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PEDRO NISA ROBES DE MELO

O EXTRAORDINÁRIO CASO DE
FRANCISCO DA VEIGA
(Cordel português do século XVIII)

EDIÇÕES VIRTUAIS ARABESCO


Melo, Pedro Nisa Robes de Melo (Portugal, séc. XVIII), O
Extraordinário caso de Francisco Veiga (1740).

Título Original: Relação de um extraordinário e prodigioso caso


que nos fins do século passado aconteceu no Reino de Castela
a Francisco da Veiga.

Coleção Clássicos do Prata nº 03.

Fonte em fac-simile de cordel português do século XVIII: Sítio


do Departamento de Educação, Política Linguística e Cultura
do Governo Basco (http://www.liburuklik.euskadi.net).

Transcrição, digitalização e atualização ortográfica e notas:


Paulo Soriano.

Edições Virtuais Arabesco ― Salvador ― Bahia ― Brasil. 2015.


Os folhetos de cordel – chamados de
papéis volantes – inundavam as ruas e praças de
Lisboa no século XVIII. Assim como os nossos,
eram escritos para o povo numa linguagem
popular. Era – diz-nos Clara Pinto Correia – num
português plebeu que se imprimiam os folhetos
anônimos de dez páginas, vendidos na esquina
da rua por dois centavos. Escrevia-se num
português das massas, que era o único que todas
as massas que sabiam ler o faziam com avidez.
Nesses papéis volantes pululavam fatos e
feitos extraordinários, fantásticos, formidáveis.
Tais folhetos, relembra-nos a historiadora Mary
Del Priori, prendiam a atenção e respiração de
seus leitores, mergulhando-os num mundo
fantasmagórico e de fantasmagorias. Monstros,
aberrações, eventos prodigiosos enchiam de
terror os homens do povo, numa época em que o
absurdo era plausível e a superstição milenar não
se deixava permear pelas luzes do racionalismo
incipiente.
A presente narrativa de cordel de Pedro
Nisa Robes de Melo, publicada em Lisboa em
1740, baseia-se, em grande parte, na obra do
monge beneditino Bento Jerônimo Feijó e
Montenegro (1676 — 1764), erudito iluminista
galego, ensaísta de grande prestígio em sua
época. Nela, narra-se a extraordinária história de
um jovem aprendiz de carpinteiro que, tido por
afogado nas águas da desembocadura do rio
Nança, nordeste da Espanha, é capturado por
pescadores, cinco anos depois de seu
desaparecimento, nas águas da baía de Cádis, no
sul da Península Ibérica. Mas aparece ele com o
corpo guarnecido de escamas, o que leva a gente
do povo, nobres e eruditos a crer que o jovem,
habitando o oceano todos estes tempos,
metamorfoseara-se numa criatura anfíbia, agora
destituída da mínima inteligência.
RELAÇÃO
DE UM EXTRAORDINÁRIO E

PRODIGIOSO CASO

QUE NOS FINS DO SÉCULO PASSADO


ACONTECEU
no Reino de Castela a Francisco da Veiga do
lugar de Liérganes, Província de Biscaia,
assistindo na cidade de Bilbao da mesma
província, tirada de algumas memórias que deste
sucesso traz R. P. M. Fr. Bento Feijó1, adicionada

1
O monge beneditino Bento Jerônimo Feijó e Montenegro
(1676 — 1764), erudito iluminista galego, ensaísta de grande
prestígio em sua época, estudou com profundidade o caso,
coletando testemunhos de pessoas idôneas e confiáveis, e, no
Tomo Oitavo, §§ I, do “Teatro crítico universal”, de 1726,
reproduziu, ipsis litteris, a descrição detalhada que fez dos
acontecimentos o Marquês de Valbuena. A narrativa de cordel
de Pedro Nisa Robes de Melo, publicada em Lisboa em 1740,
baseia-se, em grande parte, na obra do respeitado filósofo e
intelectual galego. Francisco da Veiga (em espanhol, Francisco
de la Vega), o homem-peixe de Líérganes, não é, assim, um
ente lendário, ou um produto duma fértil imaginação, mas,
possivelmente, uma vítima de cretinismo, conforme especulou
Gregorio Marañón no livro “Las ideas biológicas del Padre
Feijoo”.

