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EM BUSCA DAS BASES ONTOLÓGICAS DA PSICOLOGIA DE VYGOTSKY

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Francisca Maurilene do Carmo
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, Brasil
Susana Vasconcelos Jimenez
Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza-CE, Brasil

RESUMO. O estudo busca estabelecer os fundamentos ontológicos do pensamento de Vygotsky, indicando que a
construção teórica erigida pelo e autor está centrada no trabalho, como o complexo que deu origem ao homem como ser
social. Tal postulado seria consistente com os princípios do marxismo recuperado por Lukács como uma ontologia do ser
social, superadora da tradição metafísica e idealista, firmando, nesse sentido, o caráter radicalmente histórico da essência
humana. Apontam-se os equívocos fundamentais operado pelo neovygotskianismo, o qual, tratando as categorias
vygotskianas da linguagem, cultura e interação apartadas do princípio marxiano do trabalho, acaba por isolar Vygotsky do
campo ontológico e, por extensão, do projeto socialista. Reafirma-se, por fim, que, não obstante a explícita relevância
atribuída à dimensão metodológica do marxismo, está pressuposto na obra de Vygotsky, o substrato ontológico sobre o qual
se funda o método de Marx.
Palavras-chave: Vygotsky; marxismo; ontologia.

SEARCHING FOR THE ONTOLOGICAL BASES OF VYGOTSKY’S PSYCHOLOGY

ABSTRACT. The study seeks to establish the ontological foundation of Vygotsky’s thought, indicating that his theoretical
construct is centered upon labor, as the complex which originated man as a social being. This postulate would be consistent
with the principles of Marxism, recoveved by Lukács as an ontology of the social being that goes far beyond the metaphysical
and idealistic tradition, to assert the radically historical character of human essence. It denounces the fundamental mistakes
operated by neovygotskianism, which, treating Vygotskian categories of language, culture and interaction, apart from the
Marxist principle of work, ends up by isolating Vygotsky from the Marxian ontological realm, and, by extension, from the
socialist project. It is finally reassured that, despite the explicit relevance attributed by Vygotsky to the methodological
dimension of Marxism, it is presupposed in the context of his work, the ontological core, which founds Marx’s method.
Key words: Vygotsky; Marxism; ontology.

EN BUSCA DE LAS BASES ONTOLÓGICAS DE LA PSICOLOGÍA DE VYGOTSKY

RESUMEN. El estudio busca establecer el fundamento ontológico del pensamiento de Vygotsky, indicando que su
construcción teórica se centra en el trabajo como el complejo que originó el hombre como un ser social. Este postulado es
consistente con los principios del marxismo, recuperado por Lukács como uma ontología del ser social queva mucho más
allá de la tradición metafísica e idealista, para afirmar el carácter radicalmente histórico de la esencia humana. Denuncia los
errores fundamentales operados por el neovygotskianismo, que, tratando las categorias vygotskianas de la lenguage,
cultura e interacción, apartadas del principio marxista del trabajo, termina aislando Vygotsky de la esfera del marxismo
ontológico y, por extensión, del proyecto socialista. Finalmente se aseguró que, apesar de la relevância explícita atribuída
por Vigotski a la dimensión metodológica del marxismo, se presupone en el contexto de su obra, el núcleo ontológico que
funda el método de Marx.
Palabras-clave: Vygotsky; marxismo; ontología..

O estudo aqui apresentado intenta articular- como vem sendo predominantemente apropriada
se ao reduzido, porém significativo acervo de e divulgada a obra de Vygotsky – como, a rigor,
produções que se contrapõem à forma indébita todo o escopo da Psicologia Histórico-Cultural -

1
Endereço para correspondência: Rua Sidney Clemente Dore, 100, ap. 601, Tambaú, CEP 58.039-230, João
Pessoa-PB. E-mail: jacklinerabelo@uol.com.br

