discurso (29), 1998: 57-110
Académicos versus Pirrénico
Ceticismo Antigo e Filosofia Moderna*
Roberto Bolzani Filho**
Resumo: Trata-se de considerar o tema das semelhangas e diferencas entre ceticismo acadé-
mico e ceticismo pirrénico, para mostrar que as semelhangas, diferentemente do que sustenta
parte importante da tradigao historiogréfica ¢ filos6fica, permitem encontrar nos académicos
um ceticismo legitimo. Ao mesmo tempo, busca-se sugerir que as diferencas autorizam uma
aproximagio entre os académicos e a filosofia moderna, pela via de uma de suas idéias funda-
mentais: a de subjetividade.
Palavras-chave: suspensiio de juizo ~ inapreensibilidade — representagdo — probabilismo —
subjetividade
Uma das questées que mais tém interessado aos historiadores mo-
dernos e contemporaneos do ceticismo antigo é aquela que concerne As
diferengas entre as duas tradicionais correntes céticas, denominadas aca-
démica e pirrénica. Interesse plenamente justificado, pois se trata, na ver-
dade, de questao classica, posta jé pelos antigos, como nos informam as
Noites dticas de Aulo Gélio: “E uma antiga questao, considerada por mui-
tos escritores gregos, em que e quanto diferem filésofos pirrénicos e aca-
* Texto escrito para exame de qualificacdo. Ao contrério do habitual, nao apresenta um cap{-
tulo de tese, mas sim uma primeira articulago do todo, em varios momentos ainda em tom
de projeto.
‘* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Sao Paulo.58 Bolzani Filho, R., discurso (29), 1998: 57-110
démicos. Pois ambos sao ditos céticos, suspensivos, aporéticos, visto que
ambos nada afirmam e julgam que nada se apreende””. O fato de estar-
mos em face de um problema antigo que permanece atual mostra, ao que
tudo indica, haver af muito mais do que aquela freqtiente dificuldade com
que depara o helenista, a da auséncia de documentagiio e doxografia. Sao
os textos mesmos, as fontes principais que nos restaram, referentes as
duas correntes, que, em certos momentos, entram, como veremos, em rota
de colisao. O problema é de fundo: em dado momento da histéria da filo-
sofia, na Grécia, sedimenta-se um modo de pensar que se pretende subs-
tancialmente original em relacdo a toda a filosofia anterior, portador
de uma nova proposta filoséfica, que significaria, a bem dizer, a desqua-
lificagdo de toda essa filosofia, dita doravante “dogmatica”, “precipita-
da”, “autoritéria” etc. E, contudo, ela mesma comportara, em pouco tem-
po, uma controvérsia que seria mais agraddvel encontrar exclusivamente
nos dogmatismos que tanto critica. . .
Para melhor compreender o “estado da questdo”, vejamos, sucinta-
mente, em que repousam as dificuldades e que conseqiiéncias tém produ-
zido aos intérpretes. O ceticismo pirrénico recebe esta denominagao por
pretender-se uma retomada das idéias de Pirro de Elis, que viveu no sé-
culo IV a.C. ¢ nada escreveu. Entre os poucos nomes de pensadores céti-
cos pirrénicos que nos chegaram, figuram com especial importancia Ti-
m4o de Flionte, discfpulo direto de Pirro, Enesidemo, Agripa e Sexto
Empirico, este j4, ao que parece, no segundo ou terceiro século dC. E
dele o que nos restou dos textos pirr6nicos: suas Hipotiposes pirronianas
(HP) sao uma suma do pirronismo, contendo, em trés livros, uma expo-
sigdo das caracterfsticas da filosofia pirrénica (Livro I) e de argumentos
dirigidos contra as filosofias dogmiticas (livros II e III); € também onze
livros denominados Contra os homens de ciéncia (Adversus Mathema-
ticos) (AM), que desenvolvem e enriquecem com novos argumentos a crf-
tica As varias ciéncias e técnicas dogmaticas. No primeiro livro das
Hipotiposes, texto privilegiado para a compreensio do pirronismo, lemos
que 0 cético é chamado de pirrénico porque Pirro foi o primeiro a se de-
dicar claramente & skepsis, postura cética (Sexto Empirico 23, I, p. 7),
significando assim uma espécie de pai fundador, ou, ao menos, patrono,Bolzani Filho, R., discurso (29), 1998: 57-110 59
dessa postura que os livros de Sexto iréo esmiugar. Mas essa remissdo a
Pirro nado € desprovida de cardter polémico, se nos lembramos das difi-
culdades que a circundam. Como nada escreveu, Pirro é objeto de discus-
Ses que, no limite, ndo se podem resolver definitivamente. Toda tentati-
va de tracar seu perfil filoséfico se faz, em maior ou menor escala,
conjectural. Isso porque as fontes principais parecem atribuir-Ihe um vo-
cabuldrio e um conjunto de conceitos que, muito provavelmente, provém
dos pirrénicos posteriores, empenhados em caracteriz4-lo como iniciador
de um ceticismo auténtico. Com excecio dos fragmentos laudatérios de
Timao, outros textos que tém fundamentado as interpretagdes padecem
dessa dificuldade, entre eles, a descrigdo atribufda a Aristoclés, filésofo
peripatético, encontrada na Preparatio Evangelica de Eusébio de Ces
réia (XIV, 18). Nesse texto, em que hd referéncias a Timao, alguns temas
e idéias caros ao pirronismo de Enesidemo e Sexto Empfrico aparecem
como tipicos do pensamento do filésofo de Elis, como, por exemplo, a
investigaciio da verdade, a suspensao de juizo e a inapreensibilidade. Mas
uma anélise histérica mais detida revela quao problematico é atribuir a
Pirro tais idéias®., E 0 testemunho filosoficamente menos rico de Diége-
nes Laércio, além de também conter um vocabulario, ao que tudo indica,
posterior, enfatiza o desinteresse de Pirro pela elaboragio de uma “dou-
trina” propriamente dita, tal como a encontramos no primeiro livro das
Hipotiposes pirronianas.
Tais dificuldades nao tém impedido, por outro lado, andlises do
fragmento de Aristoclés das quais Pirro emerge como um cético incon-
testavel, como legitimo precursor, em teoria, daqueles que se dirao seus
seguidores®. Isso nao significa, necessariamente, uma mé leitura. Mes-
mo que Pirro nao tenha sido 0 “teérico” que a tradigo pirrénica sugeriu
€ procurou construir, sua postura poderia ser vista como a mais préxima
do que esse pirronismo entendera como “ceticismo”. Lembremos que,
quando Sexto Empirico explica essa filiag&o, faz, em verdade, uma com-
paracdo: em relag&o aos seus antecessores, Pirro parece ter se dedicado
mais claramente e mais notavelmente ao ceticismo. Pois, para 0 cético,
como informa Didégenes Laércio, 0 ceticismo ja se insinua em Homero
(Didgenes Laércio 15, IX, p. 71), que jd expée os conflitos de opinides