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CAPITULOMI ABORTO E INFANTICIDIO NOS CODIGOS PENAIS E NOS PROCESSOS JUDICIAIS: A PEDAGOGIA DE CONDUTAS FEMININAS Roselane Neckel Joana Maria Pedro Vanderlei Machado Eliana Izabel Hawerroth dos processos instaurados contra mulheres em Florianépolis, entre 1900 e 1950, acusadas de terem praticado ro, infanticidio e sonegacao de cad ;, permite-nos perceber a constituicao de subjetividades e o controle dos corpos através da per seguicao e de uma “vontade de saber” por parte das “autoridades” com respeito a préticas femininas que possibilitavam as mulheres de- sembaragarem-se de uma gravidez nao desejada, o que significava maior autonomia sobre os corpos. Dessa forma, como as prostitulas, 9s bébados, os mendigos, os vendedores ambulantes, entre outros, PH 10 0 aborto, infanticidio e sonegagio de cadaver foram sendo historicamente problematizadas e criminalizadas. A utilizagio de métodos abortivos, do infanticidio e do abando- no de crianas, conforme nos mostram varios studos, nao é recente na histéria da humanidade. Tampouco estas atitudes eram estranhas aos habitantes da Ilha de Santa Catarina e, certamente, de outras localidades brasileiras, até o inicio do século XX. Assim, convém destacar a importancia de perceber a historicidade de padres sociais de comportamento, que estava justamente no fato de estas priticas passarem a ser alvo de processos judiciais e das acusada terem seus ates, juntamente com seus nomes, divulgados pel la imprensa, caPITULO 1 Aborto © infantcidio nos cédigos penais © nos processes judiciais Esta perseguicio ocorreu, entre outras coisas, devido a mudangas operadas no Cédigo Penal de 1890. Neste, como demonstraremos adian- te, a prética do aborto passou, mesmo quando cometida somente pela gestante, a constituir um ato detituoso, 0 que nao ocorria no Cédigo de 1840. Tal mudanca na lei, acreditamos, sofreu: um processo lento de apropriacéo por parte das mulheres, que até entao encontravam no aborto, na exposicao de recém-nascidos e, em casos extremos, no infanticidio, uma forma de resguardar sua honra e a de seus familiares. Ao analisar os processos de infantic{dio, aborto e abandono de criancas entre 1900-1950, nao procuramos cuilpadas ou inocentes {sto no nos interessa -; mas sim as “fébulas” que foram construidas buscando moldar 0s corpos e as mentes. O que nos desafia sao as experiéncias individuais ali registradas, tragédias que marcaram a vida de mulheres como: Orandina, Alma, Eldinar, Othilia, Tereza, Paulina, Ana Cristina, Jupyra e Terezinha.! A repercussio de seus atos marcaram tanto suas vidas como a vida de outras mulheres, pela insisténcia em tornar estranhas prat cas que, até entao, eram costumeiras. Os relatos presentes nos pro- cess0s judiciais, permeados por convicgSes proprias e, muitas vezes, por sentimentos de desespero, amizade e solidariedade, ao lado dos discursos dos Juizes, advogados e promotores, tragam um jogo de possiveis justificativas pelo ato delituoso que, ao marcar e definir os “comportamentos normais”, contribuiram para que politicas de co trole do corpo feminino fossem afirmadas, divulgando a “naturali- dade do amor materno”, A “pobreza”, a “loucura”, a “vida desregrada”, a “mulher néo nesta”, aparecem constantemente nos processos judiciais como in- dicios aparentemente faceis de serem constatados, mas que, a0 serem tomados como normas a-histéricas por historiadores ¢ advogados menos avisados, acabam por contribuir, ainda hoje, para politicas publicas normativas que buscavam restringir a autonomia feminina ‘so nomes de mulheres acusadas pela prética de aborto ou infanticidio, sm processos-cime instaurados entze 1900 e 1950, em Floriandpolis. To {dos os processos encontram-se no Arquivo do Férum Municipal de Floriandpolis. fides mudancas Fistemnos adian- BieSemente pela FiimaCodigo de FBeesSo lento de feavam no — [Ee aBendono de Piidesafia sao as [Betearam a vida (Hereea, Paulina, Fimidas como a [estranhas prati feentes nos Je euiitas vezes, Fleas lado dos fm ilies de con- fea “naturali- m jogo de oamulher nao [iis como in- ieee. a0 serem Fe advogados Be ware politicas Fiemia feminina, Assim, ao trazer & cena os motives construidos nas malhas do judi- Giario, buscamos perceber, mais uma vez, a maneira como se investiu sobre os diferentes sujeitos envolvidos nos processos e as repercussdes Sobre suas vidas. Afinal de contas, das justificativas constituidas na fala das autoridades, entre 1900-1950, saltam aos olhos o comprometimento ‘com uma “valorizacéo positiva do comportamento feminino”, no senti do de educar e plasmar condutas nos moldes divulgados, principalmen- te pela Igreja Catdlica. Ao longo de todo esse periodo, vishimbram-se nos Processos, inquéritos, relatérios, jomais e res Para 05 atos delituosos, bem como 0 u ‘desnaturadas’, “Io reniemente, o mesmo sentido: tas, diferentes explicacdes de diferentes adjetivos como as”, “desgracadas” e “desumanas”, que tém, apa- finir e reafirmar, para o sexo feminino, © paptis de “mie carinhosa e esposa zelosa’’ Os padroes sociais de co: cesso de formacio d mportam to constituem-se no pro culpa e inocéncia, em formas de poder que, ao circularem na sociedade, podem contribuir nos processos de qualifi cacao e desqualificacdo do sujeitos sociais. Das polémicas entre pro- motores, advogados, juizes, médicos e vizinhos, emergem investi- mentos sociais que, ao problematizarem a vida, o feto, a mulher- mie e a familia nuclear, apontam “desviantes” que nfo tinham os comportamentos esperados e desejados. E importante lembrar as anélises de Michel Foucault sobre 0 poder e os micro-poderes. Foucault, ao ser questionado sobre os micro-poderes que se exercem 20 nivel do quotidiano, e se, desta maneira, nao se est Gando 0 aparelho de Estado, argumenta: uma das primeiras coisas a compreender é que o poder nao est localizado noaparelho de Estado e que nada mudard.na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparellos de Estado a ‘um nivel muito mais elementar, quotidiano, nao forem modificados.? A circularidade social produz relagdes de exploragéo que nado So econémicas, mas que deixam marcas to fundas quanto rela: Sos de poder e controle entre homens e mulheres, jovens e idosos, adultos e criancas, homossexuais e heterossexuais, produtos de politi 2 FOUCAUL Michel. Micoisica do Poder. Rio de Jancito: Edges Graal, 1973, p19.

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