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DIALÓGICA

BUBER
ensaios

cadernos inúteis
da casa de Gestalt

1
A vivência do sentido ontológico
da inutilidade amalgama-se com a
vivência da drmática da ação, do
desdobramento do possível, da
possibilidade, da criação.
Como condito sine qua non da ação
compreensiva e musculativa. Da
criatividade, da poiese.
Da existência.

O presente caderno é um núcleo


temático de nossa produção. Contém
erros formais na sequência dos ensaios,
duplicatas, que serão corrigidos nas
próximas versões. Igualmente orientará
a produção de ensaios sobre o tema.

2
3
O objeto deve consumir-se,
para tornar-se presença.
M. Buber.

Fatal mesmo é
crer na fatalidade;
M. Buber.

4
CONTEÚDO
DA MUSICALIDADE DA PINTURA SEM COISAS, À ESTÉTICA
VIVÊNCIA ONTOFENOMENOLÓGICA DA AÇÃO -- SEM OBJETO,
NEM SUJEITO --, PRÉ REFLEXIVA, NA PRODUÇÃO DA OBRA DE
ARTE. Impressionismo, Expressionismo, e a libertação da
ação... ............................................................................................. 8
DIAPOIESE. A DRAMÁTICA GESTALTIFICATIVA DA
DIALÓGICA DA AÇÃO. .................................................................. 17
O PRÉ DIALÓGICO A disposição estética como
pressuposto pré-dialógico ........................................................... 31
INTERDIÁLOGOS DA SINCRONIA DO DIÁLOGO DA
ESTÉTICA DO CLIC. À DIACRONIA DA ESTÉTICA DIALÓGICA
COM O REGISTRO. ....................................................................... 39
ESTÉTICA DA FOTOGRAFIA ............................................... 39
DIALÓGICA .......................................................................... 45
DIALÓGICA DA ESPERANÇA Dialogicidade, Superação e a
Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial ............ 50
DIALÓGICA E ARTE DRAMÁTICA DA IMPROVISAÇÃO
VISLUMBRE-E-ATO DO POSSÍVEL PROPULSIVO Sobre o sentido
e importância do improvisativo na concepção e método da
Gestalt Terapia e da Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico
Existencial.................................................................................... 59
GESTALTERAPIA: DIALÓGICA DA PROVOCAÇÃO* ............ 68
DIALÓGICA, HERMENÊUTICA E ESTÉTICA DO CONFLITO
Conflito, Mediação, e Facilitação Psicológica da resolução de
conflitos em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico
Existencial.................................................................................... 74
DA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL
DIALÓGICA DE PAULO FREIRE Crítica, Empírica, Experimental,
Estética e Poiética..................................................................... 104
AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO
PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL: II. A
RELAÇÃO EMPÁTICA. Empatia e Dialogicidade. ...................... 134
ONTOLÓGICA DA PRESENÇA E DA ATUALIDADE ........... 141
E JESUS EMPATIZOU COM A TERRA 1 ............................ 175

5
E JESUS EMPATIZOU COM A TERRA 2 Eu sou a videira de
Israel........................................................................................... 186
FATAL MESMO É CRER NA FATALIDADE. Dialogicidade,
Superação, teoria e prática da Psicologia e Psicoterapia
Fenomenológico Existencial*.................................................... 195
O DECURSO PROGRESSIVO DAS COISAS, A FATALIDADE, E
O SEU DOGMA ............................................................................ 209
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE ............................. 211
O EU EGÓTICO, COISIFICADO, DO RELACIONAMENTO EU-
ISSO. ........................................................................................... 213
ATUALIDADE, DECISÃO, LIBERDADE/DESTINO,
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.................................. 216
EGÓTICO E PESSOA .......................................................... 223
A INTERPRETAÇÃO – A HERMENEUTICA --, e a
EXPERIMENTAÇÃO EM BUBER ................................................. 229
IMPASSIBILIDADE. RESSENTIMENTO, EGOTISMO E
ARBITRARIEDADE NOS PERPETRADORES DE MASSACRES ... 233
DIAPOIESE E DIALÓGICA DO DIAGNÓSTICO MÉDICO .... 264
O ONTOLÓGICO, E O ÔNTICO;A PESSOA, E O EGÓTICO; A
LIBERDADE, E O DESTINO;O DIALÓGICO, E A ARBITRARIEDADE
.................................................................................................... 267
A FATALIDADE, O DECURSO, E O DOGMA DO DECURSO
PROGRESSIVO DAS COISAS ...................................................... 269
O COISIFICADO EU EGÓTICO DA RELAÇÃO EU-ISSO. .. Erro!
Indicador não definido.
ATUALIDADE, DECISÃO; LIBERDADE/DESTINO;
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.................................. 271
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE ............................. 279
A FATALIDADE, O DECURSO PROGRESSIVO DAS COISAS, E
O SEU DOGMA ............................................................................ 282
O COISIFICADO EU EGÓTICO DA RELAÇÃO EU-ISSO. .. Erro!
Indicador não definido.
ATUALIDADE, DECISÃO; LIBERDADE/DESTINO;
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.................................. 284
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE ............................. 292

6
HISTÓRIAS DE SOTEGUI KOUYATÉ ................................. 295
O DESENCANTAMENTO, E O ENCANTAMENTO DAS COISAS
.................................................................................................... 299
PAULO FREIRE, MAIS FENOMENOLOGIA E DIÁLOGO .... 300
A INTERPRETAÇÃO – A HERMENEUTICA --, e a
EXPERIMENTAÇÃO EM BUBER ................................................. 302

7
DA MUSICALIDADE DA PINTURA SEM COISAS, À
ESTÉTICA VIVÊNCIA ONTOFENOMENOLÓGICA DA
AÇÃO -- SEM OBJETO, NEM SUJEITO --, PRÉ
REFLEXIVA. NA PRODUÇÃO DA OBRA DE ARTE.
Impressionismo, Expressionismo, e a libertação da
ação...

Para D. Alzira,
minha simpática vizinha,
e minha competente e entusiasmada
professora de História da Arte.

A instância do Impressionismo, e do Expressionismo, no


desenvolvimento da Arte Europeia, muito mais do que meramente
revelar um estilo, e uma posição no campo da metodológica da
produção artística, representa um momento crucial de decisão, na
experimentação, na invenção de si, e de seu mundo, pelo homem, e
na superação da alienação, no âmbito da civilização ocidental.

Ambas as revoluções, tanto o Impressionismo quanto o


Expressionismo, trataram de uma insatisfação com a imposição de
uma submissão da arte ao objetivismo. Que a anulava, e oprimia a
arte, artistas, e o ser humano, em importantes de suas
possibilidades.

No caso dos Impressionistas, ainda timidamente, mas com


artística obstinação, surge uma revolta no sentido da produção, na
obra de arte, das variações e nuances, das particularidades do
objeto. Variações e nuances que nunca poderiam se submeter à
prescrição objetivista, de registrar o objeto, a natureza, como uma
cópia idealmente perfeita.
Dadas as absolutas particularidades da contingência do efetivo
encontro e dialógica da estética relação com ele, e do registro deste
encontro...

No caso do Expressionismo, aprofunda-se, e amplia-se, a


revolta...
A revolta no sentido da reivindicação do direito de dizer, na
obra de arte, o interdito.
Na verdade, de dizer o não dito; ou o efetivamente maldito.

8
Pela inflexibilidade da prescrição de produção da obra de arte
como uma cópia fiel da natureza, como uma cópia fiel do objeto. A
prescrição objetivista. Como a presunção da produção da obra de
arte como um objetivismo.

Equivocados estaríamos, por completo, se pensássemos que se


tratava de uma demanda pelos direitos do subjetivo, da
subjetividade, de um subjetivismo.

Tratava-se, antes, na verdade, de uma reivindicação da


produção da obra de arte em seus plenos direitos estéticos e
poiéticos, como estética, como poiética; ou seja, como ação; como
possibilitação, como projeto, como disegno, como perspectiva,
perspectivação, como hermenêutica, como interpretação,
fenomenológico existensial; como gestalt, como gestaltificação.
A reivindicação pela metodológica estética, dramática
epistemológica, do ator. Do modo de sermos da ação.
Que, enquanto acontecermos -- ontológica, fenomenológico-
existencial, e dialogicamente --, é um modo de sermos anterior ao
modo de sermos do acontecido. Acontecido no qual vigoram, e
ininsistem, sujeito e objetos.
Acontecer, presente, o modo de sermos da ação. Que é
anterior, e constituinte – depois de sua duração --, da objetividade, e
da subjetividade.

Alguma confusão conceitual, na formulação -- dado que se


tratava de artistas, e não de teóricos, ou filósofos. Mas, clareza, em
termos da necessidade, do anseio, e do impulso de superação, e de
libertação do objetivismo -- nesta instância, na produção artística.
Efetivamente, em termos de afirmação e de libertação da
ontofenomenológica da vivência humana da ação.

O que, naturalmente, significa a afirmação e a libertação da


capacidade humana de criar, de criar-se, igualmente. Criando o
mundo que lhe diz respeito.
De movimentar-se existencialmente, de emocionar-se, de
conhecer ontologicamente, de criar, e de superar-se. Pela afirmação
da vivência, da dialógica formativa, de ser-no-mundo.

Os artistas efetivamente, também os Hindus, os Taoístas, os


Zen, sabiam-no já. Há milênios.

Mas era uma novidade no Ocidente.

O momento da arte Impressionista, e da arte Expressionista,


marca, de um modo indelével, o momento – revoltoso, e
incontornavelmente pueril momento, todo tingido de rebeldia -- em
que a Civilização Ocidental assumiu e configurou, de um modo mais
9
explícito, ainda que restrito, a compreensão de que, enquanto
humanos, não somos, apenas, o modo de sermos da dicotomia
sujeito-objeto. Não somos, apenas, o modo de sermos, morto, do
acontecido, o modo de sermos do passado. O modo coisa de sermos -
- modo de sermos do ente.

Somos, igual, e alternativamente, o acontecer, a ação. O modo


de sermos do presente.

Em verdade, enquanto seres humanos -- não simplesmente


como artistas, mas, como seres humanos, efetivamente.

Se podemos produzir a vida, e a nossa humanidade, como


reprodução, reflexivamente, como repetição, e como cópia – não
como arte, mas como artifício, e fatalismo do artefato; podemos,
igualmente, e de diversa maneira, produzir original e originariamente,
como ação. Esteticamente. Como poiese, efetivamente como
produção, e criação.
E, o modo de sermos desta produção ontológica, da estética e
da poiese da ação, não é o modo de sermos em que somos sujeitos.
Sujeitados... O modo de sermos em que experimentamos a dicotomia
sujeito objeto.
Não é, igualmente, o modo de sermos em que, sujeitos,
confrontamos objetos.

É, antes, o modo sermos que em que somos, devimos,


anteriormente à condição do sujeito e do objeto. O modo de sermos
que especificamente é anterior à condição, reflexiva, em que nós,
sujeitos, defrontamos objetos. E com eles nos relacionamos
teoreticamente.

O modo ontofenomenológico de sermos é o modo de sermos


em que somos ação, a vivência da ação, acontecer. Enquanto
vivência do desdobramento de possibilidades.

O modo de sermos em que somos, devimos como atores.

Paradoxalmente, a arte Europeia pelejara, desde sempre --


descontado o recesso do Renascimento --, com a imposição
ideológica -- como metodologia artística -- da reprodução da
natureza, da reprodução da coisa, da fiel reprodução do objeto.
Com imposição ideológica do objetivismo.
Obrigando-se a reproduzir-se como cópia da natureza, como
cópia de objetos.
Ou seja, na metodológica do modo de sermos do fatalismo, da
reprodução do fato, da dicotomia sujeito objeto. Do objetivismo.

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Com o Impressionismo o objeto, a coisa a ser copiada,
esfumaçou-se, entrou em combustão, dissolve-se em contornos
desfocados.
E começa a ceder explicitamente à infusão potente da
multifacetada e efêmera vivência do possível. Começa a ceder à
infusão da hermenêutica do possível, da produção estética, e
poiética, artística. Propiciada, como metodológica, pelo
privilegiamento, e pela afirmação, da vivência ontofenomenológica.

Com efeito, era o possível, o potente, que se libertava. Na


superação da inestética prescrição da cópia da coisa, na superação da
inestética prescrição da cópia do objeto.
Na superação da alienação...

Com o Expressionismo, radicaliza-se o movimento em direção à


expressão da pulsão impulsiva, expulsiva, propulsiva, da vivência
fenomenológico-existencial do pres-ente, do modo pré-coisa, pro-jeto
-- pré objetividade, e pré subjetivo --, modo de sermos do possível
da atualização da ação. Da vivência do desdobramento de
possibilidades. Da formação. Da gestaltificação.
Em direção à estética do desdobramento de suas forças de
possibilidade. Vividas como presente. Na atualidade da vivência de
seu desdobramento. E, inexoravelmente, como impulsão expulsiva,
ex-pressiva. Jeto, projeto. Na elaboração e produção da obra de arte.

Como em Nietzsche, é interessante observar como,


paradoxalmente, a alegação de cientificidade é utilizada no
Impressionismo, como inovadora, e como justificativa.
Alguns Impressionistas valeram-se da ciência -- da ótica, do
estudo das cores, e da luz -- para justificar o seu método de distorção
da objetividade do objeto.
A multiplicidade das cores e de suas tonalidades, brilhos, a
multiplicidade das modalidades da luz... Tudo isso justificaria, na obra
de arte impressionista, as distorções inerentes às multiplicidades de
apresentações dos objetos. E as diversas impressões que deles
registravam, na representação, um tanto quanto apresentativa, de
suas insólitas obras primas.

Meteram-se, entretanto, neste sentido, num beco sem saída.


Na medida em que, nele, serviam-se exatamente da ciência
objetivista...

Caminhavam já no sentido da Ontologia e da epistemologia de


uma ciência pré-reflexiva e intensional, compreensiva e implicativa.
Gestaltificativa. Uma ciência da fenomenologia ontológica do
acontecer. Da dialógica da dramática da ação.

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Mas, para eles, a ciência de que se valiam era, ainda, a ciência
reflexiva, objetivista, extensional, e explicativa.
Ciência que efetivamente não lhes ajudaria na detonação da
arte do objeto, em privilégio de uma arte da atualidade, da presença
do desdobramento do possível. Do dialógico, e da possibilidade do ser
no mundo.
Nietzsche, por seu lado, saiu-se magistralmente da armadilha...
Quando percebeu que, era a ciência que efetivamente lhe daria
suporte; mas, em específico, a ciência como cognição compreensiva,
e implicativa, a ciência afirmativa, a ciência como ciência alegre, e
emotiva, a sua gaya scienza.
E não a ciência positivista, a ciência objetivista...

Poderíamos dizer, a arte de uma ciência da ação, uma ciência


do ato, uma ciência do modo de sermos do acontecer; anterior ao
modo de sermos do acontecido; de sujeito e dos objetos. E de sua
viciosa dicotomização. A arte de uma ciência, a ciência de uma arte,
que, enquanto tais, não poderiam ser objetivistas.
Porque, especificamente, posicionavam-se, e se posicionam,
como ação, como interação, como interpretação, e hermenêutica
fenomenológica. Como vivência do desdobramento de
possibilidades... Anteriormente à constituição do objeto... Ou melhor,
anteriormente à constituição de sujeito e de objetos, e de sua viciosa
dicotomização.

Tímidos, e confusos em suas explicações, os Impressionistas


ainda continuaram fascinados com as promessas de uma ciência
objetivista. Ainda indiferenciada, entre explicação e compreensão;
entre explicação e implicação...

Em mais de um sentido, pode-se dizer, os Expressionistas


soltaram o verbo...
No sentido de que libertaram o logos da ação, a vivência da
ação e de seu logos, na expressão artística formal. Na apresentação
da obra de arte. Que vivência do presente, da apresentação, não
mais se re-(a)presentava.

E, de imediato, o resultado foi a emergente existência, numa


obra de arte, de um grito pavoroso. Um pavoroso grito que, no
mistério da simplicidade de suas linhas, redundou, até hoje, num
tremendo silêncio constrangido...

Muda até então, o grito pavoroso de uma Europa que,


robotizada e endurecida, caminhava aterrorizada para as atrocidades
da segunda guerra mundial. Um grito de dentro daqueles momentos
terríveis em que a Humanidade se desconhece. Um grito feito pintura

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expressiva, Expressionista --, no quadro clássico do expressionista
norueguês Edvard Munch (1863 – 1944).

Em sua ânsia, de modo ainda muito enfático e unilateral, os


Expressionistas talvez tenham se recusado por completo, e
esquecido, do objeto.

Porque, se havia, sempre, uma alteridade, um tu -- como diria


Buber --, na vivência de seu processo produtivo, na vivência da
poiese de suas produções artísticas, nelas não se apresentariam
objetos, acontecidos, realidades.

Mas a expressão de possibilidades.


Uma arte da possibilidade, uma arte da vivência do possível.
Uma arte da força plástica da estética, e da poiética, de ser no
mundo.

Porque, nela, na vivência de seu processo produtivo, falava a


fala, o logos, ontológico, fenomenológico existencial, da ação.
O modo de sermos do acontecer. Anterior ao modo coisa de
sermos do acontecido, no qual se dão sujeitos e objetos.

Tanto que poderíamos dizer que, um tanto raivosamente,


talvez, o primeiro princípio de uma ética e de uma estética
Expressionista era: foda-se o objeto. Foda-se a realidade.
E, por aí, foda-se o princípio de realidade, e foda-se o
positivismo do real. E foda-se ainda o trabalho de sua
negatividade... Nietzscheanamente, afirmar a vida, afirmar a
afirmação que é a vivência do possível, em seu caráter intensificativo.
Mesmo naquilo que ele tem de problemático, e de terrível.

Se o sujeito, em sua subjetividade -- acontecida, real, realizada


-- é espectador; contemplativo, flexivo, reflexivo; sobre, e do objeto,
acontecido; no modo ontológico de sermos do ator, fenomenológico
existencial, e dialógico, acontecer, ação, não somos sujeitos, nem
somos confrontados por objetos, por coisas. Não somos coisas, nem
somos confrontados por coisas. Não contemplamos coisas, objetos,
como espectadores.

Atores, no modo de sermos da ação, interagimos com a


alteridade, com o tu. Tu que, tanto quanto o eu, jeto, pro-jeto, do
desdobramento de possibilidades, ação, como dizia Heidegger, não é
ob-jeto, de um sub-jeto...

Somos ambos, eu e tu, possíveis, na ambiguidade,


possibilidades em dialógica, em interação.

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E não coisas que se relacionam, na inestética, e na inatividade,
inércia, de suas respectivas impossibilidades. Na impossibilidade de
sua inatividade, num relacionamento impossível.

Na ação, o ator possível -- na vivência do desdobramento de


sua possibilidades criativas, formativas -- interage com o tu --
igualmente possível. Na vivência do desdobramento das
possibilidades criativas, formativas, respectivas.

As condições de sujeito, por um lado, e de ator, por outro,


implicam diferentes ontologias, e diferentes epistemologias.
Diferentes e diversos modos de sermos, e de cognição.

Um ôntico, o do ente sujeito.

Lógico, onto-logos, ontológico, o outro -- o do ator, o da ação.

O do sujeito, o modo acontecido de sermos da contemplação


reflexiva de objetos. No qual, teorético, ele, em específico, é
espectador. Ex-pectador.
Uma vez que especificamente fora da perspectiva, da
perspectivação.

No outro modo de sermos, o modo de sermos da cognição


ontológica do ator, somos a própria vivência da perspectiva.
Perspectivação, em sua atividade. Ação, compreensiva, e implicativa.
Ação, sempre compreensiva. Meramente compreensiva; ou
ação compreensiva e musculativa.
Sempre ação compreensiva, e implicativa.
E, em específico, inspectação, o modo de sermos do
inspectador. Enquanto tal.

Enquanto que o modo cognitivo de sermos do sujeito é o modo


de sermos do espectador. Espectador – expectador. Extensivo,
extensional, extensão, extensão do extensivo espectador de objetos.
Expectação.
Já que especificamente fora da perspectiva, da perspectivação,
do presente. Espectador, expectador, extensivo, da ação, da
atualidade, da dialógica da vivência do desdobramento de
possibilidades.
Da gestaltificação.

Era pirada, inspirada, a compreensão do moscovita Wassily


Kandinsky (1866 – 1944), quando intuía que era música a produção e
o resultado de sua pintura.

Efetivamente, tudo é música.


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Em especial, o ontológico vivencial, fenomenológico insistensial,
exsistensial.

Sabemos até que o cristal é musical, se com ele sintonizamos.


Definitivamente, então, o vivencial é musical.

E, naturalmente, a arte, a pintura vivencial, é música.

Daí a precisão e a importância particular da constatação de


Kandinsky.
Kandinsky evoluiu para a arte da pintura dita abstrata, sob o
pressuposto -- talvez influenciado pelo Nietzsche de O nascimento da
tragédia -- da música como uma arte não formativa de coisas. Uma
pintura musical abstrata, e musicalmente produzida.
Com efeito, talvez Kandinsky não percebesse, apesar da
importância de sua pintura abstrata, que a questão, em essência, não
era a da ausência de coisas materiais, na obra, na pintura.
Mas a questão do modo próprio da experiência de sua
produção.
Que não é a produção que se dê, na sua momentaneidade
instantânea, no modo acontecido de sermos. No qual habitam,
instalam-se, sujeitos, que se fletem, se dobram, e refletem, sobre
objetos. Sujeitos e objetos que se confrontam.
A questão da produção artística como ação, efetiva e
especificamente, no modo de sermos do presente.
O modo de sermos ontologicamente pré-reflexivo. Que em sua
duração e decaimento conflui para o reflexivo, e o constitui, em sua
conclusão. E que, assim, lhe é especificamente anterior, e
constituinte. Pré-ente.
O modo de sermos da ação. No qual, ação, não somos sujeitos,
nem confrontamos objetos.
Ainda que, incontornavelmente, confrontemos a alteridade, um
tu, que se contrapõe, como possibilidade. Na medida em que,
igualmente, constituímo-nos e nos desdobramos como possibilidade.

De modo que eu e tu se conjugam na dialógica da produção e


do desdobramento, ação, na produção e no desdobramento de
possibilidades e de sentidos.

Da musicalidade de uma obra sem objetos, à musicalidade da


experiência da ação. Anterior a sujeitos e objetos.

Assim foi a busca, e a afirmação, do Expressionismo. Como


momento humano de resistência às dominações mais primitivas da
política da existência. Como resistência às dominações que
pretendiam, e pretendem, expropriar o ser humano de sua inerência

15
como presente, e como possível. Como ação. E como ator. Como
criador.

Assim -- com a sua experimentação fenomenológico insistensial


gestaltificativa --, o Expressionismo ensinou ensinamentos
fundamentais. Tanto para a Filosofia, como para a Fenomenologia,
para as ciências, para a Ciência, para a cultura, e para as culturas
humanas.

BIBLIOGRAFIA
BUBER, Martin Eu e Tu.
CARDINAL, Roger O Expressionismo. Rio, Jorge Zahar, 1984.
GOMBRICH, E H, A história da arte. LTC, Rio de Janeiro,
RJ, 2013.
HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo.

16
DIAPOIESE.
A DRAMÁTICA GESTALTIFICATIVA DA DIALÓGICA DA
AÇÃO.
Afonso H L Fonseca, psicólogo

É interessante pensarmos que a lógica da dialógica, o


diassentido, da dialógica, é poiética. E a poiética, diapoiética, é
eminentemente dialógica. Dialógica e diapoiética, eminentemente
estéticas. Estética, diapoiética, e dialógica. Eminentemente criação,
formação, gestaltificação, na poiese dialógica do episódio de sua
instantaneidade momentânea. A experimentação e a hermenêutica
gestaltificativas, formativas, criativas, além de dialógicas, são
intrínseca e eminentemente poiéticas. No sentido forte do termo.

O dialógico é uma característica da ação, da dramática do


episódio da ação. Ação cuja dramática é eminentemente dramática
da poiese, em seu aspecto cognitivo -- a compreensão --, e de
musculação compreensiva.
Não simplesmente poiese, a dialógica da ação é, sempre,
diapoiese. Diapoiética, diapoiese. Sempre.
Relação interativa com a alteridade do tu, característica da
momentaneidade instantânea do episódio da ação. O modo ontológico
de sermos.
A momentaneidade instantânea da vivência ontológica é toda
ela (o vir a ser, a poiética, da) ação, como já diria Buber. Toda ela
poiese, atualização de possibilidades, formação, criação,
gestaltificação... O vir a ser formativo, criativo e superativo,
performático, de algo inédito, que não existia, e que vem a ser, como
devir, pela ação.
Toda ela dialógica, na momentaneidade instantânea da duração
seu episódio. Toda ela lógica, ontológica, fenomenológica. A lógica
dramática da dialógica, diapoise. Especificamente pré-reflexiva, e
pré-conceitual, enquanto modo de sermos.
A poiese, a dramática da ação, enquanto compreensão e
musculação, é sempre a lógica da dialógica, a lógica do sentido. De
modo que a poiese, diapoiese, é, sempre, lógica, dialógica;
ontológica, fenomenológica...
O que a poiese, a diapoiese, não é, é discrição.
Enquanto vivência de individualidade.
A poiese não é discreta, ou seja, operada por individualidades,
em sua momentaneidade instantânea e própria.
Individualidades, que, conceituais, seriam subjetividades.
17
Subjetividades que, no fundo, apenas são objetividades. Não
traem a sua condição objetiva de específico afastamento da
dramática da ação.
A vivência poiética, a dialógica, constitui-se como pontualidade
da dramática da ação na promiscuidade indiscreta da implicação. Em
sua multiplicidade. Só de onde emerge, enquanto desdobramento de
possibilidades, como dialógica eu-tu dação. Em seu caráter cognitivo
e musculativo de compreensão. Eminentemente condensado na
vinculação dialógica interativa de uma dualidade eu-tu.
Na momentaneidade instantânea da vivência do desdobramento
da ação. Que, assim, organiza-se na vinculação da dualidade
interativa indissociável da dialógica, diapoiese.
A organização da multiplicidade na apuração da interação eu-
tu, inerente a vivência dialógica, especificamente diapoiética, e a sua
organização na dramatica da vivência da implicação apuriativa
definem o seu caráter pré-conceitual. A apuração implicativa da
multiplicidade, em sentido, na implicação, caracteriza o caráter pré-
conceitual da vivência ontológica da dialógica diapoiética.

Eu-tu não são subjetividade e objetividade, objetividades,


individualizadas. Discretas. Estagnadas.
Na momentaneidade instantânea da duração do episódio de sua
vivência, constituem-se appurativamente na promiscuidade
compreensiva da multiplicidade da implicação.
Como vivência de multiplicidade de forças que competem e
argumentam entre si, e apuram, implicativamente na constituição do
sentido da compreensão e da musculação.
Nutrem-se na vivência da promiscuidade compreensiva da
implicação. Nutrem-se da vivência indiscreta da promiscuidade da
multiplicidade de possibilidades. Da multiplicidade de forças ativas e
auto-organizativas, em desdobramento.
Que, implicativamente, de modo cognitivamente compreensivo,
organizam-se como sentido, na compreensão, e na musculação, da
ação. Da vinculação eu tu da dialógica da dramática da poiese,
diapoiese, da ação.
No processamento da vivência ontológica da momentaneidade
instantânea da poiese da ação, a condensação do eu é, e permanece,
muitos; a condensação do tu é, e permanece, muitos; a condensação
do eu-tu é, e permanece; muitos. E, sobretudo, ativos. Na dança
errante, e intensional, da implicação compreensiva.
Temos, aí, um aspecto maior da lógica dialógica da vivência da
poiese, da diapoiese.

18
O não ser objeto. Como diria Buber. E isto significa ser
eminentemente, própria e especificamente, pré-reflexiva, e pré-
conceitualmente.
Nem sujeito. Este, apenas um objeto. Sujeito que, em seu sub-
jeito, é apenas um objeto... Fidedigno a sua objetividade, não se
nega como tal.

Nem sujeito, nem objeto, o ator, a ação, quem mais? São os


agentes da dialógica da poiese. Da dramática da ação.

Assim, dramático (ativo), intensional (na vivência da tensão do


desdobramento de possibilidades) e pré-reflexivo (modo de sermos
anterior à constituição de sujeito e objeto), o ator não é um
exPECtador, esPECtador. Não está fora da persPECtiva. Da
PersPECtivação.
A própria vivência ativa do ator é a persPECtiva,
persPECtivação, drama. Na pontualidade da vivência da
instantaneidade momentânea da duração do episódio da dramática
da ação. Dialógica, diapoiese, a própria vivência do ator é drama,
dramática.
É o próprio drama da poiese, diapoiese, da dialógica da ação.
Da ação do devir, do devir da ação.

Não expectador -- na episoidia de sua momentaneidade


instantânea --, o ator é um insPECtador. A ação é insPECtação.
Ele, a sua condição, é a própria persPECtiva, persPECtivação.
Compreensão e musculação, a persPECtivação é ação.
É insPECtação.
Num modo de sermos, trivial, em que não vigoram objetos,
nem objetos sujeitos.
No vir a ser de sua dialógica, e diapoiese, a vivência do ator é
assim, própria e especificamente pré-reflexiva. E pré-conceitual, na
multiplicidade de sua implicação.

Moção, intensional, do desdobramento de possibilidades, do


devir dialógico e diapoiético da ação.
A vivência enquanto eu do ator, enquanto eu-tu, é moção. A
vivênia do tu do eu-tu, é ação. A vivência da dialógica diapoiética da
interação, eu-tu, é ação.

19
É vivência da movimentação existencial rítmica da errância pela
multiplicidade de plexos de possibilidades, gestalts, da implicação
musculativa, e compreensiva. Da dialógica da poiese, diapoiese,
dialógica, da dramática da ação.
Temos assim dois aspectos fundamentais da momentaneidade
instantânea da vivência da dialógica da diapoiese da ação. Ela não é
objetiva. Nem é subjetiva -- o que daria no mesmo. Ela é pré-
reflexiva.
E, em sua multiplicidade implicativa, a dialógica diapoiética da
ação é pré-conceitual.
Atualização de possibilidades, ela é movimento, movimentação.
Ela é moção. Movimentação existencial, compreensiva, e musculativa.

E, exatamente enquanto tal, moção, a ação é, em sua


momentaneidade instantânea, a vivência do pathos de nossa
sensibilidade emocionada. Comoção, comovente, ela é a própria
vivência da emoção. Na duração da vivência da pontualidade de seu
desdobramento, como ação. Poiese, diapoiese.

O conhecer, a cognição, são ontológicos.


São, não só próprios ao fenomenológico, mas intrínseca e
evidentemente próprios à dramática da ação.
O conhecer é dialógica, porque eminentemente é diapoiese.
É compreensão e implicação, caracteristicamente pré-reflexivas
e pré-conceituais. Que, ontológica e epistemologicamente, se
distinguem da teorética e da explicação. Da teorética da explicação.
Como implicação, como estética dialógica da poiese. Ontológica.
Fenomenológico existencial e dialógica.
E a diapoiese dialógica, moção e emoção, e ainda regeneração,
é a própria motivação.
A poiese, diapoiese, a dramática da ação, como vivência do
desdobramento de possibilidades, sempre, dialógica sempre, é
formativa, performativa, criativa, criação. Como vivência ontológica,
fenomenológico existencial, da atualização de possibilidades. Não só
poiética, é estética; e a estética.
Na duração de sua vivência, a vivência da ação, a vivência
poiética, diapoiética, dialógica, é sempre um fazer.
A formação de uma criação. Mas o percurso de um perfazer,
que, perfazido, perfaz o pefeito na dramática da ação, como
atualização de possibilidades. Em específico, a ação é uma

20
performance, uma performática, uma formação, criação . Que a
constitui formatividade da ação como uma performance.
É performativa, é performance, porque, enquanto vivência pré-
reflexiva e pré-conceitual do episódio da ação, é o trânsito de um
percurso. O percurso formativo, performativo, da gestaltificação.
Como atualização de possibilidades.
E é performativo porque, terceira margem, é – na duração do
episódio poiético e estético da ação -- o percurso vivencial, poiético e
estético, portanto, que medeia entre o anúncio gestaltificativo do
projeto da ação e sua conclusão e fechamento.

A vivência do episódio do desdobramento de possibiidades, a


vivência do episódio da ação, enquanto retorno presente da força das
possibilidades, em sua intrínseca performatividade criativa, é
superação do acontecido, da condição da coisidade. Do passado. Na
medida em que é, em si, a própria regeneração fenomenológico
existencial, e a alegria.

Com tais características específicas, a diapoiese, dialógica, da


estética fenomenológico existencial da ação, tem suas condições
próprias -- pré-reflexivas e pré-conceituais, ontológicas -- no âmbito
das quais pode desdobrar-se, com suas características estéticas,
como formação, criação, como vivência performática do
desdobramento de possibilidades.

Na sua vivência, pois, a ação, desdobra-se no modo pré-


reflexivo e pré-conceitual de sermos. O que significa que sua vivência
não é objetiva, nem subjetiva. E ela constitui-se no âmbito da
vivência da implicação. Não sendo, pois, nem teórica, nem moral,
ainda que ética. Muito menos moralista.

Além de ser performático, no modo pré-reflexivo e pré-


conceitual de sermos, o episódio ontológico, fenomenológico
existencial, da diapoiética da dialógica da ação é não causal. Poiético,
nele a causalidade não vigora.
A abertura que enseja o possível, em sua implicação, faz com
que o episódio diapoiético e dialógico da ação se caracterize como o
desdobramento implicativo de possibilidades. E não o etéril e
mecânico movimento do decurso de causas e de efeitos.
Na vivência estética da diapoiese e dialógica da ação, não
experimentamos a causalidade, as relações de causa e efeito. Mas a
damática da implicação intensional, no desdobramento de
possibilidades, a dramática implicativa da ação.
21
A ação não é, assim, arbitrária. Mas dialógica diapoiética da
estética de atualização de possibilidades. Ação é a vivência da
performance da dramática da intensionalidade da dialógica
diapoiética.

O modo pré-reflexivo e pré-conceitual de sermos,


caracteristicamente, é o modo de sermos no qual não vigora a
utilidade.
É o modo de sermos que não é prático, não é pragmático, o
modo de sermos no qual não vigoram os úteis, os usos, a utilidade.
Ainda que seja o modo de sermos da experimentação e a
hermenêutica fenomenológico existencial.
Tradicionalmente, o conhecimento, segundo Aristóteles, pode
ser teórico, prático, e poiético.
O conhecimento teórico é o conhecimento reflexivo, do sujeito
que contempla objetos. O conhecimento prático é o conhecimento
útil, pragmático. O conhecer poiético é o conhecer ontológico que se
dá como sentido à compreensão, ao modo ontológico de sermos,
inerente à dramática dialógica e diapoiética da ação.
O conhecer poiético, inerente ao modo ontológico de sermos,
dá-se num modo de sermos que não é determinado nem mediado
pela utilidade. Uma determinação pela utilidade destrói a
oportunidade criativa do evento poiético, e o conhecer poiético, em
sua inutilidade própria. O conhecimento poiético, e a poiese, em si,
são criativos, são formativos, e superam criativamente o acontecido,
em seu vir a ser de algo que apenas passa a existir na eventualidade
do episódio da ação. Mas seu processo de vir a ser depende da
característica da inutilidade do modo ontológico de sermos.

E o modo de sermos da ação não é o modo de sermos da


realidade. É o modo de sermos da presença e da atualidade. Da
presença e do episódio momentâneo da ação. É o modo de sermos da
diapoiética e da dialógica, da dramática, da ação. Modo de sermos da
ação, de desdobramento, de exercício, da possibilidade. A presença e
a atualidade.
Modo de sermos que, ao exaurir-se o desdobramento das forças
da momentaneidade instantânea de seu episódio, constitui-se na
instalação do modo coisa de sermos, a realidade. Ao vivenciarmos a
diapoiética e a dialógica do modo de sermos da ação, não somos
realidade, somos realização; somos atualização, atualidade, e
presença.
E não a condição de forças e de possibilidades exauridas, que é
a realidade.

22
São estas condições da diapoiética e da dialógica da ação,
condições do modo ontológico de sermos, no qual vivemos a poiética
e a lógica ontológica, fenomenológica, dialógica, da dramática da
ação.

23
GESTALTERAPIA:
DIALÓGICA DA PROVOCAÇÃO
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo
CENTRO DE ESTUDOS DE PSICOLOGIA E PSICOTERAPIA
FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL
Rua Alfredo Oiticica, 106 Farol. 57032-010 Maceió Al 082-2218175/2318191
e-mail: affons@uol.com.br
http://www.Terravista.pt/FerNoronha/1411
1997 2

24
GESTALTERAPIA:
DIALÓGICA DA PROVOCAÇÃO*
* Texto publicado na Revista de Gestalterapia, São Paulo, 1997 e na Revista Somos de
Gestalterapia, Montevidéo, 1998.

Afonso H Lisboa da Fonseca

É evidente o caráter provocativo das atitudes, do método, do


fundamento da Gestalterapia.

Isto é muito claro em particular no estilo de Fritz Perls.

É uma compreensão superficial deste caráter provocativo,


todavia, uma incompreensão de seus fundamentos, um fator
responsável por distorções de cunho empirista, muito comuns na
concepção e na prática da Gestalterapia.

Indubitavelmente, entretanto, a Gestalterapia tem este caráter


eminentemente provocativo. É essencial portanto compreender o que
significa a natureza deste seu caráter. Compreender, em especial, o
intrínseco e indissociável aspecto dialógico deste do caráter
provocativo da Gestalterapia.

Da mesma forma que o seu caráter provocativo, a dimensão


dialógica deste caráter é uma intrínseca e indissociável conditio sine
qua non da concepção e da prática da Gestalterapia.

Devidamente considerada esta articulação intrínseca e


necessária, parece certamente uma boa compreensão da
Gestalterapia a que deriva da expressão Dialógica da Provocação.

Numa certa perspectiva fundamental, pelo menos, a prática da


Gestalterapia é isto: uma dialógica da provocação. Mas é necessário
que se evite uma perspectiva vulgar de concepção dos termos desta
expressão e de concepção da própria Gestalterapia. Perspectiva
vulgar que tem sido muito comum na sua disseminação, resultando
em grosseria empirista, ou pura grosseria e falta de educação, no
contexto de delicadas relações entre cliente e um suposto terapeuta,
ou entre facilitadores e os participantes de grupos. 3

PROVOCAÇÃO

De um modo geral, o termo “provocador” ou “provocação” não


têm uma boa reputação, a não ser em certos sentidos bem
específicos. Não é algo com que alguém queira identificar-se

25
normalmente. Esta aversão simples e automática a estes termos
decorre naturalmente dos mecanismo de domesticação da
agressividade saudável que desenvolveram-se na cultura da
Civilização Ocidental. Mecanismos que nos fazem perder
simbolicamente dentes e garras, e nos transformam em dóceis
animais de rebanho, como já observava Nietzsche.

Estes mecanismos, reconhecidos como “patogênicos”


(digamos), foram agressivamente confrontados e afrontados por Perls
e por seu estilo, no desenvolvimento de sua concepção e prática da
Gestalterapia. De modo que um traço marcante da concepção e da
prática da Gestalterapia é exatamente uma aversão à docilidade
compulsiva e doentia, paralisante – fonte e implicação necessária do
niilismo e do ressentimento, e de uma paralisia e imobilização da
potência criativa da vida: um resgate e uma busca da potencialização
da agressividade saudável, da qual todos carecemos para afirmarmo-
nos, para viver, ser e efetivamente acontecer no mundo.
Agressividade que nada tem a ver com destrutividade ou violência, e
que é, sempre, momento de um investimento criativo.

Provocativa é, assim, o mínimo que se pode dizer da


autoimagem da Gestalterapia.

Mas há que se entender que provocação, neste sentido,


jamais tem haver com hostilidade, ofensa ou hostilização... Quando
estas ocorrem na pratica de um suposto terapeuta, são
indubitavelmente características pessoais nocivas deste, e jamais
elementos da concepção da Gestalterapia.

O termo provocação vem de provocare*. Pro-vocare: favorecer


a vocalização, favorecer a fala.

* Sentido enfatizado por minha lúcida amiga Mirian Vilarinho


em uma mesa redonda de que juntos participamos na USP, em 1988.

Vocalização e fala, não têm evidentemente, neste sentido, em


particular em Gestalterapia, o seu sentido estrito. Não se trata
apenas de favorecer meramente o verbal, o vocal, a verborréia. Mas
de favorecer a própria ação, seja ela vocalização ou não, seja ela
vocalização, ou a atualização de formas das múltiplas possibilidades
da ação – fenomenação --, no instante vivido, vividamente vivido
de preferência: fenomenação.

Ação é diferente de comportamento (cum portare, portar


consigo).

A ação guarda fundamentalmente algo de fenomenal, algo de


autoria original e singular, momentânea, pontual e pontualmente
vivida, algo de unicidade, de irrepetibilidade, de dialógico. O

26
comportamento diz respeito ao assimilado, ao que é comum à
particularidade da pessoa e é compartilhado por outros.

Hannah1 Arendt observa: 4

1 ARENDT, Hannah - A CONDIÇÃO HUMANA, São


Paulo,Forense - Salamandra -Edusp, 1981. P. 15.

2 Op. Cit. p. 31.

A ação seria um luxo desnecessário, uma


caprichosa interferência com as leis gerais do
comportamento, se os homens não pasassem de
repetições interminavelmente reproduzíveis do
mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza
e essência, tão previsíveis quanto a natureza e a
essencia de qualquer outra coisa. A pluralidade é a
condição da ação humana pelo fato de sermos todos
os mesmos, isto é humanos, sem que ninguém seja
exatamente igual a qualquer pessoa que tenha
existido ou venha a existir.

No limite, é a possibilidade da ação que caracteriza o homem e


a comunidade dos homens. A ação tem este caráter eminentemente
inter humano

Hannah Arendt2 ainda dirá:

Só a ação é exclusiva do homem; nem um


animal nem um deus é capaz de ação. E só a ação
depende inteiramente da constante presença de
outros.

É na potencialização da possibilidade humana especificamente


ontológica da ação que a Gestalterapia vai constituir o seu
fundamento. Trata-se de potencializar a ação, a cri-ação no contexto,
e a partir, da atualidade existencial, do momentum vivido da pessoa.
Trata-se especificamente de favorecer esta especifica potencialidade
da pessoa. Potencialidade que se configura propria e especificamente
na esfera do inter humano.

Trata-se de potencializar a ruptura da clausura do mero


comportamento e da agressividade domesticada, através da
potencialização da eclosão da possibilidade sempre latente da ação.
Mesmo que seja mínima e efêmera esta eclosão, mas que possa
encaminhar-se para uma habitualidade orgânica e saudável,
compatível com as possibilidades, necessidades e carecimentos da
pessoa e do mundo que lhe diz respeito.

27
De modo que a provocação gestáltica favorece
fundamentalmente à expressividade, à existencialização do vivido
único e irrepetível, a fenomenação, na potência de sua atualidade.
Favorece assim a uma ruptura pontual com os padrões do mero
comportamento. A situação gestáltica pretende-se eminentenmente
assim uma situação provocativa. O getalterapeuta pretende-se,
assim, um provocador. O que interessa é exercer-se como
provocador, neste sentido, no contexto, no âmbito e duração da
relação pontual com o cliente. Subentendido, naturalmente, que isto
nada guarda de hostilidade ou hostilização, de grosseria.

Ainda que possam ser intensivas, a provocação ou a ação


provocada não carecem de ser compulsivas ou obsessivas. De modo
rigorosamente distraído – “distraídos venceremos” (Leminsky) --, a
provocação gestáltica busca constituir-se nos fluxos e contra-fluxos
ativos e afirmativos do vivido, nos fluxos e contrafluxos da
espontaneidade da auto-regulação organísmica.

Nunca seria demais observar a sensatez organísmica que se


expressa no I Ching3: 5

3 I CHING – O Livro das Mutações, São Paulo, Pensamento,


1983. Tradução de Richard Wilhelm. P.99.

As palavras são um movimento do interior


para o exterior. Comer e beber são movimentos do
exterior para o interior. Essas duas formas de
movimento podem ser moderadas através da
tranquilidade. A tranquilidade faz com que as
palavras e os alimentos não excedam a justa
medida. Deste modo cultiva-se o caráter (27. I/AS
BORDAS DA BOCA -- PROVER ALIMENTO). 6

DIALOGICIDADE E PROVOCAÇÃO

A situação gestáltica e o getalterapeutas são provocativos em


sua efetividade especificamente porque são dialógicos. E o são
especificamente porque entendem o quanto da possibilidade da
ontogênese do humano, da criação e da recriação do humano,
repousam na possibilidade do dialógico.

Quanto de fundador da psicologia e da psicoterapia


fenomenológico existencial não está contido no sentido da simples
frase de Buber4,

4 BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Cortez e Moraes, 1979.


p.32.
28
5 LISPECTOR, Clarice - A Experiência Maior in PARA NÃO
ESQUECER, São Paulo, Círculo do Livro, 1980.

“O homem se torna EU na relação com o TU...”

Funda-se aí, na consideração pelo sentido ontogênico


fundamental do dialógico inter humano desta formulação, a
possibilidade e a efetividade de uma psicologia e psicoterapia
fenomenológico existencial dialógica. Pauta-se esta por uma certa
reciprocidade pontual, por uma atenção interessada e ativa,
confirmativa, pela atualidade e presença pontual, diferença, do outro.

Reciprocidade e atenção estas que se dão na medida em que se


pode, na afirmação do devir, do ser do devir, atualizar-se
efetivamente como outro. Outro do outro, e outro de si mesmo.

Digo efetivamente porque ser outro é efetivamente ser ator:


ser sensível e fidedignamente ativo e expressivo, atuação, do
sentido da diferença pontual emergente na fugacidade do encontro.

O sentido do ser outro do outro ganha uma formulação sublime


nas palavras cristalinas e um tanto quanto perplexas de Clarice
Lispector5

Eu antes tinha querido ser os outros para


conhecer o que não era eu, entendí então que
eu já tinha sido os outros e isso era fácil.
Minha experiência maior seria ser o outro dos
outros, e o outro dos outros era eu.

Qualquer terapeuta ou psicólogo fenomenológico existencial


efetivo vê-se uma hora envolvido pelo insight e perplexidade de
Clarice. Porque é esta a matéria prima e o substrato fundamental de
seu trabalho.

Confrontar-se e abrir-se para a outridade do outro. Para com


ele ser outro.

Por interesse e entusiasmo ontológico, oferecer-se para a


relação, abrir-se e confrontar-se com o outro, ser ativa e
afirmativamente o outro do outro. Potencializar, desta forma, da
mesma forma que ele pode potencializar em mim, a possibilidade de
que ele possa ativa e afirmativamente ser outro, de si próprio e de
mim. Autor, ativa e afirmativamente, 7

29
expressivamente, ator da emergência (em ambos os sentidos)
da difereça de si... Possibilitando assim a ruptura da repetitividade,
da mesmidade, da fatalidade pretensa, do comportamento mero e
medíocre.

Ser ativa e afirmativamente o outro do outro é enormemente


provocativo...

Envolve a abertura para e o privilegiamento da presença


pontual, e em devir, do outro, do diferente em sua diferença, em
devir.

Buber6 observará que só existe presente na presença, e o que


caracteriza a presença é a atualidade e a atualização da diferença, da
alteridade, do TU. Com relação ao caráter eminentemente ativo da
presença e da atualidade (atualização/atuação/fenomenação) Buber7
observa:

6 BUBER, Martin, op. Cit.

7 Op. Cit.

Na atualidade vivida não há unidade do ser. A


atualidade é somente ação. Sua força e
profundidade são as desta ação. E mais, só há
“interior” na medida em que houver ação mútua. A
atualidade mais forte e profunda é aquela onde tudo
dirige-se à ação...

De modo que Gestalterapia é, assim, uma dialógica da


provocação. A compreensão e a efetivação da Gestalterapia neste
seu caráter dialógico de provocação demandam sutileza e paciência,
paciência que na verdade é momento rítmico da afirmação, mais
precisamente, da afirmação da afirmação, dos fluxos do vivido na
pontualidade do instante.
DIALPROV.doc

30
O PRÉ DIALÓGICO
A disposição estética como pressuposto pré-dialógico

A estética é o modo de sermos do dialógico, a ética do modo


eu-tu de sermos. É -- a estética, a ética da estesia -- a ética, e a
metodológica, do dialógico. É a ética da vivência do possível, e do seu
desdobramento, no processamento do que chamamos de ação; a
ética do potente, e do devir.

Alternamos entre o modo não dialógico (eu-isso), e o modo


dialógico de sermos. Igualmente o faz a disposição estética. No modo
eu-isso de sermos, modo não dialógico de sermos, a disposição
estética se configura como o elemento especificamente pré dialógico -
- que antecede e viabiliza a momentaneidade e a duração do modo
eu-tu, dialógico, de sermos. Evidentemente latente, no momento não
dialógico, eu-isso. Já que nesse modo de sermos não somos
estéticos, mas teoréticos, reflexivos, e comportamentais. Neste modo
eu-isso de sermos, possibilitando a diluição da coisidade, que lhe é
característica, e a diluição do padrão do tempo coisificado do decurso
de coisas, a disposição estética, ativada, leva-nos ao fluxo em direção
ao modo dialógico, eu-tu, de sermos. Neste, propriamente, a
disposição estética propriamente exerce a sua arte, iluminando a
fonte da potência do possível que somos, e, surfando as ondas do
eterno retorno de seus movimentos. Da largueza à minúcia destes, e
desta a aqueles. Até que, esvaídos do modo potente de sermos,
retornamos, incontornavelmente, à coisificação. À latência pré-
dialógica -- a pré condição estética do dialógico. E a mais ou menos
desimpedida gestação deste.

A compreensão, as concepções e esclarecimentos acerca do


modo não dialógico – eu-isso --, e do modo dialógico – eu-tu --, de
sermos é uma fantástica contribuição qualitativa de Martin Buber (cf.
BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Moraes, 1983; e DO DIÁLOGO E
DO DIALÓGICO, São Paulo, Perspectiva, 1985) à cultura e produção
cultural humanas.

31
Ambos os modos de sermos são ontológicos, no sentido da
Ontologia, característicos e definidores do ser humano. E têm cada
um, e a alternância entre eles, qualidades ontológicas
caracteristicamente definidoras.

A objetividade, e a subjetividade, a causalidade, e a utilidade,


os fins e os meios, como características mais gerais do modo de
sermos eu-isso, não dialógico.

E a não objetividade, e não subjetividade, o dar-se aquém da


dicotomia sujeito-objeto; a ausência de causalidade, o modo de
sermos fora da ordem do útil e da utilidade; o modo de sermos
produtivo, poiético, o modo de sermos do possível, da potência, da
atualização de possibilidades; o modo ontológico de sermos, modo de
sermos de vivência de sentido, estésico, estético; modo de sermos do
devir, e da superação, que são característicos deste modo eu-tu de
sermos; modo dialógico e, ontológico.

A alternância entre esses modos de sermos é, conforme Buber,


característica do humano.

O modo eu-tu de sermos, dialógico, é vivência momentânea --


o infinito enquanto dura. E, nele, não podemos permanecer, ainda
que seja o modo ontológico, produtivo e poiético de sermos. No qual,
a partir da vivência da potência de possibilidades do Ser -- na
temporalidade da ação, interpretação, hermenêutica, devenir à
ventura, que desdobra possibilidades do Ser --, nos superamos, no
limite das finitudes das aporias de nossa existência; criamos-nos e
nos re-criamos, a partir da vivência das potências dos possíveis nos
quais nos constituímos. Humanizamos-nos e nos universalizamos.

É o modo de sermos, como devir, como vida à ventura da


potência do possível, em que nos direcionamos ao que ainda não se
concretizou em fato. Modo de sermos que não é da ordem do factual,
que não é da ordem da factutalidade, da fatalidade de sermos, modo
de sermos que não é da ordem, portanto, do realizado: da realidade.

A partir das potências dos possíveis, seus momentos são


pulsativos; e na duração do desfrute de sua vivência, perdem em
força, e inexorável e ontologicamente decaem na coisidade do eu-
isso, do factual, da fatalidade, e de seu decurso de fatos,
acontecidos; decurso de coisas.

As aporias da existência, o desespero; ou a afirmatividade das


forças das meras potências dos possíveis -- que rompem a crosta da
fatalidade do modo eu-isso de sermos, que rompem a crosta da
coisidade, e da inércia do movimento inerte de seu decurso de fatos,
decurso de coisas –, as aporias da existência, o desespero, abrem-
nos, sempre mais uma vez, e sempre, ao eterno retorno ontológico,
do âmbito da geração do possível, do âmbito da geração da

32
possibilidade, da potência e do sentido, da formação e da forma,
performação, em sua performance. Abrem-nos, ao dialógico, à
ventura, e à alegria de super-ação, promovidas pela potência
formativa do possível, do poiético, do eu-tu, do dialógico.

Potência que é já afirmativa, que é difusamente pré-


compreensiva, no seu turbilhão inequívoco, e difuso, de potência; que
é, e devém, incerta, em seu momento de gênese, arriscada, e que de
nós exige a nossa afirmação, afirmação da afirmação que ela é. Que
nos exige a identificação com ela com que ela se configura
performativamente.

Que, no esgotamento de sua pulsatividade, no seu decaimento,


mais uma vez conduzirá ao factual e fatal domínio do eu-isso, da
realidade, e de seu tempo de coisa.

Nada de errado com a distensão dos tempos decorridos do eu-


isso – o próprio Buber esclarece. O modo de sermos eu-isso faz parte
da ontológica do que somos, junto à alternância com o modo de
sermos eu-tu.

A fragilização desta alternância é que nos reduz à fatalidade, ao


acontecido, ao mero decurso das coisas, em detrimento de nosso
retorno à temporalidade potente, criativa e poiética do eu-tu, que nos
permite a ação e a superação.

O modo eu-tu de sermos, dialógico, tem assim características


muito peculiares.

É ontológico, nos dois sentidos, um não fenomenológico, e o


outro fenomenológico, que a palavra comporta: ou seja,

(1) Ao nível da classificação da Ontologia, como modo de


sermos que caracteriza a distinção e a particularidade dos seres que
somos enquanto humanos; e;

(2) Como modo de sermos que se caracteriza como vivência --


compreensão, implicação, e não explicação --, poiética, potente;
como vivência do sentido, logos, onto-logos. Que se desdobra como
ação, interpretação, como hermenêutica compreensiva, e
fenomenológico existencial.

Como observamos, o modo eu-tu, dialógico, é um modo de


sermos no qual não vigora a objetividade, nem a subjetividade.
Caracteristicamente -- pura intencionalidade – é um modo de sermos
em que sujeito e objeto se imbricam e implicam tão necessariamente,
e anteriormente a qualquer possibilidade de dissociação. Um modo de
sermos em que não faz sentido o sujeito em si, ou/e o objeto em si.

33
Na momentaneidade do modo dialógico de sermos, eu-tu,
estamos para aquém do modo eu-isso de sermos, no qual vigora
caracteristicamente a dicotomia sujeito-objeto. O modo de sermos
eu-tu é a momentaneidade de um modo de sermos
caracteristicamente impregnado de nossa implicação com uma
alteridade, o tu. Mas tudo que o tu não é objeto...

Assim, no modo dialógico de sermos, somos relação eu-tu, mas


não estamos, e não somos, no modo de sermos da dicotomia sujeito-
objeto; dicotomização esta, característica do modo eu isso de
sermos.

O dado de que todo o modo de sermos do eu-tu é,


propriamente, ação (Buber), interpretação fenomenológico
existencial, compreensiva, oriunda na vivência e desdobramento de
possibilidades que são características deste modo ontológico de
sermos, confere a ele algumas características próprias.

Ele, este modo ontológico de sermos – apesar de, nele, não


sermos da ordem do útil e da utilidade --, é o modo de sermos
poiético; ou seja, o modo de sermos produtivos, criativos, a partir da
atualização, da ação, ou seja, do desdobramento, da potência das
possibilidades que lhe são inerentes. Os desdobramentos dessas
possibilidades detonam-se no limite, na aporia, na finitude, e têm,
assim, o alto valor existenciativo de se performarem como formas de
superação. Mas, formas de superação que se configuram
despropositadamente, estéticamente, na vivência de sua
performance.

(Não há devir no modo de sermos da dicotomia sujeito-objeto,


eu-isso. O sujeito não é o agente, o agente não é o sujeito; o agente
é o próprio pró-jeito, pro-jeto. Nunca sub-jeto, ele é o próprio „jeto‟,
o próprio jato, projeto, „projato‟. O „jato, do pró-jato, projeto, é a
projetação em ação, interpretação fenomenológico existencial, da
possibilidades que inerem e impregnam o modo eu-tu, dialógico, de
sermos, que é anterior ao modo de sermos, eu-isso, em que vigoram
a objetividade, e a subjetividade. E, igualmente, as relação
propositais de causa e efeito, a utilidade, e, especificamente, a
própria realidade).

O despropósito é, assim, uma característica inerente, condição


de possibilidade da ontologia do modo dialógico, eu-tu, de sermos.
Todos os úteis e todas as utilidades são criados desta forma em sua
originalidade e qualidades úteis. Mas o despropósito permanece como
característica fundamental do modo de sermos de sua criação. Ou
seja, a direcionalidade do movimento é a partir da força da ignota e
pré-compreendida, compreensível, da possibilidade em seu de
dobramento. Que é, necessariamente, superativa, mas que não pode

34
ser simplesmente usada, ao modo de ser de um objeto, até porque
estamos fora do modo de sermos da dicotomia sujeito-objeto...

Assim, as possibilidades que, na sua vivência e desdobramento,


se atualizam em úteis e utilidades, na duração do modo de sermos
eu-tu, têm o irremediável valor da originalidade, e da força, da
criação, e da superação; mas se constituem despropositadamente, na
duração modo dialógico, eu-tu, de sermos. E a vivência de seu
processamento não é da ordem da utilidade, nem matéria prima de
utilização -- mas de desfrute.

E temos aí a questão fundamental, entre o desfrute e o uso,


como caracteristicamente respectivos ao modo de sermos eu-tu, e
eu-isso.

Isto faz com que o modo de sermos eu-tu, o modo de sermos


da dialógica, não seja o modo de sermos de uma prática, não seja
pragmático, mas poiético. Já que a prática se define pela utilidade, e
pela funcionalidade, pela ação funcional. O modo de sermos da
dialógica, modo eu-tu de sermos, é todo ele da ordem da ação, da
ordem da produtividade, da ordem da poiese, da ordem criação; mas
ação, produtividade, poiese e criação eminente e caracteristicamente
despropositais e disfuncionativas em sua vivência.

E os momentos do modo de sermos eu-tu são... dialógicos. São


dia-ação, inter-ação, inter-pret-ação, inter, dia. Ou seja, constituem,
e constiuem-se em sua particularidade como um âmbito – de sentido
-- de ser, de devir, uma esfera vivencial e de brotamento de sentido,
como brotamento de possibilidade.

Um âmbito que se caracteriza por nos envolver, e


simultaneamente nos implicar -- numa relação produtiva e de
superação -- com um desconhecido, com uma diferença, com uma
alteridade radical – com um outro, um tu (tu este que pode se
constituir na esfera da relação com a natureza não humana, na esfera
da relação inter humana, e na esfera da relação com o sagrado. Seja
na relação com “outros”, seja na relação “conosco mesmo”, como se
isso fosse possível... Buber notifica, assim, que o dialógico ocorre na
esfera de nosso ser com a natureza não humana, de nosso ser ao
nível da relação com outros seres humanos, e de nosso ser na
relação com o sagrado.). Na pontualidade vivencial que a ele, o
alteritário, o tu, nos remete e implica; e que o remete para nós e
conosco o implica. De um modo reciprocamente provocativo, e que
nos configura numa performance compartilhada de produção de
sentido, e de ação.

No âmbito que se constitui como dialógica somos com o outro


um acesso ao poço do possível, e performamos, atualizamos,

35
enquanto tais, as possibilidades que o âmbito de nossa interação
faculta.

São essas algumas das características próprias do modo de


sermos eu-tu, sem a intenção, naturalmente, de sermos exaustivos.

Temos, assim, o modo de sermos eu-isso, o modo de sermos


eu-tu, a cíclica alternância entre ambos.

É interessante entendermos que esta alternância não se dá de


um modo mecânico, automático. Na alternância saudável entre os
modos de sermos do eu-isso e do eu-tu – modos não dialógico e
dialógico de sermos –, anuímos, aquiescemos em uma ética, em um
modo de sermos. Uma ética e modo de sermos, que, basicamente,
nos tornam permeáveis a, e que nos faculta e facilita a estesia – ou
seja, uma estética – uma ética da estesia, uma ética da vivência.

Isto porque o dialógico, o modo eu-tu de sermos, é


eminentemente estésico, e só esteticamente se dá, e é possível.

O modo eu-tu: o modo dialógico de sermos, não é reflexivo,


não é teorético, nem é comportamental. Ele é o modo
fenomenológico e existencial de sermos. Que é pré-reflexivo, que é
pré-comportamental, e que envolve a vivência do corpo, do vivido, e
dos sentidos, numa estesia, no modo estésico de sermos -- que se dá
eminente e propriamente como, e que, eminente e propriamente
demanda, uma estética: uma ética da estesia, como ética da
dialógica, como ética da ação, e como ética do devir.

A dimensão do modo de sermos eu-isso não é estética, não é


vivência, nem arte, não é estésica. Mas a disposição estética, latente
no modo de sermos eu-isso, pode sempre se atualizar, permitindo,
possibilitando e potencializanando a alterância entre o modo eu-isso e
o modo eu-tu de sermos.

Neste modo eu-isso de sermos podemos ser permeáveis, ou


não, à estética, a ética da estesia. Podemos ser mais ou menos
permeáveis à regularidade cíclica dos apelos para os mergulhos e às
imersões estéticos. Mergulhos e imersões na estesia, na vivência pré-
reflexiva, pré conceitual, fenomenológica, existencial, potentes,
possíveis, e possibilitativos, nos quais se constitui a momentaneidade
do dialógico, do modo de sermos eu-tu.

A regularidade da experimentação constitui a perícia, a ética,


que envolve a familiaridade com arte pré-reflexiva, fenomenológica e
existencial da dialógica; ao mesmo tempo em generaliza-se e se
homogeneíza, permitindo ao eu-isso uma permeabilidade, e uma
transitoriedade, uma alternatividade com modo estético de sermos,
com o modo dialógico de sermos, modo eu-tu de sermos.

36
De forma que o que permite a alternância e a superação da
impermeabilização entre o eu-isso e o eu-tu; entre o não dialógico e
o dialógico, é, basicamente, uma ética. Ou seja, a est-ética, estética,
a ética da estesia. Que é especificamente, nesse caso, uma pré-
dialógica.

Que, das cristalizações do eu-isso, do não dialógico, permite a


anuência e o mergulho, e a imersão, na relação com a alteridade; a
anuência e a imersão no vivencial da alteridade, no fenomenológico
da alteridade, no existencial da alteridade, no pré-conceitual, pré-
teórico da alteridade; na alteridade dialógica da alteridade como tu;
no pré-comportamental da alteridade, na dialógica da alteridade. Nos
quais podemos, como Buber diz, endereçar a nossa palavra à
alteridade, e ouvir à alteridade enquanto palavra.

Porque, ainda que não sejamos um, mas a irrecorrível


dualidade de um eu-tu, estamos necessariamente implicados neste
instante na dialógica de atualização e encarnação de potências,
possibilidades, alegres em sua potência, e que querem vir a ser, e
superar.

A disposição estética, como ética e como metodológica,


percorre ambos os momentos dos modos não dialógico e dialógico,
eu-isso e eu-tu, de sermos.

A disposição estética repousa na momentaneidade do não


dialógico, do eu-isso, como uma onda repousa no fundo do mar.
Admite e convive com a normalidade do modo eu-isso de sermos, e
com a sua funcionalidade, como o momento próprio da quietude de
um repouso.

Mas é também a fenda no monolitismo e na dureza do eu-isso,


do não dialógico. A fenda que permite o seu esvaimento e fluxo de
seu monolitismo e dureza na direção do modo de sermos encantado
do eu-tu, do dialógico.

No âmbito encantado deste, a estética, a disposição alegre da


estética, está em seu meio próprio. Ela ilumina a fonte pululante do
possível, que somos nós. E se exerce como arte, surfando diligente e
minuciosamente nas possibilidades, iluminando-as, trazendo-as à luz,
de um modo meramente compreensivo, ou compreensivo-e-
muscular, atualizando-as. E aí, magicamente, encantada e
encantadoramente, exercemos a nossa banal, porque ontológica,
capacidade de fazermos brotar efeitos visíveis do invisível (I Ching).

A disposição estética é assim o pré-dialógico. Ela transita entre


o não dialógico, eu isso; e o dialógico, eu-tu. De modos mais ou
menos latentes, como pré-dialógico, no modo de sermos eu-isso, a

37
disposição estética é a ética que nos faz transitar do não dialógico ao
dialógico. No âmbito do dialógico, a estética é a ética, a
metodológica, que permite a iluminação da fonte do possível que
somos em nossa ontológica. E que permite a abertura à potência do
possível, em sua atualização, que igualmente somos. Esgotada em
coisa a potência do possível, teremos voltado à condição, ao tempo, e
ao movimento da coisidade. E à latência sonsa da disposição estética.

38
INTERDIÁLOGOS
DA SINCRONIA DO DIÁLOGO DA ESTÉTICA DO CLIC.
À DIACRONIA DA ESTÉTICA DIALÓGICA COM O
REGISTRO.
ESTÉTICA DA FOTOGRAFIA

P‟rá Sebastião Salgado.

Afonso H L da Fonseca, psicólogo (ahl.fonseca@gmail.com).

A experiência da contemplação de uma foto de Sebastião


Salgado é a experiência de um sequestro...
Um sequestro no tempo.
Como na estética de toda obra de arte, somos sequestrados, do
tempo comum, para o tempo fenomenológico, e dialógico, da
vivência. Do tempo acontecido, para o tempo como acontecer. Do
tempo como feito, como fato. Para o tempo do fazer.
E, aparentemente, só aparentemente, sofremos uma paralisia.
Na verdade, saímos da paralisia. Saímos da paralisia do tempo
paralítico, do tempo paralítico da inércia; do inerte decurso, apenas,
das coisas; para o tempo da ação. Para o tempo eminentemente
form-ativo da ação. O tempo da moção, comoção; o tempo formativo
da emoção, da motivação; o tempo emocionado da formação, da
criação...
Dentre muitas impressionantes, há uma fotografia nesta
inominável série Genesis, da obra de Salgado, em que um grupo de
pinguins, sobre uma geleira, na borda do mar, incrivelmente se
organiza em fila indiana, paciente e ordeiramente, para que cada um
dos indivíduos pule, sequencial e ordeiramente, no mar. A plataforma
é descendente, e eles precisam equilibrar o peso dos corpinhos
rechonchudos para compensar a gravidade, e não rolar, derrubando
os companheiros da frente. Uns oito a dez pinguins, em fila indiana,
compensando a gravidade, e esperando que a fila ande. Enquanto os
primeiros se lancem ao mar.
A foto registra o exato e momentâneo instante em que um
primeiro da fila se lançou... E já não está mais na plataforma gelada.
Mas ainda não atingiu o mar. Bracinhos abertos, inexoravelmente
desaba no vazio. Mas está, ainda, como se estivesse a meio caminho
entre a plataforma, onde esperam seus companheiros, e a superfície
do mar...

39
Surpreeendo-me aparentemente parado, quando vejo esta
foto...
Aparentemente aguardando que o pequeno pinguim complete o
seu trajeto, e, finalmente, mergulhe... O pinguim está parado. E eu
espero que ele caia. O pinguim está parado, e realizo,
complementarmente, o movimento de sua queda. E mergulho.
Mas é só uma foto... Não é um filme...
O pinguim não vai cair de seu pulo a meio caminho instalado na
foto...
Paralisado na ação do instante, instantaneamente ativa-nos em
sua paralisia...
Tal é a grandeza dialógica da estética da arte fotográfica, tal é
a grandeza da arte de Sebastião Salgado...

O artista fotógrafo faz uma escalonação de instantes, uma


interdialógica.
A interdialógica entre o dialógico instante performático do clic, e
a performance do instante da dialógica da inter ação do suposto
espectador -- na verdade inspectador, ator -- com o tu incubado, e
inacabado, na foto.
Atores ambos. O artista fotógrafo, e o momentâneo artista
contemplativo da foto; na momentaneidade da performance,
formativa, da dialógica com o tu incubado na foto.
O ato fotográfico é um médium da escalonação de instantes
improváveis. Interdialógica de instantes.
Do fatal e dialógico instante da improvisação da ação do clic,
com o instante no qual nós -- dialógica e improvisativamente,
performaticamente -- interagimos, na foto, com a fatalidade
performáticamente instalada pela improvisativa ação do clic.
Os instantes especificamente são, enquanto ação, interação,
especificamente dia logos. Dialógicos.
A momentaneidade instantânea do sequestro -- sequestrados
que somos -- do tempo do fato, do tempo do acontecido, da
instalação na coisidade --, para a temporalidade, efetivamente,
temporalização, do fazer, performance, performativo. Sequestrados
que somos para a temporalidade do acontecer. A temporalidade da
dramática da ação, da interação. Que é diálogo – dia logos.
Que, na própria hermenêutica de seu acontecer, é
inerentemente o dual encontro com a diferença.
Que, como dizia Buber sobre a possibilidade, não somos nós
que criamos. Mas que não acontece sem nós. Que não acontece sem

40
a performática da improvisação dramática da vivência do
desdobramento de possibilidades, do desdobramento da ação...
Até a momentaneidade instantânea do clic.
Que, especificamente, é o desportamento da ação.
Nunca comportamento. (Como observava Hannah Arendt.
acerca da diferença entre comportamento e ação).
Desde o início – anteriormente mesmo ao início, pret ação, inter
pret ação --, a dramática da momentaneidade instantânea do clic é
diálogo. É dia logos. É logos, é sentido.
Sentido que se constitui como esfera hermenêutica
intermediária de produção de ação, e de sentido -- de inter ação, na
vinculação eu tu. Eu e tu que, na sua intrínseca vinculação,
interagem como forças formativas. Um tu e um eu, possíveis, um eu-
tu possível, em suas atualizações. Dramáticos, imprevisíveis,
incontroláveis, improvisativos.
Nem objetivos, nem subjetivos, mas própria e especificamente
jetivos. Porque pressão, ex-pressão, ex-pulsão, de forças, potentes,
possíveis, possibilidades, ação.
Um tu e um eu, a sua ação, a sua fenomenática, a sua
formativa performática, criativa, a sua criação. Não causais, não
causados, nem causativos, não práticos, nem pragmáticos, inúteis, e
despropositais.
Irreais. Porque possíveis. Possíveis em ação... Atualização.
Acontecer.
Em tudo diversos da realidade do acontecido, que é a realidade.
A acontecida e inerte realidade da coisa.

Tal é o diálogo, como esfera do modo eu tu de sermos da inter


ação.
No caso, na momentaneidade instantânea do clic.
O diálogo eminentemente genético: de onde provém, de onde
se gera e regenera, a fatalidade da foto. A foto como fato. O fato, o
feito, como foto.

Mas, na arte da foto – nem sempre na experiência do fato,


fatalidade --, mas na arte da foto, bem instalado no fato, o diálogo
está; o diálogo está instalado na foto; o possível dorme no real.
Sorrateira, a possibilidade está instalada na realidade do fato feito
pelo clic, a foto, o fato per-feito, performado, pelo fotógrafo. Que, na
instataneidade momentânea da perormance de sua ação, é todo ele e
ele todo olho e clic, ação, drama.

41
Porque o drama do clic, a performática do clic, na dialógica,
cria, constitui uma forma. Forma na qual se constitui e se instala uma
diferença possível. Um tu instalado na coisidade.
Um tu de tal modo instalado, que em sua potência, em sua
possibilidade, se constitui como provocação...
A foto é um fato, é uma coisa. Que como tal contém em si
instalada uma provocação. Um incúbo dialogante.
Como ensinava Caieiro, no seu Menino Jesus...
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
(...)
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
É curioso, porque o ser humano do ser no mundo é também
assim. Um ente especificamente emprenhado de pres-ente, de
possível, de possibilidade... Um ente, inatual, impregnado de
presença, e de atualidade. Um ente fatal que possui um íncubo
dialogante. Um acontecido que perene e permanentemente gesta o
acontecer.
Para dar conta desta condição, Heidegger diria que o homem é
ôntico e ontológico. O ser hermenêutico por excelência.
Ser no mundo, mundo do ser, a foto é isso.
Um ente, uma coisa, um acontecido, dialogante. Incubada de
um acontecer dialogante nela instalado pela arte da performática do
clic...
Ou seja, a foto é um fato que instalado contém um tu potente,
e pontualmente provocativo. Um tu que se oferta à estética
prédialógica, e dialógica -- de quem sabe ver, e, em específico, de
quem pode ver. Visualizar, visar, improvisar, improvisualizar. E criar.
Tal como improvisou o artista, tal como improvisualizou, e
criou, quando de sua improvisativa dramática na performance do
clic.

42
E, quem pode ver é, estética e inesperadamente,
improvisativamente, atingido, pela provocatividade de um tu
dialogativo. Que a dramática do artista fotógrafo instalou na coisa
foto, no fato foto. E que se oferece como logos dialogativo, na
instantaneidade momentânea.
Oferece-se o tu, assim, potente presença dialógica, porque o
artista fotógrafo efetiva e caprichosamente percorreu a duração da
vivência do movimento -- moção, emoção -- da temporalidade do
acontecer de um encontro dialógico.
E guardou-o, na culminação de seu clic. Instalou-o, na foto. No
fato, na coisa. Com a virulência mansa, ou revolta, de sua
provocatividade.
É esta provocatividade dialógica, do tu instalado na coisa, que
nos sequestra da experiência ôntica do tempo acontecido; para a
temporalidade ontológica do acontecer. Esta provocatividade de que a
foto está impregnada, de que a foto é prenhe. A provocatividade do
tu. Que nela instalou a arte da fotografia.
Provocatividade que nos sequestra, da experiência do tempo
coisa, para a temporalidade do eterno retorno do diálogo e do
dialógico, como diria Buber.

