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PARTE li

CONSTITUIÇÃO

TÍTULO I
A CONSTITUlç;.;_o COMO FENÓMENO JURÍDICO

CAPÍTULO I
SENT fDO DA CONSTITUIÇÃO

§ 1.0
Noçõ1 s básicas sobre Constituição

l. Os dados de partida

I - Do excurso histórico e comparativo sobre a formação e a


evolução do Estado c sobre os sistemas político-constitucionais (1)
extraem-se os seguint ~s dados: ·
a) Qualquer E: tado, seja qual for o tipo histórico a que se
reconduza, requer ou cnvolve institucionalização jurídica do pode1;; em
qualquer Estado pod ;m recortar-se normas fundamentais em que
as·senta todo o seu or·lenamento.
b) Todavia, son tente desde o século xvm (2) se encara a Cons-
tituição. como um con !unto de normas jurídicas definidoras das rela-
.• ç5es (ou da totalidad.c das relaçÕés) do poder político, do estatuto de

( 1)V. Manual .. ., I, 1.' ed., 2003, págs.· 43 e segs. e 124 e segs.


(2) Sem embargo dt antecedentes ou sinais precursores isolados ou sem con-
'sequências decisivas.

,,
Manual de Direito Constitucional
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.,
·, governantes e de governados; e é esse o alcance inovador do cons-
I
I
titucionalismo moderno.
c)' No século xx, a Constituiçfi•l, sem deixar de regular tão
exaustivamente como no século XIX a 'ida política, ao mesmo tempo
que se universaliza, perde a referência necessária ao conteúdo libe-
ral; e nela parecem caber quaisquer ccnteúdos.
··· ... ,,
d) Dai que; dqravant~. tanto 'p<is~à adoptar-se uma postura pes-
simista e negativa sobre a operacionalidade do conceito quanto uma
postura crítica e reformuladora, empre~.tando-Jhe neutralidade (como
julgamos preferível) ou então, porventl ra, fragmentando-o em tantos
conceitos quantos os tipos constituciottais existentes.
e) Apesar disso, entenda-se neuu·o ou plural o conceito, sobre-
vivem alguns dos princípios habitualn~ente associados ao Estado de
..' Direito ou a consciência da sua necl' ;sidade; e, nos últimos anos,
têm eles vindo a prevalecer, em event•JS de não poucas implicações
no destino jurídico-político dos povos
f) A Constituição, tal como s11rge no século xvm, não se
afirma apenas pelo objecto e pela fun;ão; afinna-se também- ao
invés do que sucedera antes- pela l•Jrça jurídica especifica e pela
forma; a função que desempenha de ermina (ou determina quase
sempre) uma fonna própria, embora va iável consoante os tipos cons-
titucionais e os regimes políticos.

P: - A observação mostra outrossi n duas atitudes básicas perante


o fenómeno constitucional: uma atitude cognoscitiva e un\a atitude
vol~!lw.ê_~. Perante a Consfuuiçã""c; po,\e iissu~~se u~a po~iÇã~ pas- .
siva (ou aparentemente passiva) de lilera descrição ou reprodução
de determinada estrutura jurídico-pohti.ca; ou pode assumir-se uma
posição activa de criação de norma~ jurídicas e, através dela, de
transformação das condições políticas e sociais ( 1).
A atitude cognoscitiva é a adaptada pelos juristas no tempo das
Leis Fundamentais do Estado estamenta l e do Estado absoluto. Encon-

( ) Cfr., en~e nós, ANTONIO Joslt'BRANI ÃO, Sobre o conceito de Constituição


1

Política, Lisboa, 1944;:maxime plgs. 9S:e seg~ ;·MARCEU.O CAETANO, Direito Cons-
titucional, 1, Rio de Janeiro, l91l7, págs. 391 , segs.
Parte Il- Constituição 9

tra-se subjacente à Constituiçã~ britânica, com a sua carga consuetu-


dinária. Manifesta-se também, em larga medida, na Constituição dos
Estados Unidos.
A atitude voluntarista emerge com a Revolução francesa e está
presente em correntes filosófico-jurídicas e ideológicas bem contra-
ditórias. :0 jusraçionalismo, se pretende descobrir o Direito (e um
Direito válido' para todos os povos) com recurso à razão, não menos
encerra uma' intenção reconstrutiva: é uma nova organização colec-
tiva que visa estabelecer em substituição da ordem anterior. Por seu
turno, as correp.tes historicistas conservadoras, ao reagirem ·contra as
Constituições liberais revolucionárias, em nome da tradição, da legi-
timidade ou do espírito do .Povo, lutam por um regresso ou por uma
restauração só possíveis COJ? uma acção política directa e positiva
sobre o meio social. Mas é nas Constituições do século xx que uma
_atitude voluntarista se projecta mrus vincadamente, atingindo o ponto
máximo nas decisões revofucionádas, pós-revolucionárias ou con-
tra-revolucionárias apostadas no refazer de toda a ordem social ( 1).

1
( ) Para uma introdução histórica geral ao conceito de Constituição, v., entre
tantos, JaUNÉK, Allgemeine Stciatslehre (1900), trad. Teoria Gen.eral del Estado, Bue-
nos Aires, 1954, págs. 199 e segs.; SANTI ROMANO, Le prim~ t:arte costituzionali
(1907), in Scritti Minori, l, Milão, 1950, págs. 259 e segs.; MAUR!CE HAUR!OU, Pré-
eis de Droit Constirutionne~ 2.' ed., Paris, 1929, págs. 242 e segs.; CARl. ScHM!TT,
Veifassungslehre (1927), trad. Teoria de la Constintci6n, Madrid e México, 1934
e 1966, pãgs. 45 e segs.; CHARLES HÇJWARD Me lLWAIN, Constirutionalism Anciellf -..
and Modem, Nova Iorque, 1947; CARL J. FRlEOI!RJCH, Constitutional Govemment and
Democracy, trad. La Démocratie Constitutionelle, Paris, 1958, págs. 64 e segs.;
CARLO GH!SALBERTI, Costituzione (premessa storica), jn Enciclopedia del Diriuo, xr,
1962, págs. 136 e segs.; ~ARL LOEWENSTEIN,. VeifaÚungslehre (1959), trad. Teoria
de la Constituci6n, Barcelona, 1964, págs. 149 e segs.; GEORGES BURDI!AU, Traité
de Science Politique, 2.' ed., tV, Paris, 1969, págs. 21 e segs. e 45 e segs.; FRAN-
CISCO LUCAS PIRES, O problema da Constit~tição, Coimbra, 1970, págs. 27 e segs.;
PABLO LuCAS VERou, Curso de Derecho Politico, 11, Madrid, 1974, págs. 409 e segs.;
GRAHAM MADDOX, A Note on the Meaning of Constitution, in American Political
Science Review, 1982, págs. 805 e segs.; NELSON SALDANHA, Formação da Teoria
Constitucional, Rio de Janeiro, 1983; PAUL BASTID, L'ldée de Constitution, Paris, 1985,
págs. 9 e segs. e 39 e segs.; ROGÉRIO SOARES, O conceito ocidental de Constituição,
in Revist~ de Le&,islaçpo e de Jurisprud2ncia, ano 119.0 , 1986, 0. 0 3743, págs. 36
e segs., e n.0 · 3744, págs. 69 e segs.; ROBERTO NANIA, li valore della Costitttzione,
Milão, 1986, págs. 5 e segs.; OUVE!RA BARACHO, Teoria Geral do Constitucionalismo,
IÜ Ma11ual de {)ireito Constitucional
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IH - Porque a Constituição é Direito e Direito que tem por
objecto o Estado, não há teoria d~ Constituição cindível da cçncep-
ção de Direito e de Estado que se perfilhe.
São muito diferentes as preocupações e as linhas de força da
doutrina do constitucionalismo oitocentista e as da doutrina consti-
tucional dos séculos xx e XXl. Assim como são diversos os corolá-
rios (ou peculiares as contribuições) para a construção· dogmâtica
das grandes escolas do pensamento jurídico que, entretànto, se suce-
dem - desde o jusnaturalismo iluminista e o positivismo à escola hls-
tórica, a-o marxismo, ao decisionismo, ao institucionalismo, etc.
Não quer dizer isto, no entanto, que, ao nível da compreensão
imediata da experiência e da sua tradução co~ceitual não se depare
suficiente aproximação para se avançar, desqe já, no caminho das
noções básicas da Constituição e da formulação•.de grandes esquemas
clnssificatórios, bem como da sua aplicação ao Direito português actual.-

2. A perspectiva material e a persp(!ctiva formal sobre a


Constituição ' ·

I - Há duas perspectivas por que pode ser .considerada a Cons-



tituição: l:l.J:na perspectiva material - em que se atende ao seu objecto,
ao seu conteúdo ou à sua função; e uma perspectivafonnàl- em que
se atende à posição das. normas constitucionais em face das demais
nom1as jurídicas e ao modo como se articulam e se recortam no
plano sistemático do ordenamento jurídico.
A estas perspectivas vão cotTesponder diferentes sentidos, não iso-
lados, mas interdependentes.

in Resista de lllformação Legislativa, Julho-Setembro de \986, págs. 5 e segs.;


Kl.Aus STERN, Derecho dei &tado de la Republica Federal A/emana, trad. castelhana,
M~dtid, 1987 , págs. 181 e segs.; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Estado de
D~reiro e'. Constituição, São Paulo, 1988, págs. 70 e segs. e 83 e segs.; MARIO
DOOLIANI, lrtroduúone ai Diritto Costituzionale, Bolonha, 1994; MÁRCIO AUGUSTO
VASCONCELOS DINIZ, CollStituição e hermenêutica constiiwcional, Belo Horizonte,
1998, págs. 23 e segs. ; PAULO FERRElRA DA CUNHA, Teoria da Constituição, l, Lis-
boa, 2002, págs. 101 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 6:' ed., Coimbra, 2002. págs. 52 e segs. .

,.
.
P(lfle 1/ - Constiluiçiío ll

II - De uma r ~rspectiva material, a Constituição consiste no


estatuto jurídico do Estado ou, doutro prisma, no estatuto jurícUco
do político ( 1); com< la se estruturam o Estado e o Direito do Estado,
... 1\ Constituição c mesponde um poder constituinte material-como·
poder do Estado de s .! dotar de tal estatuto, como poder de auto-orga7
nização e auto-regu!.tção do Estado: E este poder é, por definição,
um poder originárit expressão da soberania do Estado na ordem
interna ou perante o seu próprio ordenamento.
Tendo em atenç :io, contudo, as variações históricas registadas,
pode falar-se em C01 stituíções em sentido institucional para designar
a Constituição antes das Revoluções norte-americana e francesa, as
do Antigo Regime, e em Constituição em sentidO material para desig-
nar as que surgiram Jepois: _Constituição em sentido institucional ali
.e~quanto reduzida à legitimação dos governantes; Constituição em
sentido material aqui porque de função alargada e de contelido orde-
nado de acordo com Jma vontaqe historicamente situada; simples ins- ·
. titucionalização do p >der ali, soqr~tu?~ 1.f~io~~lização do poder aqui.
- .
III - A perspe• -ti va formal vem a ser a de disposiçijo das nor-
mas constitucionais >u do seu sistema diante das demais normas ou
do ordenamento ju1i .iico em geral. A partir daí, chega-se à Consti-
tuição em sentido J.•rmal como complexo de nonnas . formalmente
_qualificadas de cons· itucionais e revestidas de força ju1idica superior
à de quaisquer outn s normas.
A esta perspect va corrcsponde, por seu turno, um poder cons-
tituinte formal com( faculqade do Estado de atribuir tal forma e tal
força jurídica a cert •S nonnas, como poder de erigir uma Constitui-
ção material em Co tStituição formal.
O conceito forn al pressupõe uma especificação de certas normas
no contexto da arde n jurídica; significa que a Constituição deve ser
entendida com um f ~stema normativo merecedor de relativa autono-
mia; acarreta uma c >nsideração ~ierárquica ou estruturada da ordem
jurídica, ainda quado dela se nJo retirem todas as consequências.-

1
( ) Cfr.• por exen pio, CASTANHEIRA NEVES, A Revolução e o Direito, Coim-
bra, 1976, pág. 229 .
12 Manual de Direito Corutltuci.mal
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Por vezes, nas normas formalmente con;titucionais, ocorre. uma


distinção: entre as que o são primariamente, directa e ímediat~ente .
obra daquele poder; e outras, anteriores ou ~ osteriores, pertencentes
ao mesmo ordenamento jurídico ou",porventura, provenientes de
outro orde,pa~ei).t.o,, .a~j~~~~~s q~s priméiras ~~'cebem também força
de normas constitucionais e que, por consegmnle, são por elas rece-
bidas nessa qualidade. E poder-se-á então falar em Constituição for-
mal primária e em Constituição formal complementar para descrever
a contraposição.

IV - Um último sentidei básico da Ccnstituição a propor é o


sentido instr;_mental: o documento onde ~:e inserem ou depositam
normas constitucionais diz-se Constituição e•n sentido instrumental.
Se bem que pudesse (ou possa) ser extensivo a normas de ori-
gem consuetudinária quando recolhidas por escrito, o conceito é
coevo das Constituições formais escritas. A reivindicação de que
haja uma Constituição escrita equivale, ante:; de mais, à reivindica-
ção de que as normas constitucionais se <:ontenham num texto ou
. .,
~
documento visível, com as inerentes vantagens de certeza e de pre-
venção de violações.
Cabe aqui, porém, fazer uma advertência. Por um lado, Cons-
tituição instrumental vem a ser todo e qualq~ter texto constitucional,
seja ele definido material ou formalmente, seja único ou plúrima.
Por outro lado, mais circunscritamente, por Constituição instrumen-
tal pode entender-se o texto denominado Constituição ou elaborado
j como Constituição,_ naturalmente carregado da força jurídica: espe-
I I
'I .; cífica da Constituição formal.
. I
f Q interesse maior desta análise verifica-:;e quando o t~xto cons-
titucional exibe e garante a Constituição primária em face de outros
•' • j
textos donde constem também normas formalmente constitucionais .
i
. 3.. A Constituição (em sentido institucional) anterior ao cons-
titucionalismo ': "1 •..

I - Em qualquetEStà~o. e~·qu~q~~l: 6po~a e lugar (repetimos),


encontra-se . ,·:npr;: um conjunto de regras f mdamentais, respeitan-
tes à sua es :: ··' Lura. à su:i organização e :. , u 1 actividade - escritas
Partt. ll- Constituição 13

ou não escritas1 em maior ou· menor núq1ero, mais ou men'os simples


.
, ou complexas, Enco.ntra-s·e sempre u,ma Constituiçã.o como. expres-
e
são jüfídica do ~lace entre pode~ comunidade pólítica ou entre
sujeitos e desti;riatári,Qs .!lo poder. ·· . _
Todo o EStado~careêe de uma Constituição como enquadra·mento
da sua existência,· base e. sinal da sua unidade, esteio de .l~gitimi­
o
dade ·e de legalidade. Como surja e que estatua, qual o apura-
menta dos seus preceitos ou as direcçõés para que apontem- eis o
que, como se sa~;·~'aria extraordinariamente; mas, sejam quais forem
· aS grandes &oluçõ~ adaptadas, a necessiçiade de tais regras é incon-
troversa.
Chamamos-lhe Constituição em sentido institucional, porque
torna patente o Estado como. instituição. como àlgo de permanente
para lá das circunstâncias e dos detentores em concreto do poder; por-
que revela a prevalência dos elementos objectivos ou objectivados das
relações políticas sobre as intenções subJectivas destes ou daqueles
governantes O'Q governados; porque, sem ·prinCípios e preceitos ·nOl'-
mativos a regê-lo, o Estado não poderia subsistir; porque, em suma, . .
é através desses· princípios e preceitos que se opera a irhtítucionali~ ',
zação do poder político. :1,..

II- Se a Constituição assim considerada se antolha de,alcance


universal, independentemente do conteúdo com que seja preencl)ida,
o entendimento doutrinai sobre ela e a própria consciência quç. delq.
se forme têm de ser apreendidos historicamente. Os políticos e juris-
tas da Antiguidade não a contemplaram ou não a: contemplaram em
termos comparáveis aos do Estado moderno (1), passo que dela se ao .···
aproxima a concepção das .«Leis F~.rid?Jllentaís» da Europa cristã (2).
Na Gréciá, por exemplo, embora A~STÓTELES proceda ao estudo

(I) v., porém, C!CERO, De 'legibus, i livro m (trad. portuguesa Das leis, Silo
Paulo, 1967, pág. 95.); «A missão. dos ~agistrados consiste em governar segundo
6Jti..l
decretos justos, é con{orÍni:s àS .leis. Pois, assim COTT;lO as leis governam o magis-
trado, do mesmo modo os'm!igistrados governam o povo; e, com razão, pode dizer-se
que o magistrado 6 uma lei falada ou que a .lei é um magistrado mudo».
, (2) Sobre a ideia de Constituição na Idade Média, v. PAUL BASTID, op. cit.,
'págs. 49 e segs.
' :1

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' '•
14 Mmwol d< o;,;, C•""'~;oool
- - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - 'hT--
\

das Constituições de diferentes Cidades-Estados, não avulta o senúdo


nom1ativo de ordeni de liberdade. As Constituições não se destri~­
çam dos sistemas políticos e sociais (1). Sem deixar de se afirmar q~~
o nomos de cada Estado (2) deve orientar-se para um fim ético, a
Constit~ição é pensada como um sistema organizatório que se impõe
quer a governantes quer a governados e que se destina não tanto a ser-
vir de fundamento do poder~quanto a assinalar a identidade da comu-
nidade política (3).
Já no Estado est.amental e no Estado absoluto está presente a ideia
de um Direito do Estado, a ideia de normas jurídicas..superiores à von-
tade elos príncipes; e, ainda quando se tenta, na fase final do abso-
lutismo, enaltecer o poder monárquico, reconhece.se a, inelutabili-
dade de ccLeis Fundamentais», a que os reis devem obediência é q\le
. não podem modificar. A estas «Leis FundainentaiS>> cabe estabele-
cer a unidade da soberania e da religião do Estado, regular a forma
de governo e a sucessão no trono, dispor sobre as garantias das ins-
tituições e dos grupos sociais e sobre os seus modos de represen-
tação (4).
No caso português (5), tais seriam as nonnas relativas à suces-
' .
são do reino, à natureza e constituição, fins e priVilégios das orderis,
à natureza e representação das Cortes; ao estabelecinlento das leis e
ordenações gerais, à imposição de tributos, à alienação de bens da
Coroa, à cunhagem e alteração da moeda, à feitura da guerra. E, ou
se creia ou não no ajuntamento das velhas cortes de Lamego a que

(I) V. a desc.rição das Constituições ou formas de governo puras (realeza,


adstocracia e república) no livro 111 da Polftica.
(2) Cfr. WERNER JAEGER. Alabanza de la Ley, trad., Madrid, 1982, pág. ;36.
( 3) Cfr. EMtL.IO CROSA, 11 conceito de Costituzione nell'Antichittà Classica e
la sua modemità, in Studi di Diritto Costituzionale in Memoria di Luigi Rossi, obra
colectiva, Milão, 1952, págs. 99 e segs.
{ 4 ) Cfr. CABRAL DE MONli:ADA, As ideias políticas depois da refonna: Jean
Bodin, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. xxm,
1947, págs. 51-52; JEAN BARBEY, Gén~se et consécution des L.ois Fondamentales, in
Droil- Revue française de théorie juridique, 1986, págs. 75 e segs.; PAULO FER-
REIRA DA CUNHA, Teoria ... , 11 cil., págs. 343 e segs.
( 5 ) V. a recolha de LoPES PRAÇA, Colecção de leis e subsídios para o estu'do
do Direito Constitucional Português, Coimbra, 1983, vol. I. ·
Pane 11 - Constituição • ).'i

a versão seiscentist; atribui as leis de sucessão definidas como a


verdadeira lei de in.dtuiçilo do reino - bem certo é que a leis tais
Çomõ essas se refer a João das .Regras quando, na oração famosa
nas cortes de Cciimb a, arengou pelo Mestre de Aviz ( 1). Tratava-se
~obretudo de disposi. ões relativas à instituição da Coroa e que nada
praticamente estabeh ciam sobre os direitos e deveres recíprocos do
rei e dos súbditos (2:

4. A Constitui :ão (em sentido material) do constituciona-


lismo libera

I -As «Leis Fl•ldamenLais» não regulavam senã~ muito espar-


samente a actividade: dos governantes e não traçavam com rigor as
suas relações com o~ governados; eram difusas e vagas; vindas de
longe, assentavam n• • costume e não estavam Ol\ poucas estavam
documentadns por esc 'ito; apareciam· como uma ordem susceptível de
~ter moldada à medid; da ~voh1çiio das sociedades (3). - Não admira,
por isso, que ~e r.eve assem inàd!'ptadas. 9.u insup011áveis ao ilumi-
nismo, ou que este [s desejasse reconverter (4 ), e que as queixas

1
( ) MAGALHÃES Co AÇO, Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis no
Direito português, Coimbr•, 1915, pág. 6. Sobre a evolução dns leis fundarnentnis
desde a Restauração, v. p~ ~s. 1Oe segs.
1
' ( ) MARCEI.L.O CAET NO. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional
6.' ed., 11, Lisboa, 1972, p .g. 410. Sobre as tentativas de Constituição escrita no;
séculos x1v-xv. cfr. Histór 1 do Direito Português, Lisboa, 1981, págs. 455 e segs.;
ou AATÓNIO MANUEL HESP. NHA, História das Instituições, Coimbra, 1982, págs. 313
C ~egs. V. ainda MANUEl FILIPE MORÁIS CANAVEIRA, Testemunhos estl'angeiros
sobre as leis tradicionais d' monarqui11 portuguesa (séculos XVI e XVII), in Constitul-
çOes da Europa - Cong . •?sso, obra colectiva, Lisboa, 1992 .. págs. 107 e segs.
3
' . ( ) Escrevia a ...RRE'l . (P011Uga/ na balança da Europa, na edição de Livros
Ho~zonle, ~~s?oa, 1970, p: g. 207): «Fun~a ... em sólidos e naturais princípios, a
antiga ConstlluJção de Portural pecava na forma; já porque dispersa em várias leis escri·
tas, em costumes e em usan( •s tradicionais, càrecia de regulruidade e nexo de hBLmonia·
já.porq~e. destiruída de gar ntias e remédios legítimos para os casos de infracção d~
!Cl pos1t1va ou aberração d • seu espírito, forçosamente corria o perigo de ser mal
conhecida e esquecida pela Nação, desprezada ponanto e infringida pelo Governo»,
4
( ) Cfr. ZfLIA OsóRit DE CASTRO, Constitucionalismo vintista - Anleceden·
tese pressupostos. Lisboa, 1986. págs. 8 e segs.
16 Manual de Direito Consti·u :ional
I. ------------~---
I

acerca do seu desconhecimento e do seu d·~sprezo - fonnuladas na


Declaração de 1789 ou ~o preâmbulo da nos~ a Constituição de 1822.-
servissem)l.PeJ!~S . P.~~t11s~s~eg~,.esp~~~s 'j:~1etbs p~tante as revo-
luções liberais e ·pàta~:cnticar f>S excessos 'lo absolutismo. .
.
Diferentemente, o constitucionalismo tende a disciplinar toda a
actividade dos govemantes e todas as sua; relações com os gover-
nados; pretende subme~er à lei todas as manifestações da sooerania
~ aí consignar os direitos dos cidadãos (1); declara uma vontade aut6-
noma de recriação da ordem jurídica (2). i~ão admira, por isso, que
entre as Leis Funda~entais do Reino e r. Constituição, apesar de
não haver diferença de natureza (enquan1o umas e outras confor-
mam juridicamente Q ·político), se prod1~;·.a uma ruptura histórica.
Não admira que apenas nesta altura se comece a dilucidar, no ,plano .
científico, o conceito da Constituição.
. :tylais do que o objecto das normas constítucionais são a sua exten-_
são e a sua intenção que agora se re~çam. Se a Constituição em sen-
tido material abrange aquilo que sempre tinha cabido na Constituição
em sentido institucional, vai muito para além disso:. pretende abarcar todo·
o âmbito do Estado, cingindo o poder políti.:o. a nonnas tão precisas e
tão minuciosas como aquelas que versam sc•bre quaisquer outras insti-
tuições ou entidades; ·e o que avulta é a adequação de meios com vista
a ess.e fim, à luz das coordenadas racionaliíadoras do regime.

II- O constitucionalismo -que não pode ser compreendido


senão integrado com as gran4es correntes filosóficas, ideoló~cas e

(1) A exigência de uma Constituição no sentido de uma ordenação e unidade


planificadas do Estado só se pode compreender em oposição ao tradicional e, neste
sentido, irracional estatuto de poder dos grupos políticos da Idade Média {H. HEL-
LER, Staatsleltre (1934), trad. portuguesa Teoria do E:s;ado, São Paulo, 1968; pág. 139].
(2) A Constituição aparece nl!o já como um resultado, mas como utn ponto de
partidá; já não é descritiva, mas criadora; a.sua raz5o<de·ser•não se encontra na sua
vetustez, mas no seuist'gnifieado'jurfd..o; a:sua•força obrigatória decorre não do fata-
lismo histérico, mas da regra' de di~to que exprirn·!. Enquanto que a Constituição
natUral visa exclusivamente as modalidades de exercício do Poder, a Constituição ins-
tituélonal atende à definição do próprio Poder ante:. de determina r as condições da
sua efectivação (GEORGES BU!tDEAU, op. cit., IV, pâgs. 23-24, que emprega a expres-
são «Constituição institucional» aí onde falamos em «Constituição material»).
Parte 1/ - Constituição 17

sociais dos séculos xvm e· XIX - traduz exactamente certa ideia de


Direito. , a ideia
. de Direito liberal. A Cohstitui~ão em sentido
. mate-
' rial nãe· despop.~ corP,o pura regulamentação jurídic'a do Estado; é a
i regulamentaçãó' dçfEstãâo conforme os princípios proclamados nos
grandes textos. revolucionários. · ·
, , O ;Estadq ~9 é Estado constitucional, só é Estado racionalmente
constituído, para os ,,doutrinários e políticos do constitucionalismo
'~iberal, desde que os,indivíduos ·usufruam de liberdade, seguran9a e
propriedade e desde que o pod~r esteja distribuído por diversos
órgãos. ,Ou, relendo o art. 16.0 da Declaração de 1789: «Qualquer
'sociedade em que· não esteja assegurada· a garantia dos direitos,
nem f!Stabelecida a separação dos poderes não tem Constituição>>.
Em .vez.!fe os indivíduo~ e~tarem :à mercê do soberano, eles
agora possuem direitos contra ele, imprescritíveis e invioláveis. Em
vez de um órgão único, o Rei, passa a. haver outrós órgãos, tais
como Assembleia ou Parlamento, Ministros e Tribunais independen-
tes -para que, como preconiza MONTESQUIEU, o po4~r limite o
poder._ Dâí a necessidade duma Constituição desenvolvida e torn,plexa:
. pois quando o poder é mero atributo do Rei e os indivíduos ,não são
•cidadãos, mas sim súbditos, não há grande necessidade de estabele-
cer em ponnenor regras do poder; mas, quando o poder é decomposto
em várias funções apelidadas de poderes do Estado, então ·é mister
estabelecer certas regras para dizer quais são os órgãos a. q~e com-
petem essas funções, quais são as relações entre esses órgãos, qual o
. regime dos titulares dos órgãos, etc. · ·
A ideia de Constituição é de uma garantia ·e, ainda mais; de
uma direcção da garàntia. Para o constitucionalismo', o fim está na
protecção que se conquista em f~vor dos tndivíduos, dos homens e
l · cidadã?s, e a Constitl.)ição não passa de um meio para o.. atingir.
i
O Estado constitucional.é o que entrega à Constituição o. prosseguir
i a salvaguarda da liberdade e. dos direitos dos cidadãos, deposit~do
l · as virtualidades.1de melhoramento .na obsenrãncia dos seus· precei-

I i
tos, por ela sét.~ prifuei(à garantia:desses direitos (1). ·· · · ·

l 1
.( )
. pág. 32.
Nosso Contribui~ para uma teoria da inconstirucionalid~e, Lisboa, 1968,
'1:
2 - Manu•l de Dlrelio ConÍtllucionol, 11

1., . -· ..
{
.3
18 Manual de Direiw Constitucional

Mas o constitucionalismo liberal tem ainda de buscar uma leijiti-


midade que se contraponha à antiga legitimidade monárquica; e el~ só
P.Ode ser democrática, mesmo quando na prática e nas próprias 1bis
constitucionais daí se não deduzam todos os corolários. A Constit1Ú-
Ção é então é\ auto-organização de um povo (de uma nação, na ar p-·
~ão revolucionária da palavra), o acto pelo qual um povo se obri~a e
obriga~:.os seus representantes, o acto mais elev!ldó de- exercício da
~oberania . (nacional ou popular, consoante a concepção que se perlü e).

