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ETB 403 – Teologia Bíblica de Livros Históricos e Proféticos – Prof.

Ricardo Cesar Toniolo 1

AULA 02

UMA BREVE PALAVRA SOBRE A NARRATIVA HEBRAICA

I. Elementos que Constituem uma Narrativa

Os livros históricos são compostos principalmente por narrativas. Por isso, é


indispensável que ao estudá-los saibamos o mínimo sobre esse gênero literário. Os
elementos que constituem a narrativa são: narrador, espaço, tempo, personagens e enredo.
Dentro destes elementos também tratamos dos discursos dos personagens.

Ao falarmos de narrativas, de forma geral, estamos tratando de cenário,


personagens, tempo, diálogos, enredo e narrador. Quando se trata de narrativas hebraicas é
importante que estejamos atentos também às estruturas retóricas peculiares.

1.1 Narrador

É comum que o narrador passe despercebido ao leitor. No entanto, ele é a peça


fundamental para que haja narrativa. É ele quem conta a história. Há de se considerar, no
entanto, que o narrador é parte da obra e não pode ser confundido com o autor1. Ele é
produzido pelo autor para ser seu instrumento para se dirigir ao leitor.

O narrador pode ser caracterizado de diversas formas. Ele pode narrar em primeira ou
em terceira pessoa. Quando o autor opta por um narrador em primeira pessoa ele pode criá-
lo como narrador personagem, ou seja, aquele que além de contar também participa da
história. Quando o narrador participa da história ele pode ser narrador protagonista ou
narrador testemunha. O narrador protagonista é o personagem principal contando a

1
Não só em teoria literária, mas também na lingüística o narrador é diferenciado do autor. O autor é chamado de
enunciador e o leitor de enunciatário. O narrador, que é construído pelo enunciador, se dirige ao narratário.
Quando um personagem fala é chamado de interlocutor e aquele a quem se dirige de interlocutário.
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história. O narrador testemunha é um personagem secundário, apenas conta a história a


partir de seu ponto de vista sem se envolver muito emocionalmente.

Um exemplo de narrador em primeira pessoa é Neemias. Veja abaixo o trecho de 4.10-


14:

10
Então disse Judá:

Já desfaleceram as forças dos carregadores, e os escombros


são muitos; de maneira que não podemos edificar o muro.

11
Disseram, porém, os nossos inimigos:

Nada saberão disto, nem verão, até que entremos no meio


deles e os matemos; assim faremos cessar a obra.

12
Quando os judeus que habitavam na vizinhança deles, dez vezes, nos
disseram: “De todos os lugares onde moram, subirão contra nós”, 13 então,
pus o povo, por famílias, nos lugares baixos e abertos, por detrás do muro,
14
com as suas espadas, e as suas lanças, e os seus arcos; inspecionei,
dispus-me e disse aos nobres, aos magistrados e ao resto do povo:

não temais; lembrai-vos do Senhor, grande e temível, e pelejai


pelos vossos irmãos, vossos filhos, vossas filhas, vossa mulher e
vossa casa.

O narrador em terceira pessoa pode ser “onisciente”, o que carrega junto de si a idéia
de onipresença. O narrador onisciente é aquele que sabe e revela ao leitor pensamentos,
sentimentos ou fatos que acontecem em oculto ou dois fatos que acontecem em dois
lugares ao mesmo tempo. Ele também pode ser um narrador intruso. Este tipo é aquele que
comenta, interpreta e avalia os acontecimentos quando julga ser conveniente ou relata
opiniões de algum personagem. O narrador que não tece comentários, mas que se limita a
narrar a história é o narrador neutro. Tanto o narrador intruso quanto o neutro são tipos de
narrador onisciente.
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O narrador onisciente é o tipo de narrador mais comum na Bíblia. Um exemplo está


em 2 Samuel 11:27:

Passado o luto, Davi mandou buscá-la e a trouxe para o palácio; tornou-se ela sua
mulher e lhe deu à luz um filho. Porém isto que Davi fizera foi mal aos olhos do
SENHOR.

Note que o texto foi destacado onde a onisciência do narrador se faz evidente. Como saberia
ele que “foi mal aos olhos do SENHOR? Neste texto o narrador onisciente se comporta como
intruso ao relatar a opinião de Deus sobre a ação de Davi. Como nosso pressuposto é que a
Escritura é inspirada e reflete perfeitamente o pensamento de Deus, a interpretação do
narrador é a interpretação correta dos eventos. O narrador é quase imperceptível, mas pela
sua importância devemos estar atentos ao que ele está afirmando.