Mediário, intermediário, médium -- o artista mediou,


intermediou, através de sua arte -- da instalação em sua foto de um
tu provocativo --, a transcrição escalonativa da momentaneidade
instantânea.
De seu originário encontro e diálogo inicial, para a
possibilidade, e na possibilidade, da dialógica de um novo evento.
Um novo momento, nova momentaneidade instantânea.
Na qual um eu -- que não estava no momento originário --
dialoga – não com um fato feito foto, acontecido. Mas com o
provocativo tu que nela está incubado. Tu incubado em coisa que, de
coisa, em atualidade e presença se torna, no âmbito de uma nova
interação. Que, numa instantaneidade momentânea, massivamente,
nos reduz e homogeniza, nos exclui, numa inter ação dialógica, que
se dá como linguagem e fala provocativas... Como logos.
Mais uma vez, o encontro e o dia-logos. O compartilhamento de
sentido. Compartilhamento de sentido, dia logos, que é inter ação eu-
tu entre eu e tu. Interação entre um novo espectador ator (como
diria Nietzsche) e a foto.
A foto assim mediatiza inter diálogos.
O artista fotógrafo e sua foto são médium, media,
intermediários, mediadores.

43
Da instantaneidade momentânea de distintos momentos
dialógicos. O seu, quando da performática do clic; e o do inspectador
posterior.

É assim que Sebastião Salgado entendeu que, para registrar os


intocados mundos e povos da terra, a natureza da terra intocada pela
modernidade – quarenta e cinco por cento da terra --, ele precisava
não apenas de seu olho, e de seu clic. Ele precisava conviver com
estes mundos perdidos, Efetivamente dialogar com estes mundos
divinamente perdidos... Até o momento de sua foto como interação...
E, na foto, de fato -- registro não do fato, mas do ato, da
momentaneidade instantânea da dramática de seu encontro com eles
--, oferecê-los a nós outros. Oferecê-los como humanidade, tantas
vezes negada e desconhecida, ao resto da humanidade.

Com esses mundos divinamente perdidos ele conviveu, por


quatro anos...
Até que o clic, e o fato resultante -- a foto --, resultasse de
uma interação no encontro dialógico. E resultasse numa possibilidade
de interação.
Interação, dia logos, em que a diferença, a alteridade, pudesse,
sui generis potente, possível, se instalar, incubar-se como um tu,
como uma diferença, que retém integral a sua provocatividade...
Como um provocativo tu. Instalado na luminosa coisidade da foto.
inter diálogos.
E, inter diálogos, pudesse efetivamente provocar em novos
momentos, e a novos atores. Sequestrados da temporalidade de suas
condições de coisa, e lançados inesperadamente nas condições das
temporalidades jmprevisíveis e improvisativas da ação. Inter ação.

Devemos a Salgado não só as fotos... Mas o representar-nos a


nós outros na experimentação intensional da convivência e registro
de sua convivência com os povos, pessoas e lugares desses
mundos...
E a ele devemos a oferta qualitativa, além de generosa e
abundante, das possibilidades de diálogo com mundos, povos e
pessoas desconhecidos, e tão nossos. Dos quais, por incrível que
pareça, fazemos parte; e que de nós fazem parte...

Além de devermos sempre as possibilidades de compreensão da


estética da foto. Da Antropologia e da Ontologia da foto, e do
Humano, e do Mundo.

44
DIALÓGICA

Ontológico, fenomenológico, lógico, o modo pré-reflexivo,


fenomenológico e existencial de sermos, compreensivo e implicativo,
gestaltificativo, é, própria, e especificamente, dialógico. Modo eu-tu
de sermos, segundo a designação de Buber. O modo dialógico de
sermos é, assim, ontológico, fenomenológico, e existencial;
compreensivo e implicativo, gestaltificativo. Presente, presença;
ação, atualidade.

Lógico quer particularmente dizer que o modo dialógico de


sermos, ontológico, fenomenológico, é cognição. É o modo de sermos
da consciência pré-reflexiva, fenomenológica, na vivência do qual
experienciamos logos, sentido. O logos, o sentido que nos distingue
como humanos. O sentido que é assim ontológico. Uma vez que
caracteriza este ser que vivencia logos, que vivencia sentido -- e que,
por isto, é um ser lógico: ontológico...

Logo, o ser que vivencia o sentido é ontológico.

E é ontológico o sentido que vivencia o ser que vivencia o


sentido.

O termo ontológico conceitua e define, assim, tanto o ser que é


ontológico; como o sentido, que é ontológico. Definindo, também, o
modo ontológico de sermos de vivência do sentido, que é o modo
ontológico de sermos, o modo de sermos em que vivenciamos o
logos, o sentido. O modo de sermos da implicação.

Alternativamente, podemos, também, ser o modo de sermos da


explicação (teorética, e comportamental). Que não é lógico. Não é
fenomenológico, não é ontológico, não é dialógico. Sobretudo porque
-- o modo explicativo, modo eu-isso, de sermos --, não é o modo de
sermos da vivência do sentido. Ontológico, fenomenológico,
dialógico...

Fenomenológico em momento algum quer dizer o estudo do


fenômeno.

Fenomenológico quer dizer o sentido do fenômeno. O logos do


fenômeno, fenômeno logos, fenomenológico.

Os fenômenos se constituem como forças que vivenciamos no


modo pré-reflexivo de sermos. As possibilidades.

Vivenciamos as possibilidades porque, nos seus


desdobramentos, como forças que são as possibilidades,
45
intrinsecamente, se constituem como logos, como sentido, como
cognição, como consciência. Mas, como cognição, como consciência,
especificamente pré-reflexivas, compreensivas, implicativas.
Ontológicas, fenomenológico existenciais.

O desdobramento das possibilidades é, assim, fenomenológico.

O logos é fenômeno logos, é fenomenológico, pela constituição


da possibilidade em consciência pré-reflexiva no seu desdobrar-se
atualizativo.

O fenômeno é lógico. Como a vivência do desdobramento


cognitivo de possibilidades.

Sendo o fenomenológico, assim -- o desdobramento cognitivo


de possibilidades --, o sentido do fenômeno.

O mesmo fenômeno que é ontológico, e é fenomenológico, é,


igualmente, dialógico.

Uma das maravilhas deste modo de sermos...

O modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial,


compreensivo e implicativo, gestaltificativo, é, própria e
especificamente, dialógico.

O modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial,


compreensivo e implicativo, gestaltificativo, é um modo de sermos
que, ainda que comum e corriqueiro para qualquer ser humano, tem
características muito peculiares. Principalmente quando tomamos a
realidade do modo não implicativo, explicativo, acontecido, de sermos
como referência. Características corriqueiras que têm substanciais e
radicais qualidades, qualidades fenomenológicas, existencais,
dialógicas, compreensivas, implicativas, gestaltificativas.

No modo ontológico de sermos não vigora a dicotomia sujeito-


objeto.

Modo vivencial, implicativo, de sermos, modo de sermos do


acontecer, o modo ontológico de sermos não é o modo de sermos,
portanto, da teorética. Na qual um sujeito, acontecido, atualizado,
desatualizado (Buber, toda a atualização implica uma
desatualização), contempla um objeto, igualmente acontecido,
atualizado, desatualizado...

No modo ontológico de sermos não vigora a causalidade, não


vigoram as relações de causa e efeito. São forças, possibilidades, que
se desdobram. Magistralmente, Buber diria: não sou eu que crio as
possibilidades, mas elas não acontecem sem mim...

46
Além do mais, o modo ontológico de sermos, não é o modo de
sermos da utilidade. Já que não há sujeito, sujeitado, para o uso de
objetos, objetados; não há objetos como úteis, e sujeito para utilizar
os úteis objetos...

O modo ontológico de sermos não é o modo de sermos da


realidade. Porque é ação, atualização, realização, acontecer do
desdobramento de possibilidades; e não o modo acontecido de
sermos da realidade. Alternativamente, o modo ontológico de sermos
é o modo de sermos da possibilidade, e do desdobramento de
possibilidades, como ação. E não o acontecido modo de sermos da
realidade.

Não obstante, vivenciamos a momentaneidade da vivência do


modo ontológico de sermos, em cada um de seus momentos, como
uma dualidade. Que não é a dicotomia sujeito – Objeto, de sujeitos e
obje(i)tos acontecidos;

mas o projeito, o projeto, a projetação, o acontecer, da


dialógica da relação eu-tu.

Que, em sendo o próprio projeto, projetação do desdobramento


de possibilidades, não é sub-jeto, nem ob-jeto. Mas o próprio jato, o
próprio jeto, projeto, em sua pressão jetativa, ex-pressão. A
momentaneidade da vivência do modo ontológico de sermos,
fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo e implicativo,
gestaltificativo, atualidade e presença, é a projetação de um eu e de
um tu, de uma inter ação eu-tu, que, alteridades e alterizações
vinculadas, própria e especificamente se dão como possibilidades,
possibilitações em desdobramento...

A dualidade da presença, e da atualização, de um eu que se


remete a um tu como possibilidade; e de um tu que se remete a um
eu como possibilidade. Criando, neste remetimento mutual e
recíproco, a esfera intermediária de uma inter ação. A esfera do
entre, do inter, da inter ação.

Esfera inter mediaria eminentemente cognitiva, que se constitui


como o âmbito ativo, inter ativo, da dialógica eu-tu.

No modo ontológico de sermos, relacionamo-nos (a) com a


natureza não humana, (b) com os outros seres humanos --
individualmente e em grupos --, o inter humano; e (c) com o
sagrado. Neste modo ontológico de sermos, cada um dos alteritários
parceiros de relação -- natureza não humana, os outros seres
humanos, e o sagrado, e o próprio eu do eu-tu --, não são
acontecidos. Mas acontecer, possibilidades em desdobramento.
Projetos, projetação do desdobramento de possibilidades. Que se dão
na dialógica de uma interação eu-tu.

47
E não objetos.

Da mesma forma que o eu não é o eu de um sub-jeto.

Mas, igualmente, projeto, já que projetação da movimentação


do desdobramento de possibilidades.

Como vivência da interação de um eu e um tu possíveis,


presentes e atuais, atualizativos; a relação eu-tu se dá como ação,
atualização, como inter ação do desdobramento de possibilidades, ao
nível cognitivo se constitui como consciência pré-reflexiva, como onto
logos, como fenômeno logos, como dia logos.

O dia logos se caracteriza como o âmbito de uma vivência


compartilhada de sentido, âmbito cognitivo compartilhado (dia) de
produção de sentido, desdobramento de possibilidades, ação,
atualização, presença e atualidade. Em que um eu e um tu se
projetam recíproca e mutualmente vinculados como possibilidades, e
constituem a projetação do eu-tu, o dia logos, como o âmbito de uma
esfera intermediária de vivência de sentido, de ação, de atualização.

As eventualidades da vivência dialógica do modo eu-tu de


sermos são a duração de momentaneidades instantâneas da
temporalidade própria dos desdobramentos de possibilidades.

Presenças, atualidades, ações.

São eminentemente gestaltificativas, no sentido de que são


formativas – atividades, ação, atualização, de criação de formas --,
criação originária e original, como vivência dos desdobramentos das
multiplicidades de forças das possibilidades. Formação, formas, onto-
lógicas, fenômeno-lógicas, dia-lógicas. Formas, formações, da
cognição da consciência na pontualidade da momentaneidade
instantânea de seu acontecer, como a ação, a atualização dos
processos de formação de figura e fundo.

E são eminentemente formativas, gestaltificativas, no sentido


de que as vivências dos processos de formação de figura e fundo,
escoam, instalando-se na constituição de coisas, coisas instalativas.
Formando, desta forma, além de processos cognitivos intensionais de
formação de figura e fundo, as coisas do mundo, originais, e
originárias. As coisas, as instalações do mundo.

Cada coisa, feita, fato, não é morta. Vivíssimas são as coisas.


Os Xamãs que o digam... Porque, enquanto coisas, as coisas são
instalações do possível, instalações de possibilidades, de forças.

Instalação quer dizer, ação lentificada. Ação devagar quase


parando.

48
Mas não quer, de modo algum, dizer falta de ação, falta de
possível, falta de possibilidade, falta de força.

Sobretudo, não quer dizer fatalidade. (Buber diria,


magistralmente, a única coisa que pode vir a ser fatal ao homem, é
crer na fatalidade... Dos fatos, feitos, coisificados). A eventualidade
da ocorrência da vivência dialógica do modo eu-tu de sermos dissolve
o caráter estabelecido dos fatos coisificados, instaalados como coisas.
Dissolve o caráter estabelecido da fatalidade.

O núcleo das coisas é, também, o Ser. O núcleo das coisas é


também a contínua emergência e desdobramento do possível, da
possibilidade, a ação. Que lá dormita, como a brasa coberta de
cinzas. Até que possamos para a coisa abrirmo-nos, num modo
própria e especificamente estético de sermos, o modo eu-tu,
dialógico, ontológico, fenomenológico existencial, compreensivo e
implicativo, gestaltificativo...

Neste modo de sermos, a coisa se dilui como objeto, o eu se


dilui como sujeito, e emerge o eu e o tu possíveis, potentes, do eu-
tu, o eu-tu, na relação com o que antes era o eu-isso da fatalidade
factual da coisa acontecida, em sua mera instalação. O objeto precisa
se consumir, para tornar-se presença... (Buber).

De modo que a vivência do momento ontológico,


fenomenológico e existencial, dialógico – eu-tu, compreensivo e
implicativo, gestaltificativo, atualidade e presença, ação, sempre
escoa, sempre se converte no modo eu-isso de sermos. No fato, na
coisa, feita, no isso. Mas, na instalação de cada coisa reside a
possibilidade, a força plástica, estética, da eventualidade dialógica,
eu-tu, do acontecer.

BUBER, Martin Eu e Tu.

FONSECA, Afonso Fatal mesmo é crer na fatalidade.

BUBER, Martin Eu e Tu.

FONSECA, Afonso Fatal mesmo é crer na fatalidade.

49
DIALÓGICA DA ESPERANÇA
Dialogicidade, Superação e a Psicologia e Psicoterapia
Fenomenológico Existencial

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.


CENTRO DE ESTUDOS DE PSICOLOGIA E PSICOTERAPIA FENOMENOLÓGICO
EXISTENCIAL
Rua Alfredo Oiticica, 106 Farol 57032-010 Maceió AL Brasil Fone/Fax:082-
2218175
1982

50
Quando o homem não pôe à prova, no mundo, o a priori da
relação, efetivando e atualizando o Tu inato no Tu que ele encontra,
então ele se introverte. Ele se manifesta ao contato como o Eu não
natural, impossível objeto, isto é, ele se desvela alí onde não há lugar
para a revelação. Assim instaura-se um confronto consigo mesmo que
não pode ser relação, presença, reciprocidade fecunda mas somente auto
contradição.
(Martin Buber – EU E TU, p. 82)

O nascimento e a abolição do mundo não estão em mim; mas


também não estão fora de mim; eles simplesmente não são mas
acontecem sempre e seu acontecimento não só se solidariza com minha
vida, com minha obra, com meu serviço, mas também dependem de mim,
de minha vida, de minha decisão, de minha obra, de meu serviço. Não
depende, porém, do fato de eu “afirmar” ou “negar” o mundo em minha
alma, mas do fato de eu transformar em vida minha atitude de alma
diante do mundo, uma vida que atua no mundo, uma vida atual (...).
Porém, aquele que se contenta em vivenciar sua atitude, e somente
realizá-la em sua alma, pode ser bem rico em pensamento, mas é sem
mundo, e todos os jogos, as artes, a embriaguês, os entusiasmos e
mistérios que nele se passam não atingem nem mesmo a pele do mundo.
Enquanto alguém se liberta somente em seu si-mesmo, não pode fazer
nem bem nem mal ao mundo, não importa ao mundo. Somente aquele
que crê no mundo pode ter algo a ver com o mundo. Se ele se arrisca
nele, não permanece privado de Deus. Se amamos o mundo atual, que
não quer deixar-se abolir, realmente, em todos os seus horrores, se
ousarmos enlaçá-lo com os braços de nosso espírito, então nossas mãos
encontrarão as mãos que suportam o mundo.
(Martin Buber – EU E TU, p. 109-10.)

Aí onde cresce o perigo cresce também a possibilidade de


libertação.
(Martin Buber – EU E TU, p. ) 3

51
DIALÓGICA DA ESPERANÇA

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.

Corro o risco aqui de que este título pareça demasiadamente


romântico. Demasiadamente romântico até como às vezes se censura
os escritos de Buber, e até a Psicologia dita Humanista, em geral. Na
verdade não se trata disso, e se corro o risco é porque o título é bom,
e retrata substancialmente uma temática interessante, e em termos
existenciais fundamentais, presente frequentemente, ainda que às
vezes de modo implícito, na temática das Psicologias e Psicoterapias
Fenomenológico Existenciais.

Refiro-me aqui à temática da relação íntima e recíproca,


intrínseca, entre a possibilidade efetiva da esperança e o processo de
sua atualização e a preservação da possibilidade da abertura para o
dialógico: a possibilidade, preservação e desenvolvimento da potência
e criatividade no sentido da superação e transformação de condições
dadas, em sua dureza e consistência de fato, pela atualização da
experiência do dialógico através da abertura e afirmação da
concretude da existência como ser-no-mundo.

Ou seja, mais específicamente, a confiança na e a abertura


para a possibilidade do dialógico: a entrega e afirmação da
concretude da existência, com tudo mesmo que ela possa conter
inevitavelmente de problemático, de sofrido, pavoroso mesmo, como
condição de possibilidade, como condição de mobilização de
potenciais de superação e humana, potente e criativa tranformação
das condições dadas. Mesmo, e em particular, nos quadros
existenciais mais difíceis e desesperançados.
“Aí onde cresce o perigo, cresce também a possibilidade de
libertação... (Buber, 1979. p. )
Se amamos o mundo atual, que não quer deixar-se abolir,
realmente, em todos os seus horrores, se ousarmos enlaçá-lo com os
braços de nosso espírito, então nossas mãos encontrarão as mãos que
suportam o mundo. (Buber, op. cit. p. )

Por outro lado, a inviabilização desta possibilidade, da


possibilidade da transformação das condições dadas, eventualmente
difíceis, ou terríveis, quando cessa a esperança. Ou seja, em
particular e especificamente, quando se enfraquece na pessoa a
possibilidade da afirmação e da abertura para o dialógico, quando
cessa a disposição ativa para uma entrega e afirmação de si
enquanto ser-no-mundo, na facticidade e afetividade de sua

52
existência, na concretude de sua existência. É esta entrega e
afirmação que é uma entrega à possibilidade do retorno potente da
vida enquanto retorno da vontade de viver, que potencializa o devir e
a possibilidade da transformação das condições dadas.

Sabemos que os seres humanos têm potenciais que não raro


revelam-se como impressionantes. Sejam como potenciais de auto-
constituição e criação de si, sejam como potenciais de auto-
superação, sejam como potenciais de regeneração, de auto-
reconstituição e re-construção e 4

criação de si. Potenciais que revelam-se igualmente como


potenciais de auto-superação. Vemos, para ficarmos nuns poucos
exemplos, como nos esportes, nas Olimpíadas, por exemplo, os seres
humanos se superam regularmente a si mesmos de formas
maravilhosas, ao nível da força e habilidade e estrutura de seus
corpos; vemos como cada pessoa se supera no processo de
constituição de si e de sua vida, como paulatina e meticulosamente
conquista o impossível; vemos como as pessoas podem, certamente
depois de um período de impotência e perplexidade, paulatinamente
recobrarem-se das diversas catástrofes possíveis da vida, auto-
superarem-se e criarem vidas novas, habilidades novas, capacidades
novas, recursos novos, inesperados e insuspeitados.

Vemos igualmente, por outro lado, e com lamentável


frequência, a possibilidade do embotamento desses potenciais da
existência humana. A vida embotada e soterrada pelas consequências
das catástrofes existencias, os riscos dos naufrágios existenciais, e os
próprios naufrágios... e náufragos.

Vários fatores, certamente, marcam a diferença entre a


efetivação de cada uma das duas possibilidades: a possibilidade da
superação das condições dadas, superação em particular de si
próprio, com a criação de novas condições de si e de novas condições
situacionais; ou o sucumbir ao peso de uma situação infortunada
inevitável, ou ao peso de uma indesejável condição de si, que impôe-
se com o peso de uma realidade dada e irrecorrível.

Um desses fatores que marcam a diferença e que não é de se


negligenciar, é a disposição para a experiência da esperança. Eu diria
mais: a intimidade com a vivência da experiência da esperança. Veja
que eu não falo aqui da esperança no sentido moral de um valor, ou
da esperança como um princípio, mas da experiência da esperança,
ou seja, da experiência vivida da esperança. Porquê a experiência
vivida da esperança não é teórica, é certamente utópica,mas não é
idealista. Ancora-se firmemente numa atitude prática, numa atitude
existencial aberta, implicada e ativa diante do mundo. Numa atitude

53
de abertura e afirmação da existência, mesmo que, como sabemos,
isto signifique em certos momentos a abertura para e a própria
afirmação do sofrimento e das finitudes inevitáveis, inerentes à
existência. A abertura e afirmação, a assunção, do desconhecido e do
misterioso, igualmente inevitáveis na vida humana.

De modo que a preservação de uma atitude dialógica, a


disposição preservada de abertura para a possibilidade do dialógico, é
um componente fundamental da esperança, e, de fato, com ela
mesmo se confunde. Porque a abertura para o dialógico é
precisamente esta abertura e afirmação da concretude da existência
em sua facticidade e intrínseco devir.

Em sua efetividade, a esperança, como atualização do dialógico,


não é um querer, uma vontade, ociosos e meramente ideais. A
dialógica da esperança torna-nos pareceiros receptivos, mas
igualmente ativos, do acontecer de um mundo cujo nascimento e
abolição, como diz Buber (1979. p. ),

“não estão em mim; mas também não estão fora de mim.”

Mundo e existência não têm realidades ou desdobramentos


autônomos, interdependem, e a grande mágica é a ação dialógica
que interpreta o vivido na correlação da pessoa com o mundo que lhe
diz respeito.

O dialógico configura-se como os efêmeros momentos,


intrínsecos à vida humana, em que, pela entrega plena e intensa à
concretude da existência em seu ser-no-mundo e com o mundo,
podemos transcender e transformar as condições dadas, do mundo e
de nós próprios, -- condições 5

estabelecidas, cristalizadas, com o peso de realidade, e que


permitem a profecia baseada na objetividade (Buber) -- e
efetivamente plasmar a nós próprios e ao mundo.

Os momentos do dialógico são eventuais e efêmeros. Vivemos


normalmente no e com o mundo do Isso. Não podemos produzir os
momentos dialógicos de relação Eu-Tu em nossa vida. Buber(1979.
p.) nos diz que eles nos são dados por graça, ainda que sejam
inerentes, e mesmo inevitáveis na vida de qualquer um. Nem
sempre, todavia, podemos manter a abertura, a tolerância, o trato
para com estes momentos dialógicos, para com a experiência do
dialógico. O mundo do Isso tende a crescer em nossa vida, da mesma
forma que tende a crescer na vida social e na vida da humanidade.
Há, assim, a necessidade de um certo cultivo para que possamos
manter a nossa capacidade para transcender a esfera do mudo do
Isso em nossa vida, e nos disponibilizarmos para uma entrega à

54
concretude de nossa existência enquanto ser-no-mundo, de modo
que possamos abrirmo-nos para uma vivência natural dos dialógicos
momentos de relação Eu-Tu em nossa existência como ser-no-
mundo. Na vivência ativa desses momentos é que reside a
possibilidade de decisão, a esperança e a possibilidade plástica de nós
mesmos e do mundo, a possibilidade existencialmente artística de
plasmarmos a nós mesmos e ao mundo que nos diz respeito.

Mas exige isto. Esta vontade e disposição de entrega à


concretude da existência, em particular, quando ela encarna, o difícil,
o amedrontador, o sofrimento e finitude inevitáveis. Exige uma
confiança empedernida, às vezes cega e até ingênua, em algum
lugar, de que o apocalipse, como disse Laymert Garcia (1985, pp. ),
pode não ser o final dos tempos, mas uma passagem para novos
tempos, como sugere o apocalipse de Nietzsche, em contraposição ao
Apocalipse de São João. Exige a vontade da utopia, mesmo cega e
ingênua em alguns momentos, mas firmemente ancorada na
modéstia de seus possíveis. Exige, enfim, uma capacidade habitual
para a abertura para o dialógico, na incerteza e imprevisibilidade
deste, em particular quando o sofrimento e as dificuldades parecem
mais opacos.
Aí onde cresce o perigo cresce também a possibilidade da
libertação” (Buber, M. 1979, p.).

E estes são assim componentes fundamentais da esperança, e


como tais são componentes fundamentais dos processos de auto-
constituição e reconstituição humanos, de auto-criação e recriação,
de regeneração.

Algo do potencial e da saúde humanos está profundamente


embotado e comprometido quando desaparece esta vontade, esta
força da esperança, em particular nos momentos difíceis e
desesperadores. Momentos difíceis e desesperadores são momentos
intensos de um certo arregaçar de mangas, são momentos de alerta,
são momentos de perseverança e luta, ainda que apenas interior
frequentemente, são momentos de entrega sincera à concretude da
existência, à possibilidade do dialógico. Por isto que nossa vida carece
de ser uma constante pedagogia do dialógico. Uma entrega constante
à concretude da existência que nos potencializa para a possibilidade
do dialógico, para a possibilidade da afirmação e da transformação de
nós mesmos e do mundo que nos diz respeito.

O que poderíamos chamar de des-esperança desconhece a tudo


isto. Desconhece o dialógico e a possibilidade transformadora do
vínculo da relação. É, desde o princípio, descrença e entrega ao
decurso das coisas e da fatalidade (Buber, 1979. pp. ), abdicação do
poder criativo da decisão e da abertura para o dialógico.

55
Assim é que não é muito dizermos que a psicoterapia
fenomenológico-existencial, em particular tal como ela se caracteriza
na Gestalterapia e na Abordagem Centrada na Pessoa, é, 6

fundamentalmente, uma certa pedagogia do dialógico, uma


certa pedagogia de resgate e de atualização da esperança, em níveis
existenciais diversos. Sua filosofia da vida, sua epistemologia, sua
teoria e método voltam-se fundamentalmente para a potencialização
de uma entrega fenomenológico-existencial do cliente à concretude, e
afirmação, de sua existência, para uma potencialização da capacidade
do cliente para interpretar-se a si mesmo (Fonseca, AHL, 1998a)
como ser no mundo, interpretar* efetivamente a sua existência, a
partir da interpretação do desdobramento da compreensão do
processo de seu vivido (Heidegger, 1951, p.166). De modo a que ele
possa potencializar-se como criador e original, como homem criativo
e ativo, na plasmação de si mesmo e do mundo que lhe diz respeito,
mantendo e cultivando, desta forma, suas melhores capacidades para
a criação de sua vida e de seu mundo, e para o enfrentamento de
suas dificuldades.
* Interpretação entendida aqui no seu sentido fenomenológico existencial,
aparentado do sentido segundo o qual um ator interpreta um papel, distinto do
sentido psicanalítico ou meramente explicativo do termo.

Uma das características mais fundamentais, e problemáticas,


dos clientes de psicoterapia, em particular dos mais comprometidos,
é a perda da esperança. Perda da esperança que precipita-se ou
consolida-se eventualmente, de modo lamentável, no contato com
profissional de saúde, quando recebem um diagnóstico
psicopatológico, por exemplo. É sentirem-se presas e vítimas de
situações indesejáveis, e não sentirem-se potentes ou hábeis para
modificá-las, é sentirem-se vítimas destas situações coisificadas em
que o movimento mecânico da coisidade cristalizada assumiu o
controle, caracterizando-se como inevitável, como inevitável decurso
das coisas (Buber, M, 1979. p. ). É a crença nesse decurso e a crença
dogmática em sua inevitabilidade, a crença na fatalidade. E portanto
a descrença em seu próprio potencial criativo, a descrença e o
desconhecimento do potencial de transformação da realidade dada
propiciada pela abertura e afirmação da existencia e pela experiência
do dialógico.

De modo cristalinamente claro, Buber (1979, p. ) dirá com


propriedade:

(...) fatal mesmo é crer na fatalidade...


(...) a única coisa que pode vir a ser fatal ao homem é crer na
fatalidade...

56
E dirá (Buber 1979 p. ), ainda, como mencionamos acima:

Se amamos o mundo atual, que não quer deixar-se


abolir, realmente, em todos os seus horrores, se ousarmos
enlaçá-lo com os braços de nosso espírito, então nossas mãos
encontrarão as mãos que suportam o mundo.
Aí onde cresce o perigo, cresce também a possibilidade
de libertação...(p. )

O cliente frequentemente desconhece ou subvaloriza assim a


esperança; mais que isto, desconhece o poder do dialógico na
transformação da existência e do mundo dados. E tem de alguma
forma impedido a eles o seu acesso. Ou seja de alguma forma está
impedido, pela dor e pelo sofrimento, pelo medo, pelo pavor, pelo
hábito, pelo receio da “perda” do que já perdeu, de assumir e de
afirmar, de aceitar e afirmar a integridade fundamental de sua
atualidade existencial, a 7

integridade, a concretude de sua existência: assunção e


aceitação que são modos fundamentais da abertura para o dialógico e
para o poder regenerativo de suas possibilidades e de suas
possibilitações.

Mais básicamente, o cliente carece de assumir e aceitar


paulatinamente, no espaço e no tempo fenomenológico-existenciais
exprimentais da relação psicoterapêutica, o seu sofrimento, a sua
dor, o seu medo, o seu hábito, o seu receio de “perder” o que já
perdeu, que o impedem de assumir, aceitar e afirmar a concretude de
sua existência. Fundamentais momentos para a abertura aos
momentos do dialógico.

De modo que grande parte do trabalho terapêutico desenvolve-


se em torno dessas dores, sofrimentos, receios, pavores, pânicos de
aceitação de certas áreas da existência, que levam a uma fobia a
uma aceitação e afirmação mais plenas da concretude da atualidade
existencial do cliente. Superados estes momentos, a psicoterapia
constitui-se na própria prática, no espaço e no tempo
fenomenológico-existencial da relação psicoterapêutica, da assunção
e afirmação da concretude da existência em seus devires, alegrias,
sofrimentos, finitudes e retornos da vontade de viver, natural
potencialização da abertura e afirmação da experiência do dialógico,
natural pedagogia existencial da esperança e da criatividade de viver.

57
BIBLIOGRAFIA

BUBER, Martin (1979) - EU E TU, São Paulo, Cortez & Moraes.


FONSECA, Afonso H. Lisboa da (1998) - TRABALHANDO O
LEGADO DE ROGERS. Sobre os Fundamentos Fenomenológico-
Existenciais, Maceió, Pedang.
FONSECA, Afonso H. Lisboa da (1998a) - Interpretação
Fenomenológico Existencial. Sobre o Sentido do Interpretativo
em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial,
Maceió, artigo inédito. Disponível na Internet em
(http://www.Terravista.pt/FerNoronha/1411).
GARCIA DOS SANTOS, Laymert (1985) - TEMPO DE ENSAIO, São
Paulo, Companhia das Letras.
HEIDEGGER, Martin (1951) - EL SER Y EL TIEMPO, Madrid, Fondo
de Cultura Económica.

58
DIALÓGICA E ARTE DRAMÁTICA DA IMPROVISAÇÃO
VISLUMBRE-E-ATO DO POSSÍVEL PROPULSIVO Sobre o
sentido e importância do improvisativo na concepção e
método da Gestalt Terapia e da Psicologia e
Psicoterapia Fenomenológico Existencial
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo1.
1 Laboratório
de Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial. Maceió, AL. Brasil.
affons@uol.com.br http://www.geocities.com/eksistencia/

Os segredos da arte da espada consistem na criação de uma


certa disposição mental que se faz sempre pronta para
responder instantaneamente, quer dizer, i-mediatamente ...Na
medida em que o treino técnico é de grande importância,ele é,
no final de contas, algo de acrescentado e adquirido
artificialmente, conscientemente, calculativamente. A menos
que a mente que se vale da habilidade técnica sintonize-se
com um estado de máxima fluidez e mobilidade, qualquer
coisa adquirida ou superimposta perde a espontaneidade do
desenvolvimento natural. Este estado prevalece quando a
mente está desperta para o satori. O que quis o espadachim
foi fazer com que a disciplina ativesse-se a esta concepção.
Esta concepção não pode ser ensinada por nenhum sistema
especialmente desenvolvido para este fim, ela deve crescer de
dentro simplesmente. Na verdade, o sistema do mestre não
era de fato um sistema no sentido próprio do termo. Mas
existia um método “natural” em sua aparente loucura (...). D.T
Suzuki in ZEN AND JAPANEASE CULTURE.

Centradas no privilegiamento do vivido, da consciência pré-


reflexiva, fenomenológico existencial, e nos seus desdobramentos, a
Gestalt Terapia -- e qualquer abordagem fenomenológico existencial -
- tem a improvisação, a soberania da valorização do momentum
improvisacional, como uma de suas características fundamentais.

Fundamental porque, em particular, é a im-pro-vis-ação, este


modo de ser ativo, que provê um vislumbre (Heidegger diria pré-
compreensão) do

possível e da possibilidade de seu desdobramento. Uma


condição básica da perspectiva existencialista, da ontologia, da
fenomenologia existencial, da concepção e método da Gestalt
Terapia, e de uma abordagem de psicologia e psicoterapia
fenomenológico existencial.

59
Grosso modo, o empirismo do vivido fenomenal é, e permite, a
improvisação. Como âmbito dialógico no qual o possível, o ato, a ato
ação, se vislumbram, são possíveis e, efetivamente, se desdobram.
De fato, apenas no âmbito da improvisação, o vivido e o seu
empirismo, e o desdobramento vivido de possibilidades, a
interpretação e hermenêutica fenomenológico existenciais, são
possíveis.

Daí ser interessante qualificar o que significa, e a importância,


desta característica da improvisação na fundamentação filosófica,
concepção e método da Gestalt Terapia e das abordagens
fenomenológico existenciais de psicologia e psicoterapia..

Nos círculos sérios e respeitáveis, moralistas em geral, a idéia


em geral de improvisação é vista com um respeitável e sério balançar
de cabeças, olhares reprovadores, bocas tronchas, e risos
sarcásticos...

E, diga-se de passagem, não há como não concordar, diante de


uma concepção de “improvisação” num sentido vulgar e pobre. Ou
seja, não estar preparado, não estar pronto diante de uma tarefa
assumida. E “improvisar”, como lançar mão de capacidades ou
recursos impróprios, inadequados, limitados, insuficientes para a
responsabilidade que se tem diante, e para a qual não se teve o
cuidado de se preparar, ou de saber, ou não, se podia estar
preparado...

É certamente por isto que num certo momento o I Ching


comenta, “...tudo o que importa é estar preparado...”

De passagem, também se diga, que é uma soberba forma de


incompetência o recurso habitual, mecânico, ao premeditado, ao
meramente repetitivo comportamental, aí incluído o técnico; ou ao
reflexivo, evitativo, quando a ação é requerida, a atualização, atu
ação que interpreta o possível, e que só se possibilita no âmbito do
improvisacional

Não é à improvisação num sentido vulgar que nos referimos.

A improvisação, tal como ela se configura existencialmente, e


na prática de uma abordagem fenomenológico existencial de
psicologia e psicoterapia, exige preparo...

O sentido vulgar de improvisação, e o moralismo, não podem


obscurecer o sentido germinal da idéia de improvisação, e a
fundamental

importância não apenas deste sentido maior, mas, em


particular, desta modalidade de ser na condição humana, em
particular no desdobramento de suas questões existenciais. E,

60
portanto, na fundamentação filosófica, concepção e método de uma
abordagem de psicologia e de psicoterapia fenomenológico
existencial.

Não é certamente exagero, nem impróprio, dizer-se que só


existe ação na vivência da improvisação. E ação especificamente
entendida como o vir-a-ser, ato ação, do possível vivido
fenomenalmente como pré ser, na vivência de ser no mundo...

Nietzsche chama a atenção para isso. Ele observa2 que, em


geral, pensamos que premeditamos uma ação, e agimos de acordo
com o premeditado. A premeditação, não obstante, é uma coisa --
que pode inclusive não ser da ordem da ação, pode ser da ordem do
comportamento, ou da reflexão, por exemplo -- que efetivamente
não são ação. A ação é outra coisa. Ou seja: a ação é um outro modo
de ser.
2 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência Lisboa: Guimarães, 1984.

A ação é um mistério..., diria Nietzsche.

Como modo de ser, a reflexão, já é um re-torno à memória de


um vivido, que em seu momento próprio foi ativo, mas que já se foi
como vida vivida, ativa, encarnada; digo, não abstrata... É re-
presentação, e não presentação...

O comportamento, aí incluída a técnica, é atividade estruturada


passadamente. É repetição de formas padronizadas, condicionadas de
atividade, para a qual já se pode ter uma expectativa.

O que deles, da ação e da reflexão, distingue a ação é o vir a


ser de possibilidades, o re-torno, re-volta do possível. A ação, atu
ação, é este re-torno, esta re-volta, do possível, a ação atu aliza o
possível propulsivo.

Assim, o que caracteriza o especificamente ato, a ação, é que


neles (uma) possibilidade(s) se atualiza (m), desdobra(m)-se, vem
(vêm) a ser. Possibilidade que está extinta já ao nível dos modos de
ser do comportamento ou da reflexão.

E aí é que está a questão. Carecemos vitalmente da reflexão e


do comportamento. E eles são como “estar com os calcanhares no
chão”. Nossa vida cotidiana carece do reflexivo afastamento.
Afastamento da vivência do modo de ser do vivido. Para
instrumentar-se, e contingenciar novas formas e possibilidades de
ação. Necessitamos em nossa vida cotidiana da atividade padronizada
e repetitiva do comportamento, e da reflexão, no desdobramento de
funções igualmente padronizadas e repetitivas.

61
Num dado momento a ação seria, metaforicamente, como
levantar-se na ponta dos pés. Não podemos permanecer na ponta
dos pés. Daí que precisamos da reflexão e do comportamento.

No momento, todavia, da ação, da atuação, atualização de


possibilidade, a reflexão e o comportamento não dão conta.

Por mais que estejamos adestrados neles, por mais que


tentemos o seu modo específico de ser, inclusive (no que chamamos
de) neuroticamente. Na reflexão e no comportamento ocorre como na
metáfora de Buber3: por mais que embaralhemos um baralho: as
cartas permanecerão sempre as mesmas. Apenas a repetição.
3 BUBER, Martin op. cit. p.

O momento da ação é o momento da necessidade do possível,


o momento da criação e da atualização do novo. Da experimentação
que lhes permite. A ação não apenas embaralha as cartas, ela as
refunde e recria, refunde e recria o baralho, vira a mesa...

Daí que Fritz Perls observa: as questões existenciais humanas


só se resolvem experimentalmente. O âmbito da improvisação é o
âmbito próprio da experimentação fenomenológico existencial.

Ou seja, pelo modo de ser do vivido e do desdobramento do


vivido, no qual o possível, como incontornável dimensão ontológica, é
possível e se desdobra. Em especial porque o comportamento e a
reflexão, exteriores ao nosso modo de ser vivencial, não acessam a
nossa dimensão ontológica do pré-ser, do possível “em nós”, e do seu
desdobramento. O comportamento e a reflexão não acessam, por
impróprios, esta dimensão ontológica vivencial de nosso ser em que o
possível é possível e se desdobra; a dimensão de nosso ser onde
vigoram as possibilidades e a possibilidade de sua atualização e
desdobramento. Possibilidade esta cuja vivência chamamos de
experimentação.

O modo de ser da ação está fora, assim, do modo de ser da


reflexão e do comportamento. De forma que o modo de ser próprio
da ação, da atuação, atualização de possibilidades, é pré-reflexivo,
vivido, e não comportamental.

Por definição, a ação, que atualiza possibilidades, e ao atualizar


possibilidades, não é reflexiva, e não é comportada. O novo, a ação,
não são da esfera do comportamento. A ação não é reflexiva, não é
da esfera da reflexão. A ação, como atuação de possibilidade, como
lhe é próprio, é própria deste modo de ser que é pré-reflexivo, o
vivido, ser no mundo, o fenomenal, fenomenativo.

Neste modo de ser que é o vivido constitui-se, como pré ser,


pré compreensão4, a dimensão do possível humano, a possibilidade.

62
4 HEIDEGGER, M. ibid.

A cada uma de suas emergências, a possibilidade surge,


aparece, brilha, como pré-compreensão.

A possibilidade é um modo particular de existência, na medida


em que é existência que não é realidade, mas que efetivamente
existe como possum, como brilho da vivência de um possível. Esta
vivência da emergência, do brilho (lumbre), da possibilidade, é dada
como pré compreensão, como pré ser se (Heidegger): Vivência na
qual brilha o possível em sua emergência e força de desdobramento,
vivência na qual o possível se vislumbra, ou seja, é pré compreensão
e exercício de pré ser se. Vivência na qual o possível, em seu caráter
propulsivo, em sua emergência, é vislumbre, é brilho (lumbre) que
se vislumbra como pré ser e pré compreensão. O desdobramento
deste possível é a hermenêutica fenomenológico existencial, como
arte da interpretação fenomenológico existencial, o desdobramento
deste possível é interpretação, é a ação.

A emergência, portanto, e desdobramento, do possível que


impregna a ação dá-se, desta forma, em seu modo de existência
particular, como vislumbre, pré compreensão, pré ser, pré ser se.

Assim, o que é próprio deste modo de ser -- que não é reflexão,


nem é comportamento, e que é o vivido, fenomenal, pré-reflexivo, e
pré-conceitual --, é que ele, caracteristicamente, além de ser vivido,
pré-reflexivo e pré-conceitual, não comportamental, e ativo, é
sempre (vis) lumbre, lumbre (brilho, aparecimento,
acontecimento), da emergência e/ou urgência vivida do possível, da
possibilidade. Que se apresenta como emergência e/ou urgência de
uma alteridade, de uma outridade, com relação ao nós mesmos, na
qual estamos indissociavelmente, intencionalmente, vinculados...:
Pré-ser, como diria Heidegger, possibilidade vislumbrada, e que, em
sua força de possum, se desdobra como possível propulsivo em nosso
ser no mundo...

É essa vislumbrada, vislumbre, vislumbração, da outridade,


possível (possibilidade, potente, em sua emergência e/ou urgência,
como vivência da possibilidade propulsiva que se desdobra como o
“nós” mesmos/mundo, enquanto somos/vimos a ser) que se
configura especificamente o como o vis – vislumbre -- da
improvisação. (É interessante observar como vislumbre é uma
palavra intencional, fenomenal. Como ela integra o ver com o brilho
do visto, o vis e o lumbre).

Ou seja: esta vislumbração do possível, que favorecemos (prol)


na improvisação, é própria deste modo de ser, que é visação, ação
vis-a-vis

63
com a outridade do possível, pré-compreensão, que se dá
como e na im pró vis ação, e que é ação, ato de possibilidade, no
âmbito deste nosso modo de ser vivencial, fenomenal, fenomenativo.

Na verdade, a improvisação é mais propriamente


improvislumbração do possível vivido, e, como tal, desdobrado em
sua urgência/emergência. Mais especificamente, como vivência que é
-- não reflexão, não teorização, não comportamento --, a
improvisação, impróvislumbração, é o modo de ser que
propriamente favorece e provê o modo de vivência, o âmbito, o
momentum, no qual o possível é possível, e se desdobra. No qual é
possível a experimentação fenomenológico existencial, a
interpretação fenomenológico existencial, a hermenêutica
fenomenológico existencial, o contato. E, diga-se de passagem, de
um modo mais sumário, a criação, a criatividade.

Uma das características qualitativas mais fundamentais do


vislumbre do possível é a propriedade da sua temporalidade peculiar,
de seu ritmo sui generis, deslumbrante (decaente?) e singular. Um
ritmo que, se nos dispomos a atualizá-lo, é soberano e insubmisso,
autônomo, em seu ciclo de vislumbre e deslumbre. Não é à toa que
Heidegger falará de Ser e Tempo... E que Octavio Paz
comentará:Diante de nós algo passa com o ritmo, e somos nós
próprios que passamos...

Este alumbre, vislumbre, deslumbre da outridade, da alteridade


do possível, só se nos é dado na propriedade deste modo de ser que
é o vivido do ser no mundo (não na reflexão e/ou no
comportamento). De modo que é especificamente na vivência de ser
no mundo que se constituem este vislumbre e desdobramento da
possibilidade do que somos em ser no mundo.

Privilegiar, favorecer, este modo de ser do vivido de ser no


mundo, esta vivência de ser no mundo, pré-conceitual, pré-reflexiva,
é um modo de ser em prol da vislumbração, emprovisação, é
improvisação, improvislumbração. (Num certo sentido, vivência e
improvisação são termos intercambiáveis em seus sentidos).

Daí que a existência, a resolução de questões existenciais,


como ato ação do possível, a interpretação e a experimentação
fenomenológico existenciais, a empathia, só se dêem no âmbito deste
modo de ser que tão propriamente, e tão inconscientemente já,
designamos como improvisação.

A condição de possibilidade da ação, de ser ator (que é ser


outro, possibilitado/possibilitando-se), a condição de possibilidade de
atuar, agir, vivenciar e atualizar possibilidades -- criar/criar-se,
resolver/resolver-se, e ao mundo que nos diz respeito -- é situar-se

64
(im) neste modo de ser, e privilegiar (pró) este modo de ser, no qual
podemos prefigurar e prover,

vislumbrar e provisionar -- na improvisação -- e possibilitar o


desdobramento desta alteridade possível, desta outridade emergente
e/ou urgente como o nós mesmos/mundo. E que é possível apenas
na vivência de ser no mundo. No vivido, que é improvisacional.

Agir, ser ator, ser outro, a ação, o contato, só se dão no âmbito


deste modo de ser que é vislumbre do possível, no quando agora
em mim; como diria Caetano. Que é ex-peri-ment-ação, e
desdobra, possibilita, é hermenêutica da, interpreta a, alteridade do
possível no nós mesmos/mundo ; no quando agora em mim. Ou
seja, agir, ser ator, ser outro, a ação, dão-se própria e
especificamente no âmbito deste modo de ser do vivido, pré-
reflexivo, ser no mundo, empático, pático, patético, peripatético,
pathoslógico (nada a ver com doença, naturalmente, apenas o
logos do pathos), experimental, espiritual, que se configura no
âmbito e momentum próprio do vivido improvisacional, da
improvisação.

É este o modo de sermos, a improvisação, no qual o possível é


possível e possibilita-se, desdobra-se. Mas não como objeto.

Este modo de sermos do vivido de ser no mundo, este modo de


ser da improvisação, não vigora, como vimos, no modo de ser do
comportamento e da reflexão. Nos quais vigoram a não intenção de
sujeitos e objetos, de causas, efeitos e realidades realizadas.

Este modo de sermos é dialogicidade, é encontro vivenciado,


relação imediata, e improvisação, com a alteridade de mim mesmo,
com o outro inter humano ou natural, com o sagrado, enquanto
alteridades vivas e presentes, que pontualmente se desdobram em
suas diferenças e diferenciações, no âmbito apenas do dialógico
momentâneo, no âmbito dialógico da improvisação. Não como
sujeitos ou objetos, causas ou efeitos, realidades realizadas.

Ainda que este modo de ser seja, como ação, na definição de


Perls,não menos que o núcleo do real.

O dialógico improvisacional, a alteridade do possível, enquanto


alteridade do mim mesmo, enquanto outro inter humano, enquanto
outro natural não humano, ou sagrado, que são possibilidades que
posso atualizar, ou não, me demandam e me provêem, pessoal e
intransferivelmente, pontualmente, no quando agora em mim, como
outro possível e emergente e/ou urgente, como ator, em minha
perdida diferenciação deles, e de mim mesmo. (...meu desafio maior
seria ser „o outro dos outros‟, e o „outro dos outros‟ era eu... Clarice
Lispector) (caminho por onde há espaço, meu tempo é „quando‟...
Vinícius).

65
Não como um sub-jectum, mas como um jectum que pro-
jecta-se na imediaticidade, im-pro-vis-ação de seus possíveis
emergentes e/ou urgentes, propulsivos, projetativos. Na
imediaticidade da dialogicidade da relação eu-tu, diria Buber.

Importa valorizar, afirmar, ser em prol (impro) deste modo de


ser que permite o vislumbre e a sua ação, o possível e o seu
desdobramento, que nos convocam, e que se projeta como nossa
vivência de ser no mundo.

Meramente porque é este o modo de ser em que o possível é


possível e se desdobra, o modo de ser em que o possível se atualiza,
o modo de ser em que, enquanto tal, agimos e somos atores. E, em
particular, o modo de ser em que, em sendo atores, somos outros e
criativos.

A identificação com o vivido e com o seu desdobramento, a


identificação com o possível que lhe é inerente, e com o seu
desdobramento, configuram, na momentaneidade da improvisação,
uma arte dramática. Drama significa ação; e ação, atu, atu ação,
definem-se pela especificidade de serem vir a ser de possibilidade. De
modo que o momentum vivido, dialógico, do vir a ser do possível, é
momentum dramático. É arte, arte dramática.

Na concepção e método da Gestalt Terapia, de uma abordagem


fenomenológico existencial de psicologia e psicoterapia, os momentos
peculiares de sua prática são assim momentos de uma arte
dramática, e que se dão, portanto, no âmbito da improvisação. De
modo que elas se configuram como o privilégio de uma dialógica e
arte dramática da improvisação.

Valorizar, afirmar, favorecer, provisionar este modo de ser


que é o vivido do ser no mundo é que é o sentido de improvisação,
é o que nos é dado pela improvisação.

Favorecemos, assim, este modo de ser da improvisação na


concepção e método da Gestalt Terapia, e da Psicologia e Psicoterapia
Fenomenológico Existencial, simplesmente, como dissemos, porque é
nesse modo de ser que o possível é possível e se desdobra, que
vislumbramos o possível em nosso pré-ser, e podemos ser, e afirmar,
em ação, a sua potência, e o seu desdobramento, em que podemos
ser atores e outros.

Não é outro o sentido de Contato em Gestalt.

Contato, e o método da Gestalt Terapia -- como uma


metodologia que visa uma otimização do processo do contato --, só
se dão no âmbito da improvisação, neste sentido. Daí ser Gestalt
uma abordagem eminentemente improvisacional, de provisão, e

66
provisação, no âmbito de sua concepção e método, de uma dialógica
e arte dramática da

improvisação. Tanto para o profissional como para o cliente,


como atitude e método de provisação do possível emergente e/ou
urgente, e de seu desdobramento. Como atitude e método de
otimização do processo do contato.

67
GESTALTERAPIA: DIALÓGICA DA PROVOCAÇÃO*

* Texto publicado na Revista de Gestalterapia, São Paulo, 1997 e na Revista Somos de


Gestalterapia, Montevidéo, 1998.

É evidente o caráter provocativo das atitudes, do método, do


fundamento da Gestalterapia.

Isto é muito claro em particular no estilo de Fritz Perls.

É uma compreensão superficial deste caráter provocativo,


todavia, uma incompreensão de seus fundamentos, um fator
responsável por distorções de cunho empirista, muito comuns na
concepção e na prática da Gestalterapia.

Indubitavelmente, entretanto, a Gestalterapia tem este caráter


eminentemente provocativo. É essencial portanto compreender o que
significa a natureza deste seu caráter. Compreender, em especial, o
intrínseco e indissociável aspecto dialógico deste do caráter
provocativo da Gestalterapia.

Da mesma forma que o seu caráter provocativo, a dimensão


dialógica deste caráter é uma intrínseca e indissociável conditio sine
qua non da concepção e da prática da Gestalterapia.

Devidamente considerada esta articulação intrínseca e


necessária, parece certamente uma boa compreensão da
Gestalterapia a que deriva da expressão Dialógica da Provocação.

Numa certa perspectiva fundamental, pelo menos, a prática da


Gestalterapia é isto: uma dialógica da provocação. Mas é necessário
que se evite uma perspectiva vulgar de concepção dos termos desta
expressão e de concepção da própria Gestalterapia. Perspectiva
vulgar que tem sido muito comum na sua disseminação, resultando
em grosseria empirista, ou pura grosseria e falta de educação, no
contexto de delicadas relações entre cliente e um suposto terapeuta,
ou entre facilitadores e os participantes de grupos. 3

68
PROVOCAÇÃO

De um modo geral, o termo “provocador” ou “provocação” não


têm uma boa reputação, a não ser em certos sentidos bem
específicos. Não é algo com que alguém queira identificar-se
normalmente. Esta aversão simples e automática a estes termos
decorre naturalmente dos mecanismo de domesticação da
agressividade saudável que desenvolveram-se na cultura da
Civilização Ocidental. Mecanismos que nos fazem perder
simbolicamente dentes e garras, e nos transformam em dóceis
animais de rebanho, como já observava Nietzsche.

Estes mecanismos, reconhecidos como “patogênicos”


(digamos), foram agressivamente confrontados e afrontados por Perls
e por seu estilo, no desenvolvimento de sua concepção e prática da
Gestalterapia. De modo que um traço marcante da concepção e da
prática da Gestalterapia é exatamente uma aversão à docilidade
compulsiva e doentia, paralisante – fonte e implicação necessária do
niilismo e do ressentimento, e de uma paralisia e imobilização da
potência criativa da vida: um resgate e uma busca da potencialização
da agressividade saudável, da qual todos carecemos para afirmarmo-
nos, para viver, ser e efetivamente acontecer no mundo.
Agressividade que nada tem a ver com destrutividade ou violência, e
que é, sempre, momento de um investimento criativo.

Provocativa é, assim, o mínimo que se pode dizer da


autoimagem da Gestalterapia.

Mas há que se entender que provocação, neste sentido,


jamais tem haver com hostilidade, ofensa ou hostilização... Quando
estas ocorrem na pratica de um suposto terapeuta, são
indubitavelmente características pessoais nocivas deste, e jamais
elementos da concepção da Gestalterapia.

O termo provocação vem de provocare*. Pro-vocare: favorecer


a vocalização, favorecer a fala.
* Sentido enfatizado por minha lúcida amiga Mirian Vilarinho em uma mesa redonda de que
juntos participamos na USP, em 1988.

Vocalização e fala, não têm evidentemente, neste sentido, em


particular em Gestalterapia, o seu sentido estrito. Não se trata
apenas de favorecer meramente o verbal, o vocal, a verborréia. Mas
de favorecer a própria ação, seja ela vocalização ou não, seja ela
vocalização, ou a atualização de formas das múltiplas possibilidades
da ação – fenomenação --, no instante vivido, vividamente vivido
de preferência: fenomenação.

Ação é diferente de comportamento (cum portare, portar


consigo).

69
A ação guarda fundamentalmente algo de fenomenal, algo de
autoria original e singular, momentânea, pontual e pontualmente
vivida, algo de unicidade, de irrepetibilidade, de dialógico. O
comportamento diz respeito ao assimilado, ao que é comum à
particularidade da pessoa e é compartilhado por outros.

Hannah1 Arendt observa: 4

1 ARENDT, Hannah - A CONDIÇÃO HUMANA, São Paulo,Forense - Salamandra -Edusp,


1981. P. 15.

2 Op. Cit. p. 31.

A ação seria um luxo desnecessário, uma


caprichosa interferência com as leis gerais do
comportamento, se os homens não pasassem
de repetições interminavelmente reproduzíveis
do mesmo modelo, todas dotadas da mesma
natureza e essência, tão previsíveis quanto a
natureza e a essencia de qualquer outra coisa.
A pluralidade é a condição da ação humana
pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é
humanos, sem que ninguém seja exatamente
igual a qualquer pessoa que tenha existido ou
venha a existir.

No limite, é a possibilidade da ação que caracteriza o homem e


a comunidade dos homens. A ação tem este caráter eminentemente
inter humano

Hannah Arendt2 ainda dirá:

Só a ação é exclusiva do homem; nem um


animal nem um deus é capaz de ação. E só a
ação depende inteiramente da constante
presença de outros.

É na potencialização da possibilidade humana especificamente


ontológica da ação que a Gestalterapia vai constituir o seu
fundamento. Trata-se de potencializar a ação, a cri-ação no contexto,
e a partir, da atualidade existencial, do momentum vivido da pessoa.
Trata-se especificamente de favorecer esta especifica potencialidade
da pessoa. Potencialidade que se configura propria e especificamente
na esfera do inter humano.

Trata-se de potencializar a ruptura da clausura do mero


comportamento e da agressividade domesticada, através da
potencialização da eclosão da possibilidade sempre latente da ação.
Mesmo que seja mínima e efêmera esta eclosão, mas que possa

70
encaminhar-se para uma habitualidade orgânica e saudável,
compatível com as possibilidades, necessidades e carecimentos da
pessoa e do mundo que lhe diz respeito.

De modo que a provocação gestáltica favorece


fundamentalmente à expressividade, à existencialização do vivido
único e irrepetível, a fenomenação, na potência de sua atualidade.
Favorece assim a uma ruptura pontual com os padrões do mero
comportamento. A situação gestáltica pretende-se eminentenmente
assim uma situação provocativa. O getalterapeuta pretende-se,
assim, um provocador. O que interessa é exercer-se como
provocador, neste sentido, no contexto, no âmbito e duração da
relação pontual com o cliente. Subentendido, naturalmente, que isto
nada guarda de hostilidade ou hostilização, de grosseria.

Ainda que possam ser intensivas, a provocação ou a ação


provocada não carecem de ser compulsivas ou obsessivas. De modo
rigorosamente distraído – “distraídos venceremos” (Leminsky) --, a
provocação gestáltica busca constituir-se nos fluxos e contra-fluxos
ativos e afirmativos do vivido, nos fluxos e contrafluxos da
espontaneidade da auto-regulação organísmica.

Nunca seria demais observar a sensatez organísmica que se


expressa no I Ching3: 5

3 I CHING – O Livro das Mutações, São Paulo, Pensamento, 1983. Tradução de Richard
Wilhelm. P.99.

As palavras são um movimento do interior


para o exterior. Comer e beber são movimentos do
exterior para o interior. Essas duas formas de
movimento podem ser moderadas através da
tranquilidade. A tranquilidade faz com que as
palavras e os alimentos não excedam a justa
medida. Deste modo cultiva-se o caráter (27. I/AS
BORDAS DA BOCA -- PROVER ALIMENTO). 6

71
DIALOGICIDADE E PROVOCAÇÃO

A situação gestáltica e o getalterapeutas são provocativos em


sua efetividade especificamente porque são dialógicos. E o são
especificamente porque entendem o quanto da possibilidade da
ontogênese do humano, da criação e da recriação do humano,
repousam na possibilidade do dialógico.

Quanto de fundador da psicologia e da psicoterapia


fenomenológico existencial não está contido no sentido da simples
frase de Buber4,

4 BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Cortez e Moraes, 1979. p.32.

5 LISPECTOR, Clarice - A Experiência Maior in PARA NÃO ESQUECER, São Paulo,


Círculo do Livro, 1980.

O homem se torna EU na relação com o TU...

Funda-se aí, na consideração pelo sentido ontogênico


fundamental do dialógico inter humano desta formulação, a
possibilidade e a efetividade de uma psicologia e psicoterapia
fenomenológico existencial dialógica. Pauta-se esta por uma certa
reciprocidade pontual, por uma atenção interessada e ativa,
confirmativa, pela atualidade e presença pontual, diferença, do outro.

Reciprocidade e atenção estas que se dão na medida em que se


pode, na afirmação do devir, do ser do devir, atualizar-se
efetivamente como outro. Outro do outro, e outro de si mesmo.

Digo efetivamente porque ser outro é efetivamente ser ator:

Eu antes tinha querido ser os outros para


conhecer o que não era eu, entendí então que
eu já tinha sido os outros e isso era fácil.
Minha experiência maior seria ser o outro dos
outros, e o outro dos outros era eu.

ser sensível e fidedignamente ativo e expressivo, atuação,


do sentido da diferença pontual emergente na fugacidade do
encontro.

O sentido do ser outro do outro ganha uma formulação sublime


nas palavras cristalinas e um tanto quanto perplexas de Clarice
Lispector5

72
Qualquer terapeuta ou psicólogo fenomenológico existencial
efetivo vê-se uma hora envolvido pelo insight e perplexidade de
Clarice. Porque é esta a matéria prima e o substrato fundamental de
seu trabalho.

Confrontar-se e abrir-se para a outridade do outro. Para com


ele ser outro.

Por interesse e entusiasmo ontológico, oferecer-se para a


relação, abrir-se e confrontar-se com o outro, ser ativa e
afirmativamente o outro do outro. Potencializar, desta forma, da
mesma forma que ele pode potencializar em mim, a possibilidade de
que ele possa ativa e afirmativamente ser outro, de si próprio e de
mim. Autor, ativa e afirmativamente, 7

expressivamente, ator da emergência (em ambos os sentidos)


da difereça de si... Possibilitando assim a ruptura da repetitividade,
da mesmidade, da fatalidade pretensa, do comportamento mero e
medíocre.

Ser ativa e afirmativamente o outro do outro é enormemente


provocativo...

Envolve a abertura para e o privilegiamento da presença


pontual, e em devir, do outro, do diferente em sua diferença, em
devir.

Buber6 observará que só existe presente na presença, e o que


caracteriza a presença é a atualidade e a atualização da diferença, da
alteridade, do TU. Com relação ao caráter eminentemente ativo da
presença e da atualidade (atualização/atuação/fenomenação) Buber7
observa:
6 BUBER, Martin, op. Cit.
7 Op. Cit.

Na atualidade vivida não há unidade do


ser. A atualidade é somente ação. Sua força e
profundidade são as desta ação. E mais, só há
“interior” na medida em que houver ação
mútua. A atualidade mais forte e profunda é
aquela onde tudo dirige-se à ação...

De modo que Gestalterapia é, assim, uma dialógica da


provocação. A compreensão e a efetivação da Gestalterapia neste
seu caráter dialógico de provocação demandam sutileza e paciência,
paciência que na verdade é momento rítmico da afirmação, mais
precisamente, da afirmação da afirmação, dos fluxos do vivido na
pontualidade do instante. DIALPROV.doc
73
DIALÓGICA, HERMENÊUTICA E ESTÉTICA DO
CONFLITO
Conflito, Mediação, e Facilitação Psicológica da
resolução de conflitos
em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico
Existencial.

Gestalt.
Abordagem Rogeriana.

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.

Introdução;

1.
Aporia, Instalação, Fatalidade e Fatalismo do Conflito;

1.1. Realidade do conflito e de sua instalação ôntica;


1.2. O conflito e sua aporia;
1.3. Facticidade e fatalismo do conflito;

2.
A mediação e a facilitação da superação, e da resolução, como
experiência estética do conflito -- à ventura dos devires de suas
possibilidades. O Grupo Vivenciativo.

2.1. A Experiência estética, experiência ontológica,


fenomenológico existencial, dialógica, do conflito;
2.2. Dialógica do conflito;
2.3. Compreensão. O modo de sermos da experiência estética, da
dialógica, da aporética, e da da interpretação, hermenêutica
fenomenológico existencial;
2.4. Sobre o caráter implicativo da experiência estética, da
dialógica, da aporética, da compreensão e da hermenêutica
do conflito.
2.5. Aporética. Aporia e aporética do conflito;
2.6. Hermenêutica do conflito;

74
2.7. O Grupo Vivencial como recurso experimental ontológico,
fenomenológico existencial dialógico e hermenêutico para a
mediação e facilitação da resolução de conflitos;
2.8. O Grupo e o tempo;

3.

O conflito, suas formas improdutivas, e as formas improdutivas da


mediação;

3.1. Moralismo e conflito. Teorética e cientificidade;


3.1.1. O olhar de espectador do teorético e a ação do ator do
conflito;
3.1.2. Conflito e explicação;
3.1.3. Cientificidade e conflito;
3.2. O caráter comportamentativo do conflito;
3.3. E o caráter desportativo da superação do conflito;
3.4. Pragmática, resolução e superação do conflito. O processo de
vivência da superação do conflito não é prática, não é
pragmática;
3.5. Realismo, ontológica, conflito, e superação;
3.6. Das formas improdutivas da mediação.

Conclusão

75
Introdução;
A metodologia da mediação e da facilitação da resolução de
conflitos da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial --
Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana – se fundamenta, em seus
princípios de concepção e método, na própria mediação e facilitação
da dinâmica existencial do conflito, privilegiando o modo ontológico de
sua vivência fenomenológico existencial, dialógica, e estética.
Esta metodologia busca, em particular, propiciar condições
relacionais, condições de inter ação, de inter atividade, condições de
espaço, e de tempo; condições empáticas, condições de
experimentação, e de interpretação, fenomenológico existenciais –
condições, enfim, dialógicas.
Condições para uma relativização da facticidade, e do fatalismo,
do conflito; para uma relativização da realidade ôntica, da realidade
coisificada, de instalação das aporias do conflito. De instalação do
conflito no não dialógico, no anti dialógico; no não ontológico, no não
hermenêutico de sua movimentação criativa e produtiva, enquanto
interação de forças, enquanto interação de possibilidades, que
continuamente engendra novas e novas possibilidades.
A metodologia propõe como mediação, às partes conflitantes,
em sua relação conflituosa, o tempo e o espaço, a oportunidade, para
a experiência da vivência, inclusive do conflito, no modo
fenomenológico existencial dialógico de sermos, modo de sermos da
presença, e da atualidade (atualização, inerente à presença),
fenomenológico existenciais dialógicas.
De modo que a experiência, e a experimentação, a
interpretação fenomenológica, da vivência desta presença e
atualidade, em sua inerente potência criativa – a partir da vivência do
modo de sermos de sua potência atual, da potência de suas
possibilidades --, possa mediar a natural facilitação da atualização, da
superação, e resolução, do conflito. Diluindo a instalação de sua
realidade ôntica, no fluxo do movimento da multiplicidade de suas
potências, da multiplicidade de suas possibilidades. Possibilidades estas
que intrinsecamente impregnam continuamente o modo vivencial de
sermos, ontológico, fenomenológico existencial, e dialógico.
O grupo vivencial, constiuído pelos facilitadores e pelas partes
conflitantes -- e que pode ser apoiado pela forma da entrevista diádica
--, é, assim, o instrumento, por excelência, para a mediação, e para a
facilitação da resolução de conflitos da psicologia e psicoterapia
fenomenológico existencial – Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana.

76
1.
Aporia, Instalação, Factidade e Fatalismo do Conflito;

1.1. O conflito e suas aporias;


A afligência do conflito decorre, naturalmente, de sua estase, da
paralisia que resulta de sua instalação na realidade de sua formação
ôntica. A afligência do conflito decorre da parada e irresolução que ele
configura na movimentação dos fluxos existenciais pessoais,
interpessoais, grupais ou inter grupais.
O dinamismo destes fluxos existenciais, como tais, caracteriza a
existência. São potencializados pela vivência de possibilidades, e pelo
desdobramento destas, no modo fenomenológico existencial e
dialógico de sermos.
A existência pessoal, a existência grupal, e inter grupal, fluem,
assim, constantemente, a partir da vivência das potências de
possibilidades; transitando pelo desdobramento e atualização dessas
possibilidades. Em direção, sempre, à realização e à coisificação.
O momento, não obstante, de sua vivência, e da vivência de seu
desdobramento – atualização, ação --, não é da ordem da realidade
(mas da realização), não é da ordem da coisidade.
Própria e especificamente, a momentaneidade instantânea da
vivência fenomenológico existencial dialógica configura o presente, a
presentidade, a presentificação, em sua atividade, em sua atualidade.
O modo de sermos de pré-coisa, o modo de sermos da presença, e da
atualidade, da ação, modo de sermos estético, fenomenológico
existencial e dialógico.
Quer seja ao nível da pessoa, ao nível dos grupos, ou entre
grupos, o conflito não foge a esta dinâmica fenomenológico existencial.
E flui, enquanto as possibilidades potencializam e alimentam os
dinamismos de seu devir. Paralisando-se, progressivamente, à medida
que vão se exaurindo as suas possibilidades, e ele vai se instituindo, e se
instaurando, instalando-se, no âmbito do modo ôntico de sermos.
A progressiva experienciação da realização do conflito, a
suaprogressiva instalação ôntica, a sua progressiva coisificação, e
realização, tem sempre um caráter cada vez mais conflitual,
progressivamente conflitual, não produtivo, improdutivo, não criativo, e
estéril.
A progressiva estase da coisificação, como Heidegger e Buber
indicaram, é progressivamente angustiante.

77
No limite, é esta angústia da estase e da paralisação que, mais
uma vez, remete-nos ao devir do modo fenomenológico existencial, e
dialógico, de sermos; que nos remete ao modo de sermos do possível,
da possibilidade, e de sua atualização.
Nas suas formas produtivas, o conflito é sempre, também, o
conflito de diferentes possibilidades, na concorrência que as leva a
afirmarem-se em suas forças. Em sua vivência, o conflito também move
as relações, e tem, assim, o caráter produtivo de promover a novidade,
de promover o possível, e a atualização de sua potência.
Um nível de conflito, e da sua angústia de sua aflição, na
coisificação, é sempre inevitável, assim. E diretamente proporcional a
sua vivência ativa e presente, nos fluxos e contra fluxos de suas inércias
e da atualização de suas possibilidades.

Não obstante, o conflito pode, também, se tornar


progressivamente improdutivo. Angustiante, e improdutivo. Na medida
em que estaciona, e se instala, nos limites de sua instalação ôntica, e
paralisa a dinâmica de possibilitação, e de atualização de
possibilidades da pessoa, da relação -- interpessoal, grupal, ou
intergrupal.
Esta estagnação, esta paralisia, que constitui o conflito em sua
improdutividade -- intrapessoal, interpessoal, grupal, intergrupal –
potencializa-se naturalmente na medida em que a realização, e
coisificação progressivas -- consolidando a sua inércia, a sua
coisificação, a sua estase, a sua paralisia -- constituem o
direcionamento natural e inevitável do desdobramento das
possibilidades. Com a concomitante aflição, afligência, da angútia que
as acompanha.
Nesta forma, o conflito chega a suas aporias. E nelas se instala.
Em termos existenciais, a aporia é o sem passagem, é a
estagnação, o sem devir, sem potência, sem possibilidade, dos fluxos,
ou ausência de fluxos, existenciais.
O termo aporia—usado originalmente em Filosofia, e em Literatura
-- vem de poro. Que tem o sentido de passagem, de passagem de
fluxo. Poro, poria.
A a-poria é o sem passagem. O limite, a finitude.
O sem passagem, a aporia, da realização da possibilidade. E da
paralisia nesta realização, da paralisia na coisificação, e na coisidade.
Com a exclusão momentânea da concorrência de novos possíveis.

78
A aporia, não obstante, é, também, o ponto onde as potências,
os possíveis se detonam, mais uma vez. É o ponto a partir do qual nos
remetemos ao modo de ser da vivência das possibilidades, o modo de
sermos do possível, modo de sermos no qual vivenciamos
intrinsecamente possibilidades, modo de sermos do presente, da
atualidade, fenomenológico existencial, e dialógico. Modo de sermos
na vivência do qual as possibilidades argumentam e dialogam, na
contínua geração plural de novas possibilidades.
O método aporético, a-por-ético, a a-por-ética, se pauta, assim,
pela vivência intuitiva, fenomenológico existencial, afirmativa, da
aporia. Pela vivência afirmativa da sua estagnação; e pela vivência
afirmativa da emergência da potência de novos possíveis, de novas
possibilidades. Poderíamos dizer, baseado na mesma formulação de
Buber, da entrega à concrescência da existência1.
A potência desta emergência, e da metodologia aporética, é
diretamente proporcional ao modo como podemos vivenciar, ao modo
como podemos atualizar, afirmativamente, a impotência multiplamente
conflituosa, aflitiva, afligente, e angustiante, da aporia

Assim, retrospectivamente, podemos em suma dizer que a


afligência da aporia se configura, no plano existencial – pessoal,
interpessoal, intergrupal --, e se cronifica, como conflito. O conflito se
instala, se estabelece e se fortalece, enquanto tal, à medida em que se
paralisam os fluxos de atualização de suas possibilidades, no modo
ôntico da existência pessoal, grupal, ou intergrupal. O conflito se
fortalece e se instala na medida em que se paralisa, ao nível do modo
ôntico de estagnação, e instalação, de suas aporias.
É, assim, na angústia da paralisia, na angústia de suas afligências,
que se dá o reforçamento deste modo ôntico da experiência
coisificada do conflito.
Na prevalência de seus sub produtos.
Na prevalência da experienciação de sua téorética explicativa,
na prevalência de sua comportamentalidade, na prevalência de suas
pragmáticas, na prevalência de seus moralismos, em suas aflições, nas
estases de suas aporias.
Todas carentes da implicação característica da entrega à
concrescência fenomenológico existencial e dialógica de suas
presenças e atualidades. Estética vivência, vivência no modo dialógico,
ontológico, hermenêutico, ativo, atualizativo, de possibilidades, e de
possibilitações.

