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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE


CURSO DE MÚSICA

REGÊNCIA I
indicações de estudo

Apostila para o semestre 2019.1


APRESENTAÇÃO

Esta breve apostila contém material de estudo para o Semestre I da disciplina de


Regência do Curso de Música da Universidade Federal do Ceará - Fortaleza/Instituto de
Cultura e Arte.
Criamos exercícios para iniciar os estudantes no trabalho de condução musical
compartilhada, em grupo, abordando os compassos simples (binário, ternário e
quaternário). Também incluímos algumas peças como complemento do trabalho com
cada compasso específico.
Ao longo do semestre todos os estudantes da turma conduzirão os exercícios e as
peças aqui reunidas e, ao mesmo tempo, serão empreendidas reflexões sobre as
experiências individuais à frente da turma e sobre a percepção dos colegas regidos
quanto ao desempenho de cada participante.
Os momentos de reflexão devem ser conduzidos de forma ética e construtiva, sem
que haja espaço para a desqualificação do trabalho de nenhum dos estudantes que se
colocará como regente do grupo. Os diferentes aspectos do desempenho de cada um
devem ser abordados, inclusive as lacunas e omissões eventuais, mas esse
procedimento deve ser conduzido de maneira a aprimorar o trabalho de todos os
participantes pois, mesmo quando colocados em situação de “regidos”, estes deverão
sempre refletir sobre seu próprio desempenho à frente da turma.
Sinceramente esperamos contribuir para com o desenvolvimento dos potenciais de
liderança musical e para com o sentido sonoro que cada exercício ou peça executada
deve expressar.

Fortaleza, fevereiro de 2019.

Professor Dr. Elvis de Azevedo Matos



CRONOGRAMA DE ESTUDOS

DATA TEMA/TEXTO/PEÇA ESTUDANTES REGENTES

14/03 Exercício Binário 1

21/03 Exercício Binário 1 e 2

28/03 Exercício Binário 1, 2 e 3

04/04 Cana Fita - Melodia 1

11/04 Exercício Ternário 1

18/04 Exercício Ternário 1 e 2

25/04 Exercício Ternário 1, 2 e 3

02/05 Despertar - Cânone 1

09/05 Avaliação Parcial Texto Base: “Um Ensaio


Sobre Ensaios” - Dr. Erwin Schrader

16/05 Exercício Quaternário 1

23/05 Exercício Quaternário 1 e 2

30/05 Exercício Quaternário 1, 2 e 3

06/06 Adoramus - Francesco Rosselli

13/06 Adoramus - Francesco Rosselli

20/07 Redescobrindo a América: Coral da FACED -


Regência de Izaira Silvino.

27/06 Avaliação Final


O REGENTE E A REGÊNCIA – Por Elvis de Azevedo Matos

A Condução de grupos musicais (vocais, instrumentais e/ou mistos) muitas vezes


solicita que um músico atue como líder na execução: este músico é o regente. A regência
pode não ser explícita, ou seja, o músico que rege pode ser um dos executantes e reger
de dentro do grupo, este fenômeno normalmente ocorre em grupos com poucos
integrantes.
Em grupos maiores, como formações corais e/ou orquestrais, o regente, na maioria
dos casos, conduz o grupo fazendo fazer parte como “executante exterior”, participando
da definição dos aspectos concernentes à interpretação. Outra importante função do
regente é a condução dos ensaios. Na verdade o trabalho que se apresenta publicamente
é resultado do processo de ensaio e, como diria o Professor Samuel Kerr, “o bom regente
é o bom ensaiador”.
Ao longo do desenrolar da História da Música Ocidental, a figura do regente
adquiriu certa relevância, fazendo com que muitas vezes este seja visto como um músico
superior àqueles que com ele executam obras musicais. Compreendemos que esta
concepção do regente é equivocada, pois mesmo que este detenha um maior acervo de
conhecimento musical do que os cantores ou instrumentistas com os quais trabalha, ele é,
na verdade, apenas mais um músico no processo de execução. Sozinho, sem seus
parceiros, o regente não pode produzir música. E, ainda, é necessário que o regente
encare sua tarefa sonora como uma tarefa de Educação Musical que, como diria Paulo
Freire, “exige respeito aos saberes dos educandos”.1
Reger é entregar-se ao exercício de execução compartilhada de obras musicais.
Tal exercício requer conhecimentos sobre a linguagem musical, compreensão da função
social do repertório, hoje no contexto histórico e social em que se realiza a Música.
Para o caso de músicas de outras épocas é necessário conhecimentos específicos sobre
a técnica de funcionamento dos instrumentos (que podem ser vozes humanas) utilizados
na composição, além de conhecimentos sobre os estilos e técnicas de composição.
De maneira geral a técnica que se emprega para reger é simples e baseia-se em
algumas diretrizes fundamentais. É importante, contudo, observar que tais diretrizes
aplicam-se somente às composições que apresentam aquilo que Hans Joachim

