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A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA EM JÖRN RÜSEN: UMA REFLEXÃO

ACERCA DA NOVELA NOVO MUNDO


Nikolas Corrent 32

Resumo: Este artigo visa apontar o problema da consciência histórica a partir da obra
de Jörn Rüsen, fazendo um percurso que envolve os conceitos-chave de memória,
aprendizagem e narrativa em entrelace com outros historiadores renomados.
Pretende-se estabelecer uma relação entre o que Rüsen entende como consciência e
importância da história e o modo como ela é abordada didaticamente na
contemporaneidade, diante das perspectivas de ensino. Por isso, relacionaremos os
conceitos abordados com a noção de historicidade vista a partir da novela das 18h da
Rede Globo, Novo Mundo, que trata, entre outros temas, da Independência do Brasil.
Nesse sentido, busca-se evidenciar uma ideia do que é ou não fato histórico e de como
as novas mídias influenciam positivamente ou não a leitura e a consciência histórica do
indivíduo.
Palavras-chave: Jörn Rüsen. Consciência Histórica. Aprendizagem. Novo Mundo.

Abstract: This article aims at pointing out the problem of historical consciousness from
the work of Jörn Rüsen, in a way that involves the key concepts of memory, learning
and narrative in interlace with other renowned historians. It is intended to establish a
relation between what Rüsen understands as consciousness and importance of history
and the way in which it is dealt with in a contemporary way, in the face of teaching
perspectives. Therefore, we will relate the concepts addressed with the notion of
historicity seen from the novel of the Globo Network, New World, which deals, among
other themes, with the Independence of Brazil. In this sense, it seeks to show an idea
of what is or is not historical fact and how the new media positively influence the
reading and historical awareness of the individual.
Keywords: Jörn Rüsen. Historical Consciousness. Learning. New world.

Introdução
O presente artigo tem como objetivo o apontamento e a compreensão do
problema da consciência histórica a partir da obra do filósofo e historiador
alemão Jörn Rüsen (1938-). Trata-se assim de percorrer a questão na
medida em que ela se relaciona com os conceitos de narrativa,
aprendizagem, memória e verdade.
Nesse sentido, lança-se como hipótese fundamental a importância da
aprendizagem e da consciência histórica diante dos fatos históricos, ponto
basilar da obra de Jörn Rüsen. O objetivo geral deste trabalho é mostrar 33
como as implicações atuais do pós-modernismo e a retomada
memorialista, apressadas e incautas na leitura dos fatos históricos,
acabam por comprometer um estudo dirigido sério e da história.

Assim, em obras como Razão Histórica (2001) e História Viva (2007), e em


livros mais recentemente traduzidos no Brasil, como Aprendizagem
Histórica: fundamentos e Paradigmas (2012), tem-se em Rüsen a
perspectiva de que o progresso incita uma rememoração coletiva.

Se por um lado essa rememoração coletiva flerta com o passado sem


qualquer convencimento, por outro, precisa manter acesa a ideia de que
uma nova concepção de progresso deverá surgir a partir da leitura do
passado, não mais como manancial incontestável da solução para o
futuro, mas como fonte de ideias para que a própria noção de progresso
seja reformulada. Segundo as palavras de Jörn Rüsen em Aprendizagem
Histórica (2012):

 “A crítica do progresso deveria ter produzido um novo conceito de


progresso que não abrisse mão de suas conquistas categóricas, mas
que tornasse manipuláveis as experiências históricas que não
permitem mais que o conceito tradicional de progresso pareça
plausível. O pensamento histórico do progresso precisa ele mesmo
progredir” (RÜSEN, 2012, p. 186).

Sendo assim, de forma mais contundente, não basta que se vaticine o


futuro a partir de uma ideia posta ou engessada nos livros que contam o
passado, fazendo com que a história fosse compreendida e relida a partir
de uma leitura reducionista que considera o erro do passado irrepetível,
descartável.
Antes, o que se quer, de acordo com o que diz Rüsen, não é mais
simplesmente compreender para não mais repetir, mas manejar a história
de modo a enxergar nela uma força motriz que empenhe o próprio 34
progresso a progredir.