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e que, no Brasil, está representada por autores psicologia que se supunha contaminada pelo
como Tuleski (2001); Duarte (2000); Martins stalinismo, como pelo preconceito em torno do
(2006), dentre outros, que buscam resgatar o próprio marxismo.
aporte da tradição marxista nos escritos do Na verdade, a empreitada de inscrever o
psicólogo russo. nome de Vygotsky no Ocidente operou-se,
Em linhas gerais, esse seleto conjunto de particularmente, a partir dos Estados Unidos, no
autores atesta que a divulgação majoritária da início da década de 1960, através de psicólogos
produção intelectual deste grande nome da do porte de Jerome Bruner e Michael Cole
psicologia mundial estabelece-se através de (Burgess, 1995; Newman e Holzman, 2002), que
alguns grandes cortes operados sobre sua cuidaram, respectivamente, da tradução das
teoria. Os dois primeiros cortes, devidamente obras Pensamento e Linguagem e A Formação
situados por Tuleski (2001), diriam respeito, em Social da Mente. Nessas condições, destacam
primeiro plano, à aversão burguesa referente à Duarte (2001) e Tuleski (2001) que, pelas mãos
formação comunista do autor e, em segundo, à de seus tradutores e organizadores, a obra de
censura stalinista de suas obras operada na Vygotsky foi severamente retalhada e distorcida.
década de 1930. Para Burgess (1995), por exemplo, Bruner,
Reportando-nos, de modo mais particular, à “retiraria os conceitos [vygotskianos] de sua
persecução stalinista, é oportuno lembrar que, estrutura marxista para colocá-los no
em 1936, dois anos após a morte de Vygotsky, o pragmatismo norte-americano” (p. 47). Newman
decreto Sobre as perversões pedológicas no e Holzman (2002), por sua vez, não obstante
sistema de comissariado do povo para a reconheçam o importante papel ocupado por
educação, escorrendo diretamente da pena de Cole na divulgação da psicologia soviética no
Stalin, trouxe consequências drásticas ao campo Ocidente, põem em questão o rigor teórico no
da nascente psicologia, banindo importantes trato da obra vigotskiana por ele empreendido.
psicólogos, dentre eles, Vygotsky, da cena Ainda mais, aportando no Brasil, entre a
cientifica soviética. Nesse contexto, agudiza-se o segunda metade da década de 1970 e o início
ataque pessoal a Vygotsky, iniciado, ainda no dos anos de 1980, predominantemente
percurso de sua vida. Desse modo, o golpe associada à linha editorial desenvolvida nos
decisivo aplicado a Vygotsky foi desferido Estados Unidos, como anotam Mainardes e Pino
naquele exato ano de 1936, quando, literalmente (2000), a obra de Vygotsky vulgarizou-se, em
por decreto, seus livros foram removidos in totum expressiva medida, em leituras heterogêneas,
das bibliotecas. As informações contidas no superficiais e apartadas de sua fundamentação
parágrafo foram, em larga medida, atestadas por marxista. Contrariando essa tendência geral,
Ludmila Obukhova, por ocasião da palestra devemos recuperar aqui, a importância
proferida pela pesquisadora russa, na I primordial de Silvia Lane na introdução do
Conferência Internacional: o enfoque histórico- legado vigotskiano no Brasil, na justa
cultural em questão, ocorrida em 2006, em perspectiva marxista. De acordo com Sawaia
Santo André, SP. (2006), o encontro de Lane com a psicologia
Aproximadamente trinta anos após a histórico-cultural de Vigotski representava o seu
promulgação daquele paradigmático decreto, as encontro anterior com o marxismo.
obras de Vygotsky voltam a ser publicadas em Isso posto, poderíamos sopesar, então, que
seu país. Todavia, como anota Tuleski (2001), um terceiro corte desferido à herança de
nessa retomada, foi operada “... uma seleção de Vygotsky, decorrente, em uma larga acepção, à
seus textos que teriam interesse maior para o censura stalinista, por um lado, e à burguesa,
período de ‘abertura’ da União Soviética, por outro, operaria no plano da psicopedagogia
excluindo-se grande parte dos trabalhos de burguesa contemporânea. A propósito dessa
Vygotsky, onde o mesmo tecia críticas à forma terceira incisão, asseveramos, ademais, a partir
de organização que a sociedade soviética da divulgação da obra do psicologo soviético na
acabou por assumir após a morte de Lênin” (p. contemporaneidade, que a mesma vai encontrar
assento, na disseminação da proposta
18).
O retorno da obra de Vygotsky à URSS é pedagógica construtivista ou socioconstrutivista.
acompanhado de princípio, por uma tímida e Nesse contexto, sob efeito do paradigma
inexpressiva divulgação do seu nome no pós-moderno, a produção de Vygotsky é
Ocidente, motivada não só pela rejeição a uma manipulada no sentido da legitimação do projeto

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educacional construtivista, indo, por essa via, de (1999), acabaram por cruzar-se com “o
encontro à consolidação da perspectiva objetivismo ossificado, enrijecido, dogmático do
psicopedagógica marxista de Vygotsky e ao seu stalinismo” (p. 67).
compromisso intransigente com a edificação da Nesse contexto, o marxismo teria assumido
sociedade comunista, a única que, em sua uma feição economicista, estabelecendo uma
compreensão, possibilitando ao homem, “dar “relação causal entre estrutura e superestrutura,
esse enorme salto adiante – do reino da economia e ideologia, com a consequente
necessidade ao reino da liberdade” (Vygotsky, redução do marxismo a um rígido determinismo”
1998, p. 120), permitiria o desenvolvimento pleno (Oldrini, 1999, p. 69); ou, em outras palavras,
das individualidades. supondo a economia como o determinante
Tem razão Elhammoumi (2010) quando absoluto das demais esferas da realidade social.
anota que aqueles que buscam apreender as Tertulian (1996), por sua vez, além de repisar o
idéias de Vygotsky não podem deixar de abominável economicismo, ressalta a “tendência
enfrentar obstáculos de monta, os quais se do marxismo dogmático, em privilegiar a
devem, de forma mais pungente, aos desvios categoria da necessidade, tornando hipertrófico
mistificadores de seu pensamento, operados seu papel na história” (p. 61).
através das confabulações de um número de Diante desse conjunto de elementos, a
psicólogos cognitivistas e antropologistas empreitada de cavar as bases ontológicas do
culturalistas dos anos 1960 e 1970. A esse pensamento de Vygotsky materializou-se como
arranjo alinhavado de aportes teóricos veio objeto de um compreensivo projeto investigativo,
acoplar-se, ademais, o ideário do chamado sobre cujos resultados, necessariamente abertos
socioconstrutivisimo, em cujo campo, é oportuno e rigorosamente preliminares, funda-se o
observar, Vygotsky é perfilado em íntima presente artigo.
associação com Piaget. A investigação que está na base desta
Para Elhammoumi (2010), sem dúvida, a exposição elegeu, como objetivo maior,
psicologia sócio-cultural desenvolvida por examinar em que medida a afiliação de Vygotsky
Vygotsky traduziria uma extensão dos escritos ao universo categorial do marxismo teria
de Marx e Engels - enquanto, conforme admite ultrapassado a esfera estritamente
oportunamente o mesmo autor, Piaget metodológica/gnoseológica. Colocando a
encontraria em Kant, sua fonte de inspiração. questão em termos mais precisos, tentamos
Por conseguinte, “qualquer tentativa de modificar aferir se, além de perseguir a lógica dialética
o uso que Vygotsky faz das idéias de Marx com impressa no método indicado por Marx, Vygotsky
algum elemento estranho não é apenas teria pressuposto uma visão ontologicamente
objetivamente anti-Vygotsky, mas, também a perspectivada acerca da essência humana, o
distorção de sua teoria” (Elhammoumi, 2010, p. que significa o mesmo que indagar em que
661). Por esse mesmo prisma, outrossim, não dimensão teria nosso psicólogo concebido o ser
deixa o autor de postar o legado de Vygotsky em social em sua gênese e reprodução, em
direta contraposição ao dogmatismo que consonância com as coordenadas explicitadas
atravessou em tão larga medida, a tradição por Lukács, a partir de Marx.
marxista. Na incisiva declaração do autor (2010), É oportuno registrar que, na tentativa de
em tradução livre, “Vygotsky foi um oponente cumprir nossa monumental tarefa, deparamo-
destemido do dogmatismo na tradição marxista.” nos com uma questão deveras espinhosa, uma
(p. 662). vez que o próprio Vygotsky realça repetidamente
Nesse preciso sentido, passamos a assumir, e com indubitável justeza, a importância
ao lado dos autores supracitados, a tarefa de primacial do método.
confirmar a inscrição de Vygotsky na agenda Este seria o método de Marx, o qual se
marxista, resgatando o complexo conceitual situaria, para Vygotsky, inversamente à ontologia
vigotskiano, em referência às premissas metafísica, de cujas garras tentava o autor
fundamentais do marxismo recuperado por resgatar a ciência psicológica. Ainda assim, ou
Lukács, como uma ontologia do ser social, qual seja, mesmo diante da ênfase atribuída à
seja, aquela ontologia materialista superadora perspectiva metodológica, em refutação a
das deformações que vitimaram o pensamento qualquer axioma da esfera da ontologia,
de Marx, fundamentalmente a partir da Segunda achamos por bem averiguar se estaria
Internacional e que, como assinala Oldrini pressuposto em Vygotsky, o fundamento