O narrador observador, que também narra em terceira pessoa, á aquele que não
participa da história, nem tem conhecimento dos pensamentos, sentimentos ou dos fatos
ocorridos em oculto, ao contrário do onisciente. Ele se comporta como uma testemunha
apenas.

1.1.1 Ponto de vista

Atrelado ao narrador está o seu ponto de vista, que é a perspectiva a partir da qual
ele conta a história. O narrador pode narrar a história a partir de vários pontos diferentes.
Cabe ao intérprete perceber qual é o ponto de vista do narrador. Segundo Longman2, ele
pode estar em vários planos: o espacial, o temporal, o psicológico ou ideológico.3 O plano
espacial, se comparado a uma filmagem, seria o local onde a câmera seria colocada. O
temporal acontece quando o narrador transcende o tempo, por exemplo, quando coloca sua
câmera no passado. Plano psicológico é aquele em que o narrador tem acesso à mente dos
personagens. Ideológico é o plano a partir do qual o narrador faz avaliações, e é o mais
interessante, pois através dele o narrador guia o leitor na interpretação dos eventos.

2
LONGMAN III, Tremper. Literary approaches to biblical interpretation. Grand Rapids: Zondervan, 1987, pp.
87-88.
3
Longman afirma que o ponto de vista fraseológico, colocado junto aos outros quatro por Boris Uspensky, não
teria a mesma importância para análises literárias de textos bíblicos.
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Bar-Efrat4 apresenta quatro motivos para se considerar importante o ponto de vista


do narrador: 1. O ponto de vista do narrador unifica os vários pontos de vista dos
personagens; 2. A narrativa será desenvolvida de acordo com o ponto de vista; 3. O ponto de
vista apropriado atrai o interesse do leitor e ajuda a estabelecer o suspense; 4. O ponto de
vista é um dos recursos usados pelo narrador para influenciar o leitor a assumir os valores
implícitos.

Quando o narrador não avalia nada talvez ele guie o leitor a tirar conclusões através
do que virá a seguir. O narrador pode gerar expectativas quando deixa de interpretar algo
claramente.

1.2 Personagens

É interessante que em geral há não mais que dois personagens nas narrativas
bíblicas. Um personagem bíblico pode ser individual ou coletivo. Preste muita atenção
quando o narrador apresentar descrições de um personagem e também quando der a
palavra a ele em discurso direto. Quando isso acontece é porque terá relevância para se
compreender a narrativa, pois indicará o ponto de vista a partir do qual o narrador trabalha.
Os personagens podem estar em relação de contraste ou de paralelo. O contraste acontece
quando aquele que está na sombra faz sobressair ainda mais o principal; o paralelo, quando
um é compreendido à luz de sua contraparte.

A classificação de personagens se dá de acordo com o tipo: protagonista,


antagonista, oponente, coadjuvante ou figurante. O protagonista é o personagem principal,
geralmente um herói. O antagonista é aquele que se coloca na vida do protagonista para
atrapalhá-lo; é um rival ou vilão. Podemos considerar a existência de um co-protagonista,
que ajuda o protagonista em seu propósito, e de um oponente, que ajuda o antagonista.
Coadjuvante é um personagem secundário, que pode estar relacionado com a história
principal ou não. O figurante é aquele que não participa da história, apenas a ilustra; ele está
ali, mas a história não precisa, nem ele dela participa. Isto é mais comum em filmes. As
pessoas que passam pela rua, por exemplo.

4
BAR-EFRAT, Shimon. Narrative art in the Bible. Londres, Nova York: Clark, 2004, pp. 15-16.
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Pratt5 trata apenas de protagonista, antagonista e ambivalente. Estes não se definem


como protagonista ou antagonista. Com relação a tais tipos de personagens, o ambivalente
pode nem apoiar nem se opor ou podem mudar de lado no decorrer da história.

1.2.1 Discursos

O discurso pode ser direto, indireto ou indireto livre. É direto quando a fala do
personagem é reproduzida integralmente; indireto, quando dentro da voz do narrador é
transmitido o discurso do personagem; e indireto livre, que é uma mistura dos dois
anteriores, quando o narrador reproduz em sua própria voz a fala de um personagem e
menciona o que ele diz e também o que ele pensa ou sente, podendo também incluir idéias
do próprio narrador.