Nesse sentido, a consciência histórica tem papel fundamental na obra de


Rüsen, na medida em que, diante dela, pode-se ou não deformar o
conhecimento ou a visão sobre a sociedade.

Pensando nisso, entrelaçando a ideia de consciência histórica em Rüsen


com os problemas encontrados em relação à forma como a história é
narrada, utilizou-se como metodologia neste trabalho, em primeiro lugar,
a evocação da bibliografia de Jörn Rüsen, obras que centralizam o mote
deste artigo.

Os conceitos de memória, narrativa, aprendizagem e consciência histórica


dos fatos em relação à verdade para um paradigma de civilização que
procura crescer socialmente e educacionalmente.

Para isso, dentro deste prisma, elencaremos para a discussão, em segundo


momento do trabalho, como uma das partes da bibliografia secundária,
dois capítulos da novela Novo Mundo, da Rede Globo, especialmente os
de n° 143 (cento e quarenta e três) e 144 (cento e quarenta e quatro),
exibidos nos dias 07 (sete) e 08 (oito) de setembro de 2017.

Visando desconstruir a forma como a história do Brasil ali é romantizada e


tratada erroneamente, queremos analisar a abordagem da novela, não
como tentativa de melhorar a compreensão dos fatos ocorridos há
séculos, mas como forma de manutenção de um status quo de poder
sobre o conhecimento histórico, ainda que distorcido.

Em outras palavras, em ordem cronológica, o trabalho se seguirá de tal


modo: enquanto o desenvolvimento do artigo exporá o problema
Rüseniano da relação entre consciência, aprendizagem e verdade,
entrelaçaremos o mesmo com as ressonâncias de uma bibliografia
secundária composta por autores clássicos das Ciências Humanas. 35

Desse modo se poderá versar sobre a novela citada anteriormente e


desenvolver o problema da importância da consciência histórica a partir
de uma reflexão comparativa entre os conceitos do historiador-filósofo e
o retrato do Brasil feito pela atração de época da Rede Globo.

Por fim, concluiremos a discussão ponderando sobre as perspectivas


alcançadas em relação à abordagem das artes com fins numa educação
que preconiza o progresso.

Desenvolvimento dos problemas Rüsenianos


A partir deste tópico, abordar-se-á o que se pode implicar a partir do
conceito de Consciência Histórica para afirmar um conhecimento seguro
da mesma, ou ainda, uma aprendizagem que permite abordagens futuras
que tragam ações e consequências responsáveis e sensatas para o tempo
do leitor da história. Trata-se saber o modo como se deve ler a história.

Por isso, percorre-se o conceito de Consciência Histórica de modo a


cercear a problemática da didática histórica em relação à sua importância,
permitindo que se faça posteriormente uma análise comparativa em
relação aos liames do ensino de História dentro do que se chama Arte
Televisiva, tal qual o exemplo da novela da Rede Globo de Televisão,
citado na introdução deste artigo.

Desta feita, antes deste passo, é importante trazer à tona as


considerações de Jörn Rüsen evidencia em seu livro História Viva (2007),
quando define a Consciência Histórica de uma maneira muito peculiar,
não apelando para generalizações, mas também ressaltando o papel da
temporalidade na formação do conhecimento e da aprendizagem. Por
consciência histórica compreende-se “a suma das operações mentais com
as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de
seu mundo e de si mesmo, de forma tal que possam orientar,
intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2001, p. 57). 36

Rüsen parte da premissa de que a consciência histórica consegue vincular


o presente, passado e futuro. A consciência histórica delimita um saber
que não se restringe à experiência do tempo daquele que vive o momento
da apreensão do saber. Isso significa que a consciência histórica abrange
um potencial de exploração do pensamento que, não obstante, possa dar
sentido ao passado, incorre no risco de projetar-se sobre ele enquanto de
modo que os sentidos, muito mergulhados na contemplação, muitas vezes
perdem-se na opressão cotidiana.

