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Entrevista com Lucrécia Martel

Janeiro 25, 2016 Cobertura da 9a Mostra Cine BH

Em busca de fissuras
por Marcelo Miranda*

A diretora argentina Lucrecia Martel esteve no Brasil em outubro para ser


homenageada pela 9ª CineBH – Mostra de Cinema de Belo Horizonte. A cineasta
está em fase de finalização de Zama, seu muito adiado quarto longa-metragem,
adaptação de um famoso romance de Antonio di Benedetto. Referência na
produção audiovisual da América Latina com três filmes – O Pântano (2001), A
Menina Santa (2004) e A Mulher sem Cabeça (2008) –, Martel conversou por
meia hora com a Cinética.

Como fica evidente abaixo, a fala de Martel carrega sentidos poéticos e


existenciais bastante próximos do que se vê em seus filmes, assim como
também não esclarece sobre a que exatamente está se referindo. Dona de um
senso de humor peculiar e sutil, ela revela ter o cinema como uma de suas mais
distantes referências, tendo por maior preocupação encontrar as formas de
provocar fissuras na percepção sem para isso recorrer a recursos que considere
óbvios ou desgastados.

Cinética: Você se tornou uma figura de referência para certos caminhos do


cinema latino-americano pelo mundo a partir dos três filmes que realizou
num período de sete anos. Em seguida, ficou outros sete anos sem lançar
um novo trabalho. Como você pensa as relações que foram feitas sobre
seus filmes e em que medida se pode medir a sua ausência do cenário
audiovisual?
Lucrecia Martel: Nunca me senti muito dentro do cinema latino. Uma das razões
disso é que nunca senti que o cinema fosse algo que fizesse parte do mundo
que me interessa estar. Me parece que o cinema é um meio onde são exigidas
só relações com as pessoas, e não com o mundo ao redor. E quando alguém
está muito perto das pessoas de cinema, dos festivais e tudo isso, diminui sua
relação com o mundo. Sempre se pensa o trabalho dos diretores em comparação
a outros filmes, mas na verdade eles existem na relação com o mundo. Então
me mantive longe desse meio e nem tenho tantos amigos que sejam diretores.
A mim surpreende quando me contam que, no Brasil, existe tanto interesse pelos
meus filmes, porque eu nunca soube que eles tinham estreado e circulado tanto
assim. Me surpreende porque nunca me esforcei para que eles circulassem. A
mim é importante me relacionar com o público, mas não com o mundo do cinema.
A Mulher sem Cabeça (2008) provocava algumas reconfigurações na sua
obra, apontando para outros caminhos possíveis, que acabaram não sendo
vistos porque você não fez outros filmes desde então. Acha que um ciclo
foi fechado ali?
Nunca pensei numa trilogia que fosse se completar com A Mulher sem Cabeça,
mas senti, sim, que tinha algo que estava terminando. Não que as minhas
preocupações tinham acabado, mas talvez a minha abordagem. Eu senti isso
muito forte quando estava terminando de fazer o filme e achei que levaria muito
tempo para fazer alguma outra coisa. Poderia ter sido O Eternauta [n. do r.:
adaptação de uma história em quadrinhos dos anos 1950, de Héctor Germán
Oesterheld e Francisco Solano López, que chegou a ser esboçada por Martel. O
projeto foi abortado por desentendimentos com os herdeiros dos
autores]. Zama é a continuidade desse deslocamento em direção a outro mundo.

O que te bateu tão forte no fim do processo de A Mulher sem Cabeça?


Não sei. Eu sentia que algo tinha terminado, mas não sabia o que era. Pensei
que anos depois eu entenderia, mas nunca entendi (risos).

Uma característica muito apontada no seu cinema é o trabalho com o som.