7
com outras mais notícias particulares, dada à luz
por

PEDRO NISA ROBES DE MELO, E

oferecida à admiração de todos, por se não tem


encontrado outra semelhante nas histórias.

8
No Reino de Castela, em uma província

que chamam Biscaia Alva, que está situada entre


a Vermelha e a Guipúscoa, junto dumas
montanhas, que compreende o arcebispado de
Burgos, distante duas léguas da Vila de
Santander para a parte do Sudoeste, está uma
aldeia chamada Liérganes, não muito povoada de
gente, nem fértil de frutos, por se achar situada
quase no cume de uma áspera de desabrida
serra. Em pouca distância deste lugar, aplicados
à cultura de umas terras, vivia Francisco da
Veiga e sua mulher Maria do Casal, os quais se

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tinham recebido na igreja de São Pedro da
mesma freguesia no ano de 1655. E deste
matrimônio tiveram cinco filhos chamados, o
primeiro, Tomás (que ao depois foi sacerdote), o
segundo Antônio, que morreu de dous anos, o
terceiro Francisco (a quem sucedeu o caso que
vamos relatando), o quarto José e o quinto João,
que todos foram batizados na dita Igreja de S.
Pedro.
Viveram no consórcio deste matrimônio por
espaço de 18 anos até que, no ano de 1673,
morreu de uma dilatada doença o dito Francisco
da Veiga. Vendo-se assim viúva e desamparada a
dita Maria do Casal, cuidou logo em dar a seus
filhos empregos, com que tivessem modo de
sustentar a vida, ao menos segundo o caráter de
sua qualidade, mandando a Tomás, que era o
mais velho, para a Vila de Santander, para que
nela se aplicasse aos estudos da Gramática e se
ordenasse clérigo; a Francisco para Bilbao, cidade
capital daquelas províncias, e distante para o
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Norte 19 léguas da sua habitação, junto do mar
oceano e situada nas margens do rio Nança, que
ali vai desaguar, formando-se na foz uma
enseada não só mui aprazível, mas igualmente
útil, por ser um dos melhores e mais
frequentados porto de mar que por aquela costa
se acha em todo Reino de Castela, para que ali
aprendesse o ofício de carpinteiro com mais
perfeição do que o poderia fazer no inculto
daquelas aldeias. E ultimamente destinou os
dois mais novos para lhe assistirem em sua casa,
e lhe ajudarem a continuar o granjeio das suas
terras, de que com seu marido se tinham
sustentado e alimentado seus filhos. Disposto
isto assim, cada um tratou logo de obedecer ao
preceito materno, abraçando-o de boa vontade, e
seguindo-o prontamente. Mas como só pertence a
nossa história à fatalidade que aconteceu ao que
seguiu a viagem de Bilbao, só deste iremos
tratando, e vendo o que passou.

