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Não dá para ser cristão e marxista ao mesmo tempo

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Apesar dos esforços do filósofo Terry Eagleton, o Papa João Paulo II refuta a ideia de que é
possível ser marxista e cristão ao mesmo tempo – algo que Fernando Haddad tentou
durante as eleições de 2018.| Foto: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP
Jason Morgan
Public Discourse
[24/05/2019] [16:03]

Em seu mais recente livro, Radical Sacrifice [Sacrifício radical], o prolífico erudito e crítico
literário Terry Eagleton continua com sua defesa apaixonada do marxismo, que teve início
em 2011, com o livro Marx estava certo. Aqui, como em vários outros de seus textos,
Eagleton argumenta — explicitamente, com erudição e, aqui e ali, uma perspicácia brilhante
— que o marxismo não é apenas um resquício do passado, e sim uma forma viável de
propor e aceitar um futuro melhor.

Mas Eagleton não é o defensor típico do materialismo dialético, isolado numa torre de
marfim. O que torna Eagleton um caso raro entre seus pares acadêmicos é que ele é um
católico e um marxista – e não demonstra qualquer arrependimento por isso. Em Radical
Sacrifice, Eagleton se aproxima mais um pouco de seu objetivo final de, de alguma forma,
combinar o marxismo e o catolicismo.

Infelizmente, o elefante na sala – a questão se essas antropologias profundamente


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conflitantes podem mesmo coexistir — aparece com ainda mais clareza no fim do livro. Não
há muita esperança de que o projeto de Eagleton um dia triunfe. Na verdade, tudo, na
história e na doutrina, sugere que ele fracassará. O receituário marxista-católico de Eagleton
é intrigante, mas, ao longo do livro, fica cada vez mais claro que ele está defendendo não
uma mistura das duas coisas, e sim a subordinação de uma a outra.

O anawim: um proletariado bíblico


O marxismo de Eagleton não bebe do vocabulário comum do gênero. Seu vocabulário é
uma espécie de reflexão sobre a dinâmica do pensamento marxista baseada na Bíblia e nos
Grandes Livros. Fundamental para o projeto católico-marxista de Eagleton é o conceito de
“anawim”. Eagleton vê o anawim — termo hebraico para os marginais e os pobres, cuja
libertação depende apenas de Iavé — como uma espécie de proletariado imbuído de poder
metafísico. Por meio do anawim contemporâneo, argumenta Eagleton, o sistema mundial
dominante será desestabilizado. Inspirado na história do sacrifício no Ocidente judaico-
cristão, Eagleton propõe o anawim realizando um desfile bakhtiniano em oposição ao
paradigma socioeconômico e político.

Leia também: O esquerdismo como religião secular

Como a pedra jogada fora que agora se torna a base de um edifício, os pobres da Terra
darão origem à nova ordem, revelando a “arrogância” do mundo que ignorava seu
sofrimento, tornando-se, assim, um instrumento de salvação. “Para a fé cristã”, escreve
Eagleton,

Deus está mais presente nos despossuídos. A perda de dignidade deles reflete seu próprio caráter
não-humano, assim como a assustadora natureza inumana de seu amor incondicional. Os pobres são
sinais de Iavé no fato de que eles dependem apenas de Deus, depois de abdicarem de qualquer
poder humano.

É justamente na ruína que Eagleton vê os pobres no auge de seu poder sobrenatural e


terreno. Em sua morte, Jesus de Nazaré acabou com a esperança daqueles que pensavam
que ele veio para liderar uma revolução política. Por outro lado, Eagleton quer, sim, trazer o
Reino dos Céus para a Terra, e quer que os pobres nos inspirem a fazermos isso.

Eagleton argumenta que os pobres “só por existirem (…) traduzem o que ainda há para ser
feito politicamente a fim de ajudá-los a alcançarem [o Paraíso]. Eles são um sinal de tudo o
que ficou por ser feito na história e, neste sentido, são um testemunho do que ainda tem de
ser feito”. Quando Eagleton menciona positivamente “a revolta iminente que Marx chama
de comunismo e o Evangelho chama de Reino de Deus”, ele pretende associar a revolução
marxista e a antiga ideia cristã de sacrifício. De acordo com sua visão de mundo, os seres
humanos têm de se revoltar, recusando-se a se prostrarem diante do capital e se
sacrificando em nome de uma ordem social mais justa.
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Ao contrário de Marx, que via as classes operárias lutando nas fábricas capitalistas como
estandartes da mudança histórica hegeliana – ou até de Mao, que substituiu os operários
pelos camponeses como estopins da revolução socialista – o marxismo de Eagleton
deposita o peso pela defesa da dialética nos ombros dos pobres. Para Eagleton, o anawim
não é uma classe, e sim um povo bíblico, os desgraçados da Terra vistos com bons olhos
por Deus. A justiça que eles trarão não tem nada a ver com a “destreza histórica”, e sim com
a vontade de Deus.