Os discursos diretos são os diálogos. Estes apontam para momentos importantes


dentro de uma narrativa. Quando o narrador permite que os personagens falem por si
mesmos é porque o foco está ali. Preste atenção especialmente nos longos discursos.

1.2.2 Dêixis

Muita atenção deve ser dada às interrupções do narrador, porque ele conduzirá seus
leitores à maneira que o diálogo deve ser lido. As dêixis6 são de grande valor, pois fazem
uma moldura em torno dos discursos diretos de modo que o leitor possa compreender o que
não poderia sem ouvir a entonação da voz dos personagens. Por exemplo, em Êxodo 17.2:

2
Contendeu, pois, o povo com Moisés e disse:

Dá-nos água para beber.

2
Respondeu-lhes Moisés:

Por que contendeis comigo? Por que tentais ao SENHOR?

5
PRATT Jr, Richard L. Ele nos deu histórias: um guia completo para a interpretação de histórias do Antigo
Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 172-174.
6
Dêixis são as introduções que o narrador dá para os discursos diretos. Por exemplo, quando se lê: “e o povo
murmurou dizendo:...” já se sabe que o discurso deve ser lido a partir de uma perspectiva negativa. Elas
funcionam como moduladores da leitura.
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Neste trecho podemos perceber a moldura que o narrador coloca no discurso do


povo, através da palavra “contendeu”. Nós não estávamos lá para ouvir com que entonação
o discurso foi proferido. Alguém poderia dizer que Moisés compreendeu errado o que o
povo pretendeu dizer, o que é algo comum entre os seres humanos. O discurso em si (”dá-
nos água para beber”) pode ser dito de diversas formas. Ele poderia ser pronunciado como
um pedido, mas o narrador aponta para o leitor que foi dito no sentido de “contenda”, como
se o povo estivesse exigindo uma prestação de contas numa quebra de contrato, ou uma
exigência.

1.3 Espaço

O espaço de uma narrativa pode ser chamado de cenário. Cenário é o lugar onde a
história ou parte dela acontece, e é de extrema importância na narrativa hebraica.
Diferentemente de uma ficção, em que o cenário pode ser imaginado e criado, a narrativa
bíblica se baseia num local real e histórico. O local onde a história acontece não só situa a
narrativa no espaço como também desempenha um papel na história.7 No episódio de Ana
(1 Sm 1), o cenário do santuário que encontra-se em Siló é representativo da humilhação
que ela recebe de Penina por ser estéril e do sacerdote Eli que interpretou que ela estivesse
embriagada. Por causa disto, Ana se recusa a retornar a Siló sem que seu filho, bênção de
Deus e fruto de suas orações, tivesse nascido. O local é não só para onde Ana voltaria para
cumprir a promessa de consagrar seu filho (v. 11) após tê-lo desmamado (v. 21), é também o
local de sua humilhação. Assim, retornar ao local somente quando sua transformação
pudesse ser constatada é significativo.

1.4 Tempo

Faz-se necessário também estar atento ao tempo. O tempo cronológico é diferente


do tempo que se passa dentro de uma narrativa. A sucessão histórica não tem tanta
importância quanto a maneira que o escritor dispôs o enredo. Note como nos capítulos 1 a

7
LEONEL, João. A Bíblia Como Literatura: Lendo as Narrativas Bíblicas. IN: ZABATIERO, Júlio P. T.;
LEONEL, João. Bíblia, literatura e linguagem. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 119-120.
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11 de Gênesis descrevem um tempo enorme enquanto os demais capítulos dão ricos


detalhes ao leitor.

O tempo se passa numa narrativa de várias formas. Não é possível, por exemplo,
reproduzir acontecimentos simultâneos numa literatura como o seria na televisão, no
cinema ou no teatro. Nas narrativas cenas simultâneas precisam ser apresentados de forma
seqüencial. A escolha de qual evento simultâneo será apresentado primeiramente trará uma
implicação própria. Invertê-la representa também trazer outra implicação. Assim, o narrador
fará uma escolha de acordo com o propósito do autor, dependendo de qual cena é a
principal e qual é aquela que será apresentada em função da outra. Esse procedimento cria
um efeito de sentido. Nem sempre a gramática demonstra claramente a simultaneidade de
certos acontecimentos. Às vezes é necessário recorrer à lógica ao estudá-los.8

Dentro do tempo também podemos encontrar lacunas. Nem tudo é narrado. A Bíblia
não se propõe a fazer biografias. Todos os eventos narrados têm propósitos teológicos.
Colocar dois eventos de forma linear e ininterrupta serve a esses propósitos, pois criam
sensações, efeitos de sentido e colocam o leitor a perceber causas e conseqüências ou
unidade temática que se perderiam se tais eventos fossem mediatos. Tanto o ato de
selecionar eventos quanto estabelecê-los numa sequência são formas de comentários.