1 In Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa


Koellreutter chama de “conceito métrico de tempo”2 , no qual há um fluxo rítmico com
andamento regular (pulsação) e acentuações regulares nessas mesmas pulsações
(compasso). Nas composições que se estruturam dessa forma as diretrizes básicas são
as seguintes:

a) Todo tempo forte é marcado para baixo;

b) Todo tempo que antecede o tempo forte é marcado para cima;

c) Quanto maior for o tamanho do gesto do regente maior será o volume sonoro do grupo;
d) O Gesto inicial (levare)realizado antes do grupo iniciar a execução deve indicar com
precisão o andamento da peça;
e) A postura do regente ao colocar-se diante do grupo deve emanar a atmosfera sonora
que se buscará através da execução musical.

SOBRE O TRABALHO NA DISCIPLINA DE REGÊNCIA I

Tendo por base as diretrizes acima apresentadas, desenvolveremos nosso trabalho


a partir de exercícios e de um repertório previamente selecionado. Incluímos no final
desta apostila textos para reflexões complementares que julgamos de importância para a
formação do regente. Tais textos serão utilizados nos momentos específicos de avaliação
do processo de trabalho da disciplina. Sobre a avaliação é importante ressaltar que em
todas as aulas o grupo realizará música, assim, partindo dessa construção sonora, haverá
um processo contínuo de reflexão sobre a formação do Músico-Regente.
Como critério de avaliação será utilizada, também, a frequência às aulas. A
frequência será avaliada de forma quantitativa (número de presenças) e de forma
qualitativa, através da elaboração individual de um Diário de Campo no qual o estudante
deverá anotar as ocorrências da sala de aula, tecendo comentários críticos e
aprofundando suas reflexões.

2 Koellreuter estabelece 3 percepções de tempo que se refletem em Música: o tempo não-


métrico (a pulsação seria irregular, com base na acentuação das palavras do texto a ser cantado;
tempo métrico, já explicado; e tempo amétrico. O Prefixo a é, nesse caso, alpha privativo, ou seja, o
conceito de tempo e de pulsação já foi transcendido.
DESENHOS PARA A MARCAÇÃO DE COMPASSOS SIMPLES
EXERCÍCIOS

BINÁRIO 1
O primeiro exercício desta série, em sua primeira parte, tem como objetivo
trabalhar a marcação das pulsações em compasso binário e, para tanto, o estudante
deverá utilizar o desenho de marcação do compasso iniciando com precisão o primeiro e
o segundo tempo deste.
Inicialmente o exercício se encontra em uníssono e as pequenas frases terminam
sempre com um som que preenche todo o compasso. Nessa circunstância de marcação
da unidade de compasso o estudante deverá marcar apenas o primeiro tempo, sentindo
interiormente a passagem do segundo tempo. O mesmo fenômeno de percepção
silenciosa deve ocorrer nos compassos de pausa.
A segunda parte apresenta uma imitação rigorosa e visa iniciar o desenvolvimento
de independência das mãos, buscando fazer com que o estudante escute o processo
imitativo e o guie com naturalidade. Finalmente, há um trecho harmonizado à duas vozes
que deve ser utilizado para que o estudante desenvolva sua percepção de sons
simultâneos e posso conduzi-los buscando sempre a expressão musical.
À medida que o estudante desenvolver a fluência na condução, do ponto de vista
do domínio da execução dos gestos de condução, é necessário que este desenvolva a
busca por um sentido musical que deve ser originário do exercício e transformando-se em
indicações interpretativas de dinâmica e/ou agógica.
Optamos por não colocar nenhuma indicação de interpretação para que o
estudante tenha espaço para descobrir os possíveis sentidos musicais que qualquer
realização musical, por mais simples que seja, deve conter

BINÁRIO 2
O Segundo exercício proposto busca trabalhar, inicialmente, a marcação da
unidade de tempo, sem a necessidade de que seja marcado o segundo tempo do
compasso. Em um segundo momento o exercício enfatiza a marcação do segundo tempo.
No compasso 21 há um pequeno exercício que visa desenvolver a concentração através
de uma entrada específica na voz mais grave e, finalmente, Trabalha-se a marcação do
primeiro e do segundo tempo com alternância das vozes.