Ilustram esta concepção de um. poder constituinte (dernocrãticor 1)


que se afirma superior aos. poderes constituidos duas das obras mals infl -·
tes do século xvm, o Fedfralist e o Qu'est-ce que le tiers-état?
. Escreve HAMILTON no primeiro: «Nenhum acto legislativo contrári(l à
Constituição pode ser válido. Negar isto seria como que sustentar que o pro-
curador é maior que o mandante, que os representiiDtes do povo slci supe-
rior~s a esse mesmo povo, que aqueles que agem.,. em virmde de poderes ooh-
cedldo~ podem fazer nio só o que '? que eles aufOrizam mas também aquilo
que proíbem. O corpo legislativo não é o juiz constitucional das suas ani-
buições. Torna-se mais razoável admitir os tribunais como elementos co\Çl-
cndos entre o povo e o corpo legislativo, a fim de manterem este dentrd d0s
limites do seu poder. Portanto, a verificar-se um~·in!Wnciliável divcrgEncia
entre a Constituição e uma lei deliberada pelo lkgtó'Jegislativo, entre uma
lei superior e .uma lei inferior, tem de prevalecer a êonstituição» (2). ·
Por seu lado, Suam referindo-se às leis constitucionais, diz que elis
são fundamemais, não porque possam tomar-se independentes da vontade
nacional, mas porque os corpos que existem e actuam com base nelas não
as podem afectar. «A Constituição não é obra do poder constituído, mas sim
do poder constituinte. Nenhum poder delegado pode alterar as condições da
sua delegação» (3).

~II - L~yada às tlltimas consequências, e.Sta concepção equi-


valena a cons1derar a Constituição .não apenas como limite mas tam-

( 1) Com antecedentes em LOCKE e em RousSEAU.


~ ) The Federalist Papers (1787); na trad. portuguesa O Federalista, Brasí-
2

ha, 198~, págs. 577-578.
(l~- Qu 'est-ce que le tiers-état? (1789), na edição crítica de Robert~ Zapperi,
Genebra, 1970, págs. 180-181.

-L--····· ...
Parte lf - Constituição 19

l?ém como fundamen!O do poder público, e não apenas como funda-


. mento do poder mas também como fundamento da ordem jurídica.
Porque é a Constitui . ão que estabelece os poderes do Estado e que
iegula a formação d.ts nonnas jurídicas estatais, todos os actos e
normas do Estado tê·n de estar em relação positiva com as normas
constitucionais, para :>atticiparem também eles da sua legitimidade;
têm de ser conforme com estas nonnas para serem válidos.
No entanto, a idt ;a de Constituição como font~ originária, em ter-
mos lógico-jurídicos do ordenamento estadual, como fundamento
de validade das dema ~normas jurídicas(') e como repositório de nor-
mas directamente in' ceáveis pelos cidadãos, não surgiu logo ou da
as
··mesma maneira· em ::mbas margens cio Atlã1_1tico. Uma coisa é a t
· yerificação a poster·ori que a çloutrina possa fazer, outra coisa o r
processo histórico d( formação ou de conscientização dos imperati-
vos normativos e d.1s correspondentes instrumentos conceituais.
Nos Estados Un~dos, até porque a Constituição de 1787 foi acto I

fundad.or da União, r 1uito cedo se apercebeu que ela era também, por 'I
I.
isso mesmo, ·a norrr .\ fund.amentadora de todo o. sistema jurídico.
Daí o passo acabadt. de citar d~ HAMILTON (assim como, ·de certo
modo, o art. Vl, n. 0 ~- qua.là:ficaniio-a de -~Djr~to sup~~mo do PaíS»);
e daí o corolário re,t,il :l.do, .a.. partir de 1803; pelo Supremo Tribunal de
pma faculdade de ar.reciação da constitucionalidade das leis.
Já na Europa (• nde as vicissituq~s polí~icas e constilucionais, :
viriam a ser muito l!ienos lineares e mais complexas que nos Esta-
dos Unidos) o cami: ho para o reconhecimento de um verdadeiro e ~.
pleno primado da O·nstituição foi mais longo, por duas _razões prin·
~ipais: 1. ) porque, t.-ndo em conta o absohitisrho precedente, toda a
0

~
.~·
i
i,
preocupação se rep:1rtava à reestruturação do poder político (em
'•
:Cspecial, do poder d • Rei); 2. 0 ) e porque não se quis ou não se pôde ~
instituir senão no se ·.:ulo xx formas de fiscalização jurisdicional da
constitucionalidade 1). ..
1
( ) Como Constilu ;ão em sentido g~nético, enquanto conjunto das notmas cuja
validade (ou cuja eficác-;:) se não fundamenta em nenhuma outra do mesmo orde-
namento (MtGUEL GALV ·o' TELES, Consrituição, in Verbo, v, págs. 1499 e 1500). i·'
(2) Cfr., entre tant ·S, GARCIA DE ENTERIÚA, La Constitución como nonna )' el
1hbunal Constiwciona/, 'Vladrid, 1981, págs. SOl e segs.; lGNACIO DE OTro, Dere-
20 Manual de Direito Constitu.:i<'nal
--~------------

5. A Constituição em sentido q~atedahno século XX


,., • >:. 1,;;/,t.i j. .;.l ., .. ' •.. . .
I- ~.2.. século XX a Constituição em sentido material sofre duas
vicissitudes decisivas: generaliza-se, unj,y~t]~liza-~~; e, ~imultanea­
mente, perde a sua referência (ou referência necessária) a um cônteúdo
liberal ( 1). ·
Por um lado, todos ps regimes a adaptam, desde aqueles que, de
·uma maneira ou de outra, mántêm. Constitdções vindas de época
anterior e os que consagram .evolutivamente exigências sociais
(o Estado social de Direito) até aos que pretendem instaurar-se de
novo .(o Estado marxista-leninista, o fascista e fascizante,· o de fun-
damenWismo islâmico) (2). E, do mesmo modo, todos os Estados que
vão acedendo à comunidade internacional se dotam de Constituições
como verdadeiros símbolos de soberania.
Deixa de se considerar como p·adrões fundamentais da vida'
colectiva as liberdades individuais e a separação de poderes para,
ou acrescentar-lhes direitos econ6micos, sociais e culturais (o Estado
social de Direito), ou para acolher diferente.s sentidos da pessoa
humana e do povo e diferentes tarefas do poder político (o Estado · '·
marxista-leninista, o fascista .e fascizante <: o de fundamentalismo .
...,j.slâmico). Mas, por toda a parte, persiste ou triunfa o desígnio de ~ma
estruturação racionalizada e exaustiva do estnuto. do Estado, a vón- .

cho Constitucional - Sistema de Fuentes, Barcelona. :987, ·pâgs. 17 e segs. e 37;


RAINER. WAHL, O primado da Constituição, in Revista da Ordem dos Advogados,
1987, págs. 66 e segs.; nosso Manual ... , VI, Coiml.>r1, 2001, págs. 100 e segs.
( 1) Cfr., entre tantos, GEoRGES BUR.DEAU, Une swvivance: la notion de Cons-
titution, in L'évolution du droit public- Érudes en l'honneur d'Achille Mestre
tI
. I obra colectiva, Paris, 1956, pá~s. 59 e 60; KARL LoEWENSTEIN, op. cit., págs, 213
e segs. e 224 e segs.; Roo~R.IO SOARES, Direito Público ~ Sociedade Técnica, Coim-
bra, 1969; FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit,, pág~. 5.3 c.segs.; 6EORGES BúR.DEAU,
,. Traité ... , VI!, VIU e IX, 2.' ·~d ..,.;~l!riS, 197~; 191.~.e 197C.; MANUEL GARCIA PELAYO,'
Las transformacionu d~VMstada Contiínporaneo, Madrid, 1977; PABLO LUCAS
VERDú, La Constitución en la crucijada, in Estado e Direito, tv, n.• 14, 2.• semes-
~ d~ 1994, págs. 7 e segs.; PEDRO DE VEOA, lA crisis de/ concepto político de Cons·
tttuctón en el Estado social, in Liber Amicorum FJX Zomudlo, obra colectiva, S. José
da Costa Rica, 1998, págs. 593 e segs.; PAULO BONAVIt ES, Curso de Direito Cons·
titucional, 12.' ec' . São Paulo. 2002, ?ágs. 205 e seg:.. .
( ) Cfr. :\-'•• •:ual..., I, cit., pág~ 94 e segs.
2
.
l


~ i,
'
Parte li - Constituição 21

t3;de de fazer da.Constitujção. uma r~presentação de como deve ser o


poder· e a contú~idll:&· poiítica. ·
II-:- A diferença e até o contraste de conteúdos, sobrétudo ideo-
ló~i~os, das Consti~ições permite, e recomenda mesmo, algumas
classificaçõeS. . > , · .
:· Uma das .mais representativas é a ·alvitrada por KARL LoEWENS·
TEm (I) e que toma por critério «a anãlise ontológic.a da concordân·
cia·das normas constitucionais com a realidade do processo do poder»
,e por ponto de apoio a tese de que uma Constituição é o que os
detentores do poder dela fazem na prátiCa. - o que, por seu termo,
depende, em larga medida, do meio soc~al e político em que a Cons-
ti~u_lção deve ser aplicada. ·
S~guip.qo .~t~ critério, há Constituições nonnativas, nominais e
sem&ticas_. ~ primeiras são aquelas cujas normas dorni~ o pro- ·
~so.po~nco: aquelas em que o ~tocesso do. poder se adapta.às normas
constituc10mus e se lhes submete. As segundas são aquelas que não
conseg~em adaptar as suas normas à dinâmica do processo político, pelo
~ue ficam sem ~dade existencial. As terceiras são aquelas cuja rea-
~dade ?ntol6gica não é ~enão a f~rmalização da situação do poder polí~
tico eXIstente em benefícto exclustvo dos detentores de facto desse poder.
· Ao passo que as Con&ti~ções normativas limitam efectivamente o pOder
político e as Constituições nominais, embora o não limitem -ainda têm
essa finalidade, as Constituições semânticas apenas ~ervem ;ara
estabi-
lizar e eternizar a intervenção dos dominadores de fadto na comunidade.
Poderâ, não sem razão, observar-se que a taxonomia constitücio-
nal de LOEWENSTEIN é elaborada em face de uma Constituição ideal,
e não. da imbricação dialéctica Constituição-realidade constitucional, pelo
que acaba por ser uma classificação axiológica ligada à concordância
entre Constit;uição normativa e democracia constitucional ocidental (2).

( 1) Op. cit., pâgs. 216 e s~;gs. ; e, antek, ·Reflections on the Value of Constitu·
tiom in Our Revolutionary Age, in Comtitutions and Consritutional Trender after
World War; obra colectiva, 11, Nova Iorque, 1951, págs. 191 e segs.
(2) GoMES CANOTIL!iÇ>. Direito Constitucional, I, 2.' ed., 1980, págs. 96-97.
Cfr., em linha próxima, !IENC VA.N MAARSEVE~ e GER VAN DER TANG, Written
Constitutions - A Computerized Comparative Study, Nova Iorque e Alphen aan
?en Rijn, 1978, pág. f-61.
.
..
l•
I

i·,.
'I
I
22 Manual dé Direito Constitucional

Mas, não sem menos razão, poderá igualmente observar-se que ~a


vem pôr em relevo as diferentes funções· da Constituição por refer~n­
cia àquilo que foi o modelo inicial da Constituição material mo~a
- a Constituição limitativa e garantista liberal; ·~sim como vem, pbr
outro lado, ajudar a captar os diversos graus de ef~tividade de no~
e institutos pertencentes a detenninada Constituição.
Independentemente dos· juízos de valor a fo)"IIlular sobre a rêa-
lidade.'política e independentemente das funçõ~ que se reconheça
exercerem, duma maneira ou doutra, todas as Constituições, é in;e- ~
cusável que Constituições existem que se revelam fundamento (~m
concreto) da autoridade dos governantes e que outras se revelam,
sobretudo, instrumentQ. de que eles se munem para a s~a acç·~o;
Constituições que cons~gnam direitos e liberq~des fundamentais
perante ou contra o poder e Constituições que os funcionalizam ~os
objectivos do poder; Constituições que valem ou se impõem por si
só e Constituições meramente .simbólicas (1). .

·. m - De certa sorte, como contrapont\.à v~rizáção ou sobre-


valorização que, assim, se faz do factor juiídico-político têm sido
propostas classificações inspiradas num· critério diferente, o ~tQr
económi.so. Q§_grandes sistemas· econó~co.s exibir-se-iam em outros.
:ta,ntos tipos de Constituições. ill . ·· .• •. ,-
Segundo uma dessas tipologias, h:veria Cll'hstituições de Esta-
dos capital~stas, socialistas e_çlo Terceiro-Mundo e as Constituições
dos Estados capitalistas subdividir-se-iam ainda em ConstituiÇões
liberais, ·social-democratas (ou do Estado social) e, com contornos
menos definidos, autoritário-fascistas e compromissórias (2). ·

( 1) V. MARCELO NEVES, A constitucionalizaçao simbólica, São Paulo, i'994,


maxime págs. 83 e segs., onde se referem três tipos: constitucionaliiação desti-
nada à co1Toboração de valores sociais, fórmula de compromisso dilatório e Cons-
tituição álibi. Sobre as relações com o quadro de LOEWENSTEIN, cfr. págs. 95
e segs.
(2) GOMES CANOTU.HO, Direito Constitucional, l, 2.' ed., cit., págs. 114 e segs.
(na 4.' ed., 1986, págs. 72 e segs., este Autor aponta, porém, três modelos de c;ons-
tituição -- do Estado de Direito liberal, do Estado de Direito social e do Estado socia-
lista). ~~fr., sobre as interpretações liberal e socialista do conceito de Constituição, por
'\.
i
Parte I! - Constituição 23 t I
'I
. Não .se põe em c..usa a importância da Constituição económica. ..'·t
Pérque a economia é uma. das dimensões da sociedade e porque o !
poder..político não lht pode ser estranho, não há Constituiçlo que, ·!
explícita ou implícita nente, directa ou indirectamente, deixe de a
cqnsiderar, seja para <.>nservar, seja para transformar os seus condi-
cionalismos ou a sua ógica própria (1).
: Não significa istc, porém, que possa alçar-se este c1itério a cri-
tério classificatório dec isivo. O Direito pertence a uma esfera distinta
~, da da economia, ainda que sofra o seu influxo; e não se exaure nu~
m~a dualidade de siHemas económicos. Em segundo lugar, para
a: do funcionamento .·fecti VO dos sistemas económicos, há Consti-
tuições nas quais cab :m ou po.dem caber soluções muito variadas
"7' nomeadamente, a: Constituições do Estado social de Direito
põdem englobar difere :1tes visões' ou concretizações de capitalismo e
de socialismo ou de s stemas mistos.

IV - Dicotomia muito corrente e que visa abarcar um ciclo


longo ou diversos·cici:)S. de conteúdos constitucionais é a col')trapo-
sição Constítuiç9es es atutárias-Constituições doutrinais. ·
~onstituições estai !!árias ou orgcmicas dizem-se as que ·se ocupam
dó estatuto do poder, los seus órgãos e qa, participação política dos
cidadãos; as que .se cen ram na fomta e rib ~stem~ de go\temo, sem (na
·ap.atência, pelo menos) curateln do sistema ~onómico e social. Cons-
~içÕ!!$ doutrinais são as que, mais do que da organização política, cui-
dam da vida económi• a, social e cultural, dizendo-se programáticas
ou directivas quando f xam· objectivos ou metas a alcançar.
Próxima desta di: tinção, mas sem se confundir com ela e sem
ser seu pressuposto é a que contrapõe co~cepções meramente pro-
cessuais da Constituiç io e concepções substantivas - as primeiras

exemplo, DOMENJCO FARIA . ldealilà e ind~tenninateu.a dei princ1jJi costituziorudi


Milão, 198 I, págs. I23 e S• gs. e 127 e segs. '
1
( ) Cfr., entre tantos, VITAL MoRErRA; Economia e Constituição, 2.' ed., Coim-
b~a, 1979; págs. 19 e seg~ ; JORGE MIRANDA, Direito da Economia, policopiado,
Lisboa, I :182-83, págs. 59 e segs.; ou MIGUEL HERRERO DE MINON, La ConstiiU·
ción economica: desde la ambigiiedad a la integración, in Revista Espaiiola de
Derecho Constitucional, 1~ 99, págs. 11 e segs. ·

..
:J
·24 Manual de Direito Constituc ;onal
~--------~~--
.• 1

I t -: ~· .. .
~. '

tomandO:àomo-Gbjectb'cdas notlfias a regular sucessão dos governan-


tes e das formas de exercício do poder e as segundas apontando,
pelo contrário ou para além disso, para opções de fundo so~. a
concreta estrutura do Estado e da socieáa:!e (1).
Mas estas contraposições devem ser apreendidas mitigadamente,
visto que: 1.0 ) elas não coincidem com·a distinção entre Constituição polí-
tica e Constituição social (2);. 2.") se a decisão política ou o factor ideo-
lógico tr~sparece màis ·fortemente nas Constituições doutrinais do que
nas Constituições estatutárias, não deixa de (Star nestas presenttf::.._ a
escolha entre uma ou outra forma de organiz1ção ou de procedimento
indiciam, de per si, opções de fundo; 3".") tão-pouco existem Constitui-
·Ções neutras- o que existem são Consti.tuiçiies que, por consagrarem
este ou aquele direito, esta ou aquela incumbêacia do Estado ou esta ou
aquela forma de organização, são ou não pluralistas, enquanto admi~m
ou não a coexistência dinâmica de todos os ~pos e ideologias, com
. ; a virtualidade de as modificarem paciticarnet ,te .
Na realidade, qualquer Constituição ence;:ra elementos orgânicos e
. doutrinais. Tudo está no grau em que aparece1 n, no modo como se con-
jugam, na efectividade que ()btêm, no senti.dc, que a jurisprudência..e-a
doutrina lhes conferem. E não sofre dúvida de que as Constituições libe-
rais são preferentemente estatutárias ou orgdnicas, de que as Consti-
tuições marxistas-leninistas (assim cori1o muitas das Constituições de regi-
mes autoritários doutra fudole) preferentemente programáticas e directivas
e de que as Constituições do Estado social de Direito Constituições
procuram um equilfbrio sistemático entre uns e outros elementos.

V - Classificação ainda relativa ao conkúdo é a das Constituições


em simples e complexas ou compromissórias. Aqui não se tem em vista
tanto a natureza das normas
'
.
I ; '. '~.~ •'.
.
quanto a \lnjdade qu pluralidade dos princí-

( 1) Cfr., por todos, WILLIS SANTIAGO GUERkll FILHO, A ConstituiÇão como·


processo, in Ensaios de Teoria Constitucional, Fortale7.<:, 1989, págs. 7 e segs., e Anto-
poitse do Direito na Sociedade Pós-Moderna, Portll >\legre, 1997, págs. 30 e segs.
(2) E também não coincide com a distinção u:.ual no âmbito circunscrito da
Constituição económica entre Constiruição eslatutária (estatuto do sistema económico)
e directiva ot.: progrcmática (directrizes de transformaçãq económica): v. VrrAL
MOREIRA, op. cit., p.gs. 1?-6 e ;~ ~s., ou Luis S. CABRAL DE MaNCADA, Direito
Económico, 2." cd., Coimbra. 19 8~ págs. 82 e seg~ . ··'
Parte 11 - ConstituiÇão 25

•'
pios materiais ~ d~:Prulbípios fundamentais enfoimadores da Constituição
material. E Cortstituições compromi~s6rias vão desde as da: monarquia
constitucional do século XIX a Weimar, desde a Constituição portuguesa
de 1933 à maior pat.l:e das Leis Fundamentais do 2.~ após-guerra (1).
· . Em .inteiro rigàr,' todavia, nenhuma Constituição é absolutamente
.simples; todas contém dois .ou mais princípios que a priori dir~se-ão
ou não compagináveis. · O carácter simples ou compromissório de uma
Constituição depende dos circunstancialismos da su'~ formação, da sua
' .aplic~ção e das suas vicissitudes; depe'hde da ausência ou da pre-
sença'-:- não em abstracto para os juristas, mas em concreto para os
sujeitos do contraditório poaítico e pata .os· cidadãos em geral - de
um confli~o de fundamentos de legitimidade ou de projectos .de orga-
nização colectiva que as normas constitucionais tenham ~e ultrapas-
sar, através de uma plataforma.de entendimento; depende do modo
como é encarada a integração ·política. ·
De igual sorte, nenhuma Constituição compromissória consiste
num aglomerado de princípios sem virtualidade de harmonização
prática a cargo· da hermenêutica jurídica e sem base dinâmica de
funcionamento das institl,lições; em qualquer Constituição os princí-
pios dispqem-se oU' articulam-se segundo certa orientação e, · pelo
• menos, a nível de legitimidade há-de haver semp~e (aguando da for-
mação ou em momento ulterior de modificação, 'expressa ou táCita)
um princípio que prevaleça sobre outros. As Cdnstituições compro-
missórias permitem a coexixtência de ideias e correntes antag6ni-
cas,·mas só podem subsistir se os protagonistas institucionais aceitam
um determinado fio condutor do processo político (seja o princípio

(1) Cfr., de Angulos diferentes, CARL SCiiMm, op. cit., págs. 33 e segs.; PAOLO
BARILE, LA Cost.iJuzion~: co111e nontla giuridica, Florença, 1951, págs. 40-41 e 58
e segs.; C. J. FRIEDRICH, op. Cit., págs. 85-86~ COSTANTINO MORTATI, Costituzione, in
Scritti, Milão, IÍ, 1972, pág. 72; GOMES CANonLHÓ, Constituição dirigente e vin-
culação do legislador. Coimbra, 1982, págs. 141 e segs.; PAULO BONAVIDES, PoUrica
e Constituição, Rio de i-;neiro, 1985, pág.: 130; JORGE VANOSSJ, El Estado de Dere-
cho en el constitucionaú:rr,no social, Buenos Aires, 1987, págs. 48-49; FRANCISCO
LUCAS PIRES, Teoria dd Con.rtituição de 1976- A tran.rição dualista, Coimbra.
1988; págs. 96 e segs.; GUSTAVO Z...GREBELSKY,Jl Diritto Mite, Turin, 1992, págs. 9
e s_egs.; MARCELO NEVES, op. cit., págs. 68-69; ANToNIO D' ArENA, In tema di prin-
cipi e valo ri costituzionali, in Giurisprudenza Costituzionale, 1997, págs. 3075 e segs .
.i
Manual de Direito Constilllcional

monárquico nas Constituições de monarquia constitucional alemã,


seja o princípio democrático nas do Estado social de DireÚo) (1).
VI- Finalmente, merece alguma atenção o quadro classificativo gló-
bal formulado por um autor olhando às relações entre Constituição e.regime
polf(fco (2).

Regime Polftico Função de ConstiluiÇio 11po de Conslitulçlo


. '
Autotir~cio Legitimadora Fictícia
Ocganizativa
:
Totalitário Legitimadora fr9gram6tica
Ideológica .,
;
Organizativa ·,
•:

Aproximativo Legitimadora Pseudodemocrática


Organizativa
Jurídica I
I

Democrático tradicional Legitimadora ~ Aplica?a


Organizativa
Política
Jurídica
I .. ...
De democracia social Legitimadorà ~ctiva
Organizativa
Jurídica
Política
Transformadora

1
( ) Cfr. RALF DAHRENOORF, On the Concept of lhe •living Constítution», in
L'ldée de Philosophie Politique, obra colectiva, Paris, 1965, pág. 140: ~um mo iden-
tificar a «Constituição vivll>> com estado harmonioso e pacffico da Sociectade organizada
em sistema político; há tensões e conflitos simultaneamente entre as forças sociais
vivas e entre os «poderes vivos» e a Constituição; e a ComÍituição prova a.sua vali-
dade não tanto prevenindo conflitos quanto estabelecendo regras para os resolver.
(1) JORGE DE EsTEBAN, estudo preliminar da colect~nllll Constitucione's espa-
no/as Y escrcmjeras, Madrid, 1977, págs. 22 e segs., maiime 44. Cfr. HENC VAN
MAARSi;VEN e CJEH VAN DER TANO, op. cit., pá:gs, 275 e segs.
Parte /1 - Corn·titu.ição 27

6. Da Constitdção em sentido material à pluralídade de


Constituiçõ··s materiais

I - De tudo qu mto acaba de se aduzir resulta que o conteódo


da Constituição se r :l~tiviza para estruturar qualquer regime polí-
tico. E a cada regim : - ou seja, a cada concepção básica acerca da

I
comunidade e do po• :er, çlos fins que este prossegue e dos meios de
que se serve - vai :orresponder um det~rminado entendimento d~ I
Constituição em $en• ido material. ·
, Consequenterne •te, a Constituição de qualquer Estado dis~- . '·
gue-sé da Constituiç. o de outro Estapo em razão do regime polftieo
que adapta; assim l orno a mudança de regime político que nele
'ocorra determirta un a mudança. de Constituição - da função que
se lhe atribui, dos te1 mos como enquadra a vida colectiva, dos direi-
'~s que garante ou di ixa de garantir, do,sistema de órgãos que prevê.

II -- Não é, de resto, só a respeito do regime político que esta


'. pluralidade, simultâ1 ea ou sucessiva, de Constituições se apresenta.
É também, desde lo :o, no tocante à forma de Estado e, depois, no
tQCante à forma de 1overno, ao sistema de governo e à forma insti-
tucional: ;

- fonna de Es ad,q Q~ m~;<fP. de .<?,. ~~elo' dispor ..~ seu poder ein
face. de OUI! ~S' poderes de iguaf" natÜreza (com COOrdenação
ou com sub 1rdinação) e quanto ao povo e ao território (1); i·
- forma de gc vemo ou forma de a comunidade política orga-
nizai o seu )ôder e estabelecer a diferenciação entre gover- I

nantes e go ·emados, a partir da .resposta aos problemas de lI


legitimidadl. de liberdade, de participação e de unidade ou
divisão de 1 oderes (2); . ·
-'- sistema de ! overno ou sistema de órgãos da função política
e estatuto d •s governante~ (3);

(;) V. Manual .. ., 11, 4.' ed., Coimbra, 1998, págs. 275 c segs.
(l) V. Ciencia Po 'tica -Formas de Governo, Lisboa, 1996, págs. 35 c 115
e segs.
(l) Ibidem, ._págs. 15 e 123 e segs.
28 Man~al de Direito.Çonsriu.cional
--~--~----~----
.: ..
- forma institucional ou expressão institucional e simbólica da
representação ou da chefia do Estado (1).

