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2017
CLAUDIA MARIA POLETI OSHIRO
2017
BANCA EXAMINADORA
Agradeço à minha linda família, à minha pequena Serena por todas as horas que
deixei de ficar com você para me dedicar a este trabalho, à Amanda pelo imenso
incentivo que me permite optar sempre pelo sim, pela realização dos meus sonhos. Ao
meu amigo, companheiro e amor Ricardo, pela segurança, lealdade e carinho que me
permite caminhar com confiança. Ao papai, irmãos e irmã, cunhados(as), lindas
sobrinhas, vovó, tios(as) e primos(as), que sempre me apoiam nas minhas escolhas.
Por fim, agradeço imensamente a minha linda orientadora, que, em meio a tantos
saberes e conhecimentos, contribuiu para que eu pudesse ampliar o olhar para novos
horizontes e traçar novos caminhos. Sandra, o meu muito obrigada!
“(...) mas não sou completa, não. Completa lembra realizada. Realizada é acabada.
Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo. Eu vivo me
completando... mas falta um bocado.”
Clarice Lispector
Resumo
INTRODUÇÃO .............................................................................................................13
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................109
APÊNDICE I.............................................................................................................................116
APÊNDICE II...........................................................................................................................119
INTRODUÇÃO
Apesar de trabalhar há muito tempo com violência, não pude deixar de sentir
tamanha indignação ao atender mulheres, com seus filhos e filhas, nas Casas Abrigo
Regional Grande ABC, ameaçadas de morte pelos companheiros. Ouvir suas histórias,
suas dores, olhar para as marcas, visíveis ou não, foi o bastante para repensar a efetividade
do trabalho profissional que estamos desenvolvendo para combater este fenômeno. A
violência contra as mulheres não é apenas uma violência comum, mas uma cultura que se
estende desde o início da nossa história. Ao questionarmos os motivos pelos quais as
mulheres viveram tantos anos sob ameaças e agressões de seus companheiros, uma das
justificativas mais comuns entre as acolhidas foi que estavam sendo “assistidas” por
lideranças religiosas nas igrejas que frequentavam, porém permaneciam em situações
violentas que quase as levaram à morte. Tais circunstâncias me despertaram para uma
envolvente e complexa indagação: existe relação entre violência doméstica e religião?
Em que medida as ações violentas de gênero são justificadas pelos discursos religiosos?
Quais são estes discursos?
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Brasil. Ressaltamos que todos os nomes mencionados nos depoimentos, tanto das
mulheres em situação de violência doméstica quanto dos homens autores de violência são
fictícios.
Criada em 2003, as Casas Abrigo Regional Grande ABC tem como objetivo
garantir a segurança e proteção de mulheres em situação de violência doméstica e
familiar, sob risco iminente de morte, acompanhadas ou não de seus filhos e filhas
menores de dezoito anos, intervindo no ciclo da violência e propiciando sua restruturação
biopsicossocial. As mulheres acolhidas são encaminhadas pelas equipes técnicas dos
Centros de Referência dos Municípios, que realizam a avaliação do risco iminente de
morte. Elas podem permanecer nesses centros por até 180 dias, ou até que consigam
reunir condições para continuar o curso de suas vidas.
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Para compreendermos o fenômeno que é a violência contra as mulheres e sua
relação com a religião foi percorrido um caminho bibliográfico e pesquisa de campo
conforme apontamos acima. No primeiro capítulo, abordamos conceitos sobre violência,
violência de gênero e como se relacionam entre si. Apresentamos dados sobre a violência
contra as mulheres no Brasil e as influências históricas que levaram a tamanha proporção.
Discutimos e esclarecemos as principais políticas públicas para as mulheres que estão em
situação de violência doméstica no Brasil, bem como uma explanação geral da Lei Maria
da Penha e as formas de violência contra as mulheres. Ainda neste capítulo, é apresentado
o plano nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres e os serviços públicos
especializados para mulheres que estão sofrendo violência, ofertados pelos municípios,
destacando que esta deve ser trabalhada de forma ampla e não somente no singular.
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Sendo assim, esperamos que este trabalho contribua para uma reflexão ampla
sobre as mulheres que sofrem violência doméstica, sobre a construção social alienante,
bem como sobre o poder concedido aos homens e sobre a complexidade e subjetividade
da religião com seu caráter acalentador, confortador e, ao mesmo tempo, opressor e
regulador!
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CAPÍTULO I
Ela está igualmente presente nos rituais simbólicos, em que os cidadãos baseiam
suas práticas sociais através de comportamentos, linguagens, gestos e símbolos. Esse
fenômeno se sofistica através da modernização da sociedade, e suas consequências
variam entre danos físicos, psicológicos, morais, culturais e econômicos. Em outros
termos, a violência material e a violência simbólica estão conectadas.
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Hannah Arendt (1994) entende que a violência abriga em si mesma um elemento
adicional de arbitrariedade. Para ela, poder, vigor, força, autoridade e violência seriam
simples palavras para indicar os meios em função dos quais o ser humano domina o ser
humano. Neste sentido, a violência exerce uma função de manutenção do poder, até
mesmo contra aqueles que são julgados pela maioria. A autora afirma ainda que:
2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Transmitida de geração a geração, foi somente no início dos anos 1980 que a
violência de gênero foi considerada no Brasil como um problema social. Isso se verificou
em virtude da visibilidade nas mídias de alguns casos extremados de violência
perpetrados por parceiros íntimos, capazes de sensibilizar a opinião pública (MORAES,
2009).
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O conceito de violência de gênero é amplo, podendo ser utilizado não como
sinônimo de violência contra as mulheres, mas em todas as relações, já que abrange
mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, presente especificamente nas
violações dos direitos, por parte, sobretudo, de agressores que, na sua maioria, são
homens (SAFFIOTI, 2001, p. 115), pois a violência de gênero é de ordem patriarcal.
Joana, 30 anos, uma mulher que fugiu de sua casa com os dois filhos para não ser
morta pelo ex-companheiro, ficou acolhida com sua prole na Casa Abrigo para mulheres
em situação de violência doméstica. Ao falar sobre a violência do companheiro, afirmou:
Ele dizia pra mim: ‘Se você não fizer o que eu quero agora, eu te mato; se você
sair pela porta eu te mato também; se você fugir, o dia que eu te encontrar eu te
mato; se você ficar dentro de casa eu te bato até você ficar no chão. Você
imagina que se eu te encontrar fora de casa quando eu te achar eu te mato, e se
eu não te achar eu vou matar toda a sua família, um por um, até você se entregar
para morrer.’
Atitudes como essas não podem ser vistas apenas como um ato violento. São ações
e ameaças que precisam ser analisadas e interpretadas considerando a construção social
dos papéis de gênero. O que pode levar um homem a sentir-se dono de uma mulher? O
que autoriza este homem a ameaçar, agredir e aprisionar uma mulher?
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(MACHADO, 1996). Em nossa cultura, desde crianças, as meninas são socializadas para
atender às necessidades dos homens, ainda que sejam pai e irmãos, enquanto que as suas
são geralmente secundárias. É veiculado pela mídia o papel da mulher perfeita, da mulher
ideal enquanto cuidadora, dedicada e abnegada, sendo o homem o ser mais importante e,
depois, os filhos, preferencialmente os meninos. Outra crença de gênero que abala muitas
mulheres em nossa sociedade, é que a sexualidade dos homens é incontrolável e que os
mesmos necessitam “ser servidos” e jamais contrariados, posto que seus desejos são leis
pré-estabelecidas que devem ser cumpridas.
O relato das mulheres que quase foram mortas por seus companheiros, demonstra
claramente tal afirmação. O contrato matrimonial, legalmente estabelecido, contribui para
o controle da sexualidade feminina pelo homem, para o conhecido “dever sexual”, que
obriga as mulheres a manter relações sexuais mesmo sem o desejo de fazê-lo. Esta forma
de violência é muito comum nas relações matrimoniais. O depoimento de Joana, que
também sofreu violência sexual da parte do ex-companheiro e que, durante vários anos,
silenciou sua dor para que ele não matasse a família, ilustra tal afirmação:
Ele me estuprava. Eu não aceitava até ele me proibir de ir na casa dos meus
parentes.
Para Joana, nada foi tão cruel quanto a violência sexual que estava sofrendo. Além
do estupro, tinha que ouvir jargões machistas como:
‘Não se faça de difícil porque sei que você gosta’ ou ele me ameaçava, quando
eu tentava sair daquela situação, e me enforcava até eu quase morrer. Daí, eu
acabava cedendo.
Sem suportar mais tanta violência, Joana foi buscar ajuda técnica no Centro de
Referência Especializado da Mulher:
Em outras situações, eu até aceitava e ficava quieta mesmo; mas quando chegava
a violência sexual eu não dava conta, eu não aceitava, eu não aguentava mais
aquela situação, e aí eu fui buscar os meus direitos.
1
Estudos de Frieze I. H. & Snyder, H. N. Children’s beliefs about the causes of success and failure in
school settings. Journal of Educational Psychology, 72: 186-96, 1980; Citado por: Narvaz, M. G., &
Koller, S. H. (2004). Famílias, gênero e violências: desvelando as tramas da transmissão transgeracional
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homens que foram socializados em famílias em que as mulheres eram vistas como
patrimônio do homem, sentem-se no direito de tratá-las como tal, impedindo sua
autonomia e desrespeitando sua privacidade. Existem outros fatores que devem ser
considerados como, por exemplo, o fato de que muitos homens acreditam que tais atitudes
fazem parte de sua masculinidade e encontram na violência uma única forma de resolver
conflitos.
Com tanto poder conferido ao homem, ele se sente no direito não somente de
manter relações sexuais com a companheira contra a vontade dela, mas ainda de usá-la
para satisfazer seus desejos mais secretos. Tal situação é demonstrada no triste
depoimento de Luana, 48 anos, que viveu sob violência e ameaças durante anos. Seu ex-
companheiro tinha desejos que ela não aceitava; porém, seu poder e fascínio pelo seu
objeto de desejo obrigava Luana a passar por situações humilhantes e imensamente cruéis,
conforme relata:
Ele contratou um travesti na Av. Industrial para transar comigo na frente dele.
Ele comprou um filme pornô e eu tinha que escolher um daqueles homens do
filme. Mesmo eu chorando, ele me obrigava a escolher um, e eu dizia: ‘Meu
Deus, isso é nojento! Isso é tudo nojento’.
Este relato apresenta claramente a dificuldade dos homens em dividir seu lugar de
poder na sociedade, em função de ser um lugar muito confortável e de privilégios. No
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caso de Joana, assim como em muitos outros, ela e sua família sobreviveram a sacrifícios
e renúncias, originados pela situação de alta vulnerabilidade social à qual estavam
submetidas. Inserida em um cotidiano de luta pela sobrevivência, ela necessitava
trabalhar para subsidiar o sustento dos filhos. Segundo Joana, o ex-companheiro e
agressor não admitia que ela se ausentasse do ambiente doméstico sem sua companhia e,
por ciúmes, era contra uma vida profissional ativa. Assim, ela era espancada quando se
atrasava. Além de todas as responsabilidades que assumia, ela enfrentava as dores de
confiar suas crianças a estranhos quando estavam doentes ou quando não tinha com quem
deixá-las em sua ausência. A cruel realidade das mulheres incumbidas de cuidar dos
filhos, da casa e, ainda, de prover o sustento da família, fundamenta o depoimento de
Joana, quando ela relata que ser mulher: “É ser firme, é enfrentar muitos preconceitos e
dificuldades no serviço, quando temos que sair para trabalhar com o coração frouxo,
porque é nosso filho que está doente.”
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compadecer-se de sua provação e, por isso, receber aplausos da sociedade pela sua
fidelidade e resignação.
Muito diferente ocorre quando a esposa não se mantém fiel. Se ela decide infringir
as normas estabelecidas pelo matrimônio ou se deseja separar-se do companheiro e este
não concordar, ou ainda, se este simplesmente suspeitar que ela possa estar interessada
em outro homem, além de receber desaprovação da sociedade por ter sua honra
manchada, sente-se no direito de ameaçá-la, espancá-la e, ainda, assassiná-la. Crimes
assim não são somente banalizados pela sociedade, como autorizados por ela, já que a
sociedade não apenas aceita o adultério masculino, mas culpabiliza a mulher pelos
caminhos incertos do matrimônio.