Desta maneira, a partir da complexificação do mundo atual, as relações


por si só, quando contemplam a história, podem estar sujeitas à
desagregação, que promete uma terra de felicidade num passado utópico.

É nesse ponto que a obra de Jörn Rüsen compara a consciência histórica


ao ato de aprender a nadar. Segundo ele, no “aprender a nadar, nada-se,
e no nadar, não efetuado como o objetivo de aprendizado, ainda se pode
aprender algo” (RÜSEN, 2007, p. 105).

Rüsen segue dizendo que, com a história, a didática ainda não debateu
seriamente “em que comportamento de uma pessoa se poderia identificar
que ela adquiriu uma consciência histórica desenvolvida, enfim, que ela
aprendeu história?” (RÜSEN, 2007, p. 105).

Então é preciso saber que comportamento denota se uma pessoa


aprendeu ou não história. Em relação a isso, uma gama de autores
contemporâneos parece dar uma resposta bem interessante,
principalmente as escolas francesas do pós-estruturalismo nas filosofias
da segunda metade do século XX. Então é necessário que se entenda
também o que é conhecer, dentro da filosofia.
O filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), dá uma resposta a isso que
pode muito bem servir como diálogo e referência a essas ponderações de
Rüsen. No terceiro capítulo de seu livro Diferença e Repetição (2006), 37
pode-se elencar oito postulados que no caso são barreiras à sua filosofia
da diferença.

Para a compreensão mais rápida do problema abordado por este artigo,


elencaremos apenas os dois primeiros postulados. De saída, o que
interessa é uma revisão de um conceito cartesiano chamado Cogitatio
natura universalis. Esse é o modelo no qual o filósofo francês diz que:

 “Consiste na posição do pensamento como exercício natural de uma


faculdade, no pressuposto de um pensamento natural, dotado para
o verdadeiro, em afinidade com o verdadeiro, sob o duplo aspecto
de uma boa vontade do pensador e de uma natureza reta do
pensamento” (DELEUZE, 2006, p. 192).

Para ele, a filosofia se apoia sobre o bom senso, muitas vezes dizendo que
ele é o que há de mais bem distribuído no mundo. Esse é um conceito de
Descartes, que tem como ideia uma imagem dogmática e acabada do
pensamento, sobre a qual Gilles Deleuze afirma: “que cada um sabe, que
se presume que cada um saiba o que significa pensar” (DELEUZE, 2006, p.
192).

Já na segunda tese ou postulado, propriamente o ideal do senso comum, é


mostrado dentro da obra de Immanuel Kant, que existe um modelo de
reconhecimento ou modelo de recognição.

Nesse caso específico, as faculdades todas têm seu dado e referem a si


próprias uma forma de identidade do objeto, o que implica numa
concórdia entre as faculdades. Nesse modelo, temos definido “o uso
concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo
o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, imaginado,
concebido” (DELEUZE, 2006, p. 94).
38
Constata-se aqui um ato de reconhecimento ou de recognição. Para o
filósofo Gilles Deleuze, “os atos de recognição existem e ocupam grande
parte de nossa vida cotidiana: é uma mesa, é uma maçã, é o pedaço de
cera, bom-dia” (DELEUZE, 2006, p. 197).

Apesar disso, esse modelo exibido está longe de ser o modelo para a
produção histórica, filosófica e, “nem ao menos o modelo para o que
significa pensar” (DELEUZE, 2006, p. 197). Certamente, o que permite ou
força alguém a pensar não é a boa disposição de alguém ou o acordo
perfeito e determinadamente regulado das faculdades.