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ontológico do método de Marx, no sentido demarca Tertulian (1996), com a devida


recuperado por Lukács. propriedade:
É nossa convicção, com efeito, que as tantas
distorções de cunho logicista, mecanicista e Diante do neopositivismo - que tendia a
determinista, atestadas por Tertulian (1996) e reduzir a realidade à sua compreensão
Oldrini, (1999), dentre outros, imputadas ao cognitiva, … enquanto se libertava dos
problemas ontológicos atribuindo-os à
legado marxiano, se deveriam, em significativa
esfera da "metafísica" – ele [Lukács]
medida, ao fato de se ter descolado desse pretendia restabelecer a autonomia
método, sua prioridade ontológica. Nesse ontológica do real, a sua totalidade
sentido, julgamos cabível a indagação: não seria intensiva e a sua irredutibilidade à pura
legítimo postular que o método de Marx, se, manipulação (p. 61, aspas do autor).
ontologicamente oco, muito bem se prestaria aos
oportunismos de ocasião, fundados Nesse sentido, é justo reiterar com o mesmo
invariavelmente na expressão dogmática de pensador, que a Ontologia do Ser Social cumpriu
umas ou outras exatas opiniões, que Vygotsky o objetivo de
soube tão bem condenar?
Cabe-nos, então, reafirmar a importância de superar duas deformações simétricas do
se resgatar o pressuposto ontológico da obra pensamento de Marx …. O determinismo
vygotskiana, inquirindo em que medida sua unívoco, que absolutiza o poder do fator
econômico, tirando a eficácia dos outros
aversão à consideração ontológica estaria
complexos da vida social, é condenado
assente àquelas ontologias dominantes no seu com rigor não inferior àquele usado para
tempo histórico, as quais, como aluiu o próprio condenar a interpretação teleológica,
Lukács, teriam operado o completo que, por sua parte, fetichiza a
esmaecimento do ser. necessidade ao considerar toda
formação social ou toda ação histórica
como um passo no caminho para a
ELEMENTOS DE COMPREENSÃO DO realização de um fim imanente ou
MARXISMO COMO UMA ONTOLOGIA transcendente (Tertulian, 1996, p. 60).
DO SER SOCIAL
Ao empreender o resgate ontológico do
Efetivamente, referindo-se às ontologias pré- marxismo, em verdade, Lukács elucidou que é o
marxianas, que antecederam à ontologia de homem como ser social, em sua complexíssima
novo tipo fundada por Marx, Lukács (2011) gênese e desenvolvimento, o mais autêntico
reconhecia com a devida clareza, que “o objeto de pesquisa de Marx. Para Lukács, Marx
essencial do ser empalideceu totalmente nas teria, assim, estipulado, para além de qualquer
antigas ontologias, por vezes desapareceu improbabilidade, a essência onto-histórica do
totalmente, ou, nos casos favoráveis, constituiu homem, fundada no trabalho, pelo qual, este
apenas um elemento, muitas vezes quase transforma o meio natural, cria o novo e se cria
imperceptível, na consideração em seu conjunto” como um ser radicalmente novo.
(p. 37). Faz-se, aqui, necessário recuperar na já
Confirma Lessa (1996), por seu turno, que a clássica formulação de Marx que abaixo
ontologia que Lukács vai resgatar na obra de reproduzimos, aquela que se constitui o
Marx se constitui como “uma grande novidade se fundamento da ontologia marxiana, a categoria
confrontada com a metafísica tradicional” (p. 8). trabalho:
Essa novidade consistiria, exatamente, na
suposição da radical historicidade da essência Antes de tudo, o trabalho é um processo
humana e da possibilidade da emancipação dos de que participam o homem e a
homens mediante a superação do capital. natureza, processo em que o ser
Foi, reconhecidamente, Lukács aquele que, humano com sua própria ação,
impulsiona, regula e controla seu
a rigor, identificou a presença de uma ontologia
intercâmbio material com a natureza.
na obra marxiana, a dizer, apreendeu o edifício Defronta-se com a natureza como uma
categorial erigido por Marx como uma teoria da de suas forças. Põe em movimento as
generidade humana. forças naturais de seu corpo, braços e
Elementos deveras importantes estariam na pernas, cabeças e mãos, a fim de
base da virada ontológica de Lukács, como apropriar-se dos recursos na natureza,