Literariamente podemos classificar o tempo entre cronológico e psicológico. O tempo


cronológico é o seqüencial, representando fielmente a linearidade da história. O tempo
psicológico, por sua vez, não é mensurável e acontece principalmente no interior do
personagem, como um sonho, por exemplo. Essa estratégia de narrativa serve para conduzir
o leitor ao entendimento dos acontecimentos e a se posicionar corretamente diante dos
valores pretendidos pelo autor.9

Um exemplo de tempo psicológico é o sonho de Salomão em 1Reis 3.5-15:

Em Gibeom o Senhor apareceu a Salomão num sonho, à noite, e lhe disse:


Peça-me o que quiser, e eu lhe darei.
Salomão respondeu:

8
PRATT Jr, Richard L. Ele nos deu histórias: um guia completo para a interpretação de histórias do Antigo
Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 184
9
LEONEL, João. A Bíblia Como Literatura: Lendo as Narrativas Bíblicas. IN: ZABATIERO, Júlio P. T.;
LEONEL, João. Bíblia, literatura e linguagem. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 118-119
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Tu foste muito bondoso para com o teu servo, o meu pai Davi, pois ele foi fiel a ti, e
foi justo e reto de coração. Tu sustentaste grande bondade para com ele e lhe deste
um filho que hoje se assenta no seu trono. Agora, Senhor meu Deus, fizeste o teu
servo reinar em lugar de meu pai Davi. Mas eu não passo de um jovem e não sei o
que fazer. Teu servo está aqui entre o povo que escolheste, um povo tão grande que
nem se pode contar. Dá, pois, ao teu servo um coração cheio de discernimento para
governar o teu povo e capaz de distinguir entre o bem e o mal. Pois, quem pode
governar este teu grande povo?
O pedido que Salomão fez agradou ao Senhor. Por isso Deus lhe disse:
Já que você pediu isto e não uma vida longa nem riqueza, nem pediu a morte dos seus
inimigos, mas discernimento para ministrar a justiça, farei o que você pediu. Eu lhe
darei um coração sábio e capaz de discernir, de modo que nunca houve nem haverá
ninguém como você. Também lhe darei o que você não pediu: riquezas e fama; de
forma que não haverá rei igual a você durante toda a sua vida. E, se você andar nos
meus caminhos e obedecer aos meus decretos e aos meus mandamentos, como o seu
pai Davi, eu prolongarei a sua vida.
Então Salomão acordou e percebeu que tinha sido um sonho. Depois voltou a Jerusalém,
pôs-se perante a arca da aliança do Senhor, sacrificou holocaustos e apresentou ofertas de
comunhão. Então deu um banquete para toda a sua corte.

Neste texto o tempo não é cronológico, porque esses acontecimentos não se


sucedem na história real, mas o tempo se passa no interior de Salomão. Os acontecimentos
que se passam no sonho de Salomão não são a sequência do que acontece entre a oferta de
mil holocaustos (v. 4) e a sua ida a Jerusalém (v. 15). Enquanto Salomão tinha esse sonho o
tempo cronológico corria naturalmente na história real. Narrado no tempo cronológico
Salomão teria oferecido mil holocaustos, depois dormido e então ido a Jerusalém.

1.5 Enredo

Toda narrativa possui um enredo, um princípio, meio e fim onde há a construção e a


resolução de uma tensão. Os conflitos levam adiante o enredo produzindo interesse na
resolução. É o enredo que une os demais elementos da narrativa: narrador, personagens,
espaço e tempo. Os enredos podem ser de vários graus de complexidade.
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Dentro de um enredo podemos perceber ritmos diferentes. O ritmo mais rápido é


formado por sentenças mais curtas, muitos verbos e poucos detalhes. O ritmo diminui
quando o escritor acha necessário detalhar melhor seus personagens. No ritmo lento os
tópicos são mais desenvolvidos e os períodos de tempo, mais longos. Quando o ritmo
diminui significa que algo de maior importância se encontra ali. Nesse caso deve-se prestar
atenção aos discursos diretos, nas características dos personagens e no desenvolvimento a
partir dos verbos.