Regressando a Jörn Rüsen, que nos dirá, do mesmo modo, que o


aprendizado é um “processo dinâmico, no qual o sujeito passa por
mudanças” (RÜSEN, 2007, p. 106). Para Jörn, o sujeito que apropria-se de
alguma coisa, apropria-se da história. De acordo com seus dizeres:

 “A apropriação da história "objetiva" pelo aprendizado histórico é,


pois, uma flexibilização (narrativa) das condições temporais das
circunstâncias presentes da vida. Seu ponto de partida são as
histórias que integram culturalmente a própria realidade social
dessas circunstâncias. O sujeito não se constituiria somente se
aprendesse a história objetiva. Ele nem precisa disso, pois já está
constituído nela previamente (concretamente: todo sujeito nasce
na história e cresce nela). O que o sujeito precisa é assenhorear-se
de si a partir dela. Ele necessita, por uma apropriação mais ou
menos consciente dessa história” (RÜSEN, 2007, p. 107).

Ora, se a história não deve ser lida e aprendida como um processo de


repetição, é porque, segundo Rüsen, ela “sempre se prescreve antes de
qualquer tentativa de aprendizado” (RÜSEN, 2007, p. 107).
Essa seria então a legitimação daquilo que já dizia Aristóteles, há mais de
dois mil anos, quando afirmava que “A poesia encerra mais filosofia e 39
elevação do que a História; aquela enuncia verdades universais. Esta
relata fatos particulares”. (ARISTÓTELES, 2005, p. 28).

Dentro desse estigma, resta saber, ainda, como se deve ler a história de
forma a não torná-la uma peça de museu ou lição de moral rasa típica de
um conto da carochinha. Não só Rüsen, mas outros historiógrafos, como
Michel Foucault, concordam com a ideia de que há sempre alguém por
trás de uma pena ou de uma máquina ditando os acontecimentos do
passado.

Isso é feito, ou para reificar a reputação, ou para tentar engessar ou cravar


inutilmente a mesma história cruelmente prescrita, num tempo que já
matou toda uma linhagem passada que se quis fazer, além de ainda literal,
completamente encarnada nos futuros.

De acordo com esse também historiógrafo, quando dialoga em sua obra


acerca de um saber circular no qual um rei “só pode encontrar a imagem
mesma de seu absolutismo, que lhe remete, sob a forma do direito, o
conjunto das usurpações que ele, o rei, cometeu *para com+ sua nobreza”
(FOUCAULT, 1999, p. 156).

Dessa forma, é possível que Foucault deseje nos mostrar a perspectiva de


que a repetição de fatos históricos enquanto fruto de fraudes conduzidas,
não nos traz nenhum progresso ou diferença substancial ao progresso em
relação à liberdade que se tem de pensar a história.

Isto é, há um aprendizado enquanto prática de estudo. Antes, o que se


tem é um ponto de vista direcionado e egoísta, incauto e completamente
irresponsável.
Até aqui, tenta-se demonstrar que uma sociedade, ao longo de diversos
séculos, como mostrou Foucault, tornou a fazer da história uma espécie
de passatempo, um show de entretenimentos que passa sempre à frente 40
do aprendizado ou da possibilidade de visão da construção de novas
ideias.

Essa sociedade nunca deixaria de espreitar o pensamento, encurralando-o


freneticamente à escrita da repetição rumo à promoção comercial.
Rotulada e delimitada, o único movimento da história seria o coroamento
instantâneo de uma produção digerível.

Donde, faz-se dos espectadores súditos ainda mais fiéis a uma família real
mercadológica, convivas recorrentes dos banquetes reais e cíclicos,
majestosos palacetes comuns onde são servidas incontáveis doses de
mesmidade.

A questão que se põe, e que será tratada nos próximos tópicos, é a


condição da didática em relação à produção de mercadorias, conforme
alude Jörn Rüsen no capítulo 2 de seu História Viva (2007), num subtítulo
chamado de Teoria da História e Didática. Verificaremos.

Almeja-se saber se os paradigmas de ensino de história promovem uma


autonomia cognitiva e prática. De maneira muito peculiar, num tópico
próprio e subsequentemente, meditar-se-á e expor-se-á algumas ideias
bem distintas e presentes nos capítulos 143 (cento e quarenta e três) e
144 (cento e quarenta e quatro) da novela Novo Mundo.

Doravante, poderá analisar-se com maior acurácia se as cenas ali


retratadas fazem jus à proposta de Rüsen acerca do que é Consciência
Histórica.