2
Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Em 9 de março de 2015, foi
aprovada a Lei nº 13.104/2015, a Lei do Feminicídio, que altera o art. 121 do Decreto-Lei no. 2.848, de 7
de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime
de homicídio, e o art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos
crimes hediondos. Dar maior visibilidade ao problema é um dos principais ganhos desta lei. Segundo
especialistas, a tipificação é vista como uma oportunidade para dimensionar a violência contra as mulheres
no Brasil, bem como aprimorar políticas públicas para preveni-la e coibi-la.
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hierárquicas e desiguais. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos
e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação
masculina e a um padrão cultural de subordinação que foi aprendido ao longo
de gerações. (BANDEIRA, 2013, p.1).
Muitas vezes, ele me mandava ficar de joelhos como se ele fosse uma autoridade
para me agredir. Uma vez ele deu uma paulada na minha cabeça e eu levei vinte
pontos e quase morri. Ele me agredia de todas as formas que você pode
imaginar.
3
IPEA, 2014. Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/pesquisas/estupro-no-
brasil-uma-radiografia-segundo-os-dados-da-saude-ipea-2014/ Acesso em 10 dez. 2016.
25
mesmo sem desejo, acreditam que é obrigação da mulher “servir” ao marido. Desse modo,
muitas não reconhecem a violência sexual que sofrem ou, se reconhecem, optam por não
denunciar o parceiro, em sua maioria por medo de morrer, como o que se passava com
Edilia, que sofreu todos os tipos de violência, inclusive cárcere privado, e sentiu na pele
o terror do estupro por anos a fio: “Se você não quiser o que eu quiser agora eu te
arrebento, se você sair eu te arrebento e se você fugir eu pego seus filhos eu mato eles, e
aí eu ficava morrendo de medo.” Segundo Edilia, as agressões foram se tornando cada
vez mais violentas, a ponto de ter que fugir, mesmo sabendo que, se o companheiro a
encontrasse, ela morreria.
As agressões perpetradas pelos parceiros íntimos são uma das formas mais
comuns de violência contra a mulher. Parentes imediatos ou parceiros e ex-parceiros são
responsáveis por 67,2% do total de atendimentos na saúde4. Em relação às formas de
violência sofrida, a violência física é, de longe, a mais frequente, presente em 48,7% dos
atendimentos, com especial incidência nas etapas jovem e adulta da vida da mulher,
quando chega a representar perto de 60% do total de atendimentos. Em segundo lugar, a
violência psicológica, presente em 23% dos atendimentos em todas as etapas,
principalmente de jovens em diante. Estes tipos de violência podem ser enquadrados
dentro da violência doméstica, dado que a mesma se expressa nas relações interpessoais
familiares, baseadas nas relações de gênero hierarquizadas, baseadas nas estruturas da
sociedade: classe, gênero e etnia (MORGADO, 2012). Os números de violência contra as
mulheres apresentados acima são impactantes. As próprias considerações da pesquisa
registram o fenômeno da seguinte forma:
4
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf Acesso em:
15/12/2016.
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frequentemente é associada a outras violências, como a física e até mesmo a psicológica,
principalmente quando o agressor é um companheiro.
O espaço doméstico é tido muitas vezes como espaço de conflitos, aquele que
pode ser de extremo perigo, de modo que é nele que se estabelece o confronto da
disciplina, da dominação e da resistência, em que as relações entre o casal são permeadas
por abusos físicos, psicológicos, sexuais, morais, entre tantos outros.
As agressões cometidas pelos parceiros íntimos constituem uma das formas mais
comuns de violência contra a mulher. Em passado não muito distante, estas agressões não
configuravam nenhuma espécie de crime ou delito, pelo contrário: eram atos legitimados
pelo regime patriarcal e estimulados pela sociedade, posto que estes casos não eram
denunciados. Os direitos negados às mulheres são historicamente conhecidos no Código
Penal de 1940. Por exemplo, nele constava a criminalização de condutas ofensivas à
virgindade, tal como o crime de defloramento. Por muitos anos, o texto penal foi
compreendido e pautado pela moralidade sexual do sistema patriarcal, o qual era baseado
em critérios discriminatórios e excludentes.
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morte procuram sobreviver e dar continuidade a suas vidas e buscam força e coragem
para romper com padrões familiares de violência.
A violência física e psicológica cometida foi de tal forma banalizada por Pedro,
que ele não identificou as agressões como uma ação criminosa. Muito pelo contrário:
sentiu-se imensamente injustiçado, pois considerava que seu problema de saúde era muito
mais grave que o espancamento praticado contra a companheira.
Sair de uma situação de violência que durava anos a fio assemelha-se a lutar numa
guerra e sair ilesa. As agressões físicas, morais e psicológicas levam as mulheres a chegar
aos seus limites, e a maioria delas traz consigo medos, angústias, além de terem pré-
disposição para desenvolver doenças mentais, as quais ainda são vistas com descaso e
indiferença pela sociedade. As histórias têm suas particularidades, porém todas possuem
o mesmo perfil: o poder dos homens em relação às mulheres. No caso de Bruna, 33 anos,
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que carrega no corpo cicatrizes e dores, em virtude da tentativa de homicídio que sofreu
pelo ex-companheiro, por muita sorte está viva. Segundo ela, o motivo principal era o
fato de ter começado a trabalhar numa lanchonete. Socorrida pelo próprio companheiro,
que levou Bruna até à frente de um hospital, ela conseguiu sobreviver e, atualmente,
trabalha como doméstica e cuida das duas filhas:
Ele planejou tudinho meticulosamente, tudo que ia fazer [...] eu entrei no carro
e parecia que tudo estava normal, levou chocolate pra mim, caixa de bombom e
eu nem acreditei porque ele nunca tinha levado nada. [...] mas logo percebi que
tinha alguma coisa errada [...] aí eu senti que ia acontecer alguma coisa comigo,
tentei abrir a porta do carro, mas estava trancada e eu comecei a gritar, mas
não adiantou. Aí ele pegou e puxou a faca do banco do carro e nisso, lá dentro
do carro, me deu sete facadas. Na hora eu achei que ia morrer e a única coisa
que eu falei pra ele: ‘Por favor, cuide das minhas filhas, eu só te peço isso.’
Uma das qualidades que eu tenho é uma coisa muito boa, que é a de perdoar, eu
perdoo fácil, eu perdoei meu marido, porque eu sei que ele precisa de ajuda. Eu
tirei a queixa dele e conversei com as minhas filhas pra elas perdoar ele e falei
que todo mundo merece perdão. Se a gente não perdoar aquele que nos ofende,
nós também não merecemos perdão. A falta de perdão, ela prejudica mais a
gente do que a própria pessoa.
Assim como Mirtes, muitas mulheres, acreditando que o agressor pode mudar de
forma milagrosa, sem nenhuma intervenção socioeducativa, retomam a relação
conflituosa ou nela permanecem. Este processo de idas e vindas é chamado de “ciclo da
violência”. Este ciclo é apenas um padrão geral que, em cada caso, se manifestará de
modo diferenciado, em que os próximos incidentes poderão ser ainda mais violentos e
repetir-se com maior frequência e intensidade, terminando, muitas vezes, em assassinato.
As mulheres sentem-se presas a essa relação de fases, pois, logo depois das agressões e
das brigas, o companheiro se mostra amoroso, arrependido, com promessas de que nunca
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mais irá agredi-la; ele se desculpa com o intuito de que a mulher se sinta suficientemente
forte para a manutenção da relação. Nesta ciranda, a mulher busca salvar a relação,
acreditando no arrependimento do companheiro e desistindo de deixá-lo. Em pouco
tempo, a relação volta a ficar tensa até o momento em que as agressões se reiniciam e, a
cada dia, se tornam cada vez mais violentas.
O ciclo da violência é composto por três fases: tensão, explosão e lua de mel.
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3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA
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A Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), incorporada à OEA como um
organismo especializado de caráter técnico permanente, que tem como finalidade apoiar
os Estados-membros em seus esforços para garantir o direito das mulheres e a igualdade
de gênero, possui também uma importante função, que é “formular estratégias
direcionadas a transformar os papéis e a relação entre as mulheres e homens nas esferas
públicas e privadas” (ALMEIDA; BANDEIRA, 2015, p. 505). Neste sentido, a CIM, com
a missão de estudar as formas e os meios para prevenir a violência contra a mulher,
elaborou um texto que resultou em um projeto aprovado pelos parlamentares em 1994.
Neste mesmo ano, na Assembleia Geral da OEA, em Belém do Pará, a CIM apresentou
este projeto como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra as Mulheres, a chamada “Convenção de Belém do Pará”, que define por si só e
com nitidez, o que é considerado violência contra as mulheres e, pela primeira vez, foi
estabelecido o direito de as mulheres viverem uma vida sem violência.
Não podemos deixar de considerar que, em Beijing (Pequim), já em 1995, foi
realizado outro evento também de suma importância, que foi a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher, em que foram reconhecidos, definitivamente, os direitos humanos em sua
Declaração e Plataforma de Ação.
A Convenção de Belém do Pará foi marcada por quatro premissas que fazem parte
do texto inicial do Tratado Internacional que adotou a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conforme foi mencionado acima.
São elas:
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sofrimento físico, sexual, psicológico, tanto na esfera privada como na esfera pública”5.
Consequentemente, a definição de violência foi ampliada já que, anteriormente à
convenção, o assunto era tratado somente com base na violência física, num viés
totalmente descontextualizado e conservador. A partir de então, a violência passou a ser
compreendida conforme a condição de gênero. Ao mesmo tempo, trata-se de um
instrumento sociojurídico que se opõe à violência contra a mulher, além de permitir que
a denúncia interna dos Estados seja deslocada para o plano internacional, conforme se
sucedeu com o caso da Maria da Penha6. Como resultado de tais ações, em agosto de
2006, foi sancionada a Lei 11.340, a chamada Lei Maria da Penha, que passou a ser um
marco histórico no combate à violência contra as mulheres no Brasil.
5
Esta e as demais premissas fazem parte do texto inicial do Tratado Internacional que adotou a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994.
6
Em 1983, após ela ter voltado do hospital, o então marido de Maria da Penha atirou contra ela duas vezes
alegando que havia ocorrido um assalto em sua residência. Duas semanas depois ele eletrocutou a vítima
enquanto ela tomava banho. Entre essa dupla tentativa de homicídio e a prisão de seu marido, passaram-se
19 anos e 6 meses, o que demonstra a morosidade da justiça brasileira nesse período. Diante disso, o Centro
pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da
Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima, formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) – órgão internacional responsável pelo
arquivamento de comunicações decorrentes de violação desses acordos internacionais – levando à
construção do Relatório 54 da OEA, em 2001, responsabilizando o Brasil pela negligência em relação à
violência doméstica contra a mulher, apesar de reconhecer algumas mudanças estabelecidas pelo país de
cunho insuficiente. (ALVES, Fabricio da Mota, 2006, p.1).
33
Ao ser sancionada, a Lei Maria da Penha se tornou um instrumento fundamental
para o combate à violência contra as mulheres, principalmente para os casos impunes.
Ainda, em fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que qualquer pessoa
pode registrar formalmente uma denúncia de violência contra a mulher. Este é, portanto,
mais um marco na redução da violência contra as mulheres.
Para mim isso não vale nada, este é um artigo que para mim tem que rasgar.
Tem mulheres que abusam da Lei Maria da Penha e colocam embaixo do tapete
34
as agressões que ela faz. Aí pega um homem que teve uma legítima defesa contra
ela, e aí como que fica?
Dos quatro agressores entrevistados apenas um deles ficou detido pela Lei Maria
da Penha, embora todos tenham sido denunciados pelas companheiras e a dois deles
foram aplicadas medidas protetivas.