EXERCÍCIO BINÁRIO 3 e MELODIA

O Exercício binário 3 apresenta-se como uma derivação do exercício binário 2. O tema


inicial é o mesmo, porém este apresenta uma segunda parte contrastante na qual são trabalhadas as
articulações no primeiro e no segundo tempo do compasso. Ocorre também uma alternância de
estruturas nas quais as duas vozes caminham paralelamente com a mesma estrutura de ritmo ou com
estruturas rítmicas diferentes nas vozes. Aos poucos o exercício evolui de duas para três vozes
buscando desenvolver o senso de escuta da afinação proposta pelo compositor.
Na primeira linha melódica que, inicialmente, deve ser trabalhada em uníssono o estudante
terá a possibilidade de sentir a divisão da pulsação em duas partes. É importante na execução da
melodia observar os momentos de respiração para que a execução não fique fragmentada em seu
fraseado.
Após o trabalho realizado em uníssono o tema pode ser tratado polifonicamente, conforme o
arranjo que consta nesta apostila. Compete ao professor observar o desenvolvimento da fluência
musical, preservando a naturalidade dos gestos, desenvolvendo no estudante um sentido de
confiança em sua capacidade de liderança.
EXERCÍCIO TERNÁRIO 1

Este exercício consiste em um pequeno cânone no qual o estudante poderá praticar o


desenho de marcação para o compasso ternário, marcando todas as unidades de tempo - de dois em
dois compassos e também marcando apenas a unidade de compasso, momentos nos quais a
marcação do segundo e do terceiro tempo é desnecessária. A ideia é continuar preparando o
estudante para a audição de mais de uma voz sem, contudo, descuidar dos trechos em uníssono.
Para trabalhar a independência das mãos sugerimos mais dois exercícios ternários antes de
propormos a segunda peça de estudo.
DESPERTAR - Bruno Queiroz
Aqui incluímos a partitura original do autor, mas sugerimos que antes de esperar as vozes os
estudantes estudem o tema em uníssono, sem realizar o cânone e em seguida com alternância de
timbres conforme aponta a partitura. Na medida em que o grupo adquira familiaridade com a
estrutura do cânone este pode ser trabalhado à duas e/ou mais vozes, desde que todos os estudantes
tenham segurança para fazê-lo.
Uma das questões centrais para o trabalho com Regência de grupos musicais,
principalmente no âmbito da formação de professores, é o fortalecimento da segurança, do
crédito que o estudante confere a si mesmo durante o processo de colocar-se à frente do grupo
musical.
É de extrema importância que o professor saiba perceber as possibilidades e os limites que
cada indivíduo traz para o ambiente da aula, ao mesmo tempo cada estudante deve sempre sentir
que está vivendo uma experiência significativa para seu desenvolvimento musical. Toda aula de
Música deve mover todos os participantes, inclusive o professor, ao despertar da musicalidade que
lhe é inerente e para tanto é preciso haver confiança compartilhada, isto é: todos devem sentir e
entender que todos nós estamos em constante processo de descoberta de possibilidades de expressão
musical.
Exercícios Quaternários
Os Exercícios quaternários também buscam o caráter progressivo utilizado para o trabalho
com compassos binários e ternários. É importante insistir que o trabalho com estes exercícios deve
ser adequado ao nível de desenvolvimento de cada estudante para que a complexidade crescente dos
mesmos não provoque o desenvolvimentos de inseguranças. Compete ao professor conduzir o uso
deste material primando pelo fortalecimento da confiança de cada um dos líderes musicais em
formação.
Para finalizar o trabalho do Semestre elegemos uma peça de Música Antiga, Renascentista:
o Moteto Adoramus te, Christe de Francesco Rosselli. É importante perceber que o tecido musical
mais complexo que aqui está apresentado em uma edição moderna na qual as barras de compassos
estão utilizadas conforme é habitual, deve contribuir para a fluência da execução musical levando o
estudante a refletir sobre a real necessidade e/ou viabilidade de uma “marcação de compasso” na
execução de peças deste estilo, o qual traduz um pensamento musical ainda não-métrico, com
ênfase para o ritmo do texto e para a acentuação das sílabas tônicas de cada palavra.