Do mesmo modo, realizaremos num último momento uma digressão


sobre as inverdades que desmerecem a importância da consciência
histórica tão bem atentada por Rüsen. Por vezes deixadas de lado, essas
inverdades tomadas como autênticos fatos, vitalizam os paradigmas da
recognição apontados pelos historiadores, neutralizando gradualmente a 41
liberdade e espontaneidade de uma leitura histórica tanto quanto verídica
e prudente.

Novo Mundo: Ficção X Realidade


A novela das 18 (dezoito) horas da TV Globo, Novo Mundo, exibida entre
22 (vinte e dois) de Março e 25 (vinte e cinco) de Setembro de 2017 (dois
mil e dezessete), retrata o amor da professora inglesa Anna e do
português radicado no Brasil Joaquim, que vêm para o Brasil em meio a
também vinda da princesa Maria Leopoldina.

A história escrita por Thereza Falcão e Alessandro Marson evidenciou em


primeiro plano o papel da princesa Leopoldina, personagem elementar
para o processo de independência; e em diversos momentos mostrou um
D. Pedro incapacitado e despreocupado moralmente.

Maria Leopoldina chega ao país tropical em vista de seu casamento com o


príncipe Dom Pedro I, que também é herdeiro do trono português regido
por seu pai Dom João VI.

Tendo como plano de fundo os acontecimentos que precedem e motivam


as lutas pela Independência do Brasil, a novela articula-se com os
acontecimentos passados no Brasil Colônia Portuguesa do século XIX.

A história do folhetim, com pitadas de comédia e utilizando pastiches


recorrentes da emissora, trata de forma pitoresca as recorrentes
fatualidades que marcariam a história da caminhada rumo à instauração
de uma Primeira República Brasileira.
No entanto, a partir da proposta de discussão com a obra de Jorn Rüsen,
faz-se necessário apontar, após uma resenha de determinados capítulos, o
problema das relações entre verdade e ficcionalização da história. 42

Trata-se, desse modo, de mostrar a novelização, não como um artifício


artístico de conscientização histórica, mas de um retrato que busca
suavizar e banalizar acontecimentos sérios e fundamentais para a
compreensão da formação de um povo.

Para isso, a exibição dos capítulos de número 143 (cento e trinta e três) e
144 (cento e quarenta e quatro), exibidos justamente no dia em que se
comemorava a independência do Brasil, entre os dias 07 (sete) e 08 (oito)
de Setembro de 2017 (dois mil e dezessete), é de extrema importância
para compreender este problema. Seguir-se-á daqui pra frente com uma
resenha desses episódios, tão clara e detalhada quanto possível.

De acordo com os episódios, no capítulo 143 (cento e quarenta e três) de


07 (sete) de Setembro de 2017 (dois mil e dezessete), a princesa Maria
Leopoldina escreve uma carta a Dom Pedro, e Joaquim decide entregá-la
ao príncipe.

Enquanto isso, acontecimentos paralelos, e em muitos casos alheios ao


panorama histórico, ocorrem; como por exemplo, o fato de que
personagens como Lurdes e Dalva desconfiam da relação entre Nívea e
Patrício, ou o fato de que o inglês Thomas, e Rufino, partem em viagem
para São Paulo.

Do mesmo modo, tem-se a exposição de uma discussão sobre política


entre os personagens Amália e Peter; ou os planos de Greta sobre seu
casamento com Ferdinando.

Ademais, dá-se contorno ao fato de que o personagem Piatã reconhece,


em uma de suas visões, um desenho de Anna na antiga aldeia de sua mãe,
enquanto Thomas e Joaquim se enfrentam numa estrada, tendo como
motivo a disputa pelo amor de Anna.
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Noutro lado, o personagem Sebastião Quirino insinua que a vida de Dom
Pedro está em perigo e Libério se alarma. Ao mesmo tempo, Joaquim
encontra a comitiva de Dom Pedro e lhe entrega as cartas de Leopoldina e
Bonifácio. Aqui a novela usou os fatos históricos de maneira correta, pois
foi Leopoldina que realmente assinou o documento mais importante do
momento, a Declaração de Independência.