A Lei Maria da Penha, em seu artigo 35, previu a criação e promoção de centros
de educação e reabilitação para os agressores. O objetivo do trabalho com os homens
agressores tem como propósito ajudá-los a resolver conflitos de forma não violenta,
através de mudanças de comportamentos para que agressões futuras e reincidências
criminais sejam evitadas. É fundamental que todo agressor tenha a oportunidade de ser
(re)educado e (res)socializado. Todavia, Martin Junior alerta que “é preciso muito
cuidado quando da concepção desses espaços de reabilitação”, pois a eventual
“patologização” do agressor desqualifica o caráter criminoso de sua conduta,
“desterritorializando-a” do crime para “doença” (2011, p. 362).
35
O artigo 7º da Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) objetiva facilitar didaticamente
sua aplicação à área do Direito (FEIX, 2011). Vale considerar que a violência contra as
mulheres não ocorre isoladamente, mas de maneira concomitante, como quando a mulher
sofre uma agressão física seguida de ameaça de morte. Por esse motivo, decorre a
importância de destacar cada tipo de violência e suas definições. Baseadas nas
desigualdades de gênero, seguem abaixo as formas de violência doméstica e familiar
descritas na Lei Maria da Penha em seu artigo 7º:
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As desigualdades de gênero possuem na violência contra as mulheres uma
expressão limite que, segundo a Política Nacional de Enfrentamento7 à Violência Contra
as Mulheres, deve ser compreendida como uma violação dos direitos humanos. Como
resultado de conferências e ampla participação de mulheres de todo o Brasil, além de seu
caráter transversal e complexo para sua implantação, o Plano Nacional de Políticas para
as Mulheres, organizado em seus dez amplos capítulos, tem como premissas a busca pela
igualdade e o enfrentamento das desigualdades de gênero. Em seu capítulo 4º,
“Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres”, o plano retrata o
papel fundamental do Estado, como responsável por erradicar todas as formas de
violência contra as mulheres, através das transversalidades e intersetorialidades de
políticas públicas de gênero. Para que estas ações sejam efetivadas, diversos serviços
estão sendo implantados nos municípios brasileiros.
7
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres tem por finalidade estabelecer
conceitos, princípios, diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra as mulheres, assim como
assistência e garantia de direitos em situação de violência, conforme normas e instrumentos internacionais
de direitos humanos e legislação nacional.
8
Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-
Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf Acesso em: 15/7/2016.
9
Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/rota-critica-o-caminho-fragmentado-que-a-
mulher-em-situacao-de-violencia-percorre-buscando-o-atendimento-do-estado/ Acesso em: 15/07/2016.
37
uma iniciativa muito difícil de ser tomada, já que o agressor pode não só ameaçá-la de
morte, mas matá-la.
O serviço Ligue 180 tem também como finalidade, orientar as mulheres sobre seus
direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando
necessário. Este serviço faz parte de um dos eixos do Programa “Mulher: Viver sem
Violência”10. A Central funciona 24 horas, todos os dias da semana, inclusive finais de
semana e feriados, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil e de mais 16 países.
Para ilustrar a importância deste serviço apresentamos os dados do ano de 2015, onde
foram registrados 749.024 atendimentos, que resulta em média, 62.418 atendimentos por
mês e 2.052 por dia. Essa quantidade foi 54,40% superior ao número de atendimentos
realizados em 2014 (485.105). Desde sua criação em 2005, a Central já registrou
10
O programa tem por objetivo integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às mulheres em
situação de violência, mediante a articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde, da
justiça, da segurança pública, da rede socioassistencial e da promoção da autonomia financeira (Decreto nº.
8.086, de 30 de agosto de 2013) (Programa Mulher, viver sem violência Casa da Mulher Brasileira, 2015.
Disponível: http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/diretrizes-gerais-
e-protocolo-de-atendimento-cmb.pdf .Acesso em: janeiro/2017.)
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4.823.140 atendimentos (BALANÇO 2015, LIGUE 180 CENTRAL DE
ATENDIMENTO À MULHER, 2016).
39
Um dos desafios dos Centros de Referência Especializado da Mulher é
articular o trabalho das equipes especializadas com as diretrizes da Política Nacional para
as Mulheres e as diretrizes e tipificações da Política de Assistência Social, no âmbito da
Proteção Social Básica e Especial, além de garantir a inclusão das mulheres nos
Programas Sociais e demais programas de renda suplementar existente. O acesso aos
programas assistenciais do governo federal depende de inscrição prévia no Cadastro
Único para Programas Sociais, regulamentado pelo Decreto nº 6.135/07 e coordenado
pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
Este serviço tem como objetivos garantir a integridade física e emocional das
mulheres, bem como realizar diagnóstico da situação de violência real em que elas se
encontram e providenciar os devidos encaminhamentos.
40
empoderamento11, da autonomia, do desenvolvimento da criticidade, do trabalho
socioeducativo e da interdisciplinaridade da equipe. A violência vivida pelas mulheres e
seus filhos ao longo da vida deixa marcas severas, de modo que a violência muitas vezes
é expressa através da linguagem, do vocabulário e dos comportamentos bastante
agressivos, dificultando os vínculos afetivos entre si, as relações entre filhos e filhas e
entre mães e filhos. Por conseguinte, mudar esta realidade é um grande desafio.
Um dos grandes desafios para que a equipe consiga realizar seu trabalho é a
dificuldade de inserção das mulheres e seus filhos e filhas na rede socioassistencial, visto
que a insuficiência de políticas públicas acarreta maiores obstáculos de empoderamento
e autonomia das mulheres.
11
Empoderamento significa “um poder que afirma, reconhece e valoriza as mulheres; é pré-condição para
obter a igualdade entre homens e mulheres” (LISBOA, 2008, p. 2).
41
Ministério Público Federal, Estadual e do Distrito Federal, bem como Polícia Civil e
Militar, Guarda Municipal e Instituto Médico-Legal.
42
Capítulo II
43
Alinhando-se a este conceito, a historiadora feminista Joan Scott define gênero como
“um elemento constitutivo de relações sociais baseados nas diferenças percebidas entre
os sexos” (SCOTT, 1990, p. 86). Neste sentido, as diferenças entre os sexos e a
hierarquização entre eles são legitimadas pela sociedade, à proporção que tais hierarquias
são construídas nas relações sociais.
A sociedade atribui diferentes papéis a homens e mulheres, e espera que cada sexo
cumpra as atribuições pertinentes ao seu papel social12: à mulher é conferido um papel
de submissão e de obediência aos homens, enquanto ao sexo masculino é concedido um
papel de coragem, de racionalidade, voltado principalmente para a vida pública, em que
assume um papel de provedor e chefe de família. As mulheres entrevistadas apresentaram
os vários obstáculos que elas enfrentam em seus cotidianos ao lidar com os papéis
exercidos pelos seus companheiros e ex-companheiros, pois ao perguntarmos sobre a
diferença entre ser homem e ser mulher, todas elas mencionaram que as maiores
dificuldades enfrentadas no dia a dia são vivenciadas por elas. Neste sentido, o
12
Este termo é originado da filosofia social. De modo geral são comportamentos de pessoas que ocupam
determinada posição social, podendo ser definido como “o perfil assumido pelo ser humano à medida que
cumpre determinadas funções dadas e definidas pela sociedade” (NADER, 2002, p. 462).
44
depoimento de Luciana, 39 anos, nos revela as desigualdades impostas por uma sociedade
machista:
O homem, quando sai com um monte de mulheres, a bola dele é levantada e ele
é o tal. A mulher, ela tá com o cara e daqui seis meses ela arruma outro
namorado, ela já não presta, ela é vagabunda, entendeu? Então, isso é
preconceito. Agora, o homem quando ele tá separado, ele pode arrumar uma
mulher em quinze dias depois que ele se separou e não é criticado. A mulher, só
por ela ser separada, ela já é malvista pela sociedade. Existe um grande
preconceito, os homens não sofrem preconceitos como nós sofremos, acredito, e
para mim tem muita diferença.
O homem pensa que a mulher tem que ser submissa, e ele então está
acima e a mulher está abaixo, ela tem que fazer todas as vontades dele.
Tal afirmação deriva dos papéis de superioridade atribuídos aos homens que os
autorizam a subestimar as mulheres, fazendo com que elas se sintam inferiores e
submissas. Não é raro ouvir discursos de homens que acreditam no velho ditado: “lugar
de mulher é dentro de casa”. Com a desculpa de protegê-las, muitos as mantêm quase que
em cárcere privado. Por conseguinte, as mulheres passam a ter pouca ou quase nenhuma
oportunidade de desenvolver suas potencialidades ou mesmo ampliar seus conhecimentos
e, frequentemente, submetem-se às ordens de seus companheiros, para evitar conflitos ou,
ainda, por terem sido socializadas desta forma.
45
família, educação, religião etc. Em entrevistas com homens agressores, ao perguntarmos
como é ser homem nesta sociedade, obtivemos depoimentos diversos acerca desta
questão:
Ser homem é ser a estrutura da casa, ser homem é ter voz ativa, é uma
coisa que assim, quando eu falo não é não. O homem que dá as diretrizes
da família principalmente em relação à filha, em relação à minha esposa,
ela diz: eu vou na minha mãe, eu vou na igreja e eu falo: vai mas volta
logo eu sou muito ciumento. (Hamilton, 44 anos).
Em outro depoimento foi possível perceber também que existe uma certa
insegurança em relação à atual masculinidade:
Precisamos evoluir já que vocês mulheres conquistaram espaço, tem que ser tudo
igual entendeu? Não é egoísmo nem machismo, porque machismo e feminismo,
tudo fica na mesma, é uma hipocrisia só. Tem que pôr tudo na balança, é tudo
na igualdade, se eu não puder o outro pode, senão os dois têm que se reunir,
46
porque precisamos nos preocupar, em primeiro lugar, com a criança. (Fabrício,
44 anos).
Para Lisboa (1998), há sempre uma tensão por parte dos homens entre mudar ou
permanecer com sua identidade, uma vez que ser homem é fundamentalmente não ser
mulher, e tudo isso depende de uma desconstrução dos significados internalizados ao
longo da história. No decorrer das entrevistas foi possível perceber pelos depoimentos
que muitos agressores mencionam seus pais e avós, como modelos de reprodução de
comportamento.
Não é simples romper com modelos já naturalizados pela sociedade, pois que, ao
longo da história, as mulheres vêm sofrendo um processo de desqualificação em relação
aos homens, ainda que se prove que ela possui uma responsabilidade maior ou igual por
exemplo. Tal conceito está de tal maneira imbuído nas mulheres, que muitas se assumem
como sendo inferiores aos homens. Tal afirmação é demonstrada no relato de Mirtes, 40
anos. Ao perguntarmos o que é ser mulher ela relata:
É ser mãe. Nós somos geradoras. Sem mulher não tem nem como você viver a
humanidade. É ser guerreira, amiga e companheira.
47
companheiro, foi quase morta por ele e só sobreviveu porque fugiu por um rio que ficava
próximo à sua residência:
Nós não somos sexo frágil não. Isso daí é só na música13, não somos sexo frágil
nada, e nem podemos, porque senão eles passam por cima mesmo. Nos dias de
hoje mais ainda, a gente sempre tem que tá provando que nós somos capazes e a
gente pode; a gente, que é eficiente, o que o pessoal vive tentando mostrar aquilo
que nós não somos eficientes, vemos todo dia no trânsito. Em todo canto a gente
sempre é tachada.
Traçar um perfil das mulheres que sofreram e sofrem violência é uma tarefa
acadêmica e, ao mesmo tempo, uma tarefa política de denúncia da violência contra as
mulheres. Ainda nos dias de hoje, não há políticas públicas suficientes para enfrentar a
complexidade do fenômeno da violência contra as mulheres no País. O Brasil é o quinto
país que mais mata mulheres no mundo, sendo o feminicídio a maior origem desta
violência (WAISEL FITZ, 2015). A violência doméstica contra as mulheres é uma das
formas mais cruéis de violência, pois ela silencia as ações da mulher, apaga seus desejos,
impede sua cidadania e destrói sua dignidade. Muitos agressores, motivados pelas
representações da dominação masculina e pela impunidade, naturalizam e banalizam suas
agressões, uma vez que se consideram donos de suas companheiras e do poder familiar.