Um ensaio sobre “ensaios”: reflexões sobre relações mediadoras entre
regente e cantores na atividade de canto coral – Erwin Schrader
Resumo: O presente trabalho apresenta algumas reflexões sobre a função do regente, enfocando
aspectos de sua ação pedagógica e seu poder de “mediação” frente a grupos de canto coral. O
encontro mediado pelo regente educador, através de uma ação libertária permitindo uma autonomia
expressiva a cada cantor, converte-se em estratégia para a construção de novas condições de
possibilidade, sobretudo no que diz respeito à constituição de processos criativos. As reflexões aqui
empreendidas fazem parte de um processo de observação do desenvolvimento artístico-musical de
grupos de canto coral em Fortaleza/CE, procurando compreender essa atividade coral como uma
busca de novas alternativas de expressão artística e estética, que empreguem estratégias
pedagógicas para o aprimoramento ético de seus integrantes, formando, assim, multiplicadores
críticos e reflexivos para a difusão dos conhecimentos partilhados na atividade coral.
PALAVRAS-CHAVE: Canto Coral; Regência; Educação Musical; Interpretação Musical.

A atividade artística de canto coral pode ser considerada um campo fértil para uma
reflexão sobre relações de dominação estabelecidas pelas instituições e estruturas sociais de
uma comunidade. A autoridade do regente sobre a organização de um grupo coral e a
execução de obras musicais podem ser analisados como reflexo do pensamento hegemônico
de uma determinada cultura dominante, quando o regente se propõe apenas a reproduzir
um pensamento musical institucionalizado. Ao mesmo tempo, pode tornar-se uma forte
ferramenta de intervenção pedagógica, desencadeando um processo de ensino-
aprendizagem que supera o plano da simples execução musical artística. Essa ação
pedagógica, tomada de forma integrada com a atividade musical, pode vir a ser uma ação
mediadora de tomada de consciência, por parte de todo o grupo de cantores, acerca de seu
papel social, tornando-o emancipado do poder e controle do regente.

Zander (1987, p. 154) afirma em seu livro sobre regência que “a responsabilidade do
regente como autoridade é grande, porque com sua capacidade deve ser o guia, a alma e a
vida de seu agrupamento”.

A partir dessa afirmação, inicio minha reflexão indagando sobre o papel de um


regente, em ser “o guia, a alma e a vida” de um grupo coral. Partindo da idéia de domínio
de elementos técnicos musicais – ritmo, harmonia, dinâmica e afinação – a função do
regente de coro se
justifica, inicialmente, pela organização e sistematização de todos esses elementos
estruturantes da melodia e da harmonia para uma execução musical coletiva coesa,
adquirindo então a função de ser o condutor (guia) para a realização da obra musical. No
entanto, a execução musical não se limita somente aos aspectos técnico-musicais. No caso
de um grupo coral, os cantores são a principal fonte de emissão sonora, utilizando o próprio
corpo para a realização musical.

Cuidar da integração e integridade desse grupo exige habilidades do regente que vão
além do simples conhecimento da linguagem musical. É necessário compreender também as
relações humanas numa perspectiva de valorização e respeito das individualidades pelo e
para o “bem-estar do grupo”. Aspectos da vida social dos cantores e de suas experiências
cotidianas interferem diretamente na execução musical. Nesse sentido, para Zander (1987),
o significado atribuído ao regente em ser “a vida” de um agrupamento coral, acredito
referir-se ao papel desempenhado por ele na condução das relações sociais do grupo e de
sua formação. Mas e a alma? O que significaria ser a “alma de um coro”?
Toda obra de arte pressupõe em seu processo criativo e realizador o fenômeno da
interpretação ou ato de interpretar1. A interpretação poderá partir do autor da obra, que
interpreta a realidade para recriá-la ou do observador que busca interpretar o seu sentido,
muitas vezes atribuindo uma nova perspectiva ao que se foi criado. No caso da execução de
uma peça musical por um grupo coral, a sua interpretação fica, na maioria das vezes, sob a
responsabilidade do regente. Cabe ao regente a transformação das obras musicais
moldando-as significativamente e singularmente a cada nova execução a ponto de aproximar
o cantor da essência musical da peça apresentada e, dessa forma, ser elemento
fundamental e modificador da expressão impressa na interpretação dos cantores. Nessa
perspectiva, acredito que Zander aponta o regente como “alma” de um coro por possuir o
poder interpretativo sobre a execução da obra musical.

