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Dez observações sobre a arte de escrever

Por causa de minhas atividades profissionais – trabalho como editor, revisor de textos e
vez por outra também como tradutor –, amigos perguntam-me que fazer para escrever
melhor. Há quem peça indicação de gramáticas, de livros sobre redação, de técnicas
para dominar a língua. Numa fórmula simples, querem saber o caminho das pedras.
É uma saia justa. Sempre.
Sou leitor de gramáticas, de manuais de redação e até de tratados de estilística. Leio-os
porque me sinto compelido a isso. Mais ou menos como o profissional de informática
que visita fóruns de discussão a fim de saber o que na dam dizendo sobre as últimas
novidades. Não sei se a analogia é boa. Espero ao menos que deixe claro que se trata de
um domínio especializado e que nem todo usuário precisa saber dos meandros das
atualizações de um software. Um usuário comum, na maioria das vezes, quer apenas
saber se deve clicar em “sim” ou em “não” quando o Windows oferece alguma
atualização.
Pensando sobre o assunto, redigi algumas notas, sem pretensão alguma de que sejam
definitivas. Apenas desconfio de que podem ser úteis para alguém. Arrisco.
1. Dizer o que é bom um texto é algo muito difícil de explicar. É como música: alguém
devidamente treinado é capaz de perceber nuanças e deslizes imperceptíveis a um
ouvido destreinado. Portanto, é necessário adquirir certo repertório. Afinamos o gosto
assim mesmo. Provamos um, depois outro, depois um terceiro. E vamos observando o
que agrada no primeiro, o que incomoda no segundo, o que encanta no terceiro.
2. Como lembra Antonio Fernando Borges no seu breve, mas utilíssimo, Não Perca a
Prosa, escrever é um verbo transitivo. Ou seja, quem quer escrever, antes de tudo, deve
perguntar-se se tem algo que dizer. Quem tem algo que dizer arruma um jeito de dizê-
lo. A forma aperfeiçoa-se com a prática.
3. A forma pode aperfeiçoar-se, mas é bom que se diga desde logo: um pouco de
gramática não faz mal a ninguém. Para que um texto seja bom, não basta que seja
“correto” (e estas aspas indicam apenas que admito certa controvérsia no conceito de
correção), mas dificilmente ele será bom se não for correto. E a gramática vem em
nosso auxílio, para que não tenhamos de depender exclusivamente da intuição ou de
feeling (reproduzo o termo que ouço com frequência) sempre que temos de decidir se
aquela vírgula cabe ou não. Ora, se se trata de um adjunto adverbial, tenho de saber que
devo isolá-lo com duas vírgulas (por se tratar de uma interpolação) ou não devo usar
vírgula nenhuma. Com frequência deparamos com os adjuntos adverbiais de vírgula
única. (*Muitos se perguntam, neste ponto a que me refiro – perceberam a quebra da
unidade sintática marcada pela vírgula única?).
4. Todo mundo diz que é necessário ler muito. Ler bem. Ler os clássicos. Mas, lamento
dizer, isso também não basta. Para aprender a escrever é necessário escrever. Praticar.
Arriscar estilos distintos. Brincar. Pensem em quanto um jogador um jogador de futebol
treina para bater faltas. Aliás, até pênaltis os jogadores treinam. Chutes rasteiros e
chutes altos. Nos cantos esquerdo e direito – e também no meio. De bico ou de chapa.
Medem a distância necessária para chutar assim ou assado. Enfim, treino é treino, jogo é
jogo. No jogo, o atleta há que decidir que fazer. Pode funcionar ou não. Paciência, faz
parte. Para retomar o assunto, o que quero dizer é que nem tudo que se escreve há de ser
publicado. Muita coisa há de ser guardada para correção posterior. Muita coisa há de ser
destruída – para o seu próprio bem.
5. Lembrem-se também que treinamentos costumam ser acompanhados por um técnico.
Abuso da analogia, eu sei. Mas acho-a útil aqui. Há quem escreva, escreva muito, com
regularidade, mas sempre igualmente mal. Falta-lhe a percepção dos próprios
equívocos. Falta-lhe quem o corrija. Não sugiro que todos busquem ajuda profissional.
Basta que encontrem amigos verdadeiros, que também tenham interesse na arte de
escrever. Assim, num ambiente rigoroso mas fraterno, é possível que amigos sabatinem-
se uns aos outros com vistas ao aperfeiçoamento mútuo. Acreditem em mim: uma
crítica rigorosa e bem fundamentada feita por um amigo é mais proveitosa que um
elogio. Sair à arena pública, ainda que apenas nas redes sociais, é sempre perigoso. É
pouco provável que críticos desconhecidos tenham espírito fraterno ao apontar seus
deslizes – para não mencionar desafetos, que são ainda mais impiedosos.
6. Seja gentil consigo mesmo. Se você não gosta de algo que escreveu anos atrás, isto é
um bom sinal. Indica, no mínimo, que seu repertório já o ajuda a perceber o que outrora
passava despercebido. Comemore e persevere.
7. Sempre releia o que escrever. Seja editor de si mesmo. Aprenda a cortar excessos, a
preencher lacunas, de incluir, suprimir ou substituir exemplos. Em geral, quando lemos
textos de terceiros, lemos tão somente o produto final. Mal sabemos quanta
manipulação aquele texto sofreu até chegar ao estado que chegou. Não precisamos
acertar tudo de primeira. Ao reler, procure distanciar-se, procure fazer perguntas,
procure imaginar possíveis objeções. E reescreva. O segredo da boa escrita é a reescrita.
8. Quando falamos, temos muitos recursos a nosso favor: a entonação da voz, as
expressões faciais, os gestos, a percepção imediata das reações e a possibilidade de
explicar na hora o que não ficou claro e dizer de maneira diferente o que dissemos. Na
escrita, não temos nada disso. Em geral, o leitor tem diante de si o texto e nada mais. É
por isso mesmo que escrever é difícil. E nunca se esqueça: na sua cabeça a ideia está
inteira, mas só na sua. Se o que você quer dizer não estiver no texto, ainda que apenas
sugerido nas entrelinhas, o leitor não terá uma visão tão clara quanto a que você tinha
quando redigiu.
9. Dicionários são aliados. Dicionários analógicos são amigos. Quando encontramos
uma palavras e não sabemos seu significado, consultamos um dicionário comum.
Quando, no entanto, temos uma ideia, mas falta-nos uma palavra, consultamos um
dicionário analógico. Estes organizam as palavras por campo semântico, de maneira
que, seu eu quiser falar sobre vigor, encontrarei lá adjetivos como: vigoroso, ardente,
candente, impetuoso, nervoso, vibrátil, incisivo, nobre, impressionante, eletrizante,
instigante, sensacional, enérgico, caloroso. Não são sinônimos. Um dicionário analógico
é um amigo que nos ajuda na busca da palavra justa.
10. Jamais escreva para impressionar. Se determinado registro é estranho à sua
experiência, evite-o. Simplicidade e clareza são sempre bem-vindas.
Estendi-me demais. E esta também é uma violação das regras da boa escrita. Encerro
com isso: seja gentil também com o seu leitor. Não o enfade falando mais que o
necessário, sob a pena de perdê-lo no meio do caminho.

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