1
BUBER, Martin Eu e Tu. São Paulo, Moraes, 1982.

79
Assim, a progressiva realização, a progressiva coisificação, do
conflito -- e do relacionamento intrapessoal, interpessoal, ou inter grupal
-- só conduz, naturalmente, à acentuação do conflito. Na medida em
que estas se dão na ausência da vivência do possível, na ausência da
vivência de possibilidade; na ausência da ação, e da atualização,
pessoal e coletiva, que é a vivência da possibilidade e do seu
desdobramento, própria ao modo ontológico, fenomenológico
existencial, de sermos.
Desta forma, o conflito é um momento adensado da
multiplicidade de fluxos e perspectivas existenciais.
Momento que naturalmente se resolve na vivência implicativa
fenomenológico existencial e dialógica das aporias, e de sua
superação pontual, na abertura do concurso e da concorrência das
possibilidades, que são próprias ao modo ontológico, fenomenológico
existencial de sermos.
De modo que, para além da vivência angustiante da
estagnação e das aporias, da inércia paralítica, da instalação do
conflito, a metodologia fenomenológico existencial da mediação da
facilitação da resolução dos conflitos propõe o modo de sermos
fenomenológico existencial a poiese, a vivência poiética.Da ética da
vivência do modo de sermos das possibilidade. O modo estético de
sermos, fenomenológico existencial e dialógico.
A vivência da infusão da instalação do conflito pelo concurso e
concorrência de novas potências, de novas possibilidades. Cujos
desdobramentos reencetam o fluxo existencial, a atualização, a ação,
a criação.
A desinstalação, e a superação do conflito. Desde que possamos
atualizá-lo, vivenciá-lo como ação, como atualização. Que
intrinsecamente se dão como constituintes do modo de sermos da
temporalidade fenomenológico existencial e dialógica, da vivência
inter ativa das aporias que se instituíram na instalação ôntica e real do
conflito.

1.2. Realização e realidade do conflito e de sua instalação ôntica;


Podemos dizer que o conflito aparece fenomenológicamente em
sua potência, ou seja, vivencialmente, na vivência de suas
possibilidades. A vivência do conflito neste seu momento é a vivência
da interação de forças, da limitação de forças; e a vivência das aporias
são momentos dos fluxo de atualização de possibilidades.
Esta vivência da potência do conflito faz com que o seu fluxo seja
o próprio fluxo da atualização. E, no que pese a momentaneidade de
80
suas aporias, o conflito assim vivenciado é a vivência dos fluxos de suas
interações, de suas possibilidades, e atualizações. Que, naturalmente,
podem levar à superação de suas aporias, à superação do conflito, à
sua resolução, na criação da atualização de novas possibilidades.
Alternativamente, o vivencial, o fenomenológico existencial
dialógico pode se direcionar no sentido da sua coisificação, da sua
realização, da sua instalação ôntica.
Nesta alternativa -- quando o conflito não se resolve no âmbito da
experiência do modo ontológico, fenomenológico existencial dialógico,
de sua emergência -- ele perde, progressivamente, a sua dinâmica
experiencial e experimental, a suas forças de possibilidade, a sua fluidez.
E avança no sentido da coisificação, da realização, e da instalação de
sua experiência ôntica.
Desenvolve-se, então, a instalação do conflito, a realização do
conflito, no âmbito de sua experiência ôntica. O que significa a
realização, a coisificação, a instalação de suas aporias. A realização, a
coisificação, a instalação do conflito. Desprovido, então, do influxo de
possibilidades e de possibilitação, próprias à vivência do modo
ontológico de sermos, o conflito tende a se instalar, a se coisificar, a se
realizar, numa paralisia progressiva.
Tanto ao nível pessoal, quanto ao nível grupal, e inter grupal,
quanto mais perdura a interdição à vivência dialógica ontológica,
fenomenológico existencial, mais tende a se radicalizar, a se sectarizar,
o conflito entre as partes. O conflito, privado da incisão da emergência,
e da prevalência, da vivência do possível, da vivência da possibilidade
e do seu desdobramento, da vivência da ação, da atualização, da
criação, realiza-se. O que quer dizer: coisifica-se, instala-se, e se
cronifica.
Até que novos acontecimentos, ou a angústia de sua aflição
gerem e regenerem um retorno ao modo ontológico de vivência de
suas possibilidades.

De modo que é só a incidência da momentaneidade do modo


de sermos da vivência dialógica, ontológica, fenomenológico
existencial, estética, que permite o deslocamento, a cisão, a infusão da
potência de possibilidades, a infusão de devir, na instalação conflituosa.
Criando novas condições, e novas condições de possibilidade,
permeabilizando as suas aporias, e permitindo a passagem de seus
fluxos existenciais e o fluxo de suas atualizações – quer seja ao nível do
pessoal, do inter pessoal, do grupal, ou do intergrupal.

1.3. Facticidade, e fatalismo, do conflito;

81
Na exacerbação da experiência de instalação real de seu modo
ôntico, o conflito se instala em sua condição de fato; e não mais como
acontecer; o conflito se instala em sua condição de acontecido, em sua
facticidade.
O efetivamente existencial, o efetivamente ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico, estético, é, inteiramente,
acontecer.
Porque é inteiramente ação, atualização, como desdobramento
das possibilidades, de que é propriamente impregnado.
Ou seja, é o antípoda do fato, do factual, do acontecido.
O não existencial, o modo ôntico de sermos é -- enquanto fato,
enquanto realidade, enquanto coisidade -- possibilidade atualizada,
exaurida, realizada, coisificada, acontecida, feita, fato.
De forma que, o modo existencial, ontológico, de sermos é
acontecer; enquanto que o modo ôntico de sermos é acontecido, é
fato.
A realidade do conflito, a sua instalação -- em sua aporia – o seu
enrijecimento, é instalação e realidade ônticas. À medida que se
desenvolve, e se fataliza, o conflito é cada vez mais da ordem da
realidade, da ordem do fato, do factual. De modo que este seu
fortalecimento é cada vez mais factual, cada vez mais fatal.
E, cada vez mais, a exclusão da oportunidade da experiência e
experimentação, pelas partes, do conflito em sua modalidade
alternativa -- ou seja, a experiência e experimentação do conflito no
seu modo ontológico, fenomenológico existencial e dialógico, no seu
modo estético – a exclusão desta oportunidade, potencializa a paralisia
do conflito em sua realidade, instalação e aporia.
De um modo tal que permite a constituição, e potencializa a
constituição, de uma dogmática -- segundo Buber, a dogmática do
decurso das coisas –, segundo a qual só esta modalidade da realidade,
da instalação, da fatalidade e do fatalismo do conflito é factível.
O conflito, que é factual, neste seu momento, é constituído, e
passa a sê-lo cada vez mais, como fatalidade, como fatalismo.
Buber2 esclarece a ontologia da fatalidade, e do dogma da
fatalidade, o dogma do decurso das coisas, como predomínio da
realidade, como predomínio excludente do modo eu-isso de sermos,
não dialógico, como predomínio do decurso das coisas.
Muito própriamente, Buber adverte, que, a única coisa que pode
vir a ser fatal ao homem é crer na fatalidade...

2
BUBER, M. EU E TU

82
Porque -- esclarece ele --, basta a momentaneidade da vivência
da imersão, sempre disponível, no modo alternativo de sermos, em
nosso modo ontológico de sermos -- dialógico, fenomenológico
existencial, estético, eu-tu --, para que a rigidez do factual, a rigidez do
fatal; para que a rigidez da fatalidade, para que o dogma do decurso -
- que a fatalidade potencializa, e que à fatalidade potencializa --
possam dissolver-se no movimento da ação, no movimento atualizativo
da potência de suas possibilidades.
A elaboração da vivência do modo ontológico de sermos, como
modo de sermos da vivência do desdobramento de possibilidades,
dissolve, assim, a realidade, a instalação ôntica, o caráter factual, a
fatalidade, o fatalismo do conflito.
Diante do conflito instalado, em sua realidade ôntica, factual,
resta-nos, assim, a alternativa: sucumbir progressivamente à afligência
da factualidade, da fatalidade do conflito; ou permitir e promover a
experiência e a experimentação de sua vivência dialógica; a
experiência e experimentação de sua ontológica, a experiência e a
experimentação da interpretação de sua hermenêutica, a vivência da
conflituação no modo fenomenológico existencial, estético e dialógico
de sua vivência.
É no privilegiamento desta experiência e experimentação que se
centra a concepção e a metodológica do Grupo Vivencial. A
concepção e a metodológica da Abordagem Fenomenológico
Existencial de psicologia e psicoterapia; da Gestal’terapia, e da
Abordagem Rogeriana.

2.
A mediação e a facilitação da superação, e da resolução,
como experiência estética do conflito -- à ventura dos
devires de suas possibilidades. O Grupo Vivenciativo.

O Grupo Vivencial constituído com a equipe de facilitação, ou


com o facilitador, e as partes conflitantes é a oportunidade psicossocial
de tempo e espaço, vivenciais, que a concepção e a metodologia das
psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais –
Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana – oferecem como metodológica
para a mediação e para a facilitação da resolução de conflitos.
Trata-se de promover, de propor e de propiciar às partes em
conflito o tempo e o espaço, a disposição e a disponibilidade, para o
natural processamento imediato da experiência e da experimentação
na vivência conflitiva. Ou seja, a experiência do conflito em sua forma
vivencial, estética, fenomenológico existencial dialógica.

83
O Grupo Vivencial naturalmente demanda as suas condições, ou
seja, tempo e espaço, disposição e disponibilidade para a sua
experiência e experimentação.

2.1 A Experiência estética, experiência ontológica,


fenomenológico existencial, dialógica, do conflito;
Como vimos, a experiência do conflito, como todo o existencial,
oscila entre as as formas ônticas e ontológicas de sua experienciação.
Ou seja, a experiência do conflito oscila entre o modo de ser eu-isso, e o
modo eu-tu de sua experienciação; entre o modo de sermos em que
ele, o conflito, é acontecido, e o modo de sermos, estésico, estético,
em que ele é ação, atualização, acontecer: o modo fenomenológico
existencial de sermos: experiência e experimentação imediatas da
estesia, da sensibilidade, da vivência, do corpo e dos sentidos.
Em sua forma ôntica, eu isso -- a dimensão do acontecido --, a
experiência do conflito, privada do influxo de possibilidades e de
possibilitações, privada de ação, de atualização – o que quer dizer,
privada de superação e de resolução --, se instala; interrompendo os
seus fluxos, realizando-se; coisificando-se, cada vez mais, e constituindo-
se, como tal, enquanto acontecido; enquanto factualidade.
Nessa dimensão, meramente, cada vez mais cristalizada, cada
vez mais aflitiva, conflitativa, as potências do conflito se investem
meramente na sua aflição.
É interessante e importante observar que, para os sectários das
partes em conflito, para os que própria e especificamente ganham
com o próprio conflito, esta é a alternativa de predileção. Ou seja,
manter a experiência do conflito paralisada na forma ôntica de sua
experienciação, na experiência da forma de sua instalação, de sua
realidade realizada, de sua factualidade, de sua fatalidade.
Os que se dispõem a elaborar a superação e a resolução do
conflito carecem sempre de lidar com os sectários, que investem na
cronificação e na perpetuação do conflito.
A qualquer momento, não obstante, pode-se criar a
oportunidade para que o conflito seja vivenciado alternativamente
pelas partes conflitantes ao modo ontológico de sermos, no modo eu-tu
de sua experiência e experimentação, ao modo dialógico de sermos.
E -- a partir da interpretação (fenomenológico existencial,
compreensiva, dialógica), a partir da dramática ampla e livre, da
realidade, da factualidade, e da instalação, do conflito, pelas próprias
partes conflitantes em interação, a partir da interpretação de sua
experiência do conflito como acontecido -- o conflito pode, então, ser

84
vivenciado e interpretado -- fenomenológico existencialmente,
esteticamente, hermeneuticamente, experimentalmente,
dialogicamente, dramaticamente--, na imediaticidade de sua forma
própria e específica de acontecer.
Como vivência, pessoal/coletiva, que disponibiliza, enquanto
experiência, e experimentação, fenomenológico existenciais, o campo
vivencial das possibilidades, e das possibilitações. Campo estético,
portanto, dramático, fenomenológico existencial, e dialógico --
vivência, e vivência do desdobramento de suas possibilidades. Vivência
que, própria e eminentemente, se dá como ação, como atualização.
De Possibilidades que, simultaneamente, são possibilidades próprias e
específicas do grupo, no processamento conjunto de sua experiência
coletiva, da experiência coletiva de seus subgrupos, e de seus
participantes individuais.
Numa experiência e experimentação, assim, que são, em
importantes de suas dimensões -- na integridade e integração do grupo,
na integridade participativa do processamento vivencial --, experiência
e experimentação, não simplesmente das partes segregadas, mas
experiência e exprimentação, interpretação: dramática, do grupo e da
vivência de seu processamento experimental, em seu con-junto.
Esta experiência e experimentação fenomenológico existenciais e
dialógicas do conflito são, assim, a experiência e a experimentação do
conflito no privilegiamento do modo de sermos de sua vivência estética.
Ou seja, no modo de sermos da vivência de sua estesia. Como
abertura à experiência pré-reflexiva, pré-comportamental, pré-
pragmática, fenomenológico existencial dialógica, na qual prevalece a
experiência vivencial, a experiência de corpo, de sentidos; a
experiência estésica, estética.
Própria e especificamente, a Estética é uma Ética (O termo, aliás,
já o diz).
A ética que subjaz à concepção e à metodológica da psicologia
e psicoterapia fenomenológico existencial; a ética que subjaz à
concepção e metodológica da Gestal’terapia e da Abordagem
Rogeriana enquanto tais.
De modo que, quando propomos o grupo vivencial como
metodológica de mediação e de facilitação da resolução de conflitos,
propomos, às partes conflitantes, um deslocamento do modo da
experiência do conflito meramente na forma ôntica de sua realidade e
instalação, um deslocamento da experiência do conflito meramente na
forma ôntica de sua facticidade. Propomos a afirmação do conflito, e a
vivência do conflito em sua forma estética, vivencial, e dialógica, que
permite a diluição de sua realidade em suas possibilidades, a sua
superação, assim, e a movimentação de suas resoluções.

85
O que caracteriza a experiência estética, fenomenológico
existencial, compreensiva, dramática, dialógica, é que, como diz Buber,
toda ela é ação, é atualização; ou seja, toda ela é impregnada de
possibilidades, e do desdobramento de possibilidades.
De modo que a vivência estética do conflito permite relativizar e
sair da paralisia afligente da instalação ôntica do conflito, do conflito
como realidade, como isso, como acontecido. Propiciando e
potencializando o modo de sermos no qual vivenciamos a infusão de
possibilidades e de possibilitação, e dos seus desdobramentos, em
ação, atualização, interpretação. Infundindo, assim, a vivência do
conflito de potência, de possibilidades, de atualização, de movimento.

2.2 Dialógica, e a dialógica do conflito;


Na alternação da experienciação e experimentação do conflito
nos momentos da vivência de seu modo ontológico -- fenomenológico
existencial, estético --, a vivência do conflito pontualmente se desdobra
no âmbito do modo dialógico de sermos, no âmbito da vivência, da
experiência e da experimentação, dialógicas.
Porque, própria e especificamente, o vivencial -- o
fenomenológico existencial, o estético, o hermenêutico, o ontológico --,
é o dialógico.
O vivencial é dialógico, o dialógico é vivencial.
Individual, e coletivamente, o dialógico é o modo eu-tu de
sermos, o modo de sermos compreensivo, no qual vivenciamos a ação,
o desdobramento compreensivo de possibilidades.
O que caracteriza a dialogicidade, o que caracteriza a
qualidade dialógica deste modo de sermos, é que, de várias formas, e
em níveis variados, este é um modo de sermos de vivência imediata e
intuitiva. Vivência imediata e intuitiva da movimentação de implicação
inter-ativa entre um eu e a alteridade radical de um tu. Vivência esta
que, como tal, é pré-reflexiva, pré-comportamental, pré-pragmática.
É o modo de sermos no qual o processo compreensivo de
produção de sentido – logos –, que já se dá como ação, atualização, é
– como diz o prefixo dia -- um processo compartilhado. Processo
compartilhado, como vivenciação, como movimentação inter-ativa –
de produção de sentido, e de atualização de possibilidades, de ação --
entre eu e tu.
É, portanto, dia-logos, enquanto vivência de movimentação inter
ativa entre eu- tu. Eu-e-tu que eminentemente se dão como alteridades
radicais; e, enquanto alteridades radicais, de modo intrínsecamente
implicativo; como possibilidades em desdobramento.

86
Processamento momentâneo, então, no qual o compartilhar
interativo da produção de sentido, de ação, se constitui como campo
compreensivo e compartilhado de desdobramento de possibilidades, e
de ação.
Assim, no modo dialógico de sermos -- fenomenológico
existencial, vivencial, ontológico, e estético --, o movimento eu-tu/tu-eu,
é, própria e especificamente, um movimento de imediata implicação
inter-ativa, e poiética.
Movimentação na qual há um compartilhamento do processo, in-
tensional, eminentemente compreensivo, de produção de sentido, e de
ação. Um processo inter-ativo, eminentemente implicativo, que se dá
como vivência de um campo compreensivo compartilhado do
desdobramento de possíveis, do desdobramento de potências, do
desdobramento de possibilidades, de vontades de possibilidades; no
que entendemos como ação -- um campo fenomenológico e
existencial, dialógico, estético, e de vivência ontológica.
O objetivo da concepção e da metodologia da psicologia e
psicoterapia fenomenológico existencial – Gestal’terapia, Abordagem
Rogeriana – o seu objetivo na vivência da mediação e da facilitação
da resolução de conflitos, seja na experiência grupal, ou na experiência
da relação diádica, é o de criar a oportunidade, o tempo e o espaço,
que se abrem e privilegiam a temporalidade própria da vivência
dialógica.
Quando propomos o grupo vivencial como recurso para a
mediação e para a facilitação da resolução de conflitos, propomos
exatamente porque no grupo vivencial nos abrimos e privilegiamos a
vivência do modo dialógico de sermos, a vivência da experiência e da
experimentação dialógicas.
No âmbito da experiência dialógica, os participantes, e os seus
sub-grupos, podem efetivamente inter-agir.
Não, simplesmente, na experienciação sectária, e impotente, da
teorética do conflito: com a mera definição e experiência conceitual,
abstrata e estática de suas instâncias, por cada uma das partes. Na
impotência aflitiva e angustiante da ausência da vivência de
possibilidades e de possibilitações.
Nem, simplesmente, no mecanicismo, igualmente impotente, de
nosso modo comportamental. Nem na mera esterilidade das
pragmáticas.
Os participantes e os seus subgrupos podem inter-agir,
efetivamente, no processo poiético de produção de possibilidades e de
sentidos, a partir da dialógica, (eu-tu) da inter-ação de suas alteridades.
E podem interagir como sistema integrado, o processo grupal, de
produção de possibilidades e de atualização.

87
De modo que o conflito, vivenciado pelas partes conflitantes na
momentaneidade da experiência do modo dialógico de sermos, tende
a ter a sua realidade, a estagnação de sua instalação, a sua
factualidade, a sua fatalidade e fatalismo, transformados, diluídos -- na
vivência da emergência compartilhada, dialógica, de suas
possibilidades e possibilitações.
O campo dialógico constitui-se como, propicia e promove, o
compartilhamento entre as partes deste campo da emergência do
desdobramento de possibilidades.
A vivência do conflito pode ser, então, atualizada.
O staus quo do conflito pode ser diluído em possibilidades, pode
ser superado, e o conflito deslocado, movimentado, eventualmente
resolvido – como elaboração da dialógica da integração tensional das
partes conflitantes, no âmbito integrativo do processamento da
experiência e da experimentação da vivência grupal. A vivência do
processo poiético de emergência de suas possibilidades e
possibilitações, a vivência, pelas partes conflitantes, da experiência da
diluição da realidade da instalação factual do conflito -- em suas
possibilidades -- a vivência de suas superações, e resoluções, pode ser
atualizadas.
Na mediação, e na facilitação da resolução de conflitos, a
vivência dialógica pelas partes conflitantes -- no âmbito da experiência
de processamento do grupo vivencial --, permite que as partes
conflitantes momentaneamente constituam -- alternativamente à
normalidade de sua experiência conflitiva -- uma dimensão de vivência
compartilhada de experiência e de experimentação. Uma experiência
e experimentação de vivência do processo grupal como uma
totalidade integrativa, compartilhada e solidária, ainda que tensional.
Uma totalidade e totalização dialógicas, inter-ativas, atualizativas.
Neste sentido, o que caracteriza a concepção e a metodológica
das psicologias e psicotrerapias fenomenológico existenciais dialógicas -
- Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana – é, exatamente, o
propiciamento metodológico desta experiência do campo dialógico,
como vivência grupal. Pelo privilegiamento em sua prática da
experiência ontológica, da experiência estética -- fenomenológico
existencial dialógica. Seja no âmbito do grupo vivencial, seja no âmbito
da forma de relação diádica em que este pode se configurar.

2.3. Compreensão.
O modo de sermos da experiência estética, da dialógica, da
aporética, da interpretação, hermenêutica, fenomenológico
existencial;

88
A compreensão é característica, e, própria e eminentemente,
intríseca, ao modo ontológico de sermos.
A compreensão é experiência estética, a experiência estética é
compreensiva. A experiência estética é vivência imediata de corpo e
de sentidos, e esta vivência é, própria e eminentemente, compreensiva.
A compreensão é intrínseca, portanto, ao modo fenomenológico
existencial e dialógico – eu-tu -- de sermos; é intrínseca à experiência e
à experimentação fenomenológico existenciais, é intrínseca ao
empirismo fenomenológico existencial, é intrínseca à interpretação
fenomenológico existencial; e, portanto, é intrínseca à hermenêutica
fenomenológico existencial: hermenêutica própria e especificamente
compreensiva. A compreensão é intrínseca ao modo ontológico de
sermos, à vivência ontológica.
O que caracteriza o aspecto compreensivo do modo ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico de sermos é que ele é,
especificamente, vivência empírica. Vivência, que -- como todo
vivencial, fenomenológico existencial, e dialógico -- é vivência
imediata, pré-reflexiva, pré-conceitual, pré-teórica, pré-
comportamental, pré-pragmática, pré-realista, pré-realidade.
Vivência que é anterior à representação; uma vez que, na
verdade, a representação é re(a)presentação. E, intrinsecamente, a
compreensão é, própria e especificamente, a-present-ação. Dá-se no
modo pres-ente de sermos – o modo pré-coisa de sermos.
E o que é que se dá, o que é que, na vivência compreensiva,
acontece como apresentação ?
Pela abertura para o Ser, que é própria ao modo ontológico de
sermos, inexoravelmente abrimos o campo do possível, o campo da
potência, o campo das possibilidades, o campo da ação, da
atualização – que são, segundo Heidegger, o campo do
desdobramento compreensivo das possibilidades, da poiese. São, assim,
as possibilidades em seu desdobramento que se apresentam, que se
presntificam, como compreensão.
O desdobramento das possibilidades as constitui como conhecer
– as possibilidades se apresentam com conhecer, como sentido.
De modo que, segundo a sua potência, é a vivência das
possibilidade e do seu desdobramento -- na ação, na atualização, na
interpretação compreensiva fenomenológico existencial – que se
constitui como conhecer.
O conhecer dá-se, assim, como apreensão – apreensão que é a
constituição do sentido do ato de conhecer. Conhecer compreensivo,
uma vez que o sentido das possibilidades em seus desdobramentos se

89
constitui como apreensão, se constitui com(a)preensão – se constitui
como cum-preensão... compreensão.
A vivência de possibilidade e do seu desdobramento, a ação, é,
assim, intrínseca ao, e constituinte do modo compreensivo de sermos;
como, de resto, é intrínseca, e constituinte de toda a experiência e
experimentação do modo fenomenológico existencial, dialógico; modo
ontológico, e estético, de sermos.
A vivência, o conhecer, compreensivos, é eminentemente
conhecimento implicativo, é implicação.
Ou seja, ele se dá como logos, dia-logos, como dialógica. Como
vivência eu-tu. Como vivência, portanto, que não é da ordem do
relacionamento sujeito-objeto.
Afirmar isso é uma redundância, uma vez que tudo que a relação
eu-tu não é é relação sujeito-objeto.
De forma que o conhecer que a possibilidade constitui em sua
vivência, e na vivência de seu desdobramento, é conhecimento, é
cognição; mas, em particular, é o conhecimento e a cognição como
apreensão – conhecimento cum(a)preensão – o conhecimento
compreensivo momentâneo próprio à vivência da dialógica da da
relação eu-tu.
Na qual se dá, de modo inextrincável, a movimentação da
implicação com a alteridadade radical de um tu -- que se dá, na
vivência dialógica, como possibilidade, e possibilidade em
desdobramento, na ação, no acontecer, da inter ação.
Não é conhecimento teórico, ex-plicativo, mas conhecimento
vivencial, conhecimento artístico, conhecimento dionisíaco, implicativo,
compreensivo. O conhecer de uma consciência embriagada, dissoluta
em sua embriaguês, e que evolui em sua potência criativa, não para a
abstração, e para a clareza abstrativa do conceitual, mas para perder-
se na embriaguês do confusional de sua auto superação.
E ste e-vento, esta e-ventualidade inter ativa, à-ventura -- que é,
assim, da ordem do presente e da presença, da atuação e da
atualidade -- escoa-se para a coisificação, para a entificação, para a
ontificação, e para a inação. Perdendo, inevitavelmente, neste seu
escoamento -- decaimento, para Heidegger --, o caráter de sua
dialógica, o seu caráter imediato de implicação inter ativa com a
alteridade radical de um tu. Deixa, progressivamente, de ser da ordem
da implicação para, progressivamente, se constituir na ordem da ex-
plicação.
Nesta forma ex-plicativa, a experiência pode se constituir com
teorética, como comportamento, no âmbito da causalidade e da
dicotomia sujeito-objeto; no âmbito da subjetividade, no âmbito da

90
objetividade, no âmbito de inter subjetividade; no âmbito da utilidade,
no âmbito da prática, da pragmática, do fato – feito --, e da realidade.
Todo este modo ôntico de sermos -- eu-isso, factual, real -- não é
caracterizado pela compreensão, não é da ordem da compreensão,
nem é da ordem da implicação -- implicação que intrinsecamente se
constitui no âmbito da compreensão.
O modo ôntico de sermos é, própria e especificamente, da
ordem da ex-plicação... O modo de sermos no qual estamos ‘fora’ do
desdobramento inter ativo da implicação com a alteridade radical de
um tu. O modo de sermos no qual estamos fora da implicação com o
possível e com a possibilidade, em seus desdobramentos e constituição
compreensivos.

2.4. Sobre o caráter implicativo da experiência estética, da


dialógica, da aporética, da compreensão, e da interpretação
fenomenológico existencial, da hermenêutica compreensiva.

No modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial e


dialógico, não vigora assim a dicotomia sujeito-objeto. Não vigora a
objetividade, nem a subjetividade; muito menos, evidentemente, a
intersubjetividade.
No modo ontológico de sermos, todas elas se resolvem na
vivência da dialogicidade, eu-tu, da experiência da ação, da
experiência do ator. Que é intencional, e intensional.
O modo ontológico de sermos não comporta nem a objetividade,
nem a subjetividade. Mas é, própria e eminentemente, da ordem da
relação eu-tu, da ordem da relação dialógica. É o modo de sermos da
vivência fenomenológico existencial, dialógica. Que se constitui como
movimentação da implicação necessária, dos sentidos da relação de
um eu com a alteridade radical de um tu.
Assim, na vivência ontológica, fenomenológico existencial
dialógica – ao invés da relação sujeito-objeto --, temos que,
momentânea e pontualmente, o eu está implicado na vinculação com
um tu, que se dá como possibilidade em afirmação e desdobramento.
Toda a vinculação se desdobra, assim, como inter ação. Como
inter ação entre alteridades que se dão como possibilidades, como
potências, como possíveis, que se desdobram, como ação, na inter
ação, eminentemente implicativa.
A inter ação, dialógica, eu-tu, é, eminentemente, assim, da
ordem da implicação,

91
A experiência estética, a dialógica, a hermenêutica
compreensiva – a interpretação, compreensiva – são aspectos da
experiência ontológica, fenomenológico existencial, dialógica. De
modo que são, todas elas, da ordem da inter ação, da ordem da
compreensão, e da ordem da implicação.
A implicação que é característica, portanto, da vivência, significa
a implicação, o movimento da vinculação necessária, pontual e
momentânea, inter ação, entre a alteridade de um eu, e a alteridade
de um tu. Que se dão como possibilidades em processo de atualização,
processo este que se desdobra como inter ação.
De modo que a vivência do conflito na forma ôntica de sua
instalação, na forma ôntica de sua realização, na forma ôntica da
coisificação de suas aporias, no seu caráter de ex-plicação, é
característicamente improdutiva. Porque nesta forma de sermos da
explicação, não vivenciamos o campo de possibilidades que é
característico do modo ontológico, e compreensivo, de sermos. Não
vivenciamos a implicação de momentos de vivência eu-tu possíveis e
potentes. Não vivenciamos a inter ação, a ação, a atualização, que
são característicos do modo estético de sermos, modo ontológico,
compreensivo, fenomenológico existencial e dialógico.

2.5 Aporética. Aporia e Aporética do Conflito;


Um dos elementos característicos mais marcados da existência –
e, por implicação, da concepção e da metodológica das psicologias e
psicoterapias fenomenológico existenciais – Gestal’terapia, Abordagem
Rogeriana – é a sua qualidade aporética.
Na verdade, esta ética, enquanto metodológica, vem já de
Aristóteles, e é mediada pela leitura e resgate que dele faz na
Modernidade a psicoloogia do ato, de Brentano.

Pode-se evitar a aflição da estagnação do momento da aporia,


evitando-se a sua vivência, a vivência da aporia. O que significa a
perda do caráter produtivo da aporia, e a cronificação da aporia, do
conflito, e de sua aflição. Além da fragilização da vida.
Para além, no limite, da aporia está a poiese, a potência, o
concurso e a concorrência do possível, das possibilidades; a ação, a
atualização.
Tudo depende da insistência, e da persistência, na vivência da
aporia, de seu inconveniente e aflição, nas suas intensidades próprias, e
nas formas próprias de seu modo fenomenológico existencial dialógico.

92
A vivência afirmativa da aporia permite a abertura da
experiência e experimentação da vivência do possível, das
possibilidades, e de sua atualização.
De modo que a apor-ética, o método aporético, é a disposição
para privilegiar primaria e afirmativamente a vivência fenomenológico
existencial dialógica da aporia, na intensidade e na intensificação
próprias de seu momento, momentum.
A vivência da concentração da intensidade da aporia
tipicamente conduz à superação de sua estagnação, ao
restabelecimento do fluxo do possível, à abertura do campo de novas
possibilidades.
A aporética se dispõe à afirmação da ação, à afirmação da
potência do possível, e de seus desdobramentos, na ação. Até que esta
ação encontre a sua limitação, a sua finitude, a sua aporia. Seja pelas
finitudes de suas potências. Seja pelo concurso e concorrência de
novas possibilidades. A insistência e a persistência na vivência da
finitude da aporia, com suas implicações próprias, permite a abertura e
emergência de novos campos de possibilidades, dando origem a novos
possíveis, e a novas aporias, a serem experienciadas e experimentadas.
A instalação do conflito é a instalação, e a estagnação, de sua
aporia: a instalação ôntica, factual, da aporia. Ou seja, a instalação da
aporia no modo em que ela não pode efetivamente ser vivenciada, e
resolvida, superada.
De modo que, quanto mais as partes conflitantes se recusem à
experiência da vivência ontológica, fenomenológico existencial
dialógica, da aporia de seu conflito, e dos fluxos de sua superação,
mais o conflito, em sua coisificação, tende a se acentuar enquanto tal,
a se cronificar, e a se instalar.
A apor-ética e o método aporético da concepção e da
metodológica das psicologias e psicoterapias fenomenológico
existenciais – Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana -- se propõem,
então, a reunir as partes conflitantes em um experiência vivencial –
grupal, ou inter individual -- que permite a vivência afirmativa
compartilhada da aporia conflitual, em suas intensidades
fenomenológico existenciais e dialógicas próprias. Possibilitando, assim a
restauração do fluxo da vivência em direção aos limites da aporia, aos
limites de sua superação, na produção criativa, pelo sistema e pelo
processo grupal, das possibilidades alternativas de sua superação, pelo
conjunto do grupo como um todo, conjunto que engloba as partes
conflitantes, na encarnação estética de sua elaboração
fenomenológico existencial dialógica.

93
2.6 Hermenêutica do conflito.
Para além de suas aporias, o conflito é prenhe de possibilidades.
Antes da abertura dos campos de possibilidades e de
interpretação de suas possibilidades, as próprias aporias são potências,
são possibilidades, a serem fenomenológico existencialmente
interpretadas. E só nesta forma fenomenológico existencial de sua
interpretação elas podem ser afirmadas, e esvaídas, superadas. O que
envolve o deslocamento da mera experienciação de sua instalação
ôntica, para a sua vivência estética, fenomenológico existencial
dialógica. Vivenciadas as aporias, novas possibilidades podem emergir,
e se oferecer ao processamento da interpretação, da heremêutica
fenomenológico existencial.
Estas possibilidades são, assim, detonadas nos limites de suas
aporias. São possibilidades a serem fenomenológico existencialmente,
estéticamente, interpretadas, na medida de sua urgência e
emergência, na medida de sua potência, presença e atualidade.
Dada a adequada ambiência, essas possibilidades podem ser
interpretadas pelos próprios agentes do conflito. Na medida em que
estes efetivamente puderem se constituir como tais – ou seja, como
agentes. Ou seja, na medida em que puderem dispor do espaço e do
tempo da experiência hermenêutica experimental em que se constitui a
vivência.
É esta interpretação, fenomenológico existencial dialógica, das
aporias do conflito, e das dinâmicas e fluxos de suas possibilidades, por
parte de seus próprios agentes, que pode se constituir como um fluxo
de atualização criativa do conflito, e que pode romper ou diluir, em
suas possibilidades, as barreiras da instalação de suas aporias, da
instalação de sua realidade; e conduzir o conflito para além de seu
status-quo, na sua superação pela vivência da emergência e
atualização.
A Hermenêutica é a arte da interpretação3.
No caso, interpretação compreensiva, fenomenológico
existencial, dialógica. Que é como se constitui o tempo característico
da vivência. A experiência da vivência fenomenológico existencial
dialógica é a experiência da vivência de possibilidades e do
desdobramento destas.
Esta vivência de possibilidades e do seu desdobramento –
processamento que é própria e eminentemente estético,
compreensivo, pré-reflexivo, fenomenológico existencial dialógico – é o
que entendemos como interpretação, e como hermenêutica,
compreensivas.

3
Palmer,

94
Assim, quando propomos a experiência do grupo vivencial para
as partes conflitantes, estamos oferecendo a oportunidade de uma
experiência de saída da realidade e da instalação, da factualidade e
da fatalidade, da aporia, do conflito, para uma experiência de diluição
na hermenêutica de suas possibilidades ativadas, e em desdobramento.
De modo que, em termos essenciais, a experiência grupal
fenomenológico existencial e dialógica é, própria e eminentemente, a
experiência da vivência, individual e coletiva, do desdobramento de
possibilidades -- no que entendemos como ação, como interpretação
fenomenológico existencial.
O que define e caracteriza o espaço e o tempo, o processo, do
grupo vivencial fenomenológico existencial dialógico como espaço,
tempo e processo eminente e especificamente hermenêuticos. O
espaço e o tempo, própria e especificamente, de uma hermenêutica
fenomenológico existencial dialógica. Compreensiva. Não explicativa.
Implicativa.
Aplicado assim à mediação e à facilitação da resolução de
conflitos, o grupo vivencial fenomenológico existencial dialógico
permite que as partes em conflito interpretem fenomenológico
existencial e dialogicamente o conflito. O que efetivamente os constitui
como agentes do conflito.
Que podem, numa vivência compreensiva eminentemente
hermenêutica, interpretar as suas aporias; ao tempo em que podem
interpretar, compreensivamente, as suas possibilidades emergentes.

2.7. O Grupo Vivencial como recurso experimental ontológico,


estético, fenomenológico existencial dialógico, e
hermenêutico, para a facilitação da resolução de conflitos.
A insistência e a persistência na vivência, no modo vivencial de
sermos -- que é intrínseca vivência compreensivativa de possibilidades,
e do desdobramento dessas possibilidades-- é a vivência estésica. É
estética, fenomenológico existencial dialógica. É sensibilidade -- de
corpo, de vivido e de sentidos -- e afetividade imediatas.
O termo estésico deriva do nome de um vento que sopra em
determinada fase do ano, na Grécia. E que impulsiona as velas dos
navios, que deixam assim os portos.
Os Gregos identificaram a força propulsiva do estésico à força
propulsiva inerente e intrínseca ao modo fenomenológico existencial de
sermos, modo, ontológico, modo vivencial de sermos, dialógico. Que é
todo ele impulsão: a impulsão que é a da ação --, pela força propulsiva

95
da vivência do possível, da vivência da possibilidade, da potência; que
se desdobra, e se desdobra como ação, atualização.
De forma que este modo fenomenológico existencial e dialógico
de sermos – que é estésico, que constitui a vivência estética, que é
estético -- é todo ele ação, atualização, na temporalização e
espaciação de sua duração.
Estésico, e estético é, pois, o modo sensível e afetivo de sermos, o
modo fenomenológico existencial dialógico, modo vivencial de sermos:
e, integralmente, é intrinsecamente o modo de sermos da ação, da
atualização.
Em sua potência propulsiva, de vivência momentânea e de
desdobramento de possibilidades, este modo ontológico de sermos
potencializa-se como devir, como vir a ser, como ação, atualização --
individual e coletivamente. E como superação da aporia, a porização,
o acesso, mais uma vez, à potência, à possibilidade, vontade de
possibilidade.
O Grupo Vivencial, assim como a sessão inter individual, vivencial,
fenomenológico existenciais dialógicos, primam, conceitual, e
metodologicamente, pela constituição, e priorização, da experiência e
experimentalidade da vivência estética – fenomenológico existencial
dialógica como vivência grupal. Pela aporética estética, pela vivência
estética de suas aporias, e do vir a ser das potências de suas
superações.
Conceitual, e metodologicamente, o Grupo Vivencial, e a sessão
diádica – uma modalidade de grupo vivencial --, abrem mão de
posturas científicas, de posturas teoréticas, de posturas explicativas, de
posturas moralistas, de posturas técnicas, de posturas pragmáticas, de
posturas comportamentais, de posturas realistas... Em privilégio de uma
estética. Em privilégio da experiência e experimentação vivenciais,
fenomenológico existenciais, dialógicas como experiência grupal.
Simplesmente porque os modos de sermos daquelas posturas não
são da ordem do modo de sermos próprio e específico da
compreensão e da ação (Modo de sermos cum(a)preensão: modo de
sermos com apreensão da possibilidade e do seu desdobramento).
Modo de sermos da vivência da experiência da possibilidade, da
potência, do possível, da vontade de possibilidade, e do seu
desdobramento, na experimentação e experiência da ação,
atualização. Modo de sermos da superação, da criação, da alegria.
Conceitual e metodologicamente, assim, o Grupo Vivencial,
alternativamente, privilegia, abre-se, e cria condições, para a vivência
estética fenomenológico existencial, dialógica -- o modo próprio de
sermos no qual vivenciamos possibilidade, potência, devir, e o seu
natural desdobramento em ação.

96
De modo que são um espaço e tempo privilegiados para a
vivência do destravamento do conflito, enclausurado em sua
comportamentalidade e em sua teorética explicativa; para o
destravamento de sua aporia, de sua instalação real.
Pela imersão em conjunto das partes conflitantes numa
experiência coletiva grupal. Que, pelo seu caráter fenomenológico
existencial estético, aporético, se constitui, própria e especificamente,
como uma vivência compartilhada de secretação compartilhada de
possibilidades compartilhadas; e de secretação da ação, da
atualização, que se constitui como devir da propulsão do possível, e da
atualização, da ação; para além da instalação das aporias do conflito;
para além de sua estagnação, e estanquização, dissolvendo a
instalação realizada destas aporias nas possibilidades que podem
emergir da vivência compartilhada da estética do conflito.
Assim, a vivência grupal fenomenológico existencial dialógica,
gestáltica, rogeriana, é uma ambiência original e privilegiada para a
mediação e para a facilitação da resolução de conflitos.
Os grupos assim constituídos podem variar. Desde pequenos
grupos diádicos – um facilitador, e um cliente --, passando por grupos
com três ou mais participantes, com um facilitador; e grupos maiores,
chegando mesmo aos grandes grupos. Para cada um deles se
providenciam as condições adequadas para a instauração pontual e
momentânea da temporalidade e da espacialização de sua vivência
estética, fenomenológico existencial, dialógica.
Desta forma, a concepção e a metodológica da psicologia e da
psicoterapia fenomenológico existencial dialógica – Gestal’terapia,
Abordagem Rogeriana – privilegiam o modo de sermos que
potencializa naturalmente o modo ontológico de sermos de superação
da aporia do conflito, e de sua instalação realizada. Privilegiam a
elaboração, a prevalência, e o desdobramento, da vivência
fenomenológico existencial, dialógica –, seja pessoalmente, inter
individualmente, grupal, ou inter grupalmente.
Recusando-se, assim, ao privilegiamento -- na abordagem da
pessoa, ou na abordagem do grupo, ou das relações inter grupais -- de
uma abordagem teorética, ou científica, explicativa e moralista;
recusando-se a uma abordagem técnica, recusando-se a uma
abordagem comportamental, ou a uma abordagem pragmática;
recusando-se a uma abordagem realista; a concepção e método da
psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial – Gestal’terapia,
Abordagem Rogeriana – privilegiam, na vivência pessoal, na vivência
inter pessoal, na vivência grupal, o modo ontotológico, o modo
dialógico, o modo fenomenológico existencial de sermos.
O modo ontológico, modo dialógico, de sermos, é, própria e
especificamente, como vimos, o modo estético de sermos. O modo de
sermos da experiência estética. Que é o modo de sermos da
97
experiência fenomenológico existencial, poiética: a experiência de
vivência imediata de corpo e de sentidos, modo de sermos da
sensibilidade e da afetividade, que é da ordem da experiência pré-
reflexiva, e pré-conceitual, de vivência de possibilidades, e de vivência
do desdobramento de possibilidades. No que entendemos como ação,
atualização: poiese, poiética, estética.
De modo que, quando propomos a abordagem fenomenológico
existencial dialógica da Gestal’terapia e da Abordagem Rogeriana,
para a mediação, e para a facilitação da resolução de conflitos,
propomos – à pessoa, ao grupo, aos inter grupos, -- um relativização da
experiência da instalação ôntica -- não estética, não poiética, e não
dialógica -- do conflito – ,uma relativização da experiência explicativa,
do conflito, da experiência teorética, moralista ou comportamental do
conflito. Propomos uma relativização da factualidade, e da fatalidade,
do fatalismo, do conflito. E a imersão das partes conflitantes na
experiência e experimentação dialógicas.
Trata-se de uma permissão, enquanto oportunidade de vivência,
à momentaneidade da experiência e da experimentação de uma
estética do conflito.
Ou seja: propomos a permissão, como processo pessoal e grupal,
à temporalidade da elaboração, pessoal, grupal, de uma situação e do
processamento de uma vivência coletiva e individual, que privilegia, e
se pauta, pela vivência do modo ontológico de sermos. Modo de
sermos fenomenológico existencial, dialógico, poiético. Que, em sua
vivência, é, eminente e ontologicamente, modo de sermos de vivência
de possibilidade, e de vivência do desdobramento de possibilidades.
Propomos o processo hermenêutico de inter-pret-ação
fenomenológico existencial, dialógica, de inter-ação interpretativa,
pessoal e/ou grupal: ação, atualizção. Que -- à força da potência de
sua ventura estésica, do seu devir, da vida à ventura, do possível, -- é
sempre superação.
Superação que pode, efetivamente, ser gestada, e efetivamente
criada e vivenciada, pela(s) pessoas e pelo(s) grupo(s), pelas partes
conflitantes. E que é superação -- movimentação pela potência da
possibilitação, da atualização -- das aporias do conflito. Superação
compartilhada do próprio conflito, em suas possibilidades,
possibilitações, e devires. Deslocamento e diluição, em suas
possibilidadese possibilitações, da realidade da instalação do conflito
nas sua formas ônticas e factuais.

2.8. O Grupo e o tempo;

98
No essencial, a vivência grupal é a momentaneidade de um
tempo. Da temporalidade ontológica, compartilhada, em sua inter
atividade implicativa, como experiência grupal.
À medida que, como experiência e experimentação grupais,
sobre o funcionamento ôntico explicativo – teorético, ou
comportamental, pragmático – diferencia-se e prevalece o modo
compreensivo implicativo de vivência, fenomenológico existencial,
dialógica, estética, e hermenêutica, instala-se como vivência a
duração da temporalidade ontológica.
Que se configura como temporalidade das possibilidades, em
seus intrínsecos desdobramentos: em suas intrínsecas atualizações. O
tempo faz-se ao largo de sua condição cronométrica, e passa a ter a
própria ação, a própria atualização, a própria temporalidade da
vivência do desdobramento das possibilidades, como indício, como
referência, e como critério.
O tempo ontológico é um tempo das intensidades, um tempo
pautado pelas intensidades. Diferente do tempo cronométrico, que que
é monótono e se pauta pelos limites e intervalos calculativamente
definidos. O tempo ontológico fenomenológico existencial, dialógico,
hermenêutico -- temporalidade estética -- violenta, diminui, sobrepassa,
e dilui, os intervalos e os limites calculativos do tempo cronométrico.
A temporalidade ontológica é pulsativa, animado pela
atualização das possibilidades. É o presente, a atualidade e a presença.
E se esgota em sua atualização criativa, cedendo, mais um vez, lugar
ao eterno retorno do tempo cronométrico.
Assim, o tempo ontológico inexoravelmente destina-se no tempo
cronométrico. Sua duração, não obstante, é antinômica e incompatível
com os padrões calculativos e ônticos deste.
De modo que, constituir e elaborar a experiência e a
experimentação do Grupo Vivencial é constituir e elaborar, atualizar, a
vivência da momentaneidade de sua temporalidade própria. Que tem,
dentro de limites razoáveis, critérios próprios de explicitação e de
conclusão.
Ou seja, é preciso ter tempo, ôntico, disponível. A temporalidade
ontológica, fenomenológico existencial e dialógica, estética, e
hermenêutica, ainda que possa se enquadrar em limites razoáveis, e
careça desses limites, tem um tempo próprio de explicitação e de
conclusão. Não pode, assim, ser simplesmente constrangida,
inviabilizada, ou impregnada pelas demandas do tempo ôntico.
O grupo vivencial requer, assim, tempo disponível para a
constituição e experimentação de sua temporalidade própria.

99
3.
O conflito, suas formas improdutivas, e as formas improdutivas
da mediação;

Como tudo que é vivencia humana, o conflito tem o seu


momento agudo, em que as possibilidades concorrem e competem
como perspectivas originais, em atualização, na interação entre as
partes conflitantes. Neste momento, o conflito é vivido
ontológicamente, e pode afirmar-se enquanto tal, e vivencialmente
escoar para sua natural superação e resolução.
Numa outra alternativa o conflito pode não se resolver em sua
agudeza, e escoar para uma forma ôntica de sua experiência, na qual
as instâncias e aporias do conflito se instalam factualmente, realizam-se,
e cronificam-se.
Nesta forma, o conflito é experienciado em sua inércia, na
paralisia inerte de suas instâncias e aporias, na paralisia de suas
angústias, e afligências.
Fora da poiese, e da ação, da atualização, fora da vivência do
concurso e da concorrência de novas possibilidades, a experienciação
do conflito sai da perspectiva compreensiva, e de sua intrínseca
implicatividade, podendo se instalar em suas modalidades ex-
plicativas, moralistas, teoréticas, científicas, técnicas, comportamentais,
pragmáticas ou realistas.
Estas perspectivas explicativas apartam-se das perspectivas éticas
fenomenológico existenciais empíricas e experimentais – poi-éticas, est-
éticas –, na proporção direta em que se instalam. Buscam abranger o
conflito reflexiva e conceitualmente, na ótica da busca, ou da
pressuposição, de verdades não compreensivas e não implicativas.
Alheadas da vivência da efetiva condição dos agentes do conflito – os
quais, apenas, podem engendrar, pela sua ação, pelo engendramento
e atualização das possibilidades do conflito, as verdades a ele
pertinentes.
Assim, o predomínio -- que exclui as possibilidades da vivência
ontológica, estética, compreensiva, e dialógica –, o predomínio da
experienciação moralista -- que se esmera na pressuposição do
verdadeiro, ao invés do empenho hermenêutico em sua criação --, nas
suas formas teoréticas, explicativa e científica, constitui uma experiência
improdutiva do conflito, que, cada vez mais, se atola na experiência
ôntica de sua instalação.
Da mesma forma ocorre com a limitação do conflito a sua
dimensão comportamental. Dimensão esta desprovida das
possibilidades da poiética de sua ação, no âmbito de sua vivência
ontológica.
100
O modo comportamental em nossas vidas comporta a atividade
padronizada e repetitiva, alheando-se do modo ontológico,
fenomenológico existencial, dialógico. Modo no qual podemos
vivenciar e atualizar possibilidades, no qual efetivamente agimos. Tratar
o conflito ao nível meramente de sua comportamentalidade é garantir
a sua repetição, e reforçar os elementos de sua facticidade, de sua
instalação ôntica. O que, no limite, neste modo, pode ser resolvido,
apenas, pela violência. Mais ou menos explícita.
Um engano, ainda, é uma abordagem pragmática do conflito.
Enganadoramente, uma pragmática do conflito só pode ser estéril, e
levar a um reforçamento de sua instalação, da instalação de sua
inércia e paralisia. Uma vez que o que desloca o conflito de sua
instalação -- pela diluição de sua realidade em suas possibilidades -- é a
sua vivência ontológica, fenomenológico existencial, dialógica e
estética.
Vivência que disponibiliza a experiência e a experimentação do
campo ontológico, dialógico, e estético das possibilidades.
A vivência ontológica é implicativa, eu-tu, como observamos:
está fora da dicotomização sujeito-objeto. Está também fora da ordem
da causalidade. E, especialmente, até por isso, fora da dimensão dos
úteis e da utilidade.
A vivência ontológica, em suas efetividades de produção e
atualização de possibilidades, é da ordem do modo de sermos da
inutilidade produtiva e desproposital...
Só assim se dá a vivência do campo das possibilidades, e o seu
desdobramento, em ação; só assim se dá a dialógica, a estética, a
interpretação compreensiva, a hermenêutica fenomenológico
existencial, a criação, a superação...
A pragmática se pauta pela prática, pelo valor da prática, e da
ação funcional, adaptativa. A prática se pauta pela utilidade, e pelo
princípio de sobrevivência.
E tudo que não encontramos na vivência ontológica,
fenomenológico existencial, e estética, é a utilidade. Ainda que a
vivência ontológica, estética, fenomenológico existencial e dialógica
seja eminentemente produtiva, e criativa. Isso é o que significa dizer que
ela é inerente e intrinsecamente poiética -- pela ação em que se
configura a atualização, o desdobramento, de possibilidades. Poiese e
criatividade estas que, produzem, inclusive, todos os úteis, e todas as
utilidades. Que não se geram e regeneram na esfera da experiência
ôntica de sua existência. Mas se geram e se regeneram, própria e
especificamente na vivência do modo ontológico de sermos.
De modo que a insistência no pressuposto pragmático da
utilidade, e da funcionalidade, na metodologia para a resolução do
conflito é insistir no encerramento dele nas formas ônticas de sua

101
instalação, pela interdição da possibilidade de sua vivência produtiva e
criativa.
Quanto à funcionalidade, é evidente que o que almejamos não é
a funcionalidade do conflito, mas, mais propriamente, o que almejamos
é a sua disfunção, superação e resolução. Pela força de seus possíveis.
Esta disfunção do conflito decorre da diluição da instalação de
sua realidade, da realidade de sua instalação ôntica, na elaboração e
atualização de suas possibilidades, das possibilidades que se geram e
regeneram na vivência de seu modo dialógico, estético,
fenomenológico existencial e dialógico.
Um outro aspecto extremamente importante quando
consideramos a vivência ontológica fenomenológico existencial, é que
estamos tratando sempre, na momentaneidade do modo de sermos
desta vivência, de vivência de possibilidade, e vivência do
desdobramento de possibilidades. O possível é antinômico com a
vivência do real, que a ele se contrapõe. Na verdade, o possível
atualizado se constitui em realidade, realiza-se. De modo que o acesso
ao campo das possibilidades, como vivência ontológica, exige que nos
descolemos da vivência do real, para desfrutarmos, especificamente,
da vivência da possibilidade e de sua atualização, que constitui a
ação.
Ontológicamente, não somos seres do real, mas seres da
possibilidade. A realidade é progressivamente inóspita para o humano,
como observou Heidegger, até que ele possa experimentar e inspirar na
fonte do possível.
De modo, que, ao contrário do que possa parecer, uma postura
realista não condiz com a postura da vivência grupal, da mesma forma
que não convém com a postura da mediação e facilitação
fenomenológico existencial dialógica da resolução de conflitos.
Poder-se-ia dizer antão: e é uma postura irrealista, então, que é
pertinente? Não exatamente isto. À medida em que se começa a
insistir, e começa a persistir, enquanto experiência grupal, a vivência
fenomenológico existencial, esta começa progressivamente a
caracterizar-se como a vivência ativa, produtiva; como a vivência da
ação, como vivência de possibilidades e da atualização de
possibilidades. Que desloca-se do que podemos entender como
experiência da realidade, para caracterizar-se, cada vez mais, como
vivência poiética, vivência estética, fenomenológico existencial
dialógica, que se constitui muito mais como vivência de possibilidade, e
de sua atualização; do que como vivência da realidade.

102
O conflito é sempre um momento particular da vida pessoal, da
vida inter pessoal, grupal e inter grupal. Sua evidência, sua explicitação,
sua superação, e resolução são evidências de saúde psicológica e
social. Mas o conflito é um momento, um momentum, dos fluxos da
existência pessoal, um momento dos fluxos das relações interpessoais,
grupais, e inter grupais.
Sua progressiva realização, e instalação, trazem consigo o
sofrimento, e a redução desta vitalidade. Esta instalação se dá na
medida em que a experiência das partes conflitantes, em sua
individualidade e em seu conjunto, se detém e se demora na
experiência de seu modo ôntico, de seu modo factualizado, fatal,
acontecido; eximindo-se, ou se privando, das formas, formações,
performações, figurações, atualizações, criatividade, do modo de sua
vivência ontológica, de sua vivência estética, fenomenológico
existencial, dialógica.
A concepção e a metodologia de mediação, e da facilitação da
resolução de conflitos das psicologias e psicoterapias fenomenológico
existenciais empenham-se no sentido da criação de condições
pessoais, interpessoais, grupais, inter grupais, para a respectiva vivência
atual da experiência do conflito em sua forma ontológica, em sua
forma fenomenológico existencial, dialógica.
Esta vivência permite a vivência do conflito ao modo de sua
experiência estética, vivencial – corpo, vivido, sentidos --, criativa. O que
permite a vivência pelos participantes, e conjuntos destes, das
elaborações e desdobramentos fenomenológico existenciais dialógicos
das possibilidades da tensão e da situação conflituosa. E, com isso, a
dissolução em suas possibilidades da fatalidade e da instalação do
conflito. E a sua superação.

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
BUBER, Martin EU E TU.
HEIDEGGER, Martin SER E TEMPO.
PALMER, R. HERMENÊUTICA.

103
DA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL
DIALÓGICA DE PAULO FREIRE Crítica, Empírica,
Experimental, Estética e Poiética

Escola Experimental de Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial.

Introdução

As idéias e a obra de Paulo Freire têm um grande fascínio, um


misterioso fascínio até, sobre os que sobre ela se debruçam, e se in-
teressam por ela e pela sociedade Brasileira, que se intressam por
atuar contra a miséria, a opressão e a exclusão, historicamente cons-
tituídas pelo processo colonialista, e seus prolongamentos.

Paulo Freire atuou sobre a fascinante área humana, do devir,


da criação, tanto individual quanto coletiva. O nosso modo dialógico
de ser, fenomenológico existencial, compreensivo e implicativo, modo
de sermos da presença e da atualidade. Pois é disso que trata a pro-
dução cultural. Paulo Freire foi um grande produtor cultural no âmbito
das culturas da sociedade Brasileira. Sobretudo ao nível da ética, da
eticidade. E só a partir deste nível, ao nível, também, da Pedagogia,
da Educação.

A um diagnóstico sócio histórico preciso da miséria, da opressão


e da exclusão no Brasil, Freire soube aliar a experimentação e a cons-
trução de uma metodologia fenomenológico existencial dialógica,
compreensiva e implicativa, de Pedagogia e de Educação. Oriunda de
uma radicalidade ética antagônica aos fatores anti ontológicos, antro-
pológicos, sócio históricos, determinantes da miséria, da desumaniza-
ção, da opressão, e da exclusão.

Ao nível desta metodologia consonante com esta radicalidade


ética, Freire foi encontrar, e desdobrar, numa perspectiva dialógica e
fenomenológico existencial, compreensiva, e implicativa, os funda-
mentos metodológicos compatíveis não só com a sua ética, mas, em
particular, com a radicalidade ontológica, antropológica e sócio histó-
rica desta.

De modo que o que é mais importante, e fascinante, em Freire,


não são exatamente as suas teorias... Mas é o seu diagnóstico da de-
sumanidade e da desumanização historicamente produzidas pela for-
mação colonialista da sociedade Brasileira, e pelos seus epígonos e
prolongamentos. A radicalidade e a raiz de suas agressões antropoló-
gica e ontológicas, o devir, igualmente antropológico e ontológico,
sócio histórico, de suas superações. O que é importante em Freire é a

104
sua ética radical, de não participação nos sofisticados mecanismos de
2

produção da miséria, os mecanismos da opressão e da


exclusão. A sua disposição de lutar contra a desumanidade e as
desumanizações historicamente constituídas e estruturadas na
sociedade Brasileira, e no mundo. E a sua metodologia radicalmente
dialógica, como dimen-são da radicalidade de sua ética social.

Freire soube articular à metodologia da labuta microssocial da


pedagogia e da Educação a crítica macrossocial e histórica.

Nem sempre se entende estes níveis e a suas articulações na


obra de Freire. O nível da leitura sócio histórica e marxista da socie-
dade Brasileira; o nível da ética; e o nível da metodológica dialógica,
fenomenológico existencial, compreensiva e implicativa.

Em particular porque pode eventualmente causar estranheza ao


menos avisado a co-habitação, na postura Freireana, da dialética ma-
terialista e do empirismo característico da ontologia fenomenologico
existencial de uma metodologia dialógica. Em específico a co-
habitação de uma postura dialética na crítica macrossociohistórica
com o empirismo interhumanamente interativo da dialógica.

Precisamos aprender e nos apropriarmos da perspectiva e da


metodologia freireana. Para ver que não há conflito ou incoerência,
inconsistência, na convivência destas perspectivas que poderiam pa-
recer conflitantes.

Na verdade, trata-se de uma questão de consistência. A crítica


macrossociohistórica não poderia obscurecer o fato de que oprimido,
excluído, carente e frequentemente miserável o estudante am sua
particularidade não poderia deixar de ser entendido, tratado e respei-
tado, em sua alteridade radical. Que só ao diálogo efetivo e possível
pode se dar, livre dos investimentos sócio históricos e sistemáticos da
opressão e da exclusão, da produção e da reprodução da miséria e
dos miseráveis, dos ofendidos e humilhados.

A metodologia dialógica de Freire naturalmente deriva da radi-


calidade ética de sua indignação com a indignidade, e da dialética de
sua crítica macrossociohistórica.

O empirismo dialógico freireano é um empirismo fenomenológi-


co, não é um empirismo objetivista. E integra, naturalmente, a abs-
tração da teoria e da crítica teóricas.

Diferentemente do empirismo objetivista, para o qual a abstra-


ção teórica é abominada como erro epistemológico.

105
Por outro lado, é importante entender que em sua operativida-
de cognitiva a Dialética é eminentemente, própria e especificamente,
dialógica. A praxis histórica dialética não é ação e „reflexão‟, mas a-
ção e ação. Ou seja, ela é toda ela empírica, compreensiva, e implica-
tiva. Vale dize, dialógica. Uma vez que a crítica, que seria a reflexão,
na verdade não é teórica, nem prática. Mas ativa, compreensiva, im-
3

plicativa, fenomenológico existencial, empírica, e dialógica –


neste sentido.

Há que se considerar, ainda, que uma coisa é o nível macrosso-


cial da análise e da crítica sócio histórica; outra coisa é o nível mi-
crossocial da interação interpessoal. São níveis e esferas distintas.
Não podemos utilizar imediatamente categorias, instrumentos e me-
todológicas do nível do macrossocial ao nível do microssocial. Sob o
risco de fundamentarmos nossa relação ao nível do microssocial na
predisposiçao de uma estrutura anterior que só repete a estrutura da
opressão e da exclusão.

Neste sentido, é importante entender mediações que fazem


com que, ao nível do microssocial, a dialética seja uma dialógica. E a
dialógica uma dialética. Afirmativa.

Em sua praxis, Paulo Freire entendeu isto muito bem.

Bom empirista, fenomenológico, ao nível do microssocial, apa-


rentemente não elucidou teoricamente estas questões. Mas não havia
inconsistência. Sobretudo, não havia sombra de inconsistência na ra-
dicalidade de sua ética. Desde o macro ao microssocial. Da dialética à
dialógica; da dialógica à dialética.

Para nós talvez seja interessante esclarecermos estas questões.


É sem dúvida interessante aprofundarmos sempre uma compreensão
materialisticamente dialética das origens e dos desdobramentos da
sociedade Brasileira. Um posicionamento ético sempre renovado, ati-
vo e criativo, contra a desumanidade e a desumanização. E uma
compreensão, e compreensão da importância, do conjunto e dos ele-
mentos da, pouco compreendida, metodologia, e ética, dialógicas,
características da abordagem de Paulo Freire.

1. Uma pedagogia dialógica, estética, poiética; fenomeno-lógico


existencial empírica, e experimental; para o en-frentamento da
opressão e da exclusão. Uma pedagogia ontológica para o ser
humano.

2. Ética
106
a. À guisa de introdução à questão ética em Paulo Freire.

b. História e ética

c. Ética: Estética

d. Ética: Poiética

3. Dia Logos

4. Empirismo Experimental fenomenológico existencial dia-


lógico.

5. Interesse, inter essere, o desafio da Dialógica.

6. Uma Educação para a sociedade Brasileira, uma educa-ção


para seres ativos, e atuantes.

7. Pré-meditado e pós-escrito: Uma Educação para seres que,


ainda que não epistemofílicos, são seres epistemo-gênicos, e
experimentais.

1. Uma pedagogia dialógica, estética, poiética; fenomeno-lógico


existencial empírica, e experimental; para o en-frentamento da
opressão e da exclusão. Uma pedagogia ontológica para o ser
humano.

Precípuamente, a abordagem de Paulo Freire surgiu como uma


resposta e uma disposição contrárias à desumanização, contrárias à
opressão e à exclusão de amplos segmentos da população Brasileira,
inerentes à constituição colonial da cultura e da sociedade do Brasil;
e da substituição do estamento colonialista por uma estamento atóc-
tone voltado para a manutenção e para usufruto da desigualdade ra-
dical.

Paulo Freire constatou a situação sócio história histórica de


constituição da sociedade do Brasil. E elaborou uma instância ética
radical da não opressão e da não exclusão. Mais que isto, consequen-
temente, elaborou uma instância ética de reconhecimento radical da
humanidade das classes e das pessoas das classes oprimidas e exclu-
ídas. Reconhecimento que implica o reconhecimento de seu constante
e indestrutível processo de criar o seu ser mais, em particular diante
das históricas, culturais, e tremendas pressões para o seu ser menos.

Reconhecer a sua humanidade radical, e o seu permanente pro-


cesso de humanização, ontologicamente radical, significa igualmente,

107
e em especial, reconhecer a sua alteridade radical, o seu processo
radical de produção autônoma de sentido, e de ação.

Certo que estes reconhecimentos implicam no reconhecimento


das pessoas dos segmentos oprimidos e excluídos como inevitável e
radicalmente outros. Mas, da mesma forma, implicam na constituição
deles e a eles como parceiros para o diálogo, no sentido propriamen-
te entendido; para a inter ação, para a ação inter humana.

Da instância ética de Paulo Freire, compatível com esta, se


constitui a sua instância metodológica.

Em essência, só o diálogo é possível, só o diálogo é potente, só


o diálogo e as suas implicações são respeitáveis e respeitosos da alte-
ridade radical, da humanidade e da humanização radicais.

Assim, neste contexto, Paulo Freire entendeu que a ética e a


metodológica de sua abordagem só poderiam ser radicais na dialogi-
cidade: e assim se constitui o seu método. Privilegiando fundamen-
talmente o respeito pela humanidade, pela autonomia, pela
alteridade, radicais, de seus educandos. Da mesma forma que privi-
legiando radicalmente o inter essere, o diálogo, e o seus desdobra-
mentos, como âmbito do encontro -- fundamentalmente estético,
fenomenológio existencial empírico, e experimental --, e como âmbito
próprio e específico de vigência do possível e da possibilidade intera-
tivas. E do seu escoamento no sentido da ação, da criação. 6

Em específico, Paulo Freire revolucionou mundialmentea Educa-


ção em função de sua ética do reconhecimento radical da humanida-
de e da humanização; pela sua ética do reconhecimento radical da
alteridade radical; pelo reconhecimento ativo da vocação humana pa-
ra a dialógica, para o inter humano, para a inter ação inter humana,
para a ação, para a criação, para a superação.

De modo que a ética e a metodológica de sua abordagem não


são próprias e boas apenas para os excluídos e oprimidos -- ainda
que estas impliquem num compromisso radical com estes --, mas são
boas e próprias para qualquer ser humano, nos mais diferentes con-
textos de vida e de aprendizagem.

Porque é ética, e uma metodologia, ontológicas de educação,


voltadas para a essência do humano; que é a existência no possível,
na possibilidade, e no desdobramento desta como ação, atualização,
e como superação. Como potencialização do retorno da vontade de
possibilidade, da ação, da criação, da superação, e da alegria, e da
saúde.

108
2. Ética

a. À guisa de introdução à questão ética em Paulo Freire.

Fundamentalmente, é disto que se trata, portanto, na aborda-


gem de Paulo Freire. De ética. De uma ética particular, a partir da
qual pensar o Brasil e o povo Brasileiro, a história do Brasil, a opres-
são e a exclusão coloniais, prolongadas pelas classes dominantes a-
tóctones, depois da Independência e da proclamação formal da
República; de uma ética particular de agir no Brasil como, e com, o
povo Brasileiro. Uma ética que rompe radicalmente com a ética colo-
nialista da opressão e da exclusão, que rompe com a moral do niilis-
mo, na sociedade Brasileira; e passa a pensar e a agir no diálogo, no
sentido da atualização de possibilidades, e no sentido da humaniza-
ção.

Em específico, é necessário, assim, pensar fundamentalmente,


e explicitar, e atualizar, a abordagem de Paulo Freire a partir de suas
premissas éticas. E, das premissas desta ética decorrentes, pensar e
explicitar o método de uma pedagogia, de uma abordagem, que, por
radical respeito à radical humanidade e radical alteridade das classes
e das pessoas das classes oprimidas e excluídas -- mas, na verdade,
por respeito à humanidade e à alteridade de qualquer pessoa --, se
constitui consequente e radicalmente como uma pedagogia dialógica.

b. História e ética

Paulo Freire não era um historiador. Profundamente consciente


das determinações históricas e culturais do Brasil, não obstante, pro-
fundamente consciente das evidências cotidianas e não cotidianas da
opressão e da exclusão, tão frequentemente tão gritantes e escanda-
losas, vai às questões centrais. A questão humana no Brasil. A opres-
são das massas no Brasil pelos processos do colonialismo; a
desumanização gritante dessas massas e das pessoas que as consti-
tuem. Determinadas pelos sofisticados mecanismos do colonialismo.
Votadas à perpetuação, pela interiorização da opressão, e dos meca-
nismos da exclusão e da desumanização colonialistas, sucessivamen-
te assumidos, em seu interesse, pelas classes internas dirigentes,
depois da independência política do país e da proclamação formal da
República.

Ao lado do colonialismo, das realidades factuais da opressão, da


exclusão, e da desumanização, Paulo Freire constata e declara, expli-
cita e ativamente – quase que diríamos: jovial e alegremente --, a
humana condição do possível, do humano carecimento de ser mais, o

109
carecimento e possibilidade intrinsecamente humanos para a supe-
ração. Mesmo quando as condições históricas determinam o abjeto, 8

e o mais abjeto ser menos da desumanização que não vacila


até mesmo à determinação irrevogável do sofrimento e da morte
indivi-dual e massiva pela inanição e pela sede, como condição
naturalizada da opressão e da exclusão.

Paulo Freire é o antípoda do religioso conclave na Universidade


de Salamanca que versava sobre a decisão acerca de se teriam alma
ou não os indígenas da América, e, naturalmente, por extensão, os
Negros, Mouros, Mamelucos, e outros mestiços Africanos e Amerindi-
genas. É afirmativa, radical e incondicional, a sua opção pela generi-
cidade da condição humana, e pelo imperativo indestrutível de sua
humanização – em particular nas condições históricas que o colonia-
lismo deixou e deixa as massas e as pessoas das massas dos oprimi-
dos e excluídos – ofendidos e humilhados. Esta é parte fundamental
de sua premissa ética mais originária, diante da condição das massas
e das pessoas das massas oprimidas dos excluídos do Brasil. Toda
pessoa das massas dos oprimidos e excluídos detém o poder, e o ina-
lienável direito de ser mais; detém em si a potência do possível,
mesmo quando historicamente constrangidas ao ser menos, e a se
desumanizar. Tem a capacidade e o direito cristalinos de ser mais, de
se criar como humano e de criar o mundo que lhe diz respeito, em
consonância com o desenvolvimento atual da humanidade, com a sua
potência e alegria criativas.

Esta postura, esta ética, e a sua essencial radicalidade, não e-


ram nem são comuns no Brasil. Mesmo hoje, temos vastos segmen-
tos da população, que frequentemente nem mesmo são das classes
dominantes, e que naturalizam as enormes desumanidades que o
processo de colonização, e a substituição dos colonialistas externos
pelas classes dominantes brasileiras, reservaram para as classes des-
possuídas e excluídas do usufruto dos produtos do processo de pro-
dução coletiva da riqueza no Brasil.

Pois esta radicalidade ética, de não negar a humanidade nem a


alteridade, e de nem negar o imperativo da humanização a nenhuma
pessoa, por mais excluída e oprimida que seja, é a base ética da a-
bordagem de Paulo Freire.

c. Ética: Dialógica e Estética, Poiética

A Dialógica, o modo de sermos do Diálogo, são própria e emi-


nentemente estésicos. Ou seja: são vivência pré-reflexiva, pré-
comportamental, pré-pragmática, fenomenológico existencial poiéti-

110
ca. E, em assim sendo, são Estéticos. O diálogo e o dialógico, como
vivência e atualização de possibilidades, que é ação, a atualização, é
poiético; e para isto é estético.

Assim, a Estética, a ética da estesia -- além de ser, própria es-


pecificamente, uma Ética, é eminentemente Poiética. Isto quer dizer
que, poiética, ela privilegia o modo fenomenológico existencial de 9

sermos, como modo de sermos da vivência do possível, da


vivência da possibilidade, da potência, da vontade de possibilidade, e
o des-dobramento desta, na ação, na atualização, que
especificamente é o que entendemos e chamamos de poiese.

A Dialógica, portanto, o Encontro Dialógico, são estéticos, e


poiéticos. E assim, a ética e a metodológica da abordagem freireana
são, própria e especificamente dialógicas, estéticas e poiéticas, na
medida em que privilegiam o modo estético e poiético de sermos, o
modo de sermos no qual vivenciamos possibilidades, e agimos, como
desdobramento destas..

Naturalmente que Freire, professor formado, advogado, filho de


militar, não se incluía entre as formas mais rudes da exclusão e da
opressão. Constatadas as evidências cotidianas dos oprimidos e das
opressões, as evidências cotidianas dos excluídos e das exclusões,
inclusive na cotidianidade de suas monstruosidades, competia a Frei-
re não só pensar os oprimidos e os excluídos, e suas condições e cir-
cunstâncias, humanas, e desumanas; mas, sobretudo, pensar os
oprimidos e excluídos, e com eles interagir, de forma que não repro-
duzisse, simplesmente, a opressão e a exclusão; mormente ao se
pensar e atualizar, operacionalizar, uma educação para os excluídos e
oprimidos.

Não reproduzir a opressão e a exclusão significava, e significa,


sobretudo, e em primeiro lugar, não participar dos, e não reproduzir
os ardilosos, astutos, covardes, e históricos mecanismos ideológicos
de negação da humanidade e da alteridade radicais dos oprimidos e
excluídos; não negar a humanidade e a alteridade dos oprimidos e
excluídos, e disso fazer um princípio radical. Não negar a humanidade
e a alteridade dos oprimidos e excluídos das formas mais óbvias e
evidentes; e, sobretudo, não negar das formas mais ou menos vela-
das e astutas das ideologias da dominação, da colonização, da opres-
são e da exclusão; em suas dimensões cotidianas, e não cotidianas.

Para tal, apenas o reconhecimento radical, e ativo, a afirmação


da afirmação, tácita e explícita, da humanidade e da alteridade dos
oprimidos e excluídos; em sua constante e indestrutível labuta de fa-
zer-se ser mais e melhor, nas históricas condições e mecanismos his-
tóricos mandatórios do ser menos da opressão e da exclusão. A

111
crença na e ação da utopia, e da poiese do inédito possível e viável
da história, nas constrições históricas do ser menos. Pela simples a-
tualização da potência da ação como conhecimento e muscularidade,
e pela negação dos mandatos de ser inerte, e impotente.

