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MANUELA CARNEIRO DA CUNHA SAMUEL BARBOSA (ORGS.) DirRE!ITOs Dos POVOS INDIGENAS EM DISPUTA editora unesp 10 TerRA INDIGENA: HISTORIA DA DOUTRINA E DA LEGISLAGAO" Manuela Cameiro da Cunha Doutrina A soberania dos povos indigenas da América foi questao fundamental na discussdo da legitimidade dos titulos espanhéis e portugueses sobre o Novo ‘Mundo. Certas teses teriam tido, para os reis ibéricos, uma conveniéneia imediata. O Ostiense (Henrique de Susa, cardeal-arcebispo de Ostia, cano: nista do século XIII e autor da Summa Aurea), por exemplo, sustentava que (8 povos gentios sé haviam gozado de soberania até o advento de Cristo, que, tendo vindo ao mundo, havia desde entao sido investido de todos os poderes espirituais e temporais. Por delegacio de Cristo, tanto o império quanto 0 sacerdécio cabiam ao papa. Assim, os infiéis podiam ser despojados de seus reinos e bens pela autoridade papal. Apesar desua conveniéncia evidente para justificar os titulos que o papa distribuira a leste ea oeste de Tordesilhas, as teses do Ostiense e as que so- bre elas se apoiaram ndio prevaleceram. Ao longo do século XVI, firmou- se, ao contrério, na Espanha e em Portugal, a doutrina que negava o poder temporal do papa sobre os infiéis e a jurisdicao europeia nas terras recém- -descobertas. Afirmava a plena soberania original das nagées indigenas. Essa posicio baseava-se em teses to antigas quanto as do Ostiense: 0 apa e canonista Inocéncio IV, no século XIII, sustentara que o papado no “1 Ertecopituloé um excert de um vee datad de 1987, ntitlado Os Diets do di. Ensaio « docamentos, da Elitora Brasilinse 282 MANUELA CARNEIRO DA CUNHA E SAMUEL BARBOSA (ORGS) podia despojar os infigis de seus dominios e jurisdigdes.? E Sao Tomas de Aquino, distinguindo entre direito divino e direito humano, afirmava, con- ‘rao Ostiense, que a vinda de Cristo no havia anulado os bens ea soberania dos povos gentilicos.? Quanto a Inglaterra, como seria de esperar a rainha Elizabeth I no entrou em considerades juridicas para contestar o direito com que o “bispo de Roma” distribuia as terras recém-descobertas Contraas ideias de Richard Fitzralph (expressas em De Pauperie Salvato- ‘ris, de 1350) e as de John Wycliffe e de. ‘Armagh, condenadas como heréticas xno Concitio de Constanca, e que sustentavam que o dominio era fundado na graca divina (e supunha, portanto, a fé e a caridade), levantaram-se os nomi- nalistas e conciliaristas franceses Pierre d’Ailly e Gerson. Em 1381, d’Ailly Aissociava a questdo do dominio da questo da fé e da caridade: tal como um sacerdote indigno podia administrar sacramentos validos, assim também. pecadores e infigis podiam ter dominio Gerson, que sucedeu ad Ailly como chanceler da Universidade de Paris, argumentava na mesma linha que, da mesma forma que Deus nao retira 20 pecador suas faculdades naturais, tampouco lhe retira o dominio das coisas.$ Assim, no inicio do século XVI, o superior da Ordem dos Dominicanos de Roma, ocardeal Cayetano, sustentou, nos seus Comentdrias @ Secunda Secun- dae de Sao Tomas (questo 66, art. 8), que os infiéis podiam gozar de direitos e soberania, Introduziu também a distingio entre infiis inimigos dos cristios (tais como os mouros)¢ 0s que ni os hostilizavam, como era 0 caso dos indlios. Joao Maior, famoso nominalista da Universidade de Paris, em 1510 re- forgou as teses de Gerson. O reino de Cristo, diz ele, ndo é deste mundo e © papa s6 detém o primado espiritual, sem deter o temporal. Tampouco 0 imperador é senhor do orbe. Enfim, o dominio néo se fundamenta no di- reito divino, nao depende da fé e da caridade, e sim no direito natural: 0s in. ios tinham, portanto, propriedade, liberdade e jurisdigdo. Como Cayetano, Maior distinguiu os indios dos sarracenos com dois critérios: o de ‘possuirem ou nio terras “originalmente cristés” (como a Terra Santa) eo de se oporem ou no a pregagio da fe. 2 Inoeéncio IV, Apparatus ad quinue lire Decals, I, 4,8 3 Aquino, Socnda Senda, 10,10. 4 Oakley, Te Political Thought of Pie Aly, 74-92 5 Gerson, De Vita Spirituali Animae, em Tuck, Natural Rights Theories, p.25-7. 6 Zavala, Las nstituciones juridicas en la conusa de America, p45, Frei Francisco de quem Carlos V consu a soberania original d lecciones, que se intitu nio legitimos, pelos g ara 0 poder dos espar panhéis contra os bart testa uma um os argur original. Afirma, assin Pecado mortal nio imy ores, tanto publica q -lhes seus bens por ess de auséncia de razo ot ros senhores, porque, « sio dementes ja queas © imperador seja senho ar as provincias dos b ‘g0secobrartributos”.” oorbe e, se o fosse, nic pes seculares. Sendo, px tomava-se absurdo pre que o direito de descober este titulo, nio é precis barbaros eram verdadei -entes que se conceda ac pardgrafo ‘Ferae bestiae sob este titulo”. E Vitéri descoberta) néo justific: ‘les nos houvessem dese ‘A mesma posigio é s los 2e3. Afirma que os} as Indias pelo descobrim 7 Instsigdes de Justiniano, 8 Vitiria, Relaciones, 176,

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