As A R T E S D O C O R P O
E o CORPO COMO ARTE*
Nunca como hoje se falou tanto do corpo. Talvez nunca como hoje o
corpo tenha estado tão presente na cultura ocidental e nas montras dos
seus percursos, nos gestos da sua afirmação, nos saberes que a consti-
tuem e nos rituais que secularizadamente a sacralizam. Dir-se-ia que o
corpo finalmente se vingou do lugar segundo a que Platão o teria conde-
nado quando concebeu a relação da alma com o corpo como uma prisão 1
3
Cf. M . B. PEREIRA, "Informática, Apocalíptica e Hermenêutica do Perigo", Revista
Filosófica de Coimbra, V/9 (1996), pp. 13-21; cf. também João Maria ANDRÉ, Pensa-
mento e afectividade, Coimbra, Quarteto, 1999, pp. 54-57.
4
Para uma boa antologia de textos filosóficos sobre o corpo, cf. B. HUISMAN e F . RIBES,
Les philosophes et le corps, Paris, Bordas, 1992.
5
Cf. Mare RICHIR, Le corps. Essai sur Vintériorité, Paris, Hatier, 1993, pp. 5-9.
6
Cf. Mare RiCHffi, "Corps, espace et architectures, in C. YOUNES, Ph. NYS e M .
MANGEMATIN (Eds), L'Architecture au corps, Bruxelles, Éditions Ousia, 1997, pp. 24-25.
7
MERLEAU-PONTY (L'oeil et Vesprit, Paris, Gallimard, 1964, p. 19) traduzia assim esta
diferença na também diferente relação com as coisas e o mundo, resultante dessa dupla
natureza: "Visible et mobile, mon corps est au nombre des choses, i l est l'une d'elles, il
est pris dans le tissu du monde et sa cohésion est celle d'une chose. Mais, puisqu'il voit
et se meut, i l tient les choses en cercle autour de soi, elles sont un annexe ou un prolon-
gement de lui-même, elles sont incrustées dans sa chair, elles font partie de sa définition
pleine et le monde est fait de 1'étoffe même du corps." Para exprimir a indissociabili-
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 9
dade dos dois aspectos dizia logo a seguir o mesmo autor (p. 21): "Un corps humain est
là quand, entre voyant et visible, entre touchant et touché, entre un ceil et l*autre, entre la
main et la main se fait une sorte de recroisement, quand s'allume 1'étincclle du sentant-
-sensibie, quand prend ce feu qui ne cessera pas de brüler, jusqu'a ce que tel accident du
corps défasse ce que nul accident n'aurait suffit à faire."
8
Marsílio FlClNO, ín conviviam Platonis de amore, commenlarium, Oratio IV, Cap. 3, in:
Opera omnia, II, Torino, Bottega d'Erasmo, 1983, p. 1332
LO João Maria André
alma, é o espaço vital das paixões (e, mais do que espaço, o verdadeiro
sujeito da maioria das paixões), que não são meros vícios de uma natu-
reza humana irremediavelmente condenada à corporeidade, mas são "de
tal maneira boas e úteis a esta vida que a nossa alma não teria motivo
para querer estar unida ao seu corpo um só momento se as não pudesse
sentir" , o que faz com que este filósofo declare colocar no uso das pai-
11
9
Cf. David L E BRETON, Anthropologie du corps et modernité, 2 ed, Paris, PUF, 2 0 0 1 ,
a
pp. 6 7 - 7 2 .
1 0
Cf. João Maria ANDRÉ, " O outro corpo de Descartes", in A . M . MARTINS, J. M . ANDRÉ
e M . S. CARVALHO (Eds.) - Da natureza ao sagrado. Homenagem a Francisco Vieira
Jordão, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1999, 3 1 3 - 3 6 6 .
11
DESCARTES, Carta a Chanut de 1 de Novembro de 1646 ( A T , I V , p. 5 3 8 )
1 2
DESCARTES, Carta (ao Marquês de Newcastle?] de Março ou Abril de 1648 ( A T , V ,
p. 1 3 5 ) .
1 3
ESPINOSA, Ética, I I , prop. 13.
1 4
ESPINOSA, Ética, I I I , Definição dos afectos, [.