É que no diálogo, no estético, no poiético, somos possível, so-


mos potência, e atualização, somos ativos nos músculos e na consci-
ência, no pensamento, no conhecimento e na ação motora; e
incomodamos o mundo acontecido com o acontecer da criação de nós
próprios e do mundo que nos diz respeito. 10

A genialidade ética de Paulo Freire -- estéticamente, certamen-


te --, conectou a dimensão ética de sua leitura da historicidade da
opressão e da exclusão no Brasil, de sua repulsa a estas; com a onto-
lógica ética, estética, poiética, dialógica, da vivência da potência da
possibilidade, e da ação. E destas dimensões de sua ética se constitu-
iu a metodológica de sua abordagem.

Vale lembrar a observação de Buber -- no Elementos do Inter


Humano, em Do Diálogo e do Dialógico1 --, de que, quando encon-
tramos um outro ser humano, conhecemos o nosso caminho até ele;
não conhecemos o caminho dele até nós. O caminho dele até nós e
ele próprio, na pontualidade de suas potências e atualização, só nos
pode sere dados, momentaneamente, na dialógica do Encontro; no
Diálogo Inter Humano. Que é estético, e poiético.
1 BUBER, Martin Elementos do Inter Humano. In Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo.
Prspectiva, 1985.

Daí que, o radical reconhecimento da humanidade, e da alteri-


dade, do oprimido e excluído, como princípio ético e metodológico,
nos impede o direito de hipostasiá-lo, de pressupô-lo, teórica, com-
portamental, ou pragmáticamente, seja lá em que dimensão for. Não
nos permite, em momento algum, decidir por ele e para ele, seja lá
em que momento for, sejam quais forem os motivos, sejam quais fo-
rem as nossas idéias e condições. O respeito pela humanidade do o-
primido e excluído necessariamente passa pelo reconhecimento de
sua alteridade radical, desconhecida alteridade, que só nos pode ser
dada pela dialógica, eventualmente conflitiva, do Encontro, do pro-
cessamento empírico e experimental do Dialógo inter humano com
ele; quer seja individual, ou coletivamente. E que decorrem do reco-
nhecimento incondicional de suas capacidades para a vivência do
possível, para a ação, para a atualização. Tanto ao nível do conheci-
mento, do processo de produção de seu conhecimento, como ao nível
de sua motricidade.

Daí que, junto com um princípio do reconhecimento radical e


conseqüente da humanidade e da alteridade do oprimido e excluído, é

112
uma implicação ética e metodológica básica e natural, um princípio
congênito, o princípio radical e conseqüente da disposição para o en-
contro inter humano, ou seja: a disposição decidida e franca para a
estética do Diálogo, para a Dialógica Inter Humana; para, junto com
ele, e na inter ação, pensar, agir, interagir, como únicas formas pos-
síveis e lícitas. Trata-se, assim, de reconhecer a sua alteridade e a
sua humanidade, trata-se da relação e da dialógica com ele enquanto
alteridade absoluta.

Este é o âmbito de partida, e o principal âmbito de toda a ativi-


dade no decorrer da vivência da abordagem freireana. 11

d. Ética: poi-ética

O Dialógico é Estético, a Estética é Poiética.

A Estética é poiética porque é condição, é o âmbito do modo de


sermos no qual pode dar-se o poiético. Ou seja, o modo de sermos
no qual vivenciamos o possível, modo de sermos da vivência da pos-
sibilidade, da vivência da vontade de possibilidade, e da superação.

A vivência de possibilidades é, igualmente, a vivência do des-


dobramento destas, e é este desdobramento que entendemos como
ação. E como superação.

A ação, assim, é a vivência fenomenológico existencial dialógi-


ca, e estética, de possibilidades; e do desdobramento destas. As pos-
sibilidades em sua vivência são forças. E o próprio das forças,
enquanto tais, é que elas se desdobrem. A ação é vivência de possibi-
lidades e a vivência do natural desdobramento delas, no processo da
superação. A poiese é o modo de sermos que produz as formas de
nós mesmos e do mundo que nos diz respeito, pela atualização de
possibilidades. A estética é o modo de sermos da poiética. O modo de
sermos que privilegia a vivência de possibilidade e do desdobramento
delas é assim uma ética, poiética, o modo poiético de sermos. O mo-
do de sermos da ação, e da superação. Nietzsche diria: e eis o que
segredou-me a existência: eu sou aquilo que se auto supera indefini-
damente...

A apreensão como conhecimento vivencial -- fenomenológico e


existencial, dialógico, pré-reflexivo, pré-conceitual, pré-prático, pré-
real --, a apreensão como conhecimento, como ação, da possibilidade
vivenciada no âmbito do modo estético de sermos faz com que este
modo de sermos seja o modo de sermos com-apreensão; ou seja, o
modo de sermos da compreensão: o modo compreensivo de ser-mos,
113
o modo de sermos com apreensão do possível, das possibilida-des,
em seu desdobramento. Estamos implicados na vivência
compreensiva da possibilidade, e da ação que ela constitui com o seu
desdobramento. De modo que o modo compreensivo de sermos, o
modo estético, poiético, dialógico, de sermos é modo de sermos da
implicação.

Modo de sermos este ao qual se contrapõe o modo de sermos


que não é da ordem da implicação. Mas é o modo de sermos da ex-
plicação. O modo teorético de sermos.

O conhecimento estético, a ciência estética, é conhecimento a-


tivo, atualização de possibilidade, que se dá no modo estético de
sermos, pré-reflexivo, pré-conceitual, pré-comportamental. E que é
conhecimento compreensivo, no qual estamos implicados. Pode se
dar ao nível do conhecimento meramente compreensivo; ou pode se
12

prolongar, também, ao nível do conhecimento – compreensivo -


- ati-vamente muscular.

Podemos dizer que o modo estético de sermos é, enquanto co-


nhecimento, um modo de ver. Uma visão, um vislumbre, do possível
em seu desdobramento ativo, e que nos constitui. Um modo de ver
em que, compreensivamente, implicativamente, vivenciamos o vis-
lumbre do possível, e o seu desdobramento como ação, atualização.
Meramente compreensiva, ou compreensiva e muscular.

É este o modo de vermos, o modo de sermos, e a visão estéti-


ca, e poiética, dialógica, do ator, do agente.

Igualmente, o teorético é um modo de ver.

Mas o teorético não é o modo de ver estésico, estético, dialó-


gico, e poiético, do ator – como vimos, o estético é especificamente o
modo de ver do ator --; o teorético é o modo de ver, de abstração, e
de inação, do espectador.

Assim, o teorético não é um modo de vivência de possibilida-


des, e de vivência do desdobramento destas, na ação, atualização. É
um modo intivo de sermos, no qual re-incidimos sobre o que se atua-
lizou como vivência, e vivência do desdobramento, de possibilidade.

No modo teorético de sermos re(a)presentamos aquilo que se


atualizou, ou seja: aquilo que se apresentou, como produto da ação,
no modo de sermos pré-reflexivo, pré-conceitual, pré-
comportamental, e originário, da vivência e da vivência do desdo-
bramento de possibilidades.

114
Originalmente, o estésico é nome de um vento que sopra na
Grécia numa determinada época do ano, e que impulsiona as velas
dos navios. Eis aí a origem do conceito, de estésico, de estesia, e, no
limite, de estética: a ética da estesia. A pulsão do possível que impul-
siona a ação, no modo dialógico e fenomenológico existencial de ser-
mos, modo estético de sermos, foi entendida por analogia, como
devir (de vento), como similar ao vento estésico -- que impulsiona as
velas dos navios. Daí ser designada como estesia a vivencia de corpo
e de sentidos, que permite a vivência da pulsão das possibilidades,
impulsionando a ação, a atualização. Por isso, pela vivência das pos-
sibilidades e do seu desdobramento, este é o modo de poiético de
sermos -- em que vivenciamos a estesia, a ação decorrente da atuali-
zação de possibilidades.

Poiético, portanto, refere-se à ação, à criação, à vivência de


possibilidades e do seu desdobramento, na ação, no modo vivencial,
estético, fenomenológico existencial, e dialógico, de sermos. A poiese
é a criação que se constitui no desdobramento de possibilidades, na
ação, ao modo estético de sermos.

O modo dialógico de sermos é o modo de sermos da vivência


empírica fenomenológico existencial, estética e poiética. Dá-se sem-
13

pre na dinâmica interativa, e implicativa, da dualidade eu-tu.


Eu-tu que, enquanto vivências de possibilidades, mutua e
alteritáriamente se constituem, se desdobram, e desvelam, na inter
ação, inter huma-na que chamamos de diálogo.

O Dialógico é estésico. O Dialógico, estésico, é estético; e é


poiético. E estes termos podem ser intercambiados em seus conceitos
e conotações implicativas. A estética é dialógica, e é poiética. A poié-
tica é estésica: é estética; e é dialógica. Como vivência e desdobra-
mento de possibilidades, o dialógico, o estésico, o estético, o poiético,
são eminentemente ativos. São eminentemente ação, inter ação.

3. Dia Logos

Para a Fillosofia do Dialógico, de Martin Buber2, temos dois mo-


dos de ser. O modo eu-isso de sermos, e o modo de sermos eu-tu –
este, desde já, o nosso modo ontológico de sermos, o modo dialógico
de sermos.
2 BUBER, Martin Eu e Tu. São Paulo, Mores, 1982.

115
Vivemos na cotidianidade do modo eu-isso de sermos. É o mo-
do de sermos da repetição, e do acontecido em nossas vidas; o modo
de sermos da dicotomia sujeito-objeto, da objetividade, modo de
sermos da causalidade, dos úteis e das utilidades, do uso; e o modo
de sermos do realizado e da realidade. Que se opõem ao modo de
sermos, eu-tu, do possível e da possibilidade.

Não é difícil entender que o modo teorético, assim como o mo-


do comportamental, e o modo pragmático de sermos se definem co-
mo modos de sermos do eu-isso. Como observamos, o modo
teorético é, por definição, o modo de sermos da visão do espectador,
que contempla um objeto: o objeto que foi objetificado, realizado,
pela ação. Reincide sobre tal objeto, agora sob a ótica do espectador.
Uma ótica diferente da ótica da vivência do ator, uma ótica diferente
da ótica do ator no processo de sua poiese, de sua feição – perfeição
--, no processo da ação, da atualização de possibilidades.

O teorético re(a)presenta a possibilidade que se apresentou --


que se atualizou, que se objetivou, que se realizou, no decorrer da
ação do ator, como ex-pressão da ação; possibilidade em desdobra-
mento, em atualização, em realização, em coisificação.

O comportamento, da esfera do eu-isso, é a nossa dimensão da


atividade repetitiva, padronizada, para a qual se tem uma expectati-
va; o comportamento, na qualidade de seu modo de ser, é diferente
da ação; que é, própria e especificamente, a esfera do eu-tu.

O modo eu-tu de sermos é momentâneo e incontornavelmente


recorrente em nossas vidas, em sua potência de vir a ser. Irrompen-
do, em sua agressividade de potência, no âmbito do modo eu-isso de
sermos; desconstruindo, e criando, e re criando em nossas vidas. É o
modo especificamente ontológico de sermos.

De duas formas o modo de sermos eu-tu – ou seja, o vivencial,


o fenomenológico, e existencial, o ser no mundo, o dialógico -- é On-
tológico: (1) é Ontológico enquanto o modo próprio e específico de
sermos da vivência do sentido, o sentido que é Logos. (2) E é
Ontológico enquanto o modo de sermos que constitui a característi-ca
que nos define enquanto seres, humanos, para a disciplina filosófica
da Ontologia. Os humanos são seres que vivenciam o sentido, o
Logos: esta é a sua característica definidora. Vivenciar o 15

Logos, que é o onto logos, é a característica ontológica dos


seres humanos.

Assim, o ontológico -- em termos de definição da humana cate-


goria de ser --, é que somos ontológicos -- ou seja, vivenciamos o
sentido, que se atualiza a partir de nossa vivência de possibilidades.

116
O modo ontológico, fenomenológico existencial, estético, de
sermos é o modo de sermos em que somos presença. A presença,
pres-ença, se define como o modo, ontológico, pré-coisa, de sermos.
O modo de sermos, em que -- eu-tu, dialógica fenomenoló-gico
existencial --, somos vivência de possibilidades, e do desdobra-mento
destas; antes que este desdobramento nos conduzam a entificação,
ou seja, à esfera dos entes, das coisas, eu-isso. O modo ontológico
de sermos, eu-tu, dialógico, fenomenológico existencial, é um modo
pré-ente, presente, presença; de sermos como o vir a ser da ação de
atualização do possível.

Diferentemente do modo eu-isso de sermos, o modo eu-tu de


sermos é o modo de sermos do acontecer, a partir da vivência e do
desdobramento, da ação, da atualização de possibilidades, em nossas
vidas. É estético, e poiético. Como modo de sermos da vivên-cia e
atualização de possibilidades, está fora do modo de sermos da
dicotomia sujeito-objeto, sendo anterior à vigência desta dicotomiza-
ção. Não é da ordem da causalidade, nem é da ordem dos úteis nem
das utilidades; estando igualmente fora da ordem das relações de
causa e efeito; e caracterizando-se própria e especificamente, em sua
vivência e vigência, como desproposital. Não é, portanto, um modo
de sermos da ordem do teorético – que especificamente se constitui
como um afastamento do modo eu-tu de sermos; da mesma forma
que não é da ordem do comportamental, da mesma forma que não é
da ordem de uma prática, nem de uma pragmática.

Como é o modo de sermos marcado e impregnado pela vivência


de possibilidades, e pela possibilidade do desdobramento destas, não
é da ordem da realidade.

Nem teorético, nem prático, constitui-se -- pela vivência de


possibilidade, e pela atualização destas --, como o modo poiético de
sermos, que só se constitui estésicamente, como vivência estética,
fenomenológico existencialmente, dialogicamente.

O modo dialógico de sermos -- modo de sermos eu-tu, estético,


poiético -- se constitui na esfera da relação com a natureza não
humana; na esfera da relação com outros seres humanos – a esfera
do inter-humano; e na esfera da relação com o sagrado.

O termo, e o conceito, de Dia-lógico referem-se à característica


de que o vivencial, o fenomenológico existencial, o compreensivo, a
vivência de possibilidades, e do desdobramento destas, na ação, se
dão como vivência de sentido. Vivência de sentido que é a estética, e
poiética, do dinamismo da implicação interativa numa relação 16

com uma alteridade não objetiva, e radical, intencional – in-


tensional --, que se constitui como a radicalidade alteritária de um tu;

117
em sua potência, possibilidade, e possibilitação, ação, enquanto tal.
Uma relação eu-tu. Cuja dinâmica estética, e poiética, se dá como a
movimentação implicativa de um eu em direção a um tu, enquanto
alteridade radical; e vice versa.

Esta dinâmica interativa e implicativa constitui um campo de


compartilhamento e de produção (Dia) de sentido (Logos), a partir da
vivência e da vivência do desdobramento de possibilidades, e de
ação, de atualização de possibilidades: um Campo Dialógico.

O logos, no caso, referindo-se ao sentido que é compartilhado


compreensivamente; meramente como ciência ativa, ou como ci-
ência ativa e ação muscular. E o Dia como a dinâmica reciproca-
mente implic-ativa; estética e poiética, da movimentação da
possibilidade e da possibilitação do tu, para a possibilidade e possibi-
litação do eu, e vice versa; na constituição do campo dialógico da
momentaneidade da relação eu-tu: dialógica, diálogo.

De modo que, reconhecendo e afirmando a condição de huma-


nidade, e de alteridade radicais, e a intrínseca potência de humaniza-
ção dos oprimidos e excluídos do processo da colonização do Brasil, e
do mundo, e da neo exclusão e opressão perpetradas pelas classes
dominantes, no período pós independência e pós República no Brasil -
- sua radical alteridade, enquanto classes e enquanto pessoas consti-
tuintes destas classes --, só restava à abordagem de Paulo Freire se
enraizar e se entregar a uma dialógica radical com essas alteridades
radicais.

Daí ser a dialógica, o diálogo, um outro elemento central da éti-


ca, e da metodológica, da abordagem de Paulo Freire.

4. Empirismo Experimental fenomenológico existencial dia-


lógico.

O fenomenológico, o existencial -- o vivencial, o ser no mundo,


o dialógico, o eu-tu, o estético, o poiético -- são eminente, própria e
especificamente, Empíricos, e Experimentais. Além de experien-ciais
– no sentido fenomenológico --, naturalmente.

Mas isto -- empírico, experimental, e experiencial --, é bom que


se acentue, num sentido muito particular dos termos. Ou seja, no seu
sentido especificamente fenomenológico e existencial. O que, num
sentido geral, quer dizer, em particular, que não são teoréticos, nem
comportamentais. Da mesma forma que é um modo de ser excluído
da ordem da prática, e da pragmática, portanto -- porque, em sua
empírica vivência, própria e especificamente, vigora o estético des-

118
proposital da poiética, do desdobramento, da atualização, de possibi-
lidades; o estético desproposital da ação, que se dá fora do modo de
sermos das relações de uso e de utilidade.

A abordagem de Paulo Freire -- qualquer abordagem dialógica,


fenomenológico existencial dialógica, e experimental; na verdade
qualquer abordagem fundada na ação, e que almeja a ação -- , é,
portanto, um Empirismo: porque o diálogo e o dialógico, que são um
de seus fundamentos mais importantes, não são nem teoréticos, nem
práticos, nem comportamentais; são, própria e especificamente em-
píricos; estéticos, e poiéticos.

Naturalmente que tão importante quanto entender, reconhecer


e afirmar isto, não obstante, é qualificar adequadamente, reconhecer
e afirmar o que se entende por Empirismo neste sentido; de que tipo
de Empirismo se trata, quando assim o entendemos.

É interessante observar que esta questão -- a questão do seu


caráter seu empírico --, é, contemporaneamente, ao mesmo tempo,
um elemento central, ponto crítico, da abordagem freireana. Respon-
sável, talvez, enquanto ponto conflitivo, por uma certa crise e parali-
sia, e por uma certa alienação, no âmbito dos que se interessam e
praticam a abordagem.

Ante tudo -- diante da constatação do caráter empírico da atua-


lização da ética e da metodológica dialógica de Paulo Freire --, é im-
portante, que se reconheça, entenda, e que se reitere o papel
exercido, em suas posições, e em sua ética, pela utopia marxiana; e
o caráter dialético marxiano de sua análise histórica, e da sua crítica
social. Na qual, como bom empirista, ele não ia muito longe, em ter-
mos quantitativos. Em nome da estética e da poiética da atualização
da pontualidade do devir histórico. 18

Em termos qualitativos, a análise da alienação, e a perspectiva


de sua superação; e a utopia marxiana, como observamos, exerceu
uma função de relevo e uma importância fundamental na compreen-
são e explicitação da realidade da opressão e da exclusão no Brasil.
Na compreensão das potências de superação das condições históricas
da desumanização, da opressão e da exclusão.

Dialéticos Marxianos, e Marxistas, têm, naturalmente, uma a-


versão ao Empirismo. Mormente, e especificamente, ao Empirismo
Positivista, Objetivista; contra o qual se insurge a epistemologia e a
metodologia dialéticas.

Para reivindicar, e esclarecer, em particular, as determinações e


os nexos históricos especificamente não empíricos da realidade empí-
rica; o caráter de negatividade que o empírico exere com relação ao

119
concreto. E a necessidade do movimento de pensamento numa nega-
ção do empírico: que é negação da negação, para a elucidação das
determinações históricas não empíricas que configuram a concretude
histórica da totalidade social.

Enquanto ética e metodológica de sua análise social, Paulo Frei-


re não poderia se contentar – não podemos nos contentar -- com o
caráter chapado e superficial, “empírico” – no limitado sentido objeti-
vista --, da realidade social, da realidade da sociedade Brasileira, da
concretude histórica da opressão e da exclusão. Urgia, e urge bus-
carmos desveladoramente as suas determinações históricas, os seus
nexos, não empíricos, a constituição histórica de sua concretude não
empírica.

E, para tal, a concepção dialética da história, e os produtos da


pesquisa histórica dialética são fundamentais. Conformaram estes,
em particular, a compreensão da concretude da historicidade da ex-
clusão e da opressão na sociedade Brasileira. Conformaram estes a
base para a utopia freireana, para um pensar utópico que entende
que as massas e as pessoas das massas excluídas e oprimidas do
Brasil assim o são por determinações históricas concretas; e que, por
determinações igualmente concretas, e históricas, pelo seu careci-
mento ontologicamente humano de ser mais, pelo seu carecimento
de humanização, podem, e estão, a superar -- no âmbito da ação, da
atualização do possível, da atualização do inédito viável --, as condi-
ções a que lhes relegou a opressão e a exclusão históricas.

Como vimos, então, reconhecendo, radical e efetivamente, em


sua ética, a humanidade e a humanização das massas, e das pessoas
das massas oprimidas e excluídas do Brasil, só restava a Freire reco-
nhecer e considerar a realidade histórica de sua condição; e reconhe-
cer e considerar efetivamente, para qualquer inter ação, a sua
alteridade radical. E, a partir destas premissas, disponibilizar-se radi-
calmente para o diálogo, e para o encontro dialógico radicais – que, a
princípio, e por princípio, reconhecem, consideram, afirmam, e inte-
19

ragem com a alteridade --, como premissa, e com efetiva


disposição para qualquer cooperação, para qualquer interação, para
qualquer atuação que com eles se pudesse desenvolver.

Aí, já não se trata mais, simplesmente, de ler criticamente a


história; aí, já não se trata mais de repetir a história. Trata-se, sobre-
tudo, em particular, de criar a história; trata-se da poiética da histó-
ria na ação, na atualização, a partir das potências dos possíveis
disponibilizados na dialógica inter humana da estética do encontro; a
partir das potências do possível, agenciados no diálogo.

120
Cultivar, desdobrar, atualizar estes possíveis em suas potências
-- que só se dão empiricamente, na dialógica do encontro; é, própria
e especificamente, o caráter Experimental, no sentido fenomenológico
existencial, da ética, da estética, e da metodológica dialógica da a-
bordagem feireana.

O diálogo e o dialógico são estéticos, são poiéticos -- são viven-


ciais, fenomenológico existenciais. E isto significa dizer que, própria e
especificamente, são empíricos e experimentais.

Isto significa dizer que o diálogo e o dialógico são vivência fe-


nomenológica e inter ativa, vivência imediata de corpo e de sentidos.
Não são da ordem da experiência teorética, nem da ordem da experi-
ência comportamental – experiências abstrativas de corpo, de vivên-
cia e de sentidos. Significa dizer, que o diálogo e o dialógico são
estésicos, vivência fenomenológica imediata de corpo e de sentidos;
não são teoréticos, não são técnicos, não são comportamentais, não
são moralistas, não são práticos, não são pragmáticos. Na pontuali-
dade da sua ação, como fenomenológica e existencial vivência e vi-
vência do desdobramento de possibilidades, não são, nem mesmo, da
ordem da realidade. Ainda que constantemente a criem. E isto, e que
assim seja, é condição de possibilidade da poiética da ação, da poiéti-
ca da história, que caracteriza a atualização, a criação; que é, simul-
taneamente, auto criação e criação do mundo que nos diz respeito; e
que se constitui como desdobramento, e como atualização, de possi-
bilidades -- ação.

Assim sendo -- por ser estético --, o dialógico é, própria e emi-


nentemente, empírico, no sentido fenomenológico existencial. Por ser
estético, o empirismo fenomenológico existencial é dialógico. Por ser
dialógica a estética é fenomenológico existencial empirista; por ser
dialógico o empirismo fenomenológico é estético. Por fenomenológico
existencial empírico, o dialógico é estético; por empírico o estético é
dialógico.

A ação é fenomenológico existencial empírica, estética, e dialó-


gica. Da mesma forma que o são o encontro dialógico, e a sua poiéti-
ca: a vivência e a atualização de possibilidades na dialógica, no 20

encontro dialógico inter humano, são própria e eminentemente


esté-ticas, dialógicas e empíricas.

A ação é empírica porque -- em sua intrínseca e essencial atua-


lização de possibilidades --, a ação se dá como vivência fenomenoló-
gico existencial. Que é vivência, experiência, experimentação, pré-
reflexiva, pré-conceitual, pré-teórica, pré-comportamental, pré-
pragmática.

121
O dialógico, âmbito eminentemente da ação, é, portanto, empí-
rico, e experimental.

Mas, é importante observar que aqui, estamos muito longe do


empirismo objetivista, abominado pela Dialética, e pelos dialéticos.

Porque se trata, aqui, de um empirismo não objetivista. Trata-


se, especificamente, do empirismo fenomenológico existencial dialó-
gico. Que se constitui como tal em virtude das condições de não ser
nem teorético, nem de ser comportamental. Configurando-se positi-
va, e afirmativamente, como vivência imediata do risco e da tentati-
vidade inerentes à atualização de possibilidades. Atualização, ação,
que se dá, como sabemos, no modo fenomenológio existencial de
sermos – modo de sermos dialógico, estético, compreensivo, e... em-
pírico. E que se constitui, enquanto modo de sermos, aquém mesmo
da dicotomização sujeito-objeto. A vivência fenomenológico existen-
cial, empírica e experimental, se constitui enquanto tal na correlação
intrínseca e intencional – intensional --, homem - homens, homens –
mundo, solidariamente correlativos, de um modo inextrincável, ante-
riormente a qualquer possibilidade de cisão, modificados, criados e
recriados, pela poiética da histórica da ação.

O empirismo fenomenológico existencial dialógico, experimental


– estético e poiético --, é diacrítico, é crítico – na medida em que é,
própria e especificamente, ação; ou seja, movimento e mudança, a
partir da atualização da potência do possível, desencadeada no e pelo
limite da condição histórica.

Talvez até pudéssemos dizer que se trata de uma dialética. Na


medida em que, no fenomenológico existencial dialógico -- empírico,
estético, e poiético --, atravessamos e abandonamos o esquecimento
– o lethos -- que se configura como realidade acontecida, objetiva e
utilizável, teórica, e comportamental, pragmatizável; para adentrar-
mos e nos imbuirmos em nosso modo de ser de força, de potência,
de possibilidade, de atualização, de ação, de criação de nós mesmos,
e do mundo que nos diz respeito.

Ao pensarmos em dialética, neste sentido, se é que é o caso,


não podemos pensar, todavia, numa dialética da negação, e da nega-
ção da negação. Porque, neste caso, efetivamente se trata de afirma-
ção, e de afirmação da afirmação... 21

Esta, afirmação, exige a disposição para tentar. E, em particu-


lar, a disposição para arriscar, para correr o risco, da atualização de
possibilidades que conhecemos na vivência da Gestalt de sua po-
tência, mas que não conhecemos na potência do detalhamento ativo
de suas partes, de seus elementos constituintes – que só se dão pelo
processamento vivencial da ação. O que não nos impede a disposição

122
para tentar e arriscar. Porque esta disposição, é própria do devir, é
própria da ação, é própria da superação, é própria e necessária à cri-
ação. Que ontologicamente nos caracterizam como humanos.

Tentar e arriscar, correr o risco da atualização do possí-vel, é o


sentido do verbo Grego perire. Que está na raiz do termo e do
conceito de perigo; da mesma forma que é a raiz do termo e do
conceito de perícia; e dos termos e conceitos de empírico e de expe-
rimental, no sentido fenomenológico existencial. Da mesma forma
que está na raiz de termos e conceitos como inspirar, expirar, respi-
rar, pirata, pirar...

Sempre a tentatividade e o risco, perigantes que somos, onto-


logicamente; mas sempre, também, a alegria, da atualização do pos-
sível, da potência da ação, e do seu retorno.

A dialógica, fenomenológico existencial que é, se caracteriza,


assim, como fenomenológico existencial empírica, estética, porque é
a visão -- na verdade o vislumbre --, na improvisação, e a ação, do
ator. Seja ele ator individual, diádico, ou coletivo. Mas sempre ator,
na empiria improvisativa da ação. A dialógica é anterior e é radical-
mente distinta em sua qualidade, da visão, do modo de ver, e da ina-
ção, do espectador, teorético...

A dialógica é ainda empírica e experimental porque é um fazer-


se ao largo a partir das raízes do devir, enquanto possibilidades que
movem a ação; ao invés da mera permanência no porto do com-port-
amento. É um arriscar e um tentar, um arriscar e uma tentativa de
fluência na potência do possível, vivenciado pré-reflexivamente, pré-
conceitualmente, pré-teoricamente, pré-comportamentalmente, pré-
pragmaticamente, empiricamente. Um arriscar e tentar a ação, a a-
tualização, a criação de si mesmo, o que envolve a criação do mundo
que lhe diz respeito.

Um aspecto muito importante do empirismo fenomenológico é


que, ao contrário do empirismo objetivista, o empirismo fenomenoló-
gico não se move em um preconceito e aversão contra teoria, e con-
tra a teorética. O empirismo fenomenológico não briga com a teoria e
com o teorético. O momento vivencial é incontornavelmente empíri-
co. Mas passada a pontualidade de seu momento, a teorizção, a re-
flexão são invitáveis, e necessárias. A grande questão do empirismo
fenomenológico, da ação, da atualização, é que elas, a reflexão e a
teorização, são determinadas pela vivência empírica da ação, e a esta
se subordinam. A reflexão e a ação não substituem a especificidade,
22

a qualidade, a importância ontológica, da pontualidade da


vivência empírica.

123
De modo que, própria e eminentemente dialógica, na relação
inter-humana, estética e poiética da ação, a abordagem freireana é
própria e especificamente empírica e experimental em sua ética e em
sua metodológica. Porque essas são as condições do conhecimento
como ação, e da ação como conhecimento, da ação e do conhecimen-
to que nos modificam, e que modificam o mundo como atualização do
possível que nos é ontologicamente imanente. Porque o Diálogo é, e
só pode ser, empírico e experimental; no sentido fenomenológico e-
xistencial, estético, e poiético.

5. Interesse, inter essere, o desafio do Diálogo, e da Dialó-gica.

O interesse é o desafio maior da dialógica, é o próprio desafio


do diálogo e da dialógica, e da metodologia da abordagem de Paulo
Freire. Porque o interesse, com efeito, é a própria essência da dialó-
gica, do encontro, do diálogo.

Refere-se o interesse, nesse caso, ao interesse radical de cada


uma das partes envolvidas no processo do encontro dialógico inter
humano; e ao interesse como envolvente de ambas, ou múltiplas,
partes do diálogo.

É o desafio maior porque o interesse é a própria constituição do


encontro dialógico, é a própria dialógica, é o próprio diálogo, é a pró-
pria esfera do inter, a esfera do entre – o ser entre, inter essere --,
que constitui o campo dialógico* do eu-tu. Inter essre e dia lo-gos
coincidem. O inter essere, interesse, se constitui na medida da
qualidade, da força criativa, da atualização, das possibilidades que a
qualidade do encontro, do diálogo, engendra, mobiliza e desdobra
nos seus parceiros; e como vinculação deles. A emergência e atuali-
zação do possível, como qualidade do encontro dialógico constitui o
caráter da vivência de seu interesse – inter essere.
* Essa idéia e expressão de Campo Dialógico surgiu no diálogo e interessante interação em aula
com a interessante turma do Programa de Formação em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico
Existencial – Gestal’terapia, Abordagem Rogeriana --, de Fortaleza, de 2009.

O modo de sermos vivencial -- fenomenológico existencial --,


do dialógico, engendra a relação eu-tu como o que Buber chama de
esfera do entre –, a esfera do inter. Este entre não é o “entre‟ da
relação entre dois objetos, como um intervalo entre dois objetos, já
que, neste modo de sermos, estamos fora da dicotomia sujeito-
objeto. Não vigora o objeto, da mesma forma que não vigora o sujei-
to – de modo que não faz nenhum sentido que se fale da pomposa
intersubjetividade. Mas o entre como campo dialógico que envolve os
parceiros da relação eu-tu, da relação inter humana, da inter ação (o
entre, por exemplo, de quando dizemos, cá entre nós: ...). Que se
124
constitui como o dinamismo da dialógica eu-tu, mas não é relação
sujeito-objeto.

É esta esfera fenomenológica e existencialmente intencional --


e intensional --, da dialógica do inter humano que permite a emer-
gência compartilhada de possibilidades, o seu comparilhamento e-
mergente, a sua vivência, e o seu desdobramento, no campo
dialógico intencional, e intensional, da relação inter humana eu-tu.
Esta esfera estética do inter -- na qual vigoram e se desdobram as
possibilidades compartilhadas, no campo dialógico da relação eu-tu --
, é ser, devir, vir a ser, do entre, do inter. O interessere, o interesse,
o interessante. 24

O poder galvanizante, assim, do interesse deste, e neste campo


dialógico fenomenológico existencial, é proporcional à força e poder
criativo que a qualidade e a disposição para a atualização das possibi-
lidades suscitam como campo compartilhado de vivência e de produ-
ção de sentido, de ação; de vivência e desdobramento de
possibilidades.

De modo que a própria constituição do interesse é assim indica-


tiva da constituição e da qualidade do campo dialógico entre os par-
ceiros, da constituição e da qualidade do campo dialógico da relação
eu-tu, do encontro dialógico. A potência do interesse, a potência da
dialógica, é diretamente proporcional às possibilidades e a afirmação
das possibilidades que são engendradas entre os parceiros, no cam-
po, e na momentaneidade do campo dialógico. Mas o interesse é o
próprio campo dialógico. Ale se deve tanta consideração como ao
próprio encontro, e dialógica.

Assim, tudo que impede e embaça a dialógica; tudo que, por-


tanto, impede e embaça a potência e o desdobramento da potência
da possibilidade que no seu âmbito se constitui, impede e embaça
também o interesse, tal é a coincidência do interesse com a dialógica.

Tudo na relação, no eu-tu, no dialógico, inter humano, passa


pelo interesse dos parceiros, e pelo interesse que se constitui como
campo dialógico, de possibilidades e de sentido, de ação, comparti-
lhados.

De modo que, tudo que impede e embaça o interesse, impede e


embaça também a dialógica. A fatalidade (a centração nos fatos, a-
contecidos, na realidade realizada, a indisposição para o devir intrín-
seco à dialógica), a arbitrariedade, a indisposição estética, a
indisposição fenomenológico existencial empírica e experimental, a
indisposição para o diálogo e para o dialógico, a baixa consideração, a
indisposição para a alteridade, para a diferença do outro são fatores
tais.

125
O caráter intrínseco do interesse na constituição do dialógico --
como emergente e emergência da própria relação dialógica, como
emergente e constituinte do próprio campo dialógico --, não exige,
naturalmente, igualdade, ou similaridade das partes.

Pelo contrário, a relação alteritária entre diferentes é condição


imprescindível da dialógica; a dialógica se nutre da diferença, e da
alteridade. Exige a disposição e a disponibilidade estéticas, exige a
disposição para os fluxos da vivência empírica, para o diálogo. Este, e
o seu campo, campo dialógico, interessante, precisamente se consti-
tuem a partir do respeito e da consideração pelas alteridades, do res-
peito, consideração e interesse pela qualidade daquilo que é outro
(alteridade), que no encontro configura a dialógica.

No caso da dialógica entre parceiros educativos, por exemplo,


não se demanda que os professores não tenham a sua perspectiva e
25

os seus pontos de vista particulares -- sobre currículo e


conteúdo, por exemplo. Mas esta perspectiva e pontos de vista são
apenas elemen-tos da alteridade própria destes, que são oferecidos
ao e apresenta-dos no encontro dialógico, ao e no inter-essere, com
os outros parceiros educandos; com o radical respeito pela interação
com a al-teridade de suas posições. E é na dinâmica do encontro
dialógico ati-vo das perspectivas e pontos de vista de uns e de outros
que podem emergir os elementos efetivos de pontos de vista e de
perspectiva da parceria dialógica – no caso, por exemplo, currículos,
e conteúdos.

Da parte dos educadores, nunca se poderá esquecer a impor-


tância para tal da abertura que se contrapõe à imposição, como re-
presentativas das posturas respectivas do educador, e do
propagandista.3
3 Cf. Buber, Martin Elementos do Inter humano. In Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo,
Perspectiva, 1985.

Assim, a constituição da esfera do inter – interessere, dia logos


– não impede a afirmação das diferenças, a afirmação das alterida-
des. Pelo contrário, sem elas o diálogo não sobrevive, delas o diálogo
se nutre, e perdura em sua dinâmica de engendrar possibilidades, e
potencializar a sua atualização.

O diálogo não subsiste e não perdura, sem a disposição para a


sua intrínseca e constante diacrítica – para as diferenças e modifica-
ções potentes, possíveis, que ele próprio engendra; sem a disposição
para a sua estética, e para o seu empirismo experimentativo fenome-

126
nológico e existencial. E sem a consideração radical pela alteridade do
parceiro, sem o interesse dialógico que se pode com ela constituir.

6. Uma Educação para a sociedade Brasileira, uma educa-ção


para seres ativos, e atuantes.

Paulo Freire certamente não pensava nisso, quando desenvolvia


a sua abordagem, à luz de lampião, nos cafundós do Sertão da Paraí-
ba e do Rio Grande do Norte. Mas, ainda que o seu método seja fun-
damental para colaborar com o processo de libertação das massas e
das pessoas das massas das classes oprimidas e excluídas, a sua a-
plicação não se limita ao contexto dessas. A abordagem freireana é
muito importante para as classes e para as pessoas das classes opri-
midas e excluídas porque é muito boa para seres humanos. Porque é
uma educação para a potência criativa, poiética; porque é uma edu-
cação para a ação – que mínguam aterradoramente na sociedade
moderna.

A abordagem de Paulo Freire é o antídoto perfeito para este


preocupante esvanecimento da ação, da atualização, da potência, da
ética da potência, e do possível, da poiética – que nos são ontológi-
cas.

A criação, a produção cultural, são imperativos para a cultura e


para a sociedade Brasileira, da mesma forma que são imperativos a
libertação das classes e das pessoas das classes oprimidas e excluí-
das, e a saúde; saúde social e cultural, a saúde das pessoas e das
comunidades, saúde física, psicológica e sócio cultural, a potencializa-
ção da poiese, e da alegria de viver – todas intrinsecamente ligadas à
ontológica capacidade humana de dialógica vivência do possível, e de
desdobramento dele na ação. De modo que a educação para a potên-
cia e para a ação, para a poiética e para a criação, que caracteriza a
abordagem freireana, é uma educação igualmente ontológica, que é a
dádiva de uma fina flor do Sertão, e da urbanidade oprimida, para a
sociedade Brasileira como um todo, para o ser humano em sua gene-
ricidade. Não é à toa que Paulo Freire faz tanto sucesso no exterior
entre pesoas que se ocupam do desenvolvimento humano.

A abordagem educacional de Paulo Freire é, basicamente, um


compromisso da solidariedade com a humanidade e com a alteridade
das classes e das pessoas das classes oprimidas e excluídas, no Brasil
e no Mundo. Mas não é aplicável apenas aos oprimidos e excluídos,
aos humilhados e ofendidos. Em essência, ainda que possa adquirir
várias formas, é a educação saudável para todo o povo Brasileiro, de
todas as classes e origens. É a educação para a cultura Brasileira, pa-
ra a participação produtiva na reinvenção da sociedade, da cultura,

127
da mulher e do homem Brasileiros; uma educação para a potenciali-
zação do possível, e do devir, para a ação como conhecimento e cria-
ção ativos; no âmbito da educação formal e informal; como educação
para a saúde; como educação ambiental e para a sustentabilidade,
27

para o desenvolvimento comunitário, para a educação política,


para a educação como educação para uma cultura Brasileira da
solidarieda-de, que possa afrontar e enfrentar comunitariamente a
cultura mer-cantilista, corrupta e niilista, da exclusão e da opressão.

Isto porque a educação para a criação e para a criatividade, a


educação para a superação, a educação para a participação sócio cul-
tural e histórica crítica, a educação para a atualização da potência do
possível, a estética, empírica e experimental da educação para a poi-
ese, para ação, para o conhecimento como ação -- que caracterizam
a abordagem freireana --, configuram a ética e a metodológica de
uma educação ontológica, uma educação da vocação humana para o
possível, para a ação, para a crítica, para o conhecer ativo, e para a
ação como ativo conhecer.

De modo que, compromisso de solidariedade com a humanida-


de e com a alteridade das classes sociais oprimidas e excluídas, do
Brasil e do Mundo, a abordagem educacional de Paulo Freire é uma
abordagem de educação para o Brasil, para a cultura e sociedade
Brasileiras; é uma educação para o ser humano.

7. Pré-meditado, e pós-escrito: Uma Educação para seres


epistemogênicos.

No próprio conhecimento, o que


sinto não é ainda se-não a alegria de
minha vontade a gerar e a crescer; e, se
há inocência no meu conhecimento, é
porque há ne-le a vontade de gerar.
Querer liberta: porque querer é
criar: é isto o que eu ensino. E não deveis
aprender senão para criar!
F. Nietzsche.

Vale mais a pena ver uma coisa


sempre pela primeira vez que conhecê-la.
Porque conhecer é como nunca ter visto
pela primeira vez.
Fernando Pessoa

128
Um dos aspectos mais interessantes, importantes, e determi-
nantes da Abordagem de Paulo Freire -- de sua ética: poiética, estéti-
ca, de sua ética dialógica; de sua concepção, e metodológica --, é
que ele entendeu, e foi conseqüente com relação ao seu entendimen-
to de que o conhecer é um processo própria e especificamente ativo;
ou seja, o conhecer é um processo de ação, de criação, de atualiza-
ção, no sentido própria e especificamente fenomenológico existencial
e dialógico do ato; o conhecer, o aprender é um processo eminente-
mente ativo, atualizativo, criativo, produtivo. Ou não o é conhecer e
aprender.

Freire entendeu, assim, que, própria e especificamente, apren-


der é, eminente, e necessariamente, agir, e criar. Criar conhecimento
na ação, na atualização – que é, especificamente, o desdobramento
vivencial de possibilidades, o desdobramento singularmente vivencia-
do de possibilidades. Entendeu que só na ação singular, na criação
própria do agente cognoscente, é que a aprendizagem efetivamente
pode se dar. Num processo, sempre, enquanto aprendizagem, de vi-
vência da produção de conhecimento.

Processo este que -- ação, atualização -- é caracteristicamente


desproposital. E que, ainda que eminentemente produtivo, não é da
ordem do teorético, nem é da ordem do prático, não é pragmático,
portanto; é da ordem da inutilidade poiéticamente produtiva, como o
é, especificamente, o modo de sermos da ação. 29

O modo de sermos da ação – fenomenológico existencial dialó-


gico -- é o modo de sermos de nosso próprio processo produtivo. Na
medida em que é, própria e especificamente, o nosso modo de vivên-
cia, e de atualização, de possibilidades. Modo este de sermos que é
sempre, em seu caráter inútil, desproposital; compreensivo, e não
explicativo; implicativo, e não explicativo; não teorético, não prático,
não pragmático; e produtivo. O modo de sermos do que entendemos
como ação, e como poiesis (Que é, desde Aristóteles, uma dimensão
do conhecer que é diferente da dimensão teorética, e da dimensão da
prática).

Seguindo a Buber, Freire entendeu que, é no privilegiamento --


na relação com o educando -- de uma ética de qualidade poiética –
de uma ética de privilegiamento do modo eu-tu de semos, fenomeno-
lógico existencial e dialógico, inter humano, estético, ativo, que re-
side o substancial da Pedagogia e da Educação. Seja ao nível da
esfera do inter humano, ou ao nível da relação com a natureza
não humana; ou com o sagrado.

Porque, é só no âmbito de uma relação dialógica -- fenomeno-


lógico existencial, estética, poiética, ativa, criativa --, que um ser on-

129
tologicamente epistemogênico, o educando -- como ser que aprende
produzindo conhecimento --, pode, efetivamente, produzir conheci-
mento, e aprender, e agir. Própria e especificamente, na momenta-
neidade pontual da vivência do modo de sermos fenomenológico
existencial dialógico, no qual vivemos possibilidades, e vivenciamos o
desdobramento próprio dessas possibilidades; nas suas formas me-
ramente compreensivas, e/ou compreensivas e motoras do que en-
tendemos como ação, atualização.

O po de poiesis, e de poiética, é umbilicalmente correlativo ao


po de possibilidade, ao po de possível, ao po de potência... Porque
o possível, a possibilidade, a potência, são as características funda-
mentais do modo poiético de sermos. Que é o modo pré-reflexivo de
sermos, pré-teorético, e pré-comportamental; o modo ontológico de
sermos, fenomenológico existencial, eu-tu, dialógico.

A impregnação pela possibilidade -- característica deste modo


ontológico, fenomenológico existencial, dialógico, de sermos --, e o
seu intrínseco desdobramento -- o desdobramento que é inerente à
potência do possível, à potência das possibilidades, e que chamamos
de ação, de atualização --, fazem com que este modo ontológico, es-
tético, e poiético, de sermos seja, própria e especificamente, o onto-
lógico modo de sermos da ação. Porque, como vimos, a ação é o
desdobramento de possibilidade. Poiética é, pois, a ética do possível,
a ética que privilegia a vivência do possível, e a vivência do desdo-
bramento do possível como vivência de ação. O desdobramento desta
vivência é eminentemente da ordem da compreensão, do conheci-
mento. 30

A possibilidade, assim, e o seu desdobramento, a ação, se


constituem como conhecer. A possibilidade é apreensível, é apreendi-
da como conhecer. De modo que a vivência da possibilidade e a vi-
vência do desdobramento de possibilidade, na ação, se constituem
como com(a)preensão – se constituem com compreensão.

Compreensão é, pois, a apreensão do processamento da ação,


da vivência, e da vivência do desdobramento de possibilidades.

A vivência de possibilidade, e a vivência do seu desdobramento,


no processamento da ação, são, própria e especificamente, da ordem
da implicação. É, assim, da ordem da implicação a nossa vivência
compreensiva de possibilidades, e do desdobramento de possibilida-
des, no modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial, dia-
lógico, ativo. O modo ontológico de sermos é da ordem da
implicação. Na medida em que esta vivência é fenomenológica, e
intencional, intensional; e se dá aquém da dicotomização sujeito-

130
objeto, numa relação que, não obstante, se constitui na implicação do
modo eu-tu de sermos.

A vivência, e a vivência do desdobramento, de possibilidades,


pois, o processamento da ação, da atualização, não se dá como rela-
ção sujeito-objeto; mas, própria e especificamente, se constitui como
relação eu-tu, como dialógica, dia-logos; e tudo que o modo de ser-
mos dialógico, o modo eu-tu de sermos, não é, é relação sujeito-
objeto...

Assim no modo fenomenológico existencial e dialógico de ser-


mos da vivência de possibilidades e do desdobramento destas, esta-
mos implicados com a alteridade radical de um tu; somos e estamos
implicados com a alteridade radical de uma possibilidade que se des-
dobra, constituindo-se compreensivamente como ação, atualização.
Buber diria, não sou eu quem produz, mas não acontece sem mim.

Assim, o modo dialógico de sermos, fenomenológico existencial,


ontológico, é da ordem da compreensão, e da ordem da implicação.
Nele, estamos implicados com a alteridade radical – seja alteridade
da ordem da natureza não humana, alteridade da ordem do inter
humano, ou da ordem do sagrado. Alteridade esta que, no âmbito da
implicação, se dá como potência de possibilidade que se desdobra em
ação, atualização, atualidade, e presença.

Não há explicação que possa conduzir à compreensão.

Já dizia Takuan Soho, o mestre zen, há mais de três mil anos


atrás.

Porque, própria e especificamente, a compreensão é da ordem


da implicação -- implicação fenomenológico existencialmente inten-31

cional, intensional. Implicação que, como âmbito próprio do


acontecer -- posição do ator --, dá-se como modo de sermos que é
anterior ao acontecido. Acontecido este que permite a posição da ex-
plicação, posição do espectador.

Assim a implicação da ação, fenomenológico existencial dialógi-


ca, é a posição e ponto de vista, meramente compreensivo, ou com-
preensivo e muscular, do ator. Enquanto que a explicação é o ponto
de vista do espectador. A perspectiva teorética da explicação é a
perspectiva do espectador, do espectador que não está na Implica-
ção, na vivência implicativa – do modo ontológico de sermos, feno-
menológico existencial, dialógico. Por ser própria a e específica deste
modo ontológico de sermos, a vivência de possibilidade, de potência,
e o seu desdobramento na ação, compreensiva, implicativa, não
comportam e são excludentes do modo explicativo, do modo teoréti-

131
co, de sermos. Por mais que este tenha a sua importância. Que não é
a da vivência de possibilidades, e da ação.

Diversamente deste modo -- com relação à perspectiva teoréti-


ca da explicação --, a perspectiva compreensiva da vivência ontológi-
ca, fenomenológico existencial, dialógica, e ativa, é a perspectiva
implicativa do ator, na pontualidade sincrônica do transcurso da per-
formance da ação – ou seja, da vivência de possibilidades, e do des-
dobramento destas possibilidades.

Depois que as possibilidades, como vivência, se desdobram, a-


contecem, depois que são atualizadas, os seus produtos, que são
produzidos pela evasão da potência da possibilidade; produtos, por-
tanto, de possibilidades exauridas, ou seja, objetificadas, os seus ob-
jetos coisificados, podem ser contemplados pela ótica agora do
espectador, do teórico, e ex-plicados.

De modo que a pedagogia dialógica, fenomenológico existencial


de Paulo Freire, estética e poiética, está longe de ser uma pedagogia
teorética, explicativa. Meramente porque no âmbito do teorético, no
âmbito do explicativo e da explicação, não há mais vivência de possi-
bilidades e do desdobramento de possibilidades, não há compreen-
são, não há atualização, não há ação.

E o conhecimento e a aprendizagem se dão especificamente


como a criação que decorre da vivência de possibilidades, e da vivên-
cia do desdobramento de possibilidades, compreensiva e implicativa;
como interpretação fenomenológico existencial dialógica (que não é
explicativa), como ação, atualização; como poiesis, como poiética.

Aprendemos, assim, produzindo ativamente conhecimento. Co-


nhecimento que, em sua originalidade, se constitui compreensiva e
implicativamente, na pontualidade da sincronia de sua atualização.

Teórica e explicativamente, nós não aprendemos; teórica e ex-


plicativamente nós não criamos conhecimento. Teórica e explicativa-
mente nós contemplamos, como espectadores, o conhecimento que
32

já existe, e o repetimos em suas formalidades, sem que ele nos


im-plique ativa e criativamente.

O conhecimento se re(a)presenta teórética e explicativamente.

Compreensivamente, implicativamente, o conhecimento especi-


ficamente se apresenta, enquanto ato de conhecer, na pontualidade
compreensiva da presença e da atualidade.

132
De modo que a Abordagem de Paulo Freire -- consciente, e eti-
camente --, destinada a seres que, ontologicamente, aprendem em
um processo ativo de produção de conhecimento, e que só desta
forma aprendem; destinada, assim, a seres epistemogênicos, os hu-
manos; a Abordagem de Paulo Freire privilegia o modo de sermos da
ação, o modo de sermos da experimentação, da interpretação com-
preensiva, fenomenológico existencial dialógica. A dialógica do modo
compreensivo de sermos, na relação com a natureza não humana, na
relação inter humana, na relação com o sagrado.

Podemos ver assim como a abordagem de Paulo Freire está dis-


tante das abordagens vigentes de Educação, que pedem dos educan-
dos, apenas, que se comportem, e não atrapalhem, ao longo do
suposto processo educativo.

CONCLUSÃO

133
AS CONDIÇÕES FACILITADORAS BÁSICAS COMO
PRINCÍPIOS DE MÉTODO FENOMENOLÓGICO
EXISTENCIAL: II. A RELAÇÃO EMPÁTICA. Empatia e
Dialogicidade.

O objeto deve consumir-se para se tornar


presença, retornar ao elemento de onde veio
para ser visto e vivido pelo homem como
presente.
(M. Buber)

Quando se concebe a idéia de empatia, não se observa,


normalmente, a dimensão da dinâmica de interação e de re-criação
de diferenças entre os parceiros, inerente ao processo da relação
empática. Tem-se sempre em mente o esforço, a disposição, o gesto
do terapeuta, no sentido de uma compreensão do como o cliente se
percebe ou se sente no momento, como percebe o mundo que lhe diz
respeito e as suas relações, da forma a mais acurada possível.

Naturalmente que a definição deste esforço, desta disposição e


gesto do terapeuta, são componentes fundamentais de um certo
modo do que se pode entender como empatia. Limitado, entretanto,
a esta perspectiva, este parece ser um modo grosseiro, e, pior que
isto, um modo de compreensão passível de gerar mal-entendidos que
comprometem bsicamente o que se quer ter por empatia.

O mais grave desses mal-entendidos é que a limitação a este


modo de formulação reflete uma certa concepção objetivista do
„outro‟, e (pasmem) uma certa concepção objetivista de sua
subjetividade! O que é certamente um absurdo. Concebe-se
frequentemente a empatia como um esforço cognitivo, inorgânica e
artificialmente articulado à afetividade do terapeuta. Este modo de
concepção perde o que existe de fundamental no processo da relação
empática. Na medida em que o cliente é constituído desta forma
como objeto de relação e de conhecimento. E, seguindo Buber, o que
é fundamental é, exatamente, que o parceiro não seja objeto, mas
vivido. Que o parceiro não seja, empiristicamente, entendido como
um objeto autônomo, dissociado de mim, terapeuta.

Esta pessoa do cliente, tal como me aparece na minha relação


com ele, só existe como tal em função desta relação em que sou
pólo. O que me implica inextrincavelmente, nos níveis
existencialmente mais básicos de mim mesmo, vivenciais, pré-
reflexivos. 3

134
O fundamental é que o cliente não seja entendido como objeto
de conhecimento abstrato, mas afirme-se e confirme-se na relação
comigo como um parceiro efetiva e fenomenalmente vivido,
dialogicamente, no confronto com, e privilegiamento de, sua
alteridade viva, ativa e autônoma. Que ele não objetificado,
assepticamente, teorizado ou simplesmente conhecido
reflexivamente, por este seu parceiro num evento da vida,
eventualmente terapeuta.

Uma relação empática objetivista perde o valor de sua


dimensão existencial, do seu poder de atuação e de trans-form-ação
produtiva, tanto da existência do cliente como da existência do
terapeuta. Ou seja, perde a referência deste poder como seu sentido
e condição de sua possibilidade. Mais importante, transforma-se em
sofisticado dispositivo de manipulação e de produção da subjetividade
do cliente. Para compreendermos e efetivarmos a relação empática, é
interessante a preservação deste seu caráter duplo, de transformação
existencial tanto do cliente como do terapeuta.1
1. Wood e O’Hara apontam para este caráter da relação empática. Cf. Rogers e outros EM BUSCA DE
VIDA, São Paulo, Summus, 1984.

2 Cf. BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Summus, 1983. e DO DIÁLOGO E DO DIALÓGICO, São
Paulo, Perspectiva, 1985. Formatado: Português (Brasil) Formatado: Português (Brasil)

Mais que isto, é fundamental enfatizar que é exatamente a


interação pontual, sincrônica e sintônica, desses processos
simultâneos e diferenciados de transformação existencial que se
configura como relação empática. Em momento algum, na efetiva
relação empática, o cliente (e muito menos o terapeuta) é objeto --
de relação, de conhecimento ou de uso -- na medida em que o
processo desta relação desdobra-se numa esfera vivencial, vivida, de
relação entre2 parceiros fenomenativos que, em momento algum, são
circunscritos objetivamente. Os parceiros de relação estão fenomenal
e existencialmente implicados em seu processo relacional. De modo
que nenhum dos dois é isento do outro ou de si mesmo, de modo a
poder constituir o parceiro ou constituir-se a si próprio como objeto.

O outro, portanto, na duração da relação empática, é sempre


parceiro vivo e em devir, na dinâmica fenomenológico-existencial do
encontro, co-participante, nunca objeto; nem mesmo de
conhecimento.

Com o outro, na empatia, a relação é ontológica, relação de


totalidade de ser, existencialmente produtiva, nunca uma busca
objetivista de conhecimento, muito menos um esforço de uso do
parceiro, em nenhuma de suas modalidades -- homem nenhum é
meio para outro (Kant). De modo que a empatia é,
fundamentalmente, um processo existencial de dupla constituição. A
empatia cria e recria o si mesmo do terapeuta, ao mesmo tempo em
que torna possível a criação e recriação do cliente.
135
O outro é uma modificação do meu eu.
(E. Husserl). 4

Reside aí muito do que se pode atribuir de valor terapêutico à


relação empática.

Um equívoco comum quando se concebe vulgarmente a idéia


de empatia é o de julgar que esta consiste, atomísticamente, numa
suposta apreensão do estado do outro. Quase como se o outro fosse
um continente de cujo conteúdo eu quisesse e pudesse
cognitivamente apropriar-me. É, nesta visão distorcida da empatia,
quase como se o outro fosse um recipiente de conteúdos psico-
afetivos, dos quais eu me aproprio compreensiva (tolerante) e
bondosamente, de um modo às vezes quase que telepático. O outro
em questão é, assim, um objeto (sem dúvida nobre objeto, mas
ainda objeto) de conhecimento, ou, no máximo, de relacionamento.
Por mais que a este esforço cognoscente tente-se, mecanicamente,
adicionar uma dimensão afetiva. O terapeuta é, neste caso, por mais
que o negue, “neutro”, por mais que represente ou simule um
envolvimento com o cliente.

Mecanicamente, o que o terapeuta parece às vezes tentar é a


reprodução cognitiva, em si próprio, do que ele imagina apreender do
cliente como objeto de atenção.

O que de fato ocorre, na apreensão que o terapeuta faz do


cliente, é um esboroamento das diferenças existentes e engendradas
como processo de diferenciação entre o terapeuta e o cliente, uma
redução do conflito, potencialmente produtivo e criativo, entre
alteridades. Terreno fértil este para potentes manipulações por parte
de terapeutas eventualmente incompetentes e dominadores.

Só existe Empatia na relação fenomenal efetivamente vivida


entre diferentes. Mais que isto, entre diferentes que privilegiam, que
podem e querem fascinar-se pelas respectivas diferenças, e pelos
fluxos dos processos destas. Só existe empatia no fluxo de processos
de diferenciação, que se engendram reciprocamente entre os
parceiros em interação. A tensão da relação fugaz entre diferentes é
condição de possibilidade da empatia.

Compreender o outro em sua particularidade é, fundamental e


inevitavelmente, relacionar-se efetivamente com o diferente, com a
diferença, com configurações de diferenças em fluxo, devir. E isto
exige, e só é possível, na medida em que, em me abrindo para a
diferença do outro, efetivamente sou afetado por sua outridade, e me
crio como diferente, dele e de mim mesmo, como diferença, como
fluxos de diferença.

136
De modo que a empatia não tem a ver com um tornar-se
similar, igual, ao cliente, ou vice-versa. Não tem a ver com uma
redução das diferenças entre eu e ele. Muito pelo contrário, a empatia
nutre-se fundamentalmente da diferença, configura-se basicamente
como processo de diferenciação, no qual as diferenças se encontram,
confrontam-se, e são recriadas, como diferenci/ação. 5

Paradoxalmente talvez, para um certo tipo de perspectiva, não


é isto que me distancia do parceiro de relação. Muito pelo contrário: o
processo da diferenciação ao longo da relação é condição de
possibilidade de uma relação de vínculos saudáveis e fortes. Negar ou
reduzir as diferenças, é inviabilizar a possibilidade da relação, é negar
ou reduzir o outro e a mim mesmo, é reduzir a possibilidade do nós:
de um nós vitalizado e rico, de vínculos fortes, não de um nós
confluente e amorfo. A negação da diferença do outro é a primeira e
a mais básica impossibilidade da empatia, e da relação. A relação
empática desdobra-se exatamente a partir do interesse espontâneo e
ativo pela diferença do outro, que permite uma abertura para esle
enquanto tal.

Para o bom terapeuta, o cliente é, sempre e sempre,


inevitavelmente outro, e autônomo em sua outridade. Mais que isto,
o bom terapeuta privilegia o reconhecimento e a afirmação deste
dado da realidade, e faz dele a fonte da criatividade, e a força motriz,
do processo da psicoterapia.

Evidentemente que o terapeuta não pode relacionar-se com


todos os possíveis desta outridade do cliente, nem mesmo
acompanhar todos os fluxos de suas variações. Da mesma forma que
nem mesmo o próprio cliente pode dar-se conta em si dos matizes e
fluxos, a cada momento, da outridade de si próprio. Mesmo que a
cada momento esta se apresente sob formas de configurações
significativas totalizadas. Mas, a cada momento, existe a
possibilidade de abertura pontual do terapeuta na relação com a
particularidade desta outridade do cliente. Nos momentos em que
efetiva-se esta possibilidade, terapeuta e cliente já não são simples
objetos em relacionamento( Isso e Isso, como diria Buber), já não
são um para o outro objetos de relação, de conhecimento, ou de uso,
mas são co-partícipes, co-laboradores em um processo relacional,
sutilmente imprevisível, que mobiliza em sua duração a constituição
de suas respectivas consciências vivenciais. “Parceiros em um evento
da vida”(Buber). Relação imprevisível, em particular, porque
configura-se como momento eminentemente plástico
existencialmente, plasticidade à qual nenhum dos dois parceiros é
imune, e à qual nenhum dos dois pode controlar.

137
A relação empática é, assim, fundamentalmente marcada pelo
que Buber chamava de Dialogicidade.3
3.op. cit.

4. BUBER, Martin, op. cit. p. .32.

“O homem se torna EU na relação com o TU.”4

Daí ser o momento empático um momento eminentemente


plástico de criação e recriação. Criação e recriação que afetam e
implicam tanto ao cliente como ao terapeuta. Podemos dizer que só
existe empatia quando existe afetamento e implicação recíprocos.
Contaminação (pela outridade). Impregnação, no sentido gravídico
(existencial) do termo. 6

Arbitrariamente -- porque em realidade isto não tem esta


ordem --, podemos tomar este ponto como ponto de partida da
relação empát ica. É esta impregnação, este emprenhamento, pela
outridade do outro, os efeitos de uma certa vulnerabilização e
afetação por esta outridade, que permite ao terapeuta ser empático.

Usemos os termos de Buber.

A efetivação da abertura do terapeuta* em relação com a


outridade do cliente só é possível na medida em que, para si próprio,
o terapeuta pode modificar-se, e ser também um outro do que era. A
abertura efetiva do terapeuta para o cliente enquanto TU só é
possível na medida em que o terapeuta se recria o enquanto EU. O
que marca e define o TU é exatamente a sua diferença, a presença de
sua outridade, de sua alteridade: relacionar-se com o TU implica na
atualização de potencialidades, de possibilidades de ser, para estar-
se à altura (digamos) da relação com a sua novidade -- “O outro é
uma modificação do meu eu” (Husserl): e isto nada mais é do que
recriação do próprio EU.
* Eventualmente usamos aqui os termos terapeuta e cliente, mas o processo da relação pode desenvolver-se
e efetivamente desenvolve-se entre quaisquer parceiros humanos. Formatado: Português (Brasil)

Para o cliente, naturalmente, o terapeuta é também, sempre e


sempre, inevitavelmente outro.

Evidentemente que ele, cliente, também não pode dar-se conta


de todos os possíveis desta outridade, nem acompanhar os fluxos de
sua variação. Mas o cliente também pode abrir-se eventualmente
para a atualidade da outridade do terapeuta, e com ele relacionar-se
enquanto TU. Pode vulnerabilizar-se e impregnar-se pela relação com
a alteridade do terapeuta, e, ainda que autônomamente, recriar-se
como EU, na relação com ele.

138
Ora, nos fluxos e contra-fluxos da relação terapêutica, existe
uma dimensão particular da objetivação do TU do terapeuta à qual o
cliente é particularmente sensível e vulnerável: o terapeuta é
pessoalmente afetado à medida em que se abre para a relação com o
cliente enquanto TU. Este afetamento específico, como vimos, implica
de um modo particular, a recriação do EU do terapeuta. Recriação
que se dá pontual e especifica e necessariamente na relação com o
cliente particular. É a participação deste EU assim recriado na relação
com o cliente, a sua objetivação, que configura-se como o próprio
núcleo do que chamamos de resposta e ação empáticas do terapeuta.
O cliente é particularmente sensível a esta forma de objetivação e do
ser e estar do terapeuta. Desta forma particular de ser do terapeuta
que é para ele efetivamente terapeuta como TU, como um outro que
dialogicamente com ele se relaciona.

Esta dita forma de objetivação, de ser e estar do terapeuta,


cria-se, engendra-se, na relação específica, particular, pontual e
intransferível com ele próprio (cliente). Num certo sentido, constitui-
se como uma ressonância do próprio ser do cliente, ainda que seja,
sempre e sempre, 7

inevitavelmente outro. Na verdade, é uma incontrastável


confirmação5 de seu (do cliente) próprio eu, da efetividade e
existencial realidade deste.
5 cf. BUBER, Martin, DO DIÁLOGO E DO DIALÓGICO. São Paulo, Perspectiva, 1982.

6 op. cit. Formatado: Português (Brasil)

Na relação viva com o desafio deste TU que é outro e que


mesmo assim confirma-o efetivamente, o cliente pode recriar-se de
modo efetivo, superando, sempre que possível e interessante, o seu
próprio status-quo.

A empatia tem a ver, assim, com a oferta, com a objetivação


por parte do terapeuta de uma dimensão fenomenológico-existencial
sua que elabora-se especificamente na relação com o cliente.
Dimensão que exige expressar-se em seu lugar e tempo próprios,
que é a relação entre o cliente e o terapeuta particulares, na
atualidade de um momento e lugar particulares.

Esta dimensão configura-se inequivocamente como pertinente à


particularidade do terapeuta, a sua outridade em relação ao e com o
cliente. Engendra-se na relação particular com este, mas está fora de
seu controle, uma vez que elabora-se como EU do terapeuta. Nela
não existe simetria com relação ao cliente, ou com relação a um
estado seu, não existe aproximação redutora de diferenças, mas,
basicamente, a reafirmação e a recriação delas. E isto é bom,

139
benigno, saudável e produtivo, criativo, potencializador de vínculos
saudáveis.

Ao apreender a particularidade do outro, o apreendido já não


guarda semelhança com o outro em questão. Intimamente articulado
a ele, é não obstante, elaboração do sujeito que apreende.

Esta elaboração é absolutamente idiossicrática e envolve,


inclusive, a imaginação, e em particular a responsabilidade do sujeito
que apreende. Como observa Buber, os dados empíricos da
experiência não nos oferecem o outro em sua particularidade e
completude. É necessário uma vigorosa penetração imaginária no
outro, uma fantasia do real, como chamava6, para que possamos
configurá-lo em nossa consciência. Uma fantasia que, como tal, é
imaginária, mas que não se pauta pelos ilimites da imaginação, mas
amarra-se à peculiaridade efetiva e imediata da atualidade do outro
em inter/ação.

De modo que a apreensão que tenho do outro não configura-se


como similaridade do outro, representação do outro, em minha
consciência. Mas é, em todos os momentos, elaboração minha.
Constituída, oferecida, objetivada, como participação minha na
relação: é a particip/ação de uma produção minha -- engendrada na
relação com o outro -- que ao outro é oferecida.

Evidentemente que todo este processo exige do cliente a


preservação e a atualização de uma abertura para a relação com o
terapeuta enquanto TU. Num certo sentido, exige-se do cliente a
mesma capacidade e disposição de ser empático, para que possa ser
a ele acessível a empatia do terapeuta. 8

Naturalmente que esta capacidade do cliente correlaciona-se


necessariamente, no fluxo da relação empática, com a capacidade do
terapeuta de ser, para o cliente, simplesmente interessante, no
sentido relacional e existencial do termo. Uma capacidade do
terapeuta que tem um de seus pontos culminantes em sua condição
de poder vulnerabilizar-se à outridade peculiar, enquanto tal, do
cliente, de ser por ela afetado e recriado, e de poder oferecer,
objetivar, na relação com este, a efetividade deste seu eu recriado.

A empatia, portanto, ao contrário do que se pode


eventualmente pensar, vive da diferença, da articulação e interação
de diferenças, da relação de alteridades, que se afirmam e se recriam
como alteridades nos processos de sua interação.

140
ONTOLÓGICA DA PRESENÇA E DA ATUALIDADE

O objeto deve consumir-se para tornar-se presença.


M Buber.

CONCLUSÃO

Presença e Atualidade são duas perspectivas descritivas das


caracterís-ticas do modo ontológico de sermos. Junto com as outras
características deste modo de sermos -- como a sua não objetividade
nem subjetividade, o seu dar-se no modo dialógico da ação, e não no
modo de sermos da dicotomia sujeito-objeto, o seu característico e
intrínseco despropósito, a sua característica des-propositalidade
acausal, o seu intrínseco caráter de inutilidade, por se dar num modo
de sermos que é anterior ao modo de sermos dos úteis e das
utilidades – o caráter de presença – como o modo não cois, pré-
coisa, de sermos; e de a-tualiade, como o modo de sermos da ação –
constituem a vivência do modo ontológico de sermos, fenomenológico
existencial e dialógico, compreensivo, e implicativo.

De modo que é essencial a compreensão e a consideração pela


presen-ça e pela atualidade, e pelas demais características do modo
ontológico de sermos, para a compreensão da concepção e da
metodologia de uma aborda-gem que, conceitual e
metodologicamente, privilegia, em sua prática estética e poiética da
inutilidade, este modo ontológico de sermos, da criação, da alegria,
da superação, da saúde. .

INTRODUÇÃO.

Da perspectiva de uma Ontologia Fenomenológica, podemos


enquanto humanos, existir de dois modos distintos, e alternantes.
Cada um com suas particularidades experienciais próprias e
específicas. A cada um deles corres-pondem, respectivamente,
modos diferentes de sermos, modos diferentes de consciência: o
modo de ser fenomenológico, da consciência pré-reflexiva,
compreensiva, e implicativa; e o modo de sermos da consciência
reflexiva, ex-plicativa, e/comportamental. Podemos existir, assim: (1)
como coisa instalativa, como acontecido, como passado, e como
especta-do. Ao modo da consciência reflexiva, teorética, explicativa.
Ou podemos existir: (2) como vivência e ação, vivência de ação,

141
como acontecer, como atores, co-mo atualidade e presença – ao
modo da consciência pré-reflexiva, compreensi-3

va, implicativa, fenomenológico existencial e dialógica; também


chamada de Ontológica. Na medida em que é entendido como,
igualmente, Ontológico oes-te modo específico de sermos.

Ao modo explicativo de sermos -- ao modo de sermos da


coisidade ins-talativa, ao modo de sermos do passado, e do
acontecido -- dá-se, ainda, o modo de sermos do comportamento.
Caracteristicamente, própria e especifi-camente, o comportamento é
o modo de sermos da atividade padronizada e repetitiva. Que,
enquanto tal, quanto mais padronizada e repetitiva, menos
consciência é. Cada vez mais desnecessária a consciencia, na medida
em que mais padronizada e repetitiva é a atividade. O modo
compreensivo e implicativo de sermos da ação, e o modo de sermos
explicativo e teorético da coisidade instalativa, são intinsecamente
caracteriza-dos como modos de sermos de consciência.

Um, o modo de sermos da consciência compreensiva,


implicativa. O ou-tro, modo de sermos da consciência explicativa,
teorética.

Assim, é exatamente esta específica característica de


desconcienciação que torna o modo explicativo de sermos do
comportamento, enquanto modo de sermos, intrínsecamente distinto,
tanto do modo de sermos da consciência compreensiva e implicativa -
- pré-reflexiva, ontológica, fenomenológico existen-cial e dialógica,
consciência do ator, do acontecer --; como igualmente distinto do
modo de sermos do espectador, do modo de sermos do acontecer, da
coisa instalativa, da consciência teorética e reflexiva, explicativa.

Alternamos regularmente entre estes dois modos de sermos.


Entre o modo implicativo, compreensivo, de sermos do presente e da
presença, da a-ção, da ataulização, do acontecer; e o modo
explicativo de sermos.

O modo implicativo de sermos é originário. E desdobra-se no


sentido do modo explicativo de sermos.

A coisa, característica da instalação do modo explicativo de


sermos, é, em Grego, designada de ente. Donde deriva a designação
de Ôntico de seu modo de ser. Ôntico significando „do ente‟.

Em contraposição à designação de Ontológico, que recebe o


modo de sermos implicativo da ação, fenomenológico existencial e
dialógico, compreen-sivo. Caracterizado pela vivência de sentido –

142
pelo logos – da consciência pré-reflexiva, onto-lógica, fenomeno-
lógica, dia-lógica; compreensiva e implicativa.

Como o modo explicativo de ser da coisa, do ente, dá-se em


seguida à vivência do modo ontológico de sermos, este modo
ontológico de sermos, fe-nomenológico existencial, dialógico, é o
modo pré-ente de sermos, o modo de sermos de pré-coisa, o modo
presente de sermos. O modo de semos do pre-sente, da presença. Da
atualidade (Que, enquanto tal, é definida pelo ato, pela ação).

Própria e especificamente, neste modo ontológico de sermos,


fenomeno-lógico existencial e dialógico, vivenciamos a Presença e a
Atidade -- a Atuali-zação, a Atualidade. Que são qualidades próprias e
específicas, intrinsecamen-4

te constituintes, deste modo de sermos. Cognitivamente


constituídas como consciência pré-reflexiva, como compreensão, e
implicação.

