Ele nunca falta a um
coração que verdadeiramente confia. Não continues por mais tempo a
menosprezar Deus e a Sua Palavra no teu círculo familiar. E realmente uma coisa
terrível. Não permitas, nem por um momento, que os argumentos sobre
escravidão, legalismo, ou formalismo, pesem sobre o teu ânimo. Quase nos
sentimos dispostos a exclamar: "Bendita escravidão!" Se é realmente escravidão ler
a Palavra, damos-lhe cordialmente as boas vindas, e resolutamente nos gloriamos
nela.
Mas não; não podemos, nem por um momento, considerá-la desta maneira.
Cremos ser um privilégio delicioso para todo aquele que Deus tem posto à cabeça
de uma família reunir todos os membros dessa família em redor de si e ler uma
porção desse bendito livro e abrir o seu coração em oração a Deus. Cremos
especialmente que é dever do chefe fazer assim. Não é necessário, de modo
nenhum, fazer um longo, enfadonho serviço. Em regra geral, tanto em nossa casa
como nas reuniões públicas, as orações curtas, breves e fervorosas são muito mais
edificantes.
Mas isto é, evidentemente, um assunto livre, sobre o qual apenas damos o nosso
parecer, que deve ser tomado pelo que vale. A duração e o caráter do serviço deve,
em todos os casos, deixar-se ao critério da pessoa que o dirige. Mas nós esperamos
sinceramente que estas palavras serão examinadas por todo o chefe de família que
até agora haja descuidado o santo privilégio do culto familiar — leitura em família
que não deve descuidar para o futuro. Que possa dizer como Josué: "Escolhei hoje a
quem sirvais... porém eu e a minha casa serviremos ao SENHOR" (Js 24:15).
Não pretendemos, certamente, induzir alguém a imaginar que o simples ato de
leitura em família inclui tudo que está incluído nessa importante expressão:
"Serviremos ao SENHOR." Longe disso. Esse bendito serviço está relacionado com
tudo que pertence à nossa vida privada e doméstica. Inclui os minuciosos
pormenores da vida diária. Tudo isto é verdadeiro e inestimável. Contudo, estamos
inteiramente persuadidos de que nada pode andar bem num lar onde a leitura em
família e a oração em família são habitualmente descuradas.
Pode dizer-se que há muitas famílias que parecem ser muito cuidadosas quanto à
leitura e oração de manhã e à noite, e contudo toda a sua vida doméstica, desde
manhã à noite, é uma flagrante contradição do seu assim chamado serviço
religioso. Pode ser que o chefe da casa, em vez de irradiar luz sobre o círculo da
família, seja de temperamento áspero, rude e de modos grosseiros, severo e
contraditório com sua mulher, arbitrário e severo com os seus filhos, pouco
razoável e exigente com os seus criados, achando faltas no que se põe sobre a mesa,
depois de haver dado graças por tudo isso; e, em suma, desmentindo em todos os
conceitos a sua leitura e as suas orações em família. Outro tanto se pode dizer
quanto à esposa e mãe, a respeito dos filhos e dos criados. A economia doméstica
está toda desorganizada. Há desordem e confusão; as refeições não são pontuais; há
falta de consideração de uns pelos outros; os filhos são rudes, egoístas e obstinados;
os criados são descuidados, estragados e desobedientes, senão piores. O tom, a
atmosfera, e o estilo de toda a casa é anticristão, ímpio, inteiramente indecoroso.
E se nos transportamos fora do círculo doméstico e observamos a conduta dos
chefes e membros da família para com os que estão de fora — os negócios, se estão
ocupados nos negócios — , ouvimos o testemunho dos que negociam com eles, a
respeito da qualidade da sua mercadoria, o estilo e caráter do seu trabalho; o
espírito e temperamento com que desenvolvem os seus negócios; a sua avidez e a
sua usura, a sua avareza, e tais enganos comerciais; não há nada de Deus, nada de
Cristo, nada que os distinga dos maiores mundanos que os rodeiam; sim, a conduta
desses próprios mundanos, dos que nunca pensariam em tal coisa como o culto
doméstico, envergonha-os.
Em tais dolorosas e humilhantes circunstâncias, que pensar da leitura em família,
do altar da família? Ah, é uma formalidade vazia, um procedimento impotente,
indigno e impróprio — em vez de ser um sacrifício da manhã e da tardinha, é uma
mentira — um escárnio, um insulto a Deus!
Tudo isto é infelizmente verdade. Existe uma terrível falta de testemunho
doméstico — de justiça prática em nossas famílias e em toda a economia das nossas
casas. Existe apenas um pouco do vestido branco—o linho fino, que é a justiça dos
santos. Parece que esquecemos as graves palavras do apóstolo inspirado em
Romanos 14: "... o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz e
alegria no Espírito Santo" (versículo 17). Alguns de nós parece pensarem que,
sempre que encontramos a palavra "justiça", tem necessariamente de significar a
justiça de Deus em que nos mantemos, ou a justiça que nos é imputada. Isto é na
verdade um grave erro. Temos de recordar que existe um lado prático e humano
desta questão. Há o subjetivo assim como o objetivo — a conduta assim como a
posição — a condição assim como a posição.
Estas coisas nunca devem ser separadas. De pouco serve estabelecer ou procurar
manter um altar doméstico entre as ruínas do testemunho da família. Não é outra
coisa senão uma repugnante caricatura começar e acabar o dia com o chamado
culto doméstico quando esse dia é caracterizado pela impiedade e injustiça,
leviandade, loucura e vaidade. Pode haver alguma coisa mais desagradável, ou
miseravelmente inconsistente do que uma noite passada em canções frívolas,
charadas e outros jogos terminada com um fragmento desprezível de religião na
forma de leitura e oração?
Toda esta série de coisas é deplorável. Não deveria jamais ser relacionada com o
santo nome de Cristo, com a Sua assembleia, ou a santa celebração da ceia à Sua
Mesa. Devemos medir tudo na nossa vida privada, na nossa economia doméstica,
na nossa conduta diária, em todas as nossas relações comerciais, em toda a nossa
convivência, com um único padrão, isto é, a glória de Cristo. A grande questão que
nos interessa em tudo quanto se apresenta perante nós, ou chama a nossa atenção,
deve ser: "Isto é digno do santo nome que levo sobre mim?" Se não é, não toquemos
nele; pelo contrário, voltemos-lhe as costas com firme decisão, fujamos dele com
santa energia. Não atendamos, nem por um momento, a desprezível pergunta:
"Que mal há nisso?" Nada senão mal, se Cristo não está nisso. Nenhum coração
verdadeiramente piedoso formulará essa pergunta e menos ainda a atenderá.
Sempre que ouvirdes alguém falando assim, podeis, imediatamente, concluir que
Cristo não é o principal objetivo do coração.
Esperamos que o leitor não se sinta enfadado com toda esta simples verdade
prática. Cremos que é altamente necessária nestes dias de larga profissão. Temos
todos grande necessidade de considerar os nossos caminhos, de ver bem o
verdadeiro estado dos nossos corações com respeito a Cristo; pois é aqui que está o
verdadeiro segredo de toda a questão. Se o coração não Lhe for fiel, nada poderá
estar bem — nada estará bem na vida privada, nada no círculo de família, nada nos
negócios, nada na assembleia, nada em seja onde for. Mas se o coração Lhe for fiel
tudo estará — deve estar bem.
Não é de admirar que o bendito apóstolo, quando chega ao final dessa maravilhosa
epístola aos Coríntios, resuma tudo com esta solene declaração: "Se alguém não
ama ao Senhor Jesus Cristo, seja anátema; maranata" (I Co 16:22). No decurso da
sua epístola ele trata de diversas formas de erro doutrinário e depravação moral;
mas quando chega ao final, em vez da sua solene sentença sobre qualquer erro
particular ou mal, lança-se com santa indignação contra todo aquele que, não
importa o que ou quem seja, não ama ao Senhor Jesus Cristo. O amor a Cristo é a
grande salvaguarda contra toda a forma de erro e mal. Um coração cheio de Cristo
não tem lugar para nada mais; mas se não há amor por Ele, não há segurança contra
o mais disparatado erro ou a pior forma de mal moral.

"Ensinarão a seus filhos"


Devemos agora voltar ao nosso capítulo.
A atenção do povo é chamada especialmente para as cenas solenes do monte
Horebe — cenas que, certamente, deveriam ter profunda e permanentemente
impressionado os seus corações. "No dia em que estiveste perante o SENHOR, teu
Deus, em Horebe, quando o SENHOR me disse: Ajunta-me este povo, e os farei
ouvir as minhas palavras" — a maior e mais importante questão para o antigo
Israel, para a Igreja no tempo presente, para cada um, para todos, em todo o tempo
e em todos os lugares, é ser levado a um contato direto, vivo, com a Palavra eterna
do Deus vivo — "e aprendê-las-ão, para me temerem todos os dias que na terra
viverem, e as ensinarão a seus filhos" (versículo 10).
É magnífico notar a íntima ligação entre ouvir a Palavra de Deus e temer o Seu
nome. E um desses grandes princípios fundamentais que nunca mudam, nunca
perdem o seu poder ou valor intrínseco. A Palavra e o nome vão juntos; e o coração
que ama um reverencia o outro e inclina-se perante a sua santa autoridade em
tudo. "Quem não me ama não guarda as minhas palavras" (Jo 14:24). "Aquele que
diz: Eu conheço-o e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está
a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele
verdadeiramente aperfeiçoado" (l Jo 2:4-5). Todo aquele que ama verdadeiramente
a Deus guardará a Sua Palavra em seu coração, e sempre que a Palavra é assim
guardada no coração, a sua influência será vista em todos os atos da sua vida, do
caráter e da conduta. O objetivo de Deus em nos dar a Sua Palavra é que ela possa
governar a nossa conduta, formar o nosso caráter e moldar o nosso caminho; e se a
Sua Palavra não tem este efeito prático sobre nós, é inteiramente inútil falar de O
amarmos; sim, é nada mais, nada menos que zombaria, que Ele deve, mais cedo ou
mais tarde, ressentir.
E notemos especialmente a responsabilidade solene de Israel quanto a seus filhos.
Não só deviam "ouvir" e "aprender" por eles mesmos, mas tinham também de
ensinar seus filhos. Isto é um dever universal e permanente que não pode ser
descurado com impunidade. Deus liga grande importância a este assunto.
Ouvimo-lo dizer de Abraão:"... Eu o tenho conhecido, que ele há de ordenar a seus
filhos e a sua cada depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, para
agirem com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que acerca
dele tem falado" (Gn 18:19).
Estas palavras são importantíssimas, pondo diante de nós a apreciação divina pelo
ensino doméstico e a devoção da família. Em todas as épocas e sob todas as
dispensações, Deus tem-se comprazido em dar expressão à Sua aprovação à própria
educação dos filhos do Seu povo — ao seu ensino fiel segundo a Sua santa Palavra.
Não vemos na Escritura que seja permitido aos filhos crescerem em ignorância,
desleixo e obstinação. Alguns cristãos professos, sob a influência nociva de uma
certa escola de teologia, parecem pensar que é, de certo modo, interferir com a
soberania de Deus, com os Seus propósitos e desígnios, instruir os seus filhos na
verdade do evangelho e na letra da Sagrada Escritura. Julgam que as crianças
deveriam ser deixadas à ação do Espírito Santo, que, certamente, experimentarão
ao tempo que Deus haja determinado, se, de fato, são dos eleitos de Deus; e, se não
são, todo o esforço humano é inútil.
Ora, nós devemos, em toda a fidelidade devida à verdade de Deus, e às almas dos
nossos leitores, dar o mais claro e terminante testemunho contra esta opinião
parcial do grande assunto prático que temos diante de nós. Não há nada mais
perverso, nada mais pernicioso em seus efeitos, sobre a consciência, o coração, a
vida, toda a carreira prática e caráter moral, do que uma teologia parcial. Não
importa qual o lado que se toma, desde que se tome só um. E mais que certo
produzir o que devemos chamar de má formação espiritual. Cremos nunca ser
demais advertir enérgica e sinceramente o leitor contra este grande mal. Só pode
conduzir aos mais desastrosos resultados; os quais, no seu efeito sobre o
treinamento dos nossos filhos, e a administração da nossa casa, são em extremo
nocivos. Com efeito, como temos visto, seguem-se as mais deploráveis
consequências com o prosseguimento desta linha de pensamento. Temos
conhecido filhos de pais cristãos que cresceram em completa ignorância das coisas
divinas, em negligência, indiferença e declarada infidelidade. E se lhes fosse
dirigida uma palavra de admoestação, responderiam com argumentos sobre
dogmas de uma teologia parcial — e como é de calcular, isto é sempre o lado mau.
Diz-se: — Não podemos fazer cristãos dos nossos filhos e não devemos
convertê-los em formalistas ou hipócritas. Ou há de ser uma obra divina, ou nada.
Quando chegar o tempo de Deus, Ele os chamará eficazmente, se de fato eles
estiverem no número dos Seus efeitos. Se não estão, todos os nossos esforços são
inúteis.
A tudo isto replicamos que esta linha de argumento, se fosse levada até certo
ponto, impediria o lavrador de lavrar o seu campo ou de semear a sua semente. E
perfeitamente claro que não pode fazer com que a semente germine ou frutifique.
Tão impossível lhe seria fazer crescer um simples grão de trigo, como criar o
universo. Isto impede-o de lavrar e semeará Isto faz com que cruze os braços e
diga: "Não posso fazer nada. Não posso, por qualquer esforço da minha parte, fazer
com que o grão cresça. É uma operação divina; e portanto devo esperar até que
Deus de tudo disponha." Há algum lavrador que raciocine e atue desta maneirai
Certamente que não, a não ser que seja um demente. Toda a pessoa de mente sã
sabe que lavrar e semear precedem a colheita; e se as duas primeiras tarefas forem
negligenciadas, é o cúmulo dos desvarios procurar a última.
Nem outra coisa ocorre com a educação dos nossos filhos. Nós sabemos que Deus é
soberano. Cremos nos Seus desígnios e propósitos eternos. Reconhecemos
plenamente as grandes doutrinas da eleição predestinação; sim, estamos
absolutamente tão convencidos delas como da verdade de que Deus é ou de que
Cristo morreu e ressuscitou. Além disso, cremos que o novo nascimento deve ter
lugar, em todos os casos — tanto nos casos dos nossos filhos como em todos os
demais; estamos convencidos de que este novo nascimento é uma operação
inteiramente divina, efetuada pelo Espírito Santo, pela Palavra, como nos é
ensinado claramente no discurso do Senhor com Nicodemos, em João 3, e também
em Tiago 1:18 e 1 Pedro 1:23.
Mas tudo isto toca, ainda que da maneira mais simples, a solene responsabilidade
de os pais cristãos ensinarem e treinarem os seus filhos diligente e fielmente desde
a sua mais tenra idade? Seguramente que não. Ai dos pais que, sob qualquer
alegação ou fundamento, quer seja uma teologia parcial, quer uma errônea
aplicação da Escritura, ou qualquer outra causa, negam a sua responsabilidade ou
descuram o seu claro dever a respeito deste negócio! Decerto, não podemos fazer
os nossos filhos cristãos; e não devemos fazer deles formalistas ou hipócritas. Mas
nós não somos chamados para fazer deles coisas alguma. Somos chamados
simplesmente para cumprir o nosso dever para com eles, e deixar os resultados
com Deus. Somos ensinados e mandados a criar os nossos filhos "na disciplina e
admoestação do Senhor". Quando devemos começar a criá-los desta maneirai
Quando devemos começar a sagrada tarefa de treinar os nossos pequeninos?
Seguramente, ao princípio. No próprio momento em que entramos no parentesco,
entramos também na responsabilidade que esse parentesco impõe. Não podemos
negar isto. Não podemos alijar-nos dela. Podemos descuidá-la e ter de recolher as
tristes consequências do nosso descuido de diversas formas. E uma coisa séria o
sagrado parentesco da paternidade — muito interessante e muito agradável em
dúvida; mas muito séria por causa da responsabilidade que acarreta. É verdade,
bendito seja Deus, que, nisto como em tudo mais, a Sua graça nos basta; e "Se
algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e
não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada" (Tg 1:5). "Não que sejamos capazes, por nós
mesmos", nesta importante questão, de pensar ou fazer qualquer coisa; mas a nossa
capacidade é de Deus; Ele satisfará todas as nossas necessidades. Nós só temos que
depender d'Ele para as necessidades de cada hora.
Mas devemos cumprir o nosso dever. Alguns não gostam da palavra familiar
"dever". Pensam que tem um sonido legalista. Esperamos que o leitor não pensará
assim, porque é um erro muito grave. Consideramos a palavra como moralmente
salutar e muito apropriada; e cremos que todo o verdadeiro crente a ama. Uma
coisa é certa; é só no caminho do dever que podemos contar com Deus. Falar de
confiar em Deus, quando se está fora do caminho do dever, é um conceito
miserável e uma ilusão. E, na questão do nosso parentesco, como pais, descurar o
nosso dever é atrair sobre nós as consequências mais desastrosas.
Cremos que todo o assunto de educação cristã está resumido em duas expressões, a
saber: conta com Deus quanto aos teus filhos; e educa a teus filhos para Deus.
Aceitar a primeira sem a segunda é antinomianismo; aceitar a segunda sem a
primeira é legalidade; aceitaras duas juntamente é puro, prático cristianismo —
verdadeira religião à vista de Deus e do homem.
E doce privilégio de todo o pai cristão contar, com toda a confiança possível, com
Deus, para seus filhos. Mas temos de recordar que há, no governo de Deus, um
vínculo inseparável de ligação entre este privilégio com a mais solene
responsabilidade acerca da educação. Para um pai cristão falar de depender de
Deus para salvação de seus filhos e integridade da sua carreira futura, neste mundo,
enquanto o dever de educação é descurado, é simplesmente uma miserável ilusão.
Insistimos sobre isto de um modo muito sério com todos os pais cristãos, mas
especialmente com aqueles que acabam de entrar no gozo do parentesco. Existe o
grande perigo de faltarmos aos nossos deveres para com os nossos filhos, de os
deixar- mos ao cuidado de outros ou de os descurarmos completamente. Não nos
agradam os incômodos que esse dever nos acarreta; e desejamos alijar-nos deles.
Mas descobriremos que a aflição, o incômodo, e a dor, resultantes da negligência
no cumprimento do nosso dever serão mil vezes piores do que tudo que possa estar
envolvido no seu cumprimento. Existe uma profunda satisfação em trilhar a senda
do dever para todo o que ama a Deus. Cada passo dado nessa senda fortalece a nossa
confiança para continuar. E por outro lado podemos contar com os infinitos
recursos que temos em Deus, quando guardamos os Seus mandamentos. Só temos
de recorrer, dia a dia, hora a hora, ao tesouro inesgotável de nosso Pai, e receber ali
tudo quanto necessitamos, em graça, sabedoria e força moral para podermos
desempenhar retamente as santas funções do nosso parentesco. "Ele dá mais
graça." Esta verdade é sempre a mesma. Mas se nós, em vez de buscarmos graça
para desempenhar o nosso dever, buscamos a comodidade negligenciando-o,
apenas ajuntamos dor que se acumulará rapidamente e algum dia cairá
pesadamente sobre nós. "Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o
que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne da
carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito do Espírito ceifará a vida
eterna" (Gl 6:7-8).
Isto é o relato resumido de um grande princípio do governo moral de Deus — um
princípio de aplicação universal, que se aplica, com poder singular, ao assunto de
que falamos. Assim como semearmos, na questão da educação dos nossos filhos,
assim, seguramente, ceifaremos. Não há maneira de escapar a este princípio.

A Educação de Nossos Filhos


Mas não desanime qualquer prezado pai crente cujos olhos possam examinar estas
linhas. Não há razão alguma para isso; antes, pelo contrário, há todo o motivo para
radiante confiança em Deus. "Torre forte é o nome do SENHOR; para ela correrá o
justo e estará em alto retiro" (Pv 18:10). Andemos com passo firme no caminho do
dever; e então poderemos contar, em constante confiança, com o nosso Deus,
sempre fiel e cheio de graça, para as necessidades de cada dia, à medida que eles
passam. E, a seu tempo, ceifaremos o precioso fruto do nosso labor, segundo o
decreto de Deus, em prosseguimento dos decretos do Seu governo moral.
Não tentamos estabelecer quaisquer regras ou regulamentos para a educação. Não
temos confianças neles. Os filhos não podem educar-se por regras fixas. Quem
poderá incorporar em regras tudo que está envolvido nessa expressão: "Criai-os na
doutrina e admoestação do Senhor" ?
Aqui temos, de verdade, a regra de outro que compreende tudo, desde o berço à
idade viril. Sim, repetimos: "desde o berço"; pois estamos plenamente convencidos
de que toda a verdadeira educação cristã começa desde a mais tenra idade. Alguns
têm uma pequena ideia de quão cedo e de que modo agudo começam as crianças a
observar; e de como dão conta quando nos contemplam com os seus expressivos
olhos tão queridos.
E, demais, quão sensíveis eles são à atmosfera moral que os rodeia! Sim; e é esta
própria atmosfera moral que constitui o grande segredo de ensino das nossas
famílias. Os nossos filhos deverão ser autorizados a respirar, dia a dia, a atmosfera
de amor e paz, pureza, santidade e verdadeira justiça prática. Tudo isto tem um
efeito assombroso na formação do caráter. E uma grande coisa para os nossos filhos
verem os seus pais andar em amor, em harmonia, em terno cuidado um pelo outro;
em amável consideração para com os servos; em amor e simpatia pelos pobres.
Quem pode medir o efeito moral sobre uma criança do primeiro olhar de cólera ou
de palavras duras entre o pai e a mãe? E nos casos em que o espetáculo diário é de
alterações e contenda, o pai desmentindo a mãe, e a mãe depreciando o pai; como
podem os filhos crescer em uma atmosfera de tal natureza?
O fato é que não está ao alcance da linguagem humana expor tudo o que está
envolvido no tom moral de todo o círculo da família — o espírito, o estilo, e a
atmosfera de toda a casa, a sala, a casa de jantar, o quarto das crianças, a cozinha,
em que as circunstâncias permitem tais comodidades, ou onde a família tenha de se
acomodar em duas casas. Não se trata de uma questão de classes, posição ou
riqueza, mas formosa graça de Deus resplandecendo em tudo. Pode ser que o jantar
seja de simples vegetais ou de um bom bife; estas coisas não estão, presentemente,
em discussão. Mas o que queremos acentuar perante todos os pais e mães, todos os
chefes de família, elevados ou humildes, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes, é a
necessidade de educarem os seus filhos numa atmosfera de amor, paz, verdade e
santidade, pureza e bondade. Desta forma a família será a manifestação prática do
caráter de Deus; e todos os que estiverem em contato com eles terão, pelo menos,
diante de seus olhos um testemunho prático da verdade do cristianismo.
Mas, antes de deixar o assunto do governo doméstico, há um ponto especial para o
qual desejamos chamar a atenção dos pais cristãos — um ponto de grande
importância, embora muito descurado entre nós, e este é a necessidade de inculcar
nas nossas crianças o dever de implícita obediência. É um ponto em que nunca é
demais insistir, visto que não só afeta a ordem e o conforto das nossas casas, mas, o
que é infinitamente mais importante, diz respeito à glória de Deus e à
demonstração prática da Sua verdade. "Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no
Senhor, porque isto é justo" (Ef 6:1); "Vós, filhos, obedecei em tudo a vossos pais,
porque isto é agradável ao Senhor (Cl 3:20).
Isto é absolutamente essencial, e é nisto que temos de insistir firmemente logo
desde o princípio. A criança deve ser ensinada a obedecer desde a sua mais tenra
idade. Deve ser ensinada a submeter-se à autoridade divinamente dada, e isto,
como o apóstolo estabelece "em tudo". Se isto é negligenciado logo ao princípio,
mais tarde se verá que é quase impossível consegui-lo. Se a vontade for permitida a
atuar, crescerá, com rapidez incrível, e o seu crescimento diário aumenta a
dificuldade de manter a criança debaixo de controle. Por isso, o pai deve começar
imediatamente por estabelecer a sua autoridade sobre a base de força moral e
firmeza; e, uma vez isso conseguido, pode ser tão dócil e terno quanto o coração
mais sensível pode desejar. Não cremos na austeridade, severidade e rigor. Não são,
de nenhum modo, necessários, e acompanham geralmente uma má educação e a
prova de um mau temperamento. Deus pôs nas mãos dos pais as rédeas do governo,
e a vara da autoridade; mas não é necessário — se nos podemos assim exprimir —
estar continuamente a puxar as rédeas e a manejar o chicote, que afinal são as
provas seguras de fraqueza moral. Sempre que ouvirdes um homem falar
continuamente da sua autoridade, podereis estar seguros de que a sua autoridade
não está propriamente estabelecida. Existe uma verdadeira dignidade quanto ao
verdadeiro poder moral que é perfeitamente inconfundível.
Além disso, nós julgamos ser um erro para um pai estar perpetuamente a opor-se
aos desejos de um filho em assuntos de pouca importância. Uma tal linha de ação
tende a abater o espírito da criança, enquanto que o fim de toda a boa educação é
dominar a vontade. A criança deve ter sempre a impressão de que o pai procura só
o seu verdadeiro bem; e se tem que lhe recusar ou proibir alguma coisa não é com o
propósito de o privar dos seus prazeres, mas simplesmente para o seu próprio bem.
Um dos grandes objetivos do governo doméstico é proteger cada membro da
família no gozo dos seus privilégios e no próprio comprimento dos seus deveres
relativos. Ora, visto que o dever divinamente estabelecido de uma criança é
obedecer, o pai é responsável por ver que este dever é cumprido, porque se for
descurado, outros membros do círculo doméstico devem sofrer com isso.
Não pode haver aborrecimento maior numa casa do que uma criança desobediente
e obstinada; e, em regra geral, onde quer que se encontre um caso assim, pode
atribuir-se a má educação. Nós sabemos, evidentemente, que as crianças diferem
em temperamento e disposição; que algumas crianças têm uma vontade enérgica e
um temperamento obstinado, e portanto são difíceis de manejar.
Compreendemos tudo isto perfeitamente; mas fica completamente em suspenso a
questão da responsabilidade dos pais insistirem sobre a obediência implícita.
Podem sempre contar com Deus para a necessária graça e poder para levarem por
diante este ponto. Até mesmo no caso de uma mãe viúva, cremos, com toda a
certeza, que ela pode pedir a Deus competência para governar a sua casa e os seus
filhos. De nenhum modo, pois, deve prescindir-se da autoridade paterna.
Acontece algumas vezes que, por um carinho irrefletido, o pai é tentado a lisonjear
a vontade da criança; mas é semear para a carne, e deve produzir corrupção. Não é
de nenhum modo, verdadeiro amor aceder à vontade da criança; nem pode
contribuir para a sua verdadeira felicidade ou legítimo prazer. Uma criança a quem
é consentido fazer a sua vontade obstinada é em si mesma infeliz e um doloroso
contágio para todos os que têm de lidar com ela. As crianças devem ser ensinadas a
pensar nos outros; e a procurar promover a sua comodidade e felicidade de todos os
modos. Quão impróprio é, por exemplo, para uma criança entrar em casa e subir as
escadas assobiando, cantando e gritando, em absoluto desdém pelos outros
membros da família que podem sentir-se seriamente incomodados e aborrecidos
com tal conduta! Nenhuma criança convenientemente educada pensará em agir de
tal modo; e onde quer que uma tal conduta, indômita, desregrada e imprudente é
consentida, há um grave defeito no governo doméstico.
É essencial para a paz, harmonia e comodidade da família que todos os membros se
"considerem uns aos outros". Nós temos a responsabilidade de procurar o bem e a
felicidade dos que nos rodeiam e não a nossa própria. Se todos apenas recordassem
isto, que famílias diferentes teríamos, e que história diferente teriam as famílias
para contar! Toda a família cristã deveria ser o reflexo do caráter divino. A
atmosfera deveria ser precisamente a própria atmosfera do céu. Como seria isto«?-
Simplesmente cada um, pais, filhos, patrões e criados procurando andar nas pisadas
de Jesus e manifestando o Seu Espírito. Ele nunca buscou a Sua própria satisfação;
nunca buscou os Seus próprios interesses em coisa alguma. Fez sempre o que
agradava ao Pai. Veio para servir e para dar. Andou fazendo bem, e curando os
oprimidos do diabo. Assim foi sempre com o bendito senhor — o benévolo, terno,
compassivo Amigo de todos os filhos e filhas da necessidade, fraqueza e dor; e se ao
menos os vários membros de cada família cristã fossem formados segundo esse
perfeito modelo, realizaríamos, pelo menos, alguma coisa do poder e eficácia de
cristianismo pessoal e doméstico que, bendito seja Deus, pode sempre ser mantido
e manifestado, não obstante a irremediável ruína da igreja professante. "Tu e a tua
casa" sugere a grande regra de ouro que se vê em todo o Livro de Deus, desde o
princípio ao fim. Em todas as épocas, sob todas as dispensações, nos dias dos
patriarcas, nos dias da Lei, e nos dias do cristianismo, encontramos que, para
grande conforto e estímulo, a santidade pessoal e doméstica devoção ocupam o seu
lugar como alguma coisa grata ao coração de Deus e a glória do Seu santo Nome.
Julgamos que isto é consolador, em todos os tempos, mas particularmente numa
época como a presente, em que a igreja professante parece submergir-se
rapidamente no crasso mundanismo e declarada infidelidade; em que aqueles que
desejam sinceramente andar em obediência à Palavra de Deus e agir segundo a
grande verdade fundamental da unidade do corpo encontram grandes dificuldades
para manter um testemunho coletivo. Em vista de tudo isto, bem podemos
bendizer a Deus, com corações transbordantes, porque a devoção pessoal e familiar
pode sempre ser mantida, e porque do coração e da casa de todo o cristão pode
ascender ao trono de Deus uma corrente constante de louvor, e porque uma
corrente de ativa benevolência corre para um mundo necessitado, triste e afligido
pelo pecado. Que assim seja, mais e mais, pelo poderoso ministério do Espírito
Santo, para que Deus possa ser, em todas as coisas, glorificado nos corações e lares
do Seu amado povo!

Tenhamos Cuidado com a Idolatria


Temos de considerar agora o aviso solene dirigido à congregação de Israel contra o
terrível pecado de idolatria — um pecado para o qual, infelizmente, o pobre
coração humano está sempre inclinado de uma maneira ou de outra. É muito
possível ser culpado de pecado de idolatria sem se curvar perante uma imagem de
escultura; pelo que nos convém pesar bem as palavras de advertência que foram
pronunciadas pelos lábios do venerando legislador de Israel. Estão escritas
certamente para nosso ensino.
"E vós vos chegastes, e vos pusestes ao pé do monte; e o monte ardia em fogo até ao
meio dos céus, e havia trevas, e nuvens, e escuridão". — Solenes e apropriados
acessórios da ocasião! — "Então, o SENHOR VOS falou do meio do fogo". — Oh,
de que modo tão diferente Ele fala no evangelho da Sua graça! — "a voz das
palavras ouvistes, não vistes semelhança nenhuma" — um importante fato para
eles considerarem! — somente "a voz" — E "a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela
Palavra de Deus" — "Então, vos anunciou ele o seu concerto, que vos prescreveu,
os dez mandamentos, e os escreveu em duas tábuas de pedra. Também o SENHOR
me ordenou, ao mesmo tempo, que vos ensinasse estatutos e juízos" — não para
que os pudessem discutir, ou julgá-los, ou argumentar sobre eles, mas "para que os
fizésseis" — a magna e velha história, o tema de obediência preciosíssima de
Deuteronômio! Quer seja fora ou "na terra, a qual passais a possuir" (versículos
12-14).
Aqui descansa o sólido fundamento de recurso contra a idolatria. Eles não viram
nada. Deus não Se lhes mostrou. Não tomou forma corporal alguma da qual eles
pudessem formar uma imagem. Deu-lhes a Sua Palavra, os Seus santos
mandamentos, tão claros que uma criança podia compreendê-los, e para que o
homem perverso, embora louco, não precise de errar neles. Não havia necessidade,
portanto, de se entregarem à imaginação do que Deus era semelhante; antes pelo
contrário, isto era o próprio pecado contra o qual eram advertidos com tanta
fidelidade. Foram chamados para ouvir a voz de Deus, não para ver a Sua forma —
para obedecer aos Seus mandamentos, não para fazer uma imagem d'Ele. A
superstição procura inutilmente honrar a Deus formando uma imagem e
adorando-a. A fé, pelo contrário, recebe com amor e obedece com reverência os
Seus mandamentos. "Se alguém me ama", diz o bendito Senhor, fará o quê?- Fará
uma imagem de mim e a adorará?- Não, mas, "guardará a minha palavra". Isto
torna o assunto tão simples, tão seguro, tão certo. Não somos chamados para
formar em nossas mentes qualquer conceito de Deus. Temos simplesmente de
ouvir a Sua Palavra e guardar os Seus mandamentos. Não podemos ter qualquer
ideia de Deus, senão aquela pela qual Ele teve prazer em Se revelar a Si mesmo.
"Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o
fez conhecer" (Jo 1:18). "Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a
luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento
da glória de Deus, na face de Jesus Cristo" (2 Co 4:6).
É declarado que Jesus é o resplendor da glória de Deus e a expressa imagem da Sua
pessoa. Ele podia dizer: "Quem me vê a mim, vê o Pai." Assim o Filho revela o Pai;
e é pela Palavra, mediante o poder do Espírito Santo, que sabemos alguma coisa do
Filho; e, portanto, todo aquele que procura por qualquer esforço da sua mente
obscurecida ou fantasia da sua imaginação conceber uma imagem de Deus ou de
Cristo, é simplesmente um idólatra. Tentar chegar a algum conhecimento de Deus
ou de Cristo, salvo pela Escritura, é simplesmente misticismo e confusão; mais
ainda, é colocarmo-nos a nós próprios diretamente nas mãos do diabo para sermos
arrancados por ele ao mais disparatado, obscurecido e mortal engano.
Por isso, como Israel, no monte de Horebe, ficou limitado à "voz" de Deus, e
advertido contra qualquer semelhança, assim nós estamos limitados à Sagrada
Escritura, e somos advertidos contra tudo que nos afastaria, ainda que na mais
insignificante medida, desse santo e suficiente padrão. Não devemos atender às
sugestões das nossas próprias mentes nem às de qualquer outra mente humana.
Devemos recusar absoluta e rigorosamente dar ouvidos a tudo que não seja a voz
de Deus — a voz da Sagrada escritura. Nisto há verdadeira segurança, verdadeiro
descanso. Aqui temos absoluta certeza, de modo que podemos dizer: "Eu sei em
quem" — não no quê — "tenho crido; e estou certo que ele é poderoso", etc.
"Guardai, pois, com diligência a vossa alma, pois semelhança nenhuma vistes no
dia em que o SENHOR, vosso Deus, em Horebe falou convosco, do meio do fogo;
para que não vos corrompais e vos façais alguma escultura, semelhança de imagem,
figura de macho ou de fêmea; figura de algum animal que haja na terra, figura de
alguma ave alígera que voa pelos céus, figura de algum animal que anda de rastos
sobre a terra, figura de algum peixe que esteja nas águas debaixo da terra; e não
levantes os teus olhos aos céus e vejas o sol, e a lua, e as estrelas, todo o exército dos
céus, e sejas impelido a que te inclines perante eles, e sirvas àqueles que o
SENHOR, teu Deus, repartiu a todos os povos debaixo de todos os céus. Mas o
SENHOR VOS tomou e vos tirou do forno de ferro do Egito, para que lhes sejais
por povo hereditário, como neste dia se vê" (versículos 15 a 20).
Aqui é posta diante de nós uma verdade de grande peso. Ensina-se expressamente
ao povo que fazendo qualquer imagem e inclinando-se diante dela, na realidade,
eles se rebaixariam e corromperiam. Por isso, quanto fizeram o bezerro de ouro, o
Senhor disse a Moisés: "Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste subir do Egito, se
tem corrompido." Não podia ser de outro modo. O adorador tem de ser inferior ao
objeto de sua adoração; e, portanto, adorando um bezerro, eles colocavam-se
efetivamente abaixo do nível das bestas que perecem. Portanto, bem podia o
Senhor dizer, "eles se têm corrompido; e depressa se têm desviado do caminho que
eu lhes tinha ordenado: fizeram para si um bezerro de fundição, e perante ele se
inclinaram, e sacrificaram-lhe, e disseram: Estes são os teus deuses, ó Israel, que te
tiraram da terra do Egito."
Que espetáculo! Toda a congregação, conduzida por Aarão, o sumo sacerdote,
inclinada em adoração ante um objeto feito por um buril dos brincos que haviam
sido tirados das orelhas das suas mulheres e filhas! Imagine-se apenas um número
de seres inteligentes, um povo dotado de razão, entendimento e consciência,
dizendo de um bezerro de ouro: "Estes são os teus deuses, ó Israel, que te tiraram
da terra do Egito!" Com efeito, eles substituíram Deus por uma imagem fundida
por arte e invenção humana! E este era o povo que havia visto as obras de Javé na
terra do Egito. Haviam visto cair praga após praga sobre o Egito e o seu obstinado
rei. Haviam visto, com efeito, tremer a terra até o próprio centro com os golpes
sucessivos da vara do governo de Javé. Haviam visto o primogênito do Egito morto
pela espada do anjo destruidor. Haviam visto o mar Vermelho dividido por um
golpe da vara de Javé, e eles haviam passado em caminho seco entre essas muralhas
cristalinas que depois caíram em poder esmagador sobre os seus inimigos.
Todas estas coisas haviam passado ante os seus olhos; e, contudo, eles puderam, tão
cedo, esquecer tudo, e dizer de um bezerro de fundição: "Estes sãos os teus deuses,
ó Israel, que te tiraram da terra do Egito." Acreditavam eles realmente que uma
imagem de fundição havia feito tremer a terra do Egito, humilhado o seu altivo
monarca, e os tirara vitoriosamente?- Fora um bezerro que dividira o mar e os
conduzira majestosamente através dos seus abismos"? Pelo menos, eles assim
disseram; pois o que não dirá o povo quando os olhos e o coração são afastados de
Deus e da Sua Palavra?

Sempre a Idolatria...
Mas talvez alguém diga: Isto diz-nos respeito? Os crentes devem aprender alguma
coisa do bezerro fundido de Israel? E os avisos feitos a Israel contra a idolatria
dizem respeito em sentido algum à Igreja? Corremos nós risco de nos curvarmos
ante uma imagem de fundição? E possível que nós, cujo elevado privilégio é andar
à luz universal do cristianismo do Novo Testamento, possamos jamais adorar um
bezerro fundido?
A tudo isto nós respondemos, antes do mais, na linguagem de Romanos 15, 4:
"Porque tudo que dantes foi escrito — incluindo Êxodo 22 e Deuteronômio 4 —
para nosso ensino foi escrito, para que, pela paciência e consolação das Escrituras,
tenhamos esperança." Esta breve passagem contém o nosso direito de percorrer o
vasto campo da Escritura do Velho Testamento e recolher e apropriarmo-nos das
suas preciosas lições para nos alimentarmos das suas "grandes e preciosas
promessas"; para beber nas suas profundas e variadas consolações e lucrar com os
seus solenes avisos e sãs admoestações.
E então, quanto a sermos capazes ou a estarmos sujeitos a cair no pecado grosseiro
de idolatria, temos uma notável resposta em 1 Coríntios 10, onde o apóstolo
inspirado emprega a própria cena do monte Horebe como um aviso para a Igreja de
Deus. O melhor que podemos fazer é citar toda a passagem. Nada há comparável à
Palavra de Deus. Possamos nós amá-la, exaltá-la e reverenciá-la mais e mais, dia a
dia!
"Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem" — aqueles cujos cadáveres caíram no deserto, bem como os que
alcançaram a terra da promessa —, "e todos passaram pelo mar, e todos foram
batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de um mesmo manjar
espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da
pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" — Quão enérgico, quão solene
e quão penetrante é isto para todos os críticos! — "Mas Deus não se agradou da
maior parte deles, pelo que foram prostrados no deserto. E essas coisas foram-nos
feitas em figura" — notemos atentamente isto — "para que não cobicemos as coisas
más" — coisas que são contrárias à mente de Cristo — "como eles cobiçaram. Não
vos façais, pois, idólatras" — de forma que os crentes professantes podem ser
idólatras — "como alguns deles; conforme está escrito: O povo assentou-se a comer
e a beber e levantou-se para folgar. E não nos prostituamos, como alguns deles
fizeram, e caíram num dia vinte e três mil. E não tentemos a Cristo, como alguns
deles também tentaram, e pereceram pelas serpentes. E não murmureis, como
também alguns deles murmuraram, e pereceram pelo destruidor. Ora, tudo isto
lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são
chegados os fins dos séculos. Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia"
(versículos 1 a 12).
Aqui aprendemos da maneira mais clara que não há medida de pecado ou de
loucura, não há forma de depravação moral em que não somos capazes de cair, em
qualquer momento, se não somos guardados pelo poder de Deus. Não existe
segurança para nós senão no abrigo da presença divina. Sabemos que o Espírito de
Deus não nos previne contra coisas a que não estamos expostos. Não nos diria:
"Não vos façais, pois, idólatras", se não fôssemos capazes de o ser. A idolatria toma
várias formas. Não se trata, portanto, de uma questão de forma, mas da própria
coisa em si; não da forma exterior, mas da raiz ou princípio da própria coisa. Lemos
que "a avareza é idolatria"; e um homem avarento é um idólatra. Quer dizer, um
homem que deseja ter mais que Deus lhe tem dado é um idólatra — é com efeito
culpado do pecado de Israel quando eles fizeram um bezerro de ouro e o adoraram.
O bem-aventurado apóstolo podia muito bem dizer aos Coríntios — dizer-nos a
nós — "Portanto, meus amados irmãos, fugi da idolatria." Porque somos
admoestados a fugir de uma coisa a que não estamos expostos? Há no Volume
divino algumas palavras fúteis? O que querem dizer essas palavras finais da
Primeira Epístola de João: "Filhinhos, guardai-vos dos ídolos?" Dizem-nos que
estamos em perigo de adorar ídolos?- Certamente que sim. Os nossos corações
traiçoeiros são capazes de se afastarem do Deus vivo e de levantar algum outro
objeto além d'Ele. E o que é isto senão idolatria?- Qualquer coisa que domine o
coração é o ídolo do coração, seja o que for: dinheiro, prazeres, poder ou qualquer
coisa mais; de forma que podemos bem ver a urgente necessidade dos muitos avisos
que nos são dados pelo Espírito Santo contra o pecado da idolatria.
Mas nós temos em capítulo 4 de Gálatas uma notável passagem, uma passagem que
fala, no mais impressionante tom, à igreja professante. Os gálatas, como todos os
outros gentios, haviam adorado ídolos; mas quando do acolhimento do evangelho,
haviam-se convertido dos ídolos para servir o Deus vivo e verdadeiro. Os
ensinadores judaizantes, não obstante, tinham vindo até junto deles e ensinado
que a menos que fossem circuncidados e guardassem a lei, não podiam ser salvos.
Ora, a isto o bem-aventurado apóstolo chama sem hesitação idolatria — um
retrocesso à grosseira e moral degradação dos tempos anteriores, e tudo isto depois
de haverem professado receber o glorioso evangelho de Cristo. Daí a força moral
da interrogação do apóstolo: "Mas, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que
por natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus", ou, antes, sendo
conhecidos de Deus, "como tomais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres,
aos quais de novo quereis servirá Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio
de vós que não haja trabalho em vão para convosco."
Isto é especialmente notável. Os gálatas não estavam voltando ostensivamente ao
culto dos ídolos. Não é improvável que tivessem repudiado com indignação uma
tal ideia. Mas, apesar disso, o apóstolo inspirado pergunta-lhes: "Como tornais
outra vez? O que significa esta interrogação, se eles não estavam voltando para a
idolatria? E o que vamos nós aprender, agora, de toda essa passagem?
Simplesmente isto: que a circuncisão, a observância da lei, a guarda de dias e
meses, e tempos e anos, tudo isto, embora em aparência fosse tão diferente, era
nada mais, nada menos que voltar à sua antiga idolatria. A observância de dias e o
culto de deuses falsos eram coisas pelas quais eles se apartavam do Deus vivo e
verdadeiro; de Seu Filho Jesus Cristo; do Espírito Santo; desse brilhante
agrupamento de dignidades e glórias que pertencem ao cristianismo.
Tudo isto é peculiarmente solene para os crentes professos. Duvidamos que a plena
importância de Gálatas 4:8-10 seja realmente compreendida pela grande maioria
daqueles que professam crer na Bíblia. Chamamos solenemente a atenção para
todo este assunto de todos aqueles a quem ele possa interessar. Rogamos a Deus
que o use com o propósito de despertar os corações e as consciências do Seu povo
em toda a parte para considerarem a sua posição, os seus hábitos, caminhos e
ligações; e indagarem até onde estão realmente seguindo o exemplo da assembleia
de Galácia na observância de dias santos e coisas que tais que só podem afastar-nos
de Cristo e da Sua gloriosa salvação.
Virá um dia que abrirá os olhos de milhares para a realidade destas coisas; e então
verão o que agora recusam ver — que as próprias formas mais grosseiras e
tenebrosas do paganismo podem ser reproduzidas sob o nome do cristianismo, e
relacionadas com as verdades mais sublimes que jamais deslumbraram o
entendimento humano.
Mas por tardos que possamos ser em admitir a nossa inclinação para cair no pecado
de idolatria, é muito claro no caso de Israel, que Moisés, ensinado e inspirado por
Deus, sentiu a profunda necessidade de os advertir desse pecado nos termos mais
solenes e tocantes. Fez-lhes apelos de todos os pontos de vista possíveis, e reiterou
os seus conselhos e admoestações de uma forma tão impressionante, que,
seguramente, eles ficavam sem desculpa. Nunca poderiam dizer que se caíam em
idolatria era por falta de aviso ou de pedidos cheios de graça e afetuosos. Pense-se
nas palavras seguintes: "Mas o SENHOR vos tomou e vos tirou do forno de ferro do
Egito, para que lhes sejais por povo hereditário, como neste dia se vê" (versículo
20).
Podia haver alguma coisa mais tocante do que isto? O Senhor, em Sua rica e
soberana graça, e por Sua poderosa mão tirara-os da terra da morte e trevas, um
povo redimido e libertado. Tirou-os para Si mesmo, para que eles pudessem ser o
Seu povo peculiar de entre todos os povos da terra. Como poderiam então
apartar-se d'Ele, do Seu concerto e dos Seus preciosos mandamentos?
Mas, ah, puderam e fizeram-no! Fizeram um bezerro de fundição. Então disseram:
"Estes são teus deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito." Pense-se nisto!
Um bezerro feito por suas próprias mãos — uma imagem, esculpida por parte e
imaginação humana, tinha-os tirado do Egito! Um objeto feito dos brincos das
orelhas das mulheres havia-os redimido e libertado! E isto foi escrito para nosso
ensino. Mas por que havia de ser escrito para nosso ensino se não fôssemos capazes
de cometer o mesmo pecado e não estivéssemos expostos a ele? Ou havemos de
admitir que Deus, o Espírito Santo, escreveu uma expressão desnecessária ou
admitir a nossa necessidade de admoestação contra o pecado de idolatria; e,
seguramente, a nossa necessidade de admoestação prova a nossa inclinação para
esse pecado.
Somos nós melhores do que Israel? De modo nenhum. Temos luz mais brilhante e
mais elevados privilégios; mas, no que nos diz respeito, somos feitos do mesmo
material, temos as mesmas capacidades e as mesmas inclinações que eles tinham. A
nossa idolatria pode tomar uma forma diferente da deles; mas idolatria é idolatria,
seja qual for a sua forma; e quanto mais elevados os nossos privilégios, tanto maior
o nosso pecado. Podemo-nos sentir talvez dispostos a estranhar que um povo
racional pudesse ser culpado de tão perversa loucura como a de fabricar uma vaca e
de se inclinar perante ela, e isto depois de ter tido uma tal manifestação da
majestade, poder e glória de Deus. Recordemos que a sua loucura está mencionada
para nossa admoestação; e que, nós com toda a nossa luz, todo o nosso
conhecimento, todos os nossos privilégios, somos avisados para "fugir da idolatria".
Meditemos atentamente em tudo isto e busquemos o proveito que dele se pode
tirar. Que todo o nosso coração seja cheio de Cristo, e então não teremos lugar para
ídolos. Esta é a nossa salvaguarda. Se nos afastamos, ainda que seja no mínimo
sentido, do nosso bendito Salvador e Pastor, somos capazes de cair nas formas mais
tenebrosas de erro e pecado moral. Luz, conhecimento, privilégios espirituais,
posição eclesiástica, benefícios sacramentais não são uma segurança para a alma.
São muito bons, no seu próprio lugar, e se forem convenientemente usados; mas,
em si mesmos, apenas aumentam o nosso perigo moral.
Nada pode manter-nos em segurança, justiça e felicidade senão a presença de
Cristo pela fé em nossos corações. Permanecendo n'Ele e Ele em nós, o maligno
não pode tocar-nos. Mas se a comunhão pessoal não for diligentemente mantida,
quanto mais alta for a nossa posição, maior será o nosso perigo e mais desastrosa a
nossa queda. Não houve nação abaixo da abóbada celeste mais favorecida e
exaltada do que Israel quando se juntou em redor do monte Horebe para ouvir a
Palavra de Deus. Não houve nação à face da terra mais aviltada ou mais culpado do
que ela quando se inclinou perante o bezerro de ouro, uma imagem feita por suas
próprias mãos.
O Julgamento Começa pela Casa de Deus
Devemos agora dar a nossa atenção a um fato do maior interesse apresentado no
versículo 21 do nosso capítulo, e isto é que Moisés, pela terceira vez, recorda à
congregação o tratamento judicial de Deus com ele próprio. Havia falado desse
fato, como havemos visto, em capítulo 1:37; e outra vez em capítulo 3:26; e aqui,
outra vez, ele diz-lhes; "Também o SENHOR se indignou contra mim, for causa
das vossas palavras, e jurou que eu não passaria o Jordão e que não entraria na boa
terra que o SENHOR, teu Deus, te dará por herança. Porque nesta terra morrerei,
não passarei o Jordão; porém vós o passareis e possuireis aquela boa terra."
Agora, podemos perguntar, por que está tríplice referência ao mesmo fato?- E por
que a especial menção em todas elas da circunstância que Javé estava indignado
com ele por causa deles?- Uma coisa é certa: não era com o propósito de lançar a
culpa sobre o povo, ou de se excluir a si próprio. Ninguém senão um infiel poderia
pensar tal coisa. Nós cremos que o simples objetivo era dar maior força moral ao
seu apelo, mais solenidade à voz da sua advertência. Se o Senhor estava indignado
com uma pessoa como Moisés; se ele, por causa de haver falado imprudentemente
junto às águas de Meriba, era proibido de entrar na terra prometida — por muito
que ele o desejasse — quão necessário era que eles tomassem cuidado! É uma coisa
séria ter que tratar com Deus — bem-aventurada, sem dúvida, além de toda a
expressão humana ou pensamento, mas muito séria, como o próprio legislador teve
ocasião de comprovar em sua própria pessoa.
Que é este o verdadeiro ponto de vista desta interessante questão parece evidente
pelas seguintes palavras: "Guardai-vos de que vos esqueçais do concerto do
SENHOR, VOSSO Deus, que tem feito convosco, e vos façais alguma escultura,
imagem de alguma coisa que o SENHOR, vosso Deus, vos proibiu. Porque o
SENHOR, teu Deus, é um fogo que consome, um Deus zeloso."
Isto é especialmente solene. Devemos permitir que este relato tenha toda a sua
força sobre as nossas almas. Não devemos tentar desviar os seus efeitos por
quaisquer falsas ideias sobre a graça. Ouvimos dizer às vezes que "Deus é um fogo
consumidor para o mundo". Sê-lo-á em breve, sem dúvida, mas agora está atuando
em graça, paciência e paciente misericórdia com o mundo. Não está agindo em
juízo com o mundo no tempo presente. Mas, como o apóstolo Pedro nos diz:
"Porque já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro
começa por nós, qual será o fim daqueles que são desobedientes ao evangelho de
Deus?-" Assim também em Hebreus 12, lemos: "Porque o nosso Deus é um fogo
consumidor." Não se fala aqui do que Deus será para o mundo, mas do que Ele é
para nós. Nem tampouco é, como alguns interpretam: "Deus é um fogo
consumidor fora de Cristo. Nós nada sabemos de Deus fora de Cristo. Fora de
Cristo não poderia ser nosso Deus."
Não, prezado leitor; a Escritura não necessita de tais contorções e rodeios. Deve ser
aceite como está. E clara e precisa; e tudo que temos de fazer é ouvir e obedecer. "O
nosso Deus é um fogo consumidor"; "um Deus zeloso", não para nos consumir,
bendito seja o Seu santo nome, mas para consumir o mal em nós e nos nossos
caminhos. E intolerante com tudo em nós que Lhe é contrário — contrário à sua
santidade; e, portanto, contrário à nossa felicidade, a nossa verdadeira, sólida
bênção. Como "Pai Santo", guarda-nos de uma maneira digna de Si mesmo; e
castiga-nos, a fim de nos tornar participantes da Sua santidade. Permite que o
mundo continue no tempo presente, não interferindo publicamente com ele. Mas
julga a Sua casa, e castiga os Seus filhos a fim de que possam mais amplamente
corresponder à Sua mente, e serem a expressão da Sua imagem moral.
E não é isto um imenso privilégio? Sim, verdadeiramente é um privilégio da ordem
mais elevada — um privilégio que emana da infinita graça do nosso Deus que
condescende em Se interessar por nós e Se ocupa até mesmo das nossas
enfermidades, das nossas faltas e dos nossos pecados, a fim de nos libertar deles e
nos fazer participantes da Sua santidade.

A Disciplina
Há uma passagem muito interessante a respeito deste assunto no princípio de
Hebreus 12, que, por ser de imensa importância prática, devemos citar para o
leitor: "Filho meu, não desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por
ele, fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama e açoita a qualquer que
recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque que
filho há a quem o pai não corrija?-Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são
feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos. Além do que, tivemos
nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos
sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na
verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este,
para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade,
toda a correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois,
produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela. Portanto, tornai a
levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados."
Existem três modos de receber o castigo divino: Podemos "desprezá-lo", como
alguma coisa vulgar, que pode acontecer a qualquer pessoa: não vemos a mão de
Deus nele. Podemos também "desmaiar" debaixo dele, como se fosse alguma coisa
pesada demais para a transportarmos — alguma coisa impossível de suportar. Não
vemos o coração do Pai nisso, nem reconhecemos o Seu gracioso objetivo com isso,
que é fazer-nos participantes da Sua santidade. Por último, podemos ser
"exercitados" por Ele. Este é o modo de recolher "o fruto pacífico de justiça que
depois produz". Não ousaremos "desprezar" uma coisa na qual vemos a mão de
Deus. Não necessitamos desmaiar ante uma provação em que discernimos
claramente o coração do Pai amantíssimo que não permitirá que sejamos provados
acima do que podemos suportar; senão que com a prova dará a saída a fim de
podermos suportá-la; e que também misericordiosamente nos explica o Seu
objetivo com a disciplina, e nos garante de que cada açoite da sua vara é uma prova
do Seu amor e uma resposta direta à oração de Cristo em João 17:11, na qual Ele
nos recomenda ao cuidado do "Pai Santo", a fim de sermos guardados segundo esse
nome e tudo que ele envolve.
Além disso, há três atitudes distintas do coração a respeito do castigo divino, a
saber: sujeição, aquiescência, e regozijo. Quando a vontade está quebrantada,
existe sujeição. Quando o entendimento está iluminado quanto ao objetivo em
castigo, há calmo consentimento. E quando os afetos estão ocupados com o coração
do Pai existe alegria. E nós podemos continuar com corações alegres segando a
ceara dourada dos frutos pacíficos de justiça para louvor d'Aquele que, em Seu
amor e compaixão, toma a Seu cargo cuidar de nós e tratar conosco em Seu
governo e concentrar o Seu cuidado sobre nós em particular como se tivesse de
atender só a cada um, individualmente, como se não tivesse de tratar de mais
ninguém.
Quão admirável é tudo isto! E como só o pensar nisso deveria ajudar-nos em todas
as nossas provações e experiências! Estamos nas mãos d'Aquele cujo amor é
infinito, cuja sabedoria é infalível, cujo poder é onipotente, cujos recursos são
inesgotáveis. Por que devemos então sentirmo-nos desanimados Se Ele nos castiga,
é porque nos ama e busca o nosso verdadeiro bem. Podemos pensar que o castigo é
duro. Podemo-nos sentir dispostos a estranhar, por vezes, como o amor nos pode
infligir sofrimento e dor; mas devemos lembrar que o amor divino é sábio e fiel, e
somente inflige dor, ou enfermidade para nosso proveito e bênção. Nem sempre
devemos julgar o amor pela forma com que se reveste. Considere-se uma mãe
apaixonada e terna aplicando um cáustico ao filho que ama como a sua própria
alma. Sabe perfeitamente que aquele cáustico produzirá a seu filho verdadeira dor
e sofrimento; e todavia ela aplica-o resolutamente, embora o seu coração sofra
agudamente por ter de o fazer. Mas sabe que é absolutamente necessário; crê que,
humana e cientificamente falando, a vida da criança depende disso. Sente que
alguns momentos de dor podem, com a bênção de Deus, restabelecer a saúde ao
seu querido filho. Assim, enquanto a criança está somente ocupada com o seu
sofrimento passageiro, a mãe está pensando no bem permanente que resultará; e se
ao menos a criança pudesse pensar como a mãe, o cáustico não séria tão difícil de
suportar.
Ora acontece precisamente assim com o assunto do tratamento disciplinar de
nosso Pai conosco; e a lembrança deste fato ajudar-nos-á grandemente a suportar
seja o que for que a Sua mão possa aplicar-nos como castigo. Poderá dizer-se talvez
que existe uma grande diferença entre a aplicação de um cáustico por alguns
minutos e anos de sofrimento corporal intenso. Há sem dúvida, mas há também
uma grande diferença entre os resultados conseguidos em cada caso. É o princípio
do assunto que devemos considerar. Quando vemos um amado filho de Deus, ou
um servo de Cristo, chamado a passar anos de intenso sofrimento, podemos
sentir-nos inclinados a estranhar por que é assim; e talvez o querido paciente possa
sentir-se também disposto a estranhar, e, por vezes, pronto a desmaiar sob o peso
da sua prolongada aflição. Poderá sentir-se induzido a exclamar: "Por que estou
assim? Pode isto ser amor? Pode isto ser a expressão do cuidado terno de um Pai?"
— "Sim, na verdade", é a resposta decidida e brilhante da fé. — É tudo amor —
divinamente justo. Por nada deste mundo eu quisera que fosse de outro modo. Sei
que este sofrimento transitório opera bênção eterna. Sei que o meu Pai
amantíssimo me pôs neste forno para me purificar da minha impureza e reproduzir
em mim a expressão da Sua própria imagem. Sei que o amor divino fará sempre o
que é melhor para o seu objetivo, e portanto, este intenso sofrimento é a coisa
melhor para mim. Sinto-o, evidentemente, pois não sou um pau ou uma pedra.
Meu Pai celestial quer que eu o sinta, assim como a mãe espera que o cáustico
resulte, pois de outro modo nenhum bem produziria. "Mas eu louvo-O de todo o
meu coração, pela graça que brilha no fato maravilhoso de Ele próprio Se ocupar
comigo, deste modo, para corrigir o que Ele vê que é mau em mim. Louvo-O por
me haver posto no forno do sofrimento; e como posso eu deixar de louvá-Lo
quando O vejo, em graça infinita, sentado sobre o forno para vigiar o processo de
purificação e me tirar logo que a obra estiver feita?
Este é, prezado leitor, o verdadeiro caminho, e tal é o espírito reto para passar
através do castigo de qualquer espécie, seja aflição corporal, perda de entes
queridos ou de bens, ou a força das circunstâncias. Devemos ver nisso a mão de
Deus, ler o pensamento do coração do Pai, reconhecer o propósito divino em tudo
isso. Isto nos permitirá justificar e glorificar a Deus no meio do forno de aflição.
Corrigirá todo o pensamento de murmuração e fará calar toda a expressão de mau
humor. Encherá os nossos corações da mais doce paz e as nossas bocas de louvor.

A Queda e a Restauração de Israel


Devemos agora prosseguir, por uns momentos, com os versículos finais do nosso
capítulo, nos quais encontraremos alguns dos mais comovedores e poderosos
apelos ao coração e à consciência da congregação. O legislador, em profundo,
verdadeiro e fervente amor do seu coração, emprega os mais solenes avisos, a mais
sincera admoestação e os mais ternos rogos a fim de guiar o povo ao magno e
importante ponto de obediência. Se lhes fala do forno de ferro do Egito, do qual o
Senhor, em Sua graça soberana, os havia libertado; se expõe os sinais poderosos e
maravilhas operados em seu favor; se põe à sua vista as glórias dessa terra em que
estavam prestes a pôr os seus pés; ou se relata os atos maravilhosos de Deus com
eles no deserto, é tudo com o propósito de fortalecer a base moral do direito do
Senhor sobre a sua amorável e reverente obediência. O passado, o presente e o
futuro são postos diante deles a fim de que sirvam de argumentos poderosos para se
consagrarem de todo o coração ao serviço do gracioso e onipotente libertador. Em
suma, todas as razões favoreciam a sua obediência e não havia nenhuma desculpa
para desobediência. Todos os fatos da sua história, desde o princípio ao fim,
estavam eminentemente calculados para dar força moral à exortação e aviso da
seguinte passagem:
"Guardai-vos de que vos esqueçais do concerto do SENHOR, vosso Deus, que tem
feito convosco, e vos façais alguma escultura, imagem de alguma coisa que o
SENHOR, VOSSO Deus, vos proibiu. Porque o SENHOR, teu Deus, é um fogo que
consome, um Deus zeloso. Quando, pois, gerardes filhos e filhos de filhos, e vos
envelhecerdes na terra, e vos corromperdes, e fizerdes alguma escultura,
semelhança de alguma coisa, e fizerdes mal aos olhos do SENHOR, para o provocar
à ira, hoje, tomo contra vós por testemunhas o céu e a terra, que certamente
perecereis depressa da terra, a qual, passado o Jordão, ides possuir; não
prolongareis os vossos dias nela; antes, sereis de todo destruídos. E o SENHOR vos
espalhará entre os povos, e ficareis poucos em número entre as gentes às quais o
SENHOR VOS conduzirá. E ali servireis a deuses que são obra de mãos de homens,
madeira e pedra, que não veem nem ouvem, nem comem, nem cheiram"
(versículos 23 a 28).
Quão solene é tudo isto! Que fiéis avisos há aqui! O céu e a terra são convocados
como testemunhas. Ah, quão cedo e de que modo tão completo tudo isto foi
esquecido! E quão literalmente todas estas graves admoestações têm sido
cumpridas na história da nação!
Mas, graças a Deus, há um lado luminoso no quadro. Há misericórdia bem como
juízo; e o nosso Deus, bendito seja para sempre o Seu santo Nome, é alguma coisa
mais que "um fogo consumidor". Decerto, é um fogo consumidor, porquanto é
santo. Não pode tolerar o mal, e tem de consumir as nossas escórias. Além disso, é
zeloso, porque não pode suportar que nenhum rival tenha um lugar nos corações
daqueles a quem ama. Tem de possuir todo o coração, porque só Ele é digno dele,
assim como somente Ele pode enchê-lo e satisfazê-lo para sempre. E se o Seu povo
se desvia d'Ele, e vai após os ídolos de sua invenção, tem de colher os frutos
amargos dos seus próprios atos, e experimentar por triste e terrível experiência a
verdade destas palavras. "As dores se multiplicarão àqueles que fazem oferendas a
outro deus" (SI 16:4).
Mas notemos como Moisés apresenta de modo tocante ao povo o lado brilhante das
coisas — um brilho emanando da eterna estabilidade da graça de Deus, e a perfeita
provisão que essa graça tem feito para toda a necessidade do Seu povo, desde o
princípio ao fim.
"Então" — quão formosos são alguns curtos vocábulos da Sagrada Escritura! —
"dali, buscarás ao SENHOR, teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo o teu
coração e de toda a tua alma" —excelente graça! — "Quando estiveres em
angústia" — esse é o tempo de descobrir o que o nosso Deus é — "e todas estas
coisas te alcançarem, então, no fim de dias, te virarás para o SENHOR, teu Deus, e
ouvirás a sua voz". E então? Encontrarás "um fogo consumidor? Não; mas,
"Porquanto o SENHOR, teu Deus, é Deus misericordioso; e não te desamparará,
nem te destruirá, nem se esquecerá do concerto que jurou a teus pais" (versículos
29 a 31).
Aqui podemos observar de um modo notável o futuro de Israel, o seu afastamento
de Deus, e a consequente dispersão entre as nações; o completo fracasso da sua
constituição política e o desvanecimento da sua glória nacional. Mas, bendito seja
para sempre o Deus de toda a graça, existe alguma coisa para lá de todo esse
fracasso e pecado, ruína e juízo. Quando chegamos ao fim da história melancólica
de Israel — história que pode verdadeiramente ser resumida em uma breve mas
compreensiva expressão "Para tua perda, ó Israel te rebelaste" (Os 13:9),
encontramos a magnificente demonstração da graça, misericórdia e fidelidade de
Javé, o Deus dos seus pais, cujo coração de amor se descobre no complemento da
frase, "contra mim, contra o teu ajudador." Sim; todo o assunto está envolvido
nestas duas vigorosas expressões: "Para tua perda te rebelaste"; "Mas em Mim está a
tua ajuda". Na primeira temos a aguda flecha para a consciência de Israel; na última
do bálsamo calmante para o coração quebrantado de Israel.
Pensando na nação de Israel, há duas páginas que temos de estudar, a saber: a
histórica e a profética. A página da história relata, com inequívoca fidelidade, a sua
completa ruína. A página da profecia desenrola, com expressões de incomparável
graça, o remédio de Deus. O passado de Israel tem sido sombrio e triste. O futuro
de Israel será brilhante e glorioso. No primeiro vemos os atos miseráveis do
homem; no último os benditos caminhos de Deus. Aquele dá a pujante ilustração
do que o homem é; este a brilhante manifestação do que Deus é. Temos de encarar
ambos, se queremos compreender convenientemente a história desse povo notável
— "Um povo terrível desde o seu princípio" (Is 18:2) — e nós podemos
verdadeiramente acrescentar, um povo maravilhoso desde o seu princípio.
Não é nossa intenção neste momento adicionar provas em apoio das nossas
afirmações quanto ao passado e futuro de Israel. Para isso, podemos dizer, sem
exagero, que necessitaríamos de um volume, visto que seria simplesmente uma
cópia de vastas porções dos livros históricos da Bíblia, por um lado; e por outro
lado dos livros proféticos. Isto, desnecessário é dizer, está fora de discussão; mas
sentimo-nos obrigados a chamar a atenção do leitor para o precioso ensino
compreendido na passagem acima citada. Encerra, no seu curto espaço, toda a
verdade a respeito do passado, do presente e do futuro de Israel. Note-se como o
seu passado está vividamente retratado nestas breves palavras: "Quando, pois,
gerardes filhos e filhos de filhos, e vos envelhecerdes na terra, e vos corromperdes,
e fizerdes alguma escultura, semelhança de alguma coisa, fizerdes mal aos olhos do
SENHOR, para o provocar à ira." Não é isto precisamente o que eles têm feito? Não
está aqui, de fato, a sua conduta descrita em poucas palavras?- Fizeram mal aos
olhos do Senhor, seu Deus, para O provocarem à ira. Essa palavra "mal" inclui
tudo, desde o bezerro de Horebe à cruz do Calvário. Tal é o passado de Israel.
E agora quanto ao seu presente?- Não são um monumento permanente da verdade
imorredoura de Deus? Faltou um jota ou um til a tudo que Deus falou? Escute-se
estas palavras: "Hoje, tomo por testemunhas contra vós o céu e a terra, que
certamente perecereis depressa da terra, a qual, passado o Jordão, ides possuir; não
prolongareis os vossos dias nela; antes sereis de todo destruídos. E o SENHOR vos
espalhará entre os povos, e ficareis poucos em número entre as gentes, às quais o
SENHOR VOS conduzirá" (versículos 26-27).
Não tem tudo isto sido cumprido ao pé da letra? Quem o pode duvidar?- O passado
de Israel e o presente de Israel confirmam de igual modo a verdade da Palavra de
Deus. E não temos nós razão para declarar que, assim como o passado e o presente
são um cumprimento literal da verdade de Deus, assim será o futuro? Certamente
que sim. A página da história e a página da profecia foram ambas redigidas pelo
mesmo Espírito; e portanto são ambas de igual modo verdadeiras; e do mesmo
modo que a história relata o pecado e a dispersão de Israel, a profecia prediz o
arrependimento de Israel e a sua restauração. Uma coisa é tão verdadeira para a fé
como a outra. Tão certo como Israel pecou no passado, e se encontra espalhado no
presente, certamente, eles se arrependerão e serão restaurados no futuro.
Isto está, segundo cremos, fora de toda a dúvida; e nos regozijamos por isso. Não há
nenhum profeta, desde Isaías a Malaquias, que não mostre distintamente, em
acentos da mais doce graça e a mais terna misericórdia, a bênção futura e
proeminente glória da semente de Abraão (1). Seria simplesmente agradável citar
algumas das passagens sublimes que tratam deste interessantíssimo assunto; mas
devemos deixar ao leitor o cuidado de as ler por si mesmo, recomendando-lhe
especialmente as preciosas passagens incluídas nos capítulos finais de Isaías, nos
quais encontrará um perfeito recreio, bem como a mais completa confirmação do
relato apostólico de que "todo o Israel será salvo". Todos os profetas, "desde Samuel
e os que o seguiram" concordam sobre isto. Os ensinos do Novo Testamento
harmonizam-se com as vozes dos profetas; e por isso pôr em dúvida a verdade da
restauração de Israel à sua própria terra e bênção final nela sob o domínio do seu
Messias é simplesmente desconhecer ou negar o testemunho dos profetas e dos
apóstolos que falaram e escrevera por inspiração de Deus o Espírito Santo; e pôr de
lado um corpo de evidência da Escritura perfeitamente esmagador.
__________
(l) Jonas é, evidentemente, uma exceção, a sua missão era ir a Nínive. É o único
profeta cuja missão dizia exclusivamente respeito aos gentios.

As Profecias Concernentes a Israel não se Aplicam à Igreja


Parece estranho que qualquer alma que verdadeiramente ame a Cristo procure
fazer tal coisa; contudo, assim é, e assim tem sido, por preconceitos religiosos,
inclinação teológica, e diversas causas. Mas, não obstante tudo isto, a gloriosa
verdade da restauração de Israel e a sua preeminência na terra brilha com fulgor na
página profética, e todos os que buscam pô-la de parte ou interferir com ela, de
algum modo, não só insultam a Sagrada Escritura — contradizendo a voz unânime
dos apóstolos e profetas — mas também se intrometem — ignorante e
inconscientemente, sem dúvida — com o desígnio, propósito e promessa do
Senhor, Deus de Israel, e procuram invalidar o Seu concerto com Abraão, Isaque e
Jacó.
E uma obra séria para todo aquele que a empreende; e nós julgamos que muitos a
estão fazendo sem o saberem; porque temos de entender que todo aquele que
aplica as promessas feitas aos pais no Velho Testamento aos pais na Igreja do Novo
Testamento está realmente fazendo a obra de que falamos. Mantemos que
ninguém tem o mínimo direito de alienar as promessas feitas aos pais. Podemos
aprender muito dessas promessas; deleitarmo-nos nelas; tirar conforto e
encorajamento da sua eterna estabilidade e direta aplicação. Tudo isto é uma
verdade bendita; mas é uma coisa muito diferente que alguém, sob a influência de
um sistema de interpretação falsamente chamado "espiritualismo" queira aplicar à
Igreja ou aos crentes do tempo do Novo Testamento; profecias que, tão simples e
claramente como as palavras podem indicar, se aplicam a Israel — à semente
literal de Abraão.
Consideramos isto como uma coisa muito séria. Compreendemos pouco quanto
tudo isto é completamente contrário à mente e ao coração de Deus. Deus ama
Israel—ama-os por amor dos pais; e podemos estar certos de que Ele não
sancionará a nossa interferência com o lugar deles, a sua porção, ou as suas
perspectivas. Conhecemos todas as palavras do apóstolo inspirado em Romanos 11,
todavia podemos ter esquecido o seu verdadeiro significado.
Falando de Israel, em relação com a promessa da oliveira, ele diz: "E também eles,
se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque" — pela simples,
sólida e bendita de todas as razões — "poderoso é Deus" — assim como certamente
quer — "para os tornar a enxertar. Porque, se tu foste cortado do natural
zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa oliveira, quanto mais esses, que
são naturais, serão enxertados na sua própria oliveira! Porque não quero, irmãos,
que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o
endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja
entrado (1). E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o
Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E este será o meu concerto com eles,
quando eu tirar os seus pecados. Assim que, quanto ao evangelho, são inimigos por
causa de vós; mas, quanto à eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a
vocação de Deus são sem arrependimento. Porque assim como vós também,
antigamente, fostes desobedientes a Deus, mas, agora, alcançastes misericórdia
pela desobediência deles, assim também estes, agora, foram desobedientes, para
também alcançarem misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada." Isto é, que
em vez de entrarem por causa da lei ou descendência carnal, entrariam
simplesmente sobre a base da misericórdia soberana, precisamente como os
gentios — "Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com
todos usar de misericórdia" (Rm 11:23 a 33).
__________
(1) É conveniente que o leitor compreenda a diferença entre "a plenitude dos
gentios" em Romanos 11 e "os tempos dos gentios" em Lucas 21. A primeira
expressão diz respeito àqueles que estão agora sendo agregados à igreja; a última,
pelo contrário, refere-se aos tempos da supremacia dos gentios que começou com
Nabucodonosor e corre até ao tempo em que "a pedra cortada sem mãos" cairá,
com poder esmagador, sobre a imagem de Daniel 2.

Aqui finda a parte que se aproxima do nosso tema imediato; mas não podemos
deixar de reproduzir a esplêndida doxologia que se desprende do transbordante
coração do apóstolo inspirado ao encerrar a grande parte dispensacional da sua
Epístola: "O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de
Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
Porque quem compreendeu o intento do Senhor?- Ou quem foi seu conselheiro?-
Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele" —
como a origem — "e por ele"— como o canal — "e para ele" — como o objetivo —
"são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!"

Os Caminhos de Deus com Israel


A esplêndida passagem precedente, como na realidade toda a Escritura, está de
perfeita harmonia com o ensino do quarto capítulo do nosso livro. A presente
condição de Israel é o fruto da sua sombria incredulidade. O futuro de Israel será o
fruto da rica misericórdia de Deus. "Porquanto o SENHOR, teu Deus, é Deus
misericordioso; e não te desamparará, nem te destruirá, nem se esquecerá do
concerto que jurou a teus pais. Porque, pergunta agora aos tempos passados, que te
precederam desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, desde uma
extremidade do céu até à outra"— as extremidades do tempo e do espaço eram
convidadas para ver — "se sucedeu jamais coisa tão grande como esta, ou se se
ouviu coisa como esta; ou se algum povo ouviu a voz de algum deus falando do
meio do fogo, como tu a ouviste, ficando vivo; ou se um deus intentou ir tomar
para si um povo do meio de outro povo, com provas, com sinais, e com milagres, e
com peleja, e com mão forte, e com braço estendido, e com grandes espantos,
conforme tudo quanto o SENHOR, VOSSO Deus, vos fez no Egito, aos vossos
olhos. A ti te foi mostrado para que soubesses que o SENHOR é Deus; nenhum
outro há, senão ele. Desde os céus te fez ouvir a sua voz, para te ensinar, e sobre a
terra te mostrou o seu grande fogo, e ouviste as suas palavras do meio do fogo"
(versículos 31 a 36).
Aqui temos revelado com singular poder moral o grande objetivo de todos os atos
divinos a favor de Israel. Era para que pudessem saber que Javé era o único Deus
vivo e verdadeiro; e que fora d'Ele não podia haver outro. Em suma, era propósito
de Deus que Israel fosse um testemunho d'Ele na terra; como o serão certamente;
embora até agora tenham falhado grandemente e dado lugar a que o Seu grande e
santo nome seja blasfemado entre as nações. Nada pode impedir o propósito de
Deus. O Seu concerto permanecerá para sempre. Israel será ainda um testemunho
abençoado e eficaz de Deus na terra e um canal de rica e eterna bênção para todas
as nações. Javé empenhou a Sua Palavra a este respeito; e nem todos os poderes da
terra e do inferno, dos homens e dos demônios conjugados podem impedir o pleno
cumprimento de tudo quanto Ele tem dito. A sua glória está envolvida no futuro
de Israel; e se um simples jota ou um til da Sua Palavra faltasse, seria uma desonra
para o Seu grande nome e uma ocasião para o inimigo, o que é absolutamente
impossível. O futuro de Israel e a glória de Javé estão enlaçados entre si por um
vínculo que nunca poderá ser quebrado. Se isto não for visto claramente não
podemos compreender nem o passado nem o futuro de Israel. Mais ainda, podemos
assegurar com toda a confiança, que a não ser que este bendito fato seja
plenamente compreendido, o nosso sistema de interpretação profética será
inteiramente falso.
Mas há outra verdade exposta no nosso capítulo — uma verdade preciosa e de
especial interesse. Não é meramente a glória do Senhor que está envolvida na
restauração futura e bênção de Israel; o amor do Seu coração está também
comprometido com isso. Isto é revelado, com comovedora doçura, nas seguintes
palavras: "Porquanto amava teus pais, e escolhera a sua semente depois deles, te
tirou do Egito diante de si, com a sua grande força, para lançar fora de diante de ti
gentes maiores e mais poderosas do que tu, para te introduzir na terra e ta dar por
herança, como neste dia se vê."
Assim a verdade da Palavra de Deus, a glória do Seu grande nome, e o amor de Seu
coração estão completamente envolvidos nos seus atos com a semente de Abraão
Seu amigo; e embora eles tenham quebrantado a lei, desonrado o Seu nome,
desprezado a Sua misericórdia, rejeitado os Seus profetas, crucificado Seu filho, e
resistido ao Seu Espírito—embora hajam feito tudo isto, e, como sua consequência,
estejam espalhados, despojados e quebrantados e ainda tenham de passar por
inédita tribulação — todavia o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó glorificará o
Seu nome, cumprirá a Sua Palavra e manifestará o amor imutável de Seu coração
na história futura do Seu povo terrestre. "Nada altera o amor de Deus." A que Ele
ama, e como ama, ama até ao fim.
Se negarmos isto a respeito de Israel não temos tanto como uma simples polegada
de terreno firme para nós próprios. Se tocarmos na verdade de Deus em uma parte,
não temos segurança em nada. "A Escritura não pode ser anulada." "Porque todas
quantas promessas há de Deus são nele sim; e por ele o Amém, para glória de Deus,
por nós" (2 Co 1:20). Deus tem-Se comprometido a Si mesmo com a semente de
Abraão. Prometeu dar-lhes a terra de Canaã para sempre. "Porque os dons e a
vocação de Deus são sem arrependimento." Ele nunca Se arrepende do Seu dom ou
da Sua chamada; e portanto procurar alienar as Suas promessas e os Seus dons, ou
interferir, de qualquer modo, com a sua aplicação ao seu verdadeiro e próprio
objetivo deve ser uma grave ofensa para Si. Marcha a integridade da verdade
divina, priva-nos de toda a certeza na interpretação da Sagrada Escritura e lança a
alma em trevas, dúvida perplexidade.
O ensino da Escritura é claro, definido e distinto. O Espírito Santo, que inspirou o
Sagrado Volume, quer dizer o que diz, e diz o que quer dizer. Se fala de Israel,
refere-Se a Israel; de Sião, refere- Se a Sião; de Jerusalém, refere-Se a Jerusalém.
Aplicar qualquer destes nomes à igreja do Novo Testamento é confundir coisas
diferentes entre si, e introduzir um método de interpretação da Escritura que, por
sua incerteza e frouxidão, só pode conduzir às mais desastrosas consequências. Se
manejamos a Palavra de Deus de uma maneira tão liberal e descuidada, é
absolutamente impossível realizar a sua divina autoridade sobre a consciência ou
mostrar o seu poder formativo na nossa carreira, conduta e caráter.

A Divina Inspiração dos Cinco Livros de Moisés


Devemos considerar agora, por uns momentos, o poderoso apelo com que Moisés
resume o seu discurso neste capítulo. Requer a nossa profunda e reverente atenção.
"Pelo que hoje saberás e refletirás no teu coração, que só o SENHOR é Deus em
cima no céu e em baixo na terra; nenhum outro há. E guardarás os seus estatutos e
os seus mandamentos, que te ordeno hoje, para que bem te vá a ti e a teus filhos
depois de ti e para que prolongues os dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá
para todo o sempre" (versículos 39-40).
Aqui vemos que o direito moral sobre o seu coração é baseado sobre o caráter
revelado de Deus e os Seus atos maravilhosos em seu favor. Numa palavra, eles
estavam obrigados a obedecer — obrigados por todas as alegações que pudessem de
algum modo influir sobre o coração, a consciência e o entendimento. Aquele que
os havia tirado da terra do Egito com mão forte e braço estendido, que havia feito
tremer essa terra até os seus próprios fundamentos com os repetidos golpes da Sua
vara judicial; que havia aberto um caminho para eles passarem através do mar; que
lhes havia enviado pão do céu e tirado água da pederneira; e tudo isto para glória
do Seu grande nome, e porque amava os seus pais, tinha direito de ser obedecido
por eles de todo o coração.
Este é o grande argumento, tão eminentemente característico deste abençoado
livro de Deuteronômio. E, certamente, isto está pleno de instrução para o crente.
Se Israel estava moralmente obrigado a obedecer, quanto mais o estamos nós! Se os
seus motivos e fins eram poderosos, quanto mais o são os nossos! Sentimos o seu
poderá Consideramo-los em nossos corações? Consideramos os direitos de Cristo
sobre nós? Lembramo-nos de que não somos de nós mesmos, mas que fomos
comprados por bom preço, o preço infinitamente precioso do sangue de Cristo?
Compreendemos isto? Procuramos viver para Ele?- A Sua glória é o objetivo que
inspira os nossos atos, o Seu amor é o motivo que nos constrangei Ou vivemos para
nós mesmos? Procuramos prosperar no mundo — o mundo que crucificou o nosso
bendito Senhor e Salvador? Buscamos fazer fortuna? Amamos o dinheiro, quer seja
pelo que é, quer seja pelo que pode proporcionar- nos? Deixamo-nos governar pelo
dinheiro? Buscamos um lugar no mundo, quer para nós quer para os nossos filhos?
Esquadrinhemos honestamente os nossos corações, como se estivéssemos na
presença divina, à luz da verdade de Deus, o que é o nosso objetivo — o
verdadeiro, dominante e querido objetivo de nossos corações?
Prezado leitor, estas são perguntas perscrutadoras. Não as desprezemos.
Ponderemos a sua importância à própria luz do tribunal de Cristo. Julgamos que
são salutares interrogações muito necessárias. Vivemos em dias muito solenes.
Existe por todos os lados muita simulação; e em nada mais é esta simulação tão
terrivelmente clara como na assim chamada religião. Os próprios dias em que caiu
a nossa sorte foram delineados por uma pena que nunca põe cores, nunca exagera,
mas sempre apresenta os homens e as coisas como realmente eles são. "Sabe,
porém, isto: que nos últimas dias" — completamente distintos "dos últimos
tempos" de 1 Timóteo 4, mais avançados, mais rigorosamente definidos, estes
últimos dias em que — "sobrevirão tempos trabalhosos [ou difíceis]; porque haverá
homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis,
caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores,
obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus." E depois
note-se a maneira como o apóstolo inspirado remata esta espantosa superestrutura!
— "Tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te" (2
Tm 3:1 a 5).
Que terrível quadro! Aqui temos em palavras graves e inflamadas a cristandade
infiel; precisamente como em 1 Timóteo 4 temos a cristandade supersticiosa. Na
última vemos o papado; na primeira infidelidade. Ambos elementos estão atuando
em redor de nós; mas o último ainda se levantará em proeminência; na verdade,
até mesmo na atualidade, está avançando com rápidos passos. Os próprios líderes e
mestres da cristandade não se envergonham nem se assustam por atacar os
fundamentos do cristianismo. Um chamado bispo cristão não se envergonha nem
se amedronta de pôr em dúvida a integridade dos cinco livros de Moisés, e, com
eles, de toda a Bíblia; porque, certamente, se Moisés não foi o autor inspirado do
Pentateuco, todo o edifício, da Sagrada Escritura é arrastado dos nossos pés. Os
escritos de Moisés estão tão intimamente ligados com todas as outras grandes
divisões do Volume divino, que, se são tocados, tudo desaparece. Afirmamos
resolutamente que se o Espírito Santo não inspirou Moisés, o servo de Deus, para
ele escrever os cinco primeiros livros da Bíblia, não temos nenhuma polegada de
sólido terreno nos mantermos. Somos positivamente deixados sem um simples
átomo de autoridade divina em que descansar as nossas almas. Os próprios pilares
do nosso glorioso cristianismo são arrastados, e nós somos deixados para procurar
às apalpadelas o nosso caminho, em desesperada perplexidade, por entre as
opiniões contraditórias e teorias de doutores infiéis, sem tanto como um simples
raio da lâmpada de inspiração celestial.
Isto parece demasiado forte ao leitor? Imagina, acaso, que podemos escutar os
infiéis que negam Moisés e todavia crer na inspiração dos Salmos, dos Profetas e do
Novo Testamento?- Se assim pensa, convença-se de que está sob o poder de uma
fatal ilusão. Consulte passagens como as seguintes e pergunte a si mesmo o que elas
significam e o que está envolvido nelas! O Senhor, falando dos judeus, que, diga-se
de passagem, não estariam de acordo com um bispo cristão que negasse a
autenticidade de Moisés, diz: "Não cuideis que eu vos hei de acusar para com o Pai.
Há um que vos acusa, Moisés, em quem vós esperais. Porque, se vós crêsseis em
Moisés, creríeis em mim, porque de mim escreveu ele. Mas, se não credes nos seus
escritos, como crereis nas minhas palavras?" (Jo 5:45-47).
Pense-se nisto. Aquele que não crê nos escritos de Moisés, que não aceita cada
linha sua como divinamente inspirada, não crê nas palavras de Cristo, e, portanto,
não pode ter nenhuma fé de procedência divina em Cristo, não pode ser um
cristão. Isto constitui um grave assunto para todo aquele que nega a divina
inspiração do Pentateuco e grave igualmente para todo aquele que o escuta ou
simpatiza com ele. É muito bom falar de caridade cristã e liberalidade de espírito.
Mas temos ainda de aprender que não é caridade cristã ou liberalidade de espírito
sancionar, de qualquer modo, o homem que tem a audácia de destruir os próprios
fundamentos da nossa fé. Falar dele como de um bispo cristão ou de um ministro
cristão, é apenas tornar o assunto mil vezes pior. Podemos compreender um
Voltaire ou um Paine que ataca a Bíblia. Não esperamos deles outra coisa. Mas
quando aqueles que pretendem ser reconhecidos e ordenados ministros da religião
e guardas da fé dos eleitos de Deus, que se consideram os únicos autorizados a
ensinar e a pregar Jesus Cristo, e a alimentar e dirigir a Igreja de Deus, põem em
dúvida a inspiração dos cinco livros de Moisés, não teremos o direito de perguntar,
onde estamos?- A que chegou a igreja professante?
Mas vejamos outra passagem. Trata-se de poderosa interrogação que o Salvador
ressuscitado fez aos dois desolados discípulos que iam para Emaús: "Ó néscios e
tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura, não
convinha que o Cristo padecesse essas coisas e entrasse na sua glória? E começando
por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as
Escrituras." E aos onze e outros que com eles estavam, Ele diz também: "São estas
as palavras que vos disse estando ainda convosco: convinha que se cumprisse tudo
o que de mim estava escrito na Lei de Moisés e nos Profetas e nos Salmos" (Luc.
24:25-27, 44).
Vemos aqui que nosso Senhor, da maneira mais clara e positiva, reconhece a lei de
Moisés como uma parte integral do cânon de inspiração e a liga com todas as outras
grandes divisões do Volume divino, de forma que é absolutamente impossível
tocar uma sem destruir a integridade do conjunto. Se não se deve crer em Moisés
tampouco se pode crer nos Profetas e nos Salmos. Mantêm-se ou caem juntos. E
não só isto; mas nós ou havemos de admitir a divina autenticidade do Pentateuco
ou tirar a blasfema conclusão que nosso adorável Senhor e Salvador deu a sanção
da Sua autoridade a uma coleção de documentos falsos citando como escritos de
Moisés o que Moisés nunca escreveu! Não existe positivamente nem uma polegada
de terreno firme entre estas duas conclusões.
Mas, veja-se a seguinte importantíssima passagem no final da parábola do rico e
Lázaro: "Disse-lhe Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos. E disse ele:
Não, Abraão, meu pai; mas, se algum dos mortos fosse ter com eles,
arrepender-se-iam. Porém Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas,
tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite" (Lc 16:29-31).
Finalmente, se a tudo isto acrescentarmos o fato de que nosso Senhor, em Seu
conflito com Satanás no deserto, citou somente os escritos de Moisés, teremos um
corpo de evidência bastante não só para estabelecer, fora de toda a dúvida, a
inspiração de Moisés, mas também para provar que o homem que põe em dúvida a
autenticidade dos cinco primeiros livros da Bíblia não pode realmente ter a Bíblia,
nem revelação divina, nem autoridade, nem sólido fundamento para a sua fé. Pode
chamar-se a si mesmo, ou ser chamado pelos outros, um bispo cristão ou ministro
cristão; mas o fato solene é que ele é um céptico, e deve ser tratado como tal por
todos os que creem e conhecem a verdade. Não podemos compreender como é que
alguém com uma centelha de vida divina na sua alma possa ser culpado do terrível
pecado de negar a inspiração de uma grande parte da Palavra de Deus ou de
afirmar que nosso Senhor Jesus Cristo podia citar documentos espíritos.
Poderemos parecer severos em escrever desta maneira. Parece estar em moda, hoje
em dia, considerar como cristãos os que negam os próprios fundamentos do
cristianismo. É um conceito muito popular que, contanto que a gente seja moral,
amável, benévola, caritativa e filantropa, pouco importa o que crê. A vida é melhor
do que o credo ou dogma, dizem-nos. Tudo isto soa muito plausível; mas o leitor
pode estar certo de que o fim imediato de toda esta dissertação e linha de
argumento é alijar-nos da Bíblia, do Espírito Santo, de Cristo, de Deus, enfim,
alijar-nos de tudo que a Bíblia revela às nossas almas. Tenha isto presente, e
procure manter-se junto à preciosa Palavra de Deus. Guarde essa Palavra em seu
coração, e entregue-se, mais e mais, ao estudo piedoso dela. Desta forma será
preservado da destruidora influência do cepticismo e infidelidade, em qualquer
das suas formas; a sua alma será alimentada e nutrida com o leite racional da
Palavra e todo o seu ser moral guardado continuamente no refúgio da presença
divina. Isto é o que é preciso. Tudo o mais de nada serve.
As Três Cidades de Refúgio do Outro Lado do Jordão
Devemos terminar agora a nossa meditação sobre este maravilhoso capítulo que
tem vindo a ocupar a nossa atenção; mas, antes de o fazer, queremos lançar um
olhar, por uns instantes, à notável informação sobre as três cidades de refúgio. A
um leitor apressado poderia parecer um caso desconexo, mas, longe disso, está,
como podíamos esperar, em perfeita e formosa ordem moral. A Escritura é sempre
divinamente perfeita; e, se nós não vemos e apreciamos as suas belezas e glórias
morais, é simplesmente devido à nossa cegueira insensibilidade.
"Então, Moisés separou três cidades daquém do Jordão, da banda do nascimento do
sol; para que ali se acolhesse o homicida que, por erro, matasse o seu próximo, a
quem dantes não tivesse ódio algum; e se acolhesse a uma destas cidades e vivesse:
a Bezer, no deserto, na terra plana, para os rubenitas; e a Ramote, em Gileade, para
os gaditas; e a Golã, em Basã, para os manassitas."
Aqui temos uma formosa demonstração da graça de Deus, elevando-se, como
sempre acontece, acima da fraqueza humana. As duas e meia tribos, escolhendo a
sua herança deste lado do Jordão, ficavam manifestamente destituídas da própria
parte do Israel de Deus, que se encontra do outro lado do mar da morte. Mas, não
obstante este fracasso, Deus, em Sua abundante graça, não quis deixar o
infortunado homicida sem um refúgio no dia da sua aflição. Se o homem não pode
aproximar-se dos pensamentos de Deus, Deus pode descender às profundidades da
necessidade humana, e assim fez de uma maneira bendita neste caso, para que as
duas e meia tribos pudessem ter tantas cidades de refúgio, deste lado do Jordão,
como as nove e meia tribos tinham na terra de Canaã.
Isto era verdadeiramente graça abundante. Quão diferente da maneira humana!
Como estava acima da mera lei ou da justiça legal! Podia, por via legal, dizer-se às
duas e meia tribos: "Se ides escolher a vossa herança aquém da linha de
demarcação divina, se ficais satisfeitos com menos que Canaã, a terra da promessa,
não deveis esperar desfrutar os privilégios e bênçãos dessa terra. As instituições de
Canaã devem ser limitadas a Canaã; e por isso o vosso homicida tem de procurar
atravessar o Jordão e achar refúgio ali."
A lei podia assim falar, mas a graça falou de uma maneira diferente. Os
pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos, nem os Seus caminhos são os
nossos caminhos. Podia parecer-nos que era graça maravilhosa designar até mesmo
só uma cidade de refúgio para as duas e meia tribos. Mas o nosso Deus faz tudo
mais abundantemente além do que pedimos ou esperamos; e por isso o distrito
comparativamente pequeno deste lado do Jordão foi dotado com uma provisão da
graça tão plena como toda a terra de Canaã.
Prova isto que as duas tribos e meia tinham razão? Não; mas prova que Deus era
bom; e que deve sempre atuar segundo o que Ele é, apesar de toda a nossa fraqueza
e loucura. Poderia Ele deixar um pobre homicida sem um lugar de refúgio na terra
de Gileade, embora Gileade não fosse em Canaã?- Certamente que não. Isto não
seria digno d'Aquele que diz: "Faço chegar a minha justiça." Teve o cuidado de
fazer chegar a cidade de refúgio junto do homicida. Fez com que a Sua rica e
preciosa graça fosse derramada para alcançar o necessitado precisamente onde ele
se encontrava. Tal é o método do nosso Deus, bendito seja o Seu santo Nome para
sempre!

Fim do Primeiro Discurso de Moisés


"Esta é, pois, a lei que Moisés propôs aos filhos de Israel. Estes são os testemunhos,
e os estatutos e os juízos que Moisés falou aos filhos de Israel, havendo saído do
Egito, daquém do Jordão, no vale defronte de Bete-Peor, na terra de Seom, rei dos
amorreus, que habitava em Hesbom, a quem Moisés e os filhos de Israel feriram,
havendo eles saído do Egito. E tomaram a sua terra em possessão, como também a
terra de Ogue, rei de Basã, dois reis dos amorreus, que estavam daquém do Jordão,
da banda do nascimento do sol; desde Aroer, que está à borda do ribeiro de Arnom,
até ao monte Siom, que é Hermom, e toda a campina, daquém do Jordão, da banda
do oriente, até ao mar da campina, abaixo de Asdote-Pisga."
Aqui termina este maravilhoso discurso. O Espírito de Deus compraz-Se em traçar
os limites do povo, e em Se deter sobre os mais pequenos pormenores ligados com
a sua história. Toma um amoroso e vivo interesse em tudo que lhe diz respeito —
os seus conflitos, as suas vitórias, as suas possessões, os limites da sua terra, tudo a
seu respeito é relatado com uma minuciosidade que, por sua graça comovedora e
condescendente, enche a alma de admiração, amor e louvores. O homem, em sua
baixa importância, considera que está abaixo da sua dignidade entrar em pequenos
pormenores; mas o nosso Deus conta os cabelos da nossa cabeça; recolhe as nossas
lágrimas em Sua redoma; toma conhecimento de todos os nossos cuidados, das
nossas dores, e necessidades. Nada há demasiado pequeno para o Seu amor, assim
como nada há grande demais para o Seu poder. Concentra o Seu amoroso cuidado
em cada um dos que constituem o Seu povo como se só tivesse de cuidar desse um;
e não existe uma simples circunstância na história privada da nossa vida, dia a dia,
por mais vulgar, em que Ele não tome um amorável interesse.
Lembremos sempre isto, para nossa consolação; e aprendamos a confiar n'Ele
melhor e fazer uso, com fé mais simples, do Seu paternal amor e cuidado. Ele
diz-nos para lançarmos sobre Ele toda a nossa solicitude, na certeza de que Ele
cuida de nós. Ele quer ter os nossos corações tão livres de cuidados como a nossa
consciência está livre de culpa. "Não estejais inquietos por coisa alguma; antes as
vossas petições sejam em tudo conhecidas, diante de Deus, pela oração e súplicas,
com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os
vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus" (Fp 4:6-7).
E de recear que a grande maioria entre nós conhece apenas muito pouco da
verdadeira profundidade, significado e poder de tais palavras. Lemo-las e
ouvimo-las; mas não nos apropriamos delas. Não as assimilamos nem as pomos em
prática. Quão pouco compreendemos a verdade bendita de que nosso Pai está
interessado em todos os nossos pequenos problemas e dores; e que podemos
recorrer a Ele com todas as nossas pequenas faltas e dificuldades. Imaginamos que
tais coisas escapam ao conhecimento do Altíssimo e Onipotente que habita na
eternidade, e Se assenta sobre o círculo da terra. Isto é um grave erro, que nos
rouba incalculáveis bênçãos em nossa vida diária. Devemos lembrar sempre que
não há nada pequeno ou grande com o nosso Deus. Todas as coisas são iguais para
Aquele que sustém o vasto universo pela Palavra do Seu poder e toma nota da
queda de um passarinho. É tão fácil para Si criar um mundo como prover um
almoço para alguma pobre viúva. A grandeza do seu poder, a grandeza da glória
moral do Seu governo, e a minuciosidade do Seu terno cuidado, atraem, de igual
modo, a admiração e adoração dos nossos corações.
Leitor cristão, procura fazer tuas todas estas coisas. Procura viver mais perto de
Deus na tua vida diária. Apoia-te mais n'Ele. Recorre mais a Ele. Busca-O em todas
as tuas necessidades, e nunca terás de contar as tuas necessidades aos teus
semelhantes. "O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas
necessidades em glória, por Cristo Jesus" (Fp 4:19). Que recurso! — "Deus"! Que
padrão! — "As suas riquezas em glória"! Que canal! — "Cristo Jesus"! É teu doce
privilégio pôr todas as tuas necessidades defronte das Suas riquezas, e esquecer
aquelas à vista destas. Os Seus inesgotáveis tesouros estão amplamente abertos para
ti, em todo o amor de Seu coração; serve-te deles, na ingênua simplicidade da fé, e
nunca terás ocasião de esperar o auxílio da criatura o depender de apoio humano.

CAPÍTULO 5

OS DEZ MANDAMENTOS

(O segundo discurso de Moisés — capítulos 5 a 26)


Ouvir e Aprender, Guardar e Praticar
"E chamou Moisés a todo o Israel e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e juízos
que hoje vos falo aos ouvidos; e aprendê-los- -eis, e guardá-los-eis, para os
cumprir."
Notemos atentamente estas quatro palavras especialmente características do livro
de Deuteronômio, e tão próprias para o povo do Senhor, em todos os tempos e em
todo o lugar — "Ouvir", "Aprender", "Guardar", "Fazer". São palavras de
inestimável valor para toda a alma verdadeiramente piedosa — para todo o que
honestamente deseja andar por aquele caminho estreito de justiça prática tão
agradável a Deus e tão seguro e feliz para nós.
A primeira destas palavras coloca a alma na mais bem-aventurada atitude em que
alguém pode encontrar-se, isto é, na atitude de ouvir. "A fé é pelo ouvir, e o ouvir
pela palavra de Deus" (Rm 10:17). "Escutarei o que Deus, o SENHOR, disser" (SI
85:8). "Ouvi, e a vossa alma viverá" (Is 55:3). O ouvido atento está no próprio
princípio de toda a verdadeira e prática vida cristã. Coloca a alma na única atitude
verdadeira e própria da criatura. E o verdadeiro segredo de toda a paz e
bem-aventurança.
Desnecessário é lembrar ao leitor que, quando falamos da alma na atitude de ouvir,
se trata simplesmente de ouvir a Palavra de Deus. Israel tinha de ouvir "os
estatutos e juízos" do Senhor, e nada mais. Não eram os mandamentos, tradições e
doutrinas de homens que deviam atender; mas às próprias palavras do Deus vivo
que os havia remido e libertado da terra do Egito, o lugar de escravidão, trevas e
morte.
É conveniente lembrarmo-nos disto. Pois isto guardará a alma de muitas ciladas,
muitas dificuldades. Ouvimos falar muito, em certos meios, de obediência; e da
conveniência moral de renunciarmos à nossa própria vontade, e nos submetermos
à autoridade. Tudo isto soa muito bem; e tem grande peso com um grande número
de pessoas muito religiosas e moralmente excelentes. Mas quando os homens nos
falam de obediência, devemos fazer a pergunta: "Obediência a quê?" Quando nos
falam de ceder à nossa própria vontade, devemos perguntar-lhes: "A quem
devemos rendê-la?-" Quando nos falam de nos submetermos à autoridade devemos
insistir em que nos digam qual a origem ou fundamento da autoridade.
Isto é da maior importância para todos os membros da família da fé. Há muitas
pessoas verdadeiramente sinceras e muito honestas que acham bastante cômodo
não ter de pensar por si mesmas e terem a sua esfera de ação e linha de serviço
confiadas a mentes mais competentes do que as suas próprias. Parece uma coisa
muito desafogada e agradável ter a obra de cada dia designada por alguma mão
hábil. Alivia o coração de um grande peso de responsabilidade, e tem certo aspecto
de humildade e falta de confiança em nós próprios submetermo-nos
voluntariamente à autoridade de outrem.
Mas estamos obrigados perante Deus a ver bem qual o fundamento de autoridade a
que nos submetemos, de contrário podemo-nos encontrar numa posição
completamente falsa. Tome-se por exemplo um monge, ou uma freira ou um
membro de uma irmandade. O monge obedece ao seu abade; uma freira à sua
madre-abadessa; uma "irmã" obedece à sua "madre superiora". Mas a posição e o
parentesco de cada um são absolutamente falsos. Não há no Novo Testamento nem
sombra de autoridade a favor de mosteiros, conventos ou irmandades! Pelo
contrário, o ensino da Sagrada Escritura, bem como a voz da natureza, são
absolutamente contrários a todos eles, visto que tiram homens e mulheres do lugar
e das relações em que Deus os tem colocado, e nos quais eles estão destinados a
mover-se, e os constituem em sociedades que são completamente destruidoras dos
afetos naturais e subversivas de toda a verdadeira obediência cristã.
Julgamos conveniente chamar a atenção do leitor crente para este assunto de
atualidade, visto que o inimigo está fazendo um esforço vigoroso para reviver o
sistema monástico, entre nós, sob várias formas. Com efeito, alguns têm tido a
temeridade de nos dizer que a vida monástica é a única forma verdadeira de
cristianismo. Certamente, quando se fazem tão monstruosas afirmações e estas são
escutadas, compete-nos estudar este assunto à luz da Escritura e convidar os
defensores e adeptos do monasticismo para nos mostrarem os fundamentos do
sistema na Palavra de Deus. Onde se encontra, nas páginas do Novo Testamento,
alguma coisa que se pareça, ainda que de longe, com um mosteiro, um convento ou
uma irmandade?- Onde podemos encontrar uma autoridade para qualquer coisa
parecida com os cargos de abade, ou abadessa, ou madre superiora?- Não se
encontra absolutamente nada de tais coisas, nem sombra delas; e por isso, não
hesitamos em declarar todo o sistema, desde os seus fundamentos à pedra cimeira,
uma estrutura de superstição, igualmente contrária à voz da natureza e à voz de
Deus; nem podemos compreender como alguém, em suas faculdades sensatas, nos
possa dizer que um monge ou uma freira é a única verdadeira expressão de vida
cristã. Todavia, há os que assim falam, e há os que os escutam, e isso nestes dias em
que a plena e clara luz do nosso glorioso cristianismo brilha sobre nós desde as
páginas do Novo Testamento (1).
__________
(1) Devemos compreender claramente a diferença que existe entre "natureza" e "a
carne". A natureza é reconhecida na Escritura: a carne é condenada e posta de
lado. "Ou não vos ensina a mesma natureza?", diz o apóstolo. "Jesus olhando para o
mancebo rico o amou", embora nele nada houvesse senão a natureza. Não ter afeto
natural é um dos sinais da apostasia. A Escritura ensina-nos que estamos mortos
para o pecado; não para a natureza, de outro modo que seria das nossas relações
naturais?

Obediência e Serviço
Mas, bendito seja Deus, nós somos chamados à obediência. Somos chamados para
"ouvir" — chamados a inclinarmo-nos, em santa e reverente submissão à
autoridade. E aqui concordamos com a infidelidade e suas altas pretensões. A
senda do cristão piedoso e humilde está igualmente separada da superstição, por
um lado e da infidelidade por outro lado. A nobre resposta de Pedro ante o
Concílio, em Atos 5, inclui, no seu limitado resumo, uma completa resposta a
ambas. "Mais importa obedecer a Deus do que aos homens." Fazemos face à
infidelidade, em todos os seus aspectos, em todas as suas fases, e em suas mais
profundas raízes, com esta única e grave expressão: "Importa obedecer." E fazemos
face à superstição, seja qual for o traje com que se revista, com a importantíssima
frase: "Importa obedecer a Deus."
Aqui temos exposto, da forma mais simples, o dever de todo o verdadeiro crente.
Deve obedecer a Deus. O incrédulo pode rir desdenhosamente de um monge ou de
uma freira, e admirar-se de que um ser racional possa render completamente a sua
razão e o seu entendimento à autoridade de um mortal como ele, ou submeter-se a
regras e práticas tão absurdas, tão degradantes e tão contrárias à natureza. Mas ele,
incrédulo, gloria-se na sua suposta liberdade intelectual, e imagina que a sua
própria razão é uma guia suficiente para si. Não vê que está mais longe de Deus do
que o pobre monge ou freira que tanto despreza. Não sabe que, enquanto ele se
vangloria na sua vontade própria, está realmente sendo levado como cativo por
Satanás, o príncipe deste mundo e deus deste século. O homem foi criado para
obedecer — criado para olhar para alguém superior a si. O crente é santificado
para a obediência de Jesus Cristo — isto é, para o mesmo caráter de obediência que
foi manifestada por nosso adorável Senhor e Salvador.
Isto é de grande importância para todo aquele que deseja saber o que é a verdadeira
obediência cristã. Entender isto é o verdadeiro segredo de libertação da obstinação
do incrédulo e da falsa obediência da superstição. Jamais poderá ser reto fazer a
nossa própria vontade. Pode ser inteiramente errôneo fazer a vontade do nosso
semelhante. Tem de ser sempre reto fazer a vontade de Deus. Foi isto que Jesus
veio fazer; e o que sempre fez. "Eis aqui venho para fazer, ó Deus, a tua vontade"
(Hb 10:9). "Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está
dentro do meu coração" (SI 40:8).
Ora nós somos chamados para mostrar este bendito caráter de obediência assim
como somos ensinados pelo apóstolo inspirado — Pedro —, no começo da sua
epístola, em que ele fala dos crentes como "eleitos segundo a presciência de Deus o
Pai, em santificação do Espírito, para obediência e aspersão de sangue de Jesus
Cristo."
Isto é um grande privilégio e, ao mesmo tempo, uma solene e santa
responsabilidade. Não devemos esquecer nunca, nem por um momento, que Deus
nos elegeu, e que o Espírito Santo nos separou, não só para a aspersão do sangue de
Jesus Cristo, mas também para a Sua obediência. Tal é o significado claro e a força
moral das palavras que acabamos de citar — palavras de inefável preciosidade para
todo aquele que ama a santidade —, palavras que eficientemente nos libertam da
vontade própria, do legalismo e da superstição. Bendita libertação!
Mas pode ser que o leitor esteja disposto a chamar a nossa atenção para a exortação
em Hebreus 13: "Obedecei a vossos pastores e sujeitai-vos a eles; porque velam por
vossa alma, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria
e não gemendo, porque isso não vos seria útil."
Palavras duplamente importantes, certamente, com as quais devemos também
ligar a passagem de 1 Tessalonicenses 5:12-13: "E rogamo-vos, irmãos, que
reconheçais os que trabalham entre vós, e que presidem sobre vós no Senhor, e vos
admoestam; e que os tenhais em grande estima e amor, por causa da sua obra." Bem
como 1 Coríntios 16:15-16: "Agora vos rogo, irmãos (sabeis que a família de
Estéfanas é as primícias da Acaia, e que se tem dedicado ao ministério [ou serviço]
dos santos), que também vos sujeitei aos tais e a todo aquele que auxilia na obra e
trabalha."
A tudo isto devemos acrescentar outra formosa passagem da 1 Epístola de Pedro:
"Aos presbíteros que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbítero com
eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de
revelar; Apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, tendo cuidado dele, não
por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto;
nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao
rebanho. E quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa de
glória" (capítulo 5:1 a 4).
Pode perguntar-se: "As passagens citadas não estabelecem o princípio de
obediência a certos homens? E, se é assim, por que fazer objeções à autoridade
humana? A resposta é simples. Onde quer que Cristo conceda um dom espiritual,
quer seja o dom de ensinar, o dom de governar, ou o dom de pastorear, é o dever e
privilégio dos crentes reconhecer e apreciar tais dons. Não o fazer, seria renunciar
às nossas próprias mercês. Mas devemos ter em vista o fato que, em todos esses
casos, o dom deve ser uma realidade — uma coisa evidente, palpável bona fide,
divinamente dada. Não é um homem assumir determinado cargo ou posição, ou ser
nomeado pelo seu semelhante para qualquer ministério assim chamado. Tudo isto
é perfeitamente inútil e pior do que inútil; é uma atrevida intromissão de um
sagrado domínio que há de, mais cedo ou mais tarde, atrair o juízo de Deus.
Todo o verdadeiro ministério é de Deus, e é baseado na possessão de um dom
positivo procedente do Cabeça da Igreja; de modo que podemos verdadeiramente
dizer: se não houver dom, não haverá ministério. Em todas as passagens acima
citadas vemos que é possuído um dom e em verdade uma obra feita. Além disso,
vemos um verdadeiro coração para os cordeiros e ovelhas do rebanho de Cristo;
vemos graça e poder divinos. A expressão em Hebreus 13 é: "Obedecei aos que vos
guiam." Ora, é essencial que um verdadeiro guia siga adiante de nós. Seria o
cúmulo da loucura que alguém tomasse o título de guia se desconhecesse o
caminho, e não tivesse nem a competência nem a vontade de seguir nele.

Quem pensaria em obedecer a uma tal pessoal


Assim também quando o apóstolo exorta os Tessalonicenses a "reconhecer" e
"estimar" certas pessoas, em que baseia a sua exortação?- É sobre a mera pretensão
de um título, um cargo ou uma posição«? Nada disso. Ele baseia a sua petição sobre
a fato bem conhecido de que estas pessoas "presidiam sobre eles no Senhor", e que
os admoestavam. E por que os deviam eles ter "em grande estima e amor"?- Era
devido ao seu cargo ou título? Não; mas "por causa da sua obra". E por que foram os
Coríntios exortados a que se sujeitassem à família de Estéfanas? Foi por causa de
um título vazio ou pretensão de um cargo? De modo nenhum; mas porque se
"tinham dedicado ao ministério dos santos". Estavam de fato ocupados na obra.
Tinham recebido um dom e graça de Cristo, e amavam o Seu povo. Não se
vangloriavam do cargo nem se agarravam ao seu título, mas entregavam-se a si
mesmos piedosamente ao serviço de Cristo, nas pessoas do Seu amado povo.
Ora este é precisamente o verdadeiro princípio de ministério. Não é, de modo
algum, autoridade humana, mas dom divino e poder espiritual comunicados por
Cristo aos Seus servos exercidos por eles em responsabilidade para com Ele; e
fielmente reconhecidos pelos Seus santos. Um homem pode intitular-se ensinador
ou pastor, ou pode ser nomeado pelos seus companheiros para o cargo ou título de
pastor; porém, a menos que possua um dom positivo do Cabeça da Igreja, é tudo
uma mera impostura, uma falsa pretensão, um vazio conceito; e a sua voz será a
voz de um estranho que as verdadeiras ovelhas de Cristo não reconhecem e não
devem reconhecer (1).
__________
(1) O leitor fará bem em ponderar o fato de que não existe tal coisa no Novo
Testamento como a nomeação para pregar o evangelho, ensinar na assembleia de
Deus, ou alimentar o rebanho de Cristo. Os anciãos e os diáconos eram ordenados
pelos apóstolos, ou pelos seus delegados, Timóteo e Tito; mas os evangelistas, os
pastores e doutores nunca eram ordenados. Devemos compreender a distinção
entre o dom e cargo local. Os anciãos e os diáconos podiam ou não possuir um dom
especial; mas isso nada tinha que ver com o seu cargo local. Se o leitor quer
compreender o assunto do ministério, deve estudar 1 Coríntios 12 a 14 e Efésios
4:8 a 13. Naqueles capítulos temos a base de todo o verdadeiro ministério na igreja
de Deus, isto é, nomeação divina: "Deus colocou os membros", etc., segundo, o
motivo predominante, "amor"; terceiro, o objetivo, "para edificação da igreja". Em
Efésios 4 temos a origem de todo o ministério, o Senhor ressuscitado e elevado ao
céu. O fim, "para o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério". A sua
duração: "Até que todos cheguemos a varão perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo."
Em suma, o ministério, em todos os seus cargos, é inteiramente uma instituição
divina. Não é do homem ou pelo homem, mas de Deus. O Mestre deve, em todos os
casos, preparar, habilitar e nomear o vaso. Não existe autoridade na Escritura para
a ideia de que todo o homem tem o direito de ministrar na igreja de Deus. A
liberdade para os homens agirem é radicalismo e não segundo a Escritura.
Liberdade para o Espírito ministrar por quem quiser é o que nos é ensinado no
Novo Testamento. Possamos nós aprender a lição!

Mas em contrapartida, onde se encontra o ensinador divinamente dotado, o


verdadeiro, amorável, prudente, fiel, laborioso pastor, que vela pelas almas, chora
por elas, como uma dócil, terna ama, capaz de lhes dizer: "Porque, agora, vivemos,
se estais firmes no Senhor!" (l Ts 3:8). Onde quer que estas coisas são encontradas,
aí não haverá grande dificuldade de as reconhecer e apreciar. Como sabemos se um
dentista é bom? É por vermos o seu nome numa placai Não; mas pelo seu trabalho.
Um homem pode intitular-se a si próprio dentista à boca cheia, mas se for apenas
um operador inábil quem pensará em recorrer aos seus serviços?
Assim é um todos os assuntos humanos, e assim é no assunto do ministério. Se um
homem tem um dom, é um ministro; se não o tem, toda nomeação, autoridade e
ordenação no mundo não podem fazer dele um ministro de Cristo. Podem fazer
dele um ministro da religião; mas um ministro da religião e um ministro de Cristo
— um ministro na Cristandade e um ministro na igreja de Deus — são duas coisas
totalmente diferentes. Todo o verdadeiro ministério tem a sua origem em Deus;
descansa sobre autoridade divina, e o seu objetivo é levar a alma à Sua presença e
uni-la com Ele. O falso ministério, pelo contrário, tem a sua origem no homem;
descansa na autoridade humana, e o seu objetivo é ligar a alma consigo mesmo.
Isto marca a imensa diferença entre os dois. O primeiro conduz a Deus; o último
afasta d'Ele; aquele alimenta, nutre e fortalece a nova vida; este impede o seu
progresso, em todos os sentidos, e submerge-a em dúvida e trevas. Em suma,
podemos dizer, o verdadeiro ministério é de Deus, por Ele e para Ele. O falso
ministério é do homem, por ele e para ele. O primeiro apreciamo-lo mais do que
podemos dizer; o último rejeitamo-lo com toda a energia do nosso ser mortal.
Julgamos ter dito o suficiente para satisfazer o leitor com respeito ao tema de
obediência àqueles que o Senhor possa ter considerado aptos para serem chamados
para a obra do ministério. Somo obrigados, em todos os casos, a julgar pela Palavra
de Deus, e de que é uma realidade divina e não uma impostura humana — um dom
positivo do Cabeça da Igreja, e não um título vazio conferido pelo homem. Em
todos os casos em que há realmente um dom e graça, é um doce privilégio
obedecer e submetermo-nos, porquanto discernimos Cristo na pessoa e ministério
dos Seus amados servos.

O Discernimento de Crente
Não existe dificuldade para a mente espiritual em reconhecer verdadeira graça e
poder. Podemos facilmente discernir se um homem procura, em verdadeiro amor,
alimentar as nossas almas com o pão da vida, e guiar-nos nos caminhos de Deus, ou
se ele busca exaltar-se a si mesmo e favorecer os seus próprios interesses. Aqueles
que vivem perto do Senhor podem prontamente discernir entre o verdadeiro
poder e a falsa pretensão. Além disso, nunca encontramos os verdadeiros ministros
de Cristo fazendo ostentação da sua autoridade ou vangloriando-se do seu cargo;
fazem a obra e deixam que ela fale por si mesma. No caso do bendito apóstolo
Paulo, vemo-lo, repetidas vezes, recorrer às provas evidentes do seu ministério —
à incontestável evidência produzida na conversão e bênção de almas. Podia dizer
aos coríntios, quando, mal guiados pela influência de algum pretendente à
auto-exaltação, punham em dúvida o seu apostolado: "Visto que buscais uma prova
de Cristo que fala em mim [...] examinai-vos a vós mesmos" (2 Co 13:3-5).
Isto era decisivo, terminava a questão. Eles próprios eram as provas vivas do seu
ministério. Se o seu ministério não era de Deus, o que eram eles e onde estavam?-
Mas era de Deus e isto era o seu gozo, seu conforto e sua força. Ele era "apóstolo
(não da parte dos homens, nem por homem algum, mas por Jesus Cristo, e por
Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos)" (Gl 1:1). Gloriava-se na origem do seu
ministério; e, quanto ao seu caráter, tinha apenas que apelar para um corpo de
evidência suficiente para levar convicção a toda a mente sã. No seu caso, podia
verdadeiramente dizer-se que não era o discurso, mas o poder (1 Co 4:19).
Assim deve ser, em proporção, em todos os casos. Devemos procurar o poder.
Devemos ter a realidade. Os simples títulos nada são. Os homens podem dedicar-se
a outorgar títulos e nomear cargos; mas não têm mais autoridade para assim fazer
do que têm para nomear almirantes para a marinha ou generais para o exército. Se
víssemos um homem tomar o estilo e título de almirante ou general sem a devida
nomeação havíamos de considerá-lo idiota ou demente. Isto é apenas uma fraca
ilustração para mostrar a loucura de certos homens que se arrogam o título de
ministros de Cristo sem um átomo de dom espiritual ou autoridade divina.
Dir-nos-ão que não devemos julgará Somos obrigados a julgar: "Acautelai-vos,
porém, dos falsos profetas" (Mt 7:15). Como nos poderemos acautelar se não
podermos julgará Mas como havemos de julgará "Por seus frutos os conhecereis."
Não pode o povo do Senhor discernir a diferença entre um homem que vem para
eles, no poder do Espírito, dotado pelo Cabeça da Igreja, cheio de amor pelas suas
almas, que deseja ardentemente a sua verdadeira bênção, buscando não o que é seu
mas deles, um servo de Cristo, santo, humilde e cheio de graça, que não tem
pretensões a honras pessoais; e outro homem que vem com um título por ele
próprio tomado ou humanamente conferido, sem um simples vestígio de coisa
alguma divina ou celestial no seu ministério ou na sua vida<? Claro que pode;
ninguém em seu perfeito juízo pensará pôr em dúvida um fato tão claro.
Mas, além disso, podemos perguntar, o que significam essas palavras do venerando
apóstolo João? "Amados, não creiais em todo espírito, mas provai se os espíritos são
de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo" (1 Jo 4:1).
Como vamos provar os espíritos ou como vamos discernir entre os verdadeiros e os
falsos se não devemos julgará O mesmo apóstolo escrevendo "à senhora eleita"
faz-lhe esta solene advertência: "Se alguém vem ter convosco e não traz esta
doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o saúda
tem parte nas suas más obras." Não era ela responsável por atuar segundo esta
admoestação?- Certamente que assim. Mas como podia fazê-lo, se nós, não
devemos julgará E o que devia ela julgará Era se os que vinham a sua casa eram
ordenados, autorizados, ou diplomados por qualquer homem ou corporação
humana? Nada disso. A grande e importante questão para ela era quanto à
doutrina. Se traziam a verdadeira, a doutrina divina de Cristo — a doutrina de que
Jesus Cristo veio em carne, ela devia recebê-los em sua casa; se não, devia
fechar-lhes a porta com mão firme, não importava quem fossem ou de onde
viessem. Ainda que tivessem todas as credenciais que o homem pode outorgar, se
não traziam a verdade, ela devia recusar recebê-los em sua casa com firme decisão.
Isto poderia parecer muito severo, muito tacanho, muito fanático, mas com isto ela
nada tinha que ver. Tinha de ser tão tolerante e tão escrupulosa como a verdade. A
sua porta e o seu coração deviam ser bastante amplos para admitir todos os que
traziam Cristo, mas não mais. Havia de dar cumprimentos em prejuízo do seu
Senhor? Devia procurar fama de grandeza de coração ou tolerância de espírito
recebendo em sua casa e admitindo à sua mesa os ensinadores de um falso Cristo?
O simples pensamento é horrível.
Mas, por fim, no segundo capítulo de Apocalipse, vemos que ele recomenda a
igreja de Éfeso por haver posto à prova os que diziam ser apóstolos e o não eram.
Como poder ser isto se não devemos julgar? Não é evidente para o leitor que se tem
tomado em um sentido absolutamente falso as palavras do Senhor em Mateus 7:1:
"Não julgueis, para que não sejais julgados"«? E também as palavras do apóstolo em
1 Coríntios 4:5: "Portanto nada julgueis antes de templo?-" E impossível a Escritura
contra- dizer-se; e, por isso, qualquer que seja o verdadeiro significado das palavras
do Senhor: "Não julgueis", ou da expressão do apóstolo: "Nada julgueis", é
perfeitamente certo que não interferem, de modo algum, com a solene
responsabilidade de todos os crentes julgarem o dom, a doutrina e a vida de todos
os que tomam o lugar de pregadores, ensinadores e pastores na Igreja de Deus.
E, por outro lado, se nos perguntarem qual o significado das palavras "não julgueis"
e "nada julgueis", cremos que essas palavras nos proíbem simplesmente julgar os
motivos ou origens ocultas de ação. Com estes nada temos absolutamente que ver.
Não podemos penetrar abaixo da superfície; e, graças a Deus, não somos chamados
tampouco a fazê-lo; sim, somos positivamente proibidos disso. Não podemos ler os
desígnios do coração; é cargo e prerrogativa somente de Deus fazer isto. Mas dizer
que não devemos julgar a doutrina, o dom ou modo de vida daqueles que tomam o
lugar de pregadores e pastores na igreja de Deus é simplesmente opor-se à Sagrada
Escritura e desconhecer os próprios instintos da natureza divina implantados em
nós pelo Espírito Santo.
Por isso, podemos voltar com maior clareza e decisão à nossa tese de obediência
cristã. Parece perfeitamente claro que o mais completo reconhecimento de todo o
verdadeiro ministério na Igreja, e a completa submissão de nós próprios a todos os
que Cristo possa julgar aptos para levantar como pastores, ensinadores e guias,
entre nós, não podem nunca, de modo nenhum, interferir com o princípio
fundamental estabelecido na magnificente resposta ao concílio: "Mais importa
obedecer a Deus do que aos homens."
O fim e o objetivo de todo o verdadeiro ministro de Cristo será sempre guiar
aqueles a quem ministram na verdadeira senda de obediência à Palavra de Deus. O
capítulo que temos aberto perante nós, como, de fato, todo o livro de
Deuteronômio, mostra-nos claramente como Moisés, esse eminente servo de
Deus, procurava sempre e trabalhava diligentemente para incutir na congregação
de Israel a urgente necessidade da mais implícita obediência a todos os estatutos e
juízos de Deus. Não buscava nenhum lugar de autoridade para si mesmo. Nunca
exerceu senhorio sobre a herança de Deus. O seu grande tema, desde o princípio ao
fim, era a obediência — o ponto principal de todos os seus discursos — obediência
não a si, mas ao Senhor deles e seu. Julgava acertadamente que isto era o
verdadeiro segredo da sua felicidade, da sua segurança moral, da sua dignidade e
força. Sabia que um povo obediente deve também ser, necessariamente, um povo
invencível e invulnerável. Nenhuma arma usada contra eles podia ser eficaz, desde
que fossem governados pela Palavra de Deus. Numa palavra, sabia e cria que o
dever de Israel era obedecer ao Senhor; assim como pertencia ao Senhor abençoar
Israel. A sua única ocupação consistia em "ouvir", "aprender", "guardar" e "fazer" a
vontade revelada de Deus; e, fazendo-o, podiam contar com Ele, na mais completa
confiança de que seria seu escudo, sua força, sua salvaguarda, seu refúgio, seu
recurso, seu tudo em tudo. O único verdadeiro e próprio caminho para o Israel de
Deus é o caminho estreito da obediência sobre o qual a luz do semblante de Deus
brilha sempre em sinal de aprovação; e todos os que, pela graça, trilham esse
caminho encontrarão n'Ele "um guia, glória, uma defesa para os salvar de todo o
temor."
Isto é, certamente, suficiente. Nada temos a ver com as consequências. Podemos
deixá-las, em simples confiança, com Aquele de quem somos e a quem temos a
responsabilidade de servir. "Torre forte é o nome do SENHOR; para ela correrá o
justo, e estará em alto retiro" (Pv 18:10). Se estivermos fazendo a Sua vontade,
acharemos sempre no Seu nome uma torre forte. Mas, em contrapartida, se não
andarmos no caminho da justiça prática, se estivermos fazendo a nossa própria
vontade, se vivermos no descuido habitual da clara Palavra de Deus, então será
absolutamente inútil pensarmos que o nome do Senhor seja uma forte torre para
nós; antes, pelo contrário, o Seu nome será uma repreensão para nós, e levar-nos-á
a julgarmo-nos a nós próprios e a regressarmos ao caminho da justiça do qual nos
havemos afastado.
Bendito seja o Seu nome, a Sua graça nunca nos faltará, em toda a sua preciosidade,
plenitude e liberalidade, no lugar de auto-juízo e confissão, por muito que
tenhamos falhado ou nos tenhamos desviado. Mas isto é uma coisa muito
diferente. Podemos ter de dizer como o salmista: "Das profundezas a ti clamo, ó
SENHOR! Senhor, escuta a minha voz! Sejam os teus ouvidos atentos à voz das
minhas súplicas. Se tu, SENHOR, observares as iniquidades, Senhor, quem
subsistirás Mas contigo está o perdão, para que sejas temido" (SI 130:1 a 4). Mas,
uma alma clamando a Deus desde as profundezas e obtendo perdão é uma coisa; e
uma alma que olha para Ele na senda da justiça prática é outra. Devemos distinguir
atentamente entre ambas as coisas. Confessar os nossos pecados e obter o perdão
não deve confundir-se nunca com o andar com Deus. Ambos os casos são,
felizmente, verdadeiros; mas não são a mesma coisa.
Dois Pactos
Prosseguiremos agora com o nosso capítulo. Em versículo 2, Moisés lembra ao
povo a relação que têm com Javé por um pacto. Diz-lhes: "O SENHOR, nosso Deus,
fez conosco concerto, em Horebe. Não com nossos pais que fez o SENHOR este
concerto, senão conosco, todos os que hoje aqui estamos vivos. Face a face o
SENHOR falou conosco, no monte, no meio do fogo (naquele tempo, eu estava em
pé entre o SENHOR e vós, para vos notificar a palavra do SENHOR: porque
temestes o fogo e não subistes ao monte), dizendo", etc.
O leitor deve distinguir e compreender perfeitamente a diferença entre o concerto
feito em Horebe e o concerto feito com Abraão, Isaque e Jacó. São dois concertos
essencialmente diferentes. O primeiro era um concerto de obras, pelo qual o povo
se comprometia a fazer tudo quanto o Senhor havia dito. O último era um
concerto puramente de graça, pelo qual Deus garantia com juramento fazer tudo
quanto havia prometido.
A linguagem humana é insuficiente para mostrarmos a imensa diferença, a todos
os respeitos, entre estes dois concertos. Em seus fundamentos, em seu caráter, em
seus acessórios, e em seu resultado prático, são tão diferentes quanto o podem ser
duas coisas. O concerto de Horebe dependia da competência humana para o
cumprimento dos seus termos; e este fato só por si é mais que suficiente para
explicar o fracasso total de todo o pacto. O concerto com Abraão baseava-se na
competência divina para o cumprimento dos seus termos, e daí a absoluta
impossibilidade de sua quebra em um simples jota ou til.
A Lei
Havendo tratado em nossos "Estudos sobre o Livro de Êxodo"
pormenorizadamente do assunto da lei, e procurado mostrar o objetivo divino na
promulgação da mesma, e, além disso, feito constar a absoluta impossibilidade de
alguém alcançar vida ou justificação guardando-a, devemos recomendar ao leitor o
que ali temos escrito sobre este assunto profundamente interessante.
Parece estranho para quem é instruído exclusivamente pela Escritura que exista
tanta confusão de pensamento entre os cristãos professos sobre uma questão tão
clara e definitivamente estabelecida pelo Espírito Santo. Fosse apenas uma questão
de autoridade divina de Êxodo 20 ou Deuteronômio 5 como porções inspiradas da
Bíblia, e nós não teríamos uma palavra a dizer. Cremos plenamente que estes
capítulos são tão inspirados como o décimo sétimo de João ou o oitavo de
Romanos.
Mas o ponto não é este. Todo o verdadeiro cristão aceita, com fervorosa gratidão, o
precioso relato que toda a Escritura é dada por inspiração de Deus. E, demais,
regozija-se com a certeza de que "... tudo que dantes foi escrito, para nosso ensino
foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos
esperança" (Rm 15:4). E, finalmente, crê que a moralidade da lei é de permanente e
universal aplicação. O assassínio, o adultério, roubo, falso testemunho, avareza, são
ofensa — sempre ofensa — em toda a parte. Honrar os nossos pais é bom —
sempre bom em toda a parte. Lemos no capítulo 4 de Efésios: "Aquele que furtava
não furte mais." E também no capítulo 6, lemos: "Honra a teu pai e a tua mãe, que é
o primeiro mandamento com promessa; para que te vá bem, e vivas muito tempo
sobre a terra."
Tudo isto é divinamente tão claro e fixo que não há lugar para discussão. Mas
quando pensamos na lei como base de relação com Deus, entramos numa região de
pensamento inteiramente diferente. A Escritura, em múltiplas passagens,
ensina-nos, da maneira mais clara, que, como cristãos, como filhos de Deus, não
estamos sobre esse terreno. Os judeus estavam sobre esse terreno, mas não podiam
estar ali com Deus. Era morte e condenação. "Porque não podiam suportar o que se
lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado. E tão terrível era a
visão que Moisés disse: "Estou todo assombrado e tremendo" (Hb 12:20-21). O
Judeu descobriu que a lei era uma cama tão curta que não podia estender-se nela, e
um cobertor tão estreito que não se podia cobrir com ele.
Quanto aos gentios, nunca foram, por qualquer ramo da economia divina, postos
debaixo da lei. A sua condição está expressamente declarada no princípio da
epístola aos Romanos, como sendo "sem lei" — "porque, quando os gentios, que
não têm lei", etc. E, "Porque todos os que sem lei pecaram também sem lei
perecerão; e todos os que sob a lei pecaram pela lei serão julgados" (Rm 2:14 e 12).
Aqui as duas classes são postas em agudo e vivo contraste, quanto à questão da sua
posição dispensacional. O judeu, sob a lei; o gentio, sem a lei. Nada pode ser mais
claro. O gentio fora colocado sob o governo, na pessoa de Noé; mas nunca debaixo
da lei. Se alguém está disposto a duvidar disto, que produza uma simples linha da
Escritura para provar que Deus alguma vez colocou os gentios debaixo da lei.
Examine e veja. De nada vale argumentar, raciocinar e objetar. E absolutamente
inútil dizer "nós pensamos" isto ou aquilo. A questão é; "O que diz a Escriturai" Se
ela diz que os gentios foram postos debaixo da lei, cite-se a passagem. Nós
declaramos solenemente que ela não diz nada disso, mas precisamente o contrário.
Descreve a condição e o estado dos gentios como "sem lei" — "não tendo a lei".
Em Atos 10 vemos Deus abrir o reino dos céus aos gentios. Em Atos 14:27 vêmo-Lo
abrir "a porta da fé" aos gentios. Em Atos 28:28 vêmo-Lo enviar a Sua salvação aos
gentios. Mas buscamos em vão, em todas as páginas do bendito Livro, uma
passagem em que conste ter colocado os gentios debaixo da lei.
Rogamos sinceramente ao leitor crente que preste toda a sua atenção a esta
interessante e importante questão. Procure pôr de lado os seus pensamentos
preconcebidos e examine o assunto simplesmente à luz da Sagrada Escritura.
Sabemos bem que as nossas afirmações sobre este assunto serão consideradas por
muitíssimos como uma novela, senão como heresia formal; mas isto não nos
incomoda de forma alguma. E nosso desejo sermos ensinados absoluta e
exclusivamente pela Escritura. As opiniões, mandamentos e doutrinas dos homens
não pesam absolutamente nada em nosso ânimo. Os dogmas das diversas escolas de
teologia devem estimar-se pelo que valem. Exigimos a Escritura. Uma simples
linha de inspiração é amplamente bastante para resolver esta questão, e terminar
com a discussão para sempre. Mostrem- nos pela Palavra de Deus que os gentios
foram alguma vez postos debaixo da lei e nós nos curvaremos imediatamente; mas,
visto que não podemos encontrar isso nela mencionado, rejeitamos inteiramente a
ideia, e esperamos que o leitor faça a mesma coisa. A linguagem invariável da
Escritura, descrevendo a posição do judeu, é "debaixo da lei" -, e, descrevendo a
posição do gentio, é "sem lei". E claro que não podemos compreender como é que
qualquer leitor possa deixar de ver isto (1).
___________
(1) O leitor pode talvez sentir-se disposto a perguntar sobre que princípio será um
gentio julgado, se não está debaixo da lei. Romanos 1:20 ensina-nos claramente
que o testemunho da criação o deixa sem desculpa. Depois, em capítulo 2:15 é
posto sobre o fundamento da consciência. "Porque quando os gentios, que não têm
lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos
são lei, os quais mostram a obra da lei escrita no seu corações". Finalmente, quanto
a essas nações que se tornaram por profissão cristãs, serão julgadas sobre o
fundamento da sua profissão.