Lebrecht (1948) sintetiza, historicamente, alguns traços em comum entre os


regentes. São eles:

ouvido agudo, carisma para inspirar músicos ao primeiro


contato, vontade de impor seu estilo, grande capacidade
organizacional, aptidão física e mental, ambição implacável,
inteligência poderosa e um senso natural de ordem que lhes
permitia atravessar milhares de notas dispersas para atingir
o cerne artístico. Essa capacidade de obter uma visão de
conjunto da partitura e transmiti-la a outros é a essência da
interpretação (LEBRECHT, 1948, p. 18).

O domínio e a imposição da ordem pelo regente podem ser percebidos pelos cantores
como um ato quase divino e heróico, e como afirma Lebrecht (1948, p. 18), causando um
“fulgor etéreo em suas mentes e permitindo o uso e o abuso de poder pelo regente em
benefício pessoal”.

Mas como fica a poder interpretativo da obra por parte dos cantores? Acredito que
para um grupo coral contemporâneo a execução musical deverá estar centrada em uma
abordagem dialógica entre os cantores do coro e seu regente.

Até o momento, podemos compreender que o regente possui um poder sobre os seus
cantores podendo ou não transformá-los em meros instrumentos dos quais se serve para
alcançar propósitos determinados. No entanto, seria possível encontrar na atividade de
canto coral uma pedagogia do questionamento da experiência, pelos integrantes, na
construção de uma obra artística, assim como as implicações em suas vidas das experiências
musicais vividas? Essa pergunta desafia diretamente a figura central do regente apontando
uma mudança de paradigma em seu papel no grupo, colocando-o não somente como um
(re)criador musical, mas também como um educador.

A “concepção bancária” – expressão criada por Freire (1983) – de muitos regentes de


coro em apenas depositar estruturas melódicas, rítmicas e harmônicas na mente dos
cantores e administrá-las com sentido de produzir ou reproduzir uma obra artística musical,
não deveria sobrepor ao processo de compreensão coletiva interpretativa da obra,
responsável por suscitar nos cantores uma reflexão crítica sobre o seu fazer artístico e o seu
cotidiano. Rousseau (2004, p. 81) afirma que “o primeiro de todos os bens não é a
autoridade, mas a liberdade”.

O regente, nessa perspectiva, passa a ter o poder de “mediação” na busca de


encontrar uma identidade para o seu grupo com base em uma ação libertária, dando
autonomia a cada cantor de expressar sua relação com a música executada, encontrando
também uma sonoridade coletiva verdadeiramente expressa. A relação entre o regente e o
coro adquire contornos de uma relação entre sujeitos, onde o regente cria condições para
que o coro tenha a sua expressão musical e saia da condição de mero objeto ou instrumento
musical para ser “tocado”, conduzido, na maioria das vezes, tangido pelas mãos do regente.

Outro ponto a se observar, como exemplo de ação mediadora por parte do regente,
são as situações que envolvem a organização corporal dos cantores nos ensaios e
apresentações. Regentes preocupados apenas com uma emissão sonora limpa, perfeita, na
maioria das vezes sonoramente “asséptica2” de seu grupo coral, optam por manter os
cantores estáticos e desprovidos de movimento, condicionando seus movimentos ao
movimento preciso e coordenado das estruturas do aparelho fonador. A voz de cada cantor e
suas nuances são modeladas na busca de uma sonoridade hegemônica determinada pela
percepção musical do regente. Neste caso, movimentações expressivas naturais do corpo dos
cantores, na maioria das vezes involuntárias e associadas ao sentimento e prazer de cantar,
parecem comprometer o resultado sonoro limpo final.

Um novo paradigma de sonoridade e expressão do coro pode ser encontrado a partir


de um somatório das diferentes expressões sonoras e corporais vivenciadas na busca pela
ação interpretativa de cada integrante do coro, encontrando assim uma sonoridade
resultante.

O regente ao mediar essas relações se torna mais atento ao processo do desvendar


da voz de cada cantor, ao invés de imprimir uma técnica de emissão sonora na busca de uma
sonoridade homogênea.

