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Editores
Alik Wunder
Marcus Pereira Novaes
Comitê Científico
Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
Anderson Ricardo Trevisan
Renata Aliaga
Rosana Baptistela
Alda Regina Romaguera
Eliana Kefalás Oliveira
Sara Divina Melo de Salvi
Davi Henrique Correia de Codes
Alessandra Aparecida Melo
Ana Carolina Brambilla
Amanda Mauricio Pereira Leite
Glauco Silva
Tatiana Plens Oliveira
Mirele Corrêa
Laisa Blancy de Oliveira Guarienti
Vivian Moura da Silva
Editoração
Nelson Silva
EDITORIAL .......................................................................................................................................... 1
Marcus Novaes
Alik Wunder
Luzia Bueno
PRÁTICAS DE TEXTUALIZAÇÃO: UMA LEITURA DAS PROPOSTAS DE PRODUÇÃO E
DOS DISPOSITIVOS DIDÁTICOS ADOTADOS PARA A ESCRITA DE TEXTOS .................... 423
Eliene Santos Estácio
LEITURAS DISSONANTES ACERCA DE ALUNOS EM SITUAÇÃO DE FRACASSO
ESCOLAR: AS ARMADILHAS DA MEDICALIZAÇÃO ............................................................... 433
Daniele Aparecida Biondo Estanislau
Mônika Menezes da Costa Stefani
CONSTRUINDO NOS ALUNOS DO 7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL O GOSTO PELA
LEITURA ATRAVÉS DA LEITURA DE AS CRÔNICAS DE NÁRNIA........................................... 438
Ana Cláudia da Silva Evaristo
OS EFEITOS DA INTERAÇÃO MEDIADA POR CARTAS NOS LETRAMENTOS DOS
ALUNOS ............................................................................................................................................ 444
Ana Cláudia da Silva Evaristo
Milene Bazarim
A POESIA DE DONIZETE GALVÃO SOB O SIGNO DA METRÓPOLE ..................................... 451
Arlete de Falco
ENTRE ESCARPAS E FACAS, A POESIA DE JOÃO CABRAL E DONIZETE GALVÃO:
CONFLUÊNCIAS E AFASTAMENTOS .......................................................................................... 457
Arlete de Falco
DISCURSOS DISCENTES ACERCA DA AVALIAÇÃO DO DOCENTE: DIDÁTICA E
RELAÇÕES DE ENSINO-APRENDIZAGEM.................................................................................. 463
Dener Gabriel Ferrari
Márcia Andrea dos Santos
A PRÁTICA DA LEITURA LITERÁRIA SOB O OLHAR DO EDUCANDO ................................ 469
Patrícia Gomes Barca Ferrari
Maria Lucia Suzigan Dragone
A NARRATIVA DE UMA PESQUISADORA-EDUCADORA EM FORMAÇÃO: PROCESSOS
“INVISÍVEIS” DE (RE)EXISTÊNCIA .............................................................................................. 472
Débora Sara Ferreira
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo
POTENCIALIDADES DO RECURSO DE REALIDADE AUMENTADA PARA O TRABALHO
COM A LEITURA .............................................................................................................................. 477
Helena Maria Ferreira
Jaciluz Dias
CÍRCULO DE LEITURA SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO: UMA EXPERIÊNCIA DE
FORMAÇÃO DE LEITORES EM QUIXADÁ-CE ........................................................................... 480
Nathalia Bezerra da Silva Ferreira
Rosangela Gasparim
Sandra Mara de Lara
MÍDIAS, A PRODUÇÃO DE IMAGEM, SUAS (DES)NATURALIZAÇÕES E SIGNIFICAÇÕES
SUBJETIVAS ..................................................................................................................................... 534
Renata Reis Genuíno
Alan Victor Pimenta de Almeida Pales Costa
OS VERSOS IRÔNICOS DE HELENO GODOY: O OLHAR DISSONANTE DO
ESTRANGEIRO ................................................................................................................................ 538
Claudine Faleiro Gill
José Geraldo da Silva
Ruth Aparecida Viana da Silva
LIVROS DE LEITURA DA ESCOLA GRATUITA SÃO JOSÉ DE PETRÓPOLIS (RJ): UMA
LEITURA DISSONANTE AOS PROJETOS EDUCACIONAIS REPUBLICANOS NO PERÍODO
1897-1925............................................................................................................................................ 543
Claudino Gilz
Cleonice Aparecida de Souza
O MERCADO PÚBLICO DE BRAGANÇA: PATRIMÔNIO CULTURAL E EDUCAÇÃO DAS
SENSIBILIDADES (1870-1910) ........................................................................................................ 548
Lilian Florencio de Godoy
Renato Mondeneze do Nascimento
Maria de Fátima Guimarães
USABILIDADE DO LIVRO DIGITAL ACESSÍVEL A PARTIR DAS PERSPECTIVAS DO
DESENHO UNIVERSAL DA APRENDIZAGEM ........................................................................... 553
Ellen Midiã Lima da Silva Gomes
Hector Renan da Silveira Calixto
Flavia Faissal de Souza
PROCESSOS DE AVALIAÇÃO DESTINADOS ÀS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO: INFLUÊNCIAS DAS AVALIAÇÕES EXTERNAS SOBRE A
PROFISSIONALIDADE DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................ 559
Crislainy de Lira Gonçalves
Lucinalva Andrade Ataide de Almeida
Maria Angélica da Silva
DO ROMANCE À LITERATURA DE CORDEL: UMA PROPOSTA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA A
PARTIR DA OBRA VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS ................................................. 564
Igor Pereira Gonçalves
A LINGUAGEM DO SILÊNCIO E DO MEDO: A COOPTAÇÃO DE CRIANÇAS PELO TRÁFICO
DE DROGAS NA REGIÃO AMAZÔNICA ...................................................................................... 568
Maria Salete Peixoto Gonçalves
Marcus Novaes
Alik Wunder
A Revista Linha Mestra n.36 reúne artigos das apresentações orais, rodas de conversa,
minicursos e “vivências dissonantes” do 21º Congresso de Leitura, realizado na Universidade
Estadual de Campinas entre 10 e 13 de julho de 2018. Celebramos, nesta data, os 40 anos de
realização do Congresso de Leitura, que teve sua primeira versão em 1978, em meio a ditadura,
como uma dentre as várias lutas pela redemocratização do país, pela liberdade de expressão, pela
afirmação da força da palavra no mundo. Muito se passou nestes anos: o COLE transformou-se no
principal congresso sobre a leitura no país, muitas pessoas – educadoras, escritores, escritoras,
pesquisadoras, professores, gestoras passaram e deixaram suas marcas. Muitas pessoas tiveram o
COLE como marca de sua formação acadêmica e profissional. Muitos pensamentos, encontros,
afetos e lutas... Para a Associação de Leitura do Brasil é uma luta manter este ritual bianual de
encontro, nestes tempos, quando os modos de ação do autoritarismo e do fascismo ganham outras
formas, outras vestes e, nos forçam a inventar novas formas de resistir.
Arquitetar um encontro é sempre um desafio. O principal desafio do COLE está em
possibilitar um debate sobre a Leitura de forma ampla, interdisciplinar e plural de modo que a
expressão literária e poética não sejam pensadas separadamente da ação política. Trouxemos, nesta
21ª versão, o tema das “Leituras Dissonantes” e algumas perguntas: seria possível a leitura de vozes,
sons e sentidos em estado de nascença? Como escutar línguas outras onde se pressente que algo
brota? Com estas perguntas em mente arquitetamos este encontro com pesquisadoras, escritores,
dramaturgas, ilustradores, poetisas, cineastas, educadoras, filósofos, gestoras, indígenas,
musicólogas, fotógrafas... Com o desejo de trocar afirmando as diferenças que nos compõe, para
que nesta junção heterogênea pudéssemos visualizar, tatear, escutar e sentir forças ainda sem forma.
O 21° COLE convidou a pensar com as línguas dissonantes que fertilizam a vida, atentamo-nos
para as vozes africanas, afro-brasileiras, indígenas, das mulheres, das crianças, dos velhos, para a
língua dos pássaros, das pedras, dos rios que fissuram e rompem barreiras. O que seria uma música
dissonante? Poderia ser ouvida não apenas como ruído perturbador, mas também como um som
que toca e faz pensar que a música pode ser outra coisa? O que seria uma voz dissonante? Não
apenas aquela que destoa de uma ideia de afinação, mas também uma possibilidade de nos darmos
conta de que há muitas texturas de vozes, novas vozes, esperando por novas formas de ouvir. Que
há vozes não ouvidas, ainda que gritem, justamente por não fazerem coro ao tom homogeneizador
e colonizador que impera. O que seria uma palavra dissonante? Não apenas aquela que salta aos
olhos como erro ortográfico, dissidência da regra gramatical, garatuja, garrancho. Que seja também
a palavra viva, um risco germinal do sentido, insistente palavra que não toca os fatos, mas produz
acontecimentos na inventividade contínua da língua. O que seria uma imagem dissonante? Um
borrão, um erro, uma distorção do real? A lembrança pueril de um sonho? A imprecisão que convida
a inventar? Uma outra visualidade que não deseja a verdade? O risco luminoso, imprevisível e
alegre de um vagalume?
O 21º COLE lançando estas perguntas desejou afirmar as dissonâncias na leitura, na
educação, na literatura, nas artes, nas escolas, nas bibliotecas, nas universidades, para que suas
forças desestabilizadoras inundem nossos modos de pensar, agir, sentir e encontrar... Os textos
que compõem este número da Revista Linha Mestra são respostas dos convidados e
participantes a esta provocação lançada. Estão compostas em forma de dossiê escritas que nos
abrem às vozes dissonantes que nos perfazem e que compõem este vasto mundo.
Resumo: A vivência “Linguagens dissonantes entre filosofia e arte: como compor para si um
corpo...”, tem como proposta construir um diálogo e, também, uma experiência criativa que
percorra dois campos inventivos, a do pensamento/filosofia como modo de vida e da arte como
mecanismo de criação dos blocos de sensações. Esses saberes não vêm com o propósito de
fundamentação e nem muito menos pensar um para didatizar o outro. A ideia é fazer passar um
entre o outro e dele emergir um terceiro que não se sabe efetivamente, de antemão, o que é. A
vivência filo-artística deseja traçar linhas a partir das ressonâncias de Nietzsche e de Espinosa
para depois configurar um exercício de pensar-fazer o corpo em meio a uma cartografia tecida
pelas palavras, escritas, leituras filosóficas e cartas de um jogo fabulatório. A pergunta que
gesta a vivência é: Como compor para si um corpo? O ponto fundamental foi criar uma vivência
de encontros e afetos que pudessem configurar linhas de experimentação, permitindo que cada
um invente para si um corpo.
Palavras-chave: Corpo; filosofia; arte; vivência.
Máquina de leitura
O corpo é uma temática que atravessa a história das ideias. Na Filosofia ele não cessa de
ser retomado em diferentes perspectivas. A tentativa é pensar o corpo vivo, afetado a partir da
Filosofia e da Arte.
A Filosofia entendida como um campo de saber que atravessa um diálogo eminentemente
vital é uma arte de pensar a vida e de vivê-la, segundo aquilo que se pensa e dialoga. A Filosofia
não é só uma questão teórica, desapartada do mundo e de suas vicissitudes, ao contrário, o
mundo, a vida é seu campo de contato. Já a arte é esse campo disciplinar que elabora um plano
de composição por blocos de sensações e que gera o pensar quando o corpo se sente tocado,
acariciado pelos blocos de perceptos e de afectos. A arte como arena do sensível pode fazer o
corpo se retirar, se deslocar do lugar comum, tocado pelas sensações. Filosofia e arte cruzam o
campo da materialidade desse ensaio, tendo como rumo a seguinte questão: Como inventar para
1
Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Pará. Mestrado e Doutorado em Filosofia da Educação pela
Universidade Metodista de Piracicaba, Pós-Doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de
Campinas, Professora da Universidade Federal do Pará/Instituto de Educação Cientifica e Matemática. Atua nos
programas de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Artes pela mesma Instituição. Trabalha nas conexões
com a Filosofia, a Educação e a Arte. É coordenadora do grupo Transitar.
2
Graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará, Mestre em Artes pela Universidade Federal do
Pará, Professor da Escola de Aplicação da mesma instituição. Artista, designer e educador atuante em Belém do
Pará, com experiência em criação artística e produção gráfico-editorial.
si um corpo? O corpo pode se reinventar? Dois pensadores são intercessores desse ensaio para
que possamos obter as respostas dessas perguntas: Nietzsche e Espinosa.
Nietzsche coloca em questão todo o pensamento idealista que percorre a história da
tradição ocidental. Tal tradição sustenta que o homem é racional, assim como sustenta o
substrato da valorização da alma e do espírito. A alma como essencialidade substancial, fora
dos avatares humanos, do tempo e da história; e o corpo entendido como devasso, degenerado,
um sintoma do perecível no humano.
Nietzsche faz uma subversão dessa leitura e afirma que o corpo é o catalizador e o
disparador de afetos, é nele que cortam as forças da vida. Por isso, Nietzsche afirma que o
sujeito, a razão, a consciência e a alma não são mais que questões gramaticais gestadas pela
ficção, pelas as fábulas e os pelos ídolos. Para o filósofo, o homem é corpo, é jogo de forças e
comandos entre lutas de sentimentos e impulsos. O que define um corpo é sua relação de forças,
sejam elas ativas ou reativas. Do mesmo modo, Espinosa aponta para a vida em estado de
evidência, ao mesmo tempo em que busca promover uma denúncia de tudo aquilo que separa o
corpo dos seus processos vitais. Um corpo é um campo singular, estando profundamente
arraigado nos afetos e nos seus encontros. Dessa forma, Espinosa cria uma teoria dos afetos e
afirma que existem duas paixões eminentes: alegres e tristes, em que o corpo é uma potência
para agir e padecer. Conforme o grau de seus encontros, ele se compõe e se decompõe.
É interessante afirmar que tal pensador é aquele que afirma a vida e não a morte, quando
denuncia tudo o que tenta separar o humano da vida e todos os valores imanentes. Espinosa é
veementemente contra os poderes que nos elevam para o alto, orientando para uma vida do
medo, do desprazer, da força mínima, arrastando-a para o negativo. A vida traçada pelas linhas
de julgamento do bem e do mal, sendo transformada em um rio de lágrimas, de dor e de culpa
que tende a torná-la pequena e raquítica.
Ora, mas o que seriam as paixões tristes? São as paixões que carregam o corpo para a sua
própria escravidão, corpo sem vida, culpabilizado, invejoso, ressentido, vingativo, desesperado,
cruel, rancoroso. Espinosa coloca na esperança e na segurança um corpo triste, pois esses
valores transformam o homem em escravo voluntário de si mesmo.
A paixão triste leva o corpo ao seu declínio, por isso, somente a alegria é potente, só a
alegria nos fortalece, nos joga para a beatitude da vida. Sim, porque o sujeito, para Espinosa, é
tão somente um grau de potência. Para ele, a grande questão prática é: Como conseguir um
corpo que atenta para o máximo de ideias adequadas? Como emergir alegria, sentimentos
potentes e ativos? Como dominar a si mesmo quando a consciência diz menos que o corpo,
quando a consciência é um mundo também de ilusões?
Ora, para Espinosa a vida não é uma questão que se movimenta pelo bem e nem pelo mal,
tudo é uma questão de compor e decompor um corpo, tudo é uma questão de movimento (de
repouso e de lentidão). Isso teria outros n´s desdobramentos no corpo, mas não iremos dispor
dessas questões aqui, importa saber como Espinosa compreende o corpo e seus encontros, bem
como também influenciou outros pensadores.
Voltando à Nietzsche, esse leitor de Espinosa, concebe o corpo não como uma unidade
orgânica, e nem como dualismo corpo e alma, para este, ele é multidão de forças, sendo o ponto
de afeto que leva o homem à sua constituição. O corpo não é uma coisa e nem um objeto, ao
contrário, é força plástica em permanente movimento de modificação.
Descartes faz uma verdadeira separação entre corpo e alma no sujeito substancial e na
estrutura física que compõe o homem, de maneira que parece não ter ligações com a condição
do humano, é algo visto apenas como um objeto, uma extensão. Espinosa e Nietzsche
promovem uma nova concepção de corpo e do que seja o sujeito – esse não é puro,
transcendental, como se o corpo fosse estranho ao próprio sujeito humano e seus afetos. De
acordo com Espinosa e Nietzsche, este é agora um corpo afetado, que se faz diante de uma
sintomatologia dos afetos e sente, e vive, e instaura, e padece. Ele irradia a consciência e a
esburaca por todos os lados, o corpo é superfície, é carne...
II
Do sim à vida
Para o material, para a designação de cada ente nesse mundo, para cada grupo de homens,
mulheres ou pássaros, corpos se fazem presentes e acontecem a partir de si e tropeçam entre si.
Aos corpos já incidiram todas as causas de erros, intemperanças e desvios, já que a eles eram
designadas territorialidades diferentes da mente. Apartadas dela, dada a imensa quantidade de
motivos para reduzirmos nossos ritmos, nossos músculos cedem ao cansaço, e pensamos
sentados no ônibus de volta para casa quando, finalmente, uma fagulha brota e nos leva para
outro lugar. Um verdadeiro esgotamento social nos sequestra, mas de assomo, um pensamento
qualquer nos invade e nos lambe com um pequeno afeto. E com ele, uma profunda alegria.
