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39. (26, 203) ► Verdade VS. Moral (felicidade, bem etc.). Incorporação da verdade
e destruição de si. Sobre suportar a verdade como qualidade do espírito. Formação
do espírito/filósofo forte e independente (aliado à disposição de aceitar com leveza).
A vida do filósofo como obra (não só livro). Stendhal e a imagem do filósofo de
espírito livre como banqueiro.
[...] Algo pode ser verdadeiro, apesar de nocivo e perigoso no mais alto grau; mais
ainda, pode ser da constituição básica da existência o fato de alguém se destruir ao
conhecê-la inteiramente, –— de modo que a fortaleza de um espírito se mediria pelo
quanto de “verdade” ele ainda suportasse, ou, mais claramente, pelo grau em que ele
necessitasse vê-la diluída, edulcorada, encoberta, amortecida, falseada. Mas não há
dúvida de que, para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os
infelizes estão mais favorecidos e têm mais possibilidade de êxito; sem falar dos maus
que são felizes –— espécie que os moralistas não mencionam. Para o surgimento do
espírito e filósofo independente, forte, talvez a dureza e a astúcia forneçam condições
mais favoráveis que a suave, fina, complacente disposição, a arte de aceitar as coisas
com leveza, que é apreciada e justamente apreciada num filósofo. Pressupondo o que
vem antes de tudo, isto é, que o conceito de “filósofo” não seja restrito ao filósofo que
escreve livros –— ou até mesmo faz livros da sua filosofia! –— Stendhal contribuiu
com um último traço para a imagem do filósofo de espírito livre, e no interesse do gosto
alemão eu não quero deixar de sublinha-lo: - pois ele vai contra o gosto alemão. “Para
ser bom filósofo”, diz o último psicólogo alemão, “é preciso ser seco, claro, sem ilusão.
Um banqueiro que fez fortuna tem parte do caráter necessário para fazer descobertas em
filosofia, ou seja, para ver claro naquilo que é”. (p.42)
203. (cf. 26, 39) ► Os novos filósofos como esperança dos espíritos livres
(democracia como decadência das organizações políticas). Circunstâncias para o
surgimento dos novos filósofos.
[...] Para onde apontaremos nós [de outra fé, democracia como decadência] as nossas
esperanças? Para os novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o
bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar “valores
eternos”, para precursores e arautos, para homens do futuro que atem no presente o nó, a
coação que impõe caminhos novos à vontade de milênios. Ensinar ao homem o futuro
do homem como sua vontade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes
empresas e tentativas globais de disciplinação e cultivo, para desse modo pôr um fim a
esse pavoroso domínio do acaso e do absurdo que até o momento se chamou “história”
– o absurdo do “maior número” é apenas sua última forma –: para isto será necessária,
algum dia, uma nova espécie de filósofos e comandantes, em vista dos quais tudo o que
já houve de espíritos ocultos, terríveis, benévolos, parecerá pálido e mirrado. É a
imagem de tais líderes que paira ante os nossos olhos: – posso dizê-lo em voz alta, é
espíritos livres? (p.91)
204. (cf. 205) ► Diferença: filósofos ≠ homens de ciência, eruditos. Filosofia como
“teoria do conhecimento” (séc. XIX): fim da filosofia, triunfo da ciência.
[...] Hoje a ciência floresce e tem boa consciência estampada no rosto, enquanto aquilo a
que gradualmente se resumiu toda a filosofia recente, esse vestígio de filosofia de hoje,
desperta suspeita e cisma, quando não escárnio e pena. A filosofia reduzida a “teoria do
conhecimento”, na realidade apenas um tímido epoquismo e doutrina de abstenção: uma
filosofia que nunca transpõe o limiar e que recusa penosamente o direito de entrar – é
uma filosofia nas últimas, um final, uma agonia, algo que faz pena. Como poderia uma
tal filosofia – dominar? (p.95)
205. (cf. 42, 204, 211, 212) ► Perigos que ameaçam o desenvolvimento do filósofo
(especialização, refúgio na sabedoria). Tarefa do filósofo: comandar, conduzir
(juízo [sim ou não] sobre a vida e o valor da vida e não sobre a ciência).
Necessidade de vivências mais amplas (cf. 42, 211). Verdadeiro filósofo vive de
modo pouco filosófico e pouco sábio.