Beatitudes radicais
Este ponto é importante. Ao posicionar o anawim como o novo proletariado, Eagleton
espera que nós, os não-anawim que gozamos dos confortos da abundância material do
capitalismo, não seremos obrigados a encenar o drama marxista da história por meio da
violência de ter uma arma apontada para a cabeça (como Marx, Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot,
Kim Jong-Il, Fidel Castro e outros marxistas acreditavam entusiasmadamente). Em vez disso,
seremos inspirados pelos pobres ao nosso redor a fazermos as mudanças necessárias para
criarmos um mundo mais justo para todos. Em outras palavras, em vez de os anawim
tomarem os meios de produção e mandarem todos os industriais e a pequena burguesia
para a guilhotina, eles expressarão o amor de Deus pela sociedade como um todo, amor
este que, por sua vez, nos transformará todos numa comunidade mais solidária e amorosa.

Exageros marxistas de lado, isso soa como algo que Jesus mencionava em várias de suas
parábolas, incluindo, claro, o Sermão da Montanha. Os pobres, os sofridos, os
negligenciados, os desprezados – eles serão exaltados, disse Ele, enquanto os orgulhosos
de hoje ficarão, amanhã, na vontade.

Em termos mais concretos, Eagleton insinua que a Igreja Católica pode servir de modelo
para a sociedade que ele procura. Radical Sacrifice é dedicado às irmãs carmelitas do
Priorado Thicket de York, na Inglaterra. As freiras lá são “descalças”, o que significa que elas
usam sandálias como forma de aderirem aos rigores das normas estabelecidas por Santa
Teresa d´Ávila há quase quinhentos anos. A comunhão e a solidariedade radicais, uma
sociedade baseada no amor e às margens do mundo, uma reunião de pessoas que aceita a
pobreza e busca a caridade aos mais pobres: se há uma comunidade de sacrifício
transgressivo elevado do tipo que Eagleton busca é com certeza essa.

Mas Eagleton não se contenta em nos deixar vivermos nossas beatitudes. As carmelitas são
um bom começo, mas não chegam nem perto. Santa Teresa de Calcutá pode recolher os
marginais das sarjetas do mundo o quanto quiser, mas tais feitos simplesmente não servem
para a visão hiperbólica de Eagleton. No final das contas, Eagleton quer algo radicalmente
diferente do que Cristo descreveu — não compaixão pelos pobres agora e o ajuste de

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contas mais tarde, de acordo com a lei de Deus, e sim o nivelamento das diferenças sociais
e a redenção final aqui e agora. Caridade, por assim dizer, mas do tipo que antes verifica
suas credenciais políticas.

Utopismo violento vs. Amor cristão


Aí é que está o problema. Será que o Cristianismo, centrado a morte de Deus no contexto
da destruição da esperança humana por um Paraíso político, pode mesmo “fazer a
transição” (como espera Eagleton) para o marxismo, que busca a utopia no presente e que
nunca provou ser capaz de usar outro recurso que não a violência para realizá-la? Levando
em conta o histórico assustador do marxismo no que diz respeito à religião, como Eagleton
pode ter certeza de que, dessa vez, o marxismo será capaz de sacrificar seu verdadeiro
caráter – a hostilidade impecável contra as fés religiosas – a fim de aceitar o amor
desapegado e caridoso, a não-violência e tolerância paciente que tornam as irmãs
carmelitas tão diferentes daquilo que Eagleton diz ser seu verdadeiro herdeiro? Neste
sentido, será que o Cristianismo – que tem por uma de suas consequências a resignação
política – pode “fazer a transição” para uma doutrina de politização racial e luta de classes?

Apesar de a história marxista ser sangrenta o bastante para fazer com que todos, exceto os
utópicos mais entusiasmados, parem para pensar, talvez não haja refutação melhor do
trabalho de Eagleton do que a obra de Karol Wojtyła, o Bispo de Cracóvia que se tornou
Papa João Paulo II. Durante seu ministério na Polônia comunista, Wojtyła sofreu na pele a
violência marxista contra os cristãos e todos os que professavam suas fés. Era de se
esperar, portanto, que Wojtyła denunciasse o marxismo com base nos fatos históricos de
massacre contra todos os povos de fé.