Motivos de riso não nos faltam, assim como não nos falta desejo para sorrir. Esse corpo pode
ultrapassar a categoria de invólucro do espírito? Compreender nossa matéria viva como algo
opaco, obtuso e como armadilha que impede a criação de nossa existência nos conduz a um
dualismo metafísico, no qual os corpos serão entidades rebaixadas, inferiorizadas e depreciadas
em relação aos espíritos, sempre louváveis e superiores (como já posto acima). Com a milenar
separação entre corpo e espírito, esquecemos que nossa existência, apesar de multidimensional,
atravessa os corpos por inteiro. Pode deixar de ser dividido? Entre camisas de força, filas
disciplinares, setores empresariais, espaços sociais, corpos são distribuídos e lançados a
políticas disciplinares das mais diversas. Das escolas às igrejas, a sociedade ocidental
incorporou o julgamento de Deus profundamente em sua coletividade inconsciente, que produz
continuamente arquétipos e clausuras identitárias. Rótulos nos são carimbados
involuntariamente ou vendidos sob formas diversas, com o respaldo de uma infinidade de
correntes de pensamento que conduzem a noção de corpo como princípio organizador do ser.
Os corpos são estruturados socialmente para serem entristecidos, buscando em qualquer
oportunidade pequenas gotas de felicidade, geralmente artificializadas. São também levados a
pensar que constituem apenas casca, cujo vazio e a falta seriam preenchidos com uma culpa
cristã. Assim como são levados a se dividir para viver do modo menos intensivo possível, com
baixíssimo poder de afetar uns aos outros, e altamente capazes de desenvolver neuroses ligadas
aos únicos acontecimentos marcantes de suas vidas, geralmente ligados à infância e ao
adolescer. Entre duas fatias, o corpo é conduzido a uma vida entre dois mundos: sensibilidade
e inteligibilidade. Relação esta que se reúne com a velha dualidade da suposta existência de um
mundo exterior, objetivo, e um mundo interior, subjetivo e produz algo que nos domina
culturalmente. Tal conformação cristaliza a verdade dos corpos numa unidade fixa, a
identidade, que ignora a dinâmica das transformações que nos ocorrem continuamente. A
identidade pode ser compreendida como uma caixa que aprisiona o corpo numa fixidez
III
Dor elegante
(Paulo Leminski)
O homem, esse animal estranho, animal confuso, incerto, segue tateando o mundo, segue
de lado, de frente, de costas, animal cheio de medos, de angústias; animal que se veste de tantas
cores, multicor; animal que se pergunta, que sente desespero e carrega em si uma inquietude
demasiadamente humana. Desumanizar um pouco, talvez, para elaborar outras perguntas, sentir
outras vidas em seu corpo, esse que ainda pouco se sabe... É uma luta para dar forma a esse
corpo humano, uma luta diária de embates e de comandos. Dar forma a própria vida, moldá-la,
converter-se em fonte de alguma coisa, presenciar um modo, inventar para si um estilo, de modo
que o corpo possa ser ele mesmo um fazer em obra. Ser autor do próprio corpo, tornando-o
existencial, experimental, produzir com ele e nele uma espécie de cena, transmutá-lo, mesmo
tomando para si todos os preços do mundo. Isso tudo perpassa por aquilo que Nietzsche poderia
chamar de uma “segunda” natureza, essa que seria primordial para que se tome posse da
“primeira” natureza. Tarefa essa nada fácil.
Nietzsche não deixou de buscar os antigos, a sua concepção do que seja a filosofia advém
efetivamente deles, quando advoga que a mesma está ligada a vida, assim como Espinosa. A
filosofia nasce da vida e o seu movimento fundamental é para recriar e reinventá-la. Os
conceitos não são para serem espanados e cultivados, apartados do mundo, ao contrário, eles
nascem de uma dura compreensão da imanência. Então, um corpo deve encarnar a vida,
assenhorear-se dela, fazendo do pensamento um ato de intensidade para que o pensador, em sua
automodelação/transfiguração, saiba de algum modo que habita em suas entranhas um quase
estranho, mas o estranho pode e deve passar por uma escuta amorosa diante das multiplicidades
de vozes que atravessam as forças dos corpos e de seus encontros. Não é fácil produzir uma
administração sobre si mesmo, não é fácil orquestrar a potência que dele emana. A tarefa do
grande homem, aquele que deseja ser senhor de si mesmo, é configurar uma transformação de
si, ou como diz Foucault, um cuidado de si. Nada disso tem ligação com um individualismo,
mas sim com um processo lento de trabalho para forjar uma singularidade, aquilo que é de mais
particular em cada individuo. Sim, Nietzsche, com sua crítica corrosiva à tradição, nos ensina
que o inaudito é a vida, isso que nos arrasta e nos impõe o devir, a plasticidade do corpo – é ela
que diz que potência é corpo. Os encontros formam uma porção de alegria e ou de tristeza em
nós, ao mesmo tempo em que encontros são intensivos e extensivos, lentos ou velozes para
pensar como Espinosa. Não se pode efetivamente dizer o que um corpo pode – no máximo, se
pode experimentar esse corpo, fazê-lo escorregar entre as veias do mundo, desenraizá-lo das
fontes segmentárias e dogmáticas, impor para si vitalidades. Experimentar o corpo é desafiador
e, inclusive, é perturbador quando não se sabe o que ele pode, se está de alguma forma sem o
seu comando, ser estranho a si mesmo. É preciso certa prudência quando olhar o abismo, pois
ele pode devorar esse observador; certa prudência nas aventuras humanas, pois o humano é ser
que não se sabe quem é. Nada disso quer dizer, não faça experiência, ao contrário, experimente
a vida, mas não se deixe virar um farrapo humano, pois não se sabe o que pode um corpo entre
outros corpos. É duro criar para si um corpo, talvez, no corpo não se chegue, mas sempre será
possível desenhar, rabiscar, polir a pedra, raspar o mármore, dar para sim um determinado
comando, certo estilo, mesmo que nunca esteja acabado ou dado por um fim.
IV
A arte como um campo de invenção, tal como a filosofia, atravessa o corpo pelos seus
blocos de sensações e desenvolve um campo do sensível. Acreditamos que a Vivência
Linguagens dissonantes entre a Filosofia e Arte: como inventar para si um corpo, realizada no
21º COLE, em Campinas, foi uma experiência que tentou trazer a potência do corpo a partir
dos seus encontros. O seu desenvolvimento partiu de duas experiências: 1- Máquina de
estranhamento; 2-Máquina Rota: um jogo de fabulação.
Máquina de estranhemento
A porta abre, uma sala enorme aparece, janelas por todos os lados... Os pés estão no chão,
uma mesa é posta ao lado, pequenos objetos são instaurados sobre a mesa, um caderninho de
bordo para registar linhas errantes do pensamento e do corpo, uma caixinha de bombom
enferrujada contendo vários aforismos filosóficos com questões disparadoras, perfumaria
“Cabocla da Amazônia”, cheiro e ervas, água de banho, vidrinho de eucalipto, andiroba, ervas
de curas, ervas de passagem de energias, um lenço, uma cuia para fazer o banho de cheiro. O
que é tudo isso? Um bloco de produzir, afetos... Um tatear o corpo.
A espera dos participantes: Ensaio, ensaio, ensaio de corpo, de voz... Ensaio...
Uma mandala humana fora construída, caminhos em roda, um exercício de relaxamento
foi realizado, a roda continua, a voz da instrutora ao fundo: Gostaria que vocês continuassem
caminhando e depois façam uma roda e sentem... Abram as mãos, por favor!. Uma gota de
andiroba foi colocada na mão de cada participante... Podem esfregar as mãos, depois passe no
corpo do colega ao lado. Pergunte ao colega onde fica a dor? Onde fica a alegria? Toque
nesse lugar, sinta o corpo do seu colega... Houve quem estranhasse esse exercício, levantando-
se e saindo da sala... O corpo para algumas pessoas é algo muito curioso, pois pode ser um canal
que leva a inúmeros afetos e nem sempre esses estes podem ser lembrados ou exercitados,
melhor sair, deixar passar até o dia que o corpo solicita novamente uma escuta, uma palavra. O
exercício foi despertando o outro para o outro, colocando o corpo como a crosta do humano, a
crosta da consciência. Nem sempre sentimos o nosso corpo, às vezes, ele é um estranho em nós.
A mandala retorna e todas começam a andar, um corpo vai “batendo” no outro. Agora vamos
jogar com o olhar: Olhem nos olhos do colega e da colega, parem um pouco, olhe o rosto daquele
que aparece em sua frente, depois duas batidas de mão, parem e fiquem olhando para aquele corpo
que parou em sua frente e pergunte o que vier na sua cabeça: Exercício interessante, um momento
no qual que todos voltaram a sentar e começaram a trocar ideias, risos, olhares. Quase sempre
fazemos do olhar do outro um castrador... O olhar do outro, por vezes, é o nosso inferno... É um
inferno porque estamos muito mais ligados no corpo do outro do que no nosso. Esquecemo-nos de
olhar para o nosso próprio corpo, olhar na dimensão de ver, de fazer um entendimento diante dos
gestos, diante do desconhecido em nós, embora, nada esteja efetivamente esclarecido. A mandala
retorna, caminhando pela sala, sentados em forma de roda, as mãos abertas, um perfume de hortelã
é posto na palma das mãos, esfreguem as mãos, coloquem-nas próximo do nariz, sintam um cheiro
com os olhos fechados, o peito vai abrindo, o corpo vai relaxando, os sorrisos aparecem... Os
processos corporais vão sendo manifestados, os braços caem, as pernas são esticadas, alguns corpos
se jogam no chão como se estivessem em uma cama... Ruídos de palavras... Toques... Toques...
Alguns corpos parecem se conhecer. Um pano colorido, com desenhos de mandalas é jogado no
chão e a poética da máquina rota entra na cena... Fabulações entre arte, filosofia e corpo...
VI
Da máquina-rota
Um jogo feito para rotear a vida de forma coletiva. Rotear é o ato de dirigir um veículo, mais
especificamente uma embarcação naval ou fluvial, por rumos interessantes, para se chegar a algum
destino. A este verbo também estão relacionados os verbos marear e navegar. A cada carta aberta,
um mapa para transitar. Quais ideias foram trabalhadas em sua composição? Folhas, chuva, onça,
raízes, rizomas, flores, plumas, passagens, encruzilhadas, solitudes, silêncios, ondas, dobras,
Matinta, Parauá, Cotijuba, grandes amizades, louco, eremita, torre, diabo, serpentes, elementais
alquímicos, padrões zen, linhas e tantos incontáveis outros povos. Como nos permitir sermos
possuídos por eles? Com o tempo, os experimentos e os encontros, as poderosas imagens do tarô
foram dando espaço a outras existências. Desabafos, angústias e narrativas intensas borbulharam
para fora do peito dos participantes. Outras matilhas, cardumes e multidões passaram a se
expressar com muita intensidade nas vozes dos participantes. A cada imagem, a cada fala, um novo
caminho para a construção de outras travessias. Com a força da maquinação, o contato permitiu
tudo isto sim. Permitiu mesmo! Mas para isto, foi necessário nos deixar levar pela experimentação,
para além do que as palavras dizem e a escrita expressa.
Juntos, pudemos produzir uma espécie de corpo expandido, trocando informações e
entrecruzamentos pensantes a respeito daquilo que vislumbramos. Conversamos sobre nossas
vidas, sensações, incômodos, alegrias, tropeços. Conversamos e trocamos olhares. Vivemos,
num pequeno instante, um momento de intensa amizade. Permitimo-nos escutar o que tínhamos
a dizer, e cruzar essas matérias, aos caminhos oferecidos pelas imagens. Uma série de afetos,
ora delicados, ora trêmulos de tão fortes.
Qual o sentido? Não há. Não há algo dado, algo pronto para ser absorvido. Há uma coisa
que se construiu, desconstruiu e desfiou. E segue em movimento semelhante. Várias derivas,
tremulações. Tantas possibilidades de deslizamento até que, talvez, outros encontros
aconteçam. Encontros sensíveis que ultrapassam as palavras escritas, ditas e articuladas, que
ultrapassam as capturas das linhas institucionais. Encontros que ultrapassem inclusive os
limites do jogo. Como alcançar isso? É necessário navegar, se posicionar, à deriva. Nada é
imediato. É necessário atenção, esforço e um bom espaço para a intuição. Vagar, delirar, sonhar
acordado, dar vazão a algum non sense, alguma aventura do agir. Este é um jogo de criação
conjunta, e a criação supõe quebras de linearidades, sentidos, significantes estabelecidos.
Há fugas, linhas. Linhas de fuga que irrompem de repente. Um ponto de fragilidade no
cativeiro pronto para a escavação. Uma saída da toca, do conforto, da entristecedora segurança, do
útero. Um pouco de brisa fresca nos encontra, um suspiro fora das catacumbas, e quem sabe o
fôlego para cavar outras tocas. “Fuga perfeita é sem volta” (TIBURI, 2016) Pois, segundo Tiburi,
ainda não fugimos de verdade. Mas fugir definitivamente pode ser o nosso fim. Morte na certa. De
repente, o casulo se mostra insuportável. E no esgotamento da escrita, da fala, do andar, do comer,
do dormir, de lidar com as angústias, de aplacar as tristezas, uma dor, uma horrenda dor atinge a
vida. Às vezes, só nos resta fugir para fortalecer e voltar. Ainda mais no seio de um sistema
acadêmico que tanto nos atinge com cobranças de produtividade. Precisamos inventar, nos vãos de
uma universidade, uma magia de floresta profunda. Brincar com os encantados e se reinventar se
faz urgente. “Aí torna-se preciso fazer alguma coisa para não gritar, mas parece que essas paisagens
se tornam um grito” (BRITO, 2015, p. 218). Gritos de Mapinguari irrompem e afirmam que há
muito a se gritar. Pelos corpos livres de suas ostensivas amarras. Contra as forças patriarcais,
colonizadoras e capitalísticas. Da saída de casa, das travessias continentais, até o encontro com os
cartomantes... As imagens podem nos fazer gritar. O jeito de lidar com a vida impossível, esgotada,
muda com os mundos possíveis revelados a cada jogada, pergunta e discurso.
Vamos nos experimentar nesta política dos encontros, da amizade e do olhar? A máquina
nos convida a nos ausentar do que há de regularidade, linearidade, individualidade, de tudo o
que nos remete a uma causa, um sentido, um lugar comum. A Máquina-Rota nos desafia.
Referências
BRITO, M. dos R. de, Entre as linhas da educação e da diferença. São Paulo: Editora Livraria
da Física, 2015.
Foucault M. Ética, sexualidade e política. In: ______. Ditos e Escritos. V. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. tradução, notas e posfácio Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.
NIETZSCHE, F Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
TIBURI, M. Uma fuga perfeita é sem volta. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Introdução
Tomando como referência a centralidade das discussões sobre o trabalho docente e as práticas
escolares, este texto assume por objetivo apresentar diferentes textos produzidos por pesquisadores
de campos ligados à leitura, escrita e alfabetização, a partir de uma reflexão temática que tecerá
uma rede de diálogos em que se procura destacar ideias constituídas a partir de perspectivas teóricas
que orientam uma reflexão sobre o cotidiano das práticas escolares relacionadas às questões da
escrita e da leitura, considerando a pluralidade e a complexidade destes campos.
Desde a criação e instalação das escolas graduadas no final do século XIX e primeiras
décadas do XX buscando atender aos anseios de formação de cidadãos dentro do ideário
iluminista defendido pelos republicanos, discussões a respeito de métodos e práticas que melhor
preparem as crianças para o domínio da leitura e da escrita vêm sendo levantadas, conforme já
demonstrado por diversos estudos acadêmicos. Contemporaneamente, à preocupação com as
questões ligadas à escrita, à leitura e ao próprio processo de alfabetização, somam-se outras
referentes à formação literária do leitor, à formação dos professores alfabetizadores e, também,
à formação mais ampla e geral dos leitores, processo que agora sabemos não se restringir apenas
ao âmbito das ações da escola.
Assim, os textos que compõem esta discussão se voltam para a reflexão sobre alguns dos
fatores que permeiam as práticas escolares no campo da leitura e da escrita, reunidos da obra
de Goulart, Maziero e Carvalho (2017), buscando analisar as implicações sociais, culturais e
político-pedagógicas que afetam a escola e todos que a ela estão ligados, uma vez que as práticas
não são neutras, mas sofrem a influência destes e de outros fatores.
Práticas cotidianas
Mas, se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação
e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que
fazer é práxis, todo fazer do que fazer tem que ser uma teoria que
necessariamente o ilumine. O que fazer é teoria e prática. É reflexão e ação .
(FREIRE, 1987, 121)
1
Doutora em Educação. Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação da
Universidade Federal de Lavras.
2
Doutora em Educação. Professora do curso de Pedagogia da Faculdade de Paulínia e pesquisadora do
ALLE/AULA - FE/Unicamp.
3
Doutora em Educação. Coordenadora de Projetos de Educação para a Cidadania da Escola do Parlamento da
Câmara Municipal de São Paulo.
Mas qual a finalidade de discorremos sobre as práticas? Por que construir uma teoria das
práticas cotidianas? Em resposta a tal questão, temos Certeau (1985, p. 5), que ao falar sobre
sua teoria das práticas cotidianas em uma conferência intitulada “Teoria e método no estudo
das práticas cotidianas”, afirma que a proximidade das práticas pode ser vista como uma
maneira de se “por em prática” um determinado tempo e lugar, num rito, numa representação,
em outras palavras, trata-se da busca em compreender quais usos as pessoas fazem daquilo que
lhes é imposto.