As cenas seguintes mostram o momento em que Dom Pedro, em meio à


pressão de guerra dos portugueses que desejavam tomar o poder de
forma contundente, proclama a Independência do Brasil às margens do rio
Ipiranga. “De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada
mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre
separado de Portugal!”, disse Dom Pedro interpretado por Caio Castro. E
em seguida continua: “Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será:
Independência ou Morte!”.

No capítulo seguinte, 144 (cento e quarenta e quatro), todos comemoram


a Independência do Brasil, ao passo que Dom Pedro e Leopoldina são
proclamados Imperadores do país. A partir disso, o personagem Chalaça
revela a Anna que Pedro esteve com Domitila, a Marquesa de Santos, e
amante do príncipe.

Em outro momento, Licurgo e Germana oferecem um bolo em


homenagem a Leopoldina e, por ordem de Dom Pedro, Felício é
transferido, fato que Domitila comemora. Entre alguns menores
acontecimentos, os personagens se preparam para a festa da
Independência, quando Dom Pedro agradece e se declara para
Leopoldina.
Ora, percebe-se uma série de fatos inverídicos e romantizados, questão
que coloca a possibilidade da arte como pastiche flácido de situações
importantes para o desenvolvimento e progresso do povo brasileiro no 44
futuro. Aqui, destaca-se a importância do conceito de memória de Jörn
Rüsen, o qual acredita que a memória histórica é a base para a
instrumentalização da consciência histórica. Através dela, os fatos do
passado são relembrados e atualizados mediante as questões colocadas
pelo presente e como forma de elo entre diversas temporalidades.

Isso quer dizer que, não importando realmente o que ocorreu naquele 7
(sete) de setembro às margens do Ipiranga, o que a novela pretende
marcar como contundente não passa de um engodo à luz de estudos
historiográficos sérios. Como diria Foucault, no trecho o qual fala da
sabedoria dos escrivães, que se submetem a uma história que “o próprio
rei criou” (1999, p. 156).

Então, não se trata tanto de dizer, neste momento, que o Imperador Dom
Pedro inventou ou não, pois o Imperador do Brasil, no caso, não é o
objeto primário da pesquisa enquanto historiador e historiógrafo dos
próprios fatos vivenciados.

Com base nisso, e na perspectiva rüseniana, a relevância da memória


diante dos feitos históricos é decisiva diante da consciência histórica. No
caso da novela, essa rememoração em seus diferentes aspectos, gera
conhecimento histórico, pois permite ao telespectador uma flexibilidade
temporal que transporta o sujeito da sua realidade imediata, conduzindo-
o a espaços e tempos peculiares. Sobre a forma como as narrativas podem
tornar-se perigosas para a aprendizagem, aliás, vale lembrar as palavras
do próprio Rüsen:

 “O ensino de história deve tematizar a teoria da história para


explicar a linha constitutiva da narração na consciência histórica,
como uma aprendizagem construtiva e relacionada às ações de
situações específicas da aprendizagem na área da educação,
socialização e formação” (RÜSEN, 2012, p. 50).
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Mais do que isso, trata-se de evidenciar a visão de um acontecimento
datado, representado por uma emissora que conta uma história real cheia
de remendos, partindo de fantasias, elucubrações e distorções de fatos
com a finalidade, não de informar ou atingir o povo com uma consciência
histórica ou reflexiva, mas de entreter e dissimular acontecimentos que
cabem a um estudioso sério realizar.

E não se trata, no caso, de dizer que a novela é uma adaptação, já que,


embora pudesse se vender como isso, impõe sutilmente um padrão
romantizado, que pode implicitamente e gradualmente tomar conta do
imaginário do espectador.

O problema, na perspectiva desse artigo, é fazer com que o espectador


tenha apresentado diante de si, ainda que saiba ser uma ficção livre, o
retrato daquilo que “mais ou menos” aconteceu, e que pode ficar na
consciência engessado como um panorama geral da história brasileira.