Se o leitor voltar a sua atenção, por um momento, para o capítulo 15 de Atos dos
Apóstolos, verá como a primeira tentativa para pôr os gentios convertidos debaixo
da lei foi tratada pelos apóstolos e toda a igreja em Jerusalém. A questão foi
levantada em Antioquia; e Deus, em Sua infinita bondade e sabedoria, ordenou as
coisas de modo a que ela não fosse ali resolvida, mas que Paulo e Barnabé fossem a
Jerusalém e discutissem plena e livremente o assunto de modo a que ele fosse
definitiva e unanimemente arrumado pela voz dos doze apóstolos e toda a igreja.
Como devemos bendizer a Deus por isto! Podemos, imediatamente, ver como a
decisão de uma assembleia local como a de Antioquia, até mesmo embora aprovada
por Paulo e Barnabé, não comportaria o mesmo peso como os doze apóstolo
reunidos em concílio em Jerusalém. Mas o Senhor, bendito seja o Seu nome,
tomou cuidado a fim de que o inimigo fosse completamente confundido; e que os
mestres da lei desses dias, e de todos os tempos sucessivos, fossem de um modo
claro e autorizado informados que não era segundo a Sua vontade que os cristãos
fossem postos debaixo da lei, sob pretexto algum.
O assunto é tão importante que nós não podemos deixar de citar algumas passagens
para o leitor. Cremos que animarão tanto o leitor como o autor destas linhas e que
eles se sentirão grandemente encorajados com o tocante discurso feito no concílio
mais notável e interessante que jamais esteve reunido.
"Então, alguns que tinham descido da Judéia ensinavam assim os irmãos: Se vos
não circuncidardes, conforme o uso de Moisés, não podeis salvar-vos." Como isto
era terrível! Era de causar arrepios! Que fúnebre sonido para ecoar aos ouvidos dos
que haviam sido convertidos pelo esplêndido discurso de Paulo na sinagoga de
Antioquia! "Seja-vos, pois, notório, varões irmãos, que por este" — sem a
circuncisão ou as obras da lei de qualquer espécie — "se vos anuncia a remissão dos
pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é
justificado todo aquele que crê" "...e, saídos os judeus da sinagoga, os gentios
rogaram que no sábado seguinte lhes fossem ditas as mesmas coisas" (At 13:38 a
42).
Tal foi a gloriosa mensagem enviada aos gentios pelos lábios do apóstolo Paulo —
uma mensagem de livre, plena, imediata e perfeita salvação — completa remissão
dos pecados e perfeita justificação pela fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Mas,
segundo o ensino de "alguns que tinham descido da Judéia", tudo era insuficiente.
Cristo não era suficiente sem a circuncisão e a lei de Moisés. Os pobres gentios, que
nunca haviam ouvido falar da circuncisão ou da lei de Moisés, tinham de
acrescentar a Cristo e à Sua gloriosa salvação o guardar toda a lei!
Como o coração de Paulo deve ter ardido ao ver os amados gentios convertidos
postos debaixo de tão monstruoso ensino! Não viu nisso nada menos do que a
completa derrota do Cristianismo. Se a circuncisão tinha de ser acrescentada à
Cruz de Cristo — se a lei Moisés devia ser o complemento da graça de Deus, então
tudo ficava desfeito.
Mas, bendito seja o Deus de toda a graça, Ele permitiu que fosse levantada uma
nobre oposição a esse mortal ensino. Quando o inimigo se apresentou como um
aluvião, o Espírito Santo levantou um padrão contra ele. "Tendo tido Paulo e
Barnabé não pequena discussão e contenda contra eles, resolveu- se que Paulo,
Barnabé, e alguns dentre eles subissem a Jerusalém aos apóstolos e aos anciãos
sobre aquela questão. E eles, sendo acompanhados pela igreja, passaram pela
Fenícia e por Samaria, contando" — não a circuncisão mas — "a conversão dos
gentios, e davam grande alegria a todos os irmãos."
Os irmãos estavam na corrente do pensamento de Cristo e na doce comunhão com
o coração de Deus; e por isso alegravam-se por ouvir da conversão e salvação dos
gentios. Podemos ficar certos de que não lhes teria dado gozo algum ouvir que se
havia posto ao pescoço daqueles amados discípulos, que haviam sido trazidos para
a gloriosa liberdade do evangelho, o pesado jugo de circuncisão e a lei de Moisés.
Mas ouvir da Sua conversão a Deus, da sua salvação em Cristo, de haverem sido
selados com o Espírito Santo, enchia os seus corações de um gozo que estava em
encantadora harmonia com a mente do céu.
"Quando chegaram a Jerusalém, foram recebidos pela igreja e pelos apóstolos e
anciãos e lhes anunciaram quão grandes coisas Deus tinha feito por eles. Alguns,
porém, da seita dos fariseus que tinham crido se levantaram, dizendo que era
mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés."
Quem havia dito que era "mister" i Não era Deus certamente, porquanto, em Sua
infinita graça, lhes havia aberto a porta da fé, sem a circuncisão nem mandamento
algum de Moisés. Não; eram "alguns" que presumiam falar de tais cosias como
necessárias — homens que têm perturbado a Igreja de Deus desde esses tempos até
aos nossos dias —, homens que queriam ser "doutores da lei; e não entendendo
nem o que dizem nem o que afirmam" (l Tm 1:7). Os doutores da lei nunca sabem o
que está envolvido no seu escuro e triste ensino. Não têm a mínima ideia de quão
detestável é o seu ensino para o Deus de toda a graça, o Pai das misericórdias.

A Lei: um Jugo Impossível de Levar


Mas graças a Deus, o capítulo que estamos citando proporciona-nos a mais clara e
poderosa evidência que podia ser dada quanto à mente divina sobre o assunto.
Prova, sem sombra de dúvidas, que não era intenção de Deus por os crentes
Gentios debaixo da lei.

"Congregaram-se, pois, os apóstolos e os anciãos para considerar este assunto. E,


havendo grande contenda"—ah, quão cedo ela começou! — "levantou-se Pedro e
disse-lhes: Varões irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu
dentre vós para que os gentios ouvissem da minha boca" — não a lei de Moisés ou a
circuncisão, mas — "a palavra do evangelho e cressem. E Deus, que conhece os
corações, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espírito Santo, assim como também a
nós; e não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando o seu coração pela fé.
Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo
que nem nossos pais nem nós pudemos suportará"
Nota bem isto, prezado leitor. A lei havia concedido um jugo insuportável para
aqueles que estavam debaixo dela, isto é, os judeus; e, além disso, pôr um jugo
sobre a cerviz dos crentes gentios era nada menos que tentar a Deus. Oxalá que
todos os ensinadores da lei em todos os âmbitos da cristandade abrissem os seus
olhos a este grande fato! E não apenas isto, mas que a todo o amado povo do Senhor
em toda a parte fosse dado ver que é uma positiva oposição à vontade de Deus
querer pô-los debaixo da lei, seja por que razão for. "Mas", acrescenta o
bem-aventurado apóstolo da circuncisão, "cremos que seremos salvos"— não pela
lei em qualquer forma — "pela graça do Senhor Jesus Cristo, como eles também."
Isto é invulgarmente belo, vindo dos lábios do apóstolo da circuncisão. Ele não diz:
"Eles serão salvos, como nós somos"; mas "Seremos salvos, como eles também". O
judeu contenta-se em descer da sua elevada posição dispensacional e ser salvo da
mesma maneira que o pobre incircunciso gentio.
Sem dúvida, essas nobres expressões devem ter caído com força aturdidora nos
ouvidos dos partidários da lei. Não lhes deixou nem um apoio para se susterem.
"Então, toda a multidão se calou e escutava a Barnabé e a Paulo, que contavam
quão grandes coisas e prodígios Deus havia feito por meio deles entre os gentios."
O Espírito inspirador achou conveniente não nos dizer o que Paulo e Barnabé
disseram nesta memorável ocasião; e nós podemos ver a Sua sabedoria sobre este
assunto. E evidentemente Seu objetivo dar a proeminência a Pedro e Tiago como
homens cujas palavras haviam necessariamente de pesar mais no ânimo dos
ensinadores da lei do que as que pronunciavam o apóstolo dos gentios e o seu
companheiro.
"E, havendo-se eles calado, tomou Tiago a palavra, dizendo: Varões irmãos,
ouvi-me. Simão relatou como, primeiramente, Deus visitou os gentios" — não para
os converter a todos, mas — "para tomar deles um povo para o seu nome. E com
isto concordam as palavras dos profetas"— aqui ele apresenta uma esmagadora
prova de evidência do Velho Testamento para esmagar os judaizantes —, "como
está escrito: Depois disto, voltarei e reedificarei o tabernáculo de Davi, que está
caído; levantá-lo-ei das suas ruínas e tornarei a edificá-lo. Para que o resto dos
homens busque ao Senhor, e também todos os gentios" — sem a mais ínfima
referência à lei de Moisés, mas — "sobre os quais o meu nome é invocado, diz o
Senhor, que faz todas estas cosias que são conhecidas desde toda a eternidade. Pelo
que julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a
Deus."
Aqui, pois, temos esta grande questão definitivamente resolvida pelo Espírito
Santo, os doze apóstolos e toda a Igreja; e nós não podemos deixar de ficar
surpreendidos com o fato de que neste importante concílio, ninguém falou mais
energicamente e de uma maneira mais clara e decidida que Pedro e Tiago — o
primeiro, o apóstolo da circuncisão, e o último, o que falou especialmente às doze
tribos e cuja posição e ministério estavam calculados para dar mais peso às suas
palavras, no parecer de todos os que estavam, mais ou menos, sobre o terreno
judaico ou legal. Mas estes eminentes apóstolos expressaram clara e decididamente
o seu critério de que os gentios convertidos não deviam ser "perturbados" ou
incomodados com a lei. Demonstraram, nos seus poderosos discursos, que era
diretamente contrário à Palavra, à vontade e aos caminhos de Deus, colocar os
crentes gentios debaixo da lei.
Quem pode deixar de ver a sabedoria de Deus nisto? As palavras de Paulo e
Barnabé não são relatadas. Diz-se apenas que eles relataram as coisas que Deus
havia feito entre os gentios. Que se mostrariam inteiramente opostos a que se
colocassem os gentios debaixo da lei, era de esperar. Mas ver Pedro e Tiago tão
decididos, devia produzir grande efeito em todos.
Mas se o leitor quer uma visão mais clara dos pensamentos de Paulo sobre a
questão da lei, deve estudar a epístola aos Gálatas. Nela, este bem-aventurado
apóstolo, sob a direta inspiração do Espírito Santo, abre o seu coração aos gentios
convertidos em palavras de ardente sinceridade e dominante energia. É
verdadeiramente espantoso que alguém possa ler esta maravilhosa epístola e ainda
manter que os crentes estejam debaixo da lei, de qualquer modo ou com qualquer
fim determinado. Mal o apóstolo acaba a breve introdução da sua epístola, quando
entra com a sua característica energia no assunto de que o seu amoroso coração,
embora dolorido e contristado, trasborda. "Maravilho-me" diz ele — e bem
maravilhado podia estar— "de que tão depressa passásseis daquele que vos
chamou" — a quê?- A lei de Moisés«? Não, mas —"à graça de Cristo para outro
evangelho, o qual não é outro, mas há alguns que vos inquietam e querem
transtornar o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu
vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema.
Assim como já vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo: se alguém vos
anunciar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema."
Que os ensinadores da lei meditem estas severas palavras. Parecem fortes e
severas? Lembremos que são as próprias palavras de Deus e do Espírito Santo. Sim,
leitor, Deus, o Espírito Santo, lança o Seu terrível anátema a todo aquele que
intenta juntar a lei de Moisés ao evangelho de Cristo—a todo aquele que tenta
colocar os crentes debaixo da lei. Como é que os homens não temem, em vista de
tais palavras, contender pela lei? Não têm receio de ficar debaixo da solene
maldição de Deus, o Espírito Santo?
Alguns, porém, tratam de resolver a questão dizendo que não aceitam a lei como
meio de justificação, mas como uma regra de vida. Mas isto não é nem razoável
nem inteligente, visto que nos podemos justamente interrogar quem nos deu
autoridade para decidir quanto ao uso que devemos fazer da lei? Ou estamos
debaixo da lei ou não. Se estamos debaixo dela, não é uma questão de saber como a
tomamos, mas de como ela nos toma.
Isto estabelece toda a diferença. A lei não conhece essas distinções pelas quais
contendem alguns teólogos. Se estamos debaixo dela, seja por que motivo for,
estamos sob a maldição, porque está escrito: "Maldito seja todo aquele que não
permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei para as fazer." Dizer
que sou nascido de novo, que sou cristão, não resolve de modo nenhum a questão;
pois o que tem que ver a lei com a questão do novo nascimento, ou do
cristianismo?- A lei é endereçada ao homem na sua condição de ser responsável.
Exige perfeita obediência, e pronuncia a sua maldição sobre todo o que deixa de
lhe obedecer.
Além disso de nada serve dizer que, por muito que tenhamos falhado em guardar a
lei, Cristo a guardou em nosso lugar e a nosso favor. A lei nada conhece de
obediência por procuração. A sua linguagem é: "O homem que fizer estas coisas
viverá por elas."
E não é apenas sobre o homem que falha em guardar a lei que a maldição é
pronunciada; mas, como se fosse para pôr o princípio da maneira mais clara diante
de nós, lemos: "Todos aqueles, pois, que são das obras da lei, estão debaixo da
maldição" (Gl 3:10). Isto é, todos quantos tomam a sua posição sobre um terreno
legal — todos quantos estão sobre esse princípio — numa palavra, todos quantos
têm alguma coisa que ver com as obras da lei, estão, necessariamente, sob a
maldição. Por isso, podemos ver, imediatamente, a terrível contradição em que
incorre um crente que mantém a ideia de estar debaixo da lei como uma regra de
vida, e, contudo, não estar debaixo da maldição. E simplesmente opor-se às mais
simples afirmações da Sagrada Escritura. Bendito seja o Deus de toda a graça, o
cristão não está debaixo da maldição. Mas por quê?- E porque a lei perdeu o seu
poder, a sua majestade, a sua dignidade, o seu santo rigor?- De modo nenhum.
Dizer tal coisa seria blasfemar da lei. Dizer que qualquer "homem" — chamem- lhe
o que quiserem, cristão, judeu ou gentio — pode estar debaixo da lei, que pode
encontrar-se nesse terreno, e todavia não estar sob a maldição, é dizer que cumpre
perfeitamente a lei ou que a lei está abolida: é torná-la nula e sem efeito. Quem
ousará dizer isto«?- Ai de quem assim fizer!
Mas que sucedeu para que o cristão não esteja debaixo da maldição?- Porque não
está debaixo da lei. E como saiu de debaixo da lei<? Foi porque outrem a cumpriu
em seu lugar? Não; repetimos, não se encontra tal ideia em toda a economia legal,
como obediência por procuração. Então<? Aqui está como foi, em toda a sua força
moral, plenitude e beleza: "Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver
para Deus" (Gl 2:19) (1).
__________
(1) A omissão do artigo no original aumenta imensamente a força e clareza da
passagem. Oxalá isto fosse melhor compreendido! Destrói uma grande parte da
teologia humana. Deixa a lei na sua própria esfera; mas liberta o crente
completamente do seu poder e do alcance pela morte. "Assim, meus irmãos,
também vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais de outro,
daquele que ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para
Deus"—o qual nunca poderíamos dar se estivéssemos debaixo da lei—"Porque,
quando estávamos na carne", — um termo correlativo com o estado sob a lei — "as
paixões dos pecados, que são pela lei, operavam em nossos membros para darem
fruto para a morte". Note-se esta triste combinação! "Debaixo da lei", "Na carne",
'As paixões dos pecados", "Fruto para morte"! Pode haver alguma coisa mais clara?
Mas existe o outro lado, graças a Deus, desta questão; o lado brilhante e bendito de
Deus. Ei-lo. "Mas agora estamos livres da lei" Como? É porque outrem a cumpriu
por nós? Não; mas, "pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que
sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra". Quão perfeita e
formosa é a harmonia de Romanos 7 com Gálatas 2! "Porque eu pela lei estou
morto para a lei, para viver para Deus".

Ora, se é verdade, e o apóstolo diz que sim, que nós estamos mortos para a lei, que
possibilidade tem a lei de ser uma regra de vida para nós?- Demonstrou que era
unicamente uma regra de morte, maldição e condenação para aqueles que estavam
debaixo dela — aqueles que a tinham recebido por disposição dos anjos. Pode
demonstrar-nos ser alguma coisa mais para nós? Produziu a lei alguma vez frutos
vivos ou de justiça na história da algum filho ou filha de Adão"? Escutemos a
resposta do apóstolo: "Porque, quando estávamos na carne" — isto é, quando
éramos vistos como homens na nossa natureza pecaminosa —, "as paixões dos
pecados, que são pela lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a
morte" (Rm 7:5).

"E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim"


E muito importante para o leitor compreender a força real da expressão "na carne".
Não significa, nesta passagem, "no corpo". Mostra simplesmente o estado do
homem ou da mulher inconvertido obrigados a cumprir a lei. Pois bem, nesse
estado, tudo que era ou jamais pôde ser produzido era "fruto para morte" - "paixões
dos pecados". Não era vida, santidade, justiça, nada para Deus, nada absolutamente
justo (1).
__________
(1)É conveniente lembrar que embora os gentios nunca fossem nos atos de Deus
postos debaixo da lei, é um fato que todos os que são batizados tomam essa posição.
Por isso existe uma grande diferença entre a cristandade e o paganismo a respeito
da questão da lei. Milhares de inconvertidos pedem, todas as semanas, a Deus para
inclinar os seus corações para guardarem a lei. Seguramente, tais pessoas
encontram-se num terreno muito diferente daquele que os pagãos ocupam, os
quais nunca ouviram a lei e nunca tiveram conhecimento da Bíblia.

Porém, em que situação estamos agora, como cristãos? Escutemos a resposta.


"Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus. Já estou
crucificado com Cristo; e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne — aqui quer dizer no corpo —, "vivo-a" — como? Pela lei,
como regra de vida? Não há nem uma alusão a tal coisa, mas
— "na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por
mim."
Isto, e nada mais, é Cristianismo. Compreendemo-lo? Compenetramo-nos disso?
Estamos de posse do seu poder? Existem dois males dos quais somos libertados
completamente pela preciosa morte de Cristo, a saber: legalidade, por um lado, e,
por outro lado, devassidão. Em vez desses terríveis males, ela introduz-nos na
santa liberdade da graça — liberdade para servir a Deus, liberdade para "mortificar
os nossos membros que estão sobre a terra", liberdade para renunciar à "impiedade
e às concupiscências mundanas", liberdade para "viver sóbria, e justa, e piamente"
(Tito 2:12), liberdade para subjugar o corpo e o reduzir à servidão (I Cor. 9:27).
Sim, prezado leitor crente, lembremos isto. Consideremos profundamente as
palavras. "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em
mim." O velho "eu" está morto, crucificado, sepultado. O novo "eu" está vivo em
Cristo. Não confundamos isto. Não conhecemos nada mais terrível, nada mais
perigoso do que o velho "eu" pretender ocupar o novo terreno; ou, por outras
palavras, as gloriosas doutrinas do cristianismo serem adotadas na carne por
pessoas inconvertidas que falam de ser libertados da lei e convertem em dissolução
a graça de Deus. Confessamos que preferiríamos milhentas vezes mais a legalidade
do que a dissolução. É contra esta que nós temos de estar em guarda com toda a
sinceridade possível. Está aumentando em redor de nós com aterradora rapidez e
calcetando o caminho para a onda tenebrosa e desoladora da infidelidade que, em
breve, se estenderá sobre toda a extensão de cristandade.
Falar de se estar libertado da lei de qualquer outro modo que não seja por se estar
morto para ela e vivo para Deus, não é cristianismo, mas dissolução, da qual a alma
piedosa deve afastar-se com santo horror. Se estamos mortos para a lei, estamos
também mortos para o pecado; e por isso não devemos fazer a nossa vontade, que
não é mais que outro nome para designar o pecado, mas a vontade de Deus, que é
verdadeira santidade prática.
Demais, recordemos que se estamos mortos para a lei, estamos mortos também
para este presente século mau, e relacionados com um Cristo ressuscitado, que
subiu ao céu e foi glorificado. Por isso, não somos do mundo, assim como Cristo
não é do mundo. Procurar uma posição no mundo é negar que estamos mortos
para a lei; porque não podemos estar vivos para um e mortos para outra. A morte
de Cristo libertou-nos da lei, do poder do pecado, deste presente século mau, e do
temor da morte. Mas todas estas coisas estão juntas, e nós não podemos ser
libertados de uma sem sermos libertados de todas. Afirmar a nossa libertação da
lei, e seguir uma vida carnal, de condescendência com o mundo e de mundanismo,
e um dos mais sombrios e mortais males dos últimos dias.
O cristão é chamado para demonstrar e provar na sua vida diária que a graça pode
produzir resultados que a lei nunca poderia alcançar. E uma das glórias morais do
cristianismo habilitar um homem a abandonar o ego e a viver para os outros. A lei
nunca poderia fazer isto. Ocupava o homem consigo mesmo. Se procurava amar o
próximo, era apenas para operar justiça para si. Sob a graça tudo está invertido de
um modo bendito e glorioso. O ego é posto de lado como crucificado, morto e
sepultado. O velho "eu" desaparece, e o novo "eu" está perante Deus em toda a
aceitação e valor de Cristo. Ele é a nossa vida, a nossa justiça, a nossa santidade, o
nosso objetivo, nosso modelo, tudo. Está em nós e nós estamos n'Ele; e a nossa vida
diária, prática, tem de ser simplesmente Cristo reproduzido em nós, pelo poder do
Espírito Santo. Por isso, nós somos chamados não apenas para amar o nosso
semelhante, mas o nosso inimigo; e isto, não para operar a justiça porque temos
sido feitos justiça de Deus em Cristo; é simplesmente o fluxo da vida que
possuímos, que está em nós; e esta vida é Cristo. O viver do cristão deve ser Cristo.
Não é nem judeu, "debaixo da lei", nem "gentio sem lei"; mas "um homem em
Cristo", permanecendo na graça, chamado ao mesmo caráter de obediência que foi
manifestado pelo Senhor Jesus mesmo.
Não vamos prosseguir este assunto, mas rogamos sinceramente ao leitor crente que
estude atentamente o capítulo 15 de Atos e a epístola aos Gálatas. Deixe-se
absorver pelo bendito ensino destas Escrituras; e chegará certamente a uma
compreensão clara da grande questão da lei. Verá que o cristão não está de modo
algum debaixo da lei; que a sua vida, a sua justiça, a sua santidade, estão sobre uma
base ou princípio inteiramente distinto; que colocar o cristão sob a lei, de qualquer
modo que seja, é negar os próprios fundamentos do cristianismo, e contradizer as
mais claras expressões da Palavra de Deus. Aprenderá, no capítulo 3 de Gálatas,
que colocarmo-nos debaixo da lei é renunciar a Cristo; renunciar ao Espírito
Santo; deixar a fé; negar as promessas.
Que tremendas consequências! Mas ali estão claramente expostas ante os nossos
olhos; e certamente quando contemplamos o estado da igreja professante, não
podemos senão ver quão terrivelmente se estão realizando essas consequências.
Que Deus o Espírito Santo abra os olhos de todos os cristãos para a verdade destas
coisas! Que Ele os leve a estudarem as Escrituras e a submeterem-se à sua santa
autoridade, em todas as coisas. Esta é a necessidade particular dos nossos dias. Não
estudamos suficientemente a Escritura. Não somos governados por ela. Não
compreendemos a absoluta necessidade de comprovar todas as coisas à luz da
Escritura e de rejeitarmos tudo que não resista a essa prova. Concordamos com
muitas coisas que não têm base alguma na Palavra de Deus; sim, que se opõem
completamente a ela.
Qual será o fim de tudo isto?- Trememos ao pensar nisso. Sabemos, bendito seja
Deus, que nosso Senhor Jesus Cristo em breve virá e levará o Seu povo amado,
comprado com Seu precioso sangue, à casa do Pai, ao lugar que lhes foi preparar,
para estarem com Ele, na inefável bem-aventurança dessa gloriosa morada. Mas
que será dos que forem deixados?- Que será dessa imensa massa de professos
mundanos batizados? São graves interrogações, que devem ser ponderadas na
própria presença de Deus, a fim de se ter a verdadeira, divina resposta. Que o leitor
as considere ali, com toda a ternura de coração e com espírito disposto a aprender,
e o Espírito o guiará na verdadeira resposta.

Os Dez Mandamentos
Havendo procurado mostrar, por meio de várias porções da Sagrada Escritura, a
gloriosa verdade de que os crentes não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça,
podemos agora prosseguir o nosso estudo deste capítulo 5 de Deuteronômio. Nele
temos os dez mandamentos; mas não exatamente como temos no capítulo 20 de
Êxodo. Existem alguns pequenos retoques característicos que exigem a atenção do
leitor.
Em Êxodo 20 temos história; em Deuteronômio 5 temos não só história mas
comentário. Neste último, o legislador apresenta motivos morais e faz apelos que
estariam inteiramente fora de lugar no primeiro. Num temos simplesmente fatos;
no outro, fatos e comentários — os fatos e a sua aplicação prática. Numa palavra,
não há o menor fundamento para imaginar que Deuteronômio 5 esteja destinado a
ser uma repetição literal de Êxodo 20; e é por isso que os miseráveis argumentos
em que os infiéis se baseiam sobre essa aparente diferença se reduzem a pó debaixo
dos nossos pés. São simplesmente infundados e inteiramente desprezíveis.
Comparemos, por exemplo, as duas Escrituras a respeito do assunto do sábado. Em
Êxodo 20, lemos: "Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias
trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu
Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem o teu filho, nem atua filha, nem o teu
servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro que está dentro
das tuas portas. Porque em seis dias fez o SENHOR OS céus e a terra, o mar e tudo
que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto, abençoou o SENHOR O dia de
sábado e o santificou."
Em Deuteronômio 5, lemos: "Guarda o dia de sábado, para o santificar, como te
ordenou o SENHOR, teu Deus. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o
sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhuma obra nele, nem
tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi,
nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de
tuas portas; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu; porque te
lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o SENHOR, teu Deus, te tirou
dali com mão forte e braço estendido; pelo que o SENHOR, teu Deus, te ordenou
que guardasses o dia de sábado" (versículos 12 a 15).
Ora, o leitor poderá ver imediatamente a diferença entre as duas passagens. Em
Êxodo 20 o mandamento para guardar o sábado é baseado na criação. Em
Deuteronômio 5 é baseado na redenção, sem nenhuma alusão à criação. Em suma,
os pontos de diferença surgem do caráter distinto de cada livro, e são
perfeitamente claros para toda a mente espiritual.
Com respeito à instituição do sábado devemos recordar que se baseia inteiramente
sobre a autoridade direta da Palavra de Deus. Outros mandamentos mostram
claramente deveres morais. Toda a gente sabe que é moralmente mau matar ou
roubar; mas, quanto à observância do sábado ninguém podia possivelmente
reconhecê-la como um dever se não tivesse sido claramente indicada por
autoridade divina. Daí a sua imensa importância e interesse. Tanto no nosso
capítulo como em Êxodo 20 está lado a lado com todos esses grandes deveres
morais que são universalmente reconhecidos pela consciência humana.
E não somente isto; mas vemos em outras diversas passagens das Escrituras que o
sábado é designado e apresentado, com especial proeminência, como um precioso
vínculo entre Javé e Israel; um selo do Seu pacto com eles; e um poderoso
elemento de prova do seu afeto por Ele. Toda a gente podia reconhecer o mal
moral do roubo e do assassinato; só aqueles que amavam a Javé e a Sua Palavra
podiam amar e honrar o Seu sábado.

O Dia de Repouso (o Sábado)


Assim, em capítulo 16 de Êxodo, em ligação com a dádiva do maná, lemos: "E
aconteceu que, ao sexto dia, colheram pão em dobro, dois gômeres para cada um; e
todos os príncipes da congregação vieram e contaram-no a Moisés. E ele disse-lhes:
Isto é o que o SENHOR tem dito: Amanhã é repouso, o santo sábado do SENHOR;
O que quiserdes cozer no forno, cozei-o; e o que quiserdes cozer em água, cozei-o
em água; e tudo o que sobejar ponde em guarda para vós até amanhã... então disse
Moisés: Comei-o hoje, porquanto hoje é o sábado do SENHOR; hoje não o achareis
no campo. Seis dias o colhereis, mas o sétimo dia é o sábado; nele não haverá. E
aconteceu, ao sétimo dia" — tampouco podiam apreciar o alto e santo privilégio de
guardar o sábado do Senhor — "que alguns do povo saíram para colher, mas não o
acharam. Então, disse o SENHOR a Moisés: Até quando recusareis guardar os meus
mandamentos e as minhas leis?" (versículos 22 a 28). A sua negligência do sábado
mostrava que a sua condição moral era completamente má — mostrava que
andavam desviados de todos os mandamentos e leis de Deus. O sábado era a grande
pedra de toque, a medida e sonda do verdadeiro estado de seus corações para com o
Senhor. "Vede, visto que o SENHOR vos deu o sábado, por isso ele, no sexto dia,
vos dá pão para dois dias; cada um fique no seu lugar, que ninguém saia do seu
lugar no sétimo dia. Assim, repousou o povo no sétimo dia." Encontraram descanso
e alimento no santo sábado.
E no final do capítulo 31 temos uma passagem notável em prova da importância e
interesse ligados com o sábado na mente do Senhor. Uma completa descrição do
tabernáculo e seus pertences havia sido dada a Moisés, e ele estava prestes a
receber as duas tábuas do testemunho das mãos do Senhor; mas, como se quisesse
dar a entender o lugar proeminente que o sábado ocupava na mente divina, lemos:
"Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Tu, pois, fala aos filhos de Israel,
dizendo: Certamente guardareis meus sábados, porquanto isso é um sinal entre
mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que eu sou o SENHOR, que vos
santifica. Portanto, guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o
profanar certamente morrerá; porque qualquer que nele fizer alguma obra, aquela
alma será extirpada do meio do seu povo. Seis dias se fará obra, porém, o sétimo dia
é o sábado do descanso, santo ao SENHOR; qualquer que no dia de sábado fizer
obra, certamente morrerá. Guardarão, pois, o sábado os filhos de Israel, celebrando
o sábado nas suas gerações por concerto perpétuo. Entre mim e os filhos de Israel
será um sinal para sempre; porque em seis dias fez o SENHOR OS céus e a terra, e,
ao sétimo dia, descansou e restaurou-se" (Ex 31:12 a 17).
Ora, esta passagem é muito importante. Mostra claramente o caráter permanente
do sábado. Os termos em que se fala dele são suficientes para mostrar que não era
meramente uma instituição temporária. "Um sinal entre mim e vós, nas vossas
gerações" — "um concerto perpétuo" — "um sinal para sempre".
Que o leitor note bem estas palavras. Elas provam, sem sombra de dúvida,
primeiro, que o sábado era para Israel;
segundo, que o sábado é, na mente de Deus, uma instituição permanente. É
necessário ter estas coisas em vista, a fim de evitar toda a incerteza de pensamentos
e liberdade de expressão sobre este interessante assunto.
O sábado era clara e exclusivamente para a nação judaica. Fala-se dele
enfaticamente como um sinal entre o Senhor e o Seu povo Israel. Não existe a mais
remota sugestão de que fosse designado para os gentios. Veremos mais adiante que
é um formoso tipo dos tempos da restauração de todas as coisas de que Deus falou
pela boca de todos os santos profetas desde a fundação do mundo; mas isto não
afeta, de modo nenhum, o fato de ser exclusivamente uma instituição judaica. Não
existe tanto como UMA simples expressão nas Escrituras para mostrar que o
sábado tinha qualquer referência aos gentios.
Alguns dizem-nos que visto se falar do sábado no segundo capítulo de Gênesis
deve ter forçosamente um alcance mais amplo do que a nação judaica. Mas
vejamos o que diz a passagem. "E, havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra,
que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E
abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a sua
obra, que Deus criara e fizera."
Isto é muito simples. Não se faz aqui nenhuma alusão ao homem. Não é dito que o
homem descansou no sétimo dia. Os homens podem inferir, concluir ou imaginar
que foi assim; mas o segundo capítulo de Gênesis nada diz a respeito disso. E não
somente isto, senão que é inútil procurar qualquer alusão ao sábado em todo o
livro do Gênesis.
A primeira comunicação que temos sobre o sábado em relação com o homem
encontra-se no capítulo 16 do Êxodo, uma passagem que já foi citada; e ali vemos
claramente que o sábado foi dado a Israel, como povo em relação com o pacto com
o Senhor. Que eles não o compreenderam nem apreciaram é perfeitamente claro;
que nunca penetraram nele, é igualmente claro, segundo o Salmo 95. Mas por
agora falamos do que era o sábado segundo a mente de Deus; e Deus diz-nos que
era um sinal entre Ele e o Seu povo Israel; e uma poderosa prova do seu estado
moral e do estado de seus corações a respeito d'Ele. Não era apenas uma parte
integral da lei dada por Moisés à congregação de Israel, mas é especialmente
mencionado e assinalado, repetidas vezes, como uma instituição que ocupa um
lugar especial na mente de Deus.
Assim no livro do profeta Isaías, lemos: "Bem-aventurado o homem que fizer isto,
e o filho do homem que lançar mão disso, que se guarda de profanar o sábado, e
guarda a sua mão de perpetrar algum mal. E não fale o filho do estrangeiro que se
houver chegado ao SENHOR, dizendo: De todo me apartará o SENHOR do seu
povo; nem tampouco diga o eunuco: Eis que sou uma árvore seca. Porque assim diz
o SENHOR a respeito dos eunucos que guardam os meus sábados, e escolhem
aquilo que me agrada, e abraçam o meu concerto: Também lhes darei na minha
casa e dentro dos meus muros um lugar e um nome, melhor do que o de filhos e
filhas; um nome eterno darei a cada um deles que nunca se apagará. E aos filhos
dos estrangeiros" — aqui, evidentemente, vistos em relação com Israel, assim
como em Números 15 e outras passagens das Escrituras — "que se chegarem ao
SENHOR, para o servirem, e para amarem o nome do SENHOR, sendo deste modo
servos seus, todos os que guardarem o sábado, não o profanando, e os que
abraçarem o meu concerto, também os levarei ao meu santo monte e os festejarei
na minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no
meu altar, porque a minha Casa será chamada casa de Oração para todos os povos"
(Is 56:2 a 7).
"Se desviares o teu pé do sábado, de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se
chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR digno de honra, e se o
honrares, não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria
vontade, nem falar as tuas próprias palavras, então te deleitarás no SENHOR, e te
farei cavalgar sobre as alturas da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu
pai; porque a boca do SENHOR o disse" (Is 58:13-14).
As passagens precedentes são amplamente suficientes para mostrar o lugar que o
sábado ocupa na mente de Deus. É desnecessário multiplicar passagens; mas há
apenas mais uma que queremos referir para o leitor, em relação com o nosso
assunto, isto é, Levítico 23.
"Depois, falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes:
As solenidades do SENHOR, que convocareis, serão santas convocações; estas são
as minhas solenidades. Seis dias obra se fará, mas o sétimo dia será o sábado do
descanso, santa convocação; nenhuma obra fareis; sábado do SENHOR é em todas
as vossas habitações" (versículos 1 a 3).
Aqui aparece à cabeça de todas as festas dadas neste maravilhoso capítulo em que
temos simbolizada toda a história dos atos de Deus com o Seu povo Israel. O sábado
é a expressão do descanso eterno de Deus no qual é ainda Seu propósito introduzir
o Seu povo, quando todos os seus trabalhos e dores, experiências e tribulações
tiverem passado — esse bendito sábado ou o "repouso que resta para o povo de
Deus". De diversas maneiras Ele procurou manter este glorioso repouso perante os
corações do Seu povo; o sétimo dia, o sétimo ano, o ano do jubileu — todas estas
encantadoras estações estavam destinadas a revelar esse bendito tempo em que
Israel será restaurado à sua amada terra, quando o sábado será guardado em toda a
sua profunda, divina bem-aventurança, como nunca ainda o foi.
E isto leva-nos naturalmente ao segundo ponto em relação com o sábado, a saber, a
sua permanência. Isto é claramente comprovado por expressões como "perpétuo",
"um sinal para sempre" "em todas as vossas gerações". Tais palavras jamais
poderiam ser aplicadas meramente a qualquer instituição temporária. E verdade
que Israel nunca, infelizmente, guardou o sábado segundo o pensamento de Deus;
nunca entendeu o seu significado, nunca penetrou na sua bem-aventurança, nunca
penetrou no seu espírito. Fez dele uma divisa da sua própria justiça; vangloriava-se
dele como instituição nacional, e empregavam-no para sua própria exaltação; mas
nunca o celebraram em comunhão com Deus.
Falamos da nação como um todo. Não duvidamos que havia almas preciosas que,
em segredo, gozavam o sábado, e penetravam nos pensamentos de Deus a respeito
dele. Mas, como nação, Israel nunca guardou o sábado segundo os propósitos de
Deus. Ouçamos o que Isaías diz: "Não tragais mais ofertas debalde; o incenso é para
mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das congregações;
não posso suportar iniquidade nem mesmo o ajuntamento solene" (capítulo 1:13).
Aqui vemos que a preciosa e encantadora instituição do sábado que Deus havia
dado como um sinal do Seu concerto com o Seu povo, tinha-se tornado, nas mãos
deles, uma verdadeira abominação, inteiramente intolerável para Ele. E quando
abrimos as páginas do Novo Testamento vemos os líderes e chefes do povo judaico
continuamente em oposição com o Senhor Jesus Cristo a respeito do sábado.
Veja-se por exemplo os primeiros versículos de Lucas 6. "E aconteceu que, num
sábado passou pelas searas, e os seus discípulos iam arrancando espigas, e,
esfregando-as com as mãos, as comiam. E alguns dos fariseus lhes disseram: Por
que fazeis o que não é lícito fazer nos sábados? E Jesus, respondendo-lhes, disse:
Nunca lestes o que fez Davi quando teve fome, ele e os que com ele estavam?-
Como entrou na Casa de Deus, e tomou os pães da proposição, e os comeu, e deu
também aos que estavam com ele, os quais não é lícito comer, lhes senão aos
sacerdotes? E dizia-lhes: O Filho do Homem é senhor até do sábado."
De novo lemos: "E aconteceu também, em outro sábado, que entrou na sinagoga e
estava ensinando; e havia ali um homem que tinha a mão direita mirrada. E os
escribas e fariseus atentavam nele, se o curaria no sábado, para acharem de que o
acusar"
— imagine-se uma acusação por curar um pobre, aflito mortal!
— "Mas ele, conhecendo bem os seus pensamentos, disse ao homem que
tinha a mão mirrada: Levanta-te e fica em pé no meio. E, levantando-se ele, ficou
em pé. Então, Jesus lhes disse: Uma coisa vos hei de perguntar: É lícito nos sábados
fazer bem ou fazer mal? Salvar a vida ou matará E, olhando para todos ao redor,
disse ao homem: Estende a tua mão. E ele assim o fez, e a mão lhe foi restituída sã
como a outra. E ficaram cheios de furor, e uns com os outros conferenciavam sobre
o que fariam a Jesus."
Que conhecimento profundo temos aqui da falsidade e inutilidade da guarda do
sábado do homem! Esses guias religiosos preferiam deixar perecer de fome os
discípulos a que fosse profanado o seu sábado. Preferiam que o homem levasse a
sua mão mirrada para a sepultura a vê-lo curado no seu sábado! Ah, era na verdade
o seu sábado, e não o de Deus! Deus não podia descansar em presença de famintos e
enfermos. Eles nunca haviam lido corretamente a descrição do ato de Davi, em
comer o pão da proposição. Não compreendiam que as instituições legais têm que
ceder em presença da graça divina satisfazendo a necessidade humana. A graça
eleva-se, em sua magnificência, acima das barreiras legais, e a fé regozija-se no seu
esplendor; mas a mera religiosidade se ofende ante as atividades de graça e ousadia
de fé. Os fariseus não viam que esse homem com uma mão mirrada era um notável
comentário do estado moral da nação, uma prova viva do fato de que eles estavam
longe de Deus. Se fossem como deviam ser, não teria havido mãos mirradas para
curar; mas não eram; e por isso o seu sábado era uma vazia formalidade, uma
condenação ineficaz e desprezível, uma horrenda anormalidade, detestável para
Deus e de todo inconsistente com o estado do homem.
Tomemos outro exemplo em Lucas 13:10-13. "E ensinava no sábado, numa das
sinagogas"—certamente, o sábado não era dia de repouso para Ele. — "E eis que
estava ali uma mulher que tinha um espírito de enfermidade havia já dezoito anos;
e andava curvada e não podia de modo algum endireitar-se. E, vendo-a Jesus,
chamou-a a si, e disse-lhe: Mulher, estás livre da tua enfermidade. E impôs as mãos
sobre ela, e logo se endireitou, e glorificava a Deus." Encantadora ilustração da
obra da graça na alma, e do resultado prático, em todos os casos. Todos aqueles a
quem Cristo impõe as Suas benditas mãos logo se endireitam e ficam aptos a
glorificar a Deus.
Mas o sábado do homem foi afetado. "E, tomando a palavra o príncipe da sinagoga,
indignado porque Jesus curava no sábado" — ficou indignado por causa da obra
misericordiosa de cura, embora fosse indiferente quanto ao caso humilhante de
enfermidade — "disse à multidão: Seis dias há em que é mister trabalhar; nestes,
pois, vinde para serdes curados e não no dia de sábado." — Quão pouco conhecia
esse pobre religioso que estava na própria presença do Senhor do verdadeiro
sábado! Quão insensível ele era à moral inconsistente de tentar guardar o sábado
enquanto o estado do homem clamava bem alto pela obra divina! —
"Respondeu-lhe, porém, o Senhor e disse: Hipócrita, no sábado não desprende da
manjedoura cada um de vós o seu boi ou jumento e não o leva a beber água? E não
convinha soltar desta prisão, no dia de sábado, esta filha de Abraão, a qual há
dezoito anos Satanás mantinha presa?
Que fulminante repreensão! Que modo de descobrir a falsidade e completa vileza
de todo o sistema do judaísmo! Pense-se na incoerência ofuscante de um sábado e
uma filha de Abraão presa de Satanás durante dezoito anos! Nada há em todo o
mundo que tanto cegue o entendimento, que endureça tanto o coração, que tanto
obscureça a consciência e desmoralize todo o ser, como uma religião sem Cristo. O
seu enganoso e degradante poder só pode ser inteiramente julgado à luz da
presença divina. A atender o cuidado do príncipe da sinagoga, essa pobre mulher
podia continuar até aos seus últimos dias curvada e incapaz de se endireitar. Esse
homem teria ficado muito contente de a deixar continuar como um triste
testemunho do poder de Satanás, desde que ele pudesse guardar o sábado. A sua
indignação religiosa foi excitada não pelo poder de Satanás manifestado na
condição da mulher, mas pelo poder de Cristo visto na sua completa libertação.
Mas o Senhor deu-lhe aquela resposta. "E, dizendo ele isso, todos os seus
adversários ficaram envergonhados" — e com razão — "e todo o povo se alegrava
por todas as coisas gloriosas que eram feitas por ele." Que notável contraste! Por
um lado, os defensores de uma religião desprezível, ineficaz, desapiedada,
desmascarada e coberta de vergonha e confusão, e, por outro lado, todo o povo
regozijando-se com os gloriosos atos do Filho de Deus que havia vindo ao seu meio
para os libertar do poder esmagador de Satanás, e encher os seus corações com o
gozo da salvação de Deus e as suas bocas dos Seus louvores!
Devemos chamar a atenção do leitor para o evangelho de João onde encontrará
mais ilustrações do nosso assunto. Desejamos sinceramente que esta perturbadora
questão do sábado seja completamente examinada à luz da Escritura. Estamos
convencidos de que existe muito mais envolvido nela do que muitos crentes
professos julgam.
No princípio de João 5 somos introduzidos numa cena notavelmente indicativa do
estado de Israel. Não é nosso intento entrar a fundo nesta passagem; referimo-nos a
ela apenas em relação com o nosso assunto.
O tanque de Betesda ou "casa de misericórdia" — ao passo que era sem dúvida a
expressão da misericórdia de Deus para com o Seu povo — proporcionava
abundante evidência do estado miserável do homem, em geral, e de Israel, em
particular. Nos seus cinco alpendres estava aglomerada "uma grande multidão de
enfermos: cegos, coxos, e paralíticos, esperando o movimento das águas." Que
quadro de toda a família humana, e da nação de Israel! Que ilustração do seu estado
moral e espiritual, do ponto de vista divino! "Cegos, coxos, paralíticos"; tal é o
verdadeiro estado do homem. Se ao menos ele o soubesse!
Mas estava ali um homem, no meio desta impotente multidão, cuja enfermidade
estava tão adiantada, tão fraco e desamparado que o tanque de Betesda não podia
servir para o Seu caso. "Estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se
achava enfermo. E Jesus, vendo este deitado e sabendo que estava neste estado
havia muito tempo, disse-lhe: Queres ficar são? — Que graça e poder vemos nesta
pergunta! Ia muito mais além do que os seus pensamentos lhe consentiam. Só
pensava na ajuda humana ou na sua própria habilidade para entrar no tanque. Não
sabia que Aquele que falava consigo estava acima e além do tanque com o seu
ocasional movimento das águas; além de ministério angélico, além de todo o
auxílio ou esforço humano, o Possuidor de todo o poder no céu e na terra. "O
enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum que, quando a água é
agitada, me coloque no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim."
Que quadro verdadeiro de todos os que buscam a salvação por meio de ordenanças!
Cada qual fazendo por si o melhor que pode; sem ter cuidado dos outros; sem
pensar ajudá-los. "Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma tua cama e anda. Logo, aquele
homem ficou são, e tomou a sua cama e partiu. E aquele dia era sábado."
Aqui temos outra vez o sábado do homem. Não certamente o sábado de Deus. A
infeliz multidão reunida ao redor do tanque demonstrava que o pleno repouso de
Deus não havia ainda chegado — que o seu glorioso antítipo do sábado ainda não
havia começado a ser compreendido neste mundo ferido de pecado. Quando esse
dia refulgente chegar não haverá cegos, mancos e ressicados em redor dos
alpendres de Betesda. O sábado de Deus e a miséria humana são inteiramente
incompatíveis.
Mas era o sábado do homem. Já não era o selo do concerto do Senhor com a
semente de Abraão — como o fora uma vez e o será outra vez—, mas a divisa da
justiça do homem. "Então, os judeus disseram àquele que tinha sido curado: É
sábado, não te é lícito levar a cama." Não era, sem dúvida, lícito para ele jazer
naquela cama, semana após semana, mês após mês, ano após ano, enquanto que
eles seguiam o seu intento vago, inútil de guardar o sábado. Se tivessem tido um só
raio de luz espiritual, teriam visto a flagrante inconsistência de tentarem manter as
suas ideias tradicionais a respeito do sábado na presença da miséria humana,
enfermidade e degradação. Mas eles estavam completamente cegos; e, por isso,
enquanto os gloriosos frutos do ministério de Cristo eram expostos, eles tinham a
temeridade de os pronunciar ilícitos.
Mas há mais que isto: "E, por essa causa, os judeus perseguiram Jesus e procuravam
matá-lo, porque fazia estas coisas no sábado." Que espetáculo! Os religiosos, sim, os
chefes e mestres da religião — os guias do povo professo de Deus, procuravam
matar o Senhor do sábado porque Ele tinha tornado um homem completamente
são no dia de sábado!
Mas note-se a resposta do Senhor: "Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho
também." Esta breve mas compreensiva declaração leva-nos ao fundo do assunto.
Mostra-nos a verdadeira condição da humanidade em geral e de Israel em
particular; e, da maneira mais tocante, apresenta-nos o grande segredo da vida e do
ministério de nosso Senhor. Bendito seja o Seu nome, Ele não havia vindo ao
mundo para repousar. Como podia Ele repousar — como poderia guardar o sábado
no meio da miséria e necessidade humanas? A multidão de cegos, mancos e
ressicados que se aglomerava nos alpendres do tanque de Betesda não devia ter
ensinado nada "aos judeus" da loucura das suas ideias sobre o sábado? Pois o que
era aquela multidão senão um exemplo do estado da nação de Israel e de toda a
família humana? E como podia o amor divino repousar no meio de um tal estado
de coisas? Era de todo impossível. O amor só pode operar numa cena de pecado e
dor. Desde o momento da queda do homem, o Pai havia estado trabalhando. Então
apareceu o Filho para continuar a obra. E, agora, o Espírito Santo está trabalhando.
Trabalho, não descanso, é a ordem divina, num mundo como este. "Resta ainda um
repouso para o povo de Deus."
O bendito Senhor Jesus andou fazendo bem, no sábado assim como em qualquer
outro dia; e, finalmente, havendo cumprido a gloriosa obra da redenção, passou o
sábado no sepulcro, e ressuscitou no primeiro dia da semana, como o Primogênito
de entre os mortos, e Cabeça da nova criação, na qual todas as coisas são de Deus, e
para as quais, podemos certamente acrescentar, a questão de "dias e meses, tempos
e anos" não tem, de modo nenhum, aplicação. Ninguém que compreenda
perfeitamente o significado da ressurreição pode aprovar, nem por um momento, a
guarda de dias. A morte de Cristo pôs um fim a toda a ordem de coisas; e a Sua
ressurreição introduz-nos numa outra esfera completamente distinta em que é
nosso elevado privilégio andar na luz e poder dessas eternas realidades que são
nossas em Cristo, e que estão em vivo contraste com a superstição de observâncias
de uma carnal e mundana religiosidade.
O Primeiro Dia da Semana
Porém, aqui aproximamo-nos de um ponto muito interessante do nosso assunto, a
saber, a diferença entre o sábado e o dia do Senhor, ou o primeiro dia da semana.
Estes dois dias são muitas vezes confundidos. Ouvimos frequentemente, de pessoas
verdadeiramente piedosas a expressão de "sábado cristão", uma expressão que não
se encontra em parte alguma do Novo Testamento. Pode ser que alguns dos que a
empregam tenham uma ideia correta; mas nós não devemos apenas ter a noção
exata, mas procurar também expressar-nos, segundo o ensino da Sagrada Escritura.
Estamos persuadidos de que o inimigo de Deus e de Cristo tem muito mais que ver
com o convencionalismo da cristandade do que muitos de nós pensamos; e é isto
que torna o assunto tão grave. O leitor pode talvez sentir-se disposto a considerar
como uma perda de tempo procurar encontrar qualquer falta no termo "sábado
cristão". Mas pode estar certo de que não se trata de nada disso; pelo contrário, se
examinar com toda a atenção o assunto à luz do Novo Testamento descobrirá que
ele envolve pormenores não apenas interessantes mas também muito importantes.
E uma locução vulgar, que "nada há no nome"; mas, no caso que temos perante
nós, o nome quer dizer muito.
Já fizemos notar o fato de que nosso Senhor passou o sábado no sepulcro. Não é um
fato eloquente e profundamente significativo? Não podemos duvidar disso. Vemos
nele, pelo menos, a maneira como o antigo estado de coisas foi posto de lado, e a
absoluta impossibilidade de guardar o sábado em um mundo de pecado. O amor
não podia repousar num mundo como este; apenas podia laborar e morrer. Esta é a
inscrição que lemos no túmulo onde o Senhor do sábado foi sepultado.
Mas o que é o primeiro dia da semanal Não é o sábado sobre um novo fundamento
— o sábado cristão? Nunca é assim chamado no Novo Testamento. Não existe a
mais leve alusão dessa espécie. Se examinarmos os Atos dos Apóstolos, veremos
que se fala dos dois dias de um modo distinto. No sábado encontramos os judeus
reunidos na sua sinagoga para leitura da lei e dos profetas. No primeiro dia da
semana encontramos os cristãos reunidos para o partir do pão. Os dois dias eram
tão distintos quanto o judaísmo e a cristandade; nem tampouco existe tanto como
uma sombra de base na Sagrada Escritura para a ideia de que o sábado foi absorvido
pelo primeiro dia da semana. Onde se encontra a mais simples prova da Escritura
para a afirmação de que o sábado foi mudado do sétimo dia para o oitavo, ou o
primeiro dia da semana? Claro, se existe alguma, nada mais simples do que
apresentá-la. Mas não existe absolutamente nenhuma.
E recorde-se que o sábado não é meramente um sétimo dia, mas o sétimo dia. E
bom notar-se isto, visto que alguns acalentam a ideia de que, contanto que seja
dedicada a sétima parte do tempo ao repouso e às ordenanças públicas de religião, é
suficiente, não importa o nome que se lhe dê; e é desta forma que diferentes nações
e diferentes sistemas religiosos têm o seu dia de descanso que se chama sábado.
Mas nunca poderá satisfazer os que desejam ser ensinados exclusivamente pela
Escritura. O sábado do Éden era o sétimo dia. O sábado de Israel era o sétimo dia.
Mas o oitavo dia dirige os nossos pensamentos para a eternidade: e no Novo
Testamento é chamado "o primeiro dia da semana", indicando o princípio de uma
nova ordem de coisas da qual a cruz é o imperecível fundamento e Cristo
ressuscitado o glorioso Cabeça e Centro. Chamar a esse dia "o sábado cristão" é
simplesmente confundir as coisas terrestres com as celestiais. E baixar o cristão da
sua elevada posição como associado com o Cabeça ressuscitado e glorificado no
céu, e ocupá-lo com a supersticiosa observância de dias — a própria coisa que
havia deixado o bendito apóstolo em dúvida a respeito das assembleias da Galácia.
Em suma, quanto mais profundamente ponderamos a expressão "o sábado cristão",
mais convencidos estamos de que a sua tendência é, como muitas outras fórmulas
da cristandade, defraudar o cristão de todas essas grandes verdades distintas do
Novo Testamento que distinguem a Igreja de Deus de tudo quanto foi antes dela e
tudo que deve seguir depois. A igreja, embora na terra, não é deste mundo, assim
como Cristo não é deste mundo. É celestial na sua origem, celestial no seu caráter,
celestial em seus princípios, conduta e esperança. Encontra-se entre a cruz e a
glória. Os limites da sua existência na terra são o dia de Pentecostes, quando o
Espírito Santo desceu para a formar, e a vinda de Cristo para a levar para Si Mesmo.
Nada pode ser mais claro do que isto; e, por isso, tentar impor à Igreja de Deus a
observância legal ou supersticiosa de "dias e meses, e tempos e anos", é falsificar
toda a posição cristã, manchar a integridade da divina revelação e roubar ao crente
o lugar e a porção que lhe pertencem, pela infinita graça de Deus e o sacrifício
expiatório consumado por Cristo.
Julga o leitor esta declaração demasiado severa? Se assim é, pondere a seguinte
passagem esplêndida da epístola de Paulo aos Colossenses — uma passagem que
deveria ser escrita em letras de ouro.
"Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai nele,
arraigados e edificados nele e confirmados na fé, assim como fostes ensinados,
crescendo em ações de graças. Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua,
por meio de filosofias e vãs subtilezas" — note-se a combinação, não muito
elogiosa para a filosofia! — "segundo a tradição dos homens, segundo os
rudimentos do mundo e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente
toda a plenitude da divindade. E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o
principado e potestade"; — Que podemos nós desejará — "no qual também estais
circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo da carne: a
circuncisão de Cristo. Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes
pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. E, quando vós estáveis
mortos nos pecados e na circuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com
ele, perdoando-vos todas as ofensas, havendo riscado a cédula que era contra nós,
nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio
de nós, cravando-a na cruz. E, despojando os principados e potestades, os expôs
publicamente e deles triunfou em si mesmo" (Cl 2:6 a 15).
Magnífica vitória! Uma vitória ganha sem ajuda de ninguém — ganha para nós!
Eterna e universal homenagem seja dada ao Seu nome incomparável! Que restai
"Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de
festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o
corpo é de Cristo."
Que tem que ver aquele que está perfeito e aceito em um Cristo ressuscitado e
glorificado com o comer, beber e dias santos? Que podem fazer para ele a filosofia,
a tradição ou a religiosidade humana? O que podem acrescentar as sombras que
passam a quem tem alcançado pela fé a eterna subsistência? Nada, certamente; e
por isso o bem-aventurado apóstolo prossegue: "Ninguém vos domine a seu
bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que
não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão, e não ligado à
cabeça, da qual todo o corpo; provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai
crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos
rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se
vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies? As quais
coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as
quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária,
humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum, senão para
satisfação da carne" (Cl 2:6 a 23). Quer dizer, não dão aquela medida de honra ao
corpo que lhe é devida como vaso de Deus, mas incham a carne com orgulho
religioso, alimentando-a com uma oca e inútil aparência de santimônia.

Cristo — o Fim das Ordenanças da Lei


Não nos atrevemos a fazer uma apologia por esta longa citação. Uma apologia por
citar a Escritura! Longe de nós tal pensamento! Não é possível que alguém
compreenda esta maravilhosa passagem e não esteja completamente esclarecido
não apenas quanto à questão do sábado, mas também de todo o sistema de coisas
com que esta questão está relacionada. O cristão que compreende a sua posição
acaba para sempre com todas as questões sobre comidas e bebidas, dias e meses e
tempos e anos. Nada sabe de tempos santos nem de lugares santos. Está morto com
Cristo para os rudimentos do mundo, e, como tal, está livre de todas as ordenanças
de uma religião tradicional. Pertence ao céu, onde não têm lugar as luas novas, dias
santos e sábados. Está na nova criação, onde todas as coisas são de Deus; e por isso
não pode haver força moral em palavras tais como: "não toques", não proves", "não
manuseies". Não lhe podem ser, de modo algum, aplicadas. Vive numa região onde
as nuvens, os vapores e neblinas do monasticismo e asceticismo nunca são vistos.
Desprezou todas as folhas inúteis de mera devoção carnal e tomou, em troca, as
sólidas realidades da vida cristã. Os seus ouvidos foram abertos para ouvir e o seu
coração para compreender a poderosa exortação do apóstolo inspirado: "Portanto,
se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está
assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da
terra; porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, também vós vos
manifestareis com ele em glória. Mortificai, pois, os vossos membros que estão
sobre a terra."
Aqui são desenroladas perante os nossos olhos algumas das glórias do verdadeiro,
prático cristianismo vital, em contraste notável com todas as formas estéreis e secas
de carnal e mundana religiosidade. A vida cristã não consiste em observância de
certas regras, mandamentos ou tradições dos homens. É uma divina realidade. É
Cristo no coração, e Cristo reproduzido na vida diária pelo poder do Espírito Santo.
E o novo homem, formado sobre o modelo de Cristo mesmo, e manifestando-se em
todos os mais minuciosos pormenores da nossa vida diária, na família, nos
negócios, em todas as nossas relações com os nossos semelhantes; no nosso
temperamento, espírito, estilo, comportamento, em tudo. Não é um assunto de
mera profissão ou de dogma, ou de opinião de sentimentos; é uma realidade viva e
inconfundível. É o reino de Deus estabelecido no coração, exercendo o seu bendito
domínio sobre todo o ser moral, e derramando a sua genial influência, sobre toda a
esfera em que somos chamados a nos movermos dia a dia. É a trajetória cristã nos
benditos passos d'Aquele que andou fazendo bem; fazendo todo o possível por
satisfazer todas as formas de necessidade humana; vivendo não para si mesmo mas
para os outros; achando gozo em servir e dar; pronto a contentar e simpatizar com
qualquer espírito deprimido ou triste e desolado coração.
Isto é cristianismo. E, quão diferente isto é de todas as formas com que se reveste o
legalismo e a superstição! Quão diferente da observância rotineira e sem
significado de dias, meses, e tempos e anos, a abstenção de carnes, proibição de
casamento, e coisas que tais! Quão diferente das fanfarronadas do místico, da
melancolia do ascético e da austeridade do monge! Quão totalmente distinto de
tudo isto! Sim, prezado leitor; e nós podemos acrescentar, quão diferente da união
disforme da elevada profissão e da baixa prática; entre as verdades elevadas retidas
no intelecto, professadas, ensinadas e discutidas, o mundanismo e a própria
indulgência e um espírito indomável! O cristianismo do Novo Testamento difere
igualmente de todas estas coisas. É a manifestação divina, celestial e espiritual no
meio do humano, terrestre e natural. Oxalá seja o santo propósito do autor e do
leitor destas páginas não se darem por satisfeitos com nada menos do que o
cristianismo moralmente glorioso revelado nas páginas do Novo Testamento!
Cremos que é desnecessário acrescentar alguma coisa mais à questão do sábado. Se
o leitor tiver, de algum modo, compreendido a importância das Escrituras que têm
passado ante os nossos olhos terá pouca dificuldade em ver o lugar que o sábado
ocupa nos caminhos dispensacionais de Deus. Verá que se refere diretamente a
Israel na terra, que é um sinal do concerto entre o Senhor e o Seu povo terrestre e
uma poderosa prova do seu estado moral.
Além disso, verá que Israel nunca guardou realmente o sábado, que nunca
compreendeu a sua importância, nem nunca apreciou o seu valor. Isto foi
manifestado na vida, ministério e morte de nosso Senhor Jesus Cristo, que realizou
muitas das Suas obras miraculosas no sábado, e, por fim, passou o sábado no
sepulcro.
Finalmente, compreenderá claramente a diferença entre o sábado judaico e o
primeiro dia da semana, ou o dia do Senhor; que este nunca é chamado o sábado no
Novo Testamento; mas, pelo contrário, que é constantemente apresentado na sua
própria distinção; não é o sábado mudado ou transferido, mas um dia inteiramente
novo, que tem a sua própria base especial e o seu próprio curso de pensamento
deixando o sábado inteiramente intacto como instituição suspensa, para ser
retomada, mais tarde, quando a semente de Abraão for restaurada à sua própria
terra (veja-se Ezequiel 46:1, 12).

O Primeiro Dia da Semana (Domingo) — o Dia do Senhor


Mas não podemos, felizmente, deixar este interessante assunto sem dizer algumas
palavras sobre o lugar assinalado no Novo Testamento ao dia do Senhor, ou o
primeiro dia da semana. Embora não seja o sábado, e apesar de não ter nada a ver
com dias santos ou luas novas, ou "dias e meses, e tempos e anos", tem o seu próprio
e único lugar no cristianismo, como é evidente pelas múltiplas passagens nas
Escrituras do Novo Testamento.
Nosso Senhor ressuscitou dos mortos nesse dia. Apareceu aos Seus discípulos,
repetidas vezes, nesse dia. O apóstolo e os irmãos em Trôade reuniram-se para
partir o pão nesse dia (At 20:7). O apóstolo dá instruções aos coríntios e todos os
que em todo o lugar invocam o nome do Senhor Jesus Cristo, a porem de parte as
suas ofertas nesse dia; ensinando-nos assim claramente que o primeiro dia da
semana era o dia especial para o povo do Senhor se reunir para a Ceia do Senhor, e
para o culto, comunhão e ministério relacionado com essa preciosíssima
instituição. O bem-aventurado apóstolo João diz-nos expressamente que estava em
Espírito, nesse dia, e recebeu essa maravilhosa revelação que encerra o Volume
divino (1).
__________
(1) Alguns são de opinião que a expressão, "no dia do Senhor" deveria ser vertida
em "do dia do Senhor", como querendo dizer que o apóstolo estava no espírito do
dia em que o Senhor Jesus Cristo há de tomar o Seu grande poder para reinar.
Porém, há duas objeções a esta opinião. Em primeiro lugar, as palavras em
Apocalipse 1:10 "O dia do Senhor", são completamente distintas das palavras em 1
Tessalonicenses 5:2; 2 Tessalonicenses 2:2; e 2 Pedro 3:10, propriamente
traduzidas "O dia do Senhor".
Consideramos isto como uma objeção poderosa, suficiente para arrumar o assunto.
Mas podemos acrescentar a isto também o argumento baseado no fato que a maior
parte do livro de Apocalipse está ocupada não com "o dia do Senhor", mas com
acontecimentos que o antecedem.
Por isso estamos persuadidos que "o dia do Senhor" e "o primeiro dia da semana"
são idênticos; e considerarmos isto um fato muito importante provando que esse
dia tem um lugar muito especial na Palavra de Deus — um lugar que todo o cristão
inteligente reconhecerá com gratidão.

Desta forma temos perante nós um conjunto de evidências amplamente suficiente


para demonstrar a todo o espírito piedoso que o dia do Senhor não deve ser
reduzido ao nível dos dias ordinários. Para o verdadeiro cristão não é nem o sábado
judaico nem o domingo gentílico, mas o dia do Senhor, em que o Seu povo com
alegria e agradecimento se reúne em redor da Sua Mesa para celebrar essa preciosa
festa mediante a qual anuncia a Sua morte até que venha.
Mas é desnecessário dizer que não há uma simples sombra de escravidão legal ou
de superstição em relação com o primeiro dia da semana. Dizer ou pensar isso é
negar toda a série de verdades com a qual esse dia está relacionado. Não temos
nenhum mandamento direto a respeito da observância do dia; mas as passagens já
referidas são amplamente suficientes, amplamente bastantes para toda a mente
espiritual; e, além disso, podemos dizer que os instintos da natureza divina guiam o
verdadeiro crente a honrar e amar o dia do Senhor, e a pô-lo de parte, do modo
mais reverente, para o culto e serviço de Deus. A própria ideia de alguém que
professa amar a Cristo se ocupar de negócios ou de trabalho desnecessário no dia
do Senhor é, no nosso parecer, revoltante para todo o sentimento piedoso. Cremos
ser um sagrado privilégio retirarmo-nos, o mais possível, de todas as distrações das
coisas naturais e consagrarmos as horas do dia do Senhor a Ele mesmo e ao Seu
serviço.
Dir-se-á talvez que o crente deveria dedicar todos os dias ao Senhor. Certamente;
nós somos de Senhor, no sentido mais completo e elevado. Tudo quanto temos e
tudo quanto somos Lhe pertence. Reconhecemos isto plena e alegremente. Somos
chamados para fazer tudo em Seu Nome e para Sua glória. É nosso elevado
privilégio comprar e vender, comer e beber, sim, fazer tudo sob o Seu olhar e no
temor e amor do Seu santo nome. Não devemos pôr a nossa mão em coisa alguma,
em qualquer dia da semana, em que não poderíamos, com plena confiança, pedir a
bênção do Senhor.
Tudo isto é claramente admitido. Todo o verdadeiro crente o reconhece
alegremente. Mas, ao mesmo tempo, parece-nos impossível ler o Novo Testamento
e não ver que o dia do Senhor ocupa um lugar único, que é assinalado para nós do
modo mais claro, que tem um significado e uma importância que não podem, com
justiça, ser requeridos para qualquer outro dia da semana. Na realidade, tão
convencidos estamos da verdade de tudo isto, que, ainda mesmo que não fosse lei
em Inglaterra guardar o dia do Senhor, nós acharíamos que era nosso sagrado
dever e santo privilégio abstermo-nos de qualquer trabalho que não fosse
absolutamente indispensável.
Graças a Deus, é lei da Inglaterra que o dia do Senhor seja observado. Isto é um
sinal de misericórdia para todos os que amam esse dia por amor do Senhor. Não
podemos deixar de reconhecer a Sua imensa bondade de haver arrebatado este dia
da garra do mundo para o outorgar ao Seu povo e aos Seus servos a fim de ser
dedicado ao Seu culto e à Sua obra.
Que mercê é o dia do Senhor com o seu profundo retiro das coisas mundanas! Que
faríamos nós sem ele? Que bendita suspensão dos afazeres semanais! Quão precioso
para a assembleia reunida em redor da Mesa do Senhor se lembrar d'Ele e anunciar
a Sua morte e celebrar os Seus louvores! Quão deliciosos são os diversos serviços do
dia do Senhor, quer sejam os de evangelista, de pastor, ensinador, obreiro da escola
dominical ou distribuidor de tratados! Que linguagem humana poderá descrever
adequadamente o valor e interesse de todas estas coisas? E verdade que o dia do
Senhor é tudo menos um dia de descanso corpóreo para os Seus servos; com efeito
sentem-se muitas vezes mais fatigados nesse dia do que em qualquer outro dia da
semana. Mas, oh, é um cansaço bendito; uma fadiga que encontrará o seu brilhante
galardão no repouso que resta ainda para o povo de Deus!
Uma vez mais, prezado leitor crente, levantemos os nossos corações num cântico
de louvor ao nosso Deus por essa mercê bendita do dia do Senhor. Que Ele a
mantenha para a Sua Igreja até que venha! Que Ele desfaça, pelo Seu poder
onipotente, todos os esforços dos infiéis e ateus para removerem as barreiras que a
lei inglesa erigiu em volta do dia do Senhor! Será verdadeiramente um dia triste
quando essas barreiras forem destruídas.
Alguns poderão dizer talvez que o sábado judaico desapareceu e que não é portanto
obrigatório. Um grande número de cristãos professos tem tomado esta atitude e
advogado a abertura de parques e lugares de recreio público ao domingo. Ah,
compreende-se facilmente o que tais pessoas pretendem e o que procuram!
Querem pôr de lado a lei a fim de obterem um privilégio para a indulgência carnal.
Não compreendem que o único meio de alguém se libertar da lei consiste em estar
morto para ela; e se estamos mortos para a lei, estamos também necessariamente
mortos para o pecado, e mortos para o mundo.
Isto torna o assunto de todo diferente. O cristão está, graças a Deus, livre da lei;
mas, se o está, não é para que se possa divertir no dia do Senhor, ou qualquer outro
dia, mas para que possa viver para Deus. "Porque eu, pela lei, estou morto para a
lei, para viver para Deus." Isto é terreno cristão; e só pode ser ocupado por aqueles
que são verdadeiramente nascidos de Deus. O mundo não pode compreender isso;
nem tampouco pode compreender os sagrados privilégios e exercícios espirituais
do dia do Senhor.

Tudo isto é verdadeiro; ao mesmo tempo, estamos absolutamente convencidos que


se a Inglaterra tirasse as barreiras que rodeiam o dia do Senhor, daria uma prova
muito triste do seu abandono da profissão religiosa que a tem, por tanto tempo,
caracterizado, como nação, e de se haver precipitado na direção da infidelidade e
do ateísmo. Não devemos perder de vista o fato importante de que a Inglaterra
tomou o partido de ser uma nação cristã — uma nação que professa ser governada
pela Palavra de Deus. É portanto mais responsável do que aquelas nações que estão
envoltas nas densas trevas do paganismo. Nós cremos que as nações, assim como os
indivíduos, serão responsáveis pela profissão que fazem; e, por isso, aquelas nações
que professam ser cristãs e a si mesmas assim se chamam, serão julgadas, não
apenas pela luz da criação, nem pela lei de Moisés, mas pela plena luz do orbe do
cristianismo que professam — por toda a verdade encerrada nas capas desse
bendito livro que possuem, e do qual se vangloriam. Os pagãos serão julgados com
fundamento na criação; os judeus, com base na lei; o cristão nominal, com base na
verdade do cristianismo.
Ora este fato importante agrava seriamente a posição da Inglaterra e de todas as
outras nações que professam ser cristãs. Deus tratará com elas certamente com
base na sua profissão. De nada serve dizer que não entendem o que professam; pois
por que professar o que não entendem e creem? O fato é que professam
compreender e crer; e por este fato serão julgadas. Vangloriam-se da expressão
popular de que "a Bíblia e só a Bíblia é a religião dos protestantes".
Se é assim, quão solene é o pensamento da Inglaterra julgado pelo padrão de uma
Bíblia aberta! Qual será o seu juízo? Qual o seu fim? Deixamos a aterradora
resposta à consideração de todos a quem compete dá-la.

Que Lugar Ocupa a Escritura em Nossos Corações?


Devemos agora deixar o tema profundamente interessante do sábado e do dia do
Senhor e dar por terminada esta parte com a citação para o leitor do notável
parágrafo com que termina o nosso capítulo. Não exige um extenso comentário,
mas parece- nos proveitoso nestes "Estudos sobre o Deuteronômio", proporcionar
ao leitor passagens completas do próprio livro, a fim de que ele possa ter diante de
si as próprias palavras do Espírito Santo, sem mesmo ter de dar-se ao incômodo de
pôr de parte o volume que tem em suas mãos.
Havendo exposto ao povo os dez mandamentos, o legislador prossegue
recordando-lhes as solenes circunstâncias que acompanharam a entrega da lei,
juntamente com os seus próprios sentimentos e expressões naquela ocasião.
"Estas palavras falou o SENHOR a toda a vossa congregação no monte, do meio do
fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz, e nada acrescentou; e as escreveu
em duas tábuas de pedra, e a mim mas deu. E sucedeu que, ouvindo a voz do meio
das trevas e vendo o monte ardente em fogo, vos achegastes a mim, todos os
cabeças das vossas tribos e vossos anciãos, e dissestes: Eis aqui o SENHOR, nosso
Deus, nos fez ver a sua glória e a sua grandeza, e ouvimos a sua voz do meio do
fogo; hoje, vimos que Deus fala com o homem e que o homem fica vivo. Agora,
pois, por que morreríamos?- Pois este grande fogo nos consumiria: se ainda mais
ouvíssemos a voz do SENHOR, nosso Deus, morreríamos. Porque, quem há, de
toda a carne, que ouviu a voz do Deus vivente falando do meio do fogo, como nós,
e ficou vivo? Chega-te tu e ouve tudo o que disser o SENHOR, nosso Deus; e tu nos
dirás tudo o que te disser o SENHOR, nosso Deus, e o ouviremos e o faremos.
Ouvindo, pois, o SENHOR a voz das vossas palavras, quando me faláveis a mim, o
SENHOR me disse: Eu ouvi a voz das palavras deste povo, que te disseram; em
tudo falaram eles bem. Quem dera que eles tivessem tal coração que me temessem
e guardassem todos os meus mandamentos todos os dias, para que bem lhes fosse a
eles e a seus filhos, para sempre! Vai, dize-lhes: Tornai-vos às vossas tendas. Porém
tu estás aqui comigo, para que eu a ti te diga todos os mandamentos, e estatutos, e
juízos que tu lhes hás de ensinar que cumpram na terra que eu lhes darei para
possuí-la. Olhai, pois, que façais como vos mandou o SENHOR, VOSSO Deus; não
declinareis nem para a direita, nem para a esquerda. Andareis em todo o caminho
que vos manda o SENHOR, VOSSO Deus, para que vivais, e bem vos suceda, e
prolongueis os dias na terra que haveis de possuir" (versículos 22 a 33).
Aqui o grande princípio do livro de Deuteronômio brilha com fulgor pouco
comum. Está incorporado nessas comovedoras e poderosas palavras que formam o
verdadeiro núcleo da esplêndida passagem que acabamos de citar. "Quem dera que
eles tivessem tal coração que me temessem e guardassem todos os meus
mandamentos todos os dias, para que bem lhes fosse a eles e a seus filhos, para
sempre!"
Preciosas palavras! Põem diante de nós, do modo mais feliz, a origem secreta
daquela vida que nós, como cristãos, somos chamados para viver, dia a dia — a vida
de simples, implícita e completa obediência, isto é, um coração que teme o
Senhor—que O teme não com espírito servil, mas com aquele amor profundo,
verdadeiro, adorável, que o Espírito Santo derrama em nossos corações. E isto que
compraz o coração de nosso amantíssimo Pai celestial. A Sua Palavra diz-nos:
"Dá-me, filho meu, o teu coração." Quando o coração é dado, tudo se segue em
encantadora ordem moral. Um coração amorável encontra o seu mais profundo
gozo em obedecer a todos os mandamentos de Deus; e nada é de valor algum para
Deus senão o que emana de um coração amoroso. O coração é a origem de todas as
saídas da vida; e, por isso, quando é governado pelo amor de Deus há uma resposta
amorosa a todos os Seus mandamentos. Nós amamos os Seus mandamentos, porque
o amamos a Ele. Cada palavra Sua é preciosa para o coração que O ama. Cada
preceito, cada estatuto, cada juízo, numa palavra, toda a Sua lei é amada,
reverenciada e obedecida porque o Seu nome e a Sua autoridade estão com ela
ligados.
O leitor encontrará no Salmo 119 uma ilustração rara e bela do ponto especial que
temos perante nós — um exemplo notável de alguém que responde
admiravelmente às palavras acima citadas — "Quem dera que eles tivessem tal
coração que me temessem e guardassem todos os meus mandamentos... para
sempre"! É o formoso alento de uma alma que encontrou o seu profundo e
constante deleite na lei de Deus. Existem nada menos de cento e setenta e seis
alusões a essa preciosa lei, sob um título ou outro. Vemos espalhadas por todo este
maravilhoso salmo, em rica profusão, joias tais como as seguintes:
"Escondi a tua palavra no meu coração, para eu não pecar contra ti. Folgo mais com
o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas. Em teus preceitos
meditarei, e olharei para os teus caminhos. Alegrar-me-ei nos teus estatutos: não
me esquecerei da tua palavra." "A minha alma está quebrantada de desejar os teus
juízos, em todo o tempo." "Também os teus testemunhos são o meu prazer e os
meus conselheiros." "Apego-me aos teus testemunhos." "Eis que tenho desejado os
teus preceitos." "Confio na tua palavra... pois me atenho aos teus juízos." "E
alegrar-me-ei em teus mandamentos, que eu amo." "Lembrei-me dos teus juízos."
"Os teus estatutos têm sido os meus cânticos no lugar das minhas peregrinações."
"Voltei os meus pés para os teus testemunhos." "Cri nos teus mandamentos."
"Melhor é para mim a lei da tua boca do que inúmeras riquezas em ouro ou prata."
"Tenho esperado na tua palavra." "A tua lei é a minha delícia." "Os meus olhos
desfaleceram, esperando por sua promessa." "Todos os teus mandamentos são
verdade." "Para sempre, ó SENHOR, a tua palavra permanece no céu." "Nunca me
esquecerei dos teus preceitos." "Pois tenho buscado os teus preceitos." "Mas eu
atentarei para os teus testemunhos." "O teu mandamento é amplíssimo." "Oh,
quanto amo atua lei! É a minha meditação em todo o dia." "Oh, quão doces são as
tuas palavras ao meu paladar! Mais doces do que o mel à minha boca." "Os teus
testemunhos tenho eu tomado por herança para sempre, pois são o gozo do meu
coração." "De contínuo me recrearei nos teus estatutos." "Pelo que amo os teus
mandamentos mais do que o ouro." "Tenho em tudo como retos todos os teus
preceitos." "Maravilhosos são os teus testemunhos." "Abri a minha boca e respirei,
pois que desejei os teus mandamentos." "... retos são os teus juízos". "Os teus
testemunhos... são retos e muito fiéis." "A tua palavra é muito pura." "A tua lei é a
verdade." "A justiça dos teus testemunhos é eterna." "Todos os teus mandamentos
são a verdade." "A tua palavra é a verdade desde o princípio, e cada um dos teus
juízos dura para sempre." "O meu coração temeu a tua palavra." "Folgo com a tua
palavra, como aquele que acha um grande despojo." "Muita paz têm os que amam a
tua lei." "Aminha alma tem observado os teus testemunhos; amo-os
extremamente." "Tenho observado os teus preceitos." "A tua lei é todo o meu
prazer."
Certamente fortalece o coração e anima o espírito transcrever frases tais como as
precedentes, muitas das quais podem ser usadas para descrever a vida de nosso
Senhor nos dias da Sua carne. Viveu sempre da Palavra. Era o alimento da Sua
alma; a autoridade do Seu caminho, o material do Seu ministério. Por ela venceu
Satanás; por ela tapou a boca aos saduceus, fariseus e herodianos. Por ela ensinou
os Seus discípulos. A ela encomendou os Seus discípulos, quando estava prestes a
subir aos céus.
Quão importante é tudo isto para nós! Quão interessante! Quão profundamente
prático! Que lugar tão elevado dá à Sagrada Escritura! Porque lembremos que é, na
verdade, o bendito Volume de inspiração que é posto diante de nós em todas essas
áureas passagens citadas do Salmo 119. Quanto nos anima, fortalece e encoraja
observar a maneira como nosso Senhor empregou as Sagradas Escrituras em todas
as ocasiões, o lugar que lhes dá e a dignidade que lhes confere! Recorre a elas em
todas as ocasiões como autoridade divina contra a qual não pode haver apelo.
Embora Deus sobre todas as coisas, o Autor do Sagrado Volume, tendo tomado o
Seu lugar na terra como Homem, mostra, com a possível clareza, o que é o dever
obrigatório e elevado privilégio do homem, a saber, viver da Palavra de Deus —
inclinar-se em reverente sujeição à sua autoridade divina.
E não temos nós aqui uma satisfatória resposta para a pergunta tantas vezes
repetida da infidelidade: "Como sabemos que a Bíblia é a Palavra de Deus?" Se na
verdade cremos em Cristo; se reconhecemos que Ele é o Filho de Deus, Deus
manifestado em carne, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não podemos deixar
de ver a força moral do fato que esta Pessoa divina apelou constantemente para as
Escrituras — para Moisés, para os Profetas e os Salmos, como padrão divino. Não
sabia que eram a Palavra de Deus? Indubitavelmente. Como Deus, Ele as havia
dado; como Homem recebeu-as, aceitou-as, viveu de acordo com elas, e
reconheceu a sua suprema autoridade em todas as coisas.
Que fato de peso há aqui para a igreja professante! Que áspera repreensão para
todos os chamados doutores e escritores cristãos que têm ousado intrometer-se
com a grande verdade fundamental de inspiração plenária das Sagradas Escrituras
em geral, e dos cinco livros de Moisés em particular! Quão terrível é pensar que
muitos que professam ser mestres da igreja de Deus se atrevem a apontar como
apócrifos escritos que nosso Senhor e Mestre aceitou e reconheceu como divinos!
E, contudo, diz-se e espera-se que creiamos que as coisas vão melhorar! Ah, é uma
miserável ilusão! Os absurdos degradantes do ritualismo, e os argumentos
blasfemos da infidelidade estão aumentando rapidamente em redor de nós; e onde
essas influências não estão presentemente dominando observa-se, na maioria dos
casos, uma fria indiferença, comodidade carnal, complacência, e apego ás coisas
mundanas — tudo e qualquer coisa, enfim, menos a evidência de melhoria. Se as
pessoas não são arrastadas pela infidelidade, por um lado, ou pelo ritualismo, por
outro lado, é, principalmente, devido ao fato de que estão muito ocupadas com os
prazeres e os negócios para pensarem em qualquer outra coisa. E quanto à religião
dos nossos dias, se se lhes tirar o dinheiro e a música, ter-se-á um saldo
lamentavelmente insignificante.
Por isso, é impossível desembaraçarmo-nos da convicção que o testemunho
combinado da observação e da experiência está diretamente oposto à ideia de que
as coisas estão melhorando. Com efeito, todo aquele que, em face de uma tal linha
de evidência em contrário, persiste em inclinar-se para uma tal teoria só pode ser
considerado como fruto da mais inconcebível credulidade.
Mas talvez alguém se sinta disposto a dizer que não devemos julgar segundo o que
vemos; que devemos ter esperança. Certamente, contanto que tenhamos uma
garantia divina para a nossa esperança. Se é possível apresentar uma simples linha
da Escritura para provar que o atual estado de coisas vai ser caracterizado por
progresso gradual, religioso, político, moral ou social, então, sem dúvida, sejamos
esperançosos. Sim; esperança contra a esperança. Uma simples cláusula de
inspiração é suficiente para formar a base de uma esperança que elevará o coração
acima das mais negras e deprimentes circunstâncias que nos cercam.
Mas onde se há de encontrar essa cláusula? Em parte nenhuma. O testemunho da
Bíblia, desde o princípio ao fim; o ensino claro da Escritura, desde uma à outra
extremidade; as vozes dos profetas e apóstolos, em ininterrupta harmonia, sem
uma única nota divergente, provam com uma força e clareza perfeitamente
incontestáveis que o estado presente de coisas, longe de melhorar gradualmente,
piorará rapidamente; que, antes que os brilhantes raios da glória do milênio
possam alegrar este mundo dolorido, a espada do juízo tem de fazer a sua obra
aterradora. Citar as passagens em prova da nossa afirmação encheria literalmente
um volume; seria transcrever simplesmente uma grande parte das Escrituras
proféticas do Velho Testamento e do Novo.
Não vamos, evidentemente, tentar fazer isto. Não há necessidade. O leitor tem a
sua Bíblia. Examine-a diligentemente. Ponha de parte as suas ideias preconcebidas,
todo o convencionalismo da cristandade, toda a fraseologia vulgar do mundo
religioso, todos os dogmas das escolas de divindade, e venha, com a simplicidade
de uma criancinha, à pura fonte da Sagrada Escritura, e beba da sua celestial
doutrina. Se fizer isto, levantar-se-á do estudo com a clara e firme convicção de
que o mundo não será, com toda a certeza, convertido pelos meios atualmente
postos em prática — que não é o evangelho da paz mas o espanador da destruição
que preparará a terra para a glória.
Quer então dizer que negamos o bem que está sendo feito?- Somos insensíveis a
seu respeito«? Longe de nós tal pensamento! Bendizemos a Deus de todo o coração
por todo bem. Regozijamo-nos em todos os esforços que se fazem para espalhar o
precioso evangelho da graça de Deus; rendemos graças a Deus por cada alma que
ingressa no bendito círculo da salvação de Deus. Deleitamo-nos em pensar dos
oitenta e cinco milhões de Bíblias espalhadas sobre toda a terra. Que mente
humana poderá calcular os resultados de todos estes exemplares, sim, os resultados
até mesmo de um só exemplará Desejamos sinceramente que Deus ajude a todo o
missionário de coração fiel que leva as boas novas de salvação quer seja às travessas
e pátios de Londres ou às mais distantes partes da terra.

O Evangelho não é Anunciado para a Conversão do Mundo, mas para tomar dele
um Povo para o Seu Nome
Mas, admitindo tudo isto, como sinceramente admitimos, nós, todavia, não
acreditamos na conversão do mundo pelos meios postos em prática. A Escritura
diz-nos que é quando os juízos divinos vierem sobre a terra que os habitantes do
mundo aprenderão a justiça. Esta simples cláusula da inspiração deveria ser
suficiente para provar que não é por meio do evangelho que o mundo será
convertido, e há centenas de cláusulas que empregam a mesma linguagem e
ensinam a mesma verdade. Não é pela graça, mas pelo juízo que os habitantes de
todo o mundo aprenderão a justiça.
Qual é pois o objetivo do evangelho"? Se não é para converter o mundo, com que
propósito é pregado? O apóstolo Tiago, no seu discurso no memorável concílio de
Jerusalém, dá a resposta direta e conclusiva a esta pergunta. Diz ele: "Simão relatou
como, primeiramente, Deus visitou os gentios." Para quê? Para os converter todos?
Antes pelo contrário: "Para tomar deles um povo para o seu nome." Nada pode ser
mais claro do que isto. Põe diante de nós o que deveria ser o grande objetivo de
todo o esforço missionário—aquilo que todo o missionário divinamente enviado e
divinamente ensinado terá presente em todos os seus benditos trabalhos. É para
tomar um povo para o Seu nome.
Quão importante é recordar isto! Quão necessário nos é ter diante de nós um
verdadeiro objetivo em todo o nosso trabalho! De que serve trabalhar com um
falso objetivo? Não é muito melhor trabalhar com o fim imediato do que Deus está
fazendo? Enfraquecerá as energias do missionário ou impedirá os seus movimentos
ter sempre presente o propósito divino do seu trabalho? Claro que não. Vejamos o
caso de dois missionários partindo para um campo missionário longínquo; um tem
por seu objetivo a conversão do mundo; o outro, tomar dele um povo. O último,
por razão do seu propósito, será menos enérgico, menos ativo, menos entusiasta do
que o primeiro? Não podemos crer; pelo contrário, o próprio fato de estar dentro
da corrente dos propósitos divinos comunicará à sua obra estabilidade e
consistência ao seu trabalho; e, ao mesmo tempo, encorajará o seu coração em face
das dificuldades e impedimentos que o rodeiam.
Porém, é perfeitamente claro que os apóstolos de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo não tinham tal objetivo, ao sair para o seu trabalho, como a conversão do
mundo. "Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e
for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado."
Isto foi dito aos doze. O mundo devia ser a sua esfera de trabalho. A sua mensagem
era para toda a criatura; a aplicação, àquele que crer. Era por excelência uma coisa
individual. A conversão de todo o mundo não devia ser o seu objetivo; isso será
efetuado por uma operação totalmente distinta, quando a presente ação de Deus
por meio do evangelho tiver produzido a separação de um povo para os céus (1). O
Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes não para converter o mundo, mas para
o "convencer" do pecado ou demonstrar a sua culpa em rejeitar o Filho de Deus (2).
O efeito da Sua presença devia ser provar o mundo culpado; e quanto ao grande
objetivo da Sua missão, era o de formar um corpo composto de crentes tanto de
judeus como de gentios. Com isto Ele tem estado ocupado durante os últimos mil e
oitocentos anos. Este é "o mistério" de que o apóstolo Paulo foi feito ministro, e o
qual ele desenrola tão completa e de modo tão bendito na sua epístola aos Efésios.
E impossível alguém compreender a verdade neste maravilhoso documento e não
ver que a conversão do mundo e a formação do corpo de Cristo são coisas tão
diferentes que não podem de modo algum andar juntas.
__________
(1) Queremos chamar a atenção do leitor para o Salmo 67. É uma das muitas
passagens que provam que a bênção das nações se segue à restauração de Israel.
"Deus tenha misericórdia de nós" [Israel] "e nos abençoe, e faça resplandecer o seu
rosto sobre nós. Para que se conheça na terra o teu caminho e em todas as nações
[...] Deus nos abençoará, e todas as extremidades da terra o temerão." Não poderia
haver uma prova mais bela ou poderosa do fato que é Israel, e não a igreja, que será
usada para bênção das nações.
(2) A aplicação de João 16:8 a 11 à obra do Espírito no indivíduo é, no nosso
parecer, um grave erro. Essa passagem refere-se ao efeito da Sua presença na terra
e a respeito do mundo no seu conjunto.
A sua obra na alma é uma obra preciosa, escusado será dizê-lo; mas não é a verdade
ensinada nesta passagem.
Considere o leitor a seguinte passagem: "Por esta causa, eu, Paulo, sou o prisioneiro
de Jesus Cristo por vós, os gentios, se é que tendes ouvido a dispensação da graça de
Deus, que para convosco me foi dada; como me foi este mistério manifestado pela
revelação como acima, em pouco, vos escrevi, pelo que, quando ledes, podeis
perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual, noutros séculos, não
foi manifestado aos filhos dos homens" — não foi manifestado nas Escrituras do
Velho Testamento; nem revelado aos santos ou profetas do Velho Testamento —
"como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas"
— quer dizer, aos profetas do Novo Testamento — "a saber, que os gentios são
co-herdeiros, e de um mesmo corpo, e participantes da promessa em Cristo pelo
evangelho; do qual fui feito ministro, pelo dom da graça de Deus, que me foi dado,
segundo a operação do seu poder. A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada
esta graça de anunciar entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas
incompreensíveis de Cristo e demonstrar a todos qual seja a dispensação do
mistério, que, desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou; para que
agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e
potestades nos céus" (Ef 3:1 a 10).
Vejamos outra passagem da epístola aos Colossenses: "Se, na verdade,
permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança do
evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há debaixo do
céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro. Regozijo-me, agora, no que padeço
por vós e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que
é a igreja; da qual eu estou feito ministro, segundo a dispensação de Deus, que me
foi concedida para convosco, para cumprir a palavra de Deus: o mistério que esteve
oculto desde todos os séculos e em todas as gerações e que, agora, foi manifesto aos
seus santos; aos quais Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste
mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, esperança da glória; a quem
anunciamos, admoestando a todo homem e ensinando a todo homem; em toda a
sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito em Jesus Cristo; e para isto
também trabalho, combatendo segundo a eficácia, que opera em mim
poderosamente" (Cl 1:23 a 29).
De estas e outras numerosas passagens o leitor poderá ver o objetivo especial do
ministério de Paulo. Certamente a ideia da conversão do mundo não entrava na
sua mente. Decerto, pregava o evangelho, em toda a sua profundidade, plenitude e
poder — pregava-o "desde Jerusalém e arredores até ao Ilírico" — "anunciava
entre os gentios, por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo";
mas não com a ideia de converter o mundo. Estava mais bem informado. Sabia e
ensinava que o mundo se estava preparando para o juízo; sim, amadurecendo
rapidamente; que "os homens maus e enganadores irão de mal para pior"; que "nos
últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a
doutrinas de demônios, pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo
cauterizada a sua própria consciência, proibindo o casamento e ordenando a
abstinência dos manjares que Deus criou para os fiéis e para os que conhecem a
verdade, a fim de usarem deles com ações de graças" (1 Tm 4:1 a 4).
E, mais ainda, esta testemunha fiel e divinamente inspirada ensinou que "nos
últimos dias" — muito antes dos "últimos tempos" — "sobrevirão tempos
trabalhosos" [ou difíceis]; "porque haverá homens amantes de si mesmos,
avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos,
profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis,
sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos
deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a
eficácia dela" (2 Tm 3:1 a 5).

O Que Diz a Escritura


Que quadro! Faz-nos retroceder ao final do capítulo 1 de Romanos, onde a mesma
pena inspirada nos descreve as sinistras formas de paganismo; mas com esta
diferença terrível que em 2 Timóteo não se trata de paganismo mas de cristianismo
nominal — "uma forma de piedade".
E há de ser este o fim do atual estado de coisas? E este o mundo convertido do qual
tanto ouvimos falará Ah, os falsos profetas abundam por toda a parte! Há muitos
que clamam, paz, paz, não havendo paz. Há os que pretendem rebocar a parece
esburacada da cristandade com cal não adubada (Ez 13:10).
Mas isto não prosperará. O juízo está perto. A igreja professante tem fracassado
completa e vergonhosamente; tem- se apartado lamentavelmente da Palavra de
Deus, e revoltado contra a autoridade do seu Senhor. Não há um só raio de
esperança para a cristandade. E a mancha moral mais negra em todo o vasto
universo de Deus, ou na página da história. O mesmo bendito apóstolo de cujos
escritos temos feito uma extensa citação diz-nos que "já o mistério da injustiça
opera"; de onde se segue que tem estado a operar através de dezoito séculos.
"Somente há um que, agora, resiste até que do meio seja tirado; e, então, será
revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e aniquilará
pelo esplendor da sua vinda; a esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com
todo o poder, e sinais, e prodígios de mentira, e com todo o engano da injustiça
para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem.
E, por isso, Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira, para
que sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes, tiveram prazer na
iniquidade" (2 Ts 2:7 a 12).
Quão terrível é a sentença da cristandade! Operação do erro! Negra condenação! E
tudo isto na cara desses falsos profetas que falam do "lado brilhante das coisas".
Graças a Deus, existe um lado brilhante para todos os que pertencem a Cristo. A
esses o apóstolo pode falar com esplendorosos e alegres acentos. "Mas devemos
sempre dar graças a Deus, por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus
elegido desde o princípio para a salvação em santificação do Espírito e fé da
verdade, para o que, pelo nosso evangelho, vos chamou para alcançardes a glória
de nosso Senhor Jesus Cristo" (2 Ts 2:13-14).
Aqui temos, indubitavelmente, o lado glorioso das coisas — a gloriosa e bendita
esperança da Igreja de Deus — a esperança de ver "a resplandecente estrela da
manhã". Todos os crentes corretamente instruídos estão à espera, não de um
mundo melhorado ou convertido, mas da vinda do seu Senhor e Salvador que foi
preparar-lhes um lugar na casa do Pai e virá outra vez para os levar para Si mesmo,
para que onde Ele estiver, eles estejam também. Esta é a Sua doce promessa, a qual
pode realizar-se de um momento para o outro. O Senhor espera apenas, como
Pedro nos diz, em longanimidade, não querendo que ninguém se perca, senão que
todos venham a arrepender-se. Mas quando o último membro for incorporado
pelo Espírito Santo no bendito corpo de Cristo, então a voz do arcanjo e a trombeta
de Deus convocarão todos os remidos, desde o princípio, para irem ao encontro do
seu Senhor nos ares, para estarem sempre com Ele.
Esta é a verdadeira e própria esperança da Igreja de Deus — uma esperança que Ele
quer que resplandeça sempre nos corações de todo o Seu amado povo, em todo o
seu poder purificador e de exaltação. Desta bendita esperança o inimigo tem
conseguido roubar um grande número do povo do Senhor. Com efeito durante
séculos foi quase apagada do horizonte da Igreja; e foi apenas parcialmente
recuperada durante os últimos cinquenta anos. E, oh, quão parcialmente! Onde
ouvimos nós falar dela em todos os âmbitos da Igreja professante? Ecoa nos
púlpitos da cristandade o grito alegre: "Aí vem o esposo?" Longe disso. Até mesmo
os poucos servos amados de Cristo que esperam a Sua vinda dificilmente se
atrevem a pregá-la porque receiam que seria completamente rejeitada. Como
certamente seria. Estamos perfeitamente convencidos de que, na maioria dos
casos, os que se aventurassem a pregar a gloriosa verdade da vinda do Senhor para
a Sua Igreja, teriam rapidamente que abandonar os púlpitos.
Que solene e notável prova do poder enganador de Satanás! Defraudou a Igreja da
esperança que divinamente lhe foi dada; e, em vez dela, deu-lhe uma ilusão — a
mentira. Em vez de esperar pela "resplandecente Estrela da manhã", pô-la à espera
da conversão do mundo — de um milênio sem Cristo. Tem conseguido lançar
sobre o futuro uma tal ofuscação mental que a Igreja perdeu completamente a sua
orientação. Não sabe onde está. E como um barco sacudido pelo mar tormentoso
sem ter leme nem bússola, sem ver sol nem estrelas. Tudo são trevas e confusão.
E por que é isto assim?- Simplesmente porque a Igreja tem perdido de vista a pura e
preciosa Palavra do seu Senhor; e aceitado, em lugar dela, esses credos e confissões
confusos dos homens, que mancham e mutilam de tal maneira a verdade de Deus
que os cristãos parecem estar completamente desorientados quanto à sua própria
posição e esperança.
E, todavia, têm a Bíblia em suas mãos. Decerto, mas também os judeus a tinham, e,
todavia, rejeitaram Aquele bendito Senhor que é o grande tema da Bíblia, desde o
princípio ao fim. Esta era a inconsistência moral que nosso Senhor lhes lançou em
cara, em João 5. "Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida
eterna, e são elas que de mim testificam. E não quereis vir a mim para terdes vida"
(1).
__________
(1) Tinham as Escrituras, liam-na nas sinagogas todos os sábados; professavam crer
que tinham nelas a vida eterna; elas testificavam d'EIe; e todavia, não queriam vir a
Si. Daí a flagrante inconsistência. Se for tomada como uma ordem, toda a força da
passagem é perdida.
Será preciso recordar ao leitor que há inúmeros argumentos e conclusões que nos
levam a examinar as Escrituras sem apelar para o que cremos ser uma incorreta
interpretação de João 5:394?

E por que era isto? Simplesmente porque as suas mentes estavam cegas por
preconceitos religiosos. Estavam sob a influência de doutrinas e mandamentos dos
homens. Por isso, embora tivessem as Escrituras, e se vangloriassem de as possuir,
eram tão ignorantes acerca delas e governavam-se tampouco por elas como os
pobres pagãos ignorantes que os rodeavam. Uma coisa é termos a Bíblia em nossas
mãos, em nossas casas, nas nossas igrejas, e outra muito diferente ter as verdades da
Bíblia atuando em nossos corações e consciências e brilhando nas nossas vidas.
Tome-se por exemplo o magno assunto de que estamos tratando e que nos tem
conduzido a esta larga digressão. Pode alguma coisa ser mais claramente ensinada
no Novo Testamento do que isto, ou seja, que o fim do presente estado de coisas
será uma terrível apostaria da verdade, e rebelião declarada contra Deus e o
Cordeiro?- Os Evangelhos, as Epístolas e o Apocalipse todos concordam em expor
esta verdade solene com tal clareza e simplicidade que até um menino em Cristo
pode vê-la.
E, contudo, quão poucos, comparativamente, creem isto! A grande maioria crê
precisamente o contrário. Creem que por meio das diversas atividades atualmente
em operação todas as nações serão convertidas. Em vão chamados a atenção para as
parábolas do Senhor em Mateus 13: o joio, o fermento e a semente de mostarda.
Como concordam elas com a ideia da conversão do mundo? Se o mundo inteiro vai
ser convertido pela pregação do evangelho, como é então que se encontra joio no
campo no fim do mundo? Como é que há tantas virgens loucas como sábias quando
o Esposo vem? Se todo o mundo há de ser convertido pelo evangelho, então para
quem é que "o dia do Senhor virá como ladrão de noite?" Ou o que significam estas
palavras terríveis: "Pois que, quando disserem: Há paz e segurança, então, lhes
sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida; e
de modo nenhum escaparão" (1 Ts 5:3). A vista de um mundo convertido, qual
seria a justa aplicação, a força moral dessas solenes palavras em capítulo primeiro
de Apocalipse: "Eis que vem com as nuvens, e todo o olho o verá, até os mesmos
que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele?" Onde se
encontrarão essas tribos em pranto se todo o mundo há de ser convertido?
Leitor, não é claro como a luz do sol que as duas coisas não podem, nem por um
momento, subsistir juntas? Não é perfeitamente claro que a teoria da conversão do
mundo por meio do evangelho está diametralmente oposta ao ensino de todo o
Novo Testamento? Como é então que a grande maioria dos crentes professos
persiste em a afirmará Só pode haver uma resposta e esta é que não se submetem à
autoridade da Escritura. E muito doloroso e solene ter de o dizer; mas é
infelizmente verdade! A Bíblia é lida na cristandade; mas as verdades da Bíblia não
são acreditadas — antes pelo contrário, são persistentemente rejeitadas. E tudo isto
ante a expressão de alarde tantas vezes repetida: A Bíblia, e somente a Bíblia é a
religião dos protestantes."
Mas não prosseguiremos este assunto, apesar de sentirmos o seu valor e
importância. Confiamos em que o leitor seja levado pelo Espírito Santo a sentir a
sua profunda solenidade. Cremos que o povo de Deus em toda a parte necessita de
ser despertado para conhecer como a igreja professante se apartou completamente
da autoridade da Escritura. Podemos estar certos de que está aqui a verdadeira
causa de toda a confusão, de todo o erro, de todo o mal entre nós. Temos nos
afastado da Palavra do Senhor, e d'Ele mesmo. Enquanto isto não for
compreendido, sentido e admitido, as coisas não podem mudar. O Senhor busca
verdadeiro arrependimento, um espírito realmente quebrantado, na Sua presença:
"... eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha
palavra" (Is 66:2).
Isto é sempre verdadeiro. Não há limite para a bênção, quando a alma se encontra
nesta bendita atitude. Mas tem de ser uma realidade. De nada servirá falar de se
estar "pobre e abatido"; devemos estar realmente nesse estado. E um assunto
individual — "para quem olharei".
Oh, que o Senhor, em Sua infinita misericórdia, nos guie, a cada um de nós, a um
verdadeiro auto-juízo sob a ação da Sua Palavra! Que os nossos ouvidos sejam
abertos para ouvir a Sua voz! Que os nossos corações sejam realmente volvidos
para Ele e a Sua Palavra! Voltemos as costas, com santa decisão, de uma vez para
sempre, a tudo que não estiver de acordo com a Sagrada Escritura! Isto, estamos
convencidos, é o que o Senhor Jesus Cristo espera de todos os que Lhe pertencem,
entre os terríveis e irremediáveis escombros da cristandade.
CAPÍTULO 6

ESTAS PALAVRAS ESTARÃO NO TEU CORAÇÃO

Eu e a Minha Casa
"Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o SENHOR,
VOSSO Deus, para se vos ensinar, para que os fizésseis na terra a que passais a
possuir; para que temas ao SENHOR, teu Deus, e guardes todos os seus estatutos e
mandamentos, que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias
da tua vida; e que teus dias sejam prolongados. Ouve, pois, ó Israel, e atenta que os
guardes, para que bem te suceda, e muito te multipliques, como te disse o
SENHOR, Deus de teus pais, na terra que mana leite e mel. Ouve, Israel, o
SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR."
Aqui temos exposta a verdade fundamental que a nação de Israel era
especialmente responsável por manter e confessar, a saber: a unidade da Deidade.
Esta verdade encontra-se na própria fundação da economia judaica. Era o grande
centro em volta do qual o povo devia reunir-se. Enquanto a mantiveram, foram
um povo feliz, próspero e fértil; mas quando a abandonaram, tudo desapareceu.
Era o seu grande baluarte, e o que devia distingui-los de todas as nações da terra.
Foram chamados para confessar esta gloriosa verdade ante um mundo idólatra,
com "os seus muitos deuses e muitos senhores". Era elevado privilégio e santo
dever de Israel render um firme testemunho da verdade contida nessa importante
expressão: "O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR", em notável oposição aos
inúmeros deuses falsos dos pagãos à sua volta. Seu pai Abraão havia sido chamado a
sair do próprio meio da idolatria do paganismo, para ser um testemunho do único
Deus vivo e verdadeiro, para confiar n'Ele, andar com Ele, apoiar-se n'Ele e Lhe
obedecer.
Se o leitor se voltar para o último capítulo de Josué, encontrará uma notável alusão
a este fato, e o emprego importante que ele fez dela, no seu último discurso ao
povo. "Depois, ajuntou Josué todas as tribos de Israel em Siquém e chamou os
anciãos de Israel, e os seus cabeças, e os seus juízes, e os seus oficiais, e eles se
apresentaram diante de Deus. Então Josué disse a todo o povo: Assim diz o
SENHOR, Deus de Israel: Dalém do rio, antigamente, habitaram vossos pais, Tera,
pai de Abraão e pai de Naor: e serviram a outros deuses. Eu, porém, tomei a
Abraão, vosso pai dalém do rio, e o fiz andar por toda a terra de Canaã; também
multipliquei a sua semente e dei-lhe Isaque."
Aqui Josué recorda ao povo o fato de que seus pais haviam servido outros deuses —
um fato solene e muito importante, certamente, e que eles nunca deveriam ter
esquecido, visto que a sua recordação os teria advertido da sua grande necessidade
de vigilância sobre si mesmos, não fosse o caso de, de algum modo, regressarem ao
terrível e grosseiro mal de que Deus, em Sua graça soberana, e amor de eleição,
havia chamado seu pai Abraão. Teria sido prudente considerar que o mesmíssimo
mal em que seus pais haviam vivido, nos tempos antigos, era precisamente o
mesmo em que eles corriam o risco de cair .
Havendo apresentado este fato ao povo, Josué traz perante eles, com energia
invulgar e rara clareza, todos os principais acontecimentos da sua história, desde o
nascimento de seu pai Isaque ao momento em que lhes falava; e então termina com
o seguinte apelo: "Agora, pois, temei ao SENHOR, e servi-o com sinceridade e com
verdade, e deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do rio e no
Egito, e servi ao SENHOR. Porém, se vos parece mal aos vossos olhos servir ao
SENHOR, escolhei hoje a quem sirvais: se os deuses a quem serviram vossos pais,
que estavam dalém do rio, ou os deuses dos amorreus, em cuja terra habitais;
porém eu e a minha casa serviremos ao SENHOR" (versículos 1-3, 14).
Note-se a alusão repetida ao fato de que os seus pais haviam adorado deuses falsos;
e, além disso, de que a terra a que o Senhor os havia trazido havia sido poluída, de
uma extremidade à outra, pelas tenebrosas abominações da idolatria pagã.
Desta forma este fiel servo do Senhor procura, evidentemente por inspiração do
Espírito Santo, pôr diante do povo o perigo de abandonar a grande verdade central
e fundamental de um Deus vivo e verdadeiro, e de caírem outra vez na adoração de
ídolos. Faz-lhes ver a necessidade de absoluta e sincera decisão. "Escolhei hoje a
quem sirvais." Nada dá como uma decisão clara, franca e aberta por Deus. É-Lhe
devida em todos os tempos. O Senhor havia-lhes dado provas de que era
inconfundivelmente por eles remindo-os da escravidão do Egito e conduzindo-os
através do deserto e colocando-os na terra de Canaã. Por isso, serem inteiramente
por Ele nada mais era do que o seu serviço racional.
Quão intensamente o entendia assim Josué quanto ao que se referia a si mesmo
bem o demonstram aquelas palavras memoráveis : "Eu e a minha casa serviremos
ao SENHOR. " Belas palavras! Preciosa decisão! Uma religião nacional podia cair
em ruína, e infelizmente assim sucedeu em Israel, mas a religião pessoal e familiar
pode pela graça de Deus ser mantida, onde quer que seja, e em todos os tempos.
Graças a Deus por tudo isto! Que nunca o esqueçamos! "Eu e a minha casa" é a
resposta clara e alegre da fé à exortação de Deus: "Tu e a tua casa." Seja qual for o
estado do povo professo de Deus, em qualquer tempo, todo homem de Deus de
verdadeiro coração tem o privilégio de adotar essa imorredoura decisão e atuar de
acordo com ela: "Eu e a minha casa serviremos ao SENHOR."
Decerto, esta santa resolução só pode ser levada a efeito pela graça de Deus
concedida continuamente, mas podemos estar seguros de que quando o coração
está disposto a seguir completamente o Senhor toda a graça necessária será dada,
dia a dia; porque essas encorajadoras palavras terão sempre o seu valor: "A minha
graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza."
Vejamos agora, por um momento, o efeito aparente do apelo comovedor de Josué à
congregação. Parecia muito prometedor. "Então, respondeu o povo e disse: Nunca
nos aconteça que deixemos ao SENHOR para servirmos a outros deuses; porque o
SENHOR é o nosso Deus; ele é o que nos fez subir, a nós e a nossos pais, da terra do
Egito, da casa da servidão, e o que tem feito estes grandes sinais aos nossos olhos, e
nos guardou por todo o caminho que andamos, e entre todos os povos pelo meio
dos quais passamos. E o SENHOR expeliu de diante de nós a todas estas gentes, até
ao amorreu, morador da terra; também nós serviremos ao SENHOR, porquanto é
nosso Deus."
Tudo isto soava bem e despertava grandes esperanças. Parecia terem um sentido
claro da base moral do direito do Senhor sobre eles por obediência implícita.
Podiam relatar minuciosamente todos os Seus feitos poderosos em seu favor, e
fazer sinceros, sem dúvida, verdadeiros juramentos contra a idolatria e promessas
de obediência ao Senhor, seu Deus.

"Deitai Fora os Deuses Estranhos"


Mas é evidente que Josué não confiava muito nesses protestos, pois que disse ao
povo: "Não podereis servir ao SENHOR, porquanto é Deus santo, é Deus zeloso,
que não perdoará a vossa transgressão nem os vossos pecados. Se deixardes o
SENHOR e servirdes a deuses estranhos, então, se tornará, e vos fará mal, e vos
consumirá, depois de vos fazer bem. Então, disse o povo a Josué: Não; antes, ao
SENHOR serviremos. E Josué disse ao povo: Sois testemunhas contra vós mesmos
de que vós escolhestes o SENHOR, para o servir. E disseram: Somos testemunhas.
Agora, pois, deitai fora os deuses estranhos que há no meio de vós: e inclinai o
vosso coração ao SENHOR, Deus de Israel. E disse o povo a Josué: Serviremos ao
SENHOR, nosso Deus, e obedeceremos à sua voz" (versículos 16-24).
Não nos deteremos por agora em considerar o aspecto em que Josué apresentou
Deus à congregação de Israel, visto que o nosso propósito em nos referirmos a esta
passagem é mostrar o lugar proeminente assinalado, no discurso de Josué, à
verdade da unidade da Deidade. Esta era a verdade da qual Israel fora chamado
para dar testemunho ante todas as nações da terra, e na qual deveriam encontrar
salvaguarda moral contra as ardilosas influências da idolatria.
Mas, ah, foi precisamente a esta verdade que eles tão rápida e assinaladamente
faltaram! As promessas, votos e resoluções feitos sob a poderosa influência do apelo
de Josué depressa mostraram ser como o orvalho da madrugada e a nuvem da
manhã que se desvanece. "E serviu o povo ao SENHOR todos os dias de Josué e
todos os dias dos anciãos que prolongaram os seus dias depois de Josué e viram toda
aquela grande obra do SENHOR, a qual ele fizera a Israel. Faleceu, porém, Josué,
filho de Num, servo do SENHOR, da idade de cento e dez anos...; e foi também
congregada toda aquela geração a seus pais, e outra geração após eles se levantou,
que não conhecia ao SENHOR, nem tampouco a obra que fizera a Israel. Então,
fizeram os filhos de Israel o que parecia mal aos olhos do SENHOR; e serviram aos
baalins. E deixaram o SENHOR, Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e
foram-se após outros deuses, dentre os deuses das gentes que havia ao redor deles,
e encurvaram-se a eles; e provocaram o SENHOR à ira. Porquanto deixaram ao
SENHOR e serviram a Baal e a Astarote" (Jz 2:7 a 13).
Prezado leitor, como isto nos adverte! Quão depressa abandonaram a grande,
magna, especial e característica verdade! O Deus único vivo e verdadeiro trocado
por Baal e Astarote! Enquanto Josué e os anciãos viveram, a sua presença e
influência guardaram a Israel de aberta apostasia. Porém, apenas desaparecidos
esses diques morais, a tenebrosa maré da idolatria subiu e varreu os próprios
fundamentos da fé nacional. O Javé de Israel foi suplantado por Baal e Astarote. A
influência humana é um fraco apoio, uma débil barreira. Temos de ser sustentados
pelo poder de Deus, de contrário cederemos, mais tarde ou mais cedo. A fé que se
apoia meramente na sabedoria dos homens, e não no poder de Deus, mostrará ser
uma fé pobre, inconsistente e inútil. Não subsistirá no dia da provação; não
suportará o fogo; certamente sucumbirá.
É conveniente recordar isto. Uma fé de segunda mão de nada servirá. Tem de
haver um elo vivo ligando a alma com Deus. Nós próprios temos de tratar,
individualmente, com Deus, de contrário cederemos quando vier o tempo da
provação. A influência humana e o exemplo humano podem ser muito bons no seu
próprio lugar. Era muito bom olhar para Josué e os anciãos e ver como seguiam
fielmente ao Senhor. É bem verdade que "O ferro com o ferro se aguça, assim o
homem afia o rosto do seu amigo". (Pv 27:17). É muito animador estar- se rodeado
por um número de fiéis verdadeiramente dedicados; muito agradável ser
conduzido por uma corrente de lealdade coletiva a Cristo — à Sua Pessoa e à Sua
causa. Mas se isto for tudo, se não houver a origem profunda de fé pessoal e de
conhecimento pessoal; se não existir o laço divinamente formado e divinamente
mantido de parentesco e comunhão individual, então quando os apoios humanos
são removidos, quando a corrente de influência humana enfraquece, quando se dá
o abandono geral, nós seremos, em princípio, como Israel seguindo o Senhor todos
os dias de Josué e dos anciãos, e então deixaremos de confessar o Seu nome e
retrocederemos para as loucuras e vaidades deste presente século — coisas que não
são melhores, na realidade, do que Baal e Astarote.
O Único Fundamento
Mas por outro lado quando o coração está completamente estabelecido na verdade
e graça de Deus; quando podemos dizer — como é privilégio de todo crente dizer
— "Eu sei em quem tenho crido, e estou certo que é poderoso para guardar o meu
tesouro até aquele dia", então, ainda que todos se afastem da confissão pública de
Cristo, ainda que tenhamos de ficar sem o auxílio de um semblante humano, ou do
apoio de um braço humano, acharemos que "o fundamento de Deus" é como
sempre firme; e a senda da obediência tão clara diante de nós como se milhares a
seguissem com santa decisão e energia.
Nunca devemos perder de vista o fato que o propósito divino é que a igreja
professante de Deus aprenda profundas e santas lições com a história de Israel.
"Porque tudo que dantes foi escrito para nosso ensino foi escrito, para que, pela
paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança" (Rm 15:4). Nem é
necessário, de modo algum, a fim de nos instruirmos nas Escrituras do Velho
Testamento ocuparmo-nos em buscar analogias extravagantes, teorias curiosas ou
ilustrações artificiosas. Muitos, infelizmente, têm experimentado estas coisas, e em
vez de encontrarem "conforto" nas Escrituras, têm sido arrastados para opiniões
vãs, senão erros mortais.
Mas o que nos interessa são os fatos vivos relatados nas páginas da história
inspirada. Estes fatos têm de ser o nosso estudo: deles temos de tirar grandes lições
práticas. Tome-se por exemplo o fato grave e admonitório que temos diante de nós
— um fato que aparece com tanto relevo e com traços tão profundos nas páginas da
história de Israel desde Josué a Isaías — o fato do lamentável afastamento de Israel
da própria verdade que haviam sido especialmente chamados para manter e
professar, isto é, a unidade da Deidade. A primeira coisa que fizeram foi abandonar
esta grande e importantíssima verdade, a pedra angular, fundamento de todo o
edifício, o verdadeiro núcleo da sua existência nacional, o centro vivo da sua
política nacional. Abandonaram-no e voltaram-se para a idolatria de seus
antepassados de antes do dilúvio e das nações pagãs à sua volta. Abandonaram a
verdade mais gloriosa e distinta, da manutenção da qual dependia a sua própria
existência como nação. Tivessem eles mantido com firmeza essa verdade, e teriam
sido invencíveis; mas, abandonando-a, eles renderam tudo e tornaram-se muito
piores que as nações à sua volta, visto que pecaram contra a luz e conhecimento —
pecaram com os olhos abertos — pecaram ante as mais solenes admoestações e as
mais ternas súplicas; e, podemos acrescentar, apesar das mais veementes e
reiteradas promessas e protestos de obediência.

Israel Abandonou este Fundamento, mas Haverá uma Restauração Futura


Sim, prezado leitor, Israel abandonou o culto do único Deus vivo e verdadeiro,
Javé Elohim, o seu Deus do concerto; não apenas seu Criador, mas seu Redentor;
Aquele que os havia tirado da terra do Egito; que os havia conduzido através do
mar Vermelho; que os guiara através do deserto; que os trouxera através do Jordão,
e os plantara, em triunfo, na posse da herança que havia prometido a seu pai
Abraão. "Uma terra que mana leite e mel, que é a glória de todas as nações."
Voltaram-Lhe as costas, e entregaram-se ao culto de deuses falsos.
"Provocaram-No à ira com os seus lugares altos, e a zelos com as suas imagens de
escultura."
É espantoso que um povo que havia visto e conhecido tanto da bondade e
misericórdia de Deus, os Seus atos poderosos, a Sua fidelidade, majestade, a glória,
pudesse jamais curvar-se ante um tronco de árvore. Mas assim foi. Toda a sua
história desde os dias do bezerro, ao pé do Monte Sinai, ao dia em que
Nabucodonosor reduziu Jerusalém a escombros, está marcada por um espírito
indomável de idolatria. Em vão o Senhor, em Sua longânima misericórdia e
bondade, os libertou e os levantou das consequências terríveis do seu pecado e
loucura. Em Sua inesgotável misericórdia e paciência, repetidas vezes os salvou das
mãos dos seus inimigos. Levantou um Otniel, um Eúde, um Baraque, um Gideão,
um Josafá, um Sansão, instrumentos de Sua misericórdia e poder, testemunhas do
Seu profundo, terno amor e compaixão para com o Seu pobre povo enfatuado.
Apenas cada juiz desaparecia da cena, a nação submergia-se outra vez no seu
pecado habitual de idolatria.
Assim sucedia também nos dias dos reis. E a mesma triste história de cortar o
coração. E verdade que havia brilhantes exceções, por aqui e por ali, algumas
refulgentes estrelas brilhando através da profunda escuridão da história nacional;
temos um Davi, um Asa, um Josafá, um Ezequias, um Josias — animadoras e
benditas exceções da negra e deplorável regra geral. Mas até mesmo homens como
estes falharam em arrancar do coração do povo a perniciosa raiz da idolatria. Até
por entre os esplendores incomparáveis do reinado de Salomão essa raiz deitou os
seus amargos rebentos na forma monstruosa dos altos dedicados a Astarote, a deusa
dos sidônios; Malcom, a abominação dos amonitas; e a Quemos, a abominação de
Moabe.
Prezado leitor, pensa nisto. Detém-te por momento e repara no fato assombroso de
o escriba de Cantares, Eclesiastes e dos Provérbios inclinando-se ante o altar de
Moloque! Imagina o mais sábio, o mais opulento e glorioso dos monarcas de Israel
queimando incenso e oferecendo sacrifícios no altar de Quemos!
Na verdade, temos aqui um motivo de meditação. Está escrito para nosso ensino. O
reinado de Salomão proporciona uma das provas mais notáveis e tocantes do fato
que neste momento ocupa a nossa atenção, isto é, a completa e desesperada
apostasia da grande verdade da unidade da Deidade—o seu espírito indomável de
idolatria. A verdade que haviam sido chamados especialmente a confessar e
manter, foi a própria verdade que eles, antes de tudo e persistentemente,
abandonaram.
Não prosseguiremos a sombria linha de evidência; nem nos deteremos na descrição
do quadro aterrador do juízo da nação em consequência da sua idolatria.
Encontram-se agora no estado de que falou o profeta Oséias: "Porque os filhos de
Israel ficarão por muitos dias sem rei, e sem príncipe, e sem sacrifício, e sem
estátua, e sem éfode ou terafins" (Os 3:4). "O espírito imundo de idolatria tem saído
deles" durante estes "muitos dias" para voltar, em breve, trazendo consigo "outros
sete espíritos piores do que ele" (Lc 11:26) — a própria perfeição de maldade
espiritual. E então seguir-se-ão dias de grande tribulação para esse povo por tanto
tempo mal guiado e grandemente revoltoso — "O tempo da tribulação de Jacó".
Mas a libertação virá, bendito seja Deus! Dias brilhantes estão reservados para a
nação restaurada — "dias do céu sobre a terra" — como nos diz o mesmo profeta
Oséias: "Depois, tornarão os filhos de Israel e buscarão o SENHOR, seu Deus, e
Davi, seu rei; e temerão o SENHOR, e a sua bondade, no fim dos dias." Todas as
promessas de Deus a Abraão, Isaque, Jacó e Davi serão bem-aventuradamente
cumpridas; todas as brilhantes predições dos profetas, desde Isaías a Malaquias,
serão gloriosamente cumpridas. Sim, tanto as promessas como as profecias serão
literal e gloriosamente cumpridas a Israel restaurado, na terra de Canaã; porque "a
Escritura não pode ser anulada". A longa, escura, triste noite será seguida pelo dia
mais brilhante que jamais resplandeceu sobre a terra; a filha de Sião expor-se-á aos
resplandecentes e benditos raios do "Sol da Justiça"; e "a terra será cheia do
conhecimento do SENHOR, como as águas cobrem o mar."
Seria na verdade uma tarefa agradável reproduzir nas páginas deste volume as
passagens resplandecentes do§ profetas que falam do futuro de Israel; mas não
podemos intentar fazê-lo, nem é necessário; e temos um dever a cumprir, que se
não é tão agradável para nós, ou animador para o leitor, esperamos que seja não
menos proveitoso.
O dever a que nos referimos é de chamar a atenção do leitor — a atenção de toda a
Igreja de Deus — para a aplicação prática do fato solene da história de Israel acerca
do qual nos havemos alargado — o fato de Israel ter abandonado tão depressa e
completamente a grande verdade exposta em Deuteronômio 6:4: "Ouve, ó Israel, o
Senhor nosso Deus é o único Senhor."

O que Tem isso a Ver com a Igreja?