Para Certeau (1985, 2007), a teoria de se estudar as práticas cotidianas se mostra como uma
furtividade, como ações que buscam em lugares alheios algo que as constitua, que possa ser
considerado próprio. Segundo Certeau (1985), há um caráter de triplo aspecto nas práticas
cotidianas: seu caráter estético, caráter ético e caráter polêmico. O caráter estético diz respeito aos
modos diversos e singulares de se usar um determinado objeto, coisa, linguagem, lugar. Esse modo
de uso é caracterizado por uma expressividade que está relacionada ao estilo, o que levanta outro
questionamento: o que é estilo? Para Certeau (1985) estilo é basicamente a maneira de se utilizar,
de manejar, de produzir a partir de uma ordem linguística que nos é imposta.
O caráter ético caracteriza-se pela recusa a ser identificado à ordem imposta, é uma ação
de abrir um espaço, que não é constituído sobre a realidade existente, mas sim sobre uma
vontade de inventar, de criar algo. Junto à prática transformadora que lhe é imposta, há sempre
“uma vontade histórica de existir” (CERTEAU, 1985, p. 8).
O terceiro aspecto, o caráter polêmico, está marcado por uma relação de forças; as práticas
cotidianas se inserem como intervenções nas quais o mais fraco utiliza-se de forças existentes,
como maneira de se defender do mais forte.
A partir dessas considerações, pode-se pensar no espaço de uma sala de sala de aula como
um lugar alheio, um local que não é do professor, que é um espaço público, e que o que ocorre ali
são ações concretas marcadas pela criação, a partir do que lhe é imposto – restrições de uso por
compartir do mesmo local com outra turma diferente, a dimensão do espaço interno da sala, o local
permitido para fixar materiais – uma produção escrita que irá compor visualmente o ambiente.
Nesta direção, estes artigos podem ser agrupados pela temática que abordam em quatro
conjuntos: os que se voltam para o processo de alfabetização; os que abordam a formação de
professores; os que tratam da leitura do texto literário, e outro que aborda a leitura para além
das práticas escolares.
No primeiro grupo, temos cinco artigos que vão explorar o tema das práticas na
alfabetização. No primeiro deles, Juliano Guerra Rocha e Meiriene Cavalcante Barbosa
escrevem sobre “O processo de alfabetização na perspectiva inclusiva: recursos e estratégias na
escola para todos”, em que propõem uma provocação instigante a respeito da questão da
alfabetização no contexto da escola para todos, a fim de suscitar novas práticas e novas
investigações, a partir da discussão de que a escola deve ser um lugar onde caibam todos os
sujeitos, evitando que a alfabetização seja vista apenas como uma etapa em que se dá ênfase
aos aspectos estruturais da língua, e não como um processo social e cultural mais amplo, que
se desenvolve em uma dimensão também política.
No segundo artigo do grupo, “Práticas de escrita na alfabetização”, Mariana Bortolazzo
expõe resultados iniciais de sua pesquisa de Doutorado, nesse caso específico o levantamento
de práticas de escrita propostas e realizadas pela professora de uma turma de alfabetização –
com base na análise de materiais didáticos coletados e materiais de aluno, em contraponto com
os diálogos travados com a professora.
O terceiro artigo, “Práticas de aquisição da escrita na representação gráfica de vogais
nasais”, de Raquel Márcia F. Martins e Marciano R. Ribeiro, é um estudo que trata de práticas
de aquisição da escrita que interferem na alfabetização, focalizando fenômenos de fala, em
específico a representação gráfica de vogais nasais, através da análise da produção escrita de
alunos com idades entre 6 e 8 anos de idade, cursando os 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental
de uma escola pública da cidade de Bom Sucesso, Minas Gerais (MG).
Silvia Aparecida Santos de Carvalho, aborda no quarto artigo, em “Práticas de ensino de
leitura e escrita e a política educacional implementada na gestão da Prefeitura de São Paulo -
1989-1992”, as práticas de ensino de leitura e escrita implementadas pelas políticas
educacionais do município de São Paulo, a partir da apresentação e análise de movimentos
significativos de disputa pela hegemonia no campo das práticas de ensino de leitura e escrita
desenvolvidos nos dois primeiros anos do governo de Luiza Erundina de Souza como prefeita
da cidade de São Paulo, período em que Paulo Reglus Neves Freire, o Prof. Paulo Freire, foi o
Secretário Municipal de Educação.
Ainda no campo da Alfabetização, mas desta feita com o olhar voltado para os
professores, Ana Lúcia Guedes-Pinto escreve sobre “Práticas de leitura: papel na formação
continuada e seus impactos na alfabetização”, em que aborda aspectos da formação continuada
de professores alfabetizadores, a partir de sua experiência à frente do PNAIC da UNICAMP no
estado de São Paulo, entre os anos de 2013 e 2014.
Outro conjunto de três artigos discute sobre a prática da leitura literária em espaços
escolares. O primeiro deles, “O que nos ensinam alunos e professores sobre práticas de leitura
em bibliotecas escolares?”, de Cláudia de Oliveira Daibello e Cláudia Beatriz de C. N. Ometto,
socializa reflexões a respeito dos enunciados e práticas dos professores em relação aos livros
de literatura infantil, a fim de compreender como estes repercutem no modo como as crianças
entendem a leitura e se relacionam com o objeto livro. O estudo é parte de uma pesquisa mais
ampla, realizada em uma escola da rede municipal de Santa Bárbara d’Oeste-SP.
Explorando ainda a temática da leitura de literatura, Ilsa do Carmo Vieira Goulart e Dalva
de Souza Lobo, em “O leitor e a leitura literária: do projeto à fruição”, tomam por base os cursos
de formação docente em práticas de leitura literária desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos em
Linguagens, Leitura e Escrita (NELLE/UFLA), direcionados à análise dos projetos de leitura
literária desenvolvidos na rede municipal de ensino de uma cidade do Sul de Minas, propondo
uma reflexão sobre as ações ou preocupações docentes que movem a elaboração dos projetos
de leitura, especialmente durante o processo de alfabetização.
Fechando os trabalhos deste grupo temático, temos o artigo de Andréa Dalcin, “Práticas
de leitura da literatura infantil”, no qual são expostos os resultados iniciais de pesquisa realizada
com cinco professoras do ensino fundamental (1º ao 5º ano), em duas escolas localizadas no
município de Cajamar/SP, em busca das práticas de leitura da literatura infantil desenvolvidas
nestes espaços.
No artigo que encerra a obra, Norma Sandra de Almeida Ferreira, Lilian Lopes M. da
Silva e Maria das Dores S. Maziero escrevem sobre práticas de leitura na escola e na vida
cotidiana, em “A centralidade da cultura para o estudo das práticas de leitura: episódios que
inspiram um pensar”, defendendo a participação da cultura no ensino da leitura, buscando
aproximações, associações, comparações e articulações entre práticas de leitura e de escrita
experienciadas culturalmente, para pensar que essas práticas podem adquirir diferentes
significados, dependendo do contexto sociocultural em que são realizadas e de cada situação
singular que as põe em circulação.
Conclusão
Neste texto, o olhar sobre algumas produções que discutem as práticas cotidianas
convida-nos à reflexão crítica e à dialogicidade do fazer docente, num mergulho entre os
meandros do contexto das práticas de leitura e escrita, o que exige definição, segundo Freire
(1996)4, posicionamento, decisão, rupturas, escolhas, autonomia e autenticidade – como aliás
exige o próprio exercício da docência e da cidadania.
Referências
CERTEAU, Michel de. Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: SZMRECSANY,
Maria Irene (Org.). Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (anais do encontro) São
Paulo: FAU/USP, 1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1987. p. 121.
GOULART, Ilsa do Carmo Vieira; MAZIERO, Das Dores Soares; CARVALHO, Silvia
Aparecida Santos de. Leitura, escrita e alfabetização: a pluralidade das práticas. Campinas:
Leitura Crítica, 2017.
4
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
Resumo: A aquisição da língua escrita vai além da decodificação simbólica e/ou sonora. Ela
perpassa sentidos outros de constituição do sujeito leitor, como as emoções, as sensações e
produção de sentidos. O presente minicurso constitui-se uma oportunidade de entrelaçar as
sensações de ouvir, perceber, olhar, ou seja, a percepção relacional dos cinco sentidos humanos,
em dinâmicas de percepção e criação verbal buscando a inserção do sujeito em um processo de
criação textual seja ele poético ou não. Com isso, buscamos dinâmicas de elaboração textual
que estimulassem vivências táteis, sonoras, sensitivas e motoras, balizados pelo referencial
teórico-metodológico de uma atividade textual livre, com pressupostos nas ideias Freinetianas
de criação linguística. Dividido em momentos específicos de experiência sensoriais, a criação
do texto livre será um modo outro de entrelaçar estas vivências oportunizando ao autor-leitor
ser produtor de uma escrita própria, explorando os diversos sentidos que um texto pode conter,
seja ele vernáculo, sensório ou verbal.
Palavras-chave: Produção textual; leitura; emoções e sentidos.
Dinâmica do minicurso
Foram elas: 1) corporal (dinâmica de repetição de movimento e som em dupla), 2) visual e sonora
(vídeo com fotos das experiências profissionais das professoras organizadoras do minicurso), 3)
sonora (leitura de um texto) e 4) pictórica e sonora (desenho e pintura livre tendo como suporte
musical canções da bossa nova, instrumental, entre outras), intercalando entre esses momentos a
produção escrita e o diálogo. Assim, o nosso chronus1 passa a ser kairós, pois as próprias vivências,
proporcionadas pelas relações constituídas no minicurso, geriram e reorganizaram um cronograma
inicial de atividades programadas. Muitas das produções planejadas deram lugar à uma escuta e
diálogo sobre as experiências de vida e profissão dos profissionais que participaram deste encontro-
minicurso e também sobre as expectativas deste momento formativo o congresso. Com isso, as
experiências sensoriais planejadas, bem como as produções e criações escritas, foram sendo
redimensionadas a medida que aconteciam.
Entretanto permanece dois conceitos em nossa proposta: de criação e criatividade. O
princípio explicativo deles parte do referencial teórico da Psicologia Histórico Cultural,
especificamente dos estudos de Vigotski (1999, 2009) sobre o tema. O autor apresenta que a
atividade da criação só é possível pelo acúmulo de experiências vividas na relação com a
história da coletividade. Uma história materialista, cultural e dialética.
Desse modo, quando Vigotski (2009) desenvolve a tese da imaginação como uma
produção dialética, histórica, que afeta e produz os sentidos culturais, com isso, ele reitera a sua
argumentação teórica sobre o caráter materialista e histórico do desenvolvimento de nossa
psique, o que define que toda a criação humana parte daquilo que já experienciamos e
conhecemos. “[...] tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da
cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação
humana que nela se baseia.” (VIGOTSKI, 2009, p. 14). Por isso, as dinâmicas do minicurso
foram elaboradas no intuito de promover um ambiente de criação textual, com os mais diversos
estímulos sensoriais que pudessem resgatar, nos participantes, sentidos do já conhecido e
vivenciado em produções textuais, assim como, proporcionar vivências novas.
Das vivências
Iniciamos com uma roda de conversa para conhecer um pouco mais cada participante: de
onde vinham, a formação inicial, onde trabalhavam, as expectativas, enfim, um conhecer-se
inicial. Assim, inicia-se o diálogo de um grupo formado por muitas mulheres, professoras,
algumas são mães, moram em cidades próximas, outras de cidades mais longínquas. Mas todas
muito interessadas naquilo que o minicurso oferecia: a produção textual pelas vivências
sensoriais e motoras. Neste momento, Benjamin (2004) e Bakhtin (2004) dialogam conosco
neste texto, por dois motivos: a produção história de nossas experiências, nas/pelas/com as
relações de outrem, e o discurso que nos constitui.
Para Benjamin, o sujeito que narra, que assume o papel de narrador “O narrador assimila à
sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é poder contar sua vida; sua
dignidade é contá-la inteira” (BENJAMIN, 2004, p. 211). Com isso, ele nos apresenta que o
verdadeiro narrador é o sujeito que ouve as histórias, despe-se de todo o psicologismo das
interpretações para poder contá-las. O primeiro ouvir no minicurso passa por esta definição de
Benjamin, pois cada participante se fez narrador de sua própria história e esta construção oralizada,
sem ter a qualidade de análise psicológica das situações enunciadas, tem seu desfecho final em uma
1
De acordo com a mitologia grega, chronos é a definição do tempo cronológico, ou seja, os anos, os meses. Esta
definição se difere do tempo subjetivo, o kairós.
escrita, com caráter descritivo, e quiçá reflexivo2, das expectativas com a experiência do minicurso.
Ou seja, compreendemos que as expectativas e interesse com a proposta de diálogos e vivências no
minicurso, passou pela história de vida, profissão de cada uma das participantes, que foi sendo
tecida por diversos contextos e discursos de produção de sentidos. Com isso, retomamos Bakhtin
(2004) para nos afirmarmos em nossa proposta de produção textual e dialógica, pela mobilização
dos sentidos: o eu é resultado de um nós, ou seja, eu me vejo/sou constituido pelo olhar do outro.
Mesmo que esta premissa não esteja nítida para o sujeito, nossa história é constituída pelos discursos
de outrem./pelas vivências discursivas.
O terceiro momento, após a primeira escrita, foi uma dinâmica de movimento corporal.
A intenção foi proporcionar um momento inusitado de concentração corporal, resgatando a
sensibilidade aos movimentos e criação de sentidos outros que este momento poderia gerir. A
dinâmica de contar até o número três foi feita em dupla. A contagem deveria ser alternada,
então, logo após o número um ser dito por um sujeito da dupla, o número dois deveria ser falado
pelo outro e assim sucessivamente. A concentração e atenção à tarefa se misturou às risadas
dos participante com relação à própria dinâmica, pois não foi uma tarefa tão fácil como parecia.
Em seguida cada número deveria ser substituído por um único movimento. Neste ponto, surge
a criação do movimento corporal: inusitado, coletivo e expressivo.
Findada esta divertida dinâmica, percebemos que o sorriso e a descontração fizeram parte do
contexto. Em seguida, passamos um filme com fotos das vivências profissionais das três professoras
que organizaram o minicurso. Esta proposta partiu da intenção em resgatar sentimentos, sensações
e lembranças relacionados à história profissional e pessoal como alunos, de cada participante, para
em seguida produzir um texto de formato narrativo a partir de três questões: como o vídeo me
afetou? O que emergiu nesta vivência? Quais emoções e memórias surgem?
Fizemos a leitura do texto “Esqueceram a maçã”, de Célestin Freinet (FREINET, 1991, p.
30) em que, de maneira sensível, relata a alegria das crianças diante de algo considerado encantador
por elas. Seu modo de escrita nos coloca frente a frente a essas crianças e nos leva a refletir sobre
como acolhemos no nosso cotidiano escolar estes acontecimentos fundamentais para eles.
Após esta vivência/escuta atenta, oferecemos um momento de produção pictórica, sobre
as emoções e memórias que até então foram surgindo com as vivências no minicurso. Para
tanto, disponibilizamos diversos materiais como carvão, canetinha, giz de cera, pincéis, tinta
guache, enfim, um contexto de possibilidades para a criação.
Durante este momento colocamos algumas músicas com o objetivo de somar à
experiência sonora e despertar sentidos para a elaboração de sua produção. As canções
Redescobrir, de Gonzaguinha, interpretada pela Elis Regina, Tocando em Frente, de Almir
Sater e Renato Teixeira, interpretada por Almir Sater, Cello Suite nº1, de Johann Sebastian
Bach, interpretada por Yo Yo Ma, Somewhere over the rainbow, de Harold Arlen e E. Y.
Harburg, interpretada por Israel Kamakawiwo’ole. Cada composição se remetia a um lugar,
uma expressão musical, um modo de cantar, tocar e ilustrar a vida por meio dos sons. Com isso,
o repertório de experiências sensoriais foi sendo constituído e constitutivo das vivências
propostas neste momento formativo. O resultado foram obras de arte únicas e expressivas.
Findado este momento colorido de produção, organizamos novamente a roda para que
pudéssemos contar de um modo bem diferente a história “O silencioso mundo de Flor” de
Cecília Cavalieri França. Entregamos vendas para que os participantes não olhassem, mas
apenas ouvissem e sentissem a história pelo olfato, audição e o tato. Com isso, usamos recursos
que “ilustraram”, por estes sentidos, o enredo declamado: tecidos, instrumentos de percussão
2
A palavra quiçá s refere à possibilidade de transgressão dos sentidos da escrita pelos sujeitos narradores, atrelando
a ela um processo reflexivo e problematizador do episódio contado, pois, num primeiro momento a orientação da
atividade de escrita se baseava apenas no narrar.
como tambor, chocalho, caxixi, pandeiro, materiais como algodão, essências aromáticas de
alecrim e lavanda, pó de café, Enfim, contamos essa história por um modo outro de escuta.