13
Música Mulher (Sexo Frágil), de Erasmo Carlos e Narinha (1981).
14
VILHENA. Valeria Cristina. Resultados de uma pesquisa: uma análise da violência doméstica entre
mulheres evangélicas. Fazendo Gênero 9 Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de
2010.
SOUZA, Sandra Duarte de. Violência de gênero e religião: alguns questionamentos que podem orientar a
discussão sobre a elaboração de políticas públicas. Revista Mandrágora, V. 13, n.13 (2007). Disponível:
http://www.bibliotekevirtual.org/revistas/Metodista-SP/MANDRAGORA/v13n13/v13n13a01.pdf Acesso
em: Dezembro/2016.
KROB, Daniéli Busanello. A igreja e a violência doméstica contra as mulheres. CONGRESSO
INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2, 2014, São Leopoldo.
48
lideranças na maioria delas são masculinas, permitindo às mulheres pouco acesso às
esferas de decisão e submetendo-as, frequentemente, a papéis secundários. Muitas
mulheres que vivenciam situações de violência buscam na religião ajuda para suportar
seus relacionamentos conflituosos, socializam as agressões sofridas principalmente com
seus líderes religiosos, que, não raras vezes, legitimam a submissão e a violência
(SOUZA, 2009).
15
Este termo “mulheres guerreiras” foi dado pelas mulheres que participaram desta pesquisa, pois ao
perguntarmos sobre uma qualidade, todas se nomearam guerreiras.
49
2.2 . Tabela 1 - Perfil das mulheres entrevistadas
Idade 39 38 34 40 33 33 31
Cidade de Pernambuco São Paulo São Paulo Rio Grande do São Paulo São Paulo Rio de Janeiro
origem Norte
Renda atual R$ 700,00 Sem renda R$ 1.100,00 Sem renda R$ 1.300,00 Sem renda R$880,00
Escolaridade Ensino Médio Ensino Ensino Médio Ensino Médio Ensino Médio Ensino Médio Ensino
completo Fundamental completo incompleto completo completo Fundamental
incompleto incompleto
50
Número de 2 2 1 3 4 4 4
filhos
Tipos de Moral, Psicológica, Moral, Moral, Moral, sexual, Moral, Moral, sexual,
violência que psicológica, sexual. Ameaça psicológica, psicológica, psicológica, psicológica, psicológica,
sofreu física. Ameaça de morte sexual, física, física, ameaça de física, física, ameaça de física, ameaça
de morte patrimonial, morte patrimonial, morte de morte
ameaça de morte ameaça de morte
Tempo de 1 mês e 15 dias 3 meses 2 meses 10 dias Está acolhida 8 meses 1 ano
acolhimento
51
Informações Mulheres que participaram do grupo focal II (nomes fictícios)
Idade 30 45 33 48 48
Escolaridade Ensino Médio incompleto Ensino Médio incompleto Ensino Médio completo Ensino Médio incompleto Ensino Médio completo
Número de filhos 2 2 4 2 3
Religião Assembleia de Deus Assembleia de Deus Assembleia de Deus Adventista do Sétimo Dia Espiritualista/Johrei
Religião dos pais Assembleia de Deus Assembleia de Deus Candomblé Católicos Umbanda, Candomblé
Tipos de violência que Moral, sexual, psicológica, Moral, sexual, psicológica, Moral, sexual, psicológica, Psicológica, moral, ameaça Sexual, moral, física,
sofreu física, patrimonial, ameaça de patrimonial, física, ameaça de física, patrimonial, ameaça de de morte psicológica, ameaça de morte
morte morte morte
Tempo de acolhimento 2 meses 2 meses e meio Está acolhida Está acolhida 8 meses
52
Tabela 2 - Origem
8
8 Estado de Origem
6
4
1 1 1 1
2
10 7
5
5 0 0 0 0 0
0 Série1
A Tabela 1 mostra o estado de origem das mulheres entrevistadas, sendo que das
12 mulheres, oito são paulistas e sempre moraram no estado de São Paulo. Nota-se que
três provêm do nordeste do Brasil e uma nasceu na cidade do Rio de Janeiro.
53
e, por este motivo, foram entrevistadas apenas mulheres que residem atualmente nestes
dois municípios. Ressaltamos que tais municípios não são necessariamente os locais onde
elas sofreram violência, visto que algumas mulheres, por motivos de segurança por
estarem ameaçadas de morte por seus ex-companheiros, mudaram para outro município
após o acolhimento nas Casas Abrigo, de modo que pudessem refazer suas vidas com
seus filhos e filhas com maior segurança.
9 2 48
1 45
7 1 40
1 39
5 1 38
1 34
3 3 33
1 31
1 1 30
0 10 20 30 40 50
O gráfico 3 mostra a faixa etária das mulheres que buscaram ajuda e foram
acolhidas nas Casas Abrigo. A faixa etária varia de 30 a 48 anos. Percebe-se que as
mulheres idosas, por exemplo, não compõem este universo, e nem as mais jovens, entre
18 e 30 anos. Em relação às mulheres com mais de 60 anos, segundo a gerontóloga
Mariela Besse: “Os idosos têm medo e vergonha de fazer a denúncia, principalmente se
o agressor está dentro de casa” (BESSE, 2016)16, impedindo muitas vezes estas mulheres
de se comunicarem com outras pessoas que possam ajudá-las a denunciar a violência
sofrida.
16
Matéria disponível: http://institutomongeralaegon.org/saude/violencia-contra-o-idoso-comeca-em-casa .
Acesso em: dezembro/2016.
54
Tabela 5 – Mulheres por raça/etnia
1
Série1
0
Branca Negra Parda
Série1 4 4 4
17
A SPM foi criada em 2003 com status de Ministério que lhe foi retirada em 2016, quando suas funções
foram atribuídas ao Ministério da Justiça (Geledés Instituto da Mulher Negra, 2017).
18
A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência - Ligue 180 – é um serviço de utilidade
pública gratuito e confidencial (preserva o anonimato), oferecido pela Secretaria de Políticas para as
Mulheres da Presidência da República, desde 2005. O Ligue 180 tem por objetivo receber denúncias de
violência, reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e de orientar as mulheres sobre
seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando necessário.
Disponível: http://www.spm.gov.br/assuntos/violencia/ligue-180-central-de-atendimento-a-mulher.
Acesso em janeiro/2017.
55
Nível de Instrução
A Tabela 5 mostra o nível de instrução das mulheres que foram acolhidas nas
Casas Abrigo Regional Grande ABC, sendo que a maioria delas possui o Ensino Médio
completo. Duas mulheres não conseguiram completar o Ensino Fundamental, e apenas
uma conseguiu chegar até o nível universitário, sendo que, por motivos de segurança,
precisou trancar a matrícula. Sofrer violência é muitas vezes ter que abandonar sonhos, e
estudar pode ser um deles, pois as agressões obstruem o direito das mulheres à educação.
Se observarmos mais atentamente, veremos que o nível educacional das mulheres que
buscam o serviço de acolhimento ofertado pelos municípios não ultrapassa o Ensino
Médio.
Por outro lado, o fato de a maioria das mulheres atendidas terem o Ensino Médio
(completo ou não), talvez seja um elemento interessante para concluirmos que o grau de
instrução é um fator importante para que as mulheres cheguem até os serviços em busca
de ajuda. Nos registros da Casa Abrigo identificamos que, entre as mulheres que não
conseguiram completar o Ensino Fundamental, houve inúmeras dificuldades no
desabrigamento19, visto que o grau de instrução influencia diretamente na
empregabilidade. Geralmente a equipe técnica possui maiores dificuldades em ajudar
essas mulheres a se inserir no mercado de trabalho.
19
O desabrigamento consiste no processo de planejamento de ações articuladas entre os serviços de Saúde,
Assistência Social, Habitação e Educação, que diz respeito à saída das mulheres das Casas Abrigo para o
retorno à vida social. Este processo não possui tempo determinado, pois varia conforme as possibilidades
que cada mulher reúne para alcançar sua autonomia e empoderamento.
56
apenas com seus filhos e filhas. Outro fator que contribui para que as mulheres saiam da
situação de violência é a conquista da autonomia, pois ela ajuda a resgatar a autoestima
fazendo com que elas se sintam mais confiantes para seguir em frente. Além disso, a
conquista da independência financeira deixa de ser mais um motivo para que as mulheres
permaneçam em relações violentas.
Outro fator influenciado pelo baixo nível de instrução na condição das mulheres
que sofrem violência é que elas enfrentam maiores obstáculos para conquistar seus
direitos, ficando mais fácil a exploração e a dominação por parte dos agressores. É
importante destacar que as mulheres que sofrem ou sofreram violência por muito tempo,
estão numa posição de subalternidade e, em muitas situações, elas ficaram restritas ao
espaço privado por anos a fio. Por este ângulo, a elas foram negados os direitos sociais,
culturais, econômicos e, principalmente, o direito à educação, recaindo sobre elas
inúmeras consequências.
Estado Conjugal
Divorciada 6
Casada 4
Solteira 2
0 1 2 3 4 5 6
57
pela separação litigiosa. Nestes casos existem alguns fatores que dificultam a separação.
Um deles se refere à demora considerável por parte da justiça brasileira. O outro é em
relação aos filhos e filhas, pois os agressores, em sua maioria, ameaçam ficar com eles e
acusam as mulheres de abandonar o lar ou ainda fundamentam a incompetência da mulher
em retomar sua vida sem a companhia de um homem, julgando-a incapaz de tomar tal
atitude.
Existem mulheres que, após o acolhimento na Casa Abrigo, decidem retornar aos
seus lares e dar mais uma oportunidade aos companheiros agressores, por acreditarem
que eles podem mudar. Esta situação aconteceu com uma das mulheres entrevistadas que
decidiu “dar mais uma chance” para o companheiro agressor e voltou ao antigo lar.
4 mulheres
5 mulheres
2 mulheres
0 1 2 3 4
58
O fato de terem filhos não impede a ocorrência de violências entre o casal, e
segundo as mulheres entrevistadas, as violências se estendem às crianças e aos
adolescentes, provocando uma instabilidade familiar muito maior20. Muitas mulheres
sofrem violência e permanecem na relação conflituosa por dependerem financeiramente
de seus companheiros e, por esta razão, decidem não se separar, pelo menos até que os
filhos cresçam e consigam sua independência.
Copeira (desempregada) 1
Doméstica (desempregada) 1
20
A esse respeito, ver MORRISON, A. e BIEHL, M. A família ameaçada. Violência doméstica nas
Américas. FGV, Rio de Janeiro, 2000.
59
escolaridade e a falta de qualificação profissional exigida no mercado são fatores
importantes que dificultam tal inserção. Contudo, outro fator que impede que elas
conquistem sua autonomia, é que em muitas situações as mulheres se dedicaram durante
anos de suas vidas à casa, aos filhos e ao companheiro, não conseguindo, portanto, reunir
competências profissionais para alcançar um lugar no mercado de trabalho. Outro motivo
é o fato de seus companheiros agressores negarem a ela o direito a uma vida profissional,
através de ameaças, violência verbal, violência física. Houve caso de uma mulher que seu
companheiro queimou sua carteira de trabalho, como forma de coibi-la de buscar um
emprego.
21
A rede de enfrentamento à violência contra as mulheres diz respeito à “atuação articulada entre as
instituições/ serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando ao desenvolvimento
de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento e construção da
autonomia das mulheres, os seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência
qualificada às mulheres em situação de violência” (Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres, Secretaria de Políticas para as Mulheres – Presidência da República, Brasília, 2011).
Disponível: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/rede-de-enfrentamento Acesso
em: Dezembro/2016.
60
Renda Atual
3
até dois salários mínimos
3
até 1 salário mínimo
Sem renda 6
0 1 2 3 4 5 6
O gráfico acima demonstra que três mulheres recebem atualmente até dois salários
mínimos, três mulheres até um salário mínimo e seis mulheres estão sem renda, sendo
que três delas estão acolhidas.