As lacunas também devem ser percebidas, pois aquilo que o escritor não escreveu
tem implicações para sabermos aonde ele quer chegar e qual o significado teológico de sua
obra. Isso acontece em Êxodo 17.1 onde consta: “Tendo partido toda a congregação dos
filhos de Israel do deserto de Sim, fazendo suas paradas, segundo o mandamento do
SENHOR, acamparam-se em Refidim...” Note a expressão “fazendo suas paradas”. Neste
ponto o autor omitiu as paradas em Dofca e Alus (cf. Nm 33.12-14). A intenção do autor era
ressaltar as diversas vezes em que Israel murmurou no deserto e não fazer uma narração
exaustiva da história. Se ele fizesse narrações sobre o que ocorreu em Dofca e Alus
quebraria o efeito pretendido.

Os fragmentos da narrativa são combinados numa ordem proposital para produzir


uma narrativa. Cada um desses fragmentos separado da narrativa inteira perde o seu
propósito. Ninguém deve ler 20 páginas da Bíblia para pregar, mas deverá estudá-las para
compreender o sentido do trecho menor. É, portanto, necessário identificar o contexto
mínimo para você estudar e explicá-lo aos seus ouvintes. A melhor maneira de fazer isso
numa narrativa hebraica é identificar o ato e a cena, e como sua perícope em estudo se
comporta dentro do todo.

1.5.1 Cena

Cena é uma unidade literária delimitada na qual o cenário, o tempo e os personagens


não mudam. A história como um todo é construída de cena em cena. A cena é, portanto, um
pequeno ou micro enredo dentro do enredo maior.

Dividir em cenas é útil tanto para aquele que está compondo histórias como para
aquele que pretende interpretá-las. Identificar cenas é útil como dar um passo de cada vez
em direção ao objetivo.
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1.5.2 Ato

O ato narrativo é a grande subdivisão da história. O enredo tem uma introdução, uma
complicação que se desencadeia no clímax e o desfecho. Cada uma dessas seções é um ato.
Se uma cena é um passo, um ato é um trecho do caminho que se percorre para dar à
narrativa um começo, meio e fim. Os atos se relacionam entre si em causa e conseqüência.

A utilidade de se dividir o texto é que há histórias grandes o suficiente para


inviabilizar um estudo mais modesto, como por exemplo, o sermão que deve ser preparado
dentro de uma semana, ou para facilitar um estudo mais complexo que não pode ser
trabalhado todo de uma vez. Nos estudos exegéticos em que costumamos dividir em
perícopes. Um ato pode ser uma perícope, se for pequeno; parte de uma perícope, se ainda
menor; ou pode ser um contexto próximo. De qualquer forma, o mais importante é que se
compreenda em qual parte da narrativa a perícope se encontra e qual é a sua função dentro
da narrativa inteira.

II. Contexto Literário e Canônico

Sempre ao explanar sobre a bíblia é necessário delimitar os versículos que serão


lidos. Tal delimitação é chamada de perícope, palavra que vem do grego e quer dizer “ação
de cortar em volta”. Independente do tamanho uma perícope deve ser constituída de um
texto com sentido completo.

Os textos estão inseridos em contextos. Podemos falar de literário ou canônico. O


contexto literário refere-se aos textos que antecedem ou sucedem o texto em estudo.
Mesmo depois de delimitar uma perícope não será possível tirar conclusões corretas sobre
ela sem considerar a maneira como ela funciona dentro de um texto mais amplo.
Dependendo da complexidade de uma narrativa poderemos estabelecer vários níveis de
contexto. Mas falaremos pelo menos em dois níveis: um contexto literário próximo e um
remoto.
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Acerca do contexto canônico devemos ainda uma explicação. Ele também é textual,
porém extrapola o livro bíblico do qual faz parte o texto que estivermos estudando. Dentro
do cânon bíblico10 os textos podem ter relações intertextuais. Contexto canônico não se
trata, portanto, de textos referentes a um mesmo tema, mas àqueles que têm ligação direta
entre si através de citações, alusões ou paralelos verbais estabelecidos por um autor sagrado
com livros canônicos anteriores. Os escritos posteriores também se tornam contexto
canônico para os livros anteriores ao serem citados ou aludidos.

Para exemplificar um contexto literário e canônico consideremos Mateus.