Perguntar-se-á: "Que relação pode ter este fato com a Igreja de Deus?" Cremos que
tem uma relação importantíssima; e, além disso, julgamos que seríamos culpados
de descuido no cumprimento do nosso dever a Cristo e à Sua Igreja se deixássemos
de assinalar esta relação. Sabemos que todos os grandes fatos da história de Israel
estão repletos de instrução, de admoestação e de advertência para nós. É nosso
dever e obrigação ver que tiramos proveito com eles, e ter cuidado de os
estudarmos convenientemente.
Ora considerando a história da Igreja de Deus como um testemunho público de
Cristo na terra, encontramos que apenas havia sido estabelecida em toda a sua
plenitude de bênção e privilégio que marcaram o princípio da sua carreira, já havia
começado a afastar-se das próprias verdades que era especialmente responsável por
manter e confessar. Como Adão, no jardim do Éden; como Noé, na terra
restaurada; como Israel, em Canaã, a Igreja, como despenseira responsável dos
mistérios de Deus, apenas instalada no seu lugar, começou a vacilar e a cair.
Começou logo a abandonar essas grandes verdades que eram características da sua
própria existências e que deviam distinguir o cristianismo de tudo que o havia
antecedido. Até mesmo sob os olhos dos apóstolos de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo os erros e os males começaram a obrar e minaram os próprios
fundamentos do testemunho da Igreja.
Querem provas? Ah! Nós têmo-las em triste abundância! Escutemos as palavras
desse bem-aventurado apóstolo que derramou mais lágrimas e deu mais suspiros
sobre as ruínas da Igreja do que homem algum. "Maravilho-me", diz ele, e bem
podia, "de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo
para outro evangelho; o qual não é outro." "O insensatos gálatas! Quem vos
fascinou para não obedecerdes à verdade, a vós, perante os olhos de quem Jesus
Cristo foi representado como crucificado?" "Mas, quando não conhecíeis a Deus,
servíeis aos que por natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus ou,
antes, sendo conhecidos de Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos
e pobres, aos quais de novo quereis servirá Guardais dias, e meses, e tempos, e
anos" — festividades cristãs, assim chamadas, imponentes e agradáveis à natureza
religiosa, porém, no juízo do apóstolo, o juízo do Espírito Santo, era simplesmente
abandonar o cristianismo e voltar para o culto dos ídolos — "Receio de vós" — e
não era de admirar, visto que eles podiam tão rapidamente abandonar as grandes
verdades características do cristianismo celestial e ocuparem-se com cerimônias
supersticiosas — "que haja eu trabalhado em vão para convosco." Corríeis bem;
quem vos impediu para que não obedeçais à verdade?- Esta persuasão não vem
daquele que vos chamou. Um pouco de fermento levada toda a massa".
E tudo isto acontecia nos próprios dias dos apóstolos. A apostasia foi ainda mais
rápida que no caso de Israel; visto que serviram ao Senhor todos os dias de Josué e
durante os dos anciãos que sobreviveram a Josué; na história triste e humilhante da
Igreja, o inimigo conseguiu, quase imediatamente, introduzir fermento na massa,
joio no trigo. Antes que os apóstolos partissem da cena semeou-se semente que tem
produzido desde então os seus frutos perniciosos, e continuará a produzi-los até
que os segadores angélicos limpem o campo.
Mas devemos dar mais provas da Escritura. Escutemos a mesma testemunha
inspirada, quase no final do seu ministério, abrindo o coração ao seu filho amado
Timóteo, em acentos ao mesmo tempo patéticos e solenes. "Bem sabes isto: que os
que estão na Ásia todos se apartaram de mim" (2 Tm 1:15). Conjuro- te [...] que
pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes,
com toda a longanimidade e doutrina. Porque virá tempo em que não sofrerão e sã
doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores
conforme as suas próprias concupiscências; e desviarão os ouvidos da verdade,
voltando às fábulas" (2 Tm 4:1 a 4).
Aqui está o testemunho do homem que, como sábio arquiteto, pôs o fundamento
da Igreja. E qual era a sua experiência pessoal? Foi, como o seu bendito Mestre,
deixado só, abandonado por aqueles que se haviam reunido ao redor de si durante
os frescos, florescentes e ardorosos primeiros dias. O seu grande coração, cheio de
amor, sentia-se ferido pelos ensinadores judaicos que procuravam subverter os
fundamentos do cristianismo e transtornar a fé dos eleitos de Deus. Chorava com o
procedimento de muitos que, ao mesmo tempo que faziam profissão, eram,
todavia, "inimigos da cruz de Cristo".
Numa palavra, o apóstolo Paulo, olhando da sua prisão em Roma, viu o inevitável
naufrágio e ruína do corpo professante. Viu que aconteceria a esse corpo o que
aconteceu ao barco em que ele havia feito a sua última viagem — uma viagem
notavelmente significativa e ilustrativa da triste história da Igreja neste mundo.
Mas aqui devemos lembrar ao leitor que agora tratamos apenas da questão da Igreja
como um testemunho responsável de Cristo na terra. Isso tem de ser
convenientemente compreendido, de contrário poderemos errar grandemente nos
nossos pensamentos sobre o assunto. Devemos distinguir claramente entre a Igreja
como corpo de Cristo e como Sua luz ou testemunha na terra. Em seu primeiro
caráter, o fracasso é impossível; e no último a ruína é completa e irremediável.

A Igreja, o Corpo de Cristo


A Igreja como corpo de Cristo, unida ao seu Cabeça vivente e glorificado nos céus,
pela presença do Espírito Santo, nunca poderá, de modo algum, falhar — nunca
poderá ser feito em bocados, como o barco de Paulo, pelas tormentas e vagas deste
mundo hostil. Está tão seguro quanto Cristo. O Cabeça e o corpo são um
—indissoluvelmente um. Nenhum poder na terra ou no inferno, homens ou
demônios podem jamais tocar o membro mais fraco e obscuro desse abençoado
corpo. Todos subsistem perante Deus, todos estão sob as Suas graciosas vistas, na
plenitude, beleza e aceitação de Cristo mesmo. Como é o Cabeça, assim são os
membros — todos os membros estão unidos — cada membro em particular. Todos
permanecem nos resultados plenos e eternos da obra de Cristo cumprida na cruz.
Não pode haver questão de responsabilidade aqui. O Cabeça tornou-Se responsável
pelos membros. Satisfez perfeitamente toda a exigência, e pagou toda a dívida.
Nada mais resta senão amor—amor profundo como o coração de Cristo, perfeito
como a Sua obra, imutável como o Seu trono. Toda a questão que podia de algum
modo suscitar-se contra qualquer ou todos os membros da Igreja de Deus, foi
levantada, tratada e definitivamente liquidada entre Deus e Cristo na cruz. Todos
os pecados, todas as iniquidades, todas as transgressões, toda a culpa de cada
membro em particular de todos os membros juntos, sim, tudo, da maneira mais
absoluta e completa, foi posto sobre Cristo e levado por Ele. Deus, em Sua justiça
inflexível, em Sua infinita santidade, em Sua justiça eterna, tratou de tudo que
podia, de qualquer modo, interpor-se no caminho da plena salvação, perfeita
bem-aventurança e glória eterna de cada um dos membros do corpo de Cristo — a
Assembleia (ou: Igreja) de Deus. Todo o membro desse corpo está penetrado pela
vida do Cabeça; cada pedra no edifício está animada pela vida da pedra angular.
Tudo está ligado entre si no poder de um vínculo que nunca poderá ser desfeito.
E, além disso, compreenda-se que a unidade do corpo de Cristo é absolutamente
indissolúvel. Isto é um ponto fundamental que deve ser tenazmente mantido e
confessado com fidelidade. Mas, evidentemente, não pode ser mantido e
confessado a menos que seja compreendido e crido; e, a julgar pelas expressões que
se ouvem às vezes sobre o assunto, é muito duvidoso que as pessoas que assim se
exprimem, tenham alguma vez compreendido, no sentido divino, a verdade
gloriosa da unidade do corpo de Cristo — uma unidade mantida na terra pela
presença do Espírito Santo.
Assim, por exemplo, algumas vezes ouvimos pessoas que falam de "dilacerar o
corpo de Cristo". E um completo erro. Os reformadores foram acusados de
dilacerar o corpo de Cristo quando voltaram as costas ao sistema do romanismo.
Que crasso juízo! Este juízo equivalia simplesmente à suposição anormal que uma
grande massa de males de ordem moral, erros doutrinários, corrupção eclesiástica
e degradantes superstições devia ser considerada como o corpo de Cristo! Como
poderia alguém, com o Novo Testamento na mão, considerar o romanismo, com a
sua abominável idolatria, como o corpo de Cristo«?- Como poderia alguém que
possuísse a mais simples noção da verdadeira Igreja de Deus conceder esse título à
mais negra massa de maldade, a maior obra-prima de Satanás que o mundo jamais
contemplou?-
Não, prezado leitor, nunca devemos confundir os sistemas eclesiásticos deste
mundo — antigo, medieval ou moderno, grego, latino, anglicano, nacional ou
popular, estabelecido ou dissidente, com a verdadeira Igreja de Deus, o corpo de
Cristo.
Não existe abaixo da abóbada celeste, nem jamais houve, um sistema religioso,
chame-se o que se quiser, que tenha o menor direito a ser chamado "A Igreja do
Deus Vivo" ou "O Corpo de Cristo". E, portanto, nunca poderá ser considerado
cisma, pelo menos reta e inteligentemente, ou fazer divisões no corpo de Cristo,
alguém separar-se de tais sistemas; antes, pelo contrário, é dever de todo aquele
que quer manter e confessar fielmente a verdade da unidade do corpo separar-se
com indiscutível decisão de tudo o que falsamente se chame a si mesmo uma igreja.
Só pode ser considerado cisma, a separação daqueles que, inconfundível e
indiscutivelmente, se reúnem sobre o terreno da assembleia de Deus.
Nenhuma corporação de cristãos pode reclamar o título de Corpo de Cristo ou
Igreja de Deus. Os membros desse corpo estão espalhados por toda a parte;
encontram-se em todas as diversas organizações religiosas dos nossos dias, salvo as
que negam a deidade de nosso Senhor Jesus Cristo. Não podemos admitir a ideia de
qualquer verdadeiro cristão poder continuar a frequentar um lugar onde o seu
Senhor é blasfemado. Mas embora nenhuma corporação de cristãos possa reclamar
o título de Assembleia de Deus, todos os cristãos têm a responsabilidade de se
reunir sobre o terreno dessa assembleia, e em nenhum outro.
E se nos perguntam: "Como podemos saber ou encontrar esse terreno?" Nós
respondemos: "Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz" (Mt 6:22).
"Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de
Deus." Graças a Deus, "Essa vereda a ignora a ave de rapina, e não a viram os olhos
da gralha. Nunca a pisaram filhos de animais altivos, nem o feroz leão passou por
ela" (Jó 28:7, 8). A mais pura visão da natureza não pode ver esta vereda nem a sua
mais poderosa força pode pisá-la. Então, onde está ela?- Ei-la: "E disse ao homem"
— ao leitor, ao escritor, a cada um, a todos — "Eis que o temor do SENHOR é a
sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência" (Jó 28:28).
Mas há outra expressão que ouvimos frequentemente a pessoas de quem
poderíamos esperar mais inteligência, isto é, "separar membros do corpo de Cristo"
(1). Isto também é, bendito seja Deus, impossível. Nem um só membro do corpo de
Cristo poderá jamais ser separado do Cabeça ou incomodado no lugar em que tem
sido incorporado pelo Espírito Santo, em prosseguimento do eterno propósito de
Deus e em virtude da obra de expiação cumprida por nosso Senhor Jesus Cristo. A
Trindade Divina está comprometida na segurança eterna do mais fraco membro do
corpo e na manutenção da unidade indissolúvel do conjunto.
__________
(1) A expressão "separar membros do corpo de Cristo" é geralmente aplicada em
casos de disciplina. Mas é uma má aplicação. A disciplina da assembleia nunca
poderá afetar a unidade do corpo. Um membro do corpo pode falhar em moral ou
errar na doutrina de tal modo que seja precisa a ação da assembleia para o afastar
da Mesa; mas isso nada tem que ver com o seu lugar no corpo. As duas coisas são
perfeitamente distintas.

A Continuidade e Unidade deste Corpo


Em suma, é, portanto, tão verdade hoje como era quando o apóstolo inspirado
escreveu o capítulo 4 da sua epístola aos Efésios que "há um só corpo", do qual
Cristo é o Cabeça, do qual o Espírito Santo é o poder formativo, e do qual todos os
verdadeiros crentes são membros. Este corpo tem estado na terra desde o dia de
Pentecostes, está na terra no tempo presente, e continuará na terra até ao
momento, que tão depressa se aproxima, em que Cristo virá e o levará para a casa
de Seu Pai. E o mesmo corpo, com uma contínua sucessão de membros,
precisamente do mesmo modo que falamos de determinado regimento do exército
do rei como tendo estado em Waterloo e agora aquartelado em Aldershot, embora
nem um só homem no regimento atual tivesse estado na memorável batalha de
1815.
O leitor encontra alguma dificuldade em tudo isto? Pode ser que ache um tanto
difícil, dado o estado de discórdia e desunião dos membros, crer e confessar a
unidade inquebrantável do conjunto. Pode sentir-se disposto a limitar a aplicação
de Efésios 4:4 aos dias em que o apóstolo escreveu as palavras, quando os cristãos
estavam, manifestamente, unidos e quando se não pensava em tal coisa como ser
membro desta ou daquela igreja; porque todos os crentes eram membros da igreja
única (1).
___________
(1) A unidade da igreja pode ser comparada a uma cadeia estendida sobre um rio;
nós podemos vê-la de ambos os lados, mas ela está metida na água pelo meio. Mas
embora se não veja o meio dela, não está quebrada; embora não consigamos ver a
união das duas extremidades, cremos que ela está lá. A igreja foi vista em toda a sua
unidade no dia de Pentecostes, e será vista na sua unidade na glória; e embora não
seja possível vê-la agora cremos certamente contudo, que ela existe.
E note-se que a unidade do corpo é uma grande verdade prática, uma conclusão
pela qual o estado e conduta de cada membro afeta todo o corpo. "Se um membro
sofre, todos sofrem com ele". Um membro de quê? De uma assembleia local? Não;
mas um membro do corpo. Não devemos tornar o corpo de Cristo num caso de
geografia.
"Mas", pode perguntar-se, "somos nós afetados pelo que não vemos ou
conhecemos?" Certamente. Devemos limitar a grande verdade da unidade do
corpo, com todas as suas consequências práticas, à medida do nosso conhecimento
pessoal e da nossa própria experiência? Longe de nós tal pensamento. E a presença
do Espírito Santo que promove a união dos membros do corpo à Cabeça e uns aos
outros; e é por isso que a conduta e os caminhos de cada um afetam todos. Até
mesmo no caso de Israel, em que se não tratava de uma união corpórea, mas
nacional, quando Acã pecou, foi dito, "Israel pecou"; e toda a congregação sofreu
uma derrota humilhante por causa do pecado que desconheciam.
E espantoso o modo como o povo do Senhor parece compreender tão pouco a
verdade gloriosa da unidade do corpo e as consequências práticas que dela
emanam.

Em resposta, devemos protestar contra a ideia de limitar a Palavra de Deus. Que


direito temos nós para assinalar uma cláusula de Efésios 4:4 a 6 e dizer que se
aplicava somente aos dias dos apóstolos?- Se uma cláusula há de ser assim limitada,
por que não todas?- Não há "um só Espírito, um só Senhor, uma só fé, um só
batismo, um só Deus e Pai de todos? Quererá alguém duvidar disto?- Não,
certamente. Então segue-se que há seguramente um corpo assim como há um
Espírito, um Senhor, um Deus. Todos estão intimamente unidos entre si, e não
pode tocar-se num sem tocar em todos. Não há mais direito de negar a existência
do único corpo do que temos para negar a existência de Deus, visto que a
mesmíssima passagem que nos declara um, declara-nos também o outro.
Mas perguntar-se-á: "Onde pode ver-se este corpo? Não é absurdo falar de tal
coisa, devido às quase inumeráveis denominações da cristandade?" A nossa
resposta é esta: Não vamos abandonar a verdade de Deus por que o homem tem
falhado tão estrondosamente em a cumprir. Não falhou Israel completamente em
manter, confessar e cumprir a verdade da unidade da Deidade? E essa gloriosa
verdade foi porventura afetada no mais baixo grau por esse fracasso? Não era tão
verdade que havia um só Deus, embora houvesse tantos altares idólatras como ruas
em Jerusalém, e cada alto despedia uma nuvem de incenso à "rainha do céu", como
quando Moisés proclamava aos ouvidos de toda a congregação essas sublimes
palavras, "Ouve Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR?"
Bendito seja Deus, a Sua verdade não depende dos caminhos infiéis, loucos dos
homens. Permanece na sua própria integridade divina; brilha no seu límpido,
celestial esplendor, apesar das mais crassas falhas humanas. Se não fosse assim, que
faríamos? Para onde nos voltaríamos? Ou o que seria de nós? De fato, se tivéssemos
de crer apenas a medida de verdade que vemos levada a cabo nos caminhos dos
homens, podíamos desistir em desespero, e seríamos os mais miseráveis dos
homens.
Mas como a verdade de um só corpo há de ser posta em prática? Recusando
reconhecer qualquer outro princípio da comunhão cristã — qualquer outro
fundamento de reunião. Todos os verdadeiros crentes se devem reunir
simplesmente como membros do corpo de Cristo, e sobre nenhum outro
fundamento. Devem reunir-se no primeiro dia da semana ao redor da Mesa do
Senhor e partir o pão, como membros do único corpo, como lemos em 1 Coríntios
10: "Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo; porque todos
participamos do mesmo pão." Isto é tão verdadeiro e prático hoje como o era
quando o apóstolo se dirigia à assembleia de Corinto. É verdade que havia divisões
em
Corinto como há divisões na cristandade; mas isso não afetava, de modo nenhum, a
verdade de Deus. O apóstolo condenou as divisões — declarou-as como carnais.
Não tinha contemplação com a infeliz ideia que algumas vezes se ouve apregoar de
que as divisões são boas para produzir competição. Achava que eram muito más —
fruto da carne, obra de Satanás.
Nem tampouco, estamos certos, o apóstolo aceitaria o exemplo popular de que as
divisões na Igreja são como muitos regimentos, com diferentes fardamentos,
combatendo todos sob o mesmo comandante-em-chefe. Tal ideia não pode
manter- se nem por um momento. Com efeito, não tem aplicação alguma ao nosso
caso, antes representa uma contradição à afirmação clara e enfática de que "há um
só corpo".
Leitor, isto é uma verdade gloriosa. Consideremo-la atentamente. Contemplemos
a cristandade à luz dela. Julguemos por ela o nosso próprio estado e a nossa
conduta. Atuamos de conformidade com ela? Damos-lhe expressão à Mesa do
Senhor todo primeiro dia da semanal Estejamos seguros de que é nosso dever e
elevado privilégio fazê-lo. Não digamos que há dificuldades de toda a espécie,
muitas pedras de tropeço pelo caminho; muito para nos desanimar na conduta
daqueles que professam reunir-se no próprio terreno de que falamos.
Tudo isto é infelizmente muito verdade. Temos de estar preparados para isso. O
diabo não deixa nenhuma pedra por remover a fim de lançar pó sobre os nossos
olhos para não podermos ver o bendito caminho de Deus para o seu povo. Contudo
não devemos prestar atenção às suas sugestões ou ser enredados pelos seus
expedientes. Sempre tem havido e sempre haverá dificuldades em levar a cabo a
verdade preciosa de Deus, e talvez que uma das maiores dificuldades seja
encontrada na conduta inconsistente daqueles que professam atuar de
conformidade com ela.
Porém, temos de distinguir sempre entre a verdade e os que a professam — entre o
fundamento e a conduta dos que o ocupam. Claro que as duas coisas deveriam estar
em harmonia; mas não estão; e por isso nós somos formalmente chamados para
julgar a conduta pelo fundamento e não o fundamento pela conduta. Se víssemos
um homem cultivando um campo segundo princípios que sabíamos serem
perfeitamente corretos, mas que ele era um mau agricultor, que faríamos? Claro
que rejeitaríamos o seu modo de trabalhar, mas reconheceríamos os princípios
como bons.
Outro tanto acontece com a verdade que temos perante nós. Havia heresias em
Corinto, cismas, erros, males de toda a espécie. Então? Devia abandonar-se a
verdade de Deus como se fosse um mito, como alguma coisa totalmente
impraticável? Devia dar-se de mão a tudo? Deveriam os Coríntios reunir-se sobre
qualquer outro princípio? Deveriam organizar-se sobre qualquer outro terreno?
Deveriam reunir-se em redor de qualquer outro centro? Não; graças a Deus! A Sua
verdade não devia ser abandonada, nem por um momento, ainda que Corinto
estivesse dividida em dez mil seitas e o seu horizonte obscurecido por dez mil
heresias. O corpo de Cristo era um só; e o apóstolo desenrola simplesmente ante os
seus olhos a bandeira com esta bendita inscrição: "Vós sois [o] corpo de Cristo, e
seus membros em particular."
Ora estas palavras foram ditas não meramente "à igreja de Corinto", mas também
"a todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo,
Senhor deles e nosso". Por isso, a verdade de "um só corpo" é permanente e
universal. Todo o verdadeiro cristão está obrigado a reconhecê-la e a atuar de
conformidade com ela, e toda assembleia de cristãos, onde quer que se reúna, deve
ser a expressão local desta importantíssima verdade.
Talvez alguém se sinta disposto a perguntar como era possível dizer a uma
assembleia: "Vós sois [o] corpo de Cristo." Não havia santos em Éfeso, Colossos e
Filipos? Certamente que havia; e se o apóstolo se tivesse dirigido a eles sobre o
mesmo assunto, teria dito do mesmo modo, "vós sois [o] corpo de Cristo", visto que
eles eram a expressão local do corpo de Cristo;
e não só isso, mas, dirigindo-se a eles, tinha em mente todos os santos, até o fim da
carreira terrestre da Igreja.
Mas devemos ter presente o fato de que o apóstolo não poderia dirigir tais palavras
a nenhuma organização humana, antiga ou moderna. Não; ainda mesmo que todas
as organizações, chamem-se como se quiser, se unissem, ele não podia falar delas
como "corpo de Cristo". Esse corpo, compreenda-se bem, consiste de todos os
verdadeiros crentes sobre a face da terra. Não estarem reunidos somente sobre essa
base divina, é para eles uma grave perda e desonra para o Senhor. Contudo, a
verdade preciosa subiste — "há um só corpo"; e este é o padrão divino pelo qual
deve medir-se todas as associações eclesiásticas e todos os sistemas religiosos
abaixo do sol.

Qual é o Testemunho Geral da Igreja?


Parece-nos que é de certo modo necessário estudar detalhadamente o lado divino
da questão da Igreja a fim de resguardar a verdade de Deus dos resultados da má
compreensão, e para que o leitor possa compreender claramente que, quando
falamos da completa ruína da igreja, estamos considerando o assunto quanto ao seu
lado humano. Mas, trataremos, por uns momentos, deste último aspecto.
É impossível ler o Novo Testamento com calma e a mente livre de preconceitos e
não ver que a igreja, como testemunho responsável de Cristo na terra, fracassou
notória e vergonhosamente. Citar todas as passagens em prova desta afirmação
formaria literalmente um bom volume. Mas passemos uma vista de olhos aos
capítulos 2 e 3 do Apocalipse, onde a igreja é vista sob o juízo. Nesses solenes
capítulos nós temos o que podemos chamar uma história divina da igreja. Sete
assembleias são escolhidas como exemplos das diversas fases da história da igreja,
desde o dia em que ela foi estabelecida, na terra, até ser vomitada da boca do
Senhor, como alguma coisa absolutamente intolerável. Se não vemos que estes dois
capítulos são proféticos, bem como históricos, privamo-nos de um vasto campo da
mais valiosa instrução. Quanto a nós, podemos apenas assegurar ao leitor que
nenhuma linguagem humana poderia expor de um modo apropriado o que temos
podido recolher de Apocalipse 2 e 3 quanto ao seu aspecto profético.
Contudo, referimo-nos a eles como as últimas de uma série de provas da nossa
presente tese. Pense-se na carta a Éfeso, a mesmíssima igreja a que Paulo escreveu
a sua maravilhosa epístola, descobrindo nela, de um modo tão bem-aventurado, o
lado celestial de coisas, o propósito eterno de Deus a respeito da Igreja — a posição
e porção da igreja, aceite em Cristo, e abençoada com todas as bênçãos espirituais
nos lugares celestiais em Cristo. Não existe fracasso aqui. Não há tal pensamento.
Não existe a sua possibilidade. Tudo aqui está nas mãos de Deus. É seu o desígnio, e
Sua obra. É a Sua graça, a Sua glória , o Seu poder, o Seu beneplácito; e tudo está
baseado no sangue de Cristo. Não existe questão de responsabilidade aqui. A igreja
estava "morta em ofensas e pecados", mas Cristo morreu por ela; colocou-Se a Si
próprio, judicialmente, onde ela estava moralmente; e Deus, em Sua graça
soberana, entrou na cena e ressuscitou Cristo dos mortos a igreja n'Ele — fato
glorioso! Aqui tudo está firme e resolvido. É a igreja nos lugares celestiais em
Cristo, não a igreja na terra por Cristo. E o corpo "aceito" não o castiçal julgado. Se
não vemos os dois lados desta grande questão, temos muito que aprender.
Mas existe o lado terrestre, bem como o celestial; o humano assim como o divino.
E por isso que no relato judicial de Apocalipse 2 lemos palavras solenes como as
seguintes: "Tenho contra ti, que deixaste o teu primeiro amor."
Que diferença! Nada disto vemos em Efésios! — nada contra o corpo, nada contra a
noiva; mas há alguma coisa contra o castiçal. A luz já então se havia tornado pálida.
Apenas acaba de ser acesa e há eram precisos espevitadores.
Até mesmo no princípio já se manifestavam claramente os sintomas de declínio à
vista penetrante d'Aquele que andava no meio dos sete castiçais de ouro; e quando
chegamos ao final e contemplamos a última fase do estado da igreja — o último
período da sua história terrestre, como é ilustrada pela assembleia de Laodicéia,
não há um só traço de redenção. O caso é desesperado. O Senhor está fora da porta.
"Eis que estou à porta, e bato." Aqui não é como em Éfeso: "Tenho, porém, contra ti
que deixaste o teu primeiro amor." Toda a condição é má. O corpo professante está
a ponto de ser todo abandonado. "...Vomitar-te-ei da minha boca." O Senhor ainda
Se demora, bendito seja o Seu nome, porque Ele é sempre tardo em abandonar o
lugar de misericórdia ou ocupar o lugar do juízo. Isto faz-nos lembrar a partida da
glória, no princípio de Ezequiel. Moveu-se com passo vagaroso e medido, com
desgosto por deixar a casa, o povo e a terra. "Então, se levantou a glória do
SENHOR de sobre o querubim para a entrada da casa; e encheu- se a casa de uma
nuvem, e o átrio se encheu do resplendor da glória do SENHOR." "Então, saiu a
glória do SENHOR da entrada da casa, e parou sobre os querubins." "E a glória do
SENHOR se alçou desde o meio da cidade e se pôs sobre o monte que está ao
oriente da cidade" (Ez 10:4, 18; 11:23).
Isto é profundamente comovedor. Quão notável é o contraste entre esta retirada
lenta da glória e a sua rápida entrada no dia da dedicação da casa por Salomão,
segundo 2 Crônicas 7:1. O Senhor foi rápido em entrar na Sua morada no meio do
Seu povo; mas lento em a abandonar. Foi, para falar segundo a maneira dos
homens, obrigado a partir por causa dos pecados e impenitência do Seu enfatuado
povo.
Assim sucedeu com a Igreja. Vemos em Atos 2 a entrada rápida do Senhor na Sua
casa espiritual. Veio como um vento veemente e impetuoso para encher a casa com
a Sua glória. Mas no terceiro capítulo de Apocalipse vemos a Sua atitude. Está do
lado de fora. Sim; mas bate. Demora-se, não, por certo, com alguma esperança de
restauração corporativa; mas porque "alguém" pode "ouvira sua voz e abrir a
porta". O fato de estar do lado de fora mostra o que a igreja é. O fato de bater à
porta demonstra o que Ele é.
Prezado leitor crente, procura compreender perfeitamente todo este assunto. E da
máxima importância que o faças. Estamos rodeados, por todos os lados, de falsas
ideias acerca do estado atual e destino futuro da Igreja professante. Devemos
deitá-las todas para trás das costas com santa decisão e ouvir com ouvidos
circuncidados e reverente entendimento o ensino da Sagrada Escritura. Esse
ensino é tão claro como a luz do meio dia. A igreja professante está em
irremediável ruína, e o juízo está à porta. Lê a epístola de Judas, a 2 de Pedro 2 e 3 e
a 2 a Timóteo. Põe de lado este livro e fixa atentamente essas solenes Escrituras e
estamos persuadidos de que terminarás o estudo profunda e plenamente
convencido que nada existe ante a cristandade senão a ira implacável do Deus
onipotente. A sua sentença está exarada nessa breve mas solene expressão de
Romanos 11: "Também tu serás cortado."
Sim, tal é a linguagem da Escritura. "Cortado", "vomitado". A igreja professante
falhou inteiramente como testemunho de Cristo na terra. Assim como aconteceu
com Israel, está sucedendo com a igreja, a própria verdade que ela tinha a
responsabilidade de manter e confessar abandonou-a deslealmente. Apenas havia
sido terminado o cânone do Novo Testamento, apenas os primeiros obreiros
deixavam o campo, e já trevas espessas desciam e se fixavam sobre todo o conjunto
do corpo professante. Voltemo-nos para onde quisermos, debrucemo-nos sobre os
volumosos tomos dos "pais", como são chamados, e não encontraremos um traço
dessas grandes verdades características do nosso glorioso cristianismo. Tudo, tudo
foi vergonhosamente abandonado. Como Israel, em Canaã, abandonou Javé por
Baal e Astarote, assim a igreja abandonou a verdade pura e preciosa de Deus por
fábulas pueris e erros mortais. Uma tão rápida defecção é de todo assombrosa; mas
foi precisamente como o apóstolo Paulo advertiu os anciãos de Éfeso: "Olhai, pois,
por vós e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para
apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue. Porque
eu sei isto: que, depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que
não perdoarão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens que
falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si" (At 20:28).
Como é verdadeiramente deplorável! Os santos apóstolos de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo foram quase imediatamente sucedidos por "lobos cruéis" e
ensinadores de coisas perversas. O conjunto da igreja submerso em trevas espessas.
A lâmpada da revelação divina quase escondida da vista. Corrupção eclesiástica, de
todas as formas; dominação sacerdotal com todas as suas terríveis consequências.
Em suma, a história da Igreja—a história da cristandade é o mais terrível relato que
jamais foi escrito.

Deus Tem Levantado Testemunhas no Transcorrer dos Anos


Verdade é, graças a Deus, que Ele não Se deixou a Si mesmo sem um testemunho.
Por aqui e por ali, de vez em quando, precisamente como em Israel da antiguidade,
Ele levantou um ou outro para falar por Si. Até mesmo entre as mais profundas
trevas da idade média, apareceu uma estrela ocasional sobre o horizonte. Os
valdenses e outros foram capacitados, pela graça de Deus, para suster firmemente a
Sua Palavra e confessar o nome de Jesus em face da obscura e terrível tirania de
Roma e diabólica crueldade.
Então veio a época gloriosa, no século dezesseis, quando Deus levantou Lutero e os
seus amados e honrados colaboradores para pregarem a grande verdade de
justificação pela fé e dar o precioso livro de Deus ao povo na sua própria língua em
que haviam nascido. Não está ao alcance da linguagem humana expor a bênção
desse tempo memorável. Milhares ouviram as boas novas de salvação — ouviram,
creram e foram salvos. Milhares que haviam gemido por largo tempo sob o peso
intolerável da superstição de Roma, saudaram, com profunda gratidão, a
mensagem celestial. Milhares agruparam-se, com intenso gozo, para tirarem água
dessas fontes de inspiração que haviam estado tapadas durante séculos pela
ignorância e intolerância do papado. A bendita lâmpada de revelação divina,
durante tanto tempo escondida pela mão do inimigo, pôde derramar os seus raios
através das trevas e milhares regozijaram-se na luz celestial.
Mas, enquanto damos graças a Deus de todo o nosso coração por todos os
resultados gloriosos do que é vulgarmente chamado a Reforma do século dezesseis,
incorreríamos em grave erro se imaginássemos que era alguma coisa que se
aproximava da restauração da igreja ao seu estado original. Muito, muito longe
disso. Lutero e os seus companheiros, se julgarmos pelos seus escritos — muitos
deles preciosos — nunca compreenderam a ideia divina da igreja como o corpo de
Cristo. Não compreenderam a unidade do corpo; a presença do Espírito Santo na
assembleia, bem como a sua habitação em cada crente. Nunca chegaram a
compreender a grande verdade do ministério na igreja, "a sua natureza, origem,
poder e responsabilidade". Nunca foram mais além da ideia de autoridade humana
como base do ministério. Nada disseram quanto à esperança específica da igreja,
isto é, a vinda de Cristo para o Seu povo — a resplandecente Estrela da manhã.
Falharam em alcançar o próprio escopo da profecia, e demonstraram que eram
incompetentes para dividir convenientemente a palavra da verdade.
Não queremos ser mal compreendidos. Amamos a memória dos reformadores. Os
seus nomes são familiares entre nós. Foram queridos, consagrados, sinceros,
abençoados servos de Cristo. Oxalá tivéssemos outros semelhantes a eles nestes
dias de reavivamento do papado e crescente infidelidade. A nada cedemos em
nosso amor e estima por Lutero, Melanchthon, Farei, Latimer e Knox. Foram
verdadeiramente luzes brilhantes e resplandecentes nos seus dias; e milhares —
antes, milhões darão graças a Deus, por toda a eternidade, por que eles viveram e
pregaram e escreveram as suas obras. E não somente isto, mas, considerados em sua
vida privada e público ministério, põem um estigma de vergonha em muitos
daqueles que têm sido favorecidos pelo conhecimento de muitas verdades que em
vão buscamos nas obras volumosas dos reformadores.
Todavia, admitindo tudo isto, como franca e reconhecidamente fazemos, estamos
ainda assim convencidos que esses amados e honrados servos de Cristo não
chegaram a alcançar e portanto falharam em pregar e ensinar muitas das verdades
especiais e características do cristianismo; pelo menos não temos encontrado estas
verdades nos seus escritos. Pregaram a preciosa verdade de justificação pela fé;
deram as Sagradas Escrituras ao povo; calcaram aos pés muitas das superstições
romanistas.
Fizeram tudo isto, pela graça de Deus; e por tudo isto nós curvamos as nossas
cabeças em profunda gratidão e louvor ao Pai das misericórdias. Mas o
protestantismo não é o cristianismo; nem as chamadas igrejas da Reforma, quer
nacionais ou dissidentes, são a Igreja de Deus. Longe disso. Volvemos os olhos para
trás através do curso de dezoito séculos e, apesar dos avivamentos ocasionais,
apesar das brilhantes luzes que, em vários tempos têm resplandecido no horizonte
da igreja — luzes que se tornavam mais brilhantes em contraste com a densa
obscuridade que as rodeava —, apesar das muitas manifestações de graça do
Espírito Santo tanto na Europa como na América durante o século passado e o
presente, apesar de todas estas coisas, pelas quais damos graças a Deus de todo o
nosso coração, voltamo-nos decididamente para a afirmação já feita de que a igreja
professante naufragou sem nenhuma esperança; que a cristandade está deslizando
rapidamente num plano inclinado para a negrura das trevas eternas; que os países
altamente favorecidos nos quais abundantemente se tem pregado tanta verdade
evangélica, onde as Bíblias têm circulado aos milhões e os tratados evangélicos se
contam por bilhões, serão ainda cobertos por densas trevas, abandonados à
operação do erro para que creiam a mentira!

O Fim do Homem nesta Terra


E depois? Ah! E depois? Um mundo convertido? Não; mas uma igreja julgada. Os
verdadeiros santos de Deus, espalhados por toda a cristandade — todos os
verdadeiros membros do corpo de Cristo serão arrebatados ao encontro do Senhor
nos ares — os santos mortos serão ressuscitados, os que vivem serão transformados,
num momento, e todos juntos serão levados para estarem para sempre com o
Senhor. Então o mistério será manifestado na pessoa do homem do pecado — o
iníquo, o anticristo. O Senhor Jesus virá e todos os Seus santos com Ele para
executar juízo sobre o império romano restaurado, e o falso profeta ou o anticristo
— o primeiro no Oeste, o último no Este.
Isto será um ato sumário de juízo direto de guerra, sem qualquer processo judicial,
visto que tanto a besta como o falso profeta serão apanhados em rebelião e
blasfema oposição a Deus e ao Cordeiro. Então segue-se o juízo em sessões das
nações, conforme está mencionado em Mateus 25:31 a 46.
Desta forma, vencido todo o mal, Cristo reinará em justiça e paz por mil anos —
um tempo brilhante e bendito, o verdadeiro sábado para Israel e toda a terra — um
período caracterizado por grandes fatos, Satanás preso, e Cristo reinando. Fatos
gloriosos! O simples pensamento deles faz com que o coração transborde de louvor
e ações de graças. O que será a realidade?
Mas Satanás será solto depois do seu cativeiro de mil anos e autorizado a fazer mais
um esforço contra Deus e o Seu Cristo. "E, acabando-se os mil anos, Satanás será
solto da sua prisão, e sairá a enganar as nações que estão sobre os quatro cantos da
terra, Gogue e Magogue, cujo número é como a areia do mar (1), para as ajuntar em
batalha. E subiram sobre a largura da terra e cercaram o arraial dos santos e a
cidade amada; mas desceu fogo do céu e os devorou. E o diabo, que os enganava, foi
lançado no lago de fogo e enxofre, onde está a besta e o falso profeta; e de dia e de
noite serão atormentados para todo o sempre" (Ap 20:7 a 10).
__________
(1) O leitor tem de fazer a distinção entre Gogue e Magogue em Apocalipse 20 e
Ezequiel 38 e 39. A primeira passagem é depois do milênio, a última antes do
milênio.
Este será o último esforço de Satanás, que terminará em sua perdição eterna. Então
temos o julgamento dos mortos, "pequenos e grandes" — a sessão judicial de todos
aqueles que terão morrido em seus pecados, desde os dias de Caim ao último
apóstata da glória do milênio. Que tremenda cena! Nenhum coração pode
conceber, nenhuma língua ou pena descrever a sua terrível solenidade!
Finalmente, temos desenrolado ante a visão das nossas almas o estado eterno, os
novos céus e a nova terra em que habitará a justiça por todos os séculos da
eternidade.
Tal é a ordem dos acontecimentos, conforme estão expostos, com toda a clareza
possível, nas páginas de inspiração. Temos dado um breve sumário deles em
conexão com a linha de verdade que temos considerado—verdade que, sabemos
perfeitamente, não é popular; mas que nem por isso nos atrevemos a deixar de
declarar. O nosso dever é declarar todo o conselho de Deus, não buscar
popularidade. Não esperamos que a verdade de Deus seja popular na cristandade;
pelo contrário, temos procurado provar que precisamente como Israel abandonou
a verdade que tinha a responsabilidade de manter, assim a igreja professante tem
posto de lado todas essas grandes verdades que caracterizam o cristianismo do
Novo Testamento. Podemos assegurar ao leitor que o nosso único objetivo em
prosseguir esta linha de argumentação é despertar os corações de todos os
verdadeiros cristãos a um sentimento do valor dessas verdades e da sua
responsabilidade não só de os receberem mas de procurar uma realização mais
ampla e uma confissão mais intrépida das mesmas. Ansiamos por ver que se
levante um grupo de homens, nestas horas finais da história terrestre da igreja, que
se adiantem com verdadeiro poder espiritual e proclamem com unção e energia as
verdades por tanto tempo esquecidas do evangelho de Deus. Possa Deus, em Sua
grande misericórdia para com o Seu povo, levantar esses homens, e enviá-los.
Queira o Senhor Jesus bater mais à porta a fim de que muitos ouçam e Lhe abram a
porta, segundo o desejo do Seu coração amantíssimo, e experimentem a
bem-aventurança de comunhão pessoal Consigo, enquanto esperam a Sua vinda.
Bendito seja Deus, não existe qualquer limite para a bênção de toda a alma que
ouve a voz de Cristo e abre a porta; e o que é verdadeiro para uma alma é
verdadeiro para centenas ou milhares. Sejamos verdadeiros, simples e fiéis,
sentindo e reconhecendo a nossa fraqueza e nulidade; pondo de lado toda a
presunção e vãs pretensões; não procurando ser alguma coisa ou estabelecer
alguma coisa nossa, mas guardando firmemente a palavra de Cristo e não negar o
Seu nome; achando o nosso feliz lugar aos Seus pés, a nossa mais satisfatória porção
n'Ele mesmo e o nosso verdadeiro deleite em O servir de qualquer modo simples.
Assim avançaremos juntos em harmonia, amor e felicidade, encontrando o nosso
centro comum em Cristo, e o nosso comum objetivo será desenvolver a Sua causa e
promover a Sua glória. Oh! Se assim fosse com todo o amado povo do Senhor
nestes nossos dias; teríamos então uma história diferente para contar e um aspecto
muito diferente a apresentar ao mundo. Que o Senhor avive a Sua obra!
Poderá parecer talvez estranho ao leitor nos termos afastado muito do capítulo 6
de Deuteronômio; mas devemos recordar- lhe, de uma vez para sempre, que não é
meramente o que cada capítulo contém que requer a nossa atenção, mas, sim, o
que sugere. E, além disso, podemos acrescentar que, sentando-nos para escrever,
de vez em quando, o nosso desejo é que o Espírito de Deus nos guie na própria
linha de verdade que possa ser apropriada às necessidades de todos os nossos
leitores. Se tão somente o amado rebanho de Cristo for alimentado, instruído e
confortado, pouco nos importa que seja mediante escritos bem relacionados ou
irregulares fragmentos.
Vamos prosseguir agora com o nosso capítulo.

Um Coração Submisso
Moisés, tendo declarado a grande verdade fundamental contida no versículo 4:
"Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR", continua a insistir
com a congregação sobre o seu dever sagrado a respeito d'Aquele bendito Senhor.
Não era apenas que havia um Deus, mas que era o seu Deus; que Se havia dignado
relacionar com eles mediante um pacto. Tinha-os redimido, havia-os levado como
em asas de águias, e trazido a
Si mesmo, a fim de que eles pudessem ser o Seu povo, e Ele pudesse ser o seu Deus.
Fato bendito! Bem-aventurado parentesco! Mas havia que recordar a Israel a
conduta apropriada a um tal parentesco — conduta que só podia emanar de um
coração amoroso. "Amarás, pois, ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de
toda a tua alma, e de todo o teu poder." É nisto que está todo o segredo da
verdadeira religião prática. Sem isto tudo é de nenhum valor para Deus. "Dá-me,
filho meu, o teu coração." Quando se dá o coração, tudo o mais andará bem. O
coração pode ser comparado ao regulador de um relógio que atua sobre o cabelo de
mola, e este cabelo atua segundo a mola principal, e a mola principal atua sobre os
ponteiros fazendo-os movimentar sobre o mostrador. Se o relógio regula mal, não
bastará alterar apenas os ponteiros, é preciso ajustar o regulador. Deus olha para
um coração verdadeiramente reto, bendito seja o Seu nome! A Sua Palavra diz-nos:
"Meus filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em
verdade" (1 Jo 3:18).
Quanto havemos de bendizê-Lo por estas comovedoras palavras! Como elas nos
revelam o Seu coração de amor! Certamente, Ele nos amou na realidade e de
verdade; e não pode ficar satisfeito com qualquer coisa mais, quer seja em nossa
conduta com Ele ou na nossa conduta uns com os outros. Tudo deve proceder
diretamente do coração.
"E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração" — na própria origem
de todas as saídas da vida. Isto é especialmente precioso. Tudo aquilo que há no
coração assoma aos lábios e aparece na vida. Quão importante, pois, é ter o coração
cheio da Palavra de Deus, tão cheio que não haja lugar para as vaidades e loucuras
deste presente século mau. Então, a nossa conversação será sempre com graça,
temperada com sal. "Do que o coração está cheio fala a boca." Por isso podemos
julgar o que há no coração pelo que fala a boca. A língua é o órgão do coração—o
órgão do homem. "O homem bom do tesouro do seu coração tira o bem, e o
homem mau do mau tesouro do seu coração tira o mal" (Lc 6:45). Quando o
coração é realmente dirigido pela Palavra de Deus, todo o caráter revela o bendito
resultado. Tem de ser assim, visto que o coração é a fonte principal de todo o nosso
estado moral; está no centro de todas aquelas influências morais que governam a
nossa história pessoal e moldam a nossa carreira prática.
Em todas as porções do livro divino vemos a importância que Deus dá à atitude e
estado do coração a respeito de Si e da Sua Palavra, o que é uma e a mesma coisa.
Quando o coração é sincero para com Ele, é certo que tudo irá bem; mas, por outro
lado, descobriremos que, quando o coração esfria e se descuida a respeito de Deus e
da Sua verdade, haverá, mais cedo ou mais tarde, abandono declarado da conduta e
verdade da justiça. Existe, portanto, muito força e valor na exortação feita por
Barnabé aos convertidos em Antioquia: "Exortou a todos que permanecessem no
Senhor a que, com firmeza de coração" (At 11:23). Quão necessário é isto agora
como o era então e será sempre! Este "propósito de coração" é muito precioso para
Deus. E o que nos poderemos aventurar a chamar o grande regulador moral. Dá
um formoso zelo ao caráter cristão que é desejado ardentemente por todos nós. E
um antídoto divino contra a indiferença, entorpecimento e formalidade tão
detestáveis para Deus. A vida exterior pode ser muito correta e o credo pode ser
muito ortodoxo, mas se faltar o propósito sincero do coração — união afetuosa de
todo o ser moral com Deus e o Seu Cristo — tudo é completamente desprezível.
E por intermédio do coração que o Espírito Santo nos instrui. Por isso, o apóstolo
orava pelos santos de Éfeso para que pudessem ter iluminados os olhos do seu
coração (Ef 1:18): "Para que Cristo habite pela fé nos nossos corações" (Ef 3:17).
Vemos assim como toda a Escritura está em perfeita harmonia com a exortação
feita no nosso capítulo. "E estes palavras que hoje te ordeno estarão no teu
coração." Como isto os teria mantido perto do seu Deus de concerto! Quão livres
estariam também de todo o mal e especialmente do mal abominável da idolatria —
o seu pecado nacional, o seu terrível embaraço! Se as palavras preciosas de Javé
tivessem encontrado o primeiro lugar no seu coração, teria havido pouco receio de
Baal, Quemos ou Astarote. Numa palavra, todos os ídolos teriam ocupado o seu
devido lugar e sido considerados pelo verdadeiro valor, se tão somente a palavra de
Javé tivesse sido permitida no coração de Israel.
E note-se especialmente aqui como tudo isto é fielmente característico do livro de
Deuteronômio. Não é tanto uma questão de guardar uma determinada ordem de
regras religiosas, a oferta de sacrifícios ou de frequência aos ritos e cerimônias.
Todas essas tinham, sem dúvida, o seu próprio lugar, mas não são, de modo
nenhum, o ponto proeminente ou dominante em Deuteronômio. Não; A
PALAVRA é o tema importante aqui. É a palavra de Javé no coração de Israel.
O leitor deve compreender bem este fato se quiser possuir a chave do encantador
livro de Deuteronômio. Não é um o livro de moral e afetuosa obediência. Ensina,
em quase todas as partes em que se divide, essa inestimável lição, que o coração
que ama, preza e honra a Palavra de Deus está pronto para todos os atos de
obediência, quer seja a oferta de um sacrifício ou a observância de um dia. Poderia
dar-se o caso de um israelita se encontrar num sítio e em circunstâncias em que era
impossível uma rígida adesão aos ritos e cerimônias; mas não poderia encontrar-se
num lugar e em circunstâncias em que não podia amar, reverenciar e obedecer a
Palavra de Deus. Onde quer que tivesse ido, ainda que tivesse sido levado como
cativo, desterrado para os fins da terra, nada podia roubar-lhe o elevado privilégio
de proferir e atuar essas benditas palavras: "Escondi a tua palavra em meu coração
para não pecar contra ti."
Palavras preciosas! Compreendem no seu âmbito o grande princípio do livro de
Deuteronômio; e nós podemos acrescentar o grande princípio da vida divina, em
todos os tempos, e em toda a parte. Um princípio que nunca poderá perder a sua
força moral e o seu valor. Permanece para sempre. Era verdadeiro nos dias dos
patriarcas; verdadeiro para Israel na terra; verdadeiro quanto à dispersão de Israel
até aos confins da terra; verdadeiro para o conjunto da igreja; verdadeiro para cada
crente em particular no meio das ruínas irreparáveis da igreja. Numa palavra, a
obediência é sempre o dever e elevado privilégio da criatura — obediência
simples, decidida, e absoluta à Palavra do Senhor. Isto é uma misericórdia inefável
pela qual bem podemos louvar o nosso Deus dia e noite. Ele deu-nos a Sua Palavra,
bendito seja o Seu nome, e exorta-nos a que essa Palavra habite abundantemente
em nós — que habite em nossos corações e que exerça o seu santo domínio sobre
toda a nossa conduta e caráter.
"E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; e as intimarás a teus
filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e
deitando-te, e levantando-te. Também as atarás por sinal na tua mão, e te serão por
testeiras entre os teus olhos. E as escreverás nos umbrais da tua casa e nas tuas
portas" (versículos 6 a 9).
Tudo isto é perfeitamente belo. A Palavra de Deus escondida no coração; brotando
em amorosa instrução para os filhos e em santo conversação no seio da família;
brilhando em todas as atividades da vida diária, de forma que todos os que
entravam as portas ou eram recebidos em cada pudessem ver a Palavra de Deus.
Era a norma de vida para cada um, para todos, e em todas as coisas.
Assim devia ser com o antigo Israel; e certamente assim deveria ser com o cristão
no tempo presente. Mas será assim? Os nossos filhos são assim ensinados? E nosso
propósito constante apresentar a Palavra de Deus, em todos os seus celestiais
atrativos, aos seus corações juvenis? Eles veem-na brilhar na nossa diária? Veem a
sua influência nos nossos hábitos, temperamento, relações de família, ou nas
nossas transações e negócios? E isto que entendemos por atar a palavra por sinal na
mão, e tê-la por testeira entre os olhos, escrita nos umbrais e nas portas.

O Testemunho de um Coração Obediente


Leitor, acontece assim contigo? De pouco serve tentarmos ensinar aos nossos filhos
a Palavra de Deus se as nossas vidas não são dirigidas por essa Palavra. Não
concordamos em fazer da bendita Palavra de Deus um simples livro de textos para
os nossos filhos; fazer tal coisa é converter um agradável privilégio numa lida
fatigante. Os nossos filhos devem ver que vivemos na própria atmosfera da Sagrada
Escritura, que ela forma o tema da nossa conversação quando nos sentamos no seio
da família, nos nossos momentos de descanso.
Ah! Quão pouco frequente é isto! Não temos de estar profundamente humilhados,
na presença de Deus, quando pensamos no caráter geral e tom da nossa
conversação à mesa, no círculo da família? Quão pouco existe de Deuteronômio
6:7! Quantas "parvoíces, que não convêm". Quanta maledicência sobre os nossos
irmãos, os nossos vizinhos e os nossos colaboradores! Quanta bisbilhotice! Quanta
conversação inútil!
E donde procede tudo isto? Simplesmente do estado do coração. A Palavra de
Deus, os mandamentos e ditos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo não
permanecem em nossos corações; e por isso não transbordam em correntes vivas
de graça e edificação.
Dirá alguém que os cristãos não necessitam de considerar tais coisas? Se assim é,
medite-se nas palavras seguintes: "Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe,
mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a
ouvem." E também: "Enchei-vos do Espírito, falando entre vós em salmos, e hinos,
e cânticos espirituais, cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração, dando
sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo"
(Ef 4:29; 5:18 a 20).
Estas palavras foram dirigidas aos santos de Éfeso; e, certamente, nós devemos
concentrar nelas diligentemente os nossos corações. Damos pouca conta de quão
profunda e constantemente falhamos em manter o hábito de conversação
espiritual. E especialmente no seio da família, e no nosso trato ordinário, que esta
falta é mais manifesta. Daí a nossa necessidade dessas palavras de exortação que
acabamos de citar. E evidente que o Espírito Santo previu a necessidade e
antecipou-Se por graça a ela. Escutai o que Ele diz: "Aos santos e irmãos fiéis em
Cristo que estão em Colossos" — "A palavra de Cristo habite em vós
abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos
outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com graça em
vosso coração" (Cl 1:2; 3:16).
Belo quadro da vida cristã normal! E apenas um maior e mais completo
desenvolvimento do que temos no nosso capítulo, em que o israelita é visto no
meio da sua família, com a Palavra de Deus brotando do seu coração em amorável
ensino para os seus filhos — visto em sua vida diária, em toda a sua convivência
dentro e fora de sua casa, sob a santa influência da Palavra do Senhor.
Prezado leitor cristão, não anelamos ver entre nós mais de tudo isto?- Não é, por
vezes, muito triste e humilhante observar o estilo de conversação que se emprega
no meio dos nossos círculos familiares?- Não ficaríamos algumas vezes
envergonhados se pudéssemos ver a nossa conversação reproduzida no papel? Qual
é o remédio? Ei-lo: um coração cheio de paz de Cristo, de Cristo mesmo. Nada
senão isto nos convém. Devemos começar com o coração, e quando ele está
completamente ocupado com as coisas celestiais nós teremos muito pouco que ver
com as tentativas de falar mal, néscia conversação e gracejos.
"Havendo-te, pois, o SENHOR, teu Deus, introduzido na terra que jurou a teus
pais, Abraão, Isaque e Jacó, te daria, onde há grandes e boas cidades, que tu não
edificaste, e casas cheias de todo bem, que tu não encheste, e poços cavados, que tu
não cavaste, vinhas e olivais, que tu não plantaste, e, quando comeres e te fartares,
guarda-te e que te não esqueças do SENHOR, que te tirou da terra do Egito, da casa
da servidão" (versículos 10 a 12). No meio de todas as bênçãos, misericórdias e
privilégios da terra de Canaã, deviam recordar o gracioso e fiel Senhor que os havia
remido da terra da escravidão. Deviam recordar também que todas essas coisas
eram dádivas da Sua graça. A terra, com tudo que nela havia, fora-lhe concedida
em virtude da Sua promessa a Abraão, Isaque e Jacó. Cidades edificadas e casas
mobiladas, cisternas, frutíferos vinhedos e olivais, tudo ao alcance das suas mãos,
como dádiva de graça soberana e pacto de misericórdia. Tudo que tinham a fazer
era tomar posse, em simples fé; e conservar sempre na lembrança dos seus corações
o bondoso Dador de tudo isso. Deviam pensar n'Ele e encontrar no Seu amor
redentor o verdadeiro motivo de uma vida de obediência afetuosa. Para onde quer
que volviam os olhos, contemplavam as provas da Sua imensa bondade, os ricos
frutos do Seu maravilhoso amor. Todas as cidades, todas as casas, todos os poços de
água, todas as vinhas, oliveiras e figueiras falavam aos seus corações da abundante
graça do Senhor, e proporcionavam uma prova substancial da Sua infalível
fidelidade à Sua promessa.
"O SENHOR, teu Deus, temerás, e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás. Não
seguireis outros deuses, os deuses dos povos que houver à roda de vós; porque o
SENHOR, vosso Deus, é um Deus zeloso no meio de ti, para que a ira do SENHOR,
teu Deus, se não acenda contra ti e te destrua de sobre a face da terra" (versículos
13 a 15).
Existem dois grandes motivos expostos à congregação neste capítulo, a saber;
"amor" em versículo 5; e "temor" em versículo 13. Estes motivos encontram-se
através de toda a Escritura; e a sua importância, guiando a vida e formando o
caráter, não jamais ser devidamente calculada. "O temor do SENHOR do é O
princípio da sabedoria." Somos exortados a permanecer "no temor do SENHOR
todo o dia" (Pv 23:17). E uma grande salvaguarda contra todo o mal. "Mas disse ao
homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a
inteligência" (Jó 28:28).
O bendito Livro abunda em passagens expondo, em todas as formas possíveis a
grande importância do temor do Senhor. "Como", diz José, "pois faria eu este
tamanho mal, e pecaria contra Deus?" (Gn 39:9). O homem que anda
habitualmente no temor do Senhor é guardado de todas as formas de depravação
moral. A realização contínua da presença divina deve ser um abrigo eficaz contra
toda a tentação. Quantas vezes vemos que a presença de alguma pessoa muito santa
e espiritual é um feito salutar contra a leviandade e tolice; e se tal é a influência de
um simples mortal, quanto mais poderosa deve ser a presença de Deus quando
compreendida!
Prezado leitor, prestemos a nossa mais séria atenção a este importante assunto.
Procuremos viver com o conhecimento íntimo de que estamos na imediata
presença de Deus. Desta forma seremos guardados de milhentas formas de mal a
que estamos expostos dia a dia, e para as quais, infelizmente, somos tão inclinados!
A lembrança de que os olhos de Deus estão postos sobre nós exercerá uma
influência muito mais poderosa na nossa vida e conversação que a presença de
todos os santos na terra e todos os anjos no céu. Não poderemos falar falsamente;
não conversaremos loucamente; não poderemos falar mal do nosso irmão ou do
nosso próximo; não poderemos falar asperamente de ninguém, se tão somente nos
sentirmos na presença de Deus. Numa palavra, o santo temor do Senhor, do qual a
Sagrada Escritura tanto fala, atuará como freio bendito sobre os maus
pensamentos, más palavras, más ações, o mal em todos os seus aspectos e formas.
Além disso, contribuiria para nos fazer mais verdadeiros e naturais em todos os
nossos ditos e atos. Existe muita simulação e tolice entre nós. Dizemos
frequentemente muito mais do que pensamos. Não somos honestos. Não falamos,
cada qual, a verdade com o nosso próximo. Exteriorizamos sentimentos que não
são a verdadeira expressão do coração. Portamo-nos como hipócritas uns com os
outros.
Todas estas coisas nos dão uma triste prova de quão pouco vivemos, nos movemos
e existimos na presença de Deus. Se ao menos nos lembrássemos de que Deus nos
ouve todas as nossas palavras e vê todos os nossos pensamentos, todos os nossos
atos, quão diferente seria o nosso comportamento! Que santa vigilância devemos
sobre os nossos pensamentos, o nosso temperamento e a nossa língua! Que pureza
de coração e espírito! Que veracidade e integridade em todas as nossas relações
com os nossos semelhantes! Que realidade e simplicidade do nosso
comportamento! Que feliz liberdade de toda a afetação, presunção! Como
estaríamos livres de preocupações pessoais! Oh, que vivamos sempre com o
sentimento profundo da presença divina! Andemos no temor do Senhor, no
decurso de todo o dia!
E ter a prova de que a influência do Seu amor nos constrange! Sermos guiados em
todas as santas atividades que o amor sempre nos pode sugerir! Encontrar o nosso
prazer em fazer bem! Provar o luxo espiritual de tornar os corações alegres!
Meditar continuamente em planos de utilidade! Viver junto à fonte do amor
divino, de forma a podermos ser correntes refrescantes no meio de uma cena
sedenta — raios de luz no meio da obscuridade que nos cerca! "O amor de Cristo",
diz o bendito apóstolo, "nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por
todos, logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não
vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co 5:14,
15).
Como tudo isto é moralmente formoso! Oxalá fosse completamente posto em
prática e fielmente manifestado entre nós! Que o temor e amor de Deus estejam
continuamente em nossos corações, para que assim a nossa vida diária possa
brilhar para Seu louvor e verdadeiro proveito, conforto e bênção de todos os que
entrem em contato conosco quer em particular quer em público! Que Deus, em
Sua infinita misericórdia, no-lo conceda, por amor de Cristo!

O Testemunho Perfeito a Ser Imitado


O versículo 16 do nosso capítulo requer a nossa atenção especial. "Não tentareis o
SENHOR, vosso Deus, como o tentastes em Massá." Estas palavras foram citadas
por nosso bendito Senhor quando por Satanás para se lançar do pináculo do
templo. "Então o diabo o transportou à Cidade Santa, e colocou- o sobre o pináculo
do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque
está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão nas mãos, para
que nunca tropeces em alguma pedra."
É uma passagem notável. Demonstra que Satanás pode citar a Escritura quando
isso convém aos seus propósitos. Mas omite uma cláusula importantíssima — "para
te guardarem em todos os teus caminhões" (SI 91:11). Ora, não fazia parte dos
caminhos de Cristo lançar-Se abaixo do pináculo do templo. Esse não era o
caminho do dever. Não tinha nenhum mandato de Deus para fazer tal coisa: e por
isso recusou fazê-lo. Não tinha necessidade de tentar a Deus — pô-Lo à prova.
Tinha, como homem, a mais perfeita confiança em Deus — a mais plena certeza da
Sua proteção.
Além disso, Ele não ia abandonar o caminho do dever a fim de demonstrar o
cuidado de Deus por Si; e nisto ensina-nos uma lição muito preciosa. Podemos
contar sempre com a mão protetora de Deus, quando trilhamos o caminho do
dever. Mas se andamos num caminho de nossa própria escolha; se procuramos o
nosso próprio prazer ou o nosso próprio interesse, os nossos fins ou objetivos,
então falar de contar com Deus é simples ímpia presunção.
Sem dúvida, o nosso Deus é misericordioso, cheio de graça e a Sua terna
misericórdia está sobre nós, até mesmo quando nós nos desviamos do caminho do
dever; mas isto é outra coisa muito diferente, e em nada afeta a afirmação de que só
podemos contar com a proteção divina quando os nossos pés estão no caminho do
dever. Se um crente toma parte numa regata para seu recreio; ou se sobe aos Alpes
só par ver a vista, tem algum direito para crer que Deus terá cuidado dele? Que a
consciência dê a resposta. Se Deus nos chama para atravessarmos um lago
tempestuoso para pregar o evangelho; se nos convoca para subirmos os Alpes em
qualquer serviço para Si, então, seguramente, podemo-nos entregar à Sua poderosa
mão para nos proteger de todo o mal. O ponto importante para todos nós é sermos
achados no santo caminho do dever. Pode ser estreito, escabroso e solitário, mas é
um caminho sombreado pelas asas do Onipotente e iluminado pela luz do Seu
rosto em aprovação.
Antes de terminar o tema que nos sugere o versículo 16, queremos considerar
rapidamente o fato interessante e instrutivo de nosso Senhor, na Sua resposta a
Satanás, não tomar em qualquer consideração a sua má citação do Salmo 91:11.
Notemos atentamente este fato, e procuremos tê-lo em vista. Em vez de ter dito ao
inimigo: "Tu omitiste uma importantíssima cláusula da passagem que te
aventuraste a citar", o Senhor cita simplesmente outra passagem, como autoridade
para a Sua própria conduta. Desta forma venceu o tentador; e assim deixou-nos um
bendito exemplo.
É digno de nossa atenção especial que o Senhor Jesus Cristo não venceu Satanás em
virtude do Seu poder divino. Tivesse Ele feito assim e isso não poderia ser um
exemplo para nós. Mas quando O vemos, como homem, usando a Palavra como
Sua única arma, e ganhando assim uma gloriosa vitória, os nossos corações são
animados e confortados; e não apenas isso, mas aprendemos uma preciosíssima
lição de como nos devemos, na nossa esfera e medida, manter no conflito. O
homem Cristo Jesus venceu por simples dependência de Deus e obediência à Sua
Palavra.
Fato bendito! Um fato cheio de conforto e consolação para nós. Satanás nada podia
fazer contra quem atuava somente por autoridade divina e pelo poder do Espírito.
Jesus nunca fez a Sua própria vontade, embora, bendito seja o Seu santo nome,
como sabemos, a Sua vontade fosse absolutamente perfeita. Desceu do céu, como
Ele próprio nos diz em João 6, não para fazer a Sua vontade, mas a vontade do Pai
que O enviou. Foi o servo perfeito desde o princípio ao fim. A Sua regra de ação era
a Palavra de Deus; o Seu poder de ação o Espírito Santo; o Seu motivo para agir, a
vontade de Deus; por isso o príncipe deste mundo nada tinha n'Ele. Satanás não
podia, com toda a sua astúcia, desviá-Lo do caminho da obediência ou do lugar de
dependência.
Leitor cristão, consideremos estas coisas. Ponderemo-las profundamente.
Recordemos que o nosso bendito Senhor e Mestre nos deixou o exemplo para que
seguíssemos as Suas pisadas. Oh, possamos nós segui-las diligentemente durante o
pouco tempo que ainda resta! Possamos nós, pelo ministério do Espírito Santo,
compreender perfeitamente o fato importante de que somos chamados para andar
como Jesus andou. Ele é o nosso grande Modelo em todas as coisas. Estudemo-Lo
mais profundamente, a fim de podermos reproduzi-Lo mais fielmente!
Terminaremos agora esta extensa parte citando para o leitor o último parágrafo do
capítulo com que temos estado ocupados: é uma passagem de singular plenitude,
profundidade e poder, e notavelmente característica de todo o livro de
Deuteronômio.
"Diligentemente guardareis os mandamentos do SENHOR, VOSSO Deus, como
também os seus testemunhos e seus estatutos, que te tem mandado. E farás o que é
reto e bom aos olhos do SENHOR, para que bem te suceda, e entres, e possuas a boa
terra, sobre a qual o SENHOR; jurou a teus pais, para que lance fora a todos os teus
inimigos de diante de ti, como o SENHOR tem dito. Quando teu filho te perguntar
pelo tempo adiante, dizendo: Quais são os testemunhos, e estatutos, e juízos que o
SENHOR, nosso Deus, vos ordenou«?- Então, dirás a teu filho: Éramos servos de
Faraó, no Egito; porém o SENHOR nos tirou com mão forte do Egito. E o SENHOR
fez sinais grandes e penosas maravilhas no Egito, a Faraó e a toda a sua casa, aos
nossos olhos; e dali nos tirou, para nos levar e nos dar a terra que jurara a nossos
pais. E o SENHOR nos ordenou que fizéssemos todos estes estatutos, para
temermos ao SENHOR, nosso Deus, para o nosso perpétuo bem, para nos guardar
em vida, como no dia de hoje. E será para nós justiça, quando tivermos cuidado de
fazer todos estes mandamentos perante o SENHOR, nosso Deus, como nos tem
ordenado."
Quão proeminente é a Palavra de Deus apresentada às nossas almas em cada página
e em cada parágrafo deste livro! E o grande tema do coração do venerável
legislador e de todos os seus discursos. O seu único propósito é exaltar a Palavra de
Deus, em todos os seus aspectos, quer seja na forma de testemunhos,
mandamentos, estatutos ou juízos, e realçar a força moral, sim, a urgente
necessidade de obediência de todo o coração, sincera, diligente, por parte do povo.
"Diligentemente guardareis os mandamentos do SENHOR, VOSSO Deus." "E farás
o que é reto e bom aos olhos do SENHOR."
Tudo isto é moralmente encantador. Temos aqui desenrolados perante os nossos
olhos esses princípios eternos que nenhuma mudança de dispensação, de cena,
lugar ou de circunstâncias pode jamais afetar. "O que é reto e bom" deve sempre
ser universal e de permanente aplicação. Faz-nos lembrar as palavras do apóstolo
João ao seu amado amigo Gaio: "Amado, não sigas o mal, mas o bem." A assembleia
podia estar num estado muito baixo; podia haver muita coisa para experimentar o
coração e deprimir o espírito de Gaio; Diótrefes podia comportar-se de uma
maneira imprópria e indesculpável para com o amado e venerável apóstolo e
outros; tudo isto podia ser verdade, e muito mais, sim, o conjunto do corpo
professante podia andar mal. Então? Que devia fazer Gaio? Simplesmente seguir o
que era reto e bom, abrir o seu coração e a sua mão e a sua casa a todo aquele que
trazia a verdade; procurar ajudar na causa de Cristo de todos os modos retos.
Este era o dever de Gaio no seu tempo; e é este o dever de todo aquele que ama
verdadeiramente a Cristo, em todos os tempos, em todos os lugares e em todas as
circunstâncias. Talvez não haja muitos que se juntem a nós; talvez nos tenhamos
que encontrar, por vezes, quase sós; mas devemos ainda seguir o que é bom, custe o
que custar. Devemo-nos apartar da iniquidade — purificarmo-nos dos vasos para
desonra, fugir dos desejos da mocidade, afastarmo-nos dos professos ineficazes. E
depois? "Segue a justiça, a fé, o amor, e a paz" — Como? Isolados? Não. Posso
achar-me só em um determinado lugar por algum tempo; mas não pode existir tal
coisa como isolamento, uma vez que o corpo de Cristo está na terra, e isso durará
até que Ele venha buscar-nos. Por isso nunca esperamos ver o dia em que não
poderemos encontrar alguns poucos que invocam o nome do Senhor com um
coração puro; quem quer que sejam, e onde quer que se encontrem, é nosso dever
encontrá-los; e, tendo-os encontrado, andar com eles em santa comunhão, "até ao
fim."
— CAPÍTULO 7 —

DEUS GOVERNA OS POVOS

(O segundo discurso de Moisés — continuação)

Os Caminhos de Deus para com as Nações


"Quando o SENHOR, teu Deus, te tiver introduzido na terra, a qual passas a
possuir, e tiver lançado fora muitas nações de diante de ti [...] sete nações mais
numerosas e mais poderosas do que tu; o SENHOR, teu Deus, as tiver dado diante de
ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas concerto, nem terás
piedade delas."
Ao ler o relato dos atos de Deus com as nações, em ligação com o Seu povo
Israel, vêm-nos à memória as primeiras palavras do Salmo 101. "Cantarei a
misericórdia e o juízo." Vemos a manifestação da misericórdia para com o Seu
povo, em cumprimento do Seu concerto com Abraão, Isaque e Jacó; e vemos
também a execução do juízo sobre as nações, em conseqüência dos seus caminhos
pecaminosos. No primeiro caso vemos a soberania divina, no último a justiça
divina; em ambos resplandece a glória divina. Todos os caminhos de Deus, quer em
misericórdia, quer em juízo, falam em louvores e provocam a homenagem do Seu
povo para sempre. "Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor, Deus
Todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos (1).
Quem te não temerá, ó Senhor, e não magnificará o teu nome? Porque só tu és
santo; por isso, todas as nações virão e se prostrarão diante de ti, porque os teus
juízos são manifestos" (Ap 15:3-4).
__________
(1)
Muitas versões reproduzem "nações". Cristo nunca é chamado "Rei dos santos".

Este é o verdadeiro espírito em que devem contemplar-se os atos do governo de


Deus. Algumas pessoas, deixando-se influenciar por mórbidos sentimentos e falso
sentimentalismo, em vez de um juízo esclarecido, encontram dificuldades quanto
às instruções dadas a Israel a respeito dos cananeus, no começo do nosso capítulo.
Afigura-se-lhes inconsistente com um Ser benevolente ordenar ao Seu povo que
fira os seus semelhantes e não lhes mostre misericórdia. Não podem compreender
como um Deus misericordioso pôde mandar o Seu povo matar mulheres e crianças
à ponta da espada.
É bem claro que tais pessoas não podem adotar a linguagem do Apocalipse
15:3-4. Não estão preparadas para dizer: "Justos e verdadeiros são os teus caminhos,
ó Rei dos santos." Não podem justificar Deus em todos os Seus caminhos; antes,
pelo contrário, sentam-se para O julgar. Atrevem-se a medir os atos do governo
divino pelo padrão dos seus próprios pensamentos frívolos—e esquadrinhar o
infinito pelo finito. Em suma, medem Deus por si mesmos.
Isto é um erro fatal. Nós não somos competentes para formar um juízo sobre os
caminhos de Deus, e por isso é o cúmulo da presunção em pobres mortais
ignorantes e curtos de vista tentarem fazê-lo. Lemos no sétimo capítulo de Lucas
que "A sabedoria é justificada por todos os seus filhos". Lembremos isto, e
imponha- mos silêncio a todos os nossos argumentos pecaminosos. "Seja Deus
verdadeiro, e todo homem mentiroso, como está escrito: Para que sejas justificado
em tuas palavras e venças quando fores julgado" (Rm 3:4).
O leitor sente-se perturbado com dificuldades a este respeito? Se assim é,
queremos citar uma passagem que poderá auxiliá-lo muito: "Louvai ao SENHOR,
porque ele é bom; porque a sua benignidade é para sempre. [...] Que feriu o Egito
nos seus primogênitos; porque a sua benignidade é para sempre. E tirou a Israel do
meio deles; porque a sua benignidade é para sempre. Com mão forte, e com braço
estendido; porque a sua benignidade é para sempre. Aquele que dividiu o mar
Vermelho em duas partes; porque a sua benignidade é para sempre. E fez passar
Israel pelo meio dele; porque a sua benignidade é para sempre. Mas derribou a
Faraó com o seu exército no mar Vermelho; porque a sua benignidade é para
sempre. [...]
Àquele que feriu os grandes reis; porque a sua benignidade é para sempre. [...]
Sehon, rei dos amorreus; porque a sua benignidade é para sempre [...]E O que, rei
de Basã; porque a sua benignidade é para sempre. E deu a terra deles em herança;
porque a sua benignidade é para sempre. Sim, em herança a Israel, seu servo;
porque a sua benignidade é para sempre" (SI 136).
Aqui vemos que ferir os primogênitos do Egito, e a libertação de Israel; a
passagem pelo Mar Vermelho e a destruição do exército do Faraó; a matança dos
cananeus e a dádiva das suas terras a Israel; tudo demonstra da mesma maneira a
misericórdia eterna do Senhor (1). Assim foi; assim é; e assim será. Tudo há de
redundar para glória de Deus. Lembremos isto, e lancemos ao vento todo o nosso
néscio raciocínio e os nossos ignorantes argumentos. E nosso privilégio justificar
Deus em todos os Seus caminhos, curvar as nossas cabeças em santa adoração em
face dos Seus inescrutáveis juízos e descansar em calma certeza de que todos os
caminhos de Deus são retos. Não os compreendemos todos; isso seria impossível. O
finito não pode compreender o infinito. É nisto que muitos erram. Discutem os
atos do governo de Deus, sem considerar que esses atos estão muito além da razão
humana, assim como o Criador está além da criatura. Qual a mente humana que
poderá desvendar os profundos mistérios da divina providência? Poderemos
explicar o fato por que uma cidade povoada de seres humanos, homens, mulheres e
crianças fica, numa hora, sepultada debaixo de uma corrente de lava
incandescente«?- Absolutamente impossível; e, contudo, isto é apenas um fato
entre milhares que estão registrados nas páginas da história humana, todas elas
fora do alcance das maiores inteligências. Ide pelas vielas, pelos becos, travessas e
pátios das nossas cidades e vilas; vede os milhares de seres humanos que se
amontoam nesses lugares, vivendo em sórdida miséria, pobreza, desgraça e
degradação moral. Podemos nós explicar tudo isto? Podemos dizer qual a razão por
que Deus o permite«? Somos convidados a fazê-lo? Não é perfeitamente claro que
não nos pertence discutir tais questões? E se nós, em nossa ignorância e estúpida
idiotice, nos dispomos a argumentar e a especular acerca dos inescrutáveis
mistérios da administração divina, que podemos esperar senão completa confusão
ou positiva infidelidade?
__________
(1) Muitíssimos cristãos encontram dificuldades em interpretar e aplicar a linguagem de uma grande parte
dos Salmos que falam do juízo sobre os ímpios. Uma tal linguagem é, evidentemente, imprópria dos
crentes no tempo presente, visto que temos de amar os nossos inimigos, fazer bem aos que nos odeiam, e
orar por aqueles que nos maltratam e perseguem.
Porém, devemos recordar que o que é completamente impróprio para a Igreja de Deus, um povo celestial,
sob a graça, era e será ainda muito próprio para Israel, um povo terrestre sob o governo. Nenhum crente
inteligente poderá pensar nem por um momento em pedir vingança sobre os seus inimigos ou sobre os
ímpios. Seria uma grosseira atitude. Somos chamados para ser os exponentes da graça de Deus para o
mundo — a andar nas pisadas do manso e humilde Jesus — a sofrer pela justiça, a não resistir ao mal. Deus
está atuando agora em longânima misericórdia com o mundo. "Faz que o seu sol se levante sobre maus e
bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mt 5:45). Isto deve ser o nosso modelo. Devemos ser
"perfeitos, como é perfeito nosso Pai celestial". Para um cristão tratar com o mundo sobre o princípio de
justiça e juízo, seria não compreender o Seu Pai celestial e deturpar a sua profissão de fé.
Porém, dentro em pouco, quando a Igreja tiver deixado esta cena, Deus tratara com o mundo em justiça;
julgará as nações pela maneira como trataram o Seu povo, Israel.
Não vamos citar passagens, mas apenas chamar a atenção do leitor para este princípio, a fim de que ele
possa compreender a última aplicação dos salmos proféticos.

Não Deve Haver Misericórdia para com os Cananeus, nem Pacto com Eles
A precedente linha de pensamentos habilitará o leitor a compreender as
primeiras linhas do nosso capítulo. Os cananeus não podiam receber misericórdia
às mãos de Israel. As suas iniqüidades haviam chegado ao ponto culminante, e
nada restava senão a inflexível execução do juízo divino. "Totalmente as destruirás;
não farás com elas concerto, nem terás piedade delas; nem te aparentarás com elas;
não darás as tuas filhas a seus filhos e não tomarás suas filhas para teus filhos; pois
fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do
SENHOR se acenderia contra vós e depressa vos consumiria. Porém assim lhes
fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas estátuas cortareis os seus
bosques e queimareis a fogo as suas imagens de escultura" (versículos 2 a 5).
Tais foram as instruções dadas pelo Senhor ao Seu povo. Eram claras e
explícitas. Não devia haver misericórdia para os cananeus, não podiam fazer
concerto com eles, nem unirem-se a eles, nem ter relações de qualquer espécie,
mas implacável juízo, intensa separação.
Sabemos, infelizmente, como Israel falhou tão depressa em cumprir tais
instruções. Apenas haviam posto os pés na terra de Canaã e já tinham feito um
pacto com os gibeonitas. Até mesmo o próprio Josué caiu na cilada. Os vestidos
esfarrapados e o pão bolorento desses matreiros iludiram os príncipes da
congregação e deram ocasião a que eles atuassem de um modo contrário ao claro
mandamento de Deus. Tivessem eles sido guiados pela autoridade da Palavra de
Deus e não teriam caído no grave erro de fazer uma aliança com a gente que
deviam ter exterminado completamente. Mas eles julgaram segundo a vista de seus
olhos e tiveram que sofrer as conseqüências (1).
__________
(1) E, ao mesmo tempo, instrutivo e uma boa advertência, ver que os vestidos, o pão bolorento, e as
palavras plausíveis dos gibeonitas fizeram o que os muros de Jericó não puderam fazer. Os ardis de Satanás
são mais para temer do que o seu poder. "Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar
firmes contra as astutas ciladas do diabo." Quanto mais atentamente consideramos as diversas partes de
toda a armadura de Deus, tanto mais claramente as vemos agrupadas sob estes dois princípios, obediência e
dependência. A alma que é realmente governada pela autoridade da Palavra e está em completa
dependência do poder do Espírito, está perfeitamente equipada para o conflito. Foi assim que o Homem
Cristo Jesus venceu o inimigo. O diabo nada podia fazer com um homem que era perfeitamente obediente
e de todo dependente. Estudemos, nisto, como em tudo mais, o nosso grande Exemplo!

Implícita obediência é a grande salvaguarda moral contra as ciladas do inimigo.


Sem dúvida a história dos gibeonitas era plausível, e todo o seu aspecto dava um ar
de verdade às suas afirmações; mas nenhuma destas coisas deveria ter produzido o
menor efeito moral sobre Josué e os príncipes; e não o teriam, se apenas tivessem
recordado a Palavra do Senhor. Mas eles falharam neste sentido. Discorreram
acerca do que viam, em vez de obedecerem ao que haviam ouvido. A razão não é
um guia para o povo de Deus; temos de ser absoluta e completamente guiados e
governados pela Palavra de Deus.
Isto é um privilégio da ordem mais elevada, e está ao alcance do mais simples e
menos instruído filho de Deus. A Palavra do Pai, a voz do Pai, o olhar do Pai,
podem guiar o mais fracos filhos da Sua família. Tudo que precisamos é de um
coração humilde e obediente. Não é preciso muito poder intelectual ou habilidade;
se fosse assim, que seria da grande maioria dos cristãos?- Se só os ilustrados, os
grandes pensadores e os clarividentes fossem capazes de descobrir as ciladas do
adversário, então certamente muitos de entre nós teriam de ceder em desespero.
Mas, graças sejam dadas a Deus, não é assim; na verdade, sucede o contrário,
pois, encontramos, ao estudar a história do povo de Deus, em todas as épocas, que a
sabedoria humana, a instrução humana, a destreza humana, se não forem mantidas
no seu próprio lugar, demonstram ser verdadeiras ciladas, e tornam os seus
possuidores instrumentos eficientes nas mãos do inimigo. Por quem tem sido
introduzida na Igreja a maior parte senão todas as heresias de século para século?
Não têm sido os simples e incultos, mas os instruídos intelectuais. E na passagem a
que nos acabamos de referir, no livro de Josué, quem foi que fez um concerto com
os gibeonitas? O povo? Pelo contrário, foram os príncipes da congregação. Sem
dúvida, todos foram envolvidos no engano; mas foram os príncipes quem tomou a
iniciativa. Os chefes e condutores da assembléia caíram nas ciladas do diabo devido
à indiferença quanto à Palavra clara de Deus. "Não farás com elas concerto." Podia
haver alguma coisa mais clara do que isto? Os vestidos esfarrapados, os sapatos
velhos e o pão bolorento dos gibeonitas podiam alterar o significado do
mandamento divino ou anular a necessidade urgente de rigorosa obediência por
parte da congregação? Não, certamente. Nada pode justificar o mínimo
rebaixamento do padrão de obediência à Palavra de Deus. Se existem dificuldades
no caminho, se se apresentam diante de nós circunstâncias que causam perple-
xidade, se aparecem coisas para as quais não estamos preparados, e quanto às quais
somos incapazes de formar juízo, que havemos de fazer? Raciocinar? Tirar
precipitadas conclusões? Agir segundo o nosso próprio critério ou segundo
qualquer juízo humano? Certamente que não. Então que fazer? Esperar em Deus;
esperar com paciência, com humildade e com fé; e certamente Ele nos aconselhará
e guiará. "Guiará os mansos retamente; e aos mansos ensinará o seu caminho"
(Salmo 25:9). Tivessem Josué e os príncipes atuado assim e nunca teriam feito um
pacto com os gibeonitas; e se o leitor atuar assim, será libertado de toda a obra má e
guardado para o reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Israel, um Povo Santo


Em versículo 6 do nosso capítulo Moisés expõe ante o povo o fundamento
moral da linha de conduta que deviam adotar a respeito dos cananeus—separação
rígida e implacável juízo. "Porque povo santo és ao SENHOR, teu Deus; o SENHOR, teu
Deus, te escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio, de todos os povos que
sobre a terra há."
O princípio aqui estabelecido é de um caráter importantíssimo. Por que devia o
povo manter a mais clara separação dos cananeus?- Por que deviam recuar
firmemente fazer qualquer concerto ou formar qualquer aliança matrimonial com
eles? Por que deveriam demolir os seus altares, quebrar as suas estátuas e abater os
seus bosques? Simplesmente porque eram um povo santo. E quem os havia
constituído em povo santo? O Senhor. Ele tinha-os escolhido e amado; havia-os
remido e separado para Si mesmo; e por isso era de Sua competência e Sua
prerrogativa prescrever o que eles deviam ser e como deveriam atuar. "Sede santos,
por que eu sou santo."
Não era de modo nenhum sobre o princípio "Não te chegues a mim, pois sou
mais santo que tu." Isto é evidente pelo que se segue. "O SENHOR não tomou prazer
em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os
outros povos; mas porque o SENHOR vos amava; e, para guardar o juramento que
jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da
servidão, da mão de Faraó, rei do Egito" (versículos 7 e 8).
Palavras oportunas para Israel! Salutares e necessárias! Deviam recordar que
toda a sua dignidade, todos os seus privilégios, todas as suas bênçãos, não os deviam
a si próprios, a qualquer coisa que neles houvesse, à sua bondade ou grandeza, mas
simplesmente ao fato de o Senhor Se haver identificado com eles em Sua infinita
bondade e graça soberana, e em virtude do Seu concerto com seus pais — "Um
concerto ordenado em tudo e firme." Isto, ao mesmo tempo que proporcionava um
divino antídoto contra a complacência e a própria confiança, formava a base da sua
felicidade e segurança moral. Tudo descansava sobre a eterna estabilidade da graça
de Deus, e portanto ficava excluída toda a jactância humana. "A minha alma se
gloriará no SENHOR" (SI 34:2). É propósito firme de Deus que "nenhuma carne se
gloriará na sua presença." Toda a pretensão humana deve ser posta de lado. Ele
afastará do homem a soberba. Israel devia aprender a recordar a sua origem e o seu
verdadeiro estado—"escravo do Egito" — "O menor de todos os povos." Não havia
lugar para vaidade ou orgulho. Não eram, de modo nenhum, melhores do que as
nações circunvizinhas; e, portanto, se fossem convidados a dar conta da sua
superior elevação ou grandeza moral, tinham simplesmente de atribuir tudo ao
amor de Deus e à Sua fidelidade ao Seu concerto. "Não a nós, SENHOR, não a nós,
mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade" (Sl
115:l).
"Saberás, pois, que o SENHOR, teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda o
concerto e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus
mandamentos; e dá o pago em sua cara a qualquer dos que o aborrecem, fazendo-o
perecer; não será remisso para quem o aborrece; em sua face lho pagará (versículos
9 e 10).
Aqui nos são apresentados dois fatos importantíssimos: um cheio de rico
conforto e consolação para todo o que ama verdadeiramente a Deus; o outro
repleto da mais profunda solenidade para todo o que aborrece a Deus. Todos os que
amam realmente a Deus e guardam os Seus mandamentos podem contar com a Sua
infalível fidelidade e terna misericórdia, em todo o tempo e em todas as
circunstâncias. "Todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto" (Rm 8:28). Se, por graça
infinita, temos o amor de Deus em nossos corações, e o temor do Seu nome diante
dos nossos olhos, podemos avançar com bom ânimo e alegre confiança, certos de
que tudo correrá bem—deve correr bem. "Amados, se o nosso coração nos não
condena, temos confiança para com Deus; e qualquer coisa que lhe pedirmos, dele
a receberemos, porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é
agradável à sua vista" (1 Jo 3:21- 22). Isto é uma grande e eterna verdade—uma
verdade para Israel, uma verdade para a Igreja. As dispensações não fazem
diferença alguma quanto a isto. Quer estudemos o capítulo 7 de Deuteronômio, ou
o 3 de 1 João, aprendemos a mesma verdade prática: Deus deleita-Se naqueles que
O temem e O amam e guardam os Seus mandamentos.
Há nisto alguma coisa de legalismo? Nem por sombras. O amor e o legalismo
nada têm em comum; estão tão afastados quanto o podem estar dois pólos. "Porque
esta é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; e os seus
mandamentos não são pesados" (1 Jo 5:3). O espírito e o talento, o fundamento e
caráter da nossa obediência, tudo tende a provar que é o contrário da legalidade. É
nossa íntima e firme convicção de que as pessoas que estão sempre dispostas a
exclamar "lícito! lícito!" sempre que são instadas à obediência, estão
lamentavelmente erradas. Se realmente fosse ensinado que devemos alcançar por
nossos esforços a alta posição e parentesco de filhos de Deus, então o cargo do
legalismo podia na verdade ser-nos imposto. Mas lançar tal epíteto sobre a
obediência cristã é, repetimos, um erro moral muito grave. A obediência nunca
poderá preceder a filiação, mas a filiação deve ser sempre seguida pela obediência.

O Governo de Deus sobre Aqueles que o Aborrecem


E enquanto estamos tratando deste assunto, devemos chamar a atenção do
leitor para duas ou três passagens das Escrituras do Novo Testamento acerca das
quais existe uma falta de compreensão em muitas pessoas. Em capítulo 5 de Mateus
lemos: "Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei
bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos suas bênçãos, não os
deviam a si próprios, a qualquer coisa que neles houvesse, à sua bondade ou
grandeza, mas simplesmente ao fato de o Senhor Se haver identificado com eles em
Sua infinita bondade e graça soberana, e em virtude do Seu concerto com seus
pais—"Um concerto ordenado em tudo e firme." Isto, ao mesmo tempo que
proporcionava um divino antídoto contra a complacência e a própria confiança,
formava a base da sua felicidade e segurança moral. Tudo descansava sobre a
eterna estabilidade da graça de Deus, e portanto ficava excluída toda a jactância
humana. "A minha alma se gloriará no SENHOR" (SI 34:2). É propósito firme de
Deus que "nenhuma carne se gloriará na sua presença." Toda a pretensão humana
deve ser posta de lado. Ele afastará do homem a soberba. Israel devia aprender a
recordar a sua origem e o seu verdadeiro estado—"escravo do Egito" — "O menor
de todos os povos." Não havia lugar para vaidade ou orgulho. Não eram, de modo
nenhum, melhores do que as nações circunvizinhas; e, portanto, se fossem
convidados a dar conta da sua superior elevação ou grandeza moral, tinham
simplesmente de atribuir tudo ao amor de Deus e à Sua fidelidade ao Seu concerto.
"Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua
benignidade e da tua verdade" (Sl 115:l).
"Saberás, pois, que o SENHOR, teu Deus, é Deus, o Deus fiel, que guarda o
concerto e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus
mandamentos; e dá o pago em sua cara a qualquer dos que o aborrecem, fazendo-o
perecer; não será remisso para quem o aborrece; em sua face lho pagará (versículos
9 e 10).
Aqui nos são apresentados dois fatos importantíssimos: um cheio de rico
conforto e consolação para todo o que ama verdadeiramente a Deus; o outro
repleto da mais profunda solenidade para todo o que aborrece a Deus. Todos os que
amam realmente a Deus e guardam os Seus mandamentos podem contar com a Sua
infalível fidelidade e terna misericórdia, em todo o tempo e em todas as
circunstâncias. "Todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto" (Rm 8:28). Se, por graça
infinita, temos o amor de Deus em nossos corações, e o temor do Seu nome diante
dos nossos olhos, podemos avançar com bom ânimo e alegre confiança, certos de
que tudo correrá bem—deve correr bem. "Amados, se o nosso coração nos não
condena, temos confiança para com Deus; e qualquer coisa que lhe pedirmos, dele
a receberemos, porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é
agradável à sua vista" (1 Jo 3:21- 22). Isto é uma grande e eterna verdade—uma
verdade para Israel, uma verdade para a Igreja. As dispensações não fazem
diferença alguma quanto a isto. Quer estudemos o capítulo 7 de Deuteronômio, ou
o 3 de 1 João, aprendemos a mesma verdade prática: Deus deleita-Se naqueles que
O temem e O amam e guardam os Seus mandamentos.
Há nisto alguma coisa de legalismo? Nem por sombras. O amor e o legalismo
nada têm em comum; estão tão afastados quanto o podem estar dois pólos. "Porque
esta é o amor de Deus: que guardemos os seus mandamentos; e os seus
mandamentos não são pesados" (1 Jo 5:3). O espírito e o talento, o fundamento e
caráter da nossa obediência, tudo tende a provar que é o contrário da legalidade. É
nossa íntima e firme convicção de que as pessoas que estão sempre dispostas a
exclamar "lícito! lícito!" sempre que são instadas à obediência, estão
lamentavelmente erradas. Se realmente fosse ensinado que devemos alcançar por
nossos esforços a alta posição e parentesco de filhos de Deus, então o cargo do
legalismo podia na verdade ser-nos imposto. Mas lançar tal epíteto sobre a
obediência cristã é, repetimos, um erro moral muito grave. A obediência nunca
poderá preceder a filiação, mas a filiação deve ser sempre seguida pela obediência.

O Governo de Deus sobre Aqueles que o Aborrecem


E enquanto estamos tratando deste assunto, devemos chamar a atenção do
leitor para duas ou três passagens das Escrituras do Novo Testamento acerca das
quais existe uma falta de compreensão em muitas pessoas. Em capítulo 5 de Mateus
lemos: "Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei
bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que
sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus
e bons e a chuva desça sobre justos e injustos... sede vós, pois, perfeitos, como é
perfeito o vosso Pai, que está nos céus" (versículos 43 a 48).
Esta passagem podia, na opinião de alguns, parecer que ensinava que o
parentesco dos filhos pode ser conseguido por uma determinada linha de ação; mas
não é assim. É uma questão de conformidade com o caráter e os caminhos do nosso
Pai. Algumas vezes ouvimos, na vida diária, a expressão: "Você não seria filho de
seu pai se procedesse dessa forma." É como se o Senhor tivesse dito: "Se quereis ser
filhos de vosso Pai celestial, tereis de agir em graça para com todos; porque isso é o
que Ele está fazendo."
Em 2 Coríntios 6 lemos: "Pelo que saí do meio deles, e apartai- vos, diz o
Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para vós Pai, e
vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-poderoso" (versículos 17 e
18). Aqui não se trata de uma questão do segredo de parentesco de filhos, formado
por operação divina, mas do reconhecimento público da nossa posição ou estado
de filhos como resultado da nossa separação do mal. Será conveniente que o leitor
compreenda bem esta importante diferença. E de grande valor prático. Não nos
tornamos filhos pela separação do mundo, "Porque todos sois filhos de Deus pela fé
em Cristo Jesus." "Mas a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem
feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome, os quais não nasceram do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus" (Gl 3:26;
Jo 1:12-13). "Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade" (Tg
1:18). Tornamo-nos filhos pelo novo nascimento que, graças a Deus, é uma
operação divina, desde o princípio ao fim. Que tivemos nós que ver com o nosso
nascimento natural? Nada. E o que temos que ver com o nosso nascimento
espiritual? Nada, evidentemente.
Mas temos de concordar que Deus só pode identificar-Se e reconhecer
publicamente aqueles que, pela graça, procuram andar de um modo que é digno de
Si — uma maneira digna dos filhos e filhas do Senhor Todo-poderoso. Se os nossos
caminhos são diferentes do que Ele é, se andamos misturados com toda a sorte de
coisas más se nos prendemos a um jugo desigual com os descrentes, como podemos
esperar que Deus nos reconheça como Seus filhos? Em Hebreus 11 lemos dos que
"confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra", e que "claramente
mostraram que buscavam uma cidade"; e a respeito deles está escrito que "Deus se
não envergonha de se chamar seu Deus". Podia identificar-Se publicamente com
eles, e reconhecê-los. Podia reconhecê-los como Seus.
Prezado leitor, apliquemos seriamente os nossos corações à consideração desta
grande verdade prática. Ponderemos séria e honestamente os nossos caminhos.
Averiguemos com verdade e integridade de coração se estamos "ligados a um jugo
desigual com os infiéis", sobre qualquer pretexto ou para qualquer objetivo. Se
assim for, prestemos sincera atenção às palavras: "Saído meio deles, e apartai-vos, e
não toqueis nada imundo." Pode ser que para pormos em prática este santo
mandamento seja preciso expormo-nos à acusação de fanatismo, estreiteza de
critério e intolerância; pode ter o aspecto de orgulho farisaico e própria
complacência. Poderá dizer- se que não nos devemos julgar mais santos ou
melhores do que os outros.
A toda esta linha de argumentos temos uma resposta simples e conclusiva, isto
é, o mandamento é de Deus. Deus diz-nos que nos separemos, manda-nos sair do
meio deles, para não tocarmos em coisa alguma imunda; e tudo isto a fim de nos
receber e reconhecer como Seus filhos e filhas. Isto deveria ser mais que suficiente
para nós. Que as pessoas pensem ou digam o que quiserem de nós, que nos chamem
o que entenderem; Deus tratará do assunto com eles, mais cedo ou mais tarde; o
nosso dever é separarmo-nos dos incrédulos, se quisermos ser recebidos e
reconhecidos por Deus. Se os crentes andam juntos com os incrédulos, como vão
ser conhecidos ou distinguidos como filhos e filhas do Senhor Todo-poderoso?
Mas, pode perguntar-se: "Como havemos de conhecer os que são crentes?
Todos professam ser cristãos; todos dizem pertencer a Cristo; não estamos
rodeados de pagãos ignorantes ou de judeus incrédulos; como havemos então de
julgará Era uma coisa bastante clara nos primeiros dias do cristianismo, quando o
apóstolo escreveu a sua epistola à assembléia de Corinto; então a linha de
separação era tão clara como os raios do sol; haviam três classes distintas: 'Os
judeus' os gentios, 'e a Igreja de Deus'; mas agora tudo mudou; vivemos num país
cristão, sob um governo cristão, estamos rodeados por todos os lados de cristãos, e
portanto 2 Coríntios 6 não pode ser-nos aplicada; estava tudo muito bem quando a
Igreja estava na sua infância, após haver saído do judaísmo, por um lado, e do
paganismo, por outro; mas pensar em aplicar um tal princípio nesta avançada
época da história da Igreja é de todo impossível."
A todos os que tomam esta atitude queremos fazer uma pergunta bastante
clara: É verdade que a Igreja tem alcançado um período da sua história em que já
não necessita do Novo Testamento como seu guia e autoridade? Já chegamos para
lá dos limites da Sagrada Escriturai Se assim é, que havemos de fazer? Para onde
nos devemos voltar em busca de orientação? Se admitirmos, ainda que por um
momento, que 2 Coríntios 6 não tem atualmente aplicação aos cristãos, que
justificação temos nós para nos apropriarmos de qualquer parte do Novo
Testamento?
O fato é que a Escritura está destinada para a Igreja na sua totalidade e para
cada membro da Igreja em particular; por isso, enquanto a Igreja estiver na terra, a
Escritura será para sua aplicação. Pôr isto em dúvida é flagrante contradição das
palavras do apóstolo inspirado quando nos diz que as Sagradas Escrituras nos
podem fazer sábios para a salvação, isto é, "sábios" para o dia da glória, pois tal é a
bendita força da palavra "salvação" em 2 Timóteo 3:15.
Não necessitamos de nova luz nem de uma nova revelação; temos" toda a
verdade" entre as capas da nossa preciosa Bíblia. Graças a Deus! Não necessitamos
da ciência ou da filosofia para nos fazerem sábios. A verdadeira ciência e a sã
filosofia em nada alteram o testemunho da Sagrada Escritura; nada lhe podem
acrescentar; nem a contradizem: Quando os infiéis nos falam do "progresso", do
"desenvolvimento", da "luz da ciência", nós apoiamo-nos em santa confiança, e
tranqüilidade nessas preciosas palavras, "toda a verdade", "sábio para a salvação".
Felizmente não é possível ir mais longe. Que pode acrescentar-se a "toda a
verdade"? Que mais nos falta ou pode faltar-nos do que sermos feitos sábios para a
vinda do Senhor Jesus Cristo?-
E além disso, lembremos que não há qualquer mudança na posição relativa da
Igreja e o mundo. E tão verdade hoje como o era há mil e oitocentos anos, quando
nosso Senhor pronunciou as palavras que o Seu povo não é do mundo assim como
Ele mesmo não é do mundo (Jo 17). O mundo é ainda o mundo. Pode ter mudado
os seus trajos, em certos lugares, mas não o seu caráter; o seu espírito e os seus
princípios não mudaram. E por isso que é tão mau hoje os cristãos unirem-se ao
jugo desigual com os infiéis como o era quando Paulo escreveu a sua epístola à
Igreja de Corinto. Não podemos olvidar isto. Não podemos pôr de parte a nossa
responsabilidade sobre este assunto. Não poderemos, de modo nenhum, resolver o
assunto dizendo: "Não devemos julgar os outros." Somos obrigados a julgar. Se
recusamos julgar, recusamos obedecer, e o que é isto senão positiva rebelião? Deus
diz: "Saí do meio deles, e apartai-vos"; se replicamos: "Não devemos julgar", onde
estamos nós? O fato é que se nos manda concretamente julgar. "Não julgais vós os
que estão de dentro? Mas Deus julga os que estão de fora" (1 Co 5:12-13).
Mas não prosseguiremos esta linha de argumentos. Queremos crer que o leitor
é um dos que reconhecem sem reservas a aplicação direta a si mesmos da passagem
que acabamos de citar. E tão clara quanto precisa; convida o povo de Deus a sair e
manter-se separado e não tocar no que é imundo. E isto que Deus requer do Seu
povo, a fim de os reconhecer como Seus; e certamente deveria ser o profundo e
sincero desejo de nossos corações responder à Sua preciosa vontade sobre este
assunto, completamente indiferentes ao que o mundo possa pensar de nós. Alguns
de entre nós temem muito que os considerem fechados e intolerantes. Mas, ah!
Quão pouco importa a um coração verdadeiramente consagrado o que os homens
pensam de nós! O pensamento humano perece numa hora. Quando
comparecermos diante do tribunal de Cristo, quando estivermos no pleno
resplendor da glória, que importará que os homens nos hajam considerado
fechados ou abertos, fanáticos ou liberais? E que importância deverá ter isso para
nós?- Nenhuma absolutamente. O nosso principal objetivo deve ser atuar de tal
maneira, conduzirmo-nos a nós próprios de tal modo que sejamos agradáveis"
Aquele que nos tornou "agradáveis". Que assim seja com o autor destas linhas, com
o leitor e com cada membro do corpo de Cristo!
Voltemos, por um momento, à importante e solene verdade que nos é
apresentada em versículo 10 do nosso capítulo. "E dá o pago em sua face a qualquer
dos que o aborrecem." Se os que amam a Deus são confortados no versículo 9, e de
um modo bendito animados a guardarem os Seus mandamentos, os que aborrecem
a Deus são convidados a escutar um aviso no versículo 10.
Virá um dia em que Deus tratará, face a face, com os Seus inimigos. Quão
terrível é pensar que alguém possa aborrecer a Deus—aborrecer Aquele de Quem
é dito que é "luz" e "amor"; a própria fonte do bem, o Autor e Dador de todo o dom
perfeito, o Pai das luzes; Aquele Cuja mão liberal supre as necessidades de todo o
ser vivente, que ouve o grasnar dos filhotes dos corvos e mata a sede ao jumento
montês; o único infinitamente bom, sábio e perfeitamente santo Deus, o Senhor de
todo o poder e força, o Criador dos confins da terra, e O que tem o poder de
destruir conjuntamente a alma e o corpo no inferno.
Pensemos apenas nisto, leitor, há quem aborrece a um Ser tal como Deus, e nós
sabemos que todo o que não ama a Deus há de necessariamente aborrecê-Lo. As
pessoas podem não compreender isto; muitos estarão pouco dispostos a admitir
que aborrecem a Deus; mas não existe terreno neutro nesta importante questão;
havemos de ser pró ou contra; e, de fato, as pessoas não hesitam em mostrar a sua
posição. Acontece por vezes que a profunda inimizade do homem contra Deus é
revelada em ódio ao Seu povo, à Sua Palavra, ao Seu culto e ao Seu serviço.
Quantas vezes ouvimos expressões como estas: "Detesto as pessoas
religiosas"—"Detesto a hipocrisia"—"Odeio os pregadores". A verdade é que é a
Deus mesmo que detestam." Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra
Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser" (Rm 8:7); e esta
inimizade manifesta-se no tocante a todos e tudo relacionado com Deus. No
recôndito de todo o coração inconverso existe a mais positiva inimizade contra
Deus. Todo o homem em seu estado natural aborrece a Deus.
Ora, Deus declara, em Deuteronômio 7:10: "E dá o pago em sua face a qualquer
dos que o aborrecem, [...] não será remisso para quem o aborrece." É uma verdade
muito solene, sobre a qual se devia instar mais com todos aqueles a quem diz
respeito. Os homens não gostam de a ouvir; muitos fingem e professam não crer
nela. De bom grado se persuadiriam a si próprios e convenceriam os outros de que
Deus é demasiadamente bom, demasiadamente benévolo, demasiadamente
misericordioso, demasiadamente bondoso para proceder com juízo austero com as
Suas criaturas. Esquecem que os caminhos de Deus em Seu governo são tão
perfeitos como os Seus caminhos em graça. Imaginam que o governo de Deus
passará por alto ou tratará ligeiramente o mal e os que o praticam.
Isto é um erro fatal e miserável, e os homens descobrirão que é assim para seu
pesado e eterno castigo. É verdade, bendito seja Deus, que Ele pode, em Sua rica
graça e soberana misericórdia, perdoar-nos os nossos pecados, apagar as nossas
transgressões, cancelar a nossa culpa, justificar-nos perfeitamente, e encher os
nossos corações do espírito de adoção. Mas isto é uma coisa muito diferente. Isto é
graça reinando em justiça para a vida eterna por Jesus Cristo, nosso Senhor. E
Deus, em Seu admirável amor, proporcionando justiça para o pobre culpado
pecador, merecedor do inferno, que sabe, sente e reconhece que não tem nenhuma
justiça própria e que nunca a poderia ter. Deus, em Seu maravilhoso amor, fez
provisão de meios mediante os quais pode ser justo e justificador de todo o pecador
abatido e contrito de coração, que simplesmente crê no Senhor Jesus.
Mas, podemos perguntar, como foi feito tudo isto? Foi passando por sobre o
pecado, como se ele nada fosse? Foi afrouxando os direitos do governo divino,
rebaixando o padrão da santidade divina, ou cercando, de qualquer modo, a
dignidade, severidade e majestade da Lei? Não; graças e louvor ao amor redentor,
foi precisamente o contrário. Nunca houve ou pôde haver uma expressão mais
terrível do ódio de Deus ao pecado, ou do Seu implacável propósito de o condenar
completamente e punir eternamente; nunca houve ou pôde haver uma mais
gloriosa justificação do governo divino, uma mais perfeita defesa do padrão de
santidade divina, verdade e justiça; nunca a lei foi mais gloriosamente defendida
ou mais completamente estabelecida do que por esse gloriosíssimo plano de
redenção, traçado, executado e revelado pelo Eterno Deus Trinitário—projetado
pelo Pai, executado pelo Filho, e revelado pelo Espírito Santo.
Se queremos ter um sentido justo da espantosa realidade do governo de Deus, da
Sua ira contra o pecado e do verdadeiro caráter da Sua santidade, devemos
contemplar a cruz; devemos prestar atenção a este brado doloroso que emanou do
coração do Filho de Deus e rasgou as trevas espessas do Calvário: "Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?" Nunca antes havia sido feita uma tal pergunta;
nunca desde então se tem feito uma tal pergunta; e nunca, nunca tal pergunta será
feita outra vez. Quer consideremos Aquele que a fez, Aquele a Quem foi feita ou a
resposta, temos de admitir que a pergunta permanece absolutamente só nos anais
da eternidade. A cruz é a medida da aversão de Deus ao pecado, assim como é a
medida do Seu amor pelo pecador. E o imperecível fundamento do trono da graça,
a base divinamente justa sobre a qual Deus pode perdoar os nossos pecados, e
constituir-nos perfeitamente justos em Cristo ressuscitado e glorificado.
Porém, se os homens desprezam tudo isto e persistem no seu aborrecimento a
Deus, e contudo dizem que Ele é demasiado bom e demasiado benévolo para
castigar os que praticam a iniqüidade, que lhes sucederá ? "Aquele que não crê no
Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece" (Jo 3:36) (1). Será
possível, poderemos nós crer, por um momento, que o Deus justo executasse o
juízo sobre o Seu Filho unigênito, o Seu bem-amado, as Suas eternas delícias, por
levar os nossos pecados sobre o Seu corpo no madeiro, e permitisse todavia que os
pecadores impenitentes escapassem ao castigo? Jesus—o Homem perfeito,
imaculado e santo - o único Homem perfeito que jamais pisou esta terra — teve de
sofrer pelos pecados, o justo pelos injustos, e os que praticam a iniqüidade,
incrédulos e aborrecedores de Deus, hão de ser salvos e abençoados e levados para
o céu? E tudo isto na verdade porque Deus é demasiado benévolo e demasiado bom
para punir os pecadores no inferno para sempre! Deus teve de entregar, abandonar
e moer o Seu amado Filho a fim de salvar o Seu povo dos seus pecados, e os
pecadores ímpios, rejeitadores e rebeldes, serão salvos nos seus pecados? Morreu o
Senhor Jesus Cristo em vão? Javé expô-Lo à aflição e escondeu o Seu rosto d'Ele
sem haver necessidade? Por que razão os horrores do Calvário? Por que motivo as
três horas de trevas? Por que o brado amargo "Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste? Por que razão tudo isto se os pecadores podem chegar ao céu sem
isso? Por que toda esta dor inconcebível e todo este sofrimento de nosso Senhor, se
Deus é tão benigno e tão gracioso, e tão terno que não pode mandar os pecadores
para o inferno ?
Que grande tolice! O que não crerão os homens, desde que não seja a verdade
de Deus! A pobre, obscura mente humana acreditará de bom grado o mais
monstruoso disparate a fim de obter um motivo para rejeitar o ensino claro da
Sagrada Escritura. A própria coisa que os homens nunca pensariam atribuir a um
bom governo humano não hesitam em a atribuir ao governo do único sábio,
verdadeiro e justo Deus. Que pensaríamos nós de um governo que não pudesse ou
não quisesse castigar os que praticam o mal? Gostaríamos de viver sob um tal
governo?- Que idéia faríamos do governo da Inglaterra se, por sua Majestade ser
tão benévola, tão graciosa, tão terna, não pudesse consentir o castigo dos
criminosos segundo a lei?
Prezado leitor, não se vê como o versículo que temos diante de nós destrói
completamente todas as teorias e argumentos que os homens na sua loucura e
ignorância têm concebido sobre o assunto do governo divino?- "O SENHOR teu
Deus, é Deus, o Deus fiel... e dá o pago em sua face a qualquer dos que o aborrecem,
fazendo-o perecer; não será remisso para quem o aborrece; em sua face lho
pagará."
Oh, se os homens quisessem atender à Palavra de Deus! Se quisessem ser
admoestados por suas claras, enfáticas e solenes afirmações quanto à ira vindoura,
juízo e castigo eterno! Se, em vez de procurarem persuadir-se a si mesmos e aos
outros de que não existe inferno, nem verme que não morre, nem fogo que nunca
se apaga, nem tormento eterno, escutassem a voz do aviso, e, antes de ser tarde,
buscassem refúgio na esperança posta diante deles no evangelho! Isto seria para
eles verdadeira sabedoria. Deus declara que dará o pago àqueles que O aborrecem.
Quão terrível o pensamento deste pago! Quem poderá resistir-lhe? O governo de
Deus é perfeito; e porque é assim, é absolutamente impossível que possa consentir
que o mal fique sem castigo. Nada pode ser mais claro que isto. Toda a Escritura,
desde Gênesis ao Apocalipse, mostra-o em termos tão claros e com força tal que é o
cúmulo da loucura quando os homens argumentam contra ele. Quão melhor e
mais seguro é fugir da ira que há de vir do que negar que ela se aproxima, e que
quando vier será eterna na sua duração. É inteiramente inútil para qualquer pessoa
tentar raciocinar em oposição à Palavra de Deus. Toda a Palavra de Deus
permanece para sempre. Vemos os atos do Seu governo a respeito do Seu povo
Israel e quanto aos cristãos no tempo presente. Passou sobre o mal do Seu antigo
povo«?- Não; pelo contrário, visitou-o continuamente com o castigo da Sua vara, e
isto, também, precisamente porque era o Seu povo, como lhes disse por intermédio
do Seu profeta Amós: "Ouvi esta palavra que o SENHOR fala contra vós, filhos de
Israel, contra toda a geração que fiz subir da terra do Egito, dizendo: De todas as
famílias da terra a vós somente conheci; portanto, todas as vossas injustiças
visitarei sobre vós" (Am 3:l,2).

O Governo de Deus sobre a Sua Própria Casa


Temos o mesmo princípio importante exposto na primeira epístola de Pedro,
na sua aplicação aos cristãos no tempo presente. "Porque já é tempo que comece o
julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro começa por nós, qual será o fim
daqueles que são desobedientes ao evangelho de Deus?- E, se o justo apenas se
salva, onde aparecerá o ímpio e o pecador?" (1 Pe 4:17-18).
Deus castiga os Seus, precisamente porque são Seus, e para não serem
condenados com o mundo (1 Co 11). Os filhos deste mundo são autorizados a
seguir o seu caminho; mas o seu dia está chegando um dia sombrio e carregado —
um dia de juízo e implacável ira.
Os homens podem duvidar, arguir e raciocinar, mas a Escritura é clara e
enfática. Deus "tem determinado um dia em que, com justiça, há de julgar o
mundo por meio do varão que destinou". O grande dia do ajuste de contas está
perto, e Deus recompensará a todo o homem amplamente.
É verdadeiramente edificante notar a maneira como Moisés, o amado e
honrado servo de Deus, guiado certamente pelo Espírito de Deus, insistiu nas
grandes e solenes realidades do governo divino sobre a consciência da
congregação. Ouvi como ele a exorta. "Guarda, pois, os mandamentos, e os
estatutos, e os juízo que hoje te mando fazer. Será, pois, que, se, ouvindo estes
juízos, os guardardes e fizerdes, o SENHOR, teu Deus, te guardará o concerto e a
beneficência que jurou a teus pais; e amar-te-á, e abençoar-te-á, e te fará multi-
plicar, e abençoará o fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, o teu cereal, e o teu
mosto, e o teu azeite, e a criação das tuas vacas, e o rebanho do teu gado miúdo, na
terra que jurou a teus pais dar-te. Bendito serás mais do que todos os povos; nem
macho nem fêmea entre ti haverá estéril, nem entre os teus animais. E o SENHOR de
ti desviará toda enfermidade; sobre ti não porá nenhuma das más doenças dos
egípcios, que bem sabes; antes, as porá sobre todos os que te aborrecem. Pois
consumirás a todos os povos que te der o SENHOR, teu Deus; o teu olho não os
poupará; e não servirás a seus deuses, pois isso te seria por laço" (versículos 11 a
16).
Que poderoso apelo! Quão tocante! Note-se os dois grupos de palavras: Israel
tinha de "ouvir", "guardar" e "fazer". O Senhor tinha de os amar, abençoar e
multiplicar. Mas, ah, Israel falhou tristemente, vergonhosamente, sob a lei e o
governo; e por isso, em vez do amor e bênção e a multiplicação, tem caído sobre
eles o juízo, a maldição, a esterilidade, dispersão e desolação!

Graça e Misericórdia por parte de Deus


Mas, bendito seja o Deus de Abraão, de Isaque e Jacó, o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo; se Israel falhou sob a lei e o governo, Ele não falhou na Sua
rica e soberana graça e preciosa misericórdia. Deus cumprirá o concerto e a
misericórdia que jurou a seus pais. Nem um jota ou til cairá jamais das promessas
do Seu concerto. Em breve cumprirá tudo. Cumprirá à letra todas as Suas
promessas preciosas. Embora não possa fazer isto sobre o fundamento da
obediência de Israel, pode fazê-lo e fá-lo-á por meio do sangue do concerto eterno,
o sangue precioso de Jesus, o Seu Filho eterno — toda a glória seja dada ao Seu
precioso nome!
Sim, prezado leitor, o Deus de Israel não pode consentir que uma das Suas mais
simples e preciosas promessas caia por terra. Que seria feito de nós se Ele o fizesse?
Que segurança, que descanso, que paz poderíamos nós ter, se o Deus do concerto
com Abraão faltasse em um simples ponto? Verdade é que Israel perdeu todos os
seus direitos. Se fosse uma questão de descendência carnal, Ismael e Esaú tinham o
direito à prioridade. Se fosse um caso de obediência legal, o bezerro de ouro e as
tábuas de pedra quebrantadas poderiam contar a sua triste história. Se for uma
questão de governo com base no concerto de Moabe, então não têm um simples
argumento a alegar.
Mas Deus será Deus apesar da lamentável infidelidade de Israel. "A chamada e
os dons de Deus são sem arrependimento", e por isso, "todo o Israel será salvo".
Deus honrará certamente o Seu juramento a Abraão, apesar de toda a ruína dos
descendentes de Abraão. Devemos manter isto com firmeza, em face de todo o
pensamento contrário, sentimento ou opinião. Israel será restaurado, e abençoado,
e multiplicado na sua própria terra amada e santa. Tirarão as suas harpas dos
salgueiros e, pacificamente, à sombra das suas videiras e figueiras, cantarão os
louvores do seu Deus e benigno Salvador, durante esse brilhante sábado milenial
que os aguarda. Tal é o testemunho inegável da Escritura, desde o princípio ao fim,
o qual deve ser mantido em sua integridade e cumprido em todos os pormenores,
para glória de Deus, e sobre a base do Seu concerto eterno.
Mas devemos prosseguir com o nosso capítulo, cujos versículos finais requerem
a nossa especial atenção. E muito comovedor e belo notar o modo como Moisés
procura encorajar o povo a respeito das temidas nações de Canaan. Penetra e
antecipa os seus mais íntimos pensamentos e sentimentos.
"Se disseres no teu coração: Estas nações são mais numerosas do que eu; como
as poderei lançar fora? Delas não tenhas temor; não deixes de te lembrar do que o
SENHOR, teu Deus, fez a Faraó e a todos os egípcios; das grandes provas que viram
os teus olhos, e dos sinais, e maravilhas, e mão forte, e braço estendido, com que o
SENHOR , teu Deus, te tirou; assim fará o SENHOR, teu Deus, com todos os povos,
diante dos quais tu temes. E mais, o Senhor teu Deus entre eles mandará vespões,
até que pereçam os que ficarem e se escondam de diante de ti. Não te espantes
diante deles; porque o SENHOR, teu Deus; está no meio de ti, Deus grande e terrível.
E o SENHOR, teu Deus, lançará fora estas nações, pouco a pouco, de diante de ti; não
poderás destruí-las todas de pronto, para que as feras do campo se não
multipliquem contra ti. E o SENHOR tas dará diante de ti, e as fará pasmar com
grande pasmo, até que sejam destruídas. Também os seus reis te entregará na mão,
para que desfaças os seus nomes de debaixo dos céus; nenhum homem parará
diante de ti, até que os destruas. As imagens de escultura de seus deuses queimarás
a fogo; a prata e o ouro que estão sobre elas não cobiçarás, nem os tomarás para ti,
para que te não enlaces neles; pois abominação é ao SENHOR, teu Deus. Não
meterás, pois, abominação em tua casa, para que não sejas anátema, assim como
ela; de todo a detestarás e de todo a abominarás, porque anátema é" (versículos 17 a
26).

Se Deus É Por Nós, Quem Será Contra Nós?


O grande remédio para todos os temores de incredulidade consiste em fixar
simplesmente os olhos no Deus vivo: desta forma o coração é elevado acima das
dificuldades, quaisquer que elas possam ser. De nada serve negar que há
dificuldades e influências adversas de toda a espécie. Isto não daria conforto e
ânimo ao coração atribulado. Algumas pessoas afetam um certo estilo quando
falam de provações e dificuldades que tendem a provar não o seu conhecimento
prático de Deus, mas a sua profunda ignorância das duras realidades da vida. De
bom grado nos persuadiriam que não deveríamos sentir as provações, dores e
dificuldades do caminho. Do mesmo modo nos podiam dizer que não deveríamos
ter uma cabeça sobre os nossos ombros ou um coração no nosso peito. Tais pessoas
não sabem como confortar aqueles que estão abatidos. São meramente teóricos
visionários completamente incapazes de tratar com as almas que passam por
conflitos ou lutam com os fatos da nossa vida diária.
Como foi que Moisés procurou animar os seus irmãos? "Não te espantes", diz
ele; mas por que«? Era porque não havia inimigos, nem dificuldades, nem perigos«?
Não, mas "porque o SENHOR teu, Deus, está no meio de ti, Deus grande e terrível".
Aqui está o verdadeiro conforto e encorajamento; os inimigos lá estavam, mas
Deus é o recurso seguro. Foi assim que Josafá, numa ocasião de provação e aperto,
procurou animar-se a si e aos seus irmãos: "Ah! Deus nosso, porventura não os
julgarás«? Porque em nós não há força perante esta grande multidão que vem
contra nós, e não sabemos nós o que faremos; porém os nossos olhos estão postos
em ti"( 2 Cr 20:12).
Tal é o precioso segredo. Os olhos postos em Deus. O Seu poder é introduzido e
isto resolve todas as coisas. "Se Deus é por nós, quem será contra nós«?" Moisés
enfrenta, por meio do seu precioso ensino, os temores que se levantam no coração
de Israel. "Estas nações são mais numerosas do que eu." Sim, mas não são mais do
que o "Deus grande e terrível". Quais as gentes que poderiam resistir-lhe«?- Tinha
uma solene controvérsia com essas nações por causa dos seus terríveis pecados; a
sua iniqüidade havia atingido o mais alto ponto; o dia do ajuste de contas era
chegado, e o Deus de Israel expulsá-las-ia diante do Seu povo.
Portanto, Israel não tinha necessidade de temer o poder do inimigo. O Senhor
tomaria conta disso. Mas havia alguma coisa muito mais a recear do que o poder do
inimigo, e isto era o enredo da influência da idolatria. "As imagens de escultura dos
seus deuses queimarás a fogo." "O quê«?" Poderia o coração dizer, "temos de
destruir o ouro e a prata que ornamentam estas imagens? Não poderia dar-se-lhes
um melhor destino? Não será uma pena destruir o que é tão valioso em si?- É
próprio queimar as imagens, mas porque não poupar o ouro e a pratas"
Ah! E precisamente assim que o pobre coração é dado a raciocinar! É assim que
muitas vezes nos enganamos a nós próprios quando somos chamados a abandonar
o que é mau. Julgamos que é justo manter certa reserva; imaginamos que podemos
escolher e fazer qualquer distinção. Estamos prontos a queimar a madeira do ídolo,
mas a poupar o ouro e a prata.
Que fatal ilusão! "A prata e o ouro que estão sobre eles não cobiçarás, nem
tomarás para ti, para que te não enlaces neles, pois abominação é ao SENHOR ,teu
Deus." Tudo tinha de ser abandonado, tudo destruído. Reter um átomo do que foi
amaldiçoado seria cair nos ardis do diabo, e ligarmo-nos com aquilo que, por muito
estimado entre os homens, é abominação aos olhos de Deus.
E notemos e ponderemos os versículos finais do nosso capítulo. Trazer uma
abominação para casa é tornar-se como ela! Quão solene! Compreendemos isto
plenamente? Todo o homem que trazia uma abominação para a sua casa tornava-se
amaldiçoado como ela!
Leitor, que o Senhor guarde os nossos corações separados de todo o mal e
verdadeiros e leais a Si Mesmo!
— CAPÍTULO 8 —

UMA OLHADA PARA TRÁS

"Todos os mandamentos que hoje vos ordeno guardareis o para os fazer, para
que vivais, e vos multipliqueis, e entreis, e possuais a terra que o SENHOR jurou a
vossos pais. E te lembrarás de todo o caminho pelo qual o SENHOR, teu Deus, te
guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te tentar, para saber o
que estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos ou não" (versículos
1 e 2).
É, ao mesmo tempo, edificante e animador volver os olhos para todo o curso ao
longo do qual a mão fiel do nosso Deus nos tem conduzido; traçar os Seus atos
sábios e cheios de graça conosco; para nos recordar as Suas muitas maravilhosas
intervenções em nosso favor, como nos libertou deste aperto e daquela dificuldade;
como, muitas vezes, quando não sabíamos o que havíamos de fazer, Ele veio em
nosso socorro e abriu o caminho diante de nós, repreendendo os nossos temores e
enchendo os nossos corações com cânticos de louvores e ações de graças.
Não é para nos Orgulharmos de nossos Progressos
Não devemos, de modo nenhum, confundir este agradável exercício com o
hábito miserável de olharmos para trás sobre os nossos caminhos, os nossos
sucessos, o nosso progresso, o nosso serviço, o que temos podido fazer, embora
estejamos dispostos a admitir, de um modo geral, que fora apenas pela graça de
Deus que pudemos fazer algum trabalho para Ele. Tudo isto conduz apenas a
satisfação própria, a qual é destruidora de todo o verdadeiro pensamento espiritual.
A retrospecção pessoal, se nos é permitido empregar tal termo, é tão injuriosa no
seu efeito moral como na própria introspecção. Em suma, a ocupação por própria
iniciativa, em qualquer das suas múltiplas fases, é a mais perniciosa; é, tanto quanto
lhe é permitido operar, o golpe mortal da comunhão. Tudo quanto tende a exaltar
perante a mente a personalidade deve ser julgado e recusado, com firme decisão;
produz a esterilidade, a obscuridade e a fraqueza. Todo aquele que se detém para
rever os seus méritos ou os seus feitos entrega-se à mais miserável ocupação a que
alguém pode dedicar-se. Podemos estar certos de que não era a uma tal ocupação
que Moisés exortava o povo quando lhe disse: "E te lembrarás de todo o caminho
pelo qual o SENHOR, teu Deus, te guiou no deserto."
Aqui podemos recordar, por um momento, as palavras memoráveis do apóstolo
em Filipenses 3: "Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma
coisa faço, e é que, esquecendo- me das coisas que atrás ficam e avançando para as
que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de
Deus em Cristo Jesus" (versículos 13 e 14).
Ora, a questão é esta, quais eram as "coisas" de que o bem- aventurado apóstolo
falai Esquecera os atos preciosos de Deus com a sua alma através de toda a sua
jornada pelo deserto? Impossível; na realidade temos a mais clara e completa
evidência do contrário. Escutai as suas palavras tocantes perante Agripa: "Mas,
alcançando socorro de Deus, ainda até ao dia de hoje permaneço, dando teste-
munho tanto a pequenos como a grandes." Assim também, escrevendo ao seu
amado filho e cooperador Timóteo, ele revê o passado e fala das perseguições e
aflições que havia sofrido: "E o Senhor de todas me livrou." "Ninguém me assistiu
na minha primeira defesa; antes, todos me desampararam. Que isto lhes não seja
imputado. Mas o Senhor assistiu-me e fortaleceu-me, para que, por mim fosse
cumprida a pregação e todos os gentios a ouvissem; e fiquei livre da boca do leão"
(2 Tm 3:11; 4:16,17).
Portanto, a que se refere o apóstolo quando fala de "esquecer as coisas que atrás
ficam" ? Cremos que se refere a todas aquelas coisas que não tinham relação com
Cristo — coisas que podiam atuar como pesos e impedimentos; deviam ser todas
esquecidas no ardente prosseguimento dessas gloriosas realidades que estavam
diante de si Não podemos crer que Paulo ou qualquer outro filho de Deus ou servo
de Cristo pudesse jamais esquecer uma simples cena ou circunstâncias, em toda a
sua carreira, que, de qualquer modo, fosse um exemplo da bondade, benignidade,
terna misericórdia e fidelidade de Deus. Pelo contrário, cremos que será sempre
uma das mais agradáveis ocupações ter presente a feliz recordação de todos os
feitos do nosso Pai conosco durante a nossa passagem por este deserto para o nosso
eterno descanso.
Mas não queremos que o sentido das nossas palavras seja mal compreendido.
Não desejamos, de modo nenhum, dar apoio ao hábito de pensarmos apenas na
nossa própria experiência. Isto é muitas vezes uma fraca tarefa, e transforma-se por
si mesma em ocupação pessoal. Devemo-nos guardar contra isto como uma das
muitas coisas que tendem a diminuir o nosso tom espiritual e a afastar os nossos
corações de Cristo. Mas não devemos nunca ter receio do resultado de manter viva
a recordação dos caminhos e atos de Deus para conosco. Isto é um bendito hábito,
que tende sempre a elevar-nos acima de nós próprios e nos enche de louvores e
ações de graças.

Para Compreender a Misericórdia de Deus


Mas, pode perguntar-se, porque foi recomendado a Israel que recordasse todo o
caminho por onde o SENHOR, seu Deus, o havia guiado? Seguramente para induzir
os seus corações em louvor pelo passado e fortalecer a sua confiança em Deus
quanto ao futuro. Assim deve ser sempre. Nós O louvaremos pelo passado, e
confiaremos n'Ele em tudo que está para vir. Possamos nós fazer assim mais e mais!
Que possamos avançar, dia a dia, louvando e confiando, confiando e louvando.
Estas são as duas coisas que redundam para glória de Deus e para nossa paz e gozo
n'Ele. Quando os olhos descansam sobre os "Ebenézeres" que se acham ao longo do
caminho, o coração tem de dar saída aos seus doces "aleluias" Aquele que nos tem
ajudado até aqui e que nos ajudará até o fim. Libertou-nos, liberta-nos, e nos
libertará. Que bendita série! É formada por laços de libertação divina.
E não é somente sobre as assinaladas misericórdias e libertação da mão de
nosso Pai que nos devemos manter, com reconhecida gratidão, mas também sobre
as "humilhações" e as "provações" do Seu fiel, sábio e santo amor. Todas estas coisas
estão repletas das mais ricas bênçãos para as nossas almas. Não são, como algumas
vezes são chamadas por muitos, misericórdias disfarçadas, mas misericórdias
claras, palpáveis, inconfundíveis pelas quais havemos de louvar o nosso Deus
durante os áureos séculos dessa esplendorosa eternidade que está diante de nós.
"E te lembrarás de todo o caminho"—de cada etapa da jornada, de cada cena da
vida do deserto, de todos os atos de Deus, desde o princípio ao fim, com o especial
objetivo de "te humilhar, para te tentar, para saber o que estava no teu coração."
Quão maravilhoso é pensar no cuidado amoroso e paciente graça de Deus com
o Seu povo no deserto! Que preciosa instrução para nós! Com que profundo
interesse e deleite espiritual nos podemos debruçar sobre o relato dos atos divinos
com Israel em todas as suas peregrinações pelo deserto! Quanto podemos aprender
dessa maravilhosa história! Nós temos também de ser humilhados e provados para
que se possa saber o que está no nosso coração.
Ao empreender a viagem para seguirmos o Senhor, conhecíamos muito pouco
das profundezas do mal e da loucura dos nossos corações. Na realidade,
conhecíamos tudo de um modo supérfluo. E na proporção que avançamos na nossa
carreira prática que começamos a experimentara realidade das coisas; descobrimos
as profundidades do mal em nós próprios, a absoluta falsidade e a nulidade de tudo
que há no mundo, e a urgente necessidade da mais completa dependência da graça
de Deus, em todo o momento. Tudo isto é muito bom; faz-nos humildes e
desconfiados de nós mesmos; livra- nos do orgulho e da suficiência pessoal, e
leva-nos a apegar-nos, com a simplicidade de uma criança, Aquele que é o único
capaz de evitar de cairmos. Assim, à medida que crescemos em conhecimento do
que somos, obtemos um sentido mais profundo da graça, uma mais profunda
familiaridade com o maravilhoso amor de Deus, a Sua ternura para conosco, a Sua
maravilhosa paciência em suportar todas as nossas fraquezas e faltas, a Sua rica
misericórdia em nos haver levantando, o Seu amoroso suprimento de todas as
nossas diversas necessidades, as Suas inumeráveis intervenções em nosso favor, as
provas pelas quais tem achado bem conduzir-nos para proveito profundo e
permanente das nossas almas.
O efeito prático de tudo isto é incalculável; comunica ao caráter profundidade,
solidez e maturação; cura-nos de todas as nossas noções errôneas e vãs teorias;
liberta-nos da parcialidade e do fanatismo; torna-nos ternos; torna-nos ternos,
ponderados, pacientes e atenciosos com os outros; corrige as nossas duras opiniões
e dá- nos o gracioso desejo de encararmos a conduta dos outros do melhor ponto de
vista, e prontidão em atribuir os melhores motivos em casos que nos podem
parecer duvidosos. Estes são os preciosos frutos da experiência do deserto, os quais
todos podemos ardentemente desejar.