O tempo chronos novamente se distanciava do nosso kairós, havia tanta coisa ainda para
escrever e criar. Optamos em realizar um diálogo sobre as sensações e as expectativas em ouvir
uma história de um outro modo, por outros sentidos. Os relatos sobre esta experiência foram
diversificados, alguns trouxeram a sensação de incapacidade frente ao controle do que perceberiam
no decorrer do enredo: que tipo de material iria ilustrar a história? Alguns outros nos disseram que
esta experiência foi muito importante para relembrar como o trabalho com os sentidos nos oferecem
modos outros de percepção da nossa realidade e ainda, como ajuda a compreender que mesmo com
o objetivo de organizar atividades pedagógicas para um grupo, na tentativa de propiciar a
aprendizagem de todas as crianças, as experiências são pessoais, únicas.
Fechamos a roda de conversa trazendo um pouco da trajetória de Célestin Freinet que,
como professor, trouxe a criança para o centro do processo de ensino-aprendizagem, validando
seu olhar e suas palavras como legítimas e fundamentais para a organização do trabalho
pedagógico na escola. Esta roda de conversa final foi uma possibilidade de conhecermos como
a proposta do minicurso afetou de maneira positiva cada participante.
O que fica?
Neste ponto do texto é necessário tecer considerações finais, mas para além deste “ponto final
de escrita” elegemos a questão: o que fica com a experiência deste minicurso? O que permanece e
ressoa em nossas vivências/experiências de vida pessoal e profissional é o retomar a nossa condição
de sentir e significar, produto e processo de nossas relações inter e intrapessoais.
Com isso, nos voltamos às relações de ensino em sala de aula. Palco de conflituosos
diálogos, riquíssimas vivências, lugar de apropriação/resignificação do conhecimento científico
e dos sentidos culturais de existência. Contexto que entrelaça muitas vidas e histórias e, por
isso, não pode ser pensado fora de uma produção dialógica.
As vivências de sentidos, ou a rememoração das experiências (BENJAMIN, 1994) são
constituídas pelas emoções que nos afetam e transformam os significados sobre o mundo no
qual estamos inseridos. Levar essa premissa em consideração no momento de planejamento de
nossas atividades pedagógicas, nas situações de ensino e intervenção que procuramos elaborar
no contexto escolar, para que as crianças possam se apropriar do conhecimento histórico e
socialmente construídos pelo homem, pode ser o diferencial para elas, pois somos constituídos
por aquilo que nos afeta, pelo que significamos, ou seja, por tudo o que, de algum modo, nos
impacta e isto resulta na produção de sentidos.
Referências
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FRANÇA, C. C. O silencioso mundo de flor. Belo Horizonte, MG: Traço Fino, 2011.
FREINET, C. Pedagogia do bom senso. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Marina Mayumi1
Atravessamentos I
A sala escura de cinema define como os corpos devem se comportar: ao serem isolados por
meio de cadeiras confortáveis que restringem o contato físico entre os ali presentes, fazendo com
que a experiência do cinema seja totalmente individualizada; ao direcionar o olhar para a grande
tela em que os olhos dos espectadores mantêm-se totalmente atentos à grande tela de luz da sala
escura; ao manter as pessoas em silêncio constrangendo qualquer comunicação entre elas.
As produções cinematográficas de escala industrial, dedicadas ao consumo, criam filmes
que atuam sobre o espectador utilizando-se de alta tecnologia audiovisual de produção e pós-
produção, para os conduzirem a sentir emoções pré-estabelecidas. Se há alguma variação,
certamente são restritas e pobres em possibilidades de escape do já convencionado.
Menotti (2012) preocupa-se em problematizar o cinema enquanto produto industrial,
pasteurizado pela arquitetura das salas de exibição, atentando-nos para a estreita relação entre
o consumo e a padronização das salas de exibição e sua influência num processo anterior à
projeção, que se dá logo na produção dos filmes. Os filmes são feitos para o formato imposto
pela arquitetura dos cinemas que consiste em padronizar a experiência do cinema numa
sensação imersiva aglutinada pelo formato da tela retangular e luminosa, ambiente escuro e
isolamento acústico.
As salas de exibição ocupam um lugar central na escala da cadeia consumo do cinema. É
o lugar onde o espectador paga as entradas para encontrar-se com filmes produzidos que
enfatizam o estímulo da visão e audição, suprimindo os demais sentidos. Portanto, a sala escura
acaba por configurar-se como o local ideal para que o foco se dê naquilo que se vê e se ouve.
O cinema, tal como o conhecemos hoje, é uma instalação que se cristalizou numa forma única
(MACHADO, 2008, p. 69). O isolamento acústico, a máscara negra que emoldura a tela
intensificando seu caráter fantasmagórico em meio à escuridão, os ajustes de brilho da tela de
projeção, a invisibilidade do projetor, são fatores que contribuem para a padronizada
experiência cinematográfica da sala escura que impera há mais de 100 anos.
1
Doutoranda no programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual
de Campinas.
O cinema é estritamente dividido entre a sala e a tela, sendo esta concebida como uma
janela aberta para uma profundidade fictícia[...] (MICHAUD, 2014, p. 23). Essa profundidade
faz com que a tela se aparte de sua condição de objeto. Algo secreto naquilo que se vê está
sempre a ser revelado na profundidade da tela. A ficcionalidade do filme encontra nela, uma
aliada que contribui para que a ilusão narrativa dos filmes, penetrem com mais contundência
nos olhos do espectador e assim contribua para que seja por ele compreendida, e o imerja em
em meio à estória roteirizada somada à imagens ilustrativas de um determinado discurso.
Para além dessa perspectiva ilusória de um cinema em que a imagem é representação de
uma narrativa, existem artistas que provocam o espectador, revelando a materialidade fílmica
do cinema. Seus trabalhos convidam a desvelar elementos que promovem a profundidade irreal
promovida pela tela branca, para fazer surgir sua superfície material em que o filme é projetado.
A tela já não é uma janela, como na experiência fílmica habitual, mas uma superfície opaca na
qual se refletem os impulsos da luz colorida (MICHAUD, 2014, p. 27).
Tomemos como exemplo, a instalação de White Museum2 (2016) da artista Rosa Barba,
que implica os corpos dos participantes em um ambiente aberto, com luminosidade suscetível
aos horários do dia e das lâmpadas brancas do espaço expositivo. A instalação proposta por
Barba na 32ª Bienal de São Paulo revela o aparato técnico que possibilita que imagens sejam
projetadas e no caso, deslocado da sala escura de exibição de cinema. Um antigo e gigantesco
projetor 35/70 mm posicionado no alto de um andaime faz rodar uma película fílmica
transparente, ainda virgem, sem imagens gravadas. A luz do projetor sobre a película incide
sobre a rampa do piso térreo da área interna do pavilhão da Bienal onde as/os visitantes
inevitavelmente têm que transitar para acessarem os outros pisos.
Os corpos que entram em contato com a obra têm suas silhuetas projetadas no piso da
rampa em um local totalmente claro do edifício, repleto de paredes de vidro que criam uma
relação visual entre o que se vê dentro e fora do museu. O "frame" descrito por Giufrida (2016)
é branco não apenas pela luz do projetor que incide sobre a película mas também porque "sofre"
as claridades do local. A sobreposição da luz de projeção misturadas à incidência de luz natural
que vem do lado de fora do museu, varia conforme a hora do dia. A cor verde-acinzentada do
piso de concreto queimado da rampa do edifício também compõe com as luzes projetadas
fazendo com que o piso tenha variações de cor que se somam à escura sombra dos corpos dos
visitantes que duram o tempo de seu caminhar para subir ou descer a rampa.
Trata-se de uma projeção grande que poderia ser aproximada ao tamanho de uma tela de
projeção de cinema tradicional, só que na obra de Barba, a tela é deslocada da parede para o
chão e nela pisamos. As imagens efêmeras criadas pela ausência de luz das silhuetas de nossos
corpos, formam sombras em movimento sobre o piso criando múltiplas formas de distintos
tamanhos que se desenham no chão. Quanto mais as pessoas caminham e se aproximam do topo
da rampa, maior é a distorção da imagem sobre o chão fazendo com que a escala dos corpos ali
delineados, aumentem, proporcionando um tamanho tão grande quanto a tela.
2White Museum (2016) da artista italiana Rosa Barba compôs a 32ª Bienal de São Paulo de 07 de setembro a 11
de dezembro no Pavilhão da Bienal, São Paulo - SP. Vídeo de registro da obra disponível em:
https://vimeo.com/228591413.
Em White Museum, habitamos a grande tela branca que acaba "desmistificada" pela obra
que despe a projeção de todo seu ocultamento ao revelar todo o "segredo" do aparecimento
ilusório da imagem projetada. Basta seguir a intensa luz para descobrir o que a origina: o grande
projetor está ali como um objeto escultórico da exposição. Podemos dizer que hoje, não existe
mais modelo dominante de formato de tela, que não somos mais "regulamentados" por
referências estáveis no campo, que passamos alegremente, senão impunemente, de um formato
a outro (DUBOIS, 2014, p. 134).
Quando partimos da ideia de que não há um local previamente adequado para a projeção de
filmes ou vídeos, estamos pensando que tudo pode virar uma tela de exibição, e mais: essa "tela"
não necessariamente será retangular. As imagens podem se adaptar à superfície e revelar outros
formatos que ganhem tridimensionalidade e saiam da tela bidimensional de área plana e ângulos
retos para fomentar novas maneiras de exibição que possam se aproximar daquelas primeiras
experimentações de cinema em que não existia ainda nenhuma forma padronizada de produzir e
exibir filmes [...] Uma espécie de "retorno" à anarquia inicial do primeiro cinema, quando ainda
não havia sido cristalizado um modelo industrial único (MACHADO, 2008, p. 67).
Se partimos do pressuposto de que não há um único local apropriado para exibição e de
que os filmes/vídeos ou quaisquer produções audiovisuais possam ser projetadas em uma
variedade de locais, invertemos a lógica apontada por Menotti (2012) ao afirmar que na grande
indústria cinematográfica, o filme é criado em função dos mecanismos de consumo e da sala
escura como dispositivo inerente ao cinema tradicional. Ideal seria se cada filme pudesse buscar
as formas de exibição que fossem mais adequadas à sua proposta específica, e nem por isso
deixar de ser cinema. (MENOTTI, 2007, p. 14, grifo do autor). Assim, poderíamos pensar em
produções que pedem outras ambientações que colocam em jogo diversificados meios de
espectação e que tiram os espectadores de seu lugar de contemplação para provoca-los a
participar das obras, reinventando-as.
Moran (2011) nos chama atenção para aquilo que aciona o sentido e não o sentido da
forma expressiva, ou seja, as imagens provenientes de trabalhos que ampliam as possibilidades
de maneiras de vê-las e senti-las não buscam colar-se em um sentido específico. O que querem
é provocar aberturas para uma multiplicidade de coisas ainda sem nome.
As possíveis experiências que possam vir a atravessar os corpos em meio à ambientes não
necessariamente escurecidos, são fundamentais para um cinema tomado como um sistema de
imagens e sons que se configuram em modos de sentir e pensar que se produzem no cruzamento,
na contaminação entre diversas artes e linguagens (GONÇALVES, 2014, p. 10). Trata-se de
instaurar uma visualidade sensorial que possa contagiar corpo, que em interação com as obras,
passa a constitui-las instaurando outros modos de entendimento e de apropriação do mundo,
modos de saber essencialmente corporais e não-hermenêuticos (GONÇALVES, 2014, p. 15).
Gonçalves (2014) nos apresenta uma maneira de ver produções audiovisuais em que as
visualidades implicadas nas obras, extrapolam maneiras convencionais de exibição produzindo
sentidos não-lineares e não organizativos. São como narrativas sensoriais em que os sentidos são
produzidos em zonas de atravessamento que problematizam a estabilidade do real, buscando assim,
provocar um olhar tátil, polissêmico e polifônico que desestruture as narrativas fechadas para criar
imagens no fluxo da vida, na fissura, nos interstícios entre o que se entende e o que e sente.
Christine Mello (2008) discorre sobre as extremidades do vídeo para tratar de sua natureza
híbrida que na contemporaneidade conecta-se à múltiplas linguagens, bem como por situações
sociais e artísticas, já que muitas vezes o vídeo se coloca em contato com estratégias discursivas
que não necessariamente dizem respeito à sua, produzindo, com isso, uma descontinuidade, um
desvio, uma falha (MELLO, 2008, p. 29). A hibridização das linguagens artísticas
intermediadas especificamente pelo vídeo e a capacidade de promover experiências ambientais
que a autora denomina de videoinstalação, pode aproximar as obras audiovisuais com a ideia
de cinema expandido de Michaud (2014). Quando estas obras estão situadas em consonância
com um ambiente que possibilita a supressão do olho como único canal de apreensão sensória
para a imagem em movimento (MELLO, 2007, p. 91), torna-se possível escapar dos locais de
exibição vinculados ao cinema ao qual estamos habituados:
1 - Registro fotográfico de experimentações com escultura e vídeo nos arredores do prédio da Faculdade de Educação.
Vídeo-intervenção
escolhido. Ele pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites,
recortes: e outra de absoluta abertura (MIGLIORIN, 2015, p. 79).
O trabalho com os dispositivos3 acaba por criar desvios nas imagens e sons que podem
vir a trazer outras maneiras de ver o local físico onde se dão as experimentações, a partir de
pontos de vistas inusitados, já que esse processo inventivo permite que criemos deixando que
nos atravessemos por aquilo que nos cerca, ao mesmo tempo que nos impede de reproduzir
clichês que nos dão o hábito da televisão e do cinema comercial. O dispositivo, nesse sentido,
atua tanto como indicador de alguns gestos a serem realizados – linhas duras – quanto
promovem rupturas e desvios dos gestos habituais de uso das câmeras justamente ao estabelecer
regras fixas para a captura das imagens, mas deixando todas as demais decisões para quem as
filma criando passagens para linhas flexíveis ou de fuga.
Abaixo, os dois dispositivos propostos para os grupos durante o minicurso para a criação
do vídeo coletivo:
O grupo responsável pela imagem fez a captação na área externa do prédio onde o
minicurso estava sendo ministrado. As texturas escolhidas foram as das árvores, folhas secas e
água corrente. O som captado pelo outro grupo era de plásticos amassados e molhos de chave
dissonantes, que se misturavam às batidas ritmadas de portas que abriam e fechavam junto aos
interruptores de luz que ligavam e desligavam.
Vimos todas as produções separadamente, conversamos sobre nossas percepções sobre
elas, principalmente sobre o som, que surpreendeu aqueles que não presenciaram o momento
de sua criação, já que não faziam ideia da origem daqueles ruídos. Logo, juntamos imagem e
som de maneira, digamos, analógica, já que o som gravado pelo celular de uma das participantes
foi reproduzido ao mesmo tempo que foi dado o play no vídeo reproduzido pelo computador,
fazendo surgir nossa produção4 audiovisual feita a várias mãos.
3
Esse trabalho já vem sendo desenvolvido pelo Projeto “Inventar com a diferença” desde 2014 e tem sido acrescido por
outros projetos e experimentações realizadas pelo Brasil afora, como ocorre nas variadas oficinas criadas e executados
no âmbito do Programa “Cinema & Educação-A Experiência do Cinema na escola de Educação Básica Municipal” em
Campinas - SP. Cezar Migliorin (2015) nos conta sobre as experiências do Projeto já que é um de seus organizadores.
Site dos projetos: https://www.inventarcomadiferenca.org – http://educacaoconectada.campinas.sp.gov.br/programa-
cinema-educacao.
4 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zikd9g5ufwM.
A segunda parte do encontro, consistiu em caminhar até uma área ao ar livre onde estavam
descartados entulhos, troncos cortados e bambus sem uso e abandonados. A proposta foi então
pensarmos na potência escultórica daqueles materiais e como poderiam ser reconfigurados para
compor uma instalação que implicasse os corpos de quem por ali pudesse passar e presenciar
aquela intervenção inusitada no espaço institucional da universidade.
Aos poucos, as/os participantes foram coletando materiais que lhes chamavam a atenção
e juntos foram compondo, com movimentos de braços que carregavam aqueles materiais
maiores que a escala de seus corpos, um objeto tridimensional.
Após um consenso do grupo todo, de que a escultura estava terminada e o ambiente ali
instaurado, pronto para receber a intervenção da imagem e do som feitos anteriormente, ligamos
um projetor portátil e ali, iniciamos uma experimentação com projeções.
O projetor foi passando de mão em mão e cada participante ia deslizando o vídeo sobre a
superfície da escultura descobrindo as diferenças que cada material proporcionava ao ser projetado,
resultando em outras camadas de imagens, quando recombinadas às texturas visuais do vídeo.
Interessante observar as alterações da nitidez do vídeo projetado conforme a noite ia
caindo. O minicurso foi dado no fim de tarde e coincidentemente, a experimentação se deu entre
da duração do pôr do sol, até a chegada da noite. Essa circunstância natural do ambiente onde
foi feita nossa intervenção, reverberou na projeção do vídeo sobre a escultura, que sofria as
mutações provocadas pelas distintas nuances de iluminação daquele momento. Logo, as
lâmpadas amareladas fotossensíveis do prédio da Faculdade de Educação foram acendendo,
somando mais camadas de luzes, revelando na imagem seus tons mais quentes que iam se
tornando mais vibrantes em função da iluminação artificial ali presente.
Atravessamentos II
Brakhage (1983) nos fala dos filtros do mundo que se tornam perceptíveis quando nos
arriscamos pelo caminho errante dos processos de experimentação em arte. A ideia de que somos
"experimentadores" que ao nos permitirmos o agenciamento com máquinas capazes de
enquadrarem e gravarem alguns recortes do que vemos, possibilita que façamos o
compartilhamento de nossos os "pedaços" de mundo. Nossos pequenos fragmentos escolhidos para
serem filmados têm potência de provocar conversas sobre as trajetórias que compuseram aquelas
imagens e sons aglutinadas pelo "fazer cinema" à nossa maneira, como podemos e queremos.