Suponhamos que estudamos o capítulo 17.1-8, onde é narrada a transfiguração. São oito
versículos com começo, meio e fim. Pode ser uma unidade para uma pregação, por exemplo.
Há referências que marcam o início da perícope, quais sejam, mudança de tempo (“seis dias
depois”), restrição de personagens (“tomou consigo a Pedro, Tiago e João”)11, e mudança de
cenário (“os levou... a um alto monte”). Há uma indicação no versículo 9 de outra mudança
de cenário (“descendo eles do monte”), o que quer dizer que nele tem início nova perícope.
Mas há relação dos versículos 1-8 com os textos que o antecedem ou o seguem? Qual seria
essa relação? Qual sua função da perícope no livro? O tema dos versos 9-13 é o profeta Elias.
Embora 1-8 não trate disso, é dali que surge o personagem Elias que passa a ser o tema em
9-13. O verso 9 se relaciona com 1-8 ao dizer Jesus que os três discípulos não deveriam
contar a visão a ninguém. Passemos ao texto antecedente. A transfiguração se relaciona com
o capítulo 16 pela confissão feita por Pedro. O povo dizia que o Filho do Homem era João
Batista, outros diziam que era Elias, outros, Jeremias ou algum dos profetas (Mt 16.14).
Pedro confessou, então, que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). A transfiguração
revela o testemunho de Moisés e de Elias a respeito de Jesus. Jesus realmente não era um
dos profetas, como o povo dizia (16.14), e de fato a confissão de Pedro foi revelada pelo Pai
(16.17). Moisés e Elias, a lei e os profetas, apontaram para o Cristo e dele testemunham.

A perícope de Mt 17.1-8 está dentro de uma seção do Evangelho que procura


apresentar a autoridade do Senhor como o Cristo. É uma seção cheia de milagres que

10
A seleção de livros reconhecidos pelos judeus (no caso do Antigo Testamento) e cristãos como sagrados ou
revelação divina normativa. O Catolicismo Romano considera outros livros como canônicos do Antigo
Testamento. São eles: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico e Baruque. Além
destes, os livros “O Cântico dos três jovens” consta como parte do capítulo 3 de Daniel; “Susana” e “Bel e o
Dragão” constam como capítulo do mesmo livro. Há também um acréscimo no último capítulo do livro de Ester.
A estes chamam de deuterocanônicos, pois somente foram inseridos na relação de livros sagrados no Concílio de
Trento, em 1546. Eles já constavam na tradução grega do AT, conhecida como Septuaginta ou old greek.
11
Pois Jesus estava também com outros discípulos no texto que antecede.
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demonstram a autoridade do seu Reino. Dentro dessa seção a autoridade de Jesus é posta
em dúvida pelos fariseus e saduceus, que o desafiam a mostrar um sinal do céu (16.1), ao
que Jesus responde que somente um sinal será dado àqueles que pertencem a uma geração
má e adúltera: o sinal de Jonas (16.4). Tal sinal seria a ressurreição, pois como o profeta,
Jesus permaneceria “engolido” por três dias até reaparecer. O tema da ressurreição também
aparece em 17.9 quando Jesus ordena a Pedro, João e Tiago que nada contem sobre a visão
da transfiguração até sua ressurreição. O tema do livro de Mateus como um todo é o Reino
de Deus. Assim Mt 17.1-8 se relaciona com os textos mais próximos e os mais remotos no
Evangelho, seu contexto literário. A isto podemos chamar de intratextualidade12.

Mas há outras indicações em Mt 17.1-8 que nos levam para outras partes da
Escritura. Há uma intertextualidade entre o Evangelho e os livros da Lei. O de cada um
resplandeceu (v. 2; Ex 34.29); a presença de uma nuvem (v. 5; cf. Ex 24.15); uma voz que diz
“a ele ouvi” (v. 5; cf. Dt 18.15). A própria presença de Moisés na visão testemunha de que
Jesus era aquele de quem Moisés falara em Dt 18.15. Essas relações nos dão o contexto
canônico, que jamais poderia ser desprezado na interpretação desse trecho do Evangelho.
Por outro lado, também podemos dizer que para a interpretação de Dt 18.15, por exemplo,
deve-se considerar Mt 17.1-8 como seu contexto canônico, pois é seu cumprimento.