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Em 15 anos de idade, e no ano de 1672,
partiu o segundo filho de Maria do Casal, e novo
Francisco da Veiga, para a Cidade de Bilbao,
aonde chegou em breves dias, por ser, como fica
dito, curta aquela jornada, e logo cuidou de se
ajustar ao uso e prática daquela terra com um
mestre daquele ofício, a que ia destinado. E
depois de o ter concluído, continuou por alguns
meses, com toda curiosidade na aplicação
daquela arte, em que, com bastante habilidade, ia
mostrando muitas vantagens. Porém, passado o
tempo que lhe foi necessário para tomar
conhecimento com alguns moços da sua idade,
que vinham de pescar na foz do rio, começou a
desgostar-se daquele exercício, e a acompanhá-
los no de lançar redes, nadar, mergulhar e outros
pertencentes àquele ministério, a que mostrava
uma inclinação nunca vista, dando-se por muito
satisfeito de achar na grandeza daquele rio
bastante campo para saciar o inato apetite que
tinha de lidar com águas, o qual já mostrava no
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tempo em que tinha estado na companhia de
seus pais, fugindo-lhes continuamente para uma
ribeira circunvizinha do lugar de Liérganes, sua
pátria.
Passados assim dous anos de assistência
na cidade de Bilbao, e no ano de 1674, se foi
nosso Francisco da Veiga com aqueles amigos a
quem pelo exercício era tão inclinado, em uma
noite de S. João, banhar ao mesmo rio Nança,
junto aonde desemborca no oceano, aonde
chamam a Barra de Portugalete, e depois de se
mostrar mais perito que os outros na arte de
nadar, dilatando-se muito tempo nos mergulhos,
e estendendo o progresso do nado mais que
todos, com grande admiração deles se foi fazendo
ao largo pelo mar dentro, de sorte que,
esperando-se até quase pela manhã, não voltou, e
recionavelmente o reputaram submergido,
afogado na imensidade e vastidão daquelas
ondas; e já desenganados de que naturalmente
não podia aparecer vivo o companheiro, se
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retiraram, trazendo-lhe consigo o vestido, que
tinha deixado ao pés dos mais, e foram entregar
ao seu mestre, dando-lhe conta do que tinha
sucedido. Assentou este que, com efeito, tinha
perdido o discípulo; e ele, infelizmente, a vida, e
tratou logo de dar disto conta sua mãe e irmãos,
com cuja notícia eles o tiveram por morto, e
choraram, como era justo, a sua desgraça.
Tinha corrido o espaço de 5 anos quando,
no ano de 1679, no golfo de Cádis, distante de
Bilbao mais de 150 léguas por terra, e perto de
300 pela costa do oceano, uns homens, que ali
frequentavam o exercício de pescar, viram, ao
longe, nadando na superfície das águas, um
indivíduo totalmente estranho à vista, em
habitação que só serve para outros de muito
diferente figura. Foram, ainda que receosos,
apropinquando para ele a embarcação, para
melhor se informarem de seu aspecto; porém, ele,
que igualmente tinha perdido a comunicação, e o
conhecimento dos homens, tirando-se deles com
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a maior pressa que pôde, se pois de mais largo, e
submergindo-se ultimamente nas ondas,
desapareceu, de sorte que em todo aquele dia
lhes não foi possível torná-lo a avistar. Voltaram
para a cidade e, no dia seguinte, continuando o
seu exercício de pescaria quase no mesmo sítio, o
viram segunda vez, já de mais perto, porém
sempre cuidando de lhes fugir, umas vezes
cortando as águas com mais ligeireza, e outras
escondendo-se nelas pelo tempo que lhe era
necessário. Com a repetição desta vista, não só
lhes cresceu a curiosidade de examinar o que era,
mas se capacitaram de que mais facilmente o
conseguiriam. Vendo que ele se dilatava naquele
sítio, sem embargo de o terem insultado no dia
antecedente, e sem o fazerem naquele, volveram
com toda a diligência à cidade, e deram conta a
algumas pessoas de curiosidade e indústria do
que tinham visto naqueles dous dias.