Como nos aponta Migliorin (2015): a primeira característica de uma imagem
cinematográfica é que ela ‘sofre’ o mundo, é afetada por ele. (MIGLIORIN, 2015, p. 35 –
destaques do original), por isso, as imagens que fazemos com nossas câmeras advêm do mundo
e quando as filmamos e as mostramos, são criados outros mundos mais pelos olhos daquelas/es
que entram em contato com nossas produções audiovisuais.
Maciel (2008) nos convida a pensar um cinema "fora da moldura", fora da tela, um cinema
que gera uma situação na qual o espectador participa das imagens (MACIEL, 2008, p. 76). Para
tanto, a autora compara a moldura das pinturas ao formato retangular da tela de cinema,
trazendo alguns artistas que propõem o rompimento do típico enquadramento retangular, como
por exemplo, mais uma vez, Hélio Oiticica. O artista criou as séries Núcleos (1960-1963),
Penetráveis (1960) e Bólides (1960-1966) em que a pintura sai da parede e toma o espaço,
configurando-se como instalações em que as transições entre cores se dão a partir da
movimentação do espectador que circunda, adentra e caminha pelas obras.
A ruptura do hábito cinema apontado por Maciel (2008) se refere à proposição às/aos
espectadoras/es para que se coloquem em movimento em uma nova situação arquitetônica
produzida nas instalações contemporâneas que implicam a multiplicação de telas, a
sobreposição de projeções, as montagens interativas (MACIEL, 2008, p. 76) que fazem com
que inevitavelmente os corpos tenham que se movimentar produzindo um percurso físico.
Lidamos também com a ideia de cinema expandido proposta por Michaud (2014), que se
configura como um sistema de imagens que arrasta para si elementos diversos que não se
limitam ao campo da linguagem cinematográfica. A expansão de uma ideia mais ampla de
cinema se dá no "entre", nas fronteiras das linguagens artísticas que lidam com a imagem
provocando descontinuidades e desorganizações nos sentidos. Uma imagem nunca está só. O
que conta é a relação entre imagens, diz Deleuze (1992). Trata-se de instaurar uma visualidade
sensorial que proponha outros modos de entendimento e de apropriação do mundo, modos de
saber essencialmente corporais e não-hermenêuticos (GONÇALVES, 2014, p. 15), constituindo
um sistema de imagens e sons que se configuram em “modos de sentir e pensar que se produzem
no cruzamento, na contaminação entre diversas artes e linguagens” (GONÇALVES, 2014, p.
10). É na invenção de outras maneiras de ver que coloca-se a tentativa de avizinhar outras
coisas, imagens, pensamentos e sons que não se encontram no plano fílmico mas que passam
por outros canais sensórios do corpo criando mais versões do mundo para o próprio mundo.
Referências
GIUFRIDA, G. Rosa Barba In: REBOUÇAS, J.; VOLS, J. (Org.). Guia 32ª Bienal de São
Paulo: Incerteza Viva. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p. 340-341.
MACIEL, K. O cinema "fora da moldura" e as narrativas mínimas. In: MACIEL, K. (Org.). Cinema
Sim: narrativas e projeções: ensaios e reflexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2008, p. 74-81.
______. Videoinstalação e poéticas contemporâneas. Revista ARS, São Paulo, v. 5, n. 10, p. 90-
97, 2007.
MENOTTI, G.. Através da sala escura: espaços de exibição cinematográfica e Vjing. São
Paulo: Intermeios, ES: Prefeitura Municipal de Vitória, 2012.
MICHAUD, P. Filme: por uma teoria expandida do cinema. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto,
2014.
______. Inevitavelmente Cinema: Educação, política e mafuá. 1. ed. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2015.
MORAN, P. Ontem e hoje: Circuitos e Acontecimentos lá e cá. In: CRUZ, R. (Org.) Rumos
cinema e vídeo: linguagens expandidas. São Paulo: Itaú Cultural, 2011. p. 99-105.
Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar as experiências do uso da tecnologia para o
ensino de Língua Portuguesa para aprendizes surdos, apresentados na Oficina de leitura, escrita
e tecnologia para aprendizes surdos, no 21º Congresso Brasileiro de Leitura do Brasil,
realizado na Unicamp, em julho de 2018. Os contextos descritos aqui são os do Instituto
Nacional de Educação de Surdos: Colégio de Aplicação (DEBASI) e o curso online de
pedagogia, do Departamento de Ensino Superior (DESU)).
As práticas realizadas estão vinculadas ao Grupo de Pesquisa Estudos Linguísticos e
Literários na Educação de Surdos (ELLES)3, que busca refletir sobre temas relacionados à educação
de surdos e à elaboração de materiais didáticos com foco nas necessidades reais desses aprendizes.
Pretende-se, deste modo, apresentar a base metodológica e as estratégias das oficinas e
disciplinas ofertadas para educandos surdos da educação básica e do ensino superior no INES,
que tem por base teórica, respectivamente, a Análise de Discurso e a História das Ideias
Linguísticas, de orientação francesa, e a Linguística Aplicada.
Com isso, o artigo visa mostrar como o ensino de língua portuguesa por meio do uso de
meios digitais pode proporcionar um aprendizado para o sujeito surdo da língua escrita no
momento da interação e do uso em redes sociais e ambientes virtuais, através da Libras.
Para o sujeito surdo brasileiro identificado com a LIBRAS enquanto língua materna e/ou
de formação identitária, a língua portuguesa escrita é uma língua outra a qual, no que se refere
às políticas linguísticas, é considerada como consta na Lei nº 10.436/2002, uma segunda língua.
Muitos surdos relatam uma dificuldade e um distanciamento com a língua portuguesa escrita e,
tendo em vista a relação entre escrita e a tecnologia no que Auroux (1998) denomina como
“informatização da escrita”, é imprescindível colaborar para que o aprendiz surdo possa assumir
1
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/MEC).
2
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/MEC).
3
http://dpg.cnpq.br/dpg/espelhogrupo/8191336634503455
um lugar de leitor e escritor bilíngue no contexto da tecnologia. Faz-se então necessária uma
reflexão que conduza a uma prática de ensino-aprendizagem que considere estas questões como
base.
Conforme afirma Auroux (1998), a informática trouxe à escrita um caráter de
“mecanização da linguagem” que transforma os modos dos sujeitos se relacionarem com a
escrita e se expressarem através dela na contemporaneidade. Além disso, Orlandi também
analisa o elo entre sujeito, escrita e tecnologia:
Certamente, o atual caráter da escrita com a informática afeta o sujeito surdo quanto a sua
condição de ser levado a expressar-se em LIBRAS e em língua portuguesa. Assim,
considerando que a língua portuguesa escrita para o surdo brasileiro identificado à LIBRAS é
uma língua outra, o lidar com a escrita em ambientes virtuais para este sujeito demanda, além
do dominar a técnica da informática, se relacionar com a escrita em língua portuguesa e com as
possibilidades de comunicação em LIBRAS por meio de vídeos, webchats, dentre outros.
Por isso, o ensino-aprendizagem de línguas para surdos, em especial, o de língua
portuguesa, precisa construir reflexões e práticas que caminhem neste rumo, trabalhando com
o aprendiz de forma a desenvolver não apenas uma habilidade com a escrita informatizada, mas
também a autonomia e a criticidade enquanto sujeito que navega no discurso eletrônico e em
línguas tão distintas. No caso da proposta dos trabalhos aqui apresentados, através da circulação
da LIBRAS e da língua portuguesa escrita no navegar das redes e plataformas digitais, busca-
se estabelecer atividades que desenvolverão: a) reflexões de caráter metalinguístico da língua
portuguesa escrita em LIBRAS; b) questões pertinentes aos ambientes virtuais; c) o ensino da
língua portuguesa escrita para surdos através da perspectiva bilíngue, de forma a investir na
criticidade sobre a sociedade e as redes virtuais e sobre as próprias línguas.
A oficina foi motivada por uma demanda dos estudantes de uma turma regular do 7º ano
do segundo segmento do ensino fundamental, motivação esta que revelou um desejo mais geral.
Muitos adolescentes surdos, embora tenham perfis em redes sociais, como o Facebook,
Instagram, Whatsapp, dentre outras, se queixam da dificuldade de compreender o que circula
em língua portuguesa escrita, justamente uma língua outra para o surdo identificado a Libras.
Um rapaz da turma foi alvo de uma espécie de vexame virtual, pois foi induzido por um colega
a escrever em seu perfil do Facebook postagens agressivas referentes a própria sexualidade e
de algumas estudantes, tendo sido enganado sobre o significado do que estava escrevendo. A
professora, ao saber do que houve, questionou e alertou o estudante que, de fato, não tinha
fluência em língua portuguesa. Ao avaliar o perfil de seus estudantes, a professora verificou ser
necessário um trabalho de leitura e escrita em língua portuguesa relacionado a tecnologia,
através da circulação de saberes linguísticos em LIBRAS e em língua portuguesa. A oficina,
realizada em três horas-aulas semanais no contraturno, é desenvolvida tanto com caráter
instrumental, por meio da criação e uso de e-mails, uso de editores de texto, arquivos de
Através da circulação da LIBRAS e da língua portuguesa escrita no navegar das redes, busca-
se estabelecer reflexões de caráter metalinguístico da língua portuguesa escrita em LIBRAS, no
momento mesmo em que o aprendiz transita nas redes sociais e em sites. Cabe ressaltar então que
a oficina é ministrada em LIBRAS e em língua portuguesa escrita, isto é, a LIBRAS comparece
como língua na qual são discutidas questões pertinentes aos ambientes virtuais e também onde são
produzidos saberes metalinguísticos sobre a língua portuguesa e a própria Libras, sempre a partir
das demandas dos aprendizes. Trabalha-se desde atividades de consciência ortográfica e lexical
como também de construção de enunciados mais complexos, sempre na relação com o digital. Por
exemplo, no que se refere ao saber ortográfico e lexical, busca-se ensinar a importância da grafia
correta de um endereço de email e de senhas para a efetivação do ato comunicativo; o uso de sites
de busca para a inferência de sentidos de uma palavra ou enunciado; o funcionamento de
ferramentas como os corretores ortográficos, dentre outras. Tal atividade visa uma memorização
ortográfica atrelada ao uso pelo aprendiz surdo, tendo como estratégias: a inferência dos sentidos
por meio da leitura em Libras da língua portuguesa escrita; a datilologia já significada em LIBRAS4;
e a digitação no teclado físico ou virtual do computador.
Quanto à leitura de enunciados mais complexos, os aprendizes são estimulados através
de algumas estratégias, discutidas sempre no elo entre a Libras e a língua portuguesa escrita e
4
É importante frisar que a datilologia tradicionalmente é usada como forma de memorização da língua portuguesa,
mas sem necessariamente estabelecer relação com a construção de sentidos em Libras e/ ou com a escrita em
língua portuguesa. Deste modo, o estudante surdo pode até decorar palavras, mas não necessariamente fará a
correspondência entre o alfabeto datilológico e o alfabeto em língua portuguesa, por conseguinte, a grafia. A
proposta aqui é justamente caminhar em outra direção, promovendo saberes metalinguísticos no momento de
circulação e uso das línguas. A datilologia e a consciência ortográfica e lexical em língua portuguesa, por estarem
fundamentadas pela construção dos sentidos em Libras, passam por um processo de subjetivação do aprendiz
surdo, que se apropria deste saber metalinguístico.
Este ano, iniciou-se o curso Bilíngue de Pedagogia, que, atualmente, conta com 13
Instituições Públicas parceiras, fazendo parte do Programa Viver sem Limites do Governo
Federal.5 Esse é constituído como parte do Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, consiste em uma das formas de possibilitar a plena cidadania das pessoas com
deficiência no Brasil, oportunizando direitos, cidadania para todas as pessoas e seu acesso e
permanência no ensino superior, na modalidade à distância.
O Plano Viver sem Limites possibilitou mudanças importantes, em especial para a
educação de surdos, pois valoriza o uso da LIBRAS no ambiente educacional, procurando
qualificar professores para o ensino bilíngue e adaptações curriculares que tornem possível a
inclusão do surdo na escola regular.
O curso Bilíngue de Pedagogia segue uma concepção bilíngue de ensino, em que as
línguas de instrução são a LIBRAS (L1 dos sujeitos surdos) e a Língua Portuguesa na
modalidade escrita (L2 desses aprendizes).
Diante da experiência no ensino de LP para alunos surdos, entende-se que o bom resultado
no processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa como L2 depende do uso de
metodologias e estratégias adequadas que levem em conta as singularidades linguísticas dos
surdos. Fernandes (2006), Pereira (2003), Quadros (1997) e Quadros & Schmiedt (2006)
argumentam que muitos aprendizes surdos são filhos de pais ouvintes e têm pouco ou nenhum
contato com a LIBRAS e, consequentemente, experiências linguísticas pouco significativas.
As práticas de leitura precisam ser contextualizadas, fornecendo condições para que o
aprendiz surdo compreenda o texto. O professor deve provocar nos alunos o interesse pela
leitura, fazendo discussões prévias sobre o assunto, utilizando estímulos visuais em suas aulas.
Pensando nessas questões, o material da disciplina Língua Portuguesa Escrita I (para
surdos) foi organizado em 7 unidades, com duração de uma semana cada. Cada unidade contou
com um vídeo de apresentação, elaborado pela professora conteudista, com duração de cinco
5
Relação dos Polos: UFAM, UFC, INES, UNIFESP, IFSC, UEPA, UFPB, UFBA, IFG, UFGD, UFLA, UFPR,
UFRGS.
minutos, que apresenta a unidade, instigando o aluno sobre os conteúdos que serão trabalhados,
levantando questões, despertando a curiosidade e convidando-os para interagirem nos espaços
de discussão, como o chat (fórum).
Cada unidade contou com um texto base e atividades diversas relacionadas ao conteúdo
da disciplina que visava o estudo de gêneros jornalísticos e o uso de estratégias de leitura em
segunda língua.
A avaliação ocorre ao longo de cada unidade, o professor formador verifica se o aluno
atingiu os objetivos previstos dentro do conteúdo trabalhado, podendo ser uma prova escrita,
um trabalho em grupo, uma pesquisa ou outra estratégia que o professor preferir.
O curso é disponibilizado ao aluno por meio de uma plataforma, com várias informações
que o levam ao conteúdo e às atividades propostas. Essa plataforma é constituída por alguns
recursos pedagógicos, como segue:
A linguagem é um importante recurso que deve atingir o aluno de uma forma ao mesmo
tempo amigável, estimuladora e respeitosa, tornando a aprendizagem uma experiência
agradável e eficaz dentro das propostas desenvolvidas no curso. É importante destacar o uso da
linguagem não verbal utilizada de forma bastante intensa, explorando os recursos visuais e a
variedade comunicativa, pois se trata de um curso bilíngue, o que exige um foco no visual, no
imagético. Por isso, pensando na importância de recursos e de estratégias adequadas para a
Considerações finais
Referências
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS e dá outras providências.
BRASIL. Decreto Nº 5.626. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe
sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro
de 2000. Publicada no Diário Oficial da União em 22/12/2005.
______. Educação Bilíngüe para Surdos: trilhando caminhos para a prática pedagógica.
Curitiba: SEED/SUED/DEE, ago. 2004.
KARNOPP, Lodenir. Língua de sinais e língua portuguesa: em busca de um diálogo. In: LODI,
Ana Claudia Balieiro et. al. (Org.). Letramento e minorias. Porto Alegre: Mediação, 2003.
PEREIRA, M. C. C. Papel da língua de sinais na aquisição da escrita por estudantes surdos. In:
LODI, A. C. B. et al. Letramento e minorias. Porto Alegre: Editora Mediação, 2002.
Resumo: Com o objetivo de contribuir para a compreensão da literatura infantil como arte e,
em virtude disso, possuir uma força humanizadora enfocam-se, neste artigo, as potencialidades
dos livros de imagem para formação de leitores. Mediante procedimentos de localização,
seleção, reunião e análise elaborou-se um instrumento de pesquisa contendo os títulos e autores
de livros de imagens nacionais publicados, até o momento, a fim de ampliar o repertório das
professoras em relação ao conhecimento deste gênero literário. Espera-se ampliar a
compreensão sobre esse objeto cultural para a leitura visual, uma vez esse tipo de leitura
possibilita a ampliação da oralidade; a criação de diferentes versões de uma mesma sequência
narrativa, o desejo e a necessidade de ser autor/a; e o encantamento pelo universo literário
ampliando o senso estético mediante a leitura do texto (in)visível das imagens.
Palavras-chave: Literatura Infantil; livro de imagem; formação de leitores e produtores de
textos.
Introdução
1
Bárbara Cortella Pereira de Oliveira é graduada em Pedagogia (Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”
UNESP- Marília-SP), tem Mestrado e Doutorado em Educação pela mesma instituição. Realizou doutorado
sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris-França), sob orientação do Prof. Jean
Hébrard (EHESS). É professora/pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Líder do Grupo
de Estudo e Pesquisa “Linguagem Oral, Leitura e Escrita na Infância” (GEPLOLEI). Tem experiência na área de
História da alfabetização, Alfabetização, Leitura e Escrita, e Literatura infantil com pesquisa nas mesmas
temáticas. E-mail: barbaracortella@gmail.com.