"O Homem não Viverá só de Pão"


"E te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não
conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que o homem não
viverá só de pão, mas que de tudo que sai da boca do SENHOR viverá o homem"
(versículo 3).
Esta passagem tem especial interesse e importância devido ao fato de ser a
primeira passagem do livro de Deuteronômio citada por nosso Senhor em Seu
conflito com o adversário no deserto. Consideremos isto profundamente. Requer a
nossa mais viva atenção. Porque citou o Senhor uma passagem de Deuteronômio?
Porque esse era o livro que, sobre todos os demais, se aplicava de um modo especial
ao estado de Israel nesse momento. Israel havia fracassado por completo, e este fato
importante lhe é atribuído no livro de Deuteronômio, desde o princípio a fim. Mas
apesar do fracasso da nação, o caminho da obediência estava aberto a todo o
israelita fiel. Era um privilégio e um dever de todo aquele que amava a Deus
apegar-se à Sua Palavra, em todas as circunstâncias e em todo o lugar.
Ora, nosso bendito Senhor foi divinamente fiel à posição do Israel de Deus;
Israel segundo a carne havia falhado e perdido tudo, Ele estava ali, no deserto,
como o verdadeiro Israel de Deus, para enfrentar o inimigo por meio da simples
autoridade da Palavra de Deus. "E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e
foi levado pelo Espírito ao deserto. E quarenta dias foi tentado pelo diabo, e,
naqueles dias não comeu coisa alguma, e, terminados eles, teve fome. E disse-lhe o
diabo: Se tu és o Filho de Deus, dize a esta pedra que se transforme em pão. E Jesus
lhe respondeu, dizendo: Escrito está que nem só de pão viverá o homem, mas de
toda a palavra de Deus" (Lc 4:1-4).
Aqui, pois, está alguma coisa digna de consideração para nós. O homem
perfeito, o verdadeiro Israel, estava no deserto, rodeado pelas feras, jejuando por
espaço de quarenta dias, na presença do grande adversário de Deus, do homem e
de Israel. Não havia em toda aquela cena nada que falasse de Deus. Não sucedia
com o segundo Homem como sucedeu com o primeiro; não estava rodeado por
todas as delícias do Éden, mas de toda a tristeza e desolação do deserto, na solidão e
com fome -— mas estava ali para Deus!
Sim; bendito seja o Seu nome, e estava ali para o homem; para mostrar ao
homem como enfrentar o inimigo em todas as suas variadas tentações; para
mostrar ao homem como devia viver. Não devemos supor, nem por um momento,
que nosso adorável Senhor se opôs ao adversário como Deus sobre todos; decerto,
era Deus, mas se fosse apenas como tal que Se mantinha do conflito, não podia
proporcionar-nos nenhum exemplo. Além disso, era desnecessário dizer-se que
Deus era poderoso para dominar e afugentar uma criatura que as Suas próprias
mãos haviam formado. Mas ver Um que era, em todos os sentidos, homem, em
todas as circunstâncias da humanidade, exceto o pecado; vê-Lo ali em fraqueza,
com fome, no meio das conseqüências da queda do homem, e descobrir que Ele
triunfa completamente sobre o terrível inimigo, é o que nos dá ânimo, consolação
força e coragem.
E como triunfou Ele?- Esta é a grande e importante questão para nós, uma
questão que exige a mais profunda atenção de todos os membros da Igreja de Deus;
uma questão cuja magnitude e importância é completamente impossível exagerar.
Como foi então que o Homem Cristo Jesus venceu Satanás no deserto?-
Simplesmente pela palavra de Deus. Venceu não como o Altíssimo Deus, mas
como o Homem humilde, dependente, e obediente. Temos diante de nós o
magnífico espetáculo de um homem que se mantém firme na presença do diabo e o
confunde completamente sem qualquer outra arma senão a Palavra de Deus. Não
foi pela demonstração de poder divino, porque esse não podia ser um exemplo para
nós; foi simplesmente com a Palavra de Deus em Seu coração e em Seus lábios, que
o segundo Homem confundiu o terrível inimigo de Deus e do homem.
E notemos atentamente que nosso bendito Senhor não discute com Satanás.
Não apela para quaisquer fatos relacionados Consigo — fatos que o inimigo
conhecia bem. O senhor não diz: "Sei que sou o Filho de Deus; os céus abertos, o
Espírito descendo, e a voz do Pai deram testemunho do fato de ser eu o Filho de
Deus." Não; isto não serviria de nada; não seria e não podia ser um exemplo para
nós. O único ponto especial que nos convém notar e do qual devemos aprender é o
nosso Grande Exemplo, quando enfrentou todas as tentações do inimigo, usou
somente a arma que temos em nosso poder, isto é, a simples e preciosa Palavra de
Deus.
Dizemos "todas as tentações" porque nos três casos a resposta invariável do
Senhor é: "Está escrito". Não diz "Eu sei"; "Eu sinto"; "eu creio" isto ou aquilo;
recorre simplesmente à Palavra de Deus escrita—o livro de Deuteronômio em
especial, o próprio livro que os infiéis se têm atrevido a insultar, mas que é
proeminentemente o livro para todo o homem obediente, em face da total,
universal e desesperada ruína.
Isto é de indizível importância para nós, prezado leitor. É como se o nosso
Senhor tivesse dito ao adversário; "Se sou ou não o Filho de Deus não é questão
para agora, mas de como o homem há de viver, e a resposta a esta questão só pode
encontrar-se na Sagrada Escritura; e encontra-se nela tão clara como a luz do sol,
independentemente de todas as questões a meu respeito. Quem quer que eu seja, a
Escritura é a mesma; nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai
da boca de Deus."

..Mas de Toda Palavra de Deus


Aqui temos a única atitude verdadeira, segura e ditosa para o homem, isto é,
manter-se em sincera dependência de "toda palavra que sai da boca de Deus."
Bendita atitude! Bem podemos dizer que não há nada parecido com ela em todo o
mundo. Põe a alma em contato direto, vivo e pessoal com o próprio Senhor por
meio da Sua Palavra. A Palavra torna-se assim tão essencial para nós, em tudo, que
não podemos passar sem ela. Da mesma forma que a vida natural é sustentada com
pão, a vida espiritual é sustentada pela Palavra de Deus. Não se trata meramente de
recorrer à Bíblia para encontrar nela doutrinas, ou ter as nossas opiniões ou pontos
de vista confirmados; é muito mais do que isto; é procurar na Bíblia os elementos
essenciais à vida—á vida do novo homem; é procurar nela alimento, luz, direção,
conforto, autoridade, força, tudo, numa palavra, que a alma pode necessitar, desde
o princípio ao fim.
E notemos especialmente a força e o valor da expressão,"toda palavra". Como
isto nos mostra plenamente que não podemos dispensar uma simples palavra que
tenha procedido da boca de Deus. Necessitamos de todas elas. Não podemos saber
qual o momento em que pode surgir qualquer exigência para a qual a Escritura já
fez provisão. Poderemos não ter notado especialmente a passagem antes, mas
quando se levantar a dificuldade, se estivermos no devido estado de alma, e em
verdadeira disposição de coração, o Espírito de Deus nos proporcionará a passagem
necessária; e nós veremos então a força, beleza, profundidade e adaptação moral na
passagem que nunca antes havíamos visto. A Escritura é um tesouro divino e
portanto inesgotável pela qual Deus tem feito ampla provisão para todas as
necessidades do Seu povo, e para cada crente em especial. Por isso, devemos
estudá-la, meditá-la e guardá-la em nossos corações, pronta para ser usada quando
se apresentar a necessidade.
Não há uma só crise ocorrida em toda a história da Igreja de Deus, nem uma só
dificuldade em toda a carreira de qualquer crente que não haja sido perfeitamente
provida na Bíblia. Temos tudo quanto necessitamos nesse bendito volume; e por
isso devemos procurar sempre estar mais e mais familiarizados com o que ele
contém, a fim de estarmos assim "inteiramente instruídos" para qualquer coisa que
possa levantar-se, quer seja uma tentação do diabo, uma sedução do mundo, ou um
desejo carnal; ou, por outro lado, para estarmos equipados para a senda de boas
obras, que Deus preparou para que andássemos nelas.
E devemos, além disso, prestar especial atenção à frase: "Que sai da boca de
Deus". Isto é inefavelmente precioso. Aproxima o Senhor tanto de nós, e nos dá um
tal sentido da realidade de nos alimentarmos de cada uma das Suas palavras, sim,
de dependermos delas como de alguma coisa absolutamente essencial e
indispensável. Demonstra o fato bendito de que as nossas almas não podem
subsistir sem essa palavra assim como os nossos corpos tampouco podem subsistir
sem alimento. Em suma, esta passagem nos ensina que o verdadeiro estado do
homem, a sua própria atitude, o seu único lugar de vigor, segurança, descanso e
bênção consiste em permanecer em habitual dependência da palavra de Deus.
Esta é a vida da fé que somos chamados a viver — vida de dependência — vida
de obediência — a vida que Jesus viveu perfeitamente. O bendito Senhor não dava
um só passo, não articulava uma só Palavra, nem fazia qualquer coisa senão por
autoridade da palavra de Deus. Sem dúvida, Ele podia ter transformado as pedras
em pão, mas não tinha mandado de Deus para fazer isso; e visto que não tinha
mandado, não tinha motivo para atuar. Por isso as tentações de Satanás foram
perfeitamente impotentes. Nada podia conseguir de um Homem que só agia sobre
a autoridade da Palavra de Deus.
E podemos observar, também, com o maior interesse e proveito, que nosso
bendito Senhor não cita a Escritura com o propósito de calar o adversário; mas
simplesmente como autoridade para a sua posição e conduta. E aqui que estamos
tão dispostos a falhar; não usamos suficientemente a bendita Palavra de Deus desta
maneira; é verdade que a citamos, às vezes, mais com ares de vitória sobre o
inimigo do que como poder e autoridade para nossas almas. Desta forma ela perde
o seu poder em nossos corações. Necessitamos de usar a Palavra como um homem
faminto usa o pão, ou como o marinheiro usa o seu mapa e a sua bússola; é aquilo
de que vivemos e em que nos movemos, em que atuamos, pensamos e falamos.
Assim é na realidade e quanto mais experimentarmos que ela é tudo isto para nós,
tanto mais conheceremos a sua infinita preciosidade. Quem é que conhece melhor
o verdadeiro valor do pão? E um químico? Não; mas um homem faminto. Um
químico pode analisá-lo e discutir as suas partes componentes, mas um homem
faminto conhece o seu valor. Quem é que conhece melhor o verdadeiro valor de
um mapa? E o mestre de navegação? Não; mas o marinheiro à medida que vai
navegando ao largo de uma costa desconhecida e perigosa.
Isto são apenas fracas figuras para ilustrar o que a Palavra de Deus é para o
verdadeiro cristão. Nada pode passar sem ela. É absolutamente indispensável em
todas as relações da vida, em todas as esferas de ação. A sua vida latente é
alimentada e mantida por ela; a sua vida prática é guiada por ela; em todas as cenas
e circunstâncias da sua vida pessoal e doméstica, no retiro do seu quarto, no seio da
sua família, na administração dos seus negócios, ele debruça-se sobre a Palavra de
Deus buscando direção e conselho.
E ela nunca falta àqueles que simplesmente a ela se inclinam e nela confiam.
Podemos confiar na Escritura sem uma simples sombra de receio. Consultemo-la
sempre que quisermos, e acharemos sempre o que precisamos. Estamos aflitos?- O
pobre coração está desolado, abatido e amargurado? O que poderá aliviar-nos e
confortar-nos como as palavras consoladoras que o Espírito Santo escreveu para
nós? Uma frase da Sagrada Escritura pode fazer mais, no sentido de conforto e
consolação, do que todas as cartas de condolências que jamais foram escritas por
mãos humanas. Estamos desanimados, sucumbidos e abatidos? A Palavra de Deus
nos basta com as suas gloriosas e comovedoras garantias. Estamos em aperto com
os tormentos da pobreza? O Espírito Santo segreda aos nossos corações algumas da
promessas áureas das páginas de inspiração, recordando-nos Aquele que é "O
Possuidor dos céus e da terra", e que, em graça infinita, Se tem comprometido a
"suprir todas as nossas necessidades segundo as suas riquezas em glória, por Cristo
Jesus." Estamos perplexos e fatigados com as opiniões contraditórias dos homens,
os dogmas de escolas de divindade opostas, por dificuldades religiosas e teológicas?
Algumas passagens da Sagrada Escritura derramarão um dilúvio de luz divina
sobre o coração e a consciência dando-nos completa tranqüilidade, respondendo a
todas as interrogações, resolvendo todas as dificuldades, removendo todas as
dúvidas, desvanecendo toda a nuvem, dando-nos a conhecer a mente de Deus e
pondo fim às opiniões contraditórias por meio da única autoridade divinamente
competente.
Que dádiva é portanto a Sagrada Escritura! Que tesouro precioso possuímos na
Palavra de Deus! Como devemos bendizer o Seu Santo Nome por no-la haver dado!
Sim; e louvá-Lo também por tudo quanto tende a dar-nos um conhecimento mais
completo da profundidade, plenitude e poder dessas palavras do nosso capítulo,
"...o homem não viverá só de pão, mas que de tudo o que sai da boca do SENHOR,
viverá o homem."
Verdadeiramente estas palavras são preciosas ao coração do crente! E não o são
menos as que as seguem, nas quais o amado e venerável legislador refere com
enternecedora afabilidade o terno cuidado do Senhor durante o tempo da
peregrinação de Israel pelo deserto. "Nunca se envelheceu o teu vestido sobre ti",
diz ele, "nem se inchou o teu pé nestes quarenta anos."
Nada Faltou durante estes Quarenta Anos
Que graça maravilhosa brilha nessas palavras! Pense-se em Javé cuidando do
Seu Povo, de maneira que os seus vestidos se não envelhecessem e se não
inchassem os seus pés! Não somente os alimentou, mas vestiu-os e cuidou deles de
todas as maneiras. Até Se debruçou para cuidar dos seus pés, para que a areia do
deserto os não pudesse magoar! Assim, por quarenta anos, velou por eles com toda
a delicada ternura do coração de um pai. O que não empreenderá o amor em favor
do objeto amado? O Senhor amava o Seu povo e este bendito fato assegurava tudo
em seu favor, se apenas o tivessem compreendido. Não havia uma única coisa
dentro dos limites das necessidades de Israel, desde o Egito a Canaã, que não
tivesse assegurada para eles e incluída no fato de que o Senhor havia proposto
realizá-la por eles. Com amor infinito e poder onipotente a sua favor, que poderia
faltar-lhes?
Mas, como sabemos, o amor reveste-se de várias formas. Tem mais alguma
coisa a fazer do que prover alimento e vestuário para o objeto amado. Não só tem
de atender às suas necessidades físicas mas também às necessidades morais e
espirituais. O legislador não deixa de recordar isto ao povo. "Confessa, pois", diz
ele, "no teu coração que "—a única maneira verdadeira e eficaz de considerar—
"como um homem castiga o seu filho, assim te castiga o SENHOR, teu Deus."
Ora nós não gostamos de ser castigados; não é agradável, mas doloroso. Está
tudo muito bem quando um filho recebe alimento e vestuário da mão de seu pai, e
todas as suas necessidades são satisfeitas pelo cuidadoso amor de seu pai; mas não
lhe agrada ver o pai pegar na vara. E, todavia, essa temida vara pode ser a coisa
mais conveniente para o filho; pode ser para ele o que os benefícios materiais ou o
bem-estar terreno não podem conseguir; pode corrigir qualquer mau hábito ou
livrá-lo de alguma má inclinação, ou salvá-lo de alguma má influência, e ser assim
uma grande bênção moral e espiritual pela qual ele terá de ser agradecido para
sempre. O ponto importante para o filho é ver o amor e cuidado do pai na
disciplina e castigo tão claramente como nos diversos benefícios materiais que são
espelhados pelo seu caminho, dia a dia.
E aqui precisamente onde nós falhamos muito a respeito dos atos disciplinares
de nosso Pai. Regozijamo-nos com os Seus benefícios e bênçãos; estamos cheios de
louvor e gratidão à medida que recebemos, dia a dia, da Sua mão liberal, o rico
suprimento de todas as nossas necessidades; deleitamo-nos em meditar sobre as
Suas maravilhosas intervenções a nosso favor em tempos de aperto e dificuldade; é
um precioso exercício volver os olhos para o caminho pelo qual a Sua benigna mão
nos tem conduzido, e marcar os "Ebenezeres" que nos falam do precioso auxílio
que nos tem dado ao longo de todo o caminho.
Tudo isto é muito bom, muito justo e precioso; mas então existe o grande
perigo de descansarmos nas misericórdias, nas bênçãos e benefícios que emanam,
em tão rica profusão, do coração amantíssimo de nosso Pai e da Sua bondosa mão.
Estamos dispostos a descansar nestas coisas e a dizer como o salmista: "Eu dizia na
minha prosperidade: Não vacilarei jamais. Tu, SENHOR, pelo teu favor fizeste forte
a minha montanha" (SI 30:6-7). Verdade é que é "pelo teu favor", mas contudo
somos propensos a estar ocupados com a nossa montanha e a nossa prosperidade;
permitimos que estas coisas se interponham entre os nossos corações e o Senhor e
deste modo convertem-se numa cilada para nós. Daí a necessidade de castigo.
Nosso Pai em seu fiel amor e cuidado vela por nós; vê o perigo e manda a provação,
de uma ou outra forma. Pode vir um telegrama a comunicar a morte de um filho
querido, ou a queda de um banco envolvendo a perda de todos os nossos interesses
terrenos. Ou pode suceder estarmos de cama com dores e enfermidade, ou
obrigados a velar junto do leito de um enfermo querido.
Em suma, somos obrigados a atravessar águas profundas que parecem ao nosso
pobre e cobarde coração absolutamente esmagadoras. O inimigo sugere a
pergunta: "É isto amor?" A fé responde, sem hesitação e sem reserva: "Sim!" E tudo
amor, perfeito amor; a morte da criança, a perda da fazenda, a enfermidade triste,
lenta e penosa, toda a dor, toda a ansiedade, as águas profundas e as negras
sombras—tudo, tudo é amor—perfeito amor e infalível sabedoria. Estou seguro
disso, até mesmo neste momento; não espero até o saber mais tarde, quando, desde
a plena luz da glória, volverei os olhos para todo o caminho; sei-o agora mesmo, e
alegro-me em o reconhecer para louvor daquela graça infinita que me tirou do
profundo da minha ruína, e se encarregou de tudo que me diz respeito, e que se
digna ocupar-se das minhas falhas, loucuras e pecados, a fim de me livrar deles,
para me fazer participante da santidade divina e conforme a imagem d'Aquele
bendito Senhor que "me amou e se entregou a si mesmo por mim".
Leitor cristão, este é o modo de responder a Satanás e aplacar os escuros
argumentos que possam surgir em nossos corações. Devemos justificar sempre
Deus. Devemos encarar os Seus atos judiciários à luz do Seu amor. "Confessa pois
no teu coração que, como um homem castiga a seu filho, assim te castiga o
SENHOR". Certamente, não nos queremos ver sem a bendita garantia e prova de
filiação. filho meu, não desprezes a correção do Senhor, e não desmaies quando,
por ele, fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer
que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque
que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos
são feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos. Além do que, tivemos
nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos
sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos? Porque aqueles, na
verdade, por um pouco de tempo, nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este,
para nosso proveito, para sermos participantes da sua santidade. E, na verdade,
toda correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois,
produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela. Portanto, tornai a
levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados, e fazei veredas direitas para
os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja
sarado" (Hb 12:5-13).
E, ao mesmo tempo, interessante e proveitoso notar a maneira como Moisés
insta com a congregação para que não esqueça os diversos motivos de obediência
no passado, no presente e no futuro. Tudo é apresentado com o fim de avivar e
profundar o seu sentido dos direitos do Senhor sobre eles. Deviam recordar o
passado, considerar o presente, e antecipar o futuro; e tudo isto devia atuar sobre
os seus corações, e guiá-los em santa obediência Aquele bendito Senhor que havia
feito, estava fazendo e ainda havia de fazer tão grandes coisas por eles.
O leitor atento dificilmente pode deixar de observar nesta constante exposição
de motivos morais uma característica especial deste encantador livro de
Deuteronômio e uma notável prova de que não se trata de intentar uma repetição
do que temos em Êxodo; mas, pelo contrário, de que o nosso livro tem um alcance,
um fim e um desígnio inteiramente próprios. Falar de mera repetição é absurdo;
falar de contradição é irreverente.
"E guarda os mandamentos do SENHOR, teu Deus, para o temeres e andar nos
seus caminhos." A partícula "e" tem força retrospectiva e prospectiva. Era
destinada a guiar o coração sobre os atos do Senhor no passado e a apontar-lhe o
futuro. Deviam pensar na maravilha história desses quarenta anos no deserto:o
ensino, a humilhação, a provação, o cuidado vigilante, o ministério gracioso, o
amplo suprimento de todas as suas necessidades, o maná do céu, a corrente da
rocha ferida pela vara, o cuidado dos seus vestidos e dos seus pés, a disciplina
salutar para o seu bem moral. Que poderosos motivos morais estavam aqui para a
obediência de Israel!
Mas isto não era tudo; deviam olhar também para o futuro; deviam antecipar a
brilhante perspectiva que estava diante deles; deviam achar no futuro, assim como
no passado e no presente, a base sólida dos direitos do Senhor sobre a sua reverente
e sincera obediência.

" O SENHOR, teu Deus, te mete numa boa terra"


"Porque o SENHOR, teu Deus, te mete numa boa terra, terra de ribeiros de
águas, de fontes e de abismos, que saem dos vales e das montanhas; terra de trigo e
cevada, de vides, figueiras, e romeiras; terra de oliveiras, abundante de azeite e
mel; terra em que comerás o pão sem escassez e nada te faltará nela; terra cujas
pedras são ferro, e de cujos montes tu cavarás o cobre" (versículos 7 a 9).
Que bela perspectiva! Que esplendorosa visão! Que notável contraste com o
Egito por trás deles e o deserto por onde haviam passado! A terra do Senhor
estendia-se diante deles em toda a sua beleza e verdura, os seus outeiros cobertos
de vinhedos e planícies melífluas, as suas fontes impetuosas e correntes caudalosas.
Como era animador pensar na videira, na figueira, na tamareira e na oliveira!
Como era diferente dos porros, cebolas e alhos do Egito! Sim, tudo tão diferente!
Era a própria terra do Senhor: isto era bastante. Produzia e continha tudo que
podiam possivelmente precisar. Acima da sua superfície rica profusão; abaixo dela
riquezas incontáveis, tesouros inesgotáveis.
Que perspectiva! Quão impaciente estaria o israelita fiel por entrar nela! —
impaciente por trocar a areia do deserto por essa brilhante herança! Decerto, o
deserto tinha as suas profundas e benditas experiências, as suas santas lições, as
suas preciosas recordações. Ali haviam conhecido o Senhor de um modo como não
O podiam conhecer nem mesmo em Canaã; tudo isto era muito verdadeiro, e nós
podemos compreendê-lo plenamente; mas ainda assim o deserto não era Canaã, e
todo o verdadeiro israelita ansiava pôr os seus pés na terra da promessa, e nós
podemos verdadeiramente dizer que Moisés apresenta a terra, na passagem que
acabamos de citar, de uma maneira eminentemente calculada para atrair o
coração. "Terra", diz ele, "em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará
nela". Que mais podia dizer-se? Aqui estava o grande fato a respeito daquela boa
terra em que a mão do concerto de amor os ia introduzir. Todas as suas
necessidades seriam divinamente satisfeitas. A fome e a sede nunca seriam ali
conhecidas. Saúde e abundância, gozo e alegria, paz e bênção deveriam ser a
porção assegurada do Israel de Deus nessa formosa herança em que estavam prestes
a entrar. Todo o inimigo seria vencido; todo o obstáculo afastado; "a terra
deleitável" ia produzir as suas riquezas para seu uso; regada continuamente pelas
chuvas do céu, e aquecida pela luz do sol, havia de produzir, em rica abundância,
tudo quanto o coração podia desejar.
Que terra! Que herança! Que lar! Evidentemente, nós encaramo-la agora
desde o ponto de vista divino; encaramo-la segundo o que ela era na mente de
Deus e o que ela será, certamente, durante essa esplendorosa época milenial que os
aguarda. Teríamos na verdade apenas uma idéia muito infeliz da terra do Senhor se
pensássemos nela meramente como foi possuída por Israel no passado, até mesmo
nos dias mais refulgentes da sua história tal como nos aparece entre os esplendores
do reinado de Salomão. Devemos antever "os tempos da restituição de todas as
coisas" para podermos ter uma idéia verdadeiramente aproximada do que a terra
de Canaã será ainda para o Israel de Deus.
Ora Moisés fala da terra segundo a idéia divina acerca dela. Apresenta-a como
dada por Deus. E não como foi possuída por Israel. Isto faz toda a diferença.
Segundo a sua encantadora descrição, não havia nem inimigo nem mal algum:
nada senão fertilidade e bênção de um extremo ao outro. E o que teria sido, o que
deveria ser e o que será, dentro em pouco, para a semente de Abraão, em
cumprimento do concerto com seus pais—o novo, o eterno concerto baseado na
graça soberana de Deus e retificado pelo sangue da cruz. Nenhum poder na terra
ou no inferno pode impedir o propósito da promessa de Deus. "Diria ele e não o
faria?-" Deus cumprirá à letra toda a Sua palavra, não obstante toda a oposição do
inimigo e o lamentável fracasso do Seu povo. Embora a descendência de Abraão
tenha falhado inteiramente tanto debaixo da lei como sob o governo, contudo o
Deus de Abraão dará graça e glória, porque os Seus dons e promessas são sem
arrependimento.
Moisés compreendeu tudo isto plenamente. Sabia como correriam as coisas
com aqueles que estavam diante de si, e com os seus filhos depois deles, por muitas
gerações; e anteviu esse esplendoroso futuro em que o Deus do concerto exporá à
vista de todas as inteligências criadas os triunfos da Suja graça em Seus atos com a
descendência de Seu amigo Abraão.
No entanto, o fiel servo do Senhor, fiel ao objetivo que tinha ante a sua mente,
em todos esses maravilhosos discursos em que começa o nosso livro, procede com o
desenvolvimento, perante a congregação, da verdade a respeito da maneira de
atuar na boa terra em que estavam prestes a pôr os seus pés. Assim como havia
falado do passado e do presente, assim faria quanto ao futuro; faria com que tudo
contribuísse no seu santo esforço para incitar o povo ao seu inequívoco e sagrado
dever Aquele bendito Senhor que tão bondosa e ternamente havia cuidado deles
durante toda a sua jornada, e que ia introduzi-los e estabelecê-los no monte da Sua
herança. Escutemos a sua comovedora e poderosa exortação.
"Quando, pois, tiveres comido e fores farto, louvarás ao SENHOR, teu Deus, pela
boa terra que te deu." Quão simples! Quão formoso! Quão moralmente apropriado!
Saciados com o fruto da bondade do Senhor, deviam bendizer e louvar o Seu santo
Nome. E Seu deleite fazer-se rodear de corações transbordantes do doce
sentimento da Sua bondade e que se derramam em salmos e ações de graças. Habita
entre os louvores do Seu povo, "Aquele que oferece sacrifício de louvor me
glorificará" (SI 50:23). Anota mais fraca de um coração agradecido sobe como
fragrante incenso ao trono e ao coração de Deus.
Prezado Leitor, recordemos isto. E tão verdadeiro para nós, sem dúvida, como
era para Israel, que o louvor é formoso. A nossa primeira ocupação deve ser louvar
o Senhor. O nosso próprio alento deve ser um aleluia. O Espírito Santo exorta-nos
em múltiplas passagens a este bendito e santo privilégio. "Portanto, ofereçamos
sempre por ele a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam
o seu nome" (Hb 13:15). Devemos recordar sempre que nada é tão agradável ao
coração do nosso Deus e nada glorifica tanto o Seu nome como um espírito de
adoração e gratidão por parte do Seu povo. Bom é fazer o bem e comunicar com as
necessidades dos santos. Com tais sacrifícios Deus Se agrada. É nosso alto
privilégio, enquanto temos oportunidade, fazer bem a todos os homens, e
especialmente aos domésticos da fé. Somos chamados para sermos canais de
bênção entre o coração amoroso de nosso Pai e toda sorte de necessidade humana
que se nos apresente na nossa vida diária. Tudo isto é ditosamente verdadeiro, mas
não devemos esquecer nunca que o mais elevado lugar está destinado ao louvor. É
isto que ocupará as nossas energias resgatadas através dos séculos áureos da
eternidade, quando os sacrifícios de ativa benevolência já não serão necessários.
Porém o fiel legislador conhecia muito bem a lamentável tendência do coração
humano para esquecer tudo isto, para perder de vista o bondoso Dador e descansar
em Suas dádivas. Por isso dirige as seguintes palavras de advertência à congregação
— palavras salutares, na verdade, para eles e para nós. Possamos nós inclinar os
nossos ouvidos e os nossos corações perante elas, em santa reverência e com
espírito desejoso de aprender!

"Não esqueças do SENHOR, teu Deus"


"Guarda-te para que te não esqueças do SENHOR, teu Deus, não guardando os
seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus estatutos que hoje te ordeno; para
que, porventura, havendo tu comido, e estando farto, e havendo edificado boas
casas, e habitando-as, e se tiverem aumentado as tuas vacas e as tuas ovelhas, e se
acrescentar a prata e o ouro, e se multiplicar tudo quanto tens, se não eleve o teu
coração, e te não esqueças do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da
casa da servidão; que te guiou por aquele grande e terrível deserto de serpentes
ardentes, e de escorpiões, e de secura, em que não havia água; e tirou água para ti
da rocha do seixal; que no deserto te sustentou com o maná, que teus pais não
conheceram; para te humilhar, e para te provar, e para, no teu fim, te fazer bem-, e
não digas no teu coração: A minha força, e a fortaleza do meu braço me adquiriam
este poder. Antes te lembrarás do SENHOR, teu Deus, que ele é o que te dá força
para adquirires poder; para confirmar o seu concerto, que jurou a teus pais; como
se vê neste dia. Será, porém, que, se, de qualquer sorte, te esqueceres do SENHOR,
teu Deus, e se ouvires outros deuses, e os servires, e te inclinares perante eles, hoje
eu protesto contra vós que certamente perecereis. Como as gentes que o SENHOR
destruiu diante de vós, assim vós perecereis porquanto não quisestes obedecer à
voz do SENHOR,VOSSO Deus" (versículos 11 a 20).
Aqui há alguma coisa para nossa profunda meditação. Tem certamente uma
palavra para nós, como a teve para Israel. Talvez nos sintamos dispostos a
estranhar a repetição freqüente da nota de prevenção e admoestação, os constantes
apelos ao coração e à consciência do povo quanto ao seu dever sagrado de
obedecer, em tudo, à Palavra de Deus; a repetição constante dos grandes e como-
vedores fatos relacionados com a sua libertação do Egito e a jornada através do
deserto.
Mas por que motivo nos admiramos? Em primeiro lugar, não sentimos
profundamente e não admitimos plenamente a nossa urgente necessidade de aviso,
admoestação e exortação? Não necessitamos de linha após linha, das citadas,
preceito após preceitos, e isto continuamente?- Não estamos sempre dispostos a
esquecer o Senhor, nosso Deus, para nos apoiarmos nas Suas dádivas em vez de
n'Ele mesmo?- Ah, não podemos negá-lo! Sentamo-nos junto à corrente, em vez
de irmos à Fonte. Convertemos as próprias misericórdias, bênçãos e benefícios que
juncam o nosso caminho em rica profusão em um motivo de satisfação e
congratulação, em vez de encontrarmos neles o bendito fundamento de contínuo
louvor a Deus e ações de graças.
Por conseqüência, quanto aos fatos importantes que Moisés recorda
continuamente ao povo, podiam perder a sua importância moral, poder ou
preciosidade? Decerto que não. Israel podia esquecer e deixar de apreciar esses
fatos, mas os fatos permaneciam os mesmos. As terríveis pragas do Egito, a noite da
páscoa, a sua libertação da terra das trevas, escravatura e degradação, a sua
passagem maravilhosa através do Mar Vermelho, a descida desse alimento
misterioso do céu, manhã após manhã, a corrente refrescante brotando da rocha
do seixal — como poderiam tais fatos perder o seu poder sobre um coração que
tivesse uma centelha do verdadeiro amor de Deus? E por que havemos de
estranhar ao ver Moisés apelar, repetidas vezes, para eles e empregá-los como a
mais poderosa alavanca para mover os corações do povo? O próprio Moisés sentiu a
poderosa influência moral destas coisas, e de bom grado levaria outros a senti-la
também. Eram preciosas além de toda a expressão para ele, e ansiava fazer com que
seus irmãos sentissem a sua preciosidade assim como ele a sentia. Era seu único fim
pôr diante deles, por todos os modos possíveis, os poderosos direitos do Senhor
sobre a sua cordial e ilimitada obediência.
Isto, prezado leitor, será a razão de que poderia parecer a um leitor pouco
espiritual, de inteligência limitada e precipitado, demasiado freqüente a repetição
de cenas do passado nesses famosos discursos de Moisés. Ocorre-nos, à medida que
as lemos, as encantadoras palavras de Pedro, em sua segunda epístola: "Pelo que
não deixarei de exortar-vos sempre acerca destas coisas, ainda que bem as saibais e
estejais confirmados na presente verdade. E tenho por justo, enquanto estiver
neste tabernáculo, despertar-vos com admoestações, sabendo que brevemente hei
de deixar este meu tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus Cristo já mo
tem revelado. Mas também eu procurei, em toda a ocasião, que depois da minha
morte tenhais lembrança destas coisas" (2 Pe l:12 a 15).
Quão notável é a unidade de espírito e propósito nestes dois amados e
veneráveis servos de Deus! Conheciam, tanto um como outro, a tendência do
pobre coração humano para esquecer as coisas de Deus, do céu e da eternidade; e
sentiam a suprema importância e infinito valor das coisas de que falavam. Daí o seu
ardente desejo de as manter continuamente ante os seus corações e de um modo
permanente na memória do amado povo do Senhor. A inquieta e incrédula
natureza humana podia dizer a Moisés ou a Pedro: "Não tendes nada novo para nos
contará Por que estais discorrendo sobre os mesmos temas antigos? Conhecemos
tudo que tendes para nos dizer- têmo-lo ouvido repetidas vezes. Por que não
abordar qualquer novo campo de idéias? Não seria conveniente procurar estar ao
corrente da ciência atual? Se estivermos perpetuamente ocupados com esses temas
antiquados, ficaremos à margem enquanto a corrente da civilização corre em
frente. Por favor dai-nos alguma coisa nova."
Assim poderia discorrer a pobre inteligência incrédula e o coração humano
raciocinar; mas a fé conhece a resposta a tais miseráveis sugestões. Podemos muito
bem crer bem tanto Moisés como Pedro teriam prestado pouca atenção a tais
argumentos. E assim devemos nós fazer. Sabemos de onde emanam, para que fim
contribuem e o que valem; e devemos ter, se não em nossos lábios, ao menos no
recôndito dos nossos corações uma resposta pronta— uma resposta perfeitamente
satisfatória para nós, por mais desprezível que possa parecer aos homens deste
mundo. Poderia um verdadeiro israelita aborrecer-se de ouvir o que o Senhor
havia feito por ele no Egito, no Mar Vermelho e no deserto? Nunca! Esses temas
eram sempre novos, sempre bem recebidos em seu coração. Acontece
precisamente o mesmo com o cristão; poderá ele cansar-se da cruz e de todas as
grandes e gloriosas realidades que se agrupam em redor dela 4- Pode aborrecer-se
de Cristo, das Suas glórias sem par e inescrutáveis riquezas—a Sua pessoa, a Sua
obra, Suas ocupações? Nunca! Não, nunca pelos séculos brilhantes da eternidade.
Suspira por alguma coisa nova? A ciência pode aperfeiçoar Cristo?- Pode o saber
humano acrescentar alguma coisa ao grande mistério da divindade que tem por
fundamento Deus manifestado em carne e por pináculo um Homem glorificado no
céu*? Poderemos ir além disto? Não, prezado leitor, não poderíamos se
quiséssemos e não o faríamos se pudéssemos.
E se quiséssemos, ainda que fosse por um momento, descer a um terreno mais
baixo, e ver as obras de Deus na criação, perguntamos, cansamo-nos de ver o sol? O
sol não é novo; vem derramando os seus raios sobre este mundo por quase seis mil
anos, e todavia esses raios são tão novos e tão bem vindos hoje como o eram
quando foram criados. Aborrecemo-nos do mar? Não é novo; a sua maré tem
estado em fluxo durante quase seis mil anos, mas as suas ondas são tão vigorosas e
tão bem recebidas como sempre. Verdade é que o sol é muitas vezes demasiado
brilhante para a fraca visão do homem, e o mar muitas vezes traga num momento
as obras do homem, contudo, o sol e o mar nunca perdem o seu poder, a sua
frescura, o seu encanto. Alguma vez nos cansamos dos chuviscos que caem com
poder refrescante sobre os nossos jardins e campos? Aborrece- nos alguma vez o
perfume que emana dos arbustos da nossa propriedade? Já alguma vez nos
aborrecemos das notas do rouxinol e do tordo?
E o que é tudo isto quando comparado com as glórias que se agrupam em redor
da pessoa e da cruz de Cristo? O que são estas coisas quando postas em contraste
com as grandes realidades da eternidade que está diante de nós?
Leitor, tenhamos cuidado com a maneira como prestamos atenção a tais
sugestões, quer venham de fora ou brotem das profundidades dos nossos corações
pecaminosos, para que não sejamos achados como Israel segundo a carne
enfastiados do maná celestial e desdenhando da terra deleitável; ou como Demas
que desamparou o bem-aventurado apóstolo, amando o presente século; ou como
aqueles de que lemos em João 6, que, escandalizados com o ensino preciso e
pungente de nosso Senhor, "tornaram para trás, e já não andavam com ele". Que o
Senhor guarde os nossos corações fiéis a Si, vigorosos e zelosos na Sua bendita
causa, até que Ele venha!
_ CAPÍTULO 9 —

OUVE, Ó ISRAEL

As Dificuldades e os Inimigos que os Esperam na Entrada do País


"Ouve, ó Israel, hoje passarás o Jordão, para entrares a possuir nações maiores e
mais fortes do que tu; cidades grandes e muradas até aos céus; um povo grande e
alto, filhos de gigantes, que tu conheces e de que já ouviste: Quem pararia diante
dos filhos dos gigantes
Este capítulo começa com a mesma importante frase do Deuteronômio: "Ouve,
ó Israel". Esta é, podemos dizer, a nota tônica deste bendito livro, e especialmente
desses primeiros discursos que têm ocupado a nossa atenção. Mas o capítulo que
está agora aberto diante de nós apresenta matéria de imenso valor e importância.
Em primeiro lugar, o legislador põe diante da congregação, em termos da mais
profunda solenidade, o que os espera à sua entrada na terra. Não esconde deles o
fato que havia sérias dificuldades e formidáveis inimigos. Faz isto, desnecessário é
dizer, não para os desanimar, mas para que pudessem estar armados e preparados.
O que era essa preparação, veremos imediatamente; contudo o fiel servo de Deus
sentia a retidão, sim, a necessidade urgente de pôr a verdadeira situação do caso
diante dos seus irmãos.
Há duas maneiras de encarar as dificuldades: podemos encará-las sob o ponto
de vista humano, ou sob o ponto de vista divino; podemos considerá-las com
espírito de incredulidade ou na tranquilidade e quietude da confiança no Deus
vivo. Temos um exemplo da primeira no relato dos espias incrédulos, em Números
13; temos um exemplo da última no princípio do presente capítulo.
Não é da competência nem segundo a conduta da fé negar que há dificuldades
a enfrentar pelo povo de Deus; seria o cúmulo da insensatez negá-lo, visto que há
dificuldades, e seria temeridade louca, fanatismo ou entusiasmo carnal negá-lo. E
sempre conveniente que as pessoas saibam o que têm a fazer, e se não precipitem
cegamente num caminho para o qual não estão preparadas. Um madraço incrédulo
pode dizer: "Está um leão no caminho"; um cego entusiasta pode dizer: "Não há tal
coisa"; o homem de fé dirá: "Ainda que houvesse mil leões no caminho, Deus pode
depressa dar conta deles."
Mas, como um grande princípio da aplicação geral, é muito importante para
todo o povo do Senhor considerar atenta e calmamente aquilo a que está exposto,
antes de entrar em qualquer senda especial de serviço ou linha de ação. Se se
prestasse mais atenção a isto não presenciaríamos tantos fracassos morais e
espirituais em redor de nós. Que significam essas solenes, perscrutadoras palavras
dirigidas por nosso Senhor à multidão que se atropelava em redor d'Ele em Lucas
14? "E, voltando-se, disse-lhe: Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e
mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não
pode ser meu discípulo. E qualquer que não levar a sua cruz e não vier após mim
não pode ser meu discípulo. Pois qual de vós, querendo edificar uma torre, não se
assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a acabará
Para que não aconteça que, depois de haver posto os alicerces e não a podendo
acabar, todos os que a virem comecem a escarnecer dele, dizendo: "Este homem
começou a edificar e não pôde acabar "(versículos 25 a 30).
São palavras solenes e muito oportunas para o coração. Quantas obras vemos
por terminar, quando olhamos para o vasto campo da profissão cristã, as quais dão
uma triste ocasião para escárnio aos espectadores! Quantos há que empreendem a
carreira de discipulado debaixo de qualquer repentino impulso, ou sob a pressão da
influência humana, sem o devido conhecimento ou a devida consideração por tudo
que está envolvido nessa decisão; e então quando sobrevêm as dificuldades,
quando aparecem as provações, e se dão conta de que o caminho é estreito,
escabroso, solitário e impopular, abandonam-no, provando deste modo que não
haviam realmente calculado o custo e que não haviam tomado o caminho em
comunhão com Deus — que nunca compreenderam o que estavam a
fazer.
Ora, tais casos são muito tristes; fazem opróbrio à causa de Cristo dão ocasião
ao adversário para blasfemar e desanimam grandemente os que buscam a glória de
Deus e o bem das almas. É muito melhor não se tomar essa decisão do que,
tomando-a, abandoná-la em escura incredulidade e decisão mundana.
Por isso, podemos perceber a sabedoria e fidelidade das palavras com que abre
o nosso capítulo. Moisés fala abertamente ao povo do que está diante deles; não,
certamente, para os desanimar, mas para os livrar da confiança própria que é mais
do que certo ceder no momento de provação; e para os induzir a que confiem no
Deus vivo que nunca desampara o coração que n'Ele confia.

"Sabe, pois hoje, que o SENHOR, teu Deus, Passa diante de ti"
"Sabe, pois, hoje, que o SENHOR, teu Deus, que passa diante de ti, é um fogo que
consome, e os destruirá, e os derrubará de diante de ti; e tu os lançarás fora e cedo
os desfarás, como o SENHOR te tem dito" (versículo 3).
Aqui, pois, está a resposta divina a todas as dificuldades, por muito grandes que
sejam. Que eram nações poderosas, grandes cidades, muralhas fortificadas na
presença do Senhor? Simplesmente como palha diante do furacão. "Se Deus é por
nós, quem será contra nós?" As próprias coisas que amedrontam e embaraçam o
coração cobarde proporcionam ocasião para a manifestação do poder de Deus e do
magnífico triunfo da fé. A fé diz: "Concedam- me apenas isto, que Deus está diante
de mim e comigo, e eu posso ir seja aonde for." Assim a única coisa em todo este
mundo que realmente glorifica Deus é a fé que pode confiar n'Ele, O emprega e O
louva. E visto que a fé é a única coisa que glorifica Deus, é também a única coisa
que dá ao homem o seu próprio lugar de completa dependência de Deus, e isto
garante vitória e inspira louvor - louvor incessante.
Mas não devemos esquecer que há perigo moral no próprio momento de
vitória — perigo que provém do que somos em nós próprios. Existe o perigo de
auto-congratulação—uma terrível cilada para todos nós, pobres mortais. Na hora
do conflito, sentimos a nossa fraqueza, nulidade e necessidade. Isto é bom e
moralmente seguro. É bom ser-se levado às profundezas do ego e tudo que lhe
pertence, porque ali encontramos Deus em toda a plenitude e bem-aventurança do
que Ele é, e isto é vitória certa, segura e conseqüente louvor.

Não é por Causa de tua Justiça que Entrarás no País


Porém, os nossos corações traiçoeiros e enganosos estão sempre dispostos a
esquecer de onde vem a força e a vitória. Daí a força moral, valor e oportunidade
das seguintes palavras de advertência dirigidas pelo fiel ministro de Deus aos
corações e consciências dos seus irmãos. "Não fales no teu coração" — é aqui que o
mal sempre começa—"por causa da minha justiça é que o SENHOR me trouxe a esta
terra para a possuir, porque, pela impiedade destas nações, é que o SENHOR as lança
fora, diante de ti."
Ah, de que matéria somos formados! Que ignorância dos nossos próprios
corações! Que sentimento tão superficial do verdadeiro caráter dos nossos
caminhos! Quão terrível é pensar que somos capazes de dizer em nossos corações
tais como: "Por causa da minha justiça"! Sim, prezado leitor, somos muito capazes
de uma tão grande loucura; pois assim como Israel era capaz disso, assim o somos
nós, visto que somos feitos do mesmíssimo material; e que eles eram capazes disso
é evidente pelo fato de serem advertidos a guardarem-se de tal pensamento;
certamente o Espírito de Deus não admoesta ninguém contra perigos visionários
ou tentações imaginárias. Somos muito capazes de converter os atos de Deus em
nosso favor em uma ocasião de auto-complacência; em vez de vermos nesses atos
de graça um motivo para sincero louvor a Deus, empregamo-los como base para
própria exaltação.
Portanto, faríamos bem em ponderar as palavras de fiel advertência dirigidas
por Moisés aos corações e consciências do povo; são um salutar antídoto para a
auto-justiça tão natural em nós como em
Israel "Não é por causa da tua justiça, nem pela retidão do teu coração que
entras a possuir a sua terra, mas, pela impiedade destas nações, o SENHOR, teu Deus,
as lança fora, de diante de ti; e para confirmar a palavra que o SENHOR, teu Deus,
jurou a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó. Sabe, pois, que não é por causa da tua
justiça que o SENHOR, teu Deus, te dá esta boa terra para possuí-la, pois tu és povo
obstinado. Lembra-te e não te esqueças de que muito provocaste a ira do SENHOR,
teu Deus, no deserto; desde o dia em que saístes do Egito até que chegastes a esse
lugar, rebeldes fostes contra o SENHOR" (versículos 5 a 7).
Este parágrafo estabelece dois princípios importantes, os quais, se forem
plenamente compreendidos, devem pôr o coração em uma reta atitude moral. Em
primeiro lugar, recordava-se ao povo que a posse da terra de Canaã era
simplesmente conseqüência da promessa de Deus aos seus pais. Isto era colocar o
assunto em uma base sólida —uma base que nada podia jamais abalar.
Quanto às sete nações que iam ser desalojadas, era com base na sua impiedade
que Deus, no exercício da Sua justa administração, ia expulsá-las. Todo o
proprietário tem o perfeito direito de expulsar os arrendatários; e as nações de
Canaã não somente haviam deixado de pagar a sua renda como, podemos dizer,
haviam danificado e contaminado a propriedade a tal ponto que Deus não podia
suportá-las por mais tempo; e portanto ia lançá-las fora, independentemente dos
futuros arrendatários. Quem quer que obtivesse posse da terra, estes terríveis
arrendatários tinham de ser expulsos. A iniqüidade dos amorreus tinha atingido o
seu mais alto grau, e nada restava senão exercer o juízo. Os homens podiam
argumentar e raciocinar quanto à conveniência e consistência de um Ser bondoso
destelhar as casas de milhares de famílias e passar os seus habitantes à espada; mas
podemos estar certos de que 0 governo de Deus fará pouco caso de tais argumentos.
Deus, bendito seja para sempre o Seu santo nome, sabe como dirigir os Seus
próprios negócios, e isto também sem necessidade de pedir a opinião do ornem.
Havia suportado a impiedade das sete nações a tal ponto que se avia tornado
absolutamente intolerável; a própria terra não podia suportá-lo. Qualquer
prolongamento de tolerância teria sido uma ratificação das mais terríveis
abominações; e isto era evidentemente uma impossibilidade moral. A glória de
Deus requeria de uma maneira absoluta a expulsão dos cananeus.
Sim; e podíamos acrescentar que a glória de Deus exigia a introdução dos
descendentes de Abraão na posse da propriedade para a possuírem, como
arrendatários para sempre sob o Senhor, Deus Todo-poderoso, o Deus Altíssimo,
Possuidor dos céus e da terra. Assim se apresentava o assunto a Israel, se eles
apenas assim o tivessem compreendido. A posse da terra por eles e a manutenção
da glória divina estavam tão intimamente ligadas que não era possível tocar numa
coisa sem tocar na outra. Deus havia prometido dar a terra de Canaã à
descendência de Abraão, em possessão eterna. Não tinha Ele o direito de assim
fazer? Quererão os infiéis pôr em dúvida o direito de Deus fazer com os Seus como
melhor lhe apraz? Quererão recusar ao Criador e Governador do universo um
direito que reclamam para si? A terra era do Senhor, e Ele deu-a a Abraão, Seu
amigo, para sempre; e embora isto fosse verdadeiro, contudo os cananeus não
foram incomodados na posse da propriedade até que a sua impiedade se tornou
absolutamente intolerável.
Desta maneira vemos que a glória de Deus estava envolvida na questão tanto
dos arrendatários que saíam como dos que vinham. Essa glória exigia que os
cananeus fossem expulsos por causa dos seus maus caminhos, e que Israel entrasse
na posse por causa da promessa feita a Abraão, Isaque e Jacó.

A Recordação do Bezerro de Ouro


Mas, em segundo lugar, Israel não tinha base para a complacência própria,
visto que Moisés clara e fielmente os instruía. Repete aos seus ouvidos, da maneira
mais impressionante e comovedora, todas as principais cenas da sua história desde
Horebe a Cades- barbeia; alude ao bezerro de ouro, ás tábuas do concerto
quebradas, a Tabela e a Massá, e a Quibrote-Hataavá; e resume tudo, em versículo
24, com estas palavras acerbas e humilhantes: "Rebeldes fostes contra o SENHOR,
desde o dia em que vos conheci."
Isto era franco tratamento com o coração e a consciência. A revisão solene de
toda a sua carreira estava eminentemente calculada para corrigir todas as falsas
noções acerca de si próprios; cada cena e circunstância na sua história, quando
considerada sob o ponto de vista apropriado, apenas trazia à luz o fato humilhante
do que eles eram, e de quão perto haviam estado, repetidas vezes, da completa
destruição. Com que poder estonteante devem ter ecoado aos seus ouvidos as
seguintes palavras: "Levanta-te, desce depressa daqui, porque o teu povo, que
tiraste do Egito, já se tem corrompido; cedo se desviou do caminho que eu lhe
tinha ordenado; imagem de fundição para si fez. Falou-me mais o SENHOR,
dizendo: Atentei para este povo, e eis que ele é povo obstinado. Deixa-me que os
destrua e apague o seu nome de debaixo dos céus; e te faça a ti nação mais poderosa
e mais numerosa do que esta" (versículos 12 a 14).
Quão fulminante era tudo isto para a sua natural vaidade, orgulho e justiça
própria! Como os seus corações se devem ter sentido excitados até ao mais
profundo recôndito com essas tremendas palavras: "Deixa-me que os destrua!"
Como é solene ponderar o fato que estas palavras revelavam — a sua aterradora
proximidade de ruína nacional e destruição! Quão ignorantes haviam estado de
tudo que se havia passado entre o Senhor e Moisés no cume do monte Horebe!
Haviam estado à beira de um terrível precipício. Um momento mais poderia
precipitá-los. A intercessão de Moisés tinha-os salvo, o próprio homem que eles
haviam acusado de tomar sobre eles autoridade que lhe não haviam dado! Ah,
como se haviam enganado e como o julgaram mal! Quão errados haviam estado em
todos os seus pensamentos! Ora o próprio homem que haviam acusado de egoísmo
e desejar agir como príncipe sobre eles, havia, com efeito, recusado uma
oportunidade que lhe era divinamente da de se tornar o chefe de uma nação maior
e mais poderosa do que eles! Sim, este mesmo homem havia pedido sinceramente
que se eles não podiam ser perdoados e introduzidos na terra, o seu nome fosse
riscado do livro do Senhor.
Quão admirável era tudo isto! Como a sua própria conduta se voltava contra
eles! Como se devem ter sentido excessivamente pequenos perante todos estes
fatos maravilhosos! Sem dúvida, à medida que passavam em revista estes fatos,
podiam bem ver a completa loucura das palavras: "Por causa da minha justiça é que
o SENHOR me trouxe a esta terra para a possuir." Como podiam os artífices de uma
imagem de fundição empregar uma tal linguagem? Não deveriam antes ver, sentir
e reconhecer que não eram melhores do que as nações que estavam a ponto de ser
expulsas da sua presença? Pois, o que era que os fazia diferirá A graça soberana e o
amor de eleição do Deus do pacto. E a que deviam a sua libertação do Egito, a sua
manutenção no deserto e a sua entrada na terra de Canaã? Simplesmente à eterna
estabilidade do concerto feito com seus pais "Um concerto eterno,.. .em tudo bem
ordenado e guardado" (2 Sm 23:5), um concerto ratificado e estabelecido pelo
sangue do Cordeiro, em virtude do qual Israel será ainda salvo e abençoado na sua
própria terra.

Moisés, o Intercessor
Mas devemos citar para o leitor o esplêndido parágrafo que encerra o nosso
capítulo—um parágrafo eminentemente apropriado para abrir os olhos de Israel
para a absoluta loucura de todos os seus pensamentos acerca de Moisés, dos seus
pensamentos a respeito deles mesmos, e os pensamentos que alimentavam a
respeito do bendito Senhor que tão maravilhosamente os havia suportado em toda
a sua negra incredulidade e atrevida rebelião.
"E prostrei-me perante o SENHOR aqueles quarenta dias e quarenta noites em
que estava prostrado; porquanto o SENHOR dissera que vos queria destruir. E orei ao
SENHOR,dizendo: SENHOR DEUS, não destruas o teu povo e a tua herança, que
resgataste com a tua grandeza, que tiraste do Egito com mão forte. Lembra-te dos
teus servos Abraão, Isaque e Jacó; não atentes para a dureza deste povo, nem para a
sua impiedade, nem para o seu pecado, para que o povo da terra donde nos tiraste
não diga: Porquanto o SENHOR OS não pôde introduzir na terra de que lhes tinha
falado e porque os aborrecia, os tirou para os matar no deserto. Todavia, são eles o
teu povo e a tua herança que tu tiraste com a tua grande força e com teu braço
estendido (versículos 25 a 29).
Que maravilhosas palavras para serem dirigidas por um ser humano ao Deus
vivo! Que súplicas poderosas em favor de Israel! Que abnegação! Moisés recusa a
dignidade que se lhe oferecia de ser o fundador de uma nação mais poderosa do
que Israel. Desejava apenas que o Senhor fosse glorificado e Israel perdoado,
abençoado e introduzido na terra prometida. Não podia suportar o pensamento de
que esse nome tão querido ao seu coração fosse de maneira alguma censurado; nem
tampouco podia presenciar a destruição de Israel. Estas eram as duas coisas que ele
temia; e quanto à sua própria exaltação, isso era precisamente o que menos o
preocupava. Este amado e honrado servo de Deus preocupava-se somente com a
glória de Deus e a salvação do Seu povo; e quanto a si próprio, as suas esperanças,
os seus interesses, tudo, em suma, podia descansar, com perfeita tranqüilidade, na
certeza de que a sua bênção individual e a glória divina estavam ligadas entre si por
um laço que nunca poderia ser quebrado.
E, oh, como tudo isto deve ter sido grato ao coração de Deus! Quão refrescantes
eram para o Seu Espírito as ardentes e amorosas súplicas do Seu servo! Como
estavam muito mais em harmonia coma Sua mente do que a intercessão de Elias
contra Israel, séculos depois! Como elas nos fazem lembrar o bendito ministério do
nosso grande Sumo Sacerdote que vive sempre para interceder pelo Seu povo e
cuja intervenção ativa em nosso favor nunca cessa nem um só momento!
E então quão comovedor e belo é observar o modo como Moisés insiste no fato
de que o povo era a herança do Senhor e que Ele os havia tirado do Egito. O Senhor
disse: "O teu povo, que tiraste do Egito. "Mas Moisés diz: O teu povo e a tua
herança, que resgataste com a tua grandeza." Isto é admirável. Na realidade toda
esta cena está cheia do maior interesse.
— CAPÍTULO 10 —

AS NOVAS TÁBUAS DE PEDRA

"Naquele mesmo tempo, me disse o SENHOR: Alisa duas tábuas de pedra, como
as primeiras, e sobe a mim a este monte, e faze uma arca de madeira. E, naquelas
tábuas, escreverei as palavras que estavam nas primeiras tábuas que quebraste, e as
porás na arca. Assim, fiz uma arca de madeira de cetim, e alisei duas tábuas de
pedra, como as primeiras, e subi o monte com as duas tábuas na minha mão. Então,
escreveu-o nas tábuas, conforme a primeira escritura, os dez mandamentos, que o
SENHOR vos falara no dia da congregação, no monte, do meio do fogo; e o SENHOR
mas deu a mim. E virei-me, e desci do monte, e pus as tábuas na arca que fizera; e
ali estão, como o SENHOR me ordenou" (versículos 1 a 5).
O amado e venerado servo de Deus parecia nunca se cansar de repetir aos
ouvidos do povo as mesmas interessantes, importantes e significativas frases do
passado. Para ele eram sempre frescas, preciosas. O seu coração deleitava-se nelas.
Nunca poderiam perder o seu encanto aos seus olhos; encontrava nelas um tesouro
inesgotável para o seu próprio coração e uma poderosa alavanca com que mover o
coração de Israel.
Estes poderosos e profundamente comovedores discursos recordam-nos
constantemente as palavras do apóstolo inspirado aos seus amados Filipenses: "Não
me aborreço de escrever-vos as mesmas coisas, e é segurança para vós" (Fp 3:1). O
pobre coração inconstante e vadio podia ansiar por qualquer novo tema; mas o fiel
apóstolo encontrou o seu mais intenso e infalível deleite em desenvolver e insistir
sobre esses preciosos assuntos que se acumulavam, em exuberância, em redor da
Pessoa e da cruz de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. Tinha achado
em Cristo tudo quanto necessitava para o tempo e a eternidade. A glória da Sua
Pessoa havia eclipsado completamente todas as glórias da terra e da natureza.
Podia dizer: "O que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E, na verdade,
tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de
Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas e as considero
como esterco, para que possa ganhar a Cristo" (Fp 3:7-8).
Esta é a linguagem de um verdadeiro cristão, de alguém que havia achado em
Cristo um objetivo absorvente e dominante. Que poderia o mundo oferecer a uma
tal pessoa? Que podia fazer por ele? Desejava as suas riquezas, suas honras,
distinções e prazeres? Considerava-as como esterco. Como era isto? Porque havia
achado Cristo. Havia visto n'Ele um objetivo que atraía de tal modo o seu coração
que ganhá-Lo, e conhecê-Lo e ser achatado d'Ele era o desejo predominante da sua
vida. Se alguém tivesse falado a Paulo de qualquer coisa nova, qual teria sido a sua
resposta? Se alguém lhe tivesse sugerido a idéia de triunfar no mundo ou de
procurar fazer fortuna, qual teria sido a sua resposta? Simplesmente esta: "Achei
tudo quanto preciso em Cristo; nada mais preciso. Encontrei n'Ele riquezas
inescrutáveis — riquezas duráveis e justiça. N'Ele estão escondidos todos os
tesouros da sabedoria e da ciência. Que necessidade tenho eu das riquezas deste
mundo, da sua sabedoria ou cultural Estas coisas passam todas como os vapores da
manhã; e até mesmo enquanto duram, são absolutamente inadequadas para
satisfazer os desejos e aspirações de um espírito imortal. Cristo é um objetivo
eterno, o centro do céu, o deleite do coração de Deus; bastar-me-á durante os
incontáveis séculos da esplendorosa eternidade que está diante de mim; e
certamente se Ele pode satisfazer o meu coração para sempre, pode satisfazer-me
no tempo presente. Devo voltar-me para os miseráveis farrapos deste mundo, as
suas ocupações, os seus prazeres, divertimentos, teatros, concertos, as suas riquezas
ou honras como um suplemento da minha porção em Cristo? Não o permitia Deus!
Tais coisas seriam simplesmente intoleráveis para mim. Cristo é o meu tudo, em
tudo, agora e para sempre."
Tal, podemos muito bem crer, teria sido a terminante resposta verbal do
bem-aventurado apóstolo; tal foi a resposta clara de toda a sua vida; e tal, prezado
leitor, deve ser também a nossa. Quão deplorável, quão profundamente
humilhante é ver um crente procurar no mundo alegria, recreio e passatempo!
Demonstra simplesmente que ele não tem encontrado em Cristo a Sua porção
satisfatória. Podemos estabelecer como principio imutável que o coração que está
cheio de Cristo não tem lugar para nada mais. Não se trata de uma questão de
coisas boas ou más; o coração não as quer; encontrou a sua parte e o seu descanso
atuais e ternos n'Aquele bendito Senhor que enche o coração de Deus e encherá o
vasto universo com os raios da Sua glória através de todos os séculos eternos.
A esta linha de pensamentos nos tem levado o fato interessante da incansável
repetição feita por Moisés de todos os grandes acontecimentos da história
maravilhosa de Israel desde o Egito até à fronteira da terra prometida. Para ele
eram motivo de uma perpétua festa; e não só encontrava o seu intenso deleite
contemplando-os como sentia a imensa importância de os expor perante toda a
congregação. Para ele não era, com certeza, incômodo, mas para eles era certo.
Quão grato para ele, e quão útil e necessário para eles apresentar os fatos
relacionados com os dois pares de tábuas — o primeiro par partido em pedaços ao
pé do monte e o segundo par encerrado na arca!
Que linguagem humana pode, de algum modo, desenvolver o profundo
significado e importância moral de tais fatos? As tábuas quebradas! Quão tocante!
Quão repleto de instrução salutar para o povo! Haverá alguém que se atreva a dizer
que temos uma repetição fútil dos fatos mencionados em Êxodo? Não será,
certamente, quem crê na inspiração do Pentateuco.
Não, leitor, o capítulo 10 de Deuteronômio preenche um vácuo e faz uma obra
propriamente sua. Nele o legislador mostra aos corações do povo cenas passadas e
circunstâncias de forma tal que dir-se-ia querer gravá-las nas próprias tábuas da
alma. Permite-lhes ouvir a conversa entre o SENHOR e ele próprio; conta-lhes o que
tivera lugar durante esses misteriosos quarenta dias sobre o cume do monte
envolto numa nuvem. Deixa que ouçam as alusões do Senhor às tábuas
quebradas—expressão apropriada e poderosa da completa inutilidade do concerto
do homem. Pois porque foram essas tábuas partidas ? Porque eles haviam falhado
vergonhosamente. Aqueles fragmentos espalhados contavam a história
humilhante da sua irremediável ruína com base na lei. Tudo estava perdido. Tal
era o significado claro do fato. Era espantoso, impressionante, inequívoco. Como
uma coluna quebrada sobre um túmulo, a qual explica, ao primeiro golpe de vista,
que o apoio e suporte da família jaz abaixo na terra convertendo-se em pó. Não há
necessidade de nenhuma inscrição porque nenhuma linguagem humana pode falar
com tal eloqüência ao coração como esse expressivo emblema. De igual modo as
tábuas quebradas estavam calculadas para transmitir ao coração de Israel o
tremendo fato, tanto quanto dizia respeito ao seu concerto, que estavam
inteiramente arruinados, irremediavelmente perdidos; estavam falidos sob o ponto
de vista da justiça da lei (Rm 8:3-4).

As Segundas Tábuas Postas na Arca


E depois o segundo jogo de tábuas! Que dizer delas? Graças a Deus, encerram
uma história muito diferente. Não foram quebradas. Deus tomou cuidado delas. "E
virei-me e desci do monte, e pus as tábuas na arca que fizera; e ali estão, como o
SENHOR me ordenou" (versículo 5).
Bendito fato! "Ali estão." Sim, guardadas nessa arca que nos fala de Cristo, o
bendito Senhor que engrandeceu a lei e a tornou honorífica, que a cumpriu
integralmente para glória de Deus e bênção eterna do Seu povo. Assim, enquanto
os fragmentos das primeiras tábuas proclamavam a triste e humilhante história do
completo fracasso e ruína de Israel, as segundas, encerradas intactas na arca,
mostram a gloriosa verdade que Cristo é o fim da lei para justiça de todo aquele que
crê, primeiro do judeu, e também do gentio.
Não queremos dizer, evidentemente, com isto que Israel compreendeu o
profundo significado e largo alcance que tinham em sua aplicação esses fatos
maravilhosos que Moisés repetia aos seus ouvidos. Como nação não puderam
certamente compreendê-los então, ainda que, pela soberana misericórdia de Deus,
os entenderão dentro em pouco. Alguns de entre eles puderam e sem dúvida
entraram em parte no seu significado. Mas a questão não é esta por agora. A nossa
responsabilidade é entender e fazer nossa a verdade exposta nesses dois jogos de
tábuas, isto é, o fracasso de Israel nas mãos do homem, e a eterna estabilidade do
concerto do Deus de graça, ratificado pelo sangue de Cristo e para ser exposto,
dentro em pouco, em todos os seus gloriosos resultados, no reino, quando o Filho
de Davi reinar desde mar a mar e desde o rio aos confins da terra; quando a
descendência de Abraão possuir, segundo o dom divino, a terra da promissão; e
quando todas as nações da terra se regozijarem sob o reinado benéfico do Príncipe
da paz.
Brilhante e gloriosa perspectiva para a terra de Israel, agora assolada, e este
nosso mundo de lamentos! O Rei da justiça e da paz fará então com que tudo siga o
caminho que Lhe apraz. Todo o mal será abatido com mão poderosa. Não haverá
fraqueza naquele governo. A nenhuma língua rebelde será permitido tagarelar
com acentos de insolente sedição contra os seus decretos e mandamentos. A
nenhum rude e insensato demagogo será permitido perturbar a paz do povo ou
insultar a majestade do trono. Todo o abuso será suprimido, todo o elemento
perturbador será neutralizado, toda a pedra de tropeço removida e toda a raiz de
amargura arrancada. Os pobres e os necessitados serão bem tratados; sim, todos
serão divinamente atendidos; a fadiga, dor, pobreza e desolação serão
desconhecidas, os montes e os lugares solitários reflorescerão, e o deserto se
regozijará e reflorescerá como a rosa. " Reinará um rei com justiça e dominarão os
príncipes segundo o juízo. E será aquele varão como um esconderijo contra o
vento, e como um refúgio contra a tempestade, e como ribeiros de águas em
lugares secos, e como a sombra de uma grande rocha em terra sedenta" (Is 32:1- 2).
Prezado leitor, que cenas gloriosas serão ainda representadas neste pobre e
triste mundo agitado pelo pecado e escravizado por Satanás! Quão consolador é
pensar nelas! Que alívio para o coração no meio das misérias mentais, moral
degradação e vileza de que nos vemos rodeados por todos os lados! Graças a Deus, o
dia aproxima- se rapidamente em que o príncipe deste mundo será tirado do seu
trono e enviado para o abismo, e o Príncipe do céu, o glorioso Emanuel, estenderá
o Seu cetro bendito sobre o imenso universo de Deus, e o céu e a terra andarão à
luz do Seu real semblante. Bem podemos exclamar, ó Senhor apressa esse tempo!

A morte de Arão e a Eleição e Exaltação de Levi


"E partiram os filhos de Israel de Beerote-Benê-Jaacã a Mosera. Ali, faleceu
Arão, e ali foi sepultado. E Eleazar, seu filho, administrou o sacerdócio em seu
lugar. Dali partiram a Gudgoda, e de Gudgoda a Jotbata, terra de ribeiros de águas.
No mesmo tempo, o SENHOR separou a tribo de Levi para levar a arca do concerto
do SENHOR, para estar diante do SENHOR, para o servir e para abençoar em seu
nome até ao dia de hoje. Pelo que Levi, com seus irmãos, não tem parte na herança;
o SENHOR é a sua herança, como o SENHOR , teu Deus, lhe tem dito" (versículos 6 a
9).
O leitor não deve permitir que a sua mente seja perturbada por qualquer
dúvida de sucessão histórica na precedente passagem. Trata-se simplesmente de
um parêntesis em que o legislador agrupa, de uma maneira surpreendente e eficaz,
as circunstâncias selecionadas, com santa destreza, da história do povo, como
exemplos, ao mesmo tempo, do governo e graça de Deus. A morte de Arão é um
exemplo do primeiro; a eleição e elevação de Levi representa a última. São
mencionados em conjunto não com vista à cronologia, mas com o importante fim
moral que estava sempre presente na mente do legislador—um fim que está muito
além do alcance da razão infiel, mas que se recomenda por si mesmo ao coração e
entendimento do estudante devoto da Escritura.
Quão desprezíveis são as sutilezas dos infiéis quando encaradas à luz brilhante
da inspiração divina! Quão miserável o estado da inteligência que pode ocupar-se
com minúcias de cronologia a fim de encontrar, de algum modo, uma falha no
volume divino,
em vez de aprender o verdadeiro fim e objetivo do autor inspirado!
Mas por que introduz Moisés, à maneira de parêntesis e em forma
aparentemente abrupta, esses dois acontecimentos especiais na história de Israel?
Simplesmente para guiar o coração do povo para o ponto importante de
obediência. Com este fim ele escolhe e reúne em grupo segundo a sabedoria que
lhe é dada. Esperamos encontrar neste servo de Deus, divinamente ensinado, a
precisão de um simples copista? Os infiéis podem aparentar crer assim; mas os
verdadeiros cristãos estão muito melhor informados. Um simples escriba pode
copiar acontecimentos conforme a sua ordem cronológica; um verdadeiro profeta,
porém, descreverá aqueles eventos de tal modo que movam o coração e a
consciência. Desta forma, enquanto o pobre infiel iludido anda às apalpadelas por
entre as sombras da sua própria imaginação, o estudante piedoso compraz-se nas
glórias morais desse volume incomparável que permanece como uma rocha contra
a qual as ondas do pensamento infiel se desfazem com desprezível impotência.
Não tencionamos deter-nos sobre as circunstâncias referidas no anterior
parêntesis; já têm sido expostas em outras partes dos nossos comentários, e
portanto só julgamos necessário agora indicar ao leitor o que poderíamos chamar o
alcance dos fatos mencionados em Deuteronômio — o emprego que o legislador
faz delas para robustecer o fundamento do seu apelo final ao coração e consciência
do povo para dar força e poder à sua exortação, à medida que insistia com eles
sobre a necessidade absoluta de implícita obediência aos estatutos e juízos do Deus
do concerto. Tal foi a razão que teve para se referir ao fato solene da morte de
Arão. Deviam recordar que, apesar da elevada posição de Arão, como sumo
sacerdote de Israel, ele era despojado das suas vestes e privado da sua vida por
desobediência à palavra do Senhor. Quão importante, portanto, era que prestassem
atenção à sua conduta! Não deviam tratar com leviandade o governo de Deus, e o
próprio fato do alto cargo de Arão só servia para tornar mais necessário que o seu
pecado fosse tratado de tal maneira que os outros pudessem temer.
E por outro lado deviam recordar o tratamento de Deus com Levi, no qual a
graça brilha com tão maravilhoso esplendor. O violento, cruel e voluntarioso Levi
fora levantado das profundezas da sua ruína moral e colocado junto de Deus "para
levar a arca do concerto do SENHOR, para estar diante do SENHOR, para o servir e
para abençoar em seu nome."
Mas porque havia este relato sobre Levi de ser ligado com a morte de Arão?-
Simplesmente para expor as benditas conseqüências de obediência, a elevação de
Levi ilustra o fruto precioso da obediência. Ouçamos o que o profeta Malaquias diz
sobre este ponto: "Então, sabereis que eu vos enviei este mandamento, para que o
meu concerto seja com Levi, diz o SENHOR dos Exércitos. Meu concerto com Levi
foi de vida e de paz, e eu lhas dei para que me temesse, e me temeu e assombrou-se
por causa do meu nome. A lei da verdade esteve na sua boca, e a iniqüidade não se
achou nos seus lábios; andou comigo em paz e em retidão e apartou a muitos da
iniqüidade" (Mq 2:4-6).
Esta passagem é deveras notável e lança muita luz sobre o assunto que estamos
considerando. Diz-nos claramente que o Senhor deu o Seu concerto de vida e paz a
Levi, o qual O temeu na terrível ocasião do bezerro de ouro que Arão (levita
também na ordem mais elevada) fez. Porque foi Arão julgado?- Por causa da sua
rebelião nas águas de Meribá (Nm 20:24). Por que foi Levi abençoado?- Por sua
reverente obediência ao pé do monte Horebe (Êx 22). Por que são ambos
agrupados em Deuteronômio 1 (K Com o fim de imprimir sobre o coração e a
consciência da congregação a urgente necessidade de implícita obediência aos
mandamentos do seu Deus. Quão perfeita é a Escritura em todas as suas partes!
Quão formosamente se harmoniza! E quão evidente é para o devoto leitor o fato de
que o belo livro de Deuteronômio tem o seu próprio nicho divino para encher, a
sua própria obra a fazer, a sua própria esfera, terna e objetivo! Como é evidente que
a quinta parte do Pentateuco não é nem uma contradição nem uma repetição mas
uma aplicação divina das partes divinamente inspiradas que a precedem! E, por
fim, não podemos deixar de acrescentar quão convincente é a evidência de que os
escritores infiéis não sabem o que dizem nem o que afirmam quando se atrevem a
insultar os oráculos de Deus - sim, que eram grandemente não conhecendo as
Escrituras nem o poder de Deus (1)!
__________
(1) Nos escritos humanos temos numerosos exemplos da forma como os infiéis objetam da mesma
maneira sobre Deuteronômio 10:6 a 9. Suponhamos um homem ansioso por chamar a atenção do país para
algum princípio importante de economia política ou qualquer assunto de importância nacional; não
hesitará em escolher fatos, por mais distanciados que estejam uns dos outros nas páginas da história, e em
os agrupar a fim de exemplificar o seu assunto. Os infiéis têm alguma coisa a opor a isto? Não; não o fazem
quando isso se encontra nas obras dos homens. E só quando isso ocorre na Escritura, porque odeiam a
Palavra de Deus, e não podem admitir a idéia de que Ele desse as Suas criaturas um livro que é a revelação
da Sua mente. Bendito seja o Seu orne. Ele no-lo deu contudo, e nós temo-lo em toda a sua infinita
preciosidade e divina autoridade para conforto dos nossos corações e guia da nossa carreira por entre as
trevas e confusão desta cena pela qual estamos passando de caminho Para o nosso lar na glória.

Ó Israel, o que o SENHOR, teu Deus, Pede de ti?


Em versículo 10 do nosso capítulo Moisés volta a tratar do assunto do seu
discurso. "E eu estive no monte, como nos dias primeiros, quarenta dias e quarenta
noites; e o SENHOR me ouviu ainda por esta vez; não quis o SENHOR destruir-te.
Porém; o SENHOR me disse: Levanta-te, põe-te a caminho diante do povo, para que
entre, e possua a terra que jurei a seus pais dar-lhes."
O Senhor cumprirá a Sua promessa feita aos pais apesar de todo o impedimento.
Porá Israel em plena posse da terra acerca da qual jurou a Abrão, Isaque e Jacó que
a daria à sua descendência em possessão perpétua.
"Agora, pois, ó Israel, que é o que o SENHOR, teu Deus pede de ti, senão que
temas o SENHOR, teu Deus, e que andes em todos os seus caminhos, e o ames, e
sirvas ao SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma, para
guardares os mandamentos do SENHOR e os seus estatutos, que hoje te ordeno, para
o teu bem?" Era para seu verdadeiro bem-estar, profunda, plena bênção andar no
caminho dos mandamentos divinos. A senda da obediência de todo o coração é o
único caminho da verdadeira felicidade; e bendito seja Deus, este caminho poder
ser sempre trilhado por todos os que amam o Senhor.
Isto é um conforto inefável em todo o tempo. Deus nos deu a Sua preciosa
palavra, a perfeita revelação da Sua mente; e deu-nos o que Israel não tinha, a
saber, o Seu Santo Espírito para habitar em nossos corações a fim de podermos
entender e apreciar a Sua palavra. Por isso as nossas obrigações são infinitamente
mais elevadas do que as de Israel. Estamos ligados a uma vida de obediência por
todos os argumentos que podem aduzir-se para influenciar o coração e o
entendimento.
E certamente é para nosso bem sermos obedientes. Há na verdade "grande
galardão" em guardar os mandamentos do nosso amoroso Pai. Todo o pensamento
d'Ele e dos Seus caminhos em graça, toda a referência aos Seus maravilhosos atos
conosco—o Seu amoroso ministério, cuidado terno e atento amor—deveriam ligar
os nossos corações em afetuosa devoção por Ele e despertar os nossos passos no
trilho da senda de amorosa obediência. Para onde quer que volvemos os olhos
encontramos a mais poderosa evidência dos Seus direitos aos afetos do nosso
coração e todas as energias do nosso ser resgatado. E, bendito seja o Seu nome,
quanto mais capacitados estamos pela Sua graça para responder aos Seus preciosos
direitos mais brilhante e feliz será a nossa carreira. Nada há em todo este mundo
mais abençoado do que a senda e a porção de uma alma obediente. "Muita paz têm
os que amam a tua lei, e para eles não há tropeço" (SI 119:165). O discípulo
humilde, que acha a sua comida e bebida em fazer a vontade do seu amado Senhor
e Mestre, possui uma paz que o mundo não pode dar nem tirar. Decerto poderá ser
mal compreendido e mal interpretado; poderá ser apelidado de fechado e fanático,
e coisas que tais; mas nenhuma destas coisas o poderá demover. Um só sorriso de
aprovação do seu Senhor é mais do que uma ampla recompensa para todo o
opróbrio que os homens possam acumular sobre ele. Sabe como há de apreciar o
próprio valor dos pensamentos dos homens; são para ele como a pragana que o
vento leva. A profunda linguagem do seu coração, à medida que avança
firmemente ao longo do caminho sagrado de obediência, é de absoluto descanso no
amor do seu Senhor.
Nos versículos finais do nosso capítulo o legislador parece elevar- se cada vez
mais alto na apresentação dos motivos morais para a obediência, e aproximar-se
mais e mais dos corações do povo. "Eis", diz ele, "que os céus e os céus dos céus são
do S ENHOR , teu Deus, a terra e tudo que nela há. Tão-somente o S ENHOR tomou
prazer em teus pais para os amar; e a vós, semente deles, escolheu depois deles, de
todos os povos, como neste dia se vê." Que maravilhoso privilégio ser escolhido e
amado pelo Possuidor dos céus e da terra! Que honra ser chamado para O servir e
Lhe obedecer! Seguramente nada pode haver em todo este mundo melhor ou mais
elevado. Serem identificados e associados com o Deus Altíssimo, serem chamados
pelo Seu nome, serem o Seu povo peculiar, a Sua possessão especial, o povo da Sua
escolha, serem separados de todas as nações da terra para serem servos de Javé e
Suas testemunhas. O quê, podemos perguntar, poderá exceder isto, a menos que
aquilo a que são chamados a Igreja de Deus e o crente individualmente?-
Certamente, os nossos privilégios são mais elevados, visto que conhecemos a
Deus de uma maneira mais elevada, profunda, íntima, do que a nação de Israel
jamais O conheceu. Conhecemo-Lo como o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo e nosso Deus e Pai. Temos o Espírito Santo que habita em nós, e derramou o
amor de Deus em nossos corações, e nos levou a clamar, Abba, Pai. Tudo isto está
muito mais além de tudo que o povo terrestre de Deus conheceu ou pôde
conhecer; e, visto que os nossos privilégios são mais elevados, os Seus direitos sobre
a nossa cordial e absoluta obediência são também mais elevados. Todo o apelo feito
ao coração de Israel deveria ter maior poder sobre os nossos corações, prezado
leitor; todas as exortações que lhes foram dirigidas, deveriam falar de um modo
mais poderoso às nossas almas. Ocupamos o plano mais elevado em que qualquer
criatura pode estar. Nem a descendência de Abraão na terra, nem os anjos de Deus
nos céus, podem dizer o que nós podemos ou conhecer o que conhecemos.
Estamos ligados e eternamente associados com o Filho de Deus ressuscitado e
glorificado. Podemos adotar como nossa a linguagem maravilhosa de 1 João 4:17, e
dizer: "Qual ele é, somos nós também neste mundo." O que pode haver superior a
isto quanto a privilégios e dignidade? Nada seguramente, salvo sermos, em corpo,
alma e espírito, conformados à Sua adorável imagem, como seremos, dentro de
pouco, pela graça infinita de Deus.
Ora bem, lembremos sempre — sim, recordemos no profundo dos nossos
corações—o conceito que segundo os nossos privilégios assim são as nossas
obrigações. Não desprezemos a palavra salutar "obrigações" como se ela estivesse
rodeada de um som legal. Longe disso; seria completamente impossível conceber
qualquer coisa mais afastada de todo o pensamento de legalidade que as obrigações
que emanam da posição cristã. É um erro muito grave levantar continuamente o
grito "Legal! Legal!" sempre que as sagradas responsabilidades da nossa posição nos
oprimem. Cremos que todo o verdadeiro crente piedoso terá prazer em todos os
apelos e exortações que o Espírito Santo nos dirige pelo que toca às nossas
responsabilidades, visto que são todas baseadas sobre privilégios que nos são
conferidos pela graça soberana de Deus, pelo precioso sangue de Cristo e
cumpridos em nós pelo Espírito Santo.

O Pai dos Órfãos e o Juiz das Viúvas


Mas continuemos a escutar os apelos comoventes de Moisés. São
verdadeiramente proveitosos para nós, com a maior luz, conhecimento e
privilégios que temos.
"Circuncidai, pois, o prefácio do vosso coração e não mais endureçais a vossa
cerviz. Pois o SENHOR, VOSSO Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o
Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita
recompensas; que faz justiça ao órfão, e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão
e vestido" (versículos 16 a 18).
Aqui Moisés não fala simplesmente dos atos e procedimento de Deus, mas de
Deus mesmo, do que Ele é. Está acima de todos, o Deus grande, poderoso e terrível.
Mas tem um coação para a viúva e os órfãos—esses seres desamparados, privados
de todo o apoio natural e terno, a pobre viúva quebrantada de coração, e o
desolado órfão. Deus pensa nos tais e cuida deles de uma maneira muito especial;
têm direito ao Seu coração amoroso e poderosa mão. "Pai de órfãos e juiz de viúvas
é Deus no seu lugar santo" (SI 68:5). "Ora a que é verdadeiramente viúva e
desamparada espera em Deus e persevera de noite e de dia em rogos e orações" (1
Tm 5:5). "Deixa os teus órfãos • eu os guardarei em vida; e as tuas viúvas confiarão
em mim" (Jr 49:11).
Que rica provisão há aqui para as viúvas e os órfãos! Quão maravilhoso o
cuidado de Deus por eles! Quantas viúvas estão em melhores condições do que
quando tinham os seus maridos! Quantos órfãos são mais bem tratados e
alimentados do que quando tinham seus pais! Deus tem cuidado deles! Isto é
bastante. Milhares de maridos e milhentos pais são muito piores do que nenhuns;
mas Deus nunca falta àqueles que n'Ele confiam. E sempre fiel ao Seu nome, seja
qual for o parentesco que adote.
Que todas as viúvas e órfãos lembrem isto para seu conforto e ânimo.

O Estrangeiro
E depois o pobre estrangeiro! Não é esquecido. "E ama o estrangeiro, dando-lhe
pão e vestido." Como isto é precioso! O nosso Deus cuida de todos os que se vêem
privados de apoio terreno, esperança humana e confiança na criatura. Todos eles
têm sobre Ele um direito especial a que Ele seguramente responde segundo todo o
amor do Seu coração. A viúva, o órfão e o estrangeiro são objetos especiais do Seu
eterno cuidado, e todos têm apenas que olhar para Ele em todas as suas variadas
necessidades para serem atendidos com Seus inesgotáveis recursos.
Mas Deus tem de ser conhecido para poder confiar-se n'Ele. ''Em ti confiarão os
que conhecem o teu nome; porque tu, SENHOR, nunca desamparaste os que te
buscam" (SI 9:10). Os que não conhecem Deus preferem muito mais uma apólice
de seguros ou uma renda vitalícia à Sua promessa. Mas o verdadeiro crente
encontra nessa promessa o infalível apoio do seu coração, porque conhece, confia e
ama Aquele que prometeu. Acha prazer no pensamento de contar absolutamente
com Deus, de ser inteiramente dependente d'Ele. Não quereria, por nada deste
mundo, estar noutra situação. Aquilo que faria quase perder o juízo a um incrédulo
é para o crente — o homem de fé—motivo do mais profundo gozo do seu coração.
A linguagem de um tal será sempre: "O minha alma, espera somente em Deus,
porque dele vem a minha esperança. Só ele é a minha rocha" (SI 62:5-6). Bendita
situação! Feliz porção! Que o leitor a conheça como uma realidade divina, um
poder vivo, em seu coração, pelo poderoso ministério do Espírito Santo! Então
estará em condições de sentir-se livre das coisas terrenas. Será capaz de dizer ao
mundo que é independente dele, tendo achado tudo quanto precisa para o tempo e
a eternidade no Deus vivo e em Cristo.
Mas notemos especialmente a provisão que Deus faz para o estrangeiro. E
muito simples — "pão e vestido". Isto é bastante para um verdadeiro estrangeiro,
como o bem-aventurado apóstolo diz a seu filho Timóteo: "Porque nada trouxemos
para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele. Tendo, porém,
sustento e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes (1 Tm 6:7-8").
Leitor cristão, consideremos isto. Que remédio para a impaciente ambição
temos aqui! Que antídoto contra a avareza! Que bendita libertação da excitação
febril da vida comercial, do espírito cobiçoso do século em que caiu a nossa sorte!
Se apenas nos contentássemos com a porção divinamente estipulada para o
estrangeiro, que história tão diferente teríamos para contar! Quão tranquilo e
suave seria o curso da nossa vida diária! Quão simples os nossos hábitos e gostos!
Quão indiferente ao mundo seria o nosso espírito e maneira de viver! Que moral
elevação sobre a indulgência pessoal e o fausto tão predominante entre os cristãos
professos! Comeríamos e beberíamos unicamente para glória de Deus e para
manter o corpo em bom funcionamento. Transpor estes limites, quer em comer
quer ou em beber, é transigir com "as concupiscências carnais que combatem
contra a alma" (1 Pe 2:11).
Mas, infelizmente, quanto disto existe, especialmente com respeito à bebida! E
simplesmente espantoso pensar no consumo de bebidas alcoólicas entre os cristãos
professos! Estamos plenamente convencidos de que o diabo tem conseguido
arruinar o testemunho de centenas, e dado lugar a que hajam naufragado na fé e
uma boa consciência por meio do uso de estimulantes. Milhares arruínam as suas
fortunas, as suas famílias, a saúde, e as suas almas por meio do desejo insensato, vil
e maldito dos estimulantes.
Não vamos pregar uma cruzada contra os estimulantes ou narcóticos. O mal
não está precisamente neles mas no uso desconhecido e mau que fazemos deles.
Sucede freqüentemente que pessoas que caem sob o horrível domínio da bebida
procuram deitar a culpa ao seu médico; mas é evidente que nenhum médico
propriamente dito aconselhará o seu doente a entregar-se ao uso dos estimulantes.
Poderá aconselhar o uso de "um pouco de vinho por causa do seu estômago e das
suas freqüentes enfermidades", e tem toda a autoridade para o fazer; mas por que
há de isto levar alguém a tornar-se um beberrão"?- Cada qual tem o dever de andar
no temor de Deus a respeito tanto do comer como do beber. Se o médico receita
um pouco de alimento nutritivo ao seu doente, deve culpar- se se o doente se torna
glutão? Decerto que não; o mal não está na receita do médico, ou no estimulante,
ou no alimento, mas no miserável desejo do coração.
Estamos persuadidos de que é aqui que está a raiz do mal; e o remédio
encontra-se naquela preciosa graça de Deus que, enquanto traz salvação a todos os
homens, ensina os que são salvos a "viver, neste presente século, sóbria, justa e
piamente" (Tt 2:12). E note-se que "viver piamente" quer dizer muito mais do que
temperança em comer e beber; quer dizer isto certamente, mas inclui também o
conjunto de domínio próprio — o domínio dos pensamentos, do temperamento,
da língua. A graça que nos salva não só nos diz como viver, mas ensina-nos como
fazê-lo, e se seguirmos o seu ensino estaremos muito contentes com as provisões de
Deus para o estrangeiro.
E, ao mesmo tempo, interessante e edificante notar o modo como Moisés
mostra o exemplo divino perante o povo como modelo. O Senhor "ama o
estrangeiro, dando-lhe pão e veste. Pelo que amareis o estrangeiro, pois fostes
estrangeiros na terra do Egito". Isto é muito tocante, não só deviam ter ante seus
olhos o modelo divino, mas lembrar também a sua própria história e experiência, a
fim de que os seus corações pudessem ser despertados em simpatia e compaixão
para com o pobre estrangeiro sem lar. Era dever e elevado privilégio do Israel de
Deus colocar-se nas circunstâncias e penetrar nos sentimentos dos outros. Deviam
ser os representantes morais daquele bendito Senhor cujo povo eles eram, e por
cujo nome eram chamados. Deviam imitá-Lo no cumprimento e suprimento das
necessidades e alegrar os corações dos órfãos, das viúvas e dos estrangeiros. E se o
antigo povo de Deus na terra foi chamado para este formoso curso de ação, quanto
mais o somos nós que fomos "abençoados com todas as bênçãos espirituais, nos
lugares celestiais, em Cristo." Possamos nós permanecer mais na Sua presença e
beber mais do Seu Espírito, para que assim possamos mais fielmente refletir as Suas
glórias morais sobre todos aqueles com quem entramos em contato!
Os versículos finais do nosso capítulo dão-nos um formoso sumário do ensino
prático que tem vindo a ocupar a nossa atenção. "Ao SENHOR, teu Deus, temerás; a
ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás. Ele é o teu louvor e o teu
Deus, que te fez estas grandes e terríveis coisas que os teus olhos têm visto. Com
setenta almas teus pais desceram ao Egito; e, agora, o SENHOR, teu Deus, te pôs
como as estrelas dos céus em multidão" (versículos 20 a 22).
Quão estimulante é tudo isto para o ser moral! Esta união do coração ao Senhor
mesmo por meio de tudo que Ele é e todos os Seus atos maravilhosos. Tudo isto é
inefavelmente precioso. E, podemos dizer, o secreto manancial de toda a
verdadeira devoção. Permita Deus que o autor e o leitor destas linhas realizem
continuamente o seu eficaz poder!
— CAPÍTULO 11 —

RETROSPECTIVA E FUTURO

A Recordação das Obras do SENHOR


"Amarás, pois, o, SENHOR , teu Deus, e guardarás a sua observância, e os seus
estatutos, e os seus juízos, e os seus mandamentos, todos os dias. E hoje sabereis
que falo, não com os vossos filhos, que o não sabem e não viram a instrução do
SENHOR ,vosso Deus, a sua grandeza, a sua mão forte e o seu braço estendido; nem
tampouco os seus sinais, nem os seus feitos, que fez no meio do Egito a Faraó, rei
do Egito, e a toda a sua terra; nem o que fez ao exército dos egípcios, aos seus
cavalos e aos seus carros, fazendo passar sobre eles as águas do mar Vermelho,
quando vos perseguiam, e o SENHOR OS destruiu até ao dia de hoje; nem o que vos
fez no deserto, até que chegastes a este lugar; e o que faz a Datã e a Abirão, filhos
de Eliabe, filho de Rúben; como a terra abriu a sua boca e os tragou com as suas
casas e com as suas tendas, como também tudo o que subsistia e lhes pertencia, no
meio de todo o Israel; porquanto os vossos olhos são os que viram toda a grande
obra que fez o SENHOR" (versículos 1 a 7).
Moisés sentia que era da maior importância que todos os poderosos atos do
Senhor fossem salientados de um modo proeminente ante os corações do povo e
profundamente gravados na sua memória. A pobre mente humana é flutuante e o
coração inconstante; e, não obstante tudo que Israel havia visto por meio dos juízos
solenes de Deus sobre o Egito e Faraó, corria o perigo de os esquecer e de perder a
impressão que eram destinados a produzir.
Pode ser que nos maravilhemos de como Israel podia chegar a esquecer as cenas
impressionantes da sua história no Egito desde o começo ao fim — a descida dos
seus pais para ali em número insignificante, o seu rápido crescimento e progresso,
como povo, apesar de todas as formidáveis dificuldades e impedimentos, de forma
que de aquele insignificante punhado de almas havia chegado a ser pela boa mão
de Deus sobre eles como as estrelas do céu em multidão.
E depois aquelas dez pragas sobre a terra do Egito! Quão plenas de terrível
solenidade! Como eram eminentemente calculadas para impressionar o coração
com o sentimento do poder vigoroso de Deus, a completa impotência e
insignificância do homem, em toda a sua alardeada sabedoria, força e glória, e a sua
monstruosa loucura em intentar levantar-se contra o Deus Todo-poderoso! O que
era todo o poder do Faraó e do Egito na presença do Senhor ,Deus de Israel? Numa
hora ficou submerso em irreparável ruína e destruição. Todos os carros do Egito,
toda a pompa e glória, o valor e poder dessa antiga e famosa nação—tudo foi
submergido nas profundezas do mar.
E por quê? Porque ousaram intrometer-se com o Israel de Deus; ousaram
opor-se ao eterno propósito e desígnio do Altíssimo. Procuraram destruir aqueles a
quem Deus amava. Deus havia jurado abençoar a descendência de Abraão, e
nenhum poder da terra ou do inferno podia, de nenhum modo, invalidar o Seu
juramento. Faraó, em seu orgulho e dureza de coração, tentou contrariar os atos
divinos, mas intrometeu-se apenas para sua própria destruição. A sua terra foi
abalada até o seu próprio centro e ele próprio e o seu poderoso exército foram
sepultados no mar Vermelho, exemplo solene para todos os que tentam opor-se aos
propósitos de Javé para abençoar a descendência de Abraão, Seu amigo.
Nem tampouco era apenas o que o Senhor havia feito ao Egito e a Faraó que o
povo devia lembrar, mas também o que havia feito entre eles próprios. Quão
aterrador fora o juízo sobre Datã e Abirão e as suas famílias! Como é terrível pensar
na terra abrindo a sua boca para os engolir! E por quê? Por causa da sua rebelião
contra o decreto divino. Na história descrita em Números, Coré, o levita, é o
caráter proeminente; mas aqui é omitido, e os dois rubenitas são
mencionados—dois membros da congregação, porque Moisés procura atuar sobre
o conjunto do corpo pondo perante eles as terríveis conseqüências de obstinação
em dois de seus membros — dois membros ordinários, como nós diríamos, e não
apenas um levita privilegiado.
Em suma, pois, quer a atenção fosse despertada para os atos divinos, fora ou
dentro da congregação, era com o propósito de impressionar os seus corações e
inteligências com o sentimento profundo da importância moral de obediência.
Este era o grande propósito de todas as citações e exortações do fiel servo de Deus,
que ia ser tão depressa tirado do meio deles. Por isso, ele estende-se sobre toda a
sua história durante séculos, selecionando, agrupando, comentando, mencionando
este fato e omitindo aquele, à medida que era guiado pelo Espírito de Deus. A
descida para o Egito, a longa permanência ali, os duros castigos infligidos ao
obstinado Faraó, o êxodo, a passagem pelo mar, as cenas do deserto e,
especialmente, o terrível fim dos dois rubenitas rebeldes — tudo é referido com
maravilhosa energia e clareza à consciência do povo, de forma a fortalecer a base
do direito do Senhor à sua implícita obediência aos Seus santos mandamentos.

Guardai todos os Mandamentos


"Guardai, pois, todos os mandamentos que eu vos ordeno hoje, para que vos
esforceis, e entreis, e possuais a terra que passais a possuir; e para que prolongueis
os dias na terra que o Senhor jurou a vossos pais dá-la a eles e à sua semente, terra
que mana leite e mel."
Note o leitor o formoso vínculo moral entre estas duas cláusulas: "Guardai todos
os mandamentos [...] para que vos esforceis." Obtém-se muita força pela
obediência sem reservas à Palavra de Deus. De nada serve escolher esta ou aquela
passagem. Somos propensos a fazer isto ou aquilo, propensos a escolher
determinados mandamentos e preceitos que nos agradam; mas isto é realmente
obstinação. Que direito temos nós de escolher tais e quais preceitos da Palavra e
desprezar outros? Absolutamente nenhum. Fazê-lo é, em princípio, simplesmente
rebelião e vontade própria. Que direito tem um servo de decidir a qual dos
mandamentos do seu senhor deve obedecerá Nenhum, certamente; todo o
mandamento está revestido da autoridade do amo, e portanto requer a atenção do
servo; e, podemos acrescentar, quanto mais implicitamente o servo obedece, tanto
mais presta a sua atenção respeitosa a todos os mandamentos do seu amo, por
triviais que eles sejam, e tanto mais de se fortalece no seu cargo e cresce na
confiança e estima do amo. Todo o amo quer e aprecia um servo obediente e
aplicado. Todos conhecemos a satisfação que proporciona um servo em quem
podemos confiar — alguém que se alegre em satisfazer os nossos desejos e que não
precise de ser vigiado constantemente, mas que sabe qual é o seu dever e o cumpre.
Ora, não devemos nós procurar alegrar o coração do nosso Mestre pela
obediência amorosa a todos os Seus mandamentos?- Pensemos no privilégio que
nos é concedido de alegrar o coração d'Aquele bendito Senhor que nos amou e Se
entregou a Si mesmo por nós. É alguma coisa verdadeiramente maravilhosa que
pobres criaturas como nós possam de certo modo alegrar o coração de Jesus; e,
contudo, assim é, bendito seja o Seu nome! Compraz-Se em que guardemos os Seus
mandamentos; e decerto este pensamento deveria despertar o nosso ser mortal e
levar-nos a estudar a Sua palavra a fim de descobrirmos cada vez mais o que são os
Seus mandamentos para os cumprir.
As palavras de Moisés que havemos citado fazem-nos lembrar a oração do
apóstolo pelos "santos e irmãos fiéis em Cristo, que estão em Colossos". "Por esta
razão, nós, também, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós e
de pedir que sejais cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e
inteligência espiritual; para que possais andar dignamente diante do Senhor,
agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra e crescendo no
conhecimento de Deus; corroborados em toda a fortaleza, segundo a força da sua
glória, em toda a paciência e longanimidade, com gozo; dando graças ao Pai, que
nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz. Ele nos tirou da
potestade das trevas e nos transportou para o Reino do Filho do seu amor, em
quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados" (Cl 1:9 a
14).
Admitida a diferença que existe entre o terreno e o celestial, entre Israel e a
Igreja, existe uma notável semelhança entre as palavras do legislador e as do
apóstolo. Ambas são eminentemente próprias para mostrar a beleza e preciosidade
de uma terna e sincera obediência. É preciosa para o Pai, preciosa para Cristo,
preciosa para o Espírito Santo; e isto deveria, seguramente, ser o bastante para criar
e fortalecer em nossos corações o desejo de serem cheios do conhecimento da Sua
vontade, para assim podermos andar dignamente diante do Senhor, frutificando
em toda a boa obra e crescendo no conhecimento de Deus. Deveria levar-nos a um
estudo mais diligente da Palavra de Deus, a fim de que pudéssemos sempre
descobrir mais e mais da mente e vontade do Senhor, e aprender o que Lhe é
agradável e esperar d'Ele graça para o conseguir. Só desta maneira os nossos
corações estarão mais perto d'Ele e nós encontraremos um interesse cada vez mais
profundo em examinar as Escrituras, não apenas para crescer no conhecimento da
verdade, mas no conhecimento de Deus, o conhecimento de Cristo — o
conhecimento profundo, pessoal, experimental, de tudo que está entesourado
n'Aquele em que habita corporalmente toda a plenitude da Divindade. Oh! que o
Espírito de Deus, pelo Seu preciosíssimo e poderoso ministério desperte em nós
um desejo mais intenso de conhecer e fazer a vontade de nosso bendito Senhor e
Salvador Jesus Cristo, para que, desse modo, possamos dar alegria ao Seu terno
coração e agradar-Lhe em tudo!

A Terra Prometida
Devemos agora prosseguir, por um momento, com a encantadora descrição da
terra prometida que Moisés faz perante os olhos do povo. "Porque a terra que
entras a possuir não é como a terra do Egito, donde saíste, em que semeavas a tua
semente e a regavas com o teu pé, como a uma horta. Mas a terra que passais a
possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas; terra de
que o SENHOR, Teu Deus, tem cuidado: os olhos do SENHOR, teu Deus, estão sobre
ela continuamente, desde o princípio até ao fim do ano"
(versículos 10 a 12).
Que vivido contraste entre o Egito e Canaã! O Egito não tinha chuva dos céus.
Ali tudo era esforço humano. Não era assim na terra do Senhor; o pé humano nada
podia fazer ali, nem havia qualquer necessidade, porque a bendita chuva dos céus
caía sobre ela; o Senhor mesmo cuidava dela e a regava com as primeiras e últimas
chuvas. A terra do Egito estava dependente dos seus recursos; a terra de Canaã
dependia inteiramente de Deus — do que descia do céu. "O meu rio é meu", era a
linguagem do Egito. "O rio de Deus" era a esperança de Canaã. O costume do Egito
era regar com os pés; o hálito em Canaã era levantar os olhos ao céu.
No Salmo 65 temos uma encantadora descrição do estado de coisas na terra do
Senhor, vistas pelos olhos da fé. "Tu visitas a terra e a refrescas; tu a enriqueces
grandemente com o rio de Deus, que está cheio de água; tu lhe dás o trigo, quando
assim a tens preparada; tu enches de água os seus sulcos, regulando a sua altura; tu
a amoleces com a muita chuva; tu abençoas as suas novidades; tu coroas o ano da
tua bondade, e as tuas vereadas destilam gordura; destilam sobre os pastos do
deserto, e os outeiros cingem-se de alegria. Os campos cobrem-se de rebanhos e os
vales vestem-se de trigo; por isso, eles se regozijam e cantam" (versículos 9 a 13).
Quão perfeitamente belo! Pense-se por um momento em Deus refrescando a
terra e enchendo de água os seus sulcos! Pense-se na Sua condescendência em
fazer o trabalho de um lavrador para o Seu povo! Sim, e fazendo-o com agrado! Era
o gozo do Seu coração derramar os Seus raios de sol e refrescantes chuvas sobre "os
outeiros" e "os vales" do Seu amado povo! Era consolador para o Seu Espírito, assim
como era para louvor do Seu nome ver a videira, a figueira e a oliveira florescendo,
os vales cobertos de dourados cereais e as ricas pastagens cobertas de rebanhos de
ovelhas.

Se Obedecerdes... Eu Darei!
Assim deveria ter sido sempre e assim teria sido, se Israel tivesse andado em
simples obediência à santa lei de Deus. "E será que, se diligentemente obedecerdes
a meus mandamentos que hoje te ordeno, de amar ao SENHOR, teu Deus, e de o
servir de todo o teu coração e de toda a tua lama, então, darei a chuva da vossa
terra a seu tempo, a temporã e a serôdia, para que recolhas mosto, e o teu azeite. E
darei erva no teu campo aos teus gados, e comerás e fartar-te-ás" (versículos
13-15).
Assim o assunto ficava entre o Deus de Israel e o Israel de Deus. Nada podia ser
mais simples, nada mais abençoado. Para Israel era um elevado e santo privilégio
amar e servir o Senhor; era prerrogativa de Javé abençoar e fazer prosperar Israel.
A felicidade e a fertilidade deviam certamente acompanhar a obediência. O povo e
a sua terra estavam inteiramente dependentes de Deus; todos os seus suprimentos
deviam descer do céu, e por isso, enquanto andavam em obediência, as chuvas
copiosas caíam sobre os seus campos e vinhedos; os céus destilavam o orvalho e a
terra respondia com fertilidade e bênção.
Mas, por outro lado, quando Israel esqueceu o Senhor e desprezou os Seus
preciosos mandamentos, o céu tornou-se bronze e a terra de ferro; a esterilidade,
desolação, fome e miséria eram os tristes resultados da desobediência. Como
poderia ser de outro modo?- "Se quiserdes e ouvirdes, comereis o bem desta terra.
Mas se recusardes e fordes rebeldes, sereis devorados à espada; porque a boca do
SENHOR O disse" (Is 1:19-20).
Ora, em tudo isto há uma profunda instrução prática para a Igreja de Deus.
Apesar de não estarmos debaixo da lei, somos chamados à obediência, e na medida
em que somos capazes pela graça de render terna e cordial obediência somos
abençoados no nosso estado espiritual, as nossas almas são encorajadas, animadas e
fortalecidas e nós produzimos frutos de justiça, que são por Jesus para glória e
louvor de Deus.
O leitor verificará com muito proveito, em relação com este assunto prático, o
princípio do capítulo 15 de João—uma passagem preciosa da Escritura, que exige a
mais sincera atenção de todo o verdadeiro filho de Deus. "Eu sou a videira
verdadeira, e meu Pai é o lavrador. Toda vara em mim que não dá fruto, a tira; e
limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela
palavra que vos tenho falado. Estai em mim, e eu, em vós; como a vara de si mesma
não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes
em mim. Eu sou a videira, vós, as varas; quem está em mim, e eu nele, este dá
muito fruto, porque sem mim nada podereis fazer. Se alguém não estiver em mim,
será laçado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se
vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que
quiserdes, e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto; e
assim sereis meus discípulos. Como o Pai me amou, também eu vos amei a vós;
permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no
meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e
permaneço no seu amor" (versículos 1 a 10).
Esta importante passagem da Escritura tem sofrido bastante com a controvérsia
teológica e a luta religiosa. E tão clara como prática e só necessita de ser aceita tal
como está, em sua simplicidade divina. Se procurarmos introduzir-lhe o que não
lhe pertence, manchamos a sua integridade e perdemos a sua verdadeira aplicação.
Nela temos Cristo, a videira verdadeira, tomando o lugar de Israel, que se havia
tornado para o Senhor na degenerada planta de uma videira estranha. A cena da
parábola é, evidentemente, aterra e não o céu; não podemos imaginar uma videira
e um lavrador no céu. Alem disso, o Senhor disse: "Eu sou a videira verdadeira". A
figura é muito clara. Não é a Cabeça e os membros, mas uma árvore e as sua varas.
Além disso, o assunto da parábola é tão distinto quanto a própria parábola; não se
trata de vida eterna, mas de dar fruto. Se isto fosse tomado em conta contribuiria,
grandemente, para a compreensão desta passagem da Escritura tão mal entendida.
Numa palavra, aprendemos desta figura da videira e das varas que o verdadeiro
segredo de dar fruto e permanecer em Cristo, e o modo de permanecer em Cristo é
guardar os Seus preciosos mandamentos. "Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho guardado os manda-
mentos de meu Pai e permaneço no seu amor." Isto torna tudo tão simples. O meio
de dar fruto a seu tempo é permanecer no amor de Cristo, e a maneira de
demonstrar esta permanência é entesourar os Seus mandamentos em nossos
corações e render amorosa obediência a todos eles. Não correndo de um lado para
outro na mera energia da natureza; não é a excitação do simples zelo carnal
manifestando-se em esforços espasmódicos de devoção. Não; é qualquer coisa
muito diferente de tudo isto; é a obediência calma e santa do coração—obediência
amorosa ao nosso amado Senhor que alegra o Seu coração e glorifica o Seu nome.
Prezado leitor, apliquemos os nossos corações a este importante assunto de dar
fruto. Possamos nós compreender melhor em que ele consiste. Somos tão
propensos a cometer erros a este respeito. É de recear que muitíssimo daquilo que
passa por ser fruto não é tido por tal na presença divina. Deus não pode reconhecer
como fruto o que não é o resultado direto de permanecer em Cristo. Podemos
gozar de fama de muito zelo, energia e devoção entre os nossos companheiros, em
todas as atribuições da obra; podemos viajar muito como grandes pregadores,
obreiros consagrados na vinha, filantropos e reformadores morais; podemos
despender uma fortuna principesca em fomentar todos os grandes objetivos de
beneficência cristã, e ao mesmo tempo não produzir uma simples amostra de fruto
aceitável ao coração do Pai.
E, por outro lado, pode ser nossa sorte passar o tempo da nossa curta
permanência no mundo em obscuridade e sem admiração humana; podemos ser
tidos em pouca conta pelo mundo e a igreja professante; poderá parecer que
deixamos uma marca insignificante na areia do tempo; mas se permanecermos em
Cristo, se permanecermos no Seu amor, se entesourarmos as Suas palavras em
nossos corações, e nos rendermos a uma obediência santa e amorosa aos Seus
mandamentos, daremos fruto no tempo próprio, o nosso pai será glorificado, e nós
cresceremos no conhecimento prático de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Vamos considerar por um momento o que resta do nosso capitulo, em que
Moisés, com palavras de intensa solicitude, insta com a congregação para que sinta
a urgente necessidade de vigilância e atenção a respeito de todos os estatutos e
mandamentos do Senhor, seu Deus. O amado e fiel servo de Deus, e verdadeiro
amigo o povo, era incansável nos seus esforços para os levar àquela obediência
cordial que ele sabia ser, ao mesmo tempo, a fonte da sua cidade e abundância; e
assim como nosso bendito Senhor adverte os Seus discípulos pondo diante deles o
solene juízo da vara infrutífera, assim também Moisés avisa o povo quanto às
conseqüências certas e terríveis da desobediência.

"Que o Vosso Coração não se Engane"


"Guardai-vos que o vosso coração não se engane, e vos desvieis, e sirvais a
outros deuses, e vos inclineis perante eles." Triste retrocesso! O coração enganado.
Este é o princípio de toda a decadência. "E vos desvieis." E certo que os pés seguirão
o coração. Daí a profunda necessidade de guardar diligentemente o coração; é a
cidadela de conjunto moral e enquanto for guardado para o Senhor, o inimigo não
poderá obter vantagem; mas logo que se entrega, tudo está realmente perdido;
então há o desvio; o desvio secreto do coração é demonstrado por seus caminhos
práticos; "outros deuses" são então servidos e adorados. A descida ao longo do
plano inclinado é terrivelmente rápida.
"E" — note-se as conseqüências solenes e certas — "a ira do SENHOR se acenda
contra vós, e feche ele os céus, e não haja água, e a terra não dê a sua novidade, e
cedo pereçais da boa terra que o SENHOR vos dá. "Que aridez e desolação deve
haver quando o céu é fechado! Não descem as chuvas, não há orvalho, não existe
comunicação entre o céu e a terra. Ah! Quantas vezes teve Israel de experimentar a
terrível realidade de tudo isto! "Ele converte rios em deserto e nascentes em terra
sedenta: a terra frutífera em terreno salgado, pela maldade dos que nela habitam"
(SI 107:33-34).
E não podemos nós ver na terra estéril e desolação das montanhas uma
apropriada e notável ilustração de uma alma que não está em comunhão devido a
desobediência aos preciosos mandamentos de Cristo? Tal alma não está em alegre
comunicação com o céu—não descem para ela chuvas do céu — não se descobrem
já as preciosidades de Cristo para o coração; já não há o doce ministério de um
Espírito não entristecido; a Bíblia parece um livro selado; tudo é escuro, seco e
desolado. Oh! Não pode haver nada mais miserável em todo o mundo do que estar
neste estado! Oxalá o autor e o leitor nunca cheguem a experimentá-lo! Possamos
nós inclinar os ouvidos às fervorosas exortações feitas por Moisés à congregação de
Israel! São oportuníssimas, muito salutares, e necessárias nestes dias de fria
indiferença e obstinação. Põem diante de nós o divino antídoto contra os males
particulares a que a Igreja de Deus está exposta nesta hora crítica e solene além de
toda a idéia que se possa fazer.

Ponde as minhas Palavras no vosso Coração e na vossa Alma


"Ponde, pois, estas minhas palavras no vosso coração e na vossa alma, e atai-as
por sinal na vossa mão, para que estejam por testeiras entre os vossos olhos, e
ensinai-as aos vossos filhos, falando delas assentado em tua casa, e andando pelo
caminho, e deitando-te, e levantando-te; e escreve-as nos umbrais de tua casa e nas
tuas portas, para que se multipliquem os vossos dias e os dias de vossos filhos na
terra que o SENHOR jurou a vossos pais dar-lhes, como os dias dos céus sobre a
terra" (versículos 18 a 21).
Dias felizes! E oh, quão ardentemente o largo e amoroso coração de Moisés
desejava que o povo pudesse gozar muitos de tais dias! E quão simples era a
condição! Na realidade nada podia ser mais simples nem mais precioso. Não era um
jugo pesado que se lhes impunha, mas o doce privilégio de entesourarem os
preciosos mandamentos do Senhor, seu Deus, em seus corações, e de respirarem a
própria atmosfera da Sua santa palavra. Tudo devia andar e repousar sobre isto
mesmo. Todas as bênçãos da terra de Canaã — a boa terra, terra altamente
favorecida, uma terra que manava leite e mel, uma terra em que os olhos do
Senhor estavam continuamente postos com amoroso interesse e terno cuidado —
todos os seus preciosos frutos, todos os seus raros privilégios deviam ser deles em
perpetuidade, com a simples condição de amorosa obediência à Palavra do Deus do
Concerto.
Porque, se diligentemente guardardes estes mandamentos que vos ordeno para
os guardardes, amando ao SENHOR, VOSSO Deus, andando em todos os seus
caminhos, e a ele vos achegardes, também o SENHOR de diante de vós lançará fora
todas estas nações, e possuireis nações maiores e mais poderosas do que vós"
(versículos 22 e 23). Em suma, a vitoria certa e segura estava diante deles, a mais
completa derrota de todos os inimigos e obstáculos, uma marcha triunfal pela
herança prometida — tudo estava assegurado sobre a base de afetuosa e reverente
obediência aos preciosos estatutos e juízos que jamais haviam sido dirigidos ao
coração humano—estatutos e juízos cada um dos quais não era senão a própria voz
do seu Libertador cheio de graça.

Os Limites do País
"Todo lugar que pisar a planta do vosso pé será vosso, desde o deserto, desde o
Líbano, desde o rio, o rio Eufrates, até ao mar ocidental, será; vosso termo.
Ninguém subsistirá diante de vós o Senhor vosso Deus porá sobre toda a terra que
pisardes o vosso terror, como já vos tem dito" (versículos 24 e 25).
Aqui estava o lado divino da questão. Toda a terra, em comprimento, largura e
plenitude, estava diante deles; eles só tinham que tomar posse dela, como dom
gratuito de Deus; eles só tinham de pôr os pés, com fé simples e conquistadora,
sobre essa formosa herança que a graça soberana lhes havia outorgado. Tudo isto
vemos cumprido no livro de Josué, capítulo 11:23: "Assim, no Josué tomou toda
esta terra conforme tudo que o SENHOR tinha dito a Moisés; e Josué a deu em
herança aos filhos de Israel, conforme às suas divisões, conforme às suas tribos: e a
terra repousou da guerra" (1).
__________
Sem dúvida era por fé que Josué podia tomar toda a terra, mas, com efeito, quanto à sua posse, o capítulo
(1)

13: 1 mostra que "ainda muitíssima terra ficou para possuir".

Mas, ah, havia o lado humano da questão bem como o divino! Canaã prometida
pelo Senhor e conquistada por fé de Josué era uma coisa; e Canaã possuída por
Israel era outra muito diferente. Daí a grande diferença entre Josué e Juízes. Em
Josué vemos a fidelidade infalível de Deus à Sua promessa; em Juízes vemos o
miserável fracasso do povo logo desde o princípio. Deus empenhou a Sua palavra
imutável de que ninguém se lhes poderia opor; a espada de Josué — tipo do grande
Capitão da nossa salvação — cumpriu esta garantia sem lhe faltar um jota nem um
til, porém, o livro de Juízes relata o triste fato de que Israel falhou em expulsar o
inimigo — em tomar posse da concessão divina em toda a sua real magnificência.
E então?- A promessa de Deus ficou sem efeito? Não certamente, mas o fracasso
completo do homem é evidente. Em "Gilgal" o padrão da vitória fora desfraldado
acima das doze tribos, com o seu invencível capitão à cabeça. Em "Bochim" os
lamentadores tiveram de prantear a lamentável derrota de Israel.
Existe alguma dificuldade em compreender a diferença? Absolutamente
nenhuma; vemos ocorrer as duas coisas através de todo o livro divino. O homem
não consegue elevar-se à altura da revelação divina—não consegue tomar posse do
que a graça lhe outorga. Isto é tão verdadeiro na história da Igreja como o era na
história de Israel. No Novo Testamento, assim como no Velho, temos os Juízes e os
josués.
Sim, e na história de cada membro da igreja vemos a mesma coisa. Qual é o
cristão abaixo da abóbada do céu que viva à altura dos seus privilégios espirituais?
Qual é o filho de Deus que não tenha de deplorar o seu fracasso humilhante em
compreender e pôr em prática os elevados e santos privilégios da sua chamada por
Deus<? Mas acaso isto invalida a verdade de Deus? Não; bendito seja o Seu nome!
A sua Palavra mantém-se em toda a sua divina integridade e eterna estabilidade.
Assim como no caso de Israel a terra da promessa estava diante deles em todas as
suas belas proporções e atrativos divinos, e não somente isto, mas podiam contar
com a fidelidade e o poder onipotente de Deus para os fazer entrar e pôr em plena
possessão da terra, assim sucede conosco, somos abençoados com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo; não existe em absoluto limite para os
privilégios relacionados com a nossa posição, e quanto a gozá-los na atualidade é
apenas uma questão de tomar posse por fé de tudo que a graça soberana de Deus
tem feito para nós em Cristo.
Nunca devemos esquecer que é privilégio do crente viver ao mais alto nível da
revelação divina. Não há desculpa para uma baixa experiência ou uma conduta
superficial. Não temos direito algum para dizer que não podemos realizar a
plenitude da nossa parte em Cristo, que o padrão é demasiado elevado e os
privilégios tão vastos que não podemos esperar tais maravilhosas bênçãos e
dignidades no nosso imperfeito estado atual.
Tudo isto é perfeita incredulidade, e assim deve ser tratado por todo o
verdadeiro cristão. A questão é esta, a graça de Deus tem-nos dado estes
privilégios? A morte de Cristo deu-nos direito a eles? E o Espírito Santo tem
declarado que eles são a própria parte até do membro mais fraco do corpo de
Cristo? Se é assim, e a Escritura assim o declara, porque não os desfrutamos? Não
existe nenhum obstáculo do lado divino. E desejo do coração de Deus que
entremos na plenitude da nossa porção em Cristo. Escutemos a ardente aspiração
do apóstolo inspirado a favor dos santos de Éfeso e de todos os santos. "Pelo que,
ouvindo eu também a fé que entre vós há no Senhor Jesus e a vossa caridade para
com todos os santos, não cesso de dar graças a Deus por vós, lembrando-me de vós
nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação, tendo
iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança
da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos e qual a
sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a
operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos
mortos e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo o principado, e poder, e
potestade, e domínio e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas
também no vindouro. E sujeitou todas as coisas a seus pés e, sobre todas as coisas, o
constituiu como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
cumpre tudo em todos"(capítulo 1:15 a 23).
Com esta maravilhosa oração podemos aprender quão vivamente deseja o
Espírito Santo que compreendamos e gozemos os privilégios gloriosos da
verdadeira posição cristã. Quer sempre, por meio do Seu precioso e poderoso
ministério, manter os nossos corações em devida norma; mas, infelizmente, à
semelhança de Israel, nós afligimo-Lo com a nossa pecaminosa incredulidade e
roubamos às nossas almas incalculáveis bênçãos.
Mas, bendito seja o Deus de toda a graça, o Pai da glória, o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, Ele cumprirá a Sua preciosíssima verdade, sem lhe faltar um
jota ou um til, tanto a respeito do Seu povo terrestre como do celestial. Israel
gozará ainda completamente todas as bênçãos que lhe foram asseguradas pelo
concerto eterno, e a Igreja entrará ainda no pleno gozo de tudo quanto o amor
eterno e os desígnios divinos reservaram para ela em Cristo; e não somente isto
mas o bendito Consolador pode e quer conduzir o crente individualmente ao gozo
presente da esperança da vocação de Deus e do poder prático dessa esperança,
desligando o coração das coisas presentes e separando-o para Deus em verdadeira
santidade e viva devoção.
Que os nossos corações, prezado leitor, anelem mais ardentemente a completa
realização de tudo isto, para que possamos deste modo viver como aqueles que
encontram a sua porção e o seu descanso em um Cristo ressuscitado e glorificado!
Que Deus em Sua infinita bondade no-lo conceda em nome de Jesus Cristo e para
Sua glória!

A Bênção e a Maldição
Os versículos finais do nosso capítulo encerram a primeira divisão do livro de
Deuteronômio, que, como o leitor notará, consiste de uma série de discursos
dirigidos por Moisés à congregação de Israel—discursos memoráveis por certo, sob
qualquer ponto de vista que se considerem. As expressões finais estão,
desnecessário é dizer, em perfeita harmonia com o conjunto, e respiram o mesmo
ar de profundo fervor a respeito do assunto de obediência — um assunto que,
como temos visto, constituía um peso sobre o coração do amado orador em seus
afetuosos discursos de despedida do povo.
"Eis que hoje eu ponho diante de vós a bênção e a maldição: A benção quando
ouvirdes os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que hoje vos mando; porém a
maldição, se não ouvirdes os mandamentos do SENHOR ,VOSSO Deus, e vos
desviardes do caminho que hoje vos ordeno, para seguirdes outros deuses que não
conhecestes. E será que, havendo-te o SENHOR, teu Deus introduzido na terra, a
que vais para possuí-la, então, pronunciarás a bênção sobre o monte de Cerizim e a
maldição sobre o monte de Ebal. Porventura não estão eles daquém do Jordão,
junto ao caminho do pôr- do- sol, na terra dos cananeus, que habitam na campina
defronte de Gilgal, junto aos carvalhais de Moré? Porque passareis o Jordão para
entrardes a possuir a terra que vos dá o SENHOR, vosso Deus; e a possuireis e nela
habitareis. Tende, pois, cuidado em fazer todos os estatutos e os juízos que eu hoje
vos proponho" (versículos 26 a 32).
Aqui temos todo o resumo da matéria. A bênção está ligada com a obediência; a
maldição com a desobediência. O monte Gerizim esta defronte do monte
Ebal—fertilidade e esterilidade. Veremos, quando chegarmos ao capítulo 27, que o
monte Gerizim e as suas bênçãos são passados por alto. As maldições do monte
Ebal caem com terrível clareza aos ouvidos de Israel, enquanto que um silêncio
terrível reina no monte Gerizim. "Todos os que são das obras da lei estão sob a
maldição." A bênção de Abraão só pode cair sobre os que estão no terreno da fé.
Mais adiante insistiremos sobre este ponto.
— CAPÍTULO 12 —

O LUGAR Q U E O SENHOR ESCOLHEU PARA ALI PÔR O SEU NOME

A Autoridade Divina na Escritura


Entramos agora numa parte nova deste maravilhoso livro. Os discursos
mencionados nos primeiros onze capítulos estabeleceram o princípio importante
de obediência, e agora entramos na aplicação prática do princípio aos costumes e
comportamento do povo uma vez posto de posse da terra. "Estes são os estatutos e
os juízos que tereis cuidado em fazer na terra que vos deu o SENHOR, Deus de
vossos pais, para a possuirdes, todos os dias que viverdes sobre a terra."
E de grande importância moral que o coração e a consciência sejam trazidos à
verdadeira atitude a respeito da autoridade divina, independentemente de
qualquer questão quanto a pormenores. Os pormenores encontrarão o seu devido
lugar uma vez que o coração haja aprendido a curvar-se, em completa e absoluta
submissão, à autoridade suprema da palavra de Deus.
Ora, segundo temos visto nos nossos estudos sobre os primeiros onze capítulos,
o legislador esforça-se sincera e fielmente por conduzir o povo de Israel a este
estado absolutamente essencial. Sentia, humanamente falando, que para nada
servia entrar em pormenores práticos antes que o grande princípio básico de toda a
moralidade estivesse plenamente estabelecido no recôndito da alma. O princípio é
este: — apliquemo-lo, nós, os cristãos, a nós próprios — é dever implícito do
homem curvar-se implicitamente a autoridade da palavra de Deus. Não importa,
de modo nenhum, o que essa palavra impõe ou se não podemos ver motivo desta,
dessa ou daquela instituição. O único ponto importante e conclusivo é este: Deus
tem falado? Se tem, isso é o bastante. Não há lugar nem necessidade de quaisquer
outras interrogações.
Até que este ponto esteja plenamente estabelecido, ou antes, até que o coração
seja posto diretamente sob a sua influência moral, não estamos em estado de entrar
em pormenores. Se for consentida a operação da vontade própria, se for consentido
ã cega razão falar, o coração levantará inúmeras interrogações; à medida que cada
instituição divina é posta diante de nós, surgirão novas dificuldades como pedras
de tropeço no caminho da obediência simples.
O quê? Pode dizer-se, não devemos fazer uso da nossa razão? Se assim é, para
que fim nos foi dada? Para isto temos uma dupla resposta. Em primeiro lugar, a
nossa razão não é como era quando Deus a deu. Havemos de recordar que o pecado
sobreveio; o homem é um ser caído, a sua razão, o seu juízo, a sua compreensão, o
conjunto do seu ser moral é uma completa ruína; e além disso foi a negligência pela
Palavra de Deus que causou toda esta miséria e ruína.
Em segundo lugar, temos deter em conta que se a razão estivesse em estado
salutar, demonstraria retidão inclinando-se ante a Palavra de Deus. Mas não é
perfeita; está cega e completamente pervertida; não se pode confiar nela, nem um
momento, em coisas espirituais, divinas ou celestiais.
Se este simples fato fosse bem compreendido resolveria milhentas questões,
solucionaria milhentas dificuldades. E a razão que faz, todos os infiéis. O diabo
sussurra aos ouvidos do homem: És dotado de razão; porque não te serves dela?
Foi-te dada para ser usada, usada em tudo; não devias dar o teu assentimento a
nada que não estivesse ao alcance da tua razão. E teu direito, como homem,
submeter tudo à prova da tua razão; é próprio só de um louco ou idiota receber,
com cega credulidade, tudo que é posto diante dele.
Qual é a nossa resposta a tão astutas e perigosas sugestões? A mais simples e
concludente, a saber: A palavra de Deus está absolutamente acima e além da razão;
tanto quanto Deus está acima da criatura ou o céu acima da terra. Por isso, quando
Deus fala, todos os argumentos devem ser esquecidos. Se se trata meramente da
palavra do homem, da opinião humana, ou do critério do homem, então a razão
pode certamente exercer os seus poderes; ou antes, para falar mais corretamente,
devemos julgar o que é dito pelo único padrão perfeito, a palavra de Deus. Mas se a
razão for posta em ação sobre a palavra de Deus, a alma será inevitavelmente
submergida nas densas trevas da infidelidade, das quais a descida para a terrível
negrura do ateísmo é apenas um passo.
Em suma, temos de recordar, sim, alimentar no mais profundo do nosso ser
moral a idéia de que o único terreno firme para a alma é fé divinamente
estabelecida na suprema autoridade, divina majestade, e completa suficiência da
Palavra de Deus. Este foi o terreno que Moisés ocupou no tratamento com o
coração e a consciência de Israel. O seu grande e único objetivo era levar o povo a
uma atitude de profunda e inequívoca sujeição à autoridade divina. Sem isto tudo
era inútil. Se cada estatuto, cada juízo, cada preceito, cada instituição deviam ser
submetidos à ação da razão humana, então poderíamos dizer adeus a toda a
autoridade divina, adeus à Escritura, adeus a toda a certeza, adeus à paz. Mas, por
outro lado, quando a alma é levada pelo Espírito de Deus à atividade agradável de
absoluta e indiscutível submissão à autoridade da palavra de Deus, então cada um
dos Seus juízos, cada um dos Seus mandamentos, cada uma das expressões do Seu
bendito livro é recebido como vindo diretamente de Si mesmo; e a mais simples
ordenança ou instituição está investida de toda a importância que a Sua autoridade
pode comunicar. Podemos não ser capazes de compreender o pleno significado ou
alcance exato de cada estatuto e juízo; não é essa a questão; basta-nos saber que
vem de Deus; Deus tem falado; isto é conclusivo. Até que não se haja alcançado
este grande princípio, ou antes, até que ele não tenha tomado completa possessão
da alma, não há nada feito; mas logo que é plenamente compreendido e a ele nos
submetemos, é posto o sólido fundamento de toda a verdadeira moralidade.
A precedente linha de pensamento habilitará o leitor a compreender a conexão
entre o capítulo que estamos considerado e a parte precedente deste livro; e não
apenas isto, mas cremos que também o ajudará a compreender o lugar especial que
ocupam os primeiros versículos do capítulo 12.

