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M. RODRIGUES LAPA LICOES DE | LITERATURA PORTUGUESA EPOCA MEDIEVAL POR EXPRESS DESZJO DOS uDITORES STA OBRA f RUBRICADA PRLO AUTOR 7.4 BDIGAO, REVISTA . 41040 & COIMBRA EDITORA, LIMITADA 71970 ‘omposigio e impressio rMBRA EDITORA, LDA. A CULTURA TROVADORESCA Entre a primeira”e “a segunda cruzada (1099-1147), nessa época de espantosa agitagio religiosa e econémica, nasceu a mais antiga mfstica popular da Idade Média e logo ‘a seguir a cangio de amor trovadoresca na sua forma clis- sica, Esta. coincidéncia néo foi casual: & cultura mfotioa do ‘tempo foram buscar os liricos corteszos 0 alento para 0 oo cspiritual do seu amory (Wesbssler, Das Kuléurproblem des Minnesangs, 243). J assim, nesta elegante sintese, que Weehssler delineia a génese da cultura trovadoresca: em seguida aos raptos ardentes duma religiéo novamente e cexperimentalmente achada pela adoragio de Jesus e de Maria, a tradugiio desse fervor em poesia mundana, O roma- nista alemio aludia sobretudo aos dois grandes misticos da primeira metade do século xu: $. Bernardo ¢ Hugo de S, Vitor, Mas nfo queria significar com isso, como have- mos de ver mais adiante, que a literatura trovadoresca saisse dum jacto do misticismo catdlico. A prépria crono- logia se opde a essa hipétese, Na verdade, antes que aque- les dois cristdos se inflamassem na charitas, no amor divino, j4 0 duque Guilherme IX, da Aquiténia, tinha celebrado 0 ‘amor espititual da dona eo seu poder nobilitante: j4 tinha, 6 Ligdus DE LITERATURA PORTUGUESA inaugurado a poesia trovadoresca e dado forma aos seus tomas fundamentais, Naumann procurou obviar a essa dificuldade cronolé- gica, Iangando as principais responsabilidades do subjecti- vismo trovadoresco para o espitito ascético cluniacense, dominante no século x1. Seria ele que, com a tendéncia para a andlise implacdvel do eu, base indispensdvel do conhecimento de Deus, teria dado o cunho psicolégico da cangio dos trovadores ¢ a humilde prosternagao do seu amor (Hofische Kultur, 4-55). Tudo isto ¢ bem verdade, mas nao basta s6 por si para explicar todo 0 complexo fenémeno trovadoresco, Os pré- prios autores citados o consideram insuficiente, E para esse movimento, que representa, em wltima anélise, uma deslocagdo da cultura, torna-se preciso buscar, além doutros, ‘um motivo social que o tivesse facilitado, Esse motivo reside essencialmente nas condigdes especiais em que vivia a socie- dade francesa do sul por todo 0 século x1. 0 condicionalismo social. —Falta-nos—e essa falta foi sentida j4 por Vosster no seu estudo de Guilherme IX — uma histéria minuciosa da cultura provengal no século x1; mas o material até aqui ajuntado permite-nos concluir com suficiente seguranca que a civilizagdo do sul era, no geral, superior, diferente © até oposta & civilizagio do norte; 0 temperamento das duas populagdes vinha acentuar estas diferengas. A. actividades comercial dos portos do Mediterraneo, arvorados em cidades livres, 0 desenvolvido regime muni pal, que permitiu a formagio de poderosos focos mercantili tas, uma, divisiéo mais racional da propriedade, um maior afrouxamento dos lagos de dependéncia feudal, junto, natu- ralmente, a uma maior fertilidade do solo, fizeram do sul um pais rico e de civilizagio facil. 0 feitio, ao mesmo tempo ‘A CULTURA TROVADORESCA 7 vibrante e pacificamente industrioso do meridional, vinha contribuir para isso. E conhecido o ditado, transmitido pelo cronista francés Raoul de Caen; Franci ad bella, Provincia- les ad viclualia, sos Franceses para a guerra, os Provengais para os comestiveiss, Por isso no norte floresceu uma lite- ratura de guerra, do tipo da caneio de gesta, e no sul uma literatura familiar ¢ confidencial, do tipo da cangio de amor. A situag&o florescente da economia privada favorecen naturalmente a instalagdo de pequenos centros de cultura social, que foram adquitindo pouco a pouco extraordiniria importincia, Nos prineipios do século x11, nos condados de Anju e de Tolosa ¢ no ducado de Aquitania, prdticamente desligados do rei de Franca, a vida corria facil e alegre; e 0s cronistas do tempo contam-nos maravilhas sobre a perdu- Viria magnificéncia daqueles senhores folgazdes. Jaufré de Vigeois transmite-nos o caso passado entre 0 conde Guilherme de Poitiets ¢ Eble, seu vassalo e visconde de Ventadorn, bom trovador, de quem infelizmente nio possuimos as cangées. Um dia o visconde foi agasalhado espléndidamente em Poitie’$ pelo seu senhor. De volta a0 seu castelo, Eble preparava-se para cear, quando Jhe entra por casa 0 conde Guilherme, seguido de cem cavaleiros. 0 suserano queria experimentar o seu vassalo. Eble no se perturba; manda trazer dgua aos seus convivas, envia & pressa por comestfiveis, e dentro em pouco servia ao seu senhor ¢ comitiva um festim verdadeiramente real. Pouco Gepois apareceu inesperadamente um vildo. Trazia um pre~ cioso carregamento de pipas de ceta, Em frente dos picta~ ‘venses, armado dum machado, comega a abri-las e a espalhar pelo chio 0 precioso conteiido e diz-lhes: — Vede, cavaleiros, como se da cora em casa do visconde meu senhor! O pré- prio conde estava surpreendido com tanta ostentagiio. Os costumes Inxudrios do Oriente, introduzidos apés

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