61
Religião
Espiritualista 1
Deus é Amor 1
Católica 1
Assembleia de Deus 8
0 2 4 6 8
O gráfico acima demonstra a religião das mulheres que participaram dos grupos
focais. É possível perceber a discrepância de mulheres que pertencem ao grupo religioso
Assembleia de Deus com oito fiéis. Dentre as demais denominações religiosas às quais
as mulheres afirmam pertencer estão: uma da igreja Deus é Amor; uma mulher
pertencente à Adventista do Sétimo Dia; uma católica e uma mulher que diz não pertencer
a nenhum grupo religioso, porém nomeia-se espiritualista. A mulher que se declarou
católica, afirmou ter sido criada em família católica, batizada e crismada no catolicismo,
porém atualmente está frequentando a igreja Testemunha de Jeová.
Será que existe alguma relação entre a pertença religiosa e a violência doméstica?
Os sistemas religiosos podem contribuir para a violência contra as mulheres ao afirmarem
sua submissão e secundariedade. A linguagem simbólica ritualizada como são as
transmitidas nos cultos religiosos tem um grande poder de impor-se como norma, como
regra, ou seja, ela legitima o comportamento das pessoas, à proporção que é considerada
sagrada. Neste sentido, se a religião afirma a submissão, a obediência e a inferiorização
feminina, ela afirma também a legitimidade da violência contra as mulheres.
No caso de uma das mulheres que participou do grupo focal, ela relata que seu ex-
companheiro não permitia que ela saísse sem sua permissão. Segundo ela, ele acreditava
ser seu dono e a proibia de sair de casa para ir à igreja, espancando-a caso não obedecesse.
As violências se deram também pelo fato de muitas mulheres não obedecerem às ordens
dos companheiros e não corresponderem aos pedidos de submissão formatadas pelos
agressores, sendo muitas delas espancadas e ameaçadas de morte. Mesmo em meio a
62
tantos senões da religião, as mulheres que fizeram parte desta pesquisa, bem como tantas
outras, conseguiram enfrentar suas crenças, seus líderes religiosos, os fiéis de suas igrejas
e buscaram ajuda para se livrarem de seus companheiros agressores. Além disso, muitas
vezes foi na religião que elas encontraram o apoio para romper definitivamente com o
ciclo da violência.
Católica 2
Candomblé 3
Assembleia de Deus 5
0 1 2 3 4 5
O gráfico acima mostra quais são os grupos religiosos aos quais os pais das
mulheres entrevistadas pertencem. A maioria (cinco) pertence à Assembleia de Deus, três
pertencem ao Candomblé, dois são Católicos, um da Congregação Cristã do Brasil e um
da Universal do Reino de Deus.
63
Tabela 13 – Tipos de violência sofrida pelas mulheres
0 5 10 15
22
Segundo o Artigo 7º da Lei Maria da Penha são consideradas formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher: I – a violência física; II – a violência psicológica; III – a violência sexual; IV – a violência
patrimonial; V – a violência moral. (Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, 2006).
64
ameaça de morte. Nesta pesquisa todas as mulheres foram ameaçadas de morte e saíram
de suas residências por medo de serem mortas. Evidencia-se que, mesmo após as
ameaças, os agressores insistem em conviver com as mulheres, procurando-as em redes
sociais, junto a amigos e familiares. Tal fato pode ser fundamentado por se sentirem no
direito de controlar a vida das mulheres através do poder que lhes foi concedido.
Tempo de acolhimento
Acolhida 3
1 ano 1
8 meses 2
3 meses 1
2 meses 3
1 mês 1
10 dias 1
65
dificuldades em reunir condições financeiras e emocionais necessárias para seguir o curso
de suas vidas com autonomia. Reinserir-se no mercado de trabalho, encontrar um imóvel
e mobiliá-lo, administrar os filhos quanto à educação, saúde, verificar um local seguro
para que eles permaneçam no contra turno escolar enquanto ela trabalha, responsabilizar-
se pela alimentação e todos os subsídios necessários, não é uma tarefa simples, pois todas
estas responsabilidades são acompanhadas de sentimento de insegurança e medo.
Ressaltamos que, em sua maioria, as mulheres deixam suas casas e seus pertences, e
dificilmente conseguem recuperá-los. Assim sendo, seus agressores quando não os
destroem, não devolvem por puro sentimento de raiva, pelo fato de as mulheres o terem
denunciado.
Tabela 15
66
Nível de instrução Ensino Ensino Ensino Ensino
Médio Fundamental Fundamental Fundamental
incompleto incompleto completo completo
67
Através da análise do perfil dos agressores percebe-se que o Estado de origem é
variado: São Paulo (2), Espírito Santo (1) e Pernambuco (1). A faixa etária está entre 40
(1) e 44 (3) anos, prevalecendo os homens com idade de 44 anos. A raça/etnia foi
autodeclarada: cor parda (2) e negra (2).
68
não terem sofrido nenhuma violência. O mesmo se observa em relação às agressões
perpetradas com suas genitoras, sendo que dois homens declararam ter presenciado
violências contra as mães e dois declararam nunca terem visto suas genitoras sendo
agredidas. Todos os homens entrevistados informaram terem sido denunciados por suas
companheiras pela Lei Maria da Penha, porém apenas um deles declarou ter cumprido
pena em regime fechado.
2.4 Discussão
69
demandam uma temporalidade voltada mais especificamente à dedicação do trabalho,
fora do âmbito doméstico” (SOUZA, 2010, p. 248). Quando não conseguem suprir tais
papéis, sentem-se extremamente incapazes e inseguros, o que acaba favorecendo a
violência doméstica.
70
cresceram em famílias violentas tendem a reproduzir comportamentos agressivos e
dominadores, tendo em vista que “temos presente a figura paterna no seio da vida familiar
– figura ideal presente e enfatizada pelas diversas tendências cristãs” (SOUZA, 2012, p.
247).
3.1 A Religião
Deus é o pai de tudo, é o criador de tudo [...] Portanto, quando eu falo não é não.
Você, o homem, é o que dá as diretrizes da casa.
72
lado, quando tentam se rebelar, frequentemente têm o sentimento de que transgrediram
as leis de Deus, acreditam que de alguma forma irão pagar por isso, seja no mundo terreno
ou no mundo cósmico. Como nos relata Edilia, que sofreu violência doméstica em seus
dois relacionamentos e se separou do ex-companheiro; porém, admite que em algum
momento vai prestar contas a Deus:
Eu fui criada no evangelho desde que nasci. A minha igreja sempre foi
Assembleia de Deus. Quando você faz as coisas inocente você é inocente, agora
quando você faz as coisas sabendo que você tá errando, pode ter certeza que
você vai pagar.
Edilia se sente culpada por ter se separado de seu ex-companheiro, acredita que
ainda vai pagar por isso, porém justifica sua atitude dizendo que tentou de tudo, foi fiel,
ficava calada quando ele a agredia, fazia todas as orações recomendadas, obedecia suas
ordens. Nada adiantou, e as agressões foram ficando cada vez mais graves, até que o
agressor a ameaçou de morte tentando enforcá-la. Foi quando ela resolveu buscar ajuda
no Centro de Referência da Mulher.
Luana não conseguiu ajuda para se livrar do agressor, mesmo sendo vista toda
machucada na igreja. As mulheres que lá frequentavam, aconselhavam-na a permanecer
na relação conflituosa, conforme relato:
73
é a família unida e se está daquele jeito é porque você não ajudou ele, porque se
você tivesse ajudado, ele tinha melhorado.
Neste caso percebemos que Luana não conseguiu apoio da liderança religiosa e
das fiéis da igreja à qual pertencia, por isso tomou a decisão de se divorciar pois, além de
ser espancada pelo ex-companheiro, sentia-se pressionada pela religião para se manter
naquela relação conflituosa. A indissolubilidade do matrimônio ainda é para as religiões
uma forma de manter a família unida, ainda que a mulher viva situações graves de
violência e dominação.
Apesar do uso constante dos símbolos religiosos utilizados para atrair os(as) fiéis,
a palavra da liderança religiosa nas igrejas pentecostais ainda impera. As mulheres são
influenciadas pelos discursos religiosos e, por isso, muitas permanecem em
relacionamentos conflituosos. Luciana, 39 anos, é assembleiana desde que nasceu, sofreu
violência doméstica do ex-companheiro e quase foi morta por ele. Ao lhe perguntarmos
se, em algum momento, buscou ajuda na igreja para se livrar da violência, ela nos relatou
que tal fato aconteceu várias vezes, porém não conseguiu apoio da liderança para se
divorciar:
O pastor foi na minha casa fazer campanha para ver se ele mudava. Um dia, eu
chamei ele no particular e ele falou assim: ‘Olha, irmã, o que Deus une homem
nenhum separa, se Deus fez o casamento dele ninguém separa, será que é muito
cedo porque é o teu Deus que preparou ele e ele vai mudar, ele vai mudar e
através de você ele vai mudar’. Eu falei: ‘Mas eu estou em Cristo há tanto tempo,
há anos e não tá adiantando’. ‘Isso não é nada, irmã, ora mais’. Aí quando o
pastor saía na porta, no outro dia ele começava tudo de novo, e eu dizia: ‘Jesus,
mas é isso que tu quer pra mim?’
Eu cheguei a falar várias vezes na igreja que eu queria me separar, mas eles
nunca me apoiaram, eles diziam que o certo era eu ficar com ele, viver com ele,
e apoiar ele até que ele conseguisse mudar de vida.
74
parceiro pudesse se converter e se tornar um esposo não violento. O caso de Joana foi
ainda mais arriscado, pois o ex-companheiro, a cada agressão, tentava enforcá-la e só
parava quando ela estava quase morrendo. Indagamos: o que vale mais? A vida ou
obedecer aos dogmas religiosos?
75
recaiu principalmente para as mulheres, dadas as suas características patriarcais. Partindo
deste pressuposto, a religião torna-se contraditória, uma vez que a mensagem transmitida
por ela em sua maioria é estimular e proteger a convivência humana a partir dos valores
fundamentais de toda a existência, e esses mesmos valores geram formas de cumplicidade
com a violência doméstica e social.
Em relação à sexualidade feminina, para a religião ela tem apenas uma finalidade:
a procriação, pois para ela o sexo é algo sujo, indigno e mau. Essa ideia é baseada nas
sagradas escrituras, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Já afirmava Santo
Agostinho, considerado um autor cristão bastante influente nas questões relacionadas à
76
sexualidade: “Todos os atos sexuais são, em certa medida pecaminosos porque pelo
menos alguma luxúria está virtualmente implicada em cada um deles.” Nesta perspectiva,
como o sexo tinha como principal objetivo a procriação, qualquer maneira de evitar a
concepção era pecaminosa e moralmente inaceitável. Os pecados sexuais, como o sexo
fora do casamento, masturbação, prostituição, homossexualidade, sexo com mulher
grávida, sempre foram considerados luxúria para a religião e resultavam em punições
severas (BUSIN, 2011).
77
Capítulo III
A família é uma instituição social que liga as pessoas por laços de parentesco ou
de convivência. É nela que aprendemos as primeiras formas de socialização criadas pelas
culturas. Essa instituição possui em seu seio aspectos cristalizados na consciência dos
indivíduos e constitui igualmente o lugar em que se constrói a identidade fundamentada
em seus valores morais, mesmo que influenciados pela sociedade. Logo, é o primeiro
sistema no qual o indivíduo interage, pois nela cada membro tem uma posição e um papel
socialmente definidos que reflete sua organização (BERGER, 1975).
78
No Brasil, desde o período colonial, a identidade social das mulheres era vinculada
à vida doméstica e sua imagem figurava serena e frágil, como seres naturalmente
inferiores aos homens. Na Casa Grande23 as mulheres brancas tinham como
responsabilidade o comando do lar, bem como outras atividades como bordar, costurar,
cuidar do pomar, que eram atribuições destinadas aos cuidados com a família. Em se
tratando das mulheres negras, estas viviam também nas casas-grandes como escravas e
concubinas, ou seja, elas eram submetidas ao domínio dos brancos. As mulheres negras
além de servirem como “ventres geradores” (BASEGGIO; SILVA, 2015, p. 23),
iniciavam os filhos dos grandes senhores na vida sexual. Eram também amas de leite,
escravas domésticas e ainda eram submetidas às condições de violência sexual. As
mulheres negras escravas quando finalmente obtinham a liberdade, encontravam diversas
dificuldades, pois embora estivessem livres, não tinham um local que as acolhesse para
que pudessem iniciar uma nova vida. Em decorrência disso, acabavam sendo obrigadas a
entrar na prostituição, a fim de evitar a miséria e a fome (BASEGGIO; SILVA, 2015).