A Destruição dos Lugares onde as Nações Desalojadas Serviram os seus Deuses


"Totalmente destruireis todos os lugares onde as nações que possuireis
serviram os seus deuses, sobre as altas montanhas, e sobre os outeiros, e debaixo de
toda árvore verde; e derribareis os seus altares, e quebrareis as suas estátuas, e os
seus bosques queimareis a fogo, e abatereis as imagens esculpidas dos seus deuses, e
apagareis o seu nome daquele lugar" (vers 2 e 3).
A terra era do Senhor; eles deviam possuí-la como arrendatários sob o Seu
domínio e, portanto, o seu primeiro dever ao entrar na posse dela era demolir
todos os vestígios da antiga idolatria. Isto era absolutamente indispensável.
Poderia, segundo a razão humana, parecer intolerância agir desta maneira com a
religião de outro povo. A isto respondemos, sem hesitação alguma: Sim, era
intolerância, pois como poderia o único Deus vivo e verdadeiro ser outra coisa
senão intolerante com todos os falsos deuses e o falso culto? Supor, por um
momento, que Deus podia permitir o culto de ídolos na Sua terra, seria supor que
podia negar-Se a Si mesmo, o que era simplesmente blasfêmia.
Não queremos ser mal compreendidos. Não é que Deus não tenha paciência
com o mundo em Sua longânima misericórdia. Parece desnecessário constatar isto
com a história de cerca de seis mil anos de divina tolerância perante os nossos
olhos. Bendito seja para sempre o Seu nome, tem suportado o mundo de uma
maneira maravilhosa desde os dias de Noé, e ainda o suporta, embora o mundo
esteja manchado com a culpa de crucificar o Seu amado Filho.
Tudo isto é claro, mas deixa inteiramente de pé o grande princípio estabelecido
em nosso capítulo. Israel tinha de aprender que estava a ponto de tomar posse da
terra do Senhor; e que, como Seus arrendatários, o seu primeiro dever
indispensável era riscar todos os traços de idolatria. Para eles não devia haver mais
do que "o Deus uno". O Seu nome era invocado sobre eles. Eram o Seu povo, e Ele
não podia permitir que eles tivessem comunhão com os demônios. "Adorarás ao
SENHOR, teu Deus, e só a Ele servirás."
Isto podia parecer, na opinião das nações que os rodeavam, muito intolerante,
estreito, fanático. Podiam, era verdade, ufanar- se da sua liberdade e gloriar-se na
ampla base do seu culto, que admitia "muitos deuses e muitos senhores". Segundo o
Seu modo de pensar, podia argumentar-se com a maior amplitude de critério que
manifestavam permitindo a cada qual pensar por si mesmo em matéria de religião,
e escolher o seu próprio objeto de adoração e também o seu próprio modo de
adorar. Ou, ainda mais, podia pôr- se em evidência um estado mais adiantado de
civilização e cultura, como em Roma, um Panteão em que todos os deuses do
paganismo podiam encontrar lugar. "Que importava a forma de religião do homem
ou o objeto do seu culto, desde que ele próprio fosse sincero ? No fim tudo acabaria
em bem; o ponto principal para todos era atender ao progresso material, favorecer
a prosperidade nacional como o meio mais seguro de assegurar os interesses
individuais. Evidentemente, é conveniente que cada qual tenha alguma religião,
mas quanto à forma dessa religião é completamente secundária. A questão é o que
é cada qual, não o que é a sua religião."
Podemos muito bem compreender como tudo isto seria admiravelmente aceite
pela mente carnal, e gozar de popularidade entre as nações incircuncisas. Mas
Israel tinha de recordar esta máxima: "O SENHOR teu Deus, é o único Deus." E
também: "Não terás outros deuses diante de mim." Esta devia ser a sua religião; a
base do seu culto devia ser tão ampla e tão estreita como o único Deus vivo e
verdadeiro, o seu Criador e Redentor. Era, certamente, uma base bastante ampla
para todo o verdadeiro adorador, todo o membro da assembléia circundada, todos
aqueles cujo elevado e santo privilégio era pertencer ao Israel de Deus. Não tinha
que se preocupar com as opiniões ou as observações das nações incircuncisas que
os rodeavam. Que valor tinham elas? Nenhum. Que podiam elas saber os direitos
do Deus de Israel sobre o Seu povo circuncidado? Absolutamente nada. Eram
competentes para decidir qual a amplitude da base em que Israel se apoiava? Claro
que não; desconheciam completamente o assunto. Por isso os seus pensamentos, o
seu raciocínio, argumentos e objeções eram inteiramente desprezíveis, não deviam
ser ouvidos nem por um momento. Israel tinha o dever simples e preciso de se
inclinar à autoridade suprema e absoluta da Palavra de Deus; e a Palavra de Deus
insistia sobre a completa abolição de todos os traços de idolatria dessa boa terra que
tinham o privilégio de possuir como arrendatários de Deus.
Mas não só era obrigação de Israel abolir todos os lugares em que os pagãos
haviam adorado aos seus deuses—decerto que estavam solenemente obrigados a
fazê-lo—mas havia mais alguma coisa a fazer. O coração poderia facilmente
conceber o pensamento de acabar com a idolatria nos diversos lugares e levantar o
altar do verdadeiro Deus em seu lugar. Isto poderia parecer o curso reto a adotar.
Mas Deus pensava de um modo diferente. "Assim não fareis para com o SENHOR,
vosso Deus; mas o lugar que o SENHOR ,vosso Deus, escolher, de todas as vossas
tribos, para ali pôr o seu nome, buscareis para sua habitação, e ali vireis. E ali
trareis os vossos holocaustos e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta
alçada da vossa mão, e os vossos votos, e as vossas ofertas voluntárias, e os
primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas. ? ali comereis perante o
SENHOR, VOSSO Deus, e vos alegrareis em tudo que poreis a vossa mão, vós e as
vossas casas, no que te abençoar o SENHOR, teu Deus" (versículos 4 a 7).

A Busca do Lugar de Culto Estabelecido Unicamente por Deus


Aqui é exposta uma grande verdade à congregação de Israel. Deviam ter um
lugar de culto, um lugar designado por Deus e não pelo homem. A sua habitação —
o lugar da Sua presença — devia ser o grande centro de Israel; ali deviam vir com
os seus sacrifícios e as suas ofertas, e ali deviam prestar o seu culto e encontrar a sua
alegria comum.
Isto parece ser exclusivo?- Claro que era exclusivo; como poderia ser de outro
modo? Se Deus se comprazia em escolher um ponto em que fixar a Sua morada no
meio do Seu povo reunido, decerto que ficavam forçosamente limitados a esse
ponto como seu lugar de culto. Isto era exclusivismo divino, e toda a alma piedosa
se alegraria com ele. Todo o verdadeiro adorador de Javé diria de todo o coração:
"SENHOR, eu tenho amado a habitação da tua casa e o lugar onde permanece a tua
glória" (SI 26:8); e também: "Quão amáveis são os teus tabernáculos, SENHOR dos
Exércitos! A minha alma está anelante e desfalece pelos átrios do SENHOR; O meu
coração e a minha carne clamam pelo Deus vivo... Bem-aventurados os que
habitam em tua casa: louvar-te-ão continuamente... Porque vale mais um dia nos
teus átrios do que, em outra parte, mil. Preferiria estar à porta da Casa do meu
Deus, a habitar nas tendas da impiedade" (SI 84).
Eis aqui o ponto mais importante. Era o lugar de habitação do Senhor que era
querido ao coração de todo o verdadeiro israelita. A inquieta vontade própria podia
desejar correr de um lado para outro; o pobre coração inconstante podia aspirara
uma mudança; mas para o coração que amava a Deus, qualquer mudança do lugar
da Sua presença, o lugar onde Ele havia posto o Seu bendito nome, só podia
resultar numa mudança para pior. O verdadeiro adorador podia achar satisfação e
deleite, bênção e repouso somente no lugar da presença divina; e isto com um
duplo fundamento, a autoridade da Sua preciosa Palavra, e o poder atraente da Sua
presença. Uma tal pessoa nunca pensaria em ir a qualquer outro lugar. A que lugar
deveria ir? Só havia um altar, uma habitação, um só Deus, esse era o lugar para
todo o israelita sensato e de coração sincero. Pensar em qualquer outro lugar de
culto seria, no seu parecer, não só apartar- se da Palavra do Senhor mas afastar-se
da Sua santa habitação.
Este princípio importante é largamente salientado em todo o nosso capítulo.
Moisés recorda ao povo que desde o momento em que entrassem na terra do
Senhor, tinha de se pôr fim a toda a irregularidade e obstinação que os havia
caracterizado na planície de Moabe ou no deserto.
"Não fareis conforme tudo o que hoje fazemos aqui, cada qual tudo o que bem
parece aos seus olhos. Porque até agora não entrastes no descanso e na herança que
vos dá o SENHOR, VOSSO Deus. Mas passareis o Jordão, e habitareis na terra que vos
fará herdar o SENHOR, vosso Deus; e vos dará repouso de todos os vossos inimigos
em redor, e morareis seguros. Então haverá um lugar que escolherá o SENHOR,
vosso Deus, para ali fazer habitar o seu nome; ali trareis tudo o que vos ordeno...
Guarda-te, que não ofereças os teus holocaustos em todo lugar que vires; mas, no
lugar que o SENHOR escolher numa das tuas tribos, ali oferecerás os teus
holocaustos e ali farás tudo o que te ordeno" (versículos 8 a 14).
Assim, não só no objetivo, mas também no lugar e modo de adorar, Israel
estava absolutamente circunscrito ao mandamento do Senhor. Devia pôr-se termo
ao gosto próprio, à própria escolha e vontade própria em tudo que dizia respeito ao
culto de Deus, logo que atravessassem o rio da morte, e, como povo redimido,
pusessem pé na herança que lhes era divinamente concedida. Uma vez ali, no gozo
da terra do Senhor, e do repouso que a terra lhes proporcionava, a obediência à Sua
palavra devia ser o seu serviço racional e inteligente. No deserto podia passar-se
por alto muitas coisas que não podiam ser permitidas em Canaã. Quanto mais
elevado o alcance do privilégio, tanto mais elevada a responsabilidade do padrão
de ação.
Ora, pode ser que os nossos pensadores de amplo critério e aqueles que
contendem por liberdade de vontade e de ação, pelo direito de juízo privado em
matéria religiosa, por liberdade de mente e catolicidade de espírito, estejam
prontos a declarar tudo isto, que tem ocupado a nossa atenção, extremamente
estreito e inteiramente impróprio para este século iluminado, e para homens de
inteligência e cultura.
Qual é a nossa resposta a todos os que adotam esta forma de linguagem?- Uma
resposta muito simples e conclusiva; a saber: Não tem Deus o direito de prescrever
o modo em que o Seu povo deve adorá-Lo? Não tinha absoluto direito de fixar o
lugar onde devia reunir o Seu povo Israel?- Sem sombra de dúvidas, ou havemos de
negar a Sua existência ou admitir o Seu direito absoluto e indiscutível de expor a
Sua vontade quanto ao modo como, quando e onde o Seu povo deve aproximar-se
d'Ele. Quererá alguém, por muito ilustrado e culto que seja, negar isto? É uma
prova de alta cultura, cortesia, largueza de inteligência ou universalidade de
espírito negar a Deus os Seus direitos?
Se, portanto, Deus tem direito a mandar, será estreiteza ou beatice se o Seu
povo obedecer?- Este é precisamente o ponto. É, segundo o nosso parecer, tão
simples quanto qualquer coisa o pode ser. Estamos inteiramente convencidos que a
única largueza de vistas, grandeza de coração e universalidade de espírito, é
obedecer aos mandamentos de Deus. Por isso, quando se ordenou a Israel que
fosse a determinado lugar e ali oferecesse os seus sacrifícios, isso não era
certamente fanatismo nem estreiteza da sua parte ir ali e recusar com santa decisão
ir a qualquer outro lugar. Os gentios incircuncisos podiam ir aonde quisessem; o
Israel de Deus devia ir só ao lugar indicado por Ele.

Um Único Lugar, um só Centro


Oh, que inefável privilégio para todos os que amavam a Deus e se amavam uns
aos outros reunirem-se no lugar onde habitava o Seu nome! E que tocante graça
brilha no fato de desejar reunir o Seu povo em redor de Si mesmo, de vez em
quando! Acaso esse fato infringia os seus direitos pessoais e privilégios
domésticos«? Pelo contrário, realçava-os imensamente. Deus, em Sua infinita
bondade, teve o cuidado disto. Era Seu prazer prover a tudo para alegria e bênção
do Seu povo, privativa, social e publicamente. Por isso lemos: "Quando o SENHOR,
teu Deus, dilatar os teus termos, como te disse, e disseres: Comerei carne,
porquanto a tua alma tem desejo de comer carne; conforme todo o desejo da tua
alma, comerás carne. Se estiver longe de ti o lugar que o SENHOR, teu Deus,
escolher para ali pôr o seu nome, então, degolarás das tuas vacas e tuas ovelhas, que
o SENHOR te tiver dado, como te tenho ordenado; e comerás dentro das tuas portas,
conforme todo o desejo da tua alma. Porém, como se come o corço e o veado, assim
comerás, o imundo e o limpo juntamente comerão delas" (versículos 20 a 22).
Aqui vemos que se concede, certamente, pela bondade e terna misericórdia de
Deus, uma larga margem para a mais plena ordem de gozo pessoal e familiar. A
única restrição dizia respeito ao sangue. " Somente esforça-te para que não comas o
sangue, pois o sangue é a vida, pelo que não comerás a vida com a carne. Não o
comerás; na terra o derramarás como água. Não o comerás, para que bem te suceda
a ti, e a teus filhos, depois de ti, quando fizeres o que for reto aos olhos do SENHOR"
(versículos 23 a 25).
Isto era um princípio fundamental debaixo da lei, ao qual fizemos já referência
nos nossos "Estudos sobre o Livro de Levítico".A questão não é de saber até que
ponto Israel o compreendeu; deviam obedecer para que tudo lhes corresse bem, e a
seus filhos depois deles. Deviam reconhecer, neste assunto, os direitos soberanos
de Deus.
Havendo feito esta exceção a respeito dos hálitos pessoais e de família, o
legislador volta a tratar do assunto importantíssimo do culto público. "Porém, as
tuas coisas santas que tiveres e os teus votos tomarás e virás ao lugar que o SENHOR
escolher. E oferecerás os teus holocaustos, a carne e o sangue sobre o altar do
SENHOR, teu Deus; e o sangue dos teus sacrifícios se derramará sobre o altar do
SENHOR, teu Deus; porém, a carne comerás" (versículos 26 e 27).
Se à razão ou ao capricho fosse permitido falar, poderia dizer: Por que havemos
todos de ir a este único lugar? Não podemos ter um altar em casa?- Ou, pelo menos,
um altar em cada cidade importante ou no centro de cada tribo? A resposta
concludente é: Deus tem disposto as coisas de outro modo, e isto deve ser o
bastante para cada verdadeiro israelita. Ainda que não possamos ser capazes, por
motivo da nossa ignorância, de ver por que ou como a simples obediência é o nosso
sagrado dever. Pode ser, contudo, que, à medida que vamos andando alegremente
no caminho da obediência, a luz apareça às nossas almas quanto à razão e então
encontraremos abundante bênção em fazer o que é do agrado do Senhor nosso
Deus.
Sim, prezado leitor, este é o método próprio de responder a todos os
argumentos e dúvidas da mente carnal, que não é sujeita à lei de Deus, nem na
verdade o pode ser. É certo que a luz penetrará em nossas almas à medida que
vamos andando com espírito humilde pela sagrada vereda de obediência; e não
somente isso, mas indivisíveis bênçãos afluirão ao nosso coração nessa consciente
aproximação de Deus que é só conhecida de aqueles que guardam amorosamente
os Seus preciosíssimos mandamentos. Temos de expor aos impugnadores carnais e
infiéis as nossas razões para atuar neste ou naquele sentido? Certamente que não,
isso não faz parte do nosso dever; seria perder tempo e trabalho, visto que os
impugnadores e raciocinadores são inteiramente incapazes de compreender ou
apreciar as nossas razões.
Por exemplo, no assunto que estamos considerando, pode a mente carnal, um
incrédulo, um simples filho da natureza, compreender por que se ordenou ás doze
tribos de Israel que adorassem ante um só altar — que se reunissem em um lugar
— para se agruparem em redor de um centro?- De modo nenhum. A grande moral
de uma tão bela instituição está muito longe do seu alcance.
Mas para a mente espiritual tudo é tão claro como belo. O Senhor queria reunir
o Seu amado povo em redor de Si, de vez em quando, a fim de que pudessem ter o
Seu próprio prazer neles. Não era isto precioso«? Seguramente que o era para todos
os que realmente amavam o Senhor.
Sem dúvida, se o coração era indiferente e descuidado para com Deus pouco
importava o lugar e de culto; todos os lugares seriam iguais. Mas podemos
estabelecer como princípio seguro que todo o coração leal e amoroso, desde Dã até
Berseba, se regozijaria em reunir-se no lugar em que o Senhor tinha posto o Seu
nome para estar entre o Seu povo. "Alegrei-me quando me disseram: Vamos à Casa
do SENHOR. OS nossos pés estão dentro das tuas portas" [O centro de Deus para
Israel]. "Jerusalém está edificada como uma cidade bem sólida, aonde sobem as
tribos, as tribos do SENHOR, como testemunho de Israel, para darem graças ao nome
do SENHOR. Pois ali" —e em nenhuma outra parte—"estão os tronos do juízo, os
tronos da casa de Davi. Orai pela paz de Jerusalém: Prosperarão aqueles que te
amam. haja paz dentro de teus muros e prosperidade dentro dos teus palácios. Por
causa dos meus irmãos e amigos, direi: Haja paz em ti! Por causa da Casa do
SENHOR, nosso Deus, buscarei o teu bem" (SI 122).
Aqui temos a formosa aspiração de uma alma que amava a habitação do Deus de
Israel — o Seu bendito centro — o lugar de reunião das doze tribos de Israel—esse
centro sagrado que estava associado na mente de todo o verdadeiro israelita com
tudo que era brilhante e alegre em relação com o culto do Senhor e a comunhão do
Seu povo. Teremos ocasião de voltar a este deleitável tema quando chegarmos ao
estudo do capítulo 16 do nosso livro, e terminaremos esta parte citando o último
parágrafo do capítulo que temos perante nós.

"Nada lhe acrescentarás nem diminuirás!"


"Quando o SENHOR, teu Deus, desarraigar de diante de ti as nações, aonde vais a
possuí-las, e as possuíres e habitares na sua terra, guarda-te, que te não enlaces
após elas, depois que forem destruídas diante de ti; e que não perguntes acerca dos
seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações os seus deuses, do mesmo
modo também farei eu. Assim não farás ao SENHOR ,teu Deus, porque tudo o que é
abominável ao SENHOR e que ele aborrece fizeram eles aos seus deuses, pois até seus
filhos e suas filhas queimaram com fogo aos seus deuses. Tudo o que eu te ordeno,
observarás; nada lhe acrescentarás nem diminuirás" (versículos 29 a 32).
A preciosa palavra de Deus deveria formar um sagrado recinto em redor do Seu
povo, dentro do qual eles podiam gozar a Sua presença e deleitar-se na abundância
da Sua misericórdia e bondade; e na qual deviam separar-se inteiramente de tudo
que podia ofendê-Lo, cuja presença devia ser, ao mesmo tempo, a sua glória, o seu
gozo e sua grande moral salvaguarda contra todo o laço e toda a abominação.
Mas, desgraçadamente, eles não permaneceram dentro desse recinto; depressa
deitaram abaixo as suas muralhas, e desviaram-se dos santos mandamentos de
Deus. Fizeram precisamente as coisas que se lhes havia dito não fizessem, e
tiveram de colher as terríveis conseqüências. Mas dentro em pouco falaremos disto
e do seu futuro.
— CAPÍTULO 13 —

SINAIS, PRODÍGIOS E FALSAS DOUTRINAS

Falso Profeta, ou Sonhador de Sonhos


Este capítulo abunda em princípios muito importantes. Consiste de três partes
distintas, cada uma das quais requer a nossa maior atenção. Não devemos tentar
enfraquecer a força de advertência de uma tal Escritura, ou esquivarmo-nos aos
seus agudos fios dizendo que não se aplica aos cristãos; que é meramente judaica
em seu alcance e aplicação. Não há dúvida que foi em primeiro lugar dirigida a
Israel; isto é tão claro que não admite dúvidas. Mas não esqueçamos que foi escrita
"para nosso ensino"; e não só isso, mas quanto mais atentamente a estudarmos,
tanto mais veremos que o seu ensino é de importância universal.
"Quando profeta ou sonhador de sonhos se levantar no meio de ti e te der um
sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio, de que te houver falado,
dizendo: Vamos após outros deuses, que não conheceste e sirvamo-los, não ouvirás
as palavras daquele profeta ou sonhador de sonhos, porquanto o SENHOR, VOSSO
Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, com todo o vosso
coração e com toda a vossa alma. Após o SENHOR, vosso Deus, andareis, e a ele
temereis, e os seus mandamentos guardareis, e a sua voz ouvireis, e a ele servireis, e
a ele vos achegareis. E aquele profeta ou sonhador de sonhos morrerá, pois falou
rebeldia contra o SENHOR, vosso Deus, que vos tirou da terra do Egito e vos
resgatou da casa da servidão, para vos apartar do caminho que vos ordenou o
SENHOR ,vosso Deus, para andardes nele; assim, tirarás o mal do meio de ti"
(versículos 1 a 5).
Aqui temos a precaução divina para todos os casos de falso ensino e falsa
influência religiosa. Todos sabemos com quanta facilidade o pobre coração
humano é extraviado por qualquer coisa que tenha o aspecto de um sinal ou de um
milagre e especialmente quando tais coisas estão relacionadas com a religião. Isto
não era exclusivo da nação de Israel; vêmo-lo em toda a parte e em todas as épocas.
Qualquer coisa sobrenatural, qualquer coisa que envolva infração do que
normalmente se chama as leis da natureza é quase certo atuar poderosamente
sobre a mente humana. Um profeta que se levantasse no meio do povo e
confirmasse o seu ensino por sinais e maravilhas, era quase certo receber atenção e
lograr influência.
Deste modo Satanás tem trabalhado em todos os tempos e atuará ainda mais
poderosamente no final deste presente século a fim de enganar e levar à sua eterna
destruição aqueles que não quererão atender a preciosa verdade do evangelho. "O
mistério da injustiça" que tem estado em ação na igreja professante durante dezoito
séculos "será revelado no iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca
e aniquilará pelo esplendor da sua vinda; a esse cuja vinda é segundo a eficácia de
Satanás, com todo o poder, e sinais, e prodígios de mentira, e com todo o engano da
injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se
salvarem. E, por isso, Deus lhes enviará a operação do erro para que creiam a
mentira, para que sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes, tiveram
prazer na iniqüidade" (2 Ts 2:8 -12).
Assim também em capítulo 24 de Mateus o Senhor adverte os seus discípulos
contra o mesmo gênero de influência. "Então, se alguém vos disser: Eis que o Cristo
está aqui ou ali, não lhe deis crédito, porque surgirão falsos cristos e falsos profetas
e farão tão grandes sinais e prodígios, que, se possível fora, enganariam até os
escolhidos. Eis que eu vo-lo tenho predito" (Mt 24:23 a 25).
Também em Apocalipse 13 lemos da segunda besta subir da terra, o grande
falso profeta, o anticristo, que "faz grandes sinais, de maneira que até fogo faz
descer do céu à terra, à vista dos homens. E engana os que habitam na terra com
sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta, dizendo aos que
habitam na terra que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida de espada
e vivia."
Ora, cada uma das três passagens reproduzidas da Sagrada Escritura faz
referência a cenas que serão representadas depois de a Igreja ter sido arrebatada
deste mundo; mas sobre isto não nos detemos, visto que o nosso objetivo
reproduzindo-as é que o leitor veja até que ponto o diabo pode chegar quanto a
sinais e prodígios a fim de apartar as pessoas da verdade, e também pôr diante de si
a única salvaguarda divina e portanto perfeita contra todo o poder enganador do
inimigo das nossas almas.
O coração humano não tem nenhuma possibilidade de resistir à influência de
"sinais e prodígios" feitos a favor do mais mortífero erro. Não há mais que uma
coisa para fortalecer o coração e lhe dar possibilidade de resistir ao diabo e a todos
os seus erros mortais, esta é a Palavra de Deus. Ter a verdade preciosa de Deus
guardada no coração é o segredo divino para preservação de todo o erro, ainda que
apoiado pelos mais estranhos milagres.
Por isso, na primeira daquelas passagens vemos a razão por que o povo será
enganado pelos sinais e prodígios "do iníquo" — "porque não receberam o amor da
verdade para se salvarem". É o amor da verdade que preserva do erro, por muito
persuasivo, por fascinador, por mais forte que seja o seu apoio na evidência
poderosa de "sinais e prodígios". Não é a destreza, o poder intelectual, o alcance
metal, ou a extensa cultura; todas estas coisas são perfeitamente impotentes em
presença dos ardis e maquinações de Satanás. O mais gigantesco intelecto humano
tem de cair como presa fácil na astúcia da serpente.
Mas, bendito seja Deus, a astúcia, a sutileza, os sinais e prodígios, todos os
recursos de Satanás, todas as maquinações do inferno são completamente
impotentes com o coração que é governado pelo amor da verdade. Um pequenino
que conhece e crê e ama a verdade está ditosamente escutado, abrigado e
divinamente preservado do poder enganador daquele iníquo. Se dez mil falsos
profetas se levantassem e efetuassem os mais extraordinários milagres que jamais
houvessem presenciado olhos humanos com o fim de provar que a Bíblia não é a
Palavra inspirada de Deus ou que nosso Senhor Jesus Cristo não é Deus sobre todas
as coisas, bendito eternamente, ou para desmentir a gloriosa verdade de que o
sangue de Jesus Cristo, Filho de Deus, purifica de todo o pecado, ou qualquer outra
verdade preciosa revelada na Sagrada Escritura, não produziriam o menor efeito
no mais simples crente em Cristo cujo coração é dirigido pela Palavra de Deus.
Sim, se um anjo do céu descesse e pregasse alguma coisa contrária ao que nos é
ensinado na Palavra de Deus, temos autorização divina para o declarar anátema,
sem mais discussão ou argumento algum.
Isto é uma graça indizível. Coloca o mais simples e indouto filho de Deus na
mais bem-aventurada posição—uma situação não só de segurança moral, mas do
mais doce descanso. Não somos chamados para analisar a falsa doutrina ou pesar a
evidência apresentada em favor dela; rejeitamos com firme decisão tanto uma
como a outra simplesmente porque temos a certeza da verdade e o amor por ela
está em nossos corações. "Não ouvirás as palavras daquele profeta ou sonhador de
sonhos"; ainda que o sinal ou o prodígio haja acontecido —"porquanto o SENHOR,
VOSSO Deus, vos prova para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, com todo o vosso
coração e com toda a vossa alma."
Este era, prezado leitor, o ponto importante para Israel; e é o mesmo para nós.
Então, agora, e sempre, a segurança moral está em ter o coração fortificado com o
amor da verdade, o que é apenas outra forma de expressar o amor de Deus. O
israelita fiel que amava ao Senhor de todo o seu coração e com toda a sua alma teria
uma resposta pronta e convincente para todos os falsos profetas e sonhadores que
pudessem aparecer—um método completamente eficaz de tratar com eles. Não os
ouvirás. Se o inimigo não é ouvido, dificilmente consegue chegar ao coração. As
ovelhas seguem o pastor "porque conhecem a sua voz". "Mas de modo nenhum
seguirão o estranho" — ainda que ele mostre sinais e prodígios — "antes fugirão
dele". Por quê? E porque são capazes de discutir, argumentar e analisar?- Não;
graças e louvores a Deus! Mas porque "não conhecem a voz dos estranhos". O
simples fato de não conhecerem a voz é razão suficiente para não seguirem o que
fala.
Tudo isto é pleno de alento e consolação para os amados cordeiros e ovelhas do
rebanho de Cristo. Podem ouvir a voz do seu adorável e fiel pastor; podem
reunir-se em redor d'Ele e achar na Sua presença verdadeiro descanso e perfeita
segurança. Ele os faz deitar em verdes pastos e leva-os às águas tranqüilas do Seu
amor. Isto é suficiente. Podem ser muito fracos em si mesmos; mas isto não é um
obstáculo à sua tranqüilidade e bênção. Pelo contrário, Ele fá-los depender mais do
seu eterno poder. Não devemos temer nunca a nossa fraqueza; é a força imaginária
que temos de temer, a vã confiança na nossa própria sabedoria; a nossa própria
inteligência, o nosso conhecimento da Escritura, os nossos conhecimentos
espirituais: estas são as coisas que temos de temer; mas quanto à nossa completa
fraqueza, quanto mais profundamente a sentimos tanto melhor, porque o poder do
nosso Pastor se aperfeiçoa em fraqueza, e a sua preciosa graça é amplamente
suficiente para todas as necessidades do Seu amado rebanho, adquirido pelo Seu
sangue, coletivamente, e para cada membro em particular. Mantenhamo-nos
tão-somente junto d'Ele com o permanente sentimento da nossa completa
fraqueza e nulidade; guardemos a Sua preciosa palavra em nossos corações;
alimentemo-nos dela, como o próprio sustento das nossas almas, dia a dia,
elemento principal das nossas vidas, o pão vivo para fortalecimento do homem
interior. Desta maneira seremos guardados de todas as vozes estranhas, de todos os
falsos profetas, de todas as ciladas do diabo, todas as influências que tendem a
afastar-nos do caminho de obediência e confissão prática do nome de Cristo.

Os Afetos Naturais e o Compromisso com a Verdade


Citaremos agora o segundo parágrafo do nosso capítulo em que o povo do
Senhor é advertido contra outra cilada do diabo. Oh, quantos e variados são os seus
ardis e ciladas! Quão múltiplos são os perigos do povo de Deus! Mas, bendito seja o
Seu santo nome, há amplo provimento para todos na Sua Palavra!
"Quando te incitar teu irmão, filho da tua mãe"—mais próximo, mais querido e
mais terno do que o filho de teu pai — "ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do
teu amor, ou teu amigo, que te é como a tua alma, dizendo-te em segredo: Vamos e
sirvamos a outros deuses«que não conheceste, nem tu nem teus pais, dentre os
deuses dos povos que estão em redor de vós, perto ou longe de ti, desde uma
extremidade da terra à outra extremidade, não consentirás com ele, nem o ouvirás;
nem o teu olho o poupará, nem terás piedade dele, nem o esconderás, mas
certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele, para o matar; e depois a
mão de todo o povo. E com pedras o apedrejarás, até que morra, pois te procurou
apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão.
Para que todo o Israel o ouça e o tema, e não se torne a fazer segundo esta coisa má
no meio de ti" (versículos 6 a 11).
Aqui temos, pois, alguma coisa muito diferente de falso profeta ou sonhador de
sonhos. Milhares podiam permanecer firmes contra a influência deste e contudo
sucumbir ante o poder sedutor do afeto natural. E muito difícil resistir à ação deste
último. Exige um elevado tom de devoção, grande simplicidade no olhar, e firme
propósito de coração para tratar com fidelidade com aqueles que vivem no
recôndito das afeições do nosso coração. A prova de alguns se oporem e rejeitarem
um profeta ou um sonhador com quem não havia parentesco pessoal, nenhum laço
de terno amor familiar, nada seria em comparação de terem de tratar com firme e
severa decisão a própria mulher, o irmão amado ou a irmã, o amigo íntimo e
ternamente amado.
Mas quando os direitos de Deus, de Cristo, da verdade estão em jogo, não deve
haver hesitação. Se alguém intentasse fazer uso dos laços de afeto natural com o
propósito de nos afastar de nossa fidelidade a Cristo, teríamos de resistir com firme
decisão. "Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos,
e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo"
(Lc 14:26).
Procuremos compreender este aspecto da verdade e dar-lhe também o seu
próprio lugar. Se a pobre e cega razão for escutada, é mais que certo que
apresentará à mente a mais hedionda perversão deste tema de grande importância
prática. Sempre que a razão intenta exercer as usas faculdades nas coisas de Deus, é
certo que se portará como agente eficiente e ativo do diabo em oposição à verdade.
Em coisas humanas e terrenas, a razão pode admitir-se pelo que vale; mas em
coisas divinas e celestiais, não só não tem valor algum como é positivamente
nociva.
Qual, pois, podemos perguntar, a verdadeira força moral de Lucas 14:26 e
Deuteronômio 13:8 a 10? Seguramente, não significa que devemos ser sem "afetos
naturais", o que é um dos característicos especiais da apostasia dos últimos dias.
Isto é perfeitamente claro. Deus mesmo tem estabelecido o nosso parentesco
natural, e cada um dos graus desse parentesco tem os seus efeitos característicos
cu j o exercício e manifestação estão em formosa harmonia com a mente de Deus.
O cristianismo não interfere com o nosso parentesco em natureza, mas introduz
um poder pelo qual as responsabilidades inerentes a esse parentesco podem ser
devidamente cumpridas para glória de Deus. E não é só isso, mas nas diversas
epístolas o Espírito Santo tem dado as mais precisas instruções aos maridos e
esposas, filhos e pais, senhores e servos, demonstrando assim, da maneira mais
completa e bendita, a divina sanção a essas relações familiares e aos afetos que lhes
pertencem.
Tudo isto é perfeitamente claro; contudo temos ainda de perguntar como
corresponde a Lucas 14 e Deuteronômio 13<?-A resposta é simplesmente esta: a
harmonia é perfeitamente divina. Essas passagens aplicam-se unicamente a casos
em que as nossas relações naturais e seus afetos estão em conflito com os direitos de
Deus e de Cristo. Quando atuam desta maneira devem ser ignoradas e
mortificadas. Se ousam intrometer-se no domínio que é inteiramente divino, a
sentença de morte deve ser pronunciada sobre elas.
Ao contemplar a vida do único homem perfeito que jamais trilhou esta nossa
terra, podemos ver como Ele ajustou da maneira mais formosa os vários direitos
que, como homem e servo, teve de cumprir. Podia dizer a Sua mãe: "Mulher, que
tenho eu contigo? E, todavia, no momento oportuno, podia, com delicada ternura,
encomendar essa mãe ao cuidado do discípulo a quem amava. Podia dizer a Seus
pais: "Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?" e, ao mesmo
tempo, ir com eles para casa e sujeitar-Se docemente à autoridade paterna. Desta
forma os ensinos da Sagrada Escritura e a conduta perfeita de Cristo vivo
coligam-se para nos ensinar como havemos de cumprir retamente os direitos da
natureza e os direitos de Deus.

A Justiça segundo a Lei e segundo a Graça


Mas pode ser que o leitor ache considerável dificuldade a respeito da linha de
ação imposta em Deuteronômio 13:9 e 10. Poderá parecer-lhe difícil conciliá-la
com o Deus de amor e com a graça, afabilidade e ternura reveladas nas
Escrituras do Novo Testamento. Aqui também devemos exercer grande
vigilância sobre a razão. Esta presume sempre encontrar amplo campo de
ação para as suas energias nas rígidas atuações do governo divino; mas, na
realidade, só demonstra a sua cegueira e loucura. Contudo, apesar de não
podermos dar lugar, nem por um momento, à razão incrédula, queremos
sinceramente auxiliar toda a alma sincera que não possa orientar-se nesta
questão.
Tivemos ocasião, durante os nossos estudos sobre os primeiros capítulos
deste livro, de referir o importante assunto dos atos de Deus em seu governo,
tanto com Israel como com as nações; mas, em aditamento ao que já temos
visto, devemos recordar a diferença entre as duas economias da lei e da
graça. Se isto não for claramente compreendido, encontraremos grande
dificuldade em passagens como Deuteronômio 13:9 a 10. O grande princípio
característico da economia judaica era a justiça; o princípio característico do
cristianismo é a graça pura, incomparável graça.
Quando este é plenamente compreendido, toda a dificuldade se
desvanece. Era perfeitamente justo, compatível e de harmonia com a mente
de Deus, Israel matar os seus inimigos. Deus ordenou-lhes que o fizessem. E,
de igual modo, era justo e compatível com essa ordem que eles executassem o
justo juízo, até mesmo a morte, sobre qualquer membro da congregação que
procurasse desviá-los para os deuses estranhos, conforme a passagem de que
tratamos. Fazê-lo estava em plena harmonia moral com o grande princípio
do governo e da lei, sob o qual eles estavam colocados, de acordo com a
sabedoria de Deus naquela dispensação.
Tudo isto é perfeitamente claro. Vê-se através de todo o cânone do Velho
Testamento. O governo de Deus em Israel, e o Seu governo do mundo, em
relação com Israel, baseava-se no princípio estrito de justiça. E assim como
era no passado, assim será no futuro. "Eis aí está que reinará um Rei com
justiça e dominarão os príncipes segundo o juízo" (Is 32:1).
Mas no cristianismo vemos alguma coisa muito diferente. Logo que
abrimos as páginas do novo Testamento e ouvimos os ensinos e observamos
os atos do Filho de Deus, achamo-nos em terreno inteiramente novo e numa
nova atmosfera. Numa palavra, estamos na atmosfera e no terreno de pura
graça soberana.
Assim, como um exemplo desse ensino, tome-se uma passagem ou duas
do chamado "Sermão da Montanha" — esse maravilhoso e precioso
compêndio dos princípios do reino do céu. "Ouvistes que foi dito: Olho por
olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se
qualquer te bater na face direita, oferece- lhe também a outra; e ao que quiser
pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se,
qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas." "Ouvistes que
foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém, vos
digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos
que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que
sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre
maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos... Sede vós, pois, perfeitos,
como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus" (Mt 5:38 a 48).
Não podemos agora deter-nos com essas benditas expressões; citamo-las
apenas para o leitor a fim de que possa ver a grande diferença entre a
economia judaica e a cristã. O que era perfeitamente justo para um judeu,
podia ser muito mau para um cristão.
Isto é tão claro que até uma criança pode vê-lo; e contudo, por estranho
que seja dizer, muitos do amado povo do Senhor parece verem a questão
envolta em nuvens. Julgam que é perfeitamente correto um cristão agir em
justiça, e fazer a guerra, e exercer poder mundano. Pois bem, se é justo um
cristão atuar assim, queremos perguntar simplesmente, onde se ensina tal
coisa no Novo Testamento? Onde se encontra uma simples expressão dos
lábios de nosso Senhor Jesus Cristo ou da pena do Espírito Santo para apoiar
ou sancionar tal coisa?- Como já havemos dito a respeito de outras questões,
que se apresentaram durante os nossos estudos sobre este livro, de nada
serve dizermos: "Nós pensamos desta ou daquela maneira." Os nossos
pensamentos nada valem. A grande questão, em todos os casos de fé e moral
cristã é: "O que diz o Novo Testamento? Que ensinou nosso Senhor e Mestre,
e o que fez Ele? Ensinou que o Seu povo atualmente não deve atuar como agia o
Seu antigo povo. A justiça era o princípio da antiga economia; a graça é o princípio
da nova.
O Ensino do Senhor Jesus
Isto foi o que Cristo ensinou, como pode ver-se em numerosas passagens da
Escritura. E como agiu Ele? Tratou com o povo em justiçai Fez valer os Seus
direitos? Exerceu poder mundano? Recorreu à lei? Defendeu-se, ou vingou-se?
Quando os Seus discípulos, com inteira ignorância dos princípios celestiais, que
Ele ensinava, e completamente esquecidos da forma como sempre havia atuado,
Lhe disseram, numa ocasião em que certa aldeia de samaritanos recusou
recebê-Lo, "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como
Elias também fez?-" Qual foi a Sua resposta? "Voltando-se, porém, repreendeu-os e
disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do Homem não veio para
destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E foram para outra aldeia" (Lc
9:54 a 56). Era perfeitamente compatível com o espírito e princípio da dispensação
de que Elias era o expoente e representante pedir que descesse fogo do céu para
consumir os homens enviados por um rei ímpio para o prender. Mas o bendito
Senhor era o perfeito Expoente e o divino Representante de outra dispensação
inteiramente distinta. A Sua vida foi uma vida de perfeita abnegação desde o
princípio ao fim. Nunca reivindicou os Seus direitos. Veio para servir e dar. Veio
para representar Deus, para ser a perfeita expressão do Pai em tudo. O caráter do
Pai brilhava em todo o Seu olhar, em todas as Suas palavras, em todos os Seus atos e
todos os Seus movimentos.
Tal foi o Senhor Jesus Cristo quando aqui andou entre os homens; e tal foi o seu
ensino. Fez sempre o que ensinava, e ensinava o que fazia. As Suas palavras eram a
expressão do que Ele era, e os Seus atos ilustravam as Suas palavras. Veio para
servir e dar; e toda a Sua vida foi assinalada por estas duas coisas, desde a
manjedoura até à cruz. Na verdade podemos dizer que nos faltaria o tempo para
citar todas as passagens em prova disto mesmo, nem tampouco há necessidade,
visto ser uma verdade que dificilmente será posta em dúvida.
Pois bem, não é Ele o nosso grande exemplo em tudo?- Não é por Seu ensino e
conduta que há de moldar-se a nossa vida e caráter como cristãos?- Como vamos
saber como devemos comportar-nos senão atendendo às Suas benditas palavras e
contemplando os Seus atos perfeitos?- Se, como cristãos, vamos ser guiados e
governados pelos princípios e os preceitos da economia moisaica, então, certa-
mente, é justo recorrer à lei, contender por nossos direitos, tomar parte na guerra,
destruir os nossos inimigos. Mas então de que vale o ensino e exemplo de nosso
adorável Senhor e Salvador? Que diremos dos ensinos do Espírito Santo E o Novo
Testamento? Não parece ao leitor tão claro como a luz do sol que para o cristão
fazer tais coisas é agir em flagrante contradição com o ensino e exemplo do seu
Senhor?
Contudo, aqui pode fazer-se a antiga pergunta: "Que seria do mundo, que seria
das suas instituições, que seria da sociedade, se tais princípios fossem
universalmente, admitidos?" O historiador infiel falando dos primitivos cristãos e
da sua recusa em se alistarem no exército romano, pergunta desdenhosamente:
"Que teria sido do império, rodeado, com efeito, de todos os lados por bárbaros, se
todos se tivessem entregado a idéias tão covardes como estas?"
Nós respondemos prontamente: se esses espirituais e celestiais princípios
fossem universalmente dominantes, não haveria guerras, nem lutas, e por isso não
haveria necessidade de soldados, nem de exércitos e armadas permanentes, nem de
polícia; não haveria atos delituosos, nem pleitos sobre propriedade, e por isso não
haveria necessidade de tribunais, de juízes ou magistrados. Em suma, o mundo, tal
como é agora, teria um fim; os reinos deste mundo se teriam tornado no reino de
nosso Senhor e de Cristo.
Mas o fato claro é que esses princípios celestiais de que falamos não são, de
modo algum, destinados para o mundo, visto que o mundo não os poderia adotar
ou atuar de acordo com eles nem uma só hora; fazer isso envolveria o colapso
imediato e completo do atual sistema de coisas, a dissolução de toda a estrutura da
sociedade, tal como se apresenta atualmente constituída.
Por isso, a objeção dos infiéis desfaz-se debaixo dos nossos pés, assim como
tantas outras objeções, interrogações e dificuldades que baseiam sobre elas. Estão
desprovidas da mais simples partícula de força moral. Os princípios divinos não
são, de nenhum modo, destinados a "este presente século mau"; são destinados à
Igreja, que não é do mundo, assim como Jesus não é do mundo. "Se" disse nosso
Senhor a Pilatos, "o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos para
que eu não fosse entregue aos judeus: mas agora o meu reino não é daqui" (Jo
18:36).
Note-se a palavra "agora". Dentro em pouco, os reinos deste mundo se tornarão
no reino de nosso Senhor; mas agora Ele é rejeitado e todos os que Lhe
pertencem—a Sua igreja—, o Seu povo, são chamados para partilhar da Sua
rejeição, para O seguir fora do arraial, e andarem como estrangeiros e peregrinos
aqui no mundo, esperando o momento em que Ele há de vir para os levar para Si
mesmo, para que onde Ele estiver, eles estejam também.
Pois bem, é a tentativa de misturar o mundo e a Igreja que produz uma tão
terrível confusão. E um ardil especial de Satanás; e tem feito mais para manchar o
testemunho da Igreja de Deus e impedir o seu progresso do que a maioria de nós se
dá conta. Implica uma completa subversão das coisas, uma confusão de coisas que
diferem essencialmente, uma completa negação do verdadeiro caráter da Igreja, da
sua posição, da sua conduta e sua esperança. Ouvimos algumas vezes a expressão:
"O mundo cristão." O que significa isso?- E simplesmente uma tentativa para unir
duas coisas que em origem, natureza e caráter, são tão diferentes como a luz e as
trevas. E um esforço para remendar um pano velho com um pano novo, o que,
como nosso Senhor nos diz, apenas faz o rasgão maior.
Não é objetivo de Deus cristianizar o mundo, mas tirar o Seu povo do mundo
para ser um povo celestial, governado por princípios celestiais, formado por um
objeto celestial, e alentado por uma esperança celestial. Se isto não for claramente
compreendido, se a verdade a respeito da verdadeira vocação e curso da Igreja não
for realizada como um poder vivo na alma, podemos estar seguros de incorrer nos
mais graves erros em nosso trabalho, conduta e serviço. Faremos um uso
inteiramente errôneo das Escrituras do Velho Testamento, não só sobre assuntos
proféticos, mas a respeito de todo o curso da vida prática; na verdade, seria
completamente impossível calcular a perda que deve resultar de não se
compreender a inequívoca vocação, posição e esperança da Igreja de Deus, sua
associação e identificação—a sua união com um Cristo rejeitado, ressuscitado e
glorificado.
Não nos podemos alargar mais sobre este tema precioso e interessantíssimo;
mas queremos apenas indicar ao leitor um ou dois exemplos do método do Espírito
na citação e aplicação da Escritura do Velho Testamento. Veja-se, por exemplo, as
seguintes passagens desse encantador Salmo 34: "A face do SENHOR está contra os
que fazem o mal, para desarraigar da terra a memória deles" (versículo 16). Ora
note-se a forma como o Espírito Santo cita esta passagem na primeira epístola de
Pedro: "O rosto do Senhor é contra os que fazem males" (1 Pe 3:12). Nem uma
palavra acerca de os desarraigar. Por que esta diferençai Porque o Senhor não está
atuando no tempo presente segundo o princípio da lei; mais tarde atuará de acordo
com ela, no reino. Mas atualmente está atuando em graça e em paciente miseri-
córdia. A Sua face está tanto e tão decididamente contra todos os que fazem males
como sempre esteve ou estará mas não para cortar agora a memória deles da terra.
O exemplo mais flagrante desta maravilhosa graça e tolerância, e da diferença
entre os dois princípios de que temos estado a tratar, é vista no fato de que os
mesmos homens que, com mãos ímpias, crucificaram o Seu amado Filho
unigênito—em vez de serem desarraigados da terra, foram os primeiros a ouvir a
mensagem de pleno e livre perdão pelo sangue da cruz.
Ora, poderá parecer a alguém que damos demasiada importância a uma mera
omissão de uma simples cláusula da Escritura do Velho Testamento. Não pense o
leitor tal coisa. Ainda que não tivéssemos senão este exemplo, seria um grave erro
tratá-lo como qualquer coisa que se parecesse com a indiferença. Mas o fato é que
há numerosas passagens do mesmo caráter daquele que acabamos de citar,
ilustrando todas o contraste entre a dispensação judaica e a cristã, e também entre o
cristianismo e o reino vindouro.
Deus está tratando agora com o mundo em graça, e assim deve tratar com ele o
Seu povo, se quer ser como Ele é—como na realidade é chamado para ser. "Sede
vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus" (Mt 5:48). "Sede,
pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como também
Cristo vos amou e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em
cheiro suave" (Ef 5:l-2).
Este é o nosso modelo. Somos chamados para seguir o exemplo de nosso Pai, a
imitá-Lo, Ele não vai entrar em justiça com o mundo; não faz valer os Seus direitos
com a mão forte do poder. Em breve o fará; mas por agora, neste dia de graça,
derrama as Suas bênçãos e benefícios, em rica profusão, sobre aqueles cuja vida é
toda de inimizade e rebelião contra Si.
Tudo isto é perfeitamente maravilhoso; mas assim é, e nós, como cristãos,
somos chamados para atuar segundo este princípio moralmente glorioso. Alguns
poderão dizer: "Como poderíamos nós ter êxito no mundo, como poderíamos
conduzir os nossos negócios segundo um princípio como este? Seríamos roubados
e arruinados; pessoas astutas tirariam vantagem de nós se soubessem que não
iríamos para a justiça com elas; tomariam as nossas mercadorias ou levariam
emprestado o nosso dinheiro, ou ocupariam as nossas casas e recusariam pagar a
renda. Em suma, não poderíamos viver num mundo como este, se não
afirmássemos os nossos direitos e fizéssemos valer as nossas reclamações por meio
da mão forte do poder. Para que serve a lei senão para obrigar o povo a portar-se
como é devido? Não são os poderes ordenados por Deus com o fim de manterem a
paz e a boa ordem entre nós? Que seria da sociedade se não tivéssemos soldados,
polícias, magistrados e juízes? E se Deus ordenou que tais coisas existissem, porque
não há de o Seu povo aproveitar-se delas? E quem é mais apropriado para ocupar os
lugares de autoridade e poder ou para manejar a espada da justiça que o povo de
Deus?"
Existe, sem dúvida, uma grande aparência de força em toda esta linha de
argumento. Os poderes que existem são ordenados por Deus. O rei, o governador,
o juiz, o magistrado, são, cada um em seu lugar, a expressão do poder de Deus. E
Deus quem investe cada um com o poder que exerce; é Deus que tem posto a
espada em sua mão para castigo dos malfeitores e louvor dos que obram retamente.
Bendizemos a Deus de todo o nosso coração pelas autoridades constituídas do
nosso país. Dia e noite, em público e em particular, nós oramos por elas. E nosso
sagrado dever obedecer e submeter-nos a elas, em tudo, contanto que não nos
mandem desobedecer a Deus ou tentar violentar a nossa consciência. Se fizerem
isto, devemos — o quê? Resistirá Não; sofrer.
Tudo isto é perfeitamente claro. O mundo, tal como hoje está, não poderia
continuar nem um só dia se os homens não fossem mantidos em ordem pela mão
forte do poder. Não poderíamos viver, ou, pelo menos, a vida seria de todo
insuportável, se os malfeitores não fossem mantidos sob o terror da luzente espada
da justiça. Até mesmo com as coisas como são por falta de poder moral nos que
ostentam a espada, consente-se à demagogia que incite as paixões depravadas dos
homens para resistirem à lei do país, perturbar a paz e ameaçar as vidas e
propriedade dos bem intencionados e pacíficos súbitos do governo.
Mas, admitindo tudo isto do modo mais amplo possível, como seguramente o
admitirá todo o cristão inteligente, todo o que tem aprendido o ensino da
Escritura, isso não afeta de modo algum a questão de como o crente deve andar no
mundo. O cristianismo reconhece plenamente as instituições do governo do país.
Não faz parte das atribuições do cristão interferir, de qualquer modo, com tais
instituições. Onde quer que esteja, seja qual for o princípio ou caráter do governo
do país em que vive, é seu dever reconhecer as suas instituições municipais e
políticas, pagar impostos, orar pelo governo, honrar os governantes no seu cargo
oficial, desejar o melhor êxito ao legislativo e executivo, orar pela paz do país,
viver em paz com todos, tanto quanto depende de si.
Vemos tudo isto realizado em perfeição no próprio bendito Mestre, bendito
seja o Seu santo nome para sempre! Na memorável resposta que deu aos astutos
herodianos, reconhece o princípio de sujeição aos poderes que existem: "Dai a
César o que é de César; e a Deus o que é de Deus. E não somente isto, mas vêmo-Lo
pagar também o tributo, ainda que, pessoalmente, estava livre dele. Não tinham
direito a exigir- Lho, como mostrou, claramente, a Pedro; e podia dizer-se:
"Porque não apelou?" Apelar! Não; mostra-nos alguma coisa muito diferente.
Ouça-se a Sua delicada resposta ao Seu equivocado apóstolo: "Mas, para que os não
escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, tira o primeiro peixe que subir e,
abrindo-lhe a boca, encontrarás um estáter; toma-o e dá-o por mim e por ti" (1) (Mt.
17:27).
__________
O fato de o dinheiro do tributo se destinar ao templo não altera o princípio estabelecido no texto.
(1)

O Caminho do Cristão por este Mundo


E agora retrocedemos, com aumento de força moral, à nossa tese, isto é, a
carreira do cristão neste mundo. Qual é? Deve seguir o seu mestre—imitá-Lo em
tudo. Ele defendeu os Seu direitos? Apelou para a lei<?- Procurou melhorar o
mundo? Imiscuiu-Se em assuntos municipais ou políticos? Foi um político?
Empunhou a espada? Consentiu em ser juiz ou repartidor, até mesmo quando
apelaram para Si, para, como diríamos, arbitrar sobre uma propriedade? Não foi
toda a Sua vida uma vida de abnegação, desde o princípio ao fim? Não renunciou
sempre a Si mesmo até que, na cruz, entregou a Sua preciosa vida em resgate por
muitos?
Deixaremos que estas interrogações encontrem a sua resposta no mais profundo
do coração do leitor crente, e esperamos que produzam os seus efeitos na sua vida.
Esperamos que a precedente linha de verdade o habilite a compreender,
convenientemente, passagens tais como Deuteronômio 13:9 a 10. A nossa oposição
à idolatria e separação do mal, em todos os seus traços ou formas, e embora não
menos intensa e decidida, sem dúvida, do que no caso do antigo Israel, não é para
ser manifestada do mesmo modo. A Igreja é imperativamente convidada a
separar-se do mal e dos que o praticam, mas não pelos métodos empregados por
Israel. Não entra em seus deveres apedrejar os idólatras e blasfemos ou queimar as
feiticeiras. A igreja de Roma tem atuado sobre este princípio; e até mesmo os
protestantes—para vergonha do protestantismo— têm seguido o seu exemplo (2).
A Igreja não é, de modo nenhum, chamada a esgrimir a espada temporal; antes,
pelo contrário, isso é- lhe positiva e formalmente proibido. E uma negação positiva
da sua chamada, caráter e missão fazer tal coisa. Quando Pedro, em ignorante zelo
e carnal precipitação, desembainhou a espada em defesa do seu bendito Mestre, foi
imediatamente corrigido pela palavra fiel e instruído pelo ato gracioso do seu
Senhor: "Mete no seu lugar a tua espada, porque todos os que lançarem mão da
espada à espada morrerão" (Mt 26:52). E havendo assim reprovado o ato do Seu
equivocado, ainda que bem intencionado servo, desfez o mal com a Sua graciosa
mão. "Porque as armas da nossa milícia"—diz o apóstolo inspirado—"não são
carnais, mas, sim, poderosas em Deus, para destruição das fortalezas; destruindo os
conselhos e toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levando
cativo todo entendimento à obediência de Cristo" (2 Co 10:4-5).
__________
(2)
A queima de Servet, em 1553, devido às suas opiniões teológicas, é uma terrível mancha sobre a
Reforma e sobre o homem que sancionou um procedimento tão anticristão. Decerto, as opiniões de Miguel
Servet eram fatal e fundamentalmente falsas. Mantinha a heresia Ariana, a qual é simplesmente uma
blasfêmia contra o Filho de Deus, Porém, queimá-lo ou a qualquer outro por causa de falsa doutrina foi um
flagrante pecado contra o espírito, gênio e princípios do evangelho, fruto deplorável de ignorância quanto
à diferença essencial entre o Judaísmo e o Cristianismo.
Uma coisa é a Igreja aprender com a história de Israel e outra muito diferente querer ocupar o lugar de
Israel, agir por princípios de Israel e apropriar-se das promessas de Israel. A primeira é dever e privilégio
da Igreja; a última tem sido o erro fatal da Igreja.

A igreja professante tem-se afastado completamente desta grande,


importantíssima questão. Uniu-se ao mundo e tem procurado fazer avançar a causa
de Cristo por meios mundanos e carnais. Tem, por ignorância, procurado manter a
fé cristã pela mais vergonhosa negação da prática cristã. A queima dos hereges
permanece como uma horrenda mancha moral nas páginas da história da Igreja.
Não podemos formar uma idéia adequada das terríveis conseqüências resultantes
da noção de que a Igreja foi chamada para tomar o lugar de Israel e atuar segundo
os princípios de Israel. Isto falsificou completamente o seu testemunho, despojou-a
completamente do seu caráter espiritual e celestial e conduziu-a a uma senda que
termina em Apocalipse 17 e 18.0 que lê entenda.
Mas não devemos prosseguir aqui esta ordem de coisas. Cremos que o que tem
passado perante nós induzirá aqueles a quem possa interessar a considerarem todo
o assunto à luz do Novo Testemunho, e, assim, pela infinita bondade de Deus,
puderem ver o caminho de inteira separação que, como crentes, somos chamados a
trilhar, no mundo mas não do mundo, assim como Cristo nosso Senhor não é do
mundo. Isto resolverá milhentas dificuldades, e nos proporcionará um grande
princípio moral que pode ser praticamente aplicado a numerosos pormenores.

A Responsabilidade Coletiva das Doze Tribos


Vamos concluir agora o nosso estudo de Deuteronômio 13 lançando um olhar
ao seu parágrafo final.
"Quando ouvires dizer de alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te
dá, para ali habitar, ouvires dizer, que uns homens, filhos de Belial, saíram do meio
de ti, que incitaram os moradores da sua cidade, dizendo: Vamos, e sirvamos a
outros deuses que não conheceste, então, inquirirás, e informar-te-ás, e com
diligência perguntarás; e eis que, sendo esse negócio verdade, e certo que se fez
uma tal abominação no meio de ti, então certamente ferirás ao fio da espada os
moradores daquela cidade, destruindo ao fio da espada a ela e a tudo o que nela
houver, até os animais. E ajuntarás todo o seu despojo no meio da sua praça e a
cidade e todo o seu despojo queimarás totalmente para o SENHOR, teu Deus, e será
montão perpétuo, nunca mais se edificará. Também nada se pegará à tua mão do
anátema, para que o SENHOR se aparte do ardor da sua ira, e te faça misericórdia, e
tenha piedade de ti, e te multiplique, como jurou a teus pais, quando ouvires a voz
do SENHOR, teu Deus, para guardares todos os seus mandamentos, que hoje te
ordeno, para fazeres o que for reto aos olhos do SENHOR , teu Deus" (versículos 12 a
18).
Aqui temos instruções do caráter mais solene e importante. Mas o leitor deve
lembrar-se de que, solenes e graves como realmente são, estão baseadas numa
verdade de valor inefável, e esta é a unidade nacional de Israel. Se não vemos isto,
perdemos a força real do que significado da passagem citada. Supondo um caso de
erro grave em algumas das cidades de Israel; podia suscitar-se, naturalmente, a
pergunta: "As cidades de Israel hão-de estar envolvidas no mal de uma delas?".
Com certeza, visto que a nação era uma. As cidades e as tribos não eram
independentes; estavam unidas entre si por um sagrado laço. de unidade
nacional—unidade que tinha o seu centro no lugar da presença divina. As doze
tribos de Israel estavam, indissoluvelmente, unidas. Os doze pães na mesa de ouro
do santuário constituíam o formoso tipo desta unidade e todo o verdadeiro israelita
reconhecia e se regozijava nesta unidade. As doze pedras na banda do rio Jordão; as
doze pedras no monte Carmelo, mostram todas a mesma grande verdade—a
indissolúvel unidade das doze tribos de Israel. O bom rei Ezequias reconheceu esta
verdade quando ordenou que o holocausto e a expiação do pecado fossem feitos
por todo o Israel (2 Cr 29:24). O fiel Josias reconheceu-a também e atuou de
conformidade com ela, quando levou as suas reformas a todas as regiões que
pertenciam aos filhos de Israel (2 Cr 34:33). Paulo, no seu magnífico discurso
perante o rei Agripa, dá testemunho da mesma verdade, quando diz: "A qual as
nossas doze tribos esperam chegar, servindo a Deus, continuamente, noite e dia"(1)
(At 26:7). E quando contemplamos o futuro brilhante, a mesma gloriosa verdade
resplandece com fulgor celestial no capítulo 17 de Apocalipse, onde vemos as doze
tribos seladas e guardadas para bênção, repouso e glória, em relação com uma
multidão inumerável dos gentios. E, por fim, em Apocalipse 21 vemos os nomes
das doze tribos gravados nas portas da santa Jerusalém, sede e centro da glória de
Deus e do Cordeiro.
__________
(1)
O leitor talvez esteja interessado em saber que a palavra traduzida na passagem por "doze tribos" é
singular. Dá certamente uma expressão vívida e plena à idéia principal de unidade indissolúvel tão
preciosa para Deus, e portanto Preciosa para a fé.

Assim, desde a mesa de ouro no santuário à cidade de ouro, que de Deus desce
do céu, temos uma cadeia maravilhosa de evidência em prova da grande verdade
da indissolúvel unidade das doze tribos de Israel.
E, então, se for feita a pergunta: onde é vista esta unidade? Ou de que modo a
viram Elias, ou Ezequias, ou Josias, ou Paulo? A resposta é muito simples.
Viram-na pela fé; olharam para dentro do santuário de Deus, e ali, sobre a mesa de
outro, viram os doze pães mostrando a perfeita distinção de cada tribo a par da sua
perfeita unidade. Nada pode ser mais belo. A verdade de Deus tem de permanecer
para sempre. A unidade de Israel foi vista no passado e será vista no futuro; e
embora a unidade mais elevada da Igreja não seja vista no tempo presente, a fé
crê-a apesar disso, mantém-na e confessa-a em presença de milhentas influências
hostis.
E, agora, vejamos, por um momento, a aplicação prática desta gloriosa verdade,
conforme nos é apresentada no parágrafo final de Deuteronômio 13. A uma cidade
do extremo norte da terra de Israel, chega a notícia de que em determinada cidade
no extremo sul se ensina grave erro—erro mortal, que tende a desviar os
habitantes do Deus verdadeiro.
Que deve fazer-se? A lei é tão clara quanto possível; a senda do dever está
traçada com tanta clareza que é apenas preciso um olhar sincero para a ver, e um
coração consagrado para a trilhar. "Então, inquirirás e informar-te-ás, e com
diligência perguntarás." Isto é, seguramente, muito simples.
Mas alguns dos habitantes podiam dizer: "Que temos nós que ver no norte com
o erro ensinado no sul? Graças a Deus, não se ensina entre nós nenhum erro; é uma
questão inteiramente local; cada cidade é responsável pela manutenção da verdade
dentro das suas muralhas. Como poderíamos examinar todos os casos de erro que
podem surgir por aqui e por ali em toda a nossa terral Todo o nosso tempo seria
perdido, de modo que não poderíamos atender os nossos campos, os nossos
vinhedos, os nossos olivais, os nossos rebanhos e as nossas manadas. Tudo quanto
podemos fazer é manter as nossas fronteiras em ordem. Certamente, condenamos
o erro, e se alguém que o mantivesse ou ensinasse viesse aqui, e nós o soubéssemos,
fecharíamos resolutamente as portas contra ele. Não cremos que a nossa
responsabilidade vá mais além disto."
Ora, podemos perguntar, qual seria a resposta do verdadeiro israelita a toda
esta linha de argumento que, na opinião da mera natureza, parece muitíssimo
aceitável? Uma resposta muito simples e conclusiva, podemos estar certos. Teria
dito que era simplesmente a negação da unidade de Israel. Se cada cidade e cada
tribo tomasse uma posição de independência, então, verdadeiramente, o
sumo-sacerdote podia tomar os doze pães da mesa de ouro da proposição e
espalhá-los por toda a parte; a nossa unidade desapareceu- fragmentamo-nos todos
em átomos independentes e não temos um fundamento de ação nacional.
Além disso, o mandamento é bem claro e explícito: "Inquirirás, e
informar-te-ás, e com diligência perguntarás." Somos obrigados, portanto, por um
fundamento duplo: a unidade da nação e o mandamento claro do nosso Deus. De
nada serve dizer que não se ensina erro entre nós, a menos que nos queiramos
separar da nação; se pertencemos a Israel, então, na verdade, o erro é ensinado
entre nós, segundo dizem as palavras — "tal abominação se cometeu no meio de
ti." Até onde chegava a partícula "ti"? Até às fronteiras da nação. O erro ensinado
em Dã afetava os que habitavam em Berseba. Por quê? Por que Israel era una.
E, daí, a palavra é tão clara, tão precisa, tão enfática. Somos obrigados a
esquadrinhá-la. Não podemos cruzar os braços e sentar- nos em fria indiferença e
culpável neutralidade, de contrário seremos envolvidos nas terríveis
conseqüências deste mal; sim, estamos envolvidos nele até nos desembaraçarmos
dele julgando-o com inflexível decisão e implacável severidade.
Tal seria, prezado leitor, a linguagem de todo o israelita leal, e tal o seu modo de
agir quanto ao erro e mal encontrado onde quer que fosse. Falar ou atuar de outro
modo, seria simplesmente indiferença a respeito da verdade e glória de Deus, e
independência quanto à unidade de Israel. Se alguém dissesse que não era obrigado
a atuar segundo as instruções dadas em Deuteronômio 13:12 a 18, renunciava
completamente à verdade de Deus e à unidade de Israel. Todos eram obrigados a
atuar, de outra maneira seriam envolvidos no juízo dos culpados.

A Unidade do Corpo de Cristo e a Falsa Doutrina


E certamente se tudo isto era verdade entre o antigo Israel, não é menos
verdade na Igreja de Deus no tempo presente. Podemos ficar certos que nada como
a indiferença, em tudo quanto diz respeito a Cristo, é tão detestável para Deus. É
propósito e desígnio eterno de Deus glorificar Seu filho; que todo o joelho se dobre
perante Ele e toda a língua confesse que Ele é Senhor para glória de Deus Pai. "Para
que todos honrem o Filho, como honram o Pai."
Por conseguinte, se Cristo é desonrado, se forem ensinadas doutrinas ofensivas
à glória da Sua Pessoa, à eficácia da Sua obra ou à virtude do Seu ministério, nós
somos obrigados por todos os meios que possam atuar em nossos corações a
rejeitar, com austera decisão, tais doutrinas. A indiferença ou neutralidade, no que
diz respeito ao Filho de Deus, é alta traição no parecer do supremo tribunal do
Céu. Não seríamos indiferentes se se tratasse da nossa reputação, do nosso caráter
pessoal, ou dos nossos haveres ou dos haveres da nossa família; estaríamos muito
ativos em qualquer coisa que nos afetasse ou aos que nos são queridos. Quanto mais
deveríamos sê-lo em tudo que se refere à glória, honra, nome e causa d'Aquele a
quem devemos tudo no tempo presente e na eternidade—Aquele que pôs de parte
a Sua glória, veio a este miserável mundo, e morreu de morte afrontosa na cruz a
fim de nos salvar das chamas eternas do inferno! Podemos ser-Lhe indiferentes?
Neutrais no que Lhe diz respeito? Deus, em Sua grande misericórdia, nos livre de
tal coisa!
Não, prezado leitor, isto não pode ser. A honra e glória de Cristo devem ser-nos
mais caras do que tudo mais—reputação, haveres, família, amigos, tudo deve ser
posto de lado se os direitos de Cristo estiverem envolvidos. Não admite isto o leitor
crente com toda a energia da sua alma resgatada«?- Estamos persuadidos que o
reconhece, até mesmo neste momento; e, oh, como nos sentiremos quando
estivermos perante a Sua face e na plena luz da Sua glória moral"?! Com que
sentimentos contemplaremos então a idéia de indiferença ou neutralidade a
respeito d'Ele?
E não temos nós razão em declarar que depois da glória do Cabeça está a grande
verdade da unidade do Seu corpo, a Igreja? Indiscutivelmente. Se a nação de Israel
era una, quanto mais não será uno também o corpo de Cristo! Essa independência
era um mal em Israel, quanto mais não o será na Igreja de Deus! O fato claro é este,
a idéia de independência não pode ser mantida nem por um momento à luz do
Novo Testamento. Com igual direito podíamos dizer que a mão é independente do
pé, ou o olho do ouvido, como dizer que os membros do corpo de Cristo são
independentes uns dos outros. "Porque, assim como o corpo é um e tem muitos
membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo
também" — uma afirmação notável, expondo a união íntima de Cristo e a Igreja —
"Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus,
quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito. Porque
também o corpo não é um só membro, mas muitos. Se o pé disser: Porque não sou
mão, não sou do corpo; não será por isso do corpo? E, se a orelha disser: Porque não
sou olho, não sou do corpo; não será por isso do corpo"? Se todo o corpo fosse olho,
onde estaria o ouvido?- Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? Mas, agora,
Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis. E, se todos fossem
um só membro, onde estaria o corpo? Agora, pois, há muitos membros, mas um
corpo. E o olho não pode dizer à mão: Não tenho necessidade de ti; nem ainda a
cabeça, aos pés: Não tenho necessidade de vós. Antes, os membros do corpo que
parecem ser os mais fracos são necessários. E os que reputamos serem menos
honrosos no corpo, a esses honramos muito mais; e aos que em nós são menos
decorosos damos muito mais honra. Porque os que em nós são mais honestos não
têm necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra
ao que tinha falta dela, para que não haja divisão no corpo, mas, antes, tenham os
membros igual cuidado uns dos outros. De maneira que, se um membro padece,
todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os
membros se regozijam com ele. ORA, VÓS SOIS (O) CORPO DE CRISTO E SEUS
MEMBROS EM PARTICULAR" (I Co 12:12 - 27).
Não é nosso intento deter-nos nesta maravilhosa porção da Escritura; mas
desejamos sinceramente chamar a atenção do leitor crente para a verdade especial
que ela põe diante de nós tão terminantemente — uma verdade que diz respeito
tão intimamente a todo o verdadeiro crente à face da terra, isto é, que é um
membro do corpo de Cristo. E uma grande verdade prática, que envolve, ao
mesmo tempo, os mais elevados privilégios e as maiores responsabilidades. Não é
meramente uma verdadeira doutrina, um são princípio ou uma opinião ortodoxa; é
um fato vivo, destinado a ser um poder divino na alma. O crente já não pode
considerar-se a si mesmo como uma pessoa independente, sem associação, sem
nenhum vínculo essencial com outros. Está ligado vitalmente com todos os filhos
de Deus, todos os verdadeiros crentes, todos os membros do corpo de Cristo à face
da terra.
"Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo." A Igreja
de Deus não é um simples clube, uma sociedade, uma associação ou uma
irmandade; é um corpo unido pelo Espírito Santo à Cabeça, no céu; e todos os seus
membros na terra estão indissoluvelmente unidos entre si. Sendo assim, segue-se,
necessariamente, que todos os membros do corpo são afetados pelo estado e
comportamento de cada um deles. "De maneira que, se um membro padece, todos
os membros padecem com ele." Isto é, todos os membros do corpo. Se há qualquer
coisa que não está bem com o pé, a mão sente-o. Como? Por meio da cabeça. Assim
é também na Igreja de Deus, se há qualquer coisa má com qualquer membro,
individualmente, todos o sentem por intermédio do Cabeça, com o Qual todos
estão relacionados em vida pelo Espírito Santo.
Alguns encontram grande dificuldade em compreender esta verdade. Mas ela
está claramente revelada nas páginas inspiradas, não para ser discutida ou
submetida, de um modo ou de outro, ao parecer humano, mas, simplesmente, para
ser crida. E uma revelação divina. Nenhuma inteligência humana poderia jamais
haver concebido tal pensamento; mas Deus revela-o; a fé crê-o e anda em seu
bendito poder.
Talvez que o leitor se sinta inclinado a perguntar: Como pode o estado de um
membro afetar aqueles que nada sabem acerca dele? A resposta é: "Se um membro
padece, todos os membros padecem com ele." Todos os membros de quê? E
meramente de uma assembléia ou companhia que pode conhecer ou estar
localmente ligada com a pessoa de quem se tratai Não, mas os membros do corpo,
onde quer que estejam. Até mesmo no caso de Israel, onde se tratava apenas de
uma questão de unidade nacional, temos visto que se havia mal em qualquer das
suas cidades, todos estavam compreendidos nele, dizia respeito a todos, todos eram
afetados. Por isso, quando Acã pecou, ainda que havia milhões de pessoas que
ignoravam o fato, o Senhor disse: "Israel pecou." E toda a assembléia sofreu uma
humilhante derrota.
Pode a razão compreender esta importante verdade? Não; mas a fé pode. Se
escutarmos a razão não creremos nada; mas, pela graça de Deus, não vamos escutar
a razão, mas crer o que Deus diz.
E, oh, prezado leitor, que verdade imensa é esta da unidade do corpo! Que
conseqüências práticas derivam dela! Como está eminentemente calculada para
ministrar santidade de conduta e de vida! Quão vigilantes nos deveria tornar sobre
nós próprios, sobre os nossos hábitos, os nossos passos e toda a nossa condição
moral! Quão cuidadosos nos deve tornar para não desonrarmos o Cabeças Quem
estamos unidos, ou entristecer o Espírito por Quem estamos unidos, ou para não
ofender os membros com quem estamos unidos!
Mas devemos encerrar este capítulo, por muito que gostaríamos de nos deter
mais largamente sobre uma das verdades mais importantes, mais profundas e de
mais positiva eficácia de quantas podem, possivelmente, atrair a nossa atenção.
Que o Espírito de Deus faça dela um poder vivo na alma de todo o verdadeiro
crente sobre a face da terra!
— CAPÍTULO 14 —

"FILHOS SOIS DO SENHOR, VOSSO DEUS"

Comportai-vos Coerentemente!
"Filhos sois do SENHOR, VOSSO Deus; não vos dareis golpes, nem poreis calva
entre os vossos olhos por causa de algum morto. Porque és povo santo ao SENHOR,
teu Deus, e o SENHOR te escolheu de todos os povos que há sobre a face da terra,
para lhes seres o seu povo próprio" (versículos 1 e 2).
A cláusula com que começa este capítulo põe diante de nós a base de todos os
privilégios e responsabilidades do Israel de Deus. É um pensamento corrente entre
nós que temos de ter o parentesco antes de podermos saber os fatos de cumprir os
deveres que lhe pertencem. É verdade clara e inegável. Se um homem não é pai,
todos os argumentos ou explicações não lhe farão compreender os sentimentos ou
afetos do coração de um pai; mas assim que entra nesse parentesco, sabe-os todos.
Assim é com todo o parentesco e posição; e assim é nas coisas de Deus. Não
podemos compreender os afetos ou deveres de um filho de Deus até estarmos neste
terreno. Temos de ser crentes antes de podermos cumprir os deveres cristãos. Até
mesmo quando somos crentes, é somente pelo auxílio da graça do Espírito Santo
que podemos andar como tais; mas, evidentemente, se não estamos em terreno
cristão, nada podemos saber dos afetos ou deveres cristãos. Isto é tão claro que não
são necessários argumentos.
Ora bem, é, evidentemente, prerrogativa de Deus determinar como os Seus
Filhos devem conduzir-se, e é elevado privilégio e responsabilidade deles buscar,
em todas as coisas, ter a Sua graciosa aprovação. "Filhos sois do SENHOR, vosso
Deus; não vos dareis golpes. Não eram de si mesmos, pertenciam-Lhe, e portanto
não tinham o direito de dar golpes ou desfigurar os seus rostos pelos mortos. A
natureza, em seu orgulho e obstinação, podia dizer: Por que não podemos fazer o
que fazem os outros? Que mal pode haver em nos golpearmos, ou pôr calva entre
os nossos olhos? É apenas uma expressão de dor, um afetuoso tributo aos nossos
amados que partiram. Decerto que não pode haver nada moralmente mau em tão
apropriadas demonstrações de tristeza.
A tudo isto só havia uma resposta simples e elucidativa: "Filhos sois do SENHOR
vosso Deus". Este fato alterava tudo. Os pobres ignorantes e incircuncisos gentios
em redor deles podiam golpear- se e desfigurarem-se, visto que não conheciam a
Deus, e não estavam em relação com ele. Mas quanto a Israel, estava no elevado e
santo terreno de proximidade com Deus, e este fato devia dar tom e caráter a todos
os seus hábitos. Não eram chamados para adotar ou evitar qualquer hábito ou
costume particular a fim de serem filhos de Deus. Isto seria, como dizemos,
começar pelo fim; mas sendo seus filhos, deviam atuar como tais.
Um Povo Santo
"Filhos sois do SENHOR vosso Deus." Não diz: "Deveis ser um povo santo." Como
poderiam eles jamais converter-se num povo santo, ou um povo especial do
Senhor? Era de todo impossível. Se não eram o Seu povo, nenhum esforço seu
poderia jamais convertê-los em tal. Mas Deus, Em Sua soberana graça, em
cumprimento do Seu concerto com seus pais, tinha feito deles Seus filhos, feito
deles o seu povo peculiar de entre todas as nações da terra. Nisto estava o
fundamento sólido do edifício moral de Israel. Todos os seus hábitos e costumes,
todos os seus atos e caminhos, o seu alimento e o seu vestuário, o que faziam e o
que não faziam — em tudo deviam obedecer a um fato importante, com o qual não
tinham mais que ver do que com o seu nascimento natural, isto é, que eram na
realidade filhos de Deus, o Seu povo escolhido, povo da Sua própria possessão.
Não podemos deixar de reconhecer que é um privilégio da mais elevada ordem
ter o Senhor tão perto de nós, e tão interessado em todos os nossos hábitos e
caminhos. Para a mera natureza humana, para aquele que não conhece o Senhor,
que não está em relação com Ele a própria idéia da Sua santa presença, ou de
aproximação d'Ele, é simplesmente intolerável. Mas para todo o verdadeiro crente,
todo aquele que ama realmente a Deus, é um pensamento delicioso tê-Lo perto de
si, e saber que Ele Se interessa em todos os mais minuciosos detalhes da nossa
história pessoal e da nossa vida privada; que tem conhecimento do que comemos e
que vestimos; que cuida de nós de dia e de noite, dormindo e despertando, em casa
ou fora dela; em suma, que o Seu interesse e cuidado por nós vão muito além do
interesse e cuidado da mais terna e amorosa mão pelo seu filhinho.
Tudo isto é perfeitamente maravilhoso; e por certo que se o realizarmos de um
modo mais completo, viveremos uma espécie de vida muito diferente, e teremos
uma história diferente para contar. Que santo privilégio, que preciosa realidade
saber que o nosso amoroso Senhor está em nosso caminho de dia e junto do nosso
leito de noite; que os Seus olhos estão postos em nós quando nos vestimos de
manhã, quando nos sentamos para comer, quando nos ocupamos dos nossos
negócios, e em toda a nossa convivência desde manhã à noite. Que o sentimento de
tudo isto seja um poder vivo e permanente no coração de todo o filho de Deus
sobre a face da terra!
Desde o versículo 3 ao versículo 20, temos a lei a respeito dos animais limpos e
imundos, peixes e aves. Os princípios fundamentais a respeito de todos estes
animais já foram expostos em capítulo 11 de Levítico (1). Mas existe uma diferença
muito importante entre estas duas passagens da Escritura. As instruções em
Levítico são dadas primeiramente a Moisés e Aarão; em Deuteronômio são dadas
diretamente ao povo. Isto é perfeitamente característico dos dois livros. Levítico
pode ser chamado especialmente o livro de guia para os sacerdotes. Em
Deuteronômio os sacerdotes não ocupam um lugar de proeminência, enquanto
que o povo é posto em destaque. Isto é aparentemente notável em todo o livro, de
forma que não tem o menor fundamento a idéia de que Deuteronômio é uma
simples repetição de Levítico. Nada pode estar mais longe da verdade. Cada um
desses livros tem um alcance especial, o seu próprio desígnio e a sua própria obra.
O estudante piedoso vê e reconhece isto com prazer. Os infiéis estão,
obstinadamente, cegos e não podem ver nada.
Em versículo 21 do nosso capítulo é notavelmente apresentada a distinção
entre o Israel de Deus e o estrangeiro. "Não comereis nenhum animal morto; ao
estrangeiro, que está dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao
estranho, porquanto és povo santo ao SENHOR, teu Deus." O grande fato do
parentesco de Israel com o Senhor distinguia-o de todas as nações abaixo do Sol.
Não era que eles, em si mesmos, fossem, nem um fio, melhores ou mais santos do
que os outros; mas o Senhor era santo, e eles eram o Seu povo. "Sede santos, porque
eu sou santo."
As pessoas do mundo pensam por vezes que os cristãos são farisaicos em se
separarem das demais pessoas e em recusarem tomar parte nos prazeres e
divertimentos do mundo; mas não entendem realmente a questão. O fato é que,
para um crente participar nas vaidades e loucuras de um mundo pecaminoso seria,
falando em linguagem figurada, o mesmo que um israelita comer carne de um
animal que tivesse morrido. O crente, graças a Deus, tem alguma coisa mais com
que alimentar-se que as coisas mortas deste mundo. Tem o pão vivo que desceu do
céu, o verdadeiro maná; e não só isso, mas come "do trigo da terra de Canaã do ano
antecedente", tipo do Homem ressuscitado e glorificado nos céus. De todas estas
preciosíssimas coisas o pobre mundano inconvertido não sabe absolutamente
nada; e, por isso, tem de alimentar-se do que o mundo tem para lhe oferecer. Não
se trata do que há de mau ou bom nessas coisas quando consideradas em si mesmas.
Ninguém poderia, de modo nenhum, ter sabido coisa alguma do mal que havia em
comer alguma coisa que tivesse morrido se a Palavra de Deus não tivesse tratado do
assunto.
Este é o ponto importante para nós. Não podemos esperar que o mundo veja ou
pense como nós em casos de bem e mal. E nosso dever encarar as coisas do ponto
de vista divino. Muitas coisas podem ser perfeitamente compatíveis com a ação de
um homem mundano que um crente não deve de modo algum tocar, simples-
mente porque é cristão. A pergunta que o verdadeiro crente tem de fazer quanto a
tudo que se apresenta perante si é simplesmente esta: "Posso fazer isto para glória
de Deus? Posso relacionar o nome de Cristo com ele?" Se não pode, não deve
tocar-lhe.
Numa palavra, o padrão e norma do crente para todas as coisas é Cristo. Isto
torna tudo tão simples. Em vez de perguntar: Tal ou qual coisa é compatível com a
nossa profissão, os nossos princípios, o nosso caráter ou reputação? Temos de
perguntar: é compatível com Cristo? Nisto está toda a diferença. Qualquer coisa
que é indigna de Cristo é indigna de um crente. Se isto for plenamente
compreendido e admitido nos proporcionará uma grande regra prática que poderá
ser aplicada a milhentos detalhes. Se o coração for fiel a Cristo, se andarmos
segundo os instintos da natureza divina, fortalecidos pelo ministério do Espírito
Santo, e guiados pela autoridade da Sagrada Escritura, não seremos incomodados
com as questões do que é bom ou mau na nossa vida diária.

O que é Contra a Natureza


Antes de prosseguirmos com a reprodução do encantador parágrafo que
encerra o nosso capítulo, queremos chamar, resumidamente, a atenção do leitor
para a última cláusula do versículo 21. "Não cozerás o cabrito com o leite da sua
mãe." O fato de este mandamento ser dado três vezes, em diversas ligações, é
bastante para o acentuar como de interesse especial e importância prática. A
questão é esta: Que significa ele? E o que devemos aprender dele? Cremos que
ensina claramente que o povo do Senhor deve evitar, cuidadosamente, tudo que é
contrário à natureza. Ora, era manifestamente contrário à natureza que o que era
destinado à alimentação de um ser pudesse ser usado para o cozer.
Encontramos através de toda a Palavra de Deus grande proeminência dada ao
que é segundo a natureza—o que é honesto. "Não vos ensina a própria natureza?",
diz o apóstolo inspirado à assembléia de Corinto. Há certos sentimentos e instintos
implantados na natureza, pelo Criador, que não devem ser nunca ultrajados. Pode
mos estabelecer como princípio fixo, como um axioma da ética cristã, que
nenhuma ação que repugna às sensibilidades próprias da natureza pode ser de
Deus. O Espírito de Deus pode dirigir-nos, e muitas vezes sucede, para além e
acima da natureza, mas nunca contra ela.

Tudo Pertence ao SENHOR


Voltemos agora aos versículos finais do nosso capítulo, nos quais
encontraremos instrução prática de beleza pouco vulgar. "Certamente darás os
dízimos de toda a novidade da tua semente, que cada ano se recolher do campo. E,
perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu
nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu mosto, do teu azeite e os
primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao
SENHOR teu Deus, todos os dias. E, quando o caminho te for tão comprido, que os
não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para
ali pôr o seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado, então,
vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o SENHOR, teu
Deus. E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por
ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma;
come-o ali perante o SENHOR ,teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa; porém, não
desampararás ao levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem
herança contigo. Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no
mesmo ano e os recolherás nas tuas portas. Então virá o levita (pois nem parte nem
herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das
tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão; para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em
toda a obra das tuas mãos, que fizeres" (versículos 22 a 29).
E uma passagem muito importante e de profundo interesse, que põe diante de
nós, com especial simplicidade, a base, o centro e os aspectos práticos da religião
nacional e doméstica de Israel. O grande fundamento do culto de Israel estava
posto no fato de que tanto eles como a sua terra pertenciam ao Senhor. A terra era
Sua, e eles administravam-na sob a Sua direção. Eram chamados para dar
testemunho, periodicamente, desta verdade preciosa por meio dos dízimos da sua
terra. "Certamente darás os dízimos de toda a novidade da tua semente, que cada
ano se recolher no campo." Deviam reconhecer, por este modo prático, o direito de
propriedade do Senhor, e nunca o perder de vista. Não deviam reconhecer outro
senhorio senão o Senhor, seu Deus. Tudo quanto eram e tudo quanto tinham
pertencia-Lhe. Esta era a base sólida do seu culto nacional — a sua religião
nacional.

O Centro do Culto para Israel


E quanto ao centro, está exposto com igual clareza. Deviam reunir-se no lugar
que o Senhor havia escolhido para ali pôr o Seu nome. Que precioso privilégio para
todos os que amavam, verdadeiramente, esse nome glorioso! Vemos nesta
passagem, como também em muitas outras porções da Palavra de Deus, a
importância que Ele dava às reuniões periódicas do Seu povo em redor de Si.
Bendito seja o Seu nome, regozijava-Se em ver o Seu povo amado reunido em Sua
presença, feliz n'Ele e uns com os outros; regozijando-se juntamente na sua porção
comum, e alimentando-se em doce e amorável comunhão com os frutos da terra
do Senhor. "E, perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer
habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal. ..para que aprendas a temer
ao SENHOR, teu Deus, todos os dias."
Não havia, não podia haver, outro lugar como aquele, no parecer de todo o
israelita fiel, todo o verdadeiro adorador de Javé. Estes deleitavam-se em se
agrupar no sagrado lugar onde esse amado e reverenciado nome havia sido posto.
Podia parecer estranho e inexplicável para aqueles que não conheciam o Deus de
Israel, e não faziam caso d'Ele, ver o povo viajar — muitos deles — grandes
distâncias, levando os seus dízimos a um lugar especial. Podiam sentir-se dispostos
a duvidar da necessidade de um tal costume.
Porque não comer em casa? podiam dizer. Mas o fato é que tais pessoas não
sabiam absolutamente nada de tal assunto, e eram de todo incapazes de
compreender como isso era preciso. Para o Israel de Deus, havia a grande razão
moral para viajar ao lugar designado, e essa razão estava no glorioso lema: "Javé
Shammah—"O Senhor está ali." Se um israelita tivesse, obstinadamente,
determinado ficar em casa, ou ir a qualquer lugar de sua própria escolha, não teria
encontrado ali o Senhor nem os seus irmãos, e teria portanto de comer só. Um tal
procedimento teria atraído o juízo de Deus; teria sido uma abominação. Não havia
senão um centro, e esse não era da escolha do homem, mas de Deus. O ímpio
Jeroboão, para seus fins egoístas e políticos, atreveu-se a interferir com a ordem
divina, levantou os seus bezerros em Betel e em Dã; mas o culto ali oferecido era
aos demônios e não a Deus. Foi um atrevido ato de iniqüidade que trouxe sobre si e
a sua casa o justo castigo de Deus; e vemos, na história de Israel, que "Jeroboão,
filho de Nebate", é apresentado como o terrível modelo de iniqüidade de todos os
reis perversos.
Mas todos os fiéis em Israel estavam certos de se encontrarem no único centro
divino, e em mais parte nenhuma. Não encontraríamos nenhum deles
apresentando toda a espécie de desculpas para ficar em casa; nem tampouco os
veríamos correr de aqui para ali em sítios da sua própria escolha ou da escolha de
outros; não; só os veríamos reunidos para Javé Shammah, e só ali. Isto era
estreiteza e fanatismo? Não; era o temor e o amor de Deus. Se o Senhor havia
designado um lugar onde encontrar o Seu povo, certamente, o Seu povo deveria
encontrar-se ali com Ele.
E não só havia designado um lugar mas, em Sua muita bondade, havia ideado
um meio de fazer esse lugar tão conveniente quanto possível para o Seu povo
adorar. Assim lemos: "E quando o caminho te for tão comprido, que os não pessoas
levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para ali pôr o
seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado, então vende-os e ata o
dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o SENHOR, teu Deus... come-o ali
perante o SENHOR, teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa."
Isto é perfeitamente belo. O Senhor, em Seu cuidado terno e atencioso amor,
tomou em conta tudo. Não deixou uma só dificuldade no caminho do Seu amado
povo, no tocante ao assunto de se reunir em redor de Si. Tinha o Seu próprio gozo
especial em ver o Seu novo redimido feliz na Sua presença; e todos os que amavam
o Seu nome se deleitavam em cumprir o desejo amorável do Seu coração
encontrando-se no centro divinamente designado. Se viesse a descobrir-se que um
israelita era negligente quanto a esta bendita ocasião de reunir-se com seus irmãos
no lugar e tempo divinamente escolhidos, isso teria simplesmente provado que não
tinha lugar em seu coração para Deus ou para o Seu povo, ou, que era pior, que
estava ausente deliberadamente. Podia argumentar como quisesse que se sentia
feliz em casa, feliz em qualquer outro lugar; mas seria uma falsa felicidade, visto
que uma felicidade encontrada no caminho da desobediência, era negligência
voluntariosa ao mandamento divino.

O Centro do Culto para a Igreja


Tudo isto está cheio da mais valiosa instrução para a igreja de Deus atualmente.
É vontade de Deus, agora, nada menos do que o era na antiguidade, que o Seu povo
se reúna na Sua presença, em terreno divinamente designado, e para um centro
divinamente designado. Isto, cremos, não será, de modo nenhum, posto em dúvida
por todo aquele que tiver uma centelha de luz divina em sua alma. Os instintos da
natureza divina, a direção do Espírito Santo e os ensinos da Sagrada Escritura
guiam incontestavelmente o povo do Senhor a reunir-se para o culto, a comunhão
e edificação. Por muitos que as dispensações possam diferir, há determinados
princípios importantes e características especiais que permanecem sempre firmes;
e a reunião de todos nós é, seguramente, um deles. Quer debaixo da antiga
dispensação, quer sob a nova, a reunião do povo do Senhor é uma instituição
divina.
Ora, sendo isto assim, não se trata de uma questão da nossa felicidade de uma
maneira ou de outra; ainda que podemos estar perfeitamente seguros de que todos
os verdadeiros cristãos se sentirão felizes de serem achados no seu lugar
divinamente designado. Há sempre alegria e bênção na reunião do povo de Deus. E
impossível estarmos reunidos na presença do Senhor e não nos sentirmos
verdadeiramente felizes. É simplesmente céu na terra para o povo do Senhor — os
que amam o Seu nome, amam a Sua pessoa, se amam uns aos outros, estarem
reunidos, em redor da Sua mesa, em redor d'Ele mesmo. Nada pode exceder a
bem-aventurança de nos ser concedido partir o pão juntos em memória de nosso
amado e adorado Senhor, para anunciarmos a Sua morte até que venha; elevar, em
santo concerto, os nossos cânticos de louvor a Deus e ao Cordeiro; nos exortarmos
e confortarmos uns aos outros, segundo o dom e a graça que nos são dados pelo
ressuscitado e glorificado Cabeça da Igreja; derramar os nossos corações, em doce
comunhão, em oração, súplicas, intercessões e ações de graças por todos os
homens, pelos reis e por todas as autoridades, por toda a família da fé, a Igreja de
Deus, o corpo de Cristo, pelo trabalho do Senhor e pelos obreiros em toda a terra.
Onde, perguntamos, com toda a confiança, se encontra um verdadeiro crente,
em reto estado de alma, que se não deleitará em tudo isto, e diga, do recôndito do
seu coração, que nada existe nesta vida que se lhe possa comparará
Mas, repetimos, a questão não é da nossa felicidade; isto é menos que
secundário. Nisto, como em tudo mais, devemos ser regidos pela vontade de Deus
revelada em Sua santa Palavra. A questão para nós reduz-se simplesmente a isto: É
segundo a vontade de Deus que o Seu povo se reúna para o culto e mútua
edificação? Se isto é assim, ai de todos os que recusam, obstinadamente, ou,
indolentemente, descuram fazê-lo, sob qualquer pretexto; não sofrem apenas sério
prejuízo, em suas almas, mas desonram a Deus, entristecem o Seu Espírito, e
causam dano à assembléia do Seu povo.
Estas conseqüências são muito graves e requerem séria atenção de todo o povo
do Senhor. E evidente que é segundo a vontade revelada de Deus que o Seu povo
deve reunir-se na sua presença, o apóstolo inspirado exorta-nos, no capítulo 10 da
sua epístola aos Hebreus, a não deixarmos a nossa reunião. Existe um valor
especial, interesse e importância ligados coma reunião. A verdade a este respeito
começa a revelar-se nas primeiras páginas do Novo Testamento. Assim, em Mateus
18:20, lemos as palavras do nosso bendito Senhor: "Porque onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles." Aqui temos o centro
divino: "Meu nome". Isto corresponde "ao lugar que escolher o SENHOR, para ali
pôr o seu nome", tão constantemente mencionado, e tão repetido no livro de
Deuteronômio. Era absolutamente essencial que Israel se reunisse nesse lugar. Não
era um caso em que o povo podia escolher por si. A escolha humana estava
absoluta e rigorosamente excluída. Era "o lugar que escolher o SENHOR teu Deus", e
nenhum outro. Já temos visto claramente. E tão claro que nós só temos que dizer:
"Como lês?"
Nem outra coisa acontece com a Igreja de Deus. Não é a escolha humana, ou o
juízo humano, ou a opinião humana, ou a razão humana, ou qualquer coisa
humana. E absoluta e inteiramente divina. O fundamento da nossa reunião é
divino, pois trata-se de redenção efetuada. O centro em volta do qual nos reunimos
é divino, é o nome de Jesus. O poder pelo qual somos reunidos é divino, pois é o
Espírito Santo. E a autoridade para a nossa reunião é divina, pois é a palavra de
Deus.
Tudo isto é tão claro quanto precioso; e tudo que necessitamos é simplicidade
de fé para o aceitar e agirmos de acordo com ele. Se começamos por raciocinar
sobre isto, é certo cairmos em trevas; e se escutarmos as opiniões humanas,
seremos submergidos em perplexidade entre conflitos das seitas e partidos da
cristandade. O nosso único refúgio, o nosso único recurso, a nossa única força, o
nosso único conforto, a nossa única autoridade é a preciosa Palavras, de Deus. Tirai
esta, e não temos absolutamente nada. Dai-no-la, e não necessitaremos de nada
mais.
Ê isto que torna tudo tão real e tão sólido para as nossas almas. Sim, leitor, e
também o que nos dá tanto consolo e tranqüilidade. A verdade a respeito da nossa
reunião é tão clara, e tão simples, e tão indiscutível como a verdade a respeito da
nossa salvação. E privilégio de todos os cristãos estarem tão seguros de se reunir em
terreno de Deus, pelo poder de Deus, e por autoridade de Deus, como se sentem
seguros de que estão dentro do bendito círculo da salvação de Deus.
E, por outro lado, se se nos perguntar: "Como podemos estar certos de estar em
redor do centro de Deus?-" Nós respondemos simplesmente pela palavra de Deus.
Como podia o antigo Israel estar seguro quanto ao lugar escolhido por Deus para
sua reunião? Por Seu mandamento expresso. Faltava-lhes alguma coisa para sua
orientação? Não, certamente; a Sua Palavra era tão clara e tão precisa quanto ao
lugar de culto como o era a respeito de tudo mais. Não deixava o mais simples
motivo para incerteza. Estava exposta tão claramente diante deles que, aquele que
levantasse uma dúvida, só podia ser considerado como obstinado, ignorante,
positivamente desobediente.
Agora, a questão é esta: Os cristãos estão em piores condições que Israel a
respeito do grande assunto do seu lugar de culto, o centro e terreno da sua
reunião?- São deixados na dúvida e incerteza? É um tema aberto à discussão«? É
um assunto sobre o qual cada um é livre para fazer o que parece bem aos seus
olhos? Deus tem-nos dado instruções precisas e definidas sobre um assunto tão
profundo e essencialmente interessante? Poderíamos nós imaginar, por um
momento, que Aquele que, benevolamente, condescendeu em instruir o Seu
antigo povo em assuntos que, em nossa imaginária sabedoria, nos parecem
desnecessários, deixaria a Sua Igreja no tempo presente sem nenhuma orientação
quanto ao fundamento, o centro, e rasgos característicos do nosso culto?
Impossível! Todavia a inteligência espiritual deve rejeitar, com decisão e energia,
tal idéia.

Jerusalém, o Futuro Centro de todas as Nações


Não, prezado leitor crente, sabemos que não seria próprio do nosso Deus de
toda a graça tratar desta forma com o Seu povo celestial. Decerto que não há agora
lugar determinado ao qual todos os cristãos devam acorrer periodicamente para
render culto. Havia um tal lugar para o povo terrestre de Deus; e haverá, dentro
em pouco, um tal lugar para Israel restaurado e para todas as nações. "E acontecerá,
nos últimos dias, que se firmará o monte da Casa do SENHOR no cume dos montes; e
se exalçará por cima dos outeiros: e concorrerão a ele todas as nações. E virão
muitos povos e dirão: Vinde, subamos ao monte do SENHOR, À casa do Deus de Jacó,
para que nos ensine o que concerne aos seus caminhos, e andemos nas suas
veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém, a palavra do SENHOR" (Is 2:2,3).
"E acontecerá que todos os que restarem de todas as nações que vieram contra
Jerusalém subirão de ano em ano para adorarem o Rei, o SENHOR dos Exércitos, e
para celebrarem a Festa das Cabanas. E acontecerá que, se alguma das famílias da
terra não subira Jerusalém, para adorar o Rei, o SENHOR dos Exércitos, não virá
sobre ela a chuva" (Zc 14:16-17).
Eis duas passagens separadas, uma da primeira e a outra da última, mas
formando uma, dos profetas divinamente inspirados, apontando ambas para o
tempo glorioso em que Jerusalém será o centro de Deus para Israel e todas as
nações. E podemos afirmar com toda a confiança que o leitor encontrará todos
estes profetas de comum acordo, em perfeita harmonia com Isaías e Zacarias sobre
este assunto profundamente interessante. Aplicar tais passagens à Igreja ou ao céu,
é violentar as mais importantes e claras expressões que jamais soaram aos ouvidos
humanos; é confundir as coisas terrestres com as celestiais, e contradizer as vozes
divinamente harmoniosas dos profetas e apóstolos.
E desnecessário acumular citações. Toda a Escritura tende a provar que
Jerusalém era e será ainda o centro terrestre de Deus para o Seu povo, e para todas
as nações. Mas, presentemente, quer dizer, desde o dia de Pentecostes, quando o
Espírito Santo, desceu, para formar a Igreja de Deus, o corpo de Cristo, até ao
momento em que nosso Senhor Jesus Cristo virá para levar o Seu povo deste
mundo, não há um lugar, nem localidade sagrada, nenhum centro terrestre para o
povo do Senhor. Falar aos cristãos de lugares santos ou terreno consagrado é tão
estranho para eles — pelo menos devia sê-lo — como teria sido dizer a um judeu
que tinha o seu lugar de culto no céu. A idéia é completamente imprópria, de todo
absurda.

A Adoração em Espírito e em Verdade


Se o leitor consultar, por uns momentos, o capítulo 4 de João, encontrará, no
maravilhoso discurso de nosso Senhor à mulher de Sicar, o mais bendito ensino
sobre este assunto. "Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais
adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém, o lugar onde se deve
adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem em que nem neste monte
nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o
que sabemos por que a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que
os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai
procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram
o adorem em espírito e em verdade" (versículos 19 a 24).
Esta passagem põe inteiramente de lado o pensamento de qualquer lugar
especial de culto no tempo presente. Não existe realmente tal coisa. "Mas o
Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens, como diz o profeta: O
céu é o meu trono, e a terra o estrado dos meus pés. Que casa me edificareis, diz o
Senhor, ou qual é o lugar do meu repouso? Porventura, não fez a minha mão todas
estas coisas?-" (At 7:48-50) "O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo
Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens, nem
tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa;
pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração e todas as coisas" (At
17:24-25).
O ensino do Novo Testamento, desde o princípio ao fim, é claro e terminante
quanto ao assunto da adoração; e o leitor crente está solenemente obrigado a
prestar atenção a esse ensino, e a procurar compreendê-lo e submeter todo o seu
ser moral à sua autoridade. Tem havido, desde os primeiros séculos da história da
igreja, uma forte e fatal tendência para voltar ao judaísmo, não só quanto ao
assunto da justiça, mas também no assunto do culto. Os cristãos não só têm sido
postos sob a lei no tocante à vida e justificação, mas também debaixo do ritual do
Levítico no tocante à ordem e caráter do seu culto. Já tratamos do primeiro assunto
em capítulos 4 e 5 destes "Estudos"; mas o último não é menos grave em seus
efeitos sobre o tom e caráter da vida e conduta cristãs.
Devemos lembrar que o grande objetivo de Satanás é depor a Igreja de Deus do
excelente lugar que ocupa quanto à sua posição, sua conduta e culto. Apenas a
Igreja foi constituída no dia de Pentecostes, ele começou o Seu processo de
corrupção e de sapa, e durante longos dezoito séculos tem-no continuado com
diabólica persistência. Não obstante, das passagens claras acima citadas a respeito
do caráter do culto que o Pai busca atualmente, e quanto ao fato de que Deus não
habita em templos feitos por mãos de homens, temos visto, em todas as épocas, a
forte tendência para voltar ao estado de coisas debaixo da dispensação moisaica.
Daí o desejo de erguer grandes edifícios, imponentes rituais, ordens sacerdotais,
serviços corais, os quais estão todos em direta oposição à mente de Cristo e aos
ensinos mais claros do Novo Testamento. A igreja professante tem-se apartado
inteiramente do espírito e autoridade do Senhor em todas estas coisas; e, contudo,
é singular e triste dizer, estas coisas são continuamente invocadas como progresso
maravilhoso do cristianismo. É dito por alguns dos nossos mestres e guias que o
bendito apóstolo Paulo fazia uma pequena idéia da grandeza que a igreja devia
alcançar; mas se ele pudesse apenas ver uma das nossas veneráveis catedrais, com
suas soberbas naves e suas janelas multicores, e ouvir os ruídos do órgão e as vozes
dos coristas, veria o progresso que se havia feito sobre o cenáculo de Jerusalém!
Ah, prezado leitor, podemos estar certos de que é tudo uma completa ilusão!
Decerto, é verdade que a igreja tem feito progresso, mas é na direção errada; não é
dirigido para cima, mas para baixo. É para longe de Cristo, longe do Pai, longe do
Espírito, longe da Palavra.
Queremos fazer ao leitor esta pergunta: Se o apóstolo Paulo estivesse para vir a
Londres no próximo dia do Senhor, onde poderia encontrar o que encontrou em
Trôade, há dezoito séculos, segundo está relatado em Atos 20:7? Onde poderia
encontrar uma companhia de discípulos reunidos, simplesmente, pelo Espírito
Santo, para o nome de Jesus, para partir o pão em memória d'Ele, e mostrarem a
Sua morte até que venha? Tal era então a ordem divina, e tal deve ser a ordem
divina no tempo presente. Não podemos, de modo nenhum, crer que o apóstolo
pudesse aceitar outra coisa que não fosse isto. Buscaria o princípio divino; ou o
teria ou nada. Ora, onde o podia ele encontrará Aonde podia ir e encontrar a mesa
do Senhor conforme foi posta por Si mesmo na noite em que foi traído?
Note-se, prezado leitor, que nós somos obrigados a crer que o apóstolo Paulo
insistiria em ter a mesa e a ceia do seu Senhor, como as havia recebido diretamente
d'Ele na glória, e dadas pelo Espírito em capítulos 10 e 11 da sua epístola aos
Coríntios — uma epístola dirigida a "todos os que em todo lugar invocam o nome
de nosso Senhor Jesus Cristo." Não podemos crer que ele ensinasse a ordem de
Deus, no primeiro século, e aceitasse a desordem no século dezenove. O homem
não tem o direito de se intrometer nas instituições divinas. Não tem mais
autoridade para alterar um jota ou um til em relação com a ceia do Senhor do que
Israel tinha para interferir na ordem da Páscoa.

Um Único Centro: O Nome de Jesus


Ora, repetimos a pergunta—e rogamos sinceramente ao leitor que a considere
e responda na presença divina, à luz da Escritura: Onde poderia o apóstolo achar
isto em Londres ou em qualquer outra parte da cristandade no próximo dia do
Senhor? Aonde poderia ir e ocupar o seu lugar à mesa d Senhor, no meio de uma
companhia de discípulos reunidos simplesmente sobre o fundamento de um só
corpo, com o único centro, o nome de Jesus, pelo poder do Espírito Santo, e a
autoridade da Palavra de Deus ? Onde poderia ele encontrar uma esfera em que
pudesse exercer os seus dons sem autoridade humana, nomeação ou ordenação?-
Formulamos estas interrogações a fim de exercitar o coração e a consciência do
leitor. Estamos plenamente convencidos que há lugares, aqui e ali, nos quais Paulo
podia encontrar estas coisas postas em prática, embora em fraqueza e faltas; e
cremos que o leitor crente é solenemente responsável por as descobrir. Ah! São
poucos e muitos espaçados em comparação com a massa dos cristãos que se reúnem
em condições diferentes!
Talvez se diga que se as pessoas soubessem que era o apóstolo Paulo, lhe
permitiriam de boa vontade que exercesse o ministério. Mas em tal caso ele não
pediria nem aceitaria tal permissão, visto que ele nos diz claramente, no primeiro
capítulo de Gálatas, que o seu ministério não era "da parte dos homens, nem por
homem algum, mas por Jesus Cristo, e por Deus Pai que o ressuscitou dos mortos."
E mais, podemos estar seguros de que o bem-aventurado apóstolo insistiria em
ter a mesa do Senhor posta sobre o princípio divino de um só corpo; e só podia
consentir em comer a Ceia do Senhor segundo a ordem divina exposta no Novo
Testamento. Não poderia aceitar, de modo nenhum, coisa alguma que não fosse a
realidade divina. Diria: "Ou isso ou nada." Não poderia admitir qualquer
interferência humana na instituição divina; nem tampouco poderia aceitar
qualquer novo princípio de reunião, ou qualquer princípio de organização.
Repetiria as suas próprias declarações inspiradas: "Há um só corpo e um Espírito" e:
"Nós sendo muitos, somos um só pão e um só corpo; porque todos participamos do
mesmo pão." Estas palavras são aplicadas a "todos os que em todo lugar invocam o
nome de nosso Senhor Jesus Cristo"; e mantêm o seu valor durante todos os séculos
da existência da Igreja na Terra.
Convém que o leitor esteja ciente e bem esclarecido sobre este ponto. O
princípio divino de reunião e unidade não deve, de modo algum, ser abandonado.
Logo que os homens começam a organizar-se, a formar sociedades, igrejas ou
associações, atuam em direta oposição à Palavra de Deus, à mente de Cristo, e à
atuação presente do Espírito Santo. Bem pode o homem tentar formar um mundo
como formar uma igreja. E inteiramente uma obra divina. O Espírito Santo desceu,
no dia de Pentecostes, para formar a Igreja de Deus, o corpo de Cristo; e esta é a
única Igreja, o único corpo que a Escritura reconhece; todo o mais é contrário a
Deus, embora seja sancionado e defendido por milhentos verdadeiros cristãos.
Não queremos que o leitor nos compreenda mal. Não estamos a falar agora da
salvação, da vida eterna, ou da justiça, mas do verdadeiro terreno de reunião, o
princípio divino sobre o qual a mesa do Senhor deve ser posta, e celebrada a ceia do
Senhor. Milhares do amado povo do Senhor têm vivido e morrido na comunhão da
igreja de Roma; mas a igreja de Roma não é a igreja de Deus, mas uma horrenda
apostasia; e o sacrifício na missa não é a ceia do Senhor, mas uma invenção
mutilada e manchada pelos homens. Se a questão suscitada na mente do leitor é
meramente de saber qual a quantidade de erro que pode ser tolerado sem
comprometer a salvação da sua alma, de nada servirá continuarmos a expor o
magno e importante problema que temos diante de nós.
Mas onde está o coração que ama a Cristo que pode contentar- se em tomar
uma posição tão baixa como esta?- Que havia de pensar- se de um antigo israelita
que pudesse contentar-se por ser filho de Abraão e desfrutar a sua vinha e as suas
figueiras, os seus rebanhos e manadas, sem nunca pensar em ir adorar no lugar
onde o Senhor tinha posto o Seu nome? Onde estava o judeu fiel que não amava
esse sítio sagrado? "Senhor, tenho amado a habitação da tua casa e o lugar onde
permanece a tua glória" (SI 26:8).
E depois, quando por causa do pecado de Israel, a política nacional foi
derrubada e o povo levado em cativeiro, ouvimos os exilados, que eram
verdadeiramente fiéis, derramar as suas lamentações no comovedor e eloqüente
tom seguinte: "Junto aos rios da Babilônia nos assentamos e choramos,
lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros, que há no meio dela, penduramos as nossas
harpas. Porquanto aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os
que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos um dos cânticos de
Sião. Mas como entoaremos o cântico do Senhor em terra estranha? Se eu me
esquecer de ti, ó Jerusalém" — o centro de Deus para o Seu povo terrestre —,
"esqueça-se a minha destra da sua destreza. Apegue-se-me a língua ao paladar, se
me não lembrar de ti, senão preferir Jerusalém à minha maior alegria" (SI 137:1-6).
E em capítulo 6 de Daniel, encontramos esse querido exilado abrindo a sua
janela três vezes ao dia, e orando voltado para Jerusalém, embora soubesse que a
cova dos leões era o castigo imposto. Mas porque insistir em orar voltando para
Jerusalém? Era uma parte da superstição judaica? Não; era uma magnífica
demonstração do princípio divino; era desfraldar o padrão divino por entre as
conseqüências depressivas e humilhantes da loucura e pecado de Israel. Decerto,
Jerusalém estava em ruínas; mas os pensamentos a respeito de Jerusalém não
estavam arruinados. Era o centro de Deus para o Seu povo terrestre. "Jerusalém
está edificada como uma cidade bem sólida, aonde sobem as tribos, as tribos do
SENHOR, como testemunho de Israel, para darem graças ao nome do SENHOR. Pois
ali estão os tronos do juízo, os tronos da casa de Davi. Orai pela paz de Jerusalém!
Prosperarão aqueles que te amam. Haja paz dentro de teus muros e prosperidade
dentro dos teus palácios. Por causa dos meus irmãos e amigos, direi: haja paz em ti!
Por causa da Casa do SENHOR, nosso Deus, buscarei o teu bem" (SI 122:3-9).
Jerusalém era o centro para as doze tribos de Israel, em tempos passados, e
sê-lo-á no futuro. Aplicar esta passagem e outras semelhantes à Igreja de Deus
agora ou depois, na terra ou no céu, é simplesmente voltar as coisas de cima para
baixo, confundir coisas essencialmente diferentes, e fazer, deste modo, um
prejuízo incalculável tanto à Escritura como às almas. Não nos devemos permitir
tais liberdades com a Palavra de Deus.
Jerusalém era e será o centro terrestre de Deus; mas, no tempo presente, a
Igreja de Deus não deve reconhecer nenhum centro senão o glorioso e
infinitamente precioso nome de Jesus. "Onde estiverem dois ou três reunidos em
meu nome, aí estou eu no meio deles." Centro precioso! É para este somente que o
Novo Testamento aponta, e para este só agrega o Espírito Santo. Não importa onde
estamos congregados, em Jerusalém ou em Roma, Londres, Paris ou Cantão. O caso
não é onde, mas como.
Mas, não se esqueça, tem que ser uma realidade divina. De nada serve
professarmos estar reunidos em ou para o bendito nome de Jesus, se não o estamos
realmente. A palavra do apóstolo quanto à fé pode aplicar-se com igual força à
questão do nosso centro de reunião. "Que aproveitará, irmãos meus, se alguém
disser", que está reunido para o nome de Jesus? Deus trata com realidades morais; e
enquanto é perfeitamente claro que o homem que deseja ser fiel a Cristo não pode,
de modo nenhum, consentir em reconhecer qualquer outro centro ou fundamento
de reunião senão o Seu nome, contudo é muito possível — ah, quão possível! —
que as pessoas professem estar sobre esse bendito e santo terreno, enquanto o seu
espírito e conduta, os seus hábitos e caminhos, todo o seu proceder e caráter
tendem a provar que não estão no poder da sua profissão.
O apóstolo disse aos Coríntios que queria "conhecer não as palavras mas o
poder". Uma palavra de peso, certamente, é muito necessária em todas as épocas,
mas especialmente com respeito ao assunto de que agora tratamos. Queremos no
espírito de amor, embora do modo mais solene, imprimir na consciência do leitor
cristão a sua responsabilidade de considerar este assunto no santo retiro da
presença do Senhor e à luz do Novo Testamento. Não o ponha de parte com o
pretexto de não ser essencial. É, no mais alto grau, essencial, visto que diz respeito
à glória do Senhor e à manutenção da sua verdade. Este é o único padrão pelo qual
se deve decidir o que é essencial e o que o não é. Era essencial para Israel reunir-se
no centro divinamente designado? Era uma questão deixada em aberto*? Podia
todo o homem escolher um centro a seu gosto? Considere-se a resposta à luz de
Deuteronômio 14. Era absolutamente essencial que o Israel de Deus se reunisse em
redor do centro do Deus de Israel. Isto é incontestável. Ai do homem que se
atrevesse a voltar as costas ao lugar onde o Senhor tinha posto o Seu nome! Teria,
rapidamente, de conhecer o seu erro. E se isto era verdadeiro para o povo terrestre
de Deus, não será igualmente verdadeiro para a Igreja e o crente em particular"?
Decerto que é. Estamos obrigados pelas mais elevadas e sagradas obrigações a
recusar todo o princípio de reunião que não seja o corpo de Cristo; todo o centro de
reunião que não seja o nome de Jesus; todo o poder de reunião seja o Espírito
Santo; toda autoridade de reunião que não seja a Palavra de Deus. Que todo o
amado povo do Senhor, em toda a parte, seja levado a considerar estas coisas no
temor e amor do Seu santo nome!

A Parte do Levita
Vamos encerrar agora esta parte citando o último parágrafo do nosso capítulo,
no qual encontraremos algum ensino prático muito valioso.
"Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e
os recolherás nas tuas portas. Então virá o levita (pois nem parte nem herança tem
contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e
comerão, e fartar-se-ão, para que o SENHOR ,teu Deus, te abençoe em toda a obra
das tuas mãos, que fizeres" (versículos 28 e 29).
Aqui temos uma encantadora cena doméstica, uma demonstração muito
tocante do caráter divino, um belo resplendor da graça
bondade do Deus de Israel. Faz bem ao coração respirar o ar fragrante de uma
passagem tal como esta. Forma um contundente e vívido contraste com o egoísmo
frio da cena em redor de nós. Deus quis ensinar o Seu povo a pensar e cuidar de
todos os que estavam em necessidade. O dízimo pertencia-Lhe, mas dava-lhe o
raro e excelente privilégio de o dedicar ao feliz objetivo de dar alegria aos corações.
Existe uma doçura especial nas palavras "virá", "comerão" e "fartar-se-ão".
Quão próprio do nosso Deus sempre bondoso! Deleita-Se em satisfazer as
necessidades de todos. Abre a Sua mão, e satisfaz o desejo de todo o ser vivente. E
não só isso, mas é Seu gozo fazer do Seu povo o canal mediante o qual possa correr
para todos a bondade e simpatia do Seu coração. Quão precioso é isto! Que
privilégio sermos os esmoleres de Deus, os despenseiros da Sua generosidade, os
expoentes da Sua bondade! Oxalá nós entrássemos mais plenamente na
bem-aventurança de tudo isto! Possamos nós respirar mais e mais a atmosfera da
presença divina, e então refletiremos mais fielmente o caráter divino!
Como o tema profundamente interessante e prático apresentado nos versículos
28 e 29 terá de ocupar a nossa atenção, em conexão com outros temas, nos nossos
estudos sobre o capítulo 26, não nos deteremos mais sobre ele aqui.
— CAPÍTULO 15 —

A REMISSÃO DO SENHOR

Um Mandamento de Amor
"Ao fim dos sete anos farás remissão. Este, pois, é o modo de remissão: que todo
o credor, que emprestou ao seu próximo uma coisa, o quite; não a exigirá do seu
próximo ou do seu irmão, pois a remissão do SENHOR É apregoada. Do estranho a
exigirás, mas o que tiveres em poder de teu irmão a tua mão o quitará, somente
para que entre ti não haja pobre; pois o SENHOR abundantemente te abençoará na
terra que o SENHOR, teu Deus, te dará por herança, para a possuíres, se somente
ouvires diligentemente a voz do SENHOR, teu Deus, para cuidares em fazer todos
estes mandamentos que hoje te ordeno. Porque o Senhor, teu Deus, te abençoará,
como te tem dito; assim, emprestarás a muitas nações, mas não tomarás
empréstimos; e dominarás sobre muitas nações, mas elas não dominarão sobre ti"
(versículos 1 a 6).
É verdadeiramente edificante observar o modo como o Deus de Israel
procurava sempre atrair os corações do Seu povo por meio dos diversos sacrifícios,
solenidades e instituições do cerimonial levítico. Havia o sacrifício do cordeiro de
manhã e á tarde, diariamente; havia o sábado santo, todas as semanas; havia a lua
nova, todos os meses; havia a páscoa, todos os anos; havia os dízimos cada três anos;
havia a remissão, cada sete anos; e havia o jubileu cada cinqüenta anos.
Tudo isto está repleto do mais profundo interesse. Conta a sua doce história, e
ensina a sua preciosa lição à alma. O cordeiro da manhã e da tarde, como sabemos,
apontava sempre para "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo". O sábado
era o encantador tipo do descanso que resta para o povo de Deus. A lua nova
prefigurava admiravelmente o tempo em que Israel restaurado refletirá os raios do
Sol da justiça sobre as nações. A páscoa era o memorial permanente da libertação
da nação da escravidão do Egito. O ano dos dízimos mostra o fato de o Senhor ter o
direito de propriedade da terra, como também da bela maneira como as Suas
rendas deviam ser dispendidas para satisfazer as necessidades dos Seus obreiros e
dos Seus pobres. O ano sabático era a promessa de um tempo brilhante quando
todos os débitos seriam cancelados, todos os empréstimos extintos, todas as
obrigações removidas. E, finalmente, o jubileu era o magnífico tipo dos tempos da
restituição de todas as coisas, quando os cativos serão postos em liberdade, o
desterrado voltará à sua herança por tanto tempo perdidas; e quando a terra de
Israel e toda a terra se regozijará sob o beneficente governo do Filho de Davi.
Ora, em todas estas belas instituições descobrimos duas características
proeminentes, a saber: glória para Deus, e bênção para os homens. Estas duas coisas
estão unidas entre si por um laço divino e eterno. Deus tem assim ordenado que a
Sua plena glória e a bênção completa da criatura sejam indissoluvelmente unidas.
Isto dá profundo gozo ao coração e ajuda-nos a entender de um modo mais perfeito
a força e beleza daquela expressão tão conhecida: "Nos regozijamos na esperança
da glória de Deus." Quando essa glória brilhar em todo o seu pleno esplendor,
então, certamente, a bem- aventurança humana, descanso e felicidade atingirão a
sua completa e eterna consumação.
Vemos uma encantadora garantia e prefiguração de tudo isto no ano sétimo.
Era "a remissão do Senhor", e portanto a sua bendita influência devia ser sentida
por todo o pobre devedor desde Dã até Berseba. O Senhor queria conceder ao Seu
novo o elevado e santo privilégio de ter comunhão Consigo fazendo saltar o
coração do devedor de alegria. Queria ensinar-lhes, se eles quisessem aprender, a
profunda bem-aventurança de perdoar tudo francamente. E nisto que Ele mesmo
Se deleita, bendito seja para sempre o Seu grande e glorioso nome!

O Egoísmo do Coração Humano


Mas, ah, o pobre coração humano não está à altura desta distinção ! Não está
devidamente preparado para trilhar esta vida celestial.
Está, lamentavelmente, embaraçado e impedido por um baixo e miserável
egoísmo para compreender e levar a efeito o princípio divino de graça. Não se
sente no seu ambiente nesta atmosfera celestial. Não está convenientemente
preparado para servir de receptáculo e veículo da graça real que brilha tão
esplendidamente em todos os caminhos de Deus. Isto explica claramente as
cláusulas admonitórias da seguinte passagem: "Quando entre ti houver algum
pobre de teus irmãos, em alguma das tuas portas, na tua terra que o SENHOR, teu
Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão
que for pobre; antes, lhe abrirás de todo a tua mão e livremente lhe emprestarás o
que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. Guarda-te que não haja palavra
de Belial no teu coração, dizendo: Vai-se aproximando o sétimo ano, o ano da
remissão, e que o teu olho seja maligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês
nada; e que ele clame contra ti ao SENHOR, e que haja em ti pecado. Livremente lhe
darás, e que o teu coração não seja maligno, quando lhe deres, pois, por esta causa,
te abençoará o SENHOR, teu Deus, em toda a tua obra, e em tudo no que puseres a
tua mão. Pois nunca cessará o pobre do meio da terra; pelo que te ordeno, dizendo:
Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado e para o teu
pobre na tua terra" (versículos 7 a 11)
Aqui as profundas origens do pobre coração egoísta são descobertas e julgadas.
Nada há como a graça para pôr a descoberto as raízes ocultas do mal na natureza
humana. O homem tem de ser renovado nas mais profundas origens do seu ser
moral antes de poder ser o veículo do amor divino; e até mesmo aqueles que são
assim pela graça renovados têm de vigiar, continuamente, contra as horrendas
formas de egoísmo em que a nossa natureza pecaminosa se reveste. Nada senão a
graça pode manter o coração amplamente aberto a todas as formas de necessidade
humana. Temos de permanecer junto à fonte do amor celestial se queremos ser
canais de bênção no meio de uma cena de miséria e desolação como aquela em que
caiu a nossa sorte.
Quão formosas são estas palavras: "Livremente abrirás a tua mão!" Exalam o
próprio ar do céu. Um coração aberto e uma mão liberal são próprios de Deus.
"Deus ama ao que dá com alegria", porque Ele é precisamente assim. "Dá a todos
liberalmente, e não lho lança em rosto." E quer conceder-nos o raro e excelente
privilégio de sermos Seus imitadores. Graça admirável! O só pensar nela enche o
coração de admiração, amor e louvor. Não só somos salvos pela graça, mas
permanecemos em graça, vivemos sob o bendito reino da graça, respiramos a
própria atmosfera da graça e somos chamados para sermos os expoentes vivos da
graça, não apenas para os nossos irmãos, mas para toda a família humana. "Então,
enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos
da fé" (Gl 6:10).
Prezado leitor, apliquemos diligentemente os nossos corações a toda esta
instrução divina. E preciosíssima; mas a sua verdadeira preciosidade só pode ser
provada na sua execução prática. Estamos rodeados de milhentas formas de miséria
humana, dor humana, necessidade humana. Há corações despedaçados, espíritos
esmagados, lares desolados, em redor de nós, por todos os lados. Encontramo-nos
diariamente na nossa vida com a viúva, o órfão e o estrangeiro. Como nos
comportamos com todos eles? Endurecemos os nossos corações e fechamos as
nossas mãos contra eles?- Ou procuramos agir no formoso espírito da "remissão do
Senhor" ? Devemos lembrar que somos chamados para refletir a natureza e caráter
divino e para sermos canais de comunicação entre o coração de amor de nosso Pai
e toda a forma de necessidade humana. Não temos de viver para nós mesmos;
fazê-lo é a negação miserável de todo o rasgo e princípio daquele cristianismo
moralmente glorioso que professamos. E nosso elevado e santo privilégio, ou,
antes, é nossa missão especial, derramar em redor de nós a bendita luz daquele céu
a que pertencemos. Onde quer que estamos, na família, no campo, no mercado ou
na fábrica, na loja ou na casa de despacho, todos os que entram em contato conosco
devem ver a graça de Jesus brilhar nos nossos modos, nas nossas palavras, no nosso
olhar. E então quando se nos apresenta um necessitado, se nada mais podermos
fazer, devemos dizer-lhe ao ouvido uma palavra de conforto, ou verter uma
lágrima ou dar um suspiro de verdadeira e cordial simpatia.
Acontece assim conosco? Vivemos tão perto da fonte do amor divino, e
respiramos de tal modo o próprio ar do céu que a bendita fragrância destas coisas é
derramada ao redor de nós?- Ou manifestamos o egoísmo odioso da natureza, o
ímpio temperamento e disposição da nossa humanidade caída e corrupta? Que
objeto desagradável à vista é um cristão egoísta! É uma contradição evidente, uma
mentira vivente e ambulante. O cristianismo que ele professa faz ressaltar em
negro e terrível relevo o ímpio egoísmo que governa o seu coração e se revela na
sua vida.
O Senhor permita que todos os que professam ser cristãos, e assim se chamam,
possam conduzir-se, em sua vida diária, de modo a serem uma epístola de Cristo,
conhecida e lida por todos os homens! Deste modo, a incredulidade será, pelo
menos, privada de um dos seus maiores argumentos, uma das suas mais graves
objeções. Nada proporciona aos infiéis um mais forte argumento como as vidas
inconsistentes dos cristãos professos.
Não é que tal argumento possa manter-se por um instante, ou ser apresentado
no tribunal de Cristo, visto que todo aquele que tenha ao seu alcance um exemplar
das Sagradas Escrituras será julgado à luz dessas Escrituras, ainda mesmo que não
houvesse um só cristão consistente sobre a face da terra. Todavia, os crentes são
solenemente responsáveis por deixar brilhar a sua luz diante dos homens a fim de
que eles possam ver as suas boas obras e glorificar nosso Pai que está no céu.
Estamos solenemente obrigados a demonstrar e comprovar na vida diária os
princípios celestiais patenteados na Palavra de Deus. Devemos deixar o incrédulo
sem uma prova de evidência ou argumento: somos responsáveis por fazer assim.
Tomemos estas coisas a peito, e então teremos ocasião de bendizer a Deus pela
nossa meditação sobre a grata instituição "da remissão do Senhor".

O Servo Hebreu
Vamos citar agora a comovedora e bela instituição a respeito do servo hebreu.
Sentimos cada vez mais a importância de transcrever a própria linguagem do
Espírito Santo; porque embora possa dizer- se que o leitor tem a sua Bíblia para a
ela recorrer, sabemos, contudo, que quando se faz alusão a passagens da Escritura,
existe, em muitos casos, uma relutância para pôr de parte o livro que temos em
nossas mãos para ler o texto da Bíblia. E, além disso, nada há como a Palavra de
Deus; e quanto às observações que podemos fazer, o seu objetivo é simplesmente
auxiliar o prezado leitor crente a compreender e apreciar as Escrituras que
citamos.
"Quando teu irmão hebreu ou irmã hebréia se vender a ti, seis anos te servirá,
mas, no sétimo ano o despedirás forro de ti. E, quando o despedires de ti forro, não
o despedirás vazio. Liberalmente o fornecerás do teu rebanho, e da tua eira, e do
teu lagar; daquilo com que o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado lhe darás"
(versículos 12 a 14).
Quão perfeitamente belo! Quão característico é tudo isto do nosso Deus
sempre bondoso! Não quer que o irmão se vá embora vazio. A liberdade e a
pobreza não estariam em harmonia moral. O irmão devia ser despedido para seguir
o seu caminho livre e provido, emancipado e dotado, não só com a sua liberdade
mas com uma liberal fortuna com a qual podia recomeçar a vida.
Na verdade, isto é divino. Não necessitamos que se nos diga em que escola se
ensinavam tais excelentes princípios éticos. Têm o próprio círculo do céu; emitem
o odor fragrante do próprio Paraíso de Deus. Não é desta maneira que o nosso Deus
tem tratado conosco? Todo o louvor seja dado ao Seu glorioso nome! Não só nos
tem dado a vida e liberdade, mas nos tem provido liberalmente com tudo que
podemos necessitar no tempo e na eternidade. Abriu-nos a inesgotável tesouraria
do céu; sim, deu o Filho do Seu coração por nós, e para nós —por nós, para nos
salvar; para nós, para satisfazer-nos. Deu-nos todas as coisas que pertencem à vida
e à piedade; tudo que pertence à vida que agora é e à que há de vir está plena e
perfeitamente assegurado pela mão liberal do nosso Pai.
E não será profundamente comovedor observar o modo como o coração de
Deus se expressa no estilo em que o servo hebreu devia ser tratado? "Liberalmente
o fornecerás." Não de má vontade ou por necessidade. Devia ser feito de um modo
digno de Deus. Os atos do Seu povo devem ser o reflexo de Si mesmo. Somos
chamados à elevada e santa dignidade de Seus representantes morais. E maravi-
lhoso; mas assim é, pela Sua graça infinita. Não só nos tem libertado das chamas do
inferno eterno, mas chama-nos para agirmos por Ele, e sermos semelhantes a Ele
no meio de um mundo que crucificou o Seu Filho. E não somente nos tem
conferido esta excelsa dignidade mas nos tem dotado de uma fortuna principesca
para a mantermos. Os recursos inesgotáveis do céu estão à nossa disposição. Tudo é
nosso, "pela Sua infinita graça". Oh, possamos nós realizar plenamente os nossos
privilégios, e assim mais fielmente cumprir as nossas responsabilidades!
Em versículo 15 do nosso capítulo temos um motivo muito comovedor
apresentado ao coração do povo—um motivo eminentemente calculado para
despertaras suas afeições e simpatias. "E lembrar-te-ás de que foste servo na terra
do Egito, e de que o SENHOR, teu Deus, te resgatou; pelo que te ordeno hoje esta
coisa." A recordação da graça do Senhor em os redimir do Egito devia ser o motivo
permanente, poderoso e fundamental das suas ações em prol dos seus irmãos
pobres. Isto é um princípio infalível; e nada menos do que isto poderá bastar. Se
buscarmos os nossos motivos fora de Deus mesmo, e os Seus atos conosco, depressa
desanimaremos na nossa carreira prática. E só na medida em que mantemos ante
os nossos corações a maravilhosa graça de Deus manifestada a nosso favor, na
redenção que há em Cristo Jesus, que podemos prosseguir um curso de verdadeira,
ativa benevolência, quer seja para com os nossos irmãos ou os que estão de fora. Os
meros sentimentos de benevolência fervilhando em nossos corações, ou
provocados pelas aflições e inquietações e necessidades dos outros, desaparecerão.
E só no próprio Deus vivo que podemos encontrar o manancial perenal dos nossos
motivos.
O Servo que Prefere Ficar com Seu Amo
EM versículos 16 e 17 é encarado um caso em que um servo podia preferir ficar
com o seu amo. "Porém será que, dizendo-te ele: Não sairei de ti, porquanto te ama
a ti e a tua casa, por estar bem contigo, então tomarás uma sovela e lhe furarás a
orelha, à porta, e teu servo será para sempre."
Comparando esta passagem com Êxodo 21:1 a 6, vemos uma acentuada
diferença devido, como podíamos esperar, ao caráter distinto de cada livro. Em
Êxodo predomina o aspecto típico; em Deuteronômio o moral. Por isso, no último
o escritor inspirado omite tudo o que se refere à mulher e aos filhos, como caso
estranho ao seu propósito, embora tão essencial à beleza e perfeição do tipo em
Êxodo 21. Referimos isto apenas como uma das muitas provas admiráveis de que o
Deuteronômio está muito longe de ser uma estéril repetição dos seus
predecessores. Não há repetição, por um lado, nem contradição, por outro, mas
uma encantadora variedade em perfeito acordo com o objetivo e o intento de cada
livro. Isto basta quanto à desprezível frivolidade e ignorância daqueles escritores
infiéis que têm tido a ímpia temeridade de apontar os seus dardos a esta
magnificente porção dos oráculos de Deus.
Em nosso capítulo temos, pois, o aspecto moral desta interessante instituição.
O servo amava o seu amo e sentia-se feliz em sua companhia. Preferia a escravidão
perpétua e a marca dela, com o amo a quem amava, à liberdade e uma porção
liberal separado dele. Isto, claro, agradava bem às duas partes. É sempre um bom
sinal, tanto para o amo como para o servo, quando as relações são de longa duração.
As mudanças contínuas podem, regra geral, ser tomadas como uma prova de culpa
moral em qualquer das partes interessadas. Sem dúvida, há exceções; e não
somente isso, mas nas relações de amo e servo, assim como em tudo mais, há dois
lados a considerar. Por exemplo, temos de considerar se o amo muda
constantemente de servos ou se o servo muda, continuamente, de amo. No
primeiro caso, as aparências são contra o amo; no último, contra o servo.