Como você concebe a banda sonora dos seus filmes e como ela se conecta
à sua ideia de ambiente e de espaço?
Eu penso o som antes de escrever o roteiro. Para mim, o som permite entender
o clima das cenas. As pessoas que conhecem música devem ter a sensação de
como é isso antes de criarem algo. O som aparece no roteiro como um ritmo e
um volume, um elemento que me permite muitas vezes me liberar de coisas da
imagem. No set, durante a filmagem, se esses dois processos foram claros [a
concepção do som e a escritura do roteiro], me facilita muitíssimo a encenação,
porque sei o que vou escutar e sei de onde preciso ver as coisas. Quando não
tenho claro o som, é um desastre para mim, fico perdida olhando para lá e para
cá. O som é como um artifício de narração, me apoio muito nele e me serve para
pensar a imagem. Nunca me serviu pensar a imagem em termos abstratos e que
não fossem sonoros, então é um lugar onde eu me sinto confortável. E a
coprodução [n. do r.: enfoque maior do CineBH] é um momento muito bom,
porque várias coisas que antes eram conceitos muito esquemáticos se tornam
concretas. Na filmagem tudo vai fazendo sentido. Não faço esboços
nem storyboards, então compreender o som organiza minha visão do set, me dá
um arco muito claro de construção, me define os espaços para buscar os
enquadramentos e improvisar.

Você tem problemas com a imagem no sentido de representação?


Uma coisa deliberada que eu faço é não filmar nada por inteiro. Filmo pedaços
da cadeira, pedaços da porta, fragmentos de muita coisa no enquadramento, até
de pessoas. Acho que a imagem é tão referencial que me convém deixar muitos
sentidos de fora dela, para que ela seja debilitada e isso possa permitir que
outras coisas aconteçam, que outras sensações apareçam. O que essa
fragmentação permite é enfraquecer a forte educação visual que temos para que
o espectador fique mais disponível a outras coisas.

Especialmente em A Menina Santa e A Mulher sem Cabeça, aparece a


predileção por personagens em estados absortos, como se estivessem em
outro lugar, que ocupam e não ocupam o espaço.
Isso é uma coisa bem comum na minha família (risos). Em A Menina Santa não
me lembro tanto de fazer isso, mas em A Mulher sem Cabeça eu precisava
reforçar essa condição, eu precisava que os personagens estivessem ausentes
da imagem, que aparecessem desconectados.

Como te veio o dispositivo de o acidente em A Mulher sem Cabeça ser o


catalisador da mudança de percepção do ponto de vista da protagonista no
filme?
Eu queria me aproximar de uma questão que não sabia muito bem como fazer:
o que é o esquecimento? Uma amiga minha escreveu um poema que dizia:
“Sabe quem guarda muito bem um segredo? Quem o esquece”. O esquecimento
é algo muito comum na psicologia e na psicanálise, mas, para mim, é um
mecanismo terrível e destrutivo da existência humana. O que a personagem de A
Mulher sem Cabeça faz é colocar em funcionamento o esquecimento, e o
esquecimento vai apagando muitas coisas, mais do que ela imagina que serão
apagadas. É com boa vontade que o esquecimento se põe em movimento, o que
evita responsabilidades também. Primeiro ela não se lembra das pessoas e
depois deliberadamente tenta apagar. Falando assim parece soar claro, mas é
muito complexo quando acontece na vida real, como isso começa a crescer e
vai extirpando pedaços da sua vida no processo. O acidente, como conceito, já
é muito forte, é uma coisa inesperada, é como uma fissura. Aos 5 anos de idade
eu sofri um acidente de automóvel e fiquei muito confusa, numa relação muito
desconectada com as coisas ao meu redor.

A água é um símbolo bastante forte no seu cinema, um elemento que


muitas vezes emoldura a ação ou surge como catalisador de sensações,
seja na presença de personagens dentro ou em volta da piscina, seja
através da chuva. Como você pensa a água dentro da estrutura dos filmes?
Penso a água como um fluido. A ideia de imersão sempre me pareceu muito
fascinante. A água é algo que resiste à ideia de propriedade, é um material que
te obriga a pensar. Sobre a água é difícil cravar uma estaca ou construir um
alambrado. Você consegue contê-la, mas não alterá-la. É um elemento
interessante de ser pensado. Há alguns anos fiz uma investigação, e não
cheguei a lugar algum (risos), sobre a morfologia dos rios, porque isso me
interessa muito.