[...] Na verdade, por muito tempo a multidão confundiu e desconheceu o filósofo, seja
tomando-o pelo homem de ciência e erudito ideal, seja pelo religioso-exaltado,
dessensualizado, “desmundanizado” entusiasta e ébrio de Deus; e se hoje acontece
alguém ser louvado, por viver “sabiamente” ou “como um filósofo”, isto quer dizer
apenas que vive “prudente e afastado”. Sabedoria: isto parece ser uma espécie de fuga
para a plebe, um meio e um artifício para sair bem de um jogo ruim; mas o verdadeiro
filósofo – não é assim para nós, meus amigos? – vive de modo pouco filosófico e pouco
sábio, sobretudo bem pouco prudente, e sente o fardo e a obrigação das mil tentativas e
tentações da vida – ele arrisca a si próprio constantemente, jogando o jogo ruim...
(p.96)
210. (cf. 42) ► Filósofos do futuro (céticos, críticos, experimentadores). São uma
afronta ao século democrático. Prazer em dizer Não. Relação dura com a verdade
(verdade ≠ moral). Não desejam ser chamados de críticos (os críticos são
instrumentos dos filósofos).
[...] Através do nome com que ousei batizá-los, já sublinhei claramente a
experimentação e o prazer no experimentar: seria porque, crítico de corpo e alma, eles
amam servir-se do experimento num sentido novo, talvez mais amplo, talvez mais
perigoso? Deverão eles, em sua paixão do conhecimento, levar suas experiências
arrojadas e dolorosas mais longe do que pode aprovar o gosto brando e mimado de um
século democrático? – Não há dúvida: esses vindouros não poderão, de maneira alguma,
dispensar as qualidades sérias e nada inofensivas que distinguem o crítico do cético, isto
é, a segurança nas medidas de valor, o manejo consciente de uma unidade de método, a
coragem alerta, o estar só e responder por si; sim, eles não negam, em si, um prazer em
dizer Não e desmembrar, e uma certa curiosidade refletida, que sabe manusear a faca de
modo seguro e delicado, ainda que o coração sangre. (p.103-104) → [...] Esses filósofos
do futuro não só exigirão de si mesmos disciplina crítica e todo hábito que leve a rigor e
asseio nas coisas do espírito: eles bem poderão exibi-los como sua espécie própria de
ornamento [estetização/cultivo] – e apesar disso não desejam ser chamados de críticos.
[...] nossos novos filósofos dirão, porém: os críticos são instrumentos dos filósofos, e
por isso, por serem instrumentos, estão longe de ser filósofos! (p.104-105)
211. (cf. 42, 204, 205, 212) ► Formação de um verdadeiro filósofo (passar pelo
estágio de trabalhador filosófico e demais servidores/práticas culturais). Tarefa do
filósofo (exigência da criação de valores). Função dos trabalhadores filosóficos
(pesquisadores que estabelecem o corpo dos acontecimentos e suas avaliações
[valor/verdade]; subjugadores do passado). Autênticos filósofos como comandantes
e legisladores. Vontade de verdade é vontade de poder no filósofo. Necessidade de
existir tais filósofos.
[...] Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro filósofo, ter passado
alguma vez pelos estágios em que permanecem, em que têm de permanecer os seus
servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio tenha que ter sido crítico,
cético, dogmático e historiador, e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de
enigmas, moralista, vidente, “livre-pensador” e praticamente tudo, para cruzar todo o
âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder observá-lo com muitos
olhos e consciências, desde a altura até a distância, da profundeza à altura, de um canto
qualquer à amplidão. Mas tudo isso são apenas precondições de sua tarefa: ela mesma
requer algo mais – ela exige que ele crie valores. (p.105)
→ Os trabalhadores filosóficos formados segundo o nobre modelo de Kant e Hegel têm
de estabelecer e colocar em fórmulas, seja no reino do lógico, do político (moral) ou do
artístico, algum vasto corpo de valorações – isto é, anteriores determinações, criações
de valores, que se tornaram dominantes e por um tempo foram denominadas
“verdades”. A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível, pensável,
manuseável, tudo até hoje acontecido e avaliado, abreviar tudo o que é longo, “o tempo”
mesmo, e subjugar o passado inteiro: imensa e maravilhosa tarefa, a serviço da qual
todo orgulho sutil, toda vontade tenaz pode encontrar satisfação. (p.105)
→ Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem “assim deve
ser!”, eles determinam o para onde? e para quê? do ser humano, e nisso têm a seu dispor
o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os subjugadores do
passado – estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi torna-se para eles
um meio, um instrumento, um martelo. Seu “conhecer” é criar, seu criar é legislar, sua
vontade de verdade é – vontade de poder. Existem hoje tais filósofos? Já existiram tais
filósofos? Não têm que existir tais filósofos?... (p.105)
213.
DENAT, Céline. Nietzsche, pensador da história? Do problema do “sentido histórico” à
exigência genealógica. cadernos Nietzsche, n.24, p.7-42, 2008.