A Relação entre Amo e Servo


O fato é que todos temos de nos julgar neste assunto. Os que são amos devem
considerar até que ponto buscam realmente o bem- estar, a felicidade e o
verdadeiro proveito dos seus servos. Devem lembrar-se que têm de pensar muito
mais a respeito dos seus servos do que no valor do trabalho que podem obter deles.
Até mesmo sob o baixo princípio de "viver e deixar viver", estamos obrigados a
procurar, de todos os modos possíveis, a felicidade e bem-estar dos nossos servos;
fazer com que eles sintam que têm um lar debaixo do nosso teto; que não só
estamos satisfeitos com o labor das suas mãos, mas que desejamos o amor dos seus
corações. Lembramo-nos de haver perguntado certa ocasião ao chefe de um grande
estabelecimento: "Quantos corações tem empregados aqui?" Meneou a cabeça e
confessou com verdadeira tristeza, que existe pouco de coração entre as relações de
amos e servos. Daí, a expressão vulgar e descoroçoada de "empregar mãos".
Porém, o amo cristão deve colocar-se a um nível mais elevado; tem o privilégio
de ser imitador do seu Mestre, Cristo. A recordação deste fato regulará todas as
suas ações com os criados; deve levá-lo a estudar, sempre com maior interesse e
mais proveito, o seu divino modelo, a fim de O reproduzir em todos os pormenores
práticos da vida diária.
Assim também deve fazer o servo cristão, na sua posição e linha de ação. Deve
estudar, assim como o seu amo, o grande exemplo posto diante de si na carreira e
ministério do único e verdadeiro Servo que jamais pisou esta terra. É chamado para
andar nas Suas benditas pisadas, para beber do Seu espírito, estudar a Sua Palavra.
É notável a maneira como o Espírito Santo tem dedicado mais atenção à instrução
dos servos do que a todas as outras relações humanas juntas. O leitor pode ver isto
prontamente nas epístolas aos Efésios, Colossenses e Tito. O servo cristão pode
adornar a doutrina de Deus, nosso Salvador, não furtando e não retorquindo. Pode
servir a Cristo, o Senhor, no lugar mais vulgar da vida doméstica tão eficazmente
como o homem que é chamado para pregar a milhares sobre as grandes realidades
da eternidade.
Assim quando ambos, amo e servo, são mutuamente governados por princípios
celestiais, procurando ambos servir e glorificar o mesmo Senhor, podem andar
juntos em ditosa companhia. O amo não será severo, arbitrário e rigoroso; e o servo
não buscará o que é seu, não será violento e altivo; contribuirá cada um pelo fiel
cumprimento dos seus deveres, para o bem-estar e felicidade do outro e para a paz
e felicidade de todo o círculo doméstico. Oxalá houvesse mais desta norma
celestial em todo o lar cristão sobre a face da terra! Então a verdade de Deus seria
realmente reivindicada, a Sua Palavra honrada, e o Seu nome glorificado nas
nossas relações domésticas e modos práticos.
Em versículo 18 temos uma palavra de advertência que nos revela, fielmente,
mas com grande ternura, uma raiz moral no pobre coração humano. "Não seja aos
teus olhos coisa dura, quando o despedires forro de ti; pois seis anos te serviu por
metade do salário do jornaleiro; assim o SENHOR , teu Deus,te abençoará em tudo o
que fizeres."
Isto é muito tocante. Pense-se no Deus Altíssimo condescendendo em
colocar-Se ante o coração humano — o coração de um amo—para defendera causa
de um pobre servo e apresentar os seus direitos! Era como se pedisse um favor para
Si. Não deixa nada por dizer a fim de dar força ao caso. Lembra ao amo o valor dos
seis anos de serviço, e estimula-o com a promessa de aumentar a bênção como
galardão da sua generosa ação. Isto é perfeitamente belo. O Senhor não só queria
que esta generosa ação se fizesse, mas que se fizesse de tal modo que alegrasse o
coração daquele a quem era feita; pensa não só na substância da ação, mas também
no modo de a praticar. Podemos, por vezes, tomar a decisão de fazer um favor;
fazemo-lo como um caso de obrigação; e, durante todo o tempo, pode parecer duro
termos de o fazer; desta forma o ato é desprovido de todos os seus encantos. E o
coração generoso que adorna o ato generoso. Devemos fazer de tal maneira que
aquele que o recebe esteja seguro de que o nosso coração se regozija pelo ato. Este é
o modo divino: "E não tendo eles com que pagar, perdoou a dívida a ambos." "Era
justo alegrarmo-nos e folgarmos." "Há alegria no céu por um pecador que se
arrepende." Oh, possamos nós refletir a preciosa graça do coração de nosso Pai!

O Primogênito
Antes de terminar as nossas observações sobre este capítulo profundamente
interessante, citaremos para o leitor o último parágrafo. "Todo primogênito que
nascer entre as tuas vacas e entre as tuas ovelhas, o macho santificarás ao SENHOR,
teu Deus; com o primogênito do teu boi não trabalharás, nem tosquiarás o
primogênito das tuas ovelhas. Perante o SENHOR, teu Deus, os comerás, de ano em
ano, no lugar que o SENHOR escolher, tu e a tua casa. Porém, havendo nele algum
defeito, se for coxo, ou cego, ou tiver qualquer defeito, não o sacrificarás ao
SENHOR, teu Deus. Nas tuas portas, o comerás; o imundo e o limpo o comerão
juntamente, como da corça ou do veado. Somente o seu sangue não comerás; sobre
a terra o derramarás como água" (versículos 19 a 23).
Só o que era perfeito devia ser oferecido a Deus. O primogênito, o macho sem
mancha, figura apropriada do imaculado Cordeiro de Deus, oferecido na cruz por
nós, o fundamento imperecível da nossa paz, e alimento precioso das nossas almas,
na presença de Deus. Este era o princípio divino; a assembléia reunida, em redor
do centro divino, alegrando-se na presença de Deus com aquilo que era o tipo
determinado de Cristo, que é, ao mesmo tempo, o nosso sacrifício, nosso centro, e
nosso alimento. Eterna e universal homenagem seja dada ao Seu preciosíssimo e
glorioso nome!
— CAPÍTULO 16 —

AS TRÊS GRANDES FESTAS DO SENHOR

A Páscoa e o Lugar de sua Celebração


Acercamo-nos agora de uma das mais profundas e compreensivas porções do
livro de Deuteronômio, na qual o autor inspirado nos apresenta o que podemos
chamar as três grandes principais festividades do ano judaico, a saber: a Páscoa, o
Pentecostes e os tabernáculos; ou a redenção, o Espírito Santo e a glória. Temos
aqui uma descrição mais condensada destas formosas instituições do que aquela
que nos é dada em Levítico 23, onde temos, se contarmos o sábado, oito
festividades; mas se considerarmos o sábado como distinto, tendo o seu lugar
próprio e especial como tipo do próprio descanso eterno de Deus, então há sete
festividades, isto é, a páscoa, a festa dos Pães Asmos; as Primícias; o Pentecostes, as
Trombetas; o Dia de Expiação; e os Tabernáculos.
Tal é a ordem das festividades no livro de Levítico, que, conforme nos
aventuramos a observar nos nossos estudos sobre aquele maravilhoso livro, pode
ser chamado "o guia do sacerdote". Mas em Deuteronômio, que é
preeminentemente o livro do povo, temos menos detalhes cerimoniais, e o
legislador restringe-se aos grandes limites morais e nacionais que, da maneira mais
simples, como foram adaptados ao povo, apresentam o passado, o presente e o
futuro.
"Guarda o mês de abibe, e celebra a Páscoa ao SENHOR, teu Deus; porque, no
mês de abibe, o SENHOR, teu Deus, te tirou do Egito, de noite. Então, sacrificarás a
páscoa ao SENHOR, teu Deus, ovelhas e vacas, no lugar que o SENHOR escolher para
ali fazer habitar o seu nome. Nela, não comerás levedado; sete dias nela comerás
pães asmos, pão de aflição (porquanto apressadamente saíste da terra do Egito),
para que te lembres do dia da tua saída da terra do Egito, todos os dias da tua vida.
Fermento não aparecerá contigo por sete dias em todos os teus termos; também da
carne que matares à tarde, no primeiro dia, nada ficará até à manhã. Não poderás
sacrificar a Páscoa em nenhuma das tuas portas que te dá o SENHOR, teu
Deus"—como se o lugar fosse coisa de pouca importância, contanto que se
lembrasse a festa — "senão no lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para fazer
habitar o seu nome" — e em nenhum outro — "ali sacrificarás a Páscoa, à tarde, ao
pôr -do- sol, ao tempo determinado da tua saída do Egito. Então, a cozerás e
comerás no lugar que escolher o SENHOR, teu Deus; depois, sairás pela manhã e irás
às tuas tendas. Seis dias comerás pães asmos, e no sétimo dia é solenidade ao
SENHOR,teu Deus; nenhuma obra farás" (versículos 1 a 8).
Havendo tratado a fundo nos nossos estudos sobre o livro do Êxodo dos
grandes princípios principais desta festa fundamental, recomendamos ao leitor
esse volume, se deseja estudar este assunto. Contudo, há certos aspectos peculiares
a Deuteronômio para os quais cremos ser nosso dever chamar a sua atenção. E em
primeiro lugar, temos de notar a notável ênfase posta no "lugar" onde a festa devia
ser celebrada. Isto é cheio de interesse e de importância prática. O povo não podia
escolher por si mesmo. Na opinião humana, podia parecer um assunto sem
importância onde e como era celebrada a festa, contanto que fosse celebrada. Mas
— note o leitor e pondere atentamente—o critério humano nada tinha
absolutamente a ver com o assunto; era por completo do critério e autoridade
divinos. Deus tinha o direito de prescrever e estabelecer definitivamente onde
queria que o Seu povo se reunisse; e faz isto da maneira mais clara e enfática na
passagem acima citada, na qual, por três vezes, insere a importante cláusula: "No
lugar que escolher o SENHOR, teu Deus."
E isto uma vã repetição? Ninguém se atreva a pensar e muito menos a afirmar
tal coisa. E uma ênfase necessária. Necessária por quê?- Por causa da nossa
ignorância, a nossa indiferença e a nossa teimosia. Deus, em Sua bondade infinita,
tem o cuidado especial de imprimir sobre o coração, a consciência e o
entendimento do Seu povo que quer ter um lugar especial onde a memorável e
muito significativa festa da Páscoa deve ser celebrada.
E note-se que é só em Deuteronômio que insiste no lugar dessa celebração.
Nada disto temos em Êxodo, porque então foi celebrada no Egito. Nada temos
acerca dela em Números, porque então era celebrada no deserto. Mas, em
Deuteronômio, é estabelecida de um modo autoritário e definitivo porque nele
temos as instruções para a terra prometida. Outra prova concludente de que o
Deuteronômio está muito longe, na verdade, de ser uma vã repetição dos seus
precedentes.
O ponto importante a respeito "do lugar" sobre o qual se insiste tão
proeminente e peremptoriamente em todas as três grandes solenidades
mencionadas no nosso capítulo é este: Deus queria reunir o Seu povo amado em
redor de Si para que eles pudessem alegrar-se na Sua presença: para que Ele
pudesse regozijar-se neles, e eles n'Ele e uns com os outros. Tudo isto só podia
efetuar-se no lugar especial de divina designação. Todos os que desejavam estar
com o Senhor e reunir-se com o Seu povo, todos os que desejavam render adoração
e ter comunhão segundo o pensamento de Deus, iam com agradecimento ao centro
divinamente designado. A vontade própria diria: "Não podemos celebrar a Páscoa
no seio da família? Que necessidade há de empreender uma longa jornada ? Se o
coração é reto, pouco importa o lugar." A tudo isto respondemos que a prova mais
clara, evidente de que o coração é reto consiste no simples e sincero desejo de fazer
a vontade de Deus. Era de todo suficiente para todo aquele que amava e temia a
Deus saber que Ele havia designado um lugar para reunir o Seu povo; ali eles
seriam encontrados e em nenhum outro lugar. A Sua presença podia transmitir
alegria, consolação, força e bênção a todas as suas grandes reuniões nacionais. Não
era o mero fato de um grande número de pessoas reunidas, três vezes por ano, para
celebrar a festa e se alegrarem juntamente; isto podia alimentar o orgulho humano,
a auto-complacência e excitação. Mas juntarem-se para encontrar o Senhor,
reunirem-se na Sua bendita presença, reconhecer o lugar onde Ele havia posto o
Seu nome, devia ser o profundo gozo de todo o coração verdadeiramente leal em
todas as doze tribos de Israel. Para alguém ficar voluntariamente em casa ou ir a
qualquer outro lugar que não fosse o lugar divinamente designado, seria não só
desprezar e insultar o Senhor mas, com efeito, revoltar-se contra a Sua suprema
autoridade.

O Fermento
E agora, depois de haver falado rapidamente do lugar, podemos, por instantes,
aludirão modo da celebração. Isto é, também, como poderíamos esperar,
característico do nosso livro. A parte essencial aqui é "os pães asmos". Mas o leitor
notará especialmente o fato interessante de que este pão é considerado "pão de
aflição". Ora, qual é o significado disto«?- Sabemos todos que o pão asmo é o tipo
daquela santidade de coração e vida essencial ao gozo da verdadeira comunhão
com Deus. Não somos salvos por santidade pessoal; mas, graças a Deus, somos
salvos para a santidade. Não é o fundamento da nossa salvação; mas é um elemento
essencial na nossa comunhão. O fermento permitido é o golpe mortal na
comunhão e adoração.
Não devemos esquecer, nem por um momento, este princípio fundamental na
vida de santidade pessoal e devoção prática que, como remidos pelo sangue do
Cordeiro, somos chamados, obrigados e estamos privilegiados a viver dia a dia no
meio das cenas e circunstâncias através das quais viajamos para o lugar do nosso
eterno repouso nos céus. Falar de comunhão e adoração enquanto vivemos em
pecado consciente é a prova triste de que não conhecemos nada nem de uma coisa
nem de outra. Para gozar comunhão com Deus ou a comunhão dos santos, e para
adorara Deus em espírito e em verdade, temos de viver uma vida de santidade
pessoal, uma vida de separação de todo mal consciente. Tomar o nosso lugar na
assembléia do povo de Deus, e professar tomar parte na santa comunhão e
adoração que Lhe pertencem, enquanto se vive em pecado oculto, ou consente o
mal nos outros, é profanar a assembléia, entristecer o Espírito Santo, pecar contra
Cristo e trazer sobre nós o juízo de Deus, que está agora julgando a Sua casa e
castigando os Seus filhos a fim de que não sejam condenados com o mundo.
Tudo isto é muito solene, e exige a mais viva atenção de todos os que desejam
realmente andar com Deus, e servi-Lo com reverência e santo temor. Uma coisa é
ter a doutrina do tipo na região do nosso entendimento e outra muito diferente ter
a sua lição moral gravada no coração e demonstrada em obras na vida diária. Que
todos os que professam ter o sangue do Cordeiro espargido sobre a sua consciência
procurem guardar a festa dos pães asmos. "Não sabeis que um pouco de fermento
faz levedar toda a massa<? Alimpai- vos, pois, do fermento velho, para que sejais
uma nova massa, assim como estais sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, foi
sacrificado por nós. Pelo que façamos festa, não com o fermento velho, nem com o
fermento da maldade e da malícia, mas com os asmos da sinceridade e da verdade"
(1 Co 5:6 a 8).

O Pão de Aflição
Mas que devemos compreender por "pão de aflição"? Não devemos antes
separar gozo, louvor e triunfo, em relação com a festa em memória da libertação da
escravidão e miséria do Egito? Sem dúvida, há profundo e verdadeiro gozo,
gratidão e louvor em ver realizada a bendita verdade da nossa plena libertação do
nosso primitivo estado com todas as suas conseqüências. Mas é evidente que estas
coisas não deviam ser os aspectos da festa pascal; com efeito, nem sequer são
mencionadas. Temos "o pão da aflição", mas nem uma palavra acerca do gozo,
louvor ou triunfo.
E por quê? Qual é a grande lição moral do pão de aflição para os nossos
corações? Cremos que põe diante de nós aqueles profundos exercícios de coração
que o Espírito Santo produz ao pôr, poderosamente, diante de nós o que custou ao
nosso adorável Senhor e Salvador o libertar-nos dos nossos pecados e do juízo que
esses pecados mereciam. Esses exercícios são também simbolizados pelas "ervas
amargas" de Êxodo 12, e são exemplificados, repetidas vezes, na história do antigo
povo de Deus, que eram guiados, sob a ação poderosa da Palavra e do Espírito de
Deus, a julgarem-se a si mesmos e afligirem as suas almas" na presença divina.
E recorde-se que não existe nada do elemento legal ou de incredulidade nestes
sagrados exercícios; muito longe disso. Quando um israelita participava do pão de
aflição com a carne assada da páscoa, queria dizer com isso que tinha dúvidas ou
temor quanto à sua plena libertação? Impossível! Como podia duvidará Estava na
terra; reunia-se no centro de Deus, na Sua própria presença. Como poderia então
duvidar da sua plena e definitiva libertação da terra do Egito? O pensamento é
simplesmente absurdo.
Mas embora não tivesse dúvidas ou temores quanto à sua libertação, contudo
tinha de comer o pão de aflição; era um elemento essencial na sua festa pascal:
"Porquanto apressadamente saíste da terra do Egito, para que te lembres do dia da
tua saída da terra do Egito, todos os dias da tua vida."
Isto era obra profunda e real. Não deviam esquecer nunca o seu êxodo do Egito,
mas guardar a lembrança dele, na terra da promissão em todas as gerações. Deviam
comemorar a sua libertação por meio de uma festa emblemática daqueles santos
exercícios que sempre caracterizam a verdadeira piedade cristã.
Queremos recomendar, sinceramente, à atenção do leitor toda a verdade
indicada pelo "pão de aflição". Cremos que isto é muito necessário a todos os que
professam grande familiaridade com o que é chamado as doutrinas da graça. Existe
grande perigo, especialmente para os novos professos, enquanto procuram evitar o
legalismo e a escravidão, de cair no extremo oposto de irreflexão—um terrível
ardil. Os crentes idosos e experimentados não estão sujeitos a cair neste triste mal;
são os novos entre nós que necessitam de ser solenemente avisados contra tal
perigo. Ouvem, talvez, falar muito da salvação pela graça, justificação pela fé,
libertação da lei e de todos os privilégios especiais da posição cristã.
Ora, desnecessário é dizermos que todas estas coisas são de capital importância;
e seria absolutamente impossível qualquer pessoa ouvir falar demasiado delas.
Oxalá se falasse mais dessas verdades, se escrevesse mais a seu respeito e se pregasse
mais sobre elas. Milhares do amado povo do Senhor passam todos os seus dias em
obscuridade, dúvidas, escravidão legal devido a ignorância dessas grandes verdades
fundamentais.
Mas, enquanto isto é, perfeitamente, verdadeiro, há, por outro lado, muitos
que, infelizmente, têm apenas uma familiaridade intelectual com os princípios da
graça, mas se julgarmos pelos seus hábitos e maneiras, expressões e
comportamento (a única maneira que temos de julgar) veremos que conhecem
muito pouco do poder santificador desses grandes princípios—do seu poder no
coração e na vida.
Ora, falando segundo o ensino da festa pascal, não estaria de acordo com a
mente de Deus alguém intentar guardar essa festividade sem os pães asmos, o pão
de aflição. Tal atitude não teria sido tolerada pelo antigo Israel. Era um ingrediente
absolutamente essencial. E assim, podemos estar seguros, é uma parte integral
daquela festa que nós, como cristãos, somos exortados a celebrar— cultivar a
santidade pessoal e aquele estado da alma que é tão apropriadamente expresso
pelas "ervas amargas", de Êxodo 12 ou o ingrediente de Deuteronômio, "o pão de
aflição", que mais tarde parece ser a figura permanente para a terra.
Numa palavra, pois, cremos que existe uma profunda e urgente necessidade
entre nós desses sentimentos e afetos espirituais, aqueles profundos exercícios da
alma que o Espírito quer produzir ao descobrir aos nossos corações os sofrimentos
de Cristo — quanto Lhe custou tirar os nossos pecados — o que Ele sofreu por nós
quando passou debaixo das ondas e vagas da justa ira de Deus contra os nossos
pecados. Carecemos, infelizmente—se nos é permitido falar pelos demais —
daquela profunda contrição de alma que emana da ocupação espiritual com os
sofrimentos e morte de nosso precioso Salvador. Uma coisa é ter o sangue de Cristo
espargido sobre a consciência e outra ter a morte de Cristo gravada de um modo
espiritual no coração e a cruz de Cristo aplicada, de um modo prático, a todo o
curso e caráter da nossa vida.
Como se explica que podemos cometer pecado tão facilmente em pensamento,
por palavras e obras?- Como se explica que haja tanta irreflexão, tanta insujeição,
tanta complacência, tanta ociosidade carnal, tanto daquilo que é frívolo e
superficial«?- Não será porque esse ingrediente figurado pelo "pão de aflição" falta
na nossa festa?- Não podemos duvidá-lo. Receamos que haja uma verdadeira falta
deplorável de seriedade e profundidade no nosso cristianismo. Há demasiada
discussão petulante dos profundos mistérios da fé cristã, demasiado conhecimento
intelectual sem o poder interior.
Tudo isto requer a mais séria atenção do leitor. Não podemos afastar a
impressão que temos de que este triste estado de coisas pode ser seguido
num determinado estilo de pregação do evangelho adotado, sem dúvida,
com a melhor das intenções, mas nem por isso menos pernicioso no seu efeito
moral. Basta que se pregue o Evangelho com simplicidade. Não pode, de
modo nenhum, ser apresentado com mais simplicidade do que o Espírito
Santo no-lo deu na Escritura.
Tudo isto é plenamente admitido; mas, ao mesmo tempo, estamos
persuadidos de que há um grave defeito na pregação de que falamos. Há
uma falta de profundidade espiritual, uma falta de santa seriedade. No
esforço de contrariar a legalidade, existe o que tende à irreflexão ou
leviandade. Ora, enquanto a legalidade é um grave mal, a irreflexão é muito
maior. Devemo-nos guardar contra ambas. Cremos que a graça é o remédio
para a primeira, a verdade para a última; mas é preciso sabedoria espiritual
para podermos ajustar, convenientemente, estas duas coisas. Se encontramos
uma alma profundamente exercitada pela poderosa ação da verdade,
inteiramente preparada pelo poderoso ministério do Espírito Santo, devemos
acrescentar-lhe profunda consolação da preciosa graça de Deus, revelada no
sacrifício divinamente eficaz de Cristo. Este é o remédio divino para um
coração quebrantado, um espírito contrito, uma consciência convicta.
Quando o profundo sulco é aberto pela relha espiritual, temos somente de
deitar nele a semente incorruptível do Evangelho de Deus, na certeza de que
ela criará raízes e dará fruto na estação própria.
Mas, por outro lado, se deparamos com uma pessoa que se conduz de
uma maneira ligeira, orgulhosa, de estado não quebrantado, empregando
uma linguagem presunçosa a respeito da graça, falando ruidosamente contra
a legalidade, e procurando, meramente de um modo humano, expor um
meio fácil de se ser salvo, achamos que é um caso que precisa da aplicação
solene da verdade ao coração e à consciência.
Tememos bastante que exista muito deste elemento espalhado pela igreja
professante. Empregando a linguagem do nosso tipo, diremos que existe
uma tendência para separar a Páscoa da festa dos pães asmos — para
descansar no fato de se estar libertado do juízo e esquecer o cordeiro assado, o
pão da santidade, e o pão de aflição. Ha realidade nunca poderão ser
separados, visto que Deus os uniu entre si; e, por isso, não cremos que
qualquer alma possa realmente estar gozando da preciosa verdade que
"Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós", sem procurar "guardar a festa".
Quando o Espírito Santo desenrola perante os nossos corações alguma coisa
da profunda bem-aventurança, preciosidade e eficácia da morte de nosso
Senhor Jesus Cristo, leva-nos a meditar no mistério dominante dos Seus
sofrimentos, a ponderar em nossos corações tudo que Ele passou por nós,
quanto Lhe custou lavar-nos das eternas conseqüências daquilo que nós,
desgraçadamente, cometemos tantas vezes com leviandade.
Ora isto é verdadeiramente obra santa, e conduz a alma àqueles exercícios
que correspondem com "o pão de aflição" na festa dos pães asmos. Existe
uma grande diferença entre os sentimentos produzidos pela nossa ocupação
com os nossos pecados e os sentimentos que resultam da ocupação com os
sofrimentos de Cristo para tirar os nossos pecados.
Decerto, nunca podemos esquecer os nossos pecados nem o abismo de
onde fomos tirados. Mas uma coisa é ocuparmo-nos com o abismo, e uma
coisa mais profunda e de maior importância ocuparmo-nos com a graça que
nos tirou dali, e o quanto custou ao nosso bendito Salvador fazê-lo. É este
último fato que devemos manter continuamente na memória dos
pensamentos de nossos corações. Somos tão inconstantes, tão susceptíveis de
esquecer isto.
Necessitamos de contar sinceramente com Deus para nos tornar aptos de
penetrar mais profunda e praticamente nos sofrimentos de Cristo e na
aplicação da cruz a tudo que há em nós que Lhe é antagônico. Isto nos
transmitirá profundidade de tom, ternura de espírito, intenso anelo por
santidade de coração e vida, separação prática do mundo, em todas as
diversas fases, santa submissão, zelosa vigilância sobre nós próprios, ou os
nossos pensamentos, as nossas palavras, os nossos caminhos: todo o nosso
comportamento na vida diária. Numa palavra, isto nos conduzirá a um tipo
de cristianismo muito diferente do que vemos em redor de nós, e que,
infelizmente, exibimos na nossa própria vida. Que o Espírito de Deus mostre aos
nossos corações, em Sua graça, pelo Seu direto e poderoso ministério, mais e mais o
que quer dizer a expressão "pães asmos", "carne assada no fogo" e "pão de aflição"
(1).

__________
(1) Para mais amplas observações sobre a Páscoa e a festa dos pães asmos, o leitor deve ler Êxodo 12 e
Números 9. No último, especialmente, se verá a ligação entre a Páscoa e a Ceia do Senhor. Isto é um ponto
do mais profundo interesse e de imensa importância prática. A Páscoa prefigurava a morte de Cristo; a
Ceia anuncia-a. Aquilo que a Páscoa era para o israelita fiel, é a ceia para a igreja. Se isto fosse mais
compreendido, haveria maior tendência a enfrentar a predominante irreflexão, indiferença e erro quanto
à mesa e ceia do Senhor.
Para todo aquele que vive habitualmente na atmosfera sagrada da Escritura, deve parecer estranho na
verdade notar a confusão de pensamento e a diversidade de prática a respeito de um assunto tão
importante e tão simples e claramente apresentado na Palavra de Deus.
A todo aquele que se inclina ante a Escritura não restará nenhuma dúvida de que os apóstolos e a
igreja primitiva se reuniam no primeiro dia da semana para partir o pão. Não existe no Novo Testamento
nem uma sombra de apoio para essa preciosíssima ordenança uma vez por mês, uma vez em cada trimestre,
ou uma vez em seis meses.
Isto só pode ser considerado como uma interferência humana com uma instituição divina. Sabemos
que se procura raciocinar muito com as palavras: "Todas as vezes que fizerdes isto"; mas não vemos como
qualquer argumento baseado nesta cláusula se possa manter um só momento, perante o precedente
apostólico em Atos 20:7. O primeiro dia da semana é, incontestavelmente, o dia para a igreja celebrar a
ceia do Senhor.
O leitor crente admite isto? Se o admite, atua de acordo com elei É, uma coisa séria descurar uma
ordenança especial de Cristo, que foi instituída por Ele, na noite em que foi traído, em circunstâncias tão
profundamente comovedoras. Seguramente, todos os que amam o Senhor Jesus Cristo em sinceridade
quererão recordá-Lo deste modo especial, segundo as Suas próprias palavras: "Fazei isto em memória de
mim." Podemos compreender que haja quem ame verdadeiramente a Cristo e viva em habitual descuido
deste precioso memorial? Se um israelita na antiguidade descurasse a Páscoa, teria sido "cortado". Mas isto
era lei, e nós estamos debaixo da graça. Com certeza; mas é isto uma razão para desprezarmos o
mandamento do Senhor?
Queremos deixar este assunto ã cuidadosa atenção do leitor. Existe muito mais interesse envolvido
nele do que nos damos conta. Cremos que toda a história da ceia do Senhor, durante os últimos dezoito
séculos, está cheia de interesse e instrução. Podemos ver na maneira como a ceia do Senhor tem sido
tratada um notável indício do verdadeiro estado da igreja. Na proporção em que a igreja se afastou de
Cristo e da Sua Palavra, descurou e perverteu a preciosa instituição da ceia do Senhor. E, por outro lado, na
medida em que o Espírito Santo operou, em qualquer época, em poder especial na igreja, a ceia do Senhor
tem encontrado o seu verdadeiro lugar nos corações do Seu povo.
Porém não podemos prosseguir com este assunto numa nota à margem; temo-nos aventurado a
sugeri-lo ao leitor, e esperamos que possa ser levado a prossegui-lo por si mesmo. Estamos certos de que o
achará um estudo muito proveitoso e sugestivo.

O Pentecostes e o Lugar de sua Celebração


Vamos considerar agora resumidamente a festa do Pentecostes, que segue em
ordem a da Páscoa. "Sete semanas contarás; desde que a foice começar na seara,
começarás a contar as sete semanas. Depois, celebrarás a Festa das semanas ao
SENHOR, teu Deus; o que deres será tributo voluntário da tua mão, segundo o
SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado. E te alegrarás perante o SENHOR teu Deus,
tu, e teu filho, e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que está dentro das tuas
portas, e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão no meio de ti, no lugar que
escolher o SENHOR, teu Deus, para ali fazer habitar o seu nome. E lembrar-te-ás de
que foste servo no Egito, e guardarás estes estatutos, e os farás" (versículos 9 a 12).

Aqui temos o bem conhecido e encantador tipo do dia de Pentecostes. A Páscoa


expõe a morte de Cristo. A gabela dos primeiros frutos é a figura notável de Cristo
ressuscitado. E na festa das sete semanas temos prefigurada ante os nossos olhos a
descida do Espírito Santo, cinqüenta dias depois da ressurreição.
Falamos, evidentemente, daquilo que estas festividades nos transmitem, segundo o
pensamento de Deus, independentemente da questão da concepção de Israel do
seu significado. E nosso privilégio encarar todas estas instituições simbólicas à luz
do Novo Testamento; e quando assim as encaramos sentimo-nos cheios de
admiração e gozo com a perfeição divina, beleza e ordem de todos esses tipos
maravilhosos.
E não somente isto, mas — o que é de imenso valor para nós — vemos como as
Escrituras do Novo Testamento se ajustam às do Velho; vemos a encantadora
unidade do Volume divino, e como é, claramente, o mesmo Espírito que Se
manifesta através de todo o conjunto, desde o começo ao fim. Desta maneira somos
interiormente fortalecidos na concepção da preciosa verdade da inspiração divina
das Sagradas Escrituras, e os nossos corações são fortificados contra todos os
ataques blasfemos dos escritores infiéis. As nossas almas são conduzidas ao cume
da montanha onde as glórias morais do Volume brilham sobre nós em todo o seu
resplendor celestial, e donde podemos olhar para baixo e ver as nuvens e as frígidas
neblinas do pensamento infiel deslocando-se abaixo de nós. Estas nuvens e
neblinas não podem afetar-nos, visto que estão abaixo do nível a que, por graça
infinda, nos encontramos. Os escritores infiéis não sabem absolutamente nada das
glórias morais da Escritura; mas uma coisa é terrivelmente certa, isto é, que um
momento na eternidade revolucionará completamente os pensamentos de todos os
infiéis e ateus que têm disparatado contra a Bíblia e o seu Autor.
Ao observar a interessantíssima festa das semanas ou Pentecostes, somos logo
despertados com a diferença entre ela e a festa dos pães asmos. Em primeiro lugar
fala-se de "tributo voluntário". Temos aqui uma figura da Igreja, formada pelo
Espírito Santo e apresentada a Deus como uma espécie "das primícias das suas
criaturas".
Já nos ocupamos deste aspecto do tipo nos "Estudos sobre Levítico", capítulo
23, pelo que não entraremos novamente nele; apenas nos limitaremos ao livro de
Deuteronômio. O povo devia apresentar um tributo voluntário das suas mãos,
conforme o Senhor, seu Deus, os havia abençoado. Nada havia semelhante a isto
na Páscoa, porque esta apresenta Cristo oferecendo-Se a Si mesmo por nós, como
sacrifício, e não se trata, de modo algum, de oferta nossa. Nela recordamos a nossa
libertação do pecado e de Satanás, e o que essa libertação custou. Meditamos sobre
os profundos e diversos sofrimentos de nosso bendito Salvador conforme são
prefigurados no cordeiro assado no fogo. Lembramos que os nossos pecados foram
colocados sobre Ele. Ele foi ferido pelas nossas iniqüidades, julgado em nosso lugar
e isto conduz a uma profunda e sincera contrição ou, o que podemos chamar,
verdadeiro arrependimento cristão. Pois nunca devemos esquecer que o
arrependimento não é uma mera emoção transitória do pecador, quando os seus
olhos são primeiro abertos, mas um estado moral permanente do cristão, em vista
da cruz e paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Se isto fosse melhor compreendido,
e nós estivéssemos mais compenetrados do fato, comunicaria mais profundidade e
firmeza à vista e ao caráter cristão, no que somos, desgraçadamente, tão deficientes
na grande maioria.
O Espírito Santo
Porém, na festa do Pentecostes temos perante nós o poder do Espírito Santo e
os diversos efeitos da Sua bendita presença em nós e conosco. É Ele quem nos
habilita a apresentarmos os nossos corpos e tudo quanto temos como oferta
voluntária ao nosso Deus, conforme Ele nos tem abençoado. Isto, desnecessário é
dizer, só pode ser feito pelo poder do Espírito Santo; e daí a razão por que é
apresentado o seu notável tipo, não na Páscoa, que prefigura a morte de Cristo;
nem tampouco na festa dos pães asmos, que apresenta o efeito moral dessa morte
sobre nós, em arrependimento, auto-juízo e santidade prática, mas no Pentecostes,
que é o tipo reconhecido do dom precioso do Espírito Santo.
Agora, é o Espírito que nos prepara para compreendermos os direitos de Deus
sobre nós - direitos que devem ser medidos somente pela extensão da bênção
divina. Faz-nos ver e entender que tudo que somos e tudo que temos pertencem a
Deus. Dá-nos o gozo de nos consagrarmos a Deus de espírito, alma e corpo. Isto é
verdadeiramente "uma oferta voluntária". Não é por constrangimento, mas
voluntariamente. Não há nem um átomo de escravidão, "porque onde está o
Espírito do Senhor aí há liberdade".
Em suma, temos aqui o formoso espírito e caráter moral de toda a vida e serviço
cristãos. A alma que está debaixo da lei não pode compreender a força e beleza de
tudo isto. As almas debaixo da lei jamais receberam o Espírito. As duas coisas são
completamente incompatíveis. Por conseguinte, o apóstolo diz às assembléias mal
guiadas da Galácia: "Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras
da lei ou pela pregação da fé?... Aquele, pois, que vos dá o Espírito e que opera
maravilhas entre vós, o faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé?" (Gl 3:2 e 5) O
precioso dom do Espírito é conseqüência da morte, ressurreição, ascensão e
glorificação de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo, e por conseqüência
não tem nada que ver com "as obras da lei" em qualquer forma que seja. A presença
do Espírito Santo na terra, a Sua habitação com e em todos os verdadeiros crentes é
uma grande verdade característica do cristianismo. Não era nem podia ser
conhecida nos tempos do Velho Testamento. Nem sequer era conhecida pelos
discípulos no tempo da vida de nosso Senhor. Ele mesmo lhes disse, na noite da
Sua partida: "Todavia, digo-vos a verdade: que vos convém que eu vá, porque, se eu
não for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for enviar-vo-lo-ei" (Jo 16:7).
Isto prova, da maneira mais concludente, que até os próprios homens que
desfrutaram o elevado e precioso privilégio da companhia pessoal com o Senhor
mesmo tiveram de ser colocados numa posição mais avançada com a Sua partida, e
a vinda do Consolador. Lemos também: "Se me amardes, guardareis os meus
mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique
convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco e
estará em vós" (Jo 14:15 a 17).
Não podemos, contudo, tentar desenvolver, minuciosamente, este imenso
tema agora. O espaço de que dispomos não o permite. Devemos limitar-nos a um
ou dois pontos que nos sugere a festa das semanas, segundo se nos apresenta neste
capítulo.
Já fizemos referência ao fato muito interessante de que o Espírito de Deus é a
fonte viva e o poder da vida de consagração pessoal tão formosamente prefigurada
pelo "tributo voluntário". O sacrifício de Cristo é o fundamento, a presença do
Espírito Santo é o poder da dedicação que o crente faz de si mesmo em espírito,
alma e corpo a Deus. "Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que
apresenteis o vosso corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o
vosso culto racional" (Rm 12:1).

Te alegrarás...
Mas há outro ponto de profundo interesse que nos é apresentado em versículo
11 dos nosso capítulo. "E te alegrarás perante o SENHOR, teu Deus." Não
encontramos tais palavras na festa pascal, ou na festa dos pães asmos. Não estariam
em relação moral com qualquer destas solenidades. E certo que a Páscoa
encontra-se no próprio fundamento de todo o gozo que podemos experimentar
aqui ou no porvir; mas devemos recordar sempre a morte de Cristo, os Seus
sofrimentos, as Suas dores —tudo por que passou, quando todas as ondas e vagas da
justa ira de Deus passaram sobre a Sua alma. E sobre estes profundos mistérios que
os nossos corações estão ou deveriam estar, principalmente, postos, quando
rodeamos a mesa do Senhor e celebramos essa festa pela qual anunciamos a morte
do Senhor até que venha.
Mas é claro para todo o leitor espiritual e ponderado que os sentimentos
próprios a tão santa e solene instituição não são de caráter jubiloso. Certamente,
podemos regozijar-nos e nos regozijamos pensando em que os sofrimentos e as
dores de nosso bendito Senhor são passadas, e passadas para sempre; que essas
horas terríveis são passadas para nunca mais voltarem. Porém, o que recordamos
na festa não é simplesmente que já passaram, mas que foram suportadas por nós.
"Anunciais a morte do Senhor", e sabemos que, seja o que for que possa resultar
dessa morte preciosa para nós, quando meditamos sobre ela, o nosso gozo é
restringido por aqueles profundos exercícios da alma que o Espírito Santo produz
mostrando-nos os sofrimentos, as dores, a cruz e a paixão de nosso bendito
Salvador. As palavras do Senhor são: "Fazei isto em memória de mim"; mas o que
recordamos especialmente na Ceia é Cristo sofrendo e morrendo por nós; o que
anunciamos é a Sua morte; e com estas solenes realidades diante das nossas almas,
no poder do Espírito Santo, deve haver santa calma e serenidade.
Falamos, evidentemente, do que convém à imediata ocasião da celebração da
Ceia— dos sentimentos e afeições apropriados de um tal momento. Mas estes têm
de ser produzidos pelo poderoso ministério do Espírito Santo. De nada serviria
procurar por piedosos esforços próprios elevarmo-nos a um estado espiritual
apropriado àquele ato. Isto seria subir por degraus ao altar, uma coisa altamente
ofensiva para Deus. É só pelo ministério do Espírito Santo que podemos celebrar
dignamente a santa Ceia do Senhor. Só Ele nos pode habilitar a afastar toda a
ligeireza, todo o formalismo, toda a mera rotina, pensamentos errantes, e a
discernir o corpo e o sangue do Senhor nos emblemas que, por Sua própria ordem,
estão postos em cima da Sua mesa.
Mas na festa do Pentecostes a alegria era uma parte essencial. Nada ouvimos de
"ervas amargas" ou de "pão de aflição", nesta ocasião, porque é o tipo da vinda do
outro Consolador, a descida do Espírito Santo, procedendo do Pai e enviado por
Cristo ressuscitado, elevado e glorificado como o Cabeça nos céus, a fim de encher
os corações do Seu povo de louvor, ações de graças e triunfante gozo; sim, para os
levar à plena e bendita comunhão com o Seu Cabeça glorificado, no Seu triunfo
sobre o pecado, a morte, o inferno, Satanás e todos os poderes das trevas. A
presença do Espírito está relacionada com a liberdade, luz, poder e alegria. Por isso
lemos: "Os discípulos estavam cheios de gozo e do Espírito Santo." As dúvidas, os
temores e a escravidão legal desaparecem ante o precioso ministério do Espírito
Santo.
Porém, temos de distinguir entre a Sua obra e a Sua habitação em nós — a Sua
obra vivificadora e a Sua ação de nos selar. O primeiro alvor de convicção na alma
é o fruto da obra do Espírito. E a Sua bendita operação que conduz a todo o
verdadeiro arrependimento, e isto não é trabalho alegre; é muito bom, muito
necessário, absolutamente essencial; mas não é alegria, pelo contrário, é profunda
dor. Mas quando pela graça podemos crer no Salvador ressuscitado e glorificado,
então o Espírito Santo vem e faz em nós a Sua morada, como o selo da nossa
aceitação e o penhor da nossa herança.
Ora isto enche-nos de gozo inefável e pleno de glória; e estando assim, nós
próprios, cheios de alegria, nos tornamos canais de bênção para outros. "Quem crê
em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. E isso disse
ele do Espírito, que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo
ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado" (Jo 7:38-39). O
Espírito é o manancial de poder e gozo no coração do crente. Prepara-nos,
enche-nos e usa-nos como vasos no ministério a pobres, sedentas almas
necessitadas em redor de nós. Liga-nos com o Homem na glória, mantém-nos em
comunhão viva com Ele e habilita-nos para sermos, na nossa fraca medida, a
expressão do que Ele é. Todos os movimentos do crente devem exaltar a fragrância
de Cristo. Para aquele que professa ser cristão, exibir mau temperamento,
procedimento egoísta, ambição, avareza, espírito mundano, inveja e ciúme,
orgulho e ambição, é desmentir a sua profissão e trazer opróbrio sobre o glorioso
cristianismo que professa, e do qual temos um encantador tipo na festa das
semanas — uma festa proeminentemente caracterizada pelo gozo que tem a sua
origem na bondade de Deus, e que corre em todas as direções e abraça em seu
circulo todos os necessitados. "E te alegrarás perante o SENHOR teu Deus, tu, e teu
filho, e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que está dentro das tuas portas,
e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão no meio de ti."
Que belo! Como é perfeitamente formoso; oh, se o antítipo fosse mais fielmente
manifestado entre nós! Onde estão aquelas correntes refrigerantes que deveriam
fluir da Igreja de Deus? Onde essas epístolas imaculadas de Cristo conhecidas e
lidas de todos os homens? Onde podemos ver uma manifestação prática de Cristo
nos caminhos do Seu povo — alguma coisa para a qual podemos apontar e dizer:
"Ali há verdadeiro cristianismo?" Oh! Que o Espírito de Deus desperte os nossos
corações a um desejo mais intenso de sermos mais conformes à imagem de Cristo,
em todas as coisas! Queira Ele revestir do Seu poder a Palavra de Deus que temos
em nossas mãos e nos nossos lares; a fim de que ela possa falar aos nossos corações e
consciências e induzir-nos a julgar os nossos caminhos, as nossas relações e nós
próprios pela Sua luz divina, de forma que possa haver uma multidão de
testemunhas verdadeiramente consagradas e reunidas para o Seu nome, para
esperarem o Seu aparecimento! Quer o leitor unir-se conosco para pedir tal coisa?

A Festa dos Tabernáculos e o Lugar de sua Celebração


Vamos agora dedicar uns momentos à formosa instituição da festa dos
tabernáculos, a qual dá um tão notável complemento à linha de verdades
apresentada no nosso capítulo.
"A Festa dos Tabernáculos guardarás sete dias, quando colheres da tua eira e do
teu lagar. E na tua festa te alegrarás, tu, e teu filho, e tua filha, e teu servo, e tua
serva, e o levita e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão das tuas portas para
dentro. Sete dias celebrarás a festa ao SENHOR, teu Deus, no lugar que o, SENHOR
escolher, porque o SENHOR, teu Deus, te há de abençoar em toda a tua colheita, e
em toda obra das tuas mãos; pelo que te alegrarás certamente. Três vezes no ano,
todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher,
na Festa dos Pães Pasmos e na Festa das Semanas, e na Festa dos Tabernáculos;
porém, não aparecerá vazio perante o SENHOR; cada qual, conforme ao dom da sua
mão, conforme à bênção que o SENHOR, teu Deus, te tiver dado" (versículos 13 a
17).
Aqui, pois, temos o admirável tipo do porvir de Israel. A festa dos tabernáculos
ainda não teve o seu antítipo. A Páscoa e o Pentecostes tiveram o seu cumprimento
na preciosa morte de Cristo e a descida do Espírito Santo; mas a grande terceira
solenidade indica os tempos da restituição de todas as coisas de que Deus tem
falado pela boca de todos os Seus santos profetas que tem havido desde o princípio
do mundo.
E note o leitor especialmente o tempo da celebração desta festa. Devia ser:
"Quando colheres da tua eira e do teu lagar." Por outras palavras, era depois das
colheitas e das vindimas. Pois há uma distinção notável entre estas duas coisas.
Uma fala de graça, a outra de juízo. No fim dos séculos Deus juntará o trigo no Seu
celeiro, e então virá o esmagamento da prensa do lagar com terrível juízo.
No capítulo 14 do Apocalipse temos uma passagem muito solene que trata
deste assunto. "E olhei, e eis uma nuvem branca e, assentado sobre a nuvem, um
semelhante ao Filho do Homem, que tinha sobre a cabeça uma coroa de ouro e, na
mão, uma foice aguda. E outro anjo saiu do templo, clamando com grande voz ao
que estava assentado sobre a nuvem: Lança a tua foice e sega! E já vinda a hora de
segar, porque já a seara da terra está madura! E, aquele que estava assentado sobre a
nuvem meteu a sua foice à terra, e a terra foi segada" (versículos 14 a 16).
Aqui temos a ceifa; e depois: "E saiu do templo, que está no céu, outro anjo, o
qual também tinha uma foice aguda. E saiu do altar outro anjo, que tinha poder
sobre o fogo" — o emblema do juízo —, "e clamou com grande voz ao que tinha
foice aguda, dizendo: Lança a tua foice aguda e vindima os cachos da vinha da
terra, porque já as suas uvas estão maduras! E o anjo meteu a sua foice à terra, e
vindimou as uvas da vinha da terra, e lançou-as no grande lagar da ira de Deus. E o
lagar foi pisado fora da cidade, e saiu sangue do lagar até aos freios dos cavalos, pelo
espaço de mil e seiscentos estádios." Cifra igual a todo o comprimento da terra da
Palestina!
Estas figuras apocalípticas põem diante de nós, segundo o seu modo
característico, cenas que devem ser representadas antes da festa dos tabernáculos.
Cristo recolherá o Seu trigo no Seu celeiro celestial, e depois disso virá com
esmagador juízo sobre a cristandade. Desta forma todas as partes do Volume
inspirado, Moisés, os Salmos, os Profetas, os Evangelhos—ou Atos de Cristo—os
Atos do Espírito Santo, as Epístolas, e o Apocalipse, todos tendem a estabelecer,
incontestavelmente, o fato de que o mundo não será convertido pelo Evangelho,
que as coisas não melhoram, nem melhorarão, mas que irão de mal a pior. Esse
tempo glorioso prefigurado pela festa dos tabernáculos tem de ser precedido pela
vindima, do esmagamento pela prensa do lagar da ira do Deus Todo- poderoso.
Então, por que motivo, podemos nós muito bem perguntar, em vista de um
esmagador corpo a esperança de evidência, proporcionado por todas as porções do
cânone inspirado, persistem os homens em acariciar ilusória de um mundo
convertido pelo Evangelho? Que significam as frases recolher o trigo e o lagar?
Com certeza, não significam e não podem significar um mundo convertido.
Dir-nos-ão talvez que não podemos edificar coisa alguma sobre tipos moisaicos
e símbolos apocalípticos. Talvez não, se tivéssemos só tipos e símbolos. Mas a
acumulação dos raios da lâmpada de inspiração celestial convergem sobre estes
tipos e símbolos e mostram o seu profundo significado às nossas almas, nós
achamo-los em perfeita harmonia com as vozes dos profetas e apóstolos e os vivos
ensinamentos de nosso próprio Senhor. Numa palavra, todos falam a mesma
linguagem, todos ensinam a mesma lição, todos dão o mesmo testemunho
inequívoco da verdade solene de que, no fim desta dispensação, em vez de um
mundo convertido preparado para um milênio espiritual, haverá uma videira
coberta e carregada de terríveis uvas plenamente maduras para o lagar da ira do
Deus Todo-poderoso.
Oh, que os homens e mulheres da cristandade e os seus mestres apliquem os
seus corações a estas solenes realidades! Que estas coisas penetrem fundo nos seus
ouvidos e no recôndito das suas almas, de forma que possam arrojar ao vento a sua
predileta ilusão e aceitar em lugar dela a verdade de Deus tão plenamente revelada
e claramente estabelecida!

A Redenção, a Presença do Espírito Santo e a Esperança da Glória


Mas temos de terminar esta parte; e antes de o fazer, queremos recordar ao
leitor cristão que somos chamados para exibir na nossa vida diária a bendita
influência de todas essas grandes verdades que nos são apresentadas nos três tipos
interessantes que temos estado a considerar. O cristianismo é caracterizado por
estes três grandes fatos formativos: a redenção, a presença do Espírito Santo, e a
esperança da glória. O cristão é remido pelo precioso sangue de Cristo, selado pelo
Espírito Santo, e está à espera do Salvador.
Sim, prezado leitor, estes são fatos sólidos, realidades divinas, verdades
formativas. Não são simples princípios; pelo contrário, estão calculados para serem
um poder vivo em nossas almas e brilharem nas nossas vidas. Veja-se quão práticas
eram estas solenidades em cujo estudo nos temos detido; note-se o caudal de
louvor e ações de graças, gozo, bênção e ativa benevolência que fluía da assembléia
de Israel quando reunida em redor do Senhor no lugar que Ele havia escolhido.
Louvor e ações de graças ascendiam para Deus; e as benditas correntes de uma
liberalíssima benevolência se dirigiam a todos os que estavam em necessidade.
"Três vezes no ano todo varão entre ti aparecerá perante o SENHOR, teu Deus,..
.porém não aparecerá vazio perante o Senhor;... conforme o dom da sua mão,
conforme à bênção que o Senhor, teu Deus, te tiver dado."
Palavras encantadoras! Não deviam vir vazios à presença do Senhor; deviam
vir com o coração cheio de louvor, e as mãos cheias de frutos da bondade divina
para alegrar os corações dos obreiros do Senhor e dos pobres. Tudo isto era
perfeitamente belo. O Senhor queria reunir o Seu povo em redor de Si, para os
encher de gozo e louvor e fazer deles os Seus canais de bênção para outros. Não
deviam ficar debaixo das suas videiras e sob as suas figueiras e ali se congratularem
com as ricas e diversas misericórdias que os rodeavam. Isto podia ser muito justo e
bom em seu próprio lugar; mas não teria satisfeito por completo a mente e o
coração de Deus. Não; três vezes por ano deviam levantar-se e conduzirem-se ao
lugar de encontro divinamente designado, e ali entoar as suas aleluias ao Senhor,
seu Deus, e ali, também, ministrar liberalmente de tudo quanto Ele lhes havia
concedido a todas as formas de necessidade humana. Deus pôde confiar ao Seu
povo o rico privilégio de alegrar o coração do levita, do estrangeiro, da viúva e dos
órfãos. Esta é a obra em que Ele mesmo Se deleita, bendito para sempre seja o Seu
nome, e quer compartilhar o Seu prazer com o Seu povo. Queria que fosse sabido,
visto e sentido, que o lugar onde Se encontrava com o Seu povo era uma esfera de
gozo e louvor, e um centro do qual as correntes de bênção deviam espalhar-se em
todas as direções.
Não tem tudo isto uma voz e uma bênção para a Igreja de Deus? Não fala isto ao
íntimo do coração tanto do autor como do leitor destas linhas«?- Decerto que sim.
Possamos nós ouvi-lo! Possa isto faltar aos nossos corações! Que a graça
maravilhosa de Deus atue de tal modo em nós que os nossos corações se encham de
louvor ao Seu nome e as nossas mãos de boas obras. Se os simples tipos, sombras
das nossas bênçãos, estivessem relacionados com ações de graças e ativa
benevolência, quão poderoso seria o efeito das próprias bênçãos!

Considerações Práticas
Mas, ah! A questão é esta: estamos desfrutando as bênçãos? Apropriamo-nos
delas? Agarramo-nos a elas no poder de uma fé sem artifício? Aqui está o segredo
de todo o assunto. Onde encontramos cristãos professos no pleno gozo do que a
Páscoa prefigurava, isto é, plena libertação do juízo e deste presente século mau?
Onde os encontramos no pleno e estabelecido gozo do seu Pentecostes, ou seja a
estadia, o selo, o penhor, a unção e o testemunho do Espírito Santo? Ponha-se à
maioria dos professos a simples questão: "Haveis recebido o Espírito Santos" E
veja-se a espécie de resposta que se recebe. Qual a resposta que o leitor pode dar?
Pode dizer: "Sim, graças a Deus, eu sei que estou lavado no precioso sangue de
Cristo, e selado com o Espírito Santo." E de recear que só muito poucos,
comparativamente, de entre a imensa multidão de professos em redor de nós
sabem alguma coisa destas preciosas coisas, que são contudo privilégios conferidos
até ao membro mais simples do corpo de Cristo.
Assim também quanto à Festa dos Tabernáculos, quão poucos compreendem o
seu significado! Decerto, ainda não chegou o seu cumprimento; mas o cristão é
chamado para viver no poder atual do que ela revela. "Ora, a fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não vêem." A
nossa vida deve ser regida e o nosso caráter formado pela influência combinada da
"graça" em que nos mantemos e a "glória" que esperamos.
Porém, se as almas não estão estabelecidas em graça, se nem ao menos sabem
que os seus pecados são perdoados; se se lhes ensina que é presunção ter a certeza
da salvação, e que é humildade e piedade viver em perpétua dúvida e temor; e que
ninguém pode estar seguro da sua salvação até comparecer ante o tribunal de
Cristo, como podem ocupar o terreno cristão, manifestar os frutos da vida cristã,
ou acalentar a própria esperança cristã? Se um israelita da antiguidade tivesse
dúvidas se era filho de Abraão, membro da congregação do Senhor, e se estava na
terra que lhe fora prometida, como poderia celebrar a festa dos pães asmos, o
Pentecostes ou dos Tabernáculos? Não teria havido sentido, significado ou valor
em tal procedimento; na verdade, podemos seguramente afirmar que nenhum
israelita teria pensado, nem por um momento, em nada
tão absurdo.
Como se compreende então que os cristãos professos, muitos deles, não
podemos duvidar, verdadeiros filhos de Deus, não parece serem numa capazes de
entrar no próprio terreno cristão? Passam os seus dias em dúvidas e temores, trevas
e incertezas. Os exercícios e serviços religiosos em vez de serem o resultado de
uma vida que possuem, e gozam são considerados como um caso de dever legal e
um meio de preparação moral para a vida futura. Muitas almas realmente piedosas
são mantidas neste estado todos os dias da sua vida: e quanto "à bendita esperança"
que a graça tem posto diante de nós, para animar os nossos corações e nos desligar
das coisas presentes, não se ocupam dela nem a entendem. É considerada como
mera especulação à qual se entregam alguns entusiastas visionários aqui e ali.
Esperam o dia do julgamento, em vez de esperarem a "resplandecente estrela da
manhã". Oram pelo perdão de seus pecados e pedem a Deus que lhes dê o Seu
Santo Espírito, quando deveriam regozijar-se na possessão segura da vida eterna,
justiça divina e o Espírito de adoção.
Tudo isto é diretamente oposto ao mais simples e claro ensino do Novo
Testamento; é inteiramente estranho ao próprio gênio do cristianismo, subversivo
da paz e liberdade do cristão, e destrutivo de todo o verdadeiro e inteligente culto
cristão, serviço e testemunho. E evidentemente impossível que as pessoas possam
comparecer perante o Senhor com seus corações cheios de louvor por privilégio
que não desfrutam ou mãos cheias de bênçãos que nunca têm realizado.
Chamamos a atenção do povo do Senhor, em todos os âmbitos da igreja
professante, para este importante assunto. Rogamos-lhes que examinem as
Escrituras e vejam se encontram nelas alguma coisa que os autorize a manter as
almas em trevas, dúvida e escravidão perpétua. Que há nelas avisos solenes, apelos
esquadrinhadores, graves advertências, é certo, e bendizemos a Deus por eles;
necessitamos deles e devemos ocupar diligentemente os nossos corações com eles.
Porém, o leitor deve compreender claramente que é privilégio até dos mais novos
em Cristo saber que todos os seus pecados lhes são perdoados, que estão aceitos em
Cristo, ressuscitados, selados com o Espírito Santo e que são herdeiros da glória
eterna. Tais são, por graça infinita e soberana, as suas bênçãos claramente
estabelecidas e asseguradas —bênçãos para as quais o amor de Deus os faz
bem-vindos, para as quais o sangue de Cristo os torna aptos, e as quais o Espírito
Santo lhes assegura.
Que o grande Pastor e Bispo das almas guie todo o Seu amado povo, os
cordeiros e ovelhas do rebanho que adquiriu com Seu sangue, a conhecer, pelo
ensino do Seu Santo Espírito, as coisas que lhes são concedidas gratuitamente por
Deus! E que aqueles que as conhecem, em certa medida, possam conhecê-las
plenamente e ostentar os preciosos frutos das mesmas numa vida de verdadeira
dedicação a Cristo e ao Seu serviço!
Há grandes motivos para temer que muitos de nós, que pretendemos estar
familiarizados com as mais elevadas verdades da fé cristã, não estamos
correspondendo à nossa profissão; não estamos agindo segundo o princípio
estabelecido em versículo 17 do nosso formoso capítulo:"Cada qual, conforme o
dom da sua mão, conforme à bênção que o SENHOR, teu Deus, te tiver dado." Parece
que esquecemos que, apesar de não termos nada que dar e nada a fazer pela
salvação, há muito que podemos fazer pelo Salvador, e muito que podemos dar aos
Seus obreiros e aos pobres. Existe o grande perigo de exagerar o princípio de nada
fazer e nada dar. Se nos dias da nossa ignorância e legal escravatura trabalhávamos
e contribuíamos por falsos princípios e com um falso objetivo, com certeza não
deveríamos fazer menos e dar menos agora que professamos saber que não só
estamos salvos mas abençoados com todas as bênçãos espirituais em Cristo
ressuscitado e glorificado. Necessitamos de ter cuidado em não nos contentarmos
com a simples compreensão intelectual e profissão verbal destas grandes e glori-
osas verdades, enquanto o coração e a consciência nunca sentiram a sua ação
sagrada, e a conduta foi foram posto sob a sua poderosa e santa influência.
Aventuramo-nos com toda a ternura e amor a oferecer ao leitor estas sugestões
práticas para sua consideração acompanhada de oração. Não queremos ferir,
ofender ou desanimar o mais simples cordeiro do rebanho de Cristo. E, demais,
podemos assegurar ao leitor que não estamos a atirar pedras a ninguém, mas
escrevendo simplesmente como que na imediata presença de Deus, e fazendo soar
aos ouvidos da igreja uma nota de advertência contra o que cremos firmemente ser
o nosso perigo comum. Cremos que existe uma chamada urgente, por todos os
lados, a nos humilharmos diante do Senhor, devido às nossas múltiplas fraquezas,
deficiências e inconsistência, e buscarmos graça junto d'Ele para sermos mais
verdadeiros, mais dedicados, mais precisos no nosso testemunho por Ele, nestes
dias sombrios e maus.
— CAPÍTULO 17 —

DEUS CONFIOU AO HOMEM O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA

O Decreto Divino
Devemos lembrar que a divisão da Escritura em capítulos e versículos é um
arranjo inteiramente humano, por vezes muito conveniente, sem dúvida, para
referência, mas freqüentemente injustificável, visto que interfere com a ligação.
Assim podemos ver, num relance, que os versos finais do capítulo 16 estão muito
mais ligados com o que segue do que com o que precede.
"Juízes e oficiais porás em todas as tuas portas que o SENHOR ,teu Deus, te der
entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça. Não torcerás o
juízo, não farás acepção de pessoas, nem tomarás suborno, porquanto o suborno
cega os olhos dos sábios e perverte as palavras dos justos. A justiça, somente a
justiça seguirás, para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o SENHOR,
teu Deus."
Estas palavras ensinam-nos uma dupla lição: em primeiro lugar, expõem a
justiça imparcial e perfeita verdade que sempre caracterizam o governo de Deus.
Cada caso é tratado segundo os seus próprios méritos e com base em seus próprios
fatos. O juízo é tão claro que não existe uma sombra de fundamento para questão
alguma; toda a discórdia está absolutamente arrumada, e se é levantada qualquer
murmuração, é logo imposto silêncio ao murmurador com as palavras: "Amigo,
não te faço agravo." Isto é sempre verdadeiro em toda a parte e em todos os tempos
no santo governo de Deus, e faz-nos desejar aquele tempo quando esse governo for
estabelecido de mar a mar e desde o rio às extremidades da terra.

O Homem Abandonado a si Próprio neste Cargo


Mas, por outro lado, das palavras citadas aprendemos o que vale o juízo do
homem, se for abandonado a si próprio. Não se pode confiar nele nem por um
momento. O homem é capaz de "torcer o juízo", de "fazer acepção de pessoas", de
"tomar peitas", de ligar importância a uma pessoa por causa da sua posição e
riqueza. Que é capaz de fazer tudo isto, é evidente pelo fato de lhe ser dito que o
não faça. Devemos recordar sempre isto. Se Deus ordena ao homem que não furte,
é evidente que o homem tem o furto em sua natureza.
Daqui, pois, segue-se que o juízo humano e o governo humano estão sujeitos à
mais grosseira corrupção. Juízes e governantes, se forem abandonados a si próprios,
se não estiverem debaixo do direto domínio de princípio divino, estão sujeitos a
perverter o direito movidos por amor do nojento lucro, ou de favorecer um
perverso, porque é rico, e de condenar um justo porque é pobre; de lavrar uma
sentença em flagrante oposição aos fatos mais evidentes a fim de obterem alguma
vantagem, quer na forma de dinheiro, quer de influência, popularidade ou poder.
Para provar isto não é necessário aludir a homens como Pilatos e Herodes,
Félix e Festos; não temos necessidade de ir além da passagem reproduzida, a fim de
ver o que o homem é, até mesmo quando vestido com as vestes de dignidade
oficial, sentado no trono do governo ou na bancada da justiça.
Alguns, ao lerem estas linhas, podem sentir-se tentados a dizer, na linguagem
de Hazael: "Pois que é teu servo, que não é mais do que um cão, para fazer tão
grande coisa?" (2 Rs 8:13). Mas devemos ponderar, por um momento, o fato de que
o coração humano é o centro de todo o mal e de toda a maldade vil, abominável e
perversa que jamais foi cometida neste mundo; e a prova incontestável disto
encontra-se nos decretos, mandamentos e proibições que constam das páginas
sagradas de inspiração.
E nisto temos uma admirável resposta à pergunta tantas vezes formulada: "Que
temos nós que ver com muitas das leis e instituições expostas na dispensação
moisaica? Porque estão tais coisas EXPOSTAS NA BÍBLIA?- É POSSÍVEL QUE SEJAM
INSPIRADAS?" SIM; SÃO INSPIRADAS, E APARECEM NAS PÁGINAS DE INSPIRAÇÃO PARA
PODERMOS VER, COMO EM UM ESPELHO DIVINAMENTE PERFEITO, O MATERIAL MORAL DE
QUE NÓS MESMOS SOMOS FEITOS, OS PENSAMENTOS QUE SOMOS CAPAZES DE CONCEBER,
AS PALAVRAS QUE SOMOS CAPAZES DE EMPREGAR, E OS FEITOS QUE SOMOS CAPAZES DE
REALIZAR.
Não é isto sugestivo? Não é bom e salutar encontrar, por exemplo, em algumas
das passagens deste profundo e formoso livro de Deuteronômio, que a natureza
humana é capaz, e portanto que nós somos capazes de ações que nos colocam,
moralmente, abaixo do nível dos animais? Decerto que é, e bom seria que muitos
que andam com orgulho farisaico e própria satisfação, inchados com falsas noções
de sua própria dignidade e elevado tom moral, aprendessem esta lição
profundamente humilhante.

O Tempo Futuro no qual a Justiça Reinará


Mas quão belos moralmente, quão puros, quão refinados e elevados eram os
divinos decretos para Israel! Não deviam torcer o juízo, mas deixar que seguisse o
seu próprio curso reto, absolutamente sem acepção de pessoas. O pobre com
vestidos desprezíveis devia ter a mesma justiça imparcial como o homem com um
anel de ouro e vestes dispendiosas. A decisão do tribunal não devia ser pervertida
por parcialidade ou preconceitos, nem o manto da justiça devia ser contaminado
com a mancha do suborno.
Oh! O que será para este mundo oprimido e aflito ser governado pelas leis
admiráveis que estão registradas nas páginas inspiradas do Pentateuco quando
reinará um rei com retidão e príncipes decretarão a justiça! "O Deus, dá ao rei os
teus juízos e a tua justiça, ao filho do rei. Ele julgará o teu povo com justiça e os
teus pobres com juízo" — não haverá então juízo torcido, suborno ou juízo
parcial—"Os montes (ou altos dignitários) trarão paz ao povo, e os outeiros
(inferiores dignitários), justiça. Julgará (ou defenderá) os aflitos do povo, salvará os
filhos do necessitado e quebrantará o opressor. Temer-te-ão enquanto durar o sol e
a lua, de geração em geração. Ele descerá como a chuva sobre a erva ceifada, como
os chuveiros que umedecem a terra. Nos seus dias florescerá o justo, e abundância
de paz haverá enquanto durar a lua. Dominará de mar a mar, e desde o rio até às
extremidades da terra..., livrará ao necessitado quando clamar, como também ao
aflito e ao que não tem quem o ajude. Compadecer-se-á do pobre e do aflito e
salvará a alma dos necessitados. Libertará a sua alma do engano e da violência, e
precioso será o seu sangue aos olhos dele" (SI 72).
Bem pode o coração suspirar por esse tempo—o resplandecente e bendito
tempo em que tudo isto se realizará, quando a terra for cheia do conhecimento do
Senhor como as águas cobrem o mar, quando o Senhor Jesus tomar par Si o Seu
grande poder e reino; quando a Igreja nos céus refletir os raios da glória d'Ele sobre
a terra; quando as doze tribos de Israel repousarem sob a videira e a figueira na sua
própria terra de promissão, e todas as nações da terra se regozijarem sob o pacífico
e beneficente domínio do Filho de Davi. Graças e louvores sejam dados ao nosso
Deus, assim será, dentro em pouco, tão certo como o Seu trono estar nos céus. Um
pouco mais e tudo será cumprido, segundo os eternos desígnios e promessa
imutável de Deus. Até então, prezado leitor, é nosso privilégio viver na constante e
fervorosa antecipação desse brilhante e bendito tempo e passar através desta ímpia
cena como estrangeiros e peregrinos, não tendo lugar ou parte aqui, mas
balbuciando sempre a oração: "Ora vem, Senhor Jesus."

O Altar Pagão e o Altar de Deus


Nas linhas finais do capítulo 16 Israel é advertido contra a aproximação aos
costumes religiosos das nações em redor de si. "Não plantarás nenhum bosque de
árvores junto ao altar do SENHOR, teu Deus, que fizeres para ti. Nem levantarás
estátua, a qual o SENHOR, teu Deus, aborrece." Deviam evitar, cuidadosamente,
tudo que pudesse levá-los em direção da sombria e abominável idolatria das nações
pagãs em redor deles. O altar de Deus devia manter-se firme em distinta e
inequívoca separação desses bosques e lugares sombrios onde os falsos deuses eram
adorados e se faziam coisas que se não devem mencionar. Em suma, devia evitar-se
cuidadosamente tudo que podia, de alguma maneira, afastar o coração do Deus
vivo e verdadeiro.
E não só isto; não bastava manter uma forma correta exterior; imagens e os
bosques podiam ser abolidos, e a nação podia professar o dogma da unidade da
Divindade, e, enquanto tudo isso, podia haver uma completa falta de coração e
verdadeira devoção no culto que se prestava. Por isso lemos: "Não sacrificarás ao
SENHOR, teu Deus, boi ou gado miúdo em que haja defeito ou alguma coisa má. pois
abominação é ao SENHOR, teu Deus" (versículo 1).
Só o que era absolutamente perfeito podia convir ao altar e satisfazer o coração
de Deus. Oferecer-Lhe uma coisa manchada era, simplesmente, demonstrar a
ausência de todo o verdadeiro sentido do que Lhe convinha, e de um coração
verdadeiro para com Ele. Intentar oferecer um sacrifício imperfeito era
equivalente à horrível blasfêmia de dizer que qualquer coisa era suficientemente
boa para Ele.
Ouçamos as alegações indignadas do Espírito de Deus pela boca do profeta
Malaquias. "Ofereceis sobre o meu altar pão imundo e dizeis: Em que te havemos
profanado? Nisto, que dizeis: A mesa do SENHOR é desprezível. Porque, quando
trazeis animal cego para o sacrificardes, não faz mal! E, quando ofereceis o coxo ou
o enfermo, não faz mal! Ora, apresenta-o ao teu príncipe; terá ele agrado em ti? Ou
aceitará ele a tua pessoal—diz o SENHOR dos Exércitos. Agora, pois, suplicai o favor
de Deus, e ele terá piedade de nós; isto veio da vossa mão; aceitará ele a vossa
pessoal—diz o SENHOR dos Exércitos. Quem há também entre vós que feche as
portas e não acenda debalde o fogo do meu altar? Eu não tenho prazer em vós, diz
o SENHOR dos Exércitos, nem aceitarei da vossa mão a oblação. Mas, desde o
nascente do sol até ao poente, será grande entre as nações o meu nome; e, em todo
lugar, se oferecerá ao meu nome incenso e uma oblação pura; porque o meu nome
será grande entre as nações, diz o SENHOR dos Exércitos. Mas vós o profanais,
quando dizeis: A mesa do Senhor é impura, e o seu produto, a sua comida, é
desprezível. E dizeis: Eis aqui, que canseira! E o lançastes ao desprezo diz o SENHOR
dos Exércitos: vós ofereceis o roubado, e o coxo, e o enfermo; assim fazeis a oferta;
ser-me-á aceito isto da vossa mão? — diz o SENHOR. Pois maldito seja o enganador,
que, tendo animal no seu rebanho, promete e oferece ao Senhor uma coisa vil;
porque eu sou grande Rei, diz o SENHOR dos Exércitos, o meu nome será tremendo
entre as nações" (Ml 1:7-14).
Isto nada diz à igreja professante? Nada diz ao autor e ao leitor destas linhas?
Claro que sim. Não há no nosso culto privado e público uma deplorável falta de
coração, de verdadeira devoção, elevado fervor, santa energia e integridade de
propósito? Não há muita coisa que corresponda à oferta de animais coxos e
enfermos, manchados ou com alguma coisa má?- Não existe uma deplorável
acumulação de fria formalidade e rotina morta em nossos cultos tanto privados
como em assembléia?- Não temos de nos julgar por nossa esterilidade, distração e
divagação até mesmo à própria mesa do Senhor? Quantas vezes os nossos corpos
estão à mesa enquanto os nossos corações vadios e as nossas mentes volúveis estão
vagando nos confins da terra? Quantas vezes os nossos lábios formulam palavras
que não são a verdadeira expressão de todo o nosso ser moral! Damos expressão a
muito mais do que sentimos. Cantamos mais do que experimentamos.
E quando somos favorecidos com a bendita oportunidade de deitar as nossas
ofertas na tesouraria do Senhor, que fria formalidade! Que falta de amorável,
sincera e cordial dedicação! Quanta falta de referência à regra apostólica e de dar
"conforme a sua prosperidade"! Que detestável mesquinhez! Quão pouco se vê do
desprendimento da pobre viúva que, tendo apenas duas pequenas moedas no
mundo, e tendo a opção de guardar pelo menos uma para sua manutenção, deitou
voluntariamente ambas na arca do tesouro — deu tudo que tinha! Podemos gastar
somas elevadas conosco, talvez em coisas supérfluas, durante a semana, mas
quando se apresentam diante de nós os direitos da obra do Senhor, dos Seus pobres
e da Sua casa em geral, quão fraca é a resposta!
Leitor crente, consideremos estas coisas. Encaremos todo o assunto do culto e
dedicação na presença divina, e na presença da graça que nos salvou das chamas
eternas. Ponderemos calmamente os preciosos e poderosos direitos de Cristo sobre
nós. Não somos de nós mesmos; fomos comprados por preço. Não é meramente o
que temos de melhor, mas tudo quanto possuímos que devemos Aquele bendito
Senhor que Se entregou a Si mesmo por nós. Não reconhecemos isto plenamente?
Os nossos corações não o reconhecem«?- Então manifestemo-lo com as nossas
vidas! Possamos nós declarar de um modo mais claro de quem somos e a quem
servimos! Possamos nós dedicar-Lhe o coração, a mente, as mãos, os pés, todo o
nosso ser, em incondicional dedicação e no poder do Espírito Santo, segundo o
ensino direto da Sagrada Escritura. Deus permitia que assim seja conosco e com
todo o Seu povo amado!

O Juízo Estabelecido sobre o Testemunho de Duas ou Três testemunhas


Um assunto muito importante e prático chama agora a nossa atenção. Cremos
que é conveniente apegarmo-nos, tanto quanto possível, ao hábito de citar, por
extenso, as passagens para o leitor; julgamos que isto é proveitoso para dar a
própria palavra de Deus; e, além disso, é conveniente para a grande maioria dos
leitores evitar de ter de pôr de lado para pegar na Bíblia e buscar nela as passagens.
"Quando no meio de ti, em alguma das tuas portas que te dá o SENHOR, teu
Deus, se achar algum homem ou mulher que fizer mal aos olhos do SENHOR, teu
Deus, traspassando o seu concerto, que for, e servir a outros deuses, e se encurvar a
eles, ou ao sol, ou à lua, ou a todo o exército do céu, o que eu não ordenei; e te for
denunciado, e o ouvires; então, bem o inquirirás-, e eis que, sendo verdade e certo
que se fez tal abominação em Israel, então, levarás o homem ou a mulher, que fez
este malefício às tuas portas, sim, o tal homem ou mulher, e os apedrejarás com
pedras, até que morram. Por boca de duas ou três testemunhas será morto o que
houver de morrer; por boca de uma só testemunha não morrerá. A mão das
testemunhas será primeiro a contra ele, para matá-lo; e, depois a mão de todo o
povo; assim tirarás o mal do meio de ti" (versículos 2 a 7).
Tivemos já ocasião de referir o grande princípio estabelecido na precedente
passagem. E uma passagem de imensa importância, isto e, a absoluta necessidade
de ter um testemunho competente em todos os casos antes de se formar um juízo.
Encontramo-lo constantemente; com efeito, é regra invariável no governo divino,
e portanto requer a nossa mais sincera atenção. Podemos estar certos de que é uma
regra segura e salutar, cujo descuido nos induzirá sempre em erro. Nunca devemos
formar um juízo, e muito menos agir segundo o mesmo, sem o testemunho de duas
ou três testemunhas. Por mais digna de crédito e de confiança que possa ser
qualquer testemunha, não há base suficiente para tirar uma conclusão. Podemos
estar convencidos de que o caso é verdadeiro por ser afirmado por alguém em
quem temos confiança; porém, Deus é mais sábio. Pode ser que a testemunha seja
inteiramente reta e verdadeira, que não diria, por nada deste mundo, uma
falsidade ou daria testemunho contra ninguém; tudo isto pode ser verdade, mas
devemos atender a regra divina: "Por boca de duas ou três testemunhas, se
estabelecerá o negócio" (Dt 19:15).
Queira Deus que se atendesse com mais diligência a isto na Igreja de Deus! O
seu valor em todos os casos de disciplina e em todos os casos que afetam o caráter
ou a reputação de alguém é simplesmente incalculável. Antes de a assembléia
chegar a uma conclusão ou atuar sobre um parecer, em qualquer caso apresentado,
deve insistir por adequada evidência. Se esta se não consegue, espere-se em Deus,
espere-se paciente e confiadamente, e Ele certamente suprirá o que é necessário.
Por exemplo, se houver mal moral ou erro doutrinário numa assembléia de
cristãos, mas que é só conhecido de um, este está perfeitamente certo, profunda e
perfeitamente certo do fato. Que há de fazer*?- Esperar em Deus por mais
testemunhas. Atuar de outro modo é infringir o princípio divino exposto com toda
a possível clareza, repetidas vezes, na Palavra de Deus. Deve a única testemunha
sentir-se ofendida ou insultada porque não se atuou segundo o seu testemunho?-
Certamente que não; na verdade ela não deveria esperar tal coisa, antes não
deveria adiantar-se a testemunhar sem de poder corroborar o seu testemunho com
a evidência de um ou dois. A assembléia há de ser considerada indiferente ou
negligente porque recusa agir segundo o testemunho de uma única testemunhai
Não; seria proceder contra o mandamento divino considerá-la assim.
E recorde-se que este grande princípio prático não é limitado na sua aplicação a
casos de disciplina, ou assuntos relacionados com uma assembléia do povo do
Senhor, mas é de aplicação geral. Nunca deveríamos ousar formar um juízo ou
chegar a uma conclusão sem a medida de evidência divinamente assinalada; se esta
não existe é nosso dever esperar, e se tivermos de julgar o caso, Deus proporci-
onará, a seu tempo, a necessária evidência. Sabemos de um caso em que um
indivíduo foi acusado falsamente porque o acusador baseou a sua acusação sobre a
evidência de um dos seus sentidos; tivesse ele tido o cuidado de esperar a evidência
de mais dois, e não teria feito acusação.
Assim o assunto da evidência requer a atenção séria do leitor, seja qual for a sua
posição. Todos somos propensos a tirar conclusões precipitadas, a deixarmo-nos
impressionar, a dar lugar a conclusões infundadas, deixar que as nossas mentes
sejam envolvidas e desviadas por preconceitos. Temos de vigiar atentamente
contra estas coisas. Necessitamos de mais calma, seriedade e fria deliberação para
formar a expressar o nosso parecer acerca das pessoas e das coisas. Mas
especialmente sobre as pessoas, visto que podemos infligir uma grave injustiça a
um amigo, um irmão, ou ao próximo, escutando a uma falsa impressão ou
infundada acusação. Podemo-nos converter no veículo de uma acusação
inteiramente infundada, pela qual o caráter de outrem pode ser seriamente
arruinado. Isto é um grande pecado aos olhos de Deus, e deve ser ciosamente
evitado em nós e severamente condenado nos outros, sempre que se apresente
perante nós. Sempre que alguém traz uma acusação contra outro na sua ausência,
devemos insistir para que prove o que diz ou retire a sua acusação. Se este plano
fosse adotado, seríamos libertados de muita maledicência, a qual não só é nada
proveitosa mas, positivamente, malvada e se não deve tolerar.
Antes de deixar o tema da evidência, devemos notar que a história inspirada nos
proporciona mais de um exemplo em que um inocente tem sido condenado com
aparente observância de Deuteronômio 17:6-7. Veja-se o caso de Nabote em 1 Reis
21, e o caso de Estêvão em Atos 6 e 7; e, sobretudo, o caso do único Homem
perfeito que jamais pisou esta terra. Ah, os homens podem, por vezes, aparentar
admirável atenção à letra da Escritura quando isso convém aos seus próprios fins
perversos! Podem citar as suas sagradas palavras em defesa da mais flagrante
injustiça e detestável imoralidade. Duas testemunhas acusaram Nabote de
blasfemar contra Deus e o rei, e esse fiel israelita foi despojado da sua herança e da
sua vida sobre o testemunho de dois mentirosos subornados por instruções de uma
mulher ímpia e cruel. Estêvão, um homem cheio do Espírito Santo, foi apedrejado
até morrer por blasfêmia sobre o testemunho de falsas testemunhas convocadas e
instruídas pelos grandes "lideres" religiosos daquele tempo, que podiam, sem
dúvida, citar Deuteronômio 17 como princípio de autoridade.
Mas tudo isto, enquanto exemplifica, triste e forçosamente, o que o homem é, e
o que é a mera religiosidade humana sem consciência, deixa intacta a formosa
regra moral estabelecida para nossa orientação nas primeiras linhas do nosso
capítulo. A religião sem consciência ou sem o temor de Deus é a coisa mais
degradante, mais desmoralizadora, mais endurecedora que existe abaixo da
abóbada celeste; e um dos seus mais terríveis aspectos consiste em que os homens
sob a sua influência não se envergonham nem têm receio de fazer uso da letra da
Sagrada Escritura como capa para cobrir a mais horrível impiedade.
Mas graças e louvores ao nosso Deus, a Sua Palavra apresenta-se ante a visão
das nossas almas em toda a sua pureza celestial, virtude divina, e santa moralidade,
e arremessa à cara dos seus inimigos todos os intentos de tirar das suas páginas
sagradas um pretexto para qualquer coisa que não é verdadeira, venerável, justa,
pura, amável e de boa fé.

A Regra para todas as Questões em Israel e na Igreja de Deus


Vamos agora prosseguir com a citação do segundo parágrafo do nosso capítulo,
no qual acharemos instrução de grade valor moral, e muito necessária nestes dias
de obstinação e independência.
"Quando alguma coisa te for dificultosa em juízo, entre sangue e sangue, entre
demanda e demanda, entre ferida e ferida, em negócio de pendências nas tuas
portas, então, te levantarás e subirás ao lugar que escolher o SENHOR, teu Deus; e
virás aos sacerdotes levitas e ao juiz que houver naqueles dias e inquirirás, e te
anunciarão a palavra que for do juízo. E farás conforme o mandado da palavra que
te anunciarão do lugar que escolher o SENHOR; e terás cuidado de fazer conforme
tudo o que te ensinarem Conforme o mandado da lei que te ensinarem e conforme
o juízo que te disserem, farás; da palavra que te anunciarem te não desviarás, nem
para a direita nem para a esquerda. O homem, pois, que se houver soberbamente,
não dando ouvidos ao sacerdote, que está ali para servir ao SENHOR, teu Deus, nem
ao juiz, o tal homem morrerá; e tirarás o mal de Israel, para que todo o povo o ouça,
eterna, e nunca mais se ensoberbeça" (versículos 8 a 13).
Aqui temos estabelecidas as disposições para a perfeita solução de todas as
questões que pudessem suscitar-se no meio da congregação de Israel; deviam ser
solucionadas na presença divina, no lugar divinamente indicado, pela autoridade
divinamente nomeada. Desta maneira a obstinação e a arrogância eram
cuidadosamente evitadas. Todo o caso de controvérsia devia ser definitivamente
resolvido pelo juízo de Deus conforme era expresso pelo sacerdote ou juiz
designado por Deus para esse fim.
Numa palavra, era absoluta e inteiramente um assunto de autoridade divina.
Não se tratava de alguém se levantar em obstinação e arrogância contra outro. Isto
nunca seria admitido na assembléia de Deus. Todos deviam submeter a sua causa a
um tribunal divino, e inclinarem-se implicitamente à sua decisão. Não devia haver
apelo, visto que não havia tribunal mais alto. O sacerdote ou juiz divinamente
designado falava como oráculo de Deus, e tanto o acusador como o acusado tinham
de inclinar-se, sem objeção, ante a decisão.
Ora é bem claro que nenhum membro da congregação de Israel teria jamais
pensado em levar o seu caso a um tribunal dos gentios para ali ser julgado.
Podemos estar certos de que isto era completamente alheio aos pensamentos e
sentimentos de todo o verdadeiro israelita. Teria envolvido um positivo insulto ao
próprio Senhor, que estava no meio deles para emitir juízo em todos os casos que
da—um documento pertencente a dias há muito passados? A nossa mudança de
condição despojou a Palavra de Deus de algumas das suas glórias morais?
Prezado leitor, qual é a tua resposta a estas interrogações? Rogamos-te
sinceramente que as consideres francamente com humildade e oração na presença
do Senhor. Cremos que a tua resposta será um correto índice da tua verdadeira
posição e estado moral. Não vês e não admites plenamente que a Escritura nunca
pode perder o seu poderá Podem os princípios de 1 Coríntios jamais deixar de ser
uma força obrigatória sobre a Igreja de Deus«?- Está plenamente admitido — pois
quem pode negar que as coisas estão desgraçadamente mudadas — que "a Escritura
não pode ser anulada" e portanto o que era uma "falta" no primeiro século não pode
ser reto no século dezenove; pode haver mais dificuldades em levar a cabo os
princípios divinos, mas não devemos nunca consentir em prescindir deles, ou agir
sobre qualquer terreno inferior. Se admitimos a idéia de que é impossível proceder
retamente, porque a igreja professante se extraviou, todo o princípio de obediência
cristã é abandonado. Tão injusto é que "o irmão vá a juízo com o irmão, e isso
perante incrédulos" hoje como o era quando o apóstolo escreveu a sua epístola à
assembléia de Corinto (1).Verdade é que a unidade visível da igreja desapareceu;
está privada de muitos dons; separou-se da sua condição normal; mas os princípios
da Palavra de Deus não podem perder o seu poder assim como o sangue de Cristo
não pode perder a sua virtude, ou o Seu sacerdócio perder a sua eficácia.
__________
(1) É conveniente recordar que onde quer que "dois ou três" estiverem reunidos para o Nome do Senhor
Jesus, ainda que em tal fraqueza, se encontrará, se tão somente forem humildes e obedientes, competência
espiritual para julgar em todos os casos que possam suscitar-se entre irmãos. Podem contar com sabedoria
divina para o esclarecimento de qualquer questão, disputa ou controvérsia, de forma que não haverá
necessidade de recorrer a um tribunal mundano.
Sem dúvida, os homens do mundo rirão de uma tal idéia; mas nós devemos aderir, com santa decisão, à
direção da Escritura. O irmão não deve ir ao juízo com o irmão perante os incrédulos. Isto é claro e
enfático. Há recursos à disposição da assembléia de Cristo, Cabeça e Senhor, para resolver toda questão
possível.
Que o povo do Senhor aplique seriamente os seus corações à consideração, deste assunto. Vejam que
estão reunidos sobre o verdadeiro terreno da igreja de Deus; e então embora sempre conscientes de que as
coisas não são hoje na igreja o que foram, ainda que conscientes da maior fraqueza, fracasso e deficiências,
descobrirão que a graça de Cristo é suficiente para eles e a Palavra de Deus plena de toda a instrução e
autoridade, de modo que nunca precisarão de recorrer ao auxílio, conselho ou juízo do mundo. "Onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles."
Seguramente, isto basta para toda a necessidade. Existe alguma questão que o nosso Senhor Jesus Cristo
não possa resolver? Necessitamos da destreza natural, sabedoria do mundo, agudeza, erudição, sagacidade,
se temos o Senhor? Claro que não; na verdade, tais coisas só podem incomodar-nos como a Davi
incomodava a armadura de Saul. Tudo que precisamos é de empregar os recursos que temos em Cristo.
Decerto, descobriremos "no lugar onde o Senhor escolheu para ali fazer habitar o Seu nome" sabedoria
sacerdotal para julgar em todos os casos que possam surgir entre irmãos.
E, além disso, lembre-se o amado povo do Senhor, em todos os casos de dificuldade local que podem
suscitar-se, que não há necessidade alguma para procurar auxílio estranho, para escrever para outros
lugares solicitando a vinda de alguém mais sábio para os ajudar. Sem dúvida, se o Senhor manda algum dos
Seus amados servos naquele preciso momento, a sua simpatia, comunhão, conselho e auxílio serão de
muita estima. Não procuramos estimular a independência de uns contra outros, mas absoluta e completa
dependência de Cristo, nosso Chefe e Senhor

E, além disso, devemos lembrar que há recursos de sabedoria, graça, poder e


dons espirituais entesourados para a Igreja em Cristo, seu Cabeça, sempre ao
alcance daqueles que têm fé para os usar. Não nos encontramos limitados em nosso
bendito e adorável Salvador. Não temos de esperar ver o corpo restaurado à sua
condição normal na terra; mas, não obstante, é nosso privilégio ver o que é o
verdadeiro terreno do corpo, e é nosso dever ocupar esse terreno e nenhum outro.
Ora, é admirável a mudança que se opera em nossa total condição, na nossa
visão das coisas, nos pensamentos de nós próprios e de quanto nos rodeia, logo que
pomos os pés no verdadeiro terreno da Igreja de Deus. Tudo parece mudar. A
Bíblia parece um novo livro. Vemos tudo a uma nova luz. Porções da Escritura que
temos estado a ler durante anos sem interesse ou proveito agora resplandecem com
luz divina e enchem-nos de admiração, amor e louvor. Vemos tudo de um ponto
de vista novo; todo o nosso campo de visão é alterado; temos escapado da tenebrosa
atmosfera que envolve o conjunto da igreja professante e podemos olhar em redor
e ver as coisas claramente à luz celestial da Escritura. De fato, parece uma nova
conversão; e descobrimos que podemos ler a Escritura inteligentemente, porque
temos a chave divina. Vemos que Cristo é o centro e objetivo de todos os
pensamentos, propósitos e desígnios de Deus desde eternidade a eternidade, e por
isso somos conduzidos àquela maravilhosa esfera de graça e glória que o Espírito
Santo se compraz em desenvolver na preciosa Palavra de Deus.
Oxalá o leitor seja guiado à completa compreensão de tudo isto pelo direto e
poderoso ministério do Espírito Santo! Que seja habilitado a entregar-se a si
mesmo ao estudo da Escritura e a render- se incondicionalmente ao seu ensino e
autoridade! Que não consulte a carne e o sangue mas se entregue, como menino,
ao Senhor, e procure ser guiado em inteligência espiritual e conformidade prática
com a mente de Cristo.

Quando Estabeleceres um Rei sobre ti


Consideremos agora por um momento os versículos finais do nosso capítulo,
nos quais temos uma notável visão do futuro de Israel, antecipando o momento em
que eles haviam de procurar eleger um rei sobre si.
"Quando entrares na terra, que te dá o SENHOR, teu Deus, e a possuíres, e nela
habitares, e disseres: Porei sobre mim um rei, assim como têm todas as nações, que
estão em redor de mim, porás certamente, sobre ti como rei aquele que escolher o
SENHOR, teu Deus; dentre teus irmãos porás rei sobre ti; não poderás pôr homem
estranho sobre ti, que não seja de teus irmãos. Porém não multiplicará para si
cavalos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar cavalos; pois o SENHOR
vos tem dito: Nunca mais voltareis por este caminho. Tampouco para si
multiplicará mulheres, para que o seu coração se não desvie; nem prata nem ouro
multiplicará muito para si" (versículos 14 a 17).
Quão notável é que as três coisas que o rei não devia fazer, foram precisamente
as mesmas coisas que foram feitas—e feitas largamente pelo maior e mais sábio dos
monarcas de Israel. "Também o rei Salomão fez naus em Ezim-Geber, que está
junto a Elate, na praia do mar de Surfe, na terra de Edom. E mandou Hirão com
aquelas naus os seus servos, marinheiros, que sabiam do mar, com os servos de
Salomão. E vieram a Ofir, e tomaram de lá quatrocentos e vinte talentos de ouro, e
o trouxeram ao rei Salomão... e deu ao rei centro e vinte talentos de ouro (a rainha
de Sabá). E era o peso do ouro que se trazia a Salomão cada ano seiscentos e
sessenta e seis talentos de ouro; além do dos negociantes, e do contrato dos
especieiros, e de todos os reis da Arábia, e dos governadores da mesma terra".
Lemos também que "Fez o rei que em Jerusalém houvesse prata como pedras. E
tiravam cavalos do Egito para Salomão... E o rei Salomão amou muitas mulheres
estranhas... e tinha setecentas mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas
mulheres lhe perverteram o seu coração" (1 Rs 9:26 a 28; 10:10,14,15,27,28;
11:1,3).
Que relato! Que comentário a respeito do homem em seu melhor e mais
elevado estado! Aqui estava um homem dotado de sabedoria sobre todos os do seu
tempo, rodeado de bênçãos inéditas, de dignidade, de honra e privilégios; o seu
cálice trasbordava; não faltava nada daquilo que o mundo pode suprir para a
felicidade humana. E não só isto, senão que a sua notável oração quando da
dedicação do templo podia induzir-nos a acalentar as mais brilhantes esperanças a
seu respeito, tanto pessoal como oficialmente.
Porém, triste é dizê-lo, ele fracassou deploravelmente em todos os pormenores
sobre os quais a lei de Deus havia falado tão clara e terminantemente. Fora-lhe dito
para não multiplicar prata e ouro, e, contudo, multiplicou-os. Fora-lhe dito para
não fazer voltar o povo ao Egito para multiplicar cavalos, e, todavia, ao Egito
mandou buscar cavalos. Fora-lhe dito para não multiplicar para si mulheres, e, não
obstante, teve um milhar delas, e elas perverteram o seu coração! Tal é o homem!
Oh, quão pouco se pode contar com ele! "Porque toda a carne é como a erva, e toda
a glória do homem como a flor da erva. Secou-se a erva, e caiu a sua flor" (1 Pe
1:24),"... cujo fôlego está no seu nariz; porque em que se deve ele estimará" (Is
2:22).
Mas podemos perguntar, a que devemos atribuir o retumbante, triste e
humilhante fracasso de Salomão?- Qual foi o seu verdadeiro segredo? Para
responder a esta interrogação, temos de citar os versículos finais do nosso capítulo.
"Será também que, quando se assentar sobre o trono do seu reino, então, escreverá
para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos sacerdotes levitas. E
o terá consigo e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao
SENHOR, seu Deus, para guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para
fazê-los. Para que o seu coração não se levante sobre os seus irmãos e não se aparte
do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; para que prolongue os
dias no seu reino, ele e seus filhos no meio de Israel" (versículos 18 a 20).
Tivesse Salomão atendido a estas preciosíssimas e importantes palavras, e o seu
historiador teria tido uma tarefa muito diferente a cumprir. Mas ele não o fez.
Nada ouvimos de ele ter feito uma cópia da lei; e, certamente, se fez uma cópia
dela, não atentou para ela; antes, voltou-lhe as costas, e fez as próprias coisas que
lhe fora dito para não fazer. Numa palavra, a causa da miséria e ruína que tão
rapidamente seguiu o esplendor do reinado de Salomão foi o menosprezo da
Palavra de Deus.
É isto que torna tudo tão solene para nós, nos nossos dias, e que nos leva a
chamar a atenção do leitor para o fato. Sentimos profundamente a necessidade de
procurar despertar a atenção de toda a Igreja de Deus para este importante assunto.
A indiferença pela Palavra de Deus é a origem de todo o fracasso, toda a ruína, todo
o erro, todo o dano e confusão, heresias, seitas, cismas, que têm estado sempre ou
estão atualmente no mundo. E podemos acrescentar, com idêntica confiança, que
o único remédio real e soberano para o nosso lamentável estado atual se encontra
em regressar cada um por si mesmo à simples, mas tristemente desprezada
autoridade da Palavra de Deus. Que cada qual veja o seu próprio afastamento, e o
afastamento do conjunto do corpo professante, do claro e positivo ensino do Novo
Testamento—os mandamentos de nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Humilhemo-nos debaixo da mão poderosa do nosso Deus, por causa do nosso
pecado comum, e voltemos para Ele com verdadeiro arrependimento, e Ele, por
Sua graça, nos restaurará, abençoará e conduzirá àquela bendita senda de
obediência que está aberta ante toda a alma verdadeiramente humilde.
Que Deus, o Espírito Santo, em Seu poder irresistível, faça penetrar no coração
e consciência de todos os membros do corpo de Cristo, à face da terra, a urgente
necessidade de uma imediata e incondicional rendição à autoridade da Palavra de
Deus.
— CAPÍTULO 18 —

OS SACERDOTES LEVITAS

O Serviço e a Parte de cada um


O parágrafo com que abre este capítulo sugere uma linha interessante e prática
de verdade.
"Os sacerdotes levitas, toda a tribo de Levi, não terão parte nem herança em
Israel; das ofertas queimadas do SENHOR e da sua herança comerão. Pelo que não
terá herança no meio de seus irmãos; o SENHOR é a sua herança, como lhe tem dito.
Este, pois, será o direito dos sacerdotes, a receber do povo, dos que sacrificarem
sacrifícios, seja boi ou gado miúdo: que darão ao sacerdote a espádua, e as
queixadas, e o bucho. Dar-lhe-ás as primícias do teu cereal, do teu mosto e do teu
azeite e as primícias da tosquia das tuas ovelhas. Porque o SENHOR, teu Deus, o
escolheu de todas as tuas tribos, para que assista a servir no nome do SENHOR, ele e
seus filhos, todos os dias. E, quando vier um levita de alguma das tuas portas, de
todo o Israel, onde habitar, e vier com todo o desejo da sua alma ao lugar que o
SENHOR escolheu, e servir no nome do SENHOR, seu, Deus, como também todos os
seus irmãos, os levitas, que assistem ali perante o SENHOR, igual porção comerão,
além das vendas do seu patrimônio" (versículos 1 a 8).
Aqui, como em todas as demais partes do livro de Deuteronômio, os sacerdotes
estão classificados com os levitas de um modo muito claro. Já chamamos a atenção
do leitor para este assunto, como um rasgo característico deste livro, e não
deteremos por agora sobre ele; queremos simplesmente, de passagem, recordar ao
leitor que se trata alguma coisa digna de atenção. Considere-se as palavras com que
abre o capítulo: "Os sacerdotes levitas", e compare-se o modo como se fala dos
sacerdotes, filhos de Aarão, em Êxodo, Levítico e Números; e se quisermos saber a
razão desta diferença, cremos que é a seguinte: em Deuteronômio o objetivo
divino é pôr toda a assembléia de Israel em eminência, e é por isso que os
sacerdotes, em sua capacidade oficial, raramente aparecem perante nós. A idéia
principal de Deuteronômio é Israel em imediata relação com o Senhor.
Ora, na passagem citada, temos os sacerdotes e os levitas unidos e apresentados
como servos do Senhor, inteiramente dependentes d'Ele, e intimamente
identificados com o Seu altar e serviço. Isto é pleno de interesse e abre um campo
muito importante de verdade prática a que a Igreja de Deus fará bem em atender.
Ao examinar a história de Israel, vemos que quando as coisas estavam de certo
modo em salutar estado, atendia-se convenientemente o altar de Deus, e, como
conseqüência, os sacerdotes e levitas eram bem atendidos. Se o Senhor tinha a Sua
porção, os Seus servos estavam certos de ter a sua. Se Ele era esquecido, também
eles o eram. Estavam unidos. O povo devia trazer as suas ofertas a Deus, e Ele
repartia-as com os Seus servos. Os sacerdotes e levitas não podiam exigir ou pedir
nada ao povo, mas o povo tinha o privilégio de trazer as suas ofertas ao altar de
Deus, e Ele permitia que os Seus servos se alimentassem do fruto da devoção que o
Seu Povo tinha por Ele.

No Tempo de Eli
Tal era a idéia verdadeira, divina, quanto aos servos do Senhor da antiguidade.
Deviam viver das ofertas voluntárias apresentadas a Deus por toda a congregação.
Verdade é que, nos dias sombrios e maus dos filhos de Eli, encontramos alguma
coisa muito diferente desta encantadora ordem moral. Então, "...o costume
daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém algum sacrifício,
vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a carne, com um garfo de três
dentes em sua mão; e dava com ele na caldeira, ou na panela, ou no caldeirão, ou
na marmita; e...tudo quanto o garfo tirava o sacerdote tomava para si; assim faziam
a todo o Israel que ia ali a Siló. Também, antes de queimarem a gordura" — a
porção especial de Deus — "vinha o moço do sacerdote e dizia ao homem que
sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote, porque não tomará de ti carne
cozida, senão crua. E, dizendo-lhe o homem: Queimem primeiro a gordura de
hoje, e depois toma para ti quanto desejar a tua alma, então, ele lhe dizia: Não,
agora a hás de dar; e, se não, por força a tomarei. Era, pois, muito grande o pecado
desses jovens perante o SENHOR, porquanto os homens desprezavam a oferta do
SENHOR" (1 Sm 2:13 -17).
Tudo isto era verdadeiramente lamentável e terminou com o juízo solene de
Deus sobre a casa de Eli. Não podia ser de outro modo. Se os que ministravam ao
altar podiam ser culpados de tão terrível iniqüidade e impiedade, o juízo devia
seguir o seu curso.
Mas o estado normal das coisas, conforme é apresentado no nosso capítulo,
estava em vivo contraste com toda esta aterradora iniqüidade. O Senhor queria
rodear-Se das ofertas voluntárias do Seu povo, e destas ofertas queria alimentar os
Seus servos que ministravam ao Seu altar. Por isso, quando o altar de Deus era
atendido com diligência, fervor e devoção, os sacerdotes levitas tinham uma rica
porção, um abundante suprimento; e, por outro lado, quando o Senhor e o Seu
altar eram tratados com fria negligência, ou atendidos como mera rotina ou falso
formalismo, os servos do Senhor eram da mesma maneira esquecidos. Numa
palavra, estavam intimamente identificados com o culto e serviço do Deus de
Israel.

No Tempo de Ezequias
Assim, por exemplo, nos dias brilhantes do bom rei Ezequias, quando as coisas
estavam em seu vigor e os corações eram ditosos e verdadeiros, lemos: "E
estabeleceu Ezequias as turmas dos sacerdotes e levitas, segundo as suas turmas, a
cada um segundo o seu ministério; aos sacerdotes e levitas para o holocausto e para
as ofertas pacíficas, para ministrarem, e louvarem, e cantarem às portas dos arraiais
do SENHOR. Também estabeleceu a parte da fazenda do rei para os holocaustos e
para os holocaustos da manhã e da tarde, e para os holocaustos dos sábados, e das
Festas da Lua Nova, e das solenidades; como está escrito na Lei do SENHOR. E
ordenou ao povo, Moradores de Jerusalém, que desse a parte dos sacerdotes e
levitas, para que se pudessem dedicará Lei do SENHOR. E, depois que essa ordem se
divulgou, os filhos de Israel trouxeram muitas primícias de trigo, e de mosto, e de
azeite, e de mel, e de toda a novidade do campo; também os dízimos de tudo
trouxeram em abundância. E os filhos de Israel e de Judá que habitavam nas
cidades de Judá também trouxeram dízimos das vacas e das ovelhas e dízimos das
coisas sagradas que foram consagradas ao SENHOR, seu Deus; e fizeram muitos
montões. No terceiro mês, começaram a fazer os primeiros montões e no sétimo
mês acabaram. Vindo, pois, Ezequias e os príncipes e vendo aqueles montões,
bendisseram ao SENHOR e ao seu povo Israel. E perguntou Ezequias aos sacerdotes e
aos levitas acerca daqueles montões. E Azarias, o sumo sacerdote da casa de
Zadoque, lhe falou, dizendo: Desde que esta oferta se começou a trazer à Casa do
SENHOR, houve o que comer e de que se fartar e ainda sobejo em abundância,
porque o SENHOR abençoou ao seu povo, e sobejou esta abastança" (2 Cr 31:2-10).
Quão consolador é tudo isto! E quão animador! A profunda, cheia e prateada
onda de devoção afluía em redor do altar de Deus arrastando um amplo
suprimento para satisfazer todas as necessidades dos servos do Senhor e fazer
"montões". Podemos estar certos de que isto era grato ao coração do Deus de Israel,
como o era aos corações daqueles que se haviam dado a si mesmos, por Sua
chamada e designação, ao serviço do Seu altar e do Seu santuário.
E note-se especialmente essas preciosas palavras: "Como está escrito na lei do
SENHOR". Eis aqui a autoridade de Ezequias, a base sólida de toda a sua linha de
conduta, desde o princípio ao fim. Verdade é que a unidade visível da nação havia
desaparecido; o estado de coisas, quando ele começou a sua bendita obra, era
desanimador; mas a Palavra do Senhor era verdadeira, tão real, e tão direta em sua
aplicação nos dias de Ezequias como era nos dias de Davi ou de Josué. Ezequias
sentiu justamente que o capítulo 18:1 a 8 de Deuteronômio era aplicável ao seu
tempo e à sua consciência, e que ele e o povo estavam obrigados a atuar de acordo
com ele, segundo as suas possibilidades. Deviam os sacerdotes e levitas morrer de
fome porque a unidade de Israel havia desaparecido? Decerto que não. Deviam
permanecer firmes ou cair juntamente com a palavra, o culto, e a obra de Deus. As
circunstâncias podiam variar, e os israelitas podiam encontrar-se numa situação na
qual fosse impossível cumprir pormenorizadamente todas as ordenanças do
cerimonial levítico, mas nunca poderiam encontrar-se em circunstâncias tais que
não pudessem fazer o elevado privilégio de dar completa expressão à devoção de
seus corações pelo serviço, o altar e a lei do Senhor.

No Tempo de Neemias
Assim, pois, vemos, em toda a história de Israel, que quando as coisas eram
brilhantes e satisfatórias, o culto do Senhor, a Sua obra e os Seus obreiros eram
mantidos de uma maneira bendita. Mas, por outro lado, quando as coisas estavam
em decadência, quando os corações eram indiferentes, quando o egoísmo e os seus
interesses ocupavam o lugar principal, então todas estas coisas importantes eram
tratadas com negligência. Veja-se, por exemplo, Neemias 13. Quando esse amado e
fiel servo do Senhor voltou para Jerusalém, depois de uma ausência de alguns dias,
descobriu com profunda mágoa que, até durante tão pouco tempo, diversas coisas
não estavam bem; entre elas, os pobres levitas não tinham nada para comer.
"Também entendi que o quinhão dos levitas se lhes não dava, de maneira que os
levitas e os cantores, que faziam a obra, tinham fugido cada um para a sua terra"
(Ne 13:10). Não havia "montões" de primícias nesses dias tristes, e certamente seria
duro para esses homens trabalhar e cantar quando não tinham nada que comer.
Isto não estava conforme a lei do Senhor, nem segundo o Seu coração de amor. Era
uma vergonha para o povo que os servos do Senhor se vissem obrigados, devido a
sua grosseira negligência, a abandonar o culto e a obra de Deus, a fim de escaparem
à fome.
Isto era realmente um estado de coisas deplorável. Neemias sentiu-o
intensamente, como lemos: "Então, contendi com os magistrados e disse: Porque se
desamparou a Casa de Deus? Porém eu os ajuntei, e os restaurei no seu posto.
Então todo o Judá trouxe os dízimos do grão, e do mosto, e do azeite aos celeiros. E
por tesoureiros pus... porque se tinham achado fiéis";—tinham direito a confiança
de seus irmãos — "e se lhes encarregou a eles a distribuição para seus irmãos". Foi
necessário um número de homens experimentados e fiéis para ocupar a elevada
posição de distribuir aos seus irmãos os preciosos frutos da dedicação do povo;
podiam tomar conselho juntos e velar que o tesouro do Senhor fosse fielmente
administrado, segundo a Sua palavra, e que as necessidades dos Seus verdadeiros
obreiros de bona fide fossem completamente satisfeitas, sem preconceitos nem
parcialidade.
Tal era a formosa ordem do Deus de Israel—uma ordem a que todo o
verdadeiro israelita, tais como Neemias e Ezequias se compraziam em atender. A
rica maré de bênção corria do Senhor para o Seu povo, e voltava de novo para Ele,
e dessa maré fluente os Seus servos deviam tirar um completo suprimento para
todas as suas necessidades. Era uma desonra para Ele que os levitas se vissem
obrigados a regressar aos seus campos; isso demonstrava que a casa de Deus era
desprezada, e que não havia mantimento para os Seus servos.
No Tempo da Igreja
E agora pode perguntar-se: Que tem tudo isto a ver conosco? Que há de
aprender a Igreja de Deus de Deuteronômio 18:1 — 8? Para responder a esta
pergunta, devemos ver 1 Coríntios 9, onde o apóstolo inspirado trata do assunto
importante da manutenção do ministério cristão — um assunto tão pouco
compreendido pela grande massa dos cristãos professos. Quanto à lei do caso, é tão
distinta quanto possível. "Quem jamais milita à sua própria custai Quem planta a
vinha e não come do seu fruto"?- Ou quem apascenta o gado e não come do leite do
gado<? Digo eu isto segundo os homens? Ou não diz a lei também o mesmo?-
Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que trilha o grão.
Porventura, tem Deus cuidado dos bois? Ou não o diz certamente por nós?
Certamente que por nós está escrito; porque o que lavra, deve lavrar com
esperança, e o que debulha, deve debulhar com esperança de ser participante. Se
nós vos semeamos as coisas espirituais, será muito que de vós recolhamos as
carnais"? Se outros participam deste poder sobre vós, porque não, mais justamente,
nós? Mas nós" — aqui a graça resplandece em todo o seu brilho celestial — "não
usamos deste direito; antes, suportamos tudo, para não pormos impedimento
algum ao evangelho de Cristo. Não sabeis vós que os que administram o que é
sagrado comem do que é do templo?- E que os que de contínuo estão junto ao altar
participam do altar? Assim ordenou também o Senhor aos que anunciam o
evangelho, que vivam do evangelho. Mas" — aqui a graça afirma outra vez a sua
santa dignidade — "eu de nenhuma destas coisas use i e não escrevi isso para que
assim se faça comigo; porque melhor me fora morrer do que alguém fazer vã esta
minha glória. Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois
me é imposta essa obrigação; e ai de mim se não anunciar o evangelho! E, por isso,
se o faço de boa mente, terei prêmio; mas, se de má vontade, apenas uma
dispensação me é confiada. Logo, que prêmio tenho? Que, evangelizando, propo-
nha de graça o evangelho de Cristo, para não abusar do meu poder no evangelho"
(versículos 7 a 18).
Aqui temos esta interessante e importante questão apresentada em todos os
seus pormenores. O apóstolo inspirado expõe com a maior decisão e clareza a lei
divina sobre este ponto. "Assim ordenou também o Senhor aos que anunciam o
evangelho, que vivam do evangelho"; que assim como os sacerdotes e os levitas da
antiguidade viviam das ofertas apresentadas pelo povo, do mesmo modo, agora, os
que são realmente chamados por Deus, dotados por Cristo, e feitos aptos pelo
Espírito Santo, para anunciar o evangelho, e que se entregam com constância e
diligência a essa gloriosa obra, têm moralmente direito à manutenção temporal.
Não é que devam esperar daqueles a quem pregam uma soma estipulada. Tal idéia
não se encontra no Novo Testamento. O obreiro deve depender do seu Mestre e só
d'Ele para seu sustento. Ai dele se depender da Igreja ou dos homens, seja de que
forma for! Os sacerdotes e levitas tinham a sua porção do Senhor, e só d'Ele. Ele era
a sorte da sua herança. Decerto, Ele esperava que o povo O servisse na pessoa dos
Seus servos. Disse-lhes o que deviam dar, e abençoava-os quando davam; era seu
elevado privilégio bem como precioso dever dar; se tivessem recusado ou
negligenciado fazer isso, teriam acarretado a seca e a esterilidade sobre os seus
vinhedos (Ag 1:5-11).
Mas os sacerdotes e os levitas tinham de olhar só para o Senhor. Se o povo
deixava de trazer as suas ofertas, os levitas tinham de correr aos seus campos e
trabalhar para seu sustento. Não podiam mover uma ação contra ninguém por
dízimos e ofertas; só podiam apelar para o Deus de Israel, que os havia ordenado
para a obra e dado o trabalho para fazer.
Assim deve ser também agora com os servos do Senhor; devem contar
unicamente com Ele. Devem estar bem seguros de que Ele os preparou para a obra
e os chamou para ela, antes de tentarem alijar- se —por assim dizer—do meio das
circunstâncias, se se entregarem inteiramente à obra da pregação. Devem desviar
completamente os olhos dos homens, de todos os recursos da criatura e do apoio
humano, e depender exclusivamente do Deus vivo. Temos visto as mais desastrosas
conseqüências de uma atuação sob um impulso equivocado neste importante
assunto; homens que não são chamados por Deus, nem aptos para a obra,
abandonando as suas ocupações, e apresentando-se, segundo dizem, para viverem
pela fé e se consagrarem à obra. O resultado em todos os casos é um deplorável
fracasso. Alguns, quando começaram a ver as duras realidades da vereda frente a
frente, alarmaram-se de tal modo que perderam, com efeito, o seu equilíbrio
mental, perderam a razão por algum tempo e a paz; e outros voltaram logo outra
vez para o mundo.
Em suma, é nossa profunda convicção, depois de quarenta anos de observações,
que são muito poucos os casos em que é moralmente seguro e conveniente alguém
abandonar o seu trabalho profissional para ir pregar o evangelho. Deve ser tão
claro e indubitável para o que toma essa decisão poder dizer, como Lutero, na
Dieta de Worms; "Eis aqui; não posso atuar de outro modo: Deus me ajude!
Amém." Pode estar perfeitamente seguro de que Deus o susterá na obra a que o
chamou e que proverá todas as suas necessidades "segundo as Suas riquezas em
glórias, por Cristo Jesus" (Fp 4:19). E quanto aos homens e os seus pensamentos a
seu respeito e da sua carreira, deve simplesmente mencioná-los ao seu Mestre. Não
é responsável para com eles; nem jamais lhes pediu coisa alguma. Se fossem
obrigados a mantê-lo, poderiam reclamar ou levantar questões; mas visto que não é
assim, eles devem deixá-lo, recordando que para o seu Mestre ele está de pé ou cai.
O Apóstolo Paulo
Mas quando consideramos a esplêndida passagem dei Coríntios 9, vemos que o
bem-aventurado apóstolo, depois de haver estabelecido, fora de toda a discussão, o
seu direito a ser sustentado, o renuncia completamente. "Não usamos deste
direito." Trabalhava com suas mãos noite e dia para não ser pesado ou estorvo a
ninguém. "Para o que me era necessário, a mim", diz ele, "e aos que estão comigo,
estas mãos me serviram" (At 20:34). De ninguém cobiçou a prata, o ouro ou o
vestido. Viajava, pregava, visitava casa após casa, era o apóstolo laborioso, o
ardente evangelista, o pastor diligente, tinha o cuidado de todas as igrejas. Não
tinha direito ao sustento?- Com certeza. Devia ter sido o gozo da Igreja de Deus
suprir todas as usas necessidades. Contudo, ele nunca insistiu sobre os seus
direitos; pelo contrário, renunciou a eles. Mantinha-se a si próprio e aos seus
companheiros com o labor das suas mãos; e tudo isto como exemplo, conforme diz
aos anciãos de Éfeso: "Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é
necessário auxiliar os enfermos e recordar as palavras do Senhor Jesus, que disse:
Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber."
Causa admiração pensar como este amado e venerando servo de Cristo, com as
suas longas viagens desde Jerusalém até ao Ilírico, os seus gigantescos trabalhos
como evangelista, pastor e mestre, tinha ainda tempo para trabalhar a fim de suprir
as suas necessidades e as dos outros. Na verdade, ele ocupou um plano moral muito
elevado. O Seu caso é um testemunho permanente contra o mercenarismo em
todas as formas e estilos. As alusões escarnecedoras dos infiéis aos ministros bem
remunerados não lhe podiam ser, de modo algum, aplicadas. Certamente, ele
nunca pregou por salário.
E, contudo, recebia com agradecimento o auxílio dos que sabiam como
prestá-lo. Uma e outra vez, a amada assembléia de Filipos supriu as necessidades do
seu venerado e amado pai em Cristo. Que felicidade para eles haverem feito isso!
Nunca será esquecido. O doce relato da sua devoção tem sido lido por milhões, os
quais têm sido confortados com o odor do seu sacrifício; está registrado no céu
onde jamais se esquece coisa alguma desta espécie; sim, está gravado no íntimo do
coração de Cristo. Escute-se a forma como o bem- aventurado apóstolo derrama o
seu coração agradecido ante os seus filhos muito amados. "Ora, muito me regozijei
no Senhor por, finalmente, reviver a vossa lembrança de mim; pois já vos tínheis
lembrado, mas não tínheis tido oportunidade. Não digo isto como por
necessidade"—feliz e abnegado servo! — "porque já aprendi a contentar-me com o
que tenho. Sei estar abatido e sei também ter abundância; em toda a maneira e em
todas as coisas, estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter
abundância como a padecer necessidade. Posso todas as coisas naquele que me
fortalece. Todavia, fizestes bem em tomar parte na minha aflição. E bem sabeis
também vós, ó filipenses, que, no princípio do evangelho, quando parti da
Macedônia, nenhuma igreja comunicou comigo com respeito a dar e a receber,
senão vós somente. Porque também, uma e outra vez me mandastes o necessário a
Tessalônica. Não que procure dádivas, mas procuro o fruto que aumente vossa
conta. Mas bastante tenho recebido e tenho abundância; cheio estou, depois que
recebi de Epafrodito o que da vossa parte me foi enviado como cheiro de suavidade
e sacrifício agradável e aprazível a Deus. O meu Deus, segundo as suas riquezas,
suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus" (Fp 4:10-19).
Que raro privilégio ser permitido confortar o coração de tão honrado servo de
Cristo, no fim da sua carreira e na solidão da sua prisão em Roma! Quão oportuno,
justo e belo era o ministério dos Filipenses! Que alegria receber os gratos
reconhecimentos do apóstolo! E quão preciosa também a certeza de que o seu
serviço havia ascendido como odor suave ao próprio trono e coração de Deus!
Quem não haveria preferido ser um filipense ajudando a suprir as necessidades do
apóstolo a um Coríntio levantando a questão do seu ministério, ou um gálata
entristecendo o seu coração! Que imensa diferença! O apóstolo não podia receber
nada da assembléia de
Corinto. O seu estado não o permitia. Alguns dessa assembléia serviram-no e o
seu serviço está registrado nas páginas inspiradas, recordado também nas alturas, e
será recompensado largamente no reino futuro. "Folgo, porém, com a vinda de
Estéfanas, e de Fortunato, e de Acaico; porque estes supriram o que da vossa parte
me faltava. Porque recrearam o meu espírito e o vosso. Reconhecei, pois, aos tais"
(I Co. 16:17,18).

Como o Mestre, assim o Servo


Assim, pois, de tudo quanto tem passado perante nós, aprendemos, da maneira
mais clara, que tanto debaixo da lei como sob o evangelho, está de acordo com a
vontade revelada e conforme com o coração de Deus que aqueles que são,
realmente, chamados por Ele para a obra, e que se dedicam ardente e
diligentemente a ela, tenham a simpatia cordial e auxílio do Seu povo. Todos os
que amam a Cristo consideram com gozo um grande privilégio servi-Lo a Ele com
o suprimento das necessidades dos Seus servos. Quando Ele próprio esteve na
terra, aceitou com agrado a ajuda das mãos que O amavam, e que haviam colhido o
fruto do Seu preciosíssimo ministério — "E algumas mulheres que haviam sido
curadas de espíritos malignos e de enfermidades; Maria, chamada Madalena, da
qual saíram sete demônios; e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e
Susana, e muitas outras que o serviam com suas fazendas" (Lc 8:2 e 3).
Ditosas, altamente privilegiadas mulheres! Que alegria puderem prover do
necessário o Senhor da glória nos dias da Sua necessidade humana e da Sua
humilhação! Os seus nomes honrados estão escritos nas páginas divinas de Deus o
Espírito Santo para serem lidos por incontáveis milhões, e levados pela corrente do
tempo até à eternidade. Quão bom foi para essas mulheres não terem desperdiçado
a sua fazenda em sua própria satisfação ou acumulado para assim entorpecer as suas
almas, ou ser uma positiva maldição, como será sempre com o dinheiro se não for
usado para Deus!
Mas, por outro lado, aprendemos a urgente necessidade, por parte de todos os
que ocupam o lugar de obreiros, quer seja na assembléia ou fora dela, de se
manterem perfeitamente livres de toda a influência humana, de toda a
dependência dos homens, em qualquer forma ou aspecto. Devem tratar com Deus
no secreto das suas almas, ou de contrário certamente fracassarão, mais cedo ou
mais tarde. Devem confiar somente em Deus para o suprimento das suas
necessidades. Se a Igreja se descuida a respeito deles, a Igreja será a que perde
seriamente aqui e na eternidade. Se puderem manter- se pelo labor das suas mãos,
sem terem de prejudicar diretamente o seu serviço a Cristo, tanto melhor; é,
indubitavelmente, o caminho mais excelente. Estamos tão convencidos disto como
da verdade de qualquer proposta que nos possa ser submetida. Nada há mais
espiritual e moralmente nobre do que um servo de Cristo verdadeiramente dotado
a manter-se a si e à sua família com o suor do seu rosto, e, ao mesmo tempo,
entregando-se diligentemente à obra do Senhor, quer como evangelista, quer
como pastor ou doutor.
O lado oposto a isto é apresentado moralmente à nossa vista na pessoa de um
homem que, sem dom ou graça, ou vida espiritual, entra no que é chamado
ministério como mera profissão ou meio de vida. A posição de um tal homem é
moralmente perigosa e miserável em extremo. Não vamos deter-nos sobre ela,
visto que não está dentro do alcance do assunto que tem estado a ocupar a nossa
atenção, e nós sentimo-nos gratos por o deixar e prosseguir com o nosso capítulo.

Não Praticareis Adivinhação


"Quando entrares na terra que o SENHOR, teu Deus, te der, não aprenderás a
fazer conforme as abominações daquelas nações. Entre ti se não achará quem faça
passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador,
nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador de encantamentos, nem quem
consulte um espírito adivinhante, nem mágico, nem quem consulte os mortos, pois
todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o
SENHOR, teu Deus, as lança fora de diante de ti. Perfeito serás, como o SENHOR, teu
Deus. Porque estas nações, que hás-de possuir, ouvem os prognosticadores e os
adivinhadores; porém a ti o Senhor, teu Deus, não permitiu tal coisa " (versículos 9
a 14).
Ora, talvez que o leitor, ao ler a precedente passagem, se sinta disposto a
perguntar qual a aplicação que ela pode ter aos cristãos professos. Em resposta,
perguntamos, há cristãos professos que têm o hábito de ir presenciar as sessões de
bruxos, feiticeiros e necromantes? Há quem tome parte em sessões de espiritismo,
nas quais as mesas se movem, invocações dos espíritos, mesmerismo ou
clarividência? (1) Se assim é, a passagem que temos citado tem muito que ver
claramente com todos eles. Cremos firmemente que todas estas coisas que temos
nomeado são do diabo. Isto pode parecer áspero e severo; mas não podemos
evitá-lo. Estamos plenamente convencidos que quando as pessoas se entregam à
terrível tarefa de invocar os espíritos dos mortos, põem-se simplesmente nas mãos
do diabo para serem enganadas e iludidas com as suas mentiras. Podemos
perguntar, para que precisam aqueles, que têm em suas mãos uma perfeita
revelação de Deus, do movimento de mesas e da invocação dos espíritos? Para
nada, certamente. E, se não estão contentes com essa preciosa palavra, se voltam
para os espíritos de defuntos amigos e outros, o que podem esperar senão que Deus
os entregue judicialmente para serem enganados e cegados pelos espíritos mais que
aparecem e personificam os mortos e dizem toda a sorte de mentiras?
__________
(1)
Alguns dos nossos leitores poderão opor-se ao fato de incluirmos o mesmerismo na invocação dos
espíritos e o movimento de mesas. Talvez o considerem à mesma luz e o usem do mesmo modo como o
éter ou o clorofórmio na prática da medicina. Não pretendemos dogmatizar sobre este ponto. Apenas
podemos dizer que nada queremos ter que ver com ele. Julgamos coisa gravíssima alguém consentir em ser
levado por outrem a um estado de completa inconsciência, seja para que fim for. E quanto à idéia de
atender ou ser guiado Pelos delírios de uma pessoa nesse estado, apenas podemos considerá-la como
totalmente absurda, senão positivamente pecaminosa.

Não intentaremos tratar plenamente deste assunto aqui; não temos tempo, nem
espaço, nem inclinação para nada dessa espécie. Sentimos simplesmente que é
nosso dever solene prevenir o leitor do perigo de ter alguma coisa que ver com a
consulta de espíritos dos mortos. Cremos que é uma obra perigosa. Não entraremos
na questão se as almas podem voltar a este mundo; sem dúvida, Deus pode permitir
que voltem se o julgar conveniente; mas isto deixamo-lo de lado. O ponto principal
que devemos ter sempre ante os nossos corações é a perfeita suficiência da
revelação divina. Que necessidade temos dos espíritos dos que já partiram?- O
homem rico julgava que se Lázaro voltasse à terra e falasse aos seus cinco irmãos,
isso teria um grande efeito. "Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos, para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham
também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Eles têm Aio/sés e os
Profetas; ouçam-nos. E disse ele: Não, Abraão meu pai, se algum dos mortos fosse
ter com eles, arrepender-se-iam. Porém Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e
aos Profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite" (Lc
16:27a 31).
Aqui temos esta questão completamente estabelecida. Se as pessoas não
ouvirem a Palavra de Deus, não acreditarem o que ela diz clara e solenemente
sobre si mesmas, do seu estado presente, e destino futuro, tampouco serão
persuadidas ainda que mil almas voltem e lhes digam o que viram, e ouviram, e
sentiram acima no céu ou no inferno em baixo; nada produziria efeito salvador ou
permanente nelas. Podia causar grande excitação, grande sensação; daria material
para conversação, e encheria as colunas dos jornais em toda a parte, mas assim
terminaria. As pessoas continuariam da mesma maneira com os seus negócios, a
sua loucura e vaidade, a ânsia dos prazeres e própria satisfação. "Se não ouvem a
Moisés e os profetas"—e nós podemos acrescentar, Cristo e os Seus apóstolos —
"tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite." o coração que se
não curva ante as Escrituras não se convencerá por nada; e quanto ao verdadeiro
crente tem na Sagrada Escritura tudo quanto pode necessitar, e portanto não tem
necessidade de recorrer ao movimento de mesas, à invocação dos espíritos ou
magia. "Quando vos disserem: Consultai os que têm espíritos familiares e os
adivinhos, que chilreiam e murmuram entre dentes;— não recorrerá um povo ao
seu Deus? A favor dos vivos interrogar-se-ão os mortos? A lei e ao testemunho! Se
eles não falarem segundo esta palavra, nunca verão a alva" (Is 8:19,20).

