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A TRADIÇÃO AUTORITÁRIA

DOS NOSSOS LIBERAIS:


PREGAM A LIBERDADE, MAS
SÓ PARA ELES
Alexandre Andrada
7 de Maio de 2019, 0h02

O economista e diplomata Roberto Campos em 1966. Foto: Folhapress

Como qualquer grande ideologia política, religiosa ou moral, o


liberalismo é plástico o suficiente para ser usado por aproveitadores
na defesa de princípios e políticas que são o exato oposto do pregado
pelos grandes autores dessa ideologia.

No caso do Brasil, há uma longa tradição de liberais que usam de um


suposto liberalismo para justificar toda sorte de ditaduras, de
violações das liberdades individuais, desprezo pelos direitos
humanos, de ojeriza aos pobres.

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O que significa ser liberal? Do ponto de vista político, o liberal


acredita no Estado Democrático de Direito. O liberal deve acreditar
que a democracia – apesar de todos seus defeitos – é o melhor regime
existente para resolver os problemas políticos da sociedade. Do ponto
de vista econômico, o liberal acredita que o sistema de mercado é, via
de regra, o melhor mecanismo possível para maximizar a produção
de uma sociedade e de utilizar os fatores produtivos – capital,
trabalho, terra, tecnologia – da forma mais eficiente possível.

Do ponto de vista
filosófico, o liberal acredita
que cada indivíduo é o
melhor juiz de suas ações; De revolucionário, o
que as pessoas são dotadas liberalismo pode se
de um conjunto de tornar altamente
“direitos naturais”, que
lhes garante a liberdade de
reacionário.
rezar para o Deus que
quiserem, de dizer e
produzir o que desejam etc.

Essas são ideias revolucionárias. Mas a humanidade também é capaz


de transformar radicalismos em justificativas para a manutenção do
status quo. De revolucionário, o liberalismo pode se tornar altamente
reacionário.

E isso ocorreu no Brasil.


Um dos primeiros propagadores das ideias de Adam Smith em
português foi um camarada chamado José da Silva Lisboa, mas
conhecido como Visconde de Cairu. Em sua obra “Princípios de
Economia Política”, publicada em 1804, Cairu “conseguiu a proeza de
fabricar uma defesa econômica do absolutismo numa obra que se
apresentava como peça de divulgação do liberalismo” econômico,
como bem afirma Jorge Caldeira.

Enquanto Smith afirmava que “os reis são servos do povo, para serem
obedecidos, resistidos, depostos ou punidos, conforme a conveniência
do público exigir”, nosso Cairu invertia a lógica. Dizia o nosso liberal
baiano: “O primeiro princípio de Economia Política é que o soberano
de cada nação deve considerar-se como o chefe ou cabeça de uma
vasta família”.

Cairu era amigo do rei.

Avançando mais de um século no tempo, nos deparamos com outro


grande economista liberal brasileiro, o carioca Eugênio Gudin (1886-
1986).

Gudin foi ministro da fazenda por alguns meses entre 1954 e 1955,
mas ocupou o centro do debate econômico brasileiro desde os anos
1930. Ele foi o grande responsável por transformar a Fundação
Getúlio Vargas do Rio de Janeiro no principal think tank do
pensamento econômico liberal do Brasil. Ironicamente, foi da FGV-
Rio de onde saíram grande parte dos economistas que guiaram a
economia do país durante a ditadura militar.

Em artigo de 1952, Gudin parecia conformado em atestar a


inferioridade do Brasil:

“Se a civilização ocidental se desenvolveu invariavelmente fora


da zona tropical, se o clima constituiu sempre um fator capital
do metabolismo orgânico do homem, com repercussão direta
no desenvolvimento econômico… não há como negar que o
desenvolvimento econômico é primordialmente função do
clima, dos recursos da Natureza e do relevo do solo”.

Ao explicar a diferença de desenvolvimento entre Brasil e Argentina,


Gudin afirmava que ela se devia “simplesmente porque o clima da
Argentina é temperado, favorável à saúde humana e igual ao da
Europa… [o que] lhe valeram… uma imigração europeia muito mais
intensa do que a do Brasil, onde o clima é em grande parte tropical
(…)”.