Quanto aos homens, a responsabilidade sempre foi da gestão dos empreendimentos e
negócios, assim como o direito à vida social. Assim ficava evidente a diferença da
construção dos papéis de gênero, que reforçavam, desde então, os conceitos da dominação
e da opressão.
Com a chegada da família real ao Brasil, no início do século XIX, houve mudanças
significativas no cotidiano das mulheres pertencentes à elite dominante, pois elas
passaram a frequentar os espaços públicos como igrejas e festas, ampliando suas
atividades para o convívio social. Aos poucos, através de muita luta, elas foram
23
“A casa-grande foi casa de morada, vivenda ou residência do senhorio nas propriedades rurais do Brasil
colônia a partir do século XVI. Tudo no engenho girava em torno da casa-grande, sendo ela uma espécie
de centro de organização social, política e econômica local” (ANDRADE, 2009).
79
conquistando espaço na sociedade, aprenderam a ler e a escrever, posicionaram-se frente
aos homens. Apesar disso, os cuidados com a prole nunca deixaram de ser uma das
atribuições principais da mulher. Como resultado de um produto típico da colonização
portuguesa, este é o modelo da família brasileira.
O lar, por ser considerado um espaço privado, nunca sofreu qualquer intervenção
do Estado na casa; porém, o mesmo não acontece com a religião: considerada também
uma instituição social, sempre teve maior influência no âmbito familiar. Segundo
SOUZA (2009), a religião, tida como sagrada, é uma das poucas instituições que participa
da vida familiar das pessoas, validando o poder exercido pelos homens e a formação das
identidades de gênero.
80
significativamente no Estado Republicano por meio da imposição de seus princípios
religiosos às Constituições, como por exemplo no debate sobre o aborto legal24.
Ainda com maior número de fiéis declarados, o catolicismo vem aos poucos
perdendo seus adeptos. De acordo com a censo 2010, os católicos passaram de 73,6% em
2000 para 64,6% em 2010 (IBGE, CENSO 2010), à proporção que pentecostais,
neopentecostais e outros grupos religiosos crescem rapidamente no País. A população
evangélica passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Das pessoas que se
declararam evangélicas, 60,0% eram de origem pentecostal, 18,5%, evangélicos de
missão e 21,8 %, evangélicos não determinados (IBGE, CENSO 2010).
O pentecostalismo, desde o seu nascimento, foi aos poucos ganhando adeptos das
camadas mais pobres da população nos ambientes urbanos, alcançando principalmente
homens e mulheres migrantes e marginalizados. Existem vários fatores que contribuem
para a conversão ou permanência de pessoas do sexo feminino no pentecostalismo, um
deles é o “aumento da autoestima feminina e até uma redefinição no comportamento
masculino, beneficiando as mulheres e a família” (MACHADO, 1996, p. 121). Além do
mais, a religião identifica-se com os valores familiares, permitindo que as mulheres se
reconheçam melhor nos seus papéis domésticos e sintam-se mais seguras neles (NUNES,
2005). Outro fator é que muitas mulheres buscam alternativas para pressionar e tentar
24
No Brasil, o aborto é legal somente quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco de
morte para a mãe ou se o feto é anencéfalo (não possui cérebro). Carta Capital, Aline Valek — publicado
02/10/2014 09h39, última modificação 02/10/2014 11h01 Carta Capital). Disponível:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/faq-do-aborto-legal-7594.html Acesso em:
Dezembro/2016).
81
mudar as religiões tradicionais, no sentido de fazê-las mais igualitárias e liberais
(WOODHEAD, 2001). E ainda, estar inseridas nas igrejas pentecostais “serve aos seus
interesses práticos, já que por meio deles elas podem domesticar os seus cônjuges”
(MACHADO, 1996, p. 122), uma vez que muitos possuem vícios como bebida, droga ou
jogo, e deixam de doar sua atenção e seu salário à família.
Na igreja você não pode beber, você não pode usar drogas. Ele gostava de ir pra
balada, a igreja não deixa. Ele queria que eu fosse com ele pra balada; ele queria
que eu fosse com ele para os bares, porque ele achava que ele era desonrado no
meio dos homens, porque eu não estava lá junto com ele como as outras mulheres
estavam. As mulheres dos amigos dele iam para o bar beber cerveja de fim de
semana e eu não ia porque eu ia para igreja. Então ele criticava muito e por
causa disso, porque eu ia para a igreja. Mas eu tinha que decidir ou eu ia para
igreja ou eu ia para o bar, porque para a igreja o bar não é um lugar apropriado.
Eu não gostava, eu não queria, não curtia esse tipo de coisa. Ele me conheceu
dentro da igreja, ele sabia que eu queria estar dentro da igreja. O resto da minha
vida quando eu ia para a igreja ele ficava na porta me esperando, muitas vezes
alcoolizado, e ele ficava me vigiando na igreja, principalmente se estivesse
sentada do lado de outro homem.
Uma das questões discutidas com as mulheres que participaram do universo desta
pesquisa foi se e de que forma a religião as ajudou a superar as agressões sofridas. Quase
todas elas responderam afirmativamente, isto é, que a religião as ajudou muito,
principalmente quando suplicavam forças à divindade. Por outro lado, muitas mulheres
preservaram um relacionamento violento na esperança de que o companheiro agressor se
regenerasse com a ajuda divina. Estar casada para elas é um fator muito importante para
82
que se sintam realizadas. Tal fator é compreensível, pois as mulheres são socializadas
para o matrimônio, e a religião reforça esta ideia. Como nos descreve Monica, 31 anos,
que foi espancada durante quinze anos pelo ex-companheiro. Ao relatar sua situação, em
lágrimas, revela que diariamente ajoelha-se ao chão e pede a Deus:
Se eu creio em Deus ele vai devolver o meu casamento, ele vai transformar o meu
casamento, pra que eu possa restituir.
A culpa por não conseguir manter a família unida recai sobre a mulher, que se
sente com a responsabilidade de manter um casamento feliz, visto que o divórcio se
distancia do modelo proposto pela igreja. Neste sentido, muitas mulheres que sofrem
violência buscam através da doutrina religiosa pentecostal ajuda para transformar o
comportamento agressivo dos companheiros, para torná-los pessoas menos violentas. Ao
se sentirem responsáveis pela manutenção da união da família e pela sua possível
dissolução, as mulheres que vivem em relacionamentos conflituosos, submetem-se a
várias situações violentas. Alda, por exemplo, nos relata o que acredita ser o papel da
mulher religiosa no lar:
A mulher precisa ter sabedoria para conduzir o seu lar, ela precisa saber
conviver com seu marido, com seu esposo.
Para Alda, bastava ela representar o papel da mulher sábia, ou seja, ser carinhosa,
dedicada e afetuosa, e não seria espancada. Entretanto, não foi isso o que aconteceu, pois
seu agressor de fato não a espancava, mas mandou que outra pessoa a matasse, e por
muito pouco ela sobreviveu. Alda, porém, não interpretou a ideia religiosa de submissão
de forma estanque. Para ela,
...a palavra submissa não é aceitar o marido batendo, o marido xingando, não é
aceitar o marido humilhar a mulher.
Quando eu saio de dentro da igreja, a minha vida muda muito. A minha mulher,
até quando ela vai na igreja fazer campanha, ela volta muito transformada me
dá carinho e brinca, mas quando ela mexe com essa coisa da Umbanda aí ela
volta transtornada, fazendo cara feia, fazendo querer eu brigar com ela para ela
83
ir para casa dos outros e ela vai lá todas as quintas e sextas-feiras [...] quando
ela vai para casa dessa mulher da macumba ela fica possuída, para mim uma
pomba gira que vem [...]ela quer que eu brigo e isso é o ‘bicho’ que cutuca é a
pomba gira, que me cutuca para eu ir para cima e agredir. (Roberto)
A concepção religiosa de Roberto não admite que a esposa tenha uma crença
religiosa diferente da sua, e por isso a considera “filha do demônio”. Para que a
companheira mude sua pertença religiosa ele a violenta física e moralmente todos os dias.
Dentro desta percepção de não aceitação da identidade religiosa de sua companheira, sua
suposta possessão é desculpa para a situação difícil que a família enfrenta.
Consequentemente, só restam à companheira a lei da obediência e a autoridade exercida
pelo marido, para que ela não seja agredida. Além disso, Roberto tinha a esperança que
sua companheira comparecesse aos cultos da Assembleia de Deus, acreditando na
possibilidade das forças demoníacas se manifestarem nela durante as sessões de
“libertação dos demônios”, com o intuito de reverter essa situação. No entanto, percebe-
se que essa luta é ainda mais complexa, pois não é apenas uma guerra entre o mal e o
bem, mas uma luta entre Deus e o diabo (MACHADO, 1996).
Não foi fácil para as mulheres pentecostais que sofreram violência decidir-se pelo
divórcio. Muitas relataram que não tiveram nenhum apoio da família e tampouco das
amigas de fé. Conforme relato das entrevistadas, muitas sofreram preconceitos nos salões
das igrejas às quais pertencem, como nos relata a assembleiana Joana:
Eu não tive coragem nem de voltar lá, mas as pessoas dentro da igreja não
aceitam que você seja separada, porque as mulheres antigamente elas
cozinhavam, sofriam, apanhavam, mas ali estavam firme e hoje os maridos delas
já estão mais sossegados, entrar na igreja e você tem que ter esse pensamento
[...] não quero falar mal das religiões, mas dentro de uma igreja se a mulher é
separada ela é malvista, as próprias mulheres ficam com pé atrás com você: ‘Ai,
meu Deus, ela está doida por outro homem, ela vai querer roubar o meu marido’.
As próprias mulheres têm preconceito com você.
84
compreensivas e ainda “responsáveis pela salvação de seus familiares, ou seja, por sua
alma e saúde” (MACHADO, 199, p. 111).
Para a maioria das pessoas, associar a religião à violência não é tarefa fácil, já que
no imaginário popular a religião é relacionada à paz, ao amor, à solidariedade e ao perdão.
As instituições religiosas detêm um poder simbólico imensurável, que dificulta a
percepção de violências produzidas em suas práticas, em seus discursos e, inclusive, em
seu reforço à violência de gênero.
As mulheres que são muito religiosas e sofrem violência têm maior dificuldade de
se perceber numa relação conflituosa, tendo em vista que a religião reforça as violências
vividas em seus lares através da estrutura patriarcal, em que a obediência como virtude é
o símbolo de um mundo masculino e autoritário. Assim sendo, muitas mulheres sofrem
agressões durante anos até não suportarem mais, como é o caso de Alda, que sofreu
agressões severas do ex-companheiro durante toda a união. Ela é uma pessoa
extremamente religiosa e frequenta assiduamente a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ao
perguntarmos se em algum momento ela recebeu ajuda da religião para sair da situação
de violência, ela relata:
85
A igreja nunca me ajudou, nunca falou nada para mim em relação à
violência, e também eu nunca ouvi na igreja que a mulher tem que
apanhar e o homem tem que bater e que tem que ser submissa. A minha
vida foi viver na igreja adventista. Eu servia e adorava o meu Deus.
Ainda sirvo porque este é o único caminho adorável hoje. Eu estou
afastada porque eu não estou na minha casa, eu estou acolhida na casa
abrigo, eu sofri muita exploração.
No meu caso o meu agressor dizia que, mesmo ele não estando indo na
igreja, eu tinha que ser submissa a ele, porque na Bíblia está escrito que
quando a gente bate de um lado da cara, a pessoa tem que oferecer a
outra face.