1 5
ESPINOSA, Érica, I I I , Escólio da prop. 1 1 .
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 11
que chegou a afirmar que "ninguém determinou o que pode o Corpo, isto
é, a experiência não ensinou a ninguém, até ao presente, o que conside-
rado apenas como corporal pelas leis da natureza, o Corpo pode fazer e o
que não pode fazer", concluindo que "o Corpo, só pelas leis da sua natu-
reza, pode muitas coisas que causam o espanto à própria Mente" . ,6
1 6
ESPINOSA, Ética, I I I , Escólio da prop. 2.
1 7
Cf. João Maria ANDRÉ. Racionalismo e afectividade. Sobre os princípios cstruturado-
res das paixões cm Descartes e em Espinosa." In: J. A. Pinto RIBEIRO (Ed.) - O homem
e o tempo. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1999, 281-331.
12 João Maria André
1 8
Cf. David L E BRETON, L'Adieu au corps, p. 2 4 .
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 13
dagem revela-se a outra face deste fenómeno na percepção que dele têm
muitos dos seus autores: traduzem, antes de mais, o esforço desses jovens,
na sua indidividualidade, de produzirem ou narrarem a sua própria identi-
dade, através de uma reclamação do direito à diferença, numa sociedade
cada vez mais homogénea, anónima e massificada. Assumir essa vivên-
cia, com a dor que eventualmente pode comportar, exprimiria então o
desejo de uma metamorfose de si, do seu próprio corpo, a escrita profun-
da de signos íntimos e subjectivamente significantes na superfície da
pele, a narrativa de encontros e acontecimentos de que se faz o eu na sua
existência quotidiana, como os encontros afectivos, a morte de pessoas
amigas, a passagem à maioridade, os momentos-chave ou as experiên-
cias-limite da existência, a partilha indelével com o outro que comunga
do mesmo gesto ou até a preocupação por uma sedução electiva (tanto o
piercing, como sobretudo a tatuagem implicam um subtil jogo de vela-
mento e desvelamento a quem e onde se quer) que passa pela erotização
do corpo em zonas previamente escolhidas. Como diz Le Bretón, comen-
tando esta forma de escrever a memória à flor da pele, "as tatuagens e os
piercings são as páginas dilaceradas de uma agenda, são uma espécie de
diário, mesmo junto à pele, feito de desenhos e/ou de palavras", e, por
isso, "se o tempo é o primeiro a inscrever as suas marcas sobre o corpo
humano, através da lentidão do envelhecimento, se as cicatrizes ocupam
também aí o seu lugar, as figuras desenhadas ou gravadas acrescentam a
sua dimensão própria, declinando uma história deliberada" . É, assim, 20
1 9
Cf. David L E BRETON, Signes d'identile. Talouages, piercings el autres marques
corporelles, Paris, Melaille, 2002.
2 0
IDEM, ibidem, p. 113.
14 João Maria André
cia das suas próprias funções. Prazer e dor, renúncia e êxtase confundem¬
-se então nos caminhos labirínticos do desejo imersos nos subterrâneos
sinuosos das salas de musculação, quais câmaras de tortura voluntaria-
mente assumidas, sentindo os "body builder" essa fusão como um gozo
quase idêntico ao do acto sexual . 21
2 1
Cf. Cf. David L E BRETON, V Adieu au corps, pp. 3 6 - 4 0 .
2 2
Um bom panorama de muitos dos expoentes de "body art" é-nos oferecido pelo livro
L'art au' corps. Le corps expose de Man Ray à nos jours (Marseille, Musées de
Marseille, 1 9 9 6 ) publicado por ocasião das exposições com o mesmo título nas
Galerias Contemporâneas dos museus dc Marselha e no Museu da Moda de Marselha, de
6 de Julho a 15 de Outubro de 1996. Também Sally Jane NORMAN, em "Le Body Art. Du
concept au rituel ou le leurre de la presence" (in Odette ASLAN (Ed.), Le corps en jeu,
Paris, CNRS Éditions, 2000, pp. 169-178) nos oferece uma boa panorâmica dos diversos
aspectos envolvidos em alguns dos artistas que mais se evidenciaram neste campo.