Para deixar bem claro o que é contexto canônico, vamos exemplificar com Isaías 1.2,
onde o profeta diz "ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei
filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim". Por que os céus e a terra
deveriam ouvir? Esse assunto nos remete a Deuteronômio 30.19: "Os céus e a terra tomo,
hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição;
escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência". Veja o que antecede: "maldito
aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E todo o povo dirá:
Amém! (27.19); "Maldito aquele que aceitar suborno para matar pessoa inocente. e todo o
povo dirá: Amém!”(27.25). Agora volte os olhos para Isaías 1.23 "Os teus príncipes são
rebeldes e companheiros de ladrões; cada um deles ama o suborno e corre atrás de
recompensas. Não defendem o direito do órfão, e não chega perante eles a causa das
viúvas." No primeiro capítulo Isaías está denunciando a maldade misturada com o culto. Os
indivíduos participavam dos cultos, como pessoas religiosas, mas no dia a dia praticavam o

12
Relação entre textos de um mesmo autor.
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mal. Isaías então recorre às testemunhas nomeadas por Deus quando apresentou a lei. Note
que "céus e terra" em Isaías não tem nada a ver com Gn 1.1. As palavras são as mesmas13,
mas não há contexto canônico. Há contexto canônico entre Isaías 1 e Deuteronômio 30,
porque Isaías recorre diretamente a este texto, onde as testemunhas de quem ele precisa
foram nomeadas.

III. Estruturas Retóricas

É comum encontrarmos estruturas retóricas como repetição, inclusão ou quiasmo


nas narrativas hebraicas. De certa forma inclusão e quiasmo também são formas de
repetição, mas as trataremos em separado por suas características estruturais peculiares.
Essas estruturas são importantes porque as narrativas foram escritas para serem lidas por
alguns e ouvidas por outros. Quando se ouve não se pode, por exemplo, correr o olho para a
página anterior para recordar rapidamente de algo. Assim, aquilo que é importante é
destacado aos ouvidos através dessas estruturas. A repetição serve para a fixação dos
ouvintes da leitura.14 Embora igualmente utilizadas em outros gêneros literários, seguem
alguns exemplos desses tipos de repetições em narrativas:

Repetição – Palavras-chave, idéias centrais, temas, seqüências de ações podem ser


repetidas para fazer o leitor retomar o ponto anterior ou ajudá-lo a focar aquilo para o que o
autor pretende realmente tratar. A repetição de fala foi usada em 1 Reis 12.8-14, onde
Roboão repete as palavras ouvidas pelos jovens conselheiros (comparar o v. 11 com o v. 14):

8
Porém ele desprezou o conselho que os anciãos lhe tinham dado e tomou conselho com os
jovens que haviam crescido com ele e o serviam. 9 E disse-lhes:

Que aconselhais vós que respondamos a este povo que me falou, dizendo: Alivia o
jugo que teu pai nos impôs?
10
E os jovens que haviam crescido com ele lhe disseram:

13
Quando as palavras são as mesmas podemos dizer que há um paralelismo verbal.
14
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 140.
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Assim falarás a este povo que disse: Teu pai fez pesado o nosso jugo, mas tu alivia-o
de sobre nós; assim lhe falarás: Meu dedo mínimo é mais grosso do que os lombos de
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meu pai. Assim que, se meu pai vos impôs jugo pesado, eu ainda vo-lo
aumentarei; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com
escorpiões.
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Veio, pois, Jeroboão e todo o povo, ao terceiro dia, a Roboão, como o rei lhes ordenara,
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dizendo: Voltai a mim ao terceiro dia. Dura resposta deu o rei ao povo, porque desprezara
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o conselho que os anciãos lhe haviam dado; e lhe falou segundo o conselho dos jovens,
dizendo:

Meu pai fez pesado o vosso jugo, porém eu ainda o agravarei; meu pai vos castigou
com açoites; eu, porém, vos castigarei com escorpiões.

Inclusão – é a repetição no fim de um texto de palavras e frases encontradas no


início. Isso nos ajuda a delimitar um texto ou contexto para estudo ou pregação. Tomemos
um exemplo em Números:

22.20 – Naquela noite Deus veio a Balaão e lhe disse:

“Visto que esses homens vieram chamá-lo, vá com eles, mas faça apenas o que eu lhe
disser”

22.35 – Então o Anjo do SENHOR disse a Balaão:

“Vá com os homens, mas fale apenas o que eu lhe disser”. Assim Balaão foi com os
príncipes de Balaque.