Você já relacionou o desejo e a sexualidade presentes nos seus filmes com


uma ideia de monstruosidade distinta da que costumamos entender dessa
palavra. Como isso afeta a feitura dos seus personagens?
O monstro, numa concepção etimológica, é aquele que mostra, aquele que leva
o sinal do divino. A nossa ideia do monstro é vinculada ao desviante, ao
marginalizado, a quem está fora da ideia da moral ou das previsões da natureza.
Na tradição clássica, em vez de ser algo a extirpar e eliminar, o monstro é algo
que pode trazer uma revelação. Pensando dessa maneira, meus personagens
não surgem a partir de limitações como masculino, feminino, sexual, mas sim de
querer que eles se aproximem por outra atitude. Se escrevo a psicologia do
personagem, já sei tudo sobre ele e faço dele um títere, uma marionete, e não
uma pessoa. Por mais que eu não acredite em Deus nem siga o catolicismo ou
o cristianismo, tem algo de panteísta nos personagens que eu crio. E para mim
é importante também que o ator não se aproxime do personagem querendo
saber tudo sobre ele, mas que se aproxime como um mistério e entendendo que
existe esse mistério.

Poucas vezes te ouvimos falar diretamente sobre cinema.


Isso porque eu sei pouco de cinema (risos). Sinto meus filmes numa dívida direta
e enorme com as tradições morais. Não é porque sou diretora, mas existe um
problema de muitos diretores pensarem ser filhos únicos de Deus (risos). Toda
a minha origem e formação têm sido a das conversas e das tradições orais do
norte da Argentina, que é mais indígena, muito colonial e está menos afetada
pela estrutura de psicologia de Buenos Aires. Minha aproximação com o cinema
veio na infância, quando eu assistia a faroestes na televisão. Na adolescência
meu pai comprou uma câmera, e eu comecei a filmar a família.

Como pensa as relações entre classes sociais vistas nos seus filmes? Você
considera fazer um cinema político?
Cinema político, para mim, é aquele que não acredita que a realidade seja uma
coisa definitiva, mas sim uma construção que pode ser transformada. Veja a
ideia da pobreza estrutural: uma quantidade de ideias que faz com que uma
pessoa se disponha a se adaptar, e não a modificar a pobreza. A mim parece
que o cinema, com as fissuras que ele pode provocar, é onde se pode perceber,
porque uma fissura se abre e podemos olhar por ela como se olha no buraco da
fechadura, mas não se pode permanecer nela. O cinema político então, a mim,
é aquele que voluntariamente sai em busca dessas coisas. Não é o cinema que
diz como deveria ser a realidade, mas o que diz como ela não deveria ser ou,
talvez, como deveríamos mudar a realidade. O cinema militante muitas vezes
propõe como a realidade deveria ser, já o cinema político coloca dúvidas e não
propõe soluções. Porque a solução não é algo que se possa propor, a solução é
um processo, e o cinema militante aponta o dedo do que deve e do que não deve
de maneira torpe, o que reforça os problemas já existentes na sociedade. O
cinema político deveria ser o que faz da poesia uma linguagem. A poesia faz
lembrar que a linguagem é para descobrir coisas, e não para nomeá-las. O
cinema que me interessa é o da dúvida – ou, antes da dúvida, o da suspeita. É
um caminho muito delicado, porque desgraçadamente o que se passa agora na
Argentina, por exemplo, é um discurso político entre A ou B, sempre essa
dualidade, essa dicotomia que faz com que o pensamento seja torpe.

*Colaboração de Fábio Andrade, Juliano Gomes, Raul Arthuso e Pablo Gonçalo


nas perguntas.
Colaboração de Luciana Eastwood Romagnolli na tradução.
Fotos de Universo Produção.

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