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imprimindo-lhes forma útil à vida economicismo e o fatalismo, como atinentes ao


humana. Atuando assim sobre a pensamento de Marx.
natureza externa e modificando-a, ao
mesmo tempo modifica sua própria
natureza. Desenvolve as potencialidades
nela adormecidas e submete ao seu VYGOTSKY E A CONTRAPOSIÇÃO À
domínio o jogo das forças naturais ONTOLOGIA METAFÍSICA
(Marx, 1989, p. 202).
Retomando, então, a questão lançada
Desse modo, estaria posta a categoria que anteriormente, qual seria o sentido de se
funda o mundo dos homens, uma vez que identificar a vinculação da obra de Vygotsky,
“somente o trabalho tem, como sua essência com os pilares da nova ontologia inaugurada por
ontológica, um claro caráter intermediário”, ou Marx e recuperada por Lukács? Sua declarada
seja, “ele é, essencialmente, uma interrelação adesão aos fundamentos do marxismo e sua
entre homem (sociedade) e natureza, tanto predestinada rigorosidade quanto à aplicação do
inorgânica ... como orgânica, interrelação que ... método de Marx já não seriam suficientes para
antes de mais nada assinala a passagem no delimitar a circunscrição do seu campo teórico?
homem que trabalha, do ser meramente Por que, em última análise, tentar ultrapassar o
biológico ao ser social” (Lukács, traduzido por campo metodológico e adentrar no terreno da
Tonet, s/d, p. 3). ontologia, precisamente a ontologia do ser
Vale recolocar que, pondo a termo as três social, a ontologia marxiana, em referência à
esferas ontológicas que compõem o cosmo – psicologia vygotskiana?
inorgânica, orgânica e social – Lukács assevera Quase que a comprovar a relevância das
que o trabalho traz à luz uma nova qualidade de indagações fundamentais que conduziram nossa
ser, que, sem perder o vínculo com as esferas investigação, Costa (2010) recobra que “a
inorgânica e orgânica, passa a reger-se por uma radicalidade de Marx está em compreender o
legalidade própria, aquela que alcança a movimento do real para transformá-lo
revolucionariamente, de acordo com as
dimensão de um ser que se desprendeu do
possibilidades engendradas pelo ser social
determinismo natural, tornando-se capaz de
criado pela atividade humana”, postulando, a
ação consciente e livre, com todos os
seguir, com muita propriedade: “Assim, só
heterogêneos e contraditórios desdobramentos partindo desse pressuposto, será possível
que instituem a evolução histórica dos homens, entender os limites, contradições e contribuições
como, em última análise, o homem como sujeito dos próprios herdeiros de Marx…, além de
de seu devir. Convém avançar um pouco mais evidenciar as possibilidades concretas do
em nossas brevíssimas colocações no terreno marxismo como instrumento de emancipação
da ontologia do ser social para lembrar que, num humana” (p. 197).
processo de complexificação contínua e Ora, conforme entendemos a questão,
dinâmica, o trabalho põe incessantemente novas apreender a perspectiva ontológica latente na
necessidades, para cuja resolução, surgem e se obra do importante herdeiro de Marx que aqui
desenvolvem os múltiplos complexos sociais que enfocamos sinaliza impreterivelmente para o
configuram a práxis humana, a exemplo da horizonte da revolução socialista e para a radical
linguagem, da ciência, da educação, da arte, da transformação do estado vigente das coisas.
política etc. Não há que se perder de vista, Tal orientação revolucionária marcou a
outrossim, que cada um dos demais complexos produção teórica, como a trajetória de vida de
sociais mantém com o trabalho, uma relação de Vygotsky, que não hesitou em enfrentar as
dependência ontológica e de autonomia relativa grandes questões no campo da psicologia, tendo
e, só assim, poderia assumir sua função própria como horizonte maior “a formação de um novo
no processo de reprodução social. Os diferentes tipo de homem” e a “elevação de toda a
complexos mantêm, por fim, com o trabalho, humanidade a um nível mais alto de vida social”
uma relação de determinação recíproca, (Vygotsky, 1998, p. 120).
influenciando-se mutuamente sob o primado da Cabe assinalar, ademais, que, afrontando a
totalidade social. A sociedade define-se, agora, crise da psicologia, Vygotsky (1999) opõe-se a
rigorosamente, como um complexo de qualquer perspectiva de resolução dos
complexos, sepultando, definitivamente, o problemas que se situe, igualmente, no âmbito