Enquanto Papa, contudo, João Paulo II optou por denunciar o marxismo por sua
incompatibilidade fundamental em relação ao Catolicismo – em termos intelectuais e
teológicos, e não usando os incontáveis exemplos de sua barbárie no mundo real. O
marxismo jamais poderia se associar ao Cristianismo, ensinou Wojtyła, porque ele era
implacavelmente hostil a Deus e ao conceito cristão do homem.

Como ele escreveu na Encíclica Dominum et Vivificantem, de 1986:

[A hostilidade ao Espírito Santo] alcança sua expressão mais clara no materialismo, tanto em sua
forma teórica – como um sistema de pensamento – quanto na sua forma prática – como método de
interpretar e avaliar os fatos, e ainda como um projeto de conduta. O sistema que mais desenvolveu
e levou essa forma de pensamento, ideologia e práxis às suas consequências extremas é o
materialismo dialético e histórico, ainda hoje reconhecido como a essência do marxismo. Em
princípio e de fato, o materialismo exclui completamente a presença e a ação de Deus, que é espírito
no mundo e sobre todos os homens. Fundamentalmente, isso se dá porque ele não aceita a existência
de Deus, sendo um Sistema que é essência e sistematicamente ateu.

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O motivo pelo qual o marxismo é “sistematicamente ateu” é explicado pelo próprio Marx em
O 18 Brumário de Luís Bonaparte.

A Humanidade não é um coletivo vazio – somos indivíduos


numa relação com Cristo
A essência da antropologia histórica de Marx é a instrumentalização coletivista, vazia,
predestinada e inexorável do homem como ferramenta histórica, a redução do homem pelo
materialismo dialético a figurantes sem nome e rosto no drama principal da luta entre o
proletariado e a burguesia. A negação da liberdade individual por Marx fechará as portas
rapidamente para a obra do Espírito Santo no coração de cada pessoa. Como diz Marx:

Os homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem como bem entendem; eles não a fazem
sob circunstâncias que escolhem, e sim sob circunstâncias que já existem, dadas e herdadas do
passado.

O fato de Marx condenar toda a burguesia como classe, simplesmente por serem donos de
propriedades que foram roubadas, diz Marx, no pecado original marxista da “acumulação
primitiva”, o leva e leva seus seguidores a apoiarem o assassinato em massa da classe
inimiga a fim de remover a mácula da transgressão anterior e contínua.

João Paulo II ensina que a abordagem cristã é completamente diferente. Jesus não age de
acordo com suas preferências. Ele escandalizou seus contemporâneos ignorando limites de
classe, jantando com prostitutas, coletores de impostos, pescadores e donas-de-casa. Ele
encontra cada homem e mulher em seu coração, chamando-os individualmente para que
eles possam, por livre e espontânea vontade, “se arrependerem e acreditarem no
Evangelho”. Marx apela à consciência de classe, mas Jesus fala à consciência — e a
consciência é a nossa porção mais íntima e privada. Não podemos ser ao mesmo tempo
cristãos e marxistas.

Um indivíduo — o “primogênito de toda a Criação”, como João Paulo II o chama —“ganha


corpo na humanidade individual de Cristo e se une de alguma forma a toda a realidade do
homem”. Nossa natureza não é a de uma engrenagem minúscula num coletivo sem
identidade, e sim a de indivíduos numa relação com outro indivíduo, a Segunda Pessoa da
Trindade. Esse é o ensinamento basilar da Cristandade e a hostilidade contra essa
antropologia é o ensinamento basilar de Marx.

Eagleton quer fundir Cristianismo e Marxismo, mas para isso teria de fazer alterações tão
profundas num ou noutro – obrigá-los a um “sacrifício tão radical” de seus ensinamentos
essenciais – que o projeto inevitavelmente fracassará. Evocado pelo proletariado,
campesinato, anawim ou qualquer outra coisa que o marxismo use, ele sempre buscará
estrangular todos os seus concorrentes. Terry Eagleton propõe uma revolução mais amena,
uma transição “tranquila” do catolicismo para o marxismo. Isso é teórica e teologicamente
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impossível, já que é algo sem precedentes na história. Qualquer “sacrifício radical” a outra
coisa que não a lei de Deus levará a um banho de sangue e ao sofrimento humano, como
sempre aconteceu em todos os lugares onde este projeto foi tentado.

Jason Morgan é pesquisador e escritor e mora em Chiba, Japão. Ele estuda história japonesa e
norte-americana, política, direito japonês e filosofia.

Tradução de Paulo Polzonoff Jr.

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.

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