Discorreram sobre o modo de o haverem às mãos,
e ultimamente dispuseram levar algumas redes
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da maior marca que se acharem para lhe lançar
muito ao largo, de sorte que ele não pudesse
penetrar o engano, arrojando-lhe juntamente
algumas cousas comestíveis por terem já visto
que ele se aproveitava de algumas que ia achando
por cima da água. Preparados nesta forma,
endireitaram logo para o sítio, e achando-o nele
pontualmente, lhe começaram a lançar alguns
pedaços de pão que levavam, os quais ele com
presteza apanhava, cuidando sempre na retirada
pelo mesmo modo que acostumava fazer.
Entretanto, o foram, de outra embarcação,
cercando por muita distância com as redes que
levavam. E, depois de terem com elas bem
seguro o êxito da presa, as foram puxando, até
que ultimamente, não se podendo ele livrar desta
máquina que lhe tinham fulminado, o trouxeram
às mãos, conheceram ter forma de criatura
racional, e o conduziram para a cidade com
grande contentamento de terem descoberto uma
raridade nunca vista.
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Concorreu logo a maior parte da gente da
cidade a ver aquele espetáculo, e examinado por
algumas pessoas o material do seu indivíduo, se
achou que em todas as suas partes correspondia
a qualquer homem perfeito, e somente pelos
lombos e peitos se viam algumas escamas, como
as de qualquer peixe, achando-se-lhe, também,
pelas partes em que não as tinha, a pele mais
áspera e quase como a de uma lixa, o que tudo ao
depois perdeu, como abaixo veremos. Feito assim
este exame, e assentado em que sem dúvida era
criatura racional, trataram de perguntar algumas
cousas, porque já tinham feito reparo no silêncio
que tinham observado em todo aquele tempo;
porém, deixando tudo sem resposta na língua
vulgar daquela terra, lhe falaram na maior parte
das da Europa, e ainda de algumas da África,
mas foi diligência baldada, porque em todas
mostrou não entender palavra, não sabendo em
alguma dar resposta, parecendo não só mudo por
falta de articulação, mas mais que mudo por não
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dar alento ao estrépito algum de voz; o que
causou tão grande admiração, que se
capacitaram que só de alguma obsessão do
demônio podia proceder acontecimento tão raro.
E tentando nisto, o levaram para um convento de
S. Francisco, naquela cidade, para nele o
exorcismarem alguns religiosos da virtude que
nele havia. Fez-se logo assim; porém,
continuando-se por algum tempo esta diligência,
viram que nenhum sinal dava de possessão
diabólica, e da mesma sorte continuava o
silêncio. Passados, porém, alguns tempos, se lhe
ouviu proferir distintamente a palavra Liérganes,
nome de sua pátria, como fica dito. Foi
desconhecido este nome dos que não tinham
notícia da terra; porém, ali achando-se um moço
trabalhando em umas obras no mesmo convento,
disse que Liérganes era nome de uma terra
situada aonde tínhamos dito, e que era pátria
sua, donde ele tinha vindo para aquela cidade
havia bastante anos, sem que lá tivesse notícia de
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caso algum que dissesse relação àquele.
Informado de tudo isto, um cavalheiro de Cádis,
sabendo que o secretário da Suprema Inquisição
de Castela, chamado Dom Domingos de
Cantolla2, com quem tinha boa amizade, era da
mesma terra de Liérganes, lhe escreveu, e deu
conta deste caso, para que mandasse por seus
parentes averiguar se tinha sucedido algum que
se pudesse combinar com ele: executou-o ele
prontamente assim e lhe respondeu: que o que
tinha sucedido era perder-se no porto de Bilbao
um moço daquela terra chamado Francisco da
Veiga, filho de outro, e de sua mulher Maria do
Casal, porém, que isto tinha passado havia
bastantes anos, e que de todos era já reputado
por morto e afogado naquele rio.
Remetida por Dom Domingos de Cantolla
ao seu amigo e correspondente de Cádis aquela