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da gnoseologia e da ontologia tomada como a confusão operada nesse contexto entre qual
filosofia metafísica, assentada nos preceitos do caminho seguir rumo à compreensão dos
idealismo. Aprofundando suas reflexões sobre a complexos do real. Semelhantes preocupações
aludida crise, acaba por firmar o primado do ser devem ser analisadas, por certo, guardando-se
sobre o conhecer, fincando salutar distância do as devidas especificidades acerca da
subjetivismo, ao mesmo tempo em que coloca a compreensão do problema ontológico pelos
objetividade para além do empiricismo. É isto, respectivos autores.
em suma, que está posto pelo autor na preciosa Conforme vimos aqui indicando, o estudo da
citação decalcada do Significado histórico da obra de Vygotsky, em contraposição à leitura de
crise da psicologia, escrito em 1927, que parte representativa do material produzido por
registramos abaixo. aqueles que dizem pautar-se por suas
premissas, e que se auto-intitulam vygotskianos,
A confusão entre o problema neovygotskianos, vygotskianos contemporâneos,
gnoseológico e o ontológico resultante dentre outras denominações (Duarte, 2000),
da transposição para a psicologia de reforça a nossa tese quanto à relevância da
conclusões já estabelecidas, em vez de captura do fundamento ontológico do
realizar a partir dela todo o processo de pensamento de Vygotsky, supondo que o
raciocínio, provoca a deformação de um mesmo estaria largamente ignorado pelo
ou de outro problema. Quando isto é aglomerado de autores, a exemplo de Oliveira
feito, é comum identificar o subjetivo
(1997), Rego (1994) e Nogueira (1993), dentre
com o psíquico, e a partir daí se conclui
que o psíquico não pode ser objetivo; outros, que, pelo obscurecimento da
também se confunde a consciência centralidade do trabalho, sobrelevando, em seu
gnoseológica (como um dos termos da lugar, uma ou outra categoria estudada por
antinomia sujeito-objeto) com a Vygotsky, desvirtuam o núcleo fundante da
consciência empírica, psicológica, e a psicologia vygotskiana.
partir disto se diz que a consciência não Poderíamos dizer, parafraseando o próprio
pode ser material.... Como resultado Vygotsky (1996), que estes “tomam o rabo de
dessa colocação chega-se ao
um sistema e o adaptam à cabeça de outro,
neoplatonismo, dentro do espírito das
essências infalíveis, nas quais a
intercalando no meio o tronco de um terceiro” (p.
existência coincide com o fenômeno. É 252). Com efeito, as palavras de Vygotsky,
uma fuga do idealismo que leva a destinadas a definir as mais esdrúxulas
mergulhar nele de cabeça. Já que se combinações que se tentaram fazer entre o
teme mais do que ao fogo identificar a marxismo e os diferentes ramos da psicologia à
existência com a consciência, chega-se sua época, parecem aplicar-se com exatidão às
assim em psicologia a identificá-las posturas teóricas dos neovygotskianos do nosso
totalmente, numa linha husserliana tempo. Vejamos como é procedente,
(Vygotsky, 1996, p. 379-380).
consequente e atual a crítica de Vygotsky ao
ecletismo científico-metodológico, do qual, caiu
Na verdade, preocupação similar em relação
vítima, ironicamente, sua própria obra:
à necessária demarcação entre a esfera
ontológica e a gnoseológica, expressou Lukács As tentativas ecléticas de conjugar
(1981), em sua Per una Ontologia dell’Essere elementos heterogêneos, de natureza
Sociale, quando, no Capítulo O trabalho, faz distinta e de diferentes origens
referência a Kant, afirmando que o mesmo, no científicas, carecem de caráter
plano metodológico imediato, teria intentado sistemático, dessa sensação de estilo,
“equacionar e resolver em termos gnoseológicos dessa conexão entre nexos que
proporciona o submetimento das teses
as questões ontológicas”, avaliando que, em particulares à única ideia que ocupa
perseguindo essa trilha, “no fim, o próprio lugar central no sistema de que faz parte
problema ontológico continua não resolvido” (Vygotsky, 1996, p. 252-253).
(Lukács, traduzido por Tonet, s/d, p. 9).
As passagens citadas, respectivamente de Nas tramas desse imbroglio eclético, vale
Vygotsky e Lukács, convergem no sentido de insistir, constatamos o deslocamento da
uma preocupação comum com a necessidade de categoria trabalho em nome de outras categorias
clarear devidamente as relações entre as esferas - linguagem, cultura, interação, mediação - que
gnosiológica e ontológica e, mais precisamente, passam a gravitar como centro do sistema

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vygotskiano. Estas terminam por operar um de sua obra, em relação à linguagem, ao