As qualidades de Presença e de Atualidade são, pois,


características on-tológicas fundamentais. As noções de Presença e
de Atualidade descrevem portanto duas características intrínsecas ao
modo Ontológico de sermos – in-trínsecas ao modo de sermos
fenomenológico, existencial, e dialógico. Modo originário de sermos
da vivência da ação, e de sentido (de logos), da consciên-cia
compreensiva e implicativa, pré-reflexiva, fenomenológica,
existencial, dia-lógica, ontológica.

O ONTOLÓGICO, assim, enquanto PRESENÇA e ATUALIDADE,


enquanto o modo, pré-coisa, pré-ente, presente, de sermos;
enquanto vivência de sentido, logos, o sentido, logos, ontológico de
sermos, fenomenológico, existencial, e dialógico, compreensivo, e
implicativo; e enquanto modo de sermos característico e distintivo do
humano.

Podemos ser, assim, de dois modos distintos. Modos estes que


corres-pondem a dois modos distintos de consciência. (1) O modo de
sermos da ação, e do ator; modo de sermos da consciência pré-
reflexiva, compreensiva, e implicativa, modo de sermos da vivência
de sentido (logos), fenômeno-lógico, onto-lógico, implicativo,
especificamente a preseça, o modo pré-coisa (pré-ente) de sermos,
modo de sermos pré-ente, presente, a-tual – da atualização e da
atualidade. (2) E o modo de sermos, explicativo, do espectador, e da
instalação da coisi-dade -- que não é o modo próprio de sermos da
ação nem do ator, que não é o modo de sermos da consciência,
própria e específica, da presença, da ação, da atualização, e da
atualidade. Modo teórico de sermos, o modo de sermos do
espectador, é o modo de sermos da consciência reflexiva,

143
representativa, ex-plicativa – que não é consciência implicativa, que
não é implicação.

Temos a considerar, ainda, como modo não implicativo,


explicativo, de sermos, como observamos, o modo de sermos do
Comportamento. Que é o modo de sermos da atividade padronizada
e repetitiva. Que, como tal, não se caracteriza por um modo de
consciência, na medida em que -- atividade padro-nizada e repetitiva
--, é um modo de sermos de cada vez mais plena de des-
conscienciação.

Sendo, assim, o oposto polar, o antípoda, do modo ontológico,


fenome-nológico existencial, compreensivo, e implicativo, de sermos.
Na medida em que a instantaneidade momentânea da vivência deste
modo ontológico de sermos é toda ela impregnada de consciência,
própria e especificamente, de logos, de sentido: a consciência pré-
reflexiva, fenomenológico existencial e dia-lógica, compreensiva,
implicativa; a consciência do ator, e da ação.

O modo explicativo de sermos do comportamento, modo de


sermos da atividade padronizada e repetitiva, portanto, é um modo
de sermos da des-conscienciação. Enquanto que o modo ontológico
de sermos da ação é um seu oposto polar, enquanto modo de
sermos. Um seu antípoda, na medida em que é, essencial e
especificamente, impregnado de logos, de vivência de sentido, 5

de vivência de consciência – como desdobramento de


possibilidades. Pré-reflexiva, fenomenológico existencial, e dialógica,
compreensiva, implicativa.

Ação e Comportamento não são a mesma coisa (Arendt). Ação


e Com-portamento são modos distintos, e polares, de sermos. A ação
é lógica. Mas onto lógica, fenomeno lógica, dia lógica. Enquanto que o
comportamento, en-quanto atividade padronizada e repetitiva, é (se
nos permite) des lógico, des logia, des logização.

Comportamento não é ação; ação não é comportamento.

O que caracteriza a ontológica do modo ontológico de sermos


da ação -- fenomenológico, existencial, e dialógico -- é a vivência do
logos compreensivoe implicativo que se constitui ao longo do
desdobramento das possibilidades. A vivência de sentido. A
consciência que é vivência de logos, de sentido. Que é consciência
compreensiva.

A ação é desdobramento de força: desdobramento de


possibilidades. No seu desdobramento, as possibilidades
originariamente se constituem como consciência pré-reflexiva. Elas

144
são preendidas, compreendidas, compreensão, como consciência pré-
reflexiva, como sentido, como logos. Fenomeno-logos, onto-logos. O
modo de sermos com-preensão – do logos, do sentido. Apresen-
tação.

Diferentemente da consciência teórica, explicativa, que é re(a)-


presentação, representação, re-flexão. Que se constitui como
repetição, re(a)presentação. Não se constituindo a partir do
desdobramento de possibili-dades, e da constituição deste
desdobramento como sentido, como compreen-são, e implicação.
Ação.

De modo que a consciência ontológica, compreensiva,


implicativa, espe-cificamente é apresentação. Enquanto que a
consciência explicativa, na qual não se constitui significativamente o
desdobramento de possibilidades, a com-preensão, o sentido, a
implicação, é da ordem do acontecido, da re-presentação – da
re(a)presentação.

A vivência das possibilidades em seus desdobramentos -- que é


o que entendemos por ação, atualização, e que se dá no modo de
sermos da presen-ça --, se constitui como consciência pré-reflexiva,
como logos, onto logos, se constitui como sentido (logos), fenômeno.
Aparece e se constitui, e se apresen-ta como tal em todo o decorrer
de seu desdobramento. Ou seja, em todo o seu desdobramento a
vivência da ação é vivência de sentido, compreensivo, impli-cativo,
vivência de logos, fenômeno-logos, onto-logos.

Assim, a consciência ontológica, compreensiva -- enquanto


desdobra-mento da ação -- é apresentação, é vivência de consciência
originária, vivência de sentido, original, inédito, único, irrepetível. É
assim na medida em que é vi-vência original e originária de
possibilidades, inéditas e únicas.

(1) Este sentido que vivenciamos no decorrer da vivência


fenomenológi-ca, que é intrinsecamente ação compreensiva e
implicativa, é a vivência de sentido, de logos, que nos caracteriza
enquanto humanos. Este sentido que vivenciamos neste modo de
sermos é, portanto, ontológico. 6

(2) O modo de sermos no qual vivenciamos este sentido


ontológico é o modo ontológico de sermos. Fenomenológico
existencial e dialógico. Modo de sermos da ação, compreensiva e
implicativa.

(3) Este modo de sermos é ontológico, ainda, porque, numa


perspectiva da Ontologia (que é a área da Filosofia que estuda os

145
aspectos definidores dos seres), é o modo de sermos que é
característico e definidor deste ser humano que somos, devimos.

Este modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial e


dialógico, compreensivo, modo ativo – e não instalativo – de sermos,
implicativo – e não explicativo --, caracteriza-se por ser da ordem do
modo de pré-coisa, de pré-ente, de sermos; modo de sermos do
presente, da Presença. E, por ser da ordem da ação, caracteriza-se
por ser o modode sermos da atua-lização, da atualidade.

PRESENÇA

Para compreendermos o sentido de vivência da presença --


como quali-dade característica do modo ontológico de sermos,
fenomenológico existencial e dialógico --, é importante entendermos,
pois, e considerarmos, que podemos -- e que pode o mundo que nos
é intensionalmente cabível e concomitante – alternativamente ser (1)
Presente, não coisa, vivência. No modo compreensivo e implicativo de
ser-mos da ação, da atualização, do acontecer, pré-reflexivo,
fenomenológico exis-tencial e dialógico, ontológico. Modo de sermos
– eu-tu -- alheio à dicotomia sujeito-objeto. Especificamente projeto,
projetação da expressão das possibili-dades. Não objetivo nem
subjetivo, acausal, inútil, não real. Pelo seu caráter próprio de
possibilidades em desdobramento. De ação, atualização, realização --
; e podemos, e pode o mundo, (2) ser coisa, instalativa -- no modo
explicativo de sermos do acontecido, refle-xivo, teorético, objetivo e
subjetivo, intersubjetivo, causal, útil, real.

A dinâmica da momentaneidade instantânea do modo não coisa


de ser-mos -- como ação, como atualização, compreensiva, de
possibilidades -- con-flui, escoa, sempre, para o modo coisa de
sermos. À medida que a possibilida-de perde em força, e assim se
atualiza, se realiza; e, simultaneamente, se coi-sifica, se constitui em
coisa. Instal-ação.

Como observamos, a palavra ente significa, em Grego, coisa.

De modo que, no explicativo, não implicativo, modo coisa de


sermos somos -- e é o mundo -- entes, ônticos (de entes).

Sempre como resultado da vivência da momentaneidade


instantânea do modo ontológico de sermos, se constitui a condição do
modo de sermos das coisas, a condição do modo de sermos dos
entes, própria e especificamente. 7

Já no modo ontológico de sermos, no modo de sermos do


desdobra-mento da força, desdobramento das possibilidades, não
146
somos coisas, não somos entes. No modo ontológico de sermos --
fenomenológico existencial e dialógico -- não somos a condição, o
modo de sermos do ente, e de ser o mun-do e de seus entes.

Em específico, no modo ontológico de sermos, fenomenológico,


existen-cial e dialógico, compreensivo, e implicativo, somos pré-
entes. Somos presen-tes. Somos o modo de sermos do presente. O
modo de sermos da presença.

Modo de sermos da vivência da ação, anterior e mais originário,


assim, com relação ao modo de sermos das coisas, dos entes.

O modo ontológico de sermos – modo de sermos do presente e


da pre-sença -- é, não obstante, o modo de sermos no qual emergem
e se constituem, se atualizam, as coisas, os entes. Originariamente,
eles se dão como possibili-dades, como possíveis em desdobramento,
no modo de sermos da presença. O modo ontológico de sermos,
modo de sermos do presente e da presença, é o modo de sermos em
que as coisas, em que os entes, estão “prontos”. Estão “prestes”
(estão pret, pré), como possibilidades, como forças.

Este modo ontológico de sermos, portanto -- fenomenológico


existencial e dialógico, compreensivo, e implicativo, o modo de
sermos da ação, e do ator --, é, assim, o modo pré-ente, de sermos,
o modo de sermos do presente, da presença, o modo pré-coisa de
sermos... Carracterizado pela consciência pré-reflexiva,
fenomenológica e existencial, compreensiva e implicativa.

Presença, assim, é a vivência de sentido (lógica) deste modo de


sermos -- ontológico, fenomenológico, existencial, dialógico,
compreensivo, e implicati-vo, vivência do modo de sermos do
presente --, que se constitui e caracteriza como o ativo modo de
sermos de pré-coisa. Modo de sermos anterior ao modo de sermos
em que a coisa, o ente, está constituido. O presente, a presença, são
pré-entes, pré modo de sermos do ente; presente, pré modo de
sermos da coisa. Pré-coisa, própria e especificamente – pré-ente.
Presença.

Vivência de consciência pré-reflexiva, compreensiva,


implicativa, feno-menológica e existencial, dialógica, ação e
acontecer, a momentaneidade ins-tantânea do modo de sermos do
presente, a presença, tem características pró-prias muito específicas
e peculiares.

Dentre outras, como já observamos, o modo de sermos do


presente e da presença é característicamente o modo de sermos da
vivência de possibilida-des e do desdobramento compreensivo de
possibilidades. É o modo de sermos da ação, da atualização, da
atualidade, do acontecer.

147
Que é dialógica eu-tu; e que, pour cause, é pré-objetivo, e pré-
subjetivo. Não sendo, naturalmente, intersubjetivo.

O modo de sermos do presente, a presença, não é da ordem do


modo de sermos da dicotomia sujeito-objeto. Ainda que o seja,
sempre, a dinâmica da dialógica da relação com uma alteridade
radical. Ainda que o seja, sempre, a dialógica da Relação eu-tu.
Projetação do desdobramento, da expressão, da força plástica da
possibilidade, o modo de sermos do presente é todo ele ação. 8

Projetação, própria e especificamente. E não subjetivação, ou


objetiva-ção, ou intersubjetividade. Da mesma forma que, nem
sujeito, nem objeto, também não é intersubjetivação.

O modo de sermos da presença, enquanto acontecer – vivência


do des-dobramento de possibilidades --, não é, igualmente, da ordem
da causalidade, não é da ordem das relações de causa e efeito. Não
sou eu quem cria as pos-sibilidades, mas elas não acontecem sem
mim (Buber). Sou inter-ação com as possibilidades, na dinâmica
dramática de uma relação eu-tu. De modo que o modo de sermos do
desdobramento das possibilidades, o modo de sermos do presente e
da presença é participativo, mas não é causal. É desproposital.
Desprositativo.

É, antes, a espontaneidade não causal, desproposital, do


acontecer fe-nomenológico existencial. Eminentemente desproposital,
despropósito. Estética, Estaktica, fenomenaktica, fenomética, a
presença, o modo de sermos do presente, igualmente não é da
ordem do modo de sermos em que vigoram os úteis e a utilidade.

O modo de sermos do presente é o modo de sermos de uma


entrega participativa ao desdobramento da ação, do acontecer. Que é
a tensional, in-tensional. Vivência compreensiva e implicativa do
desdobramento de possibili-dades. Possibilidades estas que, segundo
a arguta observação de Buber, não sou eu quem cria, mas que não
acontecem sem mim.

No ineditismo imediato da vivência de seu acontecer,


anteriormente à di-cotomia sujeito-objeto, e ao modo de sermos das
relações de causa e efeito, e anteriormente ao modo de sermos da
realidade, a atualização das possibilida-des, a ação, dão-se, e se
desdobram, portanto, fora das condições do uso e da utilidade.

O modo de sermos do presente e da presença, portanto, dá-se


assim, própria e especificamente, como um modo inútil de sermos.
Não objetivo, não subjetivo, não causal, não proposital,
desproposital, e especificamente inútil. Acontecimento, e acontecer,
as possibilidades em desdobramento, a ação -- na ontológica,

148
dialógica, da presença -- não é da ordem da realidade, da ordem do
modo de sermos real, coisificado, acontecido; não é da ordem da
relação sujei-to-objeto, nem da utilidade. Estas são as condições do
possível, as codições da possibilidade.

Este modo de sermos da vivência do desdobramento do


possível, a pre-sença, o modo de sermos do presente, com as suas
características assim de inobjetividade, e não subjetividade, de não
causalidade, não utilidade, e irreali-dade -- enquanto vivência de
possibilidades --, é o modo de sermos, plastica-mente possível e
potente, da experiência estética.

Em sua inutilidade e irrealidade, o modo de sermos do presente


e da presença não é da ordem do modo de sermos de uma
pragmaktica, de uma pragmótica, de uma pragmética.

A pragmética, a pragmática, a pragmótica antagonizam-se


com, e invia-bilizam, a experiência estética. Inviabilizam as
condições, portanto, da experi-ência estética, como modo ontológico
de sermos da ação, da vivência de pos-sibilidades, de seu intrínseco
desdobramento em ação, compreensiva, implica-9

tiva; na sua intrínseca esteticatividade, na sua intrínseca


esteticação, de des-dobramento de força plástica.

Acontecer, intensional, a presença é realização, atualização. E


não é da ordem do modo de sermos da realidade, extensional. A
presença é, própria e especificamente, da ordem do modo de sermos
da possibilidade, em seu des-dobramento, a presença e o presente
são, própria e especificamente, da ordem da ação, da vivência,
compreensiva, e implicativa, do desdobramento, das pos-sibilidades.

ATUALIDADE

O caráter ativo, de ação, de desdobrmento de possibilidades --


o caráter de acontecer, pré-objetivo e pré-subjetivo, acausal, inútil, e
não real, do modo ontológico de sermos da presença; fenomenológico
existencial e dialógico, compreensivo e implicativo --, é propria e
específicamente a atualidade.

Presença e atualidade conjugam-se simultaneamente, portanto,


como características intrínsecas ao modo implicativo e compreensivo
de sermos, on-tológico, fenomenológico existencial e dialógico.

A Presença, a característica vivencial de pré-coisa.

149
A Atualidade a intrínseca característica de ação, que impregna
este mo-do ontológico de sermos. A característica de que a vivência
ontológica da mo-mentaneidade instantânea do modo ontológico de
sermos -- fenomenológico existencial e dialógico -- é toda ela
impregnada da vivência de possibilidades; sendo, assim, impregnada
do intrínseco desdobramento de possibilidades (Já que as
possibilidades só existem em desdobramento -- Deleuze). Desdobra-
mento compreensivo de possibilidades que é a Ação propriamente
dita. O Ato, a Atualidade.

A vivência da possibilidade é a vivência de uma força. Como


força que é a possibilidade só existe em seu desdobramento. Este
desdobramento próprio à possibilidade -- que se constitui como
sentido, como logos, compreensivo -- é a ação. A atualidade, a
atualização. Ação, atualidade, que se dá na constitui-ção da
momentaneidade instantânea do modo ontológico de sermos da pre-
sença.

A momentaneidade instantânea do desdobramento da


possibilidade, da ação, tem, assim, durante todo o seu percurso, um
componente cognitivo. Ou seja, o desdobramento da possibilidade se
constitui como consciência pré-reflexiva, implicativa, gestáltica: como
dinâmica de sentido, como logos, como lógica do sentido (expressão
de Deleuze): como compreensão, e implicação.

O desdobramento de possibilidades, a ação, na medida em que


é o des-dobramento de uma força, implica um intrínseco e
progressivo dispêndio desta força, um progressivo decaimento
(Heidegger). A atualização implica uma de-satualização (Buber) desta
força. Desdobradas, atualizadas, as possibilidades progressivamente
perdem em força, e se des-atualizam. E assim, se coisificam. 10

Constituindo sua condição de coisa, sua condição ente (coisa,


no Grego). A sua condição ôntica.

Constituída, em decorrência da vivência do desdobramento das


possibi-lidades -- inerentes ao modo ontológico de sermos, em
decorrência da vivên-cia, da atualidade, da ação --, a condição do
modo de sermos do ente, da coi-sa, do acontecido, a condição do
modo ôntico de sermos, define o modo onto-lógico de sermos,
fenomenológico existencial -- que lhe é anterior, e no qual está
pronta a coisa, na ação de sua possibilidade formativa -- como o
modo de sermos que é pret-ente, como vimos, que é o modo
presente de sermos, o mo-do de sermos do presente, e da presença.
O modo ontológico de sermos, fe-nomenológico existencial e
dialógico, modo de sermos da consciência pré-reflexiva,

150
compreensiva, e implicativa, é, portanto, o modo de sermos do pre-
sente (pret-ente, pré-ente), e da presença.

O modo de sermos do ente -- da coisa, da coisidade, o modo


ôntico de sermos, pós-ente -- não é, portanto, o modo de sermos da
atualidade e da presença. Uma vez que a atualidade e a presença
caracterizam, se conjugam no, e constituem, o modo pret-ente, pré-
ente, presente, de sermos. O modo ôntico de sermos da coisa é da
ordem do acontecido, é da ordem do passado.

De modo que, pré-entes, a atualidade e a presença se implicam


mutua-mente, na constituição do modo, pré-reflexivo,
fenomenológico existencial e dialógico de sermos, compreensivo, e
implicativo.

A atualidade é assim a qualidade própria e específica do ato, da


ação.

A ação impregna intrinsecamente, como consciência


compreensiva e implicativa, o modo fenomenológico existencial e
dialógico de sermos: como vivência de possibilidades, e do intrínseco
e inevitável, desdobramento de pos-sibilidades.

Lógica (do sentido – Deleuze -- logos), a ação é intrínseca e


inevitavel-mente constituída como consciência pré-reflexiva, é
intrínseca e inevitavelmen-te constituída como compreensão, e
implicação, é fenomenológica, fenomeno-logos; é dialógica, dia-
logos.

De modo que, intrínseca e inevitavelmente, a ação é


compreensão – ou seja, a ação, a atualidade, se constitui como
consciência pré-reflexiva, como logos; como sentido.

Dialógicas, fenomenológicas, a presença e a atualidade, o modo


ontoló-gico de sermos é eminentemente compreensivo.

Inevitavelmente compreensão, a ação, a atualização, pode ser:


(1) meramente compreensiva, meramente compreensão; e/ou: (2)
compreensiva e somática, muscular.

De modo que, presente e eminentemente compreensiva, e


implicativa, temos a ação que se dá meramente como compreensão;
e a ação que se dá como compreensão e como muscularidade
voluntária. 11

Sempre atualidade, sempre presença, e compreensão. Como


vivência do presente, como ação, compreensiva e implicativa. Como
desdobramento de possibilidades.

151
ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Empatia.

A empatia é própria e especificamente a vivência no modo


ontológico, fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo e
implicativo de sermos.

Como o modo ontológico de sermos, é uma redundância


falarmos de compreensão empática. Uma vez que, como tal, toda
empatia é compreensiva; e toda compreensão é empática.

O termo – empatia – deriva do significado Grego da palavra


pathos. Que significa algo como sensibilidade emocionada.
Naturamente que com o conteú-do implícito, implicativo, de ação. Na
medida em que a moção da e-moção é a vivência da ação, da
atualização; a própria vivência e vivência do desdobra-mento de
possibilidades. Característica do modo ontológico de sermos da pre-
sença, da atualidade.

O sentido normalmente utilizado na cultura da civilização


ocidental para o termo pathos não é este sentido Grego, mas o
sentido Latino, de sofrimento, de doença.

No seu sentido Grego de em-pathos, enquanto o modo


fenomenológico existencial dialógico, compreensivo e implicativo de
sermos, a empatia é pre-sença e atualidade. A empatia é,
eminentemente, vivência motiva, motivativa, emocionada,
compreensiva, de ação, de atualização. No modo pré-coisa, pre-
sente, e atual de sermos.

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Superação.

O modo de sermos fenomenológico existencial e dialógico da


presença, e da atualidade -- enquanto modo de sermos da vivência, e
da vivência do desdobramento de possibilidades -- inéditas, únicas, e
irrepetíveis --, modo de sermos da ação, da atualização, do acontecer
--, é, intinsecamente, o modo de sermos da superação.

Nunca é muito lembrarmos, neste sentido, a observação de


Nietzsche: E eis o que me segredou a existência: eu sou aquilo que
se auto supera indefini-damente...

Nietzsche entendeu que a característica fundamental da


existência é a superação. Mas a superação não se dá no modo
explicativo de sermos, teoré-tico ou comportamental. A superação é
intrínseca e característica, é uma pro-priedade intríseca, do modo
ontológico de sermos -- fenomenológico existencial e dialógico;
compreensivo e implicativo. É uma característica que é inerente à

152
atualidade, à atualização, àção; inerentes a este modo de sermos da
presença ontológica. 12

A vivência deste modo ontológico de sermos, fenomenológico


existencial e dialógico, é toda ela ação (Buber). É, toda ela,
atualização e atualidade. Ou seja, é toda ela emergência e
desdobramento, atualização, de possibilidades.

E o desdobramento de possibilidades, é inerentemente devir,


vir a ser, e a superação.

Foi esse aspecto, da predominância da ação e da superação no


modo fenomenológico existencial de sermos, no modo páthico,
empáthico, de sermos que levou Carl Rogers a fundar toda a sua
concepção de psicologia e de psico-terapia, e a sua atitude
metodológica de privilegiamento do modo ontológico de sermos, na
tendência para a ação; na tendência atualizante. Como superação, a
ação, a tendência atualizante nos cria e recria continuamente, sendo
a fonte da contínua geração e regeneração de nós outros. Mesmo nas
situações mais destrutivas e mais difíceis.

Os aspectos cognitivos do desdobramento das possibilidades –


do des-dobramento da ação, da atualidade, da atualização, no modo
de sermos da presença, a compreensão implicativa -- são processos
fenomenologicamente formativos. Intrínsecos à compreensão. Do
mesmo modo que é formativa a objetivação da coisa, em sua
materialidade.

Estas características formativas é o que Rogers, com efeito,


chamou de tendência formativa.

A tendência formativa é assim o aspecto cognitivo da vivência


compre-ensiva do desdobramento da possibilidade, do
desdobramento da ação, da a-tualização -- da efetivação da
tendência atualizante --, da superação. E é a própria formação, a
própria constituição material, objetiva, da coisa; neste mesmo
processo de superação que é inerente à atualização.

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Moção, Emoção, e


Motivação.

A emoção é intrínseca à dinâmica do modo ontológico de


sermos, feno-menológico existencial, e dialógico – compreensivo, e
implicaivo.

Na medida em que este é específicamente moção, atualidade e


atuali-zação. Na medida em que este é devir, é vir a ser,

153
especificamente movimento da ação, atuação, atualização, vivência
compreensiva, e implicativa, do desdo-bramento de possibilidades.
De um modo tal, que o modo de sermos compre-ensivo e implicativo
do desdobramento da ação, do desdobramento das possi-bilidades, é,
própria e especificamente, o modo de sermos da moção, da emo-ção.
O modo de sermos da sensibilidade emocionada, o modo de sermos
no qual se constitui o que entendemos como emoção.

De modo que ação, a atualização, a implicação, a compreensão


– cogni-ção compreensiva --, experiência estética, e a emoção são
partes de um mes-mo todo vivencial, fenomenológico existencial e
dialógico, constituído pelas condições da presença e da atualidade. 13

Em sendo moção, e emoção, o modo ontológico de sermos, da


presença e da atualidade, é o modo de sermos não só da ação, mas o
modo de sermos-da vivência que, em sua propulsividade e caráter
intrinsecamente emociona-dos, é o modo de sermos da motivação.

ONTOLOGIA, PRESENÇA, ATUALIDADE.


Tendência Atualizante Formativa.

Podemos assim falar que somos animados pela ação, por uma
tendên-cia atualizante.

E é, portanto, inteiramente pertinente, e consonante com uma


postura fenomenológico existencial dialógica, a premissa de Carl
Rogers de fundar a sua abordagem na tendência atualizante. E na
compreensão.

Certo é que, ao nível teórico e da fundamentação, Carl Rogers


não tinha muita clareza sobre o que estava falando. O momento
cultural de seus emba-tes epistemológicos, e ontológicos, era um
momento muito significativo, e in-tenso. E ele se dedicava à busca e
à experimentação de uma concepção fe-nomenológico existencial
empirista, e de sua respectiva metodologia. Sua teo-rização nesta
época é, mais, um desvencilhar-se de premissas explicativas e
teoréticas, em direção aos fundamentos, à ciência, e à metodologia
da com-preensão, e da implicação.

Naturais os seus limites, naquele momento. Ainda hoje em dia,


um outro tempo e lugar, muitos de seus supostos seguidores
obstinam-se em papaguear bobagens. Contra natural...

Rogers intuía, entretanto, de modo consistente e profundo,


pioneiro e o-riginal, as suas premissas. O bastante para desenvolver,
ao longo de sua vida profissional, uma profícua e consistente
experimentação, e elaboração experi-mental, de sua importante
154
abordagem fenomenológico existencial dialógica de psicologia e de
psicoterapia.

Perls não chega a falar de uma tendência atualizante. Mas,


quando en-tendemos que o que ele falava acerca de contato se
refere, própria e especifi-camente, à ação compreensiva, e
implicativa, entendemos, também, que, evi-dentemente, a
metodologia de sua Gestalt Terapia tinha igualmente implícitos um
conceito de ação, e um conceito de tendência atualizante –
fundamentados naturalmente numa fenomenologia da ação
compreensiva.

Compreensiva e implicativa a ação, a tendência atualizante


tem, como uma de suas características fundamentais, a de ser,
também, formativa. A de ser uma tendência formativa. A tendência
atualizante é a tendência formativa. Melhor seria até que falássemos
de tendência atualizante formativa...

A tendência atualizante, a ação, constitui-se,


compreensivamente, na pontualidade do desdobramento da ação, em
vivência de processo de forma-ção de figura e fundo; e de formação
da coisa do mundo, em sua materialidade objetiva; ou da coisa
subjetiva, mental; ou ainda da coisa comportamental . 14

A ação da tendência atualizante, assim, se dá,


compreensivamente, co-mo tendência formativa, como a vivência de
processos de form-ação de figura e fundo.

Ao nível de sua cura (Heidegger) --, de sua realização, a ação


se dá co-mo processo de coisificação, de constituição, de formação,
da coisa, em suas formas. Derivadas estas de suas possibilidades.
Como processo de coisifica-ção, de constituição, de formação, do
objeto, da objetividade. E de formação das formas da subjetividade,
em suas específicas formas e qualidades de coi-sa, de acontecido. De
realidade extensa, e/ou da cogitans.

De modo que a ação, a atualização, a atualidade, da tendência


atuali-zante, dá-se como formação, como per-formação, como per-
fazimento; como per-feição, como per-formance. A formatividade da
tendência formativa, neces-sariamente, é uma dimensão intrínseca
da ação. Da tendência atualizante.

Como força, que só existe em seu desdobramento (Deleuze), a


possibi-lidade pressiona, sempre, no sentido de sua ex-pressão.
Expressão esta que constitui a ação, a atualização a atualidade. Que
se dão no modo de sermos da atualidade e da presença – modo de
sermos compreensivo, e implicativo.

155
Neste sentido, a existência da possibilidade é sempre existência
como pressão. Como jatação, como jetação, como projeto, como
projetação. (Aristó-teles, Brentano, Heidegger). Daí, a característica
específica do modo ontológi-co de sermos, como contínua tendência,
tendência da possibilidade para a a-ção, tendência atualizante.

Além de formativamente constituir as coisas em sua condição


instalativa, a atualização pode também vivificá-las, recriando-as,
regenerando-as. Pela conversão da experiência da coisa à vivência da
dialógica da relação eu-tu, ontológica, fenomenológico existencial,
compreensiva e implicativa. Pela conversão da experiência da coisa à
vivência ontológica da presença e da a-tualidade.

Deste modo, a coisidade instalativa é infundida de


possibilidades, de a-ção, atualizando-se à condição, não coisa, de
presença e de devir. À ventura do desdobramento de novos possíveis
atualizativos. Como novos e inéditos processos de devir. E de novas
formas e formações.

A tendência formativa da tendência atualizante, a formatividade


da ação, intrinsecamente caracteriza a presença e a atualidade, como
características próprias e específicas do modo fenomenológico
existencial de sermos, modo dialógico, ontológico, compreensivo, e
implicativo de sermos.

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Estética

As possibilidades – cuja presença, e intrínseco, e contínuo,


desdobra-mento constitui a atualidade, a ação, a atualização –,
possibilidades que se dão, assim, no modo fenomenológico
existencial, compreensivo e implicativo 15

de sermos --, caracterizam-se por ser um impulsionamento,


uma força, uma força plástica, que devém, que se desdobra, na
vivência da criação. No modo sensível de sermos, as possibilidades se
desdobram em ação criativa como a força impulsionante de um
vento.

Os Gregos identificaram esta força impulsionante da vivência do


desdo-bramento das possibilidades -- desdobramento ativo, criativo -
- com a força impulsionante do vento Estésico, que numa
determinada época do ano sopra, nos litorais da Grécia, e impulsiona
os navios a se fazerem ao mar, a desporta-rem.

E, ao identificarem a força impulsionante da possibilidade com a


força impulsionante do vento Estésico, identificaram e denominaram
de Estesia ao modo de sermos da vivência e da vivência do
156
desdobramento das possibilida-des -- o modo ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico, da presença e da atualidade,
compreensivo e implicativo.

Assim sendo, o modo estético de sermos, o modo de sermos da


experi-ência estética é o modo de ontológico de sermos da atualidade
e da presença. O modo de sermos do conhecer ativo, da ciência
estética, ativa, compreensiva, e implicativa, o modo de sermos da
criatividade.

Estética, portanto, é a ética de sermos da estesia. A ética do


modo onto-lógico de sermos da experiência estésica, estética, da
presença e da atualida-de. A ética do modo de sermos do
desdobramento das possibilidades, da ação, da atualização.

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Implicação – Gestalt.

O modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial,


implicativo, modo de sermos da presença e da atualidade, é
impregnado da vivência com-preensiva de forças – as possibilidade.
As possibilidades são sempre infinita-mente múltiplas. E, como
possibilidades, forças, existem sempre em seus des-dobramentos.

São múltiplas. E cada possibililidade, cada força, é composta


por uma multiplicidade de outras. E assim sucessivamente.

Na multiplicidade de seus desdobramentos, as possibilidades se


consti-tuem como consciência pré-reflexiva. Constituem-se como
logos, como sentido. Sendo esta constituição compreensiva como
sentido o logos, do fenomeno lo-gos, do dia logos. Ou seja, o logos
sentido, que se constitui como compreen-são.

Constituídas como consciência pré-reflexiva, compreensiva,


implicativa, as possibilidades, em seus desdobramentos ativos, se
organizam em conjun-tos, totalidades significativas, compreensivas e
implicativas, segundo suas do-minâncias. Conjuntos que fluem nas
dinâmicas de sua relação parte-todo, figu-ra e fundo, e que se
sucedem. Em suas multiplicidades enquanto totalidades significativas,
as possibilidades em desdobramento se constitutem como plexos de
possibilidades m desdobramento, ação, atualização, compreensiva e
impli-16

cativa. Constituindo especificamente estes conjuntos, em


desdobramento ativo, estas totalidades significativas, plexos de ação
e de sentido.

157
De modo que a vivência dos desdobramentos das possibilidades
-- que se dá no modo de sermos da presença --, a ação, a
atualização, a atualidade, a interpretação compreensiva, a
experimentação, igualmente compreensiva, se dão, sempre, como a
vivência compreensiva – plic, em Grego – de plexos de
possibilidades, plexos de forças em desdobramento. Que se
constituem como vivência, como consciência pré-reflexiva, como
fenomeno logos, como dia lo-gos. Como compreensão, enfim.

Como gestalts, como im plic ação, implexação, própria e


especificamen-te.

Assim, a vivência compreensiva desses plexos de possibilidades


em desdobramento, constitui a vivência gestáltica, implicativa.
Constitui compreen-sivamente a ação, a atualização, a interpretação,
a experimentação fenomeno-lógico existenciais compreensivas. Que
se dão como presença, e como atuali-dade.

Talvez pudéssemos dizer que o sentido da palavra de origem


Grega im-plicação é o mesmo que o da palavra Germânica Gestalt.
Em essência elas se referem ao mesmo processo da multiplicidade,
da pluralidade, das forças, vi-venciadas compreensivamente como
forças de possibilidades, organizadas segundo as suas dominâncias.
Sendo o caráter de sua organização o seu cará-ter própria e
especificamnente gestáltico. Ou implicativo. Não explicativo.

O sentido da raiz Grega plic – do termo implicação () -- é o de


entran-çamento, o entrançamento dos pêlos da crina e do rabo dos
cavalos.

As Gestalts, gestaltificações, as implicações, são sempre a


vivência da expressividade da ação. Na medida em que são vivências
do desdobramento de possibilidades. São, sempre, as próprias
atualizações, e a atualidade. Que se dão no modo de sermos da
presença. Fenomenológico existencal e dialógi-co. Compreensivo e
implicativo.

A experiência gestáltica, a implicação, a atualização, é sempre,


própria e especificamente, a vivência compreensiva do
desdobramento de um plexo de possibilidades. É, sempre, a vivência
em desdobramento das sucessões, dos devires, de multiplicidades, de
pluralidades organizadas de possibilidades, no modo de sermos da
presença e da atualidade.

De tal forma que a sua vivência se dá, sempre, como a vivência


dos desdobramentos de uma totalidade significativa, que tem
características muito peculiares.

Dentre elas a de que o todo, as totalidade significativas, as


gestalts, as implicações, se dão originalmente como tais, ou seja na

158
vivência de suas totali-dades, enquanto totalidades que se dão
diferentemente da soma, e mesmo da configuração, de suas partes.

Vivenciadas, inicialmente, como vivências compreensivas da


sucessão das totalidades, as vivências gestálticas, as vivências
implicativas, desdobram-se, compreensivamente, como processos de
formação de figura e fundo. Nos quais, paulatinamente, as partes da
multiplicidade do todo se constituem figura-17

tivamente. Com a vivência do todo como fundo. Num sucessivo


processo de formação, de performance, de perfazimento, de
performação de figura e fundo.

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Implicação, Formação de


Figura e Fundo, Performação, Performance -- e Tendência Formativa.
Tendência Gestaltizante.

Assim, é necessário entender que a tendência formativa, de que


fala Rogers, é a tendência gestaltizante do processo da ação. A
tendência gestalti-zante do processo da atualização, do
processamento, da operacionalização, da tendência atualizante. Da
tendência para a ação.

Uma tendência implicativante, ou implicativativa.

Uma tendência compreensiva dos processos da ação, dos


processos dos desdobramentos das possibilidades. Para se
constituirem, formativamente, performativamente, e
compreensivamente, como processos de formação. De formação de
figura e fundo.

Ao mesmo tempo em que, como processos da ação, se


constituem co-mo processos de constituição, de formação, da coisa,
do objeto. Sejam coisas, objetos, mentais; ou coisas, objetos,
materiais.

A tendência formativa -- como característica da ação, como


característi-ca da tendência atualizante --, a implicação, é
característica da presença e da atualidade. É, assim, intrínseca
característica do modo ontológico de sermos, fenomenológico
existencial e dialógico, compreensivo, e implicativo. ONTOLOGIA,
ATUALIDADE, PRESENÇA. Interpretação – Hermenêutica --,
Fenomenológico Existencial, Compreensiva, Implicativa, Dialógica.

A atualidade, na presença, a ação, a atualização, em sua


intrínseca cognitividade compreensiva, é vivência do desdobramento
compreensivo e im-plicativo de possibilidades.

159
Esta vivência compreensiva, e implicativa, do desdobramento
de possibi-lidades é o que chamamos interpretação (especificamente)
compreensiva (Hei-degger). Não a explicativa. Fenomenológico
existencial e dialógica.

A arte da interpretação, a estética da interpretação, é o que


chamamos de hermenêutica – a arte de Hermes (Palmer). O modo
ontológico, fenomeno-lógico existencial de sermos, compreensivo e
implicativo, modo de sermos da presença e da atualidade,
compreensivo e implicativo, é, portanto, o modo de sermos própria e
especificamente hermenêutico. Porque é o modo de sermos da
interpretação fenomenológica, compreensiva. Interpretação
implicativa. E não explicativa.

Heidegger viria, assim, a dizer que o homem é o ser


hermenêutico por excelência. Dada a característica de que, enquanto
atualização e atualidade, a existência é própria e especificamente,
eminentemente, interpretação compre-ensiva, implicativa, e
especificamente hermenêutica, portanto. 18

ONTOLOGIA, ATUALIDADE, PRESENÇA. Experimentação


Compreensiva, e Implicativa, Fenomenológico Existencial e Dialógica

De modo extremamente fecundo, e cheio de implicaçõs, Buber


observa que não sou eu que crio a possibilidade, mas ela não
acontece sem mim... Com esta observação, ele caracteriza muito da
condição da vivência da possi-bilidade, da ação, atualização, da
atualidade, e da presença. Que impregnam o modo fenomenológico
existencial de sermos. (Dialogicamente) Interagimos com a
possibilidade, na dialógica compreensiva da ação. Mas não
controlamos a possibilidade, que é uma força plástica, poié-tica,
autônoma, e desproposital. Não obstante, o devir e o acontecer da
possibi-lidade, necessariamente, demandam e requerem a nossa
tentatividade, o nos-so arriscar, nos seus desdobramentos. Em
particular, consideradado o intrínse-co caráter incerto e arriscado, de
incerteza, e de risco, da possibilidade e de seu desdobramento.

É a resoluta e ativa disposição de tentar atualizar a


possibilidade na vi-vência de seu desdobramento, mesmo em seu
caráter incerto e arriscado, a disposição de desportar, à ventura de
sua ventura, que constitui, própria e es-pecificamente, a experiência
da experimentação fenomenológico existencial compreensiva e
implicativa. Ontológica. Clarice Lispector diria: toda a vida ver-dadira
é experimentação.

O radical peri, da palavra experimentação – da mesma forma


que o ra-dical piri, de empírico; e o pir de pirata; e de respiração; de
piração – quer, jus-tamente, dizer, arriscar, tentar.

160
Podemos ver, assim, que a experimentação fenomenológico
existencial, compreensiva, implicativa, que se dá na atualidade e na
presença, tem uma natureza radicalmente distinta da experimentação
explicativa, teorética, e cien-tífica. Nesta são, exatamente, os
elementos de incerteza e de risco que são, cuidadosa, e às vezes
obsessivamente, evitados.

A presença, e a atualidade -- como características do modo


fenomeno-lógico existencial e dialógico, ontológico, de sermos, modo
de sermos compre-ensivo implicativo -- são, neste sentido da
atualização das possibilidades, da afirmação resoluta a incerteza e do
risco da ação -- eminentemente experimen-tais.

ONTOLOGIA, PRESENÇA, ATUALIDADE. Grupo, e o trabalho


fenomeno-lógico existencial com grupos.

Da mesma forma que individualmente, existimos em grupo,


alternativa-mente, (a) ao modo ontológico de sermos,
fenomenológico existencial, com-preensivo e implicativo, modo de
sermos da ação e do acontecer; e (b) ao mo-do de sermos da
coisidade, explicativo, teorético, modo de sermos do aconte-cido.

Enquanto coletivo, enquanto consciência coletiva, o grupo


existe, igual-mente, de ambas as formas dos modos de sermos –
implicativo, ontológico, e explicativo. 19

O modelo conceitual e metodológico do Grupo vivencial,


característico da abordagem rogeriana e da abordagem gestáltica, em
sua qualidade especi-ficamente de privilegiamento do modo
ontológico de sermos, compreensivo e implicativo é uma originalidade
na metodologia do trabalho com grupos, expe-rimentada e
desenvolvida por Carl Rogers, com influências da Gestal‟terapia de
Fritz Perls, ao longo das décadas de setenta e oitenta.

A concepção e a metodológica da abordagem de Carl Rogers


aos gru-pos, a partir dos anos setenta, vai se caracterizar como uma
progressiva radi-calização de uma postura fenomenológico existencial
e dialógica da concepção e da facilitação. Como ontológica, como
epistemologia, e como metodologia do trabalho com grupos. Na
psicoterapia, e na prática do trabalho psicológico.

Isto se dá à medida que ele e seus colaboradores vão


descobrindo e en-tendendo as características ontológicas,
fenomenológico existenciais e dialógi-cas do desdobramento dos
processos grupais. E na medida em que vão en-tendendo que a
momentaneidade instantânea da vivência grupal -- enquanto vivência

161
coletiva -- é compatível com as premissas do que entendemos como
ação, atualização, e do que eles entendiam como operação da
tendência atua-lizante.

Com efeito, em seus momentos de vivência ontológica coletiva,


ao mesmo tempo que de vivência individual, fenomenológico
existencial e dialógi-ca, compreensiva e implicativa, momentos de
atualidade e de presença, o gru-po é vivência de e vivência da
atualização de possibilidades.

Ou seja, a vivência grupal, enquanto vivência individual e


coletiva, no modo de sermos da presença e da atualidade, é vivência
compreensiva, impli-cativa; consciência pré-reflexiva, fenomenológico
existencial e dialógica; pro-cessamento do desdobramento de
possibilidades, ação, atualização. A vivência grupal é -- no modo de
sermos da atualidade e da presença, no modo presente de sermos --
vivência de ação, de atualização, atualidade... Experimentação e
interpretação, hermenêutica, compreensivas, e implicativas,
fenomenológico existenciais.

É importante salientar o pioneirismo de Rogers e colaboradores


em ex-perimentar intensivamente com esta perspectiva ontológica e
epistemológica, na medida em que explorava, e experimentava o
desenvolvimento de uma me-todologia compatível.

Implicações fundamentais e importantíssimas do trabalho de


Rogers são, assim, as de que, como as pessoas, os grupos existem,
igualmente, e i-gualmente agem no seu modo de ser ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico – compreensivo e implicativo.
E de que, dadas as características es-pecificamente ontológicas deste
modo de sermos, avultavam como fundamen-tais as demandas e as
necessidades para o desenvolvimento de uma metodo-logia com
estas características compatíveis. Rogers, e alguns gestalt terapeu-
tas do Instituto de Gestalt de Cleaveland exploraram e
experimentaram intensa e pioneiramente esta metodologia.
Exploração e experimentação das quais estamos ainda nos
primórdios. (E que estejamos sempre...).

Ou seja, uma metodologia compatível com a sua não


objetividade -- nem subjetividade -- muito menos intersubjetividade.
Compatível com o caráter in-20

trinsecamente dialógico deste modo de vivência, pautado pelos


processamen-tos de dialógica eu-tu, alheios à dicotomização sujeito-
objeto. Compatível com o característico caráter desproposital deste
modo de vivência, a sua não vincu-lação às dinâmicas da
causalidade, das relações de causa e efeito. Compatível com o caráter
de inutilidade da momentaneidade instantânea da vivência onto-

162
lógica fenomenológico existencial dialógica, ou seja, a sua
impertinência ao modo de sermos dos úteis e das utilidades. E uma
metodologia compatível com o seu caráter de vivência e de vivência
do desdobramento de possibilidade, o seu caráter experimental e
hermenêutico de ação, de atualização, o seu caráter de atualidade e
de presença. Ou seja, compatível com o seu caráter intensional de
vivência compreensiva e implicativa, vivência do desdobramento da
ação, e do acontecer. Distinta do caráter de acontecido, e de coisa,
do modo explicati-vo de sermos da realidade, extensional.

No cerne do interesse de Carl Rogers no desenvolvimento de


sua meto-dologia para o trabalho com grupos, e mesmo no
desenvolvimento de uma me-todologia para o trabalho diádico, o
grupo de dois – como dizia John Wood -- está uma consideração
bastante genuína para com cada um, e para com o conjunto, destes
aspectos intrínsecos e fundamentais à momentaneidade da vivência
grupal ontológica, fenomenológico existencial e dialógica,
compreensi-va e implicativa.

O paradigma rogeriano de concepção e de metodologia do


trabalho com grupos vai radicar, assim, na constatação de que, como
as pessoas, o grupo constitucionalmente oscila e alterna entre (1) o
modo não ontológico de ser, de uma consciência, teórica, explicativa;
ou ao modo explicativo de desconcienci-ação que é o
comportamento; e (2) o modo ontológico de sermos, fenomenoló-
gico existencial e dialógico; caracterizado este pela compreensão e
pela impli-cação, pela presença e pela atualidade. Pela consciência,
compreensiva e im-plicativa, que se constitui como sentido, o aspecto
cognitivo compreensivo da ação, da atualização, do desdobramento
das possibilidades.

Constatado este modo de ser, como modo de ser das pessoas e


do co-letivo grupal, Rogers e colaboradores entendem que este modo
inter ativo da vivência e da vivência do desdobramento de
possibilidades é um modo natural de vivência do grupo, da ação
grupal, da vivência da ação pelas pessoas no âmbito do contexto
grupal. Um modo de ser que se caracteriza pela presença e pela
atualidade. E que permite a criação, a criatividade, a geração e a
regene-ração existenciais, grupais e pessoais.

E se dispõem a criar condições para o privilegiamento das


condições deste modo de sermos nos grupos como concepção e
metodologia de trabalho com grupos, e com as pessoas no âmbito
grupal.

Entendem, liminarmente, que o grupo não pode ser tratado


como um ob-jeto sobre o qual um líder, um coordenador, um
facilitador, praticam interven-ções. Dado o caráter não objetivo, nem
subjetivo, deste modo de sermos da vivência grupal, dado o seu

163
caráter alheio à causalidade, à utilidade, e à reali-dade, o facilitador
carece de se constituir dialógica e implicativamente, compre-
ensivamente, na própria dialógica da vivência grupal. E ser e atuar
como partí-cipe desta dialógica da presença e da atualidade. 21

Carl Rogers e colaboradores exploraram e experimentam


intensamente esta perspectiva de concepção e da facilitação de
grupos. E buscaram o de-senvolvimento de elementos conceituais e
metodológicos que pudessem ser assim compatíveis com estas
características de privilegiamento da vivência grupal ontológica, da
vivência grupal de presença e atualidade.

PRESENÇA, ATUALIDADE, ONTOLOGIA. Ambiente, Ambientologia,


Ciência Ambiental.

Intrinseca e indissociavelmente correlativo ao que somos, aos


modo de sermos, o Ambiente existe: (1) como coisidade instalativa,
como coisa, no modo ôntico de sermos. E (2) ontologicamente, como
presença e atualidade; compreensiva e implicativa-mente, como
vivência fenomenológico existencial e dialógica. Neste caso particular,
então, o Ambiente, como vivência em sua efetividade imediata,
intuitiva, existe não como acontecido, como objeto, no âmbito da re-
lação de cause e efeito, utilitária e real. Mas como uma alteridade
radical, como um tu, como possibilidade em desdobramento, como
ação, eminentemente como experimentação, e interpretação,
compreensiva, e implicativa. Na pontua-lidade fenomenológico
existencial de sua instantaneidade momentânea, de sua
presentividade, e atualidade, ontológicas.

O ambiente no modo de ser/sermos explicativo de sua


objetivdade, e subjetividade; no modo de ser de sua causalidade, o
ambiente em sua útilidade e realidade acontecida, o ambiente
acontecido, em sua instalação como coisa, não é o Ambiente em sua
ontológica. Não é o Ambiente em sua essência onto-lógica --
eminentemente aparencial, fenomenal --, e que só se dá como
aconte-cer, como vivência e como compreensão, como implicação, à
experimentação e à interpretação fenomenológico existenciais
dialógicas -- presentes, e atuais. Isto define, liminar e primariamente,
a Ética Ambiental. O ethos do Ambiente. Somente a partir do qual o
Ambiente pode ser abordado, somente a partir do qual o ambiente é
possível -- como a alteridade radical do tu de uma dialógica --, e
pode ser avaliado.

As questões acerca da avaliação, e dos critérios de abordagem


do Am-biente, assim, não podem residir na objetividade do ambiente,
como coisa; ou na subjetividade; nomodo de sermos de sua

164
causalidade; em sua utilidade; em seu valor pragmático, pragmético,
em sua realidade, como acontecido, como coisa instalativa.

O Ambiente ontológico é fenomenológico existencial


experimental e hermenêutico, implicativo e compreensivo, presente,
e atual. E somente neste modo de ser de sua éticidade é que ele
pode ser avaliado.

Isto define os critérios, não só de uma epistemologia ambiental,


mas, precípua e primariamente, os critérios de uma Ontologia
Ambiental -- que lhe dá fundamento.

Não é o que vigora no âmbito da sociedade civil, no âmbito da


cultura em geral, no âmbito da ciência, em particular da Biologia, da
Ecologia, da Psi-cologia, da Antropologia. Que, em geral, abordam o
Ambiente no, ôntico e não 22

ético, modo de ser de sua condição de coisa, de sua explicativa,


não presente, e não atual, condição de acontecido.

Com relação ao Ambiente temos uma tarefa radical, a do


desenvolvi-mento de critérios éticos para a abordagem do ambiente,
para a avaliação do ambiente, para a valoração, e para o
conhecimento do Ambiente. Em sua onto-lógica. Na ontológica
presença e imediata atualidade fenomenológico existen-cial,
compreensiva, e implicativa.

ONTOLOGIA, PRESENÇA, ATUALIDADE. Experiência Esportiva

Na instantaneidade momentânea de seu paroxismo, a


experiência es-portiva é, própria e especificamente, desdobramento
do paroxismo fenomeno-lógico existencial e dialógico, pré-reflexivo,
compreensivo, e implicativo, da on-tológica da presença, e da
atualidade. É desdobramento do paroxismo da vi-vência da ação, e
do acontecer, como emergência e desdobramento de possi-bilidades.
O paroxismo da experiência esportiva é, portanto, fenomenológico
existencialmente experimental, e hermenêutico.

De modo que todo o processamento da experiência esportiva,


em sua pontualidade paroxística, é dialógico. Tanto no caso do atleta
individual -- na dialógica com seus instrumentos, com o ambiente
ontologicamente vivido, e com a radicalidade alteritária da
possibilidade; como no caso dos atletas nos times de esportes
coletivos. Para estes acrescente-se a intensiva e refinada dialógica da
interatividade inter humana, inter individual, e grupal, intra grupal e
inter grupal -- com os demais participantes de seu time, e os do time
adversá-rio.
165
Assim, como em todo o humano, os atletas, enquanto
indivíduos e en-quanto grupos, e inter indivíduos, e inter grupos,
podem existir ao modo semi inerte da coisidade instalativa,
explicativo, teorético; ou comportamental. Ou podem existir,
individual e coletivamente, ao modo ontológico de sermos, com-
preensivo e implicativo, da atualidade e da presença, fenomenológico
existen-cial e dialógico.

À medida que se constitui a dialógica implicativa da


instantaneidade momentânea do paroxismo da experiência esportiva
-- a partir de uma específi-ca disposição pré-dialógica -- o(s) atleta(s)
evolui(em) do modo semi inerte (re-cordar que a inércia é o
movimento sem aceleração. Sem ação, diríamos) de sermos, da
coisidade instalativa; para o modo ontológico de sermos da atuali-
dade, da ação e da atualização, compreensivas e implicativas. Para o
estético modo de sermos da presença.

Como modo de sermos da atualização, da ação, do


desdobramento de possibilidades, o modo ontológico de sermos --
fenomenológico existencial e dialógico, de consciência pré-reflexiva,
compreensiva e implicativa, modo de sermos do acontecer --, é,
própria e especificamente, o modo de sermos da superação.
Superação que, no modo dialógico de sermos, pré-objetivo, pré-
subjetivo, é superação de nós próprios e do mundo. 23

Disto, da superação, é do que se ocupa a estética do paroxismo


da ex-periência esportiva. Superação de nós próprios, superação dos
adversários, superação do mundo. Superação que se dá na medida
em que condescende-mos com a presença e atualidade da
momentaneidade instantânea da vivência no modo ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo e implicativo,
da ação, do acontecer.

A potencialização pois dos atletas, nos esportes individuais, e


nos espor-tes coletivos, para a auto-superação e para a superação,
envolve o desenvol-vimento da habitualidade para o funcionamento,
para a arte e maestria, indivi-dual e coletiva, no modo ontológico de
sermos da atualidade e da presença, fenomenológico existencial e
dialógico, compreensivo, e implicativo.

ONTOLOGIA, PRESENÇA, ATUALIDADE. Psicoterapia

Na psicoterapia fenomenológico existencial -- Gestalt e


Abordagem Ro-geriana -- a questão central é a da ação, da
atualização fenomenológico exis-tencial, da superação
fenomenológico existenciais. A questão central é a ques-tão da

166
vivência da presença e da atualidade, portanto. Mais própria e
especifi-camente, a questão da atualização, da atualidade, que são
intrínsecas à pre-sença.

Presença e atualidade estas características do modo ontológico,


feno-menológico existencial, dialógico, compreensivo e implicativo de
sermos.

De modo que a questão central nestas abordagens de psicologia


e de psicoterapia sempre foi a do privilegiamento deste modo
ontológico de sermos, como o modo natural de operacionalização da
tendência atualizante que forma-tivamente nos constituti. De
operacionalização da ação, da atualização. De su-peração, pelo devir
do desdobramentodo possível, do qual a ação se constitui.

Isto não era tão claro na formulação original dos pioneiros da


Gestalt Te-rapia e da Abordagem Rogeriana. Mas é uma formulação
adequada de suas intuições conceituais, metodológicas e
experimentais.

Privilegiarmos o modo ontológico de sermos é apenas privilegiar


o modo mais natural e espontâneo de sermos. Privilegiar o „óbvio‟,
como dizia Fritz Per-ls.

Mas este modo de sermos do óbvio é um modo pouco apreciado


de sermos no âmbito da prática profissional. Neste âmbito é mesmo
um modo de sermos que é desqualificado pelo moralismo.

Mas o outro modo de sermos, o modo explicativo de sermos --


teorético, ou comportamental -- não possibilita a vivência do possível,
a ação, a atualiza-ção, a presença, a superação, quando se trata da
existência. E eis o que se-gredou-me a existência: eu sou aquilo que
se auto supera indefinidamente... Entendeu Nietzsche, através do
Zaratustra. Mas a superação demanda o modo ontológico de sermos,
o modo implicativo de sermos.

De modo que, dadas as suas características próprias, os modos


de ser-mos da explicação não propiciam a ontológica e existencial
superação. 24

O modo explicativo de sermos, a objetividade, e a


subjetividade, e mes-mo a tal da intersubjetividade, os modos de
sermos das relações de causa e efeito, da utilidade, do realismo ou,
simplesmete, da realidade -- como caracte-rísticos do modo
explicativo de sermos -- teorético ou comportamental, não são
próprios, bnignos ou condizntes com a superação. Na verdade,
obstruem a vivência de possibilidades, característica do modo

167
compreensivo e implicativo de sermos; obstruem a atualização das
possibilidades, o seu devir, e a supera-ção.

Inicialmente, o grande interesse de Perls e de Rogers era o de


superar posturas metodológicas fundadas no modo explicativo de
sermos. Posturas abstaratvamentente teoréticas, moralistas,
fundadas na causalidade, fundadas na utilidade, no pragmatismo, na
realidade, e mesmo num realsmo qualquer.

Perls e Rogers conheciam, e reconheciam as caracteríticas não


teoréti-cas, não práticas, inúteis e despropositais do modo de sermos
da superação, da atualização, da ação, da vivência e da vivência do
desdobramento de possi-bilidades, da compreensão, e da implicação,
da ação, da atualização, da supe-ração.

Rogers dedicou-se ao desenvolvimento de condições que


privilegiassem -- na relação terapêutica, no grupo, na pedagogia, e
em outros âmbitos -- a prevalência deste modo fenomenológico
existencial, ontológico, implicativo, de sermos.

Perls enfatizou o caráter eminentemente experimental – no


sentido compreensivo, fenomenológico existencial, e dialógico – da
ação, da atualiza-ção, da implicação, do devir, da superação. De
modo que sua concepção e sua metodológica preconizavam, e
preconizam uma ousada postura afirmativa, ex-perimental, e
estética.

ONTOLOGIA, PRESENÇA E ATUALIDADE. Aprendizagem, Educação e


Pedagogia

Naturalmente, a aprendizagem efetiva implica,


necessariamente, a mu-dança cognitiva. Mudança cognitiva que se
constitui como a própria vivência da movimentação da compreensão
implicativa, inerente ao desdobramento com-preensivo de
possibilidades, que, ao nível cognitivo, é pré-reflexivo, fenomeno-
lógico existencial dialógico, experimental, e hermenêutico -- ação,
atualização.

Compreensivamente, o desdobramento de possibilidades, a


ação, a atu-alização, que se dá na vivência do modo ontológico de
sermos, intrinsecamen-te se constitui como sentido. Único e
irrepetível. Como logos -- onto-logos, fe-nomeno-logos, dia-logos --
do desdobramento implicativo e compreensivo de possibilidades.

Própria e especificamente, portanto, a aprendizagem ontológica


é com-preensiva, implicativa, não explicativa, vivencial,
fenomenológico existencial e dialógica, experimental, hermenêutica --
numa palavra, ativa... 25

168
Este movimento, esta mudança, que é o processamento
constituinte da compreensão, a compreensão enquanto
desdobramento da possibilidade, a ação, é sempre moção, emoção. E
motivação.

Razão pela qual aprendemos, sempre, na condição de atores,


na mo-ção, motiv ação, e no modo afetivo de sermos da emoção.
Não aprendemos teóricamente: não aprendemos como espectadores.

O desdobramento implicativo de possibilidades, a compreensão,


a ação, que se dá no modo de sermos da compreensão implicativa --
modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial e dialógico,
experimental e hermenêu-tico, modo, sempre, necessária e
intrinsecamente, de conhecer, de ciência, de consciência -- é,
sempre, afetivamente tingido pela emoção, e potencializado como
motivação.

O que fazia Roland Barthes, em sua magnífica Aula, observar


que a pa-lavra saber, vem da palavra sabor. De modo que, sem
sabor, sem emoção e motivação, o conhecimento não é efetivamente
saber. Não é efetivamente co-nhecimento.

Depois que se desdobra, no modo ontológico de sermos, como


ação, como desdobramento de possibilidades, como acontecer --
como moção, como emoção e motivação, vale dizer --, depois que
perde a sua força atualizativa, a compreensão implicativa se contitui
explicativamente como explicação, como acontecido, como coisa,
como teoria, especificamente -- na modorra de sua instalatividade.
Poderndo ser, então, objeto da contemplação teórica. Em aten-
dimento a uma re-petição, constituindo-se, então, como objeto de re-
flexão, de re-presentação, de re(a)presentação.

Só aprendemos, portanto, no desdobramento da ação. Só


aprendemos como atores, no modo fenomenológico existencial
dialógico, ontológico, da a-ção, da compreensão, e da implicação.

Não aprendemos teóricamente.

Ou seja, não aprendemos no modo de sermos do acontecido,


do objeto, das relações de causa e efeito, da coisidade instalativa,
explicativa: não apren-demos como espectadores. A aprendizagem se
nos dá na condição do modo de sermos de atores.

Efetivamente podemos re-petir, e reapresentar um


conhecimento coisifi-cado, teorético, no modo de sermos da coisidade
instalativa, no modo sermos do acontecido, abstratamente. Na
abstração de corpo, de vivência, e de senti-dos --, sem moção, sem
movimento, sem emoção, sem motivação.

169
Razão de ser do interesse dos preconizadores de uma
Educação, de uma Pedagogia, e de uma aprendizagem, ontológicas --
como Paulo Freire, e Carl Rogers -- por uma concepção e metodologia
fenomenológico existencial e dialógica, ativa, hermenêutica e
experimental.

Uma pedagogia ontológica, fenomenológico existencial e


dialógica, pressupôe o privilegiamento do modo ontológico de
sermos, modo de sermos da presença e da atualidade, modo de
sermos da dialógica interhumana, modo compreensivo e implicativo
de sermos da ação. Modo de sermos própria e es-26

pecificamente da experimentação e da interpretação,


hermenêutica, fenomeno-lógico existenciaial compreensiva, dialógica,
e implicativa.

Mais que isto, o desenvolvimento, o exercício, de uma


metodologia in-trínsecamente constituída a partir das características
fundamentais deste modo ontológico de sermos da ação, da
atualização. Modo de sermos da presença e da atualidade interativas,
implicativamente compreensivas.

Ou seja, uma consideração intrínseca e radical, na


aprendizagem, pela pontualidade da interação com a alteridade --
enquanto parceiro e enquanto temática de aprendizagem. Não a coisa
instalada, enquanto objeto de estudo. Mas com a força possibilitativa
e dialógica de um tu, que se dá na presença e atualidade,
experimental e hermenêutica, do modo onológico de sermos. Uma
consideração radical -- como concepção e como metodológica
pedagógi-ca -- pela instantaneidade momentânea da dialógica deste
modo de sermos. No âmbito domqual não somos sujeitos, nem o
parceiro é objeto, mas somos ambos atores inter ativos.

A dialógica pressupôe um investimento na ação, como


atualização inte-rativa de possibilidadeds, na precariedade própria de
sua incerteza, e infirme-za, que nos solicita a decidida afirmação da
dança que ambas constiuem, en-quanto vivência potente, possível.
Mas sem objetividade, sem subjetividade, sem intersubjetividade.
Alheia aos mecanicismos das causas e dos efeitos. A-lheia à própria
dimensão do real e da realidade, extensivos, explicativos. En-quanto
ela própria, própria e especificamente, é intensiva, intensional.

ONTOLOGIA, PRESENÇA, ATUALIDADE. Mediação para a


Facilitação da Resolução de Conflitos.

A prática da mediação, e negociação, para a facilitação da


resolução de conflitos é uma área muito importante de aplicação da
metodologia fenomeno-lógico existencial ontológica -- da presença e

170
da atualidade. Carl Rogers foi um pioneiro nesta aplicação, quando
utilizou a metodologia de sua abordagem de trabalhos com grupos
para a mediação e negociação para a facilitação da reso-lução de
conflitos.

O conflito se caracteriza e recrudesce pela cronificação de sua


instala-ção no tempo ôntico, no tempo cronificado, no tempo
coisificado. No tempo chronos-lógico. Na perduração e permanência
de sua experiência na repetitivi-dade do modo coisa de sermos, modo
de sermos do passado, modo de sermos do acontecido. Na abstenção
do concurso ontológico e atualizativo da presença e da atualidade.

Uma vez, nas suas origens, o conflito foi vivo. Deu-se e se


constituiu na vivência do tempo ontológico, da atualidade e da
presença. Tempo da vivência implicativa das possibilidades e da
atualização de possibilidades, na atualida-de, e na presença. No
modo de sermos do tempo ontológico, o tempo da opor-tunidade, o
tempo Grego de Kairós, temporalidade do possível, da possibilida-de,
e do vir a ser, da ação.

Por algum motivo, o desdobramento do conflito em seu devir,


como des-dobramento de possibilidades, como ação, se interrompeu.
Não escoando, as-sim, para a sua resolução, e superação. Resultando
na sua instalação, na ins-27

talação de suas partes, neste seu modo ôntico, e cronificado,


coisificado, de ser.

O natural caminho para a resolução, e para a superação da


condição instalada do conflito, é o de trazer as suas partes à
oportunidade da vivência de suas questões e tensões, da vivência de
sua dialógica, no modo ontológico de sermos, fenomenológico
existencial e dialógico, experimental e hermenêutico, da presença e
da atualidade.

Trazer, assim, as partes conflitantes à oportunidade da


interação dialógi-ca em momentos de vivência do tempo ontológico,
de vivência do tempo como oportunidade do possível, da
temporalidade do desdobramento de possibilida-des, do devir, e da
ação, compreensiva e implicativa.

Esta oportunidade de vivência ontológica, fenomenológico


existencial e dialógica, experimental, e hermenêutica, do conflito por
suas partes pode con-tribuir significativamente para desinstalar a
experiência do relacionamento con-flitual. E propiciar o movimento de
suas possibilidades. Conjuntamente engen-dradas, vividas, e
desdobradas. No sentido de suas resoluções.

171
Este é, pois, o sentido do Grupo Vivencial, e o sentido de sua
metodolo-gia, como metodologia de mediação para a facilitação da
negociação e da re-solução de conflitos.

Para tal, a concepção e a operacionalização do Grupo Vivencial,


ainda que respeite e considere a experiência do tempo crônico, do
tempo cronificado -- do tempo coisificado, realizado, acontecido,
passado, não atual, não presen-te --, privilegia o fluxo natural da
experiência grupal no sentido dos seus ele-mentos constituintes,
propiciadores, possíveis. Elementos da vivência da mo-mentaneidade
instantânea do tempo e modo de sermos do presente e da atua-
lidade.

Permitida certa liberdade ao grupo para constituir os seus


processos vi-venciais, e o respeito às características particulares
deste, o processo grupal tende, cada vez mais, para um
funcionamento ontológico, compreensivo e im-plicativo. Característico
do modo fenomenológico existencial e dialógico de sermos. Tende
para a momentaneidade instantânea da vivência fenomenológi-co
existencial e dialógica, caracterizada pela vivência de possibilidades e
pela atualização de possibilidades, pela superação, no âmbito de sua
vivência pré-reflexiva, compreensiva, e implicativa.

CONCLUSÃO

Presença e Atualidade são duas perspectivas descritivas das


caracterís-ticas do modo ontológico de sermos. Junto com as outras
características deste modo de sermos -- como a sua não objetividade
nem subjetividade, o seu dar-se no modo dialógico da ação, e não no
modo de sermos da dicotomia sujeito-objeto, o seu característico e
intrínseco despropósito, a sua característica des-propositalidade
acausal, o seu intrínseco caráter de inutilidade, por se dar num modo
de sermos que é anterior ao modo de sermos dos úteis e das
utilidades – 28

o caráter de presença – como o modo não cois, pré-coisa, de


sermos; e de a-tualiade, como o modo de sermos da ação –
constituem a vivência do modo ontológico de sermos, fenomenológico
existencial e dialógico, compreensivo, e implicativo.

De modo que é essencial a compreensão e a consideração pela


presen-ça e pela atualidade, e pelas demais características do modo
ontológico de sermos, para a compreensão da concepção e da
metodologia de uma aborda-gem que, conceitual e
metodologicamente, privilegia, em sua prática estética e poiética da
inutilidade, este modo ontológico de sermos, da criação, da alegria,
da superação, da saúde. .

172
Bibliografia de Referência
BUBER, Martin EU E TU.
HEIDEGGER, Martin SER E TEMPO.
PALMER, Richrd HERMENÊUTICA.

173
174
E JESUS EMPATIZOU COM A TERRA 1

Buber comenta como o dizer eu define a relação.


E como a afirmação do eu pessoal, e não egótico, é a abertura
para o dialógico.
O mesmo eu que se arrisca a perder-se, e se perde, como
observa o poeta persa, sufi, do século XIII, Mahmud Shabistari (Neil
Douglas-Klotz, Sabedoria do deserto, RJ, Record, 1996):
As apostas são altas na verdadeira oração.
Tu deves apostar teu eu
e estar disposto a perder.
Quando fizeres isto,
e o teu eu se livrar
do que acreditava que ele fosse
então não restará oração,
apenas um brilho nos olhos.

Se tu penetras no centro do tempo e do espaço


podes deixar de todo os vícios do mundo:
Podes vir a ser próprio mundo.

Buber (Eue tu, Cortês, São Paulo, 1985) dedica-se, em certos


momentos, a explorar o inter humano, bem ciente de que o tu não é
apenas inter humano.
O tu está em toda a esfera do possível.
E o tu pode ser da natureza não humana, da esfera do humano,
e da esfera do sagrado.
Ele ilustra, também, o tu diabólico.
Que às multidões mobiliza como tu, as pessoas a ele
respondem, como um tu. Mas a ninguém ele responde como tu.
Apenas simula. Com Napoleão, Hele ilustra o tu diabólico.
Um paroxismo do tu egótico.
Aquele que profere o EU separado, com inicial
maiúscula, desvela a desonra do espírito universal, que foi
rebaixado até não ser mais que uma espiritualidade.
175
Mas também ilustra, com Sócrtaes, com Goethe, e com Jesus,
dizer eu, no âmbito da dialógica.
Porém, como soa de um modo autêntico e belo, o EU tão
vivo e enérgico de Sócrates!
É o EU do diálogo infinito, e o ar de diálogo que o
envolve em todos os caminhos, até diante de seus juízes, e nos
últimos instantes da prisão.
Este EU vivia na relação com os homens, relação que se
encontrava no diálogo.
Ele acreditava na atualidade dos homens e ia em sua
direção.
Assim, ele permaneceu com eles na verdadeira
atualidade e esta não o deixa mais.
A sua solidão não pode ser considerada abandono, e
quando o mundo humano permanece silencioso ele ouve o
Demônio dizer TU.

Que som belo e autêntico tem o EU de Goethe!


É o EU de uma intimidade pura com a Natureza; ela se
oferece a ele e lhe fala constantemente, ela lhe revela seus
segredos sem, entretanto, trair os seus mistérios.
Este EU crê na natureza e fala à rosa “Então és Tu?” e,
se une a ela numa mesma atualidade.
Quando o EU se volta sobre si mesmo, o espírito do
atual permanece com ele, a visão do Sol permanece no olhar
feliz que se recorda de sua natureza solar e a amizade dos
elementos acompanha o homem até o silêncio da morte e do
devir.
Assim, ressoa através dos tempos o dizer-EU
“adequado, verdadeiro, puro” das pessoas que estão
vinculadas, das pessoas socráticas e goetheanas.

E, para apresentar, antecipadamente uma imagem do


reino da relação absoluta, quão poderoso é o dizer-EU de
Jesus, como um verdadeiro poder de dominação, e quão
legitimo, como uma evidência!
Afinal, ele é o EU da relação absoluta, na qual o homem
atribui a seu TU o nome de Pai, de tal modo que, ele mesmo,
não é senão o Filho, nada mais que filho.
Quando ele profere EU, ele só pode ter em mente o EU da
palavra-princípio sagrada que se tornou absoluta para ele.

176
Se, por acaso, o isolamento o toca, a ligação é mais
forte, e é somente do seio desta ligação, que ela fala aos
outros.
Em vão, procurais reduzir este EU a um mero poder em
si ou este TU a algo que habita em nós e uma vez mais
procurar desatualizar o atual, a relação presente, ambos, EU e
TU, subsistem.
Cada um pode dizer TU, sendo assim um EU, cada um
pode dizer Pai, sendo assim Filho: a atualidade permanece.