2 Domingo de la Cantolla Miera (Liérganes, 1610 - s. XVII),


clérigo espanhol do século XVII, secretario general da
Inquisição na Espanha.

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resposta, que lhe tinha vindo de Liérganes, se
começou a divulgar a notícia pela cidade, e ele
pessoalmente foi dar ao convento de São
Francisco, em que se achava aquele enigmático
indivíduo. Tinha chegado de poucos dias Fr. João
Rosende, que voltava de Jerusalém com a
incumbência de tirar esmolas por toda a Espanha
para aqueles santos lugares, e tendo disposto o
seu giro de sorte, que vinha a rematar no
Arcebispado de Burgos, e informado de que nele
se compreendia o lugar de Liérganes, determinou
levar consigo o nosso Francisco da Veiga para o
restituir à sua casa e, entretanto, se ajudar dele
para o que lhe fosse necessário na sua
peregrinação que, suposto pela inabilidade de
voz, fosse pouco apto para aquele ministério de
pedir, em tudo mais era apto para obedecer.
Tratou logo o dito religioso de se familiarizar com
ele, insinuando-lhe seu desígnio, ao qual ele deu
alguns sinais de consentimento e gosto. E, com
efeito, se partiram com mais outro religioso leigo
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no mesmo ano de 1679 para o seu petitório.
Correram vários lugares daquele Reino, nos quais
se foi fazendo notório este caso, acompanhando o
dito Francisco da Veiga aquele religioso, e
servindo-o em tudo o que lhe mandava, porém
em todo o decurso daquela jornada se não lhe
ouviu palavra alguma mais que mui poucas vezes
aquela de Liéganes, que já tinha pronunciado em
Cádis. Foram-se avizinhando à província de
Biscaia, até que no ano de 1680, chegando a uma
serra, que chamam Ladehesa, distante somente
do lugar de Liéganes um quarto de légua, disse o
religioso ao dito Francisco da Veiga que fosse
adiante, e guisasse o caminho, o que ele
pontualmente fez, partindo direito para a casa de
sua mãe Maria do Casal.
Chegando que foi Francisco da Veiga à casa
de sua mãe, o conheceu esta logo, fazendo
grandes demonstrações de alegria, abraçando-o
repetidas vezes e dizendo: Este é o meu filho, que
me desapareceu em Bilbao, e já reputava morto.
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Dous irmãos, que ainda eram vivos, o clérigo e o
outro secular, da mesma forma o receberam com
alvoroço e gosto. Porém ele a tudo isto mostrou
menos alteração e alegria do que fosse bruto,
porque mais que bruto parecia inanimado.
Recebido, sem embargo disto, por sua mãe com
aquele amor que todas têm e facilmente não
perdem dos filhos, se conservou ali por espaço de
9 anos com pouca diferença, sempre naquele
estado de insensato, e totalmente alienado do
entendimento, não se lhe conhecendo em algum
instante sinal de paixão ou afeto humano, e só
passados alguns anos se lhe ouviram pronunciar
algumas vezes as palavras pão, vinho, tabaco,
porém sempre disparatadas, e com tão pouca
conexão ao propósito que, perguntando-lhe se
queria alguma cousa daquelas, nada respondia,
nem mostrava entender o que se lhe
perguntavam; porém, se com efeito lho davam, o
comia, bebia, e tomava com excesso e loucura, e
outras vezes o rejeitava, de sorte que
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voluntariamente andava muitos dias sem usar de
cousa alguma daquelas, nem ainda de outro
qualquer alimento que de dessem. Andava
continuamente descalço, e muitas vezes de todo
despido, sem que isto lhe desse algum cuidado; e,
se o mandavam a vestir, o fazia, não se lhe
conhecendo para isto, ou para o contrário,
deliberação alguma de vontade. Ia aonde o
mandavam, especialmente àqueles que conhecia
antes de ir a Bilbao; e em uma ocasião,
mandando-o à vila de Santander um clérigo
daquele lugar a levar uma carta de um seu
amigo, foi prontamente, como costumava, e,
tendo de passar um rio, que tem perto de uma
légua de largura, e não achando barco pronto, o
passou a nado, e entregando a carta molhada, lhe
perguntou o sujeito, para quem ia, a causa de a
levar daquela forma, ao que não soube responder,
e só aceitar a resposta, e volver com ela a
Liéganes. Nunca pedia de comer por modo algum,
e só aceitava quando lho davam e estava com
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vontade dele. Para obedecer, mostrava que tinha
aptidão de homem; porém, para discorrer, nem
ainda parece que tinha instinto de bruto. No fim
de dous anos depois que ali chegou, lhe caíram
as escamas, que a natureza lhe adotara, como
reparo necessário à habitação que o seu destino
lhe tinha oferecido nas águas; pôs-lhe a pele
naturalmente macia, como a de qualquer homem,
logrando assim o corpo quase a inteira restituição
dos seus acidentes, e ficando a alma flutuando
para sempre naquela estranha confusão das suas
potências, até que no fim de 9 anos desapareceu,
no ano de 1689, sem que houvesse mais alguma
notícia dele, e só bastantes fundamentos para se
conjecturar que se passou segunda vez à
província de Guipúscoa, a repetir a habitação do
mar, a que sempre se mostrava inclinado, tanto
por ficar ali mais perto, como por ser caminho
que já sabia. Alguns disseram que daí a alguns
tempos fora visto no mar das Astúrias, porém não