pernicioso desvirtuamento dos conceitos pensamento, à consciência.
autorados pelo psicólogo soviético, realizando a Precisamente em relação à obra
inclusão de Vygotsky, como anteriormente Pensamento e Linguagem (2001), seu caminho
aludido, no compósito dos modismos vai ser trilhado a partir da apreensão do método
pedagógicos contemporâneos, a exemplo do em Marx, que o leva a conduzir toda a
construtivismo, que se opõe diametralmente à investigação a partir da análise que decompõe
perspectiva da transformação socialista da em unidades a totalidade complexa, fazendo-o
sociedade e do homem, principal horizonte adotar como unidade de análise, a palavra, que,
firmado por Vygotsky. em si, carregaria a síntese que condensa a
O que está em jogo, aqui, é preciso deixar relação entre o pensamento e a linguagem.
claro, não é a menção às aludidas categorias per Desse modo, na mesma obra, a análise de
se, mas a condição de centralidade que estas Vygotsky avança a partir da crítica rigorosa às
passam oportunisticamente a assumir em sua principais teorias que explicam a relação entre o
obra, por sobre as prerrogativas do trabalho, pensamento e a linguagem, tomando como
comprometendo a dinâmica e dilacerando a exemplo, os trabalhos de Piaget e Stern, sendo
unitariedade do complexo categorial oportuno assinalar, de modo mais particular,
vygotskiano. Ademais, vale assinalar, a que, não obstante tenha reconhecido no
colocação aleatória das referidas categorias tem psicólogo suíço, o mérito de desvelar a
conduzido ao mais completo espontaneísmo admirável ideia de desenvolvimento, cedo
pedagógico, condição completamente avessa à identificou que este desviava-se da concepção
de fundo que deveria reger a construção de uma
compreensão de Vygotsky quanto ao relevante
psicologia superadora da dicotomia entre as
papel que a educação deveria cumprir como um
funções psíquicas dos indivíduos e o chão
dos instrumentos importantes na formação do
histórico-social em que se radica a gênese e o
novo homem da nova sociedade, o que o levou a desenvolvimento humano, findando, então, por
declarar que “As novas gerações e suas novas destroçar todo o edifício teórico de Piaget, como
formas de educação representam a rota principal admitiu o próprio Vygotsky.
que a história seguirá para criar o homem Sem pretender esgotar a questão, é
tipologicamente novo” (Vygotsky, 1998, p. 119). oportuno lembrar, com Klein (2005), que, para
Ao contrário da forma dominante de Piaget, o homem é essencialmente um
aproximação à obra de Vygotsky, reconhecemos organismo biológico (certamente capaz de
nesta, em seus termos próprios, o trabalho como aprender e desenvolver-se formidavelmente em
complexo fundante do homem, como ser capaz interação com o meio físico e social). Ou, dito de
de desprender-se do determinismo natural, outro modo, Piaget, ao contrário de Vygotsky,
entendendo que todo o conjunto categorial traça uma linha contínua entre homem e
estabelecido pelo autor erige-se a partir de uma natureza, não pressupondo uma ruptura entre os
interdependência recíproca com aquela que se fundamentos genético-evolutivos da esfera
constitui a categoria central. social em relação à esfera orgânica.
Desse modo, declara Vygotsky (1996): Prosseguindo em sua análise, Vygotsky
adentra nas raízes genéticas do pensamento e
podemos dizer que o animal está da linguagem e reconstrói o caminho da relação
totalmente preso à própria natureza, entre estas duas categorias nos planos da
enquanto o homem domina a natureza e filogênese e da ontogênese, deixando explícita a
a obriga a servir a seus fins. Neste caso,
interferência do papel do trabalho, no
novamente, deve isso ao trabalho. O
processo de trabalho exige que o desenvolvimento da espécie e do indivíduo.
homem tenha certo grau de controle A respeito da interferência do trabalho no
sobre seu próprio comportamento (p. âmbito da ontogênese, Vygotsky realizou uma
89). exaustiva investigação de caráter experimental,
da qual despontaram diferentes categorias afins
Neste caso, Vygotsky parece, de fato, como prática, atividade, ação, as quais, contudo,
estabelecer uma relação de dependência não assumiram, para nosso psicólogo,
ontológica do comportamento em relação ao identidade com o complexo do trabalho, mas,
trabalho, assim como também o faz, no conjunto estabelecendo uma relação ontológica com este,

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desembocaram, como desdobramento, no A criação dessas formas


processo de formação de conceitos, caracteristicamente humanas de
sistematizado, através de diferentes fases que comportamento produz, mais tarde, o
intelecto, e constitui a base do trabalho
culminam com o amadurecimento do
produtivo: a forma especificamente
pensamento. humana do uso de instrumentos
Não é demasiado insistir que, em diferentes (Vygotsky, 2003, p. 33).
passagens de sua obra,Vygotsky deixa
registrada, motu proprio, sua compreensão do Particularmente a respeito da categoria
trabalho como momento fundante do homen, instrumentos - termo comumente adotado nas
assim como a relação fundante-fundado, traduções brasileiras, ou ferramentas - vocábulo
estabelecidao pelo psicólogo soviético, entre as preferencialmente utilizado nas traduções
diferentes categorias e o complexo do trabalho. espanholas, é interessante recuperarmos, por
Nessa perspectiva, Vygotsky reporta-se ao princípio, as reflexões de Lukács (1981) quando
significado que se materializa na unidade das este define o uso dos instrumentos no ser social,
duas funções – comunicação e pensamento – como autoatividade do homem, em outros
ocorrido num determinado estágio do termos, articulando tal fenômeno ao processo de
desenvolvimento filogenético e ontogenético e recuo das barreiras naturais, próprio à
que, por sua vez, culmina com o processo de constituição do homem como ser social; ao
instituição do ser social através dos atos de passo que, conforme o autor, a utilização de
trabalho. instrumentos por parte dos animais se impõe em
Desse modo, assevera: condições de vida marcadas por um caráter
artificial ou de cunho passivamente adaptativo.
Sabe-se ainda que a comunicação não Como indica a citação anteriormente
mediatizada pela linguagem ou por outro
registrada, como as que se seguirão, abaixo, de
sistema de signos ou meios de
comunicação, como se verifica no reino caráter análogo, apresenta-se a explicitação de
animal, viabiliza apenas a comunicação Vygotsky, aqui, ao lado de Luria, acerca da
... do tipo mais primitivo e nas dimensões delimitação entre o uso de instrumentos pelos
mais limitadas. No fundo, essa homens e pelos animais.
comunicação através de movimentos Referindo-se aos elefantes, por exemplo,
expressivos não merece sequer ser demarcam Vygotsky e Luria (1996):
chamada de comunicação, devendo
antes ser denominada estágio. Um Um elefante quebra galhos de árvores e
ganso experiente, ao perceber o perigo e os utiliza para espantar as moscas. Isso
levantar com uma grasnada todo o é interessante e instrutivo. Porém, usar
bando, não só lhe comunica o que viu galhos para combater as moscas
quanto o contagia com o seu susto. A provavelmente não desempenhou
comunicação estabelecida com base em nenhum papel considerável na história
compreensão racional e na intenção de do desenvolvimento da espécie “o
transmitir idéias e vivências exige elefante”. Os elefantes não se tornaram
necessariamente um sistema de meios elefantes pela razão de que seus
cujo protótipo foi, é e continuará sendo a ancestrais mais ou menos tipo-elefante
linguagem humana, que surgiu da matavam moscas com galhos ... (p. 88,
necessidade de comunicação no aspas dos autores).
processo de trabalho (Vygotsky, 2001, p.
11, itálicos do autor).
Mais adiante, Vygotsky e Luria debruçam-se
sobre a espécie mais elevada do mundo animal,
Ressaltando, por seu turno, o fenômeno
concluindo, contudo, a exemplo de Lukács, que,
relativo ao uso dos instrumentos, imprescindível
mesmo nesse caso, o uso do instrumento acaba
à expansão da esfera de dominação do homem
por esbarrar no beco sem saída da determinação
sobre a natureza, pontua:
natural, que, apenas com o ato do trabalho, será
Antes de controlar o próprio rompida.
comportamento, a criança começa a Assim, explicam os autores:
controlar o ambiente com a ajuda da
fala. Isso produz novas relações com o Na vara usada pelo macaco já podemos
ambiente, além de uma nova ver o protótipo não só de um instrumento
organização do próprio comportamento. em geral, mas de toda uma série de