2 Í
Philippe VERONE, no texto de abertura do livro da exposição referida na nota anterior
(cf. "En corps!", in L'art au corps. Le corps expose de Man Ray à nos jours, pp. 13¬
-38), caracteriza-nos o objectivo das várias tendências deste movimento artístico nos
termos seguintes: " I I ressort de ces différents exemples que la preoccupation fondalrice
de Part dit corporel est le corps tel qu'une socicte peut le vivre, Pocculter, 1'opprimer
ou le nier. De fait, il soumet à la question les déterminismes collectifs, les institutions,
les codes, les mythes et le poids des rituels, qu'ils soient famiíiaux, professionncls,
sociaux, ludiques, religieux, biologiques ou psychanalytiques."
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 15
2 4
ORLAN, De Van chamei au baiser de Varüste, Paris, Éditions Jean-Michel Place,
1997, p. 35.
2 5
IDEM, ibidem, p.37.
2 6
Declarações de Stelarc em entrevista concedida a Jacques DONGUY a 30 de Novembro de
1995 e publicadas em L'art an corps. Le corps expose de Man Ray à nos jours, p. 219.
2 7
Cf. Jacques DONGUY, "Stelarc, ou le mythe de Faust", in L'art au corps. Le corps
expose de Man Ray ct nos jours, p. 213.
16 João Maria André
2 8
Cf. Tomás MALDONADO, Crítica de la razón informática, trad. cast, de Juan Carlos
Gentile Vitale, Barcelona, Paidós, 1998, pp. 156-159.
2 9
Cf., a propósito destas próteses químicas, David L E BRETON, L 'Adieu au corps, pp. 51 -62.
3 0
IDEM, ibidem,, p. 6 2 .
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 17
Face a estas artes do corpo que fazem dele o seu objecto de mani-
pulação e de fabricação, sobressaem as artes do corpo sentido e vivido,
do corpo a que a fenomenologia chamou corpo-próprio e que preferimos
chamar com José Gil, corpo intensivo ou vibrátil , que não assentam na
31
3 1
Cf. José GIL, Movimento total. O corpo e a dança, Lisboa, Relógio d'Agua, 2001,
especialmente o capítulo intitulado "O corpo paradoxal" e, nele, as pp. 67-69
3 2
Jose G I L dirá (op. cit., p. 159): "A consciência de si deve deixar dc ver o corpo do exte-
rior, e tomar-se uma consciência do corpo."
3 3
Elina MATOSO, na sua obra, justamente intitulada Ei cuerpo, território escénko
(Barcelona, Paidós, 1992, diz concretamente (p. 73): "El cuerpo-território es represen-
tado en ei mapa: puede dibujarse, complctarse en una silueta, modclarse en arcilla,
armarse con objetos o conformarse como un collage. Pero, además, adquiere dimension
escénica cuando empieza a poblarse de personajes: seres pequenos o gigantescos que
nos habitan, que se instalan plácida o penosamente en cualquier rincón dei cuerpo y
que, a medida que se dcsanolla cl trabajo corporal, van haciendo escuchar sus voces,
sus sonidos. Se perfilan personalidades que, abarcando diferentes escenarios y épocas,
representan nucslro propio 'drama' o historia dramatizada en el cuerpo."
18 João Maria André
segundo José Gil, que "esse esforço, em que todas as formas do movimento
se esboçam antes de se desdobrarem, apresenta movimento antes do
movimento" . Esse esforço é a condensação ou a contracção dos pontos
37
3 4
IDEM, ibidem, p. 43: "Denominamos mapa fantasmático corporal a esta representación
que cada uno hace de su cuerpo, teniendo como referencia una superficie territorial real
o inaginaria."
3 5
Cf. Jean L E D U , El cuerpo hablado. Psicoanálisis de la expresión corporal, trad. cast.
de M . M . Prelooker, Barcelona, Paidós, 1992.
3 6
Rudolf VON LABAN, The Mastcry of Movement, MacDonald and Evans, 1960, cit. por
José GIL, op. cit., p. 16.
3 7
José GIL, op. cit., p. 16.