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há bastante fundamento para assim o
afirmarmos.
Era de estatura ordinária, e bem
proporcionada, cor branca, cabelo vermelho e
pequeno. Trazia as unhas gastadas e quase que
não lhe apareciam, nem lhe chegavam a pôr
maturais em todo aquele tempo. Alguns
quiseram que esta fatalidade fosse feita de uma
maldição que justamente lhe tinha lançado sua
mãe; porém, ao depois, se averiguou ser mentira.
E só acaso sucedido ainda, que parece incrível
ser naturalmente sustentada, por se não
encontrar até aqui outra semelhante, assim nas
histórias antigas como nas modernas.

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ADVERTÊNCIA E REFLEXÃO

Não se deve tomar esta história por


apócrifa, por ter sido atestada ao R. P. M. Fr.
Bento Jerônimo Feijó, monge beneditino no Reino
de Castela, e hoje, por sua raríssima erudição,
bem conhecido em toda a Europa, por várias
cartas, que teve do Marquês de Valbuena e D.
Gaspar de Melchior3, e outras pessoas de igual
crédito, que com toda a exação a averiguaram,
informando-se dos mesmos irmãos de Francisco
da Veiga e outros, conhecendo-o, e vendo-o no
estado em que temos dito; e o mesmo P. afirma, e
transcreve por certa no 6º tom. de seu Teatr.
Critic. circunstância que, na verdade, lhe pôde
tirar todo o escrúpulo de dúvida. E nós agora
informados com mais miudeza de algumas
circunstâncias que ali se não individuam, a
escrevemos no idioma pátrio, para que a ninguém

3
Gaspar Melchor de la Riba Agüero, gentil homem, Cavaleiro
da Ordem de Santiago do séc. XVIII.
26
se oculte prodígio tão raro, e a todos (ainda
àqueles que não entendem bem a língua
castelhana, ou não tiverem a Obra do Teatro
Crítico) se manifeste um caso, que pode servir de
incentivo a uma profunda meditação da
inescrutabilidade da Providência Divina; pois
vemos que ainda em um Elemento tão estranho,
e contrário à sustentação da vida humana, quis
Deus dar a este homem um acomodado e gostoso
abrigo, talvez que segurando-lhe por aquele
caminho o mais direito da sua salvação. Pois é
certo que por aquela total demência ficou
reduzido a uma inocência pura, incapaz de
cometer culpa digna de pena, sendo mui fatível (e
também provável, pela boa inclinação que nos
seus poucos anos se lhe tinha observado), que
aquela alienação o achasse livre de pecado grave.
E o que daqui se segue é que não só passou a
vida suave pelos impulsos da sua inclinação, mas
ditosamente passaria a gozar da Glória por altos
favores do Céu, que a todos ajuda e socorre, e o
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faria daquela criatura nesta forma para nos
mostrar que, se a grandeza e a
incompreensibilidade de seu poder a conservará
naquele inimigo Elemento da água, muito melhor
o pode fazer a todos no da terra, que nos deu por
Mãe e de que nos criou. Pode isto servir de
consolação aos que se consideram desfavorecidos
da fortuna, conhecendo, que ainda que na que
parece mais adversa, Deus não falta em socorrer
a todos, e em toda parte. Omito muitos discursos
físicos e morais, que sobre este caso se fizeram,
por ser este mais católico e verdadeiro.

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LISBOA OCIDENTAL

Na oficina de PEDRO FERREIRA, Impressor da


Augustíssima Rainha N.S. Ano M DCC LX. Com
todas as licenças necessárias.

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Edições Digitais Arabesco

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