Mas Buber observara, hassidicamente, que não conhecia


caminho para Deus que não passasse pelo mundo.
E, para estar com Deus, Jesus não faltaria ao encontro com as
criaturas do mundo, e com a própria terra.
Como ilustra a tradução ampliada de Mateus 26:26 da versão
Peshitta dos evangelhos:, que está no precioso livro Sabedoria do
Deserto, do rabino Neil Douglas-Klotz:

E enquanto eles estavam comendo, Jesus pegou um pão,


abençoou-o, e o partiu, e o deu aos discípulos, e disse:
Tomai, comei; este é o meu corpo:

Então, enquanto eles comiam, Isho’a acolheu e tomou o


pão,
sinal e símbolo do sustento e compreensão da terra.
Ele fez isso como se virasse um só com a bisnaga de pão, se
absorvendo nela;
Ele respirou dentro dela lachama – filha da santa sabedoria –
como bênçãos.
Ele o dividiu, como vidente poderia dividir algo a fim de
profetizar pelas formas que a vontade do Único faz
configurar.
Ele deu esses pedaços a seus estudantes e disse:

Tomai e comei,
Rodeai e desfrutai,
Convertei e consumi,
Envolvei e devorai:

177
Este é o meu corpo morto.
Este é o meu cadáver.
Este corpo (pegri) se estende e vagueia neste mundo.
Por fim ele perde força e calor.
Lede os sinais vós mesmos:
O meu futuro, vosso futuro é ser comida – lachma, dom da
sabedoria --
para o que vem depois de vós. –

identica empatia com a terra revela o Cacique Seattle, quando


responde ao presidente dos EUA sobre a possibilidade de vender a
terra de seu povo:
O ar é precioso para o homem vermelho, pois
todas as coisas compartilham o mesmo sopro: o
animal, a árvore, o homem, todos compartilham o
mesmo sopro.
Parece que o homem branco não sente o ar que
respira. Como um homem agonizante há vários dias, é
insensível ao seu próprio mau cheiro. (...)
Vamos meditar sobre sua oferta de comprar
nossa terra. Se nos decidirmos a aceitar, imporei uma
condição: O homem branco deve tratar os animais
desta terra como seus irmãos.
O que é o homem sem os animais?
Se os animais se fossem, o homem morreria de
uma grande solidão de espírito.
Pois o que ocorre com os animais, logo também
acontece com o homem.
Há uma lição em tudo. Tudo está ligado.
Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo
a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que
respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi
enriquecida com a vida de nosso povo. Ensinem às
suas crianças o que ensinamos às nossas: que a terra é
nossa mãe.
Tudo o que acontece à Terra, acontece também
aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo,
estão cuspindo em si mesmos.
178
Disto nós sabemos: a terra não pertence ao
homem; o homem é que pertence à terra.
Disto sabemos: todas as coisas então ligadas
como o sangue que une uma família. Há uma ligação
em tudo.
Tudo o que acontece à terra acontece, também,
aos filhos da terra.
O homem não teceu a teia da vida: ele é
simplesmente um de seus fios.
Tudo o que o homem fizer ao tecido, estará
fazendo a si mesmo.
Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e
fala como ele de amigo para amigo, não pode estar
isento do destino comum.
É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo.
Veremos.
De uma coisa estamos certos (e o homem branco
poderá vir um dia a descobrir): Deus é um só, qualquer
que seja o nome que lhe dêem. Vocês podem pensar que
O possuem como desejam possuir a nossa terra.
Mas não é possível.
Ele é o Deus do homem, e sua compaixão é igual
para o homem branco e para o homem vermelho.
A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar o seu
Criador.
Os homens brancos também passarão; talvez
mais cedo do que todas as outras tribos.
Sujem suas camas, e uma noite acordarão
sufocados pelos próprios dejetos.
Ao desaparecerem, vocês brilharão
intensamente, iluminados pela força do Deus que os
trouxe a esta terra, e que, por alguma razão especial,
lhes deu o domínio sobre ela e sobre o homem
vermelho.
Esse destino é um mistério para nós, pois somos
selvagens, mas não compreendemos que todos os
búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam
todos domados, os recantos secretos das florestas

179
densas impregnados do cheiro de muitos homens, e a
vista dos morros obstruída por fios que falam.
Onde está o arvoredo? Desapareceu.
Onde está a água? Desapareceu.
É o final da vida e o inicio da luta para
sobreviver.
Como é que se pode comprar ou vender o céu, o
calor da terra? Essa Ideia nos parece um pouco
estranha. Se não possuímos o frescor do ar, e o brilho
da água, como é possível comprá-los.
Cada pedaço de terra é sagrado nas tradições de
meu povo. Cada ramo brilhante de pinheiro, cada
punhado de areia das praias, a penumbra na floresta
densa, cada clareira, e inseto a zumbir, são sagrados
na memória e na experiência de meu povo. A seiva que
percorre o corpo das árvores carrega consigo as
lembranças do homem vermelho...
Essa água brilhante que escorre nos riachos e
rios não é apenas água, mas o sangue de nossos
antepassados.
Se lhes vendermos a terra, vocês devem se
lembrar de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas
crianças que ela é sagrada, e que cada reflexo nas
águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e
lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das
águas é a voz dos meus ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede.
Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas
crianças.
Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem
lembrar e ensinar para seus filhos que os rios são
nossos irmãos e seus também. E que, portanto, vocês
devem doar aos rios a bondade que dedicariam a
qualquer irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende


nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o
mesmo significado que qualquer outra, pois é um
forasteiro que vem à noite e rouba da terra tudo de que

180
necessita. A terra, para ele, não é sua irmã, mas sua
inimiga e, quando ele a conquista, extraindo dela o
que deseja, prossegue seu caminho. Deixa para trás os
túmulos de seus antepassados e não se incomoda.
Rouba da terra aquilo que seria de seus filhos, e não se
importa... Seu apetite devorará a terra, deixando
somente um deserto.
Eu não sei...
Os nossos costumes são diferentes dos seus. A
visão de suas cidades fere os olhos do homem
vermelho. Talvez porque o homem vermelho seja um
selvagem e não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem
branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o
desabrochar de folhas na primavera, ou o bater de
asas de um inseto.
Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e
não compreendo.
O ruído das cidades parece somente insultar os
ouvidos.
E o que resta de um homem, se não pode ouvir o
choro solitário de uma ave, ou o debate dos sapos ao
redor de uma lagoa, à noite?
Eu sou um homem vermelho, e não compreendo.
O índio prefere o suave murmúrio do vento
encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpado
por uma chuva diurna, ou perfumado pelos pinheiros.

E Lao Tse expressou a perspectiva de alguém que conhecia


profundamente a empatia e a dialógica com a Terra:
Quereria alguém arrebatar o mundo e dele fazer
o que quiser?
Não vejo como poderia ter sucesso.
O mundo é um canal sagrado, que não deve ser
indevidamente manipulado, nem agarrado.
Manipulá-lo indevidamente é espoliá-lo, agarrá-
lo é perdê-lo.

181
Para todas as coisas, na verdade, há um tempo
para ir à dianteira, e um tempo para seguir à
retaguarda; um tempo para a respiração lenta e um
tempo para a respiração acelerada; um tempo de
aumento de força e um tempo de decadência; Um
tempo para estar de cima e um tempo para estar
debaixo.
O sábio, portanto, evita todos os extremos,
excessos e extravagâncias.

Caetano revela sua empatia, depois de ter passado um período


na cela de uma cadeia.
Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens...

Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...

Ninguém supõe a morena


Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço prá ti Pequenina
como se eu fosse
O saudoso poeta
E fosses a Paraíba...
Terra! Terra!

Por mais distante


O errante navegante
182
Quem jamais te esqueceria?...

Eu estou apaixonado
Por uma menina terra
Signo de elemento terra
Do mar se diz terra à vista
Terra para o pé firmeza
Terra para a mão carícia
Outros astros lhe são guia...

Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?...

Eu sou um leão de fogo


Sem ti…

Jobim também revelaria:


Let there be flowers
Deixemos que haja flores
Let there be spring
Deixemos que haja a primavera
We have few hours to save our dream
Poucas horas temos para salvar o nosso sonho
Let there be light
Deixemos que haja a luz
Let the bird sing
Deixemos o pássaro cantar
Let the forest be forver green
Deixemos a floresta para sempre verde ser
Little blue planet in great need of care
Pequeno planeta azul, tão necessitado de cuidado
Crystal clear streams
Regatos claramente cristalinos

183
Lots of clear air
Enormidades de ar claro
Lets save the Earth
Salvemos a terra
What a wonderfull thing
Que coisa maravilhosa
Let it be forever green
Deixemo-la para sempre verde

Imagine mother Earth become a desert


Imagine a mãe terra transformada em um deserto
A poison sea, a venomous lagoon
Um mar de veneno, uma lagoa envenenada
And life on planet Earth be gone forever
E a vida na terra para sempre desaparecida
And God will come and ask for planet blue
E Deus virá e perguntará pelo planeta azul
What to do
O que fazer
Where is the Paradise
Onde está o paraíso
I’ve made for you
Que eu fiz para ti
Where is the green
Onde está o verde
And where is the blue
E onde está o azul
Where is the house
Onde está a casa
I’ve made for you
Que eu fiz para ti
Where is the forest and
Onde está a floresta

184
Where is the sea
Onde está o mar
Where is the place good for you, good for me
Onde está o lugar bom para ti, e bom para mim
Let’s save the Earth
Salvemos a terra
What a wonderfull thing
Que coisa maravilhosa
Let the bird fly, let the bird sing
Deixemos o pássaro voar, deixemos o pássaro cantar
(Let them sing Luísa)
(Deixemo-los cantar Luísa)
Let it be forever green
Deixemos para sempre o verde ser
Where is the Paradise
Onde está o paraíso
I’ve made for you
Que fiz para ti
Where is the green
Onde está o verde
And where is the blue
E onde está o azul
Where is the house
Onde está a casa
I’ve made for you?
Que eu fiz para ti?

185
E JESUS EMPATIZOU COM A TERRA 2
Eu sou a videira de Israel

Em sua bela e rica obra, Dionisio --, Karl Karéni-fala da


menção de Jesus a si próprio, como a „videira de Israel‟, João.
Não é pouco interessante a passagem.
Porque, desde os tempos pré-históricos, videira é a poderosa
metáfora de Dionísio. A poderosa metáfora que, desde muito antes,
grassava massivamente -- e era combatida --, pela Ásia menor, pela
Grécia, pelo Levante. Regiões de povos agricultores vinícolas. E
infiltrava-se, pelo Império Romano, na Europa.
Em sua santa sabedoria, Jesus cuidou de qualificar a videira a
que se referia.
Eu sou a boa videira...
Não poderia se identificar com a videira dionisíaca.
Meninas boas vão para o Céu...
E as meninas da deliciosa versão arcaica da religião dionisíaca
não eram meninas boas... Para dizer o mínimo...
E fariam Maria Madalena corar de vergonha, como menina de
colégio...
Estavam mais para Madalena, antes de ser Santa Maria
Madalena da Alagoa do Sul...
Se é que me entendem...
Mas, verdade que Jesus lançou mão substancialmente da
poderosa metáfora dionisíaca da videira.
indicou a mistura do vinho com o seu sangue. Identificou o
vinho com seu sangue.
E ainda chamou a fusão entre eles, o vinho e seu sangue, de a
Nova Aliança.
Está lá, em João 20- .
Trabalho para os exegetas honestos...
Intrigantes menções...
Será que Jesus, o Galileu, buscava desvincular-se da poderosa
Lei antiga, e do poderoso Império Romano, que o oprimiam? E via
para além do Líbano, da Síria, e da Jordânia?

186
Aí, encontraria uma cultura pulsante, encabeçada por Dionísio,
e que, alegremente, dava-se à putaria dionisíaca, com a alegria, a
seriedade, e um fervor, verdadeiramente religiosos.
Só conhecendo algo da Grécia Dionisíaca, pode-se entender o
delicado da questão.
E de o fundador de um império religioso distinguir-se de
Dionísio. E de todo o complexo lascivo ligado, com pura e divina
ingenuidade e inocência, à videira dionisíaca...
Desde imemoriais tempos pré-históricos -- quando ainda eram
coletores e caçadores, em Creta, antes de Minos e Micenas, antes do
Minotauro, e de tudo, os gregos -- já influenciados pela Ásia Menor,
fascinam-se pela videira, e por sua impressionante metáfora da
indestrutibilidade da vida.
(Citação).
Acompanhavam o drama de seu fenecimento anual.
Até transformar-se em mero cipódo deus, de , seco.
Aguardavam com apreensão o seu ressurgimento, o seu
retorno.
Podado pelo malvado bode.
Que, como os homens, e os Titãs, eram os assassinos de
Dionisio.
Nascidos da fuligem dos Titãs -- capangas de Réia, que
buscavam trucidar o broto incestuoso de Zeus, com perséfone, sua
filha --, os homens carregam herança da condição ambígua dos que
trucidaram Dionísio.
Os Titãs, assassinos do deus, comeram-no impiedosamente –
menos uma parte -- tornaram-se, em parte, Dionísio. Ao consumi-lo.
Antes de serem incinerados pelo raio raivoso de Zeus.
Logo com quem foram se meter...

Pois os homens surgiram da fuligem dos Titãs, incinerados.


E herdam destes a condição de terem comido Dionísio, e, por
isso, também o terem incorporado.
Qual prosaico Titã, também o bode, cruelmente consome
Dionísio – porque a videira é Dionísio – e, em parte, torna-se
Dionísio.
Ao mesmo tempo em que é assassino de Dionísio.
Por comer da videira renascente.
Condição infeliz, que o leva ao caldeirão.

187
Não sem os compungidos cantos da Tragédia – o canto por um
bode... (Káreni).
Cortado em pedaços.
E cozido no leite.
O leite das nutrizes de Dionísio. (Kareni).
Já que se alimentou do Deus. O bode é, em parte, o Deus.

Dos sete pedaços em que é partido, para ser cozido, um é


deixado à parte. Porque de mais difícil cozimento.
Depois eu conto sobre ele.

Os Gregos acompanhavam a luta da videira, contra o bode.


Deus, e o assassino do Deus.
E torciam pelo Deus, naturalmente.

A proliferação dos cachos, o intumescimento dos frutos...

Até que as uvas estavam prontas para serem prensadas. E


produzir o néctar, que seria fermentado.

Fermentado o vinho, chegava-se ao dia da abertura dos barris.


Muita bebedeira e putaria.

Religiosas, contritas, sagradas e ingênuas, bebedeira e putaria,


embriaguez, e erotismo. Vivência transbordante da vida, sofrível, e
mortal, que transborda indestrutível.
E, haja bode.
Em celebração do Deus, que ressurgia dos obscuros mundos
ínferos; e em religiosa celebração de sua ansiada ressureição.
Evoé Dionisio...

Dizia-se que o pedaço do bode que não se cozia era o coração,


de difícil cozimento.

Mas, sabe-se que era o pênis.


Dionísio, também, é celebrado como o pênis.

188
Ereto... Ortho Dionísio...

Numa ótica estritamente religiosa. E, como tal, erótica...

Ótica religiosa de uma religião que celebrava a


indestrutibilidade, e a perene ressureição, da vida. Enquanto vida
impessoal (Zoe).
Que vai além dos indivíduos. E esborra para outros,
infinitamente.
Celebrando, na embriaguez, e no êxtase, eróticos, a própria
vida, a sua ressurreição.
Para além do indivíduo.

Pois bem. O que tem isso tudo a ver com Jesus?...

Não me pergunte...
Foi ele próprio quem fez a relação, acossado pelos antigos, e
pelo Império Romano.
Foi ele quem se comparou à videira...
Foi ele quem se referiu à embriaguez, como o amor...
Depois de ensinar sobre, e comer, o pão, o trigo, a terra, e o
corpo -- foi ele próprio quem tomou o cálice em suas mãos santas, e
disse: ...
Bebei...
E ainda, enigmaticamente, este é o símbolo da nova aliança.

Isso queria dizer algo muito significativo, naquele tempo, no


Oriente Médio, no Levante, na Grécia, na Ásia Menor.

Naturalmente, há que se pensar que, se Jesus se identificava


com a forma do mito dionisíaco, não se identificava com todo seu
conteúdo...

Onde traçar a diferenciação?

189
Dizia-se que o pedaço do Bode que não era ritualmente cozido
era o coração. Que era conduzido numa cestinha para os rituais
sagrados da religião dionisíaca.
Era o pênis.
Rejeitado em Roma.

Talvez tenhamos pagado muito, pela adoção do Cristianismo,


pelo Império Romano.

Ça va...

Os Gregos tinham um festival dionisíaco, religioso, em que


havia uma competição de entornar odres de vinho. Ganhava quem
bebesse mais...
O campeão ganhava um odre de vinho.
Que era uma bolsa feita da pele curtida de um bode.
Antes do vinho, o odre, devidamente lacrado, era
propedêuticamente besuntado com óleo. E inflado, como uma bola.
Os alegres competidores, em seu – rigoroso, e severamente,
alterado estado de consciência --, iam lutar.
Agora, para ver quem conseguria agarrar o odre inflado, e
sobre ele mais tempo ficar sentado.
Não tinham cronômetro.
Imaginem a contagem.

Wlliam James seria supérfluo.


A não ser como competidor.

A religião dionisíaca é uma religião feminina.

Teve sua contraparte masculina no Orfismo (Karéni).


Tratava-se de celebrar a vida indestrutível, e sua superação do
indivíduo.
Na embriaguez, na Primavera, na parreira, no vinho, na
concepção, no parto, no erótico.

190
Sem machismo, a ressureição de Dionísio era a ressureição do
pênis. Aprés su petit mort.
Havia suas zelosas sacerdotisas.
Seitas secretas, as nutrizes de Dionísio. Nutrizes da ressureição
de Dionísio.

Evidentemente, nutrizes de Dionísio. Tanto na sua forma


infante, como na sua forma jovem...

Toda ressureição é ressureição do retorno, e índice da divina


ressureição do pênis, e da vida indestrutível.

Assim, surgiram os rituais relativos ao pênis.

Em Olinda, na Quarta Feira de Cinzas tem um.


Não, tem dois.

O Bloco Bacalhau do Batata, e o que eu chamo de Ritual do


Caralho Avoado.

191
É DE FAZER CHORAR
Luiz Bandeira

É de fazer chorar
Quando o dia amanhece
E obriga o frevo a acabar
Óh quarta-feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar
É de fazer chorar
Quando o dia amanhece
E obriga o frevo a acabar
Óh quarta-feira ingrata
Chega tão depressa
Só pra contrariar
Quem é de fato
Um bom alagoano ;-)
Espera um ano
E se mete na brincadeira
Esquece tudo quando cai no frevo
E no melhor da festa vem a quarta-feira

Pois é, o dia amanhecendo, todo mundo exausto, e querendo


mais. E já é Quarta Feira, no tempo que voa.

Mas ainda há uma esperança...


Duas...

“Todo mundo” vai prá uma ladeira da vetusta Sé...

Ah!
Lá estão os Dionisios...
Os garçons que serviram no Carnaval. Se organizando para
sair, no Bacalhau do Batata.
Não há como conter o riso, e a alegria...
Eles estão ali para afirmar, alegremente, que são homens, que
são vida, ressuscitada.
E que no próximo ano tem mais...
Mesmo que alguns, ou muitos, não estejam.
192
Não importa, ninguém pensa nisso.

Sobretudo não viraram batata frita, e mijo.


E são pulsantes, ressuscitados...

Numa esquina próxima, talvez os Quatro Cantos, a multidão se


junta, apreensiva, inquieta, e alegre.
Ele chega senhorial.
Amarrado na ponta de um longo barbante. Atado, por sua vez,
a uma longa vara.
O que lhe permite, na mão de um operador habilidoso, fazer
círculos aéreos sobre a multidão.
Círculos concêntricos.
Primeiro, de pequena amplitude, aumentando
progressivamente.
Ciclicamente, o avoante, do alto, aproxima-se da multidão, em
vôos rasantes.
A multidão delira. Abaixa-se, alegremente à sua passagem,
fingindo medo.

Gritos, risos, imprecações, mesmo aqui, impublicáveis.


Alegres momentos se passam sob a soberania do alegre
Caralho Voador.

Em seguida, todos vão se dispersando, alegremente.


Mas, certos de que, no próximo ano, o Carnaval está de pé.

Ortho Dionysio, mais uma vez, ressuscitou.


Consumiu-se, e ressuscitou.

Qual a parte do bode que não era cozida?


O coração, ou o pênis?

Trabalho para os exegetas.

193
Mas torna-se problemático o movimento Católico surgido na
França (Ah, logo na França...), em torno do Sagrado Coração de
Jesus. E que deitou raízes no Brasil.
Com todo o respeito, seria o coração mesmo; ou seria um
simbolismo mais explícito da ressureição da vida indestrutível?

194
FATAL MESMO É CRER NA FATALIDADE.
Dialogicidade, Superação, teoria e prática da
Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial*
* Capítulo de FONSECA, Afonso H. L. - TRABALHANDO O LEGADO DE

ROGERS. Sobre os Fundamentos Fenomenológico Existenciais. Maceió, Pedang,


1987.

... Somente o ISSO pode ser ordenado. As coisas


não são classificáveis senão na medida em que,
deixando de ser nosso TU, se transformam em nosso
ISSO. O TU não conhece nenhum sistema de
coordenadas.
(...) o mundo ordenado não significa a ordem do
mundo. Há momentos em que, sem motivo aparente,
a ordem do mundo se apresenta como presente.
Percebe-se, então, o tom do qual o mundo ordenado é
nota indecifrável. Tais momentos são imortais, mas
são também os mais fugazes. Deles não se pode
conservar nenhum conteúdo, mas, em contrapartida,
a sua força integra a criação e o conhecimento do
homem, as irradiações de sua força penetram no
mundo ordenado, fundindo-o incessantemente. Tal é a
história do indivíduo, tal a história da espécie.
M. Buber

A única coisa que pode vir a ser fatal ao homem


é crer na fatalidade.
A crença na fatalidade é falsa desde o princípio.
(...) A profecia baseada na objetividade tem valor
apenas para quem ignora a presença. Aquele que é
subjugado pelo mundo do Isso é obrigado a ver no
decurso inalterável uma verdade que esclarece a
confusão. Na verdade tal dogma deixa subjugar-se
mais profundamente ao mundo do Isso. O mundo do
Tu, porém, não é fechado. Aquele que na unidade do
seu ser se dirige a ele conhecerá profundamente a
liberdade. E tornar-se livre significa libertar-se da
crença na servidão.
M. Buber.

E eis o que me segredou a vida: „eu sou o que


deve superar-se indefinidamente‟.
F. Nietzsche.

Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso


um sagrado dizer-sim: sua vontade quer agora o
195
espírito, seu mundo ganha para si o perdido do
mundo.
Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da
vontade e da liberdade ...

Todo „foi‟ é um fragmento, um enigma, um


horrível acaso -- até que a vontade criadora lhe diz:
„Mas assim eu quis!
F. Nietzsche.

196
A Filosofia Dialógica da Relação de M. Buber, como
fenomenologia e como ontologia da relação, e do humano, tem um
poder singular para a compreensão do processo e do que podemos
entender como produção dos efeitos da psicoterapia.
Muito além da mera conceituação das palavras princípio Eu-Isso
e Eu-Tu, ou da tola confusão de palavra com verbalização, mesmo
que sub vocal, que tão frequentemente se lhe atribui --, a filosofia da
relação oferece-nos preciosas perspectivas.
Não apenas para a formulação, ou para a compreensão, de um
método de psicoterapia, ou de psicologia, mas, fundamentalmente,
para uma compreensão acerca do como o humano, no seu mero ser
como devir, foge, supera, desvencilha-se, do dado e do estabelecido.
Como o ser humano transcende o determinado -- o útil,
cotidiano e inevitável mundo e vida do Isso, mundo, e vida, da
coisificação e da coisidade, da fatalidade, do decurso inalterável das
coisas. Através da criação e re-criação de si e do mundo, que
naturalmente lhe permite a possibilidade natural do evento da
relação, do dialógico, na sua superabundância de forças, e de
plasticidade.
É tardia a dedicação específica de Buber ao processo da
psicoterapia ou do trabalho psicológico. O que lhe ocupava era a
ontologia da relação, e do humano. Era o processo de (auto)
engendramento do ser (devir) do humano, e do humano mundo. Era
a ontologia da humana pertinência à natureza não humana. Era a
dialógica com o sagrado.
Com uma compreensão do dialógico, e de suas possibilidades,
na vida e no mundo humano, Buber nos oferece uma perspectiva de
compreensão do que naturalmente pode ocorrer de melhor no
processo da psicoterapia, ou do trabalho psicológico de base
fenomenológico existencial.
Antes de ser processo, ou efeito, psicoterapêutico, todavia, a
possibilidade das forças e a possibilidade plástica do dialógico na vida
e no mundo humano são, naturalmente, uma dimensão fundamental,
e natural potencialidade, latência constante, do processo e das forças
da existência.
Ou seja: a mudança, a irrupção da criatividade existencial, a
superação cri-ativa de um indesejável decurso, que se tornou
aparentemente inevitável, que trás o cliente ao consultório, e que é
possibilitada pela vivência do dialógico, é uma possibilidade natural,
uma necessidade, da existência. Sempre latente e naturalmente
atualizável, na medida em que possamos intuí-la e afirmá-la.
De modo que Buber deixa claro para nós que o que vemos de
melhor no processo da psicoterapia, ou do trabalho psicológico, o
melhor do crescimento humano, a mudança terapêutica, a superação,
a potencialização da criatividade existencial -- a partir da mobilização
de uma super-abundância de forças --, é, na sua efetividade, a
natural implicação da humana abertura para o dialógico, a sua
afirmação, a atualização do sempre latente e disponível potencial
197
para a relação. A assunção plena da concretude da existência, em
sua contingência, afetividades e devires.
Buber nos mostra, de um modo cristalino, como a relação, o
dialógico, borra a consistência da dureza do mundo e da vida do isso,
do mundo e da vida coisificados, e de seus poderes, funde
estanquização e estagnação tensa do mundo e da vida coisificados, e
infunde-lhes movimento, plasticidade renovada, dinamismos,
possibilidades, libertação de suas potencialidades.
Como a relação, e o dialógico, suspendem a gravidade da força
de rolo compressor do decurso aparentemente 3 inalterável das
coisas, e dela engendra novas formas e possibilidades.
Mostra, também, como -- num esgotado e estereotipado eu,
carente de atualidade --, o dialógico e a relação infundem a
possibilidade do devir, a possibilidade de sua própria super
abundância renovada de forças, de cor e brilho.
E tudo isto, evidentemente, não é privativo da psicoterapia ou
do trabalho psicológico, de um método, abordagem, ou situação
determinada.
De fato, trata-se apenas da natural atualização da sempre
presente, não importa o quanto negligenciada e enfraquecida,
potencialidade humana para o dialógico, e para a ação, para a relação
(eu-tu).

Busco neste texto apresentar alguns destes aspectos da


Filosofia Dialógica da Relação, explicitar elementos que evidenciem a
sua importância para a aprendizagem, e para o trabalho
psicoterapêutico e psicológico.
Assim como para a vida humana em geral.
Para tal, uso abundantemente o próprio texto de Buber, no Eu e
4
Tu . Evidentemente a melhor forma de exposição de suas
perspectivas.
De modo que o texto segue, fundamentalmente, por uma
tempo, as pegadas de Buber, em de sua obra.
È importante termos em mente a diferença que Buber faz entre
os termos relacionamento, e relação. Relacionamento refere-se ao
modo eu-isso de sermos. Relação ao modo eu-tu, ao modo ontológico
de sermos ao dialógico.

Buber tematiza a coisific/ação do mundo, e da vida (eu-isso), e


as características, implicações e potencialidade da dimensão do
mundo e da vida coisificados.
Em primeiro lugar, a sua necessidade, a sua inevitabilidade, a
sua importância para a vida humana individual e coletiva.

4
BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Cortez & Moraes, 1979. 2ª
Ed.
198
Tematiza, a seguir, a latência sempre presente do dialógico na
vida humana, a importância da preservação da força de sua
possibilidade e potencialidade, neste mundo e vida coisificados.
E a implicação do enfraquecimento e perda desta possibilidade.
Aborda, de modo brilhante, o modo como a relação dialógica
pode converter as implicações decorrentes da coisificação ilimitada da
vida e do mundo, a causalidade ilimitada, o decurso inalterável das
coisas, a fatalidade, a crença na inalterabilidade do decurso e da
fatalidade.

199
1. COISIFICAÇÃO, COISIDADE, E A POSSIBILIDADE
DA RELAÇÃO NO MUNDO DAS COISAS.

Somente o ISSO pode ser ordenado... O


TU não conhece nenhum sistema de
coordenadas.
O mundo ordenado, porém, não significa
a ordem do mundo.
M. Buber

Praticamente tudo o que não é coisa na vida humana -- apesar


de configurar o que existe de mais importante e definidor no humano
--, é fugaz, efêmero, pontual... E sofre o melancólico destino de
coisificar-se, de constituir-se inevitável e necessariamente em coisa,
em Isso.

Sejam os objetos materiais, sejam os afetos, o pensamento, a


alteridade, as relações, o Tu vivido no instante.

Buber coloca:

... A grande melancolia de nosso destino é


que cada TU em nosso mundo deve tornar-se
irremediavelmente um ISSO.
Por mais exclusiva que tenha sido a sua
presença na relação imediata, tão logo esta tenha
deixado de atuar ou tenha sido impregnada por
meios, O TU se torna um objeto entre objetos,
talvez o mais nobre, mas ainda um deles,
submisso à medida e à limitação.
A atualização da obra, em certo sentido,
envolve uma desatualização em outro sentido.
A contemplação autêntica é breve; o ser
natural que acaba de se revelar a mim no segredo
da ação mútua, se torna de novo decomponível,
classificável, um simples ponto de interseção de
vários ciclos de leis. E o próprio amor não pode
permanecer na relação imediata; ele dura, mas
numa alternância de atualidade e de latência (...).
Cada TU, neste mundo é condenado, pela
sua própria essência, a tornar-se uma coisa, ou
então, a sempre retornar à coisidade. 2
2 Op.cit. p.19-20.

200
3 op. cit. p.54.

Esta inevitabilidade da coisificação, a transformação necessária


do Tu e5m Isso, é natural, não configura algo de negativo em si.
É própria da condição humana. E é ela que permite a
objetivação e a organização do mundo e da vida humanos. É ela que
permite o desenvolvimento da cultura, do conhecimento, da língua,
dos usos, da arte, do ordenamento científico da realidade.
Na verdade, a nossa vida cotidiana desdobra-se normalmente
na esfera do Eu-Isso, do mundo da coisificação e da coisidade, e é,
ela própria, coisificada. E isto é natural.
O dialógico, a atualização da possibilidade do Eu-Tu é eventual,
episódica e fugaz. E isto é natural.

A palavra princípio EU-ISSO não tem nada de


mal em si, porque a matéria não tem nada de mal
em si mesma. 6

O que é fundamental reter, todavia, é que as coisas, o mundo e


a vida coisificados, assim constituídos, não são absolutos em sua
condição. Guardam, em latência, em si sempre pronto, o potencial de
uma “reversibilidade”. O Tu neles encantado, e a possibilidade de seu
“desencantamento”.

O ISSO é a crisálida, o TU a borboleta. (...)


não como se fossem sempre estados que se
alternam nitidamente, mas, amiúde, são processos
que se entrelaçam confusamente, numa profunda
dualidade. 7

Empobrecimento e fatalismo na condição humana começam a


desenvolver-se quando esta latência do TU no ISSO – ou seja,
latência da possibilidade da relação dialógica no mundo e na vida
coisificados -- começa a enfraquecer-se ou a extinguir-se. Quando
sobre o mundo do Isso não paira, ou enfraquece-se, a possibilidade
do Tu, da latência do Tu por sobre o mundo do Isso, como quando o
espírito pairava sobre as águas (Buber). 8

Quando o mundo coisificado, o mundo do ISSO, ganha


autonomia e se absolutiza. Quando o homem assim submetido ao
poder das coisas e da vida coisificada perde a possibilidade da relação
dialógica com a natureza, com o humano, com o misterioso.

6
op. cit. p.20.
7
Op. Cit p.43.
8
Op. Cit.
201
Na possibilidade do dialógico reside, especificamente, o poder
humano de regeneração, de recriação. E de ordenamento criativo do
mundo das coisas.

É sempre uma possibilidade, e um desafio para o homem, a


preservação constante de seu poder de momentânea e pontual
relação Eu- Tu. A relação EU-TU na esfera da relação com os seres
naturais não humanos, na esfera da relação inter humana, ou na
relação com o mistério espiritual do Ser, em sua vida.

A possibilidade arrisca-se cada vez mais, e o desafio


potencializa-se (Buber), na medida em que o homem vive, e na
medida em que dura a vida humana, tanto coletiva quanto individual.

Porque o desenvolvimento da história de sua vida -- da mesma


forma que o desenvolvimento das civilizações – implica,
inevitavelmente, num inexorável, e progressivo, crescimento, e
progressiva estruturação, e potencialização como tal, do mundo e da
vida do Isso. Do mundo e da vida coisificados.

A história do indivíduo e a história do gênero


humano (...) manifestam um crescimento
progressivo do mundo do Isso.9 5

Preservar a possibilidade e a potencialidade da relação


dialógica, na condição em que cresce, potencializa-se e estrutura-se
a coisificação e a coisidade: o poder do mundo do Isso: este é, para
Buber, o desafio propriamente ontológico e ontogênico do ser
humano. 6

(...) O que existe de mal é o fato de a


matéria pretender ser aquilo que existe.
Se o homem permitir, o mundo do ISSO, no
seu contínuo crescimento, o invade e seu próprio
EU perde a sua atualidade, até que o „pesadelo
sobre ele‟ (o mundo do isso alienado) e o
„fantasma no seu interior‟10 (o eu carente de
atualidade) “sussurram um ao outro confessando,
sua perdição 11.

Como é próprio, o contato do homem com o mundo do Isso


implica a experiência, o conhecimento e a utilização.

**
Parênteses e grifos nossos.
11
op. cit p. 44-5.
202
Funções que permitem ao homem utilizar as coisas, utilizar o
mundo e a vida coisificados, para a sua conservação, para o
provimento e facilitação de sua vida.

De modo que, à medida em que há um crescimento progressivo


do mundo do Isso, desenvolve-se também a capacidade humana de
experimentar e utilizar.

E como capacidade é necessidade, potencializa-se a


possibilidade de atrelamento, cada vez maior, do homem ao mundo
das coisas. E o empobrecimento e a perda de sua capacidade de
relação.

O aperfeiçoamento da função de
experimentação e de utilização realiza-se,
geralmente, no homem em detrimento de seu
poder de relação.12

Buber13 comenta que o aperfeiçoamento da função de


experimentação*, e de utilização, pode implicar no desenvolvimento
da experiência indireta ou a “aquisição de conhecimento”. Ou, uma
redução da utilização a uma “aplicação especializada”, que são
desenvolvidas de geração a geração.

Erroneamente, este processo pode ser entendido como “vida


espiritual”.

Buber enfatiza que o entendimento é fundamentalmente


equivocado:

... Pois esta “vida espiritual” representa


geralmente um obstáculo para a vida do homem
no Espírito; ela é, quando muito, a matéria que,
depois de vencida e modelada, a vida do espírito
deve consumir. É um obstáculo, pois a capacidade
de experimentação e de utilização se desenvolve
no homem, frequentemente, em detrimento de sua
força-de-relação, único poder, aliás, que lhe
permite viver no Espírito. 14

O espírito tem para Buber um sentido particular, sempre ligado


ao mundo e ao vivencial:

12
Op. Cit.45-6.
13
Op. Cit. P59
*
Observar que Buber utiliza este termo, experimentação, no sentido
objetivista. Da relação com o objeto.
14
Ibid.
203
O Espírito em sua manifestação humana é a
resposta do homem a seu Tu. ...
O homem vive no espírito na medida em que
pode responder a seu Tu. Ele é capaz disto quando
entra na 7 relação com todo o seu ser. Somente
em virtude de seu poder de relação é que o
homem pode viver no Espírito.9

... Com efeito, quando o espírito age


livremente na vida, ele não é mais espírito „em si‟,
mas espírito no mundo, graças a seu poder de
penetrar no mundo e transformá-lo. O espírito não
está „consigo‟, a não ser no face-a-face com o
mundo que se lhe abre, mundo ao qual ele se doa,
que ele liberta e pelo qual é libertado. A
espiritualidade esparsa, debilitada, degenerada,
impregnada de contradições, que hoje representa
o espírito, poderá realizar esta libertação somente
na medida em que atingir novamente a essência
do espírito, a faculdade de dizer Tu.15

Seguindo na perspectiva de sua tradição hassídica, Buber dirá:

Não conheço nenhum caminho para Deus


que não passe pelo mundo.

Esta perspectiva será reafirmada na conversão espiritual que se


sucede à crise decorrente do suicídio de um orientando seu:

Desde então eu abandonei aquele religioso


que não é nada mais que exceção, retirada, saída,
êxtase; ou ele me abandonou.
Eu não possuo nada além do cotidiano, do
qual eu nunca sou retirado.
O mistério não se abre mais, ele se subtraiu
ou fixou domicílio aqui, onde tudo acontece como
aconteceu.
Eu não conheço mais nenhuma plenitude
além daquela de cada hora mortal, de exigência e
responsabilidade.
Longe de estar à altura dela, eu sei, porém,
que sou solicitado pela exigência e posso
responder à responsabilidade, e sei quem fala e
quem exige resposta.

15
Op. Cit. 59.
204
Muito mais eu não sei. Se isto religião, então
ela é simplesmente tudo, o simples todo vivido na
sua possibilidade do diálogo.16

Para Buber, assim, manter a possibilidade e a potencialidade da


relação dialógica é manter a possibilidade e a potencialidade da vida
espiritual.

Uma vez que a vida no espírito é, para Buber, a resposta


existencial do homem ao seu Tu.

É a possibilidade desta resposta que permite ao homem exercer


e subverter os seus limites, e o seu ilimitado como ser. E libertar-se,
e constituir e reconstituir a esfera do mundo e da vida coisificados.

Mas o paradoxo humano implica no fato de que a relação com o


Tu é momentânea e excludente, é instantantânea, é vivência
imediata e face-a-face.

... Somente o silêncio diante do Tu, o silêncio


de todas as línguas, a espera silenciosa da palavra
não formulada, indiferenciada, pré-verbal, deixa ao
Tu sua liberdade, estabelece-se com ele na
retensão onde o espírito não se manifesta mas
está presente.17

A própria resposta do homem a seu Tu conduz à coisificação:

Quanto mais poderosa é a resposta, quanto


mais ela enlaça o Tu, tanto mais o reduz a um
objeto. ... Toda resposta amarra o Tu ao mundo do
Isso. Tal é a melancolia do homem, tal 8 também
a sua grandeza. Pois assim surgem no meio dos
seres vivos o conhecimento, a obra, a imagem e o
modelo.18
O homem vive, assim, num mundo de coisas, e não pode evitar
a coisa e a coisificação no mundo, e em sua própria vida.

O mundo e a vida coisificados servem ao homem e organizam a


sua realidade. O homem vive num mundo de coisas.

A possibilidade do Tu, todavia, reside em cada aspecto das


coisas, e é própria de sua natureza:

16
Notas Biográficas.
17
BUBER, M. Eu e tu. p
18
Op. Cit. P59.
205
Tudo o que (...) se transformou em Isso,
tudo o que se consolidou em coisa entre coisas,
recebeu por sentido o destino de se transformar
continuamente.
Sempre de novo -- tal foi o sentido da hora
em que o espírito se apoderou do homem e lhe
mostrou a resposta.
O objeto deve consumir-se para se tornar
presença, retornar ao elemento de onde veio para
ser visto e vivido pelo homem como presente.19
Buber entende desta forma tanto a vida individual do homem
quanto a sua vida coletiva:

As estruturas da vida humana em comum


extraem a própria vida da plenitude da força de
relação que lhes penetra por todas as suas partes,
e sua forma encarnada eles a devem à ligação
desta força ao espírito. (...)20
E aqui cabe, mais uma vez, a observação de Buber:

A espiritualidade esparsa, debilitada,


degenerada, impregnada de contradições, que hoje
representa o espírito, poderá realizar esta
libertação somente na medida em que atingir
novamente a essência do espírito, a faculdade de
dizer Tu. 2115 9

19
Op. Cit. p
20
Op. Cit
21
Op. Cit. P.
206
2. IMPLICAÇÕES HUMANAS DA PERDA DA
POSSIBILIDADE DA RELAÇÃO NO MUNDO E NA VIDA
COISIFICADOS.
Esta potencialidade sempre latente de relação no mundo e na
vida coisificados, a possibilidade de sua transformação é frustrada, na
medida em que, perdendo ou enfraquecendo esta possibilidade da
latência da relação dialógica a eles inerente, nos conformamos e nos
submetemos à vida e ao mundo coisificados, e tendemos conferir-
lhes um caráter absoluto e excludente:

O homem que se conformou com o mundo


do Isso como algo a ser experimentado e utilizado,
faz malograr a realização deste destino: em lugar
de liberar o que está ligado a este mundo ele o
reprime; em lugar de contemplá-lo ele o observa,
em lugar de acolhê-lo, serve-se dele.22
A vida (...) do homem não pode (...)
prescindir do mundo do Isso, sobre o qual paira a
presença do Tu (...).

A vontade de utilização e a vontade de


dominação do homem agem natural, e
legitimamente, enquanto permanecem ligadas à
vontade humana de relação, e sustentadas por ela.
Não há má inclinação até o momento em que
ela se desliga do ser presente; a inclinação que
está ligada ao ser presente, e determinada por ele,
é o plasma da vida (...), e sua inclinação separada,
a sua destruição. 23

CAUSALIDADE
Diferentemente do momento de relação, o mundo e a vida
coisificados, o mundo do Isso, são constituídos por objetos, por
coisas, que se dão limites umas às outras. E que permitem uma
organização espácio-temporal, que possibilitam a organização do
mundo humano, o conhecimento, a elaboração dos artefatos
humanos, a cultura, os usos, a linguagem, a ciência.

Como constituído por coisas que se limitam, e se determinam,


reciprocamente, o mundo do Isso se configura como mundo da
causalidade, em que cada evento passa, necessariamente, por
causado ou causador.

22
Op Cit. P. 47.
23
op. cit. pp. 56-7. Grifos nossos.
207
O mundo do dialógico é o mundo não causal da atualidade e da
atualização de presenças.

O mundo do Isso é o reino absoluto da


causalidade.
Cada fenômeno “físico” perceptível pelos
sentidos e cada fenômeno psíquico pré existente
ou que se encontra na experiência própria, passa
necessariamente por causado e causador. 24

A absolutização, autonomização, do mundo do Isso, o


enfraquecimento do vínculo com o dialógico, e o empobrecimento da
possibilidade da relação -- possibilidade de qualquer forma sempre
latente -- levam a um enfraquecimento da possibilidade de renovação
e de regeneração do mundo e da vida coisificados.

Mundo e vida coisificados que passam, então, a caminhar à


deriva, ao sabor da causalidade, e do mecanismo da dinâmica das
coisas.

A causalidade, inicialmente fugaz, ganha poder, intensifica-se,


transformando-se no próprio motor do destino.

Liberdade e destino* já não se conjugam necessariamente.

Seu vínculo está empobrecido e impotente. E o que prevalece,


turbilhonante, é a pura causalidade do mundo e da vida coisificados.

O destino caiu na causalidade, e transforma-se em absurdo e


tirânico demonismo.

O destino sábio e soberano que,


harmonizado com o sentido da plenitude do
universo, reinava sobre toda a causalidade
primitiva, transmudado agora num absurdo
demonismo, caiu nesta causalidade. (...) agora não
importa o que façamos, o Heimarmene („destino‟,
em grego), estranho ao espírito, nos oprime,
colocando sobre nossas nucas todo o peso da
massa inerte do universo.25

24
op. cit. p. 58
25
op. cit. p.64.
208
O DECURSO PROGRESSIVO DAS COISAS, A
FATALIDADE, E O SEU DOGMA

Enfraquecida a possibilidade e a potência da relação no mundo


e na vida coisificados, a causalidade ilimitada conduz a vida e o
mundo ao decurso progressivo, e inalterável, das coisas. E à crença
no decurso.

Conduz a vida e o mundo ao mundo dos fatos, à fatalidade, e


à crença na fatalidade.

É interessante observar que fatalidade não tem para Buber,


primariamente, o sentido de infortúnio, de evento desafortunado.

Só secundariamente é que a fatalidade se constitui como tal


para Buber. Primariamente, para ele, a fatalidade é,
fundamentalmente, o decurso inalterável, fixado, inevitável,
irrevogável das coisas. Potencializado este decurso pela crença na
sua inevitabilidade, na sua irrevogabilidade, num suposto caráter
inalterável e fechado: potencializado pela própria crença na
fatalidade.

No mundo contemporâneo, esta crença no decurso e na


fatalidade é reforçada pelos vários tipos determinismo, e pelos vários
tipos de niilismo constituídos na sociedade moderna.

Referindo-se ao pensamento biologista, ao pensamento


historicista e a outros determinismos e suas leis, Buber observa:

Por mais diferentes que possam parecer um


ao outro, colaboram para formar uma fé na
fatalidade mais tenaz e angustiante do que todas
as anteriores. (...) Sob todas estas formas e outras
mais o que significa é que o homem está ligado a
um devir inevitável contra o qual ele não lutaria
senão em seu delírio. (...) É uma loucura imaginar
a liberdade; não se tem senão a escolha entre uma
escravidão voluntária ou uma escravidão
desesperada e rebelde. (...)
O fundamento que efetivamente todas elas
têm, é a obsessão pelo decurso das coisas. Isto é a
causalidade ilimitada.
O dogma do decurso progressivo é a
abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso.

209
Assim, o nome do destino será mal
empregado; assim atribuir-se a ele o nome destino
será um erro, pois o destino não é uma campânula
voltada sobre o mundo dos homens.
Ninguém o encontra senão aquele que parte
de sua liberdade.
O dogma do decurso inelutável das coisas
não deixa, porém, lugar à liberdade, nem para a
sua revelação mais concreta: a conversão* 20

210
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE

Para o homem que crê no absolutismo do mundo e da vida


coisificados, no absolutismo do mundo do Isso; para o homem em
quem se enfraqueceu a crença na relação, no dialógico, e que crê no
decurso progressivo e inalterável das coisas; para o que crê na
fatalidade, e abdica de seu poder de relação, resta apenas a
possibilidade da vida no arbitrário (o conceitual, subjetivista), e a
partir da arbitrariedade.

Não é a possibilidade imprevisível, intensa, múltipla e


incontrolada da relação que vivifica, anima e transforma a sua vida e
a sua realidade, mas a arbitrariedade cada vez mais desenvolvida e
hipertrofiada.

Buber comenta:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, assim também o estão o arbitrário e
a fatalidade. 26
Porém liberdade e destino são
comprometidos mutuamente para instaurarem,
juntos, o sentido. O arbitrário e a fatalidade,
fantasma da alma e pesadelo do mundo, toleram-
se vivendo um ao lado do outro, mas esquivando-
se, sem ligação e sem atrito, no absurdo.
Até que, em determinado momento, os
olhares distanciados se reencontram. E irrompe
deles a confissão de mútua perdição.
Quanta espiritualidade eloquente e
engenhosa é dispensada, hoje, senão para
impedir, ao menos para dissimular, este fato! 27

O homem que vive no arbitrário não crê e


não se oferece ao encontro (diálogo).
Ele desconhece o vínculo; ele só conhece o
mundo febril do „lá fora‟, e seu prazer febril; do
qual ele sabe se servir.
(...) Na verdade, ele não tem um destino,
mas somente um ser-determinado pelas coisas e
pelos instintos. E isto é realizado com um
sentimento de independência que é, justamente, o
arbitrário.

26
op. cit. p. 70. Grifo nosso.
27
op. cit. p. 69.
211
Ele não tem o grande querer, este é
substituído pelo arbitrário. ele é totalmente inapto
à oferta ainda que possa vir a falar dela. Tu o
reconheces pelo fato de ele nunca se tornar
concreto. Ele intervém, constantemente e sempre,
com a finalidade de„deixar que as coisas
acontecerem‟.
Como se poderia, te diz ele, deixar de
auxiliar o destino, deixar de empregar os meios
acessíveis exigidos para esse fim?22
O homem arbitrário, incrédulo até a medula,
não pode perceber senão incredulidade, e
arbitrário; escolha de fins e invenção de meios.
O seu mundo é privado de oferta, e de
graça; de encontro (diálogo), e de presença.
Entravado nos fins e nos meios.
Este mundo não pode ser diferente. O seu
nome é fatalidade.
Assim, em sua auto-suficiência, ele é
engolfado, simples e inextrincavelmente, pelo
irreal.
E ele sabe disso.
Sempre que sobre si se concentra -- e é por
isso mesmo que ele empenha o melhor de sua
espiritualidade para impedir ou, ao menos, ocultar
-- esta lembrança.
Mas, se a lembrança de sua decadência, de
seu Eu inatural e de seu Eu atual, permitir alcançar
a raiz profunda, que o homem chama desespero,
e de onde brotam a autodestruição e a
regeneração, isto já seria o início da conversão*. 28

28
op. cit. p. 71.
212
O EU EGÓTICO, COISIFICADO, DO RELACIONAMENTO
EU-ISSO.

Desde o início, Buber enfatiza a diferença entre o Eu da relação


Eu-Tu, e o Eu do relacionamento Eu-Isso.

O mundo é duplo para o homem segundo a


dualidade de sua atitude.
A atitude do homem é dupla de acordo com a
dualidade das palavras-princípio (atitudes) que ele
pode proferir.
As palavras-princípio não são vocábulos
isolados mas pares de vocábulos.
Uma palavra-princípio é o par EU-TU.
A outra é o par EU-ISSO ...
Deste modo, o EU do homem é também
duplo.
Pois, o EU da palavra-princípio EU-TU é
diferente daquele da palavra-princípio EU-ISSO. 29
O Eu coisificado, abandonado ao mundo e à vida do Isso,
cristaliza-se como tal, como Eu egótico.

Toma consciência de si como sujeito de experiência e de


utilização.

O egótico aparece na medida em que se


distingue de outros egóticos (...)
... é a forma espiritual da diferenciação
natural (...)
A finalidade da separação é o experienciar e
o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, „a vida‟,
isto é, o contínuo morrer no decurso da vida
humana.
(...) O egótico toma consciência de si como
um ente-que-é-assim, e não-de-outro-modo. (...)
O egótico diz: eu sou assim. (...)
Conhece-te a ti mesmo para o egótico
(significa) conhece o teu modo de ser.
Na medida em que o egótico se afasta dos
outros, ele se distancia do Ser.
(...) o egótico se delicia com o seu modo-de-
ser específico que ele imaginou ser o seu. Pois,

29
op. cit. p. 03.
213
para ele, conhecer-se significa fundamentalmente
sobretudo estabelecer uma manifestação efetiva
de si, e que seja capaz de iludi-lo, cada vez mais
profundamente. E, pela contemplação e veneração
desta manifestação, procura uma aparência de
conhecimento de seu próprio modo de ser,
enquanto que o seu verdadeiro conhecimento
poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
(...) O egótico ocupa-se do „meu‟: minha
espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.
O egótico não só não participa como também
não conquista atualidade alguma.
Ele se contrapõe ao outro e procura, pela
experiência e pela utilização, apoderar-se do
máximo que lhe é possível.
Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte
e a tomada de posse. Ambas as operações se
passam no Isso, no que não é atual.
O sujeito, tal como ele se reconhece, pode
apoderar-se de tudo quanto queira, que daí ele
não obterá substância alguma, ele permanece
como ponto, funcional, o experimentador, o
utilizador, e nada mais.
Todo o seu modo de ser múltiplo ou a sua
ambiciosa „individualidade‟ não podem lhe
proporcionar substância alguma.30

A seguir Buber31 esclarece:

Não há duas espécies de homem.


Há, todavia, dois pólos do humano.
Homem algum é puramente pessoa, e
nenhum é puramente egótico; nenhum é
inteiramente atual e nenhum totalmente carente
de atualidade.
Cada um vive no seio de um duplo Eu.
Há homens, entretanto, cuja dimensão de
pessoa é tão determinante que se podem chamar
de pessoas; e outras cuja dimensão de egotismo é
tão preponderante que se pode atribuir-lhes o
nome de egóticos.
Entre aqueles e estes se desenrola a
verdadeira história.

30
op. cit. p. 74-76.
31
op. cit. p. 74-76.
214
Quanto mais o homem e a humanidade são
dominados pelo egótico, mais profundamente o eu
é atirado na inatualidade.
Nestas épocas a pessoa leva, no homem, na
humanidade, uma existência subterrânea e velada
e, de algum modo, ilegítima -- até o momento em
que ela será chamada.
Anteriormente27, Buber discute como o Eu pode perder a sua
atualidade.

Argumentando como um interlocutor, ele questiona:

Compreende-se que o mundo do Isso


abandonado a si mesmo -- isto é, privado do
contato do tornar-se Tu --, aliena-se (...); como é
possível, no entanto, que, como dizes, que o Eu do
homem perca a sua atualidade?
Quer ele viva na relação ou fora dela, o Eu
garante-se a si mesmo na sua consciência de si
(...).
E o próprio Buber responde à argumentação:

A forma linguística não prova nada.


Muitos Tu proferidos são, fundamentalmente,
Isso, ao qual se diz Tu, somente por hábito, ou
sem pensar.
E, muitas vezes, quando se expressa Isso,
no fundo, se significa um Tu, de cuja presença se
guarda, num estado distante, no fundo de seu ser,
uma lembrança.
Assim, em inúmeros casos, o Eu é apenas
um pronome indispensável, apenas uma
abreviação necessária de este aqui que fala.
Mas e a consciencia de si?
Quando, numa frase, se emprega o
verdadeiro Tu da relação; e, em outra, o Isso de
uma experiência; e quando, em ambos os casos, é
o Eu que verdadeiramente se tem em mente, é do
mesmo eu de cuja consciência se fala em ambos
os casos?
Buber prossegue para mostrar que não, explicitando as
distinções entre o Eu egótico, e o Eu da relação Eu-Tu.

215
ATUALIDADE, DECISÃO, LIBERDADE/DESTINO,
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.

A causalidade, fator preponderante no mundo do Isso, motor


da fatalidade, e do decurso, quando este mundo do Isso perde a
possibilidade de atualização da relação EU-TU. A causalidade não
vigora, na esfera da relação (eu-tu).

Está livre da causalidade o homem que -- exercendo a


potencialidade de seu ser -- pode abrir-se e entregar-se à
possibilidade da atualidade da relação (eu-tu).

A esfera da relação pode garantir a liberdade do homem.

Dela pode germinar e emergir a decisão, que lhe permite


reintegrar-se de modo ativo, criativo, e transformador, no
mecanicismo da causalidade do mundo e da vida coisificados.

O reino absoluto da causalidade no mundo


do Isso, embora de importância fundamental para
a ordenação científica da natureza, não aflige o
homem que não está limitado ao mundo do Isso, e
que pode sempre evadir-se para o mundo da
relação.
Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro
livremente, numa ação recíproca que não está
ligada a nenhuma causalidade e não possui dela o
menor matiz. Aqui o homem encontra a garantia
da liberdade de seu ser e do Ser.
Somente aquele que conhece a relação e a
presença do Tu, está apto a tomar uma decisão.
Aquele que toma uma decisão é livre, pois se
apresenta diante da Face.32
E a seguir:

A causalidade não oprime o homem ao qual é


garantida a liberdade.
Ele sabe que sua vida mortal é, por sua
própria essência, uma oscilação entre o Tu e o
Isso, e ele percebe o sentido desta oscilação.
Basta-lhe saber que pode, à todo momento,
ultrapassar o umbral do santuário. Onde ele não
poderia permanecer.

32
op. cit. p. 60-1.
216
E mais ainda: a obrigação de deixá-lo logo
depois incessantemente, lhe está intimamente
ligada ao sentido e 16 ao destino desta vida. (...)
O que aqui se chama necessidade não o
apavora. Pois, lá, no santuário. ele conheceu a
verdadeira. Isto é, o destino. 29
Decisão e relação (eu-tu) estão para Buber, assim,
intimamente associadas.

É na dimensão da atualidade da relação que o homem pode


viver, imediata e intensamente, a multiplicidade de seus possíveis.
Engendrar e assumir o seu gesto, e ato, originais. Gestar a sua ação
original, única e potente. E determinar o acontecimento, organizando
e dinamizando, com a originalidade de seu ser, e de seu ato, a
configuração de seus possíveis.

Sobre o processo da decisão, na duração do evento da


atualidade da relação, Buber coloca:

Eis aqui toda a substância ígnea de minha


capacidade de vontade em um formidável
turbilhão. Todo o meu possível girando como um
mundo em formação, como uma massa confusa e
indissolúvel. Eis os olhares sedutores das
potencialidades, flamejando de todas as partes. O
universo como tentação, e eu nascido em um
instante, as duas mãos imersas numa fornalha,
para apanhar o que aí se esconde e me procura:
meu ato.
Pronto! eu o tenho.
E, logo, a ameaça do abismo é proscrita, a
multiplicidade deixa de fazer valer a igualdade
cintilante de sua exigência; não existem mais que
dois na simultaneidade, o outro e o um. A ilusão, e
a missão.
Só então, porém, começa a minha
atualização.
Pois a decisão não consiste em atualizar o
um e deixar o outro estendido como massa extinta
que, camada por camada, aviltaria a minha alma.
Entretanto, somente aquele que orienta, no
fazer, do Um a força do Outro, aquele que deixa
entrar na atualização do escolhido a paixão intacta
do que foi repudiado. Somente aquele que „serve a
Deus com o „mau instinto‟, se decide, e decide o
acontecimento. 33

33
Op. Cit.
217
Decisão e liberdade conjugam-se na concepção que Buber faz
do destino.

De modo que ele desenvolve uma concepção de destino na qual


estão necessariamente implicados a decisão e a liberdade.

O que aqui se chama de necessidade não o


(ao homem ao qual é garantida a liberdade)
apavora, pois (...) ele conheceu a verdadeira, isto
é, o destino.
Destino e liberdade juraram fidelidade
mútua.
Somente o homem que atualiza a liberdade
encontra o destino.
Quando eu descubro a ação que me requer,
é aí, nesse movimento de minha liberdade, que se
me revela o mistério.
Mas o mistério se revela a mim não só
quando não posso realizar esta ação como eu
pretendia, mas também na própria resistência.
Aquele que esquece toda a causalidade, e toma
uma decisão do fundo de seu ser, aquele que se
despoja dos bens e da vestimenta, para se
apresentar despido diante da face -- a este homem
livre -- o destino aparece como réplica de sua
liberdade.
Ele não é o seu limite, mas o seu
complemento.
Liberdade e destino unem-se mutuamente
para dar sentido. E, neste sentido, o destino -- até
há pouco olhar severo -- suaviza-se, como se fosse
a própria graça.
Não, o homem portador de centelha, que
retorna ao mundo do Isso, não é oprimido pela
necessidade causal.
E, em épocas em que a vida é sã, a
confiança se propaga a todo o povo, através de
homens de espírito (...):34
Quando das épocas mórbidas, Buber observa:

... Acontece que o mundo do Isso, não sendo


mais penetrado e fecundado pelos eflúvios
vivificantes do mundo do Tu -- não passando de
algo isolado e rígido, fantasma surgido do pântano
-- oprime o homem.

34
op. cit. p. 61-2.
218
Nele o homem, contentando-se com um
mundo de objetos que não lhe podem mais tornar-
se presença, sucumbe.
A causalidade fugaz intensifica-se, até
tornar-se uma fatalidade opressora e esmagadora.
35

Para Buber, a conversão, não obstante, permanece sempre


possível.

A conversão é para Buber o engajamento do homem total na


concretude de sua existência (Von Zuben p.163).

A conversão pode ser a abertura que possibilita a emergência


da potência e possibilidade plástica da relação dialógica.

Não obstante a cristalização em causalidade ilimitada, decurso


progressivo e inalterável, e fatalidade, próprios do mundo em que se
enfraqueceu a possibilidade da relação (eu-tu):

O desejo, elan impetuoso de redenção,


permanece, em última análise, insatisfeito. A
despeito de numerosas tentativas. Até que o
acalme aquele que ensina a escapar do ciclo dos
renascimentos, ou alguém que salve as almas,
subjugadas por poderes terrenos, levando-as para
a liberdade dos filhos de Deus.
Tal obra se realiza quando um novo
fenômeno de relação (eu-tu) se torna substância.
Quando uma nova resposta é dada pelo homem a
seu Tu, acontecimento que determina o destino. 36

Buber aponta a parcialidade, e a falsidade, do dogma do


decurso progressivo e inalterável das coisas. A falsidade da crença na
fatalidade:

O dogma do decurso progressivo é a


abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso. (...) Este dogma desconhece o
homem que pode vencer a luta universal pela
conversão; aquele que rompe, pela conversão, as
amarras dos impulsos de utilização; aquele que se
liberta pela conversão do fascínio de sua classe;
aquele que, mediante a conversão, pode revolver,
rejuvenescer, transformar quadros históricos os
mais seguros.

35
op. cit. p. 64-5.
36
Op. Cit.
219
O dogma do decurso não te deixa no
tabuleiro senão uma opção: observares as regras
ou te retirares.
Aquele porém que realiza a conversão
derruba todas as peças.37
E arremata, brilhante:

A única coisa que pode vir a ser fatal ao


homem é crer na fatalidade, pois esta crença
impede o movimento da conversão.
A crença na fatalidade é falsa desde o
princípio.
Todo o esquema do decurso consiste
somente em ordenar como história o nada-mais-
senão-passado, os acontecimentos isolados do
mundo, a objetividade.
A presença do Tu, o que nasce do vínculo,
são inacessíveis a esta concepção, que ignora a
realidade do espírito. Este esquema não apresenta
valor algum para o espírito.
A profecia baseada na objetividade tem valor
apenas para quem ignora a presença.
Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso
é obrigado a ver no decurso inalterável uma
verdade que esclarece a confusão.
Na verdade tal dogma deixa subjugar-se
mais profundamente ao mundo do Isso.
O mundo do Tu, porém, não é fechado.
Aquele que, na unidade do seu ser, se dirige
a ele, conhecerá profundamente a liberdade.
E tornar-se livre significa libertar-se da
crença na servidão. 38
Buber tematiza a relação entre a arbitrariedade*, e a
fatalidade.

A arbitrariedade que decorre de um Eu carente de atualidade, e


cuja possibilidade de relação encontra-se enfraquecida.

Ele inicia, de um modo interessante, falando da possibilidade de


submissão do mundo do Isso por aquele que o conhece em sua
natureza:

Assim como é possível dominar um íncubo


chamando-o pelo seu verdadeiro nome, assim

37
op. cit. p. cit p.66.-7.
38
op. cit. p.67-8. 36 op. cit. p. 68.
*
Arbitrário. Proposital, causal, pragmático. Que não se dá e decide no dialógico, da relação eu-
tu.

220
também o mundo do Isso -- que, ainda há pouco,
esmagava, com sua força espantosa, a fraca força
do homem --, é constrangido a submeter-se
àquele que o conhece em seu ser... 36
A seguir contrapõe:

Mas, como poderia ser capaz de interpelar o


íncubo pelo seu nome, aquele que, no seu íntimo,
leva um fantasma. Isto é, o Eu carente de
atualidade?
Como a força de relação sepultada pode
ressurgir em um ente cujos escombros são
permanentemente pisoteados por um fantasma
vigoroso?
Como poderia recolher-se um ser que está
constantemente perseguido em um campo vazio,
pela procura da subjetividade perdida?
Como conheceria profundamente a liberdade
aquele que vive no arbitrário*. 39
E, reiterando as palavras de Buber:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, também o estão o arbitrário e a
fatalidade.
Liberdade e destino, porém, são
comprometidos, mutuamente, para instaurarem,
juntos, o sentido.
O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma
e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação, e
sem atrito, no absurdo.
Até que, em determinado momento, os
olhares distanciados se reencontram, e irrompe
deles a confissão de mútua perdição. 38
O homem livre é aquele cujo querer é isento
de arbitrário.
Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no
vínculo real que une a dualidade real do Eu e do
Tu.
Crê no destino e também que ele tem
necessidade dele. Ele não o conduz em inteiras,
mas o espera. O homem deve ir ao seu encontro,
mas não sabe ainda onde ele está.
O homem livre deve ir a ele com todo o seu
ser, disso ele sabe.

39
op. cit p. 69.
221
Não acontecerá aquilo que a sua resolução
imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá
senão na medida em que ele resolver querer aquilo
que ele pode querer.
Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele
pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e
pelos instintos, em favor do grande querer que se
afasta do “ser determinado”, para ir ao destino.
Ele não intervém mais. Mas nem por isso
permite que aconteça pura e simplesmente.
Ele espreita aquilo que por si mesmo se
desenvolve, o caminho do ser no mundo. Não para
se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo, como
ele deseja ser atualizado; pelo homem de quem
ele necessita, por meio do espírito humano e do
ato humano, com a vida do homem e com a morte
do homem.
Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se
oferece ao encontro. 40
Diferentemente do homem que vive no arbitrário,

O homem livre não tem, aqui, uma finalidade


e, lá, os meios para obtê-lo. Ele possui somente
um objetivo, e sempre um: a resolução de ir de
encontro ao seu destino.
Tomada essa resolução, pode lhe acontecer
de, às vezes, renová-la a cada etapa decisiva do
caminho. Mas deixará de acreditar na sua própria
vida, antes de crer que a resolução de seu grande
querer é insuficiente. Acredita que deve mantê-la
por todos os meios.
Ele crê; ele se oferece ao encontro. 41

40
op. cit. pp 69-70.
41
op. cit. p. 71.
222
EGÓTICO E PESSOA

Uma contraposição entre as concepções do egótico e da pessoa,


parte da qual já mencionamos acima, quando tratamos do egótico, é
uma dimensão fundamental da concepção buberiana:

O Eu da palavra-princípio EU-TU é diferente


do Eu da palavra-princípio Eu-Isso.
O Eu da palavra-princípio Eu-Isso aparece
como egótico, e toma consciência de si como
sujeito (de experiência e de utilização).
O Eu da palavra-princípio Eu-Tu aparece
como pessoa e se conscientiza como subjetividade,
(sem genitivo dela dependente).
O egótico aparece na medida em que se
distingue de outros egóticos.
A pessoa aparece no momento em que entra
em relação com outras pessoas.
O primeiro é a forma espiritual da
diferenciação natural, a segunda é a forma
espiritual do vínculo natural.
A finalidade da separação é o experienciar e
o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, “a vida”,
isto é, o contínuo morrer no decurso da vida
humana.
A finalidade da relação é o seu próprio ser,
ou seja, o contato com o Tu.
Pois, no contato com cada Tu, toca-nos um
sopro da vida eterna.
Quem está na relação participa de uma
atualidade*, quer dizer, de um ser que não está
unicamente nele nem unicamente fora dele.
Toda atualidade é um agir do qual eu
participo sem poder dele me apropriar.
Onde não há participação, não há atualidade.
Onde há apropriação de si não há atualidade.
A participação é tanto mais perfeita, quanto
o contato do Tu é mais imediato.
O eu é atual através de sua participação na
atualidade. Ele se torna mais atual quanto mais
completa é a participação.

Mas o eu que se separa do evento de relação


em direção da separação, consciente desta
separação, não perde a sua atualidade.
A participação permanece nele, conservada
como potencialidade viva. Ou então, em outros

223
termos -- usados quando se trata da mais elevada
relação, e que pode ser aplicada a todas as
relações --, „a semente permanece nele‟.
É este o domínio da subjetividade, onde o Eu
toma consciência tanto de seu vínculo como de sua
separação.
A autêntica subjetividade só pode ser
compreendida de um modo dinâmico, como
vibração de um Eu no seio de sua verdade
solitária.
É aqui, também, o lugar onde irrompe e
cresce o desejo de uma relação, cada vez mais
elevada, e absoluta. O desejo de uma participação
total com o Ser.
Na subjetividade amadurece a substância
espiritual da pessoa.
A pessoa toma consciência de si como
participante do ser, como um ser-com, como um
ente.
O egótico toma consciência de si como um-
ente-que-é-assim, e não-de-outro-modo.
A pessoa diz: „Eu sou‟.
O egótico diz: „eu sou assim‟.
„Conhece-te a ti mesmo‟, para a pessoa
significa: conhece-te como ser.
Para o egótico: conhece o teu modo de ser.
Na medida em que o egótico se afasta dos
outros ele se distancia do Ser.
Com isso não se quer dizer que a pessoa
„renuncie‟ ao seu modo de ser específico, mas
somente isso: este não é somente o seu ponto de
vista, mas a forma necessária e significativa de
ser.
Ao contrário, o egótico se delicia com o seu
modo-de-ser específico, que ele imaginou ser o
seu.
Pois, para ele conhecer-se significa
fundamentalmente estabelecer uma manifestação
efetiva de si, e que seja capaz de iludi-lo, cada vez
mais profundamente.
E, pela contemplação e veneração desta
manifestação, procura uma aparência de
conhecimento de seu próprio modo-de-ser.
Enquanto que o seu verdadeiro conhecimento
poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
A pessoa contempla-se o seu si-mesmo,
enquanto que o egótico ocupa-se com o seu „meu‟:
minha espécie, minha raça, meu agir, meu gênio.
224
O egótico não só não participa como também
não conquista atualidade alguma.
Ele se contrapõe ao outro e procura, pela
experiência e pela utilização, apoderar-se do
máximo que lhe é possível.
Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a
tomada de posse.
Ambas as operações se passam no Isso, no
que não é atual.
O sujeito, tal como ele se reconhece, pode
apoderar-se de tudo quanto queira, que daí não
obterá substância alguma. Ele permanece como o
ponto funcional, o experimentador, o utilizador e
nada mais.
Todo o seu modo de ser múltiplo ou sua
ambiciosa „individualidade‟ não podem lhe
proporcionar substância alguma. 42

Buber conclui sobre a sua concepção de pessoa,

O homem é tanto mais uma pessoa quanto


mais intenso é o eu da palavra-princípio Eu-Tu, na
dualidade humana de seu Eu. 42
E constatando, comenta,

Que distante é o Eu do egotista!43


A seguir, Buber comenta, o dizer Eu pessoal de algumas
pessoas históricas. Sócrates, Goethe e Jesus:

... Como soa de um modo autêntico e belo o


eu, tão belo e enérgico de Sócrates!
É o Eu do diálogo infinito (...).
Este Eu vivia na relação com os homens,
relação que se encontrava no diálogo. Ele
acreditava na atualidade dos homens e ia em sua
direção.44

Que som belo e autêntico tem o Eu de


Goethe!
É o eu de uma intimidade pura com a
natureza.45

E, para apresentar, antecipadamente, uma


imagem do reino da relação absoluta, quão
poderoso é o dizer-Eu de Jesus. Como um
verdadeiro poder de dominação. E quão legítimo
como uma evidência!

42
op. cit. pp. 73-6.
225
Afinal, ele é o Eu da relação absoluta. Na
qual o homem atribui a seu Tu o nome de Pai. De
tal modo que, ele mesmo não é senão o Filho,
nada mais que filho.
Quando profere Eu, ele só pode ter em
mente o Eu da palavra-princípio sagrada, que se
tornou absoluta para ele.
Se, por acaso o isolamento o toca, a ligação
é mais forte, e é somente do seio desta ligação,
que ele fala aos outros. 43
Por fim, comentando a personalidade de Napoleão (certamente
por que escrevia no início do século, senão teria exemplos mais
recentes e terríveis), Buber fala de um terceiro tipo de modo de dizer
Eu. Que não é nem o do egótico, nem o da pessoa. E ao qual ele
chama de Tu demoníaco:

... Aquele que não responde, aquele que


responde ao Tu com um Isso, aquele que na
dimensão pessoal responde ficticiamente: aquele
que somente responde na sua esfera, no âmbito de
sua causa e somente por seus atos. Tal é o limite
histórico e elementar onde a palavra-princípio da
ligação perde a 23 sua realidade, seu caráter de
reciprocidade: é o Tu demoníaco, para o qual
nenhum ente pode tornar-se um Tu.
Este terceiro tipo de eu, ao lado da pessoa e
do egótico, que não é nem homem livre nem
homem arbitrário, nem se situa entre eles, existe
postado de uma maneira fatal, nas grandes épocas
do destino. Todos se entusiasmam ardentemente
por ele. Enquanto que ele mesmo permanece em
um fogo gélido. Aquele ao qual milhares de
relações se dirigem, mas do qual nenhuma
provém. Ele não participa de nenhuma atualidade,
mas é como uma atualidade da qual todos
participam intensamente. 44.
Buber conceitua então, e define, o que ele chama de
autocontradição:

Quando o homem não põe à prova, no


mundo, o a priori da relação, efetivando e
atualizando o Tu inato no Tu que ele encontra,
então ele se introverte.

43
Op. Cit.
44
op. cit. pp. 79-80.
226
Ele se manifesta ao contato com o Eu não
natural, impossível objeto, isto é, ele se desvela ali
onde não há lugar para a revelação.
Assim instaura-se o confronto consigo
mesmo que não pode ser relação, presença,
reciprocidade fecunda mas somente
autocontradição.
O homem pode tentar interpretá-la como
uma relação -- por exemplo, uma relação religiosa
--, para escapar do horror de ser seu espectro.
Ele deverá, sem cessar, descobrir a falsidade
desta interpretação.
Aqui se situa o limite da vida.
Aqui, algo irrealizado refugia-se numa
aparência demente de realização.
Por ora ele tateia, de um lado para o outro,
nos labirintos onde se perde cada vez mais. 45
Aponta para uma alternativa, todavia:

Às vezes, quando o homem estremece na


alienação entre o Eu e o mundo, ocorre-lhe o
pensamento de que algo deve ser feito.
Como quando repousas, na pior hora do
meio da noite, atormentado por um pesadelo,
acordado.
Quando os baluartes desmoronam, e os
abismos vociferam. E percebes, no fundo do teu
ser, que a vida subsiste, e que deves voltar ao seu
encalço.
Mas como?
Assim é o homem, nos instantes de
recordação.
Horrorizado, pensativo, desorientado.
E, talvez conheça, ainda, no seu âmago
profundo, a direção, com o conhecimento não
amado da profundeza, a autêntica direção, que
pela oferta, leva até a conversão. 46

A conversão, para Buber, é o engajamento profundo e total, o


mergulho profundo, ativo e durador, do homem na concretude de sua
existência50. Caminho natural, e sempre, latentemente disponível
para a vivência intensa, e potente, das possibilidades da existência.
47
.

45
op. cit. pp. 73-6.
46
Op. Cit. P.
47
cf. VON ZUBEN, Newton A,. op. cit. p. 163, nota 8.
227
Para a psicologia e para a psicoterapia -- em particular para as
chamadas fenomenológico-existenciais --, as perspectivas de Buber
configuram-se sempre como interessantes, e profundas,
possibilidades de aprendizagem, e de esclarecimento.