86
Joana viveu fortemente sob ameaças fundamentadas em pressupostos religiosos
do ex-companheiro, que se beneficiava para manter seu comportamento agressivo e
violento. Por um longo período de tempo ela foi agredida psicologicamente, ameaçada e
espancada e, segundo ela, buscava ajuda constantemente na igreja que frequentava, mais
especificamente com seu líder religioso, para tentar livrar-se das violências sofridas, e de
certa maneira esperando o consentimento de Deus para se divorciar. Tal fato nos faz
refletir sobre o potencial simbólico que a religião estabelece com as pessoas: ao mesmo
tempo em que confirma a submissão, autoriza as mulheres a se livrar das violências
vividas.
87
mulheres foram capazes de denunciar seus companheiros e, mesmo sendo ameaçadas de
morte, levaram suas denúncias às Delegacias e, em alguns casos, enfrentaram suas
famílias, vizinhos, amigas de fé, os pastores de suas igrejas e suas comunidades. Elas são
guerreiras porque conseguiram vislumbrar alternativas, enfrentaram seus medos,
superaram aquilo que em suas crenças as mantinha prisioneiras e acreditaram que é
possível viver uma vida livre de violência.
Ser mulher para muitas é simplesmente ser mulher, mas para as que sofreram ou
sofrem violência, é uma questão de honra. Nesta pesquisa, as mulheres que foram
entrevistadas responderam que ser mulher é sinônimo de “ser heroína, guerreira” e outros
adjetivos associados a estes. De fato, se pesquisarmos no dicionário, a palavra heroína
aparece como “mulher que se destaca por um ato de extraordinária coragem, valentia,
força de carácter, ou outra qualidade notável” (Dicionário Infopédia da Língua
Portuguesa com Acordo Ortográfico, 2003-2016), ou ainda: “Mulher de grande coragem,
de sentimentos ou virtudes excepcionais” (Priberam dicionário, 2012). Como sinônimo
de “guerreira”, encontramos: “Pessoa que combate numa guerra, combatente, soldado;
Pessoa que demonstra coragem e força” (Priberam dicionário, 2012).
25
“Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso.”
88
consequentemente pela sociedade, que é o modelo de família patriarcal e hierarquizada.
Para ilustrar tal afirmação, apresentamos o depoimento de Pedro, que ficou detido por
oito meses, por ter espancado a ex-companheira:
Nós dois perdemos a cabeça. Eu acho que teríamos que sentar e conversar. Ela
poderia ter me falado: ‘Me arrependi de ter brigado com você, me arrependi de
ter rasgado os documentos de sua filha, eu poderia inclusive ter ido visitar sua
filha com você’. Eu sei que errei também em ter batido nela, teríamos que ter
conversado, pois o amanhã seria outro dia, não precisava chegar a este ponto,
inclusive ela tinha umas contas para pagar e eu era o guia para ela.
Espancar mulheres e pedir perdão já era uma prática comum na vida deste
agressor. Pedro foi casado por vinte anos com sua primeira companheira e, durante todo
esse período, ele cometeu todos os tipos de violência contra ela, que não o denunciou,
pois a pedido dele próprio e de seus filhos, ela o perdoava a cada agressão, silenciando
sua dor. Os filhos de Pedro o apoiavam e insistiam para que a mãe não o denunciasse.
Assim como esta família, muitos agressores passam anos ou toda a sua vida de
matrimônio agredindo as companheiras como se fossem suas propriedades e se sentem
no direito de despejarem suas dores, angústias, frustrações e fracassos através da
violência, sendo que muitos ainda estendem as agressões aos filhos e filhas.
89
Entre separações e reconciliações, Monica atualmente vive sob o mesmo teto que
o ex-companheiro, pois segundo ela, não possui recursos financeiros para proteger os
filhos, sozinha. As mulheres, em sua maioria, conhecem seus direitos; porém, pelo fato
de muitas dependerem financeiramente dos companheiros, submetem-se por muitos anos,
às vezes durante toda a vida conjugal, a todos os tipos de violência. Somente procuram
ajuda quando a situação se torna desesperadora, como Monica.
Outra situação que faz com que as mulheres permaneçam num relacionamento
violento é a valorização da família, a preocupação com os filhos. Elas acreditam que o
pai, mesmo sendo um companheiro violento, cumpre seu papel de “provedor” e, ao
mesmo tempo, temem perdê-los. A idealização do amor e do casamento, o desamparo
diante da necessidade de enfrentar a vida sozinha, a ausência de apoio social, apresentam-
se como situações que inibem as mulheres a denunciar os companheiros ou mesmo
procurar ajuda de profissionais especializados (MIZUNO; FRAID; CASSAB, 2010).
Denunciá-los é um ato de coragem, pois para que a denúncia se efetive as mulheres
necessitam seguir até as últimas consequências no plano jurídico-formal. Ademais, em
sua maioria, são culpabilizadas pelas famílias, pelos filhos e, principalmente, pelas
religiões. As fiéis que frequentam a Assembleia de Deus, por exemplo, não apoiam o
divórcio mesmo em situações-limite, como a de Joana, 30 anos, que nos relata sua
experiência na comunidade religiosa que frequenta:
Não quero falar mal das religiões, mas dentro de uma igreja se a mulher
é separada ela é malvista, as próprias mulheres que frequentam lá ficam
com o pé atrás com você: ‘Ai, meu Deus, ela está doida por outro homem,
ela vai querer roubar o meu marido’. As próprias mulheres têm
preconceito com você, por isso fazem muita diferença.
90
essa razão, muitas delas, mesmo enfrentando ameaças de morte, retiram as queixas e
retornam para uma vida de agressões e intimidações.
Muitos são os conflitos gerados pelas diversas situações vividas por estas
mulheres. Se de um lado existe uma exposição ao denunciar o agressor e, com isso,
encontrar manifestações de compaixão e solidariedade por parte da família e amigos, por
outro lado, a mulher que por vários anos esteve naquela situação, pode experimentar o
desmonte de uma imagem idealizada, construída sobre si mesma e também sobre a
própria relação com o companheiro, perante a família, a religião e toda a sociedade.
Segundo Pedro, as agressões foram apenas um castigo para que ela pudesse
refletir sobre a perda da carta de sua filha. O castigo físico ainda é uma prática
culturalmente aceita e bastante naturalizada pela sociedade quando se trata de pais para
os filhos, e isso se dá como condição de afirmação da autoridade. Neste sentido, o castigo
físico imposto às mulheres também pode ser considerado um recurso para dizer quem
comanda a relação ou para se manter no poder, na perspectiva que o outro se anule
totalmente. Assim sendo, a subalterna que não atender às expectativas ou desejos do
26
Centro de Detenção Provisória (CDP) – Locais onde ficam os presos que aguardam julgamento. São
unidades com cerca de 760 vagas. Disponível: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/ultimas-
noticias/saiba-a-diferenca-entre-cdp-cpp-crp-e-penintenciaria-compacta/ Acesso em: 15/12/2016
91
dominador, está arriscada a ser espancada ou violentada muitas vezes até a morte (FEIX,
2011).
Para ilustrar tal afirmação, apresentamos outra situação de violência como castigo,
que foi realizada através de espancamento e abuso de poder. Esta situação foi vivenciada
por Edilia, que viveu em cárcere privado, ficou internada várias vezes pelas agressões
sofridas, fugiu pela primeira vez, mas foi “caçada” pelo agressor e hoje, livre do ex-
companheiro e das agressões, está refazendo sua vida com a ajuda dos filhos e da
comunidade religiosa Assembleia de Deus da qual seu irmão é pastor:
O ex-companheiro de Edilia acredita que para exercer o seu papel masculino deve
impor suas crenças religiosas projetadas em interpretações bíblicas: a mulher deve
obediência ao homem. Neste sentido, na função de projeção da realidade social a religião
tem uma atribuição importante, “a de manter essa masculinidade como categoria
universal sacralizada” (LEMOS, 2008, p. 4). Quando não espancam suas companheiras,
eles as violentam psicologicamente, acreditando que tais atitudes as impedem de exercer
sua liberdade e condição de alteridade em relação a eles. Toda essa coerção é para que
consigam vivenciar sua masculinidade idealizada pela religião e imposta enquanto
sagrada.
Luciana sofreu todos os tipos de violência e quase foi morta a facadas pelo ex-
companheiro, que diariamente mantinha o instrumento amolado, esperando a hora certa
para agir enquanto premeditava o crime. Ela era impedida de exercer sua autonomia e
liberdade:
92
resultando em xingamentos, ameaças e afirmações infundadas, que provocava momentos
de pressão e horror para Luciana.
O meu pai era muito agressivo comigo, ele judiou demais de mim. Meu pai não
era um ser humano comigo não [...]era só comigo porque os meus irmãos são
brancos e eu sou negro [...] o meu pai agredia muito a minha mãe, ele batia
muito nela também.
Pedro foi socializado numa família violenta, expandindo tais agressões por toda
sua vida. Outro fator que também pode influenciar nas violências cometidas por homens
no ambiente doméstico, é o fato de sofrerem violência também no ambiente de trabalho.
A invisibilidade profissional, muitas vezes vivenciada pelos homens, está diretamente
ligada ao sofrimento e sentimento de impotência. Na concepção de Costa (2008), trata-se
de uma violência simbólica, que oprime trabalhadores pobres, representando certa
humilhação social. A cobrança que existe numa “sociedade de classes, hierárquica,
93
autoritária, sexista, classista, militarista, racista, impessoal e louca, canalizada através de
um homem individual” (GIFFIN, 2005, p. 50), faz com que se sintam impotentes perante
outros indivíduos.
Eu acho que o homem é mais agressivo e explosivo que a mulher, o homem com
cinco minutos ele mata; a mulher, não, ela sabe sair. O homem já não, ele vai
para cima ou ele mata ou ele morre, porque o homem é mais forte, o homem é o
pilar da casa.
94
violência contra duas ex-companheiras. Ao perguntarmos a ele se, em algum momento
de sua vida, buscou ajuda na religião para seus relacionamentos conflituosos, afirmou:
Eu peço ajuda o tempo todo e para todo mundo e proteger todo mundo, eu peço
a Deus quando estou orando para os mendigos, para os drogados, para Deus
abençoar todos os pecadores [...] Deus é o dono do ouro e da prata, é o meu
senhor.
95
seus problemas. A fé religiosa, seus ritos periódicos, alimentam sonhos e ilusões das
mulheres que estão vivendo situações difíceis de violência. A igreja é um local que as
acolhe, ainda que, em suas contradições, as instigue à paciência e à tolerância. Linda
Woodhead (2001) demonstra que, além da fé e dos ritos sagrados, as religiões oferecem
às mulheres espaços sociais e culturais em que possam articular seus desejos, medos,
esperanças e convicções morais, espaços estes que não são oferecidos em outro lugar. A
religião, muitas vezes, é entendida pela sociedade como ampliação do espaço privado
(SOUZA, 2009).
Os espaços das igrejas são vistos por Corrêa (1981), como locais de habitação
comunitária em que as pessoas se encontram para socializar seus desejos e sonhos. Em
contraposição, mostram um mundo desumanizado, revolto, incoerente e triste. E é nesses
espaços de contradição que as lideranças religiosas cumprem seu papel de obreiros do
Senhor. As mulheres que sofrem violência compartilham nos espaços da igreja suas
alegrias, dores e angústias, buscam ajuda com outras mulheres que ocasionalmente estão
vivendo situações semelhantes, mas principalmente contam com o auxílio das lideranças
religiosas. O poder pastoral é aquele exercido pelo pastor sobre o seu rebanho, conforme
afirma Foucault:
O poder pastoral foi introduzido pelo cristianismo como uma relação que se inicia
como de guia e proteção, porém ele se torna uma relação de poder e dominação, pois
quem guia e protege considera os guiados e protegidos como incapazes e fracos de certa
maneira, vindo daí o poder sobre eles. Desde a sociedade romana, os pastores de rebanhos
de ovelhas (que tinham como atribuição pela função exercida um olhar amplo para a
imensidão, a obediência e total dependência) foram se organizando para assumir as
96
funções de que a igreja necessitava. Para Foucault (2004), a principal função do poder
pastoral é fazer o bem para os que estão sob sua responsabilidade e cuidados, para tanto
o pastor deve alimentá-los, garantir sua sobrevivência, oferecer-lhes um pasto, conduzi-
los a fontes de águas limpas e frescas e protegê-los dos que querem fazer-lhes mal.