O Profeta Anunciado: Jesus


Eis aqui o recurso do povo do Senhor, em todo tempo e em todo lugar, e é a isto
que Moisés se refere no esplêndido parágrafo que encerra o nosso capítulo.
Mostra-lhes claramente que não tinham necessidade de consultar os espíritos dos
mortos, os adivinhos, feiticeiros ou bruxos, os quais eram todos uma abominação
ao Senhor. "O SENHOR, teu Deus, te despertará", diz ele, "um profeta do meio de ti,
de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis; conforme tudo o que pediste ao SENHOR,
teu Deus, em Horebe, no dia da congregação, dizendo: Não ouvirei mais a voz do
SENHOR, meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então, o
Senhor, me disse: Bem falaram naquilo que disseram. Eis que lhes suscitarei um
profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e
ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que, qualquer que não ouvir as
minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta
que presumir soberbamente de falar alguma palavra em meu nome, que eu lhe não
tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, o tal profeta
morrerá. E se disseres no teu coração: Como conheceremos a palavra que o SENHOR
não falou ? Quando o tal profeta falar em nome do SENHOR, e tal palavra se não
cumprir, nem suceder assim, esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a
falou o tal profeta, não tenhas temor dele" (versículos 15 a 22).
Não podemos ter dúvidas em saber quem é este profeta, isto é, nosso adorado
Senhor e Salvador Jesus Cristo. No capítulo 3 de Atos, Pedro aplica estas palavras
de Moisés: "E envie ele a Jesus Cristo, que já dantes vos foi pregado, o qual convém
que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou
pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio. Porque Moisés disse:
O Senhor, vosso Deus, levantará, dentre vossos irmãos um profeta, semelhante a
mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser. E acontecerá que toda alma que não
escutar esse profeta será exterminada dentre o povo" (versículos 20 a 23).
Quão precioso o privilégio de ouvir um tal Profeta! E a voz de Deus falando
pelos lábios do Homem Cristo Jesus—falando, não no trovão, não com fogo
devorador, não pelo relâmpago, mas nessa suave voz de amor e misericórdia que
desce em poder calmante sobre o coração quebrando e o espírito contrito, que cai
como benigno orvalho do céu sobre a terra seca. Essa voz temo-la nas Sagradas
Escrituras, essa preciosa revelação que aparece constante e poderosamente diante
de nós, nos nossos estudos sobre o abençoado livro de Deuteronômio. Nunca
devemos esquecer isto. A voz da Escritura é a voz de Cristo, e a voz de Cristo é a
voz de Deus.
Nada mais precisamos. Se alguém se atreve a apresentar-se com alguma nova
revelação, com alguma verdade nova que não consta do volume divino, temos de o
julgar e a sua comunicação pelo padrão da Escritura e rejeitá-la completamente.
"Não o temas." Os falsos profetas vêm com grandes pretensões, palavras
altissonantes e ar de santidade. Procuram, além disso, rodear-se de uma espécie de
dignidade importante e impressionante muito a propósito para enganar os
ignorantes. Mas não podem afrontar o poder escrutinador da Palavra de Deus.
Uma simples cláusula da Sagrada Escritura bastará para os despojar de todos os seus
imponentes atavios e cortar a raiz das suas assombrosas revelações. Os que
conhecem a voz do verdadeiro Profeta não escutarão a voz de nenhum outro; os
que têm ouvido a voz do bom Pastor não ouvirão a voz dos estranhos.
Leitor, escute somente a voz de Jesus—revelada na Palavra escrita de Deus!
CAPÍTULO 19

AS CIDADES DE REFÚGIO

A Bondade e a Severidade de Deus


"Quando o SENHOR, teu Deus, desarraigar as nações, cuja terra te dará o
SENHOR, teu Deus, e tu as possuíres e morares nas suas cidades e nas suas casas, três
cidades separarás no meio da tua terra que te dará o SENHOR, teu Deus, para a
possuíres. Preparar-te-ás o caminho e os termos da tua terra, que te fará possuir o
SENHOR, teu Deus, partirás em três; e isto será para que todo homicida se acolha ali"
(versículos 1 a 3).
Que contraste admirável de "bondade e severidade" encontramos nestas linhas!
Temos o "desarraigar" das nações de Canaã por causa da sua impiedade, que se
havia tornado positivamente intolerável. E, por outro lado, temos a mais
comovedora manifestação da bondade divina na provisão feita a favor do
homicida, no dia da sua profunda angústia, ao fugir para escapar com vida do
vingador do sangue. O governo e a bondade de Deus são, desnecessário é dizer,
ambos perfeitos. Há casos em que a bondade nada seria senão a tolerância de pura
maldade e declarada rebelião, o que é impossível sob o governo de Deus. Se os
homens julgam que, porque Deus é bom, podem continuar a pecar à vontade,
descobrirão, mais cedo ou mais tarde, o seu terrível equívoco.
"Considera", diz o apóstolo, "pois, a bondade e a severidade de Deus" (Rm
11:22). Deus desarraigará certamente os malfeitores que desprezam a Sua bondade
e longanimidade. Ele é tardo em irar- Se—bendito seja o Seu santo nome —, e
grande em misericórdia! Suportou durante séculos as sete nações de Canaã, até que
a sua maldade chegou aos próprios céus, e a própria terra a não podia suportar por
mais tempo. Suportou a enorme iniqüidade das cidades da campina; e se tivesse
achado ao menos dez justos em Sodoma. tê-la-ia poupado por amor deles. Mas o
dia da terrível vingança chegou e eles foram "cortados".
E assim será, também, em breve, com a cristandade culpada. "Também tu serás
cortado." O tempo do ajuste de contas virá, e oh, que tempo de ajuste de contas
será! O coração estremece ao pensar nisso, enquanto os olhos examinam e a pena
traça as palavras impressionantes.
Mas, note-se como brilha a "bondade" divina nas primeiras linhas do nosso
capítulo. Veja-se o cuidado cheio de graça do nosso Deus em pôr a cidade de
refúgio tão acessível quanto possível ao homicida. As três cidades deviam ser "no
meio da tua terra". De nada serviria tê-las em ângulos distantes ou em lugares de
difícil acesso. Mas havia mais: "Preparar-te-ás o caminho". E também, "e os termos
da tua terra... partirás em três". Tudo devia ser feito para facilitar a fuga do
homicida. O bondoso Senhor pensou nos sentimentos do desgraçado que fugia em
busca de refúgio para se agarrar à esperança posta diante de si. A cidade de refúgio
devia estar "perto", assim como "a justiça de Deus" está perto do pobre pecador
quebrantado de coração — tão perto que é "aquele que não pratica, mas crê
naquele que justifica o ímpio" (Rm. 4:5).
Existe uma suavidade especial na expressão "preparar-te-ás o caminho". Como
isto é próprio do nosso Deus, sempre cheio de graça! — "O Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo"! E, todavia, era o mesmo Deus que destruiu as nações de
Canaã, em justo juízo, que assim fazia provisão misericordiosa para o homicida.
"Considera pois a bondade e severidade de Deus."
"E este é o caso tocante ao homicida que se acolher ali, para que viva: aquele
que, por erro, ferir o seu próximo, a quem não aborrecia dantes. Como também
aquele que entrar com o seu próximo no bosque, para cortar lenha, e, pondo força
na sua mão com o machado para cortar a árvore, o ferro saltar do cabo e ferir o seu
próximo, e morrer, o tal se acolherá a uma destas cidades e viverá; para que o
vingador do sangue não vá após o homicida, quando se esquentar o seu coração, e o
alcance, por ser comprido o .caminho" —graça excelente e tocante\ — "e lhe tire a
vida; porque não é culpado de morte, pois o não aborrecia dantes. Portanto, te dou
ordem, dizendo: Três cidades separarás" (versículos 4 a 7).
Aqui temos a mais minuciosa descrição do homem para quem havia sido
separada a cidade de refúgio. Se ele não se julgava como tal, a cidade não era para
si, mas no caso afirmativo podia sentir a mais perfeita segurança de que o Deus de
toda a graça havia pensado nele e disposto de um refúgio onde ele podia estar tão
seguro quanto a mão de Deus podia proporcionar. Logo que o homicida se
encontrava dentro do recinto da cidade de refúgio, podia respirar livremente, e
gozar de calmo e suave repouso. A espada do vingador não podia alcançá-lo ali,
nem um só cabelo da sua cabeça podia ser tocado.
Estava seguro; sim, perfeitamente seguro; e não só estava em segurança mas
perfeitamente certo disso. Não esperava ser salvo, mas estava certo disso. Estava na
cidade, e isso era bastante. Antes de ali entrar, podia ter muitas lutas no íntimo do
seu aterrado coração, muitas dúvidas, temores e dolorosos receios. Fugia para
salvar a sua vida, e isto era um assunto sério, e absorvia toda a sua atenção—um
assunto de tal natureza que fazia parecer tudo mais leve e trivial. Não podemos
supor que o homicida ao fugir se detivesse a colher flores à beira da estrada.
"Flores!" Diria ele: "Que tenho eu que ver neste momento com flores? A minha
vida está em perigo. Fujo para salvar a vida. Que sucederia se o vingador chegasse e
me apanhasse a colher flores?- Não; a cidade é o meu único e absorvente objetivo;
tudo o mais não tem o menor interesse ou encanto para mim; necessito pôr-me a
salvo; esse é o meu único objetivo por agora."
Porém, logo que se encontrava dentro das benditas portas da cidade, estava
livre, e sabia-o. Como sabia isso?
Por meio dos seus sentimentos? Por qualquer evidência? Por experiência? Não;
simplesmente pela palavra de Deus. Sem dúvida, tinha o sentimento, a evidência e
a experiência, tanto mais preciosos depois da sua terrível luta para entrar na
cidade. Mas estas coisas não eram, de modo nenhum, o fundamento da sua certeza
ou a base da sua paz. Sabia que estava livre, porque Deus assim lho havia dito. A
graça de Deus o havia posto a salvo, e a Palavra de Deus dava-lhe ?certeza disso.
Não podemos imaginar um homicida dentro dos muros da cidade de refúgio
expressar-se como muitos do povo do Senhor fazem com respeito à questão de
segurança e certeza da sua salvação. Não teria considerado presunção estar certo de
que estava salvo. Se alguém lhe tivesse perguntado: "Estás certo de estar a salvos"
"Seguríssimo!" Diria ele: "como não hei de estar seguro? Não fui um homicida? Não
fugi para esta cidade de refúgio? Não deu o Senhor, o nosso Deus do concerto, a
Sua palavra sobre isto? Não disse Ele, para que viva o homicida que se acolher ali?
Sim, graças a Deus, estou perfeitamente seguro. Tive que dar uma terrível corrida,
de fazer um tremendo esforço. As vezes era como se o vingador me tivesse na sua
temível garra. Cheguei a considerar-me perdido; mas Deus, em Sua infinita
misericórdia, mostrou-me tão claramente o caminho, e tornou o acesso à cidade
tão simples para mim, que, não obstante todas as minhas dúvidas e temores, aqui
estou, salvo e seguro. A luta já acabou, o conflito terminou. Agora posso respirar
livremente e andar de um lado para outro em perfeita segurança neste bendito
lugar, louvado o nosso bendito Deus do concerto pela Sua grande bondade em ter
provido um agradável retiro para um pobre homicida como eu."
O leitor pode falar deste mesmo modo a respeito da sua segurança em Cristo?
Está salvo, e sabe-o? Se não o sabe, que o Espírito de Deus possa aplicar ao seu
coração a simples ilustração do homicida dentro dos muros da cidade de refúgio!
Permita Deus que ele possa conhecer "a grande consolação" que é a porção certa,
porque é divinamente assinalada, de todos os que põem o seu refúgio em reter "a
esperança proposta" (Hb 6:18)
Devemos prosseguir agora com o nosso capítulo; e, fazendo-o, veremos que
havia mais em que pensar na cidade do refúgio do que na questão da segurança do
homicida. Para este havia sido feita ampla provisão, como havemos visto: mas a
glória de Deus, a pureza da Sua terra, e a integridade do Seu governo tinham de ser
devidamente mantidas. Se estas coisas fossem afetadas, não podia haver segurança
para ninguém. Este grande princípio resplandece em todas as páginas da história
dos caminhos de Deus com o homem- A verdadeira bênção do homem e a glória de
Deus estão indissoluvelmente ligadas, e tanto uma como a outra descansam sobre o
mesmo fundamento imperecível, isto é, Cristo e a Sua preciosa obra.

Se o SENHOR Dilatar os teus Termos... Acrescentarás outras Três Cidades


"E, se o SENHOR, teu Deus, dilatar os teus termos, como jurou a teus pais, e te
der toda a terra que disse daria a teus pais (quando guardares todos estes
mandamentos, que hoje te ordeno, para fazê-los, amando ao SENHOR, teu Deus, e
andando nos seus caminhos todos os dias), então, acrescentarás outras três cidades
além destas três; para que o sangue inocente se não derrame no meio da tua terra,
que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança, e haja sangue sobre ti. Mas, havendo
alguém que aborrece a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o
fere na vida, de modo que morra, e se acolhe a alguma dessas cidades, então, os
anciãos da sua cidade mandarão, e dali o tirarão, e o entregarão na mão do
vingador do sangue, para que morra. O teu olho o não poupará; antes, tirarás o
sangue inocente de Israel, para que bem te suceda" (versículos 8 a 13).
Deste modo, que fosse grafa para o homicida, quer juízo para o assassino, a glória
de Deus e os direitos do Seu governo tinham de ser devidamente mantidos. O
homicida involuntário era assistido pela provisão de misericórdia; o assassino
culpado caía sob a austera sentença da justiça inflexível. Nunca devemos esquecer
a realidade solene do governo divino. Encontramo-la a cada passo; e se fosse mais
amplamente reconhecida, nos livraria eficazmente das opiniões unilaterais a
respeito do caráter divino. Tome-se como exemplo as palavras: "O teu olho o não
poupará." Quem as proferiu? O Senhor. Quem as escreveu? Deus, o Espírito Santo.
Que significam? Juízo solene sobre a maldade. Guarde-se o homem de tratar
frivolamente tão graves assuntos. Guarde-se o povo do Senhor de dar curso a tolas
opiniões a respeito de coisas inteiramente fora do seu alcance. Lembre-se de que o
falso sentimentalismo pode ser encontrado constantemente em aliança com a
infidelidade audaciosa pondo em dúvida os decretos solenes do governo divino.
Isto é uma consideração muito séria. Os que praticam o mal devem aguardar o
seguro castigo de um Deus que aborrece o pecado. Se um culpado de homicídio
voluntário intentava aproveitar-se da provisão de Deus para o homicídio
involuntário, a mão da justiça lançava mão dele e condenava-o à morte sem
misericórdia. Tal era o governo de Deus com o antigo Israel; e assim será naquele
dia que se aproxima rapidamente. Por agora, Deus trata com o mundo em
longânima misericórdia; este é o dia da salvação, o tempo aceitável. O dia da
vingança está perto. Oh! Se o homem, em vez de discorrer acerca da justiça, dos
atos de Deus com os que praticam o mal, corresse a refugiar-se no glorioso
Salvador que morreu na cruz para nos salvar das chamas de um inferno eterno! (1)
__________
Para mais pormenores sobre as cidades de refúgio devemos referir ao leitor os "Estudos sobre o Livro de
(1)

Números", capítulo 35.

Os Limites da Herança
Antes de citar o parágrafo final do nosso capítulo, queremos chamar a atenção
do leitor para o versículo 14, no qual temos uma encantadora prova do terno
cuidado de Deus pelo Seu Povo, e do interesse cheio de graça que toma em tudo
que, direta ou indiretamente, lhes diz respeito. "Não mudes o marco do teu
próximo, que colocaram os antigos na tua herança, que possuíres na terra, que te
dá o SENHOR, teu Deus, para a possuíres."
Esta passagem, tomada no seu pleno significado e primária aplicação, está
repleta de doçura, visto que nos apresenta o coração amorável de nosso Deus, e nos
mostra quão maravilhosamente Ele entra em todas as circunstâncias do Seu amado
povo. Os marcos não deviam ser tocados. A porção de cada qual devia ser mantida
intacta de conformidade com as linhas divisórias estabelecidas pelos que as
estabeleceram nos tempos antigos. O Senhor havia dado a terra a Israel: e não só
isso, mas havia destinado a cada tribo e a cada família a sua própria parte, marcada
com perfeita precisão, e indicada pelos marcos tão claramente que não podia haver
confusão, nem choque de interesses, nem interferências de uns com os outros, nem
fundamento para pleito ou controvérsia a respeito da propriedade. Ali estavam os
antigos marcos determinando a porção de cada um de maneira a evitar todo o
motivo possível de disputa. Cada qual possuía a sua parte como rendeiro do Deus
de Israel, que sabia tudo acerca da sua pequena propriedade, como dizemos; e cada
rendeiro tinha a satisfação de saber que os olhos do benévolo e altíssimo
Proprietário estavam postos na sua parcela de terra e a Sua mão sobre ela para a
proteger de todos os intrusos. Desta maneira ele podia habitar em paz à sombra da
sua parreira e debaixo da sua figueira, desfrutando o lote que fora assinalado pelo
Deus de Abraão, Isaque e Jacó.
Dissemos o bastante quanto ao sentido claro desta encantadora cláusula do
nosso capítulo. Mas tem certamente também um profundo significado espiritual.
Não há porventura marcos espirituais para a Igreja de Deus e para cada membro
dela, assinalando, com divina exatidão, os limites da nossa herança celestial — os
marcos que os antigos, os próprios apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo,
assentaram?- Evidentemente, há, e Deus tem os Seus olhos postos neles, e não
permitirá que sejam removidos impunemente. Ai do homem que intenta
tocar-lhes; terá que dar contas a Deus por esse ato! É uma coisa grave para qualquer
pessoa intrometer-se, de qualquer forma que seja, com o lugar, a porção e
perspectiva da Igreja de Deus; e é de recear que muitos o estão fazendo sem darem
conta disso.
Não intentaremos entrar na questão do que são estes marcos; procuramos fazer
isto no nosso primeiro volume de "Estudos sobre o Livro de Deuteronômio", bem
como nos outros quatro volumes da série; mas sentimos que é nosso dever avisar,
da maneira mais solene, todos aqueles a quem isto possa dizer respeito, que não
devem fazer o que, na Igreja de Deus, corresponde a arrancar os marcos em Israel.
Se na terra de Israel alguém se tivesse adiantado para sugerir algum novo arranjo
na herança das tribos, para ajustar a propriedade de cada um sobre qualquer novo
princípio, para estabelecer novas linhas divisórias, qual teria sido a resposta de
todo o israelita fiel? Muito simples, podemos estar certos. Teria respondido nos
termos da linguagem de Deuteronômio 19:14. Teria dito: Não queremos inovações
aqui; estamos perfeitamente contentes com esses sagrados e velhos marcos que os
antigos puseram na nossa herança. Estamos decididos, pela graça de Deus, a
mantê-los e a resistir, com firme propósito, a qualquer inovação moderna."
Tal teria sido, cremos, a resposta imediata de todo verdadeiro membro da
congregação de Israel; e certamente o crente não deveria ser menos decidido na
sua resposta a todos aqueles que, sob o pretexto de progresso e desenvolvimento,
querem arrancar os marcos da Igreja de Deus, e, em vez do ensino preciso de Cristo
e dos Seus apóstolos, nos oferecem a chamada luz da ciência e os recursos da
filosofia. Graças a Deus, não precisamos deles. Temos Cristo e a Sua Palavra; que se
lhes pode acrescentará Que necessidade temos nós do progresso ou de
desenvolvimento humano, quando temos "o que era desde o princípio? Que
podem fazer a ciência ou a filosofia por aqueles que possuem"toda a verdade? Sem
dúvida, precisamos, sim, ansiamos fazer progresso no conhecimento de Cristo;
ansiamos por um mais completo e mais evidente desenvolvimento de Cristo na
nossa conduta diária; mas a ciência e a filosofia não podem ajudar-nos neste
sentido; não; podem apenas mostrar que são um estorvo.
Leitor crente, procuremos manter-nos perto de Cristo, perto da Sua Palavra.
Esta é a nossa única salvaguarda, nestes dias sombrios e maus. Fora d'Ele, nada
somos, nada temos, nada podemos fazer. N'Ele temos tudo. Ele é a porção do nosso
cálice e a sorte da nossa herança. Possamos nós saber não apenas o que é estarmos
salvos n'Ele, mas separados para Ele, e satisfeitos com Ele, até esse dia brilhante em
que O veremos assim como Ele é, seremos semelhantes a Ele e com Ele estaremos
para sempre.

O Pecado Evidenciado por Duas ou Três Testemunhas


Pouco mais temos agora a fazer do que citar os poucos versículos finais do
nosso capítulo. Não precisam de comentários. Mostram a verdade a que os crentes
professos, com toda a sua luz e conhecimento, bem podem prestar atenção. "Uma
só testemunha contra ninguém se levantará por qualquer iniqüidade ou por
qualquer pecado, seja qual foro pecado que pecasse; pela boca de duas testemunhas
ou três testemunhas, se estabelecerá o negócio" (versículo 15).
Este assunto já foi tratado. Mas nunca é de mais insistir nele. Podemos julgar a
sua importância com o fato que não só Moisés, repetidas vezes, chamou para ele a
atenção de Israel, mas nosso Senhor Jesus Cristo mesmo, e o Espírito Santo por
intermédio do apóstolo Paulo, em duas das suas epístolas, insistem sobre o princí-
pio de "duas ou três testemunhas", em todos os casos. Uma só testemunha, por mais
digna de crédito que seja, não é suficiente para decidir o assunto. Se este fato fosse
mais clara e cuidadosamente considerado e devidamente ponderado, poria termo a
muitas lutas e contendas. Em nossa imaginária sabedoria, nós poderíamos julgar
que uma testemunha digna de confiança devia ser suficiente para resolver
qualquer questão. Lembremos que Deus é mais sábio que nós, e que é sempre nossa
maior sabedoria assim como a nossa maior segurança moral atermo-nos à Sua
infalível Palavra.
"Quando se levantar testemunha falsa contra alguém, para testificar contra ele
acerca de transgressão, então, aqueles dois homens, que tiverem a demanda, se
apresentarão perante o SENHOR, diante dos sacerdotes e dos juízes que houver
naqueles dias. E os juízes bem inquirirão; e eis que, sendo a testemunha falsa
testemunha, que testificou falsidade contra seu irmão, far-lhe-eis como cuidou
fazer a seu irmão; e, assim tirarás o mal do meio de ti, para que os que ficarem o
ouçam e temam, e nunca mais tornem a fazer tal mal no meio de ti. O teu olho não
poupará: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé"
(versículos 16 a 21).
Aqui podemos ver como Deus aborrece o testemunho falso; e, além disso,
temos de recordar que, apesar de não estarmos debaixo da lei, mas debaixo da
graça, o falso testemunho não é menos abominável a Deus; e certamente quanto
mais profundamente vemos a graça em que nos mantemos, tanto mais
intensamente aborreceremos o falso testemunho, a calúnia, e a maledicência em
todas as suas formas ou aparências. Que o bondoso Senhor nos guarde de tais
coisas!
— CAPÍTULO 20 —

O SENHOR, VOSSO DEUS, VAI CONVOSCO PARA PELEJAR POR VÓS

Algumas Considerações Gerais


"Quando saíres à peleja contra teus inimigos e vires cavalos, e carros, e povo
maior em número do que tu, deles não terás temor pois o SENHOR, teu Deus, que te
tirou da terra do Egito, está contigo. E será que, quando vos achegardes à peleja, o
sacerdote se adiantará, e falará ao povo, e dir-lhe-á: Ouve, ó Israel, hoje vos
achegais à peleja contra os vossos inimigos; que se não amoleça o vosso coração;
não temais, nem tremais, nem vos aterrorizeis diante deles, pois o SENHOR, vosso
Deus, é o que vai convosco, a pelejar contra os vossos inimigos, para salvar-vos"
(versículos 1 a 4).
Como é maravilhoso pensar no Senhor como Guerreiro! Pense-se n'Ele
pelejando contra os inimigos do Seu povo! Alguns acham que é difícil conceber,
duro compreender como um Ser benévolo pudesse atuar com um tal caráter. Mas a
dificuldade provém principalmente de não se distinguir a diferença entre as
diferentes dispensações. Era tão compatível com o caráter do Deus de Abraão,
Isaque e Jacó pelejar contra os Seus inimigos, como é com o caráter do Deus e Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo perdoá-los. E visto que é o caráter revelado de Deus
que proporciona o modelo sobre o qual deve formar-se o Seu povo — o padrão sob
o qual eles devem atuar, era tão compatível para Israel destruir os seus inimigos,
como é para nós amá-los, orar por eles e fazer-lhes bem.
Se se tivesse sempre presente este princípio tão simples, desapareceriam muitos
mal entendidos e se evitaria um grande número de discussões pouco inteligentes.
Sem dúvida, é um grande erro a Igreja de Deus envolver-se em guerra. Ninguém
pode ler o Novo Testamento com a mente livre de preconceitos sem ver isto. É-nos
ordenado categoricamente a amar os nossos inimigos, fazer bem aos que nos
aborrecem, e orar pelos que rancorosamente nos perseguem. "Mete no seu lugar a
tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão" (Mt
26:52). "Mete a tua espada na bainha; não beberei eu o cálice que o Pai me deu?"
(Jo 18:11). Nosso Senhor disse também a Pilatos: "O meu reino não é deste mundo;
se o meu reino fosse deste mundo pelejariam os meus servos" — seria
perfeitamente natural que eles o fizessem—".. .mas agora o meu reino não é daqui"
— e portanto seria totalmente incompatível com o seu caráter, completamente
impróprio, de todo mau que eles pelejassem.
Tudo isto é tão claro, que só precisamos de dizer: "Como lês tu?" O nosso
bendito Senhor não pelejou; humilde e pacientemente submeteu-Se a toda a sorte
de abusos e maus tratos; e, fazendo-o, deixou-nos o exemplo para que seguíssemos
as Suas pisadas. Se, honestamente, perguntarmos: "Que faria Jesus«?", evitaremos
toda a discussão sobre este ponto, bem como sobre milhentos pontos mais. Não
vale a pena raciocinar, nem há necessidade disso. Se as palavras e a conduta de
nosso bendito Senhor e ensino claro do Espírito Santo, por intermédio dos Seus
apóstolos, não é suficiente para nossa orientação, toda a discussão é inútil.
Mas pode perguntar-se: Que diz o Espírito Santo sobre este ponto tão
importante e prático?- Escutemos as palavras preciosas, claras e terminantes: "Não
vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha
é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor. Portanto, se o teu inimigo tiver
fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto,
amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas
vence o mal com o bem" (Rm 12:19-21).
Estes são os formosos princípios éticos da Igreja de Deus, os princípios do reino
celestial a que pertence todo o verdadeiro cristão. Teriam sido apropriados ao
antigo Israel"?- Certamente que não. Imagine-se Josué tratando os cananeus
segundo os princípios de Romanos 12:19 a 21! Teria sido uma contradição tão
flagrante como o que será nós mesmos agirmos de acordo com o princípio de
Deuteronômio 20. E por quê? Simplesmente porque nos dias de Josué Deus exercia
juízo em justiça; ao passo que atualmente está tratando em graça ilimitada. E isto
que faz toda a diferença. O princípio divino de ação é o magno regulador moral
para o povo de Deus em todas as épocas. Se isto for visto claramente, toda a
dificuldade desaparecerá, toda a discussão será terminada.
Porém, se alguém se acha disposto a perguntar: "E a respeito do mundo? Como
poderia continuar sob o princípio da graça?- Poderia atuar segundo Romanos
12:19-21 ? Não; de modo nenhum. A idéia é simplesmente absurda. Tentar unir os
princípios da graça com a lei das nações ou introduzir o espírito do Novo
Testamento na economia e política precipitaria imediatamente a sociedade civili-
zada em desesperada confusão." E é aqui precisamente que muito excelentes e bem
intencionadas pessoas se perdem. Querem obrigar as nações do mundo a adotar um
princípio que seria destruidor da sua existência nacional. Não chegou ainda o
tempo de as nações converterem as suas espadas em enxadas, e as lanças em
podões, e não aprenderem mais a guerra. Esse bendito tempo virá, graças a Deus, e
esta terra cheia de gemidos será cheia do conhecimento do Senhor como as águas
cobrem o mar. Mas procurar agora conseguir que as nações atuem segundo os
princípios da paz é simplesmente pedir-lhes que deixem de existir, numa palavra, é
um esforço incompreensível e inútil. Não pode ser. Não somos chamados para
regular o mundo, mas para passar através dele como peregrinos e estrangeiros.
Jesus não veio para estabelecer o mundo em retidão. Veio para buscar e salvar o
que se havia perdido; e quanto ao mundo, testificou dele que as suas obras eram
más. Virá em breve pôr as coisas em ordem. Assumirá o Seu grande poder e reino.
Os reinos deste mundo virão, certamente, a ser os reinos de nosso Senhor e do Seu
Cristo. Arrojará fora do Seu reino tudo que ofende e os que operam a iniqüidade.
Tudo isto é uma bendita verdade; mas nós devemos aguardar o Seu tempo. De nada
servirá procurarmos, por nossos ignorantes esforços, estabelecer um estado de
coisas que toda a Escritura tende a demonstrar que só pode ser introduzido pela
Presença pessoal e governo de nosso amado e adorado Senhor e Salvador Jesus
Cristo.

Para as Batalhas de Israel: O Sacerdote e o Oficial


Mas devemos prosseguir com o nosso capítulo. Israel foi chamado para travar
as batalhas do Senhor. No momento em que puseram os pés na terra de Canaã,
estava declarada a guerra à espada com os habitantes condenados. "Porém, das
cidades destas nações, que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança, nenhuma coisa
que tem fôlego deixarás com vida" (versículo 16). Isto era claro e terminante. Os
descendentes de Abraão não só deviam possuir a terra de Canaã, como haviam de
ser os instrumentos de Deus na execução do Seu justo juízo sobre os habitantes
culpados, cujos pecados haviam subido até ao céu, e se haviam tornado absoluta-
mente intoleráveis.
Alguém se sente convidado a pedir desculpa pelos atos divinos para com as sete
nações de Canaã? Se assim é, fique certo de que o seu trabalho é perfeitamente
injustificável, de todo impróprio. Que loucura para qualquer verme da terra pensar
em participar em tal obra! E que loucura, também, que alguém exija uma desculpa
ou explicação! Era uma grande honra dada a Israel exterminar essas nações
culpadas — uma honra da qual eles se mostraram completamente indignos, visto
que deixaram de fazer o que lhes era ordenado. Deixaram vivos muitos dos que
deveriam ter sido totalmente exterminados; pouparam-nos para serem os
instrumentos miseráveis da sua própria ruína posterior, induzindo-os aos
mesmíssimos pecados que tão estrepitosamente haviam clamado pelo juízo divino.
Mas vejamos, por uns momentos, as qualidades que eram necessárias aos que
tinham de lutar nas batalhas do Senhor. Veremos como o parágrafo com que abre o
nosso capítulo está pleno de preciosas instruções para nós próprios na luta
espiritual que somos chamados a sustentar.
O leitor observará que o povo, ao juntar-se para a batalha, devia ser, primeiro,
dirigido pelo sacerdote, e depois pelos oficiais. Esta ordem é formosa. O sacerdote
adiantava-se para expor ao povo os seus privilégios; os oficiais chegavam e
lembravam-lhes as suas santas responsabilidades. Tal é a ordem divina. Os
privilégios vêm primeiro, e então as responsabilidades. "E será que, quando vos
achegardes à peleja, o sacerdote se adiantará, e falará ao povo, e dir-lhe-á: Ouve, ó
Israel, hoje vos achegais à peleja contra os vossos inimigos; que se não amoleça o
vosso coração; não temais nem tremais, nem vos aterrorizeis diante deles, pois o
SENHOR, vosso Deus, é o que vai convosco, a pelejar contra os vossos inimigos, para
salvar-vos" (versículos 2 a 4).
Que benditas palavras! Quão plenas de conforto e alento! Como estão
eminentemente calculadas para desvanecer todo o temor e depressão de ânimo e
para infundir coragem e confiança ao coração mais oprimido e desmaiado! O
sacerdote era a própria expressão da graça de Deus; o seu ministério, qual corrente
da mais preciosa consolação, emanava do coração do Deus de Israel para cada um
dos guerreiros. As suas amorosas palavras eram apropriadas e destinadas a cingir a
mente e revigorar o mais fraco braço para a luta. Ele assegurava-lhes a presença
divina com eles. Não há dúvidas, nem condições, nem "ses" ou "mas". E uma
afirmação sem condições. Javé Elohim estava com eles. Isto era certamente
bastante. Não importava, de modo nenhum, quantos e quão poderosos eram os
seus inimigos; seriam todos como a pragana ante o redemoinho na presença do
SENHOR dos Exércitos de Israel.
Mas tinham de escutar os oficiais assim como o sacerdote. "Então, os oficiais
falarão ao povo, dizendo: Qual é o homem que edificou casa nova e ainda a não
consagrou? Vá e torne-se à sua casa, para que, porventura, não morra na peleja, e
algum outro a consagre. E qual é o homem que plantou uma vinha e ainda não
logrou fruto dela ? Vá e torne-se à sua casa, para que, porventura, não morra na
peleja, e algum outro o logre. E qual é o homem que está desposado com alguma
mulher e ainda a não recebeu? Vá e torna-se à sua casa, para que, porventura, não
morra na peleja e algum outro homem a receba. E continuarão os oficiais a falar ao
povo, dizendo: Qual é o homem medroso e de coração tímido? Vá e torne-se à sua
casa, para que o coração de seus irmãos se não derreta como o seu coração. E será
que, quando os oficiais acabem de falar ao povo, então, designarão os maiorais dos
exércitos para a dianteira do povo" (versículos 5 a 9).
Vemos assim que havia duas coisas absolutamente essenciais para todos os que
queriam batalhar as batalhas do Senhor, isto é: um coração completamente
desembaraçado das coisas da natureza e da terra, e uma intrépida confiança em
Deus. "Ninguém que milita se embaraça com negócios desta vida, a fim de agradar
àquele que o alistou para a guerra" (2 Tm. 2:4). Existe uma diferença substancial
entre estar ocupado nos negócios desta vida, e ser embaraçado por eles. Um
homem podia ter tido uma casa, uma vinha, a esposa, e contudo estar apto para a
batalha. Estas coisas não eram, em si, um impedimento; mas colocá-las debaixo de
tais condições, que as convertiam em enredos, era o que tornava um homem
incapaz para a guerra.

As Batalhas do Cristão
Bom é recordar isto. Nós, como cristãos, somos chamados para manter uma
constante guerra espiritual. Temos de lutar por cada polegada de terreno celestial.
O que os cananeus eram para Israel, são para nós os espíritos malignos nos lugares
celestiais. Não somos chamados para lutar pela vida eterna; já a obtivemos como
dom de Deus, antes de começarmos a lutar. Não somos chamados para lutar pela
salvação; estamos salvos antes de entrar em combate. E muito necessário saber por
que havemos de lutar, e contra quem temos de combater. O objetivo com que
lutamos é manter e mostrar praticamente a nossa posição celestial e o nosso caráter
no meio das circunstâncias e cenas da vida humana, dia após dia. E, por outro lado,
quanto aos nossos inimigos espirituais, são espíritos malignos que, durante o tempo
presente, são autorizados a ocupar os lugares celestiais. "Porque não temos que
lutar contra carne e sangue" — como Israel tinha de fazer em Canaã —, mas, sim,
contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste
século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais" (Ef 6:12).
Ora, a questão é esta: que necessitamos nós para prosseguir uma luta como estai
Devemos abandonar as nossas ocupações legais na terral Devemos separar-nos das
relações baseadas na natureza e confirmadas por Deus? E preciso que nos tornemos
ascéticos, místicos ou monges a fim de levarmos por diante a luta espiritual a que
somos chamados? De modo nenhum: para um cristão, fazer qualquer destas coisas
seria, por si mesma, uma prova de que se havia enganado por completo da sua
vocação, ou que tinha, logo no começo, caído na batalha. Somos imperativamente
exortados a fazer com as nossas mãos o que é bom, a fim de podermos ter que dar
ao necessitado. E não só isto, senão que temos, nas páginas do Novo Testamento, a
mais ampla instrução quanto à maneira de nos conduzirmos nas diversas relações
naturais que Deus mesmo tem estabelecido e nas quais tem posto o selo da Sua
aprovação. Por isso é perfeitamente claro que as ocupações terrenas e os graus de
parentesco não são, em si mesmos, um obstáculo a conduzirmos com êxito a luta
espiritual.
Portanto, de que necessita o guerreiro cristão? Um coração completamente
desembaraçado das coisas terrenas e naturais; e uma inconfundível confiança em
Deus. Mas como hão de estas coisas ser mantidas? Escutemos a resposta divina.
"Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau" —
isto é, todo o tempo compreendido desde a cruz à vinda de Cristo — "e, havendo
feito tudo, ficar firmes. Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos lombos com a
verdade, e vestida a couraça da justiça, e calçados os pés na preparação do
evangelho da paz; tomando sobretudo o escudo da fé, com o qual podereis apagar
todos os dardos inflamados do maligno. Tomai também o capacete da salvação e a
espada do Espírito, que é a palavra de Deus, orando em todo tempo, com toda
oração e súplica no Espírito e vigiando nisso com toda perseverança e súplica por
todos os santos" (Ef 6:13-18).
Prezado leitor, notemos os requisitos de um guerreiro cristão, como aqui nos
são apresentados pelo Espírito Santo. Não se trata da questão de uma casa, uma
vinha ou da esposa, mas de ter o homem interior dirigido pela "verdade"; a conduta
exterior caracterizada Pela "justiça prática"; os costumes e hábitos morais
caracterizados pela doce "paz" do evangelho; o homem completo sob o
impenetrável escudo da "fé"; o entendimento guardado pela absoluta certeza da
"salvação"; e o coração continuamente mantido e fortalecido pelo Poder da oração
e súplicas; e conduzido em sincera intercepção por todos os santos e especialmente
pelos amados obreiros do Senhor e do seu abençoado trabalho. Este é o modo em
que o Israel espiritual de Deus há de ser equipado para a luta que é chamado a
empreender contra os espíritos malignos nos lugares celestiais. Que o Senhor, em
Sua infinita bondade, torne estas cosias bem reais na experiência das nossas almas e
na vida prática, dia após dia!

Os Princípios que Deviam Nortear os Israelitas nas suas Guerras


O final do nosso capítulo contém os princípios que deviam reger Israel nas suas
lutas. Deviam distinguir cuidadosamente entre as cidades que se achavam muito
afastadas e as que pertenciam às sete nações condenadas. As primeiras deviam
começar por lhes fazer propostas de paz. Pelo contrário, com as últimas não
deviam aceitar, de modo nenhum, condições de paz. "Quando te achegares a
alguma cidade a combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz" — um método maravilhoso de
lutar! — "E será que, se te responder em paz e te abrir, todo o povo que se achar
nela te será tributário e te servirá. Porém, se ela não fizer paz contigo, mas, antes
,te fizer guerra, então, a sitiarás. E o SENHOR, teu Deus, a dará na tua mão; e todo
varão que houver nela passarás ao fio da espada"—como expressão positiva da
energia do mal. — "Salvo somente as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o
que houver na cidade, todo o seu despojo" — tudo que pudesse ser usado ao serviço
de Deus e do Seu povo — "tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos,
que te deu o SENHOR, teu Deus. Assim farás a todas as cidades que estiverem mui
longe de ti, que não forem das cidades destas nações."
A carnificina indiscriminada e a destruição total não faziam parte da tarefa de
Israel. Se algumas cidades estavam dispostas a aceitar as condições de paz, tinham o
privilégio de se tornar tributárias do povo de Deus; e, quanto às cidades que não
queriam aceitar a paz, tudo dentro das usas muralhas que podia ser utilizado devia
ser conservado.
Existem coisas na natureza e coisas na terra que são suscetíveis de ser usadas
para Deus, são santificadas pela Palavra de Deus e a oração. É dito que devemos
fazer amigos das riquezas da injustiça, para que quando falharmos nos possam
receber nas moradas eternas; o que quer dizer simplesmente que se as riquezas
deste mundo caírem nas mãos de um cristão, ele deve diligente e fielmente usá-las
no serviço de Cristo; deve distribuí-las liberalmente aos pobres, e a todos os
obreiros do Senhor necessitados; em suma, deve pô-las de toda maneira justa e
prudente à disposição do incremento de todos os ramos da obra do Senhor. Deste
modo, as próprias riquezas que, de outra maneira, podiam tornar-se nas suas mãos
em pó, ou entorpecer a sua alma, produzirão fruto precioso que servirá para
proporcionar uma entrada franca no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo.
Muitas pessoas parece encontrarem consideráveis dificuldades em Lucas 16:9;
porém, o seu ensino é tão claro e poderoso como é praticamente importante.
Encontramos instruções semelhantes em 1 Timóteo 6: "Manda aos ricos deste
mundo que não sejam altivos, nem ponham a esperança na incerteza das riquezas,
mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas gozarmos; que
façam o bem, enriqueçam em boas obras, repartam de boa mente; e sejam
comunicáveis que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro,
para que possam alcançar a vida eterna" (1). A mais pequena importância que direta
e simplesmente gastamos por Cristo será posta diante de nós mais tarde. Este
simples pensamento, embora não deva ser, de modo nenhum, um motivo
fundamental, pode muito bem animar-nos a dedicar tudo quanto temos e tudo que
somos ao serviço de nosso bendito Senhor e Salvador Jesus Cristo.
___________
(1)
Poderá interessar talvez ao leitor saber que a passagem de I Timóteo 6:19 deveria ler-se: "Que
lancem mão da vida em sinceridade" ou realidade. A única vida verdadeira é viver para Cristo; viver à luz
da eternidade; usar tudo quanto possuímos para o engrandecimento da glória de Deus e com vista às
mansões eternas. Isto, e somente isto, é verdadeira vida.

Tal é o ensino claro de Lucas 16 e 1 Timóteo 6; procuremos entendê-lo. A


expressão "vos recebam eles nos tabernáculos eternos' quer dizer simplesmente
que o que é gasto por Cristo será recompensado no dia que se aproxima. Até
mesmo um copo de água fresca dada em Seu precioso nome terá a sua segura
recompensa no Seu reino eterno! Oh, gastar e ser gastado por Ele!
Mas devemos encerrar esta parte citando as poucas linhas finais do nosso
capítulo, nas quais temos uma formosíssima ilustração do modo como o nosso Deus
atende os assuntos mais pequenos, e do Seu cuidado bondoso para que nada seja
perdido ou estragado. "Quando sitiares uma cidade por muitos dias, pelejando
contra ela para a tomar, não destruirás o seu arvoredo, metendo nele o machado,
porque dele comerás; pelo que o não cortarás (pois o arvoredo do campo é o
mantimento do homem), para que sirva de tranqueira diante de ti. Mas as árvores
que souberes que não são árvores de comer, destruí-las-ás e cortá-las-ás; e contra a
cidade que guerrear contra ti edificarás baluartes, até que esta seja derribada"
(versículos 19 e 20).
"Para que nada se perca", são as próprias palavras do nosso Mestre —palavras
que deveríamos ter sempre presentes na memória. "Toda criatura de Deus é boa, e
não há nada que rejeitar" (1 Tm 4:4). Devemo-nos guardar escrupulosamente de
desperdício descuidado de qualquer coisa que possa ter utilidade para uso humano.
Os que têm a responsabilidade do serviço doméstico devem prestar atenção
especial a este assunto. Causa pena, às vezes, presenciar o pecaminoso desperdício
de alimentos necessários à criatura humana. Muitas coisas são deitadas fora como
restos que podiam proporcionar uma boa refeição a uma família necessitada. Se
alguma criada cristã ler estas linhas, rogamos-lhe, sinceramente, que medite neste
assunto na presença divina, e que jamais consinta que se desperdice a mais
pequena porção do que pode ser utilizado em benefício do homem. Podemos estar
seguros de que desperdiçar qualquer coisa criada por Deus é desagradável aos Seus
olhos. Recordemos que os Seus olhos estão postos em nós. Que o nosso desejo
sincero seja ser-Lhe agradáveis em toda a nossa maneira de proceder.
— CAPÍTULO 21 —

A INVESTIGAÇÃO DE UM HOMICÍDIO

"Quando na terra que te der o SENHOR, teu Deus, para possuí-la se achar algum
morto, caído no campo, sem que se saiba quem o matou, então, sairão os teus
anciãos e os teus juízes"—os guardiões dos direitos da verdade e da justiça — "e
medirão o espaço até às cidades que estiverem em redor do morto. E na cidade
mais chegada ao morto, os anciãos da mesma cidade tomarão uma bezerra da
manada, que não tenha trabalhado nem tenha puxado com o jugo. E os anciãos
daquela cidade trarão a bezerra a um vale áspero, que nunca foi lavrado nem
semeado; e ali, naquele vale, degolarão a bezerra. Então, se achegarão os
sacerdotes, filhos de Levi" — os expoentes da graça e misericórdia—" (pois o
SENHOR, teu Deus, os escolheu para o servirem, e para abençoarem em nome do
SENHOR; e pelo seu dito, se determinará toda demanda e toda ferida)"—fato
bendito e confortante! — "E todos os anciãos da mesma cidade, mais chegados ao
morto, lavarão as suas mãos sobre a bezerra degolada no vale, e protestarão, e
dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os nossos olhos o não viram.
Sê propício ao teu povo Israel, que tu, ó SENHOR, resgataste, e não ponhas o sangue
inocente no meio do teu povo Israel. E aquele sangue lhes será expiado. Assim,
tirarás o sangue inocente do meio de ti, pois farás o que é reto aos olhos do
SENHOR" (versículos l a 9).
Uma passagem muito interessante e sugestiva da Sagrada Escritura está agora
ante os nossos olhos e requer a nossa atenção. Um pecado é cometido, um homem
é encontrado morto no campo; mas ninguém sabe nada acerca do caso, ninguém
pode dizer se é um homicídio ou assassinato, ou quem cometeu aquela morte. Está
absolutamente fora do alcance do conhecimento humano. E, todavia, o fato é
inegável. Cometeu-se pecado, e permanece como uma mancha na terra do Senhor,
e o homem é absolutamente incapaz de tratar dele.
Que há de então fazer-se?A glória de Deus e a pureza da Sua terra devem ser
mantidas. Ele sabe tudo sobre o assunto, e só ele pode tratá-lo como deve ser; e na
verdade a Sua maneira de tratar dele está cheia do mais precioso ensino.
Antes do mais, os anciãos e juízes aparecem em cena. Os direitos da verdade e
da justiça devem ser perfeitamente mantidos. Isto é uma verdade fundamental em
toda a Palavra de Deus. O pecado tem de ser julgado, antes de os pecados poderem
ser perdoados, ou o pecador justificado. Antes de poder ser ouvida a voz celestial
de misericórdia, a justiça tem de ser perfeitamente cumprida, o trono de Deus
justificado e o Seu nome glorificado. A graça reina em justiça. Bendito seja Deus
que é assim! Que verdade gloriosa para todos os que têm tomado o seu verdadeiro
lugar como pecadores! Deus tem sido glorificado quanto à questão do pecado, e
portanto pode, em perfeita justiça, perdoar e justificar o pecador.
Porém, temos de nos limitar simplesmente à interpretação da passagem
exposta; e, fazendo-o, encontraremos nela uma observação maravilhosa do futuro
de Israel. Com efeito, a grande verdade da expiação é apresentada; mas
especialmente a respeito de Israel. A morte de Cristo vê-se aqui nos seus dois
grandes aspectos, isto é, como a expressão da culpa do homem, e a manifestação da
graça de Deus: no primeiro aspecto temo-la representada no homem encontrado
morto no campo; no segundo na bezerra sacrificada no vale áspero. Os anciãos e os
juízes buscavam a cidade mais próxima do morto, e nada podia valer senão o
sangue de uma vítima sem mancha—o sangue d Aquele que foi sacrificado na
cidade culpada de Jerusalém.
O leitor notará, com muito interesse, que no momento em que os direitos da
justiça eram satisfeitos pela morte da vítima, um novo elemento era introduzido na
cena. "Então, se achegarão os sacerdotes, filhos de Levi." Isto é graça atuando sobre
a base bendita da justiça. Os sacerdotes são os canais da graça, assim como os juízes
são os guardiões da justiça. Quão perfeita e formosa é a Escritura em cada página,
cada parágrafo, cada sentença! Os ministros da graça só podiam apresentar-se
depois de o sangue ter sido derramado. A bezerra decapitada no vale alterava por
completo o aspecto das coisas. "Então, se achegarão os sacerdotes, filhos de Levi,
(pois o SENHOR, teu Deus, os escolheu para o servirem, e para abençoarem em
nome do SENHOR; e pelo seu dito"—fato bendito para Israel! Fato bendito para todo
o verdadeiro crente — "se determinará toda demanda e toda ferida." Tudo há de
estabelecer-se sobre o glorioso e eterno princípio da graça reinando em justiça.
Deste modo tratará Deus com Israel mais tarde. Não devemos intentar
intrometer-nos com a aplicação primária de todas essas surpreendentes
instituições que nos damos conta neste profundo e maravilhoso livro de
Deuteronômio. Sem dúvida, encerra lições para nós — lições preciosas; mas
podemos estar seguros de que o verdadeiro modo de apreciar e entender essas
lições é procurar o seu verdadeiro e próprio alcance. Por exemplo, quão precioso e
pleno de consolação é o fato de que é pela palavra do ministro da graça que toda
demanda e toda ferida se determinará, para Israel arrependido dentro em pouco, e
para toda a alma arrependida agora! Perdemos alguma coisa da profunda bênção de
tais coisas ao ver e reconhecer a própria aplicação da Escriturai Decerto que não;
longe disto, o verdadeiro segredo de aproveitar com qualquer passagem especial da
palavra de Deus é entender o seu verdadeiro alcance e propósito.
"E todos os anciãos da mesma cidade, mais chegados ao morto, lavarão as suas
mãos sobre a bezerra degolada no vale" (1). "Lavo as minhas mãos na inocência; e
assim andarei, SENHOR, ao redor do teu altar" (SI 26:6). O verdadeiro lugar para
lavarmos as nossas mãos é onde o sangue da expiação expiou para sempre a nossa
culpa. "E protestarão, e dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os
nossos olhos o não viram. Sê propício ao teu povo Israel, que tu, ó SENHOR,
resgataste, e não ponhas o sangue inocente no meio do teu povo Israel. E aquele
sangue lhes será expiado."
__________
(1)
Quão cheia de poder sugestivo é a figura do "vale"! Com quanta propriedade expõe o que este mundo
em geral, e a terra de Israel em particular, foi para nosso bendito Senhor e Salvador! Certamente, foi um
lugar escabroso para Ele, um lugar de humilhação, uma terra seca e sedenta, um lugar que nunca havia
sido tratado ou semeado. Mas, toda a homenagem Lhe seja prestada, por Sua morte, em este vale! Ele
obteve para este mundo e para a terra de Israel uma rica colheita de bênção que será recolhida durante o
período do milênio para pleno louvor do amor redentor. E até mesmo agora, Ele, desde o trono da
Majestade celestial, e nos, em espírito Consigo, podemos volver os olhos para esse vale como o lugar onde
foi consumada a bendita obra que forma o fundamento imperecível da gloria de Deus, da bênção da Igreja,
da restauração plena de Israel, do gozo de 'numeráveis nações e da gloriosa redenção desta geração de
gemidos.

"Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc. 23:34). "Ressuscitando
Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, e
vos desviasse, a cada um, das vossas maldades" (At 3:26). Assim, todo o Israel será
salvo dentro em breve, conforme os eternos desígnios de Deus, e em cumprimento
da sua promessa e juramento a Abraão, retificada e eternamente estabelecida pelo
precioso sangue de Cristo, ao Qual seja honra e louvor para sempre!
Os versículos 10 a 17 tratam, de um modo muito especial, do parentesco do
Senhor com Israel. Não nos deteremos sobre o assunto aqui. O leitor encontrará
numerosas referências a este assunto nas páginas dos profetas, nas quais o Espírito
Santo faz os mais comovedores apelos à consciência da nação—apelos fundados no
fato maravilhoso do parentesco a que Ele os havia trazido a Si mesmo, mas no qual
eles haviam tão lamentável e assinaladamente fracassado. Israel demonstrou ser
uma esposa infiel, e, como conseqüência disso, foi posta de lado. Mas o tempo virá
em que este povo por tanto tempo rejeitado, mas nunca esquecido, não será apenas
restabelecido, mas levado a um estado de bem-aventurança, privilégio e glória
como jamais foi conhecido no passado.
Isto não deve, nem por um momento, ser perdido de vista nem posto de lado.
Corre como uma brilhante linha de ouro através das Escrituras proféticas desde
Isaías a Malaquias; e o encantador tema é retomado e desenrolado no novo
Testamento. Veja-se por exemplo a brilhante passagem que é apenas uma de entre
cem: "Por amor de Sião, me não calarei e, por amor de Jerusalém, me não
aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua salvação, como
uma tocha acesa. E as nações verão a tua justiça, e todos os reis a tua glória; e
chamar-te-ão por um nome novo, que a boca do SENHOR nomeará. E serás uma
coroa de glória na mão do SENHOR, e um diadema real na mão do teu Deus. Nunca
mais te chamarão Desamparada, nem a tua terra se denominará jamais Assolada;
mas chamar-te-ão: Hefzibá [nela está o meu deleite]; e à tua terra: Beulá
[desposada], porque o SENHOR se agrada de ti; e com a tua terra o senhor se casará.
Porque, o como o mancebo se casa com a donzela, assim teus filhos se casarão
contigo; e, como o noivo se alegra com a noiva, assim se alegrará contigo o teu
Deus. O Jerusalém! Sobre os teu muros pus guardas, que todo o dia e toda a noite
contigo se não calarão; ó vós que fazeis menção do SENHOR, não haja silêncio em
vós, nem estejais em silêncio, até que confirme e até que ponha a Jerusalém por
louvor na terra. Jurou o SENHOR pela sua mão direita e pelo braço da sua força:
Nunca mais darei o teu trigo por comida aos teus inimigos, nem os estranhos
beberão o teu mosto, em que trabalhaste. Mas os que o ajuntarem o comerão e
louvarão ao SENHOR; e OS que O colherem beberão nos átrios do meu santuário... eis
o que o SENHOR fez ouvir até às extremidades da terra: Dizei à filha de Sião: Eis que
tua salvação vem; eis que com ele vem o seu galardão, e a sua obra e diante dele. E
chamar-lhes-ão povo santo remidos do SENHOR; e tu serás chamada a Procurada
cidade não desamparada" (Is 62).
Intentar desviar esta sublime e gloriosa passagem do seu próprio objeto e
aplicá-la à Igreja cristã, quer seja na terra, quer seja no céu, é fazer positivamente
violência à Palavra de Deus, e introduzir um sistema de interpretação
inteiramente destruidor da integridade da Sagrada Escritura. A passagem que
acabamos de transcrever com intenso deleite espiritual, aplica-se única e
literalmente a Sião, a Jerusalém, no sentido literal, à terra de Israel. Procure o
leitor entender e compenetrar-se bem deste fato.
Quanto à Igreja, a sua posição na terra é a de uma virgem desposada, não a de
uma mulher casada. As suas bodas terão lugar no céu (Ap. 19:7-8). Aplicar à Igreja
passagens como a anterior, é alterar inteiramente a sua posição e negar as mais
claras afirmações da Escritura quanto à sua chamada, a sua porção e a sua
esperança, as quais são puramente celestiais.

O Filho Contumaz e Rebelde


Os versículos 18 a 21 do nosso capítulo referem-se ao caso de "um filho
contumaz e rebelde". Aqui temos outra vez Israel visto de um outro ponto de vista.
É a geração apóstata para a qual não há perdão. "Quando alguém tiver um filho
contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e,
castigando-o eles, lhes não der ouvidos, então, seu pai e sua mãe pegarão nele, e o
levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; e dirão aos anciãos da sua
cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um
comilão e beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão com
pedras, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, para que todo o Israel o ouça e
tema."
O leitor poderá, com muito proveito, comparar a ação da lei e do governo, no
caso do filho rebelde, com a encantadora e familiar parábola do filho pródigo, em
Lucas 15.0 espaço de que dispomos não permite determo-nos sobre ele, por muito
que gostaríamos de o fazer. E maravilhoso pensar que é o mesmo Deus que fala e
atua em Deuteronômio 21 e em Lucas 15. Mas, ah, como é diferente a ação! Como
é diferente o estilo! Debaixo da lei, o pai é convidado a pegar no filho e levá-lo para
ser apedrejado. Sob a graça, o pai corre ao encontro do filho que regressa; lança-se
ao seu pescoço e beija-o; veste-o com o melhor vestido, põe um anel no seu dedo e
sapatos em seus pés; manda matar o bezerro cevado; senta-o à mesa consigo, e faz
ressoar a casa com o gozo que enche o seu coração devido ao regresso do pobre
vagabundo pródigo.
Que estupendo contraste! Em Deuteronômio 21 vemos a mão de Deus, em
justo governo, executar o juízo sobre o rebelde. Em Lucas 15 vemos o coração de
Deus derramar-se, em comovedora ternura, sobre o pobre arrependido, dando-lhe
a doce certeza de que sente profundo júbilo com o regresso do filho que se havia
perdido. O rebelde contumaz encontra o juízo por apedrejamento; o penitente que
regressa encontra o beijo de amor.
Terminaremos esta parte do livro chamando a atenção do leitor para o
versículo final do capítulo. O apóstolo inspirado refere-se a ele de um modo
notável em capítulo 3 de Gálatas. "Cristo nos resgatou da maldição da lei,
fazendo-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado no madeiro."
Esta referência está cheia de interesse e valor, não só porque nos apresenta a
graça preciosa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, fazendo-Se maldição por
nós, para que a bênção de Abraão pudesse chegar até nós, pobres gentios, mas
porque nos proporciona um exemplo assombroso do modo como o Espírito Santo
põe o Seu selo nos escritos de Moisés, de um modo geral, e em particular em
Deuteronômio 21. A Escritura permanece no seu conjunto de um modo tão
perfeito que se uma parte é tocada fica manchada a sua integridade. O mesmo
Espírito move-Se nos escritos de Moisés, nas páginas dos profetas, nos quatro
evangelistas, nos Atos, nas epístolas apostólicas, gerais e particulares, e na
profundíssima e preciosa parte que encerra o Volume divino. Cremos ser nosso
dever sagrado (assim como é, certamente, nosso elevado privilégio) dar ênfase a
este importante fato junto de todos aqueles com quem entramos em contato; e
queremos rogar sinceramente ao leitor que lhe preste a sua mais viva atenção a fim
de o guardar e dar testemunho dele, nestes dias de relaxamento carnal, fria
indiferença e positiva hostilidade.
— CAPÍTULOS 22 a 25 —

DECRETOS QUE DETERMINAM DIVERSOS ASPECTOS DA VIDA DO


HOMEM

A Perversão do Coração Humano


A parte do livro cujo estudo agora começamos, embora não exija uma
exposição elaborada, ensina-nos, contudo, duas lições práticas muito importantes.
Em primeiro lugar, muitas das instituições e ordenanças expostas nela demonstram
e ilustram de uma maneira notável a terrível depravação do coração humano.
Mostram-nos, com inequívoca clareza, o que o homem é capaz de fazer, se for
abandonado a si mesmo. Devemos recordar sempre, na proporção em que lemos
alguns parágrafos desta parte de Deuteronômio, que Deus e o Espírito Santo os
ditou. Nós, em nossa imaginária sabedoria, sentimo-nos talvez dispostos a
perguntar por que razão foram escritos. E possível que sejam inspirados pelo
Espírito Santo?- E que valor podem ter para nós? Se foram escritos para nosso
ensino, então que vamos aprender neles?
A nossa resposta a tais perguntas é, ao mesmo tempo, simples e direta, a saber:
as próprias passagens que menos podíamos esperar encontrar nas páginas
inspiradas ensinam-nos, de um modo especial, a matéria moral de que somos
formados, e os abismos morais em que somos capazes de cair. E não será isto de
grande importância? Não é conveniente ter um fiel espelho posto ante os nossos
olhos no qual podemos ver todo o rasgo moral, toda a forma e toda a linha
perfeitamente refletidos? Com certeza. Ouvimos falar muito da dignidade da
natureza humana, e muitos encontram dificuldade em admitir que são realmente
capazes de cometer alguns dos pecados proibidos nesta parte, como em outras
partes do Volume divino. Mas podemos estar certos de que quando Deus nos
manda não cometer este ou aquele pecado particular, é porque somos, realmente,
capazes de o cometer. Isto está fora de toda a discussão. A sabedoria divina nunca
levantaria um dique se não houvesse uma corrente a sustar. Não haveria
necessidade de dar ordem a um anjo para não furtar; mas o homem tem o furto em
sua própria natureza, e por isso se lhe impõe o mandamento. E da mesma forma em
todas as outras coisas proibidas; a proibição demonstra a tendência para as
praticar—prova-a incontestavelmente. Ou havemos de admitir isto ou aceitar a
blasfêmia de que Deus tem falado de uma maneira inútil.
Mas poderá dizer-se, e é dito por muitos, que conquanto alguns perversos
exemplares da humanidade pecaminosa sejam capazes de cometer alguns dos
pecados abomináveis proibidos na Escritura, nem todos o são. Ouçamos o que o
Espírito Santo diz, no capítulo 17 do profeta Jeremias: "Enganoso é o coração mais
do que todas as coisas, e perverso." De que coração fala Ele? E o coração de algum
atroz criminoso, ou de algum indisciplinado selvagem? De modo nenhum; é do
coração humano, do coração do escritor e do leitor destas linhas.
Ouçamos também o que nosso Senhor Jesus Cristo diz sobre este assunto.
"Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios,
prostituições, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias" (Mt 15:19). De que
coração?- E do coração de algum miserável, horrivelmente depravado e
abominável, de todo impróprio para comparecer na sociedade decente? Não, por
certo; é do coração humano, do coração do autor e do leitor destas linhas.
Não esqueçamos isto; é uma verdade salutar para todos nós. Devemos ter
presente o fato de que se Deus retirasse a Sua graça, por um só momento, não
haveria iniqüidade em que não fôssemos capazes de nos lançar; na verdade,
podemos acrescentar—e fazemo-lo com profunda gratidão—que é a Sua mão cheia
de graça que nos preserva, a cada momento, de nos convertemos em um completo
fracasso físico, mental, oral e espiritualmente, em todas as circunstâncias.
Tenhamos isto sempre presente em todos os pensamentos do nosso coração, a fim
de podermos andar em humildade e vigilância apoiando-nos no único braço que
nos pode suster e preservar!

Os Decretos — Testemunho dos Cuidados de Deus para com seu Povo


Mas, como havemos dito, há outra lição importante que se aprende com esta
parte do nosso livro. Ensina-nos, de um modo que lhe é peculiar, a forma
maravilhosa como Deus cuidava de tudo quanto se relacionava com o Seu povo.
Nada escapava à Sua graciosa atenção. Nada era demasiado trivial para o Seu terno
cuidado. Nenhuma mãe poderia ser mais cuidadosa dos hábitos e maneiras do seu
filhinho do que o Todo-poderoso, Criador e Governador moral do universo, era
quanto aos mais minuciosos pormenores relacionados com a vida diária do Seu
povo. De dia e de noite, acordados ou a dormir, em casa ou fora de casa, cuidava
deles. O seu vestuário, o seu alimento, os seus costumes e conduta de uns para com
os outros, a maneira como deviam edificar as suas casas, o modo como deviam
lavrar e semear a sua terra, como deviam conduzir- se no mais íntimo da sua vida
pessoal—a tudo atendia e provia de uma maneira tal que nos enche de admiração,
amor e louvor. Podemos ver aqui, da maneira mais notável, que, para o nosso
Deus, não há nada demasiado pequeno para não tomar nota do que diz respeito ao
Seu povo. Toma interesse terno, amoroso, paternal e pormenorizado de tudo que
lhes diz respeito. Causa assombro ver o Deus Altíssimo, o Criador dos confins da
terra, o Sustentador do vasto universo, condescendendo legislar sobre o assunto de
um ninho de uma avezinha. E, todavia, porque havermos de ficar admirados
quando sabemos que para Ele é o mesmo prover o necessário para um pardal ou
alimentar diariamente milhões de seres humanos?
Porém, havia um fato importante que todo membro da congregação de Israel
tinha de recordar sempre, isto é: a presença divina no meio deles. Este fato devia
reger os seus hábitos mais privados e caracterizar todos os seus caminhos.
"Porquanto o S ENHOR ,teu Deus, anda no meio do teu arraial, para te livrar e
entregar os teus inimigos diante de ti; feio que o teu arraial será santo, para que ele
não veja coisa feia em ti e se torne atrás de ti" (Dt. 23:14).
Que precioso privilégio ter o Senhor andando no meio deles! Que motivo para
pureza da conduta e refinada delicadeza em seus costumes pessoais e domésticos!
Se Ele estava no meio deles para lhes assegurar a vitória sobre os seus inimigos,
estava também ali para exigir santidade de vida. Não deviam esquecer, nem por um
momento, a augusta pessoa que andava no meio deles. Podia o pensamento deste
fato afigurar-se enfadonho para alguém? Só aos que não amavam a santidade, a
pureza e a ordem moral. Todo o verdadeiro israelita se comprazia em pensar que
habitava entre eles Aquele que não podia tolerar nada que não fosse santo,
decoroso e puro.

O Espírito Santo Habita em nós


O leitor cristão não perderá nada em alcançar a força moral e a aplicação deste
princípio. E nosso privilégio ter Deus, o Espírito habitando em nós individual e
coletivamente. Assim lemos, em 1 Coríntios 6:19. "Ou não sabeis que o nosso
corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que
não sois de vós mesmos?" Isto é individual. Cada crente é um templo do Espírito
Santo, e esta gloriosa e preciosa verdade é o fundamento da exortação feita em
Efésios 4:30: "E não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual estais selados
para o dia da redenção."
Quão importante é termos isto sempre presente nos pensamentos dos nossos
corações! Que poderoso motivo moral para cultivarmos diligentemente a pureza
de coração e santidade de vida! Quando somos tentados a ceder a qualquer
corrente de pensamento ou sentimento perverso, qualquer maneira indigna de
falar, ou qualquer linha imprópria de conduta, que corretivo mais poderoso se
encontra na realização do fato bendito de que o Espírito Santo habita em nosso
corpo como o Seu templo! Se tão-somente pudéssemos ter isto sempre presente em
nossa mente, isso nos guardaria de muitos pensamentos de desvario, de muitas
expressões néscias, muitos atos impróprios.
Porém, o Espírito Santo não só habita em cada crente individualmente como
na Igreja coletivamente. "Não sabeis vós que sois o templo de Deus, e que o
Espírito de Deus habita em vós?" (1 Co 3:16).
É sobre este fato que o apóstolo baseia a sua exortação em 1 Tessalonicenses
5:9: "Não extingais o Espírito." Quão divinamente perfeita é a Escritura! Quão
admiravelmente se harmoniza entre si! O Espírito Santo habita em nós,
individualmente; por isso não devemos entristecê-Lo. Habita na Igreja, por isso
não devemos extingui-Lo, mas dar-Lhe o Seu devido lugar, e dar amplo lugar para
as Suas benditas operações. Que estas grandes verdades práticas encontrem lugar
em nossos corações e exerçam uma influência poderosa na nossa conduta tanto na
vida privada como na assembléia pública!

O Dever Para com o Irmão


Vamos prosseguir com a citação de algumas passagens da parte do livro que
temos aberto perante nós e que ilustram admiravelmente a sabedoria, a bondade,
ternura, santidade e justiça que caracterizavam os atos de Deus com o Seu antigo
povo. Tomemos, por exemplo, o primeiro parágrafo: "Vendo extraviado o boi ou a
ovelha de teu irmão, não te esconderás deles-, restituí-los-ás sem falta a teu irmão.
E, se teu irmão não estiver perto de ti ou tu não o conheceres, recolhê-los-ás na tua
casa, para que fiquem contigo até que teu irmão os busque, e tu lhos tornarás a dar.
Assim também farás com o seu jumento e assim farás com a suas vestes; assim farás
também com toda coisa perdida, que se perder de teu irmão, e tu a achares; não te
poderás esconder. O jumento de teu irmão ou o seu boi não verás caídos no
caminho e deles te esconderás-, com ele os levantarás, sem falta" (Dt 22:1-4).
Aqui as duas lições de que temos falado são-nos apresentadas de um modo
muito claro. Que humilhante quadro do coração humano nos dá a frase: "Não te
poderás esconder!" Somos capazes do baixo e detestável egoísmo de nos retrairmos
ante os pedidos de simpatia e socorro feitos pelo nosso irmão — de desprezarmos o
sagrado dever de tratar dos seus interesses, pretendendo não ver a sua verdadeira
necessidade do nosso auxílio. Tal é o homem! Tal é o autor destas linhas!
Mas, oh, de que maneira bendita o caráter de Deus resplandece nesta
passagem! O boi do irmão, ou a ovelha, ou o seu jumento não deviam— para
empregar uma expressão moderna—ser abandonados, mas trazidos a casa, tratados
e devolvidos salvos a seu dono sem encargo algum de prejuízos. E o mesmo
acontecia com o vestuário. Quão belo é tudo isto! Como isto projeta sobre nós o
próprio ar da presença divina, a fragrante atmosfera da bondade divina, ternura e
atento amor! Que elevado e santo privilégio para qualquer povo ver a sua conduta
regida e o seu caráter formado por estatutos e juízos tão excelentes!

O Dever para com os Outros


Por outro lado, veja-se a seguinte passagem admiravelmente demonstrativa
dos cuidados divinos. "Quando edificares uma casa nova, farás no teu telhado um
parapeito, para que não ponhas culpa de sangue na tua casa, se alguém de alguma
maneira cair dela" (versículo 8). O Senhor queria que o Seu povo fosse cuidadoso e
atencioso com os outros; e por isso, na construção de suas casas não deviam pensar
meramente em si próprios e nas conveniências, mas também nos outros e na sua
segurança.
Não poderão os cristãos aprender alguma coisa com isto? Quão inclinados
somos a pensar só em nós, nos nossos interesses, no nosso bem-estar e
conveniências! Quão raramente acontece, ao edificar e prover as nossas casas,
termos um pensamento sobre os outros! Edificamos e provemos para nós mesmos;
ah, o ego é o nosso objetivo e motivo principal de todas as nossas ações! Nem
tampouco pode ser de outra forma, a menos que o coração seja mantido sob o
poder dominador dos motivos e objetivos que pertencem à cristandade. Devemos
viver na atmosfera pura e celestial da nova criação, a fim de nos elevarmos acima e
para além do mero egoísmo que caracteriza a humanidade decaída. Todo homem,
mulher e criança incrédulo à face da terra é governado simplesmente pelo
egoísmo, de uma forma ou de outra. O ego é o centro, o objetivo, a mola real de
todas as ações.
Decerto, alguns são mais amáveis, mais afetuosos, mais benévolos, mais
desinteressados, mais desprendidos que outros; mas é completamente impossível
que "o homem natural" possa ser regido por motivos espirituais ou que o homem
terreno seja animado por objetivos celestiais. Infelizmente, temos de confessar
com vergonha que nós, que professamos ser celestiais e espirituais, somos
propensos a viver para nós próprios, a buscar os nossos próprios interesses, a
manter o que é nosso, a ponderar o nosso bem- estar e a nossa conveniência!
Estamos atentos e alertos quando se trata, de qualquer forma, do ego.
Tudo isto é muito triste e profundamente humilhante. Na realidade não
deveria ser assim, e não seria se nós olhássemos com mais simplicidade e
sinceridade para Cristo como nosso grande Exemplo e modelo em todas as coisas.
A ocupação ardente e constante de coração com Cristo é o verdadeiro segredo de
todo o cristianismo prático. Não é com regras e regulamentos que podemos ser
semelhantes a Cristo em nosso espírito, conduta e comportamento. Devemos
beber do Seu espírito, andar nas Suas pisadas, meditar mais profundamente nas
Suas glórias morais e então seremos, por necessidade bendita, conformados à Sua
imagem. "Mas todos nós, com cara descoberta, refletindo, como um espelho, a
glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na mesma imagem,
como pelo Espírito do Senhor" (2 Co 3:18).

Não Misturemos nada à Pura Doutrina da Palavra


Devemos pedir agora ao leitor que preste atenção, por um momento, às
seguintes instruções práticas, cheias de poder sugestivo para todos os obreiros
cristãos: "Não semearás a tua vinha de diferentes espécies de semente, para que se
não profane o fruto da semente que semeares e a novidade da vinha" (Dt 22:9).
Que princípio importante temos aqui! Compreendemo-lo realmente?
Distinguimos a sua verdadeira aplicação espiritual? É de recear que haja um
enorme volume de "diferentes espécies de sementes" no chamado cultivo
espiritual dos dias atuais. Quanto de "filosofias e vãs sutilezas", quanto da
"falsamente chamada ciência", quanto dos "rudimentos do mundo" encontramos
misturado no ensino e pregação por todo o âmbito da igreja professante! Quão
pouco da pura semente não adulterada da Palavra de Deus, "a semente
incorruptível" do precioso evangelho de Cristo, se vê espalhado sobre o campo da
cristandade dos nossos dias! Quão poucos, comparativamente, se dão por satisfeitos
limitando-se ao conteúdo da Bíblia como material para o seu ministério! Os que,
pela graça de Deus, são bastante fiéis para o fazer, são encarados como homens
estreitos de critério, antiquados, estreitos e fora da época.
Pois bem, nós apenas podemos dizer, com coração ardente e sincero, Deus
abençoe os homens de uma só idéia, homens da antiga escola da pregação
apostólica! Felicitamo-los cordialmente pela sua bendita estreiteza de critério, e
por ficarem atrás destes dias sombrios e infiéis. Sabemos perfeitamente ao que nos
expomos escrevendo desta maneira; mas isto não nos fará vacilar. Estamos
persuadidos que todo verdadeiro servo de Cristo tem de ser um homem de uma só
idéia, e que essa idéia é Cristo; tem de pertencer à velha escola, a escola de Cristo;
tem de ser tão estreito como a verdade de Deus; e deve, com austera decisão,
recusar desviar-se a espessura de um simples cabelo na direção deste século infiel.
Não podemos deixar a convicção de que o esforço por parte dos pregadores e
mestres da cristandade para se manterem ao corrente da literatura da atualidade, é
em grande parte a causa do rápido avanço do racionalismo e incredulidade.
Afastaram-se das Sagradas Escrituras, e procuraram adornar o seu ministério com
os recursos da filosofia, da ciência e da literatura. Têm feito mais provisão para o
intelecto do que para o coração e a consciência. As doutrinas puras e preciosas da
Sagrada Escritura, o leite racional da Palavra de Deus, o evangelho da graça de
Deus e da glória de Cristo, foram achados insuficientes para atrair e manter unidas
grandes congregações. Como o antigo Israel desprezou o maná, se cansou dele, e o
considerou um fraco alimento, assim a Igreja professante se cansou das puras
doutrinas do glorioso cristianismo desenrolado nas páginas do Novo Testamento, e
suspirou por alguma coisa que agrade ao intelecto e alimente a inteligência. As
doutrinas da cruz, na qual o bem-aventurado apóstolo se gloriava, perderam o seu
encanto para a igreja professante, e todo aquele que quiser ser bastante fiel para se
manter e limitar no seu ministério a essas doutrinas pode perder toda á idéia de
popularidade.
Mas que todos os verdadeiros e fiéis ministros de Cristo, todos os verdadeiros
obreiros da Sua vinha apliquem os seus corações ao princípio espiritual exposto em
Deuteronômio 22:9; que, com inflexível decisão, recusem fazer uso de "diferentes
espécies de sementes" no seu labor espiritual; que se limitem no seu ministério à
"forma das sãs palavras", e busquem sempre "manejar bem a palavra da verdade", a
fim de não serem envergonhados do seu trabalho, mas recebam o pleno galardão
naquele dia em que a obra de cada um será provada para ver de que espécie era.
Podemos estar certos de que a Palavra de Deus, a semente pura, é o único material
adequado para uso do obreiro espiritual. Não desprezamos o conhecimento; muito
longe disso, consideramo-lo valioso no seu próprio lugar. Os fatos da ciência e os
recursos da sã filosofia podem também ser empregados com proveito na exposição
e ilustração da verdade da Sagrada Escritura. Vemos que o bendito Mestre mesmo
e os Seus apóstolos inspirados fizeram uso dos fatos da história e da natureza no seu
ensino público; e quem, em seu próprio juízo, poderá pensar pôr em dúvida o valor
e a importância de um conhecimento competente das línguas originais do hebreu e
grego, no estudo privado e exposição pública da Palavra de Deus?
Mas admitindo tudo isto, como certamente o admitimos, fica ainda inalterável
o grande princípio prático que temos perante nós— ao qual todo o povo do Senhor
e os Seus servos estão obrigados a submeter-se, isto é, que o Espírito Santo é o
único poder, e a Sagrada Escritura o único material para todo verdadeiro
ministério no evangelho e na igreja de Deus. Se isto fosse melhor compreendido e
posto fielmente em prática poderíamos presenciar um estado de coisas muito
diferente do atual em toda a extensão da vinha do Senhor.
Mas devemos terminar esta parte do livro. Temos procurado tratar noutro lugar
do assunto do "jugo desigual" e não insistiremos portanto nele agora. O israelita
não devia lavrar com um boi e um jumento; nem tampouco devia vestir-se de lã e
linho juntamente. A aplicação espiritual de ambas as coisas é tão simples quão
importante. O crente não deve ligar-se com um incrédulo para fim algum,
religioso, altruísta ou comercial, nem deve reger-se por princípios mistos. O seu
caráter deve ser formado e a sua conduta regida pelos puros e elevados princípios
da Palavra de Deus. Que assim seja com todos os que professam ser cristãos!
— CAPÍTULO 26 —

QUANDO ENTRARES NO PAÍS

O Cesto dos Primeiros Frutos


"E será que, quando entrares na terra que o SENHOR , teu Deus, te dará por
herança, e a possuíres, e nela habitares, então, tomarás das primícias de todos os
frutos da terra que trouxeres da tua terra, que te dá o SENHOR, teu Deus, e as porás
num cesto, e irás ao lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para ali fazer habitar o
seu nome" — não a um lugar de sua própria escolha ou da escolha de outros —. "E
virás ao sacerdote, que naqueles dias for, e dir-lhe-às: Hoje declaro, perante o
SENHOR, teu Deus, que entrei na terra que o SENHOR jurou a nossas pais dar-nos. E o
sacerdote tomará o cesto da tua mão, e o porá diante do altar do SENHOR, teu Deus"
(versículos 1 a 4).
O capítulo em cujo estudo vamos entrar agora encerra a encantadora
ordenança do cesto das primícias, na qual encontraremos alguns princípios do
maior interesse e importância prática. Era quando a mão do Senhor os tivesse
introduzido na terra da promessa que os frutos da terra podiam ser apresentados.
Era, evidentemente, necessário estar em Canaã para que os frutos de Canaã
pudessem ser oferecidos em adoração. O adorador podia dizer: "Hoje declaro,
perante o SENHOR, teu Deus, que entrei na terra que o SENHOR jurou a nossos pais
dar-nos."
Nisto está o fundo da questão. "Entrei." Não diz: "vou entrar, espero entrar, ou
desejo entrar". Não; mas, "entrei". Assim tem que ser sempre. Temos de saber que
estamos salvos antes de podermos oferecer os frutos de uma salvação conhecida.
Podemos ser muito sinceros nos nossos desejos de salvação, fervorosos nos nossos
esforços em a conseguir. Mas neste caso não podemos senão ver que os esforços
para sermos salvos e os frutos da salvação que gozamos e de que estamos seguros
são duas coisas muito diferentes. O israelita não oferecia o cesto das primícias a fim
de entrar na terra, mas porque estava de fato nela. "Hoje declaro que entrei na
terra." Não há dúvida a esse respeito, não há engano, nem se trata de uma
esperança. "Entrei", de fato, na terra, "e aqui está o fruto dela."
"Então, protestarás perante o SENHOR, teu Deus, e dirás: Siro miserável foi meu
pai, e desceu ao Egito, e ali peregrinou com pouca gente; porém ali cresceu, até vir
a ser nação grande, poderosa e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram e nos
afligiram e, sobre nós puserem uma dura servidão. Então, clamamos ao SENHOR,
Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa miséria, e
para o nosso trabalho, e para a nossa opressão. E o SENHOR nos tirou do Egito com
mão forte, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com
milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel.
E eis que agora eu trouxe as primícias dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me
deste. Então, os porás perante o SENHOR, teu Deus, e te inclinarás perante o
SENHOR, teu Deus. E te alegrarás por todo o bem que o SENHOR, teu Deus, te tem
dado a ti e à tua casa, tu, e o levita, e o estrangeiro que está no meio de ti"
(versículos 5 a 11).
Isto é uma formosa ilustração de culto. "Siro miserável". Tal era a origem. Nada
havia para vanglória, do ponto de vista natural. E quanto ao estado em que a graça
os havia encontrado, qual era? Dura escravidão na terra do Egito. Labutando entre
os fomos de tijolo sob o cruel azorrague dos capatazes do Faraó. Mas "então
clamamos ao SENHOR". Este era o seu seguro e bendito recurso. Era tudo o que
podiam fazer; mas era o suficiente. O clamor de desamparo subiu diretamente ao
trono e ao coração de Deus e fê-Lo descer ao centro dos próprios fornos de tijolo do
Egito. Ouçamos as palavras de graça do Senhor a Moisés: "Tenho visto atentamente
a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa
dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto, desci para a livrá-lo da
mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e larga, a uma
terra que mana leite e mel... e agora, eis que o clamor dos filhos de Israel chegou a
mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem" (Ex 3:7 -
9).
Tal foi a resposta imediata do Senhor ao clamor do Seu povo. "Desci para
livrá-lo". Sim; bendito seja o Seu nome, Ele desceu, no exercício da Sua livre e
soberana graça para libertar o Seu povo; e nenhum poder dos homens ou dos
demônios, na terra ou no inferno, podia detê-los nem por um momento além do
tempo determinado. Por isso, temos em nosso capítulo, o resultado grandioso
exposto na linguagem do adorador e no cesto das suas primícias. "Entrei na terra
que o SENHOR jurou a nossos pais dar-nos... e, eis que agora eu trouxe as primícias
dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste." O SENHOR havia cumprido tudo,
segundo o amor do Seu coração e a fidelidade da Sua palavra. Nem um jota nem um
til haviam faltado. "Entrei". E "agora eu trouxe as primícias dos frutos". Os frutos
de quê? Do Egito? Não; mas "da terra que tu, ó Senhor, me deste". Os lábios do
adorador proclamavam o total cumprimento da obra do Senhor. Nada podia ser
mais simples, nada mais real. Não havia lugar para a dúvida, nem fundamento para
questão. Devia simplesmente declarar a obra do Senhor e mostrar o fruto. Tudo era
de Deus, do princípio ao fim. Ele havia-os tirado do Egito e introduzido na terra de
Canaã. Havia enchido os seus cestos dos delicados frutos da Sua terra, e os seus
corações com louvores.

Para Israel: "Entrei" Para a Igreja: "Vim a Jesus"


E agora, prezado leitor, permite que lhe pergunte, acha que era um rasgo de
presunção por parte do israelita falar como falava? Era próprio, modesto ou
humilde dizer "entrei"? Teria sido mais próprio dar expressão a uma fraca
esperança de que, em qualquer altura, no futuro, poderia entrar na terral A dúvida
e a hesitação quanto ao seu estado e à sua porção teriam sido mais honrosas e
agradáveis ao Deus de Israel? Que acha o leitor? Pode ser que, antecipando-se à
nossa conclusão, esteja pronto a dizer: "não há comparação." Porque não? Se um
israelita podia dizer: "entrei na terra que o SENHOR jurou a nossos pais dar-nos", por
que não pode o crente agora dizer que veio a Jesus? Decerto, no caso do israelita
era ainda por vista, no caso do crente é por fé. Mas é este último caso menos real do
que o primeiro? Não diz o apóstolo aos hebreus: "Chegastes ao monte de Sião"? E
também: "Pelo que, tendo recebido um Reino que não pode ser abalado,
retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente com reverência e
piedade"? (Hb 12:28). Se estamos em dúvida quanto a termos chegado ou não e se
temos recebido um reino ou não, é impossível adorar em verdade ou prestar
serviço aceitável. É quando estamos de posse inteligente e pacífica do lugar e da
parte que temos em Cristo que a verdadeira adoração pode ascender ao trono no
alto e prestar serviço eficiente aqui no mundo.
Porque, seja-nos permitido perguntar, o que é a verdadeira adoração? É
simplesmente dar expressão, na presença de Deus, ao que Ele é e o que tem feito. E
ter o coração ocupado com Deus, deleitando-se n'Ele e em todos os Seus atos
maravilhosos e caminhos. Se, pois, não temos conhecimento de Deus, nem fé no
que Ele tem feito, como poderemos adorá-Lo? "...E necessário que aquele que se
aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam" (Hb
11:6). Mas, então, conhecer a Deus é a vida eterna. Não podemos adorar a Deus se
não O conhecermos; e não é possível conhecê-Lo sem ter a vida eterna. Os
atenienses tinham erigido um altar "ao Deus desconhecido", e Paulo disse-lhes que
eles adoravam em ignorância e prosseguiu anunciando-lhes o verdadeiro Deus
segundo está revelado na pessoa e obra do Homem Cristo Jesus.
E importantíssimo compreender bem isto. Devemos conhecer a Deus antes de
podermos adorá-Lo. Podíamos buscá-Lo se, porventura, tateando, o pudéssemos
achar; mas buscar Aquele a Quem não tenho encontrado, e deleitar-me n'Aquele
que tenho achado, são duas coisas completamente diferentes. Deus revelou- Se a Si
mesmo, bendito seja o Seu nome! Deu-nos a luz do conhecimento da Sua glória na
face de Jesus Cristo. Tem chegado até junto de nós na pessoa de Seu bendito Filho,
de modo que podemos conhecê-Lo e amá-Lo, confiar n'Ele, deleitar-nos n'Ele, e
recorrermos a Ele em toda a nossa fraqueza e necessidade. Já não temos de O
buscar por entre as trevas da natureza, nem tampouco entre as nuvens e neblinas
da falsa religião em suas milhentas formas. Não;
o nosso Deus deu-se a conhecer a Si mesmo por uma revelação tão clara que o
mundo, embora louco em tudo mais, não errará (Is 35:8). O crente pode dizer: "Eu
sei em que tenho crido." Esta é a base de todo o verdadeiro culto. Pode haver muita
piedade carnal, religiosidade mecânica e rotina cerimonial sem um átomo de
verdadeiro culto espiritual. Este último só pode proceder do conhecimento de
Deus.
Mas o nosso propósito não é escrever um tratado sobre adoração, mas
simplesmente desenvolver ante os nossos leitores a instrutiva e bela ordenança do
cesto das primícias. E havendo mostrado que a adoração era a primeira coisa que
todo o israelita devia fazer depois de estar de posse da terra — e, mais, que nós,
agora, devemos conhecer o nosso lugar e privilégio em Cristo antes de podermos
adorar verdadeira e inteligentemente o Pai — prosseguiremos falando de outro
resultado prático muito importante ilustrado no nosso capítulo, a saber,
benevolência ativa.

A Benevolência
"Quando acabares de dizimar todos os dízimos da tua novidade, no ano
terceiro, que é o ano dos dízimos, então, o darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e
à viúva, para que comam dentro das tuas portas e se fartem; e dirás perante o
SENHOR teu Deus: Tirei o que é consagrado de minha casa e dei também ao levita, e
ao estrangeiro, e ao órfão e à viúva, conforme todos os teus mandamentos que me
tens ordenado; nada traspassei dos teus mandamentos, nem deles me esqueci"
(versículos 12 e 13).
Nada pode ser mais belo que a ordem moral destas coisas. E precisamente
semelhante ao que temos em Hebreus 13:15: "Portanto, ofereçamos sempre, por
ele, a Deus sacrifício e louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome."
Eis aqui adoração. "E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque,
com tais sacrifícios, Deus se agrada" (versículo 16). Aqui temos benevolência ativa.
Juntando ambas, temos o que podemos chamar a parte superior e a inferior do
caráter cristão—louvando a Deus e fazendo bem aos homens. Preciosos
característicos! Possamos nós exibi-los fielmente! Uma coisa é certa, eles andarão
sempre juntos. Mostrai- nos um homem cujo coração está cheio de louvor a Deus,
e nós vos mostraremos um cujo coração está aberto a toda a forma de necessidade
humana. Pode não ser rico em bens deste mundo. Poderá ser obrigado a dizer,
como outro da antiguidade não se envergonhava de dizer: "Não tenho prata e nem
ouro"; mas terá as lágrimas de simpatia, o olhar de bondade, a palavra de ânimo, e
estas coisas falam mais eloqüentemente a um coração sensível do que o tilintar da
prata e do ouro. O nosso adorado Senhor e Mestre, nosso Grande Modelo, "andou
fazendo bem", mas nunca lemos de Ele dar dinheiro a alguém; na realidade,
podemos estar certos de que o bendito Senhor nunca teve uma moeda. Quando
teve de responder aos herodianos sobre o assunto de pagar o tributo a César, teve
de lhes pedir para Lhe mostrarem uma moeda; e quando foi convidado a pagar o
tributo, deu ordem a Pedro para buscá-la ao mar. Nunca trouxe dinheiro Consigo;
e, certamente, o dinheiro não é mencionado na lista de dons dados por Ele aos Seus
servos. Todavia, Ele andou fazendo bem, e nós temos de fazer o mesmo, em nossa
escassa medida; é, ao mesmo tempo, nosso elevado privilégio e dever de obrigação
fazer assim.
Note o leitor a ordem divina estabelecida em Hebreus 13 e ilustrada em
Deuteronômio 26. A adoração obtém o primeiro e mais elevado lugar. Não
esqueçamos nunca isto. Nós, em nosso sentimentalismo ou sabedoria, podíamos
imaginar que fazer bem ao nosso semelhante, a utilidade ou filantropia era a coisa
mais importante. Mas não é assim. "Aquele que oferece sacrifício de louvor me
glorificará" (SI 50:23). Deus habita entre os louvores do Seu povo. Deleita-Se em Se
rodear de corações transbordantes do sentido da Sua bondade, da Sua grandeza e
glória. Por isso, devemos oferecer "continuamente" a Deus os nossos sacrifícios de
louvor. Assim também diz o Salmista: "Louvarei ao Senhor em todo tempo; o seu
louvor estará continuamente na minha boca" (SI 34:1). Não é meramente de vez
em quando ou quando tudo corre bem ao redor de nós, quando as coisas correm
suavemente em prosperidade; não; mas "em todo tempo" — "continuamente". A
corrente de ações de graças deve correr ininterruptamente. Não há intervalo para
murmurações ou lamentações, mau humor ou insatisfação, tristeza ou desânimo.
Louvor e ações de graças devem ser a nossa contínua ocupação. Devemos cultivar
sempre o espírito de adoração. Cada alento, por assim dizer, deveria ser uma
aleluia. Cedo assim será. Louvor será a nossa ditosa ocupação enquanto a
eternidade deslizar ao longo do seu curso de séculos áureos. Quando já não houver
mais necessidade de "comunicações", dos nossos recursos ou da nossa simpatia;
quanto tivermos dito um eterno adeus a esta cena de dor e necessidades, morte e
desolação, então louvaremos o nosso Deus, para todo o sempre, sem obstáculo ou
interrupção, no santuário da Sua bendita presença nas alturas.
"E não vos esqueçais da beneficência e comunicação" (Hb 13:16). Existe um
interesse especial ligado com a maneira como isto é dito. Não diz: "Não vos
esqueçais dos sacrifícios de louvor". Não; mas não fosse o caso de, no pleno e feliz
gozo do nosso próprio lugar e porção em Cristo, esquecermos que estamos
passando por um cena de necessidade e miséria, provação e apertos, o apóstolo
acrescenta a salutar e muito necessária admoestação quanto a fazer bem e
comunicar com as necessidades dos outros. O israelita espiritual não só deve
regozijar-se de todo bem que o Senhor, seu Deus, lhe tem feito, como deve
também lembrar-se do levita, do estrangeiro, do órfão e da viúva—isto é, daquele
que não tem possessão terrena e é inteiramente consagrado à obra do Senhor; e
daquele que não tem casa, o que não tem protetor natural, e o que não tem estância
terrena. Assim deve ser sempre. O rico caudal da graça divina, descendo do seio de
Deus, deixa os nossos corações a transbordar, e este extravasamento refrigera e
alegra toda a nossa esfera de ação. Se apenas vivêssemos no gozo do que é nosso em
Deus, todos os nossos movimentos, todos os nosso atos, todas as nossas palavras, até
mesmo os nossos olhares fariam bem aos outros. O cristão, segundo a idéia divina,
é uma pessoa que tem uma mão levantada para Deus, apresentando sacrifícios de
louvor, e a outra cheia de fragrantes frutos da mais pura benevolência para
satisfazer toda a forma de necessidade humana.
Prezado leitor, ponderemos atentamente estas coisas. Apliquemos realmente os
nossos corações à mais sincera consideração das mesmas. Busquemos uma mais
completa realização e uma mais verdadeira expressão destes dois grandes aspectos
do cristianismo prático, e não nos demos por satisfeitos com nada menos.

A Santidade Prática no Andar, Serviço e Ministério


Vamos agora considerar o terceiro ponto deste precioso capítulo. Pouco mais
faremos que citar a passagem rapidamente. O israelita, havendo apresentado o
cesto, e distribuído os seus dízimos, devia dizer: "Disso não comi na minha tristeza
disso nada tirei para imundícia, nem disso dei para algum morto; obedeci à voz do
SENHOR , meu Deus; conforme tudo o que me ordenaste, tenho feito. Olha desde
atua santa habitação, desde o céu, e abençoa o teu povo, a Israel, e a terra que nos
deste, como juraste a nossos pais, terra que mana leite e mel. Neste dia, o SENHOR,
teu Deus te manda fazer estes estatutos e juízos;guarda-os pois, e faze-os com todo
o teu coração e com toda a tua alma. Hoje declaraste ao Senhor que te será por
Deus, e que andarás nos seus caminhos, e guardarás os seus estatutos, e os seus
mandamentos, e os seus juízos, e darás ouvidos à sua voz. E o SENHOR, hoje, te fez
dizer que lhe serás pôr seu próprio povo"—quer dizer, um povo especial—, "como
te tem dito, e que guardarás todos os seus mandamentos. Para assim te exaltar
sobre todas as nações que fez, para louvor, e para fama, e para glória, e para que
sejas um povo santo ao SENHOR, teu Deus, como tem dito" (versículos 14-19).
Eis aqui santidade pessoal, santificação prática, completa separação de tudo que
era incompatível com o santuário e o parentesco em que haviam sido introduzidos
por soberana graça e misericórdia de Deus. Não deve haver tristeza, nem
impureza, nada das obras mortas. Não temos lugar nem tempo para tais coisas; não
pertencem àquela bendita esfera em que temos o privilégio de viver e na qual nos
movemos e existimos. Temos precisamente de fazer estas coisas: levantar os olhos
para Deus e oferecer sacrifícios de louvor; olhar em redor de nós para o mundo
necessitado, e fazer bem; contemplar o círculo do nosso próprio ser—a nossa vida
íntima, e procurar, pela graça de Deus, mantermo-nos imaculados ou
guardarmo-nos da corrupção do mundo. "A religião pura e imaculada para com
Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e guardar- se da
corrupção do mundo" (Tg 1:27).
Assim, quer ouçamos Moisés, em Deuteronômio 26, ou Paulo em Hebreus 13,
ou Tiago na sua salutar, necessária epístola prática, é o mesmo Espírito que nos
fala, e as mesmas grandes lições são-nos inculcadas—lições de indizível valor e
importância moral —, lições que devem ser propagadas nestes dias de pachorrenta
profissão, em que as doutrinas da graça são aceites e mantidas de um modo
meramente intelectual, e relacionadas com toda a espécie de mundanidade e
própria complacência.
Existe uma necessidade urgente de um mais poderoso ministério prático entre
nós. Há uma falta deplorável do elemento profético e pastoril em nosso ministério.
Por elemento profético queremos dizer aquele caráter de ministério que trata com
a consciência e a conduz à imediata presença de Deus. Isto é muito necessário. Há
uma boa parte de ministério que se dirige à inteligência; mas desgraçadamente
muito pouco ao coração e à consciência. O ensinador fala ao entendimento; o
profeta fala à consciência (1); o pastor fala ao coração. Falamos, evidentemente, em
termos gerais. Pode suceder que estes três elementos se encontrem no ministério
de um só homem; mas são distintos; e nós não podemos deixar de sentir que
quando faltam os dons proféticos e pastorais numa assembléia, os ensinadores
devem orar sinceramente a Deus por poder espiritual a fim de tratarem com os
corações e consciências do Seu amado povo. Bendito seja o Seu nome, Ele tem o
dom, graça e poder necessários para os Seus servos. Tudo que necessitamos é
esperar n'Ele em verdadeira sinceridade de coração, e Ele, certamente, nos suprirá
toda a graça necessária e competência moral para qualquer serviço que sejamos
chamados a prestar na Sua Igreja.
__________
(1)
Muitos parecem acalentar a idéia de que um profeta é aquele que prediz acontecimentos futuros; mas
seria um erro limitar assim o vocábulo. 1 Coríntios 14:28-32 faz-nos ver o significado das palavras
"profetas" e "profetizar". O ensinador e o profeta estão em íntima e formosa relação. O ensinador
desenvolve a verdade da Palavra de Deus; o profeta aplica-a à consciência; e, podemos acrescentar, o
pastor procura ver de que modo o ministério tanto de um como do outro está atuando no coração e na
consciência.

Oh, se todos os servos do Senhor fossem despertados a uma mais profunda e


acentuada sinceridade, em todas as atividades da Sua bendita obra! Possamos nós
ser "constantes a tempo e fora de tempo", e não desanimar de modo algum por
causa do estado de coisas em redor de nós, mas, pelo contrário, achar nesse próprio
estado um motivo urgente para uma mais intensa devoção.
CAPÍTULO 27

O TERCEIRO DISCURSO DE MOISÉS

(Capítulos 27 a 28)

"Neste dia, vieste a ser por Povo ao SENHOR, teu Deus"


"E deram ordem, Moisés e os anciãos, ao povo de Israel, dizendo: Guardai todos
estes mandamentos que hoje vos ordeno: Será, pois, que, no dia em que passares o
Jordão à terra que te der o SENHOR teu Deus, levantar-te-ás umas pedras grandes e
as caiarás. E, havendo-o passado, escreverás nelas todas palavras desta lei, para
entrares na terra que te der o SENHOR, teu Deus, terra que mana leite e mel, como
te disse o SENHOR, Deus de teus pais. Será, pois, que, quando houveres passado o
Jordão, levantareis estas pedras, que hoje vos ordeno, no monte Ebal, e as caiarás. E
ali edificarás um altar ao SENHOR, teu Deus, um altar de pedras; não alçarás ferro
sobre elas. De pedras inteiras edificarás o altar do SENHOR, teu Deus; e sobre ele
oferecerás holocaustos ao SENHOR, teu Deus. Também sacrificarás ofertas pacíficas,
e ali comerás perante o SENHOR teu Deus, e te alegrarás. E, nestas pedras,
escreverás todas as palavras desta lei, exprimindo-as bem. Falou mais Moisés,
juntamente com os sacerdotes levitas, a todo o Israel, dizendo: Escuta e ouve, ó
Israel! Neste dia, vieste a ser por povo ao SENHOR, teu Deus. Portanto, obedecerás à
voz do SENHOR, teu Deus, e farás os seus mandamentos e os seus estatutos que hoje
te ordeno. E Moisés deu ordem, naquele dia, ao povo, dizendo: Quando houverdes
passado o Jordão, estes estarão sobre o monte Gerizim, para abençoarem o povo:
Simeão, e Levi, e Judá, e Issacar, e José, e Benjamim. E estes estarão para
amaldiçoar sobre o monte Ebal: Rúben, Ged, e Aser, e Zebulom, Dã e Naftali"
(versículos 1 a 13).
Não poderia haver um contraste mais notável do que aquele que é apresentado
entre o princípio e o fim deste capítulo. No parágrafo que acabamos de citar,
vemos Israel entrando na terra da promissão — essa terra formosa e fértil, que
mana leite e mel, e erigindo ali um altar no monte Ebal para holocaustos e ofertas
pacíficas. Nada lemos acerca da expiação pelo pecado ou da culpa. A lei, em toda a
sua integridade, devia ser escrita claramente sobre as pedras caiadas com cal, e o
povo, plenamente amparado pelo pacto, devia oferecer sobre o altar aquelas
oferendas de cheiro suave tão tocantemente expressivas da adoração e santa
comunhão. O assunto aqui não é o transgressor em ato, ou o pecador em sua
natureza, aproximando-se do altar de bronze como uma expiação de culpa ou uma
expiação pelo pecado, mas sim um povo inteiramente libertado, aceito e
abençoado — um povo no gozo do seu parentesco e da sua herança.
Decerto, eram transgressores e pecadores; e, como tais, necessitavam da
preciosa provisão do altar de bronze. Isto é óbvio, plenamente compreendido e
admitido por todo aquele que é ensinado por Deus; mas não é, evidentemente, o
assunto do Deuteronômio 27:1 a 13, e o leitor espiritual perceberá logo o motivo.
Quando vemos o Israel de Deus, em pleno cumprimento do pacto, entrando na
posse da herança, tendo a vontade revelada do Deus do pacto escrita clara e
completamente perante eles, e o leite e o mel manando em redor deles, temos de
concluir que toda a questão respeitante a culpas e pecados está definitivamente
resolvida, e que nada mais resta para aquele povo tão grandemente privilegiado e
ricamente abençoado, senão rodear o altar do seu Deus do concerto e oferecer
aqueles sacrifícios de cheiro suave tão aceitáveis para Ele e convenientes para eles.
Em suma, toda a cena representada à nossa vista na primeira metade do
capítulo é perfeitamente bela. Havendo Israel confessado que aceitava o Senhor
para seu Deus, e tendo o Senhor declarado Israel para ser o Seu povo peculiar, para
o colocar acima de todas as nações que havia criado, para louvor, em nome e
honra, e um povo santo ao Senhor seu Deus, como havia falado — Israel assim
privilegiado, abençoado e exaltado, em completa possessão daquela boa terra, e
tendo os mandamentos preciosos de Deus perante os seus olhos, que faltava fazer
senão apresentarem sacrifícios de louvor e ações de graças em santa comunhão e
feliz parentesco?

O Monte Gerizim e o Monte Ebal


Porém, na última metade do nosso capítulo, encontramos alguma coisa muito
diferente. Moisés designa seis tribos para se manterem sobre o monte Gerizim, a
fim de abençoarem o povo, e seis no monte Ebal, para amaldiçoar; mas,
infelizmente, quando deparamos com a história—os fatos positivos do caso—não
aparece sequer uma palavra de bênção; nada senão doze terríveis maldições
confirmadas, cada uma por si, por um solene "Amém" de toda a congregação.
Que triste mudança! Que notável contraste! Faz-nos lembrar o que passou
perante nós em Êxodo 19. Não poderia haver um comentário mais impressionante
das palavras do apóstolo inspirado em Gálatas 3:10. "Todos aqueles, pois, que são
das obras da lei, estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo
aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei,
para fazê-las."
Aqui temos a verdadeira solução do problema. Israel, no que respeita ao seu
estado moral, por aquela época, estava sobre o terreno da lei; e por isso, ainda que o
começo do nosso capítulo nos apresente um formoso quadro dos pensamentos de
Deus a respeito de Israel, contudo o final expõe o resultado triste e humilhante da
verdadeira situação de Israel perante Deus. Do monte Gerizim não parte um único
som, nenhuma palavra de bênção; mas, em vez disso, maldição após maldição aos
ouvidos do povo.
Nem poderia ser de outro modo. Que as pessoas argumentem sobre o assunto
como quiserem; nada senão a maldição pode cair sobre "todos aqueles que são das
obras da lei". Não diz "todos aqueles que guardam a lei", embora isso seja verdade,
mas, como se tratasse de expor a verdade do modo mais claro e eficaz perante nós,
o Espírito Santo declara que para todos, não importa quem, judeus, gentios ou
cristãos de nome — todos os que estão sobre o terreno ou princípio das obras —
não há, não pode haver senão a maldição.
Assim, pois, o leitor poderá compreender inteligentemente a razão do silêncio
que reinou no monte Gerizim, no dia a que se refere o Deuteronômio 27. Tivesse
havido uma simples bênção, teria sido uma contradição de todo o ensino da
Sagrada Escritura sobre o assunto da lei.
Alongamo-nos tanto sobre este assunto da lei no primeiro volume destas
nótulas, que não nos sentimos induzidos a prosseguir sobre ele aqui. Podemos
apenas dizer que quanto mais estudamos a Escritura, e quanto mais consideramos a
questão da lei à luz do Novo Testamento, tanto mais surpreendidos ficamos com a
maneira como alguns persistem em contender pela opinião que os cristãos estão
debaixo da lei; quer no tocante à vida, quer a respeito da justiça, santidade ou
qualquer outro assunto. Como poderá tal opinião manter-se ante a magnificente e
conclusiva expressão de Romanos 6: "NÃO ESTAIS DEBAIXO DA LEI, MAS
DEBAIXO DA GRAÇAS
CAPÍTULO 28

ISRAEL, COMO NAÇÃO, SOB O GOVERNO DE DEUS

Ao abrir o estudo desta parte notável do nosso livro, o leitor terá de ter em
conta que não pode ser, de modo nenhum, confundida com o capítulo 27. Alguns
expositores, procurando dar razão da falta de bênçãos naquele capítulo, têm
procurado encontrá-las neste. Mas isso é um grande erro —um erro fatal para a
própria compreensão de ambos os capítulos. O fato é que, os dois capítulos são
inteiramente distintos em fundamento, assunto e aplicação prática. O capítulo 2 7
é—para o descrever tão rápida e positivamente quanto possível— moral e pessoal.
O capítulo 28 é dispensacional e nacional. Aquele trata do princípio radical da
condição moral do homem como pecador completamente arruinado e incapaz de
chegar a Deus sobre o terreno da lei; este, por outro lado, suscita a questão de Israel
como nação debaixo do governo de Deus. Em suma, a comparação atenta dos dois
capítulos habilitará o leitor a ver a sua completa distinção. Por exemplo, que
relação podemos nós encontrar entre as seis bênçãos do nosso capítulo e as doze
maldições do capítulo 27? Nenhuma. Não é possível estabelecer a mais ligeira
relação. Mas até um menino pode ver o vínculo moral entre as bênçãos e as
maldições do capítulo 28.
Citemos uma ou duas passagens como exemplo. "E será que se ouvires a voz do
SENHOR teu Deus"—o grande tema de Deuteronômio, a chave mestra do
livro—"tendo, cuidado de guardar todos os seus mandamentos que eu te ordeno
hoje, o SENHOR, teu, Deus, te exaltará sobre todas as nações da terra. E todas estas
bênçãos virão sobre ti e te alcançarão, quando ouvires a voz do SENHOR, teu Deus"—
a única salvaguarda, o verdadeiro segredo da felicidade, segurança, vitória e força
— "Bendito serás tu na cidade e bendito serás no campo. Bendito o fruto do teu
ventre, e o fruto da tua terra, e o fruto dos teus animais, e a criação das tuas vacas, e
os rebanhos das tuas ovelhas. Bendito o teu cesto e a tua amassadeira. Bendito serás
ao entrares e bendito será, ao saíres" (versículos 1 a 6).
Não é evidente que estas não são as bênçãos pronunciadas pelas seis tribos no
monte Gerizim? O que aqui se nos apresenta é a dignidade nacional de Israel,
prosperidade e glória baseadas sobre a sua atenção diligente a todos os
mandamentos expostos perante nós neste livro. Era eterno propósito de Deus que
Israel tivesse a preeminência na terra sobre todas as nações. Este desígnio será
indubitavelmente cumprido, apesar de Israel ter, no passado, falhado
vergonhosamente em render aquela perfeita obediência que devia formar a base da
sua preeminência e glória nacional.
As Bênçãos Terrenas de Israel não se Aplicam à Igreja
Nunca devemos esquecer ou abandonar esta grande verdade. Alguns
expositores têm adotado um sistema de interpretação mediante o qual as bênçãos
do pacto com Israel são espiritualizadas e transferidas para a Igreja de Deus. Mas
isto é um erro fatal. Com efeito, é difícil expressar em palavras, ou mesmo
conceber os efeitos perniciosos de tal método de tratara preciosa Palavra de Deus.
Nada é mais certo de que tal procedimento está diretamente em oposição à mente e
à vontade de Deus. Deus não aprovará, nem pode aprovar tal forma de manejar a
Sua verdade, ou alienação das bênçãos e privilégios do Seu povo Israel.
Decerto, lemos em Gálatas 3; 14 "para que a bênção de Abraão chegasse aos
gentios por Jesus Cristo e para que, pela fé, nós recebamos" — o quê? Bênçãos na
cidade e no campo, bênçãos no nosso cesto e em nossas obras? Não; mas "a
promessa do Espírito". Assim sabemos também, pela mesma epístola, capítulo
4:26-27, que a Israel, restaurado, será permitido contar entre os seus filhos todos os
que são nascidos do Espírito durante o período do cristianismo. "Mas a Jerusalém
que é de cima é livre, a qual é mãe de todos nós, porque está escrito: Alegra-te,
estéril, que não dás à luz, esforça- te e clama, tu que não estás de parto; porque os
filhos da solitária são mais do que os da que tem marido."
Tudo isto é uma verdade bendita, mas não justifica a transmissão das promessas
feitas a Israel aos crentes do Novo Testamento. Deus tem prometido, com
juramento, abençoar a descendência de Abraão, Seu amigo—abençoá-la com todas
as bênçãos terrestres na terra de Canaã. Esta promessa mantém-se e é
absolutamente inalienável. Ai de todos os que intentam interferir com o seu
cumprimento literal no próprio tempo que Deus determinou! Já fizemos referência
a isto mesmo nos nossos estudos na primeira parte deste livro, e devemos por agora
contentar-nos em advertir solenemente o leitor contra todo o sistema de
interpretação que envolve tais graves conseqüências quanto à Palavra e caminhos
de Deus. Devemos recordar sempre que as bênçãos de Israel são terrestres; as da
Igreja são celestiais. "Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais, em Cristo."
Assim, a natureza e a esfera das bênçãos da Igreja são totalmente diferentes das
de Israel, e não devem confundir-se nunca. Porém, o sistema de interpretação
acima referido confunde-as, corrompendo a integridade da Sagrada Escritura e
prejudicando as almas. Pretender aplicar as promessas feitas a Israel à Igreja de
Deus, quer no presente, quer mais tarde, na terra ou no céu, é causar um completo
transtorno das coisas e produzir a mais desesperada confusão na exposição e
aplicação da Escritura. Sentimo-nos chamados, em simples fidelidade à Palavra de
Deus e à alma do leitor, a submeter este assunto a sua fervorosa atenção. Pode ficar
certo de que não é, de modo nenhum, uma questão de pouca monta; longe disso,
estamos convencidos que é inteiramente impossível que todo aquele que confunde
Israel com a Igreja, o celestial com o terrestre, seja um perfeito e correto intérprete
da Palavra de Deus.

Obediência e Desobediência
Todavia, não podemos prosseguir este assunto. Esperamos que o Espírito de
Deus desperte o coração do leitor de forma a sentir o seu interesse e importância e
lhe dê a compreensão da necessidade de manejar bem a Palavra da verdade. Se isto
for realizado, o nosso objetivo terá sido plenamente conseguido.
Com respeito a este vigésimo oitavo capítulo de Deuteronômio, se o leitor se
der conta do fato da sua completa distinção do capítulo precedente, poderá lê-lo
com inteligência espiritual e verdadeiro proveito. Não existe necessidade alguma
de elaborada exposição. O capítulo divide-se da forma mais clara e incontestável
em duas partes. Na primeira temos um relato completo e bendito dos resultados da
obediência (veja-se os versículos 1-15). E nós não podemos deixar de ficar
impressionados com o fato de a parte que contém as maldições (versículos 16-68)
ser três vezes mais extensa do que a que contém as bênçãos. Aquela consiste de
cinqüenta e três versículos, esta de quinze. O conjunto do capítulo é um impressi-
onante comentário sobre o governo de Deus, e uma poderosa ilustração do fato que
"o nosso Deus é um fogo consumidor". As nações da terra poderão todas aprender
com a maravilhosa história de Israel, de que Deus tem de castigar a desobediência,
e isso, também, antes de tudo, nos Seus. E se não poupou o Seu próprio povo, qual
será o fim dos que O não conhecem? "Os ímpios serão lançados no inferno e todas
as gentes que se esquecem de Deus" (SI 9:7). "Horrenda cosa é cair nas mãos do
Deus vivo" (Hb 10:31.) É o cúmulo da mais extravagante tolice qualquer pessoa
pretender tentar fugir à força absoluta de tais passagens ou explicá-las de um modo
acomodatício. Não pode ser. Leia-se o capítulo que está diante de nós e
comparece-se com a história atual de Israel, e ver-se-á que, tão certo como há um
Deus no trono da majestade nos céus, assim Ele castigará os malfeitores tanto no
presente como mais tarde. Não pode ser de outro modo. O governo que permitisse
a continuação do mal ou não quisesse julgá-lo, condená-lo ou puni-lo, não seria
um governo perfeito. Não seria o governo de Deus. E inútil basear argumentos
sobre a consideração parcial da bondade, benevolência e misericórdia de Deus.
Bendito seja o Seu nome! Ele é benigno, benévolo, misericordioso e clemente,
longânimo e compassivo; mas é santo, justo e verdadeiro; e "tem determinado um
dia em que, com justiça,há de julgar o mundo" [a terra habitada] "por meio do
varão que destinou; e disso deu certeza a todos ressuscitando-o dos mortos" (Atos
17:31).

A Cabeça ou a Cauda
Mas devemos terminar esta parte do livro; porém, antes de o fazer, sentimos o
dever de chamar a atenção do leitor para um ponto muito interessante em relação
com o versículo 13 do nosso capítulo. "E o, Senhor te porá por cabeça e não por
cauda; e só estarás em cima e não debaixo, quando obedeceres aos mandamentos
do SENHOR teu Deus, que hoje te ordeno, para os guardar e fazer."
Isto refere-se, sem dúvida, a Israel como nação. Está destinada a ser a cabeça de
todas as nações da terra. Tal é o seguro e determinado propósito de Deus a respeito
deles. Humilhados como estão, espalhados e perdidos entre as nações, sofrendo as
terríveis conseqüências da sua persistente desobediência, dormindo, como lemos
em Daniel 12, no pó da terra, contudo se levantarão, como nação, e brilharão em
glória mais resplandecente do que a de Salomão.
Tudo isto é ditosamente verdadeiro, sem dúvida, em numerosas passagens de
Moisés, dos Salmos, e dos Profetas e do Novo Testamento. Mas ao contemplar toda
a história de Israel, encontramos alguns textos notáveis de indivíduos que
puderam, por graça infinita, fazer suas as preciosas promessas contidas no
versículo 13, e isto em períodos sombrios e desanimadores da história nacional,
quando Israel, como nação, era a causa e não a cabaça. Vamos dar ao leitor um ou
dois exemplos, não apenas para exemplificar este ponto, mas também para pôr
diante de si um princípio de imensa importância prática e aplicação universal.

O Livro de Ester
Desviemos por um momento a nossa atenção para esse encantador livro de
Ester — um livro tão pouco compreendido ou apreciado—um livro do qual
podemos dizer em verdade que ocupa um lugar e ensina uma lição como nenhum
outro livro. Pertence a um período em que Israel não era, sem dúvida, a cabeça,
mas a cauda; mas, não obstante, mostra-nos o edificante e animador quadro de um
filho de Abraão conduzindo-se de tal maneira que alcança a posição mais elevada e
ganha uma magnífica vitória sobre o inimigo mais encarniçado de Israel.
Quanto ao estado de Israel, nos dias de Ester, era tal que Deus não podia
reconhecê-los publicamente. Por isso o Seu nome não se encontra no livro, desde o
princípio ao fim. O gentio era a cabeça e Israel a cauda. O parentesco entre o
Senhor e Israel já não podia ser reconhecido publicamente; mas o coração do
Senhor não podia nunca esquecer o Seu povo; e, podemos acrescentar, o coração
de um fiel Israelita não podia olvidar o Senhor ou a Sua santa lei; e estes são
precisamente os dois fatos que caracterizam de um modo especial este
interessantíssimo livrinho. Deus estava atuando ocultamente a favor de Israel, e
Mardoqueu agia publicamente por Deus. É digno de nota que nem o melhor
Amigo de Israel nem o seu pior inimigo se mencionam uma só vez no livro de
Ester; e, todavia, todo o livro está repleto das ações de ambos. O dedo de Deus está
marcado em cada elo da maravilhosa cadeia da providência; e, por outro lado, a
implacável inimizade de Amaleque aparece na cruel conspiração do arrogante
agagita.
Tudo isto é profundamente interessante. Na verdade, ao terminar o estudo
deste livro, bem podemos dizer: "Oh, que cenas! Transcendem a ficção e contudo
são verdadeiras!" Nenhum romance pode, de modo algum, exceder em interesse
esta simples e bendita história. Mas não nos alarguemos sobre o assunto, por muito
que gostaríamos de fazê-lo. O tempo e o espaço impedem- nos. Apenas nos
referimos a ele a fim de indicar ao leitor o valor inefável e a importância da
fidelidade individual no momento em que a glória nacional se havia desvanecido e
desaparecido. Mardoqueu manteve-se como uma rocha pela verdade de Deus.
Recusou com firme decisão reconhecer Amaleque. Salvaria a vida de Assuero e
curvar-se-ia à sua autoridade como a expressão do poder de Deus, mas não se
curvaria a Hamã. A sua conduta, neste negócio, era simplesmente orientada pela
Palavra de Deus. A autoridade para o seu modo de proceder devia se à encontrada
neste bendito livro de Deuteronômio. "Lembra-te do que te fez Amaleque no
caminho, quando saíeis do Egito; como te saiu ao encontro no caminho e te
derribou na retaguarda todos os fracos que iam após ti, estando tu cansado e
afadigado; e não temeu a Deus"—aqui estava o verdadeiro segredo de todo o
negócio—"Será, pois, que, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver dado repouso, de
todos os teus inimigos em redor, na terra que o SENHOR teu Deus, te dará por
herança, para possuí-la, então apagarás a memória de Amaleque de debaixo do céu;
não te esqueças" (Dt 25:17-19).
Isto era bastante claro para todo o ouvido circuncidado, para todo o coração
obediente, para toda a consciência reta. Igualmente clara é a linguagem de Êxodo
17:14a 16: "Então disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e
relata-o aos ouvidos de Josué, que eu totalmente hei de riscar a memória de
Amaleque de debaixo dos céus. E Moisés edificou um altar e chamou o seu nome:
SENHOR é minha bandeira. E disse: Porquanto jurou o SENHOR, haverá guerra do
SENHOR contra Amaleque de geração em geração."
Aqui estava pois a autoridade de Mardoqueu para recusar uma simples
inclinação de cabeça ao agagita. Como poderia um membro fiel da casa de Israel
inclinar-se ante um membro de uma casa com a qual o Senhor estava em guerra ?
Impossível. Podia vestir-se de um saco com cinza, jejuar e chorar pelo seu povo,
mas não podia, não queria e não ousaria inclinar-se ante um amalequita. Podia ser
acusado de orgulho, de cega obstinação, de estúpido fanatismo, e desprezível
baixeza de espírito; mas ele nada tinha que ver com tudo isso. Podia parecer
inexplicável parvoíce recusar o sinal vulgar de respeito ao mais nobre no reino;
mas esse nobre era um amalequita, e isso era o bastante para Mardoqueu. A
parvoíce era simples obediência.
E isto que torna o caso tão importante e de interesse para nós. Nada pode
jamais impedir-nos da nossa responsabilidade de obedecer à Palavra de Deus.
Podia ser dito a Mardoqueu que o mandamento a respeito de Amaleque era uma
coisa do passado, que dizia respeito aos dias vitoriosos de Israel. Fora natural Josué
lutar com Amaleque; Saul devia também obedecer à Palavra do Senhor em vez de
poupar Agague; mas agora tudo havia mudado; a glória havia deixado Israel, e era
absolutamente inútil tentar agir segundo Êxodo 17 ou Deuteronômio 25.
Estamos certos de que todos estes argumentos não teriam tido nenhuma
influência sobre Mardoqueu. Bastava-lhe saber que o Senhor havia dito:
"Lembra-te do que fez Amaleque.. .não te esqueças". Por quanto tempo devia durar
isto? "De geração em geração". A guerra do Senhor com Amaleque não devia cessar
até que o seu nome e a sua recordação fossem riscados de debaixo do céu. E por
quê? Por causa do tratamento cruel e desapiedado que deu a Israel. Tal era a
bondade de Deus para com o Seu povo! Como poderia então um fiel israelita
curvar-se ante um amalequita? Impossível. Pode Josué inclinar-se ante Amaleque?
De nenhuma maneira. Fê-lo Samuel? Não; antes "despedaçou a Agague, perante o
SENHOR, em Gilgal". Como poderia então Mardoqueu inclinar-se ante ele<r Não
podia fazer isso, custasse o que custasse. Não se importava que a forca estivesse
levantada para si. Podia ser enforcado, mas não podia render homenagem a
Amaleque.
E qual foi o resultado? Um esplêndido triunfo! Ali estava junto ao trono o
orgulhoso amalequita gozando a felicidade do favor real, fazendo ostentação das
suas riquezas, da sua glória, e a ponto de esmagar debaixo dos pés a semente de
Abraão. Por outro lado, ali estava Mardoqueu vestido de saco com cinza e banhado
em lágrimas. Que podia ele fazer? Podia obedecer. Não tinha espada nem lança;
mas tinha a Palavra de Deus, e, obedecendo simplesmente a essa Palavra, obteve
uma vitória sobre Amaleque tão decisiva e esplêndida no seu resultado como
aquela que foi ganha por Josué em Êxodo 17 — uma vitória que Saul deixou de
ganhar, embora rodeado por um exército de guerreiros escolhidos de entre as doze
tribos de Israel. Amaleque procurava enforcar Mardoqueu; mas em vez disso foi
obrigado a atuar como seu lacaio, e a conduzi-lo com esplendor e pompa real
através das ruas da cidade. "Pelo que disse Hamã ao rei: Quanto ao homem de cuja
honra o rei se agrada, traga a veste real de que o rei se costuma vestir, monte
também o cavalo em que o rei costuma andar montado, e ponha-se-lhe a coroa real
na cabeça; e entregue-se a veste do de um dos príncipes do rei, dos maiores
senhores, e vistam dele aquele homem de cuja honra o rei se agrada; e levem-no a
cavalo pelas ruas da cidade, e apregoe-se diante dele: Assim se fará ao homem de
cuja honra o rei se agrada! Então, disse o rei a Hamaã: Apressa-te, toma a veste e o
cavalo, como disseste, e faze assim para com o judeu Mardoqueu, que está
assentado à porta do rei; coisa nenhuma deixes cair de tudo quanto disseste. E
Hamaã tomou a veste o e o cavalo, e vestiu a Mardoqueu, e o levou a cavalo pelas
ruas da cidade, e apregoou diante dele: Assim se fará ao homem de cuja honra o rei
se agrada! Depois disso, Mardoqueu voltou para a porta do rei; porém Hamaã se
retirou correndo a sua casa, angustiado e coberta a cabeça" (Et 6:7a 12).
Aqui certamente Israel era a cabeça e Amaleque a cauda—Israel não como
nação, mas individualmente. Mas isto era apenas o começo da derrota de
Amaleque e da glória de Israel. Hamaã foi enforcado na própria forca que havia
levantado para Mardoqueu: "Então, Mardoqueu saiu da presença do rei com uma
veste real azul celeste e branca, como também com uma grande coroa de ouro e
com uma capa de linho e púrpura, e a cidade de Susã exultou e se alegrou."
Mas isto não foi tudo. O efeito da vitória maravilhosa de Mardoqueu fez
sentir-se em todas as direções nas cento e vinte e sete províncias do império.
"Também em toda província e em toda cidade aonde chegava a palavra do rei e a
sua ordem, havia entre os judeus alegria e gozo, banquetes e dias de folguedo; e
muitos, entre os povos da terra, se fizeram judeus; porque o temor dos judeus tinha
caído sobre eles." E para rematar tudo lemos: "... o judeu Mardoqueu foi o segundo
depois do rei Assuero, e grande para com os judeus, e agradável para com a
multidão de seus irmãos, procurando o bem do seu povo e trabalhando pela
prosperidade de toda a sua nação."
Ora bem, prezado leitor, isto não prova da maneira mais notável a grande
importância da fidelidade individual? Não deve animar-nos a permanecermos
firmes quanto à verdade de Deus, custe o que custará Veja-se os maravilhosos
resultados que se seguiram aos atos de um homem! Muitos poderiam ter condena-
do a conduta de Mardoqueu. Poderia ter parecido inexplicável obstinação recusar
um simples sinal de respeito ao mais alto membro da nobreza do império, mas não
era assim. Tratava-se de simples obediência. Era uma decisão por Deus, e levou a
uma magnífica vitória, cujos despojos seus irmãos recolheram até aos confins da
terra.

O Livro de Daniel
Para mais exemplos do assunto sugerido por Deuteronômio 28:13
recomendamos ao leitor Daniel 3 e 6. Ali poderá ver os gloriosos resultados morais
que puderam ser alcançados pela fé individual no verdadeiro Deus, nos dias em
que a glória nacional de Israel havia desaparecido; e a sua cidade e o templo
estavam em ruínas. Os três dignitários recusaram adorar a imagem de ouro.
ousaram enfrentar a ira do rei e resistir à voz de todo o império; sim, enfrentar o
próprio forno de fogo, antes que desobedecer. Podiam render as suas vidas, mas
não podiam abandonar a verdade de Deus.
E qual foi o resultado? Uma esplêndida vitória! Passearam dentro do forno de
fogo ardente com o Filho de Deus, e foram convidados a sair do forno como
testemunhas e servos do Deus Altíssimo. Glorioso privilégio! Dignidade
maravilhosa! E tudo como o simples resultado de obediência! Tivessem eles ido
com a multidão e inclinado a cabeça em adoração ao deus nacional para escaparem
ao terrível forno ardente, e o que teriam perdido! Mas, bendito seja Deus, puderam
manter-se firmes na confissão da grande verdade fundamental da unidade da
Deidade — a mesma verdade que havia sido calcada aos pés entre os esplendores
do reinado de Salomão, e o relato da sua fidelidade tem sido escrito pelo Espírito
Santo a fim de nos animar a trilharmos, com passo firme, a vereda de dedicação
individual, no mundo que aborrece a Deus e rejeita a Cristo, e à face de um
cristianismo que é indiferente à verdade. E impossível ler a narrativa e não
sentirmos todo o nosso ser renovado e atraído pelo desejo sincero de uma mais
profunda dedicação pessoal a Cristo e à Sua causa.
O efeito produzido pelo estudo de Daniel 6 deve ser idêntico. Não podemos
tomar a liberdade de citar a passagem e nos alargarmos em considerações sobre ela.
Apenas podemos recomendar a empolgante narrativa à atenção do leitor. E
excepcionalmente formosa e proporciona uma esplêndida lição para estes dias de
condescendência e pachorrenta profissão, nos quais nada custa dar o
consentimento nominal às verdades do cristianismo; e nos quais, sem embargo, há
tão escassos desejos de seguir, com firme decisão, o nosso Senhor rejeitado, ou
prestar inteira e decidida obediência aos Seus mandamentos.
Em face de tanta indiferença, como é consolador ler da fidelidade de Daniel!
Com decisão inflexível persistiu no seu santo hábito do orar três vezes ao dia com a
janela aberta para Jerusalém, embora soubesse que a cova dos leões era o castigo
imposto ao seu ato. Podia ter fechado a janela e corrido as cortinas e retirar-se para
a solidão do seu quarto para orar, ou podia ter esperado pela meia-noite quando
olhos humanos não podiam ver ou ouvidos humanos ouvir. Mas não; este amado
servo de Deus não quis esconder a luz debaixo da cama ou do alqueire. Estava em
jogo um grande princípio. Não só oraria unicamente ao Deus vivo e verdadeiro,
mas oraria com as "janelas abertas da banda de Jerusalém". E por que da banda de
Jerusalém? Porque era o centro de Deus. Porém, estava em ruínas. Decerto,
naquele tempo, e quando considerado desde o ponto de vista humano, mas para a
fé, e sob o ponto de vista divino, Jerusalém era o centro de Deus para o Seu povo
terrestre. Isto estava então e estará de novo fora de toda a dúvida. E não somente
isto, senão que o pó das suas ruínas é também precioso para o Senhor; e por isso
Daniel estava em plena comunhão com a mente de Deus quando abria as suas
janelas para a banda de Jerusalém e orava. O que ele fazia estava baseado na
Escritura como o leitor poderá ver em 2 Crônicas 6:38: "E se converterem a ti com
todo o seu coração e com toda a sua alma, na terra do seu cativeiro, a que os
levaram presos, e orarem para a banda da sua terra que deste a seus pais, e desta
cidade que escolheste e desta casa que edifiquei ao teu nome."
Aqui estava a autorização para Daniel. Foi isto que ele fez de todo indiferente
às opiniões humanas; e indiferente também absolutamente às penas e castigos.
Antes preferia ser lançado na cova dos leões do que renunciar à verdade de Deus.
Preferia ir para o céu com uma boa consciência do que permanecer na terra com
uma má consciência.
E qual foi o resultado? Outro esplêndido triunfo! "Assim foi Daniel tirado da
cova, e nenhum dano se achou nele, PORQUE CRERA NO SEU DEUS" (Dn 6:23).
Abençoado servo de Deus! Nobre testemunha! Certamente, ele era o cabeça,
nessa ocasião, e os seus inimigos a cauda. E de que modo? Simplesmente mediante
a obediência à Palavra de Deus. É isto que consideramos ser de grande importância
moral em nossos dias. É para exemplificar e dar ênfase a este fato que nos referimos
a esses exemplos de fidelidade individual numa época em que a glória nacional de
Israel estava por terra, a sua unidade desfeita e a sua política fragmentada. Não
podemos deixar de considerar tudo isto como um fato cheio de interesse, repleto
de alento e poder sugestivo, que nos dias mais obscuros da história de Israel como
nação temos os mais brilhantes e nobilíssimos exemplos de fé e dedicação pessoais.
Submetemos vivamente tal fato à atenção do leitor cristão. Consideramo-lo
altamente apropriado para fortalecer e levar os nossos corações a manterem-se
firmes pela verdade de Deus nos momentos atuais, em que há tanta coisa para os
desanimar no estado geral da igreja professante. Não é que devamos esperar
resultados tão rápidos e esplêndidos como os que se obtiveram nos casos a que nos
temos referido. Não se trata disso. Devemos recordar o fato que, seja qual for o
estado ostensível do povo de Deus em qualquer tempo, é privilégio de todo homem
de Deus, individualmente, trilhar a vereda estreita e colher os frutos preciosos da
obediência simples à Palavra de Deus e aos mandamentos de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo.
Isto, estamos persuadidos, é uma preciosa verdade para os nossos dias,
Possamos nós todos sentir o seu santo poder! Corremos o perigo iminente de
rebaixar o padrão de devoção pessoal devido ao estado geral de coisas. Isto é um
erro fatal; antes, é a sugestão do inimigo de Cristo e da Sua causa. Se Mardoqueu,
Sadraque, Mesaque, e Abednego, e Daniel tivessem atuado desta maneira, qual
teria sido o resultado?
Ah, não, prezado leitor, temos de recordar sempre que o nosso magno dever é
obedecer e deixar os resultados com Deus! Pode ser do Seu agrado permitir que os
Seus servos vejam resultados notáveis, ou achar conveniente permitir-lhes esperar
aquele grande dia que se está aproximando, em que não haverá o perigo de nos
enchermos de vaidade ao ver algum pequeno fruto do nosso testemunho. Seja
como for, o nosso dever é trilhara vereda bendita que nos é indicada pelos
mandamentos de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. Que Ele nos
habilite, pela graça do Seu Santo Espírito, a consegui-lo! Apeguemo-nos à verdade
de Deus com propósito de coração, completamente indiferentes às opiniões dos
nossos semelhantes, os quais nos podem acusar de estreitos, fanáticos, de
intolerância e coisas semelhantes. O nosso dever é prosseguir avante com o
Senhor!
— CAPÍTULO 29 —

O QUARTO DISCURSO DE MOISÉS

(Capítulos 29 a 30)

A Aliança no País de Moabe


Com este capítulo termina a segunda das grandes divisões do nosso livro. Nele
é feito um apelo solene à consciência da congregação. É o que podemos chamar o
resumo e aplicação prática de tudo que tem sido exposto nesta profunda e prática
parte dos cinco livros de Moisés.
"Estas são as palavras do concerto que o SENHOR ordenou a Moisés, na terra de
Moabe, que fizesse com os filhos de Israel, além do concerto que fizera com eles
em Horebe." Já fizemos referência a esta passagem como uma das muitas provas da
distinção que deve fazer- se entre o livro de Deuteronômio e os restantes que
formam o Pentateuco. Mas ela requer a atenção do leitor desde outro ponto de
vista. Fala de um concerto especial com os filhos de Israel, na terra Moabe, em
virtude do qual deviam ser introduzidos na terra de Canaã. Este concerto era tão
distinto do concerto feito no Sinai como era do concerto feito com Abraão, Isaque
e Jacó. Numa palavra, nem era pura lei nem pura graça, mas o governo exercido em
soberana misericórdia.
E evidente que Israel não podia entrar na terra com base no concerto do Sinai
ou Horebe, visto que havia falhado completamente fazendo um bezerro de ouro.
Perderam todo o direito à terra e só foram salvos de repentina destruição pela
soberana misericórdia exercida a favor deles por mediação e fervorosa intercessão
de Moisés. É igualmente claro que não entraram na terra em virtude do pacto de
graça feito com Abraão, porque se tivesse sido assim, não teriam sido expulsos dela.
Nem a extensão nem a duração da posse dela correspondem aos termos do
concerto feito com seus pais. Foi segundo os termos do concerto de Moabe que eles
entraram na posse parcial e temporária da terra de Canaã; e visto que falharam de
um modo tão notado sob o concerto de Moabe como sob o de Horebe —falharam
debaixo do governo tão completamente como sob a lei —foram expulsos do país e
espalhados sobre a face da terra sob os atos do governo de Deus.
Mas não para sempre. Bendito seja o Deus de toda a graça, os descendentes de
Abraão, Seu amigo, possuirão ainda a terra de Canaã, conforme os termos
magníficos da concessão original. "Os dons e a vocação de Deus são sem
arrependimento." Os dons e a vocação não devem confundir-se com a lei e o
governo. O monte Sião nunca poderá ser igualado com Horebe e Moabe. O novo
concerto eterno da graça, ratificado pelo precioso sangue do Cordeiro de Deus,
será gloriosamente cumprido à letra, não obstante todos os poderes da terra e do
inferno, dos homens e dos demônios combinados. "Eis que virão dias, diz o Senhor,
em que com a casa de Israel e com a casa de Judá estabelecerei um novo concerto,
não segundo o concerto que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão,
para os tirar da terra do Egito; como não permaneceram naquele meu concerto, eu
para eles não atentei, diz o Senhor. Porque este é o concerto que, depois daqueles
dias, farei com a casa de Israel, diz o Senhor: porei as minhas leis no seu
entendimento e em seu coração as escreverei; e eu lhes serei por Deus, e eles me
serão por povo. E não ensinará cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu
irmão, dizendo: Conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor
deles até ao maior. Porque serei misericordioso para com as suas iniqüidades e de
seus pecados e de seus prevaricações não me lembrarei mais. Dizendo novo
concerto, envelheceu o primeiro. Ora, o que foi tornado velho se envelhece perto
está de acabar" (Hb 8:8 a 13).
O leitor deve precaver-se contra um sistema de interpretação que pretende
aplicar à Igreja esta preciosa passagem. Este critério envolve um tríplice dano:
dano à verdade de Deus; dano à Igreja; e dano a Israel. Temos feito uma
advertência a este respeito, repetidas vezes, no decurso dos nossos estudos sobre o
Pentateuco, porque compreendemos a sua grande importância. Temos a firme
convicção de que ninguém que confunde Israel com a Igreja pode compreender e
muito menos expor a Palavra de Deus. As duas coisas são tão distintas como o céu e
a terra; e portanto, quando Deus fala de Israel, de Jerusalém e de Sião, se tomamos
a liberdade de aplicar esses nomes à Igreja do Novo Testamento, só podemos
esperar mais completa confusão. Achamos que é de todo impossível expor as
conseqüências de assim manejara Palavra de Deus. Acaba com todo o cuidado de
interpretação e toda aquela santa precisão e certeza divina que a Escritura está
destinada e apropriada a comunicar. Prejudica a integridade da verdade, arruína as
almas do povo de Deus e impede o seu progresso na vida divina e inteligência
espiritual. Em suma, nunca é de mais insistir com todos os que lêem estas linhas
sobre a necessidade absoluta de estarem precavidos contra este fatal e falso sistema
de tratar a Sagrada Escritura.
Devemos ter cuidado na maneira como nos entremetemos com o alcance da
profecia ou a verdadeira aplicação das promessas de Deus. Não temos autorização
alguma para interferir com a esfera divinamente determinada dos concertos. O
apóstolo inspirado diz- nos claramente, em capítulo 9 de Romanos, que os
concertos pertencem a Israel; e se nós tentarmos tirá-los aos pais do Velho
Testamento e transferi-los para a Igreja de Deus, o corpo de Cristo, podemos estar
seguros de que estamos fazendo o que Javé-Eloim jamais aprovará. A Igreja não faz
parte dos caminhos de Deus com Israel e a terra. O seu lugar, a sua parte, os seus
privilégios, as suas perspectivas são celestiais. Ela é chamada à existência neste
tempo de rejeição de Cristo para estar associada Consigo onde Ele agora está oculto
nos céus e compartilhar a Sua glória futura. Se o leitor conseguir compreender esta
importante e gloriosa verdade, isso o ajudará a pôr as coisas nos seus devidos
lugares.