228
A INTERPRETAÇÃO – A HERMENEUTICA --, e a
EXPERIMENTAÇÃO EM BUBER

A experimentação – e a interpretação, fenomenológicas –


em Buber, liga-se à constituição ontológica da liberdade, para a
decisão, para a constituição, atual e presente, da dramática do
destino, na presença, e atualidade do encontro.
Da relação eu-tu, do dialógico, diapoiético.
O encontro não é arbitrário.
A liberdade ,que ele faculta --, como possibilidade da decisão,
e determinação do destino --, nasce de e em sua atualidade, e
presença. Na atualidade, e presença, do encontro dialógico.
Atualidade, e presença do encontro, em que, na esfera do
entre, do inter, que eu e tu constituem com seu encontro -- de
caráter mutuamente provocativo, e interessante --, eu e tu,
pontualmente, atuais e presentemente interagem como possibilidade.
Num encontro que, como tal, se dá como desdobramento de
possibilidades, dramática, ação.
Que aufere seus movimentos do desdobramento da interação
de suas intrínsecas possibilidades.
E não arbitrariamente.
Alteritários, eu e tu têm os seus movimentos na atualidade, e
na presença de seu encontro. Como dramática da ação. Inter-ação.
Drama quer dizer ação.
Por este motivo, a fatalidade não existe, neste encontro.
Já que, poiético, desdobramento de possibilidades, sua
atualidade e presença significam que ele é fazer, e não fato, feito.
E -- reassegurando seu caráter desproposital, e não
arbitrário --, a causalidade nele não vigora.
Já que ele aufere seus movimentos, da dramática, dialógica e
diapoiética, de seu desdobramento de possibilidades intrínsecas, na
sua atualidade, e presença.

Algo diverso se passa com o momento ôntico do eu-isso.


Em princípio, nada de errado com o modo ôntico. Eu-isso, de
sermos...

229
Mas, a qualidade de vida começa a precarizar-se, qundo se
enfraquece a possibilidade da alternância eu-isso, eu-tu. E o modo
ôntico eu-isso se instala como predominante.
O modo eu-isso é o modo de sermos de constituição do
acontecido. De constituição do feito. Do fato, da fatalidade.
E a causalidade é constituinte da fatalidade.
O divinamente poiético modo de sermos em que não vigora a
causalidade, e a utilidade, o propósito, a fatalidade, a coisidade, é o
modo dialógico, eu-tu, de sermos. Modo près-ente, pré-coisa, de
sermos.
O Modo ente, ôntico, de sermos, é o modo de sermos da
coisa.
Coisa é o que não é mais possibilidade, momentâneamente.
De modo que, enquanto tal -- ligado à fatalidade, à coisidade, à
causalidade --, o modo eu-isso de sermos é o modo no qual cresce o
decurso coisificado das coisas. Mecanicamente movido pela inércia da
causalidade.
Sem originalidade, e movido à repetição.
E o modo de sermos em que se extingue a possibilidade da
vivência da atualidade, e da presença do encontro dialógico, em sua
imediaticidade.
E, proscrito o encontro, e seus efeitos e processos, cresce o
arbítrio.

Ora, crescendo a fatalidade, e o seu decurso. Crescendo, a


causalidade, e o arbítrio – diríamos ao estilo de Buber – onde resta
lugar para a vivência da multiplicidade de possibilidades? Para a
decisão, para a escolha, e o destino.
Onde restaria lugar para o tentar, e arriscar, da
experimentação?
O mundo do isso, cada vez mais reificado, desvitaliza-se, e se
enrijece, cada vez mais. O eu se torna, cada vez mais, egótico, e
arbitrário. Cda vez mais privado da oferta da possibilidade, e do
diálogo.
Não esqueçamos, a experimentação só se dá no diálogo, no
encontro com o tu.
Tu, que pode ser da natureza não humana, inter humano, ou
sagrado.
Mas, só na dramática do encontro, da interação eu-tu, podem
se dar a vivência das possibilidades, como liberdade, a decisão, e o
destino – a partir daí.

230
Constituintes, essenciais, da hermenêutica, da interpretação; e
da experimentação fenomenológicas.
Relação, liberdade, decisão, e destino estão vinculados.
Enquanto que se relacionam fatalidade, causalidade, e arbítrio.
Buber comenta,
Assim como liberdade e destino estão
interligados, também o estão o arbitrário e a
fatalidade.
Liberdade e destino, porém, são
comprometidos, mutuamente, para instaurarem,
juntos, o sentido.

O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma


e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação, e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram, e irrompe
deles a confissão de mútua perdição.

O homem livre é aquele cujo querer é isento


de arbitrário.
Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no
vínculo real que une a dualidade real do Eu e do
Tu.
Crê no destino e também que ele tem
necessidade dele.

Ele não o conduz em inteiras, mas o espera.


O homem deve ir ao seu encontro, mas não
sabe ainda onde ele está.
O homem livre deve ir a ele com todo o seu
ser, disso ele sabe.

Não acontecerá aquilo que a sua resolução


imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá
senão na medida em que ele resolver querer aquilo
que ele pode querer.

Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele


pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e
pelos instintos, em favor do grande querer que se
afasta do “ser determinado”, para ir ao destino.
Ele não intervém mais. Mas nem por isso
permite que aconteça pura e simplesmente.

231
Ele espreita aquilo que por si mesmo se
desenvolve, o caminho do ser no mundo. Não para
se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo, como
ele deseja ser atualizado; pelo homem de quem
ele necessita, por meio do espírito humano e do
ato humano, com a vida do homem e com a morte
do homem.
Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se
oferece ao encontro. 48

48
BUBER, Martin Eu e Tu, São Paulo, Cortês, 1985. pp 69-70.
232
IMPASSIBILIDADE. RESSENTIMENTO, EGOTISMO E
ARBITRARIEDADE NOS PERPETRADORES DE
MASSACRES

INTRODUÇÃO .................................................................... 235


CONCLUSÃO ...................................................................... 236
O MODO ONTOLÓGICO, EU-TU, MODO DIALÓGICO DE
SERMOS. O MODO DE SERMOS EU-ISSO, NÃO ONTOLÓGICO,
NÃO DIALÓGICO. E A NATURAL ALTERNÂNCIA ENTRE ELES. 237
IMPOTÊNCIA EXISTENCIAL PARA ATUALIZAR A FORÇA DA
FINITUDE E DO SOFRIMENTO. RAIZ DA ONTOFOBIA, E DA
CRONIFICAÇÃO DO MODO EU-ISSO DE SERMOS. .................... 242
ENFRAQUECIMENTO E IMPEDIMENTO DA VIVÊNCIA DO
MODO ONTOLÓGICO, DIALÓGICO, FENOMENOLÓGICO
EXISTENCIAL, EU TU, DE SERMOS. ENFRAQUECIMENTO E
IMPEDIMENTO DA ALTERNÂNCIA ENTRE O MODO EU-ISSO E O
MODO EU-TU DE SERMOS. PREDOMÍNIO DO MODO EU-ISSO,
COISIFICADO, EGÓTICO DE SERMOS. REIFICAÇÃO DO REAL, E
HIPER REALIDADE. PREDOMÍNIO DA NÃO DIALÓGICA. E DA
VIOLÊNCIA. ................................................................................ 243
SOBRE O RESSENTIMENTO DOS PERPETRADORES DE
MASSACRES. .............................................................................. 246
SOBRE O EGOTISMO DOS PERPETRADORES DE
MASSACRES. .............................................................................. 248
SOBRE A ARBITRARIEDADE DOS PERPETRADORES DE
MASSACRES ............................................................................... 251
A IMPASSIBILIDADE DOS PERPETRADORES DE
MASSACRES. NEGAÇÃO DO MODO ONTOLÓGICO DE SERMOS,
FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL E DIALÓGICO.
RESSENTIMENTO, EGOTISMO E ARBITRARIEDADE. NEGAÇÃO
DO ETHOS, DA ÉTICA, DA ESTÉTICA, DO DIÁLOGO.
PREDOMÍNIO EXCLUDENTE DO ETHOS, DA ÉTICA DA
REALIDADE, E DA VIOLÊNCIA. NÃO DIALÓGICA, FATALISTA.
REIFICAÇÃO DA REALIDADE, HIPER REALIDADE. ................... 255

233
A CONSCIÊNCIA DOS PERPETRADORES DE MASSACRES
.................................................................................................... 257
OS PERPETRADORES DE MASSACRES, E A BRUTALIDADE
DE SEUS MASSACRES, NÃO SÃO ALGO EM SI. TRATA-SE, MAIS
PROPRIAMENTE, DE UM SINTOMA SOCIAL. ............................ 259
CONCLUSÃO ...................................................................... 260
INTRODUÇÃO .................................................................... 261

234
IMPASSIBILIDADE.
RESSENTIMENTO, EGOTISMO E ARBITRARIEDADE
NOS PERPETRADORES DE MASSACRES

Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.

Para os colegas da Turma da


Formação de Fortaleza, e da Turma
da Formação de Natal, com quem
muito aprendo e me alegro.

INTRODUÇÃO
Uma das características básicas, definidoras, dos perpetradores de
massacres é a sua impassibilidade. São impassíveis. Sua frieza e decisão
covardes, a firmeza de suas atitudes, a firmeza de seus argumentos, de suas
argumentações, a firmeza de sua racionália, pode impressionar ao desavisado.
A questão dos perpetradores de massacres, e de seus covardes
massacres, é uma questão eminentemente ontológica.
Na verdade, a sua impassibilidade apenas evidencia a rigidez do
ressentimento cronificado e venenoso, a rigidez da arbitrariedade e do
egotismo. Tipicamente, o ressentimento e a arbitrariedade de quem
egóticamente se encistou na fatalidade do modo eu-isso de sermos, modo não
dialógico de sermos do fato. De quem se encistou na ética do modo coisa de
sermos. E doentia e incontornavelmente se cronificou, assim, na ética do não
dialógico, na ética do egotismo e da arbitrariedade. Ou seja, na ética da
destrutividade e da violência. Mediante uma recusa primária da ontológica da
estética, da ética, do diálogo; da ética do modo dialógico, eu-tu, de sermos.
A violência é o antípoda de diálogo. A ética da violência é o oposto polar
da estética do diálogo, característico e intrínseco ao ontológico modo eu-tu de
sermos, e à natural alternância entre os modos eu-tu e eu-isso de sermos.
Outro aspecto importante a considerar é o de que o perpetrador de
massacres não é um ser em si. Mas um sintoma social. Um sintoma de
tendências culturais que se esmeram pela negação do corpo, pela negação
dos sentidos, pela negação da vivência fenomenológica, pela negação da
vivência estética, pela negação da vida – cuja vivência é eminentemente
estética. Condição intrínseca e primária à vivência da dialógica do modo eu-tu
de sermos. Potencializando, com esta negação, a interdição da vivência do
modoeu-tu de sermos, potencializando a interrupção da alternância entre o
modo eu-tu e o modo eu-isso de sermos. Condicionando a fixação no modo
não dialógico de sermos; potencializando, com esta fixação, o niilismo
ressentimento, egotista, arbitrário, destrutivo e violento da cronificação do
modo coisa de sermos.
Buber49, além de descrever e comentar as características do modo
dialógico de sermos, do modo ontológico, eu-tu de sermos, comentou

49
BUBER, Martin EU E TU.

235
magistralmente, como frequentemente o faz, a fatalidade, o egotismo e a
arbitrariedade. Cronificação no modo eu-isso de sermos, não dialógico, anti
dialógico, fatalidade, egotismo e arbitrariedade consequentes, destrutividade e
violência consequentes.
Buber não comentou a força que dinamiza e move esta violência, e a faz
chegar a níveis estarrecedores e inimagináveis. Desde os massacres
genocidas, ao longo da história, até os massacres de grupos. A força, ou a falta
de força, que move os seus perpetradores é a mesma.
Nietzsche50 elucidou e comentou a força -- o niilismo ressentimento, a
vontade negativa de potência, tantas vezes tão impressionante -- que dinamiza
a violência condicionada e direcionada pelo egotismo e pela arbitrariedade.
Decorrentes estes da cronificação do modo eu-isso de sermos, não dialógico;
decorrentes do enfraquecimento do modo ontológico de sermos, e do
consequente enfraquecimento da natural alternância entre o modo eu-tu de
sermos, o modo dialógico de sermos; e o modo de sermos eu-isso. Com o
consequente encistamento e cronificação, e intensificação da cronificação,
neste modo coisificado de sermos. Com a destrutividade e a violência
concomitante.

CONCLUSÃO
Assim, a impassibilidade violenta dos perpetradores de massacres não
tem segredos. Resulta do seu crônico encistamento no modo coisa de sermos.
Encistamento crônico resultante da supressão da alternância entre os modos
eu-isso -- modo coisa de sermos --, e o modo eu-tu, modo dialógico, de
sermos. Com a fixação no modo eu-isso.
O modo eu-tu de sermos é o modo eminentemente, própria e
especificamente, dialógico de sermos. O modo não coisa, presente e atual, de
sermos. Da vivência intrínsecamente dialógica de possibilidades, do
desdobramento de possibilidades, da ação dialógica.
Na pontualidade da momentaneidade instantânea da vivência deste
modo de sermos, o outro não é coisa. O eu não é coisa. O outro e nós mesmos
não somos um isso. E a relação com o tu se gera e se regenera como uma
relação de produção compartilhada de (logos) sentido. Onto logos, fenomeno
logos, dia logos.
O modo eu-isso de sermos, apesar de ser uma dimensão natural e
importante dos modos de sermos, não é dialógico, não é um modo de sermos
de produção compartilhada de sentido. É um modo de sermos no qual um eu
impermeável se relaciona com um isso impermeável. Ambos coisificados. Não
sendo a relação de vivência da ação, a relação de vivência do desdobramento
de possibilidades.
Não sendo, assim, a relação de produção intrínseca e intensa de
sentido, na relação com o outro, é o modo de sermos do egotismo e da
arbitrariedade. Que, pela sua cronificação e isolamento, pode nutrir e

50
NIETZSCHE, Frederich, Assim Falava Zaratustra. Genealogia da Moral. Para Além
doBem e do Mal.

236
potencializar, não só o egotismo e a arbitrariedade, mas nutrir e potencializar o
ressentimento, o ódio vingativo egotista e arbitrário contra o outro.
A condição para relação eu-tu, a condição para a relação dialógica, é a
disposição para a experiência estética. O modo de sermos da relação eu-tu é,
especificamente, o modo estético, ético, e poiético, de sermos.
O enfraquecimento da vivência do modo eu-tu de sermos, e o
enfraquecimento da vivência da alternância entre os modos eu-isso e eu tu de
sermos se dá com o enfraquecimento da predisposição para a experiência
estética. Com o enfraquecimento da possibilidade da vivência do modo eu-tu
de sermos, e de sua natural alternância com o modo eu-isso de sermos. Com a
fixação do acontecido modo eu-isso de sermos, modo de sermos do real,
carente do modo de sermos do possível; com uma reificação do real, com o
desenvolvimento de uma hiper realidade. Não dialógica, egotista, arbitrária,
ressentida, violenta e destrutiva.
O venenosamente ressentido, egotista, e arbitrário, perpetrador de
massacres é o anti estético por excelência. O não dialógico, o ressentido, o
egotista, o eminente e arrogantemente arbitrário, destrutivo, e violento, por
excelência.
É importante observar que nisso ele não é um ser em si.
Especificamente, não o é. Mas é um sintoma, apenas um sintoma, paroxístico
e extremo, de tendências socio culturais, que -- por se esmerarem contra o
corpo, contra os sentidos, contra a vivência, contra a vida, contra a estética do
corpo e dos sentidos -- se esmeram contra a disposição estética. Contribuindo
para enfraquecer a vivência do modo eu-tu de sermos, contribuindo para
mitigar a natural alternância entre os modos eu-isso e eu-tu de sermos. E
contribuindo, com isto, para condicionar uma fixação e uma cronificação no
modo eu-isso de sermos – não dialógico, egotista, e arbitrário. Processo que,
pilhado pelo ressentimento, constitui a preparação das condições ressentidas,
fatalistas, egotistas, e arbitrárias, para os paroxismos de violência dos
perpetradores de massacres.

O MODO ONTOLÓGICO, EU-TU, MODO DIALÓGICO


DE SERMOS. O MODO DE SERMOS EU-ISSO, NÃO
ONTOLÓGICO, NÃO DIALÓGICO. E A NATURAL
ALTERNÂNCIA ENTRE ELES.
Pela antropologia de Buber51 entendemos que podemos existir ao modo
eu-tu de sermos, e ao modo eu-isso.
O modo eu-tu de sermos é o modo ontológico de sermos,
fenomenológico existencial, e especificamente dialógico. O modo eu-isso é
naturalmente constituinte do que somos, mas não é, não obstante, o modo de
sermos da vivência ontológica; não é o sustentáculo ontológico do humano,
como observa Buber. E não é o modo dialógico de sermos.

51
BUBER, Martin. Op. Cit.

237
Nossa vivência ontológica -- fenomenológico existencial, compreensiva e
implicativa, gestaltificativa -- é vivência eminentemente dialógica, é o modo eu-
tu de sermos. É, em sua momentaneidade instantânea, a duração da vivência
pontual da inter ação com uma alteridade radical. Com a alteridade radical de
um tu.
Seja um tu da natureza não humana, seja um tu da esfera do inter
humano, seja um tu da esfera do sagrado52.

Existencialmente, alternamos regular e ciclicamente entre as esferas do


modo de sermos ôntico do eu-isso, e a esfera ontológica do modo de sermos
eu-tu.
O logos, do onto logos, do dia logos, do fenomeno logos, é o sentido.
Que intrínsecamente se constitui, como desdobramento cognitivo,
vivencial, das forças. Como desdobramento cognitivo das possibilidades, que
vivenciamos no modo ontológico, eu-tu, de sermos. Desdobramento de
possibilidades este que especificamente, e de um modo intrínseco, se constitui
cognitivamente. Como sentido, como logos, como consciência pré-reflexiva,
fenomenológico existencial, compreensiva e implicativa, gestaltificativa.
O dia logos é a vivência, a consciência pré-reflexiva, o logos, que se
constitui na relação com a alteridade radical, na relação com o tu, no âmbito da
momentaneidade instantânea do modo de sermos da relação eu-tu. É o logos,
consciência pré-reflexiva, fenomenal, que se constitui na inter ação com o outro
como força, como possibilidade (e não como coisa), com o outro como
possível. É o logos, a vivência de sentido, que compartilhadamente se
desdobra como inter -- a esfera do entre --, na inter ação entre um eu que se
dá como possibilidade e ação, na inter ação com um tu, que se igualmente se
desdobra como possibilidade e ação.
Outro, tu, que é dado, e só apenas é dado, enquanto tal, enquanto
alteridade radical ativa, no modo ontológico de sermos, no modo eu-tu de
sermos, fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo e implicativo,
gestaltificativo.
A relação com o outro enquanto tal, a relação com a alteridade, assim, a
relação que é própria e especificamente intrínseca à vivência ao modo
ontológico, eu-tu, de sermos. A relação com um outro possível, e afirmado em
sua possibilidade; com um outro potente, com um outro como possibilidade, em
desdobramento, com um outro como ação, inter ação. Que pontualmente se
constitui como força em desdobramento, possibilidade em desdobramento,
ação, plástica, na interação dialógica. Própria e especificamente, no modo
ontológico, eu-tu de sermos.

O modo eu-isso de sermos é o modo de sermos que se constitui com o


efetivo desdobramento, e decaimento, da possibilidade, na vivência do modo
eu-tu de sermos. Com a constituição da coisa instalativa. Quando a
possibilidade se desdobra, e decai em sua força, ela se constitui como isso,
como coisa, instalativa, como o modo eu-isso de sermos.

52
BUBER, Martin op. Cit.

238
Assim, a instalação da coisa -- o isso, o relacionamento eu-isso – se
constitui quando, na sua atualização, no seu desdobramento, vivenciado na
momentaneidade instantânea do modo ontológico, eu-tu, de sermos se exaure
a possibilidade.
Que então se converte em modo eu-isso de sermos.

Tanto é que o modo eu-tu de sermos é o modo de sermos do acontecer,


da ação, do desdobramento de possibilidades. O modo eu-isso de sermos é o
modo de sermos do acontecido.

Especificamente como modo de sermos do acontecido, a constituição do


modo eu-isso de sermos permite a constituição do sujeito, acontecido; e a
constituição do objeto, acontecido. E a constituição da dicotomia entre eles. A
dicotomia sujeito objeto, na qual um sujeito, acontecido, contempla
teoricamente um objeto, acontecido. Numa operação de reflexão e de
re(a)presentação.
Que já não é mais o acontecer, e o conhecer, característicos do modo
ontológico e dialógico de sermos. Mas o acontecido, e o conhecimento
teorético, acontecido, de um sujeito, acontecido, que contempla um objeto
igualmente acontecido. É o modo acontecido de sermos, eu-isso. E não mais o,
ontológico, eu-tu, e intrinsecamente dialógico, modo de sermos do acontecer.
A coisa, condição do modo eu isso de sermos, é instalação.
Ou seja, é ação lentificada. Apesar de sua inércia, guarda ainda em si,
ainda que submersa, a possibilidade. E pode voltar à esfera do ato da ação, à
esfera do modo eu-tu de sermos -- ao modo ontológico, fenomenológico, e
dialógico, de sermos --, quando abordada esteticamente, pelas estéticas
condições intrínsecas ao modo eu-tu de sermos.

Assim sendo, toda vivência eu-tu se converte na experiência do modo


eu-isso de sermos, à medida que sua possibilidade se exaure.
Da mesma forma que de cada isso instalado, de cada coisa, se pode
resgatar a possibilidade ontológica e dialógica da relação eu-tu.
O modo eu-tu e o modo eu isso de sermos se alternam assim
ciclicamente. O modo eu-tu de sermos é o modo de sermos da vivência
ontológica e dialógica de atualização de possibilidades. É, na duração de sua
momentaneidade instantânea, o modo de sermos da criação, e da alegria da
criação; o modo de sermos da ação, do desdobramento de possibilidades. E é
o modo de sermos da saúde, da emergência e desobramento de forças que se
potencializam e se reproduzem enquanto tais, à medida que são afirmadas e
se desdobram, promovendo uma super abundância de forças de vida.

Buber já adverte de que nada existe de errado em si com o modo eu-


isso de sermos, e que não podemos considerá-lo inferior. O modo eu-isso é
intrinsecamente inerente ao que somos. É, por isto, ontológico.
Apenas, enquanto modo de sermos, ele não é o fundamento ontológico
do humano.

239
Própria, e especificamente, o modo eu-tu de sermos, dialógico, é
ontológico e ontológico.
Ou seja, o modo eu-tu de sermos é ontológico de duas formas.
É ontológico (1) no sentido da particularidade do ser que somos para a
Ontologia, no sentido de que é um modo de sermos constituinte do ser que
somos. Neste sentido, o modo eu-isso é tão ontológico como o modo eu-tu. O
modo eu-isso de sermos é, igualmente, um modo de ser característico deste
ser que somos, que é o ser humano. O modo eu tu de sermos é, neste sentido,
um modo de sermos constituinte deste ser que é o ser humano.
Mas, em específico, e distintamente, além disso, (2) o ser humano se
carcteriza, ontologicamente, pela vivência de sentido, na qual se constitui o
desdobramento de possibilidades. Sentido é logos. Este ser (onthos, em
Grego) que se caracteriza pela vivência do sentido, pela vivência do logos,
é um ser onto-lógico.
O logos, o sentido, que ele vivencia, em seu modo ontológico de ser, é
sentido, própria e especificamente, ontológico.

Neste sentido, de ser ontológico -- enquanto ser que vivencia o


sentido ontológico --, o ser humano só é ontológico na vivência da
instantaneidade momentânea do modo eu tu de ser. Da mesma forma que só é
dialógico na vivência ontológica deste modo, eu-tu, ontológico, de ser.

Neste específico sentido, portanto, não somos ontológicos no modo


eu-isso de sermos. Da mesma forma que não somos dialógicos nomodo eu-
isso de sermos. No modo eu-isso de sermos, não vivenciamos o logos, não
vivenciamos sentido. Que especificamente se constitui com o desdobramento
de possibilidades. Não vivenciamos o desdobramento de possibilidades, não
vivenciamos a ação fenomenológico existencial e dialógica; compreensiva,
implicativa, gestaltificativa. Não vivenciamos, no modo eu-isso de sermos, a
relação com o tu possível e potente, a relação com o tu que pontualmente se
desdobra na ação, inter ação, dialógica.

Sendo assim, o modo eu-isso de sermos é ontológico no sentido da


Ontologia, como modo constituinte do ser que somos. Mas não é ontológico,
nem dialógico. No sentido próprio e específico da vivência do sentido (da
vivência do logos) fenomenal, que se constitui com o desdobramento de
possibilidades. Onto sentido, onto logos, dia logos, no ontológico modo de
sermos eu-tu.
O modo eu-tu é, portanto, ontológico nos dois sentidos.
No sentido de que é um modo de sermos intrinsecamente constituinte do
ser que somos; e no sentido de que é, própria e especificamente, o modo de
sermos no qual vivenciamos o sentido (o logos), fenomeno-logos,
fenomenológico, dia logos, dia lógico.
Própria e especificamente, O modo eu-isso de sermos não é o modo de
sermos no qual vivenciamos o sentido fenomenológico que se constitui com o
desdobromento de possibilidades. Que só se dá, como consciência pré-

240
reflexiva, no modo eu-tu de sermos. Mas é um modo de sermos igualmente
constituinte do que somos.

Neste sentido, Heidegger53 enfatiza que somos seres intrinsecamete


ontológicos e ônticos.

O modo eu isso de sermos tem a sua importância, naturalmente.


É o modo de sermos que permite a socialidade e a cultura, a linguagem,
a reprodução social e cultural. É o modo de sermos que constitui e permite a
subjetividade e a objetividade. É o modo de sermos que permite a causalidade,
os propósitos. É o modo de sermos que constitui as técnicas. É o modo de
sermos que constitui os usos, os úteis, e as utilidades. E, last but not least, é o
modo de sermos que constitui a realidade. Que têm, evidentemente, a sua
importância. Ainda que especificamente acontecidos.

Não obstante, como Heidegger pontua, a possibilidade é mais


importante do que a realidade. Há uma hierarquia ontológica entre os modos
ontológico, eu-tu, de sermos; e o modo de sermos eu-isso.
De modo que, ainda que a realidade tenha a sua importância, objetiva, e
subjetiva; causal, causativa, proposital; técnica, pragmática, real, ela não é o
fundamento ontológico do humano. Como Buber enfatiza no Eu e Tu.
Constituinte do que somos, o modo eu-isso de sermos não é o modo
ontológico de sermos, não é o modo de sermos da ação, não é o modo de
sermos do acontecer, não é o modo de sermos da criação e da regeneração,
não é o modo de sermos da vivência do logos, não é o modo de sermos do dia
logos.
O modo eu-isso de sermos é especificamente egótico, e arbitrário.
Não é o modo de sermos do dialogico e do diálogo.

O impedimento da alternância entre os modos, eu-tu e eu-isso, de


sermos, a fuga da vivência ontológica, dialógica, do modo eu-tu de sermos, e a
cronificação do modo eu-isso de sermos, é, assim, a cronificação no modo de
sermos que não é ontológico, que não é ação, que não é o acontecer
fenomenológico, que não é criação e regeneração, que é egótico e arbitrário, e
que, especificamente, não é dialógico.

53
HEIDEGGER, Martin Ser e Tempo.

241
IMPOTÊNCIA EXISTENCIAL PARA ATUALIZAR A
FORÇA DA FINITUDE E DO SOFRIMENTO. RAIZ DA
ONTOFOBIA, E DA CRONIFICAÇÃO DO MODO EU-ISSO
DE SERMOS.
Por motivos que podem ser diversos -- tendo o medo como
denominador, e consequentemente a uma educação específica --, o ontofóbico
condicionou, progressivamente, uma evitação ao modo ontológico eu-tu de
sermos. Uma evitação, portanto, ao modo ontológico de sermos do possível, ao
modo de sermos da força, da possibilidade e do desdobramento de
possibilidades, o modo de sermos da ação. Modo de sermos do logos,
fenomenologos, ontológos, dia logos; modo de sermos da promoção de uma
super abundância de forças de vida, o modo de sermos da alegria e da saúde.
Ele evita o modo ontológico fenomenológico existencial e dialógico,
compreensivo e implicativo, gestaltificativo.
E, de um modo tendencialmente excludente, se fixa no modo de sermos,
eu-isso, do real. No modo de sermos do acontecido, no egótico e arbitrário
modo eu-isso de sermos. No modo de sermos da realidade. Condicionando,
desta forma, uma reificação da realidade, e a progressão, com esta reificação
da realidade, de uma experiência que poderíamos chamar de hiper realidade.
Com esta evitação, e progressivo impedimento do modo ontológico, eu-
tu, de sermos, aprofunda-se o engripamento da saudável dinâmica da
alternância entre os modos eu-isso e eu-tu de sermos; entre os modos ôntico e
ontológico de sermos. Com uma fixação cada vez maior no modo eu-isso.

A promover esta evitação do modo ontológico, a promover esta evitação


da alternância entre os modos eu-isso e eu-tu, a promover esta progressiva
reificação da realidade, podemos pensar que existem, e progressivamente se
acumulam, ao nível da vivência ontológica, eu-tu, as possibilidades de
vivências sofridas, dolorosas, que o ontofóbico não quer, e não pode,
desdobrar; que ele não quer, e não pode, interpretar; que ele não pode, e não
quer, atualizar.
Ou seja, a origem de sua ontofobia, a origem da cronificação do modo
eu-isso de ser, a origem de sua reificação do real, de sua experiência de hiper
realidade, é o medo de dar-se ao modo fenomenológico existencial, modo
ontológico de sermos. Pretendendo, com isso, evitar, bloquear,não reconhecer,
não afirmar, a atualização de possibilidades cronicamente sofridas, dolorosas.
Que, à custa da ontofobia, da impotência para atualizá-las, só se
reproduzem como tais, e que só se acumulam e se potencializam como tais, à
medida que ele as nega e reprime, e impede o seu desdobramento e a sua
interpretação, a sua atualização...
Para não ter que atualizar possibilidades dolorosas, para não ter que
atualizar o sofrimento e as finitudes, o ontofóbico precisa inderditar a
alternância entre o modo eu-tu e o modo eu-isso de sermos. Precisa interditar a
vivência do modo ontológico, eu-tu, de sermos. E de preservar a integridade de
uma realidade ideal, de preservar o acontecido característico do modo eu-isso
de sermos. Mesmo que seja à custa de sua reificação e hiper realização de sua
experiência da realidade, do modo eu-isso de sermos.

242
O que é, apenas, a fatalidade. Incontornável potencializadora da
angústia, da impotência, do niilismo, do ressentimento, do egotismo, da
arbitrariedade, da destrutividade, e daviolência.

ENFRAQUECIMENTO E IMPEDIMENTO DA
VIVÊNCIA DO MODO ONTOLÓGICO, DIALÓGICO,
FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL, EU TU, DE SERMOS.
ENFRAQUECIMENTO E IMPEDIMENTO DA
ALTERNÂNCIA ENTRE O MODO EU-ISSO E O MODO EU-
TU DE SERMOS. PREDOMÍNIO DO MODO EU-ISSO,
COISIFICADO, EGÓTICO DE SERMOS. REIFICAÇÃO DO
REAL, E HIPER REALIDADE. PREDOMÍNIO DA NÃO
DIALÓGICA. E DA VIOLÊNCIA.
Buber54 observa que o contínuo crescimento do mundo do isso, seja
filogênico, seja ontogênico, é um crescente desafio para a natural alternância
ontológica entre o modo eu-isso de sermos -- modo de sermos da realidade --,
e o dialógico modo eu tu de sermos – modo de sermos da vivência do possível.
E um desafio, igualmente, para a própria vivência da momentaneidade
instantânea da ontológica do modo eu-tu de sermos, em sua dialógica.
Um enfraquecimento da possibilidade de vivência do modo eu-tu, um
enfraquecimento da alternância entre os modos eu-isso e eu-tu de sermos, leva
a uma progressiva predominância do modo eu-isso de sermos e de suas
características. Uma prevalência do modo não dialógico de sermos, uma
prevalência, e progressiva hegemonia, do modo de sermos da coisa, do modo
de sermos do acontecido, do modo de sermos do feito, do fato, da fatalidade,
da realidade.
E é a prevalência e a hegemonia deste modo de sermos do isso, do
acontecido, modo de sermos do feito, do fato, da fatalidade, da realidade -- e o
impedimento da vivência da possibilidade e da ação, próprias ao modo eu-tu de
sermos -- que é o solo fértil, constituído pelo ressentimento niilismo, pelo
egotismo e pela arbitrariedade, para a impotência, para a incapacidade para
criar, para a falta de saúde existencial, para a incapacidade para o diálogo,
para a destrutividade e violência. É a prevalência, cada vez mais excludente,
do modo eu-isso de sermos que, progressivamente, de formas cada vez mais
intensas, se caracteriza como uma reificação da realidade. Que condiciona a
constituição da experiência de realidade em hiper realidade. Com a fixação
caricatural de seus sujeitos e objetos.
Hiper realidadede esta eminentemente não dialógica – a
experienciação do modo eu-isso de sermos cada vez mais privada do influxo
regenerativo da vivência do modo eu-tu de sermos. E que é uma condição
precípua da destrutividade e da violência cegas.

54
BUBER, Martin op. Cit.

243
Constrói-se progressivamente, e cresce, a reificação da experiência do
modo eu-isso de sermos, a reificação da experiência do modo de sermos da
realidade. Reificação que especificamente o isola de suas dinâmicas de
constituição e reconstituição ontológicas, no modo eu-tu de sermos.
Este processo, continuamente, reforça e condiciona as qualidades do
modo eu-isso de sermos, as qualidades da experiência da realidade, privada
da possibilidade; a reificação da realidade, a hiper realidade. Este processo
continuamente reforça e condiciona o sujeito e o objeto, a objetividade e a
subjetividade obsessivas; a causalidade infinita -- sem um influxo desproposital
da possibilidade --; o movimento coisificado, causal, da vida e do mundo
coisificados; a hipertrofia hegemonizante do uso, da utilidade e da utilização; a
explicação, obsessiva, a interdição da compreensão e da implicação, a
cristalização hegemônicas da realidade, do acontecido. Que passam a se
repetir de modos cada vez mais hegemônicos, excludentes, e obsessivos.
Ao fazer a interdição ontofóbica do modo eu-tu de sermos da ação, do
fazer, e do acontecer, privilegia-se o modo de sermos do acontecido, privilegia-
se o modo de sermos do fato, privilegia-se, nas palavras de Buber, a fatalidade.
O privilégio do acontecido modo de sermos do fato, da realidade, do modo de
sermos eu-isso. Em detrimento do modo eu-tu de sermos, e de sua alternância
com o modo de sermos eu-tu, conduz. A reificação do real é apenas a
fatalidade.
Carente de possibilidade, carente de força, da força, da potência,
criativa, que se multiplica; carente de alegria, de criação, e de saúde, a
realidade reificada, a hiper realidade, a fatalidade, apenas, é o modo de sermos
da angústia, como Heidegger observou.
Que só se resolveria com o influxo do modo ontológico de sermos da
vivência de possibilidades. Influxo travado e impossibilitado pela interdição
ontofóbica.
Ao evitar e virtualmente interditar o modo ontológico de sermos, o
ontofóbico priva-se da criação, da alegria, da saúde, que permite a vivência e a
atualização compreensiva e implicativa de multiplicidades de possibilidades.
Que, gratuita, inutil, e improvisativamente, se oferecem no modo ontológico,
eu-tu, de sermos.

O praticante de massacres sofre, assim, de uma reificação do real. E de


uma consequente, e progressiva, experiência de hiper realidade.
A reificação – processo de coisificação, aqui entendido num sentido
existencial -- conceituada por Marx, Luckács, e tematizada por Goldmann55, em
outros contextos -- consiste em isolar um processo de suas determinações
constituintes.

A realidade (a qualidade daquilo que é real, do rei), modo eu-isso de


sermos, é apenas o acontecido. Constituído, e inteiramente dependente em
sua constituição, do desdobramento do acontecer, do modo eu-tu de sermos.
Ou seja, a realidade é o modo eu-isso de sermos, inteiramente dependente, em
sua contínua constituição, do modo eu-tu de sermos.

55
GOLDMANN, Lucien Dialética e Cultura. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991.

244
Segregados os processos dos modos de sermos, pela dificultação da
alternância entre eles, e pela própria dificultação da vivência do ontológico
modo eu-tu de sermos, a consequência é o progressivo isolamento e restrição
à experiência da realidade, do acontecido, enquanto modo de ser. O que se
constitui numa progressivo isolamento, numa progressiva reificação da
realidade, e numa exacerbação de suas características: a coisificação, a vida e
o mundo coisificados, o outro coisificado; o objetivismo, e o subjetivismo; a
causalidade infinita, como única e obsessiva determinação do movimento
coisificado do decurso das coisas (Buber); a premeditação obsessiva, à medida
que se desenvolve a incompetência para a improvisação produtiva, criativa;
própria e intrínseca ao modo ontológico de sermos; o predomínio do uso e da
utilidade; o exclusivismo da experiência da realidade, que não é nutrida pela
possibilidade; possibilidade que é inerente à vivência do modo ontológico de
sermos. A reificação do real, a hiper realidade, enfim.
Com a restrição da vivência do modo ontológico, eu-tu, de sermos, se
reduz e se restringe, concomitantemente, a vivência de sentido, a vivência do
logos, do onto logos, do fenomeno logos, e o dia logos. Reduzindo-se a
vivência do modo eu-tu de sermos, progressivamente se reduz a possibilidade
do dia-logos. À medida que se estrutura prevalentemente o modo não
dialógico de sermos. O modo de sermos dos sujeitos e dos objetos, mas não
dos atores – inter atores.
Privado da estética da vivência do logos, da estética do onto logos, da
estética do dia logos; privado do ethos, da ética, estética, do diálogo; os outros
cronicamente reduzidos a objetos, causais, utilitários, reais, hiper reais, objetos
de vingança, o relacionamento com os seres humanos cresce cada vez mais
na não dialógica. Cresce, cada vez mais na estereotipia caricatural; cresce,
cada vez mais, na impossibilidade, na premeditação, na obsessão, no
utilitarismo, na hostilidade, na destrutividade, na violência.
À medida que se estrutura cronicamente o modo de sermos da
realidade, a reificação da realidade, e a hiper realidade. Proporcionalmente
paralíticas para a ação. E cada vez mais mecânicas comportamentalmente.

A vivência cada vez mais precária do modo ontológico fenomenológico


existencial de sermos. A dificultação da alternância entre os modos de sermos.
A evitação, cada vez mais fóbica, do modo ontológico. A ontofobia. A
cronificação cada vez maior no modo eu isso de sermos -- o coisificado modo
de sermos do acontecido, do feito, da coisa, e da realidade, do fato, da
fatalidade. Uma reificação progressiva da realidade. E a progressiva
constituição da experiência de hiper realidade. Que se constitui como
intrinsecamente não dialógica, potencial e progressivamente destrutiva e
violenta.
A realidade mata.

São as implicações naturais da supressão do ethos, da ética, da


estética, do modo eu-tu, do modo ontológico de sermos. O que significa a
supressão do ethos, da ética, da estética, do diálogo. As implicações naturais
da represssão da força de possibilidade, da repressão da vontade de
possibilidade: a conversão da vontade de possibilidade, vontade afirmativa de
possibilidade, em vontade negativa de possibilidade, em vontade de nada. O
245
niilismo ressentimento, turbinando em hostilidade em destrutividade e em
violência, inteiramente orientados pelo egotismo, e pela arbitrariedade.

Daí o quadro típico dos perpetradores de massacres.


A sua impotência e não criatividade, a sua impotência para a alegria, a
sua impotência para a superação, a sua impermeabilidade à dialógica, a sua
característica reificação da realidade, a sua reificação, e hiper realização de si
próprios como sujeitos, e dos outros como objetos – e não como alteridades
possíveis, potentes, e ativas, na dialógica --; a causalidade mecânica de seus
comportamentos, o utilitarismo obsessivo, a sua destrutividade e violência, a
fatalidade fatídica, o ressentimento, o egotismo, a arbitrariedade.

SOBRE O RESSENTIMENTO DOS PERPETRADORES


DE MASSACRES.
O perpetrador de massacres é essencial e visceralmente ressentido.
Ressentido no sentido clássico que Nietzsche atribui ao termo.
O egotismo e a arbitrariedade prejudicariam apenas ao egótico e
arbitrário, encerrariam-no em si próprio, se não estivessem potencializados,
desde o início, desde sua constituição, pelo niilismo ressentimento. O niilismo
ressentimento transforma e direciona a força, a potência negada do ressentido,
em vingança insaciável, inexplicável e irracional. Vingança contra o outro,
contra o diferente; e vingança contra si mesmo.

No episódio paroxístico da brutalidade dos massacres, o que


conhecemos, ao contrário de introversão, como seria de se esperar, talvez, de
um egótico radical, é um jorro, uma brutal exteroversão, de violência. É
inclusive curioso atentar para a metamorfose que o ressentimento opera. Que
faz de uma pessoa frequentemente bisonha, introvertida, desadaptada, tímida,
frequentemente, o exteriorizador de uma inaudita, sensacionalística, e covarde,
violência.

O niilismo reativo do ressentimento já se origina, intrinsecamente, de um


anseio irracional e cego de vingança contra o outro. O ressentido não carece
de ter uma razão racional e efetiva para odiar e querer se vingar e fazer mal ao
outro. Ele precisa apenas de um pretexto. A sua dinâmica já é originariamente
contra o outro. Basta que ele, o outro, o diferente, seja forte, saudável, alegre...
Já será candidato ao ódio do niilista ressentido, já será candidato à eventual
violência do niilista ressentido.
A psicologia nietzscheana do ressentimento descreveu isto muito bem.

Se é vontade afirmativa de potência -- na expressão nietzscheana --,


negada, reprimida, a possibilidade, a força afirmativa da possibilidade, troca de
sinal. E se converte em vontade negativa de potência.

246
Potência, possibilidade, vontade, vontade de possibilidade, vontade,
negativa de potência, potência, que agora se contradiz, que se nega enquanto
potência, e que nega a potência; que busca, e se investe, em nadificar a
potência da potência, a potência do possível, a potência da possibilidade, a
força da potência.
Vontade de potência, ainda. Vontade negativa de potência. Vontade de
nada. Niilismo.
Ao interditar a saudável alternância entre o modo acontecido de sermos
do eu-isso, e o ontológico e possível, potente, modo de sermos do eu-tu, o
ontofóbico já navega no niilismo. É a força negativa do niilismo que interdita o
acesso ao modo eu-tu de sermos. E que se empenha em negar as suas forças
afirmativas, em reduzi-las a nada, nihil, niilismo.
Que se esmerará, se sofisticará, cada vez mais, em interditar a
alternância entre os modos de sermos; e, em particular, em interditar a vivência
do modo ontológico, modo próprio de sermos da força da possibilidade.
Condicionando a fatalidade. A prevalência do modo de sermos do feito, do fato,
a prevalência do modo de sermos do acontecido, da realidade. Condicionando
a reificação da realidade, e uma progressiva hiper realização. Que progredirá
apenas como progresso da impotência. Condicionando a destrutividade e a
violência egotistas e a arbitrarias do ressentimento.
Intrinsecamente, a impotência está fadada a tornar-se virulenta contra o
outro, contra o forte, contra o saudável. Assim é o modo reativo de sermos do
niilismo ressentimento. E há implicações mais graves, que turbinarão os
angustiados egotismo e arbitrariedade de inauditas maneiras.
Como Nietzsche primorosamente esclareceu -- talvez o maior presente
para a Humanidade dos muitos ofertados pela virtude que dá do anunciador do
Zaratustra --, a possibilidade negada, a possibilidade reprimida, não fica por
‘isso mesmo’. Ou seja, as possibilidades negadas e reprimidas tipicamente se
convertem em vingança. Em vingança contra o outro, e em vingança contra si
próprio.
Negadas as suas próprias forças de possibilidade, negada a vivência de
seu modo de ser das forças, das possibilidades, o niilista especificamente não
pode partir de si, e criar. Como se nega, nega a sua potência, ele, em
específico, não pode, naturalmente, partir da afirmação e desdobramento ativo
de suas forças.
Para criar, e se abonar, ele procede por vias transversas.
Primeiro, ele passa a sistematicamente constituir o outro como ruim.
Secundariamente, agora, ele pode comparar-se com o outro -- que ele
próprio constituiu como ruim -- e se constituir, agora por comparação, como
bom.
Ou seja, ele nega-se a si próprio, e nega o outro; negando-se à dialógica
com o outro. Faz duas negações para fazer um simulacro de afirmação, ao
comparar-se com a suposta ruindade do outro, que ele próprio constituiu ruim,
para identificar-se como bom.
Só assim o niilista pode se sentir bom, e fazer um simulacro de
afirmação. O preço pagará o outro, o diferente, o potente, o saudável, o alegre,
o criativo, o forte, enfim, que será continuamente constituído como ruim. E

247
sofrerá sempre da vingança do niilista ontofóbico, que buscará destruí-lo, em
sua empreitada de explicitar a sua bondade, e de limpar o mundo da ruindade.
Desde os seus estágios iniciais, trata-se de uma negação do outro, e de
uma recusa ao modo de sermos do diálogo. Nos seus estágios mais
avançados, trata-se não só de negar o outro, e de negar-se ao diálogo com o
outro, mas de vingar-se contra ele, de destruí-lo, de aniquilá-lo.
Esta é a forma ressentimento do niilismo.
As outras serão a culpa – quando o ressentimento se volta contra o
próprio ressentido, e ele próprio não presta, e passa, também, a ser vítima de
sua própria hostilidade e vingança. E o ideal ascético – quando todo este
mundo e esta vida não prestam. Estão basicamente errados. E o que passa a
valer é um mundo do além.
Mundo do Além que vigora na Ciência explicativa, na Filosofia, na Moral
e na Religião, a partir de Sócrates.

SOBRE O EGOTISMO DOS PERPETRADORES DE


MASSACRES.
Buber56 caracteriza o modo dialógico eu-tu de sermos como o modo de
sermos da pessoa. E o modo eu-isso de sermos ele caracteriza como o modo
de sermos do egótico.
Não que haja nada de errado com o modo de sermos egótico de sermos,
o modo eu-isso de sermos. Que nos constitui, tanto quanto o dialógico, o modo
eu-tu de sermos.
Mas o modo eu-tu de sermos é hierarquicamente mais importante em
termos de definição ontológica. É o ontológico modo de sermos do acontecer, é
o modo de sermos da ação, da atualização, é o modo de sermos do fazer; e,
sobretudo, é o modo de sermos no qual, fora da dicotomia sujeito-objeto,
existimos na esfera dialógica da ação, da inter ação com uma alteridade
radical, que se dá como um tu potente, possível, possibilidade em
desdobramento. Que, alteridade atuante – co-atuante, e co-autora --, interage
com um eu ator, desdobramento de possibilidades. E não sujeito. Igualmente
possível, igualmente, possiblidade.
Esta alteridade, como Buber observa, pode ser da esfera da natureza
não humana, pode ser da esfera do humanao, inter humano; ou da esfera do
sagrado.

No modo não dialógico de sermos do eu-isso, o isso não é uma


alteridade. O isso não é um tu. No modo não dialógico de sermos, o isso não é
possibilidade em desdobramento, não é ação, não é uma alteridade atuante,
não é inter ação.
É objeto, é coisa. Não é o acontecer da inter ação, é acontecido.

56
BUBER, Martin op. Cit.

248
O eu do eu-isso, igualmente, não é ator; assim, não é ação. Não é
possibilidade que se desdobra na inter-ação. Não há produção interativa de
sentido no modo de sermos eu-isso. No modo de sermos do eu-isso, como
Buber observa, o eu é, igualmente, um isso.

O isso não é um foco autônomo de produção de sentido, como dizia


Husserl, com relação ao outro, com relação à alteridade – alteridade que é,
efetivamente, um foco autônomo de produção de sentido.
Porque, evidentemente, o isso, na experiência do modo eu-isso de
sermos, não é um parceiro de inter ação, na instantaneidade momentânea da
ação. No modo eu-isso de sermos, o isso é acontecido, é objeto, é conceitual.
Não é implicativo, e compreensivo, mas especificamente explicativo. E,
enquanto tal, uma projeção do eu.
Egótico, portanto, este eu do eu-isso. Na medida em que se relaciona,
através de uma projeção de si, consigo mesmo. Na medida em que, isso
relacionando-se com um isso, se relaciona consigo mesmo.
Especificamente acontecido, possibilidade exaurida, não mais
possibilidade em desdobramento, não mais ação, não mais inter ação, o isso
do modo eu-isso de sermos -- quer seja da natureza não humana, quer seja da
esfera do relacionamento humano, quer seja da esfera do sagrado -- não é
vivido dialogicamente como um outro, em sua alteridade radical como
possibilidade que se desdobra. Mas é experienciado como objeto. Como coisa.
Egótico, o eu do eu-isso é, não só um eu carente de presença e de
atualidade, mas é, sobretudo, um eu carente de dialógica, um eu carente da
atualização de possibilidade. Um eu, portanto, que não se experimenta como
possibilidade, e produção, poiética, estética, de sentido. E que não experimenta
o outro como possibilidade e produção de sentido. O isso, e o próprio eu, na
experiência do modo eu-isso de sermos, são coisas.
Ou seja, como observa Buber, no modo de sermos eu-isso o eu é,
também, um isso.

Própria e especificamente, assim, o modo eu-isso de sermos é o modo


de sermos da experiência egótica. Na qual nenhuma alteridade se dá como
inter ação. O eu da experiência do modo de sermos eu-isso, não é o eu
dialógico da inter ação, da inter atuação, da inter atualização, eu-tu. Mas é
particular e efetivamente egótico. E, enquanto tal, cada vez mais se estrutura, à
medida que se enfraquece a alternância entre os modos eu-isso e eu-tu de
sermos; e à medida que o modo eu-isso de sermos ganha uma hegemonia e
prevalência enquanto modo de sermos.
Modo de sermos do privilégio do feito, do privilégio do fato; modo de
sermos da fatalidade. Modo de sermos da reificação da realidade do isso,
modo de sermos da hiper realidade do isso.

O modo fenomenológico existencial de sermos, o modo ontológico de


sermos, modo eu-tu de sermos, compreensivo, implicativa, gestaltificativo, é,
especificamente, o modo dialógico de sermos. Porque é o modo lógico de
sermos (enquanto modo de sermos da produção de sentido). No qual, em seu
intrínseco desdobramento, a possibilidade se constitui como sentido, como
249
logos, como consciência pré-reflexiva, como consciência fenomenológico
existencial, compreensiva e implicativa, gestaltificativa.
No seu desdobramento, a possibilidade é força de uma alteridade
radical, que dialogicamente se constitui como sentido, como logos, fenomeno
logos, dia logos, onto logos.
De modo que, é na pontualidade do encontro imediato com a alteridade
autônoma do outro que o outro inter humano se pode me dar, e desdobrar,
como alteridade radical, que a mim se vincula, na momentaneidade instantânea
da inter ação de uma dialógica eu-tu.
A momentaneidade instantânea da dialógica só é possível na medidada
em que posso afirmá-la, na medida em que posso afirmar, como possível,
como potente, a diferença do outro, a diferença do outro como tu – alteridade
radical, foco autônomo de produção de sentido. Na medida em que as
possibilidades podem se desdobrar, finar, e potencializar o seu retorno. Como
forças abundantes e renovadas de vida, possibilidades, que se desdobram.

É o que não acontece no niilismo.


O niilismo é anti-força, é anti potência, a anti possibilidade. O niilismo é a
evitação sistemática do modo de sermos da força e da potência. É evitação
sistemática do modo estético e poiético de sermos. É evitação sistemática do
modo fenomenológico existencial e dialógico de sermos, compreensivo e
implicativo, gestaltificativo. É a evitação sistemática do modo eu-tu de sermos,
e da alternância entre o modo eu-isso e o modo eu-tu de sermos. É a evitação
das forças, e de sua afirmação. É a autocontradição das forças, sua não
afirmação, o empenho em sua nadificação. Vontade de nada, força para o
nada, niilismo. Vocacionado a voltar-se em vingança contro o outro, e contra si
próprio.
Interditada a vivência do acontecer do modo fenomenológico existencial
e dialógico de sermos, só resta a repetição do modo de sermos do acontecido,
a repetição do modo eu-isso de sermos, a repetição do acontecido, a repetição
do fato, do feito, no modo de sermos do fato. A fatalidade da repetição, na
repetição do modo de sermos do acontecido...
A fatalidade, por sobre a alternância entre o modo de sermos do fato e o
modo de sermos da vivência possibilitativa, não factual. Vivência do modo de
sermos do fazer. A fatalidade por sobre a alternância entre o ethos do fato, da
fatalidade, e o ethos, a ética, estética, dialógica.
Isto significa a prevalência de uma ética da realidade, egótica. Isto
significa a prevalência de uma ética da fatalidade. A ética da fatalidade é o
ethos do decurso mecânico das coisa. Impermeável ao encontro e ao diálogo.
Impermeável ao encontro, que só se dá em sua intrínseca condição de
acontecer.
A fatalidade é intrinsecamente egótica. O egotismo é, intrinsecamente,
fatal.

Infenso ao encontro, e à dialógica de seu poder transformador, só resta


ao sujeito cronificante, ontofóbico, o fechar-se sobre a sua mesmidade
acontecida, egoticamente impotente para o encontro dialógico com a diferença
do outro. Fatal, fatalista, fatalidade, o egotismo se tece como uma recusa ao
250
acontecer do outro e de si próprio como possibilidades em desdobramento.
Tece-se como a constituição do outro não como uma presença em sua
atualidade, mas como um conceito pejorativo, e difamante. Até que se constitui
contra ele, até que se constitui em vingança contra ele. Um outro alienado, não
experimentado na dialógica.

SOBRE A ARBITRARIEDADE DOS


PERPETRADORES DE MASSACRES
Os perpetradores de massacres são estritamente arbitrários.
Inteiramente incapazes para o dseprpósito da ação fenomenlógica, são os
propositais obsessivos. Os arbitrários covades, abusivos, e obsessivos.
Da mesma forma que o egotismo, a arbitrariedade é uma característica
do modo eu-isso de sermos. E uma característica polarmente oposta ao
dialógico e ontológico modo de sermos do eu-tu. Oposto à arbitrariedade, o
modo de sermos da ação.
A arbitrariedade é um oposto polar da espontaneidade desproposital da
duração do desdobramento da ação ontológica, que se dá no modo eu-tu de
sermos. Um oposto polar do dialógico, um oposto polar do diálogo.
Constitui-se naturalmente no modo eu-isso de sermos.
Potencializa-se desmedidamente a arbitrariedade com reificação do
modo eu-isso de sermos, com a reificação da realidade, na experiência da
hiper realidade.

Como sabemos, o dialógico modo de sermos do eu-tu é o modo de


sermos da vivência do desdobramento de possibilidades, é o modo de sermos
da vivência da ação, da interação. E, própria e especificamente, a ação, a inter
ação, não são arbitrárias. São espontâneas, despropositais, não utilitárias...
A ação, a inter ação, dão-se, em sua duração, como vivência de
consciência pré-reflexiva, fenomenológico existencial e dialógica. Própria e
especificamente, elas são despropositais. No fluxo da vivência deproposital do
desdobramento de possibilidades. A arbitrariedade é, especificamente,
consciência reflexiva, teorética. Comportamental.
A ação, a inter ação dialógicas, são compreensivas e implicativas. A
arbitrariedade é explicativa. Teorética, ou comportamental.
Modo de sermos do ator, da ação, da inter ação, o modo de sermos eu-
tu é, como dissemos, o modo de sermos do acontecer. É anterior, enquanto
modo de sermos, às condições e à vigência do sujeito, acontecido; é anterior,
enquanto modo de sermos, às condições e à vigência do objeto, acontecido; e
especificamente anterior à vigência da teorética e acontecida dicotomia entre
eles. Sendo o modo de sermos da ação e do ator, modo de sermos do
acontecer, o dialógico modo de sermos do eu-tu é anterior às condições
coisificadas, eu-isso, acontecidas, do sujeito e do objeto. De modo que é
anterior às relações de causa e de efeito, e às relações de utilidade.
Na duração de sua momentaneidade instantânea, a ação, dialógica, é
um modo desproposital de sermos. Uma vez que, em sendo o modo de

251
sermos da ação e do ator, é um modo de sermos que esta fora da experiência
arbitrária e deliberada do sujeito. É um modo de sermos que esta fora da
experiência arbitrária e deliberada da causalidade; é um modo de sermos que
está fora das relações de causa e efeito, e está fora das relações de utilidade.
O modo eu-tu de sermos é um modo de sermos que está fora do modo
de sermos, eu-isso, dos úteis objetos, que está fora do modo de sermos dos
usos, das utilidades. É um modo de sermos que é anterior ao que entendemos,
em seu caráter especificamente acontecido, como realidade. É o modo de
sermos das possibilidades, do desdobramento das possibilidades, da ação, da
inter ação – que são eminentemente dialógicos.
A arbitrariedade é característica de um sujeito proposital que reflete ou
que se comporta objetos. É causativa, utilitária e realista.

Sendo assim, especificamente não arbitramos no modo


fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo, implicativo,
gestaltificativo de sermos. Neste modo de sermos, não somos o acontecido,
uma vez que somos o processo eminentemente improvisativo do acontecer.
Não somos sujeitos, somos o jeito, o jato, o jeto, o projeto. Porque estamos
num modo de sermos que é emergência e desdobramento da força de
possibilidades. Anterior à constituição da dicotomia sujeito-objeto. Própria e
especificamente, não somos, neste modo de sermos, sujeitos que ajem
causalmente sobre objetos. Não somos propositais, nem técnicos, por isso.
Porque estamos no improvisativo modo de sermos que é anterior ao
sujeito e ao objeto, que é anterior às relações de causa e efeito, anterior à
utilidade, e à realidade.
Neste modo de sermos, só podemos ser, devir, ação, do desdobramento
de possibilidades. No dialógico, e ontológico, modo de sermos da
improvisação. Intrinsecamente, não premeditada, não deliberada, não
arbitrária. Por não estarmos no modo de sermos do sujeito, e do objeto, por
não estarmos no modo de sermos dos usos, dos úteis e das utilidades. Por não
estarmos no, eu-isso, modo de sermos da realidade. E, muito menos, na sua
fixação hiper-real, aniquilante do possível, hiper arbitrária, que se constitui com
a reificação do real... Hiper real. Hiper egotista... Hiper arbitrária...
No modo fenomenológico existencial e dialógico de sermos estamos no
modo de sermos da ação, potente; quer dizer, possível. Modo de sermos da
pontualidade momentâneamente instantânea, e improvisativa, da vivência da
ação, da atualização, da vivência do improvisativo desdobramento de
possibilidades.
Vivência pré reflexiva, pré-teórica, pré-comportamental; que não é
subjetiva, nem objetiva; que não é proposital, que é eminentemente
improvisativa, desproposital, não causal; que não é da esfera dos usos, dos
úteis e das utilidades. E que não é da ordem do acontecido modo de sermos da
realidade.
Vivência da momentaneidade instantânea do modo ontológico,
fenomenológico existencial e dialógico de sermos. Modo de sermos das forças,
das possibilidades e do desdobramento de possibilidades. Suas implicações
são a alegria da criação a partir do possível, como atualização de forças, o
retorno de forças, as possibilidades, que se potencializam, e se constituem

252
como a alegria, a alegria da criação e da regeneração. E que se constitui como
o retorno de uma super abundância de forças de vida.
Retorno este que se caracteriza, no dizer de Nietzsche, como uma
grande saúde.
Própria e especificamente, não arbitramos no modo de sermos da ação.
Não arbitramos na momentaneidade instantânea, improvisativa, da vivência do
modo fenomenológico existencial e dialógico de sermos. Compreensivo,
implicativo, gestaltificativo.
O modo de sermos da ação é o modo de sermos da entrega à atividade
espontânea da ação, como vivência do desdobramento de possibilidades.
Possibilidades estas que não somos nós que criamos, mas que não acontecem
sem nós (Buber).

Quando se enfraquece a possibilidade do modo ontológico de sermos, e


se enfraquece, por isto, a alternância entre o modo ontológico, dialógico, de
sermos, e o modo eu isso de sermos, há uma redução progressiva dos
momentos de vivência do modo ontológico de sermos, uma redução da
vivência do modo de sermos da ação. E uma prevalência progressiva do modo
coisificado eu-isso de sermos, e de suas formas comportamentais. Com uma
imposição cada vez maior, agora como hegemônicas, das carcterísticas deste
modo eu-isso, coisificado, de sermos. Objetivista e subjetivista, egótico e
arbitrário, causal, proposital, premeditado, hiper pragmático. Realista, hiper
realista. Modo de sermos de uma reificação do real.

Ou seja, na reificação do modo eu-isso de sermos, na hiper realidade, a


deliberatividade, a arbitrariedade, se constituem progressivamente, e se
impôem cada vez mais, e de modo cada vez mais obsessivo. Na medida em
que somos cada vez mais incapazes para a vivência improvisativa da
espontaneidade da ação, como atualização de possibilidades. Na medida em
que somos cada vez mais incapazes para a despropositalidade da ação. Na
medida em que somos cada vez mais incapazes para o seu caráter poiético e
estético, de momentaneidade instantânea de vivência pré-reflexiva de
atualização de possibilidades. Na medida em que somos cada vez mais
incapazes para a vivência de seu caráter de possibilidades em desdobramento,
não causal, não pragmático, e não realista, não arbitrário.

A arbitrariedade, e o egotismo, se constituem e se impôem, cada vez


mais, à medida que -- com o impedimento do modo dialógico, eu-tu, de sermos,
modo de sermos da ação, do ator --, se croniifica o sujeito que “age” sobre
objetos, no acontecido modo de sermos dos sujeitos e dos objetos – não mais
alteridades, não mais parceiros dialógicos...
A arbitrariedade, e o egotismo, se constituem e se impôem, cada vez
mais, à medida que a causalidade, em seu mecanismo infinito de repetição do
acontecido, se impôe de modo cada vez mais hegemônico, e não se dilui pela
incidência da momentaneidade instantânea regular, e regenerativa, da ação.
A arbitrariedade e o egotismo se impôem, cada vez mais, à medida em
que tudo é submetido à utilidade, e à repetição, ad-nauseum, do caráter
acontecido do real. Com a obstrução, com a interdição, da saúde regenerativa

253
do possível. Com a interdição da saúde do desobramento ontológico de
possibilidades.

O modo de sermos fenomenológico existencial e dialógico da ação é, na


sua inerente improvisação, o modo de sermos da ação em sua espontaneidade
e despropósito dialógicos. A fixação do modo eu-isso de sermos é,
progressivamente, a fixação e a intensificação do egótico modo de sermos da
deliberatividade e da arbitrariedade.
Cada vez mais obsessivas e compulsivas, à medida que prevalece, e se
cronifica, o modo eu-isso de sermos, a reificação da realidade, a hiper
realidade.
Com os seus corolários de falta de criação, falta de alegria, falta de
regeneração, falta de saúde, ressentimento, angústia, destrutividade, e
violência.

254
A IMPASSIBILIDADE DOS PERPETRADORES DE
MASSACRES.
NEGAÇÃO DO MODO ONTOLÓGICO DE SERMOS,
FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL E DIALÓGICO.
RESSENTIMENTO, EGOTISMO E ARBITRARIEDADE.
NEGAÇÃO DO ETHOS, DA ÉTICA, DA ESTÉTICA, DO
DIÁLOGO. PREDOMÍNIO EXCLUDENTE DO ETHOS, DA
ÉTICA DA REALIDADE, E DA VIOLÊNCIA. NÃO
DIALÓGICA, FATALISTA. REIFICAÇÃO DA REALIDADE,
HIPER REALIDADE.
Não é difícil compreendermos os elementos constituintes da
impassibilidade dos perpetradores de massacres. Não é difícil
compreendermos o seu niilismo ressentimento, o seu egotismo, e a sua
arbitrariedade compulsivos, a sua reificação da realidade, sua hiper realização,
a sua destrutividade e violência.
Com a sua cronificação, a sua fixação, no modo eu-isso de sermos; com
a supressão da ética, da estética, do dialógico; com a limitação do modo eu-tu
de sermos; com a reificação do real, com a hiper realidade, os perpetradores
de massacres são, cada vez mais fatais, fatídicos. Cada vez mais niilistas e
ressentidos. Cada vez mais egóticos, e arbitrários. Hiper rerais, destrutivos e
violentos.
Estas características se traduzem todas na constituição de sua
impassibilidade. Na sua aparente consistência. São frios e frequentemente
decididos, aparentemente seguros, teoricamente explicativos, racionalmente
explicativos – veja os milhares de páginas explicativas escritas pelo
impressionante monstro de Copenhagen, que explodiu uma bomba no centro
da capital da Noruega, e depois covardemente assassinou, metódica,
sistemática e friamente, numa ilha, com armas de grosso calibre, setenta
jovens indefesos. Sua impassibilidade é apenas a rigidez superlativa de seu
egotismo e de sua arbitrariedade.
A impassibilidade dos perpetradores de massacres nada mais é do que
a cronificação de sua impotência, a sua hiper real cronificação no modo eu-isso
de sermos, a sua cronificação no modo de sermos da reificação do real. A sua
cronificação no modo de sermos do egotismo e da arbitrariedade, da hiper
realidade. Que interdita a regeneração propiciada pela momentaneidade
instantânea da vivência do modo de sermos da estética do diálogo, que
interdita o modo de sermos da estética da ação, da estética da emoção.
Buber já alertava no Eu e Tu para a “segurança” do egotista
arbitrário,que se cronificou, de forma excludente, no modo eu-isso de sermos
do acontecido. Tudo já é acontecido na sua experiência. De modo que pode se
dar ao luxo de uma certeza e de uma segurança pétreas.
É interessante verificarmos o que o dicionário57 define como Impassível.

57
HOUAISS,

255
Impassível: que não é susceptível de padecer, de sofrer, que não
experimenta ou não denota exteriormente nenhuma emoção, sentimento
ou perturbação; imperturbável. Impassibilidade: qualidade ou estado de
impassível, indiferença ao sofrimento, imperturbabilidade. 'Condição de
quem não sente dor, paixão etc.';

Importante notar a definição do dicionarista. Mas ela perde em sutileza,


na medida que se enreda numa concepção Latina de pathos. O pathos como
sofrimento. E perde a substância da concepção Grega original, de afetação, de
pathos como sensibilidade emocionada. Como o modo vivencial, estético e
poiético de sermos, fenomenológico existencial e dialógico; compreensivo e
implicativo, gestaltificativo. O modo de sermos da vivência de forças, que se
desdobram em ação, da vivência do desdobramento das possibilidades,
potências, possíveis. O impasssível, apesar de sua dureza covarde, é apenaso
impotente. Impotente para a emoção, impotente para o comportamento –
apesar de altamente comportamental. Impático, incapaz para o pathos do
modo eu-tu, dialógico de sermos, o perpetrador de massacres é impassivel.
Porque é hiper realista, egótico, arbitrário, ressentido, niilista.
Cronicamente impotente.
O passível modo de sermos do pathos, em-pthos, é o modo de sermos
das forças, as possibilidades; das forças que se desdobram em ação, em
interpretação fenomenológico existencial e dialógica, compreensiva, e
implicativa. Forças plásticas, formativas, que se constituem como as
sensibilidades criativas da consciência fenomenológica. Estética e poiética.
As forças, as possibilidades, deste modo fenomenológico existencial e
dialógico de sermos dependem de sua afirmação. É a afirmação das forças
que permite seu desdobramento como ação, como uma afirmação da
afirmação -- já que elas são já afirmativas, como observava Nietzsche. É a
afirmação que permite a sua vivência e finitude. A sua aporia. O sofrimento,
inclusive. E o retorno de novas forças, forças plásticas, formativas, que se
potencializam, à medida que emergem, se desdobram, e se finam, com o
sofrimento que lhes é compatível. É o modo de sermos da ação, da alegria, e
da saúde. O modo de sermos, igualmente, inclusive, do sofrimento e da
finitude.
É o modo de sermos do ator, que não é sujeito. Da mesma forma que o
outro e o mundo não são objetos. O ator presente, o mundo e o outro
presentes e atuais. É o modo de sermos da ação potente e criativa,
eminentemente improvisativa e desproposital. É o modo de sermos não
pragmático da ação gratuita e produtiva, da ação sensível, motivante, movente,
e emocionada, estética, poiética. Um modo de sermos que, enquanto modo de
sermos do acontecer, não é vivência da realidade do acontecido. É o modo de
sermos no qual pode se dar e se desdobrar a afirmação da relação com um
outro como alteridade absoluta, como alteridade radical, como alteridade
possível. A ontológica fenomenológica da relação dialógica

Por outro lado, o ressentido, egótico e arbitrário, impassível, se torna


cada vez mais infeso à emoção. Porque se fixou no modo de sermos que não é
o modo de sermos da emoção, que não é o modo de sermos da moção, da-
emoção – o modo de sermos da ação. O ressentido, egótico e arbitrário, hiper
256
realista, enclausura-se cada vez mais como sujeito, à medida que o mundo, os
outros, são cada vez mais experimentados como objetos, como coisas, nas
quais se projeta. Incapaz para a dialógica, os outros são cada vez mais
projeções alienadas de si. O mundo e a vida adquirem um movimento cada vez
mais mecânico -- o que Buber chamou de decurso das coisas. Perpétuamente
movido pela causalidade infinita. Que jamais é traída e diluída pela
imprevisibilidade, originalidade e força da presença do possível. Incapaz para a
ação espontânea, o seu comportamento é cada vez mais egotista, cada vez
mais arbitrário, cada vez mais hiper realista, cada vez mais deliberado, cada
vez mais premeditado. Impassível.
O outro não é simplesmente o outro, na imprevisibilidade de sua
alteridade radical -- que só se revela improvisativamente na instantaneidade
momentânea da estética do diálogo. Mas é o outro ruim e mau por definição,
objeto sempre de uma vingança insaciável e contínua do niilista ressentido.
Que apenas buscará na covardia a eleição de suas vítimas.
Na suprema covardia sempre. Porque, na sua pusilânime impotência,
não se vê esses perpetradores de massacres buscarem alvos fisicamente
fortes, soldados armados, por exemplo. São os covardes perpetradores de
massacres na antiga Iugoslávia, a violentar mulheres indefesas e a trucidar
prisioneiros de mãos amarradas, aos milhares; são os nazistas a trucidarem
sistematicamente Judeus indefesos; são Hutús caçando e trucidando Tútsis
indefesos, a machetadas, em Ruanda, são os burocráticos políticos, que
roubam de quem mais necessita, entre os genocidas; é o maníaco de
Copenhagen, como o maníaco de Oaklahoma, a explodir prédios civis, e a
caçar e matar dezenas de jovens indefesos, com fuzis de grosso calibre; são
os trucidadores do Índio Galdino e os trucidadores de moradores de ruas, no
Brasil; os homofóbicos; é o perpetrador do massacre de Realengo, a escolher
crianças para sua empreitada assassina; é o massacrante de Aurora, de
Columbine, e de tantos outros massacres no EUA.
Sempre a mesma impassibilidade, destrutividade e violência convencida
e covarde.

A CONSCIÊNCIA DOS PERPETRADORES DE


MASSACRES
Em sua efetividade, a consciência é ontológica. É, especificamente,
fenomenológico existencial e dialógica, compreensiva, implicativa,
gestaltificativa. Própria e específica ao modo eu-tu de sermos.
Podemos falar de uma consciência teorética. Mas esta, em particular,
não é a consciência em sua intrínseca característica poiética, não é estética,
não é produtiva, não é formativa, não é ação, não é atualização de
possibilidades, não é apresentação – da possibilidade que se desdobra em
ação, não é acontecer.
A consciência teorética é re(a)presentação, é re-flexão. É re-petição,
sempre. Não é acontecer, mas acontecido, no âmbito da acontecida
dicotomização de um sujeito, acontecido; que contempla um objeto, igualmente

257
acontecido. Na verdade é mais reflexão e representação do que consciência
propriamente dita.
O modo comportamental de sermos já não é consciência nenhuma, já
não é da ordem da consciência. É desconscienciação.
Na medida em que se caracteriza como a nossa atividade padronizada e
repetitiva, o comportamento, quanto mais comportamento, quanto mais
atividade padronizada e repetitiva, mais acontecido, mais repetitivo, e menos
consciência é. Quer seja a consciência efetiva que se dá no modo ontológico
de sermos; quer seja a repetitiva e acontecida consciência teorética de um
sujeito acontecido, que contempla um objeto acontecido.
O comportamento é comportamento muscular ou mental, mecânico, e
automático, repetitivo, acontecido. Quanto mais comportamental, menos
consciência.

Na reificação do real, que caracteriza o egotismo e a arbitrariedade da


cronificação do modo eu-isso de sermos, inviabiliza-se a vivência significativa
da consciência do modo de implicativo de sermos, ontológico, fenomenológico
existencial e dialógico, eu-tu, da ação. E desenvolvemos a fixação progressiva
no modo de sermos, explicativo, do acontecido. Uma fixação progressiva no
modo teorético e, cada vez mais, a seguir, no modo comportamental de
sermos.
Com a reificação do real, e o desenvolvimento progressivo da
experiência de uma hiper realidade, da experiência de uma hiper realização. O
que se caracteriza como uma progressiva desconscienciação. Cada vez mais
comportamental. Ou seja, a comportamentalização cada vez menos
consciente. Quer seja da efetiva consciência ontológica ativa, quer seja da
repetitiva, e acontecida, consciência teorética.

Daí que os comportamentos paroxísticos e violentos dos perpetradores


de massacres sejam extremamente intensos, e não conscientes – no sentido
efetivo do termo.
Mergulhados na experiência de hiper realidade, na hiper realização de
seus devaneios, condicionados de todo pelo seu niilismo ressentimento, pelo
seu egotismo e pela sua arbitrariedade, de cunho eminentemente não
dialógicos, destrutivos, e violentos.
Mais uma vez, os eventuais momentos de vivência dialógica, eu, tu, os
momentos de vivência fenomenológica, são momentos de intensa ansiedade. E
que, mais uma vez, e proporcionalmente, se reafirmam como fóbicos. E são
intensamente evitados. Condicionando mais evitação do modo eu-tu de
sermos, ontofobia, e mais evitação da alternância entre os modos de sermos.
De modo que a consciência ontológica da ação é escassa no hiper
comportamental, hiper realista, não dialógico, destrutivo e violento, perpetrador
de massacres.