2
Nilza Cristina Gomes de Araújo é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
tem Mestrado e Doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP-
Araraquara-SP. É professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Vice-líder do Grupo de Estudo
e Pesquisa “Linguagem Oral, Leitura e Escrita na Infância” (GEPLOLEI). Tem experiência na área de
Alfabetização, Alfabetização no campo, Leitura e Escrita com pesquisa nas mesmas temáticas. E-mail:
nilzacga@hotmail.com.
3
Optamos neste artigo utilizar o termo “livro de imagens”, pois consideramos que as imagens contam as
histórias/narrativas, mas esse tipo de livro pode ser denominado também de outras formas, tais como: “Livros sem
de leitores de forma autônoma ou mediada. O encontro com esse gênero literário também tem
produzido em nossa prática de formadoras de professoras4 uma nova forma de ensinar-aprender
a ler essa linguagem visual, muitas vezes (in)visível no espaço escolar.
Nessa relação duradoura e de encantamento que estabelecemos, mais solidamente a partir
de 2016, fomos formulando algumas questões/provocações: Como nos sentimos diante de um
texto (in)visível apenas com a leitura das imagens? Conseguimos atingir o(s) sentido(s)
pretendido(s) pelos autores desse gênero literário no momento de produção deste objeto cultural
ou nos tornamos – crianças e/ou adultos – coautores de suas obras literárias, desvirtuando seu
sentido original? Nosso olhar adulto está despido de preconceitos para se deleitar com as
narrativas visuais em toda sua beleza estética, ética e política?
Nelly Novaes Coelho – na terceira parte do clássico Literatura Infantil: teoria, análise e
didática (2000) – problematiza a dupla função “recreativa e pedagógica” do livro de imagens
para a formação do pré-leitor e sua utilização desde os anos de 1920, na França, com os álbuns
do “Père Castor” ou Paul Faucher.
[...] a linguagem das imagens era um dos mediadores mais eficazes para
estabelecer relações de prazer, de descoberta ou de conhecimento entre a
criança e o mundo das formas – seres e coisas – que a rodeiam e que ela mal
começa explorar. (COELHO, 2000, p. 186, grifos da autora).
Coelho (2000, p. 197) apresenta seis pontos sobre o valor “psicológico / pedagógico / estético
/ emocional” da linguagem imagem/texto nos livros de literatura infantil: sensibilização do “[...]
olhar como agente principal na estruturação do mundo interior da criança”; estimula a atenção
visual e capacidade de percepção; contribui para a comunicação entre a criança e a narrativa;
aproxima as relações abstratas que “só através da palavra, a mente infantil teria dificuldade em
perceber”; amplia a capacidade de concentração na leitura de maneira significativa e estimula a
imaginação infantil e sua potencialidade criadora.
Para Ramos (2011) tanto uma imagem como um texto escrito podem nos ser apresentados
através de várias camadas de leitura nos solicitando examinar tais obras com um olhar atento e
tranquilo, com certo grau de atenção para conseguirmos visualizar para além do que é visto em
um primeiro instante.
As caixas de literatura infantil distribuídas às escolas pelo Programa Nacional Biblioteca da
Escola (PNBE) do Ministério da Educação contem excelentes exemplares de livros de imagens.
Para as crianças de 4-5 anos, o PNBE 2014 disponibiliza como acervo para
alunos, professores e profissionais que atuam em bibliotecas escolares um
conjunto de obras, no qual livros de imagem representam também 18% do
montante distribuído entre livros de prosa, em verso, história em quadrinhos
e livros de palavra-chave. (PAIVA, 2014).
textos”, “livros-de-imagem”; “livros só-imagem”; “livros de imagens”; “livro-imagem”; “álbum ilustrado”; “livro
mudo”; “história muda”; “história sem palavras”; “literatura visual”; “narrativas imagéticas” etc.
4
A fim de evitar repetições desnecessárias, a partir daqui utilizaremos o termos “professoras”, uma vez que a
maioria dos docentes de Educação Infantil e Ciclo de Alfabetização são do gênero feminino.
Como podemos observar, os livros de imagens têm estado presente na escola como uma
importante prática de leitura para a formação de leitores, não apenas para crianças não
alfabetizadas, mas para leitores de todas as idades.
No Brasil esse gênero literário começa a ser produzido em meados da década de 1970,
mas é a partir da década de 2000, conforme Quadro 1, que essa produção ganha força no
mercado editorial brasileiro e, mais ainda, dentro das escolas públicas.
5
Repertoriamos os títulos/autores de livros de imagens que consideramos mais representativos, sem a pretensão
de um balanço. Nosso objetivo foi ampliar o repertório para a constituição de um acervo das professoras que atuam
na Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Como podemos observar no Quadro 1, nas décadas de 1980 e 1990, temos publicados
os primeiros títulos com as renomadas Eva Furnari, Ângelo Lago e Graça Lima a partir da
publicação de uma dezena de títulos. O pioneirismo de Eva Furnari representado pela
publicação de livros de imagens com personagens plenas de humor, irreverentes e atrapalhadas.
De 2000 a 2010, também foram publicados uma dezena de livros de imagens de altíssima
qualidade com os autores Graça Lima, André Neves, Ilan Brenman, Nathalia Cavalcante,
Michele Iacocca, Taisa Borges e Nelson Cruz. Dentre esses destacamos a sensibilidade do livro
de imagens Passarinhando e O brinquedo por tratarem de temáticas como a solidão e
pertencimento na infância; o resgate das histórias clássicas originais de Charles Perrault, irmãos
Grimm e Hans Christian Andersen recontados por Taísa Borges.
De 2011 a 2018, como se pode observar houve um aumento significativo na produção de
livros de imagens com mais de trinta títulos de autores brasileiros. Dentre esses, destacamos Os três
porquinhos, de Ângelo Abud com o retorno ao tema dos contos clássicos originais; as narrativas
divertidas que seduzem leitores crianças e adultos como em O bocejo, Telefone sem fio e Enganos,
de Ilan Brenman; as aventuras de um menino valente pelo mundo medieval em O Bárbaro, de
Renato Moriconi; a sensibilidade das narrativas de de Lúcia Hiratsuka em A visita e Oriê; e a
misteriosa e encantadora história Lá vem o homem do saco, de Regina Rennó. Apesar de sua maior
popularização, constatamos que mesmo assim continua à margem na sala de aula, pois a linguagem
visual ainda continua sendo um obstáculo nas mãos das professoras leitoras.
Para criar uma narrativa a partir apenas da linguagem visual, é necessário um bom
planejamento e muitas leituras de cada camada aparente do texto (in)visível. Nesta última
década, a ilustração não é vista como mero complemento do texto (in)visível, nem o livro é
mero suporte. Texto, imagem e projeto gráfico dialogam em cada momento da narrativa visual.
Para ler um livro de imagens, o leitor deve aceitar entrar no jogo proposto pelo
álbum. O jogo dos enquadramentos e o jogo das múltiplas formas da
representação. As crianças pequenas não têm nenhuma dificuldade com isso,
pois elas, ao virem ao mundo, são permanentemente confrontadas com a
necessidade de interpretar os signos para entrar em relação com o mundo e
com aqueles que o constituem. (RATEAU, 2015, p. 27).
Com o estudo do referencial teórico das disciplinas vão compreendendo que não é uma
novidade deste século, mas que ao longo da história o modo de se relacionar com esse tipo de livro
foi se modificando. No início do século XX, com os álbuns du Père Castor a função deste objeto
cultural era muito mais didático-pedagógica do que estética como vem acontecendo, recentemente.
A leitura individual ou coletiva de diversificados títulos de livros de imagens tem rendido
diferentes experiências literárias para as futuras professoras, tais como: leitura apenas como
fruição; a escrita e reescrita de diferentes versões de uma mesma história; a produção autoral
de livros de imagens e a utilização deles em um Sarauzinho literário para/com crianças de
escolas públicas da rede municipal de Cuiabá-MT.
Os livros de imagens mais recorrentemente utilizados nas disciplinas são: Traquinagens
e estripulias (1982); Bruxinha Zuzu e o gato Miú (2010); ambos escritos e ilustrados por Eva
Furnari; A bela adormecida (2007), de Charles Perrault e ilustrado por Taisa Borges;
Brinquedos (2009), de André Neves; O jornal (2012), de Patricia Auerbach; Lá vem o homem
do saco (2013), de Regina Rennó e Passarinhando, de Nathalia Sá Cavalcante.
Foi com este intuito de fazer mais de uma leitura de um mesmo texto, bem como enxergar
para além do que está posto em um primeiro plano que propusemos o estudo da Unidade 3 “A
contribuição do livro de imagem para formação de pequenos leitores (linguagem oral e escrita)”
a professoras da educação infantil e do ciclo de alfabetização de um Curso de extensão (2017)6
e Minicurso7 (2018), onde exploramos as diferentes potencialidades do uso do livro de imagens
para a formação de pequenos leitores.
Inicialmente, projetamos a história do livro Passarinhando, da designer gráfica Nathalia Sá
e fomos envolvendo as professoras na construção coletiva da narrativa sobre a história de Lico, um
passarinho muito triste porque vivia preso em uma gaiola. Após a construção oral, escrevemos no
quadro um roteiro sobre as principais cenas da história. Cada grupo fez um roteiro escrito sobre a
história do livro de imagens escolhido e no dia de socialização apresentaram.
Em um primeiro momento, provavelmente também por falta de familiaridade e
conhecimento sobre este gênero literário as professoras do Curso de Extensão se sentiram pouco
confortáveis com a falta da linguagem verbal, mas a cada livro lido, entusiasmadas com a
possibilidade produzir diferentes versões de uma mesma história, como podemos observar na
seguinte narrativa:
6
Para maiores informações sobre este Curso, ver: sem identificação de autoria (2018). Esse Curso de Extensão em
sua elaboração e execução esteve vinculado às atividades do Grupo de estudos e pesquisas “Linguagem Oral,
Leitura e Escrita na Infância (GEPLOLEI/UFMT)” e ao desenvolvimento do Projeto de Pesquisa “Alfabetização
e letramento: práticas pedagógicas de professoras da pré-escola e 1º ano do ciclo de alfabetização, em duas escolas
municipais de Cuiabá-MT” (CAP 424/2016).
7
Minicurso intitulado “As potencialidades dos livros de imagens para a formação de leitores na educação infantil
e ciclo de alfabetização”, ministrado dia 13/7/2018, no 21º. Congresso de Leitura do Brasil (COLE).
Uma das atividades plenas de sentido para os estudantes8 do 4º ano do Curso de Pedagogia
da UFMT em 2016 foi a produção de um Sarauzinho literário9 para/com crianças no CMEI
“Manoel de Barros10”, em Cuiabá-MT. Uma das atividades permanentes desse Sarauzinho é o
trabalho com os livros de imagens ilustrados pelas próprias estudantes.
8
Agradecemos a generosidade dos estudantes André Vinícius Oliveira Lisboa, Larissa Mineyah de Lima Pereira,
Norma Alina da Costa e Silva e Ruth Benedita L. F. Amaral Passos por autorizarem a publicação das imagens de
parte de suas obras citadas neste artigo, a fim de partilharem uma experiência que foi significativa para eles.
9
Realizado em 12/09/2016, sua Programação foi planejada em cinco momentos: 1º Momento: Despertando para
o amanhecer – socialização com as crianças cantando “Catira dos passarinhos” e “Bernardo”, do grupo
Crianceiras; 2º Momento: Conhecendo a casa de Barros; 3º Momento: Brincando com a invenção; 4º Momento:
Travessuras de João; e Encerramento: Contemplando a poesia de Manoel de Barros nos livros de imagens
produzidos pelos graduandos de Pedagogia.
10
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em 19 de dezembro, em Cuiabá-MT; passou sua infância em
Corumbá-MS (Pantanal Sul matogrossense); mudou-se para Campo Grande-MS e, posteriormente para o Rio de
Janeiro-RJ; em 1941, graduou-se em Direito; em 1947, mudou-se para Nova Iorque, onde estudou pintura e
cinema. Casou-se e teve três filhos, em Campo Grande-MS; e sua obra ganhou reconhecimento nacional e
internacional, especialmente, a partir da década de 1980.
11
Sobre a análise deste livro Cf. o belíssimo ensaio de Medeiros (2009).
Em seguida, propositalmente tiveram contato apenas com o texto, sem terem acesso às
ilustrações de Ziraldo. Ao se apropriarem das partes que compõe esse livro ficaram surpresos
que havia sido destinado ao público infantil, questionando-se se o conteúdo dos poemas seria
adequado ao público infantil. Fizemos, então, uma discussão e ressignificação sobre a
concepção de criança(s) como produtoras de cultura(s) e não apenas consumidoras passivas de
uma cultura adulta imposta, uma criança crítica que produz conhecimento a partir de sua
realidade assim como do conceito de literatura infantil enquanto obra de arte e seu pacto
ficcional e a formação do gosto desse leitor criança e/ou adulto.
Segundo Magnani (1992); Mortatti (2018) o que caracteriza um texto como literário não
é apenas o assunto ou seu conteúdo, é necessário levar em conta que se lida com o todo de um
texto: o que, como, quando, quem, onde, por que, para que, para quem se diz. (MAGNANI,
1992, p. 104). Para a formação e a transformação do gosto da leitura literária, segundo essa
autora as professoras devem romper com o estabelecido; propor a busca e apontar o avanço;
problematizando o conhecido e transformando-o num desafio que propicie movimento; propor
a leitura de uma diversidade de textos literários; e o estudo crítico e comparativo dos textos em
sua totalidade, ou configuração textual12:
A partir do poema O amor, de Manoel de Barros, as estudantes criaram pelo menos três
versões de livros de imagens com técnicas de ilustrações diferenciadas, apreciando a
possibilidade de se tornaram ilustradores/as de livros desse gênero literário, escrito para um
público infantil:
12
Proposta de ensino que considera o texto como unidade de sentido e objeto de estudo e a formulação do conceito
de “configuração textual”. O termo “configuração” é utilizado “para significar o processo de articulação prevista
entre opções (temas e procedimentos) e propósitos — ou seja, o projeto — que presidem a produção e leitura do
texto em determinada situação discursiva.” (MAGNANI, 1991/1993, p. 272).
O poema “Meu avô” foi outro texto que produziu bastante identificação nas estudantes, e
tivemos a produção de dois sensíveis livros de imagens ilustrados: um com a técnica
convencional da pintura a lápis de cor; e o outro a partir de colagem de materiais diversos como
EVA, recortes de papéis de revistas, algodão, dentre outros que retrataram a questão da
sabedoria singular das pessoas idosas, como o avô que com sua grandeza espantava a solidão,
muitas vezes sentida pelas próprias crianças.
No poema Palavras, dois estudantes nos surpreendem a partir de suas leituras bem
polares: uma criação sensível com tons marcantes com as cores laranja e verde em aquarela;
outra uma perspectiva bem humorada a partir do gênero deHhistórias em Quadrinhos de
imagens com telas em nanquin, conforme imagens 5 e 6.
Andarilho também
Não posso ver a palavra andarilho que
eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu não tenha vontade de olhar com
espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.
O encontro/a recepção dessas crianças de 5 anos com esses livros de imagens ilustrados
pelas estudantes nos surpreenderam positivamente. Constatamos o encantamento delas pela
poesia de Manoel de Barros assim como pelas imagens produzidas pelos estudantes com
diferentes recursos estéticos para ilustrar os livros produzidos. Compreendemos, ainda, que o
encontro da maioria dessas estudantes com o processo de criação autoral transformou o modo
delas se relacionarem com a literatura infantil.
Considerações finais
Como buscamos apresentar neste artigo, produzir o desejo e a necessidade de ler bons
textos literários para/com crianças por professoras adultas tem sido um de nossos objetivos no
ensino, extensão e pesquisa no âmbito da Universidade pública em que atuamos. O encontro
com o livro de imagens tem nos propiciado experiências (trans)formadoras para a atuação com
pequenos leitores, leitores iniciantes e, até mesmo, com os leitores ditos mais experientes.
Tais experiências com esse objeto cultural – livros de imagens – sem dúvida, tem tornado
nossos olhares mais sensíveis para ver além do visível e nossa escuta mais atenta para aquilo
que as crianças (e também os adultos) como protagonistas e autoras de suas próprias histórias
têm a nos ensinar/relatar sobre cada sequencia narrativa que colocamos em suas mãos.
Referências
ARAUJO, Hanna; MORICONI, Renato. Diálogo sobre o processo de criação e leitura do livro-
imagem. In: NOGUEIRA, Ana Lúcia Horta; LAPLANE, Adriana Lia Friszman (Org.). Leitores
e leituras: explorando as dobras do (im)possível. Campinas, SP: Edições Leitura e Crítica;
ALB, 2017.
COELHO, Isabel Lopes. O livro ilustrado: três estudos de caso. In: NOGUEIRA, Ana Lúcia
Horta; LAPLANE, Adriana Lia Friszman (Org.). Leitores e leituras: explorando as dobras do
(im)possível. Campinas, SP: Edições Leitura e Crítica; ALB, 2017.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil – o visual e o poético. In: ______. Literatura
infantil: teoria, análise, didática. São Paulo, Moderna, 2000.
LIMA, Graça. Lendo imagens. In: Instituto C&A; Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil. Nos caminhos da literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008. p. 36-43.