"Tendes Visto tudo quanto o SENHOR Fez"


Devemos agora voltar a nossa atenção para a solene aplicação prática à
consciência de cada membro da congregação de tudo quanto tem passado ante os
nossos olhos.
"E chamou Moisés a todo o Israel e disse-lhe: Tendes visto tudo quanto o
SENHOR fez na terra do Egito, perante vossos olhos, a Faraó, e a todos os seus
servos, e a toda a sua terra; as grandes provas que os teus olhos têm visto, aqueles
sinais e grandes maravilhas: porém, não vos tem dado o SENHOR um coração para
entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até ao dia de hoje."
Isto é muito solene. Os mais assombrosos milagres e sinais podem verificar-se
ante nós e não afetar o coração. Estas coisas podem produzir um efeito transitório
sobre a mente e os sentimentos naturais; mas a não ser que a consciência seja
levada à luz da presença divina e o coração exposto à ação imediata da verdade pelo
poder do Espírito de Deus, não se alcança resultado duradouro. Nicodemos
deduziu pelos milagres de Cristo que era mestre vindo de Deus; mas isto não era
suficiente. Tinha de aprender o significado profundo e maravilhoso dessa
importante frase: "Necessário vos é nascer de novo." Uma fé fundada em milagres
pode deixar um povo sem ser salvo, nem convertido e sem bênção — com terrível
responsabilidade, sem dúvida, mas inconvertido. No final do capítulo 2 de João
lemos de muitos que professaram crer em Cristo quando viram os Seus milagres,
"mas o mesmo Jesus não confiava neles". Não havia obra divina, nada em que
confiar. Tem de haver nova vida, uma nova natureza; e os milagres e sinais não
podem comunicar isto. Temos de ser nascidos de novo — nascidos da Palavra e do
Espírito de Deus. A nova vida é comunicada pela semente incorruptível do
evangelho de Deus, gravada no coração pelo poder do Espírito Santo. Não é uma fé
intelectual baseada em milagres, mas uma fé de coração no Filho de Deus. E
qualquer coisa que nunca poderia ser conhecida sob a lei ou o governo. "O dom de
Deus é a vida eterna por Cristo Jesus, nosso Senhor." Precioso dom! Glorioso
manancial! Bendito canal! Universal e eterno louvor à Eterna Trindade!
"E quarenta anos vos fiz andar pelo deserto; não se envelheceram sobre vós as
vossas vestes, nem se envelheceu no teu pé o teu sapato" — admiráveis vestidos!
Admiráveis sapatos! Deus teve cuidado deles e fê-los durar, bendito seja para
sempre o Seu santo Nome! "Pão não comestes e vinho e bebida forte não bebestes,
para que soubésseis que eu sou o SENHOR, VOSSO Deus." Foram alimentados e
vestidos pela própria mão do Deus bondoso! "Pão dos anjos comeu o homem" (SI
78:25). Não tiveram necessidade de vinho ou de bebida forte, nenhuma
necessidade de estimulantes: "bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra
era Cristo" (1 Co 10:4). Essa corrente pura refrescava-os no fatigante deserto e o
maná celestial sustentava-os dia a dia. Tudo que necessitavam era de capacidade
para gozar as provisões divinas.
Mas, ah, nisto, assim como nós, eles falharam! Aborreceram-se do alimento
celestial e cobiçaram outras coisas. Como infelizmente somos semelhantes a eles!
Como é humilhante termos fracassado em apreciar Aquele a Quem Deus nos tem
dado para ser a nossa vida, a nossa porção, o nosso objetivo, tudo em todos! Como é
terrível descobrir que os nossos corações desejam as miseráveis vaidades e loucuras
deste pobre mundo que passa—as suas riquezas, as suas distinções, os seus prazeres
que perecem pelo uso, e que, ainda que durassem, não poderiam ser comparados
com "as riquezas incompreensíveis de Cristo"! Que Deus, em Sua infinita bondade:
"Segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejas corroborados com poder
pelo Seu Espírito no homem interior; para que Cristo habite, pela fé, no vosso
coração; a fim de, estando arraigados e fundados em amor, poderdes perfeitamente
compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura,
e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento,
para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus" (Ef 3:16 -19). Que esta bendita
oração encontre resposta e prevalecente experiência tanto do leitor como do autor
destas linhas!
"Vindo vós, pois, a este lugar, Seom, rei de Hesbom, e Ogue, rei de Basã" —
inimigos formidáveis e de temer — "nos saíram ao encontro, à peleja, e nós os
ferimos." E tivessem eles sido dez mil vezes poderosos e formidáveis, teriam sido
como a pragana perante a presença do Deus dos exércitos de Israel. "E tomamos a
sua terra e a demos por herança aos rubenitas, e aos gaditas, e à meia tribo dos
manassitas." Haverá alguém que se atreva a comparar isto com o que a história
humana registra a respeito da invasão da América do Sul pelos espanhóis? Ai dos
que assim fazem! Descobrirão quão terrível é o seu erro. Existe esta importante
diferença: Israel tinha autorização direta de Deus para o que fez a Seom e Ogue; os
espanhóis não podiam mostrar tal autorização para o que fizeram aos pobres e
ignorantes selvagens da América do Sul. Isto muda por completo a questão. A
introdução de Deus e a Sua autoridade é a única resposta perfeita a toda a questão,
a solução divina a toda a dificuldade. Possamos nós relembrar sempre este fato
como antídoto divino contra toda a sugestão infiel!

"Guardai, pois, as palavras deste concerto"


"Guardai, pois, as palavras deste concerto [de Moabe] e cumprias para que
prospereis em tudo quanto fizerdes." A simples obediência à Palavra de Deus tem
sido, é e será sempre o grande segredo de toda a verdadeira prosperidade. Para o
cristão, a prosperidade não consiste, evidentemente, nas coisas terrestres ou
materiais, mas nas celestiais e espirituais; e nunca devemos esquecer que é o
cúmulo da loucura pensar prosperar ou fazer progresso na vida divina se não
prestamos implícita obediência a todos os mandamentos de nosso bendito e
adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo. "Se vós estiverdes em mim, e as minhas
palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito. Nisto é
glorificado meu Pai: que deis muito fruto, e assim sereis meus discípulos. Como o
Pai me amou, também eu vos amei a vós; permanecei no meu amor. Se guardardes
os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu
tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneço no seu amor" (Jo
15:7-10). Eis aqui verdadeira prosperidade cristã. Possamos nós desejá-la
ardentemente e prosseguir diligentemente o próprio método de a alcançar!
"Vós todos estais hoje perante o SENHOR, VOSSO Deus: os cabeças de vossas
tribos, vossos anciãos, os vossos oficiais, todo o homem de Israel; os vossos
meninos" — fato comovedor e interessante! — "as vossas mulheres e o estrangeiro
que está no meio do arraial".—Que excelente expressão, "o estrangeiro"! Que
poderoso apelo ao coração de Israel a favor do estrangeiro!—"desde o rachador da
tua lenha até ao tirador da tua água; para que entres no concerto do SENHOR, teu
Deus, e no seu juramento que o SENHOR, teu Deus, hoje faz contigo; para que hoje
te confirme por seu povo, e ele seja a ti por Deus, como tem dito e como jurou a
teus pais, Abraão, Isaque e Jacó. E não somente convosco faço este concerto e este
juramento, mas com aquele que hoje está aqui em pé conosco, perante o SENHOR
nosso Deus, e com aquele que hoje não está aqui conosco. Porque vós sabeis como
habitamos na terra do Egito, e como passamos pelo meio das nações, pelas quais
passastes; e vistes as suas abominações e os seus ídolos, a madeira e a pedra, a prata
e o ouro que havia entre eles" (versículos 10 a 17).
Este ardente apelo não é apenas geral, mas também individual. Isto é muito
importante. Estamos sempre prontos a generalizar, e deste modo perdemos a
aplicação da verdade à nossa consciência individual. E um grave erro, e um
prejuízo sério para as nossas almas. Cada um de nós é obrigado a render implícita
obediência aos mandamentos de nosso Senhor. E desta forma que nós entramos no
verdadeiro gozo do nosso parentesco, como Moisés diz ao povo: "Para que hoje te
confirme por seu povo, e ele te seja a ti por Deus."
Nada pode ser mais precioso. E por outro lado é tão simples. Não há incerteza,
obscuridade ou misticismo a este respeito. Trata-se simplesmente de ter os Seus
preciosíssimos mandamentos guardados em nossos corações, agindo sobre a
consciência e postos em prática na vida. Tal é o verdadeiro segredo de realizar
habitualmente o nosso parentesco com nosso Pai e com nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo.
Se alguém julga que pode desfrutar o bendito sentimento de íntimo parentesco
enquanto está vivendo em habitual descuido dos mandamentos de nosso Senhor,
está a alimentar uma ilusão miserável e dolorosa. "Se guardardes os meus
mandamentos, permanecereis no meu amor." Este é o ponto importante.
Consideremo-lo atentamente. "Se me amardes, guardareis os meus
mandamentos."— "Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos
céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está no céus." — "Porquanto
qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha
mãe."— "A circuncisão é nada, e a incircuncisão nada é, mas, sim, a observância
dos mandamentos de Deus" (1 Co 7:19).
Estas são palavras oportunas nestes dias de indolência, de condescendência e
profissão mundana. Queira Deus que penetrem em nossos ouvidos e nossos
corações! Que elas possam tomar plena posse de todo o nosso ser moral e produzir
fruto na nossa vida diária. Estamos convencidos da necessidade de atender a este
lado prático das coisas. Corremos o perigo, enquanto tratamos de evitar tudo que
possa parecer legalismo, de cair no extremo oposto de relaxamento carnal. As
passagens da Sagrada Escritura que acabamos de citar—e só apenas algumas de
entre muitas—proporcionam a divina salvaguarda contra estes perniciosos erros
mortais. É uma verdade bendita que somos trazidos para o santo parentesco de
filhos pela graça soberana de Deus, mediante o poder da Sua Palavra e do Seu
Espírito. Este só fato arranca a raiz do pernicioso joio do legalismo.
Mas, por outro lado, o parentesco tem certamente a sua própria feição, os seus
deveres e as suas responsabilidades, cujo devido reconhecimento proporciona o
verdadeiro remédio para o terrível mal do relaxamento carnal tão preponderante
em toda a parte. Se somos libertados das obras da lei—como, graças a Deus,
estamos, se somos verdadeiros cristãos—não é para sermos inúteis, amantes do
ego, mas para que?s obras da fé sejam manifestadas em nós, para glória d'Aquele,
Cujo nome trazemos sobre nós, de Quem somos, e a Quem estamos obrigados, por
todas as razões, a amar, obedecer e servir.
Procuremos, prezado leitor, aplicar sinceramente os nossos corações a esta
linha prática de coisas. Somos chamados terminantemente a proceder assim, e
podemos contar inteiramente com a graça de nosso Senhor Jesus Cristo para nos
habilitar a responder à chamada, apesar das milhentas dificuldades e obstáculos
que se opõem no nosso caminho! Ah! Suspiremos por uma obra de graça mais
profunda em nossas almas, por conduta mais íntima com Deus, por um mais claro
discipulado! Entreguemo-nos com ardor à prossecução destas coisas!

A Raiz que Produz Fel e Absinto


Devemos prosseguir agora com o apelo solene do legislador. Adverte o povo a
tomar cuidado. "Para que entre vós não haja homem, nem mulher, nem família,
nem tribo cujo coração hoje se desvie do SENHOR , nosso Deus, e vá servir aos
deuses destas nações; para que entre vós não haja raiz que dê fel e absinto":
Nenhuma raiz de amargura!
O apóstolo inspirado faz referência a estas palavras na sua epístola aos Hebreus
de uma maneira enfática. "Tende cuidado de que ninguém se prive da graça de
Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela
muitos se contaminem" (Hb 12:15).
Que graves palavras! Quão plenas de salutar admoestação e advertência!
Mostram a solene responsabilidade de todos os cristãos. Somos todos convidados a
exercer um santo, cioso, piedoso cuidado uns sobre os outros, o qual, infelizmente,
é pouco compreendido ou reconhecido. Não somos todos chamados para sermos
pastores ou ensinadores. A passagem que acabamos de citar não diz respeito de um
modo especial aos tais. Diz respeito a todos os crentes, e nós somos obrigados a
prestar-lhe atenção. Ouvimos queixas por toda a parte de triste falta de cuidados
pastorais. Sem dúvida, há uma grande falta de verdadeiros pastores na Igreja de
Deus, assim como há de todos os outros dons. Isto é apenas o que podíamos
esperar. Como poderia ser de outra forma? Como poderíamos nós esperar uma
profusão de dons espirituais na nossa presente situação miserável? O Espírito está
entristecido e extinguido por meio das nossas lamentáveis divisões, da nossa
mundanidade e grosseira infidelidade. Devemos, então, estranhar a nossa
deplorável pobreza?
Mas nosso bendito Senhor é cheio de graça e terna compaixão para conosco, no
meio da nossa ruína e desolação espiritual; e se tão- somente nós nos humilharmos
sob a Sua poderosa mão, Ele nos levantará bondosamente, e nos habilitará, de
muitos modos, a enfrentar a deficiência de dons pastorais entre nós. Podíamos, por
Sua preciosa graça, olhar, mais diligente e ternamente, uns pelos outros, e procurar
o progresso espiritual e a prosperidade dos outros de mil maneiras.
Não julgue o leitor, nem por um momento, que pretendemos dar o mínimo
apoio à curiosidade impertinente dos crentes. Longe de nós tal pensamento!
Consideramos tais coisas como absolutamente insuportáveis na Igreja de Deus.
Encontram-se em oposição àquele amoroso, santo, terno e diligente cuidado
pastoral de que falamos, e pelo qual suspiramos.
Contudo, não acha o leitor que, enquanto nos afastamos o mais possível dos
males desprezíveis que temos já citado, podemos cultivar e exercer um interesse
amoroso no poder da oração uns pelos outros, e uma santa vigilância e cuidado que
poderiam evitar o crescimento de muita raiz de amargurai Não temos dúvidas a
esse respeito. É certo que não somos todos chamados para sermos pastores; e é
igualmente verdade que existe uma lamentável crise de pastores na Igreja de Deus.
Claro está que queremos dizer verdadeiros pastores—pastores dados pelo Cabeça
da Igreja — homens com o coração de pastor, e com reais dons e poder pastorais.
Tudo isto é incontestável, por esta mesma razão, deveria despertar os corações do
amado povo do Senhor em toda a parte para buscar d'Ele a graça a fim de poder em
exercer um cuidado temo,amoroso, fraternal uns para com os outros, que muito
poderia contribuir para suprir a falta de pastores entre nós. Uma coisa é certa, na
passagem já citada de Hebreus 12 nada é dito acerca de pastores. É simplesmente
uma comovedora exortação a todos os crentes a exercerem cuidado mútuo e a
vigiar contra a manifestação de qualquer raiz de amargura.
E, oh, como isto é necessário! Quão terríveis são tais raízes! Quão amargas!
Quão perniciosos são por vezes os seus rebentos! Que dano irreparável causam!
Quantos são contaminados por eles! Quantos laços preciosos de fraternidade têm
sido desfeitos, e quantos corações têm sido desapontados por elas! Sim, prezado
leitor, e quantas vezes nos temos sentido persuadidos de que um pouco de cuidado
pastoral ou simplesmente fraternal, um conselho piedoso ou afetivo poderia ter
destruído o gérmen do mal e deste modo evitado incalculável dano e sofrimento.
Possamos nós ter estas coisas bem presentes em nosso coração e buscar com ardor
graça para fazer tudo o que pudermos a fim de evitar que apareçam as raízes de
amargura e a difusão da sua influência corruptora!

Se Tal Raiz Brotar


Mas devemos escutar mais algumas palavras graves e perscrutadoras do amado
e venerado legislador. Dá-nos um quadro solene do fim daquele que causou a
aparição da raiz de amargura.
"E aconteça que, ouvindo as palavras desta maldição, se abençoe no seu
coração, dizendo: Terei paz, ainda que ande conforme ao bom parecer do meu
coração: para acrescentar à sede a bebedice." Fatal ilusão! Clamar paz, paz, quando
não há paz, mas ira iminente e juízo. "O SENHOR não lhe quererá perdoar; mas,
então, fumegará a ira do SENHOR e o seu zelo sobre o tal homem, e" — em vez da
paz que em vão prometeu a si próprio — "toda maldição escrita neste livro jazerá
sobre ele; e o SENHOR apagará o seu nome de debaixo do céu." Terrível advertência
para todos os que atuam como raízes de amargura no meio do povo de Deus e para
todos aqueles que lhes dão apoio!
"E o SENHOR O separará, para mal, de todas as tribos de Israel, conforme todas as
maldições do concerto escrito no livro desta Lei. Então, dirá a geração vindoura, os
vossos filhos, que se levantarem depois de vós, e o estranho, que virá de terras
remotas, vendo as pragas desta terra, e as suas doenças, com que o Senhor a terá
afligido, e toda a sua terra abrasada com enxofre e sal, de sorte que não será
semeada e nada produzirá, nem nela crescerá erva alguma, assim como foi a
destruição de Sodoma e Gomorra, de Admá e de Zeboim, que o SENHOR destruiu na
sua ira e no seu furor" — exemplos aterradores dos atos do governo do Deus vivo,
que deveriam falar com voz de trovão aos ouvidos de todos os que convertem a
graça do nosso Deus em dissolução e negam o SENHOR que os adquiriu! "E todas as
nações dirão: Por que fez o SENHOR assim com esta terral Qual foi a causa do furor
desta tão grande ira? Então, se dirá: Porque deixaram o concerto do SENHOR, O
Deus de seus pais, que com eles tinha feito, quando os tirou do Egito, e foram-se, e
serviram a outros deuses, e se inclinaram diante deles; deuses que os não
conheceram, e nenhum dos quais ele lhes tinha dado. Pelo que a ira do SENHOR se
acendeu contra esta terra, para trazer sobre ela toda maldição que está escrita neste
livro. E o SENHOR os tirou da sua terra, com ira, e com indignação, e com grande
furor e os lançou em outra terra como neste dia se vê" (versículos 19 a 28).
Como tudo isto é solene! Que poderosa ilustração das palavras do apóstolo:
"Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (Hb. 10:31)! "O nosso Deus é um
fogo consumidor!" Quão importante seria que a igreja professante prestasse
atenção a estas notas de advertência! Com certeza, ela é convidada a aprender
muito com a história dos atos de Deus com o Seu povo de Israel; Romanos 11 é
perfeitamente claro a este respeito. O apóstolo, falando do juízo divino sobre os
ramos incrédulos da oliveira, faz o seguinte apelo à cristandade: "E se alguns dos
ramos forem quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado em lugar deles e
feito participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos; e, se
contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti. Dirás, pois: Os
ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Está bem! Pela sua
incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé: ENTÃO, NÃO TE
ENSOBERBEÇAS, MAS TEME. Porque se Deus não poupou os ramos naturais,
teme que te não poupe a ti também. Considera, pois, a bondade e a severidade de
Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a benignidade de
Deus, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira, também tu serás
cortado" (versículos 17 a 22).
Ah! A igreja professante não tem permanecido na benignidade de Deus! E
impossível ler a sua história, à luz da Escritura, e não ver isto. Afastou-se,
gravemente, e nada resta diante dela senão a ira do Deus Todo-poderoso. Os
amados membros do corpo de Cristo, que, é triste dizê-lo, estão misturados com a
terrível massa da profissão corrupta, serão tirados dela e levados para o lugar
preparado na casa do Pai no céu. Então, se não antes, reconhecerão quão culpados
eram em permanecer em ligação com o que estava em oposição flagrante com a
mente de Cristo segundo é revelada com clareza e simplicidade divina nas Sagradas
Escrituras.
Mas quanto à grande massa conhecida como a cristandade será vomitada e
cortada. Será abandonada à operação do erro, para que creiam a mentira, "para que
sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na
iniqüidade."
Tremendas palavras! Possam elas ressoar aos ouvidos e penetrar nos corações
de milhares que continuam dia após dia, semana após semana, e ano após ano,
contentes em viver com um simples nome, uma forma de piedade mas negando a
eficácia dela: "Mais amigos dos deleites do que amigos de Deus" (2 Tm 3:4). Que
terrível quadro gráfico da assim chamada Inglaterra cristã! Quão aterrador o estado
e destino dos milhares que vão em busca de prazeres, que se precipitam cega,
negligente e loucamente no plano inclinado que conduz à desesperada e eterna
miséria! Que Deus, em Sua infinita bondade, pelo poder do Seu Espírito e a ação
poderosa da Sua Palavra, desperte os corações do Seu povo em toda a parte a um
sentimento mais profundo e influente destas coisas!

As Coisas Encobertas e as Coisas Reveladas


Devemos agora, antes de terminar esta parte, chamar rapidamente a atenção
para o último versículo do nosso capítulo. E uma daquelas passagens da Escritura
desgraçadamente mal compreendidas e mal aplicadas. "As coisas encobertas são
para o SENHOR, nosso Deus; porém as reveladas são para nós e para nossos filhos,
para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei" (versículo 29). Este
versículo é constantemente empregado para impedir o progresso das almas no
conhecimento das "coisas profundas de Deus"; porém o seu significado é
simplesmente este: as coisas "reveladas" são as que temos tido perante nós no
capítulo precedente deste livro; e, por outro lado, as coisas "encobertas" dizem
respeito àqueles recursos de graça que Deus tinha em reserva para serem revelados
quando o povo houvesse fracassado por completo em cumprir "todas as palavras da
lei". As coisas reveladas são o que Israel deveria ter feito, mas não fez; as coisas
encobertas são o que Deus havia de fazer, apesar do fracasso triste e vergonhoso de
Israel, e são apresentadas de uma forma bendita nos capítulos seguintes—os
desígnios da graça divina, as provisões de soberana misericórdia a serem
manifestadas quando Israel tiver plenamente aprendido a lição do seu completo
fracasso sob os dois concertos de Moabe e de Horebe.
Deste modo, esta passagem, quando convenientemente compreendida, longe
de se prestar como apoio ao emprego que dela se faz constantemente, estimula o
coração a investigar estas coisas que, embora "encobertas" para Israel, nas planícies
de Moabe, são plana e claramente "reveladas" para nosso proveito, consolação e
edificação (1). O Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes a fim de guiar os
discípulos em toda a verdade. O cânone da Escritura está completo; todos os
propósitos e desígnios de Deus estão plenamente revelados. O mistério da Igreja
completa o círculo da verdade divina. O apóstolo João podia dizer a todos os
filhinhos: "E vós tendes a unção do santo, e sabeis tudo."
__________
(1) 1 Coríntios 2:9 é outra das passagens mal compreendidas e mal aplicadas. "Mas, como está escrito,
as coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus
preparou para os que o amam". Aqui as pessoas certamente se detêm e por isso concluem que não
podemos, de modo algum, saber nada das coisas preciosas que Deus tem reservadas para nós. Porém, o
próprio versículo seguinte prova o absurdo de tal conclusão. "Mas Deus no-las revelou pelo seu Espírito;
porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as
coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de
Deus, senão o Espírito de Deus. Mas nós" — isto é, o povo do Senhor — "não recebemos o espírito do
mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado
gratuitamente por Deus." De modo que tanto esta passagem como a de Deuteronômio 29:29 ensinam
precisamente o contrário do que constantemente se deduz delas. Quão importante é examinar e pesar o
contexto das passagens que são citadas!

Assim todo o Novo Testamento abunda em evidência para provar o uso errado
que constantemente se faz de Deuteronômio 29:29. Alargamo-nos sobre este
ponto porque estamos ao fato do modo como o povo de Deus é infelizmente
impedido por ele no seu conhecimento divino. O inimigo procura sempre
mantê-los nas trevas, quando deveriam andar à luz da revelação
divina—mantê-los como meninos que se alimentam de leite, quando deveriam,
como os que "têm idade", alimentar-se com "alimento sólido", tão liberalmente
provido para a Igreja de Deus. Fazemos apenas uma pequena idéia de como o
Espírito de Deus é entristecido e Cristo desonrado pelo fraco estado de coisas entre
nós. Quão poucos realmente conhecem as coisas que, liberalmente, nos são dadas
por Deus! Onde vemos que os próprios privilégios do cristão sejam compreendidos,
cridos e postos em prática?- Quão pobre é a nossa compreensão das cosias divinas!
Quão enfezado o nosso crescimento! Quão débil a nossa exposição prática da
verdade de Deus! Que carta de Cristo mais manchada apresentamos!
Prezado leitor crente, ponderemos seriamente estas coisas na presença divina.
Procuremos honestamente a raiz de todo este lamentável fracasso, julguemo-lo e
tiremo-lo a fim de podermos fielmente declarar de quem somos e a quem
servimos. Possamos nós mostrar mais claramente que Cristo é o nosso absorvente
objetivo!
CAPÍTULO 30

AS COISAS SECRETAS PERTENCEM AO SENHOR

Um Povo Restaurado, Convertido e Bendito


Este capítulo é de profundo interesse e grande importância. É um capítulo
profético e apresenta-nos "as coisas ocultas" a que nos referimos no final do
capítulo precedente. Descobre alguns daqueles preciosos recursos da graça
guardados no coração de Deus para serem manifestados quando Israel, havendo
fracassado completamente no cumprimento da lei, fosse espalhado até aos confins
da terra.
"E será que, sobrevindo-te todas estas coisas, a bênção ou a maldição, que
tenho posto diante de ti, e te recordares delas entre todas as nações, para onde te
lançar o SENHOR, teu Deus; e te converteres ao SENHOR , teu Deus, e deres ouvidos à
sua voz conforme tudo o que eu te ordeno hoje, tu e teus filhos, com todo o teu
coração e com toda a tua alma; então, o SENHOR, teu Deus, te fará voltar do teu
cativeiro, e se apiedará de ti, e tornará a ajuntar-te dentre todas as nações entre as
quais te espalhou o SENHOR, teu Deus."
Quão comovedor e quão belo é tudo isto! Já se não trata de guardar a lei, mas de
alguma coisa muito mais profunda, muito mais preciosa; é a mudança de
coração—de todo o coração, de toda a alma ao Senhor, numa época em que a
obediência literal à lei é de todo impossível. E o coração contrito que se volta para
Deus, e Deus, em profunda e terna compaixão, vai ao encontro desse coração. Isto
é verdadeira felicidade em todo tempo e em todo lugar. E alguma coisa que
sobrepuja todos os atos e meios de dispensação. E Deus mesmo em toda a plenitude
e inefável bem- aventurança do que Ele é, recebendo uma alma que se arrepende; e
nós podemos verdadeiramente dizer que quando estes dois se encontram tudo fica
divina e eternamente resolvido. O leitor deve compreender claramente que aquilo
que temos agora diante de nós está tão distante do cumprimento da lei e da justiça
humana como o céu está da terra. O primeiro versículo deste capítulo prova, da
maneira mais clara possível, que o povo é considerado como num estado em que o
cumprimento das ordenações da lei é simplesmente impossível. Mas, bendito seja
Deus, não existe um ponto na superfície da terra, por mais remoto que seja, do qual
o coração não possa voltar-se para Deus. As mãos poderiam ser incapazes de
apresentar uma vítima para o altar; os pés poderiam não conseguir chegar ao lugar
designado para o culto; mas o coração podia encaminhar-se para Deus. Sim; o
pobre coração abalado, oprimido e contrito, podia dirigir-se diretamente a Deus, e
Deus, em sua profunda compaixão e terna misericórdia, podia sair ao seu encontro,
tratar das suas feridas e enchê-lo até transbordar do rico conforto e consolação do
Seu amor e pleno gozo da Sua salvação.
Mas continuemos a escutar essas "coisas encobertas" que "são para o SENHOR,
nosso Deus" — coisas preciosas além de toda a imaginação. "Ainda que os teus
desterrados estejam para a extremidade do céu"—tão longe quanto pudessem
expor-se—"desde ali te ajuntará o SENHOR, teu Deus, e te tomará dali. E o SENHOR,
teu Deus, te trará à terra que teus país possuíram, e a possuirás; e te fará bem e te
multiplicará mais do que a teus pais."
Quão precioso é tudo isto! Mas existe ainda alguma coisa muito melhor. Não só
os a juntará, os tomará, e os multiplicará, não só agirá em poder a favor deles, mas
fará uma poderosa obra de graça neles muito mais valiosa do que qualquer
prosperidade visível, por mais desejável que seja. "E o SENHOR, teu Deus,
circuncidará o teu coração" — o próprio centro de todo o ser moral, a origem de
todas aquelas influências que formam o caráter—"e o coração de tua semente, para
amares ao SENHOR teu, Deus, com todo o coração"—o grande regulador moral de
toda a vida — "e com toda atua alma, para que vivas. E o SENHOR, teu Deus, porá
todas estas maldições sobre os teus inimigos e sobre os teus aborrecedores, que te
perseguiram" — palavras solenes para todas as nações que sempre têm procurado
oprimir os judeus! — "Converter-te-ás, pois, e darás ouvidos à voz do SENHOR; farás
todos os seus mandamentos, que hoje te ordeno" (versículos 6 a 8).
Nada pode ser moralmente mais encantador que isto. O povo ajuntado, trazido,
multiplicado, abençoado, de coração circuncidado, inteiramente dedicado ao
Senhor, e rendendo amorosa obediência a todos os Seus mandamentos! O que
poderia exceder isto em bênção para um povo na terral

A Palavra está Perto de Ti


"E o SENHOR, teu Deus, te dará abundância em toda obra das tuas mãos, no
fruto do teu ventre, e no fruto dos teus animais, e no fruto da tua terra para bem;
porquanto o SENHOR tornará a alegrar-se em ti para bem, como se alegrou em teus
pais; quando deres ouvidos à voz do SENHOR, teu Deus, guardando os seus
mandamentos e os seus estatutos, escritos neste livro da Lei, quando te converteres
ao SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma. Porque este
mandamento, que hoje te ordeno, te não é encoberto e tampouco está longe de ti.
Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga e
no-lo faça ouvir, para que o façamos? Nem tampouco está além do mar, para
dizeres: Quem passará por nós dalém do mar, para que no-lo traga e no-lo faça
ouvir, para que o façamos? Porque esta palavra está muito perto de ti, na tua boca e
no teu coração, para a fazeres."
Esta passagem é particularmente interessante. Proporciona a chave das "coisas
encobertas" já mencionadas, e expõe os grandes princípios da justiça divina em
vivido e formoso contraste com a justiça que é da lei em todos os aspectos possíveis.
Segundo a verdade aqui exposta não importa, de modo nenhum, que a alma esteja
aqui, ali ou em qualquer outro sítio. "Esta palavra está mui perto de ti." Não
poderia estar mais perto. Como poderia estar mais perto do que "na tua boca e no
teu coração?-" Não precisamos, por assim dizer, movimentar um músculo para a
obter. Se estivesse acima de nós ou fora do nosso alcance, teríamos razão para
lamentar a impossibilidade de a alcançarmos. Mas não; não há necessidade das
mãos ou dos pés nesta bendita e importante questão. O coração e a boca são postos
aqui em ação.
Existe uma encantadora alusão à passagem citada no capítulo 10 da epístola aos
Romanos, à qual o leitor pode recorrer com muito proveito. Com efeito, está tão
repleta de doçura evangélica que devemos reproduzi-la.
"Irmãos, o bom desejo do meu coração e a oração a Deus por Israel é para sua
salvação. Porque lhes dou testemunho de que têm zelo de Deus, mas não com
entendimento. Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus e procurando
estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque o fim
da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê" — não diz para todo aquele que
diz que crê, como em Tiago 2:14 — "Ora, Moisés descreve a justiça que é pela lei,
dizendo: O homem que fizer estas coisas viverá por elas. Mas a justiça que é pela fé
diz assim: Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu (isto é, a trazer do alto a
Cristo) V Notável parêntesis! Exemplo maravilhoso de como o Espírito emprega a
Escritura do Velho Testamento! Tem o selo distinto da Sua mão—"Ou: Quem
descerá ao abismo (isto é, a tornar a trazer dentre os mortos a Cristo)? Mas que diz?
A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra de fé, que
pregamos." — Quão perfeita é a adição! Quem, senão o Espírito, poderia
proporcioná-la? "A saber: Se, com a tua boca, confessares ao Senhor Jesus e, em teu
coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo. Visto que com o
coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação. Porque a
Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido."
Note-se esta formosa expressão: "todo aquele". E certo que inclui também os
judeus. Aplica-se-lhes onde quer que possam estar, pobres no exílio, nos confins da
terra, em circunstâncias sob as quais a obediência à lei, com efeito, era de todo
impossível; mas em que a rica e preciosa graça de Deus e a Sua gloriosa salvação
podem alcançá-los, na sua grande necessidade. Ali, embora não podendo cumprir a
lei, podem confessar com a sua boca o Senhor Jesus e crer em seu coração que Deus
o ressuscitou dos mortos: e isto é salvação.
Por outro lado, se é "todo aquele" não pode limitar-se de modo algum aos
judeus; ou antes, não pode ser limitada; e por isso o apóstolo continua a dizer:
"Porquanto não há diferença entre judeu e grego." Existia a maior diferença
possível sob a lei. Não poderia existir uma linha mais ampla ou mais clara de
demarcação do que aquela que o legislador havia traçado entre o judeu e o grego;
mas essa linha é suprimida, por duas razões: primeira, "porque todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus" (Rm. 3.23); segunda, "porque um mesmo é o
Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo."
Como tudo é bem-aventuradamente simples! "Invocar", "crer", "confessar"!
Nada pode exceder a graça transcendente que resplandece nestas palavras.
Decerto, supõe-se que a alma está realmente a proceder com sinceridade, que o
coração está ocupado. Deus trata com realidades morais. Não se trata de uma
crença nominal, nacional ou intelectual; mas de fé divina dada ao coração pelo
Espírito Santo — uma fé viva que liga a alma a Cristo de um modo divino e por
meio de um laço eterno.
Em seguida vem a confissão do Senhor Jesus com a boca. Isto é de grande
importância. Um homem pode dizer: "Creio em meu coração, mas não sou dos que
fazem ostentação da sua crença religiosa. Não sou um palrador. Guardo a minha
religião para mim próprio. E uma questão inteiramente entre Deus e a minha alma;
não creio nessa perpétua intromissão dos nossos sentimentos religiosos na vida dos
outros. Muitos dos que falam e proclamam a sua religião em público fazem uma
triste figura na vida privada, e eu não quero certamente ser incluído no número
deles. Detesto por completo todo o fingimento. Obras, não palavras, eis o que
importa."
Tudo isto parece muito aceitável; mas não pode subsistir à luz de Romanos 10:9.
Tem de haver confissão com a boca. Muitos querem ser salvos por Cristo, mas
hesitam ante o opróbrio de confessar o Seu precioso nome. Querem chegar ao céu
quando morrerem, mas não querem ser identificados com um Cristo rejeitado. Mas
Deus não reconhece os tais. Espera a completa, destemida e clara confissão de
Cristo perante o mundo hostil.
Nosso Senhor Jesus Cristo espera também esta confissão. Declara que aquele
que o confessar diante dos homens, Ele também o declarará diante dos anjos de
Deus; mas que aquele que o negar diante dos homens, Ele o negará também diante
dos anjos de Deus. O malfeitor na cruz mostrou os dois grandes aspectos da
verdadeira fé para a salvação. Creu com o seu coração e confessou com a sua boca.
Pelo contrário, mostrou uma plena contradição a todo o mundo sobre a questão
vital que jamais foi ou poderá ser levantada, e essa questão é Cristo. Foi claramente
um decidido discípulo de Cristo. Oh, se houvesse muitos mais como ele! Existe
muita indiferença e fria profissão na igreja professante, a qual entristece o Espírito
Santo, ofende a Cristo e é horrenda para Deus. Anelamos uma decisão intrépida,
um testemunho vivo e inconfundível do Senhor Jesus. Que o Espírito Santo
desperte os nossos corações e nos conduza, em mais completa consagração de alma,
Aquele bendito Senhor que deu a Sua vida para nos salvar das chamas eternas!
Vamos terminar este capítulo citando os versículos em que Moisés faz um
apelo especialmente solene aos corações e consciências do povo. Trata-se de uma
poderosa palavra de exortação.
"Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, que te tenho proposto
a vida e a morte, a bênção e a maldição." Assim é sempre como governo de Deus.
As duas coisas estão inseparavelmente unidas. Que ninguém se atreva a desfazer o
laço que as une. Deus "recompensará cada um segundo as suas obras, a saber: a vida
eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram glória, e honra, e
incorrupção; mas indignação e ira aos que são contenciosos e desobedientes à
verdade e obedientes à iniqüidade; tribulação e angústia sobre toda alma do
homem que faz o mal; primeiramente do judeu e também do grego; glória, porém,
e honra e paz a qualquer que faz o bem, primeiramente ao judeu e também ao
grego; porque, para com Deus, não há acepção de pessoas" (Rm 2:6-11).
O apóstolo não entra, nesta passagem prática, na questão do poder; expõe
simplesmente o fato — um fato aplicável a todos os tempos e sob todas as
dispensações do governo, da lei e do cristianismo; é sempre certo que Deus
"recompensará a cada um segundo as suas obras." Isto é de grande importância.
Tenhamos isto sempre presente em nossas mentes. Pode dizer-se talvez: "Não estão
os cristãos debaixo da graça«?-" Sim, graças a Deus, mas isto não enfraquece, de
modo nenhum, o grande princípio de administração acima referido. Antes o
fortalece e confirma grandemente.
Mas, pode dizer-se: "Pode uma pessoa inconvertida fazer bem? A nossa
resposta é que esta questão não é levantada na passagem reproduzida. Todo aquele
que é ensinado de Deus sabe, sente e reconhece, que nenhum "bem" foi jamais
feito neste mundo senão pela graça de Deus; que o homem entregue a si mesmo
fará somente mal continuamente. "Toda boa dádiva e todo dom perfeito vem do
alto, descendo do Pai das luzes" (Tg 1:17). Tudo isto é verdadeiro e reconhecido
com gratidão por toda a alma piedosa; mas deixa de pé o fato exposto em
Deuteronômio 30 e confirmado em Romanos 2, que a vida e a morte, a bênção e a
maldição estão unidas por um elo inquebrável. Nunca o esqueçamos! Que fique
para sempre em nossos corações!
"Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, a morte e o mal; porquanto te
ordeno, hoje, que ames ao SENHOR , teu Deus, que andes nos seus caminhos e que
guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas, e
te multipliques, e o SENHOR , teu Deus, te abençoe na terra, a qual passas a possuir.
Porém, se o teu coração se desviar, e não quiseres dar ouvidos, e fores seduzido
para te inclinares a outros deuses, e os servires, então, eu te anuncio, hoje, que,
certamente, perecerás; não prolongarás os dias na terra a que vais, passando o
Jordão, para que, entrando nela, a possuas, céus e a terra tomo, hoje, por
testemunhas contra ti, que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a
maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente, amando ao
SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e te achegando a ele;" — a coisa mais
importante e essencial para cada um de nós, a própria origem do poder e de toda a
verdadeira religião, em todos os tempos, e em toda a parte—"pois ele é a tua vida e
a lonjura dos teus dias"—Como isto é essencial! Verdadeiro! Preciso! E terminante!
— "para que fiques na terra que o SENHOR jurou a teus pais, a Abraão, a Isaque, e a
Jacó, que lhes havia de dar" (versículos 15 a 20).
Nada pode ser mais solene que este apelo final à congregação: está de perfeita
harmonia com o tom e o caráter de todo o livro de Deuteronômio—um livro
inteiramente marcado pelas mais poderosas exortações que jamais soaram a
ouvidos humanos. Não encontramos apelos tão comovedores em qualquer das
precedentes partes do Pentateuco. Cada livro, desnecessário é dizê-lo, tem o seu
próprio lugar a preencher, o seu próprio objetivo e distinto caráter; mas a grande
ansiedade em Deuteronômio, desde o princípio ao fim, é a exortação; a sua tese, a
Palavra de Deus; o seu objetivo, a obediência — obediência amorosa, sincera, de
todo o coração — baseada num parentesco conhecido e privilégios desfrutados.
CAPÍTULO 31

AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE MOISÉS A ISRAEL

Ternura e Cuidado
O coração de Moisés ainda bate com profunda ternura e solicitude pela
congregação. Parece que nunca poderia cansar-se de derramar em seus ouvidos as
suas ardentes exortações. Sentia a necessidade delas; previu o seu perigo; e, como
pastor fiel e verdadeiro, procurou prepará-los com toda a ternura e profunda
compaixão da sua alma para o que os esperava. Ninguém pode ler as suas últimas
palavras sem se sentir comovido com o seu tom de peculiar solenidade.
Recordam-nos a despedida emocionante de Paulo aos anciãos de Éfeso. Ambos
estes amados e honrados servos compreenderam, de um modo vívido, a gravidade
da situação em que estavam, tanto eles como aqueles a quem se dirigiam. Deram-se
conta da gravidade dos interesses que estavam em causa e da necessidade urgente
de tratar com fidelidade com o coração e a consciência. Isto explica a terrível
solenidade dos seus apelos. Todo aquele que realmente se interessa pela situação e
destino do povo de Deus, num mundo como este, deve revestir-se de seriedade. O
verdadeiro sentido destas coisas, a compreensão delas na presença divina, deve,
necessariamente, comunicar uma santa gravidade ao caráter e um especial poder
ao testemunho.
"Depois, foi Moisés, e falou estas palavras a todo o Israel, e disse- lhes: Da idade
de cento e vinte anos sou eu hoje; já não poderei mais sair e entrar; além disso, o
SENHOR me disse: Não passarás o Jordão." Que comovente alusão à sua avançada
idade e à renovada e final referência ao tratamento do governo de Deus a respeito
de si mesmo! O objetivo imediato e claro de ambas as alusões era que o seu apelo
produzisse efeito nos corações e consciências do povo — reforçar a alavanca moral
com que procurava movê-los na direção de simples obediência. Se faz alusão aos
seus cabelos brancos ou à santa disciplina exercida sobre ele não é, certamente,
com o propósito de se exibir, ou expor as suas circunstâncias ou os seus
sentimentos ante o povo, mas simplesmente com o fim de tocar os mais íntimos
recônditos do seu ser moral por todos os meios possíveis.
"O SENHOR, teu Deus, passará diante de ti; ele destruirá estas nações diante de
ti, para que as possuas: Josué passará diante de ti, como o SENHOR tem dito. E o
SENHOR lhes fará como fez a Seom e a Ogue, reis dos amorreus, e à sua terra, os
quais destruiu. Quando, pois, o SENHOR vo-los der diante de vós, então, com eles
fareis conforme todo o mandamento que vos tenho ordenado." Nem uma palavra
de murmuração ou de queixa quanto ao que lhe tocava; nem a mais pequena
sombra de inveja ou ciúme com respeito àquele que devia ocupar o seu posto; não
há a mais leve aparência de nada disto; toda a consideração própria se acha
absorvida pelo grande propósito de animar os corações do povo a trilharem, com
passo firme, a senda da obediência que era então, como é agora, e sempre será, o
caminho da vitória, a vereda da bênção, a carreira da paz.
"Esforçai-vos, e animai-vos; não temais, nem vos espanteis diante deles, porque
o SENHOR, teu Deus, é O que vai convosco; não vos deixará nem vos desamparará."
Que palavras preciosas e animadoras, prezado leitor! Como estão eminentemente
calculadas para elevar o coração acima de toda a influência deprimente! O bendito
conhecimento da presença do Senhor e a recordação dos Seus atos de graça
conosco em dias passados hão de constituir sempre o verdadeiro segredo do nosso
avanço. A mesma mão poderosa que havia subjugado perante eles Seom e Ogue
podia subjugar todos os reis de Canaã. Os amorreus eram tão formidáveis como os
cananeus; o Senhor podia vencer a todos. "Ó Deus, nós ouvimos com os nossos
ouvidos, e nossos pais nos têm contado os feitos que realizaste em seus dias, nos
tempos da antiguidade. Como expeliste as nações com a tua mão e aos nossos pais
plantastes; como afligiste os povos aos nossos pais os alargaste" (SI 44:1 e 2).
Pense-se em Deus expelindo nações com Sua própria mão! Que resposta a
todos os argumentos e dificuldades de um sentimentalismo mórbido! Quão
superficiais e errôneos são os pensamentos de alguns a respeito dos atos
governamentais de Deus! Quão mesquinhos os conceitos do Seu caráter e dos Seus
atos! Quão absurdo o intento de julgar Deus pelo padrão do juízo e do sentimento
humano! É evidente que Moisés não simpatizava, de modo nenhum, com tais
sentimentos quando dirigiu à congregação de Israel a magnificente exortação
acima citada. Conhecia alguma coisa da gravidade e solenidade do governo de
Deus, alguma coisa da bem-aventurança de O ter por escudo no dia da batalha, um
refúgio e recurso em todas as horas de perigo e necessidade.

Josué é Chamado
Escutemos as palavras animadoras que ele dirigiu ao homem que devia ser o
seu sucessor. "E chamou Moisés a Josué e lhe disse aos olhos de todo o Israel:
Esforça-te e anima-te, porque com este povo entrarás na terra que o SENHOR jurou
a teus pais lhes dar; e tu os farás herdá-la. O SENHOR ,pois, é aquele que vai diante
de ti; ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te
espantes" (versículos 7 e 8).
Josué tinha necessidade de uma palavra para si mesmo, como aquele que era
chamado a ocupar um lugar preeminente e elevado na congregação. Mas a palavra
a si dirigida expressa a mesma preciosa verdade dirigida a toda a assembléia. E-lhe
prometida a presença e o poder divinos. Isto é bastante para todos: para Josué como
para o mais obscuro membro da assembléia. Sim, prezado leitor, é bastante para ti,
quem quer que sejas, ou qualquer que seja a tua esfera de ação. Não importa quais
sejam as dificuldades ou perigos que possam apresentar-se diante de nós, o nosso
Deus é amplamente suficiente para tudo. Contanto que tenhamos o sentido da
presença do Senhor conosco e a autoridade da Sua Palavra para a obra em que
estamos ocupados, podemos avançar com alegre confiança, embora se levantem
milhentas dificuldades e influências hostis.

A Lei Escrita Dada aos Sacerdotes


"E Moisés escreveu esta Lei, e a deu aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam
a arca do concerto do SENHOR, e a todos os anciãos de Israel. E deu-lhes ordem
Moisés, dizendo: Ao fim de cada sete anos, no tempo determinado do ano da
remissão, na Festa dos Tabernáculos, quando todo o Israel vier a comparecer
perante o SENHOR , teu Deus, no lugar que ele escolher, lerás esta Lei diante de todo
o Israel aos seus ouvidos. Ajunta o povo homens, e mulheres, e meninos, e os teus
estrangeiros que estão dentro das tuas portas, para que ouçam, e aprendam, e
temam ao SENHOR, VOSSO Deus, e tenham cuidado de fazer todas as palavras desta
Lei; e que seus filhos que a não souberem ouçam e aprendam a temer ao SENHOR,
vosso Deus, todos os dias que viverdes sobre a terra, a que ides, passando o Jordão,
para possuí-la" (versículos 9 a 13).
Na precedente passagem duas coisas chamam a nossa atenção; primeira, o fato
de que Javé dava a mais solene importância à reunião pública do Seu povo com o
propósito de ouvir a sua palavra. "Todo o Israel" —"homens, mulheres e
meninos"— com os estrangeiros que tivessem unido a sua sorte à deles, eram
convocados para, conjuntamente reunidos, ouvir e ler o livro da lei de Deus, a fim
de que todos pudessem aprender a Sua santa vontade, revelada do Senhor, para que
cada um pudesse conhecera sua solene responsabilidade.
E, segundo, temos de considerar o fato de que os meninos deviam reunir-se
perante o Senhor para escutar a Sua Palavra. Ambos estes fatos estão repletos de
instrução para todos os membros da Igreja de Deus—instrução aliás muito
necessária de todos os modos. Existe uma deplorável falta de respeito destes dois
pontos. Negligenciamos, de maneira triste, a nossa reunião como objetivo da
simples leitura das Sagradas Escrituras. Parece que não há suficiente atrativo na
Palavra de Deus para nos reunirmos. Há um desejo doentio por outras coisas;
oratória humana, música, excitação religiosa, de qualquer espécie, parece ser
necessária para que as pessoas se reúnam; qualquer coisa menos a preciosa Palavra
de Deus.
Dir-se-á talvez que as pessoas têm a Palavra de Deus em suas casas; que é tudo
muito diferente agora do que era nos dias de Israel; todos podem ler a Palavra de
Deus em casa, e já não existe a mesma necessidade de leitura pública. Um tal
argumento não pode resistir, nem um momento, à prova da verdade. Podemos
estar certos de que se a Palavra de Deus fosse estimada e apreciada e estudada em
particular e na família, seria também apreciada, estimada e estudada em público.
Sentiríamos alegria em nos reunirmos em redor da fonte da Sagrada Escritura, para
beber, em feliz comunhão, da água viva para nosso comum refrigério e bênção.
Mas não é assim. A Palavra de Deus não é amada e estudada em particular ou
em público. Devora-se em particular uma literatura suja; e a música, os serviços
religiosos e rituais e as cerimônias imponentes são procurados com verdadeiro afã
em público. Multidões correm a ouvir música e pagam a sua admissão nos lugares
onde ela é executada; mas muito poucos se preocupam com uma reunião para
leitura das Sagradas Escrituras! Estes são os fatos, e os fatos são poderosos
argumentos. Não podemos ignorá-los. Existe uma sede crescente de excitação
religiosa e um crescente fastio pelo estudo tranqüilo da Sagrada Escritura e os
exercícios espirituais da assembléia cristã. E inútil negar isto. Não podemos fechar
os olhos a este fato. A sua evidência vê-se por todos os lados.
Graças a Deus, há uns poucos, por aqui e por ali, que amam, realmente, a
Palavra de Deus, e se reúnem, em santa comunhão, para o estudo das suas verdades
preciosas. Que o Senhor aumente o seu número e os abençoe abundantemente!
Que a nossa sorte seja lançada com eles, "até que estejam terminados os dias da
nossa jornada!" Existe apenas um obscuro e débil remanescente em toda a parte;
mas que ama a Cristo e se apega à Sua Palavra; e o seu maior gozo consiste em se
reunirem para pensar, falar e cantar d'Ele. Que Deus os abençoe e os guarde! Que
Ele aprofunde a Sua preciosa obra em suas almas e os una mais intimamente a Si e
uns com os outros, e os prepare, deste modo, no estado dos seus afetos, para o
aparecimento da "Resplandecente Estrela da Manhã"!

O Anúncio do Fim de Moisés e do Futuro de Israel


Devemos agora prosseguir, por uns momentos, com os versículos finais do
nosso capítulo, nos quais Javé fala ao Seu amado e honrado servo em acentos de
profunda e comovedora solenidade a respeito da sua própria morte, e do obscuro e
triste futuro de Israel.
"E disse o SENHOR a Moisés: Eis que os teus dias são chegados, para que morras;
chama a Josué, e ponde-vos na tenda da congregação, para que eu lhe dê ordem.
Assim, foi Moisés e Josué, e se puderam na tenda da congregação. Então, o SENHOR
apareceu na tenda, na coluna de nuvem; e a coluna de nuvem estava sobre a porta
da tenda. E disse o SENHORA Moisés: Eis que dormirás com teus pais; e este povo se
levantará, e se prostituirá, indo após os deuses dos estranhos da terra para o meio
dos quais vai, e me deixará, e anulará o meu concerto que tenho feito com ele.
Assim, se acenderá a minha ira, naquele dia, contra ele, e desampará-lo-ei, e
esconderei o meu rosto deles para que seja devorado; e tantos males e angústias o
alcançarão, que dirá, naquele dia: Não me alcançaram estes males, por não estar
meu Deus no meio de mim ? Esconderei, pois, totalmente o meu rosto, naquele
dia, por todo o mal que tiver feito, por se haver tornado a outros deuses"
(versículos 14 a 18).
"As dores se multiplicarão àqueles que fazem oferendas a outro deus." Assim
diz o Espírito de Cristo em Salmo 16. Israel tem experimentado, experimenta e
experimentará ainda amplamente a verdade solene destas palavras. A sua história
no passado, a sua atual dispersão, a desolação e, além disso, "a grande tribulação"
por que terão ainda de passar, "no fim do tempo", tudo concorre para confirmar e
ilustrar a verdade de que o meio certo e seguro de multiplicar as nossas dores é
deixar o Senhor e confiar nos recursos de qualquer criatura. Esta é uma das muitas
e várias lições práticas que temos de aprender da história maravilhosa dos
descendentes de Abraão. Possamos nós aprendê-la eficientemente! Possamos nós
aprender a apegarmo-nos ao Senhor com propósito de coração e a abandonar, com
santa decisão, todos os outros objetos. Estamos convencidos de que isto é o único
caminho da verdadeira felicidade e paz. Possamos nós ser achados nele!

Escrevei este Cântico


"Agora, pois, escrevei-vos este cântico e ensinai-o aos filhos de
Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico me seja por testemunha
contra os filhos de Israel. Porque o meterei na terra que jurei a seus pais, a qual
mana leite e mel; e comerão, e se fartarão, e se engordarão: então, se tornarão a
outros deuses, e os servirão, e me irritarão, e anularão o meu concerto. E será que,
quando o alcançarem muitos males e angústias, então, este cântico responderá
contra eles por testemunha, pois não será esquecido da boca de sua semente; por-
quanto conheço a sua imaginação, o que eles fazem hoje, antes que os meta na
terra que tenho jurado" (versículos 19 a 21).
Quão profundamente comovedor e solene é tudo isto! Em vez de Israel ser um
testemunho do Senhor perante todas as nações, o cântico de Moisés devia ser um
testemunho do Senhor contra os filhos de Israel! Foram chamados para serem Suas
testemunhas; eram responsáveis por declarar o Seu nome e manifestar o Seu
louvor naquela terra que, em Sua fidelidade e graça soberana, Ele os havia
introduzido. Mas, ah, fracassaram completa e vergonhosamente! E, por isso, em
vista deste triste e humilhante fracasso, tinha de ser escrito um cântico, o qual, em
primeiro lugar, como veremos, mostra o estilo magnificente, a glória de Deus; e,
em segundo lugar, relata, em acentos de inflexível fidelidade, o deplorável fracasso
de Israel, em todas as épocas da sua história.
"Assim, Moisés escreveu este cântico naquele dia e o ensinou aos filhos de
Israel. E ordenou a Josué, filho de Num, e disse: Esforça- te e anima-te, porque tu
meterás os filhos de Israel na terra que lhes jurei; e eu serei contigo." Josué não
devia desanimar por causa do prognóstico da infidelidade do povo. Devia ser,
como o seu grande progenitor, forte na fé dando glória a Deus. Devia avançar com
alegre confiança, apoiando-se na Palavra do Senhor, o Deus do concerto com
Israel, sem se aterrorizar, de modo nenhum, com os seus adversários, mas, antes,
estar firme na preciosa segurança de que, por muito que a semente de Abraão
pudesse falhar em obedecer, e como conseqüência atrair o juízo sobre si mesmos,
todavia, o Deus de Abraão manteria e cumpriria infalivelmente a Sua promessa e
glorificaria o Seu nome na restauração final e bênção eterna do Seu povo
escolhido.
Tudo isto se destaca com invulgar brilho e poder no cântico de Moisés; e Josué
foi chamado para servir na fé disto mesmo. Devia fixar os seus olhos não sobre os
caminhos de Israel mas sobre a perpétua estabilidade do concerto divino com
Abraão. Devia conduzir Israel através do Jordão e estabelecer o povo naquela
formosa herança destinada para eles no propósito de Deus. Tivesse Josué ocupado a
sua mente com Israel, e teria largado a sua espada e desistido em desespero. Mas
não, tinha de animar-se no Senhor seu Deus, e servir na energia da fé que se
mantém como vendo Aquele que é invisível.
Fé preciosa, mantenedora da alma, que honra a Deus! Que o leitor, seja qual for
a sua esfera de ação ou modo de vida, possa compreender, no recôndito da sua
alma, o poder moral deste princípio divino! Que todo o amado filho de Deus e todo
o servo de Cristo o conheçam! É a única coisa que nos habilitará a lutar contra as
dificuldades, os obstáculos e influências hostis que nos rodeiam na cena pela qual
estamos passando e terminar a nossa carreira com alegria.

O Livro da Lei Posto ao Lado da Arca da Aliança


"E aconteceu que, acabando Moisés de escrever as palavras desta Lei num livro,
até de todo as acabar, deu ordem Moisés aos levitas que levaram a arca do concerto
do SENHOR, dizendo: Tomai este livro da Lei e ponde-o ao lado da arca do concerto
do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha contra ti. Porque
conheço a tua rebelião e a tua dura cerviz; eis que, vivendo eu ainda hoje
convosco, rebeldes fostes contra o SENHOR; e quanto mais depois da minha morte.
Ajuntai perante mim todos os anciãos das vossas tribos e os vossos oficiais, e aos
vossos ouvidos falarei estas palavras e contra eles por testemunhas tomarei os céus
e a terra. Porque eu sei que, depois da minha morte, certamente vos corrompereis
e vos desviareis do caminho que vos ordenei; então, este mal vos alcançará nos
últimos dias, quando fizerdes mal aos olhos do SENHOR, para o provocar à ira com a
obra das vossas mãos" (versículos 24 a 29).
Como somos forçados a recordar aqui as palavras de despedida de Paulo aos
anciãos de Éfeso! "Porque eu sei isto: que, depois da minha partida, entrarão no
meio de vós lobos cruéis, que não perdoarão o rebanho. E que de entre vós mesmos
se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após
si. Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, durante três anos, não cessei, noite e
dia, de admoestar, com lágrimas, a cada um de vós. Agora, pois, irmãos,
encomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça; a ele, que é poderoso para vos
edificar e dar herança entre todos os santificados" (At 20:29 - 32).
O homem é sempre o mesmo em toda a parte. A sua história é uma história de
manchas desde o princípio ao fim. Mas, ah, é um alívio e consolação para a alma
saber e recordar que Deus é sempre o mesmo e que "para sempre... a sua Palavra
permanece no céu! (SI 119:89). Estava oculta na arca do concerto e ali se
conservava intacta, apesar do doloroso pecado e loucura do povo. E isto que dá
doce descanso ao coração, em todo o tempo, em vista do fracasso humano e ruína
de tudo que é confiado às mãos do homem. "Para sempre, ó SENHOR, a tua palavra
permanece no céu"; e ao mesmo tempo que dá um verdadeiro e solene testemunho
contra o homem e os seus caminhos, faz penetrar também no coração a mais
preciosa e tranqüilizadora segurança de que Deus está acima de todo o pecado e
loucura do homem, que os Seus recursos são absolutamente inesgotáveis e que, em
breve, a Sua glória resplandecerá e encherá toda a cena. Que o Senhor seja louvado
por toda esta grande consolação!
— CAPÍTULO 32 —

O CÂNTICO DE MOISÉS

O Nome de Javé
"Então, Moisés falou as palavras deste cântico aos ouvidos de toda a
congregação de Israel, até se acabarem." Não será de mais dizer que uma das mais
sublimes e compreensíveis passagens do Volume divino está agora perante os
nossos olhos e que exige a nossa piedosa atenção. Compreende todo o curso dos
atos de Deus com Israel desde o princípio ao fim, e apresenta um relato muito
solene do seu pecado grave e da ira e juízo divinos. Mas, bendito seja Deus, começa
e termina com Ele; e isto é pleno da mais profunda e rica bênção para a alma. Se
não fosse assim, se tivéssemos apenas a história melancólica dos procedimentos
humanos, ficaríamos completamente oprimidos. Porém, neste magnífico cântico,
como de fato em todo o Volume, começamos com Deus e terminamos com Deus.
Isto dá uma bendita tranqüilidade ao espírito, e habilita-nos, em sossegada e santa
confiança, a prosseguir a história do homem, a ver como todas as coisas se
fragmentam em suas mãos e a ver os atos do inimigo em oposição aos desígnios e
propósitos de Deus. Podemos ver o completo fracasso e ruína da criatura, em todas
as suas formas, porque sabemos e estamos certos que Deus será Deus, apesar de
tudo. No fim Ele vencerá, e então tudo estará bem. Deus será tudo em todos, e não
haverá nem inimigo nem mal que possa opor-se em todo o vasto universo de
bênção do qual o nosso adorável Senhor Jesus Cristo será para sempre o centro
resplendoroso.
Mas devemos prosseguir com o cântico.
"Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei; e ouça a terra as palavras da minha boca."
O céu e a terra são convocados para ouvir esta magnificente efusão. O seu alcance é
medido com a sua grande importância moral. "Goteje a minha doutrina como a
chuva, destile o meu dito como o orvalho, como chuvisco sobre a erva e como
gotas de água sobre a relva. Porque apregoarei o nome do SENHOR; dai grandeza a
nosso Deus."
Eis aqui o sólido e imorredouro fundamento de tudo. Venha o que vier, o nome
do nosso Deus subsistirá para sempre. Nenhum poder da terra ou do inferno pode,
de modo algum, impedir os propósitos divinos ou deter o resplendor da glória
divina. Que suave repouso isto proporciona ao coração, no meio deste tenebroso,
triste e pecaminoso mundo, apesar do êxito aparente dos ardis do inimigo! O nosso
refúgio, o nosso recurso, ou doce alívio e consolação encontram-se no nome do
Senhor, nosso Deus, o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Na verdade, a
proclamação desse nome bendito será sempre como o orvalho e chuvisco sobre o
coração. Esta é, com efeito, a doutrina divina e celestial da qual a alma pode
alimentar- se e mediante a qual é sustentada em todos os tempos e em todas as
circunstâncias.

Ele é a Rocha e Sua Obra é Perfeita


"Ele é a Rocha " — não meramente uma rocha. Não há, não pode haver outra
rocha senão Ele mesmo. Eterna e universal homenagem ao Seu nome glorioso!
"Cuja obra é perfeita" —; não há nem um simples defeito em tudo quanto sai das
Suas benditas mãos; tudo leva o selo de absoluta perfeição. Isto será manifestado,
dentro em pouco, a todos os entes criados. E manifestado agora à fé, e é uma fonte
de consolação divina para todos os verdadeiros crentes. O simples pensamento
deste fato cai como orvalho sobre a alma sedenta. "Porque todos os seus caminhos
juízo são; Deus é a verdade, e não há nele injustiça; justo e reto é." Os incrédulos
podem escarnecer e servir-se de falsos argumentos; podem, em sua imaginária
sabedoria, procurar descobrir faltas nos atos divinos, mas a sua loucura será
manifestada a todos. "Sempre seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso;
como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras e venças quando fores
julgado" (Rm. 3:4). Deus há de prevalecer no fim. O homem deve ter cuidado com
a maneira como se atreve a pôr em dúvida os ditos e atos do único verdadeiro,
sábio e todo-poderoso Deus.
Existe qualquer coisa de extraordinariamente belo nas notas com que abre este
cântico. Proporciona um doce descanso ao coração saber que por muito que o
homem ou mesmo o povo de Deus possa falhar e cair em ruína, contudo nós temos
de tratar com Aquele que permanece fiel e não pode negar-Se a Si mesmo, cujos
caminhos são absolutamente perfeitos, e que, quando o inimigo tem feito tudo
quanto está ao seu alcance e levado todos os seus malignos desígnios ao auge, Se
glorificará a Si mesmo e trará universal e eterna bem-aventurança.
Decerto, tem de executar juízo sobre os caminhos do homem. É constrangido a
pegar na vara da disciplina e a usá-la, por vezes, com terrível severidade sobre o
Seu próprio povo. É absolutamente intolerante do mal naqueles que levam o Seu
santo nome. Tudo isto aparece perante nós com especial solenidade no cântico que
estamos a considerar. Os caminhos de Israel são expostos e tratados como
merecem; nada é passado por alto; tudo é exposto com santa precisão e fidelidade.
Assim lemos: "Corromperam-se contra ele; seus filhos eles não são, e a sua mancha
é deles; geração perversa e torcida é. Recompensais, assim, ao SENHOR, povo louco
e ignorante? Não é ele teu Pai, que te adquiriu, te fez e te estabeleceu"?
Eis a primeira nota de repreensão, neste cântico; mas mal acaba de soar aos
ouvidos logo é seguida do preciosíssimo testemunho da bondade, benignidade,
fidelidade e terna compaixão de Javé, o Eloim de Israel, e o Altíssimo ou Eliom de
toda a terra. "Lembra-te dos dias da antiguidade, atentai para os anos de muitas
gerações; pergunta a teu pai, e ele te informará, aos teus anciãos, e eles to dirão.
Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de
Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos, conforme o número dos filhos de
Israel."
Que fato glorioso é aqui apresentado à nossa vista! Um fato muito pouco
compreendido ou pouco tomado em conta pelas nações da terra. Quão pouco os
homens se apercebem de que, no estabelecimento original das fronteiras
nacionais, o Altíssimo teve em atenção direta "os filhos de Israel"! Contudo, assim
foi, e o leitor deveria procurar compreender este interessantíssimo fato. Quando
encaramos a geografia e a história do ponto de vista divino, vemos que Canaã e a
descendência de Jacó são o centro de Deus. Sim; Canaã, uma pequena faixa de
terra, situada ao longo da costa oriental do Mediterrâneo, com uma área de vinte e
nove mil quilômetros quadradas, um terço aproximadamente da superfície da
Irlanda, é o centro da geografia de Deus; e as doze tribos de Israel são o objetivo
central e histórico de Deus. Quão pouco têm pensado nisto os geógrafos e os
historiadores! Têm descrito países e escrito história de nações que, em extensão
geográfica e importância política, excedem muito a Palestina e o seu povo, segundo
o critério humano, mas que, no pensamento de Deus, são como nada comparadas
com aquela pequena faixa de terra a que Ele Se digna chamar Sua, e que é Seu
determinado propósito herdá-la por intermédio da semente de Abraão, Seu amigo
(1).

__________
(1)
Quão verdade é que os pensamentos de Deus não são os pensamentos humanos nem os seus caminhos
como os caminhos do homem! O homem atribui importância a territórios extensos, força material,
recursos pecuniários, exércitos bem disciplinados, esquadras poderosas. Deus, pelo contrário, não toma
tais coisas em consideração, são para Ele como o pó da balança. "Porventura, não sabeis? Porventura não
ouvis? Ou desde o princípio se vos não notificou isso mesmo? Ou não atentastes para os fundamentos da
terral Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores são para Ele como gafanhotos; Ele
é o que estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para neles habitar; o que faz voltar ao nada
os príncipes e torna coisa vã os juízes da terra" (Is 40:21). Por isso podemos ver a razão moral por que,
escolhendo um país para ser o centro dos Seus planos e conselhos terrestres, Javé não escolheu um de vasta
extensão, mas uma pequeníssima e insignificante faixa de terra de pouca importância, segundo o critério
dos homens. Mas, ah, que importância liga a este pedaço de terra! Que princípios se têm ali desenrolado!
Que acontecimentos se têm ali dado! Que feitos se têm operado ali! Que planos e propósitos vão ser ainda
ali realizados! Não existe um pedaço de terra à superfície da terra tão interessante para o coração de Deus
como a terra de Canaã e a cidade de Jerusalém. A escritura transborda de evidência a este respeito.
Poderíamos encher um volume com as provas. O tempo se aproxima rapidamente em que os fatos intensos
farão o que o mais claro e pleno testemunho da Escritura não consegue fazer, isto é, convencer os homens
de que a terra de Israel era, é, e será sempre o centro terrestre de Deus. Todas as demais nações devem a sua
importância, o seu interesse, o seu lugar nas páginas de inspiração simplesmente ao fato de estarem, de um
modo ou de outro, relacionadas com a terra e o povo de Israel. Quão pouco pensam ou sabem os
historiadores disto! Mas certamente todo aquele que ama a Deus deveria conhecer isto e ponderá-lo
devidamente.
Israel e a Igreja
Não podemos prosseguir este importantíssimo e sugestivo fato, mas pedimos ao
leitor que lhe dê a sua mais séria consideração. Verá como é inteiramente
desenrolado e ilustrado de um modo notável nas Escrituras proféticas do Velho e
do Novo Testamentos.
"Porque a porção do SENHOR é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança.
Achou-o na terra do deserto e num ermo solitário cheio de uivos; trouxe-o ao
redor, instruiu-o, guardou-o como a menina do seu olho" — a parte mais sensível e
delicada do corpo humano — "Como a águia desperta o seu ninho, se move sobre
os seus filhos, estende as suas asas, toma-os e os leva sobre suas asas" — a fim de os
ensinar a voar e os guardar de caírem — "assim, só o SENHOR O guiou; e não havia
com ele deus estranho. Ele o fez cavalgar sobre as alturas da terra e comer as
novidades do campo; e o fez chupar mel da rocha e azeite da dura pederneira,
manteiga de vacas e leite do rebanho, com a gordura dos cordeiros e dos carneiros
que pastam em Basã, e dos bodes, com a gordura da flor do trigo; e bebeste o sangue
das uvas, o vinho puro" (versículos 9 a 14).
Será necessário dizer que tudo isto se aplica primeiramente a Israel? Decerto, a
Igreja pode aprender muito com isto e aproveitá-lo; mas aplicar isto à Igreja
envolve dois erros da mais séria natureza: Implica nada menos que reduzir o nível
celestial da Igreja a um nível terrestre e uma indesculpável intromissão com o
lugar divinamente designado a Israel e à sua herança. Que tem que ver a Igreja de
Deus, o corpo de Cristo, com o estabelecimento das nações da terral Nada
absolutamente. A Igreja, segundo o pensamento de Deus, é estrangeira na terra. A
sua porção, a sua esperança, o seu lar, a sua herança, tudo que tem, é celestial. Se
nunca se houvesse falado na Igreja nenhuma diferença se teria observado no curso
da história deste mundo. A sua chamada, a sua carreira, o seu destino, o seu total
caráter e a sua conduta, os seus princípios e a sua moral são, ou deveriam ser,
celestiais. A Igreja nada tem que ver com a política deste mudo. A sua cidadania
está no céu, de onde espera o Salvador. Trai o seu Senhor, a sua chamada e os seus
princípios na proporção em que se intromete nos assuntos das nações. E seu
elevado e santo privilégio estar unida e moralmente identificada com um Cristo
rejeitado, crucificado, ressuscitado e glorificado. Tem tanto que ver com o atual
sistema de coisas ou com o curso da história deste mundo como o seu Cabeça
glorificado nos céus. "Não são do mundo, como eu do mundo não sou", diz o
Senhor Jesus Cristo, falando do Seu povo.
Isto é concludente. Determina a nossa posição e a nossa carreira do modo mais
preciso e definido. "Qual ele é, somos nós também neste mundo" (1 Jo 4:17). Isto
implica uma dupla verdade, a saber, a nossa perfeita aceitação por Deus e completa
separação do mundo. Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Temos de
andar nele como peregrinos e estrangeiros aguardando a vinda de nosso Senhor, o
aparecimento da brilhante Estrela da manhã. Não faz parte do nosso testemunho
interferir em assuntos municipais ou políticos. Somos convidados e exortados a
obedecer aos poderes constituídos, a orar por todos os que exercem autoridade,
pagar tributo e não dever nada a ninguém, para sermos "irrepreensíveis e sinceros,
filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração corrompida e perversa" entre a
qual devemos resplandecer como astros no mundo, retendo a palavra da vida (Fp.
2:15-16).
De tudo isto podemos ver alguma coisa da grande importância prática de
"manejar bem a palavra da verdade". Temos apenas uma pequena idéia do dano
causado tanto à verdade de Deus como às almas do Seu povo, confundindo Israel
com a Igreja, o terrestre com o celestial. Impede todo o progresso no
conhecimento da Escritura e mancha a integridade da vida e do testemunho
cristãos. Isto poderá parecer uma estranha afirmação; mas nós temos visto a
verdade do fato dolorosamente ilustrada, vezes sem conta; e julgamos que nunca é
demais chamar a atenção do leitor para um tal assunto. Já nos referimos a ele mais
de uma vez no prosseguimento dos nossos estudos sobre o Pentateuco, e portanto
não insistiremos mais nele; antes vamos prosseguir com o capítulo.

Israel Esqueceu a Rocha que o Criou


Em versículo 15, deparamos com uma nota muito diferente no cântico de
Moisés. Até este ponto temos tido diante de nós Deus e os Seus atos, os Seus
propósitos, Seus desígnios, os Seus pensamentos, o Seu amoroso interesse pelo Seu
povo Israel, os Seus atos ternos e cheios de graça para com eles. Tudo isto é do mais
profundo interesse, rico de bênçãos. Não existe, nem pode haver aqui desvan-
tagem. Quando temos Deus e os Seus caminhos perante nós, não há impedimento
para o gozo do coração. Tudo isto é perfeição absoluta, divina e enquanto nos
detemos sobre ela, somos dominados por admiração, amor e ações de graças.
Mas existe também o lado humano; e aqui desgraçadamente tudo é fracasso e
desapontamento. Assim lemos em versículo 15 do nosso capítulo: "E,
engordando-se Jesurum, deu coices"—que relato mais completo e sugestivo! Como
ele nos apresenta, claramente, na sua breve extensão, a história moral de Israel! —;
"engordaste-te, engrossaste-te e de gordura te cobriste; e deixou a Deus, que o fez,
e desprezou a Rocha da sua salvação. Com deuses estranhos o provocaram a zelos;
com abominações o irritaram. Sacrifícios ofereceram aos diabos, não a Deus; aos
deuses que não conheceram, novos deuses que vieram há pouco, dos quais não se
estremeceram seus pais. Esqueceste-te da Rocha que te gerou; e em esquecimento
puseste o Deus que te formou."
Existe um aviso solene em tudo isto, tanto para o autor como para o leitor destas
linhas. Corremos, todos nós, o perigo de seguir a vereda moral indicada pelas
palavras que acabamos de citar. Cercados, por todos os lados, pelas ricas e variadas
misericórdias de Deus, somos capazes de fazer uso delas para alimentar o espírito
de auto-satisfação. Fazemos uso dos dons para esquecer o Dador. Em suma, nós, à
semelhança de Israel, engordamo-nos e damos coices. Esquecemos Deus.
Perdemos o doce e precioso sentimento da Sua presença e da Sua perfeita
suficiência, e voltamo-nos para outros objetivos como Israel fez voltando-se para
deuses falsos. Quantas vezes nós esquecemos a Rocha que nos gerou, o Deus que
nos formou, o Senhor que nos redimiu! E isto é tanto mais indesculpável quanto é
certo que os nossos privilégios são muito mais elevados do que os deles. Fomos
trazidos para uma posição e um parentesco, dos quais Israel não conhecia
absolutamente nada; os nossos privilégios e bênçãos são da ordem mais elevada; é
nosso privilégio ter comunhão como Pai e com Seu Filho Jesus Cristo; somos
objetos daquele perfeito amor que não hesitou em nos introduzir numa posição em
que se pode dizer de nós: "Assim como ele é [...], somos nós neste mundo." Nada
pode exceder a bem-aventurança de tudo isto, até o próprio amor divino não pode
ir além disto. Não se trata apenas do fato de que o amor de Deus nos foi
manifestado no dom e na morte de Seu unigênito e bem amado Filho e de Ele nos
ter dado o Seu Espírito, mas em que esse amor é perfeito em nós, colocando-nos na
mesmíssima posição do bendito Senhor, no trono de Deus.
Tudo isto é perfeitamente maravilhoso. Excede o entendimento. E, todavia,
quão propensos somos a esquecer Aquele bendito Senhor que nos amou, agiu por
nós e nos abençoou! Quantas vezes nos desviamos d'Ele no espírito das nossas
mentes e afetos dos nossos corações! Não se trata meramente do que a igreja
professante, no conjunto, tem feito, mas da questão mais profunda, mais íntima,
mais precisa que os nossos corações perversos estão prontos a fazer. Somos capazes
de esquecer Deus e nos voltarmos para outros objetivos, para nossa perda e desonra
de Deus.

O SENHOR Viu Isso e os Rejeitou


Queremos conhecer os pensamentos de Deus a este respeito? Queremos ter
uma idéia correta do modo como Ele Se ressente com isso? Escutemos as palavras
inflamadas dirigidas ao Seu povo desviado, no tom esmagador do cântico de
Moisés. Possamos nós ter graça para as escutar corretamente e aproveitar
grandemente com elas!
"O que vendo o SENHOR, OS desprezou, provocado à ira contra seus filhos e suas
filhas; e disse: Esconderei o meu rosto deles verei qual será o seu fim" —
desgraçado fim! — "porque são geração de perversidade, filhos em quem não há
lealdade. A zelos me provocaram com aquilo que não é Deus; com as suas vaidades
me provocaram à ira; portanto, eu vos provocarei a zelos com os que não são povo;
com nação louca os despertarei à ira. Porque um fogo se acendeu na minha ira, e
arderá até ao mais profundo do inferno, e consumirá a terra com a sua novidade, e
abrasará os fundamentos dos montes. Males amontoarei sobre eles; as minhas setas
esgotarei contra eles.
Exaustos serão de fome, comidos de carbúnculo e de peste amarga; e entre eles
enviarei dentes de feras, com ardente peçonha de serpentes do pó. Por fora,
devastará a espada, e, por dentro, o pavor: ao jovem, juntamente com a virgem,
assim à criança de mama, como ao homem de cãs" (versículos 19 a 25).
Aqui temos um solene relato do tratamento do governo de Deus com o Seu
povo—um relato evidentemente calculado para mostrar a terrível verdade de
Hebreus 10:31: "Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo." A história de Israel,
no passado, o sue estado presente, e o que terão ainda de passar, no futuro, tudo
tende a provar da maneira mais impressionante que: "O nosso Deus é um fogo
consumidor." Nenhuma nação da terra teve jamais de passar por uma tão severa
disciplina como a nação de Israel. Como o Senhor lhes recorda naquelas palavras
profundamente solenes: "De todas as famílias da terra a vós somente conheci;
portanto todas as vossas iniqüidades visitarei sobre vós" (Am 3:2). Nenhuma nação
foi jamais chamada para ocupar o lugar altamente privilegiado de parentesco com
o Senhor. Esta dignidade estava reservada para uma nação; mas a própria
dignidade era a base da mais solene responsabilidade. Se eram chamados para ser o
Seu povo, estavam obrigados a conduzirem-se de um modo digno de tão
assombrosa posição ou, pelo contrário, a terem de sofrer os castigos mais duros que
jamais qualquer nação abaixo do sol teve de suportar. Os homens podem discorrer
acerca de tudo isto; podem levantar toda a sorte de argumentos quanto à
compatibilidade moral de um Ser benevolente agir segundo os termos expostos em
versículos 22 a 25 do nosso capítulo. Mas todos esses argumentos e interrogações
têm, mais cedo ou mais tarde, de ser comprovados como absoluta loucura. E
absolutamente inútil que os homens argumentem acerca dos atos solenes do
governo divino ou sobre a terrível severidade da disciplina exercida sobre o povo
eleito de Deus. Quanto mais prudente, melhor e seguro seria serem advertidos
pelos fatos da história de Israel a fugir da ira que há de vir e lançar mão da vida
eterna e da plena salvação que é revelada no precioso evangelho de Deus!
E, por outro lado, quanto ao uso que os crentes deveriam fazer do relato dos
Seus atos com o Seu povo terrestre, somos obrigados a convertê-los em proveitoso
ensino, aprendendo com eles a urgente necessidade de andar de um modo
humilde, vigilante e fiel na nossa elevada e santa posição. Decerto, somos os
possuidores da vida eterna, entes privilegiados daquela magnífica graça que reina
pela justiça para a vida eterna por Cristo Jesus nosso Senhor; somos membros do
corpo de Cristo, templos do Espírito Santo, e herdeiros da glória eterna. Mas acaso
tudo isto nos autoriza a descuidar a voz de advertência que a história de Israel
profere aos nossos ouvidos? Devemos nós de andar, devido aos nossos privilégios
incomparavelmente mais elevados, descuidadamente e desprezar os salutares
avisos que a história de Israel nos proporciona? Deus não permita! Pelo contrário,
devemos prestar cuidadosa atenção às coisas que o Espírito Santo escreveu para
nosso ensino. Quanto mais elevados são os nossos privilégios, tanto mais ricas são
as bênçãos, mais íntimo é o nosso parentesco, mais solenemente estamos obrigados
a ser fiéis e procurar, em todas as coisas, conduzirmo-nos de maneira a sermos
agradáveis Aquele que nos trouxe para o lugar mais elevado e mais abençoado que
o Seu perfeito amor podia outorgar-nos. Que o Senhor, em sua bondade, permita
que possamos, com verdadeiro propósito de coração, ponderar estas coisas na Sua
santa presença e procurar servi-Lo com reverência e santo temor!

"Faria Cessar a sua Memória dentre os Homens"


Mas devemos prosseguir com o nosso capítulo. Em versículo 26 temos um
ponto do mais profundo interesse em relação com a história dos atos divinos com
Israel. "Eu disse que por todos os cantos os espalharia; faria cessar a sua memória
dentre os homens." E por que não o faria? A resposta a esta interrogação apresenta
uma verdade de infinito valor e importância para Israel—uma verdade que
descansa sobre o mesmo fundamento das suas bênçãos futuras. Sem dúvida, pelo
que lhes diz respeito, mereciam que a sua memória fosse riscada dentre os homens.
Mas Deus tem os Seus próprios pensamentos, desígnios e conselhos a respeito
deles; e não só isto, mas tem em conta os pensamentos e atos das nações quanto ao
Seu povo. Isto ressalta com singular força e beleza em versículo 27. Ele
condescende em nos dar as Suas razões para não apagar todos os traços do povo
rebelde e pecaminoso — e oh, que razões comovedoras ! "Se eu não receara a ira do
inimigo, para que os seus adversários o não estranhem e para que não digam: A
nossa mão está alta; o SENHOR não fez tudo isto."
Pode haver alguma coisa mais tocante do que a graça que revelam estas
palavras? Deus não permitirá que as nações procedam de um modo estranho para
com o seu povo caído em erro. Ele as empregará com a Sua vara de disciplina;
porém, logo que intentarem, no parecer da sua amarga animosidade, exceder o
limite que lhes é assinalado, Ele quebrará a vara em bocados e fará ver a todos que
Ele mesmo está tratando com o Seu amado, embora errante, povo para bênção final
deles e Sua glória.
Esta verdade é inefavelmente preciosa. E propósito determinado de Javé
ensinar a todas as nações da terra que Israel tem um lugar especial em Seu coração
e um lugar destinado de supremacia na terra. Isto está fora de toda a controvérsia.
As páginas dos profetas proporcionam um corpo de evidência perfeitamente
incontestável a este respeito. Se as nações o esquecem ou se opõem a ele, tanto pior
para elas. É absolutamente inútil intentarem contrariar o propósito divino, e
podem estar seguras de que o Deus de Abraão, Isaque e Jacó confundirá todo plano
formado contra o Seu povo eleito. Os homens podem pensar, em seu orgulho e
tolice, que a sua mão é poderosa, mas terão de aprender que a mão de Deus é ainda
mais poderosa.
Mas o espaço não permite determo-nos sobre este assunto profundamente
interessante: devemos deixar que o leitor o prossiga à luz da Sagrada Escritura.
Descobrirá que é um estudo muito proveitoso e refrigerante. Com muito prazer o
acompanharíamos através das páginas preciosas das Escrituras proféticas, mas
temos agora de nos restringir ao magnificente cântico que é em si mesmo um
notável sumário de todo o ensino sobre o assunto—uma breve mas compreensiva e
impressionante história dos caminhos de Deus com Israel e dos caminhos de Israel
com Deus, desde o princípio ao fim —, uma história notavelmente elucidativa dos
grandes princípios da graça, lei, governo e glória.

A Restauração de Israel e Juízo das Nações


Em versículos 29 a 33, temos um apelo muito comovente. "Tomara eles fossem
sábios, que isso entendessem, e atentassem para o seu fim! Como pode ser que um
só perseguisse mil, e dois fizessem fugir dez mil, se a sua Rocha os não vendera, e o
SENHOR OS não entregara ? Porque a sua rocha não é como a nossa Rocha, sendo até
os nossos inimigos juízes disto" — há e só pode haver uma Rocha, bendito seja, por
toda a eternidade, o Seu nome glorioso! — "Porque a sua vinha é a vinha de
Sodoma e dos campos de Gomorra; as suas uvas são uvas de fel, cachos amargosos
têm. O seu vinho é ardente veneno de dragões e peçonha cruel de víboras."
Terrível quadro do estado moral de um povo pintado por mão de mestre! Tal é
a apreciação divina do estado real de todos aqueles cuja rocha não era como a
Rocha de Israel. Mas o dia da vingança virá. Está demorado por longânima
misericórdia, mas virá, tão certo como há um Deus no trono do céu. Vem o dia em
que todas aquelas nações que têm tratado altivamente com Israel terão de
responder ante o tribunal do Filho do homem pela sua conduta, ouvir a Sua solene
sentença e enfrentar a Sua ira implacável.
"Não está isto encerrado comigo, selado nos meus tesouros? Minha é a
vingança e a recompensa, ao tempo que resvalar o seu pé; porque o dia da sua ruína
está próximo, e as coisas que lhes hão de suceder se apressam a chegar. Porque o
SENHOR fará justiça [defenderá ou vingará] ao seu povo e se arrependerá feios seus
servos, quando vir que o seu poder se foi e não há fechado nem desamparado."
Graça preciosa para Israel, dentro em pouco — para os que agora sentem e
reconhecem a sua necessidade!
"Então, dirá: Onde estão os seus deuses, a rocha em quem confiavam, de cujos
sacrifícios comiam a gordura e de cujas libações bebiam o vinho? Levantem-se e
vos ajudem, para que haja para vós escondedouro. Vede, agora, que eu, eu o sou, e
mais nenhum deus comigo; eu mato e eu faço viver; eu firo, e eu saro"— fere em
ira governamental, e sara perdoando em graça; bendito seja o Seu grande e glorioso
nome por toda a eternidade—"e ninguém há que escape da minha mão. Porque
levantarei a minha mão aos céus, e direi: Eu vivo para sempre"—glória seja dada a
Deus nas alturas! Que toda a inteligência criada adore o Seu nome incomparável!
—"Se eu afiar a minha espada reluzente e travar do juízo a minha mão, farei tornar
a vingança sobre os meus adversários e recompensarei os meus
aborrecedores"—quem quer que forem e onde quer que estiverem. Que tremenda
sentença para todo aqueles a quem diz respeito—para todos os aborrecedores de
Deus: para todos os que amam os prazeres mais do que a Deus! —"Embriagarei as
minhas setas de sangue, e a minha espada comerá carne; do sangue dos mortos e
dos prisioneiros, desde a cabeça, haverá vinganças do inimigo."
Chegamos aqui ao fim do relato do juízo — iria e vingança — exposto
resumidamente no cântico de Moisés, mas amplamente desenvolvido em todas as
escrituras proféticas. O leitor poderá consultar Ezequiel 38 e 39, onde temos o
juízo de Gogue e Magogue, o grande inimigo do Norte, que se levantará, no fim,
contra a terra de Israel e ali encontrará a sua queda e destruição ignominiosa.
Poderá também consultar Joel 3, que começa com as palavras de consolação
para o Israel do futuro. "Porquanto eis que, naqueles dias e naquele tempo, em que
removerei o cativeiro de Judá e de Jerusalém, congregarei todas as nações e as farei
descer ao vale de Josafá ;e ali com elas entrarei em juízo, por causa do meu povo e
da minha herança, Israel, a quem eles espalharam entre as nações, repartindo a
minha terra." Verá desta forma como as vozes dos profetas se harmonizam
perfeitamente com o cântico de Moisés, e de que modo tão completo, tão claro e
irrefutável, tanto num caso como no outro, o Espírito Santo expõe e estabelece a
grande verdade da restauração de Israel, com a sua supremacia e glória.
E, por fim, quão verdadeiramente deliciosa é a nota final do cântico! Quão
magnificamente ele coloca a pedra de remate sobre a superestrutura! As nações
hostis são todas julgadas, seja qual for o título ou estilo em que apareçam em cena,
quer seja Gogue e Magogue, o Assírio, ou o rei do norte—todos os inimigos de
Israel serão confundidos e relegados à eterna perdição, e então ressoa aos ouvidos
esta doce nota: "JUBILAI, O NAÇÕES, COM O SEU POVO, PORQUE VINGARÁ
O SANGUE DOS SEUS SERVOS, E SOBRE OS SEUS ADVERSÁRIOS FARÁ
TORNAR A VINGANÇA, E TERÁ MISERICÓRDIA DA SUA TERRA E DO SEU
POVO."

O Fim do Admirável Cântico


Aqui termina este cântico maravilhoso, uma das mais belas, completas e
enérgicas expressões no Livro de Deus. Começa e termina com Deus, e abrange,
em toda a sua compreensiva extensão, a história do Seu Israel terrestre, no passado,
no presente e no futuro. Mostra a disposição das nações em direta relação com o
propósito divino a respeito da descendência de Abraão. Revela o juízo final de
todas as nações que têm atuado ou que ainda atuarão em oposição ao povo
escolhido; e, em seguida, quando Israel é plenamente restaurado e abençoado,
segundo o concerto feito com os seus pais, as nações salvas são convocadas para se
regozijarem com eles.
Quão glorioso é tudo isto! Que esplêndido círculo de verdades se apresenta à
visão das nossas almas no capítulo 32 de Deuteronômio! Bem pode dizer-se: "Deus
é d Rocha, cuja obra é perfeita. "Aqui o coração pode descansar, em santa
tranqüilidade, venha o que vier. Nas mãos do homem tudo pode acabar em
pedaços; tudo que é meramente humano pode e há de resultar em irremediável
fracasso e ruína; mas "A Rocha" permanece para sempre, e a "obra" da mão divina
brilhará em perfeição eterna para glória de Deus e perfeita bênção do Seu povo.
Tal é, pois, o cântico de Moisés; tal é o seu fim: alcance e aplicação. O leitor
inteligente não necessita que se lhe diga que a Igreja de Deus, o corpo de Cristo, o
mistério do qual o bem- aventurado apóstolo foi feito ministro, não encontra lugar
neste cântico. Quando Moisés escreveu este cântico, o mistério da Igreja estava
escondido no coração de Deus. Se não vemos isto, somos de todo incompetentes
para interpretar ou até mesmo compreender as Sagradas Escrituras. Para uma
mente simples, ensinada exclusivamente pela Escritura, é tão claro como a luz do
sol que o cântico de Moisés tem por tese o governo de Deus, em relação com Israel
e as nações; por sua esfera a terra; por seu centro, a terra de Canaã.
"E veio Moisés e falou todas as palavras deste cântico aos ouvidos do povo, ele e
Oséias, filho de Num. E, acabando Moisés de falar todas estas palavras a todo o
Israel, disse-lhes: Aplicai o vosso coração a todos as palavras que hoje testifico
entre vós, para que as recomendeis a vossos filhos, para que tenham cuidado de
cumprir todas as palavras desta lei. Porque esta palavra não vos é vã; antes, é a
vossa vida; e por esta mesma palavra prolongareis os dias na terra, a que, passando
o Jordão, ides para possuí-la" (versículos 44 a 47).
Assim, desde o princípio ao fim, através de todas as porções desse precioso livro
de Deuteronômio, encontramos Moisés, esse amado e honrado servo de Deus,
insistindo com o povo sobre o solene dever de implícita, ilimitada e cordial
obediência à Palavra de Deus. Está nisto o precioso segredo da vida, paz, progresso,
prosperidade, de tudo. Nada mais tinham a fazer senão obedecer. Bem-aventurada
tarefa! Ditoso e santo dever! Que seja também o nosso, prezado leitor, nestes dias
de conflito, e confusão em que a vontade do homem predomina de um modo tão
terrível. O mundo e a assim chamada igreja arrojam-se juntos, com aterradora
rapidez, ao longo da obscura senda da vontade própria — uma senda que tem de
terminar na negrura das trevas para sempre. Tenhamos isto sempre em vista, e
procuremos com ardor seguir o caminho de simples obediência a todos os
preciosos mandamentos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Desta forma os
nossos corações serão mantidos em doce paz; e ainda que possamos parecer aos
homens deste mundo, e até mesmo dos crentes professos, antiquados e de espírito
apoucado, não nos afastemos, nem tanto como a espessura de um cabelo, do
caminho indicado pela Palavra de Deus. Que a palavra de Cristo habite
abundantemente em nós, e a paz de Cristo domine em nossos corações, até ao fim!

Verás diante de ti a Terra, mas não Entrarás nela


E digno de nota, e verdadeiramente impressionante ver como o nosso capítulo
termina com outra referência ao trato do governo de Deus com o Seu amado servo
Moisés. "Depois, falou o SENHOR a Moisés, naquele mesmo dia",—o próprio dia em
que ele pronunciou o seu cântico aos ouvidos do povo — "dizendo: Sobe o monte
de Abarim, o monte Nebo, que está na terra de Moabe, defronte de Jericó, e vê a
terra de Canaã, que darei aos filhos de Israel por possessão. E morre no monte, ao
qual subirás; e recolhe-te ao teu povo, como Arão teu irmão morreu no monte de
Hor e se recolheu ao seu povo. Porquanto prevaricastes contra mim no meio dos
filhos de Israel, nas águas da contenção, em Cades, no deserto de Zim, pois me não
santificastes no meio dos filhos de Israel. Pelo que verás a terra diante de ti, porém,
não entrarás nela, na terra quedarei aos filhos de Israel" (versículos 48 a 52).
Quão solene e subjugador é o governo de Deus! Certamente, o simples
pensamento de desobediência deveria fazer tremer o coração. Se um servo tão
eminente como Moisés foi julgado por falar imprudentemente com os seus lábios,
qual será o fim dos que vivem de dia para dia, semana a semana, mês em mês, ano
para ano, em deliberado e habitual descuido dos mais claros mandamentos de
Deus, e positiva e tenaz rejeição da Sua autoridade?
Oh, se tivéssemos uma mente humilde e um coração contrito e quebrantado!
Isto é o que Deus busca e em que Se compraz; é com os tais que Ele pode fazer a Sua
bendita morada. "Mas eis para quem olharei: para o pobre e abatido de espírito, e
que treme da minha palavra" (Is 66:2). Que Deus, em Sua infinita bondade,
conceda mais e mais deste mesmo espírito a todos os Seus filhos amados, por amor
de Cristo!
CAPÍTULO 33

A BÊNÇÃO PROFÉTICA DE MOISÉS, HOMEM DE DEUS

Uma Comparação com Gênesis 49


"Esta, porém, é a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos
de Israel antes da sua morte."
É muito interessante e consolador ver que as últimas palavras do legislador
foram puramente palavras de bênção. Temos tratado dos seus vários discursos,
essas solenes homílias esquadrinhadoras e profundamente tocantes dirigidas à
congregação de Israel. Temos meditado sobre esse maravilhoso cântico com as suas
notas alternadas de graça e de governo. Porém, agora somos convidados para
escutar palavras da mais preciosa bênção, palavras do mais agradável conforto e
consolação, palavras que fluem do próprio coração do Deus de Israel e que
traduzem os Seus amorosos pensamentos a respeito deles e mostram como Ele
antevê o seu glorioso futuro.
O leitor observará, sem dúvida, uma notável diferença entre as últimas palavras
de Moisés relatadas em Deuteronômio 33 e as últimas palavras de Jacó
mencionadas em Gênesis 49. É desnecessário dizer que ambas são escritas pela
mesma pena, ambas divinamente inspiradas; e por isso, ainda que diferentes, não
estão e não podem estar em contradição; não há, não pode haver discordância
entre duas partes do Livro de Deus. Isto é uma verdade cardinal, um princípio vital
e fundamental para todo cristão devoto, todo verdadeiro crente — uma verdade a
que nos devemos agarrar tenazmente e que devemos fielmente confessar perante
os ignorantes e insolentes assaltos da infidelidade.
Não vamos, evidentemente, entrar em uma minuciosa comparação dos dois
capítulos; isto seria impossível por agora, por várias razões. Somos obrigados a ser
concisos e breves o quanto possível. Mas existe um ponto importante de diferença
que pode ver-se imediatamente. Jacó dá a história dos atos de seus filhos, alguns,
infelizmente, tristíssimos e humilhantes. Moisés, pelo contrário, apresenta os atos
da graça divina, quer com eles ou a respeito deles. Isto explica imediatamente a
diferença. Os atos pecaminosos de Ruben, de Simeão e Levi são relatados por Jacó,
mas inteiramente omitidos por Moisés. É isto uma discordância? De modo
nenhum; mas harmonia divina. Jacó considera os seus filhos segundo a sua história
pessoal; Moisés considera-os em relação com o pacto de Javé. Jacó apresenta-nos o
fracasso humano, fraquezas e pecado; Moisés mostra-nos a fidelidade divina, a
bondade e a benignidade. Jacó conta-nos as ações humanas e o juízo das mesmas;
Moisés revela-nos os desígnios divinos e as puras bênçãos que deles emanam.
Graças e louvores ao nosso Deus, os Seus desígnios, as Suas bênçãos e a Sua glória
estão acima e além de todo o fracasso humano, pecado e loucura. Os Seus
propósitos serão, por fim, plenamente cumpridos, e isto para sempre; então Israel e
as nações serão plenamente abençoados, e se regozijarão juntamente na abundante
bondade de Deus e celebração do Seu louvor de mar a mar e desde o rio até às
extremidades da terra.

A Bênção de Cada Tribo


Pouco mais faremos agora que transcrever as diversas bênçãos das tribos. Estão
repletas da mais preciosa instrução e não requerem uma extensa exposição.
"Disse, pois: O SENHOR veio de Sinai e lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o
monte Paraã, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia para eles o fogo
da lei. Na verdade, amas os povos" — origem preciosa, infalível de todas as usas
futuras bênçãos! — "todos os seus santos estão na tua mão" —verdadeiro segredo
da sua perfeita segurança! —; "postos serão no meio, entre os teus pés"—a única
atitude segura e própria para eles, para nós, para cada um, para todos! —, "cada um
receberá das tuas palavras." — Bendita dádiva! Precioso tesouro! Toda a palavra
que procede da boca do Senhor é muito mais preciosa do que o ouro e a prata; mais
doce do que o mel e os favos. —

Ruben e Judá
"Moisés nos deu a lei por herança da congregação de Jacó. E o Senhor foi rei em
Jesurum, quando se congregaram os cabeças do povo com as tribos de Israel. Viva
Rúben, e não morra; e que os seus homens sejam numerosos."
Nada é dito aqui da inconstância de Ruben, nada sobre o seu pecado. A graça
predomina; as bênçãos fluem em rica abundância do amoroso coração d'Aquele
que Se deleita em abençoar e de Se rodear de corações trasbordantes do sentimento
da Sua bondade.
"E isto é o que disse de Judá: Ouve, ó SENHOR, a voz de Judá, e introduze-o no
seu povo; as suas mãos lhe bastem, e tu lhe sejas em ajuda contra os seus inimigos."
Judá é a linha real. "Visto ser manifesto que nosso Senhor procedeu de Judá" (Hb.
7:14), ilustrando assim, de uma maneira realmente maravilhosa, como a graça
divina se eleva, em sua majestade, sobre o pecado humano, e triunfa gloriosamente
sobre as circunstâncias que revelam a completa fraqueza humana. "Judá gerou de
Tamar a Perez e a Zerá!" Quem senão o Espírito Santo poderia ter escrito estas
palavras? Quão claramente demonstram que os pensamentos de Deus não são os
nossos pensamentos! Que mão humana teria introduzido Tamar na linha
genealógica do nosso adorado Senhor e Salvador Jesus Cristo? Nenhuma. O selo da
divindade está impresso de um modo notável sobre Mateus 1:3, assim como está
posto sobre cada cláusula do Sagrado Volume dede o princípio ao fim. Bendito seja
o Senhor, porque á assim!
"Judá, a ti te louvarão os teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de seus
inimigos; os filhos de teu pai a ti se inclinarão. Judá é um leãozinho; da presa
subiste, filho meu. Encurva-se e deita-se como um leão e como um leão velho;
quem o despertará? O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador de entre os
seus pés, até que venha Siló; e a ele se congregarão os povos. Ele amarrará o seu
jumentinho à vide e o filho da sua jumenta, à cepa mais excelente; ele lavará o seu
vestido no vinho e a sua capa, em sangue de uvas. Os olhos serão vermelhos de
vinho, e os dentes, brancos de leite" (Gn 49:8-12).
"E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por
dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte, bradando com grande
voz: Quem é digno de abrir o livro e de desatar os seus selos? E ninguém no céu,
nem na terra, nem debaixo da terra, podia abrir o livro, nem olhar para ele. E eu
chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler,
nem de olhar para ele. E disse-me um dos anciãos: Não chores; eis aqui o Leão da
tribo de Judá, a Raiz de Davi, que venceu para abrir o livro e desatar os seus sete
selos. E olhei, e eis que estava no meio do trono e dos quatro animais viventes, e
entre os anciãos um Cordeiro, como havendo sido morto, e tinha sete pontas e sete
olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados a toda a terra" (Ap 5:1-6).
Quão altamente favorecida é a tribo de Judá! Certamente, figurar na linha
genealógica da qual veio nosso Senhor é uma grande honra; e, contudo,
sabemos—porque nosso Senhor mesmo no-lo tem dito—que mais
bem-aventurada coisa é ouvir a Palavra de Deus e guardá-la. Fazer a vontade de
Deus, guardar em nossos corações os Seus preciosos mandamentos leva-nos
moralmente mais perto de Cristo do que o próprio fato de pertencer à Sua
parentela segundo a carne (Mt 12:46-50).

Levi é Mencionado, mas não Simeão


"E de Levi disse: "Teu Tumim e teu Urim [luzes e perfeições] são para o teu
amado, que tu provaste, em Massá, com quem contendeste nas águas de Meribá;
aquele que disse a seu pai e a sua mãe: Nunca o vi. E não conheceu a seus irmãos, e
não estimou a seus filhos, pois guardaram a tua palavra e observaram o teu
concerto. Ensinaram os teus juízos a Jacó e a tua lei a Israel; levaram incenso no teu
nariz e o holocausto sobre o teu altar. Abençoa o seu poder, ó SENHOR, e a obra das
suas mãos te agrade; fere os lombos dos que se levantam contra ele e o aborrecem,
para que nunca mais se levantem" (versículos 8 a 11).
O leitor notará o fato de que Simeão não é mencionado aqui, embora seja tão
intimamente ligado com Levi em Gênesis 49. "Simeão e Levi são irmãos; as suas
espadas são instrumentos de violência. No seu secreto conselho, não entre a minha
alma; com a sua congregação, minha glória não se ajunte; porque, no seu furor
mataram varões e, na sua teima, arrebataram bois. Maldito seja o seu furor, pois era
forte, e a sua ira, pois era dura; eu os dividirei em Jacó, e os espalharei em Israel"
(versículos 5 a 7).
Ora quando comparamos Gênesis 49 com Deuteronômio 33, observamos duas
coisas, a saber: responsabilidade humana, por um lado; e soberania divina, por
outro lado. Além disso, vemos a natureza e os seus atos; a graça e os seus frutos.
Jacó vê Simeão e Levi muito unidos em natureza e mostrando os caminhos e o
temperamento da natureza. Tanto quanto lhes diz respeito, ambos mereciam a
maldição. Mas em Levi, vemos os gloriosos triunfos da graça soberana. Fora a graça
que habilitara Levi, nos dias do bezerro de ouro, a cingir a espada e defender a
glória do Deus de Israel. "Pôs-se em pé Moisés na porta do arraial e disse: Quem é
do SENHOR, venha a mim. Então, se ajuntaram a ele todos os filhos de Levi. E
disse-lhes: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada
sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a
seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu próximo. E os filhos de Levi
fizeram conforme à palavra de Moisés; e caíram do povo, aquele dia, uns três mil
homens. Porquanto Moisés tinha dito: Consagrai hoje as vossas mãos ao SENHOR;
porquanto cada um será contra o seu filho e contra o seu irmão; e isto para ele vos
dar hoje bênção" (Ex 32:26 - 29).
Onde estava Simeão, nesta ocasião? Estava com Levi nos dias da vontade
própria, da terrível cólera e cruel ira; porque não no dia de intrépida decisão por
Javé? Estava pronto a sair com seu irmão para vingar o insulto a uma família,
porque o não estava para vindicar a honra de Deus, insultado como foi pelo ato
idólatra de toda a congregação? Dirá alguém que não era responsável? Veja o tal
como levanta uma tal questão. A chamada de Moisés era feita a toda a congregação;
só Levi respondeu; e recebeu a bênção. Manteve-se a favor de Deus, em um dia
sinistro e mau, e por esta causa foi honrado com o sacerdócio -— a mais alta
dignidade que lhe podia ser conferida. A chamada era feita a Simeão bem como a
Levi, mas Simeão não respondeu. Há nisto alguma dificuldade?- Para um simples
"teólogo" pode haver; mas para um cristão devoto, não existe nenhuma. Deus é
soberano; opera como Lhe apraz e não dá conta a ninguém dos Seus atos. Se
alguém se sente disposto a perguntar: "Por que é Simeão omitido em
Deuteronômio 33?-" A resposta simples é esta: "Quem és tu, ó homem, que a Deus
replicas«?" Em Simeão vemos os atos da natureza julgados; em Levi vemos os frutos
da graça premiados; em ambos os casos vemos a verdade de Deus vindicada e o Seu
nome glorificado. Assim tem sido sempre; assim é e assim será. O homem é
responsável; Deus é soberano. Devemos nós conciliar estas duas posições?- De
modo nenhum; é-nos ordenado crer nelas; estão já conciliadas, visto que aparecem
lado a lado nas páginas de inspiração. Isto é bastante para todo o espírito piedoso; e
quanto aos sofistas, cedo terão a sua reposta definitiva (1).
__________
Para mais comentários sobre a tribo de Levi, recomendamos ao leitor os Estudos sobre o livro de Êxodo,
(1)

capítulo 32 e Estudos sobre o livro de Números, capítulos 3, 4 e 8.

Benjamim
"E de Benjamim" — o filho da sua destra — "disse: O amado do SENHOR
habitará seguro com ele; todo o dia o Senhor o protegerá, e morará entre os seus
ombros."
Lugar bendito para Benjamim! Lugar bendito para todo o amado filho de
Deus! Quão precioso é o pensamento de habitar em segurança na presença divina,
em consciente proximidade do verdadeiro fiel Pastor e Bispo das nossas almas
permanecendo dia e noite sob o abrigo das Suas asas protetoras.
Prezado leitor, procura conhecer mais e mais a realidade e bem- aventurança
do lugar e porção de Benjamim. Não te contentes com nada menos que o gozo da
presença de Cristo, com o sentimento permanente do parentesco com Ele e da Sua
presença. Certifica-te disso, pois é teu privilégio. Que nada te prive disto.
Mantém-te sempre ao lado do Pastor, descansando no Seu amor, deitado em
verdes pastos e guiado a águas tranqüilas. Permita o Senhor que tanto o autor como
o leitor destas linhas possam conhecer a profunda bem-aventurança desta verdade,
nestes dias de vazia profissão e vão palavreado! Possamos nós conhecer a
preciosidade inefável de profunda intimidade com Ele mesmo! Esta é a grande
necessidade nos dias em que caiu a nossa sorte—dias de tanta intriga intelectual
com a verdade mas de tão pouco conhecimento e verdadeira apreciação de Cristo.
José
"E de José disse: Bendita do SENHOR seja a sua terra, com o que há de mais
excelente nos céus, com o orvalho e com o que há no abismo, que jaz abaixo, e com
as mais excelentes novidades do sol, e com as mais excelentes produções da lua, e
com o mais excelente dos montes antigos, e com o mais excelente dos outeiros
eternos, e com o mais excelente da terra, e com a sua plenitude, e com a
benevolência daquele que habitava na sarça, a bênção venha sobre a cabeça de José
e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos. Ele tem a glória do
primogênito do seu boi, e as suas pontas são pontas de unicórnio; com elas ferirá os
povos juntamente até às extremidades da terra; estes, pois, são os dez milhares de
Efraim, e estes são os milhares de Manassés" (versículos 13 a 17).
No primeiro volume desta série, Estudos sobre o Livro de Gênesis, tivemos
ocasião de tratar pormenorizadamente da história de José. Não vamos, portanto,
entrar nela aqui. Diremos, contudo, que José é um tipo notável de Cristo. O leitor
notará o modo positivo como Moisés fala do fato de ele haver sido separado de seus
irmãos. José foi rejeitado e lançado numa cisterna. Passou, em figura, pelas águas
profundas da morte, e desta forma alcançou o lugar de dignidade e glória. Foi
tirado do cárcere para ser governador da terra do Egito e mantenedor de seus
irmãos. O ferro penetrou na sua lama, e ele foi obrigado a provar a amargura do
lugar da morte antes de entrar na esfera da glória. Notável tipo d'Aquele que foi
pregado na cruz, posto no sepulcro, e está agora no trono da Majestade do céu.
Não podemos deixar de ficar admirados com a plenitude da bênção
pronunciada sobre José, tanto por Moisés, em Deuteronômio 33, como por Jacó em
Gênesis 49. As expressões de Jacó são extraordinariamente belas: "José é um ramo
frutífero, ramo frutífero junto à fonte" — excelente e bela figura! — "seus ramos
correm sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o flecharam, e o
aborreceram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os braços de suas mãos
foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó (donde é o Pastor e a Pedra de
Israel), pelo Deus de teu pai, o qual te ajudará, e pelo Todo-poderoso, o qual te
abençoará com bênçãos dos céus de cima, com bênçãos do abismo que está
debaixo, com bênçãos dos peitos e da madre. As bênçãos de teu pai excederão as
bênçãos de meus pais, até à extremidade dos outeiros eternos; elas estarão sobre a
cabeça de José e sobre o alto da cabeça do que foi separado de seus irmãos"
(versículos 22 a 26).
Magnífico curso de bênção! E tudo isto fluindo dos seus sofrimentos e com base
neles! Desnecessário é dizer que todas estas bênçãos terão a sua realização na
experiência de Israel dentro em pouco. Os sofrimentos do verdadeiro José
formarão o fundamento imperecível da bem-aventurança futura dos seus irmãos
na terra de Canaã; e não só isto mas a onda de bênção, profunda e plena, se
estenderá dessa terra altamente favorecida, embora presentemente desolada, em
potência refrigerante para toda a terra. "Naquela dia, também acontecerá que
correrão de Jerusalém águas vivas, metade delas para o mar oriental e metade delas
até ao mar ocidental; no estio e no inverno sucederá isto" (Zc. 14:8). Brilhante e
bem- aventurada perspectiva para Jerusalém, para a terra de Israel, e para toda a
terra! Que lamentável erro aplicar tais passagens da Escritura à dispensação do
evangelho ou à Igreja de Deus! Como tudo isto é contrário ao testemunho da
Sagrada Escritura, ao coração de Deus e ao pensamento de Cristo.

Zebulom e Issacar
"E de Zebulom disse: Zebulom, alegra-te nas tuas saídas; e tu, Issacar, nas tuas
tendas. Eles chamarão os povos ao monte; ali oferecerão ofertas de justiça, porque
chuparão a abundância dos mares e os tesouros escondidos na areia."
Zebulom deve alegrar-se na sua saída e Issacar na habitação das suas tendas.
Será gozo em casa e fora dela; e haverá poder para agir também sobre os outros —
para chamar o povo ao monte a fim de oferecer os sacrifícios de justiça. Tudo isto
baseado no fato de que eles próprios chuparão a abundância dos mares e os
tesouros escondidos na areia. Assim é sempre em princípio. É nosso privilégio
regozijarmo-nos no Senhor, venha o que vier, e extrair dessas eternas origens e
tesouros escondidos que se encontram n'Ele. Então estaremos em estado de alma
próprio para chamar outros a provarem que o Senhor é bom; e não só isto, mas para
apresentarmos a Deus aqueles sacrifícios de justiça que Lhe são tão agradáveis.

Gade, Dã, Naftali e Aser


"E de Gade disse: Bendito aquele que faz dilatar a Gade, que habita como a leoa
e despedaça o braço e o alto da cabeça. E se proveu da primeira parte, porquanto ali
estava escondida a porção do legislador; pelo que, veio com os chefes do povo,
executou a justiça do SENHOR e os seus juízos para com Israel. E de Dã disse: Dã é
leãozinho; saltará de Basã. E de Naftali disse: Farta-te, ó Naftali, da benevolência, e
enche-te da bênção do SENHOR, e possui O Ocidente e o Meio-dia. E de Aser disse:
Bendito seja Aser com seus filhos, agrade a seus irmãos e banhe em azeite o seu pé.
O ferro e o metal será o teu calçado; e a tua força será como os teus dias. Não há
outro, ó Jesurum, semelhante a Deus, que cavalga sobre os céus para tua ajuda e,
com a sua alteza, sobre as mais altas nuvens! O Deus eterno te seja por habitação, e
por baixo de ti estejam os braços eternos; e ele lance o inimigo de diante de ti e
diga: Destrói-o. Israel, pois, habitará só e seguro, na terra da fonte de Jacó, na terra
de cereal e de mosto; e os seus céus gotejarão orvalho. Bem-aventurado tu, ó Israel!
Quem é como tu, um povo salvo pelo SENHOR, O escudo do teu socorro, e a espada
da tua alteza? Pelo que os teus inimigos te serão sujeitos, e tu pisarás sobre as suas
alturas" (versículos 20 a 29).
Na verdade, podemos dizer que os comentários humanos são aqui
desnecessários. Nada pode exceder a preciosidade da graça que é revelada nas
linhas finais do nosso livro. As bênçãos deste capítulo, assim como o cântico do
capítulo 32, começam e terminam com Deus e os Seus caminhos maravilhosos com
Israel. É confortante e animador, além de toda a expressão, no final de todos os
apelos, de todas as exortações, todos os avisos solenes, todas as declarações fiéis,
todas as anotações proféticas quanto ao fracasso e pecado, juízo e ira
governamental, depois de tudo isto, escutar expressões como aquelas que
acabamos de citar. É na verdade um fim magnífico para este bendito livro de
Deuteronômio. A graça e a verdade brilham com invulgar esplendor. Deus será
ainda glorificado em Israel, e Israel será plena e para sempre abençoado em Deus.
Nada poderá impedir isto. Os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento.
Ele cumprirá cada sílaba da Sua preciosa Palavra a Israel. As últimas palavras do
legislador dão o mais claro e completo testemunho de tudo isto. Tivéssemos nós
apenas os quatro versículos finais do precioso capítulo que temos estado a
considerar, e eles seriam amplamente suficientes para provar, fora de toda a
dúvida, a restauração futura, bênção, supremacia e glória das doze tribos de Israel
na sua própria terra.
Certo é—ditosamente certo—que o povo do Senhor pode tirar instrução,
conforto e encorajamento das bênçãos pronunciadas sobre Israel. Bendito seja
Deus, nós sabemos o que é estar farto de benevolência e cheio de bênção do
Senhor. Podemos sentir conforto com a segurança de que a nossa força será como
os nossos dias. Também nós podemos dizer: "O Deus eterno é a nossa habitação, e
por baixo estão os braços eternos." Podemos dizer tudo isto e muito mais. Podemos
dizer o que Israel nunca pôde nem nunca poderá dizer. As bênçãos e privilégios da
Igreja são todos celestiais e espirituais; mas isso não nos impede de achar conforto
nas promessas feitas a Israel. O grande erro dos crentes professos é aplicarem
exclusivamente à Igreja o que do modo mais claro se aplica ao povo terrestre de
Deus. Uma vez mais temos de instar com o leitor para que esteja precavido contra
este erro grave. Não deve o mínimo receio de deixar à descendência de Abraão o
lugar e a parte que os desígnios e as promessas de Deus lhes têm assinalado; pelo
contrário, é só quando estes são claramente compreendidos e reconhecidos
plenamente que podemos fazer uso inteligente de todo o cânone do Velho
Testamento. Podemos estabelecer como princípio fundamental que ninguém
pode, de modo algum, entender ou interpretar a Escritura se não reconhecer
claramente a grande distinção entre Israel e a Igreja de Deus.
— CAPÍTULO 34 —

A MORTE DE MOISÉS

Este breve capítulo forma um pós-escrito ao livro de Deuteronômio. Não se


nos diz quem foi empregado como instrumento nas mãos do Espírito e por Ele
inspirado; porém, isto é um assunto de pouca importância para o estudioso devoto
da Sagrada Escritura. Estamos plenamente persuadidos de que o pós-escrito é tão
inspirado como o resto do livro, e o livro como o Pentateuco, e tanto o Pentateuco
como o conjunto do Livro de Deus.
"Então, subiu Moisés das campinas de Moabe ao monte Nebo, ao cume de
Pisga, que está defronte de Jericó; e o SENHOR mostrou- lhe toda a terra, desde
Gileade até Dãn, e todo o Naftali, e a terra de Efraim, e Manassés; e toda a terra de
Judá, até ao mar último; e o Sul, e a campina do vale de Jericó, a cidade das
Palmeiras até Zoar. E disse- lhe o SENHOR: Esta é a terra de que jurei a Abraão,
Isaque e Jacó, dizendo: A tua semente a darei; mostro-a para a veres com os teus
olhos; porém para lá não passarás. Assim, morreu ali Moisés, servo do SENHOR, na
terra de Moabe, conforme o dito do SENHOR. Este o sepultou num vale, na terra de
Moabe, defronte de Bete-peor; e ninguém tem sabido até hoje a sua sepultura."
Em nossos estudos sobre o livro de Números e Deuteronômio, tivemos ocasião
de nos espraiar sobre o soleníssimo e, podemos acrescentar, subjugador fato citado
na passagem reproduzia. Não será preciso portanto acrescentar muita coisa a esta
parte final. Queremos apenas recordar ao leitor que, se quiser ter um completo
conhecimento de todo o assunto, deve encarar Moisés sob um duplo ponto de
vista, isto é, oficialmente e pessoalmente.
Ora, considerando este amado homem em seu posto oficial, é bem claro que
não estava dentro do seu cargo conduzir a congregação de Israel à terra prometida.
O deserto era a sua esfera de ação; não lhe pertencia dirigir o povo através do rio da
morte para a herança que lhes estava destinada. O seu ministério estava
relacionado com a responsabilidade do homem debaixo da lei e do governo de
Deus, e por isso nunca poderia levar o povo a desfrutar a promessa. Estava
reservado ao seu sucessor fazer isto. Josué, um tipo do Salvador ressuscitado, era o
instrumento designado por Deus para conduzir o seu povo através do Jordão, e
estabelecê-los na posse da herança que divinamente lhes era dada.
Tudo isto é claro e profundamente interessante; mas devemos considerar
Moisés pessoalmente tanto como oficialmente; e aqui devemos também encará-lo
sob um duplo ponto de vista, como sujeito ao governo e objeto da graça. Nunca
devemos perder de vista esta importante distinção, a qual se acha em toda a
Escritura e é notavelmente ilustrada na história de muitos do amado povo do
Senhor e dos servos mais eminentes. O assunto do governo e da graça requer a
mais profunda atenção do leitor. Havemo-nos detido sobre ele repetidas vezes no
decurso dos nossos estudos; porém, as nossas palavras não podem expor
adequadamente a sua importância moral e imenso valor prático. Consideramos
este tema como um dos mais graves e oportunos para ocupar a atenção do povo do
Senhor nos tempos atuais.
O governo de Deus proibiu, com firme decisão, a entrada de Moisés na terra
prometida, por muito que ele o desejasse. Falara imprudentemente com seus
lábios; não glorificou a Deus aos olhos da congregação nas águas de Meribá, e por
isso foi impedido de cruzar o Jordão e pôr pé na terra prometida.
Consideremos isto atentamente, prezado leitor crente. Procuremos
compreender plenamente a sua força moral e aplicação prática. É certamente com
a maior ternura e delicadeza que nos temos de referir ao fracasso de um dos mais
amados e ilustres servos do Senhor; mas este fracasso foi relatado para nosso ensino
e solene admoestação, e portanto devemos prestar-lhe a nossa mais sincera
atenção. Devemos recordar sempre que também nós, embora debaixo da graça,
estamos sujeitos ao governo divino. Estamos neste mundo em um lugar de solene
responsabilidade sob um governo com o qual se não pode proceder levianamente.
Decerto, somos filhos do Pai, amados com infinito e eterno amor—amados mesmo
como Jesus é amado. Somos membros do corpo de Cristo, amados, acariciados e
nutridos segundo o perfeito amor do Seu coração. Aqui não há questão de
responsabilidade, não existe possibilidade de fracasso; tudo está divinamente
determinado, divinamente seguro; mas estamos também sujeitos ao governo
divino. Nunca esqueçamos, nem por um momento, isto. Guardemo-nos de idéias
parciais e perniciosas a respeito da graça. O próprio fato de sermos objetos do favor
e amor divino, filhos de Deus, membros de Cristo, deve induzir-nos a prestar a
mais reverente atenção ao governo divino.
Para empregar uma ilustração tirada dos negócios humanos, diríamos que os
filhos de sua Majestade, o Rei deveriam, mais que os outros, precisamente porque
são filhos, respeitar o seu governo, e se, por qualquer causa, transgredissem as suas
leis, a dignidade do governo seria posta em destaque fazendo recair sobre eles o
devido castigo. Se lhes fosse permitido, por serem filhos do rei, transgredir
impunemente os decretos do governo de sua Majestade, isto equivaleria
simplesmente a expor o governo ao escárnio público e a dar motivo a que todos os
súbditos fizessem o mesmo. E se é assim no caso do governo humano, quanto mais
no caso do governo de Deus! "De todas as famílias a vós somente conheci; portanto,
todas as vossas injustiças visitarei sobre vós" (Am 3:2). "Porque já é tempo que
comece o julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro começa por nós, qual será o
fim daqueles que são desobedientes ao evangelho de Deus? E, se o justo apenas se
salva, onde aparecerá o ímpio e o pecador? (1 Pe 4:17-18). Fato solene! Solene
interrogação! Possamos nós considerá-la atentamente!
Mas, como havemos dito, Moisés era objeto da graça assim como do governo; e
certamente a graça resplandece com brilho especial no cume de Pisga. Ali o
venerável servo de Deus foi autorizado a permanecer na presença do seu Senhor, e,
com olhar límpido, contemplar a terra da promessa em todas as suas belas
proporções. Foi-lhe permitido vê-la desde o ponto de vista divino — vê-la não
simplesmente como possuída por Israel, mas como dada por Deus.
E então? Morreu e foi reunido ao seu povo. Morreu não como velho fraco e
consumido, mas ainda em todo o vigor e virilidade da perfeita natureza humana.
"Era Moisés da idade de cento e vinte anos quando morreu; os seus olhos nunca se
escureceram, nem perdeu ele o seu vigor." Que admirável testemunho! Fato raro
nos anais da nossa raça caída! A vida de Moisés foi dividida em três períodos
importantes e fortemente acentuados de quarenta anos cada. Passou quarenta anos
em casa do Faraó; quarenta anos "atrás do deserto"; e quarenta anos no deserto.
Vida maravilhosa! História cheia de incidentes! Quão instrutiva! Quão sugestiva!
Quão rica em suas lições desde o princípio ao fim! Quão profundamente
interessante é o estudo de uma tal vida! Segui-lo desde a margem do rio onde se
encontra como menino desvalido até ao cume de Pisga, onde esteve em companhia
do seu Senhor, para admirar com límpida visão a formosa herança do Deus de
Israel; e vê-lo também no monte da transfiguração em companhia do seu honrado
conservo Elias, "falando com Jesus" sobre o maior assunto que jamais despertou a
atenção dos homens ou dos anjos. Homem altamente favorecido! Bem-aventurado
servo! Maravilhoso vaso!
E agora ouçamos o testemunho divino a respeito deste amado homem de Deus:
"E nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o SENHOR
conhecera face a face; nem semelhante em todos os sinais e maravilhas, que o
SENHOR O enviou para fazer na terra do Egito, a Faraó, e a todos os seus servos, e a
toda a sua terra."
Que o Senhor, em Sua infinita bondade, abençoe o nosso estudo sobre o livro
de Deuteronômio! Que as suas lições preciosas sejam gravadas sobre as tábuas dos
nossos corações com a pena eterna do Espírito Santo e produzam o seu próprio
resultado na formação do nosso caráter, governando a nossa conduta e moldando o
nosso caminho através deste mundo! Procuremos sinceramente buscar trilhar com
espírito humilde e passo firme a senda estreita de obediência até que os dias da
nossa peregrinação hajam terminado!

C.H.M.

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