Então assim, Deus é o nosso pastor geral, é o nosso pai, o nosso tudo, só que ele
deixou o pastor dirigindo a igreja representando ele aqui na terra, porque a
Bíblia é bem clara, o pastor é o nosso líder espiritual. Tanto é que ele diz assim:
‘se você pecou vai até o seu líder espiritual e confessa seu pecado para que ele
interceda por você’, se ele é um líder poderá interceder pela gente, ele é o nosso
líder para nos ajudar nas horas difíceis, quando estamos passando necessidade.
O meu pastor, quando eu já não aguentava mais sofrer violência, quando eu não
aguentava mais viver errado, eu fui sim pedir ajuda para ele e fui morar na casa
dele, e ele dizia para mim: ‘Edilia, vou te ajudar, mas você vai ter que sair dessa
vida’. Eu estava vivendo numa situação muito difícil, eu mostrava para ele a
situação e o dia que eu não aguentei mais, eu fui pedir ajuda.
O pastor falou para mim: pode deixar que eu vou lá conversar com ele [...]
fizemos mais orações na minha casa e tudo bem, ele ficou bem por uma semana
e depois de novo me bateu, cheguei quase a morrer e o pastor foi conversar com
ele e falou para mim: ‘Você quer alguma coisa? Porque ele não quer nenhuma
ajuda, eu sugiro que você vai procurar a justiça, vai procurar ajuda no espaço
da mulher’.
As ações das lideranças religiosas não são padronizadas, pois vários líderes, ao
perceberem o risco iminente de morte que as mulheres correm, as orientam a buscar ajuda
nos serviços especializados que oferecem apoio a mulheres que estão em situação de
violência doméstica com ameaça de morte. Jussara recebeu apoio da liderança religiosa
para sobreviver às agressões perpetradas pelo ex-companheiro. Mesmo correndo risco de
morte, ela foi primeiramente conversar com a liderança religiosa, pois “a obediência ao
pastor é condição fundamental para que o indivíduo faça parte de seu rebanho” (SILVA,
2009, p. 55).
As orientações oferecidas pelas lideranças religiosas não podem ser vistas como
uma simples expressão explicativa, mas como “o fenômeno social que possui relações
com o ambiente, e está situado no tempo e espaço, influenciando e sendo influenciado”
(MADURO, 1983, p. 44). Por esse motivo, as lideranças interferem nas subjetividades
formando a consciência individual e social que implica diretamente na formação de
opinião dos indivíduos. Não há dúvidas que o cotidiano ganha muito mais sentido quando
há um referencial transcendente.
Muitas vezes, a palavra do pastor vai além do sermão, pois ela é complementada
nas demais ações do culto, significando mais do que uma exegese do texto bíblico, pois
98
é através do sermão que são reafirmados: “o compromisso do dízimo, da evangelização
ou de normas de conduta dos crentes” (CESAR; SHAULL, 1999, p. 72). O vocabulário é
pobre, com erros gramaticais, mas a legitimidade do discurso está na resposta imediata às
aflições do cotidiano como: empregabilidade, prosperidade, soluções de problemas
familiares, vícios, enfim entre outras dores comuns vividas pelas pessoas em seus
cotidianos (JARDILINO, 1993). Embora não seja obrigatório que os pastores das igrejas
pentecostais possuam formação teológica, eles assumem um papel de professor e mestre,
pois suas palavras são altamente levadas em consideração pelos fiéis, principalmente
pelas mulheres que estão vivendo momentos difíceis.
Jussara foi ameaçada de morte pelo ex-companheiro e está acolhida nas Casas
Abrigo para mulheres em situação de violência doméstica com ameaça de morte. Para ela
a igreja é um local seguro. Para as mulheres que passaram anos de suas vidas em situações
extremamente difíceis e delicadas, muitas vezes sem resolução, o sagrado é a esperança
e a força interior para que consigam dar continuidade a suas vidas. Elas buscam sabedoria
e esperança no poder superior, como relata Edilia:
99
Nesta perspectiva, não restam dúvidas quanto à importância de uma compreensão
ampla por parte das lideranças religiosas a respeito da origem da violência de gênero e
suas implicações na vida das mulheres nesta sociedade. A violência contra as mulheres
está enraizada nas estruturas de poder e no patriarcalismo, que legitimam tais práticas.
Esse modelo machista imposto por um sistema hierarquizado, que atravessa todos os
espaços sociais, inclusive os religiosos, reforçam a submissão e a inferioridade das
mulheres. Não é simples combater a violência de gênero, tendo em vista que o masculino
sustenta todas as ações. É nesta ciranda de violências visíveis e invisíveis aos olhos que
se consolidam os canais da comunicação, do conhecimento e dos significados que
oferecem sentido ao nosso modo de viver.
100
Segundo Woodhead (2001), as mulheres são influenciadas pelos espaços sociais
que estão disponíveis para elas dentro das igrejas, visto que muitas escolheram ou foram
levadas a exercer somente as atribuições domésticas. Para as mulheres que optaram por
uma vida profissional ativa, a igreja pode oferecer um espaço onde elas consigam
exteriorizar uma identidade, pois frequentemente são oprimidas em seu ambiente de
trabalho. Outra possibilidade que pode ser vivenciada pelas mulheres no espaço religioso
é a tentativa de compelir a religião para a busca de relações de gênero mais igualitárias.
101
As mulheres que se candidatam a lideranças comunitárias participam de
formações realizadas por profissionais voluntários das comunidades religiosas, com
temas pertinentes a problemas sociais e de saúde enfrentados pelas moradoras das
comunidades ampliando seu repertório cognitivo. O engajamento nas pastorais pode
oferecer recursos que possibilitam o investimento a uma carreira na área social.
Além disso, são muito comuns as práticas associativas nos ambientes religiosos,
mais especificamente nas igrejas, que geralmente se potencializam a partir das demandas
sociais, auxiliando as famílias em suas necessidades. O associativismo religioso diz
respeito a um movimento de pessoas que buscam congregar em determinado espaço a
defesa de direitos e se desenvolvem a partir de situações de exclusão social (LAVALLE;
CASTELO, 2004). Muitas vezes, o associativismo religioso é uma das poucas
oportunidades, principalmente em comunidades de baixa renda, pois além de cultivar
laços de amizade e de fé, promovem outros benefícios como, por exemplo, ajudar os fiéis
a se inserir no mercado de trabalho.
102
Em comunidades carentes são poucas as intervenções do Estado na oferta de
serviços públicos. Por conseguinte, o auxílio organizado nas igrejas, muitas vezes são as
únicas alternativas de apoio às famílias que estão em situação de alta vulnerabilidade.
Diversas lideranças religiosas se organizam em redes para apoiar seus fiéis em busca de
garantir seus direitos e inclusão social, ou outras necessidades importantes para a família.
A realidade das famílias pobres que residem em comunidades é bastante difícil, pois
possuem pouco ou nenhum recurso financeiro para sua subsistência e manutenção dos
lares. O desemprego é um dos fatores que influencia diretamente no desenvolvimento de
relações familiares conflituosas. De todas as pessoas entrevistadas nesta pesquisa, 31%
estão desempregadas. Os agressores, ao serem questionados sobre as maiores dificuldades
enfrentadas no relacionamento, mencionam a falta de subsídios para manter a família com
dignidade.
Outro aspecto relevante de estar associada a uma comunidade religiosa é que isto
representa uma possibilidade de suprir a necessidade de relacionamento com outro tipo
de laços afetivos. Em relação aos filhos e filhas, principalmente adolescentes, a igreja
também tem sua importância, pois representa um lugar de cultura e lazer diante da
escassez desse tipo de recursos próximo às comunidades.
103
quando, por exemplo, necessitam sair de suas casas às pressas para não morrer, ou quando
estão passando por necessidades básicas. Algumas mulheres participantes desta pesquisa
encontraram apoio nas igrejas para situações emergentes de violência que estavam
vivendo. Como relata Márcia, da Igreja Deus é Amor:
Tem pastores que ajudam a gente. Tem igreja que até recurso dá, até a passagem
da mulher para ela fugir.
O pastor me disse: “vai lá na igreja que a gente te ajuda e te levamos para bem
longe”. O pastor me ofereceu ajuda, só que na época eu fiquei com muito medo
o meu agressor falou que ele não ia mudar.
A igreja vem sendo o lugar de referência para muitas mulheres, por isso elas
buscam ajuda ali para sair da situação de violência, seja para se deslocar para casas de
parentes em outras regiões ou para conseguir recursos alimentícios para subsidiar os
filhos e filhas quando conseguem se livrar dos agressores. Nesta perspectiva, os espaços
religiosos, por serem considerados seguros e confiáveis pelas mulheres que estão
sofrendo violências e/ou ameaças, tornam-se alternativas para conseguirem superar a
situação que estão vivendo. Neste sentido é fundamental a construção de parcerias entre
denominações religiosas e poder público27, com o objetivo de desenvolver estratégias que
visem contribuir para o enfrentamento do fenômeno da violência contra as mulheres.
27
Daí a importância de iniciativas como a do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/Netmal,
da Universidade Metodista de São Paulo, que tem promovido ciclos de debate sobre Religião e Violência
Doméstica, envolvendo lideranças religiosas e técnicos(as) do poder público que trabalham no
enfrentamento da violência contra as mulheres, visando debater sobre a importância da elaboração de
políticas públicas integradas que envolvam as instituições religiosas e os diferentes aparatos do poder
público nessa ação.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
105
denuncia-se, presta-se socorro. Muitas mulheres são mortas pelo simples fato de
pertencerem ao sexo feminino. Tal ato de violência evidencia a soberania de relações de
gênero hierárquicas e desiguais nesta sociedade e, por essa razão, a violência contra as
mulheres é analisada no Brasil como um problema social e deve ser enfrentada através da
articulação de entidades feministas, associações de mulheres e de direitos humanos,
órgãos governamentais e não governamentais.
Não é simples para as mulheres livrar-se das violências sofridas no interior de seus
lares, pois este fenômeno está de tal forma naturalizado pela sociedade que os agressores
se intitulam donos de suas companheiras, de suas vidas e de suas almas. A violência
doméstica perpetrada por companheiros foi culturalmente construída, dificultando o
rompimento deste ciclo. O movimento feminista vem incansavelmente lutando para o
enfrentamento deste fenômeno. Nos últimos anos houve avanços importantes
relacionados à formulação de políticas públicas que trabalham contra a violação dos
direitos humanos das mulheres.
106
com normas impostas pela sociedade, é confrontar um sistema conservador, intolerante e
preconceituoso.
107
estrutura patriarcal são impactantes na formação dos indivíduos. A violência simbólica é
imperceptível e invisível, porém perversa em suas consequências, pois o discurso
patriarcal conservador e machista é sacralizado pela religião, que, por sua vez, interfere
diretamente na forma como o homem e a mulher são representados socialmente.
108
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115
APÊNDICE I
2. 1º momento: Apresentação
116
momento e esclarecer também sobre o porquê da gravação em áudio, o destino das fitas
e assegurar o sigilo e o anonimato das informações.
3. 2º momento: Gênero
5. 4º momento: Religião
A moderadora irá pedir para que elas discorram sobre as seguintes questões:
O que Deus significa para você?
Você se considera uma pessoa religiosa?
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Com que frequência você vai à igreja? Quem vai com você?
Seu companheiro também frequenta algum grupo religioso? Qual?
Você participa de alguma atividade na sua igreja? Qual?
Em algum momento você buscou ajuda na religião? Qual?
Em algum momento você socializou a violência vivida com seu líder
religioso? Como?
A religião foi importante para você suportar as violências sofridas?
Explique.
Se pudessem realizar um pedido a Deus, qual seria?
6. Encerramento
118
APÊNDICE II
I. Dados individuais
1. Como se conheceram?
2. Quais problemas/dificuldades enfrentados?
3. Quanto tempo ficaram juntos?
4. A família é importante para você?
119
V. Sobre violência doméstica
120