MAGNANI, Maria do Rosário Longo. Leitura e formação do gosto (por uma pedagogia do
desafio do desejo). Idéias (FDE/SEE/SP), n. 13, p. 101-106, 1992
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Leitura e formação do gosto (por uma pedagogia do
desafio do desejo). In: ______. (Org.). Entre a literatura e o ensino: A formação do leitor. São
Paulo: Editora UNESP, 2018.
Sem identificação de autoria. A arte de ensinar a contar, cantar e ler histórias para e com
crianças: experiências estético-formativas. In: GRAZIOLI, Fabiano Tadeu; COENGA,
Rosemar Eurico (Org.). Literatura de recepção infantil e juvenil: modos de emancipar.
Erechim-RS: Habilis Press, 2018. p. 303-324.
RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2011.
RATEAU, Dominique. Ler com as crianças pequenas. In: BAPTSITA, Monica Correia et al.
Literatura na educação infantil: acervos, espaços e mediações. Brasília: MEC, 2015.
Entrelaçamentos iniciais
São muitas as relações que podem ser estabelecidas entre a natureza e a palavra, mas
talvez seja interessante perguntar se a palavra, em sua materialidade, teria uma espécie de
abertura ou uma potência para ser líquida, leve, volátil, estrondosa, quente, firme etc. Ou ainda,
poderíamos nos perguntar se a natureza, por sua vez, poderia ter em si uma certa afinidade com
a linguagem humana, em especial, com a sua dimensão orgânica ou fisiológica.
A relação entre o corpo humano e a natureza é porosa, cheia de reciprocidades e
metamorfoses, afinal, somos natureza. As águas que se movem no corpo humano, os gases, o
ar, o calor parecem poder tocar e trocar com o mundo natural. Um sopro pode alastrar um fogo,
um toque leve sobre uma areia pode redesenhar sua superfície. A água do nosso corpo permeia
e é permeada pela água do ar que respiramos ou pela falta dela, ou seja, pela secura dos tempos
ásperos, climas secos e quentes que sentem falta das árvores bem cuidadas.
Se reconhecemos as permutas ou as co-relações entre corpo e natureza, ou ainda, se
ativarmos a sensação que somos natureza, talvez valha a pena refletir também se seria possível
pensar a reciprocidade entre a linguagem e o mundo natural. De um lado, conjectura-se se os
elementos da natureza contagiam nossa linguagem e, de outro, se as palavras re-significam
nossa relação com o espaço. É possível então perguntar se as nossas palavras teriam, em
determinadas instâncias, uma relação orgânica do corpo com a natureza, ou se os elementos
naturais afetariam nossa linguagem. Um ambiente inóspito, ressecado imprime sentidos na
linguagem, no nosso modo de dizer? Uma palavra seca resseca o entorno da gente? Um local
molhado, encharcado, ativa sentidos na composição da linguagem? Uma palavra úmida pode
ativar as águas de corpos vivos? Ou ainda, uma voz estrondosa, tal como trovão contundente,
contamina os espaços visíveis? Um raio pode tremular, embargar (ou talvez iluminar) a nossa
voz? Dizer uma frase como se fosse uma goteira pingando pode resignificar as palavras e a
1
Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Faculdade de Letras
(FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: llycaoliveira@gmail.com Instagram:
@elianakefalasoliveira.
2
Atriz mímica. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do curso
de licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins – UFT. E-mail: renataferreira@mail.uft.edu.br -
Instagram: @renataferreiraatriz - Site: http://teatrodemimagens.wixsite.com/renataferreira.
própria lembrança das goteiras que trazemos no corpo da gente? A memória das águas, do fogo,
instaura trilhas na linguagem humana? Os modos de dizer e as escolhas semânticas podem re-
itinerar nossa relação com os elementos da nossa própria natureza?
Neste texto, não pretendemos responder e dar conta dessas perguntas, mas, talvez, aguçar
mais ainda espaços de interrogação, abrindo para o que é indeterminado, inapreensível, traços que
atravessam o corpo e a palavra em movimento. Este texto é uma espécie de passeio, uma breve
incursão na experiência da vivência dissonante acontecida no 21º COLE (Congresso de Leitura),
na Unicamp, em julho deste ano (2018), a partir da qual partilhamos um percurso calcado na lógica
das sensações brotadas de exercícios de transposição de elementos da natureza acontecidos no
trânsito do corpo, em sons, movimentos, leitura e jogo com o texto literário.
Após escolhidos os versos com os quais cada um trabalharia, iniciamos o trabalho com o
corpo, explorando a percepção de si e do espaço, por meio de uma atividade pautada Técnica Klauss
Vianna, a de trabalho com os níveis de atenção. A proposta dessa prática é caminhar pelo espaço,
observando três níveis: o nível 1 de atenção é caminhar percebendo o próprio corpo; no nível 2,
trabalha-se a percepção do espaço; e, no nível 3, a percepção do outro e do grupo. Esses três prismas
colaboram para a exploração da presença, da prontidão, ajudando a acordar o corpo para a pesquisa
do movimento. Foram exploradas, em seguida, as articulações e o corpo todo, por meio de
movimentos parciais e totais (outro tópico da Técnica Klauss Vianna).
A partir desse despertar do corpo, abrindo espaço para o movimento improvisado, iniciou-
se o trabalho com os exercícios mimodinâmicos, por meio de experimentações no corpo de
dinâmicas de elementos da natureza, aproximando de diferentes corporeidades que água e fogo
nos provocam. Dançar a sensação do vapor, da goteira, da chuva, do trovão. Mover-se trazendo
para si as sensações de uma faísca, de um grande incêndio, da brasa.
Essas dinâmicas diversas foram lançadas como proposta de pesquisa corporal de modo a
permitir descobertas de movimentos não previamente determinados. Mover-se como uma
goteira é diferente de mover-se como um incêndio. Tais proposições alusivas e sugestivas foram
propostas na vivência de modo a permitir que cada pessoa pudesse experimentar diferentes
qualidades de movimento naquele momento da atividade. Esse jogo entre as sensações da água
e do fogo e o movimento do corpo acabam por oportunizar nuances de movimentos singulares.
Ainda dentro dessa experimentação de dinâmicas, sugeriu-se a investigação de sons juntamente
com o movimento do corpo, tendo em vista a construção improvisada de uma malha sonora a
ser jogada com o texto no momento das vocalizações.
Ainda durante a pesquisa com os exercícios mimodinâmicos e percursos vocais aliados a
eles, sugerimos que cada um, a partir da experimentação corporal realizada, compusesse frases
de movimentos com sonoridades, ou seja, uma sequência de ações que corporificavam uma
seleção da experiência. Propusemos, então, um exercício de “linhas de contaminação”, no qual
duplas se cruzavam e deixavam que seus movimentos se contagiassem pelos do outro, de modo
a proporcionar mais nuances e redescobertas do próprio movimento.
Exploramos então os trechos do texto de autoria de Norberto Presta, do livro “Arvolândia,
Alberolandia, Arbolandia”, juntamente com as frases de movimento corporal, de modo a
instigar com o corpo a materialidade sonora, tátil, plástica das palavras, culminando então em
uma sequência individual do texto escolhido, por meio de movimentos inspirados nas ações.
Entre as trajetórias dos movimentos (vivenciadas por meio da exploração de
transposições de elementos da natureza) e as trilhas do texto poético, penetram o corpo daquele
que lê (a si mesmo, as palavras e o mundo). Entremos então nessa clareira duvidosa feita de
sombras e esconderijos que são os rastros das palavras no corpo da gente.
Como se dá o curso da palavra no corpo vivente? Seria possível pensar que o texto atado
à folha de um livro estaria, muitas das vezes, carente de um corpo pulsante? Como é a vida de
uma palavra dentro de uma obra sem um corpo do leitor e já sem a carne do escritor?
Como a escrita das palavras por um autor acontece no corpo dele, poderíamos pensar que,
na matéria verbal, sempre há uma memória de um corpo, a do corpo do escritor, que está em
relação a outros corpos, ao seu entorno, a dimensões do tempo. Então talvez possamos imaginar
que, quando a palavra é lançada para dentro de um livro, nela moraria uma saudade daquele
corpo (e de todo seu enlace com o mundo) que a escreveu.
A matéria da palavra seria feita, então, de uma saudade com vontade de futuro? Deitada
na página, estaria ela a espera de uma nova oportunidade de vivência? O leitor seria o sonho
sonhado pela palavra no tempo indeterminado da vida da gente? Quando alguém, com seu corpo
vivo, entra em contato com a palavra de um livro, a palavra penetra aquele que lê na malha de
um universo de saudade e de memórias a serem reinventadas? E quando ela, a palavra,
escorrega para dentro do leitor, estaria se lançando no jato de sangue do corpo, em seus
impulsos elétricos, para dentro novamente de outros mundos possíveis? Seria a trajetória
escritor-palavra-leitor um caminho de possibilidades itinerantes, imprecisas?
Esse território indeterminado de sentidos que parece habitar a materialidade da palavra
permite que enxerguemos uma obra como potência de movimento. Desse modo, o ato da leitura
mostra-se como uma oportunidade de circulação de movimentos, vozes, corpos vivos. Mas
como chega na pele das palavras aquele que a lê?
Quando um corpo encontra uma palavra descansando no papel, o estado em que esse
corpo leitor se encontra pode talvez ser determinante para os rumos da palavra. Se o corpo que
lê é um corpo adormecido, sedentário, um tanto automatizado, é possível que a palavra circule
nele de modo também desvitalizado, minimamente aproveitada. Se, de outro modo, o corpo que
lê está acordado, em descoberta, pode ser que as trilhas das palavras ganhem percursos com
gosto de surpresa, o que seria interessante para um texto cuja maquinaria gosta do improvável,
engrenagens que nos parecem, em grande parte das vezes, serem motor do texto literário.
Um dos traços que compõem uma obra literária é sua instância de indeterminação, de
surpresa, feita de lugares imprecisos e improváveis. Há alguns autores que pensam o texto
literário e sua recepção desse ponto de vista, isto é, concebendo-o como um território de signos
cujas relações são indiretas, abertas.
Wolfgang Iser, teórico da Estética da Recepção, concebe o texto literário como um jogo
performático que encena um mundo reinventado, provocando, em seus estratagemas verbais,
lapsos, espaços, contrastes que permitem que o leitor se redescubra, se reitinere nele: “Quanto
mais o leitor é atraído pelos procedimentos a jogar os jogos do texto, tanto mais é ele também
jogado pelo texto” (ISER, 2002, p. 115-116).
No livro “Arvolândia, Alberolandia, Arbolandia” (trabalhado na oficina realizada), um
poema curto diz assim:
o vento distraído
bate as folhas
a abelha altera sua rota.
(PRESTA, 2016, s./p.)
Quando a palavra “vento” encontra-se com a palavra “distraído”, dois campos semânticos
distintos se deparam um com o outro e uma fricção de sentidos está posta a espera de leitores
que possam compor, girar significações. Nesse sentido, podemos ver nesse lugar inusitado de
contato entre palavras que muitas vezes não costumam viver juntas por aí uma abertura para
recompor sentidos: um “vento distraído” pode dar espaço para diversas interpretações. O termo
“distraído”, ele próprio parece nos levar para uma deriva, para um modo impreciso e não
previamente determinado de estar presente. Essa indeterminação é reforçada pelo “vento”,
numa espécie de convite para o prazer da descoberta.
Talvez essa seja uma chave de leitura para a própria experiência do ato de ler. Ler como
um vento distraído, deixar que sua rota seja alterada, como a abelha o faz no poema. É nesse
sentido que a experiência da leitura pode ser potencializada por um corpo também em rota
improvisada. Um corpo vento, um corpo brisa, um corpo gota, um corpo incêndio, um corpo
fagulha, faísca, chuva, trovão.
Com Jacques Lecoq descobrimos uma viagem pela natureza que ―predispõe ao trabalho
com as identificações (LECOQ, 2010, p. 76). Experimentar-se mata, vento, água.... Subir a
montanha e ser a montanha; isto é, pertencer à vida. Desta predisposição, Lecoq, como que nos
conduzisse pela mão, nos propõe a identificação com os elementos da natureza de forma a nos
aproximar das dinâmicas da água, do fogo, da terra e do ar para então passarmos às diferentes
matérias como papel, madeira, líquidos e metais. Não temos talvez um aproveitamento imediato
destas improvisações, mas expandimos nossas referências, ―sentimos as nuances que existem
de uma matéria à outra e, até mesmo, dentro de uma matéria (LECOQ, 2010, p. 79). Isso
corrobora com uma noção de sujeito atravessado constantemente por forças, afinal, “como
pensar sem ― continuar apegado à oposição entre um universal puro e particularidades
encerradas em pessoas, indivíduos (DELEUZE, 2006, p. 178)?
Nesta perspectiva, tomamos a metodologia de transferência descrita por Lecoq (2010, p.
79) quando reverte para a dimensão dramática dinâmicas da natureza ―com o intuito de
interpretar melhor a natureza humana sem estar presa a seu reflexo.
Assim chegamos à palavra, entendo-a como organismo vivo que encontra a poesia pela sua
dinâmica física, ativando nosso senso poético. Essa dimensão lírica do movimento abre-se ao texto
literário, emergindo, no corpo, sua instância polifônica, instável, indireta e surpreendente.
Na vivência dissonante, realizada no 21º COLE, a exploração da palavra se deu a partir dessa
transferência de dimensões de elementos da natureza para o corpo. Depois de experimentar e captar
no corpo movimentos despertados pela imagem interna de qualidades da água e do fogo (tais como
vapor, goteira, chuva, tempestade, ou ainda, chama de uma vela, incêndio, brasa), foram
experienciados sons e vocalizações das palavras do texto de Norberto Presta.
Ao despertar no corpo movimentos sugestivos disparados por memórias de elementos da
natureza, a palavra passa a ser vivenciada dentro dessa dimensão alusiva, o que permite
estabelecer uma via de entrada no texto que é mais indireta e imprecisa do que diretiva e
representativa. Se, como discutimos anteriormente, o texto literário, por vezes, trabalha com
palavras que não se restringem a reproduzir o mundo não verbal mas antes o performatizam,
redesenham-no, reinventando-o por meio de jogos de sentidos, então a leitura acontecida em
um corpo em improvisação, aberto a inventividades, acaba por corroborar esse motor
constituinte do literário, movido pela surpresa e pela imprecisão.
Segundo Roland Barthes (1989), o texto literário trabalha com uma “linguagem-limite” (p.
19), na qual “o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro” (p. 19). Para ele, a literatura
“encena a linguagem, em vez de simplesmente utilizá-la, a literatura engrena o saber no rolamento
de uma reflexividade infinita” (BARTHES, 1989, p. 19). Pode-se então perceber o literário em sua
movência, sua condição de deslocamento. Segundo Barthes (1989), o texto literário tem como força
própria a ação de deslocar, um deslocamento que nos conduz ao inesperado: “Deslocar-se pode
pois querer dizer: transportar-se para onde não se é esperado” (p. 27).
Assim como a água pode se metamorfosear em vapor, pode ser gota, também chuva
torrencial, as palavras no texto literário também estão sempre em estado de transmutação (estão
como que a ponto de), tanto por causa do uso limítrofe da linguagem (dado por jogos
semânticos, supressões, figuras de linguagem, focos narrativos etc), quanto também pelo
indiscernível campo da recepção do texto, pois as palavras, em seu estado de espera, não sabem
que corpo chegará para incorporá-las: o leitor é aquele corpo inesperado, imprevisível. Há,
portanto, espaços abertos no texto e na transubstanciação do texto pelo leitor que são fundantes
para uma experiência viva dada pela palavra no corpo. Essa abertura está relacionada ao que
Iser (1979) denomina “vazios”, os quais seriam espaços de articulação do texto, em que há
rupturas de conectabilidade, nas quais se quebram usos habituais da linguagem.
Poderíamos pensar esses vazios, essas lacunas do texto como lugares de ausência, uma
espécie de zoom que se dá na instância indecifrável da vida, tal como quando uma árvore, em
sua imensidão, não tem como controlar e saber completamente da dor de sua flor:
Não há como a árvore apreender a dor da sua flor quando uma pétala cai. Não há como
um leitor apreender completamente (ou resumir ou dar conta numa explicação) do sentido de
um poema, tal como em “árvore em sua imensidão / ignora a dor da sua flor”. Uma árvore
ignora coisas? O que significa associar à palavra “árvore” ao termo “ignorar”? O que significa
uma árvore em sua imensidão ignorar a dor de uma flor? Como isso se traduz na cena de “uma
pétala caindo”? Quantas imagens, sensações, pensamentos são possíveis de serem tecidos na
leitura desses versos? O inapreensível vivido por essa árvore é um pouco da inapreensão que o
próprio ato de ler pode fazer acontecer?
Parece haver muitos intervalos, muito espaço de não-dito e de silêncio quando as palavras
são tecidas por vazios. Abre-se talvez para um silêncio fundamental, aquele em que as palavras não
são as coisas. Uma sociedade muito tagarela precisa dar espaço para certa dimensão do silêncio.
Para Jacques Lecoq, há duas formas de sair do silêncio: a ação ou a palavra. Ele nos pede,
entretanto, que silenciemos para melhor compreender o ― debaixo das palavras. Para tanto,
observa as relações humanas, as zonas silenciosas que aparecem ―antes e depois da palavra:
[...] antes, ainda não falamos, encontramos um estado de pudor que permite a
palavra nascer do silêncio, a ser mais forte, portanto, evitando o discurso, o
explicativo. O trabalho sobre a natureza humana, nessas situações silenciosas,
permite encontrar os momentos em que a palavra ainda não existe. O outro
silêncio é o depois, quando não há mais nada a dizer. Este nos interessa menos!