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Vygotsky: bases ontológicas 629

instrumentos diferenciados: pás, lanças tem por fundamento, a dimensão ontológica,


e assim por diante. Porém, mesmo no priorizando a totalidade complexa do ser e, com
caso dos macacos que, no mundo esta, articulando o movimento igualmente
animal, encontra-se no ponto mais
complexo de suas partes (vivas).
elevado quanto ao uso de instrumentos,
esses instrumentos ainda não Retomando os lineamentos gerais de sua
desempenham papel decisivo na luta produção, podemos atestar, por fim, que
pela sobrevivência. Na história do Vygotsky se ocupou com incontestável rigor da
desenvolvimento do macaco, ainda não resolução de questões psicológicas importantes,
houve aquele salto para diante que a exemplo da relação entre pensamento e
constitui o processo de transformação do
linguagem; da articulação entre desenvolvimento
macaco em homem.... No processo de
desenvolvimento do macaco, esse salto e aprendizagem; da problemática do
para diante teve inicio, mas não se comportamento; do sentido da arte. Outros
completou. A fim de que se complete, é problemas cruciais, propunha-se ainda a
preciso que se desenvolva uma forma enfrentar, com destaque para a categoria da
especial de adaptação à natureza, consciência. Assim é que finaliza sua obra
estranha aos macacos – ou seja, o máxima, Pensamento e Linguagem (2001),
trabalho (Vygotsky & Luria, 1996, p. 88).
apontando a consciência como um conteúdo, por
Assumindo tal posição, Vygotsky encontra- ele reconhecido como grandioso, a ser
se, sem dúvidas, com o sentido rigorosamente explorado em suas investigações posteriores –
marxiano do trabalho como ato-gênese do ser as quais, evidentemente, não puderam avançar,
que saltou para adiante da esfera do mundo barradas que foram por sua morte prematura.
animal.. Assim, declarou: “Nossa investigação nos leva
Pelo que se estabelece na obra de Vygotsky, diretamente ao limiar de outro problema mais
podemos, outrossim, assinalar que seu caminho vasto, mais profundo, mais grandioso que o
ontológico no sentido marxiano parece firmar-se problema do pensamento – a questão da
pelo trato fundamentalmente marxista que atribui consciência” (Vygotsky, 2001, p. 485).
à psicologia; e, no limite, por todo o complexo Tendo em conta o lugar emblemático que
categorial que delimita suas teorizações sobre ocupa a consciência no arcabouço do marxismo
essência e fenômeno, ser e conhecer, o que, a ontológico, no qual desponta como a forma mais
nosso ver, fica evidenciado com particular desenvolvida da matéria, órgão e médium da
clareza, quando o próprio Vygotsky declara, subjetividade, como diz Lukács (1981),
parafraseando Marx: arriscamo-nos a conceber que o mais instigante
na obra de Vygotsky seria, quiçá, o que nesta
Se a essência e a forma de não aparece de modo explícito. Para além do
manifestação das coisas coincidissem, que foi efetivamente posto, indicações deixadas
toda ciência seria desnecessária (K. pelo psicólogo soviético permitem depreender
Marx e F. Engels, Obras, t. 25, parte II, importantes questões apenas esboçadas, mas
p. 384). Se em psicologia o fenômeno e
a existência fossem o mesmo, cada
que pulsam em seus escritos, denunciando,
homem seria psicólogo-cientista e a igualmente, conforme nosso exame, a base
ciência seria impossível, só seria ontológica do seu complexo categorial.
possível o registro. Mas, evidentemente,
uma coisa é viver, sentir, e outra estudar,
como diz Pávlov (Vygotsky, 1996, p. NOTA CONCLUSIVA
384).
Reafirmando a conexão do pensamento de
Vygotsky (1996) depreende de Marx o Vygotsky com o legado de Marx, estipulada
método que decompõe em unidades a totalidade exemplarmente, no Brasil, por Tuleski (2001);
complexa, entendendo que este “possui todas as Duarte (2000); Martins (2006), dentre outros,
propriedades que são inerentes ao todo e, inquiririmos sobre as bases ontológicas da
concomitantemente, são partes vivas e psicologia de Vygotsky, aferindo em que medida
indecomponíveis dessa unidade” (p. 374). este assumiria uma visão ontologicamente
Não nos parece, assim, impróprio, assumir perspectivada acerca da essência humana,
que Vygotsky apanha o método de Marx em sua conforme explicitado por Lukács, a partir de
justa acepção: ou seja, como um método que Marx.