Desvendar o processo individual de cada cantor seja no âmbito sonoro ou corporal –


ou especialmente na junção dessas duas expressões – num coro é construir a ação global de
todo o grupo. Olhar para essa relação corpo e voz nada mais é do que observar as
características do instrumental humano, que materializam a música através de sua voz; voz
que está no corpo e, portanto, é corpo; corpo individual que transforma o corpo coletivo
num coral. Dessa maneira, o processo de construção musical se torna mais denso e intenso
mediado através de discussões necessárias para se encontrar um “acordo” para uma
sonoridade onde as “diferenças” sejam complementares. Nesse sentido, podemos observar
que o coro da ópera tradicional é um corpo homogêneo. Procura operar uma execução
homogênea. Em uma nova perspectiva, o coro “coletivo” é um coro heterogêneo. Procura
construir uma interpretação heterogênea unitária.

Em muitos exercícios e vocalizações não se percebe claramente uma conexão mais


direta entre os exercícios de emissão vocal e o restante do corpo. Conectar os exercícios de
emissão com o movimento do corpo, procurando um sentimento equilibrado na
interpretação sem cair em uma execução demasiada medíocre apresenta-se como questão
fundamental de estudo. O corpo do cantor não deve ser um(a) boneco/marionete para o
regente.

O regente necessita soltar as cordas que sustentam a interpretação musical e


emocional de um coro e iniciar um processo de mediação acerca de seus movimentos, do
movimento da música e conseqüentemente do movimento do corpo coral. É necessário que
haja um encontro, que cada cantor se encontre com o máximo de possibilidades de seus
corpos, sem que para isso deva haver outro tipo de opressão dominadora. Elas podem ser
encontradas no trabalho coletivo, desde que haja sensibilidade com as singularidades de
todos por parte de todos – regentes e cantores – no processo de realização musical.
O resultado sonoro é o resultado do diálogo, do encontro. Não haverá diálogo se não
houver, prioritariamente, uma crença em transformação por parte do regente. No processo
interpretativo, a alienação do cantor em relação à obra musical executada, onde o músico
fica subjugado ao poder interpretativo do regente, deve ser substituído por possibilidades de
expressão individual dos membros do coro através de uma interpretação coletiva – cantores
e regente – da obra musical.

A construção do conhecimento musical se realizará como uma interação mediada por


várias relações; pela mediação feita por outros sujeitos, como afirma Vygotsky (1987). O
processo de educação e formação passa a ser um processo ativo, onde o diálogo entre os
autores, intérpretes, regentes e coro, podem ser mediatizados pelas situações do cotidiano
dos ensaios e apresentações, e para além deles. Nesse sentido, o mais importante será o
“que se aprende” e o que se traz de novo para modificar as possibilidades de diálogos que
são evidenciados nessas relações dos encontros.

Os encontros cotidianos, a co-habitação com outros artistas e linguagens num mesmo


espaço/tempo, a soma das diversidades sonoras, podem ser re-convertidos a todo instante.
O encontro mediatizado converte-se em estratégia para a construção de novas condições de
possibilidade, sobretudo no que diz respeito à constituição de processos criativos. Para
Gilles Deleuze (1992), “é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar”.

Muitos regentes possuem dificuldade afetiva de lidar com o “diferente” e muitas


vezes se escondem atrás do poder da regência para não exporem os seus sentimentos. Mas
como uma obra artística pode ser verdadeiramente exibida se não há uma exposição do
regente para o seu grupo e para o público? Perceber os mecanismos de dominação entre os
cantores do coro e o regente é o primeiro passo para sua liberdade a frente do coro,
iniciando um processo artístico-educativo libertador e formador. Nesse sentido, a formação
de um pensamento libertário do regente deve ser iniciada desde muito cedo, nas escolas de
música formadoras de regentes, sendo necessária em seu projeto pedagógico a prática com
base na organização do coletivo, para a educação da personalidade do indivíduo no coletivo
e através do coletivo, como sugere Makarenko (1991).

As considerações feitas até o momento são parte de um processo de reflexão sobre


meu desenvolvimento artístico durante alguns anos a frente de grupos corais. De alguma
forma, acredito ter realizado transformações consistentes em meu processo de trabalho,
afastando-me de antigas e sedimentadas práticas de execução musical, compreendendo a
atividade coral como busca de novas alternativas de expressão artística e estética, que
empreguem estratégias pedagógicas para o aprimoramento ético de seus integrantes,
formando, assim, multiplicadores críticos e reflexivos para a difusão dos conhecimentos
produzidos na atividade coral.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.


FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
LEBRECHT, Norman. O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
MAKARENKO, A.S. Poema pedagógico. São Paulo: Brasiliense, 1991.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
ZANDER, Oscar. Regência Coral. Porto Alegre: Movimento, 1987


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