(LECOQ, 2010, 60).
As zonas silenciosas que dão margem às palavras podem ser vistas como um espaço
aberto propulsor ao encontro com o que é fortuito, inesperado. Essa instância imprecisa abre
espaço para a singularidade da experiência, que pode vir do próprio corpo. O corpo do leitor se
achega ao texto e, se se trata de um corpo em devir, a experiência de encontro entre movimento,
voz e palavra é indeterminada, não previsível. A cada contato, uma vivência singular.
Nessa perspectiva fabulamos a potência do devir natureza da/na palavra para encontrar
uma “zona de vizinhança” que descobre “a potência de um impessoal - uma singularidade”
(DELEUZE, 1997, p. 11). Então nosso trabalho não se ocupou em propor aos participantes que
atingissem uma forma de natureza, que se identificassem por um processo mimético com, por
exemplo, uma chuva miúda ou um fogo ardente. A provocação era que quando olhássemos para
cada corpo em movimento víssemos um indiscernível, não sei se fogo ou água, mas com certeza
algo que se singulariza a partir dessa zona de vizinhança criada com o elemento. A provocação
era para que esquecessem o que eram e tudo aquilo que o faz ser como são, ir além do humano
e, pelo corpo, habitar a força de um impessoal, uma força inumana para encontrar uma outra
maneira de dizer a palavra. Esta potência do devir natureza “nos atravessa” porque somos parte
da natureza - partes integralmente submetidas, como todas as outras, as leis causais necessárias
que regem o comportamento das coisas naturais. Afinal, a vida não é pessoal, nós é que
pertencemos à vida.
Assim em estado de contaminação habitamos uma sensação na qual o sujeito se define
mais por e como um movimento de desenvolver-se a si mesmo do que por um indivíduo, um
sujeito consciente. “Porém, cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver-se a si
mesmo ou de devir outro: o sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete (DELEUZE, 2012, p. 70).
Rompendo com uma noção de unidade atribuída ao Eu – a de um ser prévio que permanece –
nos deparamos com um sujeito que se constitui na experiência, no contato com os
acontecimentos: ―A construção do dado cede lugar à constituição do sujeito. O dado já não é
dado a um sujeito; este se constitui no dado (DELEUZE, 2012, p. 78), numa luta incessante de
forças que impede certezas. Constituir-se no dado é viver os encontros.
brisas brincando
entre folhas dançando
vagabundeando
(PRESTA, 2016, s./p.)
Chegamos ao final da trilha do texto, abrindo lembranças sobre esse encontro que foi criar
a oficina, vivência dissonante, acontecida no COLE e recriar essa experiência na tessitura das
palavras desta escrita. Contemos assim esse percurso, essa trajetória inesquecível:
Quando duas pessoas de universos diferentes, vivendo em cidades e estados diferentes,
que pouco se conhecem - mas que muito se reconhecem - encontram-se num espaço de criação,
incontrolável porque aberto, a experiência é leve, mesmo com todo peso dos corpos atraídos
pela força da gravidade. É leve porque é transmutável: podemos ser gelo, mas também água,
ou vapor. Podemos ser incêndio e também uma chama suave de uma vela, um calor
aconchegante de uma fogueira.
Assim é essa história deste texto que nasceu de um encontro entre duas professoras
artistas pesquisadoras brincantes com outr@s professor@s artistas pesquisador@s brisas
dançando entre folhas numa sala rodeada de árvores. Um encontro sem adeus, um encontro que
furta o contado do tempo, ao deixar que o vagabundear de uma pétala caindo seja embalada
pelo vento distraído.
Referências
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto; Ana Lúcia de
Oliveira; Lúcia Cláudia Leão; Suely Rolnik. v. 3. São Paulo: Editora 34, 2012.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Trad. Luiz B. L. Orlandi, Textos e entrevistas.
São Paulo: Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
ISER, Wolfgang. “O jogo do texto”. In: LIMA, Luis Costa (Org.). A literatura e o leitor: textos
de estética da recepção. RJ: Paz e Terra, 2002.
______. “A interação do texto com o leitor” In: LIMA, Luis Costa (Org.). A literatura e o leitor:
textos de estética da recepção. RJ: Paz e Terra, 1979.
LECOQ, Jacques. O corpo poético: Uma pedagogia teatral. Trad. Marcelo Gomes. São Paulo:
Editora Senac. 2010.
LECOQ, Jacques. O silêncio. In: ______. Lê théâtre du geste: mimes et acteurs. Tradução de Roberto
Mallet. Bordas: 1987. Disponível em: <http://www.grupotempo.com.br/tex_silencio.html>. Acesso
em: 8 jan. 2016.
Fabiano Ormaneze1
Ângela Junquer2
Elizena Cortez3
Ezequiel Theodoro da Silva4
Marcelo Pereira5
Resumo: "Cecília Pavani abriu os caminhos para a integração do jornal e do ensino em escolas,
principalmente as públicas, primeira iniciativa do tipo em todo o Estado de São Paulo na época
do seu surgimento. As frentes de trabalho se dividiam na formação continuada dos professores,
como forma de colocar o profissional como peça principal da engrenagem do processo de
aprendizagem, e o incentivo à leitura por parte dos alunos. Com as crianças e adolescentes, o
objetivo era de introduzir o hábito de se informar diariamente, manusear o jornal, conhecer as
editorias, participar de debates e se posicionar sobre os acontecimentos da cidade, do Brasil e
do mundo. Antenada nas mudanças da sociedade, Cecília acompanhou a convergência da mídia
impressa e digital, transformando o projeto em Correio Escola Multimídia, inserindo conteúdos
de jornalismo digital na proposta" (GUIMARÃES, 2017). Este artigo tem por objetivo
apresentar e aprofundar depoimentos sobre a trajetória de trabalho da professora Cecília Pavani
em direção ao uso do jornal e outras mídias nas escolas brasileiras. São tecidas considerações
a respeito dos livros, projetos e intervenções que marcaram a presença dessa educadora em prol
da democratização da leitura e da melhoria os processos de formação de leitores. Destaque para
as produções da sua equipe e para as parcerias feitas com a Associação de Leitura do Brasil:
programas, eventos e lutas em comum.
Palavras-chave: Cecília Pavani; jornal na escola; multimídia.
Apresentação
Este artigo teve origem numa roda de conversa realizada no 21º COLE – Congresso de
Leitura do Brasil, com o objetivo de destacar e homenagear os trabalhos realizados por Cecília
Pavani como diretora do Departamento de Educação da Rede Anhanguera de Comunicação
(RAC) e como coordenadora dos projetos Correio Escola e Correio Escola Multimídia durante
a sua trajetória de vida. Os participantes da atividade foram os mesmos que assinam este
trabalho.
A estruturação deste texto teve como ponto de partida uma reflexão feita pelo jornalista e
professor Fabiano Ormaneze, somando-se a ela dois depoimentos e uma parte iconográfica.
1
Jornalista, mestre pelo LabJor/Unicamp, doutorando em Linguística pela Unicamp, professor no Centro
Universitário Senac e do Centro Universitário Metrocamp (UniMetrocamp). Foi assessor do Projeto Correio
Escola/Correio Escola Multimídia. E-mail: ormaneze@yahoo.com.br.
2
Graduada em Letras pela PUC-Campinas e professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino. Foi
integrante da Equipe Pedagógica do Projeto Correio Escola/Correio Escola Multimídia. E-mail:
aljunquer@hotmail.com.
3
Mestra pela Unicamp e professora da rede pública e particular de São Paulo. Foi integrante da Equipe Pedagógica
do Projeto Correio Escola/Correio Escola Multimídia. E-mail: elizenacortez@hotmail.com.
4
Professor-colaborador junto à Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: profezequieltsilva@gmail.com.
5
Jornalista, editor do Correio Popular, consultor em comunicação, pós-graduado em Jornalismo de Qualidade e
em Jornalismo Latino-americano. E-mail: marcelopjaguar@gmail.com.
Portanto, no todo, este trabalho conjuga diferentes vozes e colaborações, que têm como eixo central
a memória de Cecília Pavani. É mais do que certo que não se pretende aqui a exaustividade em
termos de pesquisa e muito menos uma pormenorização de tudo aquilo que vem contido na
trajetória de vida e de trabalho da homenageada; isto porque Cecília era uma mulher de ações
múltiplas e diversificadas, que fincou raízes em vários contextos da sociedade brasileira.
Ainda que o 21º COLE tivesse como mote as “Leituras Dissonantes”, o leitor encontrará aqui
muito mais assonâncias do que dissonâncias no sentido de que todos os participantes da roda de
conversa, agora autores deste texto, são unânimes em reconhecer em Cecília uma obra grandiosa,
exemplar, capilarizada e transformadora na esfera da promoção da leitura. Não resta dúvida de que
outros estudos e pesquisas irão mais fundo no conjunto da obra, mostrando que, sim, existem
metodologias possíveis para que os agentes educacionais e os estudantes de todos os níveis aprendam
a ler objetivamente os jornais e as mídias, no intuito de se transformarem em cidadãos críticos.
Dados biográficos
A professora Cecília de Godoy Camargo Pavani nasceu em São Paulo no dia 4 de abril
de 1950. Aos 7 anos, com a morte do pai, Francisco, mudou-se para Campinas, com irmã e
mãe. Passaram a viver na casa do avô, Silvino de Godoy (1889-1970), então diretor do Correio
Popular6. A partir de 1972, ao se formar em Letras pela PUC-Campinas, Cecília passou a
lecionar em escolas públicas e particulares da cidade, atividade a que dedicar-se-ia até o final
do anos 1980.
Apesar de ter optado pelo magistério, Cecília sempre foi apaixonada pelo Jornalismo,
meio em que cresceu. Além de o avó materno ser o diretor do principal veículo do interior
paulista, a mãe dela, também chamada Cecília, foi uma das primeiras mulheres a ter espaço
como redatora de jornais na cidade, tendo criado o Correio Feminino, suplemento voltado às
mulheres que circulou entre 1965 e 1987 (ORMANEZE, 2016).
Em 1992, Cecília, próximo a se aposentar como professora, decidiu direcionar sua
carreira para uma atividade que, desde que iniciara no magistério, sempre ocupou espaço em
sua prática pedagógica: o uso do jornal em sala de aula. Daquele momento até sua morte, em
18 de novembro de 2017, seriam 25 anos de atuação à frente do Correio Escola, depois
transformado em Correio Escola Multimídia. Nesse período, o projeto realizou cursos,
concursos e atividades de desenvolvimento social para diferentes públicos, que incluíram
professores e estudantes de todos os níveis, além de grupos como mulheres de terceira idade,
doentes e pessoas com deficiência visual.
A Educação e o Jornalismo eram duas paixões que Cecília conseguiu aliar a partir do Correio
Escola. Ela, inclusive, reconheceu em entrevista de 2012, que desejou ser jornalista, o que não foi
possível já que, à época do vestibular, em 1968, ainda não havia curso da área em Campinas,
tampouco era comum mulheres saírem para estudar fora (RODRIGUES, CRUZ, 2012).
6
O Correio Popular foi fundado em 1927 por Álvaro Ribeiro. Em 1938, o veículo foi vendido a Sylvino de Godoy.
7
A ANJ é uma organização formada por empresas produtoras de jornais impressos no Brasil. Foi fundada em
1979. Em agosto de 2018, tinha 103 associados.
Entre 2011 e 2013, o curso de extensão para professores ganhou, então, outra dinâmica,
não só incorporando a discussão sobre as novas tecnologias como também sendo oferecido de
modo semipresencial. Com isso, passou a ser nomeado de Correio Escola Multimídia. Em
2014, por meio de duas parcerias, foram lançados um curso de especialização lato sensu e um
curso de extensão, ambos derivados do projeto. O primeiro foi realizado em parceria com o
Centro Universitário Salesiano (Unisal) e se configurou como um curso de especialização em
Educomunicação e Midialogia. O segundo, o curso de extensão “Mídia, Educação e Leitura”,
que vigorou até 2016, com turmas anuais, foi oferecido em parceria com a Faculdade de
Educação da Unicamp. No corrente ano (2018), estão sendo feitas gestões para a renovação do
convênio entre a RAC e Unicamp para que o curso seja anualmente oferecido na categoria de
extensão (72 h/a).
Além da formação continuada de professores e das causas sociais abraçadas pelo
Departamento de Educação, o Correio Escola Multimídia possibilitou o lançamento de outras
atividades. É o caso do Seminário Nacional “O Professor e a Leitura de Jornal”, realizado em
sete edições, bienais, entre 2002 e 2014, em parceria com a Associação de Leitura do Brasil
(ALB). O Correio Escola também foi parceiro na organização de várias edições do Congresso
de Leitura do Brasil (Cole), além de a equipe do projeto ter participado, com apresentações de
trabalhos e em mesas-redondas, de vários eventos no Brasil.
Da realização dos seminários “O Professor e a Leitura do Jornal”, nasceram dois livros,
reunindo textos a partir das conferências e comunicações: “Educomunicação, redes sociais e
interatividade” (2013) e “Comunicação, Educação e Liberdade na Sociedade do Espetáculo
(2015). Além dessas publicações, artigos sobre o projeto foram registrados em revistas e em
anais de eventos. Entre esses materiais, destaca-se uma edição especial da revista Linha Mestra,
da ALB, com textos de comunicações apresentadas no 7° seminário aqui referido.
Entre 2012 e 2016, o Correio Escola Multimídia realizou cinco edições do Prêmio
Experiência 10, que tinha como objetivo premiar professores que desenvolvessem práticas
criativas de ensino. Para esse prêmio, podiam se inscrever docentes de ensinos Fundamental e
Médio, não necessariamente com projetos que envolvessem leitura de textos midiáticos. As
melhores iniciativas tornavam-se reportagens semanais, de página inteira, no Correio Popular
e, ao final do ano, um grupo de pesquisadores da área de Educação escolhia as cinco melhores
propostas, cujos professores eram premiados com cursos e viagens.
Em 25 anos de trabalho, Cecília não só conseguiu dar origem a um projeto que está na
memória dos professores de Campinas, como possibilitou um diálogo profícuo entre teoria e
prática e uma revisão de conceitos e propostas docentes. Nesse período, a área da Educação
passou a dedicar mais atenção ao campo de estudo das relações com a mídia, do qual a
emergência da área de Educomunicação, com propostas de cursos de graduação e pós em várias
instituições, é o principal exemplo. Nesse mesmo período, os textos midiáticos passaram a ser
tratados com mais atenção pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1996.
O trabalho do Correio Escola Multimídia, assim, acompanhou as discussões do período
e contribuiu com uma abordagem prática, centrada na atuação do professor e colocando os
veículos de comunicação como parte dessa discussão, a qual, em geral, sempre ficavam alheios.
Depoimentos
O meu relacionamento profissional com Cecília Pavani transcorreu por mais de 20 anos
nos espaços de trabalho do Correio Popular. Recupero e pontuo aqui, com base na memória,
elementos de sua personalidade e de sua trajetória como coordenadora dos projetos Correio
Escola e Correio Escola Multimídia.
Destaco, inicialmente, o seu rigor e zelo pela informação de qualidade, pela busca de um
jornalismo que fizesse sentido para as pessoas, enfatizando sempre a visão comunitária. Nestes
termos, Cecília manteve uma relação cordial e respeitosa com a redação do Correio Popular,
acatando a visão profissional dos jornalistas, mas, ao mesmo tempo, colocava de forma assertiva o
seu ponto de vista a respeito dos assuntos. Esse diálogo maduro fez com que ela conquistasse muitos
amigos na redação, mantendo laços com várias gerações que trabalharam no jornal.
Cecília era defensora do Correio Popular como instituição e como veículo de
comunicação – essa projetava essa postura durante os contatos com autoridades do ensino,
políticos, homens de mídia e outros representantes da sociedade civil. E dessa postura
resultaram parcerias e trabalhos conjuntos em benefício de diferentes segmentos da sociedade,
principalmente professores e estudantes de diferentes níveis do ensino.
Devo reiterar a sua preocupação com o zelo na fase de produção da notícia. Ela cobrava
rigor na gramática e na objetividade das informações e sempre acendia o sinal de alerta para
que o comando das editorias avaliasse melhor determinada notícia ou cobertura, solicitando
profundidade e análise crítica das fontes. Isto porque, no meu ponto de vista, Cecília sabia que
o jornal despertava, sobretudo junto aos mais jovens, o sentido de responsabilidade da
informação numa época em que não se falava em fake news; além disso, creio eu, ela entendia
que a leitura do jornal não atendia somente a objetivos pedagógicos, mas também de preparação
para o futuro e para a ascensão social.
Ainda na vertente da leitura, Cecília acreditava que o entendimento dos fatos relacionados
aos movimentos do contexto sociopolítico passava necessariamente leitura dos textos
veiculados pelo jornal e por outros organismos da mídia. Daí o imenso carinho e cuidado que
demonstrava ao acompanhar de perto a distribuição dos exemplares do jornal nas escolas, ao
solicitar aos professores e estudantes avaliações constantes das matérias publicadas, ao rever
minuciosamente os planos dos eventos e assim por diante.
Cecília externava regularmente sua preocupação com a necessidade de aperfeiçoamento
do professor, observando que um projeto pedagógico como o Correio Escola/Correio Escola<