3 8
Paul VALERY, L'áme et la danse in (Euvres, I I , Paris, Gallimard, Bibliothéque de la
Pléiade, 1960, p. 165.
3 9
MALLARME, Divagations, Crayonné au théátre, Ballets, Paris, NRF, Gallimard, 1976,
p. 193, apud Chantal JACQUET, Le corps, Paris, PUF.
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 19
num ser imaterial, processo que, como bem sublinha Chantal Jacquet, é
proporcionado justamente pela técnica de pontas, inicialmente utilizada
para exprimir o movimento das criaturas etéreas e a idealidade do corpo: "a
dança", diz esta autora, "é o movimento pelo qual o corpo se torna espírito,
deslastrando-se do seu peso" , ideia que corresponde à concepção de Isa¬
40
dora Duncan quando afirma: "O corpo deve tomar-se translúcido e não é
senão o intérprete da alma e do espírito" . 41
4 0
Chantal JACQUET, op. cit., p. 2 4 1 - 2 4 2 . José GIL, por seu lado, afirma (op. cit., p. 2 3 ) :
"O bailarino não vive nunca o seu peso objectivo, científico, o peso do seu corpo-
-objecto, o seu cadáver. Avalia a sua leveza actual por comparação com outras levezas
que acaba de atravessar no quadro específico de certa sequência de movimento: cada
sequência abre múltiplas possibilidades de ausência de peso, diferentes das oferecidas
por outras sequências. São a modulação, as transformações da energia de fluxo que
tomam o coipo mais ou menos leve no interior dc uma leveza adquirida (a da posição
de pé e a do movimento dançado)."
4 1
Apud Paul BOURCIER, üisloire de la danse eh Occident. II. Du romantique au
contemporain, Paris, Éd. du Seuil, 1994, p. 58.
4 2
José GIL, op. cif., p. 19.
4 3
IDEM, ibidem, p. 20. E algumas páginas (p. 6 1 ) explicita melhor esta ideia: "O corpo
tem de se abrir ao espaço, tem de se tornar de certo modo espaço; e o espaço exterior
tem de adquirir uma textura semelhante à do corpo a fim de que os gestos fluam tão
facilmente como o movimento se propaga através dos músculos."
20 João Maria André
4 4
Paul BOURCIER, op. cit., p. 5 8 .
4 5
Chantal JACQUET exprime-o nestes termos (op. cit., p. 2 4 8 ) : "Si le signifiant est corpo-
rel, le signifié ne l'est pas. La danse exprime 1'incorporei par le corporel. Le corps
parle de soi et dit son autre. II incarne les possibles et Ies mille imaginations qui
sommeillent en chacun."
4 5
IDEM, ibidem, p. 2 5 2 : "La coréographie cesse alors d'être narrative, codifiée pour deve¬
nir une exploration infínie des combinaisons possibles des figures du corps dans leur
beauté plastique. Le corps n'est plus le signifiant dont 1'âme serait le signifié, il devienl
signe à part entière et manifeste sa puissance cinétique." Cf. também a este propósito,
Laurence LOUPPE, em "L'utopie du corps indéterminé. États Unis, Années 6 0 " (in Le
corps en jeu, pp. 2 1 9 - 2 2 0 ) , onde, depois de afirmar que "lorsque Cunningham veut
inventer un mouvement qui ne passe que par le corps, il dégage la spécificité même de
la danse, c'est-à-dire le rapport aü corps, au corps global", faz a respectiva articulação
com a problemática do sujeito: «"A partir du moment oü lc corps gcnère, invente, fait
passer son propre mouvement, une question fondamentalc va se poser: qui est le sujet
de Tceuvre? [...] Cunningham a scinde le sujet de Paeuvre d'art. A partir du moment
oü le vrai signifiant de la danse ne peut passer que par le corps, i l n'est pas question
d'imposer à ce corps des antécédents psychologiques risquant de miner la pertinence
d'une décision qui, elle, n'appartiendrait plus au corps." É neste sentido, creio, que deve
entender-se a posição de José G I L ao considerar que o que Cunningham põe em causa é a
noção do sujeito aplicada aqui ao corpo, se por sujeito se entender "um sujeito que tem
sentimentos pessoais e que quer exprimi-los de uma certa maneira" entendendo assim a
dança como um "movimento finalizado", partindo de um "centro intencional" (op. cit.,
p. 3 4 ) . Nestes termos, dir-se-ia que a radicalização do corpo como sujeito da dança leva,
neste caso, a reequacionar completamente a própria noção de sujeito, o que poderia
constituir uma outra pista de reflexão extremamente interessante.
