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MAURIAC. O deserto do amor.

“Louco, louco! Mas qual raciocínio pode nos defender dessa dor insuportável, quando a
criatura adorada, cuja proximidade é necessária à nossa vida, mesmo física, se resigna,
com o coração indiferente (e talvez satisfeito), à nossa eterna ausência? Nós não somos
nada para aquela que é tudo para nós.” (p. 93)

“O doutor era desses imaginativos que nunca leem romances, porque nenhuma obra de
ficção ganhas das que eles inventam e nas quais têm o papel principal. E mal assinava a
receita, ainda na escada da casa do cliente, já, como uma cão que vai apanhar o osso que
enterrou, voltava às suas imaginações, das quais às vezes se envergonhava, e onde
aquele tímido experimentava o prazer de fazer curvar os seres e as coisas, de acordo
com a sua vontade onipotente. No domínio espiritual aquele escrupuloso não conhecia
barreirais, não recuava diante de pavorosos massacres – chegando a suprimir em
espírito toda a família a fim de criar para si uma existência diferente.” (p. 96)

“Pai e filho tinham vontade de conversar, naquela noite. A despeito deles, uma força os
aproximava, como se ambos fossem portadores de um mesmo segredo. Assim se
procuram e se reconhecem os iniciados, os cúmplices. Cada um descobria no outro o ser
único com que poderia discutir o que mais lhe falava no coração. Como duas
borboletas, separadas por léguas, se reúnem na caixa onde está presa a fêmea com seu
[p. 122] intenso odor, eles também haviam acompanhado o caminho extravagante dos
seus desejos e pousavam lado a lado sobre uma invisível Maria Cross.” (p. 121-122)

“‘Sim, talvez alguma leitura – pensa o doutor – mas não, eu o saberia; isto fazia parte do
meu quinhão! Uma leitura às vezes abala a vida de um homem e quanto! É o que se
diz... mas de uma mulher? Qual! Nós nunca somos profundamente agitados senão pelo
que é vivo, pelo que é carne e sangue. Uma leitura? Ele abanou a cabeça. Um livro, um
bouquin? E a palavra bouquin suscitou no seu espírito outra palavra – bouquetin, bode...
e o doutor viu erguer-se, junto a Maria Cross, um fauno.” (p. 133)

“- Será – pensa Maria – que a minha lei não é a lei comum? Sem marido, sem filhos,
sem amigos, ninguém pode ser mais só mundo; mas que era essa solidão, ao preço de
um outro isolamento do qual a mais carinhosa família não a libertaria: o isolamento que
sentimos o reconhecer em nós os sinais de uma espécie singular, de uma raça quase
perdida, cujos instinto nós interpretamos, e as suas exigências, e as suas misteriosas
metas? Ah, deixar de se extenuar nessa pesquisa! Se o céu ainda estava pálido, com um
resto de luz do dia e da lua nascente, as trevas se amontoavam sob as folhas tranquilas.
Com o corpo inclinado para noite, atraído, como que aspirado pela tristeza vegetal,
Maria Cross cedia menos ao desejo de beber naquele rio de atravancado de ramos, que à
tentação de perder-se nele, dissolver-se – para que enfim o seu deserto interior se
confundisse com o deserto do espaço – para que esse silêncio de dentro dela não fosse
diferente do silêncio das estrelas.” (p. 158)

“[...] fosse a mãe ou a esposa que lhe tocasse a testa, o doutor reencontrava a segurança
de quanto era um menino doente; regozijava-se por não ter que morrer só; pensava que
a morte deve ser o que há de mais simples neste mundo, num quarto de móveis
familiares, de acaju, onde nossa mãe, nossa mulher, se forçam a sorrir; e o sabor do
último momento é disfarçado por elas, como o sabor dos outro remédios amargos. Sim,
ir embora agasalhado naquela mentira, saber deixar-se enganar...” (p. 160)

“Era uma lei de sua natureza jamais poder atingir àqueles que amava; e nunca tivera
melhor consciência disso do que nas ocasiões em que quase o conseguia, quando
puxava para junto de si o objeto tão cobiçado, subitamente diminuído, tão mais pobre,
tão diverso daquilo que por ele o doutor sofrera. Não, não deveria procurar no espelho
motivo da sua solidão – solidão dentro da qual era mister morre. Outros homens, como
fora o seu pai, como decerto seria Raymond, até à velhice, seguem sua lei, obedecem à
sua vocação amorosa, e ele, até a mocidade, obedecera ao seu destino solitário.” (p.
162)

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