Para Gudin, portanto, “por maior que sejam o esforço e a tenacidade


do Equador, ele não poderá atingir o grau de desenvolvimento
possível ao Uruguai”.

Nos anos 1970, em coluna do jornal O Globo, Gudin se lamentava:


“nós brasileiros temos que compreender que grande parte de nosso
atraso… decorre do precário elemento humano que nos legaram os
ancestrais ibéricos”. Enquanto os portugueses teriam vocação
comercial, os italianos “que foram os maiores construtores da
Argentina e do estado de São Paulo” teriam vocação industrial e
agrícola.

Estávamos, pois, condenados ao atraso, seja pelo clima, seja pela


herança portuguesa. Fica patente a visão que Gudin tinha do futuro
do nordeste brasileiro: tropical e com baixa incidência de
descendentes de europeus de origem não-portuguesa.
Ex-presidente José Sarney faz um brinde no aniversário de 80 anos de Roberto Campos no
Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, em 1997. Foto: Rosane Marinho/Folhapress

Com o golpe de 1964, duas estrelas do liberalismo econômico


brasileiro assumiram as rédeas da economia: Octávio Bulhões e
Roberto Campos.

Campos é amplamente louvado por “liberais” do Livres, do MBL, por


Rodrigo Constantino, do Partido Novo como um exemplo de defensor
do livre mercado, do progresso, das virtudes.

Pois bem. Em 1972, com o país sob o jugo do AI-5, Campos afirmava
que eram óbvias as “vantagens da disciplina social e da coesão
governamental” e que com “a crescente popularização da Revolução
(sic)” – graças às fortes taxas de crescimento verificadas desde 1968 –
“nosso autoritarismo assume cada vez mais as feições de um
‘autoritarismo consentido’”.

Sim. É essa expressão que Roberto Campos usava: “autoritarismo


consentido”. Vale um tratado de filosofia – ou algumas horas de
conversa com um bom psicanalista.

Campos estava disposto a trocar um pouquinho de liberdade política


(dos outros, diga-se, afinal ele era da “turma” do regime), por um
pouquinho mais de crescimento econômico.

“Alguns países, dos quais o Brasil constitui um bom exemplo,


(…) vieram a perceber que só através de medidas autoritárias e
impopulares, visando eliminar os subsídios aos consumidores,
impor a contenção salarial e a disciplina fiscal, é que poderia
ser reabilitada a economia e recolocada no caminho da
expansão. Isso exigiu medidas de restrição ao mecanismo
distributivo e diminuição dos confrontos eleitorais”.

Essa visão, aliás, de que é preciso um governo autoritário para fazer


as reformas, é o motivo pelo qual os economistas saídos de Chicago,
berço do liberalismo econômico no mundo todo, circulavam com
galhardia por entre os coturnos de militares no Brasil, no Chile e
alhures. Não é isso que explica que supostos liberais – sejam os
adolescentes dos movimentos da internet, sejam velhacos saídos do
mercado financeiro e de Chicago – defendem o governo de um certo
capitão que a vida toda demonstrou total desprezo pela democracia e
também pelo liberalismo econômico.

Como pode um liberal


defender um capitãozinho
que defende as milícias, a
As raízes do tortura, que se desmancha
liberalismo- quando fala de algum
conservador- ditador sanguinário e
pedófilo, que é
autoritário são homofóbico, xenófobo, que
profundas em nosso diz para uma colega
país. deputada “não te estupro
porque você não merece”?
Que tipo de liberal é esse
que produzimos?

São os liberais-conservadores-autoritários, são os que usam palavras


bonitas como liberdade para ludibriar incautos. Eles querem
liberdade para eles apenas, ainda que isso implique em chibata para a
malta descamisada, ainda que isso signifique trevas políticas.

As raízes do liberalismo-conservador-autoritário são profundas no


Brasil. Portanto, quando alguém disser “sou liberal”, é bom tomar
cuidado. Certifique-se a qual subgênero ele pertence.

Mesmo cuidado que se deve ter quando alguém diz ser “cristão” ou de
“esquerda”. Você pode estar diante da Madre Teresa ou de um pastor
bilionário que engana otário; você pode estar diante de um ciclista-
vegano-progressista ou de um adorador de Stálin.

Nunca confie nos rótulos. Leiam sempre as letras miúdas da bula.

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