4 7
Recordemos que ESPINOSA afirmava que "a primeira coisa que constitui o ser actual da
mente humana não é senão a ideia de uma coisa singular existente em acto" {Ética, I I ,
prop. 11), sendo essa coisa singular existente em acto o corpo humano (Ética, I I , 13).
4 8
No seu diálogo L'âme et la danse, VALÉRY faz dizer a Sócrates (pp. 171-172): "Et le
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte 21
de tal maneira que o corpo do bailarino deixa de ser uno para ser com-
posto por uma multiplicidade de corpos virtuais e, ao mesmo tempo, os
50
corps qui csl ce qui csl, le voici qu'il ne pcut plus se conlenir dans l'étenduc! - Oü se
mettre? Oü devenir? - Cet Un veul jouer á Tout. I I vcul jouer a 1'universalitc de l'áme!
II vcut rémédier á son idcntité par le nombre de ses acles.! "
4 9
José GIL, op, efe, p. 42.
5 0
IDEM, ibidem, p. 44.
22 João Maria André
assim que "toda a emoção tem bases orgânicas", pode concluir-se que é
cultivando a sua emoção no seu corpo que o actor recarga a densidade vol-
taica" . 56
51 Cf. Odette ASLAN, "Un nouveau corps sur la scene occidentale", in Odette ASLAN
(Ed.), Le corps en jeu, pp. 307-314.
5 2
Antonin ARTAUD, Le theatre et son double, Paris, Editions Gallimard, 1964, p. 19.
5 3
IDEM, "Le theatre de la cruautc (premier manifesto) ", in: Le theatre et son double,
pp. 137-138.
5 4
IDEM, "Le theatre dc la cruaute (second manifeste)", in: Le theatre et son double, p. 191.
5 5
IDEM, "Un athlclismc affeclif", in: Le theatre et son double, pp. 199: " I I faut admcttre
pour l'acteur une sorte de musculature affective qui correspond a des localisations
physiques des sentiments.
I I en est de l'acteur comme d'un veritable athlete physique, mais avec cc correctif
surprenant qu'a I'organisme de I'athlete correspond un organisme affectif analogue, et
qui est paraliclc a 1'autre, qui est comme le double de Tautre bien qu'i! n'agisse pas sur
le mcmc plan.
L'acteur est un athlete du cceur."
56 IDEM, ibidem, p. 2 1 0 .
AS Aries au corpo e o corpo como /nie
como prostituição, se propõe a ideia do "actor santo", "o actor que trabalha
em público com o seu corpo, oferecendo-o publicamente", o actor que "não
vende o seu corpo", mas o sacrifica, que "repete a expiação e se aproxima
da santidade" , não com o sentido do espectáculo, como acontece em
59
alguns expoentes de "body art" a que atrás se fez referência, mas como
"dádiva de si próprio": "Há que darmo-nos totalmente, na nossa mais pro-
funda intimidade", diz Grotowski numa entrevista a Eugenio Barba em
1964, "darmo-nos com confiança, tal como nos entregamos no amor" . 60
5 7
Jerzy GROTOWSKI, Para um teatro pobre, tradução portuguesa de Rosa Macedo, e J. A .
Osório Mateus, Forja, 1975, p. 17.
5 8
IDEM, ibidem, pp. 18-19.
5 9
IDEM, ibidem, p. 31.
6 0
IDEM, ibidem, p. 35.
6 1
Peter BROOK, "À la source du jeu", in Odette ASLAN (Ed.), Le corps en jeu, p. 301.
Sobre estas três dimensões do corpo do actor cf. também, de Peter BROOK, a sua obra
Más allú dei espacio vacío. Escritos sobre teatro, cine y ópera, trad. cast. dc Eduardo
Stupía, Barcelona, Alba Editorial, 2001, pp. 389-390.
