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Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais estáveis, “perenes”

da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da


archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua permanente
renovação, vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre
é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do
desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero.

O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o
representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É
precisamente por isto que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse
desenvolvimento.
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A cosmovisão carnavalesca é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora


e de uma vitalidade indestrutível. Por isto, aqueles gêneros que guardam até mesmo a
relação mais distante com as tradições do sério-cômico conservam, mesmo em nossos
dias, o fermento carnavalesco que os distingue acentuadamente entre outros gêneros. Tais
gêneros sempre apresentam uma marca especial pela qual podemos identificá-los.

Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou indiretamente, através de


diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore
carnavalesco(antigo ou medieval).
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A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério-cômico é o novo tratamento que


eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o objeto ou, o que é ainda
mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da
realidade. Pela primeira vez, na literatura antiga, o objeto da representação séria (e
simultaneamente cômica) é dado sem qualquer distância épica ou trágica, no nível da
atualidade, na zona do contato imediato e até profundamente familiar com os
contemporâneos vivos e não no passado absoluto dos mitos e lendas. Nesse gênero, os
heróis míticos e as personalidades históricas do passado são deliberada e acentuadamente
atualizados, falam e atuam na zona de um contato familiar com a atualidade inacabada.
Daí ocorrer, no campo do sério-cômico, uma mudança radical da zona propriamente
valorativo-temporal de construção da imagem artística.

A segunda peculiaridade é inseparável da primeira: os gêneros do sério-cômico não se


baseiam na lenda nem se consagram através dela. Baseiam-se conscientemente na
experiência (se bem que ainda insuficientemente madura) e na fantasia livre; na maioria
dos casos seu tratamento da lenda é profundamente crítico, sendo, às vezes, cínico-
desmascarador. Aqui, por conseguinte, surge pela primeira vez uma imagem quase liberta
da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia livre.

A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses


gêneros. Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade
estilística) da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica. Caracterizam-se pela
politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico,
empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados,
diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc. Em
alguns deles observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e
jargões vivos (e até o bilingüismo direto na etapa romana), surgem diferentes disfarces
de autor. Concomitantemente com o discurso de representação, surge o discurso
representado. Em alguns gêneros os discursos bivocais desempenham papel principal.
Surge neste caso, conseqüentemente, um tratamento radicalmente novo do discurso
enquanto matéria literária,

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Para dominar essa linguagem, ou seja, para iniciar-se na tradição do gênero carnavalesco
na literatura, o escritor não precisa conhecer todos os elos e todas as ramificações dessa
tradição. O gênero possui sua lógica orgânica, que em certo sentido pode ser entendida e
criativamente dominada a partir de poucos protótiposou até fragmentos de gênero. Mas a
lógica do gênero não é uma lógica abstrata. Cada variedade nova, cada nova obra de um
gênero sempre a generaliza de algum modo, contribui para o aperfeiçoamento da
linguagem do gênero. Por isso é importante conhecer as possíveis fontes do gênero de um
determinado autor, o clima do gênero literário em que se desenvolveu a sua criação.
Quanto mais pleno e concreto for o nosso conhecimento das relações de gênero em um
artista, tanto mais a fundo poderemos penetrar nas particularidades de sua forma do
gênero e compreender mais corretamente a relação de reciprocidade entre a tradição e a
novidade nessa forma

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Salientamos mais uma vez que não interessa a influência de autores individuais, obras
individuais, temas, imagens e idéias individuais, pois estamos interessados precisamente
na influência da própria tradição do gênero, transmitida através dos escritores que
arrolamos. Neste sentido, a tradição em cada um deles renasce e renova-se a seu modo,
isto é, de maneira singular. É nisto que consiste a vida da tradição. Interessa-nos – usemos
a comparação – a palavra linguagem e não o seu emprego individual num determinado
contexto singular, embora, evidentemente, um não exista sem o outro

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A cosmovisão carnavalesca ajuda a Dostoiévski superar o solipsismo tanto ético quanto


gnosiológico. Uma pessoa que permanece a sós consigo mesma não pode dar um jeito na
vida nem mesmo nas esferas mais profundas e íntimas de sua vida intelectual, não pode
passar sem outra consciência. O homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si
mesmo

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