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Referido movimento analítico repousou na evidenciados na ontologia que lhe é possível


compreensão de que o resgate da natureza enxergar, o que nos faz postular, por
ontológica do marxismo posicionou o legado conseguinte, que a ontologia no sentido
marxiano na contra corrente das distorções marxiano do termo, recuperada do legado de
imputadas ao pensamento de Marx no curso da Vygotsky somente seria possível post festum,
história. com aporte nas indicações de Lukács, a quem
Para tanto, em paralelo à explicitação coube, décadas à frente, o empreendimento de
ontológica elaborada por Lukácse, sem deixar de resgatar em Marx, a verdadeira ontologia, aquela
ir ao encontro da letra de Marx, enfrentamos o antimetafísica ontologia do ser social.
exame dos textos de Vygotsky, privilegiando sua Em suma, nossos estudos indicam que a
obra mais madura, Pensamento e Linguagem, ontologia de Vygotsky, consolidada, em última
apelando, em menor escala, a outros estudos instância, na centralidade aferida à categoria
selecionados do autor, que atestam, de forma trabalho, conjugada à afirmação da possibilidade
mais direta sua vinculação com a premente da emancipação humana, abre-se como um
questão da formação do novo homem socialista, campo profícuo para futuras investigações,
associada à crise da psicologia do seu tempo, considerando-se toda a complexidade da
cuja natureza não consegue se desalinhar das questão, sobre a qual, pretendemos ter
alternativas antimaterialistas. apresentado, aqui, um esboço consistente, ainda
Com base em nossa investigação, inferimos que introdutório.
que o fato de Vygotsky não ter propalado de
modo explícito o problema ontológico não
significa que sua psicologia esteja isenta de um REFERÊNCIAS
pressuposto de natureza ontológica. Nesse
Burgess, T. (1994). Ler Vygotsky. In: DANIELS, H.
sentido, postulamos que, consoante a essa (org.) Vygotsky em foco: pressupostos e
perspectiva, não hesita Vygotsky ao demarcar a desdobramentos. São Paulo: Papirus.
essência radicalmente histórica do homem, Costa, F. (2010). O pensamento ontológico de Marx
indicando o trabalho como momento decisivo e os desafios da luta de classes no século XXI.
que opera a passagem do ser meramente In S. Jimenez, J. Rabelo e M. D. Mendes
biológico ao ser social, trazendo à luz uma nova Segundo (Orgs.). Marxismo, educação e luta de
classes: pressupostos ontológicos e
esfera ontológica, na qual impera, igualmente, desdobramentos ídeo-políticos. Fortaleza:
um novo tipo de atividade vital, qual seja, a EDUECE.
atividade transformadora, porquanto livre e Duarte, N. (2000). Vigotski e o “Aprender a
consciente. Estabelece, assim, em seus termos Aprender”: Crítica às Apropriações Neoliberais e
próprios, a relação fundante-fundado, entre Pós-Modernas da Teoria Vigotskiana. São Paulo:
Autores Associados.
trabalho e linguagem, concebendo, portanto,
esta última categoria tão cara a suas Elhammoumi, M. (2010). Is back to Vygotsky
enough? The legacy of socio-historicocultural
investigações, em vinculação ontogenética com psychology. Psicologia em Estudo 15 (4), 661-
a atividade prática dos homens. Os escritos de 673. Recuperado em 16 de outubro de 2012, de
Vygotsky atestam, ademais, que este ergueu http://www.scielo.br/pdf/pe/v15n4/v15n4a01.pdf
todo seu complexo categorial sobre a Klein, L. R. (2005). Construtivismo piagetiano:
possibilidade da emancipação humana, considerações críticas à concepção de sujeito e
objeto. In N. Duarte (Org.), Sobre o
condição somente possível de forma cabal no construtivismo. São Paulo: Autores Associados.
terreno da ontologia.
Lessa, S. (1996). A ontologia de Lukács. Maceió:
Na verdade, no caminho de volta da EDUFAL.
investigação, deparamo-nos frontalmente com a
Lukács, G. (1981). Per uma ontologia dell'essere
discussão ontológica, exposta, sociale. Roma: Editora Riuniti.
contraditoriamente, através de uma aberta Lukács, G. (2011). Prolegômenos para uma
declaração anti-ontológica de Vygotsky. Aqui, ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo.
novamente arriscamo-nos a pressupor que a Lukács, G. (s/d). O Trabalho. In Per una ontologia
explícita aversão de Vygotsky à apropriação dell’essere sociale, Capítulo I, Tomo II. Tradução
ontológica ordinariamente operada quanto à de Ivo Tonet recuperada em 13 de outubro de
obra de Marx se explicaria, em última instância, 2012, de http://www.scribd.com/doc/59459867/O-
a partir dos elementos metafísicos por ele Trabalho-Lukacs#fullscreen

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s_biblioteca/artigo183_Tertulia.pdf

Francisca Maurilene do Carmo: doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, professora da
Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário -
IMO/UECE.
Susana Vasconcelos Jimenez: PhD em Educação, professora da Universidade Estadual do Ceará, diretora do Instituto
de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário (IMO/UECE).

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