São, obviamente,. diversas, por exemplo, a Constituição de um


Estado unitário e a de um Estado fedenl, a Constituição de um
governo representativo e a d~ um governo jacobino, a de u~_sis­
tema parlamentar e a de um sistema presidencial, a de uma monar-
quia e a de uma república. ;E estas diferenciações obsetvam~se já nos
séculos xvm e XIX. .
Assim como, evidentemente, é diversa a Constituição de um
Estado como Estado soberano da Constitu ção desse mesmo EStado
enquanto reduzido a Estado membro de uma federação ou de uniâo
real; e vice-versa.

III - Esta e não aquela torma..de Estado, ~~te e não. aquele


regime político, esta e não aquela forma de ~ovemo, esta e não aquela
foiina institucional, eis escolhas básicas qt;e cada povo faz ·em cada
momento histórico. O cerne de uma Cons:ituição reside aí.
À Constituição em sentido material, e~ tatu to jurídico ou ordena-
ção rã:Cionalizante e sistemática do Estado, pode corresponder histo-
ricamente um só conteúdo (como acontecia, na óptica do regime polí-
tico, na era liberal) ou pode corresponder urra pluralidade de conteMos
(como vem sucedendo depois). E esse cont1:údo em cada Estado e em
cada tempo plasma-se em princípios jurid.cos específicosr.e-xplícita
ou implicitamente - os princfpios que, ab1angendo também a forma: .
de Estado, a forma de governo, o sistema tle governo e a fonna ..im;.
.
o I
titucional, no seu conjunto dão corpo a uma Constituição mater.ial .
:I a
Uma .Constitotüção.não se.reduz!,.por certÓ, esses princípios, a·
I t esses princípios fundamentais;:;' Ela surge, aparentemente, como um
•! I i somatório de preceitos. Porém, são es'ses p1 incípios e outros corn eles
o I
conexos que lhe conferem unidade, iden!Ídade e durabilidade, de
I'
I
acordo com um postulado elementar de .;oerência. ·Voltaremos a
' I
. este tema adiante.

..
(' ) Ih· ;, '"• p:ip. 3::i.36. V. támbém Ch(j( lo Estado , in Dicíonáril(luri·
· dico da A a:.:. :: :straç~o Púi,h·:a , !:. 1972, págs. :' í' l z segs. ...,
Parte. li - Constituição · 29.
I ~ I

IV- Co71Stituição maJerial é, pois, o acervo de princípios fun-


damentais estruturantes e caracterizantes ·de cada Constituição em
·sentido material p.p~itivo; a manifestação directa e. imediata de uma
ideia de· Direito que se impõy numa dada colectividade (sejá pelo
' consentime~to, .seja pela adesão passiva); a resultante primária do .····.._

exercício do poder constituinte materi~l; e, em democracia, a expres-


são .máxima·da vont~de popular livrem~nte formada (1). .
·sem se fechar no seu instante iniciai ou numa conformação estrita,
a Const~tui:ção material vem a ser aquilo que petmanece enquanto
·. . mudam ·os·preceitos ou as regras através· de ·sucessivas revisões ou por
· outras formas ou:·vicissitudes. Em dialéctiea constante com as situações
e os factos da vida política, econórnica, social e cultural -:-": com aquilo
a que se vai chamando realidade constitucional - a necessidade da sua
permanência torna-se requisito de segurança jurídica. ·
Os preceitos ou as regras mudam; os princípios - mesmo se não
imunes à evolução e a variações \]e sentido dentro do seu âmbito
imanente -.não podem ser afectados. Passar de uns prinCípios ~
outros (dos princípios respeitantes à forma qe Estado, ou ao í:egime,
ou à forma de ·governo, ou ao sistema de governo, ou à fornía ins-
titucional) signifi~aria passar de uma Constituiç.ão a outra. ·

7. Os problemas constitucidnais na transição do século c


do milénio

As duas últimas décadas do século. XX e o ihícío do século XXI


trouxeram novos problemas à ConstitUição e à teoria constitucional (2).

( 1) Cfr., na doutrina portuguesa, RoG~RIO SOARES, Constiruição, in Diciqná-


rio Jur{dico da Administração . Pública, Il, pág. 666; FRANCISCO LUCAS PIRES,
O problema. .. , cit., págs. 53 e segs.; MARJA LúClA AMARAL, Poder constituinte e revi-
são constitucional, in ~vista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
1987, págs. 350 ·e segs.; RUI MACHETE, Os princlpios estruturais da Constituição
de 1976 e a pr6xima""·r.lvisão constituCional, in Revista de Direito e. Estudos
Sociais, 1987, págs. 33ie segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, o valor jurídico do
ac.to inconstitucional, Lisboa, 1988, págs. 171 e 172; GoMES ÇANOTILHO,' Direito ... ,
cit.; pág. 1125.
. (2) · Cfr., por exemplo, The Constitucional Developmenc on the Eve of the
Tltird Millenium, . colectiva editada por 1'11omas Fleiner, Friburgo, 1995; MAS·
. obra ~

'•
30 Manual de Direito Constitucional

_ Se a Constituição de democracia representativa e pluralista, de


· matriz liberal, ·çom mais ou ineno.s elementos sociais, prevalece na
Europa e em lat~as partes do mundo, ela tem tidq, ao mesmo tempQ,
de enfrentar tran'sformações e tendências, incertezas e instabilidad~
incontomáveis. À :vista desannada basta pensar nas ~leradas mudan-
ças tecnolÓgicas, na crise do Estado-providência e nas tendências
neoliberais, nos corporadvismos e neocorporativismos, nas fo~ças
centrífugas internas e externas, na integração 7m espaços transna-
cionais. e supranacionais, na globalização económica·e da comunicação
social, ·n.a vulnerabilidade ambienrál, na agudização de conflitos com
incidên~ia mundial. ~
Per~nte esses desafios, parecem ser funções da Constituição,
com concretizações variáveis de país para país, estabelecer ins~­
mentos de segurança jurídica e.. de protecção da confiança ~m favor'
dos· atingidos pelas muqanças tecnológicas, reforçar as g~ntias
das pessoas no domínio~P,a genética e da informática, instituir fór-.
mulas específicas de protecção ambiental, criar entidades reguladoras
independentes e eficazes, enquadrar os factorea corporativos e neo-
corporativos em órgãos adequados e em esquemas de demoêfac'ia
participativa, redescobrir o território a nível local e regional, àsse-
gurar a democracia nos partidos e nas divet~as formações sociais,
promover formas de participação ~emocrática nas instâncias trans-
nacionais e supranacionais.

SJMO Llc!ANI, L't\ntisovrano e crisi delle costituzione, in Rivista di Diritto Cost(tu·


zíonale, 1996, págs. 124 e segs.; PEDRO DE VEOA, Mundialil.t1Ci6n y Derecho Cons·
titucional, in Revista de Estudios Políticos, Ablii-Junho de 1998, págs. 13 e segs.;
MAURJZIO FroROYANTl, Costitulione e política: bilancio di jin.e seco/o, in IA nuova
età delle Costituzioni, obra co1ectiva (ao cuidado de LORENZO ORNAOHI), Bolonha,
2000, págs. 49 e segs.; VITAL Mo~EIRA, O jururo da Constituição, in Direito Cons-
titucional - Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, obra colectiva organizada
por Eros Roberto'Grau e Willis Santiago Guerra Júnior, Sãô Paulo, 2001, págs. 318
e segs.; CESARE P!NELLl, ll momento de lia scrillura - Contributo ai dibattilo de/la
Costituzione ettropea, Bolonha, 2002; JoÃO LoUREIRO, Dq sociedade técnica de
massas à sociedade de risco: prevenção, precaução e tecnociencia. Algumas qúes-
tões ju~pltblicíslicas, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, obra
colectt va, Coimbra, 2002, págs. 71 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito... , cit.,
págs. 1353 e segs. e 1419 e segs.

'I
Parte Jl - Constituição 31

Longe de desapa ecer, o papel da Constituição - ou, mais


I
amplamente, do Direit, constitucional material e da jurisprudência
COIÍstiruéi'onal - enqua 1t0 integradora da comunidade política toma-se
lllllls necessária do qu : nunca. Nenhum outro sistema normativo,
I· int~rno ou externo, st lhe pode (pelo menos, por ora) substituil·.
'I

·J. 8. A Constituiçã !) em sentido formal


i
I I - Se o constitu. ionalismo europeu, nos seus primórdios, não
te~e uma clara perce,t: .;ão de todas as dimensões e exigências da
\i
supremacia da Constit• ição, não deixou de lhe vincular uma forma
.... e_~_rpa consistência tai~ que fosse possível e necessário distinguir as
suas.normas das. dema s normas do ordenamento jurídico.
: Jl..m~. Constituiçã< a_pe.nas institucionpJ_izadora do Estado não
c~ceria dessa força jUI idica irredutível. Já nã9 uma Constituição pro--
i d$ de uma vontade nt ·rmativa particularizada em certo momento his-
·.~ tórico (mormente quar do criada por via revolucionária). Sem uma
i
foima adequada, a Ct nstituição :em sentido material não poderia
desempenhar, desde lo :o, a sua função organizatólia da comunidade
política.
Onde se encontn Constituição em sentido material moderno
emerge, pois, Constitu ção em sentido formal. A única (I) excepção
é a Grã-Bretanha, ·mas t ausência aí de Constituição formal explica-se
(como bem se sabe) 1 ela~ ~aractérfsticasnpe_ouliares dó seu desen-
e
volvimento. constit~ció !a~ .~o setf"sistemâ''j'urfdico; é u·ina excepção
que confirrl1a a. regra: o

II - Três notas 1Ssina!am a Constituição em sentido formal:

a) Intenciona!icllde na formação;
b) Consideraçãc sistemática a se; ·
c) Força juridic. · própria.

1
( ) Ou quase únicn e :cepção, porque também se fala, por vezes, na Hungria
antes de J 945. ·
.; ": I • .• .~: ~ • • ",'i .·:.
., ....;~ ,~+;~ ••· .,r··
,,
. I
32 ManutJ.l de Direito ConstiiU.:ional
--------------~-
'I I .
I
As nonnas formalmep.te constitucionaiS são decretadas por um
o I poder que se define com vista a ~sse fim; o que vale dizer que. na
origem, são normas de fonte legal, não <onsuetudinária ou juris-
prudencial (mesmo se, depo~, acompan 1adas de normas destas .
origens) e são normas que extgem um processo específico de;for-
mação (conquanto não necessí;lriamente um processo especial de
.;
modificação) . · ·
Há um Direito constitucional - fomnlmente constitucional -
a par de um Direito não constituciqnal; una legislação constitucio-
nal a par (e acima) de uma legislação ordinária; um conjunto .siste-
mático com uma unidade e uma coerência próprias, dentro da únidade
e da coerência gerais do ordenamento jur"dico positivo do Estado.
As normas formalmente constituciomti:; gozam, por isso mesmo,
de um estatuto ou de um regime imposto por tais caracteósticas ~pela
função material, genética ou conformadora que servem. Condicio-
nado embora pelo legislador constituinte, tal regime exibe-se- con-
soante nos capítulos .respectivos se verá -- na sua aplicação e na sua
garantia.

ID- Na grande maioria dos casos, a Constituição formal resulta


de um só acto constituinte, de um só exerc ·cio do poder constituinte.
Seja unilateral ou plurilateral, todas as nomas formalmente censti-
tucionais decorrem daí.
Em algumas ocasiões, no entanto, n~10 acontece assim. Em vez
de uma Constituição formal unitária, emanam-se .várias lei~ consti-
tuCionais, quer n,!l.J:Xl \apsp de .te,tnP9: +,~lati vani.este curto e hotpogé-
neo, que~ num' períOdô"proloiigado ou br·~ve, embora heterogéneo.
A Constituição formal decompõe-se ent:io em complexos normati-
vos dispersos por mais de um texto ou documento, todos com a
mesma ligação ao poder constituint~ e a mesma força juódica.
Leis constitucionais simultâneas ou drcretadas num terhpo curto
homogéneo foram as três leis constitucionais francesas de 1875
(Constituição da 3:" república). Leis constitucionais sucessivas foram
as sete Leis Fundamentais espanholas de regime autoritái-io feítas
entre 19 :~:~· e 1967, ou as trinta e cinco lds constitucionais revolu-
cionárias ~tu f. es2.. e · .,..,4 a 1976; e são as duas leis constitu-
cionais ::l ~ ana.uá, ::. · 8 t~ ;. 1982.
Parte 11 - Constituição 33

IV - Outros e~~tos, igualmente e~plicâveis por circunstan-


cialismos históricos lo~âlizados, afiguram-se ·não menos interessantes.
.Sãd os ·que se reconduzem às hipóteses de ·Constituição formal pri-
márià e de normas constituci.onais complementares (ou de legisla-
ção constitucional ·extravagante) há pouco su·geridas.'
Trata-se, sobretudo, daqueles casos eip . qúe uma Constituição, ao
;
ser aptóvada, mantém• (ou repõe) em vigor normas constitucionais
anteriores; assim, na Áustria, a Constituição de 1920 e a lei consti-
tl(cional de 1867 (relativa a direitos individuais); em Portugal, a
Ctmstituição de 193~ e o Acto Colonial de 1930 (até 1951), a Lei
n. 0 3n4, de 14 de Maio, e a Constituição de 1933 (1), e a ·:Constitui-
çijo de 1976 e certas leis constitúcionais revolucionárias; Alema- na
nha, a Constituição de Bana e os arts. 136.0 :; 139.0 e 141.0 da Cons-
tituição de Weimar; em França, a Constituição de 1958 e a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão e o preâmbulo da Constitui-
ção de 1946; no Brasil, os Actos Institucionais de 1964 a 1967 e a
Constituição de 1946; na Suécia, a Constituição de 1974 e três leis
fundamentais.
Nada imp.ede; por outra parte, que a ConstituiÇão confira força
de normas constitucionais a normas ptovindas doutr'os ordenamentos
1 do ordenamento jurídico internacibnal ou, porventura, em Est~~o
federal oli em união real, do ordenamento jurídico central. Exemplos
de atribuição de valor constitucional a normas de Direito Interna-
cional encontram-se hoje, na Áustria em relação à Convenção Euro-
peia dos Direitos do Homem e em Portugal relativamente à Decla-
ração Universal dos Direitos do Homem.
. f=', ~ :1 ,· ~ J

V - Esse nex6"' ~ntre a Constituição e certas normas que, por vir-


tude dela, adquirem categoria de nomÍas formalmente constitucio-
nais designa-se uma ,n(lação de recepção .. Figura mais estudada a res-
peito das relações e!flre sistemas jurídicos distintos (2) do que a

(I) V. A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, Lisboa, 1975,


l'ágs. 23 e segs. .
(2). Cfr. SANTI RoMANO, L'Ordinamento G(rlridico (consultámos a trad. cas-
telhana El Ordenamitnto Juridico, Madrid, 1963; págs. 248 e segs.); CosTANTINO
MORTATI, lstituzioni qi Diritto Pubb/ico, 1, Pádua, pág. 318. -
3- ManuDI de Direito Conttirucion1J, 11

i '·
·•'
34 Manual de Direito Constit.ucional
-------------------------
_.r.espeito das relações entre normas do mesmo sistema jurídico esta-
t~___(l.), dificilmente se vislumbra como sem ela possa encarar-se a con-
jugação do poder constituinte posto em acto através da Constituição
com a subsistência de normas constitucionais anteriores ou. com: a
outorga de valor constitucional a normas de DireitÓ internacional ou
a ncirmas ele certos ordenamentos internos.
Por um lado, o núcleo· operativo da Constituição formal reside
na Constituição originária e primariamente criada pelo 'poder consti-
tuinte formal e material. Por outro lado, este poder é livre· de,_ em face
das condições em que se mova, da estrutura do sistema e da sua
estratégia ele nonnaç~o. considerar como tendo valor constitucional
nor:mas·já existentes ou normas que ele não queira ou não possa edi-
tar (ou.1bditar de novo) e que com as primeiras vão ficar num nexo
de complementaridade ou de acessoriedade.
;Mas a recepção (2) tanto pode ·ser uma rec~pção formal quanto
uma recepção materi4l, tanto pode ser. a recepção de um acto nor-
mativo quanto a l'ecepção apenas de uma norma. I
A recep<rão fOlmal'pressupõe a conservação·da identidade dos
p1incípios ou preceitos (embora por força, insista-se, de uma norma
constitucional que assim prescreve); pressupõe que ·os princípios ou .
preceitos valham com a qualidade que tinham; acarreta, por ê9nse-
guinte, a sua interpretação, a sua integraçfã~ e a sua aplicação nos
exactos parâmetros da sua situação de origem (e, quando se trate de
ordenamentos diferentes, a sua eventual modificação, a sua suspen-
são ou a sua revogação, se aí forem modificados, suspensos ou revo-
gados).

1
( ) Cfr. St\ROIO F01s, Problemi della recezione nel diritto interno: leggi di
recezione e ri serva di legge, in Studi in memoria di Tullio A.rcarelli, obra colectiva,
11, Milão, 1969, págs. 635 e segs.
(2) Sobre o conceito, v., na doutrina portuguesa, GONÇALVES DE ·PROENÇA,
Relevância do Direito Mazrimoniàl Canónico no Ordenamellto Estadual Coimbra
1955, págs. 205 e segs.; ISABEL DllMAGALHÃES COLAÇO, Direito lnterna~ional Pri:
vado, policopiado, Lisboa, 1958-l9S9, 11, págs. 51 e segs. e 68 e segs.; Jos~ DIAS
M~RQUES, Introdução ao Estudo do Direito, 4.' ed., Lisboa, 1972, págs. 386 e segs.;
JOAO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao 'Discurso Legitimador. Coim-
bra, 1983, págs. 107-108; JOÃO DE CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo do
Direito, Lisboa, 1984, págs. 66 e 67.
35

'Ao invés, a recepçã l material -resume-se a expediente de preen-


chimento ele zonas de re :ularrientaç~o jurídica. As normas recebidas
são jncorporadas como normas do sistema que as recebe ou nele
enxertadas com o mesm > espírito que a este preside; e a s\la vigên-
cia, a sua interpretação a sua integração ficam em tudo dependen-
tes de outras normas d·' novo sistema ou subsistema a que ficam
pertencendo (1 ). .
. Esciarecer-se-ão me- .hor estes conceitos, quase de seguida, tendo
em conta o actual Direi o constitucional português:

VI- Não se circu:1sCrevem as nonuas constitucionais às decre-


ta~ pelo poder constitt:inte ou por ele recebidas. São também' nor-
mas fQrmaimente constitlcionais, como é óbvio, as que venham a. ser i
estabelecidas por r.evisã ) constitucional ou por outra vicissitude d~ i.
Constituição. . ·
Ora, têm sido expl rimentadas duas t~cnicas de articulação da~
normas constitucionais superveniel,ltes com as normas constitucio-
nais iniciais (ou ·precec entes, se já tiver havido uma revisão ante-
riot). Consiste uma n.. introdução das novas normas nos lugares
próprios do texto consti ucional, mediante as substitd'ições, as. supres-
sões e os aditamentos 1 ecessários: é a técnica mais frequentemente
adoptada e a prevista 10 art. ·287.0 , n. 0 1, da nossa Constituição.
Consiste outra na publi ;ação de uma lei constitucional que perdura
à margem da Constitui' ão (2), e que, de acordo com o princípio lei
posterior.... vem modi• 1car ou revogar alguns dos seus preceitos: é
a técnica dos Aditame1 tos à Con'Stttuição"Cl~s Estados ·Unidos e foi
a dos Actos Adi~io~a!~ à Constittiição brasileira de 1824 e à Carta
Constitucional portugu sa de 1826.
. Seja como for, sai las de revisão constitucional ou de qualquer
outra vicissitude, as ·no\ as normas constitucionais üJ.w_em~se de ple~
.na Constituição fonnal Mesmo que se siga o segundo método, não

( 1) Recorde-se o art. '.•, n.• 3, da Lei n.• 3n4, de 14 de Maio.


( 2) Naturalmente, qu ndo se emprega a primeira técnica, também 6 publi·
cada a respectiva lei de re isão, mas esta caduca com n incorporação das novas
normas constitucionais na Ct ostituiçiio e com a produção dos efeitos das normas tran-
sitórias que, porventu,ra. air la contenha.
36 Manual de Direito Constitucional
------------~---

se confunde ele nunca com os -aludidos fenómenos de recepção for-


mal ou material.

9. A Constituição em sentido instn:mental

I - A distinção entre Constituição fc·nnal e Constituição ins-


trumental é paralela à disti.ri~ão entre fontes de [lireito como processos
· de criação e fontes de Direito como mo.dc)s de. revelação de normas
jurídicas ( 1). · .
As normas formalmente constitucionais· (2) depositam-se ou
documentam-se em .textos COJ,lStituciona~s (tenham. OU· nã,O.·Çl nome · .,
de Constituiçoes ou leis constitucionais). Sú a5 que sejam criadas por
costume - admitindo-se a relevância: de costume constituciçmal-
ficarão de fora. · ·..
A inscrição de uma nonna na Constitdçãb instrumental é crité-
rio seguro de que pertence à Constituição formal. Isso sêimente não
se verifica na ocorrência - algo an6mala . :.:._ de autodesconstitucio-
nalização, quando a própria Constituição dispõe que certa norma ou
a norma sobre certa matéria não adquire ou já não tem valor de
norma constitucional: terá sido o caso do .ut. 178.0 da Constituição
br~ileira de 1824 e do art. 144. 0 da Carta Constitucional (3).

Rezava esse art. 144. 0 : <<É só constituri•>nal o que diz respeito aos
limites e atribuições respectivas dos Poder•:s polfticos e aos Direitos
políticos e indiviq~ai~ , do~ cidadãys ..•. Tu de• :> .que _não é constitucional
po~e ser,~lterado, .. se.ffi,~.fqrm~h~ades referidas, pelas Legislaturas ordi-

.. nánas)}, · ·
O legislador constituinte, assentando numa detenninada noção de ·maté-
ria constitucional e parafraseando, de certa maneira, o art. 16.• da Declara-
li
,j ção de 1789, daí extraiu a consequência de não atribuir senão às normas ati-
'I
•• f i nentes à matéria tida po~ constitucion~ a garantia correspondente à forma
I

.''' ., .. , !" '


,, ( 1) V., por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, O Dire;to- Introdução e Teoria·Gu-al,
11.1 ed., Coimbra, 2001, págs. 45 e segs.
(2) E, na Grã-Bretanha, algumas das nonna! materialmente constitucionais.
{3)
E. de certo modo, o artigo transitório da Constituição de 1838 (sobre a
Cãmara dos Senadores).
Parté ll - Constitui~ão 37

1 \·:·~
• • • •I

c,onstitucional. As démáis nonnas, embora permanecendo na Constituição


instrumental eram, pois, relegàdas para fora da Constituição ( 1) .

. Por seu turno, num .sistema. em q~e se imponha atender a nor-


mas 'çonstitucionais primárias e a nonnas·constitucionais recebidas ou
subpnmárias, vale a pena falar em Constituição instruméntal na acep-
Ção restrita atrás enunciada, porquanto, através desta, melhor se cap-
tam, à vista desarinada, as relações entre umas e outras normas e
melhor se apreendem as condições concretas em que a Constituição
..formal ~o Est;ado'ten~a sur~do e este} a a vigorar (2). · .·

~-· ~ As.·dÚ~ :i&~i.ca~ ··de· inclu~-~o ·de novas norm~s constitu-


I .•••

c~onais ém Consi:ittiição fomal r~conduzem-se no fundo a duas téc- ·


nicas ·~é inserção rt~ Cen&tituição instrumeilt~. · ·' · ~.

A pri~~ira Íécniê~ · ~vez seja mais econ6mica. E esse é um dos


moqvos, a juntar. ao das· v~tagens de mais nítida determinação das
normas constitucionais vigentes em cada momento, por que ela
domina na prática. Ao invés, a segunda leva' a multiplicar os

( ) ~im, Mloua GALVÃO TEt.l:s, Eficácia dos trata4os na ordein interna por-
1

tuguesa, Lisboa, 1967, pág. 92, nota; JoRGE MIRANDA, Decreto, Coimbra;· 1974,
; pág. 97; GOMES CANonLHO, Direito Constitucional, 4.' ed., cit., pág. 67: No sen-
tido da distinção entre rigidez e flexibilidade constitucional, no art. 144.• da· Carta,
Contributo ... , ci~(págs. 40 ·e 41-42, e MARCELI.O CAETANO, Manual ... , cit., 11,
páç. 427. Cfr. ainda LoPES PRAÇA, Estudos .sobre a Carta Constitucional, t,' Coim-
e
bra, 1878, págs. :XXI segs.; MARNOCO E SOUSA, Direito PoUtico - Poderes do
·Estado, Coimbra, 1910, págs. 602 e segs.; MANUEL AFONSO VAZ, Lei e reserva da
lei, Porto, 1992, pág. 288, nota; M!GUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Constituição cons-
. tituinte, Coimbra, 20oo;·. pág. 423. Falando em Constituiç~o semi-rígida por causa
do art. 178." da Constitili.y~q brasileira, Joslt AFoNSO DA SILVA, Curso de Direito Cous·
titucional Positivo,. 9.~ ed., São Paulo, 1992, págs. 43-44.
2
.. ( ) Embora atenuando o que aduzimos nas primeiras edições, mantemos, pois,
. um co~ceito autónomo de Constituição instrumental relevante. Cfr., em posição
contrária, MARCELO REBELo DE SousA, Direito Constitucional, 'Braga, 1979, pág. 44;
e, em posição favorável, GOMES CANOTJLHO, Direito Constitucional, 4.' ed., cit.,
· págs. 6,2-63. · '
Cfr., deste segundo Autor, a distinção entre o texto e o corpus constitucional
ou conjunto de matérias normativas que formam a Constituição (Direito ... , cit.,
· págs. 1117 e segs.)..

' I
38 Manum de Direito Constiwcional .
----·----···--·-·----

documentos constitucionais: cada lei de revisão f.rca num texto con$-


titucional separado.
Adaptando-se o segundo processo, !lvulta, uma vez mais, a noção
reslTita de Constituição instr~mental. Ela será agora a Constituição
em s~ntido nominal, acompanhada por uma séri;e maior ou menor
de leis ·constimr,ionais posteriores. Em contrapartida, dar-se-á aí UTI)a
dissociação enti:e Constituição fórmal e Constittiiçió instrumental,
visto que. algumas das nonnas nesta ainda depositiulas já não estar~o
em vigor (ou já não estarão", tal como aí se apresentam) por novas nor-
mas constitucionais as terem vindo alterar.