Nm 22.22 informa que Deus ficou irado por Balaão partir. Mas por que, se foi Deus
quem o mandou acompanhá-los? Para se obter a resposta é necessário notar a inclusão
pelos vv. 20 e 35. O que aconteceu foi que Deus preparou uma situação para reforçar sua
ordem de ir e sua restrição quanto às palavras a proferir.

Quiasmo – é uma forma sofisticada de repetição que podem ser encontradas nos
diálogos ou nas cenas. Possui um centro que é a parte principal do texto. Itens anteriores se
repetem posteriormente a esse centro de forma regular e inversa. O grau de complexidade
varia bastante. Tomemos um exemplo de quiasmo em 2 Crônicas:
ETB 403 – Teologia Bíblica de Livros Históricos e Proféticos – Prof. Ricardo Cesar Toniolo 15

A 1.1-17 - a sabedoria e a riqueza de Salomão

B 2:1-18 - relações internacionais

C 3:1-5:1 - as construções de Salomão o templo

D 5:2-7:22 - a consagração do templo e a resposta divina

C’ 8:1-16 - demais construções

B’ 8:17-9:12 - relações internacionais

A’ 9:13-28 - a sabedoria e a riqueza de Salomão

Com essa estrutura, a sabedoria e riquezas de Salomão emolduram a seção que tem
como parte mais importante aquela central, em que a arca é trazida para o templo, a oração
de Salomão, a glória do Senhor no templo e a aliança de Deus com o rei.

Dentro de “D” no quiasmo acima há outro quiasmo menor. Veja a seguir:

A Convocação e Celebração da festa (5:2-3)

B Sacrifícios incontáveis (5:4-10)

C O louvor (5:11-13a)

D A glória divina enche o templo (5:13b-6:2)

E As palavras de Salomão ao povo (6:3-11)

E’ As palavras de Salomão a Deus (6:12-42)

D’ A glória divina enche o templo (7:1-3a)

C’ O louvor (7:3b)

B’ Sacrifícios em abundância (7:4-7)

A’ Celebração da festa e despedida (7:8-10)

Há também quiasmos constituídos de poucos versículos e até mesmo de um só. Esta


é um importante recurso retórico utilizado em toda a Escritura, independente do gênero
literário.
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IV. Aplicação

A aplicação responde a duas perguntas: “Em quê devo crer?” e “o que devo fazer?”
Ao aplicar um texto narrativo devemos explicar o significado original da história e mostrar
aos nossos ouvintes/leitores como o mesmo princípio deve ser vivido no contexto atual.
Talvez os problemas sejam diferentes, mas o Deus é o mesmo, o mundo é o mesmo, e a
natureza humana é a mesma. Fazendo as devidas adaptações de tempo, de cultura e de
pessoas teremos a aplicação para hoje.

São necessárias duas análises: a análise do texto e a análise do nosso mundo. Não
podemos esquecer se estamos falando para adultos, jovens, adolescentes, crianças ou para
uma platéia mista. Todos devem ser contemplados. Então, devemos analisar o texto,
necessidade de quem está nos ouvindo/lendo e aplicar o princípio ensinado no texto de
acordo com a necessidade deles. É importante lembrar que um texto tem um só significado,
mas uma ampla possibilidade de aplicação.

Conclusão

Narrativas hebraicas não apresentam complexidade gramatical. Por outro lado o


intérprete terá de lidar com muitos parágrafos. Numa série de cenas o significado de cada
uma será estabelecido no contexto completo. Como cada cena ou ato adapta-se ao enredo
como um todo? Qual é a tensão que precisa ser resolvida? Quem são os personagens e
como eles se relacionam? Em contrate ou em paralelo? Perguntas como estas vão levá-lo ao
sentido pretendido pelo autor.
ETB 403 – Teologia Bíblica de Livros Históricos e Proféticos – Prof. Ricardo Cesar Toniolo 17

Bibliografia Sugerida

ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CARVALHO, Tarcízio José de Freitas. Orientações Para a Interpretação de Narrativas Bíblicas,


Fides Reformata XVI, nº 1, 2011, p. 107-128

GREIDANUS, Sidney. O pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando


literatura bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, pp. 231-275.

KÖSTENBERGER, Andreas J.; PATTRERSON, Richard D. Convite à Interpretação Bíblica – a


tríade hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2015, pp. 225-249

OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica.


São Paulo: Vida Nova, 2009, pp. 254-283.

PRATT, Richard L. Jr. Ele nos deu histórias: um guia completo para a interpretação de
histórias do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2004

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