258
OS PERPETRADORES DE MASSACRES, E A
BRUTALIDADE DE SEUS MASSACRES, NÃO SÃO ALGO
EM SI. TRATA-SE, MAIS PROPRIAMENTE, DE UM
SINTOMA SOCIAL.
É necessário entender, o que é mais inquietante, que estes
perpetradores de massacres não se resolvem em si mesmos. Não são
doentes, no sentido efetivo da palavra. Especificamente, eles não são
episódios em si. Eles e seus comportamentos são, especificamente, sintomas
sociais.
Sintomas sociais de uma cultura que excede na produção da impotência,
e de suas implicações, que prima em negar a vida, e em produzir e reproduzir
massivamente a impotência. A impotência massiva, que, massivamente, se
constitui em ressentimento e culpa, em violência e destrutividade. Pelo
desenvolvimento de uma ontofobia. De uma fobia ao modo ontológico, modo
dialógico, de sermos. Em função de uma fobia à vivência do sofrimento e da
finitude.
Hoje temos isso mais claro, quando vemos o discurso, os valores, dos
partidos e das tendências radicais de direita na Europa e nos EUA. O
perpetrador do massacre de Copenhague integrou plenamente em sua
racionália o discurso e as posições virulentas dos partidos e tendências
direitas, xenófobos, e facistas.
À sombra de partidos aparentemente respeitáveis, pululam nos EUA, e
claro que no Brasil também, organizações, grupos e grupelhos radicais, que
integram os discursos da intolerância e da ética da violência.
A violência é uma ética. Mas não é estética.
Mas, é importante notar, os perpetradores de massacres não são
sintomas apenas dos movimentos de direita, dos políticos e partidos Europeus
e Norte Americanos de direita radical. Estes são igualmente sintomas. Ambos
são sintomas de processos sócio culturais muito mais subterrâneos e básicos
de negação da vida. De negação de uma vida que só se dá como estética e
dialógica, na momentaneidade instantânea de sua vivência como ação, na
momentaneidade instantânea da vivência do modo eu-tu de sermos,
fenomenológico existencial e dialógico, compreensivo, implicativo,
gestaltificativo.
Movimentos e tendências culturais, portanto, de produção e reprodução
da impotência, de produção e reprodução do niilismo, e de suas formas, o
ressentimento, a culpa, e o ideal ascético. Tendências sócio culturais
potencializadas pela ontofobia, pelo medo do sofrimento, e da finitude. À
xenofobia é intrínseca a ontofobia. Tendências que se radicam em aspectos
específicos da cultura da modernidade, na educação, na religião, na
urbanização, na cultura da vida familiar.
Estas condições sempre existiram. Sempre foram produzidos e existiram
os impotentes ontofóbicos, ressentidos egóticos, arbitrários, destrutivos, e
violentos, e impassíveis. Assusta a quantidade e a intensidade dos fatores que
estão a produzi-los nos nossos dias.
Uma diferença crucial hoje em dia, bastante presente e significativa, é o
cruzamento entre impotência e o comércio de armamentos. Armas de grosso
259
calibre estão disponíveis de formas cada vez mais fáceis. O assassino do
cinema em Aurora, no Colorado, EUA, comprou várias armas, e enorme
quantidade de munição, pela internet!
Esta associação de impotência, ressentimento, violência, com armas de
grande poder de destruição tem estado presente em quase todos os
massacres de grupos, como os de Aurora, Columbine, Realengo; de
Oaklahoma, de Copenhagen...
Não podemos esquecer, por exemplo, os massacres dos bombardeios
no Vietnã, no Laos e no Camboja, com as superfortalezas voadoras, para
trucidar populações indefesas de camponeses, na década de setenta. Com
bombas de napalm, que queimavam vivas as suas vítimas. Que, atingidas,
mergulhavam nos rios para tentarem se livrar das queimaduras. E logo as
bombas foram aperfeiçoadas para colar a sua substância escaldante na pela
de suas vítimas; e aumentar o seu poder incendiário quando em contato com a
água, dos rios, por exemplo... Obra de mentes inteligentes, mas não racionais,
como observava Erich Fromm.
Mentes realistas, hiper reais, ressentidas, egotistas e arbitrárias,
destrutivas e violentas.
Incapazes para a mera vivência ontológica do diálogo.

CONCLUSÃO
Assim, a impassibilidade violenta dos perpetradores de massacres não
tem segredos. Resulta do seu crônico encistamento no modo coisa de sermos.
Encistamento crônico resultante da supressão da alternância entre os modos
eu-isso -- modo coisa de sermos --, e o modo eu-tu, modo dialógico, de
sermos. Com a fixação no modo eu-isso.
O modo eu-tu de sermos é o modo eminentemente, própria e
especificamente, dialógico de sermos. O modo não coisa, presente e atual, de
sermos. Da vivência intrínsecamente dialógica de possibilidades, do
desdobramento de possibilidades, da ação dialógica.
Na pontualidade da momentaneidade instantânea da vivência deste
modo de sermos, o outro não é coisa. O eu não é coisa. O outro e nós mesmos
não somos um isso. E a relação com o tu se gera e se regenera como uma
relação de produção compartilhada de (logos) sentido. Onto logos, fenomeno
logos, dia logos.
O modo eu-isso de sermos, apesar de ser uma dimensão natural e
importante dos modos de sermos, não é dialógico, não é um modo de sermos
de produção compartilhada de sentido. É um modo de sermos no qual um eu
impermeável se relaciona com um isso impermeável. Ambos coisificados. Não
sendo a relação de vivência da ação, a relação de vivência do desdobramento
de possibilidades.
Não sendo, assim, a relação de produção intrínseca e intensa de
sentido, na relação com o outro, é o modo de sermos do egotismo e da
arbitrariedade. Que, pela sua cronificação e isolamento, pode nutrir e
potencializar, não só o egotismo e a arbitrariedade, mas nutrir e potencializar o
ressentimento, o ódio vingativo egotista e arbitrário contra o outro.

260
A condição para a relação eu-tu, a condição para a relação dialógica, é a
disposição para a estética da experiência, a disposição para a experiência
estética. O modo de sermos da relação eu-tu é, especificamente, o modo
estético, ético, e poiético, de sermos.
O enfraquecimento da vivência do modo eu-tu de sermos, e o
enfraquecimento da vivência da alternância entre os modos eu-isso e eu tu de
sermos se dá com o enfraquecimento da predisposição para a experiência
estética. Com o enfraquecimento da possibilidade da vivência do modo eu-tu
de sermos, e de sua natural alternância com o modo eu-isso de sermos. Com a
fixação do acontecido modo eu-isso de sermos, modo de sermos do real,
carente do modo de sermos do possível; com uma reificação do real, com o
desenvolvimento de uma hiper realidade. Não dialógica, egotista, arbitrária,
ressentida, violenta e destrutiva.
O venenosamente ressentido, egotista, e arbitrário, perpetrador de
massacres é o anti estético por excelência. O não dialógico, o ressentido, o
egotista, o eminente e arrogantemente arbitrário, destrutivo, e violento, por
excelência.
É importante observar que nisso ele não é um ser em si.
Especificamente, não o é. Mas é um sintoma, apenas um sintoma, paroxístico
e extremo, de tendências socio culturais, que -- por se esmerarem contra o
corpo, contra os sentidos, contra a vivência, contra a vida, contra a estética do
corpo e dos sentidos -- se esmeram contra a disposição estética. Contribuindo
para enfraquecer a vivência do modo eu-tu de sermos, contribuindo para
mitigar a natural alternância entre os modos eu-isso e eu-tu de sermos. E
contribuindo, com isto, para condicionar uma fixação e uma cronificação no
modo eu-isso de sermos – não dialógico, egotista, e arbitrário. Processo que,
pilhado pelo ressentimento, constitui a preparação das condições ressentidas,
fatalistas, egotistas, e arbitrárias, para os paroxismos de violência dos
perpetradores de massacres.

INTRODUÇÃO
Uma das características básicas, definidoras, dos perpetradores de
massacres é a sua impassibilidade. São impassíveis. Sua frieza e decisão
covardes, a firmeza de suas atitudes, a firmeza de seus argumentos, de suas
argumentações, a firmeza de sua racionália, pode impressionar ao desavisado.
A questão dos perpetradores de massacres, e de seus covardes
massacres, é uma questão eminentemente ontológica.
Na verdade, a sua impassibilidade apenas evidencia a rigidez do
ressentimento cronificado e venenoso, a rigidez da arbitrariedade e do
egotismo. Tipicamente, o ressentimento e a arbitrariedade de quem
egóticamente se encistou na fatalidade do modo eu-isso de sermos, modo não
dialógico de sermos do fato. De quem se encistou na ética do modo coisa de
sermos. E doentia e incontornavelmente se cronificou, assim, na ética do não
dialógico, na ética do egotismo e da arbitrariedade. Ou seja, na ética da
destrutividade e da violência. Mediante uma recusa primária da ontológica da
estética, da ética, do diálogo; da ética do modo dialógico, eu-tu, de sermos.

261
A violência é o antípoda de diálogo. A ética da violência é o oposto polar
da estética do diálogo, característico e intrínseco ao ontológico modo eu-tu de
sermos, e à natural alternância entre os modos eu-tu e eu-isso de sermos.
Outro aspecto importante a considerar é o de que o perpetrador de
massacres não é um ser em si. Mas um sintoma social. Um sintoma de
tendências culturais que se esmeram pela negação do corpo, pela negação
dos sentidos, pela negação da vivência fenomenológica, pela negação da
vivência estética, pela negação da vida – cuja vivência é eminentemente
estética. Condição intrínseca e primária à vivência da dialógica do modo eu-tu
de sermos. Potencializando, com esta negação, a interdição da vivência do
modoeu-tu de sermos, potencializando a interrupção da alternância entre o
modo eu-tu e o modo eu-isso de sermos. Condicionando a fixação no modo
não dialógico de sermos; potencializando, com esta fixação, o niilismo
ressentimento, egotista, arbitrário, destrutivo e violento da cronificação do
modo coisa de sermos.
Buber58, além de descrever e comentar as características do modo
dialógico de sermos, do modo ontológico, eu-tu de sermos, comentou
magistralmente, como frequentemente o faz, a fatalidade, o egotismo e a
arbitrariedade. Cronificação no modo eu-isso de sermos, não dialógico, anti
dialógico, fatalidade, egotismo e arbitrariedade consequentes, destrutividade e
violência consequentes.
Buber não comentou a força que dinamiza e move esta violência, e a faz
chegar a níveis estarrecedores e inimagináveis. Desde os massacres
genocidas, ao longo da história, até os massacres de grupos. A força, ou a falta
de força, que move os seus perpetradores é a mesma.
Nietzsche59 elucidou e comentou a força -- o niilismo ressentimento, a
vontade negativa de potência, tantas vezes tão impressionante -- que dinamiza
a violência condicionada e direcionada pelo egotismo e pela arbitrariedade.
Decorrentes estes da cronificação do modo eu-isso de sermos, não dialógico;
decorrentes do enfraquecimento do modo ontológico de sermos, e do
consequente enfraquecimento da natural alternância entre o modo eu-tu de
sermos, o modo dialógico de sermos; e o modo de sermos eu-isso. Com o
consequente encistamento e cronificação, e intensificação da cronificação,
neste modo coisificado de sermos. Com a destrutividade e a violência
concomitante.

REFEREÊNCIAS.
BUBER, Martin Eu e Tu.
Do Diálogo e do Dialógico.
HEIDEGGER, Martin Ser y Tiempo.
NIETZSCHE, Frederich Assim Falava Zaratustra.
Genealogia da Moral.
Para Além do Bem e do Mal.

58
BUBER, Martin EU E TU.
59
NIETZSCHE, Frederich, Assim Falava Zaratustra. Genealogia da Moral. Para Além
doBem e do Mal.

262
Ecce Homo.

263
DIAPOIESE E DIALÓGICA DO DIAGNÓSTICO MÉDICO

No que pese o tema, este ensaio é um ensaio epistemlógico, e


psicológico.
Não é um ensaio médico.
Em si, o diagnóstico médico, naturalmente, só pode ser feito, e
praticado, por especialistas, Médicos,
O proccesso da hermenêuitica diagnóstica médica é
hermenêutica ontológica. O seu conteúdo, especializados.
O diagnóstico médico é uma mediação cognitiva entre a
hermenêutica do conhecer os sinais e sintomas do cliente, e o
conhecimento da ciência médica. Em benefício do cliente particular,
e, mais secundariamente, da própria ciência médica.
O profissional acessa a condição do cliente através dos
sintomas e sinais desta.
Os sintomas da condição do cliente, subjetivos, são dados pela
comunicação do cliente.
Os sinais são constatados, objetivamente, no corpo do cliente.
E interpretados, segundo seu conhecimento teórico.
No sentido de apreender a particularidade da condição do
cliente, o diagnóstico médico é uma ato performativo, performance.
Um ato cognitivo, em sua diapoiese, e dialógica, presença, e
atualidade.
Naturalmente, articulado, a seguir, com outras dimensões
correlatas da explicação, passado o seu episódio, como ação.
Diapoiese, e dialógica.
Isto quer dizer que o diagnóstico médico é interhumanamente
diapoiético, e dialógico.
É diapoiético e dialógico, na interação do profissional com o
corpo do cliente; com os sinais do corpo do cliente. com a pessoa do
próprio cliente, em busca da subjetividade, e da transjetividade, dos
sintomas de sua condição.
É pré-reflexivo, pré-conceitual, em sua hermenêutica.
É da ordem da implicação, e da compreensão/musculação.
E só a posteriori, da ordem da explicação.
Compreensão, não é percepção.
A compreensão é pré-reflexiva, e pré-conceitual.

264
Constituindo-se como uma apuriação do sentido, a partir dos
sentidos da multiplicidade de suas possibilidades.
O diagnóstico é vivência da implicação, e da constituição
cognitiva desta, como compreensão. Na duração da transjetividade
de seus episódios pertinentes. Desde a emergência das
possibilidades, como projeto. Até sua conclusão, pelo decaimento de
suas forças, na sua conceituação.
Conceituação, pré- conceitual, na transjetividade, da duração
do ato ontológico, a compreensão permanece, é 'analógica', ou seja,
pré-conceitual, iniputada, fenomenológica.
A cognição gestáltica, pré-conceitual, e pré-reflexiva: o todo
que é diferente da soma de suas partes. (E não "o método 'Jack o
estripador', de: 'Vamos por partes'").
Até a conceituação de suas forças.
Quando estas são, então amputadas, pelo decaimento, e pelo
trabalho do conceito. E passamos da implicação para a explicação.
Assim, de seu projeto, ao seu decaimento, e conclusão; a
diapoiética dialógica, do diagnóstico médico é uma questão de tempo.
Da temporalidade própria à vivência ontológica do episódio do ato
diagnóstico. Vivência da implicação, e da temporalidade de
constituição da compreensão.
O tempo que medeia, entre a emergência do projeto da
implicação das possibilidades, e sua conclusão conceitual, é tempo
ontológico. Tempo diapoiético e dialógico da compreensão.
Pré-reflexivo, e pré-conceitual.
Tempo no qual não vigoram o teorético, o propósito, a
causalidade, a utilidade, nem a realidade. Estas, características
antagônicas às do ontológico, perturbam.
Tempo de moção, de mover-se, de deslocar-se, e aprender.
Tempo de emoção. E de motivação.
Tempo do despropósito, do desproposital.
Tempo em que vigoram, em suas intensidades intensionais, e
pré-conceituais, a força das possibilidades, em seu desdobramento.
Tempo em que os sinais do corpo do cliente, e o cliente, não
são objeto. Mas tu, com os quais só se interage, na dialógica e
diapoética da implicação, e da compreensão.
Tempo anterior à vigência do tempo da percepção, e do tempo
da explicação...
Como fazer com que se constitua, e vigore, o tempo da
implicação, e da compreensão?
Privilegiando-se-lhe.

265
Explico...
O tempo da implicação e da compreensão é, todo ele,
impregnado de força. A força da intensionalidade das possibilidades.
Se nós o privilegiamos, não privilegiando os elementos do tempo
ôntico, ele se impôe ao tempo da ôntico -- que não é intensional --,
da percepção, e da explicação -- tempo das coisas, do fato, da
fatalidade.
Ainda que, posteriormente venha, fatalmente, a convergir para
este.
Mas, a hermenêutica dos sinais e dos sintomas, a diapoiética, e
dialógica do diagnóstico médico, dependem da vivência do tempo da
implicação, e da compreensão. Tempo de Kairós. Em sua modalidade,
e características próprias. Sem interferencias do tempo ôntico -- de
Cronos. Tempo da objetividade, e da subjetividade. Tempo da
reflexão, do teorético. Da causalidade. Do propósito. Da utilidade. Da
realidade, da reificação.
O preconceito e o alvoroço esorvam o processo.
Na medida em que a implicação e a compreensão são processos
de conceituação, mas especificamente pré-reflexivos, e pré-
conceituais. E que têm uma temporalidade específica.
O processo tem sua abertura -- com um projeto gestaltificativo;
e tende a se fechar, numa conclusão.
Mas o tempo que medeia entre o projeto e a conclusão, é
tempo ontológico.
Pré-reflexivo, e pré-conceitual.
O conceito precipitado, o alvoroço, e a reflexão estorvam o
processo.
Da mesma forma, a imposição de características ônticas da
percepção e da explicação.
Como o teorético, a causalidade, o propósito, o moralismo, a
utilidade, o realismo, e a realidade...

266
O ONTOLÓGICO, E O ÔNTICO;A PESSOA, E O EGÓTICO;
A LIBERDADE, E O DESTINO;O DIALÓGICO, E A
ARBITRARIEDADE

A vivência do episódio da ação -- a vivência do episódio do


modo ontológico de sermos, eu-tu, do episódio da existência --, em
específico, é um fazer. Uma feição, perfeição.

Perfeição, não tanto pela adequação do feito a um modelo


ideal, ou pelo resultado, em si; mas pela integridade do processo do
fazer.

O específico fazer no episódio onto fenomenológico da ação,


como experimentação pré-reflexiva, e pré-conceitual; dialógica, e
poiética.

O eu-tu -- o ontológico, a ação, o episódio da existensia --, é


um fazer.

O eu-isso, o ôntico, é um feito.

O feito é fato.

E é essa a esfera de sermos da fatalidade

Existe uma perene alternância, entre a vivência do eu-tu; e a


experiência do eu-isso. A experiência do eu-isso, e a vivência do eu-
tu.

De modo que, cada episódio da vivência do eu-tu se converte, a


seguir, na experiência do eu-isso.

E, cada eu-isso, pode dar lugar a um episódio da ação.

Dito de outra forma, cada ação se converte em fato, e de cada


fato se acessa a ação.

Inevitavelmente, a ação se converte em fatalidade; e, da


fatalidade, se acessa a ação.

Tanto que, nisso baseado, Buber diria no seu antológico livro60:


A única coisa que pode vir a ser fatal ao homem é crer na fatalidade.
Fatal mesmo é crer na fatalidade.

60
BUBER, Martin EU E TU, São Paulo, Cortês, 1985.

267
Isso porque não se conhece, não se crê, e não se investe, na
eterna recorrência do ontológico, do eu-tu, do episódio da ação, do
existencial.

Mas, isto é sempre possível. É ontológico, constituinte do


humano.

O ontológico, eu-tu, a ação, é marcado por suas características


ontológicas.

Entre elas, particularmente, a não causalidade, e a não


utilidade.

O ôntico -- eu-isso, a fatalidade -- é causal, e útil; pragmático.

Quando há um predomínio da experiência da fatalidade, a vida


passa a ser conduzida pela causalidade infinita, e pela utilidade.

268
A FATALIDADE, O DECURSO, E O DOGMA DO DECURSO
PROGRESSIVO DAS COISAS

Enfraquecida a possibilidade e a potência da relação (eu-tu), no


mundo e na vida coisificados, a causalidade ilimitada conduz a vida e
o mundo ao decurso progressivo, e inalterável, das coisas.

E à crença no decurso.

Esta crença conduz a vida e o mundo ao mundo dos fatos, à


fatalidade inalterável, e à crença na fatalidade.

Sem potência criativa, a existência, o mundo, se coisificam, e


só se repetem.

É interessante observar que fatalidade não tem para Buber,


primariamente, o sentido de infortúnio, de evento desafortunado.

A Constituição da esfera do fato, o eu-isso, é natural, e


importante.

Só secundariamente é que a fatalidade se constitui como tal,


para Buber.

E conduz a vida e o mundo ao predomínio do mundo dos fatos,


à fatalidade inalterável, e à crença na fatalidade. Presididas
estas pela utilidade, e pela causalidade ilimitada.

E à crença no decurso.

Que, por si, fundamentalmente, se converte no decurso


inalterável, fixado, inevitável, irrevogável, das coisas.

Potencializado, este decurso, pela crença na sua inevitabilidade,


na sua irrevogabilidade, num suposto caráter inalterável e fechado:
potencializado pela própria crença na fatalidade.

No mundo contemporâneo, esta crença no decurso, e na


fatalidade, é reforçada pelos vários tipos de determinismo, e pelos
vários tipos de niilismo constituídos na sociedade moderna.

Referindo-se ao pensamento biologista, ao pensamento


historicista, e a outros determinismos e suas leis, Buber observa:

269
Por mais diferentes que possam parecer um
ao outro, colaboram para formar uma fé na
fatalidade mais tenaz e angustiante do que todas
as anteriores. (...)
Sob todas estas formas, e outras mais, o que
significa é que o homem está ligado a um devir
inevitável, contra o qual ele não lutaria senão em
seu delírio. (...)
É uma loucura imaginar a liberdade; não se
tem senão a escolha entre uma escravidão
voluntária ou uma escravidão desesperada e
rebelde. (...)
O fundamento que efetivamente todas elas
têm, é a obsessão pelo decurso das coisas. Isto é a
causalidade ilimitada.
O dogma do decurso progressivo é a
abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso.
Assim, o nome do destino será mal
empregado. Assim, atribuir-se a ele o nome
destino será um erro. Pois o destino não é uma
campânula voltada sobre o mundo dos homens.
Ninguém o encontra senão aquele que parte
de sua liberdade.
O dogma do decurso inelutável das coisas
não deixa, porém, lugar à liberdade, nem para a
sua revelação mais concreta: a conversão* 20
O dogma do decurso potencializa o próprio decurso.

Ele diz, na sua versão popular:

„Pau que nesce torto, não tem jeito, morre


torto.‟
E, na sua versão erudita,

As coisas sempre foram assim. As coisas


sempre vão ser assim. é quem pensa que elas
podem ser diferentes.
Mas não esqueçamos a advertência de Buber:

O dogma do decurso é falso desde o início...


A única coisa que pode vir a ser fatal ao
homem, é crer na fatalidade...
Fatal, mesmo, é crer na fatalidade.

270
ATUALIDADE, DECISÃO; LIBERDADE/DESTINO;
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.

A causalidade, fator preponderante no mundo do Isso, motor


da fatalidade, e do decurso, quando este mundo do Isso perde a
possibilidade de atualização da relação EU-TU. A causalidade não
vigora, na esfera da relação (eu-tu).

Está livre da causalidade o homem que -- exercendo a


potencialidade de seu ser -- pode abrir-se e entregar-se à
possibilidade da atualidade da relação (eu-tu).

Isto é a liberdade.

A esfera da relação (eu-tu) pode garantir a liberdade do


homem.

Da vivência de seu episódio pode germinar e emergir a


decisão. Que permite ao homem reintegrar-se de modo ativo,
criativo, e transformador; no mecanicismo da causalidade do mundo,
e da vida, coisificados.

O reino absoluto da causalidade no mundo


do Isso -- embora de importância fundamental
para a ordenação científica da natureza -- não
aflige o homem que não está limitado ao mundo
do Isso. E que pode sempre evadir-se para o
mundo da relação (eu-tu).
Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro
livremente. Numa ação recíproca que não está
ligada a nenhuma causalidade, e não possui dela o
menor matiz.
Aqui o homem encontra a garantia da
liberdade de seu ser, e do Ser.

Somente aquele que conhece a relação e a


presença do Tu, está apto a tomar uma decisão.
Aquele que toma uma decisão é livre, pois se
apresenta diante da Face.61
E a seguir:

61
op. cit. p. 60-1.
271
A causalidade não oprime o homem ao qual é
garantida a liberdade.
Ele sabe que sua vida mortal é, por sua
própria essência, uma oscilação entre o Tu e o
Isso.
E ele percebe o sentido desta oscilação.

Basta-lhe saber que pode, à todo momento,


ultrapassar o umbral do santuário. Onde ele não
poderia permanecer.

E mais ainda: a obrigação de deixá-lo logo


depois incessantemente, lhe está intimamente
ligada ao sentido e ao destino desta vida. (...)

O que aqui se chama necessidade não o


apavora.

Pois, lá, no santuário. ele conheceu a


verdadeira.

Isto é, o destino. 29
Decisão, relação (eu-tu), e destino estão para Buber, assim,
intimamente associadas.

É na dimensão da atualidade da relação que o homem pode


viver, imediata e intensamente, a multiplicidade de seus possíveis.
Engendrar e assumir o seu gesto, e ato, originais.

Gestar a sua ação original, única e potente. E determinar o


acontecimento, organizando e dinamizando, com a originalidade de
seu ser, e de seu ato, a configuração de seus possíveis.

Sobre o processo da decisão, na duração do evento da


atualidade, Buber coloca:

Eis aqui toda a substância ígnea de minha


capacidade de vontade em um formidável
turbilhão.
Todo o meu possível girando como um
mundo em formação, como uma massa confusa e
indissolúvel.
Eis os olhares sedutores das potencialidades,
flamejando de todas as partes. O universo como
tentação. E eu, nascido em um instante, as duas
mãos imersas numa fornalha, para apanhar o que
aí se esconde e me procura: meu ato.
Pronto! eu o tenho.

272
E, logo, a ameaça do abismo é proscrita, a
multiplicidade deixa de fazer valer a igualdade
cintilante de sua exigência; não existem mais que
dois na simultaneidade, o outro e o um. A ilusão, e
a missão.
Só então, porém, começa a minha
atualização.

Pois a decisão não consiste em atualizar o


um e deixar o outro estendido como massa extinta
que, camada por camada, aviltaria a minha alma.
Somente aquele que orienta, no fazer do
Um, a força do Outro; aquele que deixa entrar na
atualização do escolhido a paixão intacta do que foi
repudiado. Somente aquele que „serve a Deus com
o „mau instinto‟, se decide, e decide o
acontecimento. 62
Na atualidade da relação (eu-tu), decisão e liberdade
conjugam-se, na concepção que Buber faz do destino.

De modo que ele desenvolve uma concepção de destino na qual


estão necessariamente implicados a decisão e a liberdade.

O que aqui se chama de necessidade não o


apavora (ao homem ao qual é garantida a
liberdade).
Pois (...) ele conheceu a verdadeira, isto é, o
destino.
Destino e liberdade juraram fidelidade
mútua.
Somente o homem que atualiza a liberdade
(libertou a atualidade)63 encontra o destino.
Quando eu descubro a ação que me requer,
é aí, nesse movimento de minha liberdade, que se
me revela o mistério.

Mas o mistério se revela a mim não só


quando não posso realizar esta ação como eu
pretendia, mas também na própria resistência.
Aquele que esquece toda a causalidade, e
toma uma decisão do fundo de seu ser, aquele que
se despoja dos bens e da vestimenta, para se
apresentar despido diante da face -- a este homem
livre -- o destino aparece como réplica de sua
liberdade.

62
Op. Cit.
63
* Parêntesis nosso.
273
Ele não é o seu limite, mas o seu
complemento.

Liberdade e destino unem-se mutuamente


para dar sentido.
E, neste sentido, o destino -- até há pouco
olhar severo -- suaviza-se, como se fosse a própria
graça.

Não, o homem portador de centelha, que


retorna ao mundo do Isso, não é oprimido pela
necessidade causal.

E, em épocas em que a vida é sã, a


confiança se propaga a todo o povo, através de
homens de espírito (...):64
Quando das épocas mórbidas, Buber observa:

... Acontece que o mundo do Isso, não sendo


mais penetrado e fecundado pelos eflúvios
vivificantes do mundo do Tu -- não passando de
algo isolado e rígido, fantasma surgido do pântano
-- oprime o homem.
Nele o homem, contentando-se com um
mundo de objetos que não lhe podem mais tornar-
se presença, sucumbe.
A causalidade fugaz intensifica-se, até
tornar-se uma fatalidade opressora e esmagadora.
65

Para Buber, a conversão, não obstante, permanece sempre


possível.

A conversão é, para Buber, o engajamento do homem total na


concretude de sua existência (Von Zuben p.163).

A conversão pode ser a abertura que possibilita a emergência


da potência e possibilidade plástica da relação dialógica.

Não obstante a cristalização, em causalidade ilimitada, decurso


progressivo e inalterável, e fatalidade, próprios do mundo em que se
enfraqueceu a possibilidade da relação (eu-tu):

O desejo, elan impetuoso de redenção,


permanece, em última análise, insatisfeito. A
despeito de numerosas tentativas.

64
op. cit. p. 61-2.
65
op. cit. p. 64-5.
274
Até que o acalme aquele que ensina a
escapar do ciclo dos renascimentos, ou alguém que
salve as almas, subjugadas por poderes terrenos,
levando-as para a liberdade dos filhos de Deus.
Tal obra se realiza quando um novo
fenômeno de relação (eu-tu) se torna substância.
Quando uma nova resposta é dada pelo homem a
seu Tu, Acontecimento que determina o destino. 66

Buber aponta a parcialidade, e a falsidade, do dogma do


decurso progressivo e inalterável das coisas. A falsidade da crença na
fatalidade:

O dogma do decurso progressivo é a


abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso.
(...) Este dogma desconhece o homem que
pode vencer a luta universal pela conversão;
aquele que rompe, pela conversão, as amarras dos
impulsos de utilização; aquele que se liberta pela
conversão do fascínio de sua classe; aquele que,
mediante a conversão, pode revolver,
rejuvenescer, transformar quadros históricos os
mais seguros.
O dogma do decurso não te deixa no
tabuleiro senão uma opção: observares as regras
ou te retirares.
Aquele, porém, que realiza a conversão
derruba todas as peças.67
E, arremata brilhante:

A única coisa que pode vir a ser fatal ao


homem é crer na fatalidade, pois esta crença
impede o movimento da conversão.

A crença na fatalidade é falsa desde o


princípio.

Todo o esquema do decurso consiste


somente em ordenar como história o nada-mais-
senão-passado, os acontecimentos isolados do
mundo, a objetividade.

A presença do Tu, o que nasce do vínculo,


são inacessíveis a esta concepção, que ignora a
realidade do espírito.

66
Op. Cit.
67
op. cit. p. cit p.66.-7.
275
Este esquema não apresenta valor algum
para o espírito.

A profecia baseada na objetividade tem valor


apenas para quem ignora a presença.

Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso


é obrigado a ver no decurso inalterável uma
verdade que esclarece a confusão.

Na verdade tal dogma deixa subjugar-se


mais profundamente ao mundo do Isso.

O mundo do Tu, porém, não é fechado.

Aquele que, na unidade do seu ser, se dirige


a ele, conhecerá profundamente a liberdade.

E tornar-se livre significa libertar-se da


crença na servidão. 68
Buber tematiza a relação entre a arbitrariedade*, e a
fatalidade.

A arbitrariedade que decorre da fatalidade e do fatalismo de um


Eu carente de atualidade, e cuja possibilidade de relação encontra-se
enfraquecida.

Ele, Buber, de um modo interessante, inicia falando da


possibilidade de submissão do mundo do Isso por aquele que o
conhece em sua natureza:

Assim como é possível dominar um íncubo


chamando-o pelo seu verdadeiro nome, assim
também o mundo do Isso -- que, ainda há pouco,
esmagava, com sua força espantosa, a fraca força
do homem --, é constrangido a submeter-se
àquele que o conhece em seu ser... 36
Contrapõe, a seguir,:

Mas, como poderia ser capaz de interpelar o


íncubo pelo seu nome, aquele que, no seu íntimo,
leva um fantasma.
Isto é, o Eu carente de atualidade?
Como a força de relação sepultada pode
ressurgir em um ente cujos escombros são

68
op. cit. p.67-8. 36 op. cit. p. 68.
*
Arbitrário. Proposital, causal, pragmático. Que não se dá e decide no dialógico, da relação eu-
tu.

276
permanentemente pisoteados por um fantasma
vigoroso?

Como poderia recolher-se um ser que está


constantemente perseguido em um campo vazio,
pela procura da subjetividade perdida?

Como conheceria profundamente a liberdade


aquele que vive no arbitrário*. 69
E, reiterando as palavras de Buber:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, também o estão o arbitrário e a
fatalidade.
Liberdade e destino, porém, são
comprometidos, mutuamente, para instaurarem,
juntos, o sentido.

O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma


e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação, e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram, e irrompe
deles a confissão de mútua perdição.

O homem livre é aquele cujo querer é isento


de arbitrário.
Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no
vínculo real que une a dualidade real do Eu e do
Tu.
Crê no destino e também que ele tem
necessidade dele.

Ele não o conduz em inteiras, mas o espera.


O homem deve ir ao seu encontro, mas não
sabe ainda onde ele está.
O homem livre deve ir a ele com todo o seu
ser, disso ele sabe.

Não acontecerá aquilo que a sua resolução


imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá
senão na medida em que ele resolver querer aquilo
que ele pode querer.

69
op. cit p. 69.
277
Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele
pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e
pelos instintos, em favor do grande querer que se
afasta do “ser determinado”, para ir ao destino.
Ele não intervém mais. Mas nem por isso
permite que aconteça pura e simplesmente.
Ele espreita aquilo que por si mesmo se
desenvolve, o caminho do ser no mundo. Não para
se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo, como
ele deseja ser atualizado; pelo homem de quem
ele necessita, por meio do espírito humano e do
ato humano, com a vida do homem e com a morte
do homem.
Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se
oferece ao encontro. 70
Diferentemente do homem que vive no arbitrário,

O homem livre não tem, aqui, uma finalidade


e, lá, os meios para obtê-lo.
Ele possui somente um objetivo, e sempre
um: a resolução de ir de encontro ao seu destino.
Tomada essa resolução, pode lhe acontecer
de, às vezes, renová-la a cada etapa decisiva do
caminho.
Mas deixará de acreditar na sua própria vida,
antes de crer que a resolução de seu grande
querer é insuficiente.
Acredita que deve mantê-la por todos os
meios.
71
Ele crê; ele se oferece ao encontro.

70
op. cit. pp 69-70.
71
op. cit. p. 71.
278
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE

No encontro (episódio dialógico, eu tu, ação) participamos de


uma decisão. Participamos, não decidimos unilateral e
autocraticamente.

Buber diria, não criamos a possibilidade, mas ela não acontece


sem nós.

Participamos na decisão, que compartilhamos com a alteridade


viva, e atualmente dialógica do tu.

Esta decisão, assim não é arbítrio, arbitrária, mas dialógica,


diapoiética. Não causal, deproprosital, não pragmática. Dialógica.

Para o homem que absolutiza o mundo e a vida coisificados,


que absolutiza o mundo do Isso; para o homem em quem se
enfraqueceu a crença na relação, no dialógico. E que crê no decurso
progressivo e inalterável das coisas; para o que crê na fatalidade, e
abdica de seu poder de relação, de participação na dialógica, resta,
apenas, a possibilidade da vida no arbitrário (o conceitual,
subjetivista), a partir, não da vivência da dialógica do encontro, mas
da arbitrariedade.

É a arbitrariedade, cada vez mais desenvolvida, e


hipertrofiada, que decide.

Não é a vivência do desdobramento da possibilidade que leva à


decisão. Na dialógica da ação (eu-tu), imprevisível, intensa, múltipla
e incontrolada. Que vivifica, anima e transforma a sua vida, e a sua
realidade.

Buber comenta:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, assim, também, o estão o arbitrário e
a fatalidade. 72

Liberdade e destino, porém, são


comprometidos mutuamente para instaurarem,
juntos, o sentido.

72
op. cit. p. 70. Grifo nosso.
279
O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma
e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram.
E irrompe deles a confissão de mútua
perdição.
Quanta espiritualidade eloquente e
engenhosa é dispensada, hoje, senão para
impedir; ou, pelo menos, para dissimular, este
fato! 73

O homem que vive no arbitrário não crê, e


não se oferece ao encontro (diálogo, relação eu-
tu).

Ele desconhece o vínculo.

Ele só conhece o mundo febril do „lá fora‟, e


seu prazer febril; do qual ele sabe se servir.
(...)
Na verdade, ele não tem um destino, mas
somente um ser determinado pelas coisas, e pelos
instintos.

E isto é realizado com um sentimento de


independência, que é justamente o arbitrário.

Ele não tem o grande querer. Este é


substituído pelo arbitrário.

Ele é totalmente inapto à oferta, ainda que


possa vir a falar dela.

Tu o reconheces pelo fato de ele nunca se


tornar concreto.

Ele intervém, constantemente e sempre, com


a finalidade de „deixar as coisas acontecerem‟.

Como se poderia te diz ele, deixar de


auxiliar o destino, deixar de empregar os meios
acessíveis exigidos para esse fim?22

73
op. cit. p. 69.
280
O homem arbitrário, incrédulo até a medula,
não pode perceber senão incredulidade, e
arbitrário; escolha de fins e invenção de meios.

O seu mundo é privado de oferta, e de


graça; de encontro (diálogo), e de presença.
Entravado nos fins e nos meios.

Este mundo não pode ser diferente. O seu


nome é fatalidade.

Assim, em sua auto-suficiência, ele é


engolfado, simples e inextrincavelmente, pelo
irreal.

E ele sabe disso.

Sempre que sobre si se concentra.

E é por isso mesmo que ele empenha o


melhor de sua espiritualidade para impedir ou, ao
menos, ocultar -- esta lembrança.

Mas, se a lembrança de sua decadência -- de


seu Eu inatural e de seu Eu atual -- permitir
alcançar a raiz profunda, que o homem chama
desespero -- e de onde brotam a autodestruição,
e a regeneração --, isto já seria o início da
conversão*. 74

74
op. cit. p. 71.
281
A FATALIDADE, O DECURSO PROGRESSIVO DAS
COISAS, E O SEU DOGMA

Enfraquecida a possibilidade e a potência da relação (eu-tu), no


mundo e na vida coisificados, a causalidade ilimitada conduz a vida e
o mundo ao decurso progressivo, e inalterável, das coisas.

E à crença no decurso.

Esta crença conduz a vida e o mundo ao mundo dos fatos, à


fatalidade inalterável, e à crença na fatalidade.

Sem potência criativa, a existência, o mundo, se coisificam, e


só se repetem.

É interessante observar que fatalidade não tem para Buber,


primariamente, o sentido de infortúnio, de evento desafortunado.

A Constituição da esfera do fato, o eu-isso, é natural, e


importante.

Só secundariamente é que a fatalidade se constitui como tal,


para Buber.

E conduz a vida e o mundo ao predomínio do mundo dos fatos,


à fatalidade inalterável, e à crença na fatalidade. Presididas
estas pela utilidade, e pela causalidade ilimitada.

E à crença no decurso.

Que, por si, fundamentalmente, se converte no decurso


inalterável, fixado, inevitável, irrevogável, das coisas.

Potencializado, este decurso, pela crença na sua inevitabilidade,


na sua irrevogabilidade, num suposto caráter inalterável e fechado:
potencializado pela própria crença na fatalidade.

No mundo contemporâneo, esta crença no decurso, e na


fatalidade, é reforçada pelos vários tipos de determinismo, e pelos
vários tipos de niilismo constituídos na sociedade moderna.

Referindo-se ao pensamento biologista, ao pensamento


historicista, e a outros determinismos e suas leis, Buber observa:

Por mais diferentes que possam parecer um


ao outro, colaboram para formar uma fé na

282
fatalidade mais tenaz e angustiante do que todas
as anteriores. (...)
Sob todas estas formas, e outras mais, o que
significa é que o homem está ligado a um devir
inevitável, contra o qual ele não lutaria senão em
seu delírio. (...)
É uma loucura imaginar a liberdade; não se
tem senão a escolha entre uma escravidão
voluntária ou uma escravidão desesperada e
rebelde. (...)
O fundamento que efetivamente todas elas
têm, é a obsessão pelo decurso das coisas. Isto é a
causalidade ilimitada.
O dogma do decurso progressivo é a
abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso.
Assim, o nome do destino será mal
empregado. Assim, atribuir-se a ele o nome
destino será um erro. Pois o destino não é uma
campânula voltada sobre o mundo dos homens.
Ninguém o encontra senão aquele que parte
de sua liberdade.
O dogma do decurso inelutável das coisas
não deixa, porém, lugar à liberdade, nem para a
sua revelação mais concreta: a conversão* 20
O dogma do decurso potencializa o próprio decurso.

Ele diz, na sua versão popular:

„Pau que nesce torto, não tem jeito, morre


torto.‟
E, na sua versão erudita,

As coisas sempre foram assim. As coisas


sempre vão ser assim. é quem pensa que elas
podem ser diferentes.
Mas não esqueçamos a advertência de Buber:

O dogma do decurso é falso desde o início...


A única coisa que pode vir a ser fatal ao
homem, é crer na fatalidade...
Fatal, mesmo, é crer na fatalidade.

283
ATUALIDADE, DECISÃO; LIBERDADE/DESTINO;
CONVERSÃO, SUBJETIVIDADE, PESSOA.

A causalidade, fator preponderante no mundo do Isso, motor


da fatalidade, e do decurso, quando este mundo do Isso perde a
possibilidade de atualização da relação EU-TU. A causalidade não
vigora, na esfera da relação (eu-tu).

Está livre da causalidade o homem que -- exercendo a


potencialidade de seu ser -- pode abrir-se e entregar-se à
possibilidade da atualidade da relação (eu-tu).

Isto é a liberdade.

A esfera da relação (eu-tu) pode garantir a liberdade do


homem.

Da vivência de seu episódio pode germinar e emergir a


decisão. Que permite ao homem reintegrar-se de modo ativo,
criativo, e transformador; no mecanicismo da causalidade do mundo,
e da vida, coisificados.

O reino absoluto da causalidade no mundo


do Isso -- embora de importância fundamental
para a ordenação científica da natureza -- não
aflige o homem que não está limitado ao mundo
do Isso. E que pode sempre evadir-se para o
mundo da relação (eu-tu).
Aí o Eu e o Tu se defrontam um com o outro
livremente. Numa ação recíproca que não está
ligada a nenhuma causalidade, e não possui dela o
menor matiz.
Aqui o homem encontra a garantia da
liberdade de seu ser, e do Ser.

Somente aquele que conhece a relação e a


presença do Tu, está apto a tomar uma decisão.
Aquele que toma uma decisão é livre, pois se
apresenta diante da Face.75
E a seguir:

A causalidade não oprime o homem ao qual é


garantida a liberdade.

75
op. cit. p. 60-1.
284
Ele sabe que sua vida mortal é, por sua
própria essência, uma oscilação entre o Tu e o
Isso.
E ele percebe o sentido desta oscilação.

Basta-lhe saber que pode, à todo momento,


ultrapassar o umbral do santuário. Onde ele não
poderia permanecer.

E mais ainda: a obrigação de deixá-lo logo


depois incessantemente, lhe está intimamente
ligada ao sentido e ao destino desta vida. (...)

O que aqui se chama necessidade não o


apavora.

Pois, lá, no santuário. ele conheceu a


verdadeira.

Isto é, o destino. 29
Decisão, relação (eu-tu), e destino estão para Buber, assim,
intimamente associadas.

É na dimensão da atualidade da relação que o homem pode


viver, imediata e intensamente, a multiplicidade de seus possíveis.
Engendrar e assumir o seu gesto, e ato, originais.

Gestar a sua ação original, única e potente. E determinar o


acontecimento, organizando e dinamizando, com a originalidade de
seu ser, e de seu ato, a configuração de seus possíveis.

Sobre o processo da decisão, na duração do evento da


atualidade, Buber coloca:

Eis aqui toda a substância ígnea de minha


capacidade de vontade em um formidável
turbilhão.
Todo o meu possível girando como um
mundo em formação, como uma massa confusa e
indissolúvel.
Eis os olhares sedutores das potencialidades,
flamejando de todas as partes. O universo como
tentação. E eu, nascido em um instante, as duas
mãos imersas numa fornalha, para apanhar o que
aí se esconde e me procura: meu ato.
Pronto! eu o tenho.
E, logo, a ameaça do abismo é proscrita, a
multiplicidade deixa de fazer valer a igualdade
cintilante de sua exigência; não existem mais que

285
dois na simultaneidade, o outro e o um. A ilusão, e
a missão.
Só então, porém, começa a minha
atualização.

Pois a decisão não consiste em atualizar o


um e deixar o outro estendido como massa extinta
que, camada por camada, aviltaria a minha alma.
Somente aquele que orienta, no fazer do
Um, a força do Outro; aquele que deixa entrar na
atualização do escolhido a paixão intacta do que foi
repudiado. Somente aquele que „serve a Deus com
o „mau instinto‟, se decide, e decide o
acontecimento. 76
Na atualidade da relação (eu-tu), decisão e liberdade
conjugam-se, na concepção que Buber faz do destino.

De modo que ele desenvolve uma concepção de destino na qual


estão necessariamente implicados a decisão e a liberdade.

O que aqui se chama de necessidade não o


apavora (ao homem ao qual é garantida a
liberdade).
Pois (...) ele conheceu a verdadeira, isto é, o
destino.
Destino e liberdade juraram fidelidade
mútua.
Somente o homem que atualiza a liberdade
(libertou a atualidade)77 encontra o destino.
Quando eu descubro a ação que me requer,
é aí, nesse movimento de minha liberdade, que se
me revela o mistério.

Mas o mistério se revela a mim não só


quando não posso realizar esta ação como eu
pretendia, mas também na própria resistência.
Aquele que esquece toda a causalidade, e
toma uma decisão do fundo de seu ser, aquele que
se despoja dos bens e da vestimenta, para se
apresentar despido diante da face -- a este homem
livre -- o destino aparece como réplica de sua
liberdade.

Ele não é o seu limite, mas o seu


complemento.

76
Op. Cit.
77
* Parêntesis nosso.
286
Liberdade e destino unem-se mutuamente
para dar sentido.
E, neste sentido, o destino -- até há pouco
olhar severo -- suaviza-se, como se fosse a própria
graça.

Não, o homem portador de centelha, que


retorna ao mundo do Isso, não é oprimido pela
necessidade causal.

E, em épocas em que a vida é sã, a


confiança se propaga a todo o povo, através de
homens de espírito (...):78
Quando das épocas mórbidas, Buber observa:

... Acontece que o mundo do Isso, não sendo


mais penetrado e fecundado pelos eflúvios
vivificantes do mundo do Tu -- não passando de
algo isolado e rígido, fantasma surgido do pântano
-- oprime o homem.
Nele o homem, contentando-se com um
mundo de objetos que não lhe podem mais tornar-
se presença, sucumbe.
A causalidade fugaz intensifica-se, até
tornar-se uma fatalidade opressora e esmagadora.
79

Para Buber, a conversão, não obstante, permanece sempre


possível.

A conversão é, para Buber, o engajamento do homem total na


concretude de sua existência (Von Zuben p.163).

A conversão pode ser a abertura que possibilita a emergência


da potência e possibilidade plástica da relação dialógica.

Não obstante a cristalização, em causalidade ilimitada, decurso


progressivo e inalterável, e fatalidade, próprios do mundo em que se
enfraqueceu a possibilidade da relação (eu-tu):

O desejo, elan impetuoso de redenção,


permanece, em última análise, insatisfeito. A
despeito de numerosas tentativas.
Até que o acalme aquele que ensina a
escapar do ciclo dos renascimentos, ou alguém que

78
op. cit. p. 61-2.
79
op. cit. p. 64-5.
287
salve as almas, subjugadas por poderes terrenos,
levando-as para a liberdade dos filhos de Deus.
Tal obra se realiza quando um novo
fenômeno de relação (eu-tu) se torna substância.
Quando uma nova resposta é dada pelo homem a
seu Tu, Acontecimento que determina o destino. 80

Buber aponta a parcialidade, e a falsidade, do dogma do


decurso progressivo e inalterável das coisas. A falsidade da crença na
fatalidade:

O dogma do decurso progressivo é a


abdicação do homem face ao crescimento do
mundo do Isso.
(...) Este dogma desconhece o homem que
pode vencer a luta universal pela conversão;
aquele que rompe, pela conversão, as amarras dos
impulsos de utilização; aquele que se liberta pela
conversão do fascínio de sua classe; aquele que,
mediante a conversão, pode revolver,
rejuvenescer, transformar quadros históricos os
mais seguros.
O dogma do decurso não te deixa no
tabuleiro senão uma opção: observares as regras
ou te retirares.
Aquele, porém, que realiza a conversão
derruba todas as peças.81
E, arremata brilhante:

A única coisa que pode vir a ser fatal ao


homem é crer na fatalidade, pois esta crença
impede o movimento da conversão.

A crença na fatalidade é falsa desde o


princípio.

Todo o esquema do decurso consiste


somente em ordenar como história o nada-mais-
senão-passado, os acontecimentos isolados do
mundo, a objetividade.

A presença do Tu, o que nasce do vínculo,


são inacessíveis a esta concepção, que ignora a
realidade do espírito.
Este esquema não apresenta valor algum
para o espírito.

80
Op. Cit.
81
op. cit. p. cit p.66.-7.
288
A profecia baseada na objetividade tem valor
apenas para quem ignora a presença.

Aquele que é subjugado pelo mundo do Isso


é obrigado a ver no decurso inalterável uma
verdade que esclarece a confusão.

Na verdade tal dogma deixa subjugar-se


mais profundamente ao mundo do Isso.

O mundo do Tu, porém, não é fechado.

Aquele que, na unidade do seu ser, se dirige


a ele, conhecerá profundamente a liberdade.

E tornar-se livre significa libertar-se da


crença na servidão. 82
Buber tematiza a relação entre a arbitrariedade*, e a
fatalidade.

A arbitrariedade que decorre da fatalidade e do fatalismo de um


Eu carente de atualidade, e cuja possibilidade de relação encontra-se
enfraquecida.

Ele, Buber, de um modo interessante, inicia falando da


possibilidade de submissão do mundo do Isso por aquele que o
conhece em sua natureza:

Assim como é possível dominar um íncubo


chamando-o pelo seu verdadeiro nome, assim
também o mundo do Isso -- que, ainda há pouco,
esmagava, com sua força espantosa, a fraca força
do homem --, é constrangido a submeter-se
àquele que o conhece em seu ser... 36
Contrapõe, a seguir,:

Mas, como poderia ser capaz de interpelar o


íncubo pelo seu nome, aquele que, no seu íntimo,
leva um fantasma.
Isto é, o Eu carente de atualidade?
Como a força de relação sepultada pode
ressurgir em um ente cujos escombros são
permanentemente pisoteados por um fantasma
vigoroso?

82
op. cit. p.67-8. 36 op. cit. p. 68.
*
Arbitrário. Proposital, causal, pragmático. Que não se dá e decide no dialógico, da relação eu-
tu.

289
Como poderia recolher-se um ser que está
constantemente perseguido em um campo vazio,
pela procura da subjetividade perdida?

Como conheceria profundamente a liberdade


aquele que vive no arbitrário*. 83
E, reiterando as palavras de Buber:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, também o estão o arbitrário e a
fatalidade.
Liberdade e destino, porém, são
comprometidos, mutuamente, para instaurarem,
juntos, o sentido.

O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma


e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação, e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram, e irrompe
deles a confissão de mútua perdição.

O homem livre é aquele cujo querer é isento


de arbitrário.
Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no
vínculo real que une a dualidade real do Eu e do
Tu.
Crê no destino e também que ele tem
necessidade dele.

Ele não o conduz em inteiras, mas o espera.


O homem deve ir ao seu encontro, mas não
sabe ainda onde ele está.
O homem livre deve ir a ele com todo o seu
ser, disso ele sabe.

Não acontecerá aquilo que a sua resolução


imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá
senão na medida em que ele resolver querer aquilo
que ele pode querer.

Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele


pequeno querer, escravo, regido pelas coisas e

83
op. cit p. 69.
290
pelos instintos, em favor do grande querer que se
afasta do “ser determinado”, para ir ao destino.
Ele não intervém mais. Mas nem por isso
permite que aconteça pura e simplesmente.
Ele espreita aquilo que por si mesmo se
desenvolve, o caminho do ser no mundo. Não para
se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo, como
ele deseja ser atualizado; pelo homem de quem
ele necessita, por meio do espírito humano e do
ato humano, com a vida do homem e com a morte
do homem.
Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se
oferece ao encontro. 84
Diferentemente do homem que vive no arbitrário,

O homem livre não tem, aqui, uma finalidade


e, lá, os meios para obtê-lo.
Ele possui somente um objetivo, e sempre
um: a resolução de ir de encontro ao seu destino.
Tomada essa resolução, pode lhe acontecer
de, às vezes, renová-la a cada etapa decisiva do
caminho.
Mas deixará de acreditar na sua própria vida,
antes de crer que a resolução de seu grande
querer é insuficiente.
Acredita que deve mantê-la por todos os
meios.
85
Ele crê; ele se oferece ao encontro.

84
op. cit. pp 69-70.
85
op. cit. p. 71.
291
O ARBITRÁRIO E A ARBITRARIEDADE

No encontro (episódio dialógico, eu tu, ação) participamos de


uma decisão. Participamos, não decidimos unilateral e
autocraticamente.

Buber diria, não criamos a possibilidade, mas ela não acontece


sem nós.

Participamos na decisão, que compartilhamos com a alteridade


viva, e atualmente dialógica do tu.

Esta decisão, assim não é arbítrio, arbitrária, mas dialógica,


diapoiética. Não causal, deproprosital, não pragmática. Dialógica.

Para o homem que absolutiza o mundo e a vida coisificados,


que absolutiza o mundo do Isso; para o homem em quem se
enfraqueceu a crença na relação, no dialógico. E que crê no decurso
progressivo e inalterável das coisas; para o que crê na fatalidade, e
abdica de seu poder de relação, de participação na dialógica, resta,
apenas, a possibilidade da vida no arbitrário (o conceitual,
subjetivista), a partir, não da vivência da dialógica do encontro, mas
da arbitrariedade.

É a arbitrariedade, cada vez mais desenvolvida, e


hipertrofiada, que decide.

Não é a vivência do desdobramento da possibilidade que leva à


decisão. Na dialógica da ação (eu-tu), imprevisível, intensa, múltipla
e incontrolada. Que vivifica, anima e transforma a sua vida, e a sua
realidade.

Buber comenta:

Assim como liberdade e destino estão


interligados, assim, também, o estão o arbitrário e
a fatalidade. 86

Liberdade e destino, porém, são


comprometidos mutuamente para instaurarem,
juntos, o sentido.

O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma


e pesadelo do mundo, toleram-se vivendo um ao

86
op. cit. p. 70. Grifo nosso.
292
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram.
E irrompe deles a confissão de mútua
perdição.
Quanta espiritualidade eloquente e
engenhosa é dispensada, hoje, senão para
impedir; ou, pelo menos, para dissimular, este
fato! 87

O homem que vive no arbitrário não crê, e


não se oferece ao encontro (diálogo, relação eu-
tu).

Ele desconhece o vínculo.

Ele só conhece o mundo febril do „lá fora‟, e


seu prazer febril; do qual ele sabe se servir.
(...)
Na verdade, ele não tem um destino, mas
somente um ser determinado pelas coisas, e pelos
instintos.

E isto é realizado com um sentimento de


independência, que é justamente o arbitrário.

Ele não tem o grande querer. Este é


substituído pelo arbitrário.

Ele é totalmente inapto à oferta, ainda que


possa vir a falar dela.

Tu o reconheces pelo fato de ele nunca se


tornar concreto.

Ele intervém, constantemente e sempre, com


a finalidade de „deixar as coisas acontecerem‟.

Como se poderia te diz ele, deixar de


auxiliar o destino, deixar de empregar os meios
acessíveis exigidos para esse fim?22

87
op. cit. p. 69.
293
O homem arbitrário, incrédulo até a medula,
não pode perceber senão incredulidade, e
arbitrário; escolha de fins e invenção de meios.

O seu mundo é privado de oferta, e de


graça; de encontro (diálogo), e de presença.
Entravado nos fins e nos meios.

Este mundo não pode ser diferente. O seu


nome é fatalidade.

Assim, em sua auto-suficiência, ele é


engolfado, simples e inextrincavelmente, pelo
irreal.

E ele sabe disso.

Sempre que sobre si se concentra.

E é por isso mesmo que ele empenha o


melhor de sua espiritualidade para impedir ou, ao
menos, ocultar -- esta lembrança.

Mas, se a lembrança de sua decadência -- de seu Eu inatural e


de seu Eu atual -- permitir alcançar a raiz profunda, que o homem
chama desespero -- e de onde brotam a autodestruição, e a
regeneração --, isto já seria o início da co

294
HISTÓRIAS DE SOTEGUI KOUYATÉ

Sotegui Kouyaté era membro de uma dinastia da África


ocidental. Uma dinastia cujo nome significa 'nós temos um segredo'.
Uma dinastia de contadores tradicionais de histórias. De 'griots'.

As culturas da África possuem uma profundidade...

Não, não, não se trata de profundidade...

É como as culturas da India...

As culturas tradicionais da África são de uma depuração, de um


refinamento humano... Perto dos quais a cultura dos EUA, por
exemplo, lembram um cavalo chucro... Ou um elefante, numa loja de
cristais...

Um 'griot' é um contador tradicional de histórias da África


ocidental. Mas ele não é só isso...

Um 'griot' é uma instituição que não tem paralelo na cultura da


civilização ocidental...

Ele é uma espécie de memória social, de memória entre as


gerações, um sábio refinado, repositório da sabedoria da cultura,
depurado pelo contato com a tradição.

Mas, isso significaria pouco, se ele não fosse um refinado


intérprete de sua tradição. De sua tradição viva.

Um refinado intérprete.

Quer dizer, um intérprete que interpreta vida.

Um intérprete vivo, que interpreta a vida viva.

E a vida é fenomenológica.

E não coisas.

Nesta hermenêutica, o núcleo de sua arte, e de sua pedagogia.

Por 'refinado intérprete' entendamos, pois, um hermeneuta da


vitalidade de sua tradição. Um hermeneuta de sua tradição viva. Um
hermeneuta vivo de sua tradição. Um hermeneuta da presença e da
atualidade de sua tradição.

E não um hermeneuta do passado, da letra morta, de sua


tradição.

295
Aí, que Sotengui Kouyaté se confunde, e se incendeia, com o
teatro. No fogo manso da dialógica diapoiética. De vida, e Teatro.

Os dramaturgos ocidentais apaixonaram-se por ele.

Peter Brooks o viu interpretando, e convidou-o a trabalhar com


ele, na França.

Veio ao Brasil, e fez cursos com turmas de Teatro.

E por todo o mundo.

Mas não deixou de advertir:

O nome disso (Teatro) é: 'encontro'.

Sotengui não se encontrava com atores formais, ou


dramaturgos. Mas, com gente. Precavendo-se contra a reificação,
mortal, do teatro.

O Teatro é a vida.

A vida é Teatro.

Vida e Teatro são encontro.

'As artes do encontro'.

Os encontros da arte.

Os encontros que nos fazem, e desfazem.

O encontro com os outros, com os outros seres, e com o


mundo. O encontro consigo próprio.

Só que, neste encontro, o outro, em específico, não é objeto.

Seja ele quem, ou o que, for.

Mas 'jeto'.

E, nesse encontro, nós não somos sujeitos.

Mas, atores.

Não sujeito e objeto, mas eu-tu.Nem objetividade, nem


subjetividade. Mas transjetividade.

Depois, não sobra nem o outro. Mas a 'dia', a 'esfera do entre'.

Dia-lógica, porque dia-poiética.

Nas intensidades da qual erramos.

296
Porque, entregues às intensidades, de modo não causal,
desproposital, não útil, irreal de sermos. Nas asas do possível.

Na presença e atualização da fenomenologia do erro. Da


errância... O modo mais sensível de sermos. A nossa sensibilidade
emocionada.

Buber diria: "o outro nome é 'dialógica'".

Comparados com Sotengui, Rogers, e Perls são meros, e


desengonçados, aprendizes.

É interessante ver, a distinção, e a proximidade entre Sotegui


Kouyaté e Martin Buber.

Principalmente, o Buber de 'Histórias do Rabi'.

No qual ele interpreta vultos e episódios da tradição judaica, da


região do Mar Negro, do Cáspio, e do Danúbio, principalmente.

Apesar de ser um mestre, e um repositório, da tradição,


Sotengui nos ensina, encontrar um 'griot' não é um encontro com o
passado.

Atualidade, e presença, são, pois, as marcas, suavemente


incandescentes, do encontro com um 'griot'.

Porque 'presença' é o modo pré-coisa de sermos, o modo de


sermos em que episodicamente não somos coisa.

E 'atualidade' é a ação inerente a presença, em que não somos


sujeito, nem objeto, mas atores. Necessariamente, poiéticos, e
estéticos.

E a questão da presença, e da atualidade, a questão da ação, a


questão do ator, é o tu.

Inclusive a questão do tu, o devir, de um eu, desconhecido, e


alteritário. Que brava, e ludicamente, se oferece à experimentação.

Arriscar, tentar, é o sentido da experimentação.

Arriscar, tentar, inclusive um eu que se oferece à poiética, e à


estética da hermeneutica. Da diferença...

Esperar.

Esperar e errar, a errância nas asas não propositais, não


causais, e inútieis, das intensionalidades do possível.

Esperar e errar com o possível ignoto, sob a forma de tu. A


sensível errância nas intensionalidades do possível, da ação.

297
Esperar e errar, porque já não somos mais sujeitos de uma
ação. Nem o outro objeto.

Mas tu. Vivo. Incontrolado, imprevisível. Com o qual podemos


interagir. Mas não prever, ou controlar a heteronomia.

A impaciência, e o voluntarismo, do sujeito são assincrônicos


com a errância intensional do ator. E com sua sincronia com o tu.
Encontro.

298
O DESENCANTAMENTO, E O ENCANTAMENTO DAS
COISAS

A Martin Buber,
desde o tempo em que
ele era uma coisa,
no livro sobre a banca de estudos
na Biblioteca...

O mais encantador com relação ao encantamento e


descantamento das coisas, é que, por mais que, com o seu dedo
clean, e podre -- que apodrece o que toca --, a cultura da
modernidade tente extinguí-los, ela não o consegue.
As coisas, o mundo, a vida são encantados. Encantam-se e
desencantam-se. E isso é irreparavelmente ontológico.
As coisas, o mundo, a vida, são ontológicos e ônticos.
Transitam do ontológico ao ôntico, e do ôntico ao ontológico. E isto
é... ontológico...
O encantamento das coisas é que elas podem ser coisas,
objetos, reflexão, conceitos. E podem ser possíveis, sentido,
compreensão, poiese, regeneração...
A vivência do possível é pré-coisa, e por isso ele é presente. E
neste presente, ele tem a vida de sua atualidade. Que é ser ação, ser
ator. E ser ator é ser outro. Criação e superação.
A vivência das possibilidades, a ação, se instala em coisa.
E, assim, perde o seu encanto. E se desencanta.
Mas o desencantamento propicia um encantamento. Porque, na
coisa instalada encanta-se um tu provocativo.
E transitado o tempo da instalação da coisa, e aos olhos
sensíveis, e ativos,, a coisa se desencanta em TU.
E, enquanto tu, ela é presente, atualidade, ação. Possível,
possibilidade em desdobramento.A vivência da dramática formativa,
gestaltificativa, da ação.

299
PAULO FREIRE,
MAIS FENOMENOLOGIA E DIÁLOGO

Quem via aquela figura franzina, até frágil, doce incrivelmente


imensas revoluções, no Brasil, e no mundo acerca da sociedade,
cultura, e educação...
Aí podíamos entender a idéia do zen, As ideias revolucionárias
vêm em pés de pomba...
Pois Paulo Freire disparou duas revoluções, no Brasil, e no
mundo, no âmbito da educação.
Uma ética. A outra metodológica.
Ambas coerentemente articuladas.
De tal modo que o ético perpassa o metodológico; e o
metodológico atravessa, e fertiliza o ético.
A ética marxiana Cristã permitiu a Paulo Freire compreender a
desumanidade da alienação, e da dominação, na colonização, e na
sociedade brasileira. E contra ela se insurgir. Insurgir-se contra a
desumanidade da miséria e da dominação, e de sua reprodução.
Declaran do uma educação, e uma Pedagogia, que não estariam a
serviço da alienação promovida pela dominação, e pela miséria.
Para tal, foi crucial a utopia marxiana, para a compreensão da
alienação na colonização, e na sociedade brasileiras.
E para a criação do escopo de uma utopia de educação, e de
Pedagogia não alienantes. A esta ética articulada.
No método desta Pedagogia é que está a segunda revolução
disparada por Paulo Freire. E ele constitui a fenomenologia e o
diálogo como método, e ética, estritamente consequentes com
relação à responsabilidade e compromisso, contra a alienação, de sua
ética marxiana.
Um aparente conflito passa a vigorar na fundamentação da
abordagem freireana, entre a abordagem marxiana, e a metodogia
fenomenológico-existencial dialógica, ambas intrínsecas e necessárias
à abordagem de Paulo Freire.
Originalmente, um conflito, aparentemente, de natureza
epistemológica; que, na verdade, resulta de uma ignorância. Conflito
que, baseado na ignorância, ganha uma condição dogmática.
Ancorada no velho ressentimento.

300
Os sucessores de Paulo Freire não souberam identifica-lo, e
desvendá-lo. E a abordagem de Paulo Freire ficou, aparentemente,
com um paradoxo em seus fundamentos.
De um lado, a ética e a análise e crítica social marxiama.
Fundada na dialética. De outro a metodologia fenomenológico-
existencial dialógica, vista de um modo desinformado, e
preconceituoso, pelos marxistas ortodoxos.
Teoricamente, Paulo Freire parece ter ficado paralisado no
conflito. Tímido de afirmar, diante das resistências, seus fundamentos
fenomenológico existenciais, dialógicos; e a filosofia da vida, de F.
Nietzsche.
Ele sabia que ambas as raízes eram intrínsecas, e
fundamentais, em sua abordagem. E não hesitou em operacionalizá-
las. Mas a ortodoxia, e a resistência podem tê-lo intimidado a afirmar
a raiz fenomenológico existencial e dialógica.
Seus sucessores, igualmente, não conseguiram superar o
impasse.
É interessante observar que, quando nos referimos à raiz
fenomenológico existencial e dialógica, não estamos nos referindo a
nenhuma abordagem de filosofia fenomenológica, mas à opção
metodológica de lidar com as pessoas na imediaticidade empírica da
relação fenomenológico existencial dialógica com elas.
A Dialética, que fundamenta a abordagem marxiana, é
naturalmente, fortemente avessa ao empirismo. Porque o empirismo
não é crítico do empírico. E não apreende o devir do movimento
histórico, segundo as determinações não empíricas do concreto.
E identifica o empirismo na fenomenologia, e na abordagem
dialógica.

301
A INTERPRETAÇÃO – A HERMENEUTICA --, e a
EXPERIMENTAÇÃO EM BUBER

A experimentação – e a interpretação, fenomenológicas –


em Buber, ligam-se à constituição ontológica da liberdade, para a
decisão. Na a constituição, atual e presente, da dramática do
destino, na presença, e atualidade do encontro.
Da relação eu-tu, do dialógico, diapoiético.
O encontro não é arbitrário.
No episódio da relação eu-tu, vivemos, como liberdade, a
disponibilidade das possibilidades, que nos permite, segundo Buber, a
decisão, e a definição do destino.
A liberdade que a vivência do encontro faculta --, como
possibilidade da decisão, e determinação do destino --, nasce de, e
em, sua atualidade, e presença. Na atualidade, e presença, do
encontro dialógico.
Atualidade, e presença do encontro, no qual, na esfera do
entre, do inter, que eu e tu constituem, com seu encontro -- de
caráter mutuamente provocativo, e interessante --, eu e tu,
pontualmente, atuais e presentemente, interagem como
possibilidades.
Num encontro que, em si, se dá como desdobramento de
possibilidades, dramática, ação. Que aufere seus movimentos do
desdobramento da interação de suas intrínsecas possibilidades.
E não arbitrariamente.
Assim -- alteritários, eu e tu --, têm os seus movimentos na
atualidade, e na presença de seu encontro. Como dramática da ação.
Inter-ação.
Drama quer dizer ação.
Por este motivo, a fatalidade não existe, neste encontro.
Já que, poiético, desdobramento de possibilidades, sua
atualidade e presença significam que ele é fazer, e não fato, feito.
E -- reassegurando seu caráter desproposital, e não
arbitrário --, a causalidade nele não vigora.
Já que ele aufere seus movimentos, da dramática, dialógica e
diapoiética, de seu desdobramento de possibilidades. Possibilidades
intrínsecas, à sua atualidade, e presença.

302
Algo diverso se passa com o momento ôntico, do eu-isso.
Em princípio, nada de errado com o modo ôntico. Eu-isso, de
sermos...
Mas, a qualidade de vida começa a precarizar-se, qundo se
enfraquece a possibilidade da alternância eu-isso eu-tu. E o modo
ôntico eu-isso se instala como predominante.
O modo eu-isso é o modo de sermos de constituição do
acontecido. De constituição do feito. Do fato, da fatalidade.
E a causalidade é constituinte da fatalidade.
O divinamente poiético modo de sermos em que não vigora a
causalidade -- e a utilidade, o propósito, a fatalidade, a coisidade --,
é o modo dialógico, eu-tu, de sermos.
Modo près-ente, pré-coisa, de sermos.
O Modo ente, ôntico,de sermos, é o modo de sermos coisa.
Coisa é o que não é mais possibilidade, momentâneamente.
De modo que, enquanto tal -- ligado à fatalidade, à coisidade, à
causalidade --, o modo eu-isso de sermos é o modo no qual cresce o
decurso coisificado das coisas. Mecanicamente movido pela inércia da
causalidade.
Sem originalidade, e movido à repetição.
E o modo de sermos em que se extingue a possibilidade da
vivência da atualidade, e da presença do encontro dialógico, em sua
imediaticidade.
Proscrito o encontro, a relação eu-tu, e seus efeitos e
processos, cresce o arbítrio.

Crescendo a fatalidade, e o seu decurso. Crescendo, a


causalidade, e o arbítrio – diríamos ao estilo de Buber – onde resta
lugar para a vivência da multiplicidade de possibilidades? Para a
decisão, para a escolha, e para a constituição do destino.
Onde restaria lugar para o tentar, e arriscar, da
experimentação?
O mundo do isso, cada vez mais reificado, desvitaliza-se, e se
enrijece, cada vez mais.
O eu se torna, cada vez mais, egótico, e arbitrário.
Cada vez mais privado da oferta da possibilidade, e do diálogo.
Não esqueçamos, a experimentação só se dá na duração, ns
transjetividade, do episódio do diálogo. No desdobramento do
encontro com o tu.

303
Tu, que pode ser da natureza não humana, inter humano, ou
sagrado.
Mas, só na dramática do encontro, da interação eu-tu, podem
se dar a vivência das possibilidades, como liberdade, a decisão, e o
destino – a partir daí.
Constituintes, essenciais, da hermenêutica, da interpretação; e
da experimentação fenomenológicas. Do diálogo, e do destino.
Relação, liberdade, decisão, e destino estão vinculados.
Enquanto que, igualmente, se relacionam fatalidade,
causalidade, e arbítrio.
Buber comenta,
Assim como liberdade e destino estão
interligados, assim, também, o estão o arbitrário e
a fatalidade.

Liberdade e destino, porém, são


comprometidos, mutuamente, para instaurarem,
juntos, o sentido.

O arbitrário e a fatalidade, fantasma da alma


e pesadelo do mundo, toleram-se. Vivendo um ao
lado do outro, mas esquivando-se, sem ligação, e
sem atrito, no absurdo.

Até que, em determinado momento, os


olhares distanciados se reencontram, e irrompe
deles a confissão de mútua perdição.

O homem livre é aquele cujo querer é isento


de arbitrário.
Ele crê na atualidade, isto é, ele acredita no
vínculo real que une a dualidade real do Eu, e do
Tu.
Crê no destino, e também que ele tem
necessidade dele.

Ele não o conduz em inteiras, mas o espera.

O homem deve ir ao seu encontro, mas não


sabe ainda onde ele está.

O homem livre deve ir a ele com todo o seu


ser, disso ele sabe.

304
Não acontecerá aquilo que a sua resolução
imagina, mas o que aconteceu, não acontecerá
senão na medida em que ele resolver querer aquilo
que ele pode querer.

Ser-lhe-á necessário sacrificar aquele


pequeno querer escravo, regido pelas coisas e
pelos instintos. Em favor do grande querer, que se
afasta do “ser determinado”, para ir ao destino.

Ele não intervém mais.


Mas nem por isso permite que aconteça pura
e simplesmente.

Ele espreita aquilo que por si mesmo se


desenvolve, o caminho do ser no mundo.

Não para se deixar levar por ele, mas para


atualizá-lo, como ele deseja ser atualizado; pelo
homem de quem ele necessita, por meio do
espírito humano e do ato humano, com a vida do
homem e com a morte do homem.

Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se


oferece ao encontro. 88

88
BUBER, Martin Eu e Tu, São Paulo, Cortês, 1985. pp 69-70.
305
306

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