IIl- Em breve, a propósito. das chamadas heteroconstituições,


dar-se-á conta de um curioso fen,ómeno de dissociação entre Cons-
tituição-formal e Constituição instnnnental: quandQ.wn Estado outorga
uma Constituição a· uma comunidade política, a·qual depois adquire
soberania, necessariamente, neste momento, mudando o princípio do
poder" constituinte, muda a Constituição formal, ~ o texto consti-
tucional perdura. '

10. A Declaração Üniversal dos Direitos do· Homem co~o


parte da Constituição formal portuguesa

I - Sabe-se como as circunstâncias po~iti.cas anteriores a 1974 e


as imediatamente posteriores levaram a que ·t~nto numa das primeiras
declarações revolucionárias como na AssembleÜt." Constituinte se tomasse
a Declaração Universal dos Direitos do Homem como elemento fulcral
da legitimidade encarnada no novo Direito constitucional português.
Foi por isso que o art. 16.", 11.0 2, da Constituição veio estabe-
lecer que «OS preceitos constitucionais é legais relativos· aos direitos
fundamentais deveriam ser interpretados e integr.ados de harmonia.
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem» (1).

( 1) V. Diário, n. 0 ' 13, 30, 31, 32 e 35, respectivamen.te págs. 272, 786, 811,
849 e 942 ~~ 945. Cfr. ainda a ê9memoração do 30.0 aniversário da Declaràção
Universal pela Ass~mbleia ·da República em 13· de Dezembro .de 1978 (Diário, 1 Jegis-
lalura, 3.' sessão li:gislativa, n.• 18, págs. 619 e segs.). ··
Aquando ela segunda revisão constitucional, de un1 dos projectos chegou a
39
f..;'
: .....

·li - Este arl. 16. 0 , n. 0 2, da Constituição de 1976 não é uma


I norma de recepção mall rial. ·Não sujeita os artigos ou proposições
. '
da Declaração Universal aos quadros da Constituição; cQ.Ojuga, sim,
a Constituição com a. Dt claração Universal no domínio dos direitos
fundamentais, fazendo-11 patticipar e depender do ·seu espírito numa
nec~sária harmonia vai •rativa. É uma norma de recepção formal.
Traduzindo-se, com• se traduz, a Declaração Universal em prin-
cípios gerais de Direite _internacional - alguns dos quais de jus
cogens (1), como os dos arts. 1.0 , 2.0 , 3.0 e 7.0 - eles aplicar-se-iam
sempre, enquanto tais, ~~ 1 orqem interna por virtude da cláusula de
recepção do Direito inte nacional geral ou comum do art. 8. 0 , n.o 1,
da Constituição e da cJ íusula aberta de direitos fundamentais do
art. l6.o, n.o l. (2) (3). .
~ art. 16. , n. 2, e] :va-os, porém, directamente à categoria de
0 0

prin~ípios constitucionais. a par dos que estão inscritos no preâmbulo


da Constituição e no art culado e de outros, ainda, que o legislador
cons~tuinte não tenha q•1erido ou podido explicitar. E, desse jeito,
·:'
I
integra a Constituição r- lSitiva portuguesa com .. !~O ideal comum a
atinp> ou a «concepçã< · comum»· de direitos e liberdades a que se
reéónduzem tais princípi •s; configura a Constituição em·sentido for-
mál e a Constituição en sentido material de modo a aí abranger a
Declaração (4 ).

co?stttr :a eliminação do art..! ..•, n.• ~. mas a proposta foi rejeitada em comissão c
rcürada (por se Teconhecer, afh ai, .utilidade na referência à Declaração) atites da vota·
çlio n.o plenário do Parla!Jlent •. V. Diário da Assembleia da República, v legisla·
tura, 1.' sessão legislativa, ~ • série, n.• 6~RC, a.cta.n..O 4, págs. 102 e sogs:, e
n." 66-RC, acta n.O 64, págs. !018-2"019; ..e·'2.• s~lo•.legislativa, 1.' série, n.• 64,
pág. 2206. . .,. •+·.
"{ ) Cfr. o nosso Curst de Direito lntemacio~al Público, Cascais, 2002,
1
págs. 12 I e segs. e autores ci ;tdos.
. (2) V. A Declaraçilo (. 1iversal e os Pactos lnttrn(tcionais de Direitos do
Homem, Lisboa, 1977, pág. >: 1, e Manual..., J\1, 3.' ed., Coimbra, 2000, págs. 162
e segs.
• ( ) Como re~ositório de prin1=ípios gerais de Direito internacional, a Declaração
3

Umversal não prec1sava de se publicada: Foi-o, no entanto (Diário da Repdblica,


de 9 de Março de 1978), para que houvesse um texto oficial português.
4
( ) Contra, GOMES CAN ITILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da Repllblica
Portuguesa Anotada, 3.'.ed., ( limbra, 1993, pág. 138, ou ~OROF. BACELAR GoUVEIA,
40 Manual de Direito Constitucit~nal
------------~--

, A função do art. 16.0 , n. 0 2, vem a ser dupla. Em primeiro


lugar, ele situa os direitos fun<Wnentais em Portugal num conte!C~O
mais vasto e mais sólido que o da ordem juri1ica positiva do Es'tàdo,
situa-os no contexto da Declaração Universal 1os Direitos do Homem.
Em seglindo lugar', vai impregnar a Comti~uição dos pril!cípios e
valoi:es da Declaração, como 'parte essencir<l da ideia de Direito à
luz da qual todas as normas CC?nstitucionais - e, por conseguinte,
todas as normas da ordem jurídica portugue ;a - têm de ser pensa-
das ·e postas em prática.
Aos princípios em que se desdobra a Dedaração Universalesten-.
dem-se todas as características e implicaçõe~ próprias dos princípios
. consignados na Constituição (arts. 204. 0 , 277.", n.0 1, e 290. 0 , n.0 2) (1).

ffi - AFONSO QUE!RÓ sustenta que a Decbação, enquanto decide da


· interpretação a dar aos preceitos constitucionais relativos aos direitos fun-
damentais, tem força jurídica superior à da pró{: ria Constituição, enquanto
interpretada sem o subsídio dessa Declaração (2). Outro Autor, PAULO
ÜTERO, escreve que através do art. 16.", n.• :i, 1 Constituição auto-subor-
dina-se a nível interpretativo, em matéria de dire,tos fundamentais, à Decla-
ração, daí resultando o valor supraconstituciona: desta - ainda que seja a
Constituição o fundamento da vigência da Declaração no ordenamento por-

A Declaração Universal dos Dir,eitos do Homein e a CottStitlif~ão ' Portuguesa, in AB


VNO AD OMNES ~- 75 à,f!:b~;dP ' C.o,W.fi'ra Editora. cbra· colectiva, Coimbra, 1998,
págs. 952 e segs. Mais próximos de nós, embora sern ~ualificarem o fenómeno como
recepção formal, JORGE CAMPINOS, Direito lnternaci?nal dos Direitos do Homem,
Coimbra, 1984, págs. lO e segs.; e VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na
Constituição portuguesa de 1976, 2.• ed., Coimbra, :~001, págs. 42, 43 e 45.• •
(1) Considerando a Declaração Universal elemento relevante para a formula-
ção de juízo de inconstitucionalidade, por exemplo, o acórdão n.• 222190 do Tribu-
nal Constitucional, de 20 de Junho, in Diário da Rep lblica, 2.' série, n.• 215, de 17
de Setembro de 1990. Diferentemente, acórdão n.• )9/88, de 28 de Abril, ibidem,
2.• s#e, n.• t·93, de 22 de Agosto d~ i988. ___
Cfr. outrossim referências à Declaração Universal em, por exemplo, .parecer
n.• 2/81 da Comissão Constitucional, de 13 de Fevereiro, in Pareceres, XIV, pág. 265;
ac6rdlo n.• 63/85 do Tribunal Constitucional, de 16 do: Abril, in Diário dtl República,
2.' série, n.• 133, de i2 de Junho de 1985; acórdiio n.• 287/90, de 30 de Outubro,
·ibidem, 2.' série, n.• 42, de 20 de Fevereiro de t9n; acórdão n.• 507/94, de 14
de Julho, ibidem, 2.' série, n.• 285, de 12 de Dez.err:bro de 1994.
(l) Lir;:5es de Direito Administrativo, poticopi;da ;, Coimbra, 1976, págs. 325-326.
,_ Parte '][ - Constituição 41
I >

tug\lês; e se a interpretação conforme à Declaração, for menos favorável do


que a mera interpretação de normas da Con~tituíção, prevalecerá tal inter-
pretação-menos favorável (1).
N~o aceitamos este entendimento.
· . Por um lado,_ o art. 16.", n. 0 2, não deve ser considerado isola_damente,
alçado a norma superior às demais; a recepção que eJe opera dá-se nó
âmbito da Constitl:lição; e, assim. se, por hipótese, uma qualquer· norma
constitucional originária for contrária à Declaração, então isso apenas· sig-
nificará que aí não funciona a recepção, que essa norma constitucional
limita o alcance do ·art. 16.•, n.• 2.
Só assim !Jão será quando estejam em causa -os princípios da Declaração
'que são de jus cogens - mas estes prevalecem por si próprios, e não por
força da art. 16.0 , n.0 2. .
Por outro lado, muito menos se vê como poderia invocar-se a Pecla- .·
ração Universal para_impedir a aplicação de nonna constitucional que fosse
mais favorável aos· direitos fundamentais. O art. 16.", n.• 2, serve 'para ·
reforçai a consistência. e alargar o âmbito dos direitos, n~o para os diminuir
ou restringir. Nem o art. 29.", n.• 2, da ·Declaração (silbte deveres e ·!imite
ao exercício dos direitos), tão-pouco nisso se projecta (2):

IV -Além dos princípios constantes da Declaração Universal,


há outros princípios de Direito internacional geral ou comum a que a
Constituição se reporta e que in primis deveriam também aqui ser con-
siderados: são os princípios por que Portugal se rege nas relações inter-
nacionais (art. 7.",. n.0 i) e os princípios que, nos limites da lei interna,
prevejam a punição criminal de acções e omissões (art. 29.0 , n. 0 2).
Nem uns, nem outros, no entanto, são, em rigor, objecto de um
fenómeno de recepção assimilável ao estabelecido no art. 16. 0 , n. 0 2.
Quanto àqueles·primeiros princípios, eles são igualmente de jus
cogens e impor-se::i~fQ. também mesll).O que a Constituição não os
enunciasse.
Quanto aos segundos (3), trata-se de princípios a conjugar com o

( 1) Declaração Universal dos Direi(os do_Homem e Constituição: a incons·


tituciot~alidade de normas constitucionais, in O "Direito, 1990, págs. 603 e segs.,
maxime 605, 609-610 e 612.
(2) V. Manual.:·., IV, cit., págs. 299 e segs.
( 3) Que tiveram por fontes o art. 7.", n." 1, da Convenção Europeia dos Direi-
tos do Homem e o a_rt 15.", n.• 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Polfticos.
42 Manual de Direito Constitucional

•'
Direito ordinálÍO português- com a lei interna, como se lê no art. 29.",
n." 2 - e dotados, portanto, de força jurídica ínfraconstitucional (1).

11. Os princípios cooperativos como parte da Constituiçã~


formal portuguesa ,

l ·- A Cons~ituição dedica um particular favor ao coop.~ra~­


vismo, consagrando o direito de criação de cooperativas como um
direito fundamental (art. 61.", n.os 2 e 3), incumbindO o Estado de esti-
mular e apoiar em geral as cooperativas (art. 85.~, h.05 1 e 2), e pre-
vendo, ern especial, a actividade das cooperativas· nos domínios dos
direitos dos consumidores (art. 60.", n." 3), da habitação (art. 65.";
n." 2, alínea d)), da agricultura (arts. 94.0 , n." 2, 95~0 e ~7. , n.os 1 e 2),
0

e, noutro plano, no do ensino (artl?. 43. 0 , n. 0 4, e '75.", n." 2):


A fniciativa cooperativa é' o. núcleo do ~ector ~<cooperativo e
social» de propriedade e actividades económicas (art.·82.", n." 4) (~),
'cuja protecção é um dos princípios fnnqamentais da organização
económica e soc.ial [art. 80.", alínea b)] e cuja subsistência é garan-
tida em revisão constitucional [art. 288.", alínea fll. E o l\.tgar que
ocupa não é só ditado peJa relativa maior fragilidade das empresas de
tipo coopera ti v o; é outrdssim ditada por razões sociais e políticas.
ligadas à própria ideia de Direito cia Constituição; e representa, por-
ventura, uma ·das suas notas mais originais. ·

li - Para efeito de .regime constitucid~:a.l. as cooperativas defi-


nem-se através de certos parâmetros: os princípios cooperativos
[arts. 61. 0 , n. 0 2, e 82.0 , n." 4, alínea a)] (3).

( ) Neste sentido, pru:ece, SousA BruTo, A lei penal e a,~Constitu~ão, in Estudos


1

sobre a Constituição, obra colcctiva, u, Lisboa, 1978, pág. 242; GOMES CANOTILI-IO e
VITAL. MOREIRA, op. cit., pág. 194. Diversamente, PAULO OTI!Ro (op. cil., loc. cit.,
pág. 607. nota) fala em força hierárquico-normativa igual à das normas constitucionais.
2
. ( ) Resultante da aglutinação, feita em 1989, do sector cooperativo com os
antenores subsectores comunitário e colectivo (ou autogestionárlo) do sector público
e a que se adicionaram em 1997 as instituições de solidariedade social.
3
( ) Cfr. Diário da Assembleia Constituinte, n.o• 66 e 74, reuniões de l7 e 31
d: Outubro de 1975, págs. 2060 e segs. e 2398 e segs .• respectivamente, ma.xime
pags. 240 I e 24()'2,
Parte Jl - Constil14ição 43

Somente as einpr !Sas 'que os observe~ b~neficiam do auxílio


~o Estado; em verdac eira discriminação positiva [arts. 60.0 , n. 0 3,
0 0
l.L parte; 65. , ·n." 2, li línea b), e 97. , n. 05 1 e 2], e têm direitos de

participação (art. 60. n.o 3); e niio são tidas como «entidades da
0

mesma natureza» das :mpresas privadas, nos sectores vedados à iali-


ciativa privada (art. 8 i. 0 , n. 0 3), nem podem sofrer intervenção do
Estado na sua gestão art. 86. 0 , n." 2) (I).
Quais são esses .1rincfpios? A Constituição não os enuncia,
nem indica a sua sec .'! ou um texto donde constem. Contudo, a
CÍ.Outrina, a jurisprudêr cia e a prática entendem que ela tem em vista
OS princípios coopen lÍVOS comummente aceites (2), proclamados
pela Aliança Coopera· iva Internacional (3) e acolhidos ,entre' nós ao r

longo de uma experi.;ncia e de .uma tradição cooperativista que
remonta a mais de u n século (4); e, apesar de algumas evitáveis
flutuações legislativas, são eles os que explícita e desenvolve o art. 3,0
do Código Coopérati· o (5).

, (1) Até à revisão co• stitucional de l989 ainda havia outra diferença: o art. 83.",
n.• 2, preferia o regime c• ·.>perativo ao regime privado como forma de exploraçi!o
.~e pequenas e médias en presas indirectamente nacionalizadas fora dos sectores
.básicos da economia.
. ( 7) V. Slt.VA LOURI!I ço, D coopâativismo e a Constituição, in Estudos sobl'e
a Constituição, obra coler iva, n, pág,s. 373 e segs.; MENEZES CORDEIRO, A Cotuti- •
luição patrimonial privad '· ibiden~. 111, 1979, págs. 406 e segs.; CARLOS l::ERIU!I~A '
DE ALMEIDA, Direito Eco ·ómico, policopiado, 1, Lisboa, 1979, págs. 264 e segs.;
SiMOES PATRJCIO,· Curso de Direito Econômico, poUcopiado, 2.' ed., Lisboa, 1981-1982,
págs. 229 e segs.; parect r n.• 33/84 da Procuradoria-Geral da República, de 19
de Junho de 1986, in Bolt im do Ministério da Justiça. n.• 360. Novembro de 1986,
págs. 271 e segs.; GOMES CANOTIL.HO e VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 328.
3
a
( ) No seu Congres .o de Viena dé)<l966, Aliança (como infom1a Slt.VA Lou·
R.EI'IÇO, op. cit .. loc. cit., r igs. '3~.8 e segs:) defihiu os seguintes princípios: 1.") ade·
são livre; 2.") gestão demc :rática; 3. 0 ) juro limitado ao capital; 4.") repaniçlo de exce·
/entes; 5.") fomento da e ·ucação; 6.") colaboração entre as cooperativas.
4
( ) Neste sentido, areceres n.•• 32/81 e 15/82 da Comissão Constitucional •
de 17 de Novembro e 2 de Abril, in Pareceres, xvu, págs. 117 e segs., e XIX,
págs. 205 e segs .• respw vamente; acórdão n.• 321/89 do Tribunal Constitucional,
de 29 de Março. in Diár• 'da República, 1.' s6rie, n.• 92, de 29 de Abril de 1989.
No segundo parecer, a C >missão Constitucional pronunciou-se pela inconstitucio-
nalidade material de um 1ecreto por desrespeito dos princípios cooperativos.
(l) Hoje constante da Lei n.• 51/96, de 7 de Setembro.
44 Manual de Dirtito Constitucio tal
------~r-

ill - Poder-se-á então adiJl].tir que, ao aludirem a princípios


cooperativos, aqueles preceitos constitucionaü procedem, ainda elês, I
l

a uma recepção - e, mesmo a uma recepçío formal (se bem ( 1)


que não totalmente similar à da Declaração Universal). Não se tra-
tará de mera remissão ou devolução para a lei: os princípios coope- 1
rativos não estão na disponibilidade do legislador, o seu sentido
essencial impõe-se-lhe, ele -não o poderia af ectar ou substituir ('-).
Tratar-se"á, sim, de uma normatividade de origem consuetudinária,
I
com relevância directa na interpretação e na integração das no.rmas
constitucionais (mesmo se carecida de regulamentação legislativa).

12. As leis constitucionais ressalvadas em 1976

I - Em «disposições finais e transitórias», a Constituição ressalvou


na qualidade de leis constitucionais, não na de lds ordinárias (arts. 291. 0
e 309.0 , e após as revisões constitucionais 290.'', n.• 1, e 294. 0 ) (3)- três
das leis constitucionais publicadas após a revolução de 25 de Abril de 1974:
as Leis n.os 8, 16 e 18175, respectivamente de 25 de Julho, 23 de Dezem-
bro e 26 de Dezembro, todas referentes à incrimin tção e ao julgamento dos
. agentes e responsáveis da PIDE-DGS (4), a polícia política do regime
autoritário anterior.
Percebe-se facilmente por que razão esta~ leis não poderiam deixar
de ser entendidas como leis constitucionais-'(5 ), t:n .oo!'a· a margem da Cons-
tituição formal primária, ~ ·q~e. pori·~imterem dewios ao princípio da n!o
retroactividade d·as leis iri~riminadciràs consagrad•> no art. 29.", n.• 1, e no
art. 11.0 , n.• 2, da Declaração UniverSal (6) elas não poderiam sobreviver se
I
!
; . (I) Assim também, GoMES CANOTILHo,' Direit(• .. , cit., pág. 1120.
(1) Assim, SOUSA FRANCO, Nota sobre' o princ(pio da liberdade econ6mica, Lis-
iI
I! boa, 1986, pág. 20. .
:t I I I o 298.
(3) O art. 294.• era, no texto primitivo, o 309• ~. no texto a seguir a 1982,
0
- · ••
I
(4) Polícia Internacional e de Defesa do Estado: I)irecçã~Geral.de Segurança.
. I
(5) Neste sentido, GOMES CANOTILHO e VJTAL ~; OREIRA, op. cit., pág. 1080.
(6) Sobre a feitura do art. 309.0 , v. Diário da Asumbleia Constituinte, n.01 30,
. ..
I
I
31, 37 e 129, respectivamente págs. '785, 810, 1019-102!), 1026-1027 e 4304 e segs.;
e sobre a sua · :~erv ~~ ão e:· \9~-· ·o em 1989 (prindpalmente, por se temerem
problemas dr ..:açã·:· da , · ·!na: :· o tempo), v. Dió·io da Assembleia da Repd-
blica, n leg1s. . ;·a, 2.' ses> i~< Jt p ·ativa, 2.• série, 2.• suplemento ao n.b 77,

'
:...
·,, Pane 11- Constituição 45

não fosse a pr6pria .Çonstituição a determiná-lo; teriam cessado a sua vigên-


cia logo,à face dos arts. 292. 0 e 293.0 iniciais.' ,
- . Per.Ínaneceram, pois, dotadas de força constitucional apenas por virtude
de expressos preceitos da Constituição. As suas normas não possuíam qual-
quer espécie de autonomia diante das demais ncirmas consti~ucionais; deviam
1 ser interpretadas $istematicamente e integradas em correspondência com

I elas; e- até onde fosse possível -.deviam ter a leítura que menos coli-
disse com os princípios da Constitu~ção material (1). Estavam bem longe
dos moldes desenhados pelo art. 16.", n.• 2.
Hoje (e desde há muitos anos) deve considerar-se que caducaram, por
esgotamento do seu ãmbito de aplicação ou por desuso (2) .

II - .Também, porque na ver~ão inicial da Constituição e para um


período limitado.~ até às últimas eleições dos titulares de órgãos de sobe- .·-~

rania, das regiões au~ónomas e do poder Iociu que ·iniciassem funções durante
a primeira legislatUra, ou seja, até 14 de Outubro de 1980 '(art. 299.", n. 0 1,
de 1976)- se quis niànter determinadas «incapacidade~( cfvicas>> e porque
estas incapacidades de.direitos políticos vulneravam o princípio da igualdade
e o da participação de t_<?dos os cidadãos na vida pública (arts. 13.0 e 48. 0 ),
procedeu-se aí a um duplo processo de constitucionalização e de recepção
0
material. O Decreto-Lei n. 621/B-74, de 15 de Novembro, só pôde serres-
salvado nessas ·condições; senão, seria incons!.\~t~Gi(i)nal após 25 âe Àbril
de 1976.
Aliás, a norma con~tit\)cional transitória que dele se ocupo11, o
art. 308." (3), veio.j.;._ áo': iny,és do que aconteceu com a norma relativà à

págs. 1456(55H456(56); e.-y legislatura, 1.' sessão legislativa, 2.' série, n.• 55-RC,
!. acta n.• 53, págs. 1767 e. ség~ .. e 2:• sessão legislativa, n.• 104-RC, acta· n.• 102,
pág. 7948; e 2.' sessão legislativa, 1.• série, n.• 86, págs. 4207 e 4208.
( 1) Sobre este ponto e sobre os problemas suscitados pelos n."' 2 e 3 do
art. 309." inicial da Constituição v. parecer n.• ·9n9 da Comissão Constitucional,
de 27 de Março, in Pareceres, vm, págs. 102 e segs.
(l) Já em 1989, ein ofício publicado no Didr!o da Assembleia da República
(v legislat,ura, 2.• sessão legislativa, 2.• série, n.• 1CM-RC, pág. 2948), o Procura·
dor-oenil da Repóblica- apesar de considerar <<Subsistir utilidade jurídica no art. 298.•
da Constituição», por estarem ainda pendente$ cerca de 140 processos - dizia poder
justificar-se um reexame de natureza poHtica da situação, por o tempo decorrido
desde 25 de Abril de 1974 e o número e estado de pendência dos processos aponta-
rem para ~<o esgotamento da capacidade de reacção dos órgãos formais de·1controlo».
(3) V. Didrio da Assembleia Constituinte, n."' 42, 108, 128 e 129 , respecti-
vamente págs. 1185-1_186, 3545 e segs., 4270 e 4279 e segs. · '

,,
.
46 Manual de Direito Constitucional

incriminação e ao julgamento dos agentes e responsá~eis da polícia polí-


tica -. simultaneamente, modificar ou regulamentar ·certos aspectos dó
regime do próprio Decreto-Lei n. 0 621-Bn4, insusceptíveis depois de
qualquer intervenção legislàtiva. .
Em 15 de Outubro de 1980, essa norma deixou de vigorar.

UI -A Assembleia Constituinte em 1975 votou uin preceito (o art. 5.0 ,


n." 4; apos 1989, art. 292.", n.o l) segundo o qual Macau, «território sob
administração pórtUguesa», se regeria por «estatuto adequado à sua situação
especiah>. ~. ·
Tal estatuto viria a ser aprovado através da ~in!' ln6, de 17 de Feve-
reiro - anterior, portanto, à conclusão dos trabalhos da Ass~mbleia e ~
entrada em vigor da Constituição e que esta, expressamente, viria a ressal-
var (art. 306.". que passaria a 296." em 1982 e a 292.0 em 1989) (1). Nas-
cido como lei constitucional, o estatuto conservaria essa qualidade com a
Constituição, o que significa que se deu aqui tamb~m um fenómeno 9e
recepçãÓ (mfltetial) (2). .
Durqnte a sua vigência, o estatuto sofreu algumas alterações segundo
um proceSso complexo com iniciativa originária da Assembleia Legislativa
de Macau (e após 1989, também do Governador), parecer do Conselho de
Estado (até 1982, do Conselho da Revolução), aprovação pela Assembleia
da República e, no caso ~ alterações por esta introd.Úzidas, parecer fav·o-
rável do órgão de iniciativa (3). . ..
Tendo cessado a «admiÍiistração portuguesa» em Maéau em 20 de. Dezem.