6 2
Peter Brook não gosta de utilizar a expressão de Stanislawski "construção da persona-
gem", já que o processo criativo da autêntica forma não é análogo ao da "construção de
¿A Joao Marta Anare
fontes que são nossas, que nos habitam, mas também as fontes subterrâneas
que ultrapassam o próprio actor e que os sucessivos ensaios ("répétitions")
ajudam a descobrir, na descoberta simultânea de que a personagem é mais
do que o próprio actor, revelando deste modo em si e no seu corpo algo que
não é ele nem o seu próprio corpo . 03
ura edifício, em que cada acção é o passo lógico que se segue ao passo anterior" (cf.
Peter B R O O K , La puerta abierta. Reflexiones sobre la interpretación y el teatro, trad.
cast de Gema Moral Bartolomé, 4 ed., Barcelona, Alba Editorial, 1999, p. 34).
a
6 3
A noção de espaço vazio, que dá título a uma das principais obras dc Peter BROOK (cf. El
espacio vacío. Arte y técnica del teatro, trad. cast. de Ramón Gil Novales, 5 ed., a
Barcelona, Península, 1997), não se aplica apenas ao espaço cénico, mas ao próprio vazio
que o actor deve estabelecer dentro de si para poder assumir a personagem que cria, ainda
que o preço desse vazio seja o medo (p. 31):: "Cuando el instrumento del actor, su cuerpo,
se afina mediante ejercicios, las tensiones y costumbres perniciosas desaparecen. Entonces
está preparado para abrirse a las posibilidades ilimitadas del vacío. Pero ha de pagar un
precio: frente a ese vacío desconocido hay, naturalmente, miedo."
6 4
Eugenio BARBA, "Le corps crédiblc ", in Odette ASLAN (Ed.), Le corps en jen, p. 253.
6 5
I D E M , ibidem.
As Artes do Corpo e o Corpo como Arte £5
que partilham esta sintonia criativa. Dela também o público devêm tes-
temunha participante . Montar um espectáculo é, no contexto da encena-
67
ção vista como arte do corpo, no contexto do corpo como arte, viver o
prazer na partilha da criação e abrir caminhos múltiplos nas encenações
do desejo (porque toda a encenação é uma encenação do desejo no sen-
tido mais literal da expressão: pôr em cena o desejo ou deixar o desejo
vir à cena, à boca de cena através de todas as suas metamorfoses). E
depois há ainda a palavra, que também tem corpo e que é essa outra
forma de o desejo falar: a palavra que brota do corpo dos actores, a pala-
vra que dança no corpo dos actores, a palavra que dança entre os corpos
dos actores, a palavra que dança entre os actores e o público, entre o
público e os actores.
O prazer que advém da participação criativa nas artes do corpo está
muito longe daquele que se consegue através da produção químico¬
-farmacológica do sujeito (que, mais do que sujeito é paciente, súbdito,
resultado). E um prazer que resulta de um acto de amor. Só que é um acto
de amor por onde passa o movimento : como se, através destas artes,
68
fizéssemos amor com o tempo. É por isso que elas são as mais efémeras
de todas as artes.
6 6
J. GROTOWSKI, op. cu., p. 2 3 .
6 7
Se, como diz Peter BROOK, no início de O espaço vazio, para realizar um acto teatral é
apenas necessário um espaço nu, um homem que caminha c um outro que o observa
(El espado vacío, p. 5), então também, como ele próprio repete quase no final da
mesma obra (p. 171), "en el teatro no es posible contemplai" en solitário el objeto
terminado: hasta que el público no está presente, el objeto no es completo."
6 a
Athikié, a bailarina que serve dc pretexto para o diálogo dc Paul VALÉRY sobre a alma
c a dança, depois dc, extenuada, se imobilizar no solo, e de dizer "Je ne sens rien. Je ne
suis pas morte. Et pourtant, je ne suis pas vivante!", solta, perante Sócrates, a
exclamação com que termina este texto (op. cit.. p. 176): "Asile, asile, ô mon asile, ô
Tourbillon! - J'étais en toi, ô mouvement, en dehors dc toutes les choses..."
26 João Maria André
RESUME