Desta feita, podemos elencar diversos elementos que constituem a


novela, e que podem ser desconstruídos veementemente, não obstante o
corpo de produção da Rede Globo apresente sua Direção de Arte, Direção
de Cenografia, Figurino, Continuidade, além de alegar pesquisa histórica e
investigação dos fatos.

Por isso, ainda que o folhetim se apresente como perspectiva educadora,


o que se vê é um exercício de distorção e amortização de pressupostos
críticos acerca da formação histórica de um país, especialmente no
contexto em que foi exibido, ou seja, a efervescência de um mandato
presidencial altamente contestado como o governo do presidente Michel
Temer, em 2017 (dois mil e dezessete).
Sendo assim, serão expostos os elementos que desfavorecem uma
compreensão e conscientização histórica do Brasil pré-republicano, tendo
em vista, posteriormente, a possibilidade de diálogo com elementos da 46
obra de Jorn Rüsen.

De saída, a questão premente é estética. Pode parecer que trata-se de um


detalhe, mas a aparência e os cuidados com a beleza e corpo não se
adequam entre as caracterizações do atores da novela global e a realidade
ocorrida durante a época retratada.

Na novela, os atores Caio Castro, Letícia Colin e Agatha Moreira, que


interpretam as personagens Dom Pedro I, Imperatriz Maria Leopoldina e
Domitila, respectivamente, em nada se adequam aos padrões de beleza
da época, especialmente as personagens femininas.

Segundo Umberto Eco, em seu livro História da Beleza (2013), a mulher no


século XIX “deflagra uma recuperação do ideal de estético renascentista,
da mulher que ostentava pesos e medidas bem maiores que as do século
XX” (ECO, 2013, p. 78).

A mulher representada na novela global, embora presumidamente


composta a partir de pesquisa histórica de figurino e dos costumes da
época, é interpretada por atrizes que compõe um padrão de beleza do
século XX e XXI. Muito embora seja difícil recuperar os ideais de beleza do
século XIX, os figurinos e costumes não fazem tanto jus ao que ocorria na
época.

Essa consciência de um tempo e de um modo de se vestir ou de cuidar do


próprio corpo, incluindo aí questões como saúde e peso, demonstram um
distanciamento da novela em relação ao ideal do século XIX que
recuperava na Renascença e Idade Média um modelo de corpo.
O ideal do século XXI acaba sendo representado na figura de jovens atrizes
e modelos que, com suas licenças poéticas, não contribuem, mesmo que à
base de maquiagens e efeitos de figurino, para a caracterização fiel dos 47
costumes e maneirismos alimentícios que implicavam a consciência
histórica da época. Isso sem considerar a simetria da beleza no século XXI
e nos rostos do século XIX.

Outro fato mostrado pela novela é a romantização da escravidão, pois a


novela sugeriu uma visão otimista desse problema. No fim da novela,
todos os escravos da trama terminaram libertos, por bondade e
compaixão dos senhores, os quais a partir daí são tratados como
mocinhos.

Mas ainda que a dificuldade de se emular os traços físicos da época seja


difícil, o mais importante, os fatos, que se abstraídos das implicações
estéticas e corporais no comportamento social ficcionalizado, poderiam
ser bem mais bem retratados. No entanto, pecam justamente pela
distorção da aparência diária.

Assim, a famosa cena da independência às margens do Rio Ipiranga,


retratada heroicamente numa pintura de Pedro Américo, “Independência
ou Morte” ou “Grito do Ipiranga”, de 1888, não aconteceu da forma
romanceada e bonita como se pensa, nem como o quadro retrata, muito
menos com os tons pastéis e com o ar elegante vistos nos uniformes e do
ídolo da geração teen Caio Castro, intérprete de Dom Pedro I. Segundo o
historiador Laurentino Gomes, em seu livro 1822 (2010), Dom Pedro,
naquele 7 de setembro: “Virou-se para seu ajudante de ordens e falou: —
Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a independência do Brasil.
Estamos separados de Portugal” (GOMES, 2010, p. 18).