( )
1
Sobre este preceito constitucional, v. Diário da Ássembleia Constituinte,
n.•• 116 e 130, respectivamente págs. 3842 e 4354; Diário dfl Assembleia da 'Rep~í­
blica, 11 legi slatura, 2.' sessão legislativa, 2.' sériê, 2." suplemento ao n.• 77,
págs. 1456(44) e segs., e suplemento ao n.• 93, págs. 1762(20)-1762(21), e 1.' série,
n.• 129, págs. 5430 e segs.; e ibidem. v legislatura, 1.' sessilo legislativa, 2.' série,
n.• 55-RC, acta n.• 53, pá~ . 1769 e segs.; e 2.' sessão legislativa, n.• 99-RC,
neta n.• 97, págs . 2838-2839; e 1.' série, n.• 86, págs. 4206 e 4207, e n.0 -90,
págs. 4497-4498 e 4504. .·, .
( 2) Diversamente, VITALINO CANAS, Relações entre oordenamento constitu-
cional português e o ordenamento jurídico do território de Macau, in Boletim do
Ministério da J11.1tiça, n.• 365, Abril de 1987, págs. 86 e segs. ,
3
( ) Sobre o enquadramento constitucional das alterações ao estatuto, v. este
Mamwl ... , 11, 4.' ed., págs. 46 e segs., ou CARLOS BLANCO DE MORAIS, A organita-
ção do poder político./egislativo no território de Macau- durante e após a tran-
sição prJra a soberania chinesa, in Estudos em homenagem ao Prof Doutor Rogé-
rio Soares, obra ~;olectiva, Lisboa, 2001, pãgs. 139 e segs. . ·
- - - - - - - - ''arte I! -- Cmmitu ição 47

bro de 1999, por força da l >eclaraÇão Ç~nju11t:~ !...u.so-qinesa d~ J987, cadu-


o
caram então aquele preeet1 > coh~iiitucional e estatuto.
~ ·- -·------------ - X--------~--
13. Os símbolos 1 acionais e a Constituição

; Segundo o art. 11.• d Constituição, a Bandeira Nacional é a adaptada


pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910 e o
Hino Nacional é A Portt ~uesa. Nonna análoga não se encontrava em
nenhuma das Constituiçõt· ; anteiores (').
Por seu lado, segund" o art. 164.", alíne~ s), compete à Assembleia da
Repáblica definir o respet tivo regime (o regime do seu emprego e da sua
pro~ção); e segundo o rt. 51.", n.0 3, os partidos políticos não podem
adoptar emblemas confun iíveis com sJmbolos nacionais (2).
· Não descreve a Cons ituição esses símbolos, ma.'l eles só podem ser os
que 'foram estabelecidos p :lo Decreto da Asse.mbleia Constituinte de 19 de
Junho de I 91 I e, de certo modo, pela Resoluçiio do Conselho de Ministros
de 16 de: Julho de 1957; e nem por isso deixam eles de fazer parte da
Coqstituição rn:llerial e fl ·mal portuguesa.
: Deverá entender-se e •tio que esse Decreto é objecto de recepção mate-
rial (3) ou formal (4)? Nã , nos parece, porque já antes de 1976 a Bandeira
e o. Hino gozavam de esr.tuto constitucional, por não poderem ser substi-
tuídos ou alterados por lei ordinária. O fenómeno deve, antes, reconduzir-se
a _ÇQstume constitucional, .1 constume constitucional secundum legem (S) (6)
(quer dizer: com base en lei ordinária, ou em lei pré-constitucional, for-
mou-se na comunidade p ·lítica portuguesa a convicção da obrigatoriedade

1
( ) Cfr. ANTÓN!O DE i :v,úJO, A Nação e os s~us símbolos, in O Direito, 2001,
pãgs. 197 e segs. ·
(2) Cfr. acórdão n.• I'' l/88 do Tribunal Conslitucional, de 27 de Setembro in
Diário da República, 2.' sé:•e, de 14 de Dez.embro·de 1988. , '
( ) RICARDO LEITE; A!gumai 'hip6tJSS~s sob,re...a «R~púb/ica, . e o «republica·
3
·
nismo» no conslitucianalism · ponuguês, in PerspJcrivas Constitucionais, obra colec·
tiva, m, Coimbra, 1998, pá! 230.
4
( ) GOMES CANOTILI •I e VITAL MOREIRA, Consrituiçrio ... , ciL, pág. 99, e
GOMES CANOTILHO, Direito :~onstitucional .... cit., pág. 1120.
(5) Cfr. infra.
6
• ( ) É a.lgo.de semelh: !lte ao que se passava com a língua ponuguesa antes da
re~Jsl!o consUliiCIOna! de IÇ··•7, que a consagraria no art. 11.", n.o 3, ou o que ainda
hoJe se passa com Lts.boa <.·mo capital do Estado.
·.

/
48· Manual de Direito Constitue onal
-------=-
.• r·

e da superior relevância jurídica dos símbolos rf publicanos como símbolos


nacion.ais, como que se depreendendo do diplor:ta inicial) (1). ·
I I O art. 11. 0 - tal como ·o art. 1.0 , ao reit~rar o carãcter soberano e
republicano do Estado - desemp~nha uma fun•;ão declarativa e de garan-
tia, e não uma função constitutiva.

l<t. O estatuto do Tribunal Penal lnternacional e a Consti-


tuição

I - Segundo o art. 7.0 , n.0 7, da Constituição (após 2001), .Portugal


pode, tendo em vista a realização de uma jus .iça internacional que pro-
mova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional, na$ condições de complementa-
ridade e demais termos estabelecidos no Estalu~o de Roma (2).
Este tratado, ratificado em 18 de Janeiro 1le 2002 pelo Estado Portu-
guês (3), envolve problemas jurídico-constitu-::ionais (4), pelos menos por

ii ( 1) Diversamente, ANT6NTO os ARAúJo, op. cit., loc. cit., pág. 203: a consti-

,,
I, tucionaliZl!ção dos símbolos pelo texto de 1976 asshala uma dimensão de ruptura
em relação a uma ordem anterior, procurando est~b'élecer uma ponte entre dois
li cons~rucionátlsmos democrãtl~~pubúêàitos (o.pe ,19i 1. ~ode 1976). Mas este autor
contesta também as teses da récepçãq~à ah.isio ao rqime do 5 de Outubro de 1910
equivale a «uma referência histórica» (pág. 211).
(2) V. o debate e as audições de especialistas na CoiJÜssão Eventual da Assem-
bleia da República, in Diário, vm legislatura, 2.' ses~.ão legislativa, 2.' série-RC, n... 2,
5, 6, 7, 8, 9, 11, 17 e 18, de 26 de Maio, 6, 15, 1~'. 26 e 29 de Junho e 19 e 27
de Setembro de 2001. E o debate no Plenário, ibid.m, 3.' sessão legislativa, 1.' série,
n.• 9, de 4 de Outubro de iOOl.
( 3) Na sequência da Resolução n.• 312002 d1 Assembleia da República da

mesma data. · ·-·


(~) Cfr. BEATE RuooLF, Considérations Const.tutionnelles à Propos de l;Éta-
blissttment d'une Justice Pénale lnttrnationale, in Revue Française de OroitCons-
titutionnel, 1999, págs. 451 e segs.; o n.• 11 da RI'Vrsta CEJ (do Centro.de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal do Bras;!), Agosto de 2000; The Rome
Statute and Domestic Legal Orders- General Aspccts and Constitutional lssues, obra
colectiva (editada por Claus Kress e Flavia Lattanzi), Baden-Baden, 2000; MARIA FER-
NANDA PAU\.\ A, Tribunal Penal internacional e Con:·tituição Penal, in Revista Por-
tuguesa de · . ·ncia Criminal, 2001, págs. 7 e seg!;.; PAULA EsCARAMEIA, Quando o
Mundo das .' ·erat•:·•s se (ransjorma no Mundo Jcs Pessoas: o Estatuto de Roma
e as Consi:::w!ies ':.2cil;,.·~,s, li ':"hemis - Rc .··sra da Faculdade de Direito da
Universida. · .ova :ie Li.'Dc>•J., 20f)l, págs. 143 ,~ scgs.
Parte 11- Constituição 4Q

três razÕ~: ·1.·) porque o Tribunal Penal Internacional poderá substituir-se


aos tribunais portugueses no julgamento dos kimes de genocídio, dos cri-
mes· contr-a a humanidade e dos crimes de guerra; 2.•) porque o estatuto
admite, para os crimes de maior extensão e gravidade, a prisão perpétua
(embora revisível ao fim de 25 anos) e a prisão perpétua é proibida entre
nós pelo art. 30.0 , n.o 1, da Constituição; 3.') porque ele dei;lara. ámão imu-
nidade dos tit:)l.lares de cargos políticos pondo em causa, dir-se-Ja, as nor~
mas dos· arts. 130.0 ; 157." e 196.0 da Constituição sobre imunidades, res-
pectivamente do Presidente da República, dos Deputados e dos membros do
Governo (1).

ll - Porém, quanto ao primeiro po~to, a dificuldade pode ser ultra-


pb.ssada, desde que o Código Penal e a Lei n.0 34/87, de 16 de ,Julho, deres-
ponsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos sejam adaptados de
modo a abranger todos os crimes prev'istos no estatuto de Roma, praticados
ou não dentro do território nacional (e alârgando-se, portanto, o princípio da
universalidade j~ presente no art. 5.0 daquele Código). 'Isso porque o Tri-
bunal Penal Internacional não admitirá um caso quando ele for objecto de
inquérito ou de processo no Estado que tiver jurisdição ·sobre o mesmo,
salvo se este não estiver disposto a levar até ao fim a investigação ou o pro-
cesso ou não mostrar capacidade para o fazer (art. 17 .• do estatuto, consa-
grador daquilo a que, por, se1:1 turno, se tem chamado princípio da ~omple-
mentaridade). - ·
Funcionando' então os tribunais portugueses, também fica afastada a
scrgunda dificuldade, pois estes tribunais, sujeitos à lei penal portuguesa,
nunca condenarão em prisão perpétua. Mas, ainda que tal não se viesse a
verificar, certo é que o ll{t. 33.0 , n.• 5, da Constituição, após 2001 jã admite,
d~ gerta forma, a ap~c~çãb ~a prisão perpétua, ao consentir a extradição por
cnmes a que corresponda, segundo o Direito do Estado requisitante, pena
ou: medida de segurança privativa de liberdade ou de duração indefinida,, por
força das normas de cooperação judiciária penai estabelecida no âmbito da
União Europeia.
~anto à não imunidade dos titulares de ~argos polfticos, recorde-se que
ela só abrange crimes praticados pelo Presidente da República fora do exer-
cício das suas funÇões (art. 130.0 , n. 0 4, da Constituição); não crimes pra-
ticados no exercício de funções pelo ~residente, pelos Deputados e pelos

1
( ) Cfr. o nosso estudo Imunidades constitucionais e crimes de 'responsabili·
dade, in Direito e J'!Stiça, 2002, págs. 27 e segs.
4- Manual de Direito Constitucional, tl
50 Manual de Direito Constitui;ipnal

· tnembros clo·Governo, nem qualquer crime no exercício da função de quais-


q\ler titulares dos órgãos, nos termos da Lei n.• 3~/87. E, evidentemente,
os crimes fixados no estatuto de Roma não 'J>odem ser.· senão crimes come-
tidos no exercício de .funções. Tudo está em integraf o estatuto. de Roiha
t essa lei. ·
Não se torna, por tudo isto, necessário reconduzir o fel\ómeno a
recepção material e formal, com constitu~ionalizaçlo do estatuto. Há,
sim, um fenpmeno de recepção formal idêntico ao que se observa quanto
às convenções internacionais de harmonia com o art, s.•, n.• 2, da Cons-
titt~ição (1). ·

f. •
15. Normas material e for~almente constitucionais
I - Definidos os conceitos de Constituição em sentido material
e em sentido formal, cabe indagar como intercedem no plano das
nom1as jurídicas presentes em qualquer sistema (i).
A priori, seria de supor ou a referência desses sentidos a uma ,só
realidade nonnativa ou a sua independência· recíproca (com sobre-
posição numas zonas e contraposição noutras) ou ainda·a necessidade
de, pel~ menos, se verificar uma correlação entre eles. Parece,
porém, mais indicado sustentar (até pelo exame das diferentes ordens
jurídicas) que preferível é o terceiro entendimento.
Revertendo ao conceito de Direito constitucional e com,pletando
o que acaba ele. ser mostrado quanto ao enlace entre Constituição
formal e Coi1stituição fnstrumental, há que reiterar que as normas
constantes da Constituição formal são (pelo menos, em princípio)
' I

. .
1
( ) Sobre o problema, cfr. JoRGE BACELAR GouVEIA, introdução a uma edição
da Constituição e de legislação complementar, Lisbo~;: 2002, págs. 12 e 13.
(2) Sobre o problema, v. HERMANN HELLER, op. cit., págs. 323-324; CosTAN·
TINO MoRTA't'l, Costituzione ... , cit., loc. cit., págs. 144 e segs.; SPAONA Mvsso, Cos-
tituúoHe rígida e fonti atipiche, ·Nápoles, 1966, págs . .23 e· segs.; K. C. 'WHEARE,
Modem Constitutions. 2.• ed., Londres, 1966, págs, 1 e s~gs;; FRANCO MoouoNO,
L'lnvalidità de/la Iegge, I, Milão, 1970, págs. 138 its~gs.':JÔROI! MIRANDA, Notas
para uma Introdução ao Direito Constitucional Comparado, Lisboa, 1970, págs. li
e segs.; P. LUCAS VERDU, Curso ... , ciL, 11, págs. 417 e segs.; MARCELLO CAETANO,
Direito Comtitucianal, 1, cit., págs. 399 e segs.; GtANC1-RLO ROLLA, Riforma delle
lstitttzioni e Costituzione Materiale, Milão, 1980, pág. 120; ÍOSÉ AFONSO DA SILVA,
Aplicabilidade das normas .constitucionais, 2.• ed., Slío Paulo, 1982, pág. 32.
Parte 11 ·- Constituição 51
--------·--------
noanas materialmente , onstitucionais; mas que, para lá delas, mui·
tas outras pode ha~er tam.b.~m ~ri~~~~e.~~~nstitu.cio~ais (de
2.0 'lrau}; em,l:>o~{l. clh$P& :sas, par diplomas de DireitO ordináno.

· II - A Constituiçi o formal é, desde logo, c'?njunto de normas


materialmente constitue onais - porque, insista-se, ela serve (lógica
e historicamente) de m: nifestação da Constituição material que,· etu
concreto, lhe subjaz; prque a forma nio pode valer. por si, vale
.
·~
enquanto se reporta a c :rta substância.
' Mesmo conceden< o que esta ou aquela norma constante da
CoDstituição fonnal (ou .la instrumental), vista de per si, escapa a qual-
quer atinência signific •tiva com a Constituição material, ela tem
sempre de ser situada 10 C<?ntexto. global da Constituição. E isso
implica,. por um lado, c'.le a sua leitura tem de ser conjugada com a
das! outras nonnas, esta., à partida, materialmente constitucionais; e,
por,outro lado, que, po1 se inserir em tal contexto, qualquer preceito
. conta para a interpreta ~io sistemática que recaia sobre os demais
preceitos ( 1).
; Mas, sobretudo, ne1 :huma hesitação se justifica a respeito das nor-
mas de Direito civil, d·: Direito penal, de Direito administrativo ou
de Direito tributário qu! se deparam, com mais ou menos abundân- I

cia, na Constituição f< rmal. Elas são, ao mes'mo tempo, normas •


des~es vários ramos e r Jrmas materialmente constitucionais, porque,
n~)~u conjunto, empn stam exprtflSIQ directa e imediata à ideia de
.: ~


' •I
Direito, aos valores, à: escolhas 1~olíticas fundamentais da Consti- ,
t
tuiÇão; elas são os pri 1~ípios constitucionais do Direito civil, dg
. Dirêito penal, do Direi o administrativo ou do Direito fiscal.
. .
In - Seja qual feo · o critério ou princípio teórico que se queira
adoptar para definir o âJ .1bito da Constituição em sentido material - e
.muitos têm sido prop 1stos, desde a disciplina dos elementos do
<>l.: . ·. '.~~..
--------
•. ' ......... ·'!·'

( 1) Nem se invoquer contra esta opiniilo disposições constitucionais que,


expressamente, parecem vil elas próprias circunscrever o ãmbito da Constituiçlo
material - entre as quais o j ' analisado art. 144.• da nossa Carta Constitucional. Este
preceito, desqualilicando ce·tas normas e afastando-as da Constituiçno formal, nem
sequer interessa para ~ que! lio. ·
52 Manual dt! Direito Constitu.-ional
------------~·~----

E~_cJ.iffiplina-da-actividll:de "fllrrdatl!!~ ~~81~.!..~~_9..=.á..indis.:.....


cutível que as n~rmas. materialmente.cons.titJçion.ltis n~pca.Q~as
~~,S..o~stituiÇã(). formaL.. Não cabem hoje, como não cabiam já nas
Constituições liberais.
,;
.I
Basta pensar no próprio domínio mais generalizadamente tido por
pertencente à Constituição em sentido material: 'do estatuto dos órgãos
e dos titulares dos órgãos govenÍativos à rc:1;ulamentação das eleições
políticas, ·as respectivas normas não se es~otam (nem podem. esgo-
tar-se) na Constituição formal (ou na Constituição instrumentai.). E
vários capítulos de Direito constitucional--· o Direito párlamentar, o
Dii.:eito eleitoral, o Direito constitucional da economia -1ncluem
numerosas normas de Direito ordinário, a:dm como as normas con-
ceq>.en.tes aos direitos fundamentais até S·! entrelaça~, por vezes,
com normas de Direito internacional, de h li:mortia· cqm os ·arts:-8.0 ,
n. 0 2, e 16.0 , n. 0 1, da Constit:uição.
Não há, nunca terá havido, nem, porv<~ntura, poder.á vir a haver
uma completa codificação das norrrtas constitudonais, que· seria o
equivalente à coincidência da Constituição material, da Ç<m.illmi.ç.ão
formal e da Constituição instrurp..entâf."Nêr1'mesmo quando a Cons-
tituição f~fi11al ~e ll.lp,~gª.m~9··e nii'íito 'nc 'teXto constitucional isso
chega a verificar-se, porque a extensão da Constituição formal não é
senão consequência e, simultaneamente, <:<.usa de nova extensão da
Constituição em sentido material: o que ~e passa connosco e com
outras Constituições (insista-se) revela-o b~m.
Não há codificação em Direito consti .ucional comparável à do
Direito civil. São os próprios factores polLicos (prevalecentes sobre
os factores estritamente técnico-jurídicos) que a impedem e que levam
a que em cada Constituição formal apenas ingresse uma parte das nor-
. ;
mas em que consiste o estatuto jurídico d'J poder e da comunidade
política ( 1). ·

..

I I
i I 11
( 1) Cfr. JosÉ TAVARES, Ciincia do Direito Pol 'tico, Coimbra, 1909, págs. 135
e scgs.; CARL SCHMITI, op. cit., págs. 17-18; HERJ~,,NN HELLER, op. cit., pág. 324.
.I
l~
Como escreve este autor, os textos constitucionais têm certamente conteúdos tfpicos,
mas não e;: . 1 prir.. ;pim eóric,,,, y_ue detenninem c que se deve reservar à lei cons-
titucic. al. .e c Je t.. L ar o texto consl;tucional decidem a tradição, a
conver.iêr.c: ·.Jíti, ... a;. ;ão -•. tJOder e a comtiência jurídica. ·
Parte l i - Constituiçao 53

\IV .,....:.. RaSgados, assim, os horizontes das normas materialmente


constitucionais; n.ão.pode, contudo, deixar de se distinguir entre as que
·se· encerram na Constituição fqrmal e aqueloutras que p.~rtencem ao
Direito ordinário, produto de leis e outras· fontes infniconstitucio-
nais. Só as primeiras correspondem a poder consütu'i~te, uma a
opção ou valoração fundamental; as segundas definem-se por refe-
rência a elas e modefadas por elas (apesar da latitude da discricio-
nariedade legislativa), sem as poderem contradizer.
Há dois graus de normas substancialmente constitucionais, por-
tanto. Numa perspectiva sistemática e est~tica, elas todas formam uma
unidade; numa.perspectiva genética e de validação, separam-~e pela
interposição da Constituição formal. ·. , . · ·
O poder constituinte esgotç..se na feitura dà Constituição for-
mal, não se ~xerce obviamente atrav~ da edição das normas ordinárias .-,

destinadas a dar-lhe desenvolvimento, concretização. e ~xecução (sob , .......


pen~ de .se confundir com o poçier normativo· do Estado) .. E por .
aqut, mats uma vez, s~.comp,reende como a Constituição formal pos-
sui um sentido material. - ·
É assim m'esrnp. quando a Constituição cuida da sua regula- ..
mentação ou e:feciição.integradora logo em sede de disposições tran-
sitórias (como, no texto inicial de 1976, os arts. 293. 0 , n.os 2 e 3, 295. 0 ,
. n.o 3, 298. 0 , 301.0 , 302.0 , 303. 0 e 304.0 , e nas Leis Constitucionais
.n.os 1/82, de 30 de\Setemb~o, 1/89, de ~ de Julho, e 1197, de 20
de Setembro); ou quando cria, aparentemente para esse fim, catego-
rias de leis com procedimentos especialmente agravados (como as «leis
· c?nstitucionais» do art. 138.0 da Constituição italiana, as «leis orgâ-
mcas» do art. 46. 0 da Constituição francesa, do art. 81. 0 da Consti-
. tuição espanhola ou, após 1989, do art. i69.0 , n. 0 2, hoje 166.0 , n. 0 2,
da Ca.nstituição portuguesa; e as «leis c01:nplementares à Constituição»
do art. 59.0 -II da Constituição brasileira).

16. Os fenómenos afins do fen6meno constitucional· para


.I
além do Estado
'·'
I - Com a Constituição ~m sentido material, como-:'se disse, o
Estado estrutura-se segund~ certa ideia de Direito; com a Constituição
em sentido fo~al as suas normas ficam revestidas de força jurídica
54 Manual de Direito Conslin•cional

superior à das demais normas do ordenamento jurídico. Este fenó-


meno, com tudo quanto implica, circunscreve-se ao Estado; mas
fenómenos afj ns encontram-se noutras entidades. colectivas.
Sim, função semelhante à da Cons!,ituiçãõ e§~atal é a dos es.ta-
tutos de qualquer associação quanto ao modo como se organiza e
como desenvolve as suas actividades; a do pacto social relativamente
a uma sociedade comercial; à da lei quanto a uma pessoa colectiva
de direito público; a do tratado constitutivo quanto a uma organiza-
ção internacional. Vistos como actos, todos eles- estatutos, pacto.s
sociais, leis,· tratados constitutivos - definem, estruturam, consti-
tuem a associação, a sociedade, a pessoa colectiva pública, a orga-
nização intemacional. Encarados como sistemas nonnativos, to~os
eles possuem força jurídica superior à das normas e dos actos pro-
duzidos pelos órgãos que criam ( 1).
A diferença está em que apenas o Estado tem um poder origi-
nário· de se organizar, o poder constituinte; em que apenas as suas
normas não extraem a sua validade de mais nenhumas normas posi-
tivas; em que somente elas têm a virtualidade de abranger quaisquer
matériàs, porquanto só o Estado é sociedadé de fins gerais; e ·em
que só~..elas prevêem mecanismos adequados de invalidação de ~er­
mas contrálias.

li-- 1Jma das tendências marcantes do Direito das Gentes con-


temporâneo consiste n~ sua objectivação - a qual se traduf. em fi.m-
damento não voluntarista das suas normas, incremento dos tratados
multilaterais, interpretação e modificação (lpenas no âmbito do seu
objecto e do seu fim; e, sobretudo, aparecimento ou valorização do
jus cogens como acervo de princípios que prevalecem sobre ~s res-
tantes normas, adstringindo os Estados e t~dos os outros sujeitos de
Direito internacional (2). ·

(I) Cf1. RJCCAII.DO MONA CO, Le caractere •. i,ls~frútionJJel· des actes institulifs des
organisarions internationales, in Mélanges offerts à Charles Rousseau, obra colec-
Liva. Paris, 1974, págs. 153 e segs., ou NGUYEN Quoc OJNH, PATRICK DAII..l.ER e
ALAIN PEU.ET, Droit lnternational Public, 6.' ed., Paris, 1997, págs. 575 e segs.
2
( ) Cfr. o nosso Curso ... , cit., págs. 121 e segs., e autores citados.

\I
lli
,.
______ ____
- - - · - - - - - Par1e 11 -·- Constituição
:.._ 55

Assim, segundo a c :onvenção de Viena de Direito dos Tratados:

. - t ·nulo
1
todo o t· atado que,
o l iol•lf
no
momento da sua conclusão, é
· incompatível cc m uma notma impt.rati'l!a de Direito inter-
nacional gêtâf ~árt.'~3.", 1." parte) -·quer dizer, de jus
cogens;
,_ Se sobreviver u na nonna imperativa de Direito internacional
geral, todo o tn-:.ado existente que for incompatível com esta
norma tomar-se á nulo (art. 64. 0 );
.- Quando um trattdo for nulo, as partes serão obrigadas: a) a
eliminar, na ·me lida do possível, as consequências de todo o
acto praticado • om base numa disposição que seja incom-
patível com a 1orma imperativa de Direito internacional
geral; b) a torr :rr as suas relações mútuas conformes com
essa n01ma (art 71. 0 , n.o 1);
- Se um tratado ;e tomar nulo; a cessação da sua vigência:
a) libertará as r :utes da obrigação de continuar a executar o
tratado; b) não ,fectará nenhum direito, nenhuma obrigação,
nem nenhuma : ituação juridica das pa1tes criadas pela exe-
cução do tratad ·. , antes de ele se extinguir, mas este direito,
obrigação ou s tuação não se manterá no futuro, salvo na
medida em que ' sua eliminação não for em si mesma incom-
patível com a r .wa norma imperativa de Direito internacio-
nal geral {art. ~ 1.0 , n.0 2).

··- Por se turno, a Ca ta das Nações Unidas prescreve:

- que todos os E tados, sejam ou não membros da Organiza-


ção, devem agi : de acordo com os seus princípios em tudo
quanto for nec··ssário à manutenção da paz e da segurança
internacionais t trt. 2. 0 , n. 0 2);
- que em caso d conflito entre as obrigações resultantes da
Carta
- ,
e as obri
,
·ações-resultantes'
;,_;1\,
dê.qua1'cjuer outra conven-
; J' I,~.:~ ·
J 1 JI
çao mternac1qp.:l prev.alecem as primeiras (art. 103.0 ).

E a ConvenÇão de Montego Bay, de Direito do Mar, de 1982,


dispõe, a propósit9 da Autoridade para os Fundos Marinhos, que
Manual de Direito Con.w :uci01tal
56 ~~--------~----

qualquer revisão dos seus preceitos deve observa: alg~ns princípios


como o da consideração do alto mar :c mo patnmómo comum da
I
I humanidade ou o da sua utilização pan fins pacíficos.
. I
tI Ora, toma-se indiscutível aqui .não pequena aproximação à noção
de força jurídica específica de certas normas frente a outras e, con-
sequentemente, à noção de conformidade ~u dcsconformidade ~n~re
normas de graus. diversos. Conceitos na:;ctdos no campo do D1re1to
constitucional irradiam para o Direito da:; Gentes, assim como, reci-
procamente, as adstrições provenientes da tnserção dos Estados na vida
jurldico~intemaci~nal se pro~ectam sobre as c::onstitui!ões, a começar
1
pelas relações entre ordem mtema e ord ~m mtemac10nal ( ).

17. O impacto do Direito internacional sobre o Direito cons-


~~ titucional
·; ~
I
...
''I~

'
I - Fenómeno inverso ao da irradiação de figuras constitucio-
nais para o Direito in~emacional..,Jem a ,s,e; o impacto deste sobre
~~
as Constituiçõés ('?; .~ "~ • . . .. ,. . . ,,
Esse impacto lrnanife~ta-se·;' ântes <le ·mais, no jus cogens, na
medida em que este adstringe os Estados não só nas respectivas rela-
ções e com outros sujeitos, não só nas su<:s formas de vinculação inter-
nacional, mas também a nível interno, n 1s respectivas Constituições.
Como estruturante da comunidade inte.n acionai, os princípios de jus
cogens não podem,.'por isso, deixar de s! sobrepor à Constituição de
qualquer Estado enquanto membro dessa comunidade.

(') Cfr. JORGE MIRANDA, Curso ... , cit., págs. 133-134 e 155 e segs.; ou
GoMES CANOTILHO, Direito ..., cit., págs. 1353 <: segs. (falando em conBtituciona·
lismo global). .
(2) Sem esquecer, naturalmente, a presenç 1 em qualquer Con~tituiçlo de nor·
mas de fundo, de competência e de forma sobre a vinculação jurídico-internacional
do Estado e a condução da polftica externa [ho,1e, em Portugal, os arts. 7.", 120.•,
135.•, 161.", alíneas i), m) e n), 163.0 , allneas.f) ej), 197.", n.• 1, alíneas b), c) e i),
e n.• 2. 200.•, aHnea d), 227.", n.• 1, alíneas s) e r), 278.0 , n.• 1, 279.", n.• 4, e 280.",
n.• 3] . Fala-se aqui em Direito constitucional internacional. Cfr.• por exemplo,
MIRKJN'E-GUE.TZ.NITCH, Droit Constitutionnel htcmational, Paris, 1933; CELSO B. DE
ALBUQU ERQU E M ELLO , Direito Constitucion.ai /Htemacional, Rio de Janeiro, 1994;
HEL~l' E 'ToURAF.iJ, L'i,remai:c.'!Glisation des C.•nstitutions nationales, Paris, 2000.

I
i
L
Parte 11 - Constituição 57

Na sequência da Carta das Nações Unidas, a Declaração Uni-


versal dos Direitos do Homem alude a; uma «concepç~o comum» e
a ·um «ideal comum a atingir»' e a Convenção de Viena âe Direito dos
Tratados enuncia expressamente os princípios de igu~lp~de de direi-
tos dos povos e do direito de disporem de si próprios, da igualdade
soberana e de independência de todos os Estados, de não ingerência
nos ass~ntos. internos, de proibição da ameaça ou do emprego da
força e do respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais para todos.
Expr~míndo uma consciência jurídica universal. no presente
período histórico, eles constituem um título de legitimidade, senão de
validade, de to~as as Constituições .e traduzem-se; por conseguinte,
1 1 em limites ao poder constituinte . . Não por acaso - mas apenas com
sentido declarativo - a Constituição portuguesa refere alguns desses
princípios no art. 7.0 e a Constituição suíça (após 1999) prescreve que
a sua revisão parcial não pode violar as regras imperativas do Direi to
internacional. ,. ·
Em segtfndp ,.Jugar, todo o Direito internacional __,... geral ou
co~um, con'\re~.~c:m.al e derivado de organizações internacionais e
entldades afins- vtgora ou tende a vigorar (com técnicas diversas)
directamente na prdem interna; e vigora mesmo que as Constitui-
ções não o digarrf:;, O alargamento das matérias objecto de normas
, internacionais e ·a. emanação de muitas que só fazem sentido enquanto
aplicáveis na ordem interna, o papel crescente das orgànizações inter-
nacionais e a iwpção do indivíduo como sujeito activo ou passivo
implicam uma integração sistemática cada vez mais estreita entre
Direito estatal e Direito das Gentes. '
. ,E tais normas de Direito internacional primam sobre as leis ordi-
nárias por duas razões evidentes: 1,0 ) pelo princípio geral de. Direito
segundo o qual está vedado a alguém que se vincule perante outrem des-
vincular-se depois por acto unilateral; 2.0 ) pelo interesse fundamental,
de segurança e certeza, de harm~mização de ordens jurídicas (1)'.
Em terceiro lugar, par,ücuJarmente no domínio .~da protecção
internacional dos direitos do homem, chega a haver Constituições

( 1) Sobre. estes assuntos, cfr. Curso ... , cit., págs. 139 e segs.

.L
58 Ma.J!IIal de Direito Constitucional

(por exemplo, a espanhola no art. 10.0 ) que prevêem a interpretação


das suas normas em conformidade com os trat~os sobre essas maté-,
rias; assim como a jurisprudência constitucional dos países europeus
partes da Convenção de Roma de 1950 aten~e, e~ pão poucas das
suas decisões, à jurisprudência do Tribunal Europeu (é o caso da
jurisprudência constitucional portuguesa) (1);" · .r ··
Em quarto lugar, há tratados que provocam á abertura de pro-
\
cedimentos de revisão constitucional. Como., em geral, os tratados
não prevalecem sobre o Direito constitucional, quando se adaptem nor-
mas convencionais discrepantes de normas cons.titucionais, apenas
pode haver ratificação dos respectivos instrumentos após revisão
constitucional (2): tem sido o easo dos tratados da União Europeia e
do·.estatuto de' Roma institutivo do Tribunal Penal'::·
Internacional.'

l i - Implicações específicas de nonnas int~acionais têm sur~


gido - como adiante se verá - em alguns Estados, sujeitos por
tratados a limitações de soberania ou ao estabelecimento de certos ins~
titutos ou garantias. Situam-se, porém, em plano diverso daquele
em que.nos situamos aqui.
E também se situa em plano diverso a tese, sustentada por uma
importante cotTente doutrinai - mas que não partilhamos (3) - do
primado dos u·atados comunitários europeus sobre as ConstiLuições dos
Estados membros; assim como a tese extrema, vinda do Tribunal de
Justiça das Comunidades, de uma prevalência dos próprios. regula-
mentos e directivas provenientes dos órgãos comunitários .. Apenas
interessa para a nossa disciplina analisar a primeira correnta.

18. A pretensa Constituição europeia

I ·- Os passos estugados a caminho da União Europeia (desde


o Tratado de Maastricht de 1992) têm levado alguns Autores ·a sus-

1
( ) Cfr. Manual ... , IV, cit., págs. 158 e segs. ,.
(2) Cfr. o art. 95." da Consútuição espanhola: a celebração de tratados interna-
cionais com cláusulas contrárias à Constituição exige prévia•'révisão consútucional.
( 3) Cfr. Curso .... cit., págs. 160 e segs.
Parte /1 - Constituição 59

tentar a existência já d: uma Constituição europeia; nu pelo menos,


de uma pré-Constituiç.io ou·de uma Constituição transnacional (1),
· · Mas, na nossa ma teira de ver, embora se possa falar em Cons·
tituição europeia na r tesma acepsio .. ~pt)~u~,J~oderjl,l. falar-se em

. ~h ~~:,~ .
(I) Sobre o problemp da CoRstitui·ção európeia, v., entre tantos, MARJO Al.BER·
TJNl, L'unijicaziont europet I! il potere costitutntt, in /1 Político, 1986, págs. 199
e cegs.; FRANCISCO LUCAS PIRES, A caminho dt uma constituição polltica euro·
p1la?, in Análise Social, n " 118-119, 1992, pAgs. 725 e segs., União Eul"opeia:
um poder pr6prio ou delego. o?, Coimbra, 1994, Introdução ao Direito C0111tilucion.al
Europeu, Coimbra, 1997, e J1 factores comunitário1 no Dir"llito co11stitucional por-
tugii8S, in Os 20 anos ·da ~onstituição d1 1976, obra colectiva, Coimbra, 2000,
p6gs. 215 e segs.; PtETRO ( ·IUSEPPE GRASSO, Diritto Costituzionale ·e Diritto CEE,
in ~critti in onore di Pietro Virga, obra colectiva, 1, Milão, 1994, pãgs. 951 e segs.;
A~ STONE, What is a Sup anational Constitution? An Essay in lntematiOIII.Il Rela-
tions Theory, in The Revie~ of Politics, Verlo de 1994, págs. 441 e segs.; MANUEL
MEDINA, Hacin una Consti. ·•ci6n Europeia, Valhadolide, 1994; Vers un droit COIII·
titutionnel europien. Quei droit constitutiotinel europien?, actns de colóquio, In
Re11ue Univtrsellt dts !Jroit: de I'Homme, ·1995, p6gs. 357 e segs.; MARIA LulsA F!R·
NAHDEZ EsTE:aAN, La Corte /i Giu.rtizia qualt eleme111o esstnziale nella de./ülizione dl
Costituzione Europta, in /· ívi.sta Italiana di Dirltto Pubblico Conumitarlo, 1996,
p6gs. 221 e segs.; DnmR C llMM, Una Costituzione per /'Europa?, in 11 futuro della
Costituzione, obra colectiv ,, Turim, 1996, págs. 339 e segs.; GtAN ENIUCO Rus-
CONI, Quale «democrar.ie c ·stituzionale»? IA Corte Federale nella politico tedesca
e ii problema de/la Coslit dane Europea, in Rivi.sta Italiana di Scienza Giuridi·
che, Agosto de 1997, págs 273 e segs.; CARLA AMADO GOMES, A naturtZQ collSti-
tu~ional do Tratado da U ião Europeia, Lisboa, 1997; LORENZA VIOI.INI, Prime
COI,ISideralioni slll concello di «Costituzion• Europta» alla luce dei conttJnuti deUe
vigenti Carte Costituliona ·, in Rivista Italiana di Dir,itto Pubblico Comunitarlo,
1?.~8, págs. 1225 e segs.; JEAN-Ct.AUD'E PtRIS, L'Union europécnne a-t-elle une
Constitution? Lui en fauf.l une?, in Re11u1 Trimestrielle de Droit Europlen, 1999,
pi~s. 599 e segs.; PETER 1- ·\BERLE, Per una dottrina de/la costitudone europea, in
Qlladtmi Costitut;ionali, ! 199, pAgs. 3 ,e segs.; NEli. MAC CORMICK, Democracy
anel Subsidiarily, in Diritro ·ubblico, 1999, págs. 49 e segs.; JOROEN HABERMAS, Apris
l'lttat-nation, trad., Paris, I'' l9, maxime págs. 104 e segs.; MIOUEl. POlARES MADURO,
A crise existencial do cor 'titucionalismo europtJu, in Colecttlnea de estudos em
/ulmenagem a Francisco Lr .·as Pirts, obra colectiva, Lisboa, 1999, págs. 201 e segs.,
e O superavit democrático .·uropeu, in Andlise Social, n.• 158-159, Primavera-Veria
de 2001, págs. 119 e segs.; -.NA MAIUA GuBQA MAimNs, A naturezajuridica da froli·
s~ do Tratado da União i.'uropeia, Lis~a. ~p,qo;! 'fbe ~irth of a· Europtan Cons·
ttlutional Order: the intera tian·of Na1ional and European Consti/Uiional Law, obra
colectiva editada por JORC N SCHWARZE,J3aden-B4den, 2001; Bt.ANCO DE MORAIS,
Justiça ConstitucioiTOI,J;w . 1bra, 4002, págs. 42 e segs.; AcusTINO CARRJNO. Europa
I! il futuro del/e Constituzr ni, Turim, 2002.
60 Manual de Direito Cons;it.c_:_c_io_na_l_ _ _ _~---

Constituição das Nações Unidas, do Me:·cosul, da . L~g~ Aral:le ~u


da Organização Internacional do Trabalho. tal Const1tmçao e~peta
,, não participa da natureza de Constituiçi o no sentido nasc1d~ no
século xvm, na Europa e na América. N!m tão pouco se .~anifes­
tou até hoje um poder constituinte europeu, um poder da Umao Euro-
peia se organizar, por si e para si, acima e para além dos Estados.
Não existe um povo· europeu que Sl!ja titular desse poder cons-
tituinte; há, sim, um conjunto de po:vos europeus e é a eles qu~ cor-
responde o Parlamento Europeu. Nem há cidadãos europeus ( ); há
cidadãos de diferentes Estados europeus -- aos quais são atribuídos
certos direitos econ6micos e políticos conuns e nisto consiste, jus-
tamente, aquilo a que se chama cidadanü europeia (sempre depen-
dente ou consequente da cidadania própri 1 de cada Estado comuni-
tário) (2).
Longe de serem actos fundadores de uma entidade política a
se, autovalidantes, todos os tratados de i~gração europeia, desde
os dos anos 50 áté aó Acto Único Europ~:1,1~ a~s Tratados de Maas-
tricht, çi,~ Amest~rdão. e de ~~<:e ti~'êtam de: percorrer, a nível interno
dos vários países, procedimentos de apro 1ação e ratificação perfei-
tamente idênticos àqueles a que estão suj-!itos quaisquer outros tra-
tados internacionais. E, por isso, não é muito relevante a interven-
ção prevista dos órgãos comunitários n.ts suas modificações (3).
Por outro lado, a necessidade de pr•:via alteração de al~umas
Constituições dos Estados membros (com) acaba de acontecer tam-
bém aquando da ratificação do estatuto oo Tribunal Penal ·Intema-
cional) é sinal de que esses tratados não equivalem a uma Constitui-
ção, porque, de outro modo, ela não t·~ria sido necessária.. Se
equivalessem a uma Constituição, apwv;tdos e entrados em vtgor,
impor-se-iam por si próprios e as suas n<>rmas prevaleceriam sobre
as normas constitucionais, as quais sedam declaradas «inconstitu-

·'./ (') Apesar da infeliz rubrica do art. !5.0 da C•>nstituiçilo portuguesa após 1992.
(2) Cfr. JORGE MIRANDA, Manual ... , m, cit., ptgs. 158 e segs., e autores citados.
''t (3) Neste sentido, MARIA LufSA DUARTE, .'\teoria dos poderes impUcltos e a
delimitação de competências entre a União EurOJ>ei.z e os Estados·Membros, Usboa,
. ;
;
1997, págs. 213 e segs. e 357 e segs. Diversarn<:nt•~. ANA MARIA GUERRA MARTINS,
op. cit., págs. 627 e segs. ·

··ii
.:~ t~.
.
l .. : .· . · • • ••
Parte 11 - Constituição 61

cio'nais» ou «ilegáis» por contradição com normas de gia.u superior;


e nada disso se verificou (1).
- · ·· -ó próprio tratado da União Europeia, fazendo apelo, no que se .
refere aos direitos fundamentais, às «tradições constitucionais comuns
aos Estados membros enquanto princípios gerais de Direito comuni-
tário» (art. 6.0 , após Amesterdão), parece reconhecer implicitamente
a superioridade das Constituições nacionais (2) (3). ·
Já se observou, ao invés, que a «maciça alteração» dos tratados,
aprofundando a associação constitucional dos Estados, constitui ela
própria um processo constituinte. que, inevitavdrriente, transporta
dimensões constituin.tes para o plano interno dos EStados; e que o pro·
cesso constituinte europeu é, simuitaneamente, processo constituinte
dos Estados membros, acabando o Direito primário dos tratados por
se lhes impor (4).

( 1) Porven&ra, sÓ se atingiria um estádio constitucional, só h.averia exercí-


cio de um poder con'~tituinte a nível europeu se, celebrado um novo tratado, nlo
tivesse de haver unanimidade para a sua aprovação e a sua ratificação, podendo ele
entrar em vigor, inc!usívf, em Estados que não o tivessem aprovado,ou ratificado
(foi o que aconteceu n.os ~tados Unidos, onde bastou a ratificação por parte de nove
dos treze primeiros Estados fundadores para que a Constituição federal entrasse
em vigor).
· Mas a Carta das Nações Unidas prevê fonnas de modificação do respectivo
texto bem mais «constitucionais». do que os processos de alteração previstos nos tra-
tados. europeus. Pois, sejam aprovadas em Conferência Geral dos membros da
Organi~çl!o, sejam aprovadas pel!l Assembleia GeràJ, as alterações à Carta desde que
ratificadas por dois terços dos Estados, incluinqo os cinco Estados membros per-
manentes do Conselho de Segurança, obrigam todos os Estados. mesmo os que
tenham votado contra (cfr. arts. 108." e 109."). E ninguém diz que a Carta seja
uma Constituição de tipo estatal.
( 2) Cfr., ~mbora por certo com sentido diverso, FRANCISCO J,-UCAS PIRES,
O factor comunitdrio... , cit., loc. cit., pág. 225: se a Constituição fala pm baixo, tam-
bém as Constituições nacionais falam para cima como o confinna a .alusão do Tra-
tado da União Europeia às «tradíções.cohstitucionais nacionais». ·
(3) É, a este propósito, mais do que a propósito de qualquer outro, que poderá
falar-se em interconstitucionalidades: Cfr. FRANCISCO LUCAS PIRES, Introdução ... ,
cit., págs. 18 e segs.; PAULO CASTRO RANGEL, .Uma teoria da «interconstitucionali-
dade» (Pluralismo e Constituição no pensamento de Francisco Lucas Pires), in
Themis, 2000, págs. 127 e segs.; GoMES CANOTILHO, Direito ... , cit., págs. 1409 e segs .
(4) GoMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., pág. 822.
\

64 Manual de Direito Constiltlcional

um& relação lógica de supra-ordenação; a C_~nstituição _c~mo ~on-1


junto de normas decretadas pelo poder do ~~tado e def1mdoras d?
seu estatuto;
c) Concepçõe~)E~!<!EiE.i.~I9_S (BURKE, DE MAISTRE, GIERK~)
- a Constituição como expressão da estrutura histórica de cada I
povo e referente de legitimidade da sua oi:ga~izaçio política;' a Comi-
tituição como· lei que deve reger cada povo, tend~ em conta as suas
qualidades e tradições, a sua religião, a sua geografia, as suas rela-
ções políticas e económicas;
d) Concepções ~GJ.qff_s (LASSAllE, SISMONDI, até certo
ponto LORENZ VoN STEIN)- a Constituição como conjunto ou con-
sequência dos mutáveis factcites sociais que condicionam o exercício l
do poder; a Constituição corno lei que rege efectivamente o poder
político em certo país, por virtude das condições sociais e políticas
nele dominantes;
e) Concepções~~!~ (estudadas no tomo 1 a propósito
dos sistemas constitucionais de tipo soviético) - a Constituição
como superestrutura jurídica da organização económica que pre-
valece em qualquer país, um dos instrumeiJtos da ideologia da
classe dominante (e a Constituição socialista, em especial na linha
leninista e estalinista, como Cónstituição-bahuiça e Constituição-
-progl'~ma);
f) Concepções i!l~*~CÍO!'(J.!ista:S (HAURIOU, SANTI ROMANO,
BURDEA_U, Mo~TA'ri) - a Constituição como expressão da organiza-
ção social, seja como expressão das ideias durad~uras na comunidade
política, seja como ordenamento resultante das instituições, das for-
ças e dos fins políticos; '
g) Concepção decísionista (SCHMITI) - a Constituição como
decisão política fundã"m:erital, válida só por força do acto do poder
constituinte, e sendo a ordem jurídica essencialmente um sistema de
actos preceptivos de vontade, um sisteina de decisões; ,
h) Concepções decorrentes da filosofia dos valores (MAUNZ,
B ACHOF) - a Constituição como expr~ssão da ordem de valores,
ordem que lhe é, portanto, anterior, por ela não criada e que vin-
cula directamente todos os poderes do Estado;
i) Concepçõ~~·Wuturalistas (SPAGN.A.·MtlSSO, JOSÉ AFONSO DA
Sn.vA) -- a Constituição como expre~são das-'fstruturas sociais his-

0
•·'o. 0 O O 0 '' O O O OM " 0 I ~
- - - - - - · · - - - Pane 11 - · Corutítuição 65

torican1ente situadas ou ela própria como estrutura global do equilí-


brio das relações políti• as e da sua transformação ( 1) .

21. Algumas te01 ias da Constituição

I - A primeira da~ teori~ da t!:onsti~iç,io ef!i partic~J}ar que inte-


ress~ resumir, por ser urna rejeíçãb d8{1Aouninas:-~1b~r.r,~.s. ainda no s~ulo XIX,
1
é a pe FnRDINAND LAss;..: E.'··· .f'll' · 1

l.ASSALE afinna a ne :essidade de distinguir entre Constituições reais o

• ( 1) Para uma eY.posiçi o mais circunstanciada e critica de algu1pas destas con-


cepções, v. F. lAVIER CoNDE. lntroduccíón al Derecho ·Politico Acwal, Madrid, 1953;
MANUEL GARCIA PELAYO, D. ··echo Constitucional Comparado, 8.' ed., Madrid, 1967,
págs. 33 e segs.; BAU..ADOR. PALLII!RI, A Doutrina do Estado, u-ad ., Coimbra, 1969,
I, págs. 206 e segs.; COSTA TINO MoRTA11, Costi.tuz.ione ... , cit., loc. cit., ptgs. 104
e segs.; FRANCISCO LUCAS "IRES, O problema ... , cit., págs. 27 e segs., e Teoria ••• ,
ciL,- págs. 47 e segs.; PABLO .UCAS VERDU, Constilución, in N11eva Enciclopedia Juri·
dica, v, 1976, págs. 212 e st 4s., e La lucha contra el positivismo jurídico enla Repu·
bli~a de Weimar. IA "teorit constitucional de Rudolf Smend, Madrid, 1987; MAR·
CBLO REBELO DE SOUSA, op cit., p~gs. 17 e segs.; a obra colectiva IA Politica dello
Stato: Carl Schmitt, Venez .., 1981; JOSÉ Al'ONSO DA SILVA, Aplicabilidade... , ciL,
págs. 9 e segs.; GOMES CAl' •nl.HO, Constituição Dirigente ..., cit., pág. 141; ADRIANO
OIOVA.NNELLI, Dottrina e 1< ·>ria della Costilutione in Kelsen, Milão, 1983; MARIO .,
DOOLIANI, ludiril~O politic · - Riflessioni su rego/e e regolarità ncl Diriuo Cons· ~

tituzionale, Nápoles, 1985, :Jágs. 141 e segs.; PAULO BoNAVIDES, Politica e Constl·
tuição, ci1. , pãgs. 183 e ' gs., e Curso de Direito Constitucional, 12.' ed., Slo
Paulo, 2002, págs: 182 ~ s• gs.; SERGIO BARTOLE, Costituúone materiale e ragiotw·
m~nto g;und1co, 10 Scnttl <n onore di Vezio. Crfsafulli, obra colectiva, 11, Pádua,
1985, pags. 53 e segs.; Rc IIERTO NANIA, 11 Valore della Costituúone, Millo, 1986,
pá~s. 45 e segs.; o n.• 3, au> VI, de Dezembro de 1986, de Quaderni Costitulionali;
Ki.Aus STERN, Derecho de: &wdo de la ,Republica Federal AI emana, trad., Madtid,
19~7, págs. 202 e segs.; :NOCÊNCIO MÁRTIRES CoELHO, Constituição: co, 1ceito,
ob;ecto e elementos, 1n Re ·sta de lnformaç6o Legislativa, n.• 116, Outubro-Dezem-
bro de 1992, págs. 5 e seg · ; ]OSÉ ANTONIO ESTÉV!!Z ARAUJO, IA Constiluc/6n conw
proceso Y la desobedíenc1 civil, Madrid, 1994, págs. 41 e segs.; AI'ONSO D'OU·
VEIRA MARTINS, O fenom . nologismo e a teoria· constitucional, in AB VNO AD
OMNES- 75 anos da Ct mbra Editora, opra colectiva, Coimbra, 1998, págs. 229
e segs., e lnslltulção, Esta.io e Constituiçdo no p.ensamento de Maurice Hauriou in
Estado e Direito, 1998-20 .Q, págs. 169 e segs.; SANTIAGO SASTRE ARIZA Cie~/a
j~ridíca pos~t~vista e neocc •tstitucionalis'lfl?• M~d,Mt,!,Q99;. DA\IID P,YZENHA~s, Lega· ..
I~ and Legwmacy: Carl .' . hmiu, -Haru J~!sen ai1~ .ff~nnann Helle~ in Welmar, Oxó·
f\18, 1999; PAI.ILO ~ER~El~· , .OA CUNHA, op. cit./1, p-ágs. 295 e segs.
5 - M1nual de Oireho Conll : •cional, 11
66 Manual de Direito Comtitucional
------"-----

Constituições escritas. A verdadeira Constitnição de um país reside sempre


e unicamente nos factores reais e efectivos do~ poder que dominem nessa
sociedade; a Constituição escrita, quando não corresponda a tais factores, está
condenada a ser por eles a~astada; e, nessas •:ondições, ou é reformada para
ser posta em sintonia com os factores materiais de poder da sociedade orga-
I t nizada ou esta, com o seu poder inorgânico, levanta-se para demonstrar
que é mais forte, deslocando os pilares em que repousa a Constitl!ição. Os
problemas constitucionais não são primariamer.te problemas de direito, mas
de poder ( 1). _,..;•..

l i - Nos antípodas da construção de LA:;sALE, situa-se a de KELSEN.


KELSEN conf1gura o Direito como ordem ·10rmativa, cuja unidade tem
de assentar numa norma fundamental- pois (I fundamento de validade de
uma norma apenas pode ser a validade de outra norma, de uma norma
superior. Há uma estrutura hierárquica de dif< rentes graus do processo de
criação do Direito, que desemboca numa norrr,a Wndamental».
Tal norma superior. é a Constituiçãó- (nas e.sta tem de ser entendida
' I em dois ,s_~tidos,.em,.senti.do jUfÍdico-positivo •: em sentido lógic9-jurídico.
.. Em sentido positivo, a Constituição representa o escalão de Direito
11 positivo mais elevado. É a norma ou o conjut.to de normas jurídicas atra-
li
vés das quais se regula a produção de normas jurídicas gerais; e e~~ pro-
• li dução de normas jurídicas gerais reguladas pelr. Constituição tem, dentro da
. H..,,
. ~
ordem jurídica estadual, ó carácter da ·legisl:tç1to.
Em sentido lógico~jurídico, a Constituição consiste na norma funda-
.
~-
mental hipotética, pois,· como norlllá mais elevada, ela tem de ser pressuposta,
não pode ser posta por uma autqridade, cuja competência teria ainda 'de se
fundar numa norma ainda mais elevada (l-).

III - Para MAURICE HAURIOV, o regim<! constitucional - que é a


ordem essencial· da sociedade estatal no seu liv1e desenvolvimento- deter-
mina-se pela acção de quatro factores: o poder, a ordem, o Estado e a liber-
dade. O poder é, simultaneamente, o fundado~ e o organizador da ordem.
O Estado é uma forma aperfeiçoada de ordem. A liberdade é tanto a, causa
como o fim dessas acções e da criação dessas formas. ·

( 1) Vber Verfassungswesen, 1862 (consultí<m•JS a trad. castelhana Que es un


Con.stitución. Barcelona, 1976).
(2) V. ;;-oria General dei Estado, trad., Bardona, .\934, págs. 325 e segs.,
e Teoria Pura de D;r·eito, 2.' ed. portuguesa, CoiJ71bta, 1962, 11, págs. 1 e segs. e 64
e segs.
Parte li - CoiLS(ituição 67

· Uma· orgánização social torha-se dur\idoura, quando eit.á institulda


- ou seja, quando, por utn lado, à ideia directriz que nela e'xiste desde o
momento da sua fundação pode subordinar-se o poder de governo, mercê do
equilíbrio- de órgãos e de poderes, e quando, por outro lado, esse sistema de
ideias e de equilíbrio de poderes foi consagrado, na sua forma, pelo con-
sentimento dos membros da instituição e do meio social.
As formas jurídicas empregadas na organização do Estado em vista da
liberdade são, por ordem histórica: 1.') as instituições cos-tUmeiras; 2.') o remo
da lei com valor constitucional, particula~mente na Inglaterra; 3. ') as Cons-
tituições nacionais,. que aparecem em firi"ais do século xvm, a par do prin-
cípio da soberania nacional. E uma Constituição nacional é o estatuto do
Estado considerado· como corporação e dos seus membros, estabelecido em
nome da nação soberana por um poder constituinte e por uma operaç~o
legislativa de fundação segundo um. processo especial.
A Constituição compreende a Constituição política e a Constituição
' ~ocial. A primeira: versa sobre a forma geral do Estado e sobre os poderes
públicos. A segt\pda, sób muitos aspecto$ mais importante que a Constituição
política, tem por opjêéto'.prímacial os direitos individuais, que também
valem como instituições jurídicas objectivas (1):

IV - A concepÇãp decisionista no domínio constitucional tem em


CAru. ScHMITI o se~:hnaiiQr expoente .
SCHMITI distingue quatro conceitos básicos de Constituição: um con-
céito absoluto (a Constituição como um todo unitário) e um conceito rela-
tivà (a Constituição ciomo uma pluralidade de leis particulares), um conceito
positivo (a Constituição como decisão de conjunto sobr~ o modo e a forma
pa unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim chamada
em senÜdo distintivo e por causa de certo conteúdo).
Uma Constituiçãó é válida enquanto emana de um poder constituinte
e se estabelece por sua vontade (significando «vontade» uma magnitude
do Ser como origem de um Dever Ser). Assim, é a vontade d9 Povo ale-
mão que funda a sua unidade política e jurídica. \ ·
A Constituição (em sentido P,OSitivo) .surge mediante um acto do poder
constituinte. Este acto não contém, como tal,. quaisquer normàs, mas sim,
e precisamente por ser um único momento de decisão, a totalidade da uni-
dade política considerada na sua partisular forma de existência; e ele cons-
titui a forma e o modo da unidade política, cuja existência é anterior.