Outrossim, o historiador ressalta que Dom Pedro sentia “fortes dores de


barriga”, e que, além disso, “a montaria usada por D. Pedro nem de longe
lembrava o fogoso alazão. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira
e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo (GOMES,
2010, p. 14).
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Eis então que o retrato da novela, já tratado explicitamente pela autora
como peça de entretenimento e não como “documentário”, expressa o
longo descaso da TV brasileira com a própria história da Independência,
haja vista o tom ainda mais debochado e descompromissado com os fatos
em atrações anteriores.

Numa minissérie mais antiga, O Quinto dos Infernos (2002), mostrava-se o


príncipe Dom Pedro, interpretado à época por Marcos Pasquim, o tempo
todo sem camisas ostentando sua boa forma. Além disso, é constante a
glamourização e o sublinhar do triângulo amoroso entre Domitila, Pedro e
Maria Leopoldina como algo divertido, cômico, mesmo quando denota
intervenções violentas ou agressivas entre um personagem e outro.

Donde, se a compreensão da história, enquanto fenômeno, visa alterar a


noção de progresso e do próprio tempo em que se vive de uma forma que
engrandeça o homem, é preciso que não se produzam atrações que
minimizem a importância de documentários, ou que os coloquem como
um plano próprio para pessoas intelectualizadas.

Haja vista, o fato de que a novela Novo Mundo da Globo é um folhetim


popular, pelas palavras implícitas da autora, não visa desenvolver nenhum
panorama rigidamente crítico, mas entreter antes de provocar a
curiosidade acerca de um mergulho na história.

Segundo as palavras de Rafael Saddi, é preciso pensar uma nova didática


da história, porque “a Ciência Histórica necessita de uma disciplina
inerente que a pressione para que não se isole da vida prática dos
homens; que o objeto de investigação da Didática da História não se reduz
à metodologia do ensino de História nas escolas” (SADDI, 2010 p.78).
Considerações Finais
A História, se requisita uma didática que não se reduza à didática das
escolas, pode e deve valer-se, portanto, de outros métodos de ensino, tais 49
como o documentário, o cinema e as artes visuais; até porque a
consciência histórica exige uma memória que vai além dos limites de sua
própria vida prática.

Logo, não é de se espantar que a arte seja aquela que faz, que aponte algo
da vida que discursos com intenções vis não têm.

Por isso, uma novela ou minissérie pode muito bem apresentar os


paradigmas para a consciência histórica, mas se continuar nos moldes da
direção daqueles que não fazem questão de se colocar como autores de
algo mais que entretenimento, o modelo rüseniano que visa a vida prática
além dos limites estará em perigo.

Eis que prevalece na didática da história o modelo de reprodução do


reconhecimento, da retroalimentação da informação histórica de
passagem na TV ao fim de um dia cansativo, nada muito além de um
produto da mídia que se contentaria em dizer que cumpriu um papel
mínimo.

Despertar, assim, é quase um exagero diante de fatos distorcidos, pois a


curiosidade desaparece horas depois nas mentes acostumadas à mesma
leitura dos mesmos objetos: Dom Pedro, 7 (sete) de setembro, a
Independência, o hino nacional. Todos objetos de uma leitura direcionada
e adestrada ao torpor do pensamento da massa.

Referências
Nikolas Corrent é mestrando do Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Graduado em
História Licenciatura (2016) pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA),
Filosofia Licenciatura (2016) pelo Instituto de Ciências Sociais e Humanas
(ICSH) e Ciências Sociais Licenciatura (2015) pela Faculdade Guarapuava
(FG). Especialista em Educação Especial e Inclusiva (2016), Metodologia do
Ensino de Filosofia e Sociologia (2016) e Ensino Religioso (2015) pela 50
Faculdade de Educação São Luís (FESL).

ARISTÓTELES. Arte poética. In: A poética clássica/Aristóteles, Horácio,


Longino. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005.
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