(l) Prlcis... , .cit., págs. 1, 74, 242 e 611 e segs.


63 'Manual de Direito Constitucional

A Constituição é uma decisão consciente que a unidade política, a~avés


do titular do poder constituinte, adopta por si própria e se dá a :si própria.
A essência da Constituição não reside, i{1ÇÍS,·numa J~i ou numa norma;
reside na decisão política do titular do pod~ constituinte (isto é, do povo
em democracia e do monarca em monarquia)"''( 1) :

V - O específico da teoria de HERMANN HEu.ER consiste, em pli-


meiro lugar, na definição da Constituição ~mo totalidade, baseada numa rela-
ção dialéctica entre normalidade e nonilativídtzde,,e, em segundo lugar, na
procura da conexão entre a Constituição enquanto ser e a Constituição
enquanto Constituição jurídica normativa (superando, assim, as «Unilatera-
lidades>> de KasEN e ScHMlTT).
A Constituição do Estado não é processo, mas produto; não ~ activi-
dade, mas forma de actividade; é uma forma aberta, através da qual. passa
a vida, vida em forma e forma nascida da vida.'
... A Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas,
graças à probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela
....,
I' '1, está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera
~· •·' normalidade de facto conforme com a Constituição do comportamento dos
,. membros e, além disso, numa normalidade n\l~mada dos mesmos e no
mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada e a
normada e, dentro desta, a normada ex.trajuridicamente e a que o é. juridi-
camente. A Constituição normada pelo Direito conscientemente estabelecido
e l!Ssegurado é a Constituição organizada. E, assim como n~o podem con-
sid~rar-se completamente sep~ados o dinâmico e o estático, tão-pouco
poH.em ser separados a normalidade e a normatividade, o ser e o dever ser
no tonceito de Constituição.
O Estado é uma forma organizada de vida •.cuja Constituição se carac-
teriza não só pelo comportamento normado e juridicamente organizado dos
seus membros mas ai,nda pelo comportamento nlo normado, embora nor-
malizado, deles. A normalidade tem que ser senipre reforçada e completada
pela norrnatividade; à par da regra empírica de previsão, aparecerá ·à norma
valorativa de juízo; e a normatividade não sós~ eleva consideravelmente a
probabilidade de uma actuação conforme com a Constituição como é ela que,
em muitos casos, a toma possível.
Só poderá criar-se uma continuidad~ c6>nstitucional e um status, se o
criador da norma se achar também vinculapo por certas decisões normati-
,,
II ; 1
Teoria ... , cit., págs. 1 e segs., 10'll·~, 2~-2S·:

~
( )

~-

- hl.• .•. - .. .. -~ ... ",.J,;., ..:... ;.·.... t. · ......·."' '• .. .


P,me 11 -- Constituiçrio 69
~--------------~

vamente objectivas los seus predecessores. Só mediante o elemento nor-


mativo se normaliza •Jma situação de donúnação actual e plenamente impre-
• visfvel, conve~ndo-. numa liituaçlo de dqminaçio contínua e previsível, isto
. é, numa Constituiçã • que dure para além do momento presente. Somente '
em virtude de uma r .lrma o príncipe ou o povo podem adquirir a quaUdade ,.\
de sujeitos do poder constituinte. Uma Constituição precisa, para ser Cons-
tituição (ou seja, alg \cmais que.~ ~~~.IAJ4c~ca e instável de donúnio), •
de uma justificação :egundo princípios ~tico~ de direito (1).

VI -Para· RluoLF SMEN~:; ~ara qu~~-a,~~bstân~;a da vida política t


· consiste numa integ1 •çio dialéctica de indivíduo e colectividade e oBstado ,
num ((plebiscito ·que se repete todos os dias», a Constituição aparece como
. a ordem juridica do 1rocesso - pessoal, funcional e real - de integração.
. A Constituição .! a ordenaçãp jurídica do Estado, da dinllmica em que
se desenvolve a sua ~ida, ou seja, do seu processo de integraçlo.
A natureza da t onstituição é de uma realidade integradora permanente
e contínua. Mas e: .a finalidade depende da acção conjunta de todos os '
impulsos e motivaçi ::s poUticas da comunidade. Aliás, é por ser oBstado ··,
uma ordem integrad· :ra, fruto da eficácia integradora dos seus valores mate-
· riais próprios, que o -;eu estatuto se distingue dos estatutos das outras asso-
·
..
. ciações (1). I
'•
Vll - COSTAl'< i INO MORTA11 parte, por um lado, da existência de uma l .
I
•,
relação juridicament<- relevante entre a ordem concreta de uma sociedade e o '··
sistema constitucion.11 positivo nela instaurado e, por outro lado, da nec:essi- :; ,,
I'
dad~. de a organiza~ ;,o social. para servir de base à Constituiçlo, surgir já '
pohucamente order .• da segundo a distribuição das forças nela operante.
O Estado não é a Sl·l na de relações espontaneamente detenninadas entre os
pertencentes a um g11 po social, mas sim a consciente vontade de uma ordem.
A sociedade d · que emerge a Constituição e a que se prende qual-
quer formação soei ,: em particular possui ·uma intrínseca normatividade.
que consiste em se 11denar em tomo de forças e de fins polílicoa; e esta nor-
matividade, que ni!o pode exprimir-se numa única norma fundamental (como
na concepção form: !ística de KasEN), apresenta-se sem formas preconsti-
tuídas. A Constitui' ;.o material é então o núcleo essencial de fins e de for-
ças que regem qual per ordenamen~o positivo.

1
( ) Teoria .. ., ci .. págs. 295 e segs.
(2} ve,fa~SUI~g ud Veifassu~cechl.p948), .l(ad. CllSlelhana Con~·lilución y
Derecho Con.WIUtiiOn I.,.Madl>iti, 1985, ma.vime pngs. 132 e segs.
~' .'J•••. '

. ..
Manual de Direito Constitu.cion_al_ _ _ _ _ ___,__
70

· As forças políticas dominantes ordenadas em ~olta de uma finalida~e


-isto 6, de valores políticos tidos por fundamenta.ts- formam elas prõ-
prlas uma entidade jurídica, dão vida à Constituição materi~, que fu~damenta
e sustenta a Constituição formal e que provoca as suas mutaçoes e, ao
mesmo 'tempo, determina os limites dentro dos quais .estas ~em e~ectivar-se.
A Constituição formal adquirirá tanto maior capac1dade vmculat1~a quanto
mais 0 seu conteúdo corresponqer à realidade social e quanto ma1s esta se
configurar estabilizada num sistema harmónico de relações sociais (1).

VIll - Segundo GEOROES BURDEAU, a Co11stituição, acto deterrni·


nante da ideia de Direito e regra de organização do exercício das funções
·estatais, é, no pleno sentido do termo, o estatuto do poder.
Em sentido institucional e jurídico a Constituição estabelece no Estado
a autoridade de um poder de Direito, qualificando-o por referência a uma
ideia de Direito, origem integral e exclusiva da sua autoridade; a partir
dela, não apenas os. goyeml).n\~ SÓJ19..derão ·agir J"e! ,ularmente utilizando, nas
condiçÕes por ela estabelecidas, o poder como também é este poder que, na
sua substância, nas suas possibilidades e nos seus limites, fica subordinado
à ideia de Direito oficialmente consagrada na Cnn ;tituição. A Constituição
é a regra pela qual o soberan9 legitima o poder acerindo à ideia de Direito
que ele representa e pela q,ual, consequentemente . determina as condições
do seu exercício.
Consagração da autoridade do soberano, a Constituição é politicamente
um resultado. Vontade criadora e so~rana, é juridkamente um ponto de par-
tida: o fundamento da totalidade da ordem jurídic 1 do Estado. O Estado é
um poder ao serviço de uma ideia, a Constituição c seu fundamento jurídico.
A superioridade da Constituição decorre de ser ela que funda juridi-
camente a ideia de Direito dominante, enunciando ·~ sancionando o fmalismo
dn instituição estatal, e que organiza competências. A Constituição não
suprime as pretensões das concepções rivais, mas, ·Jelo menos, constrange-as
a utilizar as vias e os meios que a organização p Jlftica constitucional ofe-
rece aos temas da oposição. Por outro lado, a im titucionalização do poder
realiza-se através da definição de uma situação jurí·iica dos governantes, cujo
conteúdo é determinado pela Constituição (2).

(') IA Costituzione in senso maJeriale, Milão. 1~·40, nuuime págs. 87 e segs.


e 141 e segs .. , ._ stituzione ... , cit., loc. cit., págs. 1.~9 ! segs.; lstitu.zioni di Diritto
Pubblico. 9.' <: · . . • PãdJ a, 1u·;·S, p~g~. 30 e segs.
(2) Trou! IV, cit., p;.i,S. 2·~ . 45, 139-140 e 1~12 e segs.

i
Parte li - Cqnstituição 71

IX - .Para KONRAD HEssE, a Constituição é a ordem jurídica funda-


mental e aberta da comunidade.· A sua funÇão consiste em prosseguir a
unidade. da ..Estado e da ordem jurídica (não uma unidade preexistente, mas
de actuação); a sua qualidade em constituir, estabilizar, racionalizar c limi-
tar o poder e, assim, em assegurar a liberdade individual.
A Constituição tem de estar aberta ao tempo, o que n~o significa nem
dissolução, nem dirninuição de força normativa. Ela não:.se reduz a deixar
em aberto. Estabelece também o que não deve ficar em áberto - os fun-
damentos da ordem da comunidade, a estrutura do Estado e.os processos de
decisão das questões deixadas em aberto.
, . A realização da Constituição depende da capacidade ..de operar na vida
política, das circunst~cias çla situação histórica e, especialmente, da vontade
da Constituição. E esta procede de três factores: 1.0 ) da consciência da
necessidade e do valor específico de Urf!a ordem objectiva e normativa que
afaste o arbítrio; 2.0 ) · da convicção de que esta ordem é não só legítima
mas também carecidâ de ,contínua legitimação; 3.0 } da convicção de que se
trata de uma ordem a reli.lizar, através de actos de vontade (dos implicados
no processo constitucional) (1).
. . \
.. - X - FRANCO Moouot\io adapta uma visão plural e complexa, .em que
a Con$tituição não é um 'dado, mas um processo, e em que distingue uma
tríade de momentos - norma fundamental, forma real de governo e prin-
cípio ~e produção normativa. ·
A norma fundamental é a ideia mesma de Constituição considerada
ern si, o primum da consideração jurídica, o conjunto de todas as possibi·
!idades do s~u desenvolvimento. É já a Constituição enquanto absolutamente
condicioníJ.nte e constituinte - sem a qual qualquer Constituição determi-
nada, constituída, seria impensável - mas não é ainda toda a Constituição,
visto que o Estado-ordenamento se vai constituindo quer através da orga-
nização do poder, quer através da emanação das normas. ,
o problema do fundamento do conceito. (da Constituição) do Estado,
ou seja, da soberania ou do poder surge como problema de reconh6cimento
da norma ou do princípio (normativo) que atribui valor normativo ~o orde-
namento positivo ou do Estado e que transforma a força do Estado em
autoridade. Todavia para que tal valor possa aderir ao Estado é necessário
que este se apresente não como mera f~rça, mas com força ordenada e ·

( 1) De HESSE consultámos a selecção Escritos· de Derech~ Constitucional,


trad. castelhana, Madrid, 1983, maxime págs. 3 e segs., 8 e segs .•. 22, 26 e segs., 61
e. segs. e· 70 e segs. · '
72
--- -··· ---·--~......:...... __ ______
Manual de Direito
.:__
Constitucional ._....._~

regulada pelo Direito, ~~·seja, como poder; e esta força ou pOder ~. ao


mesmo tempo, regra e, principalmente, auto-ritgra. A Constituiçio do
Estado tr11duz-se, assim, em primeiro lugar, em regra do poder (que tem
como uma das suas expressões históricas a da divislo de poderes).
Se a organização do poder. (dita também fo'tma de Estado) é a réalidad~
positiva da Constituiçlo, a efectiva manifestaçfi} da sua exist!ncia objectiva
- a capacidade normativa g_eral, o princfpio da 'funçlo normativa ur siC -
é o seu conceito ou valor. E este conceito e valor, olhado no seu aspecto
· terminal (ou, como também se diz, em sentido' S"!,\:latantivo ou material)
configura-~e como princfpio da legislaçlo ordipári&;'l>rimária e geral; como
feixe de ~imites de forma e subsistência d'essi legisltÇÍo; e com parimetro
da sua constitucionalidade (1).

22. Algumas posições de autores de língua portuguesa


I - Entre os autores portugueses, que, nos últimos sessenta anos,
alguma atenção têm prestado,à teoria da Constituição, o primeiro a consi-
derar é ANTÓNIO JOSÉ BRANDÃO.t.t
Parece finnar a sua noção num postulado geral acerca da visão da
vida e do mu~do: a Constituição é uma visão da vida e do mundo e a
Constituição demoliberal a imposição a todos: góvernantes e governados, da
visão da vida e do mundo demoliberal. Mas a esta, que reputa um falso
tliunfo da razão sobre a história, contrapõe a Constituição política autêntica,
que é a Constituição da Nação.
As Constituições nunca podem ser feitas pelos homens, pois quem
pOS$Ui urna Constituição é a Nação (porque vive sempre constitufda). Só
a Cqpstituição da Nação se toma, o limite objectivo da «Razão do Estado».
E, pata o seu conhecimento, há que recorrer à teoria da estrutura e à teo-
ria das funções (2).

li _:. MARCELLO CAETANO insere a teoria da Constituição na teoria da


limitação do poder político- limitação essa que deve ser jutídica e·assen-
tar no Direito natural. · A Constituição é uma técnica de limitação, inas só
quando a Constituição seja rígida é possível organizar processos jurldicos

1
( ) 1.'/nvalidità della Leegge, 1, cit., maxiln ~ 'págs. 109 e segs. V. ·;ambém ll
1
coHcetto d1Costiruzione, in Scritti in onore di Cos"tantino Mortati, obra colectiva, 1,
Milão, 1977, págs. 197 e segs.
(2) Sobre o conceito da Constituição Política, cit.~ maxime págs. 67 e segs.

' I
l..J!
Parte 11 -- Constituição 73

, ..
~ndentes a conter os 1 oderes constituídos dentro dos limites traçados pelo
·.•poder constiruinte, vis o este· ser supe1ior àqueles.
· Como lei suprem; . a Constituição impõe-se a todas as outras leis e esse
carácter supremo ·vem ihe de ·sei• a própria e integral afinnação da sobera-
nia nacional. Uma so. iedade política revela-se como soberana, na medida
em que possui e pod• exercer o Poder Constituinte. Este nasce com o
Estadoi mas, sendo o uporte da Constituição, é anterior a ela.
Há necessariame ·1te uma certa configuração característica de cada
~tado, resultante das .;ondições pttuliar~~·:·P,Q~o e •.do·Jt~rritório respec-
tivos. Nenhuma ·Con tituiÇâ'b pode pretender-se a palavra definitiva e a
regra imutável ~~.~C?fi~"rlllde polfti~ comt)in~l' a'ff61lrã o 'étado cuja Cons-
tituição esteja a ser co· <stantemente alterada, sem ao menos se conservarem
os traços fundamentai· da sua organização política. Mas, ao organizar o
Estado, o legislador nl l tem de se limitar a observar as condições do Povo
que vai reger e a estal ·elecer uma equação em que a certas condições cor-
responderão determin;,das soluções. Não só há certos princípios de Ius-
tiça e Segurança que •:evem estar presentes na elaboração de todas as leis
(e, portanto, com mais forte razão, na das constitucionais) como é dever dos
constituintes procurar c•>rrigir vícios, eliminar defeitos, aperfeiçoar condições,
melhorar instituições 1 ).
i"
III - Para RoG: :RIO SOARES, a Constituição é a ordenação funda-;.: ·
mental de um Estado · representa um compromisso sobre o bem comum e ,.
uma pretensão de liga: o futuro ao presente.
Como a sociedac <! moderna só pode ser compreendida como um con-
junto de forças políti• as antagónicas, o c~mpromisso tem uma dimensão I'
pl~~lateral, aparec~ c mo uma t.entativa ~e equilíbrio. A ideia de Consti- 'f
'lu1çao repele, todav1a, 1ue ela seJa concebtda apenas como a expressão fâc-
tica desse equilíbrio tt .nporal. Sempre lhe cabe uma intenção voltada para
·~ futuro: ela supõe a . rença de poder ordenar igualmente equilíbrios polí-
·t•cos vmdouros.
Só a Constituiçã·: entendida como um equilíbrio realizado dos valores
. fundamentais ·duma c munidade pode fornecer o penhor da segurança do
, homem perante a tira H ia da nova ~ocialidade assumida pelo Estado e, tam-
bém, ~u~a organizaçh ~m grupos, cau;regados duma ética totalitária. O que
não s1gmfica a entreg;: merme a umà teleologia polftica, mas a busca das
conexões íntimas no ;entido. dós órgãos e instituições constitucionais a
•'

1
( ) Dir~ito Con.st. !:tcional, cit., 1, págs. 351 e segs. e 391 e segs•
. . . .:L "' ·t· ..--!~.i .• • ,(, . . :.··i·
. :~.

.l ' "-~· .. •f'


.- ~··
74 Manual de Direito Constirucio,al
-----~-

apontar para a unidade. O perigo da interpretação segundo a mundi_vi~ên­


cia do agente fica excluído, para deixar falar os v llores que a ConsUtutção
recebeu e na medida em que o consente a totalidade do sistema.
Este programa de harmonização e de equihbtio de tensões contrapos-
i I tas com uma dinâmica definida na construção ~\o _Estado vivo fornece u~
:f cãnone de interpretação e garante que a ConstJttnção se adeque às mani- 7
I I ,, festações espirituais da sociedade _que.rege, mas :;imultaneamente assegura-a
contra a dissolução na relatividade das ideias triunfantes- o que signifi-
I
I I
I
caria a negaÇão do valor normativo da Constituição (1).

IV - Muito próximo deste pensamento antolha-se o de FRANCISCO


LucAs PIRES na procura de uma «noção compreensiva de Constituição».
Segundo escreve, é necessário incutir um .sentid·) à existência política, é
necessário que a limitação do ·poder se transfom1c em afirmação positiva e
imperativa de valores. A:superiorlçlade dà'Com:tituição há-de proceder do
facto de constituir a objectividade de certo etltos t: não apenas da sua posi-
ção superior à das restantes normas;
A Constituição há-de ser o critério material .je decisão entre o válido
·e o não válido. O núcleo dà noção de Constituicão apreende-se na cone-
xão dialéctica das normas c.onstitucioriais com o projecto normativo donde
extraem o fundamento e com a conjuntura polítiCl em que adquirem reali-
dade (2). . .. ~r··

'
V - É a teoria de Constituição 'económica qu·~ VITAL Mo~l!iormula,
pela primeira vez, entre nós. Mas, a propósito do conceito de Constituição

(I) Constituição ... , cit., loc. cit., págs. 661 e seEs.


(2) O problema da Constituição, cit., maxime pãgs. 93 e segs.
Numa obra posterior (Teoria da Conslitwç.ío de 1976, cit., maxlme
págs. 100-101, 89 e segs. e lll e segs.), o Autor reafinn~ a tese da Constituição como
«ethos» do Estado e, a essa luz, põe em causa a alternativa entre Constituição-pro-
grama e Constituição-processo.
Se o «dirigismo» constitucional arrisca-se, escreve, a cair na partidarizaçl!o
da ideia de valor e na degeneração do «ideal» em ideclogia, conceber a Constttui-
çllo apenas como processo significa abrir mão da sua normaiividade. O <<proces-
sualismo» constitucionalista incorre em excesso de «ra·.:ão» ou «realismo»; o «diri-
gismo» em excesso de decisão ou '«voluntarismo».
A Constituição é a Constituição da liberdade através da justiça e a sua função
central consiste c·m promover uma arbitragem e um< f arantia, a partir dos quais a
ordem norma;.··, pode ;omü1u tan•o um Estado «a-:tuante» como uma sociedade
«política>> ela : ' .>ria,

,·,,:;·,·
r .. .
Parte 11-
.. Constituição 75

da economia, afuma que a Constituição não é hoje apenas a Constituição do


Estado, é também a Constituição da sociedade; isto é, da fom1ação social tal
como. esta se traduz no plano da estrutura política.
A própria Constituição política como Constituição da estrutura política
integra o estatuto do'Estado, o estatuto de outras instância5 .da formação social
e a Constituição económica. E este conceito, o de Con~títuição econórnica,
leva a discernir na Constituição, não um sistema unitárfó.,isento de tensões,
mas sim um lugar em que também se tt:;~duzem, de certo modo, as princi-
pais contradições e conflitos da sociedade (1).

VI -A contribuição mais interessante de GOMES CANOTILHO,"em certa~


fase do seu pensamento, é o esforço de aprofundamento e de procura de efec- /
tividade da Constituição . dirigente ao serviço do alargamento das tarefas
do Estado e da in~orporação de fins econ6mico-sociaiS positivamente vin-
culantes das inst~cia~ de regulação jurídica.
A política não é um domínio juridicamente livre e constitucionalmente
olesvinculado e a vinculação jurídico-constjtucional dos actos de direcção polí-
tica não é apenas uma v&r,lculação através de limites mas também uma ver-
dad~ira vinculação mlileÍial que exige um fundamento coostitucionaf para
esses mesmos actos.l E 'a. Constituição não é só uma abertura para o futuro»
mas também um projecto material vinculativo, cuja concretização se «con-
fia» aos órgãos constitucionalmente mandatados para o efeito., . .
. Há que distinguir uma direcção político•ct;mstitucional (direcção polí-
tica pemwnente) e uma direcção política de governo (direcção política éon-
tingent~). O valor condicionante positivo da Constituição pressupõe a con-
figuração normativa da «actividade de direcção política», cabendo a esta, por
sua vez, um papel criativo, pelo menos na selecção e especificação dos
f\ns constitucionais e na indicação dos meios ou instrumentos adequados para
a sua realização. ,.
Assim, não se trata de juridificar a actividade de governo; trata-se de ~;-r</
evitar a substituição da nonnatividade consti.tucional pela economicização da · · "
polftica e a rninimização da vinculação jurídica dos fins políticos (2).

(I) Economia e Constituição, Coimbr~. 1974 (na 2.' ed., 1979, cit., págs. 174
e segs.).
(2) Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, cit., maxime págs. 163
e segs. . .
A partir da 4.• ed., cit., do seu Direiro Constitucional (maxime págs. 71, 79
e 75-76), GoMES· CANOTILHO viria a mitigar ll: sua posição, ainda que sem abando-

.··
76 Manual de Direito Constitucional
I

Vll - MARCELO REBELO DE SOUSA adepta uma visão complex:a:


segundo a qual as formas de .criação e c.oateúdo de uma ~onstituí7iiq depen-
dem das estrutu~as económic'ás, sociais, culturais e polít!'cas dommantes em

nnr a preocupução com optimiltlr as funções de garantia e programática da lei cons·


titucionnl. . '! ' .
Se li função estabilizante e integrante da lei con~itucional ainda. hoje é um~:~
das finalidades que se propõe uma Constituiçiio, nã~ ~ deve concluir q~e dessa
funçilo resuhe necessariamen!S uma unidade da ConstitulÇ!o.lmune a confh!D': t~n­
sões e antagonismos. A unidade é uma «tarefa» conyenClonada com.~ &de~a. ~e
compromisso e tensão, ineten!B a uma lei fundamental cri~ ~ forças politico-socnus .
plurais e antagónicns. Da! que a Constituiçlo, ao· aspirllt'a ÜllllfOrmar-se num Prcr·
-jecto normativo do- Estado e da sociedade, aceite as contra~ dessa mesma ~ea­
lidade. E esta radical conflitualidade ou permanência de contradições não exclui ou
nlo tem de excluir uma «intençllo de justiça» e «verdade» na proposta norma·
tivo-constituéional. Thdavia, a estrutura dinãmica de uma lei fundamental aponta para
a necessidade de abertura, pois, caso contrário, a excessiva rigidez do texto cons-
titucional conduz à distanciaçio das normas perante o «metabolismo social». E, se
não deve falar-se_ de um grau-zero ~e. eficácia da Constitl!içlo, deve, contudo, aban·
donar-se a pretensã9 de uma predetimúnação constitucional exaustiva e a crença IICIÍ·
tica nos mecanismos normativos. .•
De todo o n\odo, é sempre necessário um conceito constitucionalmente ade·
quado: l\ compreens.lio de uma lei constitucional só ganha sentido 111il, teorético e ptá·
tico, quando referida a uma situação constitucional concreta, historicamente existente
num determinado pa{s.
Nas suas reflexões mais recentes (Direito Constitucional e. Teoria da Consti-~.
tuição, 6." ed., págs. 1420, 1421 e 1431 e segs.), o Autor prossegue por ess~ cami· ·
nho, afirmando que a Constituição é uma ordem aberta, com pretensão, Slmulta· ·
neamen.te, de estabilidade, na sua qualidade de «Ordem jurídica fundamental», e de
dinamicidade., tendo em conta a necessidAde de fornecer abertura para a mudança n
seio do político. Ao estabelecerem prinCípios e procedimento~ socialmente estabi·
os
lizados, textos constitucionais procuram a «segurança», «Certeza», «vinculativi-
dade» e «cnlculabilídade>> indispensáveis a qualquer ordem jurídica; ao introduzirem
procedimentos de mudança (ex.: normas de revisiío), as Constituições introduzem no
estatuto jurídico do polftico horizontes temporais diferenciados que lhes pennite
continuar a assegurar um evç'ntual consenso intergeraciónal e eviiar unia insusten·
tável distancia entre a Cons~tuiçiío escrita e a Constituição material. ·· ·
A Constituição é uma ÔJ'de.m-quadro, e nlio um código exaustiva~te regula-.
dor. Mas ela pode e deve fixar nlio apenas uma estadualídade juridicamenle confor- '··
moda mas também estabelecer princfpios re.le.vantllS para IIIIID sociedade abe.na bem \'
ordenada. A Constituição é sempre um processo público que se desenvolve hoje
numa sociedade aberta ao pluralismo social, aos'fenó.menos organizativos suprana·
cionais e à globaliz.ação económica. Sendo ordem pa,rçial e ftagmentdria, carece de
uma act'ualização concretiumle quer através do «legisildor» (interno, europeu e inter· ·

,,·.
lV'"' •••
Parte /1 - Constituição 77
-------------------
certas condições de tempo · de espaço, bem como dos valores que essas pros·
seguem.
-·A Constituição não é uma realidade independente do mundo do ser, já
que· na sua génese e no s• u conteúdo, se tendem a projectar aquelas estru· ...
turas·. O conteúdo da Co: stituiçio integra quer os valores ideológicos das •;

estruturas dominantes no nomerito ·(ta sua elaboração quer os valores cor-


resPondentes a outras est ·uturas, 'secundárias à partida e cuja aposta é a
superação do status inicial. 1àl conteúdo ~ assumido como um projecto ideo-
lógico querido, destinado , estabelecer um sistema regulador da vida colec-
tíva. Mas. por seu ·turno. Constituiçã~ actua sobre as estruturas, numa ten· i.
são permanente com a col ·.ctivi~e •.re'ftdo•etn"que esta, em última análise, i
tende a prevalecer (1). · , ,.:~o. . ~~ · v ;;. .' •1' . iI
VIII - Mais de ur ângulo de .Ciência política do que de Direito
constitucional, o das forrr tS de poder, é a referência de ADRIANO MORElRA
à nQção de Constituição. ..
Distingue entre Cor :;tituição formal. - que atende à definição nor·
mativa do regime polític:~, à unidade estadual resultante de um ordena-
mento jurídico- e Const •tuição real- correspondente às vigências que se ..
imp1.1seram. Este duplo :1ormativismo do Estado não deve confundir-se .~:
com a evolução do ·sentido das normas consubstanciada, por exemplo, na ··~••
~i ,;. I
··.: lf
nacional) quer através de esc..,emas de regulação informais, «neocorporativoS», «COI1·1 f
Certl!tivos» ou «processualiza.\os», desenvolvidos a nível de vários subsistemas sociais. ,(
A Constituição deve r• :olher as tensões da integração republicana e comtuli· '·
tária e o pluralismo social económico e po!Itico. Ela não tem capacidade para !
ser uma lei dirigente transp r/adora de metanonnas. O carácter dirigente de uma
Constituição converter-se-á 1 .tradoxalmente em déjice. de direcçào se ela for também
uma lei com hipertrofia de ' ·>rmas programáticas articuladas com polfticas públicas
sujeitas à mudança poUtica .emocrdtica ou dependente de capacidade de prestaçélo
de outro sistema social. lss( não significa, no entanto, que as Constituições não pos-
sam e não devem ler um p: pel de mudança social, dentro dos limites da realidade
e dos limites urefÍexivosn i >::rentes à sua natureza de lei.
,. As Constituições serv,·m para estabelecer mecanismo que assegurem a sub· ......
sistência de um compromis ,, - consens9. Com elas, a sociedade e os indivíduos '1
autovinculam-se. a fim de n · o! verem os J;roblemas result.-mtes de urna racionalidade (
imperfeita e dos desvios da• suas vontades. E, através delas. exercem-se ainda fun·
ções de inclusividade, de a"'opoiese 'c ..de controlo.
1
( ) Direito Constitue: : na/, cit., págs. 35-36, e
Direito Constitucional·/, Rela-
tório, Lisboa. 1986. pág. 33 .onde fala em dimensões nxiológica. estrutural, volitiva
e normativa da Constituiçã• '.'·

:,...~ ..
t •I • ,,
78
_____ __
Manual de Direito Con.rtitacic na! __,_
. I

Constituição política, em resultado de uma interpretação jurídica actuali-


z.ada. Não se trata de passar de um plano ao ou' ro. Trata-se de dois pla-
nos separados, de tal modo que o poder normativo dos factos, impondo
vigências normativas, deixa inoperantes as fontes fonnais do direito.
A insistência na Constituição formal, embora praticando a Constituição
real, corresponde à importância política da imagon em todo o processo de
poder,- a qual tem a função de facilitar os relacionamentos internacionais e
I
de contribuir para a consolidaÇão da obediência (porque sempre definida em
atenção aos juízos populares de legitimidade do :loder) (1).

IX - Confonne escreve Josá CARLOS VIEIF ADB ANDRADE, a Consti-


tuição não é uma pura manifestação de podt:r que se perpetue. Na sua
rigidez formal, ela tem uma intenção integradora e a sua função principal
é a criação e a manuteüçãb 'Contínua da unidade política e da unidade do
ordenamento jurídico-intenção e tarefa que só se cumprem através da liga·
ção constante à realidade do momento presente.
Mas tal unidade polític_a fundamental não p·)derá constituir-se se não
tiver um significado material, e não poderá Sübsistir se não tiver uma
razão-de-dever-ser-assim. No tocante·, por exetnplo, aos direitos funda·
mentais à face da Constituição portuguesa de 197t, encontra-se uma unidade
.I
de sentido, que é a dignidade da pessoa humana; e não se trata de uma
unidade puramente lógica ou funcional, mecânh:a cu sistémica, mas uma uni-
dade axiológico-normati va. ·
Por outro lado, as normas constitucionais- situadas no topo do orde-
namento jurídico, desenquadradas das demais, dependentes intimamente da
evolução social, política e cultural de cada pafs e resultantes, muitas vezes,
de revoluções ou mutações bruscas- apresen:arr, uma solidão e uma aber-
tura estrutural que, somadas e multiplicadas entn si, determinam a insufi-
ciência e a impropriedade das regras tradicionais de interpretação.
Ao contrário das nonnas de direito privado, eias não estão incluídas num . :.
«todo» histórico-dogmático (2).

X -Numa linha de pensamento próximo dos modelos de sociologia


jurídica de LUHMANN.6 MARCELO NEVES vé. a Constituição na acepção
moderna como factor e produto de diferenciaç1io cntre sistema político e sis-
tema social.

(I) Ciência Política, Lisboa, 1979, págs. 129 e segs.


(2) Os Direitos Fundamentais na Constituiçi·o Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, maxirne págs. !Oi, 107, 120, 127 e segs. e 22~. Cfr. na 2.' ed., Coimbra, 2001,
págs. 101 e segs. e 394.
.i

I,;, 'tl; ! .. i"ll J{ 'I


•·
.,__
Parte TI- Con.rriruiçdo 79 .

A positividade camo facto de o Direito se autodeterminar implica a


exclusão de qualquer supradetenninação directa (não-mediatizada por critérios

I intra-sistémicos) do Direito por outros sistemas sociais: política, economia,


ciência, etc .. De acordo com isso, a relação entre .sistymas jurídico e polf-
tico é horizontal-funcional e não mais vertical-hierárquica. Nesse novo
contexto, sem os seus fundamentos polí~icos e morais gÍobalizantes, o sis·
tema jurídico precisa de critérios internos não apenas para a aplicação jurí-
,,
..

dica concreta mas _também para o estabelecimento de nonnas jurídicas gerais


Oegislação em sentido amplo). Esse papel é atribuído ao Direito Constitu-
cional.
, . O Direito Constitucional funciona como limite sistémico-intemo para
a capacidade de aprendizado (·> abertura cognitiva) do Direito positivo.
Com outras palavras:fa Constituição detennina como e até que ponto o sis-
tema jurídico pode reciclar-se sem perder a sua autonomia operacional.
A falta de uma regulação estritamente jurídica da capacidade de recicla-
gem do sistema jurídico conduz - numa sociedade hipercomplexa, com con-
sequ~ncias muito prohl,emáticas - a intervenções directas (não-mediatiza·
das pelos próprios mecanismos sistémicos) de outros sistemas sociais '-
soPt-etudo do pol!tico, no Direito. Porém, é de observar-se que o sistem~ 1
constitucional também é capaz de se reciclar em relação ao que ele mesmo
prescreve. Esse carácter cognitivo do sistema: constitucional expressa-se
explicitamente através do procedimento específico de reforma constituoio:
na!, ~~.também se manifesta no decorrer Clo processo de concretização
constitucional. Não se trata, por conseguinte, de uma hierarquização abso-
luta. Principalmente as leis ordinárias e as decisões dos tribunais compe-
tentes para questões constitucionais, que numa abordagem técnico-jurídica
constituem Direito infraconstitucional, detenninam o sentido e cbndicio-
nam a vigência das normas cons~itucionais. i
} A Constituição desempenha uma função descarregánte para: o Direito
positivo como subsistema da sociedade modem~. caracterizada pela super-
complexidade. Impede que o sistema jurídico seja bloqueado pelas mais
diversas e contraditórias expectativas de comportamento que se desenvolvem
no seu meio ambiente. Essa função descarregante é possível apenas atra-
vés da adopção do «princípio da não identificação». Para a Constituição ele -7
significa a não-identificação com concepções globais (totais) de carácter
religioso, moral, filosófico ou ideológico.\ A identificação ila Constituição
com uma dessas concepções viria bloquear o' sistema jurídico, de tal maneira
que ele não poderia produzir uma complexidade interna 'adequaqa ao seu
hipercomplexo meio ambiente. Uma Constituição identificada com «Visões
de mundo» totaliza~oras (e, portanto, excludentes) só sob as condições de

_
80 - ·
- Manual de Direi/O Collsrirucional
_ _ _ _ _ _......___
--~:=.:....;.;_:_:__...:___...:__.

uma sociedade pré-moderna poderia funcionar de forma adequada ao seu


meio ambiente ( 1). .
I .
XI- Outro Autor bhlsileiroÍ:LENIO LuiZ STRECK}propõe um~ maneira
de ver a Constituição adequada a países de ~~~ernidade tardia», de certo
modo retomando e adaptando a concepção de êonstituiçlo dirigente de
GOMES CANOTILHO, em bus~a da efcctivação dos .direitos sociais funda-
mentais. !
A Co~stituição, enquanto matriz privilegiaCÚ\dc sentido do ordenamento,
que une o político e o jurídico, é o espaço (enquanto cccomo se») onde. se
«fundamenta» o sentido jurídico. Ocorre que esse sentido «fundante» acon-.
tece a partir de uma manifestação prévia, no interi9r do qual já existe i.lm
processo de compreensão. A Constituição, ·assim, ftfnda. sem ser -funda-
menro», porque não é uma categoria ou uma 'hipóte~e ·a partir da qual se
possa fazer «deduções».
Daí que seja possível afirmar que a noção de Constituição é um para-
doxo, exactamente porque funda sem ser fundamento, e, ao mesmo tempo,
constitui sem constituir, como se houvesse um ponto de partida. A Cons-
tituição é um paradoxo, na medida em que temos que colocar um ponto de
. ,. partida (por isso é als ob, ondh o «como se» deve ser entendido «como se
"• apanhasse o todo da interacção humana no mundO' jurídiCO»), mas ao mesmo
i~
.:1 tempo ela frustra essa pretensão de ser o começo1 já que esse se dá sem-
... pre de novo e' de várias formas na antecipação de sentido, .a partir do
modo prático de ser-no-mundo do intérprete.
A Constituição não teria sentido sem a compreensio prévia do sentido,
mas não teria sentido falarmos nessa compreensão prévia sem que estivés-
semos lidando com o sentido mesmo da Constituição, no nível do quotidiano
e da interacção social. Daí que a Constituição deva ser entendida como um
existencial , ou seja, não deva ser apreendida simplesmente no plano
õnlico 7objectivista, e, sim, no plano ontológico-existencial, isto é, como
manife..~wçiio tia própria condição existencial do ser humano. Nesse sentido,
n Constituição emerge primariamente da própria existlncia e sempre a ela
remete (2). · ,'
No paradigma que antecede à noção de Constituição programático-dili-
gente, o Iex to constituci.onal era entendido como uma terceira,coisa que se

•,

( 1)A constirucionalização .. . , cit., págs. 65, 67 e 68.


(l) Jurisdição Constitucional e Hermenêutica- Uma Nova Crílica ·do Dirtilo,
Pono Alegre, 2002, págs. 122 e 123.

..... f
Parre 11 -- Consrituição 8l
·~-------------------

interpunha entre o sujeite (da filosofia da consciência) e o objec1o (a socie-


dade). A linguagem co• srituinte da busca do novo, da cmancipaçllo da
soci!l(lade, do resgate das promessas da modernidade, dramaticamente sone-
gadas em p!líses periféric •s como o Brasil, passa a ser, no interior do novo
P.WJ!digmn, condiçiio de lOssibilidade desse novo, pela exacta raz4o. de
que, na tradição engendr. da pela noção de Estado Democrárico de Direito,
o constitucionalismo já nlio i m~is o de lndole liberal. mas, sim, um
constitucionalismo pro. uto de ,um constructo que estabelece, em una
no.vo-modo-de-ser institt. !do pelo pacto constituinte, os limites do mundo
ju.rfdico-social.

· XII- Num recentí simo livro, LUIZ VEROILIO DALLA ROSA traz inte-
ress.antes considerações : cerca ~a Constitu~ão" li propósito daquilo a que
chama o discurso constil •cional. .. .. . , . }'
Segundo este AutoJ a CdnslituiÇão surge, no aspecto jurídico-posi-
tivo, como o elemento v ·rificador da validade interna dos demais compo-
nentes do sistema jur!dic• e pode conceber-se, não mais como norma supe-
rior, mas sim como mon ento de unidade ou sentido (1).
O sistema jurídico não é mais representado pela metáfora piramidal
de base kelseniana; pode· .e apenas indicar o sentido assumido pela realidade
constitucional num· dete minado momento histórico, segundo a natureta
específica das situações eguladas, actuando o discurso constitucional (for-
mal e materialmente) nu 1a relação que se pode ch&nru· de ol"bital. Isto é,
a Constituição se apresem., comp um momento central, como o elemento uni-
ficador e teleológico ca: az de indicar o modus de concreção do Direito.
Mas não apenas a ~alidade, como corolário da legalidade, se apre-
serlta como componente lo movimento constitucional. A legitimidade das
nOJ:lllas constitucionais (< mesmo da Constituição) também deve ser atingida
pela via discursiva, prot mdo os mecanismos de adequação e «validação»
externa do fenómeno jUI 'dico, agora visto sob a forma de um poder espe-
cífico existente por dele! 1ção. Enquanto delegação social (a titularidade do
poder juridico e constitu !lte está na sociedade) a Constituição deve corres-
ponder não apenas a um • ordem jurídica válida mas 'também legítilna, isto
é, assentada numa previs o de aceitação da sua vinculação, seja sob a fonua
de uma vontade socialm nte manifestada (Wille zur Veifassung), seja sob a
forma de um «Sentiment• •·> que corresponda à sua necessidade. De qualquer
fólma, um mínimo de e:·cácia, reconheCido até mesmo por K.ELSEN, é exi- •'

1
curso constitucional, São Paulo, 2002, págs. 180, 181,
( ) Uma reoria do d <
182 e 261. .
6- Manual tJe Oirciao Cons111 . ional, li

•• • t

·~ .
82 Manual de Direito Constitue• mal
----------~~--

gido do fenómeno jurídico para a sua actuação, ; té mesmo para a sua con-
cepç~o. . .,, · "~. :..... .·.-- ·

23. Visão adaptada

I - Resta ex.por o essencial da nossa c·rientação, tentando sin-


tetizar, clarificar e sublirt~ar aquilo que err. vários passos já ficou
escrito e tendo em conta aquilo qu,e, a respecto de alguns problemas
. em especial, ainda havemos de dizer. Decorrente das concepções
fundamentais sobre o Direito a que há muito aderimos (1) (2) bene-
ficia ' naturalm~nte . (cqmo
' . . . .. . não~ ..,,podia deixãr de ser), das contribui-
'

ções doutrinais acabadas de citar.

ll - Assim, antes de mais, enquanto parcela do ordenamento


' .
• jurídico do Estado, a Constituição é elemento conformado e ele-
mento conformador de, relações sociais, bem como resultado e fac-

(I) V. Contributo para uma teoria da inco11sti.ucionalidade, cit., págs. 30,


62 e segs. e 101 e segs.; Ci€ncia PoUtica e Direito Constitucional, policoplado,
Lisboa, 1972-73, 1, págs. 217 e segs., e 11, págs. 115 e segs. e 125 e segs.; A Revo-
lução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, c>t., págs. 20, 81 e 97; A Consti-
e
tuição de 1976, Lisboa, 1978, págs. 57, 180 e segs., 20: e segs., 249-250, 348 segs.
e 473 e segs.; Relatório, com o programa, os conteúdos e os métodos do ensino de
Direitos Fundamentais, in Re.llista da Faculdade de Di,eito da Universidade de Lis·
boa, ano X.XVJ, maxime págs. 465 e segs.
(2) A nossa posição geral sobre o Direito .; a Constituição foi objecto de
qualificação critica por outros autores. Disse-se dela qu: era «um jusnaturalismo com
forte influência de um neopositivismo sociológico·• (.v1ARCELO REBELO DE SoUSA,
Direito Constitucional, cit., pág. 28, nota, e, mencs vincadamente, Direito Consti-
tucional-/, Relatório, cit., pág. 13); ou que era «Um sociologismo remanescente con-
jugado com o apelo à ideia de Direito Gusnaturalista Ol fenomenologicamente carac-
terizado e determinado?)» (GoMES CANOTILHO, op. cit., 2.' ed., .1, págs. 39-40, nota).
Nós próprios f!!>lámost:em ~<j.usn~turalismo temperado por um neo-institucio-
nalisrno» (na 2.' ed., pág. 59, nota). Mas hoje parece-nos menos relevante .uma
definiçl!o. Só importa salientar que nlio seria conect.J apelidar de positivista ·uma
obra como esta, em que se presta um significativo realce à Declaração Universal dos
Direitos do Homem e ao prellmbulo da Constituição, t.m que se afirma a existência
de limites mat,'i tais do poder constituinte, em que se ;alienta o papel conformador
dos princípios cvnstitucionais, érn que se reconhece na dignidade da pessoa humana
o reduto insu pr · ~ vel de garan•ia do~ d.ireit~s fund o, mentais. ·

I
.
: .
Parte ll. - Constituição 83

tor de integração pq~ítica. Ela reflecte a fonnação, as crenças, as ati-


tudes mentais, a geografià eras condições ·económicas de uma socie-
dade· e; simultaneamente, imprime-lhe carácter, funciona como prin-
cípio de organização, dispõe sobre os direitos e os deveres de
indivíduos e dos grupos, rege os seus ~omportamentos, racionaliza as
suas posições recíproca's .e perante a vida colectiva como um todo,
podeI
ser agente ora de conservação, ora de transfonnação.
Porém, por ser Constituição, Lei fundamental, Lei das leis,
revela-se mais do que isso. Vem a ser a expressão imediata dos
valores jurídicos J>ásicos acolhidos ·ou dominantes na comunidade
política, i!- sede ·da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de refe-
rência do · poder poütico que. se pretende ao serviço desta ideia, o
instrumento último de reivindicação. de segurança dos cidadãos frente
ao poder. E, radica_da na soberania do Estado, torna-se também
ponte entre a sua 6rde1!l interna e a ordem internacional.
A interacção em que se move todo o Direito dito positivo .::._com
os princípios éticos transcendentes, por um lado, e, por outro lado,
com as estruturas, a situação concreta, o dinamismo 'da vida de um
povo - mostra-se aqui muito mais forte, devido às funções funda-
' '
mentadora e limitativa, estabilizadora e prospectiva do sistema ç!as nor-
mas constitucionais e à sua específica acção sobre as demais normas
e sobre todos os actos do poder. E se qualquer destas funções não
é exercida corrói-se o patamar de legitimidade da comunidade e do
poder.
A Constituição tem de ser constantemente confrontada com os
princípios e é por eles envolvida em grau variável; tem de ser sem-
pre pensado em face da realidade política, económica, social e cul-
tural que lhe está subjacente e que é uma realidade não apenas de fac-
tos como ainda de opiniões, de ideologiàs, de posturas políticas, de
cultura cívica e constitucional
1
( 1)'; e esta cultura
.
carrega-se, por seu
turno, de remissões para.princípios valorativos superiores (o que sig-

.
(I) Cfr., por todos, BERTRAND
~
BADIE, Culiure et Politique, Paris, !983, ma.xime
págs. 43 e segs., 57 e 58 e segs.; MARCELO NEVES, op. cit., págs. 76 e segs.; PETER
H.i.lii!Rt,.E, Veifassungslehre und Kulturwissenschaft, 2.• ed., 1996, trad. Teoria de
la Constitución como ciencia de la cultura, Madrid, 2000, maxime págs. 34 e segs.

... ,.
Manual de Direito Constiwcional

nifica que se dá uma circulação entre valor, Constituição e realidade


constitucional) (I) (2).

III - A Constituição (ou, como conceito mais denso e rico, a


ordem constitucional) não aglutina todos o~ valores, nem é, em si,
valor supremo. So(r,endo o influxo dos valor~. nem se dllui neles,
nem os absorve. Uma relativa diferenciação de· domínios exige-a a
consideração quer dos valores humanos mais preciosos, quer do
papel, no fim de contas, precário e transitório de cada sistema posi-
tivo; afigura-se ine~inúnável no mundo cóxpplexo, d.iví.dido e copfli-
tual dos nossos d1as; somente ela permite, no hm1te, contestar
os comandos constitucionais quando seja irredutível a incompatibi-
lidade. ·· ,.
Mas a procura dos valores não se confunde com qualquer sub-
jectivisrno; os valores só são eficazes, quatido acdquirem objectividade
e duração. A ideia de Direito na qual assenta a Constituição mate-
rial surge necessariamente como ideia comunitári~ como representação
que certa comunidade faz da sua ordenação e do· seu destino à luz dos
princípios jurídicos (3). '
I,

; ;I Se toda, a ideia de Direito se define por um sentido de justiça,


•l.
também ap~·ece situada e dependente do tempo .e do lugar; e a refrac-
ção há-de sér tanto maior quanto maior for o activismo e a ostenta-

(1) Cfr. GERHAROT LEIBHOLZ, La RappresetllOlÍOne nella Democrazia, trad.,


Milão, 1989, págs. 351 e segs., maxime 354: a inclusão da re11,1idade polftica no
interior do conteúdo de valor material da Constituição tem os seus limites aí onde
esta realidade tende a transformar o conteúdo da Con$tituiçlo, que é um conteúdo
normativo.
(l) Sobre a realidade constitucional, v., entre nós, ROGÉRIO SOARES, Direito
Público e Sociedade Técnica, cit., págs. 19 e segs., maxime 30 e segs., LiçÕes de
Direito Constitucional, policopiado, Coimbra, 1970-19n, pág. 86, e Constituição,
cit., loc. cit., págs. 667 e 668; LUCAS PIRES, Teoria.:., cit., pãgs. Sl-52; JORGE
MIRANDA, Manual..., IV, 3,.' ed., Coimbra, 2000, págs. 392 e segs.; QOMI!S CANO·
TILHO, Direito ... , cit., pág. 1420. .
3
( ) A ideia de Direito é a intenção axíológíca da realiução comunitária (CAS-
TANifEIRA NEv.Es, O papel do jurista no nosso tempo, in Boletim da Faculdade de
D~reilo da Universidade de Coimbra, vol. XLIV, 1968, pág. 127). V. também A redu·
çao polfttca do pensamento meJOdol6gico-jurfdlco, Coimbra, 1993, págs. 33 e segs.
f'urtc 1/ - Cons:ituição 85

ção das ideologias. l\ 1m contexto de coptrastes ideológicos e até de


legitimidades (como f Jram o dos séculos XIX e xx) pode, por vezes,
a· ideia: de Direito que :onsegue passar para a lei constitucional incluir
disposições e formas organizatórias, cujo distanciamento deste ou
,daquele princípio étic , seja evidente para boa parte da comunidade
ou para a comunidad· · como uni todo nas suas camadas mais pro-
fundas de consciência e pode ainda suceder que a própria ideia de
Direito ou a legitimid tde declarada pelos detentores do poder, ape-
sar de se impor e obt< r o conséntimento, acabe por não obter a ade- I
·;
são e venha a provoc: r, a prazo, a repulsa.
· O conceito de Co1 ~tituição converteu-se, na época actual, num con- '
I

ceito neutro, em que :e enxertam conteúdos políticos, económicos e


sociais divergentes e <ue se .têm· proje<$clo.em.' tipos constitucionais
caracterizados. A Con! .ituiÇão conçreta de cada povo, o estatuto da sua
vi~a política! n~~ é, .p( rém -:- nãô podé sêr : .:. .;
para o ~idadão e para
o jurista, neutra, indi: .:rente, isenta ou insusceptível de apreciação. ,•
Nem tudo que se tpresenta como constitucional o merece ser (se I

bem que não seja pací ica a qualificação da eventual desconfomúdade •


e se bem que a recus; do cumprimento da norm11 tenha de ser sem-
pre ponderada com o 1tros valores e interesses) e nem tudo que se ,;

apresenta decretado <:)mo constitucional o consegue ser efectiva- ~


I
mente, por inadequaçã1 . desequi!Jbrlo, incapacidade de integração, con-
tradição insanável cor! outras normas. Assim como o preceito cons-
ti~cional pode pade< !r de inflexões de estatuição, em virtude da
dinãmica política nas< ida da execução ou à margem da execução da
Constituição.
. Em último term< ·. uma Constituição só se torna viva, só per-
manece viva, quandc o empenhamento em conferir-lhe realização~
es~á ern. consonância .:?ão só intelectual mas sobretudo afectiva e 7
exxstenctal) com o seJ:L!do essencial dos seus princípios e preceitos: ..
quando a vontade da < onstituição (KONRAD HESSE) vem a par do sen-
timento constituciona. (LUCAS VERDU) (').

1
( ) V. LUCAS VERD 1 ', El sentimiento COIISiitucional, Madrid, 1985, maxime
pág. 6: e, acerca das Cons1 uições do segundo pós-guerra, MAJUO DoGLIANI, op. cit.,
.. págs. 315 e segs .

..
..\ : .... • ·~· ··i; :

,"' . ., . ~ I' •
1)
86 Manual de Direito Co1ttlll tc!Onal
~-----.--'---

IV - Acrescente-se que, a despei1o de todas as mutações dos


últimos cem anos, se verifica, por toda a parte, uma sobrevivência ou
uma interferência de alguns dos elementos com raiz no constitucio-
nalismo liberal. Não é apenas nos sistemas democrático-pluralistas
que se coloca o problema da repartiçã.o e limitação do poder (f);
este problema não está ausente dos restantes sistemas e tipos cons-
titucionais, quer por ser problema vital df estrutura organizatória do
Estado; quer (pelo menos) pelo cotejo que, na comunidade, se vem
a estabelecer entre um sistema ou regime político assente no postu-
lado de divisão e·lirhita:ção e outro procedente de prinCípio discrepante
ou oposto.
Não é por acaso que as novas Constituições e as Constituições
compromissórias somente logram garantir direitos individuais e
institucionais sem fracturas e modelar ) futuro comunitário sem :
rupturas, se satisfazem três requisitos primordiais: a) máximo rigor
possível nos preceitos atinentes a direitlls e liberdades fundamen-\
'
u·. tais do homem, do cidadão; do trabalh3dor, e dos grupos em que
se inserem, não cabendo ao legislador e ao aplicador senão uma
tarefa de interpretação e de regulamentação; b) abertura, nos limites ·
:J
da sua força riÓrmaHva, dos preceitos a1inentes à vida econ6mica, .
social e cultural, sujeitos aos sucessivos modos de concretização
inerentes às .manifestações da vontad~ política constitucional-
mente organizada; c) criação de mecanismos jurídicos e políti-
cos, procedimentais y processuais, d·:! .~arantia das normas cons-
titucionais.
Deste prisma, observa-se, pois, ainda uma tensão dialéctica: uma
tensão entre a noção ideal de Constitui<;ão (liberal) e todos os demais
conteúdos da Constituição e entre o Est1do de Direito e os ãémais
tipos constitucionais de Estado.

( 1) Concorde-se OU não com LOEWENSTEIN . ao afirmar que, em sen~do onto-


lógico, o te Los de qualquer Constituição é a ctiaçã< · de instituições para limitar e con-
trolar o poder político (Teoria ... , cit., pág. 251;; ou com C. 1. FRIEDRICH, quando vê
na Constituição moderna um sistema de freios (o?. cit., págs. 64 e segs.); ou ainda
COm MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, qu.mc O abrange em «padrões heterodo-
XOS da C,·:.<ituição», a Constituição-balanço ' a! Constituições nominais e semân-
ticas (Eo. ...:o de Direito ..., c10